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Lunes, abril 12, 2021. Edición 02.

Revista académica

Chispas
Literarias
1

Universidade Federal de Uberlândia

Chispas ficcionales - pg. 6 Chispas artísticas - pg. 30 Chispas académicas - pg. 34 Entrevista - pg. 98
Reitor: Valder Steffen Júnior
Vice-reitor: Carlos Henrique Martins da Silva

Instituto de Letras e Linguística (ILEEL)


Diretor: Ariel Novodvorski

2 Revista Eletrônica Chispas Literarias


Disponível em: https://issuu.com/revistachispasliterarias/docs/pdf_-_ed._1_-_chispas_literarias
https://chispasliterariasufu.blogspot.com/p/primeira-edicao-revista-chispas.html

Equipe Edição 2
Ana Claudia Macedo Camargos – UFU
Hillary Souza Silva – UFU
Júlia de Oliveira Marcelino – UFU
Nathalia Arantes Urzedo – UFU
Prof. Dra. Cintia Camargo Vianna – UFU (coordenadora)
Créditos da imagem de capa: Robert Anash on Unsplash - https://unsplash.com/photos/McX3XuJrsUM

@chispasliterariasufu

https://chispasliterariasufu.blogspot.com/

revistachispasliterarias@gmail.com

Chispas ficcionales - pg. 6 Chispas artísticas - pg. 30 Chispas académicas - pg. 34 Entrevista - pg. 98
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Chispas Literarias

Editorial
A Revista Eletrônica Chispas Literarias é um projeto de extensão fei-
to por alunos da graduação em Letras da Universidade Federal de Uber-
lândia (UFU) para alunos de todos os cursos de graduação da UFU e de
outras instituições de ensino. Nosso objetivo é dar visibilidade não so-
mente aos trabalhos acadêmicos dos alunos, como também às suas produ-
ções artísticas, como poesias, contos, fotografias, ilustrações e entrevistas.

Edição 2
Tema: Produções em quarentena

La Revista Chispas Literarias nació en medio a la pandemia del Coronaví-


4 rus, en la asignatura Conto Hispanoamericano, con tres alumnas involucradas.
Después, siguió independiente de la asignatura, con el apoyo de otras dos co-
legas del Núcleo de Español, Nathalia y Julia. Sin su apoyo, esa segunda edici-
ón, la primera “oficial”, con llamada para publicación abierta, no sería posible.
Entonces, cuando pensamos en el tema, no encontramos otro mejor que ese
que nos permitió discutir producciones también hechas en ese período difícil,
y no solamente producciones académicas, sino que dar oportunidad también
para textos literarios, como poemas, cuentos, microcuentos, crónicas, etc., ya
que es algo que nos hace falta leer — y escribir — en la universidad. Por fin,
damos las gracias a todos nos confiaron sus textos e ilustraciones y que ahora
ustedes pueden conocer.

Muchas Gracias.
Equipo Editorial Revista Chispas Literarias
Abril/2021

Universidade Federal de Uberlândia

Chispas ficcionales - pg. 6 Chispas artísticas - pg. 30 Chispas académicas - pg. 34 Entrevista - pg. 98
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Chispas
Ficcionales

Seção dedicada à publicação de produções ficcionais dos alu-


nos, como poesias, contos, micro contos, crônicas, etc.
Sumário
Daniel Robbin
Um breve monólgo de pandemia ............................ 8

Fernanda Garcia Cassiano


Frenetic dirty days: qual é a sua (minha) bati-
da? ............................................................................................... 9

Lucas Simonette
Réquiem da História ...................................................... 15

Lucas Rodrigo Uchôa de Oliveira


O peso do mundo em minha morada ................ 18

Marcello Borges 7
Construção ........................................................................... 19
Sombras da dor ................................................................ 20

Marcelo Queiroz Oliveira Júnior


Carta para mim ................................................................ 21

Rômulo Piloni
Quem é o sexo frágil? .................................................. 24
Olho vermelho .................................................................. 25

Silvio Tony De Santos Oliveira


Flagelo ................................................................................... 26

Wellington R. Fioruci
Condenados ......................................................................... 27
Um breve monólgo de pandemia

“Cada vez mais próximo do fundo do poço” – era o que eu pensava toda vez que a psicólo-
ga perguntava como eu tinha passado. Nunca cheguei a verbalizar. Depois que a pandemia
começou, nenhuma perspectiva de futuro. Tantas incertezas, tantos projetos deixados de
lado. Sempre gostei de escrever, ultimamente tenho deixado isso de lado. Aliás, tudo tem
ficado de lado. Tudo que se refere a mim mesmo. Sempre priorizando os outros, as vonta-
des dos outros, o que os outros querem ouvir. Cada vez mais cansado de ser o perfeito em
tudo. Preciso errar, preciso me dar a possibilidade, o luxo de errar. Não aguento mais essa
vida monótona, esse vício em trabalhar até dez da noite de domingo a domingo. Esse vício
que eu tenho em não ter vida social. Tudo que eu queria era respirar fundo, mas parece que
estou afogado no gelo, em um oceano putrefato e sem emoção. Um marasmo que toma
conta dos meus dias e das minhas noites. A única vontade que a pandemia me deu foi a de
não fazer nada. É como se houvesse uma luz no fim do túnel, mas estivesse tão distante de
mim quanto Marte está de nossos astronautas. Aliás, comecei a me questionar. De que serve
a astronomia? De que servem as artes? De que servem as pessoas? Se o vazio que sentimos
a cada noite estrelada de luar é contínuo, repetido, normalizado? Sentir um vazio pode, mas
e o ser vazio? Parece que estamos nos tornando grandes ocos de nada. A poesia, antes, ainda
me salvava, a poesia era o pão de cada dia, a pílula calmante em meio a um velejar naufragan-
te. Agora, de nada me serve. Quem sabe eu mude de ideia, quando sairmos desse buraco, se
8 sairmos. É como se um buraco negro, daqueles que você não acredita tão fácil que existem,
tivessem comido toda a felicidade que habitava em nós, toda a esperança, toda a vontade
de fazer diferente. Estamos imersos em um fazer igual para continuar igual e calar igual,
porque silenciar é consentir, e consentimos a dor que habita os corações dos inteligentes. A
sabedoria nos abre os olhos, nos fecha a mente. Mente, mente, intransigente. De que vale
mentir para nós mesmos? Dizer que está tudo bem, quando o que na verdade precisamos
é de um bom gole de uísque, um disco do Cazuza e uma pontada amarga de dor no cora-
ção. Dor, já que a cor está em falta ultimamente. Quem sabe um dia, quem sabe, um dia.

Daniel Abud Marques Robbin

Graduado em Letras – Português/Espanhol pela UFMS


– Campus do Pantanal. Professor de Língua Portu-
guesa e Literatura em Cursinho Pré-Vestibular. Reali-
za pesquisas nas áreas da Sociolinguística, da Dialeto-
logia e do Ensino de Literatura. Membro da Academia
Brasileira DeMolay de Letras e do Grupo de Pesquisa
Língua e Literatura na Fronteira, coordenado pela Pro-
fa. Dra. Rosangela Villa da Silva (CPAN – UFMS).
Frenetic dirty days: qual é a sua (minha) batida?

No Quizur, você já encontrou um teste para saber qual música você é? Adoro respon-
der aos quizzes, mas confesso que só compartilho quando as respostas condizem com a reali-
dade do meu desejo. Quem nunca foi responder a um teste com tamanha expectativa pra, no
fim, descobrir que a cor da sua alma é a cor que você acha mais sem graça ou se desesperou
com uma resposta como: parabéns, você vai ter 4 filhos. APAVORANTE!
Uma vez, ouvi a Ana Maria Machado falando sobre inspiração... existe? Não existe?
Importa saber que não existe, se acreditar faz mais bem que mal? Ela comentou: “se existe,
sempre me encontra trabalhando”. Eu, imbuída por tudo que me falam com sonoridade sin-
cera, acreditei com concretude. Trabalho com afinco e lapido meus espinhos, diariamente,
em uma luta constante, mas, às vezes, de meias, cabelo preso e roupão felpudo, após sair de
um banho quente e cheirando a sabonete fresco, a maldita — e bendita — se cria como lam-
pejo em meu ouvido e me chama pra conversar. Tagarelar. Refletir. Eu me canso. Até que,
em algum momento, percebo que nem é comigo que eu estou falando e então me deixo falar.
Porque uma verdade, indubitável, é que gosto de falar com essas outras energias personifi-
cadas que habitam em mim, por diversas razões e todas elas originadas do amor: por mim,
pela vida, pela permissão de viver. E, aqui, venho eu, desesperada por não descobrir meus
enigmas por meio de um quiz.
Criador de tudo do mundo, se Eu sou tudo, por que não consigo saber de nada? Nada
além de saber que sou composta de água, oxigênio, desejo e paradoxo? Nada além de mani- 9
festação artística... a melodia do melodrama; tanto o do teatro épico, que sempre é desenca-
deado para um final feliz e resolutivo, quanto ao meloperfectplacesdrama, que a Lorde cantarola
no meu outro ouvido esquerdo, o meu preferido?
A arte é, realmente, uma forma genuína de despertar muitas coisas. Por isso, transfor-
má-la em profissão é uma atitude um tanto quanto perigosa. Prefiro entendê-la como um
estilo de vida. E é uma delícia. Juntar, agregar, fundir é o que tem de mais gostoso no mundo;
cultura; individualidade; história; humanidade; prazer.
Agora, mais do que nunca, é notório como a gente não vive sem arte. Estamos vivendo
sem muita coisa que achávamos que não saberíamos viver sem, mas o alimento diário, o que
alimenta incessantemente, além de alguma mistura perfeita como arroz, feijão e batata palha,
é a cultura. Alimenta o espírito e o espírito, tão abstrato e pecaminoso, se traduz através (no
sentido literal e único, de atravessar) dos nossos sentidos. A arte aguça o sensorial de forma
específica e abrangente. São diferentes os momentos em que colocamos, em evidência, algum
sentido delimitante do externo/interno e ouso falar sobre uma percepção extra-sensorial, o
aclamado e fundamental: sexto sentido. Quando falo, naturalmente, a minha atenção está em
minha boca e nas diversas funções que ela pode realizar, quando admiro as nuances do meu
olhar, vejo, assim como sinto minha sensibilidade em experimentar brisa e toque, meu arre-
pio é, existe. E tento, aqui, falar de presença e de atenção plena — coisas que se diferem de
uma rotina monótona, agora, eu criticando o método rotineiro é uma das formas de perceber
minha insanidade, sou uma grande defensora do presente, é importante beber água e sentir
gosto de água.
Percebo que ativo meus sensores em momentos diferentes e que, apesar de interliga-
dos, sempre vivo, com eles, um processo muito individual. Nesse período conturbado, e que
não posso mais chamar de novo, aprendi a escutar como nunca antes — a mim e aos outros.
Minha forma de expressão tem que ser sempre, no mínimo, ensaística.
Todo mundo associa música à lugares, coisas, pessoas, sentimentos, mesmo que in-
conscientemente, não é um privilégio meu, entendo. A música instiga o pensamento, ela ins-
tiga e direciona pensamentos, a arte direciona a sociedade. Mudo, então, minha perspectiva
sobre mim e me torno agente do presente. Porque nada é feito só por mim ou só por você,
tudo é a gente. Quando a gente fala sobre arte, a gente entende que a gente se alimenta de
arte, uma parte é composta de arte, a gente se entende melhor no nosso reflexo paro mundo,
porque a gente quer se conhecer, porque, talvez, o autoconhecimento seja o desejo secreto
de todo mundo. Olha só, se a gente se conhece a ponto de saber lidar com a gente, o que, no
mundo, poderia nos parar?
Se eu aprendo a lidar com as minhas características pecaminosas, para além de saber da
existência delas, o que eu não poderia fazer? Em que eu não poderia me transformar? Aí per-
cebo que uma das formas mais genuínas da gente se conhecer, é a partir de uma análise estrita
de como agimos no mundo (aprisionados nele). É culturalmente concebível a autodescrição,
falar sobre si: eu sou, eu sou, eu sou eu. Sabe, confesso outra coisa, esse clima muito auto
afirmativo (apesar de fazer essas coisas que jamais revelarei em voz alta) me dá uma queima-
ção estomacal e desalinha meu chakra do plexo solar... algo parecido com o que sinto quanto
escuto um coach falando coachinzações. Pensando sobre isso, analiso meus comportamentos
10 musicais também por diversão. Já entendi que eu não consigo fazer nada que não me divirta.
E é agora que Jung para na minha frente e fala: a estética, né, minha filha? É, Jung, é... meu
valor estético caminha lado a lado com as referências. E ninguém precisa fazer pesquisa pra
saber o quanto uma boa referência é fundamental. Se nada é novo, nada é tudo e tudo é nada,
procurar boas referências que saibam andar na corda bamba entre o sublime e o grotesco é a
única forma de reconhecer uma arte de boa qualidade que soe bem aos ouvidos.
Já teve quem disse algo parecido com o que estou pensando. O ‘quem’ é Fernando
Pessoa, meu poeta favorito e, ao mesmo tempo em que digitei, percebi que escrevi por pura
comoção... meu poeta favorito é Drummond, mas;
Já teve quem disse algo parecido com o que estou pensando, Fernando Pessoa, meu
segundo poeta favorito, em um poema sobre climas, pessoas, situações, ele fala sobre como
emoção é paisagem. Me tocou porque eu não sei definir emoção e definições ocupam um
espaço importante em minhas reflexões diárias, apesar de nem sempre as achar importantes.
Para mim, emoção é um sentimento que mistura muitos sentimentos, eu me sinto eufórica,
com diversas pitadas significativas. Ele explica isso com paisagens: o que um dia de sol, um
dia nublado ou uma tempestade significam pra gente? Eu nem preciso relatar sensações — e
ufa, porque, provavelmente, não conseguiria.
Isso me lembra signo linguístico, um experimento fonético que estudei no segundo
ano da graduação, sobre a fundamentação do significado e do significante, resumindo: em
uma pesquisa muito legal, foram feitos dois desenhos distintos, um curvilíneo e um angular,
parecido com uma estrela, então, escolheram dois nomes e pediram que pessoas escolhessem
qual nome seria de qual imagem, os nomes eram Maluma e Takete. É também de se esperar
que Maluma se tornou o nome do desenho curvilíneo e, depois, bombou no Brasil cantando
Sim ou Não com a Anitta: hãhãm se quiser jogar, vem! Nunca duvidei do poder de dar nome
para as coisas, nome é sobre identidade e memória também. É por isso que a gente tem cara
de, e é; minha certidão de nascimento é minha memória estrita e a memória é um elemento
que se costuma chamar de identidade, seja ela individual ou coletiva, essencial para os mo-
mentos de febre e angústia. Tenho data e validade.
Mais cedo, escolhi usar um anel com uma ônix no meu dedo indicador, talvez porque
tenha combinado esteticamente com meu esmalte vermelho café, porque é forma de expres-
são. Escolher usar meu perfume cítrico e refrescante com combinação vívida e efervescente
de bergamota, cardamomo, tangerina, freesia e lavanda ao invés de meu perfume de flores
brancas exaltadas com um acorde negro — minha combinação underground, e a que mais me
representa — com notas brancas de flor de laranjeira, jasmim e tuberosa, que são entrelaça-
das às notas negras e misteriosas de vetiver e patchouli é forma de expressão. Na descrição
dizia: o lado chocante do chique. Transformo em lado chocante do bregafunkchic.
Lembro demais de tanta coisa. Me disseram que é inusitado escolher perfume pra
além da pirâmide olfativa, que, claramente, é a parte mais importante. Mas sério que reparar
na embalagem ou na história de criação não ocupa nenhum espaço na escolha de alguma ex-
pressão? Em que momento a humanidade se tornou tão desatenta aos detalhes fundamentais
para qualquer processo de simbolização?
Me compreendo em obras. Você sabe qual é a sua batida? Eu sei, pensar é exaustivo.
No meio da pausa, me olhei paro espelho e pensei: você é muito engraçada. Gosto de re-
presentar essa representação. Assim, mascaro a minha vontade de devorar e, quando vejo, já 11
estou colada em meu reflexo, frente a frente com minha íris cor de mel, talvez de Bracatinga?
Tem que ser um mel bem escuro, porque meus olhos são escuros. Tive que pesquisar. É um
mel não floral, de sabor peculiar, aparência muito escura e rico em minerais. Gostei. A flor é
originada em ambientes frios. Realmente, o tom álgido não condiz muito com a minha tropi-
calidade, mas não vou procurar outro, gostei da sonoridade de Bracatinga.
Escolhas não são resultado do acaso, e sim de um processo social e político. Assim
como importa pensar na política da escolha da Gal Gadot em Wonder Woman, assim como a
escolha da Isabelle Hupert para interpretar uma personagem que interpreta cenas clichês do
cinema francês em Les Fausses Confidences, é importante pensar na política que me faz gostar
do que eu gosto.
E que não restem dúvidas, não me simbolizo e me olho somente por luxuria, mas,
principalmente, porque adoro ser devorada por todos os sentidos e também em todos eles.
Me divirto.
É certo, texto não é fruto de uma geração espontânea. As experiências que constroem
a nossa subjetividade são materializadas no texto, pois se tratam de experiências diferentes.
A gente andou muito se perguntando sobre valor, valor capital do mercado, valor sensorial
artístico, mas qual o nosso valor? Questionar motivações vem sendo o apogeu do museu
memorial do isolamento mental, porque amar, porque estudar, porque pesquisar? É claro,
nem sempre, na vida, vão ter soluções para os nossos afetos, mas conto, aqui, uma história,
uma trajetória mental, sobre o aprisionamento literal. Busquei motivações que justificassem a
pesquisa, caímos sempre no mesmo limbo dos que produzem e consumem: a arte serve pra
que? É certo, defendo e afirmo: para nada. É por isso que é tão instigante e tão interessante.
Quando a gente estuda arte, trabalhamos com um aspecto puramente humano, não é instin-
tivo, não é básico, não é necessário e, ainda assim, fazemos.
Um movimento interessante que levantou discussões, em minhas redes sociais, foi o
diálogo sobre o isolamento ter nos permitido perceber o quanto precisamos do consumo de
arte para viver com qualidade, muitos reconheceram e, apesar disso ter sido esquecido depois
de alguns meses, com bares e restaurantes lotados, ainda continuei me questionando: a arte
serve à que? As produções humanas são o que? Porque então produzir? Olhar no espelho,
se reconhecer, estudar as produções temporais e atemporais, naturalmente cotidianas e ao
mesmo tempo não?
Se eu não sou eu nem sou o outro, sou qualquer coisa de intermédio e me pergunto: o
que é minha literatura? O que quero com a literatura? Sim, assumo meu compromisso políti-
co/estético. A arte é um oásis no deserto do Real (reestruturando o título de um livro de um
de meus filósofos favoritos, Slavoj Žižek, e teórico que me sustenta em minhas pesquisas).
Nesse contexto pandêmico, estou aqui para refletir sobre a minha relação com a li-
teratura, se o discurso da necessidade do consumo artístico foi se desgastando e se tornou
insuficiente, é claro que existem várias respostas que podem explicar esse acontecimento. Me
atenho muito a um conceito que Žižek colocou e eu, particularmente, adotei – porque tem
uns conceitos que a gente adota, alguns exemplos que soam melhor pra gente e a gente repro-
duz. Fico me perguntando o que aconteceu nesse meio tempo sobre a percepção geral: nesse
contexto, a arte entrou como uma representação do Imaginário, assim, para tentar sustentar
12 o enlance com o Simbólico e não deixar a peteca do Real cair. É perceptível que parar para
pensar na cilada é enlouquecedor, nos problemas a nível político e social.
Percebi que ver a literatura como pesquisa é muito... audacioso, eu diria, algo parecido
com o estudo das Histórias das Ideias Literárias, que nos ajuda a entender a nossa forma no
mundo contextual, num mundo vivo que acontece, porque a sociedade é viva e a literatura é
tão viva quanto a sociedade. A literatura é língua em ação e estrutura da realidade se forman-
do a todo instante. Em cada nova leitura uma obra se amplifica.
E a produção e o consumo da literatura nunca serão uma coisa una — a gente não
pode restringir esse olhar de forma tão tecnicista. Porque não tem como negar que a gente
cria literatura e a literatura cria a gente, e se cria com a gente, tanto quanto a própria socieda-
de, codependemos desses fatores para existir.
Talvez isso nos faça perceber uma coisa interessante, nos ajuda a olhar vertentes da
pesquisa como uma forma de ajudar a delimitar e justificar o injustificável. A literatura tem
que ser vista como algo sério pela justificativa da sua própria existência e, talvez seja por isso,
inserir esses estudos sociais, individuais e plurais (que envolvem psicologia, filosofia, sociolo-
gia etc.) faz com que nosso estudo ande colado com a interpretação. A interpretação, claro,
é um perigo, porque até que ponto uma coisa que é válida pra mim não pode ser pra você,
quais são os limites da imaginação? E de onde vem a nossa imaginação?
As interpretações são resultados dos nossos processos individuais, das nossas crenças
que foram guiadas por um sistema simbólico, que é social. Porque pesquisar, ver o material
como análise, exige esse direcionamento de olhar; quando a gente lê como leitor, a gente
não tem exigências, quando pontuamos, efetivamente, um olhar de pesquisa sob um objeto,
percebemos que a profundidade é imensa, não só pra fora, por conter cultura, informação;
articular a imaginação, mas por dentro porque a gente se descobre raiz. Como a lei hermética
da Correspondência, tudo que está acima está abaixo. E quando criamos essas raízes inter-
nas, fica cada vez mais difícil da ventania externa nos derrubar, a gente vai ganhando muitas
ferramentas.
Criamos hábitos nessa quarentena, eu aprendi que comtemplar minhas personas é
uma exigência e perceber as minhas modificações é quase um processo divino. Claro que esse
movimento, provavelmente, não me serve de grande coisa. Não vou fingir que não preferiria
estar desfilando com algum body colorido pela rua, jogando sinuca, flertando com alguém
ou, até mesmo, nas versões mais extraordinárias de diversão.
As circunstâncias não permitem. Há um tempo venho tentando deixar as queixas in-
solúveis em um espaço de apagamento da minha memória — planeta do supervacâneo... pra
lá também devem ir alguns eventos de vexame e constrangimento.
Defendo, sim, com muita veemência, e talvez até um pouco de violência simbólica, o
meu direito de inconsistência. E isso de nada tem a ver com presença, afeto e responsabilida-
de. Minha inconsistência paradoxal mora na ilógica dos meus pensamentos que são VIVOS.
Assim como a linguagem, assim como o desejo. Modificável, maleável, fluida, potente. Pre-
servo a mim.
Meu planejamento não é sentencioso, se eu me visto e não gosto, eu, com certeza, vou
mudar de roupa. Mas, talvez, o processo de criação seja iniciativo e não apenas resultado.
RESULTADO
RESULTA 13
DO
TODO
RE
SU
MO
E PALAVRAS-CHAVE: processo; procedência; proximidade; profundidade.
Neste recinto, a mudança é, sim, respeitada. Nem sempre compreendida. Nem sempre
graciosa. Mas não sejamos menos lascivos do que ela própria. Sejamos tanto quanto.
Memória nem sempre é escolha, vez ou outra me escapa um pensamento que eu já
queria ter esquecido, mas rememorar é, também, fonte de alegria, de sensações, e valores são
uma questão de perspectiva, como muita coisa é. Amo definições de maldade e de bondade.
Amo definições. Elas não servem para absolutamente nada, assim como a arte. Me sinto con-
templada no hemisfério mágico do fantástico onde o bem vence o mal.
O mistério pode até ser, sim, um desencadeador de fantasias maneiras, mas talvez o
maior entrave do Eu que é seja a impossibilidade do Eu que não é. Não se esconder é se
mostrar vulnerável aos maiores medos do mundo: abandono, solidão, insuficiência, morte
psíquica. O contrário. Voltar para casa é também abaixar armaduras que, por tantas vezes,
seguramos com muita força, há anos, e seguiremos segurando lá fora. Aqui, é terreno bem
cuidado, acarinhado e amaciado. Munido de amor. Tudo isso, aqui, em casa... e a gente anda
tanto em casa.
Algumas certezas ficam por aqui. A primeira é que estou com muita vontade de desfi-
lar usando novas composições de roupas, a segunda é que ir junto dos processos é mais fácil
que tentar nadar contra a maré — se a gente sabe que só vai cansar à toa e, no fim, perder — a
terceira é que, por mais que não faça sentido, não tem muito sentido o que a gente faz, e isso
torna as coisas mais leves.
Enquanto isso, para os pesquisadores, a pesquisa continua, presos ao nosso sistema e
ao sistema deles. Eu tento, de coração, passar a perna no sistema, meu segredo é dar um jeito
de me inserir, cada vez mais, nele, para mudar as suas configurações.
Agora, não banquemos os revolucionários se já o somos, faremos o mínimo com o
principal objetivo geral: sobreviver e brotar.

14

Fernanda Garcia Cassiano

É aluna do Programa de Pós-Graduação em Letras (PLE), da


Universidade Estadual de Maringá (UEM), é mestranda em
Estudos Literários na linha de pesquisa Literatura e Histori-
cidade e vinculada aos projetos de pesquisa: Lacanianismo,
literatura e cultura e Nada de errado em nossa etnia: tradi-
ção, cultura e identidade em literaturas de caráter pós-colo-
niais e decoloniais, ao projeto de extensão Outras Palavras
(POP) e sócia da Editora Trema Ltda. Graduada em Letras
com habilitação em Língua Portuguesa e Literaturas Corres-
pondentes, pela Universidade Estadual de Maringá (UEM).
Réquiem da História

Tadeu
Dr. Fausto: 3 min e 33 s
Em busca do tempo perdido: 3 mim e 1 s
Esaú e Jacó: 2 mim e 45 s

Evita, ou Sabrina para os íntimos


Hoje não vi pinto. Sem pinto, sem comissão. Dona Teresa vai me infernizar. Velha
maldita. O Carlão, figura, gente finíssima. Termina rápido o serviço e, às vezes, esquece
mesmo do sexo. Paga para rememorar seus tempos de jogador. Conta, reconta as histórias.
E nunca tira o shortinho vermelho. Foi de zico, guria. Esse short e meu opala são meus filhos. Opalão
ganhei no bixo, o shorts... já contei? Ahhh... final

Carlão
Final do brasileiro de 1983. Flamengo e Santos. Carlão, beck experiente, provável des-
pedida do futebol. Joelho estourado. Chulapa comendo a bola. Maraca transbordando.
Carlos Alberto: Carlão! Tá dormindo, porra! Olha aqui, tamo fudido assim. Zico tá uma bereba
hoje e o Chulapa tá comendo a gente com farofa. Precisamos tirá-lo do jogo, tá entendendo. Provoca ele, se ele
não entrar, racha, fazê o quê.
Entrei com tudo, guria. Primeiro passei a mão na bunda dele e mandei um beijinho. Achei que o 15
negão ia me matar, nada. Tava liso demais. Não teve jeito, tive que rachar. E rachei. Vermelho. Chulapa
contundido. Mengão campeão. Antártica na taça. Punição de seis meses, joelho estourado,
aposentadoria.
Mas aí o Doutor me chamou pra uma volta. Era 1984, tava com Sócrates e Casão aqui em sampa.
Um PM chegou junto, achei que ia esquentar, rachei ele. Carlão na Veraneio. O delegado era carioca, me
liberou depois de uma foto com a rapaziada.

Tadeu (departamento de paisagismo urbano)


Porra, Tadeu. Que buceta é essa? Lendo escondido, de novo? Caralhooo...
Deixa eu ver essa merda. Irmãos Karamazov.
Tá confiscado essa porra. Cadê as plantas, Tadeu? O bosta do secretário tá vindo aí. O Suzete que
que que...
Seu Roberto, só tinha Doriana.
Esconde essa porra. Se o secretário vê isso, tamo fudido. Vão cortar nosso café. E sem café eu mato
um aqui. Tadeu, caraaaaalho que cê tá aí ainda?!
....
Não interessa. Se vira. Não tem verba pra bosta do cavalo, vai sem bosta mesmo. Mas o jardim do
prefeito precisa sair, com ou sem bosta.
Evita, ou Sabrina para os íntimos
Esse Carlão...
é mais um homem-pinto-comissão. Não, ele é um homem-sem-pinto-comissão. Gran-
de Carlão. Que charla, que manha.

Tadeu
Eneida: 2 mim 55 s

Carlão
...Zico jogou o shorts na minha cara. Tavam me chapando. O herói do jogo. Haha Ah, mas eu guar-
dei o shorts, guardei mesmo.

Roberto
(Baita professor de Literatura.)

Evita, ou Sabrina para os íntimos


1984. Praça da Sé. Uma jovem com vasta cabeleira encaracolada gritava até suas ener-
gias se esvaírem. Na face, um feixe vermelho em contraste aos últimos expurgos das fardas
verdes. Mamãe, grande militante. Nas mãos, um livro, cuja mancha de sangue jamais saíra, 1984.

