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Valter Sinder:

Configurâmes da narrativa:
Verdade, literatura e etnografía
TCCL - TEORÍA Y CRÍTICA DE LA CULTURA Y LITERATURA
INVESTIGACIONES DE LOS SIGNOS CULTURALES
(SEMIÓTICA-EPISTEMOLOGÍA-INTERPRETACIÓN)
TKKL - THEORIE UND KRITIK DER KULTUR UND LITERATUR
UNTERSUCHUNGEN ZU DEN KULTURELLEN ZEICHEN
(SEMIOTIK-EPISTEMOLOGIE-INTERPRETATION)
TCCL - THEORY AND CRITICISM OF CULTURE AND LITERATURE
INVESTIGATIONS ON CULTURAL SIGNS
(SEMIOTICS-EPISTEMOLOGY-INTERPRETATION)

Vol.21

EDITORES / HERAUSGEBER / EDITORS:

Alfonso de Toro
Ibero-Amerikanisches Forschungsseminar
Universität Leipzig
detoro@rz.uni-leipzi g.de

Luis Costa Lima


Rio de Janeiro, RJ
costalim@visualnet.com.br

Dieter Ingenschay
Institut für Romanistik
Humboldt-Universität zu Berlin
dieter.ingenschay@rz.hu-berlin.de

Michael Rössner
Institut für Romanische Philologie der
Ludwig-Maximilians-Universität München
Michael.Roessner@romanistik.uni-muenchen.de

CONSEJO ASESOR / BEIRAT / PUBLISHING BOARD:


J. Alazraki (Barcelona); G. Bellini (Milán); A. J. Bergero (Los Angeles); A.
Echavarria (San Juan de Puerto Rico); Ruth Fine (Jerusalén); W. D. Mignolo
(Durham); K. Meyer-Minnemann (Hamburgo); E. D. Pittarello (Venecia); R. M.
Ravera (Rosario); S. Regazzoni (Venecia); N. Rosa (Rosario); J. Ruffinelli
(Stanford).

REDACCIÓN:
René Ceballos, M. A.
Valter Sinder

Configuraçoes da narrativa:

Verdade, literatura e etnografia

Vervuert • Iberoamericana • 2002


Die Deutsche Bibliothek - CIP-Einheitsaufnahme

Sinder, Valter:
C o n f i g u r a r e s da narrativa: verdade, literatura e etnografia / Valter Sinder.
- Madrid : Iberoamericana ; Frankfurt am Main : Vervuert, 2002
(Teoria y critica de la cultura y literatura ; Vol. 21)
ISBN 3-89354-221-3 (Vervuert)
ISBN 84-8489-003-1 (Iberoamericana)

© Iberoamericana, Madrid 2002


© Vervuert Verlag, Frankfurt am Main 2002
Diseño: Michael Ackermann
Ilustración: Detalhe da reprodufäo Nieuve Caerte van het wanderbaer ende
gondrijcke landt Guiana, 1598, de Jodocus Hondius; tal como editada
no Catalogo 500 anos de Brasil na Biblioteca Nacional, p.91.
Paulo Roberto Ribeiro (org.). Rio de Janeiro: Funda?ào Biblioteca Nacional /
Ministério da Cultura - Brasil, 2000.
Reservados todos los derechos
Este libro está impreso íntegramente en papel ecológico blanqueado sin cloro
Impreso en Alemania
À memòria de Luis Rodolfo da Paixäo Vilhena

Para Slioma Sinder e Marcia Segai Sinder,


Vania Belli, Thiago Belli Sinder e Bruno Belli Sinder,
consignando, assim, esta outra forma de dedicagào
AGRADECIMENTOS

Configuragòes da Narrativa: Verdade, Literatura e Etnografia nasceu de urna tese de


doutorado escrita entre 1991 e 1992 e defendida no Programa de Pós-Graduagào em
Literaturas de Lingua Portuguèsa do Departamento de Letras da Pontificia Universida-
de Católica do Rio de Janeiro em outubro de 1992. Elaborada sob a orientalo do Pro-
fessor Dr. Affonso Romano de Sant'Anna, sua defesa contou, na banca examinadora,
com a presenta dos Professores Drs. Roberto da Matta, Patricia Birman, Karl-Eric
Sch0llhammer, Heidrum Krieger e Everardo Rocha.
Em 1996 procurei redimensionar e reescrever em parte a tese visando sua publi-
c a d o . Dificuldades editoriais adiaram, contudo, esta publicafào, até que o interesse
da Editora Iberoamericana/Vervuert em publicar esse traballio em sua colegào Teoria
y Crítica de la Cultura y Literatura, a tornassem possivel. Gostaria de manifestar meu
sincero agradecimento ao Professor Dr. Alfonso de Toro por ter acolhido esse livro
na colegào que dirige. Voltado já há algum tempo para outro objeto de pesquisa, nào
me pareceu aconselhável empreender urna nova revisào. Gostaria, portanto, de
submeter ao leitor um traballio cujas referèncias explícitas nào atingem o ano de sua
publicagào, mas cujo interesse, espero, continua absolutamente atual.
O CNPq, a CAPES e a Fulbright forneceram, em diferentes momentos, as bolsas
de estudo que tornaram materialmente possivel a efetivagào do trabalho. Agradego ao
Departamento de Letras da PUC-Rio e aos colegas do Kellogg Institute da University
of Notre Dame onde desenvolví parte deste trabalho. Agradego aos colegas do Depar-
tamento de Ciencias Sociais da UERJ e do Departamento de Sociologia e Política da
PUC-Rio, por terem sempre me apoiado inclusive me liberando, quando necessàrio,
para que esse trabalho fosse possivel.
Sou grato a amigos, colegas e alunos que me auxiliaram de diferentes maneiras
na redagào do trabalho e na publicado do livro. Roberto da Matta, acolheu-me gene-
rosamente no Kellog Institute - University of Notre Dame, introduziu-me nos
meandros da vida académica norte-americana e tem sido já há algum tempo, além de
um amigo, fonte de permanente inspiragào intelectual. Agradego ainda a Vania Belli,
primeira leitora destas páginas, que sempre clareou meus pensamentos com suas
questòes, por ter aqui inscrito seu rastro múltiplo.

Valter Sinder Rio de Janeiro, dezembro de 1999


SUMARIO

1. PORTO DE ORIGEM 13

2. RELATOS DE VIAGEM 19

2.1 Colombo e seu diàrio: outras térras, outros seres 20

2.2 Cervantes e seu Quixote: outros seres, novos espatos 30

2.3 Os navios da razào 38

3. DAS IDÉIAS E SUAS VICISSITUDES 45

3.1 Historia, narrativa e verdade 46

3.2 Da verdade ética à verdade dos fatos 53

4. À PROCURA DOS FATOS 59

4.1 Observadores e observares 63

4.1.1 Os naturalistas viajantes: a ciéncia como guia 68

4.1.2 Os prudentes argonautas: o impasse metodológico 71

5. CAMINHOS CRUZADOS 95

5.1 Observando, analisando, interpretando 99

5.2 Da escrita e do poder 107

BIBLIOGRAFIA 115
Entre os que se fazem ao mar há navegadores que descobrem novos mundos, somando
continentes à terra e estrelas aos céus: eles sào os mestres, os grandes, os eternamente
brilhantes. Depois há os que cospem terror por suas portinholas, que saqueiam, enrique-
cem e engordam. Outros saem à procura de ouro e seda sob céus estrangeiros. Outros,
ainda, pescam salmào para o gourmet ou bacalhau para o pobre. Eu sou o obscuro e pa-
ciente pescador de pérolas, que mergulha ñas águas mais profundas e volta com as màos
vazias e o rosto azulado. Alguma atragào fatal me arrasta para os abismos do pensamen-
to, para aqueles recantos mais íntimos que nunca cessam de fascinar o forte. Hei de
passar a vida apenas contemplando o oceano da arte, onde outros viajam ou combatem;
e, de vez em quando, hei de me entreter mergulhando em busca daquelas conchas verdes
e amarelas que ninguém há de querer. Assim, guardá-las-ei para mim e com elas reco-
brirei as paredes de minha tapera.

Gustave Flaubert
Il
1. PORTO DE ORIGEM

Em outras palavras, é mais importante ter idéias do que conhecer verdades; é por isso
que as grandes obras filosóficas, mesmo quando näo confirmadas, permanecem
significativas e clássicas. Ora, ter idéias significa também dispor de urna tópica, tomar
consciéncia do que existe, explicitá-lo, conceituá-lo, arrancá-lo à mesmice, à
Fraglosigkeit, Selbständigkeit. É deixar de ser inocente, e perceber que o que é poderia
näo ser. O real está envolto numa zona indefinida de com-possíveis näo-realizados; a
verdade nào é o mais elevado dos valores do conhecimento.
Paul Veyne

Em A Descoberta da Lentidäo (1989), romance-biografìa de John Franklin (1785-


1847), navegador e pesquisador inglés que realizou diversas expedigöes ao Polo Norte
à procura da lendária Passagem Noroeste, S. Nadolny nos apresenta a historia de vida
de um hörnern que, desde crianza, era considerado lento no falar, no pensar e no rea-
gir; organizando e medindo o tempo de acordo com seus próprios padröes. Acompa-
nhando o relato de sua historia, de suas viagens, deparamo-nos com um personagem
que, frente a acontecimentos que dependiam de reagöes ágeis e ¡mediatas, captava pe-
culiaridades e detalhes que só ele percebia. Para o capitäo, como pode-se acompanhar
neste e em outros diálogos durante a narrativa, a ordem nào era urna coisa estabele-
cida:

- E agora, sobre o que ficou para trás, Sr. Franklim - disse o capitäo Dance - , dé-me
urna noticia resumida!

- Mais depressa Sr. Franklim! O que há mais para refletir? O senhor estava lá! - John
também estava preparado para isso.
- Quando eu descrevo, Sir, uso o meu pròprio ritmo. (Nadol ny 1989: 86)

Que relagöes estabelecer entre a experiència e a realidade, entre a descrigäo, constru-


y o , análise, interpretado, enfim, entre o ritmo do narrador, da narrativa, daquilo que
é narrado, e, finalmente, do leitor da narrativa? A inevitabilidade do nosso envolvi-
mento na historia aponta para o fato de que o que quer que possamos ter da verdade
näo será obtido apesar de nossa situagäo histórica mas devido a eia. 1 Estratégias de

1 Como assinala Merleau-Ponty,

considered superficially, history destroys all truth, though considered


radically it founds a new idea of truth. As long as I hold the ideal of an
absolute spectator before me, of knowledge without a point of view, I can see
my situation only as a principle of error. But having once recognized that
through this situation I have become part of all action and all knowledge that
can be meaningful for me, and that it contains, in gradually widening
horizons, all that can be for me, then my contact with the social in the
finitude of my situations reveals itself as the origin of all truth, including that
of science; and since we have an idea of truth, since we are in the truth and
il VALTER SINDER

afirmagao da verdade que apontam posigoes diversas tém sido estabelecidas das mais
variadas formas, e as narrativas tém trilhado diferentes veredas.
Neste livro, pretende-se configurar urna dentre as rotas estabelecidas pelas narra-
tivas, tendo como porto de origem a mudanza de regime discursivo operada na época
das grandes navegagoes. A verdade, toda verdade, nada mais do que a verdade. A
idéia de que urna verdade eterna, universal, onipresente, deve ser descoberta por qual-
quer um de nós, parece ser urna idéia dominante em nossa civilizagáo. Entretanto, co-
mo reiteradamente apontou M. Foucault (1979, 1979a, 1992), essa idéia nem sempre
esteve presente, ela surge em um momento histórico determinado, quando se abandona
as técnicas de produgáo da verdade, 2 e volta-se para a constatagao da verdade.
Viajantes, exploradores, missionários, naturalistas e etnógrafos tém realizado,
desde a época das grandes navegagoes, longos percursos em aventuras variadas, pro-
duzindo e trazendo na volta relatos de lugares mais ou menos estranhos, formas de
plantas e de animais até entao desconhecidas, experiéncias com povos exóticos. Filóso-
fos e educadores, historiadores e naturalistas, poetas e artistas, assim como contadores
de historias, tém produzido relatos de povos que ora parecem mais selvagens, ora mais
idílicos, ora mais complexos do que eles próprios. Examinaremos algumas confi-
guragóes dessas narrativas, sua escrita, seus diálogos.
Para tal, parte-se dos Diarios da descoberta da América, de Cristovao Colombo
(1986). Momento de demarcagao e estabelecimento de fronteiras temporais-espaciais:
fronteiras geográficas, políticas, económicas, culturáis, físicas e espirituais. Momento
em que se configura o mundo como um espago infinitamente grande, mas passível de
conhecimento, em contraposigáo ao espago limitado do mundo medieval, comandado
por um imenso poder ininteligível.
Como contraponto, outra viagem. As aventuras do ingenioso hidalgo Dom Quixo-
te de la Mancha. Momento em que o universo a ser conhecido se desdobra em um
mundo de signos e de rastros. Estratégia diferente de produgáo da verdade empreendi-
da pelo cavaleiro andante. - Nossa intengao?
Trata-se de mapear como se produzem efeitos de verdade no interior de discur-
sos/narrativas que nao sao em si nem verdadeiros nem falsos. Trata-se de examinar
a constituigáo de políticas da verdade (da e na narrativa) que demarcam fronteiras,
colocando de um lado, a positividade, a realidade, a certeza, a relatividade e o útil;

cannot escape it, then the only thing left for us to do is to define a truth
within a situation. (Merleau-Ponty "The Philosopher and Sociology", 1951;
apud Scholte 1986: 26)

2 A prova nào tinha corno fun ultimo o estabelecimento da verdade, mas sim a produfào desta.

A velha e bastante arcaica pràtica da prova da verdade em que està é


estabelecida judiciariamente nào por urna constatalo, urna testemunha, um
inquérito ou urna inquisito, mas por um jogo de prova. (Foucault 1979: 26.)
PORTO DE ORIGEM 11

e do outro, a fantasia, o ficticio, o impreciso, o absoluto e o ocioso. Momento de


transformagào das fronteiras narrativas; fronteiras movéis de produgào da verdade.
Se nos voltarmos para a Poética de Aristóteles, veremos que este, apesar de apon-
tar o poeta como podendo urdir urna trama com diferentes unidades, por estar livre da
sucessào linear da escrita da historia, nào colocava como impossível o aparecimento
dos acontecimentos e personagens históricos na tragèdia: "nada impede que algumas
das coisas que realmente aconteceram pertengam ao tipo das que poderiam ou teriam
probabilidade de acontecer" (Aristóteles 1973 [1451ab]). As fronteiras que demarca-
vam os dois campos, poesia e historia, tèm sido consideradas elásticas e permeáveis.
Os relatos de viagem, por exemplo, já foram incluidos tanto no campo da historia
como no da ficgào (cf. Veyne 1982). Nào surpreende, portanto, encontrar coincidén-
cias de preocupagoes. No século XVIII, como veremos no terceiro capítulo, o núcleo
desses pontos em comum em termos de preocupado inclinava-se na diregào da relagào
entre a ética e a verdade da narrativa.
Como aponta H. White em The Historical Text as Literary Artifact (1978), antes
da Revolugào Francesa a historiografía era vista como arte literária. Reconhecia-se ser
inevitável a utilizagào das técnicasficcionais na representa?ào dos eventos reais na for-
ma de discurso histórico. A oposigào entre belles Lettres e Lettres savantes, encontra-
da, depois da emancipagào da literatura, somente seria consumada no século seguinte
(cf. Viala 1985).
No final do século XVIII, inicio do XIX, dentre os múltiplos dominios que emer-
gem do desdobramento e da fragmentagào da linguagem, urna nova concepgào das re-
lagòes entre literatura (romance) e historia iria se formar. Formas particulares de re-
presentagào que apontariam, por um lado, para a ordem da imaginagào, o ficcional,
e, por outro, para a ordem do acontecimento - a historia (cf. Lima 1984, 1986). Novo
tragado, outra fronteira, no vos personagens: urna nova viagem que iremos acompanhar
em nosso quarto capítulo.
Naturalistas, comerciantes e aventureiros sairào em busca de fatos, riquezas e
experièncias. Novas verdades serào produzidas. Às vezes boas, outras ruins, mas sem-
pre com um certo valor deontológico. Verdades que dialogam entre si, recortando, or-
denando, classificando. Verdade da Ciencia, outras verdades. Outras verdades, novas
viagens. No vos meios de produgào da verdade em lugares nunca dantes navegados.
As perguntas: como e onde produzir a verdade, em que condigoes, que formas obser-
var, que regras aplicar, serào respondidas pelos novos argonautas do saber de urna ma-
neira completamente inovadora. A verdade e nada mais do que a verdade, só pode ser
atingida mediante a passagem do inquérito para a observagào. E quando se fala em ob-
servagào quer se dizer mais do que um simples olhar distante; pelo contràrio, para se
ter a verdade, tem-se um prego a pagar: a saber, a observagào nào poderá mais ser
feita seja do gabinete nas metrópoles, mediante o inquérito levado a cabo por observa-
dores (treinados ou nào), seja por pesquisadores no campo que irào inquirir diretamen-
te os nativos (mediante interpretes ou nào); trata-se agora de participar da observagào
a ser feita. O prego a ser pago para a obtengào da verdade é a participagào-imersào do
VALTER SINDER

sujeito que observa na vida dos objetos observados, transformando esses últimos, sur-
preendentemente, em sujeitos.
Esta questao nos remete à distingào proposta por Benveniste em "As relagòes de
tempo no verbo francés" (1976), entre narrativa (ou historia) e discurso. Neste artigo,
Benveniste mostra como certas formas gramaticais (como o pronome eu, e sua referen-
cia implícita tu), indicadores pronominais ou adverbiais e, ao menos em francés, al-
guns tempos do verbo (como o presente, o passado composto ou o futuro), se encon-
tram reservados ao discurso; ao passo que, a marca da narrativa está no emprego ex-
clusivo da terceira pessoa e de formas como o aoristo (passado simples) e o mais que
perfeito. Como chama atengào Genette, em "Fronteiras da Narrativa" (1976), essas
diferengas podem ser reduzidas a urna oposigào entre a "objetividade da narrativa" e
a "subjetividade do discurso". De um lado, a narrativa da verdade, o conhecimento
positivo, o lugar do sujeito-cientista e, de outro, o discurso imaginário, o lugar da
subjetividade do sujeito.
Será possível dizer: por trás, urna nova verdade? Será que com essa nova forma
de saber teria se produzido urna verdade que deve passar necessariamente pela subjeti-
vidade do sujeito para que entào possa se constituir enquanto conhecimento positivo?
Esta nova forma de produgào da verdade, que em alguns momentos privilegia o saber
da testemunha, memòria empírica daquilo que foi visto e vivido pelo sujeito, e que em
outros, toma como guia o saber do filósofo, memoria mais profunda, transcedental;
às vezes, tenta conjugá-los. Será que se está diante de novos especialistas do universal
que viriam trazer a boa nova? Ao firn e ao cabo, estaremos como Édipo, condenados
a desvendar (agora pela ciéncia) o enigma da verdade, ao juntar as duas metades? Será
que, como nos avisara Nietzsche, depois de tanto andar, tanto mar, Platào a nos
esperar...
Ñas configura?oes da narrativa fronteiras que pareciam definitivamente estableci-
das apontam para novas dinámicas, novos arranjos, e emergem enquanto possibilidade
de produgào de novos tragos. Renuncia-se à procura do além ou do aquém da cultura.
A descrigào passa a ser entendida, em si mesma, enquanto construgào. Elimina-se o
postulado da descontinuidade entre a experiència e a realidade. As narrativas sao, em
si mesmas, interpretagòes. Interpretagòes de interpretagòes. O olhar se volta
novamente para a narrativa; a escrita da historia e a escrita da antropologia nào se
encontram separadas da historia e da etnografia. Isto nào significa que se postule
simplesmente a necessidade de revisào do método; pelo contràrio, significa sim colocar
a pròpria nogào de método (etnográfico, histórico) em xeque. Implica entender o
conhecimento histórico e etnográfico, enquanto formativos. Enfim, implica postular
que historia e historiografía, antropologia e etnografia sào urna e mesma coisa.
Isto significa, antes de mais nada, pensar a reintrodugào da narrativa literária,
ficcional, polissèmica, que havia sido colocada em um outro registro. Os textos literá-
rios (metafóricos e alegóricos), compostos de invengòes (ao invés de fatos
observados), que permitem o acesso de emogòes, especulagòes e o gènio subjetivo dos
autores, lugar portanto por exceléncia da multiplicidade de sentidos, retornam ao
PORTO DE ORIGEM 11

centro do questionamento sobre a possibilidade de se dizer a verdade. A linguagem é


agora elemento fundamental da propria construgào do real.
As fic?òes da linguagem literária, condenadas científicamente (e apreciadas esteti-
camente), exatamente por faltar-lhes univocidade, 3 retornam na pròpria escrita que se
faz necessària para o saber antropológico (em tudo o que se pode saber do homem).
A narrativa da viagem, do exótico e do diferente encontra-se com a literatura enquanto
construyo de algo que pode ainda nào existir de fato, mas que deve existir, por múlti-
plas razòes. Contra o poder, levanta-se a bandeira do saber. Nesta luta, saber e verda-
de se entrelagam, constituindo um novo lugar. Como resultado, efeitos inesperados:
p r o d u j o de novas autor(idades). Entre o silèncio e o diálogo, parafraseando P.
Clastres, podemos dizer que se continua à procura do último.
Nossa intendo, neste traballio, é de redistribuir as narrativas da verdade segundo
no vos eixos problemáticos que fazem ressaltar analogías inesperadas, filiagòes desco-
nhecidas, cumplicidades imprevistas, e também no vos mapas, novos recortes. Preten-
de-se realizar uma historia genealógica, que, como chama atenfào F. Chátelet (1977),
é também uma geografia da filosofia; esta designalo, geografia da filosofia remete
"para uma visào espacial da filosofia".

Esta, embora tenha inventado a transcendencia, é, como a matemática, uma superficie.


Dai que só a possamos trabalhar corretamente fazendo a sua projefào sobre um plano,
isto é, considerando-a num espafo. Uma geografia das idéias, assim concebida, permite
compreender como essas mitologías racionais que sào os sistemas filosóficos sao os ele-
mentos de polémicas intelectuais, que entram, elas próprias, ñas estratégias políticas.
(Chátelet 1977: 41-42)

Se se concorda com Thomas Kuhn (1975) que tornar-se membro de uma comunidade
científica envolve o aprendizado de um paradigma, o que aqui se propòe é uma estraté-
gia de aprendizado. Estratégia que pretende, antes de mais nada, produzir novas confi-
guragoes de verdade ñas ciencias humanas.

Refletir sobre essas questóes significa dialogar com idéias como as de G. Braithwaite, persona-
gem-pesquisador da verdade histórica em O Papagaio de Flaubert, que em sua apreciafao sobre
a historia diz que

Podemos estudar arquivos durante décadas, mas com muita frequéncia nos
sentimos tentados a jogar tudo para o alto e declarar que a história é
meramente outro género literario: o passado é ficfáo autobiográfica fingindo-
se de relatório parlamentar. (Barnes 1988: 100-101)
12.
2. RELATOS DE VIAGEM

A coisa mais incompreensível do mundo


é que ele é compreensível.
Albert Einstein

Sabemos que a diversidade das sociedades humanas, fenòmeno resultante das relagoes
diretas ou indiretas entre os diferentes grupos, tem sido em geral apreendida pelos ho-
mens como algo aberrante, monstruoso, que deve ser justificado. A nofào de humani-
dade como algo que engloba todas as formas da espécie humana, sem d i s t i n t o de raga
ou civilizagào, é algo nao só recente como também limitado.
O fato de que, para inúmeras populagòes, as fronteiras da humanidade se restrin-
gem às fronteiras da sociedade, do grupo lingüístico ou mesmo da aldeia pode ser
apreendido em um rápido exame da forma como os mais variados grupos se referem
uns aos outros: pode-se encontrar desde os antigos conhecidos - bárbaros, selvagens
e primitivos, até os exóticos - macacos e ovos de piolho. Pode-se, inclusive, levar o
estranhamento a tal ponto, que torna-se possível alocar o outro na categoria de
aparigào ou fantasma, colocando-o nos limites entre a realidade e sua negagào.
A atitude que consiste em expulsar da cultura - isto é, para a natureza - tudo e
todos que nào participam daquilo que se entende por humanidade e com o qual nos
identificamos embasa um procedimento que parece comum a todos os homens (cf.
Lévi-Strauss 1976/1952a).
Sabe-se que durante o Renascimento locáis até entào desconhecidos sào explo-
rados, elaborando-se discursos sobre os seres que habitam aqueles espatos. A principal
questào que os europeus entào se colocam diz respeito ao pertencimento daqueles seres
à humanidade, e tem como contraponto fundamental o critèrio religioso. A saber: Te-
riam os selvagens alma? Qual sua ligagào com o pecado original? 1
Ao mesmo tempo, sabe-se que a crise da cosmologia crista, acentuada a partir dos
séculos XIV e XV, pode ser apreendida na crescente m a n i f e s t a l o de descrédito à
possibilidade de apreensào da verdade do mundo como estando inserita de forma trans-
parente nos fenómenos e nas coisas. Tal fato, que tem sido assinalado por diversos es-
tudiosos (cf. Michel Foucault s. d. [1966], 1976, 1992; Jacques Le Goff 1985, entre
outros), aponta para a emergència de novas formas de saber como produtoras e
reveladoras da verdade.

1 Em "Rafa e Historia", Lévi-Strauss aponta que essas questóes nao eram exclusivas aos euro-
peus. Para ilustrar tal fato ele nos lembra que

[...] nas grandes Antilhas, alguns anos após a descoberta da América,


enquanto os espanhóis enviavam comissóes de investigafao para pesquisar se
os indígenas tinham ou nao urna alma, estes últimos dedicavam-se a imergir
brancos prisioneiros, a fim de verificar, após urna vigilia prolongada, se seu
cadáver estava ou nao sujeito á putrefafáo. (Lévi-Strauss 1976/1952a: 334)
20. VALTER SINDER

Trata-se aqui de refletir sobre esses modos de produgào da verdade. Para tal, par-
timos de duas narrativas que se constituem como relatos de viagem, e que podem ser
apontadas como ponto de emergencia de nossa identidade presente, de nossa verdade
atual; marcos históricos de passagem para a Idade Moderna: os Diários da descoberta
da América de Cristovào Colombo, e o relato das aventuras do ingenioso hidalgo Dom
Quixote de la Mancha de Miguel de Cervantes.
Tanto a descoberta da América como as aventuras de Dom Quixote, podem ser
apreendidas como relatos de viagem da descoberta do outro. Deslocamentos no tempo
e no espado que apontam para novas dimensóes externas e internas. Como observou
Baéta Neves, em seu estudo sobre o colonialismo e a repressào cultural, "o momento
do encontro é um momento de choque, de violéncia, de alteralo de urna situagào até
entào vigente" (1978: 29). Em seu livro, A Conquista da América, onde irá desenvol-
ver urna reflexào sobre a questào da alteridade, Todorov afirma que

[s]omos todos descendentes diretos de Colombo, é nele que cometa nossa genealogia -
se é que a palavra comefo tem algum sentido. Desde 1492 estamos, como disse Las
Casas, 'neste tempo tao novo e a nenhum outro igual' (Historia de las Indias, I, 88). A
partir desta data, o mundo está fechado (apesar do (sic) universo tornar-se infinito).'O
mundo é pequeño', declara peremptoriamente o pròprio Colombo (Carta Rarissima,
7.7.1503 [...]). Os homens descobriram a totalidade de que fazem parte. Até entao,
formavam urna parte sem todo. (Todorov 1988: 6)

2.1 Colombo e seu diàrio: outras térras, outros seres

Pensei em descrever toda esta viagem mui pontualmente, dia após dia, relatando tudo o
que fizesse, visse e acontecesse, como adiante se verá. [...] [A]lém de descrever cada
noite o que suceder durante o dia, e de dia o que navegar durante a noite, tenho a
intenfào de tramar nova carta de navegagào, na qual colocarei todo o mar e térras do Mar
Oceano em seus devidos lugares, sob os respectivos ventos, e ainda mais, de compor um
livro e estabelecer toda a analogia em pintura, por latitude do equinócio e longitude do
Ocidente; e sobretudo cumpre muito que esqueja o sono e me empenhe em navegar,
porque assim é preciso, o que me dará grande traballio. (Colombo 1986: 31-32)

Desta forma, anunciava o pròprio Colombo o inicio do relato de sua viagem iniciada
em 3 de agosto de 1492: "A descoberta das Indias [escreveu um cronista espanhol em
meados do século XVI] foi o maior acontecimento da historia depois da criagào do
mundo".
Como afirmava Colombo, tudo o que se fizesse, visse e acontecesse seria relata-
do:
Quarta, 9 de janeiro - À meia-noite levantou as velas com o vento sudeste e navegou para
o lés-nordeste; chegou a urna ponta que chamou de 'Punta Roja'. E a seu abrigo ancorou
à tarde, que seriam umas très horas antes do anoitecer. Nessa terra toda há militas tartaru-
gas que os marinheiros capturaram em Monte Cristi, quando vinham desovar em terra,
e eram enormes, feito grandes escudos de madeira. Ontem, quando o Almirante ia ao Río
RELATOS DE VIAGEM 21

del Oro, diz que viu tres sereias que saltaram bem alto, acima do mar, mas nào eram tao
bonitas como pintam, e que, de certo modo, tinham cara de homem. (Colombo 1986: 87)

Quase cinco séculos depois, tomando como referencia esses mesmos Diários da Des-
coberta da América, temos dois comentários distintos e, de certo modo,
complementares. Por um lado, o historiador Sérgio Buarque de Holanda apontaria que,

[p]ara numerosos viajantes, o cenário americano estava repleto de misteriosas e inegáveis


possibilidades. Ali, o milagre parecia novamente incorporado à natureza: urna natureza
ainda cheia de gra?a matinal, em perfeita harmonía e correspondencia com o Criador. O
pròprio Colombo, sem dissuadir-se de que atingira pelo Ocidente as partes do Oriente,
julgou-se em outro mundo ao avistar as costas verdejantes da América, onde tudo lhe
dizia estar a caminho do verdadeiro Paraíso Terreal. As mesmas imagens bíblicas,
reafirmadas pelos cosmógrafos mais acreditados da época, acharia Colombo em seu
desembarque ñas Antilhas: térras de fertilidade inaudita, árvores de copas altíssimas,
fragrantés e carregadas de frutas, a eterna primavera musicada pela alegría dos cantares
de pássaros de mil cores. (Holanda 1969: 37)

Por outro, alguns anos mais tarde, o escritor Gabriel García Márquez afirmaría que
esses Diários podiam ser destacados como constituindo "o primeiro livro de realismo
mágico".
Imagens bíblicas, paraíso edènico, falsa consciéncia ou realismo mágico? Afinal,
do que se trata? Que tipo de descrigào embasa essas narrativas de Colombo? A que
realidade se referem? Terá deixado Colombo fluir sua imaginagào, produzindo um
relato onde lenda e realidade se misturam? Para que se possa saber o que realmente
aconteceu será necessàrio depurar a narrativa de Colombo, a fim de separar o joio do
trigo? Afinal, será esta narrativa fruto de um momento histórico em que a razào ainda
se encontrava encoberta pelo mito, nào sendo portanto possível urna descrigào da
realidade de maneira fidedigna? Será que teremos que esperar pela ciéncia para que
se possa ter um método de descrivo considerado fidedigno para que se possa atingir
as verdades verdadeiras? Se nào for este o caso, como pensar entào este relato?
Para além do ponto de chegada a que nos conduzem os relatos de viagem também
trazem a possibilidade de um ponto de partida: partida de urna nova viagem. Afinal,
nào faz parte da historia o fato de que o pròprio Colombo teria partido porque lera,
entre outros, o relato de Marco Polo?

A maioria dos livros que nos apresenta o saber dos homens da Idade Mèdia que desco-
briram a América, apresenta como ponto de referencia duas fontes principáis: a Biblia
e os autores da Antiguidade paga. Além dos habitantes (cristàos ou nào) das térras
conhecidas, sabia-se da existéncia de outros seres, que nem sempre mereciam o nome
de homens, por nào terem sido criados à imagem e semelhanga de Deus; habitantes
de outras térras que povoavam a imaginado destes homens medievais, que viviam em
lugares extensos e ricos. Lugares mágicos anunciados desde muito por Homero, Platào
e Aristóteles, (re)lembrados, entre outros, por Plutarco e Plinio.
21 VALTER SINDER

Muitos sao lembrados entre aqueles que escreveram cosmografías e narrativas de


viagens, que legaram á Idade Média a crenfa na existencia de lugares extraordinários
habitados por homens monstruosos. O viajante Marco Polo, 2 e o Cardeal Pierre
d'Ailly3 sao alguns que em geral sao destacados.
O relato de Colombo pode ser interpretado (seguindo esta linha de raciocinio),
tal qual faz, por exemplo, Franco em seu estudo sobre As origens brasileñas da teoría
da bondade natural, publicado em 1937 (1976). Segundo este autor, corroborando as
crenfas arraigadas na ingenuidade popular dos velhos paises, poderia-se salientar que,

Assim como o descobrimento da América veio fixar geográficamente urna série de figuras
de monstros humanos, que andavam vagando, dispersos pela fantasía européia em várias
térras ignotas, veio, também, este mesmo episodio histórico dar pátria, em urna
determinada regiáo do globo, aos famosos e felizes homens que viviam numa espécie de
idade de ouro, conformes á lei da natureza, e cuja existéncia era entrevista e admirada
desde os tempos mais remotos. (Franco 1976: 15)

Continua o autor, lembrando que nao se pode antepor os primeiros aos segundos, pois,
principalmente nos primeiros anos seguintes ao decobrimento da América, é frequente
encontrar, em um mesmo livro, alusóes ao maus e bons selvagens. Poder-se-ia dizer
entáo que havia duas tendencias contraditórias, mas que corriam paralelamente, sendo
que, nao raro, se cruzavam.
As narrativas das viagens poem frente a frente essas duas tendéncias acima
apontadas, e faz com que

alguns, submissos ao gosto europeu e as crengas arraigadas fortemente na ingenuidade


popular dos velhos países, nao se animavam a desmentir a esperanza curiosa com que a
opiniáo pública observava os chamados Novos Mundos. Estes observadores sao os que

2 No que diz respeito a Marco Polo, aponta-se que, nos séculos XIII e XIV, a tolerancia do
Grande Cà da Mongòlia foi um dos principáis fatores que possibilitaram mercadores e
missionários dirigirem-se para o Extremo Oriente. Marco Polo teria efetuado duas viagens por
essas regìòes: na primeira, encontrou o Grande Cà que manifestou seu desejo em instruir-se
na fé crista, incumbindo-o de urna embaixada junto ao Papa; na segunda vez, tornou-se homem
de confianza do Grande Cà, tendo permanecido dezeseis anos em Catai, percorrendo, a seu
servido, grandes regioes, tendo entào ouvido falar da grande ilha de 'Cipango' (o Japào), onde
os telhados eram de ouro e que era circundada por 7457 ilhotas onde havia abundáncia de todo
tipo de especiarías. No firn do século XIV, com o estabelecimento da dinastia Ming na China
(que nào se mostrou tao tolerante), as relafòes regulares com o Extremo Oriente viram-se
rompidas. A Descrifào do Mundo, ditada por Marco Polo em seu retorno, foi muitas vezes
transcrita, tendo sido traduzida para várias línguas (latim, portugués, francés, castelhano,
inglés).

3 Seu grande livro, o Imago Mundi, urna espécie de Cosmografia Universal, é apontado como
tendo bebido tanto da fonte de toda a literatura clàssica antiga, como de outros autores
medievais. Tendo vivido até meados do século XV, sua obra apresenta de maneira geral o
conjunto do imaginário medieval, com rela9ào aos novos mundos.
RELATOS DE VIAGEM 21
concordarti em ver, [...], os homens terríveis, os povos monstruosos acima referidos. Nao
se lhes deve querer mal por isto, nem seria elegante que, a tantos séculos de distáncia,
procurássemos ajustar contas com eles pelo fato de terem contrariado tao abundantemente
e tao aplicadamente a verdade. (Franco 1976: 13)

Nào devemos portante censurá-los,

[c]oloquemo-nos nos seus lugares. Os nautas ousados que rumavam as proas, cortando
mares tenebrosos, para mundos inteiramente ignotos, vinham decididos a toda sorte de
surpresas. O ilustre D. Francisco Manuel de Melo dá bem a medida desse estado de
espirito dos navegantes lusos, quando relata ñas suas Epanaphoras de Vària Historia o
descobrimento da ilha da Madeira, realizado por Joào Gonfalves na primeira metade do
século quinze. Conta D. Francisco Manuel que os portugueses estavam tao preparados
para se defrontarem com duendes e fantasmas que, tendo em vista de terra, divisaram
logo, por entre a bruma, 'gigantes armados, de temerossissima grandeza. Entendeo-se
despois [conclui o poeta], que as brenhas de que é guarneceida a terra pellas prayas, fazia
sembrante destas imagens... ' (Em: Francisco Manuel - Epanophoras. Lisboa, 1676. Pág.
324). (Franco 1976: 13-14)

Ve-se, portante, que para esse autor o episodio retrata, na realidade, urna confusào.
Confusào de promontorios com gigantes.
Terá sido esse o caso de Colombo?
Se for este o caso, como dar conta, por exemplo, da idéia de que o hemisfério
austral fosse habitado, já que seria necessàrio supor que se andasse ai de 'cabera para
baixo'? Para responder a essa questào, recorre-se mais aos fatos da historia. Ora, sábe-
se que este era o problema dos antípodas. Na segunda metade do século XV, as deseo-
bertas portuguesas ñas zonas tropicais da Africa acabaram por apontar para o fato de
que o hemisfério austral era habitado. Restava provar o mesmo para os antípodas oci-
dentais. Desde 1452, data da descoberta da Ilha das Flores (a mais ocidental da ilha
do Arquipelágo dos Afores), as solicitagòes de licenza para descobrir aumentaram sen-
sivelmente, e os relatos se multiplicaram. Como conta Las Casas:

um piloto portugués chamado Vicente Dias dirigia-se da Guiñé para a Ilha Terceira;
depois de ultrapassar a Madeira e deixando-a a levante, viu, ou julgou ver, urna ilha que
teve certeza tratar-se de terra verdadeira. Quando chegou à Ilha Terceira, revelou seu
segredo a um mercador genovès, Luca de Cazaña, homem muito rico. [Tendo
persuadido-o a equipar um navio a firn de descobrir tal ilha], o piloto fez-se ao largo por
très ou quatro vezes à procura da dita terra, navegando 100 léguas ou mais, todavia
jamais chegou a encontrá-la. (Las Casas 1947, apud Mahn-Lot 1984: 34-35)

Colombo, como se sabe, anotava as novas informagòes que se apresentavam no relatos


em seus libros de memoria. A idéia de atingir o oriente pelo poente encontrava-se no
(m)ar. No entanto, nào há como deixar de admirar a coragem de Colombo. Apesar de
toda sua seguranza, Colombo nào podia (ou nào devia?) ter certeza de que no firn do
oceano nào havia um abismo. Nào podia ter certeza de que a viagem para o oeste nào
2± VALTER SINDER

significava urna longa descida - afinal, conforme relatam historiadores desde o século
XIX, acreditava-se estar no cume da Terra - e que nào seria difícil demais subir de
novo. Ou seja, nào podia estar absolutamente seguro de que seria possível retornar.
Vejamos seu primeiro relato da distancia percorrida:

Segunda, 10 de setembro. - Entre o dia e a noite, percorreu sessenta léguas, a dez milhas
por hora, o que vem a dar duas léguas e meia; mas só registrava quarenta e oito, para que
ninguém se assustasse se a viagem fosse longa. (Colombo 1986: 34)

Colombo sabia que a tripulado se angustiava com a viagem para o ocidente; a grande
maioria, senào todos, acreditava que a terra além de ser plana era habitada pelos mais
diversos, estranhos e na maioria das vezes perigosos seres, e que tal viagem poderia
acabar por conduzí-los ao abismo da beira do mundo. No entanto, segundo pode-se
perceber em suas a n o t a r e s , Colombo tinha suas certezas. Seis dias depois escrevia:

Domingo, 16 de setembro. - Navegou dia e noite rumo a oeste. Teriam percorrido trinta
e nove léguas, mas só registrou trinta e seis. O dia esteve meio nublado: choviscou. Se-
gundo o Almirante, daqui por diante, hoje e sempre, encontrarào clima mui temperado,
que dava o maior prazer acordar de manhà, só faltava ouvir rouxinóis. Diz ele: E o
tempo era igual ao de abril na Andaluzia. Aqui comefaram a ver muitos molhos
(manchas?) de algas bem verdes que havia pouco, conforme lhe pareceu, se tinham
despregado da terra, e por isso todos julgavam estar perto de alguma ilha; mas nào da
terra firme, segundo o Almirante, que diz: Porque a terra firme vamos encontrar mais
adiante. (Colombo 1986: 35)

Colombo demonstrava estar seguro tanto do que fazia como para onde se dirigia. Ten-
do lido relatos de vários viajantes (dentre eles o de Marco Polo), assim como a Biblia,
tratados científicos (dentre eles o Imago Mundi de d'Ailly), e mapas (dentre eles o que
Toscanelli havia feito), ele estava seguro da possibilidade de ir à China pela via
ocidental.
Desde o inicio da viagem, encontrava sinais que corroboravam sua certeza. Logo
na primeira semana de viagem, via sinais que indicavam inequívocamente a proximida-
de da terra - quando se encontrava no mar; sinais que indicavam a presenta do ouro
- quando já haviam atingido a terra e, inclusive, sinais que apontavam para a desco-
berta da América - tudo é visto segundo a certeza do resultado final. Como aponta To-
dorov (1988), Colombo nào descobriu a América, ele a encontrou onde sabia que
estava. Em momento algum se trata va de procurar a verdade (pelo menos da forma
como nós entendemos essa procura atualmente), e sim de procurar confirmagòes.
Confirmagòes para urna verdade conhecida de antemào.

