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Revista Bioética

355 Print version ISSN 1983-8042 | On-line version ISSN 1983-8034

Rev. Bioét. vol.30 no.2 Brasília Abr./Jun. 2022

Bioética de proteção: fundamentos e perspectiva


Carlos Alberto Bizarro Rodrigues 1, Fermin Roland Schramm 1

1. Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro/RJ, Brasil.

Resumo
Este artigo busca promover uma reflexão sobre a perspectiva da bioética de proteção e explicitar suas
ferramentas, por meio de levantamento bibliográfico ancorado nos marcos teóricos de seus principais
idealizadores e da técnica de leitura informativa, que pretende identificar a temática e as principais ideias
envolvidas. Para tanto, apresenta-se, inicialmente, a proteção como princípio bioético mediante um
aprofundamento na origem, na definição e na análise dos termos “vulnerabilidade”, “suscetibilidade” e
“vulneração”. Na sequência, busca-se apresentar as abordagens bioéticas voltadas ao “princípio de pro-
teção”. Por fim, argumenta-se que a bioética de proteção funciona como paradigma para apreensão,
análise e resolução de conflitos morais em saúde pública, revelando-se uma abordagem fundamental
nesse campo, haja vista seu desafio de lidar com a tensão entre os âmbitos individual e coletivo.
Palavras-chave: Temas bioéticos. Bioética. Vulnerabilidade social. Atenção à saúde.

Resumen
Bioética de protección: fundamentos y perspectiva
Este artículo pretende fomentar la reflexión sobre la perspectiva de la bioética de protección y explicar
sus herramientas a partir de una recopilación bibliográfica realizada en los marcos teóricos de sus prin-
cipales creadores y la técnica de lectura informativa, con el objetivo de identificar la temática y las ideas
principales involucradas. Para ello, primero se presenta la protección como un principio bioético a través
de un estudio en profundidad del origen, definición y análisis de los términos “vulnerabilidad”, “suscepti-
bilidad” y “vulneración”. Después, se exponen los enfoques bioéticos relativos al “principio de protección”.
Y, por último, se argumenta que la bioética de protección funciona como paradigma para aprehender,
analizar y resolver los conflictos morales en salud pública, demostrando ser un abordaje fundamental en
este campo teniendo en cuenta su desafío de lidiar con la tensión entre lo individual y lo colectivo.
Palabras clave: Discusiones bioéticas. Bioética. Vulnerabilidad social. Atención a la salud.

Abstract
Bioethics of protection: fundamentals and perspective
This article seeks to reflect on the perspective of bioethics of protection and explain its tools, by using
a bibliographic survey based on the theorical marks of its main idealizers and the informative
reading technique, which seeks to identify the thematic and the main ideas involved. To that end,
we first present protection as a bioethical principle by going deeper into the origin, to the definition
and the analysis of the terms “vulnerability”, “susceptibility” and “injury”. Then, we seek to present Pesquisa
the bioethical approaches regarding the “principle of protection”. Finally, we argue that bioethics
of protection works as a paradigm for the apprehension, analysis, and resolution of moral conflicts
in public health, revealing itself a fundamental approach in this field, considering its challenge is facing
the tension between the individual and the collective spheres.
Keyworks: Bioethical issues. Bioethics. Social vulnerability. Delivery of health care.

Declaram não haver conflito de interesse.

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Bioética de proteção: fundamentos e perspectiva

Este trabalho respalda-se nos marcos teóri- quanto na ascensão do bem comum, na figura do
cos dos principais idealizadores da bioética de soberano. Posteriormente, e ainda de acordo com
proteção e na pesquisa de material de interesse o bioeticista chileno 3,5, a concepção hobbesiana foi
obtido nas bases de dados do Portal de Periódicos refinada por Mill, e as funções estatais ficaram res-
da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal tritas à garantia dos direitos individuais, ao passo
de Nível Superior (Capes), da Biblioteca Virtual que a proteção se estabeleceu como ação esta-
em Saúde (BVS), da SciELO, do Google Scholar tal fundamental, de sorte que a soberania politi-
e da Biblioteca Digital de Teses e Dissertações camente legítima e justificável deveria prover o
(BDTD). Para seleção do material e coleta de mínimo de segurança aos cidadãos 2,6-9.
informações, utilizou-se a técnica da leitura Com o desenvolvimento do Estado moderno
informativa, abrangendo suas quatro fases: nos séculos seguintes, a vulnerabilidade dos cida-
1)  reconhecimento/pré-leitura; 2)  seletiva; dãos tendeu a estender-se para além do medo da
3) crítica/reflexiva; e 4) interpretativa 1. Tal técnica morte ou da agressão, à medida que as sociedades
baseia-se no levantamento bibliográfico de publi- se tornaram mais complexas. Consequentemente,
cações – sobretudo monografias, livros e revistas passaram a ser necessários mais dispositivos de
científicas – referentes à bioética de proteção, suporte e assistência, visto que a consolidação
utilizando as palavras-chave “bioética de prote- da noção de proteção se tornou exigência ética 5.
ção”, “vulnerabilidade” e “suscetibilidade”. Destarte, é essencial compreender como a noção
A partir de então, o material passou por um de proteção passou a fundamentar um princípio
reconhecimento, visando triar as informações ético nas sociedades ocidentais.
relevantes pari passu à construção de uma visão
geral do assunto. Após essa primeira etapa,
empreendeu-se uma seleção mais criteriosa das
Noção de proteção como
informações, sucedida por uma elaboração crítica princípio ético
e sintética do conteúdo, com o intuito de pro-
mover uma reflexão sobre o que os autores bus- Todo ser humano compartilha característi-
caram afirmar. Por fim, na etapa interpretativa, cas descritivas comuns, como vulnerabilidade,
buscou-se, por meio de comparações e diferen- integridade e dignidade. Ainda que essencial-
ciações entre os significados obtidos a partir das mente descritivas e não normativas em si, Kottow 3
afirmações sustentadas pelos autores, estabelecer afirma a suficiência dessas características em ins-
uma correlação entre os conteúdos obtidos. pirar o desenvolvimento de um princípio bioético
de proteção. Vale lembrar que tais características
já haviam sido postuladas como princípios éticos
Vulnerabilidade como no início dos anos 2000 pela ética europeia  e,
conditio humana assim como os princípios éticos influenciados
pelo Relatório Belmont, contribuíram para o esta-
Originalmente, a proteção como princípio belecimento do horizonte bioético no Ocidente.
bioético surgiu numa abordagem do conflito envol- Todavia, o interesse deste artigo converge espe-
Pesquisa

