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Alergias e intolerâncias: novos debates antropológicos sobre

insegurança alimentar e o papel conscientizador do ciberativismo.


Tatiana Neis Elesbão
Universidade Federal de Pelotas

Resúmen: La alimentación humana tiene clasificaciones culturales, que definen qué


alimentos son comestibles y cuáles están prohibidos. Actualmente nuestra alimentación está
globalizada, podemos comer cualquier cosa, en cualquier momento, lugar y cantidad. A esto
se suman las nuevas tecnologías incorporadas a la innovación alimentaria, que modifican y
manipulan los alimentos, dando como resultado un alimento cuyo proceso de producción es
desconocido para la población; Además, dar a conocer los riesgos de comer ciertos alimentos
contribuye a que el comensal se vuelva cada vez más consciente, politizado y receloso de la
elección de alimentos. Sin embargo, existe otro tipo de inseguridad en relación a la
alimentación, pues quienes padecen intolerancias o alergias alimentarias necesitan estar
seguros de que comerán algo que no les cause reacciones adversas en su organismo. En 2016,
Anvisa (Agencia Nacional de Vigilancia Sanitaria) respondió a las solicitudes de un grupo en
Facebook, estableciendo que todas las etiquetas de alimentos y bebidas envasadas en ausencia
del consumidor deben resaltar la presencia de los principales alérgenos e indicar la presencia
de contaminación cruzada. El artículo tiene como objetivo analizar la inseguridad alimentaria
a la luz de las alergias e intolerancias, condiciones innatas o adquiridas que requieren cambios
en el modelo alimentario de los portadores, y cómo internet ayuda a esclarecer y concienciar a
la población, a través de publicaciones informativas en las redes sociales.
Palabras clave: antropología de los alimentos, alergia alimentaria, intolerancias
alimentarias, ciberactivismo.

Introdução: comer é um ato biológico e social

A alimentação é a primeira aprendizagem social do ser humano – adquirida através da