Flores...
16
Início de barulho. Uma cadeira lançada ao chão. Um trôpego, quase cai. Ohh, cuidado aí,
bonitão. Ébrio, ele se dirige à velha jukebox.
A plateia se divide entre os atônitos e aqueles que aproveitam o causo latente para es-
corregar um pouco mais as mãos bobas e não pagas.
Entre peitos, cervejas pisadas e cinzas de cigarro, um eco de vozes explode nas velhas
caixas de som...
A sobreposição condensa a afinada harmonia com a necessidade do cantar de Geral-
do-Roberto.
Iii, pronto, quem botou essa música?
Evita, a próxima a entrar no mastro, suspende a preparação.
Violão
Ahhhhhh aia aia laraiai laria laraiaaaaa laaaaa.....
Juntos: caminhando e cantando e seguindo a canção...
Alguém tasca um tapa na poupa glútea de Ketlhen que estava sugestivamente acom-
panhada. Estoura a fúria urbana. Agora tudo voa, que farra: garrafas, socos, peitos, risos...
amor... revolta.
Geraldo, com força: vemm vamos embora que esperar não é saber... VEM VAMOS EM-
BOOOORA.
As lágrimas embargam a performance ao vivo de Roberto.
Fim da música. Os brigões são gentilmente expelidos desse sacro espaço.
Geraldo e Roberto vim aqui só pra dizer.... porrra, companheiros. Lutamos tanto! quantos ca-
maradas caíram. Quanto resistiram nos porões, quanto ratos roeram a dignidade das companheiras. Quanto
medo, quanto luta....
A plateia dissolve-se... mas o discurso segue. Três olhares ainda são ouvidos.
Tanto medo... tanto sacrifício ... para voltarmos a isso... esse pulha, falsário. Esse fascista! Porra, os
milicos voltaram, caralho... lágrimas, e prenúncio do encerramento da palestra.
Prenúncio falso.
É preciso derrubar os milicos!!! Ahhhhhhh......
Cai desfalecido no sofá vermelho. Desolado. Êxtase e perfume de zona.
Um sujeito de pança e bigodes proeminentes se aproxima de Roberto. Carlos, o Car-
lão. Bigodes, camisa aberta, pelos em abundância. Um enorme sorriso afável. Senta-se e ofe-
rece um Hollywood, cigarro do sucesso. Entre as cortinas, já ao som de Beyoncé, o coração
de Evita parece estourar de euforia. No canto escuro, segurando uma cuba libre sem rum,
Tadeu tem a ligeira impressão de verter uma lágrima.

4 de novembro de 2019. O aparelho subversivo estava montado.

17

Lucas Simonette

30 anos. Professor de Literatura na educação básica. Mes-


trando do Programa de Pós-Graduação em Literatura Bra-
sileira USP. Na pesquisa, persegue-se o tema o patriarca-
do em contos de Guimarães Rosa. Foi finalista, por duas
vezes, do programa Nascente USP na categoria conto.
O peso do mundo em minha morada

Hoje foi um daqueles longos dias, aqueles que passam lentamente. Estive por horas
na cama, o corpo era um chumbo que pesava à vida, o peso do mundo sobre mim. A solidão
virou minha namorada, me fazendo afundar na escuridão profunda e extravagante. Minhas
expectativas eram baixas. Ontem demorei a dormir e me prometi que o hoje seria diferente,
mas nada mudou, sinto que me tranquei e sumi com a chave, como se não houvesse vida
afora.
O grande incômodo é que eu sei que há muito mais por lá, mas nada me agrada, o
noticiário me somatiza. Meu peito dói! O que será?
Lá no fundo, diante de tanta escuridão, há uma esperança, tem que ter uma esperança,
pois sem ela eu não serei nada, apenas um outro qualquer, uma cova feita às pressas de um
pobre coitado sem um último adeus.
Pouco me preocupo comigo, o que dói é olhar para os meus pais e dizer que tudo
vai ficar bem, quando na verdade as caixas de madeira procuram corpos frios para a terra
esquentar, triste é o fim. Enquanto isso aquele que nos desgoverna brinca e ri da nossa cara,
para ele, pouco a nossa vida importa, se pudesse tenho certeza que ele escarraria em nossos
caixões com todo o seu desrespeito e a sua ignorância.
Um dia, se eu vencer, vou contar esta história como um novo começo, espero que os
meus pais estejam junto a mim. Horas se passaram e eu continuo na cama, os pensamentos
18 ainda me pesam, meu peito ainda dói, decidi voltar a dormir, prometo que o amanhã será
diferente.

Lucas Rodrigo Uchôa de Oliveira

24 anos, residente em Santana-AP, é graduando do 10° se-


mestre do curso Bacharelado em Psicologia da Faculdade
Estácio de Macapá, também é acadêmico do 8° semestre de
Licenciatura em Letras Português da Universidade Federal
do Amapá – Campus Santana. Há pouco tempo iniciou sua
trajetória como cronista, seus textos abordam temas como
desigualdade social, crises existenciais, solidão, luto, res-
significação dos acontecimentos, resiliência, entre outros.
Construção

Estranho como se chega a mim


a sensação de querer ser mais,
explorar lugares desconhecidos na vida
e no meu coração.
Sinto uma emoção anestesiante que me faz adormecer
e esquecer do resto do mundo.
Vem conversar comigo, na noite de luar
a alegria de se entregar.
Como é misterioso o fracasso da independência total
de um ser que descobre no outro
novos caminhos.
Intrigante, talvez, como queira encarar,
o fato de que não podemos ser sozinhos
nessa vida de armadilhas amorosas.
Um mundo de emoções contagiosas
rebelando-se dia após dia contra o descaso.
Amar e amar faz parte
da arte de ser mais que ontem.
Mesmo na ilusão, dor angustiante de um amor errante, 19
se pode entender que amar
é essencial.
Mas no amor, nesse amor que totaliza-se e verbaliza-se
nos olhares alheios,
não podemos nos totalizar,
porque amar e amar
é uma obra sempre em construção
para que nem a vida nem o coração
queiram se acomodar.
Sombras da dor

Uma dor

Dias sombrios: escuridão, choro, dor.


Tudo é tão vazio, mas há uma exalação de medo
se espalhando como um vírus mortal
que a solidão deixou.
Brisas congelantes de tempo em tempo
atravessam minha alma, como uma lâmina
me cortando a vontade de viver
à beira de um rio de lamentos.
Dias sombrios.
A luz do sol não me atinge
não me renova,
não me anuncia o despertar.
Nessa escuridão, nesse choro, nessa dor
reside o fracasso insuportável
de um grande amor.

20

Marcello Medeiro Borges

Professor formado pela Universidade Federal do Pará (UFPA).


Cidade: Santa Luzia do Pará
Carta para mim

Resolvi escrever para mim mesmo na busca de encontrar uma resposta para as milhares de
indagações que permeiam a minha mente neste período de distanciamento social, contudo, é
tão difícil organizar as ideias e as sintetizar em palavras. Talvez seja impossível.
Começarei tentando descrever um sentimento que está muito latente dentro de mim. Nesta
tarde, ao verificar meus contatos no aplicativo WhatsApp, deparei-me com a foto dele. É
estranho como apenas uma representação da figura da pessoa amada consegue nos abalar de
maneira tão profunda. Mas é mais estranho ainda como conseguimos cativar um sentimento
tão poderoso sem haver reciprocidade. Pergunto-me, constantemente, se essa minha capa-
cidade de criar laços tão profundos e perigosos é inata. Talvez seja um problema de fábrica,
uma voz fala. Mas, no fundo, meu subconsciente sabe que é um problema de carência. Está
tudo tão confuso que, na semana passada, busquei respostas nas cartas de tarô. Lembrei-me
de um tarólogo que meu amigo havia comentado certa vez. Pedi então o contato e mandei
mensagem, agendando uma consulta on-line para aquele mesmo dia.
No início da sessão, minhas pernas estavam agitadas — é como fico quando estou tenso,
angustiado e ansioso, ou, talvez, eu sofra da síndrome das pernas inquietas — SPI, li uma
reportagem sobre esse assunto outro dia.
O tarólogo tira as primeiras cartas e diz: — O jogo mostra que você precisa se afastar um
pouco da situação que te causa desconforto. De longe a gente enxerga melhor as situações
que nos envolvemos… assim, conseguimos encontrar melhores caminhos. Você precisa abrir 21
mão da ansiedade e da preocupação…. Está aparecendo muito isso aqui. Você parece ser
imediatista, isso atrapalha as coisas, cara… As experiências que tivemos no passado podem
nos ajudar a entender e agir diante do que temos hoje. Aí vai tendo um progresso… mas é
lento.
Tira novas cartas e continua: — Novamente aparece aqui que você precisa aprender a con-
trolar suas emoções… Muito impulso sem observações. A carta da chave sempre está apare-
cendo… Isso mostra que tudo depende de ti. A chave está nas suas mãos.
Neste momento, pensei como o universo pode colocar as chaves nas minhas mãos. Logo
eu, como as cartas bem caracterizaram, um ser imediatista, ansioso, cheio de preocupações
e frustrações de relações passadas, e com as emoções descontroladas, acrescento mais um
adjetivo, fantasioso. Contudo, respondi apenas: — Não entendi muito bem, como assim está
em minhas mãos?
Ele respondeu: — Suas ações que determinam o desfecho das situações. O tempo todo o
jogo está mostrando que você é o senhor da sua história. Isso parece meio óbvio, mas às ve-
zes, a gente não quer assumir essa responsabilidade, fica jogando na mão de outrem. Está em
suas mãos escolher entre os caminhos que lhe são dados o tempo todo.
Meus pensamentos ficaram mais confusos. Quero continuar jogando a responsabilidade no
outro, é mais fácil, menos doloroso, apesar de, no fundo, saber que não é o correto. Todavia,
sei também, que não tenho maturidade para escolher. Então uma voz, no meu íntimo, diz
“talvez seja o medo de errar, não imaturidade”. Mas digo para ele que entendi, mesmo não
entendendo ou não querendo entender, e peço para continuar o jogo.
Ele sorteou mais duas cartas e falou: — Há caminhos abertos aqui, prosperidade… Tanto no
amor quanto no trabalho…
Nesse instante, meu coração bateu mais forte e pensei “será que ele vai falar que meu amor
platônico, não é platônico?”, mas segui em silêncio enquanto ele tirava mais duas cartas.
Então continuou: — Pois… o que tenho para dizer é que você deve confiar, ainda que se
sinta desconfortável, no seu trabalho atual. Parece que há algo bom vindo… só cuidado com
os colegas invejosos que não se felicitam com as conquistas do outro…
Tira mais uma carta e diz: — Analise bem estas pessoas que você está conhecendo… Há
possibilidade de alguém trair você. Há uma energia masculina, um pouco dura, que não te
deixa seguir adiante em algumas coisas.... Tem ideia de quem seja?
Meus pensamentos não estavam alinhados, queria apenas saber sobre os caminhos abertos
no amor, que se dane a energia negativa dos que me cercam. Então respondi: — Não tenho
ideia, depois penso melhor sobre isso, não quero ser injusto com ninguém.
Ele tirou mais uma carta. Desta vez saiu a torre, então disse: — A carta da torre reafirma a
necessidade de se afastar um pouco para ver melhor a situação de outro ângulo…
Eu não aguentava mais aguardar para saber melhor sobre minha vida amorosa e resolvi inter-
rompê-lo e perguntar. Indaguei: — Posso tirar algumas dúvidas?
Ele balançou a cabeça, sinalizando que sim.
Então comecei a falar: — Para mim não ficou claro o assunto do amor. Estou conhecendo
uma pessoa (não quis dizer que saí com ele apenas uma vez, no início da quarentena, numa
tentativa de aliviar a tensão e o medo, era vergonhoso) e estou apegado. Porém, desde o últi-
22 mo encontro (tinha exatamente uns 3 dias) não nos falamos mais.
Ele com a expressão calma, responde: — O que você acha disso?
Minha vontade era falar “eu não acho nada, se eu quisesse encontrar a resposta dentro de
mim discutiria isso na terapia, não procuraria um cartomante”, mas me controlei e respondi:
— Não sei. O conheço há pouco tempo, ficamos de marcar algo essa semana, mas, devido à
chuva, acredito que não irá acontecer. Contudo, o que rolou no nosso último/primeiro en-
contro foi intenso, gostei bastante.
Ele tirou uma carta e disse: — Vamos lá… Alguém não está sendo desonesto em relação ao
que sente… E não parece que é você. O jogo mostr que você está envolvido de verdade, o
que é bom, mostra que você tem espontaneidade e entrega, mesmo ainda tendo alguns com-
portamentos um pouco imaturos… ciúmes e possessividade… cuidado porque isso afasta as
pessoas. Acredito que essa sumida dele foi boa para você analisar melhor as coisas…
Após uns segundos parado e em silêncio, tirou mais duas cartas: — Tem um relacionamento
promissor em sua direção… mas o nevoeiro da sua mente está impedindo você de ver as
coisas como elas são. Tem muita preocupação na sua cabeça…
Já impaciente, falei: — Esse relacionamento promissor é com ele?
Ele sorriu e falou: — Não posso te dar essa resposta… Isso você vai ter que observar… mas
está fácil… Sei que você é cheio de dúvidas, estou vendo muitas informações desconectadas.
Toda essa subjetividade nas informações bagunçaram mais ainda minhas ideias. Procurei o
tarô na tentativa de receber ajuda, mas está difícil. Insisti no assunto na esperança de receber
uma resposta concreta: — E no fim, esse sumiço da pessoa tem um significado, né isso?
Ele respondeu: — Tem sim. É um tempo para você analisar e decidir. E seja sincero consigo
mesmo… Quem sumiu tem uma incerteza com a sexualidade dele, e você sabe disso e isso
acaba ocasionando em você uma preocupação… ah! insegurança também. Afinal, ninguém
quer manter um relacionamento instável. Acabei falando demais.
Eu sorri, parece que agora eu tinha entendido a mensagem, e falei: — continue a falar de-
mais…
Ele respondeu: — Você ainda tem muitas dúvidas, eu sei. Explane sobre elas.
Falei: — Sobre o relacionamento promissor, fiz um jogo de tarô on-line, saiu justamente isso.
A diferença que no on-line informava que esse homem seria mais velho que eu e me ajudaria
a conquistar o que almejo na área profissional.
Ele respondeu: — Vamos lá, mais uma vez… Você acha que ele vai te ajudar a conquistar
seus objetivos? Fecha os olhos e se pergunte, você tem uma ótima intuição, confia nela. Mas
não precisa de pressão, deixa de ansiedade.
Eu, cada vez mais impaciente, respondi: — Entendi.
Ele falou: — Meu irmãozinho, o tarô não nos dá respostas prontas, ele nos dá caminhos.
Para finalizar, perguntei: — Mas você poderia pelo menos tentar ver se o homem do relacio-
namento promissor já está em minha vida?
Ele: — Está. Converse, especialmente com o homem que você está conhecendo, mas antes,
observe…
Acenei com a cabeça concordando com o que foi dito e encerrei a chamada de vídeo. Pare-
ce-me que a bagunça aumentou. Agora estou perdido por completo. Mas seguirei… Com a
certeza que não posso culpar o vento por toda essa bagunça. Eu deixei a janela aberta para ele 23
entrar, então é minha culpa. Preciso organizar toda desordem dentro de mim, e em seguida,
encontrarei as respostas que tanto almejo. Uma voz que ecoa dentro de mim diz “é essencial
olhar para dentro de si”.

Marcelo Queiroz Oliveira Júnior

Graduando em Letras Vernáculas pela Universidade Es-


tadual do Sudoeste da Bahia – UESB/Campus Jequié –
Bahia/Brasil. Departamento de Ciências Humanas e Letras
– DCHL. Integrante do Grupo Direito, Arte e Literatura
da Universidade Federal de Sergipe (UFS). E-mail: marcelo-
queirozoliveirajunior@gmail.com.
Quem é o sexo frágil?

Por definição, do latim fragilis, quase que por unanimidade, frágil é aquele(a) que necessita
de maiores cuidados, que é mais delicado(a), que apresenta pouca estabilidade. O oposto, o
contrário, o antônimo, se assim pode-se dizer, de forte, de sólido(a), de permanente. Ainda
que seja classificado como um adjetivo de dois gêneros, em sua pluralidade, quem é o sexo
frágil? Sem querer romper a dualidade do Humano, demasiado humano de Nietzsche (1878)
ou fundamenta-lo no termo schopenhaueriano herdado de Kant... longe disso, muito longe.
Seguindo o pensamento, ainda tão popular quanto certas canções de infância, a fragilidade
flerta o seu egocentrismo categórico e já dizia Erasmo Carlos
(...) “é uma mentira absurda e que a força está com elas”.
Ainda, sem antecipar qualquer análise ou induzir o caro leitor a qualquer observação prema-
tura, um estudo da Universidade Duke, da Carolina do Norte (EUA), demonstra que durante
momentos históricos em que ambos os sexos enfrentaram altos níveis de mortalidade, as
mulheres sobreviveram de 6 meses a 4 anos a mais que os homens. Como se pôde observar
durante a escravidão em Trindade e Tobago ainda no século 19, durante a epidemia de saram-
po na Irlanda de 1846 a 1882, durante a escassez de alimentos na Ucrânia na década de 1930.
E o que estamos observando agora? Na Pandemia do COVID-19, seja na China, na Itália,
nos EUA ou em outra parte do mundo, homens estão
morrendo mais que mulheres de COVID. E por quê? Seriam os genes? Seriam os hormônios?
24 O sistema imunológico, o comportamento humano? Isso faz com que os homens sejam mais
suscetíveis? Isso faz com que o homem se torne definitivamente o sexo frágil?
Na Itália e na China, as mortes do sexo masculino são mais que o dobro em relação às do
sexo feminino. Em Nova Iorque, 61% dos óbitos são de homens. Variáveis importantes
como idade e comorbidades, ou seja, presença de doenças crônicas, são importantes, mas não
explicam o viés sexual. Ao passo que a taxa de óbito de homens de 30-40 anos também tem
aumentado e apesar disso, são as mulheres que vivem mais, portanto, há muito mais mulheres
idosas no planeta.
Mulheres e homens são diferentes biologicamente, enquanto elas têm duas cópias do cro-
mossomo X, eles apresentam um X e um Y, cheio de sequências repetitivas, um “Y-tóxico-
-lixo” talvez, que imprime as diferenças físicas e até certo ponto comportamentais, devido
sobretudo, a atuação dos hormônios sexuais. Enquanto as mulheres têm a dose dupla, os ho-
mens não possuem o backup. Elas saem na frente também, quando mencionamos o sistema
imunológico, o mais forte, por isso são mais suscetíveis a doenças autoimunes. Estes vieses
com que nos deparamos dia após dia nos fazem repensar. Quem é o sexo frágil?
Posso dizer por mim mesmo, cercado por inúmeros protótipos delas no meu círculo familiar,
são mais fortes que aroeira, como se diria em Goiás. Sejam elas, a esposa, a mãe, a irmã, a so-
gra, tias, amigas e até mesmo minha nonna falecida em 2020, aos 91 anos. O que posso real-
mente dizer? Talvez pudéssemos criar um neologismo somente a elas, uníssono, entre força e
fragilidade, na adjeção que irrompe a polarização. Todavia, se me permitem, provisoriamente
um trocadilho já resumiria, mulheres, melhores.
Olho vermelho

O olho vermelho há muito tempo intriga a humanidade, não deliberadamente e de forma


única como se generaliza: “olho vermelho?! Ou é maconheiro ou está com conjuntivite”.
Não no ensejo da superficialidade, mas algo como um toque filosófico, algo com um toque
científico, algo com aquele toque popular, na tênue linha entre nossos corações. Afinal de
contas, de “médico e louco cada um tem um pouco” já diria o dito popular.
Olho (anatomia), olho (ação), olhar... algo um tanto poético e se os olhos não o fossem, tal-
vez não seriam eles contemplados por poemas, pensamentos e reflexões a cerca da humani-
dade. Mas quando falamos em olho vermelho, seja para a oftalmologia, seja para a população
em geral, um alerta se acende.
Olho vermelho como diagnóstico médico significa desde uma irritação e uma alergia, pas-
sando por uma conjuntivite, um hiposfagma, uma esclerite, até uma uveíte... um glaucoma
agudo ou um corpo estranho.... ou mesmo a temida endoftalmite... poderia ficar aqui listando
inúmeros outros diagnósticos diferenciais. Inclusive um mais recente, a conjuntivite acusada
pelo SARS-CoV-19. Esta que apesar de rara, pode ser fonte importante de contaminação.
Mas é o olho vermelho que também se emociona, na sua expressão diária. Chora tanto de
alegria, quanto de tristeza. Uma dicotomia mundana. Em tempos difíceis, os olhos, em sua
expressão mais que humana, humanitária, talvez, refletem muito além de nossas esperanças.
Estes mesmos olhos que choram de alegria pelas novas conquistas, que choram ao tocar a
imagem, ainda que distante, devido ao contingenciamento e ao isolamento social, do ente 25
querido, um choro de alegria e alívio, é o mesmo que chora de tristeza, de dor, que chora por
um sofrimento aquém do imaginado.
Enquanto estivermos firmes, nos propósitos jamais pensados por nossa geração, vislumbre,
repense e reflita o queres olhar adiante. Podemos sim chegar a um mundo melhor. Se estamos
ou não em um momento crítico da existência? Muitos outros enfrentamentos virão, sejam
os nucleares, sejam os climáticos, sejam étnicos ou tantos outros. Mas antes que seja tarde
demais, pare!
O nosso futuro está em nós mesmos, em nossos olhares. Afinal, que olho vermelho deseja
para você e para o futuro da humanidade?

Rômulo Piloni

Médico, em formação oftalmológica, ítalo-brasileiro e


amante das letras; natural de Anápolis - GO e residente do
Rio de Janeiro, membro da Academia Anapolina de Letras e
da União Literária Anapolina.
Flagelo

Do nascer ao pôr do sol,


tua saudade em meu peito faz morada.
Atrozes desalento e vazio
dilaceram-me o mais íntimo da alma.

Entre turvos pensamentos e imagens,


vasculho restos de alegria,
de um tempo em que teu sorriso
era a muleta com a qual sobrevivia.

Sem curso, sem destino, sem um porquê...


Passo os dias a te esperar.
Entre uma lágrima e um grito,
vejo a vida sufocar.

Em meio ao breu daquela noite,


o anjo negro, de mim, roubou-te.
Arrebatou -me os sonhos
26 e, com eles, meu eterno amor.

Na solidão do dilúculo,
migalhas de um choro sufocado.
Medra apenas consoladora esperança
de, em breve, reencontrarmo-nos.

Silvio Tony Santos De Oliveira

Possui graduação em Letras - Língua Portuguesa pela Uni-


versidade Federal da Paraíba (2016) e desenvolve pesqui-
sas nas circunscrições da interface Literatura e Psicanálise.
Membro do grupo LIGEPSI – Grupo de pesquisa em Lite-
ratura, Gênero e Psicanálise.
Condenados

Agora que os pássaros arremetem livres para a imensidão azul, eu vejo. Agora que a
água percorre seu trajeto cristalino, eu ouço. Agora que o húmus impoluto germina a vida,
eu sinto. De que servem olhos, ouvidos e mãos boas para cultivarem egoísmo? De que serve
uma boca que só alimenta mentiras? Agora eu me lembro claramente o que dizia minha mãe
pela boca dos meus ancestrais: a Mãe Gaia não tem idioma, raça ou fronteira, acolhe a todos.
E só agora eu entendo que a sabedoria é orgânica e não de papel. Mas seus filhos cortaram
os laços com a mãe e a abandonaram, ou pior, a sacrificaram em troca de mais recursos, mais
e mais consumo. A sede desses filhos rebeldes não se sacia facilmente. E eles foram sugando
tanto a fonte que era impossível reconhecer o próprio rosto, ou porque as águas estavam
escuras ou porque não havia água alguma.
Faz apenas dois anos que a guerra começou, embora pareça que tenha existido des-
de sempre. Nenhum disparo e nenhuma bomba, nada queimou, a não ser os corpos pelas
ruas, nas valas comuns, despertando uma memória infeliz da humanidade. A guerra não
tinha fronteiras claras ou inimigo visível, as vítimas foram as mesmas de sempre, os mais
vulneráveis, entregues à própria sorte. Ao menos representam a maior cifra nos infinitos
cálculos que se fazem até hoje. Hoje são números, seus rostos já vão sendo esquecidos. Eu
não tenho dúvida de que os donos do poder teriam abandonado este planeta e fugido para
outro se vivêssemos no futuro distópico das ficções. Mas o presente é o pesadelo do qual
não acordamos totalmente. E é tão real que podemos ainda ouvir os ecos das ambulâncias, 27
os gritos de desespero em línguas que sequer reconhecemos, a não ser pelo fato de que a
gramática do sofrimento é universal. Como fechar uma ferida que não se enxerga? As sacadas
se solidarizaram por um tempo, regidas pela música, orquestrando uma esperança desejada,
mas mesmo estas se apagaram e se renderam com o tempo. As vozes que anunciavam a cura
tampouco se perpetuaram. Passamos a dançar com a morte à beira do precipício. Até que a
música parou. O inimigo possuía seus aliados e era silencioso. Às suas hordas sem rosto se
juntaram primeiro o negacionismo, o frio e o despreparo. Logo mais, soldados inestimáveis
e temidos como o medo e a ignorância. Por fim a ganância lançou seus cães de guerra. Mal
pudemos chorar as primeiras mortes. A cada dia, a cada hora, minuto a minuto se somavam
àquelas novas perdas outras vidas. Os cientistas corriam contra o tempo, este inimigo que
nos persegue enquanto foge. Aqueles que vestiam o uniforme branco, verde, azul, com más-
caras ou rosto nu, lutaram bravamente com suas próprias armas. Foram incansáveis. Eram os
pássaros que tentavam conter o incêndio na floresta. Da floresta quase nada restou. Muitos
deles não retornaram. O comércio parou quase totalmente, junto com a indústria, as escolas,
a arte. A terra por um momento não se fez mar, se fez deserto. O planeta em quarentena
voltou a respirar quando muitos perderam essa dádiva. Os que tentaram se impor à força dos
eventos, arriscando-se às ruas, pagaram um preço exorbitante, com a moeda mais valiosa que
podemos conceber. Dos mais velhos, as primeiras vítimas, temos pouca notícia. Somos um
mundo com muita memória e pouca sabedoria. Ou só nos damos conta disso agora diante do
irremediável. Sem nossas bússolas, andamos tateando o amanhã. É verdade que a vida seguiu
em frente, mas a paranoia vai junto, são companheiras que nunca se separam.
Há algumas décadas uma canção profetizava o dia em que a terra iria parar, que nin-
guém sairia de casa, que todos abandonariam suas funções. Seria um pesadelo ou uma utopia?
A música era breve. Nós continuamos vivendo neste tempo fora do tempo, indefinidamente.
Resta a lição de Wells e seu vírus que destruiu os invasores de outro mundo. É nosso dever
traduzir aquela fábula, os corpos estranhos somos nós mesmos, habitantes desta imensa al-
deia global, invadindo, pilhando e empilhando as necessárias mas nunca suficientes vítimas
da ganância. A realidade também oferece suas lições a quem sabe ler com olhos libertos. O
sistema tem fome e parece nunca estar satisfeito. Por isso, desde então, vivemos numa eterna
vigília sem sonhos. Não precisamos olhar atrás para ver as sombras se projetando sobre o
presente. Com muito esforço, conseguimos nos distanciar. Até ensaiamos sorrisos e enseja-
mos pequenas reuniões. As lágrimas secaram há algum tempo, mas os sulcos na pele nos re-
cordam a importância da humildade. Do isolamento, veio a solidariedade, nada mais humano
que essa contradição. As pessoas, forçadas a conviver diariamente, reaprenderam uma língua
há muito esquecida. Agora que os filhos retornam para a mãe, ela não reconhece seu rosto,
são estranhos de volta ao lar. Felizmente o seio materno é farto e generoso. Esta terra ainda
permite uma segunda chance aos condenados.

