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Oiccionario político y social

I.S.B.N.: 978-84-259-1599-4

del mundo iberoamericano


91~JlI, Introducción Javier Fernández Sebastián, Director

Civilización
João Feres Júnior, Editor

UNlVERSIDAD DEL P AÍS VAs co/EUSKAL HERRIKO UN IBÉRTSITATEA


Iberconceptos I BE RCON CEPTOS
Universidad Euskal Herriko
dei País Vasco Unibeftsitatea CENTRO DE ESTUDIOS POLÍTICOS y CONSTITUCIONALES
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© De esta edición, 2014: UPV/EHU
© De esta edición, 2014: CENTRO DE ESTUDIOS POLÍTICOS y CONSTITUCIONALES

NIPO: 005-14-046-6 (CEPC)


l.S.B.N.: 978-84-259-1598-7 (Obra completa)
l.S.B.N.: 978-84-259-1599-4 (Tomo 1)
Depósito legal: M-23010-2014

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Costa, 12-14, 7a planta
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SUMARIO

Relaci ón general d e autores. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

Cuadro sinóptico de voces y autores. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

Abreviaturas y siglas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19

INTRODUCCIÓN. T IEMPOS DE TRANSICIÓN EN EL ATLÁNTICO IBÉRICO. CON-


CEPTOS POLÍTICOS EN REVOLUCIÓN, por Javier Fernández Sebastián . . . . . . . 25

Agradecimientos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73

CIVILIZACIÓN

Rel ación de autores de es te tomo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79

PRESENTACIÓN DEL PRIMER TOMO, por Javier Fernández Sebastián . . . . . . . . 81

o CONCEITO DE CIVILIZAÇÃO: UMA ANÁLISE TRANSVERSAL, por João Feres


J únior. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85

1. ARGENTINA/Río DE LA PLATA
Genevieve Verdo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107

2. BRASIL
João Feres Júnior - Maria Elisa Noronha de Sá. . . . . . . . . . . . . . . . . 123

3. CARIBE/ ANTILLAS HISP Anas


Consuelo N aranjo Orovio. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 141

4. CENTROAMÉRICA
Sajid Alfredo Herrera Mena . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 157

5. CHILE
Gabriel Cid - Isabel Torres Dujisin . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 169

6. COLOMBIA/NuEVA GRANADA
Carlos Villamizar Duarte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 185

7
DICCIONARIO pOLÍTICO Y SOCIAL DEL MUNDO IBEROAMERICA::\O

7. ESPANA
Javier Fernández Sebastián . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 201
8. MÉXICO/NuEVA ESPANA
Guillermo Zermefio Padilla. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 217
9. PERÚ
MareeI Velázquez Castro 233

10. PORTUGAL
Fátima Sá e Melo Ferreira - Sérgio Campos Matos. . . . . . . . . . . . .. 251
11. URUGUAy/BANDA ORIENTAL
Ariadna Islas Buscasso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 263
12. VENEZUELA
Luis Ricardo Dávila - Luis Daniel Perrone 277

8
CENTRO DE ESTUDIOS POLÍTICOS Y CONSTITUCIONALES
Consejo Editorial
Diccionario político y social
Luis Aguiar de Luque deI mundo ibero americano
José Álvarez Junco
Paloma Biglino Campos Conceptos políticos fundamentales, 1770-1870
Bartolomé Clavero
Euas Díaz
Cannen Iglesias
[Iberconceptos-11]
Santos Juliá
Francisco J. Laporta
Benigno Pendás García
Francisco Rubio Uorente
Ángel Sánchez Navarro
Joan Subirats Humet
Joaquín Varela $uanzes-Carpegna
María Isabel Wences Simon Introducción general
aI volumen 11

Civilización
tomo 1
]AVIER FERNÁNDEZ SEBASTIÁN
(DIRECTOR)

Universidad deI País Vasco / Euskal Herriko Unibertsitatea


Centro de Estudio s Políticos y Constitucionales
Madrid,2014
o CONCEITO DE CIVILIZAÇÃO: UMA ANÁLISE TRANSVERSAL
João FeresJúnior
., ~

C'est le sem de ce mot, son sens général, humain, populaire, qu 'il


faut étudier. Il y a presque toujours, dans!'acception usuelle des
termes les plus généraux, plus de vérité que dans les définitions en
apparence plus précises et plus rigoureuses de la science.
François Guizot

A
ssim como outros conceitos do nosso léxico, o de civilização é usado até
os dias de hoje. O artigo The clash o/ civilizations? de Samuel P. Hunting-
ton (1993), que serviu de base para o livro em cujo título o ponto de inter-
rogação já não mais aparece!, assim como os atentados de 11 de setembro de 2001
ajudaram muito a ativar debates onde o termo tinha um papel fundamental. Hun-
tington previa que o contexto pós-Guerra Fria seria marcado pelo conflito entre
grandes blocos culturais (cristão, muçulmano, hindu, coniucionista, etc.), e acu-
sava a cultura muçulmana-árabe de ser particularmente avessa aos valores funda-
mentais do Ocidente cristão, como o pluralismo e a democracia. A despeito do
uso do termo civilização no título das obras e também de sua aparição nos referi-
dos debates, o observador atento notaria que, na verdade, o conceito mais opera-
cional nos argumentos trocados é o de cultura. Civilização, assim, opera mais
como um slogan, urna buzzword. Escreve Huntington na primeira página do
artigo: «[ ...] as grandes divisões da humanidade ... serão culturais >,2. Logo depois
define civilização como «uma entidade cultura},,), ou em maior detalhe: «Uma
civilização é, portanto, o mais alto agrupamento cultural e a mais abrangente
identidade cultural que os povos têm [...},4.

A literatura crítica sobre o conceito de civilização, assim como a leitura dos


verbetes sobre o conceito de civilização que compõem o presente léxico, mostra
que essa dependência do conceito de cultura não existia nos séculos XVIII e XIX,
quando civilização foi definida abundantemente por meio de referências diretas a
aspectos materiais, políticos e morais dos povos. A evolução semântica do con-

J Samuel L. HUNTINGTON, The Clash ofCivilizations and the Remaking ofWorld Order,

N ueva York, Sirnon & Schuster, 1996.


I Samuel L. HUNTINGTON, «The Clash of Civ'ilizations ?», Foreign Affairs 72/ 3 (1993), pp.

22-49.
J HUNTINGTON, «The Clash of Civilizations?», p. 23.

, HUNTINGTON, «The Clash of Civilizations?», p. 23.

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DICCIONARlO POLÍTICO Y SOCIAL DEL MUNDO IBEROAMERICANO I João FeresJúnior CIVILIZAÇÃO - O CONCEITO DE CIVILIZAÇÃO: UMA ANÁLISE TRANSVERSAL

ceito de civilização até os dias de hoje mostra uma peculiaridade interessante


As teses acerca do desenvolvimento semântico do conceito de civilização le-
quando comparada à de outros termos do vocabulário social e político. A partir
vantadas pela literatura crítica são muitas e não totalmente congruentes, e quase
do século XIX e principalmente ao longo do século xx parte significativa do voca-
todas versam sobre experiências europeias. Um exame detalhado delas tomaria
bulário social e político foi recebida pelas ciências sociais, que se desenvolveram
todo este ensaio e mais. Assim, no presente texto pretendo examinar os desenvol-
nesse período. Os conceitos, que já eram empregados na linguagem comum, ga-
vimentos semânticos ocorridos no mundo de fala ibérica à luz de alg{1mas dessas
nharam assim uma camada semântica extra como termos técnicos e analíticos.
teses, somente aquelas que parecem mais relevantes. Prosseguirei então da se-
Esse é o caso de Estado, direito e justiça, entre muitos. Alguns termos, contudo,
guinte maneira: na próxima seção elencarei as teses que considero mais relevantes
não foram plenamente incorporados pelas ciências sociais; esse parece ser o caso
a~ estud? do conceito de civilização no Mundo Ibérico, adicionando a elas ques-
de civilização. O termo cultura, seu parente semântico e hoje concorrente em
toes adVIndas da metodologia da história conceitual, que, a meu ver, são capazes
muitas línguas modernas, tornou-se o principal conceito analítico da antropolo- de emprestar poder sintético e clareza à análise.
gia e mais recentemente dos Cultural Studies, além de ter sido adotado por uma
miríade de outras disciplinas como a história, sociologia e ciência política. Já o
termo civilização foi apropriado somente por alguns historiadores, o mais recen-
te c ilustre talvez seja Fernand Braudel (1994). A tentativa de Huntington de FORTUNA CRÍTICA

ressuscitar o uso do termo civilização de modo analítico encontrou enorme resis-


tência. Por que as coisas tomaram esse caminho? A resposta talvez repouse no Na introdução do livro Civilisatian: le mat et l'idée, Henri Berr detecta o
fato de o termo civilização não conseguir facilmente cumprir o papel de termo caráter duplo, descritivo e valorativo, do termo civilização, para logo em seguida
técnico, ou seja, despido de julgamentos de valores, à maneira como requerem as de~lar que os ensaios que compõem o livro rejeitam o segundo, ou seja, o valo-
ciências sociais behavioralistas e pós-behavioralistas. Como bem nota Brett Bow- :at~vo, e seu conteúdo subjetivo. Trata-se de fazer um estudo da palavra e das
den (2009b), tal conceito reúne elementos descritivos e valorativos. Talvez o fato Idelas, segundo eleS. Outros tantos autores identificaram o duplo caráter do ter-
de o conceito ter sido usado tantas vezes como justificativa de projetos colonia- mo. Interessa aqui particularmente aqueles que refletiram sobre o conceito ou a
listas tenha selado seu destino de marginalidade nas ciências humanas; essa é uma ideia, e não aqueles que o utilizaram de maneira naturalizada, como uma p~lavr
hipótese consonante à interpretação de Bowden. Nosso próprio projeto Ibercon- que descreve algo no mundo de maneira incontroversa - o que podemos chamar
ceptos pode servir de contraexemplo. Hipoteticamente, ele poderia ser cognomi- de tratamento instrumental do termo. O propósito do presente estudo, assim
nado Projeto de História Conceitual da Civilização Ibérica, mas tal título sequer como o dos verbetes, é fazer uma história do conceito, tanto de seu uso normati-
foi aventado pelos membros do grupo. vo c.omo do descritivo. Tal posição já é em si nutrida por um espírito cético, que
dUVIda de que um termo dotado de tamanha carga normativa possa se constituir
Apesar da origem europeia, a experiência americana foi também responsável em um descritor de algo no mundo de maneira incontroversa. Muitos autores que
pelo destino do conceito de civilização, não somente na língua inglesa, mas tam- estudaram o conceito de ci vilização adotaram démarche similar. O próprio livro
bém no português e espanhol- ainda que esse desenvolvimento histórico e se- Czvzlzsatzon: le mat et l'idée é um exemplo; As Máscaras da Civilização, de Jean
mântico não tenha sido suficientemente explorado pela literatura especializada, Starobinski (2001), é outro. Mesmo autores que usam o conceito de maneira ins-
algo que torna a presente iniciativa ainda mais meritória. O presente ensaio pre- trumentai no seu trabalho, como ferramenta de análise, como Fernand Braudel
tende ser uma reflexão sobre a história desse conceito nos países onde essas duas (19~) e Norbert Elias (1982), sentiram-se premidos a fazer uma introdução re-
línguas ibéricas são faladas, no período que vai de 1750 a 1870. Mais especifica- fletIndo sobre a evolução semântica do conceito.
mente, ele será baseado nos verbetes sobre o conceito de civilização compostos
por: Genevieve Verdo (Argentina), João Feres Júnior e Maria Elisa Noronha de . ~.posiçã cét!ca defendida aqui em tudo se coaduna com a metodologia da
Sá (Brasil), Consuelo Naranjo Orovio (Caribe-Antilhas), Sajid Alfredo Herrera hlstona dos conceItos. Isto é, o paradigma da história conceitual evita a cilada de ter
Mena (América Central), Isabel Torres e Gabriel Cid (Chile), Carlos Villamizar de optar pelo aspecto descritivo ou normativo dos conceitos. Os elementos descri-
Duarte (Colômbia), Javier Fernández Sebastián (Espanha), Guillermo Zermeno tivos e normativos são tomados como partes da semântica do conceito, e, portanto,
(México), MareeI Velázquez Castro (Peru), Fátima Sá e Melo Ferreira e Sérgio
Campos Matos (Portugal), Ariadna Islas Buscasso (Uruguai) e Luis Ricardo Dá-
5 Lueien FEBVRE, MareeI NlAuss, Émile TONNELAT e Alfredo NrcEFORo, Civilisation: le
vila e Luis Daniel Perrone (Venezuela). mot et l'idée, Paris, Renaissance du livre, 1930, p. XII. .