vido na vigência da biotecnociência e da biopolí- cificamente para a vulnerabilidade e sua relação


tica no campo da saúde pública 2, amparando-se na com o princípio de proteção.
noção de vulnerabilidade como condição humana. Embora figure como característica descritiva
Para os bioeticistas Kottow 3 e Schramm 4, tanto a e universal do ser humano, a vulnerabilidade é,
vulnerabilidade quanto o florescimento humanos entre os princípios éticos europeus, o único capaz
advêm do fato de a espécie humana ser pouco pro- de sustentar adequadamente a prescrição ética de
vida de instintos e de sua natureza ser incompleta, proteção como princípio 3. Tal afirmação pode ser
o que inspira o desenvolvimento e a aplicação de mais bem compreendida quando se estabelece a
medidas protetivas. Segundo Kottow 3,5, a vulnera- distinção entre seres humanos “íntegros” e aque-
bilidade dos cidadãos já era objeto de preocupação les que se encontram “rebaixados” por pobreza,
para Hobbes, visto que a função protetora aparece doença, discriminação etc. ou sofrendo outras
tanto na adoção do contrato social pelo Estado privações, isto é, aqueles que deixaram de estar

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vulneráveis para alcançar outro “nível existencial”. particular tem um clamor forte e legítimo por um
De fato, indivíduos feridos necessitam de mais do princípio ético de proteção 3.
que uma proteção genérica e clamam por cuidados Apesar de ser uma falácia naturalista, a mudança
específicos e medidas reparadoras implementadas categorial da vulnerabilidade torna-se menos defen-
por uma bioética qua ética aplicada 3,6,7,10. sável quando seu sentido é expandido de um traço
Neste ponto, torna-se premente esclarecer o humano para os animais não humanos e outras
que se entende por vulnerabilidade como carac- vidas existentes, porque, assim, seria difícil com-
terística descritiva e universal do ser humano, preender como a vulnerabilidade demandaria pro-
a fim de obter maior clareza a respeito da natureza teção indiscriminada de qualquer forma de vida.
ética da perspectiva protetora que inspira e de sua Com efeito, a vulnerabilidade difere entre seres
capacidade diferenciada de sustentar a prescrição humanos e outros seres vivos pelo fato de os pri-
ética da proteção como princípio. meiros serem vulneráveis em razão da possibili-
dade de falhar no processo complexo de vir a ser,
ao passo que os últimos são vulneráveis no nível da
Vulnerabilidade
dicotomia mais simples e radical entre ser e deixar
de ser. Mediante essa diferença, a vulnerabilidade
Característica descritivo-normativa humana passa a requerer um tipo de proteção ativa
da humanidade contra as forças negativas, além da prevenção de
Como visto até aqui, a vulnerabilidade, carac- danos, e a biosfera, por sua vez, deve ser protegida
terística descritiva da humanidade, influenciou com base na escolha de ações menos drásticas ou
a consolidação da proteção como ação institu- em interferências moralmente sustentáveis 3.
cional fundamental e exigência ética durante o Ademais, vale lembrar que houve uma migra-
desenvolvimento do Estado moderno. Com efeito, ção conceitual da vulnerabilidade antropológica
a vulnerabilidade, assim como os demais princípios para os contextos econômicos, psicossociais e para
éticos europeus, tende a orientar atitudes éticas os domínios médicos e legais na cultura moderna.
de respeito e proteção. Entretanto, essa afirma- Isso significa que não se lida mais com aquela vul-
ção somente se torna real quando tais princípios nerabilidade universal, mas, sim, com a dimensão
sofrem uma mudança categorial do âmbito descri- contingencial das situações de privação, pobreza,
tivo para o normativo. doença e sofrimento, o que requer uma resposta
Em outras palavras, pode-se dizer que vulnerabi- diferenciada e mais específica. Tais circunstâncias
lidade, integridade e dignidade são princípios éticos envolvem seres humanos que estão necessaria-
empregados em linguagem assertiva, que deslizam mente em uma situação existencial para além da
para o deôntico quando descrevem condições ou vulnerabilidade original.
características particulares e visam representar exi- Em outros termos, é grande a diferença encon-
gências morais mais do que características antro- trada na compreensão da vulnerabilidade como
pológicas (o que realmente são). Nesses casos, condição humana de fragilidade quando esse con-
seria prudente admitir que esses princípios contêm ceito tende a um reducionismo que elimina toda e
um elemento normativo e que, portanto, devem, qualquer condição de vulnerabilidade preexistente. Pesquisa
obrigatoriamente, ser respeitados e protegidos. Portanto, se é correto afirmar que a vulnerabili-
No entanto tal admissão não qualificada permitiria dade envolve o sofrimento e as privações, caso se
que qualquer um deles fosse considerado funda- incluam também o fundamental e o acidental,
mental e protegido sem mais argumentos éticos, o conceito perde seu caráter antropológico e deixa
como no exemplo típico do risco de pressupostos de lidar com uma forma estritamente humana de
racistas pretenderem ter peso moral. existência. De fato, a concepção antropológica da
Assim, mediante a possibilidade de manter indis- vulnerabilidade remete à característica universal
criminadamente os seres humanos como vulneráveis dos seres humanos, embora reste, ainda, a neces-
e de tal fato constituir princípio ético, incorre-se em sidade de uma caracterização adicional do homem
uma falácia naturalista. Efetivamente, a vulnerabili- que seja capaz de descrever aqueles carentes e
dade é um modo de ser humano, e não uma dimen- diminuídos em relação à normalidade, o que pode
são ética em si, mas, obviamente, essa  condição ser remediado pela ideia de suscetibilidade 3.