família, no grupo étnico, classe social, comunidade local ou nação – e é através dela que se
molda a conduta alimentar individual (Contreras & Gracia, 2011). Ela representa o processo
voluntário e consciente de obtenção de produtos alimentares do ser humano para seu
consumo, ocasionando processos de transformação destes alimentos dentro do organismo,
estudados pela nutrição (Proença, 2002). Esta aprendizagem perpassa, antes de tudo, a
biologia, pois o ser humano é, por natureza, onívoro. Isto quer dizer que não possuímos uma
dieta específica, podemos comer de tudo e nos ajustamos às mudanças do entorno.
Evidentemente, essa liberdade de poder comer de tudo traz consigo a dependência da
variedade, e a consequência desta condição é viver sob um inerente paradoxo
comportamental, fisiológico e cognitivo relacionado aos regimes alimentares. O paradoxo
consiste no fato da necessidade de variedade alimentar trazer consigo a tendência ao impulso,
à diversificação, exploração, inovação – uma neofilia; simultaneamente, forçamo-nos à
prudência, à desconfiança, pois todo alimento desconhecido é um perigo em potencial – esta
desconfiança é no sentido de uma neofobia. Consequentemente, nem tudo que é
biologicamente comível é culturalmente comestível, porque sistemas culturais diferentes
operam com distintas escolhas alimentares humanas. Para resolver este paradoxo, deve-se
construir um corpo de práticas, representações, regras e normas ditadas à cozinha de um
grupo humano, que repousam sobre classificações (Fischler, 1990).
Mas a alimentação vai além da esfera biológica: é o encontro entre natureza e cultura, isto
é, o ponto de fusão entre o necessário para nossa sobrevivência e o quê, quando e com quem
vamos comer – este último determinado por um sistema que implica significados ao ato
alimentar (Maciel, 2005). Ainda, a alimentação possui, ao mesmo tempo, uma função
biológica vital e uma função social essencial, ilustrando como os seres humanos são,
simultaneamente, organismos biológicos e entes sociais (Contreras & Gracia, 2011). Douglas
(1972), em seu artigo "Deciphering a Meal", demonstra que a comida é como um código.
Visto que um código fornece um conjunto geral de possibilidades para o envio de mensagens
específicas, então as mensagens codificadas pelo alimento serão encontradas no padrão das
relações sociais expressas - graus de hierarquia, inclusões e exclusões, estabelecimento de
limites - e as categorias de alimentos codificam eventos sociais. As mensagens contidas em
uma comida fazem parte de um determinado habitus alimentar e de um modelo alimentar
inserido em uma dieta, que faz parte do modelo alimentar de cada comensal, podendo ser
partilhado ou não - habitus refere-se ao “sistema dos esquemas interiorizados que permitem
engendrar todos os pensamentos, percepções e as ações características de uma cultura, e
somente esses” (Bourdieu, 1982, p. 349). Portanto, ao invés de perguntar por que comemos
certos alimentos mais que outros, devemos perguntar por que não comemos certas
substâncias, ou seja, porque não consumimos tudo que é comestível. A resposta é simples:
tudo que é biologicamente comível não é culturalmente comestível, pois sistemas culturais
diferentes operam com distintas escolhas alimentares humanas (Fischler, 1990), isto é, o
homem se alimenta de acordo com a sociedade a que pertence, e é a sua cultura que define o
que é comestível e as proibições alimentares (Garine, 2001). O corpus classificatório
fabricado pelas culturas, que determina o comestível e o não comestível, inclui a noção de
risco alimentar em seu escopo – por conseguinte, o risco é uma noção subjetiva, imbuída de
práticas culturais, posto que cada sociedade classifica os alimentos também de acordo com o
risco que representam (Galindo & Portilho, 2016).
No último quarto do século XX, o que está em voga é, ao mesmo tempo, a restrição e o
prazer, o regime e a arte culinária. “O que comer?” e “Como comer?” são perguntas
frequentes. Tudo se coloca como se o ato alimentar fosse um problema delicado, difícil, talvez
insolúvel, para o indivíduo, e a comida cotidiana, com efeito, tornou-se tão problemática, tão
longe de ser simples, que atualmente há a preocupação em ensinar as crianças a comer,
havendo sido inventado para tal “a educação nutricional” (Fischler, 1990). Portanto, há
defasagem entre o risco considerado pelos leigos e pela ciência, em que os primeiros se
pautam em fatores sociais empíricos das consequências sobre comer ou não algo, enquanto a
segunda baseia-se em cálculos de probabilidades e de consequências, ocasionando um custoso
diálogo entre ambas as partes.
A globalização é um fenômeno que ajudou a alimentação a alcançar o protagonismo nas
discussões dentro e fora do ambiente acadêmico, visto que atualmente alimentar-se independe
do tempo e do espaço, possibilitando a algumas sociedades consumirem qualquer coisa, a
qualquer momento, em qualquer lugar e quantidade (Garine, 2001). Tal fenômeno atinge
todas as dimensões da vida humana, resultando no consumo de alimentos produzidos
completamente fora do alcance dos nossos olhos. Com o desenvolvimento da indústria
agroalimentar, chega para o comensal um produto já transformado, praticamente pronto para
consumo (Fischler, 1990). Com a população conhecendo somente os elementos finais do
processo de produção desses produtos, depositam neles os sentimentos e atitudes de
preocupação, ansiedade e insegurança, pois nem todos os processos e produtos estão de
acordo com as representações culturais apreendidas pelos diversos grupos sociais. Assim, os
sistemas de produção-distribuição evoluem mais rápido que os sistemas de representações
sociais sobre a alimentação. E, devido a este descompasso, as indústrias alimentares mantêm
um nexo palpável entre o consumidor e a natureza, pois apresentam um alimento
artificializado ao mesmo tempo em que se preocupam em conservar seu aspecto natural.
Barbosa (2009) elucida uma transformação na maneira que comemos: o que antes era
uma atividade rotineira e familiar, agora é algo mais consciente e politizado, em grande parte
pela ajuda dos conhecimentos científicos sobre nutrição, pelo desenvolvimento das ciências
sociais, pela emergência de questões ambientais e ecológicas relativas ao consumo alimentar
ocidental, entre outros. Com os escândalos alimentares nos anos 1990 (febre aftosa, doença da
vaca louca) e os organismos geneticamente modificados, a alimentação deixa de ser presença
exclusiva em debates sobre segurança alimentar e nutricional e ocupa um lugar importante na
mídia, nos debates públicos e nas decisões cotidianas, culminando em uma alimentação
politizada nos âmbitos da produção, distribuição, comercialização e nas formas e locais de
aquisição e preparo dos alimentos. A comida surge como mediadora das relações entre o
Estado, corporações e indivíduos, e ocorre a divulgação ou silenciamento sobre os riscos.
Com isso, a confiança em relação à comida torna-se abstrata, pois o elemento perigoso na
comida pode não ser percebido por nossos sentidos. A combinação desses fatores resulta em
um consumidor politizado, que percebe e usa suas práticas e escolhas de consumo como
participação na esfera pública, materializando a adesão a valores em prol de melhorias sociais
e ambientais, e as ações são vistas como influenciadoras globais (Portilho, Castañeda &
Castro, 2011).