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João Feresfúnior CIVILIZAÇii.o - O CONCEITO DE CIVILIZAÇÃO: UMA ANÁLISE TRANSVERSAL
DICCIONARIO POLÍTICO Y SOCIAL DEL MUNDO IBEROAMER I CANO

como objetos a serem estudados. Também não precisamos nos ater à separação
o primeiro significado, o de ato de civilizar, é notado por Javier Sebastián na
entre objetivo e subjetivo, própria do paradigma cartesiano, pois a inspiração feno- primeira aparição do termo em língua espanhola, em texto d e autoria do padre
. menológica embutida na história conceitual foca a experiência e a construção da jesuíta Juan José Delgadó acerca de algumas tribos filipinas. Delgado chama de
linguagem através de um processo social de atribuição de significado intersubjeti- bárbaros os costumes daqueles que ainda se recusavam a vivir en polida, acres-
vo, que nunca é totalizante ou propriamente objetivo, pois se encontra fracionado centand o que tais tribos parecem fugir daquilo que conduz a su a civilizaçã07. O
como a própria sociedade. Assim, a história conceitual rejeita a busca da univocida- ensaio de Delgado apareceu em 1754, ou seja, dois anos antes da publicação de
de e da perfeição conceitual, que hoje são comuns nas ciências humanas e sociais, L 'ami des hommes de Mirabeau - obra que é reputada por muitos comentadores
especialmente naquelas que perseguem, mesmo que reto ricamente, o modelo das como a primeira aparição do termo em língua europeia. A evidência proporcio-
ciências naturais, tais como amplos setores da sociologia e da ciência política. É nad a por Fernández Sebastián é sólida e revela um viés francocêntrico da literatu-
contra essa concepção que as abordagens de Reinhart Koselleck (1996) e de Quen- ra secundária oupelo menos um possível preconceito contra a língua espanhola.
tin Skinner (1969), para citar apenas os nomes mais célebres, pleiteiam a necessida- Se formos para além do mero emprego lexical, notamos que o significado estrito
de de se resgatar a linguagem em seus múltiplos usos e significados. de ato de civilizar adotado por Delgado é muito mais antigo do que seu século. O
verbo civilizar já era usado desde o final da Idade Média em francês e estava pre-
A história conceitual, da maneira como a concebeu Kosel1eck, é especialmente sente nos principais dicionários das línguas neolatinas produzidos no século
bem equipada para detectar os aspectos normativos da linguagem. Três das quatro XVIII, ou seja, bem antes do vocábulo civilização, que passa a ser u sado com mais
hipóteses básicas, adotadas na feitura da Geschichtliche Grundbegriffe, prestam-se frequência em francês, inglês, e logo em seguida nas principais língu as neolatinas
8
a esse serviço: a temporalização (Verzeitlichung), que corresponde à disposição de (com exceção do italiano) somente a p artir do último quarto do século XVIII •
inserir conceitos políticos e sociais modernos na filosofia da história, esquemati-
zados teleologicamente e divididos em períodos, fases e estados de desenvolvi- A partir do descobrimento do Novo Mundo, ou seja, já a partir do século XVI,
mento; a ideologização (f deologisierbarkeit), que corresponde a um processo de o projeto de «civilizar» os indígenas foi muitas vezes aventado. Mesmo que o
aumento do «grau de abstração de muitos conceitos que já não são capazes de re- verbo usado nem sempre tenha sido esse, de radical civil-, o significado era o
fletir a mudança dos acontecimentos ou as transformações sociais», daí, por exem- mesmo: fazer, se necessário com o uso da forç a, que os indígenas passassem a
plo, o surgimento de singulares coletivos como história, direito ou mesmo civili- viver em cidades, regidas por leis civis e por costumes cristãos, ist o é, arrancá-los
zação; e a politização (Politisierung) do vocabulário social e político, que redunda da prática de supostos costumes bárbaros, como o canibalismo e a poligamia, e
na nova u tilização de conceitos como «armas de guerra» em batalhas ideológicas submetê-los ao governo civil português 9 • No Plano de Colonização dos índios do
entre classes, grupos de status e movimentos sociais 6 • A hipótese da democratiza- Brasil, feito pelo jesuíta Manoel da Nóbrega, o termo usado era «aldeamento»lo.
ção (Demok ratisierung), ou seja, a expansão progressiva da penetração social do As Reducciones paraguaias, implantadas algumas décadas depois, foram projetos
uso de conceitos sociais e políticos, não será tratada aqui pelo simples fato de que em tudo similares ll .
o des enho da pesquisa não nos permite testá-la de maneira satisfatória, pois para
tal precisaríamos ter instrumentos para avaliar a circulação social dos termos. Ao analisar a história do conceito de civilização na França, Raymonde Mon-
nier diz que nos anos de 1760 e 1770 o termo já era usado em duas acepções
Além das hipóteses de Kosel!eck, desejamos perguntar se algumas das teses
defendidas por autores que estudaram o conceito de civilização na Europa se
7 J avier FERNÁNDEZ SEBASTIÁ..'1, «The Concept of Civilization in Spain, 1754-2005: From Pro-
aplicam aos casos dos países de fala ibérica. Vamos começar aqui pelas tes es acer- gress to Idenriry», Contributions to the History ofConcepts 4/1 (2008), pp. 81-1 05, cita em p. 84.
ca da semântica do conceito propriamente dita. Da literatura secundária acerca do 8 Lucien FEBVRE et al., Civilisation; Sandro CHIGNOLA, "Civis, civitas, civiJitas: Transla-

tema despontam pelo menos quatro definições fundamentais do conceito de civi- tions in Modern Italian and Conceptual Change", Contributions to the History of Concepts
lização. São elas: 1) ato de civilizar; 2) modelo ou padrão; 3) processo; 4) expres- 3/2 (2007), pp. 234-253.
9 José ErSENBERG, As missões jesuíticas e o pensamento político moderno; encontros cultu-
são da nacionalidade.
rais, aventuras teóricas, Belo Horizonte, UFMG, 2000.
10 Serafim LEITE, Manoel DA NOBREGA e Antóni o VIEIRA, Novas cartas jesuíticas (de

b Reinhart KOS ELLECK, «Einleitung»,em Otto BRUNNER, Werner CONZE e Reinhart Ko - Nóbrega a Vieira), São Paulo, Editora Nacional, 1940.
11 Barbara Arme GANSON, The Guaraní under Spanish ruie in the Río de la Plata, Stan-
SELLECK, Geschíchtliche Grundbegriffe; historisches Lexikon zur politisch-sozíaien Sprache in
Deutschland, Sruttgart, E. Klett, 1 972~1, pp. V-XXXVI. ford, Staruord University Press, 2003.

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DICCIONARlO POLÍTICO Y SOCIAL DEL MUNDO IBEROAMERlCANO João FeresJúnior CIVILIZAÇÃO - O CONCEITO DE CIVILIZAÇÃO: UMA ANÁLISE TRANSVERSAL

modernas, perfectiva e imperfecriva; a primeira é a que chamamos aqui de «mo- critério. Mas se isso é verdade, então devemos esperar encontrar em nossas fontes
delo ou padrão», segundo a qual o termo descreve o alto grau de desenvolvimen- significados dotados de concepções diversas de temporalidade, tanto as pré-Ilu-
to de uma nação, e a segunda designa um processo dinâmico e gradual, segundo ministas quanto as mais afeitas ao espírito das Luzes. Isso é consonante com a
o qual uma sociedade primitiva avança em direção a estágios mais elevados, por tese de Koselleck acerca da contemporaneidade do não contemporâneo: o acú-
meio do desenvolvimento moral e materiap2. Aqui nos deparamos com um pro- mulo de experiência histórica na linguagem faz com que em um dhdo tempo
blema interpretativo interessante, que em grande medida tem a ver com a impre- convivam noções com diferentes concepções de temporalidade. Dessa maneira,
cisão do uso do conceito de «moderno» como ferramenta analítica. Seria o ato antes de determinar a temporalização do conceito a priori, como uma consequên-
de civilizar dos jesuítas do século XVI um conceito moderno? Ou somente as cia natural de algum suposto Zeitgeist, temos que analisar cada uso para avaliar a
definições modelar e de processo, que a autora atribui ao século XVIII, merecem concepção de temporalidade nele imbricada.
essa designação? A noção de temporalização de Koselleck pode nos ajudar a
Em suma, os significados de ato, de modelo e mesmo de processo já estavam
responder a essa questão.
presentes antes do nosso período de análise. O que não havia era uma concepção
Como notou com propriedade Anthony Pagden, as etnologias dos povos do de temporalidade propriamente secularizada, linear e não teleológica, como des-
Novo Mundo feitas pelos padres catequistas, como Bartolomé de Las Casas crita por Karl Lowith (1949), concepção essa que é em grande medida também
(1967) e José Acosta (1977), por exemplo, continham um germe de temporaliza- adotada por Koselleck como um dos signos da modernidade. Uma leitura mesmo
ção 13 . Havia nelas já teorias de estágio e a possibilidade de passagem de um está- que cursiva dos verbetes mostra que o grau em que o conceito de civilização é
gio a outro superior, como é o caso explicitado na retórica dos defensores dos interpenetrado por essa nova noção temporal varia muito de exemplo para exem-
projetos de aldeamento. Havia também a percepção nítida de um padrão ou mo- plo de uso.
delo, representado pela catolicidade europeia, que ocupava o ápice da escala, as-
Claramente ligado ao processo de temporalização do conceito está o de ideo-
pectos que não escapam a Pagden. Ao mesmo tempo, contudo, a temporalização
não era clara e inequívoca, como mais tarde, no Século das Luzes, se tornaria, logização. Aqui temos um fato peculiar que atinge o conceito em questão, pois se
pois esses esquemas conviviam com a ideia de Juízo Final, uma interrupção por um lado ele parece já ter nascido como um singular coletivo, por outro pas-
abrupta do tempo que em si é destituída de imanência histórica, pois depende da sou por um processo de pluralização que não ocorreu com outros conceitos. Ou
intervenção extemporânea de Deus no mundo. O que os padres portugueses e seja, quase como um processo inverso ao que foi descrito por Koselleck, de uma
espanhóis começaram a fazer foi traduzir diferenças culturais (usos e costumes) civilização passou-se a falar-se de várias civilizações, a grega, a romana, a asteca,
em diferenças temporais (primitivismo, atraso, etc.), abrindo assim a possibilida- a espanhola, a brasileira, etc., como não deixa de notar Braudel (1994). Isso não
de para um amplo leque de argumentos morais que vão da justificação do colo- significa que o uso da fórmula singular despareceu, muito pelo contrário, ele pas-
nialismo à refutação da tese da escravidão natural dos indígenas1+. sou a conviver com os usos plurais, não raro em tensão com eles. Essa tensão
entre singular e plural, que está presente tanto nos trabalhos de Guizot ([1828J
Assim, não me parece recomendável assumirmos que os significados de mo- 1985) corno nos de Arnold Toynbee (1934), só para citar dois nomes muito in-
delo e de processo sejam em si modernos, se por modernos entendemos conceitos fluentes na propagação do uso do termo, é também notada nas análises da semân-
insuflados por uma concepção temporal de história imanente, nutrida pela ideia tica do conceito feitas por L ucien Febvre, N orbert Elias, Jean Starobinski e Brett
de perfectibilidade humana e aberta ao progresso sem fim determinado!s. Nem as Bowden. Febvre afirma que a versão singular é sempre feita da perspectiva de um
concepções de Mirabeau ou mesmo de Guizot se encaixam perfeitamente nesse eu coletivo que se coloca como superior e, portanto, dotado dos quesitos morais
e materiais modelares, enquanto que o uso plural, em sua época defendido mor-
mente por etnólogos, tenta colocar em pé de igual valor as diferentes culturas 16 .
12 Raymond MONNIER, «Usages d'un couple d'antohymes au 18e siecle: la civilisation et
Bowden argumenta que o singular coletivo serviu de esteio ideológico para um
son revers, la barbarie», Dix-Huitiême Siêcle 40 (2008), pp. 523-543.
13 Anthony PAGDEN, The Fa!l of Natural Man: the American lndian and the Origins of
sem número de projetos coloniais (2009a). Em uma formulação que sabe a Hegel,
Comparative Ethnology, Cambridge e New Y ork, Carnbridge University Press, 1982. Starobinski defende que o surgimento do conceito de civilização, no singular, é
H João FERES JÚNIOR, «Polítical Philosophy, Ethnology, and Time: A Study of the No- produto da tomada de consciência do Ocidente de si mesmo, ou seja, de um ato
tion of Historical Handicap», Kriterion 105 (2002), pp. 19-42.
15 Karl L6WITH, Meaning in History, Chicago e Londres, Phoenix Books-The University

of Chicago Press, 1949. 16 Lucien FEBVRE et aL, Civilisation.

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DICCIONARIO POLÍTICO Y SOCIAL DEL MUNDO IBEROAMERICANO João Feres Júnior CNlLlZAÇÃO - O CONCEITO DE CIVILIZAÇÃO: UMA A."IÁLrsE TRANSVERSAL

reflexivo que produz a autoconsciência e a partir daí é capaz de nomear outras pois por toda sua história o conceito de civilização - assim com? vocá?ulos que
civilizações ao mesmo tempo que se coloca como superior a todas elas!7. Avalia- foram seus diretos predecessores históricos, como cristão, políCla, pohdez, refi-
ção parecida já havia sido feita por ELias ao anotar que o conceito de civilização namento, etc. - tem sido usado como o elemento positivo de um par de contra-
serve para que o Ocidente se jacte como superior a outros povos no tocante a conceitos assimétricos que tem «bárbaro», e a partir do século XVI também ~
uma miríade de aspectos morais, culturais e técnicos, e assim justifique seus pro- «selvagem», no polo negativ0 20 • Do ponto de vista metodológico, o interesse aqUI
jetos de conquista e colonização. O autor escreve: «O lema 'civilização' conserva repousa no fato de que a hipótese da politização foi pensada por. ~oselck para a
sempre um eco da Cristandade Latina e das Cruzadas de cavaleiros e senhores análise de conceitos-chave, ou seja, daqueles que se tornam cruCIaIS para o enten-
feudais»!8. dimento e o auto entendimento de uma comunidade política21. Não há reflexão
teórica, contudo, acerca da aplicabilidade dessa hipótese para o caso de contra-
Uma faceta importante da ideologização é sua interação com as diferentes °
conceitos assimétricos. Qual seria problema em fazê-lo? A resposta t em a ver
definições básicas do conceito. A civilização como ato de civilizar o bárbaro ou com o termo «assimétrico", definido pelo autor corno a condição em que um
selvagem pode muito bem ser articulada a urna teoria de estágios, com um mode- grupo nomeia e outro é nomeado, e o grupo nomeado é, ao ~e:o tempo, i~ca­
lo no ápice que corresponde ao estágio mais excelente. Nesse caso podemos ter paz de reagir ao ato de nomeação. Daí advém o caráter aSSlmetnco. Ou seJa, o
boas justificativas para projetos coloniais, como de fato ocorreu na primeira onda grupo nomeado está quase sempre fora da comunidade política, sej: por ser mar-
do colonialismo europeu já citada aqui, ainda antes da consolidação do termo ginal a ela ou por se tratar de povos que vivem em países est:a ngelr~s. Será que
civilização. Mesmo uma temporalização «pré-moderna» foi capaz de gerar um poderíamos falar de politização nesse caso? Parece-me ~ue ald~ aSSim, no caso
horizonte de expectativas onde se justifica arrancar o selvagem de seus modos do conceito de civilização, essa hipótese pode ser produtIva, partlcularmente nos
bárbaros para colocá-lo em um estágio superior, mesmo que esse estágio não seja casos de consumo interno, ou seja, quando o conceito é usado para nomear gru-
ainda o modelo. A definição modelar pode, por seu turno, prescindir de uma teo- pos de pessoas que habitam a nação, mas não estão plenamente integrados à co-
ria de estágios e ser usada em oposição binária à barbárie. Tal uso é muito comum munidade política (indígenas, negros, camponeses, a plebe, etc.). Em outras pala-
em justificativas mais severas de erradicação da barbárie ou mesmo na fórmul a vras as lutas em torno da incorporação ou não de parcelas da população ao
mais branda de «clube de nações civilizadas», muito comum no século XIX, inclu- sist:ma político geralmente se travam em torno do significado de contraconceitos
sive em nossa amostra. Por fim, a definição de civilização como expressão da assimétricos, na definição dos limites entre o Eu coletivo e seus outros.
nacionalidade coloca a ideologização em um patamar diferente daquele pensado
por Koselleck1 9 , pois não se trata mais de propor aquilo que ainda não é por meio
da construção de uma narrativa unilinear da históri a universal, mas sim de proj e- CIVILIZAÇÃO NA AMÉRICA
tar um devir que corresponde à realização do espírito de um povo, de uma nação.
Assim, a pluralização do conceito não se faz sem negar a positividade da civiliza- oque podemos dizer acerca da evolução semântica do conceito de civiliza-
ção ou mesmo seu aspecto universal, mas sim ao se reclamar para um determina-
ção nos diversos países da América?
do modus vivendi nacional o valor de contribuição inestimável a esse processo de
desenvolvimento de toda a humanidade.