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Suscetibilidade eliminar primeiro a privação e o dano resultante


dessa suscetibilidade 3,6,7.
Por fim, o importante é compreender que vul-
Como modo de ser ferido nerabilidade e suscetibilidade são condições dife-
Se a vulnerabilidade é uma característica rentes e que, portanto, demandam abordagens
descritiva universal do ser humano, ela dificil- também diversas, visto que a primeira tende a ser
mente é uma descrição apropriada de anoma- diminuída por meio de ações equânimes de pro-
lias acidentais que acometem a vida de muitos, teção para todos os membros de dada sociedade
sendo  necessária, portanto, uma segunda defi- segundo o princípio de justiça. A suscetibilidade,
nição – mais específica –, que abranja situações por  sua  vez, pressupõe determinado estado de
em que os indivíduos sofrem determinado dano e privação que  pode ser reduzido ou neutralizado
perdem uma suposta integridade original. Em um apenas por meio de medidas compensatórias
cenário em que se tornam vítimas de possíveis orientadas pelo princípio de proteção, as quais
males e deficiências, tais indivíduos alcançam um devem buscar combater especificamente dada pri-
estado de vulnerabilidade que pode ser chamado vação de maneira ativamente aplicada 5-8.
de suscetibilidade, indicando tanto um processo de
privação quanto aumento de sua predisposição a
danos adicionais. Ademais, o dano pode deslocar Limites e alternativa em cenários
os indivíduos afetados da dimensão de vulnerabili- de indigência
dade para a dos seres propriamente vulnerados 2,4,8. Inegavelmente, a distinção entre vulnerabili-
Neste ponto, Kottow 3 procura desfazer as possí- dade e suscetibilidade trouxe grande avanço ao
veis confusões semânticas entre os termos “vulne- discurso bioético, com possíveis impactos na des-
rável” e “vulnerado” e opta por substituir o último crição, análise e elaboração de soluções para os
por “suscetível”. Segundo o bioeticista, o indivíduo conflitos éticos contemporâneos, principalmente
suscetível sofre de dupla injustiça, ou melhor, é afe- nos países em desenvolvimento. Todavia, a assime-
tado por uma condição de duplo risco, qual seja, tria entre os cidadãos desses países pode, ainda,
apresenta elevado risco  de desenvolver proble- revelar cenários de carência de recursos tais que as
mas de saúde bem como de sofrer maiores danos reais condições de vida escapariam à ferramenta
caso haja comprometimento de sua saúde. Assim, conceitual da suscetibilidade, de modo que esses
o estado de integridade ferida é obviamente dis- casos tenderiam a ser categorizados como “ape-
tinto da concepção de vulnerabilidade, motivo pelo nas” suscetíveis.
qual se introduz o conceito de “suscetibilidade”. Essa carência de recursos que caracteriza a
Com isso, pretende-se afirmar que a vulnerabili- pobreza aponta para a privação dos itens mini-
dade é um atributo essencial da espécie humana, mamente necessários a uma existência digna, tais 
ao passo que a suscetibilidade constitui condição como liberdade, bem-estar, educação, saúde,
acidental e específica a ser diagnosticada e tra- entre outros, de modo que as necessidades não
tada, visto que os indivíduos suscetíveis já sofrem são adequadamente atendidas nesses contextos
de determinado dano, isto é, eles foram desloca- e os indivíduos frequentemente se encontram
Pesquisa

