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VIOLÊNCIA DE GÊNERO E O AVANÇO NEOCONSERVADOR,

LIMITES DOS PROCESSOS DEMOCRÁTICOS1


VIOLENCIA DE GÉNERO Y EL AVANCE NEOCONSERVADOR, LÍMITES DE LOS
PROCESOS DEMOCRÁTICOS
Stephany Dayana Pereira Mencato2

RESUMO

A presente proposta tem por fim apresentar os resultados parciais de pesquisa realizada
junto a Universidade Federal da Integração Latino-americana, onde se reflete a
importância do tema violência com especial enfoque em suas interseções de gênero e
sexualidade, compreendendo-se tal como problema fundamental do nosso tempo,
expondo as limitações impostas aos processos democráticos frente ao avanço
neoconservador observado em países do cone sul em especial Brasil e Argentina. Ambos
os países apresentam altas taxas de mortalidade feminina, tendo consolidado ao longo da
última década importantes avanços no campo legislativo e de políticas públicas para
enfrentamento ao tema, políticas e legislações que nos últimos anos sofrem ameaças
constantes, tendo passado por processos de desmonte, direta e indiretamente, além de
serem postas a prova frente a constante apresentação de propostas legislativas de cunho
neoconservador que acendem e revivem debates populares acalorados acerca dos papeis
de gênero, em especial com intuito de remarcar um lugar de inferioridade feminina no
seio da política democrática.
Palavras-chave: Violência, Democracia, Gênero, Neoconservadorismo

RESUMEN

La presente propuesta tiene como fin presentar los resultados parciales de la pesquisa
realizada en la Universidad Federal de Integración Latinoamericana, donde se refleja la
importancia del tema violencia enfocado principalmente en las intersecciones de género
y sexualidad, comprendiendo el mismo como problema fundamental de nuestro tiempo,
exponiendo las limitaciones impuestas a los procesos democráticos frente al avance
neoconservador observado en países del cono sur, en especial Brasil y Argentina. Ambos
países presentan altas tasas de mortalidad femenina, habiendo consolidado a lo largo de
la última década importantes avances en el campo legislativo y de políticas públicas para
enfrentar el tema, políticas y legislaciones que en los últimos años sufren amenazas
constantes, pasando por procesos de desmonte, directa e indirectamente, además de ser
puestas a prueba frente a la constante presentación de propuestas legislativas de cuño
neoconservador que encienden y reviven acalorados debates populares acerca de los

1
O presente artigo é o resultado parcial de pesquisa desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação em
Integração Contemporânea da América Latina (PPG-ICAL), tendo sido a participação no presente evento
financiada pelo Ministério da Educação por meio Universidade Federal da Integração Latino-Americana
através do edital nº 1/2019/PPGICAL/ILAESP, na cidade de Foz do Iguaçu, estado do Paraná, Brasil.
2
Mestrandx do Programa de Pós-graduação em Integração Contemporânea da Améria Latina da
Universidade Federal da Integração Latino-Americana - UNILA, fannymencato@gmail.com;

1
papeles de género, en especial con el interés de remarcar un lugar de inferioridad
femenina en el seno de la política democrática.
Palabras clave: Violencia, Democracia, Género, Neoconservadorismo.

1. INTRODUÇÃO

O trabalho aqui apresentado compõem o resultado parcial de pesquisa de mestrado, e por


tanto busca apresentar alguns dos pontos principais sobre os quais se trabalhará de modo
mais profundo em pesquisas seguintes.

O primeiro capítulo apresenta a construção dos recortes teóricos que levam a construção
do objeto de pesquisa, a violência baseada em gênero em especial os homicídios
lesbocídas, compreendidos como os assassinatos de corpos feminilizados que se
relacionam afetiva e sexualmente com outros enquadrados na mesma categoria política,
de mulheres.

O segundo capítulo aborda os elementos que viabilizam a comparação entre as realidades


brasileira e argentina sobre o tema, se apontando dados de violências praticadas em ambos
os países, bem como as legislações existentes nos Estados acerca do tema.

O capítulo final nos traz uma parte da construção do marco teórico que viabiliza a
construção teórica do problema em análise, interligando a violência interseccional
lesbocída com o Estado e o avanço neoconservador. Por fim, as conclusões apontam
elementos para a sequência da pesquisa.

2. VIOLÊNCIA BASEADA EM GÊNERO

O presente trabalho se trata dos resultados parciais oriundos de pesquisa desenvolvida


junto à Universidade Federal da Integração Latino-Americana, tomando por tema central
de análise os lesbocídios no Brasil em uma comparação com a realidade Argentina.

Compreende-se que a análise de países vizinhos, integrantes do Cone Sul e que com o
contexto de redemocratização política viram favorecidas as atuações de movimento de
mulheres e feministas, bem como LGBTI+, sigla que corresponde a Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Travestis, Transexuais ou Transgêneros e Intersexuais, inclui-se ainda o ‘+’,
conforme opta parte do próprio movimento, para reafirmar à visibilidade de outras
identidades sexuais e de gênero ainda mais invisibilizadas, esse termo não é pacífico.

2
Esses movimentos, ainda que de modo paulatino, muitas vezes descontínuo e marcado
por reveses, foram os principais responsáveis pela denúncia da violência de gênero
cotidianamente praticada contra corpos feminilizados não heterossexuais, invisibilizados
na proteção dos espaços domésticos, de laços familiares e conjugais, costumes e tradições,
pode ajudar a compreender melhor a realidade brasileira, possibilitando a defesa dos
Direitos Humanos (DH) e de uma democracia participativa.