Mas o aspecto da ideologização só é bem entendido se a ele juntarmos a poli- O ATO DE CIVILIZAR E O MODELO

tização do conceito de civilização. Aqui também temos algo muito interessante,


Quando Guizot publica suas conferências sobre o tema da civilização no ano
de 1830, o conceito já estava sofrendo um processo de temporalização em algu-
17 Jean STAROBINSKI, «La palabra civilisation», Revista Prismas 3 (1999), p. 31.
mas línguas europeias de seu tempo. No entanto, em nossa mostra de texto não é
18 Norbert ELIAS, O processo civilizador: uma história dos costumes, Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Editor, 1990, p. 67. muito comum encontrar evidências de temporalização explícita do conceito antes
19 Segundo Koselleck, ideológico é o tipo de discurso que projeta um futuro que ainda não

é parte da experiência do presente. Em sua análise do advento da modernidade tal operação é


20 Reinhart KOSELLECK, Futures Past: On the Semantics Df Historical Time, Cambridge e
ligada ao surgimento de conceitos cada vez mais gerais e até universais. Reinhart KOSELLECK,
Futures Past: On the Semantics of Histoncal Time, Carnbridge e Londres, The MIT Press, Londres, The MIT Press, 1985, pp. 155-191.
1985, pp. 255-275. 21 KOSELLECK, «Einleitung», pp. I-IV.

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DICCIONARIO POLÍTICO Y SOCIAL DEL MUNDO IBEROAMERICANO João Feres Júnior CIVILIZAÇÃO - O CONCEITO DE CIVILIZAÇÃO: UMA ANÁLISE TRANSVERSAL

dessa data. Isto é, os usos mais comuns do conceito de civilização até quase a para promover «a extinção de bandidos e foragidos que inundam aqueles campos;
metade do século XIX estão associados ao que se denominou «significado mode- a civilização política e moral de seus habitantes; a propagação legal da espécie
lar»: a civilização é concebida simplesmente como um modelo a se imitar, euro- humana (... ). Estes são objetos que nós propomos para a cura daquela Babilônia»24.
peu, da vida em cidades, regida por leis e em conformidade com a polícia e a E esse significado adentra o século XIX e é adotado em textos que tratam da ques-
cortesia. Não é raro também encontrar o conceito associado à religião cristã e à tão da civilização. Podemos encontrá-lo nos Âpontamentos para a ci1Jilização dos
educação. Índios bravos do Império do Brasil escritos por José Bonifácio25 e também na
Venezuela, organizando o projeto da Ley sobre Reduccíón y Cívilización de In-
Outro significado presente é o de «ato de civilizar». Tal significado já se faz dígenas, de 184126 •
presente no verbete civilización no Diccionario Castellano de 1786: «Acción de
civilizar y domesticar a algunos pueblos silvestres: la civilización de los Brasi- o
ato de civilizar, com o decorrer dos anos, passa também a ser expresso por
lenos fue muy difícil para los misioneros»22. É interessante notar que o exemplo meio de esquemas temporais advindos das Luzes, como na passagem abaixo já de
dado pelo Dicionário não vem da América Espanhola, mas do Brasil. Esse mesmo meados do século XIX:
significado se observa nas vozes de outros países do Mundo Ibérico. O ato em si, A Araucania, filha do atraso e da ignorância, resta constrangida de estupidez e
em seu sentido mais concreto, se refere à solução prática do «problema indígena»; imperícia, se coloca em movimento, atrevendo a se dirigir contra as formas de civili-
porém, quando esse projeto vem mesclado à missão religiosa de conversão de zação, levantando seu grito selvagem e orgulhoso para cobrir de vergonha e desonra
indígenas pagãos, ele tende a ser justificado mais pelos ditados da fé e por ques- o nome do Chile. A civilização por uma parte, a barbárie por outra se colocam em
tões práticas de governabilidade do que por razões inerentes a uma concepção luta e o triunfo não deve ser posto em dúvida no século em que estamos; o século da
ilustração e do saber é o século da liberdade que não se deixará vitimar pelo gênio das
imanente da história.
trevas e da mais cega opressão. A Araucania se levanta hoje contra o Chile, porém
É compreensível que os primeiros usos da palavra «civilização» se refiram ao amanhã, o Chile soltará seu braço de ferro sobre os temerários indígenas para reduzi-
-los à impotência, ao nada e fazer desaparecer de seu território uma horda de bandi-
«ato de civilizar». Sabemos que o verbo «civilizar» começou a ser utilizado antes
dos revelados à luz da razão e da verdade."
da aparição da palavra civilização, como fartamente documentado pela literatura
crítica. Além disso, o projeto de «aldeamento» dos indígenas como medida para Aqui, O que guia e em última instância justifica a redução dos índios à civili-
sua cristianização foi articulado pelos jesuítas no Brasil já no século XVI e depois zação é um Zeitgeist que em si expressa a autoconsciência da diferença entre o
se espalhou para outros lugares. Para que a conversão fosse exitosa, os indígenas presente, o século da liberdade, e o passado.
eram obrigados a abandonar sua vida na selva, com seus costumes «bárbaros»,
O ato de civilizar, porém, inclusive antes de receber esse nome, já significava
para viver em aldeias, povos pequenos sob o domínio dos sacerdotes. Isto é, a
a imposição de um ideal, que chamamos aqui de significado modelar. E esse mo-
reforma do espaço social e da sociabilidade se implantou como uma medida com
delo no princípio não era expresso pelo termo civilização, senão por outros ter-
objetivos temporais e espirituais.
mos com significados similares como polícia e polidez. A definição da palavra
Encontramos o mesmo projeto, por exemplo, em Vicente Carvallo, que, ao «policiado», do Dicionário Moraes da língua portuguesa, expressa bem o paren-
discorrer sobre os indígenas chilenos, escreveu que é necessário «reduzir a popu- tesco semântico dos termos:
lação, para que, vivendo em civilização e sujeitos à legislação, sejam úteis ao Es- Civilizado, Policiado, Polido: um povo é civilizado quando, tendo deixado os
tado e aptos para receber as impressões da verdade evangélica»23. O autor desco- costumes bárbaros, se governa por leis. É policiado quando, pela obediência às leis,
nhecido de «Notícias dos campos de Buenos Aires e Montevidéu para Sua tem adquirido o hábito das virtudes sociais. E polido quando em suas ações mostra
disposição», dirigida ao rei em 1803, sugere também a pregação do Evangelho,

24 Vicente CARVALLO (1796), «Descripción histórico-jeográfica de] Reino de Chile», p.


22 Esteban de TERREROS Y PANDO, Diccionario Castellano con voces de ciencias y artes, y 389.
sus correspondientes en las tres lenguas francesa, latina e italiana, Madrid, Arcos, 1987 [1786], 25 José Bonifácio de ANDRADA e SILVA, Apontamentos para a civilização dos indios bravos

I, pp. 439-440. do Império do Brasil, Projeto apresentado à Assembleia Geral Constituinte e Legislativa, 1823.
23 Vicente CARVALLO (1796), «Descripción histórico-jeográfica deI Reino de Chile», em 16 Elena PLAZA, «Venezuela y la Piedad Ilustrada (La Secularización de las Misiones entre

Colección de Historiadores de Chile y documentos relativos a la histo ria nacional, Santiago de 1830 y 1847)>>, Politeia XX:XVI/29 (2006), pp. 103-138.
Chile, Imprenta de la Estrella de Chile, IX, p. 367. 27 El Corre0 deI Sur, Concepción, 29-1 -1859.

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DICCIONARlO POLÍTICO Y SOCIAL DEL MUNDO IBEROAMERICANO
João Feres Júnior CIVILIZAÇÃO - O CONCEITO DE CIVILIZAÇÃO: UMA ANÁlISE TRANSVERSAL

elegância, urbanidade e gosto. No pOVO civilizado reinam as leis N . .


remam os bons costumes. No povo polido· b.d d . o pOVO policiado cados não vêm necessariamente juntos. Cabe assinalar que, apesar de haver muitas
, . d I reina a ur anI a e e gosto '
quencla o uxo. As leis estabelece . ·1· _ ' que e conse- vezes referência à fé cristã, ela entra como mais um dos elementos do modelo. Isto
os bons COstumes.28 m a CIVI lzacao
• entre os povos b'ar b aros, f ormand
o
é, a conversão dos pagãos não é necessariamente o propósito principal aqui.
No entanto, «civilizado» é um termo novo a u · .
dez» e principalmente « 1'· ., q. 1, .VISto que as palavras «poli- ° conceito modelar foi utilizado muitas vezes para fazer compa.rações entre
nações e povos, e associado a ele encontramos o uso muito frequnt~ da ideia de
cia europeia29, urbana e ~:cIa» ]a caregv~m o sIgmficado modeIar de excelên-

°
d d· I . '1 governada, muIto antes que essas palavras derivad «clube das nações civilizadas» em contraposição aos povos bárbaros do mundo,
o ra Ica CIVI - começassem a ocu ar esse e ~ . .. - as como no caso colombiano, em referência de 180931, na Espanha33 , no Brasil (onde
tellano (1788) t ··fi d . . ~ Spaço semantIco. Dzcczonario Cas-
\ raz SIglll ca os sIfilIar d M tal noção aparece várias vezes nas páginas do Correio Braziliense, do começo do
polidez, associadas a leis bons costu:e~;
Bluteau (1728)
.
,
oraesbP~d
, r em e ur anl a e. Jo
. ' que reflete uma semântica do português do sécul
°
ads p~Iavrs ?olícia e
DZClonário século XIX) e em muitas referências na Venezuela. Nesse caso, a conceituação
serve para produzir uma geografia dualista do mundo, dividido entre civilizados
antenor, obVIamente não contém o b .. . _ o XVII ou mesmo
e não civilizados. O modelo mais utilizado é a Europa, porém, muitas vezes, na-
civilidade, traz definições técnicas (~r .ete c.Iv.;hzaçaa. e, para ?~ termos civil e
ções europeias específicas são eleitas. Descontando as preferências regionais, a
etc.) ou francamente n e '
· ·.
d IClOnansta narra que esse 'd
Ire~O
'
CIVI, ar~UIteu
gatlvas (descortesIa, grossena e rusticidade)
, .
° ' .
CIVIl, guerra civil,
. propno
França é o modelo mais citado, seguido por Inglaterra e Estados Unidos . Espa-
nha e Portugal também são citados corno exemplos de civilização em relação a
dos vocábulos latinos civlt:~ ci~z;I:Ovr pI:~rã do sle.ndtido o rig~al suas colônias na América, todavia este uso é menos frequente e geralmente está
todas as qualidades ositiv . _ ~cIa e amp la o e contem
I d . ir - p as que maIS tarde serao assocIadas à concepção mod _ envolto em polêmicas.
ar e CIV Izaçao, como boa ordem, leis justas, bom governo e bons costumes. e

Oto vserb;te. polícia ainda contém outra evidência forte dessa tese de desloca
° conceito modelar de civilização carece de um sentido temporal forte.
Como programa social e político ele reclama a eleição de um ideal estrangeiro e a
men emannco: -
articulação dos meios para sua emulação. Em outras palavras, o processo da civi-
nenhuma nem outra polícia se acha nos o vos a h ' lização corresponde a uma mudança da barbárie ao clube das nações civilizadas.
como v.g. o gentio do Brasil [ ] [ . P que c .amamos de barbaros, Não obstante, há uma diferença fundamental aqui entre o uso do significado mo-
luz da razão quase como ,... . o s fquaIs] andam nus,. [ ... J VIve neles tão apagada a
, nas mesmas eras parecem maIS brut ' . delar por parte de europeus e sua adaptação ao debate político interno aos países
n em têm ane nem polícia alguma J " os em pe que racIOnais,
do Novo Mundo. Enquanto que no primeiro caso trata-se quase sempre de de-
A barbárie que será . d . fender a Superioridade da própria posição, no segundo o reconhecimento de in-
, maIS tar e O contraconcelto mais perfeito de . T - ferioridade frente ao modelo justificaria sua emulação. Tomemos o exemplo en-
sua comp Ieta negação, aparece no dicionário como d I' CIVl lzaçao,
palavras de radical civil. o oposto e po ICIa e não das contrado na Gazeta de! Gobierno de México acerca de como devem atuar os
países da América: «[... ] proporcionar a seus povos todas as vantagens compatí-
do c;~mderaI:vls do século XIX nossa mostra contém muitos casos do uso
veis com a civilização em que se falava, para aumentar estas no que fosse possível,
e ir caminhando para se colocar no patamar das demais culturas »34.
1 Izacao como um modelo a ' . E
mente europeu refinado pol ·d . _ b Imita!. sse modelo era especial-
, , 1 o cnstao e ur ano E .d . .
Apesar de o texto sugerir a existência de um processo, o desenho é binário e
modelar poderia ser facilmente c~mbinado ao ato d~ ci~; z :;tpeoqru ' me o slg1~ c ~dfiO
, esses Slglll - o processo é simplesmente a transição de uma condição, da barbárie, a outra, a
civilização.
28 A .
momo M ORAES E SILVA, Dicionário da lín ua . . .
Tadeu Ferreira, 1831, p. 263. g portuguesa, LIsboa, OfiCIna de Simão Os dois significados que vimos até agora, o ato de civilizar e o modelo, são _
29 Is so é também verdade ar I' plenamente compatíveis com a condição colonial. Sua falta de temporalização
30 Esteban de TERREROS Y ~A1aNDOlngu francesa. Ver Lucien F EBVRE et al. , C ivilisation .
, leCIOnaria castellano con la d · ·
sus correspondientes en Las tres lenguasfi r I· ,. f . 5 v oces e czenczas y artes y
.
.!lilOS C -, r a n~ e s a , latma e Ita zana' P-Z M d ·d V· d d
Y ompama, 1788, p. 169. . , a r I , lU a e Ib arra, J2 El Redactor Americano 55, Santafé de Bogotá, I mprenta Real [4- UI -1809].
" Raphael BLUTEAU, Vocabulario Portu &L · . JJ Pedro RODRÍGUEZ CAMPOMANES, Bosquejo d e política económica espaiíola [ca. 1750J,
va, 1712- 1727, I, p . 575. guez atmo, Lisboa, OfficÍna de Paschoal Sil-
edição Jorge C EJUDO, Madrid, Edirora Nacional, 1984, pp. 140-141.
H Gazeta dei Gobierno de México, 14-Xl-1820, 2 .