dos do estado de integridade individual para o da desprotegidos por gerações, o que caracteriza pri-
individualidade ferida. vação em nível existencial. À pobreza soma-se a
Essa distinção lexical é importante principal- desigualdade, ou seja, a distância social entre os
mente porque decisões no âmbito da vulnerabilidade mais ricos e os mais pobres, além da exclusão.
devem recorrer ao respaldo ético do princípio da jus- Esta última tem caráter prospectivo, visto que se
tiça, ao passo que os indivíduos feridos demandam liga a características como acúmulo de desvanta-
cuidado, restabelecimento e tratamento reparador, gens, afrouxamento dos vínculos sociais e perda
garantidos, a priori, pelo princípio de proteção. do status quo. Da sinergia entre pobreza, desigual-
Logo, a ligação entre as prescrições éticas de prote- dade e exclusão emergem cenários de iniquidade
ção derivadas da vulnerabilidade difere em natureza social comumente encontrados no Brasil e nos
tanto do diagnóstico de uma condição de susceti- demais países onde grassa uma distribuição injusta
bilidade quanto da consequente exigência ética de dos recursos e grupos sociais mais pobres tendem

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a ter menor expectativa de vida, permanecer mais e uma “vulnerabilidade secundária”, ou suscetibili-
tempo doentes e sofrer mais limitações 11. dade, que também guarda proximidade semântica
Diante de um contexto em que os efeitos da com aquela desenvolvida pelo bioeticista chileno.
pobreza, da desigualdade e da exclusão marcam Entretanto, é em outra categoria que se inse-
o cotidiano de privação das populações, há neces- rem aqueles que estão diretamente afetados e
sidade de uma ferramenta conceitual mais sen- feridos em sentido amplo, vivendo em condição
sível que a suscetibilidade e capaz de detectar a existencial de privação das potencialidades ou
complexidade dos fenômenos de iniquidade e capacidades necessárias para garantir uma vida
indigência. Com efeito, as realidades extremas de minimamente digna. Isso significa que deve haver
suscetibilidade exigem ferramentas bioéticas mais distinção entre os suscetíveis e os efetivamente
específicas que possibilitem uma aproximação vulnerados, ou seja, aqueles rebaixados a priori e
prático-conceitual mais patente e acurada das que já se encontram afetados ou feridos por causa
condições em que há indigência 7. É nesse âmbito de situações adversas. Some-se a isso o fato de os
que emerge a noção de “vulneração” 12. primeiros poderem também se tornar vulnerados
a qualquer tempo 7.
Vulneração Assim, a função de proteção não deve focar os
indivíduos e coletividades que têm capacidade de
lidar com condições existenciais desfavoráveis a
Condição existencial de restrição partir dos próprios meios ou do auxílio das institui-
de potencialidades ções, mas, sim, voltar-se àqueles que não dispõem
A vulneração compreende situações em que de recursos suficientes, próprios ou institucionais
o indivíduo ou a coletividade não são capazes de para sair da vulneração. Logo, a proteção é a condi-
se defender por si mesmos, por razões que inde- ção sine qua non para que os vulnerados consigam
pendem de sua vontade, tais como condições de desenvolver a posteriori competências necessárias
vida desfavoráveis ou negligência e/ou abandono ao exercício de uma vida minimamente decente 7.
por parte das instituições. Essas situações reivin- Portanto, é necessário que o debate bioético
dicam o desenvolvimento e a aplicação de ações contemple problemas de saúde que a bioética tra-
protetivas que promovam o resgate da vulnerabi- dicional não alcança, sobretudo nos países ditos
lidade perdida 7,10. Em outros termos, a vulneração em desenvolvimento, onde as carências e a injus-
é a condição existencial de quem se encontra tiça social expõem a população a condições iníquas
submetido a danos e carências efetivos a priori, que extrapolam a vulnerabilidade universal e que,
como aquelas situações frequentemente encon- por isso, devem ser clarificadas por uma bioética
tradas no cotidiano de privação das populações e voltada à responsabilidade social e à função pro-
indivíduos marcados por iniquidade ou indigência 7. tetora que está no cerne do Estado moderno:
Com efeito, a constatação de outro nível exis- uma bioética de proteção (BP) 7.
tencial de privação é uma das mais importantes
contribuições da abordagem brasileira da bioética,
na medida em que o estabelecimento de uma
Bioética de proteção Pesquisa
diferença conceitual e pragmática entre vulnera-
bilidade e vulneração necessariamente impacta o Inicialmente concebida como uma “ética de
discurso bioético. Nessa perspectiva, Schramm 7 proteção”, a BP é uma proposta formulada como
sustenta a subdivisão da noção de vulnerabilidade tentativa de aplicação do escopo teórico e prático
em duas categorias, a saber: uma concepção que da bioética tradicional aos conflitos morais em
se aproxima da noção desenvolvida por Kottow 3,5, saúde pública, como nos casos de exclusão social.
isto é, uma “vulnerabilidade primária”, ou “vulne- Em termos específicos, ela se preocupa com a
rabilidade em geral”, referente à condição ontoló- questão da vulneração humana e, portanto, é um
gica que caracteriza todo organismo vivo, o que a projeto bioético e biopolítico 6,10.
torna uma concepção para além do âmbito da vida Baseada na recuperação do conceito de ética
humana e, dadas sua extensão e sua complexidade, no sentido de “abrigo”, “guarida” e “proteção”,
fora da possibilidade das ações protetivas efetivas; a BP traz um enfoque crítico ao reducionismo do