A violência interseccional é pensada a partir do debate público acerca da violência de


gênero em suas múltiplas intersecções, inicialmente compreendida como avanço teórico
resultante dos debates clássicos acerca da violência contra as mulheres, que ganha espaço
na agenda política e no debate público especialmente a partir de 1980, mas que antes
desse período já possuía um campo múltiplo e plural que se consolida hoje por meio de
diversas teóricas e movimentos feministas.

No ano de 2011, o United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC) apresentou um
diagnóstico central ao se destacar a relevância do tema, durante um seminário
Internacional realizado em Assunção, capital do Paraguai, intitulado Respostas à
Violência Baseada em Gênero no Cone Sul: Avanços, Desafios e Experiências Regionais
(UNODC, 2011). Ali se afirma que em todos os países do Cone Sul se observam altas
taxas de violência de gênero, bem como a tendência a subnotificação dessas violências,
seja por vergonha, estigma ou medo, que impediriam a apresentação de queixas formais
e a elaboração de políticas públicas.

Esse processo de assimilação por parte dos Estados, da responsabilidade sobre os


processos de violência de gênero, não passa, contudo, sem críticas e ressalvas, segue
sendo um dos principais desafios para as Teorias Feministas em Ciência Política e áreas
relacionadas. Teóricas como Rita Laura Segato (2012; 2013) e Maria Lugones (2008)
denunciam como a violência e a intervenção estatal estão inter-relacionadas, sendo ambas
faces de um processo sob o qual se assenta a colonial-modernidade. Logo a existência do
Estado moderno cisheteropatriarcal é apontado como um dos pontos centrais nos
processos históricos de maximização das violências em suas intersecções, o que ressalta
também Carla Akotirene (2019).

Com o intuito de delinear o macro tema proposto para a pesquisa, viabilizando desse
modo sua realização, se apontam algumas delimitações teóricas. O primeiro marco é
territorial, constatando-se a amplitude temática que surgiria ao se analisar todos os 5

3
países do Cone Sul, se toma tão somente os casos de Argentina e Brasil, países que como
se apontará a diante possuem importante relevância na região, além de similitudes e
divergências políticas de extrema relevância.

Delimita-se a seguir o conceito de violência, que poderá ser problematizado ao longo da


pesquisa, em especial por meio dos debates de teorias feministas, mas que tem por centro
a definição apresentada pela “Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar
a Violência contra a Mulher”, Convenção de Belém do Pará, a qual ambos os países
analisados são signatários e dispõem em seu artigo l°: “entender-se-á por violência contra
a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou
sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera
privada” (CIDH, 1994).

Toma-se desse modo para análise somente as violências que tem por base o gênero de
quem as sofre, ampliando-se ainda a compreensão aplicada a categoria mulher(es),
trabalhada aqui sempre no plural, vez que não se vincula somente a fatores biológicos,
mas sim a noção de corpos feminilizados, expressão que restará melhor apresentada ao
marco teórico.

Percebendo-se ainda a multiplicidade de violências passíveis de serem praticadas contra


corpos feminilizados sejam por exemplo de ordem física, sexual ou psicológica, a
proposta se centra em especial, ainda que não unicamente, na análise dos dados e casos
de assassinatos.

Outra delimitação proposta é referente ao sujeito da análise, que se apresenta inicialmente


somente com a categoria de gênero mulheres, que será somada aqui a categoria
sexualidade não heterossexual, tal recorte se faz novamente com o intuito de viabilizar a
pesquisa a ser desenvolvida, mas também a fim de visibilizar os processos de violência
sofridos por mulheres que se autodenominam mulheres, sejam cisgênero3 (cis) ou trans4,
não heterossexuais, e, portanto, se relacionem afetiva e sexualmente com outros corpos
feminilizados e que são invisibilizadas por processos sociais heteronormativos,
compreendendo a heterossexualidade como norma compulsória aos corpos feminilizados,
nos termos de Adrienne Rich (2012).

3
Categoria formada por corpos feminilizados ao nascer em decorrência de fatores biológicos.
4
Categoria formada por mulheres não cis, vinculada a identidade de gênero, podendo ser denominadas em
especial travestis, transexuais ou trangêneros.

4
Assim os lesbocídios5 surgem enquanto assassinatos de corpos feminilizados, em
decorrência de sua relação afetiva, emocional e sexual com outras mulheres, e será a
principal categoria analisada na presente pesquisa, ainda que esta possa nos levar ao longo
de se desenvolvimento ao diálogo com casos de assassinatos de mulheres bissexuais6,
pansexuais7 ou Mulheres que fazem Sexo com Mulheres8 (MSM).

3. LESBOCÍDIOS NO BRASIL E ARGENTINA

É central a busca de formulações e análises capazes de contribuir para com a reflexão


crítica capaz de romper com estruturas e instituições que violentam e invisibilizam corpos
no entendimento de que “Podemos perfeitamente ser formados no interior de uma matriz
de poder, mas isso não quer dizer que precisemos, devotada ou automaticamente,
reconstruir essa matriz ao longo do curso de nossas vidas” (BUTLER, 2015, p. 236).

