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EL DERECHO

PÚBLICO Y PRIVADO
ANTE LAS NUEVAS TECNOLOGÍAS
Directores
Javier García González
Álvaro Alzina Lozano
Gabriel Martín Rodríguez

Coordinadores
Rubén Miranda Gonçalves
Fábio da Silva Veiga
Dykinson Ebook
EL DERECHO PÚBLICO Y PRIVADO
ANTE LAS NUEVAS TECNOLOGÍAS

Directores
Javier García González
Álvaro Alzina Lozano
Gabriel Martín Rodríguez

Coordinadores
Rubén Miranda Gonçalves
Fábio da Silva Veiga
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en cualquier forma o por cualquier medio, sea este electrónico, mecánico, por fotocopia, por grabación u otros métodos, sin el
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Los editores y los coordinadores no son responsables de las opiniones,


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Este libro ha sido sometido a evaluación por parte de nuestro Consejo Editorial
Para mayor información, véase www.dykinson.com/quienes_somos

1ª edición: 2020

Dirección:
© Javier García González (Universidad Cardenal Herrera)
© Álvaro Alzina Lozano (Universidad Rey Juan Carlos)
© Gabriel Martín Rodríguez (Universidad Rey Juan Carlos)

Coordinación:
© Rubén Miranda Gonçalves (Universidad Internacional de La Rioja)
© Fábio da Silva Veiga (Universidad de Almería)

© Los autores, por su capítulo

Editorial DYKINSON, S.L. Meléndez Valdés, 61 - 28015 Madrid


Teléfono (+34) 91 544 28 46 - (+34) 91 544 28 69
e-mail: info@dykinson.com
http://www.dykinson.es
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ISBN: 978-84-1324-758-8

Maquetación:
Realizada por los autores
Índice

Posibles carencias en el sistema de control social ante el


ciberacoso: LA LIMITADA RESPUESTA DEL CÓDIGO PENAL FRENTE A
ESTA CONDUCTA.............................................................................................................................................. 12
Javier García González

A inteligência artificial como dispositivo democrático .............................. 33


Joyce Mendes Soares
Vânia Siciliano Aieta

La utilización por los medios de comunicación de fotos de


personas, sin su autorización, publicadas en redes sociales....................... 40
Marta Grande Sanz

A inteligência artificial como forma de repensar o ingresso em


juízo: o novo paradigma pelo abrandamento dos vieses . ................................ 49
Hannah Pereira Alff

Nanoagroquímicos: um novo desafio da 4ª revolução industrial à


saúde dos trabalhadores................................................................................................................. 59
Raquel von Hohendorff
Daniele Weber da S. Leal

La edad de oro de las redes sociales y la utilización por


terceros de fotos subidas a Facebook: Análisis de la sts 91/2017,
del pleno, de 17 de febrero............................................................................................................. 68
Rubén Miranda Gonçalves
Cristian Carbajales Neira

A extensão do regime das escutas telefónicas às comunicações


eletrónicas em Portugal. Uma reflexão sobre a garantia da
proteção dos direitos humanos................................................................................................ 77
Gonçalo Mota

A Tecnologia como instrumento em favor da sexta onda


renovatória de acesso à justiça................................................................................................. 86
Ed William Fuloni Carvalho
Jaime Leônidas Miranda Alves

Impactos da revolução tecnológica na saúde do trabalhador,


telepressão e o direito à desconexão digital .......................................................... 95
Talita Corrêa Gomes Cardim

—4—
A Internet e a transmutação do conceito jus-fundamental da
liberdade de expressão...................................................................................................................... 105
Raíssa Mendes Tomaz

E-Justice e E-Evidence em processo civil – ordenamento


português e contexto europeu................................................................................................. 113
Lurdes Varregoso Mesquita

Desafios dos direitos humanos no mundo tecnológico:


envelhecimento no futuro.......................................................................................................... 123
João Proença Xavier

Los nuevos retos digitales en una ue dividida........................................................... 131


Gabriel Martín Rodríguez

A tecnologização e a humanização do processo penal: a técnica


do interrogatório por videoconferência analisada sob a
perspectiva do direito de presença...................................................................................... 147
Eduardo Resende Rapkivcz

Una trust machine para la financiación de la democracia: el uso


de distributed ledge technologiespara la gobernanza de las
cuentas electorales............................................................................................................................. 157
Marcelo Eugênio Feitosa Almeida

O desafio do direito de autor face à tecnologia no contexto


atual...................................................................................................................................................................... 166
Leonardo Foeppel de Oliveira

A educação digital como nova tecnologia direcionada para a


efetivação do direito constitucional à educação ............................................. 175
Letícia Mirelli Faleiro e Silva

Responsabilidade penal da inteligência artificial (?): a


problemática relacionada ao elemento da conduta na clássica
estrutura analítica do delito................................................................................................... 186
Lucas Hinckel Teider
Gabriel Pivatto dos Santos

A desmaterialização do “juiz das garantias” com o inquérito


policial eletrônico............................................................................................................................... 196
Rodrigo Régnier Chemim Guimarães
Sarah Gonçalves Ribeiro
Letras de crédito do agronegócio: títulos de crédito
modernos, desmaterializados e fomentadores da economia.................... 206
Luiza Nagib
Thaís Cíntia Cárnio

A transformação da violência: as novas relações permeadas pela


tecnologia...................................................................................................................................................... 213
Fernando Vechi
Eduardo Baldissera Carvalho Salles

Evolución y desarrollo de los derechos humanos. hacia una


cuarta generación.................................................................................................................................. 221
Julián León Camacho

Exibicionismo, vigilância e máquinas de subjetivação: ensaio


sobre o condicionamento do comportamento dos usuários nas
redes sociais................................................................................................................................................... 236
Eduardo Baldissera Carvalho Salles
Augusto Jobim do Amaral

A falência transfronteiriça e a função social da empresa sob a


ótica da 3ª dimensão dos direitos humanos.................................................................... 244
Carlos Eduardo Silva e Souza
Angelo Bruno Donatoni

Cidades inteligentes: desafios e perspectivas para o


aproveitamento energético de resíduos sólidos no Brasil........................ 254
Mariana Gmach Philippi
Larissa Milkiewicz

Velhos preconceitos mascarados de verdades científicas: como


a inteligência artificial no processo penal pode ser tendenciosa.... 263
Daniela Dora Eilberg
Jádia Larissa Timm dos Santos

A smart city como modelo de estruturação de cidades


sustentáveis e resilientes.............................................................................................................. 272
Wilson Engelmann
Camilo Stangherlim Ferraresi

Os diferentes fundamentos teóricos penais e a confiabilidade


nos programas de inteligência artificial...................................................................... 281
Rodrigo Régnier Chemim Guimarães

O “lado obscuro” da inteligência artificial? A sociedade humana


na era das novas tecnologias....................................................................................................... 292
Felipe Barcarollo
Arbitragem e ordem pública econômica........................................................................... 301
Fábio da Silva Veiga
João Otávio Bacchi Gutinieki

Entre riscos e benefícios da utilização da inteligência


artificial pelo poder judiciário............................................................................................... 316
Afonso Vinício Kirschner Fröhlich
Wilson Engelmann

Os desafios para a aplicação da regra matriz de incidência


diante do atual cenário de economia disruptiva................................................... 324
Thaís Cíntia Cárnio

O uso das biotecnologias para a acessibilidade eleitoral plena


das pessoas com deficiência intelectual grave........................................................ 331
Washington Rocha de Aquino
Charles de Sousa Trigueiro

Ai and dispute resolution............................................................................................................... 338


Mariusz Załucki

A autodeterminação informacional como preceito


fundamental ao direito à desindexação segundo o RGPD e o TJUE ...... 347
João Alexandre Silva Alves Guimarães
Fernanda Daltro Costa Knoblauch

Direito do trabalho e tecnologia. Futuro do trabalho – entre


potencialidades e incertezas..................................................................................................... 356
Carla Teresa Martins Romar

Cidades inteligentes e cidades sustentáveis: a busca por um


conceito integrador........................................................................................................................... 366
Bruno Lúcio Moreira Manzolillo

Aspectos tributários nas Fintechs......................................................................................... 376


Fabrizio Bon Vecchio
Débora Manke Vieira

O desafio brasileiro na implementação de procedimentos de


cooperação internacional .......................................................................................................... 384

no âmbito processual civil.............................................................................................................. 384


Luciane Mara Correa Gomes
O nexo no imposto sobre determinados serviços digitais:
uma análise crítica a proposta unilateral de Espanha..................................... 391
Jorge Eduardo Braz de Amorim

O dever de pagar imposto em face do direito à vida privada e o


consentimento à luz do RGPD...................................................................................................... 400
João Alexandre Silva Alves Guimarães
Fernanda Daltro Costa Knoblauch

A comunicação digital na sociedade tecnológica: proteção da


privacidade...................................................................................................................................................... 410
Maria Helena Damasceno e Silva Megale
Eduardo Brandão Gomes

Cosméticas da tecnologia no necropoder: é isto um drone


implantado na democracia?........................................................................................................... 419
Nilson Carlos Costa de Souza Filho

Inteligência artificial e motivação das decisões judiciais . ........................ 428


Andrea Boari Caraciola

A mulher e o cibercrime: as novas facetas da violência de


gênero na sociedade hiperconectada................................................................................ 439
Larissa Amaral Esteves
Yasmin Faissal Nogueira

Revoluções tecnológicas na administração pública e impactos


no “funcionário público 4.0”: extinção ou ressignificação?......................... 448
Daniel Allan Miranda Borba
Lucas Isaac Soares Mesquita

O impacto da inteligência artificial no direito intelectual e


no mercado tecnológico................................................................................................................. 458
camila Maria de Moura Vilela

Pasado, presente y futuro de la sociedad de la información en


la Unión Europea: referencia a la agenda digital para Europa................ 466
José Enrique Anguita Osuna
Fernando Suárez Bilbao

Os direitos humanos e o mundo tecnológico – a utilização (não)


abusiva da internet: contribuição ou penalização da dignidade
da pessoa humana?.................................................................................................................................... 475
Patrícia Pinto Alves
Universidade inteligente e sustentável a partir de análise de
atividade extensionista em conformidade com a agenda 2030.................... 483
Mônica Mota Tassigny
Liane Maria Santiago Cavalcante Araújo

Direito e literatura: simbiose necessária à formação do cidadão


sensor................................................................................................................................................................... 492
Erica Valente Lopes
Lívia Chaves Leite

A metodologia do Project-Based Learning (PBL) como fomento


à inovação no ensino jurídico: proposta antidisciplinar à pós-
graduação em direito........................................................................................................................... 500
Diana Moreira Gondim
Mateus Rodrigues Lins

Requisitos formais das convocatórias das assembleias gerais:


o uso das TIC – Estudo comparativo entre os regimes jurídico
português e espanhol –....................................................................................................................... 508
Marisa Dinis

Derechos político-electorales: nuevos desafíos en la era de la


cibercracia...................................................................................................................................................... 518
Paula S. Suárez

Os desafios no ciberespaço, criminalidade cibernética em âmbito


mundial: necessidade de reflexão......................................................................................... 527
Marco Antonio Marques da Silva
Ricardo Vieira de Souza

Retos de las nuevas tecnologías y digitalización en el derecho


comercial......................................................................................................................................................... 536
María Augusta Camacho Zegarra

Blockchain e smart contracts: tecnicidades e qualificação


jurídica................................................................................................................................................................ 544
Amanda Bezerra Bassani

Indústria 4.0 e o desafio da dignidade do trabalhador na


constituição brasileira de 1988................................................................................................... 552
Leonardo da Costa Carvalho

Tributos contidos no preço: divulgação nos documentos fiscais


– elevada tributação do consumo – verdadeira medida dos
tributos nos preços em geral...................................................................................................... 559
Eduardo Marcial Ferreira Jardim
Comentario crítico sobre un posible nuevo orden jurídico-
político: la unidimensionalidad de la norma y el uso de la
tecnología...................................................................................................................................................... 568
Fernando Beresñak

Copyright challenges concerning the development of mind


uploading......................................................................................................................................................... 575
Kamil Szpyt

Estudo comparado do gps como meio eletrônico de prova nos


ordenamentos português e brasileiro.............................................................................. 583
Flavia Ferreira Jacó De Menezes
Juliane Cristina Silvério de Lima

Uma proposta de educação ambiental a partir do projeto “praia


linda, praia limpa” da Universidade de Fortaleza.................................................... 591
Paulo Roberto Meyer Pinheiro
Mônica Mota Tassigny

Os desafios do direito do trabalho perante as novas


tecnologias e a figura jurídica do teletrabalho no direito
português......................................................................................................................................................... 599
Mário Simões Barata
Susana Sardinha Monteiro

Tecnologias e seus reflexos como fonte de pacificação social.............. 609


Alessandra Christine Bittencourt Ambrogi de Moura
Flavia Ferreira Jacó de Menezes

Consequences of applying new technologies to sources of law


(overview)......................................................................................................................................................... 617
Dariusz Szostek

A mediação eletrónica no quadro da «nova» administração da


justiça................................................................................................................................................................... 626
Cátia Marques Cebola
Susana Sardinha Monteiro

Contratos públicos e o desenvolvimento de novas tecnologias


no Brasil: Estudo de caso dos dados abertos na política de
mobilidade urbana de São Paulo................................................................................................ 637
Anna Beatriz Savioli
Tamara Cukiert

La violencia en redes sociales en el contexto de las


manifestaciones deportivas.......................................................................................................... 646
Álvaro Alzina Lozano
Eficácia dos títulos de crédito ambientados eletronicamente
na legislação brasileira.................................................................................................................... 657
Marco Aurélio Gumieri Valério

Initiating proceedings in a civil case using AI? - selected


comments regarding polish civil procedure............................................................. 666
Aleksandra Partyk

The smart cities as part of a sustainable urban and governance


model for the XXI century............................................................................................................. 675
Carolina Rodrigues Madeira da Costa

Thinking about human and fundamental rights in the


technological era: How do they fit into the societies 5.0 and
the smart cities?........................................................................................................................................ 683
diogo Luiz Chagas Santos
Vivian Rodrigues Madeira da Costa
Posibles carencias en el sistema de control social
ante el ciberacoso:
LA LIMITADA RESPUESTA DEL CÓDIGO PENAL
FRENTE A ESTA CONDUCTA

Javier García González1

Resumen: Como es sabido, la juventud también está sometida al tradicional sistema de control
social a través de diversas instituciones y grupos que interactúan con este colectivo (y con los individuos
concretos que la componen) con el objetivo de “socializarles”, esto es, de lograr que asuman las normas
validadas a través de la estructura existente de tutela, como ocurre con el resto de componentes de la
sociedad.
Pero, actualmente, este grupo presenta una característica muy concreta que lo distingue de otros
procesos anteriores: sus vivencias tienen lugar en dos contextos diferentes y complementarios, como son el
mundo virtual y el mundo real.
Este trabajo ahonda sobre la ausencia de referentes de los actores de control social para poder actuar en
consecuencia. Incluidos los encargados de aplicar la sanción penal, en última instancia. La mayoría de esos
actores aplican las tradicionales fórmulas de control social. Pero tales herramientas se están resintiendo,
como es lógico, por cuanto no estaban pensadas para actuar en ese entorno digital. Con ello se quiere
denunciar la falta de respuestas socialmente validadas para poder modelar nuestro comportamiento social
en el entorno digital.
Los responsables encargados de “armonizar” al individuo (solo) hacen uso de los valores vigentes en
‘su’ entorno social. Sin embargo, el “nativo digital”, como receptor de esas normas, también tiene acceso
a otros mundos virtuales que no tienen por qué parecerse al que les acoge físicamente. Empezando por los
valores imperantes en cada una de esas esferas sociales en las que se forma como individuo.
Y en esa disparidad, las expectativas depositadas en el Derecho penal, como máximo representante
del control social formal, pueden verse frustradas. Para ello, este trabajo toma como ejemplo la respuesta
dada por el código penal español ante el ciberacoso.
Palabras clave: control social, ciberacoso, redes sociales

1
Doctor en Derecho y Profesor de Derecho penal. Universidad CEU Cardenal Herrera.

— 12 —
Posibles carencias en el sistema de control social ante el ciberacoso
Javier García González

Abstract: As it is well known, youth is also subject to the traditional system of social control
through various institutions and groups which interact with this collective (as well as with the specific
individuals who make it up) with the aim of “socializing them”, that is, in order to get them to assume the
validated regulations through the existing structure of guardianship, as it happens with the rest of society’s
members.
But nowadays, this group presents a very specific characteristic that distinguishes it from previous
processes: its experiences take place in two different and complementary contexts which are the virtual and
the real world.
This paper delves into the absence of referents from social control actors to be able to act in
consequence. Including those charged with the enforcement of the criminal sanction, as a last resort. Most
of these actors apply the usual rules of social control. But such tools are, of course, feeling the effects as
they were not designed to act in that digital environment.  Consequently, it is intended to denounce the
lack of socially validated responses so that not only our social behavior in the digital environment can be
modelled but also the actors responsible for the enforcement of the criminal sanction.
Those people responsible of “harmonizing” the individual make use of the current values in ‘their’
social environment.  However, the “digital native”, as the receiver of these norms, has also access to
other virtual worlds which needn’t look like to the one that takes them in. Especially the prevailing
values of those social sphere in which they are formed as individuals. And in this discrepancy, the
expectations placed on Criminal Law, as the highest representative of formal social control, can be
frustrated. Therefore, this paper takes as an example the response given by the Spanish penal code to
cyberbullying.

Keywords: social control, cyberbullying, social networks

Introducción
La reiteración de conductas agresivas dentro y fuera del aula es una realidad que ha de
generar no pocas reflexiones acerca de este comportamiento en sí mismo considerado, sobre
sus causas, su posible prevención y/o castigo, por citar las más relevantes.
Y entre tales cuestiones, también hemos de incluir aquellas que sirvan para mejorar el
sistema de respuesta social ante tales comportamientos, en especial, las que suelen etiquetarse
de acoso escolar o ciberacoso, tanto por la incidencia cuantitativa como por las características
que presenta, con la consiguiente desprotección para la víctima que la sufre.
A lo anterior se une el enorme potencial lesivo que alcanzan tales conductas cuando son
realizadas a través de internet.
Precisamente, en ese contexto virtual y desde la perspectiva jurídico penal, se desarrollan
en las siguientes líneas dos aspectos del denominado control social, íntimamente relacionadas
con esta problemática. Por un lado, el carácter compacto del proceso de socialización, que
impide entenderlo como diversos estadios o fases aisladas o desvinculadas entre sí; con la
consecuente imposibilidad de fiar el objetivo común (socializar) a una sola de esas fases o
colectivos sociales. Y, por otro, el impacto que tiene el fenómeno de la globalización sobre
dicho proceso, a fin de integrar la realidad virtual del destinatario de este sistema de control
social en las propias normas de comportamiento que se le quiere transmitir.
Bien entendido que con ambas propuestas solo se pretende motivar el debate sobre el
reto que nos ocupa: cómo mejorar entre todos los implicados el mecanismo de respuesta

— 13 —
Posibles carencias en el sistema de control social ante el ciberacoso
Javier García González

social ante expresiones violentas, en particular de ciberacoso que acompañan, con demasiada
frecuencia, a nuestros escolares2.
Por lo demás, también se incluye un somero análisis de las figuras penales que contiene
el Código para sancionar esos mismos comportamientos. En concreto, de los artículos 172
ter, 173 y 510 CP, por ser los que tendrían que aplicarse a los responsables de los supuestos
más graves de ciberacoso.

I. Proceso de socialización compartido: Derecho Penal


como último recurso
Es de todos conocido que las reglas de comportamiento vienen impuestas por la presión
de grupo. Desde el mismo instante en el que nacemos y nos incorporamos a la familia y a la
comunidad que nos acoge y protege, también recibimos una serie de pautas que bien podríamos
catalogar como “de obligado cumplimiento”. Es cierto que en ocasiones el individuo tenderá,
con mayor o menor intensidad, a liberarse de esas ataduras y parámetros de conducta. Pero
no con más ahínco o interés que el que ejercerá el propio grupo para que no logre su objetivo.
Este control social es común a todas las sociedades y suelen identificarse diversos niveles de
intervención.
En otras palabras, el orden social se impone al individuo, forzándolo a realizar los
comportamientos esperados y a omitir aquellos otros que se tengan por inapropiados o
inaceptables. De manera que, con ello, muestre su conformidad o sumisión para con dichas
reglas (sociales) de conducta. Esta forma de proceder no es exclusiva, ni mucho menos, del
Derecho. El ordenamiento jurídico (y el ordenamiento jurídico penal en particular) solo es
el máximo exponente de un entramado que está presente en todas las fases y en todos los
estratos de la organización social. Incluyendo, por supuesto, a las redes sociales.
Se habla así de control social informal para referirnos a mecanismos de “armonización”
que ponen en marcha entidades o colectivos sociales que ejercen esta presión de manera menos
visible (escuela, familia, asociaciones, colegios profesionales, medios de comunicación,
movimientos sociales, grupos de presión …) y de control social formal para identificar
aquellos otros casos en los que tales patrones de comportamiento se proponen e imponen
desde entidades o instituciones dirigidas por las autoridades públicas (ordenamiento jurídico,
como máximo exponente). En este último caso, el Estado también puede contar con diversas
estructuras o recursos para lograr sus fines: sería el caso de la creación de leyes, de la
administración de justicia conforme a esos mismos parámetros legales y/o al recurso de la
policía o fuerzas de seguridad que garanticen el orden público establecido, por citar solo
alguno de los más evidentes.
En este entramado, el ordenamiento jurídico “ocupa un lugar secundario, puramente
confirmador y asegurador de otras instancias mucho más sutiles y eficaces. Y dentro del

2
Sin desdeñar otros grupos de riesgo, como pueden ser las jóvenes que sufren estos comportamien-
tos durante el noviazgo, por parte de sus parejas. Sobre este particular: Esteve Mallent, L: La violencia de
género entre adolescentes, en: La violencia de género en la adolescencia, Aranzadi, 2012.

— 14 —
Posibles carencias en el sistema de control social ante el ciberacoso
Javier García González

ordenamiento jurídico como medio de control social formal, el Derecho penal solo es uno
de los instrumentos de control social formal, por lo que su contenido y sus reacciones son o
deben ser concordantes con todo el sistema de control social, y esta necesaria concordancia
debe ser tenida en cuenta para la determinación de su contenido, para organizar y evaluar la
eficacia del sistema penal y para medir la eficacia de sus reformas”3.
Si lo anterior se tiene como cierto y retomamos ahora la cuestión inicial del acoso
escolar y/o ciberacoso, cabría colegir que la posible respuesta (penal) prevista para los
responsables de esos hechos ha de ser coherente con el resto de medidas sociales que
el grupo ha ejercido hasta el momento sobre el individuo, desde estructuras menos
contundentes que los tribunales de justicia, pero igualmente implicadas en el control social
de esos individuos. Y viceversa.
Y esta situación provocaría la primera reflexión: ¿existe esa correlación interna entre
normas sociales y normas jurídicas, actualmente, en la sociedad española? Con esta pregunta
no se pretende poner en duda el buen hacer de grupos sociales o educativos ni tampoco asignar
a un colectivo (cualquiera que sea) la responsabilidad sobre un comportamiento individual
que solo compete asumir a quien libremente decide ejecutarlo. Pero sí plantear la necesidad
de revisar el proceso previo de control social informal, con el único objetivo de ajustar las
expectativas que pueda haber respecto al Derecho penal como posible solución ante los casos
de violencia escolar y de acoso, tanto físico como –sobre todo- virtual.
En otras palabras, considero conveniente advertir la insuficiencia del Derecho penal para
corregir esa actividad nociva, por ser una sola de las herramientas de socialización disponibles
(por mucho que sea la más contundente) para acabar o siquiera reducir de forma notable la
violencia en las aulas, el acoso escolar o el ciberacoso.
Resulta obvio que estas formas de acoso se hacen presenta en múltiples ocasiones y con
diverso grado de virulencia, pudiendo incluso llegar a constituir una infracción penal. De ahí
la importancia de que todas las instancias de control social sean rigurosas a la hora de exigir
el cumplimiento de las normas de convivencia que se tengan como válidas en sus respectivos
niveles de intervención.
La solución no puede consistir –en exclusiva- en aplicar sanciones graves, entre otras
cosas porque no corresponde a las instancias de control social informal gestionar tales
castigos. Lo que resulta imprescindible es que el sujeto sepa que la inobservancia de las reglas
conlleva -con certeza- una consecuencia negativa, una reprobación por parte del colectivo al
que pertenece.
De nada sirve un reproche puntual por mucho impacto que tenga, si las más de las
veces el individuo sabe que su conducta antisocial no va a ser contestada por el grupo. Sirva
de ejemplo la protección del medioambiente: a pesar de contar con numerosas normas
administrativas que castigan los ataques contra el medio ambiente, e incluso con diversos
preceptos en el Código penal, no parece exagerado afirmar que muchos ciudadanos no

3
BERDUGO GÓMEZ DE LA TORRE, I. y PÉREZ CEPEDA, A.I. (2010): “Derechos Humanos y
Derecho Penal: Validez de las viejas respuestas frente a las nuevas cuestiones”. Revista penal, Nº 26, 2010,
págs. 79-100, p. 80.

— 15 —
Posibles carencias en el sistema de control social ante el ciberacoso
Javier García González

temen arrojar plásticos en la playa, por más que esté sancionado con una multa y pueda ser
catalogado como comportamiento incívico por muchos otros conciudadanos. O despojarse
sin mayor cuidado de sustancias corrosivas o altamente contaminantes en cualquier paraje
natural. De hecho, no les resulta incómodo hacerlo porque no suelen encontrar contestación
por parte de los demás (salvo honrosas excepciones). Y si este ejemplo no resultara
adecuado, podría cambiarse por estos otros: consumo y tenencia de drogas ilegales en
vía pública; prohibición de uso del móvil al volante (o el propio uso de ese dispositivo en
muchos centros escolares); prohibición de aparcar en doble fila; prohibición de revelar
secretos de sumario que conocemos casi en tiempo real por los periódicos; prohibición
de presentar denuncias falsas (pérdida del móvil versus reclamación al seguro por robo);
prohibición de usar una bicicleta sin casco; prohibición de usar patinetes por las aceras;
prohibición de llevar por la calle un perro sin correa o sin bozal, según sea el peso y la raza;
entre otros muchos.
La respuesta penal ante un delito medioambiental o un homicidio imprudente por un mal
uso del patinete no está condicionada por el control social informal y/o formal que previamente
haya desarrollado un vecino o un agente de policía local, por seguir con estos ejemplos. Y
es evidente que el único responsable de los mismos será el autor de esos delitos. En ningún
caso los agentes socializadores. Pero seguramente, el número de conflictos aumentaría si se
fía su control, en exclusiva, a la respuesta del Derecho penal, como máximo exponente de la
intervención social formal. De ahí la referencia hecha sobre el ajuste de expectativas para con
esta rama del ordenamiento jurídico: el Derecho penal, por sí solo, no puede enfrentarse a
estas conductas violentas o estas expresiones de acoso escolar o ciberacoso que puedan darse
a través de las redes sociales.
La cuestión no es baladí por cuanto una persona, como regla general y obviando situaciones
puntuales de demencia o patologías concretas, no deviene delincuente ni se muestra agresivo
de un día para otro, sin más. Por eso es esencial que se analice el funcionamiento del sistema
de socialización. Y que se recuerde que el Derecho penal solo debe entrar en funcionamiento
“cuando han fracasado los mecanismos del control social informal que intervienen previamente
y cuando el comportamiento desviado, antisocial, tiene una especial gravedad”4. En ningún
caso puede sustituirlo.
Por lo demás, cabría resaltar que este riesgo no es nuevo y tiene, en mi opinión, algunos
precedentes de muy inciertas consecuencias a medio y largo plazo. Me refiero a los problemas
detectados en numerosos centros escolares entre los progenitores y los docentes respecto de
la parcela concreta de labor educativa que corresponde realizar a cada uno de ellos. O a la
supuesta asunción de responsabilidades sociales de carácter individual que se asignan a una
ONG o entidad altruista, de forma que el individuo (o incluso el propio Estado) en cuestión
parece quedar liberado de atender y/o denunciar esas necesidades o carencias básicas de
quien sufre tales problemas.

4
BERDUGO GÓMEZ DE LA TORRE, I. y PÉREZ CEPEDA, A.I. (2010): Op. cit., p. 81.

— 16 —
Posibles carencias en el sistema de control social ante el ciberacoso
Javier García González

II. Control social, entorno digital y globalización


La segunda reflexión que quisiera proponer tiene por objeto el contexto que rodea el
proceso de socialización que estamos llamados a realizar desde todas las instituciones de
control formal e informal.
A nadie escapa las especiales circunstancias que caracterizan a la sociedad
contemporánea, incluyendo, cómo no, también a nuestros jóvenes. Según el reciente Informe
sobre oportunidades y riesgos online de los menores, realizado por FAPMI en 2019, “tanto
los niños y las niñas como los adolescentes están creciendo en un ecosistema de convergencia
mediática (Livingstone, 2009; Ito, Baumer, Bittanti, boyd, Cody, Herr-Stephenson y Tripp,
2010), caracterizado por una hibridación de los medios móviles e internet, así como la creciente
integración de los entornos online y offline en la vida cotidiana. La experiencia digital se ha
acentuado con el uso de smartphones y tabletas, así como con las Smart TVs, videoconsolas,
con los smartwatches, las aplicaciones que monitorizan la actividad física y otros recursos
digitales que forman parte del Internet de las cosas (Mascheroni y Holloway, 2019)”5.
Al mismo tiempo, ese “ecosistema de convergencia mediática” sigue sometido a los
procesos tradicionales de control social que, sin duda, se están resintiendo, como es lógico,
por cuanto no estaban pensados para actuar en ese entorno digital.
Retomando parte de lo dicho supra, es obvio que los colectivos sociales y estatales
encargados de armonizar o socializar al individuo realizan su labor tomando como referente
‘su’ sociedad, ‘sus’ valores … En definitiva, ‘sus’ reglas de juego. Pero el “nativo digital”,
como receptor de esas normas tradicionales, también tiene acceso virtual y en tiempo real a
otros mundos que no necesariamente tienen por qué parecerse al que les acoge físicamente.
Esta doble vivencia genera efectos muy llamativos entre nuestros jóvenes. Sirva de ejemplo
la mutación sufrida en el concepto de intimidad personal: no existe ningún parecido ni punto
en común entre la noción que manejamos los adultos con la que pueda tener un adolescente.
De nuevo, en su “ecosistema de convergencia mediática”, mostrarse en público es requisito
imprescindible para sentirse miembro de esas redes sociales. Pero al mismo tiempo, desde la
perspectiva de parte del grupo al que pertenece (generalmente, coincidiendo con aquellos que
tienen asignadas las labores de control social informal) recibe mensajes que contradicen esta
realidad. Y bajo ese dilema, cabe pensar que cualquier código de conducta que se base en la
prohibición de participar en redes sociales o en compartir información íntima o, simplemente,
en no usar un dispositivo móvil conectado a internet, tiene pocos visos de prosperar.
La situación que se quiere plasmar va mucho más allá del mero enfrentamiento entre la
visión tradicional y moderna de las cosas, esto es, de la simple evolución generacional que
siempre ha existido y existirá. Se trata, más bien, de denunciar la falta de referente de los
actores de control social para poder actuar en consecuencia. Incluidos los actores encargados
de aplicar la sanción penal, en última instancia.

5
FAPMI-Federación de Asociaciones para la Prevención del Maltrato Infantil, (2019). Informe Ac-
tividades, mediación, oportunidades y riesgos online de los menores en la era de la convergencia mediáti-
ca. UPV

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Posibles carencias en el sistema de control social ante el ciberacoso
Javier García González

Retomando el ejemplo propuesto, en opinión de SIBILIA6, “la raíz interiorista del


derecho a la intimidad, tal y como fue concebido hasta ahora, ha cambiado hacia un concepto
externo de lo íntimo. Los usuarios, sobre todo los más jóvenes, buscan configurar en la red
una personalidad que los defina y distinga frente a los demás. Su perfil social es el medio
que usan para ser reconocidos y estimados en ese entorno virtual. Con tales acciones, decae
lo introspectivo y se potencia una ‘externalización de la personalidad’. Hasta el punto de
entender la pantalla de la computadora, prosigue esta autora, como una ventana siempre
abierta y conectada con decenas de personas al mismo tiempo”.
Y este cambio de paradigma respecto de la intimidad, por seguir con este ejemplo,
provoca un descalabro en las relaciones sociales y jurídicas que se ven compelidas a actuar, no
solo en caso de conflicto, sino también a la hora de establecer pautas de conducta, conforme
a los cánones propios del grupo social al que pertenece.
Como consecuencia inmediata de todo ello, surge la duda de cómo intervenir, en todos
los niveles de control social, para modular este comportamiento que puede llegar a ser muy
nocivo para el propio individuo y/o para terceras personas (sexting, difusión no consentida de
relaciones sexuales mutuamente aceptadas, “retuitear” comentarios ofensivos sobre otros pero
que ha creado un tercero …). Y lo mismo ocurre dentro del ordenamiento jurídico, por más que
se trate de un instrumento de control formal consolidado y dotado de diversos procedimientos
de respuesta preestablecidos. Estas incertidumbres se reflejan, verbigracia, en sentencias
absolutorias que niegan la comisión de un delito contra la intimidad por cuanto la víctima ha
participado activamente en los hechos, rebajando los niveles de autotutela hasta el punto de no
estar legitimado para solicitar amparo judicial (según la denominada “tesis del despojamiento
de la intimidad”). Y nada distinto acontece entre parte de la doctrina. En concreto, MORALES
PRATS7 ha sido muy crítico ante la incorporación al Código penal del delito de difusión de
contenidos íntimos previamente compartidos –de forma voluntaria- entre el sujeto activo y el
sujeto pasivo de este delito (art. 197.7 CP). En su opinión, ante la “clara relajación de costumbres
en materia de intimidad o, si se prefiere, de una pérdida de las normas de auto vigilancia de esas
personas respecto de imágenes íntimas”, no se entiende bien por qué el derecho penal debe
prestar tutela a las personas que, libremente, han decidido realizar tales envíos.
En suma, se detectan serios desajustes entre las normas sociales (y jurídicas) que
trasladamos al individuo para su cumplimiento y respeto, y las que este recibe desde el mundo
tecnológico en el que convive y en el que -no lo olvidemos- también se ve compelido a
cumplir por exigencia de otros actores virtuales de control social.
En ese sentido, la cuestión a debatir es doble: por una parte, la necesidad de plantear
un proceso de socialización que englobe reglas de conducta compatibles o aplicables a esos
dos mundos que constituyen el hábitat natural del ciudadano ‘digital’ al que va destinado. Y
por otra, la necesidad de someter (¿o no?) a control social el uso y manejo de los numerosos
dispositivos y programas digitales que rodean a dicho ciudadano.

6
RODOTA, S. (2011), “Sociedad contemporánea, privacidad del menor y redes sociales”, en PI-
ÑAR MAÑAS (Dir.), Redes sociales y privacidad del menor, pp. 35 a 46. Citada por Orozco Pardo.
7
MORALES PRATS, F. (2015) “La reforma de los delitos contra la intimidad. Artículo 197 CP”, en:
Comentario a la reforma penal de 2015, obra dirigida por G. Quintero, Aranzadi 2015, pp. 459 a 468, p. 460.

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Posibles carencias en el sistema de control social ante el ciberacoso
Javier García González

Seguramente en ambos planteamientos cabe avanzar que no existe consenso


suficientemente amplio que asegure una correcta socialización del individuo en los términos
que se viene utilizando hasta ahora. Y esa falta de adecuación de normas y/o esa falta de
experiencia social acumulada por parte de los actores sociales encargados de realizar con
éxito el proceso de socialización del individuo puede estar en la raíz de muchos de los
comportamientos antisociales que estamos viendo, en especial, el ciberacoso.
De nuevo, haciendo uso del Informe emitido por FAPMI, vemos que el 33% de los
menores encuestados ha experimentado alguna forma de acoso, el 26% ha recibido mensajes
sexuales, el 32% ha visualizado contenidos inapropiados y dañinos en internet y el 40% ha
contactado en línea con desconocidos. La muestra se compone de niños de 9 a 12 años (53%)
y de 13 a 17 años (el 47% restante).
Ante estos datos, parece obvio que los colectivos encargados del proceso de socialización
(control social formal e informal) no están siendo eficaces a la hora de impedir el acceso
de estos niños y jóvenes a contenidos inapropiados. Y tampoco pueden evitar los riesgos
asociados a los contactos online, como pueden ser los relacionados con la intimidad.
Por tanto, la cuestión que se viene planteando es si realmente esos mismos colectivos
están ofreciendo (y exigiendo) unas pautas de conducta coherentes a esos niños y jóvenes,
que sean válidas tanto para la vida en sociedad “tradicional” como para la realidad virtual en
la que pasan buena parte de su tiempo. Incluyendo, claro está, la respuesta jurídica ante todos
los conflictos finalmente generados por el uso inadecuado de internet.
A tenor de este mismo Informe, quizá la respuesta no sea muy halagüeña: se constata que
priman las medidas restrictivas (quitar el móvil, limitar el tiempo de conexión, etc) frente a
otras más formativas o ‘socializadoras’ si se permite la expresión, como podrían ser la correcta
utilización de medios para proteger el dispositivo móvil y con él la privacidad del individuo,
o la labor de enseñar a utilizar filtros que permitan comprobar la veracidad de la información
disponible online (puesto que 2 de cada 3 encuestados reconoce su dificultad para hacerlo).
En definitiva, se trata de conocer e integrar ese nuevo medio digital en la ardua tarea de
socialización. Pero ocurre que las características propias de ese “ecosistema de convergencia
mediática”, tantas veces citado, no ayudan mucho a conseguirlo.
Así, se habla de la deslocalización, la neutralidad de la red, la descentralización del
ciberespacio, como características extrínsecas propias de internet. Y puede nombrarse
también su carácter universal, popular y anónimo. Todo ello, a decir de MIRÓ LLINARES,
hace que el usuario alcance plena libertad “a la hora de transitar por el mismo sin fronteras,
pero también sin censuras por parte de nadie. El carácter neutro de internet deriva de la
imposibilidad de bloquear conexiones entre nodos en la red, lo que permite que una vez
tengan acceso a internet ni siquiera el propio operador pueda impedir el acceso a una web o a
un servicio elegido por el usuario”8.

8
MIRO LLINARES, F. (2011), “La oportunidad criminal en el ciberespacio. Aplicación y desarro-
llo de la teoría de las actividades cotidianas para la prevención del cibercrimen”, Revista Electrónica de
Ciencia Penal y Criminología, número 13, p. 10.

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Posibles carencias en el sistema de control social ante el ciberacoso
Javier García González

De tal forma que el individuo que se siente sometido a control social en su entorno más
cercano descubre cómo, con gran facilidad y en tiempo real, puede acceder a otro entorno
amigo, sin riesgo de ser fiscalizado, por la ausencia de guardián alguno.
El gran reto al que nos enfrentamos es ejercer un control social que conecte esos dos
mundos en los que transitan nuestros menores. Una sociedad que sea capaz de adecuar los
usos sociales válidos en el mundo real al entorno digital. O, en su defecto, que sea al menos
capaz de imaginar otros resortes educativos y/o sancionadores que vayan más allá de la mera
limitación temporal en la conexión a internet o en el uso de los dispositivos digitales. Pero,
en todo caso, huyendo de la inacción. Porque esta última opción genera entre los individuos
un efecto perverso para la convivencia: los usuarios de internet terminan por identificar la
falta de norma o la ausencia de regulación coherente con la permisividad social o, incluso,
con la legalidad de aquella conducta que debería perseguirse. ¿Acaso no ocurre algo así con
el ciberacoso? Quizá sea más fácil examinar lo acaecido con cuestiones planteadas ya hace
unos años en este mismo entorno: véase la situación vivida con la piratería musical, con la
distribución de ciertas drogas ilegales, con la difusión del denominado discurso del odio, con
el acceso de menores a contenidos pornográficos, por no citar la existencia de contenidos
nocivos de gran toxicidad para la formación/bienestar del individuo, como pueden ser las
webs que promueven la bulimia o la anorexia, entre otras muchas (sin que la enumeración de
estos ejemplos pretenda ni tan siquiera equiparar conductas muy distintas entre sí y de muy
diferente gravedad).
Nuestra sociedad no puede permitirse el lujo de que nuestros menores duden, siquiera
por un momento, sobre la posición de rechazo que mantienen los responsables del proceso
de socialización sobre conductas como las relacionadas supra. Si esto ocurriera, la respuesta
penal que pueda recibir ese sujeto será incomprendida e ineficaz (en su vertiente de prevención
especial, cuando menos), por percibirla como injusta, desproporcionada y/o injustificada. De
ahí que se remarque, de nuevo, la necesidad de otorgar plena coherencia al proceso de control
social como un todo, tanto desde las instancias informales como desde las formales, en aras
a lograr una convivencia mejor.
De no ser así, las consecuencias son predecibles, por conocidas. Dado que este proceso
de socialización no es unidireccional ni reduce el papel del individuo a mero receptor de la
norma social que ha de acatar, resulta obvio imaginar que ese mismo miembro del grupo
construya su propia representación social de todo lo que le rodea y conforma su mundo,
incluyendo su propia personalidad. Y así lo confirman los estudiosos de la Psicología: el
sujeto está inmerso en un proceso de creación de estereotipos, opiniones, creencias, valores y
normas. Y tal proceso quedará condicionado, entre otros muchos factores, por el contexto y
propio contenido (¿coherente?) del control social -formal e informal- al que dicho individuo
se vea sometido.
En otras palabras, el individuo crea sus representaciones sociales desde lo que aprecia o
cree ver y entender en la realidad social que le rodea. Por tanto, cabe el riesgo de que la norma
aceptada sea divergente en relación a la norma impuesta, siendo que esta prevalecerá sobre
aquella. De ahí la relevancia de las incongruencias que pueda contener el sistema de control
social que le rodea.

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Posibles carencias en el sistema de control social ante el ciberacoso
Javier García González

KOURILSKY (citado por Hoyos Botero), define la socialización jurídica como “el
proceso mediante el cual la persona asimila los principios fundamentales del Derecho que
rige su sociedad, en su sistema de representaciones y de conocimientos. Y según HOYOS
BOTERO, mediante este proceso “la persona haría suya su identidad jurídica, su identidad
como persona del Derecho y persona de derechos. Proceso que comprende, en primer lugar,
la interiorización de las representaciones dominantes del Derecho, en su cultura y, en segundo
lugar, la aculturación de los conceptos jurídicos, lo que equivale a decir que en función de
sus propios valores y para darles un sentido, la persona volvería a crear dichos conceptos,
interrelacionando así la cultura dominante (relativa al derecho de su país) y su propia cultura,
(la de su comuna o de su barrio) conformada por representaciones que se construyen mediante
saberes y valores transmitidos por el grupo”. En consecuencia, prosigue esta autora, “la
socialización jurídica permite –como se indicó anteriormente– que la persona haga suya su
identidad como “persona del Derecho” en la sociedad en la cual vive y “persona de derechos”
en tanto que va construyendo por las lecciones de su núcleo familiar y escolar mediatizadas
por su propia experiencia un sistema de valores y representaciones personales”9.

III. La respuesta penal ante el acoso y ciberacoso escolar:


breve análisis de los tipos penales aplicables (arts. 172
ter, 173 y 510 CP español)
Como es sabido, el Derecho penal se rige por el principio de mínima intervención, de
modo que solo se recurre a esta rama del ordenamiento jurídico ante los supuestos más graves
y, dentro de estos, solo cuando no exista otra solución jurídica menos contundente capaz de
resolverlos. En consecuencia, la mayoría de comportamientos de acoso que puedan tener lugar
en un centro educativo no serán objeto de enjuiciamiento penal, siendo resueltos a través de
las medidas administrativas vigentes y, en particular, gracias al plan de convivencia del centro,
al reglamento de régimen interno y a la intervención del equipo directivo, del responsable de
convivencia escolar, el conjunto de docentes y demás organismos e instrumentos previstos
a tal fin, como pueden ser las Unidades de Atención e Intervención, el Observatorio para la
Convivencia Escolar, el Plan de Prevención de la Violencia y Promoción de la Convivencia o
los Servicios Sociales, llegado el caso.
Pero lo anterior no impide que alguna de estas conductas pueda alcanzar la gravedad o
relevancia suficiente como para justificar una intervención penal. En esos casos, además de
seguir las indicaciones contenidas en los diversos protocolos de actuación10, el comportamiento
ya será analizado bajo los criterios propios de un procedimiento judicial y, en especial, conforme

9
HOYOS BOTERO, C., (2013), “Representaciones sociales en el adolescente sobre la norma y el
delito”. Revista Advocatus, número 21, pp. 161-172, p. 167.
10
En el caso concreto de la Comunidad Valenciana contamos con Orden 62/2014, de 28 de julio, de
la Conselleria de Educación, Cultura y Deporte, por la que se actualiza la normativa que regula la elabo-
ración de los planes de convivencia en los centros educativos de la Comunidad Valenciana y se establecen
los protocolos de actuación e intervención delante de supuestos de violencia escolar. Y el Protocolo de
acompañamiento para garantizar el derecho a la identidad de género, la expresión de género y la intersexua-
lidad (DOGV 27 de diciembre de 2016), Instrucción del 15 de diciembre de la Conselleria de Educación,
investigación, cultura y deporte

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Posibles carencias en el sistema de control social ante el ciberacoso
Javier García González

lo dispuesto por el Código penal. Sin olvidar las indicaciones específicas de Fiscalía ante el
acoso escolar11. Por tal razón, en adelante, vamos a analizar exclusivamente aquellos tipos
penales a los que podría recurrirse para castigar tales comportamientos, haciendo especial
hincapié en la diferenciación que el propio código establece entre situaciones de acoso
genérico (subsumibles generalmente en el art. 173.1 CP, aunque no de forma exclusiva),
acoso en un contexto de violencia de género (con diversos preceptos aplicables, siendo de
destacar el art. 172 ter CP) y acoso en un contexto de discriminación por su orientación sexual
(siendo aquí relevante lo previsto en el art. 510 y 22.4º CP).

A. Acoso y ciberacoso escolar


Como es sabido, el Código penal español no incluye el concepto de acoso ni de ciberacoso
escolar entre su articulado. No obstante, nada impide sancionar estas conductas siempre que
tengan suficiente relevancia (carácter subsidiario y fragmentario del derecho penal) y que
el autor sea mayor de 14 años. Lo determinante para una actuación penal no será, pues, la
denominación que reciba. Bastará que la conducta examinada tenga una importancia tal como
para que la intervención del Ministerio Fiscal sea factible. De ser así, atendiendo al bien
jurídico lesionado o amenazado, se tendrá que identificar y aplicar el tipo penal que mejor
convenga para la defensa de la víctima (lesiones físicas o psicológicas, amenazas, coacciones,
acecho…), si bien, lo habitual en estos casos será recurrir al art. 173. 1 CP.
Este artículo castiga a quien ocasione a otra persona un trato degradante, menoscabando
gravemente su integridad moral, con una pena de prisión de seis meses a dos años. No
existe consenso entre la doctrina y la jurisprudencia a la hora de acotar el significado
de tales expresiones y, por ende, sobre el alcance real de este delito. Aunque todos los
autores aceptan que se refiere a ataques contra la integridad moral, de forma que provoquen
en la víctima una sensación de humillación, vejación y/o una reducción de dicha víctima
a la categoría de cosa12. A su vez, las resoluciones judiciales que aprecian la existencia
de ese trato degradante, castigan los supuestos de acoso escolar (desde las mal llamadas
‘novatadas’ aisladas hasta comportamientos reiterados de tratos crueles y humillantes de
un estudiante por sus compañeros) y ciberacoso, por ser esta última una versión online de
la primera.
Esta misma postura mantiene la Fiscalía: el tipo penal contenido en el art. 173.1º CP es
el más adecuado –a priori- para sancionar situaciones que puedan tildarse de acoso escolar,
siempre que tengan suficiente relevancia para ello (Instrucción 10/2005 FGE).
Por tanto, a falta de mayor concreción, para saber qué se entiende por acoso o ciberacoso
escolar y, en consecuencia, qué podemos considerar como trato degradante, tenemos que
recurrir a la doctrina y a la normativa aplicable. Así, se define el bullying como exposición
repetida y sostenida en el tiempo a acciones negativas por parte de sus compañeros, se

11
Instrucción 10/2005, del 6 de octubre, sobre el Tratamiento del acoso escolar desde la justicia
juvenil.
12
TAMARIT SUMALLA, J.M. (2016): “De las torturas y otros delitos contra la intimidad moral”, en
QUINTERO, G. (Dir.): Comentarios a la parte especial del derecho penal, Aranzadi, pp. 237-256, p. 244.

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Posibles carencias en el sistema de control social ante el ciberacoso
Javier García González

caracteriza por la intencionalidad de agredir a esa víctima, la reiteración de ese comportamiento


y por la existencia de un desequilibrio de poder entre agresor y víctima13.
Por su parte, el protocolo de acoso escolar contenido en la Orden 62/2014 de la
Comunidad Valenciana lo califica como el maltrato psicológico, verbal o físico sufrido por un
alumno o alumna en el ámbito escolar, derivado de factores personales (físicos, psicológicos,
de orientación y/o identidad sexual) o colectivos (factores étnicos, grupo social, religioso), de
forma reiterada y a lo largo de un periodo de tiempo determinado.
Mención aparte merece el ciberacoso. De nuevo, siguiendo a MIRÓ LLINARES,
podemos definirlo como el abuso de poder continuado de un menor sobre otro realizado por
medio del uso de las TIC. Esta conducta también se caracterizará por buscar el tormento,
amenaza, humillación, hostigamiento y/o causar molestias al menor, si bien estas ya no
estarán encuadras en la escuela o en el entorno físico del menor, sino que se realizará a través
del ciberespacio14.
De igual modo, el citado protocolo de acoso describe el ciberbullying como acoso
entre iguales en el entorno de las tecnologías de la información y de la comunicación, e
incluye actuaciones de chantaje, vejaciones e insultos entre alumnos/as. Supone difusión de
información lesiva o difamatoria en formato electrónico y, prosigue la Orden, constituye
un fenómeno de gran relevancia por su prevalencia, la gravedad de sus consecuencias y las
dificultades que presenta para su prevención y abordaje.
En todo caso, ambas modalidades de acoso –cuando superen el umbral de relevancia
penal- podrán ser calificadas como trato degradante (art. 173.1º CP) sin mayor complejidad
legal que la propia de un procedimiento penal. Motivo por el que no se desarrolla más este
apartado, remitiéndome a trabajos anteriores y a la bibliografía allí disponible.
Para terminar, tan solo añadir que estas conductas de acoso y ciberacoso no deben
confundirse con otras similares o relacionadas pero que, en verdad, constituyen delitos
específicos distintos al de trato degradante, como podrían ser el acecho sexual a menores
por medios electrónicos (el denominado ‘grooming’, contemplado en el art. 183 bis CP) y/o
la difusión de contenidos sexuales que se han producido y grabado en la intimidad, con el
consentimiento de los partícipes pero que son distribuidos o compartidos en red por uno de
los implicados, pero sin contar con la aquiescencia del resto de los que allí aparecen, (art.
197, 7º CP).

B. Acoso y ciberacoso en un contexto de violencia de género


Esta variante se caracteriza por combinar un comportamiento de acoso junto con una
relación de afectividad, vigente o no, entre las dos personas implicadas, siempre que la víctima
sea mujer y que el acosador sea hombre.

13
MIRÓ LLINARES, F. (2013): “La victimización por cibercriminalidad social. Un estudio a partir
de la teoría de las actividades cotidianas en el ciberespacio”, Revista Española de Investigación Criminoló-
gica, número 11, pp. 5 a 35, P. 63, citando a Olweus y Calmaestra.
14
MIRÓ LLINARES, F. (2013): op. cit., p. 64.

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Posibles carencias en el sistema de control social ante el ciberacoso
Javier García González

Resulta evidente que si la conducta de acoso y dominio realizada se materializa en


lesiones (físicas o psíquicas), amenazas o coacciones, entre otras posibles situaciones, serán
resueltas conforme prevé el Código penal español, aplicando los artículos correspondientes
a esas figuras penales.
Pero si dicha posición de dominio se ejerce bajo una modalidad de acoso y/o control
mediante medios electrónicos, por ejemplo, nada impide que también pueda apreciarse un
delito de acoso escolar realizada sobre la pareja sentimental del acosador, siendo de aplicación
el citado art. 173.1 CP (o incluso el art. 172 ter CP, siempre que concurrieran los requisitos
establecidos en este último precepto).
Por tal razón se afirma que “las acciones constitutivas de ciberacoso y violencia de
género virtual tienen unas características comunes: la inmediatez en recibir la información,
el posible anonimato del autor del ciberacoso, la facilidad en su viralidad por la multitud de
usuarios de la red, la falta de control de la información compartida, puesto que intervienen
usuarios conocidos y desconocidos por ella y, el gran impacto en su salud; debido a la
viralidad e inmediatez en recibir los comentarios humillantes e insultantes de terceros sin
poder desconectar ni en su propia casa siempre que esté conectada a internet, provocándole
revictimización constante”15.
En suma, lo que se pretende señalar es la posibilidad real de que la víctima (mujer, en
este caso) pueda sufrir acoso por parte de su pareja (hombre, en este caso) que, al mismo
tiempo, es su compañero en el centro escolar donde ambos estudian.
En sentido contrario, quedan excluidas aquellas conductas de acoso y dominio que se
realicen sin mediar relación de afectividad alguna entre acosador y persona acosada, así
como aquellas en las que la conducta o trato degradante se realice por parte de una mujer
(aunque la víctima/pareja sea otra mujer) o por parte de un hombre (cuando la víctima/pareja
sea otro hombre). Tales situaciones serían resueltas conforme al acoso genérico (art. 173.1º
CP) o conforme a otras figuras penales (delito de odio o agravante de discriminación, como
veremos luego).
El motivo de esta diferenciación de trato viene dado por la propia legislación vigente en
España en materia de violencia de género y la interpretación jurisprudencial que se ha hecho
de ella.
De ahí la importancia de manejar correctamente la terminología jurídica puesto que no
todo acto de violencia que tenga por víctima a una mujer obtendrá el mismo grado de respuesta
penal, ni la consideración de violencia de género, en el contexto de acoso o ciberacoso escolar.
Esta obviedad, bien conocida en el contexto jurídico penal, causa verdadera confusión en otros
ámbitos sociales, como ya advertimos en otros trabajos. De hecho, no son pocas las ocasiones
en que los medios de comunicación identifican violencia de género con hechos concretos
que, a lo sumo, serán calificados como violencia contra la mujer. Y lo mismo podría ocurrir

15
PALOP BELLOCH, M. (2018) M.: Protección jurídica de menores víctimas de violencia de gé-
nero a través de internet. Vulnerabilidad de la menor en sus relaciones de pareja, ciberacoso y derecho al
olvido, UJI, p. 431.

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Posibles carencias en el sistema de control social ante el ciberacoso
Javier García González

en el ámbito docente, puesto que no existe ninguna obligación de conocer estas diferencias
técnicas, ni mucho menos.
Quizá la citada Ley de Protección Integral sea responsable, en buena medida, de esta
confusión terminológica. O lo sea la falta de adecuación del texto punitivo a dicha ley. El
caso es que en esa norma se enumeran diversas formas de violencia que no encuentran una
correlación directa en el código penal. En concreto, se pueden identificar tres variantes de
ataques que recaigan sobre una mujer.
Primer grupo. Delincuencia específica que tiene como víctima a quien ha sido o es
pareja sentimental del agresor, con o sin convivencia en el momento de producirse los
hechos16. Estos comportamientos tendrían un carácter aislado o puntual, serían castigados
de forma individualizada y suelen denominarse violencia de género. El agresor siempre será
un varón. Tienen su reflejo inmediato en los arts. 148.4º; 153.1º; 171.4º; 172.2º; y 173.2 CP.
No obstante, también serán de aplicación en otros delitos, que a priori pudiera parecer que
no guardan relación con conductas típicamente constitutivas de violencia de género, como
es el caso de los incorporados en el art. 197 in fine CP, referente de los delitos de revelación
de secretos, siendo una agravante que entre autor y víctima exista o haya existido unión
sentimental (en este caso, por tanto, la agravante se puede aplicar tanto al hombre como a
la mujer, dependiendo de quién haya sido el sujeto activo de la conducta delictiva) y el art.
172.ter CP, que incorpora una nueva forma de acoso como conducta típica, y sanciona tal
conducta de manera más gravosa en caso de que la víctima sea alguna de las personas que
recoge el art. 173 CP, como luego veremos con mayor detenimiento.
La mención expresa relativa a que se trate de ‘hechos aislados’ permitirá diferenciar
estos comportamientos de aquellos otros que suelen denominarse violencia doméstica.
Así las cosas, podríamos acotar este primer grupo que he denominado ‘violencia de
género’ como aquella que presenta estas características: 1) la realiza un hombre sobre una
mujer que, necesariamente, ha sido o es pareja sentimental del agresor; 2) puede concurrir, o
no, la nota de convivencia entre ambos, en el momento de producirse los hechos; 3) siempre
que dicha violencia pueda subsumirse en los tipos penales antes citados; y 4) siempre que
dicha violencia no sea habitual.
Y, como se ha dicho, este delito podría desarrollarse (en todo o en parte) a través de
comportamientos de ciberacoso entre menores escolarizados, tal y como constatan no pocos
estudios sobre la materia.

16
Todo ello asumiendo que los Tribunales de Justicia utilizan una interpretación muy amplia de
lo que se debe entender por pareja sentimental, englobando todas aquellas relaciones que trascienden los
lazos de amistad, afecto y confianza, como una manifestación más de las relaciones de afectividad more
uxorio, considerando que sólo podrán excluirse aquellas que se mantienen de modo esporádico u ocasional.
El Código penal las describe bajo la expresión de ‘esposa o mujer que esté o haya estado ligada a él por
una análoga relación de afectividad’MAGRO SERVET, V. (2015) “¿Cómo debe interpretarse la expresión
‘análoga relación de afectividad aun sin convivencia’ en los delitos de violencia de género?” Revista La Ley
Penal, número 112, pp. 1-11, p. 2.

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Posibles carencias en el sistema de control social ante el ciberacoso
Javier García González

Segundo grupo. Delincuencia específica que tiene como víctima a una mujer (que ha
sido o es pareja sentimental del agresor) o a cualquier otro miembro de la unidad familiar
(hombre o mujer) a la que pertenece esa mujer. Suele denominarse violencia doméstica aunque
también podría incluirse en este grupo los casos de violencia intrafamiliar. Las principales
diferencias con el grupo anterior (violencia de género) serían estas tres: 1) se amplía el círculo
de posibles sujetos activos (hombre o mujer) y sujetos pasivos (cualquier miembro de la
unidad familiar, sin importar si es mujer o no); 2) el carácter reiterativo o sostenido en el
tiempo que necesariamente ha de concurrir en estas agresiones, aunque no siempre sea sobre
el mismo sujeto pasivo; y 3) la exigencia de convivencia entre el sujeto activo y el sujeto
pasivo, salvo si este último es la pareja o expareja del agresor.
En este caso, la relación con un escenario de acoso o ciberacoso escolar es inimaginable
por lo que solo se incluye para facilitar la diferenciación entre las tres modalidades de violencia
antes nombradas.
Tercer grupo. Delincuencia común, que tenga por víctima a una mujer, sin que exista ni
haya existido nunca una relación sentimental ni familiar entre ella y el agresor.
Dentro de este grupo, podemos diferenciar a su vez dos situaciones. La primera de ellas
tendría como único dato relevante que la víctima del delito cometido sea una mujer, sin que
conste relación sentimental alguna con el agresor y sin que este haya cometido tal conducta
movido por su afán de atentar contra una mujer, por ser tal. En definitiva, se trataría de aquellas
manifestaciones de delincuencia común que recaigan sobre víctimas de sexo femenino, sin
más. Razón por la que no podría incluirse, realmente, como una forma expresa de violencia
contra la mujer sino, más bien, como un filtrado de estadística criminal en función del sexo
de la víctima. Por supuesto, no tiene ninguna relevancia en el contexto de acoso escolar, más
allá de la diferenciación por sexo dentro de estas conductas delictivas.
La segunda modalidad engloba los ataques realizados expresamente contra esa víctima
por su pertenencia al género femenino. La víctima es indiscriminada por cuanto no es necesario
que mantenga lazo alguno de familia, amistad, afectividad y/o convivencia con el agresor;
el único requisito es que ha sido elegida por ser mujer. De hecho, la idea criminal tendrá
su origen, precisamente, en buscar esa discriminación o móvil subjetivo de desprecio hacia
las mujeres y lo que ellas representan. Esto es, el dolo del autor abarcará, necesariamente,
ese desprecio hacia el sexo femenino, y así lo materializará mediante actos lesivos sobre su
víctima-mujer.
Esta modalidad de violencia englobaría aquel comportamiento criminal que revele
una manifestación de discriminación, situación de desigualdad o relaciones de poder y/o
sometimiento de los hombres sobre las mujeres. Y de nuevo es compatible con comportamientos
de acoso escolar: el acosador, en esta ocasión, elige a la víctima y centra su ataque hostil y
reiterado, principalmente, por ser mujer y por querer dominar/discriminar/constreñir/humillar
a esa persona, por su género y por lo que ella representa.
Sin embargo, el comportamiento típico aquí descrito no sería subsumible dentro de los
preceptos que regula la L.O. 1/2004 y que se han descrito anteriormente, dado que se exige
como requisito imprescindible la unión sentimental entre el hombre y la mujer, requisito no
cumplido en esta ocasión.

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Posibles carencias en el sistema de control social ante el ciberacoso
Javier García González

En este supuesto, la protección que se da a la mujer en este contexto es la misma que


se otorga igualmente a otros colectivos, víctimas de acoso escolar o de cualquier otro delito,
siempre que tenga su origen y razón de ser en razones étnicas, de raza o nación, por su
origen nacional, su sexo, orientación o identidad sexual, enfermedad o discapacidad. Esto
es, el posible acoso o ciberacoso escolar (art. 173.1º CP) se castigaría aplicando la agravante
específica prevista para estas situaciones (art. 22, 4ºCP), salvo que se tratase de un delito de
odio (510 CP), como luego veremos. A no ser que pudiera reconducirse a un supuesto de
acecho, analizado más adelante.
Y esta misma tutela penal sería la que cabría aplicar cuando el delito (de acoso agravado o
de odio) se cometa contra una víctima que ha sido elegida o seleccionada por motivos racistas,
antisemitas u otra clase de discriminación referente a la ideología, religión o creencias de la
víctima, la etnia, raza o nación a la que pertenezca, su sexo, orientación o identidad sexual,
razones de género, la enfermedad que padezca o su discapacidad, como relata el tenor literal
de la agravante ya citada del art. 22.4º CP. En otras palabras, sería la normativa a utilizar en
casos de acoso escolar por homofobia o transfobia o, en definitiva, en aquellos que tengan por
víctima a una persona del colectivo LGTBI, precisamente por su pertenencia a tal grupo y por
lo que representan. Cuestión que se desarrolla más adelante.
Volviendo al escenario de un acoso o ciberacoso escolar en el contexto de la violencia de
género (y al supuesto antes nombrado de acecho u hostigamiento) quisiera detenerme en una
figura penal de reciente incorporación al código que bien pudiera solventar comportamientos
de difícil encaje en los preceptos hasta ahora nombrados: me refiero al art. 172 ter CP.

C. El hostigamiento como forma de acoso o ciberacoso agravado


Como se viene diciendo, la mayoría de supuestos de acoso escolar no alcanzan una
gravedad suficiente para que no se puedan resolver desde los centros escolares, gracias al
buen hacer de sus docentes. Pero la realidad también nos recuerda que –puntualmente- se
producen situaciones extremas que pueden terminar, incluso, con el suicidio de la persona
que lo sufre17. Esto justificaría la referencia hecha a la violencia de género (compatible, en mi
opinión, con un hipotético caso de acoso escolar, por mucho que su incidencia cuantitativa
sea baja hasta ahora) y lo mismo podría decirse de situaciones de acoso que -combinadas con
otros comportamientos reprochables- logre alterar el desarrollo de la vida cotidiana de esa
persona acechada.
En estos supuestos, la víctima, no solo sufre una situación de acoso (trato degradante y
reiterado, de tal entidad que pueda dar lugar a la aplicación del art. 173.1 CP) antes citado, sino
que –además- tiene que soportar otras conductas molestas que, de forma reiterada e insistente,
realiza el acosador, de forma tal que se ve obligada a modificar su rutina para evitarlas. Por
ejemplo, el cambio de la ruta utilizada para acudir al colegio, alterar los horarios por más que
sean inadecuados para sus necesidades reales, tener que ir acompañado en todo momento,

La revista Journal of Adolescent Health dedicó un número monográfico sobre esta cuestión: vid.
17

Volumen 53, July 2013 (disponible en internet en el siguiente enlace: http://www.jahonline.org/issue/


S1054-139X(13)X0015-1).

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Posibles carencias en el sistema de control social ante el ciberacoso
Javier García González

no usar medios públicos de transporte, solicitar traslado a otro colegio… o cualquier otro de
similar naturaleza.
En otras palabras, la víctima lo es de un acoso permanente que excede el ámbito de lo
que venimos entendiendo por acoso y ciberacoso escolar hasta el punto de forzar el abandono
de rutinas o hábitos plenamente instaurados en esa persona.
Este escenario recibe el nombre de acecho, hostigamiento, acoso o stalking, entre otros
muchos, y está castigado desde 2015 por el artículo 172 ter del Código penal18.
Nada impide que este delito lo sufra un menor en edad escolar, aunque se hace difícil
imaginar que el autor no sea un adulto ajeno al ámbito educativo. Por lo demás, la previsión
legal incluye una referencia expresa por si esta conducta tiene lugar entre personas que
hubieran mantenido/o mantengan una relación de afectividad (violencia de género) y/o recae
sobre personas especialmente vulnerables por razón de su edad, enfermedad o situación.
La incorporación de este delito ha sido muy criticada por el conjunto de la doctrina. Por
mi parte, reconozco que los actos aislados que se proponen como una forma de acoso pueden
resultar –si son individualmente considerados- acciones irrelevantes, cotidianas, inocuas, …,
en un primer momento. También asumo que existe el riesgo de que la persona hostigada
llegue a denunciar hechos irrelevantes por ser exagerada y/o sin capacidad de resistir la más
mínima presión, en un momento dado.
Pero no debe olvidarse el contexto en que todo esto ocurre: esas acciones son mensajes
cifrados entre víctima y agresor, de gran efecto sobre la primera y de nimio coste para el
segundo. Todo ello acompañado de un incompleto diseño y/o adecuación de los tipos penales
tradicionales (amenazas y coacciones, principalmente) para solventar esta problemática que,
lógicamente, no encuentra respuesta penal alguna, ni siquiera ante los casos más relevantes.
Así las cosas y dado que el tenor literal del art. 172 ter CP limita la intervención penal
a los casos de grave alteración del desarrollo de la vida cotidiana de la víctima, junto con la
necesaria denuncia de los hechos (salvo en los supuestos mencionados en el número 2 de
este mismo artículo), considero acertado que esta figura complete el Código penal actual. Y
la considero útil, igualmente, en el contexto de acoso y ciberacoso escolar, por mucho que su
uso sea residual o secundario respecto de otros delitos, como es de imaginar.
El umbral de relevancia de los actos a considerar viene marcado por un doble requisito:
deben ser varios (de forma insistente y reiterada, dice el art. 172 ter CP) y deben ser idóneos
para lograr que la víctima altere su manera cotidiana de vivir el día a día.
La conducta se describe, ciertamente, de forma indeterminada. ALONSO DE
ESCAMILLA, citando a Meloy y Gothard, habla de “patrón de conducta, una suerte de
estrategia de hostigamiento anormal, de larga duración y que está dirigida específicamente
a una persona”, teniendo que consistir en más de un acto manifiesto de persecución, no
querida por la víctima y que esta perciba como intimidatoria. Esta misma autora afirma que

Vid. VILLACAMPA ESTIARTE, C. (2016): “El delito de stalking”, en QUINTERO, G. (Dir.),


18

Comentario a la reforma penal de 2015, Aranzadi, pp. 379-398.

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Posibles carencias en el sistema de control social ante el ciberacoso
Javier García González

el acoso predatorio, como ella lo denomina, es un ‘concepto poroso’ de difícil concreción,


lo que le lleva a enumerar sus características principales, que ahora resumimos: 1) patrón de
conducta insidioso y disruptivo; debe tratarse de una serie de actos concatenados, aunque
no existe acuerdo sobre el periodo o la frecuencia que estos deben tener. Pueden ser actos
de muy distinta naturaleza y, como regla general, socialmente aceptados, de ser singular o
aisladamente consideradas. 2) estas conductas se realizan sin consentimiento de la víctima, al
margen de su voluntad; 3) la comunicación o aproximación asfixiante y no querida tiene que
ser susceptible de generar algún tipo de repercusión si bien existe disparidad de criterio a la
hora de fijar la naturaleza de ese efecto: o bien causa un efecto de desasosiego o temor, o bien
debe implicar una irrupción en la vida privada del afectado19.
Por lo demás, este delito no puede derivar de cualquier comportamiento, sino que se
concreta por disposición legal en la realización de alguna de las (cuatro) conductas que
de forma abierta enumera el 172 ter CP. Aunque con ello no queden zanjados, ni mucho
menos, los problemas de indefinición de la conducta prohibida ya mencionados. Así: vigilar,
perseguir o buscar la cercanía física; contactar o intentar ese contacto a través de cualquier
medio de comunicación o terceras personas; usar indebidamente los datos personales de una
persona para adquirir productos, contratar servicios, o hacer que terceras personas se pongan
en contacto con ella; y atentar contra su libertad o contra su patrimonio, o contra la libertad o
patrimonio de otra persona próxima a ella.
En suma, como decía al principio, lo normal será que la figura penal utilizada para
castigar supuestos graves de acoso o ciberacoso escolar sea el art. 173. 1 CP. Pero también se
podrá recurrir a este nuevo delito de acecho cuando determinadas conductas de acoso escolar,
por sí solas o combinadas con otras circunstancias, superen las previsiones de ese artículo,
por más que el agresor no pertenezca a la comunidad educativa, como cabe imaginar.

D. Acoso o ciberacoso en un contexto de discriminación por la orientación sexual.


En este apartado se analiza un concreto supuesto de acoso o ciberacoso escolar que tiene
su origen o razón de ser en la orientación sexual de la víctima, en el sentido más amplio del
término.
Se trata de valorar la respuesta penal ante situaciones como las descritas en el protocolo
de acompañamiento para garantizar el derecho a la identidad de género, la expresión de
género y la intersexualidad (Instrucción de 15 de diciembre de 2016), así como en la Ley
8/2017, integral del reconocimiento de derecho a la identidad y a la expresión de género
en la Comunidad Valenciana. Estos documentos engloban diversas posibilidades bajo la
expresión “realidad trans”, siendo que todas ellas no se ajustan a las normas de género binarias
establecidas tradicionalmente. Así, se habla de persona transexual, transgénero, expresión de
género divergente…, o personas con un desarrollo sexual diferente (DSD), o cualquier otra
situación de las identificadas con el colectivo LGBTIQ+.

19
ALONSO DE ESCAMILLA, A, (2013), “El delito de stalking como nueva forma de acoso. Cy-
berstalking y nuevas realidades”, La ley penal, número 105, pp. 1-9, p.3.

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Posibles carencias en el sistema de control social ante el ciberacoso
Javier García González

Nos encontramos, pues, ante una conducta de bullying o ciberbullying que agrega un
claro componente de discriminación basado en el rechazo a la orientación sexual y/o a la
expresión que de la misma pueda hacer la víctima. Y aunque nada impide que podamos
hablar, también aquí, de acoso o ciberacoso escolar sancionable a través del art. 173.1 CP,
lo habitual será que el reproche penal se complete con la aplicación de la agravante genérica
de discriminación (contenida en el art. 22, 4º CP) y/o con la posible apreciación de un delito
de odio, descrito en el art. 510 CP). Todo ello, siempre que concurra la suficiente gravedad
para superar el umbral de relevancia penal y dando por hecho que se lleva a cabo la conducta
penal descrita en tales preceptos. En especial, en este último artículo, siempre que se cumpla
la exigencia de difusión pública y de un claro componente de incitación o expresión al odio
hacia estas personas.
Comenzando por la agravante genérica del art. 22,4º CP, cabe recordar que su aplicación
implica la presencia de dos elementos, uno objetivo (característica especial que posee la
víctima, de entre las enumeradas en el texto penal) y otro subjetivo (que sea tal característica
el móvil principal del agresor para elegir a su víctima). Entre tales rasgos se encuentra el
sexo y la orientación sexual, como es sabido. Y a ellos se suma ahora razones de género. Con
esta modificación se quiere ampliar la protección penal de cualquier persona, abarcando sin
importar el concreto ámbito de discriminación que pueda motivar el comportamiento ilícito
del agresor.
Esta agravante, más allá de la mala redacción técnica que presenta y, con ella, la dificultad
de diferenciar entre sí alguna de los supuestos que recopila, sería la normativa aplicable en
casos de acoso escolar por homofobia o transfobia o, en definitiva, a aquellos que tengan por
víctima a una persona del colectivo LGTBIQ+, precisamente por su pertenencia a tal grupo
y por lo que representan.
La otra posible respuesta penal a estos comportamientos claramente discriminatorios
podría ser el denominado delito de odio, contenido en el art. 510 CP. En él, se castiga a
quienes públicamente fomenten, promuevan o inciten directa o indirectamente al odio,
hostilidad, discriminación o violencia contra un grupo, una parte del mismo o contra una
persona determinada por razón de su pertenencia a aquél, por motivos racistas, antisemitas
u otros referentes a la ideología, religión o creencias, situación familiar, la pertenencia de
sus miembros a una etnia, raza o nación, su origen nacional, su sexo, orientación o identidad
sexual, por razones de género, enfermedad o discapacidad
Para alcanzar esta calificación jurídica, lo que empezó siendo un acoso escolar (castigado
como trato degradante, del art. 173.1 en relación con la agravante por discriminación del
art. 22.4º CP), tiene que llegar a conformar un discurso público que provoque o incite al
odio contra alguno de los grupos que antes se mencionaban. Esto sería posible aunque los
comportamientos lesivos estén dirigidos a una sola persona, siempre que esta haya sido
elegida por representar o ‘personalizar’ los ataques a ese colectivo. Bien entendido que
esta ‘evolución’ de una figura penal a otra no será, ni mucho menos, automática, debiendo
apreciarse todos y cada uno de los requisitos típicos exigidos por la ley.
En otras palabras, si un individuo está siendo objeto de acoso, recibiendo todo tipo
de tratos vejatorios o humillantes, motivados por su pertenencia al colectivo LGTBIQ+ y,

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Posibles carencias en el sistema de control social ante el ciberacoso
Javier García González

al mismo tiempo, de tales ataques puede inferirse o constatarse que el agresor, con ello,
está incitando o fomentando el odio de terceras personas contra ese mismo colectivo (ya sea
de forma directa o indirecta), la conducta excederá el mero trato degradante agravado (art.
173.1º en relación con el art. 22.4 CP) y conformará un delito de odio.
Abundando en esta idea, el art. 510.2º letra a) establece pena de prisión de seis meses
a dos años y multa de seis a doce meses a quienes lesionen la dignidad de las personas
mediante acciones que entrañen humillación, menosprecio o descrédito de cualquier persona
determinada por razón de su pertenencia a un grupo o por su sexo o por su orientación o
identidad sexual, por razones de género, entre otros. Comportamiento que debe hacerse,
de forma directa o indirecta, pero en público. Entendiendo por tal su realización ante una
concurrencia de personas o por algún medio que garantice tal publicidad
Es obvio que “la publicidad se dará también en las manifestaciones divulgadas mediante
las tecnologías de la información y la comunicación, no solo por su exposición en una web
o blog de acceso abierto, sino también a través de las redes sociales con acceso restringido a
usuarios registrados, siempre que el mensaje pueda ser transmitido a un amplio y relativamente
indeterminado número de personas” Todo ello, bajo un móvil discriminatorio y un ánimo de
provocación al odio contra el grupo o colectivo al que pertenece (y representa) la víctima
concreta20 (Tamarit, 2016: 1982).
En consecuencia, un supuesto de ciberbullying que cumpliera las premisas descritas
generaría, un concurso aparente de normas entre el art. 173.1 CP y el art. 510 CP que, en mi
opinión, debería ser resuelto a favor de este último, en aplicación del art. 8.4º CP.

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20
TAMARIT SUMALLA, J.M. (2016): “De las torturas y otros delitos contra la intimidad moral”,
cit., p. 242.

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Posibles carencias en el sistema de control social ante el ciberacoso
Javier García González

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— 32 —
A inteligência artificial
como dispositivo democrático

Joyce Mendes Soares1


Vânia Siciliano Aieta (Orientadora)2

Resumo: O presente artigo busca demonstrar a relação e a influência de novas tecnologias na doutrina
democrática. Mais especificamente o uso de Inteligência Artificial (IA) como um dispositivo democrático.
Considerando o enorme alcance e capacidade computacional da Internet, o aumento no número de pessoas
conectadas mundialmente, percebe-se a utilização de ferramentas tecnológicas como um meio de garantir a
praticidade e a representatividade na vida política, que tem se manifestado ao redor do mundo e fomentado
a ascensão de um novo modelo democrático chamado de E-democracy.
Palavras-chave: E-democracy; Inteligência Artificial; Internet; Democracia; Machine learning; Deep
learning.

Abstract: This paper seeks to demonstrate the relation and the influences of new Technologies at
the Democratic Doctrine, specifically the Artifical Intelligence use as a democratic device. Considering
the Internet’s enormous reach and computational capacity and the rising number of its world wide users, it
is percieved the technological tools use as a way to guarantee the practicity and the public representation
at politics issues, which has been manifesting around the world and fostered the rise of a new democratic
model called E-democracy.
Key words: E-democracy; Artificial Intelligence; Internet; Democracy; Machine learning; Deep
learning.

1
Estudante de Graduação da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Au-
tora do presente trabalho sob a orientação da Profa. Dra. Vânia Siciliano Aieta. jsoares1312@hotmail.com
2
Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ, Pós-
Doutora em Direito Constitucional pela Universidade de Santiago de Compostela, Espanha, e pela PUC-
Rio, Brasil. Doutora em Direito Constitucional pela PUC-SP. Orientadora do presente trabalho. vaniaaie-
ta@yahoo.it

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A inteligência artificial como dispositivo democrático
Joyce Mendes Soares - Vânia Siciliano Aieta

1. INTRODUÇÃO
O sistema democrático vem se manifestando em diferentes modalidades ao longo da
história, como afirma o mestre italiano Noberto Bobbio “para um regime democrático, o estar
em transformação é seu estado natural: a democracia é dinâmica, o despotismo é estático
e sempre igual a si mesmo” (BOBBIO,1997, p.9). Na Antiguidade Clássica, o modelo de
democracia consistia na participação dos cidadãos atenienses nas Assembleias do Povo, para
a decisão de aprovar ou rejeitar projetos apresentados para a cidade, por meio da deliberação
direta.
Os pilares desse sistema eram a liberdade e a igualdade, todos os membros do corpo
político de Atenas tinham direito à palavra, igualdade perante a lei e a igual participação no
exercício do poder. Entretanto, há de se ressaltar que a concepção de cidadão era bem restrita.
Apenas homens livres nascidos em Atenas, maiores de 18 anos e com pais atenienses eram
considerados cidadãos e tinham o direito de atuar politicamente. Excluindo completamente
das decisões mulheres, escravos e estrangeiros, que compunham maior parte da população.
Desde então, grandes mudanças ocorreram em relação à participação política dos
cidadãos. Os conceitos de liberdade e igualdade permaneceram como fundamentos do regime
democrático, mas apenas no século XVIII se tornaram expressos com a Declaração Universal
dos Direitos Humanos que em seu artigo 1º garante a liberdade e a igualdade em dignidade e
em direitos a todos os seres humanos desde o nascimento. O caráter inclusivo da configuração
democrática foi conquistado ao longo do tempo, sendo alvo de diversos movimentos sociais,
até que o voto universal fosse alcançado. No Brasil, foi na atual Constituição, promulgada
em 1988, que se estabeleceu o direito ao voto para todos a partir dos 16 anos, independente
de sexo, cor ou condições econômicas.
No âmbito socioeconômico, a humanidade tem desenvolvido constantemente novos
meios e técnicas de produção, informação e comunicação. Marcaram o contexto histórico três
grandes revoluções industriais, a primeira se completou na Inglaterra por volta de 1830, numa
sociedade cuja base do sistema social era o trabalho assalariado, houve a mecanização da
fiação e da tecelagem. A segunda revolução industrial iniciou-se a partir de 1870, e tem suas
bases nos ramos metalúrgico e químico. Todavia é na terceira revolução industrial, iniciada
na década de 1970, que aparece a tecnologia de ponta (HIGH-TECH), quando surgem a
microeletrônica, a internet, as telecomunicações informatizadas, configurando a Era da
Informação ou Era Digital.
Tendo em vista o enorme alcance e capacidade computacional da Internet e o
desenvolvimento de redes sociais de abrangência global, atualmente, acredita-se que está
sendo gerada uma nova forma de democracia denominada E-democracy: “A E-democracy
revela-se como a democracia do futuro, propiciando um novo patamar participativo por meio
da tecnologia da informação, notadamente a Internet.” (AIETA, 2019, p.70)
Dados de uma pesquisa realizada no ano de 2018 pela União Internacional de
Telecomunicações (UIT), agência das Nações Unidas para tecnologia da informação e
comunicação, demonstraram que a estimativa do número de pessoas conectadas à internet
atingiria 51% da população mundial ao fim de 2018. O constante desenvolvimento
tecnológico e a conexão mundial à internet têm despertado diferentes necessidades, e, para

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A inteligência artificial como dispositivo democrático
Joyce Mendes Soares - Vânia Siciliano Aieta

saná-las, novos métodos são desenvolvidos, como elucida Mezzaroba et al: “diante da escassa
coordenação entre as novas demandas sociais e as formas de governo tradicional, a invenção
de novos modos de representação política surge como uma tarefa que se impõe com urgência”
(MEZZAROBA; SANTOS; BERNARDES, 2010, p. 57).
Essa forma de democracia digital se utilizaria das tecnologias de informação e
comunicação do século XXI para estender o engajamento popular na vida política, criando um
meio de agregar rapidamente dados de demandas e manifestações de opinião da comunidade
como por via de plebiscitos e referendos eletrônicos, pelo voto e envio de propostas.
Embora ainda seja uma promessa futurística, já é possível notar a inserção desse sistema
em governos, como no estado de Minnesota, nos Estados Unidos, através do Minnesota
E-democracy, descrito como uma organização não partidária de base cidadã cuja missão é
melhorar a participação na democracia em Minnesota através do uso de redes de informação.
A plataforma foi fundada em 1994, por um estudante interessado em analisar o impacto das
novas tecnologias de comunicação nas organizações governamentais e no processo político,
e procura aumentar a participação dos cidadãos nas eleições e no discurso público através do
uso de tecnologias de comunicações eletrônicas.
No Brasil, o e-Democracia Câmara dos Deputados, apresenta-se como um Portal criado
para ampliar a participação social no processo legislativo aproximando os cidadãos de seus
representantes por meio da interação digital. Na plataforma é possível acompanhar audiências
ao vivo e enviar perguntas, além de garantir o acesso a vídeos de audiências já encerradas e às
perguntas efetuadas. Esse portal está disponível para a interação entre governo e cidadão na
internet desde 2009. Sobre a plataforma, Mezzaroba et al afirmam:

podemos dizer que o portal trata de um sistema sócio-tecnológico, visto que a


composição contém aspectos tecnológicos e sociais conjugados de forma que, sem
essa interação, a parte tecnológica não teria motivação, tampouco utilização; da
mesma forma, observa-se que, antes do advento da internet e do desenvolvimentos
destas soluções tecnológicas, a interação entre cidadãos e seus representantes era
muito mais difícil, e, mesmo ultrapassada esta dificuldade, o tempo de resposta
era maior, não sendo possível, dado o grande espaço territorial, de estabelecer uma
democracia plena, com participação e colaboração popular efetiva. (MEZZAROBA
et Al, 2013, p.34)

Nas próximas sessões, o presente artigo trará um breve panorama contemporâneo do uso
de tecnologias de Inteligência Artificial (IA) como ferramentas democráticas, especificamente
o caso do Projeto Sam, na Nova Zelândia, onde mais do que uma plataforma de comunicação,
pretende-se viabilizar a candidatura de um político virtual, fato inédito na história da
humanidade. Problematizar-se-á, em contrapartida à sua praticidade, sua capacidade de
atuar como dispositivo de justiça. O termo “dispositivo”, neste caso, é o trazido por Giorgio
Agamben, definido como:

Um conjunto heterogêneo, que inclui virtualmente qualquer coisa, linguístico e


não-linguístico no mesmo título: discursos instituições, edifícios, leis, medidas de

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A inteligência artificial como dispositivo democrático
Joyce Mendes Soares - Vânia Siciliano Aieta

segurança, proposições filosóficas etc. O dispositivo em si mesmo é a rede que se


estabelece entre esses elementos. (AGAMBEN, 2009, p.29)

À medida em que se percebe a E-democracy como uma rede que envolve os meios
digitais, a população e seus representantes.

2. A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E SUAS NUANCES


A reflexão sobre o funcionamento e a performance da IA se faz importante ao considerar
o desenvolvimento tecnológico e a inserção dessa tecnologia no sistema democrático. Deriva
desse fato o questionamento acerca da forma como essa Inteligência Artificial está aprendendo
e produzindo resultados, no caso de uma IA supervisionada, ela estaria sujeita a manipulação
humana.
Primeiramente, faz-se necessário elucidar o conceito de Inteligência Artificial, definida
pela Enciclopédia Britânica como:

A capacidade de um computador digital ou aparelho robótico controlado por um


computador a cumprir tarefas normalmente associadas com processos intelectuais
superiores, características de seres humanos tais como capacidade de raciocinar,
descobrir significados, generalizar ou aprender a partir de experiências do passado.
Se usa a expressão para se referir aquele ramo da ciência da computação que
cuida do desenvolvimento de sistemas dotados com tais capacidade (Encyclopedia
Britannica Apud DWYER, p. 62).

Portanto, os sistemas apresentados anteriormente – o e-Democracia e o Minnesota


E-democracy – não estão configurados dentro deste rótulo, à medida em que funcionam
apenas como calculadores de dados e plataformas de interação, enquanto as IAs desempenham
tarefas de níveis intelectuais superiores (HOESCHL, 2007).
Estas são divididas em dois subconjuntos distintos: as Machine learning e as Deep
learning. Ambos usam modelos matemáticos dos dados para o processamento da informação,
mas apresentam performances de funcionamento bastante divergentes. Quanto mais dados
são inseridos no sistema de deep learning mais preciso ele se torna, jamais atingindo o platô
(nível máximo possível de desempenho após alcançado o limite de dados carregados), como
acontece nos processos de machine learning.
Outra diferença é que enquanto no machine learning um analista humano é necessário
para definir a engenharia de recursos, o conjunto de recursos para representar os dados, no
deep learning o sistema aprende a melhorar a representação dos dados por si só, possui redes
capazes de aprender sem supervisão de dados não estruturados ou não rotulados para produzir
os resultados mais precisos. Torna-se visível, portanto, como o viés humano é introduzido nos
processos de machine learning e que isso não é escalável.
Ao se pensar nos processos de meios de alcance ou ferramentas, o fator humano é até
concebível como prescindível. No entanto, imaginar que, no dispositivo democrático, as

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A inteligência artificial como dispositivo democrático
Joyce Mendes Soares - Vânia Siciliano Aieta

máquinas possam atuar como representantes da população a partir da tomada de decisões


baseadas em processos de deep learning, suscita não somente estranhamento, mas também
preocupações e reflexões em diversos âmbitos das Ciências Sociais.

2.1. O caso SAM (Semantic Analysis Machine – Máquina de Análise Semântica)


Na Nova Zelândia, a plataforma “SAM” se declara o primeiro político virtual, cuja
função é servir de ponte de diálogo entre a população neozelandesa e seus representantes,
com base nas promessas de campanha dos políticos eleitos e das manifestações dos eleitores
através da plataforma digital, a interação “direta” com a SAM. 
Em sua descrição, aponta-se como ponto positivo o fato de ela ser um político virtual,
estando disponível a qualquer momento e em qualquer lugar. Por ter uma memória infinita,
garante que nunca se esquecerá ou ignorará o que lhe for dito, via mensagem virtual. Promete
tomar suas decisões baseando-se nos fatos e nas opiniões compartilhadas com ele, nunca
deturpar informações e considerar a posição de todos, sem preconceitos, ao decidir.
Além disso, a plataforma mudará ao longo do tempo para refletir os problemas que mais
preocupam as pessoas da Nova Zelândia. Sua aparência também será alterada à medida que
os neozelandeses adicionarem voz e imagem para espelhar melhor o rosto da Nova Zelândia.
Havendo divergências entre as posições de SAM e de um cidadão ela se compromete a
aprender mais sobre a colocação daquele cidadão para poder melhor representá-lo. (SAM,
2019)
Criada em 2018, pelo catalisador e empreendedor social Nick Gerritsen, SAM ainda está
começando, apresenta insuficiência de dados, o que pode resultar em respostas imprecisas ou
incompletas. Seu desenvolvimento depende do acesso dos neozelandeses à plataforma, pois
através de discussões contínuas com membros da população seu conhecimento irá aflorar. O
principal motivo por trás dessa ideia, de acordo seu desenvolvedor, é que SAM atue como uma
representante de todos os neozelandeses e evolua com base na contribuição dos eleitores.
Nessa proposta de “político virtual” é aparente o uso da inteligência artificial não apenas
como um dispositivo democrático para a manifestação das vontades da população por meio
da internet, mas também como uma nova possibilidade de representação a partir de um
candidato não humano.
Como citado acima, a praticidade no acesso à SAM para a manifestação política da
população aliada à sua memória infinita, ao seu processamento rápido e acúmulo de dados
típicos de uma IA, configuram uma vantagem em relação ao cérebro humano. Além disso, o
político virtual também seria imparcial, uma vez que não é capaz de agregar valores éticos e
morais às suas decisões. Tal característica o tornaria incorruptível.
Como já apresentado acima, em casos de IA com o sistema de Machine learning a atuação
de um analista é imprescindível, logo, se fossem adotados dispositivos desse subconjunto da
Inteligência artificial para auxiliar ou atuar democraticamente, não seria possível garantir
a imparcialidade da IA durante o seu funcionamento. Entra em questionamento a ação
humana por trás dessa máquina, ação que pode estar influenciada por agendas políticas e

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A inteligência artificial como dispositivo democrático
Joyce Mendes Soares - Vânia Siciliano Aieta

intenções partidárias que se manifestariam nos resultados apresentados, que poderiam ter
sido manipulados nos próprios códigos e algoritmos que regem seu funcionamento.
Para além de tal especulação sobre a idoneidade da plataforma, pesam outras questões sobre
representatividade e no próprio processamento do carregamento de dados disponibilizados
pela máquina. Primeiramente, a SAM afirma considerar a opinião de todos, o objetivo ideal
de qualquer democracia, a questão que pesa, porém, é quem seriam esses “todos”, ou como
a máquina alcançaria a “todos” já que para tanto, “todos” teriam de ter uma participação
política / interação com a plataforma de forma direta. Se o político atua como uma máquina
de análise semântica, é necessário que a voz dos eleitores chegue até aquela plataforma, em
uma quantidade expressiva para que os dados computados gerem resultados relevantes, em
outras palavras, questiona-se se a inteligência da máquina não seria pautada pela opinião/
necessidade daqueles que mais acessarem ao sistema, refletindo a posição ideológica/ política
não de uma maioria democrática, mas de uma população que se prontificou a interagir mais
com o portal eletrônico. Como ressalta Aieta:

Faz-se da maior importância ressaltar a problemática da possível bifurcação da


sociedade entre incluídos e excluídos digitais, gerando uma discriminação odiosa
que macula a cidadania dos ditos desconectados, produzindo como resultado um
quadro de ‘infomarginalidade’, pois os setores mais marginalizados e necessitados
de representação são os que menos têm acesso à rede ou o fazem com menos eficácia.
(AIETA, 2019, p. 74)

Segundo dados da União Internacional de Telecomunicações (UIT), atualmente, 88,47%


da população da Nova Zelândia dispõe de acesso à Internet. Contudo, esse dado quantitativo
não é garantia de que as pessoas irão se engajar politicamente por via dessa interação, ou
ainda que, inversamente, não ocorreria uma manipulação do comportamento do usuário pelo
controle de dados.
É mister mencionar que tais problemas – a manipulação dos eleitores, a não
representatividade democrática universal real, o desinteresse ou falta de acesso à vida política
– são problemas já existentes em todas as sociedades democráticas, como já exposto, desde
seus primórdios como sistema político, tornando leviano opor-se à E-democracy tendo como
único argumento a possibilidade da sua falibilidade em aspectos já tão falhos nas atuais
democracias. No entanto, pesa ainda a questão da capacidade de uma máquina de ponderar
sobre as necessidades de seus representados e da população de sua comunidade, tendo em
vista, que qualquer processo político vai muito além de apenas computar a opinião de seus
eleitores.
Conforme afirma Soares, 2019, “A interpretação que interessa ao direito é uma atividade
a reconhecer e a reconstruir o significado que há de atribuir a forma representativa do jurídico,
com base numa estrutura e valorações” (p.41), transpondo tal afirmação à questão política,
espera-se que um político seja capaz de ponderar sobre as necessidades de seus eleitores, não
apenas de refleti-las. Tal capacidade requer senso crítico e habilidade de pensar em estratégias
políticas e administrativas. Seria a máquina capaz de fazê-lo?

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A inteligência artificial como dispositivo democrático
Joyce Mendes Soares - Vânia Siciliano Aieta

3. CONCLUSÃO
Dos exemplos citados, Minnesota E-democracy, e-Democracia Câmara dos Deputados
e SAM, é possível perceber diferentes usos da Internet e das ferramentas digitais como
auxiliares do processo democrático, à medida que diminuem a burocratização e ultrapassam
as barreiras de lugar e tempo, facilitando a participação popular na vida política. Dessa forma,
é imprudente rechaçar os meios eletrônicos como favoráveis à própria democratização dos
processos políticos, através dos portais de transparência e da possibilidade tanto de acesso à
informação quanto de comunicação direta com diversos órgãos e representantes políticos.
Por outro lado, quando se fala em inteligência artificial, é necessário ter em mente que
não se está falando apenas de um meio de comunicação, mas um dispositivo de agenciamento
democrático que parte de uma consciência não humana para uma organização social humana,
como é o que se almeja com a SAM, na Nova Zelândia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo. In. _________. O que é o contemporâneo? e outros
ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesso. Chapecó: Argos, 2009.
BOBBIO, Noberto. O futuro da democracia; uma defesa das regras do jogo. 6. ed.Trad.
BOBBIO, Noberto. O futuro da democracia; uma defesa das regras do jogo. 6. ed.Trad. Marco Aurélio
Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
DWYER, Tom. Inteligência Artificial, Tecnologias Informacionais e seus possíveis impactos sobre as
Ciências Sociais. In. Sociologias, Porto Alegre, ano 3, nº 5, jan/jun 2001, p.58-79.
HOESCHL, Hugo César. O que é governo eletrônico? In: BIGJUS – Boletim de Informações
Gerenciais – N. 03 – 28/03/2007. Disponível em: https://www2.cjf.jus.br/jspui/bitstream/
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net4/ITU-D/idi/2017/index.html#idi2017economycard-tab&NZL, último acesso em 7 set. 2019.
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MEZZAROBA, O; SANTOS, P M & BERNARDES, M B. E-Democracia: possibilidades e a
experiência brasileira frente aos novos sistemas.  In: Democracia eletrônica.  2010, ISBN 978-
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set. 2019.
SOARES, Ricardo. Hermenêutica e Interpretação Jurídica. 4. ed. São Paulo: Saraiva Educação,
2019.

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La utilización por los medios de comunicación de
fotos de personas, sin su autorización, publicadas
en redes sociales1

Marta Grande Sanz

Resumen: Hasta hace relativamente poco una fotografía era una imagen en papel con un público muy
limitado y con alcance controlado. Con el nacimiento y la difusión de las redes sociales y el desarrollo de
la fotografía digital esta situación ha cambiado y la publicación de fotografías en las redes sociales plantea
nuevos retos con relación al derecho a la imagen.
En el presente trabajo analizaremos algunas de sus repercusiones y la necesidad de realizar una adecuada
ponderación entre el derecho a la propia imagen y la libertad de información cuando ambos derechos entren
en conflicto. Para ello recurriremos a las SSTS 91/2017 y 697/2019 y a la STC que recientemente ha
resuelto el recurso de amparo presentado contra la primera de ellas. Las sentencias citadas se refieren a dos
puestos en los que los medios de comunicación han publicado fotografías de los demandantes (en un caso,
víctima y, en otro, agresor)que habían subido a las redes sociales, sin el consentimiento de aquellos y como
accesorias a la noticia que publican, sin estar directamente relacionadas con la información que ofrecen lo
que nos permitirá concluir que los medios de comunicación no pueden publicar fotos de las redes sociales
sin consentimiento.
Palabras clave: Derecho a la propia imagen; derecho de información; fotografías de personas; redes
sociales.

Abstract: Until relatively recently, a photograph was a paper image with a very limited audience
and controlled reach. With the birth and dissemination of social networks and the development of digital
photography this situation has changed and the publication of photographs on social networks poses new
challenges in relation to the right to image.
In the present work we will analyze some of its repercussions and the need to make an adequate
weighting between the right to one’s own image and the freedom of information when both rights come

1
Abogada. Doctora en Derecho y Licenciada en Derecho y en Administración y Dirección de Em-
presas por la Universidad Pontificia Comillas de Madrid y Licenciada en Economía por la Universidad
Nacional a Distancia. Correo electrónico: grande_sanz_marta@yahoo.es.

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La utilización por los medios de comunicación de fotos de personas, sin su autorización, publicadas en redes sociales
Marta Grande Sanz

into conflict. For this we will resort to the SSTS 91/2017 and 697/2019 and the STC that recently resolved
the appeal filed against the first of them. The sentences cited refer to two positions in which the media have
published photographs of the plaintiffs (in one case, victim and, in another, aggressor) who had uploaded to
social networks, without their consent and as an accessory to the news they publish, without being directly
related to the information they offer, which will allow us to conclude that the media cannot publish photos
of social networks without consent.
Keywords: Right to self-image; right to information; photographs of people; social networks.

I. INTRODUCCION2
Hasta hace relativamente poco una fotografía era una imagen en papel con un público
muy limitado de manera que su alcance se podía tener bajo control. Sin embargo, el nacimiento
y difusión de las redes sociales y el desarrollo de la fotografía digital han supuesto una
revolución. El carácter universal de las redes sociales hace que sean millones los usuarios
que suben fotos en cada instante e inviable la posibilidad de obtener autorización expresa
para todas y cada una de las fotografías que se publiquen en cada momento3. Para solventar
este problema, las redes sociales han establecido en sus condiciones de uso un mecanismo de
concesión de licencias sobre los derechos de propiedad intelectual de los usuarios a favor de
esa red social de manera que su utilización se adapte a la legalidad.
La publicación de fotografías en las redes sociales ha hecho que la “imagen personal”
adopte una nueva dimensión y que, en muchos casos, entre en conflicto con la legislación
vigente. Así sucede con los derechos de imagen regulados en una norma de 1982 y, por tanto,
pensada para contexto analógico en el que la reproducción de la imagen se hacía de forma
impresa4. A pesar de ello, el Código Civil insta a llevar a cabo su interpretación de acuerdo
con la realidad social del tiempo en que deba ser aplicada.
En cualquier caso, esta interpretación adaptada a la realidad social del momento en que
se aplique no impedirá que la necesidad del consentimiento en el caso del derecho a la propia
imagen pueda caer en el olvido o trivializarse a la hora de utilizar la imagen de una persona ni
que nosotros mismos seamos en parte responsables por compartir y publicar nuestra imagen
profusamente en internet.
El art. 18 de la Constitución española (en adelante, CE) garantiza el derecho a la propia
imagen como un derecho fundamental y se desarrolla en la LO 1/1982, de 5 de mayo, de
Protección Civil del Derecho al Honor, a la Intimidad Personal y Familiar y a la Propia Imagen
(en adelante, LO 1/1982) según la cual este derecho será protegido civilmente frente a todo
tipo de intromisiones ilegítimas como puede ser “la captación, reproducción o publicación
por fotografía, filme, o cualquier otro procedimiento, de la imagen de una persona en lugares


2
GABINETE TÉCNICO DEL TRIBUNAL SUPREMO, SALA CIVIL, “Sentencia 697/2019, de
19 de diciembre. Recurso (CAS) 4528/2018). Intromisión en el derecho a la propia imagen por la publica-
ción de la fotografía de una persona detenida y en prisión preventiva, obtenida de su perfil de Facebook”.
https://bit.ly/35PYw14
3
MARTÍNEZ PEREZ, M.ª D., “Derecho a la propia imagen en redes sociales: fotografías y vídeos
personales”. https://bit.ly/39tDt7d
4
LÓPEZ, R., “¡Cuidado con las fotos de perfil!”, 30 de abril de 2018. https://bit.ly/2tTKwpU

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La utilización por los medios de comunicación de fotos de personas, sin su autorización, publicadas en redes sociales
Marta Grande Sanz

o momentos de su vida privada o fuera de ellos, salvo en los casos previstos en el artículo
octavo, dos”. (art. 7.5 de la LO 1/1982).
Este derecho tiene una faceta positiva que permite a cada persona difundir su propia
imagen y una negativa que exige autorización para la reproducción de su imagen y, en su
caso, otorga la posibilidad de impedirla. El derecho a la propia imagen es un derecho personal
y fundamental que resulta vulnerado si se nos fotografía o graba sin nuestro consentimiento
y se publica o divulga esa imagen. A pesar de ello, no es un derecho absoluto y cuenta
con ciertas excepciones que permiten tomar y difundir fotografías sin consentimiento: a)
fotografías realizadas en actuaciones autorizadas o acordadas por la autoridad competente de
acuerdo con la ley y en las que exista un interés histórico, científico o cultural relevante; e b)
imágenes de cargos públicos o profesionales notables en actos o lugares abiertos al público,
caricaturas de estas personas conforme al uso social o formen parte de la información sobre
una noticia y la imagen de la persona sea accesoria.
El uso por los medios de comunicación de las imágenes que los ciudadanos suben a las
redes sociales está generando pronunciamientos judiciales contradictorios a la espera de una
regulación al respecto. La amalgama de derechos en conflicto (derecho a la información,
libertad de expresión, derecho a la intimidad, a la propia imagen, etc.), la legislación sobre
protección de datos, la transparencia o la sociedad de la información provocan cierta inseguridad
jurídica; máxime si se pretende compatibilizar el uso universal, público e ilimitado de las
redes sociales con la privacidad y el anonimato5.
El Tribunal Supremo ha interpretado restrictivamente el consentimiento de modo que la
existencia de autorización para la captación de una imagen no supone que también haya sido
autorizada su posterior comunicación pública ni para cualquier otro uso. En este sentido, la
STS 91/2017 donde la imagen empleada por el medio de comunicación fue subida a una red
social por parte de la víctima de un grave delito de lesiones.
A continuación, expondremos brevemente los supuestos de hecho de la STS 91/2017 y
de la STS 697/2019 y sus principales pronunciamientos teniendo en cuenta que recientemente
el Tribunal Constitucional ha dictado sentencia en el recurso promovido frente a la primera
de ellas6.

II. LA STS, SALA DE LO CIVIL, Nº 91, DE 15 DE FEBRERO DE 20177


El 8 de julio de 2013 se publicó en las ediciones de papel y digital de “La Opinión. El
Correo de Zamora” un reportaje sobre un suceso ocurrido el día anterior en el que una persona

5
PÉREZ SÁNCHEZ, G., “Medios de comunicación, derecho a la propia imagen y redes sociales”,
Diario de Ibiza, 5 de agosto de 2018. https://bit.ly/2FIedgb
6
MARTIALAY, Á., “El Constitucional establece que los medios no pueden publicar fotos de las
redes sociales sin consentimiento”, 26 de febrero de 2020. https://bit.ly/2Ii8r6g.
7
Se toma como referencia el comentario completo que se realiza de esta sentencia por: YZQUIER-
DO TOLSADA, M., “Comentario de la Sentencia del Tribunal Supremo de 15 de febrero de 2017 (91/2017).
Si una fotografía es accesible al público por haberse subido a Facebook, ello no legitima a un tercero para
publicarla en un medio de comunicación sin consentimiento”, pág. 347 y ss. https://bit.ly/36NieMh.

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La utilización por los medios de comunicación de fotos de personas, sin su autorización, publicadas en redes sociales
Marta Grande Sanz

había sido herida por su hermano con un arma de fuego, suicidándose después. En el artículo
se incluían datos que permitían identificar al demandante: su nombre, el de su hermano, las
iniciales de los apellidos, el apodo del hermano agresor, la dirección exacta del domicilio
familiar, así como que su padre había sido médico en un determinado pueblo de la provincia,
la familia contaba con notoriedad en la localidad, quiénes habían presenciado los hechos y la
madre del demandante padecía la enfermedad de Alzheimer.
La edición en papel del diario incluía una fotografía obtenida del perfil de Facebook
del demandante quien judicialmente pidió que: se declarase la existencia de una intromisión
ilegítima en sus derechos fundamentales a la propia imagen y a la intimidad personal y
familiar; una indemnización de 30.000,00 euros a la editora del diario; la publicación de
la parte dispositiva de la sentencia que pusiera fin al procedimiento; y la retirada de las
fotografías y datos personales familiares (nombre y dirección del domicilio materno) de la
noticia y de cuantos ejemplares de la publicación se hallaran en los archivos del periódico así
como a no volver a publicarlos en ningún soporte.
El Correo de Zamora alegó que una fotografía subida a Facebook con acceso libre
constituye un acto propio de modo que no existía intromisión ilegítima en el derecho a la
propia imagen en la reproducción de la fotografía ya que, según la LO 1/1982, al valorar las
intromisiones debía tenerse en cuenta la conducta anterior del titular.
En cambio, el TS consideró que el consentimiento otorgado para publicar una imagen
en el perfil de Facebook no implicaba que su publicación para otra finalidad fuera legítima;
en tal caso, su utilización para ilustrar un suceso familiar violento. Como afirma el TS, “la
finalidad de una cuenta abierta en una red social en Internet es la comunicación de su titular
con terceros y la posibilidad de que esos terceros puedan tener acceso al contenido de esa
cuenta e interactuar con su titular, pero no que pueda publicarse la imagen del titular de la
cuenta en un medio de comunicación”. El consentimiento para publicar su foto en Facebook
no hace que no pueda impedir su publicación en un medio de comunicación y, en particular,
para ilustrar un reportaje sobre un suceso familiar de extraordinaria violencia.
Al amparo del art. 2.2 de la LO 1/1982, no existe intromisión ilegítima cuando el titular
del derecho “hubiese otorgado al efecto su consentimiento expreso”; consentimiento que
basta con que sea “consentimiento inequívoco, como el que se deduce de actos o conductas
de inequívoca significación, no ambiguas ni dudosas” y que se haya dado “al efecto” -esto
es, “para que el público en general, o un determinado número de personas, pueda ver su
fotografía en un blog o en una cuenta abierta en la web de una red social”- y no “a otro efecto”
como “hacer uso de esa fotografía y publicarla o divulgarla de una forma distinta”.
El Diario de Zamora alegó también que, con base en el art. 8.2.c LO 1/1982, no existiría
intromisión ilegítima “la información gráfica sobre un suceso o acaecimiento público cuando
la imagen de una persona determinada aparezca como meramente accesoria” como, en su
opinión, ocurría en el caso enjuiciado.
De acuerdo con la jurisprudencia previa, el TS define el derecho a la imagen como
“un derecho de la personalidad, reconocido como derecho fundamental en el art. 18.1 de
la Constitución, que atribuye a su titular la facultad de disponer de la representación de su
aspecto físico que permita su identificación y le permite determinar qué información gráfica

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La utilización por los medios de comunicación de fotos de personas, sin su autorización, publicadas en redes sociales
Marta Grande Sanz

generada por sus rasgos físicos personales puede tener dimensión pública. En su faceta
negativa o excluyente, otorga la facultad de impedir la obtención, reproducción o publicación
de su propia imagen por un tercero sin el consentimiento expreso del titular, sea cual sea la
finalidad perseguida por quien la capta”.
El TS insiste en el carácter autónomo del derecho a la propia imagen de manera que
una intromisión ilegítima en el derecho a la imagen del demandante no tiene que constituir
una intrusión en su derecho a la intimidad. Dado que “la demanda versaba sobre dos hechos
diferenciables (identificación del demandante en la información escrita, que atentaba contra
su derecho a la intimidad, y reproducción de su imagen obtenida de una red social sin su
consentimiento expreso, que atentaba contra su derecho a la propia imagen) reduce la
indemnización a la mitad dado que solo se lesiona un derecho fundamental y que el daño
moral causado fue más leve.
Recientemente, la Sala Segunda del Tribunal Constitucional (en adelante, TC) ha resuelto
el recurso de amparo planteado en el sentido de que los medios de comunicación no pueden
publicar informaciones sustraídas de las redes sociales para ilustrar noticias si no tienen el
consentimiento expreso de los afectados. Según el TC, se vulneró el derecho fundamental a la
imagen del ciudadano ya que la fotografía de “un particular anónimo o desconocido, o lo que
es lo mismo, de alguien que no ejerce cargo público o una profesión de notoriedad, por más
que sea captada en un lugar público no puede utilizarse sin su expreso consentimiento”8.

III. LA STS, SALA DE LO CIVIL, Nº 697, DE 19 DE DICIEMBRE DE 2019


El 19 de noviembre de 2016 el diario digital “El Español” publicó un reportaje firmado
por un periodista -posteriormente, demandado- titulado “El lobo con piel de psicólogo:
terapeuta de día, pederasta de noche” sobre su detención e ingreso en prisión, acusado de
mantener relaciones sexuales con menores de edad, con algunos de los cuales había tenido
contacto profesional en su condición de psicólogo. El reportaje se ilustraba con una fotografía
del demandante-obtenida de su cuenta de Facebook con perfil público-en la que sujetaba en
sus brazos unos cachorros de perro ante una vivienda.
El 8 de junio de 2017 el demandante solicita judicialmente que se declare que la
publicación de su fotografía en el reportaje constituía una intromisión ilegítima en su derecho
fundamental a la propia imagen y que se condene a los demandados -la editora del diario
(El Español Publicaciones, SA) y al periodista firmante del reportaje- a indemnizarle con
20.000 euros. También solicita la retirada del artículo de la página web y la publicación de la
sentencia que se dicte.
El Juzgado de Primera Instancia (en adelante, JPI) nº 1 de Vitoria-Gasteiz estimó la
demanda al entender que había “existido intromisión ilegítima en el derecho fundamental a la
propia imagen (…) por parte de la demandada consistente en la publicación de su fotografía
sin su consentimiento en el artículo que se publicó en la página web www.elespañol.com el 19

8
MARTIALAY, Á., “El Constitucional establece que los medios no pueden publicar fotos de las
redes sociales sin consentimiento”, 26 de febrero de 2020. https://bit.ly/2Ii8r6g.

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La utilización por los medios de comunicación de fotos de personas, sin su autorización, publicadas en redes sociales
Marta Grande Sanz

de noviembre de 2016”. El JPI condenó a los demandados a indemnizar de forma solidaria al


demandante con 10.000 euros así como a la retirada de la fotografía de la página y/o sitio web en
la que se alojaba el artículo, la publicación a su costa una nota resumen de la parte dispositiva de
esta sentencia, con identificación del Juzgado y número de procedimiento en que se ha dictado
en el mismo medio en se publicó la noticia objeto de este procedimiento o en el que le sustituya
con la misma relevancia y visibilidad. La sentencia fue recurrida en apelación y la Sección
Primera de la Audiencia Provincial (en adelante, AP) de Álava desestimó el recurso.
Tanto el JPI como la AP consideraron que la publicación de la fotografía del demandante
-obtenida de su perfil de Facebook sin su consentimiento- representaba una intromisión
ilegítima en su derecho a la propia imagen si bien redujeron la indemnización solicitada a
10000 euros. La AP puntualizaba que el demandante no era un personaje público por lo que
no cabía aplicar la excepción del art. 8.2.a) de la LO 1/1982 y que la imagen del demandante
-captada en un ámbito privado y publicada por el propio interesado en la página web de una
red social (Facebook)-había sido obtenida sin su consentimiento.
Los demandados interpusieron recurso de casación al entender que la SAP infringía el art.
20.1.d) de la CE, en relación con su art. 18.1 y con los arts. 7.5 y 8.2.a) de la LO 1/1982 que
reconocen el libre ejercicio de la libertad de información frente al derecho a la imagen, en el
necesario juicio de ponderación de los derechos en conflicto requerido por la jurisprudencia.
Sostenían que la SAP había efectuado una ponderación incorrecta del derecho fundamental a
la propia imagen y de la libertad de información ya que la publicación de la fotografía estaba
amparada, en su opinión, por el art. 8.2.a) de la LO 1/1982: el demandante era una persona
con relevancia y notoriedad pública sobrevenida por estar acusado de hechos delictivos muy
graves; el suceso (detención e ingreso en prisión del demandante) tenía interés informativo; y
la fotografía había sido obtenida en el perfil público del demandante en Facebook al que tenía
acceso cualquier persona.
Sin embargo, el TS afirma que existe un conflicto entre el derecho a la propia imagen y la
libertad de información de los demandados (periodista y titular de un medio de comunicación)
ya que no son derechos absolutos y pueden entrar en conflicto con otros derechos o bienes
jurídicos -e incluso entre sí- debiendo efectuarse la correspondiente ponderación para
determinar cuál debe prevalecer. De este modo, la tutela del derecho de información no puede
suponer que los derechos fundamentales de quienes resulten afectados por su ejercicio se
vacíen de contenido.
Como establece el art. 10.2 del Convenio europeo de derecho humanos (SSTC 171/1990,
de 12 de noviembre FJ 5 y 121/2002, de 20 de mayo FJ 4) solo han de sacrificarse en la medida
en que resulte necesario para asegurar la información libre en una sociedad democrática.
En este sentido, el art. 8.2.a) de la LO 1/1982 prevé que “el derecho a la propia imagen no
impedirá: a) Su captación, reproducción o producción por cualquier medio cuando se trate de
personas que ejerzan un cargo público o una profesión de notoriedad o proyección pública y
la imagen se capte durante un acto público o en lugares abiertos al público”.
En consecuencia, el hecho de que una persona resulte detenida bajo la acusación de un
delito de abusos sexuales a menores y que adquiera una relevancia pública sobrevenida -al
menos de forma momentánea- no justifica cualquier difusión de su imagen pública. La libertad

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La utilización por los medios de comunicación de fotos de personas, sin su autorización, publicadas en redes sociales
Marta Grande Sanz

de información ampara informar sobre la detención e ingreso en prisión de la persona acusada


de la comisión de tales hechos e incluir información gráfica relacionada con estos hechos
-como pueden ser las imágenes de la detención del acusado, su entrada en el juzgado o su
entrada en prisión ya que su relevancia pública sobrevenida se ha producido por esos hechos-,
pero no justifica utilizar cualquier imagen del afectado ni aquellas que carecen de cualquier
conexión con los hechos noticiables y cuya difusión no ha consentido expresamente9.
Según el TS, tampoco cabe alegar la excepción del art. 8.2.c) de la LO 1/1982. La
reproducción de la imagen del acusado de la comisión de un delito en el acto del juicio,
entrando en el edificio del tribunal, en el curso de la reconstrucción judicial de los hechos y
en circunstancias similares puede considerarse accesoria de la información gráfica sobre un
suceso o acaecimiento público, acomodada a los cánones de la crónica de sucesos y, por tanto,
acorde con los usos sociales (art. 2.1 de la LO 1/1982). Sin embargo, no ocurre lo mismo con la
reproducción de una imagen de una cuenta de una red social, difundida sin su consentimiento
y sin relación con los hechos cuya relevancia pública justifica la información.
A pesar de ello, el TS reconoce que, en ocasiones, ha considerado relevante al
enjuiciar la legitimidad del ejercicio del derecho a la libertad de información el hecho de
que la información difundida -escrita o gráfica- sea de la víctima o del acusado al estar, en
ciertos casos, justificado afectar el derecho fundamental de la persona del acusado, pero no
al de la víctima que podría ver agravadas las consecuencias de haber sufrido un delito y
afectada gravemente su dignidad. Sin embargo, aclara que esto no quiere decir que cualquier
información sobre el acusado y, en particular, cualquier difusión pública de su imagen pueda
entenderse amparada en la libertad de información del art. 20.1.d) de la CE como sucede con
la difusión pública de la imagen de una persona obtenida de fotografías de sus cuentas de las
redes sociales. La formación de una opinión pública libre no exige, ni justifica, que se afecte

9
Según la STS 91/2017, la libertad de información no justificaba la publicación de una fotografía de
su perfil de Facebook sin consentimiento expreso del afectado. Una cuenta de Facebook no se considerar un
“lugar abierto al público” a los efectos del art. 8.2.a) de la LO 1/1982 ni el hecho de que pueda accederse li-
bremente a la fotografía del perfil de dicha cuenta supone el “consentimiento expresado” exigido por el art.
2.2 de la LO 1/1982 como excluyente de la ilicitud de la captación, reproducción o publicación de la imagen
de una persona. La finalidad de una cuenta abierta en una red social en Internet es la comunicación de su
titular con terceros y que esos terceros puedan tener acceso al contenido de esa cuenta e interactuar con su
titular, pero no que pueda publicarse la imagen del titular de la cuenta en un medio de comunicación.
La STJUE(Sala Segunda) de 7 de agosto de 2018 -asunto C-161/17, DOUE C 352/10 de 1 de octubre
de 2018- sostuvo que «la publicación en un sitio web de una fotografía que era accesible libremente en otra
web con el consentimiento del autor requiere una nueva autorización por parte del autor». Con carácter
general y con independencia del entorno en que se lleve a cabo la divulgación de la fotografía o de quién
sea el sujeto que la publique, resulta necesario el consentimiento de la persona que aparece en la foto y,
en su caso, del autor de la fotografía: en el primer caso, con relación al derecho a la propia imagen y, en
el segundo supuesto, al amparo de los derechos de explotación que otorga la ley de propiedad intelectual.
En este segundo caso cuando se trate de fotografías subidas a redes sociales habrá que tener en cuenta las
condiciones de uso de estas redes que, en realidad, son mecanismos de concesión de licencias sobre los
derechos de propiedad intelectual de los usuarios a favor de esa red social, para que utilización de adapte a
la legalidad. MARTÍNEZ PÉREZ, M.ª D., “Fotografías en redes sociales: aspectos legales de su difusión”.
https://bit.ly/39mxKzY.

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La utilización por los medios de comunicación de fotos de personas, sin su autorización, publicadas en redes sociales
Marta Grande Sanz

el derecho fundamental a la propia imagen de ese modo; máxime cuando la imagen tampoco
guarda conexión con los hechos de relevancia pública objeto de la información.

IV. CONCLUSIONES
En las sentencias expuestas se aborda el derecho que debe prevalecer cuando se produzca
un conflicto entre la libertad de información y el derecho a la propia imagen en aquellos casos
en que fotografías publicadas en una red social por los propios interesados son utilizadas por
medios de comunicación como accesorias a las noticias que publican.
El derecho de la personalidad, reconocido como derecho fundamental en el art. 18.1 de
la CE, atribuye a su titular la facultad de disponer de la representación de su aspecto físico y
de determinar qué información gráfica puede tener dimensión pública. En su faceta negativa
o excluyente, otorga la facultad de impedir la obtención, reproducción o publicación de su
propia imagen por un tercero sin el consentimiento expreso del titular, sea cual sea la finalidad
perseguida por quien la capta. El TC lo ha definido como “un derecho de la personalidad
derivado de la dignidad humana y dirigido a proteger la dimensión moral de las personas, que
atribuye a su titular un derecho a determinar la información gráfica generada por sus rasgos
físicos personales que puede tener dimensión pública”.
Sin embargo, el consentimiento de su titular de la imagen para que el público en general,
o un determinado número de personas, pueda ver su fotografía en un blog o en una cuenta
abierta en la web de una red social no conlleva la autorización para hacer uso de esa fotografía
y publicarla o divulgarla de una forma distinta al no existir el “consentimiento expreso”
que exige el art. 2.2 de la LO 1/1982 para evitar la ilicitud de la captación, reproducción o
publicación de la imagen de una persona.
La finalidad de una cuenta abierta en una red social es la comunicación de su titular con
terceros y permitir que esos terceros puedan acceder al contenido de dicha cuenta e interactuar
con su titular, pero no que la imagen se pueda publicar o difundir en cualquier medio. Así
lo han confirmado el TS en las sentencias comentadas -SSTS 91/2017 y 697/2019- y el TC
en la sentencia dictada recientemente. De este modo, mantienen la línea jurisprudencial que
venían defendiendo y la hacen extensible al ámbito de las redes sociales y a los medios de
comunicación que hagan uso de fotos subidas a una red social.

BIBLIOGRAFÍA
ABC, “El Supremo sentencia que publicar la foto de un detenido vulnera su intimidad”, 29 de diciembre
de 2019. https://bit.ly/2R82LzU
GABINETE TÉCNICO DEL TRIBUNAL SUPREMO, SALA CIVIL, “Sentencia 697/2019, de 19
de diciembre. Recurso (CAS) 4528/2018). Intromisión en el derecho a la propia imagen por
la publicación de la fotografía de una persona detenida y en prisión preventiva, obtenida de su
perfil de Facebook”. https://bit.ly/35PYw14
LÓPEZ, R., “¡Cuidado con las fotos de perfil!”, 30 de abril de 2018. https://bit.ly/2tTKwpU

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La utilización por los medios de comunicación de fotos de personas, sin su autorización, publicadas en redes sociales
Marta Grande Sanz

MARTIALAY, Á., “El Constitucional establece que los medios no pueden publicar fotos de las redes
sociales sin consentimiento”, 26 de febrero de 2020. https://bit.ly/2Ii8r6g
MARTÍNEZ OTERO, J.M.ª, “Derechos fundamentales y publicación de imágenes ajenas en las redes
sociales sin consentimiento”, Revista Española de Derecho Constitucional, n.º 106, págs. 119 a
148. http://dx.doi.org/10.18042/cepc/redc.106.03
MARTÍNEZ PEREZ, M.ª D., “Derecho a la propia imagen en redes sociales: fotografías y vídeos
personales”. https://bit.ly/39tDt7d
___ “Fotografías en redes sociales: aspectos legales de su difusión”. Disponible en: https://bit.
ly/39mxKzY.
PÉREZ SÁNCHEZ, G., “Medios de comunicación, derecho a la propia imagen y redes sociales”,
Diario de Ibiza, 5 de agosto de 2018. https://bit.ly/2FIedgb
YZQUIERDO TOLSADA, M., “Comentario de la Sentencia del Tribunal Supremo de 15 de febrero
de 2017 (91/2017). Si una fotografía es accesible al público por haberse subido a Facebook, ello
no legitima a un tercero para publicarla en un medio de comunicación sin consentimiento”, pág.
347 y ss. https://bit.ly/36NieMh

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A inteligência artificial como forma de repensar
o ingresso em juízo: o novo paradigma pelo
abrandamento dos vieses

Hannah Pereira Alff1

Resumo: O presente trabalho objetiva fazer um estudo da análise econômica do acesso a justiça, tendo
como ponto central o direito de acesso ao resultado justo do processo, e não necessariamente o acesso pleno
aos tribunais. Num momento em que a quarta revolução industrial aumenta de forma escalonada, importa
verificar como as mudanças de paradigmas sociais atingem as funções jurisdicionais. É importante perceber
que o acesso à justiça está amplo o suficiente para que ações de baixo, médio e alto custo estejam sendo
levadas ao Judiciário buscando uma solução. Porém, não necessariamente são ações que são socialmente
benéficas, devido ao custo de sua tramitação, seja para as partes, seja para movimentar a máquina do
Judiciário. De forma enviesada, as partes tendem a desenvolver um otimismo excessivo de que terão
causa ganha dentro de um contexto da cultura da litigância, de modo que é preciso verificar formas de se
utilizar as novas tecnologias com objetivo de abrandar comportamentos enviesados por meio de eventual
demonstração de fatos/dados. O estudo procura concluir de que forma os vieses cognitivos, pelo uso da
Inteligência Artificial, podem ser abrandados a ponto de potencialmente reduzir otimismos ou pessimismos
excessivos no âmbito do acesso à justiça.
Palavras-chave: Análise econômica do direito; acesso à justiça; Inteligência Artificial.

Abstract: This paper aims to make a study of the economic analysis of access to justice, having as
its central point the right of access to the fair decision of the process, and not necessarily full access to the
courts. At a time when forth industrial revolution is scaling up, it is important to see how changes in social
paradigms affect jurisdictional functions. It is important to realize that access to justice is wide enough that
low, medium and high cost actions are being brought to the Judiciary seeking a solution. However, they are
not necessarily actions that are socially beneficial, due to the cost of processing them, either for the parties,
or to move the Judiciary machine. In a biased way, the parties tend to develop an excessive optimism that
they will have a winning cause within the context of the culture of litigation, so it is necessary to check

1
Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universida-
de Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. Bolsista CAPES/PROEX. Advogada. E-mail: hannah.alff@
gmail.com.

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A inteligência artificial como forma de repensar o ingresso em juízo: o novo paradigma pelo abrandamento dos vieses
Hannah Pereira Alff

ways of using the new technologies in order to mitigate biased behaviors through eventual demonstration of
facts/data. The study seeks to conclude how cognitive biases, through the use of Artificial intelligence, can
be softened to the point of potentially reducing excessive optimism or pessimism in the context of access
to justice.
Keywords: Economic analysis of law; access to justice; Artificial intelligence.

INTRODUÇÃO
Considerando que o direito fundamental de acesso à justiça é um direito basilar da
jurisdição brasileira, pesquisas a respeito do tema podem ser metodologicamente realizadas
em diversos enfoques. Na presente pesquisa, o enfoque central será, assim, a verificação
de sua análise econômica num panorama contemporâneo de tragédia da justiça que veio
paulatinamente sendo construída desde a sedimentação do processo em massa.
A necessidade social latente de ter tudo o tempo todo o mais rápido possível, prejudicou
a atuação efetiva do Judiciário, obstando uma eficiente prestação de acesso ao direito. Desta
forma, numa ótica de macrojustiça e a entrega da melhor resposta possível aos litígios, o
direito tem buscado implementar novas técnicas e instrumentos que venham a auxiliar na
atuação jurisdicional, dentre elas, a utilização de Inteligência Artificial (IA).
Num segundo momento, o presente trabalho voltar-se-á, portanto, a análise dos vieses
cognitivos inseridos na ciência comportamental e a potencial mudança de paradigma pela
utilização de IA na tentativa de desenviesar o máximo possível as respostas judiciais geradas
por softwares.
Por fim, no terceiro momento da pesquisa, será verificado o direito fundamental de
acesso à justiça – ao direito – na Era digital, tendo em vista a então referida utilização de
instrumentos tecnológicos, que não mais se pode negar estar em ampla atividade adaptativa.

1. ANÁLISE ECONÔMICA DO ACESSO À JUSTIÇA


O princípio do acesso à justiça caracteriza-se pelo enunciado constitucional garantindo
que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário, lesão ou ameaça de direito”, de
forma que todo e qualquer indivíduo que assim necessitar pode buscar no Judiciário uma
saída para a resolução de sua lide.2
Ainda assim, é preciso ter em mente que, não necessariamente ao se ter acesso à apreciação
judicial – um acesso aos tribunais – se terá acesso à decisão justa da lide – um acesso ao
direito –, principalmente no que se refere ao custo-benefício.3 Há situações litigiosas, como
em direito de família e sucessões, que a apreciação da causa por um terceiro desinteressado
é de extrema importância, independentemente do valor à causa atribuído, pois a pecúnia

2
MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. 6. ed. rev. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2012. p. 315.
3
PEDROSO, João António Fernandes. Acesso ao Direito e à Justiça: um direito fundamental em
(des)construção. 2011. 675 f. Tese (Doutoramento em Economia) – Universidade de Coimbra, 2011. p. 5.

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A inteligência artificial como forma de repensar o ingresso em juízo: o novo paradigma pelo abrandamento dos vieses
Hannah Pereira Alff

não é objeto da lide. Porém, quando esta é a situação, a lide se dá pelo objeto ser um valor
monetário, os custos da litigância podem não valer a pena por superarem o valor da causa.
Numa Era de economia intangível, chega-se a um patamar de conflitos não usuais, para
os quais o Poder Judiciário precisa buscar uma forma de encontrar respostas por ter como
finalidade a realização da justiça por meio da jurisdição. O controle da paz social precisa
ser cada vez mais adaptado às realidades sociais, culturais e temporais que têm passado por
mudanças de paradigma.4
Conforme Luiz Fux e Bruno Bodart, “em análise preliminar, pode-se dizer que a internet
criou novos tipos de interesses e intensificou as relações interpessoais, criando com isso
conflitos até então inexistentes em qualidade e quantidade”.5 Nota-se que o aumento de
processos no setor Judiciário não é apenas pelo fato de se ter um acesso facilitado, mas também
por se aumentar a variedade de conflitos sociais que buscam solução por meio de apreciação
judiciária. A crise – ou tragédia – da justiça passa a ser atribuída pela má administração de
todas essas causas6, acumulado uma latente cultura da litigância.7
Neste sentido, a análise econômica do acesso à justiça ingressa como um estudo
transdisciplinar a fim de quebrar essa cultura da litigância ao poder-se fazer um cálculo lógico
de quando a litigância será socialmente beneficente e quando ela trará resultados desfavoráveis
ao bem-estar social.8 Isso quer dizer, somente será socialmente benéfico se o valor de todas as
custas processuais mais o valor do dano for menor do que um prejuízo social não controlado
pelo Poder Judiciário de conduta humana. Numa ótica panprocessualista, é importante frisar
que estes custos da litigância, portanto, não se referem apenas aos custos do autor em relação
ao seu dano, mas aos custos também do réu e do governo para assim movimentar a máquina
judiciária.9
Considerando os custos da litigância como um grande obstáculo ao bom desenvolvimento
da justiça, buscar tecnologias que facilitem um acesso ao resultado justo do processo
diminuindo estes custos, é viabilizar instrumentos que assim auxiliem a maior eficiência do
sistema jurisdicional. Como um instrumento da economia aplicado ao direito, a eficiência é
um conceito tratado como um princípio e direito fundamental basilar do controle jurisdicional,
a fim de garantir um processo em tempo razoável e, principalmente, menos oneroso.10 Trazer

4
ARENHART, Sérgio Cruz; OSNA, Gustavo. Curso de processo civil coletivo. São Paulo: Thom-
son Reuters, 2019. p. 132.
5
FUX, Luiz; BODART, Bruno. Processo Civil e Análise Econômica. Rio de Janeiro: Forense,
2019. p. 80-81.
6
WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a
psicologia podem vencer a tragédia da justiça. São Paulo: Thomson Reuters, 2019. p. 85-87.
7
MARCELLINO JR., Julio Cesar. Análise econômica do acesso à justiça: dilemas da litigância
predatória e inautêntica. Florianópolis: EMais, 2018. p. 17.
8
FUX, Luiz; BODART, Bruno. Processo Civil e Análise Econômica. Rio de Janeiro: Forense,
2019. p. 34.
9
ARENHART, Sérgio Cruz; OSNA, Gustavo. Curso de processo civil coletivo. São Paulo: Thom-
son Reuters, 2019. p. 57.
10
JOBIM, Marco Félix. As funções da Eficiência no Processo Civil Brasileiro. São Paulo: Thomp-
son Reuters Brasil, 2018. p. 34-35.

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A inteligência artificial como forma de repensar o ingresso em juízo: o novo paradigma pelo abrandamento dos vieses
Hannah Pereira Alff

eficiência ao processo é fazer a melhor análise possível do custo-benefício da relação litigiosa


ao ingressar ou não em juízo.

2. VIESES COGNITIVOS E A POTENCIAL ALTERAÇÃO DE PARADIGMA


PELA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NO ACESSO À JUSTIÇA NA ERA
DIGITAL
Conforme estudos de Erik Navarro Wolkart11, os desenvolvimentos atuais trazidos pelos
estudos da psicologia e neurociência, impedem os profissionais de diversas áreas de ignorarem
uma questão de fundamental importância, qual seja, a racionalidade do ser humano. Ainda de
acordo com o autor, até por volta de 1970 não havia quaisquer preocupações sob esta ótica,
fato que mudou pelos estudos dos psicólogos Daniel Kahneman e Amos Tversky em conjunto
com o economista Richard Thaler, os quais acabaram por desenvolver a chamada ciência
comportamental.
Assim, Juarez Freitas defende a necessidade de reestruturação da hermenêutica jurídica, a
fim de se levar em conta os recentes desenvolvimentos científicos, expressando a necessidade,
em suas palavras, que “discussões ociosas e apegos a categorias fósseis cedam lugar a estudos
sobre temais capitais como ilusões cognitivas, vieses, hábitos mentais e (des)enviesamento
dos juízos”.12 É preciso que se tenha, assim, uma pretensão de aprendizado e controle dos
vieses cognitivos que influenciam comportamentos, inerentes do ser humano, pois eles são
fatores de impacto tanto para o juiz no momento da tomada de decisão judicial, quanto para
as partes, na tentativa de resolução de conflito por acordo.13
O presente trabalho não pretende exaurir os diferentes vieses cognitivos – ou instintos,
como assim tratados por Hans Rosling14–, mas apenas pincelar aqueles trazidos como
fator de risco para o resultado justo do processo. Juarez Freitas apresenta a importância
de reconhecimento do enviesamento do comportamento humano para que se possa lidar
cientificamente com as escolhas tomadas como reflexo de hábitos mentais pois, “quem
pretende negar a presença dos vieses, aí mesmo é que se deixa enviesar”15, e assim lista
os principais vieses, quais sejam: viés da confirmação, falsa coerência, aversão à perda, do
“status quo”, enquadramento, preferência pelo presente, e otimismo excessivo.
Assim sendo, como viés central já exposto no texto, o viés do otimismo excessivo
gera resultados negativos tanto quando o juiz dele se utiliza, quando a parte age conforme

11
WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do Processo Civil: como a economia, o direito e
a psicologia podem vencer a tragédia da justiça. São Paulo: Thomson Reuters, 2019. p. 406-408.
12
FREITAS, Juarez. Interpretação Judicial: Exame crítico dos vieses. In: Revista da AJUFERGS.
Porto Alegre, n. 10, p. 57-84, 2018. p. 58.
13
WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do Processo Civil: como a economia, o direito e
a psicologia podem vencer a tragédia da justiça. São Paulo: Thomson Reuters, 2019. p. 410.
14
Neste sentido, ler: ROSLING, Hans; ROSLING, Ola; ROSLING, Anna. Factfulness: O hábito
libertador de só ter opiniões baseadas em fatos. Rio de Janeiro: Record, 2019.
15
FREITAS, Juarez. Interpretação Judicial: Exame crítico dos vieses. In: Revista da AJUFERGS.
Porto Alegre, n. 10, p. 57-84, 2018. p. 64.

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A inteligência artificial como forma de repensar o ingresso em juízo: o novo paradigma pelo abrandamento dos vieses
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este instinto. De acordo com Miguel Carlos Teixeira Patrício, este viés, em uma pequena
comparação com a teoria dos jogos, seria “o nível de conhecimentos adquirido pelos jogadores
sobre os outros e sobre o jogo influencia o comportamento de todos”.16 Assim sendo, a
visualização da potencial condenação como maior ou menor, já pode servir de justificativa
para uma maior ou menor chance de acordo extrajudicial. Em se tratando do magistrado,
observa Juarez Freitas:17

[…] a confiança extremada guarda conexão estreita com as previsões exageradamente


seguras (e negligentes), ligadas a erros nem sempre inocentes. A solução, nesse
caso, é adotar dose moderada de otimismo, pois o excesso de confiança deturpa os
julgamentos e alija os cuidados inerentes à prevenção e à precaução. O melhor é se
abster de julgar até recuperar o estado emocional equilibrado. Extremismo nunca
será boa predisposição.

Exemplo do viés do otimismo excessivo em relação a parte é trazido por Erik Wolkart
Navarro:18

[…] no processo civil brasileiro, em razão de custos, os intervalos de acordo tendem a


ser estreitos. A presença de incerteza, acoplada ao otimismo não raro zera esse intervalo,
frustrando as possibilidades de comportamento cooperativo. Quando não existe
incerteza, o que, como vimos, é quase impossível, as partes bem informadas concordam
quanto as chances de procedência do pedido. Nessa perspectiva, sendo positivos os
custos do processo, sempre haverá acordo, desde que não haja otimismo envolvido na
avaliação final. Reafirmando: a impossibilidade de comportamento cooperativo para a
autocomposição decorre sempre da incerteza acoplada ao otimismo.

Assim, o julgamento tende a ser mais provável quando assim houver uma situação de
otimismo excessivo provinda de alguma das partes não tendentes a estancar o litígio antes do
necessário proferimento judicial a respeito da causa.19 A fim de que se possa alterar o presente
problema apresentado, propõe-se a alteração de paradigma pela utilização da Inteligência
Artificial a fim de que se possa auxiliar a redução de otimismos ou pessimismos excessivos
no âmbito do Poder Judiciário.
Tendo-se o acesso à justiça se tornado o ponto central de debate na processualística da
contemporaneidade20, não se pode ignorar que é preciso verificar a constância de aplicação

16
PATRÍCIO, Miguel Carlos Teixeira. Análise Económica da Litigância. Coimbra: Almedina,
2005. p. 39.
17
FREITAS, Juarez. Interpretação Judicial: Exame crítico dos vieses. In: Revista da AJUFERGS.
Porto Alegre, n. 10, p. 57-84, 2018. p. 75-76.
18
WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do Processo Civil: como a economia, o direito e
a psicologia podem vencer a tragédia da justiça. São Paulo: Thomson Reuters, 2019. p. 411.
19
PATRÍCIO, Miguel Carlos Teixeira. Análise Económica da Litigância. Coimbra: Almedina,
2005. p. 58.
20
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988. p. 12-13.

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A inteligência artificial como forma de repensar o ingresso em juízo: o novo paradigma pelo abrandamento dos vieses
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deste princípio em um período em que se exige celeridade em todas as situações da vida.21


Assim sendo, com o avanço tecnológico, crescem as oportunidades de resolução de conflitos
por plataformas online, tanto para que se tenha resultado pelos Métodos adequados de
resolução de conflitos (MARCs)22, quanto pelas então chamadas online dispute resolution
(ODR).23
Ao se aprofundarem os estudos neste último instituto, Luiz Fux e Bruno Bodart chegaram
a conclusões importantes acerca da já então redução em potencial dos vieses cognitivos.
Assim lê-se:24

Outro potencial benefício dos métodos de ODR é a redução de vieses cognitivos,


tanto em relação às partes quanto no que tange aos responsáveis por conduzir as
negociações, por meio do adequado desenho e da escolha da linguagem oferecida na
plataforma. […] a tecnologia pode ser importante aliada na eliminação de otimismos
ou pessimismos excessivos.

Há muitos anos, a Inteligência Artificial vem sendo trabalhada para que tenha suficientes
características humanas. Isso foi possível pela grande disponibilidade de dados que se tem
hoje e pelos avanços das tecnologias de comunicação. Porém, um obstáculo que se encontra é
a forma pelo qual a IA vai se manter atualizada, no intuito de manter a característica humana,
se ela precisa estar sempre aprendendo com os poucos exemplos com a qual é nutrida. As
expressões “Lifelong Learning, Reinforcement Learning, Continuous Learning eTransfer
Learning” se referem atualmente no contexto de IA aos pesquisadores que se dedicam a buscar
uma fórmula matemática que contenha a capacidade de imitar o comportamento humano que
vive em constante mutação.25
Conforme Dierle Nunes, “o recente boom da IA se deve a avanços significativos no
aprendizado das máquinas”, qual seja, a oportunidade de deixa-las descobrir as regras do
jogo, sem que tenham sido programadas para identifica-las, pois, conforme o autor, isso seria
mais complexo do que o desejado. “A Inteligência Artificial funciona a partir de sistemas de
dados programados para dar respostas conforme a base de dados disponível”. Assim expressa,
ainda, o autor:26

21
MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas:
Sistematização, análise e interpretação do novo instituto processual. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 15.
22
ECKSCHMIDT, Thomas; MAGALHÃES, Mario E. S.; MUHR, Diana. Do conflito ao acordo na
era digital: meios eletrônicos para solução de conflitos – MESC. 2. ed. Curitiba: Doyen, 2016.
23
ANDRADE, Henrique dos Santos; MARCACINI, Augusto. Os novos meios alternativos ao Ju-
diciário para a solução de conflito, apoiados pelas tecnologias da informação e comunicação. Revista de
Processo, São Paulo, n. 268, p. 587-612, jun. 2017.
24
FUX, Luiz; BODART, Bruno. Processo Civil e Análise Econômica. Rio de Janeiro: Forense,
2019. p. 81.
25
DA SILVA, Nilton Correia. Inteligência Artificial. FRAZÃO, Ana; MULHOLLAND, Caitlin
(Org.). Inteligência Artificial e Direito: ética, regulação e responsabilidade. p. 35-52. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2019. p. 36.
26
NUNES, Dierle. Inteligência Artificial e Direito Processual: vieses algorítmicos e os riscos de
atribuição de função decisória às máquinas. In: Revista de Processo. Vol. 285. p. 1-19, 2018. Versão em

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A inteligência artificial como forma de repensar o ingresso em juízo: o novo paradigma pelo abrandamento dos vieses
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Importante consignar que os mecanismos de Inteligência Artificial dependem de


modelos, os quais consistem em representações abstratas de determinado processo,
sendo, em sua própria natureza, simplificações de nosso mundo real e complexo.
Ao criar um modelo, os programadores devem selecionar as informações que serão
fornecidas ao sistema de IA e que serão utilizadas para prever soluções e/ou resultados
futuros. Essas escolhas, portanto, fazem com que sempre haja pontos cegos nos
algoritmos, os quais refletem os objetivos, prioridades e concepções de seu criador,
de modo que os modelos são, a todo tempo, permeados pela subjetividade do sujeito
que os desenvolve. Esses blindspots podem ser irrelevantes para os resultados
pretendidos pelos modelos. Por outro lado, podem ser ignoradas informações
importantes para correta análise da situação, influenciando negativamente nas
respostas dadas pelo sistema.

Importa frisar, desta forma, que, por mais que estas máquinas sejam alimentadas com
dados e tiram conclusões “por si mesmas” das situações que lhes são colocadas, elas ainda são
alimentadas por seres humanos, portanto enviesados, fazendo uma coleta de dados baseados
em seus próprios critérios e vieses cognitivos, podendo vir a enviesar também o algoritmo
responsável por esta função.
O acesso à justiça, neste caso, pode ser assim mais célere pela utilização de uma
Inteligência Artificial programada e rápida, mas isso não significa necessariamente dizer
que terá acesso ao direito mais desenviesado. A busca pela solução da atualmente tratada
como tragédia da justiça, implica em instrumentos que desafoguem a grande demanda do
Judiciário.
O passo inicial que se precisa dar para solucionar esta tragédia, é a sociedade assumir
um papel cooperativo, mesmo que não seja a única solução, é uma tentativa de evitar o
esgotamento dos recursos comuns para o benefício da coletividade.27 Compreender que não
só porque o acesso à justiça está disponível que se deve abusar dele, pois assim, de um direito
tão aberto, passa a ser inatingível para todos.28
Miguel Carlos Teixeira Patrício indica que a escassez advém exatamente desta visão
individualista de processo, em que o benefício da coletividade fica em segundo plano quando
se trata de benefício próprio:29

Um dos motivos para tal excesso prende-se com o facto de o queixoso tomar a sua
decisão avaliando, somente, os custos próprios e não os custos do acusado ou do
próprio Estado. O mesmo se pode dizer em relação aos benefícios que se podem

PDF. p. 3-5.
27
WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do Processo Civil: como a economia, o direito e
a psicologia podem vencer a tragédia da justiça. São Paulo: Thomson Reuters, 2019. p. 91.
28
MARCELLINO JR., Julio Cesar. Análise Económica do Acesso à Justiça: dilemas da litigância
predatória e inautêntica. Florianópolis: EMais, 2018. p. 173.
29
PATRÍCIO, Miguel Carlos Teixeira. Análise Económica da Litigância. Coimbra: Almedina,
2005. p. 46.

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retirar com a litigância judicial – também aqui se tem verificado uma clara divergência
entre a ponderação dos benefícios privados e dos benefícios sociais[…]

Uma outra solução encontrada, ainda que pela tendência de uma “cooperação forçada”30,
pelo próprio autor, seria instituir algo no Brasil semelhante ao conteúdo da Rule 11 da Federal
Rulesof Civil Procedure dos Estados Unidos da América, qual seja, um princípio que exige
às partes fazer uma análise da real necessidade de ir a juízo para solução do litígio. É um
princípio que impõe punições as demandas frívolas, ou seja, aquelas sem probabilidade
de ganho, incentivadas pelo amplo acesso à justiça. As partes e os advogados destas são
obrigados a “stop-and-think-again” – parar e pensar de novo – se realmente o custo-benefício
de ingressar em juízo vale a pena ao fim e ao cabo.31
Erik Navarro Wolkart, por sua vez, acredita que se pode atingir um equilíbrio de forma
simples, ao se poder satisfazer as necessidades individuais tanto quanto preservar parte do
recurso suficiente à regeneração e reutilização, permitindo um uso “sustentável ao longo do
tempo. Ou seja, o nível socialmente ótimo é aquele que maximiza sua utilidade agregada”.32
A utilização de Inteligência Artificial pode auxiliar inclusive as partes na indicação de suas
demandas como frívolas. Ao restringir o viés do otimismo excessivo, esse software mostraria
às partes suas chances de perdas e ganhos, assim como cálculos dos custos do processo.
Conforme Luiz Fux e Bruno Bodart, “quando a demanda tem valor esperado negativo apenas
porque os custos de litigar são excessivos” é socialmente desejável pela economia de recursos
públicos, que as partes internalizem esses valores em excesso, e tendam a resolução do litígio
por meios não judiciais.33

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo em vista o acesso à justiça como princípio norteador e de grande necessidade de
debate na processualística moderna, a sua análise econômica leva a concluir que o seu amplo
acesso acaba restringindo o efetivo acesso ao direito. Isso porque a sociedade está imbuída de
uma cultura da litigância e hábitos comportamentais, sem que se faça um cálculo prévio do
custo-benefício e a aceitabilidade social daquela demanda.

30
Erik Navarro Wolkart também trata desta necessidade de incentivos a diminuição de demandas
frívolas, indicando que seria necessária uma movimentação no Brasil no sentido de promover a “internali-
zação das consequências negativas do uso da atividade jurisdicional”, fato que diminuiria o instinto latente
de ajuizamento de demandas. WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do Processo Civil: como a
economia, o direito e a psicologia podem vencer a tragédia da justiça. São Paulo: Thomson Reuters, 2019.
p. 92.
31
PATRÍCIO, Miguel Carlos Teixeira. Análise Económica da Litigância. Coimbra: Almedina,
2005. p. 81.
32
WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do Processo Civil: como a economia, o direito e
a psicologia podem vencer a tragédia da justiça. São Paulo: Thomson Reuters, 2019. p. 91.
33
FUX, Luiz; BODART, Bruno. Processo Civil e Análise Econômica. Rio de Janeiro: Forense,
2019. p. 95.

— 56 —
A inteligência artificial como forma de repensar o ingresso em juízo: o novo paradigma pelo abrandamento dos vieses
Hannah Pereira Alff

A Inteligência Artificial vem para o direito a fim de, dentre tantos outros objetivos,
auxiliar nesta redução dos vieses cognitivos. O viés do otimismo excessivo não permite que as
partes avaliem a real necessidade da apreciação jurisdicional da lide, fato que, pelo potencial
filtro realizado pela Inteligência Artificial, poderia auxiliar neste cálculo a ser apresentado
às partes das chances de perda e ganho, do abrandamento de pessimismos ou otimismos
excessivos que obstam uma atividade eficiente do Poder Judiciário.
No entanto, importa preocupar-se com o fato de que o algoritmo responsável por
esta ou aquela medida não necessariamente é plenamente desenviesado, tendo em vista ser
alimentado por dados fornecidos por pessoas, que, enviesadas, acabam passando para as
máquinas somente determinadas informações que podem conter pontos cegos.
Assim sendo, é essencial que se verifique se é melhor que as máquinas efetivamente
substituam atividades humanas, ou se não é melhor que os humanos se aperfeiçoem pelo
auxílio e utilização da então Inteligência Artificial. Uma busca conjunta tanto pelo não
ingresso de ações frívolas na tentativa de amenizar a tragédia da justiça, quanto de tomada de
decisões de forma desenviesada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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atribuição de função decisória às máquinas. In: Revista de Processo. Vol. 285. p. 1-19, 2018.
Versão em PDF.
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psicologia podem vencer a tragédia da justiça. São Paulo: Thomson Reuters, 2019.

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Nanoagroquímicos: um novo desafio da 4ª
revolução industrial à saúde dos trabalhadores1

Raquel von Hohendorff2


Daniele Weber da S. Leal3

Resumo: Vivencia-se na sociedade atual diversas mudanças oriundas da Quarta Revolução Industrial,
e este artigo faz referência às novas incertezas das nanotecnologias, ao risco e aos questionamentos jurídicos
que são apresentados ao Direito, considerando esse cenário. A utilização da escala nanométrica avança
exponencialmente e, enfrenta-se uma (in)certeza científica sobre a segurança das nanopartículas, em especial
no que tange os agroquímicos. Tendo em vista a origem industrial, obviamente que a desde a fabricação
ocorre a manipulação e contato com os trabalhadores. Aqui se verifica o risco aos quais são expostos os
trabalhadores na área dos nanoagroquímicos. Observa-se necessário proporcionar condições mínimas de
segurança para o exercício das atividades laborais sem prejuízos à saúde. Desta forma, o problema de
pesquisa deste artigo é: Como o Direito, mais especificamente a seara do Direito do Trabalho, poderá lidar
com as incertezas das nanotecnologias nos agroquímicos? Para o desenvolvimento utiliza-se o método
sistêmico-construtivista, analisando as definições de risco nanotecnológico, com enfoque no trabalhador
e agroquímicos, a partir da pesquisa bibliográfica, especialmente por meio das publicações disponíveis no

1
Resultado parcial das investigações desenvolvidas pelos autores no âmbito do Projeto “Sistema do
Direito, novas tecnologias, globalização e o constitucionalismo contemporâneo: desafios e perspectivas”
com apoio financeiro concedido pela Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado do Rio Grande do Sul –
FAPERGS Edital FAPERGS/CAPES 06/2018 – Programa de internacionalização da pós-graduação no RS
e também no Projeto Transdisciplinaridade e Direito: construindo alternativas jurídicas para os desafios
trazidos pelas novas tecnologias com apoio financeiro concedido pela Fundação de Amparo à Pesquisa no
Estado do Rio Grande do Sul – FAPERGS Edital 04/2019 Auxílio Recém Doutor.
2
Doutora e Mestra em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos -UNISINOS.
Especialista em Direito e Processo do Trabalho-UNISINOS. Integrante do grupo de pesquisa JUSNANO
(Cnpq). Professora do Programa de Pós-graduação e graduação Unisinos. Advogada. Email: vetraq@gmail.
com.
3
Doutoranda (bolsista CAPES/PROEX) e Mestra em Direito Público pela Universidade do Vale do
Rio dos Sinos -UNISINOS. Especialista em Direito Público -LFG. Integrante do grupo de pesquisa JUS-
NANO (Cnpq). Professora universitária da FACCAT. Advogada. Email: weber.daniele@yahoo.com.br.

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Nanoagroquímicos: um novo desafio da 4ª revolução industrial à saúde dos trabalhadores
Raquel von Hohendorff - Daniele Weber da S. Leal

Portal de Periódicos da CAPES. Como resultados, se observa que existe uma incerteza científica sobre a
ocorrência ou não dos riscos - ao longo de toda a cadeia produtiva, incluindo o consumidor e o descarte ou
reuso – trazidos pelas nanopartículas quando utilizadas nos agroquímicos.
Palavras-chave: nanoagroquímicos; risco; Direito do trabalho.

Abstract: There are several changes in the current society experienced in the Fourth Industrial
Revolution, and this article refers to the new uncertainties of nanotechnologies, the risk and the legal
questions that are presented to the Law, considering this scenario. The use of the nanoscale advances
exponentially and, there is a (un) scientific certainty about the safety of nanoparticles, especially with
regard to agrochemicals. In view of the industrial origin, it is obvious that since manufacture, manipulation
and contact with workers occurs. Here we see the risk to which workers in the field of nano agrochemicals
are exposed. It is observed that it is necessary to provide minimum safety conditions for the exercise of
work activities without damage to health. Thus, the research problem of this article is: How can Law, more
specifically the area of Labor Law, deal with the uncertainties of nanotechnologies in agrochemicals? For
the development, the systemic-constructivist method is used, analyzing the definitions of nanotechnological
risk, focusing on the worker and agrochemicals, based on bibliographic research, especially through the
publications available on the CAPES Portal of Journals. As a result, it is observed that there is a scientific
uncertainty about the occurrence or not of the risks - along the entire production chain, including the
consumer and the disposal or reuse - brought by nanoparticles when used in agrochemicals.
Keywords: nano agrochemicals; risk; Labor law.

1. INTRODUÇÃO
A revolução nanotecnológica já está em curso e os produtos resultantes estão sendo
consumidos, sem que seus reais riscos e efeitos sobre a saúde humana e ambiental sejam
conhecidos. Hoje, em termos de Ciência, as dúvidas se sobrepõem às certezas e o Direito
também está sendo atingido por essa nova realidade repleta de incertezas. A nanotecnologia,
como inovação, traz à tona questões relacionadas com diferentes áreas do conhecimento,
inclusive o Direito, especialmente em função dos novos riscos advindos de seu uso.
Embora seja difícil prever o futuro papel que a nanotecnologia irá desempenhar no
desenvolvimento de insumos agrícolas, há uma clara indicação da direção que a indústria está
seguindo. Em teoria, os nutrientes em nano escala podem ser capazes de penetrar nos poros
das plantas onde seus homólogos em tamanho macro não conseguem. Assim, reduzir-se-ia, em
muito, os gastos com desperdícios de fertilizantes nas culturas. Esse também é o caminho dos
nano agroquímicos. As incertezas surgidas graças à potencialização dos riscos dos produtos
nano agroquímicos tornam necessários mais estudos na área de nano toxicologia, de modo a
evitar maiores danos com efeitos graves e imprevisíveis ao meio ambiente e à saúde humana.
Os possíveis danos dessa nova tecnologia afetam primordialmente a saúde do trabalhador,
que passa a interagir com partículas nano particuladas ao longo de todo o ciclo de vida do
produto. O conceito de ciclo de vida do produto faz parte faz parte de uma política brasileira de
sustentabilidade e está incluso na Lei que institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos4 (Lei

4
BRASIL. Lei nº 12.305, de 2 de agosto de 2010. Institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos;
altera a Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998; e dá outras providências. Disponível em: http://www.
planalto. gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12305.htm. Acesso em: 15 jan. 2020.

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Nanoagroquímicos: um novo desafio da 4ª revolução industrial à saúde dos trabalhadores
Raquel von Hohendorff - Daniele Weber da S. Leal

nº 12.305/10), no Art. 3º, IV: “IV - Ciclo da vida do produto: série de etapas que envolvem o
desenvolvimento do produto, a obtenção de matérias-primas e insumos, o processo produtivo,
o consumo e a disposição final;”.
A partir desta nova realidade, de que maneira o Direito está lidando com estas novas
demandas das nanotecnologias face ao possível risco ao trabalhador? Portanto, se faz
necessário pesquisar as interfaces entre as Nanotecnologias e o Direito do Trabalho,
abordando o pouco que é conhecido, as indefinições, os aspectos que ainda precisam de
maiores estudos continuados no tempo, os possíveis riscos em relação à contaminação por
produtos nano agroquímicos, especialmente em um país onde a liberação de uso de novos
produtos agroquímicos cresce constantemente. Cabe lembrar ainda, que ao longo do ano de
2019, no Brasil, nos primeiros 100diasdo ano, foram liberados 152 agrotóxicos, sendo que 44
são da classe mais perigosa e apenas 18 da classe menos tóxica, ampliando assim os riscos.5
Para o desenvolvimento deste artigo, utilizou-se o método sistêmico-construtivista,
partindo das definições de risco nanotecnológico, com enfoque no trabalhador e agroquímicos,
a partir da pesquisa bibliográfica, especialmente por meio das publicações disponíveis no
Portal de Periódicos da CAPES.

2. OS PRODUTOS NANOAGROQUÍMICOS E O RISCO


A nanotecnologia é o conjunto de ações de pesquisa, desenvolvimento e inovação obtida
graças às especiais propriedades da matéria organizada a partir de estruturas de dimensões
nanométricas. A expressão nanotecnologia deriva do prefixo grego nános, que significa anão,
techne que equivale a ofício, e logos que expressa conhecimento. Atualmente, a tecnologia em
escala nano traz consigo muitas incertezas, especialmente concernentes aos riscos altamente
nocivos à saúde e ao meio ambiente.6
O termo nanotecnologia tem despertado controvérsias acerca das medidas que devem ser
consideradas para a categorização de um produto ou processo que esteja sendo trabalhado na
nano escala. Portanto, deve-se partir de uma padronização e assim, adota-se aqui a definição
desenvolvida pela International Organization for Standardization (ISO) - ISO/TC 2297,
onde se verificam duas características fundamentais: a) produtos ou processos que estejam
tipicamente, mas não exclusivamente, abaixo de 100nm (cem nanômetros); e b) nesta escala,

5
BASSI, Bruno Stankevicius. No centésimo dia, governo autoriza mais 31 agrotóxicos; metade
deles, “extremamente tóxicos”. Disponível em: https://deolhonosruralistas.com.br/2019/04/10/no-cente-
simo-dia-governo-autoriza-mais-31-agrotoxicos-metade-deles-extremamente-toxicos/. Acesso em: 16 jan.
2020.
6
DURÁN, Nelson; MATTOSO, Luiz Henrique Capparelli; MORAIS, Paulo Cezar de. Nanotecno-
logia: introdução, preparação e caracterização de nanomateriais e exemplos de aplicação. 1. ed. São Paulo:
Artliber, 2006.
7
INTERNATIONAL ORGANIZATION FOR STANDARDIZATION (ISO). ISO/TC 229: nano-
technologies. Geneva, 2005. Disponível em:
http://www.iso.org/iso/standards_development/technical_ committees/list_ of_iso_technical_commit-
tees/iso_technical_committee.htm?commid=381983. Acesso em: 15 jan.2020.

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Nanoagroquímicos: um novo desafio da 4ª revolução industrial à saúde dos trabalhadores
Raquel von Hohendorff - Daniele Weber da S. Leal

as propriedades físico-químicas devem ser diferentes dos produtos ou processos que estejam
em escalas maiores.
Na área de alimentos e agricultura as inovações são surpreendentes. Cheng et al8 revisaram
muitos estudos envolvendo nanotecnologia na agricultura. Por exemplo, no manejo do solo, as
aplicações relatadas incluem nanofertilizantes, aglutinantes do solo, auxiliares de retenção de
água e monitores de nutrientes. Em vegetais, o uso de nanotecnologia pode melhorar a absorção
de nutrientes e detectar patógenos. São relatadas inúmeras aplicações pós-colheita, incluindo
a geração de nanocelulose de resíduos agrícolas e há outros produtos que são absorvidos
diretamente pelas plantas e não são arrastados pelas águas da chuva e da irrigação.
Como as nanopartículas são muito pequenas, medindo menos de um centésimo de
bilionésimo de metro, são regidas por leis físicas muito diferentes daquelas com as quais a ciência
está acostumada. Há probabilidades de que as nanopartículas apresentem grau de toxicidade
maior do que as partículas em tamanhos normais, podendo assim ocasionar riscos à saúde e
segurança de pesquisadores, trabalhadores e consumidores. Materiais em nanoescala podem
ser biologicamente mais ativos do que os materiais em tamanho macro, e possuem capacidade
única de interagir com proteínas e outros elementos funcionais biológicos essenciais.9
Existem mais de cem pesticidas que contém prata em função de suas propriedades
antimicrobianas e a toxicidade das nanopartículas de prata para o ecossistema e para a saúde
humana é uma grande preocupação.10No trabalho desenvolvido pelos pesquisadores Lu,
Senapati, Wang, Tovmachenko, Singh, Yu e Ray11 demonstrou-se que as nanopartículas de
citrato de prata coloidais não são genotóxicas e nem citotóxicas para os seres humanos, no
entanto, nanopartículas de citrato de prata revestidas em forma de pó tem alta toxicidade.
O desenvolvimento da nanotecnologia ocorreu na ausência de regras claras para os
desenvolvedores de materiais químicos e sobre a forma de integrar as questões de saúde,
segurança e meio ambiente. Desta forma, o Direito deve passar a ocupar importante papel
na gestão dos riscos, e, para tanto, os princípios serão imprescindíveis.
Entre os princípios e indicadores que devem ser seguidos para a supervisão das
nanotecnologias e nanomateriais podem ser citados:12 a) abordagem precaucional; b)

8
CHENG, Huai N. et al. Nanotechnology in agriculture. In: CHENG, Huai. N. et al. (Ed.). Nano-
technology: delivering on the promise. Washington: American Chemical Society, 2016. v. 2. (ACS Sym-
posium Series, 1224).
9
Oberdörster, G., OberdörsteR, E.; Oberdörster, J. Nanotoxicology: an emerg-
ing discipline evolving from studies of ultrafine particles. Environmental Health Perspectives, Research
Triangle Park, v. 113, n. 7, July 2005. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/16002369.
Acesso em: 17 jan. 2020.
10
KHOT, Lav R.; SANKARAN, Sindhuja; MAJA, Joe Mari; EHSANI, Reza; SCHUSTER, Ed-
mund W. Applications of nanomaterials in agricultural production and crop protection: A review. Crop
Protection, a. 35, 2012. p. 64-70.
11
LU, W.; SENAPATI, D.; WANG, S.; TOVMACHENKO, O.; SINGH, A.K.; YU, H.; RAY, P.C.
Effect of surface coating on the toxicity of silver nanomaterials on human skin keratinocytes. Chemical
Physics Letters, v. 487, 2010. p. 92-96.
12
INTERNATIONAL CENTER FOR TECHNOLOGY ASSESSMENT. Principles for the over-
sight of nanotechnologies and nanomaterials. Washington: NanoAction, Jan. 2007. (NanoAction

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Nanoagroquímicos: um novo desafio da 4ª revolução industrial à saúde dos trabalhadores
Raquel von Hohendorff - Daniele Weber da S. Leal

preocupação com saúde e segurança dos trabalhadores; c) preocupação com a sustentabilidade


ambiental; d) transparência; participação pública; e) estudos mais amplos acerca de impactos;
e f) responsabilidade do fabricante. Ocorre que, apesar de grandes discussões e debates, a
questão da regulação da nanotecnologia ainda não resta definida em muitos países, inclusive
no Brasil, o que não tem impedido que um grande número de produtos já esteja no mercado.
Tal situação gera inquietação e desconforto em vários segmentos da sociedade (comunidade
científica, organismos não-governamentais e empresariado).

3. “IRRITAÇÕES” NO DIREITO DO TRABALHO FACE ÀS


NANOTECNOLOGIAS
Considerando a necessidade de proteção ao meio ambiente do trabalho e assim, à saúde
do trabalhador, já descritos como princípios necessários à supervisão das nanotecnologias,
pergunta-se: quais são as irritações no direito do trabalho geradas pelas nanotecnologias?
Como é possível proteger os trabalhadores se os riscos desta tecnologia são desconhecidos?
Assim, fica a pergunta: como o Direito do Trabalho pode lidar com os riscos provenientes
dos nano agroquímicos? Como efetivamente proteger os trabalhadores e aplicar também
o princípio da precaução? O que se pode esperar de um ramo do Direito, como o Direito
do Trabalho, onde as questões de saúde do trabalhador são regidas, em sua maioria, por
portarias muito antigas? Normas estas elaboradas há mais de duas ou três décadas e que
não preveem – e nem poderiam, visto o avanço tecnológico- absolutamente nada acerca de
riscos desconhecidos de novas tecnologias. O caminho possível necessita perpassar pelos
princípios, especialmente da proteção e precaução, assim como pelos novos conhecimentos
que vem sendo produzidos por agências internacionais sobre o tema.
Em 2008 foi publicada pela International Organization for Standar dizationa ISO/ TR
12885:2008 que descreve práticas em saúde e segurança ocupacional e definições relevantes
para as nanotecnologias.13Já em 2009, Observatório Europeu dos Riscos, da Agência
Europeia para a Segurança e Saúde no Trabalho publicou as Previsões de peritos sobre os
riscos emergentes relacionados com a segurança e saúde ocupacional onde afirma que as
nanopartículas foram os riscos emergentes em que os especialistas tiveram maior consenso,
sendo reconhecidos como uma das principais prioridades de pesquisa em matéria de Segurança
e saúde do Trabalho. Menciona, ainda, na conclusão, que embora os dados quantitativos
necessários para uma avaliação de risco satisfatório ainda sejam insuficientes, há informação
disponível suficiente para que sejam iniciadas avaliações preliminares e sejam desenvolvidas
práticas para reduzir a exposição dos trabalhadores.14

Project). Disponível em: http://www.centerforfoodsafety.org/files/final-pdf-principles-for-oversight-of-


nanotechnologies_80684.pdf. Acesso em: 05 jan. 2020.
13
INTERNATIONAL ORGANIZATION FOR STANDARDIZATION (ISO). Ballot on ISO/DTR
12885: nanotechnologies: health and safety practices in occupational settings. Geneva, 2017.
14
OSHA. Expert Forecast on Emerging Chemical Risks Related to Occupational Safety and Health.
2009. Disponível em: http://osha.europa.eu/en/publications/reports/TE3008390ENC_chemical_risks/
view. Acesso em: 06 jan.2020.

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Nanoagroquímicos: um novo desafio da 4ª revolução industrial à saúde dos trabalhadores
Raquel von Hohendorff - Daniele Weber da S. Leal

Em 2010 a OIT já chamava a atenção para o tema, ao publicar o relatório Riscos


Emergentes e Novos Modelos de Prevenção em um Mundo do Trabalho em Transformação,
quando reconhece que os riscos novos e emergentes do trabalho podem ser provocados pela
inovação técnica ou pelas mudanças sociais ou de organização. No mesmo documento, a
OIT estima que em 2020, aproximadamente 20% de todos os produtos manufaturados no
mundo utilizarão nanotecnologias.15Em 2017 a Organização Mundial da Saúde16publicou
diretrizes com recomendações sobre a melhor forma de proteger os trabalhadores contra os
riscos potenciais dos nanomateriais. As recomendações destinam-se a ajudar os formuladores
de políticas e os profissionais na área da saúde e segurança ocupacional a tomar decisões
sobre a melhor proteção contra riscos potenciais específicos para estes materiais nos locais
de trabalho. A exposição no local de trabalho pode ocorrer em áreas onde os nanomateriais
são produzidos, manipulados e processados ou aqueles em que produtos nano-habilitados são
usados por profissionais.
No atual momento de conhecimento do Sistema da Ciência, se sabe muito pouco
sobre as possíveis reações das nanopartículas no meio ambiente, assim, as dúvidas sobre
o comportamento dos nanomateriais seguem existindo, especialmente porque os testes
desenvolvidos na área de nanotoxicologia possuem, quase sempre, a desvantagem de serem
realizados em ambientes controlados, in vitro, o que gera dados muito diferentes do que
poderá acontecer quando em ambiente natural, sujeitos a inúmeros fatores bióticos e abióticos.
Ainda, entre as incertezas existentes, insere-se a preocupação com os possíveis impactos para
a saúde daqueles que eventualmente manipularão uma nano partícula. Como fazer, de modo
seguro, o manuseio, transporte, armazenamento e descarte dos nanomateriais? Apesar das
vantagens que oferecem, muitos trabalhadores não sabem que trabalham com eles e seus
efeitos nocivos ainda não estão claros. Os especialistas pedem cautela e precaução e deve-se,
em primeiro lugar, pensar na segurança e na saúde das pessoas e do meio ambiente.17
É preciso que sejam desenvolvidas, paralelamente às pesquisas que já estão ocorrendo,
avaliações dos efeitos, em longo prazo, dos nano agroquímicos sobre a saúde dos seres humanos
e do meio ambiente. Apenas assim poderemos tentar proteger a saúde e integridade dos
trabalhadores, expostos duplamente, durante a elaboração dos produtos e como consumidores.
Existem muitas questões sem resposta: O trabalhador está treinado e informado sobre os riscos
dos nanoagroquímicos? Foram adotados os princípios da proteção, precaução, similaridade

15
OIT – InternationalLabourOrganization. Riesgos Emergentes y Nuevos Modelos de Prevención en
un Mundo de Trabajo en Transformación. 2010. Disponível em:
http://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_protect/---protrav/---safework/documents/publication/
wcms_124341.pdf. Acessoem: 10 jan. 2020.
16
WORLDHEALTHORGANIZATION (WHO).
WHOguidelinesonprotectingworkersfrompotentialrisksofmanufacturednanomaterials.Geneva,
2017.Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/ 10665/259671/1/9789241550048-eng.pdf. Acesso
em: 16 jan. 2020.
17
SÁNCHEZ, José Carlos. Nanomateriales: una amenaza invisible contra la salud de los trabaja-
dores. MIT Technology Review, Madrid, 26 mayo 2017. Disponível em: https://www.technologyreview.
es/s/7884/ nanomateriales-una-amenaza-invisible-contra-la-salud-de-los-trabajadores. Acessoem: 16 jan.
2020.

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Nanoagroquímicos: um novo desafio da 4ª revolução industrial à saúde dos trabalhadores
Raquel von Hohendorff - Daniele Weber da S. Leal

e da ética em todo o ciclo de produção de forma a garantir a segurança do trabalhador, da


sociedade e partes interessadas?
O uso de nanoagroquímicos amplia exponencialmente os riscos aos quais os trabalhadores
estão expostos.18As ações em medicina e segurança do trabalho não podem estar dissociadas
dos princípios da precaução e da proteção, especialmente quando os riscos e danos não são
adequadamente conhecidos, como se verifica em relação à aplicação das nanotecnologias. O
Direito ainda não se estruturou adequadamente para responder aos desafios propostos pelas
novas tecnologias, tendo em vista ainda não existir legislação específica e que demandas
oriundas destas tecnologias ainda não chegaram ao judiciário e, portanto, ainda não há
jurisprudência. Por isso o papel dos princípios, especialmente da precaução e da proteção aos
trabalhadores é ampliado e, muitas vezes, trata-se do único argumento disponível.
Deste modo, verifica-se que a utilização dos princípios da precaução e da proteção se
faz urgente e necessária, tendo em vista a total falta de certeza científica que ainda hoje existe
acerca dos possíveis danos das nanotecnologias à saúde dos trabalhadores e ao meio ambiente
do trabalho e no sentido lato. Também em função da falta de regulamentação específica se
faz necessário o uso dos referidos princípios, tendo em mente sempre a proteção da dignidade
da pessoa humana, como princípio basilar de toda a nossa sociedade e ordenamento jurídico.
Além dos estudos sobre a toxicidade dos nanomateriais, as estratégias de gestão de risco para
prevenir a exposição dos trabalhadores devem ser desenvolvidas por instituições de pesquisa,
indústrias e agências governamentais.
Atualmente existem em tramitação no Brasil dois projetos de Lei acerca de
nanotecnologias: 1) Projeto de lei do Senado n. 880, 2019, de autoria do Senador Jorginho
Mello, que institui o Marco Legal da Nanotecnologia e Materiais Avançados; dispõe sobre
estímulos ao desenvolvimento científico, à pesquisa, à capacitação científica e tecnológica e
à inovação nanotecnológica; altera as Leis nº 10.973, de 2 de dezembro de 2004, e nº 8.666,
de 21 de junho de 1993; e dá outras providências. Segundo a última movimentação, do dia
11 de dezembro de 2019, o projeto está pronto para ser votado na Comissão de Constituição,
Justiça e Cidadania (Secretaria de Apoio à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania)19;
2) Projeto de Lei Complementar n. 23, de 2019, de autoria do Senador Jorginho Mello, que
altera a Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006 a fim de incentivar a pesquisa
e desenvolvimento da Nanotecnologia no Brasil, ou seja, permite a inclusão no Simples
Nacional de empresas cuja atividade seja suporte, análises técnicas e tecnológicas, pesquisa
e desenvolvimento de nanotecnologia. Segundo a última movimentação, do dia 13 de março
de 2019, o projeto está na  Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e
Informática (Secretaria de Apoio à Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação
e Informática, tendo sido designado, como Relator, o Senador Plínio Valério.20 O primeiro
destes projetos menciona alguns aspectos relacionados à preocupação com saúde, mas nada

18
HOHENDORFF, Raquel von; ENGELMANN, Wilson. Nanotecnologias aplicadas aos agroquí-
micos no Brasil: a gestão do risco a partir do diálogo entre as fontes do direito. Curitiba: Juruá, 2014.
19
Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/135353. Acesso
em: 16 jan. 2020.
20
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em: 16 jan. 2020.

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Nanoagroquímicos: um novo desafio da 4ª revolução industrial à saúde dos trabalhadores
Raquel von Hohendorff - Daniele Weber da S. Leal

específico, enquanto que o segundo versa apenas sobre aspectos tributários. E assim, segue-se
sem nenhuma regulamentação específica, o que amplia a necessidade de uso dos princípios,
especialmente da precaução e da proteção dos trabalhadores.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A cada dia novas tecnologias em escala nano são criadas e disponibilizadas para a aplicação
industrial, especialmente na área de pesticidas utilizados na agroindústria. No entanto, na
maioria das vezes, os efeitos destes novos produtos sobre a saúde de quem os manipula,
a saúde do meio ambiente onde serão aplicados e onde seus resíduos permanecerão, bem
como sobre a saúde de quem consome os produtos agrícolas finais, ainda são desconhecidos,
podendo apenas tornar-se aparentes com o passar do tempo e a bioacumulação.
O problema que o artigo pretendeu responder versa sobre como o Direito, mais
especificamente a seara do Direito do Trabalho, poderá lidar com as incertezas das
nanotecnologias nos agroquímicos. Retomando tal questionamento, observa-se que a estrutura
jurídica existente hoje não nos permite tratar do tema adequadamente, eis que ainda não há
legislação específica e que estes temas ainda não chegaram ao judiciário. Na ausência de um
marco regulatório específico, necessário é o uso dos princípios da precaução e da proteção
aos trabalhadores.
E, assim, têm-se os nanoagroquímicos como mais um desafio ao Direito, em termos
de manutenção de saúde e segurança dos humanos e do meio ambiente, no recorte deste
artigo, na saúde dos trabalhadores. Desta forma, resta demonstrado que o atual desafio dos
nanoagroquímicos para a sociedade é como não potencializar os riscos já existentes pela
exposição indevida aos agroquímicos, em função das incertezas geradas pela nanotecnologia,
ainda mais se observamos os reflexos de sua produção/manipulação no âmbito do trabalho.

REFERÊNCIAS
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“extremamente tóxicos”. Disponível em:https://deolhonosruralistas.com.br/2019/04/10/no-
centesimo-dia-governo-autoriza-mais-31-agrotoxicos-metade-deles-extremamente-toxicos/.
Acesso em: 16 jan. 2020
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altera a Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998; e dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12305.htm. Acesso em: 15 jan.
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introdução, preparação e caracterização de nanomateriais e exemplos de aplicação. 1. ed. São
Paulo: Artliber, 2006.

— 66 —
Nanoagroquímicos: um novo desafio da 4ª revolução industrial à saúde dos trabalhadores
Raquel von Hohendorff - Daniele Weber da S. Leal

HOHENDORFF, Raquel von; ENGELMANN, Wilson. Nanotecnologias aplicadas aos agroquímicos


no Brasil: a gestão do risco a partir do diálogo entre as fontes do direito. Curitiba: Juruá,
2014.
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La edad de oro de las redes sociales
y la utilización por terceros
de fotos subidas a Facebook:
Análisis de la sts 91/2017, del pleno, de 17 de febrero

Rubén Miranda Gonçalves1


Cristian Carbajales Neira2

Resumen: ¿Puede un medio informativo utilizar una foto subida a las redes sociales por un tercero
sin su consentimiento? Los derechos a la información, honor, intimidad personal y propia imagen
están en conflicto. A lo largo de estas décadas, la jurisprudencia del Tribunal Constitucional y Tribunal
Supremo ha establecido una serie de criterios para ponderarlos. Así, es ya por todos sabido que estos
órganos jurisdiccionales utilizan criterios como la veracidad, la relevancia pública de la información y la
proporcionalidad (necesidad, idoneidad y proporcionalidad en sentido estricto).
No obstante, la irrupción de las nuevas tecnologías y, sobre todo, de las redes sociales, vienen a
introducir una serie de novedades a las que los Tribunales se deben adaptar.
En el caso que da pie a esta comunicación, un medio de comunicación publica una información sobre
unos hechos noticiosos en la que se adjunta una fotografía sacada del Facebook de uno de los protagonistas.
Esta persona no aprueba el uso hecho de esa imagen y demandará al periódico en cuestión.
Ello dará lugar a un litigio que finalizará con la resolución judicial que sirve de objeto a este artículo:
la STS de 17 de febrero de 2017, en la que por primera vez el Pleno de la Sala Primera se pronuncia sobre

1
Profesor Contratado Doctor y Director del Máster en Derechos Humanos: Sistemas de Protección
en la Universidad Internacional de La Rioja (UNIR); Doctor en Derecho, con mención internacional, Más-
ter en Derecho y Licenciado en Derecho, con grado (sobresaliente), por la Universidade de Santiago de
Compostela. E-mail: ruben.mirandagoncalves@unir.net
2
Graduado en Derecho por la Universidade de Santiago de Compostela. Email: cristiancrbjlsnr@
gmail.com

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La edad de oro de las redes sociales y la utilización por terceros de fotos subidas a Facebook
Rubén Miranda Gonçalves - Cristian Carbajales Neira

una problemática de plena actualidad: el uso que terceros realizan sobre imágenes personales publicadas
en redes sociales.
Palabras clave: Redes Sociales; Facebook; fotografías; intimidad; derecho a la propia imagen;
doctrina de los actos propios; consentimiento expreso; consentimiento para caso concreto.

Abstract: Can a media outlet use a photo uploaded to social networks by a third party without your
consent? The rights to information, honour, personal privacy and self-image are in conflict. Throughout
these decades, the jurisprudence of the Constitutional Court and the Supreme Court has established a series
of criteria to weigh them. Thus, it is now well known that these courts use criteria such as truthfulness,
public relevance of the information and proportionality (necessity, suitability, and proportionality in the
strict sense)
However, the emergence of new technologies and, above all, social networks, has introduced a number
of new developments to which the courts must adapt.
In the case that gives rise to this communication, a media outlet publishes information about some
news events in which a photograph taken from the Facebook of one of the protagonists is attached. This
person does not approve of the use made of that image and will sue the newspaper in question.
This will give rise to a lawsuit that will end with the judicial decision that serves as the subject matter
of this article: the STS of 17 February 2017, in which for the first time the Plenary of the Civil Chamber
ruled on a highly topical issue: the use that third parties make of personal images published on social
networks.
Keywords: Social networks; Facebook; photographs; privacy; right to one’s own image; doctrine of
one’s own acts; express consent; consent for specific cases.

1. HECHOS QUE DAN LUGAR AL PRESENTE LITIGIO


Los hechos que dieron lugar a la controversia jurídica que aquí se analiza son, de manera
exegética, los siguientes:
El 8 de julio de 2013 un diario regional publica una noticia, en la sección de sucesos,
en la que se relata como un hombre dispara a su hermano y posteriormente se suicida. En el
texto de la publicación se dan datos que permiten identificar a ambos hermanos. Se reseñan
las iniciales de sus nombres, se publican sus apellidos, y se dan una serie de datos familiares,
como lo son la profesión de su padre y la enfermedad que sufría su madre. Dicho diario
también procede a publicar, en su versión impresa, una foto del hermano que había sido
herido que había sido obtenida de su perfil público de Facebook
Cabe destacar que se trataba de una familia con una cierta notoriedad en la región.

2. ITER PROCESAL

2.1. Demanda en primera instancia


El hermano, cuya foto había sido publicada, procede a demandar al periódico solicitando
una indemnización de 30 mil euros por daños morales, al entender que dicho diario había
vulnerado su derecho a la intimidad y a su propia imagen.

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La edad de oro de las redes sociales y la utilización por terceros de fotos subidas a Facebook
Rubén Miranda Gonçalves - Cristian Carbajales Neira

El diario contesta a la demanda alegando que se trataba de un hecho de relevancia pública


y cuyo tratamiento había sido veraz, que los datos personales eran públicamente conocidos y
que la imagen difundida había sido subida por el demandante a su perfil público de manera
voluntaria, lo que, a su entender, haría prevalecer el derecho a la información.
El juzgado de Primera Instancia nº. 10 de Bilbao estimó íntegramente la demanda,
mediante sentencia del 11 de marzo de 2015, al entender vulnerado el derecho a la intimidad,
dado que, a pesar del innegable interés público de los hechos, los datos personales publicados
excedían los límites que los ciudadanos estamos obligados a tolerar y resultaban innecesarios
para satisfacer el derecho de los ciudadanos a formar parte de una sociedad informada; y el
derecho a la propia imagen, dado que la fotografía reseñada no aportaba nada de interés a la
noticia, identificaba personalmente al demandante, y su titular no había dado el consentimiento
para su utilización.

2.2. Recurso de apelación
La Sección Tercera de la Audiencia Provincial de Vizcaya, mediante sentencia de 22 de
septiembre de 2015 desestima en su totalidad el recurso de apelación interpuesto por el diario
regional, reproduciendo los argumentos del órgano que conoció en primera instancia.

2.3. Recurso de casación. STS 91/2017


El medio informativo interpone recurso de casación ante el Tribunal Supremo. Dicha
impugnación se fundamenta en los siguientes motivos:
En primer lugar, entiende el recurrente que la interpretación realizada por el órgano a
quo del art 18.1 CE y del art 7.3 de la LO 1/1982, que lo desarrolla, infringe lo dispuesto en
el art 20.1 d) de la Carta Magna, de acuerdo con la jurisprudencia del Tribunal Supremo
En segundo lugar, también se sostiene por dicha parte que la interpretación realizada del
art 18.1 CE y del art 7.5 de la LO 1/1982, vulnera lo dispuesto en el art 20.1 d) de la CE, y
en los arts 8.1. y 8.2 c) de la LO 1/1982 en relación con la interpretación jurisprudencial del
órgano supremo del Poder Judicial.
Finalmente, aduce el medio de comunicación que se ha interpretado de manera incorrecta
el art 9.3 de la LO 1/1982, relativo a la determinación de la cuantía a satisfacer, si bien dicha
cuestión no será abordada en esta comunicación.

2.3.1. Tratamiento diferenciado del derecho a la intimidad y a la propia imagen


Como puede observarse, la parte recurrente trata de manera diferenciada el derecho a
la intimidad del derecho a la propia imagen. Tal distinción, la cual es seguida por todos los
órganos judiciales que han conocido de este asunto, no puede calificarse sino de acertada.
Los derechos fundamentales al honor, a la intimidad personal y familiar y a la propia imagen
aparecen reconocidos en el mismo precepto de nuestra Constitución: el apartado primero del
artículo 18.

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La edad de oro de las redes sociales y la utilización por terceros de fotos subidas a Facebook
Rubén Miranda Gonçalves - Cristian Carbajales Neira

También la Ley Orgánica que cumple el mandato positivo o de protección inherente a


todo derecho fundamental que los desarrolla es la misma: la LO 1/1982.
Dichas circunstancias han dado lugar a que cierto sector doctrinal trate al honor, la
intimidad personal y familiar y la propia imagen como tres facetas complementarias de un
mismo derecho. Tal planteamiento es errado.
En efecto, a pesar de lo expuesto en los párrafos anteriores, honor, intimidad personal
y familiar y propia imagen son derechos todos ellos ligados al ámbito de los derechos de la
personalidad, pero diferentes:
Así, el derecho al honor, en palabras de la STS de 23 de marzo de 1987, está comprendido
por “dos aspectos íntimamente conexos: a) el de la inmanencia, representada por la estimación
que cada persona hace de sí mismo, y b) el de la trascendencia o exteriorización, representada
por la estimación que los demás hacen de nuestra dignidad”.
En cuanto al derecho a la intimidad personal y familiar, tal y como han manifestado la
STC176/2013 y la STS 478/2014, el mismo “garantiza a la persona un ámbito reservado de
su vida personal y familiar, vinculado con el respeto de su dignidad como persona, frente a
la acción y el conocimiento de los demás, sean estos poderes públicos o particulares. Este
derecho atribuye a su titular el poder de resguardar ese ámbito reservado, tanto personal
como familiar, frente a la divulgación del mismo por terceros y frente a la publicidad no
consentida”.
Por último, en relación al derecho a la propia imagen, y pese a estar ligado a los derechos
de la privacidad, éste, en palabras de la STC 139/2001 es un derecho autónomo de la intimidad
personal y familiar que “atribuye a su titular un ámbito específico de protección de la imagen
que, afectando a la esfera personal de su titular, no lesionan su buen nombre ni dan a conocer
su vida íntima, pretendiendo la salvaguarda de un ámbito propio y reservado, aunque no
íntimo, frente a la acción y conocimiento de los demás.
Por ello atribuye a su titular la facultad para evitar la difusión incondicionada de su
aspecto físico, ya que constituye el primer elemento configurador de la esfera personal de
todo individuo, en cuanto instrumento básico de identificación y proyección exterior y factor
imprescindible para su propio reconocimiento como sujeto individual”.

2.3.2. Tratamiento del derecho a la intimidad en la sentencia de casación


El primero de los derechos que entiende vulnerado el diario recurrente es el derecho a la
libertad de información en relación con la intimidad personal y familiar.
En lo relativo a esta cuestión, afirma el periódico que se limitó a comunicar de forma
veraz una información relativa a un delito, y que los datos personales que aportó en el artículo
se ceñían exclusivamente al contexto del hecho informativo.
En relación con el conflicto existente entre el derecho a la información y el derecho a la
intimidad, la jurisprudencia reiterada del Tribunal Supremo y del Tribunal Constitucional ha
establecido tres cánones a tener en cuenta.

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La edad de oro de las redes sociales y la utilización por terceros de fotos subidas a Facebook
Rubén Miranda Gonçalves - Cristian Carbajales Neira

2.3.2.1. Veracidad
Se exige en primer lugar, para que el derecho a la libre información pueda vencer
al derecho a la intimidad, que los datos que se publiquen sean veraces. En relación con
ello, debemos destacar que veracidad no equivale a certeza, dado que, de acuerdo con la
reiterada jurisprudencia del Tribunal Europeo de Derechos Humanos, así como del Tribunal
Constitucional y del Tribunal Supremo, la libertad de información queda protegida siempre
y cuando la persona que haya publicado los hechos los haya contrastado de acuerdo con
las normas que rigen los cánones de su profesión, aunque aquellos no fueran ciertos. La
veracidad de la información no es objeto de controversia en el presente litigio.

2.3.2.2. Relevancia pública
En segundo lugar, el estándar de relevancia exige que, a la hora de ponderar entre los
derechos a la libre información y a la intimidad personal y familiar, es necesario para que
prevalezca el primero de ellos que los hechos narrados tengan trascendencia para mantener
una sociedad pública informada.
En el caso concreto, el Tribunal Supremo se plantea la cuestión de si el hecho de que
los sujetos sobre los que se informa tengan un carácter privado puede excluir la relevancia
de la información, y la responde negativamente, porque tal y como ha sido reconocido
reiteradamente por su jurisprudencia y la del Tribunal Constitucional, la trascendencia pública
que tiene la comisión de un delito autoriza a los medios de comunicación a informar sobre
ellos, por mucho que los autores o afectados por el mismo tengan la condición de sujetos
privados.
En efecto, en esta sentencia, el Tribunal Supremo acude a su STS 587/2016, y afirma
literalmente que “la conveniencia y necesidad de que la sociedad sea informada sobre
sucesos de relevancia penal legitima, según las circunstancias, la intromisión en derechos
fundamentales como el honor y la intimidad”.

2.3.2.3. Proporcionalidad
El segundo de los criterios a los que debe atenderse para ponderar los conflictos existentes
entre libertad de información e intimidad personal y familiar es la proporcionalidad.
Este principio está íntimamente vinculado a la teoría de los derechos fundamentales.
Así, los académicos dedicados al estudio del Derecho Público, al igual que los órganos
jurisdiccionales, llevan más de un siglo elaborando distintas teorías y estableciendo cuáles
son los criterios que han de seguirse a la hora de limitar los derechos fundamentales.
Como resultado de este debate, sobre el que han corrido ríos de tinta, existe en la
actualidad un pacífico consenso que establece que cualquier medida que pretende disminuir
o suspender la eficacia de un derecho fundamental debe pasar un triple filtro:
Así, en primer lugar, la medida debe ser necesaria, entendiéndose como tal aquella
actuación que pretenda interferir en la esfera de actuación de un derecho fundamental

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Rubén Miranda Gonçalves - Cristian Carbajales Neira

para conseguir una finalidad legítima de interés público y susceptible de protección


constitucional.
En segundo lugar, dicha medida debe ser idónea, en el sentido de que sirva para lograr
la consecución del interés público que se está tratando de proteger.
Y finalmente, la medida debe ser proporcionada en sentido estricto, exigiendo este
requisito que, de entre las distintas posibilidades susceptibles de ser utilizadas para salvaguardar
el interés público, se utilice aquella
En relación con ello, la libertad de información solamente prevalecerá ante la intimidad
si los datos personales o familiares publicados se circunscriben al ámbito de los hechos
noticiosos y son estrictamente necesarios para colmar el derecho del ciudadano a estar
informado sobre asuntos de relevancia pública.
A la hora de valorar este requisito de proporcionalidad, la jurisprudencia del Tribunal
Europeo de Derechos Humanos, así como la del Tribunal Constitucional y del Tribunal
Supremo han acuñado el término de la “extralimitación morbosa”.
En base a este criterio, la libertad de información justificará una intromisión en la vida
privada personal o familiar de una persona cuando los hechos relatados contribuyan “a un
debate de interés general para la ciudadanía”3, mientras que será intromisión ilegítima la
difusión de datos destinados meramente a satisfacer la curiosidad de ciertos sectores de
la población, pero que no contribuyen a generar una opinión pública informada y no son
merecedores, por lo tanto, de protección constitucional.
En este caso concreto, el Tribunal Supremo entiende que no concurre extralimitación
morbos, al guardar relación todos los hechos personales y familiares reseñados con el hecho
delictivo publicado.
Partiendo de esta premisa, entiende el tribunal que la intromisión en la intimidad no ha
sido grave, porque la noticia se publica inmediatamente después de la comisión del delito,
se adapta a los estándares que suelen regir las noticias de sucesos y porque, al ser el ámbito
de difusión de la noticia geográficamente reducido, no ha aumentado significativamente el
conocimiento que tenían sus convecinos del suceso.
No obstante, esta decisión puede no resultar acertada si observamos analizamos la ley
4/2015, de protección de las víctimas de un delito, que transpone 2012/29 de la UE, que en
su art 22 dispone lo siguiente:
Los Jueces, Tribunales, Fiscales y las demás autoridades y funcionarios encargados de la
investigación penal, así como todos aquellos que de cualquier modo intervengan o participen

3
STEDH de 24 de junio de 2004, caso Von Hannover c. Alemania, línea jurisprudencial que ha sido
mantenida por el mismo Tribunal en posteriores resoluciones.
En el mismo sentido se han pronunciado el Tribunal Constitucional (STS 29/2009) el Tribunal Supremo
(SSTS 667/2014, en la que se afirma que (…) “en general, las relaciones afectivas pertenecen al ámbito de
la intimidad, habiendo generado la información difundida comentarios desviados respecto a la vida privada
de dicho litigante, que únicamente sirve para satisfacer la curiosidad de las gentes”, y 485/2016.

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La edad de oro de las redes sociales y la utilización por terceros de fotos subidas a Facebook
Rubén Miranda Gonçalves - Cristian Carbajales Neira

en el proceso, adoptarán, de acuerdo con lo dispuesto en la Ley, las medidas necesarias para
proteger la intimidad de todas las víctimas y de sus familiares y, en particular, para impedir
la difusión de cualquier información que pueda facilitar la identificación de las víctimas
menores de edad o de víctimas con discapacidad necesitadas de especial protección.
Atendiendo al tenor literal de la norma jurídica, el destinatario de la misma es el juez que
conoce el proceso penal y no el civil. No obstante, y tal y como señala Álvarez Olalla4, dicha
norma debe servir como criterio de interpretación de todo el ordenamiento jurídico, y debe
ser tenida en cuenta en cualquier orden jurisdiccional, más aún si tenemos en cuenta que el
art 21 de la Directiva transpuesta impone a los Estados miembros la obligación de conminar
a los medios de comunicación a adoptar los mecanismos necesarios de autorregulación para
proteger la dignidad e intimidad de las víctimas5.

2.3.3. Tratamiento del derecho a la información en relación con la propia imagen


El segundo motivo de casación en que se basa el recurso del recurrente argumenta que
la publicación de la imagen de la víctima del delito había sido legal, dado que se trataba de
una foto que él mismo había colgado en su perfil público de Facebook y que, en todo caso,
era accesoria

2.3.3.1. Uso de una imagen subida a un red social con fines distintos para los que se
subió. doctrina de los propios actos
El primero de los preceptos legales aducidos por el diario recurrente para tratar de
convencer al Tribunal Supremo de la licitud de la publicación de la foto es el art 2.2 de la ya
mencionada ley orgánica 1/1982, protectora de los derechos al honor, la intimidad personal y
familiar y la propia imagen.
En efecto, el citado artículo dispone que “no se apreciará la existencia de intromisión
ilegítima en el ámbito protegido cuando estuviere expresamente autorizada por ley o cuando
el titular del derecho hubiese otorgado al efecto su consentimiento expreso.”
En relación con él, el recurrente acude a la doctrina de los actos propios y afirma que el
hecho de que el demandante haya subido voluntariamente a su perfil público de Facebook una
fotografía debe entenderse como un consentimiento expreso que permite a cualquier tercero
su utilización en una pieza periodística de interés público.

4
Álvarez Olalla, «Intromisión legítima en el derecho a la intimidad de víctima de delito, e ilegíti-
ma en el derecho a la propia imagen. Fotografía tomada de Facebook para su utilización en un medio de
información. Comentario a la STS de 15 de febrero de 2017 (RJ 2017, 302)», en Cuadernos Civitas de
Jurisprudencia Civil, nº. 104, mayo-agosto 2017, pp. 445 y ss.
5
Sobre la dignidad, Vid. Miranda Gonçalves, R., “La dignidad de la persona humana. Breve estudio
comparado desde el derecho público”, A dignidade da pessoa humana: entre a representatividade do signi-
ficado jurídico e a efetividade no mundo da existência, Brazil Publishing, Curitiba, 2019, pp. 239-257.

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La edad de oro de las redes sociales y la utilización por terceros de fotos subidas a Facebook
Rubén Miranda Gonçalves - Cristian Carbajales Neira

El Tribunal Supremo, sin embargo, no acepta esta argumentación. Así, afirma dicho
órgano judicial, siguiendo su propia jurisprudencia6 que, si bien el consentimiento al que
se refiere el art 2.2 de la LO 1/1982 puede prestarse de forma tácita, resultando de actos
inequívocos de un sujeto determinado, es necesario que dicho consentimiento se dé para cada
caso en concreto, y no de manera genérica.
Así, entiende dicho órgano judicial que las redes sociales funcionan en un contexto
muy diferente al de los medios de comunicación, y que éstos últimos no pueden utilizar en
sus publicaciones las fotos que los particulares utilicen en las primeras, aunque éstas sean de
acceso público.
En efecto, afirma el TS en esta sentencia lo siguiente: (…) Que en la cuenta abierta
en una red social en Internet, el titular del perfil haya “subido” una fotografía suya que
sea accesible al público en general, no autoriza a un tercero a reproducirla en un medio de
comunicación sin el consentimiento del titular, porque tal actuación no puede considerarse
una consecuencia natural del carácter accesible de los datos e imágenes en un perfil público
de una red social en Internet. La finalidad de una cuenta abierta en una red social en Internet
es la comunicación de su titular con terceros y la posibilidad de que esos terceros puedan
tener acceso al contenido de esa cuenta e interactuar con su titular, pero no que pueda
publicarse la imagen del titular de la cuenta en un medio de comunicación.
El consentimiento del titular de la imagen para que el público en general, o un
determinado número de personas, pueda ver su fotografía en un blog o en una cuenta abierta
en la web de una red social no conlleva la autorización para hacer uso de esa fotografía y
publicarla o divulgarla de una forma distinta, pues no constituye el «consentimiento expreso»
que prevé el art. 2.2 de la Ley Orgánica 1/1982 como excluyente de la ilicitud de la captación,
reproducción o publicación de la imagen de una persona (…)
El consentimiento a la captación, reproducción o publicación de la imagen no puede ser
general, sino que ha de referirse a cada acto concreto, como se desprende de los arts. 2.2 y
8.1 de la Ley Orgánica 1/1982.
Por todo ello, el Tribunal Supremo rechaza este primer argumento de la parte recurrente y
entiende que no hubo un consentimiento expreso a los efectos señalados en el ya mencionado
art 2.2 LO 1/1982.

2.3.3.2. Carácter accesorio de la imagen que ilustra la noticia


El segundo de los argumentos utilizados por la parte recurrente tiene como base lo
dispuesto en el art 8.2 c) LO 1/1982, que establece una causa de exclusión de la ilicitud de
difusión la imagen de una persona cuando esta sea relativa a un acontecimiento de interés
público y meramente accesoria.
En relación con ello, el concepto de la accesoriedad de la imagen ha sido ampliamente
desarrollado por la jurisprudencia del Tribunal Supremo y, en menor medida, del Tribunal

6
SSTS 1225/2003, de 24 de diciembre, 1024/2004, de 18 de octubre, 1184/2008, de 3 de diciembre
y 311/2010, de 2 de junio.

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La edad de oro de las redes sociales y la utilización por terceros de fotos subidas a Facebook
Rubén Miranda Gonçalves - Cristian Carbajales Neira

Constitucional7. Así, la imagen de una persona es accesoria cuando aparece con carácter
secundario en relación con una información, ésta de carácter principal, más amplia.
En este caso concreto no puede considerarse que el tratamiento de la imagen del
demandante sea accesorio ya que, tal y como señala el Tribunal Supremo en la sentencia,
la noticia tiene como único protagonista al demandante, y no tiene como objeto ilustrar otra
información de carácter más amplio, sino que se utiliza para los únicos efectos de señalar su
identidad.

2.3.3.3.  Vulneración del derecho a la propia imagen


Por todo lo expuesto anteriormente, al no concurrir consentimiento expreso del
demandante y al no tener un carácter meramente accesorio su fotografía, el Tribunal Supremo
entiende que, si bien la intimidad personal y familiar la parte recurrente no había sido
vulnerada, sí lo ha sido el derecho a disponer de su propia imagen, y le concede 15000 euros
en concepto de indemnización, siendo dicha suma el resultante de dividir a la mitad la cuantía
que había sido establecida en las dos instancias anteriores.

CONCLUSIONES
1. Los derechos al honor, a la intimidad personal y familiar y a la propia imagen son
derechos autónomos y diferenciados.
2. El derecho a la información puede vencer al derecho a la intimidad cuando se trate de
publicaciones veraces, que traten hechos de relevancia pública y de manera proporcionada.
3. La comisión de un delito autoriza la cobertura informativa del mismo, aunque los
ciudadanos afectados por el mismo no tengan carácter público.
4. La difusión de datos personales de la víctima no constituirá una injerencia en
la intimidad si la misma tiene un carácter geográfico limitado y con ella no se aumenta
significativamente el grado de conocimiento de los hechos por parte del lector.
5. La publicación de una fotografía de carácter personal en una red social no autoriza a
terceros a difundirlas fuera de las mismas, sino que será necesario un consentimiento expreso
del titular interesado para cada caso concreto.
6. La publicación de la imagen de una persona cuyo único objeto es la de identificarlo
no puede ser considerada como accesoria.

7
Véase la STC 152/2007.
También cabe destacar el magnífico hilo recopilatorio de la jurisprudencia del TS que hace Yzquierdo
Tolsada, Mariano en “Comentarios a las sentencias de unificación de doctrina (civil y mercantil), Vol 9º,
Mariano Yzquierdo Tolsada Dir, 2017”, “Comentario de la sentencia del Tribunal Supremo de 15 de febrero
de 2017 (STS 91/ pp. 355 y ss.

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A extensão do regime das escutas telefónicas às
comunicações eletrónicas em Portugal.
Uma reflexão sobre a garantia
da proteção dos direitos humanos

Gonçalo Mota1

Resumo: A elaboração do presente trabalho tem como propósito fundamental expor aquela que foi a
evolução da utilização da extensão das escutas telefónicas, previstas no Código de Processo Penal português,
como meio privilegiado de obtenção de prova na realidade digital e a sua relação com a proteção dos direitos
fundamentais em Portugal. Em face deste artigo, não foi nossa intenção criar qualquer discussão teórica em
torno da validade dos argumentos utilizados pelos diferentes autores aqui citados, mas sim compreender a
perspetiva evolutiva de um meio de obtenção de prova e a sua aplicação nas interceções das comunicações
eletrónicas, sobretudo no que toca à aplicação do Código de Processo Penal, sua extensão às comunicações
digitais, até à entrada em vigor da Lei do Cibercrime, em 2009. Discutimos, pois, que este meio, ainda que
tenha elevado relevo para a investigação criminal, não se deve sobrepor ao escrupuloso cumprimento dos
pressupostos legais universais e constitucionais de proteção dos Direitos Humanos. Concluímos que a lei
atual pode dar margem a alguma subjetividade, face às especificidades dos ambientes digitais e defendemos,
ainda, que o recurso à interceção de comunicações deve ser uma exceção, observando sempre o respeito
pelos direitos do indivíduo à reserva da sua vida privada.
Palavras-chave: Prova; Comunicações eletrónicas; Direitos Humanos.

Abstract: This work aims to expose the evolution of the use of the wiretapping, foreseen in the
Portuguese Code of Criminal Procedure, as a privileged mean of obtaining evidence in the digital reality
and its connection with the protection of fundamental rights in Portugal. In fact, it was not our intention
to create any theoretical discussion around the validity of the arguments used by the different authors
cited here, but rather to understand the evolutionary perspective of a means of obtaining evidence and its
application in the interceptions of electronic communications, especially with regard to the application of

1
Goncalo.j.mota@gmail.com
Mestre em Serviço Social, Especialista em Trabalho Social e Orientação.
Professor Adjunto Convidado - Escola Superior de Tecnologia e Gestão de Lamego – IPV.

— 77 —
A extensão do regime das escutas telefónicas às comunicações eletrónicas em Portugal
Gonçalo Mota

the Criminal Procedure Code, its extension to digital communications, until the approval of the Cybercrime
Law in 2009.Therefore, we discuss that this means of obtaining evidence, in spite of being an instrument
for high-profile criminal investigation, should not be superimposed on the scrupulous compliance with the
universal and constitutional legal assumptions of protection of Human Rights. We conclude that the current
law may give rise to some subjectivity, in view of the specificities of digital environments and we also
defend that the use of interception of communications should be an exception, always observing the respect
for the individual’s right to reserve his private life.
Keywords: Evidence; Electronic Communication; Human Rights.

1. O regime de escutas telefónicas: a aplicação às


comunicações eletrónicas
A partir de 1991 vigorou, no ordenamento jurídico português, através da Lei n.º 109/91,
de 17 de Agosto, a chamada Lei da Criminalidade Informática, definida com o objetivo de
prevenir e combater este tipo de criminalidade que tipificava na sua redação cinco crimes
de natureza informática: falsidade informática, sabotagem informática, acesso ilegítimo,
interceção ilegítima e reprodução ilegítima de programa protegido.
Maria Joana Xara-Brasil Marques2 refere que os meios de obtenção de prova tradicionais,
como as buscas ou apreensões, não estão vocacionados para um ambiente digital, mas sim
físico. Aliás, as especificidades e complexidade do ambiente digital obrigam à atuação de
especialistas que possam compreender essas tais técnicas e linguagens, como reitera Pedro
Dias Venâncio3. A este propósito recorde-se que o artigo 151.º do Código de Processo Penal
(CPP) determina que a prova pericial “tem lugar quando a percepção ou apreciação dos factos
exigir especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos”.
Falamos, pois, da obtenção da prova digital, cujas medidas para regular a forma como
esta prova seria obtida foram implementadas em 2009, ainda que Portugal tivesse subscrito
a Convenção do Cibercrime de Budapeste, em 2001. Quando a Lei n.º 109/2009 de 15 de
setembro, a Lei do Cibercrime (LCC), foi publicada, vigoravam, até então, os artigos 171.º
a 190.º do CPP, que compreendiam as escutas telefónicas como meio de obtenção de prova,
referindo-se às mesmas como “conversações ou comunicações transmitidas por qualquer
meio técnico diferente do telefone, designadamente correio electrónico ou outras formas de
transmissão de dados por via telemática”.
A extensão da aplicação das escutas telefónicas envolve cinco dimensões, tal como refere
Francisco Marcolino Jesus4:“do telefone a outros meios técnicos, da voz humana à imagem,
da comunicação à distância à comunicação entre os presentes, da ingerência (no conteúdo
das) nas conversações ou comunicações à obtenção do registo da realização das mesmas e da
ingerência trans ambiental à localização geográfica do aparelho técnico da comunicação”.

2
Marques, M. J. X. B. Os meios de obtenção de prova na lei do cibercrime e o seu confronto com
o código de processo penal. (Tese de mestrado). Universidade Católica Portuguesa, Lisboa. 2014, p.2.
3
Venâncio, P. D. Breve introdução da questão da investigação e meios de prova na criminalidade
informática [PDF]. Recuperado de www.verbojuridico.pt. 2006, p.21.
4
Jesus, F. M. Os Meios de Obtenção da Prova em Processo Penal. Coimbra, Portugal: Almedina.
2015, p.319.

— 78 —
A extensão do regime das escutas telefónicas às comunicações eletrónicas em Portugal
Gonçalo Mota

Por princípio, empregar-se-iam nessa medida os mesmos trâmites que já estavam


previstos para as escutas telefónicas no CPP. Autores como Pedro Venâncio, Maria João
Antunes e Francisco Jesus entendem que o artigo 179.º do CPP, compreenderia o acesso
ao correio eletrónico prevendo assim a possibilidade de apreensão de “cartas, encomendas,
valores, telegramas ou qualquer outra correspondência”, razão pela qual este artigo poderia
ser aplicado à correspondência eletrónica, mesmo já depois de recebida e conservada pelo
seu destinatário.
Jesus5 diz mesmo que o regime jurídico das escutas telefónicas é “aplicável às comunicações
efetuadas através de computador, telefax, por mensagens SMS, ou outros” e para Antunes6 “o
regime legal das escutas telefónicas estende-se às conversações ou comunicações transmitidas
por qualquer meio técnico diferente do telefone, designadamente correio eletrónico ou outras
formas de transmissão de dados por via telemática, mesmo que se encontrem guardadas
em suporte digital, e à interceção entre presentes, a denominada escuta ambiental”. Por sua
vez, Venâncio7 defende que os trâmites processuais são iguais para as diferentes formas de
comunicação e especifica que, no caso das comunicações eletrónicas, o que está em causa é a
interceção de mensagens eletrónicas em tempo real (durante o seu trajeto na rede de servidores),
de mensagens instantâneas e de comunicações áudio entre computadores ou de computadores
para redes fixas ou móveis. O autor salvaguarda ainda que as mensagens de correio eletrónico
poderiam ser utilizadas como meio de prova, ainda que não intercetadas. Como tal, o acesso a
estas aconteceria após estarem armazenadas na caixa de correio do destinatário.
Na verdade, e desde que a Lei do Cibercrime, entrou em vigor, esta previu um regime
que alude diretamente ao CPP, nomeadamente no artigo 18.º, referente à interceção de
comunicações, que admite o recurso a este meio em processos relativos a determinados
crimes e garante as condições da sua autorização, nomeadamente em casos indispensáveis
para descobrir a verdade ou onde seja praticamente impossível obter a prova por outro meio.
O mesmo artigo salvaguarda, ainda, que nos casos omissos se aplicam os artigos 187.º, 188.º
e 190.º do Código de Processo Penal8.
No fundo, e também como defende Marques9, a nova lei adaptou o regime das escutas
telefónicas à comunicação digital e o regime das comunicações previsto no Código de Processo
Penal deixou de ser estendido às comunicações e provas eletrónicas e, no caso da “prova
eletrónica preservada ou conservada em sistemas informáticos” não só passou a aplicar-se
a Lei do Cibercrime, como também a Lei 32/200810. Ainda assim, a Lei do Cibercrime não

5
Idem.
6
Antunes, M. J. Direito Processual Penal. Coimbra, Portugal: Almedina.2018, p. 123.
7
Venâncio, P. D. Breve introdução da questão da investigação e meios de prova na criminalidade
informática [PDF]. Recuperado de www.verbojuridico.pt. 2006, pp. 22-23.
8
Assembleia da República (2009). Lei n.º 109/2009. Recuperado de: http://www.pgdlisboa.pt/leis/
lei_mostra_articulado.php?nid=1137&tabela=leis. 2009.
9
Marques, M. J. X. B. Os meios de obtenção de prova na lei do cibercrime e o seu confronto com
o código de processo penal. (Tese de mestrado). Universidade Católica Portuguesa, Lisboa. 2014, p.27.
10
Tribunal da Relação de Évora. Acórdão do processo n.º 648/14.6GCFAR-A.E1. Recuperado de
http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/2fbdd21285478f5f80257de10056ff7a?O
penDocument. 2015.

— 79 —
A extensão do regime das escutas telefónicas às comunicações eletrónicas em Portugal
Gonçalo Mota

é autossuficiente, na medida em que dos artigos 11.º a 17.º encontramos a normativa do


regime processual geral do cibercrime e da prova eletrónica. No entanto, dos artigos 18.º e
19.º emana um regime processual que permite a aplicação “por remissão expressa” de três
artigos do Código de Processo Penal (artigos 187.º, 188.ºe 190.º) desde que “não contrariem a
Lei 109/2009”11.Define-se assim, embora com posições discordantes de alguns autores, uma
manifesta consonância por parte dos tribunais, que remetem para o regime da LCC, aquando
da necessidade de obtenção de prova através da interceção das comunicações eletrónicas,
deixando assim de se realizar de forma insistente, adaptações aos artigos 187.º e seguintes do
CPP.

2. A garantia de proteção dos direitos humanos


Quando nos referimos às escutas telefónicas ou à interceção de comunicações eletrónicas,
devemos ter sempre presente que estas atingem de forma inequívoca aqueles que são os
direitos fundamentais, sejao direito à reserva vida privada e familiar, seja o direito à palavra,
aqui tratados neste trabalho.
Como refere Manuel Costa Andrade, citado por Rafael Marques Nunes12 “as escutas
telefónicas são, na verdade, portadoras de uma danosidade social polimórfica e pluridimensional
que, em geral, não é possível conter nos limites, em concreto e à partida, tidos como acertados.
Tanto no plano objetivo (dos bens jurídicos sacrificados) como no plano subjectivo (do
universo de pessoas atingidas), as escutas acabam invariavelmente por desencadear uma
mancha de danosidade social, a alastrar de forma dificilmente controlável”.
Por isso, a utilização destes meios de obtenção de prova, estão sob um escrupuloso
controlo, consagrado nos artigos 187.º a 190.º do CPP estando estes meios de obtenção de
prova sujeitos a autorização do Juiz de Instrução Criminal, defensor da garantia dos direitos
fundamentais num processo judicial em fase de inquérito.
Ora, o direito à reserva da vida privada e familiar é um direito que está ligado de forma
inequívoca ao princípio da dignidade da pessoa humana. Este direito está estatuído no
número 1 do artigo 26.º da Constituição da República Portuguesa e visa impedir o acesso de
estranhos a informações sobre a esfera privada do indivíduo, bem como a divulgação dessas
informações. Alguns autores, como Rafael Marques Nunes13, consideram que a utilização
de escutas telefónicas afeta este direito constitucional. Concomitantemente, Paulo Mota
Pinto14acrescenta que “tal como a vida do lar será em geral vida privada e está protegida
pela garantia de inviolabilidade do domicílio, também as comunicações por carta e por

11
Idem.
12
Nunes, R. M. Garantias do Processo Penal Versus Meios de Obtenção de Prova. Das escutas tele-
fónicas às ações encobertas e o registo de voz e de imagem. (Tese de mestrado). Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra, Coimbra. 2015, p.18.
13
Idem.
14
Mota Pinto, P. Direitos de Personalidade e Direitos Fundamentais – Estudos. Coimbra: Gestle-
gal.2018, p.529.

— 80 —
A extensão do regime das escutas telefónicas às comunicações eletrónicas em Portugal
Gonçalo Mota

comunicações, estando protegidas pela garantia de inviolabilidade, deverão ser tidas como
atinentes à vida privada”.
Entendemos igualmente que o direito à palavra se encontra protegido pelo mesmo
princípio constitucional, sendo que, também este direito pode ser posto em causa, resultado da
realização da interceção das comunicações. A Constituição Portuguesa salvaguarda o direito a
que as palavras dos cidadãos não sejam registadas nem divulgadas sem o seu consentimento.
Trata-se de “um direito à reserva e à transitoriedade da palavra falada”, tal como se lê numa
decisão de 2007 do Tribunal da Relação de Guimarães e, do ponto de vista de autores como
Gomes Canotilho e Vital Moreira, este direito à palavra desdobra-se no direito à voz, direito
às palavras ditas e direito ao auditório. Isto significa que a voz dos cidadãos, enquanto atributo
da personalidade, não pode ser registada nem divulgada sem consentimento. Já no que toca
às palavras proferidas, o entendimento é de que sejam respeitadas a autenticidade e rigor da
reprodução do que foi dito pelo indivíduo. Por último, o direito ao auditório garante o direito
de “decidir o círculo de pessoas a quem é transmitida a palavra”15.
Tendo em conta o direito constitucional e a eventual colisão deste direito com a realização
de escutas telefónicas, estamos perante uma situação em que a violação da comunicação só
poderá ser admitida em casos de exceção, concretamente quando em causa esteja a proteção
de interesses do Estado, devidamente estatuídos na lei.
Nesse sentido, e uma vez que estamos perante direitos fundamentais, a interceção
de comunicações só é admissível quando observado o princípio da proporcionalidade ou
da proibição do excesso, conforme o artigo o n.º 2 do artigo 18.º da CRP. Neste ponto a
Constituição refere que “a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos
expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para
salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.
O princípio da proporcionalidade, segundo Vieira de Carvalho16, desdobra-se em
três outros princípios. Desde logo o princípio da adequação, pois a medida restritiva deve
utilizar um meio adequado ao fim que se pretende atingir. Em segundo lugar o princípio da
exigibilidade, pois “a escuta só deva ser autorizada se for o meio mais eficaz e menos erosivo
das liberdades”. Por último, o princípio da proporcionalidade que “impõe que a escuta não
possa ser autorizada se for excessiva em relação ao fim que pretende atingir”.
Salienta-se ainda queo n.º 8 do artigo 32.º da CRP, prevê a nulidade da prova quando
obtida de forma ilegal, assumindo que “são nulas todas as provas obtidas mediante tortura,
coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada,
no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações”.
Neste sentido, julgamos que o legislador salvaguardou de forma suficiente as exceções
no que toca à proteção do sigilo das comunicações, ao direito à privacidade ou à palavra, não

15
Canotilho e Moreira, cit. in Nunes, R. M. Garantias do Processo Penal Versus Meios de Obtenção
de Prova. Das escutas telefónicas às ações encobertas e o registo de voz e de imagem. (Tese de mestrado).
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra. 2015, p. 19.
16
Carvalho, N. V. O Controlo Judicial da Realização de Escutas – Problemas do atual Regime Pro-
cessual. Porto: Instituto Superior de Contabilidade e Administração do Porto.2012, p.179.

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A extensão do regime das escutas telefónicas às comunicações eletrónicas em Portugal
Gonçalo Mota

contendo nem restringindo o âmbito do uso da interceção das comunicações, sempre que as
mesmas se justifiquem necessárias.
Qualquer abordagem sobre esta matéria deve ter como base os direitos fundamentais que
vigoram na CRP e em instrumentos de direito internacional, pelo que não podemos deixar
de nos centrar, ainda que de forma breve, naqueles que julgamos serem os mais importantes
documentos para o direito português, seja o caso da Declaração Universal dos Direitos do
Homem (DUDH) e a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH).
O n.º2 do art.16.º da CRP, refere que “os preceitos constitucionais e legais relativos aos
direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração
Universal dos Direitos do Homem”, sublinhando a relevância deste documento, estabelecendo
o mesmo nas normas constitucionais portuguesas.
Mais concretamente, e relativamente ao tema em análise, a DUDH refere no seu artigo
12.º que “ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no
seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais
intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a protecção da lei”.
No que respeita à CEDH, e tendo este documento fundado a sua essência no DUDH,
podemos olhar para o n.º 1 do artigo 8.º, onde se pode ler que “qualquer pessoa tem direito ao
respeito da sua vida privada e familiar, do domicílio e da sua correspondência”, salvaguardando
inclusivamente os limites de intervenção e ação pública, bem como os de proporcionalidade.
Assim, esta convenção salvaguarda que “não pode haver ingerência da autoridade pública no
exercício deste direito”, exceto se tal intromissão estiver legislada, ou, ainda, se estivermos
perante um caso de segurança nacional, de defesa do bem-estar económico do país, de defesa
da ordem, de prevenção de infrações penais, de proteção da saúde ou da moral, de proteção
dos direitos e das liberdades de terceiros.
Na verdade, e embora exista algum ceticismo relativamente às assunções dos instrumentos
legais internacionais como a DUDH e a CEDH, visto não referirem de forma explícita a
violação das telecomunicações, consideramos que as interceções de comunicações, mesmo
quando lícitas, são consideradas como uma intromissão das autoridades públicas na intimidade
da vida privada e familiar. Atentemos, nesse sentido, ao exemplo da primeira decisão referente
às escutas telefónicas do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TDEH), datada de 1978,
no caso Klasse outros, contra a Alemanha, quando este tribunal reconheceu na sua decisão,
que “embora as conversas telefónicas não sejam expressamente mencionadas no parágrafo 1
do artigo 8 (artigo 8-1), o Tribunal considera, assim como a Comissão, que essas conversas
são cobertas pelas noções de “vida privada” e “correspondência” mencionadas por esta
disposição”17.
Também o TEDH, nas suas decisões ao longo do tempo, foi impondo os limites no
âmbito das interceções das comunicações, como no caso de Kruslin contra França, em 1990,
em que refere que “a escuta telefónica representou uma “interferência de uma autoridade
pública” no exercício do direito do requerente de respeitar sua “correspondência” e a sua

17
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Processo no. 5029/71. Recuperado de http://hudoc.
echr.coe.int/fre?i=001-57510. 1978.

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A extensão do regime das escutas telefónicas às comunicações eletrónicas em Portugal
Gonçalo Mota

“vida privada” (…) Essa interferência viola o Artigo 8 (art. 8), a menos que esteja “de acordo
com a lei”, prossiga um ou mais dos objetivos legítimos mencionados no parágrafo 2 (art.
8-2)”18.Esta decisão estabelece aquilo que se poderia entender, para nós, como mais ao menos
óbvio, ou seja, que as escutas teriam que ser sujeitas à autorização judicial e estar previstas
pela lei, na qual devia fazer constar os limites e as formas de interceção das comunicações, de
forma a evitar abusos no recurso a este meio de obtenção de prova. Neste caso em particular,
o Tribunal entendeu que havia uma violação do art. 8.º da CEDH, por falta de cautela ao não
circunscrever o grupo de pessoas que potencialmente poderia vir a ser escutado, o que, neste
caso, promoveria abusos e colocaria em causa a proteção de tais direitos fundamentais.

Conclusão
A interceção das comunicações está restringida aos processos de natureza penal, cumprindo
assim com o disposto no n.º 4 do artigo 34.º da Constituição da República Portuguesa, que
proíbe a ingerência das autoridades na correspondência, nas telecomunicações e nos demais
meios de comunicação, exceto em casos previstos. Assim, falamos de um meio legítimo e
admissível de obtenção de prova, que está previsto nos artigos 187.º e seguintes do Código
de Processo Penal, por via dos quais é comprovada a ocorrência dos factos que constituem o
objeto do processo judicial. Como vimos, estes artigos foram sendo aplicados por extensão ao
caso das comunicações eletrónicas, fruto de um vazio legal que se prolongou até 2009.
Ao entrar em vigor a Lei do Cibercrime, em 2009, foram estabelecidas as disposições
penais materiais e processuais relativas ao domínio do cibercrime e da recolha de prova em
suporte eletrónico. Com este diploma, ficou de certa forma mais clara a inadmissibilidade da
manutenção formal do artigo 189.º do CPP, no que se refere à sua aplicação ao meio digital,
passando a questão da interceção das comunicações eletrónicas a estar prevista no artigo 18.º
da Lei n.º 109/2009 de 15 de setembro.
Concluímos também que, embora a Lei do Cibercrime tenha procurado adequar os meios
de obtenção de prova previstos no CPP à chamada nova era digital, não conseguiu mais do que
promover um regime para a interceção das comunicações eletrónicas em tudo semelhante ao já
previsto no CPP. No fundo, o novo diploma deveria ter suprido um vazio legal, considerando
que o Código de Processo Penal não foi redigido com as especificidades do meio digital em
mente. Aliás, como demonstrámos no início deste trabalho, as comunicações em ambiente
digital carecem de um conhecimento técnico tão específico, que justificam a atribuição
de peritos para se encarregarem destas. Como tal, da Lei do Cibercrime era esperado que
assimilasse tais especificidades técnicas e que as consubstanciasse em letra de lei. Acontece
que o diploma não se conseguiu distanciar daqueles que são os princípios e requisitos para a
interceção das comunicações telefónicas já previstos, algo que poderá vir a ser conflituante
face à rapidez dos progressos tecnológicos atuais e vindouros. Nesse sentido, e recuperando
uma decisão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, referente ao caso Tyrer contra o
Reino Unido em 1978, considerou-se que “a Convenção é um instrumento vivo” e que “deve

18
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Processo no. 11801/85. Recuperado de http://hudoc.
echr.coe.int/eng?i=001-57626. 1990.

— 83 —
A extensão do regime das escutas telefónicas às comunicações eletrónicas em Portugal
Gonçalo Mota

ser interpretado à luz das condições atuais”19, o que pode criar um espaço de subjetividade,
sujeito a interpretações díspares.
Devemos reter que a interceção de comunicações, seja esta de natureza telefónica ou
eletrónica, enquanto meio de obtenção de prova deve ser encarado como uma exceção. A prática
revela-se complexa, sendo evidente que muitas das vezes não são ponderados os interesses
de todos os envolvidos no processo, nem a proteção dos direitos fundamentais, existindo um
claro desequilíbrio provocado pelo não cumprimento do princípio da proporcionalidade.
Ao optar pela interceção de comunicações enquanto meio de prova, deve-se considerar
que estas afetam de forma crítica os direitos humanos, nomeadamente o direito à reserva
da vida privada e familiar e o direito à palavra. Assim, a sua utilização deve ter em conta o
equilíbrio da natureza fundamental dos direitos humanos e os meios de obtenção de prova na
procura da verdade material na investigação criminal.

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de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra.

19
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Processo no. 5029/71. Recuperado de http://hudoc.
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— 84 —
A extensão do regime das escutas telefónicas às comunicações eletrónicas em Portugal
Gonçalo Mota

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57de10056ff7a?OpenDocument.
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www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/68b9818459729478802573bd004
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Venâncio, P. D. (2006). Breve introdução da questão da investigação e meios de prova na criminalidade
informática [PDF]. Recuperado de www.verbojuridico.pt.

— 85 —
A Tecnologia como instrumento em favor da sexta
onda renovatória de acesso à justiça

Ed William Fuloni Carvalho1


Jaime Leônidas Miranda Alves2

Resumo: Um dos tópicos mais proeminentes no direito constitucional e na seara processual civil é o
direito ao acesso à justiça. Isso se dá por sua relevância: o acesso à justiça é metadireito que possibilita o gozo
dos demais direitos. É dizer: não há Estado Democrático de Direito sem acesso à justiça. Utilizando-se da
hermenêutica constitucional concretizadora, defende-se a tese de que um dos desafios para o acesso efetivo
à justiça é a falta de conhecimento em direitos, especialmente dos grupos em situação de vulnerabilidade.
Esse déficit informacional tem por consequência a inacessibilidade da justiça e a educação em direitos,
missão institucional da Defensoria Pública, que se apresenta como forma de superá-lo, caracterizando-se
como uma nova onda renovatória de acesso à justiça. Um dos instrumentos à efetivação dessa nova onda
(6º) de acesso à justiça seria, então, a tecnologia.
Palavras-chave: Acesso à Justiça; Educação em Direitos; Defensoria Pública; Direitos Humanos.
Tecnologia.

Abstract: One of the most prominent topics in constitutional law and civil procedural matters is
the right to access to justice. This is due to its relevance: access to justice is a meta-law that enables the
enjoyment of other rights. That is to say: there is no Democratic Rule of Law without access to justice.
Using the constitutional hermeneutics that materializes, the thesis is defended that one of the challenges
for effective access to justice is the lack of knowledge of rights, especially of vulnerable groups. This
information deficit has as a consequence the inaccessibility of justice and education in rights, an institutional

1
Defensor Público Federal. Ex-Analista de Contas do Ministério Público de Contas do Estado do
Mato Grosso. Especialista em Direito Processual Civil pela Fundação Escola Superior do Ministério Públi-
co do Rio Grande do Sul e especialista em Licitação e Auditoria pela Faculdade Afirmativo.
2
Defensor Público do Estado de Rondônia. Ex-Defensor Público do Estado do Amapá. Mestrando
em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Professor Universitário. Especialista em Direi-
to Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas) e em Direito Constitucional
pela Universidade Cândido Mendes (UCAM).

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A Tecnologia como instrumento em favor da sexta onda renovatória de acesso à justiça
Ed William Fuloni Carvalho - Jaime Leônidas Miranda Alves

mission of the Public Defender’s Office, which presents itself as a way to overcome it, characterized as a
new renewal wave of access to justice. One of the instruments to implement this new wave (6th) of access
to justice would be, then, technology.
Keywords: Access to Justice; Rights Education; Public defense; Human rights. Technology.

INTRODUÇÃO
Um dos tópicos mais proeminentes no direito constitucional e na seara processual civil
refere-se às várias formas e desafios que enfrenta o direito ao acesso à justiça. Isso se dá
em razão de sua relevância: o acesso à justiça é metadireito, ou direito-garantia, tendo em
vista que possibilita o gozo dos demais direitos que circundam a esfera do indivíduo e da
coletividade. É dizer: não há Estado Democrático de Direito sem acesso à justiça. 
Nesse cotejo, um dos principais trabalhos concernentes à análise dos desdobramentos do
acesso à justiça consiste na obra Acesso à Justiça (1988), de Bryant Garth e Mauro Cappelletti.
No escrito, são identificados os (três) principais obstáculos ao acesso à justiça, bem como
apresentadas três soluções (as chamadas ondas renovatórias).
O primeiro obstáculo se refere aos aspectos econômicos. Desta feita, o acesso à justiça
fora pensado em sua perspectiva quantitativa, de justiça para os pobres, com o desenvolvimento
de institutos como a isenção de custas e o fortalecimento do sistema público de prestação e
assistência jurídica gratuita (por meio das Defensorias Públicas).
A segunda onda renovatória refere-se aos avanços na tutela coletiva e tem por objetivo
a superação de um obstáculo cultural: a defesa de direitos cuja titularidade é indefinida ou,
mesmo que definida, cuja tutela em juízo não se mostra vantajosa sob uma ótica individual. 
Por fim, a terceira onda percebe a burocratização e o formalismo como óbices ao acesso
à justiça por trazer morosidade ao processo judicial, propondo-se, com isso, a sua superação
pelo desenvolvimento de um sistema multiportas. 
De forma recente, novas ondas foram apontadas pela doutrina. Economides (2018)
defende a existência de uma quarta onda, que cuida da formação humanística dos atores
processuais, ao passo em que Roger (2019) leciona a existência de uma quinta onda renovatória
referente à atuação internacional. 
Por meio da utilização da hermenêutica constitucional concretizadora aplicada ao artigo 134
da Constituição brasileira, defende-se a tese de que um dos maiores desafios para o acesso efetivo
à justiça, atualmente, é a falta de conhecimento dos indivíduos e da coletividade, especialmente
dos grupos em situação de vulnerabilidade, acerca de seus direitos. Esse déficit de informação tem
por consequência justamente a inacessibilidade da justiça, na medida em que o indivíduo sequer
sabe da existência do direito não exercido ou das condições necessárias para obtê-lo. 
Em que pese a carência informacional na área seja geral, a população em situação de
vulnerabilidade enfrenta a problemática com maior intensidade. Destaca-se, assim, a missão
institucional da Defensoria Pública em promover a difusão e a conscientização dos direitos
humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico (art. 4º, III da LC80/94) como forma de
superar o obstáculo da falta de informação e conhecimento. 

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A Tecnologia como instrumento em favor da sexta onda renovatória de acesso à justiça
Ed William Fuloni Carvalho - Jaime Leônidas Miranda Alves

O problema que a pesquisa se propõe a investigar é se serve a tecnologia como instrumento


concretizador dessa nova onda renovatória. O objetivo geral é analisar, justamente, a relação
entre a educação em direitos humanos pela Defensoria Pública e a tecnologia (geral), a partir
da retomada das ondas renovatórias de acesso à justiça (objetivo específico), da análise do
perfil constitucional da Defensoria Pública (objetivo específico) e da concatenação dos meios
concretos de efetivação do acesso à justiça por meio da tecnologia (objetivo específico).
Para tanto, elegeu-se a pesquisa bibliográfica, de ordem qualitativa e, bem assim, a
perspectiva jurídico-filosófica da hermenêutica constitucional concretizadora.

1. A EDUCAÇÃO EM DIREITOS: OBRIGAÇÃO CONSTITUCIONAL


IMPOSTA À DEFENSORIA PÚBLICA COMO NOVA ONDA DE ACESSO À
JUSTIÇA
A educação em direitos se traduz como uma função institucional da Defensoria Pública
e meio de concretização do acesso à justiça.
O embasamento legal para tanto, repetidas vezes mencionado ao longo deste artigo, é o
art. 4º, III, da Lei Complementar 80/94, com redação dada pela LC 132/09, que expressamente
versa que cabe à Defensoria Pública “promover a difusão e a conscientização dos direitos
humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico”.
Todavia, em que pese a menção mais explícita venha da legislação infraconstitucional,
é fato que a própria Lei Maior também destinou à Defensoria Pública a função de educação
em direitos.
O caput do art. 134, desde a sua versão original, redigida pela assembleia constituinte
de 1988, prevê que cabe à Defensoria a “orientação jurídica” aos necessitados. Por certo que
a expressão “orientação jurídica” faz referência à educação em direitos, na medida em que o
juridicamente orientado está recebendo informações sobre aquilo que lhe é devido.
Todavia, progredindo na concretização dos direitos das pessoas em situação de vulnerabilidade,
a Emenda Constitucional 80/2014 alterou a redação do art. 134 da CRFB, acrescentando que
também é mister da Defensoria Pública a ‘promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os
graus, dos direitos dos necessitados’, tanto individual quanto coletivamente.
A ideia de promover os direitos humanos em todos os graus não apenas é compatível
com a obrigação de educar a população em direitos como também expressa um comando
constitucional de fazê-lo. Promover algo é, por definição, dar-lhe impulso e propaganda.
Nesse sentido, os próprios Capelletti e Garth reconhecem que é pressuposto do acesso
à justiça que as pessoas conheçam seus direitos e percebam que têm direitos a ter direitos
(1988, pp. 21 e 22).
Dessa maneira, a função pública da Defensoria de educar em direitos os seus assistidos
não se reveste de caráter solidário e nem optativo, mas configura-se como obrigação tanto
quanto qualquer outra função institucional prevista na lei de regência. 

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A Tecnologia como instrumento em favor da sexta onda renovatória de acesso à justiça
Ed William Fuloni Carvalho - Jaime Leônidas Miranda Alves

Em que pese não se descuide o papel de outros atores e instituições oficiais na dispersão de
conhecimento em direitos, é à Defensoria Pública que o legislador expressamente confiou essa
função, em compatibilidade com o sistema constitucional estabelecido para a instituição. 
Esse múnus imposto à Defensoria tem razão de ser. Como entidade de representação e
orientação jurídica das parcelas da população que estão em situação de maior vulnerabilidade,
a divulgação prévia de direitos pode permitir não apenas a rápida reparação, mas também
impedir a violação de direitos. Exemplo simplório é a educação do regime previdenciário a
comunidades tradicionais e agricultores familiares, que podem, desde cedo, saber que tipo de
documentação devem produzir e guardar, bem como quais precauções devem tomar para que
tenham seu direito à aposentadoria assegurado no tempo oportuno. 
É preciso, todavia, escapar de uma visão tutelar, segundo a qual ao iniciado nas ciências
jurídicas cabe o monopólio do conhecimento. Em outros termos, se faz necessário que a
Defensoria Pública possibilite meios de vascularizar a educação em direitos, até o ponto
em que ele se reproduza de forma quase independente. Sobre isso, Ferreira de Moraes faz
relevante síntese dessa obrigação institucional ao rememorar que cabe “mais do que educar e
conscientizar as pessoas carentes, tem a Defensoria Pública a função de orientar e estimular
lideranças e agentes comunitários, objetivando multiplicar o conhecimento” (2009, p. 411). 
Assim, a educação em direitos não consiste apenas em levar o conhecimento jurídico
básico às pessoas, mas sim em prover a orientação necessária para que os líderes e agentes
comunitários possam desenvolver uma cultura de educação em direitos, replicando o
conhecimento. Esse tipo de atuação, que pode ser concretizado por ciclos de debates,
palestras e até cursos especificamente criados com esse fim, tem a tendência de promover
uma verdadeira transformação social, afastando a educação em direitos da faceta da caridade
e a consolidando como expressão de direito.
Dessa forma, há um reconhecimento normativo e doutrinário, nacional e internacional,
de que não há acesso à justiça sem educação em direitos.
Ademais, a Constituição Federal brasileira e a legislação de regência impõe às Defensoria
Públicas e aos defensores e defensoras uma obrigação - um verdadeiro dever funcional - de
educar a população carente de seus direitos. 
Sob este viés, as defensorias públicas brasileiras passaram a agir proativamente a fim
de cumprir com tal mister. Exemplo é a promulgação do Decreto 39.321 do Governo do
Distrito Federal, que “dispõe sobre a promoção e difusão da educação em direitos nas escolas
públicas de ensino médio do Distrito Federal, mediante programas, projetos e outras ações,
articuladas e interdisciplinares, entre a Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal
(SEEDF) e a Defensoria Pública do Distrito Federal (DPDF)”.
A normativa vanguardista do Distrito Federal, já em seu segundo artigo, se presta a tentar
uma definição legal da educação em direitos, dispondo que “consiste na conscientização dos
direitos humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico”.
A tentativa de definição, função primordialmente doutrinária, se revela acertada, todavia,
insuficiente, na medida em que a educação em direitos não se limita na conscientização da

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A Tecnologia como instrumento em favor da sexta onda renovatória de acesso à justiça
Ed William Fuloni Carvalho - Jaime Leônidas Miranda Alves

população, mas se trata de verdadeira difusão - quantitativa e qualitativa -  dos direitos, da


forma de exercê-los e dos entes qualificados a promovê-los.
Nessa toada, a Defensoria Pública é instituição que tem o dever de se mostrar ao assistido,
orientando-o juridicamente da forma mais acessível o possível. 
A instrumentalização dessa educação em direitos pode se dar de formas diversas. O
já mencionado decreto distrital, por exemplo, regula a educação prestada diretamente nas
escolas, a adolescentes de escolas públicas, por meio de uma formação secular promovida por
parceria entre o executivo distrital e a Defensoria Pública do DF.
Palestras voltadas a grupos a vulnerabilizados e populações tradicionais também são
instrumentos valiosos, assim como cartilhas informativas a serem distribuídas às pessoas
carentes. Recentemente, a Defensoria Pública da União editou, por seu Grupo de Trabalho
de Políticas Etnorraciais, a cartilha “Política de Cotas Raciais”, voltada ao público leigo
para, em seus termos “apresentar informações acerca do sistema de cotas implementado
no Brasil, abordando o assunto como política de reparação e não como favor social ou
governamental”.
Cartilhas similares foram produzidas e distribuídas por outros Grupos de Trabalho da
Defensoria Pública da União, para instrução sobre temas tais como tráfico de pessoas e
direitos das comunidades tradicionais.
Assim, medidas como cartilhas e educação em escolas, não obstante louváveis, ainda
pecam em instruir a parcela da população que está mais alijada de seus direitos: pessoas
em situação de miséria extrema, não alfabetizados, comunidades tradicionais sem acesso à
educação formal, etc.
Dessa maneira, a educação em direitos pelas Defensoria Públicas, como nova onda
de acesso à justiça, concretiza-se por uma difusão: a) dispersa o suficiente para alcançar
a população especialmente vulnerabilizada; b) profunda o bastante para dar a conhecer os
direitos humanos e fundamentais básicos, a forma de aprendê-los e os entes e instituições
responsáveis por concretizá-los; c) em linguagem compreensível para o grupo a qual se
destina. 
Essa difusão, necessariamente, tem de trazer, minimamente: a) a divulgação de quais
são os órgãos aptos a atuar no caso de violação de direitos; b) a melhor forma de contatar os
órgãos que tem atribuição/competência para atuar no caso; c) um programa de capacitação de
líderes/agentes comunitários que possam replicar o conhecimento.
Na medida em que a educação em direitos pela Defensoria Pública alcançar tais patamares
mínimos, há de ser classificada como uma nova onda de acesso à justiça.

2. A TECNOLOGIA COMO INSTRUMENTO EFETIVADOR DA EDUCAÇÃO


EM DIREITOS HUMANOS PELA DEFENSORIA PÚBLICA
A tecnologia de massa surge no contexto contemporâneo, em que a informação é bem de
consumo e, portanto, possuidor de valor econômico.

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A Tecnologia como instrumento em favor da sexta onda renovatória de acesso à justiça
Ed William Fuloni Carvalho - Jaime Leônidas Miranda Alves

Ademais, é nessa conjectura que os direitos se enumeram e multiplicam, com ou sem


concretude fática. Bobbio (2004, p. 93) ensina que nunca se propagou tão rapidamente quanto
hoje em dia a ideia dos direitos do homem, e é sob este viés que às Constituições ditas
democráticas não cabe somente estabelecer rols de direitos fundamentais, mas também os
instrumentos para os assegurar.
Dito de outra forma, a previsão do direito existe, assim como órgãos e instrumentos
supostamente aptos para concretiza-los, porém, falta o conhecimento dos indivíduos,
especialmente dos grupos vulneráveis, acerca destes mesmos direitos. Em outros termos,
a norma agendi existe, mas o problema, hoje, está no facultas agendi. Ainda que existem
mecanismos efetivos de concretização desses direitos, estes não são reclamados porquanto
desconhecidos. É nessa seara que surge a compreensão da Defensoria Pública enquanto nova
(6ª) onda renovatória de acesso à justiça e que a tecnologia se mostra como instrumento
valioso para auxiliar a instituição a redesenhar o que se entende por acesso à justiça.
É preciso, porém, ter cautela. Franklyn Roger (2019) rememora que a falta de infraestrutura
e acesso dos próprios assistidos e cidadãos brasileiros à infraestrutura básica podem servir
como empecilho para a utilização da tecnologia pelas Defensorias Públicas.
Em seus dizeres:

Não é admissível que um país queira implementar tecnologias e funcionalidades


que possam ser utilizadas no cotidiano do serviço público e da própria Defensoria
Pública como forma de facilitação de seu público-alvo se não há uma infraestrutura
básica e segura. Do contrário, viveremos sempre com um serviço avançado que não
será utilizado em sua plenitude.