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discurso bioético promovido pela interpretação responsabilidade diacônica e, prima facie, o res-


ainda predominante do modelo principialista e peito à autonomia, além de evitar o paternalismo;
busca iluminar problemas de ordem sanitária que 2. Vinculação, que torna as ações protetivas com-
até então não eram considerados pela bioética promisso irrecusável para a instância protetora,
tradicional 2,4,7-10,13,14. Com efeito, apesar de o vín- uma vez aceitas livremente pelos destinatários,
culo entre Estado e proteção existir desde os pri- o que também é previsto pela responsabilida-
mórdios da modernidade, a bioética ainda não de diacônica;
havia incorporado a proteção como princípio no 3. Cobertura efetiva das necessidades dos afe-
horizonte de seu discurso. Foi partindo da noção tados em situação legitima de suscetibilidade
de responsabilidade do Estado e no resgate de seu ou vulneração 2,13.
papel protetor que os pesquisadores Schramm e A partir dessas características, Schramm e
Kottow 2 se referiram a autores reconhecidos por Kottow 2 compreendem que a proteção implica
dedicarem-se à questão da responsabilidade em garantir o provimento das necessidades moralmente
sua articulação com a ética, tais como Hans Jonas legítimas, o que limita a responsabilidade diacônica
e Emmanuel Lévinas 6-9,13. em sua característica incondicional, de modo que
Então, o que diferencia o princípio da res- todo indivíduo possa adquirir bens ou satisfazer
ponsabilidade em Jonas e Lévinas do princípio outros interesses de seu projeto de vida que não
de proteção idealizado por Schramm e Kottow? apenas aqueles contidos em suas necessidades
Resumidamente, o princípio de responsabili- básicas, mas que dependem destas para sua conse-
dade ôntica de Jonas implica a existência de um cução, como saúde, educação, segurança e moradia,
“ser” que não pode ser reduzido a um “ente”, entre  outras consideradas indispensáveis e que
ou  seja, compreende-se que o primeiro perma- devem ser garantidas pelas instâncias protetoras 13.
neça sui generis sem que seja objetivado em algo Neste ponto, é importante considerar o fato de,
determinado e específico, o que parece tornar sendo uma teoria latino-americana, a BP voltar-se
vazio o destinatário da responsabilidade jonasiana, ao contexto socioeconômico, no qual as populações
fazendo que sua aplicação no contexto institucio- estão marcadas por relações sociais e econômicas
nal tenda ao paternalismo. muito assimétricas, o que torna fundamental consi-
Além disso, a atribuição desse tipo de respon- derar a iniquidade no processo de tomada de deci-
sabilidade é pouco operacional, uma vez que o são em saúde pública. Logo, esse processo deve
agente moral é de difícil identificação. Quanto a partir do pressuposto de que o termo “proteção”
Lévinas, o princípio de responsabilidade diacô- se refere à principal função do ethos, isto é,
nica aplicado ao contexto das instituições e cole- resguardar os indivíduos ou populações vulneradas
tividades faz que a solidariedade incondicional de iniquidade e indigência. Com efeito, a proteção
para com outrem subordine de tal modo o “eu” dos vulnerados deve orientar as ações na forma de
ao outro que o agente moral acaba por desa- uma norma moral, e isso significa que a assimetria
parecer, esvaziando-se e confundindo-se com das relações deve centralizar a análise bioética
o destinatário da responsabilidade. Portanto, em última instância 6-10,14.
o princípio de responsabilidade leviniana também Quanto à terminologia “bioética de proteção”,
Pesquisa

não é adequado para o âmbito das políticas públi- compreende-se que os termos que a compõem
cas, pelo fato de deixar o agente moral em uma se aproximam por um lado e se afastam por
relação assimétrica de subordinação e de não reci- outro. De fato, as palavras “bioética” e “proteção”
procidade com o paciente moral 2,13,15. avizinham-se no compromisso bioético da elabora-
Foi principalmente diante dessas dificuldades ção de soluções normativas e pragmáticas minima-
operacionais e pretendendo evitá-las que o prin- mente razoáveis e justas para problemas globais,
cípio de proteção foi pensado por Schramm e visando proteger determinado indivíduo ou cole-
Kottow 2. Para tanto, esse princípio foi construído tividade, haja vista que ambos os termos reúnem,
tendo como base três características principais: originalmente, as funções de abrigar e estabelecer
1. Gratuidade ou oferta livre das ações protetivas normas de convivência. Por outro lado, os termos
pelo Estado ou outra instância, cabendo ao pa- “bioética” e “proteção” devem, necessariamente,
ciente moral aceitá-las ou não, o que resgataria a ser afastados e diferenciados, para que não sejam