A lógica da heteronormatividade, descrita por Freitas (2019) como aquela que


compreende a heterossexualidade como natural e única forma de vivência afetiva/sexual
possível para as expectativas patriarcais, é construída sobre a teoria de que existem
somente dois sexos biológicos, o masculino e o feminino, naturais e fixos, marcados por
aspectos culturais de gênero que se interligam e correspondem a esses sexos pré-
existentes, e por fim definem o desejo ‘natural’, heterossexual de todos os indivíduos, “A
América Latina e a região do caribe encontram-se em um momento histórico de transição
e disputa política, onde a aliança entre setores contra-direitos, religiosos fundamentalistas
e políticos ultraconservadores força seu avanço por um perigo caminho” (ILGA, 2019, p.
1039 - livre tradução).

Essa lógica heteronormativa, reforçada na América Latina com os processos coloniais,


segue sendo reproduzida nas sociedades atuais, sendo justificadamente um dos eixos

5
Decorrentes aqui da lesbofobia, enquanto rejeição ou aversão às mulheres lésbicas, assim denominadas
em decorrência de sua identidade homossexual.
6
A categoria de mulheres bissexuais é caracterizada pelas práticas afetivas e sexuais com outras mulheres
bem como com homens, e seu assassinato em decorrência da bifobia é intitulado bicídio.
7
A pansexualidade pode ser compreendida no campo da identidade sexual, enquanto atração sexual,
romântica ou emocional em relação à pessoas, independentemente da identidade sexual e de gênero.
8
Termo que define a pratica de atos sexuais ocasionais entre mulheres desvinculadas do desenvolvimento
de relações de afetividade.
9
No original: “The Latin American and Caribbean region finds itself in a historic moment of transition and
political dispute, where the alliances between anti-rights religious fundamentalist sectors and the
ultraconservative political forces are advancing in a dangerous way.4 This puts in tension and risks the
gains achieved by movements through the social, political and cultural struggle, after a stage that we can
call a decade of achievements for the LGBT population and women” (ILGA, 2019, p. 103).

5
principais para reflexões acerca dos Estados modernos, problema central para o avanço
dos processos democráticos participativos, que tem por intento maximizar a participação
social e pôr fim a múltiplos e violentos processos de exclusão social enfrentando o
neoconservadorismo ultradireitista. Conforme se observa pelo relatório da UNODC
(2018) um total de 87 mil mulheres foram vítimas de crimes de gênero no mundo em
2018. A maior parte dos países que integram a Organização das Nações Unidas (ONU)
não possuem dados confiáveis acerca do número real das mortes de mulheres.

Uma perspectiva total acerca da sexualidade dessas mulheres resta praticamente


impossível, uma vez que o mesmo relatório (ILGA, 2019, p. 535) aponta que 68 dos
estados que compõem a ONU, 35% do total, possuem de algum modo legislações que
criminalizam a pratica sexual entre pessoas do mesmo sexo, frente a apenas 42, 22%, que
possuem leis específicas de proteção por crimes de ódio decorrentes de gênero e
sexualidade, essas legislações de criminalização se somam as lesbofobias institucionais 10,
sendo a ausência de uma demografia lésbica que busque, entre outras coisas, estudar
características sobre a condição lésbica em cada país outro marcador de invisibilidade
sobre a temática.

Na Argentina e no Brasil os debates políticos que envolveram a formulação dos crimes


de femicídio e feminicídio, ocorreram durante os governos das primeiras presidentas de
ambos os países: Cristina Kirchner e Dilma Rousseff, tipos penais, que apesar das
diferenças expostas pelas legislações específicas tem por centro o combate aos
homicídios motivados por gênero.

Na Argentina a Lei n° 26.791 de 14/12/2012 define o crime de femicídio, e foi firmada


durante o governo da presidenta Cristina Kirchner, sob forte pressão do movimento
feminista laços verdes e a #nigunamenos. No Brasil a lei nº 13.104 de 09/03/2015
expressa o crime de feminicídio e foi promulgada por Dilma Rousseff, em resposta à
recomendação da Organização dos Estados Americanos (OEA) decorrente de condenação

10
A lesbofobia institucional Argentina é possível de ser afirmada ao se observar por exemplo a formulação
do Informe Estadístico Anual: año 2018 (OVD, 2019) que dentre as diversas intersecções apontadas nada
pontua acerca da sexualidade, o que se repete ao Registro único de casos de violencia contra las mujeres
(INDEC, 2019). No Brasil as Diretrizes Nacionais Feminicídio: Investigar, Processar e Julgar de 2016,
trabalha especificamente gênero e suas interseccionalidades, contudo toca somente nos quesitos: classe
social, geração, deficiências, raça, cor e etnia (ONU Mulheres, 2016, 34-37), omitindo-se quanto a
sexualidade do mesmo modo.

6
imposta ao Brasil no caso 12.051 transitado junto a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos.

Nesse momento o debate teórico envolvendo a formulação do delito de homicídio de


mulheres como femicídio ou feminicídio não terá maior espaço, mas é importante apontar
que mesmo possuído similaridades, existe a conquista de um avanço teórico feminista ao
se aprovar a legislação nos termos do feminicídio.

Two terms, “femicide” and “feminicide”, are widely used in relation to the
concept of gender-related killing of women and girls. The conventional
understanding conveys the idea that hate crimes against women are perpetrated
by men simply because of the gender roles assigned to women. The term
“femicide” was coined in the literature several decades ago to define the
gender-related motivation associated with the killing of women and girls.
Although the term has attracted attention to the extent that it is now used by
some Governments and a wide range of stakeholders, at global level there is
no commonly agreed definition of what constitutes “femicide”. What is
observable, however, is a plurality of definitions stemming from different legal
and sociological approaches, which indicate the elements that may contribute
to labelling a crime “femicide”. The following section provides an overview
of the sort of crimes that have been considered in the context of gender-related
killing of women or “femicide” (UNODC, 2018, p. 24).