As implicações das alergias e intolerâncias alimentares no comer

A partir do panorama sobre os aspectos biológicos e sociais da alimentação originou-se a


minha pesquisa de graduação (e o presente artigo é fruto dela), pois quando iniciei os estudos
sobre antropologia da alimentação o debate sobre alergia e intolerância alimentar estava
efervescente, através do crescimento do número de lojas dedicadas ao público alérgico e
intolerante - que também atingem o público vegano, mas estes constituem objeto de outra
discussão - somado ao ineditismo do tema na Antropologia, encontrei na área da Nutrição
duas dissertações que, utilizando-se do método qualitativo de pesquisa, abordam o tema da
intolerância à lactose e da alergia à proteína do leite de vaca, que me ajudaram a entender
alguns conceitos do campo e a trazer para a disciplina a problemática das escolhas alimentares
cerceadas por razões biológicas (uma dissertação tinha como objeto os familiares
responsáveis pelo cuidado de crianças e adolescentes com APLV 1 confirmada, e a outra
utilizou a abordagem qualitativa junto à quantitativa, para compreender o conhecimento dos
profissionais sobre APLV e IL2). Ainda sobre a pesquisa, além de revisão bibliográfica para
entender os efeitos da intolerância alimentar no organismo, e da procura por referências sobre

1
APLV é a sigla para Alergia à Proteína do Leite de Vaca.
2
IL é a sigla para Intolerância à Lactose.
alergia e intolerância alimentar na Antropologia, foram realizadas entrevistas estruturadas3
com mulheres na faixa etária entre 21 e 32 anos (à época), sendo uma mãe de filho com
APLV e três mulheres com IL. Nas entrevistas eram abordadas questões relativas ao tipo de
restrição alimentar (alergia ou intolerância), como se deu a descoberta, e quais as alterações
na rotina após a descoberta da condição, na esfera pessoal e social (dificuldades e estratégias
para comer fora de casa, com amigos, cuidados nos rótulos dos produtos no supermercado,
etc), e o uso ou não da lactase vendida em cápsulas ou sachês. Ao final do artigo, a campanha
"Põe no Rótulo" e duas imagens retiradas da página de uma loja no Facebook, de cunho
informativo sobre restrições alimentares serão comentados à luz do ciberativismo.
As alergias e intolerâncias alimentares são reações do corpo humano que determinam
escolhas cotidianas do que comer, e manifestam-se de maneiras diferentes no corpo dos
portadores. Alergia alimentar (AA) caracteriza uma reação adversa a alimentos, dependentes
de mecanismos imunológicos (IgE4 mediadas), mistas (IgE e células de defesa, como
linfócitos T, mas com reações iguais à anterior) ou não mediadas (reações iguais à IgE
mediada, porém tardiamente) (Brasil, 2008). Em contrapartida, a intolerância alimentar é uma
resposta anormal do corpo a um alimento ou aditivo, sem envolvimento de mecanismos
imunes (Pereira, Moura & Constant, 2008). Resumindo: a intolerância à lactose é a
incapacidade de digerir a lactose – o açúcar do leite –, a alergia à proteína do leite de vaca é a
reação do sistema imunológico à caseína (proteína do leite). Para realizar o diagnóstico,
podem ser feitos exames laboratoriais ou testes de provocação oral. O exame laboratorial é
feito com a determinação da IgE específica, o que auxilia apenas na identificação das alergias
alimentares mediadas por IgE e nas reações mistas, e pode ser realizada tanto in vivo, pela
realização dos testes cutâneos de hipersensibilidade imediata (aplicação de alérgenos in
natura na pele do paciente), como in vitro, pela dosagem da IgE específica no sangue. A
detecção de IgE específica tem sido considerada como indicativo da sensibilização ao
alimento, na maioria das vezes apenas orientando o alimento a ser utilizado no teste de
provocação oral duplo-cego placebo controlado, que é a segunda forma de diagnóstico.
Os testes de provocação oral são considerados os únicos métodos fidedignos para
estabelecer o diagnóstico de alergia alimentar. Consistem na oferta de alimentos e/ou placebo
em doses crescentes e intervalos regulares, sob a supervisão médica, com concomitante
monitoramento de possíveis reações clínicas. De acordo com o conhecimento do paciente (ou