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DICCIONARIO POLíTICO Y SOCIAL DEL MUNDO IBERO AMERICANO João FeresJúnioT CIVILIZAÇÃO - O CONCE ITO DE CIVILIZAÇÃO: UMA ANÁLISE TRANSVERSAL

também aponta para perpetuação dessa condição de subordinação. Isso é particu- Nós sabemos que nenhum preceito evangélico ordenou, como meio indispen-
larmente certo no caso do ato de civilizar. No caso da definição modelar temos já sável para a salvação eterna, a construção de ferrovias, de telégrafos elétricos, ou de
a possibilidade de tensão entre o modelo a almejar e aquele de fato adotado pelos palácios de cristal para a exposição dos produtos da indústria e das artes. E o que
fazer com esta espécie de tarefas, o movimento econômico, a grandeza política, o
colonizadores. Em outras palavras, se Espanha e Portugal não pertencessem ao
crescimento das artes, o aumento das comodidades e dos prazeres e to.do o conjun-
clube das nações civilizadas, então não poderíamos aspirar a ter implantada, por to de aumentativos que emprega o mundo quando querem definir a civilização ?36
meio da colonização, uma civilização nos trópicos. Isto é, se nossos colonizado-
res são incapazes de imitar o modelo, logo temos de desfazer os elos para alcançar Nessa crítica ao modelo europeu feita pelo venezuelano Fermín Toro, no-
a civilização. tam-se os mesmos elementos:
Dito isso, devemos assinalar que existe uma quantidade muito pequena de Arrastada, se pode dizer, pela Europa, recebendo suas ideias, seus usos e costu-
referências à utilização do conceito de civilização como argumento para rechaçar mes, sua civilização entra sem haver passado pela difícil tarefa de adquiri-la com seu
o jugo metropolitano nos processos de independência. Isto é, as evidências reco- próprio desenvolvimento, pouco a pouco e no curso dos séculos, nesta situação, dize-
nhecidas em nosso projeto mostram que o conceito de civilização não foi muito mos, não progredirá em ideias e, consequentemente, nas necessidades, mais que nos
acionado nos debates que acompanharam as lutas de independência. Isso pode ter meios de fazê-las ?3 7
ocorrido pelo termo em português e espanhol ter sido plenamente introduzido
A abundância de termos temporais nessas passagens é impressionante. Em
no uso corrente das línguas um pouco tardiamente em relação aos movimentos de
nossa amostra os usos temporalizados iniciam nas primeiras décadas do século
emancipação. No entanto, a questão da eleição de modelos, isto é, da adoção de
XIX, porém muito timidamente, e só se tornam mais numerosos em meados do
parâmetros culturais e instituições espanhóis e portugueses vis-à-vis os modelos
mesmo século.
francês, inglês e norte-americano, esteve presente durante várias décadas que se
seguiram à independência política, ou mesmo anteriormente, com variações em Exemplos precoces, do começo do século, vêm da Argentina, como no título
cada contexto «nacional». do artigo «Exame dos progressos da civilização na América do Sul, depois de sua
conquista», de 1815 38 • Também vemos temporalização marcada nas deliberações
do Congresso de Cúcuta, de 1821:
o PROCESSO CIVILIZATÓRIO
o presente é o século das instituições sociais em que todos os povos se armam
contra a tirania e ao que parece se elevaram a maior perfeição dos elementos da polí-
A noção de civilização como processo deve ser buscada em meio a outros sig-
tica. Não nos apresentemos, portanto, ao mundo como ignorantes e pouco civiliza-
nificados, muitas vezes mesclada a eles, e corresponde à aquisição de um caráter dos; adotemos uma constituição que não nos desonre em nosso século.)'
temporal pleno pelo conceito. Porém, é importante notar que esse movimento de
tempo ralização se realiza em um campo semântico marcado por dois núcleos, o A democracia absoluta é a infância da civilização e não queremos retroceder tan-
material e o espiritual, ou seja, a civilização entendida como progresso material el to [.. .]. Consequentemente, portanto, e com disposição à ilustração do século, esta-
ou como desenvolvimento moral e institucional da sociedade. Assim, as referências mos prontos para preferir o governo representativo .+o
temporalizadas, não raramente, são expressadas combinando esses dois elementos,
como no exemplo do México: «Queremos que venha a civilização, queremos o
o sentido temporalizado que expressa a urgência do tempo presente, um Zeit-
geist autoconsciente, como na passagem acima, também se faz óbvio em referências
desenvolvimento material, porém de maneira que o povo mexicano tome parte no
como a de Esteban Echeverría, que declara ser a América «a oficina da nova civi-
movimento e por este meio suba ao mesmo nível da civilização que nos invade»J5.

Inclusive a reação católica antiliberal ao rechaçar o conceito, como ocorreu


36 El Católico 10, Lima [30-VI-1855], p. 116.
nos casos d e Espanha, Peru e em alguns outros países de maneira mais tímida, o
37 Fermín TORO, La Doctrina Conservadora. Pensamiento Político del Siglo XIX, Caracas,
faz nos termos que denotam temporalização de um campo semântico dominado Presidencia de la República, 1960, 1,102 [1842].
pelos dois núcleos, como se nota na seguinte citação sobre o Peru: 33 Gazeta de Buenos-AYTes, 9-IX-1815,p.2.
39 Actas del Congreso de Cúcuta: 1821, Bogotá, Fundación Francisco de Paula Santander,
1989, I, pp. 56-57.
35 El Sigla Diez y Nueve, México, 17-XI-1870, 1. 40 Actas del CongTeso de Cúcuta: 1821, I, p. 80.

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DICCIONARIO POLÍTICO Y SOCIAL DEL MUNDO IBEROAMERICANO João Feres Júnior CrvlLIZAÇÃO - O CONCEITO DE CIVILIZAÇÃO: UMA ANÁLISE TRAN SVERSAL

lização » (1837). Em 1847, o uruguaio Manuel Herrera y Obes coloca a civilização nantemente interno. Mais concretamente, o problema prático se refere à adequa-
como causa imanente de si própria: ção da civilização europeia às realidades dos novos países que surgiram. Em ou-
[EJssa potência irresistível da civilização, que [corria] o mundo sob as formas do
tras palavras, trata-se de corno produzir, do ponto de vista interno, civilização
comércio, das artes, da indústria, dos livros, que em todas as cabeças deixa uma ide ia, nos novos países? Uma solução adotada em muitos lugares foi a de a~rm que a
em todos os corações um interesse, que começa no bem-estar de cada homem e acaba civilização poderia sim se desenvolver no Sul; porém, para que este p1ocesso ob-
na felicidade pública." tivesse êxito, não se deveria imitar simplemente a Europa, isto é, buscar pular de
uma vez as etapas do desenvolvimento social, material e moral percorridas por
Referências a uma narração universal da história da civilização também estão
França, Inglaterra e inclusive os Estados Unidos.
presentes, como nessa fala do presidente da Costa Rica, Tomás Guardia, se diri-
gindo ao congresso do país em 1 de maio de 1873: «Se o 'cetro da civilização' O problema principal para o sucesso desse projeto foi muitas vezes identifi-
havia passado da Asia à Europa, os americanos deviam abrigar esperanças de que cado com a suposta má qualidade do povo, como neste exemplo do México: «Os
algum dia passaria' às mãos da jovem América'». Ou em passagens como esta: «A americanos ao nascer já tinham andado o caminho da civilização, caminho com-
civilização do século estava exigindo a construção de novas prisões, nas quais se plicado que os demais povos atravessaram após mil erros e fatalidades»; diferen-
corrijam os presos sem os destruírem. As que existem atualmente pertencem a temente, o México tinha enormes dificuldades para libertar-se do atraso, marcado
outra época em que dominavam ideias menos favoráveis à humanidade,,42. pelo «heterogêneo da população, pela impunidade dos crimes, pelo oportunismo
político depois de 13 anos de guerra»4J.
Em suma, a auto consciência histórica de excepcionalidade do tempo presente
em relação ao passado é nessas passagens abundantemente conectada ao conceito Essa compreensão da natureza da população teve consequências políticas di~
de civilização. A história se faz universal e imanente, e a civilização por vezes retas. Já em 1819, em meio a discussões acerca do senado constitucional proposto
torna-se a expressão viva da própria história. por Bolívar em Angostura, o deputado Fernando Penalver defendeu a centraliza-
ção política da república e rechaçou a adoção de um regime federalista com o se-
Cabe assinalar que o conceito de civilização como processo plenamente tempo-
guinte argumento: «( ... ) contudo, Repúblicas tão perfeitas não são próprias para
ralizado parece ter-se implantado definitivamente no período imediatamente pos-
povos que estão na infância da liberdade, encharcadas de vícios da escravidão, e
terior às independências. Contudo, sua aplicação não tem lugar sem algumas ten-
sem os costumes, as virtudes e a civilização que elas exigem»44.
sões importantes. Como vimos, os significados modelar e de ato de civilizar são
intensamente eurocêntricos. Isso acarreta o problema de aplicar de maneira bem Em 1822, encontramos na Gazeta dei Imperio Mexicano um autor peruano
sucedida o conceito a contextos não europeus. Tal tensão está relacionada ao fato recomendando a monarquia constitucional no lugar da democracia, porque «a ilus-
de que as independências foram realizadas mediante o rechaço, pelo menos em tração e a civilização dos povos se friccionam com a natureza de sua população, e
parte, do projeto do colonizador europeu. Isto é, existe uma contradição imediata com a qualidade de seus usos, costumes e opiniões», que no Peru estão reduzidas à
na ideia de instalar algo que está sendo rechaçado. Essa contradição, todavia, en- «escuridão da ignorância, tanto na parte alta corno na baixa», porque o governo
controu algumas soluções práticas. Uma delas foi declarar Espanha e Portugal anteri orj amais se preocupou em «remover os obstáculos à instrução e à civilização»45.
como o oposto da civilização europeia, como se nota no caso argentino e em mui- Domingo Faustino Sarmiento, em seu Facundo, Civilización y Barbarie (1845),
tos outros. Porém surge também uma nova aderência a pautas culturais e institucio- parece ter uma concepção similar, compartilhada com a Geração de 1837 da Argen-
nais espanholas e portuguesas depois que o processo de independência se completa. tina. A principal preocupação desses autores consiste na busca de instituições que
estejam em conformidade com os costumes e a singularidade argentinos. No entan-
Além da questão de se adotar ou não a referência ibérica, o contexto político
to, ao mesmo tempo, como afirma Sarmiento, essa nova civilização tem que livrar-
da utilização do próprio conceito havia mudado. Antes se tratava de uma situação
-se do elemento selvagem: «Esta é a questão: ser ou não ser selvagém»46.
colonial, agora os autores escrevem como cidadãos de repúblicas e de governos
constitucionais e a questão da civilização se converte em um problema predomi-
4) Águila Mexicana, 16-III-1824, p. L

... Corre0 de! Orinoco 34 [24-VIl-1819].


41 Manuel HERRERA Y OBES, Estudios sobre la súuación [1847J, em Juan E. PIVEL D EVOTO, 4; Gazeta dellmperio Mexicano, 26-1X-1822, p. 5.
EI caudillismo y la revo!ución americana, Montevideo, Biblioteca Anigas, 1966, p. 57. 46 Domingo F. SARMIENTO, Facundo, Civilización y Barbarie [1845] , Buenos Aires, Co1.i-
4Z El Faro Salvadoreiío, 1869, p. 1.
hue, 2006.

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DIC CIONARIO POLÍTICO Y SOCIAL DEL MUNDO IBEROAMERICANO
João FeresJúnior CIVILIZAÇÃO - O CONCEITO DE CIVILIZAÇÃO: UMA ANÁLISE TRANSVERSAL