Desse modo se percebe que o termo feminicídio transcende a teoria do biológico feminino
e diz respeito a percepção de que a violência se associa a violência de gênero, ao
constructo social que rodeia esses corpos feminilizados.

Outro ponto importante, é de que em ambos os países o debate nas câmaras legislativas
acerca da punição para violências decorrentes de identidade sexual e de gênero seguem
praticamente sem avanço desde os processos de redemocratização. Na Argentina tal foi
chamado de crime de ódio LGBT, seguindo como uma reivindicação de movimentos
sociais e entidades como a Federacion Argentina Lesbianas, Gays, Bissexuales y Trans
(FALGBT), a Constituição Argentina não contenha proibição explícita da discriminação
baseada na identidade sexual e de gênero, apenas as Constituições de Rosário e da Cidade
Autônoma de Buenos Aires referenciam tal proteção desde 1996.

No Brasil, a discriminação por identidade de gênero e orientação sexual ficou comumente


tratada como homofobia ou LGBTI+fobia, termos que também possuem variado debate,
a ser aprofundado desenvolvendo-se integralmente a pesquisa. O central é que no país a
punição por crimes de LGBTI+fobias é uma reivindicação ativa da maior marcha mundial
do orgulho LGBTI+, que ocorre anualmente em São Paulo e pressiona o legislativo
federal para a aprovação do Projeto de Lei da Câmara n° 122 desde o ano de 2006.

7
Porém a homofobia e a transfobia somente foram reconhecidas como crime por
julgamento do Supremo Tribunal Federal do Brasil (STF), no último dia 13 de junho de
2019, frente resolução de dois processos: a Ação Direta de Inconstitucionalidade por
Omissão (ADO) n° 26 e pelo Mandado de Injunção Coletivo (MI) n° 4733, passando
assim a se compreender que no território esses atos de violência devem ser punidos pela
Lei de Racismo, n° 7716/89, resultado da ação e articulação da Associação Brasileira de
Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT) e do Partido
Popular Socialista (PPS). Infelizmente a lesbofobia ou a LGBTI+fobia não apareceram
no termo da decisão o que gera uma ambiguidade conceitual danosa às lésbicas.

Ambas as legislações, em ambos os Estados, enfrentam constantes contestações e


barreiras impostas por meio de bancadas formadas junto aos poderes legislativos federais,
que se firmam sobre alegações por vezes de cunho religioso cristão, aliados entre
católicos e evangélicos, em diferentes proporções em cada país, além de tradicionalistas
com características neoconservadoras, reforçadas com o avanço das direitas neoliberais
políticas. Os dados divulgados em ambos os países acerca das violências de gênero
destacam ainda mais essa invisibilidade.

A violência contra as mulheres é uma problemática que tem um algo grau de


invisibilização, pois nem todas as mulheres que sofrem violência baseada no
gênero realizam denúncias ou solicitam ajuda a algum organismo público. Por
essa razão pode se dizer que trata-se de um fenômeno sub registrado.
Somando-se a isso, ainda existem organismos que não contam com
equipamentos técnicos e pessoal especializado que se ocupe de sistematizar os
dados com fins estatísticos (INDEC, 2019, p. 3211).

Na Argentina, os números totais registrados de homicídios de mulheres por violência de


gênero em 2016 segundo o Informe Estadístico Anual Año 2018 (CEPAL, 2019) foi de
254 casos, número que em 2017 totalizou 251, e no ano de 2018 foi a 255. Ainda que em
número totais esses dados sejam muito inferiores ao caso brasileiro segundo a nota n° 27
do Observatório de Igualdade de Gênero da América Latina e Caribe, no ano de 2017, o
pais esteve em 4° entre os países com maiores casos dessas violências, atrás apenas do
Brasil, El Salvador e Honduras12.

11
Tradução livre, do original: “La violencia contra las mujeres es una problemática que tiene un alto grado
de invisibilización, pues no todas las mujeres que padecen violencia basada en el género realizan denuncias
o solicitan ayuda a algún organismo público. Por esta razón puede decirse que se trata de un fenómeno
subregistrado. Sumado a esto, aún existen organismos que no cuentan con equipos técnicos y personal
especializado que se ocupen de sistematizar los datos con fines estadísticos” (INDEC, 2019, p. 32).
12
Para mais informações ver também: AVON (2019, p. 5)

8
O Brasil por sua vez foi, no ano de 2016, o terceiro pais com maior número de assassinatos
de mulheres no mundo, somente atrás da Índia e da Nigéria (EVOY; HIDEG, 2017, p.
62), sendo que, “houve um crescimento dos homicídios femininos no Brasil em 2017,
com cerca de 13 assassinatos por dia. Ao todo, 4.936 mulheres foram mortas, o maior
número registrado desde 2007” (IPEA; FBS, 2019, p. 35), sendo que o ano de 2019 não
parece apresentar qualquer cenário de melhora, até fevereiro desse ano haviam se
registrado a morte de ao menos 126 mulheres no país (OAS,2019).