3
Neste trabalho considerou-se a discussão proposta por Fonseca (2008) a respeito do anonimato no
trabalho antropológico, portanto o uso de pseudônimo ficou a critério das interlocutoras que desejaram ocultar
suas identidades, e duas sentiram-se mais confortáveis escolhendo os nomes que as representariam na pesquisa.
4
IgE a sigla para Imunoglobulina E mediada, anticorpo presente em algumas reações alérgicas.
de sua família) e do médico quanto à natureza da substância ingerida (alimento ou placebo
mascarado), os testes são classificados em aberto (paciente e médico cientes), simples cego
(apenas o médico sabe o que está sendo administrado) ou duplo placebo controlado, em que
nenhuma das partes tem conhecimento do preparado a ser testado pelo paciente (Brasil, 2008).
Mariana, Martina, Camila e Brenda trouxeram para a pesquisa suas trajetórias e experiências
de vida anteriores à descoberta da intolerância alimentar, incluindo as alterações em seus hábitos
alimentares em virtude do diagnóstico e das reações corporais, que variam desde o sintoma
apresentado ao grau de intolerância diagnosticado, ultrapassando a esfera do individual e
refletindo em novas maneiras de comer junto a outras pessoas. O hábito alimentar – antigo ou
novo, formado quando a intolerância alimentar é diagnosticada ou percebida – é entendido a partir
do conceito de habitus, explicado anteriormente.
Martina passou a desconfiar de intolerância à lactose quando comeu um pedaço de bolo
de cenoura com cobertura de chocolate, regurgitou logo após a ingestão, e desde então não
consegue comer nenhum alimento com leite ou derivados, pois lhe causam mal-estar e
desencadeiam idas ao banheiro. Desde então se autorreferencia como intolerante à lactose.
Descobriu a lactase vendida em sachês, e usou até o produto deixar de fazer efeito. Decidiu
deixar de comer alimentos com lactose, pois crê ir contra seu organismo se ingerir a lactose
seja em pó ou em cápsulas. Comer fora de casa é algo frequente, todavia seus amigos sabem
de sua condição e uma amiga em particular a repreende quando ela come “algumas coisas que
não deveria comer”. Mesmo assim, quando está com muita vontade, ela eventualmente
consome algum alimento com lactose, devido ao prazer que sente ao ingerir algo que gosta
muito.
Brenda tem transtorno alimentar (às vezes come pouco, às vezes come demais). Leituras
sobre nutrição e alimentação e sintomas percebidos por ela desde criança quando ela ingeria
leite e derivados resultaram em suspeita de IL em 2016. Solicitou a uma médica o exame para
diagnóstico e o exame não atestou a intolerância, porém ela também se autorreferencia como
intolerante à lactose. A dimensão social da comida é restrita: Brenda evita comer fora de casa,
devido ao transtorno alimentar. Em alguns dias ela come doces com lactose, mas se arrepende
pelos efeitos que causam em seu corpo.
Beardsworth (1990; 1995 apud Poulain, 2004) indica dimensões de ambivalência
alimentar humana, correspondentes a formas específicas de ansiedade, e apresenta maneiras
de regulá-la. Uma delas está no binômio prazer-desprazer, em que a alimentação pode ser
fonte de sensualidade, plenitude, prazer sensorial, mas em igual proporção, é capaz de
provocar sensações desagradáveis, chegando a causar mal-estar e vômitos – a ansiedade, aqui,
é componente sensorial e hedônico. Para regular esta dualidade, há a cultura culinária, isto é,
um conjunto de regras sociais que definem as formas de preparação, cozimento, tempero.
Assim, a alimentação que provoca mal-estar pode ser regulada, através de escolhas de
alimentos diferentes, seja para consumo imediato (um lanche na rua) ou um ingrediente para
preparar o alimento (macarrão de arroz, por exemplo). Brenda e Martina manipulam esse
binômio no cotidiano quando optam pelo alimento com lactose, cientes dos efeitos
indesejados no corpo.
Camila é mãe de Lucas, 1 ano e 3 meses, que tem APLV não mediada – ou seja, suas
reações ocorrem horas após ingerir leite e derivados. Para evitar os sintomas e curar a alergia
de seu filho mais rápido, Camila submeteu-se à dieta, excluindo qualquer alimento alérgeno
(leite, ovos e derivados, oleaginosas). A partir do primeiro ano de vida de Lucas, houve a