Assim, é preciso cuidar de uma tecnologia que sirva para integrar – não segregar ainda
mais - a população já vulnerabilizada. Nesse sentido, exemplos práticos seriam em protocolos
integrados de atendimento, compartimentalização de teses exitosas nas redes, atendimento de
assistidos impedidos de comparecer à Defensoria Pública por videoconferência – sempre se
mantendo a possibilidade de atendimento presencial, caso seja a vontade do assistido.
Nesse contexto é que Araújo (2012) informa, inclusive, que a tecnologia no ensino
é instrumento a favor da justiça social3 e Pinto e Santos (2017) afirmam que a tecnologia
deve, a fim de garantir o acesso à justiça, promover uma restruturação do Poder Judiciário4.
No mesmo sentido, Paiva (2010) aponta a informática como o futuro da Justiça e Vidonho

3
O uso de tecnologias educacionais liga-se à qualidade do ensino. Novas tecnologias permitem
aplicabilidades pedagógicas inovadoras que podem contribuir para resultados diferenciados, bem como
fortalecem a justiça social, pela democratização do acesso ao ensino e por facilitar a educação inclusiva de
portadores de necessidades especiais (2012, s.p).
4
Em uma Era na qual a dinâmica das relações empresariais e a agilidade proporcionada pelos novos
meios de comunicação importam em um número cada vez maior de conflitos que, por sua vez, geram cada
vez mais processos que clamam por soluções mais ágeis, faz-se necessário pensar em reformas legislativas
e jurisprudenciais. Tal reforma deve incluir, sobretudo, a criação de novas estruturas organizacionais no
âmbito do Poder Judiciário (PINTO; SANTOS, 2017, p. 7).

— 91 —
A Tecnologia como instrumento em favor da sexta onda renovatória de acesso à justiça
Ed William Fuloni Carvalho - Jaime Leônidas Miranda Alves

Júnior (2010) comenta acerca dos novos meios virtuais de acesso à informação jurídica.
Para Gotti (2018) a informática – força matriz por trás da revolução 4.0 -, voltada para o
aperfeiçoamento das pessoas, deve ser o ponto de destaque da justiça social5.
Mais especificamente quanto à educação em direitos, repisa-se, espeque na doutrina
de Santos (2019), a necessidade de a Defensoria Pública se utilizar dessa porta virtual que a
tecnologia proporciona a fim de aumentar o alcance e a qualidade das informações que chegam
aos seus assistidos, de toda sorte a mitigar a vulnerabilidade informacional. Forma eficaz de
fazê-lo seria pulverizando virtualmente materiais de educação em direitos a multiplicadores
em regiões isoladas, v.g, ONGs, servidores públicos e líderes comunitários.

CONCLUSÃO
Por todo o exposto, conclui-se que o acesso à justiça é um metadireito multifacetado,
que obriga o Estado a tomar medidas proativas que resultem na remoção de obstáculos entre
o cidadão e a concretização de seus direitos.
Na obra clássica de Garth e Cappeletti, três ondas renovatórias foram propostas como
modo de se eliminar a maioria dos obstáculos até então identificados. Entretanto, com o
passar do tempo, novos desafios foram surgindo, bem como outros diagnósticos foram feitos
sobre o tema.
É por isso que hoje alguns doutrinadores sugerem novas ondas renovatórias em adição
àquelas propostas por Garth e Cappeletti, como os nominalmente citados por este artigo, a
saber, Economides, que prega por uma formação humanística dos atores processuais, e Roger,
que vê na jurisdição internacional uma quinta onda renovatória de acesso à justiça.
Somando-se a tais propostas, este artigo debruçou-se sobre a educação em direitos, a fim
de demonstrar que não há Estado democrático de direito sem a devida dispersão à população
de um conhecimento acerca dos direitos que lhe pertencem.
A educação em direitos se mostra, portanto, como indispensável para a concretização
do acesso à justiça, na medida em que os indivíduos não apenas passam a conhecer quais são
seus direitos, mas também as maneiras adequadas de os exigir ou de tê-los reparados, se for
o caso.
É nesse contexto que se faz vital analisar a função constitucional da Defensoria Pública
de representar judicial e extrajudicialmente as pessoas em situação de vulnerabilidade. 
O redesenho constitucional da Defensoria Pública a partir da CF 88 e, especialmente, após
a promulgação das Emendas Constitucionais 45/2004 e 80/2014, lhe garantiu independência e
autonomia financeira e orçamentária para o cumprimento de seus deveres funcionais. Assim,

5
Nessa época de mudanças abruptas, não se pode esquecer, sobretudo, de investir nas pessoas.
Uma educação de qualidade que desenvolva o potencial pleno das pessoas e as prepare para um mundo em
profunda transformação, a partir do fomento à criatividade, à inovação, à colaboração e à resolução de pro-
blemas, é o ponto de partida e de chegada de qualquer Agenda 4.0 que pretenda promover um salto quântico
na área social.

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A Tecnologia como instrumento em favor da sexta onda renovatória de acesso à justiça
Ed William Fuloni Carvalho - Jaime Leônidas Miranda Alves

a Defensoria passou a se constituir verdadeiro órgão extrapoder, sem submissão a qualquer


um dos poderes na separação clássica trifásica de Montesquieu.
Nessa medida, imbuída de tais prerrogativas, salta aos olhos a obrigação constitucional
da Defensoria Pública de prover à população brasileira a adequada educação em direitos,
conforme expressa previsão na Lei Complementar 80/94.
A educação em direitos, de obrigação da Defensoria, pode se classificar como nova onda
renovatória de acesso à justiça, contanto que se mostre: a) dispersa o suficiente para alcançar
a população especialmente vulnerabilizada; b) profunda o bastante para dar a conhecer os
direitos humanos e fundamentais básicos, a forma de aprendê-los e os entes e instituições
responsáveis por concretizá-los; c) em linguagem compreensível para o grupo a qual se
destina. 
Tal dispersão de conhecimento tem de trazer, minimamente, a) a divulgação de quais
são os órgãos aptos a atuar no caso de violação de direitos; b) a melhor forma de contatar os
órgãos que tem atribuição/competência para atuar no caso; c) um programa de capacitação de
líderes/agentes comunitários que possam replicar o conhecimento.
Uma vez mantida uma estrutura institucional que permita a realização de um programa
de educação em direitos nesses moldes, há de se esperar uma profunda mudança social,
resultando em um instrumento valioso de concretização do acesso à justiça
Cabe à Defensoria Pública, portanto, pensar em práticas de educação em direitos humanos
utilizando-se de instrumentos tecnológicos, de sorte a encurtar os espaços e reduzir o tempo
de compartilhamento da informação.
Diante de todo o exposto, valendo-se da hermenêutica constitucional concretizadora,
pode-se compreender que a tecnologia é instrumento hábil para a efetivação da sexta onda
renovatória de acesso à justiça, de modo que cabe aos membros e servidores da Defensoria
Pública otimizar os recursos tecnológicos, aproximando-se (ainda que de forma virtual) do
assistido na missão de educar em direitos humanos e, com isso, reduzir as diversas formas de
vulnerabilidade.

REFERÊNCIAS
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Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3395, 17 out. 2012. Disponível em: https://
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Essenciais à Justiça, do Título IV - Da Organização dos Poderes, e acrescenta artigo ao Ato das
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A Tecnologia como instrumento em favor da sexta onda renovatória de acesso à justiça
Ed William Fuloni Carvalho - Jaime Leônidas Miranda Alves

BRASIL. Lei Complementar nº 80, de 12 de janeiro de 1994. Organiza a Defensoria Pública da


União, do Distrito Federal e dos Territórios e prescreve normas gerais para sua organização nos
Estados, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/
lcp/lcp80.htm. Acesso em: 19 fev. 2020.
BRASIL. Lei Complementar nº 132, de 07 de outubro de 2009. Altera dispositivos da Lei
Complementar nº 80, de 12 de janeiro de 1994, que organiza a Defensoria Pública da União, do
Distrito Federal e dos Territórios e prescreve normas gerais para sua organização nos Estados, e
da Lei nº 1.060, de 5 de fevereiro de 1950, e dá outras providências. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/Lcp132.htm. Acesso em: 19 fev. 2020.
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— 94 —
Impactos da revolução tecnológica na saúde
do trabalhador, telepressão e o direito à
desconexão digital

Talita Corrêa Gomes Cardim1

Resumo: O presente estudo traz um grave alerta em relação ao impacto da quarta revolução industrial
no meio ambiente do trabalho, violações aos direitos fundamentais e saúde dos trabalhadores, a problemática
envolvida e a importância do direito à desconexão digital ser regulamentada no ordenamento jurídico. A
saúde, dignidade e meio ambiente de trabalho equilibrado são direitos fundamentais dos trabalhadores,
direitos esses afetados pelos novos meios de trabalho, os tornando escravos da tecnologia digital, não tendo
seus direitos tutelados, bem como sendo escasso o debate acerta do tema. Com a alteração dos meios de
trabalho em razão do início da quarta revolução industrial através da introdução de novas tecnologias, o
trabalhador permanece conectado em tempo integral, não existindo quaisquer barreiras ou limitações para
a prestação da atividade laboral. Houve ainda o surgimento novas doenças e acidentes de trabalho, eis
que atualmente os meios de produção exigem urgência de resposta, extrema disponibilidade e conexão,
mesmo nos períodos que deveriam ser dedicados ao descanso físico e psicológico. Surge assim, a urgente
necessidade de reconhecer e regulamentar o direito à desconexão digital do trabalhador, garantindo o
cumprimento a direitos e normas já existentes que, contudo, tem sido constantemente desrespeitadas,
principalmente os direitos fundamentais e sociais do trabalhador. Serão enfrentados ao longo do estudo
os problemas em relação a “telepressão”. A metodologia utilizada para o desenvolvimento do artigo é a
sistêmica, bem como se utiliza a pesquisa bibliográfica e documental para o estudo.
Palavras-chave: direito à desconexão digital; quarta revolução industrial; novas tecnologias; novas
doenças profissionais.

Abstract: This study provides a serious warning about the impact of the fourth industrial revolution
on the labour environment, violations of fundamental rights and workers’ health, the problem involved and

1
Advogada especializada na área Trabalhista Empresarial. Graduada no curso de Direito pela FMU;
Pós Graduada em Direito e Processo do Trabalho pela Faculdade Damásio de Jesus; Pós Graduada em Di-
reito Material e Processual do Trabalho pela FGV. Mestranda em Direito do Trabalho e das Empresas pelo
Instituto Universitário de Lisboa, Portugal. Endereço eletrônico: talita_cardim@hotmail.com

— 95 —
Impactos da revolução tecnológica na saúde do trabalhador, telepressão e o direito à desconexão digital
Talita Corrêa Gomes Cardim

the importance of the right to digital disconnection be regulated in the legal system. Health, dignity and the
working environment are fundamental rights of workers, rights affected by the new means of work making
them slaves to digital technology, not having their rights protected, as well as being scarce the debate the
right topic. With the change in the means of work due to the beginning of the fourth industrial revolution
through the introduction of new technologies, the worker remains connected full-time, with no barriers or
limitations for the provision of the activity labour. There were also new diseases and accidents at work,
and these are currently the means of production require urgency of response, extreme availability and
connection, even in periods that should be dedicated to physical and psychological rest. Thus, the urgent need
to recognise and regulate the right to digital disconnection of the worker arises, ensuring compliance with
existing rights and standards, which, however, has been constantly disrespected, especially the fundamental
rights and social of workers. Problems in relation to “telepressure” will be addressed throughout the study.
The methodology used for the development of the article is systemic, as well as the bibliographic and
documentary research is used for the study.
Keywords: right to digital disconnection; fourth industrial revolution; new technologies; new
occupational diseases.

Introdução
Com o início da quarta Revolução Industrial surgiu a sociedade digital da era do
conhecimento. O desenvolvimento tecnológico trouxe inúmeras influências sobre o meio
ambiente do trabalho e benefícios, contudo, há também reflexos negativos para a saúde do
trabalhador, diante da extrema conexão digital.
Como bem demonstra Klaus Schwab, em seu livro “Aplicando a Quarta Revolução
Industrial”2, houve uma disruptura na sociedade com introdução das novas tecnologias que
alteraram completamente conceitos existentes até então nas relações de trabalho.
É preciso compreender a importância da garantia dos direitos humanos que se projetam
na quarta revolução industrial, o que será realizado através da metodologia sistêmica.
É de grande importância realizar uma análise crítica sobre os reflexos negativos do
desenvolvimento tecnológico sobre a saúde do trabalhador. Vivemos atualmente em uma
sociedade hiperconectada diante dos grandes avanços tecnológicos, alterando de forma
significativa o ambiente de trabalho, com o aumento de competitividade e pressão.
O direito à desconexão digital do trabalhador jamais tinha sido objeto de discussão,
porque até então não era possível laborar fora do local da prestação de serviços. A realidade
atual impõe extrema conexão ao trabalho, o que culminou no reconhecimento de novas
doenças profissionais, bem como o aumento de diversas patologias decorrentes do trabalho.
A era digital trouxe facilidades e maior acesso a informação, mas ao mesmo tempo o
trabalhador tornou-se escravo dos novos recursos tecnológicos. Surge assim a necessidade de
alargar a tutela aos trabalhadores no direito do trabalho, justificando-se a presente discussão
em razão das novas plataformas digitais e sua aplicação no âmbito do trabalho.

2
SCHWAB, Klaus. Aplicando a quarta revolução industrial. Tradução Daniel Moreira Miranda.
São Paulo: Edipro, 2018.

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Impactos da revolução tecnológica na saúde do trabalhador, telepressão e o direito à desconexão digital
Talita Corrêa Gomes Cardim

I. Novas tecnologias no meio ambiente de trabalho e a


Telepressão – Doença tecnológica
Houve uma disruptura no mundo do trabalho com o início da quarta revolução industrial3,
a revolução cibernética, garantindo novas formas de organização laboral.
Conforme leciona Maria Regina Redinha, pela primeira vez o crescimento econômico e
uma revolução industrial são impulsionados pela era da informação, não se tratando mais de
uma idéia de um futuro distante, mas uma realidade com inúmeros efeitos que não passam
despercebidos. A quarta revolução da indústria se assenta na automação e digitalização do
setor empresarial, econômico e tecnológico.4
Não há dúvidas de que a sociedade atual se encontra hiperconectada, bem como de que
as novas tecnologias criaram uma nova organização no meio ambiente de trabalho, como
a possibilidade de laborar de forma remota. Ocorre que houve também a eliminação de
empregos e postos de trabalho, bem como da barreira entre local e tempo de trabalho.
Com cada vez mais frequência o trabalho é levado para casa e controlado a distância
por diversos meios de comunicação, tais como grupos de whatsapp e vigilância eletrônica,
havendo um considerável aumento do tempo de trabalho e redução do tempo de descanso.
O fato de atualmente termos tecnologias que nos permitem estar conectados todo o tempo
e em qualquer local, bem como o empregado receber ferramentas de trabalho como celular
e notebook, permite que o empregador exerça uma pressão no trabalhador para que este
acompanhe em tempo real seus e-mails, tarefas e ligações.
Tem-se utilizado muito a expressão “trabalho anytime, anywhere”.5
Decorrente da revolução digital, o que antes tínhamos apenas como reflexos físicos
na saúde dos trabalhadores, atualmente estenderam-se a nível da saúde mental.6 Com as
novas tecnologias e a extrema conectividade imposta, surgiram novas doenças de trabalho
decorrentes da telepressão.
O termo “telepressão” foi criado pelas pesquisadoras do departamento de psicologia
da Universidade do Norte de Illinois, Estados Unidos, Larissa Barber e Alecia Santuzzi,
que estudaram a relação entre a obrigação de responder e-mails de trabalho a toda hora e o
prejuízo na saúde do trabalhador. O estudo pesquisou o comportamento dos trabalhadores,
questionando sobre a ansiedade de se responder prontamente a e-mails, a angústia na espera
de uma resposta e quantas vezes utilizavam as tecnologias fora do ambiente de trabalho.


3
SCHWAB, Klaus. A quarta revolução industrial. Tradução Daniel Moreira Miranda. São Paulo:
Edipro, 2016.
4
Redinha, Maria Regina. Utilização de Novas Tecnologias no Local de Trabalho – Algumas Ques-
tões, in IV Congresso Nacional de Direito do Trabalho, Coordenador António Moreira- Coimbra: Almedi-
na, 2002. Pág. 115.
5
Neste sentido, faz uso da expressão o autor Francisco Fernandes Liberal.
6
Morgado, Pedro. Impacto do Trabalho na Saúde Mental, uma perspectiva do século XXI. Coim-
bra: Almedina, 2017. Pág. 13.

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Impactos da revolução tecnológica na saúde do trabalhador, telepressão e o direito à desconexão digital
Talita Corrêa Gomes Cardim

A telepressão é a urgência em responder e-mails e mensagens que poderiam ser respondidas


no dia seguinte sem qualquer prejuízo da atividade. Também há ligações de trabalho que
poderiam ser realizadas no início do expediente no dia seguinte, contudo, instaurou-se uma
cultura de não desconexão, na qual é preciso enviar e responder mensagens em tempo real,
sob a idéia de estarem sob pressão e vigilância do empregador. As pesquisadoras concluíram
que o fato de estar constantemente conectado com o trabalho fora do horário de labor pode
diminuir a produtividade e aumentar as chances de ter problemas de saúde como a Síndrome
de Burnout. Estar sempre conectado impede que o trabalhador se recupere das atividades
profissionais do dia-a-dia.
Não restam dúvidas de que a telepressão é uma realidade em todo o mundo e há uma grande
dificuldade da sociedade atual em compreender o descumprimento de direitos fundamentais
do trabalhador como sendo uma grave violação. Isso porque, a nova revolução industrial e
a escassez de vagas de trabalho, bem como a substituição de trabalhadores por máquinas e
robôs cada vez mais frequente, fizeram com que se trate como normal o descumprimento
destes direitos constitucionais.

II. Doenças modernas do trabalho. Síndrome de Burnout


A superconectividade acarreta inúmeros problemas de saúde ao trabalhador e pesquisas
em diversos países comprovam o crescimento do número de acidentes de trabalho reflexos
da ausência de desconexão digital. Tem-se como normal que os trabalhadores devam estar
disponíveis e acessíveis para o trabalho constantemente, uma vez que podem responder
e-mails e mensagens do seu celular em qualquer lugar que se encontrem. A diversidade de
canais de comunicação e tecnologias disponíveis acarreta uma sobrecarga de trabalho. Ao
invés de se utilizar as inovações tecnológicas para otimizar o trabalho, estas estão sendo
utilizadas de forma a desencadear doenças ocupacionais.
Extensas jornadas de trabalho refletem em diversas doenças classificadas como laborais,
como é o caso da Síndrome de Burnout, já reconhecida de forma pioneira no Brasil, sendo
registrada no grupo V, do código internacional de doenças do trabalho no CID 10. Z73.0.7
A Síndrome de Burnout  é um distúrbio psíquico  de caráter depressivo, precedido de
esgotamento físico e mental intenso, definido por Herbert Freudenberger como um estado
de esgotamento físico e mental cuja causa está intimamente ligada à vida profissional.8 A
telepressão e o meio digital agravaram significativamente o aumento de casos de profissionais
diagnosticados com a síndrome de Burnout.
A OMS, Organização Mundial da Saúde, incluiu recentemente a Síndrome de Burnout
na 11ª revisão da Classificação Internacional de Doenças -CID-11, com o código QD85-

7
Recomenda-se a leitura completa da obra para melhor compreensão do tema. Valio, Marcelo Ro-
berto Bruno. Síndrome de Burnout e a responsabilidade do empregador- São Paulo: LTr, 2018.
8
Psicólogo estadunidense. Um dos primeiros médicos a investigar os sintomas de esgotamento
profissional.

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Impactos da revolução tecnológica na saúde do trabalhador, telepressão e o direito à desconexão digital
Talita Corrêa Gomes Cardim

como um fenômeno ocupacional.9 Cumpre esclarecer a Síndrome já estava incluída na CID-


10, na mesma categoria que na CID-11, mas a definição está agora mais detalhada, qual seja,
“Síndrome conceituada como resultante do estresse crônico no local de trabalho que não foi
gerenciado com sucesso”. A OMS reconhece assim a relação entre o Burnout e o trabalho.
Destaca-se que a Síndrome do esgotamento profissional não exige notificação ao
Ministério da Saúde no Brasil, motivo pelo qual o órgão não tem dados suficientes para
informar a real quantidade de trabalhadores que foram diagnosticados com a doença até o
momento. Positivamente, com o reconhecimento da OMS sobre os critérios para Burnout,
poderemos passar a ter estatísticas mais precisas sobre o problema. O que se tem atualmente
é uma pesquisa realizada pela International Stress Management Association – Isma, no
Brasil, que calcula que em média 32% dos trabalhadores no território brasileiro sofrem desta
doença laboral.10
A violação ao direito à desconexão retira o direito a convivência familiar, estudos, projetos
de vida, entre outros, implicando diretamente no denominado dano existencial.11 Importante
ressaltar que no ano de 1998 a Corte Interamericana de Direitos Humanos reconheceu o
dano existencial como uma lesão a direito fundamental à pessoa a qual se vê preterida de
desenvolver em plenitude suas potencialidades.12

III. Proteção à desconexão digital diante das novas


tecnologias.
Diante de inúmeras violações aos direitos fundamentais dos trabalhadores, tais como
dignidade da pessoa humana, direito a saúde, ao meio ambiente de trabalho sadio, garantia
dos períodos de descanso e lazer e os abusos na utilização dos novos meios tecnológicos,
é necessário ampla discussão para proteção efetiva do trabalhador, garantindo assim o seu
direito à desconexão digital.
O artigo 7º, XXII da Constituição do Brasil, garante a redução de riscos inerentes ao
trabalho por meio de normas de saúde, higiene e segurança, bem como é previsto em seu
artigo 196 que a saúde é direitos de todos e dever do Estado. Na Constituição da Espanha,
há ainda previsão expressa deste direito fundamental nos artigos número 10.1 e 2, 18.1 e 4,
43.113.

9
https://icd.who.int/browse11/l-m/en#/http%3a%2f%2fid.who.int%2ficd%2fentity%2f129180281,
acesso em 02.02.2020
10
http://www.ismabrasil.com.br/, acesso em 02.02.2020. Artigo completo “Burnout 30% sofrem do
tipo de stresse mais devastador”.
11
Neste sentido, o acórdão do TRT 3ª R.; ROPS 0010236-69.2018.5.03.0002; Rel. Des. José Eduar-
do de Resende Chaves; DJEMG 27/07/2018.
12
Melo, Sandro Nahmias; Rodrigues, Karen Rosendo de Almeida Leite. Direito à desconexão do
trabalho: com análise crítica da reforma trabalhista: (Lei n. 13.467/2017)- São Paulo: LTr, 2018. Pág. 90.
13
https://www.tribunalconstitucional.es/es/tribunal/normativa/Normativa/CEportugu%C3%A9s.
pdf, acesso em 27.09.2019.

— 99 —
Impactos da revolução tecnológica na saúde do trabalhador, telepressão e o direito à desconexão digital
Talita Corrêa Gomes Cardim

A ausência de desconexão ocorre quando o empregador exige a conexão digital do


trabalhador em período integral e quando o próprio empregado por receio de perder o emprego
se permite permanecer conectado. Com a conexão extrema, alguns dos direitos que foram
objeto de lutas no passado e revoluções industriais anteriores, aos poucos foram deixados de
lado de forma consciente.
A realidade demonstra que o próprio trabalhador não mais se permite desconectar em
razão da cultura de que se o mesmo permanecer desconectado, estará se recusando a prestar
serviço e será substituído rapidamente, ou seja, está submetido a “telepressão”.
Nas palavras de Pedro Morgado “hoje, cada um de nós é um trabalhador que se explora a
si próprio na sua própria empresa. Cada um de nós é senhor e escravo na sua mesma pessoa.”14
Ora, o avanço tecnológico e o aprimoramento das ferramentas de comunicação devem servir
para a melhoria das relações de trabalho e otimização das atividades, jamais para escravizar
o trabalhador. “Os trabalhadores não podem perder a vida quando estão justamente a ganhá-
la.”15
O teletrabalho escravo ao invés de ser realizado no mundo físico, é realizado através de
ferramentas tecnológicas, privando o trabalhador de sua liberdade. É a chamada escravidão
digital, o que deverá ser coibido.
Quando as legislações do trabalho em diversos países foram criadas, havia a proteção e
regulamentação de atividades que não existem mais, bem como não era possível prever em
tal época a era digital. É preciso que haja a modernização da legislação, para que as novas
tecnologias venham auxiliar e não para limitar a liberdade do trabalhador.
Um enorme progresso como os meios tecnológicos deverá vir acompanhado de medidas
protetivas aos trabalhadores. O direito à desconexão do trabalho envolve o direito de trabalhar,
uma garantia social do ser humano que deve ser respeitada, mas também o direito de se
desconectar do trabalho ao encerrar sua jornada.16
No artigo 8° da Convenção Europeia de Direitos do Homem17, há garantia do direito ao
respeito pela vida privada e familiar. O direito à desconexão está previsto também em diversas
Convenções da OIT, como as de número 14, 30, 47 e 106. Já a Carta Social Europeia em seu
artigo 2º, assegura o exercício efetivo do direito a condições de trabalho justas, devendo as
partes fixarem a duração do tempo de trabalho e um descanso semanal.
O Código do Trabalho de Portugal garante no artigo 170, 1 o respeito ao repouso do
trabalhador: “O empregador deve respeitar a privacidade do trabalhador e os tempos de

14
Morgado, Pedro. Impacto do Trabalho na Saúde Mental, uma perspectiva do século XXI. Coim-
bra: Almedina, 2017. Pág. 137.
15
Oliveira, Matilde Figueiredo Oliveira. Do direito à desconexão no contrato de trabalho. Tese de
mestrado, Lisboa, 2018. Pág. 78. Acesso https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/37336/1/ulfd136418_
tese.pdf
16
Almeida, Almiro Eduardo de, Severo; Valdete Souto. Direito à desconexão nas relações sociais de
trabalho- 2.ed.-São Paulo: LTR, 2016. Pág. 10.
17
https://www.echr.coe.int/Documents/Convention_POR.pdf

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Impactos da revolução tecnológica na saúde do trabalhador, telepressão e o direito à desconexão digital
Talita Corrêa Gomes Cardim

descanso e de repouso da família deste, bem como proporcionar-lhe boas condições de


trabalho, tanto do ponto de vista físico como psíquico”.

IV. Direito à desconexão digital no direito comparado


A França no ano de 2017 foi o primeiro país a regulamentar expressamente o novo direito
fundamental do trabalhador, através da Lei nº 2016-108818, apelidada de lei “El Khomri”, não
havendo precedentes no direito comparado.
O direito à desconexão na França foi regulamentado após diversos debates e estudos que
comprovaram efeitos negativos na saúde do trabalhador como reflexo do desenvolvimento
das tecnologias de informação e comunicação, tanto na vida pessoal como profissional dos
trabalhadores. Em um dos estudos realizados pela consultoria Éléas19, foi estimado que 37%
dos trabalhadores permaneciam ligados digitalmente ao seu trabalho mesmo após o término
do seu horário e destes, 12% apresentavam Síndrome de Burnout.
O artigo 55 da lei dispõe sobre o direito de se desconectar e a implementação da empresa
de mecanismos para regular o uso de ferramentas digitais, a fim de garantir o respeito aos
tempos de descanso, definindo modalidades do exercício do direito de desconexão digital.
A regulamentação pioneira no direito europeu não esgota o tema e ainda necessita de
aprimoramento na medida em que não prevê penalidades em caso de descumprimento, mas é
importante que se tenha dado este primeiro passo, para que assim a legislação de outros países
possam seguir o exemplo e incentivar o debate acerca da matéria.
Sem aguardar a evolução na legislação, na Alemanha, a empresa Volkswagen desde o
ano de 2011, mediante acordo coletivo, garante aos empregados o bloqueio de acesso ao seu
e-mail no celular entre às 18h15 às 07h00 e aos finais de semana, o mesmo ocorrendo com a
empresa Michelin. A empresa Orange, grande operadora telefônica também mantém acordo
com os empregados para que não usem o e-mail fora do período normal de trabalho e férias.
Por fim, em janeiro de 2017 a Santa Casa da Misericórdia do Porto em Portugal, declarou
que os empregados não são obrigados a responder a chamadas ou e-mails fora do horário de
trabalho, garantindo o direito à desconexão digital dos seus trabalhadores, proporcionando-
lhes assim o direito a um descanso efetivo entre as jornadas de trabalho.

V. Problemática na implementação e fiscalização do


direito à desconexão digital
A grande problemática na implementação do direito à desconexão digital encontra-se
em as empresas não aceitarem como um ponto negativo da utilização das novas tecnologias a

18
https://www.legifrance.gouv.fr/affichTexte.do?cidTexte=JORFTEXT000032983213&categorieLi
en=id, acesso em 01.10.19. Leitura do artigo 55 da Lei.
19
http://www.eleas.fr/app/uploads/2016/10/CP-Eleas-Enqu%C3%AAte-Pratiques-
num%C3%A9riques-2016.pdf, acesso em 03.02.2020.

— 101 —
Impactos da revolução tecnológica na saúde do trabalhador, telepressão e o direito à desconexão digital
Talita Corrêa Gomes Cardim

telepressão exercida sobre os trabalhadores e o excesso de conectividade exigido. Há também


dificuldade em aceitar como sociedade que a ultraconectividade no meio ambiente laboral é
causador de novas doenças de trabalho, tais como a síndrome de Burnout.
Ainda que o direito seja previsto em legislação, como já é o caso da França, temos o
seguinte ponto a avançar: como garantir efetivamente o cumprimento deste direito à desconexão
digital? Ora, é certo que primeiramente a fiscalização é tida como algo inimaginável, na
medida em que o número de órgãos fiscalizadores, procuradores do ministério público do
trabalho e demais agentes da lei possuem em números um contingente de profissionais
infinitamente inferior ao número de estabelecimentos comerciais e empresariais.
Desta forma, garantir o cumprimento deste direito apenas pela fiscalização legal seria a
primeira barreira que daria força ao descumprimento do direito por parte das empresas.
Resta claro que além da previsão legal, é necessário um trabalho muito mais abrangente
de conscientização tanto dos empregadores, quanto dos próprios trabalhadores.
Por parte dos empregadores, estes devem se conscientizar de que o excesso de
conectividade e a telepressão exercida sobre os seus trabalhadores ao invés de gerar uma
maior produção e competitividade no mercado, causa o efeito contrário a médio e longo prazo,
eis que estes trabalhadores irão cada vez mais se ausentar em razão de doenças psicológicas,
a sua produção irá diminuir pelo cansaço mental, aumentará o número de erros nas tarefas,
acidentes, entre outros.
Pelos do trabalhadores, é preciso que estes se conscientizem que devem unir forças e
trabalhar em conjunto pela garantia do seu direito à desconexão digital, não havendo receio e
terror de fácil substituição, que irá produzir muito mais e com maior qualidade, evitando erros
no trabalho gerados pelo cansaço e urgência em respostas e entrega de tarefas, e muito mais,
que estes estarão preservando a sua própria saúde.
A fiscalização deverá partir de dentro para fora em maior escala, ou seja, empresas e
empregados fiscalizarem e exigirem o cumprimento do direito, eis que certamente os órgãos
competentes não conseguirão realizar uma fiscalização eficiente. A problemática exposta
encontrada é o principal motivo pelo qual atualmente os reflexos da tecnologia no ambiente
de trabalho saíram de controle.
É preciso focar igualmente na resolução de problemas de como poderá ser realizado
o cumprimento do direito, para que este possa ser implementado com sucesso. A ausência
de debates neste sentido só prejudica o avanço benéfico da tecnologia no meio ambiente de
trabalho, eis que não podemos nos esquecer que a tecnologia é uma realidade e que não deverá
ser barrada, mas sim caminhar de forma contributiva para um meio ambiente de trabalho
sadio, eis que são inúmeras as facilidades que a era digital trará aos trabalhadores.
Tanto é possível a solução da grande problemática em garantia da desconexão digital
e sua fiscalização, que grandes companhias em diferentes países já deram este primeiro e
importante passo como forma de minimizar a telepressão e seus efeitos negativos.
A regulamentação Francesa serve como alerta para a gravidade do problema de que os
avanços tecnológicos são mecanismos que facilmente podem ser utilizados de forma abusiva.

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Impactos da revolução tecnológica na saúde do trabalhador, telepressão e o direito à desconexão digital
Talita Corrêa Gomes Cardim

A razoabilidade deve sempre ser observada, garantindo a conciliação entre a vida profissional
e privada do trabalhador como ser humano e todos os seus direitos fundamentais.

Conclusão
A introdução de novas tecnologias no ambiente de trabalho gerou conflito entre direitos
fundamentais do trabalhador. A tecnologia no direito é uma realidade que não deve ser
impedida, mas é necessário regular as novas condições de trabalho para que não prejudiquem
o trabalhador. Se o direito do trabalho não acompanhar as novas formas de trabalho, qual é a
sua função?
A sociedade se tornou altamente dependente das novas tecnologias e o que pouco se discute
são seus reflexos negativos no meio ambiente de trabalho e na saúde dos trabalhadores.
O presente artigo buscou trazer uma reflexão sobre os aspectos negativos do
desenvolvimento tecnológico sobre as relações de trabalho, bem como as lacunas na legislação
existentes, chamando atenção a problemas novos e urgentes que precisam de maior atenção
pelos operadores do direito. O ordenamento jurídico precisa adequar-se e dar respostas rápidas
ao uso da tecnologia em detrimento da saúde e do bem-estar dos trabalhadores.
Estamos diante de um tema polêmico, com necessidade de maior reflexão crítica e
discussão acadêmica, dada a importância dos direitos humanos inseridos na categoria de
direitos fundamentais que devem ser invioláveis.
O desenvolvimento tecnológico precisa ser direcionado para facilitar e dar conforto aos
que dele se beneficiam, e nisso se incluem os trabalhadores, devendo ser utilizada de maneira
responsável, com os abusos existentes sendo coibidos pelo direito.

REFERENCIAS
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de trabalho- 2.ed.-São Paulo: LTR, 2016.
BARROS, Carla. Fatores psicossociais de risco no trabalho de hoje. Coimbra: Almedina, 2017.
CARDIM, Talita Corrêa Gomes. Direito à desconexão: um novo direito fundamental do trabalhador.
In: VEIGA, Fábio da Silva; MIRANDA GONÇALVES, Rubén (Dirs.); MARTÍNS, Flávio;
MARTÍN RODRÍGUEZ, Gabriel (Coords.).  Direitos fundamentais e inovações no Direito.
Porto/Madrid: Instituto Iberoamericano de Estudos Jurídicos e Universidad Rey Juan Carlos,
2020, p. 143-150. ISBN: 978-84-09-17703-5
LIBERAL, Francisco Fernandes. Organização do trabalho e tecnologias de informação e comunicação,
questões laborais, n. 50. Almedina, 2018. Pp. 7 a 17.
MELO, Sandro Nahmias; RODRIGUES, Karen Rosendo de Almeida Leite. Direito à desconexão do
trabalho: com análise crítica da reforma trabalhista: (Lei n. 13.467/2017). São Paulo: LTr,
2018.

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Impactos da revolução tecnológica na saúde do trabalhador, telepressão e o direito à desconexão digital
Talita Corrêa Gomes Cardim

MOREIRA, Teresa Coelho. O direito à desconexão dos trabalhadores, questões laborais, n.49.
Almedina, 2017.
MORGADO, Pedro. Impacto do Trabalho na Saúde Mental, uma perspectiva do século XXI, in
Trabalho sem fronteiras? O papel da Regulação, Coordenação Manuel M. Roxo, Almedina,
Coimbra, pp.129 a 140.
OLIVEIRA, Matilde Figueiredo Oliveira. Do direito à desconexão no contrato de trabalho. Tese de
mestrado, Lisboa, 2018.
REDINHA, Maria Regina. Utilização de Novas Tecnologias no Local de Trabalho – Algumas Questões,
in IV Congresso Nacional de Direito do Trabalho, Coordenador António Moreira- Coimbra:
Almedina, 2002. Pp. 115 a 118.
SANTOS, João Diogo da Cruz. PEREIRA, Rafael. Direito à desconexão digital. O direito do trabalho
e as empresas, novos desafios, novas soluções. Pág. 98. 2017.
SCHWAB, Klaus. A quarta revolução industrial. Tradução Daniel Moreira Miranda. São Paulo:
Edipro, 2016.
SCHWAB, Klaus. Aplicando a quarta revolução industrial. Tradução Daniel Moreira Miranda. São
Paulo: Edipro, 2018.
VALIO, Marcelo Roberto Bruno. Síndrome de Burnout e a responsabilidade do empregador- São
Paulo: LTr, 2018.

— 104 —
A Internet e a transmutação do conceito jus-
fundamental da liberdade de expressão

Raíssa Mendes Tomaz1

Resumo: As características da internet tais como: centralidade da autonomia individual, interatividade,


diversidade de conteúdos, descentralização da autoridade e possibilidade de anonimato, transformaram
o conceito clássico da liberdade de expressão e do direito a privacidade – e consequentemente da sua
proteção. Os serviços oferecidos pela Web 2.0 permitiram um claro aumento exponencial nas possibilidades
de manifestação da liberdade de expressão de cada utilizador individual, no entanto, de forma paralela,
também potencializaram as possibilidades de atuações ilegítimas através da rede mundial de computadores.
Por meio de uma pesquisa bibliográficae da sua análise, este trabalho pretende demonstrar que, atualmente,
a internet pode ser considerada como um autêntico catalisador do exercício da liberdade de expressão,
expandindo este exercício para além de limites nunca antes previstos. O objetivo de tal discussão é o
de fundamentar o surgimento de novas legislações que sejam elaboradas especialmente para os casos
que envolvam conflitos de direitos fundamentais na internet em um modelo multistakeholder, de modo a
aproximar o intérprete e o aplicador do Direito de soluções que estejam mais adequadas ao funcionamento
do ambiente digital.
Palavras-chave: Liberdade de expressão; Direitos Fundamentais; Internet; Web 2.0.

Abstract: Internet characteristics such as: centrality of the individual autonomy, interactivity, diversity
of content, decentralization of authority, possibility of anonymity, transformed the classic concept the
protection of the freedom of speech and the right to privacy. The services offered by the Web 2.0 allowed an
exponential increase in the possibilities of the manifesting the freedom of speech of each user, however at
the same time, they also increased the possibilities of illegitimate actions. Through a bibliographic research
and its analysis, this work intends to demonstrate that the internet nowadays can be considered as an
authentic catalyst for the exercise of the freedom of speech, expanding this exercise beyond limits that
could never be predicted. The purpose of such a discussion is to support the emergence of a new legislation

1
Doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa. Investigadora associada
do CIDP – Centro de Investigação de Direito Público da Faculdade de Lisboa. Mestre em Ciências Jurídico-
Empresariais pela Universidade de Coimbra. raissamendestomaz@gmail.com

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A Internet e a transmutação do conceito jus-fundamental da liberdade de expressão
Raíssa Mendes Tomaz

model that are specially developed in a multi-stakeholder model, in order to give to society more suitable
solutions for the conflicts involving fundamental rights on the digital environment
Key-words: Freedom of speech; Fundamental Rights; Internet; Web 2.0.

1. O conceito clássico do direito fundamental da


liberdade de expressão.
O surgimento das novas tecnologias despertou no Direito a necessidade de se reconectar
com a realidade social. As tecnologias de informação e comunicação alteraram as perspectivas
do direito de igualdade e liberdade, que agora também são transferidas para o mundo virtual,
especialmente com o advento da fase denominada Web 2.0. A internet tem uma clara
característica democrática por permitir que indivíduos tenham expressão independente da
sua classe social, além de tornar o tempo e espaço em conceitos de caráter vago, sem limites
e para além de uma estrutura física, se constituindo em um rejuvenescimento do espaço
público. Todas estas mudanças, como é óbvio, tiveram um forte impacto no exercício dos
direitos fundamentais – em especial a liberdade de expressão.
A liberdade de expressão é por excelênciaum dos direitos de liberdade mais importantes
dentro do desenvolvimento dos Estados democráticos. O seu conceito consiste basicamente
em uma contínua confrontação competitiva e interação crítica de concepções, ideias, opiniões
e preferências alicerçados na autonomia individual e na descentralização de autoridade. Como
uma autêntica manifestação das esferas dos direitos da liberdade, a liberdade de expressão em
especial também demanda uma neutralidade por parte do Estado. A comunicação é entendida
neste sentido como uma espécie de realidade sistémica, que não pode ser reduzida à mera soma
das comunicações individuais – merecendo um tratamento dogmático em sentido amplo2.
O grande interesse público sobre a liberdade de expressão se deve em grande a parte à sua
grande conexão com a liberdade de pensamento – e consequentemente, com a liberdade do
individuo se reconhecer como pessoa, com base em suas próprias experiências e percepções,
por meio de um método de livre criação individual. A livre expressão do pensamento também
foi um direito fundamental constantemente posto em causa por monarcas e religiões. O método
de livre criação individual proposto por este direito fundamental conflitua diretamente com o
conceito histórico/religioso: de verdade revelada, que visava assegurar a unidade e coerência
entre os diversos pensamentos dissidentes. A dissidência intelectual no período antigo sempre
foi acompanhada deacusações de blasfémia, subversão ou impiedade. Deste modo, pode-se
considerar que o surgimento da liberdade de expressão está diretamente relacionado com a
luta pela separação da Igreja e do Estado. A Inquisição na Idade Média por sua vez, pode ser
considerada como a primeira grande rede de censura que atuava duramente na repressão das
livres manifestações de pensamento.
A abertura do sistema económico a partir do século XVII promoveu uma quebra neste
sistema feudal baseado em concepções tradicionais de hierarquia, autoridade e tradição –
possibilitando o desenvolvimento de novas ideias baseadas na racionalidade. A liberdade
contratual nesta altura passou a ser fortemente defendida como um corolário da autonomia

2
Machado, 2002, p.15-19.

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A Internet e a transmutação do conceito jus-fundamental da liberdade de expressão
Raíssa Mendes Tomaz

individual, além do desenvolvimento de teorias científicas que iam de encontro com essa
centralização religiosa observada na Idade Média. O objetivo da ciência não pode ser o de
encontrar verdades absolutas ou legitimadoras de uma concepção de politicamente correto –
quando muito o que se poderá admitir são verdades provisórias3, que necessitam diretamente da
livre comunicação para que sejam devidamente aprimoradas. A observância de tais premissas
são a base de uma sociedade aberta, com enfâse de no valor humanizante da discussão crítica,
que atualmentefundamentam as nações democráticas pós-segunda guerra mundial.
A presença dos direitos fundamentais – e da liberdade de expressãojá se encontrava
presente em Constituições como a de Weimar de 1919, no entanto, a efetividade e a real
preocupação do Estado com a proteção de tais direitos se deu nomeadamente após a Segunda
Guerra Mundial, com o surgimento da dimensão objetiva dos direitos fundamentais.
Neste período histórico, se constatou um movimento generalizado dentro da legislação
constitucional ocidental, que agora considerava a dignidade da pessoa humana – e os seus
diversos desdobramentos materializados através dos direitos fundamentais – como um dos
axiomas comuns de toda constituição democrática. Os cidadãos encontravam naConstituição
a sua identificação com o seu projeto de comunidade política e social – e além disto, os
Estados apresentavam-se em instâncias internacionais com identidade própria4.
A dimensão objetiva temcomo característica fundamental o reconhecimentode elementos
que não se reduzem à clássica dimensão subjetiva, ao momento em que introduznovas ideias
como: valor, instituto e deveres estatais de prestação5. Como se poder perceber, esta nova
dimensão constitui uma forma de prevenção contra a relativização dos direitos fundamentais
diante ao poder do Estado – assumindo uma claro caráter de função social6. Além desta nova
dimensão, o princípio da dignidade da pessoa humana agora atua como uma justificativa
de um conceito de indivisibilidade geopolítica dos direitos fundamentais,impedindoseu
confinamento em relações vertidas de poder público7.
O neoconstitucionalismo pós-guerra garantiu um reforço na proteção e na garantia da
observância prática dos direitos fundamentais, além de garantir uma tendência universalizante
ao tema – características que são especialmente pertinentes quando se trata de direitos
fundamentais diretamenteafetados pela globalização, como é o caso da liberdade de expressão
na internet. O reconhecimento desta tendência universal dos direitos fundamentais é essencial
para que estes direitos sejam efetivamente visualizados como autênticos corolários da
dignidade da pessoa humana, podendo desta forma ser defendidos contra qualquer tentativa
de funcionalização ou instrumentalização por parte do Estado.

3
Popper, 1985, 51 e ss.
4
Silva, 2011, p. 10-11.
5
Novais, 2013, p.52 e ss.
6
Häberle, 2003, p.50.
7
Habermas, 2012, p.65.

— 107 —
A Internet e a transmutação do conceito jus-fundamental da liberdade de expressão
Raíssa Mendes Tomaz

2. A relação entre a internet e os direitos fundamentais


A internet surgiu em plena Guerra Fria, numa tentativa de coordenar projetos de
investigação para o departamento de defesa dos Estados Unidos – e somente, em meados
da década de 80 foi gradativamente sendo transferida para outros setores. A interconexão
com estas redes só se deu com o surgimento do WorldWide Web (www), constituída em
diversos blocos interligados por hyperlinks. A criação da WWW foi importante ponto de
transformação, porque permitiu que a internet fosse mais acessível a todos por meio de uma
significativa simplificação na sua utilização.
Esta nova fase também refletiudiretamente no conteúdo dossitesdisponíveis, que a princípio
apresentavam conteúdos estáticos e não interativos, pois agora o ideal seria o de promover uma
experiência on-line mais rica, por meio desoftwaresatualizados continuamente e com maior
interatividade.Consequentemente,o utilizador agora tem suas funções ampliadas, além de
consumidor, ele também se constituirá em um agente ativo na colocação e difusão de conteúdo
na internet - e também demonstrará ser capaz de exercer funções políticas. Outro efeito direto
da Web 2.0 se trata do fenómenoda multiplicação dos conteúdos gerados pelos usuários, que
claramente se diferem dos conteúdos gerados pelos fornecedores de conteúdo, por serem a
princípio desprovidos de controle e diretamente associados a pessoa que os profere.
Actualmente a internet é em uma espécie de bem público8, onde todo o cidadão deve ter
como direito garantido a sua devida utilização. Além disto, a rede mundial de computadores
deu um novo significado as noções clássicas de fronteira esoberania, de modo que a segurança
da internet encontra-se em claro desequilíbrio com a sua amplitude. A sua amplitude por um
lado é pulverizada, transnacional e global, enquanto a sua segurança é limitada, pontual e
articulada com institutos legislativos anteriores a criação deste meio de comunicação sem
precedentes.
O desenvolvimento desta sociedade digital também retoma a discussão doutrinal sobre
a possibilidade da acumulação de direitos fundamentais (para alguns defina como a história
sem fim dos direitos fundamentais)9, deum modo, que especialmente neste momentoem
que vivemos, o reconhecimento destaacumulação é essencial para que o Direito se torne
verdadeiramente apto a defender os bens jurídicos que se responsabilizoututelar – diante
a estas constantes transformações tecnológicas e sociais impulsionadas pela globalização e
a Web 2.0. Um exemplo evidente da aplicação deste conceito de acumulação, trata-se da
discussão doutrinal sobre a possível consideração da inclusão digital como um novo direito
fundamental, devido a grande importância que o acesso da internet atualmente possui no
exercício de diversos direitos fundamentais10.
Diante este novo quadro, a internet atua como um autêntico instrumento de potencialização
na construção de novos sujeitos, no intuito de efetivamente garantir condições para que
os indivíduos exerçam as suas múltiplas potencialidades em condições de igualdade.As
características da internet11como são: a centralidade da autonomia individual, interatividade,

8
Gurumurthy; Bharthur, 2017.
9
Andrade, 2001,
10
Maia, 2016, p. 202 e ss.
11
Machado, 2002, p. 1105

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A Internet e a transmutação do conceito jus-fundamental da liberdade de expressão
Raíssa Mendes Tomaz

diversidade de conteúdos, descentralização da autoridade e a possibilidade de anonimato


transformaram o conceito clássico da liberdade de expressão e do direito a privacidade –
e consequentemente da sua proteção. Mediante estas linhas de comunicação atualmente é
possível tornar acessível determinados conteúdos, produzir declarações de vontade, concluir
e executar contratos, utilizar sinais distintivos, reproduzir criaçõesintelectuais, realizar
pagamentos, exercitar publicidade direta e exercer a liberdade de expressão com uma grande
variedade de manifestações. Sobre este último item em especial, iremos tratar com mais
profundidade no próximo tópico.

3. A liberdade de expressão na internet como um processo


de transmutação
As mudanças tecnológicas facilitadas pela globalização, conforme ao que já foi
previamente exposto, foram diretamente responsáveis por várias alterações no exercício e no
conteúdo dos direitos fundamentais. Entretanto, as liberdades comunicativas – em especial a
liberdade de expressão – se constituem na categoria de direitos que foi mais diretamenteafetada
por este revolucionário meio de comunicação que é a internet.
Dentro do desenvolvimento histórico da liberdade de expressão, a internet significou um
regresso ao paradigma individualista que esteve presente na origem deste direito fundamental.
O discurso individual impulsionado pela Web 2.0 passa a ser revitalizado, não somente no
plano político mas em todas as esferas da vida social dos indivíduos. A baixa barreira de
entrada característica da internet tem uma clara característica democrática, vistoque permite
que osindivíduos tenham expressão e acesso à informações independente da sua classe social,
além de tornar o tempo e espaço em conceitos de caráter vago, sem limites e para além de
uma estrutura física.
O acesso à informação e a liberdade de buscar informações, são condutasque são
exponencialmente ampliadas com a rede mundial de computadores, sãoconsideradas como
aspectos fundamentais da vida democrática, de acordo com o Art. 19 doPacto Internacional
dos Direitos Civis e Políticos. Tal marco normativo torna evidente a conexão entre a liberdade
de expressão na internet e a democracia. O direito à liberdade de opinião deve ser exercido
sem interferências externas, porque se trata essencialmente de um direito absoluto12.
Por um outro lado, a internet também demonstrou que as corporações privadas têm cada
vez mais um papel central na garantia da liberdade de expressão e opinião. Esta configuração
tem uma natureza inusitada, porque indiretamente condiciona o exercício pleno de um direito
fundamental de liberdade à atuação da iniciativa privada. Tal esquematização é curiosa porque
via de regra o exercício dos direitos fundamentais, uma vinculação com a atuação do poder
público, como parte das novas funções do Estado na garantia destes direitos.
Além disto, também podemos afirmar que a internet significou um aumento exponencial
no âmbito de proteção da liberdade de expressão – que agora transcende com sucesso as
restrições à liberdade de expressão impostas pelo Estado. O caráter universal da comunicação


12
Kaye, 2018.

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A Internet e a transmutação do conceito jus-fundamental da liberdade de expressão
Raíssa Mendes Tomaz

online possibilita a mobilização global de cidadãos de toda parte do mundo em movimentos


políticos e sociais sobre os mais diversos temas, como como é o caso da hashtag #MeToo
relativa a denúncia de casos de abuso sexual, além da organização em defesa de uma
comunidade em Oaxaca que estava sendo alvo de ataques por parte do governo mexicano e
do movimento “Ocuppy” que teve manifestações na Espanha e Nova Iorque13 - apenas para
citar alguns exemplos.
Esta falta de controlo dos governos sobre o conteúdo publicado dentro dos seus territórios
representa de forma clara a descentralização de poder, que que agora relativiza o controle público
sobre o que seria propriamente uma assunto político doméstico – visto que aparentemente
todas as questões públicas parecem de certa forma ser um internationalconcern. A proteção
internacional dos direitos humanos nunca possuiu tantos recursos para fiscalizar as ações
políticas dos Estados, de modo que estes efetivamente respeitem os tratados internacionais
de que são signatários.
Como era de certa forma previsível, os governos ao se darem conta da função política
da internet reagiram através de medidas autoritárias de legalidade duvidosa. Certos países
como Myamar, Zimbabué, Egito, entre outros, passaram a fazer uso de shutdowns, que
consiste no bloqueio do acesso da internet pelos seus cidadãos, como estratégia de repressão
de movimentos revolucionários que fossem contra aos seus governos.
Além dos shutdowns, consideramos que a metodologia adotada por algumas legislações
no combate às notícias falsas (fakenews) também é um objeto de preocupação dentro da
preservação da liberdade de expressão da internet.Em 2016 o caso Cambridge Analytica
foi responsável pela quebra do mito da santidade dos dados, despertando uma desconfiança
generalizada do poder público sobre como os dados disponibilizados online eram tratados e
negociados pelas grandes corporações.
Por óbvio, a situação das fakenews é de fato grave, mas acreditamos que o processo
de alfabetizaçãomidiáticae conscientização da população passa por um processo que inclua
mais informação – e não menos como propõem alguns projetos de lei. Consideramos um
verdadeiro retrocesso à linhagem histórica do direito fundamental da liberdade de expressão,
permitir que o Estado volte a ter em seu poder a disposição de poder selecionar o que seria um
discurso “legítimo” ou não. Tal atribuição de poder claramente ocasionaria o retorno de uma
rede de censura prévia política, impedindo que os cidadãos e eleitores possam ter o acesso
livre às mais diversas fontes de informação, afim de elaborar o seu convencimento da forma
mais espontânea e orgânica possível.
Também manifestamos nossa crítica contra medidas autoritárias como o caso da nova
Lei de Execução na Rede de 01.01.2018 na Alemanha14, que prevêem um rígido regime de
controle da responsabilidade subsidiária das redes sociais no controle dos seus conteúdos
postados, com multas que podem chegar a milhões de euros. Tal medida, além de ser um
mau-exemplo para outras legislações europeias, atribui à empresas privadas (em sua grande

Castells, 2017, p.23.


13

Lei de Execução na Rede de 01.01.2018 Netzwerkdurchsetzungsgesetz(EnforcementAct – GNEA


14

German Network).

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A Internet e a transmutação do conceito jus-fundamental da liberdade de expressão
Raíssa Mendes Tomaz

maioria americanas) a função de interpretar o contexto histórico e o significado da liberdade


de expressão dentro de cada Estado. Diante a dificuldade de tal tarefa, entendemos que as
empresas em questão irão optarem caso de dúvidas, por suprimir o conteúdo “suspeito” em
causa, o que em grande escala acabará por representar uma organização em rede de censura
prévia indireta.
A Lei de Execução da Rede de 01.01.2018 é um claro exemplo de uma legislação
que não foi elaborada num modelo em que todos os interessados, tais como: a sociedade,
os profissionais da área de informática, as corporações responsáveis pela gestão de redes
sociaise outros, fossem de fato consultados sobre a viabilidade fáctica das suas disposições. A
elaboração de legislação que tratesobreos direitos digitais devenecessariamente ser feita sob
o modelo multistakeholder, onde todos os interessados possam ser consultados na elaboração
de soluções. Caso contrário, estas legislações acabarão por viabilizar violações e abusos do
poder público, indo diretamente contra à finalidade a que se propõem, que é nomeadamente
a de proteção dos bens jurídicos constitucionais.

4. Considerações Finais
É inegável que a internet se constitui em um grande desafio para tanto para o legislador
como para o intérprete e aplicador do direito. A complexidade das questões que envolvam
direitos fundamentais digitais vai além do conhecimento meramente jurídico, pois
necessitadiretamente de diversas outras áreas técnicas do conhecimento. Tal dependência
já foi previamente observada em outras áreas do Direito, mas entendemos que atualmente
nunca a relação entre o exercício de um direito fundamental esteve tão conectada com à ação
da iniciativa privada e com asquestões técnicas, como é o caso específico da liberdade de
expressão na internet.
Entretanto, não nos devemos entusiasmar com a constatação desta forte relação para
justificar medidas unilaterais e autoritárias por parte do poder público que acabariam por atuar
como um não-serviço na proteção dos direitos humanos e fundamentais. Os valores centrais
da participação política online tais como o de participar da livre criação da cultura, bem como
a capacidade de construir ideias em conjunto com ideias de terceiros, dependediretamente de
um conceito de neutralidade na rede. Atribuir ao Estado a função de definir o que seria um
conteúdo legítimo ou não, seria, ao nosso ver, um verdadeiro retrocesso ao modelo de censura
prévia, que definitivamente não se adequa à nova realidade do neoconstitucionalismo pós-
guerra, que preza sobretudo a proteção geopolítica indivisível dos direitos humanos.

5. Referências
ALEMANHA, Lei de Execução na Rede de 01.01.2018 Netzwerkdurchsetzungsgesetz(Enforcemen
tAct – GNEA German Network). Disponível em: https://www.gesetze-im-internet.de/netzdg/
Acesso: 15.12.2018.
ANDRADE, José Vieira de.Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra:
Almedina, 2001

— 111 —
A Internet e a transmutação do conceito jus-fundamental da liberdade de expressão
Raíssa Mendes Tomaz

CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e Esperança: movimentos sociais na era da internet. São
Paulo: Zahar, 2017.
GURUMURTHY Anita, BHARTHUR, Deepti. Democracy and the algorithmic turn. Sur - International
Journal of Human Rights. Disponível em: http://sur.conectas.org/en/digital-sovereignty-or-
digital-colonialism/. Data de acesso: 22.12.2020.
HÄBERLE, Peter. La garantía del contenido esencial de los derechos fundamentales. Madrid:
Dykinson, 2003.
HABERMAS, Jürgen. Um ensaio sobre a Constituição na Europa. Lisboa: Edições 70., 2012.
KAYE, David. A neutralidade da rede faz parte da luta internacional pelos direitos humanos na era
digital. Sur - International Journal of Human Rights. Disponível em: http://sur.conectas.org/en/
digital-sovereignty-or-digital-colonialism/. Data de acesso: 22.12.2020.
MACHADO, Jonatas E. M. Machado. Liberdade de expressão – dimensões constitucionais da esfera
pública do sistema social. Coimbra: Coimbra Editora, 2002.
MAIA, Daniel. Liberdade de expressão nas redes sociais. São Paulo: LumenJuris, 2016
Novais, Jorge Reis. As restrições dos direitos fundamentais não expressamente autorizadas na
Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2013.
POPPER, Karl. Realismo y el Objetivo de la Ciência. Madrid: Tecnos, 1985.
SILVA, Suzana Tavares da. Direitos Fundamentais na Arena Global. Coimbra: Imprensa da
Universidade de Coimbra, 2011.

— 112 —
E-Justice e E-Evidence em processo civil –
ordenamento português e contexto europeu

Lurdes Varregoso Mesquita1

Resumo: As novas tecnologias de informação e comunicação (TIC) são um instrumento fundamental


na tutela judicial efectiva. A Estratégia de Justiça Eletrónica para 2019-2023, o Plano de acção para a justiça
eletrónica europeia para 2019-2023 e, em especial, as orientações adoptadas pelos Ministros dos Estados
Membros sobre prova eletrónica em processo civil e administrativo, em 30 de Janeiro de 2019, após proposta
do Comité Europeu de Cooperação Jurídica (CDCJ) do Conselho da Europa, mostram que as e-evidence
são inevitáveis no contexto processual actual e futuro. Através da utilização das TIC, designadamente nos
meios de prova e na produção de prova, o processo civil cumprirá melhor a sua tarefa de descoberta da
verdade material, na resolução dos litígios. Emerge, assim, um novo paradigma da justiça, em que prevalece
a ideia de «digital por definição». O presente estudo visa: i) apresentar as linhas gerais do quadro europeu
da e-justice; ii) analisar as formas de cooperação judiciária em matéria probatória, mostrando como as
novas tecnologias dão um contributo positivo; iii) avaliar o documento electrónico enquanto meio de prova
e a respectiva força probatória no ordenamento português, tendo em conta a actual corrente jurisprudencial,
em linha com as orientações europeias. A análise destas temáticas mostra a actualidade da matéria e a sua
importância na resolução dos litígios internos e dos litígios transfronteiriços, pretendendo contribuir para a
harmonização dos procedimentos.
Palavras-Chave: E-justice; e-evidence; processo electrónico; prova em processo civil; documento
electrónico; litígios transfronteiriços.

Abstract: New ICT technologies are a key tool in effective judicial protection. The E-Justice Strategy
for 2019-2023, the European e-Justice Action Plan for 2019-2023 and, in particular, the guidelines adopted
by Member States’ Ministers on e-evidence in civil and administrative proceedings on 30 January 2019,
following a proposal by the Council of Europe’s European Committee on Legal Cooperation (CDCJ), show
that e-evidence is inevitable in both the present and future procedural context. ICT, in particular in evidence
and in the production of evidence, will enable civil proceedings to accomplish their task of material truth
discovery in the resolution of disputes more effectively. A new paradigm of justice arises, where the idea

1
Doutora em Direito; Professora Adjunta da Escola Superior de Gestão do IPCA; Investigadora do
Instituto Jurídico Portucalense. E-mail: mmesquita@ipca.pt ou lvarregosomesquita@gmail.com.

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E-Justice e E-Evidence em processo civil – ordenamento português e contexto europeu
Lurdes Varregoso Mesquita

of “digital by definition” prevails. This study intends to: i) present the general guidelines of the European
e-justice framework; ii) analyse the methods of judicial cooperation in evidence, demonstrating how the new
technologies make a positive contribution; iii) evaluate the electronic document as a means of evidence and
the probatory force in the Portuguese legal system, taking into account the current jurisprudence, in line with
the European guidelines. The study of these topics reflects the actuality of the matter and its importance in the
resolution of internal and cross-border litigation, and intends to contribute to harmonisation of procedures.
Keywords: E-justice; e-evidence; electronic procedure; evidence in civil procedure; electronic
document; cross-border litigation.

I. Quadro geral da e-justice no espaço europeu de justiça


1. A União Europeia e os Estados-Membros têm-se empenhado no desenvolvimento e na
concretização de medidas que, através das TIC, tornem a justiça mais acessível e mais eficaz,
os processos mais céleres e os resultados mais adequados. Na União Europeia, a cooperação
judiciária civil tem, cada vez mais, suporte na justiça electrónica, seja para possibilitar um
acesso mais fácil à justiça e uma melhor informação judiciária aos cidadãos, empresas e
profissionais da justiça, seja para facilitar a cooperação entre as autoridades judiciárias dos
Estados-Membros. No espaço europeu de justiça, onde prevalece o princípio do reconhecimento
mútuo, como forma de esbater as fronteiras jurídicas, tudo isto tem especial relevância em
defesa dos direitos dos cidadãos e das empresas. Nos ordenamentos internos, o fenómeno e as
preocupações são idênticas. É imperioso recuperar tempo, aliviar os profissionais de tarefas
repetitivas, maximizar o uso dos recursos humanos com aproveitamento das suas capacidades
cognitivas, ultrapassar barreiras geográficas e optimizar processos. Assim, o que se visa é
olhar para o quadro europeu, avaliar os sectores em que as TIC dão contributo em matéria de
resolução de litígios, procurando em especial analisar, na vertente da matéria probatória, o
caso do documento electrónico enquanto meio de prova e o seu valor probatório.
2. Os novos tempos exigem novas respostas. A tutela judicial efectiva é um direito
fundamental dos cidadãos que os Estados devem cumprir, na ordem interna, e cooperar
para a sua realização, no espaço da União Europeia e na ordem internacional. Por isso, é
necessário que os sistemas internos se desenvolvam e aperfeiçoem e que os sistemas judiciais
dos Estados-Membros trabalhem em rede. Neste contexto, em 2001, integrada na cooperação
judiciária em matéria civil e comercial, a União Europeia criou a Rede Judiciária Europeia
em matéria civil e comercial2/3. Esta estrutura de cooperação em rede tinha como objectivo
primordial a disponibilização de informação acessível ao público, de forma a facilitar a vida
daqueles que se vejam confrontadas com litígios transfronteiriços4.


2
Decisão do Conselho de 28 de Maio de 2001 (2001/470/CE), publicada no JO L 174 de 27.6.2001.
Para análise dos resultados, ver o Relatório da Comissão ao Conselho, ao Parlamento Europeu e ao Comité
Económico e Social Europeu sobre a aplicação da Decisão n.° 2001/470/CE do Conselho que cria uma rede
judiciária europeia em matéria civil e comercial, SEC (2006) 579 (COM/2006/0203 final de 16.05.2006).
3
Sobre a Rede Judiciária Europeia, cfr. Comentário de BEERGREHN, Ulrika, in “Conselho da
União Europeia, Direito Civil, Cooperação Judiciária Europeia”. Luxemburgo: Serviço das Publicações
Oficiais das Comunidades Europeias, 2005, pp. 261-270.
4
Ainda hoje está activo o Ponto de Contacto de Portugal na Rede Judiciária Europeia, em matéria
civil e comercial (RJE-civil), em http://www.redecivil.mj.pt/

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E-Justice e E-Evidence em processo civil – ordenamento português e contexto europeu
Lurdes Varregoso Mesquita

Em Junho de 2007, após o trabalho levado a cabo pelo Grupo da Informática Jurídica
(Legal Data Processing), o Conselho de Justiça e Assuntos Internos deu o primeiro impulso
para a criação e consolidação da e-justice5. Nessa data, foram avançadas as áreas prioritárias
e alguns objectivos concretos. As funções essenciais do sistema da justiça electrónica
estavam traçadas: i) acesso às informações no domínio da justiça; ii) desmaterialização
dos procedimentos; iii) comunicações entre autoridades judiciárias. Seguiram-se os vários
planos de acção plurianual6, elaborados pelo Conselho, em cooperação com a Comissão e o
Parlamento Europeu, estando agora vigente o plano aprovado para o período de 2019-20237. A
justiça electrónica tem sido assumida como prioridade, em particular em matéria de e-evidence
e no desenvolvimento e manutenção da plataforma E-Codex, como um mecanismo comum
para o intercâmbio transfronteiriço de informações protegidas padronizadas entre os Estados-
Membros em processos judiciais, baseado na interoperabilidade. As demais instituições
europeias associaram-se ao projecto de criação e desenvolvimento de instrumentos de justiça
electrónica: a Comissão apresentou a sua comunicação “Rumo a uma estratégia europeia em
matéria de justiça electrónica”8; o Parlamento Europeu adoptou uma resolução sobre a justiça
electrónica, a 18 de Dezembro de 20089, onde apelava à criação de um adequado instrumentário
para assegurar que a futura legislação fosse concebida com vista à sua utilização em linha.
Adoptou ainda uma resolução sobre justiça electrónica na sessão plenária de 22 de Outubro
de 201310, chamando a atenção para o maior uso das aplicações electrónicas, do fornecimento
de documentos por via electrónica, do uso da videoconferência e da interligação dos registos
judiciários e administrativos, com vista a reduzir significativamente as custas dos processos
judiciais e extrajudiciais.

II. Áreas de actuação da justiça electrónica – o caso


particular das comunicações entre autoridades
judiciárias
1. No acesso às informações no domínio da justiça, uma das medidas prioritárias foi a
criação de uma ferramenta de acesso à informação no domínio da justiça, disponível e de
acesso fácil aos cidadãos, através da qual se facultasse a informação num ponto de acesso
único, multilingue e convivial a todo o sistema europeu de justiça electrónica, ou seja, a sítios
e/ou serviços informativos europeus e nacionais. O Portal Europeu da Justiça11, lançado em 16
de julho de 2010, cumpre essa função. Desde essa data que este sítio na internet apoia cidadãos,

5
Cfr. o documento de apresentação das conclusões do trabalho em
http://register.consilium.europa.eu/doc/srv?l=EN&f=ST%2010393%202007%20INIT (consultado a
10 de Novembro de 2019).
6
Consultar: Plano de Acção Plurianual 2009-2013 sobre Justiça Electrónica Europeia (JO C 75 de
31.3.2009); Projecto de Estratégia Europeia de Justiça Electrónica para 2014-2018 (JO C 376 de 21.12.2013);
Plano de Acção Plurianual 2014-2018 sobre Justiça Electrónica Europeia (JO C 182 de 14.6.2014).
7
JO C 96 de 13.3.2019.
8
COM(2008) 329 final.
9
[2008/2125(INI)].
10
[2013/2852 (RSP)].
11
Acessível em https://e-justice.europa.eu/home.do

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E-Justice e E-Evidence em processo civil – ordenamento português e contexto europeu
Lurdes Varregoso Mesquita

empresas, profissionais do direito e magistrados, a quem presta informações, na sua própria


língua, sobre os procedimentos europeus e nacionais e o funcionamento da justiça, numa
espécie de «balcão único» europeu. O Portal está constantemente em desenvolvimento, com
mais informação e novas funcionalidades, designadamente a disponibilização de formulários
electrónicos interactivos12, em especial nos procedimentos de segunda geração. Por outro
lado, a acessibilidade às fontes jurídicas com interfuncionamento semântico é relevante e é
já uma realidade.
3. A desmaterialização dos procedimentos, por sua vez, é um instrumento relevante,
sobretudo na concretização do direito de acesso aos tribunais. Neste contexto, foi propósito
da União Europeia – hoje já em estado avançado – automatizar o procedimento europeu
de injunção de pagamento e o processo europeu para acções de pequeno montante. Os
formulários de preenchimento interactivos já podem ser descarregados no e-portal e enviados
por via electrónica. Seguir-se-á a criação de condições para o preenchimento on-line e a
remessa directamente para o tribunal competente, o que está dependente da interoperabilidade
dos sistemas judiciários, cujo desenvolvimento está sustentado no projecto E-Codex13. No
que respeita aos processos judiciais, foram apontados os actos que podiam ser abrangidos,
designadamente: propositura da acção, notificações, remessa de documentos, comunicação
entre tribunais, vídeo-conferência. Além disso, a injunção europeia, as small claims e a decisão
europeia de arresto de contas ficaram, desde logo, assinaladas como sendo os processos
europeus de aplicação prioritária dos mecanismos electrónicos. Está ainda projectada, como
hipótese futura, a criação de sistemas de pagamento em linha das despesas processuais.
4. No domínio das comunicações entre autoridades judiciárias, enquadram-se as
comunicações entre serviços e autoridades que lidam e têm a seu cargo a gestão de dados
ou perante as quais são realizadas diligências processuais, designadamente com vista
à partilha de dados e registos. O referido projecto CODEX electrónico é a base técnica e
organizativa que permitirá o intercâmbio seguro de dados jurídicos entre o aparelho judicial,
os organismos estatais, os profissionais da justiça, os cidadãos e as empresas. Estão em curso,
em fase de implementação ou em fase de estudo de viabilidade, a interligação de diferentes
tipos de registos, tais como: insolvências, cadastros prediais, registos comerciais, registos de
testamentos (certificado sucessório europeu em formato electrónico), de peritos judiciários,
bases de dados de intérpretes e tradutores, assim como de mediadores. A disponibilização
destes dados em plataformas únicas e acessíveis diminuirá as barreiras da informação,
proporcionará ganhos de tempo e diminuição de custos na gestão dos litígios.

III. A tecnologia ao serviço da produção de prova em


litígios transfronteiriços no contexto europeu
Como formas de comunicação entre autoridades judiciárias, o projecto mais emblemático
tem sido o da implementação da videoconferência transfronteira, facilitando a audição de
testemunhas ou das partes além-fronteiras, assim como de peritos, a fim de acelerar os
processos judiciais.


12
Consultar, por exemplo, https://e-justice.europa.eu/content_small_claims_forms-177-pt.do

13
Projecto actualmente em fase de implementação e desenvolvimento; cfr. https://www.e-codex.eu/.

— 116 —
E-Justice e E-Evidence em processo civil – ordenamento português e contexto europeu
Lurdes Varregoso Mesquita

Em 2015, foram publicadas as Recomendações do Conselho para «Promover a utilização


e a partilha de boas práticas sobre a videoconferência transfronteiras no domínio da justiça
nos Estados-Membros e a nível da UE» (JO C 250, de 31.7.2015). Em matéria civil, a base
jurídica para requerer a videoconferência pode ser o Regulamento 1206/2001, de 28 de
Maio de 2001, relativo à cooperação entre os tribunais dos Estados-Membros no domínio da
obtenção de provas em matéria civil ou comercial, conhecido por Regulamento Obtenção de
Provas 2001; assim como o art. 9.º, n.º 1, do Regulamento 861/2007, de 11 de Julho de 2007,
que estabelece um processo europeu para acções de pequeno montante, no qual se prevê a
produção de prova através de videoconferência se estiverem disponíveis os meios técnicos
necessários.
Também a Directiva 2008/52/CE, de 21 de Maio de 2008, relativa a certos aspectos
da mediação em matéria civil e comercial sublinha que não deverá obstar de modo algum à
utilização das modernas tecnologias da comunicação no processo de mediação.

IV. Correio electrónico como meio de prova e valor


probatório em Portugal

a) Considerações gerais e conceitos legais


É considerado «correio eletrónico» qualquer mensagem textual, vocal, sonora ou
gráfica enviada através de uma rede pública de comunicações que possa ser armazenada
na rede ou no equipamento terminal do destinatário até que este a recolha (art. 2.º, n.º 1, al.
b) da Lei n.º 41/2004, de 18 de Agosto14 - Protecção de Dados Pessoais e Privacidade nas
Telecomunicações).
Uma mensagem remetida por correio electrónico constituirá, por sua vez, um documento
electrónico. No ordenamento português, é o Decreto-Lei n.º 290-D/99, de 2 de agosto15 que
regula a validade, eficácia e valor probatório dos documentos electrónicos, a assinatura
electrónica e a actividade de certificação de entidades certificadoras estabelecidas em Portugal.
Por «documento electrónico» entende-se o documento elaborado mediante processamento
electrónico de dados (art. 2.º, al. a) do DL 290-D/99).
Esse documento cumpre o requisito legal de forma escrita quando o seu conteúdo seja
susceptível de representação como declaração escrita (art. 3.º, n.º 1, do DL 290-D/99). Há,
assim, uma equiparação do documento electrónico ao documento escrito particular16.

14
Transpõe para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 2002/58/CE, do Parlamento Europeu e do
Conselho, de 12 de Julho, relativa ao tratamento de dados pessoais e à protecção da privacidade no sector
das comunicações electrónicas.
15
Com última alteração e republicação pelo Decreto-Lei n.º 88/2009, de 9 de abril. Transpôs, ao tem-
po, a Directiva 1999/93/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Dezembro de 1999, relativa a
um quadro legal comunitário para as assinaturas electrónicas.
16
Cfr. SAMPAIO, J. M. Gonçalves, A Prova por Documentos Particulares, 3.ª Ed., Coimbra: Al-
medina, 2010, p. 75; VENÂNCIO, P. Dias, “Os actos electrónicos - valor legal”, JusJornal, n.º 569, 12 de
Junho de 2008, Editora Wolters Kluwer.

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E-Justice e E-Evidence em processo civil – ordenamento português e contexto europeu
Lurdes Varregoso Mesquita

No quadro legal europeu, o Regulamento (UE) n.º 910/2014 do Parlamento Europeu


e do Conselho, de 23 de julho de 2014, relativo à identificação eletrónica e aos serviços de
confiança para as transações eletrónicas no mercado interno, adopta um princípio de não
discriminação do formato electrónico. Assim:
− N ão podem ser negados efeitos legais nem admissibilidade enquanto prova em
processo judicial aos dados enviados e recebidos com recurso a um serviço de envio
registado eletrónico pelo simples facto de se apresentarem em formato eletrónico
ou de não cumprirem todos os requisitos do serviço qualificado de envio registado
eletrónico (art. 43.º n.º 1 do Regulamento).
− Os dados enviados e recebidos com recurso a um serviço qualificado de envio
registado eletrónico beneficiam da presunção legal de integridade dos dados, do envio
pelo remetente identificado e da receção pelo destinatário identificado dos dados
e da exatidão da data e hora de envio e receção dos dados indicados pelo serviço
qualificado de envio registado eletrónico (art. 43.º n.º 2 do Regulamento).
− Não podem ser negados efeitos legais nem admissibilidade enquanto prova em
processo judicial a um documento eletrónico pelo simples facto de se apresentar em
formato eletrónico (art. 46.º do Regulamento).
Porém, quanto ao seu valor probatório, a matéria deve ser interpretada de acordo com os
ordenamentos internos dos Estados-Membros.

b) Valor probatório do correio electrónico no ordenamento português


Quando se fala de prova através de «correio electrónico», o meio de prova considerado
é a mensagem de correio electrónico enquanto documento electrónico original, adquirido no
processo através de cibernavegação/prova por inspecção.
A força probatória do correio electrónico, enquanto documento electrónico, depende de
elementos complementares que atestem a sua veracidade e genuinidade, máxime da assinatura
que lhe foi aposta. Se dele consta uma assinatura electrónica qualificada certificada por uma
entidade certificadora credenciada, o documento tem a força probatória de documento particular
assinado, nos termos do artigo 376.º do Código Civil (art. 3.º, n.º 2, do DL 290-D/99).
Dispõe o art. 7.º do DL 290-D/99), que a aposição de uma assinatura electrónica
qualificada a um documento electrónico equivale à assinatura autógrafa dos documentos com
forma escrita sobre suporte de papel e cria a presunção de que: a) A pessoa que apôs a assinatura
electrónica qualificada é o titular desta ou é representante, com poderes bastantes, da pessoa
colectiva titular da assinatura electrónica qualificada; b) A assinatura electrónica qualificada
foi aposta com a intenção de assinar o documento electrónico; c) O documento electrónico
não sofreu alteração desde que lhe foi aposta a assinatura electrónica qualificada.
Caso contrário, sendo o correio electrónico munido de assinatura simples, o documento
deve ser apreciado nos termos gerais de direito, ou seja, nos termos do art. 374.º do Código
Civil, conforme dispõe o art. 3.º, n.º 5, do DL 290-D/99).

— 118 —
E-Justice e E-Evidence em processo civil – ordenamento português e contexto europeu
Lurdes Varregoso Mesquita

Quer isso dizer que se lhe atribui o valor de documento particular assinado, sendo
verdadeiro em caso de reconhecimento da sua genuinidade ou na falta da sua impugnação,
pela parte contra quem seja invocado17.
Em Portugal, tem-se formado uma corrente jurisprudencial:
i) No Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 21.06.2011 [Graça Araújo;
10693/10] afirmou-se que: “a aposição informática das letras que representam o
nome do remetente de um e-mail, sem qualquer tipo de certificação, não equivale
à assinatura do devedor exigida pela alínea c) do n.º 1 do artigo 46.º do Código de
Processo Civil”.
ii) No Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 18.10.2016 [Rui Vouga; 12944/12]:
“Um e-mail, enviado pela executada à exequente, com uma declaração em anexo, na
qual declara que assume o pagamento de uma quantia em dívida e que o fará com a
maior brevidade possível, pode ter a natureza jurídica de título executivo desde que
o seu conteúdo satisfaça os requisitos exigidos pela alínea c) do n.º 1 do art. 46.º
CPC de 1961, pois constitui “documento particular assinado pelo devedor”.
iii) N
 o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 14.11.2017 [Maria João Areias;
2840/12]: As mensagens sms e os e-mails, enquanto documentos eletrónicos,
integram-se no conceito de prova documental. Enquanto aos documentos eletrónicos
com assinatura qualificada é atribuída a força probatória plena de documento
particular assinado nos termos do art. 376º CC, os demais documentos aos quais
não seja aposta uma assinatura com essas caraterísticas são apreciados “nos termos
gerais de direito” (art. 3º, nº 2, DL 290-D/99).
iv) O Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte - 2ª Secção - Contencioso
Tributário, de 23.05.2019 [Rosário Pais; 02673/18]: (…) Considera-se autêntico o
documento exarado, com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos
limites da sua competência ou, dentro do círculo de atividades que lhe é atribuído,
pelo notário ou outro oficial público provido de fé pública. Os documentos autênticos
fazem prova plena dos factos que se referem como praticados pela autoridade ou oficial
público, assim como quanto aos factos que nele são atestados com base nas perceções
da entidade documentadora, sendo que os meros juízos pessoais do documentador só
valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador. Apenas possuem força
plena os documentos eletrónicos que contenham assinatura eletrónica qualificada
certificada por entidade certificadora credenciada e cujo conteúdo seja suscetível
de representação como declaração escrita; quando assim não suceda, o valor

17
Neste sentido, assumindo a tese da assinatura eletrónica simples, como o acto de digitar o nome
do emissor no fim do texto ou o consentimento de tal indicação em virtude “de programação anterior,
acrescidos do envio da mensagem para um destinatário, integram um procedimento de formação sucessiva
de assunção da paternidade do documento, que se inicia com o preenchimento do username e indicação
da palavra-passe; o correio eletrónico é um documento eletrónico original e não a reprodução mecânica de
outra realidade”, cfr. SOUSA, L. F. Pires de, O Valor Probatório do Documento Electrónico no Processo
Civil, 2.ª Ed., Coimbra: Almedina, 2017, pp. 112-116. Ver, ainda, REGO, M. Lima, “O E-Mail como Título
Executivo”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Lebre de Freitas, Vol. I, Coimbra: Coimbra Edito-
ra, 2013, pp. 1021-1043.

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E-Justice e E-Evidence em processo civil – ordenamento português e contexto europeu
Lurdes Varregoso Mesquita

probatório dos documentos eletrónicos é apreciado nos termos gerais de direito.


As informações oficiais da AT fazem fé e possuem força probatória plena quanto
aos factos afirmados como sendo praticados pela administração tributária ou com
base na perceção dos seus órgãos ou agentes, ou factos determinados a partir dessa
perceção com base em critérios objetivos, desde que devidamente fundamentadas. No
que concerne aos factos afirmados com base em juízos formulados pela AT a partir
dos factos materiais apurados que não sejam determinados com base em critérios
objetivos não existe aquela especial força probatória, valendo as informações como
elementos sujeitos à livre apreciação do juiz
v) Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 07.12.2018 [Fátima Andrade; 2905/18]:
(…) O “email” corresponde a um documento eletrónico sujeito como tal ao regime
dos “Documentos e atos jurídicos eletrónicos”, aprovado pelo DL 290-D/99 de 02/08,
na sua última redação que lhe foi conferida pelo DL 88/2009 de 09/04 e republicou
este mesmo DL. O valor probatório do documento eletrónico ao qual não se mostre
aposta uma assinatura eletrónica qualificada certificada no que à sua autoria respeita
será apreciado nos termos gerais de direito, podendo ainda o reconhecimento da sua
autoria resultar da própria aceitação da pessoa a quem o mesmo é oposto.

c) Valor probatório da cópia da mensagem electrónica no ordenamento português


Quando a mensagem electrónica é copiada, seja para um formato também electrónico
(DVD ou pendrive, por exemplo), seja em cópia analógico (impressão em papel da mensagem
de correio electrónico), o regime aplicável é diferente.
Nesta matéria, o art. 4.º do DL 290-D/99) dispõe que as cópias de documentos electrónicos,
sobre idêntico ou diferente tipo de suporte, são válidas e eficazes nos termos gerais de direito
e têm a força probatória atribuída às cópias fotográficas pelo n.º 2 do artigo 387.º do Código
Civil e pelo artigo 168.º do Código de Processo Penal, se forem observados os requisitos aí
previstos.
Assim sendo, em sede de Direito Civil, as cópias fotográficas de documentos têm o valor
da pública-forma, se a sua conformidade com o original for atestada por notário. Faltando esta
atestação notarial, o documento reconduz-se a uma cópia não certificada, o que sucederá com
a cópia da mensagem electrónica (impressa em papel ou fotocopiada essa impressão). Este
documento (a cópia) não pode, em caso algum, assumir força probatória plena. É considerado
um documento escrito a que falta um requisito exigido por lei (a certificação notarial) e que
por isso, no que concerne à sua força probatória, é apreciado livremente pelo juiz (art. 366.º
do Código Civil)18.

18
Neste sentido: SAMPAIO, J. M. Gonçalves, A Prova por Documentos Particulares, 3.ª Ed., Coim-
bra: Almedina, 2010, p. 114; SOUSA, L. F. Pires de, O Valor Probatório do Documento Electrónico no
Processo Civil, 2.ª Ed., Coimbra: Almedina, 2017, pp. 37-42. Sobre o valor probatório, ver ainda: SOUSA,
M. Teixeira, “O valor probatório dos documentos eletrónicos”, in Direito da Sociedade de Informação, Vol.
II, Coimbra Editora 2001, p. 185 e ss.; LACERDA, P., “A prova por documentos eletrónicos”, Cadernos de
Direito Privado, n.º 54, 2016, pp.11 e ss.; PEREIRA, J. T. Ramos, “As novas tecnologias e a prova no pro-

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E-Justice e E-Evidence em processo civil – ordenamento português e contexto europeu
Lurdes Varregoso Mesquita

V. Considerações Finais
O tema apresentado, nas suas duas dimensões, permite concluir que no espaço europeu
há uma preocupação em alcançar uma maior cooperação judiciária entre os Estados-
Membros, em particular nas comunicações entre as autoridades judiciárias e no acesso à
justiça. E, ainda, que a digitalização dos sistemas de justiça é uma realidade incontornável,
cujo desenvolvimento depende também da partilha de práticas e de conhecimentos. Por sua
vez, em matéria probatória, já existem regras e orientações comuns, embora a força probatória
dos meios de prova seja disciplinado pelo ordenamento interno. No entanto, já é sentida a
necessidade de fornecer orientações práticas para o tratamento de provas electrónicas em
processos cíveis e administrativos, através de um quadro comum, que respeite a diversidade
dos sistemas jurídicos, como sucede com a proposta do Comité Europeu de Cooperação
Jurídica (CDCJ) do Conselho da Europa19.
No caso particular dos documentos electrónicos, o sistema português criou legislação
própria e acompanhou os ditames europeus. Contudo, atenta a conjugação com a legislação
interna, os documentos originais e as suas cópias não têm a mesma força probatória, o que
poderá causar distorções no julgamento da matéria de facto. Esta será uma matéria em relação
à qual o legislador português deverá estar atento na futura análise que certamente terá lugar
com vista à avaliação e implementação das linhas orientadoras da prova electrónica no espaço
europeu.

VI. Bibliografia e Documentação


BEERGREHN, Ulrika, in “Conselho da União Europeia, Direito Civil, Cooperação Judiciária
Europeia”. Luxemburgo: Serviço das Publicações Oficiais das Comunidades Europeias, 2005,
pp. 261-270.
LACERDA, P., “A prova por documentos eletrónicos”, Cadernos de Direito Privado, n.º 54, 2016,
pp.11 e ss.
PEREIRA, J. T. Ramos, “As novas tecnologias e a prova no processo executivo”, Comunicar Justiça,
2003 [disponível em https://www.verbojuridico.net/doutrina/artigos/provaexecutivo.html].
REGO, M. Lima, “O E-Mail como Título Executivo”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor
Lebre de Freitas, Vol. I, Coimbra: Coimbra Editora, 2013, pp. 1021-1043.
SAMPAIO, J. M. Gonçalves, A Prova por Documentos Particulares, 3.ª Ed., Coimbra: Almedina,
2010.
SOUSA, L. F. Pires de, O Valor Probatório do Documento Electrónico no Processo Civil, 2.ª Ed.,
Coimbra: Almedina, 2017.
SOUSA, M. Teixeira, “O valor probatório dos documentos eletrónicos”, in Direito da Sociedade de
Informação, Vol. II, Coimbra Editora 2001.

cesso executivo”, Comunicar Justiça, 2003 [disponível em https://www.verbojuridico.net/doutrina/artigos/


provaexecutivo.html].
19
Disponível em https://search.coe.int/cm/Pages/result_details.aspx?ObjectId=0900001680902e0c

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E-Justice e E-Evidence em processo civil – ordenamento português e contexto europeu
Lurdes Varregoso Mesquita

VENÂNCIO, P. Dias, “Os actos electrónicos - valor legal”, JusJornal, n.º 569, 12 de Junho de 2008,
Editora Wolters Kluwer.
Decisão do Conselho de 28 de Maio de 2001 (2001/470/CE), publicada no JO L 174 de 27.6.2001.
Relatório da Comissão ao Conselho, ao Parlamento Europeu e ao Comité Económico e Social Europeu
sobre a aplicação da Decisão n.° 2001/470/CE do Conselho que cria uma rede judiciária europeia
em matéria civil e comercial, SEC (2006) 579 (COM/2006/0203 final de 16.05.2006).
Conclusões do Grupo da Informática Jurídica (Legal Data Processing) no Conselho de Justiça e
Assuntos Internos, JUSTCIV 159, 5 de junho de 2007, disponível em
http://register.consilium.europa.eu/doc/srv?l=EN&f=ST%2010393%202007%20INIT
Comunicação da Comissão sobre o “Rumo a uma estratégia europeia em matéria de justiça electrónica”,
COM(2008) 329 final.
Resolução do Parlamento Europeu sobre a Justiça Electrónica, de 18 de Dezembro de 2008
[2008/2125(INI)].
Plano de Acção Plurianual 2009-2013 sobre Justiça Electrónica Europeia (JO C 75 de 31.3.2009).
Resolução do Parlamento Europeu sobre Justiça Electrónica na sessão plenária de 22 de Outubro de
2013 [2013/2852 (RSP)].
Projecto de Estratégia Europeia de Justiça Electrónica para 2014-2018 (JO C 376 de 21.12.2013).
Plano de Acção Plurianual 2014-2018 sobre Justiça Electrónica Europeia (JO C 182 de 14.6.2014).
Plano de Acção para a Justiça Electrónica Europeia para 2019-2023 (JO C 96 de 13.3.2019).
Guidelines adopted by the Committee of Ministers of the Council of Europe on 30 January 2019 and
explanatory memorandum, disponível em
https://search.coe.int/cm/Pages/result_details.aspx?ObjectId=0900001680902e0c

— 122 —
Desafios dos direitos humanos no mundo
tecnológico: envelhecimento no futuro

João Proença Xavier1

Resumo: No limiar da engenharia genética, poderemos curar doenças e até prevenir o seu aparecimento
em humanos, como de resto já se faz na actualidade na medicina moderna. Com os avanços da biomedicina,
temos vindo desde já, a aumentar a esperança média de vida a níveis incríveis para o nosso tempo… Baseado
neste estudo comparado, constato que de facto, começamos a alimentar a esperança da imortalidade… A
farmacologia e os medicamentos modernos, podem já retardar os efeitos do envelhecimento, mas a questão
que trago aqui hoje é uma outra, bastante distinta, profunda e perturbadora…Na escola primária todos
aprendemos, que há nascer, crescer, viver, envelhecer e o natural morrer…! E se no futuro pudermos parar o
tempo? E se pudermos parar a vida? E se pudermos parar o envelhecimento? E se pararmos a morte? Como
será, no futuro, envelhecer então? E se no Futuro, e num Futuro próximo pudéssemos viver para sempre…!
Palavras-Chave: “Direitos Humanos”; “Envelhecimento”; “Tecnologia”, “Imortalidade”, “Futuro”.

Abstract: On the urge of genetic engineering, we can heal diseases, and prevent them of injuring
human kind, like we already do nowadays with modern medicine. With the advances of biomedicine, we

1
Ph.D JOÃO PROENÇA XAVIER | Professor Visitante da Universidade de Las Palmas de Gran
Canária - Faculdade de Ciências Jurídicas ULPGC (Programa Eramus +) para Mobilidade Docente. Pós-
tdoctoral Research Scientist - “Derechos Humanos en Perspectiva Comparada Brasil España”- Instituição:
Universidadede Salamanca (Espanha) e IURJ - Instituto Universitário do Rio de Janeiro (Brasil) / CEB -
Centro de Estudios Brasileños da Universidade de Salamanca. Professor Doutorado em Direitos Humanos
pela Universidade de Salamanca – Espanha: joao.proenca.xavier@usal.es - Integrado no CEIS 20 Centro de
Estudos Interdisciplinares do Século XX – Universidadede Coimbra – Portugal. Coordenador Científico
da área da Bioética e Direito Biomédico do IBEROJUR - Instituto Iberoamericano de Estudos em Direito.
ADVOGADO EUROPEU com a Insígnia do Ilustre Colégio de Abogados de Salamanca – Espanha. Mem-
bro da SPMR - Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução. Consultor Internacional da Comissão de
Direito Constitucional da Ordem dos Advogados Brasileiros Secção do Estado do Rio de Janeiro. Membro do
NATIONAL ORGANISING COMMITEE do 14º Congresso Mundial de Bioética: 14th Word Conference on
Bioethics, Medical Ethics & Health Law organizado pela CÁTEDRA DE BIOÉTICA DA UNESCO.

— 123 —
Desafios dos direitos humanos no mundo tecnológico: envelhecimento no futuro
João Proença Xavier

already becoming to elevate the life expectancy, to incredible levels for our time…Based in this compared
study, in deed I see, we are starting to feed the hope of immortality… Pharmacology and modern drugs,
can already delay the effects of aging, but the theme that I bring here today, is rather different, profound
and disturbing…In elementary school we all learn that, there is birth, growth, living, aging and the natural
dying…! What if we could stop time? What if we could stop life? What if we could stop aging? What if we
could stop death? How would it be the future of aging then? What if in the future, and in a near future we
can live forever…!
Keywords: “Human Rights”; “Aging”, “Technology”, “Immortality”, “Future”.

Na realidade, quando se é verdadeiramente novo e jovem, a problemática do


Envelhecimento, não nos cai especialmente no pensamento, não sei se é educacional, mas
considero que isso é um facto natural da vida. Como também considero que de facto, também
por este motivo (de nada ter a opinar no assunto por dele não ter ainda atentado) raramente
é aos jovens que naturalmente são pedidas análises sobre esta matéria… Não sem alguma
dificuldade, está aqui aceite o desafio, também por acho, que, como previ, este desafio não
aparece por acaso, mas sim, por eu já não ser assim tão jovem como isso…e na realidade já ter
algo de importante a dizer sobre o assunto… sobretudo que este “novo mundo” tecnológico
coloca grandes desafios aos Direitos Humanos, principalmente no tema da reflexão que aqui
vos trago: “Aging in the Future.”
Bem, eis-me a pensar neste assunto, na óptica das duas leis Ibéricas, portuguesa e
espanhola de Reprodução Medicamente Assistida, cujo estudo de direito comparado continuo
a estudar na actualidade, e constato que quer a Lei Portuguesa de Reprodução Medicamente
Assistida lei 32/2006 de 26 de Julho quer a sua congénere espanhola sobre “Técnicas de
Reprodución Asistida” Ley 14/2006 de 26 de Mayo, se a memória não me falha, não falam de
envelhecimento nem no masculino, nem no feminino… No entanto, após pesquisa em várias
páginas de Centros de Fertilidade com importância na actividade Ibérica da Reprodução
Medicamente Assistida, reparo que quer em Portugal quer em Espanha, em matéria “doação”
de material genético para ser usado na reprodução assistida neste centros, poderei de facto, (ou
o meu material genético) ser considerado “velho de mais” ou no limiar do “envelhecimento”
para que, apesar do meu consentimento, possa ser aceite e criopreservado para utilização em
casais destinatários das técnicas de PMA…
No site do Centro de Estudo de Infertilidade e Esterilidade, Medicina da Reprodução e
Medicina Materno Fetal, do Porto – Portugal, pode ler-se relativamente à doação de esperma,
sobre quais são os casais que necessitam de esperma de dador, que: “A principal indicação
para a utilização de esperma de dador é a ausência de espermatozóides. Esta circunstância
está contemplada na lei (artigo 19 da lei nº 32/2006 de 26 de Julho)2. Isto é possível graças
ao facto de existirem homens com altruísmo que participam em programas rigorosos de

2
Nota nossa, ver lei Portuguesa de Reprodução Medicamente Assistida a Lei nº 32/2006 de 26
de Julho - Capítulo III, Inseminação artificial, Artigo 19.º Inseminação com sémen de dador: “1 – A
inseminação com sémen de um terceiro dador só pode verificar-se quando, face aos conhecimentos médico-
científicos objectivamente disponíveis, não possa obter-se gravidez através de inseminação com sémen do
marido ou daquele que viva em união de facto com a mulher a inseminar. 2 -O sémen do dador deve ser
criopreservado.”

— 124 —
Desafios dos direitos humanos no mundo tecnológico: envelhecimento no futuro
João Proença Xavier

doação.”3Os mesmos autores, indicam no seu site, relativamente a quem pode ser dador
de espermatozóides, que todos os homens “entre os 18 e os 40 anos podem ser dadores de
espermatozóides”4, sendo que terão que estar em boas condições físicas e psíquicas e devem
igualmente cumprir os requisitos de possuir história pessoal e familiar negativa de transmissão
de doença genética, cariótipo normal, parâmetros seminais normais, estudo negativo de
doenças sexualmente transmissíveis, pesquisa negativa na urina para Chlamydia, sendo
que acresce que esta doação deve ser anónima, voluntária e gratuita…(ou tendencialmente
gratuita5). Mais indicando que cada dador só poderá originar 8 partos de nado-vivo…
Assim, após a realização das análises necessárias, e avaliados por especialistas os
antecedentes pessoais e familiares do dador bem como a sua condição física e psíquica, de
acordo com este Centro do Porto, o dador será aceite para a realização de cinco colheitas de
esperma, sendo estas colheitas crio -preservadas e colocadas em quarentena durante 6 meses.
Período este, findo o qual, serão realizadas novas análises ao dador e, se os resultados forem
negativos, as amostras serão utilizadas nas diferentes técnicas de reprodução assistida.
Por seu lado, relativamente, á doação de óvulos, este Centro indica no seu sítio na
internet que relativamente às razões porque algumas mulheres podem necessitar de óvulos de
dadora para conseguirem engravidar, estas razões podem passar pela menopausa prematura,
óvulos de fraca qualidade, etc… Mais referindo, sobre quem pode ser dadora de óvulos que:
“Todas as mulheres nascem com cerca de 2 milhões de óvulos. Esse número vai decrescendo
com a idade. Só as mulheres com menos de 35 anos podem ser dadoras de óvulos.”6 Sendo
que estas têm de estar em boas condições físicas e psíquicas e preencherem outros requisitos.
Apontam também, que o número de doações está limitada a três, espaçadas pelo menos de
seis meses e que ao exemplo da doação de esperma masculina, a doação de óvulos pela
mulher é voluntária, de carácter benévolo e não remunerada, embora acrescentando que pode
haver uma compensação financeira para ressarcir a dadora dos gastos e prejuízos decorrentes
da dação… Em Espanha, e de uma forma mais telegráfica, um dos maiores Centros espanhóis
especialistas em fertilidade, sediado em Valência, mas com intensa actividade em toda a
Espanha, indica também na sua página oficial na internet, que para ser dador de sémen (no
IVI)7, tem que se ter entre 18 e 44 anos, residir perto (30-40 km) de uma das clínicas de
reprodução assistida que dispõem de Banco de sémen, ou deslocar-se regularmente à cidade.
Devendo o dador, igualmente ser saudável e não ter qualquer doença de transmissão sexual ou
genética8. Neste momento, devo referenciar que relativamente à temática da dação de esperma

3
Cit: http://ceie.pt/ceie/doacao/#esperma (consultado em 15 de Novembro de 2016).
4
Ver: http://ceie.pt/ceie/doacao/#esperma (consultado em 15 de Novembro de 2016).
5
Podendo haver, na realidade, uma compensação financeira para ressarcir o dador dos gastos e
prejuízos decorrentes da dação do seu material genético…conforme aliás acontece em outros ordenamentos
semelhantes, nomeadamente o espanhol…
6
Ver: http://ceie.pt/ceie/doacao/#esperma (consultado em 15 de Novembro de 2016).
7
Ver: https://ivi.pt/dadores-de-semen/ (consultado em 20 de Novembro de 2016).
8
Relativamente a compensação económica, igualmente permitida na lei espanhola Cit: “(…) ouvido
o Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA), em cumprimento ao disposto no n.º
4 do artigo 22.º da Lei n.º 12/2009, de 26 de Março, determino: A compensação prevista no n.º 4 do artigo
22.º da Lei n.º 12/2009, de 26 de Março, corresponde ao reembolso das despesas efectuadas ou dos prejuízos
resultantes da doação.” In: https://ivi.pt/dadores-de-semen/ (consultado em 20 de Novembro de 2016):

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Desafios dos direitos humanos no mundo tecnológico: envelhecimento no futuro
João Proença Xavier

para futuro uso em Técnicas de Reprodução Assistida, no meu caso pessoal, como possível
candidato a dador, e não esquecendo que me propus falar sobre Aging in the Future como
desafio aos direitos humanos no mundo tecnológico, devo confessar que estou preocupado
com a indicação desta análise que proponho, dado que relativamente a esta matéria o centro
do Porto e o primeiro analisado neste comparativo, indica como vimos, que, neste momento,
sou velho demais para ser dador, uma vez que para este centro só homens “entre os 18 e os
40 anos podem ser dadores de espermatozóides”… e como de certo saberão a “revolução do
cravos” já foi há mais de 40 anos…
De qualquer forma, como pretendo, manter o meu estatuto Ibérico, achei um pouco mais
tranquilizante, que na vizinha Espanha, “nuestros hermanos”, já me considerem elegível
para doação de esperma na óptica de Las Técnicas de Reproduccion Asistida, portanto
embora não jovem, sofrivelmente jovem para poder efectuar a respectiva “doação de sémen”
uma vez que para o segundo Centro analisado no nosso estudo comparativo, para ser dador
de sémen (no IVI)9, tem que se ter entre 18 e 44 anos, meta que ainda conseguia alcançar
quando iniciei este estudo, mas que de facto já não consigo, de momento, alcançar… No
entanto o meu problema subsiste, (qui çá por ignorância), dado que não conheço nenhuma
clínica de reprodução assistida que disponha de Banco se sémen, num raio de pelo menos (30-
40 km) de Salamanca, nem tenho conhecimento que a IVI tenha sequer clínica em Castilla
y León…Portanto, para não deixar de fora, a minha querida Cidade de Coimbra, cidade
natal deste Investigador/Jurista, permiti-me em desespero de causa, analisar “em passant”,
as indicações de mais um Centro de Fertilidade, desta feita da cidade de Pedro e Inês… e
relativamente a doações de esperma, a Ferticentro, indica (na sua página na internet), que:
“os tratamentos com doação de esperma são feitos nos casos em que o elemento masculino
do casal não tem espermatozóides (ou estes têm má qualidade previamente documentada)
ou existe o risco de transmissão de doenças genéticas à descendência.”10 Segundo este
Centro, recorre-se à doação de esperma, por razões: de ausência de espermatozóides no
ejaculado, má qualidade do esperma e risco de transmissão de doenças à descendência…
sendo que a avaliação dos dadores obedece a critérios definidos pelo Conselho Nacional
de PMA, para além das recomendações internacionais de boa prática médica, abrangendo
aspectos como a ausência de história pessoal e familiar de doenças hereditárias, a ausência
de história pessoal de doenças infecciosas transmissíveis, testes de rastreio obrigatórios e
idade não superior a 45 anos11(idade que á data de publicação deste estudo já ultrapassei

9
Ver: https://ivi.pt/dadores-de-semen/ (consultado em 20 de Novembro de 2016).
10
Ver: http://www.ferticentro.pt/pt/tratamentos/doacao_esperma1.aspx (consultado em 25 de No-
vembro de 2016).
11
Sobre doação de gametas e compensação económica dos dadores cit: “A lei portuguesa determina
que a doação de gâmetas seja um processo voluntário, de carácter benévolo, em que os dadores recebem
uma compensação económica de valor fixado pelo Estado e igual para todos os centros públicos ou priva-
dos nacionais, destinada ao reembolso das despesas efectuadas ou dos prejuízos directa e imediatamente
resultantes da dádiva, nos termos fixados pelo Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida,
de acordo com o previsto no nº3 do Artigo 22 da Lei 12/2009, de 26 de Março e no Despacho nº5015/2011
publicado no Diário da República, 2ª série - Nº58, 23 de Março de 2011”, in: http://www.ferticentro.pt/pt/
tratamentos/doacao_esperma1.aspx (consultado em 25 de Novembro de 2016). Uma vez que os tratamen-
tos de PMA, são regulados pelo Conselho Nacional de PMA, ver também sobre doação de esperma: http://
www.cnpma.org.pt/.

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Desafios dos direitos humanos no mundo tecnológico: envelhecimento no futuro
João Proença Xavier

no aniversário de Março passado, mas que ainda tinha à data da submissão deste abstract a
este Congresso Internacional sobre “Derecho Gobernanza e Innovación – Los Desafíos del
Derecho ante las Nuevas Tecnologías“). Estes factores surgem em simultâneo com factores
de natureza feminina, a saber: infertilidade inexplicada, problemas nas trompas, laqueação
de trompas, endometriose, insucesso em tratamentos de primeira linha (IIU com esperma
de dador) e idade feminina avançada …Segundo nos indica o Centro de Coimbra no seu
sitio oficial: “Nos casos em que o número de ovócitos obtidos é igual ou inferior a 4 opta-
se pela realização da ICSI, pois uma eventual falha de fecundação com a FIV tradicional
poderia pôr em causa todo o tratamento. O mesmo poderá suceder em alguns dos casos em
que a mulher tem idade igual ou superior a 40 anos.” Bem, é oficial, para fim de doação de
esperma no âmbito das técnicas de Procriação Medicamente Assistida, pelo menos até atingir
os 45 anos e sem outros agravantes fui jovem, ou pelo menos não serei velho de mais… (para
ser elegível como doante) no entanto, parece seguro dizer, que neste âmbito, se eu fosse uma
mulher, realmente o meu envelhecimento, começaria por volta dos 35 anos, e por volta dos
40 anos sensivelmente eu já seria velho/a…
Nesta encruzilhada do tempo, que de facto não é mais que uma encruzilhada da vida
reprodutiva, o papel do envelhecimento marca um ritmo muito forte e por vezes cruel… que
de facto, não será menos implacável que o papel do crescimento, do amadurecimento, na
realidade do papel determinante do envelhecimento na vida em geral… Sim, porque na Vida
aprendemos, que há nascer, crescer, viver, envelhecer e o natural morrer…! No entanto, arrisco
dizer…que num futuro não tão longínquo como possamos pensar, pode não ser assim…! E se
pudermos, parar o tempo? E pudermos parar a vida? E se pudermos parar o envelhecimento?
E se pararmos a morte? Sim, e se pudéssemos viver para sempre! Como seria, no futuro,
envelhecer então? Bem, prometi que não apresentaria grandes estatísticas, neste trabalho,
porque sei que sobre Envelhecimento todos o fazem, ou têm a tentação de o fazer, muitas
vezes sem consequência de monta, de qualquer forma aqui me penitencio porque não resisti,
como notas da redacção de um jornal brasileiro on-line, como título pode ler-se: Fertilidade
da mulher cai a partir dos 35; no homem de 50 espermatozóide já perdeu em qualidade:

“O sonho de ter um filho: quanto mais for adiado, mais difícil realizá-lo. No
programa “Consulta Médica” desta quarta-feira, o ginecologista Dirceu Mendes
Pereira, especialista em reprodução, lembrou que a fertilidade da mulher começa
a diminuir aos 35 anos. O homem também não escapa: com o avanço da idade, os
espermatozóides vão perdendo qualidade.
Quanto mais tardia a gravidez, maior o risco. Para a mãe e para o bebé. O médico
deu como exemplo a incidência de gestação com síndrome de Down. Na mãe que
tem até 35 anos, a proporção é de 1 para 340. Aos 40, quando a gravidez já é
considerada de alto risco, essa proporção sobe de 1 para 101. E aos 45 é de 1 em
cada 11 gestações.
O problema maior é que “os óvulos da mulher envelhecem e, como consequência,
o embrião pode ter perturbações genéticas”, explicou Pereira. “Ela já tinha esses
óvulos desde que ainda estava na barriga da mãe e ao longo do tempo eles vão
sofrendo o impacto ambiental: e stresse, alimentação, uma série de agressões…”

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Desafios dos direitos humanos no mundo tecnológico: envelhecimento no futuro
João Proença Xavier

Mas o homem com mais de 50 anos também pode contribuir para um embrião com síndrome
de Down, destacou o médico. Tanto que “na França, indivíduos de 45 anos para cima já não
podem fazer doação para o centro de estoque de sêmen”,comentou.”12 Seguindo com o pecado
estatístico, e segundo a Presidência do Conselho de Ministros, na Resolução de Conselho de
Ministros nº 48/2015, relativa à Estratégia Nacional para a Habitação Desafios e Mudanças, a fls
4827 é indicado que o índice sintético de fecundidade, que em 1970 era de 2,99, tem vindo a descer
consecutivamente, sendo em 2011 de 1,35, valor este que em 2013 desceu para 1,21; tendo a taxa
bruta de reprodução, que era de 1,46 em 1970, caído para 0,66 em 2011, valor este que em 2013
foi de 0,59. Assim, a dimensão média das famílias portuguesas, passou de 3,7 indivíduos em 1970
para 2,6 em 2011. Tendo portanto, o índice de envelhecimento da população apresentado uma
evolução dramática. Em 1970 este índice era de 34,0 e cresceu para 127,8 em 2011, colocando
Portugal entre os países mais envelhecidos da União Europeia (UE -27). Quando comparamos os
dados dos censos de 2011 com os de 1970, verificamos que o número de indivíduos cresceu 21,9
%, mas o número de famílias clássicas cresceu 72,4 %. Resulta assim, que os agregados domésticos
unipessoais no período atrás referido tiveram um aumento de 369 %, e em 2011 já representavam
21,4 % dos agregados familiares clássicos, abrangendo 8,3 % dos indivíduos. Portugal apresenta
actualmente, uma situação de recessão demográfica com um saldo natural negativo em 2013 de
23,8, valor que tem vindo a crescer desde 2008, último ano em que este indicador foi positivo,
com o valor de 0,3. Igualmente, também o saldo migratório tem vindo a reduzir -se desde 2009,
sendo que se apresentava negativo desde 2011, com o valor de 24,3.13 Segundo o Ministério da
Finanças e da Administração Pública, o Decreto – Lei nº 89/2009 de 9 de Abril visa regulamentar
a protecção na parentalidade, no âmbito da eventualidade maternidade, paternidade e adopção,
no regime de protecção social convergente. Contemplando este diploma alargado conjunto de
subsídios previstos para prover a estas realidades, que se estendem entre os Artigos 9º e 20º deste
Decreto – Lei e que aqui enumeramos: Artigo 9.º Subsídio por risco clínico durante a gravidez,
Artigo 10.º Subsídio por interrupção da gravidez, Artigo 11.º Subsídio parental inicial, Artigo 12.º
Subsídio parental inicial exclusivo da mãe, Artigo 13.º Subsídio parental inicial de um progenitor
em caso de impossibilidade do outro, Artigo 14.º Subsídio parental inicial exclusivo do pai, Artigo
15.º Subsídio por adopção, Artigo 16.º Subsídio parental alargado, Artigo 17.º Subsídio por riscos
específicos, Artigo 18.º Subsídio para assistência a filho em caso de doença ou acidente, Artigo
19.º Subsídio para assistência a neto, Artigo 20.º Subsídio para assistência a filho com deficiência
ou doença crónica.

Em Conclusão:
Hoje, no limiar da engenharia genética, poderemos curar doenças e até prevenir o seu
aparecimento em humanos, como de resto já se faz na actualidade na medicina moderna. Com

12
Cit: Artigo da Redacção publicado no UOL News – Brasil / na Página Saúde em: 29/03/2006 -
19h56, in: http://noticias.uol.com.br/uolnews/saude/entrevistas/2006/03/29/ult2748u117.jhtm (consultado
em 28 de Novembro de 2016).
13
Ver estes dados sobre o envelhecimento em Portugal na Resolução de Conselho de Ministros nº
48/2015, publicada no Diária da República 1ª Série, nº 136 de 15 de Julho de 2015, conforme o Anexo (a
que se refere o nº 1) referente à Estratégia Nacional para a Habitação Desafios e Mudanças, a fl. 4827 in:
https://dre.pt/application/conteudo/69812100 (consultado em 15 de Novembro de 2016).

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Desafios dos direitos humanos no mundo tecnológico: envelhecimento no futuro
João Proença Xavier

os avanços da biomedicina, temos vindo desde já, a aumentar a esperança média de vida a
níveis incríveis para o nosso tempo… Na realidade, começamos a alimentar a esperança da
imortalidade, não a do segredo da eterna juventude sonhado por civilizações ancestrais que
chegaram e caíram antes de nós, mas a imortalidade tout court, de que falámos atrás… A
farmacologia e os medicamentos modernos, podem já retardar os efeitos do envelhecimento,
mas a questão que trago aqui, é uma outra, bastante distinta, profunda e perturbadora…E se
no Futuro, e num Futuro próximo pudéssemos viver pra sempre…!
Na verdade não falo do criativo Delorean com que o Steven Spielberg fazia o “imortal”
Michael G. Fox, regressar ao futuro na minha juventude…mas sim da possibilidade de
parar o meu envelhecimento numa determinada fase da minha vida adulta, adormecendo
o meu crescimento, para que com o meu consentimento, pudesse ser “despertado”, num
outro momento, num outro tempo, numa outra vida, como se de um “rebirth” se tratasse…
como se eu não vivesse essa parte da vida e consequentemente ela não me vivesse a mim…
Bem, em última análise, queridos colegas e Investigadores da área da Bioética e dos Direitos
Humanos, se fosse possível viver para sempre, aceitariam…? Será que aceitariam os riscos
de nunca mais acordar se não corresse bem…? Será que não queriam envelhecer nunca…?
Sobretudo como jurista, se isso fosse possível a um nível médico e biotecnológico, será que
terão direito a fazer essa escolha e a correr o tal risco…? Neste momento não sei a resposta,
pessoalmente, escolho o Envelhecimento que estou a constatar e que começo a descobrir…
no futuro…procuro criar o meu filho João Bernardo e desejo ter o descendimento para lhe
deixar um passado sólido e com memória para que se possa orgulhar do caminho, como
fizeram comigo…

BIBLIOGRAFÍA:
Alkorta Idiakez, I., Regulación jurídica de la medicina reproductiva: derecho español y comparado,
Navarra, Aranzadi, 2003.
Amich Elías,C., La regulación de la reproducción asistida en España, en Tejerina Velázquez, V.H.,
Propiedad intelectual: Sectores e desenvolvimiento, Piracicaba, Equilibrio, 2007.
Cardoso da Costa, J., Engenharia genética - genética e pessoa humana - notas para uma perspectiva
jurídica, Genética e Pessoa Humana, 1991.
Convenio sobre Derechos Humanos y Biomedicina de 1997, Articulo 18, apartados 1 y 2, cuyo
Instrumento de Ratificación por España fue publicado en el B.O.E., nº 251 de 20 de Octubre
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Diário de Notícias (Periódico Portugués) de 21 de Junio de 2012, p. 11.
Engelman, Wilson, Nanocosméticos e o Direito à Informação, Brasil, Deviant Editora, 2015.
González Morán, L., De la bioética al bioderecho - Libertad, vida y muerte, Madrid, Dykinson,
2006.
PROENÇA XAVIER, J., Temas Fuertes de la Reproducción Asistida (en contexto ibérico)-Análisis
comparativo da la Ley Española 14/2006 y la Ley Portuguesa 32/2006, Universidad de
Salamanca, 2016.

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Desafios dos direitos humanos no mundo tecnológico: envelhecimento no futuro
João Proença Xavier

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https://dre.pt/application/conteudo/69812100 - Resolução de Conselho de Ministros nº 48/2015,
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(a que se refere o nº 1) referente à Estratégia Nacional para a Habitação Desafios e Mudanças,
a fl. 4827, (consultado em 15 de Novembro de 2016).
http://www.express.co.uk/news/science/665807/KEY-TO-ETERNAL-LIFE-Someone-already-born-
will-live-to-1-000-and-immortality-IS-possible - Artigo de Jon Austin intitulado: “Key to
eternal life?” publicado em 1 de Maio de 2016 no Express - Home of the Daily and Sunday
Express, (consultado em 20 de Novembro de 2016).
http://www.sptimmortalityproject.com/ - The Immortality Project – University of California – Riverside
– Prof. John Martin Fisher, (consultado em 15 de Novembro de 2016). https://www.nia.nih.gov/
health/publication/aging-under-microscope/what-aging - US Department of Health and Human
Services - NIH: National Institute on Aging – Tuning Discovery into Health, (Consultado em
15 de Novembro).

— 130 —
Los nuevos retos digitales en una ue dividida

Gabriel Martín Rodríguez1

“Existe un remedio que… en pocos años podría hacer a toda Europa… libre y…
feliz. Consiste en volver a crear la familia europea, o al menos la parte de ella que
podamos, y dotarla de una estructura bajo la cual pueda vivir en paz, seguridad y
libertad. Debemos construir una especie de Estados Unidos de Europa” (Winston
Churchill, 1946).

I. INTRODUCCIÓN.
La historia de Europa es larga y complicada,  pero apasionante. La puesta en marcha
de las primeras Comunidades Europeas ya en 1950 tras la Declaración Schuman, junto a
los importantes precedentes del proyecto de Aristide Briand (una Unión Federal Europea)
presentado ante la Sociedad de Naciones en 19292 y el Movimiento Paneuropeo liderado
por el Conde Coudenhove-Kalergi a partir de 1923 tras su Manifiesto Paneuropa, mostraron
que el camino de la construcción europea estaría lleno de dificultades, pero era inexorable.
Los intereses comunes de un conjunto de Estados bajo unos valores, también comunes,
que aunaban la tradición del humanismo cristiano, debían primar sobre cualquier interés
particular de las naciones3.

1
Profesor Doctor de Derecho Internacional Público y Unión Europea de la Universidad Rey Juan
Carlos. Centro de Documentación y Estudios Europeos Emile Noël URJC. gabriel.martin@urjc.es
2
Puede consultarse el texto de la propuesta original presentada a la Sociedad de Naciones en la
Biblioteca Digital Mundial: https://www.wdl.org/es/item/11583/
3
Sin lugar a dudas, el mejor análisis sobre los antecedentes histórico-jurídico-políticos de la Unión
Europea se encuentra en PEREZ-BUSTAMANTE, R., Historia política y jurídica de la Unión Europea.
Edisofer, Madrid, 2008.

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Los nuevos retos digitales en una ue dividida
Gabriel Martín Rodríguez

Tras la Paz de Westfalia y el Congreso de Viena posterior a las guerras napoleónicas,


el nacimiento de la Comunidad Europea  del Carbón y el Acero (CECA), la Comunidad
Económica Europea (CEE) y la Comunidad Europea de la Energía Atómica (CEEA) han
constituido el hito más importante de la construcción, de una nueva construcción, de la
historia de Europa.
A punto de celebrar el septuagésimo aniversario de la Declaración Schuman el próximo 9
de mayo de 2020, nos encontramos ante un panorama verdaderamente excepcional. Ninguna
previsión posible, aún por catastrófica que ésta fuera, podría haber vaticinado tan siquiera
lejanamente lo que acontece en nuestros días. Una crisis sin precedentes a nivel internacional
ha herido la columna vertebral del sistema de cooperación internacional, de la gobernanza
global,  así como la estructura de las organizaciones internacionales más desarrolladas:
Naciones Unidas, Unión Europea o G7, entre otras.
La Unión Europea ha afrontado numerosas crisis y momentos especialmente delicados
a lo largo de sus siete décadas de historia, desde el fracaso de la Comunidad Europea de
Defensa (CED) en 1952, los proyectos de Spaak, Tindemans y Spinelli 4 para conformar tanto
los Tratados de Roma como el Acta Única Europea. El retraso en la aprobación y ratificación
del Tratado de Maastricht –incluyendo un referéndum negativo en Dinamarca–, o las duras
negociaciones que acabaron creando la moneda común y la convergencia económica en el
conjunto de Estados de la Unión Europea.
El gran reto del club europeo llegó en 2002, a partir del proceso de creación de una
Constitución para Europa5.  Un hito histórico para la UE que concluyó, por primera vez, de
manera solemne un Tratado para el que ya habían existido propuestas antecedentes e intentos
fallidos.
El Tratado por el que se crea una Constitución Europea fue firmado en Roma el 29
de octubre de 2004. Una vez presentado a ratificación por parte de los Estados miembros,
el resultado produjo algo impredecible:  tras una serie de afirmativas ratificaciones, los
resultados negativos en los referéndums celebrados en Francia y Países Bajos los días 29 de
mayo y 1 de junio de 2005 propiciaron la caída del Tratado.
Sin duda alguna, éste ha sido el momento más delicado en la historia de la integración
europea. Tan sólo la situación del Brexit 6 podría ser comparable (ya que algunos conatos
anteriores como la crisis económica de 2008 o la ‘silla vacía’ de Francia en 1965 no son
situaciones de una envergadura equivalente).
La Unión se sumió en un impasse de indefinición y profunda reflexión. El Consejo
Europeo formado por los Jefes de Estado y de Gobierno junto al resto de instituciones inició

4
El Rapport Spaak en 1956, el Informe Tindemans en 1975, y el Proyecto Spinelli en 1984, fueron
documentos que trataron de impulsar decididamente la integración europea.
5
La “Convención sobre el Futuro de Europa”, presidida por Valèry Giscard d’Estaing, fue inaugu-
rada en Bruselas, el 26 de febrero de 2002.
6
Sobre ‘Brexit’ consultar: GUINEA BONILLO, J. y PÉREZ-BUSTAMANTE, R., El Tratado
Brexit (acuerdo de retirada del Reino Unido de la Gran Bretaña e Irlanda del Norte de la Unión Europea).
CEFLegal: revista práctica de derecho. Comentarios y casos prácticos, nº 217, 2019.

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Los nuevos retos digitales en una ue dividida
Gabriel Martín Rodríguez

la búsqueda de una salida y la adopción del rumbo adecuado ante la crisis. Se plantearon
diversas alternativas para tratar de encontrar las medidas correctas e impulsar nuevamente el
proyecto europeo, y el futuro formal y material de la Organización.
Ciertamente, el proceso enormemente introspectivo de los grupos de trabajo de la
Convención que presentó a la Conferencia Intergubernamental de 2003 el texto del Tratado
Constitucional ayudó sobremanera y supuso, sin duda alguna, el inicio de la recuperación de
la Unión bajo el liderazgo de la canciller alemana Angela Merkel.
En los actuales momentos de crisis, hoy 2020, en los que pareciera, de alguna manera,
que la Unión Europea no está a la altura de las circunstancias, que las respuestas que necesitan
el conjunto de Estados y ciudadanos de la Unión no llegan; que la burocracia, la gestión, los
debates estériles y los bloqueos de unos frente a otros (grandes, pequeños, del norte o del sur)
se apoderan de la situación, surge nuevamente esta Unión de Estados integradora, que exhibe
con orgullo el modelo de estructura en organizaciones internacionales más desarrollado del
mundo.
La compleja estructura institucional y competencial de la Unión Europea torna
definitiva. No existe ninguna entidad internacional en todo el orbe planetario que alcance, tan
siquiera mínimamente, el nivel de desarrollo que ha logrado la Unión Europea.  Ni Estados
Unidos –con una estructura administrativa estatal desastrosa– ni cualquier otra gran potencia
internacional, ni mucho menos el continente africano o Sudamérica tienen estructuras que
puedan desarrollar niveles de integración cómo lo hace la UE. Naciones Unidas sería el único
gran competidor en la Unión Europea a este respecto.  Sin embargo, tan solo es necesario
detenerse un momento para advertir que el contrincante rápidamente queda descartado.
Si bien el nivel competencial general es más amplio que el de la Unión, que su nivel de
instituciones y órganos subsidiarios pudiera alcanzar, incluso superar, al de la UE, rápidamente
advertiremos que la ejecutividad de las decisiones en el marco comunitario, la estructura
jurídica,  sus principios normativos, el control jurisdiccional o los valores y derechos que
son recogidos y desarrollados por la Organización no tienen –en modo alguno– posibilidad
de replicarse,  al menos en los momentos actuales, en la estructura de la Organización de
Naciones Unidas.
La suma que las Instituciones de la UE: Parlamento Europeo, Comisión, Consejo,
Tribunal de Justicia de la Unión Europea, Banco Central Europeo7, junto a la necesaria y
complementaria labor del Consejo Europeo,  han alcanzado una cota de acción coordinada
muy relevante. Una estructura imbricada8 -como señala Araceli MANGAS-, que logra
soportar la compleja arquitectura del desarrollo de competencias, instituciones, principios,
normas jurídicas y políticas públicas.
En unos momentos actuales, en los que la división entre Estados se hace patente, y los
nuevos retos afloran, los dirigentes comunitarios que han tomado posesión a finales de 2019
de sus responsabilidades europeas son personalidades altamente capacitadas: la Presidenta de

7
Quizá la única institución poco relevante sería la séptima: el Tribunal de Cuentas.
8
MANGAS MARTÍN, A. Instituciones y Derecho de la Unión Europea. Tecnos, 9ª Ed., Madrid,
p.112

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Los nuevos retos digitales en una ue dividida
Gabriel Martín Rodríguez

la Comisión Europea, la alemana Úrsula von der Leyen, antigua ministra de defensa y primera
mujer en asumir este cargo; Charles Michel, Presidente del Consejo Europeo (Bélgica), ex-
primer ministro e hijo de un gran referentes europeo, Louis Michael, exministro y comisario
de la UE; el Alto Representante para la Política Exterior y de Seguridad Común (AR, antiguo
Mr. PESC),  el español Josep Borrell, que al igual que su antecesor y compatriota, Javier
Solana, tiene una enorme trayectoria tanto en ámbito de la política exterior, pues ha sido
ministro de exteriores, como sobre todo europea, donde se ha desempeñado como presidente
del Parlamento Europeo durante el periodo 2004-2007.
Mientras, en el ámbito económico, tanto la presidenta como el vicepresidente del Banco
Central Europeo,  Christine Lagarde (Francia) y Luis de Guindos (España) son grandes
expertos en economía y finanzas internacionales, y sus largos currículum les avalan: ambos
al frente de ministerios y secretarias de Estado, así como el Fondo Monetario Internacional,
grandes despachos y consultoras internacionales. 

II. UNIÓN EUROPEA Y GLOBALIZACIÓN


Para la Unión Europea, el concepto de gobernanza global no constituye tan sólo un
procedimiento colectivo de gestión y de toma de decisiones internacionales. Representa también
una determinada visión del mundo. Una interpretación racionalizada del proceso de globalización
al que estamos asistiendo con particular intensidad, al menos desde el fin de la guerra fría. Y
es también una propuesta política sobre cómo organizar el orden internacional y el papel que la
Unión debe representar en él como nuevo actor internacional. A comienzos de siglo, la UE fue
muy activa en la reforma de las organizaciones internacionales, pero tras la crisis política (2005)
y financiera (2008) la Unión ha perdido impulso político y encuentra múltiples dificultades
para realizar ese programa9. Si no quiere perder influencia, la UE debe adaptar sus objetivos
políticos a la nueva realidad internacional, mucho más ahora tras lo sucedido con la pandemia
del COVID-19, tras lo cual se avecina una nueva crisis económica de tamaño estratosférico.
Podemos definir el concepto de ‘utopía planetaria’ a aquella construcción en la cual las
dimensiones económica, social y política volvieran a reencontrarse en un espacio mundial
único y común. Una alternativa pragmática, y muy europea, a esta utopía planetaria es la
gobernanza global. Un proyecto de organización de la sociedad internacional absolutamente
coherente con las formas y procedimientos sobre los que se ha construido y gobierna la Unión,
basado en la promoción de instancias colectivas de participación y decisión supraestatales10.
Frente a otras formas tradicionales de gestión de los sistemas internacionales multipolares,
asentadas principalmente en el equilibrio de poder, la UE ofrecía una vía alternativa cuyo
fundamento es la integración de los Estados en una instancia de gobernanza superior basada
en el derecho, la democracia, la seguridad, el desarrollo y los Derechos Humanos. De hecho,

9
GARCÍA PÉREZ, R. Los desafíos de la Unión Europea en la gobernanza global. Cuadernos Eu-
ropeos de Deusto, Núm. 45/2011, Bilbao, p.23.
10
En relación a la gobernanza europea, ver también ZEFERINO FERREIRA, R.M. ‘O modelo de
governação por recurso ao federalismo político: umavisão para o mundo e para a UniãoEuropeia’ en De-
recho, gobernanza e innovación: dilemas jurídicos de la contemporaneidad en perspectiva transdisciplinar
(MIRANDA, R., y VEIGA, F., Dirs.), Universidade Portucalense, Porto, 2017, pp. 35-47.

— 134 —
Los nuevos retos digitales en una ue dividida
Gabriel Martín Rodríguez

la propuesta europea de gobernanza global venía avalada por el éxito alcanzado en su propia
experiencia de integración11.
Aunque Europa no haya sido la exclusiva generadora de éstas ideas, ni haya sido
tampoco el único actor en impulsarlas, resulta evidente la impronta europea que desprenden
los conceptos sobre los que se trata de construir esta propuesta de nueva convivencia
internacional: la seguridad humana y la paz, la responsabilidad de proteger y el desarrollo
humano, o el Derecho cosmopolita en defensa de unos Derechos Humanos universales y de
los bienes públicos globales. La Unión Europea ofrecía su know-how en la materia, a partir
de las lecciones aprendidas en su propio proceso de integración, para aplicar esta nueva lógica
en la gestión de los asuntos internacionales y construir una sociedad internacional basada en
el Derecho, en tanto que aquel «contrato social» de ROUSSEAU, para la realización del
interés general de la humanidad. Por eso puede afirmarse que la gobernanza global ha sido,
también, una propuesta europea para organizar el orden internacional.
Una propuesta que refleja los intereses y necesidades de la Unión, que trataba de
proyectar sobre el conjunto del sistema internacional sus propios valores y su cosmología,
aquella idea de la ‘Respublica Christiana’ medieval, y que se ofrecía como alternativa a
otras propuestas de orden internacional con las que competía en el momento en que fue
formulada. La intención europea de convertir a la gobernanza global en el fundamento del
nuevo orden mundial aparece expresamente reflejada en numerosos documentos comunitarios
de comienzos del nuevo siglo. En el Libro Blanco sobre la Gobernanza Europea, la Comisión
ya apuntaba en 2001 que Europa debía «reformar con éxito su gobernanza interna si quería
propugnar el cambio a escala internacional»12 y fijaba, expresamente un programa de
actuación impulsando «un debate sobre la manera en que la Unión puede contribuir a una
reforma en profundidad de las organizaciones multilaterales, y mejorar la cooperación entre
las organizaciones internacionales y su transparencia»13.
La efectividad de las políticas públicas requiere una participación de la sociedad, a través
de organizaciones sociales, de los consejos con participación popular y de experiencias como
el presupuesto participativo de la UE14.
En un sentido semejante, aunque con un lenguaje más rotundo, se expresaba la Declaración
de Laeken, también en 2001, al interrogarse si:
«¿No debería Europa, ahora por fin unificada, desempeñar un papel de liderazgo en un nuevo
orden planetario, el de una potencia a la vez capaz de desempeñar una función estabilizadora a
nivel mundial y de ser punto de referencia para numerosos países y pueblos?» 15.

11
GARCÍA PÉREZ, R. (op.cit.), p.24.
12
Comisión Europea, La Gobernanza Europea (Un libro blanco) COM 2001 428(final). Bruselas,
25 de julio 2001, p.31.
13
ídem. p.32.
14
MIRANDA GONÇALVES, R. y SICILIANO, V., ‘La nueva División de Poderes frente a la judi-
cialización de la política en el área de la salud: El control judicial de las políticas públicas de la salud en el
universo de la discrecionalidad del poder ejecutivo’, en Los desafíos jurídicos a la gobernanza global: una
perspectiva para los próximos siglos (MIRANDA GONÇALVES, R., y VEIGA, F., Dirs).Advocacia-Geral
da União, Brasília, 2017, p.14.
15
Consejo Europeo de Laeken. Conclusiones de la Presidencia, 14 y 15 de diciembre de 2001.

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Los nuevos retos digitales en una ue dividida
Gabriel Martín Rodríguez

Idéntica ambición se mostraba en la Estrategia Europea de Seguridad de 2003 cuando


se afirmaba que «Europa tiene que estar dispuesta a asumir su responsabilidad en el
mantenimiento de la seguridad mundial y la construcción de un mundo mejor»16, asumiendo
como principal objetivo «el desarrollo de una sociedad internacional más fuerte, con
instituciones internacionales que funcionen adecuadamente, y de un orden internacional
basado en el Derecho» y utilizando a las «organizaciones, regímenes y tratados internacionales
eficaces» para construir «un orden internacional basado en el multilateralismo eficaz»17.
La formulación explícita de estos designios quedó reflejada en el Tratado constitucional. Al
definir la UE cuales eran sus objetivos, en el apartado 4 del artículo I-3 se afirmaba:
«En sus relaciones con el resto del mundo, la Unión afirmará y promoverá sus valores
e intereses. Contribuirá a la paz, la seguridad, el desarrollo sostenible del planeta, la
solidaridad y el respeto mutuo entre los pueblos, el comercio libre y justo, la erradicación de
la pobreza y la protección de los derechos humanos, especialmente los derechos del niño, así
como al estricto respeto y al desarrollo del Derecho Internacional, en particular el respeto
de los principios de la Carta de las Naciones Unidas».
Ya dejó señalado Schuman el camino adecuado en su afamada Declaración: “La paz
mundial no podrá salvaguardarse sin esfuerzos creadores a la altura de los peligrosos que
la amenazan. La contribución que una Europa organizada puede aportar a la civilización es
indispensable para el mantenimiento de las relaciones pacíficas”.18

III. LAS NUEVAS TECNOLOGÍAS EN LA UNIÓN EUROPEA

a) Elementos generales
Desde 2014, la Comisión ha trabajado por dar pasos en la dirección de facilitar una
economía de datos más ágil, a través de normas sobre libre circulación de datos no personales19,
normas sobre ciberseguridad, directivas sobre datos abiertos20, y una normativa-marco general
sobre protección de datos21 22.

16
Estrategia Europea de Seguridad: ‘Una Europa segura en un mundo mejor’. 15895/2003 PESC
787. Bruselas, p.1.
17
ídem, p.9
18
Declaración de Robert Schuman, 1950.
19
Reglamento (UE) 2018/1807 del Parlamento Europeo y del Consejo, de 14 de noviembre de 2018,
relativo a un marco para la libre circulación de datos no personales en la Unión Europea.
20
Directiva (UE) 2019/1024 del Parlamento Europeo y del Consejo, de 20 de junio de 2019, relativa
a los datos abiertos y la reutilización de la información del sector público.
21
Reglamento (UE) 2016/679 del Parlamento Europeo y del Consejo, de 27 de abril de 2016, rela-
tivo a la protección de las personas físicas en lo que respecta al tratamiento de datos personales y a la libre
circulación de estos datos y por el que se deroga la Directiva 95/46/CE (Reglamento general de protección
de datos), cuya aplicación entró en vigor el día 25 de mayo de 2018.
22
Para un desarrollo amplio sobre esta materia, ver COELHO DE MELO DONNICI, T. ‘A proteção
de dados pessoais e os direitos fundamentais’ en DireitosFundamentais e inovaçoes no Direito. (MARTIN,
G., Coord.), IBEROJUR, Porto, 2020, pp. 8-15.

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Los nuevos retos digitales en una ue dividida
Gabriel Martín Rodríguez

El mundo digital cambia la vida de las sociedades y las personas. La estrategia digital de
la Unión fija como doble objetivo llegar a las empresas y los ciudadanos de la UE y alcanzar
una ‘Europa climáticamente neutra’ en el año 2050.
Los programas estratégicos sobre tratamiento de datos (DP)23 e inteligencia artificial
(IA) son decisivos. Buscan apoyar a las empresas y vincularlas con las nuevas tecnologías y, a
su vez, desarrollar una política o clima de confianza de los ciudadanos con estas NN.TT, pues
existen –aún– muchos recelos en la aplicación de algunos de estas novedades digitales.
La Comisión Europea está trabajando en una transformación digital que redundará en
beneficio de todos. Las soluciones digitales que dan prioridad a las personas abrirán nuevas
oportunidades para las empresas, impulsarán el desarrollo de tecnologías fiables, promoverán
una sociedad abierta y democrática, harán posible una economía dinámica y sostenible y
contribuirán a luchar contra el cambio climático.
Configurar el futuro digital de Europa significa garantizar que la tecnología se ponga
al servicio de las personas y aporte un valor añadido a su vida cotidiana.
Las políticas en el seno de la Unión Europea son fundamentales.  El desarrollo del
conjunto de acciones que la Unión pone en marcha día a día están encuadradas dentro del
marco de sus competencias. El  avance de estas competencias supone, en definitiva, la
realización de las propias políticas públicas que las instituciones de la Unión ejecutan y llevan
a término. Como podemos advertir, todo en la UE está interconectado.
Es importante identificar las competencias y las políticas públicas,  pero mucho más
significativo es señalar correctamente la estructura de desarrollo de esas políticas (a través
de instituciones, agencias, y otros organismos), puesto que el entramado de la UE a veces
dificulta esta tarea.
Dentro de las prioridades fijadas por la Unión Europea para el periodo 2014/2020, 
debemos destacar las siguientes cuestiones:
• P
 or un lado, las novedades de este periodo, que se resumen en: un mayor énfasis en
que los resultados objetivos sean más claros y cuantificables, de tal forma que pudiera
existir una mayor rendición de cuentas; una simplificación del conjunto de normas
sobre todos los Fondos; la fijación de unas condiciones previas a la autorización
de los fondos; el fortalecimiento de los proyectos en las ciudades (financiados
por los FEDER, Fondo Europeo de Desarrollo Regional) y la lucha en favor de la
inclusión social (financiado por el FSE, Fondo Social Europeo). También se establece
la posibilidad de suspensión de un Estado miembro por parte de la Comisión si no
cumpliese las normas económicas de la Unión.
• P
 or otro lado, se sitúa la fijación de prioridades.  En concreto, hoy la política de
cohesión establece 11 objetivos temáticos que buscan aumentar el crecimiento durante

23
En relación con el tratamiento y la protección de datos encontramos un interesante desarrollo en
JOVE-VILLARES, D. ‘Las facultades de control de la información personal en el reglamento general de
protección de datos’, en Derecho, gobernanza e innovación (op.cit.), pp. 363-380.

— 137 —
Los nuevos retos digitales en una ue dividida
Gabriel Martín Rodríguez

el periodo 2014-2020. Al igual que lo señalado en el caso de las novedades, concurren


los fondos FEDER, que financian los 11 objetivos, pero siendo los prioritarios de su
inversión del 1 al 4; los fondos FSE, Cuyas prioridades son los objetivos 8 a 11, pero
financiando también del 1 al 4 (ver fuente, a continuación).
• Y
 , por último,  el Fondo de Cohesión financiando los objetivos 4 a 7, y 11 (ver
fuente).

OBJETIVOS DE LA COMISIÓN EUROPEA 2014-2020

Fuente: Comisión Europea


Como ya hemos señalado en el título de este artículo ‘Los nuevos retos en una UE
dividida’, son dos los bloques objeto de desarrollo: la actual UE, que está separada por un
conjunto de motivaciones –poco justificadas algunas de ellas– pero reales y que afectan a la
gobernanza de la Unión. Por otro lado: sus nuevos retos. En este sentido cobran un papel
capital las nuevas tecnologías.
La Unión, con la finalización del trabajo de la Comisión Junker y el nuevo impulso de la
actual Presidenta Ursula von der Leyen, ha dibujado un programa basado en los pilares de la
Digitalización y la Europa Verde. De ahí que todo el ámbito de las nuevas tecnologías se va
a concretar en la UE bajo el marco de la configuración del ‘futuro digital de Europa’.
No podemos obviar que la Unión Europea gozando de altos niveles económicos y del
estado de bienestar, también repercute algunos problemas derivados –precisamente de estas
circunstancias-.

— 138 —
Los nuevos retos digitales en una ue dividida
Gabriel Martín Rodríguez

La población de la UE está envejecida. No es un simple tópico la referencia de ‘la vieja


Europa’. El hecho de contener en sus Estados los orígenes de la democracia (Grecia), o
del sistema jurídico (Roma), haber presenciado el nacimiento del estado moderno (España,
Francia, Inglaterra), incluso de la diplomacia, habiendo exportado la protección de los
derechos humanos a los confines del globo terráqueo, supone también un coste. Pareciera que
Europa se ha quedado ‘sin ideas’ y está agotada.
No es cierto. Si bien quizá aguantar los altos niveles de vida de los Estados de la UE
es un reto diario muy grande, ha sabido adaptarse a las circunstancias que se han presentado
en cada momento. No olvidemos que en 1952 entró en funcionamiento la CECA, como
entramado entre Francia, Alemania Occidental, Italia y el BENELUX, y pusieron en marcha
el mercado común del carbón y el acero.
En los años posteriores, los dos Tratados de Roma con la construcción de la Comunidad
Europea de la Energía Atómica, y la Comunidad Económica Europea, como desarrollo
de la arquitectura institucional de las propias Comunidades, permitió un avance de la/s
Organizaciones. Así, y tras numerosas reformas a lo largo de los años, se ha modulado el
catálogo de competencias que los Estados han ido atribuyendo a la Unión Europea24, y
conforme a ello, la asunción por parte de la UE de toda una serie de políticas que ha permitido
su progreso.
Si bien en 1952 el arranque se debió al carbón y el acero, en 2020 el catálogo de ámbitos
en los que la UE es puntera a nivel internacional es muy amplio: defensa de derechos y
libertades, nivel de integración supranacional, desarrollo normativo, coordinación inter-
territorial, etc.
Así, el trabajo continuo y continuado de la Comisión, el Parlamento Europeo y el
Consejo, bajo el impulso político de los Jefes de Estado y de Gobierno de los Miembros
ha provocado una puesta al día permanente y una auto-revisión de los avances globales del
planeta, expuestos en los propios territorios de los EE.MM. De esta forma, los diversos
problemas que han asomado la cabeza en estos 70 años, y los retos a los que se ha tenido que
enfrentar la Unión, permiten haberla preparado para los enormes desafíos que se avecinan en
el futuro. No es una tarea sencilla, pero se han puesto los mimbres adecuados para construir
y reforzar el gran cesto de las antiguas Comunidades Europeas (CC.EE).
La era del milenio y una vez sofocados los problemas producidos por el rechazo de
la Constitución Europea y la puesta en marcha del Tratado de Lisboa, pone a la UE en la
encrucijada de adaptarse a los nuevos tiempos o, de lo contrario, perder su razón de ser, su
propia naturaleza. En este sentido, serían dos las vertientes a abordar como retos de futuro:
- Desde el punto de vista Institucional: continuar reforzando la figura del Consejo
Europeo, y tratar de dar mayor protagonismo a las figuras del Presidente y del Alto
Representante para la Política Exterior y de Seguridad Común. Es necesario que
los ciudadanos europeos perciban una unidad institucional fuerte, que defienda los
intereses globales de todos los ciudadanos y los gobiernos de los EE.MM. En esta

Clarificando formal y definitivamente la denominación de la Organización Internacional de esta


24

forma tras la firma del Tratado de Lisboa, el 13 de diciembre de 2007.

— 139 —
Los nuevos retos digitales en una ue dividida
Gabriel Martín Rodríguez

línea, a la PESC se une la PCSD, puesto que ‘defensa’ es, sin duda alguna, la gran
tarea aplazada.
- Los retos materiales se centran en tres ámbitos: una UE centrada en los ciudadanos,
la Europa Verde y la transformación digital, íntimamente ligados.
El dibujo de un mundo digital es un hecho, no una utopía. Ante la evidencia de que las
tecnologías digitales han cambiado nuestro sistema tal y como conocíamos, sólo resta que
comprendamos la medida en la cual negocio, trabajo, ocio o comunicación han variado a la
sociedad europea. El conjunto de soluciones digitales, como la inteligencia artificial, el big
data, o las comunicaciones a través de redes sociales son una realidad.
Únicamente debemos ser consciente que toda acción implica un riesgo, y este caso no
es una excepción, puesto que el avance no debe estar reñido con la precaución. Una apertura
tecnológica debe venir acompañada de mecanismos que aseguren, por ejemplo, garantías
frente a los cada vez más frecuentes ataques cibernéticos, que cada día son más habituales.
Una verdadera transformación digital exige a la Unión Europea un análisis y puesta
en marcha en acciones procedentes de dos vertientes diferentes: la política o normativa y la
económica. Sólo a través de la suma de acciones en los dos ámbitos podrá desarrollarse una
verdadera revolución tecnológica europea25.

b) Los valores de la UE en la transformación digital


En la permanente idea de libertad que inunda los valores de la Unión (libertad de
movimiento, libertad de comercio, libertad de mercado y libre competencia), la UE pretende
que tanto personas como empresas tengan a su disposición todos los medios necesarios para
poder promover esta transformación digital. Es necesario para las empresas que exista un
marco regulatorio fiable y flexible que les permita crear y crecer.
Europa necesita llevar a cabo su transformación en nuevas tecnologías a su ritmo y bajo
sus condiciones particulares, tal y como ya hemos venido indicando26.

25
No es objeto de análisis en esta obra, pero la transformación digital dentro de la Unión Europea
es especialmente relevante en dos ámbitos. En primer lugar, el Espacio de Libertad, Seguridad y Justicia,
particularmente en la lucha conjunta de los EE.MM contra la ciberdelincuencia. A este respecto consul-
tar ANGUITA SERRANO, J.E., Análisis histórico-jurídico de la lucha contra la ciberdelincuencia en la
Unión Europea. Revista de estudios en seguridad internacional (RESI), Vol. 4, Nº. 1 (Monografía. Agenda
de Seguridad en el Cono Sur), 2018, pp. 107-126. En segundo lugar, en el ámbito del derecho deportivo
dentro de la Unión Europea, para lo cual puede consultarse en ALZINA LOZANO, A., Las organizaciones
internacionales europeas frente a la violencia en el deporte: (Antecedentes jurídicos e instrumentos vigen-
tes [1980-2018]). CEFLegal: revista práctica de derecho. Comentarios y casos prácticos, nº 220. Madrid,
2019, pp. 81-108.
26
Un ejemplo de cómo engarzar derechos y valores con el progreso digital lo encontramos en FER-
NÁNDEZ GARCÍA-ARMERO, P., Una visión crítica desde el derecho español de la recomendación CM/
Rec(2014)6 sobre una guía de los derechos humanos para los usuarios de internet, en Estudos de direito,
desenvolvimento e novas tecnologías. (MIRANDA GONÇALVES, R. y DE BRITO, P., Coords.), IBERO-
JUR, Porto, 2020, pp. 444-453.

— 140 —
Los nuevos retos digitales en una ue dividida
Gabriel Martín Rodríguez

Innovación y competencia son las características que deben marcar el diseño del
complejo plan de la UE para su desarrollo digital. Una suma de las áreas de comunicaciones,
redes y datos será necesaria para la consecución de estos objetivos. En este sentido, debemos
ser conscientes que, actualmente, la UE no es una potencia internacional en la materia de
desarrollo tecnológico. Europa debe acelerar la velocidad de investigación y desarrollo para
eliminar la dependencia que actualmente tiene respecto de Estados Unidos y de las grandes
potencias asiáticas.
La disponibilidad de datos no personales en abierto es uno de los elementos fundamentales
en los que la UE debe trabajar en los próximos años. Evidentemente, implementando todos
los mecanismos de seguridad necesarios para garantizar un uso adecuado de esos datos,
que permitan a todos los ciudadanos y empresas de la Unión poder lograr una verdadera
transformación digital de Estados y personas. Europa debe convertirse en un referente
internacional en la adaptación tecnológica.
En este sentido, la Comisión ha propuesto acciones clave en relación a la mejora de la
dimensión internacional 27, las más destacadas son:
- Creación de una Estrategia mundial de cooperación digital.
- Elaboración de un Libro Blanco sobre un instrumento relativo a las subvenciones
extranjeras.
- Realización de una estrategia de normalización que permita el despliegue de
tecnologías interoperables respetuosas de las normas europeas y que promueva el
enfoque y los intereses europeos en la escena mundial. 28
Además, se disponen como acciones clave:
- La creación de un Centro de digitalización para el desarrollo que elabore y consolide
un enfoque integral de la UE que fomente sus valores y movilice a sus Estados
miembros y su industria, las organizaciones de la sociedad civil, las instituciones
financieras, los conocimientos especializados y las tecnologías de digitalización.
- Y, finalmente, una cartografía de las oportunidades y un plan de acción para promover
el enfoque europeo en las relaciones bilaterales y los foros multilaterales.
Al respecto, el grupo de trabajo de la Comisión Europea para el África rural presentó
el 7 de marzo de 2019, en Bruselas, su informe final. Un programa de trabajo en el ámbito
rural y agroalimentario para la nueva Alianza África-Europa para la Inversión y el Empleo
Sostenibles29. En él, se establece la creación de Centros de innovación para apoyar a los
agroemprendedores y al sector agroalimentario africano. En ellos, se pueden establecer
centros de innovación o reforzar los que ya existen. Colaborarán investigadores nacionales,

27
Comunicación de la Comisión al Parlamento Europeo, al Consejo, al CEDE y al CdR: ‘Configurar
el futuro digital de Europa’. 19/02/2020. COM(2020) 67 final. p.16.
28
Estas acciones clave estaban previstas se desarrollasen entre 2020 y 2021. Su puesta en marcha es
posible que se retrase como consecuencia del COVID19.
29
https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/es/IP_19_1569

— 141 —
Los nuevos retos digitales en una ue dividida
Gabriel Martín Rodríguez

sistemas de educación superior, agricultores y sus organizaciones y el sector privado para


facilitar la innovación digital y el desarrollo de cualificaciones.

c) Pilares del futuro digital en Europa


Europa debe convertirse en un referente a escala internacional en transformación digital.
Pero para poder lograrlo debe crear una estructura económica, jurídica e industrial con soporte
suficiente para lograrlo.
Sin duda, la sociedad europea –formada por el tejido productivo y los ciudadanos– debe
convertirse en una verdadera potencia internacional en materia de desarrollo tecnológico,
basando su acción en tres pilares: excelencia, productividad y los valores de democracia,
libertad e igualdad.
Para llevar a cabo todo lo anterior, la Comisión Europea fija tres objetivos: una sociedad
abierta, democrática y sostenible; la tecnología al servicio de las personas; y una economía
justa y competitiva.

• Una sociedad abierta, democrática y sostenible:


Este primer objetivo recoge, por un lado, los grandes principios de la Unión Europea30 y,
por otro, el segundo presupuesto general fijado por la Presidenta de la Comisión, Ursula Von
Der Leyen, para el quinquenio 2019-2024 31: ‘una Europa Verde’.
Deben crearse normas nuevas y revisadas para profundizar el mercado interior de
servicios digitales, aumentando y armonizando las responsabilidades de las plataformas en
línea. Proceder a la revisión del Reglamento eIDAS32 para mejorar su eficacia, extender sus
beneficios al sector privado y promover unas identidades digitales de confianza para todos los
europeos también contribuirá a una mejora de la transformación digital comunitaria.
Una de las vertientes sobre la que se está fijando un mayor apoyo es el Plan de Acción
para la Democracia Europea, a fin de mejorar la capacidad de nuestros sistemas democráticos,
defender el pluralismo de los medios de comunicación y hacer frente a las amenazas que
suponen las intervenciones exteriores en las elecciones europeas. Destino Tierra es una
iniciativa para desarrollar un modelo digital de alta precisión (un «gemelo digital de la

30
Art. 1 TUE, 2º párr.: El presente Tratado constituye una nueva etapa en el proceso creador de una
unión cada vez más estrecha entre los pueblos de Europa, en la cual las decisiones serán tomadas de la
forma más abierta y próxima a los ciudadanos que sea posible.
Art. 2 TUE: La Unión se fundamenta en los valores de respeto de la dignidad humana, libertad, de-
mocracia, igualdad, Estado de Derecho y respeto de los derechos humanos, incluidos los derechos de las
personas pertenecientes a minorías.
31
Orientaciones políticas para la Comisión Europea (2019-2024) https://ec.europa.eu/commission/
sites/beta-political/files/political-guidelines-next-commission_es.pdf
32
Reglamento (UE) 910/2014, del Parlamento Europeo y del Consejo, de 23 de julio de 2014, re-
lativo a la identificación electrónica y los servicios de confianza para las transacciones electrónicas en el
mercado interior y por la que se deroga la Directiva 1999/93/CE.

— 142 —
Los nuevos retos digitales en una ue dividida
Gabriel Martín Rodríguez

Tierra») capaz de mejorar las capacidades de predicción ambiental y de gestión de crisis en


Europa, a partir de 2021.
Por último, es necesaria una iniciativa de electrónica circular que movilice los
instrumentos existentes y otros nuevos, en consonancia con el marco para los productos
sostenibles del próximo plan de acción para la economía circular, con el fin de asegurarse
de que los dispositivos se diseñen conforme a los criterios de durabilidad, mantenimiento,
desmontaje, reutilización y reciclaje, incluido el derecho de reparación o actualización para
prorrogar el ciclo de vida de los dispositivos electrónicos y para evitar la obsolescencia
programada prematura, y que está prevista se inicie también en 2021.
Como acciones clave, la Comisión señala:
• Utilizar la tecnología para ayudar a Europa a ser climáticamente neutra de aquí a
2050.
• Reducir las emisiones de carbono del sector digital.
• Capacitar a los ciudadanos para que tengan un mejor control y protección de sus
datos.
• Crear un espacio europeo de datos de salud que impulse la investigación, el diagnóstico
y el tratamiento específicos.
• Luchar contra la desinformación online y fomentar la diversidad y fiabilidad de los
contenidos en los medios de comunicación.

• La tecnología al servicio de las personas:


El elemento más importante de la transformación digital es la conectividad. Éste es el
secreto para permitir una fluidez de los datos, trabajo de empresas, desarrollo de proyectos,
acceso masivo a Internet y, por tanto, sólo así puede provocarse un cambio en la movilidad de
las personas, cambios estructurales en los métodos de trabajo (tanto en los sectores primario-
secundario, como servicios). La cuestión capital en este elemento técnico pivota sobre esa
conectividad a velocidad Gb (Gigabit) con tecnología 5G a través de infraestructuras de fibra
(y todo ello bajo unas condiciones de seguridad adecuadas). Si ello se logra, el potencial
de crecimiento digital europeo será una realidad. En este sentido es fundamental un nivel
adecuado de inversión de la UE entre 2020 y 202533. En relación con ello, es importante
valorar el comportamiento de los stakeholders de estas empresas que pueden desarrollar la
implantación digital34.
El marco financiero plurianual 2021-2027 debe contribuir decididamente a este objetivo.
Deben ponerse en marcha grandes programas de financiación específicos, y para ello puede

33
El Banco Europeo de Inversiones señala que, en materia infraestructuras y redes digitales, la UE
tiene un déficit de inversión de 65.000 millones de euros. (Informe de inversión del Banco Europeo de
Inversiones 2018/2019: ‘Reestructurar la economía europea’).
34
Un desarrollo muy interesante se encuentra en VEIGA, F., PELLÍN, D., y ENGELMANN,W., ‘El
comportamiento de los stakeholders como parámetro de control jurídico sobre los riesgos nanotecnológi-
cos’ en Los desafíos jurídicos a la gobernanza global (op. cit.), pp. 93-103.

— 143 —
Los nuevos retos digitales en una ue dividida
Gabriel Martín Rodríguez

tomarse como referencia el Programa Europa Digital (PED), mecanismo ‘Conectar Europa’
(MCE2), Horizonte Europa y Programa Espacial35. También puede recurrirse a la Garantía
InvestEU36 y a los fondos estructurales y de desarrollo rural (FEDER y FEADER37).
Las acciones clave son:
• Invertir en competencias digitales para todos los europeos.
• Proteger a las personas contra las amenazas cibernéticas (pirateo, programas de
secuestro, robos de identidad, etc.).
• Garantizar que la inteligencia artificial se desarrolle de manera respetuosa con los
derechos de las personas y merezca su confianza.
• Acelerar el despliegue de la banda ancha ultrarrápida para los hogares, las escuelas y
los hospitales de toda la UE.
• Ampliar la capacidad de supercomputación de Europa para desarrollar soluciones
innovadoras en medicina, transportes y medio ambiente 38.

• Una economía digital justa y competitiva:


Debemos tener en cuenta que la tecnología –poco a poco– va ganando terreno en el mundo.
Europa debe actuar sin demora y reducir la dependencia que tiene respecto a la tecnología
digital que proviene de otros lugares (como ya se indicaba en el apartado anterior). En este
sentido, los datos juegan un papel esencial y son el factor clave de producción. Necesitamos
que los datos estén disponibles y tengan una verdadera facilidad de acceso, utilización y
tratamiento; es decir, exista un verdadero ‘mercado de datos único europeo’, por supuesto
bajo la regulación de la normativa europea, que debe ser clara y taxativa a los efectos. En
ello se basa la libertad de mercado en Europa, y así debería continuar desarrollándose con el
objetivo de procurar un crecimiento a las empresas y trabajadores en la Unión.
En línea con esta cuestión está relacionado el ámbito del derecho de la competencia
de la UE. Los fundamentos de esta disciplina son comunes a todos los sectores industriales
y comerciales, formando parte del ADN de la Unión Europea. La legislación en materia
competencial debe continuar repercutiendo directamente en el beneficio de los ciudadanos
de la Unión. La simplificación normativa a la que la UE debería tender (y si lo hace, no lo
consigue a los niveles adecuados de clarificación) podría ayudar decididamente en el diseño
del nuevo escenario de las normas que regulan las nuevas tecnologías39.

35
Reglamento del Parlamento Europeo y del Consejo, de 6 de junio 2018, por el que se establece
el Mecanismo «Conectar Europa» y se derogan los Reglamentos (UE) n.º 1316/2013 y (UE) n.º 283/2014
https://eur-lex.europa.eu/resource.html?uri=cellar:da5da09e-6a5a-11e8-9483-01aa75ed71a1.0004.02/
DOC_1&format=PDF
36
Acuerdo parcial alcanzado por el Consejo y el Parlamento (18/04/2019) sobre el nuevo programa
que sucederá al “plan Juncker” para impulsar la inversión y el crédito a partir de 2021.
37
Fondo Europeo de Desarrollo Regional, y Fondo Europeo Agrario de Desarrollo Rural.
38
Comunicación de la Comisión: ‘Configurar el futuro digital de Europa’. op. cit. p.8.
39
En relación a la cuestión, también es muy interesante consultar la información complementaria
que aparece en el Documento de Reflexión de la Comisión Europea de 30 de enero de 2019: ‘Para una

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Los nuevos retos digitales en una ue dividida
Gabriel Martín Rodríguez

Se fijan como claves:


• Posibilitar que acceda a la financiación y se expanda, una comunidad dinámica de
empresas emergentes y pymes innovadoras y de rápido crecimiento.
• Proponer un Reglamento de servicios digitales que refuerce la responsabilidad de las
plataformas y aclare las normas aplicables a los servicios online.
• Garantizar que en la economía digital las normas de la UE se adecuen a su
propósito.
• Garantizar que en Europa todas las empresas compitan en condiciones justas.
• Mejorar el acceso a datos de alta calidad al tiempo que se garantiza la protección de
los datos personales y sensibles40.

IV. CONCLUSIONES:
Europa tiene una oportunidad única para poder volver a una vanguardia económica
mundial: la transformación digital y las nuevas tecnologías. La Unión tiene la capacidad
de poder crear un marco económico y normativo basado en la confianza y la estabilidad,
en la vanguardia unido a la solvencia de la estructura comunitaria, en la especialización, el
talento y la excelencia. Puede ser un proyecto completamente europeo uniendo empresas y
trabajadores, uniendo valores y economía.
Es necesario el concierto de todos los actores afectados en el proyecto: Estados, regiones
y entidades públicas menores, y todos los ciudadanos y empresas que llevarán a desarrollar
las nuevas tecnologías. Supone un reto y una oportunidad: hacer una nueva Europa en busca
de nuevos escenarios, tratando de buscar esa ‘Unión Verde’ que ha planteado la Comisión,
pero generando riqueza y prosperidad a los países y las personas.
La transferencia y manejo de datos juegan un papel esencial en este proceso: el cambio
digital, en sí mismo, es una herramienta que debe ser adaptada y puesta en marcha. Significa
ello que tan solo a través de la ‘transposición’ a los ciudadanos, empresas y resto de actores,
podrá implementarse verdaderamente y alcanzar los niveles de eficacia óptimos que requiere
el proyecto.
Señalaba Jean Monnet en 1943 que: “No habrá paz en Europa, si los Estados se
reconstruyen sobre una base de soberanía nacional (…) Los países de Europa son demasiado
pequeños para asegurar a sus pueblos la prosperidad y los avances sociales indispensables.
Esto supone que los Estados de Europa se agrupen en una Federación o entidad europea que
los convierta en una unidad económica común.”
Tan solo así podrá recuperar la UE –una vez más– un peso específico en la mesa de los
grandes sillones mundiales de la economía y la acción internacional.

Europa sostenible de aquí a 2030’


40
Comunicación de la Comisión:‘Configurar el futuro digital de Europa’. op. cit. p.11.

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Los nuevos retos digitales en una ue dividida
Gabriel Martín Rodríguez

BIBLIOGRAFÍA Y DOCUMENTOS:
Comisión Europea, La Gobernanza Europea (Un libro blanco) COM(2001) 428(final). Bruselas, 25
de julio 2001, p.31.
Comunicación de la Comisión al Parlamento Europeo, al Consejo, al Comité Económico y Social
Europeo y al Comité de las Regiones, de 19 de febrero de 2020: ‘Configurar el futuro digital de
Europa’. COM(2020) 67(final).
Comunicación de la Comisión al Parlamento Europeo, al Consejo, al Comité Económico y Social
Europeo y al Comité de las Regiones, de 14 de septiembre de 2016: ‘La conectividad para
un mercado único digital competitivo - hacia una sociedad europea del Gigabit’. COM(2016)
587(final).
Consejo Europeo de Laeken. Conclusiones de la Presidencia, 14 y 15 de diciembre de 2001.
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Tratado de la Unión Europea (v. consolidada: 7 de junio de 2016).
Tratado de Funcionamiento de la Unión Europea (v. consolidada: 7 de junio de 2016).

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A tecnologização e a humanização
do processo penal: a técnica do interrogatório
por videoconferência analisada
sob a perspectiva do direito de presença

Eduardo Resende Rapkivcz1

Resumo: O processo penal, como meio imprescindível ao exercício do jus puniendi, deve abarcar,
em si mesmo, tempo necessário à efetivação das garantias do réu, sobre o qual a pretensão acusatória do
Estatal lança suas forças. Por meio do método hermenêutico-concretizador, discorre-se acerca do direito
de acesso a uma ordem jurídica justa, considerando o princípio da par conditio, abordando-se, igualmente,
os obstáculos envolvendo a terceira onda renovatória de acesso à justiça, com a consequente adoção de
meios empregados à celeridade dos procedimentos judiciais. No intervalo desses pontos, discutir-se-á a
celeridade como valor promocional ou atentatório aos direitos e garantias constitucionais, fazendo uma
correlação entre a aplicação do princípio nas searas dos direitos disponíveis e dos direitos indisponíveis, e,
bem assim, abordando-se a diferenciação entre celeridade e duração razoável do processo. O interrogatório
por videoconferência, técnica processual representativa do almejo por celeridade, é tomado como objeto
da presente análise. Em frente, é abordado o direito de presença como expressão do direito constitucional
à ampla defesa e da humanização do processo penal, à luz da doutrina e da jurisprudência dos Tribunais
Superiores. Por fim, discorre-se acerca do interrogatório por videoconferência enquanto instrumento de
promoção ou de usurpação de direitos.
Palavras-chave: Celeridade; Interrogatório; Videoconferência; Processo.

Abstract: Criminal procedure, as a necessary path to the exercice of potestas puniendi, must encompass,
in itself, the time necessary to enforce the guarantees of the passive subject of criminal prosecution, on
which the State’s punitive pretension throws its forces. Through the hermeneutic-concretizer method, the
right of access to a fair legal order is discussed, considering the principle of par conditio, also addressing
the obstacles involving the third renewal wave of access to justice, with the consequent adoption of means

1
Bacharelem Direito na Fundação Universidade Federal de Rondônia. Assessor de Defensor Públi-
co na Defensoria Pública do Estado de Rondônia. Pós-graduando em Atividades de Defensoria Pública pela
UniProjeção - Centro Universitário e Faculdade Projeção.

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A tecnologização e a humanização do processo penal: a técnica do interrogatório por videoconferência analisada
Eduardo Resende Rapkivcz

employed to speed up judicial procedures. In the interim of these points, speed will be discussed as a
promotional value or an offense to constitutional rights and guarantees, making a correlation between the
application of the principle in the fields of available rights and unavailable rights, and, well, addressing the
differentiation between speed and reasonable duration of the process. Interrogation by videoconference,
a procedural technique that represents the aim for speed, is taken as the object of the present analysis.
Ahead, the right of presence is addressed as an expression of the constitutional right to the broad defense
and humanization of criminal proceedings, in the light of the doctrine and jurisprudence of the Superior
Courts. Finally, there is a discussion about interrogation by videoconference as an instrument to promote
or usurp rights.
Keywords: Celerity; Interrogatory; Video conference; Procedure.

1. INTRODUÇÃO
Debate já enraizado em solo nacional diz respeito à mora do Poder Judiciário em prestar
sua tutela jurisdicional. Processos levam anos e anos para serem decididos. O sentimento de
ineficiência, que se manifesta em meio a uma sociedade cada vez mais veloz, toma conta.
É neste contexto que as novas técnicas empregadas ao processo penal com o objetivo de
imprimir-lhe velocidade devem ser analisadas com prudência.
Com efeito, a problemática da presente pesquisa cinge-se à análise da técnica do
interrogatório por videoconferência empregado ao processo penal, perquirindo-se sobre
seu potencial operativo, com o fito de, ao final, concluir-se pela supressão ou promoção de
direitos e garantias fundamentais por meio de referida ténica.
Para tanto, valendo-se do método hermenêutico-concretizador e de pesquisa bibliográfica
e jurisprudencial, a pesquisa propõe-se à sistematização histórico-legislativa do interrogatório
por videoconferência, alocando-a na Terceira Onda Renovatória do Acesso à Justiça. Após,
discorre-se acerca do direito de presença do réu, como consectário do direito ao contraditório
e à ampla defesa.

2. A RACIONALIZAÇÃO DE RECURSOS E A TÉCNICA DA


VIDEOCONFERÊNCIA NO PROCESSO PENAL
O Estado, por meio do Poder Judiciário, tomou para si a incumbência de promover
justiça, paz e bem-estar social. Não se concebe, portanto, o uso da força como meio de
solução de conflitos. No âmbito específico de aplicação de sanções penais, o processo penal
opera como instrumento de efetivação das garantias constitucionais, meio indispensável ao
exercício do potestas puniendi estatal, tornando-se um instrumento legitimante do poder,
dotado de garantias mínimas, imprescindível para chegar-se à pena (LOPES JR, 2019, s.p.)2.
Se é por meio do processo penal que o denunciado ou o réu pode se defender, Esteve
e Silva afirmam que se é possível extrair uma espécie de “obrigação imposta ao Estado de
assegurar que todos tenham condições efetivas de postular e de defender seus direitos perante

2
LOPES JR., Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 5. ed. – São Paulo: Sarai-
va Educação, 2019.

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A tecnologização e a humanização do processo penal: a técnica do interrogatório por videoconferência analisada
Eduardo Resende Rapkivcz

o sistema de justiça, independentemente de sua condição de fortuna” (2018, p. 29)3. De início,


veda-se uma distinção odiosa entre o réu economicamente rico e o menos afortunado, entre
um órgão acusatório super estruturado e uma defesa sem qualquer recurso.
Busca-se um sistema de justiça verdadeiramente igualitário, onde a par conditio é valor
e objetivo firmemente perseguido.
Como o mais básico dos direitos humanos, o acesso à justiça deve ser compreendido
como requisito indispensável de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda não
apenas proclamar direitos, mas também garanti-los (CAPPELLETI, 1988, p. 18)4. Apresenta-
se como direito primeiro, direito garantidor de outros direitos, “(…) sem o qual todos os
demais direitos são apenas ideais que não se concretizam” (SADEK, 2013, p. 20)5.
Esteves e Silva (2018, p. 32)6 anotam que

os direitos que salvaguardam o acesso à justiça devem ser considerados como


elementos instrumentais da própria dignidade humana (art. 1º, III, da CRFB), pois
garantem a efetividade de todos os demais direitos fundamentais. Justamente por
isso, devem ser compreendidos como parte indissociável do mínimo existencial e
elemento indispensável para a vida humana digna (…).

Mas o acesso ao Poder Judiciário não basta: é a justiça que se busca.


Neste ínterim, a pretexto de alcançar-se a verdadeira justiça, criou-se um movimento
de defesa, sobretudo na seara dos direitos disponíveis e do processo civil, de uma tramitação
processual célere, como se a celeridade e a efetividade da tutela jurisdicional fossem sinônimas.
O movimento ganha amplitude e já alcança o processo penal.
Conquanto na seara dos direitos disponíveis o raciocínio possa ser empregado sem
maiores cautelas, no âmbito do processo penal – considerando os valores indisponíveis aí
subsumidos – a celeridade mostra-se arriscada.
Em defesa de empregar-se celeridade aos processos, surgem variados estudos, v. g. o
Projeto Florença de Acesso à Justiça. Obstáculos jurídicos, econômicos, políticos, sociais,
culturais e psicológicos mostram-se fatores dificultantes do pleno acesso à justiça. No ponto,
importante discorrer acerca do “Florence Access-to-Justice Project” (“Projeto Florença de
Acesso à Justiça”).

3
ROGER, Franklyn; ESTEVES, Diogo. Princípios institucionais da Defensoria Pública. 2. ed.
Rio de Janeiro: Forense. 2018. p. 18.
4
CAPPELLETTI, Mauro & GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sergio Fabris, 1988,
pág. 12.
5
SADEK, Maria Tereza Aina. Defensoria Pública: Conquista da Cidadania. In> RÉ, Aluísio Iunes
Monti Ruggeri. Temas Aprofundados da Defensoria Pública. Salvador: JusPodivm, 2013, pág. 20
6
ROGER, Franklyn; ESTEVES, Diogo. Princípios institucionais da Defensoria Pública. 2. ed.
Rio de Janeiro: Forense. 2018. p. 18.

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A tecnologização e a humanização do processo penal: a técnica do interrogatório por videoconferência analisada
Eduardo Resende Rapkivcz

Esteves e Silva colocam que o principal objetivo do projeto foi a análise dos obstáculos
que tornavam difícil ou impossível o acesso à justiça e o uso do sistema jurídico; igualmente,
procurou-se levantar os meios e instrumentos concebidos para superar e atenuar os referidos
obstáculos (2018, p. 45-46)7.
Os autores lecionam a respeito de três “ondas”: (i) a primeira referte à assistência jurídica;
(ii) a segunda, na busca da tutela de interesses metaindividuais; e (iii) a terceira abordando
os procedimentos judiciais, seus custos e o tempo de duração (ESTEVES; SILVA, 2018, p.
18)8.
Na linha da terceira onda renovatória de acesso à justiça, consolida-se o princípio da
eficiência, previsto expressamente pelo Código de Processo Civil em seu artigo 8º9; adotam-
se instrumentos considerados capazes de amenizar os custos e o tempo de tramitação dos
procedimentos judiciais, empregando-lhe celeridade.
Buscam-se alternativas à jurisdição estatal, como os meios de solução consensual
dos conflitos, e. g, a mediação e conciliação. Cumulativamente, promovem-se adequações
procedimentais do processo, erigindo-se, nesse campo, novas ferramentas empregadas ao iter
processual. O interrogatório por videoconferência é um grande exemplo desse fenômeno e
consubstancia o objeto do presente trabalho.
No ponto, faz-se necessária a seguinte indagação: até que ponto a celeridade se mostra
positiva aos direitos subsumidos no processo penal? Esta reflexão guarda intimidade com a
natureza dos direitos defendidos por meio do processo penal.
Ao contrário do que ocorre no âmbito do processo civil, em que nem sempre o seu objeto
consubstancia-se em um direito indisponível, no processo penal, meio pelo qual se defende
os direitos mais básicos – vida, liberdade e dignidade –, é certo que a indisponibilidade dos
direitos é sempre presente.
Surge, pois, uma segunda questão: até que ponto a celeridade pode se coadunar com as
garantias constitucionais conferidas ao réu no bojo da persecução penal?
Com tais indagações, passa-se, agora, a uma breve análise histórico-legislativa acerca da
técnica de videoconferência empregada ao processo penal.

3. O INTERROGATÓRIO POR VIDEOCONFERÊNCIA


Inauguralmente, editou-se, no estado de São Paulo, a Lei n° 11.819/2005, em que se
possibilitava a instalação de aparelhos de videoconferência para interrogatório e audiências
de pessoas presas à distância, de acordo a ementa da própria norma. A mens legis afigurava-

7
ROGER, Franklyn; ESTEVES, Diogo. Op. cit. p. 45-46.
8
ROGER, Franklyn; ESTEVES, Diogo. Op. cit. p. 18.
9
CPC. “Art. 8º Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências
do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionali-
dade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência”.

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A tecnologização e a humanização do processo penal: a técnica do interrogatório por videoconferência analisada
Eduardo Resende Rapkivcz

se expressa em seu artigo 1º: tornar mais célere o trâmite processual, observadas as garantias
constitucionais.
De logo, erigiu-se uma intensa discussão acerca da constitucionalidade da referida lei.
Os Tribunais Superiores divergiam. No Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu-se que
a realização de videoconferência para interrogatório do réu não seria ofensiva às garantias
constitucionais10. Já no Supremo Tribunal Federal (STF), deferiu-se ordem de habeas corpus
afirmando que a realização de interrogatório por videoconferência era meio ofensivo ao
princípio do devido processo legal, porquanto este pressupõe o respeito à regularidade do
procedimento, em fiel observância às normas processuais. À época, o artigo 792 do Código
de Processo Penal (CPP) estabelecia que a realização de audiências, sessões e atos processuais
dar-se-ia na sede do juízo ou no tribunal onde atua o órgão jurisdicional, de modo que não
havia previsão legal no complexo processual penal para a realização de videoconferência11.
Posteriormente, o Congresso Nacional editou a Lei 11.900/09 que, alterando alguns
dispositivos do Código de Processo Penal, passou a prever a possibilidade de realização de
interrogatório e outros atos processuais por sistema de videoconferência.
Atualmente, o Código de Processo Penal trata expressamente da matéria. O § 1º do artigo
185 do Código de Processo Penal passou a regulamentar a matéria relativa ao interrogatório
de réu preso, afirmando que, em regra, será realizado, em sala própria, no estabelecimento
em que estiver recolhido, desde que estejam garantidas a segurança do juiz, do membro do
Ministério Público e dos auxiliares, bem como a presença do defensor e a publicidade do
ato. Portanto, a regra continuou sendo o interrogatório presencial, agora realizado no próprio
estabelecimento de reclusão, em sala apropriada.
Excepcionalmente, o interrogatório por videoconferência do réu preso passou a ser
expressamente permitido, podendo ser realizado quando se fizer presente uma das hipóteses
do rol taxativo do § 2º do artigo 185 do Código de Processo Penal.
Lima (2019, p. 707)12afirma que “é indispensável que o juiz aponte sua necessidade,
apontando motivos concretos que justifiquem a realização excepcional da videoconferência”.
A motivação, in casu, é vinculada, na medida em que a própria lei elenca as hipóteses de
cabimento do ato, o que faz no § 2º do artigo 185 do Código de Processo Penal.
Presentes uma das finalidades previstas no § 2º do artigo 185 do Código de Processo
Penal, o órgão julgador poderá proceder ao interrogatório do réu por meio de videoconferência.
De outro lado, não sendo possível o interrogatório presencial em sala especial, no próprio
estabelecimento prisional (§ 1º do artigo 185 do CPP), tampouco sua realização por
videoconferência (§ 2º), o réu preso deverá ser requisitado para comparecer à sede do Juízo,
aí se realizando o ato (§ 3º do artigo 185 do CPP).

10
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ), 53 Turma, HC 76.046/SP, Rei. Min. Arnaldo Este-
ves Lima, DJ 28/05/2007 p. 380.
11
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF), 23 Turma, HC 88.914/SP, Rei. Min. Cezar Peluso,
DJe 117 04/10/2007.
12
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 7. ed. rev., ampl. e atual.
- Salvador: Ed. JusPodivm, 2019, p. 707.

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A tecnologização e a humanização do processo penal: a técnica do interrogatório por videoconferência analisada
Eduardo Resende Rapkivcz

4. O DIREITO DE PRESENÇA E A HUMANIZAÇÃO DO PROCESSO


PENAL
Na sociedade hodierna, a velocidade é, sem qualquer dúvida, um valor. Lopes Junior e
Paiva (2015, p. 18)13 colocam que nesse cenário surge a técnica dos atos processuais levados
a efeito por meio de videoconferência, que, além de agregar velocidade e imagem e reduzir
custos, também permite um “(ainda) maior afastamento dos atores envolvidos no ritual
judiciário, especialmente do juiz”.
Nesse contexto, importante discorrer acerca do direito de presença, uma das expressões
da ampla defesa, a fim de se averiguar se a técnica da videoconferência a ofende.
A doutrina assenta que a ampla defesa se divide em (i) defesa técnica ou processual,
desenvolvida por profissional habilitado; e (ii) autodefesa, defesa material, realizada pelo
sujeito que se encontra sob a investigação do Estado (TÁVORA, 2017, p. 77)14.
A autodefesa encontra-se no âmbito da discricionaridade do réu, que, optando por
exercê-la ou não, representa atuações ou omissões do réu no sentido de resistir pessoalmente
à pretensão estatal (LOPES JÚNIOR, 2019, p. 11415). Como expressão, tem-se o direito ao
silêncio, previsto no artigo 5º, LXIII, da Constituição Federal.
A autodefesa ainda comporta subdivisão, abarcando o direito de audiência, “oportunidade
de influir na defesa por intermédio do interrogatório”, e o direito de presença, “consistente na
possibilidade de o réu tomar posição, a todo momento, sobre o material produzido, sendo-lhe
garantida a imediação com o defensor, o juiz e as provas” (TÁVORA, 2017, p. 77)16.
Por meio da autodefesa, portanto, assegura-se ao acusado o direito fundamental de
presenciar e participar da instrução processual.
Nesse contexto, o direito de presença impõe que ao réu seja facultado o direito de falar
na presença de um juiz, de olhá-lo nos olhos, ao que Lopes Júnior e Paiva dão o nome de
“garantia de ter um juiz” (2015, p. 18)17.
O trato humano, o toque, o olhar, a simples presença física, em síntese, a imediação,
todos esses fatores dão ao réu a certeza de que o processo penal é, ao menos, humanizado.
Em via contrária, a virtualização do interrogatório, nas palavras críticas Lopes Júnior e

13
LOPES JR., Aury; PAIVA, Caio. Audiência de Custódia e a Imediata Apresentação do Pre-
so ao Juiz: rumo a evolução civilizatória do processo penal. 2014. Disponível em http://hdl.handle.
net/10923/11257.Acesso em 09/02/2020.
14
TÁVORA, NESTOR. Curso de direito processual penal. 12. ed. rev. e atual. Salvador: Ed. Jus-
Podivm. 2017, p. 77.
15
LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 16. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p.
114.
16
TÁVORA, NESTOR. Op. cit. 2017, p. 77.
17
LOPES JR., Aury; PAIVA, Caio. Audiência de Custódia e a Imediata Apresentação do Pre-
so ao Juiz: rumo a evolução civilizatória do processo penal. 2014. Disponível em http://hdl.handle.
net/10923/11257, p. 18.Acesso em 09/02/2020.

— 152 —
A tecnologização e a humanização do processo penal: a técnica do interrogatório por videoconferência analisada
Eduardo Resende Rapkivcz

Paiva (2015, p. 19)18, promove um distanciamento que concorre a uma “desumanização” do


processo penal. Para os autores, o nível de indiferença é crescente quando existência uma
distância física entre os atores processuais, i. e., juiz e réu.
Então, o direito de presença representa para o réu, além de desdobramento e expressão
da ampla defesa, a garantia da humanização do processo penal.

5. O INTERROGATÓRIO POR VIDEOCONFERÊNCIA E O DIREITO DE


PRESENÇA: VIOLAÇÃO OU CONSAGRAÇÃO DE DIREITOS?
Ao dispor a respeito da temática, o Código de Processo Penal mantém a regra de que
o interrogatório do réu preso é presencial, a ser realizado em sala especialmente designada
no estabelecimento prisional em que está segregado. Apenas excepcionalmente, quando
presentes as finalidades expostas no § 2º do artigo 185 do Código Processual Penal, é que o
interrogatório se dará por meio virtual.
Esta ordem de preferência parece guardar um mínimo de importância ao direito de
presença.
No entanto, tal ordem de preferência ainda não se revela suficiente ao direito de presença,
ao passo em que a própria legislação permite que ele seja afastado. A doutrina, nesse contexto,
aponta que “graves inconvenientes são as fórmulas abertas, vagas e imprecisas, utilizadas
pelo legislador nos incisos do § 2º do art. 185 para definir os casos em que a oitiva por
videoconferência estaria justificada” (LOPES JR., 2019, p. 555)19.
Expressões como “risco à segurança pública”, “relevante dificuldade” e “gravíssima
questão de ordem pública”, por revelarem-se expressões vazias de sentido, abrem espaço para
o decisionismo, para uma abusiva discricionariedade judicial. “Serão, portanto, aquilo que o
juiz quiser que sejam” (LOPES JR., 2019, p. 55520).
Ao se permitir que o interrogatório seja feito mediante a utilização de videoconferência,
os defensores da ideia levantam como argumento a promoção de celeridade e de economia ao
procedimento judicial. No entanto, tais discursos, ao enfatizarem a necessidade de economia
e celeridade, colocam em risco direitos e garantias fundamentais.
Não há se confundir celeridade com razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII,
da Constituição Federal). Por esta se entende que o processo deverá estender-se pelo
mínimo de tempo razoável para uma segura resolução do litígio. Nesta linha, o STJ21 possui
claro entendimento de que a aferição quanto à duração do processo deve ser feita à luz da

18
LOPES JR., Aury; PAIVA, Caio. Op. Cit., p. 19.
19
LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 16. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 555.
20
LOPES JR., Aury. Op. cit., p. 555.
21
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). RHC: 95017 CE 2018/0035037-5, Relator: Mi-
nistro Nefi Cordeiro, Data de Julgamento: 05/06/2018, Sexta Turma, Data de Publicação: DJe 11/06/2018,
grifos adicionados ao original.

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A tecnologização e a humanização do processo penal: a técnica do interrogatório por videoconferência analisada
Eduardo Resende Rapkivcz

razoabilidade e da proporcionalidade, não havendo uma forma meramente aritmética pré-


concebida.
A razoabilidade da duração do processo guarda estrita relação com as particularidades da
questão fática subsumida, com as partes e, até mesmo, com o Juízo competente.
Outro fator que se revela problemático diz respeito à previsão do § 5º do artigo 185 do
Código de Processo Penal. O dispositivo cria a entrevista prévia e reservada entre o réu e seu
defensor, também por videoconferência, através de canais telefônicos reservados. A doutrina,
porém, questiona como se confiará caráter reservado a essa comunicação: “Como confiar
no caráter “reservado” dessa comunicação? Com a banalização das escutas telefônicas, não
existe a menor possibilidade de confiar na “bondade dos bons” (LOPES JR, 2019, p. 556)22.
Em sentido contrário, Lima (2019, p. 710)23 aduz que a realização do interrogatório
por videoconferência “não atende somente aos objetivos de agilização, economia e
desburocratização da justiça. Atende também à segurança da sociedade, do magistrado, do
membro do Ministério Público, dos defensores, dos presos, das testemunhas e das vítimas”,
motivos que, para ao autor, dão à técnica a certeza de constitucionalidade.
No entanto, sob o pretexto de se criarem procedimentos mais acelerados, não se pode
esquecer de que o tempo do direito sempre será outro, por uma questão de garantia (LOPES
JR., 2019, p. 3724). De outro norte, não se pode fomentar uma paranoia estatal em seu rol
de garante infalível da segurança universal, com medidas extirpadoras a priori de direitos
fundamentais (ROIG, 2018, s.p.)25.
A razoável duração do processo (artigo 5º, LXXVIII, da Constituição Federal) estabelece
destino contrário ao atropelo de direitos e garantias individuais. A aceleração, a agilização,
a economia e a desburocratização, por meio da inserção de novas tecnologias, devem ser
empregadas em outras vias, mas não como uma aceleração procedimental, sobretudo porque
esta atinge diretamente a função essencial do Poder Judiciário: a tutela jurisdicional.
Portanto, representando a presença física do réu à frente do órgão julgador importante
fator à formação de seu convencimento, não se concebe a utilização de interrogatório por
videoconferência como meio apto à salvaguarda do direito de presença, mas, ao contrário,
como verdadeira violação de direitos.

6. CONCLUSÃO

22
LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 16. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p.
556.
23
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 7. ed. rev., ampl. e atual.
- Salvador: Ed. JusPodivm, 2019, p. 710.
24
LOPES JR., AURY. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 5. ed. – São Paulo:
Saraiva Educação, 2019, p. 37.
25
ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução penal: teoria crítica. 4. ed. São Paulo: Saraiva Edu-
cação, 2018.

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A tecnologização e a humanização do processo penal: a técnica do interrogatório por videoconferência analisada
Eduardo Resende Rapkivcz

A utilização de técnicas processuais como o interrogatório por videoconferência toma


por base argumentos de ordem econômica. De um sopesamento entre a economia processual
e os direitos e garantias fundamentais do réu, certamente a proteção estatal deveria recair
sobre estes.
A virtualização do procedimento, e a distância daí advinda, contribui para a desumanização
do processo penal. É no interrogatório que o juiz sente a presença do réu, percebe os seus
gestos, suas atitudes; é o ato que impede a indiferença de imperar, impedindo que se afaste
(ainda mais) o julgador do julgado.
A telessensação, o sentir e o tocar a distância não são suficientes.
Se o processo penal é o instrumento não só do qual se vale o Estado à aplicação de
sanções penais, mas, sobretudo, instrumento de defesa de direitos e garantias fundamentais,
a defesa, em sua plenitude, deve ser assegurada.
Pelo exposto, conclui-se que a utilização da técnica de audiência de interrogatório
realizada por videoconferência representa verdadeira violação de direitos fundamentais,
sobretudo do direito de presença do réu.

REFERÊNCIAS
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pág. 12.
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 7. ed. rev., ampl. e atual. -
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SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ), 53 Turma, HC 76.046/SP, Rei. Min. Arnaldo Esteves
Lima, DJ 28/05/2007 p. 380.

— 155 —
A tecnologização e a humanização do processo penal: a técnica do interrogatório por videoconferência analisada
Eduardo Resende Rapkivcz

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). RHC: 95017 CE 2018/0035037-5, Relator: Ministro


Nefi Cordeiro, Data de Julgamento: 05/06/2018, Sexta Turma, Data de Publicação: DJe
11/06/2018, grifos adicionados ao original.
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TÁVORA, NESTOR. Curso de direito processual penal. 12. ed. rev. e atual. Salvador: Ed. JusPodivm.
2017, p. 77.

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Una trust machine
para la financiación de la democracia:
el uso de distributed ledge technologiespara la
gobernanza de las cuentas electorales

Marcelo Eugênio Feitosa Almeida1

Resumen: Los sistemas democráticos de los países iberoamericanos están bajo un fuerte desencanto
por parte de la ciudadanía, a raíz de los escándalos de corrupción política y del gradual alejamiento entre
los partidos y ciudadanos, aquellos cada vez más inmersos en una espiral de opacidad y desconformidad. La
degradación es aún más grave en el tema de la financiación de los partidos y de las campañas electorales.
Independientemente del modelo adoptado, es decir, público, privado o mixto, se trata de una cuestión
a menudo asociada a fraudes, corrupción y apropiación indebida de recursos públicos. El rescate de la
confianza en el sistema político empieza con medidas que perfeccionen la gobernanza en los procesos
democráticos, especialmente con respecto a sus finanzas, es decir, las relaciones entre donadores y
partidos, partidos y proveedores, fuentes de ingresos de los partidos y cómo los gastan. Las distributed
ledge technologies (DLT)proporcionan algunas interesantes soluciones para perfeccionar la gobernanza
de las cuentas electorales, pues pueden proveer un sistema que refleje electrónicamente las transacciones
que involucran la acción política-partidaria. Precisamente esas transacciones, que suelen ser conocidas
solo después de las elecciones con los informes de rendición de cuentas, pueden ser acompañadas por la
ciudadanía en tiempo real, de donde quieran. Así, propondremos, en este trabajo, el uso de las DLT para
perfeccionar la gobernanza y el escrutinio público sobre las finanzas político-electorales.
Palabras clave: Corrupción; Financiación política; Partidos; Transparencia; Blockchain.

Abstract: The Iberoamerican’s democratic systems are under a strong disenchantment by the citizens,
in reason for the scandals of political corruption and the gradual distance between parties and citizens, those
increasingly immersed in a spiral of opacity and nonconformity. The degradation is even more serious
on the issue of financing party and election campaigns. Regardless of the model adopted, public, private


1
Abogado dela Nación (Brasil), doctorando en “Estado de Derecho y Gobernanza Global” en la
Universidad de Salamanca, visitingresearcher en el Centro de Estudios Sociales de la Universidade de
Coimbra. E-mail: marcelo.almeida@usal.es

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Una trust machine para la financiación de la democracia
Marcelo Eugênio Feitosa Almeida

or mixed, it is an issue often associated with fraud, corruption and misappropriation of public resources.
The rescue of trust in the political system begins with measures that improve governance in democratic
processes, especially about political finance, the relationships between donors and parties, parties and
suppliers, party incomes and how they spend them. “Distributed ledge technologies” (DLT) provide some
interesting aproaches to improve the governance of electoral accounts, as they can provide a system that
acts as a electronically mirror of the real transactions that involve political-party action. Precisely, those
transactions, which are usually known only after the elections, with the accountability reports, can be
accompanied by citizens in real time, wherever they want. Thus, we will propose in this work the use of
DLT to improve governance and public scrutiny on political-electoral finance.
Keywords: Corruption; Political financing; Parties; Transparency; Blockchain.

INTRODUCCIÓN
No es especulativo pensar que países con distintas tradiciones políticas, como Argentina,
Brasil, Perú y España2, tras años de graves escándalos de corrupción política, comparten la
misma sensación de aversión a los partidos políticos, que se extiende y contamina también las
creencias de sus ciudadanías en los procesos democráticos.
Sin embargo, más allá del macro factor de la corrupción política, otros micro factores
asociados también nutren esa grave crisis de confianza. Muchos autores, y aquí citamos
Ferrajoli3, Gibert, Gunther y Linz4, relacionan la crisis de confianza en los partidos con sus
deficiencias de gobernanza interna, es decir, la opacidad en sus procesos internos de toma de
decisiones y la incapacidad de actuar de acuerdo con los marcos legales que se les imponen.
Ese tema se convierte en algo aún más complejo y grave cuando se analiza el tema de los
gastos para la acción política-electoral, es decir, el flujo de dinero público y privado para
la financiación de partidos y campañas, y los riesgos asociados de corrupción política y de
malversación de la financiación pública.
De igual modo, muchos autores proponen soluciones variadas al tema del control y
rendición de cuentas de la financiación de la política, y aquí proponemos una que estimamos que
sea, de cara al futuro, replicable en distintos escenarios y contextos políticos para enfrentarse
eficazmente la cuestión de la desconfianza en la política y en los procesos democráticos.
El semanario británico The Economist, en su edición del 31 de octubre de 20155, trató de
desmitificar una –entonces– nueva tecnología, llamándola de «the trust machine», es decir,
«la máquina de confianza». Esa tecnología, las «distributed ledger technology»  (DLT), o
«Libro de Registro de Transacciones Distribuido», y su especie más adulada por su uso en la
gestión de criptomonedas, la blockchain, ya no tan novedosa, pero aún llena de expectativas
y posibilidades, podría ser pensada como una tecnología institucional capaz de cambiar

2
Máxime con los casos Odebrecht y el caso Gürthel.
3
FERRAJOLI, Luigi; BIANCHINI, Alice; GOMES, Luis Flávio. Poderes selvagens. São Paulo:
Editora Saraiva, 2014, pp. 27-33.
4
GIBERT, José Ramón Montero; GUNTHER, Richard; LINZ, Juan José (Ed.). Partidos políticos:
viejos conceptos y nuevos retos. Madrid: Ed. Trotta, 2007, pp. 243-245.
5
The Economist. The trust machine. Disponible en: https://www.economist.com/leaders/2015/10/31/
the-trust-machine. Acceso en 05/02/2020.

— 158 —
Una trust machine para la financiación de la democracia
Marcelo Eugênio Feitosa Almeida

ese estado de cosas arriba planteado. En otras palabras, podría ser vista como un aparato
tecnológico capaz de “industrializar la confianza”6 y actuar sobre los micro factores que
generan la crisis de confianza mencionada en los párrafos anteriores.
En esencia, una DLTes un libro de registros de transacciones compartido públicamente y
confiable, donde todos los involucrados en las transacciones pueden incluir datos, bajo los ojos
de todos que quieran conocer el movimiento de esos registros, seguirlos e inspeccionarlos,
pero nadie lo controla. Los participantes en un sistema DLT mantienen colectivamente
actualizado el «libro de registros» que, a su vez, solo se puede modificar de acuerdo con
reglas estrictas.7
Una vez problematizada la cuestión que nos mueve, el propósito de este trabajo, que
también implica su justificación, es proponer el uso de DLTpara perfeccionar la gobernanza
sobre uno de los temas más sensibles de las democracias modernas: el flujo del dinero en la
política.
Para tanto, empezaremos mejor comprendiendo los micro factores que contribuyen a la
crisis de confianza en los partidos, asociados a la financiación de la política. A continuación,
analizaremos cómo las DLT8, específicamente una blockchain, puede actuar sobre esos factores
y, por consiguiente, impactar la crisis de confianza. Finalmente, abordaremos las ventajas y
posibles estrategias de implantación de esas soluciones tecnológicas en los sistemas políticos-
electorales.

1. FINANCIACIÓN DE LA POLÍTICA Y CRISIS DE CONFIANZA EN LAS


INSTITUCIONES DEMOCRÁTICAS
Robert Williams9 sostiene que, independientemente del sistema político, existe un
problema común que es esencial para comprender el concepto de corrupción política: ¿cómo
encontrar recursos suficientes para financiar la acción política? Los casos de corrupción
que han asombrado a los países iberoamericanos en los últimos años, en sistemas con
diferentes modelos de financiación de la democracia (pública, privada y mixta), demuestran
que los partidos han optado por el camino de la opacidad en lugar de la transparencia, y de
la no conformidad en lugar de la integridad, alineándose con captores políticos que usan
ilegítimamente los partidos como base de acceso al poder.
La tipología de violaciones en la financiación de la política es muy variada. Hay
donaciones lícitas que, en verdad, son quid pro quo, es decir, un soborno anticipado para que
el candidato vencedor retorne la donación mediante ventajas concretas. Existen donaciones
ilícitas que desequilibran la igualdad de oportunidades electorales, también a cambio de

6
BERG, Chris; DAVIDSON, Sinclair; POTTS, Jason. Blockchains industrialise trust. Disponible
en SSRN 3074070, 2017.
7
REIJERS, Wessel; O’BROLCHÁIN, Fiachra; HAYNES, Paul. Governance in blockchain tech-
nologies & social contract theories. Ledger, v. 1, p. 134-151, 2016, pp. 139-140.
8
Son los ejemplos más conocidos de DLT las blockchain, hashgraph, dag y holochain
9
WILLIAMS, Robert (Ed.). Party finance and political corruption. Basingstoke: Macmillan Press,
2000, p. 31.

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Una trust machine para la financiación de la democracia
Marcelo Eugênio Feitosa Almeida

ventajas. Encontramos, además, la apropiación ilícita de recursos de la financiación pública


por directivos partidistas y/o candidatos. Aparece, asimismo, desvío de recursos de la
financiación pública específicamente destinados a fomentar la participación política de grupos
definidos (mujeres, pueblos originarios, jóvenes, etc.) en favor de candidaturas ajenas a los
propósitos del recurso o simplemente para enriquecer ilícitamente a directivos y/o candidatos.
Hallamos violaciones perpetradas bajo las órdenes de la cumbre partidista; otras hechas por
los candidatos a las espaldas de los partidos. Hay, otrosí, violaciones hechas por donadores
que benefician candidaturas, pero sin la participación de ellas. Aun existen fraudes en los
recursos de la financiación pública mediante confabulaciones entre proveedores y partidos
y/o políticos. Y, finalmente, violaciones consumadas por proveedores de partidos/campañas
que simplemente reciben recursos y no entregan los bienes o servicios contratados, tema aún
más grave cuando se trata de recursos originarios de la financiación pública.
La crisis de confianza, por ende, tiene relación con la gobernanza intrapartidista, que,
infaliblemente, se refleja en la gobernanza de los procesos democrático. La opacidad en los
procesos partidistas internos y la opción de algunos partidos en, deliberadamente, violar
los marcos jurídicos que regulan sus conductas, en especial aquellos destinados a controlar
la financiación de la acción política, son los micro factores que actúan fuertemente en la
deformidad de la confianza ciudadana.
¿Cómo esa desconfianza relacionada con la financiación política puede ser vencida? De
acuerdo al concepto teórico de “confianza” de Claus Offe10, aplicada a las relaciones entre
ciudadanos y partidos, el ciudadano (el creyente) necesita desarrollar una evaluación intuitiva
de la probabilidad de que los partidos (en quien se cree) cumplan sus expectativas (lo que se
cree) y de la manera que esperábamos (como se cree).
Así que el enfoque para cambiar el estado de desconfianza, al que contribuye la financiación
de la política, es poner luces en las conductas de los partidos y tornarlas previsibles a los ojos
de la ciudadanía. En otras palabras, es convertir las transacciones financieras asociadas a la
acción política, que sufren un alto grado de desconfianza por ser fuente de corrupción política
o enriquecimiento, en actos visibles, comprensibles y previsibles, es decir, que la ciudadanía
pueda prever y evaluar positivamente la conduta de los involucrados en estas transacciones:
los directivos, los partidos, sus donantes y sus proveedores.
Sabemos que, hoy, ya existe una obligación de los partidos de rendir cuentas electorales,
sin embargo, aunque las nuevas tecnologías han sido importantes aliadas de los órganos de
control para verificar la conformidad de esas cuentas, el examen todavía, en muchos casos,
se limita a una revisión, aunque electrónica, meramente aritmética de los ingresos y gastos,
apoyada por el cotejo de documentos de transacciones financieras presentadas por los proprios
partidos en sus informes de rendiciones de cuentas. Y lo peor es que el análisis se realiza
muchos meses después del sufragio, lo que impide que la ciudadanía forme convicciones con
respecto a esas transacciones financieras mientras transcurre la elección.
Así que, en este trabajo, planteamos la superación del actual modelo de autoridad
electoral centralizada, estatal y monopolista del control las cuentas electorales, por un modelo


10
OFFE, Claus. How can we trust our fellow citizens. Democracy and trust, v. 52, p. 42-87, 1999, p 54.

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Una trust machine para la financiación de la democracia
Marcelo Eugênio Feitosa Almeida

de convivencia con una autoridad electoral descentralizada y pública, es decir, formada por
ciudadanos, entidades de la sociedad civil organizada y medios de comunicación que podrán
ver no las cuentas electorales presentadas por los partidos meses después del sufragio, sino
todas las transacciones relacionadas a su acción política-electoral, con confiabilidad, en
tiempo real y mientras transcurre el proceso electoral.
El próximo capítulo se ocupará de tratar de ese nuevo modelo y su funcionamiento.

2. LAS DLT COMO NUEVO PARADIGMA DE GOBERNANZA DE LA


FINANCIACIÓN DE LA DEMOCRACIA
En el modelo actual de rendición de cuentas, aunque en muchos sistemas, como el
brasileño, ya se pueda conocer en tiempo real quiénes son los donadores privados y los
valores de la financiación pública repasados, las transacciones en general, es decir, todas las
recetas de los partidos/campañas (quién donó, cuánto donó cada uno, cuánto se gastó, con
qué se gastó, con quién se gastó) solo serán conocidas semanas o meses después del sufragio.
Además, esos datos están “vestidos”, son presentados por los partidos como les conviene y
son enviadas a una autoridad central, que suele ser un órgano público, que monopoliza el
análisis de las cuentas.
Ya habíamos anticipado la idea central que rige las DLT. Sin embargo, como se
ha dicho, las DLT son un género que abarca algunos tipos específicos de tecnologías de
registros descentralizados en red, entre ellos, la blockchain. La blockchain, como el propio
nombre insinúa, se constituye en una cadena de bloques donde cada uno es un registro de una
transacción, inmutable por una firma criptográfica llamada hash. La transacción siguiente,
relacionada con la anterior, se abre justo con este hash precedente, como un sello lacrado, y
así sucesivamente.11
Sin embargo, de hecho, ¿esta tecnología sería idónea para enfrentar los problemas
planteados? Y, en caso afirmativo, considerando que hay blockchains abiertas (todos pueden
ver y registrar transacciones), privadas (solo personas previamente autorizadas pueden ver
y registrar transacciones) y federadas (o híbridas, donde todos pueden ver las transacciones,
pero solamente personas previamente autorizadas pueden registrar negocios en la red),
específicamente ¿qué tipo de blockchain sería la más adecuada para garantizar una gobernanza
más eficiente de las cuentas electorales?
Para contestar a esas preguntas Catherine Mulligan12 desarrolló un flujo de cuestiones
que guía al interesado para, primero, saber se esa tecnología puede de hecho ayudarle en sus
necesidades y, caso positivo, qué tipo de blockchain sería más adecuada.
La primera pregunta de Mulligan es: ¿estás intentando eliminar intermediarios?13De
acuerdo con que estamos planteando, podemos decir que sí, pues hoy la consolidación de las

REIJERS, Wessel; O’BROLCHÁIN, Fiachra; HAYNES, Paul. Op cit., pp. 140.


11

MAULL, Roger et al. Distributed ledger technology: Applications and implications.  Strategic
12

Change, v. 26, n. 5, p. 481-489, 2017, p. 485-487.


13
MAULL, Roger et al. Op cit., p. 485.

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Una trust machine para la financiación de la democracia
Marcelo Eugênio Feitosa Almeida

cuentas partidistas es destinada no a la ciudadanía, sino a las administraciones electorales. De


ahí que se busca, sin eliminar el régimen de rendición de cuentas postelectorales, permitir a
la ciudadanía (y otros interesados) acceder directamente a los registros de las transacciones,
en tiempo real, sin la intermediación de los órganos oficiales.
La segunda pregunta de Mulligan es: ¿estás trabajando con activos digitales (versus
bienes físicos)14? A esa pregunta la contestamos que no, ya que las transacciones se dan «en
el mundo real» por activos físicos –dinero, bienes y servicios–y no en la blockchain, lo que
llevaría a la conclusión por la inadecuación del uso de la tecnología. Sin embargo, como se
ha dicho, lo que planteamos es un medio de hacer un seguimiento de las transacciones, de
acuerdo con sus registros, como un espejo electrónico de lo que está pasando en el mundo
real. Los registros se darían paralelamente a las transacciones en el mundo real por cada
responsable de la transacción (donadores, partidos, proveedores, etc.).
La tercera pregunta de Mulligan es: ¿puedes crear un registro autorizado permanente del
activo digital en cuestión?15 Aunque no se trate de registros de los activos de las transacciones,
pues estos se dan en el mundo real, como se ha dicho en el párrafo anterior, lo que se busca es
establecer un acceso público, y en tiempo real, de los registros de las transacciones, que reflejen
lo que pasa en la realidad, en el momento que ocurren y no solo después de las elecciones.
La cuarta pregunta de la autora es: ¿requieres transacciones rápidas (~milisegundos) de
alto rendimiento?16 Aunque un alto rendimiento es apreciable para que los donantes, partidos,
proveedores puedan registrar rápidamente sus transacciones y la ciudadanía pueda validarlas
también ágilmente, eso no es algo esencial. Aunque la blockchain es relativamente lenta para
validar esas cadenas de transacciones, hay otras DLT en desarrollo con promesas de mejor
rendimiento.
La quinta pregunta es:¿tienes la intención de almacenar grandes cantidades de datos
no transaccionales como parte de tu solución?17 Por supuesto. El propósito es acopiar todas
las transacciones de órganos públicos a partidos (financiación pública); partidos a órganos
públicos (devolución de financiación pública no ejecutada); donadores privados a partidos (las
donaciones privadas de cualquier naturaleza); partidos a donadores privados (devolución de
donaciones prohibidas o no ejecutadas); partidos a proveedores (pagos de bienes o servicios)
y proveedores a partidos (entrega de bienes y servicios). Aunque es una gran cantidad de
datos, hay blockchains que coordinan un volumen de datos aún mayor, como las que registran
transacciones de criptomonedas. Como resultado, sí, es una tecnología capaz de retener el
volumen de datos relacionados a transacciones financieras electorales.
Superadas las preguntas hasta aquí, el flow de Mulligan indica que la blockchain es una
tecnología adecuada a lo que aquí se propone. A continuación, las próximas preguntas están
dirigidas a identificar cuál es el tipo más indicado de blockchain. Aquí importan las siguientes
preguntas: ¿requieres compartir acceso de escritura?18La contestamos positivamente, pues

14
Ibid., p. 486.
15
Ibid., p. 486.
16
Ibid., p. 486.
17
Ibid., p. 486.
18
Ibid., p. 486.

— 162 —
Una trust machine para la financiación de la democracia
Marcelo Eugênio Feitosa Almeida

hay un sinfín de partidos, donadores y proveedores que necesitan de acceso para registrar sus
transacciones. Siguiendo Mulligan: ¿Los contribuyentes se conocen y confían entre sí?19La
respuesta a Mulligan para el caso planteado es no, no hay ese tipo de relación entre los
involucrados, lo que lleva a las preguntas siguientes. ¿Necesitas poder controlar funcionalidad?
¿Deben las transacciones ser públicas?20 Positivo para ambas cuestiones, luego, el Flow de
Mulligan define, para la situación planteada, una blockchain híbrida como la más indicada21.
La blockchain híbrida es el tipo de cadena que permite acceso y validación públicos, es decir,
por todos los que quieran conocer los registros de las transacciones, mientras que una autoridad
central controla la inserción de nuevos registros solo por agentes por ella autorizados, en el
caso, los donadores, partidos y proveedores.
Ahora bien, ya sabiendo que una blockchain híbrida es la más adecuada, pues, de acuerdo
con el Flow de Mulligan, es la única capaz de permitir un acceso público a las transacciones
electorales hechas y registradas por agentes autorizados a incluir nuevos registros de negocios,
todo bajo el control de la autoridad electoral, ¿cómo de hecho funcionaria para una mejor
gobernanza de las cuentas electorales?
El control de las cuentas electorales por medio de una blockchain híbrida, por lo tanto,
proporcionaría una plataforma de coordinación de esas transacciones, donde se registra su
origen, su valor, su destino y el bien o servicio contratado en cadenas relacionadas entre sí e
inquebrantables, por medio de los hashes, que hacen uso de criptografía.22
Los registros son realizados por los involucrados en las transacciones, es decir, órganos
responsables de la financiación pública cuando repasan esos valores; donadores privados
cuando hacen las aportaciones; los partidos cuando reciben financiación pública, privada
o cuando realizan pagos de bienes y servicios relacionados a campañas electorales; los
proveedores cuando reciben los pagos por bienes y servicios relacionados a campañas y
cuando se los entregan. Cada registro, como se ha dicho, se queda de manera inmutable,
como un eslabón de una cadena.
Ya se ha dicho, pero es muy importante subrayar que los bloques no son las transacciones
en sí, que se operan normalmente en el mundo físico (e. g., las donaciones o los pagos por
servicios son hechos por transferencias bancarias), sino registros de esas transacciones, que
se describen detalladamente. Así, por cada transacción que se ha realizado en el «mundo real»
se hace un registro detallado en la blockchain, reflejándola electrónicamente. Esa cadena de
transacciones en la blockchain puede ser validada por los documentos que corresponden a
las respectivas transacciones física, lo que garantiza rastreabilidad, pistas de auditoría y otras
ventajas que trataremos adelante.
En una blockchain híbrida, destinada a la gobernanza de las finanzas políticas,
idealmente, la autoridad electoral constituiría la cadena y sería su autoridad central. Los
demás participantes autorizados para incluir registros de transacciones serían los partidos, los
individuos donadores y empresas o personas físicas que suministren bienes o servicios a los

19
Ibid., p. 486.
20
Ibid., p. 486.
21
Ibid., p. 487.
22
REIJERS, Wessel; O’BROLCHÁIN, Fiachra; HAYNES, Paul. Op cit., pp. 141.

— 163 —
Una trust machine para la financiación de la democracia
Marcelo Eugênio Feitosa Almeida

partidos y/o campañas electorales. Estos agentes formalizarían, junto a la autoridad central,
su acceso a la cadena por medio de una certificación digital que le identificara y le permitiera
incluir nuevos bloques a la cadena. La ciudadanía, a su vez, podría acceder libremente a la
cadena, con amplia visión de todos sus bloques, permitiéndose validar las transacciones,
hacer búsquedas por valores, por donadores, por partidos, mezclar criterios de búsqueda, es
decir, por medio de un sistema de búsqueda poliédrico que se permita editarla como quiera.
Conviene subrayar, también, que los registros de las transacciones en una blockchain
híbrida oficial no debe remplazar el modelo actual de rendición de cuentas postelectorales
(aunque puede ser perfeccionado). Nuestra propuesta es la convivencia de los análisis de las
rendiciones de cuentas por las autoridades electorales en conjunto al seguimiento ciudadano,
on line y real time, de las transacciones financieras relacionadas con la acción política-
electoral mientras se desarrolla el procedimiento democrático.

CONCLUSIONES
Los partidos y los sistemas políticos están envueltos en una grave crisis de confianza, en
la cual concurren la corrupción política y, entre muchos otros factores, la opacidad en el seno
de los partidos y su resistencia a cumplir con los marcos jurídico-regulatorios, sobre todo en
relación a la financiación de sus actividades.
El uso de la blockchain, como se ha planteado, representaría la superación del
monopolístico, viejo y cansado modelo de rendición de cuentas estatal-oficial, aritmético
y postelectoral por un modelo de seguimiento online, realtime y público-ciudadano de las
transacciones que involucran la acción política. Los ciudadanos sabrían, en tiempo real y con
fácil acceso, cómo los partidos se financiaron y con qué y con quién gastaron ese dinero.
Además, en términos de prevención de la corrupción y de fraudes con recursos de la
financiación pública, sería posible, mientras transcurre el periodo electoral, configurar
sistemas de alerta temprana de corrupción, desde el cruce de datos de los proveedores de
campañas que están en bancos de datos oficiales (tributarios, patrimoniales, societarios, etc.)
y las informaciones de la blockchain que está operando en el periodo electoral.
Hay, además, con la formación de una gran base de datos relacionada a las finanzas
políticas, ventajas relacionadas a I+D+i23 en diversas ramas del conocimiento que se ocupan
de estudiar los procesos democráticos desde distintos ángulos, como la Ciencia Política, la
Filosofía Política, el Derecho Constitucional, el Derecho Electoral, etc.
En conclusión, como ha apuntado la revista The Economist en 2015, la blockchain no
ha supuesto una innovación por su uso en la gestión de las monedas digitales, sino como la
máquina de confianza que las acuña y que además puede hacer transparentes las finanzas
políticas, convertirlas en algo previsible y, así, contribuir al rescate de la confianza del sistema
democrático.

23
Expresión de largo uso en el contexto de los estudios de ciencia, tecnología y sociedad, que signi-
fica Investigación, desarrollo e innovación.

— 164 —
Una trust machine para la financiación de la democracia
Marcelo Eugênio Feitosa Almeida

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— 165 —
O desafio do direito de autor
face à tecnologia no contexto atual

Leonardo Foeppel de Oliveira1

Resumo: O presente artigo tem como objetivo apresentar uma reflexão acerca do Direito de Autor no
contexto atual de globalização e de era digital. O estudo assenta naquilo que essencialmente representa o
Direito de Autor, enquanto Direito Fundamental, relembrando a sua evolução, enfrentando as dificuldades
face à desmaterialização que vemos no mundo, as intervenções da União Europeia sobre o assunto e
possíveis soluções para que possamos combater os problemas surgidos com as novas tecnologias. Graças
à imprensa e à internet, o Direito de Autor consagra-se como um sub-ramo da Propriedade Intelectual
com vista a recompensar os autores e promover a criação dos mesmos, sendo, por isso, tão importante
para a nossa vida em sociedade, permitindo uma pluralidade de criação artística, proporcionando acesso
à cultura e a outras dimensões do mundo em que vivemos. Assim, através de um estudo que tem por base
a doutrina portuguesa, respaldando-se do sistema espanhol e inglês, chegamos à conclusão de que num
mundo de desmaterialização em que nos encontramos hoje, é de supra importância a manutenção desse
direito, cabendo a nós promover a sua adaptação àquela que é a realidade da era digital, garantindo aos
criadores de conteúdo uma proteção efetiva para as suas obras e a propagação das mesmas.
Palavras-chave: Direito de Autor; Era Digital; Propriedade Intelectual; Comissão Europeia; Direitos
Fundamentais.

Abstract: The article aims to present a reflection on Copyright in the current context of globalization
and also in the digital age. The study is based on what essentially represents Copyright, as a fundamental
right, recalling its evolution, facing the difficulties in view of the dematerialization that we see in the world,
with the European Union’s role in the matter and possible solutions to the problems with new technologies.
Due to the press and the internet, Copyright is consecrated as a sub-branch of Intellectual Property in order
to reward authors and promote their creation, which is why it is so important for our life in society, allowing
a plurality of artistic creation, providing access to culture and other dimensions of the world that we live
in. Thus, through a study that is based on Portuguese doctrine, the practice of the Spanish and English

1
Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito e Ciência Política da Universidade Lusófona do
Porto. Mestrando em Ciências Jurídico-Políticas na Faculdade de Direito da Universidade do Porto. E-mail:
leonardofoeppel@gmail.com.

— 166 —
O desafio do direito de autor face à tecnologia no contexto atual
Leonardo Foeppel de Oliveira

system, we come to the conclusion of the number of dematerialization in the world that is found today, the
maintenance of this right is of paramount importance. What is up to us, it to promote their adaptation to
what is the reality of the digital age, the guaranteeing content creators an effective protection for their works
and their propagation.
Keywords: Copyright; Digital Age; Intellectual Property; European Commission; Fundamental
Rights.

1. Introdução.
Pretende-se abordar com este estudo a problemática atinente ao sub-ramo da Propriedade
Intelectual, o Direito de Autor, na justa medida em que deparamo-nos cada vez mais com uma
era tecnológica de desmaterialização, chamando atenção para a preocupação e a necessidade
de proteção das obras artísticas criadas pelos autores, que tão arduamente trabalharam para
dividir o seu trabalho conosco.
No decorrer desse estudo, foi-se entendendo que o mundo do Direito de Autor está em
crise. Esta afirmação assume importância atual, uma vez que deparamo-nos cada vez mais
com smartphones, ­e-books, websites, ­e-papers, e-articles, downloads e uploads, e muitos
outros, onde, através desses mecanismos, a população em geral possui uma facilidade de
acesso cada vez mais acentuada às obras artísticas e de variados ramos, em que os autores
veem-se prejudicados pela eventual falta de reconhecimento e remuneração.
Com o objetivo de demonstrar a importância da salvaguarda do Direito de Autor, o
estudo faz-se através de pesquisas com base no ordenamento jurídico e doutrina portuguesa,
com alguma referência à doutrina estrangeira, fazendo-se eventual alusão aos mecanismos
que a União Europeia tem vindo a adotar face a essa circunstância de preocupação para com
o direito em causa.
Para tanto, no decorrer do estudo será feita uma alusão à evolução histórica do direito
tratado, seguindo-se para uma breve contextualização jurídica da figura do “autor” e da
“obra”, cuja menção é feita sistematicamente ao longo dessa dissertação. Seguidamente, é feita
a colocação das problemáticas que enfrentamos acerca desse direito e as possíveis soluções
quanto aos conflitos que se vêm mostrando serem mais recorrentes nessa temática, explorando
posteriormente um pouco daquilo que a União Europeia vem estado a debater nos últimos
tempos como força de combate à violação do Direito de Autor. Por fim, exponho aquilo que
considero ser um tópico de reflexão sobre o tema abordado ao longo do estudo, buscando querer
mostrar a importância da preservação desse direito, além da importância do mesmo.
Assim sendo, algumas das problemáticas prendem-se com o fato de o Direito de Autor
permanecer imutável face aos desenvolvimentos ao nosso redor, a continuidade da sua regulação,
à sua limitação territorial e a incoerência jurídica dos tribunais acerca dessa matéria.

2. Evolução História.
Ao longo dessa análise vemos uma drástica passagem daquele que é considerado o
mundo analógico – o mundo material, o mundo do apalpável – para o mundo digital – o

— 167 —
O desafio do direito de autor face à tecnologia no contexto atual
Leonardo Foeppel de Oliveira

mundo da desmaterialização, o mundo do imediato –, implicando uma substancial mudança


no Direito em geral.
O Direito de Autor surge aquando de um período de (r)evolução, nomeadamente a nível
tecnológico. Assertivamente, graças à Johannes Gutenberg – criador da imprensa – surge
aquilo que denominado por Direito de Autor, ainda numa versão mais crua e sem evoluções
consideráveis. Constata-se um período em que se sentia a necessidade por parte dos criadores
de conteúdo que as suas obras fossem protegidas, ou ao menos reconhecidas e asseguradas
juridicamente, isto porque a impressa permitiu alargar o acesso às obras literárias e artísticas
de uma forma muito mais abrangente. Assim, surgiu a necessidade de proteger a cópia (alusão
expressa à expressão inglesa “copyright”)2.
Posteriormente, no século XX, constatou-se uma plena necessidade de adaptação e
ajuste àquilo que seria uma das maiores evoluções já vistas: o Direito de Autor no contexto da
internet – um marco das nossas vidas que levou a um mundo desmaterializado, de que falava
supra. Nesse período de desmaterialização, a facilidade de acesso por parte da população às
obras e demais conteúdos suscetíveis de proteção em virtude do Direito de Autor cresceu
substancialmente, ficando à (curta) distância de um click. Assim, vemos a necessidade de
uma regulamentação mais assertiva, eficaz e ajustada aos tempos de hoje, tempos em que
cresce a suscetibilidade de violação do direito em causa. Mas a isso regressaremos adiante.
Com efeito, em 1710, foi promulgada uma lei em Inglaterra, sendo conhecida como
“Estatuto da Rainha Ana”, diploma esse que engajava no encorajamento da ciência e,
principalmente, pela garantia da propriedade dos livros impressos. Daí em diante, constatam-
se várias evoluções acerca desse direito, até a que atualmente está em vigor. Em Portugal, esse
direito veio a ser regulado pela primeira vez, e de forma muito suave, na Carta Constitucional
de 18263, sofrendo múltiplas alterações posteriormente.
Centrando-nos, por fim, no contexto digital4 – aquele que, por ora, nos toma mais atenção
–, o Direito de Autor teve a sua adaptação no contexto de vários tratados da Organização
Mundial de Propriedade Intelectual sobre Direito de Autor e sobre Prestações e Fonograma.
Além disso, a sua adaptação chegou às Convenções de Berna e de Roma, em 1996, a fim de
combinar esse direito com a evolução tecnológica que surgia nesse período. Nesses tratados,
vemos essencialmente uma preocupação: a proteção das obras no contexto online, visando
um acesso condicionado e a proteção das informações sobre as mesmas.

3. A figura do autor e a sua obra.


Antes de adentrarmos ao cerne da questão, uma figura esquecida dentro dessa matéria
consiste no próprio autor. A definição jurídica de autor prende-se com a de que consiste na

2
IGLÉSIAS, Filipa. Direito de autor: que futuro na era digital?. 1.ª ed. Lisboa: Guerra e Paz Edito-
res, 2016, pág. 37.
3
Para mais informações acerca da evolução histórica em Portugal, consultar: https://www.spauto-
res.pt/autores/direito-de-autor/historia-do-direito-de-autor
4
DIAS PEREIRA, Alexandre. Direito de autor: que futuro na era digital?. 1.ª ed. Lisboa: Guerra e
Paz Editores, 2016, pág. 22.

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O desafio do direito de autor face à tecnologia no contexto atual
Leonardo Foeppel de Oliveira

pessoa que cria a obra5. Por outro lado, existem excepções à própria pessoa do autor. Isto é,
poderá ser um desenhista que elabora o desenho sem a intenção de o fazer, mas porque o faz a
pedido de outrem. Ou, mais concretamente num contexto tecnológico, dá-se o caso de que já
é reconhecido pela lei que um computador possa ser o autor de uma obra. Isto acontecerá em
circunstâncias em que não se consegue identificar uma ou mais pessoas conforme a definição
supra. Nesses casos, nós vemos obras que são “geradas por computador”6, o que leva à válida
distinção entre “obras geradas por computador” e “obras auxiliadas por computador”. Em
todo o caso, é incerto quem será a pessoa do autor, mas de certo será aquele tido como a
pessoa que manuseia e controla o instrumento em causa.
Em relação à obra, esta é definida como seja um produto do empreendimento humano,
algo que advém do próprio autor e não simplesmente algo que surja da natureza7. Relevante
será mencionar que o Direito de Autor está ligado à preservação da genuinidade e integridade
da obra, no sentido em que o autor detém o direito de ser conhecido e reconhecido como tal,
de preservar a obra que realizou, além de ser o titular do destino da sua obra no comércio
jurídico, decidindo com este conteúdo a faculdade de divulgação ou retirada da obra8. É
de considerar que as criações artísticas, culturais e intelectuais, em geral, merecem um
reconhecimento acentuado e igual proteção, qualquer que seja o suporte em que se baseiam9.
Isto vem de encontro com o pensamento de que as obras que circulam pela Internet são um
bem jurídico e possuem valor económico, o que naturalmente leva a que o autor seja o único
detentor dos direitos de exploração e dos lucros da comercialização de suas obras10.

4. A(s) problemática(s) do Direito de Autor na conjuntura


da era digital.
Bastante discutido nos dias atuais, o Direito de Autor enfrenta múltiplas objeções acerca
da sua necessidade e perpetuidade, pelo que encontram-se problemáticas que, até agora,
podem ser debatidas e parcialmente respondidas. Assim, centrando-me nesse debate teórico e
tecnológico, procuro mostrar aqueles que são os pontos mais discutidos.
Uma das preocupações que hoje divide os estudiosos dessa área prende-se com o facto
de se perguntar se valerá a pena prosseguir com a regulamentação do Direito de Autor num
ambiente tão propício a sua não existência? Indo de encontro com o entendimento de Carlos

5
PHILLIPS, Jeremy. FIRTH, Alison. Introduction to Intellectual Property Law. 3.ª ed. Londres:
Butterworks & Co (Publishers), 1995, pág. 139.
6
Cfr. Copyright, Designs and Patentes Act 1988, s 178.
7
PHILLIPS, Jeremy. FIRTH, Alison. Introduction to Intellectual Property Law. 3.ª ed. Londres:
Butterworks & Co (Publishers), 1995, pág. 135.
8
SÁ E MELLO, Aberto. Manual de Direito de Autor e Direitos Conexos. 3.ª ed. Coimbra: Almedi-
na Editora, 2019, pág. 140.
9
SÁ E MELLO, Alberto. Manual de Direito de Autor e Direitos Conexos. 3.ª ed. Coimbra: Alme-
dina Editora, 2019, pág. 448.
10
M. MATA Y MARTÍN, Ricardo. M.ª JAVATO MARTÍN, Antonio. La propriedade intelectual em
la era digital: limites e infracciones a los derechos de autor em Internet. 1.ª ed. Madrid: La Ley, Fevereiro,
2011, pág. 341.

— 169 —
O desafio do direito de autor face à tecnologia no contexto atual
Leonardo Foeppel de Oliveira

Miguel Madureira, poderemos responder a esse questionamento relembrando a finalidade do


Direito de Autor: trata-se de um retorno económico aos autores, um rendimento justo pela
atividade criativa, visando uma melhor e maior proteção das suas obras, independentemente
da era em que se insira11. Por isso, entende-se que sim, há que investir num direito que assegura
e promove a liberdade de criação, espelhando-se numa liberdade individual do Homem a qual
deve ser incentivada e não restringida.
A isto acrescenta-se um princípio que imperativamente temos de ter em conta: a dignidade
da pessoa humana. Esse princípio acarreta o respeito pela liberdade individual, liberdade de
criação artística, liberdade de acesso à cultura, pelo que consiste como um dos fundamentos
implícitos da criação desse direito. Com isso, vemos que a proteção desse direito não afeta
apenas a esfera individual de um autor, de um utilizador ou de uma grande empresa do ramo
da tecnologia ou do ramo artístico, mas engloba uma esfera pública, sendo de pleno interesse
da sociedade proteger as liberdades inerentes ao Homem.
O mesmo autor elucida-nos de que, apesar de o motivo da continuidade de regulamentação
do Direito de Autor ser com base na remuneração que os autores têm por suas obras, é
necessária a existência de uma Gestão Coletiva para assegurar essa remuneração, entidade
essa que regula a cobrança dos direitos e a distribuição das obras artísticas em causa.
Assim sendo, vemos o papel de supra importância do Direito de Autor, defendido por
alguns, de que este deve prevalecer diante de um mundo desmaterializado e que possui
recursos para isso. Apesar disso, afigura-se-nos uma segunda problemática: deverá o Direito de
Autor permanecer imutável face aos avanços digitais que constantemente surgem? A resposta
parece-nos óbvia: não. Certo será afirmar que o Direito de Autor não pode e não deve ser
um direito estagnado no tempo, na medida em que deve ser aprimorado e deve acompanhar
a evolução da sociedade em que está inserido. José de Oliveira Ascensão12 afirma que as leis
que hoje vigoram não estão preparadas para acautelar eventuais situações envolvendo Direitos
de Autor, na justa medida em que o Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos13
português estaria na sua essência desajustado. Para solucionar esse problema, foi utilizado
recursos comunitários por parte da Comissão Europeia – nomeadamente a transposição de
Diretivas ao direito interno, assunto que iremos abordar mais adiante –, no sentido de criação
de diretivas de harmonização no domínio dos direitos de autor, que visam tratar das mais
diversas matérias que englobam o assunto. Deste modo, as regras que imperam hoje acerca
do Direito de Autor devem estar em consonância com a era digital, regras essas que espelham
a nossa nova realidade, a ubiquidade digital em que estamos inseridos. Devem, portanto,
proteger os titulares de direitos contra as diversas violações no campo tecnológico, recorrendo
a métodos práticos, fáceis e perceptíveis, a fim de implicar uma remuneração e distribuição
justa das obras.

11
MADUREIRA, Carlos Miguel. Direito de autor: que futuro na era digital?. 1.ª ed. Lisboa: Guerra
e Paz Editores, 2016, pág. 31.
12
ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito de Autor e Direitos Conexos. Coimbra: Coimbra Editora,
2012, pág. 483.
13
Cfr. Decreto-Lei 63/85, de 14 de Março de 1985, disponível em http://www.pgdlisboa.pt/.

— 170 —
O desafio do direito de autor face à tecnologia no contexto atual
Leonardo Foeppel de Oliveira

Outro tópico de suma importância consiste na limitação do Direito de Autor ao espaço


nacional14. De acordo com a doutrina portuguesa, o Direito de Autor deve ser um direito
circunscrito não apenas ao espaço nacional, mas, em contexto de globalização, deverá
estar em consonância com aquilo que acontece para além das fronteiras do direito interno.
A isso podemos fundamentar com o facto de que a violação desse direito poderá acarretar
implicações para mais do que um ordenamento jurídico diferente, sendo necessária a plena
cooperação entre os demais estados. Facilmente podemos ver casos de cibercrimes15 como
exemplificação, na justa medida em que a sua verificação passa a ser crescente em contexto
de era digital.
Pertinente ainda será abordar mais um ponto: em contrapartida a essa evolução que tão
ferozmente surge, deparamo-nos com uma situação de morosidade processual e desigualdade
no contexto judicial16. Os tribunais proferem decisões sobre o assunto que cada vez mais são
tidos como desiguais e incoerentes, uma vez que não existe uma jurisprudência uniforme na
matéria, consequência da falta de adaptação do Direito aos termos atuais. Isso naturalmente
leva a uma insegurança jurídica e à desproteção dos titulares das obras, abrindo as portas para
constantes violações do direito que aqui se discute. A falta de trabalhos árduos nessa matéria
leva a crítica da falha existente no contexto jurídico, uma vez que demonstra a dificuldade
de uma pronta ação do Direito quando deparado com algo para além da sua previsão. Assim,
devem os tribunais mobilizarem-se em vista a medir esforços para que essa situação seja
revertida, estando em preparo e encontrando coerência nas suas decisões judiciais.
Inúmeras são as preocupações que rondam o Direito de Autor face ao boom tecnológico
e as suas dificuldades de enfrentar a nova era, e, embora muitos pontos não referidos fiquem
no plano da dúvida, tratamos de um assunto cujo desfecho não é conhecido por estar em
constante mutação e evolução.

5. O papel da Comissão Europeia. Artigo 13.º da Diretiva


Europeia.
No âmbito da União Europeia também se discute as propriedades e o futuro do Direito de
Autor, na justa medida em que adotam mecanismos de regulamentação desse direito em sede
de era digital há tempos, mostrando que tem em consideração a importância desse direito a
nível de liberdade individual e, igualmente, a nível económico (o sector cultural implica cerca
de 4,2% do PIB comunitário17).

14
VERDELHO, Pedro. Direito de autor: que futuro na era digital?. 1.ª ed. Lisboa: Guerra e Paz
Editores, 2016, pág. 125.
15
Para mais informações, consultar a Convenção de Budapeste, disponível em: http://www.ministe-
riopublico.pt/instrumento/convencao-sobre-o-cibercrime-0.
16
OROZCO GONZÁLES, Magarita. Nuevos retos de los derechos de autor em la sociedade digital.
1.ª ed. Navarra: Editorial Aranzadi, 2019, pág. 114.
17
GUERRA, Vanda. Direito de autor: que futuro na era digital?. 1.ª ed. Lisboa: Guerra e Paz Edito-
res, 2016, pág. 136-137.

— 171 —
O desafio do direito de autor face à tecnologia no contexto atual
Leonardo Foeppel de Oliveira

Assim, vemos a fulcral importância da Comissão Europeia18, órgão de defesa dos


interesses gerais da União Europeia, na implementação de Diretivas (atos legislativos19) que
regulam matérias sobre Direito de Autor nas mais variadas áreas. Essas diretivas, uma vez
incorporada a nível nacional pelos Estados-membros da União, passam a vigorar como leis
nesses países.
Centrando-nos nos direitos autorais, vem-nos à colação a Diretiva 2001/29/CE,
relativamente à harmonização de certos aspectos do Direito de Autor e dos Direitos Conexos
na sociedade de informação. Essa Diretiva comunitária consiste num fio condutor aos demais
membros da União Europeia, com vista a uma harmonização da concorrência no mercado
interno, permitindo a prossecução de objetivos relativos ao Direito de Autor. O papel da
Comissão Europeia neste caso levaria a uma ingerência legislativa com vista a desobstruir
certos entraves no âmbito do comércio de bens e serviços, levando a regular vários pontos
tenentes ao Direito de Autor20. No caso português, essa diretiva de suma importância levaria ao
que consideramos ser uma alteração ao Código dos Direitos de Autor e dos Direitos Conexos,
uma vez que se trata daquilo que chamam na doutrina “lei pré-internet”.
Recentemente, em 2016, a Comissão Europeia anunciou o lançamento de um programa
de revisão do acervo comunitário do Direito de Autor, visando a reforma da Diretiva de
2001, relativamente aos limites e exceções. Em março de 2019, foi aprovada uma Diretiva
sobre Direitos de Autor no Mercado Único Digital, que leva o tempo de dois anos até o seu
reconhecimento efetivo como lei no Estado-membro.
Essa Diretiva levantou muitas polémicas, mais concretamente no que diz respeitos aos
artigos 11.º e 13.º do diploma21. Este, faz alusão à proteção das publicações por parte da
imprensa, no sentido de que haja um pagamento da partilha de links ou referências nessas
mesmas publicações. Aquele, prevê um mecanismo de controlo do material carregado nas
plataformas por parte dos utilizadores – configura-se como um grande problema, pois as
críticas apontam uma dificuldade acerca da distinção do que é legal do que não é legal.
Portanto, de acordo com este último artigo, as grandes plataformas, como as de vídeos, teriam
de pagar aos autores os seus respectivos direitos devido ao material que é partilhado nessas
plataformas.
Assim sendo, vemos aquilo que a própria Comissão afirmou ser “um acordo político
para tornar as regras de direitos de autor adequadas à era digital na Europa”22. Essa discussão
acerca do artigo 13.º da Diretiva comunitária reafirma aquilo que Alexandre Dias Pereira e

18
Para mais informações acerca do órgão comunitário, consultar a obra PAIS, Sofia Oliveira. Estu-
dos de Direito da União Europeia. 4.ª ed. Coimbra: Almedina, 2017, pág. 55.
19
Para mais informações acerca dos atos legislativos da União Europeia, consultar o portal da UE:
https://europa.eu/european-union/eu-law/legal-acts_pt.
20
QUEIRÓS, Elvira. Diretiva Direitos de Autor na Sociedade da Informação. Cadernos BAD 1,
2002.
21
Para mais informações acerca da medida do artigo 13.º da Diretiva, consultar comunicado ofi-
cial do PE: https://www.europarl.europa.eu/news/pt/press-room/20190321IPR32110/parlamento-europeu-
aprova-diretiva-sobre-os-direitos-de-autor.
22
Cfr. comunicado de imprensa por parte do Conselho Europeu, disponível em: https://www.consi-
lium.europa.eu/pt/press/press-releases/2019/04/15/eu-adjusts-copyright-rules-to-the-digital-age/.

— 172 —
O desafio do direito de autor face à tecnologia no contexto atual
Leonardo Foeppel de Oliveira

demais doutrina têm afirmado, no sentido de que ao invés de levar à extinção do Direito de
Autor, a era digital, pelo contrário, tem justificado o reforço de proteção legal deste sub-ramo
da propriedade intelectual.
Vale a pena realçar que o desfecho dessa história ainda não é conhecido, uma vez que há
um prazo de dois anos a decorrer até que os 27 países que compõem a União Europeia adotem
por definitivo essa proposta de Diretiva. Contudo, o que é notório é o descontentamento
generalizado por parte das grandes empresas tecnológicas, que acusam e insistem em
mencionar “incerteza jurídica” no sector. A União tem afirmado que a mesma Diretiva não
visa afetar o utilizador comum, muito pelo contrário, mas visa sim prosseguir aquele que tem
sido o desejo inicial desse direito, a devida remuneração aos autores dos seus respectivos
trabalhos.
O que vemos é uma clara adaptação das regras jurídicas relativas à Propriedade Industrial
àquela que é a era digital, a era do mundo desmaterializado, sob a perspectiva de liberdade, mas
mediante remuneração justa, levando a uma ênfase naquilo que temos por respeito e boa fé.

6. Considerações finais.
Foi-se apontando uma série de problemas envolvendo o Direito de Autor, na medida
em que alguns temem pela sua não regulação, pelas razões expostas ao longo do estudo. O
Direito de Autor deve continuar a ser regulado, aprimorado e adaptado para acompanhar a
evolução da sociedade em que está inserido, evitando a sua estagnação e até obsolescência.
Para tanto, o Direito de Autor deve enfrentar a barreira territorial, olhando para o que acontece
para além do direito interno em que está inserido, face à globalização atual. E por fim, a nível
dos conflitos jurisdicionais são encontradas muitas incoerências, que devem ser mobilizados
esforços por parte dos tribunais para que se evite situações de incerteza jurídica e desproteção
dos autores. Deverá esse o Direito de Autor, face às soluções encontradas, evoluir em conjunto
com a realidade para que possa suprir às necessidades da população, evitando cenários de
incertezas e inseguranças jurídicas no contexto do nosso ordenamento, a fim de que ainda se
sinta necessária à sua regulamentação.
Disto retira-se que um conjunto de valores, princípios e direitos das sociedades
avançadas está sendo constantemente submetido a muitas transformações em consequência
daquilo que chamam por novas tecnologias e das tecnologias de informação e comunicação23.
Efetivamente, o Direito existe como resposta àquela que se configura como uma necessidade
coletiva de ordenar a sociedade, sendo claro que em nenhum caso pode permanecer ineficaz
face às situações com que se depara. Esse é um dos motivos em que se afirma que o Direito
vai sendo moldado face às tecnologias, pois busca dar respostas às novidades que surgem
constantemente no seio da sociedade24.

23
RIBAS DO NASCIMENTO, Valéria. Direitos Fundamentais da personalidade na era da sociedade
da informação – transversalidade da tutela à privacidade. Revista de Informação Legislativa, n.º 213, jan./
mar. 2007, pág. 268.
24
OROZCO GONZÁLES, Margarita. Nuevos retos de los derechos de autor em la sociedade digital.
1.ª ed. Navarra: Editorial Aranzadi, 2019, pág. 119.

— 173 —
O desafio do direito de autor face à tecnologia no contexto atual
Leonardo Foeppel de Oliveira

Por fim, talvez a reflexão maior não deva ficar limitada apenas ao Direito de Autor, mas
sim ao Direito como um todo – um Direito inserido num mundo digital, onde constantemente
há novas evoluções. Difícil será estar ininterruptamente a par de uma evolução sempre que
ela surja. Por isso, não fará sentido que o Direito continue num plano estático e imutável face
à era digital, mas deverá dotar-se de mecanismos que permitam a sua igual evolução perante
as (r)evoluções tecnológicas e da sociedade.

7. Referências bibliográficas e outros.


AA. VV. Direito de Autor: Que Futuro na Era Digital?. 1.ª ed. Lisboa: Guerra e Paz, Editores, S.A.,
2016.
ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito de Autor e Direitos Conexos. Coimbra: Coimbra Editora,
2012.
GONZÁLEZ, Margarita Orozco. Nuevos retos de los derechos de autor em la sociedade digital. 1.ª ed.
Navarra: Editorial Aranzadi, 2019.
NASCIMENTO, Valéria Ribas do. Direitos fundamentais da personalidade na era da sociedade da
informação: transversalidade da tutela à privacidade. Revista de Informação Legislativa: RIL,
v. 54, n. 213, p. 265-288, jan./mar. 2017. Disponível em: http://www12. senado.leg.br/ril/
edicoes/54/213/ril_v54_n213_p265.
MARTÍN, Ricardo M. Mata y. MARTÍN, Antonio M.ª Javato. La propriedade intelectual em la era
digital: Limites e infracciones a los derechos de autor em Internet. 1.ª ed. Madrid: La Ley,
Fevereiro, 2011.
MELLO, Alberto de Sá e. Manual de Direitos de Autor e Direitos Conexos. 3.ª ed. Coimbra: Almedina
Editora, 2019.
PAIS, Sofia Oliveira. Estudos de Direito da União Europeia. 4.ª ed. Coimbra: Almedina Editora,
2017.
PHILLIPS, Jeremy. FIRTH, Alison. Introduction to Intellectual Property Law. 3.ª ed. Londres:
Butterworks & Co (Publishers), 1995.
QUEIRÓS, Elvira. Diretiva Direitos de Autor na Sociedade da Informação. Cadernos BAD 1, 2002.
Disponível em: https://www.bad.pt/publicacoes/index.php/cadernos/article/view/877/876.