O Atlas da violência 2019 (IPEA, 2019, p. 56) aponta certo avanço nesse sentido, ao
interseccionar as taxas de feminicídios com elementos como raça/etnia, idade, classe, se
esses ocorreram dentro ou fora das residências da vítima e em quais cidades, além de
outros elementos. Porém quanto a sexualidade, se abandona a intersecção com os crimes
de feminicídio e se segue em um novo e inédito capítulo, esse tratando da violência contra
a população LGBTI+, realçando a invisibilidade do tema de pesquisa aqui proposta.

Os dados oficiais apontam que dentre as violências praticadas contra a população


LGBTI+ no ano de 2015 as vítimas de sexo feminino, com orientação sexual homo ou
bissexual foram 56,2% dos casos registrados. Já no ano de 2016, último de que possui
informações o Atlas acerca do tema, as mulheres bi ou homossexuais somaram 59,5% do
total de vítimas registradas segundo o IPEA (2019, p. 67), se ressalta assim o preconceito
e a discriminação contra a população feminilizada de identidade sexual não hétero o que
destaca também a Agencia Patrícia Galvão (2017, p.5).

O portal eletrônico Agencia Presentes (2018) publicou que na Argentina, onde não
existem dados oficiais acerca do tema, ao longo de 2018 existiram ao menos 94 crimes
de ódio contra LGBTI+, um a cada 77 horas, desses foi possível se identificar 23
assassinatos, dos quais 11% foram apontadas como lésbicas. No Brasil, o Dossiê sobre
lesbocídio no Brasil: de 2014 até 2017 aponta que no ano de 2017, foram registradas 54
mortes de lésbicas no Brasil, o que revela um aumento de mais de 237% sobre o total de
casos de 2014, além de 80% em relação ao mesmo período de 2016, “Foi o maior número
de casos registrados em toda a história das pesquisas lesbocídios no Brasil” (PERES,
2018, p. 62).

4. VIOLÊNCIA INTERSECCIONAL E DEMOCRACIA

9
Como ponto de partida se toma a sexualidade enquanto dispositivo de poder central ao
governo das populações nas sociedades industriais que evoluem até a atualidade e por
isso vincula-se aos debates do Estado e da Democracia. Se assume que o problema da
gestão da população está no epicentro do surgimento das práticas estatais,
compreendendo que “O Estado é uma prática. (...) não pode ser dissociado do conjunto
das práticas que fizeram efetivamente que ele se tornasse uma maneira de governar, uma
maneira de agir, uma maneira também de se relacionar com o governo” (FOUCAULT,
2008, p.369), sendo na mesma medida a razão de surgimento dos dispositivos de
segurança, e dentre eles, por estar “exatamente na encruzilhada do corpo e da população”
(FOUCAULT, 2010, p. 212), constituindo-se como o problema econômico e político
central aos estados no governo da população, está a sexualidade, que “se insere e adquire
efeito, por seus efeitos procriadores, em processos biológicos amplos que concernem não
mais ao corpo do indivíduo mas a esse elemento, a essa unidade múltipla constituída pela
população” (FOUCAULT, 2010, p. 212).

Se pensa por tanto a partir das condições políticas e econômicas de existência que ao
serem estabelecidas socialmente “formam os sujeitos de conhecimento e, por
conseguinte, as relações de verdade” (FOUCAULT, 2005, p. 27) se estabelecendo por
meio dos próprios dispositivos de segurança e suas instituições como naturais, por
intermédio de relações políticas que investem toda a trama de nossa existência.

[...] as estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou cristalização


institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas
hegemonias sociais. (...) O poder está em toda parte; (...) porque provém de
todos os lugares. (...) é o nome dado a uma situação estratégica complexa numa
sociedade determinada (FOUCAULT, 2015, p. 101).

A sexualidade, então, dispositivo moderno de poder, central e em expansão a partir do


séc. XVII, vinculada a “uma intensificação do corpo, à sua valorização como objeto de
saber e como elemento nas relações de poder” (FOUCAULT, 2015, p. 117) meio pelo
qual o corpo entra no centro do debate político.

Corpo tomado aqui a partir dos processos que o sustentam, em sua relação com esse apoio
ou falta de apoio, enquanto “conjunto vivo de relações; o corpo não pode ser
completamente dissociado das condições ambientais e de infraestrutura da sua vida e da
sua ação. Sua ação é sempre condicionada, que é um sentido do caráter histórico do
corpo” (BUTLER, 2018, p. 72).

10
O que se a firma nesse sentido é que os corpos necessitam ser compreendidos para além
de seus processos que se constroem historicamente como naturais, afinal mesmo o fato
de que a morte é certa e fator comum a todos os corpos, não impede que essa pode ser
postergada ou adiantada, conforme a presença ou ausência de condições ambientais e de
infraestrutura, a precariedade se forma exatamente ai, “implica viver socialmente, isto é,
o fato de que a vida de alguém está sempre, de alguma forma, nas mãos do outro”
(BUTLER, 2015, p. 31), por tanto, em alguma medida toda vida é precária, pois é
sustentada dentro de determinadas condições de vida, porém, exatamente por depender
da presença de redes de apoio capazes de reduzir essa condição comum é que algumas
vidas se tornam mais precárias que outras, “aqueles cujas vidas não são ‘consideradas’
potencialmente lamentáveis e por conseguinte, valiosas, são obrigados a suportar a carga
da fome, do subemprego, da privação de direitos legais e da exposição diferenciada à
violência e à morte” (BUTLER, 2015, p. 45-46).