28

Wellington Ricardo Fioruci

Sou de Assis-SP (1976), mas vivo no Paraná, onde ensino


literatura na UTFPR desde 1998. Publico amiúde ensaios
em periódicos acadêmicos e organizei em parceria dois li-
vros teóricos Vestígios de memória: diálogos entre literatu-
ra e história (2013) e Correspondências: literatura e cinema
(2015), ambos pela editora CRV (Curitiba). Além disso, fui
selecionado em 2014 pela Editora da UFF e Imprensa Ofi-
cial do Estado do Rio de Janeiro com um conto “O clube
dos esquecidos” para a coletânea Aquele Dia, Aquele Jogo
(2014) e, ainda neste ano, no Concurso de Crônicas de Ma-
riana (MG), recebi Menção Honrosa pelo texto “Dentes e
fuzis”. Fui vencedor do concurso organizado pela Univer-
sidade Federal de Lavras (UFLA), na categoria poesia, em
2016.
29
Chispas
Artísticas

30

Seção dedicada à publicação de fotografias e ilustrações de


todos os gêneros.
31
31
32
Vinícius Figueiredo Silva

É natural de Teófilo Otoni, município localizado no nor-


deste de Minas Gerais. Possui Graduação em Ciências Eco-
nômicas pela Universidade Federal dos Vales do Jequitinho-
nha e Mucuri (UFVJM) e Mestrado em História Econômica
pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e
atualmente, é pesquisador do Grupo de Estudos em Desen-
volvimento Econômico Brasileiro (GEDEB) e doutorando 33
no curso de Economia Política pela Universidade de Bra-
sília (UnB). Desde muito cedo, buscou retratar os dramas
da vida cotidiana através de seus desenhos e versos, muitos
deles presentes no livro “Tertúlia dos Vales”, lançado em
2018. Outro espaço onde são apresentados seus trabalhos
artísticos é a página do instagram @expofaces, criada em
2020.
Chispas
Académicas

34

Seção dedicada à publicação de textos acadêmicos, como en-


saios, artigos e resenhas.
Sumário
Cássia Cristina Gonçalves Simplício
O leitor de Dom Quixote de la Mancha no viés da Esté-
tica da Recepção¹ ................................................................................ 36

Douglas Manoel Antonio de Abreu


Pestana dos Santos
O mal estar docente em tempos pandêmicos: narrativas
na contemporaneidade ................................................................... 44

Lays Lins Albuquerque


Isaque da Silva Moraes
Cultura literária na escola: experiências no espaço digi-
tal .................................................................................................................. 54

Marcos Felipe Chiaretto


Fátima Elisabeth Denari 35
A pessoa idosa diante da Covid-19: tempos difíceis? ..... 64

Pedro Panhoca da Silva


Mais do que modismo mórbido: a importância de se re-
gistrar a pandemia em antologias literárias ..................... 74

Rafaela Araújo Jordão Rigaud Peixoto


La solitud pandémica: un término con sentido de vida
en construcción ..................................................................................... 84

Renata Pereira da Silva


Samuel Alves de Lima
A representação da infância no livro Contos de Aprendiz
.......................................................................................................................... 89
O leitor de Dom Quixote de la Mancha no viés
da Estética da Recepção¹
Cássia Cristina Gonçalves Simplício²

RESUMO: Dom Quixote de La Mancha, escrito por Miguel de Cervantes, vem sendo, desde a
sua primeira publicação em 1605, objeto de discussões e questionamentos, sobretudo, ao que
tange a inserção do leitor durante a leitura da narrativa. Sendo assim, este ensaio pretende
analisar e relacionar as interpretações das obras realizadas no decorrer no tempo embasando-
-se na teoria literária da Estética da Recepção, criada a partir da aula inaugural de Hans Robert
Jauss, em meados da década de 1960 sob o nome de A história da literatura como provocação à
ciência da literatura. Em 1970, Wolfgang Iser, outro teórico privilegiado neste trabalho, também
publica um texto inaugural, intitulado A estrutura apelativa dos textos.

Palavras-chave: Dom Quixote. Estética da Recepção. Leitor

INTRODUÇÃO

A escolha deste tema para a confecção deste trabalho se deu pelo fato de a teoria está
relacionada com o meu objeto de pesquisa, assim pela facilidade de falar sobre algo que tenho
36 um pouco de domínio me pareceu mais tranquilo. E a escolha de Dom Quixote de La Man-
cha como suporte para relacionar a estética da recepção com a função do leitor, me pareceu
mais tranquila, pois já havia lido o texto literário anteriormente, assim foi fácil relacionar a
teoria com o texto.
Além disso, considero relevante o papel do leitor para o entendimento de uma obra. É
através dele que as obras literárias perpetuam e ultrapassam gerações. Além do mais, analisar
a compreensão do leitor é verificar como se deu o processo de leitura, quais são as acepções
do leitor, e sempre lembrando que existem vários tipos de leitores. Logo, várias possibilidades
de leitura.
Neste ensaio, irei abordar a questão da estética da recepção e a necessidade da ação do
leitor para a concretização da obra, uma vez que a leitura de uma obra literária não deve ser
apreciada baseando-se somente no tempo que o leitor dedica a ela, pois existe todo um traba-
lho, consciente ou inconsciente e um efeito a posteriori. A leitura deve nos introduzir a um
tempo próprio, distante da agitação do dia a dia, em que a fantasia tem livre curso e permite
imaginar outras possibilidades.
Assim sendo, o presente ensaio irá perpassar pelo contexto histórico da estética da
recepção, baseando-se em teóricos como Jauss, Iser, Zilberman; a fim de intercalar com a lei-

¹ Trabalho referente à avaliação da disciplina Teoria literária: tradição e contemporaneidade, ofertada pelo
programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Universidade Federal de Uberlândia, ministrada pela
Professora Doutora Karla Fernandes Cipreste.
² Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários. E-mail: cassia.simplicio@ufu.br.
tura de Dom Quixote de La Mancha para demonstrar como o leitor recebeu um papel de
destaque nos estudos literários. Dessa maneira, não se trata apenas de pensar na estética da
recepção, mas propor uma recepção estética que permita que o leitor assuma as ferramentas
da ficção para ampliar o seu modo de compreender um texto.

DESENVOLVIMENTO

Caminhos da estética da recepção

A partir da aula inaugural de Hans Robert Jauss, na Universität Konstanz, surge a Es-
tética da recepção. Em 1967, dá-se a publicação de sua aula, sob o nome de A história da lite-
ratura como provocação à ciência da literatura. Em 1970, Wolfgang Iser, outro teórico privilegiado
neste trabalho, também publica um texto inaugural, intitulado A estrutura apelativa dos textos.
Segundo a estética da recepção, a teoria da literatura deve ser fundada no reconheci-
mento da historicidade da arte. Para Jauss, as outras linhas teóricas não consideram a história
nas análises do texto literário. O teórico aponta que, na década de 1960, a hegemonia do
estruturalismo transformou a história da literatura em objeto não grato.
A história da literatura como provocação à teoria literária era funda-
mentalmente, em sua intenção, uma apologia da compreensão histórica
tendo por veículo a experiência estética – e isso em uma época na qual
o estruturalismo havia desacreditado o conhecimento histórico e come-
çava a expulsar o sujeito dos sistemas de explicação do mundo (JAUSS,
1994, p. 73).
37
Os pesquisadores da estética da recepção buscaram realizar um trabalho de reflexão
sobre o leitor, algo até então considerado revolucionário em um período cuja a sustentação
dos estudos baseava-se na autonomia dos textos, teoria defendida em diversos trabalhos do
New Cristicism. Assim sendo, a estética da recepção necessita da ação do leitor, pois depende
dele para a concretização que justifica a existência das criações literárias.
Dessa maneira, a função do leitor diante da obra literária seria perceber as sutilezas da
obra e preencher o “vazio” textual, cabendo ao leitor resgatar e atribuir significados ao texto.
Ainda segundo Jauss, um texto nunca é monológico ou atemporal, pois sempre ocorrerá a
atualização no ato da leitura.
A partir de então, podemos notar a relevância do papel dessa crítica na história literá-
ria, visto que as pesquisas sobre o papel do leitor obtiveram um aumento significativo ultra-
passando até mesmo a academia.
Vale ressaltar que os pesquisadores ligados a essa corrente crítica não foram os primei-
ros e únicos a tratarem sobre o leitor, a importância da estética da recepção se deve ao fato da
exclusividade, da sistematização e da abertura de reflexão em torno do leitor. Sartre em Que é
a literatura? (1989), já traz apontamentos e considerações acerca do leitor. Ao questionar sobre
os limites da literatura, com ênfase sobre o autor, Sartre, traz algumas observações sobre o
leitor que antecipam a discussão sobre sua atuação pela leitura, o que mais tarde também é
defendido por Iser.
No pilar da Estética da Recepção, destacam-se dois nomes: Jauss e Iser. Em aponta-
mentos gerais, pode-se dizer que Iser estava mais centrado em discutir a leitura como um
fenômeno individual. Já Jauss, aponta a leitura como um ato coletivo, buscando destacar a
necessidade de pensar a recepção em perspectiva histórica como base para compreender o
enaltecimento literário.
Para Jauss (1994), a história da literatura ao considerar apenas um cânone ou descrever
a vida e a obra de alguns autores em ordem cronológica não consegue atingir a historicidade
das obras, não observando o aspecto estético da criação literária, já que acreditava que os
critérios de recepção, efeito e a relevância da obra seria mais importante do que o resultado
das condições históricas e biográficas de sua origem.
A proposta da Estética da Recepção surge, portanto, com a preocu-
pação central de encontrar um método para a história da literatura e
da arte, capaz de abordá-la tanto em sua relação com o contexto geral
da história quanto em sua historicidade específica, i. e., tanto em rela-
ção à sociedade quanto na dinâmica interna de superação, transgres-
são e instauração de novos códigos estéticos. Como teoria conciliadora
das pesquisas marxistas e formalistas, a teoria proposta pela Escola de
Constança buscava não só resgatar a perspectiva histórica como incluir
em seu método uma fundamentação do juízo estético que o objeto
demanda. Para que tal conciliação fosse possível era necessário propor
um nexo literário a partir do qual a ciência da literatura se tornaria capaz
de compreender a obra tanto em sua história – ou seja, no interior da
história da literatura como sistema de gêneros e formas – quanto na
38 história, i.e., “em seu horizonte histórico de nascimento, função social
e efeito histórico” (JAUSS, 1994. p. 20)

Para Regina Zilberman (1989), a análise de Jauss leva-o a denunciar a petrificação da


literatura, cujo método estava preso aos padrões herdados do idealismo ou do positivismo do
século XIX. Assim sendo, somente a partir da superação dessas diretrizes que seria possível
promover uma nova teoria da literatura, “fundada no “inesgotável reconhecimento da histo-
ricidade” da arte, elemento decisivo para a compreensão de seu significado no conjunto da
vida social; não mais, portanto, na omissão da história” (ZILBERMAN, 1989, p. 9).

A estética da Recepção e o leitor de Dom Quixote de La Mancha

Em Dom Quixote de La Mancha, compreender o contexto histórico é parte essencial


para o entendimento da obra, já que a história se passa durante o século de ouro espanhol,
demarcado pelo nascimento do barroco, início da modernidade e do modelo aristotélico de-
marcada pela retomada e valorização da tradição.
Para Jauss, o leitor é uma figura histórica que respeita a história que lê, mas ao mesmo
tempo promove uma ruptura com as leituras feitas até o momento, alcançando a sua própria
interpretação. Para Zumthor, “a leitura literária não cessa de trapacear a leitura. Ao ato de ler
integra-se um desejo de restabelecer a unidade de performance, essa unidade perdida para
nós, de restituir a plenitude” (2014, p. 66).
Em Dom Quixote uma espécie de metamorfose entre o leitor e o autor tradicional, na
narrativa, o autor/narrador cria uma máscara de si mesmo e do leitor para poder participar
do romance. Os primeiros leitores da época da publicação do clássico estavam bem familiari-
zados com as novelas de cavalaria e percebiam uma relação entre estas novelas e o romance.
Porém, os leitores atuais concebem-na de modo peculiar e exige certa preocupação com a
contextualização.
Wolfgang Iser, considera o processo de leitura como dinâmico, uma vez que o efeito
produzido está ligado, por um lado, à materialidade do texto e, por outro, à subjetividade do
leitor. Ademais, o autor indica que não há um sentido estabelecido que poderia ser apreen-
dido por um leitor passivo, mas tampouco há liberdade para o leitor compreender algo que
não esteja no texto. Importante frisar que, a interação, defendida por Iser, fracassa quando o
leitor não consegue perceber a manipulação discursiva que alguns escritores realizam.
Outrossim, o conceito de “leitor implícito” se constrói, assim, nessa junção entre o
texto e o sujeito. Não se trata, portanto, de um leitor real, mas de um receptor que atua sobre
uma estrutura textual: “Este conceito de leitor implícito designa uma rede de estruturas pro-
pulsoras de respostas, que impele o leitor a ‘apreender’ (grasp) o texto” (ISER, 1996, p. 34).
Na obra de Cervantes, pode-se notar que o conceito proposto por Iser se faz presente e é de
extrema importância para a configuração da obra.
Segundo Compagnon (2003), a teoria protesta sempre contra o implícito: incômoda,
ela é o protervus (o protestante) da velha escolástica.
O que você chama de literatura? Que peso você atribui a suas proprie-
dades especiais ou a seu valor especial?, perguntará a teoria aos histo- 39
riadores. Uma vez reconhecido que os textos literários possuem traços
distintos, você os trata como documentos históricos, procurando neles
suas causas factuais: vida do autor, quadro social e cultural, intenções
atestadas, fontes. O paradoxo salta aos olhos: você explica pelo con-
texto de um objeto que lhe interessa precisamente poque escapa a esse
contexto e sobrevive a ele. (COMPAGNON, 2003, p. 22).

Compagnon vai contra o que é proposto por Iser enfatizando que, por trás de uma
suposta liberdade, há a obrigação de o leitor seguir aquilo que lhe é prescrito pelo livro. Isso
levaria, para o crítico francês, a uma “pergunta espinhosa”: “como se encontram, se defron-
tam praticamente o leitor implícito (conceitual, fenomenológico) e os leitores empíricos e
históricos?” (COMPAGNON, 2003, p. 153).
Em oposição a uma concepção restrita de literatura e leitor, são muitas as obras e são
muitos os leitores. Podemos pensá-los com o instrumental de uma crítica que está tão distan-
te deles? Ou, modificando a questão de Compagnon indicada anteriormente: como lidamos
com o leitor empírico em relação ao leitor conceitual.
A leitura [fechada, objetiva, descompromissada, como pregada pelo
New Cristicism], e geral, fracassa diante do texto: Richards é um dos
raros críticos que ousaram fazer esse diagnóstico catastrófico. A cons-
tatação desse estado de fato não o levou, no entanto, à renúncia. Para
a teoria literária, nascida do estruturalismo e marcada pela vontade de
descrever o funcionamento neutro do texto, o leitor empírico foi igual-
mente intruso [...] O leitor é, então, uma função do texto, como o que
Riffatterre denominava o arquileitor, leitor omnisciente ao qual ne-
nhum leitor real poderia identificar-se, em virtude de suas faculdades
interpretativas limitadas. (COMPAGNON, 2003, p. 142).

A obra que imortalizou Cervantes tem sido suporte das mais diversas leituras, pare-
cendo nunca se findar. Mario Vargas Llosa chama a atenção para o fato de que o texto evolui
com o passar do tempo e se recria a si mesmo em função das estéticas e dos valores que cada
cultura privilegia. Desde que haja leitores que não se assustem com a reputação dos autores,
sempre se poderá tentar uma outra leitura.
Se a leitura e os leitores têm posição de destaque na primeira parte da obra, na segun-
da tornam-se, ao lado das aventuras, a própria matéria a ser narrada. Se o Quixote de 1605
mantém relação intertextual com os livros de cavalaria, na continuação, de 1615, a intertextu-
alidade se constrói a partir do texto e dos leitores da primeira parte.
[...] a inclusão do leitor marca uma distinção fundamental entre as duas
partes, trazendo para o contexto da obra a problematização da prática
da leitura. Ou seja, na primeira parte Dom Quixote olha o mundo a
partir da óptica de suas leituras, confiante de que a realidade se recobre
por uma rede de similitudes entre o lido e o vivido, enquanto na segun-
da parte, numa transposição paradoxal, são os próprios leitores/ per-
sonagens que se surpreendem com as coincidências entre o que leram
na primeira parte e o que vivem na segunda, a partir do contato direto
com o cavaleiro e seu escudeiro. A inclusão da primeira parte na segun-
da corresponde, portanto, a um afunilamento do universo das referên-
40 cias literárias, fazendo com que o texto se defronte consigo mesmo,
questionando as relações entre a verdade poética e a verdade histórica.
(VIEIRA, 1998, p. 81-2)

Ao interagir com o leitor, logo de início da novela, podemos verificar um tom grossei-
ro do narrador com quem o lê que é invocado como “Desocupado leitor”, por fim ao realizar
um diálogo o tanto quanto lúdico, dramático e irônico, notamos que a intenção inicial do nar-
rador é de agradar o leitor. Intenção está declarada pelo próprio “autor”, num momento de
desabafo, quando reclama que os leitores não dão atenção às novelas, passando por elas com
rapidez ou enfado. “Ao satisfazer seu gosto, se vê obrigado a deixar de lado as digressões, o
que lhe impede de exercer sua criatividade” (CERVANTES, 2004, p. 877). Assim, o próprio
autor revela a preocupação com coma recepção de sua obra.
Lajolo (2001), salienta que para uma obra existir, deverá a mesma ter relação entre
autor que escreve e leitor que lê. Nesse caminho, há toda uma estrutura que se interpõe entre
leitor e obra. Cervantes ao chamar o leitor de “Caríssimo leitor” faz uso de sarcasmo para fa-
lar de sua obra: “Y así el estéril y mal cultivado ingenio mío, sino la história de um hijo seco”.
Jauss, ao resgatar uma perspectiva histórica para a recepção, considera que devem ser
valoradas as obras que romperam o “horizonte de expectativa”. Com isso, ele define em sua
teoria uma determinada concepção de literatura e, por consequentemente, de leitor privile-
giado.
Segundo Blanchot (1987), o “leitor” é aquele para quem a obra é dita de novo, não re-
dita numa repetição continua, mas mantida em sua decisão de fala nova, inicial. Ao nomear o
“lector suave”, Cervantes trata o leitor com tom de futilidade, mas para inseri-los no romance
como figuras participantes ou personagens do processo composicional.
Além disso, o fato de o narrador não querer lembrar o nome do fidalgo, com a in-
tenção de mostrar e ocultar as informações do fidalgo, o que provoca uma desconfiança do
leitor que questionará se os fatos são verdadeiros ou não, uma vez que o narrador não apenas
conta, mas julga os personagens.
Os apontamentos realizados por Iser não considera o texto como um produto acaba-
do, diante do qual o leitor se coloca para extrair um sentido único. Assim, sua teoria apresenta
uma concepção mais dinâmica de texto, se opondo a concepção de Roman Ingarden, para
quem “a obra literária poder sofrer transformações sem perder a sua identidade” (INGAR-
DEN, 1979, p.389). Entretanto, não significa que a teoria de Iser, ao pressupor um leitor
implícito capaz de responder adequadamente às lacunas do texto, fosse totalmente oposta à
noção “elitista e normativa” de Ingarden, que reconhece a ação da leitura sobre o texto.
Ingarden nunca reflete sobre sua própria necessidade emocional de
proteger a obra de arte das massas de leitores que a usam para seus
próprios fins menos nobres. Contra essa visão do texto e do leitor nor-
mativa, elitista e “sem dinamismo”, Iser sustenta seu conceito de uma
interação dinâmica entre texto e leitor [...]. Mais importante, no entanto,
são as semelhanças essenciais no conceito de leitor e de leitura tanto de
Ingarden quanto de Iser. Iser substitui o conceito clássico de complexi-
dade harmoniosa do texto de Ingarden por um conceito moderno. Na
sua visão, a concretização do texto permite ambiguidades, perspectivas
múltiplas e até mesmo fragmentação. No entanto, sua compreensão
da atividade do leitor é tão ahistórica, abstrata e normativa quanto a 41
de Ingarden: o leitor, ou seja, a construção do leitor ideal, sempre será
estimulada através do texto para servir a um processo de crescimento
próprio sempre aberto, amplo e enriquecedor (BARNOUW, 1979, p.
1208).

A análise da recepção visa ao efeito produzido no leitor, seja individual ou coletivo e


sua resposta ao texto considerando o estímulo como bem afirma Compagnon,
Como Ingarden, o texto literário é caracterizado por sua incompletude
e a literatura se realiza na leitura [...] O objeto literário autêntico é a
própria interação do texto com o leitor [...] O leitor implícito propõe
um modelo ao leitor real; define um ponto de vista que permite que ao
leitor real compor o sentido do texto (COMPAGNON, 2003, p. 150-
151).
Em Dom Quixote, temos uma personagem cercada de livros de cavalaria, totalmente
influenciada por eles. Mesmo sem um levantamento exaustivo das aparições dos livros ao
longo de toda a narrativa, observa-se que este objeto está presente nos momentos mais mar-
cantes. São exemplos o expurgo da biblioteca do fidalgo (CERVANTES, 1978, cap. VI, p.
43), a leitura da “Novela do curioso impertinente” (idem, cap XXXIII, p. 190), ou o episódio
em que o cavaleiro observa o trabalho de correção e impressão do Quixote de Avellaneda em
uma gráfica de Barcelona (idem, cap. LXII, p. 565).
Dom Quixote enlouquece porque lê. A leitura das novelas de cavalaria é o que o move
para todas as aventuras. A leitura provoca sua ação. Alonso Quijano de tanto ler livros de ca-
valaria transmuta a ficção em realidade. Dom Quixote, não menos diferente, sonha tornar-se
através do que já vivenciou, em personagem de livro,
Quem duvida que lá para o futuro, quando sair à luz a verdadeira histó-
ria dos meus famosos feitos, o sábio que os escrever há de pôr, quando
chegar à narração desta minha primeira aventura tão de madrugada, as
seguintes frases: [...] (CERVANTES, 1978, cap. II, P. 32)

Cervantes explora amplamente a função metalinguística para elaborar reflexões críti-


cas a respeito de sua e de outras criações literárias e artísticas, sobretudo, as novelas de cavala-
ria. Na segunda parte, a reflexão sobre as tarefas das personagens, “gira em torno da própria
obra, seja acerca da primeira parte, seja sobre o falso Quixote”. (VIEIRA, 1998, p.88).
Em O demônio da teoria, temos a definição de leitor, partindo dos pressupostos de Iser,
assim, o leitor é um espirito aberto, liberal generoso, disposto a fazer o jogo do texto, mas não
deixando de lado um leitor ideal: extremamente parecido com o crítico, familiarizado com os
clássicos, mas curioso em relação aos modernos.
Em Dom Quixote, percebemos que as personagens se posicionam e se comportam
como se fossem pessoas reais, desestabilizando qualquer certeza que o leitor possa ter sobre
o estatuto de ficção do texto literário. Lajolo (2006, p. 03) pondera que, quando as persona-
gens discutem seu estatuto de ficção, “o espaço ficcional pode ganhar foros de realidade que
conduzem o seu leitor a pisar devagarinho nos estreitos limites de fantasia e realidade, autor
e narrador, ficção e história, personagem e pessoa”, justamente o que Borges indica como
magia parcial do Quixote, ou seja, que “Cervantes se compraz em confundir o objetivo e o
subjetivo, o mundo do leitor e o mundo do livro” e também que “tais inversões sugerem que
42 se as personagens de uma ficção podem ser leitores ou espectadores, nós, seus leitores ou
espectadores, podemos ser fictícios”.
Por fim, após algumas decepções o grande herói sucumbe à realidade e é obrigado a
admitir que tudo não passou de loucura. Em seus últimos dias, declara ser Alonso Quijano, o
Bom. Estando já curado, torna-se inimigo das novelas de cavalaria, ciente da impossibilidade
de existirem cavaleiros andantes. Mas, sem sombras de dúvida, o que se perpetuou para seus
leitores, reais ou fictícios, foi a grande aventura pelo universo da leitura.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste ensaio, busquei trazer algumas reflexões que obtive ao longo da disci-
plina teoria literária; tradição e contemporaneidade, sobretudo, as que tange sobre a estética
da recepção, confesso que essa a aula que mais aguardava ao longo do semestre. Comumente,
a escrita de Cervantes destaca-se pelo tratamento que recebe no que diz respeito à leitura,
personagem principal em Dom Quixote.
Sem dúvidas a narrativa cervantina apropria-se de sua estrutura para a construção de
sentido da obra, para que só assim possa ser formados leitores mais atentos, críticos e capazes
de apreciar a mesma obra sob diferentes aspectos.
Por conseguinte, analisar o leitor deste clássico, é pensar no repertório sociocultural
que ele já traz consigo para que ele possa refletir sobre a obra literária. A experiência da lei-
tura assim como toda experiência humana, é dual, ambígua, dividida; mas não significa que
não devo me posicionar.
Para Petit (2013), falar um pouco do papel da leitura na construção de si mesmo, na
elaboração da subjetividade. Assim, concluo que o ato de leitura é uma ferramenta de poder.
É através dele que se teme uma identificação, na qual o leitor pode ser aspirado pela imagem
fascinante que lhe é oferecida e construir pontes com suas próprias palavras.

REFERÊNCIAS

BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita, v. 3: a ausência do livro (o neutro, o fragmentário).


Trad. João Moura Jr. São Paulo: Escura, 2010.

BORGES, J. L. Magias parciales del Quijote. In: _______. Obras completas. Buenos Aires:
Emecé Editores, 1974, p. 667-669.

CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de. Dom Quixote. Trad. De Viscondes de Castilho e Aze-
vedo. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

_______. Don Quijote de la Mancha. Edición del IV centenario. Real Academia Española, Aso-
ciación de Academias de la Lengua Española. Alfaguara, 2004.

COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 2003.
43
LAJOLO, Marisa. Literatura: leitores e leitura. São Paulo: Moderna, 2001. p.7 - 48.

________. Do Intertexto ao Hipertexto: as paisagens da travessia. Disponível em: https://


meuartigo.brasilescola.uol.com.br/educacao/a-importancia-literatura-infanto-juvenil-no-
-fundamental-ii.htm. Acesso em 25/12/ 2020

PETIT, Michèle. Leituras: do espaço intimo ao espaço público. Trad. Celina Olga de Souza.
São Paulo: Ed. 34, 2013.

VIEIRA, M. A. C. O dito pelo não-dito: paradoxos de Dom Quixote. São Paulo: EDUSP-
-Fapesp, 1998. (Ensaios de Cultura, 14).

ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Trad. Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich.
São Paulo: Cosac Naify, 2014.
O mal estar docente em tempos pandêmicos:
narrativas na contemporaneidade
Douglas Manoel Antonio de Abreu Pestana dos Santos¹

RESUMO: Este artigo tem como objetivo compreender os impactos causados na abrup-
ta inserção docente na utilização de inúmeras tecnologias digitais em tempos de Covid-19.
Na contemporaneidade o uso de plataformas digitais obteve notória participação no supor-
te dos professores para a realização das suas aulas de maneira remota. Assim, pretende-se
compreender, na perspectiva de (MARCELO, 2009) e (SOUZA, TAMANINI E SANTOS,
2020), como o profissional docente tem se relacionado com inúmeras tecnologias e quais
os impactos sociais e psicológicos decorrem deste processo. Para tanto, esta pesquisa de or-
dem qualitativa, foram entrevistados três professores de realidades variadas para que em sua
própria percepção narrem os desafios encontrados, os recursos utilizados e suas condições
emocionais durante a realização das aulas remotas. Pode-se constatar que há um esforço con-
junto dos professores para dar continuidade ao percurso educacional dos alunos, embora as
soluções não sejam completamente adequadas nesta realidade incerta, sendo considerado um
momento que tecnologia ou a ausência dela tem gerado várias condições de adoecimento.

Palavras-chave: Tecnologias Digitais; Mal estar docente; Isolamento Social; Aulas Remotas
44
1 INTRODUÇÃO

Mais que um profissional responsável pela transmissão de conteúdos prontos e fecha-


dos, o docente se apresenta como um mediador de conhecimentos e facilitador de proces-
sos de aprendizagem. Carlos Marcelo (2009) disserta sobre a identidade docente traduzindo
como construção do próprio sujeito a partir da reflexão de sua ação contextual:
“...um processo evolutivo de interpretação e reinterpretação de experi-
ências, uma noção que coincide com a ideia de que o desenvolvimento
dos professores nunca para e é visto como uma aprendizagem ao
longo da vida. Desse ponto de vista, a formação da identidade profis-
sional não é a resposta à pergunta quem sou eu neste momento? mas
sim a resposta à pergunta o que quero vir a ser?” (MARCELO, 2009,
p. 112-113).

¹ Membro da Rede Nacional da Ciência para a Educação- CPe Membro da Associação Brasileira de Au-
toimunidade Docente Pesquisador em Educação e Neurociência aplicada ABEPEE- Associação Brasileira
de Pesquisadores em Educação Especial UNESP Associado(a) na categoria de Profissional, Nº de matrícula
15713, da Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento (SBNeC) USP, filiada no Brasil, à Fede-
ração das Sociedades de Biologia Experimental (FeSBE), à Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
(SBPC) e no exterior, à International Brain Research Organization (IBRO) e à Federação das Associações
Latino Americanas e do Caribe de Neurociências Student Membership International Society for Telemedici-
ne and eHealth -EUA e Membro da ABTms - Associação Brasileira de Telemedicina e Telessaúde.
A partir da construção identitária da profissionalidade a partir das experiências circun-
dantes, entende-se o professor como ator importante de comunicação entre o espaço escolar,
seus sujeitos e o mundo. Além de sua função em sala de aula, o professor se constitui, como
afirma Paulo Freire (2001), agente social de transformação e “humanização dos sujeitos”,
onde cada indivíduo pode afirmar como o próprio Freire se descrevia: “não nasci... vim me
tornando” (FREIRE, 2001, p. 87).
Vale ressaltar neste texto, como as percepções sobre o professor mudaram com o pas-
sar dos anos quando lembra-se que o professor de cinquenta anos atrás, nos ambientes civis
(no mercado, posto de saúde, parque etc.) dificilmente ouvia-se um aluno o chamar por seu
nome ou por outra caracterização específica: sempre com muito respeito ao se portar diante
deles cumprimentava-se: “Olá, professor!” Em qualquer lugar que esteja, o professor será
reconhecido como tal.
A profissionalidade docente se concretiza no encontro da teoria e da prática, da pro-
fissão e da vida cotidiana, das realidades institucionais e da personalidade e individual, das
responsabilidades na formação dos discentes e na preocupação por sua própria formação
permanente.
Marcelo (2009), afirmando a construção da identidade docente diante da intersubjeti-
vidade do lugar em que se existe e a partir das funções que assume, recorda que
“...é preciso entender o conceito de identidade docente como uma re-
alidade que evolui e se desenvolve, tanto pessoal como coletivamente.
A identidade não é algo que se possua, mas sim algo que se desenvolve
durante a vida. A identidade não é um atributo fixo para uma pessoa, e
sim um fenômeno relacional. [...] A identidade profissional não é uma
45
identidade estável, inerente ou fixa. É resultado de um complexo e di-
nâmico equilíbrio onde a própria imagem como profissional tem que
se harmonizar com uma variedade de papéis que os professores sentem
que devem desempenhar”. (MARCELO, 2009, p. 112).