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Bioética de proteção: fundamentos e perspectiva

confundidos mormente pela divergência entre seus de uma assimetria real e apriorística em termos de
campos semânticos, visto que nem toda bioética é empoderamento entre agente e paciente moral é
bioética de proteção e nem todo meio de proteção inerente aos pressupostos da BP, e isso justificaria e
é meio de proteção da bioética 16. legitimaria a oferta de uma proteção necessária sem
Ainda com relação à expressão “bioética de incorrer, como visto anteriormente, em uma forma
proteção”, pode-se depreendê-la como expressão- de paternalismo 10.
-problema que indica as questões a serem enfren- Vale ressaltar, ainda, que existem duas manei-
tadas, ao mesmo tempo que aponta as tensões ras de se pensar a BP: um modo stricto sensu,
inerentes à própria terminologia. Nesse sentido, e outro, lato sensu. A BP stricto sensu busca o
é importante ressaltar que a BP não deve tornar-se amparo a indivíduos e coletividades considerados
uma espécie de solução mágica para todos os sem competência ou capacidade suficiente para
problemas morais, ou melhor, é necessária a deli- a realização dos próprios projetos de vida de
mitação de seu campo de aplicação para que as modo razoável e justo. Nesse sentido circunscrito,
respostas construídas não se revelem frustrantes ela pode ser compreendida como manifestação da
como ferramentas de inteligibilidade e de resolu- cultura dos direitos humanos. Já a BP lato sensu
ção de conflitos morais no campo das práticas que ocupa-se da sobrevivência da espécie humana e
envolvam seres vivos nem possam ser confundi- parte da premissa da existência de interesses cole-
das como um tipo de paternalismo. Com efeito, tivos e ecológicos que não podem ser subsumidos
essa abordagem bioética busca não ser demasiado pelos interesses individuais ou de grupos particu-
genérica a ponto de se remeter a uma “ética da lares e que visam garantir as condições necessárias
vida”, mas sim bastante precisa sem ser reducio- à antropogênese 6-8,10,12.
nista, visto que permite colocar em foco a irrever- Em ambas as formas, a BP tem um denomina-
sibilidade potencial das ações humanas sobre os dor comum, que é o princípio da qualidade de vida,
organismos, o que implica considerar que a vida, o qual permite entender a saúde pública como o
prima facie, deve ser protegida 7,10,13. conjunto de disciplinas e práticas cujo objetivo prin-
Ademais, a utilização da expressão BP não é cipal é o estudo e a proteção da saúde das popula-
objeto de consenso entre seus próprios idealizadores, ções humanas em seus contextos naturais, sociais
apesar de ambos concordarem que seu foco de e culturais 18. Nesse sentido, a promoção da saúde
atenção esteja na justiça sanitária, em situações de (com enfoque nos estilos de vida) e a prevenção
escassez de recursos e na moralidade no domínio da do adoecimento (com a gestão dos riscos à saúde)
saúde pública. Segundo Schramm 10, o autor chileno passam a constituir dois aspectos inseparáveis da
Kottow considera essa nomenclatura insatisfatória, proteção que contemplam as duas faces da prática
dada sua incapacidade de reconhecer a bioética protetiva, sendo a primeira considerada positiva
como uma ética aplicada persistentemente imer- e a última, negativa. Portanto, há uma “proteção
gida em assimetrias entre agentes e afetados 17, negativa”, compreendida como o conjunto de práti-
o que seria dirimido por uma utilização mais opor- cas preventivas contra o adoecimento e as ameaças
tuna do termo “proteção bioética”, visto este último à qualidade de vida de dado indivíduo ou coletivo
fazer referência à necessidade de proteger a bioé- humano, e uma “proteção positiva”, que abrange Pesquisa
tica para que esta possa refletir mais livremente diversas práticas voltadas ao autodesenvolvimento
sobre a práxis humana. humano e à autonomia 6.
Essa posição não é apoiada por Schramm, Com relação a seu método, a BP pode ser com-
que  parte do pressuposto de que os proble- preendida como uma caixa de ferramentas capaz
mas levantados por Kottow já estão considera- de lidar com a moralidade das práticas sanitá-
dos na expressão BP. De fato, para o bioeticista rias a partir de uma abordagem transdisciplinar,
brasileiro, a BP é, sobretudo, uma proposta de na medida em que promove a interação de sabe-
práxis que abrange de antemão a ação diante das res distintos, mas não separados, tal qual o caso
desigualdades no horizonte de sua proposta original, da saúde pública 6. Para tanto, as ferramentas uti-
na qual já se encontra subentendido o contexto de lizadas propõem-se a resolver problemas oriundos
indigência e incluída a condição de vulneração e sus- dos conflitos morais hodiernos entre sujeitos,
cetibilidade de sujeitos e populações. Assim, a ideia além de exercer função tripla, a saber:

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1. Descritiva, ao retratar os conflitos de modo ra- torna indistintos o ator e o destinatário de deter-
cional e em princípio imparcial, o que implica minado comportamento 7,21,22.
dizer que também têm caráter crítico; Pode-se entender que essa questão é de
2. Normativa, na medida em que buscam resol- ordem teórica e prática. Teórica porque remete
ver os conflitos morais, classificando e prescre- à relação lógica entre proteção e autonomia e à
vendo os comportamentos corretos, ao passo ponderação que deveria existir nos casos em que
que proscrevem os incorretos; esses dois princípios entram em conflito. Prática
3. Protetora, haja vista que a articulação entre as porque envolve seu campo de aplicação e diz
funções anteriores incide sobre contextos con- respeito à utilização da BP apenas para os vulne-
cretos, visando fornecer meios suficientes para rados ou, em  uma acepção mais ampla, os vul-
amparar os envolvidos e garantir cada projeto neráveis em seu limite. Entretanto, qualquer que
de vida compatível com os demais 13,19. seja a amplitude de ação da BP, cabe salientar sua
Outro ponto importante a se considerar é o necessidade de se desvencilhar tanto do pater-
fato de a teoria desenvolvida por Schramm 7 esta- nalismo quanto da culpabilização dos pacientes
belecer uma prioridade léxica para os vulnerados, morais, por meio dos seguintes argumentos:
o que torna imprescindível a aplicação apriorística 1. A aplicação de suas ferramentas ocorre tão so-
do valor da equidade como meio de alcançar a mente em populações de indivíduos suscetíveis e
igualdade e, assim, respeitar concretamente o prin- vulnerados que são incapazes de tomar decisões
cípio de justiça. Nesse sentido, a BP busca entender, sozinhos, e não aos meramente vulneráveis;
descrever e resolver conflitos de interesse entre 2. A proteção não deve ser impositiva, mas,
quem é destituído de competência e necessita de necessariamente, oferecida ao destinatário;
proteção e aqueles que, ao contrário, estão capaci- 3. O princípio de proteção implica, necessariamente,
tados para realizar seu projeto de vida 7,10. o dever da eficácia nas intervenções sanitárias,
Outrossim, nunca é bastante enfatizar o perigo mesmo que isso signifique restringir a autonomia
de as abordagens bioéticas baseadas num princípio individual ante a qualidade de vida de determi-
de proteção deslizarem para um discurso e uma nado coletivo 6,7.
prática paternalistas. Com efeito, o fato de não exis- Logo, é possível depreender que o termo “pro-
tir proteção sem que haja em contrapartida uma teção” implica a responsabilidade dos agentes
instância protetora não implica necessariamente morais e a eficácia pragmática de suas respec-
que a ação protetiva seja de cunho “autonomicida”, tivas ações, verificadas a partir de seus efeitos.
isto é, que incorra em paternalismo. Em  outros Nesse contexto, a BP revela-se importante ferra-
termos, proteger não significa ampliar as desi- menta analítica e pragmática da ética aplicada,
gualdades, como fazem as ações tipicamente capaz de analisar e diminuir os conflitos, bem como
paternalistas ao impedirem que os indivíduos resolvê-los, visando à qualidade de vida e ao bem-
decidam por si mesmos, mas sim disponibilizar -estar dos destinatários das políticas públicas 6,8,13.
meios suficientes para que os destinatários tomem No  entanto, há exceções à aplicação da BP de
ciência de suas realidades contingenciais e se tor- maneira geral, como é o caso da proteção do
nem capazes de decidir segundo seus interes- corpo social contra as ameaças internas e exter-
Pesquisa

ses legítimos e com a maior liberdade possível, nas, exemplificado na utilização de medidas coer-
exercendo seu direito à autonomia 2,9,10,14,20. citivas impostas aos indivíduos ou grupos de dada
Neste ponto, cabe introduzir uma das críticas população quando em vigência de epidemias que
fundamentais à BP, qual seja, a pergunta sobre os ameaçam afetar sensivelmente a saúde popu-
limites entre a possibilidade de proteger alguém e lacional, como poderia bem ser ilustrada pelas
a competência individual de proteger a si mesmo, diretrizes adotadas pela Organização Mundial da
ou melhor, o problema da liberdade do exercício Saúde (OMS) e pelos países acometidos pela pan-
da autonomia em face da existência de normas de demia de covid-19. Em outros termos, a proteção
convivência em dada sociedade. Isso se deve à em saúde pública pressupõe a legitimação de
tendência atual a aumentar a responsabilidade determinadas formas de restrição das autonomias
individual no domínio da saúde pública, isto  é, individuais ao se basear na prioridade dos direitos
subsumir o agente moral no paciente moral, o que sociais sobre os individuais 6,22.