— 174 —
A educação digital como nova tecnologia
direcionada para a efetivação do direito
constitucional à educação

Letícia Mirelli Faleiro e Silva1

Resumo: O direito à educação é um direito fundamental estabelecido na Constituição Federal de 1988.


No entanto, Constituições brasileiras anteriores também regulamentavam esse direito, ainda que de forma
mais discreta. Em face de sua importância, esse direito além de constar como sendo um direito fundamental
estabelecido no texto constitucional de vários países, também é considerado um Direito Humano, presente
em inúmeros documentos internacionais. Percebe-se grande preocupação em torno da efetividade desse
direito e inúmeros são os estudos voltados para as questões relativas à sua eficácia, haja vista que, ainda que
ele seja um direito de extrema relevância, de cunho obrigatório e universal, nem todas as pessoas têm acesso
efetivo a esse direito. No presente artigo será desenvolvido um estudo sobre o direito à educação digital,
direito este inserido na Era Digital do mundo globalizado, por meio das novas tecnologias. Assim, será feita
uma abordagem conceitual desse direito, o qual assume uma nova feição, por assim dizer, pois avança rumo
às novas tecnologias, ainda que tenha seu pilar eminentemente clássico. Nesse contexto será apresentado
o panorama desse direito, por meio de sua regulamentação na lei espanhola, notadamente, a Lei Orgânica
03/2018, bem como, a Carta de Direitos Fundamentais Digitais da União Européia, documentos estes que
dão evidência ao Direito à Educação Digital. O que se conclui é que o Direito à Educação se torna bem
mais efetivo quando se fala em uma Educação Digital, sobretudo porque, através das novas tecnologias, ela
vai muito além dos muros da escola, podendo chegar àqueles que possuem maior dificuldade de freqüentar
a sala de aula, a exemplo dos refugiados, pessoas com deficiência, presidiários, e outras minorias e grupos
vulneráveis. Para tanto, o tipo de pesquisa utilizada será a bibliográfica e documental e o procedimento
metodológico usado será o dedutivo.
Palavras-chave: Direitos Fundamentais; Direito à Educação; Novas Tecnologias; Educação Digital.

1
Doutoranda em Direito Constitucional pela Universidade de Santiago de Compostela, Espanha.
Mestre em Direito pela Universidade de Itaúna. Pós-graduada em Ciências Criminais pela Universidade
Gama Filho. Pós-graduada em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Faculdade Pitágoras. Ba-
charel em Direito pelas Faculdades Integradas do Oeste de Minas. Advogada. E-mail: faleiro.bueno.adv@
hotmail.com.

— 175 —
A educação digital como nova tecnologia direcionada para a efetivação do direito constitucional à educação
Letícia Mirelli Faleiro e Silva

Abstract: The right to education is a fundamental right established in the 1988 Federal Constitution.
However, previous Brazilian Constitutions also regulated this right, albeit in a more discreet manner. In
view of its importance, this right is not only a fundamental right established in the constitutional text of
several countries, but it is also considered a Human Right, present in numerous international documents.
There is great concern about the effectiveness of this right, and numerous studies have been conducted
on the issues related to its effectiveness, considering that, although it is an extremely important right, a
mandatory and universal right, not all people have effective access to this right. In this article a study will be
developed on the right to digital education, a right that is inserted in the Digital Era of the globalized world,
through new technologies. Thus, a conceptual approach to this right will be made, which assumes a new
feature, so to speak, because it advances towards the new technologies, even though it has its eminently
classical pillar. In this context the panorama of this right will be presented, through its regulation in Spanish
law, notably, Organic Law 03/2018, as well as, the Charter of Digital Fundamental Rights of the European
Union, documents that give evidence of the Right to Digital Education. What we conclude is that the Right
to Education becomes much more effective when we talk about a Digital Education, above all because,
through the new technologies, it goes far beyond the walls of the school, being able to reach those who
have more difficulty to attend the classroom, like refugees, people with disabilities, prisoners, and other
minorities and vulnerable groups. For this purpose, the type of research used will be the bibliographic and
documental one and the methodological procedure used will be the deductive one.
Keywords: Fundamental Rights; Right to Education; New Technologies; Digital Education.

1. Introdução
O Direito à Educação, no âmbito normativo interno, é um direito constitucional,
estabelecido em diversos ordenamentos jurídicos dos Estados, bem como no direito interno
brasileiro, onde reside de modo especial na Constituição Federal, precisamente no rol de
direitos fundamentais, em face de sua relevância jurídica.
Quando o indivíduo tem acesso efetivo à Educação, ele também alcança outros direitos.
Pode- se dizer que o Direito à Educação é o limiar de outros direitos, porque, partindo-
se do pressuposto que esse direito é garantido à pessoa, outros tantos direitos, também
fundamentais, em uma via reflexa, são acessados, ao passo que a Educação capacita o sujeito
como um todo. Para SÁNCHEZ, “La educación es una necesidad radical porque sin ella,
sin su correspondiente satisfacción no puede de ninguna manera el individuo competir en
igualdad de condiciones con sus semejantes en la vida social ni desarrollar adecuadamente
su personalidad”2.
Não existem dúvidas que através da Educação o indivíduo tem maiores chances de
se desenvolver plenamente, de exercer sua cidadania, de ter uma vida digna, de manter sua
igualdade frente aos demais, de se inserir no mercado de trabalho, dentre inúmeros outros
benefícios, todos diretamente ligados a garantia e proteção da dignidade da pessoa humana.
No entanto, ainda que seja considerado e reconhecido no próprio texto constitucional
como sendo um direito fundamental, esse direito por muitas vezes não é respeitado, tampouco
eficaz, razão pela qual, novas tecnologias podem ser utilizadas de modo a tornar mais acessível
o Direito à Educação.

2
SANCHÉZ, Antonio Tirso Ester. el sentido Del derecho a la educación como derecho social. De-
recho transnacional Iberoamericano. Tirant lo Blanch, 2018, p. 458.

— 176 —
A educação digital como nova tecnologia direcionada para a efetivação do direito constitucional à educação
Letícia Mirelli Faleiro e Silva

Para desenvolver o presente trabalho, será feita inicialmente uma abordagem sobre os
direitos fundamentais, partindo-se de uma concepção macroanalítica, para uma concepção
microanalítica, onde o estudo será dedicado ao direito fundamental à Educação, previsto no
texto constitucional. Em seguida será feito um esboço sobre à Educação Digital, que se valerá
de novas tecnologias que serão capazes de tornar mais acessível e efetivo o direito tradicional
à Educação.

2. Os direitos fundamentais no ordenamento jurídico


brasileiro e sua importância normativa
O título II da CF de 1988 apresenta os direitos e garantias fundamentais, sendo que o
seu primeiro capítulo discorre sobre os direitos e deveres individuais e coletivos e o segundo
capítulo faz referência aos direitos sociais. Apesar de se reconhecer a relevância de todos os
direitos contidos no título II, neste trabalho será dado maior enfoque àquele previsto no artigo
6º da Constituição, notadamente, o Direito à Educação.

O termo “direitos fundamentais” se aplica àqueles direitos (em geral atribuídos


à pessoa humana) reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional
positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão “direitos humanos”
guarda relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas
posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente
de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram
à validade universal, para todos os povos e em todos os lugares, de tal sorte que
revelam um caráter supranacional (internacional) e universal3.

Ainda que o Constituinte tenha apartado em um capítulo os “direitos e deveres individuais


e coletivos”, estabelecidos no artigo 5º da CF/88, e em outro capítulo “os direitos sociais”,
notadamente no artigo 6º da Carta Magna, ambos fazem parte de um mosaico que forma o
arcabouço de direitos fundamentais, estando em princípio, sujeitos ao mesmo regime jurídico.
De tal modo, os direitos fundamentais se apresentam como direitos de grande relevância na
ordem constitucional, o que é confirmado por meio de sua aplicabilidade imediata, conforme
vontade expressa do Constituinte definida no artigo 5º, § 1º da CF/88. Nesse sentido:

Os direitos fundamentais são direitos criados com a finalidade de trazer uma


proteção comum aos indivíduos, outorgando-lhes garantias indispensáveis para sua
existência digna, o que se efetiva especialmente por meio do respeito à dignidade da
pessoa humana como princípio fundamental. De acordo com o conceito absoluto, a
garantia da dignidade humana é considerada como uma norma que tem precedência
sobre todas as outras normas, em todos os casos4.

3
SARLET, Ingo Wolfgang. Curso de Direito Constitucional-6ª Ed.-São Paulo: Saraiva, 2017, p. 332.
4
ALEXY, Robert. Dignidade humana, direitos sociais e não-positivismo incluso/ Organizado-
res; Robert Alexy, Narciso Leandro Xavier Baez, Rogério Luiz Nery da Silva. 1.ed. Florianópolis: Qualis,
2015, p. 13.

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A educação digital como nova tecnologia direcionada para a efetivação do direito constitucional à educação
Letícia Mirelli Faleiro e Silva

É assim que os direitos fundamentais, pautados principalmente na proteção da dignidade


da pessoa humana, se apresentam como direitos pujantes, de modo que dada a sua relevância,
é previsto na norma jurídica máxima do Estado de Direito, notadamente a Constituição
Federal.
Portanto, é imperioso reconhecer que os direitos fundamentais devem ser respeitados
e principalmente garantidos de maneira efetiva aos seus destinatários finais, sobretudo pelo
seu viés imperativo que traz na sua conjuntura a obrigatoriedade de cumprimento por parte
do Estado.
Dentro desta perspectiva, o direito social à Educação, como sendo um direito fundamental
receberá evidência na presente pesquisa, sobretudo porque conforme já exposto, à medida que
o indivíduo tem acesso efetivo a esse direito fundamental, outros tantos lhe são outorgados
pela via reflexa. Assim, “Para el buen funcionamiento del sistema es imprescindible una
adecuada formación de la ciudadanía y de la opinión pública, formación que debe comenzar
con la correcta implementación del derecho a la educación”5.

3. O Direito fundamental à Educação no Brasil à luz da


Constituição Federal de 1988
Conforme apresentado nas linhas anteriores, o direito à Educação é um direito fundamental
previsto na Constituição Federal de 1988, notadamente em seu artigo 6º. As disposições
específicas sobre educação se encontram nos artigos 205 a 214 do mesmo diploma legal.
O artigo 205 da CF/88 aduz em outras palavras, que a educação é um direito de todos, dever
do Estado e da família, direito este que conta com a colaboração da sociedade, e visa preparar
o indivíduo para o exercício da cidadania, qualificação para o trabalho e consequentemente,
o pleno desenvolvimento da pessoa. O texto da lei fala por si só e por meio de uma simples
leitura, é possível perceber as boas intenções do Constituinte, que podem, porém, se manter
apenas no campo da intenção, caso, o Direito ali estabelecido não se tornar acessível e efetivo.
Nesse sentido, o Professor José Afonso da Silva afirma:

O art. 205 contém uma declaração fundamental que, combinada com o art. 6º,
eleva a educação ao nível dos direitos fundamentais do homem. Aí se afirma que a
educação é direito de todos, com o que esse direito é informado pelo princípio da
universalidade. Realça-lhe o valor jurídico, por um lado, a cláusula – a educação é
dever do Estado e da família -, constante do mesmo artigo, que completa a situação
jurídica subjetiva, ao explicitar o titular do dever, da obrigação, contraposto àquele
direito. Vale dizer: todos têm o direito à educação e o Estado tem o dever de prestá-
la, assim como a família6.

5
RODRÍGUEZ, José Julio Fernández. Educación y enseñanza en la constitución española de
1978. Revista Juridica, nº 135, 2002, p. 75.
6
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25ª Edição. São Paulo: Ma-
lheiros, 2005, p. 312.

— 178 —
A educação digital como nova tecnologia direcionada para a efetivação do direito constitucional à educação
Letícia Mirelli Faleiro e Silva

O Direito à Educação é apresentado no texto constitucional de forma bastante robusta e


protetiva, porém, esse direito não foi instituído inicialmente na Carta em vigência, ao passo que,
conforme será abordado nas linhas a seguir, outras Constituições do Brasil regulamentaram
o tema, ainda que de maneira mais discreta. A Constituição Política do Império do Brasil de
1824 legislou sobre a Educação em seu artigo 179, incisos XXXII e XXXIII. Foi estabelecida
a garantia do ensino primário a todos os cidadãos e sua realização, preferencialmente, pela
família e pela Igreja, bem como a criação de colégios e universidades para o ensino de
Ciências, Artes e Letras7.
A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891, notadamente nos
artigos 35 e 72, abordava o direito à educação. Posteriormente, a educação foi tratada nos
artigos 5º, inciso XIV e 148 a 158 da Constituição da República dos Estados Unidos do
Brasil de 1934, Constituição esta que destacava em seu artigo 149, que a educação é direito
de todos, e deve ser proporcionada a brasileiros e estrangeiros domiciliados no país.
Na Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937, o direito à educação era previsto
nos artigos 15, inciso IX, 16, inciso XXIV e 128 a 134. Nesta Carta Magna foi mantida a
gratuidade do ensino, no ensino primário é considerada obrigatória a educação física, o ensino
cívico e os trabalhos manuais, nos moldes do artigo 131, bem como tornando facultativo
o ensino religioso8. Já na Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946, o direito à
educação foi disciplinado nos artigos 5º, XV, d, e 166a 175.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1967 regulamentava em seus
artigos 8º, incisos XIV, XVII, alínea “q” e 168 a 172, o direito à educação. No ano de 1969, a
Emenda Constitucional nº 1, fruto do agravamento da situação de exceção política vivida pelo
País, alterou profundamente as disposições relativas ao direito à educação. Merece destaque
a substituição da liberdade de cátedra pela liberdade de comunicação de conhecimentos
no exercício do magistério. A obrigatoriedade para investimentos foi estabelecida somente
aos municípios. Em 1983, por intermédio da Emenda Constitucional nº 24, esse dever foi
estendido à União, Estados e Distrito Federal9.
Nota-se que a Educação é uma preocupação remota do Estado brasileiro, na medida
em que aparece nos textos constitucionais antecedentes, porém com maior relevância na
atualidade, de modo que, espelhada em um cenário de normas internacionais que legislam
sobre esse direito de forma robusta, vem internalizada na Carta Magna, compondo o rol de
direitos fundamentais, os quais assumem proeminência no ordenamento jurídico.
O direito à educação enquanto um direito humano vem ao longo da história sendo
inserido em inúmeros documentos10, movimentos e campanhas que visam legitimar os
direitos da pessoa humana. Como exemplo, pode-se citar os de maior relevância: artigo 22

7
TEIXEIRA, Maria Cristina. O direito à educação nas Constituições Brasileiras. Revista do
Curso de Direito. São Paulo: Universidade Metodista de São Paulo, v.5, n.5, 2008, p.149.
8
Ibid., p.158.
9
Ibid., p.161.
10
GONÇALVES, Rubén Miranda. El derecho a la educación como derecho humano: especial refe-
rencia a la jurisprudencia española actual, Atualidades na Ciência Jurídica: Intercâmbio Iberoamericano.
Ed. Instituto Politécnico da Maia. Maia, 2018, p. 9

— 179 —
A educação digital como nova tecnologia direcionada para a efetivação do direito constitucional à educação
Letícia Mirelli Faleiro e Silva

da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão; artigo 26 da Declaração Universal


dos Direitos Humanos; artigos 13 e 14 do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais; artigo 13 do “Protocolo de San Salvador”; artigo 17 da Carta Africana
dos Direitos Humanos e dos Povos; artigo 2 do Protocolo adicional à Convenção de Proteção
dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais; artigos 28 e 29 da Convenção sobre
os Direitos da Criança.
Com os olhos voltados para este cenário, a Constituição de 1988 apresenta em seu
conteúdo, a educação como sendo um direito fundamental. Porém não se trata mais de qualquer
direito à educação, mas daquelas cujas balizas foram construídas constitucionalmente. Isso
significa que o direito à educação é o direito de acesso, mas não um acesso a qualquer educação,
mas sim àquela que atende as preocupações constitucionais. O dever estatal quanto ao direito
fundamental à educação está longe de se esgotar no mero oferecimento de acesso11.
Por se tratar de um direito fundamental social, a educação se apresenta inerente ao
desenvolvimento do ser humano, enquanto ser social trazendo-lhe dignidade, razão pela
qual se torna importante analisar o direito à educação não como uma norma meramente
pragmática, sem eficácia imediata, mas, ao contrário, por se tratar de direito social, é exigível
de imediato.
É assim que os Estados em seu âmbito interno têm se preocupado sobremaneira com a
educação ao passo que por meio dela se torna possível efetuar a transmissão de conhecimento
técnico aliado a valores eticamente construídos pela sociedade, propiciando àqueles que a
recebe, crescimento intelectual e social, de modo a capacitá-los a se tornarem cidadãos aptos
para participar de forma efetiva dentro da sociedade, interagindo de forma igual com os seus
semelhantes, o que ensejaria em sua inclusão efetiva no meio social.

O acesso à educação foi e continua sendo, importante preocupação social e


governamental, especialmente por se verificar que é possível a inclusão social como
resultado do processo educacional. Porém, o acesso formal aos bancos escolares
não deve estar limitado aos números de alunos que ingressam o sistema escolar. É
preciso, também, assegurar-lhes o direito a uma educação com qualidade12.

Demonstrada a importância da educação como sendo um direito fundamental de todos,


capaz de garantir ao ser humano uma vida digna pautada no seu livre desenvolvimento como
indivíduo detentor de direitos e garantias dentro da sociedade, passa-se no tópico seguinte
a discorrer sobre uma inovação normativa voltada para as novas tecnologias na Era Digital,
qual seja, a Educação Digital.

11
TAVARES, André Ramos. Direito Fundamental á Educação. Anima: Revista Eletrônica do Cur-
so de Direito da Opet, v.1, 2009, p. 13.
12
. GOTTEMS, Claudinei. Direito Fundamental à Educação. Argumenta- UENP. Jacarezinho n º
16, p. 43-62, 2012. Programa de mestrado em Ciência Jurídica da UENP, p.45.

— 180 —
A educação digital como nova tecnologia direcionada para a efetivação do direito constitucional à educação
Letícia Mirelli Faleiro e Silva

4. A Educação Digital como ferramenta tecnológica na


garantia de acesso à Educação
No mundo globalizado, as tecnologias digitais crescem de maneira acelerada, de modo
que a Era Digital é uma realidade experimentada pela sociedade como um todo, conjuntura
esta pautada por grandes mudanças decorrentes das inovações tecnológicas, que se encontram
inseridas no cenário político, jurídico, social, cultural, econômico, educacional, dentre
outros.
No que diz respeito à educação como sendo um direito fundamental, que é o objeto
da presente pesquisa, a partir do momento que ela se vê inserida na Era Digital, se torna
necessário analisar formas e métodos capazes de incluir a esfera educacional dentro dessa
nova perspectiva, que caminha rumo a um formato diferenciado, de modo que o sistema de
ensino deixa de ser estritamente local, restrito a sala de aula, ganhando feição digital ampla,
por meio das novas tecnologias.
Assim, é de grande importância que métodos e ferramentas sejam desenvolvidos a fim
de habilitar os indivíduos, para que adquiram competências digitais, de modo a incluí-los
nessa conjuntura tecnológica de maneira efetiva. Uma boa alternativas seria, criar séries de
treinamentos mais inclusivas, criar um mundo onde a tecnologia trabalhe em favor de todos,
não apenas em favor de alguns, ou favorecendo alguns, além de se pensar no bem-estar do ser
humano, na conexão de homens e máquinas, na integração do mundo físico com o virtual e
dos serviços com a ética13.

Hoje, muitas das situações de aprendizagem, quer sejam de caráter marcadamente


formal ou informal, são mediadas pelo uso de tecnologias digitais, em particular da
Internet. O seu desenvolvimento veio quebrar definitivamente os limites do espaço
e do tempo dedicados à aprendizagem. As aceleradas mudanças provocadas nas
sociedades nas últimas décadas possibilitaram um acesso global e generalizado
ao conhecimento, o que torna o contexto atual em uma realidade que é nova nas
suas características no que se refere aos meios que temos ao nosso dispor para
aprender14.

Quando se fala na educação digital, não se pode ter em mente que essa se torna efetiva
quando, por exemplo, computadores e outros aparelhos tecnológicos ficam disponíveis para
o corpo docente e discente na sala de aula, porque isso não é o bastante. Torna-se necessária
uma mudança de padrões pedagógicos até então utilizados.
As tecnologias devem ser utilizadas na educação, de forma a extrair todo o seu potencial,
atingindo a sua função precípua, seja através da habilitação dos alunos e professores, seja por

13
VILELA, Camila Maria de Moura. Inteligência Artificial e Big Data: o Processamento de Da-
dos como Instrumento de uma Inclusão Socio Digital. Revista do Curso de Direito. São Paulo: Univer-
sidade Metodista de São Paulo, v.5, n.5, 2008, p.02.
14
VIANA, Joana. Educação Digital (Não Formal): uma oportunidade de transformação da
Educação Formal. OMNIA 9(1), abril 2019 –ISSN: 2183-4008 (Twist e Withers, 2007; Means, 2008),
p.18.

— 181 —
A educação digital como nova tecnologia direcionada para a efetivação do direito constitucional à educação
Letícia Mirelli Faleiro e Silva

meio do desenvolvimento de suas competências digitais, trazendo para o núcleo da educação,


um conhecimento que vai além da tradição até então aplicada, que ultrapasse o modelo de
“educação bancária”, onde o professor se limita a repassar ao aluno o seu conhecimento, para
atingir um modelo ideal de ensino, onde por meio de metodologias ativas, há uma troca de
conhecimento entre docente e discente, o que pode se tornar mais tangível dentro do contexto
da educação digital.
As tecnologias digitais demonstram grande potencial e podem ser utilizadas de maneira
bastante eficaz no intuito de trazer inovações para o sistema educacional, que possui em sua
essência uma estrutura tradicional, tornando mais acessível o processo de aprendizagem, o
desenvolvimento da pessoa e sua inclusão na sociedade.

Na era da informação, frente a um cenário no qual é possível acessar, aprender,


colaborar e trocar informações via redes digitais, a temática das tecnologias digitais
se consolida no discurso pedagógico. O modelo educacional contemporâneo, cujas
bases remontam as da era industrial, é considerado por muitos não só ultrapassado,
mas essencialmente inadequado para a formação dos jovens. E, conforme essa nova
tendência, a solução apontada para a adequação e o desenvolvimento do sistema
educacional recai, muitas das vezes, sobre a adoção das tecnologias digitais15.

As tecnologias digitais são onipresentes, por assim dizer, na medida em que interagem
reciprocamente com a sociedade e todos os ramos a ela ligados, por exemplo, na vida pessoal,
no ambiente de trabalho, na cultura, na economia e na educação. Por meio da inovação
tecnológica pode haver a interação digital, entre o professor, aluno, de modo que o método de
ensino tradicional é substituído por metodologias ativas onde o professor não se limita a fazer
a transmissão do conhecimento, mas, possibilita o aluno que desenvolva suas competências
no processo de aprendizagem, ou seja, a tecnologia no ensino é integrada, sem excluir o
conhecimento e a didática essencial do professor.
Na Era Digital, o direito à educação, acompanhando o cenário tecnológico, assume
um novo formato, na medida em que se desponta como “Direito à educação digital”. No
entanto, se por um lado as tecnologias evoluem rapidamente, o direito caminha a passos
lentos, de modo que, ainda que a cultura digital já tenha sido inserida na sociedade, inclusive
na educação, as normas que regulamentam a temática, são tímidas no panorama jurídico.
A Espanha, no ano de 2018 publicou a Lei Orgânica 03/2018, sobre Proteção de Dados
Pessoais e garantia de direitos digitais a qual regulamenta de forma inovadora, em seu artigo
83, o Direito à educação digital.
Por meio da mencionada Lei, a Espanha, em atenção à realidade digital vivenciada no
mundo, demonstra a preocupação em regulamentar o Direito à Educação Digital voltada para
a inclusão de alunos com necessidades educacionais especiais, e a inserção dos demais alunos
e professores na sociedade digital, de modo a capacitá-los para a exploração de todos os

15
HEINSFELD, Bruna Damiana; PISCHETOLA, Magda. O discurso sobre tecnologias nas polí-
ticas públicas em educação. Educ. Pesqui., São Paulo, v.45, e205167 2019, p.02.

— 182 —
A educação digital como nova tecnologia direcionada para a efetivação do direito constitucional à educação
Letícia Mirelli Faleiro e Silva

meios possíveis de forma segura, e principalmente respeitando os direitos fundamentais e


humanos.
Na Europa, também tem sido discutida a criação de um documento em forma de um
manifesto político, semelhante a um texto de lei que aborde os direitos fundamentais digitais,
denominado “Carta de Direitos Fundamentais Digitais da União Européia”. Em abril de
2018, uma primeira versão desta carta foi apresentada em Berlim, em uma conferência sobre
internet e a sociedade digital da Europa. O artigo 14 do documento em comento, aborda sobre
a educação, destacando que todo ser humano tem direito a uma educação que propicie uma
vida autodeterminada no mundo digital. Esse objetivo tem importância central nos currículos
de instituições de ensino”. Os direitos fundamentais digitais são assim conceituados:

Os direitos fundamentais digitais em sentido amplo abrangem (a) os direitos


constantes da Declaração Mundial dos Direitos Humanos, da Convenção Europeia
de Direitos Humanos e da Carta de Direitos Humanos da União Europeia com
dimensões da digitalização (ex: “a dignidade do ser humano permanece intocável
também na era digital”); (b) direitos fundamentais digitais em sentido restrito são
aqueles que incorporam elementos específicos digitais. No campo dos direitos
económicos, sociais e culturais emergem problemas jusfundamentais que, no plano
metódico, dogmático e epistemológico, obrigam a uma revisão estruturante. O
direito à educação digital emerge como núcleo da jusfundamentalidade digital16.

Nota-se que há uma evolução normativa que busca conjugar o direito tradicional à
esfera digital. No Brasil, não há por enquanto nenhuma lei que regulamente em específico
o Direito à Educação Digital. No entanto, o Decreto 9.319/18, institui o Sistema Nacional
para a transformação digital, a Lei 12.965/14, popularmente conhecida como “Marco Civil
da Internet”, define em seu artigo 26, que o cumprimento do dever constitucional do Estado
na prestação da Educação em todos os níveis de ensino, inclui a capacitação, integração e
outras práticas educacionais da internet, medida colocada em prática por meio do programa
“Educação Conectada”, instituído pelo MEC.

5. Considerações Finais
Por meio da pesquisa aqui desenvolvida, resta claro que a educação propicia a formação
do indivíduo de modo a capacitá-lo não só para o mercado de trabalho, mas principalmente
para torná-lo apto a reconhecer e ser capaz de exigir outros direitos fundamentais que lhes
são garantidos pela Constituição, bem como para o exercício efetivo da cidadania, além de
possibilitar a formação humana e acadêmica.
A importância do direito à educação é notada através da sua previsão normativa na
Carta Magna do Estado brasileiro, e seu valor é realçado na medida em que esse direito
se encontra presente no rol dos direitos definidos como fundamentais, como sendo aquele

16
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Sobre a indispensabilidade de uma Carta de Direitos
Fundamentais Digitais da União Européia. R. Trib. Reg. Fed. 1ª. Região, Brasília, DF, v. 31, n. 1, 2019,
p.74.

— 183 —
A educação digital como nova tecnologia direcionada para a efetivação do direito constitucional à educação
Letícia Mirelli Faleiro e Silva

direito universal e indisponível ao indivíduo, para sua formação humana, de modo a torná-lo
igual aos demais, incluindo-o na sociedade civil. No entanto, a realidade demonstra que nem
todos os indivíduos têm acesso à Educação, ainda que esse direito, conforme exposto acima,
seja inerente ao indivíduo.
Não basta, porém, que o mencionado direito seja previsto no texto normativo. Para muito
além disso, se faz necessária a efetivação desse direito pelo poder público, de modo a evitar
que a Lei se torne vazia e ineficaz17. É certo que a Educação, ainda que seja revestida de
certas debilidades, é fornecida pelo Estado. No entanto, ainda que ela esteja disponível, por
assim dizer, inúmeras pessoas não têm acesso à escola ou outras possuem maior dificuldade
de frequentá-la, o que ocorre por inúmeras razões, cabendo aqui apresentar alguns exemplos:
pessoas com deficiência, refugiados, presidiários, e outras pessoas pertencentes às minorias e
grupos vulneráveis principalmente.
Dentro desta conjuntura, a educação digital como sendo uma nova tecnologia educacional,
serve como mecanismo robusto para levar à educação ao alcance de todos, se apresentando
como uma fortaleza. No mundo globalizado, o direito assume um novo rumo, e agrega ao
seu caráter eminentemente tradicional uma nova roupagem, porém, sem deixar em segundo
plano o seu viés clássico, mas unindo a este a tecnologia, o que tornaria esse direito bem mais
acessível e efetivo, que é o que aqui se propõe.

Referências
ALEXY, Robert. Dignidade humana, direitos sociais e não-positivismo inclusivo/ Organizadores:
Robert Alexy, Narciso Leandro Xavier Baez, Rogério Luiz Nery da Silva. 1.ed. Florianópolis:
Qualis, 2015.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Sobre a indispensabilidade de uma Carta de Direitos
Fundamentais Digitais da União Européia. R. Trib. Reg. Fed. 1ª. Região, Brasília, DF, v. 31,
n. 1, 2019.
GONÇALVES, Rubén Miranda. El derecho a la educación como derecho humano: especial
referencia a la jurisprudencia española actual, Atualidades na Ciência Jurídica: Intercâmbio
Iberoamericano. Ed. Instituto Politécnico da Maia. Maia, 2018.
GONÇALVES, Rubén Miranda; SILVA, Letícia Mirelli Faleiro e. Direito Fundamental à Educação
como Corolário da Dignidade Humana. Governança e Direitos Fundamentais: Revisitando
o debate entre o Público e o Privado. Instituto Iberamericano de Estudos Jurídicos. Porto,
2020.
HEINSFELD, Bruna Damiana; PISCHETOLA, Magda. O discurso sobre tecnologias nas políticas
públicas em educação. Educ. Pesqui., São Paulo, v.45, e205167, 2019.
GOTTEMS, Claudinei. Direito Fundamental à Educação. Argumenta –UENP. Jacarezinho. Nº. 16,
p.43-62, 2012). Programa de mestrado em Ciência Jurídica da UENP

17
GONÇALVES, Rubén Miranda; SILVA, Letícia Mirelli Faleiro e. Direito Fundamental à Educa-
ção como Corolário da Dignidade Humana. Governança e Direitos Fundamentais: Revisitando o debate
entre o Público e o Privado. Instituto Iberamericano de Estudos Jurídicos, Porto, 2020, p. 22.

— 184 —
A educação digital como nova tecnologia direcionada para a efetivação do direito constitucional à educação
Letícia Mirelli Faleiro e Silva

RODRÍGUEZ, José Julio Fernández. Educación y enseñanza en la constitución española de 1978.


Revista Juridica, nº 135, 2002, p. 75
SARLET, Ingo Wolfgang. Curso de Direito Constitucional. 6ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
SÁNCHEZ, Antonio Tirso Ester. El sentido del derecho a la educación como derecho social. Derecho
transnacional Iberoamericano. Tirant lo Blanch, 2018.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25 Ed. São Paulo: Malheiros,
2005.
TAVARES, André Ramos. Direito Fundamental à Educação. Anima: Revista Eletrônica do Curso
de Direito da Opet, v.1, 2009.
TEIXEIRA, Maria Cristina. O Direito à Educação nas Constituições Brasileiras. Revista do Curso
de Direito. São Paulo: Universidade Metodista de São Paulo, v.5, n.5, 2008.
VIANA, Joana. Educação Digital (Não Formal): uma oportunidade de transformação da
Educação Formal. OMNIA 9(1), abril 2019 –ISSN: 2183-4008 (Twist e Withers, 2007;
Means, 2008).
VILELA, Camila Maria de Moura. Inteligência Artificial e Big Data: O Processamento de Dados
como Instrumento de uma Inclusão Sócio Digital. Revista do Curso de Direito. São Paulo:
Universidade Metodista de São Paulo, v.5, n.5, 2008.

— 185 —
Responsabilidade penal
da inteligência artificial (?):
a problemática relacionada
ao elemento da conduta na clássica
estrutura analítica do delito

Lucas Hinckel Teider1


Gabriel Pivatto dos Santos2

Resumo: Com o fenômeno da quarta revolução industrial e a introdução de novas tecnologias e


conceitos no corpo social, diversas categorias da dogmática jurídico-penal encontram-se tencionadas para
oferecerem respostas a partir de demandas inéditas. Neste contexto, questiona-se a (im)possibilidade de
responsabilidade penal da inteligência artificial, considerando-se a execução de condutas autônomas por
parte destas tecnologias. Contudo, em confronto com a clássica estrutura analítica (tripartida) do delito, a
hipótese positiva não resiste, uma vez que para a doutrina especializada afigura-se como indispensável que
a conduta seja humana ou conectada com um indivíduo-pessoa. Quando da (im)possibilidade de imputação
de responsabilidade penal ao(s) indivíduo(s) em razão de condutas praticadas pela inteligência artificial,
analisa-se a aplicação da teoria da imputação objetiva como critério restritivo, visando proporcionar uma
resposta jurídica e humanamente adequada. A pesquisa baseou-se nos métodos científicos fenomenológico
e hipotético dedutivo, bem como nos procedimentos de pesquisa monográfica e comparativa e a técnica de
pesquisa bibliográfica.
Palavras-chaves: Quarta revolução industrial; Responsabilidade penal da inteligência artificial;
Teoria da imputação objetiva; Sociedade tecnológica; Sociedade de risco.

Abstract: With the phenomenon of the fourth industrial revolution and the introduction of new
technologies and concepts in the society, several legal categories are intended to offer answers from

1
Mestrando em Direito Econômico e Desenvolvimento pelo Programa de Pós-Graduação em Direi-
to da PUCPR. Endereço eletrônico para contato: lucas.teider@gmail.com.
2
Mestrando em Direito Econômico e Desenvolvimento pelo Programa de Pós-Graduação em Direi-
to da PUCPR. Endereço eletrônico para contato: gabrielpivatto@hotmail.com.

— 186 —
Responsabilidade penal da inteligência artificial (?): a problemática relacionada ao elemento da conduta na clássica
Lucas Hinckel Teider - Gabriel Pivatto dos Santos

unprecedented demands. In this context, the (im)possibility of criminal liability of artificial intelligence is
questioned, considering the execution of autonomous conduct by these technologies. However, in contrast
to the classic (tripartite) analytical structure of the crime, the positive hypothesis does not stand up, as it
is indispensable for specialized doctrine that the conduct must be human or connected with an individual-
person. When the possibility of imputation of criminal responsibility to the individual(s) due to conducts
practiced by artificial intelligence is analyzed, the application of the objective imputation theory as a
restrictive criterion is searched, aiming to provide a proper legal and human response. The research was
based on deductive phenomenological and hypothetical scientific methods, as well as on monographic and
comparative research procedures and the technique of bibliographic research.
Keywords: Fourth industrial revolution; Criminal responsibility of artificial intelligence; Theory of
objective imputation; Technological society; Society of risk.

Introdução:
A tecnologia está virtualmente em todos os lugares. O desenvolvimento tecnológico
espraiou-se para além da mera automatização e otimização de tarefas humanas repetitivas
para assumir uma nova perspectiva muito mais abrangente e desafiadora.
Junto a esse atual panorama, tem-se por correto assumir que a existência da tecnologia
em si se constitui (ou constituiu-se per se) como solucionadora das mazelas humanas,
superando, inclusive, a consciência humana. Nesse sentido, em diversos campos, sejam eles
de matriz empirista ou teórica, os benefícios resultantes da(s) tecnologia(s) são amplamente
divulgados, debatidos e, mormente, celebrados.
Inobstante as incontestes contribuições positivas das soluções tecnológicas, faz-se
necessária análise crítica acerca da(s) temática(s) gravitantes acerca da tecnologia e seus
empregos. Nesse ponto justifica-se a indispensabilidade da investigação dos riscos propiciados
e eventualmente agravados pela(s) tecnologia(s).
Com o advento da quarta revolução industrial3, não apenas os benefícios, mas, igualmente,
os riscos dos empregos da tecnologia são exponenciados, consideradas as suas características
relacionadas a velocidade, amplitude, profundidade e impacto sistêmico4.
Esses impactos são verificados na presença e na extensão da tecnologia, causando efeitos em
âmbitos tais como o social, o político, o cultural e, por via de consequência, o locus jurídico.
Ainda nessa análise, considerado o objeto do Direito Penal como muito maior do que
tão somente a norma penal, implicando necessariamente “todas as relações sociais, políticas

3
A quarta revolução industrial (…) não diz respeito apenas a sistemas e máquinas inteligentes e
conectadas. Seu escopo é muito mais amplo. Ondas de novas descobertas ocorrem simultaneamente em
áreas que vão desde o sequenciamento genético até a nanotecnologia, das energias renováveis à computa-
ção quântica. O que torna a quarta revolução industrial fundamentalmente diferente das anteriores é a fusão
dessas tecnologias e a interação entre os domínios físicos, digitais e biológicos. Nesta revolução, as tecno-
logias emergentes e as inovações generalizadas são difundidas muito mais rápida e amplamente do que nas
anteriores, as quais continuam a desdobrar-se em algumas partes do mundo (…). In: SCHWAB, Klaus. A
quarta revolução industrial. São Paulo: Edipro, 2016. S. p.
4
SCHWAB, Klaus. A quarta revolução industrial. São Paulo: Edipro, 2016. S. p.

— 187 —
Responsabilidade penal da inteligência artificial (?): a problemática relacionada ao elemento da conduta na clássica
Lucas Hinckel Teider - Gabriel Pivatto dos Santos

e culturais – inclusive as normas – relacionadas à reação humana ao fenômeno do crime”5, é


inevitável, à guisa de perspectiva, a interação da tecnologia com o Direito Penal e o impacto
de suas manifestações na tecedura criminológica, político-criminal, processual penal e da
dogmática jurídico-penal.
Com a expansão da tecnologia, à sociedade são apresentados novos conceitos e
instrumentos, tais como as figuras da inteligência artificial e do aprendizado de máquina.
A inteligência artificial, em brevíssimos termos, poderia ser resumida como a “utilização
de métodos baseados no comportamento inteligente de humanos e outros animais para
solucionar problemas complexos”6. Remete-se, portanto, à utilização de comportamentos,
por parte de máquinas, a fim de criar soluções – de maneira autônoma.
Aprendizado de máquina, por sua vez, refere-se ao “processo de indução de uma
hipótese (ou aproximação de função) a partir da experiência passada”7. O termo submete-
se ao subcampo da Ciência da Computação derivado do reconhecimento de padrões e da
teoria do aprendizado computacional em inteligência artificial. Resume-se à capacidade de
computadores executarem ações sem terem sido direta ou especificamente programados para
tanto, ainda que a partir de um determinado momento na cadeia de produção.
Estamos diante de um inédito momento na história da humanidade, onde novas
problemáticas nos são apresentadas em ritmos de elevado dinamismo, de tal sorte que as
respostas jurídicas, moldadas em conceitos, categorias e institutos clássicos, comumente não
acompanham essa velocidade.
Contudo, ainda que com o eventual despreparo da dogmática jurídica (especificamente a
jurídico-penal), não há breque para os fenômenos naturais, sociais e tecnológicos. Continuarão
se apresentando questões às quais serão demandadas respostas jurídicas. Nesse sentido,
além de oferecer assertivas, no momento se busca expurgar do campo das respostas aquelas
soluções notadamente equivocadas.
Isto posto, considerado o surgimento da demanda de resposta à problemática da (im)
possibilidade de imputação de responsabilidade penal à inteligência artificial, impõe-se
análise acadêmico-científica sobre a questão, impedindo-se o estabelecimento de critérios
equivocados de imputação com vistas a evitar atribuição desacertada de responsabilidade.

1. O elemento da conduta na clássica estrutura analítica


do delito e a (im)possibilidade de imputação de crime à
inteligência artificial:
Uma das principais características da inteligência artificial e que torna a tecnologia
tão inovadora é a capacidade de criação de conteúdo original a partir de procedimentos

5
BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte geral. São Paulo: Atlas, 2013. P. 05.
6
COPPIN, Ben. Inteligência artificial. Rio de Janeiro: LTC, 2010. S. p.
7
FACELI, Katti [et al.]. Inteligência Artificial: Uma Abordagem de Aprendizagem de Máquina.
Rio de Janeiro: LTC, 2011. P. 02.

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Responsabilidade penal da inteligência artificial (?): a problemática relacionada ao elemento da conduta na clássica
Lucas Hinckel Teider - Gabriel Pivatto dos Santos

integralmente desenvolvidos e processados por máquinas, sem necessidade – ainda que, em


determinadas oportunidades, a partir de um certo momento – de inputs humanos.
Desse modo, as máquinas deixam de ser relegadas a atividades repetitivas e pré-ordenadas
em um ambiente no qual a consciência humana tem a necessidade de prover elementos
inéditos (iniciais ou de continuidade). A partir dessa nova perspectiva torna-se possível que a
tecnologia, por meio de seus próprios instrumentos, crie e execute.
Por essa razão consigna-se que a tecnologia artificial possui inteligência – portanto,
inteligência artificial –, uma vez que a inteligência resumir-se-ia como a capacidade de resolver
problemas ou de elaborar produtos8 e constituir-se-ia como as interações de um certo indivíduo
com o ambiente, desenvolvendo assim um equilíbrio entre a assimilação (a incorporação em
um processo de aprendizado prévio dos aspectos do ambiente) e a acomodação (a mudança
de comportamento de acordo com as demandas do ambiente)9, resultando necessariamente
em uma ação ou um comportamento10.
Constatando-se o fato de que é possível às inteligências artificiais a prática de ações,
tem-se a possibilidade de uma inteligência artificial executar uma conduta. Nesse ponto, é de
se registrar que o termo conduta tem em consideração o sentido etimológico, terminológico
e gramatical do substantivo.
Uma vez estatuído nesse plano teórico que, em virtude do fenômeno da quarta
revolução industrial as problemáticas tecnológicas vêm apresentar suas demandas no
campo jurídico, necessário se faz o exercício intelectual de cogitar a (im)possibilidade
de imputação de fato criminalmente punível à inteligência artificial (não obstante sua
capacidade de conduta).
Junto à dogmática jurídico-penal tem-se que, para a imputação de um fato criminoso,
ao menos na majoritária concepção tripartida, imperiosa é a satisfação de todos os elementos
da estrutura analítica do crime, constituída em imprescindibilidade de uma conduta típica
antijurídica e culpável11. Nesse ponto observamos os elementos da conduta, da tipicidade, da
antijuridicidade e da culpabilidade.
Atemo-nos ao primeiro elemento da clássica estrutura analítica do delito: a conduta. A
doutrina jurídico-penal, de maneira virtualmente unânime conceitua, para fins de imputação
de fato definido como crime, o elemento da conduta como conduta humana.

8
GARDNER, H. Inteligências múltiplas: a teoria na prática. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
P. 21.
9
LEFRANÇOIS, G.R. Teorias da aprendizagem. São Paulo: Cengage Learning, 2013.
10
RUSSEL, S. J.; NORVIG, P. Inteligência artificial. Rio de Janeiro: Campus, 2004. P. 05.
11
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. 13 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2014. P. 204.

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Responsabilidade penal da inteligência artificial (?): a problemática relacionada ao elemento da conduta na clássica
Lucas Hinckel Teider - Gabriel Pivatto dos Santos

Neste sentido, à guisa meramente exemplificativa, é o entendimento desde clássicos


autores finalistas como Hans Welzel12, até recentíssimas obras sobre a temática, como os
ensinamentos de Francisco de Assis Toledo13, Eugênio Pacelli14 e Luiz Regis Prado15.
Desse modo, inevitável a assunção de que o conceito analítico de crime, além de exigir
o elemento da conduta, apresenta como imprescindível que tal conduta seja humana, não
sendo possível, ao menos prima facie, a imputação de responsabilidade penal à inteligência
artificial por ausência de imprescindível elemento da teoria tripartida do conceito de delito.
Inviável, por igual, tentativa de construção de argumento no sentido análogo de
responsabilidade penal da pessoa jurídica, direcionada para o viés interpretativo de imputação
de conduta à corpo estranho ao indivíduo humano, isso porque, nesse caso, parte da doutrina
especializada possui entendimento de que se afigura como imprescindível a conexão com
um agir humano (ainda que dispensável pela jurisprudência a dupla imputação [também de
pessoa natural]).
Neste diapasão, Miguel Bajo Fernández leciona que “a conduta punível da pessoa física
apresenta-se como condição objetiva de punibilidade para a pessoa jurídica”16. Luiz Regis
Prado, em igual sentido, consigna que a consciência e a vontade (elementos indispensáveis
da figura do dolo) são característica dos seres humanos, na medida em que, quando o ato
é praticado por pessoa jurídica, “necessariamente hão de ser tomadas por empréstimo [as
faculdades] dos homens”, arremedando, ainda, no entendimento de que “só o ser humano,
enquanto pessoa-indivíduo, pode ser qualificado como autor ou partícipe de um delito”, de
onde derivaria a máxima “nullum crimen sine actione e o seu indispensável coeficiente de
humanidade”17. Igualmente na hipótese de afastamento da dupla imputação, na responsabilidade
penal de pessoa jurídica ao menos há inegável conduta humana (ainda que não punível ou não
punida), de maneira que, diferentemente da inteligência artificial, a pessoa jurídica não tem
capacidade naturalística de agir por si mesma.
Constata-se assim a impossibilidade dogmática de responsabilidade penal da inteligência
artificial nos moldes da clássica estrutura tripartida do conceito de crime, haja vista a ausência

12
WELZEL, Hans. Derecho penal alemán. Parte general. 11. ed. Trad. de Juan Bustos Ramírez e
Sergio Yáñez Pérez. Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 1997.
13
ASSIS TOLEDO, Francisco de. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva,
2008. P. 82.
14
“A conduta é o primeiro requisito exigido para que possamos considerar um fato como criminoso.
Sem uma conduta humana não há crime (…)”. In: PACELLI, Eugênio. Manual de direito penal parte
geral. 4. Rio de Janeiro: Atlas, 2017. P. 206.
15
“O delito só existe enquanto ação humana (…)”. In: PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal
brasileiro. 13 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. P. 227.
16
BAJO FERNÁNDEZ, Miguel. Responsabilidad, p. 80 apud GÓMEZ-JARA DÍEZ, Carlos. A
responsabilidade penal da pessoa jurídica teoria do crime para pessoas jurídicas. São Paulo: Atlas,
2015. P. 91.
17
PRADO, Luiz Regis. Responsabilidade penal da pessoa jurídica: fundamentos e implicações. In:
PRADO, Luiz Regis; DOTTI, René Ariel [coordenação]. Responsabilidade penal da pessoa jurídica: em
defesa do princípio da imputação penal subjetiva. 4 ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.
P. 132.

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Responsabilidade penal da inteligência artificial (?): a problemática relacionada ao elemento da conduta na clássica
Lucas Hinckel Teider - Gabriel Pivatto dos Santos

de preenchimento do elemento da conduta, que deve apresentar-se como imprescindivelmente


humana ou, no mínimo, naturalmente conectada com aquela.

2. Breves reflexões acerca da (im)possibilidade de


responsabilidade penal humana nas hipóteses de
conduta da inteligência artificial:
A análise e a discussão ora estabelecidas, em que pese assentadas em bases teóricas, já
se apresentam no mundo dos fatos. O primeiro caso concreto, à título de exemplo, refere-se à
um episódio ocorrido em março de 2018, quando um carro autônomo da empresa UBER, em
fase de testes, atropelou e vitimou fatalmente uma pessoa na cidade de Tempe, no estado de
Arizona, nos Estados Unidos da América18.
O segundo acontecimento passível de abordagem guarda relação com a Inteligência
Artificial “Tay”, elaborada pela empresa estado-unidense Microsoft. “Tay”, como apelidada,
fora desenvolvida para atuar no microblog Twitter como se fosse uma adolescente. De acordo
com a empresa, o objetivo seria “realizar um experimento e conduzir pesquisas sobre a
compreensão das conversas”. Contudo, a partir de algumas interações com usuários (humanos)
da plataforma, “Tay” iniciou a feitura de postagens de cunho de ódio, relacionadas, por
exemplo, com a compreensão de Adolf Hitler ter estado certo em suas convicções e práticas;
de ódio aos judeus; de contrariedade aos imigrantes (mexicanos); de comentários denegridores
do outrora presidente dos Estados Unidos da América, Barack Obama); e sugerindo que, em
episódios como o de 11 de setembro de 2001, Adolf Hitler teria feito um trabalho melhor19.
É igualmente possível conjecturar acontecimentos concretos com base em projeções
teóricas, como, a partir da menção dos assistentes pessoais inteligentes, por Klaus Schwab
(os quais “se tornarão parte de nosso ecossistema pessoal”20), a possibilidade de tomada de
decisão criminosa (por exemplo, racista) por assistentes pessoais inteligentes; ou ainda, na
hipótese de utilização de inteligência artificial em técnicas de investigação e policiamento,
com o risco de as tecnologias acabarem servindo como instrumento lombrosiano ou de Direito
Penal do Inimigo21.
Apresentada a demanda de resposta penal para as hipóteses de responsabilidade criminal
em condutas praticadas por softwares de inteligência artificial, solução primariamente
conjecturada é a de responsabilização das empresas mantenedoras dos programas tecnológicos

18
FOLHA DE SÃO PAULO. Carro autônomo da Uber nos EUA causa primeira morte por
atropelamento. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/03/mulher-morre-nos-eua-
apos-ser-atropelada-por-carro-autonomo-da-uber.shtml. Acesso em 13 jan. 2020.
19
GALILEU, Revista. A Microsoft criou uma robô que interage nas redes sociais - e ela virou
nazista. Disponível em: https://revistagalileu.globo.com/blogs/buzz/noticia/2016/03/microsoft-criou-uma-
robo-que-interage-nas-redes-sociais-e-ela-virou-nazista.html. Acesso em 13 jan. 2020.
20
SCHWAB, Klaus. A quarta revolução industrial. São Paulo: Edipro, 2016. S. p.
21
CARVALHO, Claudia da Costa Bonard de. A inteligência artificial na Justiça dos EUA e o Di-
reito Penal brasileiro. In: Consultor Jurídico (ConJur). Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-
jun-10/claudia-bonard-inteligencia-artificial-direito-penal-brasileiro. Acesso em 13 jan. 2020.

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Responsabilidade penal da inteligência artificial (?): a problemática relacionada ao elemento da conduta na clássica
Lucas Hinckel Teider - Gabriel Pivatto dos Santos

ou de imputação aos desenvolvedores do software, como o exemplo de prática internacional


e o posicionamento de Carlos Romeu Casabona22.
Na eventualidade de desejo político-criminal de imputação de fato criminalmente punível
ao indivíduo nos casos de conduta praticada por inteligência artificial, possibilidade a ser
cogitada seria a adoção e aplicação da teoria da imputação objetiva, devendo o tipo objetivo
conglobar a causalidade material e a normativa.
Na espécie, ao indivíduo somente poderia ocorrer a imputação objetiva quando criado
um risco não-permitido (considerado o objeto da ação), percebidas ainda as circunstâncias de
realização do risco no resultado concreto e o fato de que esse resultado se encontre dentro do
alcance do próprio tipo23.
Desse modo, o indivíduo atuando dentro de uma margem de risco permitido, alinhado
com o seu escopo de trabalho e na medida de suas capacidades, não haveria possibilidade
de imputação de fato criminoso, o que igualmente ocorreria quando o risco em si não se
concretizasse no resultado ou se o resultado se encontrasse aquém do alcance do tipo ou da
esfera de proteção da norma.
Na avaliação do risco é imperiosa a observância de requisitos para diferenciação do risco
permitido e proibido (esse último que não poderia ser criado ou aumentado), quais sejam: a
utilidade social, a inevitabilidade do risco e as necessidades de certas empresas24.
Em um primeiro momento seria questionável a imputação de responsabilidade ao
indivíduo na ocorrência de conduta autônoma (não de outrem, mas de outra coisa) quando
já constatada a possibilidade de execução de ação original e independente pela inteligência
artificial a partir de procedimentos de aprendizado de máquina (machine learning), dispensável
a intervenção humana. Nessa hipótese, além da problemática relativa ao elemento da conduta,
queda-se igualmente ausente nexo causal.
Ademais, em um ambiente notadamente empresarial e corporativo com características
complexas de essência e desenvolvimento/funcionamento e de alta segmentação vertical
(hierárquica) e horizontal (divisão de tarefas), sobretudo quando considerada a produção
de sofisticados softwares, queda-se materialmente inviável e dogmaticamente equivocada a
imputação automática aos dirigentes da companhia que produza, desenvolva, comercialize
ou tenha quaisquer outras relações de responsabilidade quanto ao serviço ou produto. Do
contrário, exsurgiria uma proposta de imputação por mero domínio formal de eventual
posição de comando, solução que “não tem qualquer respaldo no ordenamento jurídico

22
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL (PUCRS). Inteligên-
cia artificial pode ter responsabilidade penal. Disponível em: http://www.pucrs.br/blog/inteligencia-
artificial-pode-ter-responsabilidade-penal/. Acesso em 13 jan. 2020.
23
ROXIN, Claus. Die Lehre von der objektiven Lurechnung, In: Chengchi Law Review, n. 50,
maio, 1994.
24
DÍAZ, Claudia López. Introducción a la imputación objetiva. Bogotá: Centro de Investigacio-
nes de Derecho Penal y Filosofia del Derecho, Universidad Externado de Colombia, 1996. P. 108.

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Responsabilidade penal da inteligência artificial (?): a problemática relacionada ao elemento da conduta na clássica
Lucas Hinckel Teider - Gabriel Pivatto dos Santos

nacional e internacional”25. Igualmente inadequada seria a imputação de responsabilidade


aos desenvolvedores desses softwares quando não preenchidos os requisitos da teoria da
imputação objetiva.
Necessariamente questões tecnológicas se apresentarão ao Direito Penal, tencionado
as categorias clássicas e requerendo novas soluções. Nesse sentido é missão dos teóricos
enfrentar as problemáticas e conjecturar hipóteses (positivas ou negativas) no intento de
prover à realidade forense a aplicação de critérios dogmaticamente adequados e humanamente
razoáveis.

Considerações finais:
Além dos benefícios da tecnologia é necessário debater os seus riscos e as suas
consequentes demandas. Um novo questionamento proporcionado pelo fenômeno é o de (im)
possibilidade de imputação de responsabilidade penal à inteligência artificial, considerando-
se a possibilidade de execução de ações independentes, comportamentos originais e condutas
autônomas por parte das máquinas, as quais, por meio de procedimentos de aprendizado de
máquina, independem dos seres humanos para a sua atuação no mundo dos fatos.
Contudo, quando posta à prova a hipótese em aderência, em paralelo com a clássica
estrutura analítica do delito, sucede-se a resposta negativa ao questionamento (de
impossibilidade atual de imputação de responsabilidade penal à inteligência artificial), na
medida em que a doutrina majoritariamente considera, para fins de conduta, tão somente o agir
humano ou, excepcionalmente, aquela conduta praticada em necessária conexão naturalística
com uma ação de um indivíduo-pessoa.
Conjecturada eventual demanda posta ao sistema jurídico-penal, demonstra-se possível
apresentar a teoria da imputação objetiva como critério limitador (restritivo) de imputação
visando evitar resposta penal inadequada (em termos jurídicos e humanos) por ausência de
questionamento e análise científica prévia acerca da problemática.
A discussão da temática é indispensável no sentido de iniciar um movimento de
contribuição acadêmica para a investigação de fenômenos, problemas e hipóteses relacionadas
com a sociedade tecnológica, uma vez que, consignado o contexto, seja ele de sociedade de
risco26 ou de sociedade de controle dos riscos27, faz-se necessário o estudo acerca dos riscos e
suas estratégias de gerenciamentos.

25
MELO, Valber; OSTI, Artur Barros Freitas; NUNES, Filipe Maia Broeto. Teoria do domínio da
posição de comando é distorção do domínio do fato. In: Consultor Jurídico (ConJur). Disponível em:
https://www.conjur.com.br/2016-nov-10/teoria-dominio-posicao-comando-distorcao-dominio-fato. Acesso
em 13 jan. 2020.
26
BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2. ed. São Paulo: Editora 34,
2011.
27
HARARI, Yuval N. Sapiens: uma breve história da humanidade. 32. ed. Porto Alegre: L&PM,
2018.

— 193 —
Responsabilidade penal da inteligência artificial (?): a problemática relacionada ao elemento da conduta na clássica
Lucas Hinckel Teider - Gabriel Pivatto dos Santos

Referências:
ASSIS TOLEDO, Francisco de. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva,
2008.
BAJO FERNÁNDEZ, Miguel. Responsabilidad, apud GÓMEZ-JARA DÍEZ, Carlos. A
responsabilidade penal da pessoa jurídica teoria do crime para pessoas jurídicas. São
Paulo: Atlas, 2015.
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2011.
BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte geral. São Paulo: Atlas, 2013.
CARVALHO, Claudia da Costa Bonard de. A inteligência artificial na Justiça dos EUA e o Direito
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br/2018-jun-10/claudia-bonard-inteligencia-artificial-direito-penal-brasileiro.
COPPIN, Ben. Inteligência artificial. Rio de Janeiro: LTC, 2010.
DÍAZ, Claudia López. Introducción a la imputación objetiva. Bogotá: Centro de Investigaciones de
Derecho Penal y Filosofia del Derecho, Universidad Externado de Colombia, 1996.
FACELI, Katti [et al.]. Inteligência Artificial: Uma Abordagem de Aprendizagem de Máquina. Rio
de Janeiro: LTC, 2011.
FOLHA DE SÃO PAULO. Carro autônomo da Uber nos EUA causa primeira morte por
atropelamento. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/03/mulher-
morre-nos-eua-apos-ser-atropelada-por-carro-autonomo-da-uber.shtml.
GALILEU, Revista. A Microsoft criou uma robô que interage nas redes sociais - e ela virou
nazista. Disponível em: https://revistagalileu.globo.com/blogs/buzz/noticia/2016/03/microsoft-
criou-uma-robo-que-interage-nas-redes-sociais-e-ela-virou-nazista.html.
GARDNER, H. Inteligências múltiplas: a teoria na prática. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
HARARI, Yuval N. Sapiens: uma breve história da humanidade. 32. ed. Porto Alegre: L&PM, 2018.
LEFRANÇOIS, G.R. Teorias da aprendizagem. São Paulo: Cengage Learning, 2013.
MELO, Valber; OSTI, Artur Barros Freitas; NUNES, Filipe Maia Broeto. Teoria do domínio da
posição de comando é distorção do domínio do fato. In: Consultor Jurídico (ConJur).
Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-nov-10/teoria-dominio-posicao-comando-
distorcao-dominio-fato.
PACELLI, Eugênio. Manual de direito penal parte geral. 4. Rio de Janeiro: Atlas, 2017.
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL (PUCRS). Inteligência
artificial pode ter responsabilidade penal. Disponível em: http://www.pucrs.br/blog/
inteligencia-artificial-pode-ter-responsabilidade-penal/.
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. 13 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2014.
PRADO, Luiz Regis. Responsabilidade penal da pessoa jurídica: fundamentos e implicações. In:
PRADO, Luiz Regis; DOTTI, René Ariel [coordenação]. Responsabilidade penal da pessoa
jurídica: em defesa do princípio da imputação penal subjetiva. 4 ed. rev. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2013.

— 194 —
Responsabilidade penal da inteligência artificial (?): a problemática relacionada ao elemento da conduta na clássica
Lucas Hinckel Teider - Gabriel Pivatto dos Santos

ROXIN, Claus. Die Lehre von der objektiven Lurechnung, In: Chengchi Law Review, n. 50, maio,
1994.
RUSSEL, S. J.; NORVIG, P. Inteligência artificial. Rio de Janeiro: Campus, 2004.
SCHWAB, Klaus. A quarta revolução industrial. São Paulo: Edipro, 2016.
WELZEL, Hans. Derecho penal alemán. Parte general. 11. ed. Trad. de Juan Bustos Ramírez e Sergio
Yáñez Pérez. Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 1997.

— 195 —
A desmaterialização do “juiz das garantias”
com o inquérito policial eletrônico

Rodrigo Régnier Chemim Guimarães1


Sarah Gonçalves Ribeiro2

Resumo: O “juiz das garantias” foi introduzido no direito processual penal brasileiro pela Lei
13.964/2019 e deve atuar apenas na fase investigatória da persecução penal, agindo sempre que estiver em
jogo, de um lado, algum direito ou garantia do investigado e, de outro, o interesse público no esclarecimento
do fato. Diferencia-se do “juiz de instrução”, que é responsável pela fase de instrução e julgamento. Ocorre
que o Brasil tem dimensões continentais e conta com comarcas com apenas um juiz. Essa precariedade
levou o Supremo Tribunal Federal a suspender a nova regra, ao argumento de que a contratação de novos
juízes ou o pagamento de diárias e deslocamentos de um juiz para outra comarca, impactaria muito o
orçamento do Poder Judiciário. O presente artigo visa apresentar a implantação do inquérito policial
eletrônico como uma possível solução para esse problema. O avanço da tecnologia hoje permite que o
registro e a documentação do que se produz na investigação criminal saiam do plano físico, em papéis, e
ingressem no universo da documentação virtual, acessíveis, por qualquer pessoa, em qualquer região do
planeta. Discute, também, a necessidade do projeto de Lei que hoje tramita no Congresso Nacional a esse
respeito ser aprimorado para estabelecer modelo ideal de inquérito eletrônico a ser adotado em todo o país,
que permita acompanhamento dos atos de investigação em tempo real.
Palavras-Chave: juiz das garantias; inquérito policial eletrônico.

Abstract: The “judge of guarantees” was introduced into Brazilian criminal procedural law by
Law 13.964/2019, and must act only in the investigative phase of criminal prosecution, acting whenever
there is, on the one hand, any right or guarantee of the investigated and, on the other, the public interest

1
Doutor em Direito de Estado pela Universidade Federal do Paraná. Professor Titular de Direito Proces-
sual Penal da Escola de Direito e do Programa de Mestrado Profissional em Direito da Universidade Positivo.
Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná. E-mail: rodrigo.chemim@up.edu.br
2
Cursando pós-graduação e especialização de Direito na Fundação Escola do Ministério Público do
Estado do Paraná, e, em Direito Médico no Centro Universitário Curitiba. Graduada em direito na Univer-
sidade Positivo. E-mail: ribeirogsarah@gmail.com

— 196 —
A desmaterialização do “juiz das garantias” com o inquérito policial eletrônico
Rodrigo Régnier Chemim Guimarães - Sarah Gonçalves Ribeiro

in clarifying the fact. It differs from the “instruction judge”, who is responsible for the instruction and
judgment phase. It turns out that Brazil has continental dimensions and has counties with only one judge.
This precariousness led the Supreme Court to suspend the new rule, on the grounds that the hiring of new
judges or the payment of daily fees and transfers from one judge to another district, would greatly impact
the budget of the Judiciary. This article aims to present the implementation of the electronic police inquiry
as a possible solution to this problem. The advancement of technology today already allows the registration
and documentation of what is produced in criminal investigation to leave the physical plane, on paper,
and enter the universe of virtual documentation, accessible, by anyone, in any region of the world. It also
discusses the need for the Bill that is currently being processed by the National Congress on this matter to
be improved in order to establish an ideal model of electronic inquiry to be adopted throughout the country,
allowing the monitoring of investigative acts in real time.
Key words: judge of guarantees; electronic police inquiry.

Introdução
As vantagens tecnológicas revolucionárias promovidas pela internet permitiram que,
depois da implantação do processo eletrônico, no Brasil, nos últimos cinco anos se passasse
a discutir a possibilidade de também se utilizar essa ferramenta para digitalizar o inquérito
policial e aproximar as instâncias formais de controle da criminalidade3.
Atualmente, o tema ganha nova importância no país ao se correlacionar com a alteração
operada no Código de Processo Penal brasileiro, pela Lei nº 13.964, de 2019, que introduziu
a figura do “juiz das garantias”. A novidade veio atender a necessidade de afastar o juiz que
julgará o processo (denominado de “juiz da instrução”) da fase de investigação, estabelecendo
a atuação de outro magistrado nessa fase preliminar: o “juiz das garantias”.
O papel do “juiz das garantias” é acompanhar e fiscalizar a legalidade da investigação
e decidir a respeito de medidas cautelares pessoais, reais e probatórias, quando houver a
necessidade de ponderar os direitos à intimidade, propriedade, liberdade ou qualquer outro,
frente ao interesse público. Com esse modelo, o “juiz de instrução”, que opera na fase
processual e julga o caso, não fica “contaminado” psicologicamente, pois permanece alheio
às discussões pré-processuais4. Essa cisão funcional exigindo juízes diferentes para cada etapa

3
FURLANETO NETO, Mário; SANTOS, José Eduardo Lourenço dos; GIMENES, Eron Veríssi-
mo. Crimes na internet e inquérito policial eletrônico. 2ºed., São Paulo: Edipro, 2018, p. 11.
4
Sobre a importância de se evitar que um mesmo juiz que atue na fase de investigação possa julgar
o caso, é relevante a lição de CORDERO, Franco. Guida alla Procedura Penale. Torino: Utet, 1986, p. 51,
quando refere à possibilidade de o juiz que opera sem contraditório vir a construir “quadros mentais para-
noicos”, a partir do “primado das hipóteses sobre o fato”. Sobre o tema específico do “juiz das garantias”
vide, também: LOPES JR., Aury; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Investigação Preliminar no Processo
Penal. 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 2013, pp. 404 e ss.; MAYA, André Machado. Imparcialidade e Processo
Penal: da prevenção da competência ao juiz das garantias. 2ª ed., São Paulo: Atlas, 2014, pp. 203 e ss.;
ANDRADE, Mauro Fonseca. Juiz das Garantias. 2ª ed., Curitiba: Juruá, 2015, passim; SALAS, Denis. O
Papel do Juiz. In: DELMAS-MARTY, Mirelle (Organizadora). Processos Penais da Europa. Tradução de
Fauzi Hassan Choukr. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2005, pp. 507-562; ARMENTA DEU, Teresa. Estudios
de Justicia Penal. Madrid: Marcial Pons, 2014, pp. 122-124; VOLK, Klaus. Curso Fundamental de De-
recho Procesal Penal. Tradução da edição alemã, para o espanhol, por Alberto Nanzer, Noelia T. Núñez,
Daniel R. Pastor e Eugenio Sarrabayrouse. Buenos Aires: Hammurabi, 2016, pp. 77-78; ROXIN, Claus.

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A desmaterialização do “juiz das garantias” com o inquérito policial eletrônico
Rodrigo Régnier Chemim Guimarães - Sarah Gonçalves Ribeiro

da persecução penal é utilizada em diversos países ocidentais, a exemplo da Itália5, França6,


Alemanha7, Paraguai8, Colômbia9 e Chile10.
Sucede que um dia antes da lei brasileira entrar em vigor, no dia 22 de janeiro de 2020, o
capítulo que instituía o “juiz das garantias” foi suspenso por decisão liminar do ministro Luiz
Fux, da Suprema Corte, em ação direta de inconstitucionalidade movida pela Associação
dos Magistrados Brasileiros11. Os reclamos se relacionam, principalmente, com questões
orçamentárias, concernentes ao elevado custo, seja para a contratação de mais magistrados,
seja para promover o deslocamento de um juiz para atender as investigações que tramitam em
comarca diferente de sua competência originária.
Sendo assim, apresenta-se, neste artigo, a proposta da urgente implantação do inquérito
policial eletrônico em todo o país, o que já vem sendo debatido no Congresso Nacional e
implantado por iniciativas isoladas em alguns Estados, e que permitiria suprir o magistrado
de informações e capacidade atuação, na fase da investigação, por este meio. Essa solução,
no entanto, somente será bem sucedida se forem empregadas regras uniformes em todo
o território nacional, evitando alguns modelos já em curso que adotam a terminologia de
“inquéritos policiais eletrônicos”, mas, na prática, não permitem acompanhamento em tempo
real dos atos de investigação. A proposta, inclusive, poderia ser adotada por países que ainda
não efetivaram o “juiz das garantias” em seus respectivos processos criminais12.

Derecho Procesal Penal. Tradução do alemão para o espanhol por Gabriela E. Córdoba e Daniel R. Pastor.,
Buenos Aires: Editores del Puerto, 2000, pp. 73 e ss.; WINTER, Lorena Bachmaier. Acusatorio versus In-
quisitivo. Reflexiones acerca del proceso penal. In: WINTER, Lorena Bachmaier (Coord.) Proceso penal y
sistemas acusatorios. Madrid: Marcial Pons, 2008, pp. 11-48, pp. 40-41; ILLUMINATI, Giulio. El Sistema
Acusatorio en Italia. In: WINTER, Lorena Bachmaier (Coord.) Proceso penal y sistemas acusatorios. Ma-
drid: Marcial Pons, 2008, pp. 135-160, pp. 152 e ss.
5
Desde 1989, conforme o art. 328, do Codice di Procedura Penale (ITALIA, Codice di procedura
penale e leggi complementari. Giurisprudenza, schemi e tabelle. A cura di Aurelio Barazzetta e Renato
Bricchetti, Milano: Gruppo 24ore, 2012, p, 161).
6
Desde o ano 2000, com a Lei 200-516, que inseriu o artigo 137-1 no Code de Procédure Pénale
(FRANÇA. Códe de Procédure Pénale).
7
Conforme §162 do Código de Processo Penal alemão (ALEMANHA. Strafprozeßordnung).
8
Desde 1998, conforme o art. 282, do Código Procesal Penal del Paraguay (PARAGUAI. Codigo
Procesal Penal de la República del Paraguay).
9
Desde 2002, com a alteração do artigo 250 da Constituição colombiana (COLOMBIA. Acto legis-
lativo 3 de 2002).
10
Com implantação gradual, entre 2000 e 2005, conforme os arts. 9º e 70, do Codigo Procesal Penal
chileno (CHILE. Codigo Procesal Penal del Chile).
11
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº
6.298. Decisão proferida em 22 de janeiro de 2020. Relator Ministro Luiz Fux.
12
Essa realidade não é uma exclusividade brasileira. Na Áustria e em diversos países da comunida-
de europeia, por exemplo, já se enfrentou problema similar em decorrência de comarcas com juiz único.
Conforme decidido pela Comissão Europeia de Direitos Humanos, no caso Fey v. Áustria, julgado em
24.02.1993, entendeu-se que, em comarcas pequenas, com um único juiz, ter o mesmo juiz na fase de in-
vestigação e julgamento não violaria o princípio da imparcialidade do julgador. Justificou-se a aceitação em
razão da precária estrutura do Judiciário austríaco, à época, que contava com apenas um juiz nas comarcas
menores para julgar casos de menor potencial ofensivo. No voto vencido do juiz Spielmann restou anotado

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1. A tentativa de implementação do “juiz das garantias” no


Brasil: as barreiras orçamentárias e de organização
jurisdicional.
Um dos argumentos centrais para evitar a concretização do “juiz das garantias”,
levantado na ação direta de inconstitucionalidade proposta pela Associação dos Magistrados
Brasileiros – AMB, é que “a criação do ‘Juiz das Garantias’ pressupõe a existência de pelo
menos 2 magistrados em cada Comarca, para o seu regular funcionamento, de sorte a exigir
dos Estados da Federação a ampliação dos quadros de juízes”13. Ademais, a solução de
promover um “rodízio de magistrados”, dada pelo parágrafo único do artigo 3º-D, do Código
de Processo Penal, também não seria viável, pois ela implica aumento de gastos com o
deslocamento e com o pagamento de verbas acessórias para permitir o exercício da jurisdição
fora da residência na comarca.
Como se vê, o ponto chave do reclamo da AMB está relacionado ao aumento de despesas
do Poder Judiciário. Nas comarcas onde existe mais de um juiz lotado, o problema é fácil de
resolver, pois um juiz atua nos casos do outro, a depender da fase da persecução penal. No
entanto, o Brasil ainda conta com inúmeras comarcas com apenas um juiz designado14. Soma-
se a isso, o fato de que a distância física entre as sedes das comarcas no Brasil é, por vezes,
muito grande, principalmente na região norte, onde, em alguns casos, somente se chega a
determinados municípios depois de longa e cansativa viagem, muitas vezes acessíveis apenas
por barcos ou por aviões de pequeno porte.

seu protesto no sentido de que “se a composição dos tribunais distritais na Áustria pode de fato, em certas
ocasiões, apresentar problemas organizacionais, esse não é um fator que possa influenciar as decisões das
instituições de Estrasburgo”. E é bastante esclarecedora a opinião concorrente do juiz Martens, quando afir-
mou que “muitos Estados Contratantes possuem um sistema de Tribunais Distritais essencialmente seme-
lhante ao da Áustria. Suas principais características são uma rede estreita de tribunais geralmente pequenos,
onde casos civis e criminais de menor importância são tratados localmente (ou seja, onde os interessados
estão domiciliados), em processos caracterizados por um mínimo de formalidades. Isso torna possível para
aqueles que desejam se defender e resolver os casos em pouco tempo e com um mínimo de custos e despe-
sas. A extensão da doutrina De Cubber a processos criminais perante os Tribunais Distritais perturbaria in-
dubitavelmente esse valioso sistema, mesmo que apenas porque se possa supor que a situação não seja com
frequência semelhante à descrita pelo governo que alegou que “nas áreas rurais da Áustria muitos tribunais
distritais têm apenas um juiz ou um juiz pode ser responsável por vários tribunais distritais”. Exigir, em tais
situações, que um caso que não seja julgado por um juiz que tenha feito inquéritos preliminares resultaria na
necessidade de o julgamento em outro Tribunal Distrital para o qual o acusado teria que viajar”. Tradução
livre. (EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS. Case of Fey v. Austria. Application nº 14396/88).
13
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6298. Petição ini-
cial nº 81644/19. Relator ministro Luiz Fux. Brasília, 27 de dezembro de 2019.
14
O Conselho Nacional de Justiça apresentou estatística na qual indica que, no ano de 2018, “em
19% das unidades judiciárias apenas um juiz trabalhou na mesma unidade, sem sistema de substituição,
descontadas aquelas realizadas por menos de 60 dias. Nas varas únicas das Justiça Federal tal situação
ocorre com maior frequência, em 18% dos casos.” Há Estados da federação, como Minas Gerais e Bahia,
por exemplo em que mais de 60% das comarcas são constituídas por vara única. BRASIL. Conselho Nacio-
nal de Justiça. Dados Estatísticos de Estrutura e Localização das Unidades Judiciárias com Competência
Criminal. Brasília: CNJ, 2020, p. 12.

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A desmaterialização do “juiz das garantias” com o inquérito policial eletrônico
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Assim, a solução aparenta não fugir da ampliação de gastos pelo Poder Judiciário
brasileiro: ou se promove a contratação de novos juízes e servidores, o que é custoso para o
Estado, ou se ampliam os gastos com deslocamentos e diárias dos magistrados, delegados,
policiais, promotores, defensores públicos, com igual custo à advocacia privada, para atender
outras comarcas, principalmente no interior do país.

2. A solução pela implantação do inquérito policial


eletrônico e a busca pelo modelo ideal.
Se o custo elevado de se contratar novos magistrados é um dos empecilhos para aceitação
da nova regra do “juiz das garantias”, o emprego da tecnologia pode ser uma solução. Os
deslocamentos e consequentes gastos dos profissionais de uma comarca à outra somente
serão exigíveis na exata medida em que os inquéritos policiais seguirem sendo físicos e não
eletrônicos. Ou seja: a solução para evitar gastos excessivos com o deslocamento daqueles
que operam na fase de investigação virá com o incremento da implantação de um modelo
de inquéritos policiais eletrônicos, que dispense a presença física do juiz e demais atores
processuais, mas siga permitindo seu acompanhamento em tempo real.
Sucede que nesse tema ainda não há uniformidade de trato nacional, com iniciativas
pontuais sendo implantadas, desde 2018, em um ou outro Estado da federação15, permitindo
dizer, desde logo, que as vantagens da novidade dependem muito do modelo que se adota. Em
alguns casos o inquérito é chamado de “eletrônico”, mas não é produzido nesse meio, sendo
digitalizado, de uma única vez, apenas ao final. Em outros, as plataformas virtuais permitem
que as peças sejam produzidas diretamente no modelo virtual. Esse segundo modelo é o
ideal. O essencial é que os atos de investigação sejam documentados virtualmente na exata
medida em que eles venham sendo produzidos e não todos de uma única vez, ao final. Se a
investigação for toda registrada na plataforma virtual, desde o registro da “notitia criminis”
(via boletim de ocorrência, notícia de fato, portaria ou auto de flagrante) até o relatório final
e se isso for sendo feito em tempo real (salvo nos casos de diligências em curso que exijam
sigilo16), basta ter a chave de acesso ao sistema para acompanhar, à distância, tudo o que
ocorre na investigação.
Então, se a implantação do “juiz das garantias” é uma oportunidade para acelerar a
implantação do inquérito policial eletrônico no Brasil, é preciso que ela seja norteada por um

15
No Brasil apenas cinco unidades federais utilizam os inquéritos policiais na forma eletrônica: São
Paulo, Paraná, Goiás, Ceará e Distrito Federal.
16
V.g. interceptação de comunicação telefônica e busca e apreensão. Nesses casos, apenas o juiz e o
Ministério Público seguiriam acompanhando, à distância e em tempo real, numa plataforma virtual para-
lela ao inquérito policial eletrônico, mas a defesa do investigado não teria acesso enquanto não encerrada
a diligência, nos termos da Súmula Vinculante nº 14, do Supremo Tribunal Federal, incorporada tanto no
artigo 7º, XIV c.c. §11, do Estatuto da OAB, alterado pela Lei 13.245/2016, quanto no inciso XV, do novo
artigo 3º-B, do CPP, introduzido pela Lei nº 13.964/2019, e que consolidou esse entendimento, determinan-
do ao “juiz das garantias” que assegure “prontamente, quando se fizer necessário, o direito outorgado ao
investigado e ao seu defensor de acesso a todos os elementos informativos e provas produzidos no âmbito
da investigação criminal, salvo no que concerne, estritamente, às diligências em andamento”.

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A desmaterialização do “juiz das garantias” com o inquérito policial eletrônico
Rodrigo Régnier Chemim Guimarães - Sarah Gonçalves Ribeiro

modelo nacional capaz de servir à fiscalização em tempo real, deixando de lado iniciativas
que parecem ser transformadoras, mas que, na prática, seguem com os mesmos vícios e
dificuldades do inquérito físico.
Assim, a cada ato realizado pela autoridade policial todos os atores internamente
interessados e legitimados terão ciência do registro e do seu conteúdo, de forma simultânea
e em tempo real. Além disso, no que diz respeito a segurança dos dados das investigações,
o documento digital apresenta níveis muito superiores de segurança em comparação com o
documento físico, facilmente extraviado.17 Diminui-se, também, possível manipulação ou
registro de atos de investigação com data retroativa e que visem dar ar de legitimidade a
abusos ou, até mesmo, apagar eventuais rastros de atos de corrupção18.
O inquérito policial eletrônico, então, pode ser a solução tanto para diminuir práticas
de corrupção e incrementar o controle externo da atividade policial, quanto para uma das
principais críticas em torno do “juiz das garantias”, que trata do deslocamento de magistrados
e da falta de recursos. Assim, quando o inquérito policial eletrônico for implementado em
todo o Brasil, a ideia principal é que o “juiz das garantias” seja suprido de forma eletrônica,
virtual, à distância, sem a necessidade da presença física do magistrado na comarca.
Vale anotar que há um projeto de Lei, de nº 128, de 2018, já aprovado no Senado
brasileiro e encaminhado, em 22 de abril de 2019, à Câmara dos Deputados (onde ganhou o nº
2432/2019 e foi apensado ao projeto de Lei 8045/2010, de novo Código de Processo Penal19),
que prevê nova redação para o artigo 9º do Código de Processo Penal, nos seguintes termos:
“o inquérito policial será eletrônico, com peças assinadas digitalmente, e armazenado em um
sistema informatizado único de âmbito nacional.”20
Essa mudança será importante para a atualização do processo penal e para retirar o
anacronismo da atual redação do artigo 9º do Código de Processo Penal, que segue se referindo
à escrita e à datilografia como formas de registro dos atos de investigação21. Ela contribuirá
para a celeridade, a economia e, também, para que o trabalho da polícia seja mais eficiente.
Porém, ela parece um tanto simplificadora frente aos diferentes modelos que os Estados vêm
adotando e desconsidera a necessidade de melhor regulamentar alguns pontos que possam
uniformizar a questão no Brasil. Seria necessário deixar expressamente regrada a forma de
documentação eletrônica dos atos de investigação, para que esses ocorram em tempo real

17
MORAES, Rafael Francisco Marcondes de; ORTIZ, Luiz Fernando Zambrana. Inquérito Policial
Eletrônico: tecnologia, garantismo e eficiência na investigação criminal. In: GIORDANI, Manoel Francis-
co de Barros da Motta Peixoto; MORAES, Rafael Francisco Marcondes de (Coord.). Estudos contemporâ-
neos de polícia judiciária. São Paulo: Editora LTr, 2018, p. 83-96.
18
Sobre o tema, vide GUIMARÃES, Rodrigo Régnier Chemim. Controle Externo da Atividade
Policial pelo Ministério Público. Curitiba: Juruá, 2003, p. 119.
19
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 2432/2019.
20
BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei nº 128/2018.
21
É certo que essa referência foi amenizada pela mudança promovida pela Lei 11.719, de 2008, com
a inserção do parágrafo único no artigo 405, do Código de Processo Penal, ao estabelecer que “sempre que
possível, o registro dos depoimentos do investigado, indiciado, ofendido e testemunhas será feito pelos
meios ou recursos de gravação magnética, estenotipia, digital ou técnica similar, inclusive audiovisual,
destinada a obter maior fidelidade das informações”. 

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A desmaterialização do “juiz das garantias” com o inquérito policial eletrônico
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e permitam o efetivo controle interno e externo da atividade policial. E seria fundamental


regulamentar a forma de acesso dos atos de investigação ao defensor do investigado,
compatibilizando a novidade com o regramento hoje estabelecido no inciso XIV, c.c. §11,
ambos do art. 7º, do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil e na nova redação do inciso
XV, do artigo 3º-B, do CPP.
Aproveitando o abandono do modelo físico, outro ponto relevante seria deixar
regrada a possibilidade de realização das audiências de custódia dos presos em flagrante
via videoconferência22. As críticas que alguns poucos ainda insistem em direcionar para o
uso da videoconferência23 deixaram de ser procedentes justamente em razão da melhoria da
tecnologia que hoje permite a realização do ato em tempo real, assegurando ao preso o contato
visual, oral e imediato com o juiz. Ademais, para a validade do ato por videoconferência, o
§5º, do artigo 185, do CPP, já exige que o preso seja assistido por dois advogados: um ao seu
lado e outro no ambiente em que está o juiz. Estão, portanto, asseguradas a ampla defesa, a
oralidade e a imediatidade do ato, tudo pensando no equilíbrio entre os direitos e garantias do
cidadão e a efetividade de implantação do “juiz das garantias” que, em última análise, também
reforça a primeira ideia. A interpretação limitada do texto do artigo 7º, item 5, da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, que fala em apresentação do preso à “presença” do juiz,
deve ser substituída por uma interpretação progressiva da regra, que atualize o seu sentido e
o adapte à nova tecnologia da videoconferência, até porque, como visto, isso não implica em
abandonar as garantias do preso e o texto da Convenção é de 1969, época na qual falar em
videoconferência soava como ficção científica. Se o projeto for melhorado nesses pontos, o
inquérito policial em sua forma eletrônica poderá solucionar nacionalmente um dos problemas
invocados pela Associação dos Magistrados Brasileiros em torno do “juiz das garantias”,
além de contribuir para o aprimoramento do controle externo da atividade policial e assegurar
as garantias do cidadão de ser julgado por um juiz imparcial.

Considerações Finais
Com a adoção nacional do inquérito policial eletrônico no Brasil, uniformizado no plano
legislativo, e prevendo a documentação e juntada dos atos de investigação em tempo real,

22
Na comunidade europeia a videoconferência vem sendo amplamente utilizada para minimizar cus-
tos, diminuir distâncias e assegurar confiabilidade e as garantias do investigado ou acusado. Sobre o tema
no âmbito europeu, vide, dentre outros: CESARI, Claudia. Editoriale: L’impatto delle nuove tecnologie
sulla giustizia penale – un orizzonte denso di incognite. In: Revista Brasileira de Direito Processual Penal,
Porto Alegre, vol. 4, n. 3, p. 1167-1188, set./dez. 2019; e GONZÁLEZ, Félix Valbuena. La intervención a
distancia de sujetos en el proceso penal. In: Revista del Poder Judicial, n. 85, Madrid: Imprenta Nacional
del Boletín O­ficial del Estado, jan/março de 2007, pp. 221-288, p. 237.
23
No Brasil a resistência de sua adoção nas audiências de custódia se ilustra pela decisão do ministro
Dias Toffoli, como Presidente do Conselho Nacional de Justiça, proferida em 19 de novembro de 2019, defe-
rindo liminar em pedido formulado contra a Resolução do Conselho da Magistratura do Tribunal de Justiça de
Santa Catarina, que regulava seu uso na audiência de custódia. Essa postura, no entanto, colide com o consa-
grado emprego da videoconferência no curso dos processos criminais brasileiros, inclusive com regramento
firmado tanto pelo Conselho Nacional de Justiça (Resolução nº 105/2010) quanto no Código de Processo
Penal (artigos 185, §2º, 217 e 222), desde o advento da Lei nº 11.690, de 2008 e da Lei nº 11.900, de 2009.

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A desmaterialização do “juiz das garantias” com o inquérito policial eletrônico
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qualquer magistrado, em qualquer lugar do país, teria condições de fiscalizar e acompanhar


à distância o que se produz na investigação. Qualquer medida cautelar pode ser, portanto,
analisada e decidida virtualmente. Complementa esse modelo a necessidade de autorização
expressa para audiências de custódia por videoconferência, permitindo encerrar uma
discussão anacrônica que, de forma surpreendente, ainda encontra guarida no CNJ e suprir o
deslocamento físico do magistrado para as comarcas menores, com juízes únicos, sem renunciar
às garantias constitucionais do custodiado. A mesma providência da videoconferência cabe
nos demais casos em que haja a necessidade de audiência com o magistrado (v.g. “habeas
corpus”, pedidos de liberdade provisória e produção antecipada de provas urgentes). Ademais,
o custo de sua implantação é significativamente inferior ao da contratação de novos juízes,
promotores, delegados e defensores públicos.
Para evitar que modelos regionalizados de inquérito eletrônico premiem burlas à
fiscalização externa (a exemplo de modelos nos quais se faça a investigação toda em sigilo e
somente ao final se digitalize o que foi produzido), é preciso que se criem regras uniformes
do inquérito policial eletrônico no Código de Processo Penal, com aplicação em todos os
Estados.
Conclui-se, então, que a criação de um mecanismo que viabilize o inquérito policial de
forma eletrônica, seguro e padronizado, passível de acesso a todos os sujeitos da investigação
em tempo real, pode ser uma solução para muitos dos problemas do sistema processual penal.
Um modelo adequadamente implantado possibilitará que os gastos não sejam empecilho à
adoção do “juiz das garantias” não apenas no Brasil, mas em qualquer país que pretenda
avançar no processo de evolução da Justiça e no aprimoramento do Estado Democrático de
Direito.

Referências
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em 05 de março de 2020.
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leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2198852, acesso em 06 de março de
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Buenos Aires: Hammurabi, 2016.
WINTER, Lorena Bachmaier. Acusatorio versus Inquisitivo. Reflexiones acerca del proceso penal. In:
WINTER, Lorena Bachmaier (Coord.) Proceso penal y sistemas acusatorios. Madrid: Marcial
Pons, 2008, pp. 11-48.

— 205 —
Letras de crédito do agronegócio:
títulos de crédito modernos,
desmaterializados e fomentadores da economia

Luiza Nagib1
Thaís Cíntia Cárnio2

Resumo: O presente estudo tem por objetivo analisar as letras de crédito do agronegócio, demonstrando
como títulos tão tradicionais passaram por inovações no decorrer dos tempos, inclusive com sua progressiva
desmaterialização. Atualmente, esses títulos encontram-se modernizados em comparação a suas raízes,
podendo ser emitidos de forma escritural e transferidos por registros em centrais de liquidação e custódia.
Aliás, é obrigatório que sejam registrados ou depositados em entidade autorizada pelo Banco Central ou
pela Comissão de Valores Mobiliários a exercer tal atividade, promovendo maior segurança a todos os
envolvidos em sua emissão e circulação. Esses avanços permitem que sua utilização seja intensificada e os
operadores de mercado voltem sua atenção a essa nova opção de captação de recursos. Para os emissores de
tais documentos, a possibilidade de vincular direitos creditórios relacionados à produção, à comercialização,
ao beneficiamento ou à industrialização de produtos ou insumos, máquinas ou implementos agropecuários
é atraente. Mais que isso: possibilita maior atenção das instituições financeiras para conceder empréstimos
àqueles que operam nessa atividade econômica. Por outro lado, também os investidores têm seu interesse
despertado, pois os rendimentos auferidos com a aplicação de recursos financeiros em letras de crédito do
agronegócio são isentos de tributação de imposto de renda. Nesse mesmo sentido, outro benefício fiscal
merece análise. O Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio, Seguro, ou Relativas a Títulos ou Valores
Mobiliários, que incide sobre a circulação dos valores mobiliários, tem sua alíquota reduzida a zero em
operações que envolvam as letras de crédito do agronegócio. Esse tratamento tributário diferenciado, a
segurança e transparência do registro eletrônico dos títulos ora em foco, o incentivo tanto a investidores
como a instituições financeiras emissoras a transacionar com títulos dessa natureza, permitem o incremento

1
Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professora dos cursos de
Graduação e Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. E-mail: luizana-
gib @uol.com.br
2
Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professora dos cursos
de Graduação e Pós-Graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie - UPM. E-mail: thais.carnio@
gmail.com

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Letras de crédito do agronegócio: títulos de crédito modernos, desmaterializados e fomentadores da economia
Luiza Nagib - Thaís Cíntia Cárnio

da oferta de capitais disponibilizados em contratos de mútuo a serem concedidos às pessoas jurídicas cuja
atuação possa ser enquadrada como lastro das letras, impulsionando a economia nacional em um círculo
virtuoso.
Palavras-chave: Letras do Agronegócio - inovação – títulos de crédito

Abstract: This study aims to analyze agribusiness credit bond, demonstrating how such traditional
bonds have undergone innovations over time, including their progressive dematerialization. Currently, these
securities are modernized in comparison to their roots, and can be issued in book-entry form and transferred
by records in settlement and custody centers. In addition, it is mandatory that they be registered or deposited
in an entity authorized by the Central Bank or the Securities and Exchange Commission to carry out such
activity, promoting greater security for all those involved in its issue and circulation. These advances allow
its use to be intensified and market operators turn their attention to this new fundraising option.
For the issuers of such documents, the possibility of linking credit rights related to the production,
commercialization, processing or industrialization of agricultural products or inputs, machines or implements
is attractive. More than that, it makes it possible for financial institutions to pay more attention to granting
loans to those who operate in this economic activity. On the other hand, investors also have their interest
aroused, since the income earned from the application of financial resources in agribusiness credit bonds
exempt from income taxation. In this same sense, another tax benefit deserves analysis. The Tax on Credit,
Exchange, Insurance, or Bonds and Securities Transactions, which is levied on the circulation of securities,
has its rate reduced to zero in transactions involving agribusiness credit bonds. This differentiated tax
treatment, the security and transparency of the electronic registration of the securities now in focus, the
incentive for both investors and issuing financial institutions to transact with securities of this nature allows
for an increase in the supply of capital available in loan agreements to be granted to companies whose
activities can be framed as ballast of the letters, boosting the national economy in a virtuous circle.
Keywords: Agribusiness Bonds - innovation - securities

INTRODUÇÃO
Atualmente, a taxa básica de juros brasileira está cada dia mais baixa, ultrapassando
índices mínimos históricos. Esse índice é utilizado como referência para o estabelecimento
tanto dos percentuais cobrados como juros em operações de concessão crédito, como na
remuneração das operações passivas celebradas entre os investidores e as instituições
financeiras.3
Há dois resultados daí decorrentes: os encargos dos contratos de mútuo tendem a
cair (embora em velocidade e proporção muito inferior ao decréscimo da taxa básica), e a
remuneração dos investimentos bancários tornam-se menos rentáveis.
É nesse cenário que notícias alvissareiras podem ser encontradas em clássicos institutos
de Direito Empresarial, como os títulos de crédito do agronegócio, que ganharam ares de
modernidade com inovações trazidas à sua forma de emissão, circulação e controle, sem
perder sua natureza.
Com tais diferenciais, esses títulos apresentam-se como alternativa muito interessante,
tanto para empresas relacionadas a agronegócio que necessitem de capital corrente, como

3
BRASIL, Banco Central do. Comunicado BACEN nº 35131 de 05/02/2020. Disponível em:
https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=389652. Último acesso em Fev 05 2020.

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Letras de crédito do agronegócio: títulos de crédito modernos, desmaterializados e fomentadores da economia
Luiza Nagib - Thaís Cíntia Cárnio

para investidores que busquem aplicar sua poupança com retorno financeiro mais vantajoso,
além de tratamento fiscal diferenciado. Essas e outras peculiaridades serão objeto de análise
deste trabalho.

1. LETRAS DE CRÉDITO DO AGRONEGÓCIO


A Lei nº 11.076/2004 é o berço de uma importante inovação no âmbito dos títulos de
crédito relacionados ao agronegócio, criando três novos documentos representativos de
promessa de pagamento em dinheiro, com lastro em direitos creditórios originários das
transações realizadas entre produtores rurais, ou suas cooperativas e terceiros: o Certificado
de Recebíveis do Agronegócio, o Certificado de Direitos Creditórios do Agronegócio e a
Letra de Crédito do Agronegócio, esta última foco do presente estudo.
Historicamente, as origens desses instrumentos remontam o ano de 1964, com a criação
do Sistema Nacional de Crédito Rural – SNCR4, que objetivava implementar programas
integrados para o aumento de produtividade dos produtos alimentícios, de incentivo à
utilização de insumos modernos, além do fortalecimento do crédito rural e fomento à indústria
voltada para a atividade rural.5
Em 1967, o Decreto-Lei nº 167 regulamentou a Cédula de Crédito Rural, uma promessa
de pagamento em dinheiro, com ou sem garantia, cujos recursos captados deveriam ser
direcionados à atividade rural, conforme condições constantes do contrato firmado com o
mutuante. O mesmo normativo dispôs sobre a Nota Promissória Rural e a Duplicata Rural,
que representavam a promessa de pagamento pela aquisição de mercadorias agrícolas,
agropecuárias, extrativa ou pastoril, vendidas diretamente por produtores rurais ou suas
cooperativas. 6
A Lei nº 8.929/94 instituiu a Cédula de Produto Rural, que retrata um compromisso futuro
de entrega de produtos rurais, podendo ou não apresentar em seu texto garantia cedularmente
constituída7. No caso de inadimplemento, é cabível ação de execução para entrega de coisa
incerta, vez que se trata de título líquido e certo, exigível pela quantidade e qualidade do
produto nele previsto.8
Em 2004, elaborada em conjunto com o Ministério da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento (“MAPA”), a Federação Brasileira de Bancos (“FEBRABAN”) e várias
entidades representativas do setor agrícola, a Poder Legislativo aprova a Lei nº 11.076, com

4
BRASIL, República Federativa do. Lei nº 4.595/1964. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L4595.htm. Último acesso em Fev 01 2020.
5
SAVOI, José Roberto (coord.). Agronegócio no Brasil: uma perspectiva financeira. Ed. Saint
Paul, 2009, 1ª edição, São Paulo, pp. 101-105.
6
BRASIL, República Federativa do. Decreto-Lei nº 167/1967. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del0167.htm. Último acesso em Fev 01 2020.
7
BRASIL, República Federativa do. Lei nº 8.929/1994. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8929.htm. Último acesso em Fev 01 2020.
8
PEREIRA, Lutero de Paiva. Comentários à lei da cédula de produto rural. Curitiba, Juruá,
2005, p. 63.

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Letras de crédito do agronegócio: títulos de crédito modernos, desmaterializados e fomentadores da economia
Luiza Nagib - Thaís Cíntia Cárnio

vistas a incrementar os mecanismos de crédito, financiamento e seguro para o agronegócio,


além de ampliar a liquidez. São reformulados dois títulos clássicos do ambiente rural:
Certificado de Depósito Agropecuário e o Warrant Agropecuário, que permitem a
transferência de produtos agropecuários já existentes e devidamente custodiados junto a
um armazém geral.9
Conforme mencionado anteriormente, esse mesmo regramento cria o Certificado de
Recebíveis do Agronegócio, o Certificado de Direitos Creditórios do Agronegócio e a Letra
de Crédito do Agronegócio.
A Letra de Crédito do Agronegócio, objeto do presente estudo, representa uma promessa
de pagamento em dinheiro, com lastro em direitos creditórios originários das transações
realizadas entre produtores rurais, ou suas cooperativas, e terceiros, inclusive financiamentos
ou empréstimos, relacionados com a produção, a comercialização, o beneficiamento ou a
industrialização de produtos ou insumos agropecuários ou de máquinas e implementos
utilizados na atividade agropecuária. Trata-se de título de emissão exclusiva de instituições
financeiras públicas ou privadas.10
Além de sua denominação no texto (Letra de Crédito do Agronegócio), devem conter
o nome da instituição emitente, a assinatura de seus representantes legais, número de
ordem, local e data de emissão, o valor nominal, identificação dos direitos creditórios a
ela vinculados, taxa de juros, data de vencimento, nome do titular e cláusula “à ordem”.
Considerando que a grande maioria das emissões são escriturais, a assinatura dos
representantes legais é substituída pelo registro da instituição responsável pela manutenção
dos sistemas de escrituração.
Cabe salientar que o valor não poderá exceder o valor total dos direitos creditórios
do agronegócio vinculados ao título, respondendo, seus emitentes por sua origem e
autenticidade.11
Como se pode depreender do texto legal, a Letra é um título de crédito nominativo, de
livre negociação, sendo válido como título executivo extrajudicial, emitidas por instituições
financeiras, públicas ou privadas, credoras dos direitos que constituem seu lastro.
Ao possibilitar que credores dos produtores e suas cooperativas emitam títulos lastreados
em dívidas relacionadas ao agronegócio para que possam capitalizar-se de maneira dinâmica,
os mutuantes são incentivados a conceder novas linhas de crédito a esse setor.
Além dessas características, também os investidores que aplicam em Letras de Crédito
do Agronegócio encontram uma alternativa vantajosa, dado que apresenta benefícios fiscais.
Para explicitar essa vantagem, é mister detalhar o tratamento tributário diferenciado dos
negócios envolvendo tal título.

9
BRASIL, República Federativa do. Lei nº 11.076/2004. Disponível em: http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Lei/L11076.htm. Último acesso em Fev 01 2020.
10
Idem.
11
Ibidem.

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Letras de crédito do agronegócio: títulos de crédito modernos, desmaterializados e fomentadores da economia
Luiza Nagib - Thaís Cíntia Cárnio

2. TRATAMENTO FISCAL DA LETRA DE CRÉDITO DO AGRONEGÓCIO


Considerando as características da Letra de Crédito do Agronegócio (LCA) supra
mencionadas, tem-se as seguintes relações jurídicas: o banco utiliza seus recursos para
emprestá-lo a um terceiro, pagando uma taxa menor para captar do que a taxa cobrada para
emprestar.
O rendimento do título do investidor aumenta de acordo com o valor aplicado e o prazo de
duração da aplicação, qual seja, quanto maior o capital e quanto maior o período da aplicação,
maior será o retorno pelo investimento.
A aplicação em LCA goza de alguns benefícios tributários na legislação brasileira,
também denominados incentivos fiscais, são eles: (i) isenção do Imposto sobre a Renda, isto
é, o seu rendimento não será tributado como “renda nova” pelo Imposto sobre a Renda; e (ii)
o Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio, Seguro, ou Relativas a Títulos ou Valores
Mobiliários, que incide sobre a circulação dos valores mobiliários, tem sua alíquota reduzida
a zero (Ø).Geralmente esse tipo de aplicação pode ter um rendimento superior às demais
aplicações financeiras, devido à isenção do Imposto sobre a Renda (IR), tudo dependerá da
taxa de juros que lhe for aplicada.
A noção de incentivo fiscal alude à característica de benesse estatal, pois o Estado,
exercendo o papel de agente normativo e regulador da atividade econômica, conforme o
disposto no art.174 da Constituição Federal do Brasil, induz o contribuinte/investidor a
algo que ele pretende com aquela conduta, por exemplo, investimento em Letras de Crédito
do Agronegócio visando o fomento da atividade agrícola no País ou em determinada
região. Nesse sentido o Estado abrirá mão de sua receita tributária ou de parte de sua
receita12
O imposto pode ser usado com finalidade fiscal que significa arrecadar para os cofres
públicos, ou com finalidade extrafiscal, que não tem a arrecadação como objetivo primeiro,
mas sim o direcionamento do comportamento do contribuinte em uma determinada direção,
como, por exemplo, incentivar o contribuinte a investir em LCA, de modo a implementar o
agronegócio. Nesse último sentido (extrafiscalidade), o Estado não objetiva apenas arrecadar
impostos, mas direcionar o contribuinte a determinados comportamentos que julga importantes
para o País num determinado momento.
O conceito de extrafiscalidade é bem explicado por Roque Antonio Carrazza13: “Há
extrafiscalidade quando o legislador, em nome do interesse coletivo, aumenta ou diminui
as alíquotas e/ou as bases de cálculo dos tributos, com o objetivo principal de induzir os
contribuintes a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa”.

12
GOMES, Denis Vieira. O Regime Jurídico dos Incentivos Fiscais. São Paulo, Dissertação de
Mestrado defendida Pontificia Universidade Católica de São Paulo / SP, 2019, p.103.
13
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. São Paulo: Malhei-
ros, 2015, p.133.

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Letras de crédito do agronegócio: títulos de crédito modernos, desmaterializados e fomentadores da economia
Luiza Nagib - Thaís Cíntia Cárnio

A tributação extrafiscal deverá seguir critérios racionais e constitucionais, afim de que


não se cometam abusos. Neste sentido pondera Héctor Villegas14: “No obstante, este tema
de los fines extrafiscales de la tributación debe ser tomado com cautela. El fin primordial
de los tributos es fiscal Y consiste em la necessidad de lograr recursos para que el Estado
cumpla su cometido. Uma exagerada insistência em los fines extrafiscales puede producir el
efecto negativo de destruir la esencia misma del tributo, y, por ende, del derecho tributário,
desdibujando la capacidade contributiva y minando los princípios básicos en quem se apoya
esta ciencia.”.
Assim, a utilização do imposto com finalidade extrafiscal objetiva efeitos na área
econômica e social, superando, na grande maioria das vezes, o efeito arrecadatório, qual seja,
o abastecimento dos cofres públicos via arrecadação tributária.
A isenção pertence às normas de estrutura, as quais podem modificar a regra-matriz de
incidência tributária, pois que impede que haja e incidência, não se falando em fato jurídico
tributário e nem em obrigação tributária15.
Por sua vez, a alíquota zero, embora zero seja um número decimal, mas, pela matemática,
todo e qualquer número multiplicado por zero será zero – toda e qualquer base de cálculo
para fins tributários que seja multiplicada por uma alíquota zero resultará, obrigatoriamente,
zero. Nesse sentido a alíquota zero se aproxima da isenção, embora sejam institutos diversos.
A doutrina brasileira também se manifesta nesse sentido, como o faz Aires Barreto16:
“Alíquota zero é, pois, nítida mutilação do critério quantitativo, vale dizer, supressão de um
dos componentes necessários ao nascimento da obrigação tributária. Logo, não obstante a
terminologia eufemística, é fenômeno impeditivo do surgimento do laço obrigacional”.
Portanto, os benefícios fiscais concedidos na LCA enquadram-se nessa tributação
extrafiscal, seja através da isenção ou da alíquota zero. Tentando alterar o comportamento
do investidor brasileiro para interesses regionais e/ou nacionais tal como o investimento em
Letra de Crédito do Agronegócio. Os benefícios fiscais concedidos através do Imposto sobre
a Renda ou o Imposto sobre o Crédito, Câmbio, Seguro, ou Relativas a Títulos ou Valores
Mobiliários demonstram a extrafiscalidade da tributação.

CONCLUSÕES
A Letra de Crédito do Agronegócio, na legislação brasileira, possui incentivos fiscais via
isenção do Imposto sobre a Renda e por estar sujeita à alíquota zera no tocante ao Imposto
sobre o Crédito, Câmbio, Seguro e Relativo a Títulos e Valores Mobiliários.

14
Apud Simone Martins Sebastião, Tributo ambiental – extrafiscalidade e função promocional
do direito. Curitiba: Juruá, 2007, p.145.
15
CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: linguagem e método. 2.ed. São Paulo: Noe-
ses, 2013, p.601.
16
BARRETO, Aires F. Base de Cálculo, alíquota e princípios constitucionais. São Paulo: Max
Limonad, 1998, p.76.

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Letras de crédito do agronegócio: títulos de crédito modernos, desmaterializados e fomentadores da economia
Luiza Nagib - Thaís Cíntia Cárnio

Esses incentivos fiscais demonstram o caráter extrafiscal da tributação, isto é, a arrecadação


não é o objetivo principal da tributação, mas sim o direcionamento do comportamento do
contribuinte no sentido de implementar o agronegócio no País.
Esse tratamento tributário diferenciado, a segurança e transparência do registro eletrônico
dos títulos ora em foco, o incentivo tanto a investidores como a instituições financeiras
emissoras a transacionar com títulos dessa natureza, permitem o incremento da oferta de
capitais disponibilizados em contratos de mútuo a serem concedidos às pessoas jurídicas cuja
atuação possa ser enquadrada como lastro das letras, impulsionando a economia nacional em
um círculo virtuoso.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL, Banco Central do. Comunicado BACEN nº 35131 de 05/02/2020. Disponível em: https://
www.legisweb.com.br/legislacao/?id=389652. Último acesso em Fev 05 2020.
BRASIL, República Federativa do. Decreto-Lei nº 167/1967. Disponível em: http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del0167.htm. Último acesso em Fev 01 2020.
BRASIL, República Federativa do. Lei nº 4.595/1964. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/LEIS/L4595.htm. Último acesso em Fev 01 2020.
BRASIL, República Federativa do. Lei nº 8.929/1994. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/LEIS/L8929.htm. Último acesso em Fev 01 2020.
BRASIL, República Federativa do. Lei nº 11.076/2004. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Lei/L11076.htm. Último acesso em Fev 01 2020.
BARRETO, Aires F. Base de Cálculo, alíquota e princípios constitucionais. São Paulo: Max
Limonad, 1998.
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. São Paulo: Malheiros,
2015.
CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: linguagem e método. 2.ed. São Paulo: Noeses,
2013.
GOMES, Denis Vieira. O Regime Jurídico dos Incentivos Fiscais. São Paulo, Dissertação de
Mestrado: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, 2019.
PEREIRA, Lutero de Paiva. Comentários à lei da cédula de produto rural. Curitiba, Juruá, 2005.
SAVOI, José Roberto (coord.). Agronegócio no Brasil: uma perspectiva financeira. Ed. Saint Paul,
2009, 1ª edição, São Paulo.
VILLEGAS, Héctor. Apud Simone Martins Sebastião. Tributo ambiental – extrafiscalidade e
função promocional do direito. Curitiba: Juruá, 2007.

— 212 —
A transformação da violência:
as novas relações permeadas pela tecnologia1

Fernando Vechi2
Eduardo Baldissera Carvalho Salles3

Resumo: A violência se modificou, não se trata apenas de uma violência dos crimes, do sangue e do
terrorismo (visível). Há uma nova forma de violência, invisível, psicológica e silenciosa. A tecnologia avança
juntamente com o capital e reconfigura novas maneiras de viver e de se comportar, de ser fitness, de ganhar
curtidas, de adquirir um pet, etc. Essas novas configurações em rede na era digital estão permeadas pela
implementação do mercado na subjetividade dos indivíduos e, a partir disso, a violência se reconfigurou. Assim,
cabe a pergunta-problema: como as relações permeadas pelos meios digitais produzem violência? A nova
violência da positividade é a violência rotineira e invisível, sistêmica, característica do neoliberalismo, onde o
indivíduo se coloca como agressor e vítima, produtora de problemas psicológicos. Não são poucos os exemplos
de pessoas que sucumbem frente a frenética busca de mais produção, mais engajamento, mais seguidores. Essa
violência psíquica é muito mais difícil de desvencilhar-se porque oculta-se nos meandros da sociedade e já
constitui hábitos contemporâneos. Checar freneticamente atualizações de amigos nas redes sociais, responder
aos memes mais engraçados ou ler um turbilhão de informações que as telas de nossos dispositivos eletrônicos
nos impõem são formas de aprisionamento em uma realidade ininterrupta. Em um loop sem fim, não há espaço
para descanso, violentando-se a sanidade mental. Conclui-se que essa relação com a tecnologia, combinada com
a lógica neoliberal que nos impõe um rito de produção ilimitado, constituem uma nova forma de expressão da
violência. Para tanto, trabalha-se com pesquisa interdisciplinar teórico bibliográfica.
Palavras-chave: Violência; Novas Tecnologias; Neoliberalismo

1
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001
2
Doutorando em Ciências Criminais, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PU-
CRS), Porto Alegre, Brasil. Professor da Universidade Estadual do Mato Grosso (UNEMAT), Brasil. fve-
chi@gmail.com.
3
Doutorando em Ciências Criminais, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PU-
CRS), Porto Alegre, Brasil, em cotutela com a Universidad de Sevilla (US), Sevilla, España. eduardo@
carvalhosalles.com.br.

— 213 —
A transformação da violência: as novas relações permeadas pela tecnologia
Fernando Vechi - Eduardo Baldissera Carvalho Salles

Abstract: Violence has changed, it is not just violence (crimes), blood and terrorism (visible). There
is a new form of violence, invisible, psychological and silent. Technology advances along with capital and
reconfigures new ways of living and behaving, being fitness, getting a tan, getting a pet, and so on. These
new networked configurations in the digital age are permeated by the implementation of the market in the
subjectivity of individuals and, from this, violence has reconfigured itself. Thus, the problem question is:
how do relationships permeated by digital media produce violence? The new violence of positivity is the
routine and invisible, systemic violence, characteristic of neoliberalism, where the individual poses as an
aggressor and victim, producing psychological problems. There are many examples of people who succumb
to the frantic search for more production, more engagement, more followers. This psychic violence is
much more difficult to disentangle because it is hidden in the intricacies of society and already constitutes
contemporary habits. Frantically checking friends for updates on social media, responding to the funniest
memes or reading a whirlwind of information that the screens of our electronic devices impose on us are
forms of imprisonment in an uninterrupted reality. In an endless loop, there is no space for rest, violating
mental sanity. It is concluded that this relationship with technology, combined with the neoliberal logic that
imposes an unlimited production rite on us, constitutes a new form of expression of violence. For that, it
works with interdisciplinary theoretical bibliographic research.
Keywords: Violence; New Technologies; Neoliberalism.

Introdução
Na natação da vida, não se percebem as dimensões da correnteza. Sente-se sua força,
a violência, a água fria, mas não há possibilidade de frear o tempo das águas, porque são
turbilhões de acontecimentos, informações, novas maneiras de viver e de se comportar, de
ser fitness, de ganhar curtidas, de adquirir um pet. Há outros nadadores ao seu redor, atrás
e a frente, animados com a força que tudo arrasta. Essa é a violência do rio comprimido
na célebre frase de Brecht, “o rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz
violentas as margens que o comprimem”4.
O nadar se tornou rápido e apressado. As águas dos mares da vida estão absolutamente
poluídas com o próprio avanço. Torna-se cada vez mais difícil movimentar-se entre escombros
e dejetos. Os espaços são cada vez menores entre uns e outros. Por conta disso, há quem se
incomode muito e nade com maior violência. Há os privilegiados do nado, que conseguem
ter espaços sustentados por outros nadadores que os colocam em posições privilegiadas. Mas
o nado segue.
Os nados são estruturados e praticados de diferentes maneiras dependendo de como
os tempos são vividos. As histórias individuais, as sequências de práticas e percepções a
partir desse movimentar estão umbilicalmente ligadas aos intervalos e ritmos desse nado
em conjunto, dependendo de uma série de variáveis como: organização societal, tecnologia,
cultura e condição biológica.
A metáfora do nado é concebida por Norbert Elias na obra Sociedade dos indivíduos5.
Elias propõe pensar a sociedade interligada através de conexões estreitas que não são passíveis
de serem entendidas nem do plano apenas micro, do nadador, nem unicamente pelo plano
macro, da formação de todos os nadadores. Todos os fios da trama estão interligados e são

4
BRECHT, Bertold. Poemas 1913-1956. 7ª edição. São Paulo: Editora 34, 2012.
5
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1994.

— 214 —
A transformação da violência: as novas relações permeadas pela tecnologia
Fernando Vechi - Eduardo Baldissera Carvalho Salles

interdependentes. A rede é composta de muitos fios, formando um grande tecido. No entanto,


não se pode compreender a totalidade da rede a partir de um único fio ou mesmo de todos
eles, isoladamente considerados. A rede só é inteligível na forma como se dão as ligações:
“Essa ligação origina um sistema de tensões para o qual cada fio isolado concorre, cada um
de maneira um pouco diferente, conforme seu lugar e função na totalidade da rede”6. O fio
individual se modifica conforme a tensão presente na estrutura da rede, entretanto, a tensão na
rede não é nada além de ligações de fios individuais singulares no interior do todo.
Na mesma linha, mas pensando a sociedade a partir da era da informação e da internet,
Castells7 define o conceito de rede como um conjunto de nós interconectados que dependem
da distância (a intensidade ou frequência da interação) entre dois pontos (posições sociais na
estrutura) ou mais perto, ou mais afastados. Porém, essa distância (física, social, econômica,
política, cultural, etc.) entre os pontos pode variar de zero ao infinito a depender da variável
proporcionada pelas tecnologias da informação que operam à velocidade da luz. Mas como a
partir dessas novas configurações, as relações foram se tornando frágeis ao ponto de cada vez
mais o indivíduo não sentir esses laços e nós?
Os indivíduos são muito mais dependentes dos outros, explica Rendueles8, do que, por
exemplo, os membros de um bando de caçadores-coletores, mas, atualmente, a imaginação
é de que somos seres autônomos que atacam caprichosamente a oferta de sociabilidade.
Segundo o autor de Sociofobia o que nos une é o consumismo, uma forma de interiorização
da desigualdade e da violência, porque afeta nossa subjetividade e, ao mesmo tempo, se
mantém invisível. Somos capazes de nos conectar através da compra e venda, mas não mais
da solidariedade e da alteridade. A compreensão da vida social é um produto da infiltração do
mercado nos nossos corpos e mentes. E a partir disso geramos violência para nós mesmos e
para os outros ligados a teia.

Novas tecnologias e a internet: a positividade das relações


no neoliberalismo
A internet concretizou-se como o principal meio de interação entre os indivíduos. Mas
proporcionou um dos maiores paradoxos possíveis: ao mesmo tempo que aproxima, afasta-
nos cada vez mais do outro. A internet nasceu no contexto da Guerra Fria com a ideia de
rede. Um sistema global de redes de computadores interligadas para evitar que a informação
estivesse armazenada em apenas um ponto específico. A intenção era de que, caso houvesse
um ataque e fossem destruídas todas as informações em determinado lugar, essas estariam
disponíveis em outro. A aceleração foi inerente a isto, ao realizar cálculos balísticos em
tempo abrupto, de 12 horas em 30 segundos, origem do nome computadores. O sonho de
se comunicar rapidamente foi criado no ápice do conflito ideológico entre Estados Unidos e
União Soviética.

6
ELIAS, Norbert. op. cit., p. 30
7
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999
8
RENDUELES, César. Sociofobia: el cambio político en la era de la utopía digital. Debate, 2015.

— 215 —
A transformação da violência: as novas relações permeadas pela tecnologia
Fernando Vechi - Eduardo Baldissera Carvalho Salles

A partir da década de 1990 ocorreu uma explosão da comunicação sem fio através da World
Wide Web (rede mundial de computadores) – ideia justamente de teia – no compartilhamento
de documentos na forma de vídeos, sons, hipertextos e imagens de qualquer usuário que
esteja conectado através de um computador pessoal. Quando a World Wide Web foi lançada,
esse era seu slogan: “vamos compartilhar o que sabemos”. A partir dos anos 2000, a internet
foi deslocada de grandes máquinas para o uso através de telefones celulares – smartphones –
uma verdadeira revolução sem volta na forma de comunicação. Com a capacidade crescente
de conectividade e largura de banda por todo o território - a comunicação sem fio se tornou
a forma predominante de interação – a internet através de dispositivos portáteis é a base da
nossa vida – do trabalho ao entretenimento.
Navegar ou nadar por um conjunto de páginas de conteúdo despertou a possibilidade
de saber tudo e de poder ilimitadamente. Liberdade sem barreiras ou sem fronteiras. Byung-
Chul Han promove um debate através de suas obras colocando a problemática do conceito de
positividade. Para além da negatividade das sociedades disciplinares da qual falava Foucault,
no qual os dispositivos operam por meio de muros, engrenagens das fábricas, barreiras e
espaços recortados. O tempo na sociedade disciplinar é medido, cronometrado, repetido,
fiscalizado. Cada qual prende-se ao seu lugar e sua rotina, permanentemente fiscalizados e
vigiados, ou seja, repleto de negatividades. Contrariamente, a sociedade digital contemporânea
distingue-se pelo excesso de positividade.
A sociedade de hoje é um lugar de prédios burocráticos, de shoppings centers, academias
de fitness, centros de ioga e clínicas estéticas. “A sociedade do século XXI não é uma sociedade
disciplinar, mas uma sociedade de desempenho. Hoje em dia, os altos muros da sociedade
disciplinar soam arcaicos; fazem parte de uma sociedade da negatividade, determinada por
ordens e proibições”9.
A positividade de um regime 24 horas por 7 dias da semana exigem total produtividade,
inclusive com a extinção do sono10. As coisas mais irredutíveis da vida, mais necessárias, a
fome, a sede, as relações amorosas, todas essas coisas se tornaram mercadoria e investimento:
“com a contrarrevolução dos anos 1980 e a ascensão do neoliberalismo, a comercialização
do computador pessoal e o desmantelamento de sistemas de proteção social, o ataque à vida
cotidiana se tornou ainda mais feroz”11. O 24/7 incita o indivíduo a adquirir, ter, ganhar,
desejar ardentemente, para, logo em seguida, desperdiçar e desprezar o outro e a negatividade.
“La utopía mercantil nos ofrece la posibilidad de satisfacer nuestros deseos sin necesidad de
atravesar una tupida red de conexiones familiares, religiosas, afectivas o estamentales”12.
A publicização do eu privado é altamente lucrativa e a demanda exige a todo momento
representações por visibilidade excessiva e exposição massiva de dados. Há um apelo
nunca antes imaginado por Debord no espetáculo, de imagens passivamente sujeitadas às
propagandas e composições audiovisuais, colocadas em plataformas digitais pelo próprio

9
HAN, Byung-Chul. Topología de la violencia. Herder Editorial, 2016, p. 181.
10
CRARY, Jonathan. 24/7 - Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
11
CRARY, Jonathan. op. cit., p. 80.
12
RENDUELES, César. Sociofobia: el cambio político en la era de la utopía digital. Debate, 2015,
p. 20.

— 216 —
A transformação da violência: as novas relações permeadas pela tecnologia
Fernando Vechi - Eduardo Baldissera Carvalho Salles

sujeito. O smartphone é, em realidade, um espelho próprio, a subjetividade, o qual produz


imagens de si e do mundo, numa lógica industrial. “O homem, ao invés de servir das imagens
em função do mundo, passa a viver em função de imagens. Não mais decifra as cenas da
imagem como significados do mundo, mas o próprio mundo vai sendo vivenciado como
conjunto de cenas”13.
Está-se diante de subjetivações ligadas a uma lógica contábil, financeiramente lucrativa
ao eu narcísico14 exposto através de imagens. Portanto, lógica essencialmente neoliberal, numa
relação do excesso das imagens e da produção, excesso de si que leva ao colapso, conforme
explica Han15, as imagens são mais reais que as pessoas. Nas palavras de Dardot & Laval16,
uma “ultrapassagem indefinida de si”, o sujeito precisa estar no melhor enquadramento, na
imagem mais esteticamente positiva, com a melhor roupa, com o melhor corpo, com a melhor
comida, na paisagem mais viva, com as cores mais abundantes.
A lógica da busca da felicidade segue o investimento de dinheiro e tempo em um evento
no qual comumente se chama por festa ou “balada”, “happy hour”, etc. Ali está um boom
de felicidade. Trata-se de um local fechado e escuro, rodeado de seguranças e câmeras que
possuem a função de evitar confrontos entre as próprias pessoas que se dizem estar ali para
se divertir. Um local em que se vende drogas, muitas vezes com promoções e descontos, mas
que proíbe e coage o uso de outras substâncias que não podem ser consumidas. A atração
nestes locais ocorre por parceiros que demonstram a maior felicidade, seja por desenvoltura
corporal, seja por possuir beleza e despertar a maior atenção.
Pessoas que estão no mesmo local, celebrando a felicidade, livres, desprovidas de
barreiras, mas ao mesmo tempo, cercadas de bloqueio e controle. Pessoas que querem conhecer
outras pessoas, mas possuem uma imensa dificuldade na comunicação. Conexões que são,
muitas vezes, feitas através de modos de agir e pensar autoritários e machistas17, ou que se
promovem apenas pela utilização de drogas. Há quem inclusive conte o número de pessoas
que se consegue beijar dentro das festas – numa lógica de quantidade, de número, de mercado,
de empresa. Quanto maior a quantidade, maior o sentimento de poder ou de ter alcançado
se satisfazer emocionalmente. A otimização do amor nos tempos de liquidez: um crescente
contato amoroso entre relações frágeis, conectados por um aplicativo que dá a sensação de
liberdade de escolha do parceiro, mas mascara uma lógica de mercadoria descartável18.

13
FLUSSER, Vilém. Ensaio sobre a fotografia: para uma filosofia da técnica. Lisboa: Relógio
D’Água, 1998, p. 29.
14
Todos somos, para Freud (1996), portadores de um narcisismo primário – para criar autoestima.
Ele é importante para que possamos produzir amor próprio. O problema não é o narcisismo primário, mas
quando ele se torna patológico, isto é, um narcisismo secundário que produz um abandono completo do
indivíduo pelo mundo externo. FREUD, Sigmund. Sobre o narcisismo: uma introdução (1914). Obras com-
pletas, v. 14, 1996.
15
HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: neoliberaliismo e novas técnicas de poder. Tradução: PEREI-
RA, Miguel Serras. Lisboa: Relógio D’Água, 2014.
16
HAN, Byung-Chul. op. cit., 2016.
17
Como começar uma relação que se marca muitas vezes pelo medo do outro?
18
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2004.

— 217 —
A transformação da violência: as novas relações permeadas pela tecnologia
Fernando Vechi - Eduardo Baldissera Carvalho Salles

Precisa-se do prazer, das experiências que digam: “estás vivo”. “Assim, tudo tem de ser
experimentado, sentido, vivenciado, conquistado, antes que seja tarde demais, pois não existe
amanhã”19, tampouco passado. A experiência de um nado individual e presente, do qual não há
nada ao meu redor e a ilusão do mar “é todo meu” projetam um indivíduo autodestrutivo. “A
liberdade do outro se converte, assim, em autorrelação narcisista, responsável por inúmeras
perturbações psíquicas, próprias do sujeito de desempenho”20. Há uma relação entre sangue e
dinheiro: “o capital se comporta como mana moderno”21. A capacidade de ceifar a vida geraria
uma possibilidade de evitar a morte e, quanto mais dinheiro se possui, mais se imagina ser
imortal.
Essa nova racionalidade produz um sujeito empresário de si que não é capaz de estabelecer
com os outros vínculos que não estejam permeadas por lógicas de mercado ou por finalidades
de investimento. Isso corrói formas antes ditas de solidariedade. O isolamento total não nos
conduz a liberdade, mas é a liberdade total que nos conduz ao isolamento.
A lógica da liberdade fica expressa em frases como: “antes ele do que eu”, “primeiro
você, depois os outros”, “você tem que pensar apenas em si”. A lógica da liberdade é a
exploração do próprio sujeito. É a autoexploração do indivíduo e a visão de que o outro é
um competidor. Cada sujeito se torna uma empresa que visa lucro. “Hoje, todos estamos sob
a dominação de uma ditadura do capital”22. Enfermidades como a depressão e a síndrome
de burnout são expressão de uma crise de liberdade, onde o sujeito que não consegue ser
produtivo num regime 24/7 e se sente fracassado. É a pressão por desempenho. “O que torna
doente, na realidade, não é o excesso de responsabilidade e iniciativa, mas o imperativo do
desempenho como um novo mandato da sociedade pós-moderna do trabalho […] A depressão
é o adoecimento de uma sociedade que sofre sob o excesso de positividade”23.
A depressão do sujeito micro é uma das características que marcam o excesso de
positividade da sociedade macro. O nadador é o contaminado pelo próprio nado: a relação de
urgência e produção contínua 24/7, o enfraquecimento das relações, o excessivo consumo de
mercadorias e o fomento de um egoísmo, a ausência e empobrecimento das narrativas com
consequente indiferença em relação ao outro, o apagamento e desligamento do passado, todas
essas características contribuem para um sujeito depressivo.

Considerações finais
Uma das questões centrais a partir da leitura do texto é pensar “o que fazer?” frente
a essa mudança nas relações. A metáfora de Elias foi posta justamente para estabelecer
parâmetros de superação de uma sociedade egocêntrica – que reifica a atitude e forças dos
próprios indivíduos uns sob outros. A história de Elias ao acompanhar a ascensão do Nazismo
e perceber o individualismo e a desumanização das pessoas, marcou sua teoria e seu modo

19
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. Editora Paz e Terra, 2018, p. 83
20
HAN, Byung-Chul. op. cit., p. 60
21
HAN, Byung-Chul. op. cit., p. 45
22
HAN, Byung-Chul. op. cit., p. 15
23
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Editora Vozes Limitada, 2015., p. 29

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A transformação da violência: as novas relações permeadas pela tecnologia
Fernando Vechi - Eduardo Baldissera Carvalho Salles

de conceber o mundo. A partir de suas leituras, poder-se-ia afirmar que sempre há ‘nós’ em
processos de identidade com o outro. Ele tentava explicar que o individualismo/egocentrismo
levaria a Europa à guerra, portanto era justo retomar a inegável relação que temos com os
outros.
A violência é um fenômeno complexo e estrutural que precisa ser analisado a partir de
diferentes épocas e em diferentes contextos. Não se nega, tampouco se menospreza as formas
de violências históricas, mas, neste artigo se deu foco à violência da positividade, típica
da forma como se estruturaram as relações na era digital. Um amigo no Facebook ou um
seguidor no Instagram não são tais como amizades verdadeiras face-a-face. As redes sociais
são expectativas de uma sociedade ansiosa, onde as tecnologias, através de imagens, geraram
uma realidade diminuída e não aumentada. É improvável que a autoimagem de uma pessoa
no Instagram corresponda exatamente ao modo como somos e como os outros nos veem. O
problema é quando se adere a lógica de servirmos às imagens como fonte privilegiada de
significado, forjando nossa identidade pessoal.
A violência da positividade tem o contexto do entorno digital, caracterizado por um
individualismo semelhante a uma empresa privada, que obriga o indivíduo a buscar lucro
a todo momento e em qualquer relação. Tal violência é eminentemente sistêmica exercida
pela racionalidade neoliberal sob a forma de autodestruição, mas também por formas de
desemprego, precarização da estrutura de bem-estar, etc. A tecnologia e o progresso já
demonstraram que não serão os salvadores dos problemas estruturais do planeta. Logo, cabe
repensar formas de estabelecer laços de alteridade, altruísmo, entendendo as escolhas e ações
como parte de um grande nado coletivo, capazes de tensionar todas as tramas e fios da rede,
gerando a partir disso, uma responsabilidade social, entendido como um compromisso social
de todos.

Referências
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2004.
BRECHT, Bertold. Poemas 1913-1956. 7ª edição. São Paulo: Editora 34, 2012.
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
________. O poder da identidade. Editora Paz e Terra, 2018.
CRARY, Jonathan. 24/7 - Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A Nova Razão do Mundo - Ensaio Sobre a Sociedade Neoliberal.
São Paulo: Boitempo, 2016.
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1994.
FLUSSER, Vilém. Ensaio sobre a fotografia: para uma filosofia da técnica. Lisboa: Relógio D’Água,
1998.
FREUD, Sigmund. Sobre o narcisismo: uma introdução (1914). Obras completas, v. 14, 1996.
HAN, Byung-Chul. Topología de la violencia. Herder Editorial, 2016.

— 219 —
A transformação da violência: as novas relações permeadas pela tecnologia
Fernando Vechi - Eduardo Baldissera Carvalho Salles

________. Psicopolítica: neoliberaliismo e novas técnicas de poder. Tradução: PEREIRA, Miguel


Serras. Lisboa: Relógio D’Água, 2014.
________. Sociedade do cansaço. Editora Vozes Limitada, 2015.
RENDUELES, César. Sociofobia: el cambio político en la era de la utopía digital. Debate, 2015.

— 220 —
Evolución y desarrollo de los derechos humanos.
hacia una cuarta generación

Julián León Camacho1

Resumen: Desde el instante en el que se afianzó la tecnología en la sociedad actual, se constató la


aparición de nuevos derechos, que podríamos denominar de cuarta generación (ya fueron incluidos, como
derechos anexos, en los derechos humanos de tercera generación) ello demuestra la necesidad de adecuar
los avances tecnológicos con los derechos de las personas. La influencia de la tecnología en el desarrollo
digital de la sociedad, ha de afrontarse tratando de lograr una eficacia real y una aplicación práctica, a través
de la política, desde la que han de disponerse las normas jurídicas que reconozcan la existencia de estos
nuevos derechos y de las nuevas necesidades del ser humano y de la sociedad en su conjunto.
Por tanto, veremos (grosso modo) las distintas generaciones de los derechos humanos: las libertades
fundamentales y los derechos civiles y políticos que se incorporaron en la primera, los derechos sociales
y económicos incluidos en la segunda, el derecho al desarrollo (social y económico), la paz y el medio
ambiente, y la inclusión, como derecho anejo, del derecho a la tecnología (como elemento de eliminación
de la desigualdad) recogidos en la tercera. Por último, la cuarta generación de derechos humanos surgidos
en la sociedad de la información, donde: la libertad de expresión en Internet; la generalización de su uso y
la libertad de información, son elementos imprescindibles para el desarrollo de la humanidad.
Palabras clave: derechos humanos; tecnología; Internet; acceso; información.

Abstract: From the moment in which technology was entrenched in today’s society, the emergence
of new rights was found, which we could call fourth generation (they were already included, as annexed
rights, in third generation human rights) this demonstrates the need adapt technological advances with
people’s rights. The influence of technology on the digital development of society must be addressed by
trying to achieve real effectiveness and practical application, through politics, from which the legal norms
that recognize the existence of these new rights must be established, and of the new needs of the human
being and of the society as a whole.
Therefore, we will see (roughly) the different generations of human rights: the fundamental freedoms
and civil and political rights that were incorporated in the first, the social and economic rights included in

1
Julián León Camacho. Doctorando de la Escuela Internacional de Doctorado CEINDO. Universi-
dad CEU Cardenal Herrera. Correo electrónico: jul.leon.ce@ceindo.ceu.es

— 221 —
Evolución y desarrollo de los derechos humanos. hacia una cuarta generación
Julián León Camacho

the second, the right to development (social and economic), peace and the environment, and the inclusion,
as an attached right, of the right to technology (as an element of eliminating inequality) contained in the
third. Finally, the fourth generation of human rights, emerged in the information society, where freedom of
expression on the Internet, the generalization of its use and freedom of information, are essential elements
for the development of humanity.
Keywords: human rights; technology; Internet; access; information

1. Introducción
La sociedad actual puede calificarse, sin duda alguna, como tecnológica, en la que los
derechos humanos2 y los valores éticos y morales, tales como la libertad3 (en primer lugar dado
su carácter de requisito previo para el ejercicio de otros), la igualdad (como valor superior), la
dignidad, la solidaridad y la paz, han de ser, no solo reconocidos, como valores superiores o
principios del ordenamiento jurídico español, sino como una exigencia de realización, en dos
ámbitos imprescindibles, en el personal y en social4, una realización en la que actualmente,
más que nunca, interviene la tecnología.
La pretensión de encuadrar la tecnología en el ámbito del reconocimiento y desarrollo
de los derechos humanos, nos obliga a ampliar la tradicional visión que se ha tenido de la
Declaración Universal de los Derechos Humanos de 19485 y del Convenio de Roma, de 4
de noviembre de 1950, para la Protección de los Derechos Humanos y de las Libertades
Fundamentales.

Veamos sucintamente la distinción entre los conceptos de los derechos del hombre, los
derechos humanos y los derechos fundamentales.
Respecto de los derechos del hombre, la Declaración de los Derechos del Hombre y
del Ciudadano, aprobada el 26 de agosto de 1789por la Asamblea Nacional Constituyente

2
REY PÉREZ, en el inicio de su libro “el discurso de los derechos”, afirma con sencillez, pero
de forma precisa, que los derechos humanos son los que poseen todas las personas simplemente por ser
humanos, son los únicos derechos que corresponden absolutamente a todos, en todas partes. REY PÉREZ.
El discurso de los derechos: Una introducción a los derechos humanos. Universidad Pontificia Comillas.
Unión de Editoriales UNE. Madrid. 2011.
3
PÉREZ LUÑO, también habla de libertad, igualdad y dignidad, afirmando que los derechos huma-
nos son un conjunto de facultades e instituciones que en cada momento histórico concretan las exigencias
de estos derechos, los cuales deben ser reconocidos positivamente por los ordenamientos jurídicos a nivel
nacional e internacional. PÉREZ LUÑO. Derechos humanos. Estado, Derecho y Constitución. Editorial.
Tecnos. Madrid. 2005. Pág. 18.
4
En esta línea, se manifiesta GRACIANO GONZÁLEZ. Derechos humanos: La condición humana
en la sociedad tecnológica.  Editorial Tecnos. Madrid. 1999.
5
En la DUDH. aprobada por la Asamblea General en su resolución 217 A (III), de las Naciones
Unidas el 10 de diciembre de 1948, se estableció una definición de los derechos humanos, en la que se les
calificaba como, las condiciones de vida sin las cuales, ni la sociedad, ni los hombres pueden dar de sí lo
mejor de cada uno de ellos, desde su condición de miembros activos de la comunidad, como consecuencia
de que se ven privados de los medios para realizarse plenamente como seres humanos.

— 222 —
Evolución y desarrollo de los derechos humanos. hacia una cuarta generación
Julián León Camacho

francesa, en sus 17 artículos reconoce y declara los derechos del hombre. Constituye uno de
los documentos fundamentales de la Revolución francesa calificando los derechos personales
y colectivos como universales. Ello bajo la influencia de los derechos naturales.
Los derechos del hombre se conciben como existentes en todo momento y situación
al corresponder a la propia naturaleza del ser humano. Soninherentes a la persona, y en su
condición de derechos naturales son imprescriptibles, atemporales y ubicuos. CASTÁN
TOBEÑAS define los derechos del hombre como aquellos derechos fundamentales de la
persona, tanto desde su aspecto individual como comunitario, que deben ser reconocidos y
respetados por todo poder y norma jurídica positiva, cediendo no obstante en su ejercicio ante
las exigencias del bien común. señalaba la obligación de su respeto por parte del poder6.
En cuanto a los derechos humanos, la aprobación de la Declaración Universal de los
Derechos Humanos en 1948 fue la primera ocasión en que las Naciones del mundo plasmaron
una Declaración de Derechos Humanos y Libertades Fundamentales. Está dispuesta en 30
artículos que recogen derechos: civiles y políticos, sociales, culturales y económicos que
pertenecen a todas las personas, sin discriminación alguna.
PEREZ NUÑO los define como “un conjunto de facultades e instituciones que, en
cada momento histórico, concretan las exigencias de la dignidad, la libertad y la igualdad
humanas, las cuales deben ser reconocidas positivamente por los ordenamientos jurídicos a
nivel nacional e internacional”7. Por su parte el profesor DE CASTRO CID, los considera
“realidades artificiales o instrumentales en el sentido de que han sido expresamente formulados
o inventados por los propios hombre para resolver unas determinadas necesidades vitales
sobrevenidas por razón del contexto histórico de su existencia social”8. Observamos que
ambos, relacionan los derechos humanos directamente con el momento histórico en el que se
formulan.

Para que un derecho pueda ser considerado como derecho humano, requiere una
característica de esencialidad para la dignidad humana, el desarrollo de la personalidad y
para la vida misma.
Los derechos humanos, se consideran aquellas facultades, libertades, valores éticos
y morales, que constituyen instituciones básicas nacidas de los derechos naturales9 que
conciernen a todas las personas por el mero hecho de su condición humana y que, con ello,
habrían de constituir una promesa de vida digna. TRUYOL SERRA10 los califica como
“privilegios fundamentales que el hombre posee por el mero hecho de serlo”.

6
CASTÁN TOBEÑAS. Los Derechos del Hombre. Editorial Reus. Madrid. 1992. Pág. 35.
7
PEREZ LUÑO, Derechos humanos, Estado de Derecho y Constitución, Tecnos, Madrid, 1995,
pág., 48.
8
DE CASTRO CID, La fundamentación de los derechos humanos (reflexiones incidentales), en El
fundamento de los derechos humanos, Servicio de Publicaciones de la Universidad de Navarra, pág., 120.
9
PEREZ LUÑO. Los derechos fundamentales. Editorial Tecnos. Madrid. 2004. Pág. 51.
10
TRUYOL SERRA, señala que los derechos humanos son los privilegios fundamentales que el
hombre posee por el hecho de serlo, por su propia naturaleza y dignidad. Son derechos que le son inherentes

— 223 —
Evolución y desarrollo de los derechos humanos. hacia una cuarta generación
Julián León Camacho

Los derechos humanos y los derechos fundamentales se distinguen, básicamente, por


su ámbito de aplicación. Los derechos humanos son: universales, indisponibles, inviolables,
indivisibles, intransferibles, no negociables, de obligado respeto y pertenecen a todas las
personas, con independencia de sus circunstancias personales, sociales o económicas.
Por su parte, los derechos fundamentales, según la Real Academia Española (RAE), son
aquellos “derechos declarados por la Constitución que gozan del máximo nivel de protección”.
Es decir, constituyen unos derechos alienables, intangibles e irrenunciables. Características
que, como veíamos antes, comparten con los derechos humanos. PEREZ LUÑO define los
derechos fundamentales, partiendo de un examen comparativo entre estos y los derechos
humanos, llegando a la conclusión de que estos últimos, “provienen de un elemento social e
histórico y de la previa existencia de unos valores precursores”.
Los derechos fundamentales se encuentran contenidos generalmente en la Constitución
de cada Estado. En la Constitución Española, los derechos fundamentales, habrán de respetarse
como garantía individual y su interpretación será de conformidad con la DUDH.
Por una parte, en el ámbito público podemos señalar el derecho a la libertad: personal,
ideológica, de cátedra, de expresión, de sindicación y de empresa, a la seguridad, a la dignidad
humana, al honor y la intimidad, al secreto de las comunicaciones, a la libre circulación y
residencia, a la libre comunicación, a la información, a la reunión, manifestación y asociación,
a la participación en asuntos públicos, a la reeducación e inserción social, a la educación libre
y gratuita, a la autonomía universitaria, a la huelga, a la propiedad privada y la herencia, a la
petición individual y colectiva, a un matrimonio igualitario, a la objeción de conciencia, al
trabajo, a la negociación colectiva laboral, y al derecho y deber de defender España.
Por otra, en el ámbito económico y social, se consagran los derechos; a la protección
de la infancia, a la protección jurídica, económica y social de la familia, a la protección de la
salud, a una vivienda digna, al medio ambiente (constituyendo a su vez un deber), y al acceso
a la cobertura de la Seguridad Social.
En la Unión Europea, la Carta de los Derechos Fundamentales de la UE11 recoge todos
los derechos personales, políticos, civiles y económicos de los ciudadanos de los países
miembros. Significando una equiparación entre los derechos de las tres primeras generaciones,
eliminando la priorización que se le proporcionaba a los derechos políticos y civiles respecto
de los económicos y sociales.
De todos los anteriores derechos, debemos destacar el derecho a la libertad, el cual
está aceptado como uno de los derechos más valorados de los seres humanos, si no el más
trascendente (con permiso del derecho a la vida), por su parte, la igualdad es en sí misma,
un derecho vertebrador y a su vez, ambos están estrechamente relacionados entre sí,

y que, lejos de nacer de una concesión de la sociedad política, han de ser consagrados y garantizados por
esta. TRUYOL SERRA. Los derechos humanos. Madrid. Editorial Tecnos. Madrid. 2000. Pág. 12.
11
En cuanto al análisis de su contenido, debemos destacar las novedades materiales que aportó la
Carta.Entre la abundante y meritoria bibliografía existente sobre la Carta, quisiera destacar, entre otros,
a ALONSO GARCÍA, La Carta de los Derechos Fundamentales de la Unión Europea, Editorial Civitas,
Madrid, 2006.

— 224 —
Evolución y desarrollo de los derechos humanos. hacia una cuarta generación
Julián León Camacho

constituyendo dos derechos que comparten una misma esencia, ambos son consustanciales a
la condición humana y a su dignidad. Es decir, los derechos humanos constituyen una serie
de reivindicaciones de valores morales, y éticos, inherentes a la naturaleza del ser humano, y
todos ellos desde la igualdad y no discriminación bajo condición alguna. Todo lo anterior nos
conduce a constatar su capitalidad para la consecución de la realización del ser humano como
tal y a desarrollarse alcanzando sus metas y anhelos.
Su clasificación en distintas generaciones, fue utilizada públicamente, por primera
vez, por KAREL VASÁK12 en 1979 durante una conferencia en el Instituto Internacional de
Derechos Humanos en Estrasburgo.
Es en el momento de la consolidación de la sociedad tecnológica, donde nace la necesidad
del reconocimiento de una cuarta generación de derechos humanos, lo que nos muestra la
exigencia de una constante reflexión sobre la relación existente entre los desarrollos técnicos
y el entorno humano. Y a este respecto, en nuestra opinión, las realidades sociales, éticas,
morales y psicológicas, se encuentran directamente influenciadas por los avances tecnológicos,
que no dejan de constituir una realidad con una variedad de dimensiones muy amplia.
Esta ascendencia de la tecnología sobre tales derechos, habría de afrontarse buscando
una aplicación estrictamente práctica proveniente de la utilización de la política, con la cual
han de disponerse directrices, normativas e implementar leyes que, utilizando los medios
que proporciona el mismo avance tecnológico, reconozcan la existencia, indudable a estas
alturas, de unas nuevas necesidades del ser humano que han de traducirse en derechos nuevos,
disociables del propio hecho de vivir en la sociedad de la tecnología.
Sobre ello, GARCÍA SÁNCHEZ y REYES AÑORVE, opinan que mediante las
tecnologías de la información, los ciudadanos pueden exigir transparencia a los poderes
públicos y los gobernantes, participando, de ese modo, en la construcción de la sociedad con
libertad de asociación, manifestación y expresión13.

2. Derechos humanos, evolución generacional

2.1. Derechos humanos de primera generación


Al hablar de los derechos de primera generación, nos referimos a las libertades
fundamentales y los derechos civiles y políticos, los cuales conforman la génesis de los
derechos humanos, que brotaron de la semilla plantada por el anhelo del respeto a la vida, la

12
El jurista checoslovaco KAREL VASÁK fue exdirector de la División de Derechos Humanos y
Paz de la UNESCO. Su novedosa clasificación, sirvió para clarificar y hacernos un mapa mental de este
proceso evolutivo. Más allá de las distintas generaciones, lo importante es resaltar el hecho de que, la
sociedad, los ha ido reivindicando a lo largo del tiempo, transformándolos y adaptándolos a las nuevas
necesidades, que se abrían paso ante una evolución que transformaba el mundo en el cual vivían.
13
GARCÍA SÁNCHEZ y REYES AÑORVE. Desafíos de las tecnologías de la información y dere-
chos humanos. Revista Iberoamericana de las Ciencias Sociales y Humanísticas, rish.org. mx. ISSN: 2395-
7972, Vol. 3, Núm. 5, enero – junio 2014. Apartado Conclusiones.

— 225 —
Evolución y desarrollo de los derechos humanos. hacia una cuarta generación
Julián León Camacho

libertad y la justicia que habita en la naturaleza del ser humano. Como veíamos antes, con la
Revolución Francesa se reclamaron estos derechos, haciendo frente al absolutismo del Rey.
El poder omnímodo del Estado que existía frente a ciudadanía se restringió, buscando
una ponderación entre los intereses de cualquier autoridad o del propio Estado, frente al
ciudadano. Son los primeros derechos que consiguieron un desarrollo normativo, obteniendo
su positivización por influencia de la tradición constitucionalista liberal14, a través de la
promulgación de la Declaración Universal de los Derechos Humanos de 1948 y los Pactos
Internacionales de 1966 de los Derechos Civiles y Políticos y Pactos Internacionales de
Derechos Económicos, Sociales y Culturales15. En su enunciación habría de distinguir, con
claridad, entre dos grandes grupos; de un lado, los derechos y libertades fundamentales16, y
de otro, los derechos civiles y políticos.17

2.2. Derechos humanos de segunda generación


Fueron las constituciones liberales del siglo XIX, las que contemplaron estos derechos,
ello por la inercia ejercida por el movimiento obrero de aquella época y la internacionalización
de las ideologías de corte progresista, que auspiciaron la necesidad de ampliar, a la totalidad
de las personas, los derechos al trabajo, a la educación, a la salud, al sufragio universal,
etcétera. Por lo que, el surgimiento del denominado Estado Social de Derecho que en el
ordenamiento jurídico español consagra el artículo 1 de la Constitución Española18, implicó
la necesidad de búsqueda de procedimientos para facilitar a las personas, el acceso a la vida
política y cultural, proporcionando los medios básicos y los bienes necesarios para ello.
Por lo tanto, son los derechos sociales y económicos, los que conforman esta segunda
generación, entre los que destacan, por una parte, los derechos sociales: al descanso; al ocio;

14
El liberalismo y el constitucionalismo, son los movimientos que verdaderamente promovieron la
inserción de tales derechos en las constituciones que se promulgaron en los distintos Estados europeos, du-
rante el pasado siglo XIX, facilitando con ello que, los derechos civiles y políticos más esenciales, pudiesen
generalizarse.
15
Pacto internacional adoptado y abierto a la firma, ratificación y adhesión por la Asamblea General
en su resolución 2200 A (XXI), de 16 de diciembre de 1966.
16
Derechos y libertades fundamentales: toda persona los tendrá con independencia de su raza, color,
idioma, posición económica o social; todo individuo tiene derecho a la vida, la libertad, la seguridad jurídi-
ca, a circular libremente y a elegir su residencia, a una nacionalidad, a buscar asilo en cualquier país, en el
supuesto de persecución por sus ideas políticas, a casarse, a la libertad de pensamiento, religión, opinión,
expresión; a la libertad de reunión y asociación pacífica; a la igualdad entre sexos; a la integridad física,
psíquica y moral; y al desarrollo de su vida privada personal y familiar.
17
Derechos civiles y políticos: todo ser humano tiene derecho al reconocimiento de la personalidad
jurídica, a no ser preso, desterrado ni detenido arbitrariamente, a la igualdad ante la ley, al juicio de amparo,
a un tribunal imparcial, a la presunción de inocencia, a la participación en el gobierno de su país, a un puesto
público y finalmente, bajo la premisa de que la voluntad del pueblo constituye la base de la autoritas de los
poderes públicos, tal voluntad se manifestará a través de elecciones libres.
18
Art. 1.1 de la Constitución Española. España se constituye en un Estado social y democrático
de Derecho, que propugna como valores superiores de su ordenamiento jurídico la libertad, la justicia, la
igualdad y el pluralismo político.

— 226 —
Evolución y desarrollo de los derechos humanos. hacia una cuarta generación
Julián León Camacho

a la educación; al disfrute de la cultura en general; a la atención sanitaria, entre otros, y


por otra, los derechos esencialmente económicos: la protección económica del individuo en
situación temporal de desempleo; a un salario y a una jubilación digna, entre otros. Todos
ellos se encuentran impregnados del valor superior de la igualdad19, en la que partiendo de un
pensamiento tradicionalmente humanista, inciden estos derechos.
Recordemos que, frente al abuso de poder ejercido por el Estado, los derechos humanos
de primera generación protegían al ciudadano frente a tal dominación, sin embargo, con el
advenimiento de la segunda, se produce una mayor intervención del Estado, garantizando
una igualdad jurídica y fomentando una igualdad real, facilitando el acceso a los derechos
y corrigiendo las desigualdades (fácticas)20 producidas por las circunstancias personales de
los individuos en particular, de los grupos étnicos, religiosos o incluso miembros de distintas
clases sociales. La sociedad exigía que se garantizase, por parte del estado, la realización
efectiva de tales derechos, disponiendo los condicionamientos que faciliten el ejercicio real
de las libertades y combatiendo las diferencias naturales o sociales de los individuos.

2.3. Derechos humanos de tercera generación


A mitad del siglo XX comenzaron a materializarse los derechos humanos que
denominamos de tercera generación, derecho a la paz (a una coexistencia pacífica), al
desarrollo (un mayor impulso a los derechos económicos y sociales) y al medio ambiente.
En esta ocasión, su aparición es consecuencia de la acción de reclamar una serie de legítimos
derechos, por multitud de grupos sociales, con el fin de lograr el reconocimiento y ejercicio
de sus derechos. La discriminación, desde el punto de vista social y económico, a la que
en países y comunidades del Tercer Mundo, se ven sometidos ciertos colectivos y minorías
sociales, que sufren segregación por razón de su etnia, religión, clase social, etcétera, deriva
en la promulgación de una serie de declaraciones y manifestaciones normativas que protegen
a estos sectores de la sociedad.
En los últimos 20 años del pasado siglo, el desarrollo e implantación de estos derechos,
fue aumentando de forma realmente importante, incremento en el que consideramos que
han participado y potenciado, como altavoces y amplificadores, los grandes medios de
comunicación, cuyo desarrollo y alcance, a su vez, han logrado un progreso, que si no se
quiere considerar como revolucionario, si podemos afirmar que su crecimiento exponencial,
les ha convertido en un extraordinariamente influyente en la opinión pública y en el desarrollo
de la sociedad.
Tal impulso, ha facilitado un incremento de la comunicación entre el primer y el tercer
mundo, dando lugar a elevar el nivel de conocimiento y reconocimiento, y por ende, de
preservación del patrimonio cultural de la humanidad, el respeto y la conservación del medio

19
Art. 14 de la Constitución Española. Los españoles son iguales ante la ley, sin que pueda prevale-
cer discriminación alguna por razón de nacimiento, raza, sexo, religión, opinión o cualquier otra condición
o circunstancia personal o social.
20
Desde el mismo nacimiento del ser humano, se manifiestan diferencias físicas, raciales o religio-
sas que implican verdaderas desventajas sociales.

— 227 —
Evolución y desarrollo de los derechos humanos. hacia una cuarta generación
Julián León Camacho

ambiente21 (circunstancia que merecería, no una nota aparte, sino un profundo estudio, véase
el calentamiento global), y la conservación y protección de la diversidad cultural. Todo ello,
como apuntábamos antes, facilitado por la inestimable herramienta que ha significado el
desarrollo de los medios generalistas de comunicación, y como veremos, la implementación
paulatina de la sociedad de la información.
El respeto a la libertad personal de los ciudadanos y el derecho a la igualdad de acceso
a las mismas oportunidades, están relacionados con el acceso a la tecnología y su uso,
circunstancia ésta que comenzó a cobrar mayor relevancia conforme se acercaba el final
del siglo pasado. Es una obviedad señalar que la igualdad (en su interpretación más amplia)
constituye en sí misma, un elemento indispensable para que la sociedad progrese en general.
En este punto, nos vemos obligados a constatar la evidencia de que, al hablar de igualdad, no
se corresponde, la exigida por la norma, con la real y efectiva, y más concretamente en lo que
respecta a la igualdad de oportunidades y ejercicios de derechos, no obstante, en el caso del
conjunto normativo español ha existido un importante número de normas cuya ratio legis ha
sido la consecución de la verdadera igualdad (véase la discriminación positiva).
En definitiva, la tecnología fue incluida dentro de la tercera generación de derechos
humanos, con carácter de derecho anexo, y con la cualidad de constituir un recurso esencial
como medio para facilitar la eliminación de las desigualdades en el conjunto de la sociedad y
con ello beneficiar el desarrollo del ser humano.

2.4. Derechos humanos de cuarta generación


En los últimos decenios, las personas en particular y la sociedad en su conjunto han
desarrollado nuevas necesidades humanas que, habiendo sido previamente reconocidas, dan
lugar a la lógica exigencia de su cumplimiento, y siguiendo con el proceso de reacción posterior
consecuencia de la acción previa, tal requerimiento de observancia, obliga a la positivización
de nuevos derechos que afiancen la facilidad de acceso a la tecnología, a una ciudadanía más
evolucionada y avanzada, en la búsqueda de su libertad y calidad de vida.
El tándem formado por la globalización de la economía y la evolución (diríamos
transformación) hacia la sociedad de la información, nos remite a la que se ha venido a
denominar sociedad del conocimiento, (denominación que, si bien, no compartimos por
excesivamente amplia, es necesario aceptar como término de uso extendido).
Dicha sociedad “del conocimiento” es definitivamente, el producto de su evolución
como consecuencia, entre otras causas, de los importantísimos movimientos migratorios de
personas, en el aspecto social, y por la generalización de los medios de comunicación de
masas y su amplia divulgación y utilización, en el aspecto individual. Ello constata el hecho
de que está cambiando la sociedad de su conjunto. Esta incuestionable evidencia, fuerza
prácticamente, a considerar como una realidad social, la aparición de la demanda de nuevas
libertades sociales e individuales, entre la que hemos de destacar el derecho de acceso a

21
Entendemos que el respeto al medio ambiente, ha adquirido tintes, de convertirse en el late motiv
de la próxima revolución social, como conciencia colectiva, siendo el auténtico detonante, la constatación
global del denominado cambio climático.

— 228 —
Evolución y desarrollo de los derechos humanos. hacia una cuarta generación
Julián León Camacho

la información, no obstante, esa libertad de información exige el respeto al derecho a la


protección de la intimidad personal y familiar, provocando con ello arquetipos éticos de
nueva creación. Este acceso libre a la información y el respeto a los datos personales y a la
intimidad de las personas (véase la Ley de Protección de Datos)22 constituye y constituirá, a
nuestro juicio, una inevitable fuente de conflictos.
Como consecuencia de que la tecnología se ha introducido con generalidad en la vida de
las personas, tanto en su ámbito colectivo como en su individualidad, surge la implantación
de los nuevos derechos a la información y su libre acceso, por ello se requerirá una nueva
protección amplia y mayoritaria (“global” sería la palabra más apropiada) de tales derechos
digitales.
Es la omnipresencia de la tecnología en la vida de las personas, la que provoca la
aparición de la cuarta generación de los derechos humanos en la que, la libertad de expresión
en la RED (redes sociales, se ha convertido en un término más específico), la universalización
de su uso (no compartimos la utilización de la expresión “democratización”), el libre acceso a
las nuevas tecnologías y la libertad de información, constituyen piezas claves.
En cuanto a la conculcación de los derechos humanos por medio de la tecnología, sobre
ello, el poder tiene, desgraciadamente, una larga tradición de violación de los derechos
humanos, quebrantamiento cuya visibilidad resultaba palpable y sus efectos se traducían en:
discriminación, desigualdad, restricciones e injerencias en ellos y en las libertades públicas, sin
embargo, actualmente, en los países con un cierto desarrollo económico, social y tecnológico,
tal quebrantamiento de derechos ha pasado a una invisibilidad que podríamos denominar
“inmaterial”, fruto de la intangibilidad del ciberespacio, desapareciendo con ello, del examen
y control de la sociedad, circunstancia que precisaría de un análisis exhaustivo. Internet
constituye, en sí misma, un mundo de posibilidades (expresión manida pero cercana a la
realidad), no obstante, también representa un peligro, no solo para los derechos humanos, sino
para la ética y la moral de la sociedad, por consiguiente, es en la RED en la que se desarrolla
permanentemente esta lucha entre: el acceso a la información, la libertad de expresión23y el
respeto a los derechos de los demás.

22
La Ley Orgánica 3/2018, de 5 de diciembre, de Protección de Datos Personales y garantía de los
derechos digitales, apunta en su Preámbulo IV que, Internet, se ha convertido en una realidad omnipresente
en la vida de las personas y en la vida colectiva. Una gran parte de nuestra actividad profesional, económica
y privada se desarrolla en la Red y adquiere una importancia fundamental tanto para la comunicación huma-
na como para el desarrollo de nuestra vida en sociedad. Ya en los años noventa, y conscientes del impacto
que iba a producir Internet en nuestras vidas, los pioneros de al RED propusieron elaborar una Declaración
de los Derechos del Hombre y del Ciudadano en Internet. BOE Nº 294, jueves 6 de diciembre de 2018, Sec.
I. pág. 119788.
23
El Pleno del TC en su sentencia de 25 de febrero de 2020, en el FJ 4 destaca “el carácter institucio-
nal del derecho a la libertad de expresión. La STC 112/2016, declara lo siguiente (FJ 2, i): la STC 177/2015
afirma que en una jurisprudencia unánime que arranca de las tempranas SSTC 6/1981, de 16 de marzo, y
12/1982, de 31 de marzo, se subraya repetidamente la ‘peculiar dimensión institucional de la libertad de
expresión’, en cuanto que garantía para ‘la formación y existencia de una opinión pública libre’, que la
convierte ‘en uno de los pilares de una sociedad libre y democrática”. Añadiendo en el FJ 5 B). Señala que
“la posición central que tiene el derecho a la libertad de expresión como regla material de identificación

— 229 —
Evolución y desarrollo de los derechos humanos. hacia una cuarta generación
Julián León Camacho

Ello reclama, constantes respuestas normativas y políticas, que preserven las


extraordinarias expectativas de mejora en la calidad de vida, que se derivarían del ejercicio
de la libertad de expresión y de la utilización de la información obtenida. Es evidente que
los Estados que pretendan limitar o realizar injerencias en las libertades públicas, recurrirán
al control y restricción de la libre circulación de la información en Internet. En los Estados
despóticos o carentes de un sistema democrático, es habitual que el poder conculque o limite
la libertad de expresión, siendo una de las injerencias y limitaciones más habituales, además
de la restricción del correo electrónico y el acceso a determinadas consulta de páginas Web
no autorizadas, incumplimiento que acarrea en muchas ocasiones, la imposición de sanciones
e incluso penas de cárcel24.
Tengamos en cuenta que con la aparición de la tecnología y la implantación de Internet,
las fronteras físicas o políticas entre los Estados dejaron de constituir muros infranqueables,
cuando los (TDF - transborder data flow) denominados en español “flujos transfronterizos de
información” aparecieron y comenzaron a cruzarlas a través de conexiones y satélites digitales.
Los contenidos accesibles en Internet, requieren una previa valoración y clasificación, no
solo en defensa de los derechos humanos, sino también de los valores morales y éticos, como
consecuencia de la palpable comisión de hechos delictivos: pornografía infantil, apología del
terrorismo o de incitación al odio o a la violencia.
Recordemos que la libertad de expresión25posee la cualidad de constituir la llave que
abre la puerta a la realización de otros derechos, es decir, constituye la herramienta para el
ejercicio, la defensa y el impulso de otros muchos, encontrándose relacionada directamente
con otras libertades: de pensamiento, a recibir o buscar información26, entre otras. Para que
podamos afirmar que existe una verdadera libertad de pensamiento, de religión o conciencia,

del sistema democrático, determina que no solo el resultado del acto comunicativo respecto de los que se
puedan sentirse dañados por él, sino también los aspectos institucionales que el acto comunicativo envuelve
en relación con la formación de la opinión pública libre y la libre circulación de ideas que garantiza el plura-
lismo democrático, deben ponderarse necesariamente para trazar el ámbito que debe reservarse al deber de
tolerancia ante el ejercicio de los derechos fundamentales y, en consecuencia, los límites de la intervención
penal en la materia”.
24
A título ilustrativo, señalaremos que, en 1996, los estados miembros de la ASEAN (Asociación
de países del Sudeste Asiático) formada por Brunei, Indonesia, Vietnam, Singapur, Filipinas, Tailandia y
Malasia, firmaron un protocolo de cooperación en que disponían, a los ciudadanos, la limitación del acceso
a Internet. El fundamento esgrimido fue la supuesta necesidad de preservar su cultura y moral, evitando la
contaminación de su sociedad con, lo que consideraron, la moral decadente de Occidente. Dispusieron que
en el caso de que los ciudadanos realizasen acciones no permitidas en internet, serían los servidores los
responsables de las acciones de los usuarios.
25
STC 371/1993, de 13 de diciembre, en la que se señala (con reiterada jurisprudencia) que el art.
20 a) y d) de la Constitución Española, no sólo son derechos fundamentales de cada ciudadano, sino que
significan el reconocimiento y la garantía de una institución política fundamental, que es la opinión pública
libre, indisolublemente ligada al pluralismo político, por lo que trasciende el significado común y propio de
los demás derechos fundamentales.
26
Recordemos que la DUDH de 1948, ya recogía la libertad de pensamiento, de conciencia y de
religión (art. 18), la libertad de investigar y de recibir información (art. 19), y la libertad de opinión y de
difundirla sin limitación de fronteras, por cualquier medio de expresión (art. 19).

— 230 —
Evolución y desarrollo de los derechos humanos. hacia una cuarta generación
Julián León Camacho

resulta imprescindible la existencia de una diversidad de fuentes a las que acudir y en las que
expresarse. En esta misma línea, para la implantación de una libertad de opinión (real), habría
de garantizarse un libre acceso a los medios digitales, sin límites nacionales, es decir, con una
verdadera dimensión supranacional.
Hasta el momento actual, los medios de comunicación que no son interactivos, no tienen
el gran alcance que poseen, actualmente, las distintas redes sociales (que en un principio se
crearon como “comunidades de intercambio” basadas en fenómenos socio-tecnológicos).La
digitalización, por su naturaleza, produce una equiparación e igualdad de información y de
datos de cualquier tipo, y el abaratamiento y desarrollo de las tecnologías que los proporcionan,
originan un uso amplio y extendido, facilitando su utilización, incluso por los ciudadanos
con menor poder adquisitivo de la sociedad. Sin olvidarnos de que las posibilidades que la
sociedad tecnológica concede a las personas, les obliga ética y moralmente, a llevar a cabo
un uso racional y solidario del poder que les otorga el acceso a la información y al uso de la
libertad de expresión.
Sin embargo, es una evidencia que, en el momento actual, los derechos humanos de
cuarta generación, no constituyen un conjunto de perfectamente definido, incluso algunos
autores toman algunos derechos de la tercera generación y los incluyen en la cuarta, en esta
línea GONZÁLEZ ÁLVAREZ, considera que los de cuartar generación “no son más que los
derechos humanos ya consagrados como de primera, segunda y tercera generación, apreciados
en los nuevos entornos y actuales manifestaciones sociales”27. VICENTE DOMINGO va más
lejos y ante la cuestión de qué son los derechos humanos de cuarta generación, llega a afirmar
que “como tales, no existen”, considerándolos como “la aplicación de las diferentes conquistas
en derechos humanos en el nuevo contexto digital. El ciberespacio, la cibercomunidad se ha
convertido en el mejor escenario, precisamente, en su virtualidad, para aplicar ambiciones
de justicia y libertad largamente anheladas especialmente en lugares del mundo privados de
derechos fundamentales durante siglos”28.
El acceso al mundo digital no es tan sólo un derecho, sino que su utilización como
medio para la consecución de justicia y libertad, exige el establecimiento de reglas, tanto a
la RED como a sus usuarios. No obstante, PILAR LLACER consideraba (en el año 1999)
que “la necesidad de establecer regulaciones en el ciberespacio, o a los cibernautas que en
él coexisten, es una realidad innegable, aunque quizás opuesta al sentido originario de un
espacio virtual en que todo era posible”, añadiendo a continuación que “en el mundo real rigen
pautas y reglas que se remontan a los albores de la civilización humana. Pero Internet no es
una realidad en busca de normas”29. Veinte años después, la propia evolución del ciberespacio
posibilita la matización de dicha postura.

27
GONZÁLEZ ÁLVAREZ, R., Aproximaciones a los Derechos Humanos de Cuarta Generación.
Documento en línea. Disponible en: http://www.tendencias21.net/derecho/attachment/113651/. 2008
28
VICENTE DOMINGO, Los derechos humanos de cuarta generación, Crítica, Enredados en la red.
ISSN 1131-6497, Año 59, Nº. 959, Madrid, España, 2009, páginas 32 a 37.
29
PILAR LLÁCER, Internet y derechos humanos: la libertad de expresión en el ciberespacio, en
el libro Derechos Humanos: La condición humana en la sociedad tecnológica, Editorial Tecnos, ISBN 84-
309-3360-3 Madrid, España, 1999, pág. 186.

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Evolución y desarrollo de los derechos humanos. hacia una cuarta generación
Julián León Camacho

Por nuestra parte consideramos, sin duda alguna, que en la actualidad, el mundo digital
es una absoluta realidad y en numerosas ocasiones una necesidad irrenunciable que requiere
de regulación jurídica.

Conclusión
Consideramos que la universalización de los derechos humanos es la única vía para que
se conviertan en unos verdaderos derechos del hombre, al respecto, LOZANO ALARCÓN nos
recuerda que “su internacionalización aún está incompleta, en la medida en que actualmente,
no existe un poder público supranacional con poderes plenos que pueda imponer sus decisiones
de manera coactiva”30.
En cuanto a la facilitación del acceso a la tecnología, por nuestra parte, no compartimos,
por impreciso, el término (muy extendido) de la “democratización” de la tecnología, sin
embargo, creemos que la facilitación del acceso, su fomento e incluso el establecimiento de
su gratuidad, o en su caso, de costes mínimos, proporcionará su realización como derecho,
incidiendo con ello en la calidad de vida de la sociedad en su conjunto y de las personas en
su singularidad.
Tengamos en cuenta que los tecnólogos no reparan en los aspectos sociales de la
tecnología, en contraposición a ello, las corrientes humanistas sostienen que la tecnología
constituye un mero utensilio, que no implica la necesidad de una reflexión desde el punto
de vista filosófico. Por nuestra parte, abogamos por una posición equidistante en la que,
el reconocimiento de los derechos y el acceso a la información, han de ser protegidos en
primer término, y facilitados en segundo, constituyendo su efectiva realización, siendo éste
el verdadero caballo de batalla31.
Es indudable que, el advenimiento de las nuevas tecnologías, ha propiciado el surgimiento
de unos nuevos derechos humanos (entre ellos, los digitales) y una nueva sociedad, en la que se
han producido cambios sustanciales en la forma de comunicarnos e informarnos, influyendo
con ello en la educación, en el trabajo, y prácticamente, en todos los aspectos de la vida.
Coincidimos con GARCÍA GARCIA, cuando considera que “los derechos humanos
no son un catálogo cerrado, son abiertos y en ocasiones llegan a plantear exigencias y
proyectos de conflictiva realización simultánea”32. La mayoría de estos cambios han resultado
extraordinariamente ventajosos para gran parte de la sociedad, no obstante, hay amplios
sectores de la colectividad, que no pueden acceder a ellos, por causas de diversa índole:
técnicas, formativas, económicas, etcétera. Es por ello, por lo que debemos tener presente que

30
LOZANO ALARCÓN. La evolución de los derechos humanos: El proceso de positivación. Revis-
ta Derecho del Estado nº 16 – junio. 2004. Universidad Externado de Colombia.
31
NORBERTO BOBBIO sostenía que la cuestión de los derechos humanos en nuestro tiempo, no
es la de su fundamentación, sino la de su protección. NORBERTO BOBBIO. El problema de la guerra y la
vía de la paz. Editorial Gedisa. Barcelona. 1992.
32
GARCÍA GARCIA. Derechos humanos: La condición humana en la sociedad tecnológica. Edito-
rial Tecnos. Madrid. 1999. Págs. 131.

— 232 —
Evolución y desarrollo de los derechos humanos. hacia una cuarta generación
Julián León Camacho

estamos ante nuevos derechos, y que su sentido y esencia dependen de su universalización y


verdadera eficacia.
Por lo que respecta a los derechos humanos emergentes33en la era digital, éstos
constituyen un principio proclamado por la Asamblea General de las Naciones Unidas y el
Consejo de Derechos Humanos. Tales derechos existen, tanto dentro como fuera de Internet.
La Asamblea General de las Naciones Unidas, con su Declaración del Milenio, no trató de
realizar un brindis al sol, cuando proclamó su propósito de lucha en favor de: la igualdad
entre los géneros, la pobreza, el hambre, la salud, la educación y la preservación del medio
ambiente, acordados por todos los países reunidos en la Cumbre del Milenio34.
Cuyos principales objetivos serían, de un lado, la positivización uniéndolos al sistema
de protección y defensa de los derechos humanos, y de otro, la concienciación colectiva de la
necesidad de reivindicar estos derechos.
En este sentido, el psicólogo y filósofo GELMAN, R., extendió en noviembre de 1997
la proclamación de “Los Derechos Humanos del Ciberespacio”, bajo la noción de “ciudad
global” enunciando los presupuestos bajo los que habrían de establecerse las relaciones de
los usuarios. Advirtiendo de los peligros que podrían derivarse de la monopolización de
la información. Dispuso una serie de principios (16), entre los que podemos destacar: la
voluntariedad, el respeto a la privacidad, la libertad y la imprescindible pluralidad, a las que
tienen derecho todos los usuarios de Internet35.
En Barcelona se inició, en septiembre del año 2004, un proceso de codificación de los
derechos emergentes que finalmente se adoptó en Monterrey el 2 noviembre del 2007, como
Declaración Universal de Derechos Humanos Emergentes, la cual sirve en la actualidad como
instrumento programático de la sociedad civil internacional, dirigido a los actores estatales y
a otros foros institucionalizados para la cristalización de los derechos humanos en el nuevo
milenio36.
En otro orden de cosas, es una evidencia que las violaciones de los derechos humanos
también se producen en Internet, por medio de: intimidaciones, acoso, amenazas, coacciones,
etcétera, materializándose todas ellas en violencia física en el mundo real, llegando en
ocasiones a derivar en limpieza étnica y verdaderos genocidios37.

33
SAURA ESTAPÁ, en las conclusiones de su libro “derechos emergentes” sostiene que los de-
rechos humanos emergentes, no son sólo deseables y hasta posibles, sino que en algunos casos son una
realidad jurídica. SAURA ESTAPÀ. Derechos Emergentes: Desarrollo y Medioambiente. Editorial Tirant
Lo Blanch. Valencia. 2014.
34
En este sentido se manifestó Michelle Bachelet, Alta Comisionada de las Naciones Unidas para los
derechos humanos en la Japan Society de Nueva York, el 17 de octubre de 2019.
35
GELMAN, R., Draft Proposal: Declaration of Human Rights in Cyberspace”, 1997. Texto no edi-
tado. www.be-in.com/10/rightsdec.html.
36
IDHC, DECLARACIÓN UNIVERSAL DE DERECHOS HUMANOS EMERGENTES_(DUD-
HE). Barcelona, 2004. Sitio web: https://www.idhc.org/es/investigacion/publicaciones/derechos-humanos-
emergentes/declaracion-universal-de-derechos-humanos-emergentes.php
37
Un ejemplo de ello sería lo sucedido a la comunidad rohingya del Estado de Myanmar 2017,
donde sufrieron violaciones y asesinatos masivos. Distintos científicos especialistas en derechos humanos

— 233 —
Evolución y desarrollo de los derechos humanos. hacia una cuarta generación
Julián León Camacho

Al respecto apunta ALTAMIRANO DIMAS que “tratándose de derechos humanos,


es el momento de identificar cuál es la forma más segura de garantizarlos, de utilizar la
tecnología como motor de democratización y promoción de estos derechos. Estamos frente
a nuevos derechos que están basados en las nuevas vías para la libertad de expresión y de
asociación”38.
Decía Michelle Bachelet (Alta Comisionada de las Naciones Unidas para los Derechos
Humanos) que los datos son poder (siempre se dijo que la información es poder) y los
megadatos son un superpoder, un poderío susceptible de ser usado indebidamente, lo que
hace, no recomendable sino necesario e imprescindible, el establecimiento de controles que
limiten un mal uso (y abuso) de ese poder. El mundo digital posee un lado oscuro, en el
que se encuentran, como ejemplo, las noticias falsas (fakenews),a este respecto diremos que
el Tribunal Constitucional de España, en este contexto de la veracidad de la información
(noticias), en su sentencia 371/1993, de 13 de diciembre, (FJ 5, párrafo 3º) afirma que la
veracidad, no es sinónima de la verdad objetiva e incontestable de los hechos, sino reflejo de
la necesaria diligencia en la búsqueda de lo cierto, o si se prefiere, de la especial diligencia a
fin de contrastar debidamente las fuentes de la información39.
Tengamos en cuenta que las denominadas fakenews podrían llegar a derrocar gobiernos
(imaginen las consecuencias con un ciudadano particular), constituyendo una amenaza para
los derechos fundamentales, la seguridad personal, la intimidad, la libertad de expresión y los
derechos a la información veraz y accesible40.
En definitiva, existe una cuarta generación de derechos humanos, que en sentido amplio
engloba los derechos a la información, a la participación, a la libre opinión y al desarrollo.
Generación que con toda seguridad evolucionará y se desarrollará junto con la humanidad.
La siguiente cuestión es si surgirá en el futuro una quinta generación, es probable y confío en
que todos la veamos.

Bibliografía
ALTAMIRANO DIMAS, Los DDHH de cuarta generación. Un acercamiento. Centro de Estudios
Sociales y de Opinión Pública. Cámara de Diputados, México, Agosto, 2017. Pág., 31.

concluyeron que la red social Facebook, favoreció la incitación a la violencia. y la divulgación del odio.
38
ALTAMIRANO DIMAS, Los DDHH de cuarta generación. Un acercamiento. Centro de Estudios
Sociales y de Opinión Pública. Cámara de Diputados, México, Agosto, 2017. Pág., 31.
39
En este mismo sentido, en la sentencia del Tribunal Constitucional 320/1994 (FJ 3) se declaró que
la veracidad de lo que se informa “no va dirigida tanto a la exigencia de una rigurosa y total exactitud en
el contenido de la información. sino a negar la protección constitucional a los que. defraudando el derecho
de todos a recibir información veraz. transmiten como hechos verdaderos, bien simples rumores. carentes
de toda constatación. bien meras invenciones o insinuaciones. sin comprobar su veracidad mediante las
oportunas averiguaciones”.
40
Se están dando pasos, en este sentido, tales como la Guía de la Unión Europea para el Sector de las
TIC sobre la aplicación de los Principios Rectores, el Diálogo de la Industria de las Telecomunicaciones y
los Principios y Directrices de la Global Network Initiative (GNI), y los Principios Rectores de las Naciones
Unidas sobre las Empresas y los derechos humanos.

— 234 —
Evolución y desarrollo de los derechos humanos. hacia una cuarta generación
Julián León Camacho

CASTÁN TOBEÑAS, Los Derechos del Hombre, Ed. Reus, Madrid, 1992.
GARCÍA GARCÍA, Derechos humanos y calidad de vida. In Derechos humanos. La condición humana
en la sociedad tecnológica, Tecnos, Madrid, 1999.
GARCÍA SÁNCHEZ y REYES AÑORVE, Desafíos de las tecnologías de la información y derechos
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GELMAN, R., Draft Proposal: Declaration of Human Rights in Cyberspace, 1997. Texto no editado.
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— 235 —
Exibicionismo, vigilância
e máquinas de subjetivação: ensaio sobre o
condicionamento do comportamento
dos usuários nas redes sociais1

Eduardo Baldissera Carvalho Salles2


Augusto Jobim do Amaral3

Resumo: A previsão e condicionamento do comportamento coletivo agora é realizado às claras por


algoritmos presentes nos mais variados serviços eletrônicos. O objetivo é tanto a manutenção da ordem, por
meio da vigilância em favor de governos e corporações, quanto da produção de receitas, o que alguns dizem
que constitui uma nova fase do capitalismo. Por outro lado, essa tecnologia também representa uma nova
expressão da violência, porquanto de maneira mais invisível, psicológica e silenciosa, as pessoas são expostas
ao exibicionismo das redes sociais de uma maneira que lhes prejudica a sanidade mental. A competição em
ter uma vida melhor e mais bonita é inerente a lógica neoliberal, que, como é notório, esconde sob os seus
escombros além da tristeza – que não cabe na linha do tempo – a destruição física e psicológica tão comum
em nossos tempos. De maneira ensaística, o trabalho analisa algumas técnicas de extração e categorização
de emoções e traços psíquicos a partir dos dados, ações e padrões comportamentais nas redes sociais,
compreendendo o funcionamento dessas máquinas de subjetivação, e de que maneira os desejos podem
ser apropriados para finalidades do próprio sistema, isto é, como essas estratégias funcionam, repercutem e
produzem. Conclui-se que essas técnicas de condicionamento do comportamento, combinada com a lógica
neoliberal, nos impõe um rito de produção ilimitado e um exibicionismo nas redes com ares de competição,
afetando nossa sanidade mental. Deve-se encontrar linhas de fuga desse quadro, contudo, não se aponta
saídas devido ao caráter ensaístico do trabalho. Para tanto, trabalha-se com pesquisa interdisciplinar teórico
bibliográfica.
Palavras-chave: Exibicionismo, Máquinas de Subjetivação, Neoliberalismo.

Abstract: The prediction and conditioning of collective behavior is now carried out in the open by
algorithms present in the most varied electronic services. The objective is both to maintain order, through
vigilance in favor of governments and corporations, and to produce revenues, which some say constitutes a
new phase of capitalism. On the other hand, this technology also represents a new expression of violence,
because in a more invisible, psychological and silent way, people are exposed to the exhibitionism of social
networks in a way that harms their mental health. The competition to have a better and more beautiful
life is inherent to neoliberal logic, which, as is well known, hides under its rubble beyond the sadness -

1
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001
2
Doutorando em Ciências Criminais, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PU-
CRS), Porto Alegre, Brasil, em cotutela com a Universidad de Sevilla (US), Sevilla, España. eduardo@
carvalhosalles.com.br.
3
Doutor em Altos Estudos Contemporâneos (Ciência Política, História das Ideias e Estudos In-
ternacionais Comparativos) pela Universidade de Coimbra (Portugal); Doutor, Mestre e Especialista em
Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre,
Brasil. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais e do Programa de Pós-Graduação
em Filosofia, da PUCRS. augusto.amaral@pucrs.br

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Exibicionismo, vigilância e máquinas de subjetivação: ensaio sobre o condicionamento do comportamento
Eduardo Baldissera Carvalho Salles - Augusto Jobim do Amaral

which does not fit in the timeline - the physical and psychological destruction so common in our times.
In an essayistic manner, the work analyzes some techniques for extracting and categorizing emotions and
psychic traits from data, actions and behavioral patterns in social networks, understanding the functioning
of these subjectivation machines, and how desires can be appropriate for purposes of the system itself,
that is, how these strategies work, resonate and produce. It is concluded that these behavior conditioning
techniques, combined with neoliberal logic, impose on us an unlimited production rite and an exhibitionism
in networks with an air of competition, affecting our sanity. Escape lines must be found in this scenario,
however, there are no exits due to the essay’s character. For that, it works with interdisciplinary theoretical
bibliographic research.
Keywords: Exhibitionism, Subjectivation Machines, Neoliberalism.

Introdução
O cheiro de bolo recém-saído do forno pode nos remeter a recordações da infância,
em uma época com poucas preocupações, quando esperávamos os cuidados paternos e a
alimentação era feita com carinho para nos trazer satisfação e aconchego. Quando ficamos
grandes, esse mesmo cheiro continua a nos aguçar o paladar e, como um gatilho psicológico,
nos induz ao consumo. Existem muitas outras coisas que nos trazem sensações parecidas, que
interferem em nosso agir, em nossa tomada de decisão, em um âmbito de difícil verificação.
E, como era de se esperar, essa sensação tem sido explorada pelo neoliberalismo para capturar
a nossa atenção e fazer a sua roda girar. Não é de hoje que a indústria usa aromatizantes e
flavorizantes para transformar o sabor, o odor e a textura de coisas que, naturalmente, não
serviriam para a nossa alimentação. Com isso, pode-se enganar o cérebro dos consumidores
não apenas para tornar os alimentos mais tragáveis, mas para viciar as pessoas em produtos
com pouca ou nenhuma capacidade alimentar. E quando comemos demais e sofremos as
consequências biológicas desse excesso, a obesidade é encarada como falta de vontade,
preguiça ou problema psicológico ou moral.
Nossos mercados, lojas e ruas estão cheias de alimentos que não são o que parecem. Os
ilusionistas estão até em cafeterias e padarias que já utilizam difusores de aroma para capturar
a clientela pelo nariz, que não consegue resistir ao cheiro de um pão caseiro ou de um café
espresso recém-feito4. Essa analogia nos parece uma interessante maneira de introduzir o tema
principal deste trabalho, porquanto as técnicas algorítmicas presentes nas redes sociais, que
nos provocam a estranha necessidade de permanecer ininterruptamente conectado à internet
por meio de smartphones, tablets, relógios inteligentes, entre outros dispositivos eletrônicos,
funcionam com a mesma lógica da indústria alimentícia.
Essas técnicas, compartilhadas em muitos outros âmbitos do neoliberalismo, buscam
sequestrar a nossa atenção pelo maior tempo possível com o objetivo de incrementar o
engajamento dos alvos com os produtos. E como é característico dos fenômenos inerentes
a esse regime econômico, essa prática permeia uma quantidade incalculável de pessoas, em
um campo multifacetado e de difícil delimitação. Desde os reality shows na televisão ao
exibicionismo nas redes sociais da internet, esses fenômenos sugerem não apenas novas
categorias do público e do privado, da intimidade e da sociabilidade, da interioridade e da

4
PEIRANO, Marta. El enemigo conoce el sistema: Manipulación de ideas, personas e influencias
después de la economía de la atención. Barcelona: Debate, 2019.

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Exibicionismo, vigilância e máquinas de subjetivação: ensaio sobre o condicionamento do comportamento
Eduardo Baldissera Carvalho Salles - Augusto Jobim do Amaral

exterioridade, mas o entrelaçamento de técnicas de controle da atenção em diversos âmbitos.


Este trabalho busca entender, ainda que de maneira introdutória, o funcionamento das aludidas
técnicas, ensaiando uma interpretação desses fenômenos contemporâneos5.
Não se desconhece as recentes teorias de capitalismo de plataforma6, sociedade de caixa
preta7, capitalismo de vigilância8, bem como a sua crítica mais feroz9. Contudo, como trata-se
de um artigo ensaístico, as aludidas teorias aparecem como pano de fundo de nossa visão de
mundo, sem, contudo, adentrarmos especificadamente nos conceitos de cada autor.

Captura da atenção e expropriação de dados pessoais


Manipular e enganar as pessoas é altamente rentável. Os estelionatários que passam
a perna em velhinhos sabem muito bem disso. E no âmbito da tecnologia, pode-se dizer
que as invenções que mais geram dinheiro aos seus criadores são justamente aquelas que
se preocupam com isso. Mas há uma diferença tremenda entre construir um sistema viável
economicamente e outro funcione apenas para manipular a experiência do usuário de acordo
com as suas preferências pessoais e, assim, consiga captar novos viciados obsessivos.
No que diz respeito à tecnologia, arriscaríamos dizer que a humanidade chegou a um
ponto sem retorno. Sua importância e radicalidade está presente em nosso dia a dia, desde
o compartilhamento instantâneo de informações em grupos no WhatsApp, até na prestação
de serviços oficiais por meio de aplicativos desenvolvidos pelos poderes públicos. Estamos
diuturnamente conectados olhando, tocando e compartilhando dados e informações pessoais
por meio de aplicativos supostamente “gratuitos”, acreditando que a internet é um território
de liberdade e que o domínio permanece sob nossas mãos. Contudo, existem pelo menos dois
aspectos que comumente têm sido olvidados dos debates públicos a esse respeito.
Por um lado, o exibicionismo das redes sociais altera os regimes de visibilidade da
sociedade, descarnando a competitividade e a busca pelo desempenho que caracteriza o nosso
tempo10. A excessiva exposição da individualidade nos exige um regime de trabalho ininterrupto,
com a extinção dos momentos de descanso e de reflexão interior. Até mesmo aquilo que é
irredutível, como a fome, a sede, o amor, passa a se tornar objeto de competitividade. Todos são
impulsionados a desejar, comprar, para, em seguida, desprezar11. O smartphone transforma-se

5
Ibidem.
6
SRNICEK, Nick. Plataform capitalism. Cambridge: Polity Press, 2017.
7
PASQUALE, Frank. The black box society: the secret algorithms that control money and informa-
tion. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2015.
8
ZUBOFF, Shoshana. The Age of Surveillance Capitalism: The Fight for a Human Future at the
New Frontier of Power. Nova York: PublicAffairs, 2019.
9
MOROZOV, Evgeny. As novas roupas do capitalismo. Tradução de Paulo Faltay. Disponível em:
http://medialabufrj.net/blog/2019/04/dobras-28-as-novas-roupas-do-capitalismo-parte-1/. Acesso em 29
out. 2019.
10
HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: neoliberaliismo e novas técnicas de poder. Tradução: PEREI-
RA, Miguel Serras. Lisboa: Relógio D’Água, 2014
11
RENDUELES, César. Sociofobia: el cambio político en la era de la utopía digital. Debate, 2015,
p. 20

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Exibicionismo, vigilância e máquinas de subjetivação: ensaio sobre o condicionamento do comportamento
Eduardo Baldissera Carvalho Salles - Augusto Jobim do Amaral

em um espelho próprio que produz imagens em que o sujeito precisa estar sempre o melhor
possível, no local esteticamente mais bonito, com a roupa da moda, com o corpo lindíssimo,
comendo o que há de melhor, em paisagens vivas e abundantes12. O Instagram nos revela
diariamente como essa lógica é narcisista13: as fotos, sempre em momentos divertidos ou de
lazer, indicam a existência de uma competição para ver quem vive a vida mais perfeita, mais
tranquila e mais feliz.
Em verdade, há certo fascínio voyeurista em ver e ser visto. Enquanto algumas pessoas
sentem-se desagradáveis em expor a sua intimidade nas redes sociais, para outros o aumento
da visibilidade não é encarado como ameaça, mas como sinônimo de prazer14. A notória
grande quantidade de vídeos íntimos de casais normais voluntariamente divulgados em sites
pornográficos endossa esse argumento, isto é, a devassa da privacidade muitas vezes ocorre
com o consentimento das pessoas expostas, que chegam a sentir prazer sexual com isso.
Por outro lado, sob essa bonita e anárquica troca de fluxos, esconde-se um sistema
capilarizado de expropriação e categorização de dados, que funciona para entender o que nos
toca o coração15. Com tal informação, passa a ser possível desenvolver as mesmas técnicas de
captura da atenção da indústria alimentícia. Esses ilusionistas digitais podem alterar o “gosto”
da informação a que somos expostos para personalizá-la de acordo com nossas preferências
individuais. Sob essa perspectiva, não se rejeitaria a possibilidade de que os usuários sejam
estimulados a adotar determinados comportamentos nas redes, incluindo o exibicionismo.
E como já mencionado, essas técnicas funcionam explorando os sentimentos humanos. A
ansiedade, por exemplo, é explorada pelas notificações push dos aplicativos para smartphone.
Habilitados por padrão em todos os aparelhos, eles funcionam para nos persuadir e transformar
o que pensamos e fazemos, isto é, enquanto o leitor lê este trabalho pode estar sendo alvo das
notificações, que insistem em lhe sequestrar a atenção para o aparelho. Com isso, é possível
construir hábitos e maravilhar as mentes. A cada nova mensagem, e-mail, notícia, convite,
recordação, aniversário, lembrete, somos compelidos a buscar o aparelho. Há aplicativos
para recordar a hora de acordar, dormir, comer e beber água. Até mesmo os hábitos mais
irredutíveis são mediados pelos dispositivos eletrônicos. E sempre há algo novo para ler, curtir
ou fazer. Nossa ansiedade é elevada artificialmente para chamar-nos a atenção, e a demora
em contestar uma chamada ou responder uma mensagem causa aflição e uma insuportável
sensação de desconforto. Não se admite a desconexão ou a demora.
O que ocorre em outras partes do mundo é constantemente alvo de notificações push,
aumentando o sentimento de ansiedade e de incapacidade para processar tanta informação.
E para aumentar o engajamento, essas notificações possuem cores vibrantes, piscantes, com
a evidente intenção de nos causar curiosidade. Muitas vezes as notificações são provocadas
automaticamente pelo próprio sistema ou mesmo por bots, que curtem e comentam para nos

12
FLUSSER, Vilém. Ensaio sobre a fotografia: para uma filosofia da técnica. Lisboa: Relógio
D’Água, 1998, p. 29
13
FREUD, Sigmund. Sobre o narcisismo: uma introdução (1914). Obras completas, v. 14, 1996
14
BRUNO, Fernanda. Máquinas de ver, Modos de ser. Vigilância, tecnologia e subjetividade. Porto
Alegre: Sulina, 2013.
15
MOROZOV, Evgeny. La locura del solucionismo tecnológico. Buenos Aires: Katz Editores, 2015.

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Exibicionismo, vigilância e máquinas de subjetivação: ensaio sobre o condicionamento do comportamento
Eduardo Baldissera Carvalho Salles - Augusto Jobim do Amaral

manter interessados no sistema. O Facebook e o Instagram, que sugerem amizades e perfis


automaticamente, são uma amostra de como funciona essa técnica de captura da atenção. E
como esses sistemas notoriamente extraem dados comportamentais de seus usuários, eles
facilmente podem prever o momento perfeito para que a notificação apareça para aumentar as
taxas de interação, isto é, fazê-lo nos momentos em que o usuário está mais sujeito16.
O funcionamento das máquinas caça-níquel é repetido pelo pull to refresh, presente
em aplicativos como Facebook, Tinder e Happn, os quais usam o botão como gatilho para,
de tempos em tempos, presentear o usuário com prêmios17. No caso do Facebook, não seria
necessário puxar para atualizar, pois o sistema poderia mostrar automaticamente as mensagens
novas, assim como ocorre nos sistemas de mensagens eletrônicas. Inclusive muitos aplicativos
não eram assim. Mas, por que alteraram o sistema? Simples. Ao impor que o usuário puxe a
roleta da fortuna, para ver o que há de novo na linha do tempo, o usuário pensa que está no
controle, que o seu dedo pode influir no resultado, e que o prêmio está na próxima clicada.
Se isso já não fosse suficiente, com isso é possível extrair dados comportamentais de maneira
mais objetiva, somando-se a quantidade de cliques, a duração em cada informação bem como
com quais conteúdos houve maior interação.
Outro truque bastante interessante para manter o usuário em transe, sempre conectado,
é o scroll infinito18. Ao explorar nossa incapacidade de lidar com a abundância daquilo que
nos alegra, e de nosso pernicioso comportamento a esse respeito, a ferramenta nos mantém
conectados com novas informações em um loop sem fim, cuja barreira é a bateria do aparelho
ou o cansaço do usuário. Com isso, estimula-se a sensação de transe e de suspensão do espaço-
tempo. Sem passado nem futuro, em um tempo sempre premente, imediato, instaura-se uma
histeria informativa permanente. Entramos nesse mundo e, quando cai a ficha, percebemos
que perdemos várias horas em frente a tela do smartphone capturados por uma paralisia
hipnótica e desorientante. No Brasil, por exemplo, o tempo médio conectado à internet é de
nove horas e quatorze minutos, isto é, período superior à média de sono e da jornada habitual
de trabalho19. Isso significa que as pessoas estão cada vez mais conectadas à internet, e, de
acordo com os mesmos estudos, a maior quantidade de tempo é dedicada às redes sociais,
indicando a eficácia dessas técnicas.
Portanto, esses algoritmos computacionais compartilham técnicas que objetivam
sequestrar a nossa atenção pelo maior tempo possível, detectando ou produzindo indignação,
medo, fúria, distração, solidão, competitividade, etc. A emoção é o gatilho psíquico utilizado
pelas redes sociais por trás de seu sucesso. O YouTube, por exemplo, apresenta uma página
diferente para cada usuário, de acordo com as preferências e o comportamento anterior. Apesar
da opacidade de seu algoritmo, protegido por normas de propriedade intelectual, aparentemente
a playlist de vídeos sugeridos automaticamente baseia-se na experiência anterior do usuário.
Quando um vídeo sobre esportes termina, outro similar é imediatamente iniciado. O mesmo

16
PEIRANO, Marta. op. cit.
17
PEIRANO, Marta. op. cit.
18
PEIRANO, Marta. op. cit.
19
G1. Brasileiro é um dos campeões em tempo conectado na internet. Disponível em: https://
g1.globo.com/especial-publicitario/em-movimento/noticia/2018/10/22/brasileiro-e-um-dos-campeoes-em-
tempo-conectado-na-internet.ghtml. Acesso em: 14 fev. 2020.

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Exibicionismo, vigilância e máquinas de subjetivação: ensaio sobre o condicionamento do comportamento
Eduardo Baldissera Carvalho Salles - Augusto Jobim do Amaral

acontece com culinária, música e política. O YouTube reconhece a coleta de informações sobre
atividades pessoais “para recomendar um vídeo de que você pode gostar”. Essa afirmação deve
ser verdadeira. Contudo, manter os usuários dentro da mesma bolha ideológica, mostrando
sempre o “mesmo”, com a suposição de que o conteúdo lhes agrada, suprime a alteridade e
fomenta a radicalização do pensamento – ainda que involuntariamente.
A proliferação das fake news nos últimos anos está intrinsicamente ligada ao
funcionamento dessas técnicas algorítmicas, já que o critério de relevância do conteúdo a
ser destacado é a sua popularidade. Como as fakes news são feitas para explorar as emoções,
acabam sendo mais lucrativas para as plataformas, que lucram com publicidade. A falsidade é
mais lucrativa do que a verdade, porque enraivece e engaja fortemente o usuário. Uma enorme
quantidade do conteúdo digital provém de teorias conspiratórias. Embora as plataformas
anunciem medidas para combater relatos não-factuais, a proliferação de imagens, vídeos e
textos sobre fake news fazem parte do modelo de negócio das empresas de tecnologia, que
influenciam a disseminação desses conteúdos.
A indignação é um sentimento viral, potente, veloz e intoxicante. Inebria o ser humano,
exigindo-lhe justiça, vingança e atenção. É uma chama que muito arde e tudo queima,
incendeia. Logo após ser contagiado com as fakes news, os sentimentos afloram e a pessoa
passa a descarregar uma enxurrada de posts, likes e tuits pela internet. A lógica neoliberal
desses aplicativos favorece a proliferação desse conteúdo, porque independente da adequação
moral ou ética, eles geram engajamento – e dinheiro com publicidade. Para entender essa
lógica é imprescindível levar em consideração que, ao contrário dos jornais e veículos de
imprensa, a maior parte das plataformas digitais operam com “conteúdo”, e não “informação”.
A veracidade é acessória e acidental.

Considerações finais
A expropriação de dados nada tem a ver com o direito e tampouco pode ser revertida
por mais normas ou, como propõem alguns juristas, maior clareza nos termos e condições
nos serviços. Mais transparência nas informações não assegurará a reversão do quadro atual
porque as pessoas tendem a aceitar todos os termos que lhe forem exibidos para que possam
usar os sistemas. Os alertas de utilização de cookies, obrigatórios em muitas partes do mundo,
não afastam os usuários, que aceitam tudo que veem na frente.
Daí porque esse tipo de solução está fadado ao insucesso. As redes sociais exploram
o projeto de liberdade que mora no coração da humanidade neoliberal. O rompimento dos
grilhões que o iluminismo deu causa agora é uma nova forma de submissão, de apuração
muito mais difícil. A coerção agora incide internamente como obrigações de desempenho,
eficiência e sucesso. Esse sujeito do desempenho acredita ser livre, enquanto se explora
voluntariamente, sem que ninguém lhe obrigue a tanto. O neoliberalismo cumpre com a
promessa comunista de eliminar a exploração alheia da classe trabalhadora transformando
cada operário em servo e senhor de si e fazendo do interior psíquico de cada pessoa o palco
da luta de classes. Talvez por isto sofremos tanto de patologias psíquicas como depressão,
ansiedade e síndrome do esgotamento profissional: quem fracassa não culpa a sociedade ou

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Exibicionismo, vigilância e máquinas de subjetivação: ensaio sobre o condicionamento do comportamento
Eduardo Baldissera Carvalho Salles - Augusto Jobim do Amaral

o sistema, mas responsabiliza a si próprio, envergonhando-se. Não há resistência possível


porque a agressão, o inconformismo, dirige-se ao âmago de cada um.
Será mesmo que esse projeto de liberdade pode ser equiparado à liberdade? Byung-Chul
Han refere que o neoliberalismo é inteligente na exploração da liberdade, pois tudo aquilo que
pertence às práticas e às formas de expressão da liberdade é explorado. A emoção, o jogo e a
comunicação são apropriados pela lógica neoliberal com a concordância do sujeito: “explorar
alguém contra sua própria vontade não é eficiente, na medida em que torna o rendimento
muito baixo. É a exploração da liberdade que produz o maior lucro”20.
Nos cabe, talvez, encontrar linhas de fuga da tecnologia para estabelecer laços de
alteridade. Para reverter essas técnicas de captura da atenção, poderíamos apostar no reforço
das tramas humanas, de carne e osso. Contudo, é difícil de apontar com precisão um caminho,
afinal, qualquer proposta exigiria compromisso de todos, o que, em tempos de ódio e de
divisão do mundo em polos antagônicos, nos parece muito improvável.

Referências
BRUNO, Fernanda. Máquinas de ver, Modos de ser. Vigilância, tecnologia e subjetividade. Porto
Alegre: Sulina, 2013.
FLUSSER, Vilém. Ensaio sobre a fotografia: para uma filosofia da técnica. Lisboa: Relógio D’Água,
1998, p. 29
FREUD, Sigmund. Sobre o narcisismo: uma introdução (1914). Obras completas, v. 14, 1996
G1. Brasileiro é um dos campeões em tempo conectado na internet. Disponível em: https://
g1.globo.com/especial-publicitario/em-movimento/noticia/2018/10/22/brasileiro-e-um-dos-
campeoes-em-tempo-conectado-na-internet.ghtml. Acesso em: 14 fev. 2020.
HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: neoliberaliismo e novas técnicas de poder. Tradução: PEREIRA,
Miguel Serras. Lisboa: Relógio D’Água, 2014
MOROZOV, Evgeny. As novas roupas do capitalismo. Tradução de Paulo Faltay. Disponível em:
http://medialabufrj.net/blog/2019/04/dobras-28-as-novas-roupas-do-capitalismo-parte-1/.
Acesso em 29 out. 2019.
MOROZOV, Evgeny. La locura del solucionismo tecnológico. Buenos Aires: Katz Editores, 2015.
PASQUALE, Frank. The black box society: the secret algorithms that control money and information.
Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2015.
PEIRANO, Marta. El enemigo conoce el sistema: Manipulación de ideas, personas e influencias
después de la economía de la atención. Barcelona: Debate, 2019.
RENDUELES, César. Sociofobia: el cambio político en la era de la utopía digital. Debate, 2015, p. 20
SRNICEK, Nick. Plataform capitalism. Cambridge: Polity Press, 2017.
ZUBOFF, Shoshana. The Age of Surveillance Capitalism: The Fight for a Human Future at the New
Frontier of Power. Nova York: PublicAffairs, 2019.


20
HAN, op. cit., p. 11-12.

— 242 —
Exibicionismo, vigilância e máquinas de subjetivação: ensaio sobre o condicionamento do comportamento
Eduardo Baldissera Carvalho Salles - Augusto Jobim do Amaral

— 243 —
A falência transfronteiriça e a função social
da empresa sob a ótica da 3ª dimensão
dos direitos humanos

Carlos Eduardo Silva e Souza1


Angelo Bruno Donatoni2

Resumo: O presente trabalho objetiva analisar o fenômeno da falência internacional sob a ótica
procedimental, inclusive no sentido de averiguar a importância dos direitos humanos nesse procedimento.
Parte-se do pressuposto da formação da sociedade empresária como corpo detentor de função social no seio da
sociedade, capaz de propalar e movimentar mudanças ímpares, tais como a manutenção de cidades, mudança de
quadros sociais e índices de desenvolvimento. Busca-se, além disso, explanar sobre o procedimento falimentar,
tanto no cenário brasileiro, quanto no cenário mundial, trazendo os princípios inerentes às pessoas jurídicas
e ao procedimento em si. Além disso, a análise também se volta para o estudo dos modelos internacionais
que cercam a temática e de como seriam capazes de elucidar, ou ao menos demonstrar, como se poderiam ser
resolvidos futuros cenários destes. Considerando que tanto a sociedade, quanto a empresa sofrem duramente
em momentos de insolvência, buscou-se um paralelo entre os direitos humanos implícitos ou inseridos dentro
do procedimento recuperacional, com fito de demonstrar o caráter muitas vezes inexplorado ou que foge
aos olhos daqueles que analisam tal circunstância de maneira mais superficial. É certo que, não somente os
documentos internacionais resolverão toda problemática, mas também o Poder Legislativo de cada país na
consolidação de um modelo, senão único, similar para que haja comunicação em casos como esse.
Palavras chaves: empresa; falência; recuperação judicial; direitos humanos.

1
Doutor em Direito pela FADISP. Mestre em Direito Agroambiental pela UFMT. Professor dos
cursos de Graduação e Mestrado da Faculdade de Direito da UFMT. Líder do Grupo de Pesquisa de Direito
Civil Contemporâneo. Coordenador do Laboratório de Direito Civil Contemporâneo da UFMT. Membro da
Academia Mato-grossense de Direito, do IBDCONT – Instituto Brasileiro de Direito Contratual, do IBERC
– Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil e do IBEA – Instituto Brasileiro de Estudos do Agronegó-
cio. Advogado. Endereço eletrônico:professorcarloseduardo@gmail.com
2
Bacharel em direito pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Participante do Grupo de
Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo pelo período de 2019/2020. Endereço eletrônico: donatoni27@
gmail.com

— 244 —
A falência transfronteiriça e a função social da empresa sob a ótica da 3ª dimensão dos direitos humanos
Carlos Eduardo Silva e Souza - Angelo Bruno Donatoni

Abstract: The present work seeks to bring the phenomenon of international bankruptcy under the
procedural perspective, with a view to discussing how it would happen and the importance of human rights
in this procedure. Based on this, the assumption of the formation of the business society as a body that holds
a social function within society, capable of propagating and moving odd changes, such as the maintenance of
cities, change of social staff and development indexes. It also seeks to explain about the bankruptcy procedure,
both in the Brazilian scenario and in the world scenario, bringing the principles inherent to legal entities and
the procedure itself, as well as whether it is one of the ways of enforcing human rights, especially those titled
as 3rd dimension. In addition, it seeks to study the international models surrounding the theme and are able
to elucidate, or at least demonstrate, how future scenarios of these can be resolved. Bearing in mind that both
society and the company suffer hard in times of insolvency, a parallel was sought between the human rights
implicit or inserted within the recovery procedure, in order to demonstrate the character often unexplored or
that escapes the eyes of those who analyze this circumstance in a more superficial way. It is true that, not only
the international documents will solve every problem, but also to the Legislative Power of each country in the
consolidation of a model, if not unique, similar so that there is communication in cases like this.
Keywords: company; bankruptcy; judicial recovery; human rights.

INTRODUÇÃO
A empresa não deve ser vista como mero instrumento de aferir lucros aos seus possuidores
ou detentores. Vai além disso. A empresa deve ser visualizada como ferramenta de inserção
social e mecanismo de mudança econômica de toda economia global.
O problema surge, justamente, quando se visualiza a insolvência de uma empresa num
cenário que escapa os limites territoriais de um único país, de tal forma se questionar o
ordenamento jurídico-normativo aplicável e as decorrências inerentes.
Isso porque, ao se falar em empresas sujeitas a inúmeros ordenamentos jurídicos, há
certo abalo à segurança jurídica não só da empresa, mas também de toda coletividade, pois
há diferentes soluções jurídicas internas e também por documentos internacionais, de modo a
pairar dúvidas sobre qual utilizar ou aquele que melhor resolveria a questão.
Assim, diante das nuances supramencionadas, buscar-se-á fazer o cotejo analítico desta
problemática para, ao final, visualizar qual documento é capaz de garantir a preservação da
função social da empresa no procedimento falimentar com vistas à efetivação da 3ª dimensão
dos direitos humanos.

1. A SOCIEDADE EMPRESÁRIA E SUA FUNÇÃO SOCIAL


A legislação brasileira3, adotando inúmeras balizas criadas e estimuladas pelo Direito
Italiano, não conceitua sociedade empresária, mas sim empresário4. Em que pese esse
descompasso, a sociedade empresária ou atividade empresarial deve ser compreendida como
a atividade econômica do empresário consistente na organização econômica dos fatores

3
Sobretudo, o Código Civil brasileiro, onde a matéria é tratada (BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de
janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, DF, jan. 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm. Acesso fevereiro 2018).
4
COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial – Direito de Empresa. 28ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2016. p. 32.

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A falência transfronteiriça e a função social da empresa sob a ótica da 3ª dimensão dos direitos humanos
Carlos Eduardo Silva e Souza - Angelo Bruno Donatoni

de produção, desenvolvida por pessoa natural ou pessoa jurídica e voltada a produção ou


circulação de bens ou serviços por meio de um estabelecimento empresarial, visando à
exploração econômica lucrativa para satisfação do mercado.
A empresa deve ir além do papel de gerar lucros, perpassando por força motriz da sociedade,
ao gerar emprego, renda e circulação de mercadorias5 e, assim, deve ser visualizada, como um
complexo de bens e direitos, corpóreos e incorpóreos, que afetam toda uma região e, muitas
vezes, um Estado.6 Para a efetivação da função social específica da empresa, essa deve criar
empregos, pagamento de tributos, geração de riqueza, contribuição para o desenvolvimento
econômico, social e cultural do entorno.7
Como se vê, a empresa e a sociedade vivem verdadeira relação de simbiose, o que, pois,
denota que uma não sobrevive sem a outra, sejam em momentos de mercado aquecido e em
franca expansão ou de mercado tímido e com controle de despesas.
Por conta disso, fazendo-se um paralelo com o princípio da distribuição equilibrada do
ônus da prova, consagrado no âmbito da recuperação judicial8, não é somente a empresa que
acaba por suportar a crise pela qual enfrenta, sob pena de se ter não só seu perecimento, mas
de toda coletividade.
A empresa tornou-se, também, mecanismo de efetivação dos direitos sociais e de
efetivação da dignidade da pessoa humana, ao passo que não somente o empresário se
beneficia daquela atividade, mas toda coletividade, como ressaltado acima.

2. O INSTITUTO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL E DA FALÊNCIA NO


VIÉS INTERNACIONALE SEUS SISTEMAS
A necessidade pela recuperação judicial ou pela falência da empresa se mostra quando
essa não honra seus compromissos pontual e integralmente, demonstrando um cenário de
iliquidez para com seus credores.9

5
SANTOS. Queila Rocha Carmona dos e SANTOS, Helena Roza dos. A Proteção da Empresa e
de suas funções por meio dos Princípios da Lei de Recuperação e Falência. Disponível em: http://www.
publicadireito.com.br/artigos/?cod=d7e8c82ac1c68ac3. Acesso em maio 2019.
6
Exemplo disso são inúmeras cidades e cidadelas que vivem unicamente em função de uma indús-
tria, um frigorifico ou uma plantação de grãos, como comumente ocorre nas regiões interioranas do Brasil.
A empresa deve ser entendida como fonte propulsora de toda economia, gerando receitas, empregos e tri-
butos, tornando-se tais ativos condições sinequa non de uma atividade empresarial.
7
SANTA CRUZ, André. Função social da empresa. Disponível em: http://genjuridico.com.
br/2016/10/24/funcao-social-da-empresa/. Acesso em maio 2018
8
Tal princípio foi concebido por Daniel Carnio Costa, na demonstração de superação do dualismo
pendular. Para maiores informações confira: Confira em: COSTA. Daniel Carnio. Recuperação judicial
de empresas – As novas teorias da divisão equilibrada de ônus e da superação do dualismo pendu-
lar. Disponível em: https://www.editorajc.com.br/recuperacao-judicial-de-empresas-as-novas-teorias-da-
divisao-equilibrada-de-onus-e-da-superacao-do-dualismo-pendular/. Acesso em julho 2019.
9
SILVA E SOUZA. Carlos Eduardo. Falência Transfronteiriça. Florianópolis: CONPEDI, 2014.
p. 381/398. Disponível em http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=3b5f4f19719aa9a6- Acesso em
maio 2019

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A falência transfronteiriça e a função social da empresa sob a ótica da 3ª dimensão dos direitos humanos
Carlos Eduardo Silva e Souza - Angelo Bruno Donatoni

O instituto da recuperação judicial tem o fito de soerguer aquelas empresas que são
acometidas por crises financeiras, colocando em risco sua atividade empresarial e que, sem
a ajuda do Poder Judiciário, não conseguirão manter suas portas abertas e atividades.10-11.O
cenário de falência, ao contrário da recuperação, consiste na arrecadação de todo patrimônio,
avaliação desses ativos e suas garantias, com consequente pagamento dos débitos existentes.
Transportando para o cenário global, o fenômeno denominado falência/recuperação
internacional, de maneira simples e direta, pode ser entendido quando uma empresa, com
inúmeras sedes, filiais, subsidiárias, patrimônios e débitos em vários países, é acometida
por uma grave crise financeira que coloca em dúvida sua manutenção, sem ajuda do Poder
Judiciário.
Na tentativa de se solucionar o imbróglio internacional de insolvência, alguns sistemas,
tido como base para os sistemas internacionais de legislação, merecem o estudo.
Primeiramente, o sistema tido como territorialista significa a existência de um único
processo falimentar, em que somente um juízo irá dirimir a controvérsia.12Em contrapartida a
este sistema, há aqueles que defendam o sistema universal, ou universalista, em que somente

10
É o que se extrai do artigo 47 da Lei 11.101/2005: “A recuperação judicial tem por objetivo via-
bilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção
da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a
preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica” (BRASIL. Lei nº 11.101
de 09 de fevereiro de 2005. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e
da sociedade empresária. Brasília, DF, fev. 2005. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
ato2004-2006/2005/lei/l11101.htm. Acesso maio 2019).
11
No processo recuperacional, a empresa possui poder de gestão sobre seu negócio, bens e maneiras
de gerir seu negócio, na tentativa de adimplir seus débitos e recuperar seu espaço em mercado. Paralelo a
isso, há, entretanto, a figura do administrador judicial, nomeado pelo juiz, para que implemente suas ativi-
dades de fiscalização e contribuição para ao deslinde célere do caso. Funciona, de maneira direta, como um
longa manusdo juiz. Consiste na figura de profissional idôneo e capacitado para ajuda e condução do pro-
cedimento recuperacional, na tentativa de evitar uma duração exacerbada e desnecessária do processo como
um todo e garantir a lisura do feito. É nomeado pelo juiz. Para que se habilite como administrador judicial
é necessário que se cumpra os requisitos determinados na lei de regência, qual seja e lei nº 11.101/2005
12
A premissa desse sistema consiste na soberania de cada país para julgar o caso de falência daquele
grupo econômico em seu território e liquidar os bens da empresa para pagamento de seus credores, não ad-
mitindo a influência de outras legislações em seu território. Assim, para cada país haverá um único processo
falimentar independente e que, na maioria das vezes, não se comunica. Dessa maneira, a preferência e compe-
tência para processamento da recuperação/falência se dará em cada Estado, guardando cada um sua soberania
e os ditames de sua jurisdição sobre o tema, não sofrendo interferência de outros. As justificativas de que tal
sistema é tido como protecionista de seus jurisdicionados, fazendo valer a sua legislação sobre a matéria,
vai na contramão dos princípios inerentes do procedimento falimentar, pois sujeita o devedor a inúmeros
processos e legislações sobre o mesmo problema (insolvência), ferindo a celeridade processual e a segurança
jurídica. Ademais, acaba por ferir a uma das máximas do procedimento recuperacional e falimentar: a isono-
mia entre credores de mesma classe ou, como denominam alguns, par conditio creditorum. Isso é visto, pois,
quando a empresa propicia tratamento diferente aos credores que estão em pé de igualdade.

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Carlos Eduardo Silva e Souza - Angelo Bruno Donatoni

uma única lei se aplica a todo procedimento falimentar.13Por derradeiro, tem-se o sistema tido
como misto, que repousa sobre os sistemas universais e territoriais. Em tal sistema, visualiza-
se uma territorialidade diferida, com a possibilidade de se abrir procedimentos falimentares
nos locais onde a empresa possua estabelecimento e a possibilidade de existir processos
secundários, subordinado ao principal, mitigando, assim o universalismo.14
No cenário brasileiro, a atual legislação nada diz acerca da falência internacional e
tampouco busca dar solução para o tema, ensejando que novas modalidades de soluções
fossem adotadas, como já propõe o PL 1.572/1115 para criação do novo Código Comercial
Brasileiro e o PL 10.220/201816, que visa a inclusão da cooperação internacional no âmbito
da falência brasileira, estabelecendo parâmetros e diretrizes para resolução do imbróglio
comentado.
Dentreas análises dos sistemas elencados, acredita-se que a o sistema universalista é que
melhor solucionaria a questão internacional, com certas ressalvas. Isso porque, o universalismo
puro, sem modificações, é algo praticamente impossível de se visualizar no mundo fático, eis
que cada Estado guarda sua soberania. Somado isso, deve-se estabelecer a possibilidade de
cada Estado mitigar sua soberania em prol da coletividade. Com isso, a possibilidade de se
aplicar um sistema híbrido17 ou modificado18 é capaz de permitir a melhor desenvoltura da
falência internacional.

13
Tal sistema parece louvável ao passo que somente aquela lei irá afetar e regulamentar aquele pro-
cedimento, porém comentários são necessários. No entanto, por mais benéfico que pareça, tal sistema en-
contra vários óbices capazes de impedir a efetividade de tal modelo. O primeiro deles seria a comunicação
entre os países para que se efetivasse determinada ordem de penhora, venda, liquidação ou cumprimento
de ordens estrangeiras no território brasileiro, por exemplo. No sistema Brasileiro, o atual Código de Pro-
cesso Civil implementou a cooperação internacional, o que poderia demonstrar um possível encaixe de tal
sistema. Ocorre, todavia, que nem todos os países são capazes de cooperar entre si, pois para que haja tal
cooperação é necessário um tratado entre eles ou a via diplomática deve suprir tal documento. Há quem
elenque que tal sistema pode ferir o acesso à justiça, ao passo que os credores mais singelos podem não
conseguir ter espaço no procedimento e efetiva prestação jurisdicional, tendo que se sujeitar à vontade dos
grandes credores. Em pior cenário, o credor pode não conseguir ao menos ingressar no procedimento.
14
SILVA E SOUZA. Carlos Eduardo. op. cit.
15
Cf. Câmara dos Deputados. Disponível em:
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=508884
16
Cf. Câmara dos Deputados. Disponível em:
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2174927
17
FERNANDES. Jean Carlos, e ALMEIDA. Pedro Francisco da Silva. Insolvência Transfrontei-
riça e o Papel da Lei Modelo Da Uncitral. Revista da AJURIS – Porto Alegre, v. 45, n. 145, Dezembro,
2018. p. 75.
18
O sistema modificado foi concebido Jay Lawrence Westbrook que, nas palavras de Alexandre
Ferreira de Assumpção Alves e Raphael Vieira da Fonseca Rocha assim foi descrito: “Semelhante às ideias
de Ian Fletcher, o modelo de Jay Lawrence Westbrook prevê uma pluralidade de processos falimentares ao
redor do globo, regidos por diversas leis, que devem atuar cooperativamente, semelhantemente a um me-
canismo universal voltado para distribuir simetricamente os valores neles tratados. Em outros termos, essa
atuação cooperativa precisa atingir os mesmos resultados que um único processo transnacional atingiria. O
professor norte-americano, no entanto, ressalta que a opção pelo universalismo modificado deve servir ape-
nas como medida de transição para a adoção de um verdadeiro (puro) universalismo no mundo”. ALVES,

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A falência transfronteiriça e a função social da empresa sob a ótica da 3ª dimensão dos direitos humanos
Carlos Eduardo Silva e Souza - Angelo Bruno Donatoni

3. A LEI MODELO UNCITRAL, PROCEDIMENTO FALIMENTAR E A 3º


DIMENSÃO DOS DIREITOS HUMANOS
Dentro de suas especificidades, a Lei Modelo UNCITRAL19 busca criar um sistema
mais harmônico e com espírito de cooperação entre as nações afetadas por aquele(s)
procedimento(s), visando a celeridade em seu deslinde, com o pagamento dos débitos.
Ocorre, todavia, que referida Lei é norma internacional compreendida como soft law,
ou seja, não possui força vinculante e coercitiva àqueles Estados signatários, ao passo que
é discricionário a cada ente decidir qual/quais partes irá incorporar em seu ordenamento ou
qual parte ele irá vetar.20 Por isso, mesmo que se tenha a aderência a tal documento, não serão
em todos os casos que as integralidades das normas irão se aplicar21, sendo necessário se
estabelecer uma via de cooperação entre os Estados afetados pelo evento da falência.
Aprofundando as especificidades da Lei Modelo, tem-se que essa situa-se como híbrida,
pois abarca uma maior autonomia ao administrador judicial estrangeiro, reconhecimento
das decisões e tratamento igual aos credores, oriundos do sistema universal; e inclina-se ao
sistema universal pela faculdade de as cortes locais atuarem sobre o feito com relação as
ordens estrangeiras e à possibilidade para disciplinar situações jurídicas de ordem material,
tais como as ações revocatórias e a ordem de preferência dos credores.22
Por isso, a Lei Modelo possibilita a criação de um único procedimento principal como
a criação do principal e dos secundários. Tal sistema permite a instauração de múltiplos
procedimentos, ou não, e a possibilidade de se aplicar questões específicas, tais como
imbróglios relacionados com a lex rei sitae e lexcontractus, além de garantir a soberania
e autonomia de cada país. Além disso, há favorecimento do campo negocial, jurídico e
de cooperação entre os Estados, prestigiando-se as particularidades de cada credor e seus
privilégios decorrentes da classe em que está inserido.
Em sentido oposto, o sistema europeu23 não permite a franca negociação, pois, quase
que automaticamente, implica na propagação dos seus efeitos jurídicos para todos os demais
países signatários, não conferindo liberdade aos Estados. A Lei Modelo opta por conferir ao

Alexandre Ferreira de Assumpção e ROCHA, Raphael Vieira da Fonseca, Insolvência Transnacional e


Direito Falimentar Brasileiro. R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 19, n. 74, 2016. p. 36.
19
Dentre as demais legislações vigentes, é comum perceber que a Lei Modelo possui influência conside-
rável nas demais. A Lei de falências norte americana possui capítulo para tratar da falência internacional baseada
nos ditames da Lei Modelo UNCITRAL. Além disso, os próprios projetos de Lei que tramitam no Brasil, citados
acima, possuem como norte a Lei de Modelo, demonstrando ser essa a mais especializada para tratar do tema.
20
Idem.
21
Tal premissa não é unanime ao redor do globo, tendo em vista que há Estados que cooperam e
colaboram com o deslinde de casos emblemáticos, mesmo sem a reciprocidade entre os países. Para maio-
res informações, vide: RODAS, Sérgio. Juiz do caso Oi defende que Brasil adote norma da ONU para
recuperações. Disponível em https://www.conjur.com.br/2018-mai-12/juiz-defende-brasil-adote-norma-
onu-recuperacoes. Acesso em junho 2019.
22
Jean Carlos Fernandes e Pedro Francisco da Silva Almeida. 2018. op. cit. p. 75/76
23
Regulamento (UE) 2015/848, nº 65, expõe que deve ser reconhecido, de modo automático, os processos
instaurados e seus efeitos por todos os países signatários, não permitindo a soberania de cada Estado-membro.

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A falência transfronteiriça e a função social da empresa sob a ótica da 3ª dimensão dos direitos humanos
Carlos Eduardo Silva e Souza - Angelo Bruno Donatoni

Poder Judiciário o crivo de valer-se da exceção à ordem pública para os requerimentos feitos,
“conforme as disposições gerais e da existência do centro dos principais interesses no país de
abertura do procedimento principal”.24-25
Por isso, a fim de garantir que cada Estado, mesmo signatário de um instrumento
internacional possa garantir sua soberania, a Lei Modelo é capaz de prestigiar tal fato, como
já exposto, sendo o documento jurídico que melhor possa prestigiar tanto a coletividade de
credores, quanto a empresa devedora e a economia global.
Feitas tais considerações, é de se perquirir, por fim, a perspectiva da falência
transfronteiriça, com adoção da Lei Modelo UNCITRAL, no viés da função social da empresa
e a 3ª dimensão dos direitos humanos.26
Os direitos tidos como de 3ª dimensão têm como força motriz a solidariedade dos povos,
buscando a conexão maior havida entre toda humanidade, tanto na seara econômica, quanto no
que diz respeito à proteção dos direitos fundamentais, na tentativa de se garantir a preservação
do ser humano em si. A par disso, a solidariedade passa a ser uma necessidade juridicamente
reconhecida com a consagração da 3ª dimensão dos direitos humanos, especialmente naquilo
que diz respeito a tríade da Revolução Francesa.
Com isso, percebe que o foco para desenvolvimento e atenção das pessoas encontra-se
no macro, e não mais no micro, ou na individualidade de cada. Com o instituto falimentar,
em especial no Brasil, houve inúmeros anos privilegiando ora devedor, ora credor, como
um verdadeiro pêndulo. Tal fenômeno fora elencado por Fabio Konder Comparato como
dualismo pendular.27
Não demorou muito a tal sistemática sofrer críticas e ser melhor redesenhada. Daniel
Carnio Costa28leciona que o dualismo pendular outrora existente não correspondia ao real
interesse do legislador brasileiro e aos novos preceitos de um procedimento falimentar de

24
Idem. p.82.
25
A referência que fazem os autores é com relação ao art.6º da Lei Modelo que diz:Article 6. Public
policy exception Nothing in this Law prevents the court from refusing to take an action governed by this Law
if the action would be manifestly contrary to the public policy of this State. UNCITRAL Model Law on Cross-
Border Insolvency with Guide to Enactment and Interpretation. Disponível em: http://www.uncitral.org/pdf/
english/texts/insolven/1997-Model-Law-Insol-2013-Guide-Enactment-e.pdf. Acesso em julho 2019
26
Alexandre de Moraes, em uma de suas passagens, leciona que os direitos humanos de 3ª dimensão,
tem como escopo a solidariedade e fraternidade, englobando um direito ao meio ambiente equilibrado, o
progresso, a paz e a autodeterminação dos povos (MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 19. ed.
São Paulo: Atlas, 2006, p. 60).
27
Em suas assertivas, Comparato diz: em nosso país, a legislação falimentar tem seguido um ritmo
nitidamente pendular: protege-se alternadamente o insolvente, ou os seus credores, ao sabor da conjuntu-
ra econômica e da filosofia política do momento. COMPARATO. Fabio Konder. Aspectos Jurídicos da
Macro-Emprêsa. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 1970; pp. 95 e ss.
28
Confira em: COSTA. Daniel Carnio. Recuperação judicial de empresas – As novas teorias
da divisão equilibrada de ônus e da superação do dualismo pendular. Disponível em: https://www.
editorajc.com.br/recuperacao-judicial-de-empresas-as-novas-teorias-da-divisao-equilibrada-de-onus-e-
da-superacao-do-dualismo-pendular/. Acesso em julho 2019.

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A falência transfronteiriça e a função social da empresa sob a ótica da 3ª dimensão dos direitos humanos
Carlos Eduardo Silva e Souza - Angelo Bruno Donatoni

um mundo moderno e globalizado, propondo a superação do mesmo, em especial após a lei


11.101/2005.
O entendimento de que privilégios particulares não era/é capaz de abranger a gama
de interesses que permeiam o procedimento falimentar, em especial quando se visualiza o
caso de uma empresa internacional, entra em pauta colocando as balizas outrora existente
em dúvida. Não se fala mais, assim, de interesses interpartes, que apenas refletem naqueles
indivíduos, mas sim de reflexos variados em toda economia regional e global.
Isso é visto, pois, pela percepção do legislador brasileiro de que a atividade econômica,
a empresa, envolve preceitos muito maiores do que relações comerciais. Assim, nota-se que
o procedimento falimentar não comporta mais ser compreendido pelos esforços de somente
saldar o débito existente, mas de uma junção de forças para aflorar o espírito da solidariedade.
Ora, como lecionado linhas acima, a empresa passa a ser propulsora na efetivação de
direitos fundamentais aos seres humanos, de maneira direta e indireta. Inclusive, a empresa
para cumprir sua função social não deve somente existir, mas sim gerar empregos, rendas,
lucros, tributos e afins. Deve haver verdadeiro espírito de fraternidade e cooperação entre
empresas e funcionários, empresas e fisco, empresa e sociedade.Com vistas disso, Daniel
Carnio Costa29 explana acerca do princípio da distribuição equilibrada do ônus entre credores
e devedores no procedimento falimentar, impedindo que apenas uma das partes suporte
integralmente os prejuízos, “tendo como contrapartida o valor social do trabalho e todos os
benefícios decorrentes da manutenção da atividade produtiva”.30
Com essa premissa firmada, a superação do dualismo pendular se mostra adequada e em
consonância com a 3ª dimensão dos direitos fundamentais, ao passo que os atores processuais
não figuram como principais, mas coadjuvantes perante a gama de interesses que permeiam
tal cenário falimentar. Assim, o procedimento falimentar está intrinsecamente atrelado ao
interesse social com o exercício da concretização dos direitos fundamentais e coletivos,
observando tanto o alcance da prática empresarial da faceta do empresário, quanto ao da
sociedade e do meio ambiente, demonstrando a associação entre ambos para com a efetivação
dos diretos humanos tidos como de 3ª dimensão. A superação proposta por Daniel Carnio
Costa é capaz de promover melhores cenários à âmbito internacional, e não somente no que
tange à legislação brasileira. Pode-se visualizar, também, que a construção engendrada pelo
mencionado autor encontra-se alinhada com as premissas do que elenca a Lei Modelo, o que
facilita a exportação de tal estudo à nível mundial.
Nessa toada, os princípios norteadores da Lei Modelo, como já narrados, produzem
maior harmonia entre os Estados afetados por uma falência internacional, tirando de cena
tanto a figura do credor e devedor, privilegiando a celeridade em seu deslinde e a entrega
do bem da vida naquela demanda judicial. Por óbvio, o fim perquirido no procedimento
é o soerguimento da empresa e a satisfação do débito, mas não a qualquer custo. É isso,
justamente, que se propõe a Lei Modelo na tentativa de facilitar o deslinde do procedimento,
sem, contudo, atropelar todo procedimento sucumbindo uma das partes em favor da outra.


29
COSTA. Daniel Carnio. op. cit.

30
Idem.

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A falência transfronteiriça e a função social da empresa sob a ótica da 3ª dimensão dos direitos humanos
Carlos Eduardo Silva e Souza - Angelo Bruno Donatoni

Prestigia-se, assim, a fraternidade entre os Estados. Promove-se a cooperação entre os


indivíduos tendo em vista a gama de interesses que se visualiza nos casos de uma falência
internacional, abrindo espaço para a solidariedade. Abre vistas à 3ª dimensão de direitos
fundamentais e, também, à função social da empresa. Portanto, a Lei Modelo não busca
pautar o procedimento de modo engessado, observando somente as partes neles constantes.
Ao contrário, percebe-se que essa se pauta pelo espírito da solidariedade e fraternidade,
buscando a manutenção na geração de riquezas por parte daquela empresa e, por consequência,
a possibilidade de honrar com seus débitos. Desse modo, acredita-se que a Lei Modelo não
resolve toda problemática que há, tendo em vista a particularidade de cada país, mas ajuda e
propõe maneiras mais maleáveis de solução. Por isso, vislumbra-se uma maior observação
dos direitos fundamentais de 3ª dimensão e da função social da empresa por parte de tal Lei
Modelo, ensejando sua aplicação nos casos de insolvência internacional.

CONCLUSÃO
O problema da falência internacional assola a sociedade há inúmeros anos, remontando aos
primórdios da humanidade. Embasado na solidariedade e na fraternidade, as empresas devem
cumprir sua função social, estimulando empregos, renda, recolhimento de tributos e propalando o
desenvolvimento social daquela região. Quando tal organismo sofre com quadro de insolvência,
toda coletividade passa a suportar aquele prejuízo na tentativa de promover a manutenção da mão-
de-obra, do recolhimento de tributo, da geração de renda e do estímulo à economia.
Dos sistemas encartados, percebeu-se que o híbrido seria aquele capaz de conduzir
e promover melhores cenários, juntamente com a Lei Modelo. Isso, pois, é dito com as
funcionalidades e facilidades proporcionadas por tal sistema, aliada à capacidade de trazer
maior maleabilidade aos atores processuais. Por isso, diante das concatenações propostas,
visualiza-se que a Lei Modelo UNCITRAL é o documento internacional hábil de, ao menos,
balizar e garantir a observância necessárias ao procedimento falimentar, bem como aos
direitos fundamentais de 3ª dimensão.
Sabe-se que a Lei Modelo é mera norma soft law, não garantindo sua aplicabilidade em
todos cenários e territórios. Para suprir tal falta, a cooperação internacional, como já propõe
a legislação brasileira, é capaz de superar tal entrave de soberania das nações. No cenário
internacional, a via diplomática entre os países pode ser ferramenta impar para solução
do problema. Portanto, da ideia proposta, em síntese, a Lei Modelo pode ser instrumento
capaz de garantir a maior efetividade aos direitos fundamentais, sem ferir a função social
da empresa, visto que os anseios e as premissas para qual foi constituída observa uma maior
fraternidade das nações. Inclusive, é de salutar importância que o Brasil, por meio dos PL
1.572/11 e 10.520/18, insira tal vertente em seu ordenamento jurídico, a fim de se evitar
futuros imbróglios com casos de falência internacional no cenário brasileiro.

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A falência transfronteiriça e a função social da empresa sob a ótica da 3ª dimensão dos direitos humanos
Carlos Eduardo Silva e Souza - Angelo Bruno Donatoni

FONTES BIBLIOGRÁFICAS
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Transnacional e Direito Falimentar Brasileiro. R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 19, n. 74,
2016.
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, DF, jan. 2002.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm.
_______. Lei nº 11.101 de 09 de fevereiro de 2005. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e
a falência do empresário e da sociedade empresária. Brasília, DF, fev. 2005. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11101.htm.
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COMPARATO. Fabio Konder. Aspectos Jurídicos da Macro Empresa. São Paulo: Revistas dos
Tribunais, 1970.
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FERNANDES. Jean Carlos, e ALMEIDA. Pedro Francisco da Silva. Insolvência Transfronteiriça
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Disponível em http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=3b5f4f19719aa9a6- Acesso em
maio 2019.

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Cidades inteligentes:
desafios e perspectivas para o aproveitamento
energético de resíduos sólidos no Brasil

Mariana Gmach Philippi1


Larissa Milkiewicz2

Resumo: O presente estudo tem por objetivo relacionar os elementos que perpassam o conceito de
cidades inteligentes com os desafios enfrentados pelos municípios brasileiros na gestão dos resíduos sólidos
urbanos (RSU) e a possibilidade de aproveitamento energético de tais resíduos. Destaca-se, nesse viés, a
conexão entre cidades inteligentes, sustentabilidade e a prestação de serviços públicos eficazes, preocupados
com a qualidade de vida dos cidadãos. O estudo vale-se do método analítico e da técnica de levantamento
bibliográfico sistemático da literatura. Estrutura-se o presente artigo em três itens. O primeiro item se
dedica a expor os principais elementos que perpassam o conceito de cidades inteligentes, relacionando-os
aos resíduos sólidos urbanos. O segundo item, por sua vez, expõe os desafios enfrentados pelos municípios
brasileiros na gestão dos RSU. Por fim, o item três analisa a possibilidade de aproveitamento energético de
tais resíduos pelos municípios no Brasil, expondo as perspectivas nesse cenário. Conclui-se que a adoção de
processos de aproveitamento energético de resíduos sólidos pelos municípios brasileiros pode contribuir, a
um só tempo, para a gestão de RSU e para a geração de energia renovável, além de incentivar o surgimento
e aperfeiçoamento de cidades inteligentes no contexto brasileiro, especialmente no que tange às dimensões
do planejamento urbano, meio ambiente, tecnologia e economia.
Palavras-chave: Cidades Inteligentes; municípios brasileiros; resíduos sólidos urbanos;
aproveitamento energético.

Abstract: The present study aims to relate the elements that permeate the concept of smart cities
with the challenges faced by Brazilian municipalities in the management of urban solid waste and the

1
Doutoranda em Direito Socioambiental e Sustentabilidade pela PUCPR. Mestre em Direito pela
PUCPR. Advogada. Curitiba/PR. E-mail: mariana.philippi@hotmail.com.
2
Doutoranda (Bolsista CAPES) em Direito Econômico e Desenvolvimento pela PUCPR. Mestre
(Bolsista CAPES) em Direito pela PUCPR. Advogada. Curitiba/PR. E-mail: larissa_milkiewicz@hotmail.
com

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Cidades inteligentes: desafios e perspectivas para o aproveitamento energético de resíduos sólidos no Brasil
Mariana Gmach Philippi - Larissa Milkiewicz

possibility of energy use of such waste. In this regard, the connection between smart cities, sustainability
and the provision of effective public services, concerned with the quality of life of citizens, stands out. The
study uses the analytical method and the technique of systematic bibliographic survey of the literature.
This article is structured in three items. The first item is dedicated to exposing the main elements that
permeate the concept of smart cities, relating them to solid urban waste. The second item, in turn, exposes
the challenges faced by Brazilian municipalities in the management of urban solid waste. Finally, item three
analyzes the possibility of energy use of such waste by municipalities in Brazil, exposing the perspectives
in this scenario. It is concluded that the adoption of energy use of solid waste by Brazilian municipalities
can contribute, at the same time, to the management of urban solid waste and to the generation of renewable
energy, in addition to encouraging the emergence and improvement of smart cities in Brazilian context,
especially regarding the urban planning, environment, technology and economics dimensions.
Key words: Smart Cities; Brazilian municipalities; urban solid waste; energy use.

1. Cidades inteligentes: conceito e relação com os


resíduos sólidos
Entende-se que cidades inteligentes se relacionam à capacidade de criar estruturas de
gestão com potencial para atender às demandas inerentes ao meio urbanístico. Assim, “essas
estruturas visualizam a cidade como um sistema complexo que deve ser todo interligado por
redes de comunicação, as quais podem detectar problemas, emitir alarmes e, principalmente,
direcionar fluxos de trabalho humano com foco na eficiência dos serviços públicos”3.
Considerando que o dicionário Michaelis define inteligência como sendo a “capacidade
de resolver situações novas com rapidez e êxito, adaptando-se a elas por meio do conhecimento
adquirido”4, é possível ressaltar que as cidades inteligentes sustentáveis podem valer-se da
sofisticada tecnológica disponível na sociedade contemporânea para viabilizar, entre outros
objetivos, o aproveitamento energético dos resíduos sólidos.
Em outros termos, a fim de garantir a segurança social, o desenvolvimento econômico
e a preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado (artigo 225 da Constituição
Federal do Brasil), as cidades inteligentes se materializam, em síntese, pelo comprometimento
com a melhoria na qualidade de vida de seus cidadãos e pela garantia de prestação de serviços
públicos eficazes e de qualidade4. Em se tratando da sustentabilidade das cidades inteligentes
– relacionada aos aspectos econômico, social e ambiental de uma sociedade – integra tal
dimensão a gestão comprometida de resíduos e a preocupação com a eficiência energética5.
Nesse contexto, a recuperação e o aproveitamento energético de resíduos sólidos urbanos
(RSU) pode consistir em uma via interessante para a efetiva implementação da gestão
integrada de resíduos. Destaca-se, ademais, que o aproveitamento energético de RSU pode

3
LEVY, Wilson. NALINI, José Renato. Cidades inteligentes e sustentáveis: desafios conceituais e
regulatórios. Revista de Direito da Administração Pública, Universidade Federal Fluminense/Universi-
dade Federal Rural do Rio de Janeiro, ISSN 24472042, a. 2, v. 2, n. 1, jan/jun 2017, p. 189.
4
IESE Business School. Cities in Motion Index 2019. Barcelona: IESE, 2019, p. 15. Disponível
em: https://media.iese.edu/research/pdfs/ST-0471-E.pdf. Acesso em 03 fev. 2020.
5
IESE Business School. Cities in Motion Index 2019. Barcelona: IESE, 2019, p. 11. Disponível
em: https://media.iese.edu/research/pdfs/ST-0471-E.pdf. Acesso em 03 fev. 2020.

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Cidades inteligentes: desafios e perspectivas para o aproveitamento energético de resíduos sólidos no Brasil
Mariana Gmach Philippi - Larissa Milkiewicz

auxiliar tanto na questão da gestão desses resíduos, quanto no fortalecimento de uma matriz
energética sustentável e apta a produzir impactos socioambientais positivos.
Voltando-se ao contexto brasileiro, insta reconhecer, no entanto, que a grande maioria
dos municípios ainda está longe de poder ser considerada integrante da categoria “cidades
inteligentes”. Especialmente no que tange à gestão dos resíduos sólidos urbanos, as
municipalidades ainda se deparam com árduos desafios. Impende-se analisar, portanto, que
desafios são esses e quais as possíveis alternativas para vencê-los.

2. Desafios aos municípios brasileiros na gestão dos


resíduos sólidos urbanos
Desde 2010, o Brasil conta com um marco regulatório específico para gestão e
gerenciamento dos resíduos sólidos. Trata-se da Política Nacional de Resíduos Sólidos
(PNRS), instituída por meio da Lei nº 12.305/2010 e posteriormente regulamentada pelo
Decreto nº 7.404/2010.
Dentre os diversos objetivos expressos na Lei, previstos em seu artigo 7º, destaca-se a
gestão integrada de resíduos sólidos6, cuja definição pode ser encontrada no próprio diploma
normativo. Trata-se do “conjunto de ações voltadas para a busca de soluções para os resíduos
sólidos, de forma a considerar as dimensões política, econômica, ambiental, cultural e social,
com controle social e sob a premissa do desenvolvimento sustentável”7. 
A respeito da gestão integrada de resíduos sólidos, Armando Borges de Castilhos Junior8
a conceitua como o processo de gestão de resíduos que engloba as diferentes etapas, desde
a geração até a destinação final, estabelecendo atividades articuladas com o sistema de
saneamento básico.
Constata-se, pois, que a gestão integrada de resíduos sólidos, enquanto objetivo expresso
da Lei nº 12.305, demanda a busca por soluções integrais e multifocais voltadas à questão dos
resíduos sólidos no Brasil, relacionando-se diretamente com o princípio da visão sistêmica9.
No intuito de viabilizar e tornar efetiva a gestão integrada de resíduos sólidos, a Lei nº
12.305/2010 impôs obrigações específicas à União, aos estados e aos municípios brasileiros10.
Tendo em vista o propósito específico deste estudo, convém destacar as obrigações impostas
aos entes municipais.