O professor, dentro da história social e cultural, se apresenta como “ponte” entre os


saberes, os indivíduos, potencialidades e dificuldades.
Este artigo justifica-se por relevante contextualização da profissionalidade docente em
sua função social no atual momento histórico, compreendido diversamente como “era da
informação”, “era da interatividade”, “era digital” entre outras terminologias coadjuvantes.
Como caracterização fundamental, podemos afirmar que este tempo atual é “marcado por
transformações vertiginosas em todas as suas esferas - social, econômica, política, cultural,
educacional, pautadas na conectividade, ubiquidade, interatividade, comunicação multidire-
cional, informação em tempo real, descentralização e democratização da informação e das
comunicações” (SOUZA, TAMANINI E SANTOS, 2020, p. 2), que influenciam no modo
de compreensão acerca dos indivíduos e instituições inseridos nesta realidade, bem como do
próprio mundo ao qual são sujeitos históricos responsáveis por sua construção.
Além de uma característica da cultura historicamente construída, os processos que já
eram marcados pela virtualização das relações, têm se intensificado ainda mais ultimamente
devido ao isolamento social recomendado, medida tomada devido ao surto pandêmico do
novo “Coronavírus” (COVID-19). Tal crescimento acontece, de modo especial, nos proces-
sos educacionais, que antes tomavam das tecnologias digitais alguns meios e soluções e, nos
últimos meses, se viram “reféns” das tecnologias e aparatos eletrônicos, realizando aulas e
todas as demais atividades educativas à distância a partir dos espaços virtuais.
Se antes as tecnologias poderiam ser facultativas e secundárias na educação, agora
estão sendo obrigatórias e, junto com a própria atividade docente- discente, se coloca como
elemento fundamental para a concretização do processo ensino- aprendizagem.
Emerge-se o entendimento contemporãneo de que o professor não é o único dententor do
saber, assim é válido acreditar que o chamado processo de ensino e apredizagem aconteça de
forma bilateral (aluno-professor-professor-aluno), acrescidos da presença da tecnologia que
em tempos pandemicos fora uma das poucoas e mais assertivas soluções para continuar a se
fazer educação no mundo. Em conformidade com o exposto é indubitável o reconhecimento
da assertiva que Santos, 2020 nos propõe:
“O ensino remoto tem deixado suas marcas... Para o bem e para o mal.
Para o bem porque, em muitos casos, permite encontros afetuosos e
boas dinâmicas curriculares emergem em alguns espaços, rotinas de
estudo e encontros com a turma são garantidos no contexto da pan-
demia. Para o mal porque repetem modelos massivos e subutilizam
os potencias da cibercultura na educação, causando tédio, desânimo e
muita exaustão física e mental de professores e alunos. Adoecimentos
físicos e mentais já são relatados em rede. Além de causar traumas e
reatividade a qualquer educação mediada por tecnologias. Para o nosso
campo de estudos e atuação, a reatividade que essa dinâmica vem cau-
46 sando compromete sobremaneira a inovação responsável no campo da
educação na cibercultura” (SANTOS, 2020, s.p.).

É mister pensar aqui a relação educação e tecnologias digitais para o futuro, a fim de
que estejam em sintonia pedagógica, tendo em vista a construção de sujeitos críticos e atentos
às necessidades do seu tempo. Nesta perspectiva se colocam questões como: os professores,
alunos e famílias estavam preparados para o ensino remoto? As adaptações de metodologia
e conteúdo foram realizadas adequadamente? Quais problemas se colocam diante da dificul-
dade dos acessos aos meios digitais? Que impactos causaram e causarão na educação? Como
se sentem os sujeitos envolvidos no processo ensino-aprendizagem nesse tempo de aulas
remotas, especialmente os docentes?

2 A PESQUISA: METODOLOGIA

Este artigo segue preceitos metodológicos de caráter qualitativo, e baseou-se na defi-


nição de Denzin e Lincoln (2006) quando conceituam tal tipo de pesquisa, a partir da abor-
dagem interpretativa do mundo, procurando compreender os fenômenos propostos a partir
das significações que os próprios sujeitos participantes da pesquisa dão a eles. A atenção para
a abordagem e modo de análise se voltou para os depoimentos dos sujeitos docentes envol-
vidos e os significados presentes direta ou indiretamente nas suas narrativas.
Como objetivo central, buscamos investigar, a partir da diversidade de identidade do-
cente, os impactos e condições que o uso das tecnologias teve no trabalho docente, as adap-
tações que precisaram ser realizadas, os meios dispostos que tiveram das instituições para que
as mesmas acontecessem e as condições e impactos pessoais/psicológicas provocados
pela atual situação educacional e a atividade docente. A pergunta que baseou a pesquisa foi:
quais as condições de trabalho, adaptações necessárias, desafios profissionais e impactos psi-
cológicos da educação no período pandêmico?
A sondagem foi executada para realização de um trabalho para uma disciplina do
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Ibirapuera por dois estudantes
mestrandos. Como metodologia de pesquisa, optou-se por um questionário breve, com 5
questões abertas, abrangendo a identificação pessoal e profissional, os recursos utilizados
na docência durante as aulas remotas por conta da pandemia, as necessárias adaptações, os
demais desafios e os impactos pessoais/psicológicos desta experiência de ensino totalmente
virtualizado.
Em relação as ínumeras váriaves impeditivas para a coleta dos dados, o questionário
foi unicamente enviado via e-mail e WhatsApp para 3 docentes do Município de São Paulo,
sendo 1 de cada rede de ensino: municipal, estadual e privada. A pesquisa foi realizada com
devolução dos dados entre 2 e 5 de outubro de 2020.
Responderam o questionário 1 docente de cada rede de ensino, a saber: municipal,
estadual e privada. A idade dos docentes se coloca entre 25 e 50 anos e o tempo de docência
entre 5 e 20 anos.
Separou-se o perfil específico de cada docente: Professor A: 25 anos, 5 anos de profissão,
docente do Ensino Fundamental II, e Ensino Médio da rede privada no Município São Paulo; Professor
B: 42 anos, 10 anos de profissão, docente do Ensino Fundamental I e II, da rede municipal de São Paulo;
Professor C: 50 anos, 20 anos de profissão, docente do Ensino Fundamental II e Ensino Médio, da rede 47
estadual de São Paulo.
Para a análise dos dados obtidos, o estudo guiou-se pelo método e definição de Wethe-
rell, Taylor e Yates (2001) diante da “análise do conteúdo” como modo de ler e compreender
os textos e as “falas” (tendências praxiológicas) presentes, investigando o uso da linguagem
em seus contextos sociais. Trata-se da consideração dos conteúdos dos discursos associado a
questões sociais ou culturais. A partir das narrativas dos docentes divididas em temas especí-
ficos apresentadas na pergunta de pesquisa, analisou-se os resultados.
A partir da análise verificou-se de forma generalista os recortes das falas, através da
participação de docentes recém profissionalizados, com experiência mediana e com maior
experiência profissional, bem como advindos da diversidade de redes e etapas escolares.

3 NARRATIVAS DOCENTES

A partir das considerações elencadas pelos próprios docentes, se pode traçar uma aná-
lise a partir das temáticas elencadas nas próprias questões e apresentadas já apresentadas no
texto.
Quanto aos recursos utilizados, os entrevistados mostraram diferentes formas de uti-
lização. No entanto, todos eles se mostram preocupados com o chamado “novo normal”
formato de aplicação e execução das aulas. Os principais meios citados foram vídeo-aulas,
grupos de WhatsApp, tutoriais do YouTube (para exposição de conteúdo do livro didático
ou maquetes e outras formas tradicionais), ferramentas do Google (Classroom, Meets, Docs,
Slides, Forms) e Khan Academy. Importante frisar que, neste quesito, a infraestrutura ofe-
recida pelas instituições de ensino tem valor preponderante. As ferramentas alternativas e
interativas do Google foram citadas pelo professor A, pertencente à rede privada, enquanto
as outras contribuições (práticas ainda tradicionais com tentativas de adaptação) se concen-
tram na resposta dos docentes de rede municipal e estadual. Por um lado, reafirma-se que a
compreensão de que as “inovações” no campo da educação não decorrem das tecnologias
em si, mas são implementadas processualmente pelos seus usuários” (SOUZA, TAMANINI
E SANTOS, 2020, p. 2). Contudo, dependem também de incentivos e investimentos, não
resumindo-se na utilização de aparelhos eletrônicos mas de “novas linguagens e gêneros
textuais, redes sociais virtuais, produção e compartilhamento de conteúdo em rede e em
tempo real e construção colaborativa do conhecimento, simulações de realidades virtuais”
(SOUZA, TAMANINI E SANTOS, 2020, p. 2), formando uma consciência estrutural digi-
tal, possibilitando a construção de “sentidos, influenciando na formação de identidades e na
representação do mundo, dos objetos e dos seres que habitam na cultura digital.” (SOUZA,
TAMANINI E SANTOS, 2020, p. 2).
Quanto às adaptações feitas para as aulas virtualizadas e durante o processo de qua-
rentena diante da COVID- 19, cada profissional comentou seus processos de compreensão
na medida de suas possibilidades, concentrando-se mais em adaptações das práticas já reali-
zadas tradicionalmente. O professor B afirmou: “precisei enviar atividades simplificadas para que
os pais tivessem o entendimento da mesma para auxiliar o filho” (Narrativa do entrevistado B, 2020).
O professor C também comenta: “você precisa adaptar não só o conteúdo, mas também como você está
48 aplicando essa matéria” (Narrativa do entrevistado C, 2020), afirmando uma perspectiva meto-
dológica. O professor A fala em tom de desabafo: “Sim, muitas” (Narrativa do entrevistado C,
2020). Nesta perspectiva, as adaptações se mostram cada vez mais comuns e necessárias, pois
na atual compreensão da realidade “não se concebe a ideia de que a escola fique à margem
das práticas que marcam a cultura do tempo presente, especialmente do “ciberespaço” e do
conteúdo que ali circula. Ser excluído das redes é uma das formas mais danosas de exclusão
no âmbito econômico e cultural” (SOUZA, TAMANINI E SANTOS, 2020, p. 5). Contudo
as devidas adaptações não podem resumir-se à antigas práticas em novos meios, mas novas
práticas em vista da construção de sujeitos contextualizados. Deste modo é papel da escola
propiciar espaços de formação e construção de conhecimentos que permitam ao docente
estar apto para circular com flexibilidade e criatividade nos “novos espaços” educativos, pre-
dominantemente virtualizados.
Quanto aos demais desafios das aulas virtualizadas, os três profissionais entrevistados
pareciam estar preocupados com a aceitação dos alunos em função das rápidas adaptações
que as famílias tiveram que fazer. O professor B comentou que, apesar das aulas serem bem
preparadas e “fundamentadas”, há “pouco material prático, porque os pais não têm acesso a alguns
materiais [...]. Muitos não têm celular e esperam os pais chegarem do trabalho ou esperam os finais de semana
para realizar as atividades. Isso quando fazem” (Narrativa do entrevistado B, 2020). O professor A
expressa sua dificuldade dizendo que “foi bastante difícil explicar como usar transferidores online. Tive
que mostrar-lhes um vídeo” (Narrativa do entrevistado A, 2020). Já o professor C ainda acrescen-
ta: “você não tem os seus alunos ali com você, é como dar aula para o vazio” (Narrativa do entrevistado
C, 2020). Os desafios, na maioria das narrativas, se colocam no âmbito primário, relativo aos
acessos materiais de modo que se tornam a primeira barreira de uma gama de problemas
sucessivos a ser vencida, na dimensão de construção de consciência digital, estruturação de
processos integrativos etc. A narrativa do professor C se aproximou mais da dificuldade re-
lacional presente, salientando o “vazio” característico da falta de contato presencial com os
alunos.
Quanto aos impactos psicológicos nos quais se encontram os docentes no período da
pesquisa são demonstrados de modos diferentes. No entanto, estão voltados aos problemas
em comum que essa nova fase de adaptação gera. O professor da rede particular assim relata
seu atual estado emocional: “temos que gravar videoaula para os alunos entenderem, mas temos muitos
colegas extremamente tímidos, porém torna-se necessário quebrar essas barreiras. Cobrança por toda parte”
(Narrativa do entrevistado A, 2020). Na última frase demonstrando a sobrecarga que essa
nova fase acarreta. O professor C faz um desabafo sentimental ao dizer: “[...] sinto falta da ener-
gia dos alunos. Como moro sozinha eu me sinto mais solitária” (Narrativa do entrevistado C, 2020).
O professor B também expressa suas angústias: “Bastante estressada, frustrada às vezes, preocupada
com o ensino” (Narrativa do entrevistado B, 2020).
De um modo geral, percebeu-se a sinceridade e um tom de desabafo nas respostas ob-
tidas, visto que todas denotam dificuldades e cansaço por parte dos próprios docentes. Apesar
de relatar tais dificuldades, eles também expressam indiretamente um otimismo em relação as
mudanças que foram iniciadas através das aulas virtualizadas. A preocupação expressada pelo
professor A, da rede privada, demostra a percepção da formação docente como um elemento
fundamental da organização social, já que demostra preocupação “com o ensino (de maneira
específica no contexto com que trabalho, mas especialmente no âmbito nacional)” (Narrativa 49
do entrevistado A, 2020). Por vezes somos levados a pensar erroneamente numa separação
abissal entre ensino público e privado, caracterizando este como despreocupado com o cená-
rio público. Revela-se uma interessante constatação de diálogo entre ensino público e privado
a partir dos problemas que permeiam a educação como realidade nacional.
De um modo geral, pode-se observar nos impactos pessoais/profissionais dos docen-
tes participantes da pesquisa um misto de exaustão e motivação para mudança na prática do-
cente, porém, o desanimo mostrou-se evidente diante do excesso de trabalho para organizar
uma aula.

4 ISOLAMENTO SOCIAL

O imediatismo nas adaptações que a pandemia tem gerado nos profissionais da edu-
cação mostra as fragilidades das instituições frente a essa esfera global. NÓVOA (2020), em
uma live realizada para a formação continuada dos professores do Estado da Bahia, comenta
que é uma oportunidade de observarmos a “importância” de se compreender a “seriedade
do momento” em que estamos vivendo. “Não há nada comparado a essa crise”; é “uma crise
sem precedentes”. Essa fala do autor reforça a ação dos profissionais entrevistados que mes-
mo mostrando suas dificuldades em adaptar suas metodologias eles não desistem desse bem
maior que é a educação.
Essa rapidez com que a educação necessitou lidar mostra as deficiências do siste-
ma institucional docente. MARCELO (2009) acredita que exista “uma desconfiança endêmi-
ca dos docentes diante das tecnologias. E não creio que seja algo intencional, mas talvez seja
devido ao fato de que a apresentação das tecnologias, como produtos acabados, já projetados
e prontos para utilizar, se encaixa muito mal com essa ideia do docente como artesão que
necessita desmontar os projetos e processos para poder assim apropriar-se deles” (p. 126).
O autor comenta que essa dificuldade dos docentes em lidar com as tecnologias não é
algo intencional, mas, provavelmente seja pelo fato de que uma tecnologia é algo já acabado,
“prontos para utilizar”. O profissional da educação, antes de tudo é um humano e precisa
dessa “humanização” (NÓVOA, 2020) que caracterize esse sujeito e o diferencie de um “apa-
relho tecnológico”. O professor C, ao ser perguntado sobre o maior desafio desse momento,
respondeu: “você não tem os seus alunos ali com você, é como dar aula para o vazio. Quando estamos em
sala temos uma troca… a empatia, como eles estão se sentindo, se estão entendendo… você sente a vibração
da turma para decidir como será sua aula… agora não é mais assim” (Narrativa do entrevistado C,
2020).
A mudança que se requer a partir da experiência com as aulas remotas deve atingir to-
dos os âmbitos das estruturas sociais educacionais: alunos, família, professores, instituições,
gestão, sociedade etc.
Em consonância com essa perspectiva, Souza, Tamanini e Santos (2020) afirmam “que
não adianta o professor inserir tecnologias para ensinar do mesmo modo que ensinava antes.
É preciso que todo o modelo pedagógico, assim como as concepções de ensino, aprendiza-
gem, avaliação, conhecimento, papel do aluno e do professor que têm imperado na escola
sejam repensados” (p. 6).
50
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando se pensa na realidade incerta que se vive atualmente. Professores de todo o


mundo veem-se diante de um desafio sem precedentes, tendo que buscar respostas urgentes
para um problema de abrangência mundial. Com o isolamento social imposto pela pandemia
da Covid-19, professores de todo o mundo foram obrigados a reinventar suas maneiras de
dar aula, adequar-se às tecnologias e tentar preservar sua saúde mental frente a um momento
que todos sentem-se um pouco mais solitários.
Os professores entrevistados para esta pesquisa demonstraram em algum momento
que foi necessário realizar adaptações para continuar o seu trabalho e isso demonstra um
esforço extra na tentativa de ensinar seus conteúdos. Neste novo cenário, os alunos ganham
ainda mais destaque no processo ensino-aprendizagem com a autonomia recebida de forma
involuntária. Mas é preciso também considerar que as novas maneiras de dar aula concorrem
com alunos nem sempre tão interessados e isto pode ser um fator de frustração para o traba-
lho docente.
Todos os professores trouxeram queixas sobre a cobrança das escolas e seus superio-
res, sobre o trabalho em tempo de pandemia: mudam-se os desafios, aumentam as cobranças,
lida-se com frustrações. É preciso fazer uma reflexão sobre como as atividades recebidas pe-
los alunos e suas famílias são recebidas e como podem ser trabalhadas de maneira satisfatória,
permitindo ao aluno um mínimo de compreensão. Se os desafios em sala de aula são imensos,
esse novo cenário leva todos os professores a enfrentar o desafio imposto em dar continuida-
continuidade a um trabalho que tem na figura do professor um agente de esperança e doação
para garantir a continuidade do percurso educativo de milhares de alunos. Percebe-se na fala
dos professores entrevistados que, embora estejam vivendo tempos difíceis, continuar a ensi-
nar com determinação e garra é ainda mais difícil com tantas barreiras a se enfrentar.

REFERENCIAS

DENZIN, N. K; LINCOLN, Y. S. Introdução: a disciplina e a prática da pesquisa qualitativa.


In: DENZIN, N. K; LINCOLN, Y. S. (Orgs.). O planejamento da pesquisa qualitativa:
teorias e abordagens. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2006. p. 15-41.

FREIRE, Paulo. Política e Educação. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2001.

MARCELO, Carlos. A identidade docente: constantes e desafios. Revista Brasileira de Pes-


quisa sobre Formação Docente. Trad. Cristina Antunes. v. 01, n. 01, p. 109-131, Belo Ho-
rizonte: ago./dez. 2009.

NÓVOA, António. Live-palestra concedida pelo Prof. Dr. António Nóvoa à Secretaria da
Educação do estado da Bahia. Formação Continuada - Aula Magna António Nóvoa.
s.l.: Educação Bahia, 14 abr. 2020. (00m00s-35m20s). Disponível em: https://www.youtube.
com/watch?v=7kSPWa5Nieo&t=2137s. Acesso em: 20 sete. 2020.
51
SANTOS, Edméa O. EAD, palavra proibida. Educação online, pouca gente sabe o
que é. Ensino remoto, o que temos para hoje. Mas qual é mesmo a diferença? Revista
Docência e Cibercultura. Notícias. 2020. Disponível em: https://www.epublicacoes.uerj.br/
index.php/re-doc/announcement/view/1119 . Acesso em: 28 Dez. 2020.

SOUZA, M. S; TAMANINI, P. A; SANTOS, J. M. C. T. Cultura digital: tecnologias, esco-


la e novas práticas educativas. Revista Pedagógica. Chapecó, v. 22, 2020. p. 1-19.

WETHERELL, M; TAYLOR, S; YATES, J. S. Teoria e prática do discurso. Trad. Joel


Portella. Rio de Janeiro: Quadrante: 2007. (Discourse theory and practice. London: Sage Pu-
blications, 2001).
APÊNDICE

Dados sobre “condições de trabalho” durante pandemia


Azul – Rede de ensino municipal
Verde – Rede de ensino estadual
Vermelho – Rede de ensino particular

FORMULÁRIO

Olá, estimad@ professor[a].


Você está sendo convidad@ para participar de uma pesquisa acerca das “Condições
de tra balho durante o tempo de pandemia”.
Sua participação é muito importante. Seu nome e gênero não serão perguntados, para
garan tir seu anonimato na pesquisa. Se você desejar participar, responda as questões e enca-
minhe como r esposta ao e-mail que você recebeu.
Assim que apresentado e avaliado na disciplina, você receberá a devolutiva da pesqui-
sa. D esde já, muito obrigado!

QUESTIONÁRIO²

1. Identificação: idade, tempo de profissão, anos/séries/etapas com os quais


52 trabalha, i nstituição que atua.

Professor A
42 anos
10 anos de profissão
5 anos ensino fundamental I

Professor B
50 anos
20 anos de profissão
12 anos - Ensino Fundamental II 8 anos - Ensino Médio

Professor C
25 anos
5 anos de profissão
5 anos - Ensino Fundamental II 2 anos - Ensino Fundamental I 1 ano - Ensino Médio

² Os dados do questionário estão apresentados ipsis litris conforme os docentes pesquisados, sem alteração
de descrição, correção ortográfica etc.
2. Quais recursos você utilizou para preparar e ministrar as suas aulas?

3. Foi necessário realizar alguma adaptação no planejamento durante as aulas


remota s? Dê um exemplo.

4. Quais os principais desafios encontrados na realização do trabalho docente


durante o tempo da pandemia?

5. Como você se sente [emocionalmente, psicologicamente] em relação ao seu


trabalho neste período de isolamento social?

53
Cultura literária na escola: experiências no es-
paço digital
Lays Lins Albuquerque¹
Isaque da Silva Moraes²

RESUMO: Este artigo pretende discutir algumas experiências no meio digital produzidas
por discentes do Projeto de extensão “Cultura literária na escola: para ler, ver, ouvir e sentir”,
vinculado à Universidade Federal da Paraíba, durante o período de isolamento social que
perpassou grande parte de 2020, em consequência da pandemia do covid-19. Partindo dos
pressupostos teóricos de Barcellos e Neves (1995), Coelho (1998), Busatto (2006), Chambers
(2007) e Girardello (2010), abordaremos as adaptações elaboradas para as práticas de conta-
ções de histórias e exposições literárias no espaço digital.

Palavras-chave: Contações de histórias; Exposições literárias; Literatura.

INTRODUÇÃO

Devido à pandemia do novo coronavírus, que rapidamente se fez presente em nosso


país, os projetos de extensão das Universidades, que estavam programados para acontecer
de forma presencial, viram-se diante um novo desafio, adaptar-se para o meio virtual e não
54 abandonar todo o trabalho de planejamento prévio, e, principalmente, não abandonar aque-
les que iriam usufruir dos benefícios que se pretendia alcançar com a execução dos projetos.
O Projeto de Extensão “Cultura Literária na Escola: para ler, ouvir, ver e sentir”, da
Universidade Federal da Paraíba, esteve frente a frente com esse dilema, como dar continui-
dade ao projeto de contação de histórias e das instalações literárias de forma remota? Muitos
aspectos foram levados em consideração, tendo em vista que a escola parceira do projeto a
Escola Municipal de Ensino Fundamental Lúcia Giovanna Duarte de Mello, é uma escola
pública do município que recebe crianças de famílias de baixa renda que, por vezes, não pos-
suem meios para estar conectados aos recursos oferecidos pela internet.
Para dar prosseguimento ao projeto de forma virtual, houve uma grande pesquisa,
principalmente com a gestão da escola, para saber se seria possível continuar com o projeto
de forma virtual, se os pais e os professores mantinham alguma linha de comunicação virtu-
al, na qual fosse possível adicionar o projeto, e quantos alunos seriam alcançados com isso.
Dado o sinal verde para o projeto se reorganizar e adaptar-se ao virtual, foi decidido que as

¹ Graduanda em Letras – Língua Portuguesa, pela Universidade Federal da Paraíba; Bolsista do Projeto de
Extensão “Cultura Literária na escola: para ler, ver, ouvir e sentir” (PROBEX-UFPB); Membro do Grupo
de Pesquisa em Ensino, Estágio e Formação Docente (GEEF-UFPB). E-mail: ll.albuquerque42@gmail.com
² Graduando em Letras – Língua Portuguesa, pela Universidade Federal da Paraíba; Bolsista de Iniciação
Científica (PIBIC-UFPB); Voluntário do Projeto de Extensão “Cultura literária na escola: para ler, ver, ou-
vir e sentir” (PROBEX-UFPB); Membro do Grupo de Pesquisa em Ensino, Estágio e Formação Docente
(GEEF-UFPB). E-mail: moraes.isaque050@gmail.com
contações de histórias seriam gravadas em vídeos e as instalações literárias expostas também
virtualmente. Com isso um canal de divulgação precisava ser aberto, e logo as redes sociais
mostraram o quanto um perfil pode ir além de uma prática individual.
Utilizando das plataformas digitais como o Instagram, Facebook e Whatsapp, conse-
guimos levar, divulgar e expor todo o trabalho do projeto, dando assim continuidade sem
prejudicar os objetivos do mesmo. Pelo aplicativo de mensagens no celular cada contador
criou um grupo contendo as professoras das turmas/anos que o contador ficou responsável
por contar histórias, assim entregando os vídeos prontos e deixando que as professoras se
encarregassem de ser a ponte e, por vezes mediadores, entre os vídeos e os alunos. Já o Face-
book e o Instagram viraram a vitrine do projeto, com um acréscimo das instalações literárias
que passariam a se chamar exposições literárias.
Mas para que as páginas surgissem foi preciso uma força tarefa, muita organização e
debates, tendo em vista que para a criação de uma identidade do projeto de forma virtual,
é preciso mais do que apenas colocar o nome em um perfil. Houve a escolha de uma paleta
de cores, de uma fonte, de símbolos e do design como um todo para dar vida ao projeto no
mundo virtual. Sendo assim, veremos como se deu a divulgação dos vídeos de contação de
histórias e como foi a produção das exposições literárias, assim como os resultados gerados
durante a execução do projeto.

