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Bibliografia
ISSN 2178-4787
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Anales (textos completos) del VI Coloquio Internacional de Estudios sobre Varones y Masculinidades
Recife: UFPE; IFF/Fiocruz; Instituto PAPAI, 2019
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SUMÁRIO
MASCULINIDADES, HOMENS E VIOLÊNCIAS: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS PARA
TENSIONAR E DESNATURALIZAR ESTA RELAÇÃO | Ana Luíza Casasanta Garcia;
Adriano Beiras ...............................................................................................................................9
A NOIVA: “MITO, COR E IDENTIDADE” | George André Pereira de Souza; Lorrayne Bárbara
Ferreira do Nascimento; Antônio Carlos Ribeiro Vieira ........................................................... 21
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Resumo
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Introdução
Em razão das inquietações iniciadas em uma pesquisa que busca analisar as narrativas utilizadas
para legitimar a agressão cometida pelos homens autores de violência, este estudo buscou realizar
reflexões críticas sobre o lugar dos estudos de masculinidades contemporâneos no campo da
violência contra mulheres e ações de reflexão grupal com homens autores de violência.
Percebemos, ao revisar a literatura do campo que tem sido usado constantemente o campo de
masculinidades (focado principalmente no conceito de masculinidade hegemônica) e também
conceitos teóricos dos estudos de gênero pós-estruturalistas. Sabemos que estes dois campos
partem de perspectivas epistemológicas diferentes, no entanto percebemos que ambas trazem
conceitos e reflexões uteis para a prática reflexiva no campo da violência masculina.
Neste texto buscaremos expor alguns conceitos e questões teóricas que entendemos como
importantes para o campo da violência masculina contra mulheres, cientes dos tensionamentos
entre eles. Não temos a intenção de resolver estes tensionamentos e sim problematizar
ferramentas possíveis no campo, leituras diferentes, como discursos que se atravessam ou não,
mas que dizem de um mesmo objeto e permitem analisar e propor estratégias de mudanças e
avanços no campo. Assim, primeiramente se discorre a respeito dos estudos sobre as
masculinidades e em seguida se apresentam os estudos de gênero pós-estruturalistas e violência
de gênero, para dar suporte às reflexões críticas que este estudo almeja apresentar.
Essa comparação entre os sexos demonstra a desigualdade existente entre os dois. Sobre as origens
e justificativas dessa disparidade, há aquelas de cunho biológico e as que interpretam a
desigualdade como sendo um fenômeno cultural (CASTILLO; OLIVEIRA, 2005). Partindo
desse pressuposto, existe uma série de posturas vistas como “apropriadas” para homens e
mulheres, definindo o conceito de masculinidade. Neste sentido, dentre os questionamentos
disparadores dos estudos sobre masculinidades, se encontram aqueles destinados a indagar o que
deve ser um homem e o que se espera deles em uma sociedade. Qual são as definições sociais do
masculino e feminino? Quais lugares de poder assumidos por cada um? O que isso afeta na
dinâmica social? (MORENO, 2016).
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“estudos sobre as masculinidades”, pois “los estudios sobre los hombres equivalían al estudio de
la literatura, la filosofía, las ciencias políticas o la historia, etc., ámbitos en los que las mujeres
habían sido prácticamente excluidas” (KIMMEL, 2008, p.15). Entendemos que nestas questões
os estudos de masculinidades nas últimas décadas dedicaram-se a dar respostas e este caminho
nos auxilia contemporaneamente a entender processos de violência e de construção de uma
hegemonia e dominação do masculino sobre o feminino, as quais justificam e dão legitimidade a
atos violentos, por vezes considerados comuns e normais para a construção da sociedade atual,
da tradição e da diferença entre gêneros.
Faz-se referência ao feminismo neste contexto em razão do papel fundamental que ele exerceu
em dois sentidos: em primeiro lugar, este movimento pôs à tona o gênero, bem como a categoria
mulheres. Em segundo lugar, devido aos questionamentos feitos por homossexuais e
afrodescendentes que fizeram com que a homofobia e o preconceito racial fossem reconhecidos
como “princípios organizadores do masculino”. (KIMMEL, 2008, p.16).
Pautada nesse quadro, Kimmel (2008), nos anos 1990, identificou três modelos que justificariam
as diferenças entre homens e mulheres: o modelo biológico, o modelo antropológico e o modelo
de socialização. O modelo biológico diz respeito à atribuição das diferenças de comportamento
pelas diferenças biológicas entre os corpos. O modelo antropológico analisa as diferenças
culturais entre homens e mulheres. E, por fim, o modelo de socialização condiz com o estudo de
como os meninos e as meninas foram adaptados a seguirem os padrões esperados de
comportamento de cada sexo.