Argumentos semelhantes foram utilizados pelo Partido Conservador na de- ção [da escravidão], mas estou convencido de que a abolição sempre trará pertur-
fesa da centralização política no Brasil, como solução para as revoltas do período bações », que, por seu turno, seriam contrárias ao d esenvolvimento da própria
da Regência. Paulino Soares de Souza, o Visconde do Uruguai, associa as insur- civilização52 . A semelhança entre essa formulação e o argumento que Pereira de
r~ições aos «horrores friamente perpetrados pela barbaridade, pela lascívia, pela Vasconcelos fizera algumas décadas antes é grande. O verbete do Caribe e Anti-
vlllgança e por outras paixões alheias à política» de «uma massa enorme de ho- lhas assevera que a partir do final da década de 1850 o uso do concei\o de civili-
mens ferozes, sem moral, sem religião e sem instrução alguma, eivados de todos zação na justificação da escravidão se tornou raro na região. Esse movimento vi-
os ví~ios da barbaridade! [ ...] Nem o sexo, nem a idade, nem a propriedade, nada nha acompanhado da rejeição da capacidade civilizadora da Espanha, inclusive
respeitaram! Parece que era sua missão ap agar até os últimos vestígios da nossa por ter povoado suas colônias com «uma raça contrária à civilização»53.
civilização nascente! »47.
A concepção de civilização como processo é marcada pela temporalização,
Bernardo Pereira de Vasconcelos, outro campeão do regresso conservador, que não estava presente tão claramente nas versões modelar e de ato de civilizar.
reconhece haver um movimento do século em direção à maior liberdade e igual- É importante notar que o argumento da exceção, ou da diferença em relação à
dade; contudo, argumenta que «no lugar de produzir os efeitos que a civilização Europa, como justificação da centralização política e mesmo da escravidão, tam-
espera, a fará retroagir». Vasconcelos insiste no argumento de que não devemos bém expressa aspectos da politização do conceito e de sua ideologização. Tal
perder de vista o «estado da civilização» do país, porque «nenhuma reforma será conclusão era também r eferendada pelo próprio Guizot, segundo o qual o despo-
exitosa se não é apropriada às circunstâncias nacionais»48. tismo e a existência de «homens sem direitos e despossuídos» «são desculpados
se contribuíram em algo com a civilização»54 .
. Em nossa. coleção de verbetes, essas «circunstâncias nacionais » ap arecem es-
treitamente :Inculadas a? caráter da população, ou mais especificamente, à pre- Assim, nos processos de consolidação política que, não raramente, envolveram
s:nça de. mUl~o s nei?TOS, Indígenas e mestiços entre eles. Inclusive, tal interpreta- esforços de colonização interna de índios, negros e mestiços, pode-se negar direitos
çao servIU .ate para Justificar a escravidão, a princípio tão contrária à civilização, civis e políticos e promover a centralização política em nome da civilização. O que
como medida necessária em face da má qualidade da população local. Entre mui- mudou, então, em relação ao ato de civilizar, não é o objetivo em si mesmo, mas a
tos outros, temos o exemplo de Francisco Arango y Parreiío, que na Representa- retórica de justificação e a estratégia para atingir esse objetivo, agora bem tempora-
ción de la .Ci.udad de L a Habana a las Cortes, de 1811, defendeu, contra a propos- lizada, dotada de etapas que devem ser adaptadas às condições locais.
t~ de SUprImir a esc r~vi dão, a compatibilidade entre essa instituição e a civilizaçã049,
]a que os negros afncanos eram p ovos bárbaros e canibais 50 • Na Gazeta del Go-
bierno de México encontra-se o argumento de que «a Espanha não inventou a
NAÇÃO E C IVILIZAÇÃO
escravidão, mas aproveitou sua existência devido à barbárie dos africanos, para
salvar da morte seus p risioneiros e aliviar sua triste condição»5l.
Em sua análise histórica do termo civilização, Fernand Braudel declara que
o informe apresentado por Zeno C orrea à Junta de Información em Porto durante o século XIX o emprego do termo passou de singular para plural. Se ver-
Rico, exprime a tensão entre o conceito universal e abstrato e os « impe~atv os » da dadeiro, esse é um desenvolvimento interessante, pois revela-se contraditório à
questão nacional: «[ ... ] compreendo que a civilização do século demanda a aboli- noção de Koselleck, cuja tendência na modernidade vai em direção à singulariza-
ção e maior abstração dos conceitos. Braudel proclama qu e o século XVIII, quan-
do o conceito foi gestado, com sua crença no progresso, reservou a civilização
Paulin o José SOARES DE SOUZA, «Rela torio da Repartição dos Negocias da Justiça do
47
somente para a Europa e o Ocidente, ao passo que o século xx perdeu esses juízos
an~ de 1840 apresentado à Assembléa Ger al Legislativa, na sessão ordinaria de 1841 », Rio de
Janeiro, T ypographia Nacional, 1841.
48 Bernardo PEREIRA DE VASCONCELOS, «Discurso de 10 de julho de 1834», em Bernardo
52 EI Progreso, 1873.
Perezra de Vasconcelos, São Paulo, Editora 34, 1999, p. 269.
53 Francisco FRÍAS y J Acorr, «En d efensa de C ub a» [1860], R eformismo agrario, La Ha-
'lO. Francisco ARANGO Y PARRENO, Obras de D. Francisco de Arango y Parreiio, L a Haba -
na, MJnlsteno de Educación, 1952, lI, p . 169. bana, Secretaría de Educación, 1937, pp.128-129y 157-158 .
54 François GUlZOT, Pierre GUILLAUME e Pierre ROSANVAlLON, Histoire de la áviLisation
~ Francisco ARANGO Y PARRENO, Obras de D. Francisco de Arango y Parreiio, p. 276.
en Europe: depuis la chute de L'Empir e romain jusqu 'ã la R evolution française; suivie de Phi-
'I Gazeta deI Gobierno de México, 2- V-1818, p. 3.
losophie politique de la souveraineté [1828], P a ris, Hachette, 1985, IJ' 29.

102
103
DICCIONARIO POLÍTICO Y SOCIAL DEL MUNDO IBEROAMERICANO João Feres Júnior CIVILIZAÇÃ.O - O CONCEITO DE CIVILIZAÇÃ.O: UMA AN'ÁLrSE TRANSVERSAL

de valor e agora reconhece as vanas civilizações do mundo (1987). Devemos No Brasil o movimento romântico também mostrou distanciamento crítico
acrescentar que Braudel publicou essas ideias antes do livro de Huntington e do ao modelo europeu e elege o índio como representante da nascente civilização
11 de setembro de 2001. Mas além da anedota, esse processo de pluralização do brasileira. José de Alencar, o maior expoente da segunda geração, declara, ainda
conceito, que ele reconhece, ainda que incompleto, é verdadeiro, e foi em parte que reto ricamente, que «o conhecimento da língua indígena é o melhor critério
produto do que Pim den Boer chamou nacionalização do conceito de civiliza- para a nacionalidade da literatura»59. Em outro texto o autor também enxerga
çã0 55 . Isso significou um processo de ideologização do conceito que foi além da- uma civilização americana em contraposição à velha Europa: «É nas águas lustrais
quilo previsto por Koselleck em sua teoria da modernidade. do Amazonas, do Prata e do Mississípi, que o mundo velho e carcomido há de
receber o batismo da nova civilização e remoçar»60. Assim, Alencar vai além de
Den Boer, autor de um livro sobre o conceito de civilização no projeto holan- Guardia, que reclamava um lugar ao sol no concerto das civilizações para a nas-
dês de história conceitual56 , argumenta que a nacionalização do conceito foi um cente Costa Rica, ao postular a superação por parte da América da velha civiliza-
fenômeno do final do século XIX, que ocorreu predominantemente nos países ção europeia. Nas duas citações, os marcadores temporais são claros, assim como
germânicos. Assim, é interessante notar, em dissonância com as ideias do autor, a premissa de uma narrativa universal que se caracteriza como uma competição
qUê esse fenômeno também se nota nos países americanos, já a partir de meados entre particulares «nacionais». Isto é, ambas contêm aspectos de temporalização,
do século XIX, ainda que de maneira tímida. Na Espanha os historiadores român- ideologização e politização claros e característicos dessa última fase da evolução
ticos reivindicam o pluralismo da civilização, o que é o mesmo que dizer, como o semântica do conceito.
faz Larra em meados dos anos 1830, «o caráter peculiar da civilização de cada
povo». Décadas mais tarde, Gil de Zárate equipara o conceito de civilização com Nessa última fase, o conceito de civilização passa a compartilhar muitos sig-
o «espírito de nacionalidade»57. nificados com os termos «nação», «cultura» e «raça», todos compreendidos de
maneira marcadamente essencialista. O caráter universal do termo se perde em
No Peru, Sebastián Lorente introduziu a expressão «civilização peruana» em parte, ainda que não possamos descontar completamente concepções, similares à
1863. Com uma visão influenciada por o Inca Garcilaso, celebra a civilização in- formulada no século anterior por Herder, de um universal fo rmado por contri-
caica e aposta na redenção do índio. Posteriormente, se criou a cátedra Historia buições pontuais de particularidades nacionais. O caráter eurocêntrico também é
da Civilização Peruana na Faculdade de Letras da Universidade Nacional Maior afetado, contudo, de maneira variada, pois a adesão ao elemento nacional muitas
de São Marcos (1876). Vejamos outro exemplo na citação do presidente da Costa vezes foi mais retórica e em nenhum caso significou o rechaço total do padrão
Rica, Tomás Guardia, de 1873: «Nos sobra a seiva de uma raça jovem e vigorosa europeu.
aquecida pelo sol intertropical; e nossa civilização, jovem também, se tornará
uma civilização do mundo>,58.
CONCLUSÃO

55 Pim DEN BOER, «Towards a C omparative Hístory of Concepts: Civilísation and Bes-
Neste ensaio pretendemos ter tratado de alguns aspectos cruciais do desen-
chaving», Contributions to the History of Concepts 3/ 2 (2007), pp. 207-233 .
56 Pim DEN 'BoER, Civilisation (Beschaving) , Amsterdam, Amsterdam University Press,
volvimento semântico do conceito de civilização levando em conta as formula-
2001. ' ções europeias e sua recepção nas colônias e, depois, nas nações do continente
57É claro que no caso da Espanha existia o problema ainda mais urgente, de d efinir seu americano de fala ibérica. Como mostramos, as hipóteses da temporalização, ideo-
lugar e' contribuição à civilização da Europa, frente a omras nações concorrentes. Algumas logização e politização se confirmaram em nossos verbetes, mas sua evolução
nações optaram por abraçar () conceito de civilização, França (Raymonde MONNIER, «The
obedeceu a padrões heterogêneos que foram ao mesmo tempo particulares à evo-
Concept of Civílisation from Enlightenrnent to Revolution: An Ambiguous Transfer», Con-
a
tributions to the History of Concepts 4/ 1. (2008), pp. 106-136), Inglaterra, Espanha avier FER-
lução do conceito de civilização, ao longo de seus significados básicos, e-também
NÁNDEZ SEBASTIÁN, «The Concept af CiviJization in Spain, 1754-2005: From Progress to Iden- sujeitos às contingências de cada caso.
,ity», Contributions to lhe History of Concepts 4 /1, pp. 81 -105), outras por rechaçá-Ia como
influência estrangeira e ado tar um termo local, aviltá, na Itália (Sandro CHIGNOLA, «Civis,
civitas, civilitas: T [anslations in Modem Italian and Conceptual Change», Contributions to the 59 José Martiniano de ALEN CAR, Iracema, lenda do Ceará, Rio de Janeiro, Typ. de Vianna
History of Corzcepts 3/2 (2007), pp. 234-253), e Kultur, na Alemanha (KOSELLECK, «Einlei- & Filhos, 1865, p. 195.
tung»), por exemplo, 60 José Martiniano de ALENCAR, O Gaúcho, romance brasileiro, Rio de Janeiro, B. L. Gar-

58 Gazeta Oficial, 1873, p, 2. nier, 1870, II, p. 14.

104 105
DICClONARIO POLÍTICO Y SOCIAL DEL MUNDO IBERO AMERICANO

Mas além desses temas substantivos, gostaria de, por fim, chamar a atenção à ARGENTINA/ruO DE LA PLATA
questão acerca da natureza do conceito de civilização. Trata-se de um conceito-
-chave ou de um contraconceito, ou ainda de outra espécie de conceito? Se to-
marmos a contestação como condiçãq sine qua non para a formação de um con-
. ceito-chave, como quer Melvin Richter61 teremos um problema. O conceito de Genevieve Verdo
ci,:~zação foi raramente contestado. Quase sempre os publicistas e autores que o
utilIzaram foram favoráveis à civilização. Raras vezes discutiram-se definições
contrastantes do conceito - a reação católica, que se expressou mais marcadamen-
te em alguns países, é provavelmente a exceção mais importante. Entretanto, po-
demos ver que o conceito teve seu papel na justificativa da colonização europeia,
na oposição às metrópoles europeias, nos processos de independência (ainda que
não muito pronunciado), na colonização interna durante os processos de conso-

C
lidação política e na consolidação das identidades nacionais. ivilización es un término cuyo êxito se explica por un encuentro azaroso
y afortunado entre una voz y una coyuntura, en este caso la del siglo X1X.
A falta de contestação direta se reflete na evolução semântica do conceito de Hay que recordar que en 1810 civilización todavía es una palabra nueva.
civilização, que se faz mormente pela deposição de novos significados sem a su- Su primer uso en francés se atribuye a Mirabeau (padre), en un libro titulado
pressão dos anteriores, com exceção da nacionalização, quando a universalidade L 'ami des hommes ou Traité sur la population, del ano 1756. Antes de esta fecha,
e o eurocentrismo foram parcialmente rechaçados. Isso confirma o diagnóstico tanto en francés como en castellano, el verbo civilizar se empleaba en el campo
d.e q~e civilização é um «conceito-ônibus», que carrega um fardo muito amplo de jurídico para designar la transferencia de un as unto criminal aI plano civil. Pero
slgmficados, como não deixaram de notar quase todos seus comentadores . A ex- Mirabeau utiliza ya el sustantivo, civilización, como sinónimo de sociabiIidad. EI
plicação da falta de contestação no plano da história social parece residir no fato neologismo, que no se encuentra en la Encyclopédie de Diderot y d'Alembert,
de que aqueles que são objeto do projeto civilizatório (índios, negros, mestiços) recién aparece en la edición de 1771 de! diccionario de Trévoux, con una referen-
historicamente estiveram alijados do espaço público, isto é, não tinham acesso à cia explícita a Mirabeau. Desde entonces, el uso moderno de la palabra se extien-
política, e, portanto, à contestação dos significados que os rebaixavam. de y se encuentra en Espana (Fernández Sebastián, 2002 y 2008): anos después de
O caráter contraconceitual da civilização é proeminente, pois muitas vezes o una primera definición lexicográfica en e! Diccionano de Terreros y Pando (1786
vemos usado em contraposição à barbárie, aos selvagens, índios, negros, ao des- [1765],439-440), la inclusión del sentido moderno de la palabra en el Diccionario
potismo, à escravidão, etc. Assim, a resposta parece ser que «civilização» se ajus - oficial de la RAE se verifica 1817; en la siguiente edición del DRAE, en 1822 (p.
ta melhor à definição de contraconceito assimétrico de Koselleck do que à sua 187), se define la civilización como «el grado de cultura que adquieren pueblos o
definição de conceito-chave. Isso mostra que é muito importante incluir o estudo personas, cuando de la rudeza natural pasan ai primor, e!egancia y dulzura de
de contraconceitos assimétricos em nossos planos de investigação, além de pro- voces, usos y costumbres propias de gente culta». Como lo recuerda Jean Staro-
curar desenvolver uma teoria que dê conta de suas peculiaridades. binski, el proceso de civilización remite a la acción de pulir las cosrumbres y los
usos (Starobinski, 1999).