Desvendando o “novo mundo” com a arte de contar histórias

Contar histórias é uma das mais antigas artes, tendo sido passada de geração em gera- 55
ção, por meio da tradição oral e que ainda deságua na nossa contemporaneidade, pois como
aponta Girardello (2010), todos nós contamos histórias o tempo todo. Ainda, segundo a au-
tora, contar histórias é uma maneira de brincar, visto que o narrador, antes de contar, precisa
se debruçar sobre a história, sendo ele o primeiro a ouvi-la e, dessa maneira, pode construir
uma partitura melódica, brincando com as emoções e sentimentos que emergem no contato
com a história que será contada. Sendo assim, ao narrar, o contador está jogando imagens e
palavras, tornando o momento da contação não apenas uma ocasião qualquer, mas um perí-
odo particular em que o contador e as crianças formam um mesmo time, brincando juntos
(GIRARDELLO, 2010). Este é um dos aspectos essenciais que deve ser valorizado na con-
tação de histórias no ambiente escolar, considerando que este é um caminho possível para
estabelecer relações entre o professor e sua turma, assim como trabalhar com a linguagem
literária na sala de aula.
Os modos de se contar uma história são os mais diversos, assim como as maneiras
de selecionar qual a narrativa que será contada para os ouvintes. De acordo com Barcellos e
Neves (1995) e Coelho (1998), contar histórias pode ser feito através de modalidades/formas
de apresentação e/ou narração, sendo elas: narrativa simples, narrativa com livro, narrativa
com interferência do narrador ou do ouvinte, narrativa com recursos visuais (ilustrações,
imanógrafo, quadro de pregas, quando de giz, tela acrílica e pincel atômico, transparência e
retroprojetores, álbuns, diapositivos, teatro, bonecos de dedo e etc.), com gravuras, com fla-
nelógrafo, dentre outros. A seleção da história, por sua vez, pode ser feita por interesse e/ou
faixa etária, como apontam as autoras já citadas. No entanto, o mais importante para selecio-
nar uma história é que ela deve ser uma boa história, pois “a hora do conto, através da narra-
ção de histórias e da participação da criança nas mesmas, possibilita o trânsito entre a fantasia
e a realidade” (BARCELLOS; NEVES, 1995, p. 17), como também é um dos principais estí-
mulos à leitura, principalmente nos primeiros anos escolares.
Para cada história o contador escolhe determinado recurso que, além das formas de
apresentação, variam também de acordo com o lugar, o público para quem será contada a
história, o espaço determinado para o momento da contação, dentre outros elementos. Toda-
via, no contexto social pandêmico, que perpassou a maior parte do ano de 2020, as contações
de história no espaço escolar tiveram de ser repensadas e reformuladas, assim como todo o
ensino de modo geral, visto que uma das principais medidas de segurança estabelecidas pe-
los profissionais da saúde foi o distanciamento social. Diante dessa nova realidade, o espaço
digital se consolidou como o principal meio de comunicação em todas as áreas da sociedade.
Tal fato fez com que professores e contadores de histórias começassem a pensar maneiras
de adaptar as contações de histórias a essa nova realidade. É fato que diversos contadores da
contemporaneidade já divulgam seus trabalhos em diversas redes, sendo o Youtube a principal
delas, no entanto, como o foco das nossas práticas é voltado para a escola, elas precisaram
ser trabalhadas de acordo com a finalidade principal do projeto, isto é, proporcionar a cultura
literária na escola.
Diante disso, antes de pensarmos nas elaborações das contações, o primeiro tópico de
discussão foi a circulação das produções que seriam realizadas. Em virtude disso, três redes
sociais foram definidas para a circulação, sendo elas: Whatsapp, Instagram e Facebook. A primei-
56 ra delas, o Whatsapp, foi definida como o principal meio de acesso entre contadores, profes-
sores e alunos da escola, visto que permite uma maior agilidade nas trocas de informações,
como também permite a criação de grupos, facilitando, assim, a disseminação das produções
para o público-alvo. O Instagram, por sua vez, foi escolhido por ser uma rede social que per-
mite a criação de perfis, nos quais podem ser postados fotos e vídeos, em 2018 a plataforma
incluiu o IGTV como uma de suas ferramentas, esta, por sua vez, permite que vídeos com
duração maior que 1 minuto sejam veiculados na rede social, tal feito oportunizou uma maior
diversidade no conteúdo que circula na plataforma. Além do IGTV, em 2019, foi acrescido
ainda os Stories, ferramenta que possibilita o compartilhamento de fotos e vídeos temporá-
rios de até 15 segundos por vez, que se tornou um grande fenômeno e tem sido cada vez mais
paramentada com outras diversas funções.
Por fim, o Facebook também foi selecionado especialmente por ser a principal rede so-
cial em que os pais dos alunos se encontravam, fato constatado pela própria equipe pedagó-
gica da escola. A plataforma, assim como as outras, permite o compartilhamento de fotos, ví-
deos e textos. Sendo assim, a criação de perfis específicos do projeto facilitou a identificação
do material produzido pelos integrantes da extensão, como também o acesso pelo público
ao conteúdo. Definidas as redes de compartilhamento das contações, começamos a pensar
como as mesmas seriam produzidas, pois as condições do meio digital diferem do real, sendo
necessário transpor e adaptar questões tão caras à contação de histórias para o espaço ciber-
nético. Segundo Busatto (2006)
Olhando para a arte digital, percebe-se que ela se apresenta como uma
linguagem que incorpora uma visão dinâmica e interativa do sentido.
Ao apresentar novas simbolizações para o ser humano, o meio digital,
o tempo virtual, propõe que a gente se repense e repense os significa-
dos de se viver e conviver, produzir e consumir, ser e estar no mundo
contemporâneo. A narração oral no meio digital é uma outra represen-
tação, uma organização híbrida em constante mutação. Não é fixa, nem
autoritária. (BUSATTO, 2006, p. 117)

As considerações propostas pela autora orientaram grande parte das elaborações fei-
tas, pois questões como o espaço, tempo, afetividade e efetividade foram trabalhadas. O
formato decidido para as contações foram audiovisuais, sendo as produções encaminhadas
para os alunos duas vezes por mês. As primeiras contações de cada mês eram divididas em
introdução, narração e desfecho (momento no qual era solicitada uma atividade de retorno
dos alunos) e as últimas apenas em introdução e narração. A dinâmica de compartilhamento
se dava por meio do envio pelos contadores das produções para as professoras da escola,
através do Whatsapp, estas, por sua vez, encaminhavam para os respectivos grupos de suas
turmas. Em seguida, as contações eram postadas nas redes oficiais do projeto, no Facebook
e no Instagram, neste último na ferramenta do IGTV e com avisos nos Stories.
No que concernem às produções das contações, elas foram pensadas e elaboradas
pelos contadores do projeto – bolsista e voluntários – os quais utilizaram diferentes recur-
sos digitais para as contações. Uma das principais ferramentas utilizadas foram os editores
de vídeos, pois eles são responsáveis pela organização do vídeo como todo, com eles foi
possível inserir a logo do projeto, cortar trechos indesejados, introduzir breves melodias,
adicionar a capa e ilustrações das obras trabalhadas, dentre outros. Os principais editores 57
utilizados foram o Inshot e o Powerdirector, pois são acessíveis e de fácil manejo, além de
disporem diversas funções que fomentaram as práticas. Outro fator essencial na dinâmica do
espaço digital foi introduzir estratégias de compreensão leitora, visto que a intenção revela
afetos escondidos nas entrelinhas e, para isso, é preciso compreender o contexto em que a
contação está inserida (BUSATTO, 2006). Sendo assim, estratégias como as de visualização
e inferências (GIROTTO; SOUZA, 2010) foram trabalhadas em momentos de introdução
e narração, com a finalidade de proporcionar verdadeiras experiências com o texto literário
para os ouvintes.
Ademais, outro fator que foi reelaborado é a questão do olhar, isto é, a conexão con-
tador-ouvinte que é tão intensa em momentos de contações presenciais. Para tanto, foram
utilizadas técnicas de aproximação da câmera (celular e/ou notebook), técnicas de voz – nos
quais os contadores se referiam diretamente ao público, como, por exemplo, “Olá, crianças
da Lúcia Giovanna” –, recursos visuais – nas contações direcionadas às turmas do primeiro
ano, um bichinho de pelúcia foi introduzido como um fantoche que contava histórias, recur-
sos sonoros, dentre tantas outras técnicas e elementos. Em consonância, foram demarcadas
questões ainda como as que apontam Bajour (2012), de que “construir significados com ou-
tros sem precisar concluí-los é condição fundamental da escuta, e isso supõe a consciência
de que a construção de sentidos nunca é um ato meramente individual” (BAJOUR, 2012, p.
25). Dessa forma, compreende-se que se a contação é um momento que dialoga com a ima-
ginação, é preciso que o ouvinte mergulhe na história e construa os significados dela a partir
de sua experiência. Sendo assim,
Um dado apurado por meio de experiências realizadas é que o conta-
dor jamais deve determinar a moral e a ideologia da obra, pois isso faz
com que a história perca seu encanto. O propósito da Hora do Conto é
provocar o ouvinte para que ele chegue às suas próprias conclusões, de
acordo com seus conhecimentos, bagagem cultural e vivências. E, jus-
tamente nessa pluralidade, reside a magia da literatura, dando liberdade
e asas para que o ouvinte alce voo. (LANZI, 2012, p. 41)

A elaboração de uma contação que terá o meio digital como suporte requer habilida-
des que vão além da arte de contar. No entanto, é válido salientar que apesar das adaptações
que uma história requer no ciberespaço, não podemos esquecer a importância da voz nesse
processo, ela é o principal instrumento de mediação da narrativa, podendo contar com au-
xílio de ilustrações, movimentos corporais e tantos outros elementos, mas não deixando de
ser a ponte, o elo entre história, narrador e ouvinte, pois nela está seu caráter fundador – a
oralidade. Tendo isso como norte, torna-se válido salientar ainda que “a escuta literária das
crianças deve ser pelo menos tão intensa quanto a nossa leitura literária de adultos” (GIRAR-
DELLO, 2010, p. 10). Dessa forma, se o objetivo principal da permanência da hora do conto
no espaço escolar é a formação do leitor e do gosto pela leitura literária, sendo necessário que
todos os aspectos que constituem essa prática artística sejam trabalhados, de maneira tal em
que os horizontes dos ouvintes possam ser ampliados.

Prática de contação de história


58 De modo a exemplificar melhor aquilo que consideramos como prática de contação
no meio digital traçaremos a seguir o roteiro de uma contação de história direcionada para as
turmas dos quartos anos da Escola Lúcia Giovanna, esta foi compartilhada com as crianças
como a segunda contação referente ao mês de Junho/2020. Em conformidade com a me-
todologia adotada pelo projeto, a contação foi dividida em dois momentos – introdução e
narração. Trata-se de uma prática com o livro “Depois do foram felizes para sempre” (2012),
de Ilan Brenman e ilustrado por IonitZilberman. A contação está disponível no Instagram e
no Facebook do projeto cultura literária na escola.
O enredo, como já deixa pistas no título, se debruça acerca de alternativas logo após
o famoso “E foram felizes para sempre...”, em diálogo com os clássicos da literatura infantil.
O narrador e suas duas filhas, em um diálogo na hora do almoço, começam imaginar o que
teria acontecido com os personagens dos clássicos infantis. Do Lobo (dos três porquinhos)
ao pequeno polegar, diferentes finais foram arranjados. Por meio dessa história é possível
(re)viver a infância ao nos depararmos com os Sete Anões, a Cinderela, a Branca de Neve e,
melhor ainda, descobrirmos suas novas profissões após o clássico final. Além disso, o autor
consegue fazer diferentes conexões, como, por exemplo, com o folclore brasileiro, a partir
da inclusão do boto cor de rosa na narrativa criada para a história da pequena sereia, e assim
constrói uma divertida trama que suscita diversas inferências e conexões no ouvinte.
Toda contação de história exige uma preparação, isto é, o contador precisa se demorar
primeiramente sobre a história e, em seguida, delinear como irá contá-la. De acordo com
Barcellos e Neves (1995), o narrador deve estar atento para uma ordem sequencial em sua
elaboração, esta, por sua vez, deve estar dividida em introdução, narração/enredo e desfecho.
Por introdução compreende-se o momento em que é estabelecido o contato inicial entre
contador e ouvintes, são apresentados os personagens, a temática, o local onde a história se
passa e/ou chama-se a atenção das crianças para a história que será contada. A narração é
o momento propriamente dito da contação da história, podendo ser trabalhada a partir de
diferentes técnicas. Por fim, o desfecho é o momento que se encerra a contação, no espaço
escolar este é o momento adequado para desenvolver atividades que dialoguem com a histó-
ria contada.
Considerando o enredo da narrativa optamos por uma introdução que deixasse pistas
para o ouvinte acerca dos personagens e da temática da história. Para tanto, perguntamos o
que as crianças acreditavam que aconteceu após o final dos clássicos infantis. A indagação
funciona como momento de construção para o ouvinte, pois a partir do questionamento é
possível que ele estabeleça inferências em sua imaginação de outros diversos finais além dos
já conhecidos. Por fim, sempre priorizamos por explicitar informações da obra como o título,
autor, ilustradora e a editora, sendo isso feito através da apresentação da capa do livro.
Para contar a história em questão, momento da narração, utilizamos de um palco –
como recurso visual – para a apresentação dos personagens da história, nos basearam aqui a
ideia proposta por Barcellos e Neves (1995). No entanto, foi necessária uma adaptação para
os meios digitais. Sendo assim, a utilização do palco serviu como base para apresentação das
ilustrações da obra, de modo que ao gravar cada parte da narrativa, foi ajustada a ilustração do
cenário. Os personagens/ilustrações foram colocados de acordo com a cena da história que
estava sendo gravada no momento, para que isso fosse possível, fizemos cortes nas bases da 59
caixa (palco) para encaixar as figuras de maneira mais prática. As ilustrações foram impressas
e recortadas, em seguida foram coladas em palitos de madeira para dar sustentação, já o palco
foi decorado para deixar o cenário mais divertido. A caixa foi envolta com cartolina e tecidos.
O palco, por sua vez, foi ornamentado com papéis coloridos na base para cobrir as bases dos
palitos, como também foram colocadas fitas de cetim nas bordas laterais que funcionaram
como uma espécie de cortina.
Após a finalização, o palco foi posicionado em cima de um tripé coberto por tecido
e posicionado frente à câmera de gravação. A história foi gravada em partes, divididas de
acordo com cada final alternativo apresentado no livro. Essa divisão auxiliou na edição do
vídeo feita no aplicativo Inshot. Tal prática de contação – com o palco – tornou a narrativa
mais dinâmica e divertida para o ouvinte. A própria obra facilitou a preparação do vídeo da
contação, pois as ilustrações com os títulos dos clássicos infantis (Pequena sereia, Rapunzel, Três
porquinhos...) serviram, também, como aberturas das cenas no vídeo, tornando um diálogo
interativo entre obra (texto, ilustração...), suporte, contador e ouvinte. Neste caso, optamos
por um cenário de fundo branco para que o foco ficasse apenas no palco produzido.

As exposições literárias virtuais

O Projeto de Extensão Cultura Literária na Escola já estava em parceria com a escola


municipal Lúcia Giovanna antes do ano de 2020, logo já tinha sido colocado em prática as
instalações literárias, dentro das mediações da escola, onde os alunos ajudavam a produzir o
que seria exposto, dependendo do tema, que poderia ser tanto um autor, ou apenas persona-
gens, ou até mesmo um gênero específico. A instalação ficava aberta para visitação dos pais e
responsáveis, assim estreitavam-se os laços entre as famílias, a escola e a literatura.
Com a chegada da pandemia e o fechamento das escolas para aulas presenciais, as ex-
posições passaram por uma grande transformação, onde a maior questão era de como e onde
colocar em prática algo tão importante para o projeto quanto as contações de histórias.
Houve muita deliberação a respeito do tema, para se chegar ao consenso de que seria
preciso colocá-las no meio virtual através das redes sociais. Pelo aplicativo de mensagens
que já estava sendo usado entre os contadores e as professoras ficaria inviável, levando em
consideração a importância de se manter a exposição disponível por um período de tempo
considerável.
A solução veio com o Instagram e o Facebook, onde as postagens poderiam ficar lá por
tempo indeterminado e sempre disponível para visualização. Com o local decidido, partimos
para reuniões a respeito dos temas e de quem ficaria responsável pela montagem das exposi-
ções. Os membros responsáveis mudavam para que houvesse a participação ativa de todos.
Assim uma semana haveria a postagem diária acerca do tema, onde as imagens e vídeos eram
produzidos pelos contadores e outros membros do projeto. Nessa semana específica desti-
nada a exposição, não haveria a postagem dos vídeos de contação, ou das respostas que os
alunos enviavam, que também faziam parte da galeria virtual do projeto.
Para a escolha dos temas se tornar mais objetiva e prática, Aidan Chambers (2007) traz
em seu livro “El ambiente de la lectura” uma lista com temas mais comuns quando se trata
60 de exposição literárias, entre eles estão, livros mais novos, livros de um mesmo autor, ou com
o mesmo ilustrador, livros premiados, estrangeiros ou de uma mesma editora, além de outras
sugestões.
A primeira exposição realizada foi sobre a escritora e ilustradora Eva Furnari, em reu-
niões foram escolhidos os tópicos mais importantes para se abordar sobre a autora, de forma
lúdica e acessível. Abordamos, então, suas principais obras, personagens e adaptação para
outras mídias. Um pequeno vídeo também foi produzido por uma das contadoras do projeto,
nele foram expostas as capas das obras em ordem cronológica para diversificar a exposição.
A segunda exposição foi sobre poemas, intitulada por “Entre versos, imagens e ritmos:
poemas para as infâncias”. A exposição foi dividida em pequenas antologias, exposição de
autores, poemas apresentados em diversas mídias e um vídeo com a declamação de alguns
poemas. O vídeo foi pensado como uma forma de mostrar aos visitantes da exposição que
não se faz necessária uma formação ou muita prática para declamar um poema. Na produção
do vídeo nomeado de “vozes ilustradas” temos a composição de diversas pessoas anônimas
lendo alguns poemas selecionados, e enquanto se ouve, é possível visualizar desenhos feitos
por crianças que leram ou ouviram previamente aqueles poemas. A composição visual do
vídeo-poema pode inspirar projetos que envolvam poesia para serem executados nas escolas
com a participação ativa dos alunos, não apenas nas ilustrações, mas também na declamação
deles, ajudando a desenvolver a oralidade dos alunos de forma lúdica.
A terceira exposição tratou do livro ilustrado e do livro de imagens, e suas diferentes
apresentações, o título designado para a exposição foi “O livro em três linguagens: imagens,
palavras e design gráfico”. Num compilado de informações, trazidas de maneira clara e com
linguagem acessível, foram disseminadas as diferentes formas que o livro se apresenta no
universo das ilustrações. Para o encerramento da exposição apresentamos um vídeo especial,
nele três versões de uma mesma história foram contadas. A obra escolhida para ser conta-
da foi “Vazio” de Catarina Sobral. Três contadores narraram para o público suas narrativas
particulares para o livro de imagens, os resultados originaram diferentes experiências e in-
terações de cada sujeito com a obra que culminaram em vídeo com lindas versões da obra.
O vídeo foi intitulado por “Vazio em performances — no palco a obra de Catarina Sobral”.
Já a quarta e última exposição traz como tema “Contos Maravilhosos: leituras plurais”,
onde o universo dos contos maravilhosos e dos contos de fada foi abordado de forma a ex-
pandir os horizontes dos espectadores. Trazendo não somente nomes clássicos, mas também
autores e obras mais novos, assim como nomes nacionais, além de uma lista com nomes de
mulheres autoras e organizadoras de algumas obras. Para fechar a exposição, um vídeo de
contação foi montado, dessa vez com apenas uma voz, uma versão e de uma maneira mais
dinâmica. Enquanto a narradora vai contando a história, um desenho vai se desenvolvendo,
criado em uma plataforma digital, o desenho acompanha a narração para no fim se montar
uma das cenas mais icônicas do conto clássico de Rumpelstilzchen dos Irmãos Grimm.
Como era um acontecimento a parte das contações, o design de cada exposição era
diferente da identidade do projeto previamente estabelecida nas redes. A paleta de cores fi-
cava a critério dos organizadores, podendo variar muito de uma postagem para outra, apenas
mantendo um “padrão” se na mesma postagem houvesse mais de uma imagem ou vídeo.
Dessa forma o objetivo de destacar a exposição na galeria do projeto era alcançado.
Chambers (2007) trata das exibições literárias em seu livro, mas de forma física no 61
ambiente escolar, contudo, podemos adaptar perfeitamente suas ideias ao virtual, como por
exemplo, quando o autor expõe que colocar os livros em exibição é uma ótima forma de fazer
recomendações sem se fazer presente. É um dos objetivos que buscamos com as exposições
literárias virtuais. O autor também afirma que em um ambiente pequeno como uma sala de
aula, por exemplo, temos contato com todos os alunos, mas em uma escola grande, mesmo
se trabalharmos o dia todo dentro de uma, ainda assim não conheceremos todos os alunos,
sendo assim, as instalações ou exibições tornam-se um meio para alcançar a todos.
Para que conseguíssemos chegar até nosso público alvo inicial, alunos e familiares, a
ideia de um convite foi posta em prática. Dividido em duas partes, o convite (cf. Figura 1)
previamente postado para avisar sobre as exposições, continham uma chamada, com o nome
da escola, o título de cada exposição e os dias que ela aconteceria, e eram por sua vez colo-
cados em uma imagem. Os cronogramas (cf. Figura 2) com o título de cada dia, dando leve-
mente a entender o que seria abordado, eram postos em outras imagens. Eles eram enviados
nos grupos do Whatsapp para as professoras, que divulgavam entre os pais, responsáveis e
alunos.
A primeira exposição foi como o teste prático para avaliar sua aplicabilidade e fun-
cionalidade, como também anotar os eventuais erros cometidos. A cada exposição foi-se
aprimorando, tanto a diagramação das imagens, quanto o conteúdo e a produção dos vídeos.
Como um diamante bruto, elas foram sendo lapidadas para atingirem sua melhor forma.
A decisão de não voltar atrás na execução das instalações literárias, mas optar pela
transformação delas em exposições literárias virtuais levou a um resultado muito satisfatório,
dado a situação pandêmica na qual nos encontrávamos. Foi possível ter interação de profes-
sores e pais nas redes sociais, no qual notamos um crescente interesse a respeito dos temas,
gerando uma avaliação positiva deles sobre a iniciativa literária virtual.

Considerações finais

Embora a pandemia do covid-19 tenha imposto diversas limitações para o espaço edu-
cacional brasileiro, ela também revelou a capacidade de se reinventar de muitos profissionais
da educação, tanto para os que já estavam em prática quanto para os que ainda estavam em
formação. Tal contexto também evidenciou ainda mais a importância da literatura na escola,
considerando que ela foi um refúgio no meio do caos para tantas pessoas, como relataram
pais e alunos que desfrutaram das experiências com as contações de histórias e as exposições
literárias. A importância da ficção se tornou ainda mais evidente, pois em meio a um cenário
em que o isolamento social era recomendado e que os noticiários mostravam tantas mortes
diárias, as obras literárias sobressaíram-se como pontes para outras realidades.
As contações de histórias no espaço digital evidenciaram o quão importante é essa
prática com a literatura nos anos iniciais da formação escolar, visto que através delas os alu-
nos puderam ter contato com diversas obras da literatura infantil, como também exercitaram
diversas estratégias de compreensão leitora. As exposições literárias, por sua vez, propiciaram
o contato com diversas temáticas da literatura para pais, professores e alunos, cooperando
para a disseminação do conhecimento ao alcançar além dos muros da universidade, sendo
62 este o objetivo principal de um projeto de extensão. Tal dinâmica também oportunizou a am-
pliação do leque de habilidades dos discentes e docentes envolvidos no projeto, visto que foi
preciso aprender novas técnicas para o desenvolvimento do projeto, como edições de vídeos,
elaboração de recursos visuais, estratégias de design gráfico, dentre outros.
Em suma, apesar dos percalços enfrentados na adaptação para o meio digital, após
a produção dos vídeos, eles começaram a ir para os perfis criados nas redes sociais, e estas
foram divulgadas entre as professoras, e, por conseguinte, para o público da escola. No en-
tanto, assim como aconteceu com as exposições, divulgadas nas redes sociais, um público
ainda maior foi alcançado, não apenas as professoras, mas também os pais e responsáveis,
os alunos e até mesmo outras pessoas que visitaram as páginas. Portanto, acreditamos que
conseguimos contribuir para a difusão da literatura não somente no espaço escolar, mas em
todos os lugares e não-lugares que o espaço digital pode alcançar.
REFERÊNCIAS

BAJOUR, Cecília. Ouvir nas entrelinhas: o valor da escuta nas práticas de leitura. São Pau-
lo: Editora Pulo do gato, 2012.

BARCELLOS, Gládis Maria Ferrão; NEVES, Iara Conceição Bitencourt. A hora do conto:
da fantasia ao prazer de ler. Porto Alegre: Sagra-DC Luzzatto, 1995.

BRENMAN, Ilan. Depois do foram felizes para sempre. São Paulo: Callis, 2012.

BUSATTO, Cléo. A arte de contar histórias no século XXI: tradição e ciberespaço. Petró-
polis: Vozes, 2006.

CHAMBERS, Aidan; AMIEVA, Ana Tamarit. El ambiente de la lectura. México: Fondo


de Cultura Económica, 2007.

COELHO, Betty. Contar histórias: uma arte sem idade. São Paulo: Editora Ática, 1998.

GIRARDELLO, Gilka. Uma clareira no bosque: contar histórias na escola. Campinas:


Papirus, 2014.

GIROTTO, Cyntia Graziella Guizelim Simões; SOUZA, Renata Junqueira. Estratégias de 63


leitura: para ensinar alunos a compreender o que leem. In: MENIN, Ana Maria; GIROTTO,
Cyntia Graziela Guizelim Simões; ARENA, Dagoberto Buim; SOUZA, Renata Junqueira
(Org.). Ler e compreender: estratégias de leitura. Campinas: Mercado de Letras, 2010.

LANZI, L. A. C. Do papel às Tic’s: o dinamismo da contação de história através do viés di-


gital. Biblos: Revista do Instituto de Ciência Humanas e da Informação, v. 26, n. 2, p. 31-46,
jul/dez. 212.
A pessoa idosa diante da Covid-19: tempos difí-
ceis?
Marcos Felipe Chiaretto¹
Fátima Elisabeth Denari²

RESUMO: Com a chegada de um novo vírus ao Brasil no início do ano de 2020, a popu-
lação se viu obrigada a modificar suas atividades cotidianas. A partir disso, o presente artigo
tem o objetivo de propiciar uma reflexão a respeito dos diversos comportamentos da pessoa
idosa em tempos da Covid-19, amparando-se nas discussões técnico-científicas. Considera-
-se, portanto, a necessidade de buscar informações idôneas, cuidar da saúde biopsicossocial
da pessoa idosa, além do cumprimento dos protocolos gerais de saúde.

Palavras-chave: Covid-19; Pessoa idosa, Impactos biopsicossociais.

Lave a mão. Passe álcool em gel. Use a máscara. Tire a máscara. Afaste-se das pesso-
as, até mesmo as que moram dentro da própria residência. Assista os diversos conteúdos na
televisão, no celular, no tablet e no computador. Fakenews. Pode e não pode. Sair ou não sair.
Expressões ou ordenamentos como estes passaram a fazer parte do repertório de práticas di-
árias neste período crítico pelo qual a humanidade vem passando. Termos como: isolamento
social, distanciamento social e quarentena passaram a ser comuns na linguagem jornalística
64 brasileira e mundial. Lockdown e fases vermelhas, laranjas, amarelas, roxas, entre outras. Fecha
ou não fecha o comércio local, regional e nacional, sem dizer dos prejuízos financeiros dos
diversos setores industriais. Serviços aéreos e viagens a passeio cancelados, com a necessi-
dade de remarcação. Comerciais motivacionais são veiculados, insistentemente em todas as
mídias para que tudo possa ficar bem, para que as pessoas se tranquilizem, trazendo mensa-
gens de conforto, esperança, de resiliência ou, ainda, provocando muito mais (des) entendi-
mentos. Falta de leitos e ausência de respiradores para a sociedade em geral, seja no contexto
público ou particular. Hospitais de campanha. Recuperação, morte e finitude. Insegurança
e muitas negações. Transformações políticas, sociais e econômicas, consumismo e medo.
Desligamentos, rescisões de contratos de trabalho em massa e auxílio financeiro por parte
do Governo Federal, como forma de apoio às pessoas mais necessitadas que perderam suas
fontes salariais provocando enormes filas em bancos autorizados. Discussões e disputas em
redes sociais por político-partidários, brigas de egos de quem pode mais. E, por assim vai, as
pessoas tentando se equilibrar no que é possível e permitido, tentando (des) idealizar a vida
de como era antes.