'Eie sempre tinha achado, no fundo do seu corafào', relata Las Casas, 'quaisquer que
fossem as razóes dessa opiniào (eram a leitura de Toscanelli e das profecías de Esdras),
RELATOS DE VIAGEM 21
que atravessando o océano para além da ilha de Hierro, por urna distáncia de aproximada-
mente setecentas e cinquenta léguas, acabaría por descobrir a térra' (Historia, I, 139).
(Todorov 1988: 23)

Da mesma forma, após ter atingido a térra encontrava constantemente sinais que indi-
cavam a proximidade dos dominios do Grande Cá, estava seguro de que estava perto
da ilha de Cipango, onde, como havia dito Marco Polo, os telhados eram de ouro (to-
dos sabiam que grande quantidade de ouro nascia lá), e que era circundada por inúme-
ras pequeñas ilhas onde podia-se encontrar todo tipo de especiarlas. As informagoes
recolhidas entre os nativos nada mais sao do que confírmagóes desta sua certeza:

Domingo, 21 de outubro. - [...] Se o tempo permitir, logo partirei a circundar esta ilha
até conseguir falar com o cacique e ver se posso obter dele o ouro que ou?o dizer que
usam, e depois partir para outra ilha vastíssima, que acho que deve ser Cipango, segundo
os sinais que fazem esses indios que viajam comigo, á qual chamam de 'Colba', e de urna
outra a que dáo o nome de 'Bofío'. E as que ficam no meio verei logo assim, de passa-
gem, e conforme descubra vestigios de ouro ou especiarías, resol verei o que hei de fazer.
Agora, porém, já me determinei a ir á térra firme, e também á cidade de Quisay [nome
que Marco Polo deu a cidade de King-See, que figurava no mapa que Toscanelli fez], pa-
ra entregar as cartas de Vossas Majestades ao Grande Cá, pedir resposta e regressar com
ela. (Colombo 1986: 53)

Apesar de inicialmente Colombo ter negado a existéncia de urna língua entre os indios
(em seu primeiro contato, a 12 de outubro de 1492, manifesta intengao de levar consi-
go "[...] por ocasiaode minha partida, seis deles [...] para que aprendam a falar"), ele
relata conversas que teve com eles o tempo todo. Dois dias depois deste episodio, rela-
ta Colombo que,

[a]o amanhecer, mandei enfeitar o batel da ñau e os barcos das caravelas e percorri a ilha
pelo comprido, [...] e avistei logo dois ou tres [povoados], e as pessoas que vinham todas
á praia, chamando por nós e rendendo grabas a Deus. Uns nos traziam água; outros
coisas de comer; outros ainda, quando viam que ninguém pretendía se aproximar da
térra, langavam-se ao mar e vinham nadando, e entendíamos que nos perguntavam se
tínhamos vindo do céu.
E também apareceu um velho na parte inferior do batel e outros, em altos brados, chama-
vam todos os homens e mulheres:
- Venham ver os homens que chegaram do céu; e tragam-lhe de comer e beber.
Veio urna porfáo, com muitas mulheres, cada um trazendo algo, rendendo louvores a
Deus, jogando-se ao chao e levantando as maos para o céu e depois gritando para que
fóssemos á térra. (Colombo 1986: 47)

Segundo seu relato, as conversas aconteciam constantemente. Grande parte de suas


conversas acabam por confirmar aquilo que já sabia. Mesmo quando os indios sao im-
precisos ou nao dizem inteiramente a verdade, ele consegue descobrir:
VALTER SINDER

Segunda, 26 de novembro. - [...] Calculou que a térra encontrada hoje fosse a ilha que
os indios chamavam de 'Bohío'. Toda a gente que encontrou até hoje diz que sente o
maior medo dos 'caniba' ou 'canima' que vivem nessa ilha de 'Bohío'. Nao queriam
falar, por receio de serem comidos, e nao podía tirar-lhes o medo, pois diziam que só
tinham um olho e cara de cachorro. O Almirante achava que era mentira, tendo a
impressao que deviam ser do dominio do Grande C3, que os reduzia ao cativeiro.
(Colombo 1986: 65)

Como aponta Todorov (1988), referindo-se a esta passagem, Colombo ao ouvir a pala-
vra cariba (que designa os habitantes antropófagos do Caribe), entende caniba ou cani-
ma, ou seja, gente do Cá. Entende também que essas pessoas tinham só um olho e ca-
bega de cao (em espanhol 'can'), com os quais comem. Conclui entao que os indios
estavam inventando historias, e censura-os por isso, "o Almirante achava que era
mentira, tendo a impressao que deviam ser do dominio do Grande Ca, que os reduzia
ao cativeiro".
Em outros momentos, como por exemplo em 18 de dezembro, Colombo lamenta
que os nativos "...nao entendiam o que eu dizia e nem eu a eles", ou ainda, como em
15 de janeiro, de que "... pela difículdade da língua, que o Almirante nao entendía,
[fora obrigado a] comunicar-se com eles por gestos". De quaquer forma, na grande
maioria das vezes Colombo acreditava, como afirma em 11 de dezembro, que "cada
dia (diz o Almirante) entendemos mais esses indios e eles a nós".
Em todas as suas afoes, tal qual aponíamos anteriormente, Colombo em momento
algum esta va a procura de urna verdade. Nao se trata de urna descoberta de algo
ignorado, mas sim de procurar confirmagóes para um saber já entrevisto. No que diz
respeito a suas conversas com os indígenas, o que ele entende ou escuta é apontado por
muitos como sendo um resumo do que havia lido em livros como o de Marco Polo ou
de Pierre d'Ailly.
Nao podemos nos esquecer de que nos encontramos em fins do século XV. A
interpretado é praticada por Colombo de forma finalista; o sentido final é dado de
imediato (tal qual a doutrina crista), o que se deve procurar é o caminho que une o
sentido inical ao sentido último.
Será possível, portanto, constatar que as informagoes prévias de Colombo influen-
cian! suas interpretares? Sabe-se que ele nao se preocupava em entender melhor as
palavras dos que se dirigem a ele, pois já sabia antecipadamente o que encontraría.
Mesmo quando incorporava urna nova palavra a seu vocabulário, Colombo tratava de
determinar a que palavra espanhola correspondía exatamente, demonstrando sua con-
cepcáo da linguagem onde os nomes se confundem as coisas, refletindo seu estado
natural. Colombo nao duvida que os indios, da mesma forma que os espanhóis,
também nomeiam as coisas; mas sua curiosidade limita-se ao exato equivalente
indígena dos termos. Para ele todo vocabulário é semelhante aos nomes próprios, e
estes decorrem das propriedades dos objetos que designam. As palavras sao a imagem
das coisas. As línguas nada mais fazem do que refletir o estado natural das coisas. A
diversidade lingüistica nao existe; a lingua é natural. Como aponta Mahn-Lot,
RELATOS DE VIAGEM 23.
[a]o longo desse século XVI, tao complexo por seus resquicios medieváis e sua entrada
na modernidade, a explorafáo do interior do continente americano deveu-se, em grande
parte, ao que S. de Madariaga chama de 'dom-quixotismo': a atrafào do maravilhoso,
que se duplica, é verdade, com um grande apetite por riquezas. Como escreveu -nao sem
urna ponta de exagero- Lévi-Strauss: 'Os espanhóis foram muito menos para adquirir
nofòes novas do que para verificar lendas antigas: as profecías do Antigo Testamento,
os mitos greco-latinos como a Atlàntida e as Amazonas; a esta heranja judio-latina, se
acrescentavam as lendas medieváis como o Impèrio do Preste Joào e a contribuito india:
o Eldorado, a Fonte da Juventude'. (Mahn-Lot 1984: 89-90)

A partir destas colocagòes, podemos retomar nossa questào, enfocando-a agora segun-
do um novo prisma. Se para Colombo nào se tratava de procurar a verdade, sendo sua
leitura/interpretagào da realidade ancorada em urna verdade final, devemos perguntar:
Por que ele a lia/interpretava desta forma? Trata-se de urna confusào que assola sua
mente em particular ou eia pode ser apontada como sinal do tempo, corroborando o
fato de tratar-se de um momento da historia quando ainda se tem o dominio da lenda
sobre o conhecimento? Será que devemos examinar as condif oes económicas de exis-
tència a fim de entender na consciéncia dos homens o seu reflexo e expressào? Trata-
se de um relato falso, que deve ser depurado para nos revelar a verdade?
Nenhuma destas suposifóes podem ser consideradas exatamente corretas. Aceitar
tais colocagòes implicaria também "[...] supor, no fundo, que o sujeito humano, o su-
jeito do conhecimento, as próprias formas do conhecimento sào de certo modo dados
prèvia e definitivamente, e que as condigoes económicas, sociais e políticas da existen-
cia nào fazem mais do que depositar-se ou imprimir-se neste sujeito definitivamente
dado" (Foucault 1979: 5).
Em A Verdade e as Formas Jurídicas (1979a), Foucault, apontando para
Nietzsche, indica a possibilidade de operar urna ruptura com a forma como a filosofia
ocidental tem encarado a liga?ào entre o conhecimento e as coisas.

O que, pergunta o autor, na filosofia ocidental assegurava que as coisas a conhecer e o


propio conhecimento estavam em rela?ào de contiguidade? O que assegurava ao conheci-
mento o poder de conhecer bem as coisas do mundo e de nào ser indefinidamente erro,
ilusào, arbitrariedade? O que garantía isso na filosofia ocidental, senào Deus? Deus, cer-
tamente, desde Descartes, para nào ir mais além, e ainda mesmo em Kant, é esse princi-
pio que assegura haver urna harmonía entre o conhecimento e as coisas a conhecer. Para
demonstrar que o conhecimento era um conhecimento fundado, em verdade, nas coisas
do mundo, Descartes precisou afirmar a existència de Deus. (Foucault 1979a: 14)

Sendo assim, nào se deve esquecer que as práticas sociais também engendram
dominios do saber que nào somente fazem aparecer novos objetos, novos conceitos,
novas técnicas, mas também fazem nascer formas totalmente novas de sujeitos e de
sujeitos de conhecimento. "O pròprio sujeito de conhecimento tem urna história, a
relagào do sujeito com o objeto, ou, mais claramente, a pròpria verdade tem urna
história." (Foucault 1979a: 6).
VALTER SINDER

Nâo se trata com isso de afirmar que o sujeito é formado pela ideologia; que os
pesos ideológicos de urna certa época teriam impedido que os homens vissem a reali-
dade. Nâo se trata de afirmar, no que diz respeito à nossa questâo, que antes do século
XV, quando nâo se encontra a pràtica da ciência da observaçâo, esta nâo teria se mani-
festado devido a preconceitos ou ilusôes. Afirmar isto pressupôe a existência de um
sujeito, de alguma forma neutro, que frente ao mundo exterior é capaz de ver o que
se passa, de captá-lo. Se for assim, seria legítimo perguntar como se formou esse
sujeito (vazio, neutro), que serve de ponto de convergência para todo o mundo
empírico? Como é esse sujeito? Será um sujeito natural? Se ele nâo o fez antes do
século XV, foi somente porque tinha preconceitos, ou ilusôes? Será que véus
ideológicos o impediam de dirigir um olhar neutro e acolhedor sobre o mundo?
Qualquer resposta afirmativa a essas questôes é indissociável de urna interpretaçâo
simplista da relaçâo sujeito-objeto do conhecimento.
O que se afirma aqui é que esse sujeito supostamente neutro é, ele pròprio, urna
produçâo histórica. Foi preciso toda urna rede de instituiçôes e de práticas, para chegar
ao que constitui essa especie de ponto ideal, a partir do qual os homens deveriam pou-
sar sobre o mundo um olhar de pura observaçâo. Para Foucault, a constituiçâo históri-
ca dessa forma de objetividade pode ser encontrada ñas práticas judiciárias e, em espe-
cial, na pratica do inquérito. Estas técnicas de inquérito teriam se difundido em outros
dominios do saber,

A partir dos séculos XIV e XV aparecem tipos de inquérito que procuram estabelecer a
verdade a partir de um certo número de testemunhas cuidadosamente recolhido em domi-
nios como o da Geografia, da Astronomia, do conhecimento dos climas, etc. Aparece em
particular, urna técnica de viagem, empreendimento político de exercício de poder e em-
preendimento de curiosidade e de aquisiçâo de saber, que conduziu finalmente ao desco-
brimento da América. Todos os grandes inquéritos que dominaram o firn da Idade Média
sâo, no fundo, a eclosâo e a dispersâo dessa primeira forma, desta matriz que nasceu no
século XII. Até mesmo dominios como o da Medicina, da Botànica, da Zoologia, a partir
dos séculos XVI e XVII, sâo irradiaçôes deste processo. Todo o grande movimento cultu-
ral que, depois do século XII, começa a preparar o Renascimento, pode ser definido em
grande parte como o desenvolvimento, o florescimento do inquérito como forma geral
de saber. (Foucault 1979a: 59)

Trata-se, portante, do estabelecimento da verdade a partir de testemunhas. Faz-se um


inquérito para saber o que se passa, para saber a verdade. Anteriormente, o saber esta-
va ancorado no modelo da prova. Como aponta Foucault, o saber na Universidade Me-
dieval se manifestava, se transmitia e se autentificava através de determinados rituais,
dos quais o mais célebre e mais conhecido era a disputatio, a disputa. A disputano
consistía no confronto entre dois adversários que utilizavam a arma verbal, e que
tinham todas as demonstraçôes baseadas essencialmente no apelo à autoridade. Ape-
lava-se nâo para testemunhas de verdade, mas para testemunhas de força. Quanto mais
autores um dos participantes tivesse a seu lado, quanto mais pudesse invocar teste-
munhos de autoridade, e nâo testemunhos de verdade, maior possibilidade ele teria de
RELATOS DE VIAGEM 29

sair vencedor. A disputatio é urna forma de prova, de manifestaçâo do saber, de auten-


tificaçâo do saber que obedece ao esquema geral da prova.
O saber medieval (sobretudo o saber enciclopédico do Renascimento), que vai se
chocar com a forma medieval da universidade, será precisamente do tipo do inquérito.
Nesta forma de saber, o importante é ter lido os textos e saber o que efetivamente foi
dito, conhecer tâo bem o que foi dito, quanto a natureza a respeito do qual algo foi
dito e, enfim, verificar o que os autores disseram pela constataçâo da natureza. Em
suma, "...utilizar os autores nâo mais como autoridade mas como testemunho, tudo
isso vai constituir urna das grandes revoluçôes na forma de transmissâo do saber"
(Foucault 1979a: 61).
O conflito entre o inquérito e a prova, e o triunfo do primeiro sobre o segundo
no fim da Idade Média, vai apontar para a formaçâo de um "olhar de pura
observaçâo". Olhar este que vai se constituir a partir do século XV, no século XVI,
em urna pràtica da "ciência da observaçâo".
Nâo se trata, portante, de afirmar que antes do século XV, quando nâo se encon-
tra a pràtica da ciência da observaçâo, esta nâo teria se manifestado devido à existência
de preconceitos ou ilusôes; de que a força da ideologia desta época nâo lhes permitía
que dirigissem o olhar neutro e acolhedor sobre o mundo. Temos, entâo, que esse su-
jeito supostamente neutro é, ele pròprio, urna produçâo histórica, já que a verdade
também tem urna historia.
Na constituiçâo histórica dessa forma de objetividade, onde se encontra o relato
de Colombo? Trata-se de um relato de viagem escrito em fins do século XV, exata-
mente no momento do embate que acabamos de apontar. Relato da descoberta da
América, embasado como se viu tanto em outros relatos de viagem, como em outras
formas de saber.
Voltemos portante a Colombo e à forma como se apresenta, em seus relatos, a
relaçâo entre o conhecimento e as coisas a conhecer. Como nos chama atençâo
Todorov,

Colombo nâo tem nada de um empirista moderno: o argumento decisivo é o argumento


de autoridade, nâo o da experiência. Ele sabe de antemâo o que vai encontrar; a experiên-
cia concreta está ai para ilustrar urna verdade que se possui, nâo para ser investigada, de
acordo com regras pré-estabelecidas, em vista de urna procura da verdade. (Todorov
1988: 18)

Nâo devemos nos esquecer de que nâo houve urna substituçâo imediata da prova pelo
inquérito, mas sim de um conflito entre o inquérito e a prova, como formas de autenti-
ficaçâo do saber, que acaba por conduzir à viteria do inquérito no fim da Idade Média.
O argumento decisivo em Colombo é o da autoridade e nâo o da experiência. De
que se trata aqui, entâo, da prova e nâo do inquérito? Situaçâo paradoxal. Colombo
partiu munido de certezas alcançadas a partir de seu profundo conhecimento de inqué-
ritos que procuravam estabelecer a verdade a partir dos mais variados testemunhos re-
colhidos em diversos dominios. No entanto, em grande parte de seu relato a autoridade
20. VALTER SINDER

desses testemunhos parece se sobrepor á suas próprias observares. Trata-se portanto


de urna narrativa onde o argumento final é dado pela autoridade.
Cometamos esse capítulo indagando sobre o tipo de descrigáo que embasa o
relato de Colombo. Nao devemos nos esquecer, sobre pena de p resentí ficagáo, que,
no momento em que o relato foi escrito, nao se identificava a verdade com o fato.
Segundo pretendemos indicar, para Colombo, a verdade se encontra inscrita ñas
coisas, sendo portanto transparente á aparéncia do mundo.
Como já se disse várias vezes, a descoberta da América por Cristovao Colombo
acaba por nos langar na modernidade, no entanto, tal qual um Moisés, o Almirante nao
chega a (vi)vé-la. Colombo pode ser apontado como um herói do Mesmo, da Identida-
de, da Semelhanfa. Em seu mundo, as palavras e as coisas se refletem. A escrita, para
usar urna imagem de Foucault, constituí a prosa do Mundo. As semelhangas e os sig-
nos estáo ligados. Colombo, quando parte, tem certeza nao só de para onde está indo,
como o que vai encontrar. Todo seu relato nos mostra isso. Sua crenga é inabalável.

2.2 Cervantes e seu Quixote: outros seres, novos espatos

Um pouco mais de cem anos se passam entre o relato de Colombo e a narrativa de


Cervantes. A viagem agora é outra.

Num lugar de La Mancha, de cujo nome nao quero lembrar-me, vivía, nao há muito, um
fidalgo, dos de langa de cabido, adarga antiga, rocim fraco, e galgo corredor. [...]
Querem dizer que tinha o sobrenome de Quijada ou Quesada, que nisto discrepam algum
tanto os autores que tratam na matéria; ainda que por conjeturas verossímeis se deixa
entender que se chamava Quijana. Isto, porém, pouco faz para a nossa historia; basta
que, no que tivermos de contar, nao nos desviemos da verdade nem um til. (Cervantes
1978: 29)

Desta forma iniciava Cervantes o primeiro capítulo das aventuras do ingenioso hidalgo
que ele se propunha a contar.
Já no Prólogo, trava um diálogo com um amigo, e lhe diz que a historia de Dom
Quixote havia lhe custado algum trabalho, no entanto, maior trabalho lhe dava
escrever o prefácio que ora se lia. Isto devido ao fato de estar apresentando urna

legenda seca como as palhas, falta de invengao, minguada de estilo, pobre de conceitos,
e alheia a toda a erudigao e doutrina, sem notas as margens, nem comentários no fim do
livro, como vejo estao por ai muitos outros livros (ainda que sejam fabulosos e profanos)
tao cheios de sentencias de Aristóteles, de Platao e de toda caterva de filósofos que levam
a admiragao ao ánimo dos leitores, e fazem que estes julguem os autores dos tais livros
como homens lidos, eruditos e eloquentes? Pois que, quando citam a Divina Escritura,
se dirá que uns Santo Tomases [...]. De tudo isto há de carecer o meu livro, porque nem
tenho que notar nele á margem, nem que comentar no fim, e ainda menos sei os autores
que sigo nele para pó-los em um catálogo pelas letras do alfabeto, como se usa, comegan-
RELATOS DE VIAGEM il

do em Aristóteles, e acabando em Xenofonte, em Zoilo ou em Zèuxis, ainda que foi mal-


dizente um destes e pintor o outro. Também há o meu livro de carecer de sonetos no
principio, pelo menos de sonetos cujos autores sejam duques [...] ou poetas celebérrimos.
(Cervantes 1978: 13)

Ou seja, como seu livro nào apresentava tudo aquilo que ¿ra costume se fazer nos li-
vros de cavalaria, tinha decidido que ficaria "sepultado nos arquivos da Mancha" até
que alguém resolvesse adorná-lo com todas estas coisas que lhe faltavam, pois se
sentia incapaz de remediá-las, seja por urna insufíciéncia natural, seja por ser
"...muito preguifoso e custa-me muito a andar procurando autores que me digam
aquilo que eu muito bem sei dizer sem eles" (Cervantes 1978: 13).
Após urna "longa e estrondosa gargalhada", o amigo lhe diz ter sempre lhe
achado "homem prudente e discreto em todas as agòes", e que portanto só poderia
entender essas suas c o l o c a r e s como fruto de "preguifa e penùria de reflexào". Sendo
assim, passa a especificar como desfazer todas as dificuldades enumeradas. No que diz
respeito aos sonetos, epigramas e elogios que faltam no principio do livro, propòe que
ele os componila e os atribua a "pessoa que for mais de vosso agrado". No tocante ao
"negocio de citar ñas margens do livros os nomes dos autores que vos aproveitardes
para inserirdes na vossa historia seus ditos e sentengas", lhe recomenda que ou utilize
as citagòes que sabe de memoria ou que as recolha desde que nào tenha muito
trabalho, enumerando várias citagòes sobre várias temáticas. Quanto a fazer anotafóes
ou comentário no fim do livro, recomenda que ao nomear alguém ou algum lugar que
se referende àqueles conhecidos, e que portanto os comentários sào mais do que
sabidos (por exemplo, ao falar de gigantes, que seja o gigante Golias, e "somente com
este nome"). E, por firn, no que diz respeito à citagào de autores que costumam trazer
os outros livros, lhe aconselha que os retire de algum catálogo que tenha os autores
conhecidos por ordem alfabética, apesar de achar nào ser necessàrio "incomodar tanta
gente". No entanto, esse catálogo poderá servir caso encontre

leitores tao bons e tao ingenuos que acreditem na verdade do vosso catálogo, e se persua-
dam de que a vossa historia, tao simples e tao singela, todavía precisava muito daquelas
imensas citafòes, e, quando nào sirva isto de outra coisa, servirá contudo por certo de
dar ao vosso livro urna grande autoridade. Além do que ninguém quererá dar-se ao
trabalho de averiguar se todos aqueles autores foram consultados e seguidos por vós, ou
nào o foram, porque dai nào tira proveito algum. (Cervantes 1978: 15)

Tendo enumerado a maneira como acreditava que se poderia preencher as faltas ante-
riormente apontadas, concluí o amigo que na verdade o livro nào carece de nada da-
quilo pois "se nào me iludo [...] todo ele é uma invectiva contra os livros de cava-
larias", tendo por
32. VALTER SINDER

único fim desfazer a autoridade que por esse mundo e entre o vulgo ganharam os livros
de cavalarias, nao careceis de andar mendigando sentenfas de filósofos, conselhos da di-
vina escritura, fábulas de poetas, orafóes de retóricos e milagres de santos. (Cervantes
1978: 16)

Tratava-se, portante», de estabelecer a verdade dos livros de cavalarias. Será que pode-
mos surpreender aqui urna postura que criticando a lenda, o mito, enfim, a tradigáo,
apontaria para o estabelecimento da verdade do fato? Seria este o momento de emer-
géncia do olhar de pura observado?

A fim de explicar o prestigio alcanzado pelo romantismo cavaleiresco, Hauser, em sua


Historia Social da Literatura e da Arte (1982), aponta que, em lugar algum, o "novo
culto da cavalaria" teria atingido um grau de intensidade tao grande como na Espanha.
Isso teria se dado, principalmente, devido ao longo período de luta contra os mouros,
onde os conceitos de fé e honra teriam se tornado urna unidade indissolúvel, conju-
gando-se, ao mesmo tempo, com outros "pretextos para a heroicidade militar" a partir
das guerras de conquista contra a Itália, vitórias sobre a Franga e a explora?áo dos te-
souros da América. "Assim neste país, onde o recém-revivido espirito da cavalaria
brilhou com mais intensidade, a desilusao foi muito maior quando o dominio dos ideáis
de cavalaria provou ser ficticio" (Hauser 1982: 528). Concordando com esta coloca-
gao, Auerbach irá dizer que Dom Quixote

é, antes do mais, urna sátira contra os romances de cavalaria e Cervantes lhes tocou o
ponto principal: o ideal cavaleiresco num mundo totalmente mudado após a época em que
a cavalaria teve urna fungáo real. (Auerbach 1972: 186)

Para Hauser, a novidade na obra de Cervantes nao foi a de ser uma crítica da cavalaria
fora de moda (outros, antes dele já haviam feito), mas sim o fato de estabelecer a rela-
fáo de dois mundos de "idealismo romántico" e "racionalismo realista". "O que era
novo era o indissolúvel dualismo do seu ponto de vista do mundo, a concepgáo da im-
possibilidade de realizagáo da idéia num mundo de realidade, e de reduzir a realidade
á idéia" (Hauser 1982: 529). Como aponta Aguiar e Silva,

[o] Dom Quixote de Cervantes, espécie de anti-romance centrado sobre a crítica dos ro-
mances de cavalaria, representa a sátira desse mundo romanesco, quimérico e ilusorio,
característico da época barroca, e ascende á categoría de eterno e patético símbolo do
conflito entre a realidade e a aparéncia, entre o sonho e a vileza da matéria. (Aguiar e
Silva 1979: 253)

Crítica aos romances de cavalaria quiméricos e ilusorios, decepgao com os ideáis da


cavalaria frente á realidade, inadequagáo entre o real e o ideal. Afinal, do que se trata?
Como vimos, para Cervantes, Dom Quixote seria narrado tomando-se cuidado em nao
se desviar da verdade nem um til, tendo por fim último desfazer a autoridade que, por
esse mundo e entre o vulgo, ganharam os livros de cavalaria. Vejamos como.
RELATOS DE VIAGEM

Já no inicio do primeiro capítulo somos informados que o fidalgo Quijada, Quesa-


da ou talvez Quijana,

nos intervalos que tinha de ocio (que eram os mais do ano), se dava a 1er livros de cavala-
rias, com tanta afeifào e gosto, que se esqueceu quase de todo do exercício da cafa, e até
da administrado dos seus bens; e a tanto chegou a sua curiosidade e desatino neste ponto,
que vendeu muitos trechos de terra de semeadura para comprar livros de cavalarias que
ler, com o que juntou em casa quanto pode apanhar daquele gènero. (Cervantes 1978: 29)

Tanto se empenhou naquelas leituras que passava as noites em claro; desta forma,

do pouco dormir e do muito ler, se lhe secou o cérebro, de maneira que chegou a perder
o juízo. Encheu-se-lhe a fantasia de tudo que achava nos livros [...], e assentou-se-lhe de
tal modo na imaginafáo ser verdade toda aquele máquina de sonhadas invengòes que lia,
que para ele nao havia historia mais certa no mundo. (Cervantes 1978: 30)

Tendo perdido o juízo, passando a acreditar ñas historias que lera, acontece ainda que

rematado já de todo o juízo, deu no mais estranho pensamento em que nunca jamais caiu
louco algum no mundo, e foi: parecer-lhe convinhável e necessàrio, assim para aumento
de sua honra pròpria, como para proveito da república, fazer-se cavaleiro andante, e ir-se
por todo o mundo. (Cervantes 1978: 30)

Vemos, portante, que a estratégia adotada por Cervantes para realizar o seu projeto
inicial de desfazer a autoridade que havia adquirido entre o vulgo os livros de cavalaria
consiste em apresentar o personagem principal como alguém que teria se envolvido de
tal forma na leitura destes livros que teria deixado completamente de lado seus afaze-
res, e que acabara nào só por acreditar na veracidade das historias de cavalaria, como
perderá completamente o juízo, decidindo fazer-se cavaleiro andante.
A partir deste momento comegam as aventuras de Dom Quixote. Cervantes
decide desfazer a autoridade que os livros de cavalaria haviam adquirido,
apresentando-nos um herói que havia perdido o juízo lendo e acreditando exatamente
na veracidade destes livros. Sua loucura se constituí pela nao-distingáo entre o espado
que seria pròprio às realizagòes de seus heróis favoritos e o espago da agào cotidiana,
pela auséncia de fronteiras entre eles. Sancho Panga, seu fiel escudeiro, será
introduzido como contraponto fundamental destas fronteiras tao difusas.
Que tipo de viagem realizará Dom Quixote? Logo somos informados de que de-
verá

ir-se por todo o mundo, com as suas armas e cavalo, à cata de aventuras, e exercitar-se
em tudo em que tinha lido se exercitavam os da andante cavalaria, desfazendo todo o gé-
nero de agravos, e pondo-se em ocasiòes e perigos, donde, levando-os a cabo, cobrasse
perpètuo nome e fama. (Cervantes 1978: 30)
2£ VALTER SINDER

Assim como Colombo se langou ao mar a fim de atingir o oriente pelo poente, deslo-
cando-se em mares nunca dantes navegados, guiado por urna certeza que constante-
mente via sinais que reiteravam sua convicgáo, Dom Quixote também se propunha a
"ir-se por todo o mundo" em suas aventuras. Da mesma forma que Colombo, Dom
Quixote irá se guiar por sinais que lhe indicam estar no caminho certo; no entanto, co-
mo se sabe, em suas andanzas, ele nunca irá se apartar de sua provincia. Como afirma
Foucault, em/ls Palavras e as Coisas (s. d. [1966]), Dom Quixote pode ser apontado
como o herói do Mesmo. Sua viagem consiste em urna peregrinagáo meticulosa que
sempre se detém diante de todas as marcas da similitude. Logo em sua primeira saída,
após ter caminhado o dia todo sem lhe acontecer coisa merecedora de ser contada, pro-
curando um lugar para se recolher,

viu nao longe do caminho urna venda [...]. Achavam-se ao acaso á porta duas mulheres
mofas, destas que se chamam 'de vida fácil' [...]; e como ao nosso aventureiro tudo quan-
to pensava, via, ou imaginava, lhe parecía real, e conforme ao que tinha lido, logo que
viu a locanda se lhe representou ser um castelo com suas quatro torres, e coruchéus feitos
de luzente prata, sem lhe faltar sua ponte levadiza, e cava profunda, e mais acessórios
que em semelhantes castelos se debuxam. (Cervantes 1978: 33)

Dom Quixote parece ter a mesma seguranza que tinha Colombo tanto no que fazia,
quanto para onde se dirigia. Tinha lido grande parte dos livros de cavalaria, estando
seguro nao só de sua veracidade como de ser ele um nobre cavaleiro dentre tantos por
ele conhecidos. Restava provar sua nobreza realizando o mesmo tipo de agoes que sa-
bia terem os outros cavaleiros realizados. Desde o inicio de suas aventuras, via sinais
que lhe comprovavam tudo aquilo que acreditava. Assim como Colombo via sinais que
corroboravam sua certeza, Dom Quixote também via aqueles que testemunhavam a seu
favor. Ambos, pelo que parece, estavam procurando confírmagóes para verdades
conhecidas de antemao. Assim como Colombo havia lido o relato de Marco Polo, e
pauta va grande parte de suas agoes e interpretares nestes conhecimentos, Dom Qui-
xote se pauta va nos livros de cavalaria.
Da mesma forma como a certeza de Colombo parece ter guiado suas aventuras,
parece que os livros de cavalaria constituem a existéncia de Dom Quixote. E mais,
talvez pudessemos dizer que constituem principalmente seu dever; a todo momento,
conforme nos diz, deveria "exercitar-se em tudo em que tinha lido se exercitavam os
da andante cavalaria"; a cada momento ele deve consultá-los a fim de saber
exatamente o que deve fazer e dizer para mostrar que ele é, exatamente, da mesma
natureza do que o texto de onde saiu.
Será a forma de conhecimento da realidade de Dom Quixote igual a que surpreen-
demos em Colombo? Será que a relagáo entre o conhecimento e as coisas a conhecer
se dá da mesma forma? Será que podemos formular urna equagáo dizendo que Colom-
bo está para Marco Polo assim como Dom Quixote está para Amadis de Gaula?
Trata-se do inicio do século XVII - a primeira parte do Quixote foi publicada em
1605, e a segunda em 1615. Será que a leitura/interpretagáo que Dom Quixote faz da
RELATOS DE VIAGEM 21
realidade é praticada da mesma forma como fizera Colombo; ou seja, de forma fina-
lista? Será possível, portanto, constatar que as leituras do Quixote teriam determinado
suas interpretagoes, da mesma forma como as informagòes prévias de Colombo teriam
influenciado as dele?
As aventuras de Dom Quixote serào urna constante decifragào do mundo. Urna
longa viagem para provar que os livros falam a verdade. Ora, se isto se faz necessàrio,
se a prova tiver que ser feita, isto significa que os signos legíveis já nao sao semelhan-
tes aos seres visíveis? As aventuras do Quixote consistem em urna tentativa de provar
que os signos da linguagem sao realmente conforme às próprias coisas. "D. Quixote
lé o mundo para demonstrar os livros. E as pro vas que ele obtém nào sào mais do que
o reflexo das semelhangas" (Foucault s. d. [1966]: 71).
Todas as aventuras de Dom Quixote se voltam para a tentativa de achar as simili-
tudes. Mesmo os mais fracos sinais sào solicitados a testemunhar a semelhanga. Ainda
em sua primeira saída quando resolveu parar para descansar,

[f]oi-se chegando à pousada ou castelo, pelo que se lhe representava, e a pequeña


distancia colheu as rédeas a Rocinante, esperando que algum anào surgiria entre as
ameias a dar sinal de trombeta por ser chegado cavaleiro ao castelo. Vendo porém que
tardava, e que Rocinante mostrava pressa em chegar à estrebaria, achegou-se à porta da
venda [...]. Sucedeu acaso que um porqueiro, que andava recolhendo de uns restolhos a
sua manada de porcos [...] tocou urna buzina a recolher. No mesmo instante se figurou
a Dom Quixote o que desejava; a saber: que là estava algum anào dando sinal de sua
vinda. (Cervantes 1978: 33)

Até mesmo quando fica patente a impossibilidade de qualquer tipo de semelhanga,


quando fica evidente tratar-se de outra coisa, essa nào-similitude também tem um mo-
delo explicativo: trata-se de metamorfoses produzidas pelos encantadores. Pode-se ver,
dentre outras passagens, na famosa aventura dos moinhos de vento, tal suceder.
Depois de Sancho Panga ter lhe dito que o que se via eram moinhos e nào gigantes,
e de ter Dom Quixote investido contra eles, sendo projetado longe ao ter dado urna
langada na vela, acontece o seguinte diálogo:

- Valha-me Deus! - exclamou Sancho. Nào lhe disse eu a Vossa Mercè que reparasse no
que fazia, que nào eram senáo moinhos de vento, e que só o podia desconhecer quem
dentro na cabe9a tivesse outros? - Cala a boca, amigo Sancho - respondeu Dom Quixote;
as coisas da guerra sao de todas as mais sujeitas a continuas mudanzas; o que eu mais
creio, e deve ser verdade, é que aquele sábio Frestào, que me roubou o aposento e os
livros, transformou estes gigantes em moinhos, para me falsear a glòria de os vencer.
(Cervantes 1978: 55)