A este primer sentido, estático, se va a anadir otro más dinámico, en que la


palabra civilización remite tanto a un proceso que se desarrolla en el tiempo, es
decir, a una filosofía progresista de la historia plasmada sobre todo por la Ilustra-
ción escocesa, como a una característica que constituye un ras go esencial y distin-
tivo de pueblos o países, y que incorpora, por lo tanto, la ídea de una jerarquía
entre eUos y funciona como un criterio de clasificación. A lo largo de! periodo
estudiado, se pasa de un primer uso de civilización que refiere a una concepción
global de la historia (donde se refiere aI «aera de civilizar», aplicado esencialmen-
6 1 Melvin RI C HTER, The History of Political and Social Concepts: A Criticai Introduaion,

Nova Iorque/Oxford, Oxford University Press, 1995. te a los indios) a un segundo uso que remi te a una forma de ser particular de cada

107
106
BRASIL

João Feres Júnior- Maria Elisa Noronha de Sá 3~

O
termo civilização tem características conceituais particulares que devem
ser levadas em conta para permitir a compreensão correta de sua evolução
histórica. Como bem notou KoseUeck, uma das consequências semânti-
cas do processo de transição para a modernidade foi a aparição dos singulares co-
letivos: termos que antes eram usados no plural passam a ser empregados no sin-
gular para deno minar de maneira sintética um processo ou ente social como um
todo (exemplo: de direitos a direito, de histórias a história, etc.). Segundo o autor,
durante essa transição aparecem tamb ém muitos neologismos. Ou seja, a experi-
ência do mundo se altera tão substancialmente que ele passa a não caber mais no
vocabulário que antes o descrevia, daí a necessidade de criação de novos termos.
No caso do conceito de civilização na língua portuguesa, ambos processos pare-
cem ter ocorrido. Como talo termo não existia até o começo do século XIX, quan-
do passa a ser empregado em diversos contextos e para distintos propósitos.

Tanto no Brasil como em outros lugares onde foi empregado, o termo civiLi-
zação apresentou acentuado caráter contraconceitual, isto é, seu campo semânti-
co foi povoado por oposições dicotômicas a outros termos como selvageria, ig-
norância, irreligiosidade, falta de lei, mas sobretudo barbárie. Como tal, o
conceito serviu para distinguir, separar e diferenciar povos, nações, grupos hu-
manos e mesmo indivíduos, hierarquizando-os do ponto de vista material e, não
raro, moral: a civilização ocupa o paIo positivo da dicotomia, enquanto seu opos-
to.ocupa o negativo.

Se tomarmos todo o processo de evolução do termo no período que nos inte-


ressa, temos os seguintes estágios: do período colonial até o começo do século XIX
°
não havia termo civilização; a partir das primeiras décadas do século ele passa a
ser empregado, mas em um sentido de estágio, como padrão de medida de dife-
renciação entre bárbaros e civilizados; a partir de meados do século XIX o termo
adquire o caráter de coletivo singular e passa a denotar um processo temporaliza-
do que engloba toda a humanidade. Essa é, contudo, uma· avaliação muito geral

171
DrCClONARIO POLITrCO Y SOCIAL DEL MUNDO IBEROAMERICANO
João Feres Júnior - Maria Elisa Noronha de Sá CIVILIZAÇÃO - BRASIL

desse caminho de evolução. Precisamos aqui revelar seus meandros. Ademais, ro de usos do termo em textos do começo do século XIX . Também é importante
seria interessante testar a hipótese de Pim den Boer, de que o conceito de «civili-
notar ue o caráter contraconceitual também já se faz presente no fe~hamnto do
zação» passou em vários lugares do mundo por um processo de nacionalização.
Isto é, se passa de um uso de civilização que se refere a uma concepção universal
verbt~ quando o dicionarista opõe civilidade a rusticidade e grbo~sena.
sumt_a, ~n:
, a raiz civil-, parece ter haVI'd o um pro cesso de cam 10 semantlco ao
no tocante
A

de história, na qual se inclui a América, a um uso que remete a uma forma de ser
drástico que praticamente inverteu o significado do termo. 'À. . .
particular, à definição de uma identidade nacional.
Vale adicionar que enquanto no Bluteau nenhuma palavra da fam~: _C!vt
o estudo da história do conceito de civilização não pode se dar sem uma foi usada na definição por oposição do termo b~aro, na .s~: :;~o a~
avaliação das palavras que pertencem à mesma raiz etimológica. Isso é particular- Moraes ele é definido como «homem rude, sem po ICla nem ClV! I 'd d
mente necessário por tratar-se de neologismo baseado em uma raiz já existente: civilizado e urbano» (1M oraes, 1813 " 263) dado que. corrobora l"da tese e que . _u-
civil-o Os dicionários da lingua portuguesa revejam um dado da evolução desse rante o hiato da publicação desses dois dicionános se _conso! ou a 0Jos!ça~
conceito que não foi detectado em estudos do termo «civilização» em outras lín- entre palavras derivadas da raiz civil- e barbárie, oposlçao essa que per ura ate
guas como alemão, holandês, italiano, espanhol e francês (Chignola, 2007; den os dias de hoje.
Boer, 2001,2007; Fernández Sebastián, 2008; Fisch, 1992; Monnier, 2008). O Di-
cionário de Bluteau, publicado no inicio do século XVIII, não contém o termo ou O termo civilização apareceu ~oe.nt na quarta e~io ~o Dicionár: ~:
a de 1831 de maneira muito sllltetlCa: «O ato de CIVIlIzar..o. estado d p
mesmo palavras derivadas do radical civil-, mas traz o verbete bárbaro e vários de raes" , .
civilizado». Mas em um verbete semanticamente prOX1mo, «p ohc!ado» , encontra-
seus derivados . Aqui, bárbaro aparece basicamente de duas maneiras, uma descri-
mos definição bem mais rica:
tiva, como um termo que gregos, romanos e portugueses usavam para denominar
todos os estrangeiros, e Outra fortemente valorativa, associada a maus COstumes,
crueldade, sacrifícios humanos e ignorância (BIuteau, lI, 45-46).
Civilizado, policiado, polido: um p<?vo ~. ~l lza o
costumes bárbaros, se governa por leiS. ~ yo ICIa o quan o,
d
, . 1 d U ando tendo deixado os
pel; obediência às leis,
a ões mostra
tem adquirido o hábito das virtudes SOCiaIS. E pohdo quando em suas ç r' d
A segunda edição do Dicionário de Moraes (1813) traz informações bem dis- I A • u banidade e gosto. No povo civilizado remam as leis. No po,vo po o ICl:
e :gancIa, b rns costumes No povo polido reina a urbanidade e gosto, que e conseqduen-
tintas. O termo civilização não foi captado pelo dicionarista, mas outros termos remam
cia os O
do luxo. .
As leis estabelecem a civilização entre os povos b'ar baros , forman o os
da família civil- estão presentes no volume. Por exemplo, o termo cível é definido
bons cosrumes (Moraes, 1831,263).
Como aquele «[qJue compõe o corpo da mercancia, e mecânicos; oposto à Corte.
Gente cível; não cortesã. § figo Não nobre, § it. Gente vil, de más manhas». O Aqui temos uma linha evolutiva onde a civilização cons~itu o prim~ e~á­
termo civeldade, hoje um arcaísmo, aparece como «[a]ção vil, vileza, indignida- io dos ovos que saem da barbárie e a polidez seu derradeiro. A seque?Cla ca
de» (Moraes, 1813,401). Temos aqui dois dados interessantes: um conteúdo des- ~lar noPexemplo dado: «Os gregos começaram a civl~zar-se
antes de. LIcurgo e
critivo que define cível como relativo ao povo comum, em contraposição à no- Sólon' policiaram-se no século destes dois célebres legIsladores; e pohrdam-se r::o
breza, associado a um julgamento de valor que associa essa condição à baixeza, à século" de Péricles ». E impor~ante notar que es s a passagem
d' _ de comparan
1844 e deo 1858,
os tresa
falta de qualidades e virtudes. O verbete civil, da mesma edição do dicionário, dá termos semanticamente relaclOnados se repete nas e lçoes r· d .
uma pista de que esse significado negativo já era pretérito: «Baixo, mesquinho; q uinta e a sexta mas agora ela não aparece mais no verbete «po l~aMo» edsIillSe1m
gente civil: epíteto que se dava aos mecânicos, que moravam em cidades cercadas, , fim, outro d·lClOnano
«civilizado» . Por · ,. contemporan
. eo > o de LUIZ • danad af I va
A

e não nos campos, em castelos como a gente nobre, e guerreira; aliás vilãos». Essa Pinto (1832), confirma os achados do .Moraes e do Bluteau, repetln o e orma
interpretação é confirmada pelo verbete civilidade: «s.f. antiq . Ação de homem abreviada as definições comentadas aCIma.
do povo, de mecânico, vil. Comment. D'Albuquerque. 'sofrer civilidade'; r. é,
Um documento importante para estabelecermos os limites da introdu~ã;O
vilanias. § Outros escrevem civeldade. § Civilidade de hoje significa cortesia, ur-
termo na lín ua portuguesa é o Diretório que se deve obser'V~ nas.P?voaçoes os
banidade, opp. rusticidade, grosseria» (Moraes, 1813, 402). O verbete civilidade
captura um câmbio semântico interessante, confirmando que o uso pejorativo
índios do Pa;á e Maranhão (D. José 1,1757), conjunto de leIS e.m 1755 re~glds
e ublicadas em 1757 por D. José I, que regulamentou a polItlca lDdges~a
dos termos da família civil-, que atribuía baixeza à condição do homem comum,
já estava caindo em desuso e que os significados positivos de cortesia e urbanida-
p b l'
pom a ma.
O texto de pouco mais de 20 páginas uulIza termos denvados da
. j." ~ • , • "lidade/m
r~lz
civil- 27 vezes. No documento encontram-se mUltas re.erenClas a CIVI .. -
de passaram a ser associados à civilidade - dado corroborado por um sem núme-
. d e CIVI
civilidade dos índios e à idela . '1'Izar como uma ação que . conduz a esta CIVl-

174
125
CIVILIZA.ÇÃO - BRASIL
João Feres Júnior - Maria Elisa Noronha de Sá
DICCIONARrO pOLfnco Y SOCIAL DEL MUNDO IBEROAMERlCANO

textoS do jornal, que foi publicado de 1808 a 1822. O contexto cosmopolita ~a


°
lidade. Entre as. medidas propostas, temos: estabelecer uso exclusivo da língua
edição do Correio, editado e impresso por Hipólito da Costa,. e.n: L(~ndres, ea
p~tuge.sa; estImular o casamento entre índios e brancos, assim como um con-
explicação mais plausível para a presença,abunda.nte do termo clvd~zaço em suas
VIVlO sOCIal e co.munit~r nas novas povoações ou nas antigas missões que então
páginas, em contraposição a outras publIcações 1mpres.sas no ~rasIl como O ~a­
se elevavam a ~las; sUjeitar os habitantes dessas povoações, índios e brancos, às
triota, que contém pouquíssimas ocorrências do conceIto, seil o .qu~ · ~s exceçoes
mesmas leIs C:VIS. que regiam as populações urbanas de Portugal; organizar o
expressam o sentido mais antigo de «ato civilizacionah. Nos, ~nmelTos ano~ d.o
governo econ;>IIuco desa~ po,:,o.ações através da implantação do trabalho agrí-
Correio, o termo aparece dominantemente em trechos de polItlc?s e figuras ilus-
cola, do co~erlO e demaIs atlvIdades econômicas sugeridas pelo ambiente de
tres dos Estados Unidos, Inglaterra, França ou Portugal, tradUZidos para o por-
cada pov~aç, do trabalho remunerado e do sistema de tributação, entre outras.
tuguês, mas Hipólito passa a empregá-lo crescentemente com ~ pa~sr do tempo.
O Dxretorzo expressa a política laicizada que elevava os índios à condicão de
O cosmopolitismo talvez explique também o fato de que a aphcaçao do conceito
«vassalos úteis"., buscando prover o crescimento econômico da colônia, 'rebai-
noS textoS do jornal extrapola a questão indígena (doméstica), abarcando compa-
xando a cate~Ulzçã.o _- antes a just.ificativa dominante da política indigenista
port~ges: - a co~dla de um dos lllstrumentos (entre outros) de colonização rações entre nações e povos de todo o mundo.
e assIr:mlaçao ~os mdlDs selvag~. Nas recomendações números 5 e 6 diz-se que O campo semântico de civilização nas páginas do Corei~ ~ amplo. Sua,v~c­
o e~slo ~a lmgua portuguesa e a base «fundamental da civilidade,> e um dos ção contraconceitual é clara. Ou seja, civilização é o paIo ?OSltlVO de uma sene de
melDs,maIs e~zs de se arrancar os «povos rústicos da barbárie». Nota-se aqui oposições conceituais. Como polo positivo, e:tava asoc~ a. term~s co~ Eu-
o. v~abulo CIVIlIdade sendo usado com o mesmo sentido que décadas mais tarde ropa, educação, comércio, indústria, comUnicações, cnstiarusmo, lmpeno das
clVlhzação vai adquirir: o de um estágio, ideal, de sociabilidade diametralmente leis, polidez e bons costumes. O polo oposto era povoado pe~os con.~ls ~e
oposto à barbárie. Ou seja, estamos perante um caso em que o conceito aparece barbarismo, selvageria, despotismo, tirania e violência. O conceIto de C1';Ihza7a?
antes do termo. servia desde então para marcar oposições binárias entre um grupo de paIses CIVI-
lizados, que já atingiram aquele patamar, e o resto, como na fala de_Do :t:fanuel
Outro elmn~o ~eântico im~onate que já aparece no Diretório e que vai reproduzida em dezembro de 1808, onde se utiliza a expressão «naçoes clVlllza-
a.trav_essar toda a hlstona do conceIto no período estudado é a associação da civi-
das», um tipo de bordão repetido um sem número de vezes pos textoS publI~ados
hzaçao com a questão indígena. Ou melhor, a identificação do índio como um
no jornal durante as duas primeiras décadas do séc~lo XIX. E elar? que essa nque-
p.roblema a ser re~oid por meio de sua civilização. É inclusive no sentido pre-
za semântica não deve ser assumida como automaticamente partIlhada por toda a
CiSO de «ato de ~lvzar», «~e tornar civih, de «promover a civilidade» que o
comunidade de leitores do jornal na América de colonização portuguesa, ou mes-
termo faz suas pn:neIras apanções. Ainda que haja câmbio semântico dos primei-
ros usos ~o con~e1t? desde o início do século XIX aos anos de 1870, ele não perdeu mo pelos membros da corte.
e~s s:nndo maIS direto de promover o bárbaro ou selvagem, por meio da urba- Significados similares aos encontrados no j ornaI estão também no discurso
mzaçao e da educação, ao estado civil, o que não raro significava viver de maneira dos opositores da corte. Em escrito de 1823, frei Ca~ec argumenta q~e. o reg~m
ordenada sob o império das leis e da religião cristã. monárquico é próprio para a Europa, «por estar multO avançada na Clvi~a.ço>,
enquanto que os países do Novo Mundo, por não terem as ordens SOClaIS tao
Nas primeiras décadas do século XIX, o termo civilização começa a ser usado
solidificadas e diferenciadas, deveriam adotar o sistema federaL Textos que apa-
com mais frequência, na maioria das vezes com o significado de «ato de civili-
receram no Typhis Pernambucano, um ano depois da public~ç das Cartas ~e
zar» ..As :xce~õ correspondem a um significado que alude a um patamar de Caneca, fazem uso de expressões como «história dos povos CiVIlIzados» ou «C1-
sofistlcaçao ~:mgIdo por. u~a determinada sociedade ou grupo de sociedades.
vilização dos povos» com intuito idêntico, para defender o r~p.ubhclsmo con-
Ele aparece p com tal slgmficado em 1808 no jornal Correio Braziliense, em
tra o regime monárquico, mas o significado é o mesmo dê Clvlhzaçao como um
trecho no qual o autor argumenta que havia mais civilização na nação portugue-
estado atingido por um «clube» de nações (Typhis Pernambucano, 29-IV-1824 e
sa do que nas outras (Correio Braziliense 2, 123 [1808J), e em vários outros tex-
tos publicados pelo jornal. 27-V-1824).
Vale notar o exemplo do Visconde de Cairu, que se refere aos romanos .an~i­
As páginas do Correio dão azo a outras descobertas e inferências. Nelas en-
gos como tendo «civilizado o mundo» e constiuí~ «a malDr monarq.u~ ao
con~ram-se os primeiros registros do termo civilização que extrapolam o mero
mundo civilizado» (Cairu, 1819,62) e aos gregos antIgos como um povo ClVIhza-
sentido de «ato de civilizar» em direção a um ideal. Esse sentido é dominante nos