reintrodução gradual dos alimentos até então proibidos, para verificar como seu organismo
reagiria. Por conta da dieta restritiva, nos primeiros meses ela se isolou bastante, deixando de
ir a festas de aniversário de criança ou em reuniões fora de casa fossem realizadas em lugares
com opção vegana, para que ela pudesse comer. Apesar de ver na internet mães que fazem
“marmitinha” (com doces e salgados) para levar em festas, diz que: “eu não consigo, eu sei o
gosto bom que tem as coisas de aniversário (...)”.
A sensação chamada de “gosto” – seja bom ou ruim - resulta de uma combinação de
informações provenientes de vários sentidos diferentes da gustação propriamente dita,
compreendendo as papilas gustativas, os receptores táteis e térmicos da língua, e a mucosa
olfativa, estimulada pelos odores alimentares na deglutição. Portanto, o gosto é um sentido
que parece funcionar segundo uma lógica binária, pois provoca uma resposta comportamental
(que permite emitir juízos) e uma resposta afetiva. Ainda, a formação dos gostos alimentares
dos indivíduos dependem de fatores culturais, sociais, biológicos e psicológicos (dependem
de experiências individuais), e podem ser transmitidos de duas maneiras: intergeracional,
quando é operado de geração a geração, através da genética de certas predisposições ou de
processos de aprendizagem ou de reaprendizagem; e intrageracional, quando passa pela
cultura, por interações entre indivíduos de um mesmo grupo social (Fischler, 1990).
No âmbito familiar, alguns aspectos mudaram: a mãe e a cunhada adaptavam a refeição
para ela poder comer, ou preparavam comida separada – por exemplo, sua mãe costumava
fazer macarrão com molho de tomate para receber a filha, então trocou o macarrão tradicional
pelo macarrão de arroz, mantendo a comensalidade, que é a função agregadora da comida,
capaz de estabelecer relações de sociabilidade (Lima, Neto & Farias, 2015). Como Lucas
reagiu quando ela comeu a refeição, procuraram nos rótulos dos alimentos utilizados no
preparo o que poderia ter desencadeado, e descobriram haver traços de leite no molho de
tomate. O macarrão de arroz e o molho de tomate são alimentos modernos, com status
imaginário marcado pela falta de mediação culinária, convertendo-se em um OCNI (Objeto
Comestível Não Identificável) sem passado nem origem conhecidos – e se não é identificável,
não possui identidade. Assim, um conflito é despertado no comensal: os alimentos novos são
tentadores porque possibilitam a manutenção dos hábitos alimentares devido à ausência de
ingredientes alérgenos, mas o caráter receoso do onívoro se faz presente (Fischler, 1990), pois
os ingredientes utilizados não são familiares ao comensal.
Mariana percebeu uma tosse seca (que mais tarde revelou-se uma forma de refluxo), e
obteve a partir do teste o diagnóstico de intolerância à lactose considerável, e optou por
excluir os alimentos com lactose da sua alimentação. Essa decisão teve dois desdobramentos,
pois a família de sangue de vez em quando se lembra de sua intolerância, ou acha em casa
algo que ela possa comer, e seu pai não acredita no problema, diz que é “frescura”; entre os
irmãos consagrados5 ela passou a se considerar um “problema”, pois, apesar de comerem
separadamente no dia a dia, há raras ocasiões em que todos comem em conjunto. Em
contrapartida, os irmãos de religião não consideram sua situação um incômodo, tomando
como oportunidade para inovar na cozinha, fazendo comida separada para ela ou trocando
algum ingrediente para que ela possa comer com os demais. Para Woortmann (1985 apud
Lima, Neto & Farias, 2015) a “refeição” é um ato social, cuja realização deve ser em grupo
para que seja percebida como tal; ainda, há significados diferentes de acordo com o local da
refeição (dentro ou fora de casa) e realização (cotidiana ou em alguma data especial).
Ademais, dizer não comer determinado alimento porque contém lactose em sua
composição, ou pedir especificamente por alimentos sem leite ou derivados materializa a
restrição alimentar – seja ela a APLV ou IL – pois os hábitos e padrões alimentares
“constituem uma linguagem que expressa dimensões como memória, família, religião,
identidade, etc., expressando meios de sociabilidade e apontando para distinções socialmente