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É preciso, também, saber quem são os indi- adequadas e consistentes, a BP pretende garantir
víduos ou populações vulneradas. Efetivamente, a consecução de cada projeto de vida juntamente
na  aplicação de ações protetivas há sempre o com a proteção do conjunto dos envolvidos.
risco de estigmatização, paternalismo ou autorita- Nesse ponto, ela se revela uma abordagem fun-
rismo, porquanto existe a possibilidade de indevi- damental para o campo da saúde pública em seu
damente se desconsiderarem o multiculturalismo, desafio de lidar com a tensão entre os âmbitos
a pluralidade moral e as diferenças nas socieda- individuais e o coletivo 6,10,14.
des contemporâneas 7,20. Logo, ao contrário dos
princípios de Jonas e Lévinas, de responsabilidade
ôntica e diacônica, respectivamente, o princípio de Considerações finais
proteção é operacional porque demanda a espe-
cificação do que deve ser protegido, quem deve A bioética pode ser compreendida como saída
proteger o que e a quem a proteção se destina 8,13. produzida mediante os desafios que emergem nos
Por conseguinte, uma das principais funções da BP contextos da vida contemporânea, principalmente
consiste em combater a tendência à massificação aqueles relativos aos avanços biotecnológicos no
e à uniformização das condutas operadas pelas domínio da saúde, às conquistas sociais, ao desenvol-
políticas de saúde, resistindo àquelas que promo- vimento econômico, ao fenômeno da globalização,
vem a restrição da autonomia e da singularidade ao uso de recursos finitos e à própria compreensão
dos indivíduos, desconsiderando seus modos par- da vida. Em resumo, ela pretende ser uma resposta
ticulares de caminhar na vida 9. coerente com os impactos da existência humana
Assim, ao considerar a saúde e o exercício das sobre a vida no planeta e sobre si mesma.
liberdades individuais, condições fundamentais Por ter caráter racional e pragmático, a bioética
para a qualidade de vida, pode-se depreender que também constitui ferramenta cujo desenvolvi-
a BP se ocupa da proteção em dois níveis, ou em mento se pauta na construção de subsídios sufi-
duplo sentido, já que pretende garantir o acesso cientemente cogentes para a tomada de decisão
a um padrão de assistência em saúde que seja em contextos diversos. Para tanto, algumas cor-
razoável e disponível para todos e que também rentes bioéticas baseiam a justificação desses
seja congruente com a possibilidade de desenvol- recursos em princípios considerados fundamen-
vimento individual de capacidades humanas que tais para a vida humana, a exemplo da vulnerabili-
não prejudiquem terceiros. Desse modo, a prote- dade. Estritamente, a vulnerabilidade – como visto
ção da saúde de todos não exclui a necessidade de anteriormente – é  uma característica descritiva
garantir a proteção das liberdades fundamentais da humanidade na qual se vinculam noções como
de cada um. Cabe à BP, portanto, compreender e incompletude, devir e finitude, entre outras.
analisar criticamente conflitos nessas circunstân- Nesse  sentido, ela  tem relação com a proteção
cias, a fim de fornecer argumentos pertinentes como necessidade consolidada tal qual uma exi-
que subsidiem a legitimidade da prescrição ou da gência ética, isto é, a vulnerabilidade implica a ins-
proscrição das ações individuais, estabelecendo tauração da proteção como ação fundamental do
pontos de convergência entre a justiça social e as Estado moderno. Portanto, a ideia de um princípio Pesquisa
liberdades individuais 22. de proteção como orientador de tomada de decisão
Em resumo, a BP pode ser interpretada como remete à estruturação das sociedades modernas ao
paradigma para a compreensão e a resolução jus- redor da noção de vulnerabilidade, daí sua relação
tificada dos conflitos morais em saúde pública, com o valor da vida humana na contemporaneidade,
utilizando-se, para isso, de descrição e análise des- o que demonstra sua relevância para a bioética.
ses conflitos da maneira mais racional e imparcial Contudo, por constituir atributo da espécie
possível e buscando resolvê-los de forma norma- humana, a vulnerabilidade incorre na tendência
tiva, lançando mão de ferramentas capazes de generalizante de aplicação indiscriminada do princí-
ordenar comportamentos adequados e proibir pio de proteção e na consequente perda de eficácia
aqueles considerados incorretos. Assim, por meio das ações protetivas. Isso se deve, principalmente,
da conjugação de apreensão, análise e resolução ao fato de haver indivíduos e grupos populacionais
de conflitos a partir da aplicação de ferramentas previamente “feridos” (de acordo com a raiz latina

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“vulnus” do termo “vulnerabilidade”) e que estão amparadas no princípio de justiça e dirigidas


expostos a condições acidentais e específicas que à vulnerabilidade dos grupos humanos para a
demandam outro meio de proteção. Assim, em um preocupação com o desenvolvimento de ações
primeiro momento, é razoável dizer que a proteção orientadas pelo princípio de proteção e espe-
pressupõe ações que buscam reduzir as ameaças à cificamente direcionadas aos indivíduos ou
vulnerabilidade humana quando os destinatários grupos previamente suscetíveis e vulnerados.
morais estão em um mesmo “nível existencial”. Estes  últimos, em  especial, são desprovidos de
Entretanto, tal posição ignora a diversidade de determinadas capacidades  e, portanto, estão
contingências a afetarem os sujeitos como seres impossibilitados de enfrentar as situações adver-
mortais, e é por essa via de interpretação que a sas em que foram lançados. Assim, por estarem de
BP surge, reafirmando a proteção como princípio antemão submetidos a danos ou carências concre-
ético de conservação da vida, ao mesmo tempo tas que não conseguem enfrentar, a BP preconiza
que lança luz sobre a degradação das condições de a necessidade do desenvolvimento e implementa-
vida nos cenários de iniquidade e indigência. ção de ações protetivas voltadas especificamente
Ao fim e ao cabo, a BP promove o desloca- aos vulnerados, o que pode ser entendido como
mento do foco em ações generalistas e niveladoras seu fim último e sua missão.

Este trabalho contempla parte da pesquisa de doutoramento do primeiro autor e é produto de um levantamento
bibliográfico sobre bioética de proteção.

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Carlos Alberto Bizarro Rodrigues – Doutor – carlosbizarro@ensp.fiocruz.br Pesquisa


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Fermin Roland Schramm – Doutor – rolandschram@yahoo.com.br
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Correspondência
Carlos Alberto Bizarro Rodrigues – Rua Leopoldo Bulhões, 1480, térreo, Manguinhos
CEP 21041-210. Rio de Janeiro/RJ, Brasil.
Participação dos autores
Recebido: 27.8.2020
Carlos Alberto Bizarro Rodrigues contribuiu com as seguintes atividades: concepção,
planejamento, revisão crítica do conteúdo e escrita. Fermin Roland Schramm contribuiu para a Revisado: 22.3.2022
revisão crítica do conteúdo e para a escrita.
Aprovado: 13.4.2022

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