6
Lei nº 12.305/2010, art. 7º, inciso VII.
7
Lei nº 12.305/2010, art. 3º, inciso XI.
8
CASTILHOS JUNIOR, Armando Borges de. PROSAB: Resíduos sólidos urbanos: aterro sus-
tentável para município de pequeno porte. Programa de Pesquisa em Saneamento Básico, Florianópolis-
SC, 2003.
9
Tal princípio encontra-se presente no artigo 3º, inciso III, da PNRS como um dos princípios fun-
dantes da Lei.
10
Lei nº 12.305/2010, art. 1º, § 1º

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Cidades inteligentes: desafios e perspectivas para o aproveitamento energético de resíduos sólidos no Brasil
Mariana Gmach Philippi - Larissa Milkiewicz

Aos municípios brasileiros compete, por força da PNRS, elaborar os chamados Planos
Municipais de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos (PMGIRS). Tais Planos devem conter
um complexo rol de conteúdo mínimo, os quais abrangem, dentre outros aspectos, programas
e ações relativos à educação ambiental; planos e metas; sistemas de monitoramento;
identificação de passivos ambientais; meios de fiscalização; inclusão social; sistema de
logística reversa; entre outros11. Também está incluída nas atribuições impostas aos municípios
a disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos, o que implica na implementação de
aterros sanitários que não ofereçam riscos à saúde pública e à segurança, de modo a minimizar
eventuais impactos ambientais12.
Percebe-se, portanto, que as determinações impostas aos municípios por força da PNRS
mostram-se abrangentes e ambiciosas13. Há de se salientar a complexidade técnica envolvida
na implementação de tais medidas em âmbito municipal, em especial no que se refere à
implementação dos aterros sanitários. Infelizmente, é comum que os custos envolvidos na
instalação e operação das unidades necessárias para a gestão adequada dos resíduos sólidos
acabem por inviabilizar a atuação municipal. Conforme pontuam Oliveira e Galvão Junior14,
as barreiras verificas em âmbito municipal relacionam-se “à ausência de capacidade técnica,
à falta de profissionais qualificados para suporte técnico e gerencial necessário e à falta de
capacidade financeira para a sustentabilidade dos custos de operação e manutenção das
infraestruturas”.
Em reportagem especial realizada em 201715, a Rádio Câmara dos Deputados do Brasil
constatou que a escassez de recursos, as dificuldades técnicas no gerenciamento e tratamento
de resíduos, o alto custo de implementação de projetos, o acesso limitado a alternativas
tecnológicas, entre outros, são as principais dificuldades impostas aos municípios brasileiros
ao atingimento dos objetivos a eles impostos por força na PNRS.
De acordo com a pesquisa “Perfil dos Municípios Brasileiros”16, realizada em 2017 pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), pouco mais da metade (54,8%) dos
municípios no Brasil possuem um Plano Integrado de Resíduos Sólidos. A relação entre o
porte no município e a existência do referido Plano também é preocupante. Nos municípios
de 5.000 a 10.000 habitantes, menos da metade possui PMGIRS (49,1%).

11
Lei nº 12.305/2010, art. 19.
12
Lei nº 12.305/2010, art. 3º, inciso VIII.
13
SILVA FILHO, Carlos Roberto Vieira da; SOLER, Fabricio Dorado. Gestão de Resíduos Sólidos:
o que diz a Lei. 3 ed. atual. rev. São Paulo: Trevisan, 2015, p. 67.
14
OLIVEIRA, Thaís Brito de; GALVÃO JUNIOR, Alceu de Castro. Planos Municipais de Ges-
tão Integrada de Resíduos Sólidos. In: DOURADO, Juscelino; SAIANI, Carlos César Sandejo; TONETO
JÚNIOR, Rudinei. Resíduos Sólidos no Brasil: Oportunidades e Desafios da Lei Federal nº 12.305 (Lei de
Resíduos Sólidos). Barueri, SP: Minha Editora, 2014, p. 190.
15
BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados – Rádio Câmara. Reportagem Especial. Política Na-
cional de Resíduos Sólidos: situação dos municípios. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/cama-
ranoticias/radio/materias/REPORTAGEM-ESPECIAL/523265-POLITICA-NACIONAL-DE-RESIDUOS-
SOLIDOS-SITUACAO-DOS-MUNICIPIOS-BLOCO-4.html. Acesso em: 12 jul. 2018.
16
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Perfil dos municípios brasi-
leiros: 2017. Rio de Janeiro: IBGE, 2017.

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Cidades inteligentes: desafios e perspectivas para o aproveitamento energético de resíduos sólidos no Brasil
Mariana Gmach Philippi - Larissa Milkiewicz

No que se refere à destinação final ambientalmente adequada, as dificuldades em âmbito


municipal são igualmente alarmantes. Conforme dados divulgados pela Associação Brasileira
de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (ABRELPE)17, das 79 milhões de
toneladas de resíduos sólidos urbanos geradas no Brasil em 2018, 92% foi coletado. Apesar do
alto índice de coleta, 40,5% desses resíduos foi despejado em locais inadequados, por 3.001
municípios brasileiros. Em outras palavras, só no ano de 2018 “29,5 milhões de toneladas de
RSU acabaram indo para lixões ou aterros controlados, que não contam com um conjunto de
sistemas e medidas necessários para proteger a saúde das pessoas e o meio ambiente contra
danos e degradações”18.
Em face a tantas dificuldades, impende-se reconhecer que, quase uma década após a
publicação da PNRS, os municípios brasileiros ainda estão longes de conseguir atender, de
maneira ampla e eficaz, aos ditames da Lei. Cumpre averiguar, pois, quais as alterativas
passíveis de serem adotadas no contexto brasileiro, que possam contribuir para que a gestão
integrada de resíduos sólidos pelos municípios converta-se em realidade.

3. Perspectivas no aproveitamento energético de resíduos


para os municípios brasileiros
O contexto municipal brasileiro preocupante no que se refere à gestão dos resíduos
sólidos exige que se busque novas alternativas para a questão, de modo que os entes
municipais possam transpor as barreiras existentes a este respeito. Diante disso, o acesso a
tecnologias que permitam diversificar os meios de destinação dos resíduos, sem prejudicar
o meio ambiente e a saúde pública, pode representar um caminho promissor a ser seguido
pelos municípios.
A própria Lei nº 12.305/2010 abre o leque de possibilidades nesse sentido. O artigo 3º
da Lei, em seu inciso VII, ao definir o que se entende por destinação final ambientalmente
adequada, abarca, por exemplo, a reutilização, a reciclagem, a compostagem, e a recuperação
e aproveitamento energético de resíduos. Destarte, que a lei não limita a destinação final
ambientalmente adequada dos resíduos ao encaminhamento dessas substâncias a aterros
sanitários. Esses aterros consistem, portanto, em apenas uma das possibilidades colocadas à
disposição do poder público para cumprir os ditames da PNRS neste aspecto.
Em igual sentido, o artigo 9º da Lei nº 12.305/2010, em seu parágrafo primeiro, permite
expressamente a utilização de tecnologias visando à recuperação energética dos RSU, desde
que sua viabilidade técnica e ambiental tenha sido comprovada e haja a implantação de
programa de monitoramento de emissão de gases tóxicos.

17
Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (ABRELPE). Pano-
rama dos Resíduos Sólidos no Brasil. 2018/2019. Disponível em: http://abrelpe.org.br/download-pano-
rama-2018-2019/. Acesso em 02 fev. 2020.
18
Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (ABRELPE). Pano-
rama dos Resíduos Sólidos no Brasil: 2018/2019, p. 11. Disponível em: http://abrelpe.org.br/download-
panorama-2018-2019/. Acesso em 02 fev. 2020.

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Cidades inteligentes: desafios e perspectivas para o aproveitamento energético de resíduos sólidos no Brasil
Mariana Gmach Philippi - Larissa Milkiewicz

Mais recentemente, em abril de 2019, através da Portaria Interministerial nº 274/201919,


os Ministérios do Meio Ambiente, de Minas e Energia e do Desenvolvimento Regional,
disciplinaram a recuperação energética de resíduos sólidos urbanos, definindo como Usinas
de Recuperação Energética de Resíduos Sólidos Urbanos (URE) as unidades dedicadas ao
tratamento térmico de RSU com recuperação de energia térmica gerada pela combustão,
preferencialmente associada à geração de energia térmica ou elétrica20.
O artigo 3º da Portaria reafirma que a recuperação energética dos resíduos sólidos
urbanos constitui uma das formas de destinação final ambientalmente adequada passível de
ser adotada, em consonância com o estabelecido pela PNRS. Além disso, são estabelecidas,
através da Portaria Interministerial, diretrizes operacionais a serem seguidas no processo
de recuperação energética dos RSU, as quais ratificam a preocupação com a utilização de
tecnologia de ponta, no sentido de garantir o atendimento aos padrões ambientais existentes,
especialmente no que se refere aos limites de emissão de gases tóxicos e poluentes.
Ao tratar das vantagens advindas do aproveitamento energético dos RSU, Figueiredo21
elenca a geração de empregos; a geração de energia descentralizada próxima aos pontos de
carga; a receita adicional proveniente da venda da energia excedente; a redução da utilização
de combustíveis fósseis; e a redução e monitoramento das emissões de gases de efeito estufa.
Veja-se que todas essas benesses poderiam ser usufruídas também em âmbito municipal,
expandindo a contribuição dos municípios no que se refere à gestão dos resíduos sólidos
urbanos.
No que se refere propriamente à recuperação energética de resíduos sólidos, Tisi22 destaca
que ela já é realidade em diversos países como meio para a destinação adequada dos RSU.
O autor destaca as vantagens ambientais, técnicas e financeiras da recuperação energética de
resíduos:

A recuperação energética é uma das soluções de destinação final dos RSU não
recicláveis, recomendada pelo IPCC [Painel Intergovernamental sobre Mudanças
Climáticas], pois reduz a emissão de GEE [gases de efeito estufa] dos aterros
sanitários e lixões, possibilita a recuperação energética mais eficiente dos resíduos
que estariam inutilizados ou subutilizados, substitui fontes fósseis de energia
com vistas à optimização dos recursos naturais e exige menor área para a sua

19
A referida Portaria atende ao disposto no art. 37, caput, do Decreto nº 7.404/2010, que dispõe:
“Art. 37. A recuperação energética dos resíduos sólidos urbanos referida no § 1º do art. 9º da Lei nº 12.305,
de 2010, assim qualificados consoante o art. 13, inciso I, alínea “c”, daquela Lei, deverá ser disciplinada, de
forma específica, em ato conjunto dos Ministérios do Meio Ambiente, de Minas e Energia e das Cidades”.
20
Portaria Interministerial nº 274/2019, art. 2º.
21
FIGUEIREDO, Natalie Jimenez Verdi de. Utilização de biogás de aterro sanitário para geração
de energia elétrica. Estudo de Caso. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Eletrotécnica e Energia, Poli-
USP, São Paulo, 2011.
22
TISI, Yuri Schmitke Belchior. Waste-to-energy: recuperação energética como forma ambien-
talmente adequada de destinação dos resíduos sólidos urbanos. Rio de Janeiro, RJ: Synergia, 2019, p.
28-29.

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Cidades inteligentes: desafios e perspectivas para o aproveitamento energético de resíduos sólidos no Brasil
Mariana Gmach Philippi - Larissa Milkiewicz

implementação, podendo ser instalada em centros urbanos, o que implica também


na redução de custos de transporte.23

Interessa destacar que cerca de 80% do volume diário de resíduos gerados nos municípios
brasileiros poderia ser destinado a usinas de aproveitamento energético de resíduos, o que
implicaria na geração de quase três mil GWh (gigawatt-hora) ao mês24 em todo o país25.
Mesmo que apenas 35% dos RSU gerados fossem destinados a essa finalidade, ainda seria
possível gerar aproximadamente 1.300 GWh/mês, o que seria suficiente para atender 3,29%
da demanda energética nacional26.
A adoção, pelos municípios brasileiros, de processos de aproveitamento energético como
uma das formas de destinação final ambientalmente adequada dos RSU alinha-se à concepção
de cidades inteligentes. Isso porquê, tais processos podem contribuir para que as operações
municipais, alinhadas à tecnologia, favoreçam a qualidade de vida da população e a eficiência
dos serviços públicos, impactando de modo positivo na proteção ambiental.
Analisando os critérios que permitem avaliar cidades sustentáveis, criados pelo
IESE Business School, da Universidade de Navarra, na Espanha, tem-se que muitos deles
relacionam-se diretamente com o aproveitamento energético de resíduos sólidos pelos
municípios. Destaca-se, neste contexto, as dimensões de planejamento urbano, meio
ambiente, tecnologia e economia27. Em outros termos, a implementação, pelos municípios de
processos de aproveitamento energético de RSU podem também contribuir para o surgimento
e aperfeiçoamento de cidades inteligentes no contexto brasileiro.
Nunca é demais frisar que a contemporaneidade exige cidades aptas a ampliar seu campo
de visão, dispostas a recorrer à inovação no intuito de ampliar a eficiência e a sustentabilidade
dos serviços prestados aos seus cidadãos. Nesse contexto, sem deixar de considerar suas
peculiaridades e contextos singulares, os municípios brasileiros também necessitam
permanecer flexíveis e abertos às mudanças que a atualidade lhes impõe.
Se o desenvolvimento de cidades inteligentes implica em municipalidades aptas a garantir
serviços públicos eficientes aos seus cidadãos, alinhadas ao desenvolvimento tecnológico e
verdadeiramente conscientes de seu papel socioambiental, o aproveitamento energético de
resíduos sólidos não poderia ser mais alinhado ao tema.

23
TISI, Yuri Schmitke Belchior. Waste-to-energy: recuperação energética como forma ambien-
talmente adequada de destinação dos resíduos sólidos urbanos. Rio de Janeiro, RJ: Synergia, 2019, p.
29.
24
A título de esclarecimento, pontua-se que esse montante seria suficiente para atender a demanda
energética de 25,4% dos domicílios brasileiros.
25
FAM, Lino; KAR, Ismail. Recycling and Thermal Treatment of MSW in a Developing Country.
Resour Recycl Waste Manag. 2016. Disponível em: http://www.imedpub.com/articles/recycling-and-ther-
mal-treatment-of-msw-in-a-developing-country.php?aid=18620. Acesso em 03 fev. 2020.
26
TISI, Yuri Schmitke Belchior. Waste-to-energy: recuperação energética como forma ambien-
talmente adequada de destinação dos resíduos sólidos urbanos. Rio de Janeiro, RJ: Synergia, 2019, p.
98.
27
IESE Business School. Cities in Motion Index 2019. Barcelona: IESE, 2019. Disponível em: ht-
tps://media.iese.edu/research/pdfs/ST-0471-E.pdf. Acesso em 03 fev. 2020.

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Cidades inteligentes: desafios e perspectivas para o aproveitamento energético de resíduos sólidos no Brasil
Mariana Gmach Philippi - Larissa Milkiewicz

4. Considerações Finais
Adotando como pano de fundo os elementos fundantes que integram o conceito de
cidades inteligentes, bem como sua relação com a sustentabilidade e a gestão de resíduos
sólidos, destaca-se que aos municípios brasileiros foi estabelecida, por força da Lei nº
12.305/2010 (PNRS), uma série de obrigações relativas à gestão integrada de resíduos sólidos.
Tais obrigações demandam, para sua consecução, a implementação de medidas complexas e
integrais, que perpassam aspectos de ordem técnica, ambiental, social, cultural e econômica.
Infelizmente, passados quase dez anos da publicação da PNRS, grande parte dos
municípios brasileiros ainda enfrenta problemas em efetivar a gestão integrada de resíduos
sólidos, sendo que muitos deles sequer conseguiram implementar um sistema eficiente e
ambientalmente adequado de destinação final de RSU.
Nesse contexto, ganham destaque os processos de aproveitamento energético de resíduos
sólidos, que podem contribuir, a um só tempo, para a gestão de RSU e para a geração de energia
renovável. Aos municípios, as vantagens à adoção de tal alternativa abarcam as dimensões
ambientais, econômicas e sociais, além de contribuir para o surgimento e aperfeiçoamento de
cidades inteligentes no contexto brasileiro, em especial no que toca ao planejamento urbano,
meio ambiente, tecnologia e economia.

Referências Bibliográficas
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EMPRESAS DE LIMPEZA PÚBLICA E RESÍDUOS ESPECIAIS.
Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil. 2018/2019. Disponível em: http://abrelpe.org.br/
download-panorama-2018-2019/. Acesso em 02 fev. 2020.
CASTILHOS JUNIOR, Armando Borges de. PROSAB: Resíduos sólidos urbanos: aterro sustentável
para município de pequeno porte. Programa de Pesquisa em Saneamento Básico, Florianópolis-
SC, 2003.
FAM, Lino; KAR, Ismail. Recycling and Thermal Treatment of MSW in a Developing Country. Resour
Recycl Waste Manag. 2016. Disponível em: http://www.imedpub.com/articles/recycling-and-
thermal-treatment-of-msw-in-a-developing-country.php?aid=18620. Acesso em 03 fev. 2020.
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INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Perfil dos municípios brasileiros:
2017. Rio de Janeiro: IBGE, 2017.
LEVY, Wilson. NALINI, José Renato. Cidades inteligentes e sustentáveis: desafios conceituais e
regulatórios. Revista de Direito da Administração Pública, Universidade Federal Fluminense/
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, ISSN 24472042, a. 2, v. 2, n. 1, jan/jun 2017.
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 23 ed., rev., ampl., atual. São
Paulo: Malheiros, 2015.
OLIVEIRA, Thaís Brito de; GALVÃO JUNIOR, Alceu de Castro. Planos Municipais de Gestão
Integrada de Resíduos Sólidos. In: DOURADO, Juscelino; SAIANI, Carlos César Sandejo;

— 261 —
Cidades inteligentes: desafios e perspectivas para o aproveitamento energético de resíduos sólidos no Brasil
Mariana Gmach Philippi - Larissa Milkiewicz

TONETO JÚNIOR, Rudinei. Resíduos Sólidos no Brasil: Oportunidades e Desafios da Lei


Federal nº 12.305 (Lei de Resíduos Sólidos). Barueri, SP: Minha Editora, 2014.
TISI, Yuri Schmitke Belchior. Waste-to-energy: recuperação energética como forma
ambientalmente adequada de destinação dos resíduos sólidos urbanos. Rio de Janeiro, RJ:
Synergia, 2019.

— 262 —
Velhos preconceitos mascarados
de verdades científicas:
como a inteligência artificial
no processo penal pode ser tendenciosa

Daniela Dora Eilberg1


Jádia Larissa Timm dos Santos2

Resumo: As novas tecnologias e as relações humanas interagem nas mais variadas formas. Ao longo
dos últimos anos, estratégias de processamento de dados digitais visando ao aprimoramento da investigação
criminal e da prestação jurisdicional passaram a ser adotadas. Nesse compasso, o que se evidencia é que
as desigualdades historicamente herdadas são, hoje, programadas pela Inteligência Artificial. A IA ou,
como se pretende demonstrar, as práticas de machine learning se alimentam de algoritmos que, cada vez
mais, são denunciados por especialistas como tendenciosos, como reprodutores de uma lógica desigual,
segregacionista e opressora. Nesse diapasão, os novos meios tecnológicos não são a razão de ser do
problema ou da solução, senão funcionam mais como uma espécie de “advérbio” do que “verbo” da questão,
uma vez que atuam como modificadores de circunstância de uma mesma racionalidade tradicionalmente
existente. Nesse cenário, o neoliberalismo tem importante peso, por ser a racionalidade que comanda os
rumos atuais, para além da esfera econômica. Por isso, procurar-se-á identificar como algoritmos inseridos
na justiça criminal podem representar a reprodução de velhos preconceitos com novas roupagens, assim
como revelar a lógica neoliberal que se esconde em meio aos discursos de aprimoramento tecnológico no
processo penal. Assim, um dos desafios de utilizar a inteligência artificial aplicada ao processo penal de

1
Mestra em Ciências Criminais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais (PPGC-
Crim) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) – Bolsista CAPES. Bacharela em
Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7308430223497925.
E-mail para contato: danielaeilberg@gmail.com.
2
Doutoranda e Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais (PPGCCrim) da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Especialista em Direitos Humanos pelas
Escolas de Humanidades e de Direito da PUC-RS. Bacharela em Direito pela Universidade de Caxias do
Sul (UCS). Bolsista CAPES. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7558876452672963. E-mail para contato: jadia.
adv@gmail.com.

— 263 —
Velhos preconceitos mascarados de verdades científicas: como a inteligência artificial
Daniela Dora Eilberg - Jádia Larissa Timm dos Santos

forma que se mantenha o devido processo e, justamente, atingir a eficácia de seus métodos, observando-se
até que ponto os dados que compõem os sistemas de algoritmos conseguem estar isentos das desigualdades
historicamente legadas.
Palavras-chave: Processo Penal; Inteligência Artificial; Neoliberalismo; Algoritmos; Machine learning.

Abstract: New technologies and human relations interact in many ways. Over the last few years,
digital data processing strategies have become widely adopted to improve criminal investigation and court
decisions. In this regard, historically inherited inequalities are today programmed by Artificial Intelligence.
AI or machine learning practices, as it will be shown, feeds on algorithms that are increasingly reported
by experts as biased, as reproduction actors of an unequal, segregated, and oppressive. In this sense, the
new technological methods are not the reason nor its solution, rather than a kind of the adverb – and not
the verb – of the matter, since they act as circumstantial modifiers of the very same traditionally existing
rationality. In this scenario, neoliberalism has an important weight due to its rationality that commands the
current paths beyond the economic sphere. Therefore, this article seeks to identify how algorithms inserted
in criminal justice may represent the reproduction of old prejudices with new guises, as well as revealing
the neoliberal logic that is hidden in the discourses of technological improvement in the penal system. In
conclusion, one of the challenges to applying AI to the penal procedure is to protect the due process and, at
the same time, achieve the effectiveness of its method, observing until what extent algorithms systems can
be exempted from the perpetrated historical inequalities.
Keywords: Penal Procedure; Artificial Intelligence; Neoliberalism; Algorithms; Machine learning.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
As novas tecnologias e as relações humanas interagem nas mais variadas formas. Ao longo
dos últimos anos, estratégias de processamento de dados digitais visando ao aprimoramento
da investigação criminal e da prestação jurisdicional passaram a ser adotadas. Frente a esse
cenário, existem aqueles que creem na supremacia dos novos meios tecnológicos, na medida
em que o conforto da certeza é balizado pelo cientificismo. Em contrapartida, enfrenta-se
a tendência dos que costumam idealizar o passado, como uma espécie de fuga à atualidade
atravessada pelo negativismo catastrófico do mundo atual.
Ocorre que, os novos meios tecnológicos não são a razão de ser do problema ou da
solução, senão funcionam mais como uma espécie de “advérbio” do que “verbo” da questão,
uma vez que atuam como modificadores de circunstância de uma mesma racionalidade
tradicionalmente existente. Se o contato da pessoa com algoritmos de machine learning se dá
exclusivamente por meio das propagandas no feed do Facebook e Instagram ou relacionado às
pesquisas do Google, a inteligência artificial pode parecer até mesmo útil. Contudo, quando
se trata de aprendizagem por meio de dados históricos que carregam uma complexidade de
fatores não evidenciados, os algoritmos podem mudar vidas drasticamente.
Inicialmente, é preciso fazer uma ressalva sobre a nomenclatura “Inteligência Artificial
(IA)”. IA foi cunhado por John McCarthy como “o esforço de desenvolver uma máquina que
possa raciocinar como um humano”3. No entanto, atualmente, não é o que de fato ocorre na
realidade. Muito do que é chamado de IA, trata-se, na verdade, de machine learning, uma

3
BOURNE, C.D. AI cheerleaders: Public relations, neoliberalism and artificial intelligence. Public
Relations Inquiry, v. 2, n. 8, pp. 109-125, 2019.

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Velhos preconceitos mascarados de verdades científicas: como a inteligência artificial
Daniela Dora Eilberg - Jádia Larissa Timm dos Santos

metodologia de aprendizagem das máquinas por meio de algoritmos complexos através da


coleta de dados.
Nesse compasso, o que se pretende com este artigo não é afirmar que as novas tecnologias
aplicadas ao processo penal são preconceituosas, mas sim que as desigualdades historicamente
herdadas são, hoje, programadas por algoritmos que alimentam as ferramentas tecnológicas
aplicadas na Justiça, estando revestidos de uma suposta verdade científica. Noutros termos,
a alimentação dos softwares utilizados se dá por meio de algoritmos que, treinados em dados
históricos de crime, transformam ideias correlatas em mecanismos de pontuação casual e, por
isso, cada vez mais são denunciados por especialistas como sendo tendenciosos.
Nesse cenário, o neoliberalismo tem importante papel, por ser a racionalidade
contemporânea, que ultrapassa a esfera econômica. E que sob sua lógica, alimenta a ideia de
eficiência inquestionável atrelada às novas tecnologias.
Assim, pretende-se defender a tese de que os algoritmos inseridos na justiça criminal
podem representar a reprodução de velhos preconceitos com novas roupagens, assim
como revelar a lógica neoliberal que se esconde em meio aos discursos de aprimoramento
tecnológico no processo penal.
O objetivo deste artigo é, portanto, evidenciar esse processo de maquilagem por meio
de uma bandeira que tradicionalmente é levantada no meio processual penal utilitarista, qual
seja, a “verdade”. Por trás disso tudo, estão algumas empresas criadoras de softwares que,
casualmente, são grandes companhias cujos interesses econômicos são norteados por cartilhas
neoliberais. Um dos desafios de utilizar a inteligência artificial aplicada ao processo penal de
forma que se mantenha o devido processo é, justamente, atingir a eficácia de seus métodos,
observando-se até que ponto os dados que compõem os sistemas de algoritmos conseguem
estar isentos das desigualdades historicamente legadas.

2. VELHOS PRECONCEITOS MASCARADOS DE VERDADES


CIENTÍFICAS: COMO A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NO PROCESSO
PENAL PODE SE MOSTRAR TENDENCIOSA
As novas tecnologias estão inseridas nas mais variadas formas de controle social sem
sequer nos darmos conta. Práticas de reconhecimento facial vêm sendo utilizadas para
identificar suspeitos, assim como certos algoritmos “preditivos”, para definir estratégias
de policiamento. Enquanto alguns consideram essas novas tecnologias aprimoramentos da
segurança, outros as denunciam por serem expressão da perpetuação das desigualdades. A
questão parece ser ainda mais grave quando são aplicados criminal risk assessment algorithms
e profiling, que, com base em detalhes do perfil da pessoa para determinar uma pontuação de
possível reincidência.
Quando exposto de maneira visceral como os algoritmos de machine learning usam
estatísticas para encontrar padrões nos dados históricos de crime e tornar verdade científica
racionalidades racistas e conservadoras, por exemplo, o problema se torna mais evidente.
Como bem apontou Marbre Stahly-Butts, diretora executiva do Law for Black Lives, no palco
da conferência realizada no MIT Media Lab, “a avaliação de riscos orientada por algoritmos

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Velhos preconceitos mascarados de verdades científicas: como a inteligência artificial
Daniela Dora Eilberg - Jádia Larissa Timm dos Santos

é uma maneira de higienizar e legitimar sistemas opressivos”4. Tal afirmação vai ao encontro
de uma das faces mais sombrias do neoliberalismo, que utiliza seu discurso para naturalizar
sistemas de desigualdade e de opressão. Em consequência, tais práticas terminam por garantir
a lógica utilitarista no processo penal.

2.1. As novas tecnologias de poder e a racionalidade neoliberal


Tratar sobre neoliberalismo, diante da temática de fundo proposta, implica mais em
explicar a racionalidade neoliberal que permeia nossa realidade contemporânea do que se
referir a um modelo político-econômico, ou seja, de que sua ideia inicial é ultrapassada para
tornar-se a nova a razão do mundo, um plano governamental, atingindo as relações mais
particulares dos indivíduos.
Inicialmente pensado como uma teoria político-econômica por seus fundadores do Mont
Pelerin Society, em 1947, como Hayek e Friedman, a partir das décadas de 1970 e 19805 o
modelo neoliberal foi sendo amplamente adotado pelos países, seja de forma voluntária seja de
forma imposta (através de pressões de órgãos internacionais que regulam o mercado e as finanças
globais), e hoje ele ultrapassa o terreno econômico, passando a reger de maneira hegemônica
a tudo, compondo uma estrutura complexa, cuja característica principal é “estender e impor a
lógica do capital a todas as relações sociais, até fazer dela a forma mesma de nossas vidas.”6
Trata-se, portanto, de um “conjunto de discursos, práticas e dispositivos que determinam um
novo modo de governo dos homens segundo o princípio universal da concorrência.”7
Atualmente, segundo Bourne8, o neoliberalismo pode ser descrito através de três palavras:
eficiência, inovação e progresso. Para o teórico de relações públicas, argumentando que seu
ramo muito influenciou para o sucesso do projeto neoliberal, tais palavras são plásticas e
vazias.

(…) PR has helped reinvigorate some of neoliberalism’s most portable, hollow


plastic words; ‘efficiency’, ‘innovation’ and ‘progress’. Whereas neoliberalism’s
homo economicus has supposedly proved himself both demanding and perennially
inefficient, AI is the coveted machina economicus, able to process information
rationally as homo economicus never could, while remaining unaware of, and
unaffected by, political uncertainty and societal malaise.9

4
Disponível em: https://www.technologyreview.com/s/612775/algorithms-criminal-justice-ai/.
Acesso em: 09 nov. 2019.
5
HARVEY, David. O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo: Edições Loyola, 2008, p.
14.
6
LAVAL, Christian; DARDOT, Pierre. La pesadilla que no acaba nunca: El neoliberalismo con-
tra la democracia. Barcelona: Gedisa, 2017, p. 11 (tradução nossa).
7
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: Ensaios sobre a sociedade neoli-
beral. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 17.
8
BOURNE, C.D. 2019. AI cheerleaders: Public relations, neoliberalism and artificial intelligence.
Public Relations Inquiry, 8(2), pp. 109-125, p. 122.
9
BOURNE, C.D. 2019. AI cheerleaders: Public relations, neoliberalism and artificial intelligence.
Public Relations Inquiry, 8(2), pp. 109-125, p. 122.

— 266 —
Velhos preconceitos mascarados de verdades científicas: como a inteligência artificial
Daniela Dora Eilberg - Jádia Larissa Timm dos Santos

Plásticas, porque se moldam ao discurso de poder e aos objetivos pretendidos; vazias,


porque não carregam em si significados, são esvaziadas de essência, são ocas. O argumento do
autor vai mais longe ao apontar a inteligência artificial como a cobiçada machina economicus,
capaz de racionalmente processar informações de uma maneira que o homo economicus
nunca pode e, mais do que isso, é capaz de fazê-lo mantendo-se aquém das mazelas sociais e
políticas que acometem o seu entorno.
Nesta senda, a partir do pensamento do referido autor, torna-se mais fácil compreender
o porquê do apelo contemporâneo a tudo relacionado à dita inteligência artificial, que carrega
consigo as três “palavras mágicas” – eficiência, inovação e progresso. Apostam-se todas
as fichas em tecnologias artificiais que poderão, enfim, trazer à humanidade o tão sonhado
progresso, de forma eficaz e plena. A inteligência artificial é tida como a realização da
promessa de um futuro ainda não realizado.
Retomando a discussão acerca da plasticidade neoliberal, que se molda ao discurso
dominante de poder, de acordo com Gambetti (informação verbal)10, a estrutura de poder
dominante no século XXI é composta pela equação:
BIOPOLÍTICA + NEOLIBERALISMO + RISCO
Os elementos deste trinômio equacional, enquanto componentes de um mesmo resultado
final, o discurso dominante de poder, devem ser analisados de forma interrelacionada. Ou seja,
não há como falar em neoliberalismo sem passar pela biopolítica e pelo risco, por exemplo.
O primeiro elemento, a biopolítica, pode ser entendido como o conjunto de mecanismos
por meio dos quais aquilo que constitui os traços biológicos da espécie humana, a partir da
segunda metade do século XVIII, passa a fazer parte de uma estratégia política.11 Através da
biopolítica, portanto, a forma de controle da sociedade sobre os indivíduos se modifica, sem
desprezar aquelas já institucionalizadas, como a da disciplina. Esse controle biopolítico atua
sobre os corpos, ou seja, o corpo passa a ser realidade, instrumento bio-político.12
O risco, por sua vez, “como nova etiqueta de perigo”13, preenche espaço importante na
lógica de poder dominante. No espaço político, o risco – um estado de insegurança que é tanto
produtivo quanto subjugador - é utilizado como estratégia governamental.
É o controle do risco, ligado à noção de perigo, que passa a ser essencial às chamadas
técnicas securitárias ou de controle. No campo criminológico, por exemplo, podemos vê-lo

10
Informação obtida através da conferência proferida por Zeynep Gambetti, intitulada “New Fascis-
ms”, no 10º Congresso Internacional de Ciências Criminais da PUCRS, realizado em Porto Alegre, no dia
21 de outubro de 2019.
11
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 289-290;
AMARAL, Augusto Jobim do. Biopolítica e Biocapitalismo: implicações da violência do controle. Veritas,
Porto Alegre, v. 63, n. 2, mai-ago 2018, p. 518, nota 1.
12
FOUCAULT, Michel. O nascimento da medicina social. In: Microfísica do Poder. Trad. Roberto
Machado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017, p. 144.
13
ANIYAR DE CASTRO, Lola; CODINO, Rodrigo. Manual de Criminologia Sociopolítica. Trad.
Amina Vergara. 1. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2017, p. 452

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Velhos preconceitos mascarados de verdades científicas: como a inteligência artificial
Daniela Dora Eilberg - Jádia Larissa Timm dos Santos

na Criminologia Atuarial, que tem em cálculos de probabilidade seu método de desenvolver


conhecimento, uma legítima criminologia dura, da mesma maneira como trabalham as empresas
de seguros.14 A partir desse raciocínio, podemos entender que há uma relação de similaridade
entre as tecnologias do poder, as tecnologias de controle e as técnicas securitárias.
Entramos, assim, na ideia da tecnologia, da inteligência artificial e do papel que
desenvolvem na equação supramencionada. Indagamos o quanto essas novas técnicas de
controle se encaixam nas palavras plásticas e vazias do neoliberalismo. E, mais do que isso,
procuramos com esse artigo mensurar de que o forma o processo penal passa a ser inserido
nessa lógica. Especialmente através dos algoritmos, que passam a influenciar na forma como
a justiça penal se dá.
  A razão neoliberal, como se viu, implica em consequências muito profundas na
forma como se organiza e atua o sistema penal, tentando impor a lógica da eficiência e da
obsolescência inclusive em áreas tão sensíveis e tão caras à liberdade e à dignidade humana,
como o são o direito penal e a criminologia.
De acordo com Harvey, o neoliberalismo “sustenta que o bem social é maximizado se
se maximizam o alcance e a frequência das transações de mercado, procurando enquadrar
todas as ações humanas no domínio do mercado.”15 Para isso, são necessárias “tecnologias de
criação de informações e capacidades para acumular, armazenar, transferir, analisar e usar
maciças bases de dados para orientar decisões no mercado global.”16
Passamos, agora, a analisar um pouco melhor a inserção das novas tecnologias na justiça
criminal, ao ponto de esclarecermos em que medida esse discurso da inovação e do progresso
não passam de técnicas de poder, de controle, que apenas mantêm intactos os velhos problemas
enfrentados.

2.2. Algoritmos tendenciosos e a reprodução de racionalidades preconceituosas


revestidas de cientificismo no processo penal
A construção da punição como a “Justiça” Criminal é desenvolvida historicamente e está
atravessada por disparidades raciais. Os algoritmos para machine learning da Inteligência
Artificial desenvolvem resultados supostamente imparciais que compensariam as falhas
do julgamento humano, limitadas pelas racionalidades conservadoras, racistas e machistas.
Ocorre que, tais tecnologias acabam por demonstrar como as máquinas perpetuam os mesmos
preconceitos humanos. Como exemplo, tem-se o COMPAS, utilizado em Broward (Flórida),
software baseado em algoritmos que, pela pesquisa “ProPublica” foi contestado por sinalizar
falsamente mais réus negros do que réus brancos. Enquanto a porcentagem de brancos
possivelmente reincidentes que não reincidiram foi de 23,5%, a de negros era de 44,9%.

14
ANIYAR DE CASTRO, Lola; CODINO, Rodrigo. Manual de Criminologia Sociopolítica. Trad.
Amina Vergara. 1. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2017, p. 452
15
HARVEY, David. O neoliberalismo: história e implicações. 5. ed. São Paulo: Edições Loyola,
2014, p. 13.
16
HARVEY, David. O neoliberalismo: história e implicações. 5. ed. São Paulo: Edições Loyola,
2014, p. 13

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Velhos preconceitos mascarados de verdades científicas: como a inteligência artificial
Daniela Dora Eilberg - Jádia Larissa Timm dos Santos

Ainda, enquanto a porcentagem de possíveis não reincidentes brancos que reincidiram foi de
47,7%, a de negros possivelmente não reincidentes que reincidiram foi de 28%17.
As teorias lombrosianas vêm sendo revisitadas com a sofisticação da tecnologia. O mesmo
criador da COMPAS, Daniel Neill, junto ao pesquisador Will Gorr já havia desenvolvido
um software para a previsão de crimes denominado “Crime Scan18”. Um outro exemplo da
revisitação das teorias de Lombroso é a ferramenta desenvolvida por Xiaolin Wu e Xi Zhang
para analisar tendências criminosas com base na estrutura facial, há apenas 3 anos19. Os
pesquisadores alegam que os algoritmos – desenvolvidos a partir de uma aprendizagem com
base em dados tendenciosos – evitariam decisões tendenciosas de juízes, balizando maior
eficiência às decisões judiciais.
Interessante observar a fala de Guto Hari, em 2018, a respeito da inteligência artificial e
a profissão das Relações Públicas: “[a] Inteligência Artificial (AI) representa pouca ameaça
para a nossa indústria – mas fornece bastante oportunidades, principalmente porque causará
estragos em alguns setores e trará avanços alucinantes em outros”20, pois indica a “atual
fase do neoliberalismo” moldada por novas tecnologias e uma economia superinteligente21
liderada pela IA. Assim como as fases anteriores do neoliberalismo, a economia da IA está
sendo agressivamente naturalizada como o modo de vida do senso comum22 – e um bem
público por meio de doutrinas persuasivas possibilitadas pelas Relações Públicas.23
Ainda, é preciso destacar que tais tecnologias passaram a ser amplamente terceirizadas,
desenvolvidas por setores privados e, então, aplicadas na lógica do poder público. Sabe-
se que as vozes dominantes dos discursos sobre IA são governos, empresas de tecnologia,
investidores em IA, empresas multinacionais capazes de comprar tecnologias de IA e
consultorias de gestão global.
O que se pode perceber, portanto, é que: inobstante a tecnologia possa ser vista como uma
instrumentalidade que traz melhorias para a sociedade como um todo, de uma maneira que o

17
ANGWIN, J.; LARSON, J.; MATTU, S.; KIRCHNER, L. Machine bias: There’s software used
across the country to predict future criminals: And it’s biased against blacks. ProPublica, 23 May, 2016.
Disponível em: www.propublica.org/article/machine-bias-risk-assessments-in-criminal-sentencing. Aces-
so em: 15 fev. 2020.
18
RIELAND, R. Artificial Intelligence Is Now Used to Predict Crime. But Is It Biased? Smithso-
nian Magazine, 5 March, 2018. Disponível em: https://www.smithsonianmag.com/innovation/artificial-
intelligence-is-now-used-predict-crime-is-it-biased-180968337/. Acesso em: 15 fev. 2020.
19
BERGSTROM, C.; WEST, J. Criminal machine learning. Calling Bullshit, 2017. Disponível em:
https://callingbullshit.org/case_studies/case_study_criminal_machine_learning.html. Acesso em: 15 fev.
2020.
20
BOURNE, C.D. AI cheerleaders: Public relations, neoliberalism and artificial intelligence. Public
Relations Inquiry, v. 2, n. 8, pp. 109-125, 2019.
21
PUEYO, S. Growth, degrowth, and the challenge of artificial superintelligence. Journal of Cleaner
Production, n. 197, v. 2, pp. 1731-1736, 2017.
22
ROPER, R Symmetrical communication: Excellent public relations or a strategy for hegemony?
Journal of Public Relations Research. v. 17, n. 1, pp. 69-86, 2005.
23
BOURNE, C.D. AI cheerleaders: Public relations, neoliberalism and artificial intelligence. Public
Relations Inquiry, v. 2, n. 8, pp. 109-125, 2019.

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Velhos preconceitos mascarados de verdades científicas: como a inteligência artificial
Daniela Dora Eilberg - Jádia Larissa Timm dos Santos

humano por si só jamais poderia alcançar; muitas ferramentas tecnológicas, como é o caso no
processo penal, apenas revigoram e mascaram por meio de seu discurso de imparcialidade e
eficiência, racismos e preconceitos históricos. Por isso, é mais do que necessário uma análise
crítica e profunda do real impacto de mecanismos tecnológicos em áreas tão sensíveis como
o processo penal.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo em vista que as novas tecnologias são uma realidade da qual não podemos
fugir, algumas questões são imprescindíveis para aprimorar o uso de machine learning e
inteligência artificial no sistema da Justiça Criminal. Um dos pontos essenciais é a promoção
de transparência. O problema dos softwares desenvolvidos é que funcionam como “caixas
pretas”24, pois uma vez que são criados por empresas privadas, em razão da lógica neoliberal,
não revelam os seus algoritmos e, por isso, é difícil estarem suscetíveis à devida accountability.
A transparência dos algoritmos, portanto, traria a possibilidade de realizar uma crítica
solidificada de seu funcionamento.
Enquanto estamos diante dessa realidade em que os softwares desenvolvidos não
divulgam os seus algoritmos, questiona-se a possibilidade de projetar e empregar um programa
de machine learning em um cenário que transborda preconceitos raciais e socioeconômicos?
Ainda, seria possível extrair dados que sejam livres das racionalidades estigmatizantes?
Inúmeras questões poderiam seguir sendo elencadas, ainda mais no âmbito da ética de
aplicabilidade para análise da efetividade desses programas.
Por ora, conclui-se que a inserção da inteligência artificial no processo penal não pode
se dar de forma acrítica, deixando-se crer no discurso falacioso de uma eficiência científica
inquestionável, quando, em verdade, muito vem-se denunciado sobre seus métodos nada
isentos e imparciais.

REFERÊNCIAS
AMARAL, Augusto Jobim do. Biopolítica e Biocapitalismo: implicações da violência do controle.
Veritas, Porto Alegre, v. 63, n. 2, mai-ago 2018, p. 515-543.
ANIYAR DE CASTRO, Lola; CODINO, Rodrigo. Manual de Criminologia Sociopolítica. Trad.
Amina Vergara. 1. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2017.
ANGWIN, J.; LARSON, J.; MATTU, S.; KIRCHNER, L. Machine bias: There’s software used across
the country to predict future criminals: And it’s biased against blacks. ProPublica, 23 May,
2016. Disponível em: www.propublica.org/article/machine-bias-risk-assessments-in-criminal-
sentencing. Acesso em: 15 fev. 2020.

24
RIELAND, R. Artificial Intelligence Is Now Used to Predict Crime. But Is It Biased? Smithso-
nian Magazine, 5 March, 2018. Disponível em: https://www.smithsonianmag.com/innovation/artificial-
intelligence-is-now-used-predict-crime-is-it-biased-180968337/. Acesso em: 15 fev. 2020.

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Velhos preconceitos mascarados de verdades científicas: como a inteligência artificial
Daniela Dora Eilberg - Jádia Larissa Timm dos Santos

BERGSTROM, C.; WEST, J. Criminal machine learning. Calling Bullshit, 2017. Disponível em:
https://callingbullshit.org/case_studies/case_study_criminal_machine_learning.html. Acesso
em: 15 fev. 2020.
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Relations Inquiry, v. 2, n. 8, pp. 109-125, 2019.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: Ensaios sobre a sociedade neoliberal.
São Paulo: Boitempo, 2016.
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
FOUCAULT, Michel. O nascimento da medicina social. In: Microfísica do Poder. Trad. Roberto
Machado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017.
HARVEY, David. O neoliberalismo: história e implicações. 5. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014.
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democracia. Barcelona: Gedisa, 2017.
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Magazine, 5 March, 2018. Disponível em: https://www.smithsonianmag.com/innovation/
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2020.
ROPER, R. Symmetrical communication: Excellent public relations or a strategy for hegemony?
Journal of Public Relations Research. v. 17, n. 1, pp. 69-86, 2005.

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A smart city como modelo de estruturação de
cidades sustentáveis e resilientes

Wilson Engelmann1
Camilo Stangherlim Ferraresi2

Resumo: O artigo se refere ao contexto de (re)organização dos espaços urbanos, tendo como objetivo
observar as possibilidades trazidas pela estruturação da Smart City na organização urbana, a fim de se
fazer frente aos desafios trazidos pelas mudanças climáticas, desde um panorama de cidade resiliente e
sustentável. A partir desse cenário, o problema que o artigo pretende responder é: quais são as características
que se deverá projetar em uma Smart City, a fim de, a partir desses elementos estruturantes, se possa
planejar mecanismos de resiliência em panoramas de situações climáticas e urbanas emergenciais? Se
utilizam algumas categorias da Teoria Sistêmica, formulada por Niklas Luhmann, e a partir da pesquisa
bibliográfica, documental e de dados, se consegue desenhar os elementos estruturantes de uma Smart City,
por intermédio da aprendizagem gerada pela tradição, para que a cidade passe também a ser resiliente,
buscando mitigar os efeitos externos trazidos pelos eventos climáticos. Como resultado da pesquisa se
observou: que se deverá interconectar a sustentabilidade ambiental e humana com as tecnologias que se

1
Pós-doutor en los Retos Actuales del Derecho Público, organizado pelo Centro de Estudios de
Seguridad, da Facultad de Derecho de la Universidad de Santiago de Compostela, Espanha; graduação
em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (1988), mestrado em Direito pela Universidade do
Vale do Rio dos Sinos (2000) e doutorado em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2005).
Professor, Pesquisador e Coordenador Executivo do Mestrado Profissional em Direito da Empresa e dos
Negócios e professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado,
ambos da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, São Leopoldo, Rio Grande do Sul, Brasil.
Pesquisador associado do: Latin American Nanotechnology & Society Network; Portucalense Institute for
Legal Research e do Centro de I&D sobre Direito e Sociedade. E-mail: wengelmann@unisinos.br
2
Doutorando em Direito Público, pelo Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Dou-
torado – da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos (São Leopoldo - RS), Mestre em Direito
Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino (Bauru - SP). Especialista em Gestão e Formação de
Educadores em Turismo pela Universidade do Sagrado Coração (Bauru - SP). Graduado em Direito pela
Faculdade de Direito de Bauru - SP (ITE). Professor e Coordenador do Curso de Direito das Faculdades
Integradas de Bauru (FIB), São Paulo. E-mail: camilostangherlimferraresi@gmail.com

— 272 —
A smart city como modelo de estruturação de cidades sustentáveis e resilientes
Wilson Engelmann - Camilo Stangherlim Ferraresi

encontram no centro da Quarta Revolução Industrial, para que os centros urbanos possam ser espaços para a
promoção do desenvolvimento humano pleno e equilibrado, como a expressão dos Direitos dos Humanos.
Palavras-chave: Smart city; Cidades resilientes; Mudanças climáticas; Tecnologias; Quarta revolução
industrial.

Abstract: The article refers to the context of (re)organization of urban spaces, aiming to observe the
possibilities brought by the structuring of Smart City in urban organization, in order to face the challenges
brought about by climate change, from a panorama of resilient and sustainable city. From this scenario, the
problem that the article intends to answer is: what are the characteristics that should be projected in a Smart
City, in order, from these structuring elements, to be able to plan mechanisms of resilience in panoramas of
climatic and urban situations emergency? Some categories of the Systemic Theory, formulated by Niklas
Luhmann, are used, and from the bibliographical, documentary and data research, it is possible to design
the structuring elements of a Smart City, through the learning generated by tradition, so that the city also
passes to be resilient, seeking to mitigate the external effects brought about by climatic events. As a result
of the research, it was observed: that environmental and human sustainability should be interconnected
with the technologies that are at the center of the Fourth Industrial Revolution, so that urban centers can be
spaces for the promotion of full and balanced human development, as the expression Human Rights.
Keywords: Smart city; Resilient cities; Climate changes; Technologies; Fourth industrial revolution.

1. Introdução
As mudanças climáticas e o aumento da ocorrência de desastres naturais são fenômenos
ambientais que impactam diretamente na forma como a humanidade ao longo dos anos vem
utilizando dos recursos naturais e de ocupação dos espaços urbanos. Isso implica na alteração
significativa das temperaturas e no clima do planeta, em algumas situações com o aumento
da quantidade de chuvas, em outras situações com o agravamento de períodos de seca, e todas
essas alterações sinalizam para a busca de novos modelos de cidades.
Diante desse cenário de mudanças e busca por respostas adequadas às transformações
que a sociedade enfrentará nos próximos anos, o texto faz uma análise das transformações
do Direito, para juridicizar as possibilidades trazidas pela estruturação das Smart Cities, a
fim de se fazer frente aos desafios trazidos pelas mudanças climáticas. Esse é o objetivo
geral do artigo. Os objetivos específicos são: a) conhecer os enlaçamentos entre o Direito
Ambiental do Futuro e os desafios trazidos pelas chamadas Mudanças Climáticas; b) analisar
os elementos estruturantes da Smart City e suas aproximações com a noção de cidade resiliente
e sustentável, a fim de mitigar os efeitos das mudanças climáticas por meio da tecnologia.
Assim, a partir das mudanças da sociedade e do reconhecimento do risco como caraterística
da sociedade do terceiro milênio, verifica-se a evolução do Direito Ambiental. Dessa forma,
as estruturas normativas deverão aprender a lidar com problemas gerados na atualidade, mas
com uma grande probabilidade de gerarem efeitos no futuro. A ocorrência de desastres naturais
em decorrência das mudanças do clima são uma realidade e o Direito deve estar atento para
essas mudanças e contribuir para soluções de modo a manter a existência humana sob a ótica
do princípio da dignidade. Nessa perspectiva, o espaço em que as pessoas vivem é a cidade
e, nesse espaço é que se verifica a possibilidade de um aumento significativo de ocorrências
desastrosas relacionadas às mudanças climáticas e, por essa razão, o planejamento urbanístico
deve buscar modelos de cidades adequadas aos desafios das alterações do clima.

— 273 —
A smart city como modelo de estruturação de cidades sustentáveis e resilientes
Wilson Engelmann - Camilo Stangherlim Ferraresi

O modelo de cidades inteligentes, a partir da utilização de tecnologias, deverão preparar-


se para lidar com as mudanças do clima, com o foco na promoção da qualidade de vida da
população. Para tanto, as cidades deverão ter como elementos estruturantes a resiliência,
a sustentabilidade e a inteligências, para encontrar respostas adequadas e coletivas para a
gestão pública de situações emergenciais. Dessa forma, pretende-se verificar o modelo de
cidade denominado Smart Cities como possibilidade de cidades sustentáveis e resilientes
adequadas para o cenário de mudanças climáticas e ambientais.
O problema que o artigo pretende enfrentar pode ser assim delineado: quais são as
características que se deverá projetar em uma smart city, a fim de, a partir desses elementos
estruturantes, se possa planejar mecanismos de resiliência em panoramas de situações
climáticas e urbanas emergenciais?
Por meio da observação sistêmica-construtivista, inspirada a partir de Niklas Luhmann,
se manejará a pesquisa bibliográfica, especialmente publicações em livros e revistas, e a
pesquisa documental.

2. O Direito Ambiental do Futuro no cenário das Mudanças


Climáticas
A complexidade da sociedade pós moderna e (re)organização social em razão dos efeitos
decorrentes das mudanças climáticas, permitem a abertura de possibilidades que originam
(novos) cenários que demandam a ressignificação do Direito Ambiental para atender
adequadamente às necessidades para melhoria na qualidade de vida humana. A dinâmica
permanente da evolução é tão acentuada que novas perspectivas se (re) constroem diariamente
e reclamam atenção do Sistema do Direito onde a comunicação entre os sistemas sociais e o
sistema jurídico são possibilidades para a busca do patamar mínimo civilizatório de qualidade
de vida para a humanidade.
Nessa perspectiva, se verifica o desafio lançado para o Sistema do Direito na estruturação
de cenários regulatórios a partir das transformações decorrentes das alterações do clima e a
juridicização dos processos sociais de um sistema social hipercomplexo. Luhmann esclarece
que “o próprio sistema jurídico se apresenta como transformação dos valores, mas que no
fundo vem a ser um processo muito mais amplo, condicionado não só pela diferença entre
gerações, mas de distintas maneiras” (LUHMANN, 2016, p. 750-751). Além disso, Luhmann
prossegue: “as normas e a validade, que em cada caso as sustenta, já não se ancoram nas
constantes religiosas ou naturais ou nas de uma estrutura social inquestionada, mas são
vivenciadas e tratadas como projeções temporais. Elas têm uma validade ‘até segunda
ordem’”. (LUHMANN, 2016, p. 751).
Os acontecimentos (ou as ocorrências) de acidentes ou eventos da natureza (ou por ação
do homem) com grande capacidade destrutiva para o meio ambiente, saúde e vida humana,
tem se tornado mais frequentes de modo a reclamar do Sistema do Direito uma (re)leitura do
Direito Ambiental tradicional. Essa (re)configuração, a partir da decodificação de informações
a respeito da ocorrência de situações de impacto significativo na vida de pessoas, obriga o
Direito Ambiental a projetar respostas adequadas para as transformações sociais, ambientais,

— 274 —
A smart city como modelo de estruturação de cidades sustentáveis e resilientes
Wilson Engelmann - Camilo Stangherlim Ferraresi

tecnológicas e de risco que a humanidade tem experimentado com altíssima velocidade (WORLD
METEOROLOGICAL ORGANIZATION, 2019). O Direito Ambiental como conjunto de regras
jurídicas que tem como objeto o meio ambiente (proteção e reparação) e nessa perspectiva,
o Direito deve encontrar respostas para a sua defesa em relação às agressões da sociedade
moderna. Paulo Affonso Leme Machado define esse panorama da seguinte forma:

O Direito Ambiental é um Direito sistematizador, que faz a articulação da legislação,


da doutrina e da jurisprudência concernentes aos elementos que integram o ambiente.
Procura evitar o isolamento dos temas ambientais e sua abordagem antagônica. Não
se trata mais de construir um Direito das águas, um Direito da atmosfera, um Direito
do solo, um Direito florestal, um Direito da fauna ou um Direito da biodiversidade.
O Direito Ambiental não ignora o que cada matéria tem de específico, mas busca
interligar estes temas com a argamassa da identidade dos instrumentos jurídicos
de prevenção e de reparação, de informação, de monitoramento e de participação.
(MACHADO, 2010, p. 54-55).

A dinâmica (acelerada) das transformações do clima podem rapidamente tornar


inadequada a norma jurídica vigente, porque as suposições reais que a sustentam, ou
desapareceram ou se modificaram. (LUHMANN, 2016). A imprevisibilidade das situações
sociais e jurídicas decorrentes das mudanças climáticas potencializam o surgimento de
riscos, conhecidos e desconhecidos, para a saúde humana e à manutenção do meio ambiente
ecologicamente equilibrado. A imprevisibilidade, a mutação acelerada e a hipercomplexidade
fazem emergir a sociedade de risco e projetam um novo olhar do Direito Ambiental de modo
antecipar situações jurídicas futuras.
Na sociedade de risco há uma mudança de paradigma, tendo em vista que a produção
social de riqueza é acompanhada pela produção social de riscos. Ulrich Beck aponta que
“consequentemente, aos problemas e conflitos distributivos da sociedade da escassez
sobrepõem-se os problemas e conflitos surgidos a partir da produção, definição e distribuição
de riscos científicos-tecnologicamente produzidos”. (BECK, 2011, p. 23).
As condições de desenvolvimento, mudanças climáticas, inovação e novas tecnologias,
que necessariamente implicam em (novas) oportunidades e (novos) riscos, implicam
necessariamente na ressignificação do Direito Ambiental. Isso porque a sociedade tecnológica
alcança rapidamente mudanças ou transformações nas condições sociais, com impactos (positivos
e negativos) na saúde e no meio ambiente. Nesse cenário, o desafio do direito para encontrar
respostas (in)adequadas na emergência da sociedade tecnológica demanda a superação da crise
do Estado de Direito. (ENGELMANN, BERGER FILHO, 2010). Além disso, segundo Beck:
“a sociedade de classes nacional baseia-se na distribuição de bens (renda, educação, saúde, …).
A sociedade de risco global baseia-se na distribuição de males (risco climático, risco financeiro,
radiação nuclear), que não estão confinados nem no tempo nem por fronteiras territoriais de
uma única sociedade” (BECK, 2018, p. 109). Os riscos gerados pelas mudanças climáticas são
globais, mas a atuação poderá ser local, no cenário da sociedade de classes nacional, por meio
de comunicações geradas pelas estruturas da Smart City, conforme se verá mais adiante.
As mudanças climáticas são um dos fatores de aumento considerável do risco e da
ocorrência de desastres. Aqui um ponto central onde os elementos que se tem desenhado na

— 275 —
A smart city como modelo de estruturação de cidades sustentáveis e resilientes
Wilson Engelmann - Camilo Stangherlim Ferraresi

estrutura de uma Smart City poderão ajudar. A origem das mudanças climáticas é a emissão de
gases de efeito estufa (CO2). Esses gases têm uma única característica comum: eles permitem
que radiação de alta frequência, como a luz visível, atinja a superfície da Terra, mas são opacas
à radiação de baixa frequência que é emitida de volta da superfície da Terra. O resultado é que a
mesma quantidade de energia entra, mas menos energia é capaz de escapar. Esse desequilíbrio
de energia causa aquecimento. A física desse “efeito estufa” é bem compreendida e indiscutível.
Os estudos científicos apontam com segurança que os gases do efeito estufa causarão
aquecimento significativo na temperatura do planeta, bem como, outras alterações perigosas
no clima, inclusive há cientistas que estão certos de que a mudança climática já começou. O
aquecimento global médio de 2°C deixaria a Terra mais quente do que há milhões de anos e,
com o aumento de temperatura, a ocorrência de eventos extremos como incêndios, inundações
e ondas de calor se tornarão mais generalizados. (FARBER; CARLARNE, 2018).
Por outro lado, se as emissões não forem controladas e o aquecimento médio for
4°C as consequências podem ser devastadoras. Nesse cenário pode-se exemplificar como
consequências a inundação de cidades costeiras;  aumento dos riscos para a produção de
alimentos, regiões secas se tornando mais secas, as regiões úmidas mais úmidas; ondas de
calor sem precedentes muitas regiões, especialmente nos trópicos; escassez de água; aumento
da frequência de ciclones tropicais de alta intensidade; e perda irreversível da biodiversidade.
(FARBER; CARLARNE, 2018).
Os desastres ambientais decorrentes das mudanças climáticas é ponto central em que
o Direito Ambiental do Futuro perpassa pelo Direito dos Desastres, uma vez que, em uma
delimitação mais específica, os assim chamados desastres ambientais consistem em eventos
(de causa natural, humana ou mista) capazes de comprometimento de funções ambientais ou
lesões a interesses humanos decorrentes de alguma mudança ambiental.
Aressignificação da concepção do DireitoAmbiental (do futuro) tem reflexos e consequências
diretos nos compromissos e objetivos em relação ao meio ambiente, mas também nas premissas
estruturantes que dão sustentação a sua operacionalização. O paradoxo fundamental do Direito
Ambiental do Futuro consiste exatamente na sua função principal, ou seja, se antecipar aos
danos futuros, utilizando-se dos instrumentos principiológicos e processuais vigentes; incertezas
das consequências futuras de determinadas atividades; construção de cenários regulatórios
para abrigar as inovações tecnológicas, que sustentam a Smart City. A inserção do futuro nos
processos de tomada de decisão jurídica, em uma interação entre programação condicional e
finalística, é fundamental nas reflexões jurídicas acerca dos novos direitos.

3. As Cidades Inteligentes e o Direito Ambiental do


Futuro: Resiliência e Sustentabilidade como elementos
estruturantes das cidades no cenário das Mudanças
Climáticas
Nesse cenário de aumento significativo da ocorrência de desastres naturais, verifica-se
a necessidade de ressignificação dos espaços urbanos para adequação de modo a atender a
existência digna e segura dos seres humanos, bem como, o papel do Direito Ambiental do
Futuro, como horizonte de possibilidades para modelos urbanísticos inteligentes, sustentáveis

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A smart city como modelo de estruturação de cidades sustentáveis e resilientes
Wilson Engelmann - Camilo Stangherlim Ferraresi

e resilientes. A resiliência e a sustentabilidade são elementos estruturantes das Smarts Cities.


Para tanto, no panorama deste artigo, se parte do seguinte conceito de cidade resiliente: “[…]
uma cidade capaz de absorver pressões externas ou de se adaptar ou transformar diante dessas
pressões, garantindo a segurança das comunidades assentadas e preservando suas funções
básicas durante uma crise” (GUIMARÃES; XAVIER, 2016, p. 1363). O momento vivido pela
humanidade seja nos espaços urbanos ou rurais, se caracteriza pela necessidade de adaptação,
de mudança de hábitos, de destacar o aprendizado com a tradição da vida sobre a Terra, a fim
interpretar os eventos climáticos como sinais da natureza para iniciar uma mudança.
As Nações Unidas advertem sobre o confronto mortal entre urbanização crescente e
mudança climática e desastres naturais sem precedentes causados pelo enorme impacto
das cidades sobre o meio ambiente. O principal desafio é que as cidades devem agir
imediatamente para tomar medidas, buscando reduzir as emissões de gases de efeito estufa e
promover um desenvolvimento urbano mais ambientalmente sustentável e justo. As cidades
ocupam apenas 4% da superfície da Terra, mas consomem 67% da energia e respondem
por 70% das emissões de gases de efeito estufa (GEE). A urbanização deverá continuar
projetando-se, para 2030, cerca de 60% da população mundial vivendo nas cidades. Quase
todo o crescimento populacional futuro será em áreas urbanas e, geralmente, na expansão de
favelas, que aumentam o papel fundamental das cidades na abordagem da mudança climática
(UN ENVIRONMENT PROGRAM (UNEP), 2019). Com isso, a possibilidade de desastres
naturais atingirem esses espaços urbanos ocupados pela maioria da população brasileira e
mundial é real e, por essa razão, necessário (re)pensar o planejamento urbanístico de modo a
dar respostas rápidas a situações de risco para a população.
A ideia de Smart City deve, necessariamente, ser sinônimo de “cidade sustentável”,
perpassando pela incorporação de sustentabilidade ambiental, sustentabilidade econômica e
sustentabilidade social em seu planejamento, ou seja, “incluiria temas como licitação verde,
construções sustentáveis, redes de transporte coletivo baseadas em fontes renováveis de
energia e destinação adequada de resíduos sólidos e efluentes líquidos”. (NALINI; SILVA
NETO, 2017, p. 7). Verifica-se na definição apresentada acima, o aparecimento do controle
e diminuição de gases de efeito estufa como indicadores de sustentabilidade e, se justifica a
preocupação uma vez que essas emissões são fatores de influência nas mudanças do clima.
(NALINI; SILVA NETO, 2017, p. 7).
A resiliência das cidades implica necessariamente na inteligência, sendo que cidade
inteligente é um lugar complexo, em que a partilha de informações permitiria o fortalecimento
da participação da população no planejamento urbano, bem como, para a rápida tomada de
decisão em caso de eventos catastrófico. (SENNETT, 2018). Cidades inteligentes, sustentáveis
e resilientes seriam modelos urbanísticos aptos ao enfrentamento dos riscos originados do
cenário de desastres naturais decorrentes de mudanças climáticas, haja vista, a capacidade
de retomar rapidamente o funcionamento dos serviços públicos, rapidez e flexibilidade de
estruturas sociais e a possibilidade de tomada de decisões com maior participação popular por
meio de ferramentas tecnológicas.
De acordo com Klaus Schwab as cidades inteligentes “conectarão serviços, redes
públicas e estradas à internet. Essas cidades irão gerenciar sua energia, fluxos de materiais,
logística e tráfego”. E muito mais do que isso: “as cidades inteligentes estão continuamente
ampliando sua rede tecnológica de sensores e trabalhando suas plataformas de dados, que

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A smart city como modelo de estruturação de cidades sustentáveis e resilientes
Wilson Engelmann - Camilo Stangherlim Ferraresi

serão o centro de conexão de diferentes projetos tecnológicos e da adição de serviços futuros,


com base na análise de dados e modelagem preditiva”. (SCHWAB, 2016, p. 135). Cidades
inteligentes e resilientes seriam, então, cidades baseadas em um modelo inteligente de
gestão ancorado em tecnologias de informação e comunicação, cujo objetivo repousa em
maneiras de viabilizar a sustentabilidade em todas as suas interfaces. (LEITE, 2012, p. 09).
Os impactos positivos da cidades inteligentes são o aumento da eficiência na utilização dos
recursos; aumento da produtividade; aumento da densidade; melhoria da qualidade de vida;
efeito sobre o meio ambiente; melhor acesso da população em geral aos recursos; menor
custo de prestação de serviços; maior transparência em torno de uso e estado dos recursos;
diminuição da criminalidade; aumento da mobilidade; geração e consumo descentralizados de
energia alternativas; produção descentralizada de bens; aumento da resiliência aos impactos
das mudanças climáticas, redução da poluição, aumento do acesso à educação; acessibilidade
mais rápida aos mercados; mais empregos; e, governo eletrônico mais inteligente. (SCHWAB,
2016).
A perspectiva ambiental atravessa as demais características da Smart City, é como se
fosse um elo de ligação dos elementos apontados, a partir da mediação da tecnologia. No caso
das mudanças climáticas e dos eventos ambientais desastrosos, que são o fio condutor deste
artigo, esse panorama poderá auxiliar na preparação da cidade para a chegada de tempestades,
ventos fortes, dentre outros fenômenos da natureza. Ao mesmo tempo, os indicadores
apontados servirão para qualificar a vida das pessoas nos centros urbanos. De todo modo, e
aí ingressa o elemento da resiliência, deverá haver aprendizagem, buscando evitar ações que
tenham desencadeado os fenômenos naturais agressivos. Quer dizer, a tecnologia, que está
embarcada no conceito de cidades ditas inteligentes, não deverá ser o argumento para que as
pessoas não mudem os seus comportamentos e atitudes em relação ao meio ambiente, onde
a cidade está inserida.

4. Conclusão
As mudanças climáticas modificaram velozmente as condições de existência da
humanidade e reclamam novas estruturas sociais, urbanísticas e, um (novo) olhar do Direito
Ambiental (do Futuro). A ocupação dos espaços urbanos e a ressignificação da concepção
jurídica das cidades é condição para a transformação da vida humana e a preparação para
busca de respostas adequadas a novas situações decorrentes das alterações climáticas e o
aumento de desastres naturais.
Por outro lado, as (novas) tecnologias parecem como ferramentas indispensáveis para
a gestão urbana e para o processo de transformação das cidades e do Direito Ambiental. O
desenvolvimento tecnológico possibilitou a modificação de estruturas, de significados, de
conceitos e, nessa perspectiva a possibilidade de (re)criação de universos possíveis em que
as condições de vida da humanidade sejam mais dignas. O planejamento urbano deverá se
utilizar da inovação tecnológica para (re)construção de modelo urbanos que sejam resilientes,
sustentáveis e inteligentes, para encontrar respostas adequadas aos desafios decorrentes das
mudanças do clima e do aumento de desastres naturais.

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A smart city como modelo de estruturação de cidades sustentáveis e resilientes
Wilson Engelmann - Camilo Stangherlim Ferraresi

Nessa perspectiva, as mudanças climáticas a partir da ação do homem é uma realidade e


o Sistema do Direito deve olhar para essa realidade ambiental de modo a encontrar soluções,
ou ao menos, ser o fio condutor para assegurar o patamar mínimo de dignidade para a vida
urbana diante da emergência da ocorrência de desastres ambientais. Nesse cenário, as cidades
inteligentes impulsionadas pelas novas tecnologias e por uma ocupação diferenciada do solo
urbano se colocam como estruturas resilientes adequadas para enfrentar os desafios do cenário
das mudanças climáticas. Vale dizer, serviços e plataformas de comunicação e informação,
como internet das coisas, big data e cloud computing são usadas para planejar espaços,
detectar problemas e solucioná-los com agilidade (METRÓPOLIS CONECTADAS, 2017).
A utilização da inovação tecnológica, a adaptação e flexibilidade de estruturas, o
aperfeiçoamento de instrumentos de participação direta da sociedade nas decisões do
planejamento urbano, serão fundamentais para que as Smart Cities sejam modelos de cidades
resilientes e sustentáveis preparadas para enfrentar o desafio das mudanças climáticas. Dessa
forma, se verificaram diversos elementos estruturantes da chamada Smart City, que não
deverão atuar individualmente, mas conectadas pela tecnologia e mediadas pela ação humana
da aprendizagem. Se identificaram, a partir da pesquisa às fontes trazidas para o âmbito deste
artigo, outros elementos e características para o delineamento da Smart City, especialmente
como a concretização de uma Cidade Resiliente e Sustentável, onde o elemento humano
é fundamental e a própria razão de se ter espaços para a concreção plena do respeito aos
Direitos dos Humanos. Com tais elementos se tem como respondido o problema lançado na
Introdução.

Referências
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2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011.
BECK, Ulrich. A metamorfose do mundo: novos conceitos para uma nova realidade. Tradução Maria
Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
CIDADES SUSTENTÁVEIS. Melhor mobilidade. S.d. Disponível em: http://www.cidadessustentaveis.
org.br/eixos/melhor-mobilidade-menos-tr%C3%A1fego. Acesso: 07 fev. 2020.
EMERGING AND SUSTAINABLE CITIES PROGRAM. Banco Interamericano de Desenvolvimento,
2019. Disponível em: https://www.iadb.org/en/urban-development-and-housing/emerging-and-
sustainable-cities-program. Acesso em 07 fev. 2020.
ENGELMANN, Wilson e BERGER FILHO, Airton Guilherme. As nanotecnologias e o direito
ambiental: a mediação entre custos e benefícios na construção de marcos regulatórios. Revista
de Direito Ambiental, São Paulo: RT, n. 59, p. 50-91, jul.-set./2010.
FARBER, Daniel; CARLARNE, Cinnamon P. Climate Change Law. Saint Paul: Foundation Press,
2018.
GUIMARÃES, Patrícia Borba Vilar; Yanko Marcius de Alencar, XAVIER. Smart Cities e Direito:
Conceitos e Parâmetros de Investigação da Governança Urbana Contemporânea. Revista de
Direito da Cidade, vol. 08, n. 4, 2016, p. 1362-1380.

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A smart city como modelo de estruturação de cidades sustentáveis e resilientes
Wilson Engelmann - Camilo Stangherlim Ferraresi

LEITE, Carlos. Cidades Sustentáveis, cidades inteligentes: desenvolvimento sustentável num


planeta urbano. Porto Alegre: Bookman, 2012.
LUHMANN, Niklas. O direito da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2016.
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 18. ed. rev. atual. e ampl. São
Paulo: Malheiros, 2010.
METRÓPOLIS CONECTADAS. Revista Exame, Edição de aniversário. Nasce a cidade do futuro.
Edição 1147, ano 51, n. 19, 11 de outubro de 2017.
NALINI, José Renato; SILVA NETO, Wilson Levy Braga da. Cidades inteligentes e sustentáveis:
desafios conceituais e regulatórios. In: CORTESE, Tatiana Tucunduva Philippi; KNIESS,
Cláudia Terezinha; MACCARI, Emerson Antonio (org.). Cidades inteligentes e sustentáveis.
Barueri, SP: Manole, 2017, p. 3-20.
SCHWAB, Klaus. A quarta revolução industrial. Tradução Daniel Moreira Miranda. São Paulo:
Edipro, 2016.
SCHWAB, Klaus. Aplicando a quarta revolução industrial. Tradução Daniel Moreira Miranda. São
Paulo: Edipro, 2018.
SENNETT, Richard. Construir e habitar: ética para uma cidade aberta. 1. ed. Rio de Janeiro: Record,
2018.
UN ENVIRONMENT PROGRAM (UNEP). Global Environment Outlook 6 Report, 04 March
2019. Disponível em: https://www.unenvironment.org/resources/global-environment-outlook-6.
Acesso em 07 fev. 2020.
WORLD METEOROLOGICAL ORGANIZATION. WMO Statement on the State of the Global
Climate in 2018. WMO-n. 1233. Geneva, Switzerland: World Meteorological Organization
(WMO), 2019. Disponível em: https://public.wmo.int/en/media/press-release/state-of-climate-
2018-shows-accelerating-climate-change-impacts. Acesso em 07 fev. 2020.

— 280 —
Os diferentes fundamentos teóricos penais
e a confiabilidade
nos programas de inteligência artificial

Rodrigo Régnier Chemim Guimarães1

Resumo: A utilização da inteligência artificial no âmbito do processo penal pressupõe a comunicação


entre dois profissionais: o engenheiro do conhecimento e o perito especialista em direito e processo penal.
O problema é que existem inúmeras correntes teóricas que fundamentam tanto o direito penal quanto o
processo penal. Os discursos mesclam dogmática com política criminal e variam de um abolicionismo radical,
que propõe o fim do direito penal e do processo, sem propor nada no lugar, passando pelo abolicionismo
moderado, que trabalha com medidas de conciliação e restauração psíquico-social dos envolvidos no conflito,
chegando em autores justificacionistas da punição, os quais, igualmente, não apresentam uniformidade de
trato, podendo trabalhar tanto com o garantismo penal, quanto com correntes não minimalistas, ou, ainda,
outras mais equilibradas, que levam em conta não apenas um direito penal mínimo, mas que organizam a
compreensão com duas balizas funcionalistas: proibição de excessos e proibição de proteção insuficiente.
Se essas correntes teóricas hoje convivem nos operadores do direito e se elas não são harmônicas, o perito
poderá instruir o engenheiro do conhecimento de variadas formas, gerando diferentes perspectivas de uso
da inteligência artificial. O problema adicional, é que se costuma dar um crédito diferenciado a tudo que é
produzido pela máquina, já que ela facilita o trabalho e opera com pretensões matemáticas de acerto. Deixar
claro, portanto, que fundamento teórico de processo penal norteou o processo comunicacional entre o perito
e o engenheiro, promovendo a consequente alimentação dos algoritmos que construíram a inteligência
artificial é imprescindível, seja para que não se produzam novas concepções com pretensões de “verdades
absolutas” a partir dos resultados apresentados pela máquina, seja para que não se induza a erro, tanto o
usuário da inteligência artificial, quanto o intérprete dos resultados apresentados.
Palavras-chave: inteligência artificial; processo penal; abolicionismo; justificacionismo; engenheiro
do conhecimento.

1
Doutor em Direito de Estado pela Universidade Federal do Paraná, Brasil. Professor Titular de
Direito Processual Penal na graduação e no Mestrado Profissional em Direito na Universidade Positivo, em
Curitiba, Paraná, Brasil. Procurador de Justiça no Ministério Público do Estado do Paraná, Brasil. E-mail:
rodrigo.chemim@up.edu.br

— 281 —
Os diferentes fundamentos teóricos penais e a confiabilidade nos programas de inteligência artificial
Rodrigo Régnier Chemim Guimarães

Abstract: The use of artificial intelligence in the context of criminal proceedings presupposes
communication between two professionals: the knowledge engineer and the expert specialized in law and
criminal proceedings. The problem is that there are numerous theoretical currents that under lie both criminal
law and the criminal process. The speeches mix dogmatic with criminal policy and range from radical
abolitionism, which proposes the end of criminal law and the process, without proposing anything in place,
through moderate abolitionism, which works with measures of conciliation and psychological and social
restoration of those involved in conflict, arriving at justification authors of the punishment, who, equally, do
not present uniformity of treatment, being able to work with both the penal guarantee, as with non-minimalist
currents, or, still, more balance dones, that take into account not only a right minimum penalty, but that
organize under standing with two functionalist goals: prohibition of excesses and prohibition of insufficient
protection. If these theoretical currents today coexist in the operators of law and if they are not harmonious, the
expert can instruct the knowledge engineer in various ways, generating different perspectives for the use of
artificial intelligence. The additional problem is that it is customary to give a differentiated credit to everything
produced by the machine, since it facilitatestheworkandoperateswithmathematicalpretensionsofsuccess.
To make it clear, therefore, that the theoretical basis of criminal proceedings guided the communication
process between the expert and then gineer, promoting the consequent feeding of the algorithms that built
artificial intelligence is essential, either so that new conceptions with “absolute truths” are not produced
based on the results presented by the machine, so that the user of artificial intelligence and the interpreter
of the results presented are not misled.
Keywords: artificial intelligence; criminal proceedings; abolitionism; justificationism; knowledge
engineer.

Introdução
O uso da inteligência artificial vem sendo cada vez mais empregado no contexto processual
penal, seja para servir de instrumento de produção e valoração probatórias, seja para auxiliar
em pesquisa jurisprudencial, avançando, ainda, para ajudar na elaboração de petições, filtrar
recursos em sede de juízos de admissibilidade2e promover pesquisas preditivas das decisões
a serem tomadas pela Polícia, pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário3.
Essa ferramenta, no entanto, ainda não alcançou a capacidade cognitiva e intelectiva que
dispense a interferência humana. Ela é considerada, ainda, uma “inteligência artificial fraca”,
nos termos da consagrada divisão criada pelo filósofo John Searle4, em 1980, adotada pela
doutrina em geral5. Para funcionar, portanto, a inteligência artificial, exige a contribuição de,

2
O programa “Victor”, da Suprema Corte Brasileira, vem sendo adotado desde 2018 nesse senti-
do.

3
Sobre cada um destes aspectos vide NIEVA FENOLL, Jordi. Inteligencia artificial y proceso judi-
cial. Madrid: Marcial Pons, 2018, passim.
4
SEARLE, John R. Minds, Brains and Programs, In: The Behavioral and Brain Sciences, 3, Cam-
bridge: Cambridge University Press, 1980, pp. 417-457, p. 417:“A inteligência artificial chamada de “fraca”,
explica Searle, até tem ferramentas potentes que permitem “formular e testar hipóteses de forma mais rigorosa
e precisa”, mas, ainda depende de um ser humano que insira os dados capazes dela produzir raciocínios algo-
rítmicos. O que se tem desenvolvido no mercado em termos de inteligência artificial ainda não é considerado
uma “inteligência forte”, ou seja, uma máquina que se possa dizer que possui algo aproximado à consciência
e que tenha autonomia, capaz de emitir opiniões independentes da interferência humana.” Tradução livre.
5
V.g.: LUGER, George F. Inteligência Artificial. 6ª ed., tradução de Daniel Vieira, São Paulo: Pear-
son Education do Brasil, 2013eRUSSELL, Stuart; NORVIG, Peter. Inteligência Artificial, 3ª ed., tradução

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Os diferentes fundamentos teóricos penais e a confiabilidade nos programas de inteligência artificial
Rodrigo Régnier Chemim Guimarães

pelo menos, dois profissionais de diferentes áreas do conhecimento humano: o engenheiro do


conhecimento6, isto é, aquele profissional encarregado de promover a programação heurística
que instruirá a máquina e a fará “inteligente”, e um perito especialista da área em que se
pretende empregar a tecnologia.
É nesse ponto que o emprego da inteligência artificial no âmbito processual penal
pode se complicar, notadamente quando se pensa em sua utilização para contribuir na
elaboração de petições, decisões e mesmo na pesquisa de jurimetria, com pretensões
preditivas7. Considerando os diversos embasamentos teóricos que existem convivendo
contemporaneamente na doutrina de processo penal algumas questões merecem ser discutidas
nessa aproximação transdisciplinar entre os dois profissionais envolvidos. Como estabelecer
uma confiança nos resultados obtidos com o uso da inteligência artificial em programas
voltados ao processo penal? Que cuidados se deve ter para que a elaboração de programas de
inteligência artificial no processo penal não construa novas pretensões de verdades absolutas8
e não induza em erro quem utiliza a máquina e interpreta seus dados? Essas questões estão em
pauta no presente artigo, que se vale de uma metodologia exploratória e integradora9. Assim,
pretende-se promover o levantamento bibliográfico das diferentes e, por vezes, antagônicas
variáveis teóricas que convivem na compreensão do processo penal contemporâneo, e avaliar
os possíveis impactos na interseção entre esses discursos e a construção dos algoritmos na
inteligência artificial e seu posterior aproveitamento pelos atores processuais.

1. A Babel doutrinária em direito penal, processo penal e


criminologia.
A doutrina contemporânea de processo penal é significativamente plural. Há divergências
profundas entre grupos de autores na abordagem de diversos fundamentos do processo penal.
E o detalhe é que não se trata apenas de discutir sistemas processuais penais, isto é, se há uma
preferência ou predominância em torno do sistema acusatório ou inquisitório, como muitos

de Regina Célia Simille, Rio de Janeiro: Campus Elsevier, 2013, p. 1173.


6
FERNÁNDEZ, Gregorio. Panoramas de los sistemas expertos. In: CUENA, José (org.) Inteligen-
cia Artificial: sistemas expertos. Madrid: Alianza Editorial, 1986, pp. 23-52, p. 38.
7
Sobre o tema da dificuldade de uso especificamente na questão preditiva, vide: GUIMARÃES,
Rodrigo Régnier Chemim. A Inteligência Artificial e a disputa por diferentes caminhos em sua utilização
preditiva no processo penal. In: Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 5, n. 3, p.
1555-1588, set./dez. 2019. https://doi.org/10.22197/rbdpp.v5i3.260
8
Essa é, por exemplo, uma preocupação bastante destacada em SADIN, Eric. Intelligence
Artificielleoul’enjeu du siècle (L’): Anatomie d’un antihumanisme radical. Paris: L’Echappée, 2018, p. 81.
9
A metodologia integradora é proposta por RUSSELL, Stuart. DEWEY, Daniel, TEGMARK, Max.
Research Priorities for Robust and Beneficial Artificial Intelligence. In: AI Magazine, nº 36:4, 2015, pp.
105-114.Tradução livre: “Esta pesquisa é, por necessidade, interdisciplinar, porque envolve a sociedade e a
IA; varia de economia, direito e filosofia a segurança de computadores, métodos formais e, é claro, vários
ramos da própria IA. O foco está em entregar IA que sejabenéfica para a sociedade e robusta no sentido de
que os benefícios sejam garantidos: nossos sistemas de IA devem fazer o que queremos que eles façam”.
No mesmosentido: PEIXOTO, Fabiano Hartmann. MARTINS DA SILVA, Roberta Zumblick. Inteligência
Artificial e Direito. Volume 1. Curitiba: Alteridade Editora, 2019, p. 134.

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Os diferentes fundamentos teóricos penais e a confiabilidade nos programas de inteligência artificial
Rodrigo Régnier Chemim Guimarães

costumam promover. Há, para além da análise sistêmica, um problema ainda maior, dada a
natural relação de mútua complementaridade entre o direito penal e o processo penal, somado
à penetração dos discursos de criminologia no contexto dogmático. Ainda que a dogmática
esteja no mundo do dever ser e a criminologia mais voltada para o mundo do ser, os elos e
as intersecções de análise teórica são visíveis em diversos momentos. Em paralelo, ainda há
autores que partem de um paradigma filosófico num determinado assunto e adotam outro
paradigma, conflitante com o primeiro, no mesmo ou num segundo tema, sem se dar conta de
que estão mesclando visões de mundo não compatíveis entre si. Por exemplo, não raras vezes
se vê autores que admitem que o processo penal trabalharia com a ideia de “busca da verdade
real”, que é fundada no paradigma filosófico aristotélico, de verdade por correspondência e, ao
mesmo tempo, consideram que cada juiz tem a sua verdade, numa má-recepção hermenêutica
em torno da ideia de livre convencimento do juiz, o que é organizado pelo prisma da filosofia
da consciência cartesiana10.
O detalhe é os “especialistas peritos”, que dialogarão com os engenheiros do
conhecimento na construção dos algoritmos que formatarão a inteligência artificial, podem
estar contaminados pela incapacidade de compreensão do discurso teórico que transmitirão,
ou mesclar esses fundamentos filosóficos, dada a enorme disparidade entre eles.

2. Doutrina tradicional versus doutrina moderna e suas


variações.
A pretensão de promover uma classificação de autores em processo penal é arriscada, já
que não há uniformidade capaz de compartimentar determinados doutrinadores numa categoria
isolada. Muitos autores, inclusive, notadamente aqueles que escrevem manuais, sequer deixam
clara sua opção teórica. Ademais, os rótulos, em geral, tendem a ser reducionistas das naturais
complexidades que o pensamento de um autor possa externalizar. Mesmo assim, analisando
a doutrina de processo penal contemporânea, é possível, para fins didáticos, diferenciar dois

10
V.g.Jorge de Figueiredo Dias, in verbis: Dado o dever de investigação judicial autónoma da ver-
dade, logo se compreende que não impenda nunca sobre as partes, em processo penal, qualquer ónus de
afirmar, contradizer e impugnar. (…) Por isso se diz que em processo penal está em causa, não a “verdade
formal”, mas a “verdade material”, que há-de ser tomada em duplo sentido: no sentido de uma verdade
subtraída à influência que, através do seu comportamento processual, a acusação e a defesa queiram exer-
cer sobre ela; mas também no sentido de uma verdade que, não sendo “absoluta” ou “ontológica”, há-de
ser antes de tudo uma verdade judicial, prática e, sobretudo, não uma verdade obtida a todo preço mas
processualmente válida. (…) E não pode falar-se de verdade material, note-se, mesmo que na realidade das
coisas, A tenha morto B (…) De resto, o próprio pensamento filosófico mais recente veio mostrar que toda
a verdade autêntica passa pela liberdade da pessoa, pelo que a sua obtenção à custa da dignidade do homem
é impensável” (DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Processual Penal. Primeiro Volume, Coimbra: Coimbra
editora, 1974, pp. 193-194). Sobre o tema, de forma mais detalhada, vide: GUIMARÃES, Rodrigo Régnier
Chemim. Atividade Probatória Complementar do Juiz como Ampliação da Efetividade do Contraditório
e da Ampla Defesa no Novo Processo Penal Brasileiro. Tese, Curitiba: Universidade Federal do Para-
ná, 2017, disponível em https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/41025/R%20-%20T%20-%20
RODRIGO%20REGNIER%20CHEMIM%20GUIMARAES.pdf?sequence=2&isAllowed=y, acesso em 06
de julho de 2019, pp. 18 e ss.

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Os diferentes fundamentos teóricos penais e a confiabilidade nos programas de inteligência artificial
Rodrigo Régnier Chemim Guimarães

grandes e divergentes grupos de doutrinadores, aqui classificados em autores de doutrina


“mais tradicional” e autores de doutrina “mais moderna”11.
Considera-se como doutrina “mais moderna” aquele grupo de autores12 que, uns mais,
outros menos, costumam realizar leituras transdisciplinares, invocando temas de outras áreas
do conhecimento humano, a exemplo da psicologia, da psicanálise, da história, da sociologia,
da filosofia, da economia e até mesmo da linguagem computacional, na compreensão do
processo penal. Já a doutrina “mais tradicional”, tanto brasileira13, quanto estrangeira14, não
costuma fazer essas pontes15. De resto, não há uniformidade de pensamento entre autores

11
Vale anotar que a denominação “doutrina moderna” não está sendo empregada em seu sentido
de época, isto é, como equivalente ao conceito de modernidade que se vincula a um período da história
influenciado pelas ideias iluministas. O termo é utilizado apenas para ser antagônico à ideia de tradição.
12
Por exemplo: FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. Tradução de
Ana Paula Zomer e outros, São Paulo: RT, 2002; LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 14ª ed.,
São Paulo: Saraiva, 2017; PACELLI, Eugenio. Curso de Processo Penal, 17ª ed., Sâo Paulo: Atlas, 2013;
RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 22ª ed., São Paulo: Atlas, 2014; ROSA, Alexandre Morais da.
Guia do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogos. 4ª ed., Florianópolis: Empório do Direito, 2017;
CALABRICH, Bruno; FISCHER, Douglas, PELELLA, Eduardo (Org.). Garantismo Penal Integral. 3ª
ed., São Paulo: Atlas, 2015; KHALED JR., Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da
ambição inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013; PLETSCH, Natalie Ribeiro. Formação da Prova no Jogo
Processual Penal: o atuar dos sujeitos e a construção da sentença. São Paulo: IBCCRIM, 2007.
13
Por exemplo: FREDERICO MARQUES, José. Elementos de Direito Processual Penal. Volume
II. 2ª edição, revista e atualizada por Eduardo Reale Ferrari, Campinas: Millenium, 2000; TOURINHO
FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, vol. 1, 25ª ed., São Paulo: Saraiva, 2003; MIRABETE, Julio
Fabbrini. Processo Penal. São Paulo: Atlas, 2002; NORONHA, Magalhães. Curso de Direito Processual
Penal, 28ª ed., São Paulo: Saraiva, 2002; MUCCIO, Hidejalma. Curso de Processo Penal, vol. 1, Bauru:
Edipro, 2000; CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal, 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 2000; BARROS,
Francisco Dirceu. Direito Processual Penal, vol I, Rio de Janeiro: Campos/Elsevier, 2005; NUCCI, Gui-
lherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal, 5ª ed., São Paulo: RT, 2008; ISHIDA,
Valter Kenji. Processo Penal, São Paulo: Atlas, 2009; DEMERCIAN, Pedro Henrique e MALULY, Jorge
Assaf. Curso de Processo Penal, 3ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2005; MOSSIN, Heráclito Antonio. Curso
de Processo Penal, vol. 1, 2ª ed., São Paulo: Atlas, 1998.
14
Por exemplo: BETTIOL, Giuseppe. Istituzionididiritto e procedurapenale, Padova: CEDAN,
1966; FLORIAN, Eugenio. De laspruebaspenales. Vol. 1. Bogotá: Temis, 1990; PISAPIA, Gian Domenico.
Compendio diProceduraPenale, 3ª ed., Padova: CEDAN, 1982; LEONE, Giovanni. Tratado de Derecho-
Procesal Penal, Tomo I, tradução para o espanhol de Santiago Sentis Melendo, Buenos Aires: EJEA, 1989;
BELING, Ernst. DerechoProcesal Penal, Buenos Aires: DIN Editora, 2000; SCHÜNEMANN, Bernd.
Obras. Tomo II. Santa Fe: Rubinzal-Culzoni, 2009; GÖSSEL, Karl Heinz. El DerechoProcesal Penal enel
Estado de Derecho, Tomo I, Santa Fe: Rubinzal-Culzoni, 2007.; FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito
Processual Penal, Primeiro Volume, Coimbra: Coimbra, 1974; MOREIRA DOS SANTOS, Gil. O Direito
Processual Penal, Porto: Asa Edições, 2002.
15
A divisão que se propõe não é uma separação entre bons e maus autores, mas apenas entre autores
com diferentes visões de como devem abordar o processo penal. Ainda que na maioria das vezes a doutrina
moderna seja mais adequada à compreensão da complexidade dos temas fundantes do processo penal, por
vezes a invocação de outros campos do conhecimento humano é o fator que atrapalha e, noutras ocasiões,
a doutrina mais tradicional será preferível àquela moderna, pois, mesmo não promovendo leituras transdis-

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Os diferentes fundamentos teóricos penais e a confiabilidade nos programas de inteligência artificial
Rodrigo Régnier Chemim Guimarães

“mais modernos”, sendo suas premissas divergentes, podendo ser subdivididos em autores
que pretendem a abolição do direito penal e autores que o justificam.
Os abolicionistas, por sua vez, podem ser agrupados, num primeiro momento, em radicais
(ou críticos)16, com forte base marxista e pregando não apenas o abolicionismo do direito
penal, mas tendo pretensões revolucionárias, como deixa claro Thomas Mathiesen17. Já outros
abolicionistas são mais moderados e propõem a conciliação, o ajuste, a terapia restauradora,
como alternativa à punição18.Como dito acima, ainda que se possam compreender essas
análises criminológicas como descoladas da dogmática, elas influenciam na exegese das
regras vigentes, orientando a edição de leis e a análise de casos concretos.
Os autores justificacionistas, por seu turno, também não são uniformes. A corrente mais
difundida no Brasil, por exemplo, é a do garantismo penal de Luigi Ferrajoli19, que compreende
o processo penal apenas como garantia ao réu contra o Estado. Ao lado do garantismo é
possível identificar a teoria agnóstica da pena, de Zaffaroni, com a compreensão de que o
direito penal serve apenas para frear o exercício do poder20. E há autores funcionalistas, a

ciplinares, apresenta com maior profundidade a análise de determinados temas em comparação ao que faz
a doutrina mais moderna.
16
Por exemplo:MATHIESEN, Thomas. Preface – The Politics of Abolition Revisited 2014. In: The
Politics of Abolition Revisited. London and New York: Routledge, 2015; BARATTA, Alessandro. Crimino-
logia Crítica e Crítica do Direito Penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos, 3ª ed., Rio de Janeiro: Re-
van: Instituto Carioca de Criminologia, 2002;MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e Fábrica:
as origens do sistema penitenciário (séculos XVI – XIX). 2º ed., Coleção Pensamento Criminológico, Vol.
11. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2010; SANTOS, Juarez Cirino dos. A Crimino-
logia Radical. 3ª ed., Curitiba: ICPC, Lumen Iuris, 2008; BATISTA, Vera Malaguiti. Introdução Crítica
à Criminologia Brasileira. 2ª ed., Rio de Janeiro: Revan, 2012; BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao
Direito Penal Brasileiro. 9ª ed., Rio de Janeiro: Revan, 2004.
17
Nesse sentido, a criação da KROM (associação norueguesa para a reforma penal), em 1968, é con-
siderada decisiva por Thomas Mathiesen, tendo ele deixado registrada “sua habilidade, como organização,
para recrutar novos ativistas”. Mathiesen anota que, desde a fundação da KROM, “havia duas principais
fontes de recrutamento (para além dos prisioneiros): para uma coisa, profissionais que trabalharam à
esquerda do sistema – especialmente professores e assistentes sociais (…) e, para outra, estudantes de ca-
beça aberta e alerta – e nos anos recentes – 2014 – especialmente estudantes de Direito” (MATHIESEN,
Thomas. The Politics of Abolition Revisited. London and New York: Routledge, 2015, p. 16. Tradução
livre).
18
Por exemplo: HOULSMAN, Louk. BERNAT DE CELIS, Jacqueline. Penas Perdidas. O Sistema
Penal em Questão. Tradução de Maria Lúcia Karam, Niterói, RJ: Luam Editora, 1993; CHRISTIE, Nils. A
Indústria do Controle do Crime: a caminho dos gulags em estilo ocidental. Tradução de Luis Leiria, Rio de
Janeiro: Forense, 1998; BRAITHWAITE, John. Crime, Shame and Reintegration. New York: Cambridge
University Press, 1989; ACHUTTI, Daniel. Justiça Restaurativa e Abolicionismo Penal: contribuições
para um novo modelo de administração de conflitos no Brasil. 2ª ed., Sâo Paulo: Saraiva, 2016; GIAM-
BERARDINO, André. Crítica da pena e justiça restaurativa: a censura além da punição. Florianópolis:
Empório do Direito, 2015.
19
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer,
Fauzi Hassan Chuoukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
20
ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em Busca das Penas Perdidas: a perda de legitimidade do sistema
penal. Tradução de Vânia Romano Pedrosa e de Amir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991.

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Os diferentes fundamentos teóricos penais e a confiabilidade nos programas de inteligência artificial
Rodrigo Régnier Chemim Guimarães

exemplo de Jakobs e seu funcionalismo autopoiético21, e Roxin, com um funcionalismo com


abertura política22.Enfim, sem pretensões de esgotar os diversos fundamentos teóricos que
hoje convivem – até porque o espaço aqui não permite – um ponto é certo: há evidente
conflitividade entre eles, gerando, assim, diferentes resultados de compreensão teórica entre
os diferentes grupos de doutrinadores.

3. Critérios de confiabilidade no resultado do diálogo


entre o perito especialista e o engenheiro do
conhecimento.
Do que se viu, então, pela disparidade de entendimentos no direito penal e processual
penal, chama a atenção a dificuldade que o perito especialista terá quando for dialogar com
o engenheiro do conhecimento para elaboração da inteligência artificial. A depender de qual
premissa teórica se adote, a programação de algoritmos da máquina será uma ou outra. E o
resultado, igualmente, será díspar. Esse o maior problema.
Dado o grau de confiança que se usou depositar em análises de dados operadas pelas
máquinas e, em maior grau, por aquelas dotadas de inteligência artificial, é muito provável que
se comece a produzir “novas verdades” a respeito dos resultados fornecidos. Assim, as petições,
decisões, ou análises preditivas que orientarão os trabalhos da polícia, Ministério Público e
Judiciário, poderão conter elementos que a máquina esteja indicando como adequados, não
porque, de fato, o sejam, à luz da Constituição, mas porque o perito especialista que auxiliou o
engenheiro do conhecimento, tinha esta ou aquela compreensão teórica. Assim, um especialista
de leitura mais “tradicional” do processo penal, ignorará diversas compreensões que outros
especialistas de leitura mais “moderna” poderiam trazer para alimentar os algoritmos. E estes,
por sua vez, a depender do embasamento, também podem divergir quanto ao que buscam
obter de resultado com o uso da inteligência artificial.
Para minimizar esse problema e poder gerar confiança no usuário em relação ao resultado
que a máquina irá produzir, é, portanto, fundamental estabelecer uma premissa ética: que se
deixe registrado o percurso de conversas e tratativas realizadas entre o perito especialista e
o engenheiro do conhecimento, expressando qual a base teórica utilizada para construção
dos algoritmos. Assim, “a posteriori”, todos os atores processuais que vierem a utilizar ou
se deparar com quem utilizou esses programas dotados de inteligência artificial, terão os
elementos capazes de, eventualmente, confrontar a lisura dos resultados.

Considerações finais.
Para estabelecer confiabilidade nos resultados obtidos no emprego da inteligência
artificial na elaboração de petições, decisões e mesmo na pesquisa de jurimetria, com

21
JACOBS, Günter. La imputación objetiva em derecho penal. Tradução. Manuel CancioMeliá.
Madrid: civitas, 1999.
22
ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. t. I: Fundamentos. La estructura de lateoríadel deli-
to. 2ª ed. Tradução para o espanhol de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Diaz y Garcia Conlledo y Javier
de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 2008.

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Os diferentes fundamentos teóricos penais e a confiabilidade nos programas de inteligência artificial
Rodrigo Régnier Chemim Guimarães

pretensões preditivas, é preciso levar em conta que há uma relação interdisciplinar entre
o engenheiro do conhecimento e o perito especialista na construção dos algoritmos que
formatarão os programas de inteligência artificial. É preciso, também, não desconsiderar que
há uma disparidade de fundamentos teóricos e de orientações político-criminais que norteiam
o estudo do processo penal, o que pode impactar de diferentes formas as orientações que serão
passadas pelo perito ao engenheiro do conhecimento na construção dos algoritmos. Assim,
se a base teórica do perito especialista em processo penal é “mais tradicional” a tendência é
solucionar problemas de modo diverso do que fará quem seguir a doutrina “mais moderna”. E
mesmo aqui, se a opção for pelo abolicionismo em relação ao direito penal, ele conduzirá os
algoritmos alinhados com essa premissa, produzindo um determinado resultado. Ao contrário,
se o perito concorda com a doutrina justificacionista, ele norteará a construção de algoritmos
noutro sentido e os resultados serão diferentes. A complexidade fica ainda maior quando
se leva em conta as disparidades no interior desses grupos teóricos. Isso implica em se ter
cuidado quando se transporta esse ecletismo para uma máquina de inteligência artificial, com
pretensões de produzir modelos de petição ou resultados de pesquisa que podem ser lidos
como novas verdades sobre o mundo.
Se hoje convivem diferentes modos de interpretar o processo penal, a solução deve se
orientar por uma ética interdisciplinar e deve se dar sob o prisma da transparência que deve
existir desde o início das conversas entre o perito especialista e o engenheiro do conhecimento.
É imprescindível que sejam anotadas as conversas entre eles, bem como sejam registradas
as premissas e documentados os fundamentos teóricos utilizados. Do contrário, os resultados
produzidos pela máquina, seja em forma de argumentação jurídica, seja em forma de predição,
poderão induzir em erro os usuários da tecnologia, bem como os intérpretes que receberam
o material para, sobre ele analisar, contestar ou decidir. O risco é que, não havendo esse
cuidado, não se tenha como avaliar o quanto se está sendo manipulado pela máquina. Por fim,
não observados os critérios acima, ao invés da máquina auxiliar na consolidação democrática
e constitucional do direito processual penal, poderá provocar efeito inverso, reforçando
pensamentos arcaicos, por um lado, ou contribuindo para manipular visões revolucionárias
de mundo, por outro, apenas para ficar com os dois extremos do perigo.

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de administração de conflitos no Brasil. 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 2016.
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dos Santos, 3ª ed., Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002.
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BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 9ª ed., Rio de Janeiro: Revan, 2004.
BATISTA, Vera Malaguiti. Introdução Crítica à Criminologia Brasileira. 2ª ed., Rio de Janeiro:
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Revan, 1991.

— 291 —
O “lado obscuro” da inteligência artificial?
A sociedade humana na era das novas tecnologias1

Felipe Barcarollo2

Resumo: A sociedade traz ao ser humano uma nova forma de pensar a relação humano-máquina, no
denominado paradigma da exponencialidade e da digitalidade. As transformações que as novas tecnologias
proporcionam ao ser humano são inúmeras, uma verdadeira disrupção na forma de pensar a sociedade. Em
um cenário de grandes e rápidas transformações, a regulação jurídica do tema da inteligência artificial (IA),
em nível global, através da lex digitalis, tem como missão reduzir a complexidade social, no contexto de um
novo paradigma regulatório, cujo tema é transcendental, considerando seu uso e aplicações na sociedade,
e deve ter como centro de debates e preocupações ético-jurídicas o ser humano (humanocentrismo). A
metodologia utilizada para o desenvolvimento do artigo é a sistêmico-construtivista, procurando-se
demonstrar, à luz da Teoria dos Sistemas Sociais de Niklas Luhmann e da teoria do constitucionalismo
social (fragmentos constitucionais) de Gunther Teubner, a importância de se estabelecerem cenários
regulatórios globais na elaboração de normas ou standards jurídicos da IA, a lex digitalis, no contexto de
um pluralismo jurídico policêntrico. A conclusão recomenda a necessidade da edição da lex digitalis, no
contexto da autorregulação, que se traduz na necessidade de uma regulação de cunho ético-jurídico da IA,

1
Resultado parcial da pesquisa desenvolvida pelos autores no âmbito dos seguintes projetos de
investigação: a) Edital 02/2017 – Pesquisador Gaúcho – PqG: Título do Projeto: “A autorregulação da des-
tinação final dos resíduos nanotecnológicos”, com apoio financeiro concedido pela Fundação de Amparo
à Pesquisa no Estado do Rio Grande do Sul – FAPERGS; b) Chamada CNPq n. 12/2017 - Bolsas de Pro-
dutividade em Pesquisa – PQ, projeto intitulado: “As nanotecnologias e suas aplicações no meio ambiente:
entre os riscos e a autorregulação”; c) Chamada MCTIC/CNPq Nº 28/2018 - Universal/Faixa C, projeto
intitulado: “Nanotecnologias e Direitos Humanos observados a partir dos riscos no panorama da comuni-
cação entre o Ambiente Regulatório e o Sistema da Ciência”; d) “Sistema do Direito, novas tecnologias,
globalização e o constitucionalismo contemporâneo: desafios e perspectivas”, Edital FAPERGS/CAPES
06/2018 – Programa de Internacionalização da Pós-Graduação no RS.
2
Doutor suma cum laude em Direito Público e Mestre em Direito Público pelo Programa de Pós-
Graduação em Direito (Mestrado e Doutorado) da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS.
Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET; Procurador Ge-
ral da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS; Advogado. E-mail: felipeb@unisinos.br

— 292 —
O “lado obscuro” da inteligência artificial? A sociedade humana na era das novas tecnologias
Felipe Barcarollo

que pode ser protagonizada por organização internacional que discipline o tema para aplicação no cenário
global.
Palavras-chave: Direito Digital; Inteligência Artificial; Novas Tecnologias; Lex Digitalis; Autorregulação.

Abstract: Society brings to human beings a new way of thinking about the human-machine relationship,
in the so-called paradigm of exponentiality and digitality. The transformations that new technologies provide
to human beings are innumerable, a real disruption in the way of thinking about society. In a scenario of
great and rapid changes, the legal regulation of the theme of artificial intelligence (AI), on a global level,
through lex digitalis, has the mission of reducing social complexity, in the context of a new regulatory
paradigm, whose theme is transcendental, considering its use and applications in society, and the human
being (humanocentrism) should be the center of debates and ethical-legal concerns. The methodology
used for the development of the article is systemic-constructivist, trying to demonstrate, in the light of
Niklas Luhmann’s Theory of Social Systems and Gunther Teubner’s Theory of Social Constitutionalism
(constitutional fragments), the importance of establishing regulatory scenarios in the elaboration of legal
norms or standards of AI, lex digitalis, in the context of a polycentric legal pluralism. The conclusion
recommends the need to edit lex digitalis, in the context of self-regulation, which translates into the need for
regulation of an ethical-legal nature of AI, which can be led by an international organization that disciplines
the theme for application in the global scenario.
Keywords: Digital Law; Artificial Intelligence; New Technologies; Lex Digitalis; Self-regulation.

1. INTRODUÇÃO
A inteligência artificial é um tema que desperta interesse global. Ela está presente no
cotidiano social, transformando a sociedade e desafiando o ser humano a trilhar caminhos
antes não imaginados. Corolário desta realidade tecnocientífica é a quebra do paradigma linear
da estrutura do pensamento fundante do ser humano para a exponencialidade da tecnologia,
que conduz a sociedade à disrupção na forma de pensar, de comunicar e de agir.
A fusão dos domínios físico, biológico e digital alteraram profundamente o modo do
homem ser e estar no mundo, e de se relacionar com o semelhante. Da cultura eminentemente
física de compreender o ser humano no mundo, migrou-se para o novo paradigma digital,
propiciado pela computação e suas diversas formas de aplicação.
O tema da inteligência artificial está na ordem do dia, um dos assuntos que mais circulam
no mundo da ciência e na ambiência de uma sociedade digital em constante disrupção
tecnológica. Trata-se de temática de interesse e abrangência globais, uma vez que se aplica no
dia-a-dia dos cidadãos, independentemente da sua localização geopolítica.
As aplicações tecnológicas utilizadas pelo ser humano contêm, em uma variada gama
de apresentações, a inteligência artificial. No livro Aplicando a Quarta Revolução Industrial,
Klaus Schwab3 acentua que as tecnologias incorporam valores aos produtos e à sociedade.
As novas tecnologias são disruptivas, pois rompem conceitos e modus operandi até então
existentes, trazendo processos altamente inovadores que impactam nas diversas estruturas da
sociedade.

3
SCHWAB, Klaus. Aplicando a quarta revolução industrial. São Paulo: Edipro, 2018.

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O “lado obscuro” da inteligência artificial? A sociedade humana na era das novas tecnologias
Felipe Barcarollo

A tecnologia, sob o manto da inteligência artificial, encontra-se presente nos mais


diversos segmentos sociais, podendo-se citar, como exemplos, a robótica, a internet das coisas,
machine learning, agentes virtuais, veículos autônomos ou smart cars, linguagem natural,
computer vision e redes neurais artificiais. Estas formas de apresentação da inteligência
artificial, evidentemente, não são exaustivas, considerando que esta forma de tecnologia
se encontra em franca expansão, sendo uma incógnita os limites deste crescimento. Bens,
produtos e aplicações computacionais, que até então eram um exercício de futurologia em
ficção científica, hoje são realidade e estão presentes no cotidiano da sociedade do século
XXI.
Grandes discussões são inauguradas nesse cenário, pois o ser humano, em que pese
ocupar a centralidade no cenário global, está sendo desafiado pelas máquinas (leia-se as
diversas formas de aplicação da tecnologia e sua ideologização no mundo, a exemplo de
computadores e sistemas avançados de informática) no mundo do trabalho e na execução de
tarefas, das mais simples às mais complexas, trazendo desafios à sociedade humana.

2. DESAFIOS DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL À SOCIEDADE HUMANA


Novos desafios e oportunidades, em tempos de disrupção digital da sociedade complexa, a
exemplo de algoritmos que aprendem de forma independente a partir de dados não estruturados
utilizando a computação digital, desafiam o ser humano para o terreno do desconhecido. Não
se sabe quais os limites para o crescimento desenfreado e do avanço da inteligência artificial
em situações da vida que eram de domínio exclusivo do humano.
Neste sentido, o Direito, em sua atual conjuntura, encontra-se com dificuldades para
dar respostas qualificadas e ágeis, porque a sociedade da tecnociência e a tecnologia, em seu
paradigma de exponencialidade, demandam respostas eficazes dos seus interlocutores.
A inteligência artificial, nesse sentido, resulta da simbiose entre ser humano (cérebro)
e a máquina (algoritmos), que, para Coleman, traduz-se da seguinte forma: “[…] symbiotic
partnership with synthetic intelligence, that intelligence will have to understand, respect, and
carry forward our humanity and our collective set of values”. 4Assim, essa simbiose entre
o ser humano e a máquina deve proporcionar à sociedade uma ambiência socioambiental
sustentável nesse novo paradigma da exponencialidade e da digitalidade trazido pelas
novas tecnologias, suportado pela matriz sistêmica de Luhmann, mediante a comunicação e
conexão entre os mais vastos campos do conhecimento humano (subsistemas), no contexto
da transdisciplinaridade.
Nesse novo paradigma tecnológico da sociedade digital, o conceito de fontes jurídicas
ou do Direito precisam ressignificar-se frente aos novos direitos advindos nesta era da
transformação digital. Esse arquétipo normativo contemporâneo, denominado pluralismo
jurídico policêntrico, rompe com a concepção tradicional das fontes do Direito. Para Antonio

4
COLEMAN, Flynn. A human algorithm: how artificial intelligence is redifining who we are. Ber-
keley: Counterpoint, 2019. p. 231.

— 294 —
O “lado obscuro” da inteligência artificial? A sociedade humana na era das novas tecnologias
Felipe Barcarollo

Enrique Pérez Luño5, é necessário desenhar o marco conceitual adequado para aplicação de
uma teoria das fontes de acordo com as mutações que têm afetado a sua significação e a sua
operatividade na sociedade.
A sustentabilidade social e ambiental do planeta, numa sociedade marcada pela
exponencialidade tecnológica e pela transformação digital, características da second machine
age, na esteira de Brynjolfsson e McAfee6 7, demanda uma ressignificação da sociedade da
tecnociência, mediante uma nova “gramática” social, aqui entendida como o conjunto de
regras ou standards ético-jurídicos necessários para a pacificação das relações sociais, numa
ambiência mundial marcada pela complexidade da sociedade humana, em um estágio de
profundas mutações na esfera da tecnociência.
Para que a inteligência humana possa conviver com a denominada inteligência artificial,
é vital que se estabeleçam conexões globais, através de regras ético-jurídicas globais, aqui
denominada lex digitalis8, com o necessário entendimento e consenso ético-jurídicos,
objetivando o entendimento e a paz sociais, evitando-se possíveis guerras cibernéticas em um
futuro próximo. A inteligência humana, neste sentido, vem a ser aprimorada por estas novas
“entidades” inteligentes, construídas, em sua origem, por um ser humano de carne e osso.
Na origem deste novo campo do conhecimento humano denominado de inteligência
artificial, o ser humano é o protagonista da história, devendo-se observar, doravante, que todo
o progresso da ciência deve servir para a sociedade e para a preservação da espécie humana,
observando-se, sempre, os pressupostos ético-humanísticos na autorregulação da IA, cujo
pressuposto maior é o humanocentrismo.
A autorregulação da IA consiste em sistematizar modelos regulatórios sem a intervenção
direta do Estado, mediante contribuições de várias áreas do conhecimento humano, no
intento de avançar e inovar nas estruturas das fontes do Direito, trazendo para o processo de
juridicização do fato social situações que nem sempre se encontram dentro da chancela imediata
do Poder Legislativo. A autorregulação da IA deve adotar princípios ético-humanísticos de
caráter universal, que geram implicações nos desdobramentos regulatórios.

3. PROPOSIÇÃO AUTORREGULATÓRIA DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL


Considerando que o tema da inteligência artificial possui transcendência teórica e
territorial, pois é de interesse global, os países, no contexto da globalização, devem buscar
um aperfeiçoamento sobre o tema, na busca de um entendimento global sobre a inteligência
artificial, através da instituição de standards ético-jurídicos, considerando a perspectiva atual

5
PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. El desbordamiento de las fuentes del derecho. Madrid: La Ley,
2011. p. 74.
6
BRYNJOLFSSON, Erik; MCAFEE, Andrew. The second machine age: work, progress, and pros-
perity in a time of brilliant technologies. New York: Norton, 2014.
7
BRYNJOLFSSON, Erik; MCAFEE, Andrew. Machine platform crowd: Harnessing our digital
future. New York: Norton, 2017.
8
TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São
Paulo: Saraiva, 2016.p. 197. A expressão lex digitalis foi cunhada por Gunther Teubner nesta obra.

— 295 —
O “lado obscuro” da inteligência artificial? A sociedade humana na era das novas tecnologias
Felipe Barcarollo

da perda da unidade gramatical social, conforme leciona Gunther Teubner9, e a corrosão


do conceito de soberania estatal, segundo Luigi Ferrajoli10, devendo-se (re)pensar a regra
constitucional para além do Estado, em novos espaços jurídicos da sociedade global.
É preciso repensar o Direito não em categorias como norma, sanção, estrutura e hierarquia,
mas como código, sistema, heteronomia. O mundo globalizado traduz-se num movimento de
energias sociais diferentes, perceptíveis na economia, na medicina, no Direito e na política,
por exemplo, alavancadas pelo rápido desenvolvimento científico e tecnológico e dos meios
de comunicação, através da Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC).
A instituição destas normas ou standards deve-se à necessária dimensão (autorregulatória)
ético-jurídica, considerando os seus impactos éticos, legais e sociais nesta nova ambiência
digital global, pois, conforme adverte Paula Boddington11, os impactos éticos tratam-se de
regras centrais e fundamentais na vida humana, e devem ser desenvolvidas em códigos de
ética para pesquisadores e sociedade que lidam diariamente com a IA.
A fim de evitar conflitos sociais cibernéticos, que possam comprometer os rumos da
sociedade, vislumbrando-se possibilidades futuras de guerra(s) cibernética(s) global(is),
defende-se a necessidade de ser estabelecida esta regulação de tema de interesse global,
comum e transcendental, e de interesse de toda a sociedade mundial.
A transformação digital experimentada pela sociedade humana exige a ressignificação
dos diversos subsistemas sociais que compõem a sociedade, em especial, o Sistema do
Direito. O positivismo jurídico e a dogmática jurídica, no atual estágio da sociedade humana,
revelam-se ultrapassados para atender de forma efetiva as expectativas humanas trazidas em
tempos de transformação digital e de novas tecnologias, porquanto as normas do sistema
jurídico não conseguem adaptar-se às constantes modificações provenientes dos diversos
sistemas parciais, a exemplo da política e da economia, nos níveis local e global.
Esta ressignificação do Sistema do Direito é potencializada pelo fenômeno da
globalização, próprio da sociedade complexa, pois traz interferências entre os diversos
subsistemas sociais (Direito, Economia e Política, por exemplo), que são ocasionadas pelo
fenômeno conceitual denominado por Niklas Luhmann12 de comunicação, que participa
simultaneamente de diversos círculos autopoieticos13, considerando que o ser humano opera
em diversos contextos sistêmicos, na denominada policontextualidade14 ou entrecruzamento
intersistêmico.

9
TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São
Paulo: Saraiva, 2016. p. 10.
10
FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 39-
41.
11
BODDINGTON, Paula. Towards a code of ethics for artificial intelligence. Oxford: Springer,
2017. p. xiv.
12
ROCHA, Leonel Severo. Notas sobre Niklas Luhmann. Revista de Estudos Jurídicos, São Leopol-
do, v. 40, n. 01, p. 51, jan./jun. 2007.
13
TEUBNER, Gunther. O direito como sistema autopoiético. Lisboa: Fundação Calouste Gul-
benkian, 1989.
14
TEUBNER, Gunther. Direito, sistema e policontexturalidade. Piracicaba: Editora Unimep, 2005.

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O “lado obscuro” da inteligência artificial? A sociedade humana na era das novas tecnologias
Felipe Barcarollo

O Direito, neste cenário, traz uma larga experiência de conflitos interssistêmicos. O


crescimento e a complexificação das relações sociais, seja na ciência, na economia, na
tecnologia, nas comunicações, carrega consigo a supressão das fronteiras geográficas ou
físicas. Vive-se hoje a mutação na esfera dos conflitos, pois estes migraram de conceito
territorial/físico para conflitos interssistêmicos/imateriais em um contexto de sociedade
global, rompendo-se com o paradigma local.
A constituição de uma lex digitalis deve levar em conta os impactos éticos, legais e
sociais (Ethical, Legal and Social Impacts - ELSI), conditio sine qua non para a construção
de uma relação social global ética e responsável. Em temáticas como a da inteligência
artificial, com fortes impactos na sociedade, as pesquisas devem levar em conta os impactos
na sociedade e a responsabilidade socioambiental, considerando que o fim último a ser
perseguido é um ambiente adequado e sadio de convívio humano em uma sociedade em que
reine o entendimento e a paz social.
Merece posição de destaque os impactos éticos, legais e sociais (ELSI) que devem ser
considerados quando se defende a instituição da lex digitalis, pois é imprescindível que se
as normas ou standards ético-jurídicos estejam corretamente calibrados para a proteção da
sociedade global, evitando-se, assim, conflitos na seara do cyber law, que possam desencadear
guerras cibernéticas.
A complexidade social exige da sociedade, e do sistema da ciência, a construção de novos
cenários abertos às novas realidades. Por se tratar a revolução digital de uma transformação
exponencial sob o ponto de vista tecnológico, adverte Satya Nadella que “Em cada canto deste
mundo, precisamos de um ambiente regulatório revitalizado que promova o uso confiável e
inovador da tecnologia. O maior problema reside na legislação antiquada, a qual se mostra
inadequada para lidar com os problemas contemporâneos”.15
Os rápidos avanços que a inteligência artificial, a robótica e os sistemas autônomos
trazem à sociedade desafiam o ser humano a buscar respostas éticas, legais e sociais para uma
série de questões. O grande ruído de comunicação, em tempos atuais, diz respeito à assimetria
entre o direito legislado e as rápidas transformações tecnológicas vivenciadas pela sociedade
global.
Atenta à necessidade de formular standards globais para a temática das novas tecnologias,
o European Group on Ethics (EGE)16 apresentou em recente documento um conjunto de 9
(nove) princípios básicos que constituem valores fundamentais para a definição de normas
ético-jurídicas globais, na perspectiva da ELSI, na temática das tecnologias. Os princípios
destacados foram os seguintes: 1) dignidade humana, 2) autonomia, 3) responsabilidade,
4) justiça, equidade e solidariedade, 5) democracia, 6) regras legais e prestação de contas,
7) segurança e integridade física e mental, 8) proteção de dados e privacidade e 9)
sustentabilidade.

15
SCHWAB, Klaus. Aplicando a quarta revolução industrial. São Paulo: Edipro, 2018. p. 19.
16
EUROPEAN COMMISSION. Statement on artificial intelligence, robotics and ´autonomous sys-
tems´. [S.l.], 2018. Disponível em: http://ec.europa.eu/research/ege/pdf/ege_ai_statement_2018.pdf. Aces-
so em: 25 nov. 2019.

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O “lado obscuro” da inteligência artificial? A sociedade humana na era das novas tecnologias
Felipe Barcarollo

Assim como é necessário que se estabeleçam, em nível global, regras atinentes aos
Direitos Humanos, comuns a todos os povos, na perspectiva de um direito comum global,
é igualmente vital que se estabeleçam normas ou standards jurídicos globais relativos às
novas tecnologias, conforme se verifica na declaração da EGE, da Comunidade Europeia, ao
estabelecer um conjunto de princípios básicos ético-legais a nortear a temática.
O tema “tecnologia” é comum e de interesse global, independentemente da cultura
ou costume do homem; reclama, portanto, uma vertebração normativa comum no contexto
do direito global, dado o seu caráter transcendente, humanístico e transconstitucional, cuja
temática revela-se um Direito Humano Fundamental, comum a todos os povos, eis que protege
o ser humano e o ambiente planetário, evitando-se possíveis guerras cibernéticas, capazes de
trazer sérios riscos e perigos à sociedade mundial.
A este respeito, o EGE adverte que uma das questões chave neste novo paradigma de
inteligência aprimorada por meios artificiais, para além do ser humano, é a necessidade
de discussão de uma série de questões que dela emergem, a exemplo da governança,
regulação, design, desenvolvimento, inspeção, monitoramento, teste e certificação. Todos
estes pressupostos são necessários para um redesign de nossa sociedade, bem como de suas
instituições e sistemas regulatórios, a fim de propiciar o bem-estar social e a segurança da
sociedade nestes cenários de novas tecnologias.

4. CONCLUSÃO
No contexto da sociedade digital, cada vez mais conectada, vislumbra-se a necessidade
de se estabelecer, para a pacificação social, normas ou standards globais, as chamadas lex
digitalis, a fim de possibilitar a fusão de normas atinentes às novas tecnologias (leia-se, aqui,
a inteligência artificial), de interesse comum e transcendental, em nível global, considerando
a perda da unidade da constituição, o que Gunther Teubner denomina de fragmentos
constitucionais17.
Lex digitalis vem a ser, portanto, normas gerais cuja temática é de interesse global (para
além das fronteiras territoriais do Estado Nacional, portanto), que surgem independentemente
do Estado, em espaços do domínio privado da sociedade. Prova desse novo momento da
sociedade global é o que Gunther Teubner denomina de global law without a state18, pois o
direito legislado é incapaz de responder aos desafios das disrupções tecnológicas em uma
sociedade digital marcada pela relação, cada vez mais simbiótica, entre o ser humano e a
máquina. A convergência humanístico-digital é uma realidade indissociável.
Este entendimento, sobre o desenvolvimento das regras jurídicas ocorrerem no contexto
da sociedade sem a presença do Estado, fenômeno potencializado pela globalização, pode ser
confirmado por Teubner, quando defende o surgimento de novas formas de direito espontâneo,

17
TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São
Paulo: Saraiva, 2016. p. 24.
18
TEUBNER, Gunther. Global Bukowina. Legal pluralism in the world society. In: TEUBNER,
Gunther. Global law without a state. Dartmouth: Brookfield, 1997. p. 3.

— 298 —
O “lado obscuro” da inteligência artificial? A sociedade humana na era das novas tecnologias
Felipe Barcarollo

que denomina de self-created law of global society19¸ emergindo o Direito em um ambiente de


policontexturalidade20 ou entrecruzamento sistêmico, considerando que o ser humano opera
em diversos contextos sistêmicos, nacionais e globais.
A instituição da lex digitalis, portanto, será de grande valia para a sociedade, sobretudo
pela necessidade de essas normas ou standards contemplarem conteúdo ético-jurídico,
considerando a necessidade de regular a matéria diante dos desafios contemporâneos nesta
era da transformação digital.
Cass R. Sunstein, em sua obra “República.com”, assinala a importância do panorama
regulatório em se tratando de comunicação e de novas tecnologias, como a internet. Adverte
que “La cuestión no reside en saber si tendremos una regulación, sino en el tipo de regulación
que tendremos.”21 Neste sentido, é importante tratar a regulação jurídica mesmo que esta não
seja uma “regulação governamental”, conforme adverte Sunstein22, na mesma linha defendida
por Gunther Teubner23.
A autorregulação para a temática das novas tecnologias é necessária face à exigência de
um conjunto normativo da IA, sobretudo pelo crescente aumento da complexidade social,
próprio da globalização, em uma sociedade global permeada por riscos e por transformações
sociais cada vez mais rápidas, cujos vetores principiológicos devem primar, sobretudo, pela
ética, transparência, privacidade, segurança, compliance e práticas de accountability, com
fundamento nas boas práticas nacionais e internacionais no estabelecimento de políticas e
governança da IA ética e responsável.

REFERÊNCIAS
BODDINGTON, Paula. Towards a code of ethics for artificial intelligence. Oxford: Springer, 2017.
BRYNJOLFSSON, Erik; MCAFEE, Andrew. Machine platform crowd: Harnessing our digital future.
New York: Norton, 2017.

19
TEUBNER, Gunther. The corporate codes of multinationals: company constitutions beyond cor-
porate governance and co-determination. In: RAINER, Nickel (Ed.). Conflict of laws and laws of conflict in
Europe and beyond: patterns of supranational and transnational juridification. Hart: Oxford, 2009. p. 1.
20
TEUBNER, Gunther. Direito, sistema e policontexturalidade. Piracicaba: Editora Unimep, 2005.
21
SUNSTEIN, Cass R. República.com. Internet, democracia y libertad. Barcelona: Paidós, 2003. p.
123.
22
SUNSTEIN, Cass R. República.com. Internet, democracia y libertad. Barcelona: Paidós, 2003. p.
132. Nesta página citada, adverte Sunstein: “Ésta es, por tanto, mi petición: cuando discutimos sobre los
posibles infoques de Internet o de otras nuevas tecnologias de la comunicación, nunca deberíamos sugerir
que un caminho implica regulación gubernamental y el otro no. Este tipo de afirmaciones provoca confu-
sión sobre lo que estamos haciendo y sobre nuestras verdaderas oposiciones. Y la confusión queda lejos
de ser algo inocuo. Sitúa en seria desvenjata a quienes se perguntan cómo mejorar el funcionamiento del
mercado de las comunicaciones. Un público democrático debe poder discutir las cuestiones de fondo de
forma clara y pragmática, sin referirse a los mitos interesados invocados por aquellos que se benefician,
ininterrumpidamente, del ejercicio de los poderes públicos en su nombre.”
23
TEUBNER, Gunther. Global Bukowina. Legal pluralism in the world society. In: TEUBNER,
Gunther. Global law without a state. Brookfield: Dartmouth, 1997.

— 299 —
O “lado obscuro” da inteligência artificial? A sociedade humana na era das novas tecnologias
Felipe Barcarollo

BRYNJOLFSSON, Erik; MCAFEE, Andrew. The second machine age: work, progress, and prosperity
in a time of brilliant technologies. New York: Norton, 2014.
COLEMAN, Flynn. A human algorithm: how artificial intelligence is redifining who we are. Berkeley:
Counterpoint, 2019.
EUROPEAN COMMISSION. Statement on artificial intelligence, robotics and ´autonomous systems´.
[S.l.], 2018. Disponível em: http://ec.europa.eu/research/ege/pdf/ege_ai_statement_2018.pdf.
Acesso em: 25 nov. 2019.
FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. El desbordamiento de las fuentes del derecho. Madrid: La Ley,
2011.
ROCHA, Leonel Severo. Notas sobre Niklas Luhmann. Revista de Estudos Jurídicos. São Leopoldo,
v. 40, n. 01, jan./jun. 2007.
SCHWAB, Klaus. Aplicando a quarta revolução industrial. São Paulo: Edipro, 2018.
TEUBNER, Gunther. Direito, sistema e policontexturalidade. Piracicaba: Editora Unimep, 2005.
TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São
Paulo: Saraiva, 2016.
TEUBNER, Gunther. Global Bukowina. Legal pluralism in the world society. In: TEUBNER, Gunther.
Global law without a state. Dartmouth: Brookfield, 1997.
TEUBNER, Gunther. O direito como sistema autopoiético. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
1989.
TEUBNER, Gunther. The corporate codes of multinationals: company constitutions beyond corporate
governance and co-determination. In: RAINER, Nickel (Ed.). Conflict of laws and laws of
conflict in Europe and beyond: patterns of supranational and transnational juridification. Hart:
Oxford, 2009.
SCHWAB, Klaus. Aplicando a quarta revolução industrial. São Paulo: Edipro, 2018.

— 300 —
Arbitragem e ordem pública econômica
Fábio da Silva Veiga1
João Otávio Bacchi Gutinieki2

Resumo: O presente trabalho visa a apresentar reflexões iniciais sobre a relação entre arbitragem
e Direito Econômico. Assim, se caracteriza como um estudo doutrinário, jurisprudencial e de caso que
analisa a aplicação do conceito da ordem pública econômica no ordenamento jurídico espanhol e brasileiro.
Após as análises, percebe-se que bom emprego do conceito ordem pública econômica não se circunscreve
apenas aos assuntos do direito econômico, mas, traz outras soluções no campo do direito privado, como os
deveres de diligência, lealdade e informação, expressões do dever de boa-fé contratual. Disto, vislumbra-se
a possibilidade de se conceber um conceito próprio de ordem pública econômica no Brasil, considerando
as normas da Constituição Econômica que se qualifiquem como normas de ordem pública no âmbito do
direito privado, em especial no direito arbitral.
Palavras-chave: Ordem pública econômica; Constituição Econômica; Arbitragem.

Abstract: This paper aims to present recent reflections on the correlation between arbitration and
Economic Law. Thus, you can use it as a doctrinal, jurisprudential and case study that analyses the application
of the concept of economic public order in the legal and Brazilian order. After the analysis, perceive that the
good use of the concept of economic public order is not restricted only to matters of economic law, but brings
other solutions in the area of private law, such as due diligence, loyalty and information duties, rules of duty of
contractual good faith. From this, the possibility of conceiving a concept of economic public order in Brazil is
envisaged, considering the rules of the Economic Constitution that qualify as rules of public order within the
scope of private law, especially in arbitration law.
Keywords: Economic public order; Economic Constitution; Arbitration.

1
Professor Doutor de Direito Empresarial da Universidade de Almería, Espanha. Doutor em Direi-
to Empresarial pela Universidade de Vigo – Prêmio Extraordinário de Tese de doutorado. Pesquisador da
CAPES no Exterior – Universidade de Alcalá, Madrid. Presidente do Instituto Iberoamericano de Estudos
Jurídicos – Iberojur. E-mail: fabiojus@ual.es
2
Mestrando em Direito Econômico e Financeiro na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Membro da Área Científica de Direito Comercial do Instituto Iberoamericano de Estudos Jurídicos. Pesquisador
e Monitor acadêmico na Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito SP). E-mail: jobglaw@gmail.com

— 301 —
Arbitragem e ordem pública econômica
Fábio da Silva Veiga - João Otávio Bacchi Gutinieki

1. Constituição Econômica espanhola


O artigo 38 da Constituição Espanhola (CE) de 1978, vigente, reconhece a liberdade
de empresa na estrutura da economia de mercado. Este artigo é conhecido como o substrato
da «Constituição Econômica», pois do seu preceito, a Constituição projeta no ordenamento
jurídico espanhol a proteção da liberdade de empresa e a defesa da sua produtividade,
garantida pelas autoridades públicas, de acordo com os requisitos da economia geral e,
quando apropriado, do planejamento3. A Constituição Econômica se refere, portanto,
ao conjunto de regras destinadas a proporcionar o marco fundamental para a estrutura e o
funcionamento da atividade econômica no território espanhol.
Segundo a doutrina e a jurisprudência Constitucional, deve-se interpretar o artigo 38
em sistematização com outros preceitos constitucionais, tal como aqueles de ordem privada
– direito de propriedade (art. 33,1, CE), pressuposto da liberdade contratual; direito de
associação (art. 22,1, CE), que está na base do direito de constituir sociedades; direito à
produção e criação artística, científica e técnica (art. 20,1), relacionado diretamente ao direito
de propriedade industrial e intelectual; direito à comunicação e recebimento de informação
por qualquer meio de difusão (art. 20, 1, CE), que plasmaria no direito de fazer publicidade –,
os referidos direitos estariam limitados pelo interesse geral – transcendidos nos dispositivos
do artigo 128 da Constituição Espanhola4.
Um dos siete padres da Constituição, HERRERO DE MIÑON, jurista e político espanhol
que participou na elaboração da Constituição Espanhola de 1978, explica que a: «Constitución
económica tiene, en efecto, una doble acepción. En sentido formal, es el conjunto de normas
constitucionales que consagran los principios y reglas por las que han de regirse la actividad
económica desarrollada por el Estado y los ciudadanos»5, e, essa primeira acepção, caracterizada
pela formalidade do texto vazio, contrasta com a acepção material da Constituição Econômica,
projetada de forma mais próxima à realidade do mercado econômico, e por isso, denominar-se-
ia «ordem econômica», que se entende como: «el conjunto de todas las reglas por las que se
rige la economia nacional y los procesos económicos, así como la totalidad de las instituciones
competentes para la administración, dirección y estructuración de la economía»6.
A jurisprudência do Tribunal espanhol tem tentado responder a natureza da Constituição
Econômica em múltiplas decisões. Qualificou-a de «direito fundamental» (SSTC 37/1981,
FJ. 2.a y 46/1983, FJ. 6.a, reiterada em 118/1983), assim como de «direito constitucional
com caráter de garantia institucional» (Sentencias 83/1984, FJ. 3, e 225/1993, FJ. 3, B), até o
ponto de declarar que a sua natureza «não está isenta de graves dificuldades de definição…

3
O artigo 38 da Constituição Espanhola dispõe: «Se reconoce la libertad de empresa en el marco de
la economía de mercado. Los poderes públicos garantizan y protegen su ejercicio y la defensa de la produc-
tividad, de acuerdo con las exigencias de la economía general y, en su caso, de la planificación».
4
Art. 128, 1: «Toda la riqueza del país en sus distintas formas y sea cual fuere su titularidad está
subordinada al interés general».
5
Palavras de um dos pais da Constituição Espanhola de 1978. Cfr. HERRERO DE MIÑON, Mi-
guel. “La constitución económica: desde la ambigüedad a la integración”, in Revista Española de Derecho
Constitucional, ano 19, n. 57, set.-dez., 1999, p.11-32.
6
Cfr. HERRERO DE MIÑON, Miguel. “La constitución económica: desde la ambigüedad a la
integración”, ob. cit., p 12. O autor, na definição do respectivo conceito, cita Lampert (1965).

— 302 —
Arbitragem e ordem pública econômica
Fábio da Silva Veiga - João Otávio Bacchi Gutinieki

com carácter abstrato e de geral aplicação» (STC 37/1987, FJ. 5.°), ao passo que não seria
necessário entrar «na análise do que há de entender-se por liberdade de empresa ou qual seria
o conteúdo essencial dessa liberdade» (STC 37/1981, FJ. 2.).
De outro lado, o Tribunal Constitucional espanhol em diferentes ocasiões lidou com a questão
do princípio da liberdade de empresa relacionado à liberdade das pessoas de criar empresas, de
atuar no mercado, de estabelecer objetivos próprios da empresa e de direcionar e planejar sua
atividade com atenção aos recursos e condições do próprio mercado (STC 225/1993, FJ. 3.B).
Nesse sentido, cabe deduzir que a «economia de mercado» é o marco onde se exerce a liberdade
de empresa. A Sentença do Tribunal Constitucional (STC 88/1986 de 1º de julho), reiterou a
doutrina anterior (Sentencia 71/1982), onde referia o «reconhecimento da economia de mercado
pela Constituição como quadro obrigatório ao exercício da liberdade de empresa e, o compromisso
de proteger o exercício desta por parte dos poderes públicos supõe a necessidade de uma atuação
especificamente direcionada a defender tais objetivos constitucionais». Compreende HERRERO
DE MIÑON7 que essa interpretação constitucional condiz ao seguinte: as intervenções públicas
na economia de mercado não devem ser dirigidas numa atuação do Estado no mercado (como
expõe o art. 128, 1 da CE), mas, entretanto, a uma atuação sobre o mercado, conforme o elemento
«planejamento» composto no art. 38 e 131 da Constituição Espanhola8.

2. Constituição Econômica brasileira


No ordenamento constitucional brasileiro vigente, a Ordem Econômica ocupa posição
fundamental. Seguindo preocupação inaugurada com a Constituição de 1934, há um capítulo
dedicado à atuação do Estado na organização dos mercados e sua presença na vida econômica
nacional. No artigo 170 e seguintes da Constituição Federal de 1988 estão presentes normas
de aplicação direta e normas programáticas sobre como se funda, e sobre como é regida a

7
Cfr. HERRERO DE MIÑON, Miguel. “La constitución económica: desde la ambigüedad a la
integración”, ob. cit., p. 19.
8
Um dos questionamentos que o retrocitado autor faz é com relação aos limites relativos ao interven-
cionismo ou liberalismo na Constituição espanhola, assim pergunta: Agora, se a Constituição não é econo-
micamente neutra entre intervencionismo e liberalismo, mas limita aquele em favor do último, até onde pode
chegar a inibição dos poderes públicos dentro do modelo constitucional? Começa a responder invocando os
princípios Reitores da Constituição (Título II, Cap. III) e as previsões de intervenção na economia (Título VII)
que dão conteúdo à classificação do Estado como «social» (art. 1.1 CE) e à cláusula do artigo 9.2 CE, assim
como a interpretação do próprio Tribunal Constitucional (SS 189/1987, 222/1992 e 55/1994). No entanto,
refere que a normatividade dos princípios Reitores são de índole diversa dos direitos e liberdades individuais,
mas ainda assim não deve ser subvalorizada. Explica que a inclusão dos princípios Reitores e as previsões de
intervenção na economia não foram elaboradas com acerto pelos constituintes (ele próprio foi um dos sete
“pais da constituição”), mas pondera que não se deve descartá-los de forma tão simplista a ponto de descartar
o pacto constitucional. Da mesma forma que a neutralidade econômica da Constituição não impediu que, a
partir dos direitos fundamentais nele reconhecidos, surgisse um modelo econômico que, ao projetar nesse
campo, o valor superior da liberdade consagra o mercado, parece lógico que os princípios e técnicas organi-
zativas que respondem à qualificação do «social» como expressão do valor superior da justiça (art. 1.1 CE)
também têm relevância na configuração do modelo mencionado. Cfr. HERRERO DE MIÑON, Miguel. “La
constitución económica: desde la ambigüedad a la integración”, ob. cit., p. 23.

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Arbitragem e ordem pública econômica
Fábio da Silva Veiga - João Otávio Bacchi Gutinieki

Ordem Econômica brasileira, bem como é fonte de normas de interpretação sobre questões
envolvendo a atuação estatal na economia e a própria atuação dos entes privados, baseada na
liberdade de iniciativa e na livre concorrência.
Centro do direito econômico brasileiro, as normas estabelecidas no capítulo constitucional
da Ordem Econômica dão origem a diversas regras jurídicas infraconstitucionais, como, por
exemplo, a Lei de Defesa da Concorrência (Lei 12.529/11), o regramento das sociedades
empresariais (no Código Civil e na Lei das S/A), e agora, mais recentemente, a uma Declaração
de Direitos de Liberdade Econômica (Lei (Lei 13.874/19).
Desta maneira, não se pode considerar que as normas da Ordem Econômica Constitucional
consistem em apenas comandos à atuação e ao planejamento estatal da atividade econômica,
ou tão somente as bases em que o constituinte desejava à economia nacional. As regras de
direito econômico, presentes no que é globalmente chamado de «Constituição Econômica»,
ou seja, o conjunto de regras constitucionais e infraconstitucionais (constituição econômica
material) diretamente ligadas à atuação do estado sobre o domínio econômico, têm, assim,
influência direta e fundamental no dia a dia da vida econômica e nas relações econômicas
privadas.
De outra banda, para além do conceito de «ordem econômica», tem-se um outro conceito
importante para o direito, o de «ordem pública». Podendo ser considerado como uma daquelas
expressões-chave, calcadas em fundamentos pouco conhecidos, mas que, por muitas vezes,
terminam por ser o fundamento de importantes decisões e, até mesmo, de medidas autoritárias,
como a da «necessária preservação da ordem pública».
Por ser a ordem pública um conceito bastante amplo e aberto às mais diversas
interpretações, ligada a questões dos mais diversos ramos do direito, seja este material ou
processual, buscaremos no presente trabalho compreender qual o sentido de uma «ordem
pública econômica»9. A ordem pública econômica foi invocada em decisões de cortes
espanholas envolvendo arbitragem sobre contratos de infraestrutura, provocando a curiosidade
ao estudo da questão, em especial para melhor compreender sobre quais fundamentos e com
qual objetivo esta foi aplicada na Espanha, mas também melhor compreender se é possível
falar no Brasil em uma ordem pública econômica.
Misturando o estudo de diferentes áreas do Direito, caso se prefira por visualiza-lo
assim, didaticamente fragmentado, o que se buscará é compreender melhor qual a importância
das normas de direito econômico como normas cogentes de direito material na resolução
de conflitos, seja por meio do poder estatal, representado pelo Judiciário, seja por meios
alternativos de resolução de conflitos, como é o caso da Arbitragem, envolvida diretamente
no caso que será objeto de estudos deste trabalho.
A proposta é que este artigo seja o início de uma pesquisa mais aprofundada sobre o
tema, instigando a discussão e recebendo importantes críticas e comentários dos colegas

9
FRANCISCO ZÚÑIGA defende a separação do termo «Constituição Econômica» de «ordem pú-
blica econômica», e o faz baseando-se num conjunto de argumentos de teóricos da economia e do direito.
Para um melhor aprofundamento, cfr. ZÚÑIGA URBINA, Francisco. Constitución económica y Estado
empresario. Revista de Derecho Público, (63), 2015, Págs. 339-374.

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Arbitragem e ordem pública econômica
Fábio da Silva Veiga - João Otávio Bacchi Gutinieki

acadêmicos, a fim de se estabelecer se, no ordenamento jurídico brasileiro há mesmo espaço


para se tratar de uma «ordem pública econômica» e qual é, ou seria, sua influência direta
sobre a resolução de conflitos.
Este é, portanto, o desafio que nos comprometemos a não resolver, mas sim a levar
ao debate acadêmico, reconhecendo e compreendendo a importância das normas de Direito
Econômico e da resolução de conflitos para desenvolvimento econômico e social.

2.1. Estratégias teórico-metodológicas
A seguir, destaca-se que a presente investigação se caracteriza como um estudo de caso,
que se consubstancia em «uma estratégia metodológica de construção de um objeto empírico
muito bem definido e específico, potencialmente revelador de aspectos e características de uma
problemática que não seriam facilmente acessados por intermédio de outras estratégias»10.
A análise do caso será composta por dois elementos específicos do caso que serão
especialmente aprofundados na pesquisa: as suas interseções entre direito econômico e
arbitragem, bem como a concepção de uma compreensão do caso segundo as normas do
direito brasileiro, buscando fazer uma verdadeira reconstituição do mesmo caso este fosse
julgado com base no direito brasileiro.

3. CASO REPOS I REPÀS, S.L. vs. BBVA (STSJ M 1286/2015)


O caso judicial inicia-se com o ajuizamento de um pedido de nulidade de um laudo
arbitral da Corte de Arbitragem da Câmara Oficial de Comércio e Industria de Madrid, datado
de 28 de janeiro de 2015, perante o Tribunal Superior de Justicia de Madrid11. O processo
é identificado pelo número STSJ M 1286/2015. As partes são «REPOS I REPÀS, S.L.»
(demandante) e o «Banco Bilbao Vizcaya Argentaria S.A» (BBVA ou demandado). REPOS I
REPÀS demanda a nulidade, após ter o laudo arbitral proferido em seu desfavor.
Os próximos parágrafos serão dedicados a apresentar e resumir o caso a ser estudado,
sendo que, isto será feito por maneira de paráfrase, a fim de que a apresentação não se torne
cansativa, repetitiva. Desta maneira, a fonte de todos os dados e informações apresentados
neste capítulo é a própria decisão do Tribunal Superior de Justiça de Madri12.

10
Cfr. MACHADO, Maíra Rocha. O estudo de caso na pesquisa em direito. In: MACHADO, Maíra
Rocha (Org.). Pesquisar empiricamente o direito. São Paulo: Rede de Estudos Empíricos em Direito, 2017.
Cap. 11. p. 361.
11
O referido órgão jurisdicional equivale aos tribunais de segunda estância no Brasil (TJ’s). Esclare-
ce-se que o caso em comento não foi o primeiro nesses moldes. Os contratos swap´s deram vazão a muitas
demandas dessa natureza nos tribunais espanhóis e, esses órgãos jurisdicionais têm seguido uma linha
doutrinária bastante similar nas suas decisões. Por isso, o leitor pode encontrar na jurisprudência espanhola
atual vários exemplos similares. Cfr. STJM5165/2019.
12
STSJ M 1286/2015. - Tribunal Superior de Justicia de Madrid. Sala de lo Civil y Penal. Ponente:
Jesus Maria Santos Vijande. Disponível em: http://www.poderjudicial.es (acesso em abril de 2020).

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Arbitragem e ordem pública econômica
Fábio da Silva Veiga - João Otávio Bacchi Gutinieki

A demanda arbitral envolve, segundo o relatório do processo judicial, um financiamento


(Contrato Marco de Operaciones Financiera), tomado por REPOS I REPÀS com a finalidade
de construção de uma usina de energia solar. O financiamento teria sua liquidação garantida
por um swap.
A legislação bancária espanhola, e também as regulamentações comunitárias, trazem
consigo diversas normas de proteção ao consumidor do mercado de crédito, como a obrigação
de informar, bem como de realizar testes com o cliente, a fim de perceber se este encontra-
se na categoria adequada ao produto, como se faz no Brasil com os investidores, tidos de
«conservadores» a «arrojados».
A lei espanhola de arbitragem13, diferentemente da brasileira, dispõe que a violação à
ordem pública é matéria para a anulação de laudo arbitral14. Com base nisso, REPOS I REPÀS
buscou amparo judicial após a derrota na arbitragem, realizada em Madri.
Para os demandantes, o laudo arbitral teria contrariado a ordem pública, mais
especificamente, a ordem pública econômica, uma vez que, no caso, se haveria violado o
princípio geral da boa-fé contratual quando o BBVA deixou de informar à REPOS I REPÀS
os riscos que corria ao fazer a contratação dos produtos financeiros, e o risco que corria de
prejuízos. O pedido inicial terminava requerendo que a sentença declarasse a plena nulidade do
laudo arbitral, deixando-o sem efeito e condenando a demandada ao pagamento de custas.
Na resposta oferecida pelo BBVA, este alegou que os demandantes solicitaram
empréstimo firmando-se um contrato de permuta financeira (swap), no qual ficou garantido
ao demandante que os juros não passariam determinados patamares.
No seguimento da contestação, para o demandado, o demandante alegaria prejuízo, sem
o comprovar, e vício de consentimento inexistente. Na visão do demandado, esta seria apenas
uma estratégia do demandante, com a finalidade de realizar uma verdadeira revisão do mérito
da arbitragem, que não lhe foi favorável.
Em sua sentença, no capítulo sobre os fundamentos de Direito, o juiz-relator do processo
sintetiza que os argumentos envolvidos na causa seriam dois.
O primeiro deles de que é contrário à ordem pública o laudo arbitral que viole direitos
e liberdades reconhecidos na Constituição espanhola, em especial, incluído a violação da
«ordem pública econômica», que se demonstraria, essencialmente pela infração das normas
da Lei de Mercado de Valores (Real Decreto 629/1993), as Diretivas e jurisprudência nacional
e comunitária, no qual se exige à parte demandada (Banco BBVA) na hora de comercializar
os seus produtos financeiros (swap), a obrigação de atuar com diligência, lealdade e

13
Ley de Arbitraje (Lei 60/2003, de 23 de dezembro). A Espanha sempre foi sensível aos requisitos
de harmonização do regime jurídico da arbitragem, em especial o comércio internacional, para favorecer a
divulgação de sua prática e promover a unidade de critérios em sua aplicação, na convicção de que a maior
uniformidade nas leis reguladoras da arbitragem devem promover sua maior eficácia como meio de resolu-
ção de disputas. Introdução da Exposição de Motivos da referida Lei».
14
Conforme o art. 41, 6, da referida lei: «El laudo sólo podrá ser anulado cuando la parte que soli-
cita la anulación alegue y pruebe: Que el laudo es contrario al orden público.

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Arbitragem e ordem pública econômica
Fábio da Silva Veiga - João Otávio Bacchi Gutinieki

informação15. Tais obrigações são de caráter ius cogens e integram o conceito da ordem
pública econômica.
O segundo argumento seria de que a demanda arbitral não teria «cumprido seus deveres»
e que o laudo arbitral não teria levado em consideração suas obrigações, o que supõe que
este tenha se colocado defronte a uma aplicação fundada em Direito, melhor dizendo, em
nossa opinião, que o laudo arbitral teria ido de encontro à ordem jurídica vigente, não
reconhecendo questões claras de direito aplicáveis ao caso. Isto porque, a decisão arbitral não
teria reconhecido que o BBVA deixou de informar o demandante de modo ativo e concreto
sobre os riscos envolvidos na operação financeira, nomeadamente, os riscos de liquidações
negativas e o custo de cancelamento do swap. A complexidade do produto financeiro, os
riscos envolvidos e a falta de cumprimento do dever de informar fariam com que a decisão
arbitral tivesse motivação arbitrária e infringisse a ordem pública econômica.
O voto do juiz-relator colaciona diversos precedentes sobre a limitação do poder judicial
em revisar laudos arbitrais16, determinando que estes se devem se fundamentar em questões
envolvendo a cláusula compromissória, as garantias do procedimento, entretanto, sem
estender-se ao direito material aplicável ao caso, sob pena de desnaturalizar a decisão arbitral
e a finalidade última da própria arbitragem, a pronta solução extrajudicial de um conflito17.
Entretanto, faz uma ressalva: a depender da matéria alegada como fundamento par a
anulação, das previstas no artigo 4118 da Lei Espanhola de Arbitragem, é tarefa difícil ao
julgador não adentrar no mérito da questão. Sendo o que parece acontecer no caso de alegação
de violação à ordem pública.
No decorrer do procedimento arbitral, ficou comprovado que o BBVA deixou de fazer
os testes de idoneidade e conveniência, exigidos por lei e devidamente reconhecidos como
essenciais na própria jurisprudência utilizada pelos árbitros na fundamentação de sua decisão.
Deixando também de expor todas as informações sobre o produto. Resta claro que o que os
demandantes queriam era apenas um financiamento a taxa fixa de juros, sem variações, e não
a celebração de um contrato de swap, complexo e que gerou o fundamento para a reclamação
arbitral.

15
Esses deveres estão inseridos dentro do dever geral de boa fé contratual. Para um estudo deta-
lhado no direito espanhol, recomendamos a melhor doutrina: DÍEZ-PICAZO Y PONCE DE LEÓN, Luis.
Fundamentos del Derecho Civil patrimonial, vol. I, Ed. 6ª ed. Navarra: Aranzadi, 2007; MOZOS Y DE
LOS MOZOS, José Luis de los. El principio de la buena fe. Sus aplicaciones prácticas en el Derecho Civil
Español, 1ª ed., Barcelona: Ed. Bosch, 1965.
16
Da própria exposição de motivos da Lei Espanhola de Arbitragem: «Respecto de la anulación, se
evita la expresión “recurso”, por resultar técnicamente incorrecta. Lo que se inicia con la acción de anula-
ción es un proceso de impugnación de la validez del laudo. Se sigue partiendo de la base de que los motivos
de anulación del laudo han de ser tasados y no han de permitir, como regla general, una revisión del fondo
de la decisión de los árbitros. El elenco de los motivos y su apreciabilidad de oficio o sólo a instancia de
parte se inspiran en la Ley Modelo. Se amplía el plazo para el ejercicio de la acción de anulación, lo que
no ha de perjudicar a la parte que haya obtenido pronunciamientos de condena a su favor, porque el laudo,
aun impugnado, tiene fuerza ejecutiva».
17
Auto 231/1994, de 18 de julho de 1994, do Tribunal Constitucional da Espanha.
18
Já citado na nota n. 14, retro.

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Arbitragem e ordem pública econômica
Fábio da Silva Veiga - João Otávio Bacchi Gutinieki

Há outras decisões envolvendo casos semelhantes de contratos de swap, e falta de


cumprimento dos deveres de informar e dos testes previstos na legislação bancária espanhola.
As decisões têm também por fundamento a vulneração da ordem pública econômica, e da
letra «f» do artigo 41 da Lei Espanhola de Arbitragem. Desta maneira, o julgado não é o
leading case sobre a questão.
Por estas razões, o Tribunal termina por compreender que há contradição entre os fatos
provados e a lógica da argumentação do laudo arbitral impugnado, o que leva à qualificação
deste como “contrários às exigências de motivação razoável e não arbitrária, que projeta o
direito fundamental à tutela efetiva do artigo 2419 da Constituição”.
Segundo o Tribunal, é contraditório em si mesmo a omissão pela entidade bancária nos
deveres que vinham impostos, e a mesma citar a jurisprudência que reconhece o valor do
incumprimento destes deveres, terminando por ser impossível conectar todos os polos de
maneira harmônica, sem perceber um raciocínio arbitrário.

4. ORDEM PÚBLICA E SUAS MANIFESTAÇÕES


No caso apresentado, a violação da ordem pública, em sua face de ordem pública
econômica, é o fundamento para a anulação do laudo arbitral. O respeito à ordem pública
exigiria uma solução diferente para o caso em questão. Apresenta-se, portanto, conceito de
ordem pública na concepção doutrinária brasileira.
A própria decisão que estudamos afirma ser a ordem pública um conceito jurídico
indeterminado, aberto a interpretações e entendimentos. Orlando Gomes20, citando Henri
de Page, ao tratar das das duas restrições à liberdade de contratar, designadamente, ordem
pública e bons costumes, indica que a «lei de ordem pública» é a que entende com os
interesses essenciais do Estado e da coletividade, ou então a lei que fixa, no campo do
Direito Privado, as bases jurídicas fundamentais da ordem econômica ou moral de certa
sociedade. O respeitado civilista continua sua explicação, designando que o conceito
de ordem pública irá, no final do dia, depender da interpretação do aplicador da lei, não
havendo diretrizes claras que guiar o julgador. A ordem pública dependerá assim, inclusive
do regime político dominante.

19
Artículo 24 – Protección judicial de los derechos
1. Todas las personas tienen derecho a obtener tutela efectiva de los jueces y tribunales en el ejercicio
de sus derechos e intereses legítimos, sin que, en ningún caso, pueda producirse indefensión.
2. Asimismo, todos tienen derecho al Juez ordinario predeterminado por la ley, a la defensa y a la
asistencia de letrado, a ser informados de la acusación formulada contra ellos, a un proceso público sin
dilaciones indebidas y con todas las garantías, a utilizar los medios de prueba pertinentes para su defensa,
a no declarar contra sí mismos, a no confesarse culpables y a la presunción de inocencia.
La ley regulará los casos en que, por razón de parentesco o de secreto profesional, no se estará obliga-
do a declarar sobre hechos presuntamente delictivos.
20
PAGE, Henri de apud GOMES, Orlando. Contratos. 26ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2008.
p. 28.

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Arbitragem e ordem pública econômica
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Buscando trazer um rol exemplificativo de leis de ordem pública, que iriam das leis que
protegem a liberdade individual à proibição do anatocismo, ainda Orlando Gomes21, traz
uma diferença entre lei coativa e lei de ordem pública. Lei coativa seria a qual não se poderia
derrogar por vontade por vontade particular, de modo que, nem toda lei coativa é lei de ordem
pública. Entretanto, toda lei de ordem pública se apresentaria como uma lei coativa. Isto se dá
porque a lei de ordem pública tem como marca tratar de interesses essenciais da sociedade, o
que nem sempre é prescrito em leis coativas.
As lições sobre ordem públicas de autoria do grande civilista, senão o maior do século
passado, nos traz conceito intimamente ligados ao direito material, visando atingir objetivos
relacionados mais diretamente com a autonomia da vontade e, por via de consequência, com
a liberdade de contratar22.
Para Carlos Alberto Carmona, ordem pública «trata-se assim de um conjunto de regras
e princípios, muitas vezes fugidios e nebulosos, que tendem a manter a singularidade das
instituições de determinado país e a proteger os sentimentos de justiça e moral de determinada
sociedade em determinada época»23.
Segundo Ricardo de Carvalho Aprigliano24, ordem pública é um conceito que,
apesar de universalmente estudado e aplicado, vide o próprio estudo de caso que dá esteio a
este trabalho, possui divisões e características próprias em cada ordenamento. Desta maneira,
não se poderia fazer uma reprodução automática do conceito em um ramo jurídico diferente
ou em uma ordem jurídica estrangeira. Há diferentes compreensões de ordem jurídica. O
ilustre processualista, no livro que é fruto da sua elogiada tese de doutoramento, divide ordem
pública em três manifestações25. A primeira delas, como já vimos no início deste capítulo, é
a de ordem pública material, que se manifesta por meio de legislações substantivas, ligadas
a questões de direito material, como o direito civil, direito do trabalho, direito penal, direito
econômico, e, em nossa opinião, tendo como tronco o direito constitucional.
A segunda manifestação de ordem pública estaria intimamente ligada ao direito
internacional, em especial ao direito internacional privado e à arbitragem, que serão melhor
observados no próximo capítulo, e cinge-se à ideia de ser ou não aplicável o ordenamento
jurídico de determinado país a uma relação jurídica internacional.
No terceiro ponto estaria a ordem pública processual, com objetivos voltados à função
jurisdicional do Estado, envolvendo questões que escapam à disponibilidade das partes
e cuja solução interessa para além das partes, mas ao próprio juízo26. Entre as matérias

21
Cfr. GOMES, Orlando. Contratos. 26ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2008. p. 29.
22
Cfr. APRIGLIANO, Ricardo de Carvalho. Ordem Pública e Processo. São Paulo: Editora Atlas,
2011. p. 8.
23
Cfr. CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo: um comentário à Lei 9.307/96. São
Paulo: Editora Atlas, 2011. p. 69.
24
Cfr. APRIGLIANO, Ricardo de Carvalho. Ordem Pública e Processo. São Paulo: Editora Atlas,
2011. P. 5.
25
Cfr. APRIGLIANO, Ricardo de Carvalho. Ordem Pública e Processo. Ob. cit.
26
CALAMANDREI, Piero apud APRIGLIANO, Ricardo de Carvalho. Ordem Pública e Processo.
São Paulo: Editora Atlas, 2011. p. 11.

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Arbitragem e ordem pública econômica
Fábio da Silva Veiga - João Otávio Bacchi Gutinieki

consideradas como de ordem pública no processo estariam: «pressupostos de constituição e de


desenvolvimento válido e regular do processo, condições da ação, requisitos de regularidade
do processo e do procedimento, inexistência dos pressupostos processuais, como a coisa
julgada, perempção e litispendência»27.
A consequência das normas de ordem pública processual seriam: a possibilidade de
exame de ofício, a ausência de preclusão da matéria e a possibilidade de seu exame em
qualquer tempo e grau de jurisdição28.
Interessante notar que, no caso que estudamos, a ordem pública se demonstra de maneira
substancial, envolvendo a questão do direito dos contratos, e o princípio da boa fé contratual,
tudo em uma faceta chamada de «ordem pública econômica». Isto comprova a afirmação de
Carvalho Aprigliano sobre as diferentes manifestações da ordem pública.
Posteriormente, o objetivo a é compreender qual o impacto da ordem pública sobre a
arbitragem, nos termos da Lei 9.307/96.

4.1. Ordem pública econômica


Para Sainz Moreno, doutrinador contemporâneo da constituinte espanhola, o conceito
de «ordem pública econômica» designa aqueles princípios organizadores da atividade
econômica de um país e que o seu ordenamento jurídico lhe atribui eficácia normativa. Em
sentido jurídico, esta noção não faz referência a todos os princípios que, de fato, configuram a
atividade econômica em um dado momento, nem tampouco se restringe a todos os princípios
reconhecidos expressamente pelas normas vigentes, mas designa o conjunto de regras mínimas
que se consideram essenciais para o desenvolvimento da vida econômica de um país num
determinado momento29. Trata-se, portanto, de um conceito jurídico indeterminado, aberto,
mas que, segundo o autor, seus múltiplos variantes tem uma unidade de sentido.
Em seguida, o conceito de ordem pública econômica, na interpretação do Tribunal
Superior de Justiça (TSJ) de Madri, no caso em análise, integra no seu conceito o princípio
geral de boa-fé nos contratos. Da Sentencia do TSJ de Madri M 4054, de 14 de abril de
2015, tem-se que a letra “f” do artigo 41 da Lei Espanhola de Arbitragem, que prevê como
causa de anulação da sentença a vulneração da ordem pública, opera-se com a violação
dos direitos previstos nos Capítulo segundo do Título primeiro da Constituição espanhola,
incluindo também o Direito da União Europeia30 31, por força dos tratados firmados pelo
Estado-Membro.

27
APRIGLIANO, Ricardo de Carvalho. Ordem Pública e Processo. São Paulo: Editora Atlas, 2011.
p. 12.
28
Ibidem. p.13.
29
Cfr. SAIZ MORENO, Fernando. Orden público económico y restricciones de la competencia, in:
Revista de Administración Pública, Sep 1, 1977, p. 599.
30
Cfr. TREMPS, Pablo Pérez. “Constitución Española y Unión Europea”, in: Revista Española de
Derecho Constitucional, no. 71, 2004, pp. 103-121.
31
Para uma visão ampla da influência dos recursos políticos da União Europeia no constituciona-
lismo dos países-membros, vide JOERGES, Christian. “¿Qué tiene de social-demócrata la constitución

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Arbitragem e ordem pública econômica
Fábio da Silva Veiga - João Otávio Bacchi Gutinieki

O respectivo Capítulo da Constituição espanhola é dedicado aos direitos e garantias


fundamentais. Nesse sentido, para o TSJ de Madri, a fonte das normas de ordem pública se
basearia nos direitos fundamentais, garantidos tanto pela Constituição quanto pelos Tratados,
Diretivas e Regulamentos comunitários europeus.
Além disso, considera aquele Colegiado, que há a indicação da ordem pública econômica
fundamentada nas regras básicas e princípios irrenunciáveis dos contratos. É a partir deste
ponto que se caracterizaria como normas de ordem pública as previsões da Lei de Mercado
de Capitais32 e da Diretiva 2004/39, que tratam especificamente de mercado financeiro, tendo
a última por objetivo harmonizar este mercado no âmbito da União Europeia.
A contextualização se faz necessária para compreender-se qual seria o real sentido de
ordem pública econômica quando se trata do ordenamento jurídico brasileiro. Claramente,
não se quer aqui fazer um estudo de direito comparado, em virtude da necessidade de um
método claro, a fim de que não se tire conclusões equivocadas. O que se pretende é, em linhas
breves, compreender qual seria o conceito de ordem pública econômica a se considerar no
direito brasileiro.
Como foi tratado nas linhas introdutórias, o constituinte brasileiro positivou na
Constituição de 1988 uma série de garantias e deveres referentes à vida econômica, o que se
deu, em especial, no capítulo referente à «Ordem Econômica e Financeira».
Considerando ser a ordem econômica, nas palavras de Alberto Venâncio Filho33,
um contínuo, caracterizado por dinamismo, fluidez e interpenetração de seus processos, é
necessário que o direito acompanhe a sua fluidez, com regras que visem a manutenção e a
intervenção nesta unidade complexa que é a economia. Desta maneira, a Ordem Econômica
Constitucional, fundada na livre iniciativa e na valorização do trabalho humano, traz uma
série de princípios interpretativos e de eficácia direta, garantindo, por exemplo, a livre
concorrência. Nas palavras de Eros Roberto Grau34, sendo a Constituição de 1988 uma
constituição dirigente, o capítulo da Ordem Econômica e Financeira traz um verdadeiro
enunciado normativo, regras que devem ser lidas como sendo de «dever-ser», não apenas
como «normas-objetivo».
Disto, tentando criar um esboço inicial sobre como se demonstraria à sociedade um
conceito brasileiro de ordem pública econômica, este dificilmente teria como esquivar-se
de levar em consideração as normas constitucionais referentes à organização da economia,
distando, portanto, da manifestação deste conceito na Espanha, onde é detida a questões de
autonomia da vontade.
As normas de ordem pública econômica teriam lugar, por exemplo, quando da
interpretação de contratos empresariais. Neste caso, necessário seria se considerar as normas

económica europea?”, in: Revista Española de Derecho Constitucional, nº. 73, 2005, p. 9-53.
32
Real Decreto Legislativo 4/2015, de 23 de octubre.
33
Cfr. VENÂNCIO FILHO, Alberto. A intervenção do Estado no domínio econômico: o direito pú-
blico econômico no Brasil. Ed. Fac-simile. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 1998. p. 54.
34
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 14ª ed. São Paulo: Malheiros
Editores, 2010. p. 66.

— 311 —
Arbitragem e ordem pública econômica
Fábio da Silva Veiga - João Otávio Bacchi Gutinieki

constitucionais como baliza interpretativa, favorecendo uma interpretação em favor da livre


concorrência e da liberdade de iniciativa.
É o que tem defendido Paula Andrea Forgioni35, na edição mais recente de seu livro
sobre contratos empresariais, tratando diretamente sobre a necessidade uma interpretação
pró-concorrencial dos contratos empresariais.
Igualmente há que se consideram toda a legislação que é fruto da regulamentação
infraconstitucional dos princípios constitucionais da Ordem Econômica. Neste caminho temos
a Lei de Defesa da Concorrência (Lei 12.529/11), a Lei Complementar nº 123, o próprio
Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) e, mais recentemente, a Lei de Liberdade
Econômica (Lei 13.874/19).
A ordem pública econômica brasileira, para além de contar com os princípios
constitucionais atinentes à economia e à intervenção do Estado nesta, também teria como
fonte as normas de ordem pública emanadas da legislação correlata, que integram o que os
estudiosos do direito econômico chamam de «constituição econômica material»36.

5. ARBITRAGEM E ORDEM PÚBLICA


Como temática do capítulo final, com a intenção de concatenar as ideias, buscaremos
tratar de maneira breve sobre questões envolvendo arbitragem e ordem pública, em especial
sobre os efeitos da violação da ordem pública em uma decisão arbitral.
Diferentemente do que é disposto no artigo 41 da Lei Espanhola de Arbitragem, mais
especificamente em sua letra “f”, a ordem pública não é causa direta de anulação de sentença
arbitral, ao menos, não se encontra diretamente exposta como na lei espanhola. Na Lei
Brasileira de Arbitragem, o controle da ordem pública se dá de maneira diferente segundo
a arbitragem ser nacional ou internacional, nos termos do artigo 34, parágrafo único, da Lei
9.307/96.
No caso da arbitragem nacional, nas palavras de Ricardo de Carvalho Aprigliano37,
a observância dos preceitos de ordem pública passaria por um duplo requisito: o primeiro
se encontraria nas definições das regras de direito aplicáveis à questão submetida ao juízo
arbitral, o segundo seria a observância da ordem pública em relação à sentença arbitral.

35
Cfr. FORGIONI, Paula A. Contratos empresariais: teoria geral e aplicação. 3ª ed. São Paulo: Re-
vista dos Tribunais, 2018. p. 271 a 293.
36
Cfr. AMORIM, João Pacheco de. A Constituição Económica Portuguesa Enquadramento dog-
mático e princípios fundamentais. Revista da FDUP, Coimbra, a.8, p.31-106, 2011. p. 39: «Enquanto se
entende a CE formal como o conjunto de princípios e normas de conteúdo económico que constam do texto
fundamental, já na CE material caberiam outras fontes formalmente inferiores à lei fundamental, pois aqui
o critério de identificação seria o do carácter essencial da norma ou princípio jus-económico em questão
para a definição do sistema económico».
37
Cfr. APRIGLIANO, Ricardo de Carvalho. Ordem Pública e Processo. São Paulo: Editora Atlas,
2011. p. 46-47.

— 312 —
Arbitragem e ordem pública econômica
Fábio da Silva Veiga - João Otávio Bacchi Gutinieki

Isto porque, o § 1º, do artigo 2º da referida lei dispõe que as partes poderão escolher
livremente a lei que serão aplicadas na arbitragem, desde que isto não viole os bons costumes
e a ordem pública.
Já no caso de a sede da arbitragem ser no estrangeiro, cabe a homologação da sentença
arbitral perante o Superior Tribunal de Justiça. É neste ponto que a ordem pública tem
importância. A violação à ordem pública é motivo para a não homologação de uma sentença
arbitral estrangeira.
Os requisitos do artigo 39, vale dizer, se, segundo a lei brasileira, o objeto do litígio
não é suscetível de ser resolvido por arbitragem ou se a decisão ofende a ordem pública
nacional, são considerados como garantia mínima e exigência máxima de requisitos a serem
verificados pelo Tribunal.
São garantia mínima pois o Superior Tribunal de Justiça deve verificar se nenhum deles
está presente, caso esteja, estamos diante de caso de não homologação. Exigência máxima,
pois estes são os únicos requisitos que podem ser exigidos, não estando presentes, é caso de
homologação38.
A ordem pública a que se refere o inciso II, do artigo 39 da Lei de Arbitragem é aquela
que o Brasil estabelece em suas relações internacionais, ou seja, um conjunto de valores e
preceitos que o país adota em suas relações internacionais39. Assim, eventual objeção não pode
se voltar à ordem pública interna, a ordem material do país, mas estar ligada à realidade do
comércio e das relações jurídicas internacionais. Demonstrando-se, assim, mais tolerante40.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O caso estudado nos demonstra as peculiaridades que o conceito de ordem pública
incorpora nos mais diferentes ordenamentos jurídicos. A uma primeira vista, a ordem pública
econômica, parece estar diretamente relacionada com o Direito Econômico, talvez pela
semelhança com o termo Ordem Econômica, destino a denominar o capítulo da Constituição
que trata das questões da intervenção do Estado no domínio econômico e da própria moldura
jurídica da economia.
Entretanto, na Espanha, o conceito está diretamente relacionado com os fundamentos
da boa-fé nos contratos, plasmados nos deveres de diligência, lealdade e informação. Para
se compreender o conceito de ordem pública é necessário compreender também sobre as
escolhas do legislador (Lei de Arbitragem, p. ex.), a jurisprudência e o próprio regime político-
constitucional do ordenamento jurídico em questão.
Por fim, seria possível compreender dentro do sistema jurídico-econômico brasileiro
que, as normas de Direito Econômico presentes no ordenamento jurídico brasileiro que

38
APRIGLIANO, Ricardo de Carvalho. Ordem Pública e Processo. São Paulo: Editora Atlas, 2011.
p. 52.
39
Ibid. p. 54.
40
Ibid. p. 56.

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Arbitragem e ordem pública econômica
Fábio da Silva Veiga - João Otávio Bacchi Gutinieki

compõem o que a doutrina denomina de «Constituição Econômica material» representada pela


conjunção de normas constitucionais e infraconstitucionais que tratam da vida econômica do
país, podem ser classificadas como normas de ordem pública e passem, desse modo, a serem
consideradas como normas de «ordem pública econômica».
Do mesmo modo, como visto, o ordenamento jurídico brasileiro não se permite a
anulação de sentença arbitral por alegação de violação à ordem pública (como previsto na
legislação espanhola), desta maneira, nas situações idênticas ou similares ao caso analisado
no presente estudo (decisão arbitral que viole a ordem pública econômica), o lesado deverá
pedir ao Poder Judiciário a revisão da arbitragem ao Poder Judiciário, não tendo este órgão
jurisdicional o devido suporte legal para fundamentar decisões desta natureza.
Nesse sentido, seria necessário repensar as questões pragmáticas da materialização da
Ordem Econômica Constitucional no Brasil, incluindo-se, nessa reflexão, o direito arbitral.

REFERÊNCIAS BIBLIOGÁFICAS
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princípios fundamentais. Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Coimbra,
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MACHADO, Maíra Rocha. O estudo de caso na pesquisa em direito. In: MACHADO, Maíra Rocha
(Org.). Pesquisar empiricamente o direito. São Paulo: Rede de Estudos Empíricos em Direito,
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Arbitragem e ordem pública econômica
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econômico no Brasil. Ed. Fac-simile. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 1998.

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Entre riscos e benefícios da utilização da
inteligência artificial pelo poder judiciário1

Afonso Vinício Kirschner Fröhlich2


Wilson Engelmann3

Resumo: A utilização da Inteligência Artificial (IA) já é uma realidade inevitável em muitos dos setores
em que tradicionalmente opera a mão de obra humana. No Poder Judiciário não é diferente, já que se tem
adotado uma postura de incorporação de ferramentas contendo IA para a execução de atividades repetitivas
e padronizadas. Essa nova possibilidade garante maior efetividade e celeridade, o que corresponde a um
evidente benefício na diminuição do número alarmante de processo em tramitação no Poder Judiciário
brasileiro. No entanto, o que tem chamado atenção de estudiosos do Direito é a possibilidade dessa inovação
trazer novos riscos, em especial quando a IA é aplicada no processo de tomada de decisão judicial. Ingressam
aí preocupações quanto aos direitos fundamentais dos litigantes, caros em um Estado Democrático de
Direito, que poderiam vir a ser deixados de lado em prol da celeridade que o julgamento instrumentalizado
por algoritmos pode proporcionar. O devido processo legal, a transparência e a isonomia são algumas das
garantias processuais que poderiam perder fôlego, porém que devem ser afirmadas como garantidoras
de uma decisão judicial legítima e democrática. Se utiliza a pesquisa bibliográfica e documental. Como
conclusão se pode destacar: ao encarar a inovação proporcionada pelo ingresso da Inteligência Artificial no

1
Resultado parcial da pesquisa desenvolvida pelos autores no âmbito do seguinte projeto de in-
vestigação: “Sistema do Direito, novas tecnologias, globalização e o constitucionalismo contemporâneo:
desafios e perspectivas”, Edital FAPERGS/CAPES 06/2018 – Programa de Internacionalização da Pós-
Graduação no RS.
2
Acadêmico do curso de Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Bolsista
de Iniciação Científica FAPERGS sob a orientação do Prof. Dr. Wilson Engelmann. Integrante do grupo de
pesquisa JUSNANO (CNPq). Endereço eletrônico para contato: afonsovkf@gmail.com.
3
Pós-Doutor em Direito Público-Direitos Humanos, Universidade de Santiago de Compostela, Es-
panha; Doutor e Mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).
Coordenador Executivo do Mestrado Profissional em Direito da Empresa e dos Negócios da UNISINOS.
Professor e Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado – da UNISI-
NOS. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Líder do Grupo de Pesquisa JUSNANO (CNPq).
Endereço eletrônico para contato: wengelmann@unisinos.br.

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Entre riscos e benefícios da utilização da inteligência artificial pelo poder judiciário
Afonso Vinício Kirschner Fröhlich - Wilson Engelmann

Poder Judiciário, o jurista deve partir sempre de um olhar crítico atento para a dicotomia característica das
tecnologias que compõem a Quarta Revolução Industrial: para todo benefício proporcionado pela inovação,
poderá haver um risco a ela associado.
Palavras-chave: Inteligência Artificial; Poder Judiciário; Riscos; Benefícios.

Abstract: The use of Artificial Intelligence (AI) is already an inevitable reality in many of the sectors
in which human labor has traditionally operated. In the Judiciary, it is no different, because it has adopted
a position of incorporating tools containing AI for the execution of repetitive and standardized activities.
This new possibility guarantees effectiveness and speed, which corresponds to a benefit in reducing the
alarming number of cases in the Brazilian Judiciary. However, now has been discussed by legal expertsis
the possibility of this innovation bringing new risks, especially when AI is applied in the judicial decision-
making process. There are concerns about the fundamental rights of litigants, which are essential in a
Democratic State of Law, which could be forgotten in favor of the speed that the algorithmic trial can
provide. Due process of law, transparency and equality are some of the procedural guarantees that could
left behind, but which must be affirmed as guarantors of a legitimate and democratic judicial decision.
Bibliographic and documentary research is used. As a conclusion, we can highlight: in view of this new
reality provided by Artificial Intelligence applied to the Judiciary, the jurist must always start with a critical
eye attentive to the dichotomy characteristic of the technologies that are part of the Fourth Industrial
Revolution: for any benefit provided by innovation, there may be a risk to it associated.
Keywords: Artificial Intelligence; Judiciary; Risks; Benefits.

Introdução:
Em que pese os últimos anos têm demonstrado grande desenvolvimento e divulgação
das potencialidades da Inteligência Artificial, por sua sigla IA, não é de hoje que se projeta a
utilização do aprendizado de máquina para auxiliar os seres humanos. Em âmbito literário, por
exemplo, já no ano de 1894, Ambrose Bierce escreveu o conto “O feitiço e o feiticeiro”, em
que questiona a possibilidade de máquinas raciocinarem e expõe o medo da perda do controle
dos humanos sobre suas criações4. Desde aí, segue-se um número incontável de obras que
contrastam o medo e o fascínio dos seres humanos com relação a máquinas que ganham vida.
Dentre vários exemplos, é possível destacar a obra de Isaac Asimov publicada em 1950, bem
como a popular série americana Black Mirror, produzida pela plataforma Netflix a partir de
2011.
Indo além da ficção científica, o marco teórico para o surgimento da IA também é
antigo: remonta o ano de 1950, quando Alan Turing dedicava-se ao estudo da computação e
da inteligência das máquinas, ao questionar-se: “podem as máquinas pensar?”. Muito embora
não é de hoje que a curiosidade sobre o tema existe, o desenvolvimento da IA na atualidade
atingiu níveis colossais, a partir de um desenvolvimento extremamente acelerado. Tanto é
assim que o Fórum Econômico Mundial, em uma de suas plataformas de aprendizagem,

4
Nas palavras de Bierce: “Parecia que vinha do corpo autônomo e era, inegavelmente, um ruído de
engrenagens. Me deu a impressão de um mecanismo desregulado que houvesse escapado da ação repres-
siva e normalizadora de algum componente de controle - efeito semelhante ao que se poderia esperar de
um lingüete [sic] saltando dos dentes de uma catraca”. BIERCE, Ambrose. O feitiço e o feiticeiro. In: ASI-
MOV, Isac; GREENBERG, Martin H; WARRICK, Patricia S. (ed). Máquinas que pensam: obras-primas
da ficção científica. Porto Alegre: L&PM Editores Ltda, 1985. p. 17-24.

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Entre riscos e benefícios da utilização da inteligência artificial pelo poder judiciário
Afonso Vinício Kirschner Fröhlich - Wilson Engelmann

aponta que a IA é um dos principais impulsionadores da Quarta Revolução Industrial, já que


seus efeitos podem ser percebidos em residências, empresas e espaços públicos5.
O que se percebe é que a IA vem ingressando praticamente na totalidade dos ramos e
setores em que ainda prepondera a atuação humana. Dentre estes, ganha notoriedade sua
incorporação pelo Poder Judiciário, que encontrou na IA uma ferramenta capaz de diminuir
drasticamente o tempo necessário para a realização de determinadas atividades burocráticas
e repetitivas antes realizadas por humanos. Trata-se de um evidente benefício da utilização
dessa nova tecnologia, a qual surge com a promessa de imprimir velocidade e eficiência à
prestação jurisdicional.
Por outro, a rapidez com que essas inovações vêm sendo aplicadas desperta a preocupação
de um número crescente de juristas, que se deram conta da possibilidade de riscos advindos
da utilização da IA em uma área tão sensível quanto a da decisão judicial. Percebe-se surgir,
então, uma dicotomia que deve povoar as discussões envolvendo a utilização da Inteligência
Artificial pelo Poder Judiciário: a existência, tanto dos benefícios, quanto de riscos da inserção
da IA pelo Poder Judiciário. Esses cruzamentos também abrem espaço para a discussão sobre
a responsabilidade civil por eventuais danos produzidos pelo sistema de IA6.

2. Dos (evidentes) benefícios da utilização da IA pelo poder


judiciário: efetividade e celeridade.
As novas perspectivas de efetividade e celeridade proporcionadas por ferramentas
que contenham Inteligência Artificial chamam atenção do Poder Judiciário, âmbito em que
muitas das atividades são burocráticas e repetitivas. Os exemplos são vários, desde paginação
dos autos até pesquisa de jurisprudência, passando por separação de documentos e revisão
ortográfica de decisões. Trata-se de labor mecânico, que acaba por atrasar a apreciação do
mérito discutido no processo judicial, o qual permanece repleto de práticas padronizadas
às quais Jordi Nieva Fenoll chama de usos delpasado7. Nessas atividades, a IA poderia
facilmente ingressar, tornando a prestação do serviço jurídico mais eficiente, tendo em vista
a diminuição de tempo e aumento de precisão nas tarefas.
Para exemplificar os mencionados ganhos com a utilização da IA, se pode tomar o exemplo
do relatório AI vs. Lawyers: the ultimate showdown, desenvolvido pela plataforma Lawgeex,
que utiliza Inteligência Artificial para revisar contratos comerciais e apontar cláusulas que
estão faltando ou que são incompatíveis. A empresa, para promover seu produto, propôs uma
competição entre a sua ferramenta e vinte advogados humanos, os quais deveriam revisar
cinco termos de confidencialidade. Como resultado, com relação a efetividade, a máquina

5
SHAPING the Future of Technology Governance: Artificial Intelligence and Machine Learning.
In: WORLD EconomicForum. [Genebra, 2019?]. Disponível em:
https://www.weforum.org/platforms/shaping-the-future-of-technology-governance-artificial-intelligen-
ce-and-machine-learning. Acesso em 13 fev. 2020.
6
ESCRIBANO CAÑAS, Blanca. Inteligência artificial. In: RECUERDO GIRELA, Miguel Ángel
(Director). Tecnologías disruptivas: regulando el futuro. Navarra: Editorial Aranzadi, 2019, p. 885-922.
7
NIEVA FENOLL, Jordi. Inteligencia artificial y proceso judicial. Madri: Marcial Pons, 2018. p. 24.

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Entre riscos e benefícios da utilização da inteligência artificial pelo poder judiciário
Afonso Vinício Kirschner Fröhlich - Wilson Engelmann

atingiu a precisão de 94%, enquanto a média dos advogados humanos foi de 85%, tendo em
vista que a mais alta performance de um advogado humano foi de 94% e a mais baixa de 67%.
Já com relação ao tempo para a revisão dos contratos, os dados são ainda mais surpreendentes:
a média de tempo gasto pelos advogados humanos foi de 92 minutos, enquanto a IA utilizou
apenas 26 segundos para a tarefa8.
Resta, portanto, evidente que a IA tem o condão garantir maior efetividade e maior
celeridade na execução das incumbências do Poder Judiciário. É nesse ponto que vem
sendo sustentada a sua utilização. A partir das ferramentas de IA, se poderia tanto diminuir
o tempo gasto nas atividades mecânicas e repetitivas, como aumentar a eficiência nessas
mesmas tarefas, o que evita novo gasto de tempo pare revisões e correções de erros. Como
consequência, a prestação jurisdicional ganharia em celeridade, o que assume ares de urgência
diante do elevado número de processos em tramitação no Poder Judiciário brasileiro.
O Brasil vive um abarrotamento de processos em seu Poder Judiciário, o que vem sendo
denunciado há anos por juristas, em especial ao depararem-se com o assustador panorama
que anualmente é divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Em 2019, o Justiça
em Números, com ano-base 2018, produzido e disponibilizado pelo CNJ dá conta do número
de 78,7 milhões de processos em tramitação (aguardando solução definitiva) no âmbito do
Poder Judiciário brasileiro9. Deste número, “14,1 milhões, ou seja, 17,9%, estavam suspensos,
sobrestados ou em arquivo provisório, aguardando alguma situação juríd́ ica futura”10.
Ademais, com relação ao tempo médio de tramitação dos processos, o relatório apontou que
na Justiça Comum, para a ação de conhecimento no 1º grau de jurisdição, foi de 1 ano e 1 mês
o tempo médio de tramitação, enquanto no 2º grau o tempo foi de 9 meses e na execução de
longos 8 anos e 6 meses.
Essa realidade é denominada por Erik Navarro Wolkart como Tragédia da Justiça
Brasileira, já que “[o] cenário de esgotamento da prestação jurisdicional é, por evidente, e a
tendência é de piora”11. Portanto, para o autor, justamente nesse cenário poderiam as novas
tecnologias impactarem de forma positiva ao garantir um ambiente cooperativo que promova,
em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva, conforme previsto no artigo 6º do
Código de Processo Civil Brasileiro12. Assim, passa a Inteligência Artificial a ser vista por um
viés positivo, como um instrumento para diminuição do número de processos em tramitação
no Poder Judiciário do Brasil.
Por outro lado, para além das questões eminentemente burocráticas em que a IA poderia
vir a auxiliar o judiciário, a preocupação que vem sido manifestada por alguns estudiosos do
Direito é com relação à utilização da IA no âmbito do processo de tomada de decisão judicial.

8
AI vs. Lawyers: the ultimate showdown. In: LAWGEEX [S.I., 2019]. Disponível em: https://
www.lawgeex.com/ resources/aivslawyer/. Acesso em: 13 fev. 2020.
9
JUSTIÇA em números. In: CONSELHO Nacional de Justiça. Brasília, [2019?]. Disponível em:
https://www.cnj.jus.br/pesquisa-judiciarias/justica-em-numeros/. Acesso em: 09 fev. 2020.
10
Idem.
11
WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a
psicologia podem vencer a tragédia da justiça. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 88.
12
Idem. p. 701.

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Entre riscos e benefícios da utilização da inteligência artificial pelo poder judiciário
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Ou seja, o problema surge quando a IA passa a decidir e não meramente auxiliar nas decisões
feitas por juízes. Nesse cenário, surgem os riscos, principalmente no tocante aos direitos
fundamentais dos litigantes, que de modo algum podem ser afastados, mesmo que com o
ânimo de garantir maior celeridade às decisões judiciais.

3. Os (não tão evidentes) riscos da utilização da IA pelo


Judiciário: o sempre necessário olhar crítico do
jurista.
Indo além dos benefícios advindos com a inserção da IA pelo Poder Judiciário, também
existem riscos advindos dessa utilização. A incorporação de riscos à sociedade é característica
das tecnologias que integram a Quarta Revolução Industrial13 que, na mesma proporção que
abrem muitas possibilidades, potencializam riscos e adversidades que devem permear o olhar
do jurista14. Essa preocupação é ainda mais notória ao tratar da utilização dos algoritmos
em cenário tão importante quanto ao da tomada de decisão jurisdicional, já que é possível
perceber que, se não houver um olhar crítico do jurista para essa nova realidade, poderá vir a
ocorrer violações de direitos fundamentais dos litigantes.
Com essa mesma preocupação, a Comissão Européia para a Eficiência da Justiça, em
documento intitulado European Ethical Charter On The Use of Artificial Intelligence in
Judicial Systems and Their Environment, publicada em 4 de dezembro de 2018, assinalou
que a utilização de ferramentas no sistema judicial deve ser realizada com responsabilidade,
com o devido respeito aos direitos fundamentais dos indivíduos. De acordo com a Carta
Europeia15:

Secondly, this document will analyse the benefits and risks of these tools. While
their supporters highlight their assets in terms of transparency, predictability and
standardisation of case-law, their critics point to the limitations and the reasoning bias
of the software currently on the market. The inherent risks in these technologies may
even transcend the act of judging and aessential functioning elements of the rule of
law and judicial systems, to which the Council of Europe is particularly attached.

As preocupações que se sobressaem ao tratar da utilização da IA na tomada de decisão


jurisdicional são de diversas ordens. O autor espanhol Juan J. Álvarez Álvarez, por exemplo,
separa os impactos negativos (riscos) da IA em quatro grandes grupos: (i) implicações morais;

13
SCHWAB, Klaus. Aplicando a quarta revolução industrial. São Paulo: EDIPRO, 2018.
14
ENGELMANN, Wilson; WERNER, Deivid Augusto. Inteligência Artificial e Direito. In: FRA-
ZÃO, Ana; MULHOLLAND, Caitlin [coord.]. Inteligência Artificial e Direito: ética, regulação e respon-
sabilidade. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 149-178.
15
EUROPA. EUROPEAN COMMISSION FOR THE EFFICIENCY OF JUSTICE (CEPEJ). Euro-
pean ethical Charter on the use of Artificial Intelligence in judicial systems and their environment.
Estrasburgo, França: 3-4 dez. 2018. Disponível em: https://rm.coe.int/ethical-charter-en-for- publication-
4-december-2018/16808f699c. Acessoem: 02 fev. 2020.

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Entre riscos e benefícios da utilização da inteligência artificial pelo poder judiciário
Afonso Vinício Kirschner Fröhlich - Wilson Engelmann

(ii) implicações jurídicas e políticas; (iii) implicações sociais e (iv) implicações religiosas16.
Já no tocante à aplicação da IA pelo Poder Judiciário os riscos que surgem são outros. Nessa
toada, destacam-se os riscos associados aos direitos fundamentais dos litigantes. O devido
processo legal, por exemplo, representa uma garantia inafastáveldo Estado Democrático de
Direito. De modo algum a inserção da IA pelo judiciário pode afastar-se desse superprincípio
que coordena e delimita todos os demais que informam o processo17. Daí decorre que a
decisão que utiliza IA deve respeitar um encadeamento de passos lógicos que não coloquem
em riscos18 direitos individuais dos litigantes em processo judicial.
Outra preocupação que se apresenta é com relação à transparência. Ocorre que tem
sido propagada a ideia de que a IA corresponderia a uma “caixa preta”, ou seja, teria como
característica inerente a opacidade. De acordó com Stephen Churin, “algunos algoritmos para
el aprendizaje robótico se basan en circuitos muy complicados, […] y estos metodos pueden
afectar a la transparencia, incluso para los responsables de la programación”19. E é justamente
por essa característica que a utilização da IA no judiciário deve sempre adotar uma forma de
programação que permita o controle e a investigação das decisões judiciais, mostrando de
maneira transparentes os passos lógicos percorridos para chegar a determinado resultado.
Com efeito, a utilização da Inteligência Artificial na decisão judicial deve ser percebida em
um contexto que garanta o “controle popular sobre o exercício da função jurisdicional”20.
Com relação ao direito fundamental à igualdade, também a IA apresenta riscos. Isso, pois,
a opacidade mencionada acima acarreta na impossibilidade de verificar se a solução de dois
casos semelhantes deu-se a partir dos mesmos parâmetros ou se apresentou viéses cognitivos
preconceituosos. Ou seja, mesmo que os data sets estejam devidamente estruturados, Ferrari,
Becker e Wolkart21 advertem para a possibilidade de os algoritmos promoverem discriminação,
ao reforçarem “circunstâncias sociais que mereciam modificação, seja porque o emprego de
data miningreproduz padrões existentes de discriminação, seja porque reflete preconceitos
existentes na sociedade”22.

16
ÁLVARES, Juan J. Álvarez. Aproximación crítica a la inteligencia artificial: claves filosóficas
y prospectivas del futuro. Madri: Universidad Francisco de Vitoria, 2013. p. 132-146.
17
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil: Teoria geral do direito pro-
cessual civil, processo de conhecimento e procedimento comum. 57. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro:
Forense, 2016. v. 1. p. 48.
18
SCHERER, Matthew U. Regulating artificial intelligence system: risks, challenges, competencies,
and strategies. Harvard Journal of Law & Technology, v. 29, n. 2, Spring 2016, p. 354-400.
19
CHURIN, Stephen. Inteligencia artificial: retos éticos y jurídicos, y la influencia de los derechos
humanos. Madrid: Servicio de Publicaciones de la Facultad de Derecho de le Universidad Complutense de
Madrid, 2011. p. 75.
20
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Ran-
gel. Teoria Geral do Processo. 31. ed. rev. e ampl. São Paulo: Ed. Malheiros, 2015. p. 92.
21
FERRARI, Isabel; BECKER, Daniel; WOLKART, Erik Navarro. Arbitrium Ex Machina: panora-
ma, riscos e a necessidade de regulação das decisões informadas por algoritmos. In: Revista dos Tribunais,
v. 995, set. 2018.
22
Idem.

— 321 —
Entre riscos e benefícios da utilização da inteligência artificial pelo poder judiciário
Afonso Vinício Kirschner Fröhlich - Wilson Engelmann

Somente com esses três direitos fundamentais exemplificados, já é possível perceber


que a IA aplicada à decisão judicial não apresenta somente benefícios. Muito pelo contrário,
muitos estudiosos do Direito afirmam a existência de riscos que devem ser levados em
conta ao decidir-se instrumentalizando algoritmos. Em suma, a incorporação da IA pelo
Poder Judiciário traz consigo uma dicotomia entre benefícios e riscos, cujo enfrentamento é
inevitável ao cientista do Direito.

4. Considerações finais.
O ritmo exponencial de desenvolvimento tecnológico característico da Quarta Revolução
Industrial permite sonhar com todas as potencialidades futuras da Inteligência Artificial. No
entanto, é um erro tratar a IA como algo somente reservado ao futuro, uma vez que o estado
da arte do seu desenvolvimento atual leva à constatação de que a relação entre humanos e
máquinas já é uma realidade. Tanto é assim que o Poder Judiciário já vem desenvolvendo
ferramentas com IA para auxílio na realização de atividades burocráticas e, inclusive,
decisórias, o que garante grandes ganhos em eficiência e celeridade.
Aplicada a IA em um âmbito tão importante do Direito, passa a corresponder a mais
um fator que deve chamar a atenção do olhar crítico do jurista. Como se buscou demonstrar,
trata-se de uma realidade dicotômica: se, por um lado, os benefícios dessa nova tecnologia
parecem evidentes, por outro também os riscos merecem atenção. Dentre os vários riscos
que podem ser listados, ganham destaque aqueles relacionados aos direitos fundamentais
dos litigantes, indispensáveis no Estado Democrático de Direito. Sem observâncias dessas
balizas, a Inteligência Artificial inevitavelmente aproximar-se-á do descontrole assustador
próprio das obras de ficção científica.
Cabe, portanto, ao Direito antecipar-se a essa realidade para garantir “a vitória da mente
sobre a máquina”23. Ao partir sempre da visão não apenas dos benefícios, como também dos
riscos da incorporação da IA pelo judiciário, a utilização dessa nova tecnologia poderá auxiliar
efetivamente na diminuição do grande número de processos que abarrota o Poder Judiciário
Brasileiro. A Inteligência Artificial, então, passsa a ser mais uma aliada na consecução dos
objetivos do Estado Democrático de Direito e jamais escapará do controle humano, assim
como ocorrera com a máquina imaginada por Ambrose Bierce em 1894.

REFERÊNCIAS:
AI vs. Lawyers: the ultimate showdown. In: LAWGEEX [S.I., 2019]. Disponível em: https://www.
lawgeex.com/resources/aivslawyer/. Acesso em: 13 fev. 2020.
ÁLVARES, Juan J. Álvarez. Aproximación crítica a la inteligencia artificial: claves filosóficas y
prospectivas del futuro. Madri: Universidad Francisco de Vitoria, 2013.

HARARI, YuvalNoah. 21 lições para o século 21. Tradução: Paulo Geiser. 1. ed. São Paulo: Com-
23

panhia das Letras, 2018. p. 308.

— 322 —
Entre riscos e benefícios da utilização da inteligência artificial pelo poder judiciário
Afonso Vinício Kirschner Fröhlich - Wilson Engelmann

BIERCE, Ambrose. O feitiço e o feiticeiro. In: ASIMOV, Isac; GREENBERG, Martin H; WARRICK,
Patricia S. (ed). Máquinas que pensam: obras-primas da ficção científica. Porto Alegre: L&PM
Editores Ltda, 1985. p. 17-24.
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel.
Teoria Geral do Processo. 31. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2015.
CHURIN, Stephen. Inteligencia artificial: retos éticos y jurídicos, y la influencia de los derechos
humanos. Madrid: Servicio de Publicaciones de la Facultad de Derecho de le Universidad
Complutense de Madrid, 2011.
ENGELMANN, Wilson; WERNER, Deivid Augusto. Inteligência Artificial e Direito. In: FRAZÃO,
Ana; MULHOLLAND, Caitlin [coord.]. Inteligência Artificial e Direito: ética, regulação e
responsabilidade. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 149-178.
ESCRIBANO CAÑAS, Blanca. Inteligência artificial. In: RECUERDO GIRELA, Miguel Ángel
(Director). Tecnologías disruptivas: regulando el futuro. Navarra: Editorial Aranzadi, 2019,
p. 885-922.
EUROPA. EUROPEAN COMMISSION FOR THE EFFICIENCY OF JUSTICE (CEPEJ).
European ethical Charter on the use of Artificial Intelligence in judicial systems and their
environment. Estrasburgo, França: 3-4 dez. 2018. Disponível em: https://rm.coe.int/ethical-
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riscos e a necessidade de regulação das decisões informadas por algoritmos. In: Revista dos
Tribunais, v. 995, set. 2018.
HARARI, Yuval Noah. 21 lições para o século 21. Tradução: Paulo Geiser. 1. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2018.
JUSTIÇA em números. In: CONSELHO Nacional de Justiça. Brasília, [2019?]. Disponível em:
https://www.cnj.jus.br/pesquisa-judiciarias/justica-em-numeros/. Acesso em: 09 fev. 2020.
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SHAPING the Future of Technology Governance: Artificial Intelligence and Machine Learning. In:
WORLD Economic Forum. [Genebra, 2019?]. Disponível em: https://www.weforum.org/
platforms/shaping-the-future-of-technology-governance-artificial-intelligence-and-machine-
learning. Acesso em 13 fev. 2020.
SCHERER, Matthew U. Regulating artificial intelligence system: risks, challenges, competencies,
and strategies. Harvard Journal of Law & Technology, v. 29, n. 2, Spring 2016, p. 354-400.
SCHWAB, Klaus. Aplicando a quarta revolução industrial. São Paulo: EDIPRO, 2018.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil: Teoria geral do direito
processual civil, processo de conhecimento e procedimento comum. 57. ed. rev., atual. e ampl.
Rio de Janeiro: Forense, 2016. v. 1.
WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a
psicologia podem vencer a tragédia da justiça. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.

— 323 —
Os desafios para a aplicação
da regra matriz de incidência diante
do atual cenário de economia disruptiva

Thaís Cíntia Cárnio1

Resumo: O presente estudo tem por objetivo analisar quais os desafios da aplicação da regra a matriz
de incidência para definição da existência de tributos no ambiente atual de economia disruptiva. Tal regra
tem como objetivo estabelecer os critérios necessários para a subsunção do fato à norma que o descreve como
ensejador do tributo. Divide-se em antecedente e consequente da norma: caso se verifique a materialização
do fato previsto no antecedente, ensejará a ocorrência dos efeitos previstos no seu consequente. Essa fórmula
tem sido aplicada de forma exitosa para a adequada verificação de todos os elementos tributários e exata
definição de quem deverá pagar o tributo, a que ente tributário, como calculá-lo e, principalmente, qual fato
enseja a sua incidência, detalhando, inclusive, o tempo e o espaço para que ocorra. Da concepção dessa
regra até o momento, houve muitas transformações no cenário econômico, não apenas com o surgimento
de novos produtos, como também com novos procedimentos e modos mais hodiernos para a oferta do
produto e seu alcance pelo público alvo. O consumidor adequou-se rapidamente a esses confortos e à
dinâmica oferecida pelos recentes empreendedores, transformando o acesso a produtos e serviços. Nessa
linha, surgem o transporte contratado por aplicativo, os serviços de conexão multimidiática com filmes,
jogos e músicas, os serviços de entrega de refeições. Novos formatos, novas relações de trabalho, distintas
relações de consumo e, outrossim, modernas discussões no âmbito da tributação. Este trabalho visa lançar
luz sobre a questão fiscal e verificar quais os obstáculos à plena utilização dos elementos componentes
da regra matriz de incidência tributária com vistas a atender a necessidade de esclarecer como, quando e
para quem são devidas as obrigações daí decorrentes. Será trilhado um caminho pavimentado por recentes
tecnologias, cuja origem remonta a ambição humana de empreender a o destino não se encontra delimitado.
Busca-se verificar se a consagrada regra matriz acompanha todas essas inovações que rompem e desafiam
conceitos clássicos.
Palavras-chave: Regra matriz - Inovação – Tributos

1
Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professora dos cursos
de Graduação e Pós-Graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie - UPM. E-mail: thais.carnio@
gmail.com

— 324 —
Os desafios para a aplicação da regra matriz de incidência diante do atual cenário de economia disruptiva
Thaís Cíntia Cárnio

Abstract: The present study aims to analyze the challenges of applying the rule to the incidence matrix
to define the existence of taxes in the current disruptive economy. This rule aims to establish the necessary
criteria for the subsumption of the fact to the norm that describes it as an incidence for the tax. It is divided
into antecedent and consequent of the norm: in case the materialization of the fact foreseen in the antecedent
is verified, it will give rise to the occurrence of the effects foreseen in its consequent. This formula has been
successfully applied for the proper verification of all tax elements and the exact definition of who should pay
the tax, to which tax entity, how to calculate it and, mainly, what fact causes its incidence, detailing, including,
time and space for it to occur. From the conception of this rule to the present, there have been many changes in
the economic scenario, not only with the emergence of new products, but also with new procedures and more
modern ways to offer the product and its reach by the target audience. The consumer quickly adapted to these
comforts and to the dynamics offered by recent entrepreneurs, transforming access to products and services.
In this line, there is the transport contracted by application, the multimedia connection services with films,
games and music, the meal delivery services. New formats, new work relations, different consumer relations
and, moreover, modern discussions in the scope of taxation. This paper aims to shed light on the tax issue and
to check which are the obstacles to the full use of the elements that make up the matrix rule of tax incidence in
order to meet the need to clarify how, when and for whom it is due to the resulting obligations. A path paved
by recent technologies will be traced, the origin of which goes back to the human ambition to undertake and
destiny is not limited. It seeks to verify if the consecrated matrix rule accompanies all these innovations that
break and challenge classic concepts.
Keywords: Matrix rule - Innovation - Taxes

INTRODUÇÃO
A Constituição Federal brasileira estabelece claramente limitações ao poder de tributar
dos entes públicos. Assim, prevê o artigo 150, caput e inciso I: “Sem prejuízo de outras
garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e
aos Municípios: (…) exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;”.2
Assim, é fundamental que seja observado o princípio da legalidade para a exigência
de um tributo. Para tanto, deve haver norma anterior que disponha todos os critérios que
delimitam a incidência fiscal e que esteja em perfeita harmonia com o sistema jurídico como
um todo, subsumindo-se às normas superiores. Tal sintonia se faz necessária como requisito
de validade, bem como para confirmar sua eficácia no arcabouço normativo no qual se
encontra inserida.
Essa norma criadora é composta por aspectos descritos no plano das ideias, delimitando
a incidência do tributo caso sejam verificados no plano fático. Ocorrendo essa hipótese,
ensejará a cobrança nos termos descritos na regra.
O presente estudo analisa a composição da regra matriz de incidência e a viabilidade de sua
aplicação em tempos de economia disruptiva, na qual as constantes inovações dos empreendedores
desafiam os métodos tradicionais de enquadramento dos descritores tributários.
Para tanto, incialmente será analisada a composição da regra matriz de incidência em
seus aspectos descritores e prescritores. Posteriormente, serão estudados eventuais óbices à
sua aplicação no ambiente supramencionado.

2
BRASIL, República Federativa do. Constituição Federal de 1988. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Último acesso em Fev 01 2020.

— 325 —
Os desafios para a aplicação da regra matriz de incidência diante do atual cenário de economia disruptiva
Thaís Cíntia Cárnio

1. REGRA MATRIZ DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA


Conforme mencionado anteriormente, a estipulação de parâmetros para a incidência
fiscal por intermédio da norma tributária não só é obrigatória para a constitucionalidade do
tributo, como exerce relevante função na ciência jurídica.
Isso porque prima pela precisão e rigor terminológico, aspecto considerado por Norberto
Bobbio pilar inarredável da adequada construção de uma ciência, prevalecendo sobre a
acuidade gramatical e sobre a estética.3
Essa exatidão permite que haja clareza quanto à descrição do fenômeno da incidência
que origina a relação de causalidade jurídica e vincula os sujeitos de direito, determinada
pela materialização do fato jurídico previsto em tese no antecedente da norma, resultando nos
efeitos prescritos em seu consequente4.
Paulo de Barros Carvalho ensina que haverá uma hipótese descrita pela regra que a ela
conjugará uma consequência, configurando-se uma imputação deôntica, pois quando o dever-
ser for concretizado faticamente, causará a imputação jurídico-normativa. 5
Feitas essas considerações, a seguir será realizada uma breve explicação dos elementos
formadores da regra matriz.

1.1. Estrutura da Regra Matriz de Incidência


A regra matriz de incidência é composta por duas partes igualmente relevantes: a
descritora e a prescritora.
Lourival Vilanova esclarece que a função da norma é descrever possível ocorrência no
mundo, uma hipótese que pode ser denominada seu antecedente, pressuposto ou prótase.6
O resultado da situação relacional a ser aplicado quando se verificar a hipótese descritora
é denominado prescritor.
A hipótese é composta de três critérios: o critério material, espacial e temporal.7 O material
é o elemento nuclear, uma hipótese de comportamento de pessoas físicas ou jurídicas, a
conduta definida por um verbo. E mais: esse verbo deve ser pessoal de predicação incompleta,
necessitando, obrigatoriamente, de um complemento para que tenha significado.8

3
BOBBIO, Norberto. Teoria della scienza giuridica. Torino: Giappichelli, 1950, p. 200.
4
CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. 4.ed. São Paulo: Editora
Noeses, 2011, p. 413.
5
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 17.ed. São Paulo: Editora Saraiva,
2005, p. 242 ss.
6
VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. 4.ed. São Paulo:
Editora Noeses, 2010, p. 49-51.
7
A elaboração desse estudo baseia-se nas lições elaboradas por Lourival Vilanova e Paulo de Barros
Carvalho, constantes das obras citadas na bibliografia.
8
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 17.ed. São Paulo: Editora Saraiva,
2005, p. 258-259.

— 326 —
Os desafios para a aplicação da regra matriz de incidência diante do atual cenário de economia disruptiva
Thaís Cíntia Cárnio

Essa conduta deve ocorre em determinado local para configurar a hipótese tributária.
Trata-se do critério espacial. O legislador pode expressar claramente a localização para
ocorrência do fato ou considerá-lo genericamente, fazendo parte do território de competência
do ente tributante.
Finalmente, o critério temporal determina o momento previsto para a configuração da
ideia abstrata no mundo fático, estabelecendo o surgimento de um direito subjetivo para o
ente tributante, e de um dever para o contribuinte.
Uma vez configurada a hipótese de incidência, haverá a consequência tributária, composta
pelos critérios pessoal, formado pelo sujeito ativo e passivo; e quantitativo, que compreende
alíquota e base de cálculo.
O sujeito ativo é o titular do direito subjetivo de criar e exigir o tributo, observando-
se o princípio da legalidade. Já o sujeito passivo é aquele que deve cumprir as obrigações
tributárias.
O critério quantitativo provê os elementos necessários ao cálculo do valor pecuniário da
obrigação tributária a ser cumprida pelo sujeito passivo ao sujeito ativo. Para tanto, a base
de cálculo define a abrangência da hipótese tributária, que será multiplicada pela alíquota,
resultando no valor do débito tributário.
Essa fórmula tem sido utilizada em vários tipos de tributos para verificar, de forma
precisa, sua composição. A seguir será analisada a viabilidade de sua utilização em condutas
realizadas em ambientes disruptivos.

2. DESAFIOS PARA A APLICAÇÃO DA REGRA MATRIZ


Iniciando a análise da viabilidade de definição tributária valendo-se da regra matriz no
atual cenário inovador, o primeiro tópico a ser estudado refere-se às variáveis da hipótese de
incidência.
No que tange ao critério material, que descreve a conduta a ser observada para a
que se configure a incidência tributária, não há motivos que impeçam sua utilização em
empreendimentos com alta tecnologia. Isso porque muito dos produtos e serviços ofertados
são releituras modernas e inovadoras de modelos tradicionais de negócio, ou mesmo de novos
produtos resultantes da conjugação de outros já existentes. Com tal composição, aplicar o
elemento nuclear da hipótese é jurídica e faticamente viável.
Bons exemplos são os seguros celebrados por aplicativos, nos quais o contratante define as
coberturas e tempo da vigência que pretende; ou mesmo o transporte de particulares solicitado
por aplicativo. No primeiro caso, a conduta que caracteriza a incidência tributária é a contratação
do seguro, com incidência de IOF - Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio, Seguro,
ou Relativas a Títulos ou Valores Mobiliários (IOF - Seguros). Ora, essa ação é claramente
identificável. Já no segundo caso, trata-se da prestação de um serviço de transporte, portanto,
conduta perfeitamente verificável, incidindo Imposto sobre Serviços (ISS).
De outra feita, a contratação em rede de computadores e aplicativos pode afetar o
critério espacial. Para sua correta percepção, deve-se novamente focar a conduta que enseja

— 327 —
Os desafios para a aplicação da regra matriz de incidência diante do atual cenário de economia disruptiva
Thaís Cíntia Cárnio

a tributação. Ainda valendo-se dos exemplos anteriores, o critério espacial se dará de acordo
com local do bem segurado, declarado pelo contratante do seguro. Não tão clara é a percepção
quanto ao transporte de particulares. Diferentemente dos taxistas, não há limitações para
coleta de passageiros por município. Isso implica em prestação de serviços em várias cidades
distintas em um mesmo dia, o que fragiliza a exatidão do cálculo do ISS, vez que se trata de
um tributo devido à municipalidade.9
O critério temporal, por sua vez, acompanha a fácil aplicação do critério material, não
trazendo óbices ao estudioso da matéria.
Passando aos componentes do consequente tributário, a identificação do sujeito ativo, a
quem compete criar e cobrar o tributo, estará sujeita aos mesmos percalços observados quanto
ao critério espacial. Inclusive devido à possibilidade de que empresas que desenvolvam
seus negócios sobre plataforma digitais possam se valer da chamada “presença econômica
significativa” para alocar suas receitas em jurisdições com tributação mais atraente, onde
estão situados seus consumidores.
De acordo com essa teoria, a empresa não residente poderia eleger determinado país
para recolhimento dos tributos devidos baseando-se no fato de que desempenha presença
econômica significativa naquela localidade, por realizar constantes interações nesse território,
seja via tecnologia digital ou outros meios dessa natureza.10
Essa possibilidade encontra reforços em uma mudança de comportamento do mercado
de consumo. Ao invés de adquirir a propriedade de bens com o intuito de fruí-los, adotam
a concepção de consumo baseado em acesso (access-based consumption), de acordo com
a qual o consumidor opta por contratar o direito de usar o bem por determinado tempo,
sem transferência de propriedade, pagando uma tarifa determinada para tanto.11 Não apenas
afasta-se a aquisição do domínio, como a posse é compartilhada com outros consumidores,
como no caso de patinetes, carros e bicicletas.
Esses dois fatores somados dificultam a clara percepção do sujeito ativo. Contrariamente,
o sujeito ativo, responsável pela obrigação tributária, é facilmente verificável como aquele
que desenvolveu a conduta tributável.

9
Buscando solucionar essa controvérsia, a prefeitura de São Paulo, por meio do Comitê Municipal
de Uso do Viário, instituiu a obrigatoriedade de que os motoristas de aplicativos registrem-se junto ao Ca-
dastro Municipal de Condutores (Conduapp), tributando esse serviço. Contudo, para efetiva solução, seria
necessário que outras municipalidades também normatizassem essa atividade (SÃO PAULO, Prefeitura
Municipal de. Resolução CMUV nº 16. Disponível em: https://procondutor.com.br/views/modal/downlo-
ad/Resolucao_16_07-julho-2017.pdf. Último acesso em Fev 01 2020.
10
OCDE, Organization for Economic Cooperation and Development. Addressing the tax challeng-
es of the digitalisation of the economy – public consultation document © OECD 2019. https://www.
oecd.org/tax/beps/public-consultation-document-addressing-the-tax-challenges-of-the-digitalisation-of-
the-economy.pdf
11
BARDHI, Fleura; ECKHARDT, Giana. Access-based consumption, in Journal of Consumer Re-
search, Volume 39, Issue 4, 1 December 2012, Pages 881–898. Disponível em: https://academic.oup.com/
jcr/article/39/4/881/1798309. Último acesso em Fev 02 2020.

— 328 —
Os desafios para a aplicação da regra matriz de incidência diante do atual cenário de economia disruptiva
Thaís Cíntia Cárnio

Ciente desses percalços e buscando uma solução adequada aos interesses transnacionais,
organismos como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE
desenvolvem audiências públicas para que diversos países manifestem-se sobre a discussão
de soluções e conceitos únicos para dirimir essas dúvidas.
Por fim, o critério quantitativo, que congrega alíquota e base de cálculo, decorrerá da
jurisdição competente para a tributação, pois será sua lei que regerá essa obrigação devida ao
fisco, também sendo impactada pela fluidez da economia disruptiva, o que dificulta sua clara
percepção.

CONCLUSÃO
Observa-se, portanto, que a regra matriz de incidência abarca critérios de grande
relevância para a delimitação do campo de incidência e seus efeitos para os polos envolvidos
de forma precisa. Em que pese essa acuidade, há pontos trazidos pela economia disruptiva
especialmente desafiadores.
A definição do sujeito ativo competente para a tributação e, por consequência, os critérios
espaciais e quantitativos são pontos sensíveis ao grande desenvolvimento tecnológico
verificado hodiernamente.
Esse aspecto é potencializado pela mudança de comportamento do mercado consumidor,
cujas novas gerações não se focam na aquisição de propriedades e aumento de patrimônio
imobilizado. Preferem pagar pelo uso de bens e ter sua posse compartilhada, investindo
recursos em outras alternativas de consumo que agregam experiências diferenciadas a suas
vidas.
Como resultado, a cada dia surgem novos negócios alicerçados em tecnologias
inovadoras, com usuários espraiados em localidades que se coadunem com os interessas
desses empreendedores, abrindo novos caminhos na seara empresarial.
E novos caminhos trazem novos desafios, requerendo estudos cada vez mais
profundos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARDHI, Fleura; ECKHARDT, Giana. Access-based consumption, in Journal of Consumer
Research, Volume 39, Issue 4, 1 December 2012, Pages 881–898. Disponível em: https://
academic.oup.com/jcr/article/39/4/881/1798309. Último acesso em Fev 02 2020.
BRASIL, República Federativa do. Constituição Federal de 1988. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Último acesso em Fev 01 2020.
BOBBIO, Norberto. Teoria della scienza giuridica. Torino: Giappichelli, 1950.
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 17.ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2005.
CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. 4.ed. São Paulo: Editora
Noeses, 2011.

— 329 —
Os desafios para a aplicação da regra matriz de incidência diante do atual cenário de economia disruptiva
Thaís Cíntia Cárnio

SÃO PAULO, Prefeitura Municipal de. Resolução CMUV nº 16. Disponível em https://procondutor.com.
br/views/modal/download/Resolucao_16_07-julho-2017.pdf. Último acesso em Fev 01 2020.
OCDE, Organization for Economic Cooperation and Development. Addressing the tax challenges
of the digitalisation of the economy – public consultation document © OECD 2019.
Disponível em: https://www.oecd.org/tax/beps/public-consultation-document-addressing-the-
tax-challenges-of-the-digitalisation-of-the-economy.pdf. Último acesso em Fev 01 2020.
VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. 4.ed. São Paulo:
Editora Noeses, 2010.

— 330 —
O uso das biotecnologias para a acessibilidade
eleitoral plena das pessoas com deficiência
intelectual grave

Washington Rocha de Aquino1


Charles de Sousa Trigueiro2

Resumo: A soberania popular traduz a participação de todos os membros da sociedade, na tomada das
decisões políticas como forma do interesse público. O sufrágio universal assegura com que todos possam
eliminar as barreiras arquitetônicas ou sociais, para que grupos socialmente vulneráveis possam exercer o direito a
igualdade na política. Acontece que historicamente as pessoas com deficiência grave (principalmente intelectual)
foram alijadas destes direitos políticos, mas com a incorporação da Convenção da ONU e com o Estatuto da
pessoa com deficiência, o conceito de incapacidade civil absoluta foi retirado do código civil, consequentemente
fica prejudicado a suspensão constitucional da capacidade eleitoral, por incapacidade civil absoluta.
Palavras-chave: sufrágio. Capacidade. Eleitoral. Pessoa. deficiência.

Abstract: Popular sovereignty reflects the participation of all members of society, in making political
decisions as a form of public interest. Universal suffrage ensures that everyone can eliminate architectural
or social barriers so that socially vulnerable groups can exercise the right to equality in politics. It turns
out that historically people with severe disabilities (mainly intellectual) were removed from these political
rights, but with the incorporation of the UN Convention and the Statute of the disabled, the concept of
absolute civil disability was removed from the civil code, the constitutional suspension of electoral capacity,
due to absolute civil incapacity.
Keywords: suffrage; capacity; electoral; person; deficiency.

1
Servidor do Tribunal de Justiça da Paraíba; Bacharel em Ciências Jurídicas pelo Centro Universi-
tário de João Pessoa – UNIPÊ.
rochadeaquino@uol.com.br
Pós-graduação latu sensu, especialização em direito eleitoral pela PUC – MG
2
Doutorando em direito Público na Universidade de Santiago de Compostela; Bacharel e Mestre
em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB); Técnico Administrativo em
Educação na UFPB; charles.ufpb@hotmail.com

— 331 —
O uso das biotecnologias para a acessibilidade eleitoral plena das pessoas com deficiência intelectual grave
Washington Rocha de Aquino - Charles de Sousa Trigueiro

INTRODUÇÃO
Segundo a filósofa norte-americana Martha Nussbaum, nos dias que correm existe três
problemas de justiça social ainda não solucionados pelas teorias da justiça existentes, dessa
forma a autora faz uma crítica a teoria de John Ralks, indagando o porquê dos migrantes,
pessoas com deficiência e pertencimento à espécie não estarem incluídos na cidadania dos
países. (NUSSBAUM, 2013, p. 2)
O constituinte originário Brasileiro foi preconceituoso em determinar, nos artigos 14
a 17 da Constituição Federal de 1988 a suspensão dos direitos políticas das pessoas com
deficiência intelectual grave, da mesma forma, o novo Código Civil de 2003, já chegou velho,
ao manter as incapacidades civis absolutas.
Com a incorporação no ordenamento jurídico Brasileiro, com status de emenda
constitucional, da Convenção das Nações Unidas sobre os direitos das pessoas com deficiência
(CDPD), as chamadas incapacidades civis absolutas por deficiência intelectual grave foram
revogadas pelo artigo 12 da Convenção.
Considerando esse novo cenário o presente artigo tem como objetivo analisar a mudança
de jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que decidiu pela necessidade de rever
inscrições suspensão dos direitos políticos por incapacidade civil absoluta.3
Para realização da presente investigação foi necessário aplicar o método dogmático,
como a hermenêutica dos textos normativos recomenda, mas também o aporte à doutrina e à
transversalidade foram necessários, desde que se trata de tema interdisciplinar de elevado teor
político e sociológico, tudo alinhavado por uma tradição de pensamento racionalista igualitária.

1. DEMOCRACIA, CIDADANIA E DIREITO A PARTICIPAÇÃO DE TODOS


PERANTE A CONSTITUIÇÃO
Logo no preâmbulo da Constituição Federal de 1988, os constituintes trouxeram a
intenção de fazer surgir uma nova democracia sobre os direitos humanos apoiado no princípio
da dignidade da pessoa humana. (ALMEIDA, 2018)
Em consonância com o preâmbulo o art. 1º, da Constituição Brasileira, trouxe os
sustentáculos fundamentais do Estado democrático de direito, como: a cidadania; a dignidade
da pessoa humana e o pluralismo. (VELLOSO; AGRA, 2016)
Toda Constituição traz uma forma de conscientização dos direitos individuais, a teoria
do jurista alemão Konrad Hesse “A Força Normativa da Constituição” afirma que o respeito
as determinações constitucionais traduzem essa conscientização:

A constituição jurídica logra conferir forma e modificação à realidade. Ela logra


despertar “a força que reside na natureza das coisas”, tornando-a ativa. Ela própria
converter-se em força ativa que influi e determina a realidade política e social. Essa

3
TSE PA 114-71.2016.6.00.0000 – Classe 26, Rel. Maria Thereza, DJE 27/4/2016

— 332 —
O uso das biotecnologias para a acessibilidade eleitoral plena das pessoas com deficiência intelectual grave
Washington Rocha de Aquino - Charles de Sousa Trigueiro

força impõe-se de forma tanto mais efetiva quanto mais ampla for a convicção sobre
a inviolabilidade da Constituição, quanto mais forte mostrar-se essa convicção entre
os principais responsáveis pela vida constitucional. Portanto, a intensidade da força
normativa da constituição apresenta-se, em primeiro plano, como uma questão de
vontade normativa, de vontade de Constituição (WillezurVerfassung). (…)
… a tendência parece encaminhar-se para o malbaratamento (…) do respeito à
Constituição. Evidentemente, essa tendência afigura-se tanto mais perigosa se se
considera que a Lei Fundamental não está plenamente consolidada na consciência
geral, contando apenas com um apoio condicional. (HESSE, 2009, p. 137)

Ao definir os objetivos que o Estado democrático de direito pretende alcançar, o art. 3º


da Constituição Brasileira, passa a ser é a configuração que dirige e informa a intenção de
reduzir todas as formas de desigualdades. (JORGE; LIBERATO; RODRIGUES, 2017)
O direito das pessoas com deficiência intelectual grave foi inserido nessas bases do art.
1º e nas metas do art. 3º. Então, deixar essa parcela da população de fora das eleições, não
estaria ferindo o direito à liberdade do sufrágio universal? (GOMES, 2018, p. 14)
Faz-se necessário uma nova construção dos conceitos de Democracia e participação a
luz da indivisibilidade dos direitos humanos.
Por isso é necessário que exista a possibilidade do uso de biotecnologias em favor das
pessoas com deficiências graves, para que essas possuam usar do seu direito a igualdade no
voto, tanto quanto os normais. Exemplos de biotecnologias são ouvidos artificias.

2. O DIREITO A CAPACIDADE ELEITORAL ATIVA E PASSIVA PERANTE


A CONVENÇÃO DA ONU
Outro jurista alemão Peter Häberle no livro “A Sociedade Aberta dos Interpretes
da Constituição”, defende a participação dos mais variados membros da sociedade, na
interpretação da constituição, como pressuposto do regime democrático:

Propõe-se, pois, a seguinte tese: no processo de interpretação constitucional estão


potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potencias públicas,
todos os cidadãos e grupos, não sendo possível estabelecer-se um elenco cerrado
ou fixado com numerus clausus de intérpretes da Constituição. […] A interpretação
constitucional é, em realidade, mais um elemento da sociedade aberta. Todas as
potencias públicas, participantes materiais do processo social, estão nela envolvidas,
sendo ela, a um só tempo, elemento resultante da sociedade aberta e um elemento
formador ou constituinte desta sociedade. (HABERLE, 2002, p. 13)

Esta teoria enquadra-se perfeitamente no que diz o Artigo 4, 3 da Convenção das Nações
Unidas sobre os direitos das pessoas com deficiência (CDPD).
Como destacou Gerard Quinn, as pessoas com deficiência intelectual grave possuem a
garantia de oitiva nas decisões políticas que afetem seus direitos (artigo 33 da Convenção).
(QUINN, 2008, pp. 131).

— 333 —
O uso das biotecnologias para a acessibilidade eleitoral plena das pessoas com deficiência intelectual grave
Washington Rocha de Aquino - Charles de Sousa Trigueiro

A Constituição Brasileira de 1988 procurou, em diversos artigos, proteger e integrar


os grupos socialmente vulneráveis na vida pública e privada. Assim, como garante o direito
da capacidade eleitoral ativa e passiva. Embora, na prática, esses grupos vulneráveis não
consigam o acesso devido nas eleições.
Essa tese do pluralismo e diversidade foi observada na alínea “m” do preâmbulo
da Convenção da Organização das Nações Unidas Sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência.
A inclusão social das pessoas com deficiência intelectual grave nos vários segmentos
da comunidade contribui para o fim da pobreza e reduzir as marginalidades oriundas da
desigualdade social, promovendo o bem de todos, sem preconceitos ou discriminações, in
verbis.4
A questão da participação eleitoral ativa e passiva, através da acessibilidade ao sufrágio
universal foi destacada no artigo 29 da Convenção.
No momento em que é assegurado as pessoas com deficiência grave de participarem da
vida política, pelo artigo 29 da CDPD:

Trata-se de direitos ativos porque possibilitam uma “intromissão” do indivíduo na


esfera da política decidida pelas autoridades do estado (o Indivíduo pode entrar no
Estado). Os direitos mais característicos são o direito de escolher os representantes
políticos (sufrágio) e de participar diretamente na formação da vontade política
(referendo, participação em partidos políticos). (DIMOULIS, 2009, p. 58).

Conforme o artigo 29 da Convenção da ONU dos direitos das pessoas com deficiência
(CDPD), que fala da “participação na vida política e pública” algumas perguntas podem
surgir: Esse direito a participação é um fundamental clássico? Então, o direito das pessoas
com graus mais graves de deficiência, participar da vida política (status activus) liga-se ao
centro da liberdade? (status negativus), uma vez que caso a pessoa com deficiência grave não
possa gozar do seu direito de votar e ser votado, isso significaria a falta de liberdade daquelas
pessoas, o não exercício da cidadania.

4
Deputada de um Estado Brasileiro entrou o com Mandado de Segurança para viabilizar seu acesso
a tribuna de fala da assembleia legislativa, uma vez que a mesma é pessoa com deficiência física, fazendo
necessário o uso de cadeiras de rodas.
O presidente da Assembleia Legislativo foi omisso ao não implementar a medidas que asseguração a
participação da deputada na sustentação oral da tribuna, a interpretação foi com base no art. 227, da Cons-
tituição Federal de 1988 do Brasil e da Lei Brasileria n.º 7.853, de 24/10/89.
A decisão fundamentou que a tribuna é importante para o deputado fazer uso da palavra, além do mais
a falta de isonomia agride a dignidade da pessoa humana. E que a filosofia do desenho universal assegura
a adaptação razoável para a acessibilidade das pessoas com deficiência.
“CONSTITUCIONAL. MANDADO DE SEGURANÇA. PARLAMENTAR. DEFICIENTE FÍSICO.
UTILIZAÇÃO DA TRIBUNA DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA. ACESSO NEGADO. ILEGALI-
DADE. IGUALDADE DE TRATAMENTO. VALORIZAÇÃO DE PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL”.
(ROMS 19980022876, JOSÉ DELGADO, STJ. PRIMEIRA TURMA, 01/07/1999).

— 334 —
O uso das biotecnologias para a acessibilidade eleitoral plena das pessoas com deficiência intelectual grave
Washington Rocha de Aquino - Charles de Sousa Trigueiro

A primeira parte do artigo 29 da CDPD diz que o estado deve garantir a participação
das pessoas com deficiência na vida política, seja na promoção de acessibilidade no dia da
votação, seja assegurando a vontade de escolher pessoa de sua confiança para auxiliar no
dia da votação. Bem como, o artigo 29 determina que as pessoas com deficiência deverão
participar dos partidos políticos, para se candidatar e ocupar cargos eletivos.
O que chamamos de exercício pleno dos direitos políticos, contemplados nos artigos 14
a 17 da Constituição Federal, tinha uma exclusão preconceituosa, que era a suspensão dos
direitos civis por incapacidade absoluta, com o advento do estatuto da pessoa com deficiência,
o conceito de incapacidade absoluta por deficiência intelectual grave foi retirado:

Sobre a relação entre capacidade jurídica e voto, o artigo 85 da LBI, deu passo
importantíssimo, inclusive conceitual, em direção à efetiva implementação da
Convenção da ONU e à concretização dos direitos das pessoas com deficiência, ao
expressamente afirmar que a curatela afetará tão somente os atos relacionados aos
direitos de natureza patrimonial e negocial, não podendo restringir, dentre outros, o
direito de voto. (DIAS; JUNQUEIRA, 2016, p. 296)

O artigo 76, § 1º combinado com o 114 da Lei Brasileira de Inclusão revoga a


incapacidade civil absoluta do artigo 3º do Código Civil, consequentemente, o artigo 29 da
Convenção torna letra morta a restrição de direitos políticos prevista no inciso II do artigo 15
da Constituição, ou seja, esse tratado internacional de direitos humanos aprovado com status
de emenda constitucional, assegura às pessoas com deficiência intelectual grave não só o
direito de voto, bem como de serem votadas. Com isso, não existirá mais as discriminações
“o TSE somente poderá continuar estabelecendo ‘seções eleitorais especiais’ se não forem
exclusivas para os eleitores e eleitoras com deficiência e, sem prejuízo, é claro, de garantia da
acessibilidade de todo e qualquer local de votação”. (DIAS; JUNQUEIRA, 2017, p. 170)
O estatuto da pessoa com deficiência também alterou o código eleitoral no sentido
de promover a acessibilidade para pessoas com problemas de mobilidade ou deficiência
sensorial.5
Contudo, mesmo antes da promulgação do estatuto, a Resolução TSE nº 23.381/12
do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) já tratava do Programa de Acessibilidade da Justiça
Eleitoral.6
O art. 76, §1º, do estatuto combinado com a Resolução do Tribunal Superior Eleitoral
dentre outros direitos, assegura que:

5
§6o-A. Os Tribunais Regionais Eleitorais deverão, a cada eleição, expedir instruções aos Juízes
Eleitorais para orientá-los na escolha dos locais de votação, de maneira a garantir acessibilidade para o
eleitor com deficiência ou com mobilidade reduzida, inclusive em seu entorno e nos sistemas de transporte
que lhe dão acesso.
6
“Objetivando a plena acessibilidade nos locais de votação, os Tribunais Regionais Eleitorais, em
conjunto com as respectivas Zonas Eleitorais, elaborarão plano de ação destinado a: I - expedir, a cada elei-
ção, instruções aos Juízes Eleitorais, para orientá-los na escolha dos locais de votação de mais fácil acesso
ao eleitor com deficiência física.”

— 335 —
O uso das biotecnologias para a acessibilidade eleitoral plena das pessoas com deficiência intelectual grave
Washington Rocha de Aquino - Charles de Sousa Trigueiro

Nesse sentido, por exemplo, o Programa estabelece que as urnas eletrônicas,


além das teclas em Braille, também devem ser habilitadas com sistema de áudio,
fornecendo os Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) fones de ouvido nas seções
eleitorais especiais ou, quando solicitados, por eleitor com deficiência visual. Ou
ainda: os mesários devem ser orientados pelos Tribunais Eleitorais para facilitar
todo o processo de adaptação à Resolução, estando previsto, inclusive, parcerias
para incentivar o cadastramento de colaboradores com conhecimento em Língua
Brasileira de Sinais (Libras).
Além disso, os TREs devem contar com comissão multidisciplinar destinada a
elaborar plano de ação contemplando as medidas previstas na Resolução, acompanhar
as atividades realizadas, e encaminhar o respectivo relatório ao TSE até o dia 20 de
dezembro de cada ano.
Quanto à acessibilidade digital, os sites dos TREs devem ser adaptados a todos os
tipos de deficiência, para garantia do pleno acesso, e disponibilizar a legislação
eleitoral também em áudio. (DIAS; JUNQUEIRA, 2017, p. 172)

No primeiro Relatório Nacional sobre o cumprimento das disposições da Convenção


da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, o Brasil admitiu que ainda não
assegurava a participação política plena das pessoas com deficiência.7 Nas observações finais
sobre o relatório retro brasileiro, de 1º de setembro de 2015, o Comitê da ONU criticou a falta
de acessibilidade eleitoral no Brasil.8
A única forma de o Brasil cumprir com efetividade a CDPD é fazendo o uso das
biotecnologias no ambiente de votação inclusive, com urnas eletrônicas adaptadas ao ambiente
biotecnológico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Depois do julgamento pelo Tribunal Superior Eleitoral do processo número TSE PA 114-
71.2016.6.00.0000 – Classe 26, Rel. Maria Thereza, DJE 27/4/2016, todos os casos de inscrições
em suspensão dos direitos políticos por incapacidade civil absoluta devem ser revistos.
O Estatuto da Pessoa com Deficiência revogou o conceito de incapacidade civil absoluta
previsto no Código Civil Brasileiro, com isso a interpretação Constitucional passa a ser que
não existe mais restrição da capacidade eleitoral.
Desta forma, as pessoas com deficiência intelectual grave possuem capacidade eleitoral
ativa e passiva, tendo pleno exercício dos direitos políticos, uma vez que não existe mais no
ordenamento jurídico brasileiro, a incapacidade civil absoluta por motivo de deficiência.

7
1º Relatório nacional sobre o cumprimento das disposições da Convenção sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência. Disponível em: http://www.sdh.gov.br/assuntos/ pessoa-com-deficiencia/dados-
estatisticos/relatorio-de-monitoramento-da-convencao. Acesso em 18 fev. 2019.
8
Disponível em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G15/220/75/ PDF/G1522075.
pdf?OpenElement. Acesso em 18 fev. 2019.

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O uso das biotecnologias para a acessibilidade eleitoral plena das pessoas com deficiência intelectual grave
Washington Rocha de Aquino - Charles de Sousa Trigueiro

A república necessita da participação de todos os cidadãos, um ambiente de exclusão é


anti democrático, por isso não existe motivo para fazer restrição por motivo de deficiência.
Sempre que o legislador for tomar uma decisão que afete os direitos das pessoas com
deficiência, estes devem ser ouvidos, através de associações, etc.
O brasil deve adotar o uso das biotecnologias nas urnas eletrônicas para assegurar o voto
das pessoas com deficiência grave.
Portanto, todos os seres humanos são iguais em direitos, qualquer restrição da capacidade
eleitoral das pessoas com deficiência intelectual agride aos princípios da liberdade e da
igualdade, pilar da teoria da justiça de John Rawls, onde Martha Nussbaum faz uma crítica
a exclusão da cidadania das pessoas com deficiência “nenhum grupo social foi e é tão
estigmatizado de modo tão doloroso como o das pessoas com deficiências físicas e mentais”.
(Nussbaum, 2004, p. 348)

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Roberto Moreira de. Curso de direito eleitoral. 12. Ed. rev. ampl. e atual. Salvador:
JusPODIVM, 2018.
DIAS, Joelson; JUNQUEIRA, Ana Luísa Cellular. A lei brasileira de inclusão e o direito das pessoas
com deficiência à participação na vida pública e política. In: LEITE, Flávia Piva Almeida;
RIBEIRO, Lauro Luiz Gomes; COSTA FILHO, Waldir Macieira da. Comentários ao Estatuto
da Pessoa com Deficiência. São Paulo: Saraiva, 2016.
______. O Direito à Participação Política das Pessoas com Deficiência. Resenha Eleitoral
(Florianópolis), v. 21, n. 1, p. 159-180, nov. 2017.
DIMOULIS, Dimitri; Martins, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 2. Ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2009, p. 58.
GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 14. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2018.
HABERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. Porto Alegre: Sergio Antono Fabris Editor: Porto
Alegre, 2002.
HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. In: Temas Fundamentais do Direito
Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009.
JORGE, Flávio Cheim; LIBERATO, Ludgero; RODRIGUES, Marcelo Abelha. Curso de direito
eleitoral. 2. ed. rev., atual. e ampl. Salvador: Ed. JusPodivm, 2017.
NUSSBAUM. Martha C. Fronteiras da justiça: deficiência, nacionalidade, pertencimento à espécie.
Tradução de Susana de Castro. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013.
______. El ocultamento de lo humano: repugnância, vergüenza y ley – traducido por Gabriel
Zadunaisky ed. Buenos Aires: Katz, 2006.
QUINN, Gerard. The UN convention on the rights of persons with disabilities. National Institutions as
key catalysts of change. IN: Mecanismos nacionales de monitoreo de la convencion sobre los
drechos de las personas con discapacidad.1 ed. Comision nacional de los derechos humanos.
DF México, 2008.
VELLOSO, Carlos Mário da Silva; AGRA, Walber de Moura. Elementos de direito eleitoral. 5. ed.
São Paulo: Saraiva, 2016.

— 337 —
Ai and dispute resolution

Mariusz Załucki1

Abstract: The office of a judge is nowadays an indispensable part of the system of governance.
However, this does not mean that the legal regulation of this area is optimal and this area does not pose
any challenges for lawyers. Moreover, there is no general consensus on how state power, including that
of the courts, should be exercised. Judicial power is usually one of the balancing powers in democratic
countries, independent of the executive and legislative powers. This power has its problems, such as
the length of judicial proceedings and the inefficiency of the entire judicial system. For some time now,
therefore, various mechanisms have been sought to solve the existing problems of this authority. In the
world of new technologies, i.e. the world in which we live, more and more instruments are responsible for
mechanising certain elements of our lives. In this connection a dilemma arises, among others, whether some
of the tasks of the judiciary can be realized in a mechanized, automated way. This is because technological
achievements may already today allow for their application in the justice system. Here it wonders whether
there is a possibility that at least a part of court cases could be solved in an automated way, i.e. without
the participation of a judge and with the use of algorithms and artificial intelligence. The author looks
at this area and wonders about the technological possibilities created by the use of artificial intelligence
mechanisms to resolve some court disputes.
Keywords: judiciary, artificial intelligence, AI, dispute resolution

1. Introduction.
The exercise of judicial power has undergone various transformations over the centuries2.
Nowadays, it is safe to say that a certain standard of exercising this power, based on the
paradigm of autonomy, independence and irremovability, has developed at the international

1
Full Professor of Law, AFM Krakow University (Poland), mzalucki@afm.edu.pl.
2
Dobner, P., “More Law, Less Democracy? Democracy and Transnational Constitutionalism”, The
Twilight of Constitutionalism, eds. Dobner P., Loughlin M., Oxford University Press, Oxford 2010, p. 141
et seq.

— 338 —
Ai and dispute resolution
Mariusz Załucki

level3. Courts and judges are an independent element of public authority in a modern state,
an indispensable element of the system of exercising that authority4. However, this does not
mean that the legal regulations in this area are optimal, and this area does not pose any
challenges for lawyers. The biggest of the latter have recently been problems concerning
the efficiency and effectiveness of the justice system5. The society’s waiting time for the
courts to resolve disputes is often exceptionally long. Therefore, in recent years, a discussion
covering the future of courts, judges and the judiciary has become increasingly bold6. The
negative consequences of delayed court proceedings are quite obvious7. In criminal cases,
a guilty verdict, and in particular a conviction after a dozen or even several dozen years of
committing a crime, will raise questions about whether justice has actually been served8. The
sense of repression and the purposefulness of the rehabilitation impact may also be questioned,
especially in relation to perpetrators who have not returned to the crime. In civil cases, on
the other hand, the lengthy duration of civil proceedings may lead not only to a distortion of
the sense of the actual administration of justice, but may also result in the fact that granting
legal protection (issuing a judgment) will be only of an illusory nature9. Finally, in cases
for payment, it is possible to lose the value of the service resulting from the devaluation of
money or the disposal of the value of property to which the enforcement can be directed, and
in cases for the issuance of an item, there may be even a loss of its usefulness associated with,
for example, technological progress. With the passage of time, a court decision may lose its
meaning for the parties. Therefore, the lengthiness or long duration of court proceedings is an
undesirable state10. The right to a fair trial, as an important international standard resulting from
Article 6 of the European Convention for the Protection of Human Rights and Fundamental

3
Stępień-Załucka, B., Sędziowski stan spoczynku. Studium konstytucyjnoprawne, C.H. Beck,
Warszawa 2019, passim.
4
Campbell, T., Separation of Powers in Practice, Stanford University Press, Stanford 2004, p. 1 et seq.
5
Cf., for example, evaluation of the polish judiciary: Ocena polskiego sądownictwa w świetle
badań, Fundacja Court Watch Polska, Warszawa 2017, https://courtwatch.pl/wp-content/uploads/2017/05/
Raport-Fundacji-Court-Watch-Polska-Ocena-polskich-s%C4%85d%C3%B3w-w-%C5%9Bwietle-
bada%C5%84-maj-2017.pdf.
6
Cf. Zeleznikow, J., “Can Artificial Intelligence And Online Dispute Resolution Enhance Effi-
ciency And Effectiveness in Courts”, International Journal for Court Administration, vol. 8, No. 2, 2017,
pp. 30-45.
7
Cf. Calves, F., Regis, N., Length of Court Proceedings in the Member States of the Council of
Europe Based on the Case Law of the European Court of Human Rights, CEPEJ, Strasbourg 2018, pp.
1-122. See also, Ghosh, Y., “Indian Judiciary: An Analysis of the Cycilc Syndrome of Delay, Arrears and
Pendency”, Asian Journal of Legal Education vo. 5, No. 1, 2017, pp.21-39; Runciman, B., Baker, G.,
Delaying Justice is Denying Justice: An Urgent Need to Address Lengthy Court Delays in Canada, Senate,
Ottawa 2017, passim.
8
Henzelin M., Rodorf H., “When Does the Length of Criminal Proceedings Become Unreason-
able According to the European Court of Human Rights”, New Journal of European Criminal Law, vol. 5,
No. 1, 2014, pp. 78-109.
9
See also Pragadeeswaran, Udayavani, “A Study on Delay in Civil Proceedings”, International
Journal of Pure and Applied Mathematics, vol. 120, No. 5, 2018, pp. 2571-2582.
10
Edel, F., The Length of Civil and Criminal Proceedings in the Case-law of the European Court of
Human Rights, Council of Europe Publishing, Strasbourg 2007, p. 7 et seq.