identificáveis” (Douglas, 1975, p. 61 apud Woortmann, 2013, p. 11), mesmo englobando a
seleção do que se prefere comer ou é evitado. Mariana, Camila e Martina têm suas comidas
preparadas em separado dentro de casa, e quando estão fora de casa, requisitam alimentos sem
lactose, emitindo a mensagem da intolerância para os comensais. Assim, carregam consigo a
mensagem de suas restrições alimentares, na medida em que a comida é tratada como um
código e, portanto, as mensagens codificadas se encontrarão no padrão de relações sociais a
5
Mariana é freira, e os termos “irmãos consagrados” ou “irmãos de religião” são termos êmicos,
indicam seus companheiros de moradia e de vida religiosa, e “família de sangue” caracteriza-se por seus pais,
tios, etc.
serem expressas, tratando em graus de hierarquia, de inclusão e exclusão, e as categorias de
comida codificam eventos sociais (Woortmann, 2013). As mensagens emitidas pelas escolhas
alimentares fazem parte de um determinado habitus – mesmo anterior à descoberta da
restrição alimentar – e de um modelo alimentar de cada comensal, podendo ser partilhado ou
não.
De volta à Beardsworth, outra ambivalência situa-se na complexidade da ligação
existente entre alimentação e saúde ou doença, em que o alimento é fonte de energia,
vitalidade e saúde, mas concomitantemente, representa um potencial intoxicante, podendo
causar doenças e perturbações – a ansiedade da incorporação é de ordem sanitária, reforçada
pela condição de intolerantes e alérgicos alimentares – e para manipularmos essa ansiedade,
contamos com conhecimentos empíricos acumulados por gerações, sobre aspectos de
produção, preparação e consumo dos alimentos, constituindo um corpo de técnicas e
conhecimentos, aqui representados pela busca dos ingredientes alérgenos nos alimentos,
sabendo se o que está prestes a ser ingerido irá causar efeitos indesejados no corpo.
Especialmente esta dualidade materializada duplamente no caso das comensais em questão,
pois se soma ao risco sanitário o risco da reação do corpo ao ingrediente alérgeno.
O risco é apontado como consequência futura das ações do presente, conforme evidencia
Santos (2008), ao discorrer sobre o corpo, o comer e a comida. A autora destaca os fatores de
risco como orientadores de regime de vida, pois estamos mais informados sobre os riscos,
gerando mais ansiedades e ampliando as escolhas e responsabilidades sobre o comer, que
influencia em nossa saúde – indicado como “adoção de um conjunto de comportamentos que
define a vida saudável” (Santos, 2008, p. 28). Descobrir que possui alergia ou intolerância
alimentar – ou que seu filho possui, no caso de Camila – influenciou a percepção das
interlocutoras em relação aos riscos alimentares, reforçando-os, e aos seus corpos, pois
nenhuma das interlocutoras faz uso da enzima no dia-a-dia, sob a alegação de que vai contra a
ordem natural do organismo (com exceção de Camila, que não poderia fazer uso do produto,
pois a proteína do leite seria transmitida ao seu filho através da amamentação). Há uma
defasagem entre o risco considerado pelos leigos e pela ciência, onde os primeiros se pautam
em fatores sociais empíricos das consequências sobre comer algo ou não, tal como Brenda,
que possui o diagnóstico negativo para IL, e Martina, que não fez exame; enquanto a ciência
baseia- se em cálculos de probabilidades e consequências, ocasionando um custoso diálogo
entre ambas as partes. Portanto, a modernidade alimentar está acompanhada de angústias,
interpretadas como “uma crise de função reguladora dos sistemas culinários” (Poulain, 2004).
Os riscos alimentares, materializados aqui nos ingredientes alérgenos, são expostos com a
ajuda da internet. A internet é utilizada, atualmente, como veículo de publicização de riscos,
ativismo e conscientização dos portadores e não portadores de alergias ou intolerâncias sobre
seus efeitos, o que pode ou não ser ingerido, etc. Na época desta pesquisa, não foram tratados
dados de grupos de Facebook, apenas duas imagens da página “Com Amor e Sem Lactose”,
que era uma loja de alimentos fabricados sem nenhum ingrediente alérgeno em sua
composição, e elaborava postagens com teor exclusivamente informativo, como veremos a
seguir.