Apesar de todos os seus esforgos, Dom Quixote permanece sempre em torno do análo-
go, percorrendo-o sem parar, sem transpor as marcas da diferenga, mas também sem
alcangar aquelas da identidade. Ao contràrio do que havíamos concluido do relato de
Colombo, aqui nào temos mais, apesar de todos os esforgos de Dom Quixote, a prosa
M VALTER SINDER

do Mundo. As similitudes acabam por nos conduzir a visòes que se modificam


constantemente. As palavras e as coisas, ou melhor, a escrita e as coisas nào mais se
assemelham. Em sua heroica tentativa de demonstrar a dúvida da legitimidade dessa
alianza, Dom Quixote nos propicia suas fantásticas aventuras.
Nào devemos nos esquecer, no entanto, que as aventuras de Dom Quixote nào se
encerram nesta procura de similitudes que acaba por demonstrar a impotencia da lin-
guagem. Como se sabe, na segunda parte do livro, Dom Quixote encontra vários per-
sonagens que haviam lido a primeira, e que o reconhecem a ele, homem real, como
herói do livro. Este fato faz com que tenhamos mais urna (agradável) surpresa. O texto
se volta para dentro de si mesmo, tornando-se objeto de sua pròpria narrativa. Da mes-
ma forma como na primeira parte os romances de cavalaria pautaram a conduta e o
dever de Dom Quixote, na segunda, a primeira parte é que desempenha esse papel.
Tal fato faz com que a linguagem ao invés de ter se tornado impotente, adquira no vos
poderes. Nesta passagem da primeira para a segunda parte, damo-nos conta que

[a] verdade de D. Quixote nao está na relafáo das palavras com o mundo, mas nessa fina
e constante relafào que as marcas verbais tecem de si para si mesmas. A ficfào desenga-
ñada das epopéias tranformou-se no poder representativo da linguagem. As palavras aca-
bam por se fechar na sua natureza de signos. (Foucault s. d. [1966]: 70)

Tendo-se isso em conta, parece que reencontramos o mesmo tipo de questào que já en-
derezamos à leitura/interpretagào de Colombo. A saber, se para Dom Quixote a procu-
ra da verdade encontra-se ancorada em urna verdade final, que no entanto, ao contrà-
rio de Colombo, ele nunca consegue plenamente realizar, devemos perguntar nova-
mente: Por que ele lia/interpreta va desta forma? Trata-se de urna confusào que assola
sua mente em particular ou eia pode ser apontada como sinal do tempo quando o domi-
nio da lenda sobre o conhecimento comega a ser contestado?
Ao iniciarmos nossa reflexào sobre Dom Quixote, ficou claro que a intendo ini-
cial de Cervantes era a de ser urna invectiva contra os livros de cavalaria, demonstran-
do que estes nào retratavam a realidade. Sua estratégia foi a de apresentar Dom Quixo-
te como um personagem que se propunha a demonstrar a verdade destes livros. Como
vimos, Dom Quixote apesar de nunca chegar a provar essa verdade, entretanto, nunca
chega a se render à evidéncia empirica. Tal fato, como já notamos, se dà devido à
possibilidade dos encantadores estarem lhe enganando. Dom Quixote oscila portanto
entre a autoridade dos livros e o testemunho da verdade dos fatos.
Nào devemos nos esquecer que Dom Quixote nos é apresentado como urna pessoa
que tendo debrugado-se dia e noite sobre os livros de cavalaria, acabou perdendo o
juízo vindo a acreditar na veracidade do que estava escrito, decidido-se inclusive a tor-
nar-se cavaleiro andante como os cavaleiros dos livros que havia lido. Logo que foi
possivel,

[...] solicitou Dom Quixote a um lavrador seu vizinho, homem de bem (se tal título se
pode dar a um pobre), e de pouco sal na moleira; tanto em suma lhe disse, tanto lhe mar-
RELATOS DE VIAGEM ¿Z
telou, que o pobre rústico se determinou em sair com ele, servindo-lhe de escudeiro.
Dizia-lhe entre outras cousas Dom Quixote que se dispusesse a acompanhá-lo de boa von-
tade, porque bem podia dar o acaso que do pé para a mào ganhasse alguma ilha, e o dei-
xasse governador déla. Com estas promessas e outras quejandas, Sancho Panfa, [...] dei-
xou mulher e filhos, e se assoldadou por escudeiro do fidalgo. (Cervantes 1978: 53)

A partir deste momento, Sancho Panca, fiel escudeiro de Dom Quixote, irá acom-
panhá-lo constantemente, e apesar de nos ter sido apresentado como "homem de bem
[...] e de pouco sal na moleira", irá servir de contraponto à leitura/interpretagào que
farà Dom Quixote da realidade.
Dom Quixote, tendo perdido o juízo, busca incessantemente estabelecer a ponte
entre os livros que leu e a experiencia concreta. Sancho Panga, frente a essa mesma
experéncia concreta e a loucura de Dom Quixote, de imediato, opta pelo que vé (como
vimos no episodio dos gigantes/moinhos). No entanto, como lhe diz Dom Quixote,
Sancho nao ve o que ele vé e muitas vezes Dom Quixote acaba por ver aquilo que San-
cho havia dito que estava vendo, única e exclusivamente devido aos poderes dos en-
cantadores.
O que se passou no que diz respeito à questào da relagào entre conhecimento e
coisas a conhecer?
Dom Quixote, por um lado, assim como Colombo, acredita que sabe antecipada-
mente o que vai encontrar. A experiéncia concreta deveria simplesmente ilustrar urna
verdade que possui. No entanto, ao contràrio de Colombo, suas aventuras sao uma
constante busca de comprovagào desta verdade. Por outro lado, temos Sancho Panga,
contraponto da loucura de Dom Quixote, que funda seu julgamento na experiéncia con-
creta.
Ao pensar esta questào em relagào a Cristovào Colombo, havíamos concluido que
o argumento de autoridade sempre se sobrepunha à experiéncia concreta. Ao nos vol-
tarmos para Dom Quixote, vemos nosso cavaleiro constantemente usando o argumento
de autoridade (os livros de cavalaria) frente à experiéncia concreta. Esta, no entanto,
nem se assemelha nem chega a se diferenciar. Ao mesmo tempo, temos Sancho Panga,
tentando separar os fatos da percepgào das criagòes da imaginagáo.
Esquemáticamente, teríamos:

Autoridade Experiéncia Concreta


Colombo +

Dom Quixote + e + e
Sancho Panga ou + + ou

Onde se pode 1er que o papel exercido pela autoridade e pela palavra (pela prova) em
Colombo encontra-se preenchido ou pela experiéncia, pelas coisas (pelo testemunho),
ou pela imaginagáo, em Sancho Panga. Enquanto que no que diz respeito a Dom Qui-
M. VALTER SINDER

xote, apesar de este sair em busca da ilustragào de urna verdade que possui, a autorida-
dade do argumento é constantemente contestada pela experiència concreta que se lhe
apresenta, sem que, no entanto, esta contestalo acabe por estabelecer-se como dife-
rencia. Entre a prova e a inquisito, Dom Quixote oscila entre essas duas formas de
produfào da verdade. Em sua loucura, apesar de contraditórios, entre a autoridade do
dito e a constatalo do visto, Dom Quixote escolhe os dois. Ao fazer isso, ele os
contesta, pois acaba por demonstrar a fraqueza de ambos.
Como aponta Hauser, Dom Quixote

[...] abre urna nova época na historia da literatura. Antes de Cervantes, na literatura tinha
havido somente personagens bons e maus, leáis e traidores, santos e blasfemos. Aquí o
herói é santo e louco numa só pessoa. (Hauser 1982: 529)

Apesar de Dom Quixote se apresentar como um livro que foi escrito com a intendo
de ser urna crítica ao prestigio alcanzado pelos livros de cavalaria junto ao vulgo, po-
demos encontrar ai urna relagào tensa, inquieta, que existe ñas obras de arte, entre a
realidade e a imaginagào.4 Neste sentido, Dom Quixote se apresenta como a primeira
das obras modernas: entre a realidade e a imaginagào, entre a critica da imaginagào
pela realidade, e urna releitura da realidade pela imaginagào, Dom Quixote aponta para
urna terceira posifào,

D. Quixote é a primeira das obras modernas, pois nela se vè a razào cruel das identidades
e das diferengas zombar incessantemente dos signos e das similitudes; pois a sua lingua-
gem rompe a velha intimidade com as coisas, para entrar nessa soberanía solitària de ser
abrupto, donde só sairá convertida em literatura. (Foucault s. d. [1966]: 73)

2.3 Os navios da razào

Da mesma forma que muitos outros autores, Artaud, ao referir-se ao Renascimento


do século XVI, diz ter sido este um momento onde se haveria rompido com urna
realidade que possuia suas próprias leis; no entanto, ao contràrio da maioria dos
pensadores, ele completa seu comentário dizendo que o Humanismo do Renascimento
nào foi um engrandecimento, mas sim um rebaixamento do homem. Como entender
tal colocagào?
Em sua Historia de la locura en la época clásica, Foucault (1976), ao analisar
a loucura enfocando expressòes pictóricas e lingüísticas no Renascimento, aponta para
a emergència de um processo de dominagào da loucura pela razào. Trata-se de enfocar
o deslocamento tenso da loucura como forma de saber. O que aparece ñas imagens da
pintura - em Bosch, por exemplo, aponta para um saber trágico, que prediz o fím do

4 Cf. Foucault (1976) e Lima (1986) para urna discussào da relafào realidade/imaginafào que
toma o Quixote como foco para reflexào.
RELATOS DE VIAGEM

mundo, e que aponta o louco, e a pròpria loucura, como detentor da verdade e da vitó-
ría final.5 Em sua expressào pictórica, a loucura tem fundamento na realidade. Aquilo
que o delirio do louco aponta, inacessível e secreto para os outros, urna vez entendido,
será apreendido como algo que já existia como verdade no pròprio mundo. 6 Mas, ao
mesmo tempo, pode-se surpreender um discurso filosófico/literário, como em Erasmo,
que se apresenta como uma consciéncia crítica da loucura. Nao se trata mais de urna
forma positiva de saber, mas sim uma (des)moralizagào do saber; nao se trata mais de
revelar as verdades mais secretas do mundo, pelo contràrio, trata-se de um jogo, de
um afrontamento, dajungào, da luta e do compromisso, que terá como resultado a pro-
dugào e a consequente imposigào de uma ordem subjetiva que acaba por se afastar des-
ta pròpria ordem. O louco aparece como o outro da razào.
A Historia de la locura tematiza a paulatina subordinado da loucura pela razào.
O esvaziamento dos leprosários no final da Idade Mèdia por toda a Europa aponta para
sua sucessiva ocupagào por outras formas sociais: - o espago de separagào social e co-
nexào moral nao ficaria desocupado. "Con un sentido completamente nuevo, y en una
cultura muy distinta, las formas subsistirán, esencialmente esta forma considerable de
separación rigurosa, que es exclusión social, pero reintegración espiritual" (Foucault
1976: 18).
Trata-se da paulatina produgào e transformagào da loucura como uma forma de
saber que expressava a experiencia trágica do homem no mundo, em proveito de um
saber racional e humanista que tem como centro a questào da verdade e da moral.
Foucault nos aponta um processo que tem urna diregào e um sentido muito precisos.
Trata-se de surpreender urna luta, um processo, iniciado no Renascimento, da
crescente subordinagào da loucura à razào. Neste sentido, a Historia de la locura
aparece como uma crítica da razào: um esmiugar de seu campo, delimitando seus
limites e suas fronteiras, suas áreas de conflito e estratégias de deslocamento a firn de
reduzir ou, se possível, excluir tudo aquilo que possa ameagar a sua ordem.
Trata-se de um processo descontinuo, delineado por Foucault através de très épo-
cas diferentes: o Renascimento, a Época Clàssica e a Idade Moderna. No Renascimen-
to, a relagào entre a loucura e a razào se apresenta de forma tensa, ambigua. Isto pode
ser apreendido, por exemplo, na filosofia cética, que incorpora a loucura ao processo
da dúvida, permitindo, muitas vezes, o comprometimento da relagào do pensamento
com a verdade. Neste momento, o processo de produgào e de subordinagào da loucura

5 ¿Qué anuncia el saber de los locos? Puesto que es el saber prohibido, sin
duda predice a la vez el reino de Satán y el fin del mundo; la última felicidad
es el supremo castigo; la omnipotencia sobre la Tierra y la caída infernal.
(Foucault 1976: 40)

6 En el polo opuesto a esta naturaleza de tinieblas, la locura fascina porque es


saber. Es saber, ante todo, porque todas esas figuras absurdas son en realidad
los elementos de un conocimiento difícil, cerrado y esotérico. (Foucault
1976: 39)
4Q_ VALTER SINDER

passa pela eliminaçào de sua especificidade enquanto forma de saber, e sua con-
séquente integraçâo em urna ordem da razâo que ainda a acolhe e aceita suas razôes. 7
Na época clàssica, porém, o processo irá se radicalizar. Descartes pode ser apontado
como o principal marco filosófico desta transformaçâo. Este será o momento em que
a loucura vai ser excluida da ordem da razâo. Na primeira das meditaçôes metafísicas,
Descartes exclui a loucura do pensamento, afastando a possibilidade de esta vir a
comprometer a démarche da dúvida. Se alguém pensa, nâo pode ser louco; se alguém
é louco, nâo pode pensar. Na Idade Moderna, por fim, pode-se surpreender ñas
Ciências Humanas um discurso que, ao apontar a loucura como alienaçâo, acabou por
patologizá-la.
Trata-se, portanto, de um processo de implantaçâo de urna razâo que, a partir de
estratégias diversas, dominou essa experiência trágica da loucura. Nâo se trata, por-
tanto, de um progresso continuo do saber sobre a loucura que caminharia em direçâo
à descoberta de sua verdade última. 8 Trata-se, sim, de um processo lento de subor-
dinaçâo e integraçâo da loucura à ordem da razâo.
Isto significa dizer que a tese da Historia de la locura tem a argumentaçâo
embasada na pressuposiçâo de urna experiência fundamental da loucura que teria sido
dominada pela razâo, embora nâo tenha sido destruida.9 Dominio que tem inicio no

7 Foucault aponta como ñas farsas e soties, o personagem do louco, do bobo, adquire grande im-
portancia.

No está ya simplemente al margen, silueta ridicula y familiar: ocupa el centro


del teatro, como poseedor de la verdad, representando el papel complemen-
tario e inverso del que representa la locura en los cuentos y en las sátiras. Si
la locura arrastra a los hombres a una ceguera que los pierde, el loco, al con-
trario, recuerda a cada uno su verdad. (Foucault 1976: 28-29)

8 Tal qual definido por Lévi-Strauss (1976/1952a: 342-343) o progresso

nào é nem necessàrio nem continuo; procede por saltos, ou, tal como diriam
os biólogos, por mutafóes. Estes saltos nào consistem em ir sempre mais
longe na mesma direfào; sào acompanhados por mudanzas de orientagào, um
pouco à maneira dos cavalos do xadrez que tém sempre à sua d i s p o s i l o
várias progressòes mas nunca no mesmo sentido.

9 Posteriormente em urna entrevista, ao referir-se à Historia de la locura, Foucault irá dizer que
nesse momento encontrava-se ainda lutando com a nofào de repressào que aparecía nesse
estudo de forma implicita:

Acredito que entào supunha urna espécie de loucura viva, volúvel e ansiosa
que a mecánica do poder tinha conseguido reprimir e reduzir ao silèncio.
Ora, me parece que a no?ào de repressào é totalmente inadequada para dar
contado que existe justamente de produtor no poder. [...] Se o poder fosse
somente repressivo, se nào fizesse outra coisa a nào ser dizer nào vocè
acredita que seria obedecido? O que faz com que o poder se mantenha e seja
RELATOS D E VIAGEM 41

Renascimento, quando a desrazáo, n o sentido de loucura c o m o experiencia funda-


mental, teria sido deixada de lado.

La experiencia trágica y cósmica de la locura se ha encontrado disfrazada por los privile-


gios exclusivos de una conciencia crítica. Por ello la experiencia clásica, y a través de
ella la experiencia moderna de la locura, no puede ser considerada como una figura total,
que así llegaría finalmente a su verdad positiva; es una figura fragmentaria la que falaz-
mente se presenta como exhaustiva; es un conjunto desequilibrado por todo lo que le fal-
ta, es decir, por todo lo que oculta. Bajo la conciencia crítica de la locura y sus formas
filosóficas o científicas, morales o médicas, no ha dejado de velar una sorda conciencia
trágica. (Foucault 1976: 51)

A desrazáo, entendida c o m o urna forma de enfrentamento da loucura, c o m o urna cons-


ciéncia trágica, ainda irá permanecer. 1 0 Sua expressáo p o d e ser apreendida ñas últimas
palavras de N i e t z s c h e , ñas últimas v i s o e s de V a n G o g h e na obra d e Artaud,

[...] en esta obra que debería plantear al pensamiento del siglo XX, si éste le prestara
atención, la más urgente de las preguntas, y la que menos permite al investigador escapar
del vértigo, en esta obra que no ha dejado de proclamar que nuestra cultura había perdido
su medio trágico desde el día en que rechazó lejos de sí a la gran locura solar del mundo,
los desgarramientos en que se consuma sin cesar la 'vida y la muerte de Satán el Fuego'.
(Foucault 1976: 51-52)

O conflito entre experiéncia trágica e consciéncia crítica da loucura foi marcado por
urna vitória progressiva desta última. O julgamento crítico paulatinamente se impóe,
permitindo á razáo, instancia de verdade e moralidade, mascarar, controlar, subordi-
nar, confiscar e por f i m anular os poderes da loucura, grande i n q u i e t a d o d o Renasci-
mento. E s s e d e s l o c a m e n t o pode ser apreendido n o interior da própria literatura.
A múltipla p r e s e n t a da loucura na literatura e m fins d o s é c u l o X V I e principio
do X V I I , c o m o p o d e - s e ver, por e x e m p l o , e m Dom Quixote o u n o Rei Lear, parece
apontar para u m e s f o r g o e m dominar esta razáo que está a procura de si m e s m o . E m
Dom Quixote p o d e - s e acompanhar c o m o

aceito é simplesmente que ele nao pesa só como urna força que diz nao, mas
que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz
discurso. Deve-se considerá-lo como urna rede produtiva que atravessa todo
o corpo social muito mais do que uma instância que tem por funçâo reprimir.
(Foucault 1979: 7-8)

10 A. Green aponta que o desejo dos intelectuais em alcançar esta verdade da desrazáo tem um
preço, envolve um risco.

Pour parler vulgairemente, du prix à payer, ou encore du sacrifice pour la


vérité que n'est autre que le risque de la folie ou de la mort. De noms?
Hölderlin, Nietzsche, Artaud, pour parles de ceux qui nous sont proches.
(Green 1977: 42)
42 VALTER SINDER

[...] del autor al lector las quimeras se transmiten, pero aquello que era fantasía por una
parte, se convierte en fantasma por otra; la astucia del escritor es aceptada con tanto can-
dor como imagen de lo real. En aparencia, nos encontramos solamente ante una crítica
fácil de las novelas de imaginación; pero un poco por debajo, hay toda una inquietud so-
bre las relaciones que existen, en la obra de arte, entre la realidad y la imaginación, y
acaso también sobre la turbia comunicación que hay entre la invención fantástica y las
fascinaciones del delirio. (Foucault 1976: 63-64)

Dom Quixote, como vimos, obra moderna por exceléncia, aponta para um jogo onde
as identidades e as diferentes brincam com os signos e as similitudes. Neste jogo, a
linguagem rompe a intimidade com as coisas, emergindo um ser abrupto, convertido
em literatura.11 A semelhanga ingressa em urna nova ordem que é para ela a do
"contra-senso e da imaginagáo". Essa transformagáo, que separa os signos e as simi-
litudes, aponta para a constituigao de duas experiencias, onde dois personagens apa-
recem frente a frente: o louco e o poeta. Desta forma, tem-se, por um lado, o louco
que

entendido [...] como fungáo cultural indispensável, tornou-se, na experiencia ocidental,


o homem das semelhanjas selvagens. Esta personagem, tal como é descrita nos romances
ou no teatro da época barroca, e tal como se institucionalizou a pouco e pouco até a psi-
quiatría do século XIX, é a que se alienou na analogía. É o jogador desregrado do Mes-
mo e do Outro. Toma as coisas por aquilo que elas nao sao, e as pessoas urnas pelas ou-
tras; ignora os seus amigos, reconhece os estranhos; julga desmascarar e impóe urna más-
cara. Inverte todos os valores e todas as proporfóes, pois julga a cada instante decifrar
signos: para ele os ouropéis fazem o rei. Segundo a percep9ao cultural que dele se tem
até fins do século XVIII, o louco nao é o Diferente senáo na medida que nao conhece a
Diferenja; ele só vé por toda a parte semelhanfas e sinais de semelhanfas; todos os
signos, para ele se assemelham, e todas as semelhanfas valem como sinais. (Foucault s.
d. [1966]: 73)

11 D. Quixote desenha o negativo do mundo da Renascenfa; a escrita cessou de


ser a prosa do Mundo; as semelhanfas e os signos romperam a sua antiga
alianza; as similitudes desiludem, descambam em visáo e delirio; as coisas
permancem obstinadamente na sua identidade irónica: já nao sao senao o que
sao; as palavras erram ao acaso, sem conteúdo, sem semelhanfas que as
preencham; já nao sao marcas das coisas; dormem entre as folhas dos livros,
no meio da poeira. A magia que permitía a decifrafáo do mundo descobrindo
as semelhanfas secretas sob os signos, deixa de ter outra finalidade que nao
seja explicar em tom delirante por que é que as analogías sao sempre
frustadas. A erudifáo que lia como um texto único a natureza e os livros é
restituida as suas quimeras: postos ñas páginas amarelecidas dos volumes, os
signos da linguagem já nao tém outro valor para além da ténue ficgao daquilo
que representan!. A escrita e as coisas já nao se assemelham. Entre elas D.
Quixote vagueia ao sabor da aventura. (Foucault s. d. [1966]: 72)
RELATOS DE VIAGEM ál

Por outro lado, situado na outra extremidade do espado cultural, no entanto, muito
próximo pela simetria, encontra-se o poeta que, para além das diferen?as conhecidas
e nomeadas, busca o reencontró das identidades e semelhangas subjacentes ás coisas.
O poeta,

sob os sinais estabelecidos, e mau grado a existencia, ele ouve um discurso mais profun-
do, que lembra o tempo em que as palavras cintilavam através da semelhanfa universal
das coisas: a Soberanía do Mesmo, táo difícil de enunciar, apaga na sua linguagem a dis-
tingo dos signos. (Foucault s. d. [1966]: 74)

Como que marcando urna nova experiéncia da linguagem e das coisas, a poesia e a
loucura se encontram na cultura ocidental moderna. Nos intersticios de urna forma de
saber que separa os seres, os signos e as similitudes, o louco, por um lado, ao reunir
todos os signos e dar-lhes urna semelhanfa que prolifera sem cessar, assegura a
"fungao do homossemantismo"; por outro lado, o poeta, em sua posifáo simétrica e
inversa, assegura a "fungáo alegórica", em sua busca desta "outra linguagem": - a
linguagem da semelhanfa; "essa linguagem sem palavras nem discursos".

O poeta faz vir a similitude até os signos que a dizem; o louco carrega todos os signos
de urna semelhan9a que acaba por apagá-los. Assim se encontram ambos, na orla exterior
da nossa cultura e no ponto mais próximo das suas divisoes essenciais, nessa situafáo
extrema - postura marginal e silhueta profundamente arcaica - em que as palavras encon-
tram sem cessar o seu poder de estranheza e o recurso da sua contestafáo. Entre elas
abriu-se o espado de um saber onde, devido a uma ruptura essencial ocorrida no Ociden-
te, já nao se trata das similitudes, mas sim das entidades e das diferenfas. (Foucault s.
d. [1966]: 75)

Fragmentagáo/desdobramento da linguagem que, como aponta Foucault, em As Pala-


vras e as Coisas (s. d. [1966]), possibilitará o surgimento de múltiplos dominios, e
apontará para a posterior emergéncia do homem no inicio do século XIX. Neste mo-
mento inicial, a linguagem surge como uma forma particular da representafáo, consti-
tuindo-se enquanto discurso.
É exatamente isso que se pode surpreender na segunda parte de Dom Quixote,
quando ele mesmo se torna, concomitantemente, personagem e autor de sua narrativa.
O desdobramento da linguagem funda a possibilidade da dicotomía que se pode apreen-
der ñas teorias modernas do discurso. É exatamente a partir da duplicado do próprio
mundo da linguagem que se coloca, modernamente, em lados opostos, o discurso sério
comprometido com o real do acontecimento (a Historia) e o discurso da ficfáo fruto
do emaranhado imaginário do sujeito (a estória). As aventuras de Dom Quixote apon-
tam para uma verdade fundamental: "A verdade de D. Quixote nao está na rela?ao das
palavras com o mundo, mas nessa fina e constante rela?áo que as marcas verbais
tecem de si para si mesmas" (Foucault s. d. [1966]: 73).
ál
3. DAS IDÉIAS E SUAS VICISSITUDES

As leis lógicas que afinal governam o mundo intelectual sào, por sua natureza, essencial-
mente invariáveis e comuns, nào só para todos os tempos e lugares, mas também para to-
dos e quaisquer assuntos, sem nenhuma distinfào, mesmo entre aqueles que consideramos
reais e quiméricos: as leis lógicas se observam, no fundo, até nos sonhos.
Augusto Comte

A relafào entre racionalizado e excessos de poder político é evidente. Nào devíamos es-
perar pela burocracia e por campos de concentragào para reconhecer a existencia de tais
relafoes. Mas o problema é: o que fazer com um fato tao evidente? Devemos julgar a ra-
zào? Para mim nada seria mais estéril. Primeiro porque o campo da razào nào tem nada
a ver com culpa ou inocencia; segundo porque nào tem sentido referir-se à razào como
a entrada contrària à nào razào; e por último tal julgamento nos colocacira na armadilha
de ter de desempenhar o papel arbitràrio e majante de irracionalista ou racionalista.
Michel Foucault

Em um processo tenso iniciado no Renascimento, pode-se acompanhar a estratégia de


estabelecimento e impianta?ào de urna forma de saber que, ancorada cada vez mais em
um propòsito racional e humanista, tem como centro a questào da verdade e da moral.
Trata-se da paulatina produgào, imposifào e finalmente identificagào desta forma
de saber com a única verdade, estabelecendo urna dominagào que irá apontar para
qualquer outro modo de produgào de verdade como produto da imaginagào, e que,
portanto, só pode produzir um saber quimérico.
Neste processo onde se pode acompanhar urna diregào e um sentido precisos de
produgào e identificagào de urna verdade como sendo a verdade, é possivel verificar
sua expansào mediante um esmiu^ar de seu campo, na tentativa de delimitar suas fron-
teiras, suas áreas de conflito e estratégias de movimentagào a firn de tentar excluir tudo
aquilo que possa vir a ameagar a sua ordem.
Vale lembrar Nietzsche que, em Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral,
assinala:

Como poderiamos nós, se somente a verdade fosse decisiva na gènese da linguagem, se


somente o ponto de vista da certeza fosse decisivo nas designafòes, como poderíamos no
entanto dizer: a pedra é dura: como se para nós esse dura fosse conhecido ainda de outro
modo, e nào como urna estimulafào inteiramente subjetiva! Dividimos as coisas por géne-
ros, designamos a árvore como feminina, o vegetal como masculino: que transposifóes
arbitrárias! A que distancia voamos além do cànone da certeza! (Nietzsche 1974: 55)

Novamente Nietzsche: "Somente por esquecimento pode o homem alguma vez chegar
a supor que possui urna verdade" (1974: 55; grifo do autor).
4L VALTER SINDER

3.1 Historia, narrativa e verdade

Se nos voltarmos para a maneira como era concebida a historia na época clàssica,1 ve-
remos que a constituido de sua narrativa como o intuito de dominar o caos, o terror
a até o acaso, passava necessariamente pela afirmado de urna autoridade que se valia
da legitimidade que lhe era dada pela tradigào a firn de construir modelos que
deveriam assegurar orientado e verdade aos homens.
Pode-se apontar, como característica básica dessa concepgào de historia, o fato
de ser

urna historia que, antes de se fundar no tempo, como a moderna, estabelece um 'espa90
de experiencias' onde podem ser reunidos exemplos, historias excepcionais, extraordiná-
rias, exemplares, em suma, capazes de fornecer orientafào e sabedoria a todos os que de-
le venham se aproximar. (Araújo 1988: 29)

Trata-se da idade clàssica - o espago da representado. A ordem aparece como a idéia


fundamental que domina todo o pensamento (Foucault s. d. [1966]). Momento em que
a linguagem, densa e enigmática, dá lugar a um discurso transparente e instrumental.
Momento em que a historia, entendida enquanto envolvimento das coisas numa linha
temporal, ainda nào existe, e o que interessa sào as grandes manobras da ordenado
do mundo. Trata-se, segundo a bela expressào-imagem de Prado Coelho, do "cinema
da representado": "momento em que tendo as palavras se separado das coisas, resta-
nos um mundo organizado segundo quadros de pensamento que ordeiramente se desen-
rolam perante nós na interminável geometria duma tela a que a realidade se reduz"
(Prado Coelho 1982: 203). Como aponta Foucault, o fundamental para a episteme
clàssica é sua relado com a mathesis, que até fíns do século XVIII permanece
constante e inalterada, apresentando, como urna de suas características essenciais, o
fato de que

as relaf oes entre os seres serào efetivamente pensadas sob a forma da ordem e da medida,
mas com esse desequilibrio fundamental de se poder sempre reduzir os problemas da me-
dida aos da ordem. De sorte que a relafào de todo o conhecimento com a mathesis apre-
senta-se como a possibilidade de estabelecer entre as coisas, mesmo nao mensuráveis,
urna sucessào ordenada. (Foucault s. d. [1966]: 84)

O fundamental é a possibilidade de se construir um mundo onde tudo se conjugue de


acordo com o principio de urna sucessào ordenada.
Tendo a ordem como base epistemológica, como se estabelecia a verdade nesta
concepdo clàssica da historia? Quais eram os critérios utilizados para se agrupar essas

1 Sobre a concep9ào clàssica da historia, entendida como compreendendo o período que vai do
Renascimento até o ¡luminismo, pode-se consultar os trabalhos de Arendt (1972), White
(1978), Veyne (1981; 1984) e Koselleck (1985).
DAS IDÉIAS E SUAS VICISSITUDES 42

chamadas "historias exemplares"? Toda e qualquer narrativa era aceita como verídica?
Paul Veyne, em trabalhos onde enfoca a concepgào clàssica da historia (Veyne 1981,
1984), irá nos chamar a atengào de que, em vez de se pressupor que a escrita da histo-
ria neste momento encontrava-se ainda encoberta pelos mitos, pela t r a d i t o , fazendo
com que se acreditasse indiscriminadamente em todas as narrativas disponíveis, deve-
se ter em mente que se tem

urna maneira pròpria de escrever a historia, e que nào é a mesma que temos nós; ora,
essa maneira repousa num pressuposto implícito tal, que a distinfào das fontes origináis
e das fontes de segunda mào, longe de ser ignorada por um vicio de método, é estranha
à questào. Veremos, com efeito, que um historiador antigo trata essas fontes nào como
o faz um historiador moderno, mas sensivelmente como um jornalista trata suas fontes
de informafào. (Veyne 1984: 83)

Veyne nos relata que antes de Etienne Pasquier publicar em 1560 suas Recherches de
la France, havia feito circular entre os amigos os manuscritos. Em sua grande maioria
as críticas que lhe foram feitas diziam respeito ao hábito de fornecer, frequentemente,
referéncias das fontes por ele citadas. Tal hábito, diziam, nào era condizente com urna
obra de historia. Se sua intendo era a de dar credibilidade à sua narrativa, deveria
guiar-se pelas obras dos antigos que haviam se consolidado atra vés do tempo, sem a
necessidade de tal artificio. "Pasquier deveria deixar que o tempo sozinho sancionasse
o seu livro!" (Veyne 1984: 83).
Um historiador antigo raramente citava suas fontes, ou colocava notas de pé de
página. Quando o fazia, era normalmente por sentir orgulho de ter descoberto um
autor ou um texto raro, "que é para eie mais urna espécie de monumento do que pro-
priamente urna fonte" (idem: 83). Ele quería que se acreditasse em sua palavra.
Nào que ele aceite e relate qualquer coisa, já que deve saber conferir a informa-
gào; entretanto,

[...] nào revelará a seus leitores todos os pormenores. Quanto mais exigente consigo mes-
mo, menos o farà; Heródoto regala-se em registrar as diferentes tradÌ9<5es contraditórias
que póde recolher; o pròprio Tucídides quase nunca o faz: relata apenas as tradifòes que
considera válidas - assume suas responsabilidades. (Veyne 1984: 84)

Nào se deve esquecer que neste momento os fatos existem.

Com efeito, antes da era da controvèrsia e antes da era de Nietzsche e de Max Weber,
os fatos existem. O historiador nào tem que interpretar (já que os fatos existem) nem que
provar (já que os fatos nào estào em jogo em urna controvèrsia): basta que relate os fatos,
que seja como um repòrter, que seja como um compilador. (Veyne 1984: 86)

Sendo assim, para bem relatar os fatos deve-se ser diligente, competente e imparcial,
para que a partir de suas virtudes e de um trabalho cuidadoso, o historiador venha a
saber a verdade sobre o passado. A firn de escrever a historia, o historiador irá
VALTER SINDER

utilizar-se de um filtro que lhe permitirá separar o mítico, o inverossímil, daquilo que
se passou. Segundo Veyne, entende-se que "a tradigáo mítica transmite um núcleo au-
téntico que, no decurso dos séculos, se rodeou de lendas; apenas estas lendas criam
dificuldades, mas nao o núcleo" (Veyne 1984: 26).
Devido a isto, um mito será entendido como urna verdade alterada pela ingenuida-
de popular, cabendo ao historiador chegar a este núcleo auténtico. Isso deve ser feito
através da "doutrina das coisas atuais", ou seja, as convengoes atuais devem agir como
o filtro que permitirá aceitar dos relatos tradicionais apenas aquilo que seria compatível
com a verdade do momento presente, e todo o resto, incompatível, seria descartado
como mero produto da imaginagáo.
Será que podemos surpreender aqui urna postura que, criticando a lenda, o mito,
enfim, a tradigáo, apontaria para o estabelecimento da verdade do fato? Seria este o
momento de emergéncia do olhar de pura observagáo? Nao nos parece ser esse o caso,
pois apesar de se colocar um tipo de crítica á tradigao, o que garante a verdade do
acontecimento é sua articulagáo com os valores cultuados no presente. A historia deve
ser exemplar. Como aponta Koselleck, em Futures Past (1985), neste momento tem-se
urna formulagao ética e pedagógica da historia, que pode ser enunciada a partir da
expressáo de Cicero, historia mestra da vida.
Isto pode ser visto, por exemplo, em Montaigne. Em seus Ensaios, no conhecido
capítulo Dos Canibais, Montaigne relata que tinha a seu servigo um homem que havia
voltado do Novo Mundo havia pouco tempo, e que lhe contara dos usos e costumes
dos nativos. Após tecer comentários sobre a veracidade do testemunho das pessoas
simples, caso de seu informante, pois como nao tem "imaginagáo para inventar e
justificar suas invengoes", nao alterando a verdade; aponta, relativizando, que nao vé
"nada de bárbaro ou selvagem no que dizem daqueles povos; e, na verdade, cada qual
considera bárbaro o que nao se pratica em sua térra. E é natural, porque só podemos
julgar da verdade e da razáo de ser das coisas pelo exemplo e pela idéia dos usos e
costumes do país em que vivemos" (Montaigne 1961: 261). Aponta portanto para a
possibilidade de tirar alguma ligáo dos ensinamentos daqueles povos, mediante o teste-
munho de pessoas simples.
Todo o tempo, a verdade sobre esses povos é contada por Montaigne, tomando
como fundamento principal, o testemunho das pessoas que lá estiveram; e que segundo
ele nao iriam distorcer os acontecimentos, nem se achariam autorizados, como muitos
na época, a falar sobre o que nao tinham presenciado, generalizando a partir daquilo
que seria específico. Como aponta, existem pessoas que "porque levam sobre nós a
vantagem de ter visto a Palestina, reivindicam o privilégio de contar o que se passa no
resto do mundo" (Montaigne 1961: 261). A argumentagáo de Montaigne nao visa a
urna confirmagáo da verdade dos fatos, que seria alcangada mediante testemunhas, mas
sim de urna afirmagáo, tanto de sua plausibilidade, como de sua verossimilhanga, ou
seja, da confirmagáo de sua relagáo com valores cultuados no presente. Montaigne
continua descreyendo o local, os hábitos e os costumes dos canibais a partir dos relatos
DAS IDÉIAS E SUAS VICISSITUDES 49

que lhes foram feitos, ponderando acerca destes, e nos conduz ao seu encontro com
très nativos do novo mundo.
Conta que très nativos estiveram em Ruâo tentados pela novidade (fato que lasti-
ma, pois eles ignoram o quanto lhes custaria de tranquilidade e felicidade o conheci-
mento de "nossos costumes corrompidos"), quando ali se encontrava Carlos IX. O rei
se entretinha com eles, e lhes foi mostrado como era a vida nas cidades. Mais tarde,
ao serem perguntados o que pensavam da cidade e o que ela lhes tinha revelado, disse-
ram, que lhes parecia estranho que homens barbados e fortes se sujeitassem a obedecer
a uma criança, pois a eles parecia "mais natural se escolhessem um dentre eles para
o comando". Além disso, observaram que também lhes espantava o convivio de gente
bem alimentada, "enquanto metades de homens emagrecidos, esfaimados, miseráveis
mendigam às portas dos outros", sem que estes últimos se revoltem e incendeim as ca-
sas dos demais. Por fim, diz ter conversado longamente com um deles, mas graças à
incompetência do intérprete, nâo pode se aprofundar em suas questôes; no entanto, re-
lata que,

tendo-lhe perguntado de onde provinha sua ascendência sobre os seus (era um chefe e
nossos marinheiros o tratavam como rei), respondeu-me que tinha o privilégio de marchar
à frente dos outros quando iam para a guerra. À minha pergunta: quantos homens o
acompanhavam? mostrou um terreno como para dizer: o que cabia naquele espaço, cerca
de cinco mil homens. Indaguei ainda se nas épocas de paz ele consevava alguma autori-
dade, e disse-me: 'Quando visito as aldeias que dependem de mim, abrem-me caminhos
na capoeira para que eu possa passar sem incómodo'. Tudo isso é, em verdade inté-
ressante, mas, que diabo, essa gente nâo usa calças! (Montaigne 1961: 269)