Se toma o conceito de interseccionalidade 13 ao compreender-se “[...] que busca capturar


as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da
subordinação” (CRENSHAW, 2002, p.177), onde se “sugere que, na verdade, nem
sempre lidamos com grupos distintos de pessoas e sim como grupos sobrepostos”
(CRENSHAW, 2012, p. 10) o que se busca é exatamente compreender a medida em que
a precariedade de certas vidas se torna muito superior a de outras, rejeitando a
pressuposição de hierarquias entre pilares analíticos, pois “Tentar entender os problemas
das mulheres como comuns a todas, sem levar em conta elementos como raça, classe,
renda ou orientação sexual, seria silenciar a multiplicidade de experiências específicas
que compõem a condição feminina” (MIGUEL; BIROLI, 2014, p. 89). O conceito de
interseccionalidade é tomado assim como uma “sensibilidade analítica, pensada por
feministas negras cujas experiências e reivindicações intelectuais eram inobservadas
tanto pelo feminismo branco quanto pelo movimento antirracista, a rigor, focado nos
homens negros” (AKOTIRENE, 2019, p.18).

13
Nota importante acerca do termo: “A vasta literatura existente em língua inglesa e mais recentemente
também em francês aponta o uso desse termo, pela primeira vez, para designar a interdependência das
relações de poder de raça, sexo e classe, num texto da jurista afro-americana Kimberlé W. Crenshaw (1989).
Embora o uso do termo a ponto de se tornar hit concept, como denomina Elsa Dorlin (2012), e o franco
sucesso alcançado por ele datem da segunda metade dos anos 2000, pode-se dizer que sua origem remonta
ao movimento do final dos anos de 1970 conhecido como Black Feminism (cf. Combahee River Collective,
2008; Davis, 1981; Collins, 1990; Dorlin, 2007), cuja crítica coletiva se voltou de maneira radical contra o
feminismo branco, de classe média, heteronormativo” (HIRATA, 2014, p. 62).

11
Se compreende, portanto, que os dispositivos de poder atuam de forma múltipla e difusa
sobre os corpos, sendo necessária uma visão ampla de diversos aspectos para se apreender
a subordinação e o assassinato de certos indivíduos e grupos, refletindo ainda a forma
como ações, políticas e práticas estatais se relacionam ativamente nesses processos.

A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as


consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da
subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o
patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam
desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças,
etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como
ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos,
constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento
(CRENSHAW, 2002, p. 177).

As teorias políticas feministas nesse contexto são centrais ao debate nos termos do
problema proposto, isso, pois, ainda que os macro temas democracia e violência, em suas
interligações sejam complexos e possam ser abordados por múltiplas perspectivas de
análise, possuindo mesmo inumeráveis trabalhos acerca de ambos os temas, a reflexão a
partir da interseccionalidade entre as categorias de análise de sexualidade, gênero, raça e
classe, bem como a interdisciplinaridade teórica e disciplinar ainda é minoritária na
produção acadêmica hegemônica.

A análise interseccionada permite assim uma ruptura crítica com as análises tradicionais
acerca da violência14 e da democracia, realçam que a violência contra corpos femininos e
feminilizados em decorrência de sua não heterossexualidade não se tratam somente de
uma questão localizada e restrita a um grupo minoritário, pois entende-se que “As
relações de gênero atravessam toda a sociedade, e seus sentidos e seus efeitos não estão
restritos às mulheres. O gênero é, assim, um dos eixos centrais que organizam nossas
experiências no mundo social” (MIGUEL; BIROLI, 2014, p.8), categoria política de
análise, conceito que nos remete em especial às violências exercidas contra corpos
feminilizados pela “sedimentação das normas do gênero [que] produz o fenômeno
peculiar de um ‘sexo natural” (BUTLER, 2003, p.199).

Toma-se a compreensão de que o é o próprio sexo, um produto do sistema de gênero


“aparato mesmo de produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos”
(BUTLER, 2003, p. 25), o que institui uma desigual distribuição de poder e estabelece

14
Ver também FALQUET (2017).

12
relações sociais assimétricas e violentas, por meio de instituições cisheteropatriarcais
coloniais.

Esse efeito violento é resultado do mandato moral e moralizador de reduzir e


aprisionar a mulher em sua posição subordinada, por todos os meios possíveis,
recorrendo a violência sexual, psicológica e física, ou mantendo a violência
estrutural da ordem social e econômica em que hoje os especialistas já estão
descrevendo como a ‘feminização da pobreza’ (SEGATO, 2003, p. 1515 -
Tradução livre).

As relação entre homens e mulheres, enquanto status relativos de poder e subordinação


hierarquizados no espaço global, se estabelece e reproduz mediante um repetitivo ciclo
de violências, que afeta sobremaneira os corpos feminilizados, em especial em suas
intersecções, que estarão sempre relacionado a estes sistemas de status. A violência toma
como base a defesa do confinamento compulsivo ao espaço doméstico daquela categoria
tratada como suas habitantes, as mulheres. Essa limitação ao privado tem como
consequências terríveis à violência que as vitimiza.

É indispensável compreender que essas consequências são plenamente


modernas e produto da modernidade (...) os feminicídios, como práticas quase
mecânicas de extermínio das mulheres são também uma invenção moderna. É
a barbárie da colonial/modernidade (...). Sua impunidade, (...), encontra-se
vinculada à privatização do espaço doméstico, como espaço residual, não
incluído na esfera das questões maiores, consideradas de interesse público
geral (SEGATO, 2012, p. 12116).