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DICCIONARIO POLÍTICO Y SOCIAL DEL MUNDO IBEROAMERICAl'lO João Feres Jún ior - Maria Elisa Noronha de Sá

do. U:m do.s p~oneirs seguidores do iluminismo escocês no Brasil, Cairu também corpo político autônomo. Na base desse projeto estava a possibilidade da univer-
aSSOCIa a cIvIhzação ao aument? do comércio entre os povos (Cairu, 1819, I, 1 e salização dos direitos civis e políticos aos cidadãos livres. Para o autor, o proble-
13~), empregando {) termo mUltas vezes acrescido do adjetivo «universal». Em ma para a efetivação desses direitos estava no tratamento que índios e negros re-
CaIru nota-se claramente o uso de civilização como um padrão, onde estão au- cebiam dos brancos, capaz de perverter a capacidade racional daqueles com o
s~nt. formas de temporalização que possam articular o conceito a teorias da constante apelo à força - fonte da imoralidade permanente, da falta d@~observân-
h.Is~na e da t~mporalide. Deste modo, os romanos e gregos do passado eram cia dos direitos e de civilização.
cIvIlizados as~m ~om os povos europeus do presente também o são, basta que Durante o período estudado, Bonifácio foi um dos raros autores que incluiu
eles adotem leIS vIrtuosas e costumes liberais. a escravidão como um problema civilizacional do Brasil. Sua posição encontra-se
em uma representação feita à mesma Assembleia Constituinte sobre o assunto da
Enco~tram traços de te~porlizaçã do conceito em alguns poucos textos escravidão. Segundo o autor (1823b), a escravidão era causa da degenerescência
do Core!~ ~raulzens. O ~aIs antIgo não é de autoria de um português, reino I moral da nação, pois tornava os senhores indolentes e inclinados a toda a sorte de
ou da ~olrua, mas do presIdente dos Estados Unidos, de 1809, reproduzida em vícios. A solução proposta é gradual: fim do tráfico, emancipação paulatina,
t~aduço para o port~guês. Nela fala-se de promessas do «progresso da civiliza-
abrandamento do sofrimento e a instituição da religião católica. Em suas próprias
~ao» (Correzo Brazdzense A8, ~9 [1809]). No mesmo ano, há um texto do próprio palavras: «Por todos esses meios nós lhes daremos toda a civilização de que são
J?rnal no qual se faz referenCla aos «graus de civilização» de maneira bem evolu-
capazes no seu desgraçado estado, despojando-os o menos que pudermos da dig-
tIva e aos «progressos da ~ivlzação» (Correio Braziliense, 15, 147-149 [1809J).
nidade de homens e cidadãos».
Em 1810, outro texto do Jornal faz referência aos "progressos de civilizacão a
que o mundo todo atul.me~ aspi~». (Correio Braziliense 31, 629 [180J)~ Mas É interessante notar que o conceito de civilização parece não ter sofrido in-
esses traços d~ ~emporalzç coeXlstIam com referências ao termo com signifi- tensa utilização política durante o período da independência. Ou seja, ele não foi
c.ado maIS estatlco, como na expressão «nações civilizadas», abundantemente uti- mobilizado para estabelecer diferenças entre partidos e facções e, portanto, não
~zad em to~ o período, _e que se refere a uma espécie de clube ao qual pertence sofreu o inchaço semântico que geralmente decorre desse processo. Essa realida-
m seleto numero de naçoes, mormente as europeias, com destaque para Ingla- de começa a se transformar no período regencial. Em 1831, com a abdicação de
terra e França (Correzo Braziliense 32, 86-87 [1811]). D. Pedro I, inaugurou-se formalmente no Brasil o chamado período regencial,
que compreendeu os anos de 1831 a 1840, quando o país passou a ser governado
tad Um dos ~so ~is. célebres do term~ dá~se no tíul~ de um projeto Jpresen- por regentes escolhidos pela Assembleia Geral. Nos primeiros anos da Regência,
o por Jose BomfaclO de Andrada e SIlva a AssembleIa ConstItuinte em 1823: foram aprovadas medidas que consagraram a autonomia local e provocaram mu-
Apontamentos para ~ ~ivl z c:ção do~ índios bravos do Império do Brasil (1823a). danças importantes no sistema político-administrativo do Império. Dentre elas,
Segundo o autor~ a cIvlhzaçao sen: Impulsionada pela adoção do regime constÍ- destaca-se o Ato Adicional, aprovado em agosto de 1834, que reformava a Cons-
tuclO~a no, Bras~l, contudo a eXlstencla de muitos selvagens e gentios nas terras tituição de 1824, abolindo o Conselho de Estado, estabelecendo a Regência Una,
d.o paIS recem-s aldo do Jugo português constituía um entrave ao projeto civiliza- eletiva e temporária, e criando as Assembleias Legislativas Provinciais, com am-
clOna!. Aparentemente a solução sugerida por José Bonifácio não diferia muito plas atribuições. Os anos que se seguiram à promulgação do Ato Adicional estão
das recom~daç.õs pombalinas, às quais ele faz referência explícita. Eram elas: de fato entre os mais agitados da história do Império, com ameaças à unidade
promover: JustIça, abnr comércio com os bárbaros, favorecer os matrimônios a nacional pretendida pela Corte do Rio de Janeiro, provocadas pelas várias rebe-
cateqUlzaçao, estabelecer presídios militares, organizar bandeiras e aldemnt~s liões que eclodiram entre 1835 e 1838 em diferentes províncias. O Ato Adicional
ensl~r a ler, .escrever e contar, e criar novos hábitos de sociabilidade. Bonifác~ representou, por isso, um divisor de águas com enorme impacto sobre a vida
tambe~ sublmha a necessidade de se «introduzir brancos e mulatos morigerados política do país, provocando um rearranjo das forças partidárias em torno da
para mIsturar as raças, lig:r os interesses recíprocos dos índios com a nossa gente, questão da descentralização e de seus efeitos.
e fazer deles todos um 50 corpo da nação, mais forte, instruída e empreendedo-
ra», outra m~dla já prevista pelo Diretório pombalino. É importante, porém Os «regressistas», que posteriormente comporão o PartidD Conservador, le-
ressaltar os dIferentes contextos políticos em que os textos foram escritos pOI·S' vantaram a bandeira da necessidade de revisão ela estrutura institucional, visando,
tratav m :'ill
a- se, com B"f'· aClO, de pensar a questão da civilização dos índios no' mo- segundo eles, o restabelecimento da autoridade e da ordem, contra a «anarquia»
ento postenor a rndependência, o da construção do Império do Brasil como reinante e o «perigo da dissolução territorial do Império». ,Suas propostas e ações

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constituíram a chamada «reação centralizadora» ou «regresso conservador», con- provocados pelos descontentamentos e protestos populares dos homens livres e
cretizada, sobretudo, na Lei de Interpretação do Ato Adicional, de maio de 1840, pobres que formavam o mundo da desordem. Além disso, a maioria da população
que anula todas as conquistas anteriores. A partir daí, abriu-se um caminho que era formada por negros escravos. Nesse contexto, a civilização, considerada cla-
levou, em meados do século XIX, a uma estrutura política e administrativa bastan- ramente uma virtude europeia, contrastava com a barbárie das massas, considera-
te centralizada no Império do Brasil. das «visivelmente» não europeias. E o ato de civilizar essas camadaS. significava
Importa salientar a relevância desse período, por ter sido nele que se origina- inculcar nelas as boas maneiras, a polidez e a civilidade europeias, tornando-as
ram fundamentais redefinições de ideias, conceitos e projetos que implicaram a menos violentas e propensas a revoltas. A ênfase está aqui na ideia de ação, civili-
construção de novos significados e procedimentos no campo da política. Dentre zar podendo significar educar, prover instrução pública, criar boas leis, incentivar
os mais importantes líderes políticos do grupo dos conservadores estavam Ber- a imigração, entre outras coisas.
nardo Pereira de Vasconcelos e o Visconde do Uruguai.
Nota-se também o quanto os construtores do Império brasileiro se esforça-
Para o Visconde do Uruguai, teria ocorrido na história do Brasil, durante as ram em associar o traço que mais os diferenciava do resto da América - sua forma
Regências, um desvio de seu caminho em direção à civilização. Associando o de governo monárquica, seu caráter hereditário e suas instituições políticas - à
período regencial, com suas medidas liberais e descentralizadoras, a um espírito civilização, à estabilidade, à ordem e, principalmente, à garantia da manutenção
revolucionário que teria levado a nação à desordem, ele condenava veemente- de uma suposta unidade territorial e de uma continuidade.
mente as revoltas nas províncias, associando-as aos «horrores friamente perpetra-
No discurso saquarema está presente também a ideia de que, para se atingir a
dos pela barbaridade, pela lascívia, pela vingança e por outras paixões alheias à
civilização, as condições particulares da sociedade brasileira demandavam medi-
política», pois, afinal, naqueles sertões, rebelava-se
das particulares, a elas adaptadas, e não a importação cega de modelos políticos e
uma massa enorme de homens ferozes, sem moral, sem religião e sem instrução constitucionais estrangeiros. O epíteto conservador é adequado pois, como no
alguma, eivados de todos os vícios da barbaridade! [...] Nem o sexo, nem a idade, nem caso de Bernardo Pereira de Vasconcelos, um dos mais importantes defensores
a propriedade, nada respeitaram! Parece que era sua missão apagar até os últimos do regresso conservador, já há uma consciência temporal «moderna» de um mo-
vestígios da nossa civilização nascente! (Soares de Souza, 1841, p. 9).
vimento do século em direção à maior liberdade e igualdade; contudo, o autor
Daí ser possível entender o papel fundamental desempenhado por ele no Re- argumenta que, «em vez de fazer produzir os efeitos que a civilização espera, nos
gresso Conservador, quando, por intermédio da elaboração e adoção de uma sé- fará retrogradar». Vasconcelos ([1834J 1999) insiste no argumento de que não
rie de medidas centralizadoras, acreditava estar trazendo a nação brasileira de podemos perder de vista o «estado de civilização» do país, pois «nenhuma refor-
volta para o caminho da ordem, do progresso e da civilização. Tratava-se de uma ma terá êxito se não for adequada às circunstâncias nacionais».
ordem política e social que, para Uruguai, não ocorreria naturalmente, mas que
Diferentemente de Bonifácio, duas décadas antes Vasconcelos usou o argu-
resultaria da ação política coordenada e da expansão da capacidade regulatória do
mento da adaptação às condições locais para defender a escravidão, e a consonân-
governo do Estado, por meio da criação de um aparato administrativo subordi-
nado a um comando único. Diz ele: cia desta com o projeto civilizacional. «Eu digo que a associação brasileira hoje
precisa de adotar uma economia política em grande parte contrária à geralmente
Para estes e outros casos semelhantes são indispensáveis medidas extraordinárias, admitida, por isso que a abolição do tráfico deve trazer tendências barbarizadoras
porque não basta a ação ordinária das leis para destruir um Estado tão tirânico e tão [...J». Isso é feito invertendo-se a associação entre escravidão e barbárie. Acres-
violento, e que é inteiramente excepcional. Muito se deve esperar do tempo e da civi-
centa o autor: «É uma verdade: a África tem civilizado a América! Renuncio a
lização, mas a sua ação é lenta, e aqueles males não podem esperar somente dela o
urgente e indispensável remédio (Soares de Souza, 1843, p. 91). todas as teorias [... ] quero só o positivismo dos fatos». Vasconcelos estabelece
uma particular relação entre agricultura e civilização: já que a grande lavoura de
Civilizar significava, então, generalizar o princípio da ordem estendendo o exportação de produtos coloniais dependia da mão de obra escrava negra, era a
raio de ação da autoridade. escravidão quem propiciava, no fundamental, a civilização que distinguia o Impé-
rio do Brasil no concerto das nações civilizadas.
o conceito de civilização ocupou, assim, um importante papel na agenda sa-
quarema. As revoltas populares do período regencial muito contribuíram para Em meados do século XIX, com o Império consolidado e a hegemonia saqua-
propagar o medo das éeites, já que muitos desses eventos eram percebidos como rema afirmada, o tema da ordem passará ao segundo plano, sendo suplantado