— 339 —
Ai and dispute resolution
Mariusz Załucki

Freedoms11, requires the case to be reviewed “within a reasonable time”. The examination of
a case without undue delay is therefore part of the right to a fair trial12.
Against this background, it is not surprising that individual legislators and representatives
of the doctrine are making efforts to speed up judicial procedures and thus to reduce the
duration of specific cases. Possible new concepts in the discussed area should ensure
organisational, personnel and legislative conditions allowing for objective and efficient
handling of cases, preventing their lengthy delays and striving for their settlement as soon as
possible. In the public space there are a number of simple recipes for solving such problems,
which, however, are not always possible to use in practice. One such idea, which already has
a history, is to use technological solutions in the judiciary13. Over the last few decades, the
use of various technologies in the judiciary is noticeable to everyone14. Court hearings are
recorded, justifications for judgements are reproduced in an automated way, while searching
for legal arguments to create them, the judges are assisted by computer programs, which are
the basis for previous judgements and doctrine views, etc. All this is aimed at improving
the functioning of the judiciary, speeding up the time of examination of individual cases.
This does not mean, however, that today’s technology does not allow for more. The current
industrial revolution has developed a number of mechanisms to automate specific processes,
supported by solutions based on the so-called artificial intelligence, knowledge including
evolutionary calculations, neural networks, artificial life and robotics15. The diversity,
effectiveness and universality of the use of artificial intelligence in practice forces, among
other things, questions about the possibility of using artificial intelligence in the judiciary,
if only for the purpose of settling disputes, and thus also about the possibility of replacing
a judge with a computer program simulating his behaviour. The future of the judiciary may
therefore also depend on the further development of artificial intelligence. In this statement, I
therefore wonder how far artificial intelligence could interfere with the judiciary and be used
to settle cases in courts, and whether its application could help to improve and accelerate the
operation of the justice system.

2. Artificial intelligence.
It should be reminded that the issue of artificial intelligence has been the subject of interest
to science for several decades16. It is in the mainstream of observation of many scientific
fields, including technical or social sciences. Artificial intelligence is also seen as important
in the fourth industrial revolution, which is currently under way and is expected to bring a
number of breakthrough changes to the economy. Among other things, it is assumed here

11
Full text available at: https://www.echr.coe.int/Documents/Convention_ENG.pdf
12
See Bado, A, Fair Trial and Judicial Independence, Springer 2014, passim.
13
Cf. Allsop, J., “Technology and the Future of Courts”, University of Queensland Law Journal,
vol. 38, No. 1, 2019, pp. 1-14.
14
Cabral, J. E. et al, “Using Technology to Enhance Access to Justice”, Harvard Journal of Law &
Technology. Vol. 26, No. 1, 2012, pp. 243-324.
15
Bennett Moses L., “Artificial Intelligence in the Courts, Legal Academia and Legal Practice”,
Australian Law Journal, vol. 91, 2017, p. 561-574.
16
Cf. Turing A., “Computing Machinery and Intelligence”, Mind, vol. 59, No. 236, 1950, p. 433 et seq.

— 340 —
Ai and dispute resolution
Mariusz Załucki

that artificial intelligence systems will be able to solve problems whose scale and complexity
are beyond human capabilities17. Taking into account the expected area of application and
numerous doubts related to the nature of the technology in question, it is understandable
that the problem of development, implementation and maintenance of artificial intelligence
systems is also in the area of interest of legal science. One of the manifestations of this is the
consideration of the automation of various areas of life and the legal consequences associated
with them, both in the sphere of private and public law. With the rise of the Internet and the
dynamic development of e-services, a new form of data processing, related to the analysis of
large data sets (Big Data), has also gained in popularity18. It has become one of the foundations
for the development of a new generation of IT systems known as intelligent agents. These
systems have the ability to self-learn (machine learning) thanks to such data sets, and thus can
solve specific problems and make various decisions19. All of this can happen much faster than
a similar process undertaken by people. This in turn seems to be a sufficient impulse for many
to carry out more in-depth research in this area and to consider various possible applications
of solutions based on the capabilities of artificial intelligence.

3. Perspectives to the judiciary.


In this light, it is not surprising that, according to an increasingly boldly proclaimed
view, the progressive development of artificial intelligence opens up new perspectives also
to the judiciary20. After all, computer algorithms have been used for a long time to analyze
various data resources, and they do it much faster and more accurately than people, which
seems to be tempting also in the justice system. Electronic data already exists in courts today,
which benefits both the administration of justice and the users of its services21. The judiciary
can finally be seen as a system of data processing. Information is received by the court in the
form of a document, it is supplemented and verified by collecting and evaluating data in the
course of evidence proceedings, and the result of these activities is a court decision. A court
decision is a statement about the data collected by the court, including data in the form of
views of doctrine and court rulings22. Continuous development of techniques improving the
performance of the tasks of the judiciary makes it possible to adjust the landscape of courts
to the requirements of society driven by technological development. One of the proposed
changes, which may significantly influence the way of performing such a specific judicial

17
Rojszczak M., “Prawne aspekty systemów sztucznej inteligencji – zarys problemu”, Sztuczna in-
teligencja, blockchain, cyberbezpieczeństwo oraz dane osobowe, eds. Flaga-Gieruszyńska K., Gołaczyński
J., Szostek D., C.H. Beck, Warszawa 2019, p. 1 et seq.
18
Ibidem.
19
Cf. Weiss G., Distributed Artificial Intelligence Meets Machnie Learning, Springer 1996, passim.
20
Sartor G., Branting L. K., “Introduction: Judicial Applications of Artificial Intelligence”, Judi-
cial Applications of Artificial Intelligence, eds. Sartor, G., Branting, K., Kluwer Law International, 1998,
pp. 105-110.
21
Cerello i Martinez A., Fabra i Abat P., E-Justice: Information and Communication Technolo-
gies in the Court System, Hershey, New York, 2008, passim.
22
As correctly pointed out by Gołaczyński J., Dymitruk M., “Elektroniczny sąd a sztuczna in-
teligencja w prawie polskim”, Sztuczna inteligencja, blockchain, cyberbezpieczeństwo oraz dane osobowe,
eds. Flaga-Gieruszyńska K., Gołaczyński J., Szostek D., C.H. Beck, Warszawa 2019, pp. 52-53.

— 341 —
Ai and dispute resolution
Mariusz Załucki

function, is precisely the idea of using artificial intelligence, aimed at improving the activity
of courts23. It seems intuitively that the use of artificial intelligence in the judiciary would
allow for the acceleration of the process of analysis of data collected in a given case, and thus
the examination of individual court cases, which nowadays seems to be the main problem of
the judiciary, as already mentioned.
There are at least two theoretical possibilities of using artificial intelligence in the
judiciary. First of all, it may involve the support of a judge precisely in the analysis of data and
assistance in legal arguments when choosing a specific legal measure used by the court. This
is because there are huge databases available which contain the entire body of national, EU
and international legislation (including the Council of Europe, the United Nations and other
organisations). The case-law of national courts, the Court of Justice of the European Union or
the European Court of Human Rights can also be used. Extensive databases of jurisprudence,
i.e. the views of doctrine contained in monographic publications, commentaries or journals
(nowadays, the vast majority of them are also maintained electronically) are also worthy of
use24. The above data, combined with data on the facts of the case established in the course of
court proceedings, may enable faster, more efficient and effective processing of information
in the judiciary, including in the sphere of jurisdictional activities. The latter sphere is the
second opportunity, where a model of full automatization of judicial proceedings also seems
to be attractive25. In this model, artificial intelligence will not only have the task of supporting
a person in the analysis of collected data, but also of replacing him/her, analyzing data and
resolving a given case. So in substitution of the man’s judge there will appear a “robot” judge.
Is such a vision of the future at all possible?

4. Some examples.
A certain impulse for further research in this area may be provided by the outcome of a
recent test carried out in 584 cases brought before the European Court of Human Rights. The
computer, after analyzing the documents, envisaged 79% of the court’s decisions concerning
claims under Article 3 (prohibition of torture, inhuman and degrading treatment), Article 6
(right to a fair trial) and Article 8 (right to respect for private and family life) of the European
Convention for the Protection of Human Rights and Fundamental Freedoms26. Undoubtedly,
the level of complexity of the matter being resolved and the complexity of the issues raised
allows for an optimistic view of the possibility of creating an algorithm for resolving other
cases. At the same time, the results of this test are not the only impulse to encourage further

23
Cf. Loebl Z., Designing Online Courts, Kluwer Law International 2019, passim.
24
Gołaczyński J., Dymitruk M., “Elektroniczny sąd a sztuczna inteligencja w prawie polskim”…,
p. 53.
25
Cf. Dymitruk M., “The Right to a Fair Trial in Automated Civil Proceedings”, Masaryk Univer-
sity Journal of Law and Technology, vol. 13, No. 1, 2019, p. 27 et seq. See also Aplers S. et al., “Legal
Challenges of Robotic Process Automation (RPA) in Administrative Services”, Semantics Posters&Demos
2019, p. 1 et seq.
26
Aletras N., Tsarapatsanis D., Preotiuc-Pietro D., Lampos V., “Predicting judicial
decisions of the European Court of Human Rights: a Natural Language Processing Perspective”, PeerJ
Computer Science No. 2, 2016, p. 93 et seq.

— 342 —
Ai and dispute resolution
Mariusz Załucki

research. A similar test was also conducted in the United States of America, where artificial
intelligence analyzed more than 28,000 cases filed before the US Supreme Court between
1816 and 2015 on the basis of the algorithm and predicted 70.2 % of the settlements27. This
seems to be another motivation to try to continue searching for alternative methods of settling
cases. Such tests, as indicated above, show that artificial intelligence can be an interesting
tool to assist in the administration of justice, and may one day be able to replace “real” judges.
This idea is not entirely new, as concepts related to it appeared already in the 1970s28.
In recent months, however, there has been a growing awareness of a project coming
from Estonia, where the first steps are taken by a mechanism that assists judges by collecting
certain data necessary to settle a given case and analysing them in order to resolve the case in
the fairest way. This mechanism is intended, among other things, as a response to the inability
of the courts to deal with the growing number of cases, so one of the motivations for working
on this solution is to improve the efficiency and effectiveness of case handling. Its first task
is to resolve the so-called small cases where the value of the object of the dispute does not
exceed €700029. This is certainly another step aimed at taking this type of solution based on
artificial intelligence seriously, where the participation of the judge is small (minimized)30.
If we add such solutions as the Correctional Offender Management Profiling for Alternative
Sanctions (COMPAS)31 from the United States of America assessing the risk of recidivism
on the basis of 137 types of data or the tests carried out in France on software determining
the amount of severance pay for redundancies without good reason, which aimed to reduce
excessive variation in jurisprudence32, as well as the Shanghai-based “Shanghai Intelligent
Assistive case-handling system for criminal cases - System 206”33, it suddenly turns out that
there is a space being slowly created for artificial intelligence to resolve certain categories
of cases. At the same time, it should be mentioned that in China, among others, there are
already “intelligent” Internet courts (Hangzhou, Beijing, Guangzhou), which have already
resolved over 3 million cases, and their functioning is based on algorithms using artificial
intelligence34.
A similar idea is also the basis for a new project in Poland, where an electronic arbitration
court has been established and software is currently being developed to replace people in up to

27
Katz D.M., Bommarito M.J. II, Blackman J., “A General Approach for Predicting the Behaviour
of the Supreme Court of the United States”, PLOS ONE, No 3, 2017, passim.
28
Cf. D’Amato A., “Can/Should Computers Replace Judges?”, Georgia Law Review, No. 11, 1977,
pp. 1277–1301.
29
Gyuranecz F. Z., Krausz B., Papp D., The AI is Now in Session. The Impact of Digitalization on
Courts, Budapest 2019, p. 8.
30
Re R. M., Solow-Niderman A., “Developing Artificially Intelligent Justice”, Stanford Technol-
ogy Law Review, vol. 22, 2019, p. 243 et seq.
31
Brennan T., Dieterich W., Ehret B., “Evaluating the Predictive Validity of the Compas Risk and
Needs Assessment System”, Criminal Justice and Behavior, No. 1, 2019, p. 21 et seq.
32
Letterton R.,” L’accés numérique au droit”, Annales des Mines, No. 3, 2018, pp. 68-72.
33
Cf. Cui Y., Artificial Intelligence and Judicial Modernization, Springer 2020, p. 43 et seq.
34
Cf. Xu A. L., “Chinese Judicial Justice on he Cloud: A Future Call or a Pandora’s Box? An Analy-
sis of the ‘Intelligent Court System’ of China”, Information & Communications Technology Law, vol. 26,
No. 1, 2017, pp. 59-71.

— 343 —
Ai and dispute resolution
Mariusz Załucki

80% of the process related to conducting a case and delivering judgments35. It is planned hereby
that the first modules based on artificial intelligence will start working in this court as early as in
2020, and one of the first basic tasks of the new system is to automatically prepare a justification
for a judgment (that will still remian a man’s work)36. Ultimately, however, it is assumed that in
the future the artificial intelligence will prepare the entire judgment, processing for this purpose
the data and positions of the parties collected in the course of proceedings, as well as the current
line of rulings of other courts. Thus, the future seems extremely intriguing. It is estimated that in
this way the traffic jams in courts will disappear, cases will be resolved several times faster, and
thus the citizen’s access to justice will become more real. It is stressed that such solutions will
also ensure the stability of jurisprudence and uniformity of jurisprudence, which is certainly
another noteworthy value. Therefore, the postulates of introducing artificial intelligence into the
judiciary should certainly not be underestimated.

5. Some conclusions.
In this light, it should therefore be recognised that it is worthwhile to continue researching
possible applications of artificial intelligence in the judiciary, carrying out further tests and
searching for an optimal model for the application of this technology37. Perhaps in the further
future it will also be necessary to prepare a legal framework for the functioning of such solutions,
starting with the provisions of constitutional law and ending with regulations that determine
individual judicial procedures38. Today’s legislation does not always allow for such far-reaching
changes in the judiciary. However, we should wait for further developments. There is no doubt
that the world of new technologies is being laid out in isolation from the legal world. First
of all, technical tools appear and are launched, which from the legal point of view operate
primarily on the principle of freedom of contract and classic private law, and it is only with
time that legislative action and legal regulation occurs. Thus, technology functions in a way
with its own life, and law and lawyers with their own. It is only with time, when it is necessary,
that appropriate legislation is introduced. At the same time, we are witnessing an increasingly
serious technologicalisation of law39, in which the law is in a way encapsulated in programming
codes. It is necessary to remember this and reach far into the future, so that the application of
modern information technologies in the judiciary is not erroneous and short-sighted. Computers
used e.g. in courts for registration of cases only duplicate registration activities, and even
efficient maintenance of the catalogue of cases will not speed up their investigation. Therefore,
the aim of the future should be to rationally use (already possessed by courts) data in electronic
form and to ensure the widest possible scope of their application, i.e. to ensure that the use of
information and communication technologies within the framework of the justice system goes

35
Szygulski P., „Sztuczna inteligencja wesprze rozpatrywanie spraw w sądzie”, wnp.pl Tech,
18.12.2019, http:/wnp.pl/.
36
Ibidem.
37
Garapon A., Lassègue J., Justice digitale. Révolution graphique et rupture anthropologique, puf,
Paris, 2018, passim.
38
See also Ovi C. et al., “The Judge of the Future: Artificial Intelligence and Justice, Themis 2019,
p. 1 et seq.
39
Cf. Szostek D., Blockchain and Law, Nomos 2019, passim.

— 344 —
Ai and dispute resolution
Mariusz Załucki

beyond the auxiliary function and leads to rationalisation effects on the part of all participants in
proceedings. This is also the intention behind the use of artificial intelligence techniques in law.
Therefore, it is worthwhile not only to discuss it, but also to think about the rapid implementation
of some basically already ready-made solutions. Artificial intelligence in the judiciary on a large
scale is only a matter of time.

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Mariusz Załucki

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— 346 —
A autodeterminação informacional como preceito
fundamental ao direito à desindexação segundo o
RGPD e o TJUE

João Alexandre Silva Alves Guimarães1


Fernanda Daltro Costa Knoblauch2

Resumo: O Direito à desindexação veio à tona com a decisão do Acórdão Google, em 2014, que
considerou que os resultados das pesquisas apresentadas nos motores de busca sofrem tratamento de dados,
fazendo com que todos os direitos dos detentores de dados devessem ser resguardados também nesse
ambiente. Já na Diretiva 95/46 existia o direito ao apagamento, ou seja, todo dados que era recolhido tinha
que ter uma finalidade e um prazo e findado um ou ambos o dado deveria ser apagado ou tornado anônimo.
Como o motor de busca não possui um dado e apenas indexa informações de terceiros, o TJUE reconheceu
o direito a quem estivesse no espaço do Estados-Membros de desindexar alguma informação quando era
buscado seu nome. O RGPD então colocou esse direito reconhecido em seu rol de proteção, prevendo no
seu artigo 17.º esse direito, porém denominado “Direito ao Esquecimento.”. Esse trabalho irá expor o erro
do legislador ao colocar “Direito ao Esquecimento” e não “Direito à desindexação” como seria o correto.
Apresentando que a desindexação é princípio fundamental e um direito humano no espaço da União
Europeia, pois baseia-se no princípio da Autodeterminação Informacional previsto em constituições dos
Estados-Membros desde os anos de 1970 e que deve ser protegido e de amplo acesso a todos os usuários
dos motores de busca.
Palavras-chave: Autodeterminação Informacional, RGDP, Direito à desindexação, Acórdão Google.

Abstract: The right to de-indexation came to the fore with the decision of the Google Judgment, in
2014, whichconsideredthattheresultsofsearchespresentedonsearchenginesundergo data treatment, making all

1
Doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra, Portugal. Mestre em Direito da União
Europeia pela Universidade do Minho, Portugal, joaoalexgui@hotmail.com.
2
Doutoranda em Direito pela Universidade de Coimbra, Portugal. Mestre em Direito da Família
na Sociedade Contemporânea pela Universidade Católica de Salvador, Brasil, fernandaknoblauch@gmail.
com.

— 347 —
A autodeterminação informacional como preceito fundamental ao direito à desindexação segundo o RGPD e o TJUE
João Alexandre Silva Alves Guimarães - Fernanda Daltro Costa Knoblauch

the rights of data holders also to be protected in this environment. In Directive 95/46, the right to erase existed,
that is, all data that was collected had to have a purpose and a deadline and after one or both of the data had
to be erased or made anonymous. As these arch engine does not have data and only indexes information from
third parties, the CJEU recognized the right of anyone in the Member States to de-index some information
when their name was sought. The GDPR then placed this recognized right in its list of protection, stipulating
in its Article 17 that right, however called “Right to Forget fulness.”. This work will expose the error of the
legislator in placing “Right to Forget fulness” and not “Right to deindexation” as would be correct. Presenting
that deindexation is a fundamental principle and a human right with in the European Union, as it is base don’t
he principle of Informational Self-Determination provided for in Member States’ constitutions since the 1970s
and that it must be protected and widely accessible to all citizens. Search engine users.
Keywords: Informational self-determination, GDPR, Righttodeindexation, Google judgment.

1. INTRODUÇÃO
A internet pode ser considerada uma marca positiva no mundo porque, entre outros
benefícios, dá aos indivíduos acesso à informação necessária para tomar decisões
(tendencialmente) informadas. Ademais, a internet permite que as massas sejam ouvidas de
maneira eficaz através de redes sociais. As pessoas estão mais conectadas e visíveis do que
nunca. A internet permite velocidade e eficiência num grande número de processos, desde
compras até importantes funções governamentais. No entanto, a internet também levou a uma
grande coleta/recolha, retenção e catalogação de informações pessoais que representam uma
séria ameaça à privacidade pessoal.3
Essa problemática nos conduz ao direito à desindexação, um direito de que dispõe o
titular de dados pessoais informatizados, integrado no mais complexo e abrangente direito
fundamental à proteção de dados pessoais, previsto no artigo 8.º da Carta dos Direitos
Fundamentais da União Europeia (CDFUE).4 Em Portugal, ainda antes de a CDFUE adquirir
força juridicamente vinculativa em 2009, a proteção dos cidadãos perante o tratamento de
dados pessoais informatizados foi consagrada no artigo 35.º da Constituição da República
Portuguesa (CRP), no sentido de densificar, como explicam Gomes Canotilho e Vital Moreira,
o moderno direito à autodeterminação informacional, dando a cada pessoa o direito de
controlar a informação disponível a seu respeito e impedindo-a de transformar-se em simples
objeto de informações.5De uma forma global, o direito previsto no art. 35.º da CRP consagra
a proteção dos cidadãos perante o tratamento de dados pessoais informatizados. A fórmula
sobre o “tratamento” abrange não apenas a individualização dos dados, mas também a sua
conexão, transmissão, utilização e publicação.6

3
Corrado, John. Not Forgetting Just Obscuring: American and European Attempts to Maintain Priva-
cy in the Digital Age. Cardozo Journal of Internactional and Comparative Law, Volume 1, 307 – 337, 2018.
4
Castro, Caratina Sarmento e. A Jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, o Regu-
lamento Geral sobre a proteção de dados pessoais e as novas perspectivas para o direito ao esquecimento na
Europa. Estudos em Homenagem ao Conselheiro Presidente Rui Moura Ramos. Volume 1, Almedina, 2016.
5
Canotilho, J.J. Gomes; Moreira, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada: Artigos 1º
a 107º. Volume I, 4º edição revista. Coimbra Editora, 2007.
6
Canotilho, J.J. Gomes; Moreira, Vital. Página 550.

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A autodeterminação informacional como preceito fundamental ao direito à desindexação segundo o RGPD e o TJUE
João Alexandre Silva Alves Guimarães - Fernanda Daltro Costa Knoblauch

Esse artigo irá explanar como a autodeterminação informacional é requisito para que
se possa entender o Direito à desindexação, juntamente com a proteção de dados, como um
direito fundamental da pessoa humana protegido no âmbito da União Europeia.

2. A AUTODETERMINAÇÃO INFORMACIONAL
O direito à proteção de dados apresenta-se essencialmente como um direito de garantias
de um conjunto de valores fundamentais individuais de que se destacam a privacidade e a
liberdade, em poucas palavras, a autodeterminação individual.7
Assim, o artigo 35º da Constituição da República Portuguesa (CRP) veio reconhecer, no
âmbito da utilização da informática, o direito à autodeterminação informativa, que se traduz
no direito a conhecer a informação que sobre cada um de nós é tratada, ou no direito de saber
que dados pessoais estão a ser recolhidos, utilizados, conservados, comunicados e para que
finalidade e ainda por quem estão a ser tratados, de modo a que o cidadão detenha ou retome
o controle sobre os seus dados.8
O direito consagrado no artigo 35.º é um direito de defesa e um direito de liberdade com
um conteúdo negativo, pois permite ao indivíduo decidir que, quando e em que condições
poderá usar, ou tornar pública, informação que lhe diz respeito, o que dignifica a possibilidade
de não revelar dados de natureza pessoal, ou de recusar o tratamento dessa informação em
certas circunstâncias. Esse direito coloca em causa a tutela da reserva sobre factos cujo
conhecimento por terceiros deve depender da decisão do seu titular, independentemente de
respeitarem ao núcleo mais estrito da sua vida privada.9
O princípio do consentimento ou da autodeterminação é a pedra angular sobre a qual se
estrutura o tratamento dos dados pessoais. Certo que não é a vontade do titular dos dados que
define o nível de proteção a que eles ficam sujeitos, dependendo a proteção outorgada a cada
tipo ou categoria de dados da vontade do legislador, mas existe um relação necessária entre o
consentimento e a licitude da recolha e tratamento dos dados que apenas poderá ser afastada
ou derrogada nos casos particulares previstos na lei.10
Mesmo no novo quadro tecnológico e valorativo, a apreciação do artigo 35.º da CRP
deve orientar-se pela descoberta sobre se, nesta relação de tensão, a tutela dos interesses do
mercado, de eficiência, de investigação e de segurança justificam a aniquilação da privacidade,
a adulteração da identidade pessoal, o condicionamento da liberdade individual e a perversão
da democracia.11

7
Calvão, Filipa Urbano. O Direito Fundamental à Proteção dos Dados Pessoais e a Privacidade 40
Anos Depois. Jornadas nos quarenta anos da Constituição da República Portuguesa – Impacto e Evolução,
Manuel Afonso Vaz, Catarina Santos Botelho, Luís Heleno Terrinha, Pedro Coutinho (Coord.), Universida-
de Católica Editora, p. 89, 2017.
8
Calvão, Filipa Urbano. Página 89.
9
Mirada, Jorge; Medeiros, Ruy. Constituição Portuguesa Anotada. Volume I, 2º ed., Revista – Lis-
boa: Universidade Católica Editora, 2017.
10
Mirada, Jorge; Medeiros, Ruy. Página 574.
11
Calvão, Filipa Urbano. Página 95.

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A autodeterminação informacional como preceito fundamental ao direito à desindexação segundo o RGPD e o TJUE
João Alexandre Silva Alves Guimarães - Fernanda Daltro Costa Knoblauch

3. O DIREITO À DESINDEXAÇÃO
O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) reconheceu que a atividade de um
motor de busca que consiste em encontrar informações publicadas ou inseridas na internet por
terceiros, indexá‑las automaticamente, armazená‑las temporariamente e, por último, colocar
à disposição dos internautas por determinada ordem de preferência deve ser qualificada de
“tratamento de dados pessoais”, quando essas informações contenham dados pessoais, e de
que, por outro, o operador desse motor de busca deve ser considerado “responsável” pelo dito
tratamento.12
Neste julgamento o TJUE consagrou o direito à “desindexação” que permite ao titular
do direito requerer uma “deslistagem” aos motores de busca, ou seja, a “desassociação” ou
supressão de uma hiperligação, a retirada de um determinado resultado. Porém os veículos de
notícias divulgaram-no como “direito ao esquecimento”, pois quando se retira um resultado
de uma pesquisa, ele acabaria sendo “esquecido” em relação às inúmeras outras informações
que o motor de busca listou.
O processo que deu origem ao acórdão C-131/12, opunha o Google Spain SL, Google
Inc. contra AgenciaEspañola de Protección de Datos (AEPD), e MarioCostejaGonzález, sendo
datado de 13 de maio de 2014. No processo pode ser lido que o Sr. Mario Costela Gonzaléz
impetrou uma ação na AEPD contra o Jornal La VanguardiaEdiciones SL e contra o Google
Spain e o Google Inc., pelo facto de, ao pesquisar na plataforma Google, era remetido a um
link do jornal nas datas de “19 de janeiro e 9 de março de 1998, nas quais figurava um anúncio
de uma venda de imóveis em hasta pública decorrente de um arresto com vista à recuperação
de dívidas à Segurança Social, que mencionava o nome de M. CostejaGonzález”.
A principal discussão deste processo foi perceber se os mecanismos de pesquisa
influenciam no resultado do termo pesquisado e o quão interferem na privacidade ou nos dados
de cidadãos comuns. Outro problema seria a localização das sedes das empresas em causa,
uma vez que não se encontram sediadas dentro da jurisdição europeia e sim nos EUA.
O Advogado-Geral, embora a diretiva seja aplicável, afirmou que um motor de pesquisa
não pode ser considerado um responsável pelo tratamento de dados, exceto em situações
limitadas. Ele concluiu ainda que, mesmo se um motor de pesquisa fosse considerado um
responsável pelo tratamento, um titular de dados não poderia impedir um motor de pesquisa
de indexar informações pessoais legalmente publicadas em páginas de internet de terceiros,
invocando que poderia ser prejudicial para ela ou que ela deseja que seja esquecida. Quanto às
questões centrais, quais sejam, a caracterização do mecanismo de busca como um responsável
pelo tratamento e o âmbito dos direitos do detentor do direito de apagar e objetar, o julgamento
do TJUE subestimou substancialmente as respostas propostas pelo Advogado-Geral.13

12
Tribunal de Justiça da União Europeia. Acordão Google Spain SL, Google Inc./Agencia de Pro-
tección de Datos (AEPD), Mario Costeja González – Processo C-131/12, 13 de maio de 2014. Disponível
em http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=153853&pageIndex=0&doclang=p
t&mode=req&dir=&occ=first&part=1&cid=8125412.
13
Peguera, Miquel. The Shaky Ground of the Right to Be Delisted. Vanderbilt Journal of Entertain-
ment and Technology Law, Volume 18, Issue 3, p. 528, 2016.

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A autodeterminação informacional como preceito fundamental ao direito à desindexação segundo o RGPD e o TJUE
João Alexandre Silva Alves Guimarães - Fernanda Daltro Costa Knoblauch

O TJUE reconheceu que cada pessoa tem o direito a que informações sobre si disponíveis
na internet deixem de ser associadas ao seu nome, por meio de uma lista de resultados exibida
na sequência de uma pesquisa efetuada em motores de busca, sem que, todavia, a constatação
desse direito pressuponha que tal associação cause prejuízo à pessoa em causa. Na medida
em que esta pode, tendo em conta os seus direitos fundamentais nos termos dos artigos
7.° (proteção da vida privada) e 8.° (proteção de dados pessoais) da Carta, requerer que a
informação em questão deixe de estar à disposição do grande público devido à sua inclusão
numa lista de resultados, esses direitos prevalecem, em princípio, não só sobre o interesse
económico do operador do motor de pesquisa, mas também sobre o interesse desse público
em aceder à informação numa pesquisa sobre o nome dessa pessoa.14
O Tribunal decidiu que a atividade de um mecanismo de pesquisa equivale a um
processamento dos dados pessoais contidos nas páginas da internet que indexa e disponibiliza
ao público por meio dos resultados da pesquisa. No entanto, considerou, contrariamente às
conclusões do Advogado-Geral, que o motor de pesquisa determina os fins e os meios desse
processamento e, portanto, deve ser considerado como um responsável pelo tratamento.15
O TJUE decidiu que os interesses dos internautas na obtenção da informação devem ser
considerados. O que não significa que os seus interesses prevaleçam, mas apenas que dever
ser especialmente tidos em conta, ou seja, o Tribunal não deixa de reconhecer que o direito
à desindexação não é, como não o é nenhum direito, absoluto, impondo-se a sua conciliação
com outros direitos reconhecidos na ordem jurídica europeia.16
Por fim, a amplitude deste direito à desindexação reconhecido no acórdão Google foi bem
evidenciada pelo facto de que a supressão da lista de resultados e a ligação a outras páginas
da web, ou seja, a supressão do resultado, ou a desindexação é devida a uma publicação
online pode ser legítima ou até mesmo legalmente obrigatória, já que a publicitação em uma
página web tem direitos e efeitos diferentes do que a hiperligação ou a indexação revelada
em um motor de busca. O TJUE, então, considerou que a informação que se pretende “fazer
esquecer” não tem de ser necessariamente prejudicial à pessoa em causa.17

4. O REGULAMENTO 2016/679 – REGULAMENTO GERAL DE PROTEÇÃO


DE DADOS
Motivo pelo qual o Regulamento 2016/679, conhecido como Regulamento Geral de
Proteção de Dados (RGPD), coloca como título do artigo 17.º «Direito ao apagamento
dos dados (“direito a ser esquecido”)». O n.º 2.º deste artigo 17.º, bem como a explicação
desse direito no Ponto 66 das considerações do RGPD, ao referir a expressão “supressão de
ligações”, sugere que o direito a ser esquecido corresponderia a uma aplicação do direito ao

14
Silveira, Alessandra; Marques, João. Do Direito a Estar Só ao Direito ao Esquecimento. Conside-
rações Sobre a Proteção de Dados Pessoais Informatizados no Direito da União Europeia: Sentido, Evolu-
ção e Reforma Legislativa. Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Vol. 61(n.º 3), p. 102, 2016.
15
Peguera, Miquel. Página 528.
16
Castro, Caratina Sarmento e. Página 1062.
17
Castro, Caratina Sarmento e. Página 1062.

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A autodeterminação informacional como preceito fundamental ao direito à desindexação segundo o RGPD e o TJUE
João Alexandre Silva Alves Guimarães - Fernanda Daltro Costa Knoblauch

apagamento (que se exerce offline) à esfera digital (agora exercido online) especialmente
contra os motores de busca (desindexação):

“Para reforçar o direito a ser esquecido no ambiente por via eletrónica, o âmbito do
direito ao esquecimento deverá ser alargado através da imposição ao responsável
pelo tratamento que tenha tornado públicos os dados pessoais da adoção de medidas
razoáveis, incluindo a aplicação de medidas técnicas, para informar os responsáveis
que estejam a tratar esses dados pessoais de que os titulares dos dados solicitaram
a supressão de quaisquer ligações para esses dados pessoais ou de cópias ou
reproduções dos mesmos.”18

A União Europeia adotou o novo Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD)


que inclui o direito ao apagamento («direito a ser esquecido»), reconhecendo o direito à
desindexação com etapas específicas para os responsáveis pelo tratamento de dados apagarem
informações mediante solicitação.
Cabe ressaltar que com o advento do RGPD o legislador europeu utilizou o termo
“esquecimento” de forma porventura equivocada – e que o termo mais adequado seria
desindexação – pois a redação da legislação europeia é a confirmação do que fora respondido
ao tribunal espanhol na questão prejudicial do acórdão Google.
Existe uma distinção importante entre diretivas e regulamentos da UE, e essa distinção
está entre as razões pelas quais a Comissão Europeia se esforçou para substituir a Diretiva de
Proteção de Dados por um regulamento. As diretivas são atos legislativos amplos, orientados
por objetivos, que fornecem orientações para a implementação do Estado-Membro, mas
dependem da aprovação independente de uma lei em todos os Estados-Membros dentro de
um período designado. Os regulamentos são peças legislativas específicas e estreitas que
se tornam diretamente aplicáveis – e obrigatórias – em todos os Estados-Membros sem
necessidade de transposição através de uma lei em cada Estado. Quando a Comissão Europeia
considerou pela primeira vez a reforma da proteção de dados, ainda não era claro que uma
diretiva seria substituída por um regulamento.19
O TJUE entendeu que o resultado obtido pelo mecanismo de busca através da ligação
entre dois ou mais termos é fruto de um tratamento de dados. Pois, ao combinar habilmente
dados de login, cookies e endereços de IP, o Google é capaz de conectar a pesquisa a um
determinado indivíduo ao longo do tempo e com impressionante precisão – a conexão entre
quem procura a informação e os resultados da pesquisa é promissor o suficiente para que o
internauta aceda aos links indexados.20

18
Parlamento Europeu e o Conselho. Regulamento (UE) 2016/679, de 27 de abril de 2016. Disponí-
vel em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=celex%3A32016R0679.
19
Safari, Beata A. IntangiblePrivacyRights: HowEurope’s GDPR Will Set a New Global Standard
for Personal Data Protection. Seton Hall Law Review, Volume 47, 820 – 821, 2017
20
Mayer-Schönberger, Viktor. Delete: The Virtue of Forgetting in the Digital Age. Princeton Univer-
sity Press; Edição: Revised ed. for Kindle, 25 de julho de 2011.

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A autodeterminação informacional como preceito fundamental ao direito à desindexação segundo o RGPD e o TJUE
João Alexandre Silva Alves Guimarães - Fernanda Daltro Costa Knoblauch

Embora as limitações do direito ao esquecimento (ou desindexação) sejam semelhantes


às estabelecidas no caso do Google Spain, sua proteção foi reforçada pelo facto de que, se um
responsável pelo tratamento é obrigado a apagar dados pessoais quetornou público, deve tomar
medidas razoáveis para informar outros responsáveis pelo tratamento que também publicaram
os dados pessoais para apagar qualquer link ou cópias. Esta disposição tem como alvo um
problema que o Google Spain deixou por resolver. Embora a reivindicação do direito ao
esquecimento de MarioCostejaGonzáles tenha sido bem-sucedida contra o Google, não ficou
claro se outros mecanismos de pesquisa atenderiam à decisão, já que o mesmo link pode ter
aparecido no Yahoo ou no Bing, entre outros. Sob a provisão do RGPD, provavelmente haverá
uma proteção mais ampla para os indivíduos, porque outros responsáveis pelo controle serão
notificados de que o indivíduo tem uma reivindicação válida a ser esquecida. Os responsáveis
pelo tratamento podem então remover o link como uma estratégia preventiva para evitar serem
processados, o que garantirá uma aplicação mais uniforme do RGPD. Portanto, o regulamento
orienta os mecanismos de pesquisa a equilibrar devidamente o direito à privacidade e o direito
à informação, e mais orientações para os responsáveis pelo tratamento de dados resultarão em
maior uniformidade de decisão nas solicitações do direito ao esquecimento.21
Um ser humano levaria inúmeras horas para acessar todas essas fontes de informação
sequencialmente e compilar um dossiê abrangente, enquanto os mecanismos de busca
integrados tornariam isso um caso rápido, simples, fácil e sem custos. Todavia, mesmo se
todos os resultados apresentados a partir da busca forem perfeitamente precisos, o fruto da
busca não corresponde à essência atual de uma pessoa, mas a uma composição estranhamente
artificial de fatos da vida, consistindo apenas de informação que é disponível em formato
digital, deixando de fora todo o resto, ou seja, a vivência do fato ali apresentado.22
O problema é que tais resultados são baseados em probabilidades. Eles ligam tenuemente
os indivíduos a certas preferências. O resultado é uma versão digital e muito ampliada
do juízopor associação, uma vez que inferências baseadas em características individuais
correspondentes são usadas para julgar e apresentar uma lista de resultados.23
Cabe ressaltar que os sites que editam e armazenam conteúdo, que são indexados nos
mecanismos de busca, desfrutam da liberdade de expressão e permitem o direito à informação
ao público. O prejuízo inicia na falta de interesse público – e o lapso de tempo permite ao
indivíduo a quem tal conteúdo se relaciona o direito de pleitear a sua eliminação e consequente
a desindexação. É verdade que grande parte da informação é, embora em menor escala, de
algum interesse para algumas pessoas, ou que tal conteúdo faz parte da coleção histórica da
sociedade, como na biblioteca digital do jornal. Assim, parece raro se deparar com um caso
claro e simples de supremacia do direito ao esquecimento.24

21
Alessi, Stefania. Eternal Sunshine: The Right to be Forgotten in the European Union after the 2016
General Data Protection Regulation. Emory International Law Review, Volume 32, 165-166, 2017.
22
Mayer-Schönberger, Viktor. Página 104.
23
Mayer-Schönberger, Viktor. Página 105.
24
Silvestre, Gilberto Fachetti; Borges, Carolina Biazatti; Benevides, NauaniSchades. The Proce-
dural Protection of Data De-Indexing in Internet Search Engines: The Effectiveness in Brazil of the So-
Called “Right To Be Forgotten” Against Media Companies. Revista Jurídica, [S.l.], v. 1, n. 54, 25 - 50, mar.
2019.

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A autodeterminação informacional como preceito fundamental ao direito à desindexação segundo o RGPD e o TJUE
João Alexandre Silva Alves Guimarães - Fernanda Daltro Costa Knoblauch

É necessário entender que não há decisão editorial dos sites que publicaram
jornalisticamente um conteúdo no passado para divulgá-lo novamente em um momento
posterior. O mecanismo de pesquisa é responsável por avançar entre milhares de outros
conteúdos que preenchem determinados critérios de pesquisa e mostram páginas que podem
prejudicar o direito de alguns indivíduos. Assim, é possível afirmar que os mecanismos de
busca são responsáveis “pelo fornecimento de conteúdo potencialmente infrator aos direitos
fundamentais da personalidade por apresentar como resultado de pesquisa informações que
não demonstrem interesse público atual devido à imprecisão e anacronismo”.25
Se o conteúdo da página original do site não for excluído ou editado, mas apenas
desindexado dos resultados da pesquisa, haverá, por um lado, a manutenção do conteúdo
original, embora com menos visibilidade, sacrificando em menor medida, as liberdades
comunicativas e reconhecendo o valor histórico da informação, e, por outro lado, a criação
de dificuldades para acessar as páginas indiscriminadamente, ou seja, páginas que não estão
relacionadas com o contexto original de um conteúdo potencialmente prejudicial para o
indivíduo a que se refere.26

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS:
A autodeterminação informacional foi a primeira legislação que deu o controle de qual
dados e para qual finalidade eles seriam usados aos detentores desses dados. Fazendo com
que o entendimento das legislações europeia viessem nesse sentido, de dar proteção total aos
detentores dos dados.
Com o avanço da tecnologia a legislação europeia continua a tentar proteger os detentores
dos dados, uma vez que a partir da Diretiva 95/46/CE e depois reafirmado no RGPD trouxe
a obrigação de apagamento do dado ao findar o prazo ou a finalidade para qual o dado foi
empregado.
A autodeterminação informacional deu ao detentor dos dados a autoridade de definir
quais dados seriam entregues aos responsáveis pelo tratamento de dados e para qual finalidade
eles seriam empregados.
O direito a desindexação, criado pelo TJUE, e agora em legislação através do RGPD,
cria a possibilidade de um controlo do detentor dos dados em face dos mecanismos de busca
que hoje é a principal fonte de informações na Internet.
A possibilidade de desindexar uma informação de um termo em uma busca, reconhecendo
que os motores de busca tratam os dados através da indexação e dos resultados apresentados,
traz o fundamento pelo qual a autodeterminação informacional surgiu e corrobora com a
argumentação que a proteção de dados e junto o direito à desindexação deve ser reconhecido
como um direito fundamental da pessoal humana para ser protegido em todas as suas esferas,
dando a liberdade ao detentor dos dados se defender e controlar suas informações em face dos
responsáveis pelo tratamento, nesse caso os motores de busca.


25
Silvestre, Gilberto Fachetti; Borges, Carolina Biazatti; Benevides, NauaniSchades. Página 40.

26
Silvestre, Gilberto Fachetti; Borges, Carolina Biazatti; Benevides, NauaniSchades. Página 41.

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A autodeterminação informacional como preceito fundamental ao direito à desindexação segundo o RGPD e o TJUE
João Alexandre Silva Alves Guimarães - Fernanda Daltro Costa Knoblauch

BIBLIOGRAFIA:
Alessi, Stefania. Eternal Sunshine: The Right to be Forgotten in the European Union after the 2016
General Data Protection Regulation. Emory International LawReview, Volume 32, 165-166,
2017.
Calvão, Filipa Urbano. O Direito Fundamental à Proteção dos Dados Pessoais e a Privacidade 40
Anos Depois. Jornadas nos quarenta anos da Constituição da República Portuguesa – Impacto e
Evolução, Manuel Afonso Vaz, Catarina Santos Botelho,Luís Heleno Terrinha, Pedro Coutinho
(Coord.), Universidade Católica Editora, p. 89, 2017.
Canotilho, J.J. Gomes; Moreira, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada: Artigos 1º a
107º. Volume I, 4º edição revista. Coimbra Editora, 2007.
Castro, Caratina Sarmento e. A Jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, o Regulamento
Geral sobre a proteção de dados pessoais e as novas perspectivas para o direito ao esquecimento
na Europa. Estudos em Homenagem ao Conselheiro Presidente Rui Moura Ramos. Volume 1,
Almedina, 2016.
Corrado, John. Not Forgetting Just Obscuring: American and European Attempts to Maintain Privacy
in the Digital Age. Cardozo Journal of Internactional and Comparative Law, Volume 1, 307 –
337, 2018.
Mayer-Schönberger, Viktor. Delete: The Virtue of Forgetting in the DigitalAge. PrincetonUniversityPress;
Edição: Revised ed. for Kindle, 25 de julho de 2011.
Mirada, Jorge; Medeiros, Ruy. Constituição Portuguesa Anotada. Volume I, 2º ed., Revista – Lisboa:
Universidade Católica Editora, 2017.
Parlamento Europeu e o Conselho. Regulamento (UE) 2016/679, de 27 de abril de 2016.
Peguera, Miquel. The Shaky Ground of the Right to Be Delisted. Vanderbilt Journal of Entertainment
and Technology Law, Volume 18, Issue 3, 509-561, 2016.
Safari, Beata A. Intangible Privacy Rights: How Europe’s GDPR Will Set a New Global Standard for
Personal Data Protection. Seton Hall LawReview, Volume 47, 820 – 821, 2017
Silveira, Alessandra; Marques, João. Do Direito a Estar Só ao Direito ao Esquecimento. Considerações
Sobre a Proteção de Dados Pessoais Informatizados no Direito da União Europeia: Sentido,
Evolução e Reforma Legislativa. Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Vol. 61(n.º 3), 91 –
118, 2016.
Silvestre, Gilberto Fachetti; Borges, Carolina Biazatti; Benevides, Nauani Schades. The Procedural
Protection of Data De-Indexing in Internet Search Engines: The Effectiveness in Brazil of the
So-Called “Right To Be Forgotten” Against Media Companies. Revista Jurídica, [S.l.], v. 1, n.
54, 25 - 50, mar. 2019.
Tribunal de Justiça da União Europeia. Acordão Google Spain SL, Google Inc./Agencia de Protección
de Datos (AEPD), MarioCostejaGonzález – Processo C-131/12, 13 de maio de 2014. Disponível
em http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=153853&pageIndex=0
&doclang=pt&mode=req&dir=&occ=first&part=1&cid=8125412.

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Direito do trabalho e tecnologia. Futuro do
trabalho – entre potencialidades e incertezas

Carla Teresa Martins Romar1

Resumo: Os avanços tecnológicos que caracterizam a chamada 4ª Revolução Industrial que está
em curso, em especial a inteligência artificial, a automação e a robótica, estão transformando o mundo do
trabalho e têm gerado uma grande discussão sobre qual será o futuro do trabalho e do Direito do Trabalho.
As profissões, o ambiente de trabalho e o próprio modo de relação entre o trabalhador e o tomador dos
serviços estão sendo alterados em decorrência dos avanços tecnológicos. O presente artigo visa a discutir as
potencialidades e as incertezas decorrentes dessa nova realidade. De um lado, o desemprego, a dificuldade
de grande massa de trabalhadores se inserirem no mercado de trabalho, a precarização do trabalho e a
informalidade; de outro, a necessidade de retipificação do Direito do Trabalho. No entanto, a despeito
de tudo isso, deve-se manter a convicção de que o futuro de forma alguma está traçado de antemão e de
maneira inexorável, devendo-se evitar certos fatalismos e determinismos tecnológicos que possam conduzir
a uma certa paralisação de ação. A organização de trabalhadores, o fomento de suas vozes, bem como a
interlocução destes com as entidades patronais e governos permanecem, na forma do diálogo tripartite, o
principal meio para se atingirem resultados duradouros, justos e equitativos.
Palavaras-chave: trabalho; tecnologia; futuro; retipificação do Direito do Trabalho

Summary: The technological advances that characterize the so-called 4th Industrial Revolution that
is underway, especially artificial intelligence, automation and robotics, are transforming the world of work
and have generated a great discussion about what the future of work and Labor Law will be. Job. Professions,
the work environment and the relationship between the worker and the service provider are being altered as
a result of technological advances. This article aims to discuss the potential and uncertainties arising from
this new reality. On the one hand, unemployment, the difficulty for a large mass of workers to enter the
labor market, job insecurity and informality; on the other, the need to rectify labor law. However, in spite of

1
Bacharel em Direito pela USP. Mestre e Doutora em Direito do Trabalho pela PUC/SP. Perita em
relações de trabalho – Organização Internacional do Trabalho (OIT). Professora dos cursos de Graduação,
Especialização, Mestrado e Doutorado em Direito do Trabalho da PUC/SP. Vice Coordenadora do Progra-
ma de Pós-Graduação em Direito da PUC/SP. Professora Convidada dos Cursos de Extensão em Direito do
Trabalho da Università degli Studi di Roma Tor Vergata. cromar@terra.com.br

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Direito do trabalho e tecnologia. Futuro do trabalho – entre potencialidades e incertezas
Carla Teresa Martins Romar

all this, one must maintain the conviction that the future is by no means drawn in advance and inexorably,
avoiding certain fatalisms and technological determinisms that may lead to a certain paralysis of action.
The organization of workers, the promotion of their voices, as well as their dialogue with employers and
governments remain, in the form of tripartite dialogue, the main means to achieve long-lasting, fair and
equitable results.
Keywords: work; technology; future; rectification of Labor Law

1. Perspectivas do trabalho e do Direito do Trabalho na


atualidade: noções introdutórias
As profissões, o ambiente de trabalho e o próprio modo de relação entre o trabalhador e
o tomador dos serviços estão sendo alterados em decorrência dos avanços tecnológicos que
caracterizam a chamada 4ª Revolução Industrial e um dos pontos que vem gerando discussões e
apreensões diz respeito à manutenção dos postos de trabalho/desemprego. Embora a tecnologia
gere novos postos de trabalho, o fato é que os trabalhadores que perdem seu trabalho nessa
transição provavelmente não estejam preparados para as novas oportunidades de emprego. As
competências exigidas hoje dos trabalhadores certamente não coincidirão com os trabalhos
do futuro, e as competências recém adquiridas podem rapidamente tornar-se obsoletas.
Outro aspecto central nessa discussão é a economia de plataformas, uma das formas mais
visíveis da revolução digital. A enorme diversidade de plataformas e aplicações, a variedade
de novos modelos de negócio digital e engenharia financeira, as incubadoras, os espaços de
coworking, a grande diversidade e vulnerabilidade do trabalho digital, são alguns dos temas
principais da economia da transformação tecnológica e digital.
A economia das plataformas, devido à sua grande variedade e possibilidades, assenta-se
em modelos de trabalho muito diversificados que não têm, ainda, no âmbito do Direito do
Trabalho em vigor, um regramento bem estabelecido, isto é, reina a precariedade do trabalho
como regra. Trabalho independente, trabalho intermitente, trabalho contributivo, trabalho a
pedido, entre outras, são modalidades que vêm sendo adotadas nos diversos países e que
têm gerado grandes discussões sobre a existência ou não de vínculo de emprego na forma
tradicionalmente reconhecida2. Estão em causa os direitos sociais e sindicais, as remunerações,
os benefícios da segurança social, o direito à empregabilidade etc.

2
A relação entre o trabalhador e a plataforma Uber é a que vem sendo mais discutida no mundo
todo. No Brasil, recente decisão do TST (fev/2020) concluiu que não há vínculo empregatício entre o
motorista e a empresa Uber. (TST - RR - 1000123-89.2017.5.02.0038 – 5ª turma, Relator Min. Breno Me-
deiros). A decisão foi no sentido de reconhecer a autonomia do motorista no desempenho das atividades,
o que descaracteriza a subordinação: “A ampla flexibilidade do trabalhador em determinar a rotina, os
horários de trabalho, os locais em que deseja atuar e a quantidade de clientes que pretende atender por dia
é incompatível com o reconhecimento da relação de emprego, que tem como pressuposto básico a subordi-
nação.” Outro ponto considerado na decisão é que, entre os termos e condições relacionados aos serviços,
está a reserva ao motorista do equivalente a 75% a 80% do valor pago pelo usuário. Segundo o ministro,
esse percentual é superior ao que o TST vem admitindo como bastante para a caracterização da relação de
parceria entre os envolvidos. “O rateio do valor do serviço em alto percentual a uma das partes evidencia
vantagem remuneratória não condizente com o liame de emprego”.

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Direito do trabalho e tecnologia. Futuro do trabalho – entre potencialidades e incertezas
Carla Teresa Martins Romar

Em meio a tantas e tão velozes alterações, o futuro do trabalho e, consequentemente,


a própria existência e objetivos do Direito do Trabalho estão no centro das discussões,
dividindo opiniões entre os que acreditam que será o fim do Direito do Trabalho e aqueles
que, esperançosos, creem que soluções e caminhos serão encontrados para que, apesar dos
novos modelos e contextos do trabalho, o trabalhador continue a ser o foco de uma proteção
necessária.
Nesse sentido, em 2017 a OIT criou a Comissão Mundial sobre o Futuro do Trabalho, com
função de realizar um exame aprofundado sobre o tema futuro do trabalho, análise essa que
serviu de base para a adoção pela Organização, na 108ª Conferência Internacional realizada
em 2019 e na qual se comemorou o seu centenário, da Declaração do Centenário da OIT para
o Futuro do Trabalho. Na Declaração a OIT convoca todos os Estados Membros a agirem
no sentido de: assegurar que todas as pessoas possam se beneficiar das transformações do
mundo do trabalho; garantir uma relação de trabalho adequada e de longa duração; zelar por
uma proteção adequada a todos os trabalhadores; promover um desenvolvimento econômico
sustentável e inclusivo, o pleno emprego e o trabalho digno. A Declaração também estabelece
prioridades para a atuação da OIT, conforme previsto em seu Programa para o Futuro do
Trabalho que, centrado nas pessoas, busca fortalecer o contrato social, situando os trabalhadores
e o trabalho que realizam no foco das políticas econômicas e sociais e na prática empresarial.
O Programa prevê três eixos de atuação que, combinados entre si, terão, de acordo com a
OIT, capacidade de gerar crescimento, igualdade e sustentabilidade para as gerações atuais
e futuras: investimento na capacitação das pessoas, incremento das instituições do trabalho,
investimento em trabalho digno e sustentável.
Assim, o Direito do Trabalho encontra-se em um momento de grandes desafios, sendo
necessário um novo olhar sobre o mesmo, uma adaptação imprescindível para sua continuidade
e um consenso sobre a sua importância no contexto das relações de trabalho.

2. Futuro do trabalho: entre potencialidades e incertezas


O novo cenário econômico, de uso intensivo de tecnologias, revela-se com
“potencialidades contraditórias”. Pode apresentar pontos positivos, como novas tecnologias
e inteligência artificial para substituir o trabalho humano perigoso ou insalubre. Mas, ao
mesmo tempo, traz dúvidas sobre agravamento de desemprego, bem como questões difíceis
ligadas sobretudo à jornada de trabalho, mais especificamente à dicotomia tempo de trabalho
e excesso de disponibilidade do trabalhador. Despontam incertezas relativamente aos tipos
de novos trabalhos que surgirão e se os mesmos efetivamente propiciarão maior qualidade
de vida e mesmo uma maior possibilidade de conciliação entre vida privada e profissional.
Não há números sobre os postos de trabalho em extinção e em que medida novas ocupações
surgirão.
Estudos sublinham a necessidade de formação profissional contínua dos trabalhadores,
que não mais permanecem em uma mesma empresa por longos períodos, devendo o Estado e
as empresas demonstrarem capacidade de propiciar assistência e requalificação profissional
necessárias entre os períodos de trabalho e de não-trabalho. Para alguns, o foco de atenção
deixou de ser o posto de trabalho e passou a ser o mercado de trabalho. Dificuldades colocam-

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Direito do trabalho e tecnologia. Futuro do trabalho – entre potencialidades e incertezas
Carla Teresa Martins Romar

se também ao sistema previdenciário e de assistência social ante os fluxos não mais contínuos
de recolhimentos previdenciários e os correlatos programas de proteção.
Novos formatos de trabalho surgem, mas não se amoldam à clássica figura da tradicional
relação de emprego do período fordista. Por outro lado, falta alguma proteção trabalhista e
social mínima a certos tipos de trabalhadores denominados “atípicos”.
A Agenda 2030 da ONU contempla o objetivo de desenvolvimento sustentável n. 8
relacionado a promover um crescimento econômico inclusivo e sustentável, emprego pleno e
produtivo e trabalho decente para todas e todos. Preocupa-se com a elevação da produtividade
por meio da modernização tecnológica e inovação, mas simultaneamente conclama os
países a promoverem políticas orientadas para o desenvolvimento que apoiem as atividades
produtivas, geração de emprego decente, empreendedorismo, criatividade e inovação, com
incentivo à formalização e ao crescimento das micro, pequenas e médias empresas. A Agenda
almeja que até 2030 seja alcançado o pleno emprego e o trabalho decente para todas as
mulheres e homens, inclusive para os jovens e as pessoas com deficiência, e remuneração
igual para trabalho de igual valor.3
A despeito do posicionamento dos Organismos Internacionais sobre as questões que
envolvem o futuro do trabalho a partir dos grandes avanços tecnológicos, o fato é que há
uma grande preocupação em geral com a automação e sua relação com desemprego. Klaus
Schwab mostra que nos últimos anos reacendeu-se o debate de substituição de empregos por
computadores, e pela inteligência artificial, o que traz grandes incertezas sobre se a revolução
tecnológica em curso substituirá, e em que quantidade, os postos de trabalho atuais. Afinal,
há dois efeitos simultâneos da tecnologia sobre os empregos: um, destrutivo do posto de
trabalho; outro, capitalizador, já que a tecnologia gera novos bens e serviços, o que levaria
à criação de novos postos de trabalho e até mesmo de profissões. No entanto, questiona-se:
estão os trabalhadores preparados para essa nova realidade? Essa é, sem dúvida, a grande
indagação atual.4
No Brasil, a Constituição Federal previu, como direito dos trabalhadores, “a proteção
em face da automação, na forma da lei” (art. 7º, XXVII). Quando da promulgação do
texto constitucional a preocupação era a de que as normas constitucionais deviam atender
as exigências do mundo do trabalho adaptado aos fantásticos progressos da informática,
com reflexos na automação dos processos de produção. Segundo Arnaldo Süssekind, “não
tratou, porém, a Constituição, especificamente, dos serviços de treinamento, reciclagem e
readaptação profissional, de vital importância para o aproveitamento dos trabalhadores em
funções que se multiplicarão em detrimento de outras”. Pesquisas e projeções já no início dos
anos 1990 revelavam que o desemprego deveria ocorrer principalmente no setor secundário
(industrial) e em alguns segmentos do setor terciário (comércio e bancos).5

3
https://nacoesunidas.org/pos2015/ods8/
4
SCHWAB, Klaus. A quarta revolução industrial. Trad. Daniel Moreira Miranda. São Paulo: Edi-
pro. 2016, p. 43-46.
5
O autor recorda de estudos da OIT sobre este magno problema, que figuraram no Boletim de In-
formações Sociais no período de 1982 a 1985 (“Os parceiros sociais face às mudanças tecnológicas, OIT,
Genebra, 1986) em que se sublinhava, já naquela década, as vantagens inegáveis das novas tecnologias, por

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Direito do trabalho e tecnologia. Futuro do trabalho – entre potencialidades e incertezas
Carla Teresa Martins Romar

Em estudo dedicado ao tema da tecnologia e do emprego, Jouberto de Quadros Pessoa


Cavalcante destaca a importância dos processos de informação, consulta e participação dos
trabalhadores não apenas em casos de dispensas coletivas, atenuando os impactos nocivos
desta, mas também na absorção e implementação de novas tecnologias. Em sua pesquisa,
colaciona diversas cláusulas constantes de instrumentos coletivos negociados por entidades
sindicais neste terreno, tratando dos mais variados aspectos, desde a qualificação e reciclagem
de mão de obra, passando por alterações das rotinas de condições de trabalho, até uma mais
eficaz proteção em face da automação.6
Maria Rosário Palma Ramalho identificou várias áreas de potencial incidência da
economia digital nas relações laborais, destacando a essencialidade da negociação coletiva
como técnica reguladora primordial. E são as seguintes: nível e qualidade de emprego;
processos de recrutamento; local e tempo de trabalho; regulação de teletrabalho; alterações
da relação trabalhador-máquina; direitos de personalidade dos trabalhadores e proteção de
seus dados pessoais; formação profissional contínua; segurança e saúde dos trabalhadores;
modelos de comunicação dentro da empresa dos trabalhadores entre si, com empregadores e,
sobretudo, com as respectivas estruturas de representação coletivas.7
Se de um lado a tecnologia demonstra duas grandes vertentes de potencialidades, uma
no sentido de criação de novas profissões e, consequentemente, de novos empregos, e a outra
para o desenvolvimento de diferentes habilidades para os trabalhadores, de outro lado, o
cenário é, antes de mais nada, de incerteza quanto ao futuro do trabalho e seus potencias

um lado, mas, ao mesmo tempo, ocasionava o desemprego, além da insegurança no emprego. Os sindicatos
de trabalhadores de vários países reconheciam que as inovações tecnológicas eram indispensáveis para a
competitividade das empresas frente às suas concorrentes estrangeiras. Reivindicavam à época mais seguran-
ça no emprego e nos locais de trabalho, além de facilidades para o trabalhador adaptar-se às novas técnicas,
assim como maior atenção ao fator humano por parte das fábricas em termos de ergonomia. E arrematava
Sussekind lamentando a insignificância de práticas em face do preceito constitucional, propondo uma leitura
bastante ampliativa do referido comando constitucional: “afigura-se-nos que o preceito constitucional não
deve restringir-se à distribuição dos frutos do aumento da produtividade em favor dos empregados das respec-
tivas empresas e à melhoria das suas condições de trabalho. O país precisa ser protegido ante a extensão dos
graves problemas que o ameaçam, advindos da nova revolução tecnológica” (SUSSEKIND, Arnaldo. Direito
Constitucional do Trabalho. 4ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 319-325).
6
CAVALCANTE, Jouberto de Quadros Pessoa. Sociedade, tecnologia e a luta pelo emprego. 1ª ed.,
São Paulo: LTr, 2018. Propõe o autor, à luz de experiência europeia, um papel da negociação coletiva de tra-
balho que comporte: a) cláusulas principiológicas de fomento ao diálogo social; b) cláusulas disciplinando
comissões mistas e comissões permanentes; c) cláusulas de procedimentos relativos ao direito de informa-
ção e consulta; d) cláusulas preventivas, priorizando a implementação tecnológica nos setores da empresa
que sejam nocivos à saúde dos trabalhadores; e) cláusulas protetivas e limitadoras da dispensa coletiva, por
exemplo, evitando prática de horas extras ou de terceirização em período subsequente à dispensa coletiva;
f) cláusulas compensatórias, de modo a compensar a redução de postos de trabalho com medidas atenuan-
tes, tais como qualificação profissional dos desligados, redução de jornada com redução proporcional de
salário, preferência a manter os contratos dos mais idosos, em caso de recolocação, dentre outras medidas.
7
RAMALHO, Maria Rosário Palma. A Economia Digital e a Negociação Coletiva. MINISTÉRIO
DO TRABALHO, SOLIDARIEDADE E SEGURANÇA SOCIAL. CENTRO DE RELAÇÕES LABO-
RAIS. Lisboa, 2019. Disponível em: https://www.crlaborais.pt/documents/10182/341209/Estudo/d0ffbafd-
f9e4-42eb-aad7-7a3e21038486.

— 360 —
Direito do trabalho e tecnologia. Futuro do trabalho – entre potencialidades e incertezas
Carla Teresa Martins Romar

efeitos negativos sobre toda a estrutura social e sistema de proteção laboral e de seguridade
social. Impõe-se, portanto, antes de mais nada, o uso ético das tecnologias em termos de
Justiça Social.
O grande desafio jurídico consiste em compreender as mudanças quantitativas e
qualitativas deste fenômeno multifacetado, de implicações sociológicas, econômicas, jurídicas,
políticas e éticas, fazendo com que a tecnologia seja posta em benefício da humanidade.

3. Incidência das tecnologias sobre o mercado de


trabalho: trabalhadores “atípicos” e em plataformas
digitais
A história do século XX é a de um progresso contínuo do trabalho assalariado e do
correlativo recuo do número daqueles trabalhadores independentes e, na maior parte dos
países, esta evolução correspondeu à implantação do modelo fordista e foi estimulada pelo
desenvolvimento dos direitos sociais associados à qualidade de assalariado, nomeadamente
em matéria de segurança social.8
A empresa tradicional caracteriza-se pela uniformização do estatuto dos trabalhadores,
os quais laboravam, em regra, de forma permanente, pessoal e mediante uma rígida
subordinação, e pela concentração em uma mesma unidade econômica das várias fases do
processo produtivo.9 Durante o período fordista, a homogeneidade do estatuto protetivo
tanto do ponto de vista do Direito do Trabalho quanto do Direito da Seguridade Social
contribuía para o estabelecimento, entre os assalariados, de uma comunidade de interesses,
cujo representante natural era o sindicalismo de indústria. Esta referência central em torno
da qual tenderam a se ordenar as relações de trabalho era alicerçada nos termos de troca
fundadores do estatuto salarial – subordinação em troca de segurança.
A partir dos anos 80 o modelo fordista entra em crise, sinalizando um desajuste no modelo
de regulação do trabalho. Passa-se a criticar a rigidez do modelo regulatório típico, tradicional,
binário “autônomo x empregado”, e passa-se a propor uma reconstrução “pluralista” do
modelo.10 Nos anos 90 e nos primeiros anos do século XXI, os elementos emergidos no decênio
precedente tenderam a ganhar maior importância: diversificação tipológica da flexibilização,
reenvio à contratação coletiva e valorização do papel participativo dos sindicatos. Hoje,
porém, o desafio, sublinhado pelos autores, é superar a dicotomia radical entre “trabalho
subordinado hipergarantista”, de um lado, e o “trabalho autônomo sem garantia”, de outro.11

8
SUPIOT, Alain. Transformações do trabalho e futuro do Direito do Trabalho na Europa. Coim-
bra: Ed. Coimbra, 2003. p. 20.
9
BRANDÃO, Jefferson Ramos. Contrato de trabalho na sociedade pós-industrial e a necessidade
de revisão dos requisitos da relação de emprego. In: NETO, José Affonso Dallegrave (org.). Direito do
trabalho contemporâneo: flexibilização e efetividade. São Paulo: LTr, 2003. p. 46.
10
CARINCI, Franco; TAMAJO, Raffaele de Luca; TOSI, Paolo; TREU, Tiziano. Diritto del lavoro:
il rapporto di lavoro subordinato. Torino: UTET, 1994. p. 20; 22-23; 27. v. 2.
11
Nelson Mannrich ressalta que presenciamos o surgimento de um novo modelo de relações de tra-
balho, que exige a retipificação dos contratos de trabalho “como forma de proteção do mercado existente,

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Direito do trabalho e tecnologia. Futuro do trabalho – entre potencialidades e incertezas
Carla Teresa Martins Romar

Francesca Columbu, em profundo estudo sobre o tema, refere-se a uma “mutação


genética” do Direito do Trabalho, uma transformação que coloca uma pesada interrogação
sobre a capacidade das históricas categorias jurídicas para regular os atuais fenômenos das
transformações dos processos produtivos e as modalidades de trabalho. As definições mudam.
Passa-se “do trabalho” aos “trabalhos” com o intento de sublinhar a vocação plural do Direito
do Trabalho.12
Este acelerado processo de transformações tecnológicas do século XXI contribui assim
para novas formas de trabalho bastante singulares (como o crowdsourcing, o crowdworking, o
crowdfunding, o work on demand, a economia de plataformas, etc.). A economica colaborativa
aumenta a subcontratação e o “outsourcing”, muitas vezes em nível transnacional.
A intermediação de trabalho via plataformas digitais coloca o debate sobre o
enquadramento jurídico de tais prestadores: se autônomos, empregados ou um terceiro gênero
ainda pendente de normatização e regulação diferenciada. Cuida-se do debate atual sobre
Uber, Rappi e afins.
A economia de plataformas é uma nova forma de trabalho que engloba uma grande
variedade de atividades econômicas e sociais que são facilitadas por plataformas digitais
que realizam a intermediação entre os agentes interessados. Um dos principais aportes que
propiciam é a redução dos custos de coordenação e transação. A gestão do trabalho desloca-
se de um empregador para as mãos do consumidor final dos serviços, com a interferência
de algoritmo que calcula preços e valores e o trabalho que poderá ser realizado. Os horários
não são impostos e, em tese, há um espaço de autonomia por parte do trabalhador que presta
serviços, podendo escolher “se” e “quando” trabalhar. Para alguns estudiosos, no entanto,
tratar-se-ia de uma nova forma de “subordinação”, chamada estrutural, de modo que a

bem como meio para regularizar a situação dos trabalhadores subordinados que se encontrem à margem da
lei protetora. O processo de retipificação envolve a política relacionada aos contratos de trabalho por prazo
determinado e aos contratos de trabalho temporário. Tais modalidades, integrantes dos chamados contratos
precários, devem ser reguladas de forma harmônica, no âmbito do estatuto mínimo do trabalhador, de modo
a assegurar a seus titulares os mesmos direitos conferidos aos trabalhadores vinculados aos contratos por
prazo indeterminado”. (MANNRICH, Nelson. A modernização do contrato de trabalho. São Paulo: LTr,
1998. p. 225).
12
COLUMBU, Francesca. Flessibilità, lavoro atipico e rappresentanza sindacale. Ua comparazione
tra Italia e Brasile R. Fac. Dir. Univ. São Paulo v. 109 p. 461 - 482 jan./dez. 2014. Mostra a autora que a fle-
xibilidade do sistema produtivo pós-fordista e sua constante adaptabilidade às flutuações de mercado estão
na base da flexibilização da organização do trabalho, que se tornou mais leve, integrada, flexível e capaz de
dar respostas imediatas às oscilações da demanda. É a “acumulação flexível” referente à flexibilidade dos
processos produtivos, dos produtos e serviços, do padrão de consumo e, evidentemente, a flexibilidade do
mercado de trabalho. A “temporalidade” emerge como uma das características principais das novas tipolo-
gias contratuais de trabalho que, gradativamente, nascem ao entorno da empresa cada vez mais fragmentada
e descentralizada. O princípio do “just in time”, quando aplicado ao trabalho, determina o imperativo de
uma constante adaptação do pessoal às exigências produtivas. Igualmente transforma-se a empresa, que se
horizontaliza. O modelo expansionista vertical-piramidal, que concentrava o inteiro processo produtivo é
substituído por um modelo fragmentado, descentralizado, segmentado, enquanto a empresa se concentra
em seu “core business”.

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Direito do trabalho e tecnologia. Futuro do trabalho – entre potencialidades e incertezas
Carla Teresa Martins Romar

tais trabalhadores deveriam ser assegurados os mesmos e exatos direitos trabalhistas dos
empregados tradicionais.
O tema de fundo, embora sob a roupagem tecnológica dos aplicativos de plataformas,
não é novo. No início da década de 1980, Ulrich Beck tangenciou o tema da despadronização
do trabalho assalariado. “Os ganhos de soberania/autonomia obtidos pelos trabalhadores
sobre seu trabalho com a flexibilização espacial do trabalho podem ser combinados com
uma privatização dos riscos que o trabalho oferece à saúde física e psicológica. Normas de
segurança no trabalho escapam ao controle público nas formas de trabalho descentralizado, e
os custos, por desconsiderá-las ou suspendê-las, são transferidos aos próprios trabalhadores,
assim como as empresas acabam economizando os custos de organização central do trabalho,
desde a manutenção das instalações, até a proteção dos equipamentos eletrônicos. Nesse
sistema pontuado por riscos e descentralizado, de subempregos flexíveis e plurais, já não
existirá o problema do desemprego (no sentido de falta de um posto de trabalho), eis que,
nesse sistema, o desemprego foi por assim dizer “integrado” ao sistema empregatício sob
a forma de modelos de subemprego e, também, consequentemente, substituído por uma
generalização de incertezas ocupacionais, distante do velho sistema socioindustrial do pleno
emprego unificado. Progresso e miséria se entrelaçam de novas maneiras. Os trabalhadores
trocam uma parcela da liberdade obtida em relação ao trabalho por novas compulsões e
incertezas materiais. O desemprego desaparece, mas, ao mesmo tempo, ressurge de modo
generalizado em novas formas de emprego precário. Tudo isto implica, ao final, que um
desenvolvimento ambíguo e contraditório é posto em marcha, em razão do qual vantagens e
desvantagens se associam indissoluvelmente, mas cujas consequências e riscos consideráveis
continuam a ser imprevisíveis, justamente para a consciência e a atuação políticas”, ou seja,
um sistema de subemprego da sociedade de risco.13
Sem dúvidas, todas estas novas formas de trabalho, engendradas no cenário da Revolução
4.0 e das novas dinâmicas empresariais, colocam em discussão a própria relação de trabalho
subordinado, assim como os direitos laborais devidos a esse grupo de trabalhadores.
Assim, do ponto de vista da “regulação”, despontam várias propostas normatizadoras ou de
enquadramento jurídico destas novas “situações de trabalho”: 1) deve-se fazer uma releitura
do conceito de subordinação adaptando a regulação já existente para diferenciar aqueles que
trabalham realmente como empreendedores daqueles que são empregados, concentrando-
se na realidade do trabalho subjacente, seja através do alargamento subjetivo do conceito
de subordinação, seja focando-se no conceito funcional de empregador para a definição da
relação jurídica; 2) cria-se presunção de vínculo a partir de feixes de indícios, ganhando relevo,
nesse sentido, a Lei AB-5 (teste ABC), aprovada recentemente pelo legislador da Califórnia, e
a criação de um estatuto dos trabalhadores; 3) adota uma proposta regulatória mais genérica e
leve em termos de proteção. Nela se inclui a ideia, por exemplo, de fornecimento de um plano
de assistência e até a ideia de direitos mínimos relacionados à jornada, remuneração, normas
atinentes à saúde e segurança, ou seja, propondo a concessão de “alguns” direitos, como
sucedeu com as experiências normativas de Portugal (Lei 45 de Agosto de 2018, conhecida
como a “lei Uber”) ou francesas (arts. 7.342-1 a 7.342-6 do Code du Travail); pode-se chegar

BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Trad. Sebastião
13

Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2010. p. 209.

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Direito do trabalho e tecnologia. Futuro do trabalho – entre potencialidades e incertezas
Carla Teresa Martins Romar

até a ideia da criação de uma renda mínima e uma previdência universal; 4) sustenta que se
trata de trabalhadores com plena autonomia, não sujeitos a ordens de um empregador, que
assumem os riscos da atividade e escolhem se e quando trabalhar, estando apenas sujeitom
às regras de adesão à plataforma, na qual oferecerão seus serviços a potenciais usuários; 5)
considera apropriado e adequado que o tema seja regulado por meio de negociação coletiva
de trabalho entre empresas e sindicatos destes trabalhadores “atípicos”, compatibilizando
grau de proteção com grau de autonomia/subordinação. A negociação coletiva possui grande
potencial nesse campo. No entanto, algumas legislações nacionais criam óbices para a
representação sindical de trabalhadores “non-standart”, limitação absolutamente inadequada.14
Concordamos com essa última corrente.

Considerações finais
Todo esse cenário, sem dúvida, coloca novos desafios para o mundo do trabalho, que
devem, porém, ser enfrentados com a convicção de que o futuro de forma alguma está traçado
de antemão e de maneira inexorável, devendo-se evitar certos fatalismos e determinismos
tecnológicos que possam conduzir a uma certa paralisação de ação.
A organização de trabalhadores, o fomento de suas vozes, bem como a interlocução
destes com as entidades patronais e governos permanecem, na forma do diálogo tripartite, o
principal meio para se atingirem resultados duradouros, justos e equitativos.

Bibliografia
BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Trad. Sebastião
Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2010.
BRANDÃO, Jefferson Ramos. Contrato de trabalho na sociedade pós-industrial e a necessidade de
revisão dos requisitos da relação de emprego. In: NETO, José Affonso Dallegrave (org.). Direito
do trabalho contemporâneo: flexibilização e efetividade. São Paulo: LTr, 2003.

14
O surgimento de formas de trabalho baseadas em plataformas, portais ou aplicativos virtuais que
deram lugar ao fenômeno da economia compartilhada acentuou as dificuldades laborais tanto no nível
individual quanto coletivo. Do ponto de vista coletivo, vários aspectos limitam a formação, organização
e funcionamento dos trabalhadores do sistema de economia compartilhada como sujeitos coletivos: seus
integrantes competem entre si, o normal é que não se conheçam ou tenham limitadas possibilidades de
contatarem-se, e são facilmente substituíveis, pois não estão protegidos por um regime de estabilidade
laboral. É necessário, portanto, que a normativa laboral não se restrinja apenas à regulação do trabalho
subordinado por conta alheia, mas que passe a incluir as modalidades de trabalho que se desenvolvem de
modo independente, um novo direito do trabalho que abranja a tutela das variadas formas de trabalho, de
modo a reconhecer-se que o processo de sindicalização também supere os limites do trabalho subordinado
por conta alheia para alcançar amplos setores de trabalho autônomo, parassubordinado e outros que, a des-
peito de não poderem ser qualificados como assalariados, encontram-se em uma situação de dependência
econômica frente a um empresário principal. PÉREZ DEL CASTILLO, Matías. Trabajadores autónomos y
Derecho colectivo del trabajo. In: Disrupción, economia compartida y Derecho. Enfoque jurídico multidis-
ciplinario. coord. Gustavo Gauthier. Montevideo: FCU, 2016.

— 364 —
Direito do trabalho e tecnologia. Futuro do trabalho – entre potencialidades e incertezas
Carla Teresa Martins Romar

CARINCI, Franco; TAMAJO, Raffaele de Luca; TOSI, Paolo; TREU, Tiziano. Diritto del lavoro: il
rapporto di lavoro subordinato. Torino: UTET, 1994.
CAVALCANTE, Jouberto de Quadros Pessoa. Sociedade, tecnologia e a luta pelo emprego. São
Paulo: LTr, 2018.
COLUMBU, Francesca. Flessibilità, lavoro atipico e rappresentanza sindacale. Ua comparazione tra
Italia e Brasile. Revista Fac. Dir. Univ. São Paulo, v. 109 p. 461 - 482 jan./dez. 2014.
MANNRICH, Nelson. A modernização do contrato de trabalho. São Paulo: LTr, 1998.
PÉREZ DEL CASTILLO, Matías. Trabajadores autónomos y Derecho colectivo del trabajo. In:
Disrupción, economia compartida y Derecho. Enfoque jurídico multidisciplinario. coord.
Gustavo Gauthier. Montevideo: FCU, 2016.
RAMALHO, Maria Rosário Palma. A Economia Digital e a Negociação Coletiva. Ministério do
Trabalho, Solidariedade e Segurança Social. Centro de Relações Laborais. Lisboa, 2019.
SCHWAB, Klaus. A quarta revolução industrial. Trad. Daniel Moreira Miranda. São Paulo: Edipro,
2016.
SUPIOT, Alain. Transformações do trabalho e futuro do Direito do Trabalho na Europa. Coimbra:
Ed. Coimbra, 2003.
SUSSEKIND, Arnaldo. Direito Constitucional do Trabalho. 4ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2010.

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Cidades inteligentes e cidades sustentáveis: a
busca por um conceito integrador

Bruno Lúcio Moreira Manzolillo1

Resumo: Diante da cada vez mais frequente busca pelo desenvolvimento de cidades inteligentes,
alijada na atual revolução tecnológica, o presente artigo busca apresentar diferentes definições tanto da
expressão “cidades inteligentes” como também de “cidades sustentáveis”, expressões igualmente presentes
no planejamento urbano pátrio e mundial. Para tanto, foram explorados conceitos legais e doutrinários, de
fontes científicas de diversas áreas de conhecimento. Ao fim, buscou-se propor uma união dos conceitos
apreendidos, permitindo que o contato com diferentes ideais seja cada vez mais conexo.
Palavras-chave: cidades inteligentes; cidades sustentáveis; planejamento urbano; tecnologias de
informação e comunicação.

Abstract: In view of the increasingly frequent search for the development of smart cities, jettisoned in
the current technological revolution, this article seeks to present different definitions both of the expression
“smart cities” and also of “sustainable cities”, an expression also present in the urban and national urban
planning. To this end, legal and doctrinal concepts from scientific sources from different areas of knowledge
were explored. In the end, we sought to propose a union of the concepts learned, allowing the contact with
different ideals to be increasingly connected.
Keywords: smart cities; sustainable cities; urban planning; information and communication technologies.

Introdução
A comunidade internacional demonstra preocupação com o “meio ambiente humano”
há décadas. A expressão foi conceituada primeiramente na Declaração de Estocolmo sobre

1
Mestre em Direito da Cidade pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Especialista
em Direito Ambiental Brasileiro e Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro – PUC-Rio. Professor do Centro Universitário Augusto Motta – UNISUAM. Membro da Comissão
de Direito Constitucional da OAB/RJ.
Endereço eletrônico: brunoluciomm@gmail.com

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Cidades inteligentes e cidades sustentáveis: a busca por um conceito integrador
Bruno Lúcio Moreira Manzolillo

o Meio Ambiente Humano, diploma que registra os resultados da Conferência das Nações
Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, de 1972.
A procura por alternativas sustentáveis de vida pela sociedade tem seu marco em 1987,
quando a Comissão Brundtland2 –nome mais conhecido da Comissão Mundial sobre o Meio
Ambiente e o Desenvolvimento da ONU, criada em 1983– publicou seu relatório, intitulado
“Nosso Futuro Comum”3.
Já naquela época, foi apontada a incompatibilidade entre desenvolvimento sustentável e
os padrões de produção e consumo vigentes. Ou seja, o cerne do Relatório foi atestar a
necessidade de tecnologias e atitudes sustentáveis perante a pobreza generalizada e os estilos
de vida consumistas da população. Desde então, o mundo vem sofrendo um processo de
tentativas na busca desse objetivo.
Paralelamente, a partir de evoluções na microeletrônica, computação e telecomunicação,
o mundo, após o fim da Segunda Guerra Mundial, entrou na fase da Revolução da Tecnologia
da Informação, a chamada terceira revolução industrial, ou revolução tecnológica4.
Buscando criar sistemas urbanos que quebrem com os padrões destrutivos da natureza,
em congruência com as demandas da vida urbana moderna, surgem os projetos das chamadas
cidades inteligentes, que oferecem significativas inovações integradas na economia, na
sociedade e no meio ambiente. Tais mudanças dependem de avanços tecnológicos que
compactuem a proteção ambiental com a estímulo ao bem-estar em centros urbanos e
demonstrem ganhos (ou menos perdas) no setor econômico.
Entretanto, a expressão “cidades inteligentes” (ou como comumente referido, smart
cities, em inglês) condensa uma multiplicidade de sentidos, exigindo um horizonte reflexivo
sobre planejamento urbano.
Nesse sentido, o presente artigo pretende explorar os possíveis significados da expressão,
a fim de permitir melhor compreensão dos seus objetivos e facilitar que se trabalhe a
terminologia de forma apropriada.

1. Cidades inteligentes e o uso de tecnologias inovadoras


Uma cidade é um sistema e agregar inteligência a um sistema significa atribuir-lhe a
capacidade de solucionar problemas próprios do funcionamento sistemático.

2
A comissão, que carrega o nome de sua presidente, a então primeira-ministra da Noruega Gro Har-
lem Brundtland, constituída em decorrência da Conferência de Estocolmo de 1972, objetivava avaliar a ques-
tão ambiental em sua interface como o desenvolvimento, propondo um plano de ação em nível mundial.
3
ONU. Nosso Futuro Comum. 2a. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1991.
4
Manuel Castells explica que a característica atual da revolução tecnológica não é a centralidade
de conhecimentos e informação, mas “a aplicação desses conhecimentos e de dispositivos de processa-
mento/comunicação de informação, em um ciclo de realimentação cumulativo entre a inovação e o uso”
(CASTELLS, M. A Sociedade em Rede - A Era da Informação: economia, sociedade e cultura. Tradução de
Roneide Venancio Majer. São Paulo: Paz e Terra, v. 1, 1999. p. 97-98).

— 367 —
Cidades inteligentes e cidades sustentáveis: a busca por um conceito integrador
Bruno Lúcio Moreira Manzolillo

É a partir desse entendimento que se tem um primeiro conceito, literal, da expressão


“cidade inteligente”:

Uma cidade inteligente, nesse sentido, é uma cidade capaz de criar estruturas de
gestão capazes de serem ativadas para atender a demandas próprias do caráter
problemático que o espaço urbano, enquanto sistema complexo, (re)produz
continuamente. Essas estruturas visualizam a cidade como um sistema complexo
que deve ser todo interligado por redes de comunicação, as quais podem detectar
problemas, emitir alarmes e, principalmente, direcionar fluxos de trabalho humano
com foco na eficiência dos serviços públicos e controlar remotamente dispositivos
e equipamentos das mais variadas interfaces5.

Embora não seja o objetivo do presente trabalho, se percebe no referido trecho a presença
de elementos de inovação tecnológica que darão a feição principal das cidades inteligentes: a
presença de ferramentas tecnológicas que facilitem a vida dos indivíduos que nelas habitam,
através, principalmente, da rápida troca de informações.
Justamente, para a Rede Brasileira de Cidades Inteligentes e Humanas, o elemento
principal que caracteriza uma cidade como inteligente é “a conexão entre todos os elementos
de uma área, com a finalidade de construir um sistema de informações que promova a melhoria
da qualidade de vida da população”6.
Trata-se do emprego, cada vez mais imprescindível na sociedade atual, de Tecnologias
de Informação e Comunicação (TIC’s), principalmente para tornar mais eficiente a geração
de energia, preservação de recursos naturais, transportes, educação, saúde, segurança e
alimentação7.
Segundo o World Cities Report, de 2016, da UN-Habitat, tais tecnologias são utilizadas
para melhorar os serviços e a qualidade de vida nas cidades, lidando com uma vasta gama de
desafios, como prevenção de crimes, mobilidade, criando ambientes mais saudáveis, sistemas
urbanos de energia eficientes, resiliência e preparo contra emergências, entre outros8.
Partindo dessa premissa, a cidade inteligente pode ser também conceituada como
“aquela que faz uso extensivo e racional das TIC para a melhoria da eficiência dos espaços
urbanos”9.

5
NALINI, J. R.; NETO, W. L. B. D. S. Cidades inteligentes e sustentáveis: desafios conceituais e
regulatórios. In: CORTESE, T. T. P.; KNIESS, C. T.; MACCARI, E. A. Cidades Inteligentes e Sustentáveis.
Barueri, SP: Manole, 2017. p. 6.
6
JUNKES, D. Como mensurar cidades inteligentes? VIA - Estação Conhecimento, 2017. Disponi-
vel em: http://via.ufsc.br/como-mensurar-cidades-inteligentes/. Acesso em: 14 set. 2017.
7
WEISS, M. C.; BERNARDES, R. C.; CONSONI, F. L. Cidades Inteligentes: casos e perspectivas
para as cidades brasileiras. Revista Tecnológica da Fatec Americana, Rio de Janeiro, 5, n. 1, mar. 2017. p. 8.
8
UN-HABITAT. World Cities Report 2016: Urbanization and Development - Emerging Futures.
UN-Habitat. Nairobi, Quênia, 2016. p. 42-45.
9
WEISS, M. C.; BERNARDES, R. C.; CONSONI, F. L. Op. Cit. p. 1.

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Cidades inteligentes e cidades sustentáveis: a busca por um conceito integrador
Bruno Lúcio Moreira Manzolillo

Esse processamento inteligente servirá como referência e norteará as tomadas de decisões


de empresas, governos e cidadãos, com o intuito de tornar as atividades urbanas mais eficientes
e sustentáveis nas esferas econômica, social, ecológica e política. Consequentemente, o foco
da atualidade está no incremento de projetos que se dispõem a tornar a economia, a mobilidade
urbana, o meio ambiente, os cidadãos e o governo mais inteligentes. André Lemos imagina
que, a partir do uso de tais ferramentas, a cidade passa a ser um organismo informacional que
reage e atualiza todos sobre suas condições a qualquer hora10.
Remonta-se à inteligência de Castells, que explica que as novas tecnologias de informação
“agem sobre todos os domínios da atividade humana e possibilitam o estabelecimento de
conexões infinitas entre diferentes domínios, assim como entre os elementos e agentes de tais
atividades”, transformando os métodos de processamento de informação11.
Em trabalho que serve de referência para o estudo de cidades inteligentes, o indiano
Kevin C. Desouza aponta o uso de TIC’s e o papel do usuário:

Atualmente, os avanços nas tecnologias de informação e comunicação têm permitido


às cidades interpretar melhor os dados para que se tornem mais “inteligentes”. Os
dispositivos móveis e a difusão do acesso à internet possibilitam que ainda mais
informações estejam ao alcance de mais pessoas. Uma grande quantidade de
tecnologia vem sendo incluída nas esferas social e física das cidades, possibilitando
o processamento em tempo real de dados e aprimorando o processo de tomada de
decisão. Além disso, dados que anteriormente eram ocultados da população estão
sendo divulgados12.

O autor elucida também sobre o papel mais ativo dos cidadãos nesse processo, vez que
possuem acesso e controle da tecnologia e do futuro de seus ambientes, podendo inclusive
criar “aplicativos para promover boas práticas sobre temas diversos e constroem plataformas
on-line para compartilhar problemas e soluções com seus vizinhos”.
Guimarães e Xavier tecem comentários que auxiliam na compreensão da importância da
criação de conteúdo pela população no uso de aplicativos de celular:

Existe uma profusão de aplicativo [sic] móveis já em funcionamento ao redor do


mundo, inclusive no Brasil, cujo objetivo é a promoção da cidadania e a melhoria
das condições de bem estar da coletividade, das comunicações entre os indivíduos e
as entidades de gestão pública, de forma direta ou indireta, através do mapeamento
da atividades por sistemas de georeferenciamento, mediante adesão dos usuários
em fornecer dados e informações para esses sistemas. As informações coletadas

10
LEMOS, A. Cidades Inteligentes: de que forma as novas tecnologias - como a computação em
nuvem, o Big Data e a Internet das Coisas - podem melhorar a condição de vida nos espaços urbanos? GV
Executivo, Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, p. 46-49, dez. 2013. p. 48.
11
CASTELLS, M. A Sociedade em Rede - A Era da Informação: economia, sociedade e cultura.
Tradução de Roneide Venancio Majer. São Paulo: Paz e Terra, v. 1, 1999. p. 120.
12
DESOUZA, K. C. Cidade Inteligente. In: KNOX, P. Atlas das Cidades. Tradução de André Bote-
lho. São Paulo: Senac, 2016. p. 228.

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Cidades inteligentes e cidades sustentáveis: a busca por um conceito integrador
Bruno Lúcio Moreira Manzolillo

podem ser úteis no planejamento do tráfego e melhorias em geral nos sistemas de


mobilidade urbana13.

Nesse sentido, Lemos fala no papel do “cidadão inteligente” (smart citizen), o indivíduo
conectado que tem a possibilidade de ser produtor de informação, propondo soluções criativas
e inovadoras para as suas cidades. Nas palavras do autor:

Por exemplo, o uso da Internet das Coisas, da computação em nuvem e do Big Data,
associado ao Open Data — política de abertura de dados públicos pelas instituições
governamentais—, pode ajudar no trânsito (carros, postes, semáforos e pessoas
trocando informações em tempo real), no controle da poluição ambiental (sensores
de CO2 ou de ruído, em pontos estratégicos da cidade, que se comunicam com
aplicativos de celular), no uso mais eficiente da eletricidade (tecnologia smart grid,
na qual objetos sabem o que consomem e são autoprogramados para poupar energia
durante o seu funcionamento) etc.14.

De forma geral, pode-se dizer que cidades inteligentes são propostas urbanas nas quais
um determinado espaço – uma cidade, uma metrópole ou até mesmo somente um bairro15 –
é palco de experiências de uso intensivo de tecnologias de informação e comunicação que
objetivam melhorar a gestão urbana, criar condições de sustentabilidade e garantir as boas
condições de vida às populações.
É interessante uma visão apresentada por Raquel Rolnik sobre cidades inteligentes16.
A urbanista, relatora para o Direito à Moradia Adequada da ONU, atenta à realidade das
cidades inteligentes que buscam usar a tecnologia para melhorar a gestão das cidades e
aumentar a eficiência dos serviços, a partir da manipulação da chamada Big Data, que é
a “massa de informações que são produzidas pelos próprios cidadãos conectados, em suas
ações cotidianas, gerando uma enorme quantidade de dados sobre o que elas compram, onde
vão, em que lugares consomem, que serviços usam, etc.”.
A indagação da autora é quanto ao interesse na produção e aquisição de tais dados, que já
são monopolizados empresarialmente em cidades onde o modelo é adotado. De fato, a busca
pela modernização de TIC’s muitas vezes nasce do interesse das empresas que vêm a lucrar
com não só com a aquisição de dados mas também com a dependência tecnológica.

13
GUIMARÃES, P. B. V.; XAVIER, Y. M. D. A. Smart cities e direito: conceitos e parâmetros de
investigação da governança urbana contemporânea. Revista de Direito da Cidade, Rio de Janeiro, v. 8, n. 4,
2016. p. 1377
14
LEMOS. Op. Cit., p. 49.
15
Maria Garcia aponta a relevância do bairro no entendimento da cidade, defende ao invés de se
olhar somente para o macrocosmo citadino, deve-se considerar as tendências urbanas do “microcosmo do
bairro onde os fatos acontecem, este panorama imediato visualizado como partir de um ‘território’ conheci-
do e palmilhado, para, então, perscrutar o horizonte, a estrutura urbana, seus elementos e relações e, a partir
daí, a composição e a diferenciação das formas espaciais, as cidades” (GARCIA, 2005, p. 46).
16
ROLNIK, R. Smart Cities: Cidades inteligentes ou negócios mais eficientes? Blog da Raquel Rol-
nik, 2017.

— 370 —
Cidades inteligentes e cidades sustentáveis: a busca por um conceito integrador
Bruno Lúcio Moreira Manzolillo

2. Cidades sustentáveis e a defesa do meio ambiente urbano


O ambiente urbano, a cidade, não é a antítese do verde. Pelo contrário, “a cidade de
concreto, asfalto e vidro na verdade não constituía um ente separado da natureza, mas natureza
transformada, um novo ecossistema integrado”17.
Nesse sentido, o uso de TIC’s não é somente empregado em programas políticos
que discutem a cidade inteligente, mas é igualmente frequente no debate sobre a “cidade
sustentável” ou “cidade verde”, sem lograr a doutrina ou programas de governo na apresentação
de uma razoável diferenciação entre as figuras, até porque têm finalidades muitas vezes
congruentes18.
A expressão “cidade sustentável” foi empregada inicialmente pelo UN-Habitat, que
entende significar

uma cidade onde as realizações e os avanços em desenvolvimento social, econômico


e físico são feitos para durar. Uma Cidade Sustentável possui uma reserva durável de
recursos naturais dos quais depende o desenvolvimento (utilizando-os somente num
nível de produção sustentável). Uma Cidade Sustentável mantém uma segurança
durável diante dos desastres naturais que possam ameaçar o desenvolvimento
(permitindo-se somente riscos aceitáveis)19.

O artigo 2º do Estatuto da Cidade, Lei 10.527/01, também traz, de forma geral, um


conceito de cidade sustentável, como aquela que garante aos cidadãos “o direito à terra
urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos
serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações”.
Para então uma cidade ser considerada sustentável, conforme o arquiteto urbanista
Carlos Leite, ela deve

operar segundo um modelo de desenvolvimento urbano que procure balancear, de


forma eficiente, os recursos necessários ao seu funcionamento, seja nos insumos
de entrada (terra urbana e recursos naturais, água, energia, alimento etc.), seja nas
fontes de saída (resíduos, esgoto, poluição etc.). Ou seja, todos os recursos devem ser
utilizados de forma mais eficiente possível para alcançar os objetivos da sociedade
urbana20.

17
SIRKIS, A. O desafio ecológico das cidades. In: TRIGUEIRO, A. (.). Meio Ambiente no século
21: 21 especialistas falam da questão ambiental nas suas áreas de conhecimento. Rio de Janeiro: Sextante,
2003. p. 215.
18
Outros autores usam ainda outras expressões, como cidades “globais”, “inovadoras”, “científi-
cas”, “criativas” ou “conectadas”.
19
GONÇALVES JUNIOR, J. C.; AIETA, V. S.; KISE, A. Direito urbanístico e ambiental constitu-
cional: a valorização das cidades, da participação popular como o dever de defendê-lo e preservá-o para as
presentes e futuras gerações. 2a. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. p. 333.
20
LEITE, C. Cidades sustentáveis, cidades inteligentes - desenvolvimento sustentável num plano
urbano. Porto Alegre: Bookman, 2012. p. 13.

— 371 —
Cidades inteligentes e cidades sustentáveis: a busca por um conceito integrador
Bruno Lúcio Moreira Manzolillo

Como ponto de referência ao desempenho de cidades sustentáveis, foi lançada, em


2017, pela Organização Internacional de Normalização (International Organization for
Standardization), a primeira norma técnica brasileira referente a sustentabilidade em
comunidades urbanas. A NBR ISO 37120:201721 define e estabelece metodologias para um
conjunto de indicadores relacionados ao desenvolvimento sustentável, com o objetivo de
orientar e medir o desempenho de serviços urbanos e qualidade de vida22.
A norma é direcionada a qualquer cidade, município ou entidade local que se comprometa
a medir o seu desempenho de forma comparável e verificável, independentemente do seu
tamanho, localização ou nível de desenvolvimento. Não há no diploma indicação se uma
cidade é sustentável ou não, mas estabelece quais requisitos devem ser avaliados para se
medir essa sustentabilidade. Engloba indicadores de diferentes áreas, tais como: economia,
educação, energia, ambiente, finanças, serviços de emergência, saúde, lazer, segurança,
resíduos, transportes, telecomunicações, água e planejamento urbano.
Em visão similar, considerando o ideal de cidades verdes, Heike Mayer as entende como

locais onde as pessoas buscam um ambiente urbano mais resiliente; onde políticos,
urbanistas e cidadãos vêm trabalhando para desenvolver infraestruturas, instituições
e comportamentos que os ajudem a enfrentar os desafios impostos pelas mudanças
climáticas23.

Há de se considerar a a insuficiência de um conceito para a expressão “cidade inteligente”.


Vânia Aieta defende que a teorização do conceito seria possível somente por meio da análise
de experiências mundiais nesse setor – experiências essas que “têm um denominador
comum: o objetivo de melhorar a qualidade do habitat dos cidadãos e a pesquisa de um novo
relacionamento entre os cidadãos e o ambiente”24.
Em obra coletiva, a autora defende o mesmo argumento quanto à expressão “cidade
sustentável”, alegando que “nos dias atuais a ideia de uma cidade sustentável ainda se encontra
no plano metafísico. Porém, além das perspectivas, podemos encontrar determinadas medidas
que caminham em busca desta cidade ideal”25.
Tal entendimento é referendado pela peculiaridade de cada projeto, cada cidade, visto
que a oferta de recursos naturais, sociais ou tecnológicos de cada local é diferente, assim
como cada povo terá suas demandas26.

21
O conteúdo na norma pode ser adquirido em https://www.iso.org/standard/62436.html.
22
Vale notar que a ISO, assim como outras organizações internacionais, tem pressionado governos
locais por políticas de uso de TIC (UN-HABITAT, 2016, p. 43).
23
MAYER, H. Cidade verde. In: KNOX, P. Atlas das Cidades. Tradução de André Botelho. São
Paulo: Senac, 2016. p. 212.
24
AIETA, V. S. Cidades Inteligentes: uma proposta de inclusão dos cidadãos rumo à ideia de “cidade
humana”. Revista de Direito da Cidade, v. vol. 8, n 4, p. 1622-1643, 2016. p. 1632
25
GONÇALVES JUNIOR, J. C.; AIETA, V. S.; KISE, A. Op. Cit.
26
Da mesma forma, remonta-se ao debatido quanto ao conceito de “felicidade”, que também será
diferente dentre cada cidade – exigindo inclusive tolerância entre diferentes modelos.

— 372 —
Cidades inteligentes e cidades sustentáveis: a busca por um conceito integrador
Bruno Lúcio Moreira Manzolillo

Por esse lado, ao ignorar as diferenças de cada local, a criação de um conceito fechado
para a expressão “apaga os detalhes, ignora as idiossincrasias, esquece os diferentes contextos,
nega aspectos específicos que podem ter papel significativo em cada história e, portanto, pode
implicar em erros e injustiças”27.

Considerações finais (ou A congruência de conceitos)


Diante de diferentes conceitos para cidade inteligente e cidade sustentável, é possível
perceber como os modelos podem se integrar, na união da agenda verde com a agenda marrom.
Melhor ainda seria a união dos dois da seguinte maneira: usar a inteligência como meio e ter
a sustentabilidade como fim.
Partindo dessa fusão, pode-se então dizer que uma cidade será inteligente e sustentável
quando for “baseada em um modelo inteligente de gestão, ancorado em tecnologias de
informação e comunicação, cujo objetivo repousa em maneiras de viabilizar a sustentabilidade
em todas as suas interfaces”28.
Deve ser também considerada a definição proposta pela International Telecommunication
Union, a agência da ONU especializada em tecnologias de informação e comunicação, de
“cidade inteligente sustentável”:

Uma cidade inteligente e sustentável é uma cidade inovadora que usa tecnologias
de informação e comunicação (TICs) e outros meios para melhorar a qualidade de
vida, a eficiência das operações e serviços urbanos e a competitividade, assegurando
que atenda às necessidades das presentes e futuras gerações com respeito a aspectos
econômicos, sociais, ambientais e culturais29.30

Mas não se trata apenas de tecnologia de informação e comunicação. As cidades que


seguem estes objetivos traduzem também uma união de conceitos inovadores em design e
arquitetura, além de contarem com o essencial interesse da população afetada, sem a qual
qualquer mudança seria inviável. O estudo das iniciativas em cidades inteligentes é essencial
para se trabalhar caminhos que são evidentemente necessários para a preservação do planeta
e da espécie humana.

27
MENEZES, F. Z. Cidade “inteligente” ou “resiliente”? Entenda os conceitos. Gazeta do Povo,
2016.
28
NALINI, J. R.; NETO, W. L. B. D. S. Op. Cit. p. 9.
29
ITU. Focus Group on Smart Sustainable Cities. International Telecommunication Union, 2015.
30
Tradução livre. No original, em inglês: ““A smart sustainable city is an innovative city that uses
information and communication technologies (ICTs) and other means to improve quality of life, efficiency
of urban operation and services, and competitiveness, while ensuring that it meets the needs of present and
future generations with respect to economic, social, environmental as well as cultural aspects”

— 373 —
Cidades inteligentes e cidades sustentáveis: a busca por um conceito integrador
Bruno Lúcio Moreira Manzolillo

Referências
AIETA, V. S. Cidades Inteligentes: uma proposta de inclusão dos cidadãos rumo à ideia de “cidade
humana”. Revista de Direito da Cidade, v. vol. 8, n 4, p. 1622-1643, 2016.
BRASIL. Lei 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal,
estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências, 2001. Disponivel em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LEIS_2001/L10257.htm. Acesso em: 09 set. 2017.
CASTELLS, M. A Sociedade em Rede - A Era da Informação: economia, sociedade e cultura.
Tradução de Roneide Venancio Majer. São Paulo: Paz e Terra, v. 1, 1999.
DESOUZA, K. C. Cidade Inteligente. In: KNOX, P. Atlas das Cidades. Tradução de André Botelho.
São Paulo: Senac, 2016. p. 226-243.
GONÇALVES JUNIOR, J. C.; AIETA, V. S.; KISE, A. Direito urbanístico e ambiental constitucional:
a valorização das cidades, da participação popular como o dever de defendê-lo e preservá-o
para as presentes e futuras gerações. 2a. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.
GUIMARÃES, P. B. V.; XAVIER, Y. M. D. A. Smart cities e direito: conceitos e parâmetros de
investigação da governança urbana contemporânea. Revista de Direito da Cidade, Rio de
Janeiro, v. 8, n. 4, p. 1362-1380, 2016.
ITU. Focus Group on Smart Sustainable Cities. International Telecommunication Union, 2015.
Disponivel em: https://www.itu.int/en/ITU-T/focusgroups/ssc/Pages/default.aspx. Acesso em:
13 jan. 2018.
JUNKES, D. Como mensurar cidades inteligentes? VIA - Estação Conhecimento, 2017. Disponivel
em: http://via.ufsc.br/como-mensurar-cidades-inteligentes/. Acesso em: 14 set. 2017.
LEITE, C. Cidades sustentáveis, cidades inteligentes - desenvolvimento sustentável num plano
urbano. Porto Alegre: Bookman, 2012.
LEMOS, A. Cidades Inteligentes: de que forma as novas tecnologias - como a computação em
nuvem, o Big Data e a Internet das Coisas - podem melhorar a condição de vida nos espaços
urbanos? GV Executivo, Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, p. 46-49, dez. 2013. Disponivel em: http://
bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/gvexecutivo/article/view/20720/19454. Acesso em: 14
set. 2017.
MAYER, H. Cidade verde. In: KNOX, P. Atlas das Cidades. Tradução de André Botelho. São Paulo:
Senac, 2016. p. 210-225.
MENEZES, F. Z. Cidade “inteligente” ou “resiliente”? Entenda os conceitos. Gazeta do Povo, 2016.
Disponivel em: http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/futuro-das-cidades/cidade-
inteligente-ou-resiliente-entenda-os-conceitos-2fqvb8qprdto4jocfzy2ryap3. Acesso em: 14 set.
2017.
NALINI, J. R.; NETO, W. L. B. D. S. Cidades inteligentes e sustentáveis: desafios conceituais e
regulatórios. In: CORTESE, T. T. P.; KNIESS, C. T.; MACCARI, E. A. Cidades Inteligentes e
Sustentáveis. Barueri, SP: Manole, 2017. p. 3-18.
ONU. Nosso Futuro Comum. 2a. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1991.
ROLNIK, R. Smart Cities: Cidades inteligentes ou negócios mais eficientes? Blog da Raquel Rolnik,
2017. Disponivel em: https://raquelrolnik.wordpress.com/2017/08/04/smart-cities-cidades-
inteligentes-ou-negocios-mais-eficientes/. Acesso em: 05 jan. 2018.

— 374 —
Cidades inteligentes e cidades sustentáveis: a busca por um conceito integrador
Bruno Lúcio Moreira Manzolillo

SIRKIS, A. O desafio ecológico das cidades. In: TRIGUEIRO, A. (.). Meio Ambiente no século 21:
21 especialistas falam da questão ambiental nas suas áreas de conhecimento. Rio de Janeiro:
Sextante, 2003. p. 215-229.
UN-HABITAT. World Cities Report 2016: Urbanization and Development - Emerging Futures.
UN-Habitat. Nairobi, Quênia, p. 262. 2016.
WEISS, M. C.; BERNARDES, R. C.; CONSONI, F. L. Cidades Inteligentes: casos e perspectivas
para as cidades brasileiras. Revista Tecnológica da Fatec Americana, Rio de Janeiro, 5, n.
1, mar. 2017. Disponivel em: http://www.fatec.edu.br/revista_ojs/index.php/RTecFatecAM/
article/view/137/126.

— 375 —
Aspectos tributários nas Fintechs

Fabrizio Bon Vecchio1


Débora Manke Vieira2

Resumo: As inovações tecnológicas em desenvolvimento constante ampliam a oferta e a demanda por


serviços eficientes, inclusive ameaçando a busca pelos serviços bancários tradicionais. Assim surgiram as
fintechs, empresas que oferecem serviços financeirosque se diferem, quer pelas facilidades proporcionadas,
quer pelas tecnologias e inovação, em um mercado secular e tradicional. Essas empresas, geralmente no
modelo startup, criam e exploram ideias criativas, oferecendo serviços e produtos inovadores. As fintechs,
por serem consideradas empresas que geram inovação tecnológica, em alguns casos têm direito a incentivos
fiscais, e podem recorrer a um sistema especial de tributação. Consequência são os benefícios que podem
ser repassados ao consumidor final que, como exemplo, terá acesso aos serviços com tarifas bem menores
que as praticadas pelo sistema bancário tradicional, chegando, em muitos casos, a terem custo zero na
manutenção de certos serviços. Em 2018, as fintechs brasileiras movimentaram mais de R$ 1,48 bilhão em
investimentos. O Nubank, considerado a principal startup financeira no Brasil, levantou US$ 400 milhões
e atingiu um valor de mercado de mais de US$ 10 bilhões chegando ao status de startup unicórnio, por ter
alcançado avaliação de preço de mercado superior a mais de 1 bilhão de dólares antes de abrir seu capital
em bolsas de valores e se tornar uma Initial Public Offering (em português “Oferta Pública Inicial”).
Palavras-chave: Tributação; Fintechs; Serviços bancários.

Abstract: Technological innovations in constant development, have expanded the supply and demand
for efficient services, including those that are threatening the search for traditional banking services. Thus,
the Fintechs have emerged, companies that offer financial services that differ, both in terms of the facilities
provided and the technologies and innovation, in a secular and traditional market. These companies are
usually in a startup mode, creating and exploring new ideas to offer innovative products and services. As
Fintechs are considered companies that generate technological innovation, in some cases they are entitled
to some tax incentives, and may resort to a special taxation system. The consequences of such special
incentives are the benefits that can be passed on to the final consumer, who, as an example, will have access

1
Mestrando em Direito da Empresa e dos Negócios – Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNI-
SINOS). E-mail: fbvecchio@hotmail.com;
2
Pós Graduanda em Direito Tributário - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUCRS). E-mail: deboramanke@gmail.com.

— 376 —
Aspectos tributários nas Fintechs
Fabrizio Bon Vecchio - Débora Manke Vieira

to services at far lower rates than those practiced by the traditional banking system, reaching in many cases
zero cost in the maintenance of certain services. In 2018, Brazilian fintechs moved more than R $ 1.48
billion in investments. Nubank, considered the leading financial startup in Brazil - raised US $ 400 million
and reached a market value of more than US $ 10 billion, thus reaching the status of unicorn startup, for
having achieved a market price assessment of more than 1 billion of dollars before going public on stock
exchanges, and becoming an Initial Public Offering (in Portuguese “Oferta Pública Inicial”).
Keywords: Taxation; Fintechs; Bank services.

INTRODUÇÃO
Hodiernamente, o crescimento das fintechs está diretamente ligado à falta de
regulamentação do setor e da cultura econômica das startups. Contudo, sofre sobremaneira
com a deficiência estatal em estabelecer um modelo tributário adequado a este novo mercado,
o que é essencial no início das atividades de qualquer empreendimento, que, na maioria das
vezes, inicia com o esforço de poucos empregados e orçamentos reduzidos.
As instituições financeiras tradicionais vêm sentindo os efeitos dessa ‘nova competição’
com referidas startups e, como exemplo, temos o fechamento de agências físicas,
exclusivamente em razão da incrementação digital e das novas necessidades dos clientes,
como serviços personalizados e menores taxas bancárias.
O presente estudo destina-se à análise da legislação fiscal e dos efeitos decorrentes das
novas tecnologias, para tanto, faz-se o uso de obras dogmáticas clássicas do Direito Tributário,
bem como do enfrentamento da unidade teórica das normas infraconstitucionais, da postura
analítica de acordo com as referências legais e da compreensão básica dos fundamentos
do Direito Tributário. A pesquisa tem o objetivo de responder a seguinte problemática: A
legislação fiscal brasileira está apta a regular este novo modelo de instituição bancária?

1. A CONCEPÇÃO DOS ASPECTOS TRIBUTÁRIOS


As normas tributárias possuem, em sua maioria, uma hipótese de incidência, isto é,
o fato gerador. Em virtude desta incidência sobrevém uma regra jurídica produzindo
eficácia correlativa de um dever ou obrigação. Os conceitos jurídicos não são estanques, a
interdisciplinaridade busca uma regra válida a todo ordenamento, portanto, o que o Direito
Bancário regulamenta influirá diretamente no Direito Tributário, assim como nos demais
ramos do Direito3.
O sistema empregado pelo Código Tributário Nacional obedece tanto ao princípio
da tipicidade cerrada decorrente da estrita legalidade, quanto à hipótese do fato gerador, a
prescrever a tributação sob a alegação de emprego da forma, portanto, do critério econômico
abstrai-se os efeitos que os fatos produzem4.

3
BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 6ª edição. São Paulo: Noeses,
2013. p. 129 e 132.
4
BRITO, Edvaldo. Direito tributário: imposto, tributos sinalagmáticos, contribuições, preços e
tarifas, empréstimo compulsório. São Paulo: Atlas, 2015. p. 43.

— 377 —
Aspectos tributários nas Fintechs
Fabrizio Bon Vecchio - Débora Manke Vieira

A certeza é de que ao Direito Tributário interessa a relação econômica e os poderes de


capacidade contributiva, elementos necessários ao fazer incidir o tributo que lhe é inerente.
Sob outra perspectiva, “o substrato econômico na hipótese de cada imposto é pressuposto
pela própria Constituição. Sendo assim, só podem ser tributadas as atividades relacionadas à
renda, patrimônio ou consumo, que sejam indicativas de expressão econômica.”5.
A consideração econômica do Direito Tributário, traduz-se em uma específica
interpretação tributária-teleológica, isto é, a forma de consideração econômica é o reflexo da
ligação da tributação à capacidade contributiva6.
O tributo também pode ter a finalidade de intervenção econômica, estimulando e
desestimulando determinada atividade. Neste cenário, o papel do ente estatal não é outro
senão o de exercer seu poder unitário atribuindo funções específicas a um ou mais órgãos; e
aqui, é o Banco Central do Brasil que regulamenta e fiscaliza as atividades bancárias.
Portanto, a competência tributária – aptidão de que são dotadas as pessoas políticas
para expedir regras jurídicas – se dá pela ação das ‘normas gerais de direito tributário’, seja
regulando as limitações constitucionais ao poder de tributar, seja dispondo sobre conflitos
de competência entre as entidades tributantes, modo pelo qual o constituinte delimitou os
domínios da possibilidade de cada um, em um dispositivo apto a ser acionado tão logo
apareçam sinais de violação ao sistema 7.
Nesse contexto, se faz necessária a explanação da contextualização básica dos
fundamentos do Direito Tributário para se apurar como o ordenamento jurídico fiscal brasileiro
se comportará diante do novo modelo de instituição bancária digital.

2. O TRIBUTO
O Código Tributário Nacional define que tributo é “toda prestação pecuniária compulsória,
em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção do ato ilícito,
instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”, é a
disposição do artigo 3º do dispositivo. O conceito jurídico de tributo, como item da receita
pública, se constituirá com a referência à destinação pública do ingresso, sob pena de perecer
o próprio conceito de tributo, categoria básica do Estado Social Fiscal8. Sua existência está
atrelada ao financiamento das despesas governamentais – autorizadas pelo Orçamento Público
– na medida da capacidade econômica do contribuinte.
Assim, no plano rigoroso jurídico, tributo é uma receita pública integrada “no patrimônio
público sem quaisquer reservas, condições ou correspondência no passivo, vem acrescer o
seu vulto, como elemento novo e positivo”9.

5
ÀVILA, Humberto. Teoria da igualdade tributária. 3ª edição, Malheiros 2015. p. 166.
6
FOSSATI, Gustavo. Planejamento tributário e interpretação econômica. Porto Alegre: Ed. Li-
vraria do Advogado, 2006. p. 61.
7
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 17ªedição. São Paulo: Saraiva, 2005.
p. 225.
8
TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 17ª edição. São Paulo, 2010.e-book.
9
BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 17ª edição. Rio de Janeiro: Fo-
rense, 2010. p. 116.

— 378 —
Aspectos tributários nas Fintechs
Fabrizio Bon Vecchio - Débora Manke Vieira

O sistema fiscal possui função arrecadatória, possuindo “uma estrutura tributária que
permita ao governo arrecadar a receita requerida para o financiamento de seus gastos e, ao
mesmo tempo, alcançar determinados objetivos distributivos, ao menor curso possível em
termos de perda de eficiência econômica”10.
A tributação eficiente é aquela que busca a menor quantidade de tributos, simplificando
os custos para a arrecadação, primando pela neutralidade fiscal, minimizando as interferências
nas decisões econômicas. Esse patamar se mostra inalcançável, sendo o ideal buscar garantir
um ambiente de igualdade de condições competitivas, permitindo a isonomia de concorrência
entre as partes11.
A locução “capacidade contributiva” é aferida da relação estabelecida entre a riqueza
do indivíduo e a carga tributária por ele suportada. Dizer que as despesas públicas devem ser
partilhadas entre os contribuintes conforme a possibilidade de arcar com o peso do tributo
é incorrer em tautologia. A mesma não constitui um conceito cientifico, não determina a
prestação do contribuinte e sequer adequa às prestações dos demais. Ainda, por si mesma,
não diz qual o limite dos tributos. É um conceito vazio que pode ser preenchido por diversos
conceitos ambíguos 12.

3. A ASCENSÃO DAS FINTECHS


Fintech é um termo utilizado como referência aos serviços financeiros e tecnológicos,
correspondentes ao universo de inovações tecnológicas que possam ter implicações
potencialmente transformadoras para o sistema financeiro, para os seus intermediários e
usuários. A presença no mercado é desenvolvida fora do sistema bancários tradicional, afinal,
cobrem diversas áreas, como os sistemas de pagamento, onde existe grande potencial de
crescimento 13.
Resumidamente, é a combinação entre as modernas técnicas de gestão tecnológica
– rompendo com as tradicionais instituições financeiras cujos serviços são prestados de
forma física, valendo-se de novas ferramentas bancárias digitais –e as práticas bancárias
convencionais. A tecnologia e o investimento em inovação alcançaram novos nichos sociais,
sobretudo a população mais jovem, o que acarretou em crescimento desordenado sem a
intervenção do Banco Central do Brasil ou recebendo recursos estatais para financiamento de
suas atividades.
Rapidamente novas fontes de investimento, redução de custos, mais segurança nas
transações e desenvolvimento de produtos personalizados refletiram nas atividades financeiras.

10
SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 42.
11
SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 43.
12
BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 6ª edição. São Paulo: Noeses,
2013. p. 515.
13
PEIXOTO, Marisa Tatiana Belchior. As fintechs como instrumento de desenvolvimento: O
Caso de Moçambique. Dissertação em Estratégia de Investimento e Internacionalização (ISG: Business &
Economics School). Lisboa, 2018. p. 38.

— 379 —
Aspectos tributários nas Fintechs
Fabrizio Bon Vecchio - Débora Manke Vieira

As novas instituições aprimoraram suas atividades por meio da tecnologia, distinguindo-se


das tradicionais que se baseiam no fluxo documental.
Um exemplo de incentivo às fintechs no Brasil é a Lei 11.196/2005, conhecida como
“Lei do Bem”, que institui regime especial de tributação para plataformas de exportação e
empresas de tecnologia., permitindo a dedução no Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ)
e na Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) dos investimentos realizados em
inovação, bem como a amortização dos custos de equipamentos, softwares outras tecnologias
vinculadas às pesquisas de desenvolvimento e inovação.
No entanto, há um série de requisitos a serem cumpridos, dos quais, (a) devem optar
pela apuração com base no Lucro Real, (b)apresentar lucro tributável no período e ainda,
(c) apresentar inovação tecnológica–caracterizada como novo produto ou processo de
fabricação ao bem que agregue novas funcionalidades, características de produto ou processo
que implique melhorias incrementais e efetivo ganho de qualidade ou produtividade –que
precisa ser referendada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação - em muitos casos,
o Ministério desqualifica determinadas despesas como desnecessárias para as atividades o
que deixa mais penoso o processo de instalação de uma fintech.

4. O COMPORTAMENTO DO LEGISLADOR FRENTE À INOVAÇÃO


O primeiro impulso tecnológico ao encontro de uma plataforma digital, como modelo
jurídico para as startups financeiras, foi a criação das chamadas Sociedades de Crédito Direto
(concedem crédito com capital próprio) e as Sociedades de Empréstimo entre Pessoas (tem sua
atuação intermediária entre poupadores e investidores, promovendo o peer-to-peer leading,
sem conceder crédito com capital próprio, portanto, sem arriscar seu crédito originário).
Já o Peer-to-Peer Leading surgiu como uma modalidade de concessão de empréstimos,
organizada pela reunião de um grupo de investidores reunidos por meio de uma plataforma
digital operacionalizada como marketplace, que, por sua vez, oferece um ambiente de conexão
entre pessoas físicas e jurídicas, ou seja, as que necessitam de empréstimo de capital e as que
desejam emprestar dinheiro em troca de remuneração.
O legislador, percebendo as mudanças circunstâncias do público que anseia por serviços
qualificados e menores tarifas bancárias, apresentou o Projeto de Lei n° 6.625/2013, denominado
de Sistema de Tratamento Especial a Novas Empresas de Tecnologia (SISTENET), prevendo
para as startups a isenção total de impostos federais por 2 anos, prorrogáveis por mais 2 anos,
incluindo aqui aquelas que investem em atividades financeiras.
Certamente a isenção por curto período não deixa em posição favorável as fintechs
brasileiras. Internacionalmente, as legislações se modernizam com maior velocidade. Na
França, as fintechs que investem em inovação são isentas do Imposto de Renda nos 2 primeiros
anos de atividade, gozando de uma redução nos encargos trabalhistas por 7 anos, podendo
usufruir de um benefício fiscal que permite recuperar um crédito de 30% sobre as despesas
relacionadas com pesquisas e 20% com aquelas relacionadas à inovação.
Já o Reino Unido e os Estados Unidos apresentam tratamento tributário semelhante,
incentivando o investimento no setor e o aquecimento das taxas de crescimento, na medida

— 380 —
Aspectos tributários nas Fintechs
Fabrizio Bon Vecchio - Débora Manke Vieira

em que essas modalidades de empreendimentos podem se deslocar facilmente para qualquer


lugar do mundo.

5. AS COOPERATIVAS DE CRÉDITO PODEM SE TORNAR AS MAIORES


ALIADAS ÀS FINTECHS
As cooperativas de crédito vêm ganhando força pelas inovações tecnológicas e sociais.
O cooperativismo financeiro no mundo digital aproximou a conexão entre o ambiente das
startups e o mundo do cooperativismo.
As cooperativas de crédito dão acesso a operações e serviços de natureza bancária, de
maneira a promover a inclusão social, e a geração de renda na comunidade que a cerca,
reconhecidas pela Constituição Federal e subordinadas ao Sistema Financeiro Nacional (art.
192, da Constituição Federal) – não sendo incluídas no tratamento tributário previsto na Lei
nº 5.764/71,que rege as sociedades cooperativas.
O cooperativismo de crédito agencia a aplicação de recursos privados e públicos,
assumindo os riscos em benefício da comunidade em que estão inseridas e oferecendo
soluções financeiras aos seus associados por meio de crédito com taxas menores14. Não se
assemelham às instituições bancárias, posto que atuam sem a intenção de lucrar, pois tudo que
se cobra retorna para quem gerou a receita15.
As aplicações financeiras das cooperativas de crédito não estão submetidas à incidência
de tributos, tendo isenção de PIS, COFINS e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido.
Em consonância ao art. 146, III, ‘c’, da Constituição Federal, verifica-se que não se trata
de uma norma de eficácia plena, porquanto depende de regulamentação por lei complementar,
por ora inexistente. Entretanto, normas de eficácia limitada surtem efeitos jurídicos imediatos
para repelir situações preexistentes que lhe sejam contrárias. Aliás, as normas meramente
programáticas surtem efeitos pelo seu aspecto negativo, à medida que não se permite a edição
de normas que lhe sejam controvertidas.
O STF, se manifestando sobre o tema, entendeu que na falta de lei complementar da
União que regulamente o adequado tratamento tributário do ato cooperativo praticado pelas
sociedades cooperativas, poderá o legislador estadual legislar – obviamente sem exceder os
limites da competência tributária atribuída pela constituição16.
Portanto, qualquer norma infraconstitucional que confira às cooperativas de crédito
tratamento tributário mais gravoso do que às demais empresas, estará em desconformidade

14
OCB. Organização das Cooperativas Brasileiras. Cooperativas de crédito e seus impactos sociais.
2006. Disponível em: http: //www.bcb.gov.br/pre/microFinancas/arquivos/horario_ arquivos/trab_50.pdf
Acesso em: 02 jan. 2020.
15
KRUGER, G. (Coord.). Cooperativas na ordem econômica constitucional. Teoria e direito. Belo
Horizonte: Mandamentos, 2008. p. 87.
16
CALIENDO, Paulo. Curso de direito tributário. 2ª edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
p. 109.

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Aspectos tributários nas Fintechs
Fabrizio Bon Vecchio - Débora Manke Vieira

constitucional. A tarefa de regular a atividade econômica deve ser utilizada com cautela,
sob pena de trazer mais prejuízos do que benefícios, não sendo pacífico que o Estado tenha
condições plenas de decidir qual setor deve ser incentivado e qual deve sofrer penúria
econômica17.
No âmbito tributário, a igualdade impositiva está irremediavelmente ligada ao conteúdo
econômico da base de cálculo. Restando, “a simples contingência de um êxito no mundo
físico não ter qualquer atributo apto para quantificá-lo já diz de sua imprestabilidade para fins
impositivos, visto que o cânone da igualdade é um imperativo constitucional, que ficará tolhido
à míngua da possibilidade de seleção de um dado capaz de qualifica-lo na sua intensidade” 18,
portanto, a igualdade deve ser um elemento que justifique a justa tributação desconsiderando
os privilégios exacerbados as instituições tradicionais.
Este entendimento poderá ser interpretado extensivamente ao tratamento fiscal das
Fintechs, afinal não pode o sistema tributário gerar desequilíbrios da concorrência baseado
em classificações das atividades financeiras.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Resta clara a necessidade de avanço em termos de estímulos fiscais e regulamentares,
especialmente através da criação de uma política que vise principalmente o desenvolvimento
da pesquisa e inovação tecnológico-financeira. Observa-se que a forma como o legislativo
vem tratando as novas instituições financeiras ainda se mostra insuficiente, fato que impede
o crescimento regular de referidas startups e que se encontre um modelo de tributação que
se mostre adequado a este modelo de empresa, e que principalmente leve em conta suas
peculiaridades.
A legislação brasileira possui vários mecanismos aptos a regulamentar as fintechs. No
entanto, a falta de familiaridade com o tema, e também a quase inexistência de benefícios
fiscais para o setor, prejudica o novo ramo, além de condenar as fintechs a uma injusta
concorrência com nichos de mercado tradicionais que, pelo tempo de atividade, contam com
operações sólidas e extremamente bem sedimentadas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ÀVILA, Humberto.Teoria da igualdade tributária. 3ª edição. São Paulo: Malheiros, 2015.p. 166.
BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 17ª edição. Rio de Janeiro: Forense,
2010.
BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 6ª edição. São Paulo: Noeses, 2013.
p. 129, 132 -515.

17
CALIENDO, Paulo. Curso de direito tributário. 2ªedição. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
p. 111.
18
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 17ªedição. São Paulo: Saraiva, 2005.
p. 341.

— 382 —
Aspectos tributários nas Fintechs
Fabrizio Bon Vecchio - Débora Manke Vieira

BRITO, Edvaldo. Direito tributário: imposto, tributos sinalagmáticos, contribuições, preços e tarifas,
empréstimo compulsório. São Paulo: Atlas, 2015. p. 43.
CALIENDO, Paulo. Curso de direito tributário. 2ª edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 17ª edição. São Paulo: Saraiva, 2005. p.
225.
FOSSATI, Gustavo. Planejamento tributário e interpretação econômica. Porto Alegre: Ed. Livraria
do Advogado, 2006. p. 61.
KRUGER, G. Cooperativas na ordem econômica constitucional: Teoria e direito. Belo Horizonte:
Mandamentos, 2008. p. 87.
MACHADO, Hugo de Brito. Teoria geral do direito tributário. São Paulo: Malheiros, 2015. p. 42.
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2006. Disponível em: http: //www.bcb.gov.br/pre/microFinancas/arquivos/horario_ arquivos/
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PEIXOTO, Marisa Tatiana Belchior. As fintechs como instrumento de desenvolvimento: O Caso de
Moçambique. Dissertação em Estratégia de Investimento e Internacionalização (ISG: Business
& Economics School), Lisboa, 2018.
SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 43.
TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 17ª edição. São Paulo, 2010.e-
book.

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O desafio brasileiro na implementação
de procedimentos de cooperação internacional
no âmbito processual civil

Luciane Mara Correa Gomes1

Resumo: A comunicação entre os órgãos judiciários brasileiro e dos outros países careceu de ajustes
destinados a tornar mais célere a tramitação do sistema de cooperação internacional. O modelo processual
civil brasileiro de 2015 implantou o auxílio direto, como método de tornar mais dinâmico os canais
comunicativos entre o Poder Executivo brasileiro e o Poder Judiciário dos demais Estados, pelo auxílio
direto que, ladeado, aos procedimentos de homologação de sentenças estrangeira pelo Superior Tribunal
de Justiça e a sistemática da carta rogatória oriunda dos tribunais superiores, efetivam a realização de
atos processuais de um pais no Brasil. Algumas alterações foram anteriormente produzidas pela Emenda
Constitucional n. 45 de 2004, com o objetivo de tornar mais eficiente o cumprimento de atos processuais
alienígenas em solo brasileiro. Neste sentido, a pesquisa se ocupa de identificar uma crise de legitimidade
do Poder Executivo ao desempenhar o auxílio direto, já que trata de mecanismos de efetivação de atos
privativos do Poder Judiciário estrangeiro sem a intervenção do judiciário pátrio com a finalidade de
averiguar os seus requisitos objetivos. Para aferir o problema trazido, o trabalho tramita sob o objetivo
de identificar os procedimentos adotados no auxílio direto e, especificamente, avaliando por pesquisa
qualitativa, os atos normativos e o resultado dos pedidos de cooperação judiciária internacional no âmbito
dos países do Mercosul pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Palavras chave: jurisdição constitucional; cooperação internacional; auxílio direto; Ministério da
Justiça e Segurança Pública; princípio da cooperação.

Abstract: Communication between the Brazilian judicial bodies and those of other countries
lacked adjustments aimed at speeding up the process of the international cooperation system. The 2015
Brazilian civil procedural model implemented direct assistance, as a method of making the communication

1
Mestre em Direito Público e Evolução Social pela Universidade Estácio de Sá. Bacharel em Ci-
ências Jurídicas e Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Membro do Colégio de
Professores da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Membro do Instituto Iberoamericano d Es-
tudos Jurídicos. Associada do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito. Associada da
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. E-mail: lucianemara@uol.com.br; link do Lattes: http://
lattes.cnpq.br/7142619530244859

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O desafio brasileiro na implementação de procedimentos de cooperação internacional
Luciane Mara Correa Gomes

channels between the Brazilian Executive Power and the Judiciary of the other States more dynamic,
by the direct assistance that, flanked, to the procedures for ratifying foreign sentences by the Superior
Court of Justice and the systematic letter rogatory from the higher courts, carry out the procedural acts
of a country in Brazil. Some changes were previously produced by Constitutional Amendment no. 45
of 2004, with the objective of making the enforcement of alien procedural acts on Brazilian soil more
efficient. In this sense, the research is concerned with identifying a crisis of legitimacy of the Executive
Power when performing direct assistance, since it deals with mechanisms for effecting private acts of the
foreign Judiciary without the intervention of the national judiciary in order to ascertain its requirements.
Assessing the problem brought up, the work is underway with the objective of identifying the procedures
adopted in direct assistance and, specifically, evaluating through qualitative research, the normative acts
and the result of requests for international judicial cooperation within the Mercosur countries by the
Ministry of Justice.
Keywords: constitutional jurisdiction; international cooperation; direct assistance; Justice ministry;
principle of cooperation.

INTRODUÇÃO
Considerando que os Estados independentes buscam, para a efetividade da prestação
jurisdicional oferecida, a colaboração e a cooperação de outros limites da jurisdição nacional,
é preciso estar atento não só aos procedimentos que demandavam um lapso temporal excessivo,
o que implica, na maioria das vezes, no prejuízo da entrega de uma prestação jurisdiciona
tempestiva, adequada e eficaz. Na persecução de tornar a estrutura judiciária mais célere, o
Brasil investiu em alterações legislativas, a partir dos anos noventa do século passado, para
introduzir instrumentos facilitadores ao desenvolvimento das estruturas do campo judiciário,
pautando sua criação nas ideias de Mauro Cappelletti e Bryant Garth, assim como Boaventura
de Souza Santos, no sentido de fazer o acesso à justiça eficiente em sua atuação.
No que se refere aos procedimentos de cooperação internacional, o legislador dirigiu o
objeto da norma na direção de desconcentrar a competência do Supremo Tribunal Federal
para o Superior Tribunal de Justiça e depois, compartilhando-a, com os tribunais das unidades
federativas, num viés de franquear a entrega célere da requisição feita por outros países.
Neste sentido, a celeuma investigada é compreender a delegação ao Poder Executivo mais
especialmente ao Ministério da Justiça e Segurança Pública e intermediado pelo Ministério
das Relações Exteriores, dos métodos de cooperação internacional na codificação vigente.
Urge, neste viés, avaliar a incidência dos limites da jurisdição nacional, identificando
os atos processuais que serão praticados no campo da cooperação internacional e por
derradeiro, delimitar os aspectos do auxílio direto. Vindo ainda a avaliar a sua aplicabilidade,
correlacionando os atos de cooperação internacional editados pelo Ministério da Justiça e
Segurança Pública, como autoridade centralizadora.
Para o desenvolvimento da pesquisa, pautará em metodologia qualitativa, por revisão
bibliográfica, para a delimitação conceitual dos modelos de cooperação internacional, como
também a análise dos dados constantes dos relatórios estatísticos do Ministério da Justiça
e Segurança Pública, no que diz respeito ao auxílio direto, delimitado geograficamente aos
países integrantes do Mercosul.

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O desafio brasileiro na implementação de procedimentos de cooperação internacional
Luciane Mara Correa Gomes

2. O ENFRENTAMENTO DOS MÉTODOS DE COOPERAÇÃO


INTERNACIONAL NA SEARA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL
Como mencionado na parte introdutória desta pesquisa, a adoção do auxílio direto, como
procedimento de menor formalidade, para o cumprimento de uma requisição originária de
um Estado estrangeiro, tornando mais eficaz o seu cumprimento. Numa análise do instituto,
necessita-se identificar o objeto do auxílio direto, já que apenas caberia aceitar a decisão
judicial exarada por juiz de outro Estado, quando a mesma fosse submetida ao juízo de
delibação pelo Superior Tribunal de Justiça. A sua eficácia, nesta linha de raciocínio, para
surtir efeito em solo brasileiro, deveria ter a homologação daquela Corte Superior. Não
obstante a redação do artigo 30 do Código de Processo Civil brasileiro uma relativização,
como o pedido de prestação de informações sobre processos administrativos ou jurisdicionais
findos; a colheita de provas, ou em curso e qualquer outra medida judicial ou extrajudicial
não proibida pela lei brasileira.
Assim, para que não haja interferência na soberania nacional brasileira, pode-se limitar
para a via do auxílio direto, aqueles atos que possam tomar parte de um processo judicial, à
guisa de exemplificação, que, excepcionalmente, o direito pátrio tem admitido a prática de
atos de conteúdos estritamente jurisdicional por meio de auxílio direto, quando se trata da
Convenção sobre Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças, ratificado pelo Decreto
n. 3.413/2000, não é forçoso compreender que a medida se torna urgente face ao bem da vida
sob ameaça ou lesão a fim de admitir a prática do ato (Marinoni, Arenhart Mitidiero, 2015).
Neste ponto, cabe identificar a autoridade central, que receberá o pedido, para analisar
o preenchimento dos dois requisitos listados pelo artigo 29, quais sejam a autenticidade e a
clareza do pedido. De início, a autoridade central tem a prerrogativa de ser o ente responsável
por dar tramitação e cumprimento aos pedidos de cooperação internacional. Para Marinoni,
Arenhart e Mitidiero (2015, p. 127) está concentrada no Ministério da Justiça e Segurança
Pública, dispensando-se a via diplomática para a comunicação ou tramitação dos pedidos,
todavia cada tratado poderá conter especificamente a quem deve ser designada a função.
O desenho desta função institucional será importante para delimitar o canal comunicativo
entre os Estados já que a tramitação e a execução de pedidos de cooperação devem atender
também as disposições contidas nos tratados internacionais. Isto se operacionaliza nos casos
em que a Advocacia Geral da União e o Ministério Público venham adotar atos necessários
a satisfatividade da requisição formulada. Esta posição poderá ser alicerçada na posição
assumida por Bastos (2001, p. 62), ao estudar o sistema judiciário e propor a sua evolução na
medida em que, através das linhas de modificações profundas, venha a viabilizar a instalação
de um novo ordenamento jurídico com bases em uma nova legitimidade, dentro de parâmetros
consensuais, o que implica afirmar que a alteração legislativa assumiu tais contornos para
desobstruir a lentidão na tramitação de pedidos de cooperação jurídica. Esta posição poderá
ser consolidada ainda pela fala de Boaventura de Souza Santos (2007, p. 13) no que tange a
eficiência dos tribunais face ao mercado, bem como a necessidade de mudança política e o
desmantelamento estatal. No que tange a competência, a legislação processual fixa o juízo
federal do lugar em que deva ser executado auxílio direto, para a prática dos atos arrolados
nos incisos de I a VI do seu artigo 27, todos destinados a compor a decisão a ser proferida
pelo estado estrangeiro ou dar eficácia a jurisdição, não se tratando de atos de competência

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O desafio brasileiro na implementação de procedimentos de cooperação internacional
Luciane Mara Correa Gomes

concorrente ou de sua perpetuação, pois “o poder judiciário tem o âmbito de sua competência
determinado pelo ordenamento jurídico, os limites de sua capacidade para absorver conflitos
sociais ficam reduzido às determinações substantivas” (BASTOS, 2001, p. 119). Neste
sentido, não há qualquer indício de violação à soberania nacional.
A abordagem a ser instituída é de reciprocidade manifestada pela via diplomática, parta
tanto deverão ser observados os direitos fundamentais processuais que compõem o direito ao
processo justo (art. 26, I a III), posto que, nesta argumentação, prescrevem Marinoni, Arenhart
e Mitidiero (2015, p.55) a sua “tramitação e a necessidade de inexistência de contrariedade
ou de produção de resultados incompatíveis com as normas fundamentais que regem o Estado
brasileiro no que tange ao resultado pretendido”. A reciprocidade deve se efetivar sob a
forma da comprovação formal que esse país se compromete a igualmente atender pedido de
cooperação que venha a ser solicitado pela justiça brasileira (GRECO, 2015, p.116).
É plausível asseverar que para a cooperação jurídica internacional há cortesia e
solidariedade que deve permear as relações entre as nações, sendo através dos inúmeros
tratados internacionais e acordos bilaterais em vigência que há a assistência (Greco, 2015,
p. 115). No que tange à solidariedade, deve-se buscar aporte no vocábulo fraternidade, em
tal contexto, possui um sentido vagamente anacrônico, porquanto, quando comparada a
outros ideais presentes no cenário da revolução iluminista, pode ser considerado dotado de
menor proeminência, eis permaneceu inédita e não resolvida em relação aos demais temas
da liberdade e da igualdade. Mais que isso, a fraternidade indicava apenas um dispositivo de
etérea solidariedade entre as nações; guardando maior vinculação com os princípios de um
direito internacional nascente, que deixava intacta, tal como pressupunha uma comunidade
política assentada nos corolários dos Estados nacionais, porém sua solidificação é capaz de
inaugurar uma nova oportunidade no tratamento de conflitos (RESTA, 2004, p. 09-12).

3. PROCEDIMENTOS NA COOPERAÇÃO JUDICIÁRIA INTERNACIONAL


Anteriormente a vigência da Lei Federal n. 13105, de 16 de março de 2018, para se obter
a eficácia de uma decisão emanada por outro Estado, caberia ao interessado, o processamento
e julgamento da homologação de sentenças estrangeiras e a concessão de exequatur de cartas
rogatórias, como prescreve a Constituição Federal. Todavia, com a vigência da legislação
processual civil, introduziu-se a disciplina do auxílio direto, coordenado pelo juízo de primeira
instância, através da autoridade central, e a pesquisa analisa, num primeiro momento, ser a
regra inconstitucional.
Neste pólo, necessita-se verificar a essência da norma e qual o alcance do auxilio direito
para apontar se a norma está em consonância com a constituição. A posição mais simpática, nas
palavras de Casio Scarpinella Bueno (2015, p. 64) é ampla para acolher a constitucionalidade
do artigo 28, uma vez que apenas para as sentenças estrangeiras há a necessidade de que seja
proferido o juízo de delibação.
Talvez esta hipótese de inconstitucionalidade seja decorrente das crescentes situações
em que outras formas de cooperação sejam utilizadas, não deixando de ser a homologação
de sentença estrangeira e concessão de exequatur as cartas rogatórias estrangeiras, como se

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Luciane Mara Correa Gomes

depreende da análise da página da rede mundial de computadores do Ministério da Justiça e


Segurança Pública brasileiro. Ressalta-se que o intercâmbio existente entre autoridades tem
cunho administrativo e judicial sem que haja decisão de autoridade jurisdicional, esta deve
ser conferida pelo órgão jurisdicional competente no Brasil com a finalidade de assegurar a
compatibilidade da pretensão do estado estrangeiro com o ordenamento jurídico brasileiro
(MEDINA, 2015, p.112).
Destaque que deve ser feito é com relação à regulamentação pela legislação processual
civil vigente do auxílio direto e a implicação de eventual afronta a Constituição não deverá
ser medido ou visto como uma ausência do Superior Tribunal de Justiça, não se trata de
uma reserva de mercado, ou um duelo pelo de poder decisório, mas sim a complementação
do trabalho desenvolvido pelo campo judiciário, aproveitando da experiência advinda do
Ministério da Justiça e Segurança Pública para a solução de entraves diplomáticos para
atuar como autoridade central, sem que implique no assoberbamento dos pedidos feitos por
procedimentos distintos da carta rogatória. Este posicionamento é assumido a partir da leitura
de Boaventura de Souza Santos, a respeito da experiência social e o seu desperdício em outros
países (2002, p. 239).
No que tange a orientação para os procedimentos de tramitação de cartas rogatórias
e pedidos de auxílio direto, tanto em matéria civil quanto em matéria penal, foi exarada a
Portaria Interministerial n. 501, em 21 de março de 2012, com o intuito de regulamentar a
cooperação jurídica internacional. Já neste ato restou fixado que a autoridade central para
diligenciar o cumprimento do auxílio direto como competência do Ministério da Justiça e
Segurança Pública. Os requisitos para as cartas rogatórias listados são de ordem subjetiva
e objetiva com o condão de tornar a promoção do ato acolhendo o princípio da razoável
duração do processo, assim como o da economia processual, rememorando que a carta
rogatória é meio de comunicação entre órgãos jurisdicionais brasileiro e estrangeiro, do qual
não se faz juízo de valor. Ainda no que se destina a execução dos pedidos de auxílio direto,
a referida Portaria Ministerial apresenta em seu artigo 9º os requisitos de admissibilidade
da pretensão, sendo necessário relato pormenorizado com relação aos fatos e aos objetivos
para que a requisição possa ser acolhida, sob pena de remessa a autoridade solicitante para
esclarecimentos. Pinho (2015, p. 19) salienta que o procedimento da carta rogatória perante
o Superior Tribunal de Justiça deverá observar as garantias do devido processo legal, sendo
vedada revisão do mérito.
Para melhor avaliar a funcionalidade dos pedidos de cooperação judiciária internacional,
a pesquisa observou o relatório estatístico de pedidos de cooperação, em dezembro de 2019,
disponibilizado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, foram formulados 494
(quatrocentos e noventa e quatro) pleitos, sendo para carta rogatória o quantitativo de 463
(quatrocentos e sessenta e três) atos em matéria cível, um total de 282 (duzentos e oitenta e
dois atos).
Neste espaço temporal, o status do pedido foi classificado em análise, com 327 (trezentos
e vinte e sete) atos; em andamento, 133 (cento e trinta e três); devolvido para adequação, 23
(vinte e três); não cumprido, 3 (três) e cumprido totalmente, 5 (cinco). Cabendo para Judiciário
Estadual o direcionamento de 250 (duzentos e cinquenta) volumes e para o Judiciário Federal,
42 (quarenta e dois). Quanto a origem dos pedidos, 139 (cento e trinta e nove) pretensões

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O desafio brasileiro na implementação de procedimentos de cooperação internacional
Luciane Mara Correa Gomes

foram dirigidas por Portugal, sendo no âmbito do Mercosul, 27 (vinte e sete) pelo Uruguai;
Argentina, 22 (vinte e dois); Paraguai, 19 (dezenove) e Chile, 8 (oito). Verificando o relatório,
cabe ainda a observação quanto ao tipo de instrumento de cooperação, a carta rogatória
teve 463 (quatrocentos e sessenta e três) solicitações, 3(três) pedidos de auxílio direto e 16
(dezesseis) homologação de sentença estrangeira No volume analisado tem-se que por base
legal de reciprocidade foram apresentados 11 (onze) processos, enquanto que, por Acordo de
Cooperação do Mercosul apenas uma contrastando com o acervo de 30 (trinta) requisições,
oriundas da Convenção da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.
Quanto à natureza da diligência, neste intervalo, foram deduzidas 252 (duzentas e
cinquenta e duas) petições para comunicação de atos processuais e 42 (quarenta e duas)
unidades com objeto de diligência da modalidade citação. Importante apontar que muito
embora possa ter o pedido de cooperação interjurisdicional a denominação como carta
rogatória, poderão ser encaminhados ou devolvidos ao Ministério da Justiça e Segurança
Pública para as providências necessárias ao cumprimento por auxílio direto, a exemplo do
que ocorre com as medidas cautelares e antecipatórias aforadas diretamente no Brasil que
possuam fundamento em processo no exterior (MEDINA, 2015, p.154).

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O alargamento dos conceitos de cooperação jurídica internacional foi promovido a partir
das práticas desenvolvidas no âmbito do Superior Tribunal de Justiça que, anteriormente
a codificação de 2015, já fazia a regulamentação da carta rogatória e da homologação de
sentença estrangeira no seu regimento interno. De igual forma, no que diz respeito ao auxílio
direto, o Ministério da Justiça e Segurança Pública com o fim de distribuir a dinâmica do seu
cumprimento, delineando que outras diligências poderiam ser promovidas pela autoridade
central sem haver que transcorrer o tramite pela Corte Superior.
A experiência tem comprovado ao longo dos anos que a taxa de congestionamento no
Brasil tem tornado a prestação jurisdicional intempestiva em alguns casos face a lentidão
da Justiça na entrega do bem da vida. Quando se trata de acordos, tratados e protocolos
internacionais este risco não pode ser assumido pelo Brasil, cabendo desde a prestação
de informações sobre o ordenamento jurídico até processos administrativos poderão ser
realizados sem a intervenção do tribunal. Desta forma, o Brasil fazendo parte de tratado que
tenha a cláusula de reciprocidade de tratamento, com a observância dos princípios elencados
na codificação processual, tomará as providências adequadas ao cumprimento da solicitação
deduzida, sem que haja a violação a Constituição Federal brasileira no que diz respeito à
legitimidade da Corte Superior para a realização do ato, direcionando a Advocacia Geral da
União, que representa em juízo o Ministério da Justiça e Segurança Pública, como o Ministério
Púbico a legitimidade para o pedido de auxílio direto.
Numa análise pontual da Portaria Interministerial n. 501 de 2012 do Ministério da Justiça
e Segurança Pública e do Ministério das Relações Exteriores e pela Emenda Regimental nº
18, de 2014, do Superior Tribunal de Justiça identificou-se que os procedimentos para a
carta rogatória e para o pedido de auxílio direto passaram a ser uniformizados principalmente
com o fim de reduzir o tempo de tramitação e de descumprimento. A inserção no código de

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Luciane Mara Correa Gomes

processo civil brasileiro de regramento da carta rogatória e dos pedidos de auxílio direto vem
acalentar uma preocupação remota a falta de uniformização nos protocolos outrora dispersas
em diversas leis, regulamentos, tratados, resoluções e regimentos.

REFERÊNCIAS
BASTOS, Aurelio Wander. Conflitos sociais e limites do Poder Judiciário. 2ª edição revista e
atualizada. Rio de Janeiro: Lúmen Júris. 2001.
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PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Direito Processual civil contemporâneo. Volume I: teoria
geral do processo. 6ª edição. São Paulo: Saraiva, 2015.
RESTA, Elígio. O Direito Fraterno. VIAL, Sandra Regina Martini (trad.). Santa Cruz do Sul:
EDUNISC, 2004.
SANTOS, Boaventura de Souza. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das
emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais. V. 63, outubro, 2002, p. 237-280.
_______. Para uma revolução democrática da justiça. 3ª edicao revista e ampliada. São Paulo:
Cortez, 2007.

— 390 —
O nexo no imposto
sobre determinados serviços digitais:
uma análise crítica
a proposta unilateral de Espanha

Jorge Eduardo Braz de Amorim1

Resumo: Os novos modelos de negócios que se desenvolvem no seio da economia digital, por suas
características intrínsecas, impõem grandes desafios para se lograr uma tributação efetiva de suas atividades
comerciais. Desafios totalmente disruptivos e de âmbito global que, por consequência, exigem soluções
igualmente inovadoras e coordenadas ao nível internacional.
Não obstante a existência de um grupo de trabalho organizado pela OCDE e composto por mais de
100 jurisdições e organismos internacionais criado com o objetivo de definir diretrizes coordenadas que
permitam o desenvolvimento de uma solução harmônica para a efetiva tributação da economia digital,
Espanha, a exemplo de outros países, antecipou-se ao referido grupo para criar unilateralmente um tributo
a incidir sobre determinados serviços digitais.
No presente trabalho, partindo de uma investigação jurídico-propositiva e seguindo a metodologia
jurídico-dogmática, propomos uma análise crítica ao projeto do governo espanhol de criação de um novo
tributo à incidir sobre determinados serviços digitais, centrando nossa análise na identificação do nexo que
justifica tal imposição fiscal.
Palavras-chaves: tributação; ponto de conexão; serviços digitais; economia digital.

Abstract: The new business models that are developed within the digital economy, due to their
intrinsic characteristics, impose great challenges to achieve effective taxation of their commercial activities.
These challenges are totally disruptive and global in scope and therefore require equally innovative and
coordinated solutions at international level.
Despite the existence of a working group organised by the OECD and composed of more than 100
jurisdictions and international bodies created with the aim of defining coordinated guidelines that allow the
development of a harmonious solution for the effective taxation of the digital economy, Spain, as well as other
countries, has anticipated the group in order to unilaterally create a tax to be levied on certain digital services.

1
Doutorando em Direito - Universidade de Oviedo; j.eduardoamorim.law@gmail.com

— 391 —
O nexo no imposto sobre determinados serviços digitais
Jorge Eduardo Braz de Amorim

In the present work, through a legal-positive investigation and following the legal-dogmatic
methodology, we present a critical analysis of the Spanish government’s project for the creation of a tax
to be levied on certain digital services, focusing our analysis on the proposed solution for determining the
nexu that justifies the taxation.
Keywords: taxation; nexus; digital services; digital economy.

1. Introdução
Com o surgimento da economia digital novos modelos de negócios tecnológicos e
totalmente disruptivos passaram a ser desenvolvidos em um ambiente que lhes permitem um
franco crescimento e uma atuação global, ou seja, sem limitação territorial.
Tais modelos de negócios possuem características próprias e comuns entre si que impõem
grandes desafios para se lograr uma tributação efetiva de suas atividades comerciais. Desafios
totalmente disruptivos e de âmbito global que, por consequência, exigem soluções igualmente
inovadoras e coordenadas ao nível internacional.
Por uma necessidade metodológica de limitação, dentre os desafios à tributação
da economia digital, no presente trabalho, daremos ênfase aos que se relacionam com a
configuração da vinculação com o território, que como veremos, segundo a clássica doutrina,
se faz necessária para justificar e fundamentar a existência da imposição fiscal.
Iniciaremos por definir economia digital identificando suas características para a
continuação expor alguns desafios que impedem uma tributação eficiente da economia
digital. Passada esta parte inicial avançaremos para uma análise crítica do projeto de criação
do imposto sobre determinados serviços digitais em Espanha, centrando nossa análise na
forma de determinação da vinculação ao Estado tributante.

2. A Economia digital e seus desafios para tributação


Definir economia digital é um desafio complexo, posto que representa um fenômeno em
constante mutação impulsionado pelo irrefreável desenvolvimento tecnológico que permite
concretizar uma criatividade quase sem limite para projetar e desenvolver novos modelos de
negócios ligados à tecnologia.
Segundo ÁLAMO CERRILO, não há uma definição única para economia digital, mas
a grande maioria das definições a associa à novas tecnologias de informação e comunicação.
Dessa associação, a autora identifica quatro componentes-chave da economia digital: 1- A
Internet; 2- E-commerce; 3 - Conteúdo digital; e 4 - Novos processos digitais (que representa
o desenvolvimento de formas de digitalização dos bens e serviços transacionados, que
permitem uma mudança da forma física para digital). Esses elementos-chave são resultados
do desenvolvimento da indústria da tecnologia da informação e comunicação, que juntas
compõem a gênese da economia digital2.

2
ÁLAMO CERRILO, Raquel, La economía digital y el comercio electrónico. Su incidencia en el
sistema tributario. Madrid: Dykinson. En: Colección Fiscalidad, (2016), p. 16.

— 392 —
O nexo no imposto sobre determinados serviços digitais
Jorge Eduardo Braz de Amorim

No informe BEPS Ação 1, a OCDE3 alerta para alguns desafios a serem ultrapassados
para que se logre uma tributação efetiva da economia digital. Dentre tais desafios, a fácil
deslocação dos ativos intangíveis assume uma posição de destaque, pois a partir desta
característica intrínseca dos modelos de negócios da economia digital, alguns elementos
clássicos para o exercício da imposição fiscal deixam de ter aplicação eficiente4.
Neste sentido, um exemplo do efeito negativo da deslocação de ativos intangíveis se
revela na consequente falta de conexão entre o local onde é gerada a renda e o local onde
a mesma é recebida, pois em uma economia baseada em ativos intangíveis os negócios
realizados neste ambiente independem da existência de um estabelecimento físico no local
onde se gera o valor, permitindo que os rendimentos sejam recebidos em jurisdição distinta
da que se desenvolve a atividade econômica5.
Com o objetivo de desenvolver possíveis caminhos para se alcançar uma solução para
os desafios da tributação da economia digital, alguns Estados e organismos internacional,
capitaneados pela OCED, criaram um grupo de trabalho composto por mais de 100
membros com o objetivo de vislumbra uma solução coordenada e harmônica, ao nível
mundial6.
Ocorre que os estudos levados a cabo pelo referido grupo de trabalho estão alongando-
se sem uma conclusão que permita, a curto prazo, ajudar aos Estados à reverterem as perdas
de receitas fiscais que já alcançam níveis consideráveis7. Por este motivo, não obstante a
maioria das jurisdições e organismos internacionais reconhecerem e participarem ativamente
dos estudos e discussões do grupo de trabalho da OCED, alguns países, como é o caso de
Espanha, Itália, Hungria, França8, com objetivo de amenizar a perda de receitas fiscais que vêm
sofrendo, tomaram a resolução de adiantarem-se em relação ao relatório final do supracitado
grupo para, unilateralmente, criarem tributos com objetivo de gravarem determinados serviços
ligados à economia digital.
Assim, cabe-nos nas linhas seguintes algumas considerações sobre a proposta unilateral
de Espanha, centrando nossa análise no objeto de estudo deste trabalho, ou seja, no nexo que
determina a vinculação ao Estado tributante e que justifica o novo tributo.

3
Organização para Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, doravante OCDE.
4
Gómez Requena, J. A.; Moreno González, S.; Álamo Cerrillo, R., Tendencias y desafíos
fiscales de la economía digital, Aranzadi, Cizur Menor (Navarra), 2017, p. 396.
5
FONT GORGORIÓ, P., “La redefinición del establecimiento permanente en el marco de la eco-
nomía digital: el establecimiento permanente virtual”, Revista española de Derecho Financiero, vol. 182,
2019.
6
OECD, Tax Challenges Arising from Digitalisation – Interim Report 2018: Inclusive Framework
on BEPS, OECD, 2018, fecha de consulta 11 febrero 2020, en https://www.oecd-ilibrary.org/taxation/tax-
challenges-arising-from-digitalisation-interim-report_9789264293083-en.
7
Ibid., p. 80.
8
G. SÁNCHEZ-ARCHIDONA HIDALGO, “Unilateralismo fiscal en el siglo XXI”, Revista Quin-
cena Fiscal, vol. n.o 1, 2019.

— 393 —
O nexo no imposto sobre determinados serviços digitais
Jorge Eduardo Braz de Amorim

3. A vinculação ao território na proposta unilateral de


Espanha
Para a doutrina clássica do Direito Tributário a vinculação com determinado território
representa o elemento necessário e indispensável para legitimar o poder impositivo deste em
relação ao sujeito passivo da obrigação tributária9.
Ainda segundo a clássica doutrina existem dois macros critérios para determinação
do nexo que geram uma vinculação ao território. O critério da “nacionalidade jurídica”,
cuja vinculação se confirma consoante a nacionalidade do sujeito passivo e o critério da
“nacionalidade económica”, cuja vinculação se gera pelo domicílio, instancia prolongada ou
participação no processo produtivo de um determinado território10.
Trazendo o estudo para o sistema normativo espanhol, conforme art. 11 da Lei Geral
Tributária (doravante LGT)11, existem dois critérios que determinam a aplicação do tributo.
O primeiro, critério da residência, vincula o sujeito passivo ao território em face de seu
domicílio. E o segundo, critério da territorialidade, configura o nexo pela vinculação do objeto
ou ato gravado ao território tributante. A escolha entre os dois critérios cabe à lei que cria o
tributo e somente em caso de silencio desta é que se aplicará a divisão fixada pelo próprio
artigo, que determina a sua aplicação em função do carácter do tributo: se de carácter pessoal
se aplicará o critério de residência, para os demais o de territorialidade12.
Espanha caminha para a implantação de um novo tributo que visa lograr à tributação de
serviços relacionados à economia digital por via do “impuesto sobre determinados servicios
digitales”, recentemente proposto pelo governo espanhol e que se encontra em trâmite
legislativo13.
Nas linhas seguintes analisaremos como a proposta de tributação espanhola pretende
ultrapassar um dos grandes desafios para a tributação da economia digital, a falta do ponto de
conexão suficiente para fundamentar o exercício da imposição tributária.
Em suma, conforme dispõe o art. 1 do projeto de lei o novo imposto visa tributar serviços
digitais específicos que se caracterizam pela participação dos usuários, localizados no
território de aplicação do tributo, na aportação de valor ao modelo de negócio explorado pelo
sujeito passivo. O território de aplicação está definido pelo art. 2 e corresponde ao território
espanhol. O facto imponível, conforme art. 5, corresponde às prestações dos serviços digitais
realizadas no território de aplicação do tributo. E, em ato contínuo, descreve o art. 7.1 que a

9
Merino Jara, I.; Lucas Durán, M.; Calvo Vérgez, J., Derecho financiero y tributario. Parte
general, Tecnos, Madrid, 2019, p. 253.
10
Neumark, F., Principios de la imposición, Traducción José Zamit Ferrer, Instituto de Estudios
Fiscales, Madri, 1974, pp. 122-123.
11
España, Ley 58/2003, de 17 de deciembre, General Tributaria, fecha de consulta en https://www.
boe.es/eli/es/l/2003/12/17/58/con.
12
Merino Jara, I. y otros, Derecho financiero y tributario. Parte general, cit., p. 254.
13
GOVERNO DE ESPAÑA, Proyecto de Ley del Impuesto sobre Determinados Servicios Digitales.
121/000039, publicado en Boletín Oficial de Las Cortes Generales, no 40-1, p. 1, en 25.01.2019., 2019, fe-
cha de consulta en http://www.congreso.es/public_oficiales/L12/CONG/BOCG/A/BOCG-12-A-40-1.PDF.

— 394 —
O nexo no imposto sobre determinados serviços digitais
Jorge Eduardo Braz de Amorim

prestação de serviço se considerará realizada no território de aplicação do imposto, quando


algum usuário esteja aí localizado.
Para uma análise específica do ponto de conexão do novo tributo, cabe-nos referir que a
exposição de motivos do projeto de lei, no apartado VI, esclarece que somente se sujeitará ao
imposto as prestações que de algum modo estejam vinculadas ao seu território de aplicação,
afirmando textualmente que este é o nexo que justifica a existência da exação. Afirmando
ainda, em seu apartado II, que a legitimação para o exercício “do direito de imposição” se
fundamenta no fato de procederem do território espanhol os dados e as contribuições dos
usuários que agregam valor aos modelos de negócios digitais14.
Portanto, em uma análise preliminar e adstrita ao texto normativo, poderíamos afirmar
que a vinculação ao território impositor, que justifica a tributação, se verifica exclusivamente
pela existência de usuários dos serviços digitais, localizados no território de aplicação, ou
seja, em território espanhol. Sendo irrelevante, conforme art. 7.3 do projeto, o local da efetiva
entrega do bem ou serviço, bem como, o local a partir do qual se realiza qualquer pagamento
pelos serviços prestados.
O projeto de lei define quando se entenderá que o usuário se encontra em território de
aplicação do imposto15. E o faz com uso de critérios distintos para cada tipo de serviço digital
que se pretende tributar.
Em resumo, o tributo proposto grava a prestação de serviços digitais que por via da
presença de alguns de seus usuários no território espanhol, passa a estar vinculado a este.
Configurando-se assim, através desta presença, o nexo que justifica a imposição fiscal
fundamentada pelo facto de proceder do território espanhol os dados e as contribuições dos
usuários que agregam valor aos modelos de negócios. O que nos faz entender, sobretudo
pela redação do art. 7.3, que há uma presunção da norma, de que todas as participações dos
usuários descritas no art. 7.2, sempre agregam valor aos modelos de negócios envolvidos,
independente de qualquer pagamento realizado por este, ou seja, agregam valor pelo simples
acesso à “interface digital” 16 por dispositivo localizado em Espanha17.
Identificado o nexo e seus elementos, nos cabe indagar se o novo tributo espanhol se
apresenta como uma resposta definitiva e válida para o desafio da clássica exigência do
estabelecimento permanente como ponto de conexão para a tributação da atividade econômica
pelo Estado de fonte.
A proposta espanhola se iguala à iniciativa para a tributação da economia digital
alvitrada pela União Europeia (doravante UE) conforme a Diretiva relativa ao sistema comum

14
GOVERNO DE ESPAÑA, Proyecto de Ley del Impuesto sobre Determinados Servicios Digita-
les… op. cit., p. 3 e 4.
15
Ver art. 7.2 do projeto de lei.
16
Definida no art. 7.4 do projeto de lei como qualquer meio que possibilite a comunicação digital.
17
No presente trabalho não realizaremos qualquer juizo de valor em relação à esta presunção legal,
face a limitação que a natureza deste estudo nos impõe, delegando o tema a trabalhos futuros relacionados
com a determinação da base imponível.

— 395 —
O nexo no imposto sobre determinados serviços digitais
Jorge Eduardo Braz de Amorim

de imposto sobre os serviços digitais18. Ambas as respostas se propõem como soluções


provisórias para a tributação de ingressos provenientes de determinados serviços relacionados
à nova economia, enquanto se aguarda uma solução ao nível internacional dos trabalhos da
OCED, bem como, enquanto se aguarda uma solução ao nível europeu consubstanciada pela
adaptação harmonizada das normas do imposto sobre sociedades, através do novo conceito
de estabelecimento permanente virtual19 20.
Em realidade, com a proposta do novo tributo, Espanha pretende somente mitigar os
efeitos negativos das perdas de receitas fiscais e contornar paliativamente a falta de consenso
internacional quanto à reformulação do clássico ponto de conexão para tributação do Estado
fonte.
A necessidade de observar tratados e convênios firmadas pelo Estado espanhol, impõe
a restrição da necessária vinculação da empresa ao território para o exercício de imposição
direta sobre renda e patrimônio. Desta forma, o único caminho imediato seria a elaboração da
presente proposta que visa criar um imposto que se apresenta como um tributo indireto21 e
que se vincula ao território a medida que se localiza nele alguns dos seus usuários. Portanto,
alheio, ao menos em tese, à discussão quanto a implementação do estabelecimento permanente
virtual, por se pautar em um novo ponto de conexão consubstanciado pela vinculação do
serviço ao território por via da presença de alguns de seus usuários visando gravar o valor que
esta participação aporta ao modelo de negócio do contribuinte. Nexo que em nosso entender,
encontrará consideráveis desafios de ordem prática, que podem inclusive afrontar o princípio
da eficácia e limitação de custos indiretos para o cumprimento de obrigações formais previstos
no art. 3.2 da LGT; e ainda, questionamentos de ordem jurídico-tributários.
Quanto aos desafios de ordem prática para sua implementação podemos citar, por
exemplo, a evidente complexidade para a contabilização da quantidade e do momento em que
aparece uma publicidade em um dispositivo localizado em Espanha. Um segundo exemplo se
reflete na identificação do exato momento em que um dado é gerado para a partir daí verificar
a localização do dispositivo pelo qual o usuário acedeu à interface digital que proporcionou
a geração do dado.
Tais desafios surgem tanto das características intrínsecas dos próprios modelos de
negócios digitais, como também, do fato de que os elementos essenciais para a determinação

18
COMISIÓN EUROPEA, Propuesta de DIRECTIVA DEL CONSEJO relativa al sistema común
del impuesto sobre los servicios digitales que grava los ingresos procedentes de la prestación de determina-
dos servicios digitales. COM/2018/0148 final - 2018/073 (CNS), 2018, fecha de consulta 18 febrero 2020,
en https://eur-lex.europa.eu/legal-content/ES/TXT/PDF/?uri=CELEX:52018PC0148&from=ES.
19
COMISIÓN EUROPEA, Propuesta de Directiva del Consejo por la que se establecen normas
relativas a la fiscalidad de las empresas con una presencia digital significativa., 2018, fecha de consul-
ta 18 febrero 2020, en https://eur-lex.europa.eu/resource.html?uri=cellar:3d33c84c-327b-11e8-b5fe-01-
aa75ed71a1.0023.02/DOC_1&format=PDF.
20
Estas sim, propostas que se esperam definitivas e coordenadas a partir das quais se pretendem
solucionar o problema da exigência de estabelecimento permanente como ponto de conexão que permite
gravar rendimentos auferidos por exploração de atividade comercial pelo Estado fonte.
21
Característica questionável. Cfr. ÁLLAMO CERRILLO, R., “Un cambio de criterio en la tributa-
ción de la Economía Digital.”, Quincena fiscal, 20, 2019, p. 90.

— 396 —
O nexo no imposto sobre determinados serviços digitais
Jorge Eduardo Braz de Amorim

do local da prestação do serviço correspondem a dados dos próprios usuários, como por
exemplo, a localização de um dispositivo em um momento determinado, como e quando
contratou determinado serviço, etc., o que terá que ser auferido baixo estrito respeito ao direito
à proteção de dados pessoais, tanto por parte do contribuinte do novo tributo no momento
de cumprir as obrigações tributárias, como por parte da administração tributária no ato de
fiscalização.
Por fim, em relação aos desafios de ordem jurídico-tributários, se cotejarmos o sistema
tributário espanhol ao objeto tributado, bem como, ao nexo de vinculação previstos no projeto,
suscitaríamos questões relevantes. A primeira se relaciona à classificação do novo tributo
entre imposto direto ou indireto, o que possui relevância, por exemplo, para a determinação
da necessidade de observação dos tratados e convênios para evitar dupla tributação. Outra
questão suscitável corresponde ao facto de se estar criando um terceiro critério de aplicação
do tributo, extra legis, distinto ao de residência22 e de território do objeto ou ato gravado,
previstos no art. 11 da LGT. Novo critério configurado pela simples presença de um usuário
do serviço no território da aplicação, sem qualquer recebimento de bem ou serviço23, ou
realização de pagamento24.

4. Conclusão
A proposta de tributação da economia digital do governo espanhol, a exemplo da
proposta de Diretiva que se pretende criar o imposto sobre serviços digitais ao nível europeu,
não alcançará solução definitiva para a tributação dos novos modelos de negócios e tampouco
foi criada com essa pretensão25. Trata-se, portanto, de uma solução paliativa para a queda de
receita fiscal e, salvo melhor juízo, atuará mais bem como instrumento de pressão política
para forçar um maior engajamento dos Estados residência na busca de uma solução definitiva
que atribua capacidade arrecadatória aos Estados fonte.
A solução da “guerra” entre Estado fonte e Estado residência é uma questão preliminar
e política, que deve ser ultrapassada para se encontrar uma solução coordenada ao nível
internacional, tanto pela UE como pela OCED, que flexibilize a exigência de uma vinculação
pela presença física do sujeito passivo no território impositor, permitindo que os Estados
fonte adquiram capacidade arrecadatória, através, por exemplo, da adopção do conceito de
“estabelecimento permanente virtual”26.
Portanto, a fim de evitar o descumprimento dos tratados e convênios que limitam a
tributação da renda e património pelo Estado fonte quando há ali um estabelecimento

22
Uma vez que a norma não exige a residencia do usuario no territorio, somente a localização. Por-
tanto, não caberia nem mesmo uma interpretação extensiva do caráter de residencia.
23
Que podería corresponder ao objeto gravado.
24
Que podería configurar um ato gravado.
25
Basta a leitura da exposição de motivos do projeto de lei para observar o caráter provisório e pa-
liativo que se atribuí ao tributo proposto.
26
Font Gorgorió, P., “La redefinición del establecimiento permanente en el marco de la economía
digital: el establecimiento permanente virtual”, op. cit., pp. 134-135.

— 397 —
O nexo no imposto sobre determinados serviços digitais
Jorge Eduardo Braz de Amorim

permanente, o projeto espanhol propõe um tributo que se apresenta como indireto cujo o
nexo se estabelece pela simples presença, no território impositivo, de alguns dos usuários dos
serviços tributados, independente de qualquer outro elemento.
As formas de determinação da presença dos usuários no território espanhol, facto
fundamental para verificação do nexo, exigem informações de cunho privado que exigirão
atenção quanto ao direito à proteção de dados dos usuários, bem como, exigirão informações
de difícil27 recolha e análise, o que pode inclusive ferir normas de proteção de dados e o
princípio da eficácia e limitação de custos indiretos para cumprimento de obrigações formais,
previsto no art. 3.2 da LGT.
Para além das dificuldades de ordem prática, igualmente podemos concluir que a eleição
da simples localização do usuário em território espanhol como ponto de conexão que justifica
a vinculação necessária para fundamentar a tributação dos serviços prestados, quando cotejada
aos atuais princípios, conceitos e elementos do Direito Tributário certamente levantará questões
relevantes, como por exemplo, a não observância dos critérios de sujeição previsto no art. 11 da
LGT. Desta forma, sob o aspecto restrito que cabe ao estudo jurídico-dogmático, entendemos
que o projeto de implementação do tributo necessita de adaptação para enquadrar-se ao sistema
tributário atual, ou, em sentido inverso, deve-se promover, preliminarmente, uma renovação
dos elementos clássicos do sistema tributário que recepcione as inovações da proposta.

5. Referências bibliográficas
ÁLAMO CERRILO, R, La economía digital y el comercio electrónico. Su incidencia en el sistema
tributario. Madrid: Dykinson. En: Colección Fiscalidad, 2016.
ÁLAMO CERRILO, R, “Un cambio de criterio en la tributación de la Economía Digital.”, Quincena
fiscal, n.o 20, 2019, pp. 77-94.
COMISIÓN EUROPEA, Propuesta de Directiva del Consejo por la que se establecen normas relativas
a la fiscalidad de las empresas con una presencia digital significativa., 2018, fecha de consulta
18 febrero 2020, en https://eur-lex.europa.eu/resource.html?uri=cellar:3d33c84c-327b-11e8-
b5fe-01aa75ed71a1.0023.02/DOC_1&format=PDF.
COMISIÓN EUROPEA, Propuesta de DIRECTIVA DEL CONSEJO relativa al sistema común del
impuesto sobre los servicios digitales que grava los ingresos procedentes de la prestación de
determinados servicios digitales. COM/2018/0148 final - 2018/073 (CNS), 2018, fecha de
consulta 18 febrero 2020, en https://eur-lex.europa.eu/legal-content/ES/TXT/PDF/?uri=CEL
EX:52018PC0148&from=ES.
España, Ley 58/2003, de 17 de deciembre, General Tributaria, p. BOE núm. 32, de 18.12.2003, fecha
de consulta en https://www.boe.es/eli/es/l/2003/12/17/58/con.
Font Gorgorió, P., “La redefinición del establecimiento permanente en el marco de la economía
digital: el establecimiento permanente virtual”, Revista española de Derecho Financiero, vol.
182, 2019, pp. 115-146.

27
Para não dizer impossível. Frise-se, por exemplo, a necessidade de verificar e contabilizar as vezes
que uma publicidade aparece em um dispositivo localizado em Espanha.

— 398 —
O nexo no imposto sobre determinados serviços digitais
Jorge Eduardo Braz de Amorim

Neumark, F., Principios de la imposición, Traducción José Zamit Ferrer, Instituto de Estudios Fiscales,
Madri, 1974.
SÁNCHEZ-ARCHIDONA HIDALGO, G., “Unilateralismo fiscal en el siglo XXI”, Revista Quincena
Fiscal, vol. n.o 1, 2019.
Gómez Requena, J. Á.; Moreno González, S.; Álamo Cerrillo, R., Tendencias y desafíos fiscales
de la economía digital, Aranzadi, Cizur Menor (Navarra), 2017.
GOVERNO DE ESPAÑA, Proyecto de Ley del Impuesto sobre Determinados Servicios Digitales.
121/000039, publicado en Boletín Oficial de Las Cortes Generales, no 40-1, p. 1, en 25.01.2019.,
2019, fecha de consulta en http://www.congreso.es/public_oficiales/L12/CONG/BOCG/A/
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Merino Jara, I.; Lucas Durán, M.; Calvo Vérgez, J., Derecho financiero y tributario. Parte general,
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OECD, Tax Challenges Arising from Digitalisation – Interim Report 2018: Inclusive Framework
on BEPS, OECD, 2018, fecha de consulta 11 febrero 2020, en https://www.oecd-ilibrary.org/
taxation/tax-challenges-arising-from-digitalisation-interim-report_9789264293083-en.

— 399 —
O dever de pagar imposto em face do direito à vida
privada e o consentimento à luz do RGPD

João Alexandre Silva Alves Guimarães1


Fernanda Daltro Costa Knoblauch2

Resumo: É dever constitucional que o cidadão pague impostos à administração pública. Com o
advento da tecnologia a administração pública passa usar ferramentas digitais para o controle e fiscalização
dos tributos devidos, tornando-se responsável pelo tratamento de dados. Com a entrada em vigor do
Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) o detentor dos dados, nesse caso o cidadão, teve direitos
resguardados e houve um acréscimo na proteção desses dados em relação as leis vigentes anteriormente.
Com isso trouxe um problema em relação à como a administração pública resguardaria esses direitos do
cidadão perante o RGPD e a questão do consentimento, princípio constitucional desde os anos 1970 em
grande parte dos Estados-Membros e pressuposto importantíssimo para a validade do tratamento de dados,
segundo o RGPD. A implementação do RGPD trouxe uma maior proteção e com poder vinculativo à
todos os Estados-Membros e os mesmo não podem contar com a boa-fé e a vontade do cidadão em pagar
impostos ou mesmo em fornecer dados para averiguação se o pagamento é o devido. O RGPD apresentou
algumas soluções, exploradas nesse trabalho, mas que da mesma forma obriga a administração pública a
resguardar vários direitos da proteção de dados de cada contribuinte, caso ela atue como responsável pelo
tratamento.
Palavras-chave: RGPD, Imposto, Consentimento, Vida Privada.

Abstract: It is a constitutional duty for citizens to pay taxes to the public administration. With the
advent of technology, the public administration starts using digital tools for the control and inspection
of taxes due, becoming responsible for data processing. With the entry into force of the General Data
Protection Regulation (GDPR), the data holder, in this case the citizen, had rights protected and there was
an increase in the protection of these data in relation to the laws in force previously. This brought a problem

1
Doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra, Portugal. Mestre em Direito da União
Europeia pela Universidade do Minho, Portugal, joaoalexgui@hotmail.com.
2
Doutoranda em Direito pela Universidade de Coimbra, Portugal. Mestre em Direito da Família na
Sociedade Contemporânea pela Universidade Católica de Salvador, Brasil, fernandaknoblauch@gmail.com.

— 400 —
O dever de pagar imposto em face do direito à vida privada e o consentimento à luz do RGPD
João Alexandre Silva Alves Guimarães - Fernanda Daltro Costa Knoblauch

in relation to how the public administration would safeguard these citizens’ rights before the GDPR and
the issue of consent, a constitutional principle since the 1970s in most Member States and an extremely
important assumption for the validity of data processing, according to the GDPR. The implementation of
the GDPR has brought greater protection and binding power to all Member States and they cannot count
on the good faith and willingness of the citizen to pay taxes or even to provide data to ascertain whether
payment is due. The GDPR presented some solutions, explored in this work, but that likewise obliges
the public administration to safeguard various data protection rights of each taxpayer, if it acts as the
controller. Because the GDPR brings this greater protection and with binding power to all Member States,
they cannot count on the good faith and the willingness of the citizen to pay taxes or even to provide data to
ascertain whether the payment is due. The GDPR then brought some solutions, explored in this work, but
that likewise obliges the public administration to safeguard various data protection rights of each taxpayer,
if it acts as the controller.
Keywords: GDPR, Tax, Consent, Private Life.

1. INTRODUÇÃO
A consagração de um conjunto de pretensões jurídico-políticas denominado direito de
proteção de dados surge em um contexto internacional de crescente percepção da informação
relativa aos indivíduos, no âmbito da utilização da informação relativa aos indivíduos,
e da utilização de meios informáticos para o desenvolvimento humano nas sociedades
democráticas.3
O direito à proteção de dados apresenta-se essencialmente como um direito de garantias
de um conjunto de valores fundamentais individuais de que se destacam a privacidade e a
liberdade, em poucas palavras, a autodeterminação individual.4
O artigo 35º da Constituição da República Portuguesa (CRP) veio reconhecer, no âmbito
da utilização da informática, o direito à autodeterminação informativa, que se traduz no direito
a conhecer a informação que sobre cada um de nós é tratada, ou no direito de saber que dados
pessoais estão a ser recolhidos, utilizados, conservados, comunicados e para que finalidade e
ainda por quem estão a ser tratados, de modo a que o cidadão detenha ou retome o controle
sobre os seus dados.5
E em um sistema de gestão fiscal de natureza subsidiária, a utilização da informática
veio afirmar-se como um meio substancial e primordial para o desenvolvimento normal das
relações intersubjetivas constituídas entre a Administração Tributária e os contribuintes6.
Esse trabalho explora a relação da autodeterminação informacional com os deveres de
quem faz o tratamento de dados, nesse caso os órgãos públicos, além de instigar sobre o

3
Calvão, Filipa Urbano. O Direito Fundamental à Proteção dos Dados Pessoais e a Privacidade 40
Anos Depois. Jornadas nos quarenta anos da Constituição da República Portuguesa – Impacto e Evolução,
Manuel Afonso Vaz, Catarina Santos Botelho,Luís Heleno Terrinha, Pedro Coutinho (Coord.), Universida-
de Católica Editora, p. 87, 2017.
4
Calvão, Filipa Urbano. Página 89.
5
Calvão, Filipa Urbano. Página 89.
6
Silva, Hugo Flores da. Privatização do Sistema de Gestão Fiscal, Coimbra Editora, 2014.

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O dever de pagar imposto em face do direito à vida privada e o consentimento à luz do RGPD
João Alexandre Silva Alves Guimarães - Fernanda Daltro Costa Knoblauch

consentimento do detentor dos dados e a exploração dos dados pessoais para fins públicos
tributários.

2. A AUTODETERMINAÇÃO INFORMACIONAL E O RGPD


A primeira vez que se ouviu o termo autodeterminação informacional em Portugal foi
na CRP de 1976. O direito previsto no artigo 35.º da CRP consagra a proteção dos cidadãos
perante o tratamento de dados pessoais informatizados. A fórmula sobre o “tratamento”
abrange não apenas a individualização dos dados, mas também a sua conexão, transmissão,
utilização e publicação. O enunciado linguístico “dados” é o plural da expressão latina
datum e está utilizada na Constituição Portuguesa no sentido que hoje lhe empresta a ciência
informática como representação convencional de informação, sob a forma analógica ou digital
possibilitadora do seu tratamento automático.7
Esse modelo de autodeterminação informacional, como modelo constitucional segue
como forma de assegurar as faculdades individuais que integram o conteúdo essencial do
direito à proteção dos dados pessoais perante o uso das novas tecnologias, principalmente
da informática foi confirmada pelo em decisão jurisprudencial que marcou a construção do
direito à autodeterminação informacional na Alemanha.8
A autodeterminação informacional tem como âmbito subjetivo a proteção das garantias
do direito à privacidade, trata-se de um direito universal, como sucede com a generalização
dos direitos, liberdades e garantias de natureza pessoal, sendo que todas as pessoas pelo facto
de o serem, gozam desse direito.9
No âmbito União Europeia, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH)
estabeleceu direito à proteção de dados pessoais como parte dos direitos tutelados, previsto no
artigo 8.º, garantindo o direito ao respeito pela vida privada e familiar, pelo domicílio e pela
correspondência e estabelece as condições em que são permitidas restrições a este direito.10
A Convenção 10811 aplicou-se a todos os tratamentos de dados pessoais realizados tanto
pelo setor privado como pelo setor público, incluindo os tratamentos de dados efetuados

7
Canotilho, J.J. Gomes; Moreira, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada: Artigos 1º
a 107º. Volume I, 4º edição revista. Coimbra Editora, 2007. Página 550.
8
Mirada, Jorge; Medeiros, Ruy. Página 568.
9
Castro, Catarina Sarmento e. Página 48.
10
Conselho da Europa. Convenção Europeia dos Direitos do Homem, STCE n.º. 005, 1950
11
Com o surgimento da tecnologia da informação na década de 60 foi acompanhado por uma cres-
cente necessidade de adotar regras mais pormenorizadas para salvaguardar as pessoas através da proteção
dos seus dados e os dados pessoais. Em meados da década de 70, o Comité de Ministros do Conselho da
Europa adotou várias resoluções sobre a proteção de dados pessoais que faziam referência ao artigo 8.º da
CEDH. Em 1981, foi aberta a assinatura a Convenção para a proteção das pessoas relativamente ao trata-
mento automatizado de dados de caráter pessoal, conhecida como a Convenção 108. Essa Convenção era o
único instrumento internacional juridicamente vinculativo no domínio da proteção de dados.
Cf. Conselho da Europa, Comité de Ministros (1973), Resolução (73) 22 relativa à proteção da privaci-
dade das pessoas singulares perante os bancos eletrónicos de dados no setor privado, de 26 de setembro de

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O dever de pagar imposto em face do direito à vida privada e o consentimento à luz do RGPD
João Alexandre Silva Alves Guimarães - Fernanda Daltro Costa Knoblauch

pelas autoridades policiais e judiciárias. Protegeu as pessoas contra os abusos que podem
acompanhar a recolha e o tratamento de dados pessoais e procura simultaneamente regular o
fluxo transfronteiriço de dados pessoais.12
A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE) autonomizou o direito
à proteção de dados pessoais.13 Para o Direito da União Europeia, nem todos os dados pessoais
são suscetíveis, pela sua natureza, de causar prejuízo à vida privada da pessoa em causa, mas
todos devem ser igualmente protegidos. A CDFUE também dá um passo adiante em relação
a várias Constituições dos Estados-Membros da União Europeia na medida em que promove
um direito fundamental que protege dados que não têm de ser privados e muito menos íntimos,
basta que sejam pessoais.14
Esta caracterização autônoma na CDFUE representou um afastamento notável da
compreensão tradicional da proteção de dados como uma mera faceta do direito à privacidade.
Agora reconhecida como um direito fundamental, a proteção de dados goza do mais alto
status dentro da legislação da UE.15
O Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril
de 2016 veio proporcionar uma maior segurança e proteção aos titulares dos dados pessoais,
nomeadamente, através do reforço dos direitos que lhe vêm sendo atribuídos, assim como
mediante o reforço das obrigações de quem procede à recolha e ao tratamento dos dados
pessoais. Direitos e obrigações estes que são iluminados por um acervo de princípios que
enformam todo o Regulamento.16

1973; CdE, Comité de Ministros (1974), Resolução (74) 29 relativa à proteção da privacidade das pessoas
singulares perante os bancos eletrónicos de dados no setor público, 20 de Setembro de 1974.; Conselho da
Europa. Manual da Legislação Europeia sobre Proteção de Dados. Luxemburgo, p. 15 – 16, 2014.; Con-
selho da Europa. Convenção para a Proteção das Pessoas relativamente ao Tratamento Automatizado de
Dados de Caráter Pessoal, Conselho da Europa, STCE n.º 108, 1981.
12
Conselho da Europa. Manual da Legislação Europeia sobre Proteção de Dados. Luxemburgo, p.
16, 2014.
13
Cfr. Artigo 7.º sobre o Respeito pela vida privada e familiar e o Artigo 8º sobre a Proteção de dados
pessoais da CDFUE.
14
Silveira, Alessandra. Direitos humanos fundamentais originariamente protegidos offline mas exer-
cidos online – e a recíproca, é verdadeira?. Direito & solidariedade, Elisaide Trevisam/Lívia Gaigher Bósio
Campello (coords.), Editora Juruá, Curitiba, 2017
15
Peguera, Miquel. The Shaky Ground of the Right to Be Delisted. Vanderbilt Journal of Entertain-
ment and Technology Law, Volume 18, Issue 3, 514-515, 2016. Conferir também o artigo 16.º do Tratado
sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).
16
Dias, Ana Francisca Pinto. Responsabilidade Civil pelo Tratamento de Dados Pessoais: A Respon-
sabilidade do Controller por Factos Próprios e por Factos de Outrem. Revista de Direito Da Responsabili-
dade, Ano 1, 2019. Página 1261.

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O dever de pagar imposto em face do direito à vida privada e o consentimento à luz do RGPD
João Alexandre Silva Alves Guimarães - Fernanda Daltro Costa Knoblauch

3. O DEVER DE PAGAR IMPOSTO, O DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA


PRIVADA E O CONSENTIMENTO
Uma das principais limitações ao acesso e obtenção de dados pessoais por parte da
administração tributária prende-se com o caráter tendencialmente absoluto do direito à reserva
da vida íntima dos contribuintes, o qual, encontrando-se constitucionalmente consagrado,
protege o contribuinte de ingerências na sua esfera privada por parte de quaisquer entidades
públicas, nesse caso a administração tributária.17
Como está consagrado no n.º 2 do artigo 18.º da CRP, a restrição de um direito
fundamental apenas encontra fundamento quando se destine a salvaguardar e garantir outros
direitos constitucionalmente protegidos, legitimando-o apenas ao necessário para alcançar
os objetivos visados. Assim, este poder de aceder aos dados pessoais dos contribuintes surge
como um prerrogativa limitada por necessidades de proteção da privacidade e na intimidade do
contribuinte, bem como pelas normas que presidem ao tratamento dos dados informatizados
destes.18
O direito à reserva da vida íntima dos sujeitos configura-se como uma decorrência da
liberdade das pessoas, proclamando um fundamento superior que encontra fundamento na
dignidade da pessoa humana e no livre desenvolvimento da personalidade,19 vedando-se
assim o acesso a este espaço íntimo do cidadão, proibindo-se a divulgação de factos relativos
à vida privada do contribuinte que façam parte do seu domínio mais particular e íntimo.20
Assim, o acesso aos dados pessoais dos sujeitos pelos órgãos que tenham como
incumbência a continuação do interesse público, como é a Administração Tributária, encontra
o seu limite na necessidade de prover à proteção da intimidade privada do seu titular, a
qual apenas deve ceder nas situações e na medida estritamente necessária à prossecução do
interesse público, como será o pagamento de impostos, em virtude do dever prescrito no
artigo 103.º da CRP.21

17
Pica, Luís Manuel Lopes Branco. O Direito à Autodeterminação Informativa dos Contribuintes
e a Proteção dos Dados Pessoais em Matéria Tributária. Dissertação de Mestrado, 2016, Universidade do
Minho. Página 101.
18
Pica, Luís Manuel Lopes Branco. Página 99.
19
Checa González, Clemente; Merino Jara, Isaac. El derecho a la intimidad como límite a las funcio-
nes investigadoras de la Administración tributaria. Anuario de la Facultad de Derecho, 1988, página 162.
20
O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa 67/10.3TVPRT.L1-1, de relatoria da Dra. Ana Grá-
cio, colocou o direito fundamental vida privada acima da Liberdade de Imprensa e Liberdade de Informa-
ção. Dispoível em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/bf883fefa8b4159f802
579dd0049b722?OpenDocument.
21
O Artigo 103.º da CRP expressa que: “1. O sistema fiscal visa a satisfação das necessidades finan-
ceiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza.
2. Os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias
dos contribuintes.
3. Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição,
que tenham natureza retroactiva ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei.”. Cf. Presi-
dência da República. Constituição da República Portuguesa, de 10 de abril de 1976. Diário da República
n.º 86/1976, Série I de 1976-04-10.

— 404 —
O dever de pagar imposto em face do direito à vida privada e o consentimento à luz do RGPD
João Alexandre Silva Alves Guimarães - Fernanda Daltro Costa Knoblauch

Cabe ressaltar que o RGPD coloca que todo dado que for recolhido deve ter uma
finalidade e um prazo específico e só poderá ser armazenado caso seja de interesse público e de
forma anônima.22 A recolha de dados tributários, determinando que apenas os dados pessoais
que sejam relevantes para feitos fiscais devem ser obrigatoriamente cedidos e transmitidos
à administração tributária, ou seja, se os dados pessoais recolhidos não tiverem relevância
tributária, não deverão ser transmitidos para a Administração Tributária, pois não cumprirem
a finalidade prevista pelo legislador.23
Para Mafalda Miranda Barbosa só é lícito se existir consentimento do seu titular ou, em
alternativa, se se verificar uma das seguintes situações: se o tratamento for necessário para o
cumprimento de uma obrigação jurídica a que o responsável pelo tratamento esteja sujeito ou
se o tratamento for necessário ao exercício de funções de interesse público ou ao exercício da
autoridade pública de que está investido o responsável pelo tratamento.24
O consentimento continua a ser um dos seis fundamentos legais para tratar dados pessoais,
tal como previsto no artigo 6.º do RGPD.25 O consentimento só pode constituir fundamento
legal adequado se, ao titular dos dados, for oferecido controlo e uma verdadeira opção de
aceitar ou recusar os termos propostos ou recusá-los sem ser prejudicado. Caso seja obtido
em conformidade com o RGPD, o consentimento é um instrumento que permite aos titulares
dos dados controlarem se os dados pessoais que lhes dizem respeito vão ou não ser tratados.
Caso não o seja, o controlo do titular dos dados torna-se ilusório e o consentimento será um
fundamento inválido para o tratamento, tornando essa atividade de tratamento ilícita.26
Alexandre Pinheiro ainda coloca que enquanto a proteção de dados é pensada como uma
garantia, o seu fundamento, ou seja, a autodeterminação informacional, exprime-se como uma
liberdade”, ou seja, “a autodeterminação informacional reveste a natureza de posição jurídica
complexa, abrangendo elementos próprios das diferentes posições ativas que compõem os
direitos fundamentais.”27.
Para o Grupo de Trabalho do Artigo 29.º a expressão “livre” implica uma verdadeira
escolha e controlo para os titulares dos dados. Em regra geral, o RGPD prevê que se o titular
dos dados não puder exercer uma verdadeira escolha, se sentir coagido a dar o consentimento
ou sofrer consequências negativas caso não consinta, então o consentimento não é válido.28

22
Cf. Considerandos 31, 32 e 33 e os Artigos 5.º e 6.º do RGPD.
23
Pica, Luís Manuel Lopes Branco. Página 101.
24
Mafalda Miranda Barbosa explica em relação a Lei nº 67/98. Data controllers e data processors:
da responsabilidade pelo tratamento de dados à responsabilidade civil. Revista de Direito Comercial, 15 de
março de 2018
25
O Artigo 6.º exemplifica que “1.O tratamento só é lícito se e na medida em que se verifique pelo
menos uma das seguintes situações:
a) O titular dos dados tiver dado o seu consentimento para o tratamento dos seus dados pessoais para
uma ou mais finalidades específicas;”. Regulamento (UE) 2016/679, de 27 de abril de 2016.
26
Grupo de Trabalho do Artigo 29.º. Orientações relativas ao consentimento na aceção do Regulamento
(UE) 2016/679, Última redação revista e adotada em 10 de abril de 2018, 17/PT, WP259, rev.01, página 3.
27
Pinheiro, Alexandre de Sousa. Página 805.
28
Conferir Grupo de Trabalho do Artigo 29.º fez o Parecer 15/2011 sobre a definição de consenti-
mento, adotado em 13 de julho de 2011, ainda sobre a Diretiva 95/46/CE,.

— 405 —
O dever de pagar imposto em face do direito à vida privada e o consentimento à luz do RGPD
João Alexandre Silva Alves Guimarães - Fernanda Daltro Costa Knoblauch

4. A RECOLHA DOS DADOS PESSOAIS E O CONSENTIMENTO


O consentimento é excecionado para a administração pública, nomeadamente, para a
administração tributária, sendo igualmente lícito o tratamento que resulte da necessidade de
dar cumprimento a uma obrigação jurídica a que o responsável do tratamento esteja sujeito,
não se aplicando aqui o expresso consentimento referido. Do mesmo modo sucederá nas
situações em que o tratamento é necessário ao exercício de funções de interesse público ou
ao exercício da autoridade pública de que está investido o responsável pelo tratamento, como
sucede com a administração tributária.29
O artigo 6.º do RGPD volta a trazer as especificidades para a Administração pública. Os
Estados-Membros podem manter ou aprovar disposições mais específicas com o objetivo de
adaptar a aplicação das regras do presente regulamento no que diz respeito ao tratamento de
dados para o tratamento dos dados pessoais para o cumprimento de uma obrigação jurídica
a que o responsável pelo tratamento esteja sujeito e para o exercício de funções de interesse
público ou ao exercício da autoridade pública de que está investido o responsável pelo
tratamento.30
Além disso o artigo 6.º prevê especificamente que esses tratamentos devem ser definidos
pelo direito da União ou pelo direito do Estado-Membro ao qual o responsável pelo tratamento
está sujeito. A finalidade do tratamento é determinada com esse fundamento jurídico e deve
ser necessária ao exercício de funções de interesse público ou ao exercício da autoridade
pública de que está investido o responsável pelo tratamento. Esse fundamento jurídico pode
prever disposições específicas para adaptar a aplicação das regras do presente regulamento,
sendo que o direito da União ou do Estado-Membro deve responder a um objetivo de interesse
público e ser proporcional ao objetivo legítimo prosseguido.31
Juan Manuel Herrero de Egaña Espinosa de Los Monteros afirma que a Administração
Tributária, por exemplo, não pôde obter, armazenar e processar os dados sem o consentimento
das partes interessadas. Obviamente, não é necessário dizer que a viabilidade de um sistema
de receita pública baseado na natureza voluntária dos contribuintes seria seriamente
comprometida.32
A recolha dos dados pessoais deve ser dada a conhecer aos contribuintes, dando aqui
o legislador português especial relevância ao dever de informação que impende sobre as
entidades que devam tratar os dados pessoais33, pelo qual se deve informar o contribuinte

29
Ferreira, Rui Miguel Zeferino. Página 98 e 99.
30
Cf. Artigo 6.º, II do RGPD.
31
Cf. Artigo 6.º, III do RGPD.
32
De Los Monteros, Juan Manuel Herrero de Egaña Espinosa. Intimidad, tributos y protección de
datos personales. InDret – Revista para el Análisis del Derecho. Barcelona, Abril de 2007. Página
33
O Artigo 21.º da nº 58/19, coloca que “Quando, pela natureza e finalidade do tratamento, desig-
nadamente para fins de arquivo de interesse público, fins de investigação científica ou histórica ou fins
estatísticos, não seja possível determinar antecipadamente o momento em que o mesmo deixa de ser neces-
sário, é lícita a conservação dos dados pessoais, desde que sejam adotadas medidas técnicas e organizativas
adequadas a garantir os direitos do titular dos dados, designadamente a informação da sua conservação.”

— 406 —
O dever de pagar imposto em face do direito à vida privada e o consentimento à luz do RGPD
João Alexandre Silva Alves Guimarães - Fernanda Daltro Costa Knoblauch

sobre a existência dos dados recolhidos, bem como a possibilidade de exercer os seus direitos
de acesso, oposição ou retificação.34
Ainda impõe que os dados pessoais recolhidos devam ser verdadeiros, exatos e atuais,
de modo a que correspondam a informações atuais e verídicas das situações que descrevem
e sobre o contribuinte que visam tributar, sendo que, e agora de um ponto de vista negativo,
caso estes dados não sejam atuais, verídicos ou completos, deverão modificar-se de modo a
tornar a situação a que se reportam atual e verídica.35
Como decorre do artigo 268.º da CRP, dos artigos 17.º e 82.º a 85.º do Código do
Procedimento Administrativo36 de 2015, e, no âmbito tributário, do artigo 67.º da LGT, bem
como do artigo 65.º da Lei 58/19, o contribuinte tem direito de acesso aos dados pessoais
que lhe digam respeito, podendo solicitar a consulta gratuita dos dados pessoais que sejam
tratados pela Administração Tributária, bem como a obter informação sobre a origem dos
dados pessoais, gozando assim do chamado direito à autodeterminação informativa, explicada
anteriormente, que lhes permite obter as informações e o controlo sobre os dados que a
Administração Tributária tenha em seu poder.37
Os direitos acima enumerados constituem uma importante faculdade que os contribuintes
desfrutam em matéria de proteção dos seus dados pessoais, não podendo estes ser negados
sob pena desta omissão ser comunicada à CNPD.38
Cabe ressaltar que o Legislador português, na Lei de Execução do Regulamento
2016/679, coloca expressamente em seu artigo 23.º que o tratamento de dados pessoais por
entidades públicas para finalidades diferentes das determinadas pela recolha tem natureza
excecional e deve ser devidamente fundamentado com vista a assegurar a prossecução do
interesse público que de outra forma não possa ser acautelado. Além da transmissão de dados
pessoais entre entidades públicas para finalidades diferentes das determinadas pela recolha
tem natureza excecional, deve ser devidamente fundamentada nos termos referidos no número
anterior e deve ser objeto de protocolo que estabeleça as responsabilidades de cada entidade
interveniente, quer no ato de transmissão, quer em outros tratamentos a efetuar.39
É com este intuito de garantir o aprofundamento da garantia dos dados pessoais, ao nível
da sua segurança, confidencialidade e integridade que surge o Regulamento Geral de Proteção
de Dados, que se deve ser aplicado aos órgãos e organismos públicos, nomeadamente, à
administração tributária, sem prejuízo de a mesma beneficiar de importantes restrições no que
respeita à aplicação dos princípios e das regras da proteção de dados pessoais. No entanto, está
sujeita a garantir a segurança e a confidencialidade dos dados do qual é responsável, o que
passa, entre outras obrigações, por ter um encarregado da proteção de dados pessoais e pela

34
Pica, Luís Manuel Lopes Branco. Página 107.
35
Pica, Luís Manuel Lopes Branco. Página 108.
36
Ministério da Justiça. Decreto-Lei n.º 4/2015, de 07 de janeiro de 2015. Diário da República - 1.ª
Série, n.º 4, de 2015-01-07, Pág. 50 – 87.
37
Pica, Luís Manuel Lopes Branco. Página 108.
38
Pica, Luís Manuel Lopes Branco. Página 108. Conferir também o artigo 22.º da Lei de Execução
do Regulamento 2016/679
39
Cf. Artigo 23.º da Lei n.º 58/19.

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O dever de pagar imposto em face do direito à vida privada e o consentimento à luz do RGPD
João Alexandre Silva Alves Guimarães - Fernanda Daltro Costa Knoblauch

necessidade de adotar medidas organizativas com o escopo de garantir a confidencialidade


dos dados pessoais.40

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Regulamento Geral de Proteção de Dados trouxe uma segurança maior ao detentor
dos dados em relação a quem faz o tratamento dos mesmos e assegurou responsabilidades
em relação as entidades públicas quando são elas as responsáveis pelo tratamento dos dados
especiais.
Ou seja, as entidades públicas agora deverão obedecer todo o rol que foi definido pelo
RGPD para que a administração pública continue fazendo o tratamento de dados. Porém para
não haver a falência do sistema tributário e a recolha de impostos, o legislador europeu coloca
a opção de cada país legislar sobre as regras específicas de tratamento de dados para os fins
da administração pública.
O Legislador português, com a Lei n.º 58/19, retira a obrigatoriedade do consentimento
livre e espontâneo, porém traz todas as exigências de segurança e as obrigações para que
os dados não sejam inexatos ou obsoletos, além de trazer a segurança para o detentor de
saber quais dados a administração pública detêm e está utilizando através do tratamento dos
dados.

BIBLIOGRAFIA
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa 67/10.3TVPRT.L1-1, de relatoria da Dra. Ana Grácio.
Calvão, Filipa Urbano. O Direito Fundamental à Proteção dos Dados Pessoais e a Privacidade 40
Anos Depois. Jornadas nos quarenta anos da Constituição da República Portuguesa – Impacto e
Evolução, Manuel Afonso Vaz, Catarina Santos Botelho,Luís Heleno Terrinha, Pedro Coutinho
(Coord.), Universidade Católica Editora, p. 87, 2017.
Canotilho, J.J. Gomes; Moreira, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada: Artigos 1º a
107º. Volume I, 4º edição revista. Coimbra Editora, 2007. Página 550.
Checa González, Clemente; Merino Jara, Isaac. El derecho a la intimidad como límite a las funciones
investigadoras de la Administración tributaria. Anuario de la Facultad de Derecho, 1988, página
162.
Conselho da Europa. Convenção Europeia dos Direitos do Homem, STCE n.º. 005, 1950
Conselho da Europa. Convenção para a Proteção das Pessoas relativamente ao Tratamento Automatizado
de Dados de Caráter Pessoal, Conselho da Europa, STCE n.º 108, 1981.
Conselho da Europa. Manual da Legislação Europeia sobre Proteção de Dados. Luxemburgo, 2014.
De Los Monteros, Juan Manuel Herrero de Egaña Espinosa. Intimidad, tributos y protección de datos
personales. InDret – Revista para el Análisis del Derecho. Barcelona, Abril de 2007. Página


40
Ferreira, Rui Miguel Zeferino. Página 111.

— 408 —
O dever de pagar imposto em face do direito à vida privada e o consentimento à luz do RGPD
João Alexandre Silva Alves Guimarães - Fernanda Daltro Costa Knoblauch

Dias, Ana Francisca Pinto. Responsabilidade Civil pelo Tratamento de Dados Pessoais: A
Responsabilidade do Controller por Factos Próprios e por Factos de Outrem. Revista de Direito
Da Responsabilidade, Ano 1, 2019. Página 1261.
Grupo de Trabalho do Artigo 29.º. Orientações relativas ao consentimento na aceção do Regulamento
(UE) 2016/679, Última redação revista e adotada em 10 de abril de 2018, 17/PT, WP259, rev.01,
página 3.
Mafalda Miranda Barbosa explica em relação a Lei nº 67/98. Data controllers e data processors:
da responsabilidade pelo tratamento de dados à responsabilidade civil. Revista de Direito
Comercial, 15 de março de 2018
Ministério da Justiça. Decreto-Lei n.º 4/2015, de 07 de janeiro de 2015. Diário da República - 1.ª Série,
n.º 4, de 2015-01-07, Pág. 50 – 87.
Mirada, Jorge; Medeiros, Ruy. Constituição Portuguesa Anotada. Volume I, 2º ed., Revista – Lisboa:
Universidade Católica Editora, p. 565, 2017.
Peguera, Miquel. The Shaky Ground of the Right to Be Delisted. Vanderbilt Journal of Entertainment
and Technology Law, Volume 18, Issue 3, 514-515, 2016. Conferir também o artigo 16.º do
Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).
Pica, Luís Manuel Lopes Branco. O Direito à Autodeterminação Informativa dos Contribuintes
e a Proteção dos Dados Pessoais em Matéria Tributária. Dissertação de Mestrado, 2016,
Universidade do Minho.
Presidência da República. Constituição da República Portuguesa, de 10 de abril de 1976. Diário da
República n.º 86/1976, Série I de 1976-04-10.
Parlamento Europeu e o Conselho. Regulamento (UE) 2016/679, de 27 de abril de 2016.
Silva, Hugo Flores da. Privatização do Sistema de Gestão Fiscal, Coimbra Editora, 2014.
Silveira, Alessandra. Direitos humanos fundamentais originariamente protegidos offline mas exercidos
online – e a recíproca, é verdadeira?. Direito & solidariedade, Elisaide Trevisam/Lívia Gaigher
Bósio Campello (coords.), Editora Juruá, Curitiba, 2017.

— 409 —
A comunicação digital na sociedade tecnológica:
proteção da privacidade

Maria Helena Damasceno e Silva Megale1


Eduardo Brandão Gomes2

Resumo: Os progressivos avanços da eletrônica e da informática propiciaram, indubitavelmente,


transformações radicais em diversos aspectos da vida social global, principalmente no âmbito da comunicação,
hoje, precipuamente virtual/digital. Adotando como marco teórico a ontofenomenologia heideggeriana, o
artigo em questão se propõe a refletir sobre a essência da linguagem e o seu desvirtuamento instrumental
na sociedade tecnológica, fragilizando institutos caros à vida comunitária, como a política e a democracia.
Tomando a linguagem como essência do próprio existir humano, busca-se denunciar as negativas influências
do big data no processo democrático contemporâneo, a partir do uso indevido e, não raro, sem autorização,
de dados pessoais, violando a vida íntima dos indivíduos. Como contraponto a tal invasão privada, discute-
se, ainda, sobre o papel a ser desempenhado pelas embrionárias legislações protetivas a dados pessoais na
era virtual/digital. Destaca-se, para tanto, a General Data Protection Regulation, publicada no âmbito da
União Europeia em 2016, e a Lei nº 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção dos Dados Pessoais), publicada
no Brasil em 2018, com vigência integral, porém, somente no segundo semestre de 2020. Trata-se, nesse
sentido, de trabalho transdisciplinar, envolvendo, principalmente, de forma inter-relacionada, a filosofia, o
direito, a política e a sociologia, com pesquisa de caráter jurídico-exploratória, histórico-jurídica e jurídico-
comparativa.
Palavras-chave: globalização; linguagem; big data; privacidade; política.

Abstract: The progressive advances of electronics and informatics has been providing, undoubtedly,
significative transformations in many aspects of the global life, mainly on the field of communication, which
is, today, essentially virtual. Embracing Heidegger’s ontophenomenology as a theoretical framework, this
article aims to reflect about the essence of the language and its instrumental distortion in the technological

1
Professora Titular de Filosofia do Direito (FD/UFMG). Membro do Corpo Permanente de Docen-
tes (PPGD/UFMG). Coordenadora do Instituto de Hermenêutica, Teoria e Argumentação Jurídica (IHTAJ).
E-mail: mhmegale@gmail.com
2
Graduando da FD/UFMG. E-mail: eduardobrandaogomes@hotmail.com

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A comunicação digital na sociedade tecnológica: proteção da privacidade
Maria Helena Damasceno e Silva Megale - Eduardo Brandão Gomes

society, that weakens valuable institutes of the collective life, such as politics and democracy. Adopting
the language as an essence of the human existence, we seek to expose big data’s negative influences on
the post modern democracy, considering the unauthorized and improper use of personal data, that violates
the privacy of individuals. As an opposition of this invasion, the article discuss the role to be played by the
embryonic data protective legislations, raised on the digital era. Therefore, the Data Protection Regulation,
from 2016, published on the European Union and the Law 13.709 (Lei Geral de Proteção dos Dados
Pessoais), published in 2018 in Brazil, yet valid only in august of 2020, will be highlighted. For that reason,
this scientific article is a transdisciplinary work that involves, mainly, in an inter related way, philosophy,
law, politics and sociology, with a legal exploratory, legal historic and legal comparative research.
Keywords: globalization; language; big data; privacy; politics.

1. Em busca da essência da linguagem na sociedade


tecnológica
Presente na sociedade tecnológica, constatamos um poder progressivamente globalizador
e eristicamente dominador. É sabido que poderes dessa ordem comumente existiram, mesmo
nos primitivos grupos tribais. Não é o fato da presença comprovada de agentes dominadores
que levou estudiosos, no século XX, especialmente filósofos e sociólogos, à produção de
obras sobre globalização e suas consequências.
A constatação do mundo como aldeia global, como aparece na obra A galáxia de
Gutenberg,3 de Mcluhan, não surpreendeu a sociedade contemporânea tanto quanto o fez
o livro 1984,4 de George Orwell. Com essa obra, possivelmente recebida, quando do seu
lançamento, como pura ficção, o literato anuncia a inauguração de um poder calculadamente
sinistro sobre a humanidade inteira. Tratava-se do esboço de um perfil de sociedade forjada
na maquinação da técnica, tema bastante visado na fenomenologia de Martin Heidegger,5
como lembramos em capítulo publicado na Revista Brasileira de Estudos Políticos.6
Sob o foco de Mcluhan, o que se destaca de modo expressivo é, especialmente, a
instantaneidade do acesso aos comunicados pela facilitação técnica aberta pela eletrônica.
O maquinal desempenho cibernético culminaria na disponibilização do compartilhamento
instantâneo do conhecimento e na expansão da experiência nos diversos campos do saber,
inclusive na prática científica, como há muito vivenciada.

3
MCLUHAN, Marshall. A galáxia de Gutenberg: a formação do homem tipográfico. Tradução:
Leônidas Gontijo de Carvalho e Anísio Teixeira. São Paulo: Nacional; USP, 1972.
4
ORWELL, George. 1984. Tradução: Heloisa Jahn e Alexandre Hubner. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009.
5
HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. In: HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências.
Tradução: Márcia Sá Cavalcanti Schuback. 8. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: São Francisco,
2012. p. 11-38.
6
MEGALE, Maria Helena Damasceno e Silva. Introdução à ontologia heideggeriana e ao meio
ambiente: abertura do ser para o infinito da existência com o outro. Revista Brasileira de Estudos Políticos,
Belo Horizonte, n. 99-B, p. 209-228, jul./dez. 2009. Cf. também sobre o tema: BASTOS, Paula Vilaça.
Por uma fenomenologia analítica no (e)laborar jurídico do meio ambiente. Orientadora: Maria Helena
Damasceno e Silva Megale. 2017. 278f. Tese (Doutorado em Filosofia do Direito) – Faculdade de Direito,
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

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A comunicação digital na sociedade tecnológica: proteção da privacidade
Maria Helena Damasceno e Silva Megale - Eduardo Brandão Gomes

A autêntica produção científico-filosófica sobre a globalização pressupõe analítica


acurada voltada para a linguagem, o que leva à pesquisa e à reflexão daqueles que não se
limitam a tratá-la sob o foco reducionista da linguística. Não que essa seja dispensável ao
conhecimento do universo da fala.
Na fenomenologia, a partir de Martin Heidegger e na sequência de filósofos como Hans-
Georg Gadamer, Walter Benjamin, Emmanuel Lévinas, Maurice Merleau-Ponty, Paul Ricoeur
e outros fenomenólogos, encontram-se obras que enriquecem o estudo da linguagem fora do
tradicional entendimento dessa como mero instrumento.
Em geral, a linguagem, por ser o lugar, não só do comunicado, mas também dos
comunicadores, liga-se às questões do direito, da política, aos temas pertinentes às relações
sociais em geral, como a saúde e a educação, assim como àquelas de natureza socioeconômica,
como o trabalho, a empresa e à administração, pública ou privada.
Ressalte-se que fora da fenomenologia, desde a antiguidade, a linguagem jamais escapou
à reflexão dos estudiosos das humanidades, especialmente da antropologia, da sociologia,
do direito, da política, da filosofia, da literatura. Sócrates, Platão, Aristóteles tomaram-na
como matéria central nos estudos voltados para as relações humanas. Nas diversas fases que
compõem a história das vivências sociais, da filosofia e da literatura, identificam-se obras
importantes sobre a linguagem.
Em obra do reconhecido sociólogo francês Pierre Bourdieu, traduzida no Brasil, o autor
trata da linguagem sob a insuficiente perspectiva da instrumentalidade, forma inadequada, hoje
presente até em textos legislativos, por força do entendimento dos legisladores. A própria obra
do direito passa assim às mãos dos instrumentistas jurídicos como mera “ferramenta”.7
Retomando Bourdieu. Esse autor, em sua obra A economia das trocas linguísticas: o que
falar quer dizer,8 concebe a linguagem como instrumento à disposição do “operador” que
a ela recorre por ser-lhe útil de acordo com as conveniências. A relação do ser humano com
a linguagem, sob essa perspectiva, dá-se na ocupação, no momento em que o sujeito dela se
vale para alguma finalidade. Com esse entendimento, a linguagem é dispensável à existência
do ser, mas disponível para as ocasiões em que se fizer útil.
Ressalte-se não ser esse o nosso entendimento. Filiamo-nos ao modo de pensar que
reconhece a linguagem como meio, tomado esse vocábulo no sentido de habitação, lugar.
Walter Benjamin, na terminologia da língua alemã, toma a palavra Medium (meio) para
designar a linguagem, recusando-se a vê-la como Mittel, vocábulo alemão que traz significado
instrumentalista, algo útil, que serve, com sua ocupação, como meio para o sujeito atingir
determinado objetivo.9

7
BRASIL. Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015. Dispõe sobre a mediação entre particulares como meio
de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13140.htm. Acesso em: 10 fev. 2020.
8
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguísticas: o que falar quer dizer. Tradução: Sérgio
Miceli. 2. ed. São Paulo: EDUSP, 2008.
9
BENJAMIN, Walter. Escritos sobre mito e linguagem. Tradução: Susana Kampff Lages e Ernani
Chaves. São Paulo: Duas Cidades; Edições 34, 2011.

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2. A linguagem como modo estrutural do ser no mundo e o


seu desvirtuamento na era digital
Heidegger intensificou em suas obras o esclarecimento do sentido com o qual ele
concebia a linguagem, longe de qualquer conotação utilitarista. Em Ser e tempo,10 sua magna
composição ontofenomenológica, Martin Heidegger já expunha o sólido entendimento sobre
aquele sentido de indispensabilidade da linguagem, já que ali essa é reconhecida como modo
estrutural do próprio ser-aí. Muito tempo após o lançamento de Ser e tempo, Heidegger
escreveu em sua obra Carta sobre o humanismo que a linguagem é a morada do ser.11 É
essencialmente na linguagem que o ser-aí habita, concepção que perpassa o conjunto da obra
de Martin Heidegger.
Notamos grande distanciamento desse modo de pensar daquele adotado pela maioria
dos estudiosos da linguagem. Segundo Bourdieu, por exemplo, “[…] os discursos não são
apenas (a não ser excepcionalmente) signos destinados a serem compreendidos, decifrados;
são também signos de riqueza a serem avaliados, apreciados, e signos de autoridade a serem
acreditados e obedecidos”.12 Na concepção desse autor, a linguagem, por ele tomada como
aparato instrumental, traz em si valores contábeis, conforme o peso de quem fala. Com isso,
o sociólogo demarca na fala, o que ele denomina de lucro simbólico, salvo em casos de usos
literários da linguagem, como os poéticos, segundo ressalva.13 Em geral, conforme expõe,
o portador da fala dirige-se ao interlocutor com o objetivo de um ganho, de acordo com sua
posição social. Para Bourdieu: “O uso da linguagem, ou melhor, tanto a maneira como a
matéria do discurso, depende da posição social do locutor”.14
Com entendimento diferente dessa concepção instrumental, afastamo-nos da concepção
logocêntrica para destacarmos o reconhecimento da voz e do rosto, como lembramos em
nosso livro Um diálogo da hermenêutica com a literatura: em busca da justiça.15 A voz
manifesta aquele ethos inalcançável pela linguística e que Giorgio Agamben denomina de
“sacramento da linguagem”.16
A palavra é veiculada graças a esse sopro audível, singular, distinto em cada ser humano.
Por isso, escutar o outro é mais que uma necessidade; é um dever. Tanto quanto dirigir-lhe
a palavra, quando o silêncio não se impuser. Jamais o comodismo dará lugar ao silêncio A
vida o recusa diante do alter. Por isso, ao tratar dessa temática, Lévinas vê no morto um sem-
resposta, falta-lhe o rosto como centro de expressão.17

10
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Tradução de Fausto Castilho. Campinas: Unicamp; Petrópo-
lis: Vozes, 2012.
11
HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo. Tradução de Rubens Eduardo Frias. 2. ed. São
Paulo: Centauro, 2005.
12
BOURDIEU, 2008, p. 53.
13
Ibidem, p. 53-54.
14
Ibidem, p. 87.
15
MEGALE, Maria Helena Damasceno e Silva. Um diálogo da hermenêutica com a literatura: em
busca da justiça. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016, p. 47.
16
AGAMBEN, Giorgio. O sacramento da linguagem. Arqueologia do juramento. Tradução: Selvino
José Assmann. Belo Horizonte: UFMG, 2011, p. 82.
17
LÉVINAS, Emmanuel. Dieu, la mort et le temps. Paris: Gasset, 1993, p. 17.

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A palavra não se apresenta no morto. Também ela falta no omisso, assim caracterizado
como aquele que se cala arredio sem observar o dever da fala. A autêntica palavra, como vemos
igualmente no pensamento de Merleau-Ponty, reclama a voz, sua entonação compondo um
enigma, que o outro passa a tomar como seu e a dizê-lo com o autor.18 A palavra é invocação.
Já o dizia Lévinas no conjunto de sua obra. Por isso, os interlocutores se descobrem na
linguagem para dizerem a palavra juntos.
A legítima comunicação realiza-se quando os interlocutores são capazes de se
deterem frente a frente, com todos os sentidos a postos, inspirados por tonalidades afetivas
facilitadoras do agir compreensivo. Nesse agir próprio ao diálogo, pode-se concretizar aquele
comprometimento idealizado nas aspirações humanísticas de pensadores como Jaspers. Após
a segunda guerra mundial, dizia esse filósofo numa de suas aulas sobre a questão da culpa:

Queremos aprender a falar uns com os outros. Isso significa que não queremos
apenas repetir nossa opinião, mas ouvir o que pensa o outro. Não queremos apenas
afirmar, mas, de uma forma contextualizada, refletir, ouvir argumentos, permanecer
dispostos a uma nova percepção. Queremos experimentar nos colocarmos na
perspectiva do outro.19

Naqueles tempos de minguados horizontes, numa Alemanha despedaçada, inundada de


tristeza, perto e longe, lamentava o filósofo numa frase curta, plena de sentimento quando
o assunto era culpa e linguagem: “Comum a nós é a ausência de comunidade”.20 E como
identificamos a comunidade atual, a mais de meio século dessa reflexão espontânea sobre a
carência de afeição e respeito pelo alter?

3. O exercício corrompido do direito à comunicação:


sociedade digital e big data
É no contexto da globalização que parte da humanidade viu acrescer-se à tradicional
veiculação da palavra a forma virtual de comunicação, que, a despeito de suas mais notáveis
diferenças, como a predominante substituição de vozes e de olhares por texto, traz como
inovação a socialização com o outro a partir da construção de perfis. Nesse cenário, o indivíduo
expõe informações relativas à sua personalidade e aos seus interesses na internet.
Embora tal prática se apresente desacompanhada de cuidado, é pertinente observar
como a concessão de dados impacta de forma significativa importantes instituições, como a
democracia. Somados entre si, tais dados integram-se e são chamados de big data. Nomenclatura
justificada no entendimento de Gonzáles por referir-se a “[…] grandes quantidades de
informação digital controlada por companhias, autoridades e outras organizações, sujeitas a
uma análise extensa baseada em algoritmos”.21

18
MERLEAU-PONTY, Maurice. La prose du monde. Paris: Gallimard, 2004, p. 42-43.
19
JASPERS, Karl. A questão da culpa: a Alemanha e o nazismo. Tradução: Cláudia Dorn Busch.
São Paulo: Todavia, 2018, p. 09.
20
Ibidem, p. 13.
21
GONZÁLEZ, Elena Gil. Big data, privacidad y protección de datos. Madrid: Agencia Española
de Protección de Datos, 2016, p. 17, tradução nossa.

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Tais dados, por si só, são incapazes de causar danos, salvo quando utilizados por terceiros
sem o consentimento das personalidades a eles inerentes. Os limites para o uso destes passaram
rapidamente do âmbito meramente moral para o legal na União Europeia, com a General
Data Protection Regulation,22 de 2016, e no Brasil, com a Lei Geral de Proteção de Dados
Pessoais,23 de 2018.
Inarredável, no mundo globalizado, é a analise da relevância que os dados representam
no cenário político, bem como as potenciais consequências de seu uso reprovável, capaz de
distorcer de maneira significativa o processo democrático contemporaneamente tradicional.
Um candidato que conhece bem seus eleitores certamente estará à frente dos demais, uma
vez que fará um discurso orientado aos problemas dos quais padecem os eleitores, obtendo,
assim, mais votos. Esse jogo político tradicional não é desconhecido pelos eleitores, que, por
isso, em certa medida, ficam atentos a discursos “falaciosos”.
Todavia, não é exagero dizer que o big data, hoje, desequilibra essa relação costumeira,
uma vez que concede ao candidato algo preponderante: informações do eleitor que nem
mesmo este está consciente de que o político possui. A consequência disso é que o uso destas
para a confecção de publicidade política torna qualquer resistência do eleitor insignificante
diante da efetiva manipulação que se constrói.
Tal manipulação, a partir do perfil traçado do eleitor, baseado em seus dados, consiste em
publicidade direcionada, capaz de explorar as emoções dos indivíduos. Mais poderosa ainda se torna
a influência no eleitor quando as fake news compõem a tática, conforme pôde ser observado nas
eleições estadunidenses de 2018, em que o resultado foi influenciado por essa estratégia, articulada
pela empresa Cambridge Analytica a partir de dados coletados na rede social facebook.24
Fica evidente, portanto, que a democracia pós-moderna vislumbra alteração significativa
em sua dinâmica secular, de tal modo que o eleitor deixa de se ludibriar apenas por falácias
externas para, ele mesmo, enganar-se, internamente, a partir de uma posta mentira irresistível
(pois esta se baseia exatamente em suas convicções), que o conduz a adotar uma posição de
forma apaixonada. Esse comportamento do votante pode intensificar a vitória de candidatos
politicamente divergentes de sua base eleitoral. Supostamente convicto, nem sempre o eleitor faz
escolhas genuinamente autênticas, mas nascidas de ímpetos desprovidos de intencionalidade.
Não se pode deixar de pontuar que a publicidade eleitoral não é o problema, mas sim
a violação da privacidade, na medida em que os dados são obtidos sem o consentimento do
indivíduo ou utilizados para uma finalidade não autorizada por ele.

22
EUROPEAN UNION. Regulation (EU) 2016/679 of the European Parliament and of the Council
of 27 april 2016. General Data Protection Regulation. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-con-
tent/EN/TXT/PDF/?uri=CELEX:32016R0679. Acesso em: 13 fev. 2020.
23
BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais
(LGPD). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm. Aces-
so em: 13 fev. 2020.
24
GRANVILLE, Kevin. Facebook and Cambridge Analytica: what you need to know as fallout
widens. The New York Times. March 19, 2018. [online]. Disponível em
https://www.nytimes.com/2018/03/19/technology/facebook-cambridge-analytica-explained.html. Aces-
so em: 14 fev. 2020.

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A preocupação com o uso de dados em ambas situações, justificado em texto genérico


da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, começou a ganhar atenção
legislativa específica a partir do Marco Civil da Internet. Embora se pudesse falar de proteção
à intimidade a partir do princípio constitucional da inviolabilidade à privacidade, disposto no
art. 5º, X, da Constituição,25 foi somente com a Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil),26 que a
questão foi abordada especialmente para o contexto virtual, elegendo-se a privacidade como
princípio do uso da internet, no art. 3º, II.
Entretanto, o consentimento da cessão de dados e do desvio de finalidade de seu uso,
elementos muito mais práticos e realistas no que tange ao mau uso das informações privadas,
somente foram positivados na Lei nº 13.709/2018 (Lei de proteção de dados pessoais), que
entrará em vigor no Brasil integralmente em agosto de 2020, determinando em seu art. 7º, I,
que o tratamento de dados somente se dará mediante consentimento do titular, e estipulando,
em seu art. 6º, I, a finalidade como princípio de tratamento de dados pessoais.
Excluindo-se a apropriação de dados de forma forçada pelo infrator, o cidadão brasileiro
que deliberadamente fornece suas informações na internet, caso tais normas logrem ser
eficazes, terá seus dados armazenados apenas mediante consentimento e, caso isso ocorra,
não observará terceiros a se apropriar destes ou vendo-os ser utilizados de maneira distinta
da autorizada, o que espera-se, como consequência, servir como debilitante do uso indevido
do big data, principalmente no que concerne a publicidade política desleal, responsável por
distorções na democracia, essencializada na representatividade eleita pelo voto.

4. Considerações finais
Uma das grandes conquistas dos últimos tempos mudou o cenário das comunicações de
forma globalizada. Trata-se das possibilidades da comunicação cada vez mais transformista.
Diversos são os recursos com os quais contamos para a comunicação, dentre os quais a mídia
digital, que se impõe quase com exclusividade. Até mesmo no plano eleitoral, como vem
ocorrendo na Europa e nas Américas, com consequências diversas, tais quais as que ocorreram
nos Estados Unidos.
O novo paradigma apresenta-se trazendo perdas e ganhos para a humanidade do ponto
de vista pessoal e coletivo. Uma questão da maior importância dentro do novo cenário, chama
a nossa atenção: trata-se da proteção e garantia da privacidade, que inclui até mesmo o direito
ao esquecimento. No direito brasileiro, essa questão corresponde à tutela de um bem peculiar
protegido, garantido e democraticamente defendido nos estados de direito contra atentados e
danos de origem privada ou pública.
Essa matéria oferece múltiplos aspectos, os quais se abrem à discussão para alcançarem
avaliações e apreciações até hoje sem levarem a resultados plenamente satisfatórios em razão

25
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Organização:
Alexandre de Moraes. 45. ed. São Paulo: ATLAS, 2018.
26
BRASIL. Lei n º 12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres
para o uso da internet no Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/
lei/l12965.htm. Acesso em: 13 fev. de 2020.

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da volatilidade material e formal que permeia as ocorrências concretas, sujeita a alterações a


partir da entrada em vigor da nova lei que comporá a legislação brasileira de proteção e defesa
da privacidade.

Referências
AGAMBEN, Giorgio. O sacramento da linguagem. Arqueologia do juramento. Tradução: Selvino
José Assmann. Belo Horizonte: UFMG, 2011.
BASTOS, Paula Vilaça. Por uma fenomenologia analítica no (e)laborar jurídico do meio ambiente.
Orientadora: Maria Helena Damasceno e Silva Megale. 2017. 278f. Tese (Doutorado em
Filosofia do Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte.
BENJAMIN, Walter. Escritos sobre mito e linguagem. Tradução: Susana Kampff Lages e Ernani
Chaves. São Paulo: Duas Cidades; Edições 34, 2011.
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguísticas: o que falar quer dizer. Tradução: Sérgio
Miceli. 2. ed. São Paulo: EDUSP, 2008.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Organização:
Alexandre de Moraes. 45. ed. São Paulo: ATLAS, 2018.
BRASIL. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres
para o uso da internet no Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
2014/2014/lei/l12965.htm. Acesso em: 13 fev. de 2020.
BRASIL. Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015. Dispõe sobre a mediação entre particulares como meio
de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração
pública. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13140.
htm. Acesso em: 10 fev. 2020.
BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm.
Acesso em: 13 fev. 2020.
EUROPEAN UNION. Regulation (EU) 2016/679 of the European Parliament and of the Council of
27 april 2016. General Data Protection Regulation. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/
legal-content/EN/TXT/PDF/?uri=CELEX:32016R0679. Acesso em: 13 fev. 2020.
GONZÁLEZ, Elena Gil. Big data, privacidad y protección de datos. Madrid: Agencia Española de
Protección de Datos, 2016.
GRANVILLE, Kevin. Facebook and Cambridge Analytica: what you need to know as fallout
widens. The New York Times. March 19, 2018. [online]. Disponível em: https://www.nytimes.
com/2018/03/19/technology/facebook-cambridge-analytica-explained.html. Acesso em: 14 fev.
2020.
HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. In: HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências.
Tradução: Márcia Sá Cavalcanti Schuback. 8. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: São
Francisco, 2012. p. 11-38.
HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo. Tradução de Rubens Eduardo Frias. 2. ed. São
Paulo: Centauro, 2005.

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A comunicação digital na sociedade tecnológica: proteção da privacidade
Maria Helena Damasceno e Silva Megale - Eduardo Brandão Gomes

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Tradução de Fausto Castilho. Campinas: Unicamp; Petrópolis:
Vozes, 2012.
JASPERS, Karl. A questão da culpa: a Alemanha e o nazismo. Tradução: Cláudia Dorn Busch. São
Paulo: Todavia, 2018.
LÉVINAS, Emmanuel. Dieu, la mort et le temps. Paris: Gasset, 1993.
MCLUHAN, Marshall. A galáxia de Gutenberg: a formação do homem tipográfico. Tradução:
Leônidas Gontijo de Carvalho e Anísio Teixeira. São Paulo: Nacional; USP, 1972.
MEGALE, Maria Helena Damasceno e Silva. Introdução à ontologia heideggeriana e ao meio
ambiente: abertura do ser para o infinito da existência com o outro. Revista Brasileira de
Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 99-B, p. 209-228, jul./dez. 2009.
MERLEAU-PONTY, Maurice. La prose du monde. Paris: Gallimard, 2004
ORWELL, George. 1984. Tradução: Heloisa Jahn e Alexandre Hubner. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009.

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Cosméticas da tecnologia no necropoder: é isto
um drone implantado na democracia?

Nilson Carlos Costa de Souza Filho1

Resumo: O presente trabalho pretende investigar a possibilidade de gerenciar a novas tecnologias


com a proteção a direitos humanos. O contexto em que se insere esta investigação é o de emergência de
aparatos de morte capazes de efetuar a destruição de modo mais massivo e rápido. Nesse aspecto, presencia-
se uma confluência de aparatos biopolíticos, disciplinares e necropolíticos determinando quem são aqueles
que podem viver e quem são os que podem morrer. Essa cosmética, assim, se imiscui na vida nua a partir
de entrelaçados matizes políticos, geográficos, culturais e de poder, instrumentalizando máquinas de guerra
oficiais ou não e direcionando-as contra os chamados inimigos das democracias liberais, geralmente
personificados em minorias étnicas e sociais. Questiona-se, ademais, se nos sistemas jurídicos ocidentais
essa mediação é possível. Uma ética, nesse sentido, se faz necessária a fim de mediar essas relações e
poder garantir direitos humanos às potenciais vítimas do necropoder. Serão sinalizadas as performances
da eleição de um inimigo, a cosmética de atualização e extermínio desses inimigos por meio dos aparatos
tecnológicos e, por fim, a necessidade de reflexão sobre os usos do direito no tempo de agora. Para este
estudo, será utilizada a revisão bibliográfica, utilizando como marco teórico os estudos de Achille Mbembe,
Michel Foucault, Walter Benjamin e Judith Butler, bem como cortes de filmes e exposições de arte.
Palavras-chave: Necropolítica; Direito; Racismo; Biopolítica; Poder.

Abstract: The present work intends to investigate the possibility of managing new technologies with
the protection of human rights. The context in which this investigation is inserted is the emergence of death
apparatus capable of effecting destruction in a more massive and rapid manner. In this respect, there is a
confluence of biopolitical, disciplinary and necropolitical devices determining who can live and who can
die. This cosmetic, thus, intervenes in the naked life from intertwined political, geographic, cultural and
power hues, instrumentalizing oficial or not oficial war machines and directing them against the so-called
enemies of liberal democracies, generally personified in ethnic and social minorities. It is also questioned
if, in Western legal systems, such mediation is possible, given the bases on which Western democracies
are based. An ethics, in this sense, is necessary in order to mediate these relationships and to be able to


1
Mestrando em Ciências Jurídico-Filosóficas na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
(FDUL). Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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Cosméticas da tecnologia no necropoder: é isto um drone implantado na democracia
Nilson Carlos Costa de Souza Filho

guarantee human rights to potential victims of necropower. The performances of the election of an enemy
will be signaled, the cosmetics of updating and exterminating these enemies through technological devices
and, finally, the need for reflection on the uses of law in the present time. For this study, the bibliographic
review will be used, using as a theoretical framework the studies of Achille Mbembe, Michel Foucault,
Walter Benjamin and Judith Butler, as well as cuts of films and art exhibitions.
Keywords: Necropolitics; Law; Racism; Biopolitics; Power.

1. INTRODUÇÃO
Em 2018, a artista Salomé Lamas revela os distúrbios da fronteira da Transnístria que
a impediram de realizar parte de seu filme, Extinção, numa espécie de mise-en-scène sobre
a impossibilidade de se fazer uma obra de arte2. O controle censitário pelo qual passara a
sua produção passara pelos efeitos de uma crise sobre as fronteiras contemporânea à sua
filmagem. Entretanto, naquele ambiente que parecia transitar entre o passado e o presente-
sem-futuro, a realizadora consegue pensar em pelo menos algumas questões fundamentais
para entendermos o limite das democracias hoje: encontrar um lugar seguro onde? Fronteiras
servem para quê? Para onde podemos escapar?
A tensão que as democracias liberais ocidentais carregam com os limites de garantia dos
direitos humanos no que se refere a fronteiras fora identificada também pelo filósofo Achille
Mbembe. Adentrando esse outro ambiente, nos deparamos com imagens criadas pelo autor
camaronês já pensadas no desenvolvimento tecnológico e que revelam uma cosmotécnica
voltada para o aperfeiçoamento da violência enraizada nos regimes jurídicos ocidentais3.
Carl Schmitt, que já lecionava sobre a eleição de um inimigo como concepção de um
Estado que verdadeiramente protege a si mesmo, esquematizara bem o gerenciamento dessa
autoproteção e tornou praticamente contingente a impossibilidade de garantir vida digna a
todos4. A sofisticação dessa engenharia, quando pensada sob a luz da biopolítica e, mais
tarde, da necropolítica, bem como dos mecanismos de nanorracismo, permitiu que a tecnologia
se tornasse dos dispositivos mais perversamente bélicos nesse século.
Tendo como pano de fundo o aperfeiçoamento das técnicas de controle e de poder de
morte sobre os corpos, sou capaz de perguntar se ainda há lugar seguro no ocidente. Ou
posso ser conduzido a um questionamento mais proeminente: como é possível gerenciar a
tecnologia de modo que sua presença não se torne um vetor de ameaça a direitos humanos?
Como conjugar o drone e a proteção a direitos humanos no século XXI?
Para esse percurso, farei pesquisa bibliográfica, utilizando como principais marcos
teóricos as obras de Achille Mbembe, Michel Foucault, Walter Benjamin e Judith Butler,
atravessadas por colagens de trechos de filmes e pelo pensamento de outros autores que
ajudem a entender o tema, como Carl Schmitt e Giorgio Agamben.

2
EXTINÇÃO. Direção de Salomé Lamas. Lisboa: O Som e a Fúria, 2018. (80 min.)
3
MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Lisboa: Antígona, 2017.
4
SCHMITT, Carl. O Conceito do Político. Trad. Alvaro L. M. Valls. Rio de Janeiro: Vozes, 1992.

— 420 —
Cosméticas da tecnologia no necropoder: é isto um drone implantado na democracia
Nilson Carlos Costa de Souza Filho

Primeiramente sinalizarei as performances da eleição de um inimigo e do racismo


como mecanismos presentes nas democracias ocidentais, estabelecendo algumas de suas
características fundamentais. Em um segundo momento, pretendo demonstrar a força
das revoluções tecnológicas como cosmética de atualização e aperfeiçoamento daquelas
performances. Por fim, procurarei defender a necessidade de uma alteração nos usos do
direito para dar soluções à questão e apostarei em uma disposição ética que dê à tecnologia
uma tendência à proteção dos direitos humanos.

2. PERFORMANCES DE EXTERMÍNIO NAS DEMOCRACIAS


OCIDENTAIS
Quando da formação do conceito de biopolítica, Michel Foucault conseguira identificar
os padrões outrora disciplinares e posteriormente de controle que se exercem sobre a vida.
Nesse aspecto, suas reflexões históricas nos remetem a uma evolução das técnicas de poder
a fim de sua continuidade, tendo em vista a explosão demográfica e as revoluções industriais
que acompanharam a modernidade5.
É certo que a humanidade também demonstrou um aparato civilizacional sofisticado
que rendera algumas das experiências mais desumanizantes que já pudemos testemunhar. Em
outras palavras, falamos aqui do colonialismo e do conflito bélico.
São aparatos e experiências que lidam diretamente não apenas com o controle das vidas e
com o estabelecimento de territórios, mas que rondam o véu da morte em suas performances.
Soberania, nesse aspecto, aparece como uma possibilidade de um exercício da vigilância
securitária que descamba em definir quem poderá viver ou morrer6.
Segundo Achille Mbembe, essa decisão não é direcionada apenas a quem está fora dos
territórios que gozam de soberania. O inimigo, para usar o termo de Carl Schmitt, também se
encontra dentro dos Estados – e, portanto, torna necessária uma regulamentação topológica
dos registros de segurança7. Isso pressupõe um direito de matar, uma máscara à qual se
entrega a defesa de uma sociedade8, que age de forma seccionada.
Ao escolher quem pode viver e quem pode morrer, essa política define estados de exceção
com direção certa à estrutura do racismo910, instrumentalizado não apenas contra negros,
mas também a outras minorias étnicas ou sociais. Para Mbembe, tal dinâmica será nomeada
como necropolítica11. E, de fato, parece direcionada não apenas a um grupo – por isso referi-
me como estados de exceção, no plural −, mas para diversos corpus populacionais. Aqui estou

5
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber, tradução de Maria Thereza
da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1988.
6
MBEMBE, Achille, 2017, p. 107.
7
SCHMITT, Carl. Teologia Política. Tradução de Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
8
Ibidem.
9
FOUCAULT, 2010.
10
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 1989.
11
MBEMBE, Achille, 2017.

— 421 —
Cosméticas da tecnologia no necropoder: é isto um drone implantado na democracia
Nilson Carlos Costa de Souza Filho

focado em dinâmicas tanto interestatais como intraestatais, o que me leva a pensar em pelo
menos três cortes: imigrantes, periféricos, africanos e afrodescendentes.
Para Mbembe, a base normativa do direito de matar se exerce em função do Estado de
Exceção e da relação de inimizade. Estabelecido para quem o direito se suspende, é fácil
direcionar o alvo. Uma vez que estão amortecidas as condições desse escândalo, a citação
desse inimigo e a sua aniquilação se tornam normalizadas12.
Giorgio Agamben parece ter sido um dos que melhor entenderam esse aspecto. Em seu
livro Estado de exceção, uma investigação sobre as origens do instituto, o autor assevera:

O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instauração, por
meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação
física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de
cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político.
Desde então, a criação voluntaria de um estado de emergência permanente (ainda
que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas
essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos.13

Pode-se dizer, guiando-se pela conclusão fundamental de Giorgio Agamben, que Estados
democráticos são capazes de possuir centros autoritários no escopo de suas práxis securitárias.
A resposta a essa questão certamente influi no pensamento sobre os estatutos deontológicos
que norteiam o corpo das decisões estatais.
Nesse aspecto, Judith Butler retoma muito bem um aspecto que Walter Benjamin deixa
entrever: a violência fundadora dos Estados modernos se direciona aos seus cidadãos não
apenas num aspecto físico, mas existencial e, sobretudo, ético. O tempo de agora propiciado
pela violência revolucionária, para Benjamin, estaria direcionado a um vivente profundamente
enraizado numa perspectiva ética1415.
No contexto de agora, é possível falar em uma ética? Esta parece ser a questão fundamental
a ser enfrentada pelo direito neste seu momento de crise.