Ciberativismo e conscientização: Põe no Rótulo e Com Amor e Sem Lactose

Cassiano (2011) aponta a internet como algo que pode unir internautas com ideias
semelhantes e que democratiza a informação, pois possibilita a participação do usuário, que a
recebe, mas também produz conteúdo e dissemina ideias. Esses conteúdos (informativos ou
não) possuem alcance ilimitado, ultrapassando seu local de origem. As redes sociais
(Facebook, Instagram, entre outras) são espaços imateriais, criado a partir da relação entre
seus usuários – que são, simultaneamente, criadores e produtores (arrisco-me a dizer que são
receptores também) de seu conteúdo – configurando um ambiente sem hierarquia, onde os
ativistas encontram espaço para difundir pensamentos e atingir pessoas de diversas
localidades. O Facebook é ao mesmo tempo uma rede e uma mídia social, pois diz respeito a
um grupo de pessoas que compartilham interesses comuns e/ou relacionados – definição de
rede social –, e é um sistema online projetado para permitir a interação social a partir do
compartilhamento e da criação de informação em diferentes formatos – definição de mídia
social – e sem fronteiras. O ciberativismo, ativismo online, ou ainda ativismo digital, é uma
forma de ativismo pela internet caracterizada pela defesa de causas, reivindicações e
mobilizações (Araújo, 2016).
Um exemplo de ciberativismo é a campanha “Põe no Rótulo”, lançada a partir de um
grupo no Facebook em fevereiro de 2014, com o objetivo principal de promover a
conscientização da sociedade sobre a importância da clareza da presença de alergênicos nos
rótulos. Em meados de 2014, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa deu início
ao processo de construção da regulamentação da rotulagem de alergênicos em alimentos e,
entre junho e agosto, disponibilizou sua proposta de regulamentação em uma consulta
pública. Em maio de 2015, a Anvisa promoveu uma audiência pública para discussão
presencial da nova proposta de regulamentação, já contemplando algumas alterações em
virtude das contribuições recebidas na fase de consulta pública. Pouco tempo depois, em 24
de junho de 2015, a Diretoria Colegiada da Anvisa aprovou, por unanimidade, a
regulamentação da rotulagem de alergênicos em bebidas e alimentos embalados na ausência
do consumidor (RDC nº 26/15). Portanto, desde 3 de julho de 2016, os rótulos de bebidas e
alimentos embalados na ausência do consumidor devem destacar a presença dos principais
alergênicos, além de indicar o risco de contaminação cruzada, quando não for possível evitá-
lo com a adoção de boas práticas de fabricação.
A seguir, analisarei brevemente duas imagens publicadas na página da Com Amor e Sem
Lactose.
Figura 1 – Intolerância à lactose X Alergia à proteína do leite.
Fonte: Página no Facebook da Com Amor e Sem Lactose (2016)6.