A partir dessas compreensões é possível afirmar que os corpos lésbicos, ao ocuparem esse
lugar feminilizado não heterossexual, característico ao corpo compreendido socialmente
na categoria mulher e que possui desejo afetivo/sexual por outro corpo igualmente
caracterizado, é em posto em um lugar de maior precariedade, isso se dá pois “nenhum
ser humano pode ser tomado como humano, pode ser reconhecido como humano, a não
ser que esse ser humano seja completa e coerentemente marcado pelo sexo”(BUTLER,
2013, p. 100), isso pois “A noção de que pode haver uma ‘verdade’ do sexo, como

15
Do original: “Ese efecto violento resulta del mandato moral y moralizador de reducir y aprisionar la
mujer en su posición subordinada, por todos los medios posibles, recurriendo a la violencia sexual,
psicológica y física, o manteniendo la violencia estructural del orden social y económico en lo que hoy los
especialistas ya están describiendo como la ‘feminización de la pobreza’” (SEGATO, 2003, p. 15).
16
Ainda que com certas diferenças teóricas, coaduna nesse sentido também Maria Lugones: “A pesar que
en la modernidad eurocentrada capitalista, todos/as somos racializados y asignados a un género, no todos/as
somos dominados o victimizados por ese proceso. El proceso es binario, dicotómico y jerárquico. Kimberlé
Crenshaw y otras mujeres de color feministas hemos argumentado que las categorías han sido entendidas
como homogéneas y que seleccionan al dominante, en el grupo, como su norma; por lo tanto, «mujer»
selecciona como norma a las hembras burguesas blancas heterosexuales, «hombre» selecciona a machos
burgueses blancos heterosexuales, «negro» selecciona a machos heterosexuales negros y, así,
sucesivamente. Entonces, se vuelve lógicamente claro que la lógica de separación categorial distorsiona los
seres y fenómenos sociales que existen en la intersección, como la violencia contra las mujeres de color”
(LUGONES, 2008, p. 82).

13
Foucault a denomina ironicamente, é produzida precisamente pelas práticas reguladoras
que geram identidades coerentes por via de uma matriz de normas de gênero coerentes”
(BUTLER 2003, p. 38), normas essas rompidas pelas lésbicas em suas identidades
sexuais e de gênero, tendo nessa medida irreconhecíveis sua humanidade e marcada sua
precariedade, que se interrelaciona ainda diretamente com os marcadores sociais de
subjugação de raça e classe social.

Portanto refletir a invisibilidade dos lesbocídios, e o avanço neoconservador e neoliberal


também se interliga, pois no período democrático recente é possível observar mudanças
consideradas progressistas nos campos em especial dos direitos ditos como da categoria
mulheres e LGBTI+, “Em contraposição, vem ocorrendo uma reação crescente, em
grande medida mobilizada por convicções religiosas, que afirmam a necessidade de
contenção dos avanços do secularismo e dos comportamentos e valores mais liberais”
(ALMEIDA, 2019, p. 46), esse neoconservadorismo, não apenas reativo, mas ativo nas
disputas políticas, pela moral e pela legislação estatal, que ao ganhar força, ameaça
engolir as forças democráticas e progressistas.

A opção teórica pelo termo neoconservadorismo deriva da compreensão de que deve-se


pensar em termos de confluência de diversos grupos das direitas cuja união é possível
pela percepção de um inimigo comum, que tem como face central os movimentos
feministas, LGBTI+ e de esquerda, essa aliança se daria em especial pelos setores mais
extremados que incluem “três vertentes principais, que são o liberalismo, o
fundamentalismo religioso e a reciclagem do antigo anticomunismo” (MIGUEL, 2018,
p. 19). Importante ressaltar ainda que esse “neoconservadorismo estrutura-se como reação
ao Welfare State [estado de bem-estar social], à contracultura e à nova esquerda,
fenômenos atrelados ao pós-Segunda Guerra Mundial e ao advento do regime de
acumulação fordista. Para os neoconservadores, a crise econômica que atingiu o
capitalismo no final dos anos 1960 era antes de tudo uma crise moral, ocasionada pelo
abandono dos valores tradicionais que governam a sociedade desde os primórdios da
civilização, feito em nome de um igualitarismo artificialmente criado pela intervenção
estatal. A crise, conforme esta leitura de mundo, não era do Welfare State, para os novos
conservadores o intervencionismo característicos do Welfare State era o principal motivo
da crise (ALMEIDA, 2018, p. 28).

Ao longo destes últimos anos, o campo progressista assistiu perplexo,


atrapalhado e inativo à reorganização e ao fortalecimento político das direitas.
‘Direitas’, ‘novas direitas’, ‘onda conservadora’, ‘fascismo’, ‘reacionismo’...

14
uma variedade de conceitos e sentidos para um fenômeno que é indiscutível
protagonista nos cenários nacionais e internacional de hoje: a reorganização
neoconservadora que, em não poucas ocasiões, deriva em posturas autoritárias
e antidemocráticas (GALLEGO, 2018, p. 13).

Esse neoconservadorismo tem por pauta a restauração de uma pressuposta autoridade da


lei, em seus sentidos mais estritos patriarcais, racistas, sexistas, coloniais, discursos de
restabelecimento da ordem e defesa de um estado mínimo que se afaste das noções de
liberdade individual e livre iniciativa se formam exatamente na medida em que pautas
feministas e de gênero ganhavam espaço no campo progressistas.