3. TECNOLOGIA E APERFEIÇOAMENTO DO EXTERMÍNIO


O distúrbio performático do extermínio parece ser catalisado dentro dos espaços
contemporâneos de continuidade do colonial. Isso porque a equalização dos esforços para

12
Ibidem
13
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Homo sacer II. Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo: Boi-
tempo, 2004, p. 13.
14
BUTLER, Judith. Caminhos divergentes: judaicidade e crítica do sionismo. São Paulo: Editora
Boitempo, 2017.
15
BENJAMIN, Walter. Crítica da Violência: Crítica do Poder. In: ______. Documentos de cultura,
documentos de barbárie: escritos escolhidos. Seleção e Apresentação Willi Bolle. Trad. Celeste H. M. Ri-
beiro de Souza et al. São Paulo: Cultrix, 1986.

— 422 —
Cosméticas da tecnologia no necropoder: é isto um drone implantado na democracia
Nilson Carlos Costa de Souza Filho

manutenção das democracias combina com os fatores de extermínio de massa e de derrocada


onto-histórica de determinados extratos populacionais. Trata-se de uma topologia retalhada que
se entranha tanto nos próprios Estados quanto nos inimigos que são por eles escolhidos16.
Para Mbembe, esses novos estratos de soberania são definidos pela decisão sobre
quem pode viver e quem pode morrer, quem pode ser prescindível ou não no território das
democracias liberais. Tais linhas de estratificação se reúnem em torno dos chamados inimigos
com dinâmicas diversas e que se atualizam em topologias variantes17.
Mbembe tem ciência de que essa disposição se encontra presente também dentro das
próprias cidades, em retalhos, realizada em zonas de exceção mais ou menos demarcadas em
função dos critérios determinados pela soberania necropolítica. Estabelece-se, então, uma
relação entre soberania e espaço, modulada pela possiblidade de mobilidade global18.
Na mesma esteira, segue Ignacio Mendiola-Gonzalo:

el enemigo compone una geografía móvil que no responde ya a una compartimentación


geográfica-estatal del conflicto. El entramado bélico-policial articula una línea
movediza que actúa en paralelo a la geografía móvil del enemigo, superando por
ello la fijación inmóvil de la frontera estatal, y dando lugar a territorios donde se
trenzan complejas relaciones entre soberanía, tierra y población.19

Nesse aspecto, podemos identificar a atualização de um direito que, uma vez em


deformidade, sofre cada vez mais cortes, remendos em níveis atomizados, atravessado pelos
fatores biopolíticos, disciplinares e necropolíticos20. Trata-se de um diagnóstico que não
se reduz a níveis institucionais, mas toma a proporção dos poderes paralelos e da agência
de outros atores políticos – nos termos de Deleuze e Guattari, as máquinas de guerra com
infraestrutura capaz de suplantar o poder de destruição requerido por esse projeto político21.
A função-morte nesse espaço de soberania acaba sendo aperfeiçoada pelo aparato
tecnológico. Vê-se, o propósito de identificação do inimigo agora não se reduz ao controle
de sua vida, mas toma também a sua inserção na economia do massacre, cada vez mais
higienizada e de alta precisão22.
O projeto civilizatório passa, assim, a direcionar uma questão: como se pode matar de
forma mais eficaz? A eliminação em espaços curtos de tempo torna-se um objetivo a ser
cruzado pelas democracias ocidentais, podendo ser realizada pelos canais oficiais ou pelas

16
MBEMBE, 2017.
17
Ibidem, p. 132.
18
MBEMBE, 2017
19
MENDIOLA-GONZALO, Ignacio. El dispositivo del dron: entre la vigilância securitária y la
necropolitica. Convergencia: Revista de Ciencias Sociales, n. 79, 2019, p. 15
20
MBEMBE, 2017.
21
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo:
Editora 34, 2010.
22
MBEMBE, 2017, p. 135.

— 423 —
Cosméticas da tecnologia no necropoder: é isto um drone implantado na democracia
Nilson Carlos Costa de Souza Filho

máquinas de guerra agenciadas para a destruição do Outro, entrelaçadas numa verdadeira


cosmética do necropoder.
Uma vez indistintas as fronteiras, é lícito voltarmos à pergunta de Salomé Lamas na
paraficção Extinção: em um mundo sem fronteiras, para onde poderemos escapar?23 Se
estamos em um mundo cada vez mais interessado em uma jornada irreversível de performances
de extermínio, onde poderão ser salvaguardadas as nossas condições de existência?
Um drone de extermínio implantado na democracia: essa é uma imagem a ser guardada
a fim de que possamos entender as frágeis instalações onde se assentam os regimes políticos
ocidentais do séc. XXI.

4. EM BUSCA DE UM REGIME ÉTICO?


A apropriação da tecnologia como material pode estar desvinculada da experiência da
destruição? Em Bacurau, de Kleber Mendonça Filho, celulares são acionados pelos moradores
da cidade para a procura dos seus iguais durante o massacre engendrado por um grupo de
milicianos estrangeiros24. Canhões se tornam instrumento do discurso e da memória afetiva
argelina em torno do trauma colonial também estão presentes nas instalações de As raízes
também se criam no Betão, exposição de Kader Attia25.
Sem dúvida, as intervenções artísticas fazem pensar na instrumentalização ética da
tecnologia. Aparentemente é com essa virada que os teóricos do aceleracionismo parecem
contar, nomeadamente as investidas de autores como Nick Land e Mark Fisher26. Seus
pensamentos parecem rondar-nos com a ideia da subversão dos aparatos. Uma espécie de
hackeamento dos sistemas necropolíticos é possível? Ou as armadilhas de um sistema só
poderão nos conduzir a um profundo fosso no qual batalham até a morte as comunidades em
mútua ameaça às suas respectivas soberanias?
De fato, não são questões fáceis. Tampouco possíveis de serem decididas por um par de
palavras. Mas que se possa imaginar um futuro parece ser o mérito dos aceleracionistas. E
que futuro pode ser esse? Com que ética poderemos contar para nos resguardarmos enquanto
viventes, enquanto sujeitos de direito situados no presente século?
Para autores que não são exclusivamente da área jurídica, como Benjamin, parece
mais fácil imaginar esse futuro tendo em vista um direito que inevitávelmente está fadado
ao fenecimento27. As contradições que podem ser deduzidas das estruturas jurídicas, e aqui
podemos incluir as seminais teses de Agamben – para quem o estado de exceção tornou-

23
LAMAS, 2018.
24
BACURAU. Direção de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dorneles. Brasil: Vitrine Filmes,
2019.
25
ATTIA, Kader. As raízes também se criam no betão. Lisboa: Fundação Culturgest, 2018.
26
FISHER, Mark. What Are We Fighting For: A Radical Collective Manifesto Eds. F. Campagna,
E. Campiglio. Pluto Press, 2012.
27
BENJAMIN, 1986.

— 424 —
Cosméticas da tecnologia no necropoder: é isto um drone implantado na democracia
Nilson Carlos Costa de Souza Filho

se regra28 – ou do próprio Benjamin – para quem o direito está fundado num esquema de
violência e culpa do qual não pode escapar29 −, traduzem a ansiedade por tentar produzir
uma sociedade livre dos aparatos da morte – ou pelo menos com um compromisso ético
coerente.
As zonas de exceção determinadas por essa lógica produzem aquilo que Butler chama de
soberania espectral, que é o rearranjo do poder em torno da governamentalidade securitária,
tornando vidas o alvo de uma desumanização coordenada pela tecnologia30. Parece, enfim,
que o esquema de captura e culpa do sujeito exemplificados por Benjamin, por meio do mito
de Níobe, se torna mais uma vez patente e nos lega os mesmos problemas éticos do século
passado – ou mais graves. Nas palavras de Mendiola-Gonzalo:

Una vida, en definitiva, inmersa en una deshumanización tecnologizada que detecta


coordenadas móviles en las pantallas, una vida vigilada, rastreada, eliminable, silenciada,
una vida, por todo ello, radicalmente expuesta. Este es el brutal sello de la necropolítica
que ha quedado ya adherida, como elemento estructural, al dispositivo drónico.31

A exposição da chamada vida nua à política securitária de limpeza engendrada pelas


tecnologias nas últimas décadas poderia ser traduzida pelos problemas aos quais Judith
Butler concedeu especial atenção: vulnerabilidade e não reconhecimento. Enquanto houver
corpos populacionais continuamente ameaçados e rapidamente elimináveis, como pode-se
produzir sujeitos em uma democracia? A quem pertence suas vidas, afinal? Como relatá-
las?32 Nesse labirinto, o direito confunde-se com a vida, a vida confunde-se com o direito, e
como poderemos conjurar uma linguagem que saia desse eixo de submissão?33
Podemos encontrar respostas categóricas a partir de dois gigantes já aqui mencionados:
se caminharmos pela esteira de Schmitt, confiamos ao soberano a conformação ética desse
uso do direito e das suas tramas securitárias34; por outro lado, se caminharmos pela ponte de
Benjamin, confiaremos à violência revolucionária o desmascaramento desse regime de culpa
e poderemos buscar novas relações com o direito e com as próprias políticas securitárias, na
medida em que aquele não se confine mais no seu caráter puramente teleológico35.
É possível terminar esse capítulo com aquela que parece uma das conclusões especulativas
de Agamben mais capazes de escandalizar-nos enquanto juristas:

[…] O que abre uma passagem para a justiça não é a anulação, mas a desativação e
a inatividade do direito - ou seja, um ourro uso dele. Um dia, a humanidade brincará

28
AGAMBEN, 2004.
29
BENJAMIN, 1986.
30
BUTLER, Judith. Vida precária. Argentina: Paidós, 2006.
31
MENDIOLA-GONZALO, 2019, pp. 16-17.
32
BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo. Crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica,
2015.
33
AGAMBEN, 2004.
34
SCHMITT, 2006.
35
BENJAMIN, 1986.

— 425 —
Cosméticas da tecnologia no necropoder: é isto um drone implantado na democracia
Nilson Carlos Costa de Souza Filho

com o direito, como as crianças brincam com os objeros fora de uso, não para
devolvê-los a seu uso canônico e, sim, para libertá-los definitivamente dele. O que
se encontra depois do direito não é um valor de uso mais próprio e original e que
precederia o direito, mas um novo uso, que só nasce depois dele. Também o uso, que
se contaminou com o direiro, deve ser libertado de seu próprio valor. Essa libertação
é a tarefa do estudo, ou do jogo. […]36

Isso, no entanto, não resolve todas a nossas questões. O desafio maior parece ser
contornar as habilidades do necropoder mesmo na subjetividade dos libertos pela violência
revolucionária benjaminiana. E, mais do que isso, enquanto a revolução não vem, quem irá
garantir que não haja inimigos nas democracias liberais?
Que a sociedade do necropoder tornou-se um fetiche já sabemos. A questão é como
poderemos exorcizá-lo ou proteger aqueles corpos do regime infindável de exposições e
ameaças que o compelem à materialidade despersonificada e ao desespero psicológico.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
As tecnologias do necropoder parecem levar a uma escalada histórica de horror e
confinamento que podem levar à própria destruição do direito. Talvez o desafio seja pensar
como a justiça pode sobreviver dentro desse espaço, numa configuração na qual ela própria
já se tornou algoz.
O questionamento em torno da ética no uso das tecnologias, como vimos, leva a um
panorama acerca do próprio uso do direito e de suas implicações, em função daqueles que
são afetados pelas decisões sobre quem pode viver ou quem pode morrer. A tecnologia, ao
produzir agenciamentos, não se encerra em si mesma, o que nos impede, a princípio, de
considerar seriamente alternativas primitivistas como solução para este caso.
Mas ainda perguntas ficam: devemos todo esse respeito à produção tecnológica? O
próprio uso e produção da máquina pode ser repensado e os critérios de sua colocação nos
espaços democráticos também implicam um jogo ético que poderá ser suscitado.
Máquinas até onde? Máquinas para quê? Esses são limites que urgentemente precisam
ser refletidos se quisermos frear o necropoder no contexto em que nos encontramos. E mais do
que isso: é preciso um inimigo para a democracia sobreviver? Os termos dessa sobrevivência
se revelam mais totalitários do que gostaríamos de admitir. Eliminarão quantos rostos até que
cheguem ao meu, enfim?

Referências bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Homo sacer II. Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004.
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia
das Letras, 1989.


36
AGAMBEN, 2004, p. 98.

— 426 —
Cosméticas da tecnologia no necropoder: é isto um drone implantado na democracia
Nilson Carlos Costa de Souza Filho

ATTIA, Kader. As raízes também se criam no betão. Lisboa: Fundação Culturgest, 2018.
BACURAU. Direção de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dorneles. Brasil: Vitrine Filmes, 2019.
BENJAMIN, Walter. Crítica da Violência: Crítica do Poder. In: ______. Documentos de cultura,
documentos de barbárie: escritos escolhidos. Seleção e Apresentação Willi Bolle. Trad. Celeste
H. M. Ribeiro de Souza et al. São Paulo: Cultrix, 1986.
BUTLER, Judith. Caminhos divergentes: judaicidade e crítica do sionismo. São Paulo: Editora
Boitempo, 2017.
____. Relatar a si mesmo. Crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
____. Vida precária. Argentina: Paidós, 2006.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora
34, 2010.
EXTINÇÃO. Direção de Salomé Lamas. Lisboa: O Som e a Fúria, 2018. (80 min.)
FISHER, Mark. What Are We Fighting For: A Radical Collective Manifesto Eds. F. Campagna, E.
Campiglio. Pluto Press, 2012.
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). 2. ed. São
Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.
­­____. História da sexualidade I: A vontade de saber, tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque
e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1988.
MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Lisboa: Antígona, 2017.
MENDIOLA-GONZALO, Ignacio. El dispositivo del dron: entre la vigilância securitária y la
necropolitica. Convergencia: Revista de Ciencias Sociales, n. 79, 2019.
SCHMITT, Carl. O Conceito do Político. Trad. Alvaro L. M. Valls. Rio de Janeiro: Vozes, 1992.
SCHMITT, Carl. Teologia Política. Tradução de Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.

— 427 —
Inteligência artificial e motivação
das decisões judiciais

Andrea Boari Caraciola1

Resumo: Inquestionável os avanços da inteligência artificial, bem como seu impacto na sociedade.
Diariamente somos auxiliados e temos nossa vida otimizada pelos mais diversos mecanismos tecnológicos
de inteligência artificial: celulares, carros autônomos, redes sociais, buscadores da internet, sistemas de
atendimento, dentre tantas outras ferramentas já inseridas em nosso cotidiano. Mas como se dá a interação
da inteligência artificial face ao Direito? O presente ensaio tem por objetivo lançar questionamentos sobre os
avanços da inteligência artificial frente direito, mais precisamente face ao direito processual, notadamente
no que toca a sua compatibilidade (ou não) com a função decisória e a garantia constitucional da motivação
das decisões judiciais. Em que medida o colapso do Poder Judiciário (brasileiro) retratado pelo número
de processos em tramitação, os avanços tecnológicos e o texto constitucional permitem que decisões
judiciais sejam proferidas e motivadas por máquinas? Ou ainda, a garantia constitucional da motivação
das decisões judiciais assegura o direito fundamental de o jurisdicionado obter uma solução proferida por
um ser humano? Estes alguns dos problemas para os quais chamamos a atenção do leitor, objetivando, sem
qualquer pretensão exauriente, a reflexão.
Palavras-chave: Motivação das decisões judiciais; Garantia constitucional; Motivação das decisões
judiciais, Inteligência artificial.

Abstract: Unquestionable advances in artificial intelligence as well as its impact on society. Daily
we are assisted and we have our lives optimized by the most diverse technological mechanisms of artificial

1
Pós-Doutoranda em Direito Processual Civil pela Universidade de Lisboa, Pós-Doutora em De-
mocracia e Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos – IGC da Faculdade de Direito de Coim-
bra, Doutora em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Mestre em
Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professora adjunta de Direito Processual Civil da Uni-
versidade Presbiteriana Mackenzie. Líder do grupo de pesquisa (CAPES – CNPQ) “Fundamentos do Pro-
cesso Civil Contemporâneo”. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e do Centro de
Estudos Avançados de Processo (CEAPRO). Membro do Iberojur – Instituto Iberoamericano de Estudos
Jurídicos. Advogada em São Paulo. Endereço eletrônico: caraciola@me.com

— 428 —
Inteligência artificial e motivação das decisões judiciais
Andrea Boari Caraciola

intelligence: mobile phones, autonomous cars, social networks, internet search engines, service systems,
among many other tools already inserted in our daily lives. But how does artificial intelligence interact
with law? The aim of this essay is to cast questions about the advances of artificial intelligence right
front, more precisely in view of procedural law, notably with regard to its compatibility (or not) with the
decision-making function and the guarantee constitutional motivation of judicial decisions. To what extent
does the collapse of the Judiciary (Brazilian) portrayed by the number of lawsuits under way, technological
advances and constitutional text allow judicial decisions to be handed down and motivated by machines?
Or, does the constitutional guarantee of the motivation of judicial decisions ensure the fundamental right
of the jurisdiction to obtain a solution given by a human being? These some of the problems for which we
draw the reader’s attention, aiming, without any exhausting pretension, reflection.
Keywords: Access to justice; Fundamental right to appropriate judicial protection; Justification of
judicial decisions; Democratic State of law.

1. Introdução
Se no final do século XVII nossa preocupação estava voltada à revolução das máquinas
a vapor, hoje o mundo industrial está às vésperas de viver mais uma revolução. Desde os
idos de 2013, concebemos a chamada quarta revolução industrial, que não é definida por
um conjunto de tecnologias emergentes em si mesmas, mas, por sua vez, é marcada pela
convergência de tecnologias digitais, físicas e biológicas e que traz consigo uma tendência
à automatização total das fábricas, para levar a sua produção a uma total independência da
obra humana.
Nossa atenção passa a estar direcionada aos robôs integrados em sistemas ciberfísicos,
responsáveis por revolução radical na forma como vivemos, trabalhamos e interagimos. Trata-
se, pois, da busca de novos sistemas construídos a partir da infraestrutura da revolução digital
anterior. Vivenciamos, isso sim, uma verdadeira mudança de paradigma e não mais uma
etapa do desenvolvimento tecnológico. A pós-modernidade insere o homem em um universo
repleto de desafios e complexidades cujas soluções acabam sendo buscadas pelas ciências e
novas tecnologias.
É neste contexto que, no presente ensaio e por meio de um corte epistemológico,
propomos contextualizar e levantar questões acerca da motivação das decisões judiciais,
garantida constitucionalmente no ordenamento jurídico brasileiro, face às novas tecnologias e
o avanço tecnológico no campo da inteligência artificial: como (eventualmente) compatibilizar
a possibilidade de máquinas tomarem decisões judiciais e a garantia fundamental da motivação
das decisões judiciais. Os avanços tecnológicos perpetrados pela inteligência artificiam são (ou
podem vir a ser) plenamente capazes de atenderem as exigências e diretrizes constitucionais e
fundamentais do processo notadamente no que toca ao direito de serem conhecidas as razões de
uma decisão judicial?
Não obstante, a crise que permeia o cenário judiciário atual e que retrata uma
avalanche de processos que abarrotam o Poder Judiciário, passou-se a cogitar a utilização
de inteligência artificial no campo decisório, como também no que toca à motivação das
decisões judiciais, como um possível vetor para minimizar tal crise e agilizar o tempo de
demora dos processos.

— 429 —
Inteligência artificial e motivação das decisões judiciais
Andrea Boari Caraciola

2. Crise da Justiça e do processo judicial: uma fotografia


do cenário brasileiro (Relatório Justiça em Números
2019/2018) e as novas tecnologias
O Poder Judiciário passa por um momento de crise, seja pela demora na prestação, seja
pelo excessivo número de processos, seja pela resistência à adoção de novas tecnologias. Fato
é que o Judiciário assume uma função anacrônica que não condiz com a atual complexidade
social pós-moderna, tornando-se alvo de uma grande indagação: ele pode ser descartado?
2
Ou, quando não, pode ser revisitado? Mais, até que medida convive e/ou permite
incorporar o emprego de novas tecnologias? Ainda, qual o limite de aplicabilidade dessas
novas tecnologias? A máquina poderia substituir o juiz na esfera decisória e motivacional das
decisões judiciais?
Em grande parte, tais questionamentos derivam do número excessivo de processos em
tramitação no judiciário brasileiro, objeto de nossa investigação no presente ensaio. Para
tanto, sugerimos um “mergulho” científico, respaldado nos dados estatísticos do Conselho
Nacional de Justiça que, anualmente apresenta uma radiografia em números do Poder
Judiciário brasileiro.
O Poder Judiciário brasileiro finalizou o ano de 2018 com um estoque de 78,7 milhões
de ações judiciais. Não obstante ter a Justiça brasileira historicamente registrado, em
quinze anos, a primeira redução do acervo do número de processos, de 80 milhões aferidos
em 2017 para 78,7 milhões em 2018, não nos parece que o cenário, como um todo, seja
merecedor de qualquer comemoração, muito pelo contrário. Os avanços havidos, e que não
podem ser ignorados, derivaram basicamente do aumento da produtividade dos magistrados,
no cumprimento das Metas Nacionais3, bem como da informatização implementada no
judiciário4. 5
O Relatório 2019 (ano-base 2018) releva que “Em média, a cada grupo de 100.000
habitantes, 11.796 ingressaram com uma ação judicial em 2018”.
Não obstante os resultados revelados pelo Relatório do Conselho Nacional de Justiça
brasileiro apontem uma redução de 1,9% no quantitativo de processos ingressados,

2
SPENGLER,Fabiana Marion. A crise do Estado e a crise da jurisdição: (in)eficiência face à con-
flituosidade social. Revista Brasileira de Direito, IMED, Vol. 7, nº 1, jan-jun, 2011, p. 13.
3
Segundo dados parciais das Metas Nacionais 2019, apenas em seu primeiro semestre nove milhões
de processos já haviam sido julgados, conforme certificado pelo Presidente do STF, Ministro Dias Toffoli.
Conferir: Justiça em Números 2019: Maior produtividade resultou em queda de processos pendentes
http://jusfederal.com.br/portal/justica-em-numeros-2019-maior-produtividade-resultou-em-queda-de-pro-
cessos-pendentes/. Acesso em 04/01/2020.
4
Em 2018, 16% dos processos ainda ingressaram em papel. Fato é que 84% dos processos trami-
tam desde o início de sua implementação de forma eletrônica, o que reflete uma gestão mais célere e mais
econômica. Conferir: Justiça em Números 2019: Maior produtividade resultou em queda de processos pen-
dentes http://jusfederal.com.br/portal/justica-em-numeros-2019-maior-produtividade-resultou-em-queda-
de-processos-pendentes/. p. 95. Acesso em 04/01/2020.
5
Relatório Justiça em Números 2019. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/
conteudo/arquivo/2019/08/justica_em_numeros20190919.pdf. Acesso em 02/01/2020.

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Inteligência artificial e motivação das decisões judiciais
Andrea Boari Caraciola

associado este percentual ao aumento da produtividade em 3,8% e a contribuição derivada


da informatização do judiciário e, ainda, não obstante terem sido baixadas 31,9 milhões de
ações, número este que nos aponta um percentual de 13,7% superior ao número de demandas
ingressadas (28,1 milhões), o retrato do judiciário brasileiro aponta não deixa de relevar uma
inquestionável crise de ineficiência associada a uma crise de gestão. Mais, o relatório aponta
ainda que as despesas totais com a Justiça no país, somaram, em 2018, R$93,7 bilhões, número
este que ano a ano vem aumentando e representando um percentual bastante significativo do
PIB: cerca de 1,1%.6 Um sistema colapsado!
Tomando por base a fotografia retratada pelo Conselho Nacional de Justiça brasileiro
relativamente aos últimos dados estatísticos aferidos, algumas possibilidades para a
minimização da crise vem sendo estudadas, discutidas e implementadas, medidas que
perpassam desde a releitura da garantia constitucional do acesso à Justiça, revisitada a partir do
acesso aos meios mais adequados de solução de conflito conforme a sua natureza (mediação,
arbitragem, negociação), passando pela técnica de desjudicialização de procedimentos
(usucapião administrativa, divórcio extrajudicial, recente projeto de lei de desjudicialização da
execução civil7), como também pela informatização do Judiciário8, culminando nas lawtechs,
especializadas em engenharia de softwares voltadas ao mercado jurídico, notadamente para
a otimização de serviços, principalmente no que toca à litigância de massa, de natureza
repetitiva.
Não se há olvidar que “Os avanços da tecnologia da informação e a implementação
da inteligência artificial no mercado jurídico são inevitáveis, não havendo como resistir ao
fenômeno da virada tecnológica”9 que, indubitavelmente imprime celeridade e precisão,
maximizando, inclusive em termos de qualidade, a realização de atividades repetitivas. 10
Quando olhamos ao redor, encontramos, por exemplo, nos Estados Unidos, “Ross” e o
“Watson”, robôs utilizados por escritórios de advocacia para pesquisas, análise de documentos,
realização de due diligence, confecção de contratos e previsão de resultados. Em Londres,
reportados os dados aqui colacionados para 2018, cerca de 48% dos escritórios já utilizavam
sistemas de inteligência artificial e 41% pretendiam implantá-los. Quando olhamos para o Brasil,
podemos destacar a plataforma “Watson”, implantada para a automatização de serviços repetitivos.
Ainda no que toca ao Brasil, o Supremo Tribunal Federal vem investindo em inteligência artificial
para acelerar e otimizar o andamento dos processos judiciais e, neste sentido destacamos aqui

6
Relatório Justiça em Números 2019. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/
conteudo/arquivo/2019/08/justica_em_numeros20190919.pdf. p. 219. Acesso em 02/01/2020.
7
Projeto de lei n. 6204, de 2019, que dispõe sobre a desjudicialização da execução civil de título
executivo judicial e extrajudicial.
8
Lei n. 11.419, de 19 de dezembro de 2006, que dispõe sobre a informatização do processo judi-
cial.
9
ROQUE, Vasconcellos Andre. Inteligência artificial na tomada de decisões judiciais: três pre-
missas básicas. Gen jurídico. Disponível em: http://genjuridico.com.br/2019/11/27/inteligencia-artificial-
decisoes-judiciais/. Acesso em 10/02/2020.
10
MARQUES, Ana Luiza Pinto Coelho, NUNES, Dierle. Inteligência artificial e direito processual:
vieses algoritmos e os riscos de atribuição de função decisória às máquinas. São Paulo: Revista dos Tribu-
nais, Revista de Processo, v.285, nov./2018, p. 422.

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Inteligência artificial e motivação das decisões judiciais
Andrea Boari Caraciola

a Ferramenta “Victor”11, projeto este iniciado em dezembro de 2017, fruto de uma parceria
entre o STF e a Universidade de Brasília (UnB) e que foi concebido para identificar se recursos
(extraordinários e agravos em recursos extraordinários) se enquadram em repercussão geral e
destaca, as principais peças recursais, o que o faz em segundos, com 85% de precisão.12
Importante destacar que o objetivo inicial da plataforma “Victor” é, neste momento,
maximizar o trabalho no âmbito do Supremo Tribunal Federal brasileiro pelo aumento da
velocidade na avaliação judicial e na eficiência na tramitação dos processos. A ideia é que
a ferramenta auxilie os ministros na identificação de jurisprudência. Assim, a princípio, o
“Victor” não julgará recursos. Destaque-se, no entanto, que este é o “objetivo inicial” do
projeto. Porém, isso não significa afastar, peremptoriamente e, em um segundo momento,
a possibilidade de o “Victor” julgar processos dentro da esfera do tribunal. Neste sentido a
pergunta que se traduz em inquietação e reflexão: será que no futuro sistemas de inteligência
artificial, tais como o “Victor”, também serão também responsáveis por julgamentos?
Assumirão atividade decisória e motivacional das decisões judiciais?

3. O direito fundamental à tutela jurisdicional


fundamentada: por um ser humano ou por uma máquina?
No que toca ao ordenamento brasileiro, sob uma perspectiva histórica, o princípio da
motivação vem estruturado desde as Ordenações do Reino, passando pelo Regulamento
737, de 1850, em seu artigo 23213 e aportando nos Códigos Estaduais que sucederam o

11
“O projeto de pesquisa e desenvolvimento, intitulado VICTOR, visa solucionar problemas de re-
conhecimento de padrões em textos de processos judiciais que chegam ao Supremo Tribunal Federal - STF.
Segundo o STF, seriam necessárias 22 mil horas de trabalho de seus funcionários e estagiários para analisar
os cerca de 42 mil processos recebidos por semestre. O tribunal também aponta que o tempo que seus fun-
cionários gastam na classificação desses processos poderia ser melhor aplicado em etapas mais complexas do
fluxo de trabalho judicial. O objetivo da VICTOR é acelerar a análise dos processos judiciais que chegam ao
Supremo Tribunal Federal, utilizando ferramentas de análise de documentos e processamento de linguagem
natural. A maioria dos casos chega ao tribunal na forma de volume PDF não estruturado que inclui vários do-
cumentos que não foram indexados. Portanto, na primeira fase deste projeto, nosso objetivo é classificar esses
documentos em volumes PDF. Este artigo relata os resultados de uma avaliação preliminar em um conjunto de
dados contendo 6.814 documentos do STF. Propomos uma arquitetura de rede neural convolucional para este
tarefa e mostrar que obtém uma precisão de 90,35% neste conjunto de dados (Tradução livre)”. CORREIA
DA SILVA Nilton et al. Document type classification for Brazil’s supreme court using a Convolutional Neural
Network. The Tenth international conference on forensic computer science and cyber law - ICOFCS 2018. p.
7-11, apud MEDEIROS, Nathalia; NUNES, Dierle. Inteligência artificial – litigantes habituais e eventuais.
Revista Consultor Jurídico, 20 de novembro de 2018. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-nov-
20/opiniao-tecnologia-direito-litigantes-habituais-eventuais. Acesso em 10/02/2020.
12
AZEVEDO, Bernardo de. Conheça o Victor, o sistema de inteligência artificial do STF. Dispo-
nível em: https://bernardodeazevedo.com/conteudos/conheca-victor-o-sistema-de-inteligencia-artificial-
do-stf/. Acesso em 10/02/2020.
13
“Art. 232. A sentença deve ser clara, sumariando o juiz o pedido e a contestação com os fundamen-
tos respectivos, motivando com precisão o seu julgado, e declarando sob sua responsabilidade a lei, uso ou
estilo em que se funda.”

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Inteligência artificial e motivação das decisões judiciais
Andrea Boari Caraciola

Regulamento 737. O Código Nacional de 1939 não se afastou dessa orientação, no artigo 118,
parágrafo único e no artigo 280, inciso II.14 O Código de Processo Civil de 1973, em seu artigo
458, inciso II, expressamente previa, como requisito essencial à validade da sentença a sua
fundamentação. Mais recentemente, o Código de 2015, por sua vez, prestigia de forma genuína
a motivação das decisões judiciais ao elencar em seu artigo 489 os requisitos essenciais da
sentença, especificando em seu parágrafo 1º as exigências quanto a ser considerada motivada
(ou não) uma decisão judicial15.
Deve o juiz fornecer as razões que o levam à decisão, possibilitando que dela tomem
conhecimento as partes e o tribunal em apreciação de eventual recurso. Sem qualquer dúvida,
é a fundamentação da decisão judicial garantia da justiça, na medida em que deve reproduzir
o itinerário lógico que o juiz percorreu para chegar à sua conclusão, pois se esta é errada, pode
facilmente encontrar-se, através dos fundamentos, em que altura do caminho o magistrado se
desorientou. 16
A atual Carta Constitucional brasileira17 atribui dignidade constitucional ao dever
de motivação das decisões judiciais, uma vez que o mesmo se encontra indissociável da
própria essência de um Estado democrático de direito. Em que pesem as razões técnicas18
e políticas19 justificativas da essencialidade da motivação das decisões judiciais, mister
destacar a motivação sob perspectiva semiológica e, sob esse viés, Michele Taruffo20, aponta
a motivação das decisões judiciais como instrumento material do processo de comunicação:

14
“Art.118 parágrafo único. O juiz indicará na sentença ou despacho os fatos e circunstâncias que
motivaram o seu convencimento.” Já o “Art. 280: A sentença, que deverá ser clara e precisa, conterá: II. Os
fundamentos de fato e de direito”.
15
“Art. 489 § 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória,
sentença ou acórdão, que: I – se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem ex-
plicar sua relação com a causa ou a questão decidida; II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem
explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III – invocar motivos que se prestariam a justificar
qualquer outra decisão; IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese,
infirmar a conclusão adotada pelo julgador; V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula,
sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àque-
les fundamentos; VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela
parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento”.
16
CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados. 9ªed. São Paulo: Clássica
Editora, s/d.
17
Artigo 93, inciso IX da CF/1988: “Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão
públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em
determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preser-
vação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”.
Inciso com a redação a ele conferida pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004.
18
Impõe-se destacar a importância da motivação para a aferição da congruência da sentença, delimi-
tação do âmbito da coisa julgada e correta interpretação do julgado, tendo em vista sua posterior execução;
bem como para a estruturação racional da via recursal, sem que nos esqueçamos da repercussão para com
a uniformização da jurisprudência.
19
A exigência da fundamentação surge, nessa perspectiva, como um obstáculo ao arbítrio, que re-
pugna ao Estado democrático de direito, constituindo-se em espécie de tutela das liberdades individuais.
20
TARUFFO, Michele. La motivazione della sentenza civile. Padova: CEDAM, 1975. p.50.

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Inteligência artificial e motivação das decisões judiciais
Andrea Boari Caraciola

pelos motivos da decisão o juiz veicula a racio decidendi, possibilitando ao intérprete


reconhecer os elementos que influenciaram a formação de seu convencimento.
Enquanto ato comunicacional, emitido (a priori) por um ser humano, singular em sua
individualidade, e, demais, enquanto ato que se contextualiza em um ambiente social, político,
econômico e cultural, a sentença exsurge sob dimensões psicológicas, sociológicas, políticas
e semiológicas, entre outras. Destarte, faz-se necessário captar a mensagem veiculada no ato
decisório face à realidade social, realidade esta que influencia a formação da livre convicção
do magistrado e que transparece na fundamentação do julgado.21
Na medida em que elaborada pelo Estado-juiz, a sentença acaba por revelar,
necessariamente, os ideais políticos e ideológicos que orientam a sociedade, sendo legitimada
pelo contraditório e justificada pela motivação. Derivada etimologicamente do latim, sententia,
a palavra sentença nos remete a diversos significados. Em sentido amplo, nos conduz à
noção de sentimento22, modo de ver, parecer, ou, então, juízo, decisão. Na acepção jurídica,
todavia, o termo está adstrito à noção de julgamento, resolução ou solução prolatada por
uma autoridade em relação a toda e qualquer questão submetida à sua jurisdição. A sentença
reflete e materializa aquilo que foi sentido pelo magistrado como expressão do direito. Daí
advém o entendimento segundo o qual “prolatar uma sentença, portanto, depende única e
exclusivamente da bagagem intelectual, da sensibilidade e da independência do juiz”.23
Conclui-se, portanto, que as decisões judiciais e, consequentemente, a fundamentação
nelas veiculada, não são um elemento neutro no corpo social, de sorte a veicular, em que pese
o seu conteúdo jurídico, ideais políticos, sociais, econômicos, culturais, entre outros, que
influem e orientam a sociedade.
Em que pesem os aspectos endoprocessuais da motivação24, notadamente nos casos
em que as particularidades do litígio venham a demandar um maior esforço interpretativo,
como, por exemplo, nos casos de colisão entre normas, devendo o juiz decidir pela escolha

21
BELLINETTI, Luiz Fernando. Sentença civil: perspectivas conceituais no ordenamento jurí-
dico brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 105.
22
O vocábulo sentimento, em sentido sociológico, apresenta duas significações distintas. A primeira
está adstrita aos conceitos de crenças sobre a realidade e valores sociais, implicando, desta forma, juízos
de valor. O segundo significado ultrapassa as crenças e valores sociais e identifica um aspecto distinto da
maneira como nos orientamos no mundo. Assim, reflete uma orientação cultural em relação a alguma coisa
que nos predispõe a refletir sobre ela de maneiras particulares. JOHNSON, Allan G. Dicionário de Socio-
logia. Tradução de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. p.20-21.
23
FERREIRA SOBRINHO, José Wilson. Técnica de elaboração da sentença. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris Editor, 1998. p.7.
24
Sobre as funções endo e extraprocessuais da sentença, conferir: TARUFFO, Michele. La moti-
vazione della sentenza civile. Padova: CEDAM, 1975; CAPPELLETTI, Mauro; VIGORITI, Vicenzo. “I
diritti costituzionali delle parti nel processo civile italiano.” In: Rivista di Diritto Processuale. Padova:
CEDAM, 1971, p.604; e ANDOLINA, Ítalo; VIGNERA, Giuseppe. I fondamenti costituzionali della
giustizia civile: il modelo costituzionale del processo civile italiano. 2ªed. Torino: G. Giappichelli edito-
re, 1997, pp. 191-202.

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Inteligência artificial e motivação das decisões judiciais
Andrea Boari Caraciola

de uma e o afastamento de outra norma por meio da argumentação e do convencimento25,


mister considerar, ainda, que tais aspectos endoprocessuais são absolutamente insuficientes
para explicar e revelar todas as faces da garantia constitucional. Destacamos aqui a sua
função extraprocessual, que revela a motivação como um consectário natural de um Estado
democrático de direito, uma garantia constitucional contra o arbítrio e o abuso de autoridade.26
A fundamentação liga-se à fisionomia do Estado Democrático de Direito, assumindo a
função política de permitir o controle difuso da atividade jurisdicional, bem como facilitar o
cumprimento das decisões judiciais a partir do ônus argumentativo e de convencimento que
veicula. 27
Nessa perspectiva e, mais, considerando as atividades decisória e motivacional, como
atividades atreladas e adstritas à feição humana, resta indagar em que medida essas atividades
se compatibilizam com a possibilidade de se atribuir função decisória e de fundamentação
a máquinas, atuando a inteligência artificial a inteligência artificial a partir de sistemas de
dados programados para dar respostas conforme a base de dados disponível ou, em sentido
oposto, se estas atividades se excluem.

4. Inteligência artificial e o problema de atribuição de


funções decisória e de fundamentação das decisões
judiciais às máquinas
Constitui a inteligência artificial um programa multidisciplinar que perpassa disciplinas
que vão desde a ciência da computação, passando pela matemática, de modo a incluir a lógica,
otimização, análise, probabilidades, álgebra linear, chegando, inclusive, à ciência cognitiva,
tendo nos algoritmos sustentáculos que aportam plúrimas abordagens, compreendendo a
“análise semântica, representação simbólica, aprendizagem estatística ou exploratória, redes
neurais e assim por diante”, de modo a replicarem o comportamento neuronal do cérebro
humano, tornando-as capazes de aprender. Assim, tem por objetivo “desenvolver autômatos
que resolvam alguns problemas muito melhor que os humanos, por todos os meios disponíveis”,
destacando-se, aqui o uso de técnicas de aprendizado que, ao invés de programarem regras
para a realização de uma dada tarefa, já agora são capazes de aprender a melhor solução para
a realização da mesma tarefa.28

25
GILLET, Sérgio Augusto da Costa; PORTELA, Vinícius Jose Rockenbach. Breves conexões entre
a motivação das decisões judiciais e o campo da inteligência artificial. Cadernos de Direito, Piracicaba,
v. 18(34): 153-171, jan.-jun. 2018, p.  159. Disponível em: https://www.metodista.br/revistas/revistas-uni-
mep/index.php/cd/article/view/3791. Acesso em 02/02/2020.
26
NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na constituição federal. 6ªed. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 173.
27
STRECK, Lenio Luiz. NUNES, Dierle. “Como interpretar o artigo 139, IV, do CPC? Carta branca
para o arbítrio?” Consultor Jurídico, 25 ago. 2016. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-mar-
25/lenio-streck-dierle-nunes-analisam-mudancas-trazidas-cpc. Acesso em 14/09/2018.
28
MARQUES, Ana Luiza Pinto Coelho, NUNES, Dierle. Inteligência artificial e direito processual:
vieses algoritmos e os riscos de atribuição de função decisória às máquinas. São Paulo: Revista dos Tribu-
nais, Revista de Processo, v.285, nov./2018, p. 423.

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Inteligência artificial e motivação das decisões judiciais
Andrea Boari Caraciola

Mas como seria se esses sistemas tomassem decisões por nós? Como seria se substituíssem
juízes no processo decisório e na motivação de decisões judiciais?
Não faltam apaixonados e entusiastas diante das potencialidades das ferramentas e
plataformas de inteligência artificial no cenário jurídico, o que, em grande parte, deriva o caos
que permeia a realidade do Poder Judiciário (notadamente o brasileiro, aqui objeto de nossa
investigação em capítulo precedente), como também em razão da busca de novos modos de
gerenciamento desses processos judiciais.29
Em que pesem os avanços e benefícios reais e potenciais derivados das inteligências
artificiais e, em que pese no futuro, ao serem aperfeiçoadas, possam replicar, inclusive, a
linguagem natural, ainda não são capazes de extrapolar a linguagem por meio de correlações
e/ou por meio da imaginação, atividades que as diferem dos seres humanos.30
Interessante aqui registrar a feição adotada pelo Código de Processo Civil brasileiro de
2015 que cria alguns mecanismos de formação de precedentes31, valorizando sobremaneira
essa técnica para a solução de conflitos e, nessa perspectiva, o Judiciário brasileiro poderia
conceber a “implementação nos sistemas de e-processo redes neurais capazes de, ao
analisarem eventual petição inicial, já perceberem a existência de precedente sobre a matéria
e indicá-la, ou, ainda, de modo mais ousado, julgá-la de plano”, isto porque as redes neurais,
por poderem aprender, podem ser utilizadas com maior intensidade diante de precedentes,
porquanto conseguem distinguir (ou não) o litígio submetido à apreciação do precedente.32
Ocorre que, não obstante a possibilidade de ser superada a questão da linguagem neural,
remanesce a questão adstrita à linguagem natural, atrelada a questões semânticas, pela qual
a mente humana é capaz de construir argumentos valorativos e contextualizados, sejam eles
jurídicos ou metajurídicos, bem como capaz de buscar soluções criativas:

[…] a compreensão da semântica atrelada à linguagem natural ainda não é totalmente


possível pelas inteligências artificiais atuais, razões pelas quais seu uso se limita
a mero auxílio ao juiz na atividade cognoscitivo-argumentativa, ainda não sendo
possível a substituição total do homem pela máquina. 33

29
MARQUES, Ana Luiza Pinto Coelho, NUNES, Dierle. Inteligência artificial e direito processual:
vieses algoritmos e os riscos de atribuição de função decisória às máquinas. São Paulo: Revista dos Tribu-
nais, Revista de Processo, v.285, nov./2018, p. 422-423.
30
GILLET, Sérgio Augusto da Costa; PORTELA, Vinícius Jose Rockenbach. Breves conexões entre
a motivação das decisões judiciais e o campo da inteligência artificial. Cadernos de Direito, Piracicaba,
v. 18(34): 153-171, jan.-jun. 2018, p.  166. Disponível em: https://www.metodista.br/revistas/revistas-uni-
mep/index.php/cd/article/view/3791. Acesso em 02/02/2020.
31
Incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR), incidente de assunção de competência
(AC), bem como os recursos especial e extraordinário repetitivos.
32
GILLET, Sérgio Augusto da Costa; PORTELA, Vinícius Jose Rockenbach. Breves conexões entre
a motivação das decisões judiciais e o campo da inteligência artificial. Cadernos de Direito, Piracicaba,
v. 18(34): 153-171, jan.-jun. 2018, p.  167. Disponível em: https://www.metodista.br/revistas/revistas-uni-
mep/index.php/cd/article/view/3791. Acesso em 02/02/2020.
33
GILLET, Sérgio Augusto da Costa; PORTELA, Vinícius Jose Rockenbach. Breves conexões entre
a motivação das decisões judiciais e o campo da inteligência artificial. Cadernos de Direito, Piracicaba,

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Inteligência artificial e motivação das decisões judiciais
Andrea Boari Caraciola

Desta forma, a utilização das máquinas melhor estaria justificada e contextualizada


no Direito, em ficando reservada para o auxílio de juízes, por meio de tarefas laterais na
construção de suas decisões, objetivando otimizar o tempo de pesquisas e de identificação de
julgamentos de massa, por exemplo.

5. Considerações finais
Não obstante as inequívocas vantagens advindas da inteligência artificial, que exercem
inquestionável função dinamizadora e otimizadora nas mais diversas atividades cotidianas
e que seguramente se estendem e tem aplicabilidade ao mundo jurídico, entendemos, com
o devido acatamento a entendimento diverso, que os mecanismos de inteligência artificial
no âmbito do Direito devem se manter, considerado o atual estágio da tecnologia, adstritas a
funções consultivas, organizacionais e de análise da litigiosidade, isto porque, segundo nosso
entendimento, o deslocamento da função decisória para as máquinas se revela demasiadamente
perigoso, de modo a não se compatibilizar com imperativos decorrentes do devido processo
legal, notadamente no que toca à motivação das decisões judiciais, ato que entendemos
personalíssimo e fruto de inteligência humana.

6. Referências Bibliográficas
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modelo costituzionale del processo civile italiano. 2ªed. Torino: G. Giappichelli editore,
1997.
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em: https://bernardodeazevedo.com/conteudos/conheca-victor-o-sistema-de-inteligencia-
artificial-do-stf/. Acesso em 10/02/2020.
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Piracicaba, v. 18(34): 153-171, jan.-jun. 2018. Disponível em: https://www.metodista.br/
revistas/revistas-unimep/index.php/cd/article/view/3791. Acesso em 02/02/2020.

v. 18(34): 153-171, jan.-jun. 2018, p.  167-168. Disponível em: https://www.metodista.br/revistas/revistas-


unimep/index.php/cd/article/view/3791. Acesso em 02/02/2020.

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Inteligência artificial e motivação das decisões judiciais
Andrea Boari Caraciola

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Zahar Editor, 1997.
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TARUFFO, Michele. La motivazione della sentenza civile. Padova: CEDAM, 1975.
VIGORITI, Vicenzo. “I diritti costituzionali delle parti nel processo civile italiano.” In: Rivista di
Diritto Processuale. Padova: CEDAM, 1971.

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A mulher e o cibercrime: as novas facetas da
violência de gênero na sociedade hiperconectada

Larissa Amaral Esteves1


Yasmin Faissal Nogueira2

Resumo: O artigo tem o intuito de analisar os cibercrimes contra a mulher na sociedade hiperconectada.O
objetivo é verificar de que forma a prática de crimes cibernéticos contra a mulher funciona como ferramenta
para potencializar a violência de gênero. A superpotencialidade da internet trouxe à baila novas ferramentas
para a prática de crimes e a atrativa salvaguarda do anonimato. Assim, além do surgimento de novos crimes
observam-se novas formas de cometimento de crimes já existentes. O direito não pode estar alheio a estas
transformações, e como um produto da sociedade, deve acompanhar e se adaptar a estas mudanças. No
contexto dos crimes informáticos, nota-se que as mulheres são as maiores vítimas da violência interpessoal
praticada através da internet. Isso porque o ambiente virtual é apenas o reflexo da sociedade no qual esta
inserido, evidenciando os seus preconceitos e desigualdades. Desse modo, o trabalho busca examinar o
nexo entre os cibercrimes e a violência de gênero para compreender a relação entre a prática destes crimes
e o aumento da vulnerabilidade da mulher na sociedade hiperconectada. Para refletir acerca dessa temática,
utilizou-se como metodologia uma abordagem qualitativa pautada nem fontes bibliográficas acerca do
cibercrime e dos reflexos deste na mulher e em fontes legislativas para que seja possível entender de que
forma o direito regula esta matéria.
Palavras chaves: Cibercrime; Mulher; Vulnerabilidade.

Abstract: The article aims to analyze cybercrimes against women in the hyperconnected society.
The objective is to verify how the practice of cybercrime against women works as a tool to enhance gender
based violence. the superpower of the internet has brought up new tools for the practice of crimes and

1
Advogada; Membro do Grupo de Estudos e Pesquisa Direito Penal e Democracia da Universidade
Federal do Pará (UFPA); Mestranda em Direito Penal e Ciências Criminais pela Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa. E-mail: larissaamaralesteves@hotmail.com
2
Advogada; Pós Graduada em Processo Penal e Garantias Fundamentais pela Academia Brasileira
de Direito Constitucional (ABDConst); Mestranda em Direito Penal e Ciências Criminais pela Faculdade
de Direito da Universidade de Lisboa. E-mail: yasminfaissal@hotmail.com

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A mulher e o cibercrime: as novas facetas da violência de gênero na sociedade hiperconectada
Larissa Amaral Esteves - Yasmin Faissal Nogueira

the attractive safeguard of anonymity. Thus, in addition to the emergence of new crimes, there are new
ways of committing existing crimes. The law cannot be unaware of these changes, and as a product of
society, it must accompany and adapt to these changes. In the context of computer crimes, it is noted that
women are the biggest victims of interpersonal violence practiced trough the internet. This is because the
virtual environment is only the reflection of the society in which it is inserted, highlighting its prejudices
ands inequalities. In this way, the worl seeks to examine the nexus between cybercrime and gender-based
violencet to understand the relationship between cybercrime and the increase in women’s vulnerability
in the hiperconected society. In order to reflect on this theme, a qualitative approach based on norms and
bibliographic sources about cybercrime and its reflexes in women and in legislative sources was used as a
methodology so that it is possible to understand how the law regulates this matter.
Keywords: Cybercrime; Woman; Vulnerability.

1. Introdução
A “Era da Informação”, denominada pelo sociólogo espanhol Manuel Castells3, vem
alterando a relação dos seres humanos com a tecnologia. Antes mesmo de ultrapassado o
impacto inicial do surgimento e popularização da Internet, uma nova revolução vem sendo
capaz de modificar a forma como as pessoas produzem, recebem e processam informações,
e a forma como se comunicam, como interagem com o outro e como se relacionam com o
ambiente online.
As fronteiras entre o real e o virtual são cada vez menos definidas, uma vez que aquilo
que acontece online também é parte integrante da vida cotidiana e da construção de uma
identidade individual e coletiva. Nesse contexto, o amplo acesso a internet, a popularização
dos dispositivos móveis, sobretudo os smartphones, e o surgimento de novas formas de
interação com as redes sociais, culminam na formação de uma sociedade hiperconectada,
onde o ambiente virtual deixa de ser apenas uma projeção da vida real para efetivamente fazer
parte dela e onde raramente se está offline.
Com a democratização do acesso à internet e a dispositivos eletrônicos, inclusive em
países menos desenvolvidos, inicialmente, sobressaíram os benefícios de uma sociedade
hiperconectada, haja vista que a facilidade de acesso à informação, a abertura que a internet
possibilitou para debates públicos sobre temas relevantes e a possibilidade de ouvir e ser
ouvido, transformaram-se em ferramentas de emancipação e empoderamento das minorias.
Dessa forma, como parte integrante da sociedade no qual está inserido o ambiente virtual
reproduz as suas interações, seus preconceitos e também funciona como estratégia de opressão.
Ora, mais do que um espelho, esse ambiente funciona como uma lente de aumento.
Isso ocorre em razão da superpotencialidade da internet, a quantidade de informações
disponíveis na rede e acessíveis à qualquer pessoa é imensurável, assim como a diversidade
de fontes, nem sempre rastreáveis, a sedutora salvaguarda do anonimato, a velocidade de
comunicação e disseminação de conteúdo, o esmorecimento das fronteiras geográficas, a
facilidade de acesso e disponibilidade de dados pessoais, são ferramentas de vigilância remota


3
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2016.
Pg10.

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A mulher e o cibercrime: as novas facetas da violência de gênero na sociedade hiperconectada
Larissa Amaral Esteves - Yasmin Faissal Nogueira

e a perenidade do conteúdo, já que, nas palavras de Bauman “a internet não pode ser forçada
a esquecer nada que tenha sido gravado nalguns dos seus inumeráveis servidores.”4
O Direito deve acompanhar e se adaptar às mudanças sociais, tendo em vista que este é
produto da sociedade. Desse modo, o Direito está inserido na história, “e sua historicidade se
manifesta por ser ele reflexo das condições sociais e culturais de uma época”.5
Assim, o direito penal não pode estar alheio a estas transformações e precisa se adaptar
ao surgimento de novos crimes, de novas formas de cometimento de crimes e saber lidar
com questões como a inadequação dos instrumentos legais, dificuldades de investigação e a
existência de crimes transfronteiriços.
Embora o universo dos crimes cibernéticos seja amplo o objetivo deste artigo está restrito
à violência interpessoal baseada no gênero praticada através da internet. Isso porque é nestes
tipos de cibercrimes que se torna latente a hipervulnerabilidade das mulheres na sociedade
hiperconectada.
Ainda hoje as culturas predominantes estão imbuídas pelo preconceito e desigualdade de
gênero que ultrapassam o confinamento do ambiente doméstico e a intimidade das relações de
afeto. O ambiente virtual é o reflexo aumentado desta realidade onde o panorama da violência
de gênero é cada vez mais complexo, os métodos cada vez mais sofisticados e insidiosos e a
resistência contra o empoderamento das mulheres cada vez mais profunda.
Além de permitir que os atos de violência possam ocorrer a qualquer momento e seguir
as suas vítimas em qualquer lugar, grande parte do conteúdo disponível online continua a
perpetuar estereótipos femininos e noções de masculinidade prejudiciais.6
Sendo assim, este trabalho objetiva verificar de que forma a prática de crimes cibernéticos
contra a mulher funciona como ferramenta para potencializar a violência de gênero que
estas sofrem. Visando, portanto, responder a seguinte problemática: Qual a relação entre os
cibercrimes e o aumento da vulnerabilidade da mulher na sociedade hiperconectada?
Para responder a essa problemática, a metodologia adotada foi uma abordagem
qualitativa pautada em fontes bibliográficas acerca do cibercrime e dos reflexos deste na
mulher e legislativas, para que seja possível entender como o direito regula esta matéria.

2. O cibercrime e a legislação aplicável


Os crimes cometidos na internet, os cibercrimes, tornaram-se uma realidade cada vez
mais presente na sociedade, haja vista que foram potencializados pelas facilidades que a

4
BAUMAN, Zygmund; DONSKIS, Leonidas. Cegueira moral: A perda da sensibilidade na mo-
dernidade líquida. Lisboa: Relógio D’água, 2016. Pg 40.
5
REALE JÚNIOR, Miguel. Teoria do delito. São Paulo: Revista dos Tribunais,1998, p.13.
6
UN Women. Cyberviolence against women and girls. A report by the UN Broadband Comission
for digital development working group on broadband and gender, 2015.

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A mulher e o cibercrime: as novas facetas da violência de gênero na sociedade hiperconectada
Larissa Amaral Esteves - Yasmin Faissal Nogueira

internet oferece. Este cenário propiciou o aparecimento de novos crimes, e a modernização


dos crimes já existentes, exigindo, portanto, que o Direito se modele a esta nova realidade.7
Dessa forma, é essencial para o combate e prevenção dos crimes digitais a existência de
legislação adequada, para que as condutas sejam criminalizadas e seja possível a realização
da investigação policial, a recolha, cooperação e partilha de informações a nível dos órgãos
nacionais e internacionais e também, que seja possível responsabilizar os fornecedores de
serviços no âmbito da internet.8
Nesta senda, em âmbito internacional, há duas legislações importantes sobre a matéria,
a Convenção sobre o Cibercrime aprovada pelo Conselho da Europa em 2001, Convenção de
Budapeste, a qual considera-se uma referência legislativa mundial no que tange ao cibercrime.
Esta convenção já foi assinada por 43 países, e foi ratificada por 21 nações signatárias, dentre
as quais, França, Itália, Portugal, Espanha, Estados Unidos, Canadá, Japão, África do Sul,
Austrália, Chile e Argentina, por exemplo.9
Ademais, existe também a nível internacional a Diretiva 2013/40/UE que trata dos
ataques contra os sistemas de informação. Estas legislações são de suma importância para o
combate do cibercrime, tendo em vista que muitos destes crimes são de âmbito transnacional
e a cooperação internacional é indispensável para combatê-los, pois alguns atos, como por
exemplo a coleta de provas, a resolução dos conflitos de jurisdição, e execução de mandados
judiciais em outros países, não seriam possíveis sem esta atuação conjunta.10
O Brasil não assinou o tratado de Budapeste, mas em 2012, criou a Lei 12.737/2012,
conhecida como Lei Carolina Dieckmann, para o combate de criminosos “virtuais”, que cada
vez mais fazem mulheres de vítimas, aproveitando o fácil acesso a suas redes para verificar
imagens íntimas e as utilizarem em diversos crimes.11
Esta lei alterou o Código Penal incluindo os artigos 154-A e 298, e instituiu penas
específicas para crimes cometidos no ambiente digital. Entre os crimes tipificados por ela
estão, entre outros, invadir computadores, hacking, roubar senhas, violar dados de usuários e
divulgar informações privadas, como por exemplo, fotos e mensagens.
No ano de 2012, também foi criada no Brasil a Lei 12.735, que determinou a criação
de delegacias especializadas para combater os crimes em ambiente digital. Em 2014, foi
promulgada a Lei 12.965/2014, conhecida como Marco Civil da internet, que tem como
objetivo regulamentar os Direitos e Deveres dos usuários do ambiente digital. Por meio desta,
é possível a retirada de conteúdos do ar mediante ordem judicial, e nos casos de “pornografia

7
FOGLIATTO, JULIANA. Os crimes cibernéticos e os meios que a polícia utiliza para a identifi-
cação dos criminosos. Dez. 2019.
8
ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE APOIO À VÍTIMA (APAV) (Portugal). A realidade do ci-
bercrime.
9
BRASIL. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Saiba como os crimes na internet são tratados em
outros países. 2011.
10
Ibidem.
11
CRUZ, D; RODRIGUES, J. Crimes cibernéticos e a falsa sensação de impunidade. 2018. Artigo
Científico apresentada Revista Cientifica Eletrônica do Curso de Direito.

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A mulher e o cibercrime: as novas facetas da violência de gênero na sociedade hiperconectada
Larissa Amaral Esteves - Yasmin Faissal Nogueira

de vingança”, ou seja, quando houve violação de intimidade, a vítima pode diretamente


solicitar a retirada do conteúdo do ar ao site ou serviço onde esteja disponível.
Ademais, a Lei do Marco Civil da internet regulamenta a proteção dos dados pessoais e
privacidade dos usuários, de forma que a quebra de dados e informações particulares presentes
em sites ou redes sociais, depende de ordem judicial. De acordo com essa lei a decisão sobre
a legalidade ou não dos conteúdos fica a cargo dos Juizados Especiais.
No que tange a proteção da mulher como vítima de cibercrimes, houve em 2018 no
Brasil a criação da Lei 13.722, que alterou a Lei Maria da Penha para reconhecer como
violência doméstica a violação da intimidade da mulher, além de alterar o Código Penal para
criminalizar o registro não autorizado da intimidade sexual (art. 216-B). Assim, resta claro
que Maria da Penha, é também aplicável aos crimes cometidos no âmbito digital.
Na Espanha, a legislação nacional faz referência aos tratados e convenções assinados
sobre o cibercrime, quais sejam: “Conclusões do Conselho de 26 de Abril de 2010 sobre
Plano de Acção Contra o Cibercrime” e “Conclusões da Presidência sobre a Conferência de
Cibercrime que teve lugar a 12-13 de Abril 2011 em Budapeste.”12
Ademais, foi incluído no Código Penal o artigo 197, para tratar dos crimes informáticos,
cujo objeto é o acesso a sistemas, prevendo penalidades para o crime de descoberta e divulgação
de segredos como uma violação da privacidade de outra pessoa sem o seu consentimento.
Este artigo está incluído no título sobre crimes contra a privacidade , o direito à auto-imagem
e a inviolabilidade do domicílio.
Já no que se refere a legislação de Portugal sobre os crimes cibernéticos, em 1991 houve
a criação da Lei 109/91, de 17 de agosto, conhecida como Lei da Criminalidade Informática.
E em 2009, nasceu a Lei do Cibercrime, Lei 109/2009, a qual versa sobre a cooperação
internacional, sobre a recolha de prova em suporte eletrónico, sobre os ataques contra sistemas
de informações, entre outros.13

3. O aumento da vulnerabilidade da mulher na sociedade


hiperconectada
As mulheres são as principais vítimas da violência interpessoal baseada no gênero
praticada através da internet. Embora condutas como a divulgação não consentida de imagens
íntimas, sexting, sextortion, stalking, cyberbullying, possam ser praticadas contra homens,
não podem ser consideradas neutras em uma perspectiva de gênero, já que as mulheres são
desproporcionalmente afetadas.
Pesquisa realizada pela CCRI (Cyber Civil Rights Initiative)14 em 2017 nos Estados
Unidos revelou que 8% dos entrevistados já tinham sido alvo de “pornografia não consensual”-

12
VIDIGAL, Inês Maria Andrade. As Políticas de Combate ao Cibercrime na Europa. 2012. 144
f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Mestrado em Políticas Europeias, Instituto de Geografia e Ordena-
mento do Território, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2012.
13
Ibidem.
14
CYBER Civil Rights Initiative. 2017 Nationwide online study of nonconsensual porn victimi-
zation and perpetration. 2017.

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A mulher e o cibercrime: as novas facetas da violência de gênero na sociedade hiperconectada
Larissa Amaral Esteves - Yasmin Faissal Nogueira

distribuição não consentida de imagens de conteúdo sexual- e que as mulheres tinham 1.7
vezes mais chances de ser alvo desta conduta, concluindo que a pornografia não consensual
é uma forma de abuso sexual baseada no gênero.
A Anistia Internacional divulgou uma pesquisa realizada em 2017 incluindo Dinamarca,
Itália, Nova Zelândia, Polônia, Espanha, Suécia, Reino Unido e Estados Unidos,15 revelando
que 23% das mulheres entrevistadas já tinham enfrentado situações de abuso ou assédio online
pelo menos uma vez; 46% destas afirmaram que os abusos ou assédios possuíam natureza
misógina e sexista; 19% afirmaram que continham ameaças físicas e de agressão sexual; 26%
que detalhes pessoais ou identificativos foram compartilhados online e 59% que o abuso ou
assédio veio de completos estranhos. De acordo com os indicadores de 2018 da Safernet
Brasil16 o principal tópico de atendimento da sua helpline foi a exposição de imagens íntimas
seguida pelo cyberbullyng/ofensa, as vítimas atendidas eram em sua maioria mulheres 67,9%
no primeiro caso e 65,8 % no último.
Esses resultados confirmam a compreensão do ambiente virtual como um prolongamento
do real onde as mulheres vivem um constante estado de insegurança que as obriga a adotar
posturas defensivas que limitam a construção e o exercício de sua personalidade online e até
mesmo sua liberdade de expressão.
Para dimensionar o impacto das novas dinâmicas da sociedade hiperconectada no
aumento da vulnerabilidade das mulheres, basta imaginar que as mesmas formas de violência
há algumas décadas não possuiriam a mesma repercussão social e as consequências para as
vítimas seriam muito menores.17
Já foram identificados alguns sinais distintivos da ciberviolência contra as mulheres:
anonimato, ação à distância, automação, acessibilidade, propagação e perpetuidade.18 A
possibilidade de se esconder por trás de dispositivos eletrônicos é elemento incentivador para
a prática de cibercrimes por proporcionar uma sensação de segurança e impunidade. Algumas
condutas são mais facilmente praticadas online pelo menor grau de exposição, ausência de
contato físico e possibilidade de serem cometidas em qualquer lugar, estando a vítima onde
estiver. Ferramentas tecnológicas como aplicativos que aceleram a disseminação de conteúdo,
são recursos acessíveis a qualquer pessoa por custos não muito elevados.
Ademais, numa sociedade hiperconectada as próprias vítimas abastecem a rede com
informações pessoais e a abundância e velocidade das comunicações tem potencial para
alastrar conteúdos de maneira irreversível, pois, uma vez online, torna-se muito difícil
rastrear o seu alcance e apagar os seus rastros. As mulheres são mais afetadas em termos
quantitativos e sofrem mais com as consequências desses tipos de crime, pois o julgamento

15
AMNESTY International. Amnesty reveals alarming impact of online abuse against women.
Censorship and freedon of expression. 20 nov. 2017.
16
SAFERNET Brasil. Indicadores Helpline. 2018.
17
FASCENDINI, Flavia; FIALOVÁ, Katerina. Voices from digital spaces: Technology related vio-
lence against woman. 2011. Association for progressive communications (APC).
18
BROADBAND Comission for digital development (UN). Cyberviolence against women: a
world-wide wake up call. 2015.

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A mulher e o cibercrime: as novas facetas da violência de gênero na sociedade hiperconectada
Larissa Amaral Esteves - Yasmin Faissal Nogueira

moral e a culpabilização da vítima, reações sociais características da violência de gênero, são


potencializadas no ambiente virtual.
Nesse sentido, uma pesquisa australiana constatou que 70% dos entrevistados
concordaram que as pessoas devem pensar melhor antes de tirar selfies nuas, ainda que não
enviem a ninguém; 62% concordaram que pessoas que mandam nudes ou imagens sexuais
são ao menos parcialmente responsáveis, se estas imagens acabarem online, há dados
demonstrando que um em cada dois homens e uma em cada três mulheres possuem atitudes
que ou minimizam os danos ou culpabilizam as vítimas.19Muitas destas reações são esperadas
em contextos sociais onde a sexualidade feminina ainda é considerada inapropriada, motivo
de vergonha e desonra, enquanto a sexualidade masculina é exaltada e incentivada.
Assim, mulheres que sofreram algum tipo de violência online reportam sequelas
psicológicas como perda de autoestima e autoconfiança, estresse, ansiedade, ataques de
pânico e dificuldade para dormir ou se concentrar por longos períodos.20 As consequências
são mais duradouras e o trauma mais intenso porque as vítimas convivem com a consciência
de que o conteúdo da internet é perene, com a sensação de que nenhum lugar é seguro e com
o medo de serem confrontadas mais uma vez com a conduta ou como o agressor.21
Então, estigmatizadas pelo preconceito e desigualdade de gênero as mulheres ficam
mais suscetíveis a novos assédios, convites à prostituição, pornografia não solicitada,
além de enfrentarem hostilidade e humilhação pública. A pressão do julgamento moral
que sofrem muitas vezes às obriga a abandonar seus empregos, mudar de cidade, se retirar
permanentemente do ambiente online e esse isolamento social pode ter como consequências
a depressão e o suicídio.

4. Conclusão
Neste trabalho foi proposta a discussão acerca do nexo entre os cibercrimes e a violência
contra a mulher, para que fosse possível compreender qual a relação entre os cibercrimes e o
aumento da vulnerabilidade da mulher na sociedade hiperconectada.
Dessa forma, chegou-se ao resultado de que a existência de legislações a nível
internacional é imprescindível para o combate dos cibercrimes, pois, como a maioria deles
ocorre em âmbito transnacional, alguns atos dependem da ação conjunta de mais de um país,
logo, de uma cooperação internacional.
A convenção de Budapeste é uma referência legislativa mundial no que tange aos
cibercrimes, tendo sido assinada por vários países, Portugal e Espanha inclusive. Estes países
também possuem leis nacionais de combate aos crimes informáticos, assim como o Brasil,
emboras este não tenha assinado o tratado de Budapeste.

19
UNODC. Gender-based interpersonal cybercrime. Resource for lectures.
20
Ibidem cit. 15.
21
LEUKFELDT, Rutger. Cybercrime has Serious consequences for its victims. 8 fevereiro, 2019.
Netherlands Institute for the Study of Crime and Law Enforcement.

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A mulher e o cibercrime: as novas facetas da violência de gênero na sociedade hiperconectada
Larissa Amaral Esteves - Yasmin Faissal Nogueira

Concluiu-se ainda que as mulheres são as principais vítimas da violência interpessoal


baseada no gênero praticada através da internet. Este fato, é um prolongamento da realidade,
onde as mulheres vivem uma situação de desigualdade e insegurança que as obriga a adotar
posturas defensivas que limitam inclusive a sua liberdade de expressão.
Assim, constatou-se que o aumento da vulnerabilidade das mulheres diante do cibercrime
tem estreita relação com com a gravidade de suas consequências, que não ficam limitadas ao
ambiente virtual. Além disso, a estigmatização e o preconceito sofrido deixa as mulheres
mais suscetíveis a novos atos de violência.
Por fim, depreendeu-se que, embora a violência de gênero praticada através da internet
seja um prolongamento do que ocorre fora do ambiente virtual, as ferramentas fornecidas por
ela e o fato de se estar em uma sociedade hiperconectada são fatores que potencializam esta
violência e aumentam a vulnerabilidade das mulheres.

5. Referências Bibliográficas
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Censorship and freedon of expression. 20 nov. 2017. Disponível em: https://www.amnesty.org/
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ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE APOIO À VÍTIMA (APAV) (Portugal). A realidade do
cibercrime. Disponível em: https://apav.pt/cibercrime/. Acesso em: 12 fev. 2020.
BAUMAN, Zygmund; DONSKIS, Leonidas. Cegueira moral: A perda da sensibilidade na
modernidade líquida. Lisboa: Relógio D’água, 2016.
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outros países. 2011. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/217913-saiba-como-
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BROADBAND Comission for digital development (UN). Cyberviolence against women: a world-
wide wake up call. 2015. Disponível em: https://www.unwomen.org/-/media/headquarters/
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CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2016.
CRUZ, D; RODRIGUES, J. Crimes cibernéticos e a falsa sensação de impunidade. 2018. Artigo
Científico apresentada Revista Cientifica Eletrônica do Curso de Direito.
CYBER Civil Rights Initiative. 2017 Nationwide online study of non consensual porn victimization
and perpetration. 2017. Disponível em: https://www.cybercivilrights.org/wp-content/
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www.genderit.org/sites/default/files/ apcwnsp_mdg3advocacypaper_full_2011_en_0_0.pdf
FOGLIATTO, JULIANA. Os crimes cibernéticos e os meios que a polícia utiliza para a identificação
dos criminosos. Dez. 2019. Disponível em: https://jus.com.br /artigos/77225/os-crimes-

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A mulher e o cibercrime: as novas facetas da violência de gênero na sociedade hiperconectada
Larissa Amaral Esteves - Yasmin Faissal Nogueira

ciberneticos-e-os-meios-que-a-policia-utiliza-para-a-identificacao-dos-criminosos. Acessado
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e Ordenamento do Território, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2012. Disponível em: https://
repositorio.ul.pt/bitstream/10451/20508/1/igotul003907_tm.pdf. Acesso em: 12 fev. 2020.

— 447 —
Revoluções tecnológicas na administração
pública e impactos no “funcionário público 4.0”:
extinção ou ressignificação?

Daniel Allan Miranda Borba1


Lucas Isaac Soares Mesquita2

Resumo: As revoluções industriais promoveram mudanças importantes em todos os aspectos da


sociedade contemporânea. Em certa medida, provocaram alterações também na administração pública, que
já tentava se modernizar através das mais diversas reformas administrativas. Ocorre que a atual revolução
tecnológica vem promovendo avanços significativos no setor privado, com incremento de produtividade e
competitividade, maior controle e transparência, aumento de eficiência e redução de custos. Estes avanços
se inserem no conceito de governança e fazem parte dos objetivos atuais almejados pela administração
pública, razão pela qual deve se modernizar seguindo este caminho. Não obstante, o uso destas novas
tecnologias, como a robótica e a inteligência artificial, traz como consequência fortes impactos sociais nas
relações de trabalho, desde alteração substancial destas relações, até a redução de postos de trabalho. O que
se questiona é como estas mudanças tecnológicas estão influenciando às administrações públicas nos seus
modelos neogerenciais ou neoweberianos, em especial, como a tecnologia impactará no funcionalismo
público. Sustenta-se a necessidade de se construir um novo funcionário público, devidamente integrado
com as inovações tecnológicas, aptos a promover serviços públicos com a eficiência e qualidade necessária,
com a incorporação do modelo neoweberiano, reafirmando o papel do Estado como principal facilitador dos
problemas da sociedade contemporânea. Nesta pesquisa, será utilizado o método descritivo, serão coletados
dados de documentos escritos e se realizará pesquisa bibliográfica.
Palavras-chaves: Revolução industrial; Reformas administrativas; Governança; Impactos sociais;
Neoweberianismo.

1
Doutorando pela Universidad de Salamanca. Mestre em Direito Público pela Universidade Fede-
ral de Alagoas – UFAL. Professor de Direito Administrativo do Centro Universitário CESMAC. Procurador
do Município de Maceió. danielborbapgm@gmail.com
2
Doutorando pela Universidad de Salamanca. Mestre em Direito Público pela Universidade Fede-
ral de Alagoas – UFAL. lucasismesquita@gmail.com

— 448 —
Revoluções tecnológicas na administração pública e impactos no “funcionário público 4.0”: extinção ou ressignificação
Daniel Allan Miranda Borba - Lucas Isaac Soares Mesquita

Abstract: Industrial revolutions brought important changes in all aspects of the contemporary society.
To a certain extent, they also promoted changes in the public administration, which had already been
trying to modernize itself through several administrative reforms. The current technological revolution has
been promoting significant advances in the private sector, with increased productivity and competitiveness,
greater control and transparency, amplified efficiency and reduced costs. These advances are inserted in
the concept of governance and are part of the current objectives pursued by the public administration,
reason why, it must be modernized following this path. Nevertheless, the use of these new technologies,
such as robotics and artificial intelligence, has the effects of strong social impacts on labor relations,
from substantially altering these relationships to reducing job positions. What is being questioned is how
these technological changes are influencing public administrations in their New Public Management or
Neoweberian models, in particular, how the technology will impact civil servants relations. There is a
need to build a new civil servant model, duly integrated with technological innovations, able to promote
public services with the necessary efficiency and quality, with the incorporation of the Neoweberian model,
reaffirming the role of the State as the main facilitator of the problems of contemporary society. In this
research, was used the descriptive method, data from written documents was collected and bibliographic
research was applied.
Key-words: Industrial revolution; Management reforms; Governance; Social impacts;
Neoweberianism.

1. Introdução
Em pouco mais de dois séculos as revoluções industriais transformaram as sociedades nos
seus aspectos políticos, económicos, sociais e culturais. A quarta revolução, que se caracteriza
em especial pelo aumento da capacidade da computação e da combinação das tecnologias
físicas, digitais e biológicas, vem ampliando estas transformações em ritmo exponencial não
só nas empresas e no cotidiano das pessoas, como também na administração pública, que se
aproveita das vantagens oferecidas pela tecnologia no alcance dos objetivos da governança,
como maior controle, transparência, eficiência e qualidade.
Ocorre que, assim como no mundo do trabalho privado, o funcionalismo público será
atingido diretamente pelas novas tecnologias, pois se estima que haverá uma extinção em
massa de diversas carreiras públicas em função da sua substituição pela robótica e inteligência
artificial. Este momento também poderá representar uma oportunidade de renascimento do
funcionalismo público, em uma versão 4.0 apta a desenvolver e atuar em conjunto com os
processos tecnológicos.
Assim, o objetivo deste trabalho é examinar os impactos das últimas revoluções tecnológicas
nas relações de trabalho dentro do âmbito da Administração Pública, contextualizando-as
dentro dos principais modelos de gestão pública, a partir de uma análise crítica e propositiva
para amenizar os prejuízos sociais decorrentes das mudanças vivenciadas.
Para alcançar os fins propostos, será utilizado o método descritivo, que só registra e
descreve os fatos observados em um determinados caso. Também será coletados alguns dados
de documentos escritos. A pesquisa bibliográfica será realizada em artigos científicos, livros,
periódicos e revistas dedicadas ao tema estudado. O trabalho tem como base maior a situação
brasileira, não obstante as considerações realizadas possuem um caráter universal.

— 449 —
Revoluções tecnológicas na administração pública e impactos no “funcionário público 4.0”: extinção ou ressignificação
Daniel Allan Miranda Borba - Lucas Isaac Soares Mesquita

2. A evolução do funcionário público nos modelos de


administração pública
Toda administração pública deve estar em consonância com o seu modelo democrático
e coerente com a complexidade do Estado contemporâneo. Por tal razão, os modelos de
gestão pública vêm sendo alterados com o passar do tempo, de início, com o objetivo de
romper com o patrimonialismo, em seguida para superar as disfunções trazidas pelo modelo
burocrático, até as mais recentes fórmulas que vendem milagres em termos de desempenho e
fim da corrupção baseadas na governança. Mas estes modelos estão preocupados em integrar
o funcionário público às revoluções tecnológicas?
Esta busca por reformas administrativas se intensificou nas últimas quatro décadas
e, hoje, existem duas grandes correntes: a Nova Gerencia Pública, também conhecida por
New Public Management (NPM), que possui uma maior difusão nos países anglo-saxões e,
em certa medida, ibero-americanos na década de 1990, inclusive o Brasil; e o Estado Neo-
Weberiano (ENW), com maior relevância nos países da Europa continental3.
O NPM, ou neogerencialismo, tem como principal inspiração a transferência de técnicas
de gerenciamento e formas organizativas da empresa privada para o setor público, a partir da
utilização de mecanismos de mercado ou quase mercados na prestação dos serviços públicos,
através de práticas de privatização de algumas entidades e da terceirização de outras atividades.
Ademais, prevê a dissolução da carreira profissional com a contratação de pessoal de forma
flexível e com remuneração segundo o desempenho dos empregados4.
Este modelo tem como principal inspiração a utilização dos postulados da economia
política neoclássica (Escola de Chicago de Milton Friedman) na administração pública. Neste
sentido, existe um certo ceticismo com relação a intervenção do Estado na economia, pois
parte-se de um pressuposto que o setor privado é sempre mais eficiente que o público, por isto
que o Estado seria “um fator obstrutivo de crescimento”, sendo melhor deixar que os mercados
atuem com maior liberdade, inclusive no tocante a prestação de serviços públicos5.
Neste modelo gerencial se verifica que a ação da política de governo se converte em
governança6, em nome da estabilidade da ordem internacional, que traz como marca uma
progressiva desvinculação do Estado de Bem Estar Social, através da implementação de um
Estado mínimo que condena toda e qualquer medida protecionista, passando a exercer um

3
FERRARO, Agustín  Enrique.  Reinventando el estado. Por una administración pública demo-
crática y profesional en la Iberoamérica. Madrid: Instituto Nacional de Administración Pública, 2009. p.
119-120.
4
Idem. p. 120.
5
Idem. p. 124.
6
Esta noção de governança foi introduzida pelo Banco Mundial sob o aspecto de que como condi-
ção para financiamento, os Estados teriam que ser eficientes. Tem origem no setor privado, se baseia em
conceitos de ética e responsabilidade social e surgiu da teoria do “conflito de agencia”, onde o acionista ou
empresário contrata executivos ou assessores para administrar sua empresa. In MAXIMIANO, Antonio Ce-
sar Amaru; NOHARA, Irene Patrícia. Gestão pública: abordagem integrada da Administração e do Direito
Administrativo. E-book. São Paulo: Atlas, 2017.

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Revoluções tecnológicas na administração pública e impactos no “funcionário público 4.0”: extinção ou ressignificação
Daniel Allan Miranda Borba - Lucas Isaac Soares Mesquita

papel meramente regulador, de definidor das regras do jogos visando a harmonização dos
atores econômicos7.
Assim, devido a incorporação do conceito de governança na agenda pública, o Estado é
concebido como uma unidade produtiva e assume a missão central de promover a concorrência
generalizada, com a abertura financeira e comercial. Neste sentido, há uma hibridização da
ação pública, pois se conservam algumas funções de Estado, enquanto outras se realizam
diretamente pelo setor privado, o que garantiria, supostamente a produção de bens e serviços
de forma mais eficiente8.
Para o “funcionário gerencial”, este modelo prevê a dissolução da sua carreira profissional,
marca característica do serviço público nos países desenvolvidos, através de duas formas: fim
de uma boa parte das funções públicas através das mais diversas modalidades de privatização
das atividades administrativas, com isto, não se teria a contratação de funcionários públicos,
mas sim de empregados subcontratados pela empresas; para os funcionários remanescentes,
se adotaria formas de contratação flexíveis, aproximando o seu regime jurídico ao dos
empregados do setor privado, com remuneração variável segundo seu o desempenho9.
Outro grupo de países, em especial os da Europa continental que possuíam um padrão
de Welfare State considerável, como Alemanha e os Países Nórdicos, se utilizou de elementos
do New Public Management para modernizar a sua administração pública, com um viés
privatizador. Ainda assim, esse grupo mantém e reafirma o papel do Estado como força
integradora da sociedade, ademais, resgata o espírito do serviço público, presente na figura do
servidor público, preocupando-se em ser mais flexíveis, democráticos e participativos, mas
não se resume ao discurso de eficiência, competitividade e satisfação do consumidor, ou seja,
busca uma cultura profissional de qualidade do serviço público e atenção aos cidadãos10.
Pollitt e Bouckaert denominam este modelo de New Weberian State ou neoweberianismo,
uma vez que as características centrais do modelo burocrático de Max Weber são mantidas
e, não obstante, incorporam-se inovações do modelo gerencial, inclusive sob o aspecto
da governança, uma tentativa de ressignificar a burocracia tradicional, a partir da sua
modernização, tornando-a mais profissional, eficiente e amigável com os cidadãos11.
O “funcionário neoweberiano” possui os elementos do “funcionário burocrático”, uma
vez que este modelo reafirma o papel do Estado e a preservação da ideia de um serviço
público, entretanto, deixa de seguir uma orientação apenas dirigidas às regras burocráticas,
para uma orientação externa, voltada a satisfazer as necessidades e desejos dos cidadãos, a
partir da criação de uma cultura de profissionalização do serviço público, ou seja, um gerente

7
ARNAUD, André-Jean. O Direito entre Modernidade e Globalização: lições de filosofia do Direi-
to e do Estado. Renovar: Rio de Janeiro, 1999. p. 174-180.
8
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neolibe-
ral. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 276.
9
Idem. p. 120.
10
Idem. p. 132-133.
11
BOUCKAERT, Geert; POLLITT, Christopher. Public Management Reform. A Comparative Anal-
ysis—New Public Management, Governance, and the Neo-Weberian State. Nova Iorque: Oxford University
Press, 2011. p. 19

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Revoluções tecnológicas na administração pública e impactos no “funcionário público 4.0”: extinção ou ressignificação
Daniel Allan Miranda Borba - Lucas Isaac Soares Mesquita

profissional que busca a qualidade na prestação dos serviços com mecanismos de controle,
transparência e eficiência.
Verifica-se que estes dois modelos mais recentes estão abertos ao uso das novas
tecnologias para a melhoria da prestação dos serviços públicos de acordo com a governança
pública, sendo que o modelo neogerencial vai buscar esta modernização através das parcerias
(ou transferência) com a iniciativa privada, desconsiderando a importância do funcionário,
enquanto que o modelo neoweberiano entende que o Estado possui papel fundamental de
facilitador da resolução dos problemas oriundos das mudanças tecnológicas.

3. Administração pública 4.0: tecnologia para o alcance da


governança
Com a primeira revolução industrial no final do século XVIII, a utilização da força
mecânica por meio da energia a vapor acabou por substituir as pessoas e animais na dinâmica
das relações de trabalho, o que contribuiu sobremaneira com o aumento da produtividade
e redução do tempo e custos da produção de bens de consumo. Em seguida, no final do
século XIX, ocorre a segunda revolução industrial ao aperfeiçoar as tecnologias existentes
e fazer uso da energia elétrica e petróleo. Ademais, com a criação do telégrafo e telefone, as
comunicações foram facilitadas, contribuindo com a ampliação dos mercados e da demanda,
exigindo um aumento do ritmo da produção industrial, que se deu através do modelo de linha
de montagem, acarretando ainda mais na redução dos preços dos bens produzidos12.
Apesar dos avanços no setor privado, as repercussões destas revoluções na administração
pública foram sentidas com maior intensidade a partir da consolidação da terceira revolução
tecnológica na década de 1970, chamada de “era da informação”, que se deu pela substituição
da tecnologia mecânica pela digital, através do desenvolvimento de semicondutores,
mainframes, computadores pessoais e internet, o que produziu uma diminuição das distancias,
velocidade das informações e automatização da produção13.
Atualmente, vive-se a quarta revolução industrial, que representa a união de todas as
etapas anteriores, através de uma revolução do conhecimento e da comunicação. “O seu grande
diferencial é que ela avança de forma célere para permitir a convergência de tecnologias
digitais, físicas e biológicas”, que “já estão impactando no funcionamento das economias, das
empresas e no cotidiano dos cidadãos dos países desenvolvidos 14.
Nesta última revolução, tecnologias como o blockchain, a internet das coisas (IoT), a
inteligência artificial e a robótica15, permitem um aumento da produtividade e competitividade

12
MATIAS-PEREIRA, José. Impactos da 4ª Revolução Tecnológica na Administração Pública. Re-
vista Conceito Jurídico, Brasília, n. 14, fev. 2018. p. 10-12.
13
Idem. p. 10-12.
14
Idem. p. 10-12.
15
“Blockchain: Registra transações financeiras em um arquivo digital de forma distribuída, imutável,
transparente e aditável; Internet das coisas (IoT): Conecta máquinas, eletrodomésticos, veículos, produtos
ou qualquer coisa, inclusive pessoas, à internet; Inteligência artificial: Permite que os sistemas aprendam
sem necessidade de programação. É usada na identificação facial e de voz, em veículos autônomos e na

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Revoluções tecnológicas na administração pública e impactos no “funcionário público 4.0”: extinção ou ressignificação
Daniel Allan Miranda Borba - Lucas Isaac Soares Mesquita

no setor privado, além de permitir um maior controle de suas operações e tornar as cadeias
produtivas mais transparentes. Promove ainda uma gestão mais eficiente de uso de materiais,
reduzindo custos de produção e distribuição16.
Percebe-se que os mesmos resultados almejados pela revolução tecnológica no setor
privado, como incremento de produtividade e competitividade, maior controle e transparência,
aumento da eficiência e redução de custos, se inserem dentro do próprio conceito de governança
e dos objetivos almejados pela administração pública contemporânea, por tal razão, deve o
poder público caminhar no sentido de alcançar as evoluções vivenciadas pelo setor privado.
É verdade que muitas vezes existem entraves políticos para adoção de processos
democráticos tecnológicos, uma vez que o uso destas tecnologias deixam rastros imutáveis
(p. ex. blockchain) e elimina as possíveis (más) intenções da sua atuação (p. ex. robotização
e inteligência artificial), o que traria uma maior transparência e moralidade na gestão pública.
Outra vezes, a não adoção destas tecnologias derivam simplesmente da falta de conhecimento
e de capacidade de planejamento e do despreparo das equipes de governo.
No Brasil, a revolução tecnológica ainda está em ritmo lento no setor privado. Segundo
a Confederação Nacional da Indústria – CNI, são poucas as empresas que se utilizam do
potencial das tecnologias para ganhos de eficiência e produtividade, em função da falta de
conhecimento das tecnologias mais adequadas para cada empresa, do alto custo de implantação
e da mão de obra de baixa qualificação. Não obstante, o setor do agronegócio é vanguarda no
uso da biotecnologia, da robótica e inteligência artificial em suas operações17.
Fato é que já existem países com sua “administração pública 4.0”, voltados à promoção
de políticas públicas nas áreas da ciência, tecnologia e inovação, na busca da competitividade
em nível internacional através do uso das novas tecnologias. O Brasil, assim como outros que
estão na retaguarda deste movimento, deverão realizar as mudanças normativas, estruturais
e culturais na gestão pública para “surfar na onda” da revolução tecnológica, já que “os seus
efeitos benéficos irão refletir no funcionamento da economia, na redução da burocracia e na
oferta bens e serviços públicos de qualidade para a população”18.

4. A estratégia das novas tecnologias no setor público:


o fim ou uma nova oportunidade para os funcionários
públicos?
Marx e Engels já prenunciavam as alterações que ocorreriam no mundo do trabalho e as
que ainda estão para ocorrer, pois o capital “não pode existir sem revolucionar incessantemente
os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção, e com isso, todas

automação de processos e serviços e a robótica: Produz robôs para automação de atividades a custos decres-
centes”. In MAGALHÃES, Regina; VENDRAMINI, Annelise. Os impactos da quarta revolução industrial.
GVExecutivo, São Paulo, v. 17, n. 1, jan-fev, 2018. p. 40-43.
16
MAGALHÃES, Regina; VENDRAMINI, Annelise. Idem. p. 40-43.
17
Idem. p. 40-43.
18
MATIAS-PEREIRA, José. Idem. p. 10-12.

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Revoluções tecnológicas na administração pública e impactos no “funcionário público 4.0”: extinção ou ressignificação
Daniel Allan Miranda Borba - Lucas Isaac Soares Mesquita

as relações sociais” 19. Mas, e quanto aos funcionários públicos, a revolução tecnológica
também afetará o seu trabalho na administração pública?
No setor privado, a quarta revolução industrial trará impactos sociais dantescos, em
especial em função dos efeitos da automação e do uso da inteligência artificial. Tanto que
vários estudos em países como Estados Unidos, Japão, Reino Unido e Alemanha estimam
que nas próximas duas décadas entre 35% e 47% dos empregos entrarão em extinção. Para
os mais positivos, o crescimento econômico proporcionado pela evolução tecnológica, bem
como os novos métodos de trabalho criados, permitirá o surgimento de novas ocupações e
oportunidades, sendo necessário, entretanto, a aquisição de novas competências20.
Na administração pública, os poucos estudos que tratam sobre o tema apresentam
resultados semelhantes sobre os impactos da revolução tecnológica.
De acordo com Matias-Pereira, as transformações oriundas da quarta revolução provocará
a extinção de diversas carreiras públicas, em especial aquelas de cunho operacionais, “cujas
atividades serão substituídas por programas e robôs capazes de realizar esses trabalhos
com muito mais eficiência e rapidez”, a exemplo de atendentes, motoristas, analistas de
dados, advogados, contadores, auditores etc. Também sustenta que novas carreiras, ainda
desconhecidas, serão criadas no setor público21.
Entende-se que está com mais razão Ramió, que sustenta a necessidade de “dinamitar o
atual modelo de emprego público”, não no sentido de acabar com o funcionário público, mas
sim de construir um novo modelo de recursos humanos, para que absorva as mudanças que
estão para ocorrer, seja no tocante aos processos de seleção, de avaliação de desempenho, de
remuneração e de carreira profissional22.
Em uma análise dos funcionalismo público espanhol, Ramió afirma que os avanços
tecnológicos ainda estão em tempo de ser aproveitados pelo setor público, pois se estima
que dentro da próxima década se aposentará cerca de um milhão de servidores, o que
é a oportunidade de se incorporar um milhão de jovens, digitalizados e responsáveis por
implementar a inteligência artificial na administração pública. Por tal razão, entende que é
possível “robotizar a administração pública com um custo laboral zero”!23
Diante deste panorama, a administração pública brasileira deve fugir das revoluções
tecnológicas para evitar estes impactos negativos no mundo do trabalho público? Ou deve
promover os ajustes necessários no funcionalismo para aproveitar as vantagens da revolução
tecnológica? Estas respostas dependem muito do modelo de gestão pública adotado.

19
ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. Manifesto do Partido Comunista. Tradução de Luciano Cavini
Martorano. São Paulo: Martin Claret, 2014. p. 47.
20
MAGALHÃES, Regina; VENDRAMINI, Annelise. Idem.
21
MATIAS-PEREIRA, José. Idem. p. 10-12.
22
RAMIÓ, Carlos. Hay que dinamitar el actual modelo de empleo público. Entrevista para SAVIA,
Barcelona, 2020. Disponível em: https://www.savia.net/videos-rrhh/carles-ramio-inteligencia-artificial-
en-la-administracion-publica/. Acesso em: 11 fev. 2020.
23
Idem. p. 10-12.

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Revoluções tecnológicas na administração pública e impactos no “funcionário público 4.0”: extinção ou ressignificação
Daniel Allan Miranda Borba - Lucas Isaac Soares Mesquita

O Brasil, seguidor de um padrão (semi)neogerencial, vem dinamitando os servidores


públicos no sentido literal desde a década de 1990. Há uma verdadeira guerra travada pelo
governo em face dos funcionários, que chega a considerar, nas palavras do atual Ministro
da Economia, Sr. Paulo Guedes, um verdadeiro “parasita” 24. Como solução ao problema, este
governo propõe uma “Reforma Administrativa”, que tem como principal objetivo pôr fim aos
“privilégios” dos funcionários públicos, aproximando-os dos trabalhadores do setor privado25.
Ademais, vem promovendo a sua extinção com a ampliação das modalidades de privatização
e com a extinção de cargos públicos, que só nos últimos dois anos mais de 100 mil foram
minados apenas na esfera federal (Decretos Federais nº 9.262/2018 e 10.185/2019).
Verifica-se que, ao menos no Brasil, os servidores públicos já têm suas relações de
trabalho precarizadas, não pela revolução tecnológica, mas sim pelo próprio governo. Seria
o momento do poder público brasileiro aproveitar para realizar uma verdadeira reforma de
toda a administração, seguindo os avances do neo-weberianismo, com o resgate do espírito de
serviço público, e da revolução tecnológica, preparando o país para um novo funcionalismo
público, digitalizado e apto a permitir a necessária modernização da administração pública de
acordo com a governança e as novas tecnologias.
É o momento de seguir os padrões de países que são excelência na prestação de serviços
públicos, com alto nível de desenvolvimento econômico e social, como os países nórdicos,
que acreditam na cultura da profissionalização do servidor público, bem como que realizam
fortes investimentos em ciência, tecnologia e inovação, o que permitirá o ingresso efetivo do
país na era da tecnologia.
O caminho a ser trilhado não é o do medo da substituição do homem pela máquina, uma
vez que o funcionário público 4.0 não será um robô ou um aplicativo de última geração, será
um trabalhador atualizado, de alta capacidade gerencial, com as competências necessárias para
atuar em conjunto e tirar o melhor proveito das novas tecnologias, fruto da sua ressignificação
e valorização, que permitirá levar os serviços públicos ao século XXI e contribuir com a
governança a partir de instrumentos tecnológicos mais efetivos de controle e transparência,
promovendo melhorias em termos de eficiência e qualidade.
Este novo funcionalismo público não dispensa completamente a possibilidade de
parcerias com a iniciativa privada, deve-se tomar emprestado os avanços deste setor. Não
obstante, será melhor alcançado através da reafirmação do protagonismo do Estado, a partir
de investimentos em tecnologia na própria administração pública, ou mesmo com parcerias
com as universidades e instituto tecnológicos públicos, seguindo uma perspectiva mais
neoweberiana de profissionalização do serviço público.
Caso não se promovam as mudanças necessárias, o poder público perderá espaço em
termo de eficiência e qualidade na prestação dos seus serviços, abrindo cada vez mais terreno

24
PAMPLONA, Nicola. O cara virou um parasita, diz Guedes sobre servidores. Folha de São Paulo.
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/02/o-cara-virou-um-parasita-diz-guedes-
sobre-servidores.shtml. Acesso em: 12 fev. 2020.
25
BARRETO, André. Reforma Administrativa: o ataque da vez é contra os servidores públicos. Bra-
sil de Fato. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2019/11/27/reforma-administrativa-o-ataque-
da-vez-e-contra-os-servidores-publicos/. Acesso em: 12 fev. 2020.

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Revoluções tecnológicas na administração pública e impactos no “funcionário público 4.0”: extinção ou ressignificação
Daniel Allan Miranda Borba - Lucas Isaac Soares Mesquita

para os avanços do setor privado tecnológico, reafirmando o pressuposto básico da Escola de


Chicago. Como consequência, serão dinamitados não só os funcionários públicos, como toda
a administração pública.
Nestes termos, se acredita que a adoção do modelo neo-weberianismo, em conjunto com
a utilização das novas tecnologias, permitirá a construção do funcionário público 4.0, capaz
de enfrentar os desafios e complexidades tecnológicas necessários à prestação dos serviços
públicos em atendimento aos anseios da sociedade.

5. Considerações finais
As administrações públicas precisam se adequar às complexidades que a sociedade
contemporânea impõe. Para tanto, vêm promovendo reformas administrativas que ora
acreditam na força da iniciativa privada e preveem a desconstrução do funcionalismo público,
como no New Public Management, ora reafirmam o papel do Estado e resgatam o espírito de
serviço público a partir da valorização do funcionário público, como no neoweberianismo.
As revoluções tecnológicas evidenciadas nas últimas décadas vêm promovendo avanços
significativos no setor privado, como incremento da produtividade e competitividade, maior
controle e transparência, aumento da eficiência e redução de custos, o que contribuirá com
a governança no âmbito da administração pública, por tal razão, deve o poder público se
utilizar dos avanços oriundos da tecnologia com o objetivo de aumentar o seu desempenho e
promover a melhoria na prestação de serviços públicos.
Não obstante, os impactos sociais no mundo do trabalho, tanto privado como público,
serão inevitáveis, pois as novas ferramentas tecnológicas, como robotização e inteligência
artificial, promoverá a extinção das mais diversas carreiras e postos de trabalhos. Mas não só
impactos negativos se espera, pois novas oportunidades surgirão em virtude do crescimento
da economia e das novas funções oriundas do próprio desenvolvimento tecnológico, havendo,
a necessidade de se preparar para este novo, e já atual, mundo.
Sustenta-se, por fim, que o novo funcionário público devidamente integrado com as
inovações tecnológicas, aptos a promover serviços públicos com a eficiência e qualidade
necessária, terá mais sucesso naqueles países que adotam o modelo neoweberiano, por
defender a profissionalização do servidor público e reafirmar o papel do Estado como principal
facilitador dos problemas da sociedade contemporânea.

6. Referências
ARNAUD, André-Jean. O Direito entre Modernidade e Globalização: lições de filosofia do Direito e
do Estado. Renovar: Rio de Janeiro, 1999.
BARRETO, André. Reforma Administrativa: o ataque da vez é contra os servidores públicos. Brasil
de Fato. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2019/11/27/reforma-administrativa-
o-ataque-da-vez-e-contra-os-servidores-publicos/. Acesso em: 12 fev. 2020.

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Revoluções tecnológicas na administração pública e impactos no “funcionário público 4.0”: extinção ou ressignificação
Daniel Allan Miranda Borba - Lucas Isaac Soares Mesquita

BOUCKAERT, Geert; POLLITT, Christopher. Public Management Reform. A Comparative Analysis—


New Public Management, Governance, and the Neo-Weberian State. Nova Iorque: Oxford
University Press, 2011.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal.
Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016.
ENGELS, Friedrich; MARX, Karl.  Manifesto do Partido Comunista. Tradução de Luciano Cavini
Martorano. São Paulo: Martin Claret, 2014.
FERRARO, Agustín Enrique. Reinventando el estado. Por una administración pública democrática y
profesional en la Iberoamérica. Madrid: Instituto Nacional de Administración Pública, 2009.
MAGALHÃES, Regina; VENDRAMINI, Annelise. Os impactos da quarta revolução industrial.
GVExecutivo, São Paulo, v. 17, n. 1, jan-fev, 2018. p. 40-43.
MATIAS-PEREIRA, José. Impactos da 4ª Revolução Tecnológica na Administração Pública. Revista
Conceito Jurídico, Brasília, n. 14, fev. 2018. p. 10-12.
MAXIMIANO, Antonio Cesar Amaru; NOHARA, Irene Patrícia. Gestão pública: abordagem integrada
da Administração e do Direito Administrativo. E-book. São Paulo: Atlas, 2017.
PAMPLONA, Nicola. O cara virou um parasita, diz Guedes sobre servidores. Folha de São Paulo.
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/02/o-cara-virou-um-parasita-
diz-guedes-sobre-servidores.shtml. Acesso em: 12 fev. 2020.
RAMIÓ, Carlos. Hay que dinamitar el actual modelo de empleo público. Entrevista para SAVIA,
Barcelona, 2020. Disponível em: https://www.savia.net/videos-rrhh/carles-ramio-inteligencia-
artificial-en-la-administracion-publica/. Acesso em: 11 fev. 2020.

— 457 —
O impacto da inteligência artificial no direito
intelectual e no mercado tecnológico

camila Maria de Moura Vilela1

Resumo: A Inteligência Artificial (IA2) é um assunto pesquisado há década, mas continua sendo
um dos conteúdos mais abordados na atualidade. O ponto crucial é que o objetivo da Inteligência Artificial
não é substituir os humanos, mas ampliar suas capacidades cognitivas para ajudá-los em suas atividades. A
definição do termo “Inteligência Artificial” está intrinsicamente ligada à capacidade do desenvolvimento
de inteligência nas máquinas e mecanismos eletrônicos. Com isso, o amplo espectro de investigação
vai além da área da robótica, intercedendo em outras áreas, como o Direito. Dentro do cenário jurídico
destacamos o Direito Intelectual e suas nuances na tecnologia, bem como os estudos nacionais e mundiais
sobre o tema. O presente artigo visa demonstrar a influência da IA em âmbito de patentes quanto a proteção
perante as tendências no cenário tecnológico, é imprescindível discutir a questão da autoria destas obras
e a patenteabilidade. Neste contexto, o Direito não escapa dos avanços da tecnologia e do impacto da IA,
com isso, o tema traz em si um dos desafios postos no contexto da criação, que se desenvolvem, bem como
a proteção das criações intelectuais de programas de computador que se utilizam da IA, em conformidade
com a tendência mundial.
Palavras chaves: Inteligência Artificial; Patente; Propriedade Intelectual; Tecnologia.

Abstract: The Artificial Intelligence (AI) is a subject researched for a decade, but it remains one of
the most approached contents today. The crucial point is that the objective of Artificial Intelligence is not to
replace humans, but to expand their cognitive abilities to assist them in their activities. The definition of the
term “Artificial Intelligence” is intrinsically linked to the capacity of intelligence development in machines
and electronic mechanisms. With this, the broad spectrum of research goes beyond the area of robotics,
interceding in other areas, such as the Law. Within the legal scenario, we highlight Intellectual Law and its
nuances in technology, as well as national and global studies on the subject. This article aims to demonstrate
the influence of AI in the scope of patents as to the protection against trends in the technological scenario,
it is essential to discuss the issue of authorship of these works and patentability. In this context, the Law

1
Mestranda em Direito Intelectual pela Universidade de Lisboa, advogada, cofundadora do Legal
Hackers Lisboa, e-mail: camilavilela@outlook.com
2
A partir de agora citaremos apenas como IA.

— 458 —
O impacto da inteligência artificial no direito intelectual e no mercado tecnológico
camila Maria de Moura Vilela

does not escape the advances of technology and the impact of AI, thus the theme brings in itself one of the
challenges posed in the context of creation, which develop, as well as the protection of intellectual creations
of computer programs that use AI, in line with world trends.
Key Words: Artificial Intelligence; Patent; Intellectual Property; Technology.

INTRODUÇÃO
Com o avanço da tecnologia no campo da informação e comunicação, a área de
Propriedade Intelectual analisa patentes, publicações científicas e outros dados, com vista
a avaliar tendências passadas e atuais em matéria de IA3. O tema, de inegável atualidade e
importância, não é livre de interessantes embates que buscam compreender melhor sobre o
que se trata a IA e seus impactos na sociedade.
Muito há de ser discutido sobre o tema: a questão da responsabilidade civil, se uma
máquina poderá substituir ou não os humanos, se haverá eliminação de cargos de trabalho, a
personalidade jurídica do robô, entre outros pontos pertinentes sobre o tema, que proporciona
uma preocupação sobre. Entretanto, antes de qualquer levantamento sobre o tema, devemo-
nos atentar ao que está por trás de todos esses questionamentos. Afinal, juridicamente falando,
quais são os regulamentos e legislações acerca da IA?
Assim, o objetivo do presente trabalho é abordar a IA e as invenções relacionas, buscando
compreender quais os aspectos jurídicos que versam sobre a sua proteção e aplicação no
meio tecnológico. Um problema, quiçá o principal com este tipo de enfoque, é que, todavia,
as funções cognitivas dependem de um respaldo jurídico para que a IA seja mais bem
compreendida, bem como sua capacidade, características e complexidades.
Atualmente, é inevitável se tratar da Propriedade Industrial e do Direito Autoral sem falar
de legislações presentes em outros países, seja como forma complementar ou comparada,
devido aos tratados internacionais que impõe certos padrões, por isso, neste trabalho será
abordada a legislação brasileira e europeia.
O objetivo do presente artigo será, então, a patenteabilidade no quesito das invenções
introduzindo os aspectos da IA, bem como ressaltar algumas problemáticas existentes no
campo do Direito Intelectual que se referem a essa tecnologia. Deste ponto de vista, apresenta-
se ao leitor informações que abordam uma maior interdisciplinaridade em torno do tema,
demonstrando os aspectos jurídicos comparados aos avanços tecnológicos.

1. AS INVENÇÕES RELACIONADAS COM A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL


Os produtores de bens informáticos necessitam de uma tutela para os seus produtos, surge,
então, questionamentos diversos sobre as invenções criadas por IA e se isso irá transformar os
conceitos de “compositor”, “autor” e “inventor”. 

3
Estudo da OMPI sobre as Tendências da Tecnologia em 2019: Inteligência Artificial. Disponível
em: https://www.wipo.int/edocs/pubdocs/pt/wipo_pub_1055_exec_summary.pdf. Acesso em 10 fev. 2020.

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O impacto da inteligência artificial no direito intelectual e no mercado tecnológico
camila Maria de Moura Vilela

Quando a obra nasce, ou seja, quando ela é criada, há efeitos jurídicos autorias
desencadeadas, o primeiro é a autoria, cuja criação é ligada a um autor intelectual. No plano
patrimonial, a obra é protegida como fonte de exploração econômica e não como fruição
estética ou artística, tendo então, uma natureza utilitária. Primeiramente, vale salientar que a
criação, seja ela artística ou literária, recebe a proteção pelo Direito de Autor. Deste modo, a
tutela da criação faz-se pela outorga de um uso exclusivo que será explorado economicamente,
reservando o direito ao titular.
Com o advento das novas tecnologias, as criações tecnológicas transformaram os
conceitos atinente ao Direito de Autor e, por conseguinte, as possíveis formas de proteção,
em face dos limites atinados ao desenvolvimento social e econômico.
Em um arcabouço legislativo, a conferência diplomática de Estocolmo, em 1967, cujo
propósito era a revisão da Convenção de Berna para a proteção das obras literárias e artísticas
e da Convenção da União de Paris (CUP), foi o marco internacional para a oficialização da
expressão “Direitos de Propriedade Intelectual”.
Ademais, os produtos de IA registraram um aumento de patentes em 2019, passando da
teoria à aplicação prática, abrindo, então um caminho para novas invenções. O sistema de
patentes em vigor em quase todo o mundo determina que, para ser patenteável, uma inovação
não pode ser uma mera descoberta, mas sim uma invenção, uma obra original, advinda da
criatividade.
Ao contrário do que muitos pensam, as leis de patente não se aplicam, exatamente, como
nos Estados Unidos da América ou em outros países em relação ao software. No Brasil e em
Portugal, a lei de patentes não é a que rege o software e sim a de Direitos Autorais. A figura
do programador é tão protegida quanto um músico ou escritor.
Pela Lei de Criminalidade Informática Portuguesa, podemos destacar em seu artigo 2º,
alínea c), uma breve definição legal sobre programas de computador, definindo um “Conjunto
de instruções capazes, quando inseridas num suporte explorável em máquina, de permitir à
máquina, que tem por funções o tratamento de informações indicar, executar ou produzir
determinada função tarefa ou resultado”. Este conceito de programa de computador consegue
ter uma similaridade como a noção imposta pelas disposições da OMPI4.
No Brasil, a Lei nº. 7.646, de 1987, foi o primeiro dispositivo legal a considerar a
proteção jurídica dos programas de computador como um bem intelectual. Vale acrescentar
que, os programas de computador são obras intelectuais objeto da proteção do Direito Autoral,
conforme a Lei nº. 9.610, de 1998, lei vigente no Brasil.

4
Sobre a originalidade, o doutrinador José Alberto Coelho Vieira elucida acerca da Diretiva e os pro-
gramas de computador que “os programas de computador são protegidos se forem originais. A originalidade/
criatividade é o único requisito de proteção a ponderar para a outorga de um direito de autor a um programa de
computador em concreto. Nenhum outro critério é admitido para esse feito. A originalidade de um programa
de computador deve ser aferida em conformidade com o conceito de originalidade a que o Estado-membro
sujeita a proteção das obras literárias nas respectivas obras jurídica. A directiva não prevê nenhum conceito
europeu de originalidade que deva ser adoptado nos países comunitários”. VIEIRA, José Alberto Coelho. A
proteção dos Programas de Computador pelo Direito de Autor. Lisboa: Lex, 2005. p. 72.

— 460 —
O impacto da inteligência artificial no direito intelectual e no mercado tecnológico
camila Maria de Moura Vilela

Além da Lei dos Direitos Autorais, no direito brasileiro, o programa de computador


está resguardado por uma lei específica, a Lei nº. 9.609/98, que dispõe sobre a proteção
da propriedade intelectual de programa de computador e sua comercialização no país5. O
Decreto nº. 2.556, de 20 de abril de 1998, estabelece a competência da aplicação da Lei nº.
9.609/98 ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). Esse decreto foi necessário,
pois o INPI lida com os direitos da Propriedade Industrial. Como a proteção dos programas
de computador é relativa ao Direito de Autor, este registro não seria competência do INPI,
caso não houvesse esta delegação.
Sendo assim, a proteção do software se dá por meio das regras de Direito Autoral, que
estão estabelecidas na Lei nº. 9.610/98, porém, no Brasil também há uma legislação específica
para o Direito Autoral de software, que está presente na Lei nº. 9.609/98. Em resumo, regras
específicas estão na Lei de Software e as regras gerais na Lei de Direitos Autorais.
Tanto no Brasil como em Portugal, onde são excluídos da patenteabilidade os programas
de computador, é possível que um determinado programa de computador faça parte de uma
patente ou modelo de utilidade, podendo gozar da proteção que lhes poderia corresponder
por aplicação de um regime jurídico de Propriedade Industrial. Este tipo de invenções, que
usam ou recorrem a um programa de computador é chamado de “invenções implementadas
por computador”.
Quanto ao prazo de validade decorrente da proteção do programa de computador, em
Portugal, o direito atribuído ao criador sobre a criação do programa extingue-se 70 (setenta)
anos após a sua morte, conforme presente no artigo 36º do CDADC. Podemos observar o
mesmo prazo referente a 70 (setenta) anos na lei brasileira nº 9.610/98, porém, a legislação
brasileira própria sobre o tema, a Lei nº. 9.609/98, designa o prazo de 50 (cinquenta) anos,
especificamente para programas de computador.
Ora, de um lado temo o interesse do titular e/ou autor dos direitos, entanto, do outro lado,
o interesse do usuário em ter acesso às informações que circulam no ambiente digital. Outro
panorama que deve ser observado é que não se aplica ao programa de computador as disposições
relativas aos direitos morais, notado, a qualquer tempo, o Direito de Autor de reivindicar a
paternidade do programa de computador e de opor-se a alterações não autorizadas, quando
elas implicarem deformação, mutilação ou outra modificação do programa de computador
que prejudiquem a sua honra ou a sua reputação.

2. A PATENTEABILIDADE DO PROGRAMA DE COMPUTADOR NO


CAMPO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
Agora versamos sobre alguns esclarecimentos sobre a proteção de patentes para
invenções decorrentes de software. Apesar de termos explicado que a proteção dos programas
de computador se dá pela legislação de Direito Autoral, observaremos a possibilidade de
obtenção de patente para uma invenção implementada por programa de computador, como
base, teremos então, a aplicação da IA já discutida neste trabalho.

5
Essa lei é conhecida como Lei de Software.

— 461 —
O impacto da inteligência artificial no direito intelectual e no mercado tecnológico
camila Maria de Moura Vilela

2.1. O programa de computador e a inteligência artificial


Um importante é a inovação no setor de software, que se tornou fonte geradora de
progresso econômico, social e tecnológico. Como qualquer outra atividade inovadora da
indústria tecnológica, a IA depende de proteções jurídicas pela Propriedade Intelectual.
Por isso, a proteção jurídica visa compensar o criador pela contribuição criativa trazida à
sociedade. Sendo assim, é extremamente importante que não existam barreiras no trâmite da
proteção, podendo favorecer ao autor a utilização dos seus bens intelectuais.
As transações que envolvem a aplicação nos sistemas da AI envolve o Direito Intelectual
de alguma forma, seja em relação ao registro do ativo intangível, como por exemplo o programa
de computador ou na transferência intelectual desses bens, através de um licenciamento.
O Evento Web Summit 2017, um dos maiores eventos de empreendedorismo do mundo,
foi marcado por temáticas sobre IA, robôs, carros autônomos, blockchain, realidade virtual,
startups e diversas novas tecnologias. Um grande destaque foi a presença da robô Sophia,
mencionada acima, e o robô Einstein, inspirado em Albert Einstein. Outro fato que merece
destaque, foi a presença surpresa de Stephen Hawking na abertura do Web Summit 2017, por
meio de videoconferência, e em seu depoimento ressaltou sua opinião sobre o impacto da
robótica e da IA no futuro humanoide.
Em relação a IA, com o avanço tecnológico acredita-se que no futuro robôs inteligentes
passarão a fazer parte do nosso cotidiano, pois, boa parte das ideias que surgem no mercado
para suprirem alguma necessidade precisam de um suporte tecnológico para funcionamento.
Como exemplo, em São Francisco, o Café X, os clientes são servidos por um braço robótico
que prepara o café, a bebida é solicitada através de um aplicativo de telefone por meio da
utilização dos quiosques habilitados para Ipad.
Cumpre ressaltar, que o presente tema, como qualquer outro de natureza interdisciplinar,
requer atenção. Nesse sentido, é essencial a sensibilização das empresas e dos empresários
para a necessidade de salvaguarda dos seus direitos relativos à Propriedade Industrial.

2.2. A patenteabilidade das invenções implantadas por computador


Nesse contexto apresentado, outro ponto a ser discutido, e já mencionado neste
trabalho, é a possibilidade da patente das invenções implementadas por computador e suas
funcionalidades, ou seja, a proteção aplicada no âmbito da IA. Tendo em vista que a IA traz
soluções tecnológicas para o mercado por meio de invenções que possibilitam a execução de
tarefas, tornando mais eficiente e mais forte a aplicação do programa de computador.
Vale destacar, que o objeto não são as patentes de programas do computador, e sim,
a preocupação com a proteção jurídica das invenções implantadas por ele, levando-se em
consideração todos os interesses envolvidos e o uso de medidas e normas já interpretada neste
trabalho como algo que poderá acarretar na patenteabilidade ou não de uma invenção que
envolve um programa de computador.

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O impacto da inteligência artificial no direito intelectual e no mercado tecnológico
camila Maria de Moura Vilela

A Diretiva 91/250/CEE do Conselho, de 14 de Maio de 1991, relativa à proteção jurídica


dos programas de computador foi a primeira fonte de direito com importância para Portugal,
assim como, o Decreto n.º 52/91, de 30 de Agosto que aprovou a CPE, passando a produzir
efeitos em Portugal a 1 de Janeiro de 1992. Nesta Diretiva, a Comissão reconhece o papel
dos programas de computador como instrumento importante para a indústria, considerando
também os efeitos decorrentes da proteção jurídica dos programas de computador como algo
positivo para o crescimento do mercado. Na sequência, observa-se que nenhuma disposição
fornece uma definição clara sobre o que é programa de computador, apenas utiliza tal expressão
em sua redação, também não definindo o software, hardware e o código fonte ou objeto.
Ademais, o IEP exige que uma invenção que envolva programa de computador só
receberá a proteção patentária caso apresente um efeito técnico. Assim sendo, no Brasil, a Lei
da Propriedade Industrial (LPI) regula a concessão de patente, dispondo que é patenteável uma
invenção que atenda aos requisitos de novidade, atividade inventiva e aplicabilidade industrial,
dessa forma, excluindo expressamente a possibilidade do programa de computador.
Outro aspecto relevante é que a LPI surgiu com a necessidade de harmonizar a legislação
nacional com os acordos internacionais, principalmente com relação ao Acordo TRIPS da
OMC. Esta legislação ainda adota o princípio da novidade absoluta em matéria de patente, ou
seja, não existe um limite temporal ou espacial.
Em dezembro de 2016, o INPI do Brasil, publicou suas Diretrizes de Exame de Pedidos de
Patentes envolvendo Invenções Implementadas por Programas de Computador, a Resolução
nº. 158/2016. Essas diretrizes determinam requisitos essenciais para que tecnologias
implementadas por programas computador sejam patenteáveis, considerando que a Lei de
Propriedade Industrial Brasileira, em seu artigo 10, inciso V, proíbe expressamente a concessão
de patentes para programas de computador em si, por não os considerar invenções.
Em resumo, essas novas Diretrizes tornam aplicáveis aos pedidos de patente brasileiros
os mesmos princípios já usados pelo Escritório de Patentes Europeu para conceder patentes
sobre invenções implementadas por programas de computador. Conclui-se que, os critérios
adotados no Brasil para a patenteabilidade das invenções que envolvem programas de
computador se aproximam das diretrizes impostas pelo IEP.
Por fim, uma importante observação sobre o tema, a lei não faz distinção entre os
sistemas operacionais e programas aplicativos, podendo amos serem passíveis de proteção.
Acrescentando ainda que uma patente tem por objeto a invenção, sendo uma solução técnica
para um problema técnico. Neste caso, se um software for mencionado em um pedido de
patente, deve-se considerar as implicações que a invenção por meio do programa de computador
possa executar. A grande preocupação acerca do assunto, tanto no âmbito brasileiro quanto
português são os critérios de patenteabilidade das invenções que envolvem programas de
computador.
Além das previsões expressas nas legislações, podemos ressaltar que há diferentes formas
de proteção às criações que envolvem os programas de computador. Pelo Direito Autoral, a
proteção do programa de computador recai como uma obra literária, protegendo os aspectos
literais e o tendo como elemento o código fonte ou o código objeto.

— 463 —
O impacto da inteligência artificial no direito intelectual e no mercado tecnológico
camila Maria de Moura Vilela

A proteção dos programas de computador pelos diversos institutos relativos à Propriedade


Intelectual agrega valor do produto ao mercado. Por tudo isso, reforça-se mais uma vez que o
que é patenteável é a invenção ligada ao software. O que defendemos, saliente-se, é que desde
que um programa de computador resolva problemas análogos aos exemplos apresentados
deve ser considerado uma invenção. Não defendemos, por outro lado, que qualquer método de
processamento de dados, ainda que útil, possa ser considerado uma invenção. Julgamos ainda
que como exemplos práticos a essa proteção jurídica deve-se ter em mente a patenteabilidade
inventiva do programa de computador, neste trabalho aplicada através da IA, assim como,
quais os critérios ou não das invenções que, neste caso, envolvam programa de computador.
Enfim, a Propriedade Intelectual recai não ao software¸, mas às invenções que envolvam um
software.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Chega-se ao momento de tecer algumas observações finais acerca do tema aprofundado,
nas medidas e condições em que fora traçado no presente trabalho. Num paralelo, podemos
ainda observar e destacar o que a tecnologia nos proporciona e suas contribuições em vista
do progresso das relações inovadoras entre organizações, grupos e indivíduos, nos levando
a entender melhor o que está por trás dos recursos tecnológicos que utilizamos em nosso
cotidiano. Por isso, nasce a necessidade de entender como um programa de computador é
protegido, visto estar presente nas funções tecnológicas diárias, especialmente no que tange
acerca da Inteligência Artificial.
Como vimos, programa de computador em si não pode ser alvo da concessão de patente,
porém, as invenções decorrentes do programa de computador sim. A legislação portuguesa
e brasileira, apesar de serem extremamente recente, já se encontram ultrapassada, devido os
avanços tecnológicos.
Os principais prejudicados são os interesses dos titulares de direitos e os usuários, que
estão numa situação de subserviente, pois, apesar da previsão legal, ainda faltam critérios
específicos acerca do tema. Todavia, cabe à sociedade como um todo, mas sobretudo aos
investigadores e as decisões políticas, perceber de que forma é possível garantir o equilíbrio
possível entre dois caminhos aparentemente conflituosos.
Podemos observar que um programa de computador pode incorporar soluções técnicas
e executar certas ações práticas, tendo um caráter utilitário. Como é óbvio, aos falarmos da
IA e sua aplicação, remetemos a utilidade do programa de computador, por isso, dizer-se que
ambos se incorporam e daí surge a invenção decorrente de um programa de computador.
Por fim, vale ressaltar que a evolução tecnológica transcende as legislações, visto, o
avanço que podemos perceber das máquinas, suas mecanizações e a inserção no mercado nas
realizações de funções.
Nesta linha de raciocínio, o presente trabalho buscou apresentar uma pequena contribuição
para a discussão do tema, mais uma vez se reforça a ideia do quanto é importante não se
deixar de lado os aspectos jurídicos que envolvem a proteção da IA quando tocamos nesse
assunto. Pois, o Direito Autoral e a Propriedade Industrial se aplicam nessas relações, além,

— 464 —
O impacto da inteligência artificial no direito intelectual e no mercado tecnológico
camila Maria de Moura Vilela

da transformação que a tecnologia sobrecarrega em nossa sociedade. Sendo então, preciso


ter conhecimento sobre o tema não só em torno das conceituações, como também, na esfera
protetiva jurídica.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Decreto n° 2.556, de 20 de abril de 1998. Regulamenta o registro previsto no art. 3o da Lei
nº 9.609, de 19 de fevereiro de 1998. Brasília, DF, 1998b.
BRASIL. Lei n° 9.279, de 14 de maio de 1996. Regula direitos e obrigações relativos à propriedade
industrial. Brasília, DF, 1996.
BRASIL. Lei n° 9.609, de 19 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre a proteção da propriedade intelectual
de programa de computador, sua comercialização no País, e dá outras providências. Brasília,
DF, 1998a.
Estudo da OMPI sobre as Tendências da Tecnologia em 2019: Inteligência Artificial. Disponível em:
https://www.wipo.int/edocs/pubdocs/pt/wipo_pub_1055_exec_summary.pdf
LUGER, George F. Inteligência Artificial. Estruturas e Estratégias para a Solução de Problemas
Complexos. 4ª ed. Porto Alegre: Bookman. 2004.
The Hanson Robotics. Disponível em: http://www.hansonrobotics.com/about/company/.
VIEIRA, José Alberto Coelho. A protecção dos programas de computador pelo Direito de Autor.
Lisboa: Lex, 2005.
World Trade Organization (OMC), disponível em https://www.wto.org/english/thewto_e/whatis_e/
tif_e/org6_e.htm.

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Pasado, presente y futuro de la sociedad de la
información en la Unión Europea:
referencia a la agenda digital para Europa

José Enrique Anguita Osuna1


Fernando Suárez Bilbao2

Resumen: De forma paralela al avance del proceso de integración europea, a lo largo de las últimas
décadas, se ha observado no solamente en la Unión Europea sino en gran parte del mundo una transformación
tecnológica basada en la introducción y consolidación de las tecnologías de la información y comunicación,
entre las que se pueden destacar los teléfonos móviles, Internet y los sistemas de comunicación y entrega
digital de alta velocidad, los cuales han supuesto una auténtica revolución en gran parte de los Estados de
nuestro alrededor. La Unión Europea se ha propuesto construir una Sociedad de la Información europea, por
lo que ha adoptado un conjunto de normas, medidas y políticas para conseguir dicho objetivo. La Unión ha
establecido como uno de sus objetivos la promoción de la difusión y desarrollo de las nuevas tecnologías de
la información y la comunicación a través de la entrada en vigor de normas que faciliten la relaciones entre
las empresas y los clientes, así como entre las Administraciones Públicas y sus ciudadanos, de modo que
quede garantizado un acceso justo y asequible a las redes, los servicios y la información, y que al mismo
tiempo, se eliminen todos los obstáculos para desarrollar con eficacia las relaciones comerciales y la libre
competencia. Entre las medidas más significativas que la Unión ha adoptado para conseguir dicho objetivo
se encuentran la iniciativa Europa 2020, estrategia de la Unión Europea para proporcionar un crecimiento
inteligente, sostenible e inclusivo, y la Agenda Digital para Europa.
Palabras clave: Unión Europea, Sociedad de la Información, nuevas tecnologías, ciudadanos,
normativa.

Abstract: Parallel to the progress of the european integration process, over the last decades, a
technological transformation based on the introduction and consolidation of information technologies has

1
Doctor por la Universidad Rey Juan Carlos. Profesor de Historia del Derecho y las Instituciones
de la Universidad Rey Juan Carlos. Email: joseenrique.anguita@urjc.es
2
Doctor por la Universidad Rey Juan Carlos. Catedrático de Historia del Derecho y las Institucio-
nes de la Universidad Rey Juan Carlos. Email: fernando.suarez@urjc.es

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Pasado, presente y futuro de la sociedad de la información en la Unión Europea: referencia a la agenda digital para Europa
José Enrique Anguita Osuna - Fernando Suárez Bilbao

been observed not only in the European Union but in much of the world, among which we can highlight
mobile phones, the Internet and high-speed digital communication and delivery systems, which have
brought about a real revolution in a large part of the States around us. The European Union has set out to
build a European Information Society, which is why it has adopted a set of rules, measures and policies to
achieve this objective. The Union has established as one of its objectives the promotion of the diffusion and
development of new information and communication technologies through the entry into force of regulations
that facilitate relations between companies and customers, as well as between Public administrations and
their citizens, so that fair and affordable access to networks, services and information is guaranteed, and
at the same time, all obstacles to effectively developing trade relations and free competition are removed.
Among the most significant measures that the Union has taken to achieve this objective are the Europe
2020 initiative, the European Union’s strategy to provide smart, sustainable and inclusive growth, and the
Digital Agenda for Europe.
Keywords: European Union, Information Society, new technologies, citizens, regulations.

1. INTRODUCCIÓN
Desde finales del siglo XX en el mundo se ha estado produciendo una auténtica
revolución tecnológica basada en el uso de las tecnologías de la información, que ha supuesto
la transformación de las economías mundiales en economías interdependientes a nivel global,
introduciendo una nueva relación entre el Estado, la sociedad y la economía3.
Estas novedades tecnológicas han permitido crear y desarrollar la actual Sociedad de
la Información en la que Internet es en uno de los pilares que la apuntalan. En este orden
de ideas, Díaz de Terán sostiene que Internet se ha convertido en uno de los mecanismos
clave que permiten formarla, definiéndola como “una infraestructura universal, quizá la más
lograda hasta el momento, a través de la cual se emite y recibe información en cualquiera
de sus formas -oral, escrita o visual-, con origen y destino en cualquier lugar del mundo”.
Además, continúa añadiendo que, gracias a la creación de Internet, se ha impulsado la Sociedad
de la Información, constituida por una comunidad virtual, digital, tecnológica y electrónica
que ha permitido ofrecer una enorme cantidad de información nunca vista anteriormente,
consagrando lo que se ha conocido como la red de redes4.
La relación existente entre la sociedad, el uso de las nuevas tecnologías de la información
y comunicación, y la gestión de la información es un hecho evidente y relevante hoy en día.
Esta postura es respaldada, entre otros, por Ruiz-Moyano, quien apunta que actualmente la
sociedad se encuentra en un proceso de transformación, en el que influyen factores geográficos,
sociales, culturales o relativos a la edad, que ha supuesto la creación de la conocida como
Sociedad de la Información o sociedad en red, la cual se basa en la incorporación del uso de
las nuevas tecnologías de la información y la comunicación en las relaciones humanas5.

3
CASTELLS, M. La era de la información. Economía, sociedad y cultura. Vol. 1. La sociedad Red.
Madrid: alianza editorial, 1999, p. 27.
4
DÍAZ DE TERÁN VELASCO, M. C. El desarrollo de la Sociedad de la Información: pilares para
su regulación. En: MEJÍAS QUIRÓS, J. J. (coord.) Sociedad de la Información: derecho, libertad, comu-
nidad. Pamplona: Aranzadi, 2007, pp. 95-98.
5
RUIZ-MOYANO PÉREZ, Mª. J. Política de la Sociedad de la Información. Madrid: Universidad
Autónoma de Madrid. Biblioteca Facultad de Económicas, Centro de Documentación Europea, 2017, p. 4.

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Pasado, presente y futuro de la sociedad de la información en la Unión Europea: referencia a la agenda digital para Europa
José Enrique Anguita Osuna - Fernando Suárez Bilbao

La construcción de la Sociedad de la Información ha sido un objetivo tanto a nivel


internacional como a nivel europeo. Por un lado, se celebró la relevante cumbre mundial sobre
la Sociedad de la Información en 2005 en Túnez, en la que, entre otras cuestiones, se abordaban
los temas relativos al control y regulación de Internet6. Por otro lado, la Unión Europea fue
consciente de la importancia que acabarían teniendo las nuevas tecnologías de la información
y la comunicación y de la transformación que supondrían en la sociedad europea. Así que,
con el inicio del siglo XXI, el antiguo presidente de la Comisión Europea, Romano Prodi,
anunció una nueva revolución industrial y cultural refiriéndose a ella como una revolución
silenciosa en la que se destacaba la clara presencia de Internet, de las telecomunicaciones y
de los medios en la configuración de la nueva Sociedad del Conocimiento, y declaró que “…
esta revolución está generando un nuevo modelo de sociedad, la Sociedad de la Información
o del Conocimiento”7.
En definitiva, a continuación, se pretende arrojar luz sobre cómo ha ido trabajando la
Unión Europea en los últimos años en su objetivo de construir una Sociedad de la Información
europea y una Agenda Digital para Europa, mostrando los orígenes de estas iniciativas,
y como se han ido desarrollando hasta su configuración actual. Para abordar este estudio
nos serviremos de diferentes fuentes, entre las que se encuentra una variada bibliografía,
normativa e informes procedentes de diferentes instituciones, que nos permitirán observar el
pasado, presente y futuro de la Sociedad de la Información en la Unión Europea.

2. LA SOCIEDAD DE LA INFORMACIÓN EN LA UNIÓN EUROPEA

2.1. Conceptualizacion
La adquisición de información y su gestión ha ido acaparando importancia y poder a lo
largo de la historia. Según ponen de manifiesto Salvat y Serrano, durante la Edad Moderna y
principalmente desde el siglo XVIII “la información y su circulación han tenido una presencia
decisiva y determinante en la historia de los acontecimientos y en la vida social”. A partir
de la década de los años 80 del siglo pasado el sociólogo japonés Yoneji Masuda empezó a
generalizar el uso del término de “Sociedad de la Información”, vinculándolo con el concepto
de construcción de la sociedad postindustrial, como sucesora de la sociedad industrial. En
este contexto, la información se acabaría convirtiendo en un factor clave y determinante en
la actividad económica8.
En la actualidad la Sociedad de la Información se puede observar y definir de diferentes
formas. A modo de ejemplo, Ruiz-Moyano la define como “una fase del desarrollo social
en la que los ciudadanos, organismos o empresas pueden obtener, y compartir información
de manera instantánea desde cualquier lugar ofreciendo igualdad de oportunidades.

6
DÍAZ DE TERÁN VELASCO, M. C. El desarrollo de […], op. cit., p. 99.
7
PESQUERO FRANCO, E. Sociedad de la información y educación. Propuestas educativas de la
Unión Europea para el nuevo modelo de sociedad En: Revista Complutense de Educación, Vol. 12, nº 1,
2001, p. 320.
8
SALVAT MARTINREY, G., SERRANO MARÍN, V. La revolución digital y la Sociedad de la
Información. Zamora: Comunicación Social, 2011, pp. 13-14.

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Pasado, presente y futuro de la sociedad de la información en la Unión Europea: referencia a la agenda digital para Europa
José Enrique Anguita Osuna - Fernando Suárez Bilbao

El desarrollo de esta nueva sociedad virtual supone un cambio radical en la manera de


relacionarse”9.

2.2. Evolución del marco normativo


Antes de que la Sociedad de la Información se regulará desde un punto de vista jurídico
en las normas de la Unión Europea, a partir de la década de los años 80 del siglo pasado se
fueron adoptando una serie de iniciativas comunitarias para crear lo que hoy se conoce como
la Sociedad de la Información europea. Entre estas acciones, orientadas a fomentar el uso de
las tecnologías de la información y comunicación (TIC) destacaron dos iniciativas pioneras
en la materia: por un lado, el programa ESPRIT de 1984 (European Strategic Programme for
Research in Information Technology) y, por otro lado, el programa RACE de 1986 (Programa
de las Tecnologías de la telecomunicación avanzadas). Según avanzaba el tiempo se fueron
dando aún mas pasos hacia la creación de la pretendida Sociedad de la Información europea10:
en 1987 se elaboró el Libro Verde de las telecomunicaciones, que fomentó el debate para
crear Sociedad de la Información en Europa; en 1992 se firmó el Tratado de Maastricht, en el
que se acordó aprobar fondos económicos para financiar las telecomunicaciones europeas; en
1994 se publicó la comunicación de la Comisión titulada “Europa en marcha hacia la Sociedad
Global de la Información. Plan de actuación”11; en 1998 se adoptó el Libro Verde sobre la
Información del Sector Público en la Sociedad de la Información12; o en 1999 la Comisión
elaboró los principios y directrices de la política comunitaria en el sector audiovisual, dando el
paso a una nueva era digital y a un modelo económico digital basado en el conocimiento13.
Por tanto, ha quedado patente el gran trabajo que la Unión ha logrado desempeñar en las
últimas décadas con la incorporación de medidas para crear la Sociedad de la Información
europea y apostar por la utilización de las tecnologías digitales, hasta llegar a construir el
vigente marco normativa que regula la materia que hemos planteado.
La Sociedad de la Información europea no está regulada en los Tratados de forma
concreta sino más bien de forma genérica. Se observan algunas menciones a la utilización
de las nuevas tecnologías de la información y comunicación en las políticas y cuestiones
relevantes recogidas en el Tratado de Funcionamiento de la Unión Europea (TFUE): política
industrial (artículo 173 TFUE), política de competencia (artículos 101 a 109 TFUE), política
comercial (artículos 206 y 207 TFUE), política de redes transeuropeas (artículos 170 a 172
TFUE), política de investigación y el desarrollo tecnológico y el espacio (artículos 179 a 190
TFUE), aproximación de las legislaciones para mejorar el establecimiento y el funcionamiento
del mercado interior (artículo 114 TFUE), la libre circulación de mercancías (artículos 28, 30

9
RUIZ-MOYANO PÉREZ, Mª. J. Política de la […], op. cit., p. 4.
10
RUIZ-MOYANO PÉREZ, Mª. J. Política de la […], op. cit., p. 7.
11
COMISIÓN EUROPEA. Comunicación de la Comisión de las Comunidades Europeas al Consejo
y al Parlamento Europeo y al Comité Económico y Social y al Comité de las Regiones sobre “Europa hacia
la sociedad de la información. Plan de acción”, COM (94) 0347.
12
SIERRA CABALLERO, F. Ciudadanía digital y Sociedad de la Información en la Unión Europea.
Un análisis crítico En: Andamios, Vol. 9, nº 19 mayo-agosto, 2012, p. 266.
13
RUIZ GÓMEZ, L. M. La Unión Europea en la Sociedad de la Innovación y el Conocimiento. Plan
eEurope e iniciativa i2020 En: Revista Universitaria Europea, nº 12 enero-junio, 2010, p. 89.

— 469 —
Pasado, presente y futuro de la sociedad de la información en la Unión Europea: referencia a la agenda digital para Europa
José Enrique Anguita Osuna - Fernando Suárez Bilbao

y 34 y 35 TFUE), la libre circulación de personas, servicios y capitales (artículos 45 a 66


TFUE), la educación, la formación profesional, la juventud y el deporte (artículos 165 y 166
TFUE) y la cultura (artículo 167 TFUE)14.

2.3. Principales programas
En relación con los programas que se han ido aplicando en los últimos años relativos a
la Sociedad de la Información, la Comisión Europea ha creado varias iniciativas para apoyar
el trabajo y el desarrollo en algunos ámbitos importantes para garantizar la consolidación de
la Sociedad de la Información.
En primer lugar, podemos referirnos al programa Safer Internet, desarrollado entre los
años 1999 y 2004, y posteriormente sustituido por el programa Safer Internet plus, el cual se
desarrolló entre los años 2005 y 2008. Este programa comunitario plurianual se centraba en
proteger a los niños en el uso de Internet y de otras tecnologías de la comunicación15.
El Programa eEurope16 se aprobó en la Cumbre europea de Lisboa en marzo del 2000,
donde se recogían un conjunto de medidas que tanto la Unión Europea como la Comisión
Europea desarrollaron para avanzar en la Sociedad de la Información y la Sociedad del
Conocimiento. En términos generales los objetivos principales de este programa fueron
los siguientes: crear una Internet más barata, rápida y segura, aumentar la inversión en la
formación y fomentar la utilización de Internet17. Este programa acabaría siendo sustituido
por el programa eEurope 200518 y el programa i201019.
En cuanto al uso de las nuevas tecnologías y la protección de los ciudadanos europeos, a
partir del año 2003 se empezó a desarrollar el programa comunitario Esafety con el objetivo de
reducir la mortalidad de los accidentes de tráfico para el año 2010, de modo que la Comisión
Europea propuso el uso de las tecnologías de la información y la comunicación para construir

PARLAMENTO EUROPEO. Fichas técnicas sobre la Unión Europea. Una Agenda digital para
14

Europa, 2019, (www.europarl.europa.eu/factsheets/es), p. 1.


15
http://www.madrid.org/cs/Satellite?blobcol=urldata&blobheader=application%2Fpdf&blo
bkey=id&blobtable=MungoBlobs&blobwhere=1352807270345&ssbinary=true (fecha de consulta:
11.03.2020).
16
COMISIÓN EUROPEA. Comunicación relativa a una iniciativa de la Comisión para el Consejo
Europeo extraordinario de Lisboa de 23 y 24 de marzo de 2000: eEurope - Una sociedad de la información
para todos. Bruselas, 8.12.1999, COM (1999) 542 final.
17
PARAJÓN COLLADA, D. La vía europea hacia la Sociedad del Conocimiento En: Navarra y la
sociedad del conocimiento: actas del congreso. Navarra: Gobierno de Navarra, 2001, p. 179.
18
COMISIÓN EUROPEA. Comunicación de la Comisión al Consejo y al Parlamento Europeo, al
Comité Económico y Social y al Comité de las Regiones. eEurope 2005: Una sociedad de la información
para todos. Plan de acción que se presentará con vistas al Consejo Europeo de Sevilla, 21-22 de junio de
2002. Bruselas, 28.5.2002, COM (2002) 263 final.
19
COMISIÓN EUROPEA. Comunicación de la Comisión al Consejo y al Parlamento Europeo, al
Comité Económico y Social y al Comité de las Regiones. i2010 - Una sociedad de la información europea
para el crecimiento y el empleo”. Bruselas, 1.6.2005, COM (2005) 229 final.

— 470 —
Pasado, presente y futuro de la sociedad de la información en la Unión Europea: referencia a la agenda digital para Europa
José Enrique Anguita Osuna - Fernando Suárez Bilbao

vehículos más seguros e inteligentes, y así aumentar la seguridad y reducir los accidentes en
las carreteras europeas20.
Tras la crisis económica y social mundial que se vivió durante la pasada década la Unión
y la propia Comisión Europea se decidieron a revertir esa situación, por lo que se propusieron
aprobar nuevas políticas y medidas con el objeto de estar en la disposición de hacer frente a
los retos que la Unión Europea y sus ciudadanos debían afrontar. En este sentido, se aprobó
la estrategia Europa 2020, que es una estrategia de crecimiento de la Unión Europea para la
década 2010 al 2020 concebida para ayudar a salir fortalecidos de la crisis y convertir a la
Unión en una economía inteligente, sostenible e integradora que disfrutara de altos niveles de
empleo, de productividad y de cohesión social21.

2.4.  Especial referencia a la Agenda Digital para Europa


Fruto de la estrategia Europa 2020 surgió la Agenda Digital para Europa, como una de
sus siete iniciativas emblemáticas, con el propósito de conseguir la necesaria aplicación de las
nuevas tecnologías de la información y la comunicación para que la Unión pudiera cumplir
sus retos de futuro, y llegar a convertirse en una auténtica Europa Digital. En definitiva, la
finalidad genérica de la Agenda Digital es “obtener los beneficios económicos y sociales
sostenibles que pueden derivar de un mercado único digital basado en una internet rápida y
ultrarrápida y en unas aplicaciones interoperables”. Teniendo como objetivo preferente el
establecimiento de un rumbo que contribuya a aumentar el potencial económico y social de
las tecnologías de la información y comunicación, y concretamente, con el uso adecuado de
internet, como instrumento clave en el desarrollo de las actividades económicas y sociales,
la Agenda trata de fomentar “la innovación, el crecimiento económico y la mejora de la vida
cotidiana tanto para los ciudadanos como para las empresas”22.
Los campos de actuación que plantea la Agenda Digital para cumplir sus objetivos son
los siguientes: la creación de un mercado único digital dinámico que permita acceder a todas
las ventajas que aporta la era digital; crear una auténtica interoperabilidad entre los productos
y servicios de TI; hay que crear un marco digital en el que se pueda confiar y sea seguro; se
necesita una internet muy rápida; se debe apostar por la investigación e innovación; en la era
digital se debe fomentar la alfabetización, la capacitación y la inclusión digital; finalmente,
los beneficios que producen las TIC deben repercutir en la sociedad de la Unión, mediante
el uso de las TIC para proteger el medio ambiente, crear una atención sanitaria sostenible o
promover la diversidad cultural23.

20
COMISIÓN EUROPEA. Comunicación de la Comisión al Consejo y al Parlamento Europeo. Las
tecnologías de la información y las comunicaciones al servicio de vehículos seguros e inteligentes. Bruse-
las, 15.9.2003, COM (2003) 542 final.
21
COMISIÓN EUROPEA, Comunicación de la Comisión. Europa 2020. Una estrategia para un
crecimiento inteligente, sostenible e integrador, Bruselas, 3.3.2010, COM (2010) 2020 final, p. 5.
22
COMISIÓN EUROPEA. Comunicación de la Comisión al Parlamento Europeo, al Consejo, al
Comité Económico y Social Europeo y al Comité de las Regiones. Una Agenda Digital para Europa. Bru-
selas, 19.5.2010, COM (2010) 245 final, p. 3.
23
Ibídem, pp. 8-38.

— 471 —
Pasado, presente y futuro de la sociedad de la información en la Unión Europea: referencia a la agenda digital para Europa
José Enrique Anguita Osuna - Fernando Suárez Bilbao

3. CONCLUSIONES
El desarrollo de la Sociedad de la Información europea se ha producido de forma paralela
al proceso de integración comunitario, llevando a cabo, en un principio, medidas orientadas
a la construcción de la Sociedad de la Información algo más tímidas que, con el paso del
tiempo, se han convertido en un gran conjunto de medidas políticas y normativas con mas
peso, que han permitido consolidar la creación de la Sociedad de la Información en Europa.
El futuro de la Unión en este campo es prometedor, puesto que sigue trabajando sin
descanso para mejorar la calidad de vida de los ciudadanos europeos y avanzando en el proceso
de construcción europea, profundizando en el desarrollo de sus políticas, como la Sociedad
de la Información, mediante la implementación de nuevos programas como Europa Creativa
para los años 2014-2020, aprobando normas de derecho comunitario como la directiva de
2019 sobre los derechos de autor24 y, en definitiva, adoptando políticas para crear un mercado
digital europeo que contemple aspectos variados como el comercio electrónico, la privacidad
electrónica, la ciberseguridad y la armonización de los derechos digitales25.
No obstante, a pesar del gran esfuerzo realizado por la Unión en este campo, hemos de
señalar algunos de los principales riesgos, apuntados por Díaz de Terán, que pueden estar
vinculados al futuro de la Sociedad de la Información europea: la hiperinformación o la falta
de veracidad de la información, así como las diferentes vías ilegales para conseguirla; la brecha
digital, que supone una clara discriminación entre las personas ricas y pobres y aquellas que
tienen una alta cualificación y los que no la tienen; la intimidad y privacidad de las personas;
los problemas vinculados al desarrollo personal tanto por abuso como por la carencia de
moderación y uso responsable de las nuevas tecnologías de la información; los problemas
que pueden provocar en los estratos de la población más débiles, como son los menores que
pueden llegar a convertirse en víctimas de delitos sexuales; la comisión de delitos vinculados
al comercio electrónico y transacciones bancarias; la existencia de potentes virus informáticos
pueden hundir los sistemas y aparatos informáticos de la ciudadanía y gobiernos; y los delitos
aparejados a la vulneración de la propiedad intelectual e industrial26.
En definitiva, la incorporación de las nuevas tecnologías de la información y la
comunicación en nuestro día a día ha supuesto un cambio radical en las relaciones entre las
personas, empresas, Administraciones Públicas, Estados y organizaciones internacionales.
Gracias a ellas se ha adquirido mucha más información y gestionado de una forma más eficaz
el conocimiento, lo que ha permitido tanto dentro de la Unión Europea como en los propios
Estados miembros aumentar el crecimiento económico, mejorar la cohesión social, y acercar el
uso de las tecnologías digitales a más personas y colectivos. Por tanto, con el enorme esfuerzo
desempeñado por la Unión a lo largo de los años, no solamente se ha logrado construir una
Sociedad de la Información europea, sino que también está centrando todos sus esfuerzos en
convertir la Unión Europea en una auténtica Europa Digital.

Directiva (UE) 2019/790 del Parlamento Europeo y del Consejo de 17 de abril de 2019 sobre los
24

derechos de autor y derechos afines en el mercado único digital y por la que se modifican las Directivas
96/9/CE y 2001/29/CE, DOUE de 17.5.2019, L 130.
25
PARLAMENTO EUROPEO. Fichas técnicas sobre […], op. cit, p. 1.
26
DÍAZ DE TERÁN VELASCO, M. C. El desarrollo de […], op. cit., pp. 100-101.

— 472 —
Pasado, presente y futuro de la sociedad de la información en la Unión Europea: referencia a la agenda digital para Europa
José Enrique Anguita Osuna - Fernando Suárez Bilbao

REFERENCIAS

Bibliografía
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Madrid: Alianza Editorial, 1999.
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y al Parlamento Europeo y al Comité Económico y Social y al Comité de las Regiones sobre
“Europa hacia la sociedad de la información. Plan de acción”, COM (94) 0347.
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Europeo extraordinario de Lisboa de 23 y 24 de marzo de 2000: eEurope - Una sociedad de la
información para todos. Bruselas, 8.12.1999, COM (1999) 542 final.
COMISIÓN EUROPEA. Comunicación de la Comisión al Consejo y al Parlamento Europeo, al
Comité Económico y Social y al Comité de las Regiones. eEurope 2005: Una sociedad de la
información para todos. Plan de acción que se presentará con vistas al Consejo Europeo de
Sevilla, 21-22 de junio de 2002. Bruselas, 28.5.2002, COM (2002) 263 final.
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Bruselas, 19.5.2010, COM (2010)245 final.
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comunidad. Pamplona: Aranzadi, 2007, pp. 95-120.
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Autónoma de Madrid. Biblioteca Facultad de Económicas, Centro de Documentación Europea,
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SALVAT MARTINREY, G., SERRANO MARÍN, V. La revolución digital y la Sociedad de la
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Webgrafía
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d&blobtable=MungoBlobs&blobwhere=1352807270345&ssbinary=true (fecha de consulta:
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Legislación
Directiva (UE) 2019/790 del Parlamento Europeo y del Consejo de 17 de abril de 2019 sobre los
derechos de autor y derechos afines en el mercado único digital y por la que se modifican las
Directivas 96/9/CE y 2001/29/CE, DOUE de 17.5.2019, L 130.
Tratado de Funcionamiento de la Unión Europea (versión consolidada), DOUE de 26.10.2012, C 326.

— 474 —
Os direitos humanos e o mundo tecnológico – a
utilização (não) abusiva da internet:
contribuição ou penalização
da dignidade da pessoa humana?

Patrícia Pinto Alves1

Resumo: O presente trabalho de investigação jurídica incide acerca da temática IV subordinada ao


tema: “Desafios dos direitos humanos no mundo tecnológico”. Na atualidade em que vivemos, cada vez
mais, os direitos humanos são tidos em consideração, ou pelo menos devem ser tidos em consideração, nos
variados aspetos do nosso quotidiano. A dignidade da pessoa humana deve ser respeitada estando consagrada
constitucionalmente na Constituição da República Portuguesa (CRP), e, simultaneamente, articulada com
as novas tecnologias e os prós e contras que a sua utilização acarretam para os indivíduos utilizadores.
Ora, as novas tecnologias, por vezes, afetam negativamente os indivíduos, na medida em que geram (ou
podem gerar) desemprego. Por outro lado, facilitam em muitos aspetos a vida de determinados indivíduos,
na medida em que a internet permite aos indivíduos trabalhar a partir de suas casas em determinadas
situações – o denominado teletrabalho – assim como estar em contato online direto com as suas entidades
empregadoras em qualquer parte do mundo. Também consideramos ser um direito humano do indivíduo ter
acesso à internet para o seu lazer, para efetuar compras online, entre outros aspetos, sendo que, a utilização
abusiva e para fins ilícitos da internet é punida penalmente, e contraordenacionalmente se for o caso.
Ao nível social e humanitário, através da internet, muitas Instituições Particulares de Solidariedade
Social (doravante IPSS`s), podem e poderão fazer campanhas solidárias para angariação de fundos

1
Doutoranda em Direito Público na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - Portugal;
Mestre em Direito Administrativo pela Escola de Direito da Universidade do Minho – Braga - Portugal e
Licenciada em Direito pela Escola de Direito da Universidade do Minho; Investigadora jurídica na AE-
DREL (Associação de Estudos de Direito Regional e Local); no NEDip (Núcleo de Estudos de Direito Ius
Pubblicum) e no Núcleo 5 Democracia, Direito Internacional e Direitos Humanos do CIDHSP da Academia
Paulista de Direito – Centro Internacional de Direitos Humanos de São Paulo (CIDHSP/APP): https://apd.
org.br/nucleo-5-democracia-direito-internacional-e-direitos-humanos/; Autora de várias publicações jurí-
dicas e conferencista. Professora de Direito Assistente Convidada no ensino superior na Escola Superior de
Tecnologia e Gestão do Instituto Politécnico do Porto - Portugal. E-mails: pmpa@estg.ipp.pt / patriciapin-
toalves26@gmail.com

— 475 —
Os direitos humanos e o mundo tecnológico – a utilização (não) abusiva da internet
Patrícia Pinto Alves

monetários, que chegam ao conhecimento de qualquer indivíduo que esteja conectado à internet e a qualquer
parte do mundo, sendo possível assim contribuir mesmo à distância, utilizando as novas tecnologias para
praticar o bem.
Palavras-chave: Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH); Dignidade da pessoa
humana; Direitos Humanos; Internet; Novas tecnologias da informação.

Abstract: This legal research work focuses on the IV theme of which is “Challenges of the human
rights in the technological world”. In the present time in which we live, increasingly, human rights are
taken into account, or at least must be taken into account, who gives advice on day to day life. The
dignity of the human person must be respected being constitutionally enshrined in the Constitution of
the Portuguese Republic, simultaneously, articulated with new technologies and the pros and cons that its
use entails for individual users. So, the new technologies, sometimes, negatively affect individuals, to the
extent that they generate (or may generate) unemployment. On the other hand, makes life easier for certain
individuals in many ways, as the internet allows individuals to work from their homes in certain situations
- called teleworking -, as well as being in direct online touch with your employers anywhere in the world.
We also consider be a human right of the individual have internet access for your leisure, for internet
shopping, among other aspects, being that, the abuse and for illicit purposes of the internet is penalized, and
counterordinationally if applicable.
At the social and humanitarian level, through the Internet, many Private Institutions of Social
Solidarity, do and will do solidarity campaigns for raising money funds.
Keywords: Universal Declaration of Human Rights; Dignity of human person; Human rights;
Internet; New information and communication technologies.

I. Nota prévia
Vivemos na era digital, em que para (quase) tudo, precisamos ou iremos precisar de
recorrer à internet, seja em relações laborais, na medida em que o teletrabalho está cada vez
mais a ganhar terreno no mercado de trabalho atual, seja em relações pessoais (no sentido
de as pessoas se manterem conectadas mesmo distantes umas das outras, admitindo nós ser
uma forma de evitar o isolamento do ser humano, por vezes), seja em relações lúdicas e de
puro lazer (através da leitura online de notícias, de revistas, de e-books das mais variadas
áreas, ou até através da prática de jogos online – tendo estes últimos, aliás, prós no sentido
de que têm por função o entretenimento dos indivíduos, mas também tendo contras, mais
precisamente quando se tratam de jogos online a dinheiro, podendo ser viciantes para os
indivíduos levando-os, desta feita, ao seu endividamento). Defendemos que a internet é muito
útil desde que seja bem utilizada.
Bem-vindos ao emergir e desenvolvimento vindouro da 4.ª Revolução Industrial: a
predominância da era digital com os seus prós e contras societários.

II. A dignidade da pessoa humana e a internet: os prós


e contras das novas tecnologias da informação no
mundo real
Um alerta violador da dignidade da pessoa humana e dos direitos humanos inerentes a todos
os seres humanos que aqui deixamos, é o de que, por vezes, a internet é utilizada de forma errada

— 476 —
Os direitos humanos e o mundo tecnológico – a utilização (não) abusiva da internet
Patrícia Pinto Alves

e descontrolada, para fins alheios ao respeito dos direitos humanos, como por exemplo a criação
de redes pornográficas, de pedofilia, de tráfico de seres humanos, de tráfico de órgãos humanos,
de estupefacientes, que poderão levar à degradação do indivíduo enquanto ser humano que é
e, em muitas situações, até à morte com a finalidade de outros indivíduos infratores da lei, se
apoderarem do anonimato que, por vezes, conseguem manter no mundo cibernético para aliciar
pessoas, visando o seu enriquecimento pessoal mediante a prática de atos maldosos e ilícitos.
Julgamos, da nossa parte, que a internet pode ser uma faca de dois gumes, o bom e o mau.
Porém, embora o recurso ao teletrabalho seja permitido na Lei Portuguesa nacional,
mais precisamente no artigo 165.º do Código do Trabalho Português, a verdade é a de que,
incorremos seriamente num sério e grave risco para muitos seres humanos, na medida em
que vêem ou poderão ver os seus postos de trabalho a serem substituídos por pessoas mais
qualificadas e que trabalham com recursos a novas tecnologias, assim como por máquinas que
poderão efetuar as suas funções a um custo menor e geridas por programas informatizados,
gerando assim desemprego. Mas a internet também traz benefícios, na medida em que na
atualidade, cada vez existem mais outros tipos de empregos muito relacionados ao mundo
digital, tais como youtubers, influenciadoras/es digitais de moda, de decoração e dos mais
variados ramos, bloggers, entre outros que fazem com que as pessoas que trabalhem desta
forma aufiram assim os seus rendimentos.
Segundo o artigo 1.º da CRP, cuja epígrafe é «República Portuguesa»: «Portugal é
uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e
empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária».
No entanto, na sua qualidade de norma jurídica, e de princípio jurídico-constitucional,
a dignidade da pessoa humana, é passível de outras marcas positivas de tal reconhecimento
jurídico que surgem em pontos dispersos da CRP, sendo estes o artigo 13.º da CRP, o artigo
26.º, n.º 2 da CRP, quando se vê o legislador no dever de estabelecer garantias efetivas contra
a obtenção e utilização de informações concernentes às pessoas e às famílias num sentido
inverso à dignidade humana, ou, o n.º 3 do artigo 26.º da CRP, na medida em que há a
obrigatoriedade de assegurar a «dignidade pessoal e a identidade genética do ser humano
(…)»; releva ainda neste prisma o disposto no artigo 67.º, n.º 2 da CRP, no que respeita à
proteção da família, cabendo ao Estado as tarefas de «regulamentar a procriação medicamente
assistida, em termos que salvaguardem a dignidade da pessoa humana», assim como, ainda,
as menções à «existência condigna» e às condições de trabalho «socialmente dignificantes»
no artigo 59.º, n.º 1, e à hipótese de, de acordo com o artigo 206.º da CRP, os tribunais
terem a faculdade para determinar o cariz não público das audiências para «salvaguarda da
dignidade das pessoas». Através da inclusão dos direitos económicos, sociais e culturais no
conjunto dos direitos fundamentais, gerados como autênticos direitos, a CRP exige a proteção
do núcleo fundamental do Estado Social, ou seja, o Estado numa sociedade desenvolvida e
avançada, tem o dever de garantir o mínimo para uma existência condigna a todos os cidadãos
e residentes, repita-se a todos, seja o direito a não ser proibido desse mínimo, seja a garantia
de que lhes seja garantido de forma positiva esse mínimo, não devendo valer “a reserva do
possível” como condição de concretização dos direitos sociais (2).

2
Neste sentido, e para maiores desenvolvimentos, mais precisamente em sede de Direito Com-
parado Brasileiro, vd, Patrícia PINTO ALVES [et al] – “A Dignidade da Pessoa Humana diante a pro-

— 477 —
Os direitos humanos e o mundo tecnológico – a utilização (não) abusiva da internet
Patrícia Pinto Alves

A partir do momento em que se considera que o Estado está adstrito a proteger a dignidade
da pessoa humana incluindo a proteção contra riscos ou contra ameaças advindas de outros
particulares, seja de modo direto ou indireto, a dignidade da pessoa humana acaba a produzir
consequências jurídicas em todos os planos e domínios relevantes da ordem jurídica, tanto
nas relações entre o Estado e os particulares quanto nas relações horizontais entre estes (3).
Ora, a dignidade da pessoa humana não é apenas o fundamento lógico dos direitos e
liberdades da pessoa humana (4). Em França a maioria da doutrina jurídica continua a afirmar
que a pessoa humana, é o sujeito de direitos. «C`est l`être à qui le droit objectif acorde des
droits subjectifs réunis en un patrimoine (5)».
Posto isto, hoje em dia, o direito a aceder à internet já é considerado um direito humano
pela Organização das Nações Unidas (ONU) (6), o que entendemos, da nossa parte, ser uma
grande evolução das tecnologias da informação para a sociedade atual em que estamos
inseridos. Vejamos, o artigo 1.º da DUDH expressa que: “Todos os seres humanos nascem
livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns
para com os outros em espírito de fraternidade”. Fraternidade esta que julgamos que deve ter
em conta a importância da internet para fazer chegar a todo o mundo campanhas solidárias
que visem auxiliar os seres humanos mais carenciados, permitindo, desta forma, que todo e
qualquer indivíduo que tenha capacidade económico-financeira e vontade para o fazer, faça,
ou venha a fazer, donativos monetários para ajudar a população mais carenciada a uma esfera
planetária, mediante uma transferência bancária (que pode ser feita online, bastando para o
efeito ter acesso a uma conta pessoal de homebanking e à internet – que atualmente se pode
aceder em casa de cada um, ou então, se o indivíduo não tiver internet na sua residência,
poderá sempre aceder ao Wi-fi de um estabelecimento comercial que o tenha, não havendo
desculpa plausível para não contribuir solidariamente, alegando não ter acesso à internet, ou

blemática dos sem-abrigo: como solucionar?”, in 6º CONGRESSO INTERNACIONAL DO DIREITO DA


LUSOFONIA, Universidade de Fortaleza - Brasil, organizado pela UNIFOR e pela Escola de Direito da
Universidade do Minho – Braga – Portugal, 21 a 24 de maio de 2019, pesquisável em: https://www.unifor.
br/documents/392178/2741248/Congresso-Internacional-da-Lusofonia-GT4-A+dignidade+da+pessoa+h
umana+diante+a+problematica.pdf/39822588-7546-302f-d4ef-23c0342e2eb0 (acesso em 15.02.2020).
3
Cfr. Jorge REIS NOVAIS, A Dignidade da Pessoa Humana, Volume I – Dignidade e Direitos
Fundamentais, Almedina, 2015, p. 18.
4
Cfr. François BORELLA, “Le concept de dignité de la personne humaine”, in Étique, Droit et Dig-
nité de la Personne, Sous la direction de Philippe Pedrot, Mélanges Christian Bolze, Ed. ECONOMICA,
1999, P. 32. A tradução é nossa.
5
Vd, Labbée XAVIER, Note sous TGI de Lille, 28 septembre 1995, au Dalloz 1997, jurisprudence,
p. 29.
6
Neste sentido, e para maiores desenvolvimentos, vd, a notícia da Euronews intitulada “Aces-
so à internet é um direito humano diz ONU”, de 05.07.2016 e pesquisável em: https://pt.euronews.
com/2016/07/05/acesso-a-internet-e-um-direito-humano-diz-onu (acesso em 15.02.2020). No corpo desta
notícia pode ler-se que: “O relatório (da ONU) critica países como a França e Reino Unido que aprovaram
leis para limitarem o acesso à rede de certas pessoas que não cumprem acordos de direitos de autor na web,
e também países que impedem o acesso às redes sociais para reduzir protestos da população contra os go-
vernos. A ONU incentiva todos os países a manter e a promover este direito, mesmo durante períodos de
instabilidade política e pede que abandonem a tendência legislativa de direitos de propriedade intelectual
como pretexto para excluir e banir os internautas”.

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Os direitos humanos e o mundo tecnológico – a utilização (não) abusiva da internet
Patrícia Pinto Alves

por paypal, contribuição esta que pode e/ou poderá ser feita em qualquer parte do mundo
mediante recurso às novas tecnologias da informação que se encontram ao alcance de todos
nós, principalmente nos países mais desenvolvidos. Consideramos ser uma solução plausível
e a adotar com mais frequência pelas IPSS`s em Portugal (7), salvaguardando, desta forma, a
entreajuda humanitária a uma escala global com o auxílio da era digital.
Ora, Vieira de Andrade escreve que: “A qualidade de direitos fundamentais atribuída
aos direitos sociais integra-se no espírito do «instituto», que visa a defesa da dignidade das
pessoas concretas, e tem, nessa medida, uma expressão prática na garantia a cada indivíduo,
pelo menos, de um conteúdo mínimo de solidariedade social (8)”.
Porém, atente-se, todavia, que a internet pode constituir um meio em que muitos
indivíduos escondem a sua verdadeira identidade por trás da criação de perfis falsos com
o intuito de difamarem outrem, sendo que, casos há, em que nem sequer escondem as suas
verdadeiras identidades difamando livremente outrem online. O que se coloca aqui em
causa, é se estamos(remos) nestas situações delicadas perante um exercício de liberdade de
expressão (9) por quem pratica(rá) tais atos online ou se, ao invés, esta(re)mos aqui perante
uma verdadeira prática de um tipo legal de crime previsto no Código Penal Português (DL n.º
48/95, de 15 de Março) no seu artigo 180.º, que é o crime de difamação. Consideramos, da
nossa parte, que a mesma questão se poderá colocar quanto, a título exemplificativo, à prática
de crimes (online) de ameaça previsto no artigo 153.º do CP, de perseguição previsto no artigo
154.º-A do CP, importunação sexual previsto no artigo 170.º do CP, injúria previsto no artigo
181.º do CP, e devassa por meio de informática previsto no artigo 193.º do CP, sendo que há
necessidade de se averiguar casuisticamente.
Todavia, também a Constituição da República Espanhola consagra a dignidade da pessoa
humana (10).

7
Acerca das IPSS`s, e para um maior aprofundamento da temática, vd, entre outros, Licínio Lopes
MARTINS, As Instituições Particulares de Solidariedade Social, Almedina, 2009.
8
Cfr. José Carlos VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, 5.ª Edição, Almedina, 2012, p. 383.
9
Cfr, e para maiores desenvolvimentos, vd, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo n.º
4161/16.9T9LSB-3, de 09-10-2019, cujo relator foi o Sr Dr. Juiz João Lee Ferreira e os descritores foram: liber-
dade de expressão e direito à integridade moral, pesquisável em www.dgsi.pt (acesso em 15.02.2020) que relata
que: “A concordância prática do direito à integridade moral, ao bom-nome e à reputação, por um lado, com o
direito de cada um exprimir e divulgar livremente o seu pensamento através da palavra, da imagem ou qualquer
outro meio, por outro, tem de se afirmar, não apenas pela interpretação e aplicação das normas constitucionais
e legais internas, mas também pela aplicação das normas que integram as convenções internacionais a que Por-
tugal está obrigado, com particular realce para a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), tal como
vêm sendo interpretadas e aplicadas pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH)”.
10
Cfr. Conrado HESSE, Manual de Derecho Constitucional, org. Benda, Maihofer, Vogel, Hesse y
Heyde, Presentación de Conrado HESSE, Edición, prolegomena y traducción de Antonio López Pina, Insti-
tuto Vasco de Administración Pública Marcial Pons, Ediciones Jurídicas y Sociales, S.A., Madrid, 1996, p.
5, de onde se extrai que: “Esta Constitución determina primero las decisiones fundamentales que llevan a la
unidad política, según los cuales debe ejecutarse ésta y deben llevarse a cabo las tareas estatales. Aquéllas
son, según la Ley Fundamental, la inviolabilidade de la dignidade humana como principio supremo del
ordenamento constitucional …”. Cfr. Conrado HESSE, ob. cit., p. 5.

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Os direitos humanos e o mundo tecnológico – a utilização (não) abusiva da internet
Patrícia Pinto Alves

Transcrevendo Jürgen Habermas: “A «dignidade humana» é um sismógrafo que indica


o que é constitutivo de uma ordem jurídica democrática – isto é, precisamente os direitos que
os cidadãos de uma comunidade política têm de se conceder a si mesmos, para que possam
respeitar-se reciprocamente enquanto membros de uma associação voluntária de pessoas livres
e iguais. Só a garantia destes direitos humanos confere o estatuto de cidadãos que, enquanto
sujeitos de direitos iguais, têm direito a ser respeitados na sua dignidade humana (11)”.
É de realçar ainda que o denominado Plano de Ação para os Direitos Humanos e a
Democracia 2020-2024 reafirma o empenhamento da União Europeia na promoção e proteção
destes valores em todo o mundo e responde aos novos desafios colocados pelas mudanças
políticas e as novas tecnologias (12).

III. É a internet considerada um direito humano na


atualidade? Quo vadis?
Atualmente, a sociedade vivencia uma revolução propiciada pelos avanços da tecnologia,
os quais são fortalecidos pela difusão da cibernética, constituindo um cenário próprio, com
aspetos caraterizadores peculiares. Sublinhe-se que, em decorrência do desenvolvimento
da internet, frutificou a necessidade de tutelar, juridicamente, os factos e bens decorrentes
das relações virtuais, surgindo, desta feita, a então denominada quinta dimensão dos
direitos fundamentais, os quais compreendem os direitos inerentes ao ambiente cibernético,
decorrendo da realidade virtual e demonstrando a preocupação do ordenamento jurídico
com o avanço exacerbado de um veículo que propicia a troca e pulverização de informações
entre indivíduos, de maneira célere, derrubando, em razão disso, as fronteiras geográficas e
antrópicas erigidas e abreviando as distâncias existentes (13).
Como já referimos no item (II) acima, a internet é considerada um direito humano. E
bem, na medida em que devido à existência da internet, atualmente, é possível acedermos ao
nossos e-mails, às nossas redes profissionais e até pessoais através de um computador, de um
tablet ou de um simples telemóvel digital. Um aspeto negativo, porém, é o de que ao estarmos
conectados à internet estamos fortemente sujeitos a vírus informáticos e à possível invasão
das nossas contas pessoais, profissionais e bancárias (homebanking) por hackers (14). Assim,
toda a cautela se torna necessária, devendo proteger as nossas contas e nunca, ressalve-se
nunca, divulgarmos as nossas palavras-chave de acesso às nossas contas online a outrem.

11
Cfr. Jürgen HABERMAS, Um ensaio sobre a Constituição da Europa, Prefácio de José Joaquim
Gomes Canotilho, Tradução de Marian Toldy e Teresa Toldy, EDIÇÕES 70, LDA, Março de 2012, p. 37.
12
Neste sentido, vd, https://ec.europa.eu/info/law/better-regulation/initiatives/ares-2020-440026_pt
(acesso em 15.02.2020).
13
Cfr. Tauã Lima VERDAN RANGEL, “O direito de acesso à internet como paradigma humanís-
tico da sociedade de informação”, in Internet e Informática, Revista 127, 2014, pesquisável em: https://
ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-127/o-direito-de-acesso-a-internet-como-paradigma-humanistico-
da-sociedade-de-informacao/ (acesso em 15.02.2020).
14
Acerca da legislação que regula em Portugal o cibercrime, vd, a Lei n.º 109/2009, de 15 de Setem-
bro – Lei do Cibercrime, pesquisável em:
http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=1137&tabela=leis (acesso em 15.02.2020).

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Os direitos humanos e o mundo tecnológico – a utilização (não) abusiva da internet
Patrícia Pinto Alves

Da nossa parte, e para salvaguarda dos direitos humanos na internet, o que propomos é
a criação de uma entidade fiscalizadora cibernética a nível mundial, para evitar e combater
a prática de crimes cibernéticos. Também propomos que sejam realizadas mais ações de
formação laborais e nas escolas acerca da importância e dos perigos da internet para que haja
uma ainda maior consciencialização populacional na sua utilização.

IV. Considerações finais


Em jeito de conclusão, e tendo em consideração todo o nosso texto escrito até aqui,
consideramos que relativamente à correlação (in)existente entre os direitos humanos e o
mundo tecnológico, por vezes, a internet é utilizada abusivamente por certos indivíduos,
dando aqui lugar a uma forte penalização da dignidade da pessoa humana. Mas, por outro
lado, a internet, pode e deve, ser utilizada para praticar o bem humanístico nas suas variadas
vertentes, sendo a internet, neste prisma, um direito humano dignificante e que muito honra a
dignidade da pessoa humana, sendo uma grande contribuição para toda a humanidade.
Assim, julgamos que a internet pode ser um mix ora penalizador, ora contributivo para
a salvaguarda e respeito da dignidade da pessoa humana. Defendemos que a internet adquire
uma espécie de céu cibernético para uns e de inferno cibernético para outros a uma escala
global.

Referências bibliográficas

Doutrina:
ALVES, Patrícia Pinto [et al] – “A Dignidade da Pessoa Humana diante a problemática dos sem-abrigo:
como solucionar?”, in 6º CONGRESSO INTERNACIONAL DO DIREITO DA LUSOFONIA,
Universidade de Fortaleza - Brasil, organizado pela UNIFOR e pela Escola de Direito da
Universidade do Minho – Braga – Portugal, 21 a 24 de maio de 2019, pesquisável em: https://
www.unifor.br/documents/392178/2741248/Congresso-Internacional-da-Lusofonia-GT4-A
+dignidade+da+pessoa+humana+diante+a+problematica.pdf/39822588-7546-302f-d4ef-
23c0342e2eb0 (acesso em 15.02.2020);
BORELLA, François – “Le concept de dignité de la personne humaine”, in Étique, Droit et Dignité de la
Personne, Sous la direction de Philippe Pedrot, Mélanges Christian Bolze, Ed. ECONOMICA, 1999;
HABERMAS, Jürgen – Um ensaio sobre a Constituição da Europa, Prefácio de José Joaquim Gomes
Canotilho, Tradução de Marian Toldy e Teresa Toldy, EDIÇÕES 70, LDA, Março de 2012;
HESSE, Conrado – “Constitución y Derecho Constitucional”, in Manual de Derecho Constitucional,
org. Benda, Maihofer, Vogel, Hesse y Heyde, Presentación de Conrado HESSE, Edición,
prolegomena y traducción de Antonio López Pina, Instituto Vasco de Administración Pública
Marcial Pons, Ediciones Jurídicas y Sociales, S.A., Madrid, 1996;
VERDAN RANGEL, Tauã Lima - “O direito de acesso à internet como paradigma humanístico da
sociedade de informação”, in Internet e Informática, Revista 127, 2014;
MARTINS, Licínio Lopes - As Instituições Particulares de Solidariedade Social, Almedina, 2009.

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Os direitos humanos e o mundo tecnológico – a utilização (não) abusiva da internet
Patrícia Pinto Alves

REIS NOVAIS, Jorge – A Dignidade da Pessoa Humana, Volume I – Dignidade e Direitos


Fundamentais, Almedina, 2015;
VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos – Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de
1976, 5.ª Edição, Almedina, 2012;
XAVIER, Labbée - Note sous TGI de Lille, 28 septembre 1995, au Dalloz 1997, jurisprudence.

Jurisprudência:
www.dgsi.pt
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo n.º 4161/16.9T9LSB-3, de 09-10-2019.

Legislação:
Código Penal Português: DL n.º 48/95, de 15 de Março;
Código do Trabalho Português: Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro;
Constituição da República Portuguesa;
Declaração Universal dos Direitos do Homem;
Lei do Cibercrime Portuguesa: Lei n.º 109/2009, de 15 de Setembro;

Sites da internet:
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-127/o-direito-de-acesso-a-internet-como-paradigma-
humanistico-da-sociedade-de-informacao/
https://ec.europa.eu/info/law/better-regulation/initiatives/ares-2020-440026_pt
https://pt.euronews.com/2016/07/05/acesso-a-internet-e-um-direito-humano-diz-onu
http://www.pgdlisboa.pt

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Universidade inteligente e sustentável a
partir de análise de atividade extensionista em
conformidade com a agenda 2030

Mônica Mota Tassigny1


Liane Maria Santiago Cavalcante Araújo2

Resumo: No século XXI, a Agenda 2030, da Organização das Nações Unidas, enumera 17 Objetivos
de Desenvolvimento Sustentável (ODS) a serem observados por todos para a construção de uma realidade
sustentável, até o ano de 2030. Por eles, verifica-se, desde já, a necessidade de parceria entre Instituições
de Ensino Superior (IES) públicas e privadas, empresas privadas, Poder Público e cidadãos. No presente
estudo, destacam-se os ODS 4, 9 e 11, que se referem à educação de qualidade; indústria, inovação e
infraestrutura; e cidades e comunidades sustentáveis. Nesse contexto, é dever dos Estados, das instituições
e dos demais atores sociais transformar cidades e assentamentos humanos (como as universidades) em
espaços inteligentes e sustentáveis, a exemplo do conceito de cidades inteligentes e escolas sustentáveis.
Nessa perspectiva, propõe-se, por meio do presente estudo, analisar o conceito jurídico de universidade
inteligente e sustentável a partir do ordenamento jurídico brasileiro, com foco na extensão. Trata-se de
pesquisa bibliográfica e documental, de abordagem qualitativa. Como resultado destaca-se que universidades
inteligentes e sustentáveis podem ser criadas a partir de atividades extensionistas capazes de reunir diferentes
atores sociais, em especial de operadores do Direito e da Tecnologia da Informação e Comunicação, a partir
do desenvolvimento de TICs colaborativos disponíveis em smartphones na formação de cidadãos sensores,
sobretudo pra atuarem na salvaguarda do patrimônio cultural e natural do mundo.
Palavras-chave: Cidades inteligentes. Escolas sustentáveis. Universidades inteligentes e sustentáveis.
Direito. Tecnologia da Informação e Comunicação.

1
Professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade de
Fortaleza. E-mail para contato: monica.tass@gmail.com.
2
Doutoranda em Direito Constitucional pelo Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucio-
nal da Universidade de Fortaleza. Pesquisadora e bolsista FUNCAP/CAPES-BRASIL. E-mail para conta-
to: lianemariaadv@gmail.com.

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Universidade inteligente e sustentável a partir de análise de atividade extensionista em conformidade com a agenda 2030
Mônica Mota Tassigny - Liane Maria Santiago Cavalcante Araújo

Abstract: In the 21st century, the United Nations’ 2030 Agenda lists 17 Sustainable Development
Goals to achieve a better and more sustainable future for all, until the year 2030. To make it happen, it is
necessary to built a partnership between public and private Higher Education Institutions, private companies,
the government and the citizens. In the present study, the Sustainable Development Goals number 4, 9 and
11 refer to quality education; industry, innovation and infrastructure; and sustainable cities and communities.
In this context, it is the duty of Nations, institutions and other social actors to transform cities and human
settlements (such as universities) into smart and sustainable spaces, following the concept of smart cities and
sustainable schools. Through this study, the analysis of the legal concept of an intelligent and sustainable
university is proposed, considering the Brazilian legal system, focused on extension. This is a bibliographic
and documentary research, with a qualitative approach. As a result, it is highlighted that smart and sustainable
universities can be created by extension activities of the universities, capable of bringing together different
social actors, especially operators of the Law and Information and Communication Technology. The conclusion
is that the development of collaborative ICTs, available on smartphones, contributes to safeguard the world’s
cultural and natural heritage, with the collaboration of sensor citizens.
Keywords: Smart cities. Sustainable schools. Smart and sustainable universities. Law. Information
and communication technology.

INTRODUÇÃO
No século XXI, a Agenda 2030, da Organização das Nações Unidas (ONU), adotada
pelas lideranças mundiais em setembro de 2015, enumera 17 Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável (ODS) a serem observados por todos para a construção de uma realidade
sustentável, a partir de medidas urgentes, ousadas e transformadoras, até 2030.
A ONU alerta que o cumprimento de tais metas resultará na erradicação da pobreza
extrema e no combate dos piores efeitos adversos da mudança do clima, para as futuras
gerações. No presente estudo, ganham especial destaque os ODS 4, 9 e 11, que se referem,
respectivamente, à: educação de qualidade; indústria, inovação e infraestrutura; e cidades
e comunidades sustentáveis. Por eles, verifica-se, desde já, a necessidade de parceria entre
Instituições de Ensino Superior (IES) públicas e privadas, empresas privadas e Estado.
Com razão, é dever dos Estados, das instituições e dos demais atores sociais transformar
cidades e assentamentos humanos (como as universidades) em espaços inclusivos, seguros,
resilientes e sustentáveis. Esse contexto local ganha ênfase no cenário nacional e internacional
mediante o debate acerca das cidades inteligentes ou “smart cities”.
De acordo com o Cities in Motion Index 2019, do IESE Business School3, na Espanha, as
10 dimensões que indicam o nível de inteligência de uma cidade são: governança, administração
pública, planejamento urbano, tecnologia, meio ambiente, conexões internacionais, coesão
social, capital humano e economia. Por meio do presente estudo, propõe-se investigar o
conceito jurídico de uma universidade inteligente e sustentável no âmbito da extensão.
Utiliza-se, como metodologia, pesquisa bibliográfica e documental, de abordagem
qualitativa, a fim de identificar, no ordenamento jurídico brasileiro, os esforços implementados
no sentido de proteger e salvaguardar o patrimônio cultural e natural do mundo.


3
Há também Rankings como: Serviços das Cidades Inteligentes, realizado pela Teleco (2019) e
Connected Smart Cities (2018) etc.

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Universidade inteligente e sustentável a partir de análise de atividade extensionista em conformidade com a agenda 2030
Mônica Mota Tassigny - Liane Maria Santiago Cavalcante Araújo

1. ATIVIDADES EXTENSIONISTAS NO CONTEXTO DAS


UNIVERSIDADES BRASILEIRAS
A Constituição brasileira de 1988 determina que o ensino universitário será regido pelo
tripé ensino, pesquisa e extensão. Todavia, aliar tais atributos é tarefa que requer programação
estratégica das IES (BRASIL, 1988). As atividades de extensão, especificamente, denotam
a preocupação institucional em mudar a realidade por meio da capacitação de professores,
alunos, colaboradores e beneficiários. A efetividade dessas iniciativas depende, contudo, da
aproximação da instituição às práticas de responsabilidade socioambiental voltadas para o
mundo ao seu redor.
No Brasil, o Ministério da Educação (MEC), por meio da Câmara de Educação Superior
(CES)/Conselho Nacional de Educação (CNE), proferiu o Parecer CNE/CES Nº: 608/2018,
aprovado no dia três de outubro de 2018, no qual reconhece três concepções ideológicas que
se permeiam e se materializam no campo da extensão: a posição assistencialista, voltada
para o atendimento às demandas sociais, mediante a prestação de serviços à comunidade; a
dimensão transformadora, segundo a qual as relações entre universidade e sociedade possuem
caráter dialógico e visam à transformação social; e o posicionamento por meio do qual as
demandas sociais são encaradas como expectativas de serviços que a sociedade demanda da
universidade (BRASIL, 2018a).
Segundo o MEC, a atividade puramente assistencial afasta-se da busca de soluções para
os problemas sociais, econômicos e culturais e pode atribuir à extensão universitária tarefas
que extrapolam a capacidade de ação da IES. Por sua vez, uma universidade produtora de
bens e serviços assume uma vertente unicamente mercadológica, o que impede a instituição
de vivenciar sua ampla capacidade de formular atividades extensionistas como o lugar de
criação e recriação, em conjunto com o ensino e a pesquisa. Diante disso, o Parecer CNE/
CES Nº 608/2018 conclui que a extensão universitária representa função potencializadora na
formação dos estudantes e na capacidade de intervir a favor da sociedade, o que é essencial
para que a universidade atue na condição de instrumento emancipatório, conforme a Resolução
nº 7, de 18 de dezembro de 2018, CNE/CES/MEC (BRASIL, 2018).
Com o advento da Resolução supracitada surge a formalização do gênero “atividades
extensionistas”, das quais programas, projetos, oficinas e cursos, eventos e prestação de
serviços configuram modalidades, com fundamento no art. 8º, da Resolução. Antes disso, não
havia sequer uma classificação da extensão em modalidades (ABMES, 2019). A correlação
da extensão com o ensino é íntima, uma vez que as metodologias participativas são de
reconhecida eficiência na educação superior brasileira. No âmbito da pesquisa, possibilita
efetiva articulação com a sociedade para desenvolvimento de projetos que melhorem as
condições de vida de quem circunvizinha a instituição.
Nesse sentido, o artigo 4º da Resolução nº 7/CNE/CES/2018 veio estipular a
obrigatoriedade de as atividades extensionistas comporem, no mínimo, 10% (dez por cento)
do total da carga horária curricular estudantil dos cursos de graduação, as quais deverão fazer
parte da matriz curricular dos cursos (BRASIL, 2018). A seu turno, a Política Nacional de
Educação Ambiental - PNEA (Lei 9.795, de 27 de abril de 1999) dispõe sobre a educação
ambiental não-formal, conceituando-a como o conjunto de ações e práticas educativas

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Universidade inteligente e sustentável a partir de análise de atividade extensionista em conformidade com a agenda 2030
Mônica Mota Tassigny - Liane Maria Santiago Cavalcante Araújo

destinadas à sensibilização da coletividade no que se refere às questões ambientais e à sua


organização e participação na defesa da qualidade do meio ambiente. O legislador brasileiro
assevera que o Poder Público deve incentivar, nas esferas federal, estadual e municipal, a
ampla participação da universidade na formulação e execução de programas e atividades
voltados à educação ambiental não-formal, dentre outras recomendações (BRASIL, 1999).
Entre as diretrizes do art. 2º, do PNEA, destacam-se: V - formação para o trabalho e
para a cidadania, com ênfase nos valores morais e éticos em que se fundamenta a sociedade;
VII - promoção humanística, científica, cultural e tecnológica do País; X - promoção dos
princípios do respeito aos direitos humanos, à diversidade e à sustentabilidade socioambiental
(BRASIL, 2014). Por essa lógica, a extensão universitária se integra à matriz curricular e
à organização da pesquisa, por meio de processo interdisciplinar capaz de promover uma
interação transformadora entre IES e demais setores da sociedade (art. 3º, Resolução nº 7/
CNE/CES/2018). (BRASIL, 2018).
Logo, as instituições devem incluir, em seus Planos de Desenvolvimento Institucional
(PDI): concepção de extensão; planejamento das atividades institucionais da área; forma de
registro das modalidades extensionistas; estratégias de inclusão da extensão nos currículos
e de participação dos estudantes nas atividades extensionistas; política de implantação do
processo de autoavaliação e indicadores; e previsão e estratégias de financiamento.
A relevância do assunto reveste-se da urgência de observar o prazo de implantação dos
dispositivos da Resolução nº 7, que se encerra no dia 14 de dezembro de 2021 (art. 19).
(BRASIL, 2018). A conjugação de esforços do direito e da tecnologia vem propiciar, nessa
medida, a criação de processos inovadores, além de maior transparência e conformidade, em
atenção ao ordenamento jurídico brasileiro vigente.

2. CATEGORIZAÇÃO DE DADOS DAS ATIVIDADES EXTENSIONISTAS


DA UNIVERSIDADE DE FORTALEZA
Nessa linha, os projetos de pesquisa intitulados em pauta “Tecnologias disruptivas no
Direito e o desenvolvimento de plataforma para a integração e análise de dados de compliance
socioambiental na extensão universitária” (2019) e “Instituições de Ensino Superior no Século
XXI, Marco Legal e Desenvolvimento de Plataforma de Compliance para Práticas Sustentáveis
Inovadoras” (2018)4 categorizaram 400 atividades extensionistas da Universidade de
Fortaleza (UNIFOR), intituladas práticas sustentáveis inovadoras e classificadas em práticas
educacionais inovadoras, compromisso social e gestão ambiental.
Os resultados foram apresentados em ambiente web responsivo com vistas a promover
a estruturação e análise dos dados da UNIFOR. O ambiente favorece a transparência, o
acompanhamento e a análise da conformidade de tais práticas educacionais, especialmente
no que se refere à exigência da Resolução nº 7/CNE/CES/2018. (BRASIL, 2018).

4
Ambos coordenados pela Professora Doutora Mônica Mota Tassigny, Professora Titular do Pro-
grama de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade de Fortaleza.

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Universidade inteligente e sustentável a partir de análise de atividade extensionista em conformidade com a agenda 2030
Mônica Mota Tassigny - Liane Maria Santiago Cavalcante Araújo

Propicia, ainda, o registro das modalidades de atividades extensionistas desenvolvidas


pelos professores responsáveis, mediante o preenchimento de formulários padronizados.
Com isso, a IES torna-se capaz de avaliar a relação dos beneficiários das comunidades
circunvizinhas com a extensão universitária desenvolvida no campus e fora dele. Todavia,
faz-se necessária a criação de ferramenta de business inteligence (BI) no ambiente web
responsivo ou a contratação de ferramenta análoga (como o google analitics), para fins de
análises estatísticas.

3. DE CIDADES INTELIGENTES E ESCOLAS SUSTENTÁVEIS PARA


UNIVERSIDADES INTELIGENTES E SUSTENTÁVEIS
IES públicas e privadas possuem o desafio de planejar e implementar modelos
educacionais inovadores e sustentáveis, em especial para a extensão, aptos a promoverem
a sensibilização da coletividade para a efetivação da dignidade da pessoa humana, do
meio ambiente ecologicamente equilibrado e do crescimento econômico almejado. Assim,
merecem destaque duas iniciativas do Poder Público local, no Ceará (Brasil), como incentivo
para a efetivação dos ODS 4, 9 e 11 da Agenda 2030 (ONU, 2015), são elas: a) Lei 16.290,
de 21 de julho de 2017, do Estado do Ceará, que dispõe sobre o Selo Escola Sustentável e
cria o Prêmio Escola Sustentável (CEARÁ, 2017); b) Lei Complementar n° 117, de 11 de
junho 2018, do município de Juazeiro do Norte/Ceará (LC 117/2018), que se refere, pela
primeira vez, no cenário jurídico brasileiro, à expressão “cidades inteligentes” (JUAZEIRO
DO NORTE, 2018).
As escolas sustentáveis são aquelas que assumem o objetivo de fomentar a consciência
dos alunos quanto ao uso racional de recursos públicos e naturais, mediante o engajamento
de todos que fazem a escola com as ações desenvolvidas no ano letivo escolar, capazes de
reduzir seus impactos ao meio ambiente e que demonstrem responsabilidade com o bem-
estar das pessoas e com a melhoria da qualidade de vida na comunidade escolar (art. 1º, da
Lei 16.290/2017), na qual destacam-se: a utilização no espaço físico da escola de materiais
construtivos mais adaptados às condições locais e de um desenho arquitetônico que permita
dotar a escola de conforto técnico e acústico, e garanta acessibilidade (inciso I); gestão
eficiente da água, saneamento ecológico, destinação adequada de resíduos (inciso II); uso de
energias limpas (inciso III); práticas de estímulo à segurança alimentar e nutricional (inciso
IV); práticas de respeito ao patrimônio cultural e ecossistemas locais (inciso V); gestão escolar
compartilhada com a comunidade escolar e seu entorno (inciso VI); práticas de promoção dos
direitos humanos e valorização da diversidade cultural, étnico-racial e de gênero existente
(inciso VII); promoção do conhecimento das condições do bioma local e do clima (inciso
VIII). (CEARÁ, 2017).
De outro modo, não há consenso acerca do conceito de cidades inteligentes ou smart
cities e o assunto não é sequer regulamentado nas esferas federal e estadual brasileiras. O que
existe, nesse sentido, é uma lei municipal que propõe conceito legal de cidade inteligente, a
qual surgiu em Juazeiro do Norte, no Estado do Ceará, em 2018. Segundo a LC 117/2018,
art. 3°, inciso XIX:

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Universidade inteligente e sustentável a partir de análise de atividade extensionista em conformidade com a agenda 2030
Mônica Mota Tassigny - Liane Maria Santiago Cavalcante Araújo

Cidade Inteligente: movimento mundial que objetiva aproximar os serviços públicos


locais às avançadas tecnologias da informação e comunicação, com ênfase em
soluções físicas e cibernéticas para o ambiente urbano baseadas em “Big Data” e
“Internet das Coisas”, com alto potencial de otimização de serviços e utilidades
públicas ao cidadão e ao turista, e de atribuição de eficiência técnica e econômica
ao Poder Público, conforme estudos recentemente desenvolvidos na esfera federal
e apontados no Plano Nacional de Internet das Coisas. (JUAZEIRO DO NORTE,
2018, p. 6).

A aplicabilidade do referido diploma restringe-se à esfera municipal, mas é inegável que


o mesmo merece a atenção dos demais entes políticos, haja vista a ausência de lei federal ou
estadual dispondo sobre o assunto. Como se vê, o adjetivo “inteligência” é entendido como o
processamento automático da informação e a análise de um grande volume de dados. Logo,
as cidades inteligentes são “projetos de iniciativas públicas e/ou privadas, marcados pelo uso
das TIC tendo como objetivo o desenvolvimento sustentado e a melhoria da qualidade de vida
dos cidadãos, ampliando as formas de participação e interação com poder público” (LEMOS;
ARAUJO, 2018, p. 3).
As cidades (sejam elas públicas ou privadas) são os processos eficientes de gestão
local, a partir da cooperação dos diferentes setores da sociedade. Assim, é possível alcançar
menores custos na gestão da coisa pública ou privada, otimizar as formas de comunicação
e coordenação de dados, acessar informações provenientes de grupos marginalizados (como
idosos, pessoas com deficiência e cidadãos de áreas rurais); personalizar serviços (públicos ou
privados); garantir ao cidadão maior mobilidade; e usufruir da onipresença dos dispositivos
móveis amplamente utilizados pelo homem no século XXI.
Destarte, a universidade sustentável é aquela que promove uma gestão escolar
compartilhada com a comunidade escolar e seu entorno (Lei Estadual 16.290/2017/Ceará,
art. 6º, inciso VI), observando os artigos 5º, inciso I e 6º, inciso II, da Resolução nº 7/CNE/
CES/2018 (BRASIL, 2018), mediante interação dialógica da comunidade acadêmica com a
sociedade, troca de conhecimentos, participação e contato com temas complexos do contexto
social correspondente; e por meio da construção de diálogo transformador com os setores da
sociedade brasileira e internacional, observando e promovendo a interculturalidade. Mas é
preciso ir além. Uma escola sustentável necessita de espaço físico feito a partir de materiais
adaptados às condições locais, com desenho arquitetônico que propicie conforto técnico e
acústico, e garanta acessibilidade (inciso I, do art. 6º, da Lei Estadual 16.290/2017). Deve contar
com um modelo de gestão eficiente da água, saneamento ecológico, destinação adequada de
resíduos e fazer uso de energias limpas (inciso II, do art. 6º). É preciso ainda adotar práticas
de respeito ao patrimônio cultural e ecossistemas locais (inciso V, do art. 6º). (CEARÁ, 2017).
Logo, as atividades extensionistas devem focar na produção de mudanças internas e externas,
mediante aplicação de novos conhecimentos; na promoção de iniciativas que traduzam o
compromisso social das IES com todas as áreas, em especial, as de comunicação, cultura,
direitos humanos e justiça, educação, meio ambiente, saúde, tecnologia e produção, e trabalho,
alinhadas com as políticas ligadas às diretrizes para a educação ambiental, educação étnico-
racial, direitos humanos e educação indígena; e na produção e construção de conhecimentos

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Universidade inteligente e sustentável a partir de análise de atividade extensionista em conformidade com a agenda 2030
Mônica Mota Tassigny - Liane Maria Santiago Cavalcante Araújo

para o desenvolvimento social, equitativo, sustentável, coerentes com a realidade brasileira


(artigos 5º, III, e 6º, III e IV, da Resolução nº 7/CNE/CES/2018) (BRASIL, 2018).
A partir dos conceitos até aqui desenvolvidos, como conceber um modelo jurídico-
tecnológico de universidade inteligente e sustentável para atividades extensionistas, diante
do ordenamento jurídico brasileiro e do contexto tecnológico vigente?
Destaca-se, oportunamente, que o acesso a serviços confiáveis da Internet é essencial para
alcançar uma educação inteligente e sustentável nos campi das universidades (ADEYEMI;
POPOOLA; ATAYERO; AFOLAYAN; ARIYO; ADETIBA, 2018). Esse formato torna-se
viável mediante a projeção de um campus inteligente (smart university ou smart campus),
como um protótipo de uma sociedade pequena, a partir do uso dos smartphones no campus
(XU, LI, SUN, et. al., 2019) e da formação de cidadãos sensores comprometidos.
As cidades inteligentes pressupõem a figura do cidadão sensor, que participa dos
problemas de sua cidade/campus – de forma ampla, ou fornece informações para os gestores
públicos – em uma acepção estrita. A finalidade é otimizar a eficiência burocrática ou até
mesmo solucionar de maneira efetiva os problemas existentes em dado território, a partir da
participação social, do valor sustentabilidade e do uso de TIC (aplicativos móveis).
A forma típica de uma universidade ou campus inteligente pressupõe a aplicação
de plataforma de ensino em rede que conecta professores e alunos, ajuda a enriquecer os
recursos de aprendizagem dos alunos e melhora o desempenho do professor. Esse modelo
não representa apenas uma tendência, precisa ser combinado de perto com o aprimoramento
da tecnologia educacional e da informatização dos recursos educacionais (BONFOUR, 2016;
XU, LI, SUN, et al, 2019).
Xu, Li, Sun, et. al. (2019) descrevem uma estrutura de smart campus baseada na Internet
das Coisas e na computação nas nuvens, com recursos de hardware através de tecnologias
de virtualização. Por outro lado, um instituto de pesquisa indiano fez um uso razoável dos
recursos de ensino da escola e melhorou a qualidade do ensino por meio do planejamento e da
recomendação de um modelo de smart campus. Também a Universidade da Califórnia realizou
investimentos no controle inteligente nas instalações de hardware do campus, possibilitando
o monitoramento do ambiente. Regra geral, o smartphone destaca-se como a ferramenta mais
eficaz, pois além de facilitar a distribuição de alertas, serviços móveis e informações para
habitantes, permite o uso de aplicativos aptos a ampliar a participação dos cidadãos, enviando
dados e informação para os centros de gestão e controle da cidade (ou universidade).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conclui-se, por meio do presente estudo, que os aplicativos representam uma das formas
mais eficazes de levantar informações voluntárias, sobretudo no campus universitário,
diante da popularização do uso dos smartphones. Evidencia-se, também, que as atividades
extensionistas podem ser o locus de formação do cidadão sensor, a partir da derivação de um
conceito de cidade inteligente e sustentável, aplicável ao microcosmo universitário. O Estado
do Ceará já conta com legislação estadual e municipal na derivação de um modelo jurídico
próprio às universidades.

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Universidade inteligente e sustentável a partir de análise de atividade extensionista em conformidade com a agenda 2030
Mônica Mota Tassigny - Liane Maria Santiago Cavalcante Araújo

As atividades extensionistas tem a potência de promover o desenvolvimento humano, a


partir de uma formação voltada à preservação e promoção do meio ambiente ecologicamente
equilibrado. Para que alcance essa formação, a gestão universitária deve contemplar a
transdisciplinaridade de cursos, assim como explorar formas atuais de TICs.
Para tanto, vislumbra-se a formação do cidadão sensor ou inteligente, haja vista a
relevância da cooperação e da participação social, junto às novas tecnologias, para que se
possa de fato alcançar a efetivação do tripé da sustentabilidade (ambiental, econômico e
social), diante de um modelo jurídico-tecnológico de universidade inteligente e sustentável,
território marcado por relações econômicas, sociais e ecológicas travadas entre indivíduos
inteligentes e socialmente ativos, conforme os ODS 4, 9 e 11 da Agenda 2030 da ONU.
Por fim, constata-se que a Resolução nº 7/CNE/CES/2018 aponta somente as diretrizes.
Cabe às IES definir pontualmente quais serão os programas, projetos, cursos, oficinas,
eventos e prestações de serviços a serem implementados, por meio da criação e reformulação
dos PDIs, dos Projetos Políticos Institucionais (PPIs), dos Projetos Pedagógicos dos Cursos
(PPCs) e dos demais documentos normativos próprios, com enfoque no perfil do egresso.

REFERÊNCIAS
ADEYEMI, Oluwaseun J.; POPOOLA, Segun I.; ATAYERO, Aderemi A.; AFOLAYAN, David G.;
ARIYO, Mobolaji; ADETIBA, Emmanuel. Exploration of daily Internet data traffic generated
in a smart university campus. Elsevier, Volume 20, October 2018, Pages 30-52. Disponível
em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S2352340918308126#!. Acesso em: 29
nov. 2019.
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE MANTENEDORAS DO ENSINO SUPERIOR (ABMES) (Brasil).
DIRETRIZES PARA A EXTENSÃO NA EDUCAÇÃO SUPERIOR BRASILEIRA. 2019.
Disponível em: https://abmes.org.br/noticias/detalhe/3337. Acesso em: 07 jun. 2019.
BONFOUR, Ahmed. Digital Futures, Digital Transformation: From Lean Production to Acceluction.
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BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 05 out. 1988.
Disponível em: https www planalto gov br ccivil_03 constituicao constituicaocompilado htm.
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Nacional de Educação Ambiental e dá outras providências. Política Nacional de Educação
Ambiental (PNEA). Brasília, DF, 27 abr. 1999. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/leis/l9795.htm. Acesso em: 29 nov. 2019.
BRASIL. Ministério da Educação/Conselho Nacional de Educação. Resolução nº 7, de 18 de dezembro
de 2018. Estabelece as Diretrizes para a Extensão na Educação Superior Brasileira e regimenta
o disposto na Meta 12.7 da Lei nº 13.005/2014, que aprova o Plano Nacional de Educação -
PNE 2014-2024 e dá outras providências. Resolução Nº 7, CNE/CES. Brasília, DF, 18 dez.
2018. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=downl
oad&alias=104251-rces007-18&category_slug=dezembro-2018-pdf&Itemid=30192. Acesso
em: 23 nov. 2019.

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Universidade inteligente e sustentável a partir de análise de atividade extensionista em conformidade com a agenda 2030
Mônica Mota Tassigny - Liane Maria Santiago Cavalcante Araújo

CEARÁ (Estado). Lei nº 16.290, de 21 de julho de 2017. DISPÕE SOBRE A CRIAÇÃO DO SELO
ESCOLA SUSTENTÁVEL E CONCEDE O PRÊMIO ESCOLA SUSTENTÁVEL. Legislação
estadual. Fortaleza, CE, 21 jul. 2017. Disponível em: https://belt.al.ce.gov.br/index.php/
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Política Municipal de Ciência, Tecnologia e Inovação, estabelece diretrizes ao Plano Diretor
de Tecnologias da Cidade Inteligente de Juazeiro do Norte e dá outras providências. Lei
Complementar N° 117, de 11 de Junho 2018: Legislação municipal. Juazeiro do Norte, CE, 11
jun. 2018. Disponível em: https://juazeiro.ce.gov.br/www2/Legislacao/complementares/LEI%20
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ieeexplore.ieee.org/stamtamp.jsp?tp=&arnumber=8620955. Acesso em: 28 nov. 2019.

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Direito e literatura:
simbiose necessária à formação do cidadão sensor

Erica Valente Lopes1


Lívia Chaves Leite2

Resumo: Diante do debate atual acerca do ensino jurídico no século XXI e do questionamento
de seu método tradicional para o desenvolvimento de reflexão e senso crítico por parte do discente, o
presente trabalho propõe-se a analisar em que medida o ensino do Direito associado à Literatura, na
extensão universitária, contribui para a formação jurídica e humana do aluno, sob a perspectiva de um
desenvolvimento educacional inclusivo e sustentável, em razão das interfaces que se apresentam entre
ambas as searas do conhecimento. Busca-se aporte nas novas diretrizes estabelecidas no Parecer nº
635/2018 e Resolução CNE/CES nº 07/2018, editadas no final de 2018 pelo Ministério da Educação, bem
como na Agenda 2030 da ONU, em especial quanto aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável: 04
(educação de qualidade), e 17 (parcerias e meios de implementação). Parte-se de pesquisa realizada com
alunos participantes do projeto de extensão Quinta Literária para os quais foram enviados formulários por
e-mail. A metodologia é bibliográfica, documental, de campo opinativa, com abordagem qualitativa e caráter
exploratório, aplicando-se questionário a alunos participantes do projeto no interregno de 2015 a 2019.
Diante da constatada importância no desenvolvimento do pensamento reflexivo e crítico do graduando,
propõe-se inseri-lo como disciplina curricular. Conclui-se como de suma importância a inclusão do estudo
do Direito e Literatura como disciplina curricular da grade de Direito, diante da constatada importância no
desenvolvimento do pensamento reflexivo e crítico do cidadão.
Palavras-chave: Direito e Literatura; Extensão Acadêmica; Objetivo de Desenvolvimento Sustentável;
Cidadão Sensor.

1
Mestranda em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR. Advogada e
pesquisadora do DPDI (Diretoria de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação da Unifor), além de integrante
do grupo de Pesquisa CNPQ REPJAAL(Relações Econômicas, Políticas e Jurídicas na América Latina).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5242391048637150 / E-mail: valente.erica@gmail.com
2
Mestranda em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR. Advogada e
pesquisadora do DPDI (Diretoria de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação da Unifor), além de integrante
do grupo de Pesquisa CNPQ Estado, Política e Constituição. Bolsista Yolanda Queiroz.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0833988754206018 / E-mail: liviachaves_@hotmail.com

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Direito e literatura: simbiose necessária à formação do cidadão sensor
Erica Valente Lopes - Lívia Chaves Leite

Abstract: In view of the current debate about legal education in the 21st century and the questioning
of its traditional method for the development of reflection and critical sense on the part of the student,
this paper aims to analyze to what extent the teaching of Law associated with Literature, in university
extension, it contributes to the student’s legal and human formation, from the perspective of an inclusive
and sustainable educational development, due to the interfaces that present themselves between both fields
of knowledge. The aim is to contribute to the new guidelines established in Opinion No. 635/2018 and
Resolution CNE / CES No. 07/2018, edited at the end of 2018 by the Ministry of Education, as well as
in the UN Agenda 2030, especially regarding the Sustainable Development Goals: 04 (quality education)
and 17 (partnerships and means of implementation). It is based on a research carried out with students
participating in the Quinta Literária extension project, to which forms were sent by email. The methodology
is bibliographic, documentary, from an opinionated field, with a qualitative approach and an exploratory
character, applying a questionnaire to students participating in the project in the interregnum from 2015 to
2019. In view of the perceived importance in the development of the reflective and critical thinking of the
student, we propose if it is inserted as a curricular subject. It is concluded that the inclusion of the study of
Law and Literature as a curricular subject of the Law grid is of paramount importance, given the perceived
importance in the development of the reflective and critical thinking of the citizen.
Keywords: Law and Literature; Academic Extension; Sustainable Development Objective; Sensor
Citizen.

INTRODUÇÃO
A reflexão teórico acadêmica sobre o ensino do Direito vê-se instada a enfrentar novos
paradigmas. A universidade, como um espaço privilegiado de debate e reflexão, tem papel
primordial nesse processo. Tendo em vista as discussões acerca do ensino jurídico no século
XXI e a compreensão da necessidade de sua reformulação, metodologias alternativas de
ensino são buscadas, dentre as quais o Direito associado à Literatura, que ora se pretende
analisar, sob o ponto de vista da extensão universitária e sua inclusão curricular.
Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988 traz, em seu artigo 207, o princípio da
indissociabilidade entre as três dimensões da universidade, quais sejam: o ensino, a pesquisa
e a extensão. Estas devem relacionar-se harmonicamente.
Nessa perspectiva, o Ministério da Educação, por meio do Conselho Nacional de Educação,
editou o Parecer nº 635/2018 e a Resolução CNE/CES nº 07/2018, que, respectivamente,
estabeleceram uma revisão das diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em
Direito e a formulação de diretrizes para a extensão na educação superior brasileira.
Além disso, em 2015 foram estabelecidos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável
pela ONU, com a implementação da Agenda 2030, sendo um dos objetivos assegurar a
educação inclusiva e equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem
ao longo da vida para todas e todos (ODS 4), formando verdadeiros cidadãos sensores,
aptos a reproduzir suas habilidades nos ambientes ao redor e perceber as necessidades e
oportunidades de mudanças para uma vida mais digna a todos.
Assim, dentre as diversas possibilidades e alternativas para aprimoramento do ensino
jurídico, busca-se, neste trabalho, analisar em que medida o ensino do Direito associado à
Literatura, na extensão universitária, contribui para a formação jurídica e humana do aluno,
sob a perspectiva de um desenvolvimento educacional inclusivo e sustentável, em razão das
interfaces que se apresentam entre ambas as searas do conhecimento.

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Direito e literatura: simbiose necessária à formação do cidadão sensor
Erica Valente Lopes - Lívia Chaves Leite

Faz-se imprescindível ir além do debate teórico, razão pela qual se escolheu o Projeto
de extensão Quinta-Literária, da Universidade de Fortaleza, como objeto de análise da
hipótese. De forma a fundamentar a pesquisa científica, utilizar-se-á metodologia de fonte
bibliográfica, documental e de campo opinativa, por meio de formulário Google Forms,com
abordagem qualitativa, pura e caráter exploratório. Os formulários foram entregues por e-mail
aos discentes participantes do referido programa de extensão, entre os anos de 2015 e 2019 e
possibilitaram propor-se, ao final, a inclusão do projeto de extensão na matriz curricular do
curso de Direito da Universidade de Fortaleza.

1. O ENSINO JUSLITERÁRIO COMO ALTERNATIVA AO MÉTODO DE


ENSINO JURÍDICO TRADICIONAL
Ante o cenário retratado do ensino jurídico no século XXI, pulsa a necessidade de repensá-
lo, com destaque à importância do estudo interdisciplinar entre o Direito e a Literatura. A
partir desse cruzamento de caminhos, funda-se um espaço crítico em expansão, permitindo
aos juristas assimilar a capacidade criadora, crítica e inovadora da Literatura e, assim, superar
as barreiras colocadas pelo sentido comum teórico, reconhecendo a importância do caráter
construtivo da linguagem no interior dos paradigmas da intersubjetividade e intertextualidade
(TRINDADE, 2012, p. 01).
Godoy (2008, p. 41) aponta como pais fundadores dos estudos associados do Direito e
da Literatura: John Henry Wigmore, Benjamin Nathan Cardozo e Lon Füller. Nos Estados
Unidos, o movimento Law and Literature cujo início se deu nos anos 70, surgiu com o intuito
de uma maior utilização de elementos literários na análise do Direito. Conquanto alguns
juristas já houvessem percebido a interconexão entre as duas searas do conhecimento, foi
o Law and Literature Movement que impulsionou os estudos da Literatura e do Direito,
sistematizando e organizando seu método próprio. O movimento conseguiu surtir repercussão
no Velho Continente e nos países anglo-saxões, mas ainda resta desapercebido na cultura
jurídica brasileira (SCHWARTZ; MACEDO, 2008, p. 1019).
No Brasil, desde o século XVII, inúmeros são os literatos com formação jurídica.
Nomes, como José de Alencar e Rui Barbosa são famosos por seus escritos literários, bem
como pela atuação jurídica. Nesta senda, inúmeros clássicos da literatura brasileira contêm
em seus textos questões importantes do ponto de vista jurídico, podendo-se citar exemplos
como Jorge Amado (Capitães da Areia) e Graciliano Ramos (Vidas Secas).
Consoante Trindade e Bernsts (2017, p. 236), um marco histórico na evolução dos
estudos em Direito e Literatura no Brasil foi a publicação, em 2005, da edição em português
da obra “Contar a Lei: as Fontes do Imaginário Jurídico”, de François Ost. No prólogo de
sua obra (OST, 2009, p. 07), o autor afirma que o jurista é o poeta por excelência, sendo sua
maneira de fazer poesia: a narração dos fatos. O jurista é, portanto, um empírico por formação
e um literato por vocação.
Dessa sorte, a conjunção com a Literatura pode ser vista como uma prática ainda nova
para parte dos juristas brasileiros, inclusive para a comunidade acadêmica. Entretanto, as
incursões promovidas nesse campo de investigação perfazem uma tradição centenária, visto

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Direito e literatura: simbiose necessária à formação do cidadão sensor
Erica Valente Lopes - Lívia Chaves Leite

que atravessam a história do século XX, sobretudo no cenário internacional (TRINDADE;


BERNSTS, 2017, p. 230).
Vera Chueiri, em seu Dicionário de Filosofia do Direito (2006, p. 233), afirma que a
junção do Direito à Literatura é um campo novo de alternativas para questões formais e
materiais que afligem tanto um como o outro, sendo essa relação, ao nível metodológico,
não só concebível como desejável. Para uma melhor ilustração, pode dizer respeito tanto ao
estudo de temas jurídicos na Literatura, como à utilização de práticas da crítica literária para
compreender e avaliar o Direito.
A importância do cinema, da poesia e da literatura são indubitáveis para uma renovação
do ensino jurídico, uma vez que não se limitam a análises gramaticais, sintáticas ou semióticas,
mas buscam uma maior expressão do homem nas suas relações e experiências, incitando
descobertas de si próprio e da complexidade da sociedade.
Nesta senda, considerando o caráter de criticidade da obra literária, há que se levar em
conta que ela é uma obra de arte, repleta de enigmas e inquietantes estranhezas, que são
capazes de contestar o óbvio, afastar aquilo que é dado como verdade, dissolver as certezas
e romper convicções. A obra de arte produz, num processo criativo, um deslocamento no
olhar, uma ampliação e fusão dos horizontes, de tal maneira que, por intermédio dela, o real
possibilita que surjam mundos e situações, até então, não imaginados (TRINDADE, 2012,
p. 03).
Ademais, os horizontes de sentido, abordados por Hans-Georg Gadamer (2003, p. 243),
possibilitam que o indivíduo se utilize de seus conteúdos de consciência, de suas experiências
na estruturação e na significação que juntos resultam na sua atuação como leitor, pressupondo
compreensão e interpretação de todo o contexto sociocultural ao seu redor, concretizando-
se no eixo da intersubjetividade. Heidegger (1973, p. 347), em consonância, aduz que a
linguagem é a morada do ser.
Nesse viés cognitivo da Literatura como arte, uma obra de arte não parte do zero, assim
como o Direito precisa de informações outras que vão além da norma jurídica para proferir
uma decisão. Novas formas revelam novos sentidos, aquilo que, conforme Ost (2002, p. 35)
adormecia na memória coletiva. O Direito é, portanto, uma criação contínua, um romance
cujo enredo não possui um final único e sim um último “contador”, menciona o filósofo
Dworkin (2017, p. 237). Nessa perspectiva, Warat (2004, p. 187), aduz que juntar o Direito
à poesia é um protesto contra a mediocridade da mentalidade erudita, é recriar o homem
provocando-o para que procure pertencer-se por inteiro, para que sinta aversão a uma
racionalidade puramente objetivista.
Ressimbolizar o direito, assumindo-o como uma ciência da compreensão e não como
ciência da explicação, superando o peso do paradigma liberal iluminista e do pensamento
linear cartesiano, ainda tão presentes no nosso dia a dia, é um desafio que se busca, por
intermédio de novas lentes pelas quais se possa enxergar o ensino jurídico (ESPINDOLA;
SANGOI, 2017, p. 53).
Assim, a Literatura é uma das principais alternativas para a construção de um pensamento
crítico, por intermédio da transdisciplinariedade. Uma de suas potencialidades é tornar o ser

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Direito e literatura: simbiose necessária à formação do cidadão sensor
Erica Valente Lopes - Lívia Chaves Leite

humano mais aberto e compreensivo às questões morais e sociais, explorando o valor moral
do cidadão, sua humanização e participação efetiva nos problemas da cidade, de forma ampla,
consciente corroborando com os gestores públicos no fornecimento de informações e, assim,
um ser ativo nas tomadas de decisões. Não é que a literatura transforme as pessoas, mas ela
tem o condão de incrementar a capacidade de percepção, de imaginação, de pensamento
crítico-reflexivo e, consequentemente, de humanização do leitor.

2. DIREITO, LITERATURA E EXTENSÃO EM CONSONÂNCIA À AGENDA


2030 DA ONU: RESOLUÇÃO CNE/CES Nº 07 DO MEC, PARECER Nº
635/2018 E ODS 4
A conjunção com a Literatura pode ser vista como uma prática ainda nova para parte dos
juristas brasileiros, inclusive para a comunidade acadêmica. Entretanto, as incursões promovidas
nesse campo de investigação perfazem uma tradição centenária, visto que atravessam a história
do século XX, sobretudo no cenário internacional (TRINDADE; BERNSTS, 2017, p. 230).
A ressimbolização do Direito, assumindo-o como uma ciência da compreensão e não como
ciência da explicação, projeta na Literatura uma das principais alternativas para a construção
de um pensamento crítico, por intermédio da transdisciplinariedade.
Diante dos desafios impostos à educação superior no Brasil, advindos de processos
de desenvolvimento de habilidades e competências, definição de estratégias curriculares;
estabelece-se a necessidade de uma periódica reavaliação das diretrizes curriculares dos
cursos de educação superior, a fim de estimular a formação de competências e habilidades
dos discentes.
Dessa forma, o Parecer nº 635/2018 oportunizou o processo de elaboração das novas
diretrizes curriculares nacionais do curso de Direito e contou com amplo debate junto aos órgãos
de representação profissional, bem como de especialistas e representantes governamentais do
campo da educação.
A partir desse estágio, a Resolução CNE/CES nº 07/2018 tornou-se possível, estabelecendo
Diretrizes para a Extensão na Educação Superior Brasileira, definindo princípios, fundamentos
e procedimentos a serem observados no planejamento, nas políticas, na gestão e na avaliação
das instituições de educação superior de todos os sistemas de ensino do país. Ademais,
regulamentou as atividades acadêmicas de extensão dos cursos de graduação, na forma
de componentes curriculares para os cursos, inclusive estabelecendo, no artigo 4º, que as
atividades de extensão, devem compor, no mínimo, 10% da carga horária curricular estudantil
dos cursos de graduação, as quais deverão compor a matriz curricular dos cursos.
Ademais, essa relação entre Direito e Literatura na Extensão visa implementar, ainda,
a Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável,
definida em 2015, em Nova Iorque, fruto do trabalho conjunto de governos e cidadãos de
todo o mundo para a criação de um novo modelo global que possa promover a prosperidade e
o bem-estar de todos, cooperação e parcerias com governos, sociedade civil e outros agentes
sociais (CASTRO, 2018, p. 357).

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Direito e literatura: simbiose necessária à formação do cidadão sensor
Erica Valente Lopes - Lívia Chaves Leite

Diante disso, a relação entre Direito e Literatura visa atender principalmente à ODS
de nº 4, que busca: “assegurar a educação inclusiva e equitativa e de qualidade, e promover
oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todas e todos” (ONU, 2015),
contribuindo, conforme as metas estabelecidas, para o aumento do número de jovens e adultos
que tenham habilidades relevantes, com a promoção de uma cultura de paz e não violência,
cidadania global e valorização da diversidade cultural e da contribuição da cultura para o
desenvolvimento sustentável.
Todos esses objetivos levam à formação de uma educação inclusiva e imbuída dos
objetivos sustentáveis e, mais do que isso, à formação de verdadeiros cidadãos sensores para
uma cidade inteligente. Cidades inteligentes pressupõem “cidadãos inteligentes” (ARAUJO;
LEMOS, 2018, p. 4). Pode-se pensar nesse cidadão inteligente, portador de habilidades como
um “cidadão sensor”, captando e produzindo informações em seu deslocamento pelo espaço,
principalmente ambientes educacionais, sendo um verdadeiro sensor dos problemas ao seu
redor, funcionando como ferramenta de mudanças para uma cidadania digna.
Assim, a Universidade de Fortaleza (UNIFOR), por meio do seu projeto de extensão
Cidadania Ativa e do Programa Quinta Literária, intercruzou os estudos jurídicos e literários,
dando a oportunidade de os alunos estudarem o Direito sob uma nova matriz pedagógica e
epistemológica, implementando uma educação inclusiva e sustentável, na busca da formação
de alunos mais críticos, reflexivos, participativos, cidadãos e sensores, conforme se verá
adiante.

2.1. Os Estudos Jusliterários De Extensão Como Conteúdo Curricular: Pesquisa De


Campo Com Alunos do Projeto Quinta Literária
Com o objetivo de confirmar a hipótese suscitada, realizou-se pesquisa de campo
no formato pesquisa-ação, de caráter exploratório e abordagem qualitativa, enviando-se
formulários da plataforma Google Forms, via e-mail, ao conjunto universo de 60 (sessenta)
discentes participantes ou ouvintes do projeto mencionado, no interregno de 2015 à metade
do primeiro semestre de 2019.
Iniciou-se com perguntas situacionais para melhor conhecimento dos sujeitos analisados:
(1) “Você é do Curso de Direito?”; (2) “Você participou do Projeto Quinta Literária
ofertado como projeto de extensão na Unifor?”. Ressalta-se que, caso as perguntas (1) e (2)
fossem negativas, o aluno encerrava a pesquisa, não sendo encaminhado para os próximos
questionamentos. Ultrapassado essa fase, a pergunta (3) “Você acredita que o projeto o
incentivou a ler mais?” obteve 95% de respostas “Sim” a contraponto de somente 5% “Não”.
Em seguida, formulou-se os questionamentos (4) “O Projeto Quinta Literária o auxiliou no
processo de interação em grupo?” e (5) “Você teve um maior contato com a realidade jurídica
ou social por meio do projeto?” ambos igualmente com respostas 84% “Sim” e 16% “Não”.
Em seguida, indagações referentes à simbiose de conhecimento entre as ciências foram
questionadas nos pontos 6, 7 e 8, transcreve-se: (6) “Os ensinamentos obtidos no Projeto
Quinta Literária o auxiliaram no desenvolvimento acadêmico durante o curso de Direito?”; (7)
“Você acha que a experiência adquirida no Projeto Quinta Literária serviu como instrumento
potencializador de seu senso crítico e raciocínio?”; (8) “Você acredita que o Direito associado

— 497 —
Direito e literatura: simbiose necessária à formação do cidadão sensor
Erica Valente Lopes - Lívia Chaves Leite

à Literatura, por meio de projetos de extensão universitária, contribui para a formação jurídica
e humana do aluno?”, todos com 100% de assertividade “Sim”.
Dos 60 (sessenta) questionários enviados, 19 (dezenove) foram respondidos, dentre
estes, 4 (quatro) retornaram por e-mail inexistente, permanecendo os restantes no livre
arbítrio. Apesar disso, pode-se afirmar ter-se confirmado a hipótese em estudo ou, caso se
prefira ser mais prudente, uma acentuada tendência positiva ao questionamento central da
pesquisa científica com respostas dotadas de índices com mais de 50% (cinquenta por cento)
de aprovação, o que concede suporte à confirmação da hipótese.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por intermédio dos resultados colhidos, e, após a abertura normativa do Conselho
Nacional de Educação com a Resolução CNE/CES nº 7/2018 e o Parecer nº 635/2018, a
hipótese levantada pôde ser comprovada, conferindo subsídios a proposição de que projetos
de extensão que interliguem o estudo do Direito à Literatura, a exemplo do Quinta Literária
da Universidade de Fortaleza, contribuem para a implementação da ODS nº 4 da Agenda
2030 da ONU, sendo propulsionador à formação de cidadãos sensores aptos a realizar e exigir
um desenvolvimento educacional sustentável e de qualidade, sendo partícipes dos processos
de decisão do meio em que vivem.

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Direito e literatura: simbiose necessária à formação do cidadão sensor
Erica Valente Lopes - Lívia Chaves Leite

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A metodologia do Project-Based Learning (PBL)
como fomento à inovação no ensino jurídico:
proposta antidisciplinar
à pós-graduação em direito

Diana Moreira Gondim1


Mateus Rodrigues Lins2

Resumo: A compreensão de que a arte, a ciência, metodologia e a tecnologia estão intrinsecamente


conectadas instiga uma análise às metodologias de ensino superior, a partir do rompimento com grades
curriculares extensivas e compartimentalizadas. No Brasil, o baixo engajamento de alunos de pós-graduação
em Direito em projetos de impacto positivo e na produção científica revela a deficiência da criação de zonas
de interseção entre problemas sociais reais e as mais diferentes áreas do saber. Nesse contexto, o objetivo
deste estudo é proporcionar ao discente de programas de pós-graduação em Direito lato sensu e stricto
sensu, uma metodologia de desenvolvimento de lideranças, a partir da aprendizagem científica baseada em
projetos (ABP), também conhecida por Project-Based Learning (PBL) e da quebra de barreiras disciplinares
(antidisciplinaridade). Nessa perspectiva, por meio de uma pesquisa de fonte bibliográfica, documental e
de campo, com objetivo descritivo-exploratório, de abordagem qualitativa, foi possível desenvolver um
Project Canvas e uma pesquisa de opinião que formula o protótipo do Laboratório de Apoio à Pesquisa,
Inovação e Impacto (LAPII), como solução inovadora. Isto propicia que as mais diversas interfaces de
conhecimento universitário se comuniquem de modo pleno e, suficientemente, resultando em um método
que trabalha a didática do ensino jurídico e a metodologia da pesquisa como fatores motivacionais e
propulsores do protagonismo do aluno na construção do conhecimento e do desenvolvimento de habilidades
socioemocionais, assim como competências para o mercado de trabalho do século XXI.
Palavras-chave: Antidisciplinaridade; Inovação; Ensino compartilhado; Liderança; Metodologia
Project-Based Learning.

1
Mestranda em Direito Constitucional no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade
de Fortaleza (PPGD/UNIFOR), Fortaleza, Ceará, Brasil. E-mail: diana_gondim@hotmail.com.
2
Mestrando em Direito Constitucional e Teoria Política pela Universidade de Fortaleza (PPGD/
UNIFOR). E-mail: mateusrlins@gmail.com

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A metodologia do Project-Based Learning (PBL) como fomento à inovação no ensino jurídico
Diana Moreira Gondim - Mateus Rodrigues Lins

Abstract: The understanding that art, science, methodology and technology are intrinsically
linked makes the world rethink its higher education methodologies from breaking with extensive and
compartmentalized curricula. In Brazil, the low engagement of law graduate students in positive impact
projects and scientific production reveals the deficiency of the creation of intersection zones between real
social problems and the most different areas of knowledge. In this context, the objective of this work
is to provide students of postgraduate programs in lato sensu and stricto sensu law with a leadership
development methodology based on project-based scientific learning (PBL) or project-based learning
(PBL) and the breaking of disciplinary barriers (antidisciplinarity). From this perspective, through a
bibliographic, documental and field research, with a descriptive-exploratory objective and a qualitative
approach, it was possible to develop a Project Canvas and an opinion poll that formulates the prototype
of the Research Support Laboratory, Innovation. and Impact (LAPII), as an innovative solution, which
enables the most diverse university knowledge interfaces to communicate fully and sufficiently, capable
of generating as a result a teaching method that works the didactics of legal education and the research
methodology as motivational and driving factors of student protagonism in the construction of knowledge
and the development of socio-emotional skills and competences for the XXI century labor market.
Keywords: Antidisciplinary; Innovation; Shared teaching; Leadership; Methodology Project-Based
Learning.

INTRODUÇÃO
O afastamento entre as áreas do conhecimento, por meio de grades curriculares extensivas
e compartimentalizadas, vem ganhando contornos preocupantes, quanto à efetividade e às
possibilidades de desenvolvimento de habilidades e competências pessoais e profissionais de
estudantes das mais diversas áreas. Contudo, a partir de uma breve análise, principalmente
no cenário internacional, é possível observar uma espécie de encurtamento dessa distância
por pontes construídas em prol de uma nova maneira de explorar a sociedade moderna: a
educação livre de barreiras quantitativas (extensão) e aberta à qualidade e à autonomia do
ensino (intensiva).
Quando se pensa em metodologia de aprendizagem baseada na aproximação da ciência
jurídica com a realidade, não existe cenário mais adequado que o da combinação promovida
pelas conexões entre arte, ciência, metodologia e tecnologia, por via da aprendizagem
científica baseada em projetos (ABP), também conhecida por Project-Based Learning (PBL),
e da quebra de barreiras disciplinares (antidisciplinaridade), que, em um primeiro momento,
não são muito fáceis de serem vislumbradas em relação ao resultado, mas resta claro que as
diversas maneiras de conhecimento acabam por expressar temáticas relacionadas ao direito e
reforçam sua importância na vida cotidiana das pessoas.
A união entre áreas aparentemente distintas, como ciência, arte, tecnologia e metodologia,
mostra-se fundamental para se chegar à inovação e criação de projetos, com densidade capaz
de impactar uma sociedade global, revelando uma impossibilidade de compartimentalização
de soluções para problemas complexos e multifacetados. Surge, então, a necessidade de
um (re)desenho das metodologias que envolvem a aprendizagem em instituições de ensino
superior (IES), no tocante aos cursos de Direito, visando à participação do aluno no processo
de aprendizagem e na troca de conhecimento eficiente.
Com suporte no ranking do Programa para Avaliação Internacional de Estudantes
(PISA) (OECD, 2015), o nível da educação finlandesa é considerado um dos mais altos

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A metodologia do Project-Based Learning (PBL) como fomento à inovação no ensino jurídico
Diana Moreira Gondim - Mateus Rodrigues Lins

no mundo. Essa fórmula envolve a valorização dos professores e o desenvolvimento das


múltiplas inteligências dos alunos, a partir do envolvimento com artes, ciência e tecnologia,
nas diferentes maneiras de aprendizagem. O país aderiu ao ensino de “fenômenos” e de
solução de problemas complexos e reais, em vez de disciplinas e cadeiras acadêmicas, em
detrimento da educação tradicional, o que corrobora com os resultados que serão apontados
ao longo desta pesquisa.
Nessa perspectiva, o objetivo desta pesquisa é propor uma metodologia de ensino
superior compartilhado, por meio da aprendizagem baseada em projetos idealizados e
desenvolvidos pelos próprios discentes dentro de um laboratório, que possibilita a ideação,
criação e edição de pesquisas dotadas de impacto e inovação, com foco no desenvolvimento
de suas habilidades, inclusive docentes. Além disso, estimula o crescimento e a estruturação
de referenciais teóricos e metodológicos, bem como a expansão e a consolidação da
pós-graduação lato sensu e stricto sensu das universidades junto à Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior (CAPES).
A metodologia utilizada para o desenvolvimento e criação do projeto foi realizada a
partir de fontes documentais, bibliográficas de títulos nacionais e estrangeiros, revistas e
artigos científicos de base de dados online (SciELO); de pesquisa de campo realizada com 250
alunos de programa de pós-graduação em Direito e advogados, por via de entrevista enviada
pelo Google Docs, para avaliar as dificuldades, deficiências e necessidades de conteúdos a
serem trabalhados pelo corpo do docente dentro do laboratório. A abordagem foi qualitativa,
com objetivo descritivo-exploratório, com suporte na análise dos impactos da implantação do
projeto em uma universidade cearense.

1. PROJECT-BASED LEARNING (PBL) E ANTIDISCIPLINARIEDADE: O


PAPEL DO CIENTISTIA JURÍDICO NO SÉCULO XXI
Reconhecer e agir de acordo com a importância de combinar arte, ciência e metodologia
na educação abre as portas para o tipo de pensamento inovador que ajuda a resolver alguns
dos problemas urgentes do mundo. Atualmente, o universo acadêmico e o mercado de
trabalho necessitam cada vez mais de pessoas que sejam capazes de unir uma variedade
de conhecimentos às mais dissimilares áreas do saber. E, tendo em vista que o crescimento
econômico e social é impulsionado pela ruptura de paradigmas, surge a necessidade de novas
abordagens capazes de deslocar as barreiras disciplinares em direção a rápidas respostas aos
problemas complexos e multifacetados apresentados pela sociedade (SILVA; TELES, 2018).
De acordo com Paulo Freire (1987), o método expositivo, que tem um caráter
paternalista, tende a anular o poder do criador dos alunos ou, pelo menos, minimizá-lo,
incentivando a continuidade na ingenuidade. Desse modo, a aprendizagem científica baseada
em projetos é um desdobramento de metodologias ativas de ensino, na qual o conhecimento e
o compartilhamento de informações passa ser também responsabilidade do aluno que é tirado
condição de mero receptor. Por meio do PBL, os alunos são identificados por habilidades e
conhecimentos em áreas específicas, sendo postos como sujeitos ativos em um ambiente de
aprendizagem personalizada (BACICH; TANZI NETO; TREVISANI, 2015). As ferramentas
e as diretrizes que nortearão toda a condução do problema inicial propõem que os alunos

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A metodologia do Project-Based Learning (PBL) como fomento à inovação no ensino jurídico
Diana Moreira Gondim - Mateus Rodrigues Lins

investiguem as possíveis causas da questão analisada, bem como apresentem hipóteses e


definam táticas para a resolução do desafio. O ponto alto dessa construção é, portanto, a
possibilidade de cada estudante interagir com sua realidade, identificando o que há de errado
e entendendo o que precisa ser melhorado ou resolvido, trabalhando com sugestões de
prevenção ou solução do desafio (PINTO, 2019).
Originada nos anos 1900, esta metodologia que valoriza, questiona e contextualiza a
capacidade de pensar dos alunos para a resolução de situações reais (MASSON et al., 2012, n.
p.), vem sendo adotada em várias áreas no ensino superior, em diversas instituições de ensino
preocupadas com a aprendizagem ativa e dinâmica, que propicia aos estudantes a criação de
novos conhecimentos e engajamento com a realidade social externa à sala de aula (PINTO et
al., 2012).
De tal modo, ao visualizar o PBL como uma metodologia ativa, necessária a compreensão
de outras maneiras de articulação de disciplinas que vêm sendo trabalhadas em programas
de pós-graduação no Brasil, como a pluridisciplinaridade – que estuda uma temática comum
em várias áreas do saber ao mesmo tempo; a interdisciplinaridade – que cuida da conciliação
de conteúdo de disciplinas de diversas áreas visando à construção de novos conhecimentos;
a transdisciplinaridade – que ultrapassa as barreiras que separam uma disciplina da
outra, articulando elementos que passam entre, além e através das disciplinas, visando
à compreensão da complexidade de determinado problema (BRASIL, 2013). Com isso, o
ponto crucial de diferenciação de todos os modos de articulações das nomenclaturas citadas
para a antidisciplinaridade – terminologia criada por Joichi Ito (2014), diretor do MIT Media
Lab, no MIT nos Estados Unidos para definir uma proposta na qual não existem barreiras
disciplinares para abordagem de projetos acadêmicos e para produção científica, com foco
na adaptabilidade humana frente às presentes e futuras demandas sociais – reside na atuação
em conjunto por profissionais de diversas áreas, pautados por diretrizes de congregação de
saberes, focando no projeto a ser idealizado e, não em barreiras disciplinares, fazendo com
que haja uma construção científica baseada em um mundo mais complexo e volátil, estando
atentos às transformações de todos os aspectos da sociedade, dos negócios da cultura e da
esfera pública, o que acaba por derrubar a sabedoria de aprendizagem tradicional, dando
destaque aos profissionais que aprenderem fazer ciência de modo compartilhado.
A resolução de problemas complexos requer o desenvolvimento de expertises
relacionadas ao raciocinar de modo complexo. Afirmação aparentemente simples, mas que
gera reflexões sociais que mudam o modo de se pensar o conhecimento jurídico, a partir do
compartilhamento e do envolvimento do discente com o processo de aprendizagem.
O papel do cientista jurista no século XXI não se restringe apenas em observar e
descrever os fenômenos, pois consiste, também, na contextualização e conexão destes com
a consequente prescrição de medida para solucionar ou anemizar seus impactos na vida das
pessoas. A metodologia antidisciplinar e a baseada em projetos são responsáveis por estimular
os profissionais de Direito e pós-graduandos, à resolução e adequação de problemas que
afetam a sociedade, a partir de vários referencias, sendo possível vislumbrar a construção
de uma teoria do ensino jurídico que deixa de lado a ideia de uma mera ciência formal,
com pressupostos desconexos da realidade, para tornar seus agentes “operadores efetivos das
relações sociais”.

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A metodologia do Project-Based Learning (PBL) como fomento à inovação no ensino jurídico
Diana Moreira Gondim - Mateus Rodrigues Lins

2. PROPOSTA ANTIDISCIPLINAR À PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO:


LABORATÓRIO DE APOIO À PESQUISA, INOVAÇÃO E IMPACTO
(LAPII)
Empreendeu-se esforços para a produção de uma pesquisa de opinião, do tipo Survey,
no Google Docs, intitulada de “Barreiras da produção científica na pós-graduação em Direito
(lato e stricto sensu)” para indagar a 250 (duzentos e cinquenta) pós-graduandos de programas
de “escola” do Direito lato sensu e stricto sensu, bem como advogados, sobre as necessidades
quanto suas produções acadêmicas e seus envolvimentos em projetos de impacto social,
visando ao desenvolvimento de lideranças e à consolidação das funções sociais precípuas do
aplicador do Direito.
Para tanto, foram elaboradas as seguintes indagações: 1) Na sua opinião, o histórico
de sua produção científica o faz um agente de transformação social? 2) Qual é sua média de
produção científica anual? 3) Na sua percepção, qual é o maior fator de impedimento para sua
produção científica? 4) Em sua opinião, qual das opções teria mais impacto na sua produção
científica enquanto acadêmico (a)? Das quais foram extraídos os seguintes resultados:
Na primeira pergunta, 59,7% dos entrevistados afirmaram que sua produção científica
os fazem agente de transformação social, enquanto 15% disseram que não, para 21,3% que
disseram que só de vez em quando suas pesquisas abordam problemáticas sociais, 2,9%
consideram que dificilmente abordam essa temática e 1,1% dos entrevistados não produz
ciência.
Na segunda pergunta, 28,9% dos entrevistados afirmam não possuir nenhuma média
de produção anual, 25,7% com a média de uma produção anual, 22,9% uma produção anual
entorno de dois trabalhos, 11,5% um produção anual em torno de três trabalhos, para 11,1%
que produzem mais de quatro trabalho no período de um ano.
Na terceira pergunta, 40% dos entrevistados atribuíram a falta de tempo como fator
de maior impedimento, 19,2% afirma que o maior fator de impedimento é a ausência de
fatores motivacionais, já 12,3% relacionam à falta de conhecimento metodológico, 10,3%
relacionam o fato a dificuldade de definir sua área de pesquisa, 10,7% atribuem aos obstáculos
de rompimento de barreiras disciplinares, 0,8% a falta de interação com o orientador, 0,8% a
dificuldade de conciliar a vida acadêmica com o trabalho, 0,8% atribuem aos poucos recursos
financeiros, 0,4% material bibliográficos está em páginas estrangeiras pagas, 0,4% pressão
acadêmica por produção em quantidade, 0,4% ao retorno sucessivo para correções, 0,4% não
gosta de produções científicas, 0,4% por dificuldade de acompanhar editais e encaminhar
artigos, 0,4% por falta de um orientador que saiba direcionar a pesquisa e tenha bagagem
para tanto, 0,4% falta de orientação e 0,4% um misto de falta de tempo e falta de fatores
motivacionais.
Na quarta pergunta, 38,8% afirmam que a existência de um laboratório de apoio à
pesquisa e inovação para o desenvolvimento de projetos, 20,8% afirmam que um tutor de
metodologia para cada área de pesquisa, 11,2% uma disciplina específica de motivação à
produção científica, 24% afirmam que um aprofundamento relativo a referencias teóricos e
metodológicos, 0,8% asseguram que um maior investimento e financiamento nas pesquisas
científicas, para que os pesquisadores tenham mais tempo para realizar pesquisas, de fato,

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A metodologia do Project-Based Learning (PBL) como fomento à inovação no ensino jurídico
Diana Moreira Gondim - Mateus Rodrigues Lins

com impacto social, 0,4% abordam que menos cobranças de quantidade e mais qualidade
daria densidade às suas produções.
Observa-se que a hipótese aventada a despeito da criação de um laboratório que permitisse
a aprendizagem por meio de projetos de impacto social e de metodologia antidisciplinar
nas mais diversas áreas do saber, e, sobretudo, no tocante à arte, metodologia e tecnologia,
possibilita a pós-graduandos e profissionais do Direito a possibilidade de acessar todas as
áreas necessárias para concretização de seu embasamento teórico na prática, o que acaba
por fazer sentido e está intrinsecamente contido nos principais anseios dos entrevistados na
pesquisa de opinião acima, já que apontam necessidades que vão de encontro às constatações
deste trabalho.
Nesse diapasão, cuida-se de uma missão hercúlea imaginar caminhos de interseção
envolvendo arte, ciência, metodologia e tecnologia, contudo, por suas totais conexões e
por já existir metodologia capaz de tornar essa realidade uma prática, idealizou-se o LAPII.
Este laboratório divide-se em células compartimentalizadas no momento inicial, mas que ao
longo da produção serão unificadas por temáticas transversais e funcionará como berço para
o exercício de um Comitê editorial Cíclico (CEC); Célula de ideação e Inovação; Célula de
Capacitação do discente para a docência; Célula de Tutorial Acadêmico Científico; Células
Avançadas de publicações (A+1) e levantamento de ABNT; Célula de captação de revistas e
editais.
O ponto de partida se dá a partir da elaboração e apresentação às divisões de pós-
graduação em Direito de universidades particulares cearenses, de um projeto com as
seguintes especificações: criação do LAPII, dividido por células de pesquisas; organização de
competições e festivais envolvendo artes, ciências, metodologia e tecnologias para a geração
de soluções criativas de diversas áreas do saber, em curtos espaços tempo (Hackaton’s);
formação de grupos de estudos metodológicos para aplicação combinada das diversas
ciências; composição de tutores, coach’s, docentes e profissionais de todas as “escolas” da
universidade; oficinas, palestras e seminários para a difusão do laboratório e de suas atividades;
criação de tecnologia capaz de fazer designer de soluções e tracejado de stakeholders para
desenvolvimento e fomento à pesquisa.
Nesse sentido, o LAPII funcionará, em um primeiro momento, como uma célula
de pesquisa da escola Direito das universidades, tendo como objetivo principal a defesa,
divulgação e o gerenciamento técnico da metodologia da antidisciplinaridade como ferramenta
para atender às demandas exigidas aos profissionais do século XXI, a partir da unificação da
arte, tecnologias e todos os ramos da ciência que forem necessários, sendo responsável pela
promoção e capacitação de docentes e profissionais, estes afiliados à universidade, a partir de
convênios realizados por órgãos de classe habilitados.
Os discentes da graduação e pós-graduandos e profissionais interessados ingressarão
no corpo do laboratório por meio de submissão de trabalho científico, envolvendo projeto
de impacto social na área de arte, ciência e tecnologia, somado a fatores de desempenho
acadêmicos e os profissionais externos (pós-profissionalização), mediante submissão de
trabalho científico, envolvendo projeto de impacto social na área de arte, ciência e tecnologia
somado a desempenho em avaliação semestral e inscrição em órgão regulador de classe.