Historia magistra vitae. Episodio ilustrativo e exemplar. Como se verifica, neste mo-
mento a produçào da verdade mediante o testemunho tem, por fim último, o aperfei-
çoamento político e moral.
O mesmo pode ser dito no que diz respeito à ficçâo (se é que neste momento se
pode falar em ficçâo). Nâo se considerava a ficçâo como o oposto da verdade, como
um obstáculo à sua apreensâo; para o homem medieval, neste sentido, nâo existe qual-
quer tipo de marca que separe historia e ficçâo: ambas sâo confiáveis; e portanto
ambas sâo tomadas como exemplares e verdadeiras (cf. Lima 1986: cap. I).
Tal fato nâo causa espanto se nâo nos esquecermos, como apontam Kittay e
Godzich, em The Emergence of Prose (1987), que o desenvolvimento do romance se
dá conjuntamente com o desenvolvimento da escrita da historia. A prosa narrativa
embasa ambas as formas discursivas.
O ponto de apoio inical do romance também eram as sagas e os mitos plausíveis.
Em seu estudo sobre A Ascençâo do Romance (1990), Ian Watt aponta que

a comparaçâo entre o romance e as formas literárias anteriores revela uma diferença im-
portante: Defoe e Richardson sâo os primeiros grandes escritores ingleses que nâo extraí-
ram seus enredos da mitología, da Historia, da lenda ou de outras fontes literárias do
passado. Nisso diferem de Chaucer, Spenser, Shakespeare e Milton, por exemplo, que,
50. VALTER SINDER

como os escritores gregos e romanos, em geral utilizaram enredos tradicionais; e em últi-


ma análise o fizeram porque aceitavam a premissa comum de sua época segundo a qual,
sendo a Natureza essencialmente completa e imutável, seus relatos - bíblicos, lendários
ou históricos - constituem um repertorio definitivo da experiencia humana. (Watt 1990:
15)

Se acompanharmos Walter Benjamin em O Narrador (1985), estudo onde apresenta


comentários sobre a obra de Nikolai Leskov, pretendendo distinguir a narrativa do ro-
mance; temos que o surgimento do romance está diretamente vinculado ao contexto
de consolidalo da burguesía, momento em que é possível surpreender um lento retro-
cesso da narrativa em diregào ao arcaico. Da mesma forma, Ian Watt irá acentuar a
relagào entre a forma da narrativa e as relagòes sociais, quando afirma que

podemos dizer que o romance requer urna visào de mundo centrada ñas relafòes sociais
entre individuos; e isso envolve secularizado porque até o final do século XVII o indivi-
duo nào era concebido com um ser inteiramente autònomo, mas como um elemento num
quadro cujo significado depende de pessoas divinas e cujo modelo secular provém de ins-
tituifóes tradicionais como a Igreja e a monarquía. (Watt 1990: 76)

Segundo Benjamin, urna das razòes do retrocesso da narrativa para o arcaico é a ins-
taurado do dominio da imprensa. Esta retiraría da narrativa a fungào de informar e
explicar os acontecimentos de maneira plausível e, ao mesmo tempo, retiraría do
narrador a atribuigào de difundir e ensinar experièncias para serem apropriadas pelos
ouvintes, como se dava no caso da tradigào oral, e em outras formas do gènero épico.
Segundo Benjamin, é a experiencia que passa de pessoa a pessoa que irá ser a fonte
da qual dependem todos os narradores. Camponeses sedentários e marinheiros comer-
ciantes sao os estilos de vida que teriam produzido suas respectivas familias de
narradores, já que seriam estes que teriam os ouvidos mais atentos. A interpenetragào
desses dois tipos arcaicos possibilitaria o entendimento da "extensào real do reino
narrativo". No entanto,

se os camponeses e os marujos foram os primeiros mestre da arte de narrar, foram os ar-


tífices que a aperfeifoaram. No sistema corporativo associava-se o saber das térras distan-
tes, trazidos para casa pelos migrantes, com o saber do passado, recolhido pelo trabalha-
dor sedentàrio. (Benjamín 1985: 199)

Urna das características de muitos narradores natos seria, portanto, o senso pràtico.
A verdadeira narrativa tem sempre (mesmo que de forma latente) urna dimensào utili-
tària. "Essautilidade", aponta Benjamin (1985:200), "pode consistir seja num ensina-
mento moral, seja numa sugestào pràtica, seja num provèrbio ou numa norma de vida
- de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos."
A lenta transformagào apontada tanto por Benjamin quanto por Watt como
estando diretamente ligada ao processo de consol idagào da burguesía acaba por con-
duzir a urna nova situagào onde, no lugar do narrador, emerge o romancista:
DAS IDÉIAS E SUAS VICISSITUDES

A origem do romance é o individuo ¡solado, que nao pode mais falar exemplarmente
sobre suas preocupares mais importantes e que nao recebe conselhos nem sabe dá-los.
Escrever um romance significa, na descrifao de urna vida humana, levar o incomensurá-
vel a seus últimos limites. Na riqueza dessa vida e na descrifao dessa riqueza, o romance
anuncia a profunda perplexidade de quem a vive. O primeiro grande livro do género,
Dom Quixote, mostra como a grandeza de alma, a coragem e a generosidade de um dos
mais nobres heróis da literatura sao totalmente refratárias ao conselho e nao contem a me-
nor centelha de sabedoria. Quando no correr dos séculos se tentou ocasionalmente incluir
no romance algum ensinamento [ . . . ] - , essas tentantivas resultaram sempre na transfor-
m a d o da própria forma romanesca. (Benjamín 1985: 201)

A transformagáo desta narrativa fundada essencialmente em modelos éticos que


deveriam assegurar a orientagáo dos homens em diregao á verdade - "o narrador é um
homem que sabe dar conselhos", indica a emergencia do romance moderno. Esta outra
forma narrativa, que, a rigor, sequer deveria efetivamente ser chamada de narrativa,
nao deve mais falar exemplarmente sobre suas disposigoes e convicgóes, assim como
nao pretende receber conselhos, e nem pretende dá-los.
Tal como a narrativa da historia clássica era concebida com o intuito de dominar
o caos, valendo-se da autoridade da tradigáo a fim de constituir modelos que orienta-
riam os homens em diregáo á verdade; da mesma forma, a narrativa (no sentido utili-
zado em O Narrador), antes da emergéncia de sua forma romanesca, ocupava o lugar
da exemplaridade e dos conselhos, enquanto que o romance irá ocupar um novo lugar.
A forma romanesca em sua relagáo com a verdade inaugura um espago inédito.
Somente no fim do século XVIII, é que irá se surpreender profundas transforma-
r e s ñas relagóes entre o género literário e o histórico. Como apontou Paul Veyne
(1981: 82),

a historia científica nasceu nao quando a crítica foi inventada, pois ela já existia desde
muito tempo, mas sim no dia em que se exigiu que o oficio de historiador e o de crítico
nao passassem de um só: A pesquisa histórica foi praticada, durante séculos, sem afetar
seriamente a forma de escrever a historia, permanecendo as duas atividades estranhas en-
tre si, por vezes até no espirito de um mesmo homem. O que se modifica no final do sé-
culo XVIII é um certo clima intelectual: a historia deixa de ser literatura para tornar-se
urna ciéncia.

Sabe-se que a literatura é urna idéia nova na Europa. Somente em fins do século XVIII
e inicio do XIX é que a palavra literatura nao irá mais designar o conjunto de todas
as obras publicadas em livro, passando a nomear, particularmente, a escrita enquanto
forma específica de arte. 2 Alain Viala, em Naissance de l'écrivain (1985), aponta que
somente a partir de meados do século XVII, quando se pode constatar a criagáo das
principáis academias, o aparecimento dos direitos autorais e o incremento do comércio

2 Cf. Escarpit et al. (1970), onde todo esse processo é analisado minuciosamente.
52. VALTER SINDER

de obras, é que se pode falar em literatura. Nese momento, diz o autor, pode-se
apreender o inicio da separagào entre a arte de escrever e o saber erudito.
Como aponta Aguiar e Silva em sua Teoria da Literatura (1979), inicialmente,
a palavra literatura ora era entendida como "a ciència em geral, ora, mais especifica-
mente, a cultura do homem de letras" (Aguiar e Silva 1979: 22). 3 Paulatinamente,
pode-se acompanhar o desligamento de vários setores da realidade cultural a principio
englobada pela palavra literatura. Inicialmente dá-se o afastamento da ciència, poste-
riormente, da técnica e, em seguida, das cièncias humanas, da filosofia, da historia.
S e p a r a l o inacabada, tensa e vacilante, talvez porque impossível.
Se, na segunda metade do século XVIII, o sentido da palavra literatura aponta
para um objeto ou conjunto de objetos que se pode estudar, designando um conjunto
de obras literárias é, fundamentalmente, por volta da penúltima década do século XIX
que um novo uso se impóe. Passa a designar o fenómeno literário em geral, e já nao
circunscrito a urna literatura nacional em particular. "Caminha-se para urna nogào de
literatura como c r i a d o estética, como específica categoria intelectual e específica
forma de conhecimento" (Aguiar e Silva 1979: 23).
Para Aguiar e Silva, a transformado semántica do vocábulo literatura na segunda
metade do século XVIII pode ser explicada, por um lado, devido à especializado do
termo ciencia "acompanhando o desenvolvimento da ciencia indutiva e experimental,
de modo que deixa de ser possível abranger na literatura os escritos de caráter científi-
cos", e, por outro lado, pode-se acompanhar urna grande valorizado dos géneros lite-
rarios em prosa, "tornando-se necessària, por conseguinte, urna designado genérica
capaz de abarcar todas as manifestagoes da arte de escrever. Essa designado genérica
foi literatura" (Aguiar e Silva 1979: 23-24).
Ao longo dos séculos XIX e XX, o vocábulo literatura irá adquirir várias acep-
fòes. Conjunto da produ?ào literária de uma época, conjunto de obras que se particula-
rizam seja por sua origem, temática ou intendo; bibliografia acerca de determinado
assunto; conhecimento organizado do fenómeno literário. A prolifera?ào de usos e sen-
tidos da palavra literatura desde entào irá apontar para o desenvolvimento de reflexóes
e análises sobre a natureza e as características da linguagem literária.
E claro que reflexóes sobre a linguagem literária nao sao exclusivas deste momen-
to histórico. No entanto, o específico neste momento pode ser apreendido no fato de
que, a partir de entào, a questào se encaminhará cada vez mais, seja para a consti-
t u i d o de uma ciencia da literatura (quer dizer, urna ciència capaz de distinguir a
linguagem literária da linguagem nao literária, buscando as qualidades específicas e
diferenciáis da linguagem literária, apontando para a literatura enquanto um monu-
mento que pode ser decifrado em sua literariedadé), seja para a constituido de uma
sociologia da literatura (que irá apontar para a literatura como um documento que pode
dizer algo sobre a realidade extra-literária).

3 Segundo o autor, em lingua portuguesa pode-se apontar o primeiro uso do lexema em texto de
21 de marcio de 1510.
DAS IDÉIAS E SUAS VICISSITUDES

No decorrer destas transformagoes a historia e a literatura se separam, aportando


para inscrigoes diversas da prosa narrativa que as embasam.

3.2 Da verdade ética á verdade dos fatos

Entre a historia e a literatura muitos nexos já foram tragados. No século XIX, pelo
menos até que Leopold Ranke colocasse as bases da historia científica, a literatura e
a historia eram consideradas como tendo a mesma fungáo, ambas buscando narrar a
experiéncia e o acontecido, com o objetivo de orientar e elevar o homem. Por volta
de 1830, Ranke, protestando contra a historia moralizante, apontou que a tarefa do his-
toriador consistia em "apenas mostrar como (algo) realmente se passou" (wie es
eigentlich geweserí). O fato é que "este aforismo nao muito profundo teve um éxito es-
pantoso" (Carr 1976: 12). A separagáo entre a literatura e os estudos históricos, atual-
mente aceita como constituindo disciplinas distintas, acentuou-se fundamentalmente
desde entáo, tendo como foco principal a questao da possibilidade de escrever factual-
mente sobre a realidade observével.4
Vimos que na época clássica tanto a literatura quanto a historia podiam ser asso-
ciadas a um esforgo para subjugar o caos, mediante a edificagáo de modelos capazes
de assegurar aos homens tanto a orientagáo como a verdade. Pode-se surpreender a
crise desses modelos, principalmente, em torno da Revolugáo Francesa, quando urna
nova concepgáo da historia irá emergir e firmar-se apontando para a substituigáo da
verdade ética pela verdade dos fatos (cf. White 1985). A verdade dos fatos será entáo
colocada acima de qualquer tipo de controvérsia política ou moral, exatamente por se
apresentar como estando fundada em uma razao pura, influenciável única e
exclusivamente pelos dados da realidade.
A identificagáo da verdade com o fato irá alterar completamente a relagáo entre
esta nova concepgáo de historia e o emergente discurso ficcional. O estabelecimento
da relagáo história-fato-verdade aponta para a relagáo da literatura com o oposto da
verdade, com a nao-verdade, com o nao factual, entendida a partir de entáo como fic-
cional. Como assinala H. White, em "The Historical Text as Literary Artifact" (1978),
onde relata a transformagáo da relagáo entre a Historia e a ficgáo, "history carne to be
set over against fiction, and specially the novel, as the representation of the 'actual'
to the representation of the 'possible' or only 'imaginable'" (White 1978: 123).
Trata-se da idade moderna, espago da historia. A sucessáo aparece entáo como
principio organizador do espago de empiricidades e, como tal, fundamenta o trabalho

4 H. White, em "The Fiction of Factual Representation" (1976), chama a atenfäo para o fato de
que isto se dá apesar do romance realista e do historicismo de Ranke compartilharem muitas
suposiföes no que diz respeito ao escrever factualmente sobre a realidade observável.
VALTER SINDER

da analogia. A partir do século XIX, a Historia substituí os mecanismos da Ordem. 5


Historia nào no sentido de um dispositivo neutro onde iriam se recolher as produgòes
da dinàmica empírica, mas sim algo que as condiciona de dentro, algo que aparece co-
mo o "modo de ser fundamental das empiricidades". A partir de entào, forma-se urna
divisào entre a historia entendida enquanto urna ciéncia empírica dos acontecimentos,
e a Historia, esse modo de ser radical que prescreve um destino a todos os seres empí-
ricos, e a esses seres singulares que somos nós.
A partir do século XIX, a historia, modo de ser de tudo o que nos é dado na
experiencia, tornou-se

o incontornável do nosso pensamento: nisso por certo que nào é eia tao diferente da Or-
dem clàssica. Também esta se podia estabelecer num espafo ordenado, mas era, mais
fundamentalmente, o espafo onde todo o ser vinha ao conhecimento; e a metafísica
clàssica alojava-se precisamente nessa distancia da ordem à Ordem, das classificafòes à
Identidade, dos seres naturais à Natureza; em suma, da percepfào (ou da imaginafào) dos
homens ao entendimento e à vontade de Deus. A filosofia do século XIX situar-se-á na
distancia da historia à Historia, dos acontecimentos à Origem, da evolujào à primeira
d i l a c e r a l o da nascente, do olvido ao Retorno. (Foucault s. d. [1966]: 288)

Na época clàssica, quando as palavras e as coisas nào mais coincidiam e a linguagem


ha via se fragmentado, desdobrando-se, o espaco da representagào assegurava urna ade-
q u a l o entre o "ser do representado" e a "representagào do ser". A transparència do
sujeito e a instrumentalidade da linguagem asseguravam essa ordem. Agora, na idade
moderna, cada ser está dividido entre o visível empírico e a sua gènese secreta. Desta
forma, o conhecimento só pode ser parcial, o ser do representado nào coincide mais
com a representagào do ser, inaugura-se urna transformagào do processo cognitivo.
Transformagào da representagào clàssica, que aponta para urna divisào que dupli-
ca o espago da experiencia. Do lado do sujeito empírico, tem-se o sujeito transcenden-
tal, condigào de possibilidade de todo e qualquer conhecimento. Do lado da realidade
empirica, divisa-se o lugar onde o ser do representado oculta-se do escrutinio da repre-
sentagào. Novas linhas de pensamento se abrem. Por um lado, trata-se do estudo do
campo transcendental, determinando as condigòes formáis da experiència em geral;
por outro, da análise das correspondèncias e desencontros entre o trago visível do
representado, e das pregas, das rugas, que transbordam do seu ser.
A partir de entào, tem-se um corte que separa o ser da vida, o campo do trabalho
e o ser da linguagem; das modalidades dos seres vivos, as leis do processo produtivo

5 Cf. Foucault:

A partir do século XIX, a historia vai desenrolar numa série temporal as ana-
logias que aproximam urnas das outras as organizaçôes distintas. [...]. A His-
toria dá lugar às organizaçôes analógicas, tal como a Ordem abria o caminho
das identidades e das diferenças sucessivas. (s. d. [1966]: 287)
DAS IDÉIAS E SUAS VICISSITUDES

e as formas como a linguagem se atualiza. Por um lado, a Historia transcendental e,


por outro, a historia empírica.
No decorrer do século XIX, essa ruptura que separa a realidade empírica do cam-
po transcendental irá permitir que o positivismo delimite como sua área de atuagào o
campo do cognoscível, deixando o outro lado, o incognoscível, para as metafísicas do
objeto. Essa separagào entre o que se pode e o que nao se pode conhecer irá apontar
para a existència de uma zona escura do conhecimento positivo, que corrói suas certe-
zas através de um "transcendental que nao pode ser objetivado". Como assinala Prado
Coelho (1982: 208), "o positivismo e o seu contràrio fundamentam-se e destroem-se
reciprocamente".
De qualquer maneira o programa positivista já está delimitado: tomando como ba-
se a separagào entre as multiplicidades empíricas e o fundo incognoscível, irá se tragar
uma estratégia de conhecimento onde interessa conhecer os fenómenos e nào as subs-
tancias, as leis e nào as essèncias, as regularidades e nào os seres.
O positivismo aponta para a possibilidade da análise. Entretanto, a firn de nào le-
var a urna dispersào total, faz-se necessàrio a síntese. Para tal, irá se recorrer às cièn-
cias formáis, ou seja, neste momento, à lógica e à matemática. Possibilitando
organizar cientificamente as multiplicidades empíricas, as ciencias formáis defínirao
o horizonte ideal da ciència, e apontarào para um possível reencontró, em um outro
nivel, da unidade que foi perdida com a dissociagào da mathesis e da ciència universal
da ordem. Tal programa aponta para o estabelecimento de uma barreira que deveria
definitivamente separar a ciència e a metafísica. De um lado, o positivo, o real, o
certo, o útil e o relativo; do outro, o fantástico, o ficticio, o vago, o ocioso, o absoluto
(cf. Gil 1979).
O programa positivista exalta a verdade dos fatos: "et tout le reste est
littérature".6 Essa forma menos rigorosa de conhecimento que é possível apreender a
partir desse resto, constituido de modo impressionista ou subjetivo, no entanto, nào
terá o estatuto da objetividade que o método garante. Se a literatura produz um
conhecimento imediato, tal apreensào está muito próxima das quimeras da imaginagào.
Só se conhece de fato e verdadeiramente, pela ciència.
Coincidentemente, neste momento que se pode declarar a separagào entre a verda-
de dos fatos (da ciència) e o fantasioso do resto (da literatura), pode-se apontar tam-
bém o surgimento ou, melhor, a invengào do homem. No momento em que "a história
natural se transforma em biologia", a "análise das riquezas se volve em economia" e,
principalmente, quando "a reflexào sobre a linguagem se converte em filologia e se
extingue o discurso clàssico em que o ser e a representagào encontravam o seu espago
comum"; nesse momento, "surge o homem com a sua posigào ambigua de objeto para
um saber e de sujeito que conhece" (Foucault s. d. [1966]: 407):

6 Verlaine, no seu poema Artpoétique, identifica pejorativamente 'literatura' efalsidade retórica,


apontando para a antinomia poesía/literatura; cf. Aguiar e Silva (1979: 24). Essa formulafáo,
creio, pode ser projetada na antinomia poesia-literatura/ciéncia.
M. VALTER SINDER

Antes do firn do século XVIII, o hörnern näo existia. Nem täo pouco a potència da vida,
a fecundidade do traballio ou a espessura histórica da linguagem. Ele é urna criatura re-
centissima que a demiurgia do saber fabricou com as suas mäos há menos de duzentos
anos: mas täo depressa envelheceu que se imaginou facilmente que esperara na sombra
durante milénios o momento de iluminagäo em que seria, enfim, conhecida. (Foucault s.
d. [1966]: 402)

O processo de fragmentado da linguagem instituido quando as palavras se separaram


das coisas no século XVII aponta agora (depois da época clàssica, quando a linguagem
se torna urna forma particular da representagäo, constituindo-se enquanto discurso),
a partir do século XIX, para um processo de fechamento sobre si mesma. Da mesma
forma que os seres vivos, as riquezas, os valores, a historia dos acontecimentos e a
historia dos homens, a linguagem também se converte em um objeto de conhecimento.
Isto significa que conhecer a linguagem näo é mais aproximar-se o máximo possível
do conhecimento, mas sim, aplicar os métodos do saber em geral a um dominio
particular da objetividade. A linguagem perdeu a sua transparencia e a sua fungào
principal no dominio do saber.
Este processo de nivelamento da linguagem, que a reconduz ao puro estatuto de
objeto, será no entanto compensado de trés maneiras: em primeiro lugar, pelo fato da
linguagem ser urna mediagào necessària para todo conhecimento científico que queira
manifestar-se como discurso. Isto significa que, mesmo que a linguagem seja objeto
da ciencia, eia sempre reaparece do lado do sujeito que conhece, desde que se trate pa-
ra eia de enunciar o que sabe. Em segundo lugar, a compensado se dá mediante o va-
lor crítico que se atribuí ao seu estudo. A linguagem, convertida em realidade histórica
espessa e consistente, forma o lugar das tradigöes, do espirito obscuro dos povos. A
verdade do discurso é captada pela filologia.7 Finalmente, a última das compensares
ao nivelamento da linguagem, a mais importante e ao mesmo tempo a mais inesperada,
é o aparecimento da literatura. Como aponta Foucault (s. d. [1966]: 392-3),

da literatura como tal, porque desde Dante, desde Homero, existiu, realmente, no mundo
ocidental urna forma de linguagem que nós outros, agora, denominamos, 'literatura'. Mas
a palavra é de fresca data, como é recente também na nossa cultura o isolamento de urna
linguagem particular cuja modalidade pròpria é ser 'literária'. É que no inicio do século
XIX, na época em que a linguagem se entranhava na sua espessura de objeto e se
deixava, de parte a parte, atravesar por um saber, recostituia-se eia alhures, sob urna
forma independente, de acesso difícil, dobrada sobre o enigma do seu nascimento e
inteiramente referida ao puro acto de escrever. A literatura é a c o n t e s t a l o da filologia
(de que eia é, no entanto, a figura gèmea): eia reconduz a linguagem da gramática ao
puro poder de falar, e ai encontra o imperioso e selvagem ser das palavras.

7 Compreende-se assim o renovo, muito acentuado no século XIX, de todas as


técnicas de exegese. Este reaparecimento é devido ao facto de que a lingua-
gem retomou a densidade enigmática que possuia na Renascen9a. (Foucault
s. d. [1966]: 390)
DAS IDÉIAS E SIJAS VICISSITUDES SZ

Compensando o esfacelamento da linguagem no momento em que esta foi tomada


como objeto, a literatura aparece como o lugar privilegiado de sua reconstituido,
lugar onde pode-se ver a linguagem falar de si própria.

No momento em que a linguagem, como palavra disseminada, se torna objecto de conhe-


cimento, eis que reaparece sob urna modalidade estritamente oposta: silenciosa, cautelosa
colocafáo da palavra sobre a brancura do papel, onde ela nao pode ter nem sonoridade
nem interlocutor, onde nada mais tem a dizer, nada mais a fazer do que cintilar no fulgor
do seu próprio ser. (Foucault s. d. [1966]: 395)

Pode-se, portanto, apreender a filologia, a exegese e a literatura, como tendo surgido


neste processo de compensagáo ao nivelamento da linguagem; entretanto, isto nao im-
plicou em um reagrupamento, que viria restaurar urna unidade perdida. A fragmenta-
gao da linguagem em dominios múltiplos, tornando-se objeto de conhecimento, pode
ser apontada como o que teria possibilitado o aparecimento do homem - entendido ao
mesmo tempo enquanto sujeito soberano de todo conhecimento e objeto difícil de ser
apreendido.
4. À PROCURA DOS FATOS

O gosto pela historia natural faz nascer o de viajar. Após ter estudado os objectos que o
rodeam, o observador sente a necessidade de examinar outros, e daí esse desejo insopi-
tável, que experimentaram quasi todos os naturalistas, de visitar regióes longínguas.
Saint-Hilaire

É agora, portanto, na chegada, que sua verdadeira excursáo comefará, pois a imaginaíáo
será, doravante, seu guia, e eles viajaráo em suas lembranfas.
Júlio Verne

Odeio as viagens e os exploradores. E aqui estou eu disposto a relatar minhas expedifoes.


Lévi-Strauss

Desde que Colombo colocou em seus diários ser sua intengao descrever toda a viagem
"relatando tudo o que fizesse, visse e acontecesse" e que Cervantes se propós a contar
a historia de Dom Quixote sem desviar-se da "verdade nem um til", muitos outros via-
jantes relataram suas aventuras com os mais variados graus de angústia, surpresa,
fascínio e decepfáo.
Se tomarmos as crónicas escritas nos períodos das grandes descobertas marítimas,
as historias de aventureiros do século XVII e XVIII, as viagens com fins de exploragáo
científica ñas primeiras décadas do século XIX e as viagens etnográficas do nosso sé-
culo, pode-se verificar que as estratégias narrativas de afirmagáo da verdade em muito
se alteraram.
Sabemos que as noticias do novo mundo a partir do descobrimento alimentaram
em muito o imaginário europeu que já se encontrava povoado por habitantes de outras
térras que viviam em lugares extensos, abundantes e ricos. Alguns, como Jean de
Léry, mais inquietos talvez, embarcaram em diregao as suas idealizares, outros, ali-
mentaram a imaginagao, enquanto ávidos leitores de relatos de viagem.
O paradigma do relato de viagem, que pode ser delineado em fins do século XV
e inicio do XVI, seja a partir dos diários de Colombo, seja das crónicas de Jean de
Léry ou de André de Thevet, está fundamentado básicamente na apresentapáo de seres
estranhos e acontecimentos fantásticos, surpreendidos em lugares exóticos atingidos
pela travessia de mares nunca dantes navegados. A garantía da veracidade do relato
será dada pelo fato de ter sido presenciada por aquele que escreve, de preferéncia em
urna longa permanencia e convivéncia. Entretanto, o fato de o relato, na maioria das
vezes, apresentar seres e coisas estranhas e maravilhosas em momento algum se
constituí como urna questáo que poderia ser dirigida seja aquele que narra, seja á
própria narrativa.
A linguagem neste momento diz a verdade do mundo. De fato, de urna forma
mais precisa, podemos dizer que linguagem e mundo, palavra e coisas, neste mo-
mento, nao se separam. O maravilhoso, o estranho, o excesso, encontram-se, portanto,
ñas térras, nos seres e nos acontecimentos descritos, e nao na narrativa ou no narra-
dor. O relato e a narrativa apenas nos mostrariam, ou ainda, nos confirmariam, essa
60. VALTER SINDER

alteridade encontrável no mundo. Como aponta Michel de Certeau em seu estudo


sobre a oralidade (ou o espago do outro), Jean de Léry em sua Viagem à terra do
Brasil, "contando tempestades, monstros marinhos, feitos de pirataria, maravilhas ou
avatares da navegagào transoceànica", em "cada episòdio [especialmente dos capítulos
inciais e fináis] modula a estranheza com um elemento particular da gama cosmològica
(ar, água, peixe, pássaro, homem, etc.) acrescentando seu efeito pròprio à sèrie na
qual a diferenga é, ao mesmo tempo, o principio gerador e o objeto em que acreditar"
(Certeau 1982: 219).
Sucessivas reimpressòes de relatos de viagem durante o século XVI indicam urna
crescente popularidade das narrativas de viagem. Pode-se apontar como descendentes
das familias narrativas dos marinheiros mercantis, tanto os relatos dos cronistas, como
as narrativas de viajantes aventureiros.
Guiados pelas rédeas do famoso cavaleiro andante Dom Quixote de la Mancha,
os viajantes-leitores serào, a partir de entào, conduzidos também por piratas e náufra-
gos em grandes aventuras por várias partes do mundo. Mudanga em processo na rela-
gào do antigo narrador, que, segundo Benjamin, a partir do "saber da terra distante",
conjugado com o "saber do passado", teria como atributo principal difundir e ensinar
experiencias. Experiencias exemplares e ilustrativas que serviriam para o aperfeigoa-
mento moral e político.
Continua-se a viajar, seja no espago, seja no tempo, tendo como justificativa tra-
tarem-se de viagens de aprendizado. No entanto, enquanto a narrativa teria a fonte
produtora de sua verdade ética reificada pela exemplaridade e, principalmente, anco-
rada na comunidade (tendo sua atualizagào processada na comunidade-ouvinte e, por-
tanto, tendo na oralidade o lugar de sua veiculagào), o romance emergente estaría
ancorado no individuo isolado tanto enquanto produtor como enquanto receptor (estan-
do ligado portanto à forma escrita, tendo como veículo privilegiado o livro). 1 O mun-
do, nào mais apoiado em mitos, estaría, a partir de entào, organizado prosaicamente. 2

1 Para Benjamín, o individuo isolado, produto de um novo contexto histórico, em vez de veicular
conselhos, simplesmente apresentaria sua desorientafao em forma de livros, que seriam rece-
bidos por outros tantos individuos isolados. O romance poderia portanto ser apontado como o
dominio do privado, onde os individuos podem revelar-se independentemente da sociedade. O
lugar do conselheiro e guardiao da tradifáo, antes preenchido pelo narrador, será ocupado nesta
nova ordem pela imprensa, esfera do dominio público. Entretanto, vale lembrar, este novo
saber, o saber veiculado pela imprensa, "aspira uma verificafáo ¡mediata"; além disso, os fatos
já nos chegam acompanhados de explicares.

2 Ou seja, tal como definido por Aurélio B. de Holanda (1984: 1147), em seu Novo Dicionário
da Língua Portuguesa, temos:

- prosaico [Do lat. prosaicu.] Adj. 1. De, ou semelhante á prosa; 2. Relativo


á prosa. 3. Sem grandeza ouelevafao; trivial, comum, vulgar: 'No poema de
Iriarte só a forma é poética porque o fundo, prosaico e limitado, lhe imprime
À PROCURA DOS FATOS ÙL

A partir do século XVII, mas sobretudo no século XVIII, tendo como intuito a
ilustragáo, pode-se verificar, no que diz respeito á literatura de viagem, o predominio
das narrativas de aventura. Pode-se constatar, em realidade, urna tensáo constante a
partir de entáo, que irá configurar essas narrativas através de urna oscilagáo entre a
educagáo ilustrada e a própria aventura.
É como um individuo singular que o leitor vai 1er e, da mesma forma, seráo
aventuras pessoais que lhes seráo apresentadas. Mesmo quando o objeto a ser tratado
envolve grandes acontecimentos, como em romances históricos, o principal, cada vez
mais, estará ñas vivéncias pessoais. O tempo das cruzadas, por exemplo, irá se chamar
Ivanhoé. Decorre disto que os personagens ao invés de figuras universais, seráo
figuras particulares e pessoais. Nao mais Ulisses, o favorito dos deuses, mas sim
Robinson Crusoé, o selfmade man.
Nessas aventuras, da mesma forma como ñas crónicas de viagem, também sería-
mos conduzidos a lugares fantásticos, e nos depararíamos com seres estranhos. Entre-
tanto, o fantástico, o maravilhoso e o excesso estariam muito mais concentrados ñas
aventuras, e principalmente no aventureiro, que de peito aberto apresentaria com igual
intensidade, tanto seus belos feitos, quanto as suas fraquezas, do que nos locáis por on-
de este passava. A garantía da veracidade do relato continua centrada no extraordiná-
rio, só que ao invés deste extraordinário estar no mundo, encontra-se cada vez mais
no aventureiro, em sua subjetividade.
O maravilhoso, o estranho e o excesso nao se encontram, portanto, nem no
mundo e nem na narrativa, mas sim ñas aventuras daquele que narra. O relato e a
narrativa apenas nos mostrariam a sua especificidade, a sua originalidade e a sua
sinceridade.
Bem diversa será a estratégia de afirma? áo da verdade que irá se estruturar poste-
riormente.

O fato de Julio Verne raramente viajar é um dado que se gosta de ressaltar na biografía
deste autor que soube, como ninguém, nos conduzir em tantas viagens fantásticas. En-
tretanto, como apontam os editores de Viagem á Inglaterra e á Escocia,3 em 1859, es
tando Julio Verne com 31 anos, apresenta-se urna oportunidade para visitar a Ingla-
terra e a Escocia juntamente com um amigo, e Verne "aproveita essa oportunidade
com entusiasmo". Dessa experiencia, surge o "relato romanceado" que iria perma-
necer inédito por 130 anos. Este livro de viagens, "narrativa romanesca, atípica na
obra conhecida de Júlio Verne", nos conduz através de "cores, odores, curiosidades

os caracteres de um verdadeiro tratado musical.' (Latino Coelho, Cervantes,


p. 227). 4. De caráter prático; positivo.

3 Júlio Verne, 1990 - inédito descoberto nos manuscritos de Júlio Verne adquiridos pela cidade
de Nantes, publicado em 1989.
61 VALTER SINDER

e observares sobre os costumes individuáis e coletivos, os hábitos de mesa, os


presos, as vestimentas e os hábitos sociais da Ingalaterra vitoriana". 4
Qual guia, perguntam os editores ao final da apresentagáo, seria capaz de nos
conduzir a fazer urna melhor visita? Depois de um pouco mais de duzentas páginas,
viajando e conhecendo a Inglaterra e a Escocia junto com Jacques e Jonathan,
personagens principáis da viagem, chega-se ao capítulo final, onde o narrador, com
o intuito de colocar um ponto final ao relato, proporá a seguinte questáo: "O que
ficará da passagem rápida, dessa corrida desenfreada, desse sobrevoar? Jacques e
Jonathan, teráo eles ao menos trazido algo para se entreter ñas doces horas de preguiga
e de lazer?". Depois de nos ter conduzido, a nós leitores, por tantos lugares, o
narrador, ao fazer urna rápida retrospectiva diz que nossos guias

singraram o Océano Atlántico, costearam a Franja e as Ilhas Británicas; atravessaram a


Inglaterra, transpuseram o Tweed, cruzaram a Escocia. Pressentiram Liverpool, entrevi-
ram Edimburgo, perceberam Glasgow, adivinharam Stirling, supuseram Londres. Toca-
ram as montanhas e rasparam nos lagos. Mais imaginaram do que identificaram os costu-
mes novos, as diferenfas geográficas, os hábitos estranhos, as diversidades nacionais; ro-
param em tudo, mas para dizer a verdade, nada viram!
É agora, portanto, na chegada, que sua verdadeira excursáo comefará, pois a imaginafáo
será, doravante, seu guia, e eles viajaráo em suas lembranpas. (Verne 1990: 214)

Singraram, costearam, atravessaram, transpuseram e cruzaram; pressentiram, entrevi-


ram, perceberam, adivinharam e supuseram; tocaram e rasparam; mais imaginaram
do que identificaram. Rogaram em tudo, mais no entanto, para dizer a verdade, nada
viram! A imaginafáo será, doravante, seu guia. Resposta surpreendente que coloca os
personagens deste relato romanceado de viagem na mesma situagáo que nós, leitores.
Assim como nós, Jacques e Jonathan, teráo a imaginagáo como guia, viajando e apren-
dendo através de (suas-nossas) lembrangas.
Conceber as viagens como forma de aprendizado é algo que pode ser encontrado
nos mais diversos autores, segundo as mais diversas formas. Em Rousseau, por exem-
plo, como pode-se ver no Emilio (1973a), existe um grande elogio ao aprendizado que
privilegia o exame pessoal, a experiencia direta, enfim, a viagem, que propicia ir ver
as coisas onde estáo e como sao. A viagem como ilustragáo e forma privilegiada de
aprendizado é recomendada a todos. Entretanto, como aponta o narrador de Viagem
á Escocia e Inglaterra, tudo pode acontecer, e, depois de tanto viajar, nada ver, res-
tando para além da experiencia pessoal, a imaginagáo como guia.
No entanto, se pedissemos ao Baráo de Münchhausen de Jack Pearl que
escolhesse entre a ilustragáo e a imaginagáo, ele certamente nao iria titubear em nos
apresentar a verdade. E a verdade, como se sabe, sao os fatos. Se restasse alguma
dúvida, ele nao hesitaría e, como de costume, perguntaria sem titubear: "Vas you
dere, Sharlie?".

4 Apresentafào dos editores em: Júlio Verne, 1990.


À PROCURA DOS FATOS m
4.1 Observadores e observares

Em 1753, a questao proposta pela academia de Dijon para o prémio do ano seguinte
referia-se á origem da desigualdade entre os homens e se esta desiguladade seria per-
mitida por lei natural. Jean-Jacques Rousseau resolve concorrer, e para melhor elabo-
rar seu discurso deixa Paris, afastando-se do convivio dos demais, refugiando-se perto
de urna floresta, em Saint-Germain. Como assinala Paul Arbousse-Bastide, as Con-
fissóes contam o estado de espirito do filósofo naquele momento: "Metido o dia todo
na floresta, procurava e ai encontrava a imagem dos primeiros tempos dos quais orgu-
lhosamente tragava a historia; nao dava ouvidos as pequeñas mentiras dos homens,
minha alma elevava-se até a divindade" (Rousseau, cit. apud Arbousse-Bastide, 1973:
209).
Como assinalam estudiosos da obra do filósofo, Rousseau será influenciado na
elaboragáo deste trabalho, de um lado, pela filosofía enciclopédica (por filósofos como
Diderot e Condillac) e, de outro, pelas ciéncias naturais e históricas (por Buffon e
Dutertre, entre outros), produzindo entao sua obra que terá o título de Discurso sobre
a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Neste trabalho, ao invés
de reconstituir a historia humana utilizando exclusivamente os dados da geografía, da
erudigáo e da teologia, Rousseau irá reconstituí-la racionalmente. Ao mesmo tempo,
apoiará seu sistema no estudo do corpo humano, das ragas e dos povos, embasando-se
seja na Historia Natural de Buffon, na Historia Geral das Antilhas Habitadas pelo
Franceses de Dutertre, seja, na Historia das Viagens, publicagao periódica, editada
desde 1746, onde extrairá a figura do bom selvagem.
A questao da diversidade dos homens e a forma como os conhecemos seráo
objetos de urna longa nota por parte de Rousseau em seu Discurso.5 Nesta nota,
Rousseau (1973: 302) aponta que

entre os homens que conhecemos, por nós mesmos, pelos historiadores ou pelos viajan-
tes, uns sao negros, outros brancos e outros vermelhos; [...]. Pretende-se ainda existirem
povos inteiros que, como os quadrúpedes, possuem caudas. E, sem depositar fé cega nos
relatónos de Heródoto e de Ctesias, pode-se pelo menos aproveitar deles aquela opiniao,
muito plausível, de que, se fora possível praticar boas observares nesses tempos antigos,
quando os vários povos apresentavam modos de vida mais diferentes entre si do que acon-
tece atualmente, ter-se-ia entao notado, no aspecto e na compleifao do corpo variedades
bem mais notáveis.