¹ Bacharel em Psicologia; Especialista em Saúde Mental e Psiquiatria; Especialista em Psicologia do Trânsito;


Mestrando em Educação Sexual pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Faculdade
de Ciências e Letras – Campus de Araraquara/SP. E-mail: contato@mfpsicologia.com.br
² Professora da Universidade Federal de São Carlos e Professora Colaboradora do Curso de Mestrado Pro-
fissional em Educação Sexual da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Faculdade de
Ciências e Letras – Campus de Araraquara/SP. E-mail: fadenari@terra.com.br
A vida mudou no primeiro semestre do ano de 2020, com a chegada da covid-19
(Sars-Cov-2) no Brasil. A todo momento são divulgados esforços na tentativa de combater a
doença que causa — além de diversos sintomas físicos —, o mal-estar de algumas pessoas e
o enraivecimento de outras. Di Lascio (2020) retrata que a pandemia atinge a todas as pessoas
sem discriminação de classe social, gênero e idade. Lucena (2020) pontua a importância de
conhecimentos qualificados, ou seja, informações e condutas fidedignas, as quais são impor-
tantes para passar pelo tormento que a covid-19 incutiu nas pessoas.
Foi necessário — e praticamente obrigatório —, o ser humano aprender a aprender.
Com a necessidade de se ajustar ao novo, comportamentos de antes tiveram que ser realinha-
dos. As atividades e tarefas cotidianas precisaram ser olhadas de maneiras diferentes: a tele-
dramaturgia brasileira foi paralisada; o futebol masculino e feminino, a Fórmula 1, as olim-
píadas mundiais, entre outros jogos esportivos foram interrompidos e adiados; a suspensão
de aulas presencias em colégios públicos municipais, estaduais e particulares, desde o infantil
à pós-graduação; equipamentos de proteção individuais (EPIs) diferenciados para equipes
transdisciplinares de saúde, como nos hospitais públicos e privados, na saúde suplementar
(convênios médico-hospitalares) e assim por diante. Alves (2020) reforça que a pandemia
impactou o mundo de maneira dramática.
A população brasileira em geral vive esses momentos de instabilidade em várias esfe-
ras, envolvendo diversas questões. A Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (2020)
realizou um posicionamento em sua página oficial sobre a covid-19, despertando preocupa-
ção com a população idosa e chamando a atenção da comunidade científica para os cuidados
para com esse segmento. A Gerontologia, que teve seu início no Brasil na década de 1950, es- 65
tuda a fase do envelhecimento, bem como as alterações biopsicossociais que uma pessoa vive
desde quando veio ao mundo até a sua morte. Ou seja, tais alterações compreendem os com-
ponentes biológicos (corpo), psicológicos (mente) e sociais (como as pessoas se comportam
na sociedade ao longo da vida). Mais fortemente, seu incremento aconteceu a partir dos anos
1990, quando foram divulgados alguns dados que indicavam o aumento de população mun-
dial na fase de envelhecimento. Com o constante envelhecimento da população brasileira, os
profissionais que atuam com essa faixa etária necessitam refletir e se capacitar constantemen-
te para promoção de qualidade de vida das pessoas, conforme aborda Gabrieli (2018). No
que tange à qualidade de vida de cada pessoa, inclusive a idosa, torna-se necessário averiguar
que o processo de envelhecimento não é igual para todos. Isso deriva das condições de vida
e do acesso aos diversos serviços.
Quando se fala sobre qualidade de vida, pensa-se sobre um processo de autoconheci-
mento e compromisso de aproveitar, desejar e realizar em cada etapa da vida (Ribeiro, 2018).
De acordo com Oliveira; Baía; Delgado; Vieira; Lucena (2015), a expectativa de anos vivi-
dos do ser humano brasileiro se maximizou devido aos avanços tecnológicos dos diversos
campos das ciências, também por conta dos investimentos em prevenção e educação para a
saúde, além das vacinações, dos novos medicamentos e cuidados para diversas enfermidades.
A partir disso, é importante destacar que discutir e refletir sobre os idosos é tarefa prazerosa
e instigante, pois essa população específica tem demostrado um envelhecimento ativo, par-
ticipativo e passível de aprendizado, inclusive, ensinando gerações anteriores a esta fase. O
envelhecimento inicia a partir do nascimento de um ser vivo, contudo, em linhas gerais, o ido-
so aqui retratado é aquele que tem idade igual ou superior a 60 anos. Porém, ao mesmo tem-
po que esse envelhecimento pode ser instigante e questionador nos concedendo prazer em
escrever sobre ele, é válido destacar que é preocupante para essa população a instalação desse
período pandêmico.
Com a necessidade do mundo se reorganizar, a pessoa idosa teve um impacto decisi-
vo em sua rotina, sendo esta a justificativa de debater e refletir sobre o tema em virtude de
mudanças de roteiro de suas vidas. Desta forma, este artigo teve como objetivo propiciar
um convite à reflexão a respeito dos diversos comportamentos da pessoa idosa em tempos
da covid-19, amparando-se nas discussões e informações publicadas nos sites profissionais,
portais científicos que versam sobre tais temas.
Segundo informações da Organização Pan-Americana da Saúde - OPAS Brasil (2020),
a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou, em 30 de janeiro de 2020, que o surto
da doença causada pelo novo coronavírus constituía uma Emergência de Saúde Pública de
Importância Nacional, sendo considerado o maior nível de alerta, conforme previsto no
Regulamento Sanitário Internacional e, após isso, em 11 de março de 2020, a covid-19 foi
compreendida como pandemia. O termo “pandemia” foi adotado a partir do momento que
existiram diversos surtos de covid-19 em vários países e regiões de todo o mundo. O auto
isolamento de acordo com as autoridades sanitárias brasileiras foi apontado como primeira e
única medida cabível no momento.
Referente ao ano de 2020, constata-se uma crítica referente ao início dos primeiros
casos de coronavírus no Brasil: muito antes do carnaval, maior festa popular brasileira, já
66 se sabia dos riscos provocados por esse vírus. Por quê, então, não foram canceladas todas
as atividades referentes a essa festa, especialmente em algumas cidades mais tradicionais ou
populosas? Muito mais que a preocupação com a segurança pessoal, podem estar razões ou-
tras, envolvendo ganhos vultosos, especulações econômicas e políticas. Desse modo, durante
todo o ano de 2020 e também no início de 2021, pesquisadores tentaram realizar testes para
descobrir uma vacina com eficácia e segurança para erradicar a doença. Embora existam va-
cinas sendo desenvolvidas no Brasil e no mundo, ocorrem inúmeras disputas políticas e uma
disseminação de informações que levam as pessoas — em especial as idosas — a ficarem
receosas. Por isso, reforça-se a importância dos dados científicos. A ciência precisa ser respei-
tada e mais valorizada.
O portal Previva (2020), que realiza gestão de programas de promoção à saúde e aten-
de operadoras de saúde e afins, destaca que o risco de contágio é igual para todas as idades,
contudo, à medida que a idade das pessoas aumenta, o risco também aumenta. O portal re-
força que o distanciamento social é imprescindível, especialmente para quem tem idade igual
ou superior a 60 anos. Evitar ao máximo o convívio social é o caminho.
O Instituto de Estudos da Saúde Suplementar (2020) traz uma análise especial, realiza-
da no mês de janeiro de 2020, destacando um panorama dos idosos beneficiários de planos
de saúde por todo o território brasileiro. Os beneficiários com mais de 60 anos somam 15%
do total de vínculos dos planos médico-hospitalares, sendo que essa faixa é a que mais cresce.
São Paulo é o estado no qual possui mais beneficiários idosos vinculados a planos, totalizan-
do 2.470.092 vidas (37,4%). Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Paraná, Bahia
e Santa Catarina são os próximos, exatamente na sequência descrita. Em termos Brasil, tota-
lizam-se 6.601.440 vidas acima de 60 anos. O material retrata que os idosos são de maior
vulnerabilidade à covid-19 por apresentarem multicomorbidades.
A covid-19 acomete em especial pessoas idosas e pessoas com essas multicomorbi-
dades diversas, como: hipertensão arterial, diabetes, obesidade, doenças autoimunes, entre
outras. Milhares de pessoas se recuperaram, mas infelizmente muitas outras morreram com
quadros de insuficiência respiratória e complicações das mais variadas. A doença traz sin-
tomas principais como: febre, tosse seca, coriza nasal, dificuldades para respirar e dores no
corpo. Em casos mais graves há diversos comprometimentos, a serem sempre avaliados pelo
profissional médico. Algumas pessoas apresentam um ou outro sintoma; outras são assinto-
máticas, ou seja, não apresentam nenhum sintoma, o que pode ser ainda mais delicado, pois a
pessoa pode estar infectada e não saber, mas transmitir para uma série de outras que a cerca.
Alves (2020) aponta que a ameaça é real para a população mundial, sendo bastante
alarmante para a população idosa, pois esta é mais vulnerável, em virtude do coronavírus ser
um patógeno que aumenta o risco de morte para em pessoas nesta faixa etária. Para Lucena
(2020) embora existam várias previsões e probabilidades de que a população brasileira seja
contaminada em grande esfera, as pessoas idosas devem focar na prevenção. Várias são as
pesquisas referentes ao contágio e transmissão. Porém, sabe-se, de modo geral, que o vírus é
transmitido pelo contato próximo entre as pessoas e por gotículas respiratórias exaladas entre
elas. Pode ser transmitido também por diversos objetos que foram contaminados. O vírus
pode sobreviver em superfícies e por muitas horas. Lucena (2020) aponta que ficar longe de
pessoas que tenham doenças respiratórias, é uma ação importante nesse momento de insegu-
rança quanto à doença. 67
Observa-se que esse medo está presente em grande parte da população em tempos
pandêmicos, acarretando em inúmeras incertezas e preocupações constantes em como ficará
o mundo diante de tantas informações. Assim, Martinelli (2020) traz que uma pessoa idosa
sozinha em casa pode ter mais chances de se tornar depressiva em tempos da covid-19. Se
ela ficar pensando na doença, podem ocorrer sintomas decorrentes do comprometimento
emocional. Nervosismo, agitação ou tensão são outros possíveis sinais, provocando sintomas
no campo físico — conforme dito anteriormente — como sudorese, palpitações, dor de
estômago, azia e má-digestão. De um lado, Manzaro (2020) comenta que não é somente a
doença ameaçadora do novo vírus que causa mal-estar, mas o medo, a incerteza, a angústia
pelo desconhecido, além das pessoas serem privadas daquilo que é oferecido de graça para a
humanidade. A morte e o não poder se despedir de pessoas que amamos, daquele que temos
vínculos, devasta e deixa as pessoas ainda mais angustiadas. De outro lado, “um enclausura-
mento forçado e a frustração pela solidão podem tornar-se insuportáveis”, explica Castelo
Filho (2020, p.H5).
Vale destacar que mente e corpo são conectados a todo tempo. A pessoa idosa deve
driblar as emoções para evitar a ansiedade e a depressão durante o período atual (Kairalla,
2020). É curioso destacar ainda a respeito do incômodo de não poder realizar as atividades
que anteriormente realizavam, como ir ao supermercado, à igreja de sua preferência, fazer
atividades com os grupos que convivia anteriormente (academia, hidroginástica e natação,
são exemplos), provocando também sintomas de irritabilidade. Nas palavras de Calia (2020,
p. H5): “Se a autoimagem do idoso de antigamente era a do ‘senhorzinho de bengala’, agora
muitos se veem como jovens, atletas, e não como integrando um grupo de risco”.
A pessoa idosa preocupa-se não só com ela, mas com as figuras próximas, como filhos,
netos e bisnetos. Félix (2020) alerta sobre a importância de orientações sobre a covid-19 e o
processo do envelhecimento. Explicar diversas vezes sobre o que está ocorrendo de forma
calma, paciente e didática é fundamental nesse momento. Hábitos corriqueiros como a utili-
zação de lenços de panos, toalhinhas de enxugar o suor são exemplos dos quais alguns idosos
utilizam, mas agora devem ser substituídos por materiais descartáveis.
Os cuidadores de idosos e as domésticas que convivem com pessoas mais velhas pre-
cisam realizar uma nova gestão do cuidado, principalmente pela necessidade de quebra de ro-
tina. Para as populações idosas que vivem em instituições de curta e/ou longa permanência,
as visitas devem ser evitadas, ocorrendo em situações estritamente necessárias. A Sociedade
Brasileira de Geriatria e Gerontologia (2020) relata que idosos que vivem nestas instituições
fazem parte de um grupo de alto risco para complicações pelo vírus. Devem ser restringidas
as visitas para minimizar o risco de transmissão, não sair da instituição, evitar realizar ati-
vidades em grupo e tomar maior atenção no processo de limpeza e higiene; além disso, os
profissionais que compõem as equipes de trabalho desses locais devem atentar-se ainda mais
no processo de gestão e cuidado com essa população.
Cabe aqui uma crítica: “além da multiplicidade de situações sociais, os idosos, que
compõem o grupo de risco para coronavírus, foram agrupados pelos critérios médicos de
funcionamento fisiológico humano; tipo de sistema imunológico, de capacidade pulmonar e
cardíaca, por exemplo. Mas “há idosos completamente ativos do ponto de vista profissional,
68 físico e social em um extremo; e, em outro, idosos totalmente dependentes física e mental-
mente” (Calia, 2020, p. H5). É justo, em nome de orientações nem sempre fidedignas, vindos
de organismos internacionais cuja credibilidade nem sempre é notória, praticar isolamento
social de forma equitativa? Precisamos de pesquisas sérias que possam nos indicar, com bre-
vidade, caminhos a serem trilhados, de maneira construtiva e responsável.
A pessoa que possui alguma doença degenerativa é motivo de atenção e alerta. Um dos
exemplos são as pessoas idosas acometidas pelo Alzheimer, que podem ter um sofrimento
difícil e delicado. Familiares e cuidadores têm passado por momentos dramáticos, pois além
dos impactos que a pessoa que está com a doença de Alzheimer vive, há também as alterações
cotidianas com a chegada do novo coronavírus. As questões do comprometimento cognitivo
e perdas inerentes à doença de Alzheimer, especificamente a memória, os cuidados higiênicos
podem ser mais delicados e adotados para esta população, favorecendo o maior risco para
si próprio e para as pessoas que as cercam. Ainda não há dados e evidências concretas que
pessoas com quadros demenciais tenham sintomas do novo coronavírus mais graves do que
as demais. O mais importante, talvez, seja destacar que pessoas idosas com Alzheimer podem
apresentar dificuldades maiores caso estejam hospitalizadas, principalmente por estar em um
local de desconhecimento, sem o apoio de pessoas que são de sua confiança. O planejamento
de ações e cuidados para pessoas com Alzheimer ou demais quadros demenciais é de suma
importância, adotando e seguindo o que orientações médicas dizem. Por exemplo: dilemas
da pessoa ter que ser internada ou não, os EPIs para seus familiares/cuidadores, além de
contaminações e consequências possíveis (Di Lascio, 2020).
Um outro ponto merece destaque nesta reflexão e se refere à vivência e expressão da
sexualidade no envelhecimento nesses tempos de pandemia. Quando as pessoas são convi-
dadas a falar sobre o tema da sexualidade — mesmo que de maneira geral —, muitas destas
escancaram os olhos e podem ficar surpresas e perplexas por tocar neste assunto, parecendo
ser algo velado e proibido. Nota-se nas diversas produções científicas sobre sexualidade que
esta é permeada, em diversos contextos históricos, culturais, políticos e econômicos, como
um grande tabu. Porém, muitas pessoas discorrem livremente a respeito do assunto, tendo
este tema como parte do cotidiano que as cercam. Como o ser humano é plural, suas per-
cepções também podem ser. Assim, a sexualidade da pessoa idosa — seja do homem ou da
mulher — pode ser ainda mais delicada, haja vista que, diversas famílias e pessoas em geral,
tratam ou interpretam esse período do desenvolvimento humano — o envelhecimento —
como um momento assexuado, não podendo fazer sexo e viver sua sexualidade de forma li-
vre e plena. Diehl (2019) retrata que a sexualidade, na opinião de pessoas mais idosas ou mais
conservadoras é compreendida como algo relacionado apenas à reprodução, tendo uma co-
notação de algo degradante, feio e outros juízos de valor negativos. Porém, a sexualidade no
período do envelhecimento pode ter um olhar alterado, de forma mais leve, com uma menor
culpabilização, sem tantas exigências estéticas, menos medo e de uma forma mais prazerosa.
Pellini (2020) aponta que carícias e toques devem ser interpretados como a expressão
da sexualidade no período do envelhecimento. O assunto da sexualidade deve ser abordado
com idosos (em especial em tempos de pandemia) — seja por profissionais de saúde/edu-
cação e comunidade em geral — de forma natural, uma vez que a retenção de informações
pode acarretar comportamentos de risco, como por exemplo as infecções sexualmente trans-
missíveis — IST’s e, no presente momento, os contatos com o outro neste período pandêmi- 69
co podem trazer riscos de contaminação. Santos (2020) destaca que o vírus não é compreen-
dido como uma IST e o diálogo com profissionais de saúde capacitados é importante.
Rosário (2020) descreve que é interessante conhecer sobre o sexo seguro em tempos
de isolamento, quarentena e distanciamento social. O sexo na vida do brasileiro tornou-se
uma questão a ser investigada, por requerer cuidado e despertar diversas dúvidas. Os idosos
podem utilizar a tecnologia para estimular sua sexualidade no momento da pandemia. É im-
portante tomar cuidado com as redes sociais e aplicativos que são usados, pois os “nudes”
(fotos íntimas) podem ser vazados e divulgados nas redes sociais. Santos (2020) pontua que
o sexo virtual é apontado como uma opção.
Modificar o olhar que a sociedade tem a respeito da sexualidade no período do en-
velhecimento e pandemia, pode propiciar maior liberdade para que as pessoas desfrutem de
sua sexualidade, sem mitos, preconceitos e tabus, conforme pontua Pellini (2020). Pode-se
sugerir, então, que a sexualidade da pessoa idosa é compreendida como busca, descoberta,
aprendizagem diária e pode ser interpretada subjetivamente por cada pessoa e espaço em que
ela se apresenta. Se o novo coronavírus trouxe medo em diversos espaços, o mesmo também
traz o convite da possibilidade de lidar com a resiliência e (re) construções no campo da se-
xualidade humana, em especial na população idosa.
Como medidas de cuidado, prevenção e promoção de saúde, é primordial controlar
doenças crônicas como a hipertensão arterial, doença pulmonar obstrutiva crônica, asma,
diabetes, manter-se ativo, ter uma alimentação equilibrada, não fumar e não beber excessi-
vamente, pois são fundamentais pontos para que a pessoa idosa mantenha-se bem e segura
(Cuidados pela Vida, 2020). Verificar a caderneta de vacinas, consultar o médico para pos-
síveis melhoras de imunidade, quer seja com alimentos ou complementos vitamínicos é um
importante ponto também. Trocar as vestimentas da pessoa idosa todos os dias é importante
e sugerido. Caso o idoso necessite sair de casa por algum motivo importante, em especial se
fez uso de corrimão — muito utilizado pelos idosos —, é necessário realizar a higienização
das mãos, como o uso imediato do álcool em gel ou lavagem das mãos de forma correta
(Félix, 2020). A constância de lavar mãos também elimina a propagação do vírus nas pessoas.
Conforme comentado anteriormente, a manutenção do distanciamento é importante,
principalmente os avós que querem abraçar e acariciar os netos. Martinelli (2020), sugere que
a pessoa idosa pode ser orientada a ocupar-se neste momento com atividades, a partir de
cursos on-line. Cuidar das relações pessoais, familiares e sociais, evitando guardar mágoas,
resolvendo questões não resolvidas em sua vida; praticar sempre que possível exercícios para
estimulação da memória e que mantenha a pessoa ativa no convívio com outras pessoas (Ri-
beiro, 2018) mesmo que de forma virtualmente em tempos de covid-19. Porém, tal recomen-
dação acarreta um questionamento: todos os idosos possuem recursos de mídias para realizar
tal experiência? Acreditamos que não, sendo que, dessa forma, a recomendação passa a não
gerar os resultados esperados, passa a ser mais uma utopia, dentre tantas outras possíveis.
Assistir filmes, ler livros, preparar receitas novas, são ferramentas importantes para lidar com
as emoções neste momento (Kairalla, 2020). Se a pessoa idosa não possui nenhum contato
com a tecnologia do celular, há programas televisivos dos mais variados. Há uma infinidade
de programas (entrevistas, culinários, religiosos, etc), pois há um “boom” de pacotes promo-
70 cionais, com baixo custo financeiro, para manter a pessoa em entretenimento.
O Conselho Federal de Psicologia (CFP) e os Conselhos Regionais de Psicologia
(CRPs de todo o território brasileiro) através de seus canais de comunicação, realizam várias
formas de discussões on-line, além de publicação constante de materiais orientativos, para
que os profissionais da categoria possam atuar de maneira segura, ética e profissional no perí-
odo pandêmico, bem como na pós-pandemia. Além disso, o profissional psicólogo tem papel
primordial nesse momento, sendo que algumas possibilidades podem ser: orientação sobre
aspectos de higienização para diminuir a contaminação; conscientização sobre mudanças de
hábitos e possíveis impactos emocionais advindas dessas mudanças; deve ser abordado —
quando preciso — implicações emocionais da quarentena e dos aspectos psicológicos do iso-
lamento, em especial público idoso (Conselho Federal de Psicologia, 2020). Constantemente
o Conselho Federal de Psicologia acompanha as medidas de prevenção, recomendações da
Organização Mundial de Saúde e órgãos responsáveis por todo o Brasil.
Para o atendimento psicológico da pessoa idosa, é permitido o atendimento on-line. O
profissional psicólogo pode realizar um cadastro no site, permitindo que ele realize inúme-
ros serviços que estejam condizentes ao Código de Ética do Psicólogo. O aconselhamento
psicológico, a psicoterapia e outros trabalhos do profissional de Psicologia, podem ajudar a
compreender os sintomas, em especial os emocionais, nesse momento da pandemia da co-
vid-19, garantindo uma escuta qualificada, acolhendo a pessoa com ética e sigilo.
Fazer a psicoterapia (seja ela de modo presencial ou on-line), realizar atividades físicas
e outras que propiciem bem-estar (seja dentro de casa ou locais específicos), balancear a ali-
mentação com dieta adequada, ter um sono com qualidade reparadora, evitar hábitos negati-
vos como consumir bebida alcoólica em excesso e a utilização de tabaco, colaboram para a
saúde biopsicossocial no envelhecimento, bem como no momento da pandemia mundial da
covid-19.
O profissional da Psicologia ainda atuará ainda com a equipe transdisciplinar, ou seja,
com profissionais de diversos campos do saber, como médicos, enfermagem, assistentes
sociais, fisioterapeutas e outras categorias. Em momentos delicados, o papel da equipe nos
diversos serviços — mesmo que estejam em formato de atendimento on-line —, é compre-
ender o ser humano e lidar com a finitude da vida. Com o avanço do número de mortes pelo
país, é necessário oferecer suporte para as famílias e pessoas vinculadas ao ente querido que
partiu.
Realizar chamadas para pessoas de sua rede social, seja da família — como os netos e
amigos —, são importantes na preservação de vínculos. Os idosos que possuem facilidade
com as tecnologias, podem enviar mensagens positivas via redes e aplicativos, reforçando
mais uma vez aqui. Observa-se, de uma forma geral, que em diversos contextos, os jovens es-
tão sofrendo mais que os próprios idosos. Receber ajuda dos vizinhos, de filhos e netos para
ir ao supermercado, pagar contas, comprar medicamentos, são importantes (Lucena, 2020).
Esses jovens, por exemplo, podem colaborar com as pessoas idosas e vice-versa.
O conhecimento é uma das propostas das estratégias preventivas (Lucena, 2020). Res-
peitar os órgãos competentes, bem como a ciência brasileira e mundial são passos importan-
tes a serem dados. Ao longo dos próximos anos, fica a indagação sobre a vida humana, de
como serão as medidas de higiene e cuidados, bem como será o retorno dos “dias normais”,
dos abraços e proximidade, que retratam a hospitalidade do povo brasileiro. 71
Em tempos pandêmicos, Manzaro (2020) avalia que recolher em si, é muito mais
profundo, mais aquém, do que estar recolhido dentro das residências. Cada pessoa tem sua
interpretação pelos fatos e acontecimentos da vida, por isso, visões podem ser plurais frente
ao novo coronavírus, sendo que o mais importante, agora em 2021 e nos próximos anos, é
cuidar: de si e do outro!

REFERÊNCIAS

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73
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Mais do que modismo mórbido: a importância
de se registrar a pandemia em antologias lite-
rárias
Pedro Panhoca da Silva¹

RESUMO: Nem a mais impensável previsão seria capaz de pensar na distopia cotidiana
causada pelo surto do Covid-19, que alterou o cotidiano de boa parte da população mundial.
Experiência difícil de ser esquecida tão cedo, a pandemia causada pelo novo coronavírus
proporciona, por outro lado, uma importante oportunidade a escritores em potencial. Saben-
do disso, este trabalho busca analisar algumas coletâneas literárias cuja temática está ligada
ao Covid-19. Acredita-se que melhor do que “apagar a História” é tirar proveito dos erros
cometidos pela humanidade para que a mesma situação não se repita ou tarde a se repetir.
Dessa forma, as coletâneas textuais representam uma importante forma de se registrar o “ca-
lor do momento”, podendo inspirar novas produções assim que o surto pandêmico acabar.
Koch (2009) é utilizado sobre o processo de escrita e depoimentos de autores como Giorda-
no (2020), Índigo ([2020]) e Cristovão Tezza ([2020]) também utilizados no que se refere às
antologias literárias. Por vezes, editais de antologias e concursos literários não conhecem boa
aderência de público leitor e escritor interessados, e alguns resultados iniciais têm mostrado
que há campo para se desenvolver literatura sobre o novo coronavírus no presente momento
74 e também posteriormente, e o envolvimento de ambas as partes é importante para tal.

Palavras-chave: Produção textual. Escrita. Antologia Literária. Pandemia.

INTRODUÇÃO

Oficialmente em 2020, o mundo conheceu o que antes se reservava à literatura distó-


pica ou ficção científica: uma pandemia de alcance global que deixou fortes marcas por onde
passou e ainda está longe de ser liquidada. Segundo Freitas, Napimoga e Donalisio,
Desde o início do atual surto de coronavírus (SARS-CoV-2), causador
da Covid-19, houve uma grande preocupação diante de uma doença
que se espalhou rapidamente em várias regiões do mundo, com diferen-
tes impactos. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS),
em 18 de março de 2020, os casos confirmados da Covid-19 já haviam
ultrapassado 214 mil em todo o mundo. Não existiam planos estraté-
gicos prontos para serem aplicados a uma pandemia de coronavírus
- tudo é novo (2020, p. 1).

¹ Graduação em Letras pela UNESP/Assis (2008), Especialização em Ensino de Português, Literatura e


Redação pelo Centro Universitário Claretiano CEUCLAR (2009), Mestrado em Letras pela UNESP/Assis
(2019). Atualmente é doutorando em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). ppanhoca@
yahoo.com.br.
Além da falta de equipamentos de proteção individual em hospitais e alto investimen-
to em equipamentos para o tratamento da doença contraída (Freitas; Napimoga; Donalisio,
2020, p. 3), e crise nos mais diversos setores, era de se esperar que o ambiente educacional
também fosse afetado. Uma migração às pressas para plataformas online, capacitação básica
e dificuldades de adaptação discente e docente foram só alguns dos problemas vivenciados
por profissionais dos diversos segmentos da Educação. Só no Ensino Superior, 91% dos es-
tudantes do mundo precisaram migrar para a plataforma online (Unesco, 2020 apud Gusso
et al., 2020, p. 3) por meio do Ensino Remoto Emergencial. Segundo Gusso et al. (2020, p.
4), as principais dificuldades foram:
a) a falta de suporte psicológico a professores;
b) a baixa qualidade no ensino (resultante da falta de planejamento de atividades em
“meios digitais”);
c) a sobrecarga de trabalho atribuído aos professores;
d) o descontentamento dos estudantes; e
e) o acesso limitado (ou inexistente) dos estudantes às tecnologias necessárias.
Esses são, praticamente, os mesmos problemas vivenciados por alunos escolares. Cor-
deiro (2020, p. 2) aponta que modalidades como a de Educação a Distância (EAD) e am-
bientes virtuais de aprendizagem (AVA) também foram soluções encontradas para suprir essa
carência presencial de ensino.
Se no 1° semestre de 2020 tais obstáculos dificultaram muito o cotidiano de professo-
res e alunos, o 2° semestre apresentou dificuldades maiores ainda no Ensino: demissões em
massa de professores e, os que conseguiram manter seus empregos, trabalharam sobrecarre- 75
gados. Segundo Palhares (2020), 70% das demissões foram concentradas no Ensino Infantil
da rede particular, e segundo estimativa da FENEP (Federação Nacional de Escolas Parti-
culares), aproximadamente 300 mil docentes atuantes na educação básica já haviam perdido
seus postos de trabalho, além de mais de 1800 professores universitários (Andrighetto, 2020).
Com o desencadeamento do isolamento social, a pandemia, por outro lado, favoreceu
a criação do hábito de leitura e escrita para quem ainda não o tinha. Para Koch, “ler e escre-
ver são, na verdade, coisas tão intimamente ligadas que quase se confundem” (2009, p. 52).
E é justamente o produto dessas práticas que poderá ser usado em prol de uma nova fase na
literatura: a possibilidade de se registrar o presente contexto histórico por meio de versos e
prosa, de forma profissional ou amadora, a fim de tornar público o que aconteceu no “calor
do momento” e também captar o agora para servir como base para produções futuras, o que
segundo Koch serve para “lembrar e imaginar servem de lastro um para o outro; todo escri-
tor se equilibra entre ambos, e a combinação que ele faz deles tende a definir-lhe o estilo”
(2009, p. 47).

ESPÍRITO EMPREENDEDOR LITERÁRIO: O QUE O ISOLAMENTO PODE


PROPORCIONAR DE POSITIVO

Do mesmo modo que no mundo ela ocorre de tempos em tempos, a pandemia na lite-
ratura também se apresenta como tema a ser abordado por escritores canônicos. O professor
e crítico Eduardo Cesar Maia (Canal..., s/d) lista em um vídeo algumas dessas obras que bus-
caram mostrar ao leitor uma espécie de “laboratório humano” e explorar sua coletividade:
A peste (2017), A dança da morte (2013), Nêmesis (2011), Ensaio sobre a cegueira (2020) e O último
homem (2012). Livros de ficção interativa, nos quais o leitor decide quais escolhas o protago-
nista deve decidir por meio de uma “narrativa de árvore” (Silva, 2019), também parecem ter
“antecipado” e metaforizado a pandemia atual, como Infected (2012) e Pathogens (2016),
ambos da série Click Your Poison.
O isolamento provocado pela pandemia não só aumentou o consumo de livros (Ma-
chado, 2020), como também o número de escritores independentes (Schilindwein, 2020).
Logo, no mercado editorial contemporâneo o leitor poderá se deparar não só com obras
canônicas que abordam o tema como, possivelmente, novos autores, como é o caso do autor
best seller Paolo Giordano (Peixoto, 2020), com seu livro Nel contagio (2020). Segundo o autor,
a literatura precisa tratar do Covid-19 por meio de ficção ou ensaio, como ele mesmo o fez
em sua obra mais recente, já que a literatura pode confortar quem sente medo ou confusão.
Para Giordano, o lugar da literatura é exatamente discutir o que tem sido e o que será do
mundo com a presença dessa pandemia, assim como o papel do escritor é oferecer sentido
ou consolo ao leitor, já que o governo precisa cuidar de questões gerais (Peixoto, 2020).
Segundo Moro, Estabel, Santarosa e Silva,
As narrativas se constituem em modos de mediação que podem se fazer
presentes em todos os processos do desenvolvimento do ser humano,
estimulam o imaginário e a fantasia, levando a criança e o adolescente
a interagir, através da emoção e da memória, com os personagens das
histórias narradas. Esses personagens podem se apresentar em dife-
76 rentes suportes através de acervos bibliográficos e de ferramentas ele-
trônicas, estimulando a releitura e a reelaboração de textos de forma
cooperativa, em AVAs, através das TICs (2006, n.p.)².