6
Disponível em: <https://www.facebook.com/comamoresemlactose/photos/a.871071146255175.1073
741829.859211797441110/1346693388692946/?type=3&theater>.
Figura 2 – O que muda na vida de alguém com restrição alimentar?
Fonte: Página no Facebook da Com Amor e Sem Lactose (2016)7.

Como exemplo de apropriação do alcance das redes sociais, a Figura 1 possibilita ao


internauta entender quatro aspectos: a diferença entre intolerância e alergia, seus sintomas,
possibilidades de tratamento e de cura, a faixa etária dos portadores e como obter o
diagnóstico – para ambas através de exames médicos, porém para a intolerância há um teste
que pode ser feito pelo SUS. A transmissão das informações ocorre tornando o conhecimento
médico assimilável ao público, permitindo o rápido entendimento. A Figura 2, por sua vez,
tem como objetivo informar sobre as mudanças alimentares e sociais ocasionadas pelas
restrições alimentares: ler os rótulos dos produtos faz com que não haja risco de ingerir algum
ingrediente alérgeno, evitando assim efeitos indesejados. Além disso, a imagem demonstra
práticas necessárias aos portadores restrições alimentares (alergias, intolerâncias, doença
celíaca) no âmbito social e comensal (levar marmita aos lugares, escolher onde fazer as
refeições), apontando soluções encontradas por essas pessoas para reduzir a interferência em
suas vidas sociais. Assim, publicizando riscos, sintomas e diferenças entre AA e IL, a Com
Amor e Sem Lactose conscientiza os comensais usuários das redes sociais – portadores ou não
de algum tipo de restrição alimentar – sobre a seriedade do tema, dado que reações mais
graves podem chegar à anafilaxia8. A bandeira, no caso das figuras, não é a de mobilização
7
Disponível em: <https://www.facebook.com/comamoresemlactose/photos/a.871071146255175.1073
741829.859211797441110/1353084471387171/?type=3&theater>.
8
Reação de hipersensibilidade aguda potencialmente fatal, incluindo sintomas e sinais que ocorrem,
isolados ou combinados, em fração de minutos ou horas após a exposição ao agente causal, e é utilizada para
descrever reação imunológica, mediada ou não pela IgE, manifestando-se no sistema digestivo, na pele,
por uma causa, mas sim a informação e a conscientização de comensais (alérgicos ou não)
sobre os sintomas, as diferenças e os possíveis tratamentos para AAs, intolerâncias, entre
outras patologias. Nestas publicações, não são feitas propagandas em benefício dos produtos
comercializados pela loja, as imagens restringem-se apenas à informação.

Considerações finais

O presente trabalho buscou fornecer um panorama das abordagens antropológicas sobre


alimentação, bem como evidenciar outras noções sobre gosto e modelo alimentar, pois a
situação patológica mais ou menos grave traz consigo a necessidade de o corpo estar sob
dieta, sem o objetivo de emagrecer, mas envolvendo “um controle permanente dos desejos,
sensações, fomes e ansiedades, uma reconstrução do gosto alimentar que, por muitas vezes,
desestruturam vidas humanas” (Santos, 2008, p. 32). A patologia coloca outras possibilidades
de escolhas e modelos dietéticos, tornando-se um fator a ser considerado nas escolhas
alimentares, como ocorre com Brenda e Martina, que, por motivos diferentes, pelo gosto bom,
comem alimentos com leite ou derivados; ou conformando um novo sistema de práticas
alimentares, como nos casos de Camila e Mariana, que abdicaram totalmente dos alimentos
com lactose. Também é um convite para pensar a alimentação convencional enquanto
proibida pelo próprio corpo via diagnóstico médico ou percepção corporal, configurando
outras formas, estratégias de alimentar-se, noções de risco e ansiedade alimentar,
enriquecendo as discussões e pesquisas sobre alimentação na antropologia – e fora dela.
Paulatinamente, está ocorrendo a conscientização por parte dos órgãos públicos de que as
intolerâncias, alergias, entre outras, são sérias e devem ser tratadas como tal. A internet, com
seu alcance ilimitado, mostra-se fundamental para a difusão da informação e consequente
conscientização das pessoas – seja para pedir algo, como a campanha Põe no Rótulo, seja para
informar diferenças e sintomas entre as patologias, como é o caso da Com Amor e Sem
Lactose.

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