5 Trata-se da nota n° 10 do Discurso. Para Lévi-Strauss (1976 [1962]: 41), esta nota permite

sem receio de ser desmentido, [...] afirmar que ele [Rousseau] havia concebi-
do, querido e anunciado a etnologia um século inteiro antes que eia fizesse
a sua aparifào, colocando-a, de pronto, entre as ciéncias naturais e humanas
já constituidas.
ù± VALTER SINDER

Tais fatos, continua Rousseau, somente surpreendem aqueles que "ignoram os efeitos
poderosos da diversidade dos climas, do ar, dos alimentos, do modo de viver, dos há-
bitos em gérai e, sobretudo, a força surpreendente dessas mesmas causas quando agem
continuamente sobre muitas geraçôes seguidas" (idem: 302). Atualmente, a comunica-
çâo frequente através do comércio, das viagens e das conquistas diminuiu as diferenças
entre os povos. Entretanto, todas essas variedades,

que inúmeras causas podem produzir e efetivamente produziram na espécie humana, fa-
zem com que, quanto a vários animais semelhantes aos homens - que os viajantes, sem
um exame acurado, consideraram como feras, por causa de algumas diferenças que nota-
ram na conformaçâo exterior, ou únicamente porque tais animais nâo falavam - eu des-
confiei serem, com efeito, verdadeiros homens selvagens, cuja raça, dispersada amiga-
mente nos bosques, nâo encontrara ocasiâo de desenvolver qualquer de suas faculdades
virtuais, nâo adquirindo nenhum grau de perfeiçâo e encontrando-se ainda no estado pri-
mitivo de natureza. (Idem: 303)

A fim de sustentar esta afirmaçâo, Rousseau reporta-se à Historia das Viagens, onde
o editor diz que André Batel6 relata que no Congo existem animais que "sâo como o
meio-termo entre a espécie humana e os bugios" (idem: 303). Além disso, Samuel
Purchas 7 acrescenta que, em conversas com o mesmo Batel, este lhe contara vários
episodios que, segundo lhe parecia, corroboravam a avaliaçâo do viajante inglés sobre
esses animais. Junto a isto, diz Rousseau, ainda segundo relato encontrado na Historia
das Viagens, Oliver Dapper 8 confirma que o reino do Congo está cheio destes animais,
"que na India sâo chamados de orangotangos, isto é, 'moradores dos bosques'" (Idem:
304). Outra referencia possível é a que faz Geronimo Merolla 9 quando conta que os
negros algumas vezes agarram ñas sua caças homens e mulheres selvagens.
Pode-se, segundo Rousseau, encontrar "na descriçâo desses pretensos monstros
semelhanças chocantes com a espécie humana e diferenças menores do que as que se
poderiam notar de homem para homem". A recusa a estes selvagens de pertencimento
à mesma espécie que o homem, deve-se à ignorancia que pode ser constatada no "pe-
queño número de linhas em que sâo feitas essas descriçôes", e que apontam como
"esses animais foram mal observados e com que preconceitos foram vistos" (idem:
304). Para o filósofo,

6 André Batel (1565-1640): viajante inglés que explorou a costa sudoeste da África e publicou
urna narrativa de suas viagens.

7 Samuel Purchas (1577-1628): colecionador inglés e editor de narrativas de viagens.

8 Oliver Dapper (cerca de 1680): médico e geógrafo holandés, autor de numerosas obras sobre
os países africanos, a China, a Pèrsia, as térras do sul da América e outros lugares.

9 Geronimo Merolla (1650 - ?): capuchinho e missionàrio italiano, nascido em 1650, autor de
Urna Viagem ao Congo.
À PROCURA DOS FATOS 61
os julgamentos precipitados, que nâo sào fruto de uma razâo esclarecida, estâo sujeitos
a chegar ao excesso. Nossos viajantes sem-cerimoniosamente apresentam bestas, sob os
nomes de pongos, mandrills, orangotangos, que sâo os mesmos seres que os antigos, sob
o nome de sátiros, fanos e silvanos, consideravam divindades. Veficar-se-á talvez, depois
de pesquisas mais exatas, nâo serem nem bestas nem deuses, mas homens. Esperando,
parece-me haver muitos motivos para, nesse assunto, basearmo-nos mais em Merolla,
religioso culto, testemunha ocular e que, com toda sua ingenuidade, nâo deixava de ser
homem de espirito, do que no comerciante Battel, em Dapper, em Purchas e nos outros
compiladores. (Idem: 305)

Tudo isto leva Rousseau a concluir que depois de pelo menos trezentos anos que os ha-
bitantes da Europa inundaram as outras partes do mundo, e publicaram incessantemen-
te relatos de viagens, ainda assim, em realidade, no que diz respeito aos homens, "só
reconhecemos os europeus". No que diz respeito às regiôes distantes, a causa disso é
manifesta,

somente quatro tipos de homens fazem viagens de longo curso - os marinheiros, os co-
merciantes, os soldados e os missionários. Ora, nâo se deve esperar que as très primeiras
classes forneçam bons observadores e, quanto aos da quarta, possuídos pela vocaçâo su-
blime que os inspira, mesmo que nâo fossem como todos os outros, sujeitos aos precon-
ceitos próprios ao seu estado, pode-se crer que nao se dedicariam de boa vontade a buscas
aparentemente de pura curiosidade e que os desviariam dos trabalhos mais importantes
a que se destinam. (Idem: 306)

Marinheiros, comerciantes, soldados e missionários. A soluçâo para corrigir essas ob-


servaçôes preconceituosas, falhas, dogmáticas e/ou viciadas, diz Rousseau, reside na
esperança de que algum dia reviva-se os áureos tempos, "quando os Platôes, os Tales
e os Pitágoras, tomados por um desejo ardente de saber, empreendiam as maiores via-
gens únicamente para se instruir e iam longe sacudir o jugo dos preconceitos nacionais,
conhecer os homens por suas conformidades e diferenças" (Idem: 306-307).
Atualmente, deve-se admirar

a magnificência de alguns curiosos que, com grandes despesas, fizeram ou custearam via-
gens ao Oriente, com sábios e pintores, para lá desenhar ruinas e decifrar ou copiar ins-
criçôes; custo, porém, a compreender como, num século que se vangloria de altos conhe-
cimentos, nâo se encontrem dois homens bem ligados, ricos, um em dinheiro e outro em
gênio, ambos amando a gloria e aspirando à imortalidade, um dos quais sacrifique vinte
mil escudos de sua fortuna e outro dez anos de sua vida para uma célebre viagem em vol-
ta do mundo, a fim de, pelo menos uma vez, em lugar de estudar sempre pedras e plan-
tas, estudarem os homens e os costumes e, depois de tantos séculos dedicados a medir e
considerar a casa, se resolvam por fim a conhecer-lhe os habitantes. (Idem: 307)

A terra toda, diz Rousseau, está coberta de naçôes das quais só conhecemos os nomes,
e ainda "queremos julgar o género humano! " Entretanto, podemos supor e esperar que
um dia homens como um "Montesquieu, um Buffon, um Diderot, um Duelos, um
M. VALTER SINDER

d'Alembert, um Condillac", viajem a vários lugares, para "instruir seus compatriotas,


observando e descreyendo" como o sabem fazer.

Seria a viagem mais importante de todas e a que se deveria fazer com o maior cuidado.
Suponhamos que esses novos Hércules, de volta das jornadas maravilhosas, escrevessem
depois, à vontade, a historia natural, a moral e a política do que tivessem visto: veríamos
nós mesmos sair de sua pena um mundo novo e aprenderíamos assim a conhecer o nosso.
(Idem: 308)

Quando tais observadores, referindo-se a um certo animal, orangotangos ou qualquer


outro, dissessem ser um homem e de um outro ser uma besta, dever-se-ia crer. "Cons-
tituí, porém, enorme simplicidade basear-se, a esse respeito, em viajantes grosseiros,
em relaçâo aos quais se é algumas vezes tentado a fazer a mesma pergunta que eles
se metem a resolver acerca de outros animais" (idem: 308).
Esse chamado aos espíritos iluminados dos viajantes-filósofos e esse rebaixamento
do olhar entrevado dos viajantes-grosseiros será retrucado por Louis Antoine de Bou-
gainville, em sua Viagem ao Redor do Mundo, em 1771, onde dirá:

Sou viajante e marinheiro, isto é, um mentiroso e um imbécil aos olhos dessa classe de
escritores preguiçosos e soberbos que, na sombra de seu gabinete, filosofam sem fim so-
bre o mundo e seus habitantes, e submetem imperiosamente a natureza a suas imagina-
çôes. Modos bastante singulares e inconcebíveis da parte de pessoas que, nao tendo ob-
servado nada por si próprias, só escrevem e dogmatizam a partir de observaçôes tomadas
desses mesmos viajantes aos quais recusam a faculdade de ver e pensar. (Bougainville,
cit. apud Laplantine 1988: 59, nota 6)

No século das luzes, seja para os viajantes seja para os filósofos, nao só a observaçâo
é eleita como essencial, como importa que ela seja esclarecida. Confere-se, portante,
uma prioridade ao observador, sujeito que deve possuir certas qualidades para que
possa apreender corretamente seu objeto, sabendo distinguir entre os homens e as
bestas.
Na passagem do século XVIII para o XIX, veremos constituir-se na França a So-
ciété des Observateurs de l'Homme (1799-1805), 10 que, de certa forma, irá materia-
lizar o voyageur-philosophe. Trata-se de uma sociedade que, segundo seu fundador
Louis François Jauffret, tinha como intençâo o desenvolvimento da perfeiçâo e da fe-
licidade do homem, através do auto-conhecimento. Dedicada à ciencia do homem -
em seus aspectos físicos, moráis e intelectuais - , pretendía arregimentar ao mesmo
tempo o

10 Fundada no oitavo ano da primeira República Francesa (novembro de 1799), a Sociedade é uma
dentre várias organizares científicas que surgiram nos primeiros meses do período Napoleó-
nico.
À PROCURA DOS FATOS

profound methaphysician and the practicing physician, the historian and the voyager, he
who studies the spirit of languages, and he who guides and protects the first developments
of childhood [to free themselves from] all passion, all prejudice and above all from all
spirit of system [and to join in a comparative study of man in] all the different scenes of
his life. (Jauffret, cit. apud Stocking Jr. 1968: 16)

O grupo será f o r m a d o por moralistas, f i l ó s o f o s , naturalistas, viajantes e m é d i c o s que


tém c o m o objetivo a constituifao de u m saber sobre o h o m e m , e m todos o s seus aspec-
tos. Dentre os que irao aderir ao grupo, encontram-se viajantes-exploradores c o m o
Bougainville e Levaillant, b i ó l o g o s c o m o Cuvier, Lamarck e Saint-Hilaire, m é d i c o s
c o m o Pinel e Cabanis, lingüistas c o m o Destutt de Tracy e Sicard, o químico Fourcroy
e outros estudiosos e m vários c a m p o s . T e m o s entáo a constituifáo d o n o v o voyageur-
philosophe.
Urna v i a g e m científica á costa noroeste da N o v a Holanda (Australia) é planejada
pela Société, tendo c o m o intenfáo principal estabelecer definitivamente a questáo, ain-
da incerta, da unidade d o continente australiano." D u a s obras sao elaboradas por
m e m b r o s da Société c o m o intuito de guiar as atividades antropológicas da expedigáo:
a saber, Joseph Marie de Gérando e s c r e v e as Considerations on the Methods to Follow
in the Observation of Savage Peoples, que p o d e m ser consideradas c o m o primeira
metodologia da v i a g e m que procura orientar o s viajantes-observadores. 1 2 E G e o r g e
Cuvier e s c r e v e An Instructive Note on the Researches to Be Carried Out Relative to
the Anatomical Differences Between the Diverse Races of Man, obra que irá estabele-

11 A missao científica parte em outubro de 1800 sob o comando do capitáo Nicholas Baudin, que
já havia participado em outras expedifoes científicas nos mares do sul. O capitáo tem que en-
frentar diversos problemas (ditos singulares), fruto do largo contingente de dentistas á bordo;
ao mesmo tempo, tem problemas com a tripulafáo. Quando atinge a lie de France, no Océano
Indico, vários cientistas desembarcan! (alguns doentes, outros por discordancias que haviam
se estabelecido), e, ao mesmo tempo, 46 marinheiros desertam. A viagem prossegue, e, apesar
da dieta alimentar ter sido elaborada por um membro do Instituto, o grupo é atingido por escor-
buto e desinteria. Além disso, os suprimentos chegam a um nivel táo baixo que, segundo um
relato, os homens sao obrigados a beber sua própria urina. Baudin nao regressa com vida á
Franfa. Apesar de nao ter alcanzado seus propósitos geográficos e políticos, a expedifáo logra
resultados científicos. Materiais sao coletados para integrar a colefáo de um futuro museu da
Sociedade; entretanto, quando do regresso da expedifáo, a Sociedade está se extinguindo, e o
material acaba sendo incorporado á colefáo da Imperatriz Josefina (tendo sido parcialmente des-
truida em 1814, o restante foi vendido separadamente em 1829). Cf. Stocking Jr. (1968: cap.
2).

12 Encontra-se ai a recomendagáo de que o pesquisador deva ser ele próprio testemunha daquilo
que observa, devendo inclusive participar da própria existéncia dos grupos observados. As re-
comendafóes de Gérando nao seráo implementadas por aqueles a que se destinavam diretamen-
te; vale lembrar que os viajantes-cientistas eram biólogos, zoólogos, minerálogos e médicos e
nao etnógrafos. Além disso, ou talvez exatamente por isso, o conceito de homem que embasa
as Considerares está ligado ao século das luzes, isto é, trata-se de urna concepfao abstrata-uni-
versal (rigorosamente filosófica).
M VALTER SINDER

cer as bases da anatomía comparada, ponto de vista que irá dominar a biología na
primeira metade do século XIX. Sigamos alguns rastros produzidos na constituigao de
observadores e observagoes.

4.1.1 Os naturalistas viajantes: a ciencia como guia

Os naturalistas viajantes que possuiam como fim último a explorado científica ñas úl-
timas décadas do século XVIII e primeiras do XIX tinham a geografia e, sobretudo,
a historia natural como campo dominante de suas investigares. A ordem era sair a
campo, tendo como objetivo tudo classificar, tudo ordenar; enfim, mapear tudo aquilo
que fosse encontrado.
Como assinala Theodoro Sampaio, em seu estudo sobre Os Naturalistas Viajantes
(1955), cabe ao "viajante francés Carlos Maria de La Condamine companheiro de
Bouguer e de Godin, na comissào astronòmica de 1735 a 1739, que mediu, no
Equador, o comprimente do grau do meridiano [...] a precedéncia nos estudos
científicos nesta parte da América" (Sampaio 1955: 12-13). Depois desta expedigào,
sucederam-se viagens científicas empreendidas por ingleses, franceses, espanhóis e
holandeses. Molina empreende urna viagem ao Chile a firn de descrever a historia
natural. Stedman estuda a Guiana Holandesa. Os governos tanto de Portugal como de
Espanha enviam expedigoes a fim de demarcar fronteiras, e realizar outros estudos de
caráter científico.
No entanto, Sampaio aponta como marco fundamental de um novo tipo de viagem
a realizado da expedigào de Alexander von Humboldt e Aimé Bonpland. Segundo este
autor, trata-se de urna "grande viagem científica, a de maior brilho, a modelar expedi-
gào que devia corresponder às exigèncias de urna época mais sábia e esclarecida"
(Idem: 14). Apontando para os outros tipos de viagem como tendo sido importantes,
porém limitados pelos conhecimentos de sua época, Sampaio identifica a expedigào de
Humboldt e Bonpland, como marco constitutivo de um novo olhar,

a geografia, baseada em observafòes astronómicas e nào somente simples descrifào da


configurado do solo e das populafòes visitadas; estudos, aturados do geologo e do natu-
ralista, do astrònomo e do fisico, do antiquàrio e do filòlogo; tudo entra em contribuitaci
nesse magistral empreendimento que vem assinalar urna época nos anais da ciència.
(Idem: 14)

Tendo chegado à Cumana em meados de 1799, dai partiram Humboldt e Bonpland em


sua expedigào científica, em urna viagem através das colonias espanholas da América
Tropical, que iria durar quase cinco anos. Percorrem desde as montanhas da
Venezuela até as savanas do Orinoco; navegam pelo Rio Negro até sua comunicagào
com o Amazonas; visitam as Antilhas e Havana; retornam ao continente e examinam
os planaltos e os vulcoes das Cordilheiras dos Andes; dirigem-se a Quito, a Guayaquil
À PROCURA DOS FATOS

e dai descem até Lima; por firn, viajam através das planicies mexicanas, e estudam os
arquivos e as ruinas do antigo Anahuac.
Percorrem, visitam e navegam; a tudo examinam e estudam. Ao contràrio de
Jacques e Jonathan, que mais imaginaram do que identificaram, Humboldt e Bonpland,
para ser exato e dizer a verdade, tudo virami Como fruto desta expedigào memorável,
sào publicados "mais de trinta volumes de descrigòes históricas, de geologia, de
botánica, de fisica terrestre, de astronomia, de geografia, de etnografia e de
arqueologia [...], cujo valor no terreno científico ainda nào foi por nenhuma outra
excedido" (Idem: 14-15).
Tudo viram. Ao naturalista viajante, ávido dos mistérios da natureza, cabe orga-
nizar a realidade, segundo a lògica e os modelos de classificagào da ciencia. O
inquérito minucioso feito por urna testemunha ocular que se utiliza das lentes da
ciència garante a confiabilidade e a veracidade da descrigào.
A partir de entào, várias expedifòes sào enviadas pelos europeus aos mais longin-
guos lugares da terra. No que diz respeito ao Brasil, o Principe Maximiliano de Wied-
Neuwied chefia a primeira comissào científica que aqui chega no século XIX, tendo
como intengào principal o estudo de nossa fauna. Em seguida, chega o botànico
Auguste de Saint-Hilaire, que percorre o Rio de Janeiro, Sào Paulo, Minas Gerais,
Goiás e toda a regiào costeira do Brasil meridional até a foz do Rio da Prata; vem com
a intengào de estudar minuciosamente a flora e a fauna, procedendo também a outras
investigagòes que se estendem a campos tào variados como a etnografia indigena, a
geografia e a historia.
No prefácio de seu relato das Viagens pelas provincias de Rio de Janeiro e Minas
Geraes (1938), Saint Hilaire diz que consagrou seis anos a percorrer urna vasta porcào
do impèrio do Brasil:

palmilhei cerca de duas mil e quinhentas leguas; visitei as provincias de Rio de Janeiro,
[...]; passei varios meses na república Cisplatina; vi tudo o que ainda resta das antigas
missòes jesuíticas da margem esquerda do Uruguay, e ouso esperar que a relafào da
minha viagem accrescente numerosas nofòes novas às que já se possuem relativamente
à parte oriental da América do Sul.
O estudo dos productos vegetaes do Brasil constituía, sem duvida, o objectivo principal
da viagem; nào negligenciei, no entanto, de recolher luzer que possam, sob outros aspec-
tos, dar urna idéia perfeita de regiào tào interessante. (Saint-Hilaire 1938: 13)

Palmilhei, eis ai urna expressào que sintetiza um novo modo de investigado. Andar,
visitar e percorrer palmo a palmo, minuciosamente tudo o que deve ser visto. Luzes
foram recolhidas a firn de tudo mapear e acrescentar às nogòes já existentes. Para
realizar tal empresa, Saint-Hilaire, "escrevia diariamente um jornal minucioso [...]. E
desse jornal, escripto 'in loco', que extraio a narrativa histórica cuja publicado ora
inicio" (Idem: 14). Faz questào de apontar também que sabe nào existir povo que nào
possua suas virtudes e seus defeitos, sendo assim, "nào dissimularci o mal de que fui
za. VALTER SINDER

testemunha"; no entanto, como homem a servilo da ciencia, "nenhuma imputagào per-


sonalistica maculará este livro" (Idem: 14). Para tal,

[n]ào me excederei em reflex5es; referirei o que tiver visto, procurando apresentar os


factos sob o seu aspecto real, deixando, na maioria das vezes, ao leitor, tirar por si as
consequencias.
Levei o escrupulo da exactidào ao máximo; e, devo confessa-lo, preoccupei-me em pintar
com fidelidade o que observei do que em limar o estylo. E' preciso convir, porém, que
o viajante nào pode ver tudo com seus propios olhos. Passa quando se está semeando;
quando se fizer a colheita já estará longe; é, portante, obrigado a basear-se nas informa-
fòes de outrem, e, conseguintemente, está sujeito a enganar-se. E' possivel que mais de
urna vez, talvez, me tenha isso succedido; mas será sómente nesses casos que terei induzi-
do em erro aos que me lerem. (Idem: 14-15)

Esquadrinhando a realidade com o olhar da razào científica, os naturalistas viajantes


produzem urna nova verdade dos relatos de viagem. Nào se trata mais de seres es-
tranhos e acontecimentos fantásticos de térras exóticas, tal como foram descritos por
Colombo, Léry e Staden. Também nào se trata de acontecimentos, extraordinários ou
nao, vividos/descritos por aventureiros, marinheiros, soldados, comerciantes e missio-
nários; e muito menos de verdades que continuam a serem produzidas a partir da ima-
ginado.
Trata-se de apresentar os fatos sob o seu aspecto real. Para tal, Saint-Hilaire diz
ter levado o escrupulo da exatidào ao máximo, pintando ou, poderíamos dizer mais
exatamente, retratando, com fidelidade, o observado da maneira mais objetiva
possivel. Qualquer erro, qualquer engano quantos aos fatos apresentados seria devido
única e exclusivamente à possivel inexatidào de informapòes dadas por outrem que,
por nào usar as lentes da ciencia, poderia ter urna visào distorcida.
Trata-se, portanto, antes de mais nada, da verdade objetiva dos fatos. Como
apontam Spix e Martius, em Viagem pelo Brasil (1938), 13 "a feliz s i t u a l o , fertilidade
e diversidade de riquezas do seu sólo [do Brasil] atraem tantos colonos e negociantes,
como pesquisadores científicos" (1938: 7). Tanto o compones sedentàrio como o mari-
nheiro comerciante. Serào os naturalistas viajantes os novos artífices que iriam associar
o saber das térras distantes com o saber do passado?
A descoberta de uma nova verdade que se encontra à d i s p o s i l o daqueles que tem
o espirito de aventura continua a ser o carro chefe que impulsiona tanto colonos e ne-
gociantes como pesquisadores científicos. As narrativas, entretanto, serào construidas
com um novo espirito. A produgào da verdade nào se dará mais através de narrativas
exemplares, centradas no extraordinàrio do mundo ou embasadas em postulados políti-
cos-morais; nem em aventuras fundadas em impressòes personalísticas.

13 Esta observado, a propósito das viajens ao Brasil, nos parece se aplicar também a outras
viagens, podendo portanto ser generalizada.
À PROCURA DOS FATOS 11

Tendo essas outras estratégias de produgáo da verdade como interlocutores


sempre presentes, esse novo saber embasado na observagao direta dos fatos, terá,
doravante, a ciéncia como seu guia.

4.1.2 Os prudentes argonautas: o impasse metodológico

Sabe-se a importancia e a influencia da obra de Sir George Frazer, o famoso autor de


The Golden Bough (1976)14, em vários pensadores da segunda metade do século XIX
e principios do século XX.15 Conta-se ter Frazer trabalhado doze horas por dia durante
sessenta anos, dentro de uma biblioteca de 30 mil volumes, e que teria mantido contato
permanente por carta com centenas de observadores, em diversas partes do mundo.
Produziu uma extensa obra que, segundo observou certa vez Edmund Leach com seu
humor británico, ocupa praticamente dois metros de estante.
Conta-se ainda, em geral anunciando de antemáo tratar-se de uma historia apócri-
fa, que uma vez se perguntou a Frazer por que ele próprio nao ia observar as socieda-
des a partir das quais tinha construido sua obra, e que como resposta teria se escutado
um sonoro: Deus me livre! Apócrifa ou nao, trata-se de uma historia que ilustra bem
o espirito de pensadores desta segunda metade do século XIX. Estamos em pleno do-
minio dos evolucionistas sociais que, sentados em seus gabinetes, selecionavam dados
etnográficos a partir de relatos de viagem, tendo por fim último ilustrar suas teorias
dos estágios de evolugáo pelos quais, natural e necessariamente, passavam todos os
grupos humanos. Tal qual na ciéncia natural, tratava-se de estabelecer leis invariantes
e, no caso, leis gerais (positivas) do desenvolvimento histórico da humanidade.
A teoría evolucionista, vale lembrar, colocava-se contra toda e qualquer forma
de racismo, ao preconizar a unidade fundamental da espécie humana, submetida a uma
única e mesma historia. Para os evolucionistas existe uma espécie humana única que
se desenvolve de forma desigual de acordo com as populagoes; natural e necessaria-
mente, todos os grupos humanos passam pelas mesmas etapas de evolugao, dirigindo-
se inequivocamente á fase final que é a da civilizagao.16 Tendo isto como certo, trata-

14 The Golden Bough foi publicado em doze volumes de 1890 a 1915; a obra pretende reconstituir
o processo universal que conduz em etapas sucessivas, da magia á religiáo, e depois, da religiao
á ciéncia.

15 E comum se afirmar ser The Golden Bough obra que todo homem culto do época vitoriana tinha
por obrigafáo conhecer. Pode-se apontar a influencia de Frazer, por exemplo, tanto em
Bergson quanto em Freud.

16 Morgan pode ser apontado como o pensador que melhor elaborou e sistematizou o pensamento
evolucionista. Sua obra, A Sociedade Primitiva, será como que um documento de referencia
obrigatório utilizado por antropólogos e outros pensadores do século XIX. No Prefácio deste
livro, diz que
12, VALTER SINDER

se de estabelecer científicamente a sequéncia dos estágios dessa transformado, e


ordenar os diversos grupos humanos (diversos no tempo e no espado) dentro das
diversas fases. 1 7
A o invés de excluir essas outras sociedades, apontadas anteriormente como selva-
gens (inclusive como nao-homens), trata-se agora de incluí-las dentro de alguma fase
pela qual a sociedade ocidental já teria passado. Parafraseando a bela expressáo-título
do livro de Frédéric Rognon, podemos dizer que tem-se entáo, no lugar dos selvagens,
les primitifs, nos contemporains (Rognon 1991). E mais. Essa inclusáo aponta para o
futuro dessas sociedades: assim c o m o eles representam um momento pelo qual o oci-
dente já passou, mutatis mutandis, nosso presente representa o futuro dessas socieda-
des. Tem-se, portanto, o dever de ajudá-los em seu percursso rumo á maturidade (na
verdade, nao passam de povos-crianga). 18 Trata-se de um novo momento na política
colonial. 1 9

podemos assegurar agora, apoiando-nos em provas irrefutáveis, que o


período do estado selvagem precedeu o período da bárbarie em todas as tribos
da humanidade, do mesmo modo que sabemos que a barbàrie precedeu a civi-
lizaçâo. A historia da humanidade é urna só quanto à sua origem, urna só
quanto à sua experiênica e urna só quanto ao seu progresso. (Morgan 1976:
7-8)

17 Para Morgan ( 1976-1978: 8),

as invençôes e as descobertas estâo em direta relaçâo com o progresso da hu-


manidade, assinalando a sua marcha por urna série de etapas sucessivas, ao
passo que as instituiçôes sociais e civis, dada a sua relaçâo com as necessida-
des permanentes do homem, se desenvolveram a partir de alguns germes ori-
gináis do pensamento. Representam no entanto urna mesma escala de pro-
gresso. Estas instituiçôes, invençôes e descobertas incarnaram e prescreveram
os principáis factos ainda hoje significativos que ilustram esta experiência.
Quando as reunimos e comparamos, tendem a demonstrar a origem da huma-
nidade, a semelhança das necessidades dos homens no mesmo estádio de des-
envolvimento e a identidade da actividade do espirito humano em condiçôes
sociais semelhantes.

18 O evolucionismo aparentava-se assim a urna fiança científica para a ideologia


do fardo do homem branco: a Europa está encarregada de urna pesada missâo
diante da humanidade, a de mostrar aos povos selvagens, esquecidos pela his-
toria, os beneficios da civilizaçâo. (Rognon 1991: 19)

19 No que diz respeito à relaçâo entre antropologia e colonialismo, vale lembrar a afirmaçâo de
Adam Kuper de que nâo se pode explicar a antropologia simplesmente reduzindo-a a um reflexo
da situaçâo colonial: "[A] situaçào colonial nâo gerou simplesmente a Antropologia académica.
Os outros regimes coloniais europeus nâo conseguiram produzir escolas de Antropologia de um
tipo análogo, e os espanhóis e portugueses nâo realizaram qualquer antropologia, de qualquer
espécie" (1978: 141). O que nâo significa que essas relaçôes nâo tenham sido importantes de
À PROCURA DOS F ATOS 71
Trata-se agora do período da conquista colonial, principalmente no que diz respei-
to à África, Ìndia, Australia e Nova Zelàndia, guardando as especificidades, (cf. Le-
dere 1972; Assad 1973). Momento de conquista e povoamento: nào se trata mais ex-
clusivamente de missòes e expedifòes (científicas ou nào) de alguns viajantes (natura-
listas ou nào), missionários, comerciantes ou aventureiros intrépidos, mas também de
colonos e de administradores. Um número considerável de imigrantes europeus vai se
instalar ñas colonias, posssibilitando, entre outras coisas, o estabelecimento de urna
grande rede de informagòes.
Para os evolucionistas isso significava a possibilidade de terem observadores
conscienciosos,20 guiados a distancia (por cientistas preocupados em criticar fontes),
capazes de recolher todos os materiais considerados necessários, e, além de tudo,
acessiveis por carta. Os evolucionistas da segunda metade do século XIX nào achavam
que deviam ter contato com os primitivos: nào queriam ser especialistas. Na realidade,
eles se recusavam a atuar dessa forma. Pelo que parece, consideravam, implicitamente
ou nào, que tinham tarefas mais urgentes a realizar do que um estudo particular nesta
ou naquela sociedade. Afinal, o objetivo da antropologia era o de ensinar-nos a historia
da humanidade.
Para alguns dentre esses teóricos de gabinete, os relatos que lhes chegavam às
màos (em geral, relatos de viagem) eram considerados suficientes para a elaboralo
e corroboralo de seus esquemas;21 para outros, como por exemplo Morgan e Frazer,
além destes relatos, outras informales obtidas (coletadas) por pessoas que viviam
geralmente ñas colonias, e com as quais mantinham contato, eram utilizadas.22
Ainda que Frazer jamais tenha deixado seu gabinete de traballio para manter al-
gum tipo de contato com os chamados povos primitivos, sabe-se que ele foi um dos
grandes encorajadores do traballio de campo antropològico. Conta-se, inclusive, ter
ele sustentado as pesquisas de John Roscoe, um missionàrio que se encontrava entre
os Baganda, e que havia respondido seu questionàrio (cf. Stocking Jr. 1985).
Entretanto, a rigida separalo entre a coleta dos dados, a ser feita pelo man on the

maneiras variadas, de vendo portante ser examinadas. Agradeço a Roberto da Matta por ter me
chamado atençâo para esse ponto.

20 Ou seja, formados (socializados) dentros dos mesmos cánones desta racionalidade que embasa
e dà forma a este olhar evolucionista.

21 Cf., por exemplo, McLennan, O Casamento Primitivo, publicado em 1865 e Tylor, Primitive
Culture, publicado em 1871.

22 Morgan escreveu Systems of Affinity of the Human Family em 1879, a partir de um questionàrio
enviado para missionários e administradores em várias colonias. Da mesma forma, Frazer irá
escrever The Golden Bough, apoiado no questionàrio produzido por ele e impresso privadamen-
te em 1887 (sendo inclusive utilizado posteriormente por outros pensadores) e que foi enviado
a várias partes do mundo, intitulado Questions on the Customs, Beliefs and Languages of
Savages.
7± VALTER SINDER

spot, e a teoria, a ser realizada pelo sociòlogo na metrópole, era para eie e para os
hoje chamados evolucionistas sociais indiscutível.
De qualquer forma, nào se negligenciava a necessidade de se ter on the spot
pessoas consideradas competentes que pudessem lhes fornecer os dados empíricos ne-
cessários. Pode-se acompanhar o surgimento desta preocupagào no inicio dos anos 70
do século passado, quando da e l a b o r a l o do Notes and queries on anthropology, que
seria publicado pela primeira vez em 1874. O sub-título "For the Use of Travellers and
Residents in Uncivilized Lands" ja indica a intengào da obra:

[T]o promote accurate anthropological observation on the part of travellers, and to enable
those who are not anthropologists themselves to supply the information which is wanted
for the scientific study of anthropology at home. (BAAS 1874: iv. Report(s) of the 54th
British Association for the Advancement of Science [and succeeding] meeting(s). Cit.
apud Stocking Jr. 1985: 71-72)

Inicialmente, portanto, qualquer viajante ou residente poderia vir a fornecer as infor-


m a l e s . InformagSes essas que, conforme vai se delineando o paradigma deste saber
antropológico, i rao constituindo as áreas que serio privilegiadas: a atengào irá se
voltar tanto para o estudo do parentesco como para o da religiào, áreas consideradas
como vias de acesso privilegiado às sociedades nào ocidentais. 23
Viajante ou residente, administrador, colono ou missionàrio, todos estariam aptos
a observar e suprir as i n f o r m a l e s necessárias aos pensadores ñas metrópoles. Ao con-
tràrio do que se costuma apontar, nào data desta época a oposifào entre antropólogos
e missionários, quando os últimos seriam vistos como suspeitos para a coleta e infor-
magào dos dados, urna vez que teriam como missào extirpar as superstigòes selva-
gens. 24
Nào resta dúvida de que a maioria dos antropólogos do período nào só confiava
no triunfo da racionalidade da ciéncia, como era também agnóstica, sendo alguns, in-
clusive, anti-religiosos. Entretanto, é exatamento pelo fato de serem, antes de mais na-
da, racionalistas e cientificistas, que acreditavam ser possível elaborar um manual
composto de notes and queries que facilitasse a observado cautelosa da religiào
selvagem, mesmo por aqueles, missionários ou nào, que poderiam ser levados a
comprometer os dados coletados devido a pré-conceitos. A quantidade e a qualidade
dos dados empíricos coletados fazia-se necessària. A ciéncia positiva e seus métodos
garantía a confiabilidade.

23 Além disso, se possível, tais estudos deveriam ser realizados a partir das populafóes entao
consideradas como as mais arcaicas do mundo, os aborígenes australianos.

24 Como aponta C. E. Stipe, em Anthropologists vi. Missionaries: The Influence of Presuppo-


sitions, somente duas gerafóes mais tarde, quando se terá um grupo de pesquisadores treinados
académicamente entrando na arena etnográfica, é que será estabelecida a partir dos gabinetes
de Boas e Malinowski, a moderna oposifáo entre etnógrafos e missionários.
À PROCURA DOS FATOS 75

Sem dúvida, estava havendo neste perído urna mudanza em relagáo aqueles que
seriam vistos como observadores ideáis. Paulatinamente, a preferéncia que antes estava
centrada nos missionários por permanecerem por longos períodos juntos ao grupo e
dominarem a linguagem nativa estava se dirigindo aos novos viajantes-naturalistas im-
buidos pelo espirito científico Darwiniano. 25 Entretanto, vale lembrar que a maioria
dos cientistas naturalistas-antropólogos mantinha relagoes de trabalho etnográfico com
os missionários.
Missionários, naturalistas, viajantes, colonos ou administradores, munidos seja
com o Notes and Queries seja com outros questionários produzidos nos gabinetes dos
pesquisadores eruditos, coletavam as informagoes de acordo com a forma como esta-
vam dispostas nesses manuais, para que fossem posteriormente utilizadas comparativa-
mente pelos pesquisadores ñas metrópoles. Cada vez mais, tudo levava a crer, ca-
minhava-se em diregáo á especializagáo, guardando os limites que separavam o man
on the spot e o teórico no gabinete.
Tal situagáo irá comegar a sofrer modificagoes em torno da virada do século. Em
1888-89 realizar-se-á urna expedigáo inglesa ao estreito de Torres que tinha seus prin-
cipáis objetivos claramente direcionados pelas ciencias naturais. Alfred C. Haddon,
encarregado de realizar o trabalho de campo zoológico na expedigáo, acaba se inte-
ressando por dados etnográficos, dedicando todo tempo vago á etnografía. Quando
retorna, seus interesses se voltavam para a antropologia; tornando-se, posteriormente,
lecturer em Antropologia Física em Cambridge. Acreditando necessitar mais dados
para a elaboragáo de urna monografía etnográfica, Haddon planeja urna nova
expedigáo ao Estreito de Torres, dessa vez "estritamente antropológica".
Em 1898 urna nova expedigáo chegaria ao estreito de Torres. Haddon, pelo que
parece, tomou como modelo as grandes expedigóes marítimas multidisciplinares domi-
nantes no século XIX, 26 levando consigo um grupo de colegas, cada um com algum

25 Ñas duas últimas décadas do século passado a British Association for the Advancement of
Science criou vários comités destinados à pesquisa antropològica empírica (tanto ñas colonias
como dentro do Reino Unido). Dentre estes, o Committee on the North-Western Tribes of Cana-
da teve como seu primeiro representante no campo o Reverendo E. F. Wilson (missionàrio que
havia passado dezenove anos entre os Ojibwa). Pouco tempo depois foi substituido por Boas,
cientista naturai que estava se voltando para a etnografia/antropologia - para Stocking,

the beginning of an important phase in the development of British ethno-


graphic method: the collection of data by academically trained natural
scientists defining themselves as anthropologists, and involved also in the for-
mulation and evaluation of anthropological theory. (Stocking Jr. 1985: 74)

26 [F]or Haddon, anthropology still had the embracive meaning it had gained in
the nineteenth-century Anglo-American evolutionary tradition, and which it
might also be expected to have for a field naturalist, to whom the behavior,
cries, and physical characteristics of animal were all part of a single observa-
IL VALTER SINDER

tipo de especial de qualificaçâo, de modo que se tornaría possível dividir o trabalho


de pesquisa antropológica: um estaria encarregado das medidas físicas, outro dos testes
psicológicos, ainda outro das análises lingüísticas, e assim por diante. 27
Como conta Stocking Jr. (1985), os membros da expediçâo chegam ao estreito
de Torres em fins de 1898, em um vapor comercial. Todos começam a trabalhar na
Ilha Murray, onde os très psicólogos (W. H. R. Rivers, C. Myers e W. McDougall)
testam os nativos até fins de agosto, quando Myers e McDougall se dirigem para
Sarawak a fim de estabelecer um posto avançado de pesquisa. Haddon, Ray, Wilkin
e Seligman, depois de très semanas ñas Ilhas Murray, saem em urna viagem de dois
meses ao Porto Moresby e distritos vizinhos da costa da Papua. Seligman permanece
a fim de trabalhar na costa noroeste, e os outros très se encontram com Rivers na Ilha
Murray em fins de julho, onde permanecem até inicio de setembro, quando se dirigem
a um distrito de Kiwai (onde haviam deixado Ray para trabalhar dados lingüísticos,
enquanto os outros haviam se dirigido a Mabuaig) para encontrar com Seligman. No
final de outubro, Rivers e Wilkin retornam à Inglaterra, equanto Haddon, Ray e
Seligman excursionam durante très semanas por Saibai e outras ilhas menores,
retornando à Península York, de onde partem em fins de novembro para trabalhar
durante quatre meses em Sarawak e Borneo.
Chegam, testam, se dirigem; saem, permanecem, se encontram; excursionam,
retornam e partem. Ao fim e ao cabo, quando voltam à Inglaterra, irâo publicar seis
volumes a partir dos dados recolhidos nesta verdadeira maratona etnográfica. 28 O
modelo viajante-naturalista certamente influenciou a maneira como se planejou a
expediçâo. No entanto, isso nâo se deu simplesmente devido à formaçâo de Haddon;
já em 1871, quando E. Tylor publica Primitive Culture, junto com a afirmativa de que
"para o etnólogo, o arco e a flecha formam urna espécie, o costume de deformar o
crânio das crianças é urna espécie", encontra-se a seguinte recomendaçâo: "A distri-
buiçâo geográfica dêstes objetos, e sua transmissâo de regiâo a regiâo, devem ser

tional syndrome. (Cf. Haddon, Head Hunters: Black, white and brown, 1901;
cit. apud Stocking Jr. 1985: 76)

27 Conhecida como a Expediçâo Cambridge ao Estreito de Torres, essa expediçâo é considerada,


efetivamente, a primeira grande expediçâo antropológica. Além de Haddon, o grupo acabou
sendo constituido por très psicólogos experimentáis, W. H. R. Rivers, C. Myers, W.
McDougall; um lingüista especialista em linguagens Melanesias, S. Ray; um aluno de Haddon
ainda nâo graduado, encarregado das fotografías e auxilio com os dados de antropología física,
A. Wilkin; e, um médico, encarregado da medicina nativa, C. Seligman.