Devido ao isolamento, as tecnologias da informação e comunicação mostraram-se


importantes recursos tanto para aulas aplicadas de forma remota, síncrona e virtual, como
também para se manter o hábito da leitura e escrita. Koch, por exemplo, defende tanto o
isolamento do mundo para que o escritor se concentre em seu ofício quanto sua ousadia em
acreditar que fez um trabalho de escrita bem feito, de preferência aprovado pelos primeiros
leitores
A maioria dos escritores nutre um sentimento desconcertante, e apa-
rentemente contraditório, de atrevimento petulante, quase cego, de um
lado, e de outro, uma ardente necessidade de aprovação. Na verdade,
você precisará das duas coisas: da ousadia literária e do consentimento
de seus colegas. Os escritores precisam tanto de aprovação para seguir
em frente quanto da vontade de avançar mesmo sem ela (2009, p. 34,
grifos do autor).
Caso o autor fracasse, apesar de sua autoconfiança, Koch não encontra nisso motivo
para o escritor se envergonhar, pois “descobrir que não se tem vocação para escrever também
pode ser uma boa” (2009, p. 43, grifo do autor), tomando a experiência das recusas de mate-
rial enviado como uma forma de não insistir no que ele não obteve êxito, embora segundo o

² Mesmo que esse artigo não esteja paginado, a citação encontra-se na página 5 em sua versão em pdf.
escritor James Baldwin afirme que “o talento é insignificante. [...] Conheço muitos fracassa-
dos talentosos. Além do talento, contam também a disciplina, o amor, a sorte, mas, acima de
tudo, a persistência” (apud Koch, 2009, p. 40).
Sabendo disso, antologias literárias aproveitaram desses recursos que já conheciam e
uniram o útil ao agradável nesse momento de caos: promover antologias literárias que abor-
dassem a pandemia mundial de 2020. Além de relevante exercício de escrita, escrever sobre
os impactos da Covid-19 poderia ser algo pioneiro na literatura até então. Com o desemprego
atingindo grande parte da população, quem não conseguiu se recolocar no mercado de tra-
balho pode utilizar essa oportunidade forçada para produzir textos, o que geralmente quem
possui um ou dois empregos não faz. Koch, ao mesmo tempo que reconhece a dificuldade
de trabalhar e se dedicar ao ofício da escrita, também não demonstra compaixão quando a
desculpa é a ausência de tempo para tal dedicação:
Você não tem tempo? Arranje. Isso é essencial. Somente você pode ar-
ranjar o tempo necessário ao seu trabalho e cuidar para mantê-lo. Nin-
guém fará isso por você. Eu sei, eu seu, é terrivelmente difícil. Escrever
requer um tempo exorbitante. Se você tem um emprego ou grandes
responsabilidades pessoais que consomem seu tempo, é claro que vai
se demorar mais. Mas, se não arranjar tempo, você não escreverá nada.
É simples assim. E saiba: todo escritor, por mais famoso ou produtivo
que seja, luta a vida inteira para conseguir tempo para escrever e pre-
servá-lo. Não é difícil só agora. Será difícil sempre (2009, p. 29, grifos do
autor).
Dividindo a atenção com outras temáticas como aventura, saudades, infância, amor, 77
conspirações, lendas urbanas, horror, entre muitos outros, a pandemia por vezes rendeu
resultados além do que simples compilação de textos e lançamentos em formas de lives. A
antologia indiana Covid´s Metamorphosis: stories of our corona times (2020), por exemplo, foi uma
das pioneiras a não reunir textos de autores do próprio país, mas captar experiências literárias
de diversos autores do mundo, dentre eles escritores de Índia, Estados Unidos, Alemanha,
Sérvia, e Brasil. Além de compartilhar ao leitor como escritores de diversas partes do mundo
retrataram a pandemia por meio de contos, essa obra “[...] chegou a ser usada por psicólogos
indianos em aulas universitárias – provavelmente remotas – em lugares como a Universidade
de Bangalore” (Concato; Fabri, 2020).
No Brasil, a coletânea Histórias do Isolamento: contos, crônicas e desabafos (2020) relatou em
seu editorial a preocupação com a situação do momento para, em seguida, apresentar sua
proposta:
Nenhum de nós havia vivido algo semelhante e, no momento em que
todos nós, autores desse livro, escrevemos, ainda não temos ideia de
como irá acabar essa história. Não sabemos sequer se estamos apenas
no começo, no meio ou perto do fim dessa história. Para que fique o
registro desses escritos, a chamada para a publicação nesse livro foi feita
entre 9 e 26 de abril de 2020, ou seja, salvo algum escrito de exceção,
todos foram compostos no clima desse pequeno intervalo de tempo.
Queríamos saber então como cada um estava fazendo para passar por
algo nunca antes visto pela nossa geração, a suspensão da movimenta-
ção social, a interrupção do convívio com familiares e amigos. Compar-
tilhar essas históricas, colocá-las na tela e no papel em forma de conto,
crônica ou, em alguns casos, de simples desabafo, foi a nossa sugestão
(Botton; Botton, 2020, p. 5).

A coletânea Histórias do Isolamento – contos, crônicas e desabafos reuniu ficção e relatos


pessoais de seus autores, visto que os selecionados para compor a antologia eram escritores,
professor e acadêmicos (Botton; Botton, 2020, p. 5). Muito além de ser uma simples captação
de textos, essa coletânea demonstrou também ter empatia com os leitores:
Vê-se imediatamente que essa é a proposta de quem ainda acredita na
arte e na literatura. Talvez a escrita nos ajude a passar por isso, ou nos
ajude a contar para os outros que virão como suportamos algo tão es-
tranho. Ou talvez, a escrita nos salve e preserve a nossa sanidade. Ou
talvez, enfim, salve ainda outros que não escreveram, mas que irão ler
essas experiências e compará-las com as suas próprias.
Já que “a arte existe para que a realidade não nos destrua” (Nietzsche),
vai aqui as histórias que querem alentar os ânimos e enrijecer a nossa
capacidade de perseverar e de resistir.
As Histórias do Isolamento – Contos, Crônicas e Desabafos vêm para nos unir,
mesmo que a distância (Botton; Botton, 2020, p. 6, grifos dos autores).

Percebe-se nessa apresentação que os organizadores reconhecem a literatura como


uma válvula de escape para a dura realidade, ainda mais intensa na época que pode ter sido o
pico da pandemia no Brasil.
78 Outra coletânea, chamada A Humanidade Pós pandemia (2020), se pautou no aspecto
visionário do contexto pandêmico: como seria o mundo livre do caos gerado pelo novo co-
ronavírus. Segundo a Equipe Apparere, responsável pela organização do livro, “sem dúvida
é um riquíssimo conteúdo para as futuras gerações entenderem como estavam o ânimo e a
esperança nesse período” (2020, p. 17).
Até mesmo em impensáveis projetos a pandemia fez parte. O livro Poéticas de SerTão:
diálogos literários em sala de aula (2020), a princípio, teve a intenção de reunir produções textuais
de alunos sobre a obra Grande Sertão: Veredas (2019), e ser organizada em quatro capítulos.
Devido às mudanças provocadas pela pandemia, os organizadores optaram por incluir um
5° capítulo, chamado “O SerTão de Quarentena: Produções dos vencedores do II concurso
Literário do projeto NEPLLI”. Nesse capítulo, seriam incluídas produções vencedoras do
concurso mencionado no título dessa parte do livro que não necessariamente estariam ligadas
à obra de João Guimarães Rosa, mas com os impactos causados pela Covid-19, reunindo um
total de 15 textos, entre contos, poemas e crônicas (Conceição, 2020, p. 38).
Essas e muitas outras coletâneas comprovam que a literatura sobre pandemia está se
iniciando no mundo e, segundo Tezza, poderá ser o assunto do século (Programa..., [2020a]),
então não há motivos para se deixar de falar nessa catástrofe a nível mundial como se fosse
um tabu, já que ainda há muito a ser falado sobre ele. Além disso, elas demonstram como
há como encontrar paz em meio ao caos, e que dentre muitos papéis desempenhados pela
literatura, um deles pode ser estes: ajudar a manter a saúde mental num momento delicado
como o do isolamento forçado e registrá-lo para gerações posteriores conhecerem o que foi
feito no “calor do momento”. O certo é que quem escreveu ou escreverá “[...] está à procura
de algo que possa colocar em palavras” (Koch, 2009, p. 50). A escritora Índigo compara, por
exemplo, a importância de se escrever sobre o surto do coronavírus com a importância de se
escrever sobre o atentado de 11 de setembro: boa parte da produção feita no “olho do fura-
cão” foi de má qualidade, mas depois de alguns anos, surgiram textos melhores (Programa...,
[2020b]).

CONCLUSÃO

O Covid-19 veio, certamente, para mudar o cotidiano da humanidade, e as artes tam-


bém não puderam escapar dessas mudanças mandatórias. Uma das consequências foi pro-
mover o isolamento social, nem sempre acreditado ou respeitado por todos. Aos que leem
e escrevem, porém, cumprir o isolamento pode resgatar práticas seculares, como os hábitos
da leitura e da escrita. Se hoje há quem consiga praticá-los em ambientes turbulentos, alguns
preferem o silêncio e a privacidade para realizá-los. Koch, por exemplo, ao se referir à escrita,
se preocupa mais com o ato do que com o ambiente onde ele é praticado “é preciso sentar-se
e escrever. Nem sequer importa, de fato, se você está com vontade de escrever” (2009, p. 3).
Quanto à leitura, Cristóvão Tezza segue essa linha de raciocínio de Koch ao afirmar que para
se dedicar à literatura necessita-se de tempo, silencia e solidão ([2020a]).
O escritor que ousou produzir seus textos em plena pandemia pode, por si só, ser
considerado um vencedor. Isso porque o presente contexto histórico desestabilizou emo-
cionalmente muitos, e em alguns, a própria confiança foi perdida. O escritor que sonha em
publicar deve acreditar naquilo que faz e tem para oferecer. Segundo Koch, 79
Não deixe que a ansiedade e os temores o detenham. Você não está
só: a maioria dos escritores, por mais talentosos e bem-sucedidos que
sejam, passa grande parte da vida lidando com o drama interior da con-
fiança. O jeito é transformar a palha poeirenta da incerteza e do medo
no ouro puro da clareza e da convicção. É tarefa para uma vida toda
(2009, p. 38).
Além disso, há a possibilidade de um autor que integra uma antologia literária se apri-
morar e melhorar sua escrita e, quem sabe, emplacar carreira literária por meio dessa prática.
Cristovão Tezza, por exemplo, iniciou-se na vida literária escrevendo poemas para garotas,
depois textos impressos em mimeógrafos, textos publicados em antologias de autores ama-
dores, livros em editoras de pouco impacto literário, e, finalmente, livros que caíram no gosto
do público ([2020a])
Embora muitos defendam que ainda é cedo para se explorar o assunto, e que somente
depois de séculos será possível entender a fundo sobre o surto do novo coronavírus, Koch
defende a importância, na literatura, para registrar o aqui e o agora, já que “esse princípio —
escreva agora — não se aplica apenas aos escritores de ficção, mas a todo tipo de escritor. É
interessante notas que se aplica até a estudiosos que dependem de pesquisas factuais” (2009,
p. 4).
Enquanto alguns pensavam que seria perda de tempo escrever sobre o Covid-19, o
boom da literatura sobre o tema, principalmente abordado por antologias, mostrou o contrá-
rio: o público pode querer justamente conhecer o outro lado do problema, algo que os noti-
ciários não são capazes de oferecer, que é a ficção do tema, e cabe aos escritores suprir essa
demanda de leitura, isso porque “[...] há muitos modos de saber as coisas. Sim, você “sabe”
aquilo que consegue expressar com facilidade neste momento” (Koch, 2009, p. 16-17). Muito
do que o leitor encontrará no mercado editorial pode soar clichê ou amador, mas pode haver
produções de grande valor literário, já que “o que importa não é o tamanho das ideias, mas
sua ressonância” (Koch, 2009, p. 8).
A literatura voltada à pandemia causada pela Covid-19 encorajou muitos autores ama-
dores a produzirem seus primeiros textos ou aprimorarem sua prática de escrita sobre um
tema que foi novidade para todos. Isso pode ter acontecido pois, segundo Koch,
O mais conhecido de todos os conselhos sobre como escrever é o ve-
lho clichê escolar: “Escreva sobre o que você conhece.” É realmente
um clichê [...]. No entanto, assim como a maioria dos clichês, tem a
virtude residual de ser uma meia verdade. Do ponto de vista literal, é
um contrassenso. Se o adotássemos de modo pouco imaginativo, fica-
ríamos reduzidos a uma laboriosa autobiografia. Mas, assim que você
tiver apreendido o elo íntimo e mágico entre o que você “conhece” e
o que você imagina, a velha máxima fará algum sentido (2009, p. 12).
Por outro lado, o próprio autor adverte que escrever sobre aquilo que se conhece tam-
bém pode desorientar o autor, já que esse conhece sempre mais do que é capaz de inserir na
folha de papel ou na tela do computador (Koch, 2009, p. 13).
Se as produções sobre o novo coronavírus serão consideradas de boa ou má qualidade,
não cabe agora tal julgamento, cabendo à crítica futura analisar a fundo os textos como tais.
80 O mais importante, agora, é o papel libertador que a literatura proporcionou aos produtos de
texto. Isso porque
Há uma história dentro de cada motivo, pois qualquer desejo invaria-
velmente provoca um resultado, uma consequência. Esse resultado tal-
vez não passe de pura frustração – mas a frustração também terá uma
consequência. Em todo caso, o desejo levará a um resultado, e aí se
encontra, sempre, alguma história, um caminho para a narrativa, uma
rota para o final (Koch, 2009, p. 19).
Se o coronavírus será esquecido cedo ou tarde pela humanidade, não é possível afir-
mar, mas é certo que ainda abrirá muitas oportunidades no campo artístico para ser explora-
do.

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Letras, Assis.

83
La solitud pandémica: un término con sentido
de vida en construcción
Rafaela Araújo Jordão Rigaud Peixoto¹

RESUMO: El término ‘solitud’ encierra mucho más de lo que se puede percibir en la super-
ficie de su significado. Varios autores se acercaron del tema, como Tillich (1963), que hizo
una distinción entre ‘solitud’ y ‘soledad’, pero que no abarca la complejidad del término apli-
cado a la pandemia, lo que yo denomino ‘solitud pandémica’. Tras el primero contacto con
el coronavirus 2019 (COVID-19), ahora vivimos una segunda ola de transmisión, más brutal
para nuestras mentes y nuestras almas, con una posible “angustia intramuros” (Peixoto, 2020)
más intensa. De hecho, somos instados a salir de nuestro “lugar común”, para vivir intensa-
mente nuestros proyectos, con una nueva filosofía de vida.

Palavras-chave: terminología, pandemia COVID-19, solitud.

El término ‘solitud’ encierra mucho más de lo que se puede percibir en la superficie


de su significado. Es posible hacer una revisión histórica de su origen, que se ha derivado del
vocablo latino ‘solitudinem’, con el sentido de que alguien está a vivir solo, lejos de todo, en
un sitio desierto (Online Etimology Dictionary, 2001-2021).
84 Varios autores se acercaron del tema, como el teólogo alemán Paul Tillich, en su obra
“The Eternal Now” (1963), que hizo una comparación entre el término ‘solitud’ (‘solitude’, en
inglés) y ‘soledad’ (‘loneliness’, en inglés), como dos formas distintas de estar solo: la primera,
como un combustible para el alma; y la segunda, como una lástima de vivir sin la compañía
de otra persona. En las palabras del autor, “Soledad expresa el dolor de estar solo. Solitud
expresa la gloria de estar solo. La naturaleza más íntima de la soledad es la presencia de lo
eterno en los caminos atestados de lo temporal.” (Tillich, 1963, p. 2)²
La era de la internet tal vez ya nos tenga desconectado de una realidad física, aunque
no estuvimos conscientes de ello. Como informado por Ortega (2019), hubo una encuesta de
la BBC en 2018, , con 50 mil personas de varios países, y se ha encontrado que la soledad es
más común entre jóvenes (40%) frente a mayores de 75 años (27%). Por cierto, el siglo XXI

¹ Investigadora y traductora. Doctora en Letras / Estudios del Lenguaje (PUC-Rio), Mestre en Lingüística
(UFPE), Especialista en Traducción del Inglés (UGF) y Especialista en Neurociencia Pedagógica (UCAM);
Traductora e Investigadora del Departamento de Controle del Espacio Aéreo (DECEA), dónde se dedica
a estudios terminológicos en el área de la aviación; e Investigadora en la Universidad de la Fuerza Aérea
(UNIFA), dónde desarrolla análisis terminológicos aplicados al sector de Defensa; afiliada a los grupos de
investigación ‘Grupo de Estudios em Inglés Aeronáutico’ (GEIA | Instituto de Control del Espacio Aéreo)
y ‘Centro de Estudios Interdisciplinarios en Ciencias Aeroespaciales’ (NEICA | Universidad de la Fuerza
Aérea), inscritos en el directorio del CNPq. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3992590052645432 Correo electró-
nico: rafaela.peixoto@gmail.com.
² En el original: “Loneliness expresses the pain of being alone. Solitude expresses the glory of being alone.
The innermost nature of solitude is the presence of the eternal upon the crowded roads of the temporal.”
ha motivado maneras más circunspectas de convivencia, muy basada en interacción por tec-
nología.
Sobre ese tema, el libro “Solitud: hacia una vida con sentido en un mundo frenético”,
de Michael Harris, de 2018, llama la atención sobre el hecho de que nuestras vidas están más
llenas de informaciones de otras personas, seguidas por medio de las redes sociales y otras
aplicaciones de teléfonos móviles. En ese contexto, Harris considera que la solitud, en con-
traposición a la soledad, exige de nosotros actitudes metacognitivas para que sepamos utilizar
el tiempo para crear condiciones óptimas hacia la realización de hechos.
Aunque todo eso son variables pertinentes, me parece que el sentido de la ‘solitud pan-
démica’ es muy mas allá de lo que se puede definir concretamente. Esto, pues, mismo cuando
pensamos en sentidos lexicosemánticos, cuando creemos que sea posible asociar un signifi-
cado a usos reales y campos semánticos más bien definidos, la reflexión acerca de la ‘solitud’
como una construcción de la vida depende de una perspectiva más holística y humana, que
solamente es posible con un análisis de nuestros escenarios y horizontes de vida.
Por ello, la lingüística de corpus tampoco es totalmente capaz de categorizar la com-
plejidad de eses matices. Por ejemplo, si analizamos dos ejemplos de publicaciones sobre la
pandemia, en portugués (1) y en inglés (2), que salieron en 2020, vamos a ver los siguientes
perfiles lexicales generales:

85

Imagen 1 – Perfiles lexicales de dos publicaciones del año 2020, en portugués (1) y en inglés (2), sobre la
pandemia del COVID-19

Como un retrato muy sencillo, las diez palabras significativas más utilizadas en las dos
publicaciones son: (1) hogar, tiempo, vida, social, momento, ciudad, años, mundo, días, activi-
dades; e (2) salud, medios de comunicación, influenza, noticias, personas, social, inmunidad,
investigación, riesgo, comunicaciones.³ En el perfil de la publicación (1), la vida individual es

³ En los idiomas originaes, las palabras significativas más frecuentes fueron: (1) ‘casa’, ‘tempo’, ‘vida’, ‘social’,
‘momento’, ‘cidade’, ‘anos’, ‘mundo’, ‘dias’, ‘atividades’, en portugués; e (2) ‘health’, ‘media’, ‘influenza’, ‘news’, ‘people’,
‘social’, ‘immunity’, ‘research’, ‘risk’, ‘communications’, en inglés. Fueron consideradas palabras más significativas
aquellas que no estaban contenidas en el título de las publicaciones o no tenían relación de sinonimia o
asociación con esas palabras del título. Por ejemplo, para la publicación (1), en portugués, fueron desconsi-
derados los términos ‘mãe’, ‘pandemia’, ‘mulheres’, ‘maternidade’, ‘filhos’, ‘filha’, ‘pesquisa’ e ‘universidades’. Y, para la
publicación (2), en inglés, fueron desconsiderados los vocablos ‘pandemic’, ‘public’ y ‘narrative’.
más abordada, con reflexiones acerca de situaciones del mundo y perspectivas futuras. En la
publicación (2), hay preocupación más grande con las noticias que llegan a nosotros y como
la pandemia afectará, provisional o definitivamente, nuestra salud.
Eses perfiles enseñan como la vida es una construcción constante de sentimientos de
pertenencia a varios segmentos de interacción en el mundo. De mi parte, hace seis meses
que yo he hecho una reflexión acerca de la pandemia (Peixoto, 2020), sobre como todo me
pareció una oportunidad para llevar a cabo hechos personales que necesitaban de más dedi-
cación. Además de ello, la circunstancia podría convertirse en un aprendizaje. Pero lo que yo
he denominado una ‘angustia intramuros’, cuando nos sentimos enclaustrados, sin muchas
opciones de rutina, pasa a asumir connotaciones más dramáticas cuando vemos más y más
personas cerca de nosotros que han padecido de esta molestia, el coronavirus 2019 (CO-
VID-19), o que han visto sus estimados entes y/o amigos enfermos o incluso muertos por
ello.
Repentinamente, vemos la vida pasando delante de nuestros ojos como si fuera sola-
mente un segundo para que todo se vuelva en granos de arena del tiempo… Vidas arrebata-
das muy rápidamente… Novedades de que una nueva cepa del coronavirus va a ser muy más
fuerte de que la cepa de la primera ola... Vemos la desesperación impregnando nuestras vidas
muy más ampliamente.
Personas que no pueden acercarse de sus familiares. Abuelos que no pueden conocer
a sus nietos que nacieron durante la pandemia. Nos quedamos aislados en un mar de infor-
maciones tendenciosas que olvidan de la humanidad que un día tuvimos.
86 Mismo sabiendo que la transmisibilidad del COVID-19 es más grande que su morta-
lidad, nos vemos inmovilizados, inertes delante de la realidad de que esa mortalidad puede
ser inusitada. No se sabe al cierto la extensión de la gravedad de los síntomas, como lograr
éxito con medidas profilácticas que sean en verdad efectivas para que continuemos a vivir
nuestras vidas de forma plena. ¿Cómo hacerlo? ¿Cómo podremos actuar de forma más altiva
ante estos retos que se nos presentan? Todo se parece a la anécdota de la espada de Damo-
cles (Wikipedia, 201?), con la diferencia de que somos simples personajes en esta narrativa
pandémica.
Por ello, me pongo a pensar que debemos valorar la vida todos los minutos. Y saber
que amigos que se pongan en contacto contigo durante ese período son en verdad aquellos
que tal vez sigan en contacto contigo por toda la vida. La ‘soledad’ se distinguirá, al fin y al
cabo, de la ‘solitud’, para todos, invariablemente. Pero una solitud que, antes de que sea taci-
turna, en verdad nos enseñará un camino muy más objetivo que a veces simplemente no lo
mirábamos por pura terquedad.
En ello, aprenderemos a enfrentar nuestra trayectoria aprovechando mucho más nues-
tra familia y la sonrisa sincera de los niños, que nos enseñan todos los días que el amor es una
construcción. Estar junto no significa mirar solamente hacia el futuro, pero sobre todo mirar
el presente, que es precisamente el locus de esa construcción.
Imagen 2 – Mi hija Ana Raquel y yo

La sonrisa de un niño nos hace lleno de esperanza de que la humanidad pueda ser más
solidaria, que podramos mirarnos en los ojos y intentar conectarnos con el otro de forma
plena.
Como he mencionado antes, no considero que la segunda ola del COVID-19 sea más
peligrosa, pero, sin duda, será más brutal para nuestras mentes y nuestras almas. Tal vez sea
un teste de perseverancia, para que nos arriesgamos de una forma diferente, que salgamos de
nuestro “lugar común”, para vivir intensamente nuestros proyectos, con una nueva filosofía
de vida. Ante la realidad que se hizo evidente para todos, de que la vida puede terminar re-
pentinamente, ha surgido la reflexión de que debemos evaluar lo que vale y lo que no vale la
pena en nuestras vidas, sea sobre relacionamientos personales o profesionales. El escenario
87
de vida y muerte nos enseñó que vivir plenamente exige actitudes activas frente a todo.
Es necesaria una verdadera solitud pandémica para hacernos despertar para el proceso
de vida en construcción, de que nada es obvio, cierto o acabado: todo puede cambiar maña-
na. Hay solamente nuestro compromiso con nuestra felicidad y la de nuestros seres queridos.
Como lo resume Tillich (1963),
el aislamiento del hombre no se quita, sino que se lleva a la comunidad
[..], y así a la comunidad con todos ellos. Incluso el amor renace en la
solitud. Porque solamente en la solitud los que están solos son capaces
de alcanzar a aquellos de que están separados. Sólo la presencia de lo
eterno puede romper las paredes que aíslan lo temporal de lo tempo-
ral. Una hora de soledad puede acercarnos más a los que amamos que
muchas horas de comunicación. Podemos llevarlos con nosotros a las
colinas de la eternidad. (Tillich, 1963, p.8).4

Por ello, es necesario que comprendamos que la vida acontece hoy. No hay planea-
mientos y nosotros no podemos dejar de vivir intensamente, despeinarnos, salir de la zona de

4
En el original: “man’s aloneness is not removed, but taken into the community […], and so into community
with all of them. Even love is reborn in solitude. For only in solitude are those who are alone able to reach
those from whom they are separated. Only the presence of the eternal can break through the walls that iso-
late the temporal from the temporal. One hour of solitude may bring us closer to those we love than many
hours of communication. We can take them with us to the hills of eternity.” (TILLICH, 1963, p.8).
confort. Esto no necesariamente depende de hechos físicos, pero de un estado de solitud
pandémica que nos traiga un verdadero sentido para nuestra propia felicidad, y también para
que seamos capaces de actuar con positividad en el mundo.
Con este propósito, comparar narrativas del primero momento de la pandemia, en el
año 2020, con los relatos que serán hechos en el año 2021 puede ser un ejercicio de reflexión
que apuntará matices de la complejidad del sentimiento de ‘solitud pandémica’, como pro-
puesto en este texto.

REFERENCIAS

DAVIES, Mark; LOHM, Davina. Pandemics, Publics, and Narrative. Oxford: Oxford
University Press, 2020.

HARRIS, Michael. Solitud: hacia una vida con sentido en un mundo frenético. Barcelona:
Paidós, 2018.

ONLINE ETIMOLOGY DICTIONARY. Solitude. 2001-2021. Disponible en: <https://


www.etymonline.com/word/solitude>. Acceso en: 31 ene. 2021.

ORTEGA, Andrés. Solitud, sin soledad. El País. 10 mayo. 2019. Disponible en: <https://
elpais.com/elpais/2019/05/09/ideas/1557412376_925123.html>. Acceso en: 31 ene. 2021.
88
PEIXOTO, Rafaela Araújo Jordão Rigaud. Ressignificações em meio à pandemia: o fazer
científico de uma mãe pesquisadora. In: SOARES, Ana Carolina Eiras Coelho; CIDADE,
Camilla de Almeida Santos; CARDOSO, Vanessa Clemente (Orgs.). Maternidades plurais:
os diferentes relatos, aventuras e oceanos das mães cientistas na pandemia. Belfort Roxo, RJ:
Bindi Acadêmico, 2020.

SOARES, Ana Carolina Eiras Coelho; CIDADE, Camilla de Almeida Santos; CARDOSO,
Vanessa Clemente (Orgs.). Maternidades plurais: os diferentes relatos, aventuras e oceanos
das mães cientistas na pandemia. Belfort Roxo, RJ: Bindi Acadêmico, 2020.

TILLICH, Paul. The Eternal Now. New York: Charles Scribner’s Sons, 1963.

WIKIPEDIA. Damocles. 201? Disponible en: <https://es.wikipedia.org/wiki/Damo-


cles>. Acceso en: 31 ene. 2021.
A representação da infância no livro Contos de
Aprendiz
Renata Pereira da Silva¹
Samuel Alves de Lima²

RESUMO: O objetivo desse trabalho é analisar a representatividade do infantil em dois


contos do livro ‘Contos de Aprendiz’ do autor Carlos Drummond de Andrade. A obra é
formada por quinze narrativas que tratam do cotidiano, da imaginação e das recordações,
através de uma linguagem simples e despojada, mas que, ao mesmo tempo, sustenta veemen-
temente uma poeticidade característica das produções do autor. Essa pesquisa se justifica
pela necessidade de se estudar e buscar aspectos do (e para o) universo infantil, normalmente
encontrados nos contos de fadas, em contos escritos em língua portuguesa; na intenção de
incentivar (ou não) o uso desse gênero em sala de aula, principalmente da educação básica.
Essas pequenas histórias (que penhoram por muitos anos e que suas modificações vêm sen-
do necessárias de acordo com as atuais necessidades infantis e educacionais) contribuem para
que as crianças ampliem os seus conhecimentos e estimulem a criatividade e a imaginação.
Ademais, o uso dos contos em sala de aula pode colaborar ainda mais com o interesse dos
alunos na prática da leitura literária. Nesse sentido, iremos verificar a presença das temáticas
relacionadas ao tema infância pela luz das teorias da personalidade (HANSENNE, 2003), da
sexualidade (FREUD, 1996, 2006) e do psicologismo (VIGOSKI, 1933, 2004). Com base nas 89
nossas análises conseguimos identificar questões como infância, religiosidade e família, que,
normalmente, são temáticas que podemos encontrar nos contos de fadas.