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A metodologia do Project-Based Learning (PBL) como fomento à inovação no ensino jurídico
Diana Moreira Gondim - Mateus Rodrigues Lins

Acredita-se que desenvolver a quebra de interfaces curriculares a partir da


antidisciplinaridade e da aprendizagem baseada em projetos de impacto social, dentro de
um laboratório, que facilita do processo metodológico de construção de ensino, situado nas
universidades, possibilitará que profissionais de diversas áreas trabalhem juntos no intuito da
construírem e modificarem a realidade social, alcançando algo inimaginável para a história
do ensino superior nacional, em especial o jurídico, pelo histórico de poucos avanços e
linearidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A aplicação de metodologias de ensino que se presta a combinar, inicialmente, arte, ciência,
metodologia e tecnologia, cuida-se de um verdadeiro avanço na temática para potencialização
expertise que visam a entregar à sociedade profissionais corresponsáveis com a problemática
da sociedade pós-contemporânea, que exige dos profissionais e dos cursos de ensino superior,
o retorno da técnica de maneira prática, por meio da criação de ideias, invenções, construções
e rompimento de paradigmas e linguagens universais de aprendizado.
A implementação da antidisciplinaridade no ensino jurídico brasileiro, apesar de novo,
carrega consigo a possibilidade de propiciar resultados positivos no tocante à histórica
falta de articulação da política brasileira de educação que não concatena saberes e que
compartimentaliza as áreas de conhecimento, apartando-a da realidade na qual está inserida.
Desta maneira, na busca de materializar a construção de pontes no sentido de juntar profissionais
e áreas do saber, a aprendizagem baseada em projetos apresenta-se como um mecanismo
estruturador de uma mudança conceitual no modo como se enxerga o conhecimento a partir
de vários referenciais.
A criação do laboratório de apoio, o LAPII, desenvolve a quebra de interfaces curriculares,
por via da aprendizagem científica baseada em projetos (ABP) ou PBL e da ruptura completa
de barreiras disciplinares (antidisciplinaridade), possibilitando que profissionais e membros
de órgãos públicos atuem conjuntamente em prol de objetivos específicos e mensuráveis com
vistas a criar soluções que impactem e modifiquem a ciência jurídica e a sociedade.
Tais sugestões serão aplicadas visando, finalmente, a verificar seu impacto perante a
qualidade do ensino, das pesquisas, da produção científica integradora de arte e tecnologia,
seus impactos pessoais e sociais no tocante à formação acadêmica dos discentes, bem como
na maneira de exercer a profissão após a conclusão dos cursos, diminuindo a possibilidade de
defasagem profissional e, dando um tônus mais responsável em relação à maneira como os
juristas se enxergam enquanto atores de pacificação social e resolvedores de problemas.
Ressalta-se, ainda, que a pesquisa não esgota a temática; ao contrário, faz surgir uma
série de questionamentos sobre os meios capazes de possibilitar a estruturação de um espaço
que possibilite a integração de todas as áreas do saber a depender do caso concreto e de sua
complexidade, já que a compreensão da congregação das mais diversas áreas ao conhecimento
do direito é um terreno que merece aprofundamento e quebra de paradigmas, em razão desta
temática ser pautada em questões históricas bem sedimentadas, e por isso o desafio.

— 506 —
A metodologia do Project-Based Learning (PBL) como fomento à inovação no ensino jurídico
Diana Moreira Gondim - Mateus Rodrigues Lins

REFERÊNCIAS
BACICH, Lilian; TANZI NETO, Adolfo; TREVISANI, Fernando de Mello. Ensino híbrido:
personalização e tecnologia na educação. In: BACICH, Lilian; TANZI NETO, Adolfo;
TREVISANI, Fernando de Mello (org.). Ensino híbrido: personalização e tecnologia na educação.
Porto Alegre: Penso, 2015. p. 47-65.
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Alfabetização, Diversidade e Inclusão. Conselho Nacional da Educação. Diretrizes Curriculares
Nacionais Gerais da Educação Básica. Brasília: MEC: SEB: DICEI, 2013. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/docman/julho-2013-pdf/13677-diretrizes-educacao-basica-2013-pdf/
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ITO, Joichi. Antidisciplinar. Polytech, [s. l.], 3 out. 2014. Disponível em: https://medium.com/polyteck/
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In: CONGRESSO BRASILEIRO DE EDUCAÇÃO EM ENGENHARIA, XL., 2012, Belém,
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cobenge/arquivos/7/artigos/ 104325.pdf. Acesso em: 26 ago. 2019.
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em: http://www.oecd.org/pisa/publications/. Acesso em: 26 ago. 2019.
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o uso de metodologias ativas pelos cursos de licenciatura do UNISAL, Lorena: estendendo o
conhecimento para além da sala de aula. Revista de Ciências da Educação, Americana, v. 2,
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post/2018/07/31/Inovações-além-das-barreiras-disciplinares. Acesso em: 26 ago. 2019.

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Requisitos formais das convocatórias das
assembleias gerais: o uso das TIC
– Estudo comparativo entre
os regimes jurídico português e espanhol –

Marisa Dinis1

Resumo: Nos últimos anos, fruto dos avanços técnicos, tem sido evidente a utilização das tecnologias
de informação (TIC) e comunicação no âmbito das sociedades comerciais. Os legisladores, nacionais e
comunitário, têm intentado verter na lei a modernização de algumas das mais clássicas formas de atuar. A
acompanhar esta tendência, os requisitos formais que revestem as convocatórias das assembleias gerais,
dos diversos tipos de sociedade, consagrados sob a égide de imperativos legais, têm acolhido as “novas”
tecnologias e reinventado as tradicionais formas de chamar os sócios à reunião. Porém, a novidade da
matéria e a constante evolução tecnológica, aliadas à dificuldade em que os legisladores, não raras vezes
leigos em conhecimentos técnicos inerentes às TIC, conduzem a redações pouco claras e a articulados que,
entre si, não partilham coerência sistémica. O presente estudo visa comparar as alterações legais que foram
promovidas nos regimes jurídicos português e espanhol para acolherem a utilização das TIC no âmbito
das convocatórias das assembleias gerais. Partiremos do direito positivo que, podemos antecipar, não é
isento de críticas, em nenhum dos regimes e não acolhe as soluções decorrentes do estado atual da técnica
que, pensamos, permitem que o uso das TIC enquanto ferramenta para cumprir os requisitos formais das
convocatórias das assembleias gerais, seja intensificado e verdadeiramente eficaz já que, além do mais,
comunga de características essenciais a este processo: celeridade, economicidade, segurança e fiabilidade.
Palavras-Chave: Sociedades comerciais; deliberações sociais; assembleias gerais; TIC.

Abstract: In recent years, as result of technical advances, the use of information and communication
technologies (ICT) within commercial companies has been evident. Accompanying this trend, the
formal requirements to call de partners to the general meeting, have welcomed the “new” technologies
and reinvented the traditional ways of calling the members. However, the novelty of the subject and

1
Professora-Adjunta no Politécnico de Leiria. Investigadora do IJP-Polo de Leiria. Licenciada e
Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Doutora em Direito das Socie-
dades pela Faculdade de Derecho da Universidade de Salamanca. Contacto: marisa.dinis@ipleiria.pt.

— 508 —
Requisitos formais das convocatórias das assembleias gerais: o uso das TIC
Marisa Dinis

the constant technological evolution, the law cannot fallow this evolution and rules are confusing and
sometimes contradictories. The present study aims to compare the legal changes that have been promoted
in the Portuguese and Spanish legal frameworks to accommodate the use of ICT in the context of calls for
general meetings.
Key words: Commercial companies; social deliberations; general meetings; ICT.

1. Considerações iniciais
As sociedades comerciais podem assumir, tanto à luz do regime jurídico português, como
à do regime jurídico espanhol, vários tipos, consoante as características principais que revestem,
cabendo às partes eleger, de entre o elenco tipificado na lei, o tipo comercial que melhor se
adequa aos seus interesses. Independentemente da existência de diversos tipos de sociedades,
o tecido empresarial português é constituído sobretudo por sociedades de tipo quotas e de tipo
anónimas. Por sua vez, no mesmo paralelo, quando nos referimos ao tecido empresarial espanhol
cabe destacar as denominadas sociedades de responsabilidad limitada (SRL), sociedad nueva
empresa - SNE (um subtipo de sociedad de responsabilidade limitada) e sociedades por acciones
ou sociedades anonimas. Serão, pois, estes os tipos societários objeto da presente análise.
As sociedades, na sua veste de pessoa coletiva, demandam a existência de uma estrutura
organizatória constituída por núcleos de atribuição de poderes que denominamos de órgãos
sociais e que podem assumir natureza singular ou coletiva, consoante sejam constituídos
por um único elemento ou por mais2. É precisamente essa essência coletiva que conduz à
obrigatoriedade de os órgãos deliberarem para formarem a respetiva vontade jurídica. O
procedimento deliberativo obedece a trâmites legais e estatutários que, quando postos em
causa, podem inquinar a deliberação de invalidade. O processo deliberativo assume especial
importância no âmbito das assembleias gerais (juntas generales), com destaque para as
formalidades inerentes à convocação dos sócios que dependem do tipo de sociedade em
causa. Assim, com o objetivo de chamar os sócios à referida reunião, prevê-se, em ambos
os ordenamentos jurídicos, a obrigatoriedade de se verificarem determinadas formalidades
aquando da convocação dos sócios. Neste âmbito, a carta registada e a publicação da
convocatória têm sido entendidas como formas seguras de chamar os sócios à assembleia.
Porém, a eficácia destes meios tradicionais tem sido abalada pela celeridade e pelo poder
imprimidos às mais recentes TIC. Apesar de, nesta sede, se terem verificado algumas
mudanças legislativas, cremos que, em nenhum dos ordenamentos em estudo, tais alterações
foram devidamente articuladas de forma a alcançar a necessária harmonia técnico-jurídica3.

2
Cfr. entre outros, ABREU, Jorge Manuel Coutinho de, Curso de Direito Comercial, volume II –
Das Sociedades, Almedina, Coimbra, 2019, 6ª edição; CORREIA, Luís Brito, Direito Comercial, 3º vol.,
2ª Tiragem da edição de 1989, 1992, AAFDL; DINIS, Marisa, et al., Noções de Direito das Sociedades
Comerciais, Rei dos Livros, fevereiro de 2019, p. 69 e seguintes. No regime jurídico espanhol, vd. CAR-
BAJO CASCÓN, Fernando, “Los órganos sociales: junta general y administradores”, Derecho Mercantil,
sob coordenação de Félix Vicente Azón Vilas, 2004. CRUZ RIVERO, Diego, “La Junta General”, Derecho
Mercantil: volumen 3. Las Sociedades Mercantiles, sob coordenação de Guillermo J. Jiménez Sánchez e
Alberto Díaz Moreno, 2013, páginas 471-520.
3
Para maiores desenvolvimentos, vd. DINIS, Marisa, La aplicación de las tecnologías de la infor-
mación en la creación y funcionamiento de sociedades mercantiles, tesis doctoral.

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Requisitos formais das convocatórias das assembleias gerais: o uso das TIC
Marisa Dinis

2. O ordenamento jurídico português


O legislador português foi pioneiro em trazer para o plano legislativo as TIC, conferindo-
lhe, em vários quadros, significado jurídico. Num cenário com conhecimentos técnicos
bastante mais rudimentares do que aqueles que atualmente se verificam e, sobretudo, com os
desconhecimentos inerentes à novidade da ciência em causa, é de louvar a ousadia legislativa
a que, então, assistimos4. Não houve, sem embargo, um continuado avanço legislativo nesta
sede e, pese embora as inovações técnicas que se verificam nos últimos anos e que permitem,
atualmente, soluções muito distintas, as mesmas não ganharam amparo em alterações legislativas,
verificando-se, na verdade, em matéria de direito das sociedades, alguma inércia legislativa.

2.1. As sociedades por quotas


Os sócios das sociedades por quotas são convocados para as assembleias gerais por via
de carta registada, com a antecedência mínima de quinze dias, face à data da realização da
reunião, estando esta competência a cargo dos gerentes. As preditas formalidades decorrem
diretamente do n.º 3 do artigo 248.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC) e revestem
natureza imperativa mínima. Quer isto dizer que pode o contrato de sociedade aditar outras
formalidades às legalmente estabelecidas, não podendo, no entanto, afastar as expressamente
consagradas. O mesmo sucede relativamente ao prazo. A utilização de carta registada na
convocação dos sócios é tradicional e prende-se, além do mais, com as características de
segurança e de fiabilidade que lhe são reconhecidas5. No atual estado da técnica e da massiva
utilização de TIC cumpre questionar se a convocatória aos sócios não pode ser remetida por
via eletrónica o que acarretaria, sem dúvida, otimização ao processo, tanto em termos de
economia processual, como temporal.
Como referimos anteriormente, o legislador português foi vanguardista nesta matéria.
De facto, no Decreto-Lei n.º 290.º-D/99, de 2 de agosto, veio declarar a validade jurídica
dos documentos eletrónicos equiparando-os aos documentos materializados em suporte de
papel6. O mesmo diploma equiparou, ainda, a assinatura eletrónica à autógrafa, desde que
cumpridos determinados requisitos de segurança e criou as presunções de que a referida
assinatura é aposta com a intenção de conferir a autoria do documento ao assinante e de
assegurar que o documento não sofreu alterações em momento posterior ao da aposição da
assinatura eletrónica. De assinalar igualmente que o mencionado diploma veio, a propósito da
equiparação do envio de mensagens eletrónicas ao envio de mensagens por via postal, equipar
ambos os envios igualando inclusivamente o envio da mensagem em correio eletrónico ao
envio em correio postal registado7. Os dizeres do Decreto-Lei n.º 290.º-D/99 devem ser

4
São vários os exemplos que podemos trazer à colação: a validação jurídica dos documentos eletró-
nicos (em 1999) e das comunicações eletrónicas (em 1999); a constituição de sociedades comerciais on-line
(em 2006).
5
A confiança advém sobretudo da intervenção de um terceiro de confiança (Correios).
6
O Decreto-Lei n.º 290.º-D/99, de 2 de agosto, foi, de facto, inovador à época. O legislador português
antecipou-se, inclusivamente, ao legislador comunitário o que conduziu à necessidade das alterações, sobre-
tudo de natureza conceptual, introduzidas, em 2003, por via do Decreto-Lei n.º 62/2003, de 3 de abril.
7
Refere o artigo 6.º, sob epígrafe “comunicação de documentos electrónicos”, no n.º 3, que “a
comunicação do documento electrónico, ao qual seja aposta assinatura electrónica qualificada, por meio

— 510 —
Requisitos formais das convocatórias das assembleias gerais: o uso das TIC
Marisa Dinis

aplicados aos vários ramos do direito exceto quando existe norma que professa sentido
diverso. Assim não sucede no que concerne ao direito societário e, por isso, não há razões
que conduzam ao afastamento do preceituado neste diploma. Aliás, em 2006, na sequência
das alterações promovidas ao CSC português reafirmaram-se os intentos de o legislador
aplicar no funcionamento das sociedades comerciais a utilização das TIC. Nesse sentido,
foi introduzido o artigo 4.º-A que veio confirmar a predita equiparação dos documentos
eletrónicos aos documentos materializados em suporte de papel8.
Do exposto, resulta que, nas sociedades por quotas, pode o gerente convocar os sócios
remetendo, para o efeito, a convocatória por via eletrónica. Para tanto, bastará que o documento
eletrónico, que contém a convocatória, esteja devidamente assinado com a assinatura eletrónica
qualificada do gerente e que o meio de telecomunicação utilizado no envio da mensagem
assegure a efetiva receção pelo destinatário. Atualmente, a assinatura eletrónica qualificada
é uma ferramenta utilizada amiúde pelos cidadãos portugueses sendo, efetivamente, bastante
comum entre profissionais. Por sua vez, o atual estado da técnica permite afirmar que
existem meios de comunicação que garantem elevados níveis de fiabilidade, integralidade
e inteligibilidade, no envio e na confirmação da receção da mensagem pelo destinatário,
afiançando igualmente que a mensagem não foi corrompida neste processo. A aplicação deste
regime não resulta, como se pode verificar, diretamente das regras do CSC, mas tão-só do
regime geral que analisámos e que entendemos, na verdade, ser bastante. Aliás, estávamos
mesmo em crer que não haveria necessidade de intervenção legislativa expressa neste sentido,
não fora o facto de o legislador a ter feito no que respeita às sociedades anónimas, como de
seguida veremos, e ter motivado interpretações dúbias.

2.2. As sociedades anónimas


Cabe ao presidente da mesa da assembleia proceder à convocação das assembleias
gerais das sociedades anónimas em observância pelo disposto no artigo 377.º do CSC9. Nessa

de telecomunicações que assegure a efectiva recepção equivale à remessa por via postal registada e, se a
recepção for comprovada por mensagem de confirmação dirigida ao remetente pelo destinatário que revista
idêntica forma, equivale à remessa por via postal registada com aviso de recepção”. Existe, pois, uma equi-
valência jurídica genérica para equiparar a comunicação com assinatura eletrónica à remessa por correio
postal registado.
8
A primeira versão do artigo 4.ºA foi introduzida pelo Decreto-Lei n.º 76.ºA/2006, de 29 de março.
A atual redação resulta da alteração proveniente do Decreto-Lei n.º 79/2017, de 30 de junho que, na verda-
de, apenas veio incluir à redação original “nomeadamente através de assinatura eletrónica”, especificando,
portanto, que a assinatura eletrónica é uma forma bastante de substituição da assinatura autógrafa. Pese
embora a bondade legislativa, cremos que tal alteração era perfeitamente dispensável. Com efeito, esta era a
conclusão que sempre se retirou do Decreto-Lei n.º 290.º-D/99. Aliás, a nova redação acarreta mais dúvidas
do que certezas, pois ignora a necessidade de a assinatura ser qualificada. Volvidas quase duas décadas e
com os avanços tecnológicos que testemunhamos, não se percebe que a alteração legislativa tenha sido uma
“mão cheia de nada”.
9
As assembleias gerais das sociedades anónimas devem ser convocadas sempre que a lei ou os ór-
gãos legalmente competentes o determinam e quando o requererem acionista(s) detentores de, pelo menos,
5% do capital social” (n.º 1 e n.º 2 do artigo 375.º do CSC). Cfr. SILVA, João Calvão da, «A convocação de
assembleia geral – artigo 375.º, n.º 2, do CSC», Estudos de Direito Comercial, Coimbra, 1996, pp. 265 a

— 511 —
Requisitos formais das convocatórias das assembleias gerais: o uso das TIC
Marisa Dinis

conformidade e de acordo com o disposto no artigo 167.º do CSC, deve a convocatória ser
publicada em sítio na Internet de acesso público, regulado por Portaria do Ministro da Justiça,
com a antecedência de, pelo menos, um mês face à data da realização da reunião10.
De acordo com o previsto no n.º 3 do artigo 377.º do CSC pode o contrato de sociedade
aditar à publicação outras formalidades e substituir a “publicação por carta registada ou,
em relação aos accionistas que comuniquem previamente o seu consentimento, por correio
electrónico com recibo de leitura”. A redação original do predito n.º 3 data de 1986 e não
contemplava, naturalmente, a possibilidade de a publicação ser substituída por correio
eletrónico. Em 2006 o legislador português, movido pelo ímpeto de introduzir as TIC no
funcionamento das sociedades comerciais, alterou, num rasgo de aparente novidade jurídica,
a norma conforme supramencionado. Não o fez, no entanto, em nossa opinião, da forma mais
adequada. De facto, o legislador não teve em consideração o disposto, outrora, no já citado
Decreto-Lei n.º 290-D/99 e permitiu que a substituição da carta registada, pela mensagem de
correio eletrónico, não estivesse dependente de assinatura eletrónica, mas sim da emissão do
recibo de leitura. Não cremos, porém, que esta diferença de tratamento tenha sido propositada
e que com ela o legislador apenas pretendesse simplificar o regime aplicável às sociedades
anónimas. De facto, pensamos que o raciocínio jurídico foi simplesmente diferente e, em
nosso juízo, pior. Andou, pois, mal o legislador português ao não ter seguido as mesmas
regras, desde logo, porque, por um lado, permitiriam manter a necessária coerência jurídica
e, por outro lado, porque apresentam maior segurança jurídica. Independentemente do
referido, sempre poderá o presidente da mesa da assembleia substituir a carta registada em
conformidade com o postulado no Decreto-Lei n.º 290-D/99 sem, nesse caso, necessitar de
ficar dependente do recibo de leitura por parte do acionista.
Do especificado na norma resulta que a substituição da publicação apenas é admissível
quando “sejam nominativas todas as ações da sociedade”. A redação tinha em conta que, a
essa data, eram admissíveis ações nominativas e ao portador não sendo, quanto a estas últimas,
possível conhecer, a todo o momento, os respetivos titulares e, por isso, concretizar o envio
da convocatória. Porém, como é sabido, a Lei n.º 15/2017, de 3 de maio, veio determinar a
proibição de ações ao portador e consequentemente conferir maior amplitude ao âmbito de
aplicação do n.º 3 do artigo 377.º do CSC.
Assim, o regime jurídico português prevê três formas distintas para proceder à convocatória
dos acionistas: i) mediante publicação; ii) envio de carta registada; iii) envio de comunicações
eletrónicas com aviso de leitura. Acresce, como deixamos antever, a possibilidade de a carta
registada ser substituída nos termos mencionados no n.º 3 do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º
290-D/99, não se exigindo o recibo de leitura, mas requerendo a comunicação assinatura
eletrónica qualificada11.

277. DOMINGUES, Paulo de Tarso, «O presidente da mesa da assembleia geral (PMAG)», III Congresso
Direito das Sociedades em Revista, Almedina, Coimbra, 2014, pp. 15 a 39. CUNHA, Paulo Olavo, Direito
das Sociedades Comerciais, Almedina, Coimbra, Coimbra, 7ª edição, 2019, p. 484 e ss.
10
A Portaria n.º 590-A/2005, de 14 de julho, refere que as publicações devem ser feitas “através do
sítio da Internet de acesso público com o endereço eletrónico www.mj.gov.pt/publicacoes.
11
Não abordamos as sociedades emitentes de valores mobiliários. Com especificidades e diploma
próprios.

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Requisitos formais das convocatórias das assembleias gerais: o uso das TIC
Marisa Dinis

3. Regime jurídico espanhol


O Real Decreto Legislativo 1/2010, de 2 de julho, aprovou o denominado Texto Refundido
de la Ley de Sociedades de Capital (TRLSC), que teve o mérito de incluir num único diploma
as normas referentes às sociedades comerciais, articulando, em particular, o regime aplicável
às sociedades anónimas, constante do Real Decreto Legislativo 1564/1989, de 22 de dezembro,
e o regime próprio das SRL, resultante da Lei 2/1995, de 23 de março12. Reconhecemos a
utilidade jurídica e prática do texto refundido e o facto de a natureza que reveste implicar
que os textos que apresenta sejam os originais, ou com proximidade com os originais, não se
admitindo, sob pena de se violar a norma habilitante, alterações significativas. No entanto,
a habilitação conferida sempre terá, a bem da segurança jurídica, de incluir mandato de
harmonização para evitar a existência de dúvidas e aclarar o alcance das normas. Pensamos,
pois, que o articulado do TRLSC deveria comungar de maior coerência e harmonia. Talvez o
reconhecido caráter provisório do diploma tenha precipitado uma unificação demasiadamente
rápida e, por isso, incapaz de prevenir a existência de algumas incoerências jurídicas. Seja
como for, cabe rever algumas disposições legais ou cumprir o anunciado e avançar para
elaboração de um regime jurídico unitário13.
Compete aos administradores convocar a assembleia geral nos termos dos artigos 166.º
e 167.º do TRLSC14. No regime jurídico espanhol, de acordo com o artigo 173.º do TRLSC,
a convocatória das assembleias gerais, das sociedades anónimas (também das sociedades
cotizadas) e das SRL, é feita mediante publicação na página web da sociedade ou, na falta
desta, no jornal oficial (o Boletín Oficial del Registro Mercantil - BORME) e num dos jornais
de maior circulação na região onde esteja domiciliada a sociedade15.
Com efeito, a Lei 1/2012, de 12 de junho, veio introduzir o artigo 11.º bis no TRLSC
que, sob epígrafe “página web da sociedade”, determina a obrigatoriedade de as sociedades

12
O Real Decreto Legislativo 1/2010 incluiu igualmente regras relativas ao mercado de valores
mobiliários. Refere-se também às sociedades cotizadas mas, à semelhança do procedimento adotado para
o regime jurídico português, não as abordaremos. Diremos, no entanto, que o regime especial que as regula
vem disposto no n.º 1 do artigo 516.º do TRLSC que impõe uma divulgação ampla da convocatória por
vários meios, incluindo o da utilização da página web das sociedades (obrigatória neste tipo societário,
conforme disposto no artigo 11.º bis). Nos termos do n.º 1 do artigo 516.º do TRLSC deve a convocatória
das assembleias gerais das sociedades cotizadas ser divulgada: i) no BORME e num jornal de circulação
nacional (Espanha); ii) na página web da Comissão Nacional de Valores Mobiliários; iii) na página web da
sociedade.
13
A Exposição de Motivos do TRLSC declara o seu caráter provisório: “el texto refundido nace -y es
importante destacarlo- con decidida voluntad de provisionalidad; nace con el deseo de ser superado pronto,
convirtiéndose así en un peldaño más de la escala hacia el progreso del Derecho (…) En este sentido los
trabajos de la Comisión General de Codificación para la elaboración de un Código de las Sociedades Mer-
cantiles o incluso de un nuevo Código Mercantil al servicio de las exigencias de la imprescindible unidad
de mercado”.
14
Desde 2015, com a Ley de la Jurisdicción Voluntaria que alterou o artigo 169.º do TRLSC, é per-
mitido que a convocatória da assembleia geral fique a cargo do Secretário Judicial ou do Conservador do
Registo Comercial.
15
PÉREZ RAMOS, Santiago, «La convocatoria de la junta general de las sociedades de capital», in
Cuardenos de derecho de comercio, n.º 71, 2019, pp. 295-300.

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Requisitos formais das convocatórias das assembleias gerais: o uso das TIC
Marisa Dinis

cotizadas terem página web e a faculdade de as restantes sociedades a adotarem. O mesmo


preceito determina, ainda, os requisitos que a página web deve cumprir para produzir efeitos
jurídicos. Assim, a criação da página web da sociedade depende de deliberação da assembleia
geral, convocada expressamente para esse efeito, traduz-se num ato obrigatoriamente sujeito
a registo junto da Conservatória do Registo Comercial e deve ser publicada no BORME,
sob pena de as publicações aí efetuadas não produzirem efeitos jurídicos16. Estando, pois, a
página web da sociedade devidamente criada, pode a convocatória para a assembleia geral ser
aí publicada em detrimento de quaisquer outras formalidades17.
Portanto, uma primeira conclusão permite avançar que a publicação da convocatória das
assembleias gerais, tanto das sociedades anónimas como das SRL, pode ter lugar apenas na
página web da sociedade, desde que esta exista e que cumpra com todos os requisitos que
acabamos de enunciar. A não ser assim, a convocatória deve ser publicada no BORME e, bem
assim, num dos jornais de grande circulação na região do domicílio social.
Há que precisar que a forma de convocar acabada de referir pode ser completamente
substituída. Com efeito, o n.º 2 do artigo 173.º do TRLSC refere que “os estatutos podem
estabelecer que a convocatória se realize por qualquer procedimento de comunicação individual
e escrita, que assegure a receção do anúncio por todos os sócios no domicílio designado para
o efeito ou que conste da documentação da sociedade”. Mais menciona que relativamente aos
sócios residentes no estrangeiro os estatutos podem determinar que a convocatória individual
apenas seja remetida a um endereço nacional (local espanhol)18.
A primeira questão que se coloca é a de saber o exato alcance do conceito “comunicação
individual e escrita” e, em particular, se uma comunicação eletrónica consubstancia estas
características. Ou seja, se a convocatória remetida por via eletrónica, para cada um dos
sócios, pode revestir esta natureza de comunicação individual e escrita. Não temos dúvidas
que reveste. De facto, o documento eletrónico é, sem dúvida, um documento escrito e a
comunicação eletrónica, no caso, o envio para o endereço eletrónico de sócio que o tenha
fornecido, é, certamente, uma comunicação individual. Resta comprovar se o envio da

16
Diferentemente, a competência para a alteração e eliminação da página web cabe à administração.
É a sociedade que deve garantir a segurança da página e a autenticidade dos documentos aí publicados. O
acesso, aos sócios, tem de ser gratuito e deve permitir o download e impressão dos documentos que divulga
(11.º ter).
17
Considerando a possibilidade da existência de problemas técnicos, determinou-se que a assem-
bleia geral convocada por meio de publicação na página web da sociedade não poderá ter lugar perante a
existência de falhas técnicas que conduzam à impossibilidade de acesso à página por período superior a
dois dias seguidos ou a quatro dias alternados, exceção feita às situações em que foi, ainda assim, possível
divulgar a convocatória, sem interrupções, por período igual ou superior ao legalmente exigido.
Ainda a este respeito, observem-se os dizeres do artigo 11 quáter que, referindo-se às comunicações
por meios eletrónicos, determina que as comunicações entre a sociedade e os sócios, incluindo o envio de
documentos, pedidos e informações, pode realizar-se por via eletrónica, desde que com acordo prévio por
parte do sócio. Esta norma permite, além do mais, remeter por via eletrónica toda a informação prévia à
assembleia geral e alcançar, assim, economias significativas em termos de celeridade e de onerosidade do
processo.
18
Redação semelhante apresentava o n.º 2 do artigo 46.º da Ley 2/1995, de 23 de março, das SRL.

— 514 —
Requisitos formais das convocatórias das assembleias gerais: o uso das TIC
Marisa Dinis

convocatória mediante correio eletrónico assegura a receção do aviso, conforme exigido no


preceito legal. Estamos em crer que sim porquanto, atualmente, existem meios capazes de
comprovar o envio e a receção de mensagens de correio eletrónicas19. Sabemos igualmente
que a aposição de assinatura eletrónica qualificada confere ao documento efeitos jurídicos
idênticos aos resultantes da aposição de assinatura autógrafa. Por fim, a possibilidade de se
exigir recibo de leitura assegurará, para além da entrega, a efetiva leitura (ou conhecimento)
da mensagem. Desta forma, afirmamos com convicção que o postulado no n.º 1 do artigo
173.º do TRLSC, a saber, a necessidade de publicação da convocatória (seja na página web
da sociedade, seja nos jornais – BORME e outros), pode ser completamente substituído
pelo envio, aos sócios, de comunicações individuais e escritas materializadas em papel e
formalizadas por carta registada, ou remetidas por correio eletrónico (com assinatura eletrónica
qualificada ou com recibo de leitura). No caso do envio eletrónico da convocatória, além de
outras vantagens evidentes, queda desprovida de necessidade de determinar um local em
território espanhol para o envio da convocatória. Independentemente de a forma adotada para
a realização da convocatória ser a referida no n.º 1 ou a mencionada no n.º 2 do artigo 173.º,
é sempre admissível aditar outras formalidades, conforme enunciado no n.º 3. Será útil, por
exemplo, a adoção de um sistema de alerta (por sms ou por email) que vai relembrando os
sócios da existência da reunião.
O artigo 446.º do TRLSC faz alusão às SNE determinando que, para além das formas
de convocar já referidas, podem as assembleias gerais das SNE ser convocadas mediante
carta registada com aviso de receção ou por procedimentos telemáticos que “hagan posible al
socio el conocimiento de la convocatoria a través de la acreditación fehaciente del envío del
mensaje electrónico de la convocatoria o por el acuse de recibo del socio”.
Pese embora o facto de a redação do artigo 446.º indiciar que as formas aí previstas
acrescentam novidade às mencionadas no artigo 173.º, cremos que não é assim. Com efeito,
como dita o n. 2 do artigo 173.º, a convocatória pode ser comunicada de forma individual e
escrita desde que assegure a receção. Ora, a carta registada com aviso de receção, a utilização
de meios telemáticos que assegurem a receção da mensagem e, bem assim, a utilização de
meios telemáticos com recibo de leitura consubstanciam formas de comunicação individual
e escrita. Ou seja, na verdade, a existência de duas normas aparentemente distintas, mas de
conteúdo idêntico, gera a ilusão errónea de que as assembleias gerais das SNE têm à sua
disposição mais formas de convocar do que aquelas que a lei prevê para as SRL.
A utilização das TIC na convocatória das assembleias gerais das sociedades de capital
é uma realidade, porém, o facto de as normas resultantes do TRLSC não serem claras e
conduzirem à existência de dúvidas jurídicas na sua interpretação reclamou intervenção por
parte da Resolução da Direção Geral dos Registos e do Notariado – DGRN (Espanhola)20.
Em 2019, a DGRN afirmou que “o correio eletrónico é hoje o meio de comunicação por
excelência” e que existem meios para garantir o envio e a receção da mensagem. Vai mais

19
Sê-lo-á certamente se se fizer uso do denominado “Servicio Postal Universal” (Lei 43/2010, de
30/12).
20
Cumpre referir, entre outras, as Resoluções de 16/04/2005, de 02/04/2005, 02/08/2012 e a de
28/10/2014 que declara que a segurança do envio pode ser alcançada com a aposição da assinatura eletró-
nica qualificada.

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Requisitos formais das convocatórias das assembleias gerais: o uso das TIC
Marisa Dinis

longe, ao afirmar que a utilização de correio eletrónico é forma mais comunicação mais
segura21. Acompanhamos o entendimento desta Resolução, mas pensamos que, ainda assim,
melhor seria clarificar a utilização dos meios telemáticos na convocatória.

4. Considerações finais
Do exposto, resulta claro que, ambos os regimes apresentam fragilidades jurídicas
em matéria de utilização das TIC na convocação dos sócios. Tais fragilidades advêm
principalmente do facto de, em nenhum dos preditos regimes jurídicos, existir um articulado
que, de forma coerente e harmoniosa, defina exatamente quais os meios telemáticos que
permitem concretizar as formalidades legais que a convocatória reclama para produzir efeitos
jurídicos. Urge, portanto, definir quais os meios telemáticos que consubstanciam natureza
de comunicação individual e escrita e que garantem os necessários níveis de segurança,
inteligibilidade e durabilidade. Em nossa opinião, a aposição de assinatura eletrónica qualificada
na comunicação enviada permite alcançar os referidos desígnios e, bem assim, garantir que
a convocatória é remetida por quem tem competência para o fazer. Cremos, por fim, que o
recibo de leitura não deve ser legalmente imposto para comprovar a receção da convocatória
já que, atualmente, são inúmeros os mecanismos que permitem tal confirmação.

Referências
ABREU, Jorge Manuel Coutinho de, Curso de Direito Comercial, volume II – Das Sociedades,
Almedina, Coimbra, 2019, 6ª edição.
CARBAJO CASCÓN, Fernando, “Los órganos sociales: junta general y administradores”, Derecho
Mercantil, sob coordenação de Félix Vicente Azón Vilas, 2004.
CORREIA, Luís Brito, Direito Comercial, 3º vol., 2ª Tiragem da edição de 1989, 1992, AAFDL.
CRUZ RIVERO, Diego, “La Junta General”, Derecho Mercantil: volumen 3. Las Sociedades
Mercantiles, sob coordenação de Guillermo J. Jiménez Sánchez e Alberto Díaz Moreno, 2013,
páginas 471-520.

21
A Resolução da DGRN, de 19/07/2019, que “el correo electrónico es un medio directo, rápido,
económico y eficaz. Y es el medio de comunicación por excelencia en la actualidad (…) en el estado actual
de la técnica el correo electrónico puede garantizar el envío y la recepción, pero no un hecho humano como
es la lectura del destinatario, salvo que pedida confirmación o acuse de recibo de la misma, aquél la dé (…)
si el socio ha proporcionado la dirección de correo electrónico quiere decir que acepta a todos los efectos
este medio de comunicación con la sociedad, cuya eficacia no puede quedar a su exclusivo arbitrio, por lo
que, si no confirma la lectura, las consecuencias derivadas de ello, deben ser a su cargo y por él asumidas,
salvo error de envío por devolución del servidor (…) es más segura esta forma de comunicación en el senti-
do de que será más probable que la reciba el destinatario y que la conozca, a la forma de convocatoria legal
subsidiaria de primer orden a la web, que es el anuncio en el BORME y en un periódico de gran difusión en
la provincia del domicilio social”. Sobre algunas dúvidas que a Resolução tem suscitado vd. MAMBRILLA
RIVERA, Vicente, «Res. DGRN, de 19 de julho de 2019: cláusula estatutaria de convocatoria de junta por
correo electrónico», em outubro de 2019, disponível em https://www.mambrilla-marina.com/, última con-
sulta a 14 de fevereiro de 2020.

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Requisitos formais das convocatórias das assembleias gerais: o uso das TIC
Marisa Dinis

CUNHA, Paulo Olavo, Direito das Sociedades Comerciais, Almedina, Coimbra, 7ª edição, 2019.
DINIS, Marisa, et al., Noções de Direito das Sociedades Comerciais, Rei dos Livros, fevereiro de
2019, p. 69 e seguintes.
DINIS, Marisa, La aplicación de las tecnologías de la información en la creación y funcionamiento
de sociedades mercantiles, tesis doctoral, no publicada, apresentada na Universidad de
Salamanca.
DOMINGUES, Paulo de Tarso, «O presidente da mesa da assembleia geral (PMAG)», III Congresso
Direito das Sociedades em Revista, Almedina, Coimbra, 2014, pp. 15 a 39.
PÉREZ RAMOS, Santiago, «La convocatoria de la junta general de las sociedades de capital», in
Cuardenos de derecho de comercio, n.º 71, 2019, pp. 295-300.
SILVA, João Calvão da, «A convocação de assembleia geral – artigo 375.º, n.º 2, do CSC», Estudos de
Direito Comercial, Coimbra, 1996, pp. 265 a 277.

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Derechos político-electorales: nuevos desafíos
en la era de la cibercracia

Paula S. Suárez1

Resumen: Los derechos político-electorales, como derechos humanos de importancia fundamental,


conforman lo que algunos identifican como el “derecho humano a la democracia”.2
Ahora bien, en los últimos tiempos tales derechos, se enfrentan a un gran desafío que los obliga
a contemplar las diversas innovaciones tecnológicas que el campo electoral hoy les presenta, y que en
muchos casos despierta opiniones encontradas. Ello exige reflexionar sobre un nuevo paradigma que se
viene gestando desde hace un tiempo en la vida política de los Estados, en los que se relega cada vez más
el uso de los medios tradicionales como la televisión, la radio o la prensa escrita, para hacer política. En ese
contexto, se puede advertir que los partidos políticos y los candidatos hacen uso cada vez más de las redes
sociales para llegar a los electores, movilizar apoyos y recaudar fondos; en tanto que los electores las usan
para implicarse en las campañas y llamar la atención de los responsables políticos y de otros ciudadanos
sobre problemáticas relacionadas con los comicios. 3
En este orden de consideraciones, debemos preguntarnos ¿cómo juegan en la era digital los derechos
constitucionales, como la libertad de expresión y el derecho a la información? ¿Pueden armonizarse todos
estos conceptos? ¿Debilitan o fortalecen al sistema institucional? ¿Será indispensable el establecimiento de

1
Abogada. Magister en Derecho Electoral por la Universidad de Castilla La Mancha, España. Di-
plomada en Justicia Constitucional y Tutela Jurisdiccional de los Derechos Fundamentales en la Univer-
sidad de Pisa-Italia y en Derecho Constitucional de la Universidad de Salamanca-España. Doctoranda en
Derecho Constitucional en la Facultad de Derecho de la Universidad de Buenos Aires. Profesora de las
asignaturas Derecho Constitucional y Constitucionalismo Social en Facultad de Derecho de la Universidad
de Buenos Aires. Relatora de la Cámara Nacional Electoral. Contacto: pssuarez81@hotmail.com / paula-
suarez@derecho.uba.ar
2
DALLA VIA, Alberto R., “Los derechos políticos y electorales en la jurisprudencia del Tribunal
Europeo y la Corte Interamericana de Derechos Humanos”. Comunicación del académico Alberto Ricardo
Dalla Vía en sesión privada de la Academia Nacional de Ciencias Morales y Políticas, en Buenos Aires el
9 de mayo de 2012. Publicada en: http://www.ancmyp.org.ar/ user/files/13Dallav%C3%ADa12.pdf.
3
Reforzar la integridad y la transparencia de las elecciones en la era de las redes sociales, 5/2/18,
disponible en: https://es.unesco.org/news/reforzar-integridad-y-transparencia-elecciones-era-redes-sociales

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Derechos político-electorales: nuevos desafíos en la era de la cibercracia
Paula S. Suárez

una reglamentación? De ahí que resulte necesario estudiar experiencias internacionales sobre la materia,
pues este es un tema que viene ganando presencia y terreno tanto en América como en Europa.
Palabras clave: Elección; Democracia; Nuevas tecnologías; Representación; Libertad de Expresión.

Abstract: Political-electoral rights, as human rights of fundamental importance, shape what some
identify as the “human right to democracy.”
However, in recent times such rights, face a great challenge that forces them to contemplate the
various technological innovations that the electoral field presents to them today, and that in many cases
arouses conflicting opinions. This requires reflecting on a new paradigm that has been brewing for some
time in the political life of the States, in which the use of traditional media such as television, radio or the
written press is increasingly relegated, to make politics. In this context, it can be noted that political parties
and candidates increasingly use social networks to reach voters, mobilize support and raise funds; while
voters use them to get involved in campaigns and call the attention of policy makers and other citizens on
issues related to elections.
In this order of considerations, we must ask ourselves, how do constitutional rights, such as freedom
of expression and the right to information, play in the digital age? Can all these concepts be harmonized?
Do they weaken or strengthen the institutional system? Will it be essential to establish a regulation? Hence,
it is necessary to study international experiences on the subject, as this is an issue that has been gaining
presence and ground in both America and Europe.
Keywords: Elections; Democracy; New technologies; Representation; Freedom of expression.

Introducción
Señala la Profesora Rebato Peño que con la expresión “derechos políticos” suele
designarse a aquellos derechos fundamentales que tienen por finalidad proteger la participación
de los ciudadanos en la gestión de los asuntos públicos y, en consecuencia, éstos estarán
relacionados íntimamente con el funcionamiento de las instituciones democráticas4. En
igual orden de ideas, afirma el académico Alberto Dalla Via que los derechos políticos son
derechos humanos de importancia fundamental, que en conjunto con otros derechos como
la libertad de expresión, la libertad de reunión y la libertad de asociación, hacen posible el
“juego democrático”, o lo que algunos han llegado a identificar como el “derecho humano a
la democracia”. Cabe recordar que la propia Convención Americana de Derechos Humanos
(CADH), en su artículo 27 le da dicha importancia al prohibir su suspensión y la de las
garantías judiciales indispensables para la protección de los mismos.5 Así, en el sistema
de protección internacional de los derechos humanos, la participación política es el derecho
político por excelencia ya que reconoce y protege el derecho y el deber de los ciudadanos de
participar en la vida política de su país.6

4
REBATO PEÑO, María Elena, “Análisis comparado México-España de los derechos político-elec-
torales”. Publicado en http://www.te.gob.mx/documentacion/publicaciones/Temas_selectos/10_derechos.pdf
5
DALLA VIA, Alberto R., “Los derechos políticos y electorales en la jurisprudencia del Tribunal
Europeo y la Corte Interamericana de Derechos Humanos”. Comunicación del académico Alberto Ricardo
Dalla Vía en sesión privada de la Academia Nacional de Ciencias Morales y Políticas, en Buenos Aires el
9 de mayo de 2012. Publicada en: http://www.ancmyp.org.ar/ user/files/13Dallav%C3%ADa12.pdf.
6
GARCÍA ROCA, Javier y DALLA VIA, Alberto, R., Los derechos políticos y electorales: un
orden público democrático, La Ley, Buenos Aires, 1° edición, 2013.

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Derechos político-electorales: nuevos desafíos en la era de la cibercracia
Paula S. Suárez

Tiempo atrás el constitucionalista Miguel A. EKMEKDJIAN decía –respecto a la


representación- que no había que limitar la intervención del ciudadano solo al hecho mismo de
sufragar, esto es a elegir a sus representantes a los fines de ocupar las magistraturas electivas.
Ello así, pues con el sufragio universal, el avance de la instrucción pública, los partidos
políticos, los medios de comunicación social, la informática con tecnología insospechada
hasta hace poco tiempo, etc., permiten a los ciudadanos la utilización de diversos medios de
acotar y limitar esa autonomía discrecional que confieren a los representantes7.
En ese escenario, la era digital nos obliga a reflexionar sobre un nuevo paradigma que se
viene gestando desde hace un tiempo en la vida política de los Estados.
En efecto, los datos relevados en el informe de Corporación Latinobarómetro de 20178,
muestran un paulatino decrecimiento en el uso de medios tradicionales con la contracara de
un vertiginoso incremento en la utilización de redes sociales produciendo un alto impacto en
las elecciones de diversos países del mundo.
Ejemplifica lo expuesto, lo informado por la Cámara Nacional Electoral de la República
Argentina (cf. Acordada n° 66/18), en cuanto a que en los últimos años se han incrementado
exponencialmente los gastos que se destinan a la publicidad en redes. De tal manera, los
recursos destinados a la propaganda en plataformas digitales pasó del 4.71% en 2011 al
31.01% en las elecciones legislativas del año 2017.
Esta potencial incidencia de los medios digitales en el ámbito político se debe a varios
componentes fundamentales, entre los que se encuentran: el cambio en la producción y
circulación de información, la facilidad de uso, el bajo coste y la instantaneidad9.
Es sabido que en este tema podrá encontrarse doctrina a favor de la utilización de los
medios digitales en el campo de lo político, pues entienden que con ello se contribuye al
fortalecimiento de una democracia participativa con una ciudadanía más activa, pero también
y con casi igual porcentaje encontraremos quienes -sin estar en contra- se ven preocupados
por los abusos que pueden originarse con la utilización malintencionada de tales medios
a causa de una inexistente regulación que enmarque dicho accionar y que podría llegar a
quebrantar la confianza en la transparencia e integridad de los procesos electorales.

I. La libertad de expresión en la era digital.


La libertad de expresión –que, asimismo, es comprensiva del derecho a la información- es
uno de los pilares fundamentales para la vida de la democracia constitucional de un Estado.
Al respecto, nos enseña Segundo LINARES QUINTANA que la libertad de expresión
es una libertad institucional porque sin ella no pueden existir la tolerancia y el pluralismo
que tipifican a un sistema político democrático constitucional. Pero también es una libertad
estratégica porque de su existencia depende la subsistencia de las restantes libertades10. Por

7
EKMEKDJIAN, Miguel Ángel, Reflexiones acerca de la representación política, ED 149-891.
8
www.latinobarometro.org
9
TULLIO, Alejandro, Redes sociales digitales y política. Diccionario electoral, IIDH/CAPEL.
10
Citado en BADENI, Gregorio, Los límites de la libertad de expresión, La Nación, 28/7/16.

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Derechos político-electorales: nuevos desafíos en la era de la cibercracia
Paula S. Suárez

ello, afirma que donde la libertad de expresión está presente, ya existe el germen de una
sociedad libre y está a disposición un medio necesario para toda ampliación de libertad11.
Por su parte, el Profesor Gregorio BADENI12, afirma que “no cabe duda de que la libertad
de expresión es un derecho fundamental por medio del cual se exterioriza el pensamiento
humano. Pero, como todo derecho, incluido el derecho a la vida, no tiene carácter absoluto y
su ejercicio debe ser lícito”.
Interesante resulta la lectura delas opiniones vertidas en el reporte “Libertad de Expresión:
A 30 años de la Opinión Consultiva sobre la colegiación obligatoria de periodistas”, donde
se concluye, en su mayoría, que sería adecuado que los Estados soliciten a la Corte IDH una
nueva opinión consultiva para que estos nuevos medios de expresión tengan normas que
regulen su utilización. Sin perjuicio de ello, entiendo que habrá que ser muy cauteloso a la
hora de pensar una reglamentación de las diversas plataformas digitales, pues como se señaló,
es muy importante el pleno y libre desarrollo de las ideas para la construcción de un debate
abierto y sincero que merece cualquier sociedad que se repute democrática. Es que, como
escribiera SARMIENTO13, a los hombres se degüellan, a las ideas no.

II. Libertad en internet: ¿libertad absoluta o libertad


reglada?
Corresponde señalar de manera preliminar que no hay derechos o libertades absolutas,
pues como establece nuestra Constitución Nacional “Todos los habitantes de la Nación gozan
de los […] derechos conforme a las leyes que reglamenten su ejercicio…” (art. 14), y esa
reglamentación deberá ser razonable y no alterar al derecho, principio y/o garantía (art. 28).
Sin perjuicio de ello, la doctrina se encuentra dividida cuando se trata de estudiar a la
libertad en internet.
LANZA, considera que los desafíos que presentan Internet y la dinámica de las
tecnologías de la información y comunicación merecen nuevos desarrollos jurisprudenciales
y doctrinarios en el sistema interamericano interpretando la Convención Americana de
Derechos Humanos en el ámbito on line14.
Por su parte, BADENI entiende que la Internet presenta la particularidad de estar basada
sobre dos pilares: la libertad y la desregulación. La libertad para ingresar y desenvolverse en
ella, recibiendo y ofreciendo la más variada información. La desregulación es consecuencia

11
LINARES QUINTANA, Segundo V., Tratado de la Ciencia del Derecho Constitucional, Plus Ul-
tra, T. 4, 2da. Edición, 1978.
12
BADENI, Gregorio, Los límites de la libertad de expresión, op. cit.
13
SARMIENTO, Domingo Faustino, Facundo, Universidad Nacional de la Plata, 1938, p. 6; citado
en LINARES QUINTANA, Segundo V., op. cit.
14
LANZA, Edision, Los principios y el alcance de la libertad de expresión, establecidos en la Opi-
nión consultiva n°5 desde los medios de comunicación tradicionales a internet. Reporte “Libertad de Expre-
sión: A 30 años de la Opinión Consultiva sobre la colegiación obligatoria de periodistas”. Primera edición:
Bogotá, D.C., Colombia, noviembre 2017.

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Derechos político-electorales: nuevos desafíos en la era de la cibercracia
Paula S. Suárez

de la imposibilidad material para los Estados y personas de interferir las comunicaciones y de


establecer límites tecnológicos para su funcionamiento15.
ZOVATTO, en cambio, entiende que es necesario establecer un marco regulatorio en el
campo de las redes sociales pero que ello representa un desafío mayúsculo por las complejidades
que presenta el tema. Señala que a diferencia de los medios tradicionales donde se venían
cambios evolutivos, con las plataformas digitales esos cambios son, fundamentalmente,
disruptivos por el fuerte impacto que la tecnología ha causado.
Asimismo, y en virtud del impacto negativo que ha tenido la intervención de Cambridge Analytica
en los acontecimientos políticos de diversos Estados, las grandes plataformas digitales como Facebook
y Twitter comenzaron a lanzar un paquete de medidas especialmente para combatir el astroturfing16,
que es el modo más utilizado para influir en el debate público, con la creación de ejércitos de usuarios
(bots) que en forma coordinada publican mensajes predefinidos, apoyando o atacando a cierta persona
o ideología, y la difusión de noticias falsas17, más conocidas como fake news.
Ahora bien, tanto en América como en Europa se está tratando de profundizar más
sobre el tema e incluso algunos países cuentan con marcos regulatorios específicos en torno
al accionar de los medios digitales a fin de combatir la viralización de noticias falsas y la
identificación de cuentas anónimas o robóticas.
Ejemplifica lo expuesto las legislaciones en Alemania (2017) 18 y Francia (2018) 19 que
han establecido especiales obligaciones a las plataformas de Internet como Google, Twitter
y Facebook20. Por su parte, el 18 de febrero de 2019 el Comité de Selección Digital, Cultura,
Medios y Deporte del Parlamento Británico realizó un informe muy crítico sobre las fake
news y su influencia sobre los procesos de desinformación21.
En Estados Unidos, la lucha contra las noticias falsas es especialmente difícil debido a la
protección que la Primera Enmienda de la Constitución concede a la libertad de expresión.22
Sin embargo se creó una Comisión Investigadora en el Senado.

15
BADENI, Gregorio, Tratado de Derecho Constitucional, Tomo I, La Ley, 2004
16
Astroturf es una marca norteamericana de césped artificial diseñado de tal manera para parecer na-
tural. Así, astroturfing hace referencia a esa artificialidad y al armado falso o fabricado de ciertas campañas
electorales, en lo que se refiere al campo político.
17
QUAGLIA, Juan, Astroturfing político: como manipulan los gobiernos las redes sociales, nov. 28,
2017. Disponible en:  https://marketingaholic.com/astroturfing-politico/3175/
18
Ley para la mejora de la aplicación de la ley en las redes sociales (Netzwerkdurchsetzungsgesetz
o NetzDG). Disponible en: http://bcn.cl/28lx1 (enero, 2019).
19
Ley orgánica relativa a la lucha contra la manipulación de la información (Loi organique n° 2018-
1201 y n° 2018-1202 du 22 décembre 2018 relative à la lutte contre la manipulation de l’information).
Disponible en: http://bcn.cl/28lwz y en: http://bcn.cl/28lza (enero, 2019).
20
WEIDENSLAUFER, Christine, La regulación de las “fake news” en el derecho comparado, Bi-
blioteca del Congreso Nacional de Chile / BCN – Asesoría Técnica Parlamentaria, enero 2019.
21
Disinformation and fake news: final report, disponible en: https://www.parliament.uk/business/
committtees-a-z/commons-select/digital-culture-media-and-sport-committee/news
22
PAUNER CHULVI, Cristina, Noticias falsas y libertad de expresión e información. El control
de los contenidos informativos en la red. Disponible en: http://revistas.uned.es/ index.php/TRC/article/
view/22123

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Derechos político-electorales: nuevos desafíos en la era de la cibercracia
Paula S. Suárez

En México, no se elaboró un marco regulatorio pero se optó por negociar con las grande
entidades, a través de la firma de convenios entre el Instituto Nacional Electoral y “Google”,
“Facebook” y “Twitter”, para las elecciones del 2018, con la intención de promover el voto
informado y libre.23
Brasil, por intermedio de su Tribunal Superior Electoral, creó un “Consejo Consultivo sobre
Internet y Elecciones” según surge de la Resolución TSE N° 949 del 7 de diciembre de 2017.
Asimismo, firmaron convenios y acuerdo de colaboración con varias entidades periodisticas
durante el mes de junio de 2018, y con varios partidos políticos en el que se comprometían
a combatir la difusión de noticias falsas en las redes sociales como  Facebook  durante la
campaña electoral de ese año.
Por último, en lo que respecta a la República Argentina, no podemos dejar de destacar el
rol que ha asumido la Cámara Nacional Electoral.
En efecto, el mencionado Tribunal, siempre ha demostrado tener una política activa en
materia de transparencia electoral, mediante la adopción de diversas medidas tendientes a
fortalecer la fiscalización, integridad y la equidad de los procesos electorales. En tal sentido,
el Tribunal Electoral, en la Acordada N° 66/18, estableció tres medidas de gran importancia:
1. Crear un registro de cuentas y perfiles de las agrupaciones políticas y de sus candidatos, 2.
Publicar los resultados del monitoreo de propaganda electoral en redes, y 3. Y promover una
campaña de formación cívica y educación digital dirigida a concientizar a la ciudadanía para
un uso responsable y crítico de la información disponible en Internet.
Más tarde con la sanción de la ley 27.504 modificatoria de la normativa sobre financiamiento
partidario se recepta –de manera expresa-, en uno de sus capítulos, los ejes principales de la
referida Acordada.
Asimismo, la Cámara Nacional Electoral celebró acuerdos de cooperación con Google,
Facebook y Twitter, a los fines de obtener la mayor información posible y beneficiándonos de su
fuerza de comunicación para acercar al ciudadano los datos más relevantes para el ejercicio de
sus derechos políticos. En efecto en las elecciones presidenciales y legislativas de 2019 los pocos
conflictos judiciales que a este respecto se suscitaron tuvieron una respuesta favorable e inmediata
por parte de la justica electoral gracias a los canales de comunicación con las citadas empresas.
En síntesis, son temas de gran importancia y que merecen una pronta solución de carácter
legislativo o de otro tipo pero siempre respetuosa de las garantías consagradas en nuestro
sistema constitucional.

III. El efecto de las redes sociales en la comunicación


política
En los últimos años la relación entre Política e Internet ha crecido de manera exponencial,
creando una especie de fenómeno de ciberactivismo político-electoral, como un nuevo modelo
de participación democrática del siglo XXI.

Memorándum de Cooperación Facebook – Instituto Nacional Electoral, N°de registro INE/


23

DJ/27/2018, disponible en: https://centralelectoral.ine.mx.

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Derechos político-electorales: nuevos desafíos en la era de la cibercracia
Paula S. Suárez

Baste recordar el impacto que tuvo en las sociedades del mundo la supuesta injerencia
rusa en las elecciones presidenciales de los Estados Unidos, el Brexit en Inglaterra, el plebiscito
sobre los acuerdo de paz en Colombia, entre otros muchos sucesos. En los tres casos se
trató de campañas muy polarizadas y, tras el resultado, se habló del papel de los medios y
las plataformas digitales, que habrían “intoxicado” la campaña e influido de ese modo en
el resultado, que en todos los casos resultó inesperado24. Si bien las elecciones de Donald
Trump fue el caso más resonante de interferencias digitales, según el informe de Freedom
House, dicho fenómeno se dio en otras 17 naciones. El referido reporte anual analizó el nivel
de libertad en internet que hubo en 65 países, los cuales representan el 87% del tráfico en la
red a nivel mundial. En total, 30 gobiernos estuvieron involucrados activamente en el uso de
redes sociales para atacar a sus opositores25.
No podemos desconocer –como bien señala ZOVATTO- que el uso creciente de Internet
y las redes sociales ha puesto contra las cuerdas a los medios tradicionales, lo que provocó un
cambio profundo en la formación de la opinión pública, así como en la política y en las campañas
electorales. La expansión de la “postverdad” 26 y de las noticias falsas y la manipulación de
datos de Facebook llevada a cabo por Cambridge Analytica constituyen un campanazo de alerta
acerca de los riesgos del mal uso de Internet y las redes sociales. Pero estos medios, si son bien
empleados, pueden tener efectos positivos, como lo demostraron durante la Primavera Árabe al
dar voz a individuos que antes no la tenían y generar movimientos populares27.
En su libro A Preface to Democratic Theory, Robert Dahl enumeraba una lista de ocho
requisitos para crear una mayoría decisiva. Tras identificar el sufragio en los cuatro primeros
requisitos, la quinta condición que presenta Dahl es que “todos los individuos posean una
información idéntica sobre las alternativas existentes” 28. Así, la apertura a la entrada de flujos
no controlados de información a través de Internet es una buena noticia frente al poder que,
en su concepción tradicional, se le asignaba a la prensa como determinante de la agenda
política y puede afirmarse que el mundo se ha democratizado extraordinariamente gracias a
la accesibilidad a nuevos canales por los que desarrollarse29.
Pero esta apertura también tiene un ángulo negativo ya que el consenso debe construirse
sobre unas bases comunes y el esparcimiento de la desinformación puede hacer imposible ese

24
FERNÁNDEZ-GARCÍA, Nuria, Fake news: una oportunidad para la alfabetización mediática,
mayo junio 2017. Disponible en: http://nuso.org/articulo/fake-news-una-oportunidad-para-la-alfabetiza-
cion-mediatica/
25
Las tácticas y ciberataques con los que se influyó en las elecciones de 18 países. Disponible en:
https://www.lanacion.com.ar/2082429-las-tacticas-y-ciberataques-con-los-que-en-se-influenciaron-las-
elecciones-en-18-paises
26
Se ha acuñado el término de “postverdad” para referirse a la información que no se basa en hechos
objetivos, sino a aquélla que apela a las emociones, creencias o deseos del público. Definido en BOTERO
MARINO, Catalina, La regulación estatal de las llamadas “noticias falsas” desde la perspectiva del derecho
a la libertad de expresión.
27
ZOVATTO, Daniel, “La democracia en América se deterioró”. La Nación, 1/4/18.
28
DAHL, R., A Preface to Democratic Theory, The University of Chicago Press, Chicago- Londres,
1956, p. 71.
29
PAUNER CHULVI, CRISTINA, op. cit.

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Derechos político-electorales: nuevos desafíos en la era de la cibercracia
Paula S. Suárez

mínimo compartido. La gravedad de esta amenaza y la magnitud del fenómeno de las noticias
falsas han puesto en alerta a los medios de comunicación y los poderes públicos y es motivo
de preocupación a nivel mundial.

IV. Consideraciones finales


Como pudimos observar el tema que en esta oportunidad nos ocupa, tiene infinidad de
aristas en un escenario muy complejo. En ese sentido, la tarea que les espera a los Estados
a los fines de preservar los valores éticos y democráticos de la ciudadanía, en especial en
tiempos de elección, es titánica.
No debemos olvidar que la democracia representativa se construyó basada en el
pluralismo de ideas, de pensamiento, de libertad de expresión, dentro de un pluralismo de
partidos políticos. Ahora bien, tampoco podemos ignorar que con la expansión de las redes
sociales y la utilización que la política hace de ellas, esos valores se ven potenciados pero
también en muchos casos, y producto de ese impacto, debilitados o altamente afectados.
Es un buen momento para reflexionar si la transformación normativa sigue adecuadamente
a esa revolución electrónica, o bien, la carrera ha sido ganada ya por la tecnología. Dable
es afirmar que cualquiera que sea el modelo que pretenda construirse para fijar los límites
válidos de la comunicación política, enfrenta de antemano los obstáculos que tienen su origen
en las propiedades y características de ese canal de comunicación, esto es la interactividad,
instantaneidad, potencial multimedia, internacionalidad e impacto intercultural. Todo ello,
como se vio, hace muy complejo un modelo o esquema de regulación30, pero no imposible.

Bibliografía
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y Políticas, en Buenos Aires el 9 de mayo de 2012. Publicada en: http://www.ancmyp.org.ar/
user/files/13Dallav%C3%ADa12.pdf.

30
CEBALLOS DAZA, José Luis, Comunicación Política y Redes Sociales ¿Nuevas Restricciones
a la Libertad de Expresión? Disponible en: https://www.forojuridico.org.mx/ comunicacion-politica-redes-
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— 525 —
Derechos político-electorales: nuevos desafíos en la era de la cibercracia
Paula S. Suárez

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— 526 —
Os desafios no ciberespaço,
criminalidade cibernética em âmbito mundial:
necessidade de reflexão

Marco Antonio Marques da Silva1


Ricardo Vieira de Souza2

Resumo: A globalização trouxe inúmeras inovações ao mundo, inclusive na questão relacionada a


tecnologia, aproximando as pessoas. Por tratar-se de um fenômeno, a vida em sociedade se transformou e
os conflitos sociais que até então se davam em um âmbito local ou regional, passaram a tomar proporções
transnacionais, por conta do surgimento do ciberespaço. A partir disso, é necessário refletir acerca dos
problemas que são enfrentados atualmente no ciberespaço, notadamente quanto ao cometimento de ilícitos
cíveis e penais e a consequente identificação e punição dos transgressores das normas de convivência
social. Por isso, o presente estudo busca demonstrar qual é a situação atual dos crimes cibernéticos, como
eles são tratados em âmbito brasileiro, as dificuldades enfrentadas e como poderá ser aprimorada a questão
da aplicação das leis no ciberespaço.
Palavras-chave: Globalização; Ciberespaço; Crimes Cibernéticos; Internet; Efetividade do Direito.

Abstract: Globalization has brought countless innovations to the world, including on the issue of
technology, bringing people together. Because it is a phenomenon, life in society has been transformed,
as the social conflicts that until then occurred in a local or regional scope, have taken on transnational
proportions, due to the emergence of cyberspace. From this, it is necessary to reflect on the problems that
are currently faced in cyberspace, with regard to the committing of civil and criminal offenses, and the
consequent identification and punishment of violators of the norms of social coexistence. For this reason,

1
Professor Titular em Direito Processual Penal da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Livre-Docente, Doutor e Mestre em Direito Processual Penal pela PUC-SP. Professor Catedrático da Uni-
versidade Europeia (Portugal) e Professor Visitante da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
(Portugal). Conselheiro do Conselho Nacional de Educação do Brasil. E-mail: ezms@uol.com.br
2
Doutorando e Mestre em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo. Especialista em Direito das Relações de Consumo pela PUC-SP. Professor Universitário. Sócio do
Escritório Vieira de Souza Advogados. E-mail: ricardo@vsadv.com.br

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Os desafios no ciberespaço, criminalidade cibernética em âmbito mundial: necessidade de reflexão
Marco Antonio Marques da Silva - Ricardo Vieira de Souza

the present study seeks to demonstrate what is the current situation of cyber crimes, how they are dealt
with in Brazil, the difficulties faced and how the question of the application of laws in cyberspace can be
improved.
Keywords: Globalization; Cyberspace; Cyber crimes; Internet; Effectiveness of Law.

1. INTRODUÇÃO
A questão envolvendo a criminalidade cibernética e os seus desafios, é um tema de
extrema importância, o qual deve ser debatido em âmbito mundial pela complexidade que
permeia o ciberespaço e a rede mundial de computadores.
Para tanto, faz-se necessário estudar o fenômeno da globalização e suas consequências,
bem como de que maneira ocorre o funcionamento da Internet, qual tecnologia utilizada para
interconectar seus usuários, assim como identificá-los e sobretudo os problemas sociais que
decorrem dela.
A presente pesquisa trará dados em escala global relacionados aos crimes cibernéticos,
quais são as infrações mais comuns, os prejuízos causados às vítimas desse tipo de delito,
quais países tem maior incidência de vítimas, quanto tempo as vítimas despendem para
resolver os danos causados pelos crimes cibernéticos e a percepção delas em relação as
sanções aplicáveis para quem cometeu esse tipo de delito.
Por fim, será analisada a questão da aplicação de leis brasileiras em âmbito do ciberespaço,
quais problemas são enfrentados para identificar e tomar as medidas judiciais cabíveis a
quem comete ilícitos pela Internet, e algumas sugestões que podem ser implementadas com a
finalidade de promover o bem estar social no âmbito do ciberespaço.

2. GLOBALIZAÇÃO E SOCIEDADE DE RISCO


O Século XX é considerado um marco histórico por trazer inúmeras inovações,
notadamente as tecnológicas. Do início do processo de revolução industrial até o tempo
presente, houve um inegável avanço dos meios tecnológicos, influenciando diretamente os
meios de comunicação, tais como o rádio, a televisão, o telefone, os meios de locomoção e
promovendo o encurtamento de fronteiras.
Tais mudanças possuem enorme influência no Século XXI, pois apesar de não ter
transcorrido nem sua metade, podemos afirmar que estamos vivendo no Século Digital, já
que a todo instante surgem no mercado de consumo “produtos” capazes de transformar a vida
em sociedade.
Com efeito, o fenômeno da globalização, atrelado à sociedade da informação, facilitou,
através da rede mundial de computadores (Internet), o trânsito de pessoas entre países,
possibilitou as pessoas se conectarem em tempo real, a realização de transações financeiras
instantaneamente pelo celular ou computador em âmbito mundial, bem como que se
comunicassem por aplicativos de redes sociais, seja por mensagem instantânea de texto ou
vídeo chamadas.

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Os desafios no ciberespaço, criminalidade cibernética em âmbito mundial: necessidade de reflexão
Marco Antonio Marques da Silva - Ricardo Vieira de Souza

Sendo assim, a constante expansão e desenvolvimento, sob a ótica social e tecnológica,


está a caracterizar a globalização como um processo fenomênico complexo, pelo fato de nos
depararmos com situações jamais vividas até então e cuja soluções estão à mingua do Direito,
com debates do ponto de vista sociológico, filosófico e antropológico.
Aliás, a complexidade da globalização traz consequências também do ponto de vista
jurídico em âmbito global, como no caso de algumas empresas de tecnologia espalhadas
ao redor do mundo que insistem em deixar de se submeter à jurisdição de determinados
países, como, por exemplo, no caso do aplicativo de troca de mensagens WhatsApp, que tem
protagonizado inúmeras celeumas jurídicas sob o argumento de não estar sujeito à legislação
brasileira, descumprindo insistentemente ordens judiciais, apesar de existir uma filial do
grupo econômico controlador do aplicativo no Brasil.
Nesse contexto, é que podemos trazer a ideia de Ulrich Beck sobre a Sociedade Mundial
Risco, uma vez que “espaços sociais transnacionais também são sustentados por perigos,
indesejados, negados e reprimidos de forma conflituosa”3 e isso está cada vez mais latente
em relação a Internet, por envolver conflitos relacionados à aplicação de legislações em
âmbito transnacional.
Não por outra razão, Jorge de Figueiredo Dias passou a defender o direito penal sob
a perspectiva de uma nova dogmática jurídico-penal, que teria uma função promocional e
propulsora de valores orientadores da ação humana na vida comunitária, como forma de
serem enfrentados os desafios da sociedade de risco.4
Assim, para tratar desta nova criminalidade, deve ser incorporado um conjunto de
institutos que trabalhem com o risco, diante da profunda diversidade, de forma a entender-se
um sistema como uma unidade. Para tanto, os caminhos proporcionados pela funcionalidade
do direito penal, como ponto de partida, não exclui que o sistema se torne um conjunto aberto,
que seja integral do direito penal, no sentido de abranger princípios constitucionais, como
garantias indispensáveis à concretização da lei penal, as instituições processuais, a política
criminal, como elemento determinante da fixação da pena e sua execução, além da análise da
responsabilidade penal, não mais individual.5

3. ASPECTOS CONCEITUAIS SOBRE A INTERNET


Do ponto de vista histórico, a Internet surgiu no final da Década de 60, em meio a
Guerra Fria, através de um projeto militar do governo norte americano, o qual chamava-se
Defense Advanced Researh Project Agency Network (DARPA NET) e que, posteriormente,
passou a ser desenvolvido pela Advancedes Research Projects Administration (ARPANET),
esta última, agência do governo americano voltada a administrar projetos e pesquisas.

3
BECK, Ulrich. O que é Globalização? Equívocos do globalismo: respostas à globalização.
Tradução de André Carpme; São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 78.
4
DIAS, Jorge de Figueiredo. Temas básicos da doutrina penal. Coimbra. Coimbra Editora, 2001,
p. 160.
5
CAMARGO, Antonio Luis Chaves. Imputação Objetiva e Direito Penal Brasileiro. São Paulo:
Cultural Paulista Editora, 2001, p. 128 e segs.

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Os desafios no ciberespaço, criminalidade cibernética em âmbito mundial: necessidade de reflexão
Marco Antonio Marques da Silva - Ricardo Vieira de Souza

Através da tecnologia da ARPANET, foi possível interligar as comunicações de


transmissão online entre Universidades no Estado da Califórnia situadas nas cidades de Los
Angeles e Santa Bárbara, com a Universidade de Utah.
Por sua vez, na Década de 70, a organização Internet Engineerging Task Force, composta
por pesquisadores voltados a arquitetura de redes, desenvolveram a tecnologia chamada TCP/
IP (Protocolo de Controle de Transmissão/Protocolo de Internet), a qual teve por finalidade a
troca de pacotes de dados, permitindo assim que computadores se interconectassem a um rede
mundial distribuída e os dados pudessem percorrer diferentes caminhos no globo terrestre.6
Já em 1990, Tim Berners-Lee criou o World Wide Web, conhecido popularmente como
WWW que, em linhas gerais, traduz números (protocolo TCP/IP) para nomes (DNS – Domain
Name Service), fazendo com que as pessoas que navegam na Internet memorizem nomes de
websites e não números.
Pelo fato de a Internet estar presente em vários ou praticamente todos os países do
planeta, verifica-se a existência de uma interconexão à rede mundial de computadores de
forma autônoma, ou seja, não dependente de um determinado Estado para sua subsistência e
manutenção, permitindo-se concluir, pois, que a Internet é autônoma.
Nesse contexto, é que nasceu a terminologia ciberespaço (cyberspace) criada por William
Gibson em 1984, a qual foi desenvolvida por Pierre Lévy como:

Meio de comunicação que surge da intercomunicação mundial dos computadores.


O termo especifica não apenas a infraestrutura material da comunicação digital,
mas também o universo oceânico que ela abriga (…). Quanto ao neologismo
“cibercultura” específica aqui o conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de
práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem
juntamente com o crescimento do ciberespaço.7

Posto isso, como o ciberespaço é um local onde se desenvolve a cibercultura, muitos


aspectos positivos ocorrem, já que as pessoas podem se tornar cidadãos do mundo sem sair
de casa8, podendo nele exercer direitos humanos básicos, como a liberdade de expressão,
a manifestação do pensamento, a liberdade de cultura, a liberdade de crença, o direito à
educação, a liberdade de trabalhar virtualmente, dentre outras inúmeras possibilidades.

4. DADOS DA CRIMINALIDADE CIBERNÉTICA


Tradicionalmente, algumas empresas de segurança da tecnologia da informação,
disponibilizam relatórios anuais sobre os cibercrimes, sendo possível perceber a necessidade
de refletir e discutir o cenário alarmante que os dados vêm trazendo ao longo dos anos.

6
KURBALIJA, Jovan. Uma introdução à Governança da Internet. Tradução de Carolina Carva-
lho. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2016, p. 20
7
LÉVY, Pierre. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34, 1999, p. 17.
8
SILVA, Marco Antonio Marques da. Dignidade Humana e Globalização. In: A Efetividade da
Dignidade Humana na Sociedade Globalizada. São Paulo: Quartier Latin, 2017, p. 100.

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Os desafios no ciberespaço, criminalidade cibernética em âmbito mundial: necessidade de reflexão
Marco Antonio Marques da Silva - Ricardo Vieira de Souza

Em pesquisa realizada pela empresa norte americana Norton – Symantec denominado


Relatório Global sobre Informações de Segurança Cibernética9, demonstrou-se que no ano
de 2017, 978 (novecentas e setenta e oito) milhões de pessoas localizadas em 20 países, foram
vítimas de crimes cibernéticos, apresentando, no Brasil, um número de vítimas previsto em
62,21m (sessenta e dois milhões de duzentas e dez mil) pessoas. Mostrou-se, ainda, que 53%
(cinquenta e três por cento) das pessoas foram infectadas por algum tipo de vírus ou ameaça
de segurança, bem como que o tempo médio mundial para resolver questões relacionadas aos
crimes cibernéticos ficou em quase 24h (vinte quatro horas), sendo que, no Brasil, esse tempo
média gira em torno de 33,9h (trinta e três horas e nove minutos). Apontou-se, ainda, que
38% (trinta e oito por cento) das pessoas tiveram cartões de crédito ou débito fraudados, 34%
(trinta e quatro por cento) das pessoas tiveram suas senhas de segurança comprometidas, 34%
(trinta e quatro por cento) tiveram conta de email ou redes sociais hackeadas através de acesso
não autorizado, 33% (trinta e três por cento) das pessoas foram vítimas de compras online
indevidas e 32% (trinta e dois por cento das pessoas) foram vítimas de e-mails fraudulentos e
forneceram informações confidenciais sensíveis.10.
Além disso, a pesquisa de 2017 apurou que os crimes cibernéticos são altamente
lucrativos, pois em âmbito global, os prejuízos financeiros causados por esse tipo de delito
foram na ordem de US$ 172 (cento e setenta e dois) bilhões de dólares americanos.11
Sob a perspectiva individualizada, o país onde ocorreu o maior volume financeiro de
crimes cibernéticos foi a China, com a cifra de US$ 66,3 (sessenta e seis bilhões e trezentos
milhões) de dólares americanos. Em segundo lugar ficou o Brasil, com volume financeiro
de prejuízos relacionados a crimes cibernéticos na ordem de US$ 22,5 (vinte e dois bilhões
e 5 milhões) de dólares americanos. Por fim, os Estados Unidos é o terceiro colocado, com
prejuízos decorrentes de crimes cibernéticos na casa de US$ 19,4 (dezenove bilhões e quatro
milhões) de dólares americanos.12
Por sua vez, o Relatório Global sobre Informações de Segurança Cibernética de 2018,
apurou que 800 milhões de pessoas foram vítimas de crimes cibernéticos, sendo 89 (oitenta
e nove) milhões de vítimas só no Brasil. Além disso, 38% (trinta e oito por cento) dos
entrevistados declararam terem obtido prejuízos financeiros, bem assim a necessidade de, em
média, dispor cerca de 6 (seis) horas para resolver problemas relacionados ao crime cibernético,
chegando a 7,6 (sete horas e seis minutos), quando se tratava do Brasil. Os números mostram
que 117 (cento e dezessete) milhões de pessoas, incluindo adultos (homens e mulheres),
jovens e idosos de 16 países pesquisados, foram vítimas de furto de identidade, sendo que, no
Brasil, o número representa dez milhões e cem mil pessoas. Foi possível apurar, também, que
83% (oitenta e três por cento) das pessoas estão preocupadas em relação a privacidade dos
dados pessoais e que 61% (sessenta em um por cento) das pessoas aceitam os riscos da falta
de privacidade, para tornar a vida mais confortável. Estatisticamente, apontou-se ainda que

9
Tradução Livre.
10
SYMANTEC. 2017 Norton Cyber Security Insights Report Global Results. Disponível em:
https://now.symassets.com/content/dam/norton/global/pdfs/norton_cybersecurity_insights/NCSIR-global-
results-US.pdf?promocode=DEFAULTWEB&trf_id=seo_norton.Acesso em 15 fev. 2020.
11
Idem.
12
Idem

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Os desafios no ciberespaço, criminalidade cibernética em âmbito mundial: necessidade de reflexão
Marco Antonio Marques da Silva - Ricardo Vieira de Souza

22% (vinte e dois por cento) excluíram contas de mídias sociais nos últimos 12 (doze) meses,
preocupadas com a falta de privacidade e que 64% (sessenta e quatro por cento) das pessoas
acreditam que serão vítimas de futuros crimes financeiros. Indicou-se, outrossim, que 117.6
m (cento e dezessete milhões e seiscentas mil) pessoas de pessoas foram vítimas de furto de
identidade, dentro os 16 países pesquisados, sendo que, no Brasil, o número representa 10.1m
(dez milhões e cem mil) pessoas.13
Também em 2018 a empresa norte americana Norton – Symantec, divulgou o “Relatório
de Crimes Cibernéticos: O Impacto Humano”, no qual intitula os crimes cibernéticos como
uma epidemia global e silenciosa, alertando que se faz necessário uma maior educação e
conscientização dos usuários da Internet, para tentar minimizar o avanço dos crimes
cibernéticos, ante o crescente aumento destes tipos de delitos.14
Para efeitos conceituais a pesquisa em questão considera como crime cibernético
a instalação de “vírus/malware de computador”; fraudes relacionadas a cartão de crédito,
pirataria (hacking) online; assédio online; roubo de identidade online15; golpes online (por ex.,
sorteios fraudulentos/ oportunidades de emprego); assédio sexual16 e phishing online”17.
O relatório aponta que praticamente dois terços dos adultos em âmbito mundial já foram
vítimas de crimes cibernéticos e, no Brasil, 62% (sessenta e dois por cento) dos computadores
foram infectados, ou seja, a cada dez computadores, seis são infectados.18
Outros dados são preocupantes. Dentre os entrevistados, 79% (setenta e nove por
cento) acredita que os criminosos cibernéticos não serão submetidos à justiça pelo crime
que cometeram, de modo que, a cada dez entrevistados, oito acreditam na impunidade dos
crimes cibernéticos. 56 (cinquenta e seis por cento) dos criminosos cibernéticos são anônimos
e somente 21% (vinte e um por cento) pertencem à algum tipo de organização criminosa.
Em âmbito mundial, por sua vez, as soluções envolvendo os danos causados pelos crimes
cibernéticos demoram 28 (vinte e oito) dias, com o custo de US$ 334 (trezentos e trinta e
quatro dólares americanos), e especificamente no Brasil, os dados revelam que a solução para

13
SYMANTEC. 2018 Cyber Security Insights Report Global Results. Disponível em: https://
now.symassets.com/content/dam/norton/campaign/NortonReport/2019/2018_Norton_LifeLock_Cyber_
Safety_Insights_Report_US_Media_Deck.pdf?promocode=DEFAULTWEB&trf_id=seo_norton. Acesso
em 15 fev. 2020
14
SYMANTEC. Relatório de Crimes Cibernéticos Norton: O impacto Humano. Disponível em
https://www.symantec.com/content/en/us/home_homeoffice/media/pdf/cybercrime_report/Norton_Portu-
guese-Human%20Impact-A4_Aug18.pdf. Acesso em 15 fev. 2020
15
Entendemos que esse tipo de delito no Código Penal Brasileiro, mais se assemelha ao crime de
furto, por não envolver violência e grave ameaça contra a pessoa que tem a identidade furtada.
16
Entendemos que esse tipo de delito no Código Penal Brasileiro, possui outra capitulação, uma vez
que o assédio sexual é um crime cometido no ambiente de trabalho, necessitando haver uma hierarquia ou
ascendência inerente ao exercício do emprego, cargo ou função.
17
SYMANTEC. Relatório de Crimes Cibernéticos Norton: O impacto Humano. Disponível em
https://www.symantec.com/content/en/us/home_homeoffice/media/pdf/cybercrime_report/Norton_Portu-
guese-Human%20Impact-A4_Aug18.pdf. Acesso em 15 fev. 2020
18
Idem

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Os desafios no ciberespaço, criminalidade cibernética em âmbito mundial: necessidade de reflexão
Marco Antonio Marques da Silva - Ricardo Vieira de Souza

os danos causados demoram 43 (quarenta e três) dia, com um custo de US$ 1.408,09 (mil
quatrocentos e oito dólares americanos e nove cents).19
Apesar de tais dados serem colhidos por uma empresa voltada à tecnologia da informação,
por si só é demonstrado que a criminalidade cibernética é um problema em âmbito mundial, e
além disso, o receio das pessoas em relação falta de privacidade e proteção de dados pessoais
na rede mundial de computadores.

5. PRINCIPAIS DESAFIOS DO CIBERESPAÇO


Pelo fato de o ciberespaço ser um local livre, poderá ele sediar alguns problemas de
cunho social, como ocorre nas “sociedades tradicionais” instaladas fisicamente dentro do
território físico de um Estado, tanto na esfera das relações privadas entre pessoas, quanto nas
relações públicas de ordem penal, sendo essa última a mais preocupante.
Tradicionalmente, para se viver em sociedade, as pessoas estão sujeitas não só às regras
de convivência impostas por um Estado onde elas estão localizadas fisicamente, mas também
ao sancionamento penal toda vez que transgredida uma conduta prevista em abstrato como
crime, abrindo-se, em consequência, o ius puniendi estatal.
Porém, essa questão do direito de punir fica mais complexa no ciberespaço, pois um
indivíduo que está localizado fisicamente em um Estado A, poderá praticar um cibercrime
cujo resultado da ação criminosa tenha ocorrido em um local físico de um Estado B, localizado
a milhares de quilômetros de distância, sem de qualquer tipo de deslocamento terrestre.
Esse exemplo, demonstra concretamente a questão da dificuldade de aplicação de uma
sanção de ordem cível ou penal ao indivíduo que está no Estado A, já que a suposta vítima se
encontra no Estado B, pois como cada Estado tem sua autonomia para legislar e impor suas
regras, poderão existir conflitos normativos, bem como a falta de acordos internacionais visando
a cooperação de identificação e aplicação de medidas cabíveis aos crimes cibernéticos.
Adicionalmente, existem fatos públicos divulgados amplamente pela imprensa da
dificuldade que empresas de tecnologia, especificamente alguns provedores de aplicação,
ou seja, aqueles que devem armazenar os registros de acesso as aplicações de internet (art.
15 do Marco Civil da Internet), em criar dificuldades para o cumprimento de determinações
judiciais no sentido de enviar informações indispensáveis à investigações penais e até mesmo
à questões da esfera cível.
Existem casos, que o Poder Judiciário do Brasil, determina o fornecimento dos dados de
acesso aos provedores de aplicação, mas alguns acabam argumentando que as informações
não poderão ser encaminhadas porque a matriz do provedor está localizada em outro país,
e o meio cabível seria o instrumento de cooperação internacional, mesmo existindo uma
representação da empresa no Brasil.
Esse descumprimento de ordem judicial é inconcebível, considerando que uma vez que
a empresa está representada legalmente no Brasil, dotada de personalidade jurídica, assim


19
Idem

— 533 —
Os desafios no ciberespaço, criminalidade cibernética em âmbito mundial: necessidade de reflexão
Marco Antonio Marques da Silva - Ricardo Vieira de Souza

como há previsão legal expressa no sentido da disponibilização de dados, por conta do artigo
10, parágrafo 1º do Marco Civil da Internet.20
Por fim, também existem hipóteses de ocorrência de um ilícito penal ou civil no âmbito
do ciberespaço, e o Poder Judiciário de determinado país requisita registros com finalidade de
identificação do usuário que cometeu ilícitos. No entanto, a empresa responsável por coleta
desses dados, não possui escritório ou filial no país em que os dados estão sendo requisitados,
criando embaraços e não se submetendo à jurisdição estrangeira, gerando uma sensação de
impunidade a todos os atores envolvidos.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo buscou trazer questões envolvendo o fenômeno da globalização e
o encurtamento de fronteiras, notadamente pelo avanço da tecnologia capaz de conectar
pessoas de diferentes países instantaneamente, bem como as consequências da denominada
“sociedade de risco”, pois a todo momento surgem inúmeros fenômenos sociais que jamais
foram tratados pelo Direito.
Ao tratar do ciberespaço, resta claro que se trata de um local de cunho social, onde
cidadãos de diferentes partes do mundo interagem, formando uma verdadeira sociedade
digital mundial. Porém como em toda sociedade tradicional, surgem conflitos de ordem cível
e penal pelo fato de pessoas transgredirem regras básicas de convivência social.
Os dados envolvendo os crimes cibernéticos demonstram que há necessidade de esforços
da comunidade internacional no sentido de aprimorar as técnicas de segurança da informação,
mas também sancionar aquelas pessoas que utilizam a rede mundial de computadores para
o cometimento de ilícitos de ordem cível e criminal, e as dificuldades que permeiam a
identificação de quem cometeu tais atos violadores da norma jurídica.
Atualmente o principal desafio do ciberespaço é combater os ilícitos cibernéticos,
bem como na questão relacionada a imposição de sanções para os autores dos fatos, para
não gerar uma sensação de impunidade. Por isso, resta clara a necessidade da união entre
as diversas nações existente para o encontro de um ponto comum de mútua cooperação,
inclusive legislativa, para que se de à sociedade mundial uma resposta suficiente para os fatos
ocorridos dentro do ciberespaço.

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CAMARGO, Antonio Luis Chaves. Imputação Objetiva e Direito Penal Brasileiro. São Paulo:
Cultural Paulista Editora, 2001, p. 128 e segs.

20
“O provedor responsável pela guarda somente será obrigado a disponibilizar os registros mencio-
nados no caput, de forma autônoma ou associados a dados pessoais ou a outras informações que possam
contribuir para a identificação do usuário ou do terminal, mediante ordem judicial…”

— 534 —
Os desafios no ciberespaço, criminalidade cibernética em âmbito mundial: necessidade de reflexão
Marco Antonio Marques da Silva - Ricardo Vieira de Souza

COSTA, José de Faria; SILVA, Marco Antonio Marques da (Coordenação). Direito Penal Especial,
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— 535 —
Retos de las nuevas tecnologías y digitalización
en el derecho comercial

María Augusta Camacho Zegarra1

Resumen: Los modelos económicos imperantes se muestran siempre atentos a la competitividad y a


la eficiencia, esto tiene su justificación en tanto la economía genere mayores oportunidades y fomente el
desarrollo, por lo tanto, la idea de agilizar los negocios y contratos considerando que el tiempo tiene una
valoración económica, hará que el uso de la tecnología disminuya éste y agilizará la contratación comercial.
Sin embargo, la escasez de regulación, de canales de supervisión, y también de formalidad, tiene riesgos que
generan un costo y que debe ser evaluado. Nos vemos frente a un enorme ámbito de negocios y constitución
de empresas como las Startups, jamás pensados, que desborda la intervención del Estado, la de un notario
o registrador público, con el propósito de asegurar legalidad a todos estos actos, que no dejan de tener
consecuencias jurídicas. Surge la necesidad imperiosa que en estos procesos innovadores la buena fe sea
indispensable. La reflexión va más allá de los retos para el Derecho y sus formas que son necesarias para
un orden social. Podemos concluir en que las nuevas tecnologías modifican algunos aspectos del Derecho
Comercial y seguirán haciéndolo, de tal manera que se hace necesario evaluar el impacto que puede tener
en los distintos frentes del mercado y el Derecho Comercial.
Palabras clave: Digitalización; Derecho Comercial; retos e innovación.

Abstract: The economic models are always attentive to competitiveness and efficiency, this has its
justification as long as the economy generates greater opportunities and fosters development, therefore, the
idea of streamlining business and contracts considering that time has an assessment economic, will make
the use of technology decrease this and expedite commercial contracting. However, the lack of regulation,
of supervisory channels, and also of formality, has risks that generate a cost and must be evaluated. We
are facing a huge area of business and constitution of companies such as Start ups, never thought of, that
overflows the intervention of the State, that of a notary or public registrar, with the purpose of ensuring
legality to all these acts, which do not leave of having legal consequences. The urgent need arises that in

1
Abogada, Magister en Derecho de la Empresa y Doctora en Derecho en UCSM – Perú, Espe-
cialización en Derecho para el Desarrollo en IDLO, Italia y Post Doctorado en Derecho Público en la
Universidad Santiago de Compostela – España. Profesora Ordinaria y Directora de la Carrera de Derecho
Corporativo de la Universidad ESAN, Lima – Perú. Correo: mcamacho@esan.edu.pe.

— 536 —
Retos de las nuevas tecnologías y digitalización en el derecho comercial
María Augusta Camacho Zegarra

these innovative processes good faith is indispensable. The reflection goes beyond the challenges for the
Law and its forms that are necessary for a social order. We can conclude that the new technologies modify
some aspects of Commercial Law and will continue to do so, in such a way that it is necessary to evaluate
the impact it can have on the different fronts of the market and Commercial Law.
Keywords: Digitization; Commercial Law; challenges and innovation.

Metodología
Análisis teórico, crítico a partir de revisión de literatura especializada, legislación y datos
relativos a la cuestión, de tipo descriptivo.
Análisis del estado de la cuestión, entrando brevemente en el Derecho Comparado,
estudiando algunos indicadores y haciendo propuestas de mejora en este campo.

Propósito de la Investigación
Análisis crítico de los efectos y el impacto de la digitalización en el Derecho
Comercial.

Introducción
La fuente principal de la innovación está en el cambio y a su vez en la creatividad
aplicada al desarrollo de la tecnología. El proceso de innovación es la única respuesta a los
desafíos económicos y sociales.2
La era virtual que caracteriza el siglo XXI, es indudable que afecta al mundo del
Derecho con la necesidad de redefinición de éste, los retos que se presentan frente a los
avances tecnológicos tienen una implicancia en las personas, quienes se comprenden dentro
del ámbito de las distintas especialidades del Derecho, dentro de las cuales nos referiremos
especialmente al Derecho Comercial, Societario y afines.
La denominada cultura digital requiere replantear la concepción sobre la realidad y el
hombre mismo, para dar paso a un entramado llamado realidad virtual.3 Esta realidad en
corto tiempo debe ser generalizada en todos los procesos a través de las nuevas tecnologías
y de este modo afectando los procesos, los medios de comunicación, y en general todos los
espacios en los que se desenvuelven las personas. En este pequeño trabajo, nos referiremos al
ámbito del Derecho Comercial principalmente.

2
PIAGGI, A. 1998. El derecho comercial y los desafíos de la modernización. ¿Crisis de represen-
tatividad en América Latina?. Buenos Aires: CIEDLA. no. 1/1998, p. 129.
3
CARREÑO DUEÑAS, D. 2012. El derecho en la era de la virtualidad. Nuevas realidades, nuevo dere-
cho virtual. Ars Boni et Aequi. Chile: Revista Jurídica de la Universidad Bernardo O’Higgins. no. 2, p. 252.

— 537 —
Retos de las nuevas tecnologías y digitalización en el derecho comercial
María Augusta Camacho Zegarra

1. Por una digitalización en el Derecho Comercial


La tecnología actual permite el almacenamiento, procesamiento y transmisión de
información en enormes cantidades y en tiempo real4 y mucho de la información que se
transmite es producto de la creatividad y de la innovación, por lo tanto no es extraño que
tenga gran importancia en la economía. Así también, gracias al contexto de la sociedad de la
información y a Internet, se genera un espacio mayor para la proliferación de las ideas.
Las transacciones comerciales por medios electrónicos crecen aceleradamente y
las transformaciones son impredecibles, justamente la llegada de Internet trajo consigo
nuevas modalidades contractuales y las teorías clásicas del Derecho Comercial parecen ser
desplazadas por los recursos tecnológicos, el comercio electrónico y todos los derivados como
e-bank, Spotify, Netflix, y en general el acceso y consumo de todo tipo de productos que han
modificado sin duda, la contratación, la regulación e incluso la legislación comercial.
Las tecnologías digitales están cambiando la manera de hacer negocios y de las empresas,
éstas permiten conectar a los compradores y vendedores sin importar la localización, de tal
modo que se generan nuevas oportunidades, con reducción de tiempos y de otro tipo de
barreras.
En el Derecho Societario, el uso de las nuevas tecnologías para constituir empresas, a
través de un sistema en línea, llenando formularios, que en tiempos breves consiguen los
mismos resultados que con documentos extensos, Escrituras Públicas que contienen cláusulas
en algunos casos estandarizadas, y un registros tradicional, ya van quedado en el pasado con
los sistemas de intermediación digital y sus ventajas son claras: reducción de tiempo, costos,
el resultado tiene los mismos efectos jurídicos que los procedimientos antiguos.
La necesidad de simplificación en los trámites en la constitución de sociedades, del
registro de las sesiones de juntas generales de accionistas, de acuerdos que modifican los
Estatutos, el otorgamiento de Poderes, entre otros, han llevado a los distintos Estados a agilizar
estos procesos, mediante el uso de la digitalización acorde a los cambios tecnológicos y otros
fenómenos que son parte de la innovación.
Varios países ya tienen incluido un modelo de constitución de empresas a través del sistema
de digitalización que incluye la participación de los registros públicos y que generalmente
están orientadas a promover y dinamizar la constitución de las pequeñas y microempresas,
como con la recientemente legislada Sociedad por Acciones Cerrada Simplificada en Perú, y
con denominaciones similares en Argentina, Chile, España y México. Es decir tanto en países
europeos como de otras latitudes, la cuestión de las nuevas tecnologías pone en relevancia
cómo modifica al Derecho en general, y además a otras disciplinas como la Economía.
En el marco de las nuevas tecnologías de la información y la comunicación, es importante
analizar las nuevas formas de constitución de sociedades que van surgiendo con los avances

4
CAVERO SAFRA, E., LEGUA ZÚÑIGA, C. 2019. Un rinconcito en el archivo de tu corazón:
Tecnología Blockchain y privatización de activos digitales”. Revista de Actualidad Mercantil. Lima. no. 6,
p. 174.

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Retos de las nuevas tecnologías y digitalización en el derecho comercial
María Augusta Camacho Zegarra

de la técnica y la informática. En España se encuentra regulación en los arts. 15 y 16 de la


Ley de Emprendedores.5
Hay una preocupación en cómo afectan las tecnologías a las pequeñas y micro empresas
y si de algún modo pueden mejorar su sostenimiento y competitividad. Sin duda la innovación
debe traer una perspectiva de desarrollo, apoyo o soporte empresarial y generación de
empleo.
De otro lado, en el Derecho Financiero: las estructuras y plataformas financieras como
los Blockchain, Fintech han promovido los Venture Capital para fortalecer el acceso al
financiamiento de proyectos de inversión y de emprendimientos diversos. En estos tiempos
marcados por la tecnología, se nos hace cada vez más complicado realizar trámites sencillos
asistiendo a los bancos; sin embargo, estos trámites están por llegar a su fin con la llegada de
nuevas plataformas financieras digitales que hacen que desde cualquier lugar del mundo y en
cualquier momento uno pueda realizar estas transacciones.
Así, en estos últimos años, muchas de las empresas que son especializadas en tecnología
financiera han venido ingresando con gran fuerza a este mercado; ofreciendo productos o
servicios a la población y reduciendo costos de transacción que las empresas financieras
tradicionales cargan a sus clientes. Por ello, hoy en día las fintech han conseguido ofrecer
cuentas que permiten transacciones económicas de manera tan fácil, barata y accesible como
gestionar dinero en efectivo.
Estos Venture Capital sirven para financiar empresas pequeñas o medianas, especialmente
Startups recientemente creadas, que no cotizan en bolsa y tienen limitaciones al momento
de obtener financiación tanto de los bancos como de otros tipos de mercados, como el de
acciones. Esto hace que tengan riesgo elevado, sin historial que avale sus flujos de caja y que
reciben Ventures a cambio de hacer crecer el negocio.
Otra versión del uso de las nuevas tecnologías en el ámbito del Derecho Financiero es
la del Crowfunding6 que consiste en una convocatoria abierta, principalmente a través de
internet para solicitar recursos financieros, ya sea en forma de donación o a cambio de algún
tipo de recompensa y/o derechos de voto en el directorio, con el fin de apoyar proyectos
específicos o nuevos negocios, constituye así un tipo de crowd- sourcing, término amplio
que describe el proceso de conectar con grandes grupos de personas a través de internet
para utilizar sus conocimientos, experiencia tiempo o recursos.7 Es un nuevo modo de
financiamiento.
Las criptomonedas o bitcoins son monedas virtuales que sirven para el intercambio
de bienes y servicios, a través de un sistema de transacciones electrónicas, incorporando la
criptografía, anónimo y descentralizado, se trata de monedas virtuales, que además pueden
utilizarse internacionalmente. Tienen la posibilidad de modificar el mundo empresarial y el

5
Ley 14/2013 de 27.09.14, de apoyo a los emprendedores y su internacionalización.
6
CAMACHO ZEGARRA, M. 2019. Sistema y Mercados Financieros. Derecho Económico, Finan-
ciero y Bancario. Lima: Grijley, p. 134.
7
ALEMANY, L., BULTÓ, I. 2014. Cwodfunding: nueva forma de financiación para los emprende-
dores. Harvard Deusto Business Review. Barcelona: Planeta-De Agostini. no. 237, p.7.

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Retos de las nuevas tecnologías y digitalización en el derecho comercial
María Augusta Camacho Zegarra

Derecho Comercial debe adaptarse en cierto modo, para permitir el uso de estos nuevos
instrumentos que regulados, pueden ser beneficiosos.
La simplificación de los trámites implica la facilitación de los diferentes procesos del
mundo jurídico, cambiando de algún modo también los estereotipos usados habitualmente,
como por ejemplo: tener que acreditar la identidad con un documento en físico, con vigencia.
La legislación de los distintos países ha considerados normas de simplificación8 en materia
tributaria, administrativa, judicial, etc. algunas debidamente justificadas ante tantas y obsoletos
trámites que llegan a ser irracionales.

2. Aspectos críticos de la inclusión de las nuevas


tecnologías en el Derecho Comercial
Hablar de una sociedad express mediante la flexibilización en su constitución, la
simplificación de la tramitación societaria referida en la Ley 14/2013, de apoyo a los
emprendedores y su internacionalización, denota sin duda, una gran ventaja y el Real Decreto
421/2015, también en España, por el que se regulan los modelos de estatutos-tipo y de escritura
pública estandarizados de las sociedades de responsabilidad limitada, la Agenda electrónica
notarial y la Bolsa de denominaciones sociales con reserva, que ya vienen siendo el resultado
de la inclusión de la digitalización en materia de Derecho Societario, nos deja constancia de
ello.
Sin embargo, el impacto que puede generar el uso de las nuevas tecnología podría
cambiar la estructura y los procesos dentro de las corporaciones y por consiguiente las
normas de Derecho Societario9 que deberá adecuarse a esta nueva realidad. Esto no sería
un gran problema si solo estaríamos pensando en la regulación o legislación que modifique
los procedimientos al interior de las empresas, como contar con juntas no presenciales,
votos electrónicos, agendas electrónicas, uso de certificados y firmas digitales y similares.
La preocupación va más allá, en el hecho de que podrían modificarse estructuralmente los
órganos de una persona jurídica por ejemplo, que la desnaturalice, que transforme la sociedad
al extremo de tener un efecto en la organización jurídica y administrativa de la empresa.
La innovación y creatividad tiene sentido siempre que mejore la calidad de vida, que
esté al servicio de las personas, y si la tecnología y su uso genera mayores costos, podrían
hacer que se reduzcan los emprendimientos, y por ende los puestos de trabajo. En una era de
innovación tecnológica constante, compleja y disruptiva, tener claro cómo deben regular las
leyes es mucho más complejo.
El progreso tecnológico convive con un lado oscuro donde las buenas ideas e intenciones
producen resultados indeseables10. En el caso específico del uso de criptomonedas o bitcoin,

8
MONTOYA ALCOCER, G. D. 2019. Simplificación, digitalización y tramitación electrónica en
la constitución de sociedades mercantiles. Escuela Internacional de Doctorado de la Universidad de Murcia
(coord.) IV Jornadas doctorales de la UM. España: Editum. pp. 375.
9
MORALES CACERES, A. 2019. ¿Cómo impactara la tecnología al derecho comercial? Advoca-
tus. Lima: Facultad de Derecho de la Universidad de Lima, no. 36, p. 76.
10
Ibid, p.78

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Retos de las nuevas tecnologías y digitalización en el derecho comercial
María Augusta Camacho Zegarra

por citar algunas, si una empresa aceptara el pago, aporte a capital, entre otras modalidades,
con este tipo de medios, ¿Qué sucedería? Pensaríamos de dónde provienen esos fondos, si
son de fuente lícita o no, si su uso es legal o no, tanto en una transacción nacional como
internacional, si tiene la naturaleza de dinero electrónico, si está regulado o no en el país,
incluso si está sustentada en un valor real. Es decir, surgen una serie de premisas que
constituyen una cuestión no solo jurídica, sino también ética.
Un sector considera que si se crean leyes que regulen la intervención de la tecnología
y sus límites, fijando responsabilidades objetivas para quienes las utilicen, sería una
solución. En opinión personal, las normas no solucionan las prácticas sociales, las distintas
interpretaciones, y sobre todo el avasallante rumbo de las tecnologías. Con certeza un recurso
digital quedaría desactualizado más rápido que lo que tarda una ley en promulgarse, y en
cierto sentido, no se trata de regular solo con leyes lo que la conducta y responsabilidad de
cada ser humano debe aplicar.
Cualquier propuesta que esté destinada a incluir el uso de la tecnología, debe asegurarse
que se tome en cuenta el impacto económico, social y técnico, es decir habría que evaluar los
efectos que podría tener la regulación con respecto a la innovación.
La técnica legislativa requiere de una difusión eficiente y de la práctica de los operadores
jurídicos y/o mercantiles, sin embargo es necesario tener en cuenta además, que toda norma
jurídica resulta insuficiente frente a un fenómeno inevitable como es el uso de las tecnologías,
la digitalización o inteligencia artificial, entre otros. En España, por ejemplo, los avances
legislativos simplificadores, afectan principalmente a las Sociedades Limitadas y no se
precisa si su difusión ha sido realmente efectiva y en cuanto a la legislación europea, ésta ha
considerado de gran importancia la simplificación mediante el uso de métodos telemáticos
y sería conveniente la unificación de criterios y procedimientos en los países de la Unión
Europea. Como el avance en estos temas no ha sido similar, como en España, Francia o
Dinamarca versus Irlanda, por ejemplo, en el tratamiento fiscal al emprendimiento, sería
interesante alcanzar los mismos niveles. Un extremo es el caso de Nueva Zelanda, donde se
puede constituir una sociedad, con todos los trámites de forma telemática, con un pago único,
relativamente bajo y que puede ser un anhelo, especialmente para los países latinoamericanos
para quienes los requerimientos son mayores.
En el ranking “doing business” del Banco Mundial11 el país que lleva la delantera en
facilidad para hacer negocios es Nueva Zelandia, seguido de Singapur, Hong Kong – China
y Dinamarca, seguidos de Corea y Estados Unidos, en ese orden. España se encuentra en
el puesto 30, Chile 59, México 60, Colombia 67 y Perú 76. Esta realidad se traslada a otros
factores, como consecuencia de lo anterior, que son evidentes: reducción de costos, número
de empresas, oportunidades laborales, entre otros. Una razón importante para pensar que la
digitalización y en general el uso de las tecnologías es inminente.
Lo mismo sucede en el resto de países en los que se ha incorporado la digitalización en
algunos procesos societarios.


11
Ranking Doing Business Banco Mundial.

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Retos de las nuevas tecnologías y digitalización en el derecho comercial
María Augusta Camacho Zegarra

Conclusiones
Las nuevas tecnologías modifican algunos aspectos del Derecho Comercial y seguirán
haciéndolo, presentan retos en la aplicación del Derecho, de tal manera que se hace necesario
evaluar el impacto que puede tener en los distintos frentes del mercado y el Derecho Comercial,
sin excluir el efecto en la Propiedad Intelectual.
La reducción de gastos, la simplificación en la tramitación de la constitución de empresas,
y las consecuencias económicas que subyacen de éstas, como el incremento de oportunidades
de empleo, son uno de los mayores beneficios de la digitalización en el derecho societario
principalmente, promueve el desarrollo empresarial. Así surge la necesidad imperiosa que en
estos procesos innovadores la buena fe sea indispensable. La reflexión va más allá de los retos
para el Derecho y sus formas que son necesarias para un orden social.
En los últimos años se ha experimentado un avance cualitativo en lo que simplificación
se refiere, y nos permitirán en breve tiempo, conseguir resultados significativos, no solo en
crecimiento económico sino también como objetivo de desarrollo.

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Retos de las nuevas tecnologías y digitalización en el derecho comercial
María Augusta Camacho Zegarra

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Normativa:
Ley 14/2013 de 27.09.14

— 543 —
Blockchain e smart contracts: tecnicidades e
qualificação jurídica

Amanda Bezerra Bassani1

Resumo: Embora o surgimento da blockchain esteja atrelado ao da Bitcoin, hoje, o alcance daquela
tecnologia vai muito além do que meramente prover um suporte a transações envolvendo criptomoedas ou
assets digitais. Essa expansão, em grande parte, foi viabilizada pelo desenvolvimento e aperfeiçoamento
dos smart contracts, que paulatinamente foram se tornando capazes de introduzir um certo grau de lógica
negocial num ecossistema binário, incrementando as dinâmicas possíveis. Diante desse quadro, visamos
neste artigo perfazer uma análise técnico-construtiva da blockchain que nos possibilite, além de delimitar
um conceito unitário da tecnologia, estruturar uma base para compreender o que são e como funcionam
os smart contracts. Para isso, demonstraremos o raciocínio subjacente às Distributed Ledger Technologies
(DLTs), esclarecendo também algumas ambiguidades acerca dos conceitos de imutabilidade e de consenso.
A partir da verificação de que estes possuem características heterogéneas e que podem se constituir na
blockchain de diferentes formas, distinguiremos os smart contracts que podem ser considerados como
contratos em sentido estrito daqueles que não o são, destacando, no que concerne ao primeiro caso, a
importância de se compreender as tecnicidades dos smart contracts para o correto enquadramento no
mundo jurídico. Ressalta-se, por fim, que estes não configuram um novo tipo, mas apenas uma nova forma
contratual que pode transfigurar-se em diferentes tipos, desde que estes sejam suscetíveis de expressão em
código.
Palavras-chave: Blockchain; Smart Contracts; DLTs; Contratos; Transações Algorítmicas

Abstract: Although the emergence of blockchain is connected with the creation of Bitcoin, today
the reach of that technology goes far beyond of merely providing support for transactions involving
cryptocurrencies or digital assets. This upscaling, in large part, was made possible by the development
and improvement of smart contracts, which gradually became capable of introducing a certain degree of
business logic in a binary ecosystem, enabling new dynamics. Against this background, we aim in this article

1
Mestre em Direito das Empresas pelo Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL); Doutoranda
em ciências jurídico-empresarias na Universidade de Lisboa; Assessora da Diretoria de Governança, Ino-
vação e Compliance da Casa Civil da Presidência da República do Brasil. Contato: abassani@campus.ul.pt/
+5561998422552.

— 544 —
Blockchain e smart contracts: tecnicidades e qualificação jurídica
Amanda Bezerra Bassani

to carry out a technical-constructive analysis of the blockchain that allows us not only to delimit a unitary
concept of technology, but also to structure a basis to understand what smart contracts are and how they
work. To that end, we will demonstrate the reasoning underlying the distributed ledger technologies (DLTs),
also clarifying some ambiguities about the concepts of immutability, consensus and trustless transactions.
Based on the verification that smart contracts have heterogeneous characteristics and can be created in the
blockchain under different manners, we will distinguish smart contracts that can be considered contracts
in the strict sense from those that cannot, emphasizing, in what regards to the first case, the importance of
understanding the technicalities of smart contracts for the correct legal framing. Finally, it should be noted
that these do not constitute a new type, but rather a new contractual form that can be converted into different
types, as long as they are susceptible to be expressed in code.
Keywords: Blockchain; Smart Contracts; DLTs; Contracts; Algorithmic Transactions

1. Blockchain: noções introdutórias e tecnicidades


Embora o surgimento da tecnologia da cadeia de blocos ou blockchain esteja atrelado ao
da Bitcoin, hoje, o alcance daquela tecnologia vai muito além do que meramente prover um
suporte a transações envolvendo criptomoedas ou assets digitais2. A blockchain transformou-
se em uma plataforma multifinalística que permite que transações de diversas naturezas sejam
realizadas e armazenadas, de modo sincronizado, em múltiplos computadores interligados à
rede.
A blockchain, manifestamente, é uma base de dados digital descentralizada3, cuja
característica mais apelativa é, sem dúvida, a capacidade de assegurar a integridade de seus
registos. No entanto, para além de uma base de dados, a blockchain deve ser vista como
uma plataforma programável, inserida num ecossistema escalonável, que permite não
só o armazenamento de registos e dados, como também o desenvolvimento de aplicações
descentralizadas.
As transações realizadas na blockchain – sejam operações mais simples, como o câmbio
de tokens e de criptomoedas, sejam operações mais complexas que necessitam de inputs
externos à blockchain (off-chain) e alguma lógica negocial –, valem-se, de modo equivalente,
da infraestrutura proporcionada por essa tecnologia. Essencialmente, a blockchain recorre a
mecanismos criptográficos (hashing4) para assegurar a estabilidade de sua cadeia, garantindo
2
Nesse sentido, George Hurlburt, Might the Blockchain Outlive Bitcoin? in IT Professional, vol.
18, n.° 2, 2016, pp. 12–16, p. 14. “To truly appreciate the contribution of Bitcoin technology, however, perhaps
one need to look beyond the transactions that underlie crypto-currency. The blockchain, a means of accurately
tracking any form of transaction, has significant value beyond the realm of monetary transfer”.
3
A descentralização refere-se à ausência de um servidor central para receber e transmitir as infor-
mações. Não há um ponto único de distribuição de informações, mas sim múltiplos pontos que se comuni-
cam diretamente. No que concerne à blockchain, acrescenta-se que, por inexistir esse servidor central para
transmitir informações e coordenar as ações dos usuários, são estes próprios que definem as suas ações
(dentro dos limites do que é algoritmicamente permitido).
4
O hashing é mecanismo criptográfico que transforma diferentes volumes de dados (v.g., arquivos
e mensagens) em uma representação numérica de tamanho fixo. As funções hash são unidirecionais, o que
significa dizer que o valor original protegido sob aquela representação numérica dificilmente será decifra-
do. Cf. Daniel Conte de Leon et al., Blockchain: properties and misconceptions, Asia Pacific Journal of
Innovation and Entrepreneurship, Vol. 11, n.° 3, 2017, pp. 286-300, pp. 289 ss. A Ethereum, a exemplo,

— 545 —
Blockchain e smart contracts: tecnicidades e qualificação jurídica
Amanda Bezerra Bassani

que um bloco, e, consequentemente, todos os dados nele contidos, não possam mais ser
deletados ou alterados quando a ela anexados.
Em vista dessa imutabilidade, uma transação (v.g. smart contract) conduzida por um
algoritmo se autoexecutará peremptoriamente quando a condição previamente programada
ocorrer, sem que seja possível qualquer intervenção humana para alterá-la ou impedi-la.
O modus operandi da blockchain incorpora ainda um mecanismo de validação consensual
das transações, de modo que estas só poderão ser adicionadas à blockchain se a maioria dos
nós (nodes – usuários conectados à rede) decidirem por sua validade5.
Toda essa dinâmica ocorre num ambiente desprovido de uma autoridade central para
determinar como os usuários deverão se comportar. A blockchain é regida pelos seus próprios
usuários, os quais são motivados a agir corretamente por uma dinâmica baseada na teoria dos
jogos6 e, ao mesmo tempo, limitados por aquilo que é algoritmicamente permitido.
Essa conjunção decorre do raciocínio subjacente a todas as DLTs, género de que a
blockchain é uma espécie. Para se chegar a ele, perpassou-se pela análise de um problema
latente nas ciências da computação, sobretudo nos anos 80, conhecido por Byzantine
Generals Problem. Em resumo, o problema relacionava-se à questão se seria possível a um
grupo virtualmente distribuído de pessoas alcançar o consenso sobre determinada ação sem a
presença de um intermediário (clearing house)7.
A conclusão teórica a que se chegara foi que a melhor forma de resolver o problema
seria: 1) aumentar a distribuição dos tomadores de decisão, pois quanto maior a quantidade
e a distribuição, menor o potencial de ações isoladas, desleais ou equivocadas afetarem o
consenso da maioria; 2) tornar as informações repassadas invioláveis.
Esse raciocínio foi transportado para o âmbito das DLTs e, mais especificamente, da
blockchain. Hoje, tem-se uma rede distribuída com usuários pulverizados num patamar global,
além de mecanismos criptográficos que permitem que as informações sejam verificadas por
todos, mas por ninguém alteradas. O consenso tornou-se possível. Tornar os dados registados
inalteráveis ou imutáveis também. Contudo, quando nos referimos à blockchain, esse
dito consenso não pode ser compreendido no sentido usualmente empregado nas ciências

utiliza um Secure Hash Algorithm (SHA-256), que é um mecanismo de segurança que atua como uma assi-
natura quase única de tamanho fixo (256 bits) para textos e dados. Cf. Elad Elrom, Ethereum Wallets and
Smart Contracts, in The Blockchain Developer, Apress, Berkeley, 2019, pp. 173-212, p. 187.
5
Cf. Zaffar Shaikh / Intzar Lashari, Blockchain Technology the New Internet, in International
Journal of Management Sciences and Business Research, Vol. 6, n.º 4, 2017, pp. 167-177, p. 168.
6
Cf. Kevin Werbach, Trust, but verify: why the blockchain needs the law, in Berkeley Technology
Law Journal, Vol. 33, n.° 2, pp. 487-550, maxime pp. 501 e 504; Christian Catalini & Joshua S. Gans,
Some Simple Economics of the Blockchain, National Bureau of Economic Research Working Paper Series,
Cambridge, 2016, p. 1 e anexo 2, disponível em https://www.nber.org.
7
Sobre o Byzantine Generals Problem, vide Leslie Lampert et al., The Byzantine Generals Prob-
lem, in ACM Transactions on Programming Languages and Systems, Vol. 4, n.º 3, Julho-1982, pp. 382-401,
pp. 382 ss.

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Blockchain e smart contracts: tecnicidades e qualificação jurídica
Amanda Bezerra Bassani

jurídicas. Ele possui contornos específicos que deverão ser esclarecidos propriamente. Do
mesmo modo, a sua característica imutabilidade deverá ser compreendida com restrições.

1.1.  Consenso
O consenso na blockchain é alcançado por diferentes mecanismos de votação, porém
nenhum deles envolve um acordo humano, como é possível subtender. Não há juízo de valor
sobre o conteúdo da transação, tampouco sobre seus aspetos formais. Trata-se meramente
de um processo de verificação algorítmica que permite determinar se o bloco e as respetivas
transações nele inseridas preenchem os requisitos de segurança e de coerência da cadeia. O
consenso limita-se à decisão sobre a validade técnica (não jurídica) dos blocos e transações.
Na Ethereum, por exemplo, o consenso ocorre quando a maioria da rede aceita como
válido o valor hash8 encontrado por um dos peers para o bloco em questão. Em nada se
assemelha, por exemplo, ao acordo entre as partes sobre as cláusulas contidas em um contrato,
tratando-se apenas de uma holocracia algorítmica.

1.2.  Imutabilidade
A imutabilidade da blockhain não pode ser compreendida como uma característica que
diz respeito ao conteúdo das transações. Ela não se estende e nem confere definitividade ao
estado das coisas ou das situações. A imutabilidade nesse contexto refere-se apenas à sua
capacidade de conservar cronológica e permanentemente seus registros, tendo em vista que
a partir do momento que determinado bloco é adicionado à cadeia ele não é mais passível
de alteração ou remoção. Um dado inserido num bloco da cadeia lá remanescerá de modo
imutável, pois a blockchain só se move em uma direção, sempre para frente.
Dessa forma, quando se fala em imutabilidade no âmbito da blockchain, deve-se
compreendê-la em um sentido restrito. Um registo após inserido não poderá ser alterado, mas
o estado da coisa ou da situação que o registo representa sim. Nada impede que seja inserida,
em momento posterior, uma nova transação a alterar o estado de algo que já foi objeto de
transações anteriores, o que ficará igualmente registado.

2. Smart contracts: sentido técnico e sentido jurídico


A conceção de smart contracts, que é atribuída a Nick Szabo, pré-data à criação
da blockhain9, embora apenas com advento desta é que aqueles ganharam notabilidade,
captando um intenso interesse comercial e ampliando o seu escopo de utilização.
Após a Bitcoin, várias plataformas descentralizadas que fazem uso da tecnologia
blockchain começaram a despontar. Em 2014, surgia a Ethereum, uma blockchain pensada

8
O valor hash consiste numa chave com uma longa sequência de números e caracteres, que fornece
uma identificação única para cada bloco.
9
Nick Szabo, Smart Contracts: Building Blocks for Digital Markets, 1996, disponível em http://
www.fon.hum.uva.nl.

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Blockchain e smart contracts: tecnicidades e qualificação jurídica
Amanda Bezerra Bassani

para o desenvolvimento e execução de smart contracts. Foi Vitalik Buterin, criador dessa
plataforma, ao retomar expressamente a terminologia empregada por Szabo em 1996, o
responsável por colocar os smart contracts no epicentro de novas discussões10.
Com a publicação do white paper da plataforma, Buterin apresentou um novo conceito
de smart contracts, distinto e muito mais técnico do que as concepções inaugurais de Szabo.
Aliás, pode-se mesmo afirmar que o smart contract idealizados por Buterin tornou-se um
objeto substancialmente distinto daquele idealizado por Szabo.
Se para Szabo os smart contracts eram “a set of promises, specified in digital form,
including protocols within which the parties perform on these promises”11, para Buterin, eles são
“cryptographic ‘boxes’ that contain value and only unlock it if certain conditions are met”12.
Neste último, a despeito do que a terminologia empregada possa induzir, não há
qualquer referência a elementos jurídico-contratuais; trata-se apenas de um programa ou
script autoexecutável13; de softwares autónomos alojados na blockchain capazes de executar
transações automaticamente (que podem ser contratuais ou não), seguindo um comando
previamente programado.
Portanto, o universo dos smarts contracts das ciências computacionais é muito mais
amplo do que o contratual e nem sempre estarão correlacionados. Quando se afirma que
smart contracts não são verdadeiramente contratos, não podemos, por conseguinte, afastar
categoricamente essa asserção. Dependerá do âmbito da análise.
Em vista disso, não é possível fazer generalizações ou assumir que todos os smart
contracts possuem a mesma natureza. Faz-se imprescindível antes de qualquer análise jurídica
acerca dos smart contracts que se tenha em mente uma distinção clara entre o sentido técnico
empregado nas ciências da computação e o seu sentido jurídico.

3. Qualificação jurídica
No sentido jurídico, o smart contract, que aqui designaremos de smart legal contract14,
pode ser definido como um acordo digital que possui em seu núcleo um algoritmo que se
autoexecuta na blockhain quando verificadas as condições nele previstas.

10
Cf. Eliza Mik, Smart Contracts: Terminology, Technical Limitations and Real World Complexity,
cit., pp. 275-276, afirmando que “[t]he original bitcoin paper did not envisage smart contracts and did not
use the blockchain for anything else than the generation and transfer of tokens. In contrast, the Ethereum
blockchain that was specifically developed to enable smart contracts”; Vide, também, Vitalik Buterin, A
Next-Generation Smart Contract and Decentralized Application Platform (white paper), 2014, disponível
em https://github.com/ethereum.
11
Nick Szabo, Smart Contracts: Building Blocks for Digital Markets, 1996, disponível em http://
www.fon.hum.uva.nl.
12
Vitalik Buterin, A Next-Generation Smart Contract and Decentralized Application Platform
(white paper), cit.
13
Idem.
14
Emprega essa terminologia Eliza Mik, Smart Contracts: Terminology, Technical Limitations and
Real World Complexity, cit., pp. 273-274.

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Blockchain e smart contracts: tecnicidades e qualificação jurídica
Amanda Bezerra Bassani

Embora a definição pareça simples, a assimilação, no âmbito do direito contratual, das


transações realizadas na blockchain por um smart legal contract, envolve um grande esforço
interpretativo. De modo geral, os regimes jurídicos não foram pensados para um cenário em
que as transações são realizadas em uma plataforma governada por códigos computacionais,
imutável, desenvolvida com uma infraestrutura open source15 e que, frequentemente, não é
controlada por nenhuma empresa ou pessoa16.
Ademais, torna esse cenário ainda mais complexo o facto de que os smart legal contracts
podem representar duas situações distintas: um contrato inaugural celebrado, diretamente ou
por intermédio de uma plataforma, na blockchain (sem correspondência a um contrato escrito
paralelo)17; ou um contrato que corresponde a uma versão em linguagem binária de outro já
existente no mundo real.
Embora a última situação represente a noção mais difundida de smart contract, a
primeira situação é a que ocorre com mais frequência, representando as operações mais
comuns na blockchain. Essas operações são as que mais se compatibilizam com a celeridade
do cibermundo. Contudo, a sua automaticidade e a ausência de um acordo prévio prevendo a
utilização de smart contracts fazem surgir o questionamento se essas operações permitiriam
a configuração de um contrato jurídico que reflete uma real manifestação de vontade humana,
o que, em caso negativo, resultaria na falta de vinculatividade desses contratos18.
Quanto a este aspeto esclarecemos que a imputação à vontade humana não depende
necessariamente da existência de um acordo prévio. Por exemplo, a ação de realizada

15
Segundo Angela Walch, The Bitcoin Blockchain As Financial Market Infrastructure: A Conside-
ration of Operational Risk, in New York University Journal of Legislation and Public Policy, Vol. 18, 2015,
pp. 837-893, p. 875, um software open-source é desenvolvido de forma colaborativa e aberta, disponibili-
zado por meio de um contrato de licença que concede aos usuários o acesso e a autorização para alterar o
respetivo código fonte. Afirma, ainda, que a publicação integral do código possibilita que desenvolvedores
façam, por iniciativa própria, melhorias ou consertem erros no software. Esses desenvolvedores normal-
mente fazem isso de forma altruísta ou como meio de melhorar a própria reputação.
16
Nomeadamente no que concerne às blockchains públicas ou de acesso aberto (permissionless
blockchains). Essas blockchains são criadas por um grupo de desenvolvedores voluntários espalhados por
diversos países, tal como ocorre, por exemplo, nos casos Ethereum e Bitcoin. Há, no entanto, blockchains
privadas (permissioned blockchains) projetadas por grupos privados de empresas para a partilha de infor-
mações e transações, por exemplo, nos casos Hyperledger (Linux Foundation) e Corda (R3 Consortium).
Nesse sentido, Kevin Werbach, Trust, but verify: why the blockchain needs the law, Berkeley Technology
Law Journal, Vol. 33, n.° 2, pp. 487-550, pp. 498-499.
17
O Accord Project (https://www.accordproject.org), por exemplo, é uma plataforma criada com
uma interface mais amigável que disponibiliza uma gama de templates de smart contracts para os seus
usuários, facilitando a criação de contratos por quem não possui um conhecimento mais profundo de pro-
gramação.
18
Hugo Ramos Alves, Smart contracts: entre a tradição e a inovação, in Fintech, Novos Estudos
sobre a Tecnologia Financeira, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2019, pp 181-216, p. 205, afirma que a vincu-
latividade do smart contract depende de um acordo prévio entre as partes. Afirma que “o smart contract
carece de programação. Ergo, apenas será um vero contrato – mesmo na hipótese de ambas as partes recor-
rerem a programação – na eventualidade de ser precedido de um concreto acordo prevendo a sua utilização.
O recurso ao smart contract deve ser imputado à vontade humana”.

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Blockchain e smart contracts: tecnicidades e qualificação jurídica
Amanda Bezerra Bassani

pelos usuários de assinar a transação com a sua respetiva chave privada e única, inserindo
voluntariamente um smart contract na blockchain19 já seria suficiente para expressar a
manifestação de vontade de um contrato celebrado diretamente na blockchain.
Embora todos os smart contracts guardem as mesmas características elementares (i.e.,
autoexecutoriedade, imutabilidade, linguagem binária etc.), as situações conformadoras
subjacentes, como podemos observar, são heterogéneas, levantando questões específicas
que demandam um grande esforço interpretativo para enquadrá-las nas estruturas jurídicas
pré-existentes. Estender a qualificação contratual a um acordo formalizado em código
computacional inserido na blockchain é possível, desde que os requisitos gerais de formação
e conclusão do negócio jurídico sejam observados. Com efeito, esta análise, que deverá ser
realizada caso a caso, exige-nos que revisemos aqueles requisitos, mas isso não nos parece
ser uma dificuldade insuperável.
Por fim, releva notar que os smart contracts não configuram um novo tipo contratual;
são, antes, uma nova forma contratual que pode transfigurar-se em diferentes tipos, desde que
estes sejam suscetíveis de expressão em código.

4. Considerações finais
O ecossistema da blockchain incorpora um modus operandi e características peculiares
em comparação às plataformas tradicionais. Essas tecnicidades da blockchain são, com alguma
frequência, objeto de equívocos quando sua análise é transportada para o mundo jurídico. O
consenso, utilizado para a validação das transações, e a imutabilidade, por exemplo, possuem
significação própria no âmbito da blockchain e não devem ser assimilados nos moldes das
concepções tradicionais.
As transações realizadas na blockchain incorporam simbioticamente as características
dessa plataforma, como é o caso dos smart contracts. Estes, como pudemos observar,
podem corresponder apenas a um script autoexecutável, sem quaisquer elementos jurídico-
contratuais, como também a verdadeiros contratos.
Em relação a estes últimos, a qualificação como contratos em sentido estrito esbarra em
algumas dificuldades, sobretudo, decorrentes da insuficiência dos atuais regimes jurídicos para
compreender a novel realidade trazida pela blockchain. Embora não possa ser estabelecida de
forma generalizada, a qualificação dos smart contracts como contratos jurídicos é possível. A
análise deverá ser feita numa base casuística e exige que revisemos institutos já consagrados
no Direito Contratual, o que não nos parece ser uma dificuldade insuperável, desde que
tenhamos uma compreensão mais aprofundada acerca das suas tecnicidades.

19
Nesse sentido, Martin Heckelmann, Zulässigkeit und Handhabung von Smart Contracts, in
NJW, 8/2018, pp.504-510, pp. 505-506, afirmando que as declarações de vontade são entregues na blo-
ckchain através da assinatura da própria declaração com a chave privada. Também nesse sentido, Chris-
tian Schönfeld, Smart Contracts under Swiss law, in The Fintech Edition, Vol. 1, 2018, p. 13.

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Blockchain e smart contracts: tecnicidades e qualificação jurídica
Amanda Bezerra Bassani

Referências bibliográficas
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Innovation and Entrepreneurship, Vol. 11, n.° 3, 2017, pp. 286-300.
Elrom, Elad, Ethereum Wallets and Smart Contracts, in The Blockchain Developer, Apress, Berkeley,
2019, pp. 173-212.
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Hurlburt, George, Might the Blockchain Outlive Bitcoin? in IT Professional, vol. 18, n.° 2, 2016, pp.
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Schönfeld, Christian, Smart Contracts under Swiss law, in The Fintech Edition, Vol. 1, 2018.
Shaikh, Zaffar / Lashari, Intzar, Blockchain Technology the New Internet, in International Journal of
Management Sciences and Business Research, Vol. 6, n.º 4, 2017, pp. 167-177.
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Werbach, Kevin, Trust, but verify: why the blockchain needs the law, in Berkeley Technology Law
Journal, Vol. 33, n.° 2, pp. 487-550.

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Indústria 4.0 e o desafio da dignidade do
trabalhador na constituição brasileira de 1988

Leonardo da Costa Carvalho1

Resumo: O objetivo do presente trabalho é traçar um paralelo entre o conceito de dignidade da


pessoa humana da Constituição Brasileira de 1988, tendo como base a premissa de que a tecnologia,
especialmente os modelos de economia sob demanda, tanto on-line, quanto off-line, vem substituindo a
mão-de-obra operacional e precarizando o trabalho. Após conceituar as questões envolvendo a indústria 4.0
e os novos modelos de trabalho surgidos nos últimos anos, veremos que grande parte dos empregos com
jornada de trabalho fixa e posto de trabalho, estão diminuindo drasticamente. Embora a tecnologia tenha
proporcionado maior independência para execução das tarefas de qualquer lugar no mundo, bem como
maiores oportunidades de divulgação do trabalho, é certo que criou uma maior concorrência e precarização
quanto aos valores contraprestados pelo trabalho. O artigo destaca alguns indicadores e exemplos de
aplicativos que criaram este sistema de trabalho, apontando algumas posições de autores na área do direito
do trabalho, os quais criticam tal evolução. Ao final, sugere o artigo qual poderia ser o melhor caminho
para se evitar um colapso na economia em um futuro breve, eis que embora novos empregos possam
surgir, exigirão maior qualificação profissional. Assim, quer seja em razão do desemprego generalizado
e inutilidade da mão-de-obra, quer seja pela ausência de perspectivas para que o trabalhador possa se
qualificar profissionalmente, o tema é de grande relevância para discussão.
Palavras-chave: Desemprego; Dignidade da pessoa humana; Tecnologia; Trabalho.

Abstract: The purpose of this article is to connect the concept of human dignity of the Brazilian
Constitution of 1988, based on the premise that technology, especially on-demand economics models, both
online and offline has been replacing operational labor and making work precarious. After conceptualizing
the issues involving industry 4.0 and the new work models that have emerged in recent years, we will see
that a large part of the jobs with fixed shift hours and jobs venues are decreasing dramatically. Although
technology has provided greater independence for the execution of tasks from anywhere worldwide, as well

1
Analista de Sistemas e Advogado formado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, sócio da
área trabalhista e previdenciária do BVA - Barreto Veiga Advogados, Pós-graduando em Direito do Tra-
balho pela PUC-SP e Pós-graduado em Direito Previdenciário pela Faculdade Legale. E-mail leo_ccarva-
lho@hotmail.com

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Indústria 4.0 e o desafio da dignidade do trabalhador na constituição brasileira de 1988
Leonardo da Costa Carvalho

as greater opportunities for the dissemination of work, it is certain that it has created greater competition
and precariousness regarding the values paid for work. The article highlights some key indicators and
examples of applications that created this work system, pointing out some positions of authors in the area
of labor and employment law, who criticize this evolution. In the end, the article suggests what could be
the best way to avoid a collapse in the economy in the near future, since, although new jobs may arise, they
will require greater professional qualification. Thus, whether due to widespread unemployment and the
uselessness of the workforce, or because of the lack of perspectives for the worker to qualify professionally,
the topic is of great relevance for discussion.
Key Words: Dignity of human being; Job; Technology; Unemployment;

Introdução
É do ser humano desejar ser importante, fazer parte de algo, ter sua contribuição
reconhecida qualquer que seja a dimensão da comunidade na qual a pessoa está inserida,
como no ambiente familiar, de amigos, do trabalho, da escola, da faculdade, da associação
de bairro ou em proporções maiores, como do país, de uma organização governamental e até
mesmo globalmente. Independentemente da proporção que estamos falando, o trabalho é a
ferramenta chave para alcançar este impacto nas pessoas que nos circundam.
Este conceito é inclusive a base principiológica constante do artigo 1º da Constituição Federal
do Brasil, quando elenca em seus incisos, além da soberania, cidadania e pluralismo político, os
elementos de dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.
Por outro lado, nunca a forma como desenvolvemos nosso trabalho sofreu tantas
alterações, como nos últimos 20 anos, com a evolução da tecnologia.
Se antes as estruturas eram muitos mais rígidas, com a grande maioria das pessoas
cumprindo uma jornada de trabalho fixa, deslocando-se para o local de trabalho a fim de
cumprir a sua função e retornando para a casa ao final dela, atualmente, máquinas ocupam
grande parte deste espaço e, a depender de qual profissão exercemos, podemos desenvolve-
las praticamente de qualquer local do mundo.
A organização do trabalho também se alterou, estando cada vez mais horizontal, isto é,
com pessoas cada vez mais “donas de seu próprio negócio”. A questão que preocupa é se haverá
espaço para todos no futuro ou se é possível garantir a empregabilidade e mão-de-obra útil.
Com efeito, este estudo abordará o conceito de dignidade da pessoa humana previsto no
ordenamento Constitucional Brasileiro, a tecnologia como ferramenta de substituição de mão-
de-obra e achatamento de salário, sugerindo qual poderia ser o caminho para um equilíbrio
entre dignidade, trabalho e tecnologia. O tema é de grande importância, visto que o trabalho
evoluiu e não há como pleitearmos um retorno ao passado.

1. A dignidade da pessoa humana segundo a Constituição de


1988
A Constituição Federal do Brasil, dispõe em seu Art. 1º, como fundamento do Estado
Democrático de Direito, dentre outros, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do
trabalho e da livre iniciativa.

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Indústria 4.0 e o desafio da dignidade do trabalhador na constituição brasileira de 1988
Leonardo da Costa Carvalho

Combinando as referidas premissas, temos que o princípio se constitui em oferecer a


todos um padrão mínimo de qualidade de vida, com direitos humanos básicos, em que o
cidadão possa trabalhar, ter educação, saúde, alimentação, moradia, transporte, segurança,
lazer, previdência social, dentre outros que serviram de base para a Declaração Universal de
Direitos Humanos de 10 de dezembro de 1948.
Conforme preleciona a atual Ministra do Supremo Tribunal Federal do Brasil, Cármen
Lúcia (ROCHA, 2012), o justo princípio da dignidade da pessoa humana emergiu como forma
de assegurar que não haja degradação e desumanização da convivência, especialmente após
o que foi visto com a experiência do Holocausto.
Dentro deste cenário, o trabalho é a força motriz para que o Estado arrecade tributos, o
trabalhador perceba uma remuneração como contraprestação e possa gastá-lo durante o seu
tempo livre, para que a economia se mova, gerando um ciclo de prosperidade e manutenção
condições básicas enumeradas.
Por sua vez, o trabalho e a sua proteção, consumou-se como um dos mais eficazes
instrumentos de gestão e moderação para atenuação das distorções sócio econômicas do
capitalismo (DELGADO, 2019).
Dito isto, passamos a abordar o conceito da indústria 4.0, como o principal motivo para
a substituição de mão de obra e precarização do trabalho.

2. A indústria 4.0 substituirá mão-de-obra e precarizará os


trabalhos operacionais?
Quanto a definição dos conceitos sobre a indústria 4.0, trata-se de termo primeiramente
cunhado na Alemanha, através de um projeto estratégico usado pela primeira vez na Feira de
Hannover 2011, conceituando o momento em que a tecnologia, por meio de ferramentas de
informática, inteligência artificial, e robótica, consegue gerar produtos e serviços disruptivos
dos trabalhos tradicionais.
Estas mudanças passam a ser feitas por conexões através de plataformas de crowdworking
e a chamada econômica GIG, na qual as pessoas deixam de ter o emprego tradicional e passa
a realizar pequenas tarefas temporárias, para demandas que possam surgir do mundo todo,
quer seja através de robôs, os quais por meio de inteligência artificial, realizam e aprender
tarefas que são repetitivas e anteriormente realizadas por operadores com menor grau de
escolaridade (SIGNES, 2017).
O termo GIG tem a origem no Jazz, utilizado para definir um compromisso com os
músicos para uma apresentação específica e, trazendo para o ambiente corporativo geral,
traduz-se em contratos de trabalho de tempo certo, para tarefas específicas e sem vínculo
empregatício (BARBOSA JUNIOR, 2019).
Neste sentido, conforme estudo da PwC (PRICEWATERHOUSE COOPERS, 2017),
assim como ocorreram com as telefonistas, as locadoras de filmes, os aparelhos off-line de
GPS, compensadores de cheque, até o ano de 2030, sobretudo nos países mais desenvolvidos,
até 31% dos empregos tenderão a desaparecer.

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Indústria 4.0 e o desafio da dignidade do trabalhador na constituição brasileira de 1988
Leonardo da Costa Carvalho

Adicionalmente, haja vista que determinadas atividades tecnológicas passaram a ter


competidores com acesso a prover os serviços de forma global, como por exemplo, os mais de
3.000 serviços listados na Amazon TURK, Microtask, Task Rabbit e ClickWork, envolvendo
desde edição de vídeo, criação de logo, desenvolvimento de websites, até elaboração de
estudos de mercado e pesquisas de satisfação, houve um substancial aumento da concorrência,
o que faz com que os preços pagos pelo serviços sofram redução (SIGNES, 2017).
Os únicos serviços que ainda deterão uma certa limitação, são os serviços da economia GIG
off-line, pois para serem exercidos, embora a conexão seja feita por meio digital, é imperioso
que o prestador da atividade esteja no local. Para ilustrar a questão, podemos mencionar
o caso dos aplicativos de transporte de pessoas (UBER, Lyft, 99 e Cabify), aplicativos de
serviços de beleza (Singu), aplicativos de serviços para veículos (Easycarro), aplicativos de
logística e entrega (Loggi, Movile, Glovo, Rappi), aplicativos na área de entregas de comida
(James, Ifood e UberEats). Ressalta-se, contudo, que uma profissional do ramo de beleza, na
qual competia apenas com outras de um bairro ou circunscrição, agora para a ter um maior
range de oferta de serviços e competidoras.
Por outro lado, é notório que foram criados outros vários empregos que sequer existiam
há 10 anos atrás, especialmente na área de desenvolvimento de aplicativos móveis, para
celulares e tablets. É neste ponto que poderemos encontrar a solução para o equilíbrio entre o
trabalho e o capital, com profissões que sequer imaginamos atualmente.
Entretanto, para que surjam tais trabalhos, se faz necessário investimento acentuado
na área de pesquisa e desenvolvimento, bem como necessidade de educação e preparação
do profissional. Jayr Figueiro de Oliveira e Antônio Vico Magalhães, citados pelo professor
Jouberto Cavalcante concordam com esta linha de raciocínio:

“O progresso técnico pode ser ao mesmo tempo fonte de crescimento e, portanto,


de empregos, e origem de elevação de produtividade, que permitiria a supressão
de postos de trabalho. Mas a inovação tecnológica e a elevação da produtividade,
ao mesmo tempo que destruiriam produtos, empresas, atividades econômicas e
empregos, também poderiam criar novos produtos, novas empresas, novos setores e
atividades econômicas e, portanto, novos empregos”.

Ressalta-se que a inovação tecnológica é também uma ferramenta de dominação de modo


que a ausência de produção de conteúdo neste sentido, poderá criar ainda mais barreiras para
garantir a mão-de-obra útil, incorrendo no desemprego tecnológico (CAVALCANTE, 2018).

3. Há como mantermos equilíbrio entre o trinômio


dignidade, trabalho e tecnologia?
O homem sempre foi um ser curioso, inquieto e cheio de ideias, tendo essa sido a causa
que nos conduziu até o presente momento da humanidade, com um exponencial acesso à
informação, evolução, mobilidade e oportunidades. Como fato incontestável, temos que há
cerca de 15 anos, eram simplesmente impensáveis determinadas profissões, como motorista
de aplicativos e influenciador digital de produtos.

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Indústria 4.0 e o desafio da dignidade do trabalhador na constituição brasileira de 1988
Leonardo da Costa Carvalho

Neste contexto, com a chegada da indústria 4.0, muito além da busca do propósito no
trabalho, fato este pregado por muitos pesquisadores da área, é preciso estar preparado para
manter-se útil, pois os robôs são uma realidade e, em seu dia a dia, vem substituindo mão-de-
obra, podendo exercê-lo com menor incidência de erros.
Conforme podemos verificar no estudo da Visual Capitalist (VISUAL CAPITALIST,
2018), o acesso e divulgação para que uma tecnologia alcance 50 milhões de usuários, serve
como ferramenta de avaliação do que é esperado. Como exemplo, vemos que os computadores
levaram 15 anos para alcançar 50 milhões de usuários, ao passo que o aplicativo Facebook,
levou apenas 3 anos e o jogo para celular PokemonGo, apenas 3 dias.
Consequentemente, os que os governantes necessitam é oferecer educação de qualidade e
fomento para a pesquisa científica, evitando-se um colapso das economias no futuro, focando
em qualidade, posto que cada vez mais exige-se um melhor preparo para entender como os
novos sistemas se operacionalizam.
Através da educação, pessoas continuarão criando oportunidades de trabalho, com novas
tecnologias, como ocorre hoje com os celulares que simplesmente abarcaram funções do
passado, específicas de uma máquina autônoma ou produto, inserindo em único dispositivo
a calculadora, jornal, livros, máquina fotográfica, guia de ruas, câmera de vídeo, agenda de
contatos, agenda de atividades, caneta, lanterna, despertador, dentre outros.
O professor Jorge Souto Maior sugere que seja estabelecida na lei, uma relação de
prestações pessoais que deveriam estar inseridas dentro do direito de trabalho, mencionando
profissionais liberais, autônomos e consultores externos, de forma que o direito do trabalho
deixe de centrar-se no contrato de trabalho e para centrar-se na pessoa que trabalha (MAIOR,
2017).
Ouso discordar deste posicionamento do Professor, visto que mais regulação neste
sentido, apenas dificultará a evolução e a perda de competividade para outros países, criando
um novo problema ao invés de resolvê-lo.
A grande questão envolvida é estar ciente de que nem todo o desenvolvimento em
pesquisa cria algo rentável e tangível de imediato, sendo certo que muitas vezes a curva de
aprendizado demanda anos de pesquisa. Este receio não pode servir de fundamentação para
frear a evolução, alegando-se simplesmente que empregos serão perdidos.
Uma vez gerada novas oportunidades por meio de pesquisa científica, fundamentadas
na educação, o equilíbrio entre a dignidade, o trabalho e a tecnologia, surgirá naturalmente,
assim como já ocorrido outrora em outras revoluções industriais.

Conclusão
Com base nos pontos alegados acima, temos que atualmente a evolução tecnológica
caminha rapidamente para a substituição de mão-de-obra nas atividades operacionais comuns,
bem como para expandir a concorrência entre serviços on-line, ampliando a gama de oferta
de serviços, por meio dos aplicativos relacionados às econômicas de compartilhamento.

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Indústria 4.0 e o desafio da dignidade do trabalhador na constituição brasileira de 1988
Leonardo da Costa Carvalho

Entretanto, é verdade que tais tecnologias também geram novas oportunidades e novos
empregos. O fato é que para que trabalhadores tenham acesso a geração, manipulação
e produção de conteúdo com as novas tecnologias, exige-se cada vez mais qualidade e
especialização, obtidas por meio da educação.
A falta de avaliação destes preceitos, ensejará e confirmará as inúmeras previsões já
existentes, resultando em um cenário de caos, com pessoas inúteis e sem perspectivas. Por
conseguinte, desaparece a dignidade da pessoa humana, debatida no presente estudo.
Os efeitos poderão ser desastrosos. Logo, é preciso desenvolver a empregabilidade, com
objetivos mais amplos e de longo prazo. Outrossim, se faz necessário aproveitar a própria
tecnologia para a educação, criando-se uma cultura de divulgação de inúmeros aplicativos e
sites que hoje, sem qualquer custo, educam e preparam profissionais, fomentando ferramentas
de ensino à distância.
Deste modo, com melhores condições de educação, a própria sociedade terá condições
de balancear distorções e encontrar um equilíbrio, para que possamos continuar seguindo o
caminho natural da evolução do homem. O chamado pêndulo entre o capital e os direitos
sociais, o qual ora está mais tendencioso para o lado do capital e ora está mais tendencioso
para o lado do trabalho, é algo natural. Ao menos no Brasil, o pêndulo está na direção do
capital atualmente.
Todavia, é preciso desconstruir a mera ideia de caos. Um trabalho digno é resultado de
uma educação digna. Com esta premissa, é fundamental que nossos governantes direcionem
recursos para a melhoria da educação, haja vista que os resultados somente começarão a surtir
efeitos substanciais, ao menos após a completude de um ciclo envolvendo ensino fundamental,
médio e superior.
Negar o fomento ao desenvolvimento, como a história já mostrou por diversas vezes,
será um tremendo retrocesso, posto que nações poderão tornar-se obsoletas, subordinando-
se tecnologicamente à outras, em razão da precariedade e desprezo com o qual trataram o
tema.
Por fim, a mudança faz com que muitos se sintam ameaçados, pois tiram as partes
envolvidas da zona de conforto. No entanto, havendo condições de preparação e acesso para
novas tecnologias que sequer foram descobertas, todos terão espaço para exercerem sua
dignidade, não sendo apenas uma mera visão otimista, mas sim a concretude da evolução que
nos fizeram chegar até os dias atuais, bastando ainda o equilíbrio e respeito à dignidade da
pessoa humana.

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trabalhista aos vínculos de trabalho na nova economia. São Paulo: LTr, 2019.
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www.visualcapitalist.com/how-long-does-it-take-to-hit-50-million-users/. Acesso em: 20 fev.
2020.

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Tributos contidos no preço:
divulgação nos documentos fiscais
– elevada tributação do consumo – verdadeira
medida dos tributos nos preços em geral

Eduardo Marcial Ferreira Jardim1

Resumo: O Estudo in casu preordena-se a empreender reflexões sobre o tema proposto, fazendo-o a
partir de uma visão de neutralidade em relação à chamada economia disruptiva. Com efeito, quer-se demostrar
uma série de matizes e intercorrências com relação aos tributos imersos no preço, independentemente
da repercussão das inovações tecnológicas e outros desdobres imersos na aludida fórmula de economia.
Verdade seja, conquanto a novel modalidade econômica possa propagar consequência também no Direito,
o presente trabalho focaliza aspectos permanentes no universo da tributação. Destarte, será questionada
a tributação contida no preço sob a óptica da divulgação de sua quantificação no documento fiscal, bem
como será analisada a elevada carga fiscal do consumo no direito brasileiro, senão também será mensurada
a verdadeira dimensão dos tributos em sua relação com o preço e com o Produto Interno Bruto.
Palavras-Chave: Economia disruptiva - Tributação – Preço – Carga Tributária- Contribuinte - Consumidor.

Abstract: The In-casu Study is designed to undertake reflections on the proposed theme, based on a
view of neutrality in relation to the so-called disruptive economy. In effect, we want to demonstrate a series
of nuances and complications in relation to taxes immersed in the price, regardless of the repercussions of
technological innovations and other developments immersed in the mentioned formula of economics. True,
although the new economic modality may also have consequences in law, the present work focuses on
permanent aspects in the universe of taxation. Thus, the taxation contained in the price will be questioned
from the perspective of disclosing its quantification in the tax document, as well as the high tax burden of
consumption in Brazilian law will be analyzed, otherwise the true dimension of taxes in relation to the price
will also be measured. and with the Gross Domestic Product.
Keywords: Disruptive economy - Taxation - Price - Tax burden - Taxpayer - Consumer.

1
Author: Eduardo Marcial Ferreira Jardim (Master and PhD in State Law at the Pontifical Catholic
University of São Paulo and Full Professor at the Faculty of Law at Mackenzie Presbyterian University in
São Paulo / Brazil) Affiliation: Mackenzie Presbyterian University.

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Tributos contidos no preço: divulgação nos documentos fiscais
Eduardo Marcial Ferreira Jardim

1. INTRODUÇÃO
Consoante o título indica, o presente Estudo predetermina-se a realizar uma abordagem
sobre o dever dos contribuintes no sentido de discriminar o valor dos tributos no documento
fiscal, como quer a legislação do Brasil, dentre outros países, focalizando, outrossim, a
elevada tributação do consumo no direito brasileiro, demonstrando, ao final, a verdadeira
quantificação da carga tributária em contraposição ao entendimento convencional, conforme
padrão adotado no cenário internacional, o qual, diga-se, à vol d’oiseau, afigura-se
decididamente equivocado.

2. POSITIVAÇÃO DA MATÉRIA NO PLANO CONSTITUCIONAL,


LEGISLATIVO E ADMINISTRATIVO.
O presente item versa sobre a normatização do assunto no direito brasileiro, fazendo-o
de modo objetivo e sucinto, trazendo à colação, pois, as disposições que determinam seja
feita a discriminação e a quantificação dos tributos no documento fiscal, bem assim, as regras
constitucionais que priorizam a incidência dos tributos sobre o patrimônio e a renda e não o
consumo, conforme dispõe a legislação.
Por óbvio, não há, nem poderia haver, legislação sobre o modo de calcular a percentagem
dos tributos contidos no PIB ou nos preços de mercadorias e serviços, pois trata-se de matéria
situada no âmbito teórico, mercê de sua própria natureza.

Tributos no documento fiscal


O dever de informar o valor dos tributos nos documentos fiscais encontra-se positivado
numa multiplicidade de diplomas normativos, desde o plano constitucional, passando pelo
legislativo e desaguando no regulamentar.
Com efeito, a Constituição Federal cuida do assunto por meio do disposto no art. 150, §
5º, in verbis:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à


União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: […]
§ 5º - A lei determinará medidas para que os consumidores sejam esclarecidos
acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias e serviços. (grifos nossos).
(BRASIL, 1988, online).

Já no patamar legislativo a matéria é basicamente versada pela Lei n. 12.741, de 10 de junho


de 2010, bem como no Código de Defesa do Consumidor consubstanciado na Lei n. 8.078, de
11 de setembro de 1990. Outrossim, no campo administrativo ou regulamentar o assunto foi
disciplinado pelo Decreto n. 8.264, de 6 de junho de 2014, da lavra do Presidente da República.
Tais disposições mereceram comentos elogiosos de Robson Maia Lins que as qualifica
como um desdobre do direito à informação consubstanciado num instrumento de transparência
na gestão pública tendente a melhorar a democracia (2019, p. 210).

— 560 —
Tributos contidos no preço: divulgação nos documentos fiscais
Eduardo Marcial Ferreira Jardim

Relatividade eficacial da legislação in casu


Verativamente, resta evidente que a legislação sobre o assunto deveria implementar a
determinação constitucional e, nesse sentido, criar mecanismos para que o consumidor tenha
conhecimento do valor dos tributos incidentes nos preços das mercadorias e dos serviços em
que ele seja o adquirente ou o utente.
Entrementes, não é o que ocorre na realidade, pois a legislação se limita a exigir uma
formalidade que não alcança o desiderato firmado no Texto Magno. Deveras, o legislador
instituiu mais uma obrigação de fazer que não passa de uma providência burocrática de pouca
ou nenhuma valia em relação ao seu escopo programático.
A propósito, as mercadorias em geral não estampam o valor da tributação nelas contido,
máxime porque a lei estipula que essa exigibilidade deve ser anotada no documento fiscal,
o qual, mercê de sua complexidade, é destinado à contabilidade e ao Fisco, cabendo ao
consumidor apenas exigir o documento para comprovar a operação e para evitar a sonegação
tributária, nada mais.
Assim, embora a nota-fiscal ou o cupom eletrônico contenham os dados da tributação,
tal informação é meramente técnica e não se afigura tão clara para o consumidor. Pior ainda
ocorre no caso de cupom eletrônico, o qual discrimina o valor dos tributos em letras diminutas
e, por isso mesmo, não realizam o seu propósito. Aliás, o singelo compulsar cupons eletrônicos
seria o bastante para comprovar o asserto ora firmado e mostrar que o mecanismo adotado
está distante de conseguir o seu desideratum.
Melhor seria se o litro de leite, por exemplo, tivesse o valor da tributação impresso em
letras visíveis e em destaque, simpliciter et de plano. Não interessa ao consumidor distinguir
o Cofins ou o PIS ou o ICMS etc., mas, sim, a quantificação dos tributos no preço. Caso
seja vestuário ou veículo automotor ou quaisquer mercadorias que pela sua natureza não
comportem essa providência, daí, sim, o documento fiscal deveria destacar a importância
total dos tributos como forma de implementar a determinação constitucional.

3. TRIBUTAÇÃO EXCESSIVA DO CONSUMO NO BRASIL


De outra parte, a exorbitante tributação do consumo jaz numa legislação que afronta o
figurino constitucional, a exemplo de sua incompatibilidade com o art. 145, § 1, do Texto
Excelso, cujo comando prioriza a tributação do patrimônio e da renda, conforme será analisado
com mais detença na sequência deste tópico.
Não demasia dizer que o aludido modelo de tributação passa ao largo do primado da
igualdade, bem como afronta a dignidade da pessoa humana, senão também priva o cidadão
menos aquinhoado do mínimo vital e assim avante.
Como se vê, nesse item, existe uma normatização constitucional que é ultrajada no plano
legislativo ao longo do tempo, independentemente de matizes ou ideologia de quaisquer
governos que tivemos desde a instalação do sistema constitucional tributário ocorrida em

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Tributos contidos no preço: divulgação nos documentos fiscais
Eduardo Marcial Ferreira Jardim

dezembro de 1965, por meio da Emenda Constitucional n. 18, sucedida pelo Código Tributário
Nacional promulgado em outubro de 1966.
Deveras, é noção cediça que no direito pátrio a tributação do consumo é sobreposse
elevada, totalizando aproximadamente 70% da arrecadação tributária, conforme apregoado
pelo Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação, o que revela flagrante descompasso
com a tendência mundial.
Tanto assim é, que, ao contrário do Brasil, os países desenvolvidos e integrantes da OCDE
gravam o consumo de tal sorte que a arrecadação exprime com o máximo de 35%, convindo
destacar os bons exemplos dos Estados Unidos e do Japão, em que a referida tributação se
situa no patamar de 17% e 18% respectivamente.
Por sem dúvida, a exorbitante tributação do consumo representa um instrumento de
injustiça fiscal e social, pois os menos aquinhoados e os carentes suportam o mesmo ônus
que os mais abastados, visto que todas as classes sociais consomem mercadorias e serviços
imprescindíveis às suas necessidades básicas e rotineiras.
Ao propósito, merece lembrado o magistério de Louis Trotabas e Jean Marie que
inserem a capacidade contributiva na definição de imposto, o mesmo cabendo aos tributos
em geral. Vejamos, pois: “L’impôt est le procedé de répartition des charges budgétaires
entre les individus d’après leurs facultés contributives” (1985, p. 11, grifos nossos). Em
tradução livre: “O imposto é um procedimento de repartição de encargos orçamentários entre
os indivíduos de acordo com a sua faculdade contributiva” (grifos nossos).
Na doutrina estrangeira, merece também, o inesquecível ensinamento de Eusebio
González e Teresa Gonzáles Martínez que em estrita síntese versam o tema com a
denominação de capacidade econômica, a definem como a aptidão para concorrer para a
cobertura dos gastos públicos, ressaltando a impossibilidade lógica e constitucional de exigir
tributo de quem não tenha essa condição (2010, p. 46).
Não é sem razão que em obséquio ao mencionado postulado a Constituição Federal
prioriza a tributação do patrimônio e da renda ao invés do consumo, fazendo-o por meio do
disposto no art. 145, § 1º, a saber:

Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir


os seguintes tributos: […]
§ 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados
segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração
tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar,
respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos
e as atividades econômicas do contribuinte. (BRASIL, 1988, online).

Preliminarmente, é de mister veementizar que a regra não reveste eficácia programática,


como adverte Baleeiro, mas, hospeda, sim, natureza eficacial autoaplicável contida e,
portanto, suscetível de aplicação, desde logo, ainda que sujeita à produção de normas no
plano subconstitucional (1960, p. 337).

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Tributos contidos no preço: divulgação nos documentos fiscais
Eduardo Marcial Ferreira Jardim

Por outro lado, e apenas por argumentar, ainda que se atribua fisionomia programática
ao art. 145, § 1, mesmo assim, a regra haveria de produzir efeitos paralisantes a quaisquer
normas que se lhe contraponham, como ensina o eminente jurista Roque Carrazza (2017, p.
113).
Ante esses escólios, torna-se imperioso depreender que a tributação do consumo que
igualiza gregos e troianos descumpre o comando constitucional sob exame, convindo lembrar,
também, a memorável lição de Ruy Barbosa, que enfatizou os matizes mandamentais de
quaisquer normas constitucionais. São suas palavras:

Não há, numa Constituição, cláusula a que se deva atribuir meramente o valor moral
de conselhos, avisos ou lições. Todas têm a força imperativa de regras. (1933, p.
489).

Realmente, é induvidoso que o patrimônio e a renda exprimam signos reveladores de


capacidade contributiva, o qual merece ser conjugado com outros postulados constitucionais,
assim como a dignidade da pessoa humana, contida no art. 1º, inciso III, bem como a igualdade
prevista no caput do art. 5º e reproduzida especificamente no art. 150, II, no Capítulo da
Tributação e do Orçamento, senão também os direitos sociais enumerados no art. 6º do Texto
Magno.
Por todas as veras, não é necessário empreender um esforço de sobremão para
compreender que a alta incidência sobre o consumo compromete o desfrute dos direitos
sociais em relação aos menos afortunados, em especial no tocante à saúde, à alimentação, à
moradia, ao transporte e ao lazer, não resistindo, pois, a um contraste de constitucionalidade
sob esses múltiplos prismas. Demais disso, desponta um manifesto desprezo ao mínimo vital,
expressão consagrada nas obras de Regina Helena Costa, dentre as quais, “Princípio da
Capacidade Contributiva” (2012, p. 112).
Com referência ao princípio implícito do denominado mínimo vital, merece citada a
lição exemplaríssima de Vieira Andrade, para quem o Estado não é obrigado a assegurar
positivamente o mínimo vital à existência de cada cidadão, mas, por óbvio, não poderia retirar
o mínimo necessário à sua sobrevivência (1976, p. 388).
Força é dessumir que a questionada incidência no tangente ao consumo passa ao largo
do postulado da capacidade contributiva, configurando, pois, caráter confiscatório, consoante
prelecionado por Isabela Bonfá de Jesus (2014, p. 64). Como corolário dessa afirmação
depara-se evidenciado o caráter manifestamente inconstitucional desse critério de tributação,
afrontando, dentre outros já prefalados, o disposto no art. 150, inciso IV, da Constituição da
República, que veda a tributação confiscatória, senão vejamos:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à


União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: […]
IV - utilizar tributo com efeito de confisco; […] (BRASIL, 1988, online).

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Tributos contidos no preço: divulgação nos documentos fiscais
Eduardo Marcial Ferreira Jardim

Outrossim, ao gravar preponderantemente o consumo, a legislação desse jaez antolha-se


decididamente inconstitucional, sobre comprometer o arquiprincípio da segurança jurídica, o
qual reveste a feição de princípio dos princípios, como quer Paulo de Barros Carvalho ao
reconhecer que sua essência possibilita a previsibilidade dos efeitos do direito positivo, o que,
naturalmente, pressupõe o cumprimento da Constituição (2017, p. 173-174).
Na mesma trilha é a lição abalizada de Kiyoshi Harada que versou a matéria sob a
ótica tributária ao ensejo do XLI Simpósio Nacional de Direito Tributário e ressaltou que a
segurança jurídica em matéria tributária pressupõe a correta elaboração e aplicação de normas
estáveis e previsíveis, as quais devem estra em harmonia com os postulados constitucionais
que limitam o poder de tributar do Estado. (2019, p. 446).
Ao demais, retomemos a abordagem específica da incidência no consumo com o animus
de demonstrar o quão é elevada essa fórmula de tributação, mesmo conforme a concepção
tradicional que, a bem da verdade, é inexata e aquém da realidade.
Vejamos, pois, as altas percentagens de algumas mercadorias de utilização necessária à
população, a saber: gasolina, 43%; telefone celular, 39%; sapato. 36%; gravata, 35%; livro,
15%; microcomputador, 33%; relógio 55%; energia elétrica, 48%; cesta básica, 23%; arroz
e feijão, 15%; automóvel, 48% a 54%; vestuário em geral, 35%; telefonia, 39%; garrafa de
água mineral, 37%; refrigerante em lata, 46% a 47%; refrigerante em garrafa, 44,55%; cerveja
em lata ou garrafa, 55,60%; as imagens de Santos homenageados nos festejos juninos, caso
de Santo Antônio, São João e São Pedro, os quais não escapam da voracidade arrecadatória,
51.52%!. (Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributaçao,2019, on line).
Em veras, é necessário ponderar que tais discrepâncias não ecoam do sistema tributário
nacional constitucionalizado, mas, sim, da legislação que passa ao largo do Texto Magno.

4. DIMENSÃO EQUIVOCADA DA CARGA TRIBUTÁRIA E A


CORRESPONDENTE CORREÇÃO
Em consonância com observação contida na Introdução, este tópico tem por objetivo
demonstrar as cincas e as falácias imersas no critério tradicional concernente à expressão
quantitativa dos tributos.
Deveras, será demonstrado o desacerto com que o assunto é versado e divulgado ao
público, o que induz o cidadão a supor que a tributação seria menor do que realmente o é.
O equívoco apontado decorre de uma falácia, na medida em que o cálculo dos tributos
é sopesado em face do preço no plano do consumo e não na relação lógica entre aquilo que o
tributo representa em relação à mercadoria ou serviço.
Dito de outro modo, essa fórmula exprime tão somente o quanto o tributo representa
diante do preço e não o quanto ele representa ante o objeto da tributação, que seria o modo
correto de demostrar o seu exato valor.
A título de exemplo, conforme a concepção habitual ora questionada, a percentagem
dos tributos na gasolina seria de 43%, conforme divulgado pela Federação Nacional do

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Tributos contidos no preço: divulgação nos documentos fiscais
Eduardo Marcial Ferreira Jardim

Comércio de Combustíveis e de Lubrificantes (Fecombustíveis) e constante do respectivo


site reproduzido ad litteram: (www.fecombustiveis.org.br).
Destarte, num abastecimento de R$ 100,00 (cem reais), por exemplo, o peso dos tributos
totaliza R$ 43,00 (quarenta e três reais), dando a falsa impressão segundo a qual a tributação
in casu seria de 43%, o que não é verdade, conforme será demostrado nos desdobres deste
tópico.
Ora, embora a operação aritmética esteja correta, o raciocínio é falacioso, pois os números
mostram a percentagem dos tributos em relação ao preço de consumo, mas não revelam o
percentual do tributo ante a gasolina na composição do preço.
De conseguinte, tomemos como referência o preço de X litros de gasolina no importe
de R$ 100,00 (cem reais), no qual R$ 43,00 (quarenta e três reais) exprimem o valor dos
tributos, pelo que a diferença traduz o preço da gasolina sem os tributos. Logo, temos a
seguinte equação: 100 - 43= R$ 57,00 (cinquenta e sete reais) que é o preço da gasolina sem
a tributação.
Diante disso, força é depreender que os tributos cobrados sobre a gasolina no total de R$
43,00 simbolizam 75,43% de R$ 57,00 e não 43% de acordo com a visão tradicional.
Por conseguinte, vejamos uma lista de mercadorias e a respectiva incidência tributária
sob a ótica convencional, segundo Tabela da Receita Federal e também com a devida correção
tendente a revelar o verdadeiro quantum debeatur, a saber:
Água mineral: 28,78% sobre o preço, mas na verdade o percentual é de 41% sobre a
mercadoria em si; Energia elétrica: 39,25% sobre o preço, mas totaliza 64,61% sobre a energia
sem os tributos; e Serviços de telefonia: 28,65% em relação ao preço, quando em veras importa
em 40,16% no tocante ao referido serviço, e assim avante (www.receita.fazenda.gov.br).
Outrossim, não se pode deixar de reprochar a elevada tributação das mercadorias
mencionadas na Tabela ora exposta, fato agravado por uma exorbitante incidência como
fossem supérfluos, quando na verdade são mercadorias absolutamente indispensáveis à toda
população.
Ao demais, cumpre obtemperar que o aludido método equivocado de mensuração da
carga tributária é igualmente adotado como meio de calcular a sua relação com o Produto
Interno Bruto, o que ocorre não só no plano econômico e jurídico entre nós, como se verifica
também no cenário internacional.
No Brasil, por exemplo, segundo o apontado critério de medição, a arrecadação tributária
no ano de 2018 importou em R$ 2,3 trilhões, a qual representaria 33% do PIB de R$ 6,9
trilhões.
Entrementes, o engano ressalta à evidência, pois se deduzido o valor dos tributos do
Produto Interno Bruto, ter-se-ia 6.9 trilhões (PIB) menos 2.3 trilhões de tributação, resultando
assim a importância de 4.6 trilhões que é o total produzido pelo país sem contar a tributação.
Logo, o importe de 2.3 trilhões dos tributos significam 50% de 4,6 trilhões que é o valor do
PIB e não o percentual de 33% dotado de manifesto ilogismo.

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Tributos contidos no preço: divulgação nos documentos fiscais
Eduardo Marcial Ferreira Jardim

Como se vê, é necessário reafirmar que a verdadeira representação dos tributos só pode
ser aquilatada mediante o seu confronto com a coisa objeto de tributação, seja mercadoria,
seja serviço, seja PIB, e não como se faz comumente calculando o percentual do tributo em
relação ao preço ou ao PIB, máxime porque essa visão errônea mostra a percentagem dos
tributos sob um prisma inadequado para traduzir a sua veraz dimensão quantitativa.

5. CONCLUSÕES
I.  A identificação dos tributos no documento fiscal deve transcender a mera formalidade
e estampar o referido valor em cores escarlates e, quando possível, mostrar a importância dos
gravames na própria mercadoria.
II.  A arrecadação tributária no Brasil em relação ao consumo importa em aproximadamente
70%, configurando, assim, sobremodo elevada e na contramão da tendência mundial, tanto
que nos países da OCDE a arrecadação proveniente do consumo tem como fronteira o
percentual de 35%, donde, despontam como exemplos os Estados Unidos com 17% e o Japão
com 18%.
III. Cumpre reafirmar alto e bom som que a correta quantificação dos tributos haverá de
correlacioná-los com a mercadoria ou serviço tributados e não com o preço final.

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em: www.oecd.org. Acesso em: 22 fev. 2020.
TROTABAS, Louis; COTTERET, Jean-Marie. Droit Fiscal. Paris: Dalloz, 1985.

— 567 —
Comentario crítico sobre
un posible nuevo orden jurídico-político:
la unidimensionalidad de la norma
y el uso de la tecnología

Fernando Beresñak1

Resumen: Problema propuesto: El trabajo objeto de este resumen propone analizar el problema del
potencial aumento de la intervención tecnológica en el campo del derecho, tomando en consideración la
posibilidad de usos mínimos pero también y sobre todo a partir de las posibles utilizaciones de la Inteligencia
Artificial en la toma de decisiones al interior del poder judicial.
Propósito de la investigación: El propósito de la investigación consiste en enriquecer el análisis
sobre el problema propuesto desde una perspectiva que vincula el derecho con el campo de lo social y
con sus históricas relaciones. Esto, en virtud de que consideramos que la innovación, tanto en el derecho
como en el gobierno, debe estar mediada por una reflexión que contenga variables endógenas y exógenas.
Metodología de investigación: Justamente en virtud del problema propuesto y del propósito de la
investigación enunciado, los criterios metodológicos empleados fueron seleccionados de acuerdo al campo
transdisciplinario planteado por la propuesta de investigación y es por eso que se centra específicamente
en un trabajo de tipo teórico y de análisis histórico-conceptual de teoría jurídica, aunque con alcances
sociales y filosófico-políticos. Conclusiones principales: Las conclusiones principales del trabajo insisten
en mantener la prudencia sobre el potencial aumento de los usos tecnológicos en el campo del derecho, y
esto debido a dos cuestiones fundamentales: la primera remite a los ya constatables efectos negativos sobre
la subjetividad que el avanzado uso de la tecnología estaría suscitando en el campo social y la segunda,
más jurídica, apunta a que la intervención tecnológica podría generar la estratificación del actual estado de
situación del derecho, focalizado en su dimensión positiva y en la unidimensionalidad de la norma como

1
Doctor en Ciencias Sociales de la Universidad de Buenos Aires (UBA), Argentina; Magíster en
Ciencias Políticas (IDAES/UNSAM); Abogado (UBA). Pertenencia Institucional: Investigador del Consejo
Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET; área “Derecho, ciencia política y relacio-
nes internacionales”) y de la Universidad de Buenos Aires (UBA/FSOC/IIGG) de la República Argentina.
Profesor Asociado a cargo de los cursos de Filosofía en la Facultad de Humanidades de la Universidad de
Belgrano. Contacto: beresnakfernando@hotmail.com

— 568 —
Comentario crítico sobre un posible nuevo orden jurídico-político: la unidimensionalidad de la norma
Fernando Beresñak

única instancia de resolución y regulación del campo social cuando desde antaño la misma remitía o bien a
una pluralidad de fueros o bien a una dialéctica entre por lo menos un par de estos.
Palabras clave: ley; orden jurídico-político; subjetividad; tecnología.

Abstract: Proposed problem: The work object of this summary proposes to analyse the problem of
the potential increasing in technological intervention in the field of law, taking into account the possibility of
minimum uses but also and especially from the possible uses of Artificial Intelligence in decision making within
the judiciary. Purpose of the research: The purpose of the research is to enrich the analysis of the proposed problem
from a perspective that links the law with the field of its social and historical relations. This, because we believe
that innovation, both in law and in government, must be mediated by a deliberation that contains endogenous and
exogenous variables. Research methodology: Precisely because of the proposed problem and the purpose of the
stated research, the methodological criteria used was selected according to the transdisciplinary field proposed
by the research proposal and that is why it focuses specifically on theory and theoretical work of historical-
conceptual analysis of legal theory, although with social and philosophical-political scopes. Main conclusions:
The main conclusions of the work insist on maintaining prudence on the potential increase of technological uses
in the field of law; and this due to two fundamental issues. The first refers to the already substantive negative
effects on subjectivity that the advanced use of technology would be arousing in the social field. The second
issue, more related to the legal aspect, suggests that technological intervention could generate the stratification
of the current state of law, focused on its positive dimension and the unidimensionality of the norm; thus the
only instance of resolution and regulation of the social field referred either to a plurality of jurisdictions or to a
dialectic between at least a couple of these, since old times.
Keywords: law; legal-political order, subjectivity; technology.

I. Introducción al problema social y subjetivo sobre la


tecnología

I.A. La pregunta por la potencia alrededor de la tecnología


Cada época trae aparejada ciertas formas de producción y utilización del conocimiento
tecnológico, las cuales inevitablemente arrastran consigo distintas modalidades de comprender
las temáticas alrededor de lo humano y la afectación subjetiva inherente a ellas. Así, partiremos
de la siguiente hipótesis: en la actualidad habría un cambio subjetivo sino psíquico disruptivo
de enorme magnitud porque habría un cambio histórico de igual tamaño, en parte posibilitado
por la problemática utilización de la tecnología. A estudiar, analizar y criticar algunos de estos
posibles vínculos en lo que podría suscitarse en el caso de que la misma lograra inmiscuirse
en el campo jurídico, nos dedicaremos en lo sucesivo.
Así, entonces, para comenzar convendría traer a colación a un filósofo holandés que,
justamente, entre otros temas, se dedicó a estudiar la potencia. En ese sentido, si bien está claro
que Baruch Spinoza llevaba la cuestión hacia otros devenires, puede decirse que si es cierta la
estructura enigmática que él desplegó al afirmar que “nadie, hasta ahora, ha determinado lo que
puede el cuerpo” (2006, p. 197), el corolario inevitable señala, no sin preocupación, la urgente
necesidad de reflexionar jurídica y políticamente sobre los nuevos desarrollos de la Inteligencia
Artificial, así como sobre el transhumanismo y el posthumanismo que posibilita la tecnología, tan
mentados en la actualidad. Es que si nadie sabe lo que puede un cuerpo, entonces tampoco nadie
sabría lo que un cuerpo no puede; y así sobre los seres humanos y la cultura misma. La estructura

— 569 —
Comentario crítico sobre un posible nuevo orden jurídico-político: la unidimensionalidad de la norma
Fernando Beresñak

enigmática que el filósofo supo consolidar como una herramienta de análisis sumamente potente,
todavía puede invitarnos, otra vez, a pensar el presente y los tiempos venideros.
Si se sigue considerando al derecho como un campo del mundo de las humanidades y no
se la reduce tan sólo a una herramienta técnica de administración o gestión, los análisis sobre
la potencia y el límite de las intervenciones tecnológicas en el mundo humano, como también
las preguntas relativas a si deseamos y consideramos beneficiosa su presencia –y hasta qué
punto o bajo cuál modalidad o formato presencial−, constituyen aspectos bisagras a tener en
consideración en una investigación sobre los nuevos desafíos del derecho ante las nuevas
tecnologías. ¿O acaso debiéramos sospechar que las nuevas intervenciones tecnológicas en el
campo social y sobre cualquier otro constituyen una especie de perverso desafío de laboratorio
en virtud de que la especulación teórica de Spinoza referida partía de que no había mediado
comprobación experimental (Spinoza, 2006, p. 197)?

I.B. La pregunta por el límite alrededor de la tecnología


Es que bien podría ser el caso que exista un límite para el avance de la tecnología sobre
el cuerpo social, punto a partir del cual no pueda suceder más intervención tecnológica sin
que los sujetos contemporáneos a dichos movimientos se vean afectados a niveles más allá
de lo aceptable, es decir, con altísimos niveles de sufrimiento. Al igual que sucede en todo
período de cambio, existen adaptaciones fácilmente asimilables, otras que cuestan y presentan
desafíos que se pueden sortear con esfuerzo y tiempo, y otras que sólo se pueden dar a través
de la fuerza y con un costo demasiado alto para la cultura y el orden jurídico-político que
nuestras sociedades han convenido en aceptar.
Cabe entonces realizar algunas preguntas: ¿Conocemos el límite de esas transformaciones?
¿Qué es lo que no puede un cuerpo? ¿Qué formas de vida tecnológicas ya no podrían sostener
los sujetos, al menos tal y como se convino en conceptualizar y defender por Occidente,
incluso jurídicamente? Pero antes aún: ¿acaso se está atento a lo que sucede en el campo
subjetivo y psíquico, a partir de las intervenciones y usos de la tecnología, como para estar
en condiciones de detectar ese posible límite y, asimismo, si se lo está intentando cruzar de
todas formas? El derecho, además de constatar la necesidad de la innovación tecnológica e
interesarse por enriquecerse a través de su uso, ¿no debiera también estar preocupado por
hacerse de las herramientas necesarias para defender y regular intervenciones que afecten
sobremanera a los individuos (obviamente, sin devenir necesariamente en una posición
conservadora)?
Estas son algunas de las preguntas que se quisieran dejar planteadas en este inicio. No
tanto porque se vaya a dar respuesta a las mismas, sino más bien porque aquí se considera
que ofrecerán un marco adecuado y enriquecido para el tipo de tratamiento que sería prudente
realizar a partir de aquí; sobre todo a partir de la sugerente propuesta de investigación jurídica
y política venidera sobre la que el evento invita a reflexionar.

— 570 —
Comentario crítico sobre un posible nuevo orden jurídico-político: la unidimensionalidad de la norma
Fernando Beresñak

II. Avances sobre el estudio del vínculo entre la ley, el


derecho y la tecnología

II.A. Paolo Prodi y el peligroso vínculo entre tecnología y derecho luego de la


positivización del orden jurídico y la unidimensionalidad de la norma
En su libro Una historia de la justicia, Paolo Prodi estudia los embrollados senderos por
los que la civilización Occidental,

“echando a andar desde Jerusalén y Atenas, la pluralidad de órdenes jurídicos


medievales y, posteriormente, el surgimiento del conflicto entre conciencia y ley
positiva constituyeron, con sus simbiosis y sus tensiones, un factor fundamental
para modernizar el derecho, para construir una reglamentación dialéctica de la
conducta humana que antecedió al orden moderno, sentando la premisa misma de su
existencia. Dentro del marco de esa dialéctica, puede comprenderse el nacimiento
del sistema de constituciones y códigos, y en esa dialéctica –no, por cierto, en la
expansión sin límite del derecho positivo-, el hombre occidental puede afrontar la
crisis actual del derecho” (Prodi, 2008, p. 444).

Sin embargo, como bien se deja entrever sobre el final, luego de haber pasado de una
pluralidad de fueros al dualismo moderno entre conciencia y derecho, se desembocó en la
problemática conformación de un orden jurídico-político concentrado en una especie de
norma unidimensional que cercena aquella dialéctica fundamental para Occidente.
Dicho esto, es importante aclarar que si bien el texto se encuentra erigido sobre los
íntimos lazos entre los términos pecado y delito, el autor se encarga de precisar que el
problema central del trabajo lo constituye “el triángulo hombre-ley-poder en todas sus formas
y en todas sus expresiones” (Prodi, 2008, p. 19). Es por esto último que, justamente en virtud
del lazo gestado en el mundo moderno entre el problema de la conciencia y del derecho, la
potencial actualidad relativa a la introducción en el poder judicial de la tecnología y más
precisamente de ciertas formas “inteligentes” de la misma (como lo sería la Inteligencia
Artificial u otros usos matemático-informáticos) constituye una temática central que debe
analizarse con todos los recaudos del caso; esto es, atendiendo también aquellas dimensiones
psíquicas y subjetivas que serían parte de la trama social, política y jurídica.
Más aún si los tres ejes (hombre, ley y poder) se encuentran adquiriendo formas
y expresiones realmente novedosas a partir de los nuevos desarrollos y circulación de la
tecnología en la vida cotidiana de los individuos del siglo XXI; pero también a partir de la
gestación de un nuevo grupo de poder político internacional de una envergadura pocas veces
vista en la historia de la humanidad, como lo sería aquél que se deduce de la producción,
comercialización, divulgación y uso de la tecnología.
Afirma Prodi:

“La cada vez más fuerte complicación de los mecanismos de la vida social y los
nuevos problemas planteados por las nuevas tecnologías […] amplían cada vez más

— 571 —
Comentario crítico sobre un posible nuevo orden jurídico-político: la unidimensionalidad de la norma
Fernando Beresñak

la necesidad de un sistema de normas positivas omnipresentes, sin lagunas posibles,


para cada acto cotidiano nuestro, pero simultáneamente abren un dramático abismo
con la apelación a una conciencia vaciada de una sede de juicio responsable propia”
(2008, p. 442).

Hasta qué punto podría considerarse la utilización de la tan mentada IA en el poder


judicial como una conciencia vaciada de una sede de juicio responsable propia, es algo que
habrá de ser investigado en futuros trabajos.

II.B. Max Weber y algunos antecedentes sobre la potencia y el límite del lazo entre
tecno-ciencia y el orden jurídico-político
Mientras tanto, cabe enunciar que ya Weber habría advertido algunos antecedentes de esta
problemática entre innovación, derecho y gobernanza cuando afirmó que las transformaciones
culturales de alcance y validez universal que tuvieron lugar en Occidente, tal y como ocurrió
con los cambios de la ley jurídica moderna, se explican por la aparición de la ciencia newtoniana
(2011, p. 55). Es que una vez descubierto el espíritu legislativo que reina y guía a los astros en el
universo, pudo ser posible adoptar ese modelo en el nuevo mundo moderno no sólo para gobernar
la dimensión socio-política y para disciplinar de forma homogénea los cuerpos humanos que
transitan la esfera terrestre, sino también para construir y controlar el método y el procedimiento
del laboratorio estatal en que se crearán y desarrollarán los políticos-funcionarios. Como puede
observarse, existirá en la modernidad un intento por modelizarlo todo bajo una misma axiomática
matemática, racional y experimental que integra, bajo su carácter legalista, el movimiento racional,
fijo, seguro, homogéneo y calculable de los astros, de la sociedad, de los cuerpos y del Estado.
De ese carácter legalista aunque positivo es que sea posible, a través de la norma, trazar
un paralelo entre el cosmos y el orden económico; dice Weber:

“El orden económico capitalista actual es como un cosmos extraordinario en el


que el individuo nace y al que, al menos en cuanto individuo, le es dado como
un caparazón (Gehäuse) prácticamente irreformable, en el que ha de vivir, y al
que impone las normas de su comportamiento económico en cuanto que se halla
implicado en la trama de la economía” (2011, p. 91).

Pero el autor va más allá al sostener que la normativa ascética, una vez fuera de los
monasterios e influyendo el profesionalismo y la eticidad,

“contribuyó en lo que pudo a construir el grandioso cosmos de orden económico


moderno que, vinculado a las condiciones técnicas y económicas de la producción
mecánico-maquinista, determina hoy con fuerza irresistible el estilo vital de cuantos
individuos nacen en él (no sólo de los que en él participan activamente), y de seguro
lo seguirá determinando durante muchísimo tiempo más” (2011, pp. 247-248).

Es que las características del modelo de la ciencia occidental newtoniana (universalización,


legalización, matematización, racionalización, control) son vinculables al hecho de que

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Comentario crítico sobre un posible nuevo orden jurídico-político: la unidimensionalidad de la norma
Fernando Beresñak

sólo en Occidente se conoció un Estado con “un derecho racionalmente estatuido y una
administración de funcionarios especializados guiada por reglas racionales positivas: las
“leyes”.”(Weber, 2011, p. 57; véase también: Weber, 2012, p. 642) y, también vale decir, con
pretensión universal.
Como puede visualizarse, el camino ya pareciera haber estado trazado para las
intervenciones tecnológicas en el derecho, esto es, para una administración informática del
derecho y del gobierno, programada y especializada, guiada por reglas racionales lógico-
matemáticas positivas. En este sentido, quizá ya se encuentre abierto el dramático abismo
con esta apelación a una conciencia vaciada de una sede juicio responsable propia, tal y como
sostenía Prodi en el pasaje citado al final del apartado anterior.

III. Comentario de cierre: el nuevo estatuto de la ley y el


posible advenimiento de un tecnológico orden jurídico-
político
Si el paso a la modernidad implicó una alteración en el mundo jurídico, modificando la
localización de los fueros y arrastrando el problema a la cuestión de la conciencia y el derecho,
pues en la actualidad, con el acrecentamiento de la norma unidimensional, ¿qué podría significar
el advenimiento de innovaciones tecnológicas en el derecho y en el gobierno? Si es cierto que
“se está perdiendo esa pluralidad de planos normativos y sedes de juicio, de fueros que, como
ya se señaló, constituye nuestro código genético como hombres occidentales” (Prodi, 2008,
p. 441), ¿acaso esto no constituiría un acrecentamiento de cierta patología totalitaria presente
todavía en nuestros cuerpos políticos, incluso en los estados de derecho normales pertenecientes
al mundo de las democracias liberales? (Prodi, 2008, pp. 440-441).
Ahora bien, si la innovación tecnológica del tipo Artificial Intelligence en el campo
jurídico se encuentra posibilitado por el asentamiento de la norma unidimensional, ya que
aquella funcionaría sólo bajo un modelo jurídico como este, puesto que los algoritmos de ese
nivel sólo podrían trabajar al interior de un campo unidimensional y unidireccional, positivo
y fijo, y en todo caso con desviaciones, derivas y aspectos móviles prefijados, pero en todo
caso nunca contradictorios, será necesario reflexionar sobre el movimiento que todo ello
traería aparejado.
En este sentido, según Prodi, con el advenimiento de la norma unidimensional

“decae el talante que, con todas sus contradicciones, produjo a nuestra sociedad y le
insufló vida: el talante normativo (dentro/fuera) entre el mundo interior pero colectivo
(no privado) de la norma moral y el mundo exterior del derecho positivo, que fue
característico de nuestra vida y posibilitó el crecimiento liberal y democrático durante
todo estos siglos y que también es el único que puede permitir la supervivencia de
nuestra identidad colectiva como hombres occidentales” (2008, p. 444).

Ahora bien, si atendemos al hecho de que las innovaciones tecnológicas en el poder


judicial, tal y como lo sería la utilización de la IA, sólo son posibles desde la concentración
de la tradicional, contrariada y compleja dimensión jurídica en un único campo como lo

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Comentario crítico sobre un posible nuevo orden jurídico-político: la unidimensionalidad de la norma
Fernando Beresñak

sería el del derecho positivo y el advenimiento de la norma unidimensional; y si este último


movimiento constituiría una imposibilidad para llevar adelante la crisis del derecho en la
actualidad; por ende, las consecuencias de la aplicación tecnológica en el derecho y en la
gobierno constituirían la definitiva estratificación tecno-jurídica de la unidimensionalidad
de la norma, y con esto, según Prodi, el definitivo declive de la cultura jurídica y política
Occidental, al menos tal y como se la ha conocido desde sus orígenes, con los peligros de las
implicancias cuasi-totalitarias del caso ya señaladas.

Referencias bibliográficas
PRODI, Paolo. Una historia de la justicia. De la pluralidad de fueros al dualismo moderno entre
conciencia y derecho. Buenos Aires: Katz, 2008.
SPINOZA, Baruch. Ética demostrada según el orden geométrico. Madrid: Alianza, 2006.
WEBER, Max. La ética protestante y el espíritu del capitalismo. México: FCE, 2011.
WEBER, Max. Economía y sociedad. Esbozo de sociología comprensiva. México: FCE, 2012.

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Copyright challenges concerning the
development of mind uploading1

Kamil Szpyt2

Abstract: The aim of the conducted research is to signal the numerous problems that the development
of mind uploading technology raises in terms of copyright law. The mentioned technology consists in
scanning the human mind and transferring it to a synthetic medium on which it can continue to function.
The research analysed the scientific content of studies on mind uploading and attempted to analyse
them from a legal point of view. In the absence of provisions dedicated exclusively to mind uploading, it
has become necessary to base certain theses on the planned and current regulations on artificial intelligence
and basic copyright institutions.
The article leaves many threads open, without giving clear answers, hoping to initiate further
discussion. The questions to be answered first and foremost are whether the work of a digitised person
should be protected by copyright and whether the digitised person is a separate creator or an “extension” of
the creative activity of the natural person;
Apart from the above issues, it is also reasonable to consider the construction of the expiration of
economic copyrights in the context of the possibility of creating immortal (digital) artists. One solution would
be to count the said period from the date of distribution of the work or its establishment. Otherwise, if the
immortality of digitised people is submitted, it may turn out that few works will go into the public domain.
Key words: mind uploading; copyright; digitised person

Introduction
When this paper is coming into existence, the entire world is facing an unfolding SARS-
CoV-2 virus pandemic. Although it is not the only case of such a phenomenon in modern

1
The research was financed from the funds earmarked for the statutory activities of the Faculty No.
WPAiSM/DS/17/2019.
2
PhD; Assistant Professor, Private Law Institute, Faculty of Law, Administration and International
Relations,
Andrzej Frycz Modrzewski Krakow University. E-mail: kszpyt@afm.edu.pl.

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Copyright challenges concerning the development of mind uploading
Kamil Szpyt

history, or even in the 21st century (only to mention the A/H1N1 flu pandemics of the turn
of 2009 and 2010), nonetheless, similar tragedies continue to be difficult to come to terms
with and move on. Undoubtedly, an increasing number of fatalities keeps reminding us of the
frailty of human life. On the other hand, advanced technology which gives hope for a cure to
be found much faster than it would have been the case mere one hundred – one hundred and
fifty years ago inspires optimism. It is worth mentioning that the research in this scope has
employed, among others, Artificial Intelligence, which receives so much praise recently3.
A question arises here if at any time, in a closer or more remote future, technology
develops the capacity to protect the human species from the threat of death for good. And,
surprisingly, such a chance does exist. It is the so-called mind uploading (mind-uploading),
defined also with such terms as whole brain emulation, substrate independent minds, mind
copying, mind transfer, and emulated human entity4. In assumptions, it consists in transferring
the human mind (and consequently also its consciousness) onto a synthetic carrier, e.g. a
computer hard drive5. Thus understood, not only does the whole-brain emulation process
give hope for protecting the human being from death, but also – when it occurs – hope for a
peculiar digital resurrection6.
Simultaneously, redefining the human being from ‘a mortal physical person consisting
of blood and bones’ into ‘a (theoretically) immortal sequence of zeros and ones’ is bound to
breed multiple doubts of legal nature. Next to those most obvious, from such areas as criminal
or civil law7, a set of issues related to the copyright assessment of creative (artistic) activity
of human beings thus digitised will emerge. This is because it is difficult to assume that

3
See: T. Bishop, AI vs. Coronavirus: How artificial intelligence is now helping in the fight against
COVID-19, https://www.geekwire.com/2020/ai-vs-coronavirus-artificial-intelligence-now-helping-fight-
covid-19/ [Access: 17.03.2020].
4
For stylistic purposes, the paper will use these terms interchangeably.
5
See, inter alia: W. Drozd, Wpływ idei transhumanizmu na światowe koncepcje i regulacje prawne,
„Studia Prawnicze i Administracyjne” 2018, No. 25, p. 37; O. Häggström, Aspects of mind uploading,
http://www.math.chalmers.se/~olleh/UploadingPaper.pdf [Access: 30.10.2019]; M. Hauskeller, My brain,
my mind, and I: some philosophical assumptions of mind-uploading, „International Journal of Machine
Consciousness” 2012, vol. 4, p. 189 et seq.; cf. S. Bamford, J. Danaher, Transfer of Personality to a Synthet-
ic Human (‘Mind Uploading’) and the Social Construction of Identity, „Journal of Consciousness Studies”
2017, vol. 24, p. 6; cf. B. Goertzel, M. Ikle, Special issue on mind uploading. Introduction, „International
Journal of Machine Consciousness” 2012, vol. 4, p. 1.
6
Cf., more broadly: B. Goertzel, Human-level artificial general intelligence and the possibility of
a technological singularity A reaction to Ray Kurzweil’s The Singularity Is Near, and McDermott’s critique
of Kurzweil, „Artificial Intelligence” 2007, Vol. 171, https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/
S0004370207001464, p. 1168 [Access: 30.10.2019]; although it is Worth noting that tere are still a number
of obstacles to overcome to per form a comprehensive and effective mind-uploading process (G. Dvorsky,
You Might Never Upload Your Brain Into a Computer, https://io9.gizmodo.com/you-ll-probably-never-
upload-your-mind-into-a-computer-474941498 [Access: 30.10.2019]; cf. also a polemic text: B. Goertzel,
A. Ford, Goertzel Contra Dvorsky on Mind Uploading, https://hplusmagazine.com/2013/04/21/goertzel-
contra-dvorsky-on-mind-uploading/ [Access: 30.10.2019]).
7
Cf., more broadly: K. Szpyt, Czy bity są życiem, a śmierć to dopiero początek? Cywilnoprawne
implikacje śmierci człowieka związane z rozwojem mind uploadingu, „Studia Prawnicze. Rozprawy i
materiały” 2019, no. 2, pp. 43-56.

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Copyright challenges concerning the development of mind uploading
Kamil Szpyt

creative individuals, only due to the loss of their bodily shell should also lose their sensitivity
and need for creation. Moreover – at times, thanks to the possibility of perceiving the world
in an entirely different world, via cameras and sensors, having access to data collected in
Internet databases, their creative output may take on an entirely new dimension.
This paper constitutes a mere introduction into the set of issues outlined above, and
in the assumption, it is intended to inspire further, more detailed and complex analyses, as
well as first legislative attempts. Simultaneously, although in the scope of the research area
the author of this paper is closest to the Polish legal order, nonetheless, within this article a
deliberate decision was made to minimise references to a specific legal order and engage in
an attempt at universalising the observations made so that they could be successfully applied
not only in domestic but also EU or international regulations.

1. Mind-uploading – an Outline
Since at the present stage of its development, the mind-uploading technology to a large
extent remains an area of hypotheses and suppositions, it is not possible to conclusively state
what course this process will follow in reality. The doctrine has offered a variety of concepts
in this scope. From among the most popular of them, the following can be mentioned:
a) scanning the human brain and entering the data thus obtained into a computer which
will perform a simulation of the human brain’s operation on the neuronal level; the
mentioned simulation would ultimately be placed in a computer or robot, or in a
‘virtual’ body (avatar) which would result in a peculiar revival of a deceased individual
whose brain was scanned8;
b) gradually replacing the natural parts of the human brain with synthetic substitutes
until they are entirely removed and an ‘artificial’ brain is thus obtained9;
c) collecting broadly understood data about the digitised individual which are
subsequently to be used to parametrise a humanoid robot being their carrier10.

2. Mind-uploading and Copyrights


Aiming to systematise the set of issues hereby engaged, one may perform a principal
division thereof in connection with the role assigned to a digitised person, or a digital
reflection (copy) of a real human being in a given factual status. Depending on circumstances,
its position shall be considered in categories of:
a) an object of copyright,
b) a subject of copyright.

8
Cf., inter alia: R. Kurzweil, The Age of Spiritual Machines: When Computers Exceed Human In-
telligence, New York 2000, pp. 52-54.
9
Ibidem.
10
W. S. Bainbridge, Religion for Galactic Civilization 2.0, https://ieet.org/index.php/ IEET2/more/
bainbridge20090820/ [Access: 30.10.2019].

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Copyright challenges concerning the development of mind uploading
Kamil Szpyt

2.1. A Digitised Human as an Object of Copyright


Undoubtedly, an attempt at qualifying a digitised person as an object of copyright may
at the first glance stir a considerable controversy. In effect, this would entail the acquisition
of its exclusive rights by a third party and the deprivation of its autonomy, which is de facto
slavery. Yet, it is worth noting that this paper uses the term ‘digitised person’ with a certain
dose of conventionality. It seems to most fully reflect the nature of entities of this type
(without – which needs to be emphasised – being, however, a statutory term). At the same
time, one has to state that in the legal order in force, there are no grounds to recognise that in
light of the law the very fact of scanning the human brain, even if the digital scan possessed
self-awareness and independence, would lead to a multiplication of a rightful human being,
endowed with legal capacity and thus an ex lege emergence of two legal entities in place of
one11. Simultaneously, it is almost certain that at a specific stage of development not only
will a digitised person be granted a full legal capacity, but simply speaking an equality mark
will be inserted between such a person and a ‘real human’. It will adopt a form either of a
change in terms of the heretofore interpretation line of the provisions of the law in force (at
least where it is possible) or, more likely, an introduction of entirely new norms. It should not
come as a surprise in face of a generally dominant tendency to equalise artificial intelligence
with the human being as regards their rights, manifest in granting citizenship to robots12 or
advocating the concept of a ‘digital person’ in acts of the EU law13.
It is worth asking here a question if presently a digitised person could be recognised a
work in the meaning of the copyright. Pursuant to Article 1.1 of the Act of 4 February 1994
on Copyright and Related Rights14, the work should be understood to be ‘any manifestation
of the creative activity of individual nature, established in any form, irrespective of its value,
designation or manner of expression (work)’. Surely, there are no counterindications for
a work to be expressed by way of a binary system (i.e. a sequence of zeros and ones) 15
and serve the purpose of simulating the operation of the human mind; in turn, the quality
(level) of execution of the process itself and production of a copy should be considered of no
consequence in this case. At the same time, it would be difficult to see an element of creative
activity in the work of an IT professional whose role would be limited to copying the human
brain. Activities of this type, in essence, will be of a strictly technical character, the legal

11
Although on the basis of these considerations, I will stick to the term “digitised person”, it is worth
mentioning that using the term “digitised mind” could be a solution to the terminological doubts (where
there is no legal capacity) and ‘digitised person’ (where that legal capacity was granted). However, a thor-
ough analysis of this issue would go far beyond the framework of this Article and would therefore not be
pursued further.
12
Only in 2017, a few months apart, two humanoid robots were given citizenship in Saudi Arabia
and Belgium: Sophia and Fran Pepper, and one bot without a physical shell was given citizenship in Japan
(Mirai’s).
13
Such ideas were included in European Parliament Resolution of 16 February 2017 with recom-
mendations to the Commission on Civil Law Rules on Robotics (2015/2103(INL)).
14
Act of 4 February 1994 on Copyright and Related Rights (Journal of Laws 2019.1231 consoli-
dated text).
15
This is confirmed by the widespread acceptance of computer programs, computer games, elec-
tronic databases and websites as works.

— 578 —
Copyright challenges concerning the development of mind uploading
Kamil Szpyt

assessment of which would be approximate to photocopying a book or copying a file. Eo


ipso, a digital creation thus generated may not be recognised to be a work in the meaning of
the copyright.
Neither will a ‘real’ mind subsequently subjected to digitisation be a work. This is
because it is not an effect of the human creative process, but an operation of specific biological
processes16. Thus, the ‘owner’ of a brain may not bring claims against third parties making
use of the mentioned digital copy, invoking their copyright to the ‘original’.
It does not mean, however, that in such a situation they will be entirely deprived of
legal protection. It seems that a person whose brain has been copied might object to third
party exploitation and dissemination of their digital copy by invoking their right to privacy
and dignity17. In certain cases, depending on the information copied, invoking business or
professional secret would also be substantiated.
On the other hand, a situation where while copying another individual’s mind an IT
professional performs a creative modification of the final digital creation would be more
complicated. In such a case, in theory, a work could be produced. Whereby each case should
be assessed individually. The very fact that a creation thus produced would infringe upon the
right to privacy or dignity of the individual whose brain was scanned is of no significance for
its classification as a work.
The situation will be different when the digitised person is already granted legal capacity
and its legal situation is equal to that of a real human being. In such a case, it is necessary to
exclude the possibility of recognising it as an object of a copyright or any absolute subjective
rights. It is advocated, first and foremost, by the already-mentioned considerations related to
the protection of their fundamental rights, as well as the fact that in such an event the manner
of expressing the work external towards the creator would not occur18.
Whereas there are no counterindications for a digitised person thus conceived to be a
carrier of a work, i.e. an application integrated therewith which an IT professional supplied
it with. This situation could be compared to transferring a tattoo which is a work onto one’s
body.

2.2. A Subject of Copyright


Where the digitised person acquires legal capacity, there are no counterindications for
such a person, who is not a work, to make use of works and dispose of rights thereto. Obviously,

16
For the same reason, the effects of nature’s creative activity, such as frost flowers on a glass pane,
are not considered as works.
17
A similar situation will be encountered with the use of brain-computer interface technology (very
similar in many ways to mind uploading) (see E. Krausová, Legal Aspects of Brain-Computer Interfaces,
Masaryk University Journal of Law and Technology 2014, vol. 2, p. 203 ff.).
18
A similar argument was used by the German court in refusing to recognize two artists -
Eve and Adele - as objects of copyright (works). The artists themselves claimed to be “living sculptures”.
(see K.-N. Peifer, “Individualität” or Originality? Core Concepts in German Copyright Law, Gewerblicher
Rechtsschutz und Urheberrecht: Internationaler Teil 2014, no 12, p. 1101).

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Copyright challenges concerning the development of mind uploading
Kamil Szpyt

this does not mean that works produced by such a person shall automatically enjoy the status
of works in the meaning of the copyright law and the digitised person shall be entitled to
rights to such works. For this to be possible the said person should be recognised a creator
on par with a real human being. The established stance currently in force, dominant both on
the grounds of Polish copyright law as well as multiple international instruments (legal acts)
holds that only a human being may be an author of a work. Thus, limiting oneself to granting
legal personality, without accepting a change in the interpretation of the aforementioned
provisions or introducing special provisions, will only result in the digitised person obtaining
a status similar to that of a legal person (i.e. will be able – at most – to acquire, primarily or
secondarily, author’s economic rights in the case of works created by natural persons, but not
personal copyrights).
A question arises here if still before granting legal capacity to a digitised person,
copyrights to works created by such a person could arise to the benefit of the real person
whose mind has been copied or an IT professional who performed the digitisation. In such
a situation, attempts at two types of assessment could be embarked on, depending on the
manner of qualifying the digitised person. Namely, it could be recognised to be:
a) a computer programme or an IT creation similar to a computer programme performing
specific functions – then considerations made against the background of a possibility
of attributing copyright to Artificial Intelligence will apply to a degree. At the
same time, it will be an identical situation. This is because in the doctrine one may
frequently encounter a tendency to force a stance that advocates awarding copyrights
to works created by Artificial Intelligence to the programmer to have created the AI.
Such an approach would be advocated, among others, by a need to guarantee them an
opportunity of complex exploitation of the works created thereby with all benefits. In
the case of an IT professional who only digitised while not ‘created’ a digital person,
similar argumentation becomes devoid of significance. In turn, in the case of a real
person (the original), its role is reminiscent more of a person who has accumulated a
collection of specific works, inspiring another person, yet not initiating the creative
process directly, therefore attributing copyrights to such a person is difficult;
b) a peculiar prosthesis/extension of the body (mind) of the person whose mind has
been digitised – it seems that this concept should be rejected; this is because insofar
as granting copyrights to a painting produced by a painter with an artificial hand stirs
no doubts, then, in this case, the lack of ‘connection’ of the digitised mind with an
actual original excludes the possibility of controlling activities of the former, and thus
a creative input of a real person.
Yet, granting the digitised person not only the status of a creator but the very legal
capacity, it will be necessary to establish relations between the digitised person and its actual
original. Do they constitute two different entities, or perhaps – in terms of assessment of legal
effects of the acts they perform – one person? Choosing the most appropriate model in this
scope undoubtedly requires an in-depth analysis and extensive debate in the doctrine as it will
entail substantial legal effects. In the case where the identity of these entities is recognised, it
will be necessary to establish, among others, whether each of them may independently enter
into valid agreements on the assignment of author’s economic rights or an agreement without
the other person’s consent or co-operation is necessary.

— 580 —
Copyright challenges concerning the development of mind uploading
Kamil Szpyt

In the case of adoption of the identity of both the digitised and the real person still greater
complications would occur in the event of the artist’s death. And in principle – the death of the
actual original since, in theory, the digitised person could be even immortal. Such a situation
would to a degree question the essence of the public domain: if such an artist could not die
since their digital copy would continue to exist, then their works could not be transferred into
the public domain, while even the rights thereto could not become an object of inheritance.
Establishing that author’s economic rights expire not after seventy years as of the creator’s
death, but seventy years from the fixing of the work in the cases where it was created by a
digital person after the actual original’s demise. This type of regulation, however, is not free
from drawbacks – its application could bring about charges of discrimination against digitised
persons who would like to function after the death of their original.

Summary
Unfortunately, recently, an increasingly frequent summary of numerous problems
related to the legal assessment of new technological solutions is a shrug and full resignation:
“well, apparently the law in this case is not keeping up with the changes…”. Mind uploading
can be a laudable exception to the rule. The fact that at this stage work is still underway
to finalize this process allows - as in the case of the consideration of strong artificial
intelligence - to start looking for optimal legal regulations right now. The legislator,
supported by representatives of legal doctrine, should undoubtedly take this opportunity.
This article outlines the challenges that contemporary copyright law faces in connection with
the imminent mind-uploading process. In a nutshell, they can be divided into those concerning
the digitised human being as an object of copyright and the subject of copyright.
In the first of these cases, it cannot be ruled out that the human mind transferred to an
artificial medium will be covered by copyright, although in practice this will be an extremely
rare situation, as it is difficult to consider IT activities as creative. However, nothing stands
in the way of a digitised person - even if he or she already has legal subjectivity - becoming
a kind of “carrier” of another work (just as the human body can be a carrier of a tattooed
work).
Then, if the digitised person gains a position equal to that of a human creator under
copyright law (or is directly considered as such), there will be a number of problems related
to, for example, the longevity of digitised people, which will give rise to the need to analyze
the rules of the public domain and the terms after which specific works are placed in it. It will
also be necessary to rethink the concept of co-authorship of the real man and a copy of the
digitised man as well as the principles of concluding contracts in such a situation.

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Kamil Szpyt

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człowieka związane z rozwojem mind uploadingu, „Studia Prawnicze. Rozprawy i materiały”
2019, no. 2.

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Estudo comparado do gps como meio eletrônico de
prova nos ordenamentos português e brasileiro

Flavia Ferreira Jacó De Menezes 1


Juliane Cristina Silvério de Lima 2

Resumo: No presente estudo abordaremos a utilização do GPS (Global Positioning System),


instrumento tecnológico contemporâneo como meio de prova no Direito Processual do Trabalho. O direito
à prova é uma garantia constitucional, a qual deriva do exercício do devido processo legal, do contraditório
e da ampla defesa. Em relação ao GPS (Global Positioning System) por se tratar de uma prova digital e
eletrônica nos faz refletir sobre as inovações tecnológicas que impactam na vida do trabalhador, bem como
no ambiente de trabalho. Questões atinentes ao ônus da prova e à validade dessas provas, constantemente,
causam dúvidas e controvérsias aos operadores do direito. Faremos uma abordagem jurisprudencial no
sistema jurídico brasileiro e no sistema jurídico português, desse modo apresentando o estudo comparado
entre os sistemas jurídicos. Abordaremos se a utilização desse instrumento é realizada de maneira
adequada, observando o importante princípio da proporcionalidade, sem que haja violação de outros
direitos fundamentais do empregado, sob pena de ser restringido o uso de meios digitais e eletrônicos
em âmbito laboral e processual. O trabalho se utilizará do método de abordagem hipotético-dedutivo,
com interpretação sistêmica, a pesquisa de tipo bibliográfico-documental e pesquisa jurisprudencial dos
Tribunais Superiores.
Palavras-chave: instrumentos tecnológicos; meios de prova; GPS (Global Positioning System).

Abstract: In this study we will address the use of GPS (Global Positioning System), a contemporary
technological instrument as a means of proof in Labor Procedural Law. The right to proof is a constitutional
guarantee, which derives from the exercise of due legal process, contradictory and broad defense. Regarding
the GPS (Global Positioning System) because it is a digital and electronic test, it makes us reflect on the
technological innovations that impact the worker’s life, as well as the work environment. Issues pertaining

1
Juíza do Trabalho do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região. Especialista em Direito e Pro-
cesso do Trabalho. E-mail: flaviajacoh@yahoo.com.br
2
Advogada, mestranda em Direito pela Escola Paulista de Direito. E-mail: julianesilverio.adv@
hotmail.com

— 583 —
Estudo comparado do gps como meio eletrônico de prova nos ordenamentos português e brasileiro
Flavia Ferreira Jacó De Menezes - Juliane Cristina Silvério de Lima

to the burden of proof and the validity of that evidence constantly raise doubts and controversies for law
enforcement officials. We will take a jurisprudential approach in the Brazilian legal system and in the
Portuguese legal system, thus presenting the study compared between the legal systems. We will address
whether the use of this instrument is carried out in an appropriate manner, observing the important principle
of proportionality, without violating other fundamental rights of the employee, under penalty of being
restricted the use of digital and electronic means in the labor and procedural scope. The work will use the
hypothetical-deductive approach method, with systemic interpretation, bibliographic-documental research
and jurisprudential research from the Superior Courts.
Keywords: technological instruments; means of proof; GPS (Global Positioning System).

INTRODUÇÃO
Nessas últimas décadas, a tecnologia e seus instrumentos mudaram significativamente
as diversas relações sociais, seja no ambiente familiar, comercial, educacional, e inclusive no
ambiente laboral. É latente a mutação do comportamento humano, as pessoas estão cada vez
mais conectadas, utilizando-se de instrumentos tecnológicos que possibilitam a comunicação
e o registro em tempo real.
O avanço está tão acelerado que os próprios smartphones, relógios com funções de um
microcomputador e microcomputadores estão ficando obsoletos rapidamente, e por vezes
estão sendo substituídos frequentemente por outros equipamentos de “nova geração”.
As inovações tecnológicas também refletem no ambiente de trabalho. É o que se observa
com a utilização de equipamentos como o GPS (Global Positioning System) como meio de
controle da jornada de trabalho do trabalhador, Registros Eletrônicos de Ponto, Smartphones
corporativos, e-mail, grupo no WhatsApp dos funcionários, entre outros.
Em virtude desse quadro, há de se observar que os instrumentos probatórios evoluem
conforme a evolução tecnológica e a alteração comportamental dos indivíduos, contrapondo-
se aos documentos físicos trazidos ao processo.
Diante dessa contraposição, nos deparamos com a insegurança jurídica dos operadores
do direito quanto a validade, os requisitos e o valor probatório atribuídos aos meios de prova,
produzidos por meios eletrônicos e digitais.
Diante dessa influência da tecnologia no Direito e o surgimento das provas eletrônicas
e digitais, surgem questionamentos a respeito da validade dessas provas, sobre sua
imodificabilidade, sobre a existência ou não de violação à segurança jurídica com o uso
dessas provas atípicas e se há necessidade de alguma alteração normativa para que haja sua
aceitação.

I. GPS (GLOBAL POSITIONING SYSTEM) COMO MEIO ELETRÔNICO


DE PROVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Em primeiro lugar, é importante destacar que o conceito de prova a ser utilizado é o
de meio ou elemento pelo qual a prova será produzida e que contribuirá para a formação do
convencimento do juiz a respeito da existência dos fatos alegados.

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Estudo comparado do gps como meio eletrônico de prova nos ordenamentos português e brasileiro
Flavia Ferreira Jacó De Menezes - Juliane Cristina Silvério de Lima

Ademais, releva-se destacar que vigora no direito processual brasileiro o princípio da


atipicidade das provas, sendo admitidos todos os meios legais e moralmente legítimos, ainda
que não especificados em lei, para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a
defesa e que possam influir eficazmente na convicção do juiz (art. 369, do CPC)3.
Desta forma, em princípio, as provas digitais e eletrônicas são admissíveis, por se
tratarem de provas atípicas, desde que produzidas por meios moralmente legítimos e que seja
possibilitado o efetivo contraditório à parte contrária. Não há, portanto, que se exigir uma
regulamentação específica para possibilitar a utilização desse novo meio probatório.
Acresça-se o fato de que o direito à prova é uma garantia constitucional, que deriva do
exercício do devido processo legal e do contraditório, que alçam o direito de produzir provas
eletrônicas e digitais ou com embasamento tecnológico ao patamar constitucional.
Com relação a veracidade das informações contidas na prova eletrônica ou digital,
consoante afirma o art. 208 do CPC, as declarações que constarem no documento eletrônico
serão presumidas verdadeiras. Em caso de existência de dúvidas ou impugnação ao documento,
poderá a parte comprovar seu conteúdo ou validade por todos os meios admitidos em direito
(art. 409, do CPC).
Outrossim, tratando-se de registros que podem se perder com o tempo, a legislação
brasileira possibilita que seja lavrada ata notarial, a fim de que sejam comprovados atos
gravados por meios tecnológicos ou digitais (art. 384 do CPC). Observe-se que, “a ata notarial
é hibrida, a exemplo do que ocorre com a prova emprestada. Tem uma forma documental, que
será uma ata lavrada pelo tabelião, mas seu conteúdo é de prova testemunhal, já que o teor da
ata será justamente as impressões do tabelião a respeito dos fatos que presenciou” (NEVES,
2018, p. 762).
A jurisprudência, em âmbito trabalhista, é bem restrita sobre a temática. O Tribunal
Superior do Trabalho vêm admitindo o uso do GPS (Global Positionig System), seja em
telefones celulares, tablets ou pelo sistema de vigilância de veículos, como instrumento de
controle da jornada de trabalho, como se observa nas seguintes ementas:

RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NA VIGÊNCIA DA LEI Nº 13.015/2014.


HORAS EXTRAS. TRABALHO EXTERNO. MECÂNICO E MOTORISTA.
SISTEMA DE RASTREAMENTO VIA SATÉLITE E UTILIZAÇÃO DE
APARELHO CELULAR. POSSIBILIDADE DE CONTROLE DA JORNADA
DE TRABALHO. Nos termos do artigo 62, inciso I, da CLT, os empregados que
desenvolvem atividade externa incompatível com a fixação de horário de trabalho
não fazem jus às horas extras. Dessa forma, o fato de o trabalhador prestar serviços
de forma externa, por si só, não enseja o seu enquadramento na exceção contida
no inciso I do artigo 62 da CLT, visto que é relevante a comprovação de que exista
incompatibilidade entre a natureza da atividade exercida pelo empregado e a

3
Art. 369, CPC. As partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmen-
te legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar a verdade dos fatos em que se funda o
pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz.

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Estudo comparado do gps como meio eletrônico de prova nos ordenamentos português e brasileiro
Flavia Ferreira Jacó De Menezes - Juliane Cristina Silvério de Lima

fiscalização do seu horário de trabalho. In casu, o Regional de origem concluiu que


o reclamante foi contratado pela reclamada para exercer a função de mecânico de
manutenção de máquinas pesadas, tendo que também dirigir o veículo da empresa
para os seus deslocamentos para a prestação de serviços, veículo este que possuía
rastreamento por satélite, além de comunicação por celular. Apesar disso, a Corte
a quo entendeu ausente o controle de jornada de trabalho do autor, motivo pelo
qual o inseriu na exceção prevista no artigo 62, inciso I, da CLT. Entretanto, o TRT
de origem não deu a exata subsunção da descrição dos fatos narrados ao conceito
contido no artigo 62, inciso I, da CLT. Isso porque se verifica, do acórdão regional,
que, além da comunicação por celular, existia o rastreamento via satélite do
caminhão utilizado pelo autor. A reunião desses elementos fáticos demonstra que
havia a possibilidade de que a reclamada tivesse conhecimento das horas trabalhadas
pelo empregado, sendo suficiente para demonstrar que vigorava uma condição
indireta de controle da jornada de trabalho do autor, que possibilitava a apuração
da existência de labor além do horário de trabalho ajustado. O entendimento no
âmbito deste Tribunal é de que o rastreamento via satélite viabiliza o controle
da jornada de trabalho do empregado motorista, porquanto se realiza por
meio de aparelho que capta sinais de GPS e permite a transmissão de dados
como a localização exata do veículo, tempo no qual ficou parado, bem como
a velocidade em que trafega. Conclui-se, portanto, que o Tribunal Regional, ao
inserir o autor na exceção do artigo 62, inciso I, da CLT, aplicou mal esse dispositivo
de lei ao caso concreto. Precedentes. Recurso de revista conhecido e provido. (RR-
16888-10.2016.5.16.0003, 2ª Turma, Relator Ministro José Roberto Freire Pimenta,
DEJT 25/10/2019).

RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NA VIGÊNCIA DA LEI Nº 13.015/2014


E DA IN Nº 40 DO TST. LEI N° 13.467/2017. HORAS EXTRAS. MOTORISTA
DE CAMINHÃO. ATIVIDADE EXTERNA. CONTROLE DA JORNADA DE
TRABALHO. A sentença acolheu o pedido do reclamante - motorista - de horas
extras, em relação a período anterior à vigência da Lei 12.619/2012. O fato
de o empregado prestar serviços de forma externa, por si só, não enseja o seu
enquadramento na exceção contida do artigo 62 da CLT. O rastreamento via satélite,
diferentemente do tacógrafo, viabiliza o controle da jornada de trabalho do
empregado motorista, porquanto se realiza mediante aparelho que capta sinais
de GPS e permite a transmissão de dados, como a localização exata do veículo,
o tempo no qual ficou parado e a velocidade em que trafegava. Viabilizava-se,
dessa forma, o controle da jornada de trabalho pela Reclamada, com a utilização do
rastreamento via satélite. Julgados. Recurso de revista de que se conhece e a que se
dá provimento. (RR-24327-87.2015.5.24.0002, 6ª Turma, Relatora Ministra Kátia
Magalhães Arruda, DEJT 28/06/2019).

Ademais, a 2ª Turma do TST já se posicionou no sentido de que as provas obtidas por


meio de aparelhos eletrônicos, tal como o GPS, não violam a intimidade e privacidade se
presentes outros requisitos constitucionais que tornem proporcional a restrição.

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VÍDEO MONITORAMENTO. VEÍCULO DA EMPRESA. GRAVAÇÃO


AMBIENTAL. PROVA LÍCITA. No caso, a reclamada, empresa de segurança
privada, instalou câmera de vídeo no veículo onde os requeridos trabalhavam, a
fim de verificar a conduta dos mesmos durante atividades externas. A controvérsia
diz respeito a licitude da prova obtida mediante a gravação do ambiente de
trabalho. É sabido que a intimidade e a privacidade das pessoas não constituem
direitos absolutos, podendo sofrer restrições, como, por exemplo, quando
presentes os requisitos exigidos pela Constituição (art. 5º, XII). Da mesma
forma, o poder diretivo e fiscalizador do empregador não são absolutos, pois
nosso ordenamento jurídico veda condutas que agridam a privacidade, a
intimidade e a dignidade dos trabalhadores. Segundo a Corte de origem, por
se tratar de empresa de segurança patrimonial, a prova dos fatos ocorridos
dentro do veículo da reclamada durante as atividades externas não poderia
ser obtida por outros meios que não o monitoramento por vídeo, GPS e outros
dispositivos de segurança, razão pela qual admitiu a utilização das gravações
ambientais feitas. (RR-44900-19.2012.5.17.0012, 2ª Turma, Relatora Ministra
Delaíde Miranda Arantes, DEJT 23/08/2019).

II. O GPS (GLOBAL POSITIONING SYSTEM) COMO MEIO ELETRÔNICO


DE PROVA NO ORDENAMENTO PORTUGUÊS
Feitas as considerações quanto a validade, os requisitos e o valor probatório atribuídos
ao GPS no ordenamento jurídico brasileiro, em complemento à jurisprudência brasileira
apontada, cumpre-se analisar a jurisprudência construída no sistema jurídico português.
O ordenamento jurídico português tem tratado o uso de provas eletrônicas sob o ponto
de vista da proteção dos dados pessoais do trabalhador, com destaque para o artigo 21 do
Código do Trabalhador Português, o qual nos diz que a utilização de meios de vigilância à
distância no local de trabalho está sujeita à autorização da Comissão Nacional de Proteção
de Dados.
Em Portugal, a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) controla e fiscaliza o
processamento de dados pessoais em respeito pelos direitos do homem e pelas liberdades e
garantias consagradas na Constituição e na lei.
No contexto laboral, não há previsão expressa da utilização do GPS, sendo o tema
explorado pela doutrina e da jurisprudência portuguesa.
Para Teresa Coelho Moreira4, a instalação de um sistema de rastreamento, de forma
oculta, constitui “uma violação ilegítima do direito à autodeterminação informativa,
concretizando, talvez o atentado mais grave me matéria de proteção e dados na medida em
que tem consequências extremamente intrusivas”.

4
MOREIRA, Teresa Coelho. As novas tecnologias de informação e comunicação: Um Admirável
Mundo Novo do trabalho? in Estudos de Homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda, Volume VI, Edição
da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coimbra: Almedina, 2012. p. 953-973.

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Estudo comparado do gps como meio eletrônico de prova nos ordenamentos português e brasileiro
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Nessa linha, recente decisão do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal considerou


que houve violação do direito à privacidade pela obrigação de manter ligado dispositivo de
localização, como o GPS:

NULIDADE DO ACÓRDÃO. TEMPO DE TRABALHO. TEMPO DE


DISPONIBILIDADE. DIREITO AO DESCANSO. DANOS NÃO PATRIMONIAIS
[…] a ré violou o direito à privacidade do autor, já que estava obrigado a ter ligado
o dispositivo de localização (GPS, PDA e Telemóvel), 24 horas por dia, seis dias
por semana, isto é, muito para além do período normal de trabalho, quer diário quer
semana, legalmente previsto. (…) Os dispositivos de geolocalização facultam a
obtenção de um vasto manancial de dados relativos ao utilizador, os quais permitem,
consoante a extensão de dados a tratar, elaborar perfis comportamentais ao rastrear as
movimentações realizadas e, nessa medida, identificar hábitos de vida pelos percursos
efetuados, pelos locais frequentados, pelos tempos de permanência. Os dispositivos
de geolocalização, em particular o GPS, são comummente definidos como sistemas
de rastreamento de objetos e/ou pessoas e, nessa medida, constituem uma ingerência
na via privada. (…) Mas mais, constitui um risco sério de invasão da privacidade,
entrando na esfera da sua vida pessoal e da sua privacidade. E, por isso, constitui um
tratamento de dados pessoais. (…) A ré, através do dispositivo de geolocalização,
localizava o veículo/reboque usado pelo autor, incluindo para fins particulares, como
lhe era permitido, ou em qualquer outro local da sua escolha e interesse, 24 horas por
dia e 6 dias por semana, isto é, muito para além do seu período normal de trabalho
diário e semanal, legalmente previsto. Ou seja, sabendo a ré qual era a residência do
autor, através do dispositivo de geolocalização ficava a saber, por exemplo, se o autor
pernoitava ou não em casa e, se não, qual a localidade e a rua onde a pernoita ocorreu
e a que distância se encontrava da sua residência ou da sede da empresa. Assim,
através do dispositivo de geolocalização instalado na viatura, podia elaborar os
perfis comportamentais do autor e, dessa forma, ao rastrear as movimentações
realizadas, identificar os hábitos de vida do autor, pelos percursos efetuados,
pelos locais frequentados e pelos tempos de permanência. E estes factos (…)
respeitavam, com toda a clarividência, à vida privada do autor, quando ocorridos
fora do período normal de trabalho, diário e semanal, legalmente previsto e
enquadram-se na previsão do artigo 26.º da CRP. (…) A ré violou o direito do autor
ao repouso e aos lazeres (pessoais e familiares) e o direito à privacidade. (Processo
2066/15.0T8PNF.P1.S1, 4 Secção, Relator: Ribeiro Cardoso, Data: 09/01/2019).

Consoante a decisão da Corte Portuguesa, ainda que a utilização do GPS seja


legítima, mister a análise da utilização desse meio eletrônico sob o influxo do Princípio da
proporcionalidade, a fim de que não haja a violação de outro direito fundamental, como a
intimidade e privacidade do empregado.
Para Teresa Coelho Moreira5, “o princípio da proporcionalidade, que está aqui em
causa, quando aplicado ao âmbito laboral, pressupõe um juízo prévio sobre a necessidade ou


5
MOREIRA, Teresa Coelho–A Discriminação em Razão da Idade no Contexto de uma População
Envelhecida na EU,Minerva, Revista de Estudos Laborais, Ano VIII –I da 3.ª série –n.º 1 e 2, 2012,pág 101.

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Estudo comparado do gps como meio eletrônico de prova nos ordenamentos português e brasileiro
Flavia Ferreira Jacó De Menezes - Juliane Cristina Silvério de Lima

indispensabilidade da medida e um outro, posterior, sobre a proporcionalidade dos sacrifícios


que comporta para os direitos fundamentais dos trabalhadores”.
Tem-se, portanto, a questão emblemática da supremacia dos direitos fundamentais em
relação ao direito privado. Para o jurista Claus Wilhelm Canaris6 “ela radica no fato de
os direitos fundamentais, enquanto parte da Constituição, terem um grau mais elevado na
hierarquia das normas do que no Direito Privado, podendo, por conseguinte, influenciá-lo. De
outro modo, a Constituição em princípio, não é o lugar correto nem habitual para regulamentar
as relações entre cidadãos individuais e entre pessoas públicas.”
Desta feita, se o GPS for utilizado de modo indevido, ou seja, se houver desequilíbrio
entre a real necessidade e a utilização, torna-se um método de controle restritivo do direito
fundamental à reserva da intimidade da vida privada.
Observa-se nitidamente que o uso do poder fiscalizatório do empregador, que a ele
é legitimado, não poderá extrapolar a esfera privada do trabalhador. Sendo a reserva da
intimidade da vida privada protegida como um direito fundamental.

III. CONCLUSÃO
Apesar das inovações tecnológicas introduzirem novas formas de produção de provas,
vigora no direito processual brasileiro o princípio da atipicidade das provas, sendo admitidos
todos os meios legais e moralmente legítimos, ainda que não especificados em lei.
Tratando-se de provas atípicas, em princípio, as provas digitais e eletrônicas são
admissíveis, desde que produzidas por meios moralmente legítimos e que seja possibilitado o
efetivo contraditório à parte contrária, não havendo necessidade de regulamentação específica
para possibilitar a utilização desse novo meio probatório.
Contudo, em que pese o direito à prova seja uma garantia constitucional, que deriva do
exercício do devido processo legal e do contraditório, é importante que sua utilização se dê
de forma proporcional, sem que haja violação de outros direitos fundamentais do empregado,
como analisado pelas Cortes do Brasil e de Portugal, sob pena de ser restringido o uso de
meios digitais e eletrônicos em âmbito laboral e processual.

REFERÊNCIAS
CANARIS, Wilhelm Claus. A influência dos Direitos Fundamentais sobre o Direito Privado na
Alemanha. Revista Latino Americana de Estudos Constitucionais. ISSN 1678-6742, número 3.
janeiro a junho.2004. pag. 375.
CAPELA, Joana Fuzeta da Ponte Nunes. O GPS como método oculto de investigação no direito processual
penal e no direito do trabalho. Tese de Mestrado em Ciências Jurídico-Forenses. Universidade de
Lisboa. Disponível em: http://hdl.handle.net/10451/40312. Acesso em 11 fev. 2020.


6
CANARIS, Wilhelm Canaris. A influência dos Direitos Fundamentais sobre o Direito Privado na
Alemanha. Revista Latino Americana de Estudos Constitucionais n.3. janeiro a junho.2004. pag. 375.

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Estudo comparado do gps como meio eletrônico de prova nos ordenamentos português e brasileiro
Flavia Ferreira Jacó De Menezes - Juliane Cristina Silvério de Lima

SANTOS, Susana Ferreira dos. As perspectivas civis do contrato de trabalho - o teletrabalho


subordinado: seu estudo nos ordenamentos jurídicos português e espanhol. Tese de Doutorado
em Direito Privado. Instituto Politécnico de Bragança. Disponível em: http://hdl.handle.
net/10198/12840. Acesso em 11 fev. 2020.
MOREIRA, Teresa Coelho. As novas tecnologias de informação e comunicação: Um Admirável
Mundo Novo do trabalho? in Estudos de Homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda, Volume
VI, Edição da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coimbra: Almedina, 2012. p.
953-973.
MOREIRA, TERESA COELHO–A Discriminação em Razão da Idade no Contexto de uma População
Envelhecida na UE, Minerva, Revista de Estudos Laborais, Ano VIII –I da 3.ª série –n.º 1 e 2,
2012, pag.101.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil – volume único. 10. Ed.
Salvador: Juspodvim, 2018.

— 590 —
Uma proposta de educação ambiental
a partir do projeto “praia linda, praia limpa”
da Universidade de Fortaleza

Paulo Roberto Meyer Pinheiro1


Mônica Mota Tassigny 2

Resumo: As Instituições de Ensino Superior possuem um papel fundamental no processo educativo


ambiental: despertar a consciência dos alunos para a preservação e promoção do meio ambiente
ecologicamente equilibrado. Neste sentido, a Política Nacional de Educação Ambiental atribui a essas
instituições o panejamento e execução de programas permanentes de educação ambiental, de modo
formal e não-formal. Assim, o presente estudo propõe analisar o Projeto Praia Linda, Praia Limpa, da
Universidade de Fortaleza a fim de identificar se o mesmo consiste em uma prática educativa ambiental,
de cunho não-formal, capaz de promover a consciência dos estudantes, na esfera individual e coletiva, bem
como a efetividade da referida política e do próprio direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, previsto no artigo 225, da Constituição Federal da República do Brasil de 1988. Em sede de
conclusão, observa-se que o projeto em questão deve ser classificado como uma ação de educação ambiental
não-formal que vai além dos alunos, alcançando professores, colaboradores e a própria sociedade civil,
como um todo. Constata-se, igualmente, a existência de dois outros projetos similares (Limpa Mar e Clean),
de iniciativa dos próprios alunos da instituição, o que demonstra que a educação ambiental promovida está
resultando em um processo de protagonismo social dos estudantes. Trata-se de uma pesquisa teórica e
empírica, exploratória, qualitativa, de cunho bibliográfico e documental, com observação in loco.
Palavras-chave: Projeto Praia Linda, Praia Limpa; Educação ambiental não-formal; Instituições de
Ensino Superior; Coleta de resíduos sólidos; Litoral cearense.

1
Professor Coordenador da Universidade de Fortaleza - UNIFOR e Doutorando em Direito Públi-
co - Desafios sociais, incerteza e direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (FDUC).
E-mail: paulomeyer@unifor.br
2
Professora Doutora Titular do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Univer-
sidade de Fortaleza - UNIFOR. E-mail: monicatassigny@unifor.br

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Uma proposta de educação ambiental a partir do projeto “praia linda, praia limpa” da Universidade de Fortaleza
Paulo Roberto Meyer Pinheiro - Mônica Mota Tassigny

Abstract: Higher Education Institutions have a fundamental role in the environmental educational
process: to raise students’ awareness of the preservation and promotion of an ecologically balanced
environment. In this sense, the National Environmental Education Policy attributes to these institutions the
planning and execution of permanent environmental education programs, in a formal and non-formal way.
Thus, the present study proposes to analyze the Praia Linda Project, Praia Limpa, from the University of
Fortaleza in order to identify whether it consists of an environmental educational practice, of a non-formal
nature, capable of promoting students’ awareness, in the individual sphere and collective, as well as the
effectiveness of said policy and the fundamental right to an ecologically balanced environment, provided
for in Article 225, of the Federal Constitution of the Republic of Brazil of 1988. In conclusion, it is observed
that the project in question must be classified as a non-formal environmental education action that goes
beyond students, reaching teachers, employees and civil society itself, as a whole. There are also two other
similar projects (Limpa Mar and Clean), initiated by the institution’s own students, which demonstrates that
the environmental education promoted is resulting in a process of social protagonism for the students. It is
a theoretical and empirical, exploratory, qualitative, bibliographic and documentary research, with on-site
observation.
Key words: Non-formal environmental education; Higher education institutions; Solid waste
collection; Ceará coast.

Introdução
O presente trabalho propõe uma análise do Projeto Praia Linda, Praia Limpa, da
Universidade de Fortaleza (UNIFOR), a fim de identificar se o mesmo consiste em uma
ação de educação não- formal, nos termos da legislação vigente, capaz de promover uma
conscientização dos alunos, colaboradores e beneficiários, no que diz respeito à importância
da promoção e defesa do direito fundamental ao meio ambiente equilibrado, previsto no
artigo 225 da Constituição Federal de 1988.
Logo, a relevância do estudo diz respeito à premente necessidade e inafastável obrigação
das Instituições de Ensino Superior (IES) de promoverem, o processo educativo ambiental tanto
no ensino formal quanto não-formal, como forma de conscientizar estudantes, professores,
colaboradores e a própria sociedade acerca da importância da preservação e promoção do
meio ambiente ecologicamente equilibrado, direito fundamental previsto no art. 225, da
Constituição Federal de 1988.
Segundo José Afonso da Silva (2003), foi a Constituição de 1988 que realmente tratou
o tema do meio ambiente com a devida importância que o assunto requer. Foi nela que se
observou a ideia de efetiva tutela do meio ambiente com mecanismos de manutenção, proteção
e controle. O dispositivo constitucional trouxe o reconhecimento de que meio ambiente
preservado é direito fundamental principalmente para as próximas gerações. Com isso, o
direito ao meio ambiente equilibrado assume o caráter de um direito fundamental da pessoa
humana, para além do simples aspecto da atribuição de órgãos ou de entidades públicas,
conforme ocorria em Constituições mais antigas (SILVA, 2003, p.43).
Nessa perspectiva, a previsão do artigo 225 da Constituição em vigor alcança,
indubitavelmente, o meio ambiente marinho, cuja poluição preocupa a sociedade, no século
XXI. Da mesma forma, é importante observar que a proteção à fauna, transcrita no inciso
VII, do § 1°, do citado artigo, inclui a defesa da fauna marinha, diretamente prejudicada pelos
resíduos sólidos descartados de maneira inadequada nas praias (FREITAS,2009).

— 592 —
Uma proposta de educação ambiental a partir do projeto “praia linda, praia limpa” da Universidade de Fortaleza
Paulo Roberto Meyer Pinheiro - Mônica Mota Tassigny

É com foco nesse ambiente, especificamente, que surgem pelo país iniciativas
importantes como o Projeto Praia Linda, Praia Limpa, que corresponde à reunião de um
grupo de pessoas com o objetivo de recolher resíduos sólidos encontrados nas faixas de areia
do litoral cearense, redirecionando-os para a reciclagem ou para o destino final apropriado.
As ações são desenvolvidas pelo corpo docente e discente da Universidade de Fortaleza, bem
como por colaboradores da Instituição e cidadãos da sociedade civil que aderem a um projeto
voluntariamente.
No caso em estudo, pretende-se identificar se o referido projeto pode ser classificado
como uma prática educativa ambiental não-formal, nos termos da Política Nacional de
Educação Ambiental (PNEA), instituída pela Lei 9795/1999, capaz de promover a efetiva
sensibilização do indivíduo, na esfera individual e coletiva, de forma a despertar nos alunos
uma postura ativa no tocante às questões ambientais, em prol da preservação e promoção da
qualidade do meio ambiente.

Metodologia
Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, documental, de natureza descritiva e exploratória.
A abordagem é qualitativa. Foi realizada ainda uma pesquisa de campo, a partir de presença
in loco e investigação teórica e documental de base, praticando-se a técnica de observação
do trabalho de alunos e professores da universidade de Fortaleza durante a ação de coleta de
resíduos sólidos na Praia do Futuro.

Resultados e Discussão
O controle da poluição marinha está ligado à gestão ambiental e ao processo de tomada
de decisão para o gerenciamento da Zona Costeira, fazendo-se necessário a participação da
sociedade em suas diferentes formas de organização (SANTOS; CÂMARA, 2002). Ao longo
do tempo, o litoral vem sofrendo um processo de degradação em virtude da intervenção
humana, que altera a qualidade das águas e de seu ecossistema, prejudicando assim a vida
marinha como um todo. Diante da importância da preservação das praias, são necessárias
medidas educacionais voltadas para a manutenção, preservação e promoção do litoral.
Ademais, por ser a praia, um local muito democrático e frequentado, o descarte adequado
de resíduos sólidos nesse ambiente constitui tema bastante recorrente nas discussões atuais
(ARAÚJO,2003).
No caso específico da Universidade de Fortaleza, ganha destaque o Projeto Praia Linda,
Praia Limpa. Noticia-se que, em ação específica realizada no dia 11 de agosto de 2018, das
8h às 11h, os participantes do projeto percorreram o litoral cearense a fim de coletar resíduos
sólidos, no trecho que vai da Barra do Ceará à Sabiaguaba. Para tanto, reuniram-se alunos
de quatro centros de ciência, professores e colaboradores da Universidade, com o apoio e a
orientação dos professores do curso de Engenharia Ambiental e Sanitária. No dia anterior,
como um requisite preparatório, os participantes receberam um treinamento ministrado por
técnicos da Prefeitura de Fortaleza, versando sobre a coleta adequada de resíduos sólidos
(UNIFOR, 2018).

— 593 —
Uma proposta de educação ambiental a partir do projeto “praia linda, praia limpa” da Universidade de Fortaleza
Paulo Roberto Meyer Pinheiro - Mônica Mota Tassigny

Segundo informações extraídas do sítio oficial da Unifor, o desejo de implantar a


conscientização da preservação ambiental na população local foi o que impulsionou esses
participantes, e essa consciência brotou nos alunos a partir do processo educativo ambiental
realizado dentro da Instituição de Ensino Superior (IES).
A Política Nacional de Educação Ambiental (PNEA), instituída pela Lei 9.795, de 27
de abril de 1999, determina a promoção da educação ambiental enquanto um “componente
essencial e permanente da educação nacional”, presente em todas as esferas e modalidades
do processo educativo, tanto no âmbito formal quanto não-formal (artigo 2º) (BRASIL,
1999). Assim, o processo educativo ambiental deve compor os currículos das instituições
de ensino públicas e privadas da educação superior (artigo 9º, da PNEA), a quem incumbe
implementar uma prática educativa integrada, contínua e permanente no ensino formal
(artigo 10) (BRASIL, 1999). Todavia, isso não é suficiente, pois a educação ambiental não se
esgota no aspecto formal do ensino, em sala de aula; deve compreender práticas de educação
não-formal, traduzidas em “experiências de educação popular, com ênfase na formação para
cidadania por meio de práticas sociais” (MARANDINO, M. et al, 2009, p.9).
Nessa linha, a Lei 9795/99 estabelece, para as IES, o papel de formular e executar
programas e atividades pautados na educação ambiental não-formal, como “as ações e práticas
educativas voltadas à sensibilização da coletividade sobre as questões ambientais e à sua
organização e participação na defesa da qualidade do meio ambiente” (artigo 13, parágrafo
único, inciso II, da Lei 9795/99) (BRASIL,1999).
A educação ambiental deve assumir um papel ativo no processo intelectual, nas mais
diversas áreas de conhecimento, voltado para a comunicação, a compreensão e a solução
dos problemas enfrentados pelos indivíduos, na esfera individual e coletiva (VIGOSTKY,
1991). No caso do Projeto em estudo, em que participaram ativamente alunos, professores e
colaboradores da Universidade, além de indivíduos da sociedade civil, o resultado alcançado
foi o seguinte: a) Praia da Barra do Ceará: retirada de 95 quilos de resíduos sólidos; b) Praia
de Iracema: 73,5 quilos de resíduos sólidos coletados; c) Praia do Futuro: retirada de 50
quilos de resíduos sólidos; d) Praia da Sabiaguaba, 133 quilos de resíduos sólidos coletados.
No total, foram retirados 351,50 quilos de resíduos sólidos do litoral de Fortaleza, no Estado
do Ceará (UNIFOR, 2018b).
Em momento posterior, e considerando os esforços realizados, a solução para o descarte
final adequado do lixo coletado foi encaminhar o material para a Sociedade Comunitária de
Reciclagem de Lixo do Pirambu (Socrelp), que recebeu 168,50 quilos de material reciclável
recolhidos nas Praias de Iracema e Barra do Ceará; e para a Associação dos Catadores do
Jangurussu (Ascajan), a quem foram encaminhados 183 quilos de resíduos sólidos coletados
nas Praias do Futuro e Sabiaguaba (UNIFOR,2018b).
Os números demonstram um engajamento expressivo de alunos, professores e
colaboradores com a causa da preservação e promoção do meio ambiente ecologicamente
equilibrado. Nessa perspectiva, resta forçoso observar que se trata, de fato, de uma experiência
de educação popular capaz de promover o exercício da cidadania pelos participantes. Ademais,
configura uma ação educativa planejada, voltada à sensibilização da coletividade no que
concerne às questões ambientais, que promove a participação dos atores sociais na defesa

— 594 —
Uma proposta de educação ambiental a partir do projeto “praia linda, praia limpa” da Universidade de Fortaleza
Paulo Roberto Meyer Pinheiro - Mônica Mota Tassigny

da qualidade do meio ambiente. Desta feita, observando o que dispõe o artigo 13, parágrafo
único, inciso II, da Lei 9795/99, a iniciativa deve ser classificada como uma ação de educação
ambiental não-formal capaz de promover mudanças não só na qualidade do ambiente, mas na
mente dos sujeitos envolvidos, mediante a conscientização dos mesmos para uma participação
mais ativa e mais cidadã, seja na esfera individual ou coletiva.
Ademais, verificou-se que há dois outros projetos similares, no contexto desta
Universidade, especificamente, de iniciativa dos próprios alunos, enquanto cidadãos
conscientes e transformadores da realidade socioambiental vigente. Trata-se do Projeto Limpa
Mar, que surgiu da iniciativa de Ycaro Belarmino, aluno de graduação da UNIFOR, movido
pelo desejo de atuar diretamente na manutenção do litoral cearense (UNIFOR, 2018), e do
Projeto Clean, criado por criado por Bruna Ferreira, Larissa Cajado, Levir Colares e Renan
Dantas, alunos do 4º semestre de Arquitetura e Urbanismo, da UNIFOR, motivados pelo
desejo de contribuir com a preservação do litoral cearense (UNIFOR,2018a).
No primeiro caso, a ação nasceu a partir de uma ideia da tia do aluno, cujo objetivo era
juntar tampinhas de garrafas pet e doá-las para o abrigo Lar Torres de Melo, com vistas a
trocá-las por cadeiras de rodas para os idosos assistidos pelo local, em campanhas específicas.
O Projeto cresceu e hoje busca retirar de diversas praias todo o descarte inadequado de
resíduos sólidos encontrado. Segundo relato do precursor do projeto, em uma única ação
o grupo coletou 30 quilos de resíduos. Hoje, o projeto conta com 50 participantes e todo o
material coletado é encaminhado para postos de coleta e catadores de material reciclável
(UNIFOR,2018).
No caso do projeto Clean, este chegou a recolher 270 quilos do litoral cearense,
posteriormente direcionados para vários pontos de coleta e reciclagem do município de
Fortaleza. O projeto teve início com ações de coleta pontuais, assume uma maior abrangência
a partir da inquietação dos seus participantes que, com o anseio de dar maior visibilidade às
ações, optou pela criação de um perfil nas redes sociais como forma de divulgação, visando
aumentar o grupo de coleta e contribuir ainda mais para o processo de educação ambiental
da população. Dessa forma o Projeto Clean, criado por alunos da UNIFOR, estimula o
engajamento de outros participantes, difundindo a ideia de conscientização para a conservação
das praias (UNIFOR,2018a).
Percebe-se, mediante análise dos dados levantados, que a proporção da questão
ambiental cresce à medida que se observa o engajamento de outros protagonistas no processo
educacional, unindo diversos sistemas de conhecimento, capacitação de profissionais e o
território acadêmico numa concepção interdisciplinar (JACOBI,2003).