28 Além destes volumes, Haddon publicou em 1901 Head Hunters: Black, white and brown
(narrativa de popularizaçâo da expediçâo); Seligman publicou artigos que foram mais tarde in-
corporados em The Melanesians of British New Guinea (1910); Hose e McDowell também
publicam artigos que serâo posteriormente incorporados em The Pagan Tribes of Borneo
(1912); além de vários artigos publicados pelos membros da expediçâo em publicaçôes cien-
tíficas ou nâo.
À PROCURA DOS FATOS 11

estudadas da mesma maneira como os naturalistas estudam a distribuigáo geográfica


de sua espécies animais ou vegetáis" (Tylor, Primitive Culture, pp. 7. Cit. apud Lévi-
Strauss 1975 [1949]: 16). Sem dúvida, o bom modelo (entendido enquanto modelo
científico) encontrava-se ñas ciéncias naturais.
Certamente, o fato de terem publicado tantos volumes, a partir de pesquisas hoje
consideradas nao tao minuciosas (levadas a cabo em tantos lugares, todas em Pidgin
English), só foi possível porque Haddon e seus colegas embasaram-se em material
coletado por ele em 1888, e porque grande parte da etnografía

was frankly carried on at second hand: he culled extensively from missionary and travel
accounts, and relied heavily on material provided by traders, missionaries, and
government employees, either on the spot, or in his extensive subsequent ethnography-
by-mail. (Stocking Jr. 1985: 77)

A produgao da verdade a partir do material coletado por comerciantes, missionários


e administradores, recolhidos pelo pesquisador seja em visitas ao local, onde se podia
aproveitar para fazer alguma observagao, seja mediante contatos por carta, permanece
sendo o modo dominante nesta virada do século, junto com a leitura de relatos que
continuavam a ser publicados.
Paralelamente, algo como um gosto de crise na teoria evolucionista cometa a se
manifestar. Em The Limitations of the Comparative Method of Anthropology (Boas
1966), artigo publicado em 1896, Franz Boas faz criticas as generalizagoes apressadas
feitas pelos evolucionistas em nome do método comparativo, e ad verte que a pesquisa
histórica deve ser considerada como o teste crítico que a ciéncia deve requerer antes
de admitir qualquer fato como evidéncia; ou seja, "the comparability of the collected
material must be tested, and uniformity of process must be demanded as proof of com-
parability" (Boas 1966: 279). A resposta de Edward Tylor (pensador evolucionista,
mas nunca um dogmático), um dos responsáveis pela publicagao do Notes and
Queries, será a admissáo da necessidade de urna profunda reformulagáo na
antropologia, na qual "the logical screw [has to be] very much tightened up" (Carta
de Tylor para Boas, cit. apud Stocking Jr. 1968: 211).
Franz Boas, pensador com formagáo em geografía e física, havia realizado sua
primeira experiéncia de trabalho de campo (enquanto geógrafo) entre os esquimos, em
1883-84. Seu interesse voltava-se para as relagóes entre as pessoas e seu meio
ambiente natural; sua intengáo era de realizar "an investigation of the dependence of
contemporary Eskimo migrations upon the physical relationships and forms of their
land" (Boas Professional Papers, cit. apud Cole 1985: 13). Boas realizou sua pesquisa
durante aproximadamente 15 meses, e, segundo suas intengóes origináis, considerou
a expedigáo um fracasso (fruto do mau tempo, escassez de caga, morte dos cachorros
que puxavam os trenos etc.). Entretanto, além de ter apontado no vos tragados para a
regiáo, em seu contato com as pessoas nos lugares onde passou, aprendeu, como apon-
ía D. Coie, que "the value of a person lies in his herzensbildung", pois a participagáo
M VALTER SINDER

in the life of the Inuit also sharpened his social sense and his belief in the equality of
virtue among peoples. The kindness and sensitivity of the Eskimo, the sympathetic tact
that they demonstrated in their personal relationships, gave proof that inner character, the
herzensbildung, was far more significant than the gloss of civilization and learning. (Cole
1985: 50)

Como aponta Lévi-Strauss (1975 [1949]: 21), Boas tomou consciéncia de sua vocagao
etnológica no decorrer deste seu primeiro trabalho de campo: "na revelagáo,
fulgurante para ele, da originalidade, particularidade e espontaneidade da vida social
de cada grupo humano". Este fato nos fornece uma pista da firme posigao desde
sempre defendida por Boas de que "nao se pode jamais deduzir [as] experiéncias
sociais, [as] interagoes constantes do individuo; elas devem ser observadas; ou como
disse uma vez: 'para compreender a historia, nao basta saber como sao as coisas, mas
como chegaram a ser o que sao.'" (Lévi-Strauss 1975 [1949]: 21).
A tentativa de compreender como as coisas chegaram a ser o que sao, de maneira
comprovada, e nao a partir daquilo que considerava generalizagoes apressadas, leva
Boas em 1936, depois de ter consagrado praticamente toda a sua vida ao estudo de
uma única civilizagáo, e nao ter produzido a historia de aspecto algum desta, a afirmar
que "infelizmente, nós nao dispomos de nenhum fato que lance uma luz qualquer sobre
estes desenvolvimentos" (Boas, History and Science in Anthropology: a Reply [1936].
Cit. apud Lévi-Strauss 1975 [1949]: 19). 0 trabalho de campo realizado pelo pesquisa-
dor no local, pretendendo entender como sao as coisas e, ainda, como chegaram a ser
o que sao, para que entao se pudesse pensar em comparagoes com outros grupos, é
levado a um tal extremo, que muitos irao apontar ter conduzido, por um lado, a um
nominalismo, e por outro, a um agnosticismo histórico completo. Nunca se tem o sufi-
ciente para afirmar a verdade. Entretanto, a idéia de um trabalho de campo intensivo,
onde o teórico fosse também o pesquisador estava comegando a firmar-se. 29

29 Como se sabe, Boas, físico com especializafáo em geografía, irá promover a pesquisa de
campo formando nos EUA toda uma gerafáo de antropólogos tendo por base uma abordagem,
a principio, histórico-cultural. Sua procura pela verdade da historia a ser reconstituida (no
entanto, nunca alcanzada), faz com que ele nunca se sinta autorizado a apresentar esta verdade.
Como aponta P. Rabinow (1983: 59), este procedimento acaba por conduzir a

to bracket the truth claims or beauty claims or morality claims of the culture
under consideration. In this act of anthropological purification - ridding our-
selves of ethnocentrism - we take no culture at its word. We start by
bracketing the truth claims or value positions of our own culture and then we
do the same for the culture we are attempting to comprehend.

Parece-nos, como procurarei demonstrar a seguir, que este ponto é fundamental para marcar
a diferenga em relafáo ao que Malinowski irá realizar posteriormente (para a produfáo da
verdade antropológica mediante o trabalho de campo).
À PROCURA DOS FATOS 22
Outro síntoma do processo em curso pode ser apreendido nos debates que se
seguem à publicaçâo em 1899 dos dados coletados entre os Arunta por Spencer e
Gillen (Spencer/Gillen 1968).30 Tendo sido testemunhas de urna grande cerimònia de
iniciaçâo que se estende por très meses, os autores de The Native Tribes of Central
Australia vivem durante todo esse período junto ao acampamento Arunta, observando
e discutindo (quase sempre em Pidgin English) mitos e crenças conexas. Os dados pu-
blicados apontam para urna riqueza de detalhes sobre a vida ritual nativa, nunca dantes
vistos, e que, em alguns casos (principalmente no que diz respeito ao totemismo),
entrava em conflito com as teorías estabelecidas e aceitas.
Além disso, ao tomar como ponto central urna única cerimònia, o livro foge às
categorías tais quais dispostas nos questionários elaborados pelos teóricos em seus
gabinetes, apontando para um novo estilo etnográfico, que irá se consolidar
futuramente em estudos intensivos de áreas limitadas. De qualquer forma, a rígida
separaçâo entre o man-on-the-spot e o teórico de gabinete permanece: Spencer acaba
por se tornar um dos observadores-no-local que irá fornecer dados para Frazer.
Inicialmente, portanto, os estudos intensivos de áreas limitadas realizados no local
nâo entrarâo em conflito com os trabalhos extensivos escritos nos gabinetes com o fô-
lego evolucionista. Em principio, quanto mais dados, coletados a partir de observado-
res treinados, maior a confiabilidade das reconstruçôes a serem feitas. O pròprio
Haddon, ao voltar de sua segunda expediçâo, reiteradamente iria apelar para que se
realizem mais trabalhos de campo31, por observadores treinados como field anthropo-
logists. Tais pesquisadores, segundo acredita va, nâo só poderiam vir a reunir os ma-
teriais de forma mais eficiente do que se faria em rápidas visitas, como poderiam vir
a ter acesso ao significado do material coletado.
Depois da segunda expediçâo ao estreito de Torres, tanto Seligman (junto com
Haddon em Cambridge) como Rivers (junto com Westmarck na London School of
Economies) irâo formar urna nova geraçâo de pesquisadores cada vez mais voltados
para a importância da pesquisa de campo intensiva.32 O pròprio Seligman irá realizar
pesquisas na Nova Guiñé, no Ceilâo e posteriormente no Sudâo; e Rivers, no Egito,
entre os Todas na Ìndia, e na Melanesia. Caminhava-se em direçâo à realizaçâo de
etnografías mais intensivas, que acabariam por opor-se à idéia de rápidos surveys.

30 Spencer tinha formafäo em biología, com especializado em zoología; Gillen era funcionário
do telégrafo transcontinental na Australia Central, e etnógrafo ñas horas vagas. O relato de
Spencer e Gillen exerceu papel importante na elaborafäo dos trabalhos de E. Dürkheim, Les
Formes Elémentaires da la Vie Religieuse (1912), no de S. Freud, Totem e Tabú (1913), e no
de B. Malinowski, The Family among the Australian Aborígenes (1913), entre outros.

31 O termo trabalho de campo (fieldwork) parece ter sido derivado do discurso dos naturalistas e
introduzido na antropologia por Haddon. Cf. Stocking Jr. (1985).

32 Entre os novos pesquisadores que foram fazer pesquisa antes da primeira guerra mundial,
podem-se apontar: Radcliffe-Brown, Wheeler, Hocart, Jenness, Landtman, Karsten, Freire-
Marreco, Czaplicka, Layard e, por fim, Malinowski.
80. VALTER SINDER

Tal parece ser a idéia que W. H. R. Rivers acabará por indicar para a aplicafáo
do método (concreto) genealógico, inicialmente desenvolvido por ele para o estudo do
parentesco, porém passível de ser utilizado enquanto urna metodología que se aplicasse
a outros campos. Segundo Rivers, os nativos teriam dificuldades em entender as cate-
gorías abstraías (em geral Rivers atribuía a dificuldade á pobreza lingüistica, mas, as
vezes, falava também em questoes cognitivas), sendo assim, dever-se-ia sempre partir
do concreto. O método por ele desenvolvido nao só permitiría que se acedesse a abs-
trafoes que os selvagens nao articulavam sozinhos, como era também urna forma de
coletar fatos concretos que nao estivessem contaminados pelas abstra?oes européias.
O método, segundo Rivers, fornece "os meios para, além de obtermos as informagoes,
demostrarmos a veracidade destas" (Rivers 1969: 38). E, demonstrando sua profíssao
de fé na cientificidade do método, continua:

Até pouco tempo atrás, a Etnología era urna ciéncia amadora. Os fatos em que se baseou
foram coletados por pessoas geralmente sem treino científico e foram difundidos pelo
mundo sem que sua exatidao ou perfeifáo fossem garantidas. É um tributo espantoso á
veracidade essencial do selvagem que esses dados tenham a qualidade que apresentam,
mas que[m] examinar os registros de qualquer povo deve encontrar enormes diversidades
de evidéncias e reconhecer que os dados, em si mesmos, nao possuem critérios que lhes
permitam distinguir o falso do verdadeiro. Através do método genealógico podem-se de-
monstrar os fatos da organizado social com a mesma precisao encontrada ñas Ciéncias
Biológicas, de modo a transmitir convicfáo ao leitor. O método genealógico e outros se-
melhantes, que possibilitam tal demonstra9áo, elevarao a Etnología ao nivel das outras
ciéncias. (Idem: 38)

Em 1913, na reimpressáo da edifáo do Notes and Queries (que havia sido totalmente
revisado para publicado um ano antes), Rivers irá apontar, como um adendo ao tópico
sobre trabalho intensivo, a necessidade da especializado do papel do etnógrafo. Ou
seja, apesar de o livro ainda estar dirigido para viajantes e nao-antropólogos que pode-
riam vir a fornecer "the information which is wanted for the scientific study of anthro-
pology at home" (BAAS 1912: III-IV, [Notes and Queries on Anthropology, 4th ed.].
Op. cit. apud Stocking Jr. 1985: 90), Rivers irá deixar claro (indicando a existéncia
de mudanzas em curso) que estes nao deveriam ser nem administradores nem missio-
nários, pois além de lhes faltar o treinamento apropriado, suas ocupagoes os coloca-
vam em conflito com os costumes e idéias nativas. Além disso, a esséncia do trabalho
intensivo,

é aquela em que o investigador vive um ano ou mais numa comunidade de, digamos, 400
a 500 pessoas e estuda todos os pormenores de sua vida e cultura; em que ele acaba por
conhecer pessoalmente cada membro dessa comunidade; em que nao se contenta com a
informafáo generalizada mas estuda todas as características da vida e dos costumes em
detalhes concretos e por meio do vernáculo. (Rivers 1913: 7. Cit. apud Kuper 1978: 18)
À PROCURA DOS FATOS

Trata-se de urna mudanza radical na forma de produzir-se a verdade de urna so-


ciedade.
Em 1922, Frazer irá afirmar em seu prefácio ao livro de Malinowski, Argonautas
do Pacifico Ocidental (Malinowski 1976), que "o cientista, assim como o literato,
tende a ver a humanidade somente em abstrato", já que ambos tendem a selecionar
"para suas considerares apenas um aspecto dos muitos que caracterizam o ser
humano em sua complexidade". Dentre os autores de "grandes obras literárias, a de
Molière pode ser usada como um exemplo típico dessa visào parcial". Os personagens
de suas obras "sao projetadas num só plano; urna délas é o avarento, outra o hipócrita,
outra o pretensioso - e assim por diante; mas nenhuma délas é humana. Sao todas
bonecos, vestidos de modo a parecerem seres humanos. A semelhanga, porém, é
apenas superficial. Por dentro sao ocas e vazias, pois a fidelidade à natureza foi
sacrificada ao efeito literário". Entretanto, existe outro tipo de literato que, fruto de
urna outra sensibilidade, apresenta a natureza humana em suas obras de forma
diferente. Ñas obras destes outros autores, como Cervantes e Shakespeare, "as
personagens sao sólidas, criadas ao molde humano em quase toda sua multiplicidade
de aspectos" (Frazer 1976: 10). Como Frazer nos faz ver, Malinowski ocupa um lugar
junto a estes últimos.
A avaliagào que Frazer faz deste livro de Malinowski só farà se multiplicar a
partir de en tao. Quase quarenta anos depois, Max Gluckman, em um Congresso Inter-
nacional de Antropologia realizado em Stressa ( 1959), em seu texto Ethnographic Data
in British Social Anthropology (Gluckman 1975), após apontar o dominio exercido por
Radcliffe-Brown no que diz respeito à perspectiva teórica na moderna antropologia
británica, irá afirmar que,

[e]m todo o caso, considero Malinowski como o verdadeiro pai da moderna antropologia
inglesa. A teoria é apenas um dos lados da ciéncia: o outro lado, igualmente importante,
é o tipo de dados que se submete à análise teórica. E é aqui que Malinowski contribuiu
com urna mudanfa revolucionária, embora pesquisadores de outros países estivessem tra-
ballando numa linha idèntica à dele. A prolongada permanencia de Malinowski ñas ilhas
Trobriand, e o fato de que, em seu trabalho, ele tenha se utilizado apenas da lingua local
capacitaram-no a fazer observares sobre a vida social bem distintas, qualitativamente,
das emitidas pelos viajantes ocasionáis que passaram pelos países coloniais, ou mesmo
pelos missionários e administradores que trabalharam junto a determinados povos colo-
niais. A mudanza na natureza dos seus dados teve um profundo efeito sobre o seu pròprio
pensamento e, em consequència, sobre o assunto. (Gluckman 1975: 63-4)33

33 Esta separafào que se faz normalmente entre Radcliffe-Brown e Malinowski (tendo o primeiro
exercido seu dominio no campo teórico e o outro no que diz respeito à coleta dos dados), e que
é relativizada por Gluckman no que diz respeito à Malinowski, deve ser aplicada também em
relafào à Radcliffe-Brown, pois, como lembra J. Clifford (1988: 29):

[T]he sharpest methodological justification for the new mode is to be found


in Radcliffe-Brown's Andaman Islanders (1922). The two books [Andaman
81 VALTER SINDER

Além disso, continua Gluckman, "eu diría mesmo que o tipo de dados coletados por
Malinowski afastou completamente a Antropología, em seu aspecto de ciencia, da sua
linha ancestral, embora esta continuasse a influenciá-lo em seus interesses e preocu-
p a r e s teóricas". Os dados com os quais Malinowski trabalhava aparentavam-se muito
mais á materia-prima utilizada por "romancistas, teatrólogos, biógrafos, memoralis-
tas", enfim, aqueles "inspirados diretamente na vida social", do que com os fatos que
o antropólogo social do século XIX e inicio do século XX tinha á sua disposifáo.

Pois estes fatos, com os quais Durckheim, Tylor, Frazer e até mesmo Maine e Morgan
trabalharam, nao passavam de observafoes superficiais coletadas, sobretodo através de
intérpretes, por pessoas em contato nao-sistemático com a vida tribal. Até mesmo a Expe-
difáo Haddon em 1898, e mais tarde, Rivers entre os Todas, Seligman entre os Veda, e
finalmente Radcliffe-Brown entre os andamaneses e australianos, careceram da profundi-
dade, complexidade e abrangéncia das descrifoes de Malinowski. (Idem: 64-65)

Colocagoes deste tipo podem ser encontradas nos mais diversos autores, das mais di-
versas nacionalidades, desde a primeira edi<?áo de Argonautas em 1922, 34 mas princi-
palmente a partir dos outros trabalhos pubicados por Malinowski a partir das pesquisas
realizadas em Trobriand.35 Ou seja, tanto em textos específicos sobre Malinowski 36 ,
como ñas mais diversas Introduces á Antropología37, pode-se encontrar a afirmagao
do caráter revolucionário impresso por Malinowski á antropología.
Em que consistiu tamanha inovagáo? A énfase geralmente é colocada na prolonga-
da permanéncia, conjugada antes de mais nada, ao dominio da língua nativa, que teria
permitido a Malinowski fazer observagoes sobre a vida social, qualitativamente distin-
tas tanto dos viajantes quanto de missionários ou administradores que trabalhavam jun-
tos aos povos coloniais.

e Argonautas] were published within a year of each other. And although their
authors developed quite different fieldwork styles and visions of cultural
science, both early texts provide explicit arguments for the special authority
of the ethnographer-anthropologist.

34 Como aponta A. Kuper (1978), apesar de imcialmente Argonautas ter sido encarado apenas co-
mo uma boa etnografía intensiva, nao demorou muito para que fosse reconhecida como um tra-
ballio qualitativamente distinto do que se fizera até entào (inicialmente devido à propaganda fei-
ta pelo pròprio Malinowski).

35 Cf. Malinowski (1955 [1925], 1973 [1927], 1977[1929]; 1966 [1935]), consideradas as princi-
páis monografías junto com Os Argonautas; e também, (1955 [1925]) e (1973 [1927]), direta-
mente inspirados em suas pesquisas em Trobriand.

36 P. ex.: Firth (1964), Durham (1978; 1986), Young, (1979).

37 P. ex.: Mair (1976), Kuper (1978); e mais recentemente, Laplantine (1988), DaMatta (1991).
À PROCURA DOS FATOS

Ao contràrio dos viajantes que em geral passavam rapidamente pelos lugares e


posteriormente apresentavam relatos de suas impressòes de viagem, Malinowski pro-
punha urna estadia prolongada que possibilitasse o acesso a algo mais do que im-
pressòes, permitindo inclusive o aprendizado da lingua nativa. É verdade que vários
dentre os missionários e administradores nào só residiam junto (perto) aos nativos,
como dominavam suas linguagens38; entretanto, como aponta Malinowski na
Introduco de Argonautas, as informagòes que obteve entre "moradores brancos do
distrito [eram] decepcionantes". Isto porque "os brancos, nào obstante seus longos
anos de contato com os nativos, e apesar da excelente oportunidade de observá-los e
comunicar-se com eles, quase nada sabiam sobre eles". E o pior é que "o modo como
[os] informantes brancos se referiam aos nativos e expressavam suas opinióes
revelava, naturalmente mentes nào disciplinadas e, portanto, nào acostumadas a
formular seus pensamentos com precisào e coèrencia". Finalmente, para completar o
quadro, em sua grande maioria,

esses homens tinham preconceitos e opinióes já sedimentadas, coisas essas inevitáveis no


homem comum, seja ele administrador, missionàrio ou negociante, mas repulsivas àque-
les que buscam urna visao objetiva e científica da realidade. O hábito de tratar com urna
frivolidade mesclada de auto-satisfaf ào tudo que é realmente importante para o etnógrafo,
o menosprezo pelo que constituí para o pesquisador um tesouro científico, isto é, a inde-
pendència e as peculiaridades mentáis e culturáis dos nativos, tudo isso, tao comum nos
Iivros de amadores, eu encontrei no tom da maioria dos residentes brancos. (Malinowski
1976: 24)39

Para Malinowski, os residentes brancos (missionários, administradores, comerciantes


ou colonos) nào tinham as "mentes disciplinadas". Ou seja, faltavam a estas pessoas
"critérios metodológicos realmente científicos" que lhes possibilitariam nào mais tratar
com "frivolidade mesclada de auto-satisfagào" tudo aquilo que para o etnógafo
indicava a "independència e as peculiariedades mentáis e culturáis dos nativos". Ao
olhar dos residentes guiado pela doxa (assim como os relatos encontrados em livro de
amadores), Malinowski opunha a visào objetiva e científica da realidade, que ia buscar
junto aos viajantes-naturalistas-cientistas naturais. Colocava-se, portanto, a servigo das
melhores hipóteses científicas embasadas, antes de mais nada, na neutralidade.
Assim como os naturalistas viajantes, tratava-se de esquadrinhar a realidade infor-
mado pelo olhar da razào científica. O novo relato a ser produzido pelo etnógrafo pro-

38 É importante ressaltar que tornar-se falante de urna língua estrangeira é bem diferente de
aprender aquela mesma língua tendo como intuito estabelecer posteriormente um discurso cien-
tífico (no caso urna etnografía) sobre essa comunidade falante.

39 É interessante notar que, em contrapartida, do ponto de vista da grande maioria dos residentes
brancos, aquilo pelo que Malinowski se interessava exprimía claramente o que ele era: nao
passava de um anthrofoologist.
84 VALTER SINDER

fissional separa-se tanto dos relatos de viagem dos séculos XV e XVI, narrativas
exemplares centradas no extraordinário do mundo (onde se tinha seres estranhos, acón
tecimentos fantásticos em térras exóticas), como dos acontecimentos (extraordinários
ou nao), vividos e relatados por comerciantes, administradores e missionários; por
fim, difere também dos relatos produzidos na e pela imaginagáo, fundados em
aventuras individuáis (ancoradas na subjetividade).
Como se pode ver perpassando toda a Introdugao de Argonautas, a garantía da
veracidade do relato do etnógrafo reside na forma como os fatos, que seriam entáo
apresentados, foram coletados; ou seja, de forma absolutamente objetiva, orientada por
critérios estritamente científicos. Nao se trata, portanto, nem do olhar dos viajantes,
centrado no extraordinário do mundo, nem do olhar dos missionários, orientado por
dogmas religiosos, nem do olhar dos outros residentes brancos, embasado em pré-con-
ceitos; nem mesmo do olhar do romancista, a partir de criagoes subjetivas.
E mais. O hábito dos administradores, missionários ou comerciantes de "tratar
com urna frivolidade mesclada de auto-satisfagáo tudo que é realmente importante para
o etnógrafo", implica um menosprego que acaba por dilacerar, dilapidar e até destruir
o tesouro científico descoberto por Malinowski. Rousseau, em seu Discurso, ao apon-
tar quatro tipos de homens que poderiam ser obsevadores em térras distantes, havia
separado de um lado, marinheiros, comerciantes e soldados (por estarem sujeitos a
preconceitos), colocando do outro, os missionários que "mesmo que nao fossem como
todos os outros, sujeitos aos preconceitos próprios ao seu estado [...] nao se dedicariam
de boa vontade a buscas aparentemente de pura curiosidade e que os desviariam dos
trabalhos mais importantes a que se destinam" (Rousseau 1973: 306). Malinowski nao
só irá juntá-los, apontando serem todos preconceituosos e, portanto, maus observado-
res, como aponta que o tipo de observagáo que fazem implica, em última instancia,
a destrui?áo da originalidade desses povos, mediante a dominagao política, espoliagao
económica e imposigáo religiosa. Tudo isto levaría ao exterminio da totalidade cultural
(sua funcionalidade), objeto privilegiado por Malinowski e por grande parte da antro-
pología a partir de entáo. Malinowski, esse novo argonauta, se propunha nao só a sal-
var as espécies (algo que os viajantes naturalistas já faziam), como resgatar e resguar-
dar a originalidade e a totalidade da cultura.
Essa estratégia de definir o etnógrafo e seu saber em contraste com esses "outros
tipos de homens" (viajantes, administradores, missionários ou comerciantes - contem-
poráneos ou nao) sinaliza a constituigáo de um paradigma científico, que teria rompido
definitivamente com o senso comum, nao tendo mais nenhuma relagáo com esses
outros discursos anteriores ou adjacentes que seriam ideológicamente orientados e
etnocéntricos. Seu único dever seria negá-los. A partir de entáo, depois desta sepa-
ragáo inicial, negando competéncia e atribuindo parcialidade a essas outras estratégias
de produgáo da verdade, seja no momento da coleta ou no da apresentagáo dos dados,
À PROCURA DOS FATOS ßl

somente o etnógrafo embasado na observagáo objetiva dos fatos, terá acesso á sua ver-
dade, tendo, doravante, a ciencia como guia. 40
Entretanto, isto nao basta. Além de separar-se dos viajantes, missionários, admi-
nistradores, colonos e romancistas (olhares a partir de entáo nao mais autorizados a
dizer a verdade, pois a verdade cada vez mais será identificada com os fatos), aproxi-
mando-se dos cientistas, o contato direto e sistemático junto á populagáo do local teria
provocado também urna ruptura interna, enquanto produgáo de ciéncia, em relagao á
própria linhagem dos antropólogos. Que mudangas táo radicais foram estas realizadas
por Malinowski, que fizeram com que se atribuisse a ele urna ruptura táo profunda,
inclusive em reía?áo a seus pares?
Como aponta Adam Kuper, apesar do mito que se desenvolveu em torno de Mali-
nowski (pois "um novo modo de agáo requer urna patente mítica" 41 ), na realidade, nao
se pode negar ter "ele inventado] os métodos da moderna pesquisa de campo nos dois
anos que passou ñas Ilhas Trobriand, nos períodos de 1915-16 e 1917-18" (Kuper
1978: 25).
É verdade que a "introdugao dos critérios metodológicos realmente científicos"
para a coleta de dados havia sido feita pela Cambridge School ofAnthropology (ou se-
ja, a partir de Haddon, Westermarck, Seligman e Rivers); no entanto, como aponta

40 Esta separaçâo tem sido repensada e matizada. No que diz respeito aos missionários, F.
Salamone (1977) irá sugerir que antropólogos e missionários seriam bastante similares: ambos
acreditando ter a verdade, tornam-se protetores das populaçôes entre as quais trabalham, colo-
cando-se contra tudo e todos definidos como forças malignas. Ver também C. Stipe (1980) e
os comentários e sua réplica no mesmo número da revista. Quanto aos viajantes, cf. J.
Clifford/G. Marcus (1986), em especial o artigo de M. L. Pratt.

41 O mito, segundo Kuper, reza mais ou menos assim:

Malinowski, um jovem e brilhante estudante polonés, adoeceu quando estava


prestes a ingressar profissionalmente numa carreira científica. [...] doente de-
mais para continuar suas pesquisas científicas [...], desesperado, decide dis-
trair-se com a leitura de um clàssico inglés, escolhe The Golden Bough e co-
loca-se ¡mediatamente ao serviço da antropologia frazeriana. Após urna breve
estada na Alemanha, resolve partir para a Inglaterra e vai estudar na London
Scool of Economies. Depois de resolver precocemente os problemas da orga-
nizaçâo familiar aborigene australiana, encontrava-se na Australia com urna
missâo antropológica quando eclodiu a I Guerra Mundial. Malinowski é cida-
dâo austríaco, um estrangeiro inimigo, e poderá ser internado. Felizmente,
foi-lhe permitido passar o seu período de internamento ñas Ilhas Trobriand.
Ai permaneceu todo o período da guerra, inventando trabalhos intensivos de
campo por observaçâo participante, estudando a fundo o vernáculo e vivendo
como um dos nativos, em isolamento total de quaisquer contatos europeus.
Finda a guerra, regressa a Inglaterra e, em face da oposiçâo obstinada dos
evolucionistas reacionários e difusionistas fanáticos, organiza um grupo de
discípulos dedicados que darâo prosseguimento à obra por ele iniciada.
(Kuper 1978: 21)
M VALTER SINDER

W. Young, ninguém até o momento havia seguido todos os passos das recomendagòes
realizando um trabalho de campo intensivo (vários surveys haviam sido ou estavam
sendo realizados); sendo assim, "no one rightly knew what its consequences would be"
(Young 1979: 7). Ou seja, nào se deve esquecer que Malinowski foi o primeiro a per-
manecer em um única sociedade durante tanto tempo, chegando a se comunicar exclu-
sivamente através da lingua nativa. Além disso, como ele mesmo disse, a coleta de da-
dos nào se deu simplesmente através do encontro de algum "atalho maravilhoso" que
o teria levado ao "resultados desejado, sem esforgos e sem problemas"; pelo contràrio
(apontando mais urna vez para a objetividade e neutralidade de seu procedimento), "só
se pode obter éxito através da aplicagào sistemática e paciente de algumas regras de
bom-senso assim como de principios científicos bem conhecidos" (Malinowski 1976:
24).
O pròprio Malinowski enumera esses "principios científicos bem conhecidos",
agrupando-os em trés unidades; a saber, o pesquisador deve: 1 - conhecer os valores
e critérios da etnografia moderna; 2 - assegurar boas condigòes de trabalho, i. e., viver
mesmo entre os nativos (sem depender de outros brancos); e, 3 - aplicar certos méto-
dos de coleta, manipulagào e registro da evidencia. Após examinar essas très unidades
de procedimento que Malinowski considera como sendo responsáveis pela evocagào
do "verdadeiro espirito dos nativos", e ciente de que a opiniào académica na Inglaterra
naquele momento era favorável à implementagào de inovagòes no método etnográfico;
poder-se-ia concluir junto com Young: "[I]t was, in short, a matter of the right man
being in the right place at the right time" (Young 1979: 7). Ou seja, segundo este
ponto de vista, o que Malinowski fez, sua grande inovagào, foi aplicar os procedimen-
tos metodológicos propostos pela Cambridge School of Anthropology, em especial as
recomendafòes feitas por Rivers. Malinowski, ao ter como guia os principios metodo-
lógicos científicos, bom senso ao seguí-los e um pouco de sorte, teria produzido urna
ruptura que já se encontrava potencialmente preparada, faltando única e exclu-
sivamente alguém que a implementasse.
Com efeito, ao examinar tanto o primeiro como o terceiro destes principios, po-
demos constatar que, apesar de estes terem sido retrabalhados por Malinowski (p. ex.,
o método de documentalo estatística por evidéncia concreta 42 ), estes nào apresentam

42 Resumindo aqui a primeira e principal questào metodológica, posso dizer que


cada fenòmeno deve ser estudado a partir do maior número possível de suas
manifestares concretas; cada um deve ser estudado através de um levanta-
mento exaustivo de exemplos detalhados. Quando possível, os resultados
obtidos através dessa análise devem ser dispostos na forma de um quadro
sinóptico, o qual entào será utilizado como instrumento de estudos e apre-
sentado como documento etnográfico. Por meio de documentos como esse e
através do estudo de fatos concretos, é possível apresentar um esbofo claro
e minucioso da estrutura da cultura nativa, em seu sentido lato, e da sua cons-
tituido social. Esse método pode chamar-se método de documentafào esta-
tística por evidéncia concreta. (Malinowski 1976: 31)
À PROCURA DOS FATOS 31

grandes inovagòes e m r e l a f à o àqueles que vinham sendo propostos para a r e a l i z a d o


de trabalho (de c a m p o ) intensivo. P e l o contràrio, M a l i n o w s k i faz questào de deixar
claro, por varias v e z e s , estar seguindo o c a m i n h o aberto p e l o s integrantes da Cam-
bridge School ofAnthropology.43 Entretanto, n o segundo principio, quando recomenda
que se viva entre o s nativos, s e m depender de outros brancos, p o d e m o s dizer que te-
m o s ai a i n v e n t o da observagào-participante. Trata-se d o inicio de urna nova viagem;
o u seja, da possibilidade de obter segredos que se encontravam inacessiveis a outros
visitantes. M a l i n o w s k i produziu urna mudanga n o locus primàrio da i n v e s t i g a l o (cf.
Stocking Jr. 1985): d o c o n v é s d o navio da expedigào o u da varanda d o posto (missio-
nàrio o u administrativo) para o centro da aldeia, o que implicou urna mudanza corres-
pondente no papel d o etnògrafo, que passa de inquiridor para participante. 4 4
A o explicitar o segundo principio dos fundamentos da pesquisa de c a m p o , Mali-
nowski irá deixar b e m claro o que entende por c o n d i f ò e s adequadas à pesquisa etno-
gráfica:

o pesquisador deve, antes de mais nada, procurar afastar-se da companhia de outros ho-
mens brancos, mantendo-se assim em contato o mais íntimo possível com os nativos. Isso

43 Malinowski dedica os Argonautas a seu mestre e amigo C. G. Seligman. O que nao surpreende,
pois tendo inciado sua formafáo académica pelas ciéncias exatas, ingressou na Universidade
de Leipzig para estudar física e química; diversificou seus estudos estudando também psicología
experimental com Wundt, e historia económica com Bücher. Em 1910, irá trocar Leipzig pela
London Scool of Economics, trabalhando sob a orientagáo de Westmarck. Em 1912, Seligman,
que passara a ser seu patrono, pediu urna bolsa para que Malinowski efetuasse pesquisas duran-
te 4 meses junto a tribos árabes no Sudao (foi negado). Malinowski continuou trabalhando, e,
em 1914, surgiu a possibilidade de seguir para a Austrália como secretário de Haddon, que
conta que "quando o navio navegava da Austrália Ocidental para a Meridional, a guerra chegou
até nós e Malinowski, como súdito austríaco, tornou-se técnicamente um inimigo e como tal
deveria ser internado. Entretanto, nada poderia ter sido mais generoso que o tratamento dispen-
sado pelas autoridades australianas ao jovem investigador, pois nao só Ihe concederam urna li-
bera custodia para que pudesse efetuar suas explorapóes onde quisesse, dentro dos vastos terri-
torios australianos, mas também o dotaram de verbas para que realmente pudesse efetuar seu
trabalho" (cit. apud Kuper 1978: 24). Alémdisso, todos os cientistas que optarampor regressar
a Europa foram autorizados; Malinowski, entretanto, resolveu fícar.