Palavras-chave: Infância; Contos de Aprendiz; Contos; Teorias.

1 INTRODUÇÃO

O escritor Carlos Drummond de Andrade publicou o livro Contos de Aprendiz quando


já se aproximava dos cinquenta anos de idade. Quando reuniu os contos que compõe essa
obra, Drummond já tinha publicado alguns de seus livros importantes, entre eles Alguma
poesia, de 1930, e Sentimento do mundo, 1940.
A obra Contos de Aprendiz é formada por quinze textos do gênero conto que disser-
tam sobre aspectos do cotidiano, da imaginação do ser humano e das recordações. Essas
pequenas narrativas são produzidas através de uma linguagem simples e despojada, mas que,
ao mesmo tempo, sustenta profundamente uma poeticidade característica das produções de
Carlos Drummond de Andrade.

¹ Aluna do curso de Letras – Língua Portuguesa da Universidade Estadual de Alagoas. E-mail: rp9304036@
gmail.com.
² Aluno do curso de Letras – Língua Portuguesa da Universidade Estadual de Alagoas. E-mail: samuel1al-
ves@yahoo.com.br
Nesse sentido, o objetivo principal desse artigo é analisar as temáticas relacionadas ao
tema infância no livro Contos de Aprendiz, de Drummond. A análise dessas temáticas poderá
contribuir para que crianças (jovens leitores) aprendam e conheçam as histórias do autor,
vivenciando assim, sentimentos e emoções que são passados através dos personagens no de-
correr dos contos do livro. Ademais, através dessas histórias, as crianças podem ampliar seus
conhecimentos pois seus enredos retratam formas diferentes de pensar, agir e ser.
Essa análise será feita com dois contos delicados e de aparência despretensiosa apre-
sentados no livro, a Salvação da alma e o Sorvete. Pretende-se, com isso, colaborar com quem
trabalha com o gênero prosa, servindo, portanto, de estímulos para amantes da literatura.
Assim sendo, este artigo é dividido em quatro partes. A primeira é a introdutória, que
demonstra de forma clara os objetivos dessa pesquisa. A segunda é o referencial teórico, que
é composto por seções que explicitam sobre a vida e as obras de Carlos Drummond de An-
drade e as teorias que contribuem para a pesquisa em questão. Após, parte-se para a análise
dos contos escolhidos de Drummond sob à luz das teorias da personalidade, da sexualidade
e do psicologismo. E, finalmente, as considerações finais.

2 CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE E SUAS PRODUÇÕES

Por meio de vários textos de Carlos Drummond de Andrade em verso e em prosa,


percebemos a temática de sua terra natal representada de forma descritiva, dos solos itabira-
no e as montanhas de Minas Gerais. Carlos Drummond nasceu em Itabira do Mato Dentro,
90 Minas Gerais, em 31 de outubro de 1902 e é considerado um dos maiores representantes da
literatura brasileira do século XX. Passou a maior parte trabalhando como funcionário públi-
co e faleceu em 1987 no Rio de Janeiro. No que diz respeito às suas obras, ele escreveu livros
infantis, contos e crônicas.
Emanuel de Moraes, ao comentar a poética de Carlos Drummond de Andrade, ressal-
ta nela a presença de Itabira:
Ao lado do drama pessoal, familiar, a poesia de Carlos Drummond
de Andrade projeta o drama social do seu estado, da sua Itabira. Sua
revolta se divide o que julga a incapacidade do homem e o que aponta
como devastação das harpias de uma civilização industrial malconduzi-
da. (MORAES,1972, p. 17).

Cruz (2000, p. 47) também chama à atenção para as marcas do meio físico nas obras
do escritor. O comportamento comunitário modelou a vida do menino, e o homem maduro
guardou nas retinas as sensações do mapeamento poético dessa infância longínqua que se
desenvolveu de forma assustadora:
[...] ali, mundo não se assemelha nem à natureza nem à cultura, mas a
uma terceira coisa entre os dois, uma espécie de grande alucinação uma
monstruosidade geológica, uma dissonância planetária com sua quanti-
dade astronômica de minério, um volume capaz de ‘alimentar quinhen-
tos mundos durante quinhentos anos’ [...]. (CANÇADO, 1993, p. 31).
Quanto as obras em prosa, Drummond ensaiou sua carreira como contista com o li-
vro Contos de Aprendiz (publicado em 1951); o título do livro já é veementemente esclarecedor
no que diz respeito às intenções e da consciência como autor. É possível ler nos contos do
autor uma confluência, fato natural para um escritor sintonizado com a sua época, com Bor-
ges, Cortázar, Mansfield, Tchékov (SILVA, 2008) e outros tantos contistas modernos.
Conforme o próprio Drummond (ANDRADE, 2002), em face dos sequestros, terre-
motos, das tragédias encontradas diariamente nos jornais, ele criou pequenas histórias para
mostrar que o mundo não é só horror, para divertir o público, dar impressão de variedade ou
despertar um sorriso de satisfação em alguém. Vale lembrar também que as suas histórias não
têm somente base com o real; ele se utiliza também de recursos surreais.
Pela leitura dos contos, nota-se que Drummond tem consciência de sua responsabi-
lidade social como artista porque é notável o seu senso de humor, sua diversão e uma fina
ironia que também expressa o seu modo de ver o mundo.
Vemos na prosa de Drummond que ele abre a visão de que toda prosa é conduzida
de modo que venha despertar no eleitor a dúvida se é verdade ou ficção e cabe ao leitor ti-
rar suas próprias conclusões. Segundo Júlio Cortázar: os “contos aglutinam uma realidade
infinitamente mais vasta que a do mero episódio que contam” (CORTÁZAR, 1999, p. 355),
portanto é na prosa que o estilo de Drummond demonstrará a melhor expressão em toda a
sua carreira literária e jornalística.

3 TEORIAS DA PERSONALIDADE, SEXUALIDADE E DO PSICOLOGISMO

Com o objetivo de analisar a temática da infância nos contos a Salvação da alma e o


Sorvete, presentes na obra de Carlos Drummond de Andrade, esse tópico procura discutir e 91
apresentar as teorias da personalidade, teoria da sexualidade e teoria do psicologismo.

3.1 Teoria da Personalidade

Para falarmos dessa teoria é preciso relatar a importância, muito superficialmente, das
noções de temperamento, de caráter e de traços da personalidade.
Define-se temperamento como traços inatos da personalidade. Nessa perspectiva,
a origem é iminentemente genética, sublinhando-se também o fato de os temperamentos
serem modificados pela mediação independentemente da base hereditária que apresentam.
(HANSENNE, 2003).
O entendimento da noção de caráter nada tem a ver com a ideia do senso comum,
pois essa palavra é empregada no sentido de realizar algum tipo de apreciação, como, por
exemplo: “este sujeito possui um caráter forte”; constituindo sempre um juízo moral.
É importante determinar os traços de personalidade representam uma característica
durável e à disposição do indivíduo para se comportar de uma determinada forma em diver-
sas ocasiões.
A perspectiva psicanalítica é única e o seu principal apoiador é Sigmund Freud. Assim,
pela crítica Freudiana, a personalidade é um conjunto dinâmico constituído por componen-
tes em conflito, dominados por forças inconscientes. Ademais, a sexualidade tem existência e
significação nessa teoria. (FREUD, 1965).
3.2 Teoria do Sexualismo

A sexualidade é uma dimensão humana essencial, devendo assim ser entendida na to-
talidade dos seus sentidos como tema e área do conhecimento. E para falar desse tema que
é essencial para a ação moral autêntica da criança e dos adolescentes, tomamos como base
Sigmund Freud.
Freud (2006) desenvolveu a teoria da sexualidade infantil. Foi durante tratamentos
clínicos em seu consultório que ele aproveitou para observar os transtornos psicológicos
apresentados por seus pacientes já adultos. Ele buscava tratar os distúrbios de histeria. En-
tretanto, é notório observar que a criança não foi o foco de suas pesquisas, tampouco ela era
o desejo de estudo de Freud (1996). Ele buscava incansavelmente solucionar os problemas
emocionais apresentados por seus pacientes já adultos.

3.3 Teoria do Psicologismo

Vigotski (1933) caracterizava a psicologia por duas posturas essencialmente dualistas


que devemos levar em consideração ao estudo do funcionamento psíquico humano.
De acordo com o autor, a psicologia de sua época havia esquecido o homem, na me-
dida em que se ocupava de análises fragmentadas das partes componentes da consciência.
Vigotski (1933) diz que o sujeito se encontra necessariamente implicado no mundo em que
vive, mas o faz em sua inteireza. “Quando uma pessoa dança, será que de um lado se encon-
92 tra a soma dos movimentos musculares e do outro a alegria e o entusiasmo? Um e outros
estão estruturalmente próximos”. (VIGOTSKI, 2004, p. 356). Portanto, a tendência à dico-
tomização e a análise fragmentada são entraves para a compreensão da consciência.

4 ANÁLISE DOS CONTOS A SALVAÇÃO DA ALMA E O SORVETE

Assumir uma postura do ponto de vista da prosa drummondiana implica em um cará-


ter mais limitado, pois, não se pode negar que ele tem fortes características do modernismo
brasileiro. Assim, propomos um novo ponto de vista das obras de Drummond, ao analisar-
mos os contos A Salvação da alma e o Sorvete presentes em seu livro Contos de Aprendiz.

4.1 Conto A Salvação da alma

Inicialmente, no trecho
[...] O orgulho dos Novais repontava nessa recriminação, porque um
Novais não podia apanhar, e se não fosse ele, Tito, eu Augusto Novais
Jr.; apanharia em público para gozo dos Teixeira dos Andrada, dos Gui-
marães, de outros clãs rivais [...]. (DRUMMOND, 2002, p. 18).

podemos ver que existe duas fortes temáticas relacionadas à infância desenvolvidas neste
primeiro conto drummondiano analisado, que é a família e o orgulho do clã, que nesse caso
aparecem como valores aos laços simbólicos. Visto por esse ângulo, podemos dizer que, à luz
da teoria da personalidade, trata-se de temperamentos, principalmente, advindos das crianças.
Levando também em conta a teoria do psicologismo, há um emplacamento do mundo
em que vive e nessa abordagem, dá-se uma ênfase na questão do sexualismo, pois devemos
levar em consideração que, ao falarmos sobre crianças, devemos dar uma atenção em espe-
cial à ação moral autêntica das mesmas. Sendo assim, podemos entender que a infância é um
momento de transição para a vida adulta e levar em consideração o processo de retração,
dependendo do segmento social e considerado no momento histórico.
Nos trechos seguintes, veremos o episódio que deu origem à narrativa. O conto tem
início quando Augusto tem nove anos de idade - trinta anos antes da enunciação. O compor-
tamento infantil é a temática que aparece nos trechos a seguir:
[...], mas a confissão infiltra em nós seu óleo espesso e triste e um dese-
jo de nos pacificarmos, de atingirmos, a bondade e a compreensão, nos
tornava indiferentes à matéria cotidiana. (DRUMMOND, 2002, p. 21).

Nesse trecho percebermos que além da temática infância, a religiosidade está muito
presente, pois, partindo-se desse ponto, notamos que a criança reflete condições e modelos
sociais, morais e religiosos.
A igreja católica assume neste período um papel de extrema importância porque se
levarmos em consideração a religiosidade aqui abordada, vemos que ela é exatamente impor-
tante para a narrativa já que ela trabalha com todas as produções científicas e culturais.
Nós éramos cinco e brigávamos muito... Isto não quer dizer que nós
detestássemos. Pelo contrário [...]. (DRUMMOND, 2002, p. 15)
93
Nesse trecho percebermos os traços das teorias do psicologismo, da personalidade e
da sexualidade uma vez que o narrador deixa claro, nessa narrativa, a figura do irmão mais
velho como o protetor. Ademais, esse irmão mais velho exercia autoridade. Então, temos em
vista que há um sentimento de proteção e também um totalitarismo por parte do irmão mais
velho e isso era comum, até algum tempo atrás, nas famílias, nas quais o filho mais velho era o
responsável pelos irmãos mais novos e o braço direito do pai. Nota-se também que no texto
há uma abordagem de hierarquia de poder entre os irmãos.
Escuta uma coisa... Já disse a você que quero mudar de vida... viver bem
com os irmãos, ser um sujeito descente. (DRUMMOND, 2002, p. 22).

Podemos observar no trecho acima uma tentativa de convencimento de uma deter-


minada mudança, por isso, notamos uma permissão de ofensa e contraditoriedade entre os
irmãos. Esse comportamento infantil nos faz lembrar as reminiscências das crianças, normal-
mente, moradoras em regiões interioranas.
O conto em análise se apresenta como uma narrativa com um teor muito forte e tam-
bém está ligado à temática da religiosidade. Essa temática é marcante nesse no decorrer da
história já que foi com a chegada das missões naquele lugar, que por sinal era uma cidadezi-
nha do interior, que as pessoas tiveram uma forte ligação com a religião e tentaram educar as
crianças, procurando levá-los à igreja. Assim, nessa narrativa, percebe-se uma forte ligação a
igreja católica.
Bem, se você quer mesmo isso... Eu não pedi nada, você sabe...Então
vamos fazer uma coisa. Eu subo nas suas costas e você me leva até em
casa, como um animal, tá certo? (DRUMMOND, 2002, p. 23).

Então podemos perceber nesse pequeno trecho que a narrativa nos mostra mais uma
vez que a religiosidade está presente, pois, à princípio, percebe-se que o irmão mais novo
também queria se corrigir. Entretanto, para que houvesse a purificação da alma de seu irmão,
o irmão mais novo pediu que o mais velho o levasse nas costas até à casa. Notamos também,
nesse ponto, que existe um deleite pessoal por parte do menino, porque ele queria que, à me-
dida que o irmão fosse dando os passos carregando ele nas costas, ele ainda pudesse repetir
a frase “Sou burro e quero capim”. (DRUMMOND, 2002, p. 23).

4.2 Conto O sorvete

Entendemos que o entusiasmante conto O sorvete mais parece um conto de fadas. O


conto inicia quando dois rapazes do campo se desiludem ao experimentar a dentada um sor-
vete de abacaxi, uma delícia que vivia em seus imaginários. A narrativa tem como foco um
requintado templo que ficou conhecido como confeitaria.
Crianças de cinco anos desprezarão sua narrativa [...]. (DRUMMOND,
2002, p. 33).

Segundo o autor, as crianças de cinco anos desprezariam a sua narrativa, já que muito
94 do que podemos ler nela faz parte do contexto e da normalidade infantil. Entretanto, ele
também diz que aquele momento seria encantador para quem estivesse lendo o conto em
questão.
Hoje-delicioso sorvete de ABACAXI especialidade da casa HOJE!.
(DRUMMOND, 2002, p. 31).

Este era um anúncio que estava na frente da confeitaria no dia em que os meninos
foram convidados a tomar o sorvete. Desta vez, temos a cidade grande como cenário.
Os trechos que seguem fazem referência as teorias citadas nesse trabalho visto que
Drummond utiliza delas para dar maior impacto às suas narrativas. Como veremos a seguir.
Refreando as lágrimas, o desapontamento, a dor que um filho de boa
família não pode sentir em público, mastiguei as últimas porções da-
quela matéria atroz. (DRUMMOND, 2002, p. 36).
As crianças estão se envolvendo constantemente em lugares e também locais, sociais e
físicos. E consequentemente vem a habitar e a pertencer a um lugar por meio de suas expe-
riências. Podemos observar que as crianças enfatizam uma experiência temporal que é a de
crescer, de conquistar independência e de vir a demonstrar a sua capacidade de imaginação.
É notório que o conto drummondiano O sorvete trata do comportamento infantil no
qual se pode transpor de um comportamento meramente à interpretação de arrependimento
da proibição imposta pelos meninos à insatisfação do espírito de aventura. E com isso chega-
-se a tônica do conto, levando-nos às lembranças de eventos mínimos, como algo substancial
ao exercício da narrativa, podendo, assim, concatena-los aos episódios memoráveis do conto.
Também temos em vista que o tema família está bem representado nos contos de
Drummond e os valores familiares ajudam a compor um panorama psicológico da elite
agrária mineira do século XX, onde as crianças deveriam aprender e brincar em lugares.
(MULLER, 2014).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho teve como objetivo trabalhar a representatividade da temática ‘infância’


nos contos Carlos Drummond de Andrade. Percorrendo a narrativa, traçamos outras temá-
ticas que também apareceram durante a análise dos contos.
Com base nas nossas análises, debruçando-nos sobre os mesmos, conseguimos iden-
tificar questões como infância, religiosidade e família, que, normalmente, são temáticas que
podemos encontrar nos contos de fadas. Nesse sentido, eles fazem uma relação com os con-
tos drummondianos e por esse motivo poderíamos considerar os contos drummondianos
como produções que podem ser levados para ser trabalhados na sala de aula.
Tratando-se de narrativas que se passam em cidadezinhas do interior (conforme po-
demos inferir com a leitura dos contos) com personagens infantis, lançamos um olhar à luz
das teorias do psicologismo, da personalidade e da sexualidade uma vez que são teorias que
fazem parte desse universo que é o mundo da criança. Assim, não poderíamos deixar de
trabalhar essas teorias já que nos contos pareceram fortemente as temáticas religiosidade,
família e mudanças de lugar.
A proposta de inserir essas teorias se torna indispensável por vários aspectos. Um 95
deles é que as mesmas mereceram um lugar central no desenvolvimento das análises, permi-
tindo dialogar com o próprio pensamento e as temáticas presentes nos contos.
Nessa perspectiva, a narrativa drummondiana ganha um novo sentido quando se apre-
senta como uma crônica que institui com uma reciprocidade entre história passada e o repro-
duzir e o transcrever que outros autores produziram e exprimiram.
A produção desse trabalho constitui de uma análise crítica reflexiva que sem dúvida,
assim como outros, mostrará a necessidade do estudo das obras drummondianas. Temas
como esses pretendem funcionar como sugestão de trabalhos para futuras pesquisas, uma
vez que é importante que se faça pesquisas no âmbito de analisar temáticas do infantil em
obras brasileiras. Para que assim, obras da literatura brasileira possam ser, cada vez mais, aptas
para serem trabalhadas também pelo professor como ferramenta em sala de aula.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, C. D. de. Contos de Aprendiz. Rio de Janeiro: Record, 2002.

CANÇADO, J. M. Os Sapatos de Orfeu: biografia de Carlos Drummond de Andrade. São


Paulo: Página aberta, 1993.

CRUZ, D. G. No meio do Caminho tinha Itabira: ensaio poético sobre as raízes itabiranas
na obra de Drummond. Rio de Janeiro: BVZ - O Mundo do Livro, 2000.
CORTÁZAR, J. Obra Crítica 2. (Tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman). Rio de Janeiro:
Civilização brasileira, 1999.

FREUD, S. (1919-1920) Ao dela du principe du plaisir. In: Essais de psychanalyse. Paris:


Payot, 1965.

FREUD, S. Três ensaios sobre uma teoria da sexualidade. In: FREUD, S. Obras completas.
Buenos Aires: 1996.

FREUD, S. Um caso de histeria, Três ensaios sobre sexualidade e outros trabalhos.


1901-1905. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud
volume VII. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2006.

HANSENNE, M. Psicologia da Personalidade. Lisboa: Climepsi, 2003.

MÜLLER. Infância em perspectiva: políticas, pesquisas e instituições. São Paulo: Cortez


Editora, 2014.

MORAES, E. de. Drummond rima Itabira mundo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972.

SILVA, C. S. Drummond: aprendiz de contista?. Linguagem – Estudos e pesquisas, Cata-


96 lão, v. 12, p. 22-37, 2008. Disponível em: www.revistas.ufg.br › lep › article › download. Acesso
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VIGOTSKI, L.S. La Crisis de los tres anos. In: Vygotsky L.S. Obras Escogidas. IV Apren-
dizaje/visor.1933/1996, p.369- 375.

VIGOTSKI, L. S. Teoria de las emociones Madrid Acal. (originalmente publicado em


1933), 2004.
97
Entrevista

98

Seção dedicada a abrir um espaço para um convidado respon-


der à questões sobre o tema proposto na edição.
Professor Daniel
Mazzaro Vilar de
Almeida
Professor Adjunto da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), atuando na área de Ensino
e Aprendizagem de Língua Espanhola.

99
1. Qual é a sua área de formação?
Sou formado em Letras. Sou licenciado em Espanhol e Português, e bacharel em Português.

2. Em qual instituição se formou?


Formei-me na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

3. O que o atraiu na carreira docente?


Sempre gostei de aprender e queria aprender a ensinar. A relação entre professor-aluno, para
mim, sempre foi muito importante; percebi que quando o professor gosta de aprender e de
ensinar, transmite um encantamento tanto pelo conteúdo como pela forma do ensino para
aqueles que são fundamentais para a realização da aprendizagem: os alunos. Queria sentir o
outro lado desse encantamento que comecei a perceber como aluno e passá-lo adiante.

4. Qual é a sua trajetória pela profissão docente?


Comecei com 15 anos dando aula de informática e inglês para crianças no jardim de infância
da minha tia. No ano anterior de minha entrada na universidade, também dei aula de Por-
tuguês em um curso voluntário na Paróquia que eu frequentava. No ano seguinte de meu
ingresso na universidade, participei de um processo seletivo para ser monitor de espanhol no
Pré-UFMG, um dos maiores cursinhos preparatórios para vestibular de Belo Horizonte, e fui
aprovado. Trabalhei exclusivamente como monitor por um ano e, se não me engano, fiquei
mais dois anos como monitor e ministrei aulas para turmas às vezes com mais de 80 alunos
100 na sala. Quando estava no segundo ano da graduação, também fiz um processo seletivo para
professor de espanhol no Centro de Extensão do curso de Letras da UFMG (como a nos-
sa CELIN) e fui aprovado. Dei aula de língua lá por aproximadamente 4 anos. Quando me
formei, em 2005, dei aula de espanhol em uma escola particular em Belo Horizonte, onde
fiquei até meados de abril de 2006. Em 2008 comecei a dar aula de espanhol em outra escola
particular de Belo Horizonte, e lá fiquei até final de 2010. Em 2012, quando ingressei no dou-
torado, fiz uma seleção para professor temporário na Universidade Federal de Viçosa (UFV)
e dei aulas até começar a grande greve nas universidades federais brasileiras, em maio do
mesmo ano. Prestei um concurso para professor efetivo na Universidade Federal de Alfenas
(UNIFAL) durante a greve, fui aprovado e comecei a trabalhar lá em setembro do mesmo
ano, saindo de lá em 2018, quando vim para a UFU.

5. Qual o seu campo de pesquisa?


Eu tenho pensado muito sobre isso. Acredito que minhas pesquisas se encontrem em uma
linguística aplicada por refletir funcionamento e uso da linguagem, seja a partir de mecanis-
mos gramaticais, seja a partir de mecanismos discursivos, seja a partir de mecanismos meto-
dológicos educacionais.

6. Atualmente você está desenvolvendo alguma pesquisa? Em caso afirmativo,


pode discorrer sobre ela?
Sim, estou com uma pesquisa cadastrada no ILEEL intitulada “Os conhecimentos linguísti-
cos em tempos de letramentos: metodologias e aplicações ao ensino de espanhol como língua
estrangeira (E/LE)”. Essa pesquisa, que tem a previsão de desenvolvimento em 5 anos no
âmbito do ILEEL/UFU (2019-2023), tem como objetivo geral apresentar reflexões e des-
crever metodologias para o ensino-aprendizagem de conhecimentos linguísticos em língua
espanhola a partir dos estudos dos Letramentos. Os objetivos específicos são: a) pesquisar
e discutir os conceitos de conhecimento linguístico, letramento e ensino-aprendizagem de
línguas estrangeiras; b) relacionar esses conceitos a documentos oficiais do ensino brasileiro;
c) vincular os conhecimentos sociodiscursivos envolvidos nos diferentes gêneros de discur-
so aos conhecimentos linguísticos (sistêmicos); d) analisar a abordagem dos conhecimentos
linguísticos em materiais didáticos utilizados no ensino-aprendizagem de língua espanhola
no Brasil em diferentes contextos educacionais; e) propor breves sequências didáticas para
trabalhar os conhecimentos linguísticos de língua espanhola na perspectiva do letramento.

Paralelamente, estou com um projeto de pós-doc que comecei agora em fevereiro sob su-
pervisão do prof. Dr. Fábio Figueiredo Camargo (no PPLET). Essa pesquisa objetiva atra-
vessar a linguística queer com a perspectiva da Psicanálise, especialmente lacaniana, sobre o
desejo partindo da análise de dois romances (Ansiedad, de Daniel Link, e Amores, truques
e outras versões, de Alex Andrade) em que mídias digitais (especificamente salas de bate
papo, aplicativos e redes sociais) são usadas por personagens gays. A finalidade desse estudo
é descrever as performatividades gays de personagens de narrativas literárias que incluem as
mídias digitais, de modo a se fazer reflexões sobre as interseções entre linguagem, desejo e
modernidades tecnológicas.
101
7. Docência e pesquisa são instâncias indissociáveis?
Para mim, com certeza! Para começo de conversa, professor de área de Humanas, especifi-
camente Letras (entendo por Letras tudo relacionado ao estudo do Letramento: Linguística,
Literatura, Ensino de Línguas etc.), no Brasil, que quer se dedicar exclusivamente à pesquisa
tem algum problema com a compreensão do Real (rsrsrs). Outra questão é o mercado de
trabalho, que não dá conta de “absorver” muitos bacharéis de Letras. E outra questão, que é
necessário ampliar o debate, é que dou aula em um curso de Licenciatura, ou seja, que forma
professores de espanhol. Não vincular as pesquisas que realizo à modalidade do curso e aos
objetivos que essa modalidade tem, mantenho um pensamento de que a pesquisa é superior
à docência. Além do mais, é importante não apenas que as pesquisas nos cursos de licencia-
tura levem em conta a docência, mas também que as disciplinas de formação dos professores
levem em conta as pesquisas direcionadas para esse fim. Inclusive acredito que devam ser
abordadas na primeira metade do curso, ou seja, antes de Metodologia de Ensino e os Está-
gios Supervisionados, simultaneamente ao processo de aprendizado da língua e das teorias
linguísticas e literárias. Metodologias de pesquisa, como a Pesquisa-ação, atreladas ao campo
de estudo dos discentes, contribuem para a pesquisa e a prática dos sujeitos enquanto alunos
de um curso que os está formando para serem professores. O grande problema que vejo em
alguns casos é o abismo entre a pesquisa que se realiza na graduação e o objetivo do curso. Há
pesquisas que, sinceramente, deveriam ser trabalhadas apenas em especializações, mestrados
e doutorados, instâncias que, no caso de Letras, são historicamente privilegiadas para realizar
pesquisas pelas pesquisas. Mas, mesmo assim, retomo meu argumento inicial: onde a pessoa
com doutorado em Linguística ou Literatura vai atuar além da sala de aula, seja de escolas e
colégios, seja de faculdades e universidades? Essa pessoa pesquisou apenas aquele tema ou
também pesquisou sua ocupação como professor?

8. De quais formas o isolamento social gerado pela pandemia, afetou sua ativi-
dade como docente e pesquisador? E como vem sendo feita a manutenção de suas
atividades?
Bom, consegui, de certa forma, me concentrar e dar continuidade a algumas pesquisas, por-
que me dediquei à leitura e escrita da literatura. Inclusive fiz o projeto do pós-doc e dei início
à pesquisa enclausurado. Reuniões para discussão, por exemplo, tudo feito a distância, graças
às plataformas digitais! E é por lá também que as aulas têm acontecido. Enquanto minhas
pesquisas costumam ser mais solitárias mesmo, a docência foi um pouco difícil no princípio.
O feedback dos alunos é muito importante para mim, e o tenho normalmente pelo rosto. Au-
las no Google Meet ou no Microsoft Teams com quase todo mundo com câmeras desligadas
é tão desagradável para mim... Parece que estou gravando um vídeo para aula assíncrona ou
que estou pensando em voz alta; ou seja, tenho a sensação de estar sozinho. A angústia au-
menta, mas entendo que os alunos também estão em situações angustiantes quanto à forma-
tura ou ao próprio processo de aprendizagem, então acabo não me sentindo tão só: estamos
juntos nesse barco. Por outro lado, a saúde vai pro “beleléu”: horas sentado, horas na frente
do computador, horas no mesmo lugar com a mesma vista... E lá vamos nós!

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Chispas Literarias

¡Muchas gracias
por leernos!

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Universidade Federal de Uberlândia

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