Mas, a que características se referem estes conceitos? Mediante essa problemática, Connell (1997)
aponta que o conceito de masculinidade parece ser um produto histórico bastante recente, com
no máximo cem anos. Quando falamos de masculinidade, para esta autora, estamos fazendo
gênero, de uma forma culturalmente específica, desde o nosso ponto de vista cultural. Neste
sentido, se estabeleceram quatro enfoques principais no que se refere a definição do conceito de
masculinidades: definições essencialistas, positivistas, normativas e semióticas. Partindo desse
pressuposto, as definições essencialistas consideram que há uma essência que define o que é
masculinidade e é este ponto que os críticos a classificam como débeis, na medida que faz com o
que a visão de homem e de mulher seja arbitrária.
A visão positivista define a masculinidade como “o que os homens realmente são”, considerando,
em especial o conjunto de seus comportamentos. Connell (1997) aponta que este pensamento
seria a base mais lógica das escalas de masculinidade/feminilidade em psicologia, porém existem
três dificuldades deste modelo: em primeiro lugar, dado que a epistemologia reconhece uma
definição a partir de um ponto de vista, não existem descrições neutras. Logo, elas sempre estarão
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apoiadas por atribuições sobre o gênero. Segundo, listar o que fazem homens e mulheres, requer
que eles já estejam inseridos em categorias de homens e mulheres. E, terceiro, definir a
masculinidade como “o que os homens empiricamente são” parte do pressuposto de que quando
chamamos algumas mulheres de mulheres-masculinas ou alguns homens de homens-femininos,
desconsideramos quem realizam os comportamentos.
Tais enfoques, de modo geral, relevam como são justificadas a prevalência do masculino sobre o
feminino, o que, por sua vez, nos auxilia a entender com a violência masculina é sustentada,
desde justificativas biológicas até normativas. Isto, por sua vez, pode sustentar e disseminar a
violência contra mulheres, na medida em que a violência também é “um grande problema
envolvendo a justiça de gênero” (CONNELL, 2014, p.6) e a prevalência do masculino sobre o
feminino nestas maneiras de se compreender gênero releva uma prática de exclusão social, e este
movimento se torna uma ação que destrói ou danifica corpos (CONNELL, 2014).
Ainda sobre o campo da violência, estes aspectos teóricos discutidos acima permitem entender
justificativas de homens diante de atos violentos, realizando um movimento de manutenção de
seu status quo. Frases como “Os homens são assim”... todos os homens fazem isso... o homem é
biologicamente violento... o homem busca outras mulheres porque está em sua natureza...” são
usadas para justificar e estabilizar atos violentos construídos historicamente a partir de uma lógica
de essencialismos e diferenças de gênero. Entender o campo de masculinidades neste sentido de
como os homens são construídos, se tornam homens e suas bases e pilares de estabilidade nos
auxilia a pensar estratégias de intervenção que possam dar visibilidade a esta construção e suas
contradições e variabilidades.
O terceiro enfoque, por sua vez, se centra nas definições normativas. Tais definições partem da
ideia de que existem diferenças entre homens e mulheres e oferecem o modelo de que
masculinidade seria o que os homens deveriam ser, se respaldando em padrões normativos
(CONNELL, 1997). Por fim, os enfoques semióticos definem a masculinidade mediante a um
sistema de diferença simbólica onde se encontram o masculino e feminino. Masculinidade, desta
maneira, seria o não-feminino. Enfocando o discurso que estabelece o que é ou não é masculino
e feminino, esta definição tem sido muito efetiva para a análise cultural, já que ela por si só, seria
uma prática de exclusão e inclusão social de gêneros (CONNELL, 1997).
Com relação à produção científica destinada aos estudos de masculinidades, Medrado & Lyra
(2003) apontam quatro matrizes de análise sobre os estudos dos homens e masculinidades no
campo de saúde. Adotando o “gênero” como categoria analítica, a produção, apesar de se
basearem em referenciais diferentes, tem como objetos: 1. A organização social das
masculinidades em suas “inscrições e reproduções” locais e globais; 2. A compreensão do modo
como os homens entendem e expressam “identidades de gênero”; 3. As masculinidades como
produtos de interações sociais dos homens com outros homens e com mulheres, ou seja, as
masculinidades como expressões da dimensão relacional de gênero (que apontam expressões,
desafios e desigualdades); 4. A dimensão institucional das masculinidades, ou seja, o modo como
as masculinidades são construídas em (e por) relações e dispositivos institucionais.
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Os primeiros estudos sobre masculinidades criticaram o “papel sexual masculino” e teve como
proposta um modelo de masculinidades em múltiplas relações de poder. Baseando-se no termo
gramsciano de “hegemonia”, a masculinidade hegemônica, por sua vez, utiliza dessa lógica para
fazer um paralelo com as relações de gênero e a masculinidade hegemônica foi compreendida
como uma