44 J. Clifford (1988: 28) lembra que F. H. Cushing poderia ser apontado como principal excefáo
de realizafáo anterior de trabalho de campo intensivo; entretanto também ve o outro lado:

[A]s C. Hinsley has suggested, Cushing's long firsthand study of the Zunis,
his quasi-absorption into their way of life, 'raised problems of verification
and accountability... A community of scientific anthropology on the model
of other sciences required a common language of discourse, channels of
regular communication, and at least minimal consensus on judging method'
[...]. Cushing's intuitive, excessively personal understanding of the Zuni
could not confer scientific authority.
ss. VALTER SINDER

realmente só se pode conseguir acampando dentro das próprias aldeias (veja fig. 1 e 2).
(Malinowski 1976: 25) 45

Malinowski sabe que isso pode ser àrduo pois "os nativos, é verdade, nào sào os com-
panheiros naturais do homem civilizado"; entretanto, a solidào, i. e., a falta de outros
homens brancos, pode ser combatida com um "passeio solitàrio durante urna ou duas
horas", pois ao voltar à aldeia, o encontro dos nativos, por mais diferentes que sejam,
servirá como "lenitivo à solidào".

Através [do] relacionamento natural aprendemos a conhecé-los, familiarizamo-nos com


seus costumes e crenfas de modo muito melhor do que quando dependemos de informan-
tes pagos e, como frequentemente acontece, entediados. (Idem: 25)

Malinowski aponta que a diferenga entre relacionar-se esporadicamente com os nativos


e estar efetivamente em contato com eles é muito grande. Esse contato para o etnógra-
fo "significa que sua vida na aldeia, no comego urna estranha aventura por vezes desa-
gradável, por vez interessantissima, logo assume um caráter natural em plena har-
monía com o ambiente que o rodeia". Como ele mesmo diz, aos poucos acostumou-se
a "acordar todas as manhàs para um dia em que minhas expectativas eram mais ou me-
nos as mesmas que as do nativos", onde "brigas, brincadeiras, cenas de familia, inci-
dentes geralmente triviais, às vezes dramáticos, mas sempre significativos, formavam
a atmosfera da minha vida diària, tanto quanto a deles". Aos poucos, deixou inclusive
de "representar um elemento pertubador na vida tribal que devia estudar, alterando-a
com minha aproximagào, como sempre acontece com um estranho em qualquer comu-
nidade selvagem". Os nativos acabaram por se acostumar a tè-Io como parte de sua
vida, "como um mal necessàrio, como um aborrecimento mitigado por doagòes de
tabaco". Este contato íntimo, este convivio direto longe de outros homens brancos nào
demorou a ser recompensado: "tudo o que se passava no decorrer do dia estava plena-
mente ao meu alcance e nào podia, assim, escapar à minha observagào" (idem: 25-26).
Neste momento Malinowski separarava-se das propostas até entào elaboradas tam-
bém a partir do ponto de vista da ciència. A pesquisa intensiva, tal qual proposta pela
Cambridge School ofAnthropology, apesar de já indicar urna grande mudanza em rela-
gào à forma anterior, estava embasada na coleta de informagòes a partir do inquérito
realizado pelo antropólogo, em geral na varanda das missoes ou dos postos adminis-
trativos (onde os antropólogos costumavam se estabelecer): os nativos vinham prestar
seu depoimento por possuírem a lembranga dos fatos, e poderem, portante, dar o teste-
munho da verdade, seja por o terem visto, seja por deterem algum saber especial. Ao
etnógrafo, guiado pelo olhar da ciència, caberia ir selecionando as partes que lhe inte-

45 Na fig. 1, A tenda do etnògrafo na praia de Nu'agasi ¡lustra o modo de vida entre os nativos;
na fig. 2, A Lisiga (cabana particular) do chefe, em Omarakana; pode-se ver à esquerda desta
a tenda do etnògrafo (1976: 381).
À PROCURA DOS FATOS SS.

ressava (ou seja, aquelas que sua mente disciplinada viera buscar), a fim de produzir
a verdade daquela sociedade. Ao fim e ao cabo a verdade final era produzida mediante
ajungáo destes testemunhos de verdade. Esperando por elas, sentado na varanda, mu-
nido do espirito científico, trocando bens ocidentais por informagoes que lhe permitam
chegar á esséncia desta verdade, encontrava-se o etnógrafo.
Com Malinowski surge um novo personagem. Apresentando-se como o arauto da
neutralidade científica, portante sem os pré-conceitos e segundas intengóes dos outros
homens brancos (residentes ou nao) e, ao mesmo tempo, como sujeito participante,
portante sem os preconceitos dos cientistas (longe inclusive do repúdio ao convivio
com os primitivos), e interessado de urna outra forma pelo seu modo de vida, Mali-
nowski inaugura urna experiéncia singular: sai da varanda á procura de mais saber. Ao
etnógrafo, munido de objetivos genuinamente científicos, utilizando os métodos apro-
priados, e, além de tudo, vivendo entre os nativos, i. e., separado dos outros brancos,
cabe a verdade. Verdade nunca dantes revelada. Urna nova verdade.
A observagáo-participante tal qual praticada por Malinowski implicou o estabele-
cimento do antropólogo na própria aldeia pesquisada e, consequentemente, a convi-
véncia diária como os nativos. O antropólogo nao mais irá obter suas informagoes a
partir do testemunho dos nativos que, em troca de algum bem, urna vez inquiridos,
dariam seu depoimento; a partir deste momento, o antropólogo deve ele também servir
de testemunha, nao só observando, mas também participando do cotidiano da aldeia.
Somente desta forma, mediante urna experiéncia pessoal singular, ele seria capaz de
alcanzar á densidade das informagoes existentes. Assiste-se a urna mudanga radical na
produgáo da verdade etnográfica. Em realidade, inventa-se a observagáo-participante
enquanto estudo intensivo de urna sociedade que nos é verdadeiramente estranha. Co-
mo aponta Laplantine, "Malinowski nos ensinou a olhar. Deu-nos o exemplo daquilo
que devia ser urna pesquisa de campo, que nao tem mais nada a ver com a atividade
do investigador questionando informadores" (Laplantine 1988: 84). A verdade nao só
está na e com a testemunha, como também a testemunha mesmo é o etnógrafo. Teste-
munha que irá produzir, mediante urna nova viagem, urna outra verdade sobre a so-
ciedade através de sua observagáo-participagao. No lugar da divisáo entre o man on
the spot e o sociologist at home, surge um novo personagem: o sociologist on the spot;
seu objetivo final "é o de apreender o ponto de vista dos nativos, seu relacionamento
com a vida, sua visáo de seu mundo" (Malinowski 1976: 37-8).
Este novo personagem irá possibilitar a emergéncia de uma ruptura na produgao
da verdade antropológica. Nao se trata de substituir os viajantes (naturalistas ou nao),
os comerciantes ou mesmo os missionários, seja pelos antigos eruditos que haviam
produzido o Notes and Queries "for the use of travellers and residents in uncivilized
lands", seja pelos novos antropólogos que defendiam a realizagao de um trabalho de
campo intensivo por pessoas treinadas. Trata-se sim de conjugar em uma mesma cons-
ciéncia a vertigem da viagem e a prudéncia metodológica.
O incentivo ao trabalho de campo (intensivo ou nao) estava no ar desde o inicio
do século: vários estudantes treinados estiveram junto aos mais diversos grupos a fim
2Ü. VALTER SINDER

de realizar pesquisas. Entretanto, apesar de que desta forma urna mesma pessoa seria
responsável pela coleta das informagòes e pela escrita posterior do estudo antropològi-
co, nenhum desses estudantes poderia ser apontado como a figura paradigmática do
sociologist on the spot. As duas atividades permaneciam estranhas entre si. O fato de
a coleta das informa?òes posteriormente utilizadas pelo eruditos em seus trabalhos ter
sido feita por este ou aquele tipo de homem, ou mesmo que o erudito tenha eie mesmo
feito a coleta dos dados, praticamente nào havia produzido a l t e r a r e s na forma como
os antropólogos até entào escreviam a historia da humanidade.
A nova forma de produgào da verdade surge quando se junta em urna só pessoa
o oficio até entào realizado pelo erudito em seu gabinete e aquele realizado pelo pes-
quisador no campo, de maneira que altere a forma como se virá a fazer-escrever antro-
pologia. No inicio do século XX modifica-se a escrita da antropologia.
Esta modificagào será fruto deste novo papel exercido pelo sociologist on the
spot, que vivendo entre os nativos, obsevando e participando, deve provisoriamente
transformar a si pròprio em um deles, a fim de compartilhar "seu ponto de vista, seu
relacionamento com a vida, sua visào de seu mundo", a fim de posteriormente nos
apresentar. Nào se trata mais de menosprezar o tesouro etnografico, nem de recapturar
os acontecimentos perdidos na memòria dos informantes, nem de tentar reconstruir
esses acontecimentos a partir das i n f o r m a l e s sobreviventes no presente, nem de
induzir os nativos a recriar as situagòes, nem mesmo de fantasiá-las. Trata-se de
observar-testemunhar-participar, enfim, compartilhar, para posteriormente traduzir.
Esse movimento aponta para o estabelecimento de urna nova relagào tanto entre
o pesquisador e seu objeto, como entre o etnógrafo e os possíveis leitores. O sociolo-
gist at home, assim como os viajantes, os administradores e os missionários, ao utilizar
as informagòes coletadas por eles mesmo ou por outros, retirava as diferentes culturáis
de seus contextos origináis incorporando-as ao seu pròprio mundo e, portanto, ao mun-
do dos seus leitores. 46 Tratava-se da tradugào de uma outra forma de vida compartilha-
da a partir de sua pròpria cultura de referencia. Malinowski, ao enfocar o ponto de
vista dos nativos, irá produzir um novo contexto para descrever os outros. Este deslo-
camento indica a possibilidade do estabelecimento de urna distància em relagào ao
outro sem integrá-lo em um continuum postulado (cf. DaMatta 1991: 106 et passim),
mas apontando para uma diferenga de perspectiva. 47 Tal modificagào implica que nào

46 O evolucionismo social do século XIX, como apontou Lévi-Strauss, foi "uma tentativa para
suprimir a diversidade das culturas, fingindo conhecé-las plenamente" (Lévi-Strauss 1976
[1952a]: 334).

47 A produfáo de um conhecimento singular a cada grupo humano acabará por implicar a contes-
t a d o das verdades universais produzidas pelos evolucionistas, apontando, inicialmente, para
a diversidade cultural da humanidade. Emerge assim um novo locus de produfào da verdade.
É interessante notar como neste movimento o olhar evolucionista será progressivamente qualifi-
cado como nào científico, acabando por ser alojado na proximidade daqueles que tèm a imagi-
n a d o como guia. Ou seja, encontra-se junto àqueles discursos que nào sào portadores autori-
À PROCURA DOS FATOS 91

mais se incorpore, nào mais se reduza, o ponto de vista nativo à cultura do antropò-
logo e de seus leitores.
A t r a d u c o dos diferentes pontos de vista deverà ser feita de acordo com urna es-
tratégia tracada pelo antropòlogo: o único que teria se movimentado entre os dois mun-
dos. A verdade que será posteriormente relatada encontra-se ancorada em seu estudo
intensivo mediante a técnica de observagào-participante. Malinowski acredita que me-
diante essa técnica é possível alcanzar urna sociedade que nos é verdadeiramente es-
tranila e posteriormente apresentá-la sem alocar a explicagào do estranilo seja no su-
jeito, seja no objeto. Entretanto, cientista por vocagào, Malinowski sabe dos perigos
do entendimento intuitivo, impressionista e excessivamente pessoal do grupo. Este
conhecimento, que poderia até ser qualificado como subjetivo, em última instancia,
nào lhe conferiría autoridade científica.
Devido a isto, Argonautas do Pacífico Ocidental é ao mesmo tempo urna
narrativa complexa da vida em Trobriand e do trabalho de campo. 48 Na I n t r o d u j o ,
Tema, método e objetivo desta pesquisa (Malinowski 1976: 21-38), Malinowski pre-
tende, antes de mais nada, "apresentar urna descrifào dos métodos utilizados na coleta
do material etnográfico", pois, apesar de assente em qualquer ramo do conhecimento
científico, de que nào se deve medir esforgos "no sentido de fornecer ao leitor todos
os dados e condigòes em que se processou o experimento e se fizeram as obser-
v a r e s " ; na etnografia,

infelizmente nem sempre [se] contou no passado com um grau suficiente deste tipo de ge-
nerosidade. Muitos dos seus autores nào utilizam plenamente o recurso da sinceridade
metodològica ao manipular os dados e apresentam-nos ao leitor como que extraídos do
nada.

E vai além, dizendo que poderia citar muitas obras de "grande reputagào e cunho apa-
rentemente científico", onde sào feitas ampias generalizagòes, sem que "os autores nos

zados da verdade. Os evolucionistas sociais, a partir de entáo, comefam urna travessia que
tanto pode levar em direfao ao dogma como na dire9áo da imaginafao. Passam a ser encarados
como fazendo parte da pré-história da antropología científica.

48 Como aponta J. Clifford (1988: 29), Argonautas

is archetypical of the generation of ethnographies that successfully established


the scientific validity of the participant observation. The story of research
built into Argonauts, into Mead's popular work on Samoa, and into We the
Tikopia became an implicit narrative underlying all professional reports on
exotic worlds. If subsequent ethnographies did not need to include developed
field work accounts, it was because such accounts were assumed, once a state-
ment was made on the order of, for example, Godfrey Lienhardt's single
sentence at the beginning of Divinity and Experience (1961: vii): 'This book
is based upon two years' work among the Dinka, spread over the period of
1947-1950'.
91 VALTER SINDER

revelem algo sobre as experiéncias concretas que os levaram as suas conclusóes". Em


obras deste tipo,

nao há nenhum capítulo ou parágrafo destinado ao relato das condifóes sob as quais fo-
ram feitas as observafoes e coletadas as informafoes. A meu ver, um trabalho etnográfico
só terá valor científico irrefutável se nos permitir distinguir claramente, de um lado, os
resultados da observafao direta e das declarafóes e interpretafóes nativas e, de outro, as
inferéncias do autor, baseadas em seu próprio bom-senso e intuifáo psicológica. (Idem:
22)

Orientado pela objetividade científica e participante em urna experiéncia singular, o


antropólogo terá, doravante, a sinceridade metodológica como guia. E, através déla,
poderá convencer os leitores de que embasado em urna experiéncia pessoal singular
(a dele) produziu um relato de cunho científico (fundado objetivamente), e nao
literatura (fundada em intuigoes e interpretafóes pessoais, em geral subjetivas). Ñas
"ciéncias históricas", diz Malinowski, ninguém seria levado a sério se "fizer mistério
de suas fontes e falar do passado como se o conhecesse por adivinhagáo" (idem: 22).
No que diz respeito á etnografía, a situagao é paradoxal pois, se por um lado, a pes-
quisa pode ser facilitada pelo fato de as fontes de informagao serem bastante
acessíveis, já que "o autor é, ao mesmo tempo, o seu próprio cronista e historiador",
por outro, essas mesmas fontes sao "também extremamente enganosas e complexas
[pois] nao estáo incorporadas a documentos materiais fixos, mas sim ao comporta-
mento e memoria de seres humanos". Malinowski sabe que isto faz com que na
etnografía,

entre o material bruto das observafóes coletadas - tal qual se apresenta ao pesquisador
em suas próprias observafóes, das narrativas dos indígenas e do caleidoscopio da vida
tribal - e a apresentafao final e apodítica (authoritative) dos resultados, haja frequente-
mente urna distáncia imensa a ser percorrida. 49

Esta distancia que se estabelece entre o momento inicial da pesquisa e a apresentafao


dos resultados fináis será percorrida pelo etnógrafo "ao longo dos anos laboriosos que
transcorrem desde o momento em que pela primeira vez pisa numa praia nativa e faz

49 A tradufao deste trecho foi feita por mim; a edifao brasileira elide o termo authoritative (em
"a apresentafao final dos resultados", como se estivesse necessariamente implicito) que traduzi
por apoditico, tomando por base a tradufao francesa. Segue o texto original:

[I]n Ethnography, the distance is often enormous between the brute material
of information - as it is presented to the student in his own observations, in
native statement, in the kaleidoscope of tribal life - and the final authoritative
presentation of the results. (Malinowski 1922: 3-4)
À PROCURA DOS FATOS SI

as primeiras tentativas no sentido de comunicar-se com os habitantes da regiào, até a


fase final dos seus estudos, quando redige a versào definitiva dos resultados obtidos"
(idem: 23).
Observador e participante, personagem e autor, cronista e historiador, o antropò-
logo, esse ser múltiplo, irá progressivamente produzir um contexto para a descrivo
deste outro radicalmente diferente de si mesmo. A distancia a ser percorrida desde o
momento inicial de chegada e primeiros contatos com os nativos até a apresentagào dos
resultados fináis é toda realizada pelo antropologo. A firn de dar sentido e coerència
ao material bruto das observagóes que irào sendo coletadas ("tal qual se apresenta ao
pesquisador em suas próprias observares, das narrativas dos indígenas e do caleidos-
copio da vida tribal"), o antropólogo irá aos poucos elaborando o texto final e
apodítico que nos será apresentado.
O movimento de re-elaboragào da experiéncia nativa, seja na relagào que se esta-
belece entre o pesquisador e seu objeto, seja entre o etnógrafo e os leitores, aponta pa-
ra o fato de que a validade científica da etnografia está ancorada na experiéncia indivi-
dual de um sujeito que deve lhe garantir sua autoridade e confiabilidade (cf. Clifford
1988). O ònus de totalizado da verdade cabe ao sujeito-cientista. A partir de Mali-
nowski, o oficio do antropólogo envolve a produgào de um contexto que torne possível
a descrigào de um outro que é radicalmente diferente.
Este contexto será insistentemente reelaborado até que nos seja apresentado em
sua forma final. Desde Malinowski tem-se como recomendagào que o pesquisador
intercale períodos de contato intenso com os nativos, longe dos brancos, com saídas
do grupo pesquisado a fim de arrumar as informagòes e estabelecer, longe da vivéncia
cotidiana, quais sao as informafòes que ainda faltam para que se tenha a possibilidade
de elaborar o texto final. Como diz Malinowski, há urna longa distància a ser percorri-
da; para ele, argonauta prudente, ao firn e ao cabo, mediante procedimentos genuina-
mente sinceros e científicos, será possível alcanzar a verdade final do grupo, que lá
estava para ser desvendada. 50
A forma como finalmente a verdade será revelada aponta para aquilo que a em-
basa. A con-textualizagào da realidade quando finalmente assume sua forma final, urna
forma lógica, coerente, ordenada e totalizada, aponta para seus limites.51 Impossibi-

50 Como aponta J. Clifford (1980: 529) em Fieldwork, Reciprocity, and the Making of
Ethnographic Texts: the Example of Maurice Leenhardt, esse tipo de abordagem tende a encarar
"data as something found or discovered, like a note in a bottle."

51 F. Rognon (1991:102-3) ao apontar que a monografia, produto final da pesquisa de campo,


produz urna ilusào de acabamento e completude, pergunta:

O que ha de mais tranquilizador do que essa transparència, essa legibilidade


dos fatos? Serenidade do pesquisador, que durante meses chocou-se contra
estàopacidade que surgiaa todo instante: linguadesconhecida, comportamen-
tos estranhos, crenfas incompreensiveis -tudo cercado de imprecisào. Sereni-
9á VALTER SINDER
litado de tudo apresentar, sob pena de reproduzir a ilusào do mapa cartografico de
Suárez Miranda, tal como Borges descreve,52 e, ao mesmo tempo, mantendo-se
escravo do desejo impossível de tudo compreender, encontra-se o etnògrafo: sincero
e prudente em sua autoridade e retòrica.

dade também do leitor, que tem a s e n s a t o gratificante de compreender os


selvagens, de deles se aproximar; e isso pela simples mediafào de urna obra
bem escrita e bem ilustrada, um objeto tangível, agradável ao tato e até aos
olhos, que se poderá dispor em sua biblioteca.

52 Naquele impèrio, a arte da cartografia atingiu tal perfeifào que o mapa duma
só provincia ocupava toda urna cidade, e o mapa do impèrio, toda urna
provincia. Com o tempo, esses mapas desmedidos nào satisfizeram e os
colégios de cartógrafos levantaram um mapa do impèrio que tinha o tamanho
do impèrio e coincidía ponto por ponto com ele. Menos apegadas ao estudo
da cartografia, as gerafòes seguintes entenderam que esse extenso mapa era
inútil e nào sem impiedade o entregaram às inclemencias do sol e dos
invernos. (Borges 1978: 71)
91
5. CAMINHOS CRUZADOS

O bom senso é a afirmafào de que, em todas as coisas, há um sentido determinável;


mas o paradoxo é a afirmafào dos dois sentidos ao mesmo tempo.
Gilles Deleuze

Desde que a fragmentagào da linguagem se instaurou no século XVI, temos, como


vimos ñas aventuras de Dom Quixote, urna verdade que nào se encontra mais na rela-
gào das palavras e do mundo, "mas nessa fina e constante relagào que as marcas ver-
bais tecem de si para si mesmas" (Foucault s. d. [1966]: 73). Em Dom Quixote, essa
verdade fundamental é revelada quando ele mesmo se torna, concomitantemente, per-
sonagem e autor. Da mesma forma, parece-nos possível aproximar essa verdade do
Quixote ao movimento proposto por Malinowski de sujeito-que-observa em sujeito-
que-participa, e seu posterior retorno ao estatuto de sujeito-que-narra. Entretanto, ao
contràrio do Quixote, discurso da ficgào, fruto do emaranhado imaginário do sujeito,
Malinowski, o etnógrafo-cientista deve se colocar junto ao discurso serio, compro-
metido com o real do acontecimento.
O antropólogo, marcado por urna multiplicidade de posigòes - sujeito, objeto, ob-
servador, participante, cronista, historiador, personagem e autor - deve ser capaz de
produzir um novo modo discursivo, instrumento e efeito de sua pròpria posigào. Em
What is an Author?, Foucault (1986) afirma que a fungào-autor nào afeta todos os dis-
cursos de urna maneira constante e universal, e que, em nossa civilizagào, nem sempre
foram os mesmos tipos de texto que exigiram a atribuigào de autoria. De fato, como
vimos, a atribuigào de autoria nem sempre foi vista como importante, seja aos textos
que hoje chamamos de literários, seja àqueles vistos como produgào de conhecimento
histórico. Na Idade Mèdia, no momento em que a historia era concebida com o intuito
de dominar o caos e a narrativa literária ocupava o lugar da exemplaridade (momento
em que a narrativa estava fundada essencialmente em modelos éticos que deveriam
assegurar a orientagào dos homens em diregào à verdade), a identidade do autor nào
era urna questào importante. Ancorada na tradigào, a antiguidade, real ou imaginária,
dessas mesmas narrativas era vista como garantía suficiente de seu status, e que a au-
tor(izava). Por outro lado, na mesma época, textos que hoje chamaríamos de
científicos somente eram aceitos como verdadeiros se estivessem marcados com o
nome do autor (p. ex., Hipócrates disse)-, os autores eram "the markers inserted in
discourses that were supposed to be received as statements of demonstrated truth"
(Foucault 1986: 149).
Esta situagào irá se transformar em torno dos séculos XVII e XVIII. Como
vimos, tanto entre os naturalistas viajantes que se atribuiam como objetivo tudo
ordenar, tudo classificar, tudo mapear, como entre os historiadores que se atribuiam
a tarefa de "apenas mostrar como realmente se passou", o aprendizado do olhar da
ciéncia torna-se fundamental para a observagào, pois o "scientific discourses began to
be received for themselves, in the anonymity of an established or always redemon-
strable truth; their membership in a systematic ensemble, and not the reference to the
VALTER SINDER

individual who produced them, stood as their guarantee". Por outro lado, ato continuo,
o surgimento do romance aponta para o momento em que "literary discourses came
to be accepted only when endowed with the author-function" (idem: 149).1 De um
lado, a autoridade séria da ciencia, realista, objetiva e imparcial; de outro, o ema-
ranhado imaginário do sujeito: ficticio, subjetivo e parcial.
A antropologia situa-se dentro deste quadro, de urna forma singular. Apesar de
se apresentar enquanto discurso científico, marcada portante, pela ausência do sujeito
na análise e exposiçâo dos dados (garantía da objetividade e da neutralidade), o antro-
pólogo sempre está presente tanto no estabelecimento dos dados, no trabalho de
campo, como na exposiçâo e produçâo do texto etnográfico. 2 Ou seja, a mesma expe-
riência pessoal que legitima os dados deve, paradoxalmente (?), ser afastada para que
a análise seja considerada como legítima. Malinowski, o construtor da observaçâo
participante, sabia do longo caminho a percorrer entre a coleta inicial dos dados e sua
apresentaçâo final; entretanto, nâo duvidava que o rigor científico combinado com a
sinceridade metodológica o colocaría do lado da ciência.
A fim de lançar alguma luz à forma como se desenvolve este processo entre o fa-
miliar e o exótico, convencendo definitivamente os leitores de que se trata de um relato
científico, Malinowski se propôe a apresentar brevemente as "tribulaçôes de um etnó-
grafo" (as mesmas pelas quais ele passou), pois acredita que assim "pode[rá] trazer
mais luz à questâo do que qualquer argumentaçâo muito longa e abstraía" (Malinowski
1976: 23). Logo na Introduçâo de Os Argonautas, Malinowski nos convida a comparti-
lhar suas (exóticas, románticas?) aventuras: "Imagine-se o leitor sozinho, rodeado ape-
nas de seu equipamento, numa praia tropical próxima a urna aldeia nativa, vendo a
lancha ou o barco que o trouxe afastar-se no mar até desaparecer de vista" (idem: 23).
Neste momento, em urna praia tropical, sozinho (por livre escolha, coaçâo ou for-
ça do destino), o parentesco sempre (de)negado do relato etnográfico com as narrativas
de viagem irá se manifestar (cf. Pratt 1986). Stocking, em The Ethnographer's Magic

1 No que diz respeito a literature, Foucault (1986:149-150) acrescenta:

We now ask of each poetic of fictional text: from where does it come, who
wrote it, when, under what circumstances, or beginning with what design?
The meaning ascribed to it and the status or value accorded to it depend upon
the manner in which we answer these questions. And if a text should be dis-
covered in a state of anonymity - whether as a consequence of an accident or
the author's explicit wish - the game becomes one of rediscovering the
author. Since literary anonymity is not tolerable, we can accept it only in the
guise of an enigma. As a result, the author-function today plays an important
role in our view of literary work. (These are obviously generalizations that
would have to be refined insofar as recent critical practice is concerned.)

2 Entendo etnografia como um processo que envolve tanto a coleta dos dados no campo, como
a sua subsequente representa9ao em uma monografia; cf. G. Marcus/D. Cushman (1982) e
Clifford (1983, 1988).
CAMINHOS CRUZADOS 97

(1985), irá apontar para o fato de Malinowski lanzar mao de artificios literarios (como
suas construgòes narrativas onde engajava a si pròprio e ao leitor; utilizalo da voz
ativa na construyo do presente etnográfico e dramatizando sua participagào em cenas
da vida em Trobriand)3 para produzir um texto onde, após ter iniciado nos convidando
a entrar em suas aventuras, acaba por nos conduzir a um ponto onde "his own
experience of the natives experience must become the reader's experience as well- a
task that scientific analysis yelded up to literary art" (Stocking Jr. 1985: 106). Nós,
gragas a estes artificios, acabaríamos por nos tornar testemunhas da testemunha, vali-
dando o seu relato. Ou seja, aceitando-o como cientificamente verdadeiro, mesmo se
tratando de um relato feito a partir de uma experiencia única, individual e particular.
Trata-se, ao firn e ao cabo, de uma verdade apodítica, i. e., aquela que é demonstrável
ou evidente, valendo, pois, de modo necessàrio.
A estrutura da narrativa tal qual elaborada por Malinowski nos remete à estratégia
garantidora da verdade que encontramos quando nos voltamos para os aventureiros e
suas aventuras (reais ou imaginárias). Nestas narrativas, a verdade nào se encontrava
nem exclusivamente no objeto, nem na linguagem, mas tinha como seu porto seguro
o sujeito que narrava. Aquele que podia nos relatar suas aventuras reais ou imaginá-
rias, fundadas de maneira objetiva ou subjetiva. Tal parece ser a situagáo em que se
encontra o etnógrafo, e o recurso utilizado para que acreditemos nele: sua ficgào per-
suasiva, sua magia, sua autoridade (cf. Strathern 1987; Stocking Jr. 1985 e Clifford
1983 e 1988), além do bom senso e dos métodos científicos (já que sua magia reside,
também, na sinceridade metodológica). Como irá dizer Leach sobre Malinowski: "eis
um fenòmeno único e paradoxal: um empirista teórico e fanático" (Leach 1964: 120).
Em A Personagem do Romance, Antonio Candido aponta que a composigào da
estrutura de um romance se dá mediante o posicionamento adequado de cada trago que
"mal combinado, pouco ou nada sugere; e que, devidamente convencionalizado, ganha
todo o seu poder sugestivo [...] cada trago adquire sentido em fungào de outro, de tal
modo que a verossimilhanga, o sentimento da realidade, depende, sob este aspecto, da
unificagào do fragmentário pela organizagào do contexto" (Candido 1981: 79-80).
Pode-se sugerir a existéncia de pontos em comum na escrita da etnografía, principal-
mente, por apresentar-se, assim como o romance, de forma narrativa. A verdade desta
escrita também se constimi a partir de episodios dispersos e isolados que o antropólogo
vai pouco a pouco ordenando e tecendo. Conforme o mapa vai se formando, a singula-

3 Stephen Tyler (1985: 90) em Ethnography, Intertextuality and the End of Description, aponta
que

travel literature and ethnography share common interests in the description


of exotic places: both are grounded in personal experience, and both are com-
binations of narrative and descriptions; ethnography, however, distances
itself from travel literature (although the two sometimes overlap) by
repressing personal narrative, relegating it to the functions of 'setting the
scene' and establishing the author's authority by means of his presence.
28. VALTER SINDER

ridade dos seres e dos acontecimentos somente permanece na medida em que contri-
buem para a clareza da totalidade, do enredo. Os seres e os acontecimentos acabam
por se tornar absolutamente interdependentes (parecendo muitas vezes ser esta depen-
dência natural e necessária) ao dar sentido ao texto. O resultado final é a criaçâo de
urna imagem coerente e regulada do real. "Esta organizaçâo é o elemento decisivo da
verdade dos seres ficticios, o principio que lhes infunde vida, calor e o faz parecer
mais coesos, mais apreensíveis e atuantes do que os próprios seres vivos" (idem: 80).
Se a organizaçâo da narrativa funciona, pode-se inclusive aceitar aquilo que seria
inverossímil em face das concepçôes correntes, por mais exótico que seja. 4 A antropo-
logía pretende efetivamente estabelecer urna ponte objetiva entre dois mundos culturáis
distintos; pretende traduzir urna realidade somente experimentada pelo antropólogo.
Entretanto, a transformaçâo necessária para esse tipo de observaçâo-participaçâo, a ida
ao exótico, só pode ser provisoria, pois no momento de sua re-elaboraçâo, a volta ao
familiar, a distância entre a cultura do antropólogo e a dos nativos é reintroduzida. É
importante ressaltar que a presença ambigua do antropólogo nos textos nâo é urna mar-
ca exclusiva de Malinowski; pelo contrário, como assinala Geertz em Works andLives
(1988) esta ambiguidade, apesar de se realizar sob diferentes estilos, aparece como
urna marca constante nos textos antropológicos. As variaçôes de estilos que daí de-
correm sao produto tanto do tipo de relaçâo estabelecida pelo antropólogo e o grupo
(relaçôes de poder, marcadas por desigualdades), como sâo funçâo do tipo de enun-
ciado que pode, em determinado momento, vir a ser aceito como verdadeiro. 5 Tendo
por base tais dispositivos, a autor(idade) etnográfica será construida, legitimando um
ou mais discursos sobre o outro; pois esse outro sobre o quai se falava inicialmente,
o selvagem, "era mudo, isto é, podia suportar um e até vários discursos estereotipa-
dos" (Rognon 1991: 12).
Nâo resta dúvida de que o método e o objetivo da narrativa do romance e da etno-
grafía sâo diferentes; entretanto, o discurso etnológico é prisioneiro do mesmo tipo de
contraintes que essa outra narrativa. Como apontou G. Toffin,

il lui faut, lui aussi, passer par l'écriture pour rendre compte d'une réalité difficilment
saisissable et toujours conceptuellement définie. Les rapports entre texte écrit et réfèrent
historique ou sociologique apparaissent problématique dans les deux cas. (Toffin 1989:
35)

4 A aceita?ao do exótico como verossímil (no que diz respeito á narrativa da etnografía) encontra-
se embasada no pressuposto da existencia de urna condifáo humana comum a todas sociedades.

5 The gap between engaging others where they are and representing them
where they aren't, always immense but not much noticed, has suddenly be-
come extremely visible. What once seemed only technically difficult, getting
'their' lives into 'our' works, has turned morally, politically, even epistemo-
logically, delicate. (Geertz 1988: 130)
CAMINHOS CRUZADOS 92
Nao se trata, portanto, de perguntar-se somente como um texto literario exprime a rea-
lidade, mas, também, as relagóes que a descrigáo etnográfica mantém com o mundo
sensível.6 Trata-se, enfim, de questionar-se também em que medida os grupos que apa-
recem sobre o papel correspondem aos grupos observados. Afinal, em que momento
se passa da observado á interpretado? Ou ainda, será possível separar a observagáo
da interpretado?

5.1 Observando, analisando, interpretando

Em geral, tendo como paño de fundo estas questoes, apresenta-se a etnografía e a etno-
logia como duas etapas de urna mesma pesquisa onde estariam presentes, em separado,
os dois momentos, observagáo e análise: a primeira, enquanto coleta de dados no cam-
po (mediante a observado participante); e a segunda, utilizando esses mesmos dados,
enquanto busca comparagóes e sínteses (apontando para as diferengas e semelhangas
entre os mais diversos grupos sociais). Entretanto, parece difícil sustentar ainda hoje
a possibilidade de realizar-se algo como um realismo etnográfico (cf. Marcus/
Cushman 1982), o que poderiamos chamar de etnografía pura, ou seja, um registro
imediato e objetivo dos fatos brutos. Nao só o olhar do etnógrafo seleciona e interpreta
a realidade, como a descrigáo é, ela mesma, construgáo.
O reconhecimento de que a descrigáo é, em si mesma, construgáo apontaria, antes
de mais nada, para o questionamento dos resultados obtidos; ou seja, sua pretensa
natureza científica estaría colocada em xeque. O caminho escolhido a fím de dar conta
desta questáo e seus desdobramentos que entáo se apresentam pode ser apreendido no
artigo (programático) de Lévi-Strauss (1975 [1954]), Lugar da Antropología ñas Cien-
cias Sociais e Problemas Colocados por seu Ensino, publicado originalmente em urna
coletánea organizada pela Unesco que tinha por intuito explicitar a posigáo das ciencias
sociais no ensino superior (cf. Les Sciences Sociales dans l 'Enseignement Supérieur.
Paris, Unesco, 1954. cit. apud Lévi-Strauss 1975 [1954]). Como aponta Lévi-Strauss,
a etnografía

6 Em que medida pode-se estender a etnografia o paradoxo do romance, apontado por M. Zeraffa
(1973: 108) como sendo comum a toda obra de arte? ou seja: "traducir una realidad a la cual,
sin embargo, no puede ser reducida". Como aponta J. Clifford (1986: 4),

the notion that literary procedures pervade any work of cultural representa-
tion is a recent idea in the discipline. To a growing number, however, the li-
terariness of anthropology - and especially of ethnography - appears as much
more than a matter of good writing or distinctive style. Literary process -
metaphor, figuration, narrative -affect the ways cultural phenomena are re-
gistered, from the first jotted 'observations' to the completed book, to the
ways these configurations 'make sense' in determined acts of reading.
m VALTER SINDER

corresponde aos primeiros estágios da pesquisa: observaçâo e descriçâo, trabalho de cam-


po (fleldwork). Urna monografía, que tem por objeto um grupo suficientemente restrito
para que o autor tenha podido reunir a maior parte de sua informaçào graças a uma expe-
riênciapessoal, constitui o próprio tipo do estudo etnográfico. (Lévi-Strauss 1975 [1954]:
395)

Por outro lado, com relaçâo à etnografía, a etnología

representa um primeiro passo em direçâo à síntese. Sem excluir a observaçâo direta, ela
tende para conclusôes suficientemente extensas para que seja difícil fundá-las exclusiva-
mente num conhecimento de primeira mâo. (Idem: 395)

De qualquer maneira, "a etnologia compreende a etnografía como seu passo prelimi-
nar, e constitui seu prolongamento" (idem: 395).
Durante certo tempo, a dualidade etnografía-etnologia se apresentou como sufi-
ciente, seja por nao se acreditar que a síntese pudesse ir além da determinaçâo das
origens e dos centros de difusâo (onde as preocupaçôes histórico-geográfícas eram pre-
dominantes), seja por atribuir-se a elaboraçâo desta síntese superior a outras ciências
(sociología, geografía humana, historia ou filosofía). Neste contexto, o termo antropo-
logía era utilizado para designar o estudo físico do homem e a designaçâo das raças,
ou seja, referia-se ao que hoje se entende por Antropología Física. Entretanto, "em
toda parte onde encontramos os termos antropología social ou cultural, eles estâo liga-
dos a uma segunda e última etapa da síntese, tomando por base as conclusôes da etno-
grafía e da etnologia" (idem: 396).
A fím de por ordem na casa, Lévi-Strauss propôe entâo a atribuiçào do mesmo
tipo de relaçâo entre antropología e etnologia que havia anteriormente apontado entre
a última e a etnografía; indicando, além disso, que "etnografía, etnologia e antropo-
logía nâo constituem très disciplinas diferentes, ou très concepçôes diferentes do mes-
mos estudos. Sâo de fato, très estapas ou très momentos de uma mesma pesquisa"
(idem: 396). Esse movimento implica sustentar ser a antropología capaz de uma ampia
abordagem dos fenómenos sociais, ou seja, como sendo capaz de elaborar uma síntese
geral. A partir de entâo, cabe a antropologia unificar os saberes produzidos pelas
outras ciencias do homem, a fím de buscar "certaspropriedades gérais da vida social,
que a antropologia toma por objeto" (idem: 387). Entende-se a antropologia como uma
ciência que visa a

um conhecimento global do homem, abrangendo seu objeto em toda sua extensáo histó-
rica e geográfica; aspirando a um conhecimento aplicável ao conjunto do desenvolvi-
mento humano desde, digamos, os hominídeos até as raças modernas, e tendendo para
conclusôes, positivas ou negativas, mas válidas para todas as sociedades humanas, desde
a grande cidade moderna até a menor tribo melanésia. (Idem: 396)
CAMINHOS CRUZADOS 101

Para além das especificidades culturáis, caberia a antropologia unificar e totalizar. Este
posicionamento expressa um re-direcionamento (que se encontrava em curso) do olhar
do antropólogo para a busca da unidade humana.
Como assinala Leach (1977: 9), pode-se apontar a existència de basicamente dois
tipos de antropólogos. Uns, cujo prototipo é Frazer ("homem de monumental erudifào
que nào tinha um conhecimento direto da vida dos povos primitivos a cujo respeito es-
creveu"), fazem antropologia na esperanza de descobrir verdades fundamentáis sobre
a humanidade; outros, cujo prototipo é Malinowski ("passou a maior parte de sua vida
académica analisando os resultados das pesquisas que pessoalmente realizara, num pe-
ríodo de quatro anos, numa única e minúscula aldeia da longíngua Melanésia"), estào
basicamente mais interessados ñas diferengas do que ñas semelhan?as entre as culturas.
Alguns pensadores apontam inclusive a oscilagào entre universalismo e relativismo co-
mo endèmica ao pensamento antropológico, e assinalam o final do dominio malinows-
kiano com o renascimento do dominio do ponto de vista universalista. 7 O surgimento
de urna antropologia cognitiva ou interpretativa seria entào encarado como urna tentati-
va de reverter um processo que tendía à trivializagào decorrente de um excessivo parti-
cularismo. 8
Tal mudanza implica urna nova forma de encarar-se as relagòes que a descrigao
etnográfica mantém com o mundo sensível. Nào se trata mais de simplesmente consi-
derar os fatos sociais como se fossem coisas: a condigào humana é compartilhada pelo
sujeito com o objeto. Exatamente por isso, o risco de atribuir ao primitivo respostas
que gostaríamos que fossem dadas é muito grande. Para que isso nào acontega, deve
ser possível alcanzar a objetividade, condi?ào sine qua non para que se fique do lado
da ciencia, sem que o pesquisador se confunda com o objeto. Assume-se, pois, que a
distància, alguma distancia, faz-se necessària para que se possa ver: a partir de entào
toma-se como dado a impossibilidade de urna antropologia nativa; nào se pode estudar
sua pròpria sociedade. Ou melhor, como afirma Lévi-Strauss em sua Introdugào à
obra de Marcel Mauss, "toda sociedade diferente da nossa é objeto, todo grupo de
nossa sociedade, desde que nào seja o de que saímos, é objeto, todo costume desse

7 Para urna abordagem onde as armadilhas da aceitafáo desta oscilagao sao desarmadas, e se su-
gere um outro modo de produfáo antropológico, vide O. Velho (1995), principalmente os capí-
tulos 8 e 9.