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DICCIONARIO POLÍTICO Y SOCIAL DEL MUNDO IBEROAMERICANO João Feres Júnio r - Maria Elisa Noronha de Sá

pelo da necessidade de difusão da civilização. Partindo da crença de que o poder redo Coutinho» (HG, II, XXI), sugerindo que o índio escravizado, igualado à
poütico de alguma maneira molda a nação, a centralização político-administrati- condição do negro, já seria um progresso. Para o autor, era preciso esp~lhar .os
va engendrada nesse período teria tido também esse objetivo, abrindo caminho escravos índios pelo país e não aldeá-Ios, como fizeram os jesuítas, pOIS assim
para a civilização. A civilização devia se estender a partir de agora para dentro da seus hábitos selvagens seriam mais facilmente quebrantados (HG, lI, XXII).
nação, por meio, principalmente, da construção de uma língua, de uma literatura,
de uma educação e de uma história nacionais. O Instituto Histórico e Geográfico Ele também é claro quanto ao caráter eminentemente europeu da\ivlz~ão
Brasileiro (IBGB), criado em 1839, torna-se, em meados do século XIX, palco e também da nacionalidade brasileira: «Claro está que o elemento europeu e o
importante do debate acerca desse projeto. De certa forma, nesse debate, há uma que essencialmente constitui a nacionalidade atual». E a partir desse diagnó~to:
volta à centralidade do indígena como problema da civilização no país. A Histó- vaticina: «E com mais razão (pela vinda de novos colonos da Europa) constltulra
ria Geral do Brasil de Francisco Adolpho de Varnhagen, publicada em Madri no a [nação] futura», sacando daí consequências de ordem política e epistemológica:
«É com esse elemento cristão e civilizador que principalmente devem andar abra-
ano de 1854, é o texto principal desse debate. A simples comparação lexicométri-
ca desse texto com o Diretório dos Índios do período pombalino demonstra o çadas as antigas glórias da pátria e, por conseguinte, a história na~io » (HG, lI,
quanto o uso das palavras derivadas do radical civil- evoluiu no período de apro-
XXV). Nessa passagem o autor se opõe abertamente àqueles .hlstonadores que
ximadamente um século que separa a publicação de cada texto. No Diretório, querem inscrever o elemento africano e o índio na história nacIOnal. Para conso-
termos derivados da raiz civil- aparecem 23 vezes em 20 páginas de texto. Já na lidar sua posição, cita Alberdi: «Pero siempre es la Europa la obrera de nuestra
História Geral eles aparecem 211 vezes em aproximadamente 1000 páginas, o que civilización» (HG, lI, 472-474).
demonstra uma centralidade ainda maior dessa família de conceitos no segundo É importante notar que Varnhagen está engajado em uma controvérsia con:ra
texto. Enquanto que no Diretório o termo civilização não consta, na História aqueles que denomina «defensores dos direitos dos índios»; contra as «tend~c:as
Geral ele representa sozinho mais da metade das ocorrências de termos da família indiscretas e falsas do patriotismo caboclo» (HG, 1,484). Contudo, a semantlca
civil-o Ele já está presente na frase que abre o livro: «Quando a Grécia, herdeira do conceito de civilização na História Geral não traz muitas inovações, a não ser
da antiga civilização fenícia, babilônica e egípcia» (H G, II, 1). sua associação com a questão da identidade nacional. Ela é em geral desproVIda
de sinais claros de temporalização, pouco abstrata - o termo é usado para deno-
O intuito declarado da obra de Varnhagen é mostrar que «um novo impé-
minar um sem número de civilizações particulares (egípcia, grega, fenícia, ame-
rio», o Brasil, passava a «figurar na Orbe entre as nações civilizadas» (HG, II,
ríndia, etc.) sem nunca alçar-se à condição de coletivo singular -, e profundamen-
10). Mas a concretização da civilização no Brasil e seu progresso esbarravam no
te eurocêntrica. O mesmo não se dá, contudo, com a utilização que deles o fazem
problema das populações bárbaras e semibárbaras que ocupavam as grandes ex-
seus contendores.
tensões do interior do país. Varnhagen descreve os índios como originalmente
desprovidos de qualquer traço de civilização, em grande parte porque eram nô- Varnhagen não estava sozinho nesse debate que se travou não som~nte no
mades: «[ ...] as gentes que habitavam o Brasil» não se encontravam em estado de campo da história em geral, mas também da história. da literatura ~r.asleu, esta
«civilização, mas de barbárie e de atraso» (HG, 1,97-103). Daí o autor saca uma última com a função principal de narrar o desenvolVimento do esprnto naclOnal.
conclusão que ecoa a clássica passagem orientalista da Filosofia da História de João Manuel Pereira da Silva (Mello Moraes, I, 8) e Caetano Maria Lopes Gama
Hegel ([1837] 1899): «De tais povos na infância não há história: há só etnografia» (1850) descrevem os índios de maneira muito semelhante, imputando a eles total
(HG, I, 107-108). falta de civilização.

Varnhagen é bem claro quanto aos métodos que deveriam ser usados para Contudo, outros autores da época, como José Ignácio de Abreu e Lima, cha-
resolver o problema civilizacional dos índios: «Foi a experiência e não o arbítrio maram atenção para as civilizações que existiam no continente antes da chegada
nem a tirania, quem ensinou o verdadeiro modo de levar os bárbaros, impondo- de Colombo (Abreu e Lima, [1845] 1983, 7). Raimundo José da Cunha Matos,
-lhes à força a necessária tutela, para aceitarem o cristianismo e adotarem hábitos mesmo sem discordar totalmente de Varnhagen, reconhece urna história indígena
civilizados» (HG, I, 177). Ao contrário de Bonifácio, seu predecessor no assunto, anterior à «história geral da terra de Santa Cruz», com três estágios civilizacio-
que via a escravidão como um entrave à civilização, Varnhagen escreve que ,,'a nais, e pretende que aquela seja entendida como uma introdução a essa (Cunha
escravidão e a subordinação são o primeiro passo para a civilização das nações', Matos, 1863, 131). Segundo Ignacio Accioli de Cerqueira e Silva, o IHGB chegou
disse, com admirável filosofia e coragem, o virtuoso e sábio bispo brasileiro Aze- demasiadamente rápido «à conclusão desiludida que, até <l;gora, faltavam no Bra-

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DICCIONARIO pOLÍTICO Y SOCIAL DEL MUNDO IBEROAMERlCANO
João FeresJúnior- Maria Elisa Noronha de Sá CIVILIZAÇÃO - BRASIL

sil quais~r :restígios dessa civilização» (Cerqueira e Silva [1849] 1874 13) P
feito, é nas águas lustrais do Amazonas, do Prata e do Mississípi, que o mundo
o aut~r, eXI~tam antes da «conquista muitos centros de u:Ua civilização' prI:il~ta
va cUJas mut I - . 1- velho e carcomido há de receber o batismo da nova civilização e remoçar» (Alen-
, . . uas re açoes se Ignoram» (Cerqueira e Silva, [1849] 1874 64) M .
car, 1870, n, 14). Em O Tronco do Ipé, por meio dos personagens de Alice e
afirmtI~. ~md_a n~ tocan~e à historicidade do índio e, portanto, a sua ~apid
Adélia, o autor critica a importação acrítica de modismos franceses e defende
para a CIvIlIzaçao> e J oaqli1m Manuel de Macedo ao afirmar que: «Os índ· _
uma síntese nacional «da formosura e elegância com os pequenos misteres do-
esta~: portanto, fora da civilização, mas pertenciam a ela ainda que' t lOS ~ao
em cIVIlIzação'» (Macedo, 1861,23). , a rasa os mésticos» (Alencar, 1871,34-36).

José Joaquim Machado ~'C?livera vai além ao argumentar que, antes da che- N o final do livro, em meio a ressalvas, o escritor apresenta a civilização como
?ada d~ Pdor~gues, «um processo de propagação continental que vai estreitando a união de povos
«os IndlOS não eram excluídos da civilização», pois «Sua
ligados pelo mesmo amor da liberdade, e pelas mesmas aspirações de engrandecer
m~apc.I a e e a~ autonomamente em termos de civilização não prejudicou a
pncI~ a sua ap~Io pa~ ~ ~esma, já que os índios tinham mostrado no as- o nome americano» (Alencar, 1871,264-265). Ou seja, aqui vemos traços claros
sad~ m~Ita receptIvIdade a cIVIlIzação» (Machado d'Oliveira [1842] 1863 1~4) de temporalização até então difíceis de encontrar em textos anteriores. Em livro
Ao m~es dos s~vagen antropófagos de Varnhagen, o aut;r descreve o' índi~ posterior, O Sertanejo, faz novamente uso da palavra civilização como sujeito de
como gura socIavel, de «índole dócil e condição pacífica», que uma sentença; como processo histórico abrangente (Alencar, 1875a, 1).
associou-se de boa me t b· - Alencar vai mais longe na refutação das teses defendidas por Varnhagen e ou-
ciou a todos h 'b· n e, a nu seu coraç~ com candura à civilização, e renun-
os a Itos e costumes por uma relIgIão que não conhecia e ue se afi u tros. Ao criticar o poema Os Timbiras de Gonçalves Dias em carta ao DL Jagua-
. rav~ de ,ur:n a :xpres~ão severa, e por homens cuja ambição de rique;asqe avidez gd~ ribe, Alencar mostra-se contrário à ideia de que à civilização brasileira deveria ser
pre omIlllO nao sabIa calcular (Machado d'Oliveira, [1842J 1863, 197). atribuída uma matriz puramente europeia: «O conhecimento da língua indígena é
. 1Ou seja, Machado d'Oliveira coloca em dúvida a virtude da empreitada colo- o melhor critério para a nacionalidade da literatura». A razão está exatamente em
ma portuguesa. contrapor à Europa o que é próprio do Brasil, ou seja, em rejeitar um projeto pu-
ramente mimético: «[Tal conhecimento] nos dá não só o verdadeiro estilo, como
Ca.mo vin;os .acima, no debate acerca da historicidade dos índios e,
ortanto as imagens poéticas do selvagem, os modos de seu pensamento, as tendências de
~e s~a.;p<:rtcI para a narrativa da história da civilização no Brasil oPconceit; seu espírito, e até as menores particularidades de sua vida» (Alencar, 1865, 195).
e CIVI Izaçao amda apresentava uma semântica marcadamente «anti 'a» ou se·a
el·rp~tavd mobrmente um ideal europeu, desprovido de tracos forte~ de' tempJo~ o mesmo Gonçalves Dias, a despeito de ter-se envolvido em controvérsia pú-
ra Izacao e - A· d ' blica com Alencar, tem uma visão parecida à dele no tocante ao conceito de civili-
_ e ~ straç~.
> In a que o projeto fosse o de construir a história da
naçao, essa naçao era VIsta corno um arremedo da civilização europeia que via zação brasileira e do papel do índio nela. Dias se refere aos índios tupi como «os
como puro empecilho as hordas de negros e indígenas que povoavam o Brasil. mais civilizados» entre os índios quando da chegada dos portugueses, confirmando
Com o advento do romant· .. f a opinião de que eram eles «os judeus da América» (Gonçalves Dias, 1846, 31), algo
JI osed'd e .AITencar-' um dos m alOres
.
Ismo, o conceIto val so rer alterações importantes
d
expoentes a geração romântica, relativiza o va-
. que contraria a ideia de que eram todos bárbaros canibais. Em outra obra, o autor
escreve: «[os índios] são o princípio de todas as nossas coisas; são os que deram a
or a CIVI lzaçao. Por exemplo, em seu romance O gaúcho, o povo dos am as é
base para o nosso caráter nacional, ainda mal desenvolvido, e será a coroa da nossa
comparado favoravelmente aos «filhos das cidades enerv d I · PI· P_
(Al 187 ' a os pe a CIvllzaçao» prosperidade o dia da sua inteira reabilitação» (Gonçalves Dias, 1846,206-207).
encar'd ~O), qu~ ?,
é também culpada por babujar a virgindade primitiva das
margens o .n:). n:gual (Alencar, 1870,6). Em outro romance, Alencar acusa os Em suma, com a geração romântiça o conceito de civilização começa a mos-
"pol e.ttuas dacIvl.1zço>~ de fazerem «pura imitação», por colherem suas impressões trar sinais de temporalização e abstração explícitos. Ironicamente, essa é a mesma
d a eI ra e Ivros e nao da e .~ d· d
xpenenCla Ireta a naturen (Alencar, 1875b, 15). geração que promove também uma nacionalização do conceito, fenômeno aludi-
do por Pim den Boer, algo que necessariamente tenciona seu caráter universal e
A ~o mesmo tempo,_ Alencar usa o conceito de civilização para favorecer a abstrato. Há de se notar que, a despeito de algumas exceções como José Bonifá-
men.ca em comparaçao ao velho mundo: «O ênero hum .
~a mIsã~ regnt~doa
da América, dando-lhe : designaçã:~ ~e;>a cio, os negros sequer eram tema do debate acerca da civilização, e sua condição de
escravos era ignorada ou até justificada pelas próprias necessidades do processo
encar nao se re ena somente aos Estados Unidos, mas a todo o continente: «D~
civilizacional, como em Bernardo Pereira de Vasconcelos e Varnhagen.

134
11.e;
DICCIONARIO POLÍTICO Y SOCIAL DEL MUNDO IBEROAMERICANO João FeresJúnior- Maria Elisa Noronha de Sá CIVILIZAÇÃO - BRASIL

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CARlBE/ANTILLAS HISPANAS

Consuelo Naranjo Orovio

E
I concepto de civilización en las Antillas hispanas, como en otras zonas,
tiene una semântica dominada por oposiciones como, por ejemplo, civiliza-
ción versus barbarie (Koselleck y Gadamer, 1977). Dado que dichas anti-
nomias se utilizaron en la construcción de imaginarios nacionales y culturales y en
la definición de identidades colectivas, ciertos hitos sirvieron de acicate para re-
flexionar con mayor profundidad sobre los significados dei concepto civilización
y su espacio integrador: Revolución francesa, Revolución de Saint Dorningue
-1791-, independencias de la América continental, expulsión de los diputados an-
tillanos de las Cortes en 1837, y fin del imperio espanol en América en 1898.

En las Antillas hispanas hubo elementos diferenciados en el uso y significado


del concepto civilización respecto a otras territorios americanos: por un lado la
existencia de la esclavitud, que no sólo marcó la carga racial que tuvo, fundamen-
talmente en Puerto Rico hasta la abolición en 1873 y en Cuba hasta 1886; y, por
otro, su íntima relación con el devenir político de estas territorios, cuya condi-
ción colonial-en los casos de Cuba y Puerto Rico- se prolongó hasta 1898, mien-
tras la República Dominicana, tras su pronto desligue de Espana y forzada ane-
xión a Haití hasta 1844, sólo. vivió un periodo corto de incorporación a la
Monarquía hispana entre 1861 y 1865.

LA ClvILIZAcrÓN COMO FIN A ALCANZAR

Los productos agrícolas, frutos exóticos, animales, geografía y riquezas de las


islas -en cuanto elementos diferenciadores- confirieran a Cuba, Puerto Rico y a
la que fuera República Dominicana un lugar en el mundo. Algunos alimentos y
plantas pasaron a formar parte dei universo simbólico en el que los pueblos basa-
ron su imaginaria e identidad; aI mismo tiempo, productos como el azúcar, el
tabaco o el café les dotaron de una situación privilegiada en el mercado interna-
cional para, desde finales del siglo XVIII, ser reconocidps y valorados de otfO

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