Conclusão
No presente estudo, após análise dos dados apresentados, conclui-se que o Projeto Praia
Linda, Praia Limpa, da Universidade de Fortaleza, deve ser classificado como uma prática
educativa ambiental não-formal que promove o engajamento de diversos protagonistas no
processo educacional, despertando nos alunos, professores, colaboradores, e na própria

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Uma proposta de educação ambiental a partir do projeto “praia linda, praia limpa” da Universidade de Fortaleza
Paulo Roberto Meyer Pinheiro - Mônica Mota Tassigny

sociedade civil, um protagonismo essencial ao processo de conhecimento e conscientização


da sua relação, individual e coletiva, com o meio ambiente.
Isto porque, trata-se de uma experiência prática com foco na formação do indivíduo para
a cidadania, cuja relevância sócio ambiental reside não somente na limpeza das praias, mas
na reforma do pensamento dos sujeitos envolvidos, mediante a conscientização acerca da sua
relação, individual e coletiva, com o meio ambiente. Além disso, o planejamento e execução
de um processo educativo não-formal, nestes moldes, possui o potencial de multiplicar ações
desta ordem, com benefícios para o indivíduo, a sociedade e o meio-ambiente, bem como
para as futuras gerações.
A realidade fática demonstra que a Instituição de Ensino Superior em estudo vem
promovendo medidas capazes de ampliar a eficácia da Política Nacional da Educação
Ambiental e de efetivar os preceitos dessa norma, por meio de projetos de extensão que
denotam o compromisso sócio ambiental com a educação ambiental de professores, alunos,
demais colaboradores e da própria sociedade, haja vista a participação de voluntários na ação
de coleta de resíduos sólidos das praias de Fortaleza/CE.
Destaca-se, portanto, o compromisso dessa IES com a preservação e a promoção do
meio ambiente ecologicamente equilibrado, direito fundamental previsto no artigo 225, da
Constituição Federal de 1988. Por outro lado, visualiza-se que o processo educativo ambiental
desempenhado pela referida Universidade vem impactando seus estudantes de uma maneira
significativa, como se pode verificar da criação dos Projetos Limpa Mar e Clean, ambos
voltados para a preservação e promoção da qualidade do meio ambiente, e de autoria de
alunos da graduação da UNIFOR.
A educação ambiental deve conceber, no processo intelectual, em todas as áreas do
conhecimento, o planejamento e execução da comunicação, a facilitação do entendimento
e dos desafios a serem enfrentados, assim como a identificação e efetivação de possíveis
soluções para os problemas constatados, por parte dos próprios indivíduos, em sua esfera
individual e coletiva.
O papel das Instituições de Ensino Superior mostra-se, desta feita, essencial à promoção
do direito fundamental ao meio ambiente equilibrado, pois é no cenário universitário,
primordialmente, que o conhecimento científico é produzido e revisitado, fazendo avançar
a ciência, que hoje necessita de novos parâmetros de conduta no que diz respeito à relação
homem-natureza.

Referências
ARAUJO, Maria Christina Barbosa de. Resíduos sólidos em praias do litoral sul de Pernambuco:
origens e consequências. 2003. 104 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Oceanografia, Centro
de Tecnologia e Geociências, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2003. Disponível
em: https://repositorio.ufpe.br/bitstream/123456789/8892/1/arquivo8360_1.pdf. Acesso em:
26 ago. 2018.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Org. Alexandre de
Moraes. 36. ed. São Paulo: Atlas, 2012.

— 596 —
Uma proposta de educação ambiental a partir do projeto “praia linda, praia limpa” da Universidade de Fortaleza
Paulo Roberto Meyer Pinheiro - Mônica Mota Tassigny

BRASIL. Lei nº 9.795, de 27 de abril de 1999. Dispõe sobre a educação ambiental, institui a Política
Nacional de Educação Ambiental e dá outras providências. Política Nacional de Educação
Ambiental. Brasília, DF, 28 abr. 1999. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
Leis/L9795.htm. Acesso em: 22 mar. 2018.
FREITAS, D. P. Poluição marítima: legislação, doutrina e jurisprudência. Curitiba: Juruá, 2009.
Disponível em: https://periodicos.unifap.br/index.php/planeta/article/view/3397/jann9.pdf.
Acesso em: 26 ago 2018.
JACOBI, P. “Educação ambiental, cidadania e sustentabilidade”. Cadernos de pesquisa, vol. 113, p.
189-205. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, março, 2003. Disponível em: http://www.scielo.
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SILVA. José Afonso. Direito Ambiental constitucional. 4ª ed. São Paulo: Malheiros. 2003.
MARANDINO, M. et al. A educação não formal e a divulgação científica: o que pensa quem faz? In:
Encontro Nacional de Pesquisa em Ensino de Ciências, ENPEC, 4., 2004,Bauru. Disponível
em: http://paje.fe.usp.br/estrutura/geenf/textos/oquepensa_trabcongresso5.pdf. Acesso em: 26
ago. 2018.
SANTOS, T. C. C. e CÂMARA, J. B. D. (orgs.) Geo Brasil 2002: Perspectivas do meio ambiente no
Brasil. Brasília, DF: Edições IBAMA, 2002.
VIGOTSKY, L. A Formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
UNIVERSIDADE DE FORTALEZA (Fortaleza). Iniciativa mobiliza jovens para retirar resíduos do
litoral cearense. 2018. Disponível em: https://www.unifor.br. Acesso em: 26 ago.2018.
UNIVERSIDADE DE FORTALEZA (Fortaleza). Projeto busca conscientizar população de Fortaleza
sobre limpeza das praias. 2018. Disponível em: https://www.unifor.br. Acesso em: 26 ago.
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UNIVERSIDADE DE FORTALEZA (Fortaleza). Projeto da Fundação Edson Queiroz recolhe 351,50
quilos de resíduos do litoral de Fortaleza. 2018. Disponível em: https://www.unifor.br. Acesso
em: 26 ago. 2018b.
UNIVERSIDADE DE FORTALEZA (Fortaleza). Você sabia que são jogadas 5 toneladas de lixo por
dia só na faixa de areia da avenida Beira Mar?. 2018. Disponível em: https://www.unifor.br.
Acesso em: 26 ago.2018c.

— 597 —
Os desafios do direito do trabalho perante
as novas tecnologias e a figura jurídica do
teletrabalho no direito português

Mário Simões Barata1


Susana Sardinha Monteiro2

Resumo: O teletrabalho como realidade laboral emergente é o resultado de alguns fenómenos que
confluíram para eliminar custos, garantindo às empresas e/ou aos trabalhadores, maior flexibilidade,
adaptabilidade, mobilidade e competitividade. De entre esses fenómenos destacam-se um rápido progresso
científico e tecnológico, com o desenvolvimento e disseminação das tecnologias de informação e de
comunicação (TIC). Este circunstancialismo tem impactado uma das dimensões mais significativas da
vida humana: o trabalho, “forçando” o legislador português a regular a figura do teletrabalho no Código do
Trabalho (CT). Contudo, esta regulamentação não se encontra isenta de críticas, a começar pela respetiva
definição resultado da opção legislativa de apenas disciplinar o teletrabalho subordinado. Com este texto
propomo-nos analisar, sintética e criticamente, o regime jurídico português do teletrabalho. Recorrendo a
uma técnica de gestão conhecida como matriz swot, apresentaremos os pontos fortes e fracos da relação
laboral de teletrabalho, assim como um conjunto de oportunidades e de ameaças que a mesma pode
representar, para o trabalhador, para o empregador e para a sociedade em geral.
Palavras-chave: Teletrabalho; TIC; Análise swot

Abstract: Teleworking is an emerging labor reality and the result of several phenomena that converged
to eliminate costs, guarantee companies and / or workers greater flexibility, adaptability, mobility, and
competitiveness. Among these phenomena, rapid scientific and technological progress stands out, with the
development and dissemination of information and communication technologies (ICT). This development
has impacted one of the most significant dimensions of human life: work, “forcing” the Portuguese legislator
to regulate telework in the Labor Code. However, this regulation is not exempt from criticism, starting with

1
Doutor em Direito | Prof. Adjunto do IPL – Politécnico de Leiria |Investigador Integrado do IJP -
Instituto Jurídico Portucalense – Polo de Leiria |Email: mario.barata@ipleiria.pt
2
Doutora em Direito | Prof. Adjunta do IPL – Politécnico de Leiria |Investigadora Integrada do IJP-
Instituto Jurídico Portucalense – Polo de Leiria |Email: susana.monteiro@ipleiria.pt

— 598 —
Os desafios do direito do trabalho perante as novas tecnologias e a figura jurídica do teletrabalho no direito português
Mário Simões Barata - Susana Sardinha Monteiro

the respective definition resulting from the legislative option of only disciplining subordinated telework.
We propose to, synthetically and critically, analyze the Portuguese legal regime relative to teleworking
in this text. Using a management technique known as the swot matrix, we will present the strengths and
weaknesses of the teleworking relationship, as well as a set of opportunities and threats that it can represent,
for the worker, for the employer, and society in general.
Key words: telework, ICT; Swot analysis

1. Teletrabalho: noção e modalidades


O legislador português define o teletrabalho como “a prestação laboral realizada com
subordinação jurídica, habitualmente fora da empresa e através do recurso a tecnologias de
informação e comunicação” no art. 165º do CT.
Trata-se de um contrato de trabalho sujeito a regime especial. Nesse sentido, Menezes
Leitão sustenta que uma das características do moderno Direito do Trabalho é precisamente
o reconhecimento de que certas relações de trabalho possuem especificidades que justificam
regimes distintos do regime geral. Nas situações de regime especiais, as regras gerais do CT
aplicam-se apenas e na medida em que sejam compatíveis com a sua especificidade (art. 9.º
do CT)3.
Impõe-se uma nota prévia relativa à opção do legislador português de apenas regulamentar
o teletrabalho subordinado, ou seja, aquele que se realiza em regime de subordinação jurídica,
sob as ordens e direção do empregador, optando por não regular outros fenómenos em que
se pode manifestar o teletrabalho, nomeadamente o teletrabalho prestado “como trabalho
autónomo (no caso de o trabalhador exercer a sua actividade com independência perante a
outra parte, sem subordinação jurídica) ou em situação de trabalho parasubordinado (no
caso de, apesar da inexistência da subordinação jurídica, o teletrabalhador se encontrar na
dependência económica do beneficiário da actividade)”4. Mantendo-se, no caso específico
do teletrabalho, uma relação de subordinação jurídica, Guilherme Dray defende que o
“método indiciário, habitualmente utilizado para efeitos de apuramento da subordinação
jurídica, deve ser relativizado e adaptado: alguns elementos, tais como a propriedade dos
instrumentos de trabalho, a assunção dos encargos relativos ao consumo de energia elétrica
ou de telecomunicações, ou a incidência do risco de imperfeição ou inutilização do trabalho
executado, devem ser valorizados; inversamente, dever-se-ão desvalorizar enquanto indícios
relevantes o local de trabalho e a inexistência de um horário de trabalho pré-definido pelo
beneficiário da prestação”5.
A noção legal de teletrabalho tem sido escalpelizada pela doutrina. Assim Leal Amado,
destaca os dois elementos que caracterizam o teletrabalho: o elemento geográfico (i.e., o
trabalho realizado à distância) e o elemento tecnológico (i.e., com recurso a tecnologias de
informação e de comunicação)6.

3
São, ainda, contratos de trabalho sujeitos a regime especial, o contrato de trabalho a termo, o con-
trato de trabalho intermitente, o trabalho temporário.
4
LEITÃO, Direito do Trabalho, p. 436.
5
DRAY, Código do Trabalho Anotado, p. 457.
6
AMADO, Contrato de Trabalho, p. 121.

— 599 —
Os desafios do direito do trabalho perante as novas tecnologias e a figura jurídica do teletrabalho no direito português
Mário Simões Barata - Susana Sardinha Monteiro

Diferentemente Monteiro Fernandes destaca as características da subordinação e da


distância quando analisa a noção de teletrabalho. Assim, ao contrário do contrato de trabalho
comum onde o empregador e trabalhador partilham o mesmo espaço, sendo a relação laboral
presencial, o teletrabalho subordinado “organiza-se de modo que o empregador ou a chefia
tem, em cada momento (de um horário de trabalho), a possibilidade de transmitir instruções,
acompanhar diretamente a sua execução e realizar eventuais ações corretivas, sem que se
acham na presença um do outro”7.
Contudo, a noção oferecida pelo legislador é alvo de críticas na doutrina. Nesse sentido,
Monteiro Fernandes considera que a expressão “tecnologias de informação e de comunicação”
é débil e vaga. O autor sustenta que o significado do enunciado aponta para os domínios da
informática e da eletrónica e afirma que estas “existem há muito, com distintas características
e diferentes graus de sofisticação. A expressão não é, pois, inteiramente esclarecedora”.8
Por sua vez Menezes Leitão define teletrabalho como a “prestação de trabalho que se
desenvolve fora do local de trabalho central do empregador, sendo realizado noutro local que
se encontra ligado a esse local de trabalho central por meios de comunicação eletrónicos”9.
Destaca dois elementos característicos do teletrabalho. O primeiro, decorre do facto de ser
realizado habitualmente fora da empresa e especifica três cenários: o teletrabalho ao domicílio
(realizado no próprio domicílio do trabalhador); o realizado num local específico à realização
do teletrabalho; ou o teletrabalho móvel, que é realizado sem a existência de um local de
trabalho fixo. O segundo elemento característico decorre do facto de as comunicações
entre empregador e teletrabalhador serem efetuadas com recurso a TIC, especificando que
“consoante a intensidade da comunicação se pode distinguir entre teletrabalho offline, quando
o teletrabalhador não se encontra em conexão com a empresa durante a atividade, e teletrabalho
on line, quando o trabalhador se encontra permanentemente ligado em rede com a empresa
durante o seu trabalho. Neste último caso, ainda se pode distinguir consoante a conexão se
faz apenas num sentido (one way line) ou nos dois sentidos (two way line), ocorrendo neste
último caso uma ligação permanente entre o computador da empresa e dos trabalhador, que
potencia o poder de direção e o controlo da sua actividade por parte do empregador”10.
Guilherme Dray sustenta que, dada a amplitude do conceito, se admitem várias
modalidades de prestação laboral em regime de teletrabalho: quanto ao local onde é exercida
a atividade laboral e quanto às TIC utilizadas. Quanto ao local distingue quatro situações, a
saber: home based telework (quando a atividade é exercida no domicílio do telebalhador);
o mobile telework (realizado em vários locais de trabalho, tais como aeroportos, hotéis ou
instalações de clientes); telecenters (realizado em centros de multimédia especialmente
concedidos para o efeito, em locais desconcentrados, em especial na periferia das grandes
cidades); telecottages (desenvolvido em centros de multimédia criados em zonas rurais,
especificamente destinados às respetivas comunidades locais); ou de forma alternada nos
locais acima identificados e nas instalações da empresa. No que concerne as TIC, o exercício
da atividade do teletrabalhador, no sentido de garantir uma efetiva comunicabilidade entre

7
FERNANDES, Direito do Trabalho, p. 210.
8
Idem, p. 210.
9
LEITÃO, Direito do Trabalho, p. 435.
10
Idem, p. 436-437.

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Os desafios do direito do trabalho perante as novas tecnologias e a figura jurídica do teletrabalho no direito português
Mário Simões Barata - Susana Sardinha Monteiro

este, o empregador e os colegas de trabalho, pode envolver a utilização de telefones fixos,


móveis, computadores pessoais, rede de internet, sistemas de videoconferência ou correio
eletrónico11.

2. O regime jurídico do teletrabalho


Na análise do regime jurídico do teletrabalho, importa precisar os sujeitos desta relação
laboral, a forma do contrato, bem como alguns aspetos relativos à relação individual de
trabalho e ao direito coletivo.

2.1. O teletrabalhador interno e externo


Da análise do art. 166.º do CT, distingue-se o teletrabalho interno e teletrabalho externo.
O interno decorre quando o trabalhador, inicialmente contratado no regime comum passa a
exercer a sua atividade em regime de teletrabalho. Teletrabalho externo surge nas situações
em que, ab initio, o trabalhador é contratado para exercer a sua atividade segundo este regime
especial.
O legislador tratou diferentemente estas duas situações. Assim, o trabalhador externo
pode exercer a sua atividade – teletrabalho originário - por um período determinado ou
indeterminado. O contrato poderá ser igualmente modificado no sentido de o trabalhador passar
a exercer a sua atividade de acordo com o regime dos demais trabalhadores da empresa (i.e.,
a lei permite a transição do trabalho externo para o trabalho interno). No entanto, o legislador
foi mais cauteloso com os trabalhadores internos que passam a exercer a sua atividade em
regime de teletrabalho. Esta passagem apenas pode ser realizada por acordo escrito entre o
empregador e o teletrabalhador e não pode exceder os três anos12. Este prazo pode, contudo,
ser modificado por IRCT, quer no sentido da sua redução, quer do seu alargamento (art.
167.º, n.º 1 do CT). Findo o prazo, o trabalhador deve retomar o seu posto de trabalho inicial,
mantendo-se o vínculo laboral segundo o regime comum. O acordo de teletrabalho pode ser
unilateralmente denunciado por qualquer uma das partes, durante os primeiros 30 dias da sua
execução. Admite-se, assim, um “direito de arrependimento”13 que não extingue o vínculo
laboral, mas apenas a prestação laboral em regime de teletrabalho.
A lei recortou, contudo, duas situações particulares. Uma, a do trabalhador vítima de
violência doméstica (art. 166.º, n.º 2 do CT) e outra, a do trabalhador com filho com idade até
três anos (art. 166.º, n.º 3 do CT) No primeiro caso não é necessário o acordo entre as partes,
não podendo o empregador opor-se ao pedido do trabalhador que tem, assim, um “direito
potestativo à mudança para o regime de teletrabalho, caso este seja compatível com a atividade

11
DRAY, Código do Trabalho Anotado, p. 457.
12
De acordo com Guilherme Dray a fixação deste limite temporal decorre da “necessidade de evitar
situações de ausência prolongada por parte do trabalhador, potencialmente geradoras de situações de isola-
mento, desenraizamento social e profissional e dificuldades acrescidas na progressão da carreira” in Código
do Trabalho Anotado, p. 461.
13
Ibidem.

— 601 —
Os desafios do direito do trabalho perante as novas tecnologias e a figura jurídica do teletrabalho no direito português
Mário Simões Barata - Susana Sardinha Monteiro

desempenhada”14. No segundo caso, a lei permite ao trabalhador com filho com idade até 3
anos exercer a sua atividade em regime de teletrabalho, desde que tal seja compatível com a
atividade desempenhada e o empregador disponha dos recursos e dos meios para o efeito (art.
166.º, n.º 3 do CT).

2.2. A forma do contrato de teletrabalho


O contrato de teletrabalho é um negócio jurídico formal, pelo que está sujeito a
forma escrita nos termos do n.º 5 do art. 166.º do CT. Tal constitui uma exceção à regra da
consensualidade vertida no art. 110.º daquele Código. Contudo, a lei esclarece que a forma
escrita é exigida apenas para prova da estipulação do regime de teletrabalho”15. Estamos,
assim, perante uma formalidade ad probationem16.
O n.º 5 do art. 166.º do CT enuncia um conjunto de menções obrigatórias que devem
constar do contrato escrito de teletrabalho subordinado, nomeadamente: “identificação,
assinaturas e domicilio ou sede das partes”; indicação da atividade a prestar pelo trabalhador,
com menção expressa do regime de teletrabalho, e correspondente retribuição”, “indicação
do período normal de trabalho”; “propriedade dos instrumentos de trabalho bem como o
responsável pela respetiva instalação e manutenção e pelo pagamento das inerentes despesas
de consumo e de utilização”; e a “identificação do estabelecimento ou departamento da
empresa em cuja dependência fica o trabalhador, bem como quem deve contactar no âmbito
da prestação de trabalho”.

2.3.  O teletrabalho: relações individuais de trabalho


No plano das relações individuais de trabalho, o legislador entendeu afirmar um princípio
fundamental: igualdade de tratamento. Assim, ressalvadas as particularidades da prestação de
trabalho em regime de teletrabalho, o “trabalhador em regime de teletrabalho tem os mesmos
direitos e deveres dos demais trabalhadores” (art. 169.º, n.º 1 do CT) nomeadamente no que
se refere a formação e promoção ou carreira profissionais e outras condições de trabalho. O
legislador sujeitou, ainda, o teletrabalhador, aos limites máximos de duração do trabalho,
diário e semanal, aplicáveis aos restantes trabalhadores17. O teletrabalhador é, também,
abrangido pelo regime jurídico relativo à segurança e saúde no trabalho, bem como pelo
regime jurídico dos acidentes de trabalho e doenças profissionais.
Para além da igualdade de tratamento com os restantes trabalhadores, o teletrabalho,
impões, algumas especificidades de regime que importa destacar. Defende Menezes Leitão
que impende sobre o empregador “um dever mais intenso” de respeito pela privacidade
do teletrabalhador e os tempos de repouso e descanso da família (art. 170.º, n.º 1 do CT).
A questão da privacidade no teletrabalho assume uma relevância especial no caso do
“teletrabalho a domicílio, uma vez que o domicílio pessoal do trabalhador passa a ser

LAMBELHO; GONÇALVES, Direito do Trabalho, p. 136.


14

Art. 166.º, n.º 7 do CT.


15

16
LAMBELHO; GONÇALVES, Direito do Trabalho, p. 136.
17
Podemos criticar esta disposição por não prever a flexibilidade do tempo e do horário de trabalho.
Mais ainda, destacamos a dificuldade de controle da duração do trabalho em situações de teletrabalho.

— 602 —
Os desafios do direito do trabalho perante as novas tecnologias e a figura jurídica do teletrabalho no direito português
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considerado local de trabalho, perdendo parcialmente as funções de protecção da sua vida


privada”18. Consequentemente, o legislador entendeu introduzir algumas regras específicas,
pelo que as visitas do empregador ao local de trabalho (domicílio) só devem ter por objeto o
controlo da atividade do teletrabalhador, bem como dos respetivos instrumentos de trabalho e
só podem ser efetuadas dentro de um hiato temporal (entre as nove a as dezanove horas), com
a assistência do trabalhador ou de pessoa por ele designada (art. 170.º, n.º 2 do CT). É nestes
termos que se concretiza “o direito à reserva da intimidade da vida privada (…) maxime em
caso de teletrabalho ao domicílio.
Impende também sobre o empregador, um “dever mais intenso” de proporcionar ao
teletrabalhador boas condições de trabalho, tanto do ponto de vista físico como psíquico (art.
170.º, n.º 1 in fine). A doutrina crítica a redação do preceito. Deste modo, Monteiro Fernandes
afirma “que este enunciado legal causa alguma perplexidade. Se o local de trabalho está, por
definição, fora da esfera do domínio do empregador, entende-se mal que este deva cuidar
do ambiente físico de trabalho. Já quanto às condições psíquicas de trabalho parece poder
encontrar-se utilidade no preceito, tendo em conta as características do teletrabalho e as
formas de pressão psicológica que ele pode comportar”19.
Ainda no quadro do desenvolvimento dos deveres acessórios do empregador, o legislador
prestou particular atenção ao dever de formação no âmbito do teletrabalho, que deve ser
especificamente dirigida para a utilização e manuseamento das TIC necessárias ao exercício
da respetiva atividade (art. 169.º, n.º 2 CT).
Para Monteiro Fernandes um dos deveres de acessórios do trabalhador, consiste no
dever de custódia. Tal dever resulta do facto de que os instrumentos de trabalho não serem
propriedade do trabalhador, mas adstritos pelo empregador. Contudo, tal pode não ser
a realidade no teletrabalho. Esta situação levou à previsão de regras sobre a propriedade
dos instrumentos de teletrabalho. Assim, na falta de estipulação no contrato a lei presume
(presunção ilidível ou iuris tantum) de que os instrumentos de trabalho relacionados com
o manuseamento dos instrumentos de trabalho respeitantes à tecnologia de informação e
de comunicação pertencem ao empregador. Ao empregador cabe igualmente a instalação,
manutenção e pagamento das inerentes despesas de acordo com a parte final do nº 1 do art.
168º do CT. O legislador preconizou, no art. 168.º, n.º 3 do CT um “reforço do dever geral
de custódia”20 na medida em que “salvo acordo em contrário, o trabalhador não pode dar
os instrumentos de trabalho disponibilizados pelo empregador uso diverso do inerente ao
cumprimento da sua prestação de trabalho”.
Por fim, o empregador deve evitar que o teletrabalhor fique condenado ao abandono e
ao isolamento21. Para tanto o legislador impôs ao mesmo, nas palavras de Leal Amado, um
“dever secundário específico” quando prevê contactos regulares com a empresa e com os
demais trabalhadores22. Com o mesmo propósito devem as partes, nos termos da al. f, do n.º

18
LEITÃO, Direito do Trabalho, p. 438.
19
FERNANDES, Direito do Trabalho, p. 211, n. 67.
20
DRAY, Código do Trabalho Anotado, p. 464.
21
Art. 169.º, n.º 3 do CT.
22
AMADO, Contrato de Trabalho, p. 123.

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Os desafios do direito do trabalho perante as novas tecnologias e a figura jurídica do teletrabalho no direito português
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5, do art. 166.º do CT, identificar no próprio contrato a estabelecimento ou departamento da


empresa em cuja dependência fica o trabalhador, bem como identificar o representante da
empresa com quem este poe contactar.

2.4. O teletrabalho: direitos coletivos


O legislador não esqueceu a dimensão coletiva do trabalho, garantindo-se ao
teletrabalhador o exercício dos direitos de participação e representação coletivas23. Assim, o
teletrabalhador tem o direito de se candidatar às estruturas de representação coletiva; o direito
de utilizar as tecnologias de informação e de comunicação para o exercício de direitos coletivos,
nomeadamente para participar nas reuniões promovidas no local de trabalho pelas estruturas
de representação coletiva dos trabalhadores, assim como para estas comunicarem com o
teletrabalhador e ainda assim ser usadas para a afixação e divulgação de textos, convocatórias,
comunicações ou informações relativos à vida sindical e aos interesses socioprofissionais
dos trabalhadores. O teletrabalhador é, ainda, considerado para o cálculo do limiar mínimo
exigível para efeitos de constituição de estruturas representativas dos trabalhadores previstas
no Código do Trabalho às quais se pode, também, candidatar (art. 171.º, n.º 1 do CT).

3. Teletrabalho: análise swot


Neste último ponto, com recurso a uma técnica/ferramenta de gestão conhecida por
análise ou matriz swot, propomo-nos desenvolver um diagnóstico estratégico relativo ao
teletrabalho, apresentando os pontos fortes (strengths) e fracos (weaknesses) da relação laboral
de teletrabalho, assim como um conjunto de oportunidades (opportunities) e de ameaças
(threats) que a mesma pode representar tanto para o trabalhador, como para o empregador,
como para a sociedade em geral24.
No que respeita ao trabalhador a situação de teletrabalho pode ter como vantagens
(pontos fortes): a redução ou eliminação do tempo despendido na deslocação casa-trabalho;
a eliminação ou redução das despesas inerentes ao exercício de uma atividade profissional
realizada longe do domicílio, nomeadamente, com transporte e alimentação; diminuição do
stress; maior gosto pelo trabalho desenvolvido; melhor aproveitamento do tempo e melhor
conciliação entre a vida profissional e pessoal/familiar; flexibilização do horário de trabalho;
ambiente de trabalho mais confortável; maior autonomia no desempenho da atividade
profissional; maior facilidade de emprego e acréscimo da liberdade de trabalho.
Quanto ao empregador, as vantagens comummente identificadas são: diminuição de
custos com instalações, energia, transportes e pessoal; otimização do espaço disponível; maior
eficiência e produtividade relativamente ao trabalho desenvolvido pelos teletrabalhadores
aos quais se exige maior responsabilidade, criatividade e cujo grau de motivação é maior;

23
Art. 171º do CT.
24
A este propósito vide AMADO, Contrato de Trabalho, p. 120 e 121; DRAY, Código do Trabalho
Anotado, p. 456; LAMBELHO e GONÇALVES, Direito do Trabalho: Da Teoria À Prática, p. 135; MELO,
Teletrabalho: um estudo comparado entre Portugal e Brasil sobre a transformação das relações de trabalho,
p. 15 e ss.

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Os desafios do direito do trabalho perante as novas tecnologias e a figura jurídica do teletrabalho no direito português
Mário Simões Barata - Susana Sardinha Monteiro

possibilidade de adoção de esquemas de gestão por objetivos ou por resultados; maior


flexibilização da gestão empresarial; melhor fixação do trabalhador; maior facilidade de
recrutamento de pessoal; maior resistência face a fatores ou condicionalismos externos que
podem comprometer o normal funcionamento da unidade produtiva, tais como greves de
transportes, atos de terrorismo e calamidades naturais tal como a pandemia do COVID 19.
Quanto à sociedade em geral, as vantagens para a realização da atividade laboral em
regime de teletrabalho incluem: diminuição do trafego urbano e do commuting (deslocações
diárias e maciças dos subúrbios para os centros urbanos; redução dos níveis de poluição
atmosférica; uma melhor gestão dos espaços urbanos e a consequente requalificação das
cidades, em especial dos subúrbios; redução das disparidades e dos desníveis de natureza
económico-social existentes entre os centros urbanos e os centros rurais, em consequência da
fixação, nestes últimos, dos telecentros comunitários e rurais; descongestionamento do centro
das cidades e desenvolvimento de zonas menos favorecidas e mais remotas, designadamente
rurais; aumento da produtividade e eficiência no trabalho; criação de novos empregos,
designadamente para trabalhadores portadores de deficiências físicas; contribuição para a
divisão internacional do trabalho através do teletrabalho off shore.
Mas no contraponto destes pontos fortes/vantagens, enunciamos de seguida, um
conjunto de pontos fracos/desvantagens para ambas as partes da relação jurídico laboral e
para a sociedade em geral, ainda que a balança penda a favor da entidade empregadora. Nas
palavras de Damasceno Correia para o empregador “os benefícios são elevados e os custos
reduzidíssimos” destacando apenas, como prejuízo, a menor mobilidade dos teletrabalhadores
com dificuldades de locomoção, enquanto para os trabalhadores o teletrabalho representa
“uma enorme vantagem, mas ao mesmo tempo, um custo elevado”. Em termos de prejuízos/
custos e seguindo a sistematização do referido autor: do ponto de vista psicológico existe
um maior isolamento e marginalização social com o consequente sentimento de perda de
pertença a um grupo ou organização; atendendo ao critério da segurança laboral existe um
vínculo laboral normalmente precário e com maior risco financeiro com menores regalias
socio-laborais; ausência de carreira profissional; risco de perda de controlo do tempo de
trabalho (realização do trabalho sem interrupção para obter o máximo lucro), com a realização
de trabalho suplementar sem os correspondentes benefícios; diluição da fronteira entre a
vida pessoal e familiar. Já quanto à “sociedade, parece haver um equilíbrio resultante das
oportunidades ganhas e dos custos que elas representam”25.
Do cruzamento dos benefícios e prejuízos que esta análise swot permite realizar
identificamos um conjunto de oportunidades, mas também de ameaças conexas com
a prestação da atividade laboral em regime de teletrabalho. Quanto às oportunidades
destacamos: a distribuição da população ativa por um maior espaço territorial; a maior
qualidade de vida; a diminuição do tráfego urbano e do commuting; a redução da sinistralidade
rodoviária e dos acidentes de trabalho com claros benefícios pessoais e sociais; os benefícios
ambientais decorrentes da menor poluição; integração no mercado de trabalho das pessoas
mais vulneráveis, nomeadamente, as portadoras de deficiência. No que concerne as ameaças
enunciamos: a dificuldade de separação ou diluição das fronteiras entre a vida profissional e
a vida pessoal/familiar; mão de obra menos consciencializada e informada dos seus direitos e


25
CORREIA, Notas Críticas sobre o Código do Trabalho, p. 100 e 101.

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Os desafios do direito do trabalho perante as novas tecnologias e a figura jurídica do teletrabalho no direito português
Mário Simões Barata - Susana Sardinha Monteiro

deveres; menor taxa de sindicalização (para os sindicatos este novo padrão laboral transforma
estes trabalhadores em mão-de-obra marginal à sua esfera de influência); um menor controlo
sobre a atividade do trabalhador; uma maior dificuldade por parte das entidades inspetivas em
fiscalizar o cumprimento das normas legais; um risco acrescido de ultrapassar os limites do
tempo de trabalho; o aumento da mão-de-obra precária; os prejuízos para o bem-estar e saúde
mental dos teletrabalhadores decorrentes do aumento das situações de tensão e depressão
resultantes do isolamento

Reflexão final
A inclusão no Código do Trabalho português do contrato subordinado de teletrabalho
constituiu uma novidade (em 2003) e uma inevitabilidade decorrente da necessidade de o
Direito acompanhar a evolução da própria sociedade que visa regular. O legislador sujeitou
este contrato a forma escrita, especificando quem pode ser contratado para prestar a sua
atividade à distância, bem como previu um conjunto de normas gerais e especiais que
disciplinam este tipo contratual. Ainda que a referida regulamentação não se encontre isenta
de críticas percebemos, em momentos de grave crise social e, ainda que pelas piores razões,
como a que decorre da atual Pandemia do COVID 19, as virtualidades desta figura jurídica.

Bibliografia
AMADO, João Leal – Contrato de Trabalho: Noções Básicas. Coimbra: Almedina, 2016.
CORREIA, António Damasceno - Notas Críticas sobre o Código do Trabalho, Lisboa: Editora RH,
2007.
DRAY, Guilherme - Código do Trabalho Anotado, 12.ª Edição. Coimbra: Almedina, 2020.
FERNANDES, António M. - Direito do Trabalho, 18ª edição. Coimbra: Almedina, 2017.
LAMBELHO, Ana; GONÇALVES, Luísa Andias – Direito do Trabalho: Da Teoria à Prática.
Lisboa: Rei dos Livros, 2017.
LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão – Direito do Trabalho. Coimbra: Almedina, 2012.
MELO, Marcella Alves de – Teletrabalho: um estudo comparado entre Portugal e Brasil sobre a
transformação das relações de trabalho [texto policopiado]. Porto: [s. n.], 2018. Dissertação
de mestrado.
RAMALHO, Maria do Rosário Palma – Tratado de Direito do Trabalho: Parte II – Situações Laborais
Individuais, 6ª edição. Coimbra: Almedina, 2016.

— 606 —
Tecnologias e seus reflexos como fonte de
pacificação social

Alessandra Christine Bittencourt Ambrogi de Moura 1


Flavia Ferreira Jacó de Menezes2

Resumo: Este artigo promove uma reflexão da tecnologia como fonte de efetividade de pacificação
social. O estudo se apropria de uma abordagem sistêmica e tem como metodologia a pesquisa bibliográfica,
realizada em livros, artigos, teses e dissertações, com o fim de analisar em que medida o processo juslaboral
sofreu alterações significativas, seja na esfera legislativa, seja comportamental com a evolução da tecnologia.
Verifica-se que o exacerbado número de ações em trâmite no Poder Judiciário, impede a efetiva prestação
jurisdicional, de modo que a marcha processual se prolonga além do necessário, trazendo insatisfação aos
jurisdicionados. Nessa perspectiva, vêm surgindo, alternativas e incentivos, pelo próprio Poder Público
com o fim de desafogá-lo, atribuindo às partes outros meios para o deslinde da controvérsia. Para tanto,
faremos uma análise da sociedade 5.0 e da Advocacia 3.0 e seus impactos nos procedimentos jurídicos.
Bem como abordaremos brevemente os instrumentos de software e plataformas utilizadas, como, big data,
machine learnig, jurimetria, Q.I. digital. Certo que a tecnologia e automação jurídica são impulsionadores
da Advocacia e que a estratégia digital reflete o panorama jurídico atual, suportando desde o marketing até
a produção jurídica, não há mais espaço para a antiga Advocacia Artesal, de modo que a automação jurídica
veio para ficar e fazer com o advogado atue apenas nas atividades eminentemente jurídicas e com cunho
decisório, deixando o burocrático para as máquinas.
Palavras chave: Sociedade 5.0; Advocacia 3.0; Automação.

Abstract: This article promote a discussion of technologies for conflict soluctions more effective.
The study appropriates a systemic and thematic approach, as a bibliographic research methodology, carried
out in books, articles, theses and dissertations, in order to analyze the significant changes as much as on

1
Mestranda em Direito pela PUCSP, Conselheira Consultiva da Associação dos Advogados Tra-
balhistas de São Paulo (biênio 2019-2020) Sócia do escritório AAM Advogados. E-mail: alessandra@
aamadvogados.adv.com.br
2
Juíza do Trabalho do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região. Especialista em Direito e Pro-
cesso do Trabalho. E-mail: flaviajacoh@yahoo.com.br

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Tecnologias e seus reflexos como fonte de pacificação social
Alessandra Christine Bittencourt Ambrogi de Moura - Flavia Ferreira Jacó de Menezes

a legislative sphere and behavioral with the evolution of technology. There is an exarcebated amount of
processes in progress in the Judiciary, causing delays in the solutions of the problems, causing dissatisfaction
of all the parts. Following this optic, has been emerging, some alternatives to relieve the Judiciary system,
being offered other means to resolve the controversy. For that, we will make an analysis of 5.0 society
and 3.0 advocacy and the impacts on legal procedures. As well as we will approach shortly about the
software instruments and platforms used, as, big data, machine learnig, jurimetry, Q.I. digital. Certain that
the tecnology and the legally automation are boosters for the advocacy, and the digital strategy reflect the
juridical current scene, suporting since the marketing until the juridical production, there is no more space
for the cottage advocacy, has been the legally automation makes the lawyer actue just in the eminently
juridicals activities with a decisive nature remanining the bureaucracy to the machines.
Keywords: 5.0 Society; 3.0 Advocacy; Legal automation.

1. SOCIEDADE 5.0
A Primeira Revolução Industrial ocorrida entre a metade do século XVIII e a metade
do século XIX, foi impulsionada pela invenção de máquinas a vapor e do uso da energia
hidráulica, que proporcionou a transformação industrial da sociedade com as ferrovias e a
mecanização do processo produtivo na indústria.
No final do século XIX, a Segunda Revolução Industrial é marcada pelo início da
produção em massa, proporcionada pelo uso da eletricidade. O grande marco do período é o
surgimento das linhas de montagem3, como na produção do automóvel Ford Modelo T, em
1903, produzido pela fábrica norte-americana Ford Motor Company e projetado por Henry
Ford.
A Terceira ruptura industrial, iniciada ao final da década de 1960, é ocasionada pelo
nascimento da internet e o surgimento dos computadores, que possibilitaram o uso da
tecnologia da informação e a automatização da produção, com a inserção da tecnologia no
processo produtivo.
Por sua vez, a Quarta Revolução, consoante Klaus Schwab4, é caracterizada
principalmente por avanços tecnológicos (inteligência artificial, robótica avançada, internet das
coisas (IoT), big data, computação em nuvem, nanotecnologia), com a fusão de tecnologias e
a interação entre os domínios físicos, digitais e biológicos. No brasil, o setor que possui maior
avanço tecnológico, incorporando as inovações da indústria 4.0, é o setor automotivo5.
Em decorrência da quarta ruptura, tem-se falado em um processo de transição para a
Sociedade 5.0, que propõe um modelo de cooperação entre o homem e a máquina, uma
organização social pautada na harmonia entre a inteligência humana e a computação cognitiva,
com a potencialização do uso das tecnologias desenvolvidas – como o big data, inteligência
artificial e internet das coisas (IoT) – em uma gestão que combine estratégia, criatividade,
velocidade e multidisciplinariedade.

3
LIMA, Alison Gustavo de; PINTO, Giuliano Scombatti. INDÚSTRIA 4.0. Revista Interface Tec-
nológica. v. 16, n. 2. São Paulo: Faculdade de Tecnologia de Taquaritinga, 21 dez. 2019. p. 300.
4
SCHWAB, Klaus. A Quarta Revolução Industrial. São Paulo: Edipro, 2015.
5
LIMA, Alison Gustavo de; PINTO, Giuliano Scombatti. INDÚSTRIA 4.0. Revista Interface Tec-
nológica. v. 16, n. 2. São Paulo: Faculdade de Tecnologia de Taquaritinga, 21 dez. 2019. p. 306.

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Tecnologias e seus reflexos como fonte de pacificação social
Alessandra Christine Bittencourt Ambrogi de Moura - Flavia Ferreira Jacó de Menezes

“Es, claramente, tecnología buscando unir máquinas y humanos en un contexto


de desarrollo de la Inteligencia Artificial, pero con prevalencia del humano sobre
cualquier creación suya en el sentido de su recuperación y desarrollo de virtudes
humanas lentamente extraviadas en los desarrollos tecnológicos anteriores6.”.

Em síntese, a indústria 5.0 se baseia na capacidade de integração e interação entre as


habilidades humanas e as máquinas com capacidade cognitiva, com o propósito de criar
soluções para atendimento das necessidades humanas.

2. INTERNET DAS COISAS, COMPUTAÇÃO EM NUVEM, BIG DATA,


MACHINE LEARNIG
Para melhor compreendemos o tema é importante esclarecer os termos internet das coisas,
computação em nuvem, big data e machine learning. Internet das coisas (internet of things
– IoT) é uma das maiores tendências tecnológicas e consiste na conexão dos mais diversos
objetos e acessórios (como carros, geladeiras, semáforos) com a internet, proporcionando a
criação de cidades e fábricas inteligentes, que fornecem dados precisos pela interação entre
os objetos e o homem. 7
Computação em nuvem é o armazenamento de dados em servidores instalados em
fornecedores de serviço, que guardam os dados importados dos dispositivos e torna-os
acessíveis em qualquer lugar por meio da internet8.
Por sua vez, big data é conjunto de recursos computacionais que permite agregar diversos
bancos de dados, estejam ou não estruturados, e analisar, manipular e processar em tempo
real grandes volumes de dados e machine learnig (aprendizado da máquina) é a ciência da
computação que, através de dados, observações e interações do computador com o mundo,
estuda meios para que as máquinas realizem tarefas de cognição, raciocínio e aprendizagem,
que seriam exclusivamente humanas, como o reconhecimento de padrões.
Diante desse quadro, o impacto da revolução digital é muito mais complexo, forçando as
empresas a “repensar a forma como gerem os seus negócios e processos, como se posicionam

6
É, claramente, a tecnologia buscando unir máquinas e humanos em um contexto de desenvolvi-
mento da inteligência artificial, mas com a prevalência do ser humano sobre qualquer criação sua no sentido
de sua recuperação e desenvolvimento das virtudes humanas lentamente perdidas nos desenvolvimentos
tecnológicos anteriores (Avendaño, Lorena Taiz Mantilla. Industria 5.0: ¿Vuelve el hombre al centro de los
procesos de producción? Univerdidad EAFIT. Medellín, 2015. p. 17. - tradução nossa).
7
LIMA, Alison Gustavo de; PINTO, Giuliano Scombatti. INDÚSTRIA 4.0. Revista Interface Tec-
nológica. v. 16, n. 2. São Paulo: Faculdade de Tecnologia de Taquaritinga, 21 dez. 2019. p. 302.
8
FERAZZA, Henrique; PISSETTI, Daniel. O impacto da internet das coisas na vida dos cidadãos.
2018. 23 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Tecnologia em Sistemas de Telecomunicações) - Universi-
dade Tecnológica Federal do Paraná, Curitiba, 2018. Disponível em: http://repositorio.roca.utfpr.edu.br/
jspui/handle/1/11603. Acesso em 5 marc. 2020.

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Tecnologias e seus reflexos como fonte de pacificação social
Alessandra Christine Bittencourt Ambrogi de Moura - Flavia Ferreira Jacó de Menezes

na cadeia de valor, como pensam no desenvolvimento de novos produtos e os introduzem no


mercado, ajustando as ações de marketing e de distribuição”9.

3. Q.I. DIGITAL E ADVOCACIA 3.0


Essa transformação digital também tem reflexos nas tarefas jurídicas, o que tem levado
ao surgimento da Advocacia 3.0 e das lawtechs, que buscam, por meio da integração digital
e do uso da tecnologia da Indústria 4.0, solucionar tarefas rotineiras dos advogados e reduzir
o tempo de duração do litígio processual, redesenhando a forma de atuação do Poder
Judiciário.
Ao verificar a história, nota-se que a Advocacia é um dos ramos que pouco mudou a
maneira de executar os trabalhos. No entanto, nas últimas décadas, principalmente com a
evolução da tecnologia, juntamente com a globalização, que trouxe novas formas de interação,
o direito se viu na necessidade de inovação para atendimento das demandas de clientes cada
vez mais integrados pelo acesso online.
A evolução digital na advocacia passou por desenvolvimento histórico que pode ser
classificado como:
1. Advocacia 1.0 - também conhecida como Advocacia artesanal, caracteriza-se pela
concentração na figura do advogado, responsável por todas as etapas do processo,
desde o atendimento até a redação de peças jurídicas;
2. Advocacia 2.0 – também conhecida como Advocacia de Transição, se desenvolve em
um contexto de crescimento dos escritórios de advocacia, com equipes de advogados,
estagiários, secretárias, entre outros profissionais e aplicação limitada de recursos
tecnológicos, como a utilização de ferramenta eletrônica para atendimento;
3. Advocacia 3.0 - também conhecida como Advocacia Digital, marcada pela presença
de escritórios-empresa, com equipe de altas performances, onde há a segmentação
do trabalho, prospecção de clientes através de marketing digital, plataformas digitais
auto gerenciáveis e automação na realização das tarefas para melhor atendimento dos
clientes.
Com a Revolução Industrial 4.0 e a introdução de tecnologias como big data, sistemas
integrados, computação na nuvem, inteligência artificial, entre outros, a Advocacia caminha
para a era 4.0, exigindo-se cada vez mais do profissional a eficiência, bom resultado e valor a
serem entregues ao cliente, de forma que a tecnologia se torna essencial.
É importante notar que o cenário atual da advocacia é extremamente diferente da
Advocacia 1.0, podendo-se citar, como exemplo, o empreendorismo jurídico, que demanda
que o profissional da advocacia seja, hoje, multidisciplinar.

9
COELHO, Pedro Miguel Nogueira. Rumo à indústria 4.0. Dissertação - mestrado em eng. me-
cânica. Coimbra: Universidade de Coimbra, jul/2016. Disponível em: http://hdl.handle.net/10316/36992.
Acesso em 05 mar. 2020. p. 15.

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Tecnologias e seus reflexos como fonte de pacificação social
Alessandra Christine Bittencourt Ambrogi de Moura - Flavia Ferreira Jacó de Menezes

A Jurimetria, outro grande exemplo, a partir da coleta de dados, é capaz de calcular as


probabilidades matemáticas de procedência de uma causa, bem como as teses jurídicas com
melhor possibilidade de acatamento pelos tribunais, trazendo bons resultados e eficiência ao
trabalho do Advogado na prestação de serviço ao cliente.
Nesse contexto, o mercado das lawtechs é segmentado em grupos de serviços tomando
por base as tecnologias aplicadas em cada um: mineração de dados e big data, acordos e
resolução de disputas, jurimetria, gestão de escritórios e/ou processos internos, marketplaces
de serviços jurídicos, sistematização ou automatização de contratos, robôs para preenchimento
automático de documento, registros e serviços de obtenção de documentos, pesquisa de base
de dados, entre outros tipos ou mix de soluções10.
Vê-se, pois, que a automação e a introdução das tecnologias digitais tem influenciado o
ambiente jurídico. Contudo, tais tecnologias não são imunes à críticas. Diante da possibilidade
de previsibilidade das decisões judiciais, a França, recentemente alterou seu Código Penal,
passando a proibir a análise preditiva e publicação de estatísticas de decisões judiciais. O
artigo 33 da Lei de Reforma do Judiciário, assim, vetou a jurimetria:

“os dados de identidade de magistrados e servidores do Judiciário não podem ser


reutilizados com o objetivo ou efeito de avaliar, analisar, comparar ou prever suas
práticas profissionais, reais ou supostas.”.

Neste quadro, aliado aos robôs, à maximização dos resultados, à gestão dos profissionais
e aumento das expectativas dos resultados, o Q.I. Digital surge para mensurar o sucesso
comercial das empresas, uma vez que é capaz de medir a maturidade digital dos escritórios
de Advocacia e sua capacidade de atualização e modernização.
O Q.I. Digital tem ganhado espaço no cenário empresarial porque, além atender e possuir
políticas voltadas para cibersegurança, também auxilia a quantificar o retorno sobre os investimentos
em tecnologia dentro do próprio escritório ou em comparação com concorrentes.
Certo que a tecnologia e automação jurídica são impulsionadores da Advocacia 3.0 e
que a estratégia digital reflete o panorama jurídico atual, desde o marketing até a produção
jurídica, não há mais espaço para a antiga Advocacia Artesal, implicando em dever de
atualização dos escritórios de advocacia, que não poderá mais se restringir à atuação nas
atividades eminentemente jurídicas.

4. APLICAÇÃO DE TECNOLOGIA EM ACORDOS


Diante do quadro de inovações tecnológicas e alteração da organização social, com
a exigência de desenvolvimento de um Q.I. Digital, que compreenda e saiba aplicar as

10
SANTOS, Siméia de Azevedo. A ERA DAS TECHSE A HIBRIDIZAÇÃO DOS NEGÓCIOS.
Anais do X Simpósio Nacional da ABCiber Conectividade, Hibridação e Ecologia das Redes Digitais. Uni-
versidade de São Paulo. São Paulo: 2017. Disponível em: https://luccatori.files.wordpress.com/2018/09/
anais-abciber-2017.pdf. Acesso em 05 mar. 2020. p. 165.

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Tecnologias e seus reflexos como fonte de pacificação social
Alessandra Christine Bittencourt Ambrogi de Moura - Flavia Ferreira Jacó de Menezes

tecnologias inseridas na sociedade, é criado um panorama propício a aplicação de solução de


litígios amigáveis.
Tecnologias como a machine learning, computação em nuvem e big data, por meio
de cruzamento de dados, verificam a possibilidades e probabilidade de materialização de
um solução conciliatória. Atualmente, o Poder Judiciário Brasileiro inseriu robôs dotados de
inteligência artificial em seus procedimentos judiciais, como o Victor, no Supremo Tribunal
Federal, que têm a atribuição de identificar casos ligados à temas de repercussão geral11.
As plataformas desenvolvidas pelas lawtechs prometem ser aliadas ao Poder Judiciário de
forma a reduzir o número de processos judiciais por meio alternativo. Um bom exemplo é a
utilização pelos escritórios de Advocacia das plataformas de resolução de conflitos em ambiente
totalmente digital para o atendimento de empresas que possuem grandes volumes de ações, sistema
conhecido como online dispute resolution (ODR) ou alternative dispute resolution (ADR).

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A evolução industrial, desde a Indústria 1.0 até sua quarta ruptura, com encaminhamento
para a Revolução 5.0, também tem reflexos nas tarefas jurídicas, o que tem levado ao surgimento
da Advocacia 3.0 e das lawtechs, que buscam, por meio da integração digital e do uso da
tecnologia da Indústria 4.0, solucionar tarefas rotineiras dos advogados e reduzir o tempo de
duração do litígio processual, redesenhando a forma de atuação do Poder Judiciário.
Tecnologias como a machine learning, computação em nuvem, big data, verificam as
possibilidades e probabilidades de materialização de um acordo entre as partes litigantes. No
mesmo caminho, o uso da jurimetria, a partir da coleta de dados e análise estatísticas, é capaz
de calcular as probabilidades matemáticas de procedência de uma causa, bem como as teses
jurídicas com melhor possibilidade de acatamento pelos tribunais.
Diante desse quadro de inovações tecnológicas e alteração da organização social, com
a exigência de desenvolvimento de um “QI Digital”, que compreenda e saiba aplicar as
tecnologias inseridas na sociedade, é criado um panorama propício ao desenvolvimento de
meios alternativos de solução de conflitos com o uso de tecnologias que possibilitem maior
precisão e velocidade na resolução do fato conflituoso.

REFERÊNCIAS
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AVENDAÑO, Lorena Taiz Mantilla. Industria 5.0: ¿Vuelve el hombre al centro de los procesos de
producción? Univerdidad EAFIT. Medellín, 2015. p. 17.

11
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LIMA, Alison Gustavo de; PINTO, Giuliano Scombatti. INDÚSTRIA 4.0. Revista Interface
Tecnológica. v. 16, n. 2. São Paulo: Faculdade de Tecnologia de Taquaritinga, 21 dez. 2019. p.
300.
LIMA, Alison Gustavo de; PINTO, Giuliano Scombatti. INDÚSTRIA 4.0. Revista Interface
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— 614 —
Consequences of applying new technologies to
sources of law (overview)

Dr hab. prof. UO Dariusz Szostek1

Abstract: Technological change has a very significant impact on the functioning of a lawyer. It is not
only an advocate, judge, adviser or notary public with a law, but also specialized software in which the law
is incorporated. The quality of this software, safety but also the certainty of its correctness is very important
for legal certainty and functioning of lawyers.
Modern law is not only the text of legal acts or contracts but also IT codes in which the law is
incorporated (for example, smart contract). The law is controlled by the courts. The question arises as to
who will control the codes in which the law is written. In the EU, only a few countries have recognised this
problem when creating the relevant legislation, including Malta and Lichtenstein. And the rest? Shouldn’t
we regulate this problem on a European level?
Key words: law engineer, IT codes, blockchain, artificial intelligence, digital economy 4.0, software
control, law technology, automatic decision-making processes

Introduction
The second decade of the 21st century is characterized by the unprecedented
technological acceleration, significant investments in technological companies, but also
in ICT systems. Globalization is entering more and more areas. A number of new IT tools
are introduced, as well as new legal structures, such as ICO or Blockchain-Based Limited
Liability Companies2, or electronic residency. From the point of view of law, these are
new developments. Cryptocurrencies are no longer a fad or economic bubble (for example

1
Faculty of Law and Administration of the University of Opole. dszostek@poczta.onet.pl
2
More on the subject of blockchain in, D. Szostek Blockchain and Law, Baden Baden 2019 s.3; D.
Maxwell, Ch. Speed, L. Pschetz: Story Blocks: Reimagining narrative through the blockchain, The Inter-
national Journal of Reserch into New Media Technologies, No. 23 (1) 2017, p. 82; M. Finck Blockchain
Regulation and governance in Europe, University of Cambridge, UE 2019r, p. 6 et seq.; O

— 615 —
Consequences of applying new technologies to sources of law (overview)
Dariusz Szostek

Japan allowed them to be used as a legal tender3), and the technology they are based on,
in particular blockchain and DLT, are used in business transactions more and more often,
including in traditional and banking transactions. For example, R3CEV’, the consortium
consisting of: J.P. Morgan, Royal Bank of Scotland, Credit Suisse, Goldman Sachs etc. has
the task to design and deliver advanced blockchain technologies for the global financial
markets. Another example is the Canadian consortium of Bank of Canada, Payments Canada
and R3 aimed at introducing blockchain in the financial infrastructure of Canada, or the
practical implementation of blockchain by the National Bank of Canada, Canadian Imperial
Bank of Commerce in cooperation with ATB Financial. Another example is State Bank of
India (SBI) which established (on 8 February 2017) a consortium consisting of 27 banks
of India (BankChain) and technological companies (among others Microsoft, Intel, IBM)
piloting the project of applying smart contracts in domestic banking (for simple agreements).
A successful implementation (May 2017) based on DLT is the Know your customer (KYC)
platform called ClearChain, allowing banks to provide data on their clients within the
consortium (including information and reports on suspicious activity).4 CitiGrop is testing
its digital currency (Citicoin) and UniCredit is analyzing blockchain-based payments. In
Germany5, a number of licensed banking institutions are being established, the activities of
which are blockchain-based. In June 2018, an experiment was conducted in Germany of using
the Know Your Customer (KYC) system by R3 to conduct 300 international transactions in
19 countries among 39 entities, using R3 blockchain. What is important is that the tested
entities included the following banks: BNP Paribas, Deutche Bank, ING, Raiffeisen Bank
and Sociate Generale. The experiment also covered the Federal Reserve Bank in Boston, the
Central Bank of Colombia and a financial regulator from Peru. All of the above examples
concentrate on technologization of law by introducing automated systems, more and more
often based on smart contracts.

1. Digital economy and its impact on domestic law


In recent years, we have certainly noticed development of digital economy, partly
separated from traditional economy, and partly functioning as a hybrid and simultaneously
with traditional economy, but also, to a large degree, in the virtual world, somehow separately
from the physical world. That economy is mainly a global economy, and domestic or local
only to a lower degree. DLT and blockchain is the next stage of its development, after the
stage of product digitization, i.e. their transfer from local computers to servers, and then - to
clouds. It covers such main trends as 6 (network convergence, data convergence, cloud,
sharing and service-based economy, platformization, crowdsourcing and prosumerization, as
well as automation). The global character of digital economy, as well as online availability of
a number of digital services or content that do not require physical contact or to hand over a

3
Ch. Danwerth, The Regulation of Bitcoin and other Virtual Currencies under Japanese Law in
Comparative Perspective, “Zaitschrift fur vergleichende Rechtswissenschaft No. 2/2018
4
See www.bankchaintech.com access on 27 December 2018.
5
Until 2018, over 1300 blockchain-related programming projects were developed in Germany.
6
M.H. Dahm, E. Walther, Digitale neurfindung: Einfusse auf Untersnehmen und deren Gechafts-
modelle, “Zaitrschift fur Corporate Governance” No. 6/2017

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Consequences of applying new technologies to sources of law (overview)
Dariusz Szostek

physical product, leads to a shift in contractual regulations towards global regulations, with
minimalization of domestic ones. Naturally, domestic laws and supervision by respective
authorities continue to be effective, but their role is starting to diminish, and their activities
are becoming more and more difficult. It is particularly visible in the agreements concluded
with global entities imposing technologized contracts, the conclusion of which is of adhesive
character, which are often uniform on a global scale (or at least in business dealings), separate
from the regulations of the respective states. In the 19th and 20th centuries, codification
commissions (and their prominent members) played an important role, as did states which,
by adopting proper regulations, including great codifications (e.g. BGB, Napoleonic Code,
etc.), created not only law, but in particular economy, social behaviors, while controlling the
introduced legal tools, while also being able to correct them. In the 21st century, states continue
to create regulations in their territories, but at the same time there has appeared a gigantic
digital economy, worth billions of dollars, in which laws, social behaviors or new institutions
are created by private entities, which are influenced by states in a derivative and relatively
limited way. States7 no longer create, maybe just react (with more or less effect), protecting
their interests or the interests of their citizens or enterprises, by adapting themselves and their
legislation to the changing reality imposed on a global scale. There are8 many examples,
with effects on private law, social behaviors or creation of new types of services, contracts,
etc. which, without technology or globalization, could not exist or would have developed
to a lower degree. What is becoming more and more frequent is the combination of digital
economy and traditional economy, resulting in the so-called hybrid economy. The activities of
such entities result in shifting the focus from property law to services, which, in comparison
with property law, are much easier to regulate with contracts of global character. Products
are “changing” into services9. Examples include streaming-based services (instead of buying
a CD with music or a film), remote rental of vehicles, bicycles, instead of purchasing them,
as well as prosumer services, exchange of goods with no intermediaries or with limited
significance thereof.
Growing tokenization and use of blockchain technology and DLT, are changing the
paradigms in many fields and force a new, different look on the previous principles of
functioning of the law. For many, technological novelties provide the pretext for stating the
need to develop regulations in the form of the so-called lex electronica, or autonomous law
in cyberspace10. The arguments include eliminating the doubts regarding jurisdiction and

7
The impact of domestic codification commissions is marginal in that area, and in some states those
authorities were dismissed without being replaced.
8
In traditional economy, the private sector is replacing state monopoly more and more often. Ex-
amples include the space market, where the previous monopolists - Russians and Americans - are being
replaced with a private company - SpaceX - which delivers satellites and other devices to the orbit.
9
R. Towse, Ch. Handke (Eds), Handbook of the Digital Creative Economy, Edward Elgar, Chel-
tenton 2013; A. Dolgin, Manifisto of the New Economy. Institutions and Business Models of the Digital
Society, Springer, Heidelberg 2012. W. Szpringer: Blockchain jako innowacja systemowa, Warsaw 2018,
p. 26.
10
See D.R. Johnson, D.G. Post Law And Borders – the Rise of Law in Cyberspace, Stanford Law
Review 1996, No. 48 p. 63.; D.C. Menthe, Jurisdiction in Cyberspace: a Theory of International Spaces,
$ Michigan Telecommunications and Technology Law Review 1998, No. 69 pp. 69-103; D. Szostek, M.
Świerczyński: Wpływ nowych technologii na prawo prywatne, Warsaw 2017. 1314 et seq.

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Consequences of applying new technologies to sources of law (overview)
Dariusz Szostek

applicable law, as well as distribution and flow of goods in the digital world. Similar opinions
appear on promoting DLT and blockchain as the tools allowing to develop new order in
cyberspace, without participation of previous institutions, authorities, based on completely
autonomous and democratic activities, with the Internet user community responsible for
supervision. Some succumb to the illusion that software will replace states, and “smart
contracts” - laws11. An example might be bitcoin12. Nowadays, such views must be treated as
utopian, because neither software nor smart contracts are going to replace law, but they will
significantly affect it and its application, both in substantive and jurisdiction terms13.

2. Delocalization of activities in a global economy


The law of the 19th or 20th centuries was strongly based on territoriality, connecting
legal principles to territory of the given state. It referred to public law, penal law or private
law, or private international law, where the “registered office”, “place of residence”, “place
of business”, location of a thing or place of performing a legal act constitute some of the most
significant elements determining the applicable law14.
Digital economy is getting bolder and bolder in leaving that approach behind. We
continue and will continue to apply the principles related to the given territory, but the trend
of changes to that approach has already started, and the results of application of previous legal
principles are not always satisfactory15. The classic example is bitcoin which was introduced
as the first smart contract in history to function solely online, in a decentralized, democratic,
global and delocalized way, but also without being physically connected to any territory or
country (the place from which it was published online is unknown). It has appeared and has
been functioning independently from state institutions. It has inspired development of other
cryptocurrencies16, but what is most important is that it has spread blockchain technology,
which resulted in appearance of such legal mechanisms as DAO17 (Decentralized Autonomous

11
See http://regierungsforschung.de/regulierung-durch-algorithmen/ access on 11 December 2018.
12
More on the issue of bitcoin as a cryptocurrency in A. Kristof: National Cryptocurrencies [in:]
Handbook of Digital Currency, p. 67; K. Knnapas: From Bitcoin to Smart Contracts: Legal Revolution or
E.volution from the Perspective of de lege ferenda? [in:] The Future of Law and eTechnologies, ed. T. Ker-
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Law, publication from 2014 r, pp. 8 et seq.
13
See Rogers, JH. Jones-Fenleigh, A. Sanitt: Arbitrating Smart Contract disputes [in:] Interna-
tional arbitration report, October 2017. Northon Rose Fulbright http://www.nortonrosefulbright.com/
files/20170925-international-arbitration-report-issue-9-157156.pdf of 2 January 2020r. p. 23
14
M. Świerczyński: System Prawa Prywatnego, Vol. 20a, ed. M. Pazdan, Warsaw 2014; pp. 236 et
seq. G. Kegel, K. Schurig, Internetionales Privatrecht, Munchen 2004, p. 474.
15
D. Szostek, Blockchain and Law, Nomos, Baden-Baden 2019 s.20.
16
J. Danielsson: Why cryptocurrencies don’t make sense, https://voxeu.org/article/cryptocurren-
cies-dont-make-sense, downloaded on 31 December 2018. T.A. Anderson, Cryptocurrency: The Wild, Wild
Web. Analogies to the American and Canadian Wild, Wild West – Will History Repeat? “Journal Of Inter-
national Banking Law and Regulation, Vol. 33 Na 4/2018
17
F. Santos: The DAO: A Million Dollar Lesson in Blockchain Governance, Tallin Univerity of
Technology, Tallin 2018 pp. 16 et seq.

— 618 —
Consequences of applying new technologies to sources of law (overview)
Dariusz Szostek

Organizations)18 which resulted in appearance of ICO19 (Initial Coin Offerings), or a number


of tokens used for many activities expressing different values20.
The typical common element of the above is the attempt to separate the entity from
particular states, territories, delocalization of activities. That attempt has not been fully
successful, because, in practice, the standards of international private law continue to apply
and allow to indicate the applicable law, even though the results of the search for the law
are highly unsatisfactory, and sometimes even surprising (like when determining the law
applicable to bitcoin)21.
Delocalization, i.e. separation from the physical registered office or from the place
of residence, has recently taken the form of legal regulations, like the right to electronic
residence in Estonia, Belarus or regulation of blockchain-based virtual companies in Vermont.
In particular, it is worth concentrating on the latter which does not have a physical registered
office but is subject to the regulations of the State of Vermont. On 30 May 2018, Governor
Phil Scott signed the Act Related to Blockchain Business Development,, thus introducing a
new type of company: Blockchain-Based Limited Liability Company, or BBLLC in short).
It may be incorporated on the basis of the provisions of § 4172 for the purpose of conducting
business activities on the basis of blockchain technology, while the statutes must clearly
specify that it acts as a BLLC and that it meets the requirements specified in the act. The
solution unprecedented among the previous regulations devoted to companies is the possibility
to manage a BBLLC in full or in part by using blockchain technology22, using smart contract,
without having a registered office in the real world. Another example is the possibility of
residence in Belarus23 (in a Technological Park) or in Estonia, without the need to physically
stay in that country or to have a real address or registered office.
Separation from any particular, physical place, allows to connect legal regulations or
agreements to an algorithm, software or source code, and not to a particular territory or state.
The result is replacing domestic courts with supranational arbitration for resolving cross-
border disputes. Arbitration allows to overcome the problems with choosing applicable law
and with lack of specialization of participants. The need to have legal and technological
knowledge results in that it is becoming the preferred way of solving the disputes related,
among others, to smart contracts. In turn, those disputes drive innovations in arbitration,

18
Decentralized autonomous organization based on a smart contract or many smart contracts, oper-
ating on the basis of programming code which guarantees independence from states and transparency of
functioning. C. Jentzsch The History of the DAO and Lessons Learned. https://blog.slock.it/the-history-of-
the-dao-and-lessons-learned-d06740f8cfa5 access on 16 January 2020.
19
F. Santos: The DAO: A Million Dollar Lesson in Blockchain Governance, Tallin Univerity of
Technology, Tallin 2018 p. 26
20
More on tokens: D. Szostek: Blockchain and Law s.123. Since 2018 defined, among others, in art.
2 section 2 of the Maltese Virtual Financial Assets act.
21
More in D. Szostek Blockchain and Law, s.123
22
See. https://legislature.vermont.gov/assets/Documents/2018/Docs/BILLS/S-0269/S-0269%20
As%20passed %20by%20the%20Senate%20Official.pdf of 5 January 2020.
23
http://law.by/document/?guid=3871&p0=Pd1700008e access on 8 January 2020.

— 619 —
Consequences of applying new technologies to sources of law (overview)
Dariusz Szostek

because arbitration authorities, laws and procedures adapt to the needs of new types of
disputes24.
Is indicates that the activities of the private entities that develop libraries of transaction
modules readable in a natural language, thus establishing the foundations for more complex
transactions, which are more and more often implemented in smart contracts, demonstrate
many common features with development of lex mercatoria in the Middle Ages, customs
or common law. The authors indicate that the initial Medieval documents were “technical”
artifacts connecting human conduct with enforcement of the law. They were not prepared by
judges, but by lawyers (public notaries) who developed the standards of legal grounds. Firstly,
common law determines and specifies which behaviors are good or bad, and secondly, it allows
the indication of the behaviors that are reasonable and acceptable, and finally, it interferes and
authoritatively determines the rules of conduct. The medieval common law was a dictionary-
based system: the contents, basic principles as well as structure were specified, to a large
degree, on the basis of entries of documents in a catalog. Those cataloged documents were,
in a way, functioning as a library of acceptable transactions. It is argued that the decision on
what conduct is legal or not depends on the proper and available records. (Goldenfine i Leiter,
2018). It is also worth noting the medieval lex mercatoria, “when transactions performed
by merchants from different states were subject to standards of common law. At that time,
there developed the autonomous laws of merchants, considered common laws. The cause
for that was the practical necessity to establish a quick and secure system of laws for the
classified exchange of goods for money or transportation. They applied in the fairs located
and functioning in many European cities. At that time, merchants’ laws were supplemented
with courts, the procedures of which resembled contemporary arbitration – the courts would
resolve the disputes resulting from the agreements concluded at the markets. An important
role was also performed by public notaries (lawyers) who legally shaped most agreements
concluded in international trading (Fuchs, 2013) (Fuchs, Lex marcetoria w międzynarodowym
obrocie handlowym, 2000).
Lawyer’s work consists of the ability to transfer reality to proper records in a document
or a number of documents comprising a sort of register, so as to allow debt collection.
In the Middle Ages there were agreements drawn up by public notaries, while nowadays
agreements are drawn up by lawyers in cooperation with IT specialists in “smart contracts”.
The analogy to lex mercatiora from the Middle Ages is very visible, with the reservation that
bartering from the past was replaced with “smart contract” ecosystems. Despite the passing
of one thousand years, the issue of a lack of regulations (this time regarding the global digital
economy), is solved in a similar way, especially that supranational arbitration constitutes the
optimum method, often used in trans-border agreements within “smart contracts”, (Sherborne
A.) instead of domestic courts (allowing the possibility to overcome the issues with selection
of the law and specialization of the arbitrators), the decisions of which are enforceable in
domestic jurisdiction under the New York Convention (Goldenfine i Leiter, 2018). The issue
is open as to whether the agreements within smart contracts will be subject to specialized

24
J. Rogers, JH. Jones-Fenleigh, A. Sanitt: Arbitrating Smart Contract disputes [in:] International ar-
bitration report, October 2017. Northon Rose Fulbright http://www.nortonrosefulbright.com/files/20170925-
international-arbitration-report-issue-9-157156.pdf of 8 January 2020r. p. 23

— 620 —
Consequences of applying new technologies to sources of law (overview)
Dariusz Szostek

authorities (arbitrations) which may also function online or, as is the current case, traditional
arbitrations. Probably, arbitration is going to become, for many reasons, the preferred method
of solving disputes related to smart contracts, and the disputes related to smart contracts
will, in turn, lead to innovations in arbitration, because through the laws and procedures of
arbitration the arbitration authorities will adapt to the needs resulting from the new types of
disputes.
As some disputes related to “smart contracts” may be associated with evidence for
existence of computer equipment and/or software, and there is the risk of disclosure of
confidential information on source code, which may have serious commercial consequences
for one or both parties, is better to agree that the disputes will be resolved through confidential
arbitration and to limit disclosure of information. Some disputes related to “smart contracts”
will be the disputes regarding laws and agreements, but others will be highly technical in
character, for example if modules do not function according to expectations. It may be
presumed that arbitration courts will probably, in time, establish groups of specialized arbiters
with suitable experience, and will publish procedures adapted to the needs of the respective
groups and types of “smart contracts”25

3. Technologization of law and sources of law


Digital economy results in growing technologization of law. That trend is serious
enough that some universities offer specialties or even whole LegalTech studies combining
IT and legal knowledge. Many behaviors in cyberspace appear on the basis of customs which
usually transform into soft law as well as such technological standards as ISO. At first, these
standards are accepted by parties on a voluntary basis, as per the principles of freedom of
contract, but in time they become soft law, guidelines and, more and more often, regulations
of codified law. Technology and technical norms are more and more often supplementing, but
also affecting and regulating, the law (e.g. in such acts as: eIDAS, GDPR, PSD2, etc.) and
becoming its necessary elements.
However, the most serious challenge is legal engineering consisting in direct connection
between provisions of the law, or contents of contracts, to programming code, so as to allow its
enforcement. That stage consists in using: smart contract tools for concluding or performing
contracts (such contracts are implemented more and more boldly) and - connection of legal
regulations to IT modules being programming codes 26 (implementation of provisions of
the law to programming codes). That concept is at a pilot stage, executed within scientific
research, where software (and the law included therein) specifies the admissibility of the given

25
J. Rogers, JH. Jones-Fenleigh, A. Sanitt: Arbitrating “smart contract” disputes [in:] Interna-
tional arbitration report, October 2017r. Northon Rose Fulbright http://www.nortonrosefulbright.com/
files/20170925-international-arbitration-report-issue-9-157156.pdf of 23 September 2019. p. 23
26
See on legal engineering: S. Schrebak: Integrating Computer Science into Legal Discipline: The
Rise of Legal Programming, pp. 1-33 https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2496094 of 22
January 2020

— 621 —
Consequences of applying new technologies to sources of law (overview)
Dariusz Szostek

behavior, its legal consequences, but also causes automatic or semi-automatic enforcement of
the law27. It should be assumed that it is going to be implemented effectively and quickly.
The quality of the law in legal engineering is going to depend on the quality of
programming code, the contents of the regulations “embedded” in it, but also on cybernetic
security mechanisms. That software, like any software functioning in cyberspace, is exposed
to hacking attacks and attempts at changing the code, as well as other systemic risks28. It may
be assumed that with its development, on account of the values and liabilities “embedded”
in such codes, hacking attacks are not going to be rare. Codes applied in legal engineering
should be subject to superior control and verification, both with regard to software, algorithms,
recording method, archiving, but also to the contents related to them29. EU regulations are
familiar with the issue of connecting programming code to law. An example of a positive
solution for that problem which is worth considering is the eIDAS Regulation30 that introduces
the obligation to audit the ICT system for qualified trust services, including for qualified
electronic signature. The Maltese regulations included in the Digital Authority Act, Virtual
Financial Assets Act and Innovative Technology Arrangements and Services Act of July 2018
are interesting and worth copying - on the one hand they allow smart contracts, introducing
legal presumptions related to them, and on the other they establish independent audits of
technical solutions and supreme control by the State. A new institution, the Malta Digital
Innovation Authority (MDIA), the Digital Innovation Authority, has been created, equivalent
to Malta’s traditional financial regulator. The MDIA’s task is to control, among other things,
the source code of the smart contract on the basis of which a decision on granting or refusing
to grant licenses will be issued, as well as the audit of the source code of the DAO, which
would like to operate legally in Malta.
As lawyers, we find it impossible to escape from technology, programs, the world and
digital economy. New IT tools allow to develop new legal tools, unknown before except for
in science-fiction books. New technologies constitute a huge challenge for lawyers, but what
is also important is the change in perceiving law and its territorial application. If we add the
issue of artificial intelligence and application thereof, we will see the range of problems we
have to start coping with from now on.

27
L. Lessig: Code is law. On Liberty in Cyberspace, Harvard Magazine” https://harvardmagazine.
com/2000/01/code-is-law-html downloaded on 2 January 2019; Code and other Laws of Cyberspace, New
York 1999, p. 3 et seq.
28
P. Paech Blockchain & Smart Contracts And system Considerations, http://www.lse.ac.uk/law/
Assets/Documents/law-and-financial-markets-project/blockchain/paech-blockchain-smart-contracts.pdf
access on 8 January 2020.
29
See also L. Lessig, Code…
30
REGULATION (EU) No 910/2014 OF THE EUROPEAN PARLIAMENT AND OF THE COUNCIL
of 23 July 2014 on electronic identification and trust services for electronic transactions in the internal
market and repealing Directive 1999/93/EC L 257/73

— 622 —
Consequences of applying new technologies to sources of law (overview)
Dariusz Szostek

Bibliography
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33 Na 4/2018
M.H. Dahm, E. Walther, Digitale neurfindung: Einfusse auf Untersnehmen und deren Gechaftsmodelle,
Zaitrschift fur Corporate Governance No. 6/2017
Ch. Danwerth, The Regulation of Bitcoin and other Virtual Currencies under Japanese Law in
Comparative Perspective, Zaitschrift fur vergleichende Rechtswissenschaft No. 2/2018
A. Dolgin, Manifisto of the New Economy. Institutions and Business Models of the Digital Society,
Springer, Heidelberg 2012.
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1996, No. 48 p. 63
G. Kegel, K. Schurig, Internetionales Privatrecht, Munchen 2004
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From Bitcoin to Smart Contracts: Legal Revolution or E.volution from the Perspective of de
lege ferenda? [in:] The Future of Law and eTechnologies, ed. T. Kerikmae, A. Rull, Cham,
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com/2000/01/code-is-law-html downloaded on 2 January 2020;
L. Lessig Code and other laws of cyberspace, New York 1999
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D. Maxwell, Ch. Speed, L. Pschetz: Story Blocks: Reimagining narrative through the blockchain, The
International Journal of Reserch into New Media Technologies, No. 23 (1) 2017
D.C. Menthe, Jurisdiction in Cyberspace a Theory of International Spaces, $ Michigan
Telecommunications and Technology Law Review 1998, No. 69 pp. 69-103
J. Rogers, JH. Jones-Fenleigh, A. Sanitt: Arbitrating Smart Contract disputes [in:] International
arbitration report, October 2017. Northon Rose Fulbright http://www.nortonrosefulbright.com/
files/20170925-international-arbitration-report-issue-9-157156.pdf of 8 January 2020r.
J. Rogers, JH. Jones-Fenleigh, A. Sanitt: Arbitrating “smart contract” disputes [in:] International
arbitration report, October 2017r. Northon Rose Fulbright http://www.nortonrosefulbright.com/
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M. Świerczyński: System Prawa Prywatnego, Vol. 20a, ed. M. Pazdan, Warsaw 2014
W. Szpringer: Blockchain jako innowacja systemowa, Warsaw 2018
D. Szostek Blockchain and Law, Baden Baden 2019
R. Towse, Ch. Handke (Eds), Handbook of the Digital Creative Economy, Edward Elgar, Cheltenton
2013

— 623 —
A mediação eletrónica no quadro da «nova»
administração da justiça

Cátia Marques Cebola1


Susana Sardinha Monteiro2

Resumo: Os Estados Membros da União Europeia, de uma forma geral, aquando da transposição da
Diretiva 2008/52/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 maio de 2008, relativa a certos aspetos
da mediação em matéria civil e comercial, regulamentaram apenas a mediação levada a cabo de forma
presencial, não contemplando a mediação online. Portugal, através da Lei 29/2013, de 19 de abril, (LM)
regulamentou de forma autónoma e sistemática a mediação em Portugal, aplicando-se quer a conflitos
internos, quer transfronteiriços, indo além das exigências comunitárias prescritas pela Diretiva de 2008,
que apenas exigia regulamentação da mediação ao nível dos cross-borderconflicts. Apesar de não se referir
expressamente à mediação online também não a excluiu. Com este texto propomo-nos elencar os principais
problemas, dificuldades e potencialidades do recurso à mediação online, bem como testemunhar o quadro
normativo legal, nacional e europeu, no que concerne os ODR.
Palavras chave: Mediação; Mediação online; ADR; ODR

Abstract: The Member States of the European Union (EU) when transposing Directive 2008/52/EU of
the European Parliament and Council of the 21st of May of 2008, regarding certain aspects of mediation in
civil and commercial matters, only regulated face-to-face mediation and did not include legal rules relative to
online mediation. The Portuguese legislator, through Law 29/2013, of the 19th of April, regulated mediation in
an autonomous and systematic way in Portugal, covering internal and cross-border conflicts, and went beyond
the EU requirements prescribed by the 2008 Directive, which only required regulation of cross-border conflict
mediation. Although the Portuguese law does not expressly regulate online mediation, it does not exclude it.
We intend to present the main problems, difficulties, and potentialities of the use of online mediation in this
paper, as well as consider the national and European legal framework regarding ODR.
Key words: Mediation; Online mediation; ADR; ODR

1
Doutora em Direito | Prof. Adjunta da ESTG – Politécnico de Leiria |Investigadora Integrada do
IJPInstituto Jurídico Portucalense – Pólo de Leiria |Email: catia.cebola@ipleiria.pt
2
Doutora em Direito |Prof. Adjunta da ESECS – Politécnico de Leiria |Investigadora Integrada do
IJP- Instituto Jurídico Portucalense – Pólo de Leiria |Email: susana.monteiro@ipleiria.pt

— 624 —
A mediação eletrónica no quadro da «nova» administração da justiça
Cátia Marques Cebola - Susana Sardinha Monteiro

1. A mediação em Portugal: breve enquadramento legal


A Lei n.º 29/2013, de 19 de abril (LM) “regulamenta de forma autónoma e sistemática
a mediação em Portugal, consagrando num único diploma legal o quadro normativo de base
deste método não adversarial de resolução de conflitos” (Monteiro e Carvalho, 2019, p. 385)3
ao dividir as suas prescrições normativas em quatrosetores essenciais: os princípios gerais da
mediação (arts. 3.º a 9.º), a mediação civil e comercial (arts. 10.º a 22.º), o estatuto jurídico
dos mediadores (arts. 23.º a 29.º) e os sistemas públicos de mediação (arts. 30.º a 44.º).
Nos termos do art. 3.º da LM, os princípios gerais plasmados no Capítulo II desta lei são
“aplicáveis a todas as mediações realizadas em Portugal, independentemente da natureza do
litígio que seja objeto da mediação”. Assume-se, desta forma, “(…) a aplicação universal
dos princípios orientadores da mediação” (Lopes e Patrão, 2016, p. 29), ficando abrangida
também a mediação online. Por outro lado, a nova Lei pretende aplicar-se quer a conflitos
internos, quer transfronteiriços, indo além das exigências comunitárias prescritas pela
Diretiva 2008/52/CE, que apenas exigia regulamentação da mediação ao nível dos cross-
borderconflicts.
Por outro lado, Portugal não possui qualquer regulamentação específica da mediação
online. A Lei n.º 144/2015, de 8 de setembro (que transpôs para o ordenamento jurídico
português a Diretiva n.º 2013/11/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de maio
de 2013, sobre a resolução alternativa de litígios de consumo - Diretiva RAL) cinge a sua
regulamentação apenas aos conflitos de consumo e não cria qualquer regulamentação geral
para a mediação online. Esta realidade não implica, todavia, que a e-mediação não seja
permitida em Portugal ou que esteja completamente excluída do quadro legal existente.

2. A mediação online
Efetuado o enquadramento relativo ao quadro legal da mediação de conflitos em Portugal,
importa analisar as especificidades que a mediação online encerra.
Começamos, contudo, por precisar e clarificar alguns conceitos. Utilizamos as palabras de
Conforti que define mediação online como “una reunión virtual en la que dos o más partes en
conflicto intentan voluntariamente y con ayuda de un tercero, denominado mediador, alcanzar
un acuerdo que ponga fin a la controversia” (2015, p.5).Trata, assim, de um procedimento
estruturado em que duas ou mais partes em conflito, por si e de forma voluntária, com recurso
a uma plataforma online ou ferramentas eletrónicas4,tentam alcançar um acordo que ponha
termo ao conflito que as opõe, contando com a assistência de um mediador. Esse terceiro,
designado de e-mediador,deve, de forma independente, imparcial, e competente, conduzir o
procedimento de mediação online.O ambiente virtual onde a mediação é levada a cabo pode

3
De acordo com Cátia Cebola a adoção da LM revela a intenção do legislador de “num único do-
cumento legal abarcar vários aspetos implicados na resolução de conflitos por mediação (…) [merecendo,
assim,] um tratamento autónomo e sistemático, concretizador do quadro normativo base deste método no
nosso ordenamento jurídico” (2015, p. 57).
4
Para mais desenvolvimentos sobre ferramentas eletrónicas de resolução online de conflitos veja-se
KATSH, & RABINOVICH-EINY (2017) e WAHAB, M.; KATSH, E.; RAINEY, D. (2012).

— 625 —
A mediação eletrónica no quadro da «nova» administração da justiça
Cátia Marques Cebola - Susana Sardinha Monteiro

consistir num website interativo que disponibiliza um conjunto de ferramentas eletrónicas de


resolução de conflitos que permitem ao mediador e aos mediados participar num procedimento
de e-mediação. O procedimento pode ter lugar através de um sistema escrito, como o chat ou
outros formatos virtuais e envolver comunicação audiovisual.

2.1. A mediação online: os princípios


A voluntariedade da mediação, prescrita no art. 4.º da LM de forma perentória, deve
também estar assegurada num procedimento de mediação online, pelo que a decisão de
participar, permanecer, desistir e/ou chegar a acordo depende, sempre, da vontade das partes.
Assim e no sentido de garantir o livre assentimento das partes, a plataforma de mediação
online deverá disponibilizar toda informação necessária sobre o procedimento, bem como
sobre os direitos e deveres das partes, de modo a que o seu consentimento seja prestado de
forma esclarecida e informada como exige a Lei.
Outro dos princípios basilares da mediação é o da confidencialidade, condição “essencial
para que os mediados sintam a confiança e o àvontade necessários para, num ambiente
informal e de boa-fé, revelarem os seus reais interesses, muitas vezes ocultados por detrás de
posições expressas e assumidas” (Monteiro & Carvalho, 2019).
No caso particular da mediação online é imperioso garantir a proteção e manter sob sigilo
todas as informações e documentos submetidos ou disponibilizados pelas partes na plataforma.
Mais ainda, deve ser mantida sob sigilo a informação do acesso das partes à plataforma
para tentativa da resolução do seu conflito. No que concerne ao e-mediador, este terá de
manter sigilo relativamente a todas as declarações prestadas pelas partes, independentemente
do modo como teve conhecimento das mesmas (videoconferência ou email, chats, etc.),
salvaguardadas as exceções legais.
Por outro lado, a mediação online deve também garantir atransparência do procedimento,
pelo que a plataforma de mediação online utilizada pelo e-mediador ou por qualquer entidade
que disponibilize serviços de mediação eletrónica deve facultar toda a informação relativa:
às regras procedimentais adotadas, aos custos e aos efeitos do acordo de mediação; às
ferramentas eletrónicas de comunicação e de mediação; à língua ou línguas nas quais pode
decorrer o procedimento de mediação; aos direitos e deveres das partes; algumas informações
relativas ao(s)e-mediador(es), designadamente as relativas às suas qualificações e ao código
deontológico adotado; assim como à entidade que gere a plataforma de resolução do conflito
por mediação.
No procedimento de mediação online as partes devem ser tratadas de forma equitativa
durante todo o procedimento. Neste sentido deve ser assegurado às partes o direito de acesso
online a todos os documentos, provas, declarações prestadas pela outra parte, assim como o
direito a serem devidamente informadas e esclarecidas sobre os seus direitos e deveres no que
concerne ao procedimento e à efetividade do acordo de mediação. O mediador online deve
tratar as partes de forma igual, concedendo-lhes as mesmas oportunidades de participação.
Esta exigência, em termos eletrónicos, pode levantar dificuldades de cumprimento seja porque
as partes podem convocar/comunicar com o mediador diretamente, seja porque as próprias
condições físicas de acesso aos meios eletrónicos podem ser distintas.

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A mediação eletrónica no quadro da «nova» administração da justiça
Cátia Marques Cebola - Susana Sardinha Monteiro

Tanto o e-mediador como as entidades que promovem a mediação online devem agir
com independência, neutralidade e imparcialidade. Cabe-lhes assegurar que não têm qualquer
interesse na obtenção do acordo final; não são remunerados e não têm qualquer relação,
pessoal, institucional ou profissional com qualquer das partes em conflito e não recebem
instruções das partes, direta ou por interposta pessoa, no que concerne ao desenvolvimento
do procedimento. Uma vez mais é absolutamente essencial ao e-mediador ser transparente
na sua atuação, uma vez que a inexistência de presença física simultânea das partes pode
levantar dúvidas e desconfianças que se devem evitar.

2.2. A plataforma online


A plataforma ou o website de mediação online deve assegurar o escrupuloso cumprimento
dos princípios da transparência, confidencialidade e voluntariedade, assim como as regras
relativas à proteção de dados. Qualquer quebra ou violação das regras de proteção de dados é
da responsabilidade das entidades de gestão da plataforma online.
Caso a plataforma recorra aos serviços de mediadores contratados, cabe-lhe assegurar
que são competentes para o exercício da respetiva atividade e de que cumprem os respetivos
deveres em escrupuloso cumprimento do código de conduta adotado pela entidade gestora da
plataforma ou website. Importa precisar que as entidades gestoras da plataforma de mediação
online devem solicitar autorização para operar no Estado onde se encontram sediadas.
Mais ainda, devem estabelecer contactos ou trabalhar em rede com outras entidades que
desenvolvem atividade similar (resolução de conflitos por mediação online).
As plataformas de resolução de conflitos através de mediação online devem possibilitar
a participação de diversas partes no âmbito de conflitos multipartes.

2.3. O e-mediador
Em Portugal o estatuto jurídico do mediador resulta da aplicação de três diplomas
legais. A Lei n.º 29/2013, de 19 de abril, estabelece os princípios gerais inerentes à atividade
do mediador, os seus direitos (art. 25.º) e deveres (art. 26.º). Posteriormente, a Portaria nº
344/2013, de 27 de novembro, veio prescrever o registo de mediadores de conflitos em
Portugal e a Portaria n.º 345/2013, de 27 de novembro, regulamentou a certificação de
entidades formadoras de cursos de mediação de conflitos.
Nenhum dos diplomas referidos faz menção ao e-mediador, o que não exclui a aplicação
das mesmas regras ao mediador que pratique quer uma mediação presencial, quer uma mediação
online. Nesta sede questionamos a necessidade e pertinência da adoção de regulamentação
específica para o mediador online. Parece-nos que há especificidades na mediação online
que justificam a regulamentação legal correspondente ao e-mediador, a saber: a relação
contratual do e-mediador com o administrador da plataforma online de mediação (deverá
estar associado ao administrador ou a sua intervenção pode ser esporádica?); formação
especializada em mediação online (uma formação complementar? Que conteúdos específicos
se devem ministrar?); requisitos para o exercício da profissão e certificação dos mediadores
(que entidade poderá ter competência para a certificação de mediadores?); regime disciplinar
(que normas aplicar quando o mediador pode estar em qualquer parte do mundo durante uma

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A mediação eletrónica no quadro da «nova» administração da justiça
Cátia Marques Cebola - Susana Sardinha Monteiro

mediação online? Que entidades poderão fiscalizar e aplicar sanções disciplinares? Deve ao
nível europeu criar-se uma entidade de supervisão geral?).
Debruçamo-nos, de seguida, sobre algumas das especificidades que reputamos necessárias
no que concerne aos mediadores online.
Começamos pelos requisitos legais para o exercício da atividade da mediação. Neste
contexto, as especificidades da mediação online justifica que a formação inicial de qualquer
mediador, seja depois complementada pela aprendizagem das técnicas especificas ao nível
da mediação eletrónica. Dando alguns exemplos, consideramos importante que o e-mediador
aprenda a captar a confiança das partes sem que as mesmas estejam presentes no mesmo espaço
físico; desenvolva a promoção do diálogo através das plataformas online, designadamente
quando as condições da comunicação via eletrónica não sejam as melhores ou sejam
interrompidas; aprenda a comunicar não apenas oralmente, mas também através da escrita se
esta for a via eletrónica adotada. Neste contexto, revela-se importante que o mediador tenha
cuidado na forma como escreve e como interpreta o que as partes escrevem(v.g. se uma das
partes utiliza as letras maiúsculas numa determinada frase é essencial que o mediador perceba
se está a querer enfatizar a mensagem a transmitir ou se apenas ocorreu um erro aquando da
escrita da mensagem).
A seleção de e-mediadores deverá passar pela criação de um sistema de acreditação de
e-mediadores. Neste sentido poderia ser criado um Registo Europeu dos E-mediadores. A
regulamentação deste registo deverá estabelecer questões como: a entidade responsável pela
certificação (deve ser uma entidade externa e idónea); os requisitos do mediador certificado
(ao nível das suas aptidões pessoais e formativas); a formação certificada para o exercício da
profissão de mediador.
A qualidade da mediação e a sua afirmação como profissão exigem, de igual modo,
a existência de códigos deontológicos que norteiem a atividade de qualquer mediador e,
portanto, também a do e-mediador, por forma a promover-se a responsabilização profissional
dos mediadores na sua atuação e ajudar na definição do seu estatuto jurídico, afirmando
a mediação como um meio efetivo de resolução de conflitos. No contexto que agora nos
ocupa, pensamos não haver necessidade de um código deontológico totalmente inovador
para o e-mediador. Na verdade, as regras éticasdevem aplicar-se a qualquer mediador
independentemente da via como efetiva o seu trabalho. Por outro lado, a própria prática da
mediação online demonstra a possibilidade de recurso a diferentes sistemas o que dificulta a
consagração de um código deontológico aplicável uniformemente a todo o mediador online.
Na eventualidade de determinado sistema implicar a previsão de uma regra ética específica a
mesma poderá ser consagrada apenas nesse contexto. De todo o modo, julgamos importante
que cada e-mediador (ou plataforma que disponibilize serviços de mediação online) indique
de forma clara as regras deontológicas adotadas.
O regime de responsabilidade disciplinar é essencial à afirmação profissional do
e-mediador, sendo essencial definir-se que entidade fiscaliza a atividade do e-mediador e
que sanções poderá estar sujeito. Na verdade, quer na mediação presencial, quer na mediação
online, o que está em causa em sede de responsabilidade será o sancionamento pela violação
dos deveres a que os mediadores estão adstritos. Assim, poderá verificar-se a aplicação de

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A mediação eletrónica no quadro da «nova» administração da justiça
Cátia Marques Cebola - Susana Sardinha Monteiro

diferentes regras ou deveres deontológicos, mas não se vislumbram razões que justifiquem a
previsão de um regime da responsabilidade do e-mediador específico ou muito distinto.
Maiores problemas poder-se-ão colocar ao nível da entidade fiscalizadora dos
e-mediadores. Face à possibilidade do mediador online poder estar registado num país distinto
do Estado no qual estão sediadas as partes (ou a plataforma eletrónica através da qual se
processa a mediação estar localizada num Estado distinto do Estado do registo do e-mediador)
e pela própria ausência de um local geograficamente localizado no qual ocorre a mediação
online, levanta-se a questão de saber quem fiscalizará determinado e-mediador e que regras
se lhe aplicam. Neste contexto parece-nos essencial a criação de registos, quer nacionais quer
internacionais, dos e-mediadores habilitados e autorizados a exercerem funções5. A entidade
responsável por cada registo ficaria igualmente responsável pela implementação das regras
de responsabilidade aplicáveis e pela inerente fiscalização dos e-mediadores registados. Em
termos supletivos, pode vir a consagrar-se como solução a aplicação das regras existentes no
Estado no qual o mediador está registado ou no qual está sediada a plataforma eletrónica.
Se em causa estiverem plataformas eletrónicas que recorram a sistemas baseados em
inteligência artificial, a violação de qualquer regra ou as más práticas deverão ser imputadas
à entidade que execute a gestão da plataforma.

2.4. A mediação online: competênciae procedimento


Em termos de competência material, a mediação online poderá analisar qualquer tipo
de conflito de acordo com as regras legais aplicáveis em cada matéria e em cada sistema
jurídico.
O procedimento de mediação online terá de obedecer a um conjunto de regras específicas.
Exemplifiquemos um procedimento possível.
Cada plataforma ou website devem disponibilizar formulários para que as partes possam
dar início ao procedimento. Se a outra parte do conflito não tiver consentido previamente com
a mediação, a entidade gestora da plataforma deve contactá-la de forma eletrónica tentando
agendar uma sessão de pré-mediação. Nesta comunicação eletrónica a parte contrária deve ser
informada relativamente ao objeto do litígio e quanto às partes que solicitaram a e-mediação.
Deve ainda ser dado um prazo para resposta, findo o qual se deverá considerar que a parte
declinou o pedido de mediação.
Na resposta a parte deve indicar a sua disponibilidade para participar na mediação e a
língua escolhida para a mediação. Em caso de conflito relativamente à língua escolhida pelas
várias partes e não sendo possível obter acordo, deve considerar-se inviabilizada a realização
da mediação.

5
Cada Estado-membro deve: criar sistemas de acreditação das entidades de gestão de plataformas
ou websites de mediação online; criar sistemas de registo de mediadores online, controlando as suas compe-
tências; possibilitar a apresentação de reclamações contra mediadores online ou contra entidades de gestão
de plataformas ou websites de mediação online.

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A mediação eletrónica no quadro da «nova» administração da justiça
Cátia Marques Cebola - Susana Sardinha Monteiro

Se a parte consentir com a realização da mediação deve dar-se início às sessões de


mediação, seja por escrito seja em tempo real através de videoconferência, consoante o
meio adotado pela plataforma. Todo o procedimento deve ser explicado às partes por forma
a que não haja dúvidas relativamente ao decurso das sessões, designadamente a forma de
comunicação entre elas (por escrito em deferido, ou em tempo real por videoconferência); a
possibilidade de sessões conjuntas ou separadas, ou a possibilidade de participação de outros
intervenientes como advogados.
Se as partes obtiverem acordo de mediação, este deve ser escrito pelo mediador com
a ajuda das partes e, eventualmente de advogados, advogados estagiários ou solicitadores,
devendo ficar disponível na plataforma por forma a ser confirmado através de assinatura
digital ou outra forma digital de aceitação do conteúdo contratual.
Este acordo deve ser reconhecido e ter força executiva em todos os Estados-membros,
exceto se violar normas imperativas ou critérios de ordem pública do Estado onde foi solicitada
a sua execução.

3. A mediação online: vantagens e principais dificuldades


Para além de todas as vantagens e benefícios associados à mediação em geral, desde
logo o facto de ser um mecanismo de resolução de conflitos que contribui para a pacificação
social e a resolução amigável dos conflitos; bem como ser um mecanismo que assenta na
responsabilidade e responsabilização das pessoas que, enquanto cidadãos ativos e participativos
reclamam uma maior e mais eficaz intervenção na construção da solução pacífica dos seus
conflitos que os perturbam no presente, tendo em vista a projeção das suas relações no e para
o futuro.
No contexto que ora nos interessa, o da mediação online, enunciaremos, de seguida,
alguns benefícios e virtualidades desta específica modalidade não adversarial de resolução de
conflitos. Parecem-nos óbvias as vantagens da mediação online para a resolução de conflitos
transfronteiriços, no seio de um mercado global em que as distâncias diminuem na proporção
inversa em que as TIC estimulam o estabelecimento de novas relações, pessoais e comerciais
e potenciam novos tipos de conflitos. Impõe-se, então, a promoção e desenvolvimento de
novas formas de resolução que viabilizem a participação de cidadãos de diferentes Estados.
Destacamos ainda que no seio do Espaço de Liberdade Segurança e Justiça, promovido
pela União Europeia e hoje convertido em domínio de competência partilhada entre a União
e os Estados membros (art. 4.º TFUE) se pretende a construção de um espaço de cidadania
em que as pessoas vejam reconhecidos os seus direitos e que beneficiem de mais Liberdade,
mais Segurança e melhor Justiça. Neste contexto importa desenvolver um novo modelo de
administração de justiça que não passa, necessariamente pelo recurso aos tribunais, mas que
promova e estimule o recurso a formas mais adequadas de resolução de conflitos, como a
mediação online (Zeleznikow, 2017).
A mediação online permite uma maior flexibilização “espácio-temporal”, uma vez que
não está dependente da reunião (presencial) das partes num mesmo espaço e tempo. Essa é
aliás, uma das grandes virtualidades da mediação online: a promoção da interação à distância,

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A mediação eletrónica no quadro da «nova» administração da justiça
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sem a imposição de limitações ou restrições de caráter geográfico. A mediação online


permite ainda uma redução dos custos associados a esta forma de resolução de conflitos, por
comparação com outros ADR, até por evitar as inerentes deslocações ou espaços físicos.
Mas não obstante, é inegável que a mediação por recurso a plataformas digitais, acarreta
algumas dificuldades operacionais6. Por um lado, aumenta a distância, o fosso entre os que
têm acesso às TIC e os que estão excluídos do uso destes serviços e não dominam essas
competências. Como a mediação só é possível se os intervenientes (mediador e mediados)
tiverem acesso a um computador e à internet, mas mais ainda se tiverem a competência
necessária e estiverem “confortáveis” com a utilização destes meios e plataformas, tal pode
constituir uma dificuldade acrescida para alguma das partes que pode não se sentir à vontade
com este procedimento em particular e que poderá inviabiliza o respetivo procedimento. Nesta
situação em concreto devem sobressair as capacidades, a competência específica do mediador
na deteção destes casos e na transformação desta dificuldade numa potencialidade.
Destacamos, ainda, as barreiras linguísticas que não desaparecem com a introdução das
TIC principalmente se as partes em conflito e o mediador tiverem diferentes nacionalidades,
assim como as dificuldades jurídicas decorrentes, nomeadamente, de determinar os requisitos
profissionais de que país deve o mediador respeitar; de como executar o acordo em caso de
incumprimento; da lei a aplicar à mediação quando as partes e o mediador se encontram em
diferentes Estados.
Por fim, mas não menos importante, o fator humano e relacional. A mediação é um
procedimento de resolução de conflitos que assenta nas pessoas e se destina às pessoas, a
ajudá-las a, num ambiente acolhedor e amigável, a resolverem o conflito que as opõe. Ora,
na mediação online o fator humano é, no mínimo, difuso. A mediação é um procedimento
que assenta na comunicação e o mediador é o gestor dessa comunicação: verbal, não verbal
e para-verbal. Decorrendo a mediação de forma virtual não podemos deixar de destacar que
parte dessa comunicação se perde ou fica seriamente comprometida, a saber a não verbal.

Conclusões
A mediação online é um imperativo colocado pela necessidade de efetivar a resolução de
alguns dos conflitos que se colocam na moderna sociedade e que o Direito terá de regulamentar
para garantir os resultados da sua aplicação. Com efeito, a globalização e crescente mobilidade
de pessoas e bens implicou que as relações jurídicas atuais envolvam partes sediadas em
diferentes países. Por outro lado, se as relações, designadamente comerciais ou de consumo,
se estabelecem por vias eletrónicas, não poderá deixar de se garantir que a resolução de
conflitos a este nível também opere de forma eletrónica.
Esta nova realidade coloca, contudo, desafios na resolução online dos conflitos e na
prática profissional do e-mediador.

6
Para uma visão geral dos problemas que a Inteligência Artificial levanta no campo do Direito,
veja-se ROCHA & PEREIRA (2020).

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A mediação eletrónica no quadro da «nova» administração da justiça
Cátia Marques Cebola - Susana Sardinha Monteiro

Concluímos, afirmando que a implementação da mediação no espaço europeu é um


caminho que se tem percorrido paulatinamente, mas com passos firmes. A regulamentação
da mediação online é mais um passo na sua afirmação como via efetiva na resolução dos
conflitos jurídicos dos cidadãos europeus.

BIBLIOGRAFIA:
CARVALHO, J.M. (2011). A consagração legal da mediação em Portugal. Revista JULGAR, n.º 15
(pp. 271-290). Coimbra: Coimbra Editora.
CEBOLA, C. M. (2015). Regulamentar a mediação: um olhar sobre a nova lei de mediação em
Portugal. Revista Brasileira de Direito, 11 (2): 53-55, jul.- dez. 2015. IMED.
CONFORTI,O. D. F. (2015). Mediación electrónica (e-mediación).Diario la Ley.15 de abril de 2015.
http://www.diariolaley.es
MONTEIRO, S. S. & CARVALHO, F. (2019). A mediação familiar num contexto de vulnerabilidade
social. In A. M. Costa e Silva, I. Macedo & S. Cunha (Eds.), Livro de atas do II Congresso
Internacional de Mediação Social: a Europa como espaço de diálogo intercultural e de mediação
(pp. 375-394). Braga: CECS.
KATSH, E. & RABINOVICH-EINY, O. (2017). Digital Justice: Technology and the Internet of
Disputes. Oxford University Express.
LOPES, D. & Patrão, A. (2016). Lei da Mediação Comentada, 2.ª ed. Coimbra: Almedina.
ROCHA Manuel Lopes & PEREIRA, Rui Soares (2020). Inteligência Artificial & Direito, Almedina.
WAHAB, M.; KATSH, E.; RAINEY, D. (2012). Online Dispute Resolution: Theory and Practice: a
Treatise on Technology and Dispute Resolution, Eleven International Publishing.
ZELEZNIKOW, J. (2017). “Can artificial Intelligence and Online Dispute Resolution Enhance
Efficiency and Effectiveness in Courts”, Vol. 8. N.º 2, InternationalJournal for Court
Administration, pp. 30-45.

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Contratos públicos e o desenvolvimento
de novas tecnologias no Brasil:
Estudo de caso dos dados abertos na política de
mobilidade urbana de São Paulo

Anna Beatriz Savioli1


Tamara Cukiert2

Resumo: A incorporação de novas tecnologias demanda uma constante adaptação na forma de


contratar do Poder Público brasileiro, em especial com relação às políticas de mobilidade urbana. O modelo
tradicional de contratações da Administração Pública, regido essencialmente pela Lei nº 8.666/93, falha
em fazer frente à incorporação de inovação. A esses desafios estruturais, somam-se, ainda, a celeridade
e a complexidade que são inerentes às contratações de novas tecnologias e demandam a versatilidade
nos ajustes negociais. Não à toa, nas últimas décadas, tem se verificado uma flexibilização na forma de
contratar da Administração Pública brasileira. Para além do surgimento de novos marcos legais, que visam
a regulamentar modelos mais complexos de contratação, buscam-se conceber outras formas de seleção
do setor privado, que permitam e incentivem o desenvolvimento de novas tecnologias. Um precedente
relevante, nesse sentido, diz respeito às contratações que têm sido conduzidas pelo Município de São
Paulo, com vistas à disponibilização à sociedade dos dados coletados a partir dos radares municipais e ao
aprimoramento da política pública de mobilidade urbana, mediante a realização de concursos públicos.
O presente artigo analisa a evolução do contexto brasileiro relacionado às licitações públicas e relata a
experiência do Município de São Paulo com o intuito de colaborar com o debate acerca das dificuldades e
possibilidades na contratação de soluções inovadoras pela Administração Pública brasileira.
Palavras-chave: contratos públicos; inovação; transparência pública; concurso público; dados
abertos; cidades inteligentes.

1
Advogada especializada em Infraestrutura com atuação em São Paulo, Graduada em Direito pela
Universidade de São Paulo; Mestre em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo; Doutoranda em
Direito do Estado pela Universidade de São Paulo. E-mail para contato: absavioli@gmail.com
2
Advogada especializada em Infraestrutura com atuação em São Paulo; Graduada em Direito pela
Universidade de São Paulo; Secretária da Comissão de Infraestrutura da OAB/SP. E-mail para contato:
tamaracukiert@gmail.com

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Contratos públicos e o desenvolvimento de novas tecnologias no Brasil
Anna Beatriz Savioli - Tamara Cukiert

Abstract: The incorporation of new technologies demands a constant adaptation of public procurement
ways in Brazil, even more so in the case of urban mobility. The traditional procurement procedures, governed
by Law no. 8.666/1993, do not attend to the needs of innovative solutions. The Brazilian Government has
indeed begun to adopt more flexible procurement procedures in the last decades. New laws have been
enacted in order to govern more complex procurement models, and public authorities have been trying to
conceive new ways of procuring which promotes the development of new technologies. The Municipality
of São Paulo, for that matter, has conducted very interesting procedures in order to contract new solutions
to make all data collected from urban sensors available to citizens (open data) and to improve the urban
mobility policy, by means of public tenders. This paper analyzes the evolution of the Brazilian public
procurement framework and describes the experience of the Municipality of São Paulo with the aim of
collaborating to the debate involving the difficulties and possibilities of the procurement of innovative
solutions by the Public Administration in Brazil.
Keywords: public contracts, innovation, transparency, public tender, open data, smart cities.

I. Introdução
O modelo tradicional de contratações da Administração Pública no Brasil, regido
essencialmente pela Lei nº 8.666/93, é marcado pelo engessamento das formas de contratação
e por um modelo único e rígido de contrato administrativo, que não atende à celeridade
e à complexidade que são inerentes às contratações de novas tecnologias. Não à toa, nas
últimas décadas, tem se verificado uma flexibilização na forma de contratar da Administração
Pública brasileira. Para além do surgimento de novos marcos legais, que visam a regulamentar
modelos mais complexos de contratação, buscam-se conceber outras formas de seleção do
setor privado, que permitam e incentivem o desenvolvimento de novas tecnologias.
Um precedente relevante, nesse sentido, diz respeito às contratações que têm sido
conduzidas pelo Município de São Paulo, com vistas à disponibilização à sociedade dos
dados coletados a partir dos radares municipais e ao aprimoramento da política pública de
mobilidade urbana. O modelo de seleção proposto tem se mostrado inovador, na medida em
que permite não apenas uma maior participação do setor privado na concepção do objeto
contratado, mas também o fomento do desenvolvimento de novas tecnologias em âmbito
municipal.
O presente trabalho se destina a analisar a solução encontrada pelo Município de São
Paulo para fazer frente às demandas tecnológicas e identificar alguns dos principais desafios
que têm sido enfrentados.
Para tanto, em primeiro lugar será descrito o regime tradicional de licitações e
contratações públicas no Brasil, para então passarmos a descrever a evolução do cenário
legislativo e prático. Em seguida, será analisado o precedente do Município de São Paulo na
contratação de soluções de utilização de dados abertos (open data) coletados pelos radares
de trânsito espalhados pela cidade. Por fim, serão tecidas considerações finais acerca das
dificuldades e possibilidades na contratação de soluções inovadoras pela Administração
Pública brasileira.

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Contratos públicos e o desenvolvimento de novas tecnologias no Brasil
Anna Beatriz Savioli - Tamara Cukiert

II. O regime tradicional de licitações e contratos


administrativos
O regime atual de licitações e contratos administrativo no Brasil é regulamentado
pela Lei 8.666/1993. A despeito de ser a Lei destinada a apresentar “normas gerais de
licitação e contratação”, conforme competência delegada à União pelo art. 22, XXVII, da
Constituição Federal de 1988, a Lei apresenta regras detalhadas e específicas, descrevendo
de forma minuciosa todo o processo licitatório e estabelecendo modelo único de contrato
administrativo.
Em linhas gerais, a Lei prevê diferentes modalidades de licitação (concorrência, tomada
de preços, convite, concurso e leilão, conforme art. 22 da Lei), que devem seguir uma
sequência fixa de fases (apresentação das propostas, habilitação, julgamento, homologação e
adjudicação, conforme art. 43). Ainda, há uma série de dispositivos regulamentando os prazos
de cada uma das fases, as exigências de habilitação que podem ser previstas em edital (arts. 27
a 33) e os critérios de julgamento das propostas (arts. 43 a 46). Por fim, a Lei também prevê
poucas e excepcionais possibilidades de contratação direta (arts. 24 e 25) do particular.
O resultado é um procedimento longo e demasiadamente formalista, que não abre margem
para a flexibilização das fases, das exigências de habilitação ou dos critérios de julgamento
escolhidos, e muito menos permite uma negociação com o licitante3. Não bastasse, as regras
legais vêm sendo interpretadas de forma ainda mais restritiva pelos órgãos de controle4.
Do ponto de vista do contrato celebrado com o particular, a Lei apresenta modelo único
de contrato administrativo, concebido a partir de um contato típico de obra pública ou de
aquisição de bens por preços unitários. Esse regime é aplicado aos mais distintos objetos
(como a prestação de serviços complexos, elaboração de projetos, realização de consultorias,
aquisições de produtos tecnológicos, dentre outros), desconsiderando-se as especificidades
do escopo contratado.
Além disso, o contrato administrativo típico é marcado por um foco majoritário
no controle de meios, vinculando o pagamento do particular à verificação de eventos em
medições mensais, em detrimento do controle de resultados e da eficiência instrumental.
Nesse sentido, a Lei não apresenta a possibilidade de variação da remuneração do particular
em razão do desempenho ou dos ganhos de eficiência, por exemplo. Ainda, a Lei Geral prevê
regras estanques para a extinção dos contratos, e hipóteses muito específicas de alteração (art.
65 da Lei), que não contemplam, por exemplo, a possibilidade de renegociação dos termos
originalmente estabelecidos para se assegurar a sustentabilidade do contrato.

3
A negociação acerca da proposta apresentada pela licitante é prática recorrente em outros países,
como, por exemplo, nos procedimentos de licitação por negociação ou até mesmo o diálogo competitivo,
previstos na Diretiva 2014/24/UE da União Europeia.
4
Sobre os problemas do controle da Administração Pública no Brasil, ver: MARQUES NETO, Flo-
riano de Azevedo; PALMA, Juliana Bonacorsi de. Os sete impasses do controle da administração pública
no Brasil. In PEREZ, Marcos Augusto; SOUZA, Rodrigo Pagani de. Controle da Administração Pública.
Belo Horizonte: Fórum, 2017, pp. 21-38.

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Contratos públicos e o desenvolvimento de novas tecnologias no Brasil
Anna Beatriz Savioli - Tamara Cukiert

Assim é que a doutrina sustenta que a Lei de Licitações brasileira “seguiu o caminho
da superlegalização”, buscando substituir, por suas regras minuciosas, as tomadas de decisão
pelo gestor público.5
Tais características da Lei de Licitações podem ser explicadas pelo contexto histórico do
momento de sua edição. O início dos anos 90 foi marcado pelas suspeitas de superfaturamento
e desvio de verbas públicas pelo então Presidente da República Fernando Collor de Mello,
empossado em 1990. Em razão do escândalo que seguiu às denúncias de corrupção, o
Congresso Nacional instaurou processo de impeachment do Presidente, que renunciou ao
cargo em 1992, horas antes da votação do impeachment pelo Senado Federal.
Nesse cenário, o Congresso Nacional vislumbrou na edição de uma Lei rígida de licitações
e contratos públicos, oportunidade para combater a corrupção. Ao limitar a discricionariedade
do gestor público a Lei se insurge como bastião da moralidade administrativa brasileira6.
No entanto, as décadas que se seguiram provaram a falência do sistema proposto pela
Lei nº 8.666/93. O Brasil não apenas não escapou de grandes escândalos de corrupção
relacionados diretamente ao superfaturamento de obras públicas licitadas (como é exemplo
a Lava-Jato) como apresenta procedimento licitatório que, por demasiadamente inflexível,
impede o desenvolvimento e contratação de soluções tecnológicas pela Administração
Pública. Isso porque a contratação de soluções inovadoras demanda flexibilidade do processo
licitatório, especialmente em casos nos quais a solução visada pela Administração Pública
ainda não existe ou, ao menos, não está disponível em mercado para contratação pelos
métodos tradicionais.
Nesses casos, tanto o procedimento de contratação quanto o contrato administrativo
resultante devem conviver com a incerteza inerente ao risco tecnológico e à possibilidade de
atrasos ou até mesmo de fracasso no desenvolvimento da solução proposta.

III. Evolução do cenário


A despeito do regime tradicional, uma série de inovações no ordenamento jurídico
brasileiro buscaram, aos poucos, conferir maior flexibilidade à forma de contratação e ao
contrato administrativo tradicional.

5
“A Lei Geral de Licitações e Contratos vigente seguiu o caminho da superlegalização. O Legisla-
tivo, em 1993, optou por transferir para a lei federal boa parte das decisões que poderiam ter sido tomadas,
no plano abstrato ou concreto, por outras instâncias e atores (…). Dessa forma, por meio de uma lei rígida
e minuciosa, reduziu-se significativamente a margem de discricionariedade do gestor público, amarrando-o
ao que fora previamente definido nas normas. Procurou-se criar a figura do gestor boca da lei na expectativa
de que a corrupção — cujo epicentro, segundo o diagnóstico da época, estaria na liberdade gozada pela
administração para decidir como melhor contratar — fosse reduzida.” (ROSILHO, André Janjácomo. As
licitações segundo a Lei nº 8.666: um jogo de dados viciados. In Revista de Contratos Públicos – RCP, Belo
Horizonte, ano 2, n. 2, p. 9-37, set. 2012/fev. 2013)
6
ROSILHO, André Janjácomo. As licitações segundo a Lei nº 8.666: um jogo de dados viciados. In
Revista de Contratos Públicos – RCP, Belo Horizonte, ano 2, n. 2, p. 9-37, set. 2012/fev. 2013.

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Contratos públicos e o desenvolvimento de novas tecnologias no Brasil
Anna Beatriz Savioli - Tamara Cukiert

Do ponto de vista da contratação, cita-se, por exemplo, a Lei nº 10.520/2002 que criou
a modalidade licitatória do pregão, marcada pela inversão de fases entre a habilitação dos
licitantes e o julgamento das propostas apresentadas7, e a Lei nº 12.462/2011, que instituiu
ao Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC)8, o qual, além de prever a inversão
de fases como a regra, permitiu a chamada “contratação integrada”. Esta compreende a
elaboração do projeto básico pelo particular contratado (art. 9º, § 1º), e se destina justamente
àqueles objetos que envolvem inovação tecnológica ou que permitem a execução mediante
diferentes metodologias, ou mediante tecnologias de domínio restrito no mercado. Nesse
momento, portanto, confere-se, maior possibilidade de participação do particular na concepção
da solução que melhor atende às necessidades da Administração Pública.
Nesse mesmo sentido, a Lei federal de Concessões (Lei nº 8.987/1995) previu, em seu
art. 219, a figura do Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI), segundo o qual
a Administração Pública pode publicar edital de chamamento público para o recebimento
de estudos, levantamentos e projetos de concepção e estruturação de concessões pelo setor
privado.
Do ponto de vista das novas formas contratuais, a própria Lei de Concessões (Lei nº
8.987/1995) e a Lei de Parcerias Público-Privadas – PPP (Lei nº 11.079/2004) inovaram
no ordenamento jurídico brasileiro criando novas modalidades de parcerias que permitem a
maior transferência de riscos – e portanto de responsabilidades – ao particular contratado pela
Administração Pública, bem como permite a inclusão de cláusula que vincula a remuneração
do parceiro privado ao seu desempenho (art. 6º, § 1º).
Mais recentemente, foi editada a Lei nº 13.303/2016, denominada Estatuto das Estatais,
prevendo regras específicas de contratações e contratos públicos por empresas públicas e

7
O pregão é modalidade licitatória utilizada para aquisição de bens e serviços comuns, entendidos
como “aqueles cujos padrões de desempenho e qualidade possam ser objetivamente definidos pelo edital,
por meio de especificações usuais no mercado” (art. 1º, parágrafo único, da Lei nº 10.520/2002). O pro-
cedimento licitatório é muito mais célere, marcado por etapa de lances sucessivos pelos licitantes, objeti-
vando a obtenção do menor preço possível para a Administração Pública. Uma das principais inovações
do pregão no ordenamento jurídico brasileiro é justamente a previsão de inversão de fases entre a etapa de
habilitação do licitante e de julgamento da proposta apresentada. No pregão, primeiro é realizada a etapa
de abertura das propostas e de lances sucessivos, sendo analisada a documentação da habilitação apenas do
primeiro colocado (aquele que apresentar o melhor lance). Além de reduzir significativamente o número de
documentos analisados pela comissão de licitação, esse cronograma apresenta a vantagem de prever etapa
recursal única, limitando a possibilidade de entraves ao certame.
8
Concebido inicialmente para a execução das obras e serviços necessários para a realização da
Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos, que foram sediados no Brasil em 2014 e 2016,
respectivamente, o escopo do RDC foi posteriormente ampliado para outros setores. Nesse novo regime, a
inversão de fases entre a habilitação e o julgamento das propostas é a regra (art. 14).
9
Lei nº 8.987/1995: “Art. 21. Os estudos, investigações, levantamentos, projetos, obras e despesas
ou investimentos já efetuados, vinculados à concessão, de utilidade para a licitação, realizados pelo poder
concedente ou com a sua autorização, estarão à disposição dos interessados, devendo o vencedor da licita-
ção ressarcir os dispêndios correspondentes, especificados no edital.”

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Contratos públicos e o desenvolvimento de novas tecnologias no Brasil
Anna Beatriz Savioli - Tamara Cukiert

sociedades de economia mista10. Ainda, a Lei inovou ao permitir, no caso de estabelecimento


de parcerias institucionais (ou societárias), a dispensa de licitação para o caso de escolha de
parceiro que caracterize uma “oportunidade de negócios”11.
Por fim, a Lei nº 10.973/2004, denominada “Lei de inovação”, foi recentemente alterada
pela Lei nº 13.243/2016, que, além de introduzir uma série de instrumentos de estímulo à
inovação na Administração Pública, como a formação de alianças estratégicas com empresas
e instituições de pesquisa (ICTs, art. 3º), a implantação de ambientes promotores da inovação
(como parques tecnológicos e incubadoras, art. 3º-B), a participação acionária minoritária
do Estado no capital social de empresas com o propósito de fomento (art. 5º) e contratos
de transferência de tecnologia (art. 6º), criou a modalidade de contratação denominada
“encomenda tecnológica”. Nesta, a Administração Pública poderá contratar diretamente
as ICTs para a “atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação que envolvam risco
tecnológico, para solução de problema técnico específico ou obtenção de produto, serviço ou
processo inovador” (art. 20).
Trata-se da primeira vez em que a legislação brasileira se debruçou sobre a incerteza, ou
o risco tecnológico. Este é definido no Decreto que regulamenta a Lei como a “possibilidade
de insucesso no desenvolvimento de solução, decorrente de processo em que o resultado é
incerto em função do conhecimento técnico-científico insuficiente à época em que se decide
pela realização da ação” (art. 2o, III, do Decreto nº 9.283, de 7 de fevereiro de 2018).
A encomenda tecnológica, então, apesar de procedimento complexo e destinado a
contratações de maior vulto – e não para a solução de necessidades cotidianas da Administração
Pública – é inédita por conviver com a possibilidade de fracasso12.

10
Esta prevê a possibilidade de contratação integrada, em moldes muito semelhantes à previsão na
Lei do RDC (art. 43, VI), além da possibilidade de inclusão, no contrato, de cláusula de remuneração vari-
ável em razão do desempenho do particular (art. 45).
11
Lei nº 13.303/2016: “Art. 28. § 3º São as empresas públicas e as sociedades de economia mista
dispensadas da observância dos dispositivos deste Capítulo nas seguintes situações: (…) II - nos casos em
que a escolha do parceiro esteja associada a suas características particulares, vinculada a oportunidades de
negócio definidas e específicas, justificada a inviabilidade de procedimento competitivo. § 4º Consideram-
se oportunidades de negócio a que se refere o inciso II do § 3º a formação e a extinção de parcerias e outras
formas associativas, societárias ou contratuais, a aquisição e a alienação de participação em sociedades e
outras formas associativas, societárias ou contratuais e as operações realizadas no âmbito do mercado de
capitais, respeitada a regulação pelo respectivo órgão competente.”
12
“A presença do risco tecnológico pode afetar a ETEC de diferentes formas, como, por exemplo,
na correta definição dos custos a serem incorridos, no tempo exato para o desenvolvimento e a entrega, ou
na própria possibilidade de atingir os objetivos. Ou seja, o ineditismo da solução evidencia a possibilidade
de fracasso no atendimento da demanda que originou tal ETEC. Por isso, pode-se afirmar que, de forma
específica, as ETECs são compras de pesquisa e desenvolvimento (P&D), incluindo plantas-piloto, testes
clínicos e prototipagem, destinadas a solucionar desafios tecnológicos e/ou socioeconômicos específicos
cujas soluções ainda não existam ou não estejam disponíveis no mercado.” (RAUEN, André Tortato; BAR-
BOSA, Caio Márcio Melo. Encomendas tecnológicas no Brasil: guia geral de boas práticas. Brasília: IPEA,
2019, p. 16)

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Contratos públicos e o desenvolvimento de novas tecnologias no Brasil
Anna Beatriz Savioli - Tamara Cukiert

IV. Estudo de caso: os dados abertos na política de


mobilidade urbana de são paulo
O Município de São Paulo realizou, recentemente, experiência para a contratação de
soluções para a abertura dos dados coletados pelos radares de trânsito espalhados pela cidade,
utilizando a modalidade licitatória de concurso (art. 22, IV e § 4º, da Lei nº 8.666/199313).
Denominado “Mobiliza+SP Dados de Radares”, o concurso14 foi conduzido pela Secretaria
Municipal de Inovação e Tecnologia (SMIT) e seu Laboratório de Inovação Aberta (Mobilab+),
em conjunto com a Secretaria Municipal de Mobilidade e Transportes (SMT), e teve por
objeto a contratação de solução inovadora que permitisse a organização e disponibilização, à
Administração Pública e à comunidade em geral, dos dados obtidos através dos radares15.
O processo seletivo era composto por duas etapas: (i) uma primeira, de seleção de e
premiação dos três melhores projetos; e (ii) uma segunda, de seleção de solução vencedora
para assinar o contrato. A primeira etapa consistiu numa “Hackatona”, nome dado a uma
maratona de programação e análise de dados e sistemas, durante a qual os participantes
elaboraram suas propostas, na forma de prova de conceito (PoC), entregando um Plano de
projeto e um protótipo de baixa fidelidade16. Por fim, as equipes participantes apresentaram
suas soluções à Comissão Julgadora em um pitch de cinco minutos. Os projetos foram
avaliados por critérios objetivos, e as três soluções que obtiveram as maiores notas foram
selecionadas para a segunda frase e receberam prêmio de R$ 10.000,00 (dez mil reais). Na
segunda etapa, as equipes cujos projetos foram selecionados desenvolveram um protótipo
funcional da solução17 e proposta para o desenvolvimento e implementação da solução no prazo
de um mês. Estes foram apresentados em um pitch de dez minutos, e classificados conforme
critérios de avaliação objetivos. A melhor proposta foi declarada vencedora e convocada para
assinar o contrato com a Administração Pública, recebendo também o prêmio de R$ 70.000
(setenta mil reais) para desenvolvimento e implantação da solução.
O concurso foi considerado um sucesso, contando com a participação de 18 equipes
(52 participantes) e com a contratação de solução inovadora para os desafios enfrentados

13
Lei nº 8.666/1993: “Art. 22. São modalidades de licitação: (…) IV - concurso; (…) § 4º Concurso
é a modalidade de licitação entre quaisquer interessados para escolha de trabalho técnico, científico ou
artístico, mediante a instituição de prêmios ou remuneração aos vencedores, conforme critérios constantes
de edital publicado na imprensa oficial com antecedência mínima de 45 (quarenta e cinco) dias.”
14
Concurso Público nº 03/2019, autorizado pela Portaria conjunta da SMIT e SMT nº 25, de 23 de
setembro de 2019.
15
Segundo o Termo de Referência anexo ao Edital de licitação: “O desenvolvimento de uma solução
de web API que disponibilize os dados agregados de tráfego coletados a partir de equipamentos de fisca-
lização automática de trânsito e que permita que os usuários dessa API consigam consultar medidas como
fluxo, velocidade média e infrações.”
16
Segundo o Edital de licitação: “7.2.2 Entende-se por protótipo de baixa fidelidade um protótipo
que visa definir, de modo simples, como seria a interação do usuário com o projeto e tem definições funda-
mentais de implementação. Não tem, necessariamente, preocupação com elementos de design.”
17
Segundo o Edital de licitação: “8.2.1. Entende-se por protótipo funcional uma solução apresen-
tando as principais funcionalidades da aplicação. Deve haver um avanço visível e perceptível em relação à
PoC, validando o conceito apresentado.”

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Contratos públicos e o desenvolvimento de novas tecnologias no Brasil
Anna Beatriz Savioli - Tamara Cukiert

pela Administração Pública – tudo isso no prazo total de seis meses, exíguo para o padrão
brasileiro de contratações públicas.

V. Considerações finais
Viu-se que o cenário legislativo brasileiro não incentiva a prática de soluções inovadoras
pelos gestores públicos, ao limitar as possibilidades de flexibilização do procedimento
licitatório e do contrato administrativo. Não obstante, o Poder Público vem construindo
alternativas criativas para a contratação de soluções que não são prontamente disponíveis em
mercado. O Município de São Paulo desenvolveu solução simples e de baixo custo, utilizando
modalidade licitatória existente de forma otimizada para a satisfação de suas necessidades.
Apesar de pequena em termos de escala e de valores investidos, a experiência pode servir de
inspiração para projetos maiores, bem como para outros Municípios, inclusive aqueles de
pequeno porte.
Mais do que isso, a experiência do Município de São Paulo com a utilização do open
data é um ponto de partida para o desenvolvimento de aplicações tecnológicas posteriores
que permitam a construção de uma cidade inteligente e de uma Administração Pública cada
vez mais digital. Para além do óbvio ganho em transparência da gestão pública mediante
a abertura de dados, a sua disponibilização é o primeiro passo para o desenvolvimento de
sistemas e aplicativos que otimizem a prestação de serviços públicos e a interface entre os
cidadãos e o Poder Público.
No entanto, a experiência do Moibiliza+SP ainda não é uma solução final, e não é aplicável
para todas as situações de contratação de inovação na Administração Pública. Por exemplo,
não é ideal para os casos de contratações continuadas ou recorrentes, ou para soluções mais
complexas, que exijam maior tempo e custo para serem desenvolvidas. Nesse sentido, não são
todas as soluções tecnológicas que podem ser desenvolvidas em uma maratona (Hackatona).
Além de mais tempo, algumas soluções podem exigir a disponibilização de mais dados, ou
até mesmo a experimentação em um ambiente controlado (como laboratórios e parques de
inovação).
Isso, claro, sem citar os casos de inovação que requerem investimento vultoso em P&D –
situação na qual a encomenda tecnológica, prevista na Lei de Inovação, pode ser utilizada – ou
que exigem o estabelecimento de uma relação mais próxima e duradoura entre Administração
Pública e desenvolvedor.
Nesse sentido, o maior óbice à contratação de inovação no Brasil parece ser justamente
o fato de que as soluções têm de ser licitadas. Como visto, o regime de licitações brasileiro
permite pouquíssimas exceções ao dever de licitar, justamente para coibir a tomada de decisões
discricionárias pelo administrador. Essa escolha, no entanto, impede o estabelecimento de
parcerias e negociações estratégicas com desenvolvedores, uma vez que a assunção dos
altos custos e riscos tecnológicos associados só é viável, muitas vezes, caso seja garantida a
contratação direta da solução aventada ao final do processo.
Essas são questões que não podem ser endereçadas sem reformas mais profundas no
regime licitatório brasileiro e na mentalidade que ele traduz. Nesse sentido, o grande trunfo

— 640 —
Contratos públicos e o desenvolvimento de novas tecnologias no Brasil
Anna Beatriz Savioli - Tamara Cukiert

da solução encontrada pela SMIT/SP é exatamente o de possibilitar o desenvolvimento e a


contratação de tecnologia barata, simples e efetiva, fazendo uso da moldura legal existente
atualmente, com todas as suas limitações e dificuldades.

Referências:
MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; PALMA, Juliana Bonacorsi de. Os sete impasses do controle
da administração pública no Brasil. In PEREZ, Marcos Augusto; SOUZA, Rodrigo Pagani de.
Controle da Administração Pública. Belo Horizonte: Fórum, 2017, pp. 21-38.
RAUEN, André Tortato; BARBOSA, Caio Márcio Melo. Encomendas tecnológicas no Brasil: guia
geral de boas práticas. Brasília: IPEA, 2019.
ROSILHO, André Janjácomo. As licitações segundo a Lei nº 8.666: um jogo de dados viciados.
In Revista de Contratos Públicos – RCP, Belo Horizonte, ano 2, n. 2, p. 9-37, set. 2012/fev.
2013.
SÃO PAULO. Edital de Licitação nº 03/SMIT/2019. Modalidade: Concurso de projetos, publicado em
08 de outubro de 2019.

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La violencia en redes sociales en el contexto de
las manifestaciones deportivas

Álvaro Alzina Lozano1

Resumen: La violencia es un componente intrínseco a la sociedad actual. En el mundo que vivimos


encontramos elementos violentos en todos los aspectos de la vida, por lo que el deporte no constituye
una excepción. Los tradicionales tipos de violencia como la física, la verbal o la simbólica, siguen siendo
una realidad, pero a su vez han ido acrecentándose gracias a Internet, y por ende, a las redes sociales. El
desarrollo de estos tipos de violencia en los fenómenos deportivos - cuestión que estudiaremos en este
artículo - ha provocado que las autoridades hayan optado por aplicar medidas disciplinarias para evitar
comentarios que puedan generar violencia y o que vulneren los derechos de la persona; aunque siempre,
teniendo en cuenta y respetando, el principio de libertad de expresión. Por ello, las grandes compañías que
existen detrás de estas redes sociales son cada vez más exigentes con este tipo de cuestiones, delimitando
qué se puede publicar y qué no, con el fin de respetar el honor y la seguridad de sus usuarios.
Palabras Clave: Deporte, Redes Sociales, Violencia.

Abstract Violence is an intrinsic component of today’s society. In the world we live in, we find violent
elements in all aspects of life, so sport is no exception. The traditional types of violence such as physical,
verbal or symbolic, are still a reality, but in turn have been increasing thanks to the Internet, and therefore,
social networks. The development of these types of violence in sports phenomena - an issue that we will
study in this article - has led the authorities to choose to apply disciplinary measures to avoid comments that
may generate violence and/or that violate the rights of the individual; although always taking into account
and respecting the principle of freedom of expression. For this reason, the large companies behind these this
social networks are getting more strict with this type of issues, delimiting what can be published and what
cannot, in order to respect the honour and security of their users.
Keywords: Sport, Social Networks, Violence

1
Profesor de Derecho Penal Universidad Rey Juan Carlos. alvaro.alzina@urjc.es

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La violencia en redes sociales en el contexto de las manifestaciones deportivas
Álvaro Alzina Lozano

I. Introducción
Los distintos aspectos negativos que han ido apareciendo a lo largo de la historia en
el deporte han empañado el ideal del mismo: competiciones en las que se pone en valor la
habilidad, la destreza y la fuerza, han quedado mermadas por el engaño, la violencia, fraude
y la corrupción.
El presente artículo, basado principalmente en aspectos jurídicos y sociales de la violencia
en este ámbito; tiene como objetivo fundamental la construcción de unas propuestas desde el
punto de vista académico que hagan reflexionar sobre la viabilidad, o no, de que el deporte se
limite al ámbito estrictamente lúdico, sin generar noticias negativas como los nuevos casos
de dopaje, incidentes entre aficionados en los estadios o la alteración de un resultado en
una competición. Desgraciadamente estos tres elementos acompañan a las competiciones,
empañando la imagen del propio deporte y de los valores que profesa, alterando la vida de la
sociedad y posibilitando la ruptura del orden jurídico.
Compartimos que la violencia es un elemento que debe perseguir el Estado y, por tanto,
proteger a cualquiera que sea la víctima de ésta ante posibles acciones. Cuando hablamos de
“víctima” nos referimos al sujeto pasivo protegido, que suelen ser los propios deportistas,
los árbitros, los entrenadores, los aficionados, los responsables federativos y los clubes.
Igualmente, cuando se producen este tipo de hechos es la propia sociedad la que actúa como
sujeto pasivo, pues aquella actividad que pretende ser lúdica e integradora, se convierte en
un campo de batalla no sólo físico, sino también dialéctico y simbólico, siendo este tipo de
situaciones actitudes que las autoridades no deben admitir.
Cuestión idílica sería el concebir el deporte sin aspectos negativos. Podemos generar
esta idea a través del aprendizaje de conductas basadas en la razón, planteándose si los
instrumentos jurídicos y sociales han ayudado a mermar esta violencia; o si por el contrario,
la han legitimado.
Nuestro principal obstáculo es la transformación y la evolución de la violencia a lo
largo de la historia, llegando a utilizarse las herramientas actuales como el Internet como
focos de violencia. Esta herramienta que en la actualidad sigue desarrollándose, ha tenido un
gran impacto en la sociedad y en la forma de comunicarnos entre los propios ciudadanos2.
Algunos de los ejemplos de esta nueva forma de comunicación la encontramos en las redes
sociales como Instagram, Facebook, y Twitter, entre otras. Que aunque hayan servido para
mejorar la vida de las personas, denotan una serie de efectos negativos en este ámbito.
El ciberacoso, las noticias falsas, los insultos y las amenazas, constituyen formas de
violencia que afectan directamente a los usuarios, lo que puede generar a largo plazo que el

2
Tal y como señalan varios autores: “Internet dejó de ser unidireccional para pasar a darle el pro-
tagonismo al usuario, que ahora interacciona de forma efectiva con aquello que le resulta atrayente, irri-
tante, apetecible…Se han establecido, por tanto, nuevos canales para la participación y una multiplataforma
portátil desde la que podrá participar en cualquier momento y lugar.” RODRÍGUEZ TERCEÑO, José;
GONZÁLVEZ VALLÉS, Juan Enrique; CALDEVILLA DOMÍNGUEZ, David. El deporte profesional ante
las redes sociales de una nueva generación. En Senderos de historia cultural. Universidad Metropolitana
(UNIMET), 2017. p. 197.

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La violencia en redes sociales en el contexto de las manifestaciones deportivas
Álvaro Alzina Lozano

individuo tenga una personalidad muy alejada de lo preconcebido. Es por ello que este estudio
aunque solo se enfoque en el ámbito jurídico, hará referencia a ciencias como la sociología
o la criminología. Del mismo modo, es importante conocer qué tipo de información se
proporciona y cómo es tratada la misma a través de los medios de comunicación, sobretodo,
en los momentos que pueden considerarse actitudes contrarias a derecho.
El anonimato se ha convertido en la principal herramienta para hacer uso de estas
plataformas online, lo que genera una protección a los usuarios que utilizan las redes para
proyectar violencia y que aunque se está mejorando perseguir a estos ciudadanos, sigue siendo
una cuestión difícil de controlar. Así, expertos de distintos ámbitos políticos, sociólogos y
juristas, han considerado necesario que se amplíen las líneas de actuación de estas redes a
través de la educación3 y de la existencia de una legislación más exigente, con el fin de hacer
llegar un mensaje social en el que prime la defensa los Derechos Humanos, la tolerancia, el
respeto y la educación en ciudadanía. Todo ello desembocaría en una sociedad basada en el
diálogo, en la concordia y la fraternidad entre los distintos sectores que la componen4.
Bien es cierto que el deporte está asociado a la competición y a la victoria. Pese a ello,
no debemos sobrepasar los límites del terreno de juego, como está ocurriendo actualmente.
Así, tanto el legislador como las grandes compañías de Internet, tienen un papel crucial para
la protección de los sujetos pasivos que sean vulnerables o puedan constituirse un blanco
idóneo para este tipo de ataques, dada la repercusión mediática y social que éstos procesan.
Una vez más, no debemos olvidar el verdadero fin del deporte: la mejora de la salud y ser un
instrumento de ocio para los ciudadanos, por lo que la protección de las personas que reciben
este tipo de ataques por su profesión no debería existir, pues el deporte intenta transmitir una
serie de valores positivos alejados de toda polémica.

II. El deporte y su elemento violento


Una cualidad innata al ser humano es la violencia, bien porque en algún momento ha de
demostrar su superioridad frente a otros, o porque, simplemente, se encuentra realizando una
actividad física. En cualquier caso, esta violencia puede dar lugar a daños, dando paso hacia
lo inhumano. La acción de ser violento es contraria a la naturaleza de las cosas, por lo que la
violencia encarna todo lo que expresa el mal, lo malo, la maldad, lo que se opone a la lógica
y a la moral5.
En la antigüedad, la violencia estaba centrada en el propio espectáculo, pasando en el
siglo XX a la violencia desarrollada por los ultras, y en este siglo XXI una violencia masiva
a través de las redes sociales. Así, desde una perspectiva histórico-jurídica, hay que valorar el
papel de la violencia en el deporte desde la Antigüedad hasta el momento actual. Aunque no

3
DÍAZ-AGUADO, María José. “Educación para la tolerancia y prevención de la violencia en los
jóvenes”. 4 política educativa, 1996, vol. 63.
4
FERNÁNDEZ, Isabel. Prevención de la violencia y resolución de conflictos. Narcea Ediciones,
2010.
5
SÁNCHEZ PATO, Antonio y MOSQUERA GONZÁLEZ, María José. Tratado sobre violencia y
deporte. La dialéctica de los ámbitos intercondicionales. Editorial Wanceulen, 2011, p. 55.

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La violencia en redes sociales en el contexto de las manifestaciones deportivas
Álvaro Alzina Lozano

es el único elemento negativo que ha existido, cobra especial relevancia por la manera que ha
tenido de adaptarse a los nuevos tiempos.
Esta evolución de la violencia se debe en gran parte a la evolución del propio deporte.
A modo de ejemplo, descubrimos las distintas disciplinas que en la Grecia clásica existieron
principalmente en los Juegos Olímpicos griegos, servían como instrumento de prestigio
para las polis. Como expone Mendell: “Un triunfo atlético era presagio de buena fortuna,
una inconfundible prueba de los favores y el capricho de los dioses”6. Por esta razón los
deportistas harían todo lo que estuviese en su mano para poder llegar a tocar la gloria, aunque
la vida les fuese en ello.
También en la Edad Moderna y principios de la Edad Contemporánea, el deporte
tendría un significado más lúdico y estético, considerándose beneficioso para el cuerpo:
“mens sana in corpore sano”. Estas formas de concepción del deporte lo llevaron en el siglo
XX a convertirse en una actividad de masas, en la que no había diferencia de clases en los
estadios deportivos. Esto se debe principalmente a los factores que señala García Blanco: 1)
La disposición de tiempo libre y la necesidad de ocuparlo; 2) Las mejoras económicas que
permiten al ciudadano disponer del material necesario para poder llevar a cabo el deporte que
desee practicar7.
Esta pasión por la práctica deportiva, como medio de ocupación para el tiempo libre,
provocaría el desarrollo de un sentimiento de admiración desmesurado de los jugadores (y
por tanto, de los equipos). Este hecho provocó el nacimiento de determinados grupos que
emanaban reclamaciones de índole política y social (ultras), e incluso llevaban a cabo acciones
criminales amparándose en el sentimiento grupal. Estos comportamientos provocaron, entre
otras cuestiones, numerosas muertes en todo el mundo.
Es a principios de la década de 1980 cuando surgen las primeras normativas para
erradicar la violencia en el deporte. Las principales resultarían del Convenio del Consejo de
Europa de 1985. Principalmente, las medidas adoptadas tratan de proteger la integridad del
deportista y de los aficionados (principal objetivo del deporte contemporáneo). Como señala
Tomas Bach (Presidente del Comité Olímpico Internacional), “el Barón de Coubertin en su
Oda al Deporte presentaba esta actividad como una fuente generosa y de pacífica emulación,
pues el olimpismo era la paz”8.
En este contexto de violencia debemos apuntar que existen varios tipos de violencia,
pues no podemos pensar que sólo existe la violencia física, sino que también debemos
señalar la violencia simbólica y verbal como principales tipos de violencia. La violencia
física es la que produce una merma en la integridad física e incluso en algunos casos de la
propia vida. Principalmente ha sido realizada por los ultras de los equipos, aunque en alguna
ocasión también han participado aficionados particulares al lanzar objetos al terreno de juego
impactando contra deportistas, árbitro y entrenadores. Parece que este tipo de violencia ha

6
MENDELL, Richard. Historia Cultural del deporte. Ediciones Bellaterra, 1986, p.55.
7
GARCÍA BLANCO, Saúl. “Origen del concepto «deporte»”. Aula, 1994, vol. 6, p. 63.
8
BACH, Thomas. “Discurso con motivo de la adopción de la resolución sobre la Tregua Olímpica
por la Asamblea General de las Naciones Unidas. Nueva York 13 de noviembre de 2017”. Citius, Altius,
Fortius, 2018, vol. 11, no. 1.

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La violencia en redes sociales en el contexto de las manifestaciones deportivas
Álvaro Alzina Lozano

ido remitiendo en los últimos años, gracias en gran parte a la Ley 19/2007 de prevención de
la Violencia, el Racismo, la Xenofobia y la Intolerancia en el deporte, pero también al papel
de los medios de comunicación, al condenar los actos violentos; y a la educación impartida
en las escuelas, enseñando que la violencia no la justifica ningún fin.
La principal característica desde el punto de vista jurídico es que este tipo de violencia
lleva implícita una condena penal, a diferencia de los demás del resto de tipos de violencia que
en determinadas ocasiones está, incluso, permitida por la propia sociedad. Esta permisividad
se pone de manifiesto en muchas ocasiones en relación a otro tipo de violencia como es
la verbal. Ésta no se refiere a las agresiones físicas sino a aquellas que simbolizan un
desagrado o desapego contra alguien o algo. Precisa de recursos verbales, como por ejemplo,
frases hirientes, descalificaciones de todo tipo, exabruptos humillantes con el único fin de
minusvalorar a la otra persona que es objeto de dichos ataques verbales.
Esta violencia verbal es habitual en cualquier fenómeno deportivo, en aficionados de
toda clase social y sin importad la edad, género o condición. Insultan y amenazan con una
permisividad inimaginable en cualquier otro ámbito de la sociedad. Estos gritos principalmente
intentan resaltar una característica del deportista como puede ser una característica física,
social o de raza. Sin embargo, también puede atentar contra el club, un linier o un árbitro que
se encuentra vigilando las jugadas; e incluso, contra la propia institución que supervisa el
juego entre los contendientes9.
La violencia verbal transmite en el lenguaje una especie de presión psicológica sobre
aquéllos a los que se dirigen las palabras violentas o los insultos en un momento determinado
de la competición. Pero también veremos que esta violencia verbal es la que encontramos en
las redes sociales y que será objeto de estudio en el siguiente epígrafe.
Junto a éstas, podemos descubrir otros tipos de violencia: la emocional o psicológica10
y la simbólica. La primera de éstas se refiere al conjunto de infracciones que atentan contra
la integridad moral de las personas y que puede considerarse infracción que puede ser
castigada por sí misma. Por otro lado, la violencia simbólica, centrada en los símbolos que
pueden atentar contra la dignidad humana de los deportistas por constituir símbolos, racista
e intolerantes. Este tipo de violencia ha sido totalmente erradicada de los eventos deportivos,
pues las normas aprobadas por las federaciones internacionales y las propias autoridades
nacionales, han provocado la desaparición de mensajes, pancartas o hirientes. Bourdieu
considera que en este tipo de violencia, en la que no se emplea la fuerza, existen una serie de
factores como el dominador que es consciente de su influencia, y los dominados que no la
perciben con claridad, y por lo tanto se convierten en “cómplices de la dominación a la que
están sometidos”11.

9
DUNNING, Eric. El fenómeno deportivo: Estudios sociológicos en torno al deporte, la violencia
y la civilización. Editorial Paidotribo, 2003. pp.33-53.
10
JAMIESON, Lynn M. y ORR, Thomas. Sport and Violence. Routledge, 2012. p. 50.
11
BOURDIEU Pierre y PASSERON, Jean Claude. Fundamentos de una teoría de la violencia sim-
bólica, en Bourdieu. Editorial Popular, España, 2001, p. 8-18.

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La violencia en redes sociales en el contexto de las manifestaciones deportivas
Álvaro Alzina Lozano

III. La violencia en las redes sociales en el contexto


deportivo
Como hemos resaltado anteriormente, el auge de las redes sociales y la transformación
que éstas han supuesto en el cambio de paradigma de las comunicaciones, han dado paso
a la globalización y al intercambio cultural. Han mejorado las conexiones entre empresas,
gobiernos y países, en general, lo que ha viabilizado una inmediatez que permite conocer
qué ha ocurrido en eventos deportivos celebrados en otro lugar del planeta. No obstante, esto
ha supuesto una serie de retos en cuanto a la delimitación de las mismas, pues una parte de
ellas se ha utiliza como herramienta delictiva para la comisión de delitos como el intercambio
de pornografía infantil, la venta de armas y drogas, el chantaje y la estafa, entre otros. Un
ejemplo de ello es la encuesta de 2015 del European Women´s Lobby, según la cual 9 millones
de niñas ya habían sido víctimas de violencia en las redes sociales cuando no habían superado
la edad de 15 años. Stéphane Clerget llama a este fenómeno “los vampiros psíquicos”12.
El fácil acceso a estas herramientas de la nueva era, posibilitan el acceso de los usuarios a
contenidos antes inalcanzables. Existe un riesgo en cuanto a la consulta y utilización de contenidos
inapropiados, sobre todo al público menor de edad y dada la gran la oferta de plataformas para
poder relacionarse e interactuar es numerosa13. En muchas ocasiones, a modo de ejemplo, se ha
descubierto cómo se ha incitado al racismo, a la xenofobia, a la anorexia e incluso al suicidio a
otros usuarios, provocando que en algunas ocasiones se haya llegado a consumar14.
Junto con la inmediatez, la posición que adopta el individuo en ellas es otra de las
características innegables de estas redes. El usuario adopta la figura de actor principal pues
como señala Echeburúa y De Corral: “la gran diferencia entre los nuevos medios y los medios
tradicionales radica en el mayor potencial interactivo de estos últimos”15.
Esta violencia ha originado una respuesta por parte de las organizaciones internacionales,
de los Estados, de las empresas y de la sociedad civil, reclamando un mayor control de la
tecnología: aunque es una herramienta necesaria hoy en día, hay conductas que no podemos
pasar por alto. Existe normativa específica en materia de protección de datos a nivel
comunitario, y que la mayoría de empresas recogen en sus pliegos de condiciones, impidiendo
el empleo de imágenes violentas, términos violentos o descalificativos, cuando se expresen
frente a terceros. Esto no sólo se ha convertido en una costumbre del mundo occidental sino
también en países en vías de desarrollo, sobre todo en el mundo de las redes sociales con todo
el conflicto que ello supone16.

12
CLERGET, Stéphane. Les Vampires psychiques: Comment les reconnaître, comment leur écha-
pper. 2018.
13
ECHEBURÚA, Enrique y DE CORRAL, Paz. “Adicción a las nuevas tecnologías ya las redes
sociales en jóvenes: un nuevo reto”. Adicciones. 2010, vol. 22, no. 2, pp. 91-96.
14
ECHEBURÚA, Enrique. “Atrapados en las redes sociales”. Revista Crítica. 2013
http://www.revista-critica.com/la-revista/monografico/analisis/46-atrapados-en-las-redes-sociales
15
SOTELO GONZÁLEZ, Joaquín. Deporte y social media: el caso de la Primera División del fútbol
español. Historia y comunicación social, 2012, vol. 17, p. 218
16
PALOS-SANCHEZ, Pedro R.; SAURA, Jose Ramon; DEBASA, Felipe: “The influence of social
networks on the development of recruitment actions that favor user interface design and conversions in
mobile applications powered by linked data”. Mobile Information Systems, 2018, vol. 2018. pp.1-12.

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La violencia en redes sociales en el contexto de las manifestaciones deportivas
Álvaro Alzina Lozano

Las respuesta de las empresas de este sector ha sido enfocada en las políticas de control y
supervisión de contenido violento e inapropiado, como puede ser la publicación de imágenes
racistas, sexuales o intolerantes. Para proteger al usuario frente a este tipo de imágenes y
también para proteger a los deportistas, que son el objeto principal de estudio, frente al ataque
de personas en redes sociales, compañías como Facebook o Twitter permiten denunciar
mensajes que se puedan considerar violentos con el fin de que la compañía los investigue y
los pueda bloquear.
Uno de los puntos culmen de la violencia en redes sociales, fue la retransmisión en directo
de la masacre de Christchurch (Nueva Zelanda), ocurrida en 2019 y en la que fallecieron 51
personas. Este hecho planteó un serio debate al respecto del uso de las redes sociales, pues
algunas voces solicitaban un mayor control del contenido y de las personas, al poder subir
este tipo de vídeos y que pudiesen estar al alcance de cualquier usuario.
Además de en redes sociales, en determinadas páginas de Internet, sobre todo las
relacionadas con los grupos ultras, encontramos insultos o amenazas a deportistas en días
coincidentes con alguna competición; o incluso sin haberla, por algún comentario que han
realizado, bien en el ámbito privado o frente a medios de comunicación Esto constituye un
problema en cuanto a la protección del ciudadano por el estricto desarrollo de su trabajo. La
generalización de estas actitudes violentas en cualquier deporte lo encontramos, por ejemplo,
en la patinadora Kim Boutin que recibió más de 10.000 mensajes en Instagram por chocar
con otra patinadora; o las amenazas de muerte que recibió el tenista Diego Schwartzman por
parte de un usuario a través de esta misma red social.
En España la mayor parte de las actitudes violentas y aquellas relacionadas con los
delitos de odio, se focalizan en el mundo del fútbol. Aquí se traspasa el escenario físico y
da lugar a gestos violentos, pero no sólo provenientes del público que se constituye como
protagonista indiscutible de estas acciones por el gran número de seguidores que tiene en el
país, sino que, en otras ocasiones, son los propios jugadores los que provocan violencia en
el campo o simplemente no aceptando las decisiones del árbitro, reflejando todo ello en las
redes sociales.
Los perfiles anónimos de los que hablábamos anteriormente, ejercen la violencia
psicológica contra jugadores o deportistas, acusándolos por internet. Por ejemplo, los insultos
al portero de fútbol del Liverpool Loris Karius por haber fallado en la final de la Champions
League ante el Real Madrid. Pero también en ese mismo encuentro, las amenazas que recibió
el jugador español Sergio Ramos por chocar con un jugador del Liverpool (Mohamed Salah)
provocando que este no pudiese seguir en el terreno de juego.
Este tipo de violencia en las redes no conoce límites: puede abarcar desde las opiniones
personales hasta la generación de insultos por parte de fanáticos, que convierten cualquier
referencia en una cuestión de orgullo, y que derivan en comentarios ofensivos que no guardan
ninguna relación con la declaración inicial. La propia publicación de una imagen puede
generar una marea de insultos personales para el jugador y para toda su familia.
La libertad de expresión es el principal “escudo” que surge al respecto para muchos
usuarios que se amparan en ella como derecho fundamental del ciudadano para poder
expresar su opinión. Sin embargo, debemos recordar que la libertad de expresión, entendida

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La violencia en redes sociales en el contexto de las manifestaciones deportivas
Álvaro Alzina Lozano

como derecho innato, no protege de cualquier tipo de actitud o comentario, pues los mensajes
violentos pueden dañar a la otra persona y, por tanto, estarían infringiendo sus derechos
fundamentales, lo que exige una respuesta por parte del legislador.
Se han desplegado dos tipos de respuesta por parte de los legisladores para reprimir este
tipo de conductas: la sanción administrativa y la condena penal. Aunque esto se encuentra
más en la línea de las medidas represivas, que dentro de las preventivas, debemos tener en
cuenta que el propio Derecho tiene un carácter preventivo, pues con él se intenta explicar a
los ciudadanos qué conductas pueden acarrear una sanción.
Desde el punto de vista del Derecho penal no hay una especificidad respecto a una
manifestación por redes sociales con motivo de un encuentro deportivo o contra un deportista
por el ejercicio de su profesión, por lo que tendremos que acudir a los tipos generales, como
pueden ser el de amenazas (artículos 169 a 171 del Código Penal) o el delito de odio (artículo
510 del Código Penal).
Este último delito ha tenido una especial relevancia por el debate doctrinal que ha
suscitado, pues es difícil delimitar la barrera entre la libertad de expresión y el ilícito penal.
En este sentido, en el mundo del deporte encontramos comentarios en redes sociales que
pueden constituir este tipo delictivo frente a un colectivo o grupo, por razón de su afiliación
política o simplemente por su afiliación deportiva.
Para poder aplicar este tipo penal, Ríos Corbacho hace referencia a la importancia de
analizar la diferencia entre el ilícito penal y la propia libertad de expresión, al referirse que no
es suficiente con “incitar al rechazo puramente emocional de los grupos implicados, sino que
se requiere que la incitación se dirija a crear o a profundizar en actitudes de auténtica hostilidad
hacia las personas que conforman tales colectivos, esto es, se exige cierta agresividad, donde
acontece una situación de peligro”17.
Vista la excesiva sanción penal que puede suponer el delito de odio, así como que no
quedaría muy claro hasta qué punto se puede utilizar, deberemos aplicar la posible sanción
administrativa, que principalmente protege el ámbito deportivo pues aparece tipificada en la
Ley 19/2007. Las acciones relacionadas con la incitación al odio aparecen tipificadas en el
apartado 23.1.B)18, con el objetivo de sancionar a las personas que como explica la Sentencia,
realicen declaraciones, no sólo en Internet sino en cualquier medio de difusión que pueda
incitar a la violencia o pueda crear un ambiente hostil.
Uno de los hechos relacionados con esa incitación al odio en redes sociales, el cual
ha llegado a la Sala de lo Contencioso de la Audiencia Nacional19, es un acontecimiento

17
RÍOS CORBACHO, José Manuel. Incitación al odio, Derecho penal y deporte. Revista Electróni-
ca de Ciencia Penal y Criminología (en línea). 2014, núm. 16-15, p. 20.
18
23.1.B) La realización de declaraciones en medios de comunicación de carácter impreso, audiovisual
o por internet, en cuya virtud se amenace o se incite a la violencia o a la agresión a los participantes en encuen-
tros o competiciones deportivas o a las personas asistentes a los mismos, así como la contribución significativa
mediante tales declaraciones a la creación de un clima hostil o que promueva el enfrentamiento físico entre
quienes participan en encuentros o competiciones deportivas o entre las personas que asisten a los mismos.
19
Sentencia Audiencia Nacional de 25 de enero de 2017. Nº 812/2015. Roj: SAN 60/2017.

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La violencia en redes sociales en el contexto de las manifestaciones deportivas
Álvaro Alzina Lozano

relacionado con la muerte del ultra del Deportivo de la Coruña de “Jimmy”. Un aficionado
había sido sancionado por la Delegación de Gobierno de Madrid por escribir por la red social
Twitter: “Quiero manifestar mi más absoluta y sincera alegría por la muerte del Depor. Un
hijo de puta que no la liará otra vez. Ojalá mueran más” y “¿Los del Frente Atlético asesinos,
tenéis retraso verdad? Habían quedado para pegarse ambas partes. Lástima es que sólo ha
muerto uno”.
Por estos comentarios, la Delegación de Gobierno impuso una sanción muy grave con
multa de 60.001 euros y la prohibición de entrada a cualquier recinto deportivo durante un
periodo de cinco años. En la resolución de la Audiencia Nacional se desestima el recurso del
aficionado, manifestando que este tipo de mensaje “efectuado por vía internet, conlleva una
clara incitación a la violencia y agresión entre los participantes en encuentros deportivos,
generando un ambiente hostil y de promoción del enfrentamiento entre los seguidores de los
equipos de fútbol”.
La sanción que conlleva este tipo de comportamiento aparece reflejada en el artículo 24
de la Ley 19/2007, antes mencionada, apareciendo descritas las sanciones que puede recibir
los espectadores, siendo las referidas a este grupo las sanciones económicas (leves de los 150
a 3.000 euros, graves desde los 3.000,01 hasta 60.000 euros, muy graves entre los 60.000,01
euros a 650.000), y las sanciones de prohibición de acceso (leves de un mes a seis meses,
graves de seis meses a dos años, muy graves de dos a cinco años).

IV. Conclusiones
La violencia en las redes sociales es un hecho habitual en relación con eventos deportivos
o deportistas, más concretamente el acoso a los distintos agentes implicados por parte de otros
usuarios de la red social. Es la principal razón por la que los agentes sociales y las empresas
han tenido que tomar un papel relevante en la prevención de este tipo de conductas, pues han
generado graves problemas a los deportistas, así como en ocasiones amenazas e insultos a
sus familias.
Como hemos podido constatar esto ocurre principalmente por el factor que supone en
deporte en la sociedad, al crecer la profesionalización del deporte, aumentó el número de
aficionados a estos y supuso un incremento de la presión social para conseguir unos buenos
resultados. Esa presión ha venido principalmente por los medios de comunicación, pero en
ocasiones lo podían achacar a venganzas de periodistas o animadversiones de determinados
medios, pero al aparecer las redes sociales cualquier usuario del mundo puede ponerse en
contacto dinero con el deportista en cuestión podía transmitir su opinión, pero muchos de ellos
lo han realizado a través de insultos, lo que ha generado una presión mayor a los deportistas.
Para mitigar esta presión el propio legislador ha creado instrumentos sancionadores,
concluyendo desde nuestro punto de vista que el más efectivo es la sanción administrativa,
principalmente por la concreción que hace al mundo del deporte y así poder limitar a los
hechos que tengan una gravedad relevante al ámbito penal.
Finalmente, cabe destacar que uno de los aspectos fundamentales para erradicar este
tipo de violencia es la educación, pues sirve como pilar para ayudar a que la ciudadanía

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La violencia en redes sociales en el contexto de las manifestaciones deportivas
Álvaro Alzina Lozano

obtenga los valores suficientes para poder convivir en paz con el resto de persona, pues si
utilizamos esta herramienta para explicar que la violencia no soluciona ningún conflicto,
presumiblemente el ciudadano optará por no recurrir a los elementos negativos del deporte en
escenarios como una competición deportiva.

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Eficácia dos títulos de crédito ambientados
eletronicamente na legislação brasileira

Marco Aurélio Gumieri Valério1

Resumo: Ao erigir uma disciplina para os títulos de crédito supletivamente aplicável às leis especiais
que governam os títulos de crédito típicos, possibilitou o legislador civil brasileiro de 2002, a geração,
emissão e circulação de títulos de crédito atípicos, ampliando assim o horizonte da emissão cartular,
com grande prestígio à inventividade das modernas práticas negociais. O Código Civil Brasileiro de
2002 assegurou ao portador de boa-fé, ampla proteção, pondo-o a salvo até mesmo de reivindicação do
proprietário do título, vez que equiparou sua posse à propriedade. Além disso, ao permitir a criação de
títulos por meio eletrônico e a sua circulação em ambiente cibernético (Internet), atendeu aos reclamos da
classe empresarial, num mundo onde a tecnologia informática é inevitável, porque rápida, econômica e
eficiente em seus desígnios, mobilizando e desmobilizando capitais em qualquer parte do globo terrestre. O
instrumento (software) destinado a autenticar e garantir a executoriedade desses documentos é o conceito
criptográfico de chaves assimétricas públicas e privadas, com legislação própria em trâmite no Congresso
Nacional. Como todo conceito novo, essas disposições suscitam debate com posições bem definidas entre
comercialistas tradicionais e modernos, o que sem dúvida enriquece a construção do Direito pátrio. Os
títulos de crédito surgidos de uma prática costumeira secular, que antecede a norma posta, vivem um novo
paradigma histórico, e, portanto, deveras importante estudá-los em todas as suas nuances para uma correta
proteção desse poderoso instrumento materializador de obrigações negociais tão essencial em todos os
tempos da humanidade. O presente artigo traz a lume a teoria geral dos títulos de crédito e seus novos
contornos no Brasil, sintetizando o debate doutrinário em razão da incorporação das normas de direito
cambial ao direito civil, e também os critérios jurídicos que tornam possíveis na ausência de regras mais
específicas, solucionar os eventuais conflitos que com certeza advirão em decorrência da emissão cartular
por meios informatizados.
Palavras-chave: títulos de crédito; cártula; internet; criptografia.

Abstract: By establishing a discipline for credit securities supplementally applicable to the special laws
governing typical credit securities, the Brazilian civil legislature of 2002 enabled the generation, issuance

1
Professor Doutor da Universidade de São Paulo/Brasil. Membro da Comissão Especial de Ensino
Jurídico da Ordem dos Advogados do Brasil. E-mail para contato: marcoaureliogv@usp.br

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Eficácia dos títulos de crédito ambientados eletronicamente na legislação brasileira
Marco Aurélio Gumieri Valério

and circulation of atypical credit securities, thus expanding the horizon of card issuance, with great prestige
to the inventiveness of modern business practices. The Brazilian Civil Code of 2002 ensured the bearer in
good faith, ample protection, putting him safe even from the claim of the title owner, since he equated his
possession with the property. In addition, by allowing the creation of titles by electronic means and their
circulation in a Internet, it met the demands of the business class, in a world where computer technology is
inevitable, because it is fast, economical and efficient in its designs, mobilizing and demobilizing capital
anywhere in the world. The instrument (software) intended to authenticate and guarantee the enforceability
of these documents is the cryptographic concept of public and private asymmetric keys, with its own
legislation pending in the National Congress. Like any new concept, these provisions arouse debate with
well-defined positions between traditional and modern traders, which undoubtedly enriches the construction
of Brazilian law. Credit securities arising from a customary secular practice, which precedes the proposed
rule, live a new historical paradigm, and, therefore, very important to study them in all their nuances for
the correct protection of this powerful instrument that materializes business obligations so essential in all
times of humanity. This article brings to light the general theory of credit securities and their new outlines
in Brazil, summarizing the doctrinal debate due to the incorporation of foreign exchange law rules into
civil law, and also the legal criteria that make it possible in the absence of more solve any conflicts that are
certain to arise as a result of issuing the card by computerized means.
Keywords: credit titles; cartouche; Internet; cryptography.

1. Introdução
No exame do e-commerce, a grande indagação posta ao debate jurídico é a de se saber
se o documento ambientado em meios eletrônicos está apto a produzir direitos e obrigações
entre as partes e, em caso positivo, a partir de que momento ele se aperfeiçoaria. A questão da
prova documental, no âmbito do direito adjetivo, remete à definição dada por Carnelutti,
pela qual documento “é a prova histórica real, visto que representa fatos e acontecimentos
pretéritos em um objeto físico, servindo assim de instrumento de convicção”.2
No documento há o elemento comunicativo, ou seja, a representação do pensamento ou
de uma ocorrência e o elemento certificante, que é a demonstração de que tal representação
é exata e espelha a verdade. De forma que há que se distinguir no documento: (a) o autor
intelectual e o autor material que podem ser pessoas diferentes ou a mesma pessoa; (b) o
meio que é a parte instrumental, sendo que no documento escrito há representação indireta
naquele que ele assinala e direita no caso da fotografia, do fonograma e da cinematografia;
(c) por fim o conteúdo, que são os fatos e as suas eventuais mutações. Pode-se afirmar que
as declarações contidas no documento serão dispositivas, constitutivas ou probatórias, de
acordo com a função que ele deve ter e para a qual foi confeccionado.
O documento eletrônico é criado a partir de programas de computação (softwares),
disponibilizados na Internet por um agente comumente denominado provedor de acesso que
tem por função precípua armazenar e disponibilizar o site (local, i. e, domínio particular em
ambiente informatizado) para toda a rede (WEB em inglês) de computadores, prestando e
coletando informações, etc.

2
MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil. vol. III. Campinas: Mille-
nium, 1999, p. 354/368.

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Eficácia dos títulos de crédito ambientados eletronicamente na legislação brasileira
Marco Aurélio Gumieri Valério

As partes, situando-se em locais diversos, utilizam-se desses acessos virtuais, com trocas
de informações que se baseiam em conceitos criptográficos assimétricos de chaves públicas
(particulares, i.e. os contratantes) e de chaves privadas (autoridades autenticadoras) e
no momento em que essas chaves se interligam e se completam, ocorre a constituição do
documento pelo assentimento, estando ele ambientado (executado) não no papel (que pode
vir a sê-lo), mas em outra base física, ou seja, informatizada.
Um dos princípios fundamentais relativos aos títulos de crédito é o da cartularidade,
que como já dissemos anteriormente se traduz na densificação direito de crédito operada pela
materialização da cártula por processo físico ou equivalente, impondo ao titular a necessidade
de exibi-lo para exercitar o direito nele contido.
Tão arraigado o conceito de cártula (papel) para materializar os títulos de crédito, que
o debate se polariza entre os que preconizam a sua invalidade se emitidos por qualquer outro
meio, como daqueles que militam em favor da possibilidade de serem gerados e emitidos por
outros meios, apregoando sua inevitabilidade, face às transações via Internet.
Assim, a doutrina se divide em dois lados opostos. De um lado, com rigor acético e
postulando a prevalência meio cartular, defende-se que nos termos da definição de Vivante,
título de crédito é um documento de forma que é indispensável a existência do documento,
isto é, um escrito em algo material, palpável, corpóreo. Apoia-se a referida doutrina na
circulabilidade do título, argumentando que só o documento escrito cumpre a função que
popularizou os títulos de crédito: a circulação dos direitos.
Do outro lado, temos os menos conservadores, que advogam a tese de que não existe,
na verdade, diferença ontológica entre a noção tradicional de documento e a nova noção de
documentos eletrônicos. Estes últimos, com efeito, também são meio reais de representação
de um fato, desde que a informação neles contida seja impressa. A diferença residirá, portanto,
tão somente no suporte do meio real utilizado, não mais representado pelo papel e sim por
disquetes, disco rígido, fitas ou discos magnéticos etc.3
Em meio ao embate doutrinário, o legislador brasileiro, atento às revoluções produzidas
pela informática, houve por bem permitir a emissão de títulos de crédito a partir de caracteres
criados em computador ou meio equivalente, repelindo de vez a limitação do papel e
declarando sua adesão à teoria menos formalista.
Vale mencionar que a corrente adotada encontra respaldo não só entre os comercialistas,
mas também entre os processualistas. É que se admite como prova no processo civil brasileiro
todos os seres materiais ou imateriais capazes de gerar informações, sem nenhuma exclusão
em tese. Esses “seres” gerados de prova são de toda natureza que se possa imaginar – desde
pessoas ou animais vivos ou mortos, até papéis escritos, lançamentos contábeis, fotografias,
fitas sonoras ou vídeo tapes, objetos ou peças deles, discos rígidos ou flexíveis de computador,
o próprio computador se for o caso, sons, emanações odoríferas, etc. Nenhuma espécie de
fonte passiva é excluída a priori e sequer ao mais obsceno dos escritos ou reproduções
gráficas é negada a condição de fonte probatória – até porque pode servir de prova de uma

3
LUCCA, Newton de; SIMÃO FILHO, Adalberto (coords.). Direito e internet: Aspectos Jurídicos
Relevantes. Bauru, SP: Edipro, 2001, 1 reimpr, p. 44.

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Eficácia dos títulos de crédito ambientados eletronicamente na legislação brasileira
Marco Aurélio Gumieri Valério

obscenidade alegada pela parte. As hipóteses de ilicitude da prova são outras e não se ligam
ao próprio modo de ser dos documentos.4
Fato é que no Título V – Da Prova – Livro III – Dos Fatos Jurídicos do Código Civil
Brasileiro de 2002, em seu artigo 225, dispõe in verbis que: “As reproduções fotográficas,
cinematográficas, os registros fonográficos e, em geral, quaisquer outras reproduções
mecânicas ou eletrônicas de fatos ou de coisas fazem prova plena destes, se à parte, contra
quem forem exibidos, não lhes impugnar a exatidão”. No mesmo sentido já caminhava a lei
nº 5.869, de 11.1.1973, Seção V – Da prova Documental – Subseção I – Da força probante
dos documentos, prescrevendo no artigo 383, que: “Qualquer reprodução mecânica, como
a fotográfica, cinematográfica, fonográfica ou de outra espécie, faz prova dos fatos ou
das coisas representadas, se aquele contra quem foi produza lhe admitir a conformidade”.
Assim, sob o aspecto do direito material, do direito processual e da doutrina, temos como
certa a possibilidade da criação de documentos informaticamente ambientados. Ademais, está
consagrada em nossa legislação civil e especialmente comercial, a tese de que na interpretação
das manifestações de vontade deve-se atender mais à intenção dos contratantes, isto é, o que
realmente pretenderam declarar, do que ao sentido literal da linguagem técnica da lei. Resta,
pois, à legislação especial regulamentar a criação, emissão e circulação dos títulos de crédito
por meios eletrônicos ou por equivalente.
O papel como suporte físico a materializar o título de crédito sofre assim as consequências
do advento de um novo modo de mobilização de capital para fins empresariais, porque o
mundo virtual possibilita que ele esteja presente em todos os lugares, instantaneamente e a
baixo custo operacional.

2. O problema das assinaturas: criptografia


Os títulos de crédito não têm como salientado, uma função estática, nascem para
circularem. Essa circulação se dá por meio do endosso e tradição da cártula. Esta é a sua
característica, mobilizar capitais, fazendo a economia preponderantemente financeira atingir
o seu fim. Além da cartularidade, outro paradigma a ser vencido é o da circulabilidade dos
títulos de crédito ambientados em sistemas informatizados, que por sua vez se relaciona com
a questão da assinatura, que tem por condão identificar o emitente, os possíveis avalistas e
endossatários da letra, num universo de anonimato que é a Internet.
Interessante apontar que, no jargão, a assinatura, seja no âmbito civil, seja no comercial,
representa a ação de apor a pessoa o seu nome, com todos os apelidos e cognomes e com todas
as letras com que ele se escreve, em papel ou documento, de que resulte, ou não, obrigação,
sem o que não ficará obrigado nele, quando este for o seu fim.5
Especificamente quanto ao título de crédito a assinatura opera: (i) o aceite que é o ato
praticado pelo sacado ou emitente que assuma a obrigação de pagar o valor da letra na época

4
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. Vol III. São Paulo: Ma-
lheiros, 2002, p. 88.
5
SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico, 18 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 88.

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Eficácia dos títulos de crédito ambientados eletronicamente na legislação brasileira
Marco Aurélio Gumieri Valério

e local avençados; (ii) o aval que se constitui na obrigação que alguém assume no intuito
de garantir o pagamento da cambial nas mesmas condições do emitente ou sacado; (iii) o
endosso que é a transmissão do direito contido na cártula a outrem o fazendo circular com
rapidez e mínima formalidade. A assinatura, portanto, relaciona e identifica a autenticidade
de um documento (função declarativa), com aquele que o assina (função probatória), como
também faz prova do conteúdo dos atos (função declaratória) como se depreende dos artigos
219, 220 e 221 do CC/2002.
Em ambiente informatizado (ciberespaço), a assinatura autógrafa, que pelos meios
convencionais é a feita de próprio punho ou até mesmo por meio de chancela mecânica,
perde suas características de estilo pessoal criado por meio de impulsos cerebrais ou de marca
(detalhes amoldados em chapa de metal ou acrílico) que podem ser impressos de forma
manual ou mecânica em papel, para se constituir em uma técnica matemática denominada
criptografia assimétrica, que consistente, grosso modo, na codificação do teor do documento
de modo que só aqueles que o elaboraram e o autenticaram, têm possibilidade de acesso ao
seu inteiro teor, mediante a utilização de chaves públicas e de chaves privadas.
A chave pública fornecida ao particular (software) cria uma assinatura digital, ao
mesmo tempo, transforma texto legível em texto desprovido de qualquer sentido. Por outro
lado, a chave pública, constitui-se num algoritmo gerado pelo software (fornecido por uma
autoridade certificadora a uma autoridade de registro AR, que passa a ser o titular de um
par de chaves) que serve para recompor e dar nexo ao texto desfigurado pela chave privada.
O receptor de um documento tem a possibilidade de verificar sua autenticidade (em sentido
informático não jurídico) através da aplicação da chave pública do emissor do documento,
ou de sua chave privada, e o documento criptografado pelo remetente com a chave pública
do destinatário (uso invertido do processo). Esta ‘recomposição criptográfica documental’
poderá ser feita a qualquer tempo e se tiver ocorrido qualquer alteração no texto, a assinatura
estará corrompida. Neste caso o texto alterado será apócrifo.
É de se lembrar que uma das características da criptografia assimétrica é justamente o
denominado não-repúdio, onde uma mensagem decodificada com uma determinada chave
pública só pode ter sido cifrada por seu par privado. De modo que aquele que utilizou sua
chave privada para acessar qualquer site governamental ou particular não poderá negar que
realizou esta ação.6
A Medida Provisória 2.200-2 de 24.8.2001 instituiu a Infra-Estrutura Brasileira de Chaves
Públicas (ICP-Brasil), que se constitui num sistema de validação de certificação de assinaturas
digitais. A ICP-Brasil, que se encontra no topo da pirâmide, construindo uma raiz invertida,
através de seu Comitê Gestor, tem competência para emitir, expedir, distribuir, revogar e
gerenciar as práticas de certificação e regras operacionais das Autoridades Certificadoras de
nível imediatamente subsequente ao seu.

6
SILVEIRA, Sérgio Amadeu da. Privacidade e criptografia na rede. Informativo eletrônico nº
190 – 7/7/05 da Associação dos Notários e Registradores do Estado de São Paulo – http://www.anoregsp@
anoregsp.org.br.

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Eficácia dos títulos de crédito ambientados eletronicamente na legislação brasileira
Marco Aurélio Gumieri Valério

Nessa ótica, podemos vislumbrar o credenciamento de várias autoridades certificadoras,


junto ao Instituto Nacional de Tecnologia da Informação Instituto Nacional de Tecnologia
da Informação – ITI7, que funcionarão como uma espécie de cartório eletrônico, emitindo
certificados digitais e vinculando pares de chaves criptográficas aos integrantes desses
sistemas, tais como os tabeliães notariais, as federações bancárias, seguradoras, as entidades
abertas de previdência complementar, sociedades de capitalização, etc.8
Cumpre salientar que a ICP-Brasil visa, precipuamente, “garantir a autenticidade, a
integridade e a validade jurídica de documentos em forma eletrônica, das aplicações de
suporte e das aplicações habilitadas que utilizem certificados digitais, bem como a realização
de transações eletrônicas seguras”.9 Outro aspecto interessante da MP 2.200-2 é a atenção
peculiar que se confere aos documentos eletrônicos, equiparando-os a documentos públicos
ou particulares, presumindo-os verdadeiros em relação aos seus signatários, desde que as
declarações nele constantes sejam produzidas com a utilização de processo de certificação
disponibilizado pela ICP-Brasil ou de outra forma de certificação que não utilizem certificados
emitidos por aquela autoridade, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela
pessoa a quem for oposto o documento.10
A finalidade da criptografia no caso dos títulos de crédito, não seria primordialmente
ocultar o teor do documento – o que, sem dúvida, é absolutamente conveniente (e até
necessário) em vários casos. Seria, na verdade, impossibilitar a adulteração do documento
(e. g., alguém que emitisse um título valendo cem unidades de moeda, e este, a partir de certo
ponto, passasse a circular valendo mil). Portanto, a finalidade da criptografia é dupla: (i)
impossibilitar o acesso ao conteúdo da mensagem e (ii) impedir que esta última seja adulterada
enquanto circular, o que, inclusive, em nosso entender, seria um objetivo de que deveria, no
caso dos títulos de crédito eletrônicos, até mesmo vir primeiro em relação ao simples segredo
à cerca do teor da mensagem em si considerado.11

3. Dificuldades técnicas além da criptografia


Ocorre, contudo, que apesar da criptografia impossibilite a adulteração do documento,
ela não impossibilita a sua multiplicação indefinida. Imagine-se a seguinte situação: um
sujeito emite eletronicamente uma nota promissória de cem reais; o credor, por exemplo, faz
mil cópias da nota. Todas as notas serão notas promissórias assinadas pelo emitente. Assim,
fica patente a necessidade de os títulos de créditos eletrônicos passem a ter uma numeração
de série que, uma vez copiada, passaria a funcionar como uma duplicata, triplicata e assim

7
Autarquia vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia que se constitui na Autoridade Certifi-
cadora Raiz da ICP-Brasil, cf. artigo 13, da MP. 2.200-2.
8
Vide artigo 8º, MP 2.200-2.
9
Vide artigo 1º, idem.
10
Vide artigo 10º e §§, ibidem.
11
CASTRO, Raphael Velly de. Notas sobre a circulação e a literalidade nos títulos de crédito in
Títulos de crédito: teoria geral e títulos atípicos em face do Novo Código Civil (análise dos artigos 887 a
903); títulos de crédito eletrônicos (alcance e efeitos do artigo 889, parágrafo 3º e legislação complementar)
Mauro Rodrigues Penteado, coord. São Paulo: Walmar, 2004, p. 390.

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Eficácia dos títulos de crédito ambientados eletronicamente na legislação brasileira
Marco Aurélio Gumieri Valério

sucessivamente. Ou seja, o programa que gera os títulos de crédito deveria, obrigatoriamente,


gerar um número de série em cada documento, o que, como é cediço, afronta alguns dos
princípios seculares dos títulos de crédito.
Bem por isto, é que é fundamentalmente necessário o entendimento, no caso de mensagem
a serem codificadas, acerca do funcionamento do algoritmo, do software e do protocolo, pois
em qualquer caso em que mesmo um destes elementos venha a falhar, o título virtual em
circulação, e, bem assim, o seu emitente e todos os seus eventuais coobrigados, estarão em
seríssimo perigo.12
Nos títulos de crédito eletrônicos, não obstante a aposição de várias assinaturas (digitais)
no mesmo documento denotando assim várias manifestações simultâneas de vontade nos
parece um pouco dificultada já que a chave privada é aplicada no message digest (resumo),
e não, diretamente, no próprio teor do documento. Assim, a questão residiria de como se
proceder à aposição de outra assinatura (digital) nesse mesmo documento, a título de endosso
ou mesmo de aval, por exemplo. Ou seja, se para termos a chamada “assinatura digital” – que é
o elemento por excelência de identificação do emitente do título (eletrônico) – seria igualmente
necessário que se já tivesse dado a anterior codificação criptográfica do documento, como
seria solucionado então esse problema?13 O problema, contudo, é menos pernicioso do que
parece. Todos os bons assinantes digitais permitem hoje a aposição de múltiplas assinaturas
em um documento. Assim, v.g., se uma pessoa ‘assina’ obrigando-se por cem reais e, depois,
outra altera o valor para duzentos reais, a segunda ‘assinatura’ invalida a primeira, obrigando-
se o segundo por duzentos reais.
É inegável o universo de anonimato que permeia toda a rede WEB, causa dúvidas à cerca
da eficácia jurídica dos títulos de crédito virtuais. Enfrentando esse problema, aderimos às
opiniões no sentido de que para que um sistema de assinatura digital tenha a mesma força
que a assinatura autógrafa é preciso que, à sua maneira, ele também preencha os requisitos
que garantam a identidade, a integridade e a perenidade do conteúdo: o uso e o controle
da chave pública devem ser de exclusividade do proprietário, permitindo a individualização
da autoria da assinatura (função declarativa); a autenticidade da chave pública deve ser
passível de verificação, a fim de ligar o documento ao seu autor (autenticação, ligada à
função declaratória); a assinatura deve estar relacionado ao documento de tal maneira que
seja impossível à desvinculação ou a adulteração do conteúdo do documento, sem que tal
operação seja perceptível, invalidando automaticamente a assinatura (função probatória).14
Cabe mencionar que, todos esses requisitos são preenchidos pela tecnologia da criptografia
de chave pública, que é empregada nas assinaturas digitais. Ainda há muitas dificuldades
com relação às técnicas de certificação digital que são passíveis de falhas, especialmente
quanto à emissão e à circulação que podem sofrer adulterações de toda ordem. Porém, isso
não deve se constituir em um óbice intransponível. A tecnologia virá com o tempo, sendo

12
Idem
13
a questão é suscitada pelo mesmo Velly de Castro. p. 399
14
QUEIROZ, Regis Magalhães Soares de. Assinatura Digital e o Tabelião Virtual. In: LUCCA,
Newton de; SIMÃO FILHO, Adalberto (orgs.). Direito e internet: Aspectos Jurídicos Relevantes. Bauru,
SP: Edipro, 2000.2001, p. 399

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Eficácia dos títulos de crédito ambientados eletronicamente na legislação brasileira
Marco Aurélio Gumieri Valério

importante nesse momento, precaução quanto à circulação dos títulos no meio informático de
modo a proporcionar aos usuários o menor risco possível, agregando o quanto possível novos
softwares para se evitar prejuízos. Entendemos que uma solução viável seria a atribuir a um
agente a custódia dos títulos. Assim, ocorrido o pagamento, o título seria cancelado, havendo
endosso, haveria uma ‘averbação’.15

Considerações finais
A legislação, ao incorporar em seu bojo a teoria de Vivante, não derrogou a legislação
especial a eles inerente. Ao contrário, foi além ao permitir sua emissão, materialização e
circulação em ambientes informatizados, com o que passou a enfrentar muitos percalços,
que vão desde a sua densificação em suporte que não o papel, passando pela confiabilidade
quanto aos direitos neles contidos, a identidade do emitente e dos eventuais co-obrigados da
letra, chegando à circulação, sob o argumento de que são gestados em um mundo atípico,
virtual, não tangível, a priori, suscetíveis portanto, de toda uma sorte de adulterações com
sérios prejuízos ao mundo econômico.
Contudo, aí está a nova tônica do século: títulos de crédito circulando em ambientes
informatizados. Não haverá argumentos que possam vir a evitar essa nova realidade que
acelera, cria e circula (a baixo custo e com muita eficiência) a mobilização e desmobilização
do crédito sendo, portanto, irresistível a emissão informatizada.
Em nosso modesto entender, existe sim a possibilidade da criação, emissão e circulação
dos títulos de crédito via computador ou meio equivalente e que constem da escrituração do
emitente, por amparo do artigo 889 do Código e seu parágrafo 3º do Código Civil Brasileiro,
que nada mais fez do que positivar prática comercial utilizada em larga escala.
No que tange a falta de liquidação do título de crédito eletrônico em seu vencimento a
regra é clara, o título deverá ser impresso para adquirir base física, observando os requisitos
mínimos do artigo 889 do CC/2002, sendo levado a protesto, comprovando-se na ocasião a
venda à prazo ou prestação de serviços, a efetiva entrega e recebimento da mercadoria ou do
serviço. Esses documentos, acompanhados da certidão do protesto, embasarão a competente
execução do título extrajudicial. Por fim, se a contratação do crédito feita de forma eletrônica,
mediante a utilização de chaves criptográficas assimétricas públicas e privadas, nos moldes
do que dispõe a MP-2202-2, estará garantido o processo executório, que poderá neste caso
ser determinada judicialmente a quebra dos sigilos das chaves que constituíram, assinaram
e autenticaram tal documento, de modo a demonstrar a sua validade. Havendo recusa do
devedor em fornecer tal informação, poderá ser presumida a veracidade dos fatos alegados
pelo credor.
A possibilidade de títulos de crédito eletrônicos vem, portanto, satisfazer a antiga
reivindicação do mundo empresarial, que é a emissão dessas letras, abrindo a possibilidade
para a criação de novos títulos atípicos.


15
vide Lei 11.076/04

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Eficácia dos títulos de crédito ambientados eletronicamente na legislação brasileira
Marco Aurélio Gumieri Valério

Referências
CASTRO, Raphael Velly. Notas sobre a circulação e a literalidade nos títulos de crédito in Títulos de
crédito: teoria geral. Mauro Rodrigues Penteado, coord. São Paulo: Walmar, 2004.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. Vol III. São Paulo: Malheiros,
2002.
LUCCA, Newton de; SIMÃO FILHO, Adalberto (coords.). Direito e internet: Aspectos Jurídicos
Relevantes. Bauru, SP: Edipro, 2001, 1 reimpr.
MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil. vol. III. Campinas: Millenium,
1999.
QUEIRÓZ, Regis Magalhães Soares de. Assinatura Digital e o Tabelião Virtual. In: LUCCA, Newton
de; SIMÃO FILHO, Adalberto (orgs.). Direito e internet: Aspectos Jurídicos Relevantes. Bauru,
SP: Edipro, 2000.
SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico, 18 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
SILVEIRA, Sérgio Amadeu da. Privacidade e criptografia na rede. Informativo eletrônico nº 190
– 7/7/05 da Associação dos Notários e Registradores do Estado de São Paulo – http://www.
anoregsp@anoregsp.org.br.

— 660 —
Initiating proceedings in a civil case using AI?
- selected comments regarding polish civil
procedure

Aleksandra Partyk1

Abstract: The development of modern technologies and the growing importance of artificial
intelligence in the world justify posing questions on whether and to what extent it would be possible to
improve the Polish civil process through AI. Could machine systems, in particular, control the formal
conditions of a lawsuit/application, and thus contribute to initiating the proceeding in civil cases? Could
issuing of orders on this subject be “resting on the shoulders” of the machine systems? An analysis of the
pleading or application in terms of existence of formal conditions requires the verification of a number of
issues, in particular whether the party (its proxy) has properly prepared the claim (application) initiating
the court proceedings. The Polish Code of Civil Procedure contains detailed regulations concerning formal
requirements regarding complaints. If the party (its representative) prepares the statement of claim properly,
the statement of claim (motion) may be proceeded. Otherwise, it is necessary to order the party to correct
the formal deficiencies. However, if the author of the document affected by the formal deficiencies is
a professional representative of the claimant, the complaint shall be returned without the procedure of
ordering the party to correct it. The presiding judge, who analyses the content of a pleading, must verify,
in particular, whether it has been formulated in a clear and comprehensible manner, whether the party has
attached an appropriate number of copies to the pleading, whether it has been signed and, moreover, whether
the value of the matter at issue (in property claims) has been given and properly established. Undoubtedly
such activities, with a huge number of cases sent to the court, are time-consuming. In my presentation I
would like to answer the question whether this kind of formal scanning of complaints could be carried out
not by people, but by artificial intelligence, and what’s more, I would like to draw attention to possible
problems connected with the use of artificial intelligence in proceeding a civil case. The key question is
whether the formal analysis of the claim (application) by the machine system meets the standards set by the
constitutional and conventional right to a court.
Keywords: artificial intelligence; civil trial; right to court; formal conditions of a complaint; return
of a pleading

1
Andrzej Frycz Modrzewski Krakow University, Poland. E-mail: apartyk@afm.edu.pl

— 661 —
Initiating proceedings in a civil case using AI? - selected comments regarding polish civil procedure
Aleksandra Partyk

Introduction.
Does artificial intelligence2 have a bright future in the administration of justice? And
although today the question posed in such a way might cause astonishment, there is no denying
that computerization is before our eyes becoming a part of significant transformations to the
way individuals and societies operate. More and more modern machine systems are utilized
in yet another area3. Therefore it should not come as a surprise that increasingly various
authors make an attempt to consider whether it would be acceptable to make the functioning
of the justice system more efficient using artificial intelligence. And it is not only the matter of
judges or court clerks, as well as parties or their proxies, accessing specialized legal software.
For there are proposals regarding active implementation of AI in carrying out administration
of justice. As if that were not enough, in selected jurisdictions steps have been initiated that
are supposed to make that idea come true4.
Asking about admissibility of using artificial intelligence in administering broadly
defined justice has its practical grounds. Lengthiness of proceedings is a problem common
across judicature, not only in Poland. While if a party is waiting in vain for a judgment within
appropriate time frame, one cannot say there is access to a fair trial5. Therefore, would not it
be a step towards streamlining the administration of justice process if one utilized computer
programs able to support, or even substitute the human factor within the judicial process, in
an automated manner?

2
The format of this publication does not allow for presenting an in-depth analysis of what AI actu-
ally is, especially that problems with creating one satisfactory definition of this concept are universally
commented on. It is pointed out, however, across existing publications, that a common denominator for
various definitions of this concept is acknowledging that artificial intelligence is aimed at supporting hu-
mans’ work. See: OLEKSJUK, Inga, 2017, „Założenia aksjologiczne autorskoprawnej ochrony twórczości
w świetle rozwoju sztucznej inteligencji”, Acta Iuris Stetiniensis, vol. 2, p. 247-248.
3
HAWKINS, Jeff, BLAKESLEE, Sandra, 2016, Istota inteligencji. Fascynująca opowieść o ludz-
kim mózgu i myślących maszynach, Gliwice, p. 240; PARTYK, Aleksandra, 2019, „Legitim 2.0., czyli o
robocie przyszłości… rozwiązującym spory zachowkowe”, Studia Prawnicze. Rozprawy i Materiały, vol.
2, p. 30-31; HODSON, David, 2019, „The Role, Benefits, and Concerns of Digital Technology in The
Family Justice System”, Family Court Review, vol. 3, p. 425-426; WIĘZOWSKA-CZEPIEL, Beata, 2019,
„Sztuczna inteligencja w arbitrażu – wsparcie dla arbitrów w procesie podejmowania decyzji”, Studia
Prawnicze. Rozprawy i Materiały, vol. 2, p. 57.
4
RE, Richard M., SOLOW-NIEDERMAN, Alicia, 2019, „Developing Artificially Intelligent Jus-
tice”, 22 Stanford Technology Law Review, p. 246; LUPO, Giampiero, 2019, „Regulating (Artificial) In-
telligence in Justice: How Normative Frameworks Protect Citizens from the Risks Related to AI Use in
the Judiciary”, European Quarterly of Political Attitudes and Mentalities EQPAM, vol. 8 (2), p. 76-82;
KASPERSKA, Anna, 2017, „Problemy zastosowania sztucznych sieci neuronalnych w praktyce prawnic-
zej”, Przegląd Prawa Publicznego, vol. 11, 31-32; GOŹDZIASZEK, Łukasz, 2015, „Perspektywy wyko-
rzystania sztucznej inteligencji w postępowaniu sądowym”, Przegląd Sądowy, vol. 10, p. 46; SUSSKIND,
Richard, SUSSKIND, Daniel, 2019, Przyszłość zawodów. Jak technologia zmieni świat ekspertów, Wolters
Kluwer, Warszawa, p. 96-98.
5
EDEL, Frederic, 2007, The length of civil and criminal proceedings in the case-law of the Euro-
pean Court of Human Rights, Human Rights Files, Council of Europe Publishing, vol. 16, p. 6. See also:
DYMITRUK, Maria, 2019, “The Right to A Fair Trial in Automated Civil Proceedings”, Masaryk Univer-
sity Journal of Law and Technology, vol. 13(1), p. 36-37.

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Initiating proceedings in a civil case using AI? - selected comments regarding polish civil procedure
Aleksandra Partyk

I would like to present this intriguing problem considering the Polish civil process. As it
is the length of proceedings that the Polish administration of justice is often criticized for.
The fact that judges are remarkably overloaded with professional duties should be
singled out as one of the fundamental causes of civil cases prolongation. And while it is
true that the legislator secured the possibility for some procedures not to be carried out by
judges themselves, but by specialized clerks, such as court clerks and assistant judges, it is,
nevertheless, still the judge who is burdened with displaying significant activeness during
proceedings6. It concerns not only deciding on the merits of cases (which in principle
constitutes the essence of performing judicial service), but also undertaking several activities
which are of organizational or even technical nature. Taking into account the number of cases
that a civil court judge on average examines annually, the enormity of the number of activities
other than adjudging, is downright overwhelming. Whereas, unlike human judges, whose
work capacity over the course of 24 hours is limited, machines are able to work constantly,
without breaks, and they do not suffer from exhaustion.
Therefore it should be considered whether the solution to this problem would not be –
particular situations allowing – active involvement of machine systems in examination of
civil cases, in limited scope at least7. It seems plausible from technical perspective, such a
solution, however, needs to be confronted with the duty of the state to guarantee the execution
of the citizens’ right to a fair trial. For the pursue of improving and speeding up proceedings,
as legitimate as it is in its nature, cannot justify utilizing solutions that would pose a threat
to the very essence of the justice system, which is to say that there would be a possibility of
them to prevent the proceedings from being fair and just, causing the court to lose its attribute
of independence.
Keeping the limitations of this study in mind, I would like to focus on the issue of
the preliminary formal check of complaints and the possibility of performing the procedural
activities at that stage of proceedings by computers equipped with artificial intelligence. If a
machine performed the formal check of complaints, which undoubtedly could contribute to
quicker initiation of proceedings in civil cases, would that violate the citizens’ right to a fair
trial?

1. Specificity of checking complaints for formal


deficiencies
It is a cliché to say that not every complaint filed at a court will undergo examination for
merits. Working at a court only for a short time is enough for one to realize how many pleadings
which initiate proceedings suffer from significant shortcomings. Numerous failures, among
them unclear formulation of the claim, lack of the defendant’s address, lack of signature or
not paying the fee due, prevent a court case from being moved forward.

6
PARTYK, Aleksandra, 2020 in PIASKOWSKA, O. M. (ed.), Kodeks postępowania cywilnego.
Postępowanie procesowe. Komentarz, Wolters Kluwer, Warszawa, p. 177-186.
7
See more: PARTYK, Aleksandra, supra note 3, p. 32-33.

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Initiating proceedings in a civil case using AI? - selected comments regarding polish civil procedure
Aleksandra Partyk

The Code of Civil Procedure contains detailed regulations concerning the formal
requirements of a complaint. According to art. 187 §1 Code of Civil Procedure a complaint
shall comply with the conditions related to pleadings and shall:
1) specify the claim and, in cases for property rights, also the value of the matter at issue,
unless the subject-matter of a case is a specific amount of money;
1 ) specify the date when a given claim falls due in cases for the award of a claim;
1

2) describe the facts that justify the claim and, if need be, also the court jurisdiction;
3) information whether the parties have tried mediation or any other out-of-court
settlement method, and if no such attempts have been made, explanation of reasons
thereof.
As it was mentioned, a complaint must contain the general requirements for each
pleading provided for in article 126 of the Code of Civil Procedure. Therefore each pleading
shall contain the following:
1) name of the court to which it is addressed;
2) forenames and surnames or business names of the parties, their legal representatives
and agents;
3) type of pleading;
4) operative part of the petition or statement;
5) where necessary to rule on a petition or statement - an indication of the facts on which
the party bases its petition or statement and an indication of evidence proving the
existence of each of these facts;
6) signature of the party or its legal representative or agent;
7) list of enclosures.
Additionally, the procedural regulations include a number of provisions which also refer
to the necessary elements of the complaint, such as article 128 of the Code of Civil Procedure,
indicating the necessity to file pleadings with copies for the opposing party, or article 126(2)
Civil Procedure Code that stipulates that the court shall not take any actions following a
pleading if the fee due for that pleading is not paid.
Only a complaint which is correct from the formal perspective and regarding which the
fee due has been properly paid, can form a basis for further proceedings. If a complaint either
does not meet formal requirements or the fee due has not been paid, it is necessary for the
submitting party to be ordered to correct formal deficiencies. The failure to do so results in
the return of the complaint. Nevertheless, if the defective complaint was authored by a proxy
who is an attorney or a barrister, such a complaint is subject to return without order to correct
its shortcomings. The returned complaint is treated as not filed and does not result in any legal
consequences.
A perfunctory analysis of the above mentioned regulations alone leads to the conclusion
that in the course of the preliminary examination of complaints several various issues need
to be determined. The formal check of a complaint is actually a labour-intensive and time-
consuming sequence of activities which require an analysis of the entire content of the filed

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Initiating proceedings in a civil case using AI? - selected comments regarding polish civil procedure
Aleksandra Partyk

complaint, and such documents more often than not are extensive and formulated using
complicated language.
Therefore taking away from both the judges and court clerks or assistant judges the duty
to determine whether complaints fulfil formal requirements, regarding every single case filed,
would undoubtedly lead to significant savings regarding their working time. That time could
be devoted by them to adjudicating activities which would naturally translate onto the number
of closed cases and subsequently would result in shortening the duration of proceedings.
Across the literature it is also emphasized that performing activities by artificial
intelligence is connected with efficiency and homogeny, as by definition there is no room
for bias within AI8. Undoubtedly, a computer program could impartially and effectively
verify whether a complaint has been properly formulated or whether it contains any flaws
which impede examination of the case by the court. Furthermore, the machines can be copied
relatively easily, and as a consequence, they could work on many documents simultaneously,
unlike people, who analyze cases one after the other9.
The question remains though, whether a „soulless” machine system could replace people
performing judicial functions within the administration of justice.

2. Machine and judicial independence


The possibility of passing the execution of the administration of justice to machines
arouses opposition among representatives of both sciences and practitioners of law.
According to art. 45.1 of Polish Constitution everyone shall have the right to a fair
and public hearing of his case, without undue delay, before a competent, impartial and
independent court10. Similarly, according to the Article 6, clause 1 in principio of the
European Convention of Human Rights everyone is entitled to a fair and public examination
of their case in reasonable time by an independent and impartial tribunal established by law,
regarding the determination of their civil rights and obligations or of any criminal charge
against them. Accordingly, Article 47 of the Charter of Fundamental Rights of the European
Union stipulates that everyone is entitled to a fair and public hearing within a reasonable time
by an independent and impartial tribunal previously established by law.
Regarding the possibility to give control over execution of the administration of justice
to machines, the problem of judicial independence plays a fundamental role. Independence
constitutes an essential element of judiciary. As the Supreme Court of Poland (in the judgment
of 5 December 2019, III PO 7/18, LEX nr 2746893) stated: “The administration of justice
may only then be executed if judicial independence remains its necessary component. For the
administration of justice is not defined solely by the substantive scope of judicial functions,

8
RE, Richard M., SOLOW-NIEDERMAN, Alicia, supra note 4, p. 255.
9
TEGMARK, Max, 2019, Życie 3.0. Człowiek w erze sztucznej inteligencji, Wyd. Prószyński Me-
dia, Warszawa, p. 141.
10
Constitution of the Republic of Poland, 1997, Journal of Laws, number 78, position 483.

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Initiating proceedings in a civil case using AI? - selected comments regarding polish civil procedure
Aleksandra Partyk

but, above all. It is defined by the kind and character of guaranties accompanying those
functions, inherent to judicial independence”.
In other words, a body that is not independent, is not, as it cannot be a court, even
if it delivered judgments in a manner respecting all the regulations of law. Whereas it is
making decisions in accordance with the judge’s own conscience that constitutes the
essence of independence11. And conscience is characteristic for humans, not for computers.
Therefore equalization of a computer, even utterly perfect, with a judge, must be considered a
misunderstanding. It is emphasized that “in a democratic state under the rule of law a judge
must not be reduced to the role of a robot12”. Besides, even if a robot-judge applied a legal
algorithm properly, would its ruling fulfil the criterion of a fair resolution and would it be
respected13?
In the light of the above listed arguments it needs to be acknowledged that issuing rulings,
and so performing the activity that constitutes the essence of administration of justice, by
computers, excluding the human factor, seems to be impossible to be reconciled with the
citizens’ right to a fair trial.

3. Formal check of complaint versus administration of


justice
Nevertheless, in order to answer the question if a machine system can analyze formal
deficiencies of pleadings, it is crucial to determine if such activities constitute administering
of justice.
Not every activity performed at a court is of judicial character and so it does not need to
be regarded as an element of „judging”14. Apart from activities of purely executive character
such as dispatching correspondence or recording the course of hearings, the legislator allows
for several actions which truly affect the progress of a civil case to be performed by people
who are not judges, namely court clerks and assistant judges. According to article 2 § 2, line
one of the act of 27 July 2001”Law on the common court system”, tasks from the realm of
legal protection, other than administration of justice are performed at courts by court clerks
and senior court clerks. In turn, assistant judges, on the basis of 147 § 4 of the above mentioned
act, are court employees. According to art. 47(2) Code of Civil Procedure as regards the
actions of the presiding judge, orders may also be issued by an assistant judge, except for
an order to return a pleading, including a statement of claim. Therefore, an assistant judge
can check whether a complaint meets formal requirements. An assistant judge is, however,
neither autonomous nor independent. Consequently, concerning some procedural activities
independence of the person performing them is not a condition for their admissibility and
legal effectiveness.

11
PARTYK, Aleksandra, supra note 3, p. 37-39.
12
BURZYŃSKI, Tomasz, 2010, „Przegląd orzecznictwa sądów administracyjnych”, Przegląd Po-
datkowy, vol. 1, p. 42.
13
TEGMARK, Max, supra note 9, p. 142.
14
ŁAZARSKA, Aneta, 2012, Rzetelny proces cywilny, Wolters Kluwer, Warszawa, p. 170-178.

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Initiating proceedings in a civil case using AI? - selected comments regarding polish civil procedure
Aleksandra Partyk

Undoubtedly, the formal check of a complaint is one such procedure. It is a common


practice at courts for court clerks and assistant judges to perform such activities. Whereas
it does not raise any doubts that actions of such kind, as significant as they are for court
proceedings, do not constitute a component of administration of justice in the strict sense.
First of all, the formal examination of a complaint is technical in its nature, solely
organizational. And although filing a complaint in court initiates a civil case, the formal check,
however, is not yet a component of resolution of the case in regard to its essence. For actions
at this stage of the case amount only to verifying whether the complaint contains particular
elements (itemized in regulations of law), and whether the complaints does not contradict
itself, and is not vague or unclear. Only after the person performing the analysis determines
that the document meets the formal requirements that enable initiating the proceedings,
they order taking further proceedings in the case. The analysis of the complaint from the
perspective of formal deficiencies is therefore not connected with the substantive evaluation
of the claim included in the complaint.
Secondly, in the field of civil proceedings, so called litis contestation constitutes
a condition for resolving an argument. It takes place only when the defendant receives a
certified copy of the complaint. And so, until the service of process (handing in the certified
copy of the complaint) takes place, the argument between the parties is pending. Therefore
it is only the moment of service of process and not the moment of filing the lawsuit that
marks the start of a civil case. Any complaint may be withdrawn - even without waiving the
claim - by the plaintiff freely, until the defendant has been handed the certified copy of the
complaint (see art. 203 Civil Procedure Code), which is telling. Filing the complaint itself
does not necessarily mean that the conflict between parties will be resolved regarding its
substance. The filed complaint may only form a basis for the future resolution of the case by
the court. This is yet another argument in favour of assuming that checking a complaint from
the perspective of formal requirements is not yet a component of administration of justice in
the strict sense, but only an action preceding the start of the case proper.
And so, as performing procedural activities connected with examining the complaint
from the perspective of formal requirements does not belong in the realm of administration
of justice in the strict sense, one can assume that entrusting artificial intelligence with such
activities will not constitute a breach of the right to a fair trial. It needs to be added, however,
that if a complaint were supposed not to be proceeded on the grounds of formal deficiencies,
leaving the final decision in this regard to a non-human factor is unacceptable. While in so
far as only checking if the complaint fulfils formal requirements is technical in its nature,
returning the complaint non-compliant with those requirements leads to the refusal to examine
the case by the court. Consequently, if formal deficiencies of the complaint – noticed by the
machine - remained not corrected by the plaintiff, the decision regarding the return of the
complaint should be made by a proper, human adjudicator, able to verify the correctness of
machine system’s “proceedings”.

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Initiating proceedings in a civil case using AI? - selected comments regarding polish civil procedure
Aleksandra Partyk

Conclusions:
Provided that the minimal standard is maintained, which should be defined as securing
that the possible return of a complaint due to formal deficiencies remains within control of a
human judge, admission of artificial intelligence into the court proceedings at the stage of the
formal check of a complaint seems to be permissible. Analyses performed by machine systems
would most probably turn out to be more accurate and faster than those done by humans. An
automated system of formal verification of pleadings would undoubtedly disburden judges
(and court clerks along with assistant judges alike), relieving them of tedious and time-
consuming formal check of complaints regarding all the cases filed in court. That would
enable them to focus on activities of strictly adjudicatory nature, which truly require the
involvement of the human factor.
A procedural „resolution” of this kind would not only require specific changes to civil
procedure regulations, but also creating an infallible IT system and appropriate technical
infrastructure. If a machine system were to “read” and subsequently examine a complaint,
such a document would need to be submitted to the court ether in digital version or undergo
scanning after being submitted in paper form. Therefore admitting artificial intelligence into
court proceedings would require a significant transformation of the way the courts function,
aiming at their further computerization and digitalization of court records.
The ever progressing technological development allows for forming a thesis that
performing the above described is plausible from the technical perspective, what is more
it is foreseeable in the near future. And so, it is possible that soon instead of a traditional
court summons to correct a complaint’s deficiencies, it will become a standard to receive an
electronic message sent by a court computer, verifying – without any human assistance – the
formal correctness of a pleading.

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— 669 —
The smart cities as part of a sustainable urban
and governance model for the XXI century

Carolina Rodrigues Madeira da Costa1

Abstract: This article proposes reflections about Smart Cities, their concepts and the implications
for the governance of urban systems. The term Smart Cities encompasses numerous possibilities for
interpretation and encompasses multidisciplinary elements. Using bibliographic research and the empirical
deductive method, the term was being examined and compared with urbanism, for an analysis of its multiple
connections and undeniable interdependence. In addition, a brief presentation was made of how the topic
has been treated and experienced in the European context, which signalizes a possible terminological
expansion, which adds new values to the urbanistic sustainable development. Understanding what a Smart
City effectively means and thinking about urbanism, is urgent. There is already a general awareness of the
need to improve the urban system, and several of the keys to this evolution are in the precepts brought
by Smart Cities. However, there is a certain lack of epistemological precision, as to how these precepts
would translate into practice, which makes it difficult for norms and institutions to adapt to new paradigms.
Evidently, the absorption of technologies is not enough, what is proposed with Smart Cities is a complete
remodeling in the way to think and live the city. The pillars of urbanism and governance need to be rebuilt
to enable the advances proposed for Smart Cities.
Keywords: Smart Cities; Urbanism; Sustainable development; Governance.

Resumo: O presente artigo propõe reflexões sobre Smart Cities, seus conceitos e as implicações na
governança dos sistemas urbanos. O termo Smart Cities engloba inúmeras possibilidades de interpretação
e abarca elementos multidisciplinares. Utilizando pesquisa bibliografia e o método empírico dedutivo, o
termo foi sendo examinado e confrontado com o urbanismo, para uma analise das suas amplas conexões
e incontestável interdependência. Ademais, se fez um breve apresentação de como o tema vem sendo
tratado e experienciado no contexto europeu, que aponta para uma possível ampliação terminológica, que
soma novos valores ao viés urbanístico do desenvolvimento sustentável. Compreender o que efetivamente

1
Master´s Degree in Governance and Human Rights from the Autonomous University of Madrid.
Master´s Degree Applicant in Applied Anthropology – Diversity and Globalization from the University of
Castilla La Mancha. Bachelor of Laws from the Federal University of Rio de Janeiro. Lawyer. carolinarma-
deira@gmail.com

— 670 —
The smart cities as part of a sustainable urban and governance model for the XXI century
Carolina Rodrigues Madeira da Costa

significa uma Smart City e refletir sobre urbanismo é urgente. Já há uma consciência geral da necessidade
de melhoria do sistema urbano e várias das chaves para esta evolução estão nos preceitos trazidos pelas
Smart Cities. Entretanto, há certa falta de precisão epistemológica, para saber como estes preceitos se
traduziriam na prática, o que dificulta que as normas e as instituições se adequem aos novos paradigmas.
Evidentemente, não basta a absorção de tecnologias, o que se propõe com as Smart Cities é uma completa
remodelação na maneira e pensar e viver a cidade. Os pilares do urbanismo e da Governança precisam ser
reconstruídos para possibilitar os avanços propostos para as Smart Cities.
Palavras chave: Smart Sities; Urbanismo; Desenvolvimento Sustentável; Governança.

1. Preamble
Smart City is a multidisciplinary term used to characterize sustainable, digital and, in a
broader scale, cities that count on a smart and efficient functional system. In its enormous
scope, the term does not have a terminological unit. The article that will be presented, through
the empirical deductive method and bibliographic investigation, proposes a theoretical
approach to the experiences already implemented in the European scenario, carrying out
reflections and interpretations about the concept of Smart City and its interaction with law.
A better understanding of what a Smart City would be and its reflection on urban
governance is crucial and urgent, so that both the economic and legal order can adapt and
meet the demands for the realization of sustainable development. Evidently, technological
innovations are not enough and, therefore, changes in norms and institutions are necessary to
make it possible for a real incorporation of technological advances in the daily life of citizens
to happen, promoting the real well-being of communities.
The article proposed has the epistemological challenge of focusing on the construction
of the necessary conceptual, institutional and legal changes for the realization of ideas related
to Smart Cities. Thus, questions about the environment, sustainability, society, economy,
culture and how it all materializes in urban centers will be addressed.
The new proposals on sustainability and Smart Cities actually promote much more
than the use of new technologies. There is a strong technological innovation coupled with a
complete reform in the way of thinking the city, adding public policies that place the human
element at the center. Thus, the urban space would be sustainable and functional, citizens
could live the city in a creative and participatory way.
The advent of Smart Cities drives urban governance to seek new parameters, expanding
its objectives to enable the realization of an urban environment that promotes sustainability,
respect for humanity and the environment, culture, belonging and social inclusion.
In perfect harmony with the themes developed in this IV CONGRESO INTERNACIONAL
SOBRE DERECHO, GOBERNANZA E INNOVACIÓN, the content of this article aims
to contribute to the academic debate of new precepts of significant relevance, supporting
their development and disseminating important information that certainly contribute to a
governance model sustainable urban development.

— 671 —
The smart cities as part of a sustainable urban and governance model for the XXI century
Carolina Rodrigues Madeira da Costa

2. Evolution of the Smart Cities theme


In 1980, the UN developed a public document entitled the World Conservation Strategy,
with general guidelines for the conservation of natural resources and for sustainable
development. This was the first public document to mention the term “sustainable
development”.
Thus, it should be noted that the concept of sustainability is developed from the concept
of sustainable development. The theme gained notoriety from 1987, with the work of WCED,
World Commission on Environment and Development, which this year published a report
entitled “Our Common Future”, where sustainability is the central theme. This work defines
sustainable development as the development that meets the needs of the present generations,
without compromising the ability of future generations to meet their needs (WCED, 1987, p.
16).2
This work was very important for adding to the theme of sustainability social, cultural,
production, work and consumption systems aspects, evaluating the integration of these
elements with the environment. In previous studies, the theme was delimited by technical
environmental parameters. Currently, all these questions have had their studies expanded and
deepened, to unite in the Smart Cities.
In a bibliographic review, it is possible to see that the term Smart Cities includes the
following elements: governance; functionality of urban structures; urban mobility; society
life; environment and ecology; sustainable production and consumption; waste management;
social function of institutions; social inclusion; technology implementation. In addition, there
is a great impact on the economy, its study and development, with the promotion of creative
economy, circular economy, collaborative economy.3
It is important to highlight that this list of elements is not intended to be exhaustive, since
the interdisciplinarity, dynamism and scope of the theme can add new elements. There are
many characteristics that need to be brought together to structure ecologically sustainable,
digitally and socially intelligent cities.
Despite the undeniable importance of sustainable development, despite legislative
forecasts and major debates on the international stage, most organizations (public and private)
have not yet incorporated the principles of sustainability in their structure and functioning. It

2
Plasencia Soler, J.A., Marrero Delgado, F., Bajo Sanjuán, A.M. y Nicado García, M. (2018). Mo-
delos para evaluar la sostenibilidad de las organizaciones. Universidad Icesi, Colombia. Estudios Ge-
renciales, 34(146), 63-73. https://doi.org/10.18046/j.estger.2018.146.2662 (07.01.2020)
3
Guimarães, Patrícia Borba Vilar; Xavier, Yanko Marcius de Alencar. Smart Cities E Direito:
Conceitos E Parâmetros De Investigação Da Governança Urbana Contemporânea. Revista de Direito
da Cidade, vol. 08, no 4, p.1362 – 1380.
https://www.researchgate.net/profile/Patricia_Guimaraes8/publication/310844501_SMART_
CITIES_E_DIREITO_CONCEITOS_E_PARAMETROS_DE_INVESTIGACAO_DA_GOVERNANCA_UR-
BANA_CONTEMPORANEA/links/597061dc0f7e9b44173a8bff/SMART-CITIES-E-DIREITO-CONCEI-
TOS-E-PARAMETROS-DE-INVESTIGACAO-DA-GOVERNANCA-URBANA-CONTEMPORANEA.pdf
(07.03.2020)

— 672 —
The smart cities as part of a sustainable urban and governance model for the XXI century
Carolina Rodrigues Madeira da Costa

is observed that in reality there is a greater concern with the institutional interests themselves,
especially for lower costs and greater economic income, so that the social, ethical and
environmental aspects end up being relegated to a second plan, being attended only by
unavoidable normative impositions or when it does not compromise the institution’s direct
interests.
However, with proper planning, the application of sustainable posture can, in reality,
increase efficiency and increase yields. Despite the initial “work” of restructuring, a sustainable
structure can maximize dividends. But to reach this perception, it is necessary to break the
established economic and institutional “culture”.
The urban structure still experienced today, in the vast majority of cities, is still marked
by the economic and social systems developed in the 19th century, where urban centers were,
for the most part, agglomerations of working population, attracted to this space by the jobs
generated by industry.
The entire urban space was designed to benefit productive activities. In this old
organizational pattern, the limitation of raw materials, the contamination and scarcity of
natural resources, functionality or urban mobility are simply not considered. Themes such
as climate change, human rights, labor rights, consumer rights and globalization were being
thought throughout the twentieth century, but there is still a long way to achieve these ideals.
There are many urban structures and even institutions that are marked by these parameters of
thought, making urban remodeling necessary.
It is necessary to recognize that modern urban structures have already produced prosperity
and improved the quality of life in relation to urban centers of the past. The notions of social
well-being were raised and collective structures were created with unprecedented parameters.
Paradoxically, these same structures today lead us to complex and difficult to solve economic,
social and environmental challenges, since their models are no longer functional and healthy
for citizens.
These challenges have, ultimately, a great common cause: traditional structures are
supported by sectorized and self-centered ideologies and actions. Even if social objectives
were achieved on a macro-scale, the main intention remained to favor a specific group,
without concern for the consequences or unfavorable conditions caused outside the circle
of interest. Often the “benefit” is achieved simply by maintaining the status quo, with no
political interests in promoting reforms and improvements.
With the new paradigms brought by Smart Cities, exactly an urbanism is sought that
glimpses and meets the needs of all those directly involved in the urban environment, but also
be aware of their social and environmental surroundings, with collaboration and sustainability,
with integration and functionality within the urban core and its surroundings.

3. The European Governance Experience For Smart Cities


European countries seem committed to developing the discussion on urbanism and
governance in Smart Cities. Currently, the development strategy called “Agenda 2030” is

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The smart cities as part of a sustainable urban and governance model for the XXI century
Carolina Rodrigues Madeira da Costa

underway. The 2030 Agenda, approved in 2015, was formulated by the United Nations and
its member states in order to promote sustainable development. Among the various objectives
outlined, the commitment to promoting the urban environment stands out:
1. smart growth, with the development of an economy based on knowledge and
innovation;
2. Sustainable growth, with the development of fair, profitable, ecological and efficient
economic systems;
3. Human and inclusive growth, with the promotion of social, production and consumption
structures that promote social cohesion and integration.
According to Marshal-llacuna and Segal (2016), the goals related to Smart Cities are
challenges in which the European Union launched itself with diversified strategies and ample
public funding. One of the great innovations is the promotion of popular participation in the
structuring of public policies, especially in the choice of priorities in the demands to be met.
This would be a great element of giving efficiency to public policies, with a real increase in
the quality of life of cities.
The empowerment of popular will in this new methodology redirects urban activity so
that there is a real response to citizens’ needs. In addition, for effective governance in the
Smart Cities urban models, there is a review of government structures and functions, directly
correlated to public services, the economy, public security, all strongly influenced by the use
of new technologies.
The increase in technology is quite evident in the main European cities, especially in
public services for citizens. Many public agencies have service with scheduling carried out
by online system, with stations with computers for free use and also telephone service. In
addition, several services can also be performed in computerized systems, not requiring
attendance at public establishments / agencies.
The issue of urban mobility has also been the target of investment. In addition to the
constant improvement in public transport services, there is an incentive to alternative and
ecological transport. As an example, we have the possibility of using bicycles, scooters,
motorcycles and electric cars, which can be rented (for low prices) through applications.
Users can find these rental options at various locations throughout the city.
Another growing concern in European cities is the issue of waste. Both solid waste and
the issue of water are receiving attention from local governments, with, among numerous
actions, selective garbage collections, distribution of drinking water and treatment of gray
and black water from sewage systems.
Of course, the actions implemented and the effectiveness of urban systems still vary
widely from region to region. However, there is a growing improvement in urban structures.
It is observed that this movement has real ideologies and possible objectives. We can see the
change in progress, but it needs to be supported and fostered, so that the legal and economic
environment allows the development of Smart Cities.

— 674 —
The smart cities as part of a sustainable urban and governance model for the XXI century
Carolina Rodrigues Madeira da Costa

Closing Remarks
Smart Cities is the term currently used to define sustainable urban spaces, smart digital,
so-called knowledge cities. The term encompasses a broad elements and concepts, merging
several areas of knowledge. This breadth and multidisciplinarity means that the expression
does not have a terminological unit.
It is crucial and urgent to understand, precisely, what a Smart City is in practice and
how it structures urban governance. Based on this understanding, both the economic and
legal order, can adapt then selfs to respond properly the social demands and effect urban
development. Evidently, the simple application of technological innovations is not enough to
build a Smart City. It is necessary to adapt the rules and the institutions, in order to harmonize
them with so many new paradigms.
The article’s epistemological challenge was to focus on the elements and principles that
should guide urban structures, norms and institutions, so that the ideas about Smart Cities
become reality, in what concerns the environment, sustainability, society, economics and
culture.
What epistemological analysis seeks is exactly to arrive at the nature, origin and validity
of concepts about Smart Cities so that, from this, we can reflect on what is sustainable,
digital, intelligent, efficient, resilient so that the concepts leave the foggy plane of ideas and
materialize in the daily lives of cities.
As we stand, the need to implement these new paradigms is already quite clear. The main
question then becomes what does a Smart City mean, what do we need in the standard to make
it happen, what institutional structures do we need to transform chaotic urban agglomerations
into Smart Cities. Thus, it starts with reflections on governance in new urban spaces and on
the need for innovations, normative and institutional, in the face of so many new paradigms.
It is not about giving new concepts and new laws to old social structures. In reality, the
proposals on sustainability encompassed by Smart Cities go far beyond the everyday use
of technologies. There is an evident technological innovation to be incorporated, but the
technical element adds up to a completely different way of thinking the city.
The idea of maintaining an urban system, which in reality is aimed at feeding the
system itself, where human demands are relegated to the background, has no more basis. The
new urbanism place the human element at the center of the entire strategies for action. The
central focus is on meeting human demands, in all their complexity of elements. With this
new focus, the Urban space would be sustainable and functional. Those who live or transit
through the urban environment could experience the city in a functional, inclusive, creative
and participatory way.
With regard to daily life in these new urban environments, studies on the topic point out
that Urbanism must translate urban planning efforts that ensure the participation of citizens
and civil institutions, in order to foster social cohesion, engagement and citizen participation,
foster cultural and educational development, in addition to fostering the system of service
provision, production and trade, to grow and develop in a sustainable manner.

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The smart cities as part of a sustainable urban and governance model for the XXI century
Carolina Rodrigues Madeira da Costa

Social engagement gains great importance because citizen participation in urban planning
allows public politics really face the real demands of the population, providing solutions that
effectively solve the daily problems of those who live and transit in the city.
The real structuring of a social and economic system based on sustainability needs a
strong citizen base. The classic model of public management, in which solutions are only
thought by the government, does not build the foundations that a sustainable model requires.
The change in paradigms also involves breaking social stagnation, expecting improvements
“presented” by the government.
To reflect on Smart Cities is to think about a contemporary, dynamic, technological
urbanism, also characterized by the insertion and collaboration of individuals who live and
work in the urban environment. Thus, a satisfactory service to social demands is achieved,
with greater efficiency of the urban structure and exponential improvement in the quality of
life.
The new paradigms structured since the advent of Smart Cities have led urban governance
to expand, improve and even revolutionize in some aspects. The human element gains
strength and becomes the focal point of all the dynamics of cities. The idea of Governance
for the 21st Century is the realization of an urban environment that promotes sustainability
in its broadest aspect, promoting respect for humanity and the environment, where culture,
education, belonging and social inclusion are encouraged. That urban centers are, in the end,
living spaces and quality experiences, with functional structures that meet human demands.
Evidently the article presented does not claim to exhaust the topic, which is so broad
and so multidisciplinary. However, it seeks to contribute to the academic debate of new and
relevant precepts, in the hope that this will help in the dissemination and awareness of the
subject, until societies are able to reorganize themselves within these new paradigms. The
implementation of a real model of urban governance can guide humanity to have quality of
life in urban centers.

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The smart cities as part of a sustainable urban and governance model for the XXI century
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— 677 —
Thinking about human and fundamental rights in
the technological era:
How do they fit into the societies 5.0 and the
smart cities?

Luiz Chagas Santos1


diogo

Vivian Rodrigues Madeira da Costa2

Abstract: In this paper, we propose a reflection about the current model of Smart Cities, the concept
of Societies 5.0 and how the human and fundamental rights can fit into this model. In fact, the expression
Smart city became popular in the last years and the main reason for the emergence of this concept was the
need to create spaces with social equality, quality of life, safety and sustainability, through a highly efficient
use of the technological tools. It is known that Smart Cities can also relate to important topics, concerning
humanitarian matters. Therefore, addressing this subject also implies in arguing about the creation of a
society where its dynamics is thought to promote fundamental rights, i.e., where the human being and its
intrinsic dignity can still be placed at the center of legal and social arenas. In the current model of society,
a lot of social injustices or segregations still occur in the urban space and because of this, the Internet of
Things (IoT), the Artificial intelligence (Ai), and Big Data can be part of a new society proposal, a new
level, the super-smart cities, but also intending to correct some of the biggest urban social problems. This
model is only possible thanks to the advanced technologies that are already used in industry 4.0 nowadays,
leading us to a 5.0 model, with the development of new and better technological tools. Thus, we aim to
address these topics, linking one to another.
Keywords: Human Rights; Smart Cities; Societies 5.0

1
Architect and Urbanist graduated from the Federal Rural University of Rio de Janeiro, with an
extensive experience in civil construction. Has a Master’s Degree in Environment and Bioclimatic Archi-
tecture from the Polytechnic University of Madrid and is currently concluding a Master’s Degree in Sus-
tainable City and Architecture at the University of Seville. diogolcsantos@gmail.com
2
Lawyer graduated from the Rio de Janeiro State University. Has a master’s degree in Governance
and Human Rights from the Autonomous University of Madrid. Currently, she is undertaking a Master’s
Degree in Public Law at the University of Seville, with a research period at the University of Coimbra about
Transnationality and Sustainability. vivianrmdacosta@gmail.com

— 678 —
Thinking about human and fundamental rights in the technological era
Diogo Luiz Chagas Santos - Vivian Rodrigues Madeira da Costa

Resumen: En este documento, proponemos una reflexión sobre el modelo actual de Smart Cities, el
concepto de Sociedades 5.0 y cómo los derechos humanos y fundamentales pueden encajar en este modelo.
De hecho, la expresión Smart city se hizo popular en los últimos años y la razón principal del surgimiento
de este concepto fue la necesidad de crear espacios con igualdad social, calidad de vida, seguridad y
sostenibilidad, mediante un uso altamente eficiente de las herramientas tecnológicas. Se sabe que las Smart
Cities también pueden relacionarse con temas importantes, relacionados con asuntos humanitarios. Por lo
tanto, abordar este tema también implica discutir sobre la creación de una sociedad donde su dinámica es
pensada para promover los derechos fundamentales, es decir, donde el ser humano y su dignidad intrínseca
todavía se pueden colocar en el centro de los ámbitos legales y sociales. En el modelo actual de sociedad,
aún se producen muchas injusticias o segregaciones sociales en el espacio urbano y, debido a esto, Internet
de las cosas (IoT), la inteligencia artificial (Ai) y Big Data pueden formar parte de una nueva propuesta de
sociedad, un nuevo nivel, las ciudades súper inteligentes, pero también con la intención de corregir algunos
de los mayores problemas sociales urbanos. Este modelo solo es posible gracias a las tecnologías avanzadas
que ya se utilizan en la industria 4.0 hoy en día, lo que nos lleva a un modelo 5.0 con el desarrollo de nuevas
y mejores herramientas tecnológicas. Por lo tanto, nuestro objetivo es abordar estos temas, vinculando uno
con el otro.
Palabras clave: Derechos humanos; Ciudades inteligentes; Sociedades 5.0

Introduction
In order to confront some problems concerning aging population, for instance, and global
challenges related to environmental, energy and social issues, the so-called 5.0 societies are
born, as an attempt of evolution into a society that seeks to focus on human being betting on
imagination and creativity to boost technological development. This super-intelligent society,
which is an initiative of the Japanese government, could be classified as an evolution of the
current 4.0 model of Smart Cities, seeking to achieve the goals of sustainable development
more effectively as part of a growth plan for the future and transforming itself into what could
actually be an ideal society.
In summary, in the 5.0 societies, information could be collected by sensors and
accumulated in cyberspace, being analyzed by artificial intelligence and transmitted to humans
in various ways, optimizing and democratizing information. Therefore, this new model of
society promises to put an end to the great vulnerabilities of the current model, such as the
possible consequences of natural disasters, problems related to public security and social
inequality, as well as to eliminate cases related to cyber-attacks and terrorism.
In addition, it is aimed to increase planetary resilience through new and decentralized
technologies, paving the way for sustainable development, creating a fairer and more
democratic urban space in the medium and long term for any citizen regardless of status
or location. For this reason and taking into account that technological development is
continuously expanding, the 5.0 societies seek to include the countless benefits of technology
to create a better urban and social model.
Notwithstanding, it is important not to neglect the possible problems caused by its urban
dynamic, such as several negative impacts on the employability of the population, bearing
in mind that the spread use of technology must not contribute to an unequal distribution of
wealth and information, but instead create a better urban environment, even towards what

— 679 —
Thinking about human and fundamental rights in the technological era
Diogo Luiz Chagas Santos - Vivian Rodrigues Madeira da Costa

could be the ideal organizational and functional social model, considered by many authors to
be the utopian society.
Based on this and knowing the importance of deepening the study about these models
of societies, but relating them to human and fundamental rights, an analysis will be carried
out through the deductive empirical method and bibliographic research. The main purpose is
to contribute to the development of similar models in the Ibero-American space, improving
and adapting management to the respective particular contexts, but taking into account the
imperative need for change in the contemporary social dynamics and reality.

1. The Emergence of the Smart Cities


The smart city concept was created to infuse technology in every aspect of the city`s
operation, such as public transportation, sanitation, solid waste management, water and power
supply, urban mobility, e-governance and citizen participation, to promote social welfare,
security and equality in the urban space.
It all begins with the association between the fourth industrial revolution and the city
social dynamics. However, in order to contextualize this subject, it is necessary to quickly
look back and think about our history, though the perspective of the social organization, also
with the arise of technological tolls and economic growth, which have a direct impact in the
social development itself.
It can be said that the world knows four models of society and, nowadays, it can be
pointed out that a transition is currently occurring between the fourth and a new model of
society, the so-called fifth model.
From the start, the first social model was the hunting society or 1.0 society, when the
humans were nomads and their lives were reduced to migrations whenever and when the food
supply in the region where they found themselves ran out.
In the transition to the model of society known as society of agriculture, or 2.0 society,
an adaptation can be noted, probably since the development of food cultivation techniques,
which was a revolution at the time and guaranteed greater comfort for humanity, because
humanity has undergone a great behavioral transition, from nomads to sedentary ones.
When agriculture became the basis of humanity’s food, it began to establish itself in a fixed
location.
Therefore, the third phase is known by the arrival of the industrial revolution and the
appearance of steam engines. It is also an historical moment marked as the beginning of what
is known as the anthropocene, a period in which the human being begins to generate a great
impact on the planet’s climate due to the emission of CO2 into the atmosphere.
Finally, with the arrival of computers and technology, humanity reached the information
age, and, in this period, technological advances narrowed the distances and allowed people to
communicate with others anywhere on the planet. In fact, the technology became part of the
city life with the information and communication technologies. That brought new possibilities

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Thinking about human and fundamental rights in the technological era
Diogo Luiz Chagas Santos - Vivian Rodrigues Madeira da Costa

to citizens, with a life more efficient and healthier, improving services to reduce costs, save
energy, time and many other advantages to make life easier and better in many aspects.
Therefore, with the arrival of technology into the social dynamics of cities, the concept
of smart cities is born, but it is important to understand the urban space not only as the
setting for a nation’s social interactions and cultural productions, but also considering their
degrading and unhealthy social conditions, sometimes. Living in a city implies, in many cases,
social exclusion, inadequate housing conditions, lack of access to basic services, among other
common economic and social problems in most countries around the world.
Bearing that in mind, and considering that by 2050 around 70% of the world population
will be living in urban centers3, there is a greater importance in the planning and strategic
management of the growth of cities, in order to enhance the generation of workplaces,
integration and social inclusion, maximizing economic growth and minimizing environmental
damage. Thus, there is a clear need to adopt efficient medium and long-term strategies towards
an international and national democratic governance plan.
It is worth mention the efforts to stablish this democratic governance plan at international
level, but with an impact in each nation and at local government, through the called 2030
Agenda and the Sustainable Development Goals. These objectives, also known as Global
Goals, were adopted by United Nations Member States with the intention to fight against the
current main global and social challenges by 2030.
Besides that, as a result of the great technological advances that have been taking place,
the reality of a new social model is becoming increasingly close. It can be observed that a new
concept of society linked to the better use and freedom of performance of technology, the 5.0
societies, is already emerging.
It should be mentioned that a smart city has practically the same concept of a 5.0 society.
However, this new concept was created to solve some conflicts of the current model of cities
and this represents the change that is aimed to be implemented by the full arrival of a new
social era, which we intend to briefly analyze as follows.

2. The Societies 5.0


As it was mentioned, this term society 5.0 appeared in Japan, around the year of 2016,
which idea congregate some goals as to balance economic advancement with the resolution
of social problems, applying significant developed technological tools. Therefore, it is a
proposal for a new and better model of social organization where technological advances
come to be used more effectively in favor of human needs in the social and urban context.
In other words, this model seeks, through technology, to provide the services necessary
for social welfare at anytime, anywhere and for anyone. Furthermore, in this society model,

3
According to Un data. 68% of the world population projected to live in urban areas by 2050, says
UN. United Nations. 16 May 2018, New York. Available to access in: https://www.un.org/development/desa/
en/news/population/2018-revision-of-world-urbanization-prospects.html (Access: March 28th, 2020).

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Thinking about human and fundamental rights in the technological era
Diogo Luiz Chagas Santos - Vivian Rodrigues Madeira da Costa

information would be collected by sensors and accumulated in the cyberspace, being


analyzed by artificial intelligence and transmitted to humans in various ways, optimizing and
democratizing information.
Thus, this new aimed model of society promises to put an end to the great vulnerabilities
of the current model, such as natural disasters, problems related to public security and social
inequality, as well as to eliminate cases related to cyber-attacks and terrorism. In addition,
new and decentralized technologies will try to increase planetary resilience and pave the
way for sustainable development, creating a fairer and more democratic urban space in the
medium and long term for any citizen regardless of status or location.
The improvement of human life in this society seeks to bring about a better quality of life
and make productivity more efficient, not only in the scenario of entrepreneurship, but also in
the production and consumption of resources on the planet, generating a development guided
by scientific and technological innovation.
Through artificial intelligence, as mentioned previously, the necessary information and
knowledge are provided and technological machines and devices, such as robots, drones,
cryptocurrencies and autonomous vehicles, will start to work as in a network, connected
and interacting with each other. However, one should bear in mind that the objective is to
improve the social dynamics, its efficiency and, therefore, the quality of life, also through
social justice.

3. How do human and fundamental rights fit into the


societies 5.0 and the smart cities?
In fact, it could not be forgotten that the main intention of this new strategic and
technological development concern is to promote a more efficient and fair social model.
Therefore, it is extremely important to think how human and fundamental rights could
actually fit into the societies 5.0 and the smart cities, otherwise all the main challenges could
be perpetuated and even enhanced by the spread use of highly advanced technological tools.
It is also known that there is already a significant concern about the limits of the use of
these tools, since it could enhance the present social challenges and also drive to new ones,
such as labor crisis by the loss of workstations of even the segregation of those who have
not access to expensive devices. How to overcome these problems and to actually use all the
characteristics of the smart cities and the societies 5.0 to promote human rights must be a
constant goal and pursuit behind these new strategic governance models.
Therefore, the aim to promote human dignity and all the rights already stablished must
always lead the policy makers and the administration structure. As Brown affirms, “(…) in
smart city processes there is an opportunity to identify and develop the appropriate legal
frameworks to ensure the smart city protects and promotes human rights standards”.4

4
Brown, Tenille E. Human Rights in the Smart City: Regulating Emerging Technologies in City
Places (January 9, 2019). Regulating New Technologies in Uncertain Times, pp. 47-66, Leonie Reins, ed.,
Springer, 2019. Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=3415990 (Access: March 27th, 2020).

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Thinking about human and fundamental rights in the technological era
Diogo Luiz Chagas Santos - Vivian Rodrigues Madeira da Costa

Accordingly, to focus on human rights could drive legal frameworks to underscore that
the smart in the smart city would be referring to more than advanced technology, and instead
to true signals of development of legal standards that are truly human focused, and equality
driven, as the same author above mentioned highlights. The same idea would apply to the
societies 5.0 in an extent that the recognition of a new social era could implies a different
social behaviour toward sustainability and human matters.
Although this idea can be apparently evident and well accepted among legal scholars and,
institutionally speaking, by the public branches, what one observes in practice is commonly
far distant from what the legal normative already stablishes. Therefore, the concern is that
the legal activity and normative production do not get far away from the social reality, by
starting to regulate and even foresee, in some measures, ways to avoid that the spread use of
technological tools could cause the deepening of social injustices.
Through this concern, all human rights, internationally recognized, and also fundamental
rights, already stablished by democratic countries, must be at the center of social governance
model, what implies that other private actors and big corporations should be under the empire
of law, which must correctly define important terms of use and application of new tools,
besides the ethical limits to biotechnological researches, for instance. Therefore, human and
fundamental rights can perfectly fit into these new social models, as far as their enforcement
continue to be thought and stablished by policy makers and governance public and private
actors.

Conclusion
There is no doubt that the shortcomings identified in the current model of smart cities
and the advances in technology are combined in this new model of society, to promote quality
of life in cities, through the creation of more comfortable, accessible, democratic, fair and
sustainable spaces, facilitating citizen participation, reducing social inequalities and favoring
the scenario for sustainable entrepreneurship.
But it can also be noticed that these broaden objectives for the societies 5.0 are ambitious,
as they aim to create equal opportunities for all citizens, in addition to creating the right
scenario for people to enjoy life with quality, also generating economic growth to meet basic
needs of the citizens, which would contribute to human prosperity and a more dignified life
for all. And this would be possible with the creation of a physical and digital scenario with
greater equality.
Therefore, these new society framework or social age must value human and social
development, in addition to their sustainability-oriented aspects. It clearly means that the whole
concept of smart cities and also of the societies 5.0 must always be attached to human and
environmental concerns, otherwise it could lead to a technological and oligarchy dictatorship.
Because of that, the intention of this brief analysis was to increase awareness about the topic,
highlighting the fundamental role that human rights should play into this new social era.

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Thinking about human and fundamental rights in the technological era
Diogo Luiz Chagas Santos - Vivian Rodrigues Madeira da Costa

Bibliography
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(January 9, 2019). Regulating New Technologies in Uncertain Times, pp. 47-66, Leonie Reins,
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