Para os neoconservadores, a ruptura com as bases que permitiram a


consolidação da sociedade ocidental fez com que fossem apagadas as
diferenças naturais existentes entre os indivíduos. Diferenças de classe, entre
os sexos e até mesmo raciais sempre fizeram parte da ordem social, abandonar
essas diferenças em prol de uma ilusória sociedade sem classes levaria a uma
degradação cultura sem precedentes (ALMEIDA, 2018, p. 28).

A análise interseccional da violência lesbocída emerge assim como uma pauta central nos
debates em defesa a um regime democrático, centrado nos direitos humanos,
compreendidos aqui não apenas como doutrinas e documentos abstratos, mas “numa
disposição em relação às outras pessoas, um conjunto de convicções sobre como são as
pessoas e como elas distinguem o certo e o errado num mundo secular” (HUNT, 2009,
p.25), entendendo-se que “O silêncio não é mais uma possibilidade. A incapacidade de
entender os acontecimentos tão pouco. A democracia está em jogo” (GALLEGO, 2018,
p. 16).

Todo direito é, por definição, precário e frágil, fruto de luta política em torno
de disputas de valores e sentidos. É assim, uma construção social e histórica
que pode abrir margem para avanços na sua consolidação, ou para sua total
revogação. Não há direito adquirido que seja eterno e imutável (QUINALHA,
2019, p. 266).

Uma perspectiva de gênero sobre a lei e a democracia tem esse traço, não apenas crítico,
mas de disputa, como afirma também Santamaría, Salgado e Vlladares (2009, p. XIV)
refresca a tão pesada e monótona tradição jurídica, destaca que a lei nunca é neutra, sendo
capaz de descontruir as normas aparentemente protecionistas até apontar seu ponto
censurável e conservador, estando ainda direta e inevitavelmente com o cotidiano geral,
isso pois todos estamos inevitavelmente em relações de poder quanto ao gênero, e
acrescentaria, quanto a sexualidade, raça e classe.

Tomando-se então que raça e gênero, mas não apenas, sexualidade e classe também, “são
criações históricas para a dominação, funcionais para a extração de valor não

15
reconhecido, não remunerado – uma mais-valia racial e patriarcal” (SEGATO, 2018, p.
5917), nesse contexto ainda heterossexual, emerge como central a resistência perpetrada
pelos movimentos sociais.

[...] deve haver um momento em que a população, rompendo com todos os


vínculos de obediência, terá efetivamente o direito, não em termos jurídicos,
mas em termos de direitos essenciais e fundamentais, de romper com todos os
vínculos de obediência que ela pode ter com o Estado (FOUCAULT, 2008, p.
749).

Essa resistência é tomada aqui como viva e móvel, no sentido de que “Ela não é anterior
ao poder que ela enfrenta. Ela é coextensiva a ele e absolutamente contemporânea (...).
Para resistir, é preciso que a resistência seja como o poder. Tão inventiva, tão móvel, tão
produtiva quanto ele” (FOUCAULT, 2011, p. 241). Por tanto as manifestações massivas
feministas e LGBT+, representadas na Argentina pelo movimento laços verdes, e no
Brasil pela #elenão bem como pelas marchas de diversidade sexual ou paradas gay que
levaram às ruas milhões de argentinos (as) e brasileiros (as) como forma central de
resistência ao avanço neoconservador e neoliberal, em defesa da democracia e dos direitos
humanos.

O direito passa a existir quando é exercido, e exercido por aqueles que agem
unidos em aliança. (...) quando populações se unem, sem a proteção da lei e
sem permissão para se manifestar, com o objetivo de derrubar um regime legal
injusto ou criminoso, ou para protestar contra medidas de austeridade que
destroem a possibilidade de emprego e de educação para muitos (BUTLER,
2018, p. 90).

As manifestações sociais e a defesa de um estado democrático frente a um avanço


neoconservador autoritário é a luta pela construção de um espaço social livre de violência,
livre do constrangimento sistemático à autonomia, assim como das desigualdades que
potencializam as vulnerabilidades e a subordinação em especial, ainda que não somente,
de corpos femininos ou feminilizados não heterossexuais.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pois bem, frente a todo o exposto, resta clara a invisibilidade dos lesbocídios e violências
perpetradas contra corpos feminilizados não heterossexuais, empobrecidos e racializados
no Brasil e na Argentina. A existência e persistência em tempos de suposta paz neoliberal

17
Tradução livre, do original: “La raza y el género, como expliqué, son creaciones históricas para la
dominación, funcionales para la extracción de valor no reconocido, no remunerado – una plusvalía racial y
patriarcal” (SEGATO, 2018, p. 59).

16
nos Estados coloca em cheque as teorias democráticas vigentes, ressaltando ainda a falha
na construção de defesa dos direitos humanos nesses países.

A reivindicação que emerge daí é pela construção de um caminho político feminista de


defesa aos direitos humanos, justiça e democracia, capaz de compreender os limites dos
debates clássicos, que se destacam frente aos casos de lesbocídios, ressaltando que mesmo
os Estados ao assumirem a responsabilidade de prevenção e punição dessas violências,
são simultaneamente agentes promotores da mesma.

As intersecções entre gênero, sexualidade, classe e raça presentes nos lesbocídios e as


dificuldades de consolidação de um debate político capaz de estabelecer uma legislação
em direitos humanos que alcance a complexidade do delito, reforçando as características
de um estado democrático em decorrência das pressões neoconservadoras. É assim tema
central ao debate político contemporâneo que vise apontar e defender uma nova
linguagem política contemporânea e a articular uma democracia radical.

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