8 Como escreveu R. Firth, referindo-se aos últimos anos da década de 30:

O problema básico suscitado pela teoría funcional de Antropología em sua


forma menos refinada - se todas as coisas estáo relacionadas como todas as
demais coisas, onde para a descrifáo? - estava bem presente no espirito dos
autores do período. (Firth, History of Modern Social Anthropology, 1962: 11;
cit. apud Kuper 1978: 92)

O problema dizia respeito á dificuldade em se distinguir a releváncia analítica da conexao empí-


rica.
W1 VALTER SINDER

mesmo grupo, ao qual nào aderimos, é objeto" (Lévi-Strauss 1974 [1950]: 18). Ado-
tando essa postura, o antropòlogo pode se tornar, como postula Lévi-Strauss, o "astrò-
nomo das ciencias sociais" (Lévi-Strauss 1975 [1954]: 422).9 O antropòlogo deve ser
insensível à sociedade que observa.
Urna vez colocada a necessidade do estabelecimento da distancia entre o sujeito
e o objeto, faz-se necessàrio o estabelecimento de (novas) regras do método sociológi-
co, que as tornem possíveis, sem que se caia seja na ilusào positivista, seja em algum
delirio subjetivista. Na introdujo que Lévi-Strauss faz à obra de Marcel Mauss em
1950 (1974 [1950]), essa questào será explicitada. Ao introduzir a nova edigào do
Ensaio sobre a Dádiva (Mauss 1974), onde Mauss se questionava sobre os fundamen-
tos da reciprocidade ñas sociedades primitivas, Lévi-Strauss irá apontar ter Mauss aca-
bado por adotar a visào nativa (em detrimento de urna análise crítica) ao ter localizado
o principio da reciprocidade no hau, no espirito da coisa. A teoria nativa, produto da
consciéncia, seria urna elaboralo do pensamento nativo, e nào urna explicado real.
Para que o real fosse atingido, Lévi-Strauss irá propor que se ultrapassem os dados
empíricos, as relagóes sociais vividas, mediante a construyo de modelos verda-
deros 10 , que tornariam possível a manifestado da estrutura social profunda, i. e., in-
consciente. Ou seja, para se atingir o real dever-se-ia, antes de mais nada, repudiar o
vivido. Para tal, nào se deveria procurar a explicagào dos eventos em urna explicagào
causal, mas sim em urna análise de sua fungào inconsciente.11

9 Em um discurso pronunciado por ocasiáo das cerimonias pelo 250° aniversário do nascimento
de Rousseau, Lévi-Strauss irá reiterar sua posifáo, apontando ter Rousseau fundado a etnolo-
gía,

distinguindo [...] o objeto próprio do etnólogo dos objetos do moralista e do


historiador: 'Quando se quer estudar os homens, é preciso olhar perto de si;
mas para estudar o homem, é preciso aprender a dirigir para longe o olhar;
para descobir as propriedades, é preciso primeiro observar as diferenjas'
(Essai sur l'origine des langues, cap.VIII). (Lévi-Strauss 1976/1962: 42-3)

10 Por modelo verdadeiro Lévi-Strauss (1975 [1952]: 318)entende "aqueleque, sendo omais sim-
ples, responder á dupla condifáo de nao utilizar outros fatos além dos considerados e explicar
todos."

11 Cada cultura, diz Lévi-Strauss (1975 [1952]: 319),

tem seus teóricos, cuja obra merece tanta atenfáo como a que o etnólogo con-
cede á dos colegas. [...] [M]esmo se os modelos sao tendenciosos ou inexa-
tos, a tendéncia e o género de erro que eles contem fazem parte integrante
dos fatos a estudar; e contam-se talvez entre os mais significativos. Mas,
quando ele dá toda sua aten?ao a estes modelos, produtos da cultura indígena,
o etnólogo está bem longe de esquecer que normas culturáis nao sao automa-
CAMINHOS CRUZADOS 103

O estruturalismo tal qual proposto por Lévi-Strauss, cíente tanto dos perigos do
particularismo quanto dos da projegào de urna subjetividade etnocèntrica sobre a reali-
dade a ser analisada irá se dirigir para algum lugar aquém da cultura e da consciéncia.
Assim procedendo, parece, ter-se-ia a garantia, em um outro plano, da tao procurada
objetividade. Desta forma, acredita-se ser finalmente possível escapar à produgào de
mais um discurso sobre as civilizagóes primitivas, estabelecendo um verdadeiro diálo-
go com elas (cf. P. Clastres 1968). Na proliferalo de análises estruturais que se se-
guiram, em busca e em nome das propriedades gerais da vida social que a antropolo-
gia tomou como objeto, acabou-se silenciando o primitivo, o outro, mediante cons-
trugoes teóricas totalizantes supostamente incontestáveis.
Neste contexto, Geertz, informado por urna visào weberiana - mediada por
Parsons (cf. Peacock 1981 e Rabinow 1983), irá apontar um outro caminho. Partindo
do principio de que

apresentar cristais simétricos de significado, purificados da complexidade material nos


quais foram localizados, e depois atribuir sua existencia a principios de ordem autógenos,
atributos universais da mente humana ou vastos, a priori Weltanschauungen, é pretander
urna ciéncia que nao existe e imaginar urna realidade que nao pode ser encontrada.
(Geertz 1978: 30)

Geertz (1978: 30-1) irá entào propor que a "análise cultural é (ou deveria ser) urna
adivinhagào dos significados, urna avaliagào das conjeturas, um tragar de conclusòes
explanatórias a partir das melhores conjeturas e nào a descoberta do Continente dos
Significados e o mapeamento da sua paisagem incorpórea". Tal postura implica negar
que seja possível (a nào ser de forma arbitrària) urna totalizagáo, um fechamento, tanto
do comportamento humano, como da análise cultural. Para Geertz, os seres humanos
sao incompletos porque sao históricos; a cultura é entendida enquanto um componente
interno essencial da natureza humana, estando portanto atrelada tanto ao contexto bio-
lógico como ao contexto evolutivo (cf. Geertz 1978: cap. 3). Ou seja, nega-se desta
forma a possibilidade de ir ao encontro de um universal (natureza humana, germes ori-
gináis do pensamento, inconsciente) além ou aquém da cultura.
Acreditando que "o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele
mesmo teceu", Geertz (1978: 15) entende cultura como sendo "essas teias e a sua
análise, portanto, nào como urna ciéncia experimental em busca de leis, mas como
urna ciéncia interpretativa, à procura do significado". A cultura é vista entào como um
teia de significagoes urdida pelo pròprio homem, ou ainda, como um conjunto de es-

ticamente, estruturas. Sao antes documentos para ajudar a descobrílas; ora


documentos brutos, ora contribuifóes teóricas, comparáveis ás trazidas pelo
próprio etnólogo.
m VALTER SINDER

truturas de sentido, um conjunto de textos12, através dos quais todos os comportamen-


tos sao produzidos, percebidos e interpretados pelos próprios atores. "A cultura de um
povo é um conjunto de textos, eles mesmos conjuntos, que o antropólogo tenta 1er por
sobre os ombros daqueles a quem eles pertencem" (idem: 321). Cabe ao antropólogo
buscar o sentido dos comportamentos.
Este redirecionamento do olhar para a interpretagáo irá recolocar a questao da et-
nografía; pois, somente entendendo o que é a prática etnográfica ("what doing ethno-
graphy is") é que se poderá compreender o que representa a análise antropológica co-
mo forma de conhecimento 13 . O que está aquí em jogo nao é urna questao de voltar-se
para os métodos utilizados, seja para revé-los, seja para aceitá-los, já que a prática
etnográfica nao é entendida simplesmente enquanto estabelecimento de relagoes, sele-
gáo de informantes, transcribo de textos, realizagáo de genealogías, manutengáo de
um diário de campo e outros procedimentos normalmente descritos nos manuais desde
o Notes and Queries. Para Geertz, o que define o fazer antropológico "é o tipo de es-
forgo intelectual que ele representa: um risco elaborado para urna descrigáo densa"
(idem: 15).
Apontar para a prática antropológica enquanto urna descrigáo densa implica enten-
der o conhecimento etnográfico como formativo, constitutivo, assim como implica co-
locar em xeque o postulado da descontinuidade entre experiéncia e realidade. Para
Geertz, "os textos antropológicos sao eles mesmos interpretagóes". O que o antropólo-
go faz é construir interpretagóes do que lhe parece ser a realidade dessas outras pesso-
as; ou melhor, ele cria ficgóes etnográficas que sao constructos dos constructos de
outras pessoas, pois "por definigáo, somente um nativo faz a interpretagáo em primeira
máo: é a sua cultura". Neste sentido as etnografías sao ficgóes:

ficfóes no sentido de que sao 'algo construido', 'algo modelado'- o sentido original de
fictio - nao que sejam falsas, náo-fatuais ou apenas experimentos de pensamento (as if
thought experiments). (Idem: 25-26). 14

12 Esse conjunto de estruturas de sentido, de textos culturáis, nao deve ser confundido com os mo-
delos estruturais; a cultura é concebida em termos concretos e nao enquanto construfóes lógicas
(i. e., a construfáo, apreensao e utilizagáo das formas simbólicas, sao eventos sociais como
quaisquer outros; sao tao públicos como a cerimonia de um casamento e passíveis de serem ob-
servados da mesma forma que se observa a agricultura).

13 Opondo-se aos que entendem a etnografía como inadequafao á realidade (seja pela incom-
pletude/abundáncia etnográfica, seja por apresentar-se de forma acabada), M. Peirano em Afa-
vor da Etnografía (1995), aponta para um outro desenvolvimento deste posicionamento.

14 Como aponta Clifford (1986: 6) na Introdufáo de Writing Culture,

to call ethnographies fictions may raise empiricist hackles. But the word as
commonly used in recent textual theory has lost its connotation of falsehood,
of something merely opposed to truth. It suggest the partiality of cultural and
historical truths, the ways they are systematic and exclusive. Ethnographic
CAMINHOS CRUZADOS 105

O etnógrafo inscreve o discurso social: "ele o anota " (idem: 29). Trata-se de um novo
xeque aplicado á relagáo entre a descrigao etnográfica e o mundo sensível; trata-se de
apontar (acentuando) que da mesma forma que o nativo, o etnógrafo também constrói
a descrigao ao selecionar e interpretar a realidade. 15 Assim, o trabalho do antropólogo
resulta sempre em urna interpretagáo de urna interpretagáo; que tem por fím último a
construgáo de urna ficgao etnográfica, de urna descrigao densa. Ou seja, trata-se de
buscar junto ao ator a trama de interpretagáo, seu ponto de vista sobre o seu próprio
comportamento, para que se possa entao interpretá-lo. Reconhecendo que tanto a ob-
servagáo como a coleta dos dados constituem, em si mesmas, uma construgáo, ou seja,
urna interpretagáo, Geertz aponta para o fato de que a descrigao e a análise náo podem
ser duas operagoes autónomas. 16 Somente assim o antropólogo poderá tornar inteligível
os comportamentos dos individuos.
Geertz (1973: cap. 1) exemplifica o que entende por descrigao densa apresentando
um acontecimento passado no Marrocos em 1912. Um comerciante judeu que man-
tinha relagóes comerciáis com uma tribo bérbere tem seus bens roubados por alguns
membros de uma tribo vizinha. Queixando-se ao comandante francés neste local, e
dizendo que gostaria de se vingar, é advertido que nesse caso deveria agir por conta
própria. O comerciante convence entáo o xeque da tribo com a qual negociava a man-
dar que seus homens raptem o rebanho da tribo vizinha. Após o rapto, é feito um
acordo (a tribo concorda em ressarcir o comerciante com 500 carneiros, e o rebanho
é liberado). Ao voltar com os animais, o comandante francés os confisca, e manda
prendé-lo.
Trés conjuntos de textos, trés tramas de explicagáo encontram-se presentes: a
colonial do comandante francés, a tradicional do xeque bérbere e a também tradicional
do comerciante judeu. Explicar o que aconteceu significa separá-las, e interpretá-las.
A perspectiva do antropólogo irá se somar as outras trés que ele pretende reconstituir.
A interpretagáo das interpretagoes feitas neste (ou em qualquer outro) acontecimento
deverá ser conduzida mediante uma descrigáo microscópica. Trata-se de realizar uma
leitura minuciosa "por sobre os ombros" de um conjunto de textos estrangeiros,

writings can properly be called fictions in the sense of 'something made or


fashioned'. But it is important to preserve the meaning not merely of making,
but also of making up, of inventing things not actually real.

15 Como aponta J. Clifford ( 1986: 6), deve-se tomar cuidado em nào fazer como alguns " interpre-
tive social scientists" que recentemente passaram a encarar as boas etnografías como "true fic-
tions"; pois tal postura se deu "usually at the cost of weakening the oxymoron, redocing it to
the banal claim that all truths are constructed".

16 Marcus e Clifford (1985: 269), em uma primeira nota sobre o seminàrio que teve como foco
a questào The Making of Ethnographic Texts (Seminàrio realizado na School of American Re-
search em Santa Fé, em abril de 1984), apontam que na etnografia "far from descriptions
supporting theory, the explicitly interpretive parts of a text work to support the descriptions,
which are the crucial, unstable focus of rhetorical energy".
m VALTER SINDER

repleto de elipses e figuras de linguagem; textos tendenciosos e muitas vezes


incoerentes. Isto implica exame detalhado de urna única sociedade levado á cabo por
um longo período de tempo, sem que se procure qualquer tipo de generalizagáo. Como
vimos, nao se trata de procurar propriedades gerais, mas sim, de destacar empírica-
mente o que se estima serem as atitudes adotadas em urna dada sociedade. Neste sen-
tido, o que se pretende é constituir um saber aproximativo que, mediante reinterpre-
tagoes paralelas e cada vez mais incisivas dos mesmos fatos, conduza tanto ao refina-
mente do debate quanto á exatidao dos argumentos.
O objetivo de urna antropología interpretativa (embasada em urna aproximagáo
semiótica da cultura) consiste portante em "auxiliar-nos a ganhar acesso ao mundo
conceptual no qual vivem os nossos sujeitos, de forma a podermos, num sentido um
tanto mais ampio, conversar com eles" (idem: 35). Como afirma Geertz, no final do
capítulo Urna Descrigáo Densa: Por urna Teoría Interpretativa da Cultura, que
introduz seu livro A Interpretando das Culturas:

A vocafao essencial da antropología interpretativa nao é responder as nossas questoes


mais profundas, mas colocar á nossa dispos¡9áo as respostas que os outros deram - apas-
centando outros carneiros em outros vales - e assim incluí-las no registro de consultas
sobre o que o homem falou. (Idem: 40-41)

As respostas dadas por essas outras pessoas nao sao mais auténticas, mais verdadeiras
ou mesmo mais reais do que quaisquer outras (inclusive as nossas). Nao se trata de
aprender qualquer tipo de verdade. Cabe ao antropólogo relatar observares e nao res-
ponder questoes; seu esforgo em aceder ao universo do outro, resulta na construgao
de ficgoes etnográficas sobre esta cultura, onde se relata a interpretagáo que se tem da
interpretado daqueles com os quais se este ve, alargando o horizonte do que o homem
disse. Urna vez que se tem como dado a impossibilidade de compreender o que o outro
quer dizer, estaríamos a caminho da compreensao do que o outro compreende? Ética,
ciéncia e verdade se confundem com a estética? Podemos concluir ser papel do antro-
pólogo traduzir de forma engenhosa o frame of meaning do outro no nosso? Se isto for
possível, o antropólogo entraría entáo em urna conversa ficticia com a outra cultura.
Entretanto, como apontou Paul Rabinow (1983: 53), há um prego a pagar por esta ope-
ragáo:

[T]he only price to be paid is the bracketing of the seriousness of the speech acts of the
Other. All cultures are brought into the universal conversation of humanity, but what
each has to say is only one more text to be translated into Western discourse.

Ora o fato de a etnografía estar inexoravelmente emaranhada na escrita, implica, como


em qualquer forma de escrita, tradugáo de experiéncias em formas textuais. Já há al-
gum tempo Barthes nos apontava, em sua Aula (1980), que costumamos "esquece[r]
que toda lingua é uma classificagáo e que toda classificagáo é opressiva". Devido a
este esquecimento, nao vemos o poder que reside na lingua; entretanto, nao devemos
CAMINHQS CRUZADOS 107

nos esquecer aquilo que Jakobson ensinou: "um idioma se define menos pelo que eia
permite dizer, do que por aquilo que obriga a dizer" (Barthes 1980: 12-13).
Em um texto que se volta para os aspectos lingüísticos da tradugào, Jakobson
(1977: 72) irá chamar a ateneo para o fato de que

se fosse preciso traduzir para o portugués a fórmula tradicional Tradutore-traditore por


'O tradutor é um traidor', privaríamos o epigrama rimado italiano de um pouco de seu
valor paronomástico. Donde urna atitude cognitiva que nos obriga a mudar esse aforismo
numa proposifáo mais explícita e a responder às perguntas: tradutor de que mensagens?
traidor de que valores?

Segundo nos parece, o constrangimento apontado por Jakobson está presente em qual-
quer forma de tradugào: nao se pode portanto pensar fora deste constrangimento a tra-
dugào de experièncias em formas textuais. Tradutor sim, mas de quais mensagens de
tantas disponíveis; traidor, portanto, de quais valores, os nossos, os deles? O choque
de valores e a efícácia das mensagens parece inevitável (ou será o choque de mensa-
gens e a efícácia de valores?).
Essas coagoes inevitáveis encontram-se fora do controle daquele que escreve, e
cada forma de tradugào responde mediante estratégias de dominagào/submissào especí-
ficas. A estratégia da etnografia tem sido a de apresentar-se como a fornecedora da
verdade do e no texto; a do etnógrafo, como aquele que pode enunciar a verdade desta
experiència cultural complexa. Se toda tradugào é sempre um processo que parte de
um produto significante e termina por propor outra vez um produto significante, entào
só podemos entender a tradugào etnográfica como o fazer efetivo do principio da tota-
lizagào e das construgòes estruturadas sobre o que é, por definigào, imcompleto e equí-
voco.

5.2 Da escrita e do poder

De que forma essa verdade se apresenta na etnografia como válida de modo necessà-
rio? Antes de mais nada, a veracidade é garantida pela presenga do etnógrafo no
campo e por seu testemunho da verdade. Em On Ethnographic Authority, J. Clifford
(1983 e 1988) chama atengào para a foto que ilustra o frontispicio da edigào dos Argo-
nautas (cf. Malinowski 1976: 379 - para a reprodugào da foto): a legenda diz tratar-se
de um ato cerimonial do Kula. Nela, pode-se ver um colar sendo oferecido a um chefe
Trobriandés que está de pé à porta de sua casa. Urna fila de seis rapazes se forma atrás
do que está oferecendo o colar. Todos podem ser vistos de perfil, estando
aparentemente concentrados no rito de troca, um evento real da vida Melanésia. Entre-
tanto, em urna inspegào mais detida, pode-se ver que um dos rapazes está olhando para
a máquina fotográfica. Como assinala Clifford, assim como toda fotografia assegura
uma presenga (a cena diante da lente), eia sugere também uma outra presenga - nesta
foto, o que se sugere é a presenga do etnógrafo compondo esse fragmento da realidade
m VALTER SINDER

de Trobriand. O olhar deste rapaz nos remete ao lugar que, como leitores, compar-
tilhamos com o etnógrafo e sua máquina fotográfica. O modo predominante da mo-
derna autoridade antropológica é indicado: "You are there, because I was there"
(Clifford 1983: 118).
Momento fugidio quando o sujeito ocupa lugar do Rei tal qual poderia-se anteci-
par em Las Meninas. Neste momento, quando o ser do representado e a representagáo
do ser nao mais coincidem, o olhar do rapaz indica tanto o ponto privilegiado que apa-
rece como garanda da totalizado, como aponta para aquilo mesmo que é
representado, mas que está ausente. Independente de sua vontade, o autor é colocado
em cena: quer queira quer nao, ele nao se encontra mais em siléncio, e, tal como no
quadro de Velázquez, ele se projeta na sua obra como que através de um jogo de
espelhos. Simultáneamente objeto e sujeito.
Tanto a separagáo sujeito/objeto, garantida inicialmente na antropología pela dis-
tancia geográfica e principalmente pela distancia cultural, quanto o afastamento ou a
retirada do etnógrafo da etnografía, através de urna descrigáo objetiva, imparcial e so-
bretudo realista, encontra-se em xeque. Quando Lévi-Strauss apontava, citando
Rousseau, que "quando se quer estudar os homens, é preciso olhar perto de sí; mas
para estudar o homem, é preciso aprender a dirigir para longe o olhar" (Lévi-Strauss
1976 [1962]: 43), ele certamente tinha como intengáo contribuir para a manutengáo
na crenga da necessidade (e possibilidade) da separagáo sujeito/objeto. Entretanto,
como irá lembrar J. Copans (1979), Rousseau nao deixava de olhar criticamente para
sua própria sociedade: ele criticava as desigualdades entre os homens e propunha um
contrato social como forma de atingir-se urna sociedade mais justa. Segundo Copans,
Lévi-Strauss teria distinguido dois Rousseaus: o primeiro, seria o Rousseau literário,
o do estado de natureza (o do romantismo); o segundo, o filósofo político. No entanto,
Lévi-Strauss teria privilegiado o primeiro, em detrimento do segundo, esvaziando
assim, qualquer crítica política. Dentro desta mesma linha de raciocinio, DaMatta, em
"Relativizando o interpretativismo" (1992), aponta para o fato de que, ao evitar-se a
realizagáo, nos grandes centros ocidentais, de estudos antropológicos da própria
sociedade do observador, contribui-se por um lado para que se reforce a crenga na
possibilidade do "afastamento etnográfico, descritivo e realista", e, por outro, para
que se evite a constituigáo de "urna atitude crítica em relagáo á sociedade do
investigador". Tal atitude, acaba por conduzir a urna situagáo onde

tudo se passa como se o estudo do outro fosse urna desculpa para impedir a desfamiliari-
zafáo de nós mesmos - ou como um mecanismo para obstaculizar um tipo de questiona-
mento político que frequentemente permeia as antropologías dos países do chamado Ter-
ceiro Mundo. (Da Matta 1992: 62-63; grifo do autor)

A ocultagáo do narrador na narrativa moderna certamente cria uma impressáo de ob-


jetividade. O narrador-autor somente deve aparecer, no que diz respeito ao texto etno-
gráfico, em lugares apropriados; ou seja, no prefácio, em notas de pé de página, em
fotos (que atestam o fato do pesquisador ter lá estado), ou entao em relatos á parte pu-
CAMINHOS CRUZADOS 109

blicados paralelamente ao trabalho científico. Mesmo em Um jogo absorvente: notas


sobre a briga de galos Balinesa (Geertz 1973: cap. 15), ensaio de Geertz apontado por
todos como exemplo de realizagao de urna descrigao densa, onde a interpretagáo da
cultura se apresentaria de forma definitiva, o pesquisador desaparece do relato logo
depois de ter sido reconhecido pelos nativos enquanto pessoa confiável.17 Como aponta
Clifford (1983: 132-133):

Geertz's abrupt disappearance into his rapport - the quasi-invisibility of participant-


observation - is paradigmatic. [...] [W]e are seldom made aware of the fact that an
essential part of the cockfight's construction as text is dialogical, talking face-to-face with
particular Balinese rather than reading culture 'over thefir] shoulders'.

O episodio acaba por estabelecer "a presumption of connectedness" que irá permitir
ao escritor funcionar na análise que se segue como "an omnipresent, knowledgeable
exegete and spokesman" (Idem: 132). O intérprete pode, entáo, situar a briga de galos
como um texto (em um mundo contextualizado), e proceder á leitura de seus
significados culturáis.
Essa oculta?ao do autor ñas narrativas etnográficas aponta nao só para urna von-
tade de objetividade (seja enquanto análise seja enquanto interpretagáo), como também
para urna vontade de verdade. Verdade fundada no desejo de urna razáo pura e trans-
parente, afastada de qualquer instancia de poder.18 Como aponta Foucault, o ocidente

vai ser dominado pelo grande mito de que a verdade nunca pertence ao poder político,
de que o poder político é cegó, de que o verdadeiro saber é o que se possui quando se
está em contato como os deuses ou nos recordamos das coisas, quando olhamos o grande

17 Geertz (1973: 412) inicia o relato contando ter chegado junto com sua esposa (em abril de
1958) em uma aldeia Balinesa que pretendia estudar enquanto antropologo:

We were intruders, professional ones, and the villagers dealt with us as


Balinese seem always to deal with people not part of their life who yet press
themselves upon them: as though we were not there. For them, and to a de-
gree for ourselves, we were nonpersons, specters, invisible men.

Entretanto, logo em seguida, em uma batida policial que pretendia acabar com uma briga de
galos (proibida por lei) que estava sendo disputada na pra?a principal da cidade, o casal de ame-
ricanos mostrou-se cumplice dos aldeoes (correndo e escondendo-se como qualquer um). Geertz
(idem: 416) relata que

[t]he next morning the village was a completely different world for us. Not
only were we no longer invisible, we were suddenly the center of attention
[...]. Everyone in the village knew we had fled like everyone else.

18 F. Salamone sugere que "anthropologists and missionaries are actually similar, both believing
they have the truth, being protective of the people among whom they work, and opposing that
which they define as evil" (Salamone 1977: 409. Cit. apud Stipe 1980: 168).
m VALTER SINDER

sol eterno ou abrimos os olhos para o que se passou. Com Platáo, se inicia um grande
mito ocidental: o que há antinomia entre saber e poder. Se o saber que é preciso que ele
renuncie ao poder. Onde se encontra saber e ciencia em sua verdade pura, nao pode haver
poder político. (Foucault 1979: 40)19

Parece possível apontar a época das Grandes Navegagoes como o momento em que o
Ocidente teria se voltado para urna nova forma de verdade. Inventaram-se
instrumentos que deveriam permitir a qualquer um, em qualquer lugar e em qualquer
circunstancia, constatar a verdade. "O navio, como lugar sem lugar, como elemento
perpetuamente móvel em torno da superficie do globo, implica va que a verdade nao
fosse mais algo que só se pudesse apreender em certos lugares e momentos"; todos
deveriam ter acesso a urna verdade que sempre estivera lá, em qualquer lugar, em
qualquer ponto do mundo, "a verdade para todos, nao importa quando, nao importa
onde" (Foucault 1992: 72).
Trata-se de um novo regime no discurso e no saber; urna modificagáo ñas regras
de formagao de enunciados que sao e seráo aceitos como verdadeiros. Nao se trata
simplesmente de urna refutagáo de erros antigos que possibilitariam o aparecimento de
novas verdades (mudanza de conteúdo), nem tampouco urna modificagao dos conjuntos
sistemáticos (mudanga da forma teórica). O que está em jogo, aponta Foucault (1979:
4) em "Verdade e Poder",

é o que rege os enunciados e a forma como estes se regem entre si para constituir um
conjunto de proposifóes aceitáveis cientificamente e, consequentemente, suscetíveis de
serem verificadas ou confirmadas por procedimentos científicos. Em suma, problema de
regime, de política do enunciado científico. Neste nivel nao se trata de saber qual é o
poder que age do exterior sobre a ciéncia, mas que efeitos de poder circulam entre os
enunciados científicos; qual é seu regime interior de poder, como e por que em certos
momentos ele se modifica de forma global.

A mudanga no regime discursivo operada na época das grandes navegagoes aponta


para urna nova concepgáo da verdade. Verdade universal, verdade da Razao. Verdade
que se espalha e impoe-se tanto dentro quanto fora da Europa. Tanto o louco na

19 A separafáo entre a esfera do saber e a do poder pode ser acompanhada tanto através do mapea-
mento do conjunto de meios autorizados e utilizados, quanto pela localizagáo dos lugares espe-
cíficos que seriam propicios para que se produzisse a verdade. Como e onde produzir a verda-
de, em que condifoes, que formas observar, que regras aplicar? Foucault (1992: 72) sugere ser
possível fazer urna topografía da verdade ao lado de urna cronología da verdade:

No pensamento grego, a verdade ou certas formas de verdade só podiam ser


produzidas em Delfos. No pensamento cristào, os mosteiros, a cela e o lugar
da medita9ào, a partir do monasticismo oriental, constituem lugares privile-
giados onde a verdade se produz. Na instituifào religiosa, a cátedra da qual
se prega é um lugar da verdade. Na instituido universitária, a cátedra da qual
se fala é também um lugar da verdade.
CAMINHOS CRUZADOS 111

Europa quanto o selvagem na América serào domados e dominados. Seus corpos serào
marcados com os mais variados discursos. Marcas de violencia, grosseira ou sutil,
serào impressas em seus seres. Tudo indica, como aponta P. Clastres em Entre o
silencio e o diálogo, ser possível descobrir "no pròprio espirito de nossa civilizagào,
e coextensivo à sua pròpria historia, a vizinhanga da violencia e da Razào, com a
segunda nào chegando a estabelecer seu reino exigente a nào ser através da primeira"
(Clastres 1968: 87). Tudo aquilo que nào é conforme à razào ocidental é alocado no
campo do desatino, da desrazào. Essa ligagào entre violencia e razào, embora muitas
vezes escamoteada, aponta para um fato inusitado: parece ser possível estabelecer urna
relagào necessària entre o desdobramento da cultura ocidental e a negagào daquilo por
eia chamado de desrazào. "Tudo se passa como se nossa cultura nào pudesse se
desdobrar a nào ser contra aquilo que eia chama desatino" (idem: 88). Promove-se,
inclusive, a ligagào desses seres, fruto de sua posigào simétrica em relagào à razào
ocidental: sào considerados estranhos, perigosos, imprevisíveis, enfim, desatinados;
justifíca-se, portanto, que sejam objeto de exclusào ou até mesmo de destruigào.
Encontram-se ñas fronteiras da Razào.
Nào se entende o que eles falam. Em realidade, nào se escuta. Isto nào impede
que, paulatinamente, os mais diversos discursos sejam elaborados em diferentes
esferas do saber, tomando esse outro como objeto, falando por ele. Entre o selvagem,
o louco e o civilizado serào tragados os mais variados nexos. Seja negando o
pertencimento do primeiro à humanidade, seja negando o pensamento tanto ao
primeiro quanto ao segundo, seja ainda afirmando a esséncia da natureza humana no
primeiro (sua bondade natural), nào se escuta va o que os dois primeiros diziam. Tanto
o selvagem quanto o louco podiam até aparecer em escritos filosóficos, literários ou
históricos, entretanto, ou apareciam como àlibi para que se realizasse urna crítica,
política ou moral, da sociedade daquele que falava, ou entào eram apontados como
seres ignorantes dominados pela ilusào, como o outro da razào, da verdade e da
sociedade. Serviam como exemplos ilustrativos para alguma historia exemplar. A
autoridade do dito, a verdade, estava explícitamente garantida pelos alicerces da
tradigào. Progressivamente, o discurso embasado em urna consciéncia crítica irá
permitir à razào, lugar da verdade e da moralidade, ir se impondo a outras formas de
discurso.
A crise na autoridade dos modelos que garantiam a verdade deste discurso aponta
para novas estratégias garantidoras da verdade. A separagào da historia e da literatura
aponta para a identificagào da verdade com os fatos, passível de ser atingida mediante
um olhar neutro, objetivo, enfim, científico. A historia sai à procura dos fatos,
enquanto que o sujeito é alocado na literatura, lugar da imaginagào, da parcialidade
e da subjetividade. A autoridade científica se separa da autoridade pessoal. Esta
mudanga de regime discursivo aponta para outros personagens, para outras rotas da
verdade: uma nova verdade, universal e sempre presente será paulatinamente assumida
pela figura do intelectual. Desde o Iluminismo, em defesa da verdade e da justiga, o
intelectual irá se opor ao poder, ao despotismo e a injustiga. Devido a isto, aparece
Ill VALTER SINDER

como porta-voz da humanidade. Portador da verdade, essa figura paradigmática tem


desde entáo se representado como estando tanto além da subjetividade do sujeito, como
fora da esfera do poder. Munido de seu olhar cada vez mais científico, tendo a verdade
como guia, ele pode até tomar a subjetividade e o poder como objeto. Tudo em nome
da verdade. Procurando constituir-se enquanto saber científico separa-se, mais urna
vez, a verdade tanto do sujeito como do poder. Como resultado, em nome da verdade,
independente da (boa) vontade dos intelectuais, acabou-se legitimando outras formas
de autoridade.
O desejo impossível de total separagao entre saber e poder, ou de opor o saber
ao poder, acaba por produzir um espago invisível, lugar de onde se fala, que acaba por
promover, em realidade, o fortalecimento da autoridade daquele que fala ou em nome
do que se fala. Surpreender a presenta do autor disseminada ao longo do texto nao sig-
nifica escapar deste mecanismo de produgáo de verdade (e autoridade), apontando para
o génio criativo do sujeito que poderia inventar o que bem entendesse.
Aquele que ocupa este lugar, o lugar do rei, nao deve ser visto simplesmente
como urna figura que pré-existe ao texto e o orienta com urna máo invisível (conscien-
temente ou nao), pois o que ele faz é preencher um principio funcional através do qual
em nossa cultura, em um determinado momento histórico, se limita a circulagáo, mani-
pulado, composifáo, decomposigáo, recomposigáo, enfim, a livre proliferafáo do sen-
tido. Como disse Barthes, em The Death of the Author, "to give a text an author is to
impose a limit on that text, to furnish it with a final signified, to close the writing"
(Barthes 1977: 147).
Assim entendido, a entrada do autor (enquanto fungao) no texto, seja literário, an-
tropológico, científico ou ficcional, nao significa simplesmente a intromissao do génio,
da criafáo, da subjetividade e da imaginagao. Nao significa a perda do rigor e da obje-
tividade da ciéncia por um lado, e o ganho da liberdade criadora da literatura por
outro. Significa, sim, dar o poder a alguém de falar por outro, de falar sobre o outro,
em suma, de falar em nome do outro, mas nunca falar com ele. Significa totalizar, re-
duzindo os acontecimentos (múltiplos, plurais, escorregadios) a padróes, a estruturas,
a textos, que significam (no sentido de serem sistemas de signos) e podem ser anali-
sados, interpretados. Significa disciplinar o real e submeté-lo a um discurso narrativo
fechado e totalizante.
Neste sentido, apontar a presenta do autor nos textos etnográficos nao significa
simplesmente denunciar a intromissao indesejada da retórica, da ficgáo e da subjetivi-
dade no reino da ciéncia (lugar da significado transparente, do fato e da objetividade).
O mais importante será a análise do tipo de autoridade que tal procedimento implica.
Apontar o encontro destas categorias anteriormente separadas nao significa simples-
mente um abalo na cren^a positivista da existencia de urna ciéncia neutra que apresenta
CAMINHOS CRUZADOS m
dados objetivos, mas principalmente na possibilidade de redistribuir as narrativas da
verdade segundo no vos eixos problemáticos. 20
A fungào-autor, ocupada pelo sujeito, pela cultura, pela estrutura ou ainda pelo
texto, pode ser entendida como a instancia capaz de aprisionar a polissemia da realida-
de. Questioná-la, deixá-la de lado nao significa pretender ingenuamente a possibilidade
de se ter o desaparecimento das coergòes, mas sim que estas i rao constituir-se
enquanto um novo sistema. Tanto a narrativa literária quanto a etnográfica efetuam
experimentos neste sentido. A tentativa de passar-se de urna modo de representagào
exclusivamente textual (analógico) para um modo discursivo (dialógico) pode ser
apreendida tanto nos romances modernos como ñas etnografías mais recentes. Apontar
para estas possibilidade significa reconhecer a continuidade da fabricagào, da invengào
do conhecimento.
Por fim, apontar a relagào necessària entre a escrita e o poder implica um ques-
tionamento sobre os mecanismos específicos que possibilitam a narratividade e a
verossimilhanga de urna escrita que, paradoxalmente, tanto supòe um afastamento
descritivo, como urna interpretagào hermenéutica.

20 C. Geertz (1995: 167-168), em seu livro After the fact, aponta para ofato de que

'After the fact' is a double pun, two topological turns on a literal meaning.
On the literal level, it means looking for facts, which I have, of course, 'in
fact' been doing. On the first turning, it means ex-post interpretation, the
main way (perhaps the only way) one can come to terms with the sort of
lived-forward, understood-backward phenomena anthropologists are con-
demned to deal with. On the second hand (and even more problematical)
turning, it means the post-positive critique of empirical realism, the move
away from simple correspondence theories of truth and knowledge which
makes of the very term 'fact' a delicate matter. There is not much assurance
or sense of closure, not even much of a sense of knowing what is one pre-
cisely is after, in so indefinite a quest, amid such various people, over such
a diversity of times. But it is an excellent way, interesting, dismaying, useful,
and amusing, to expend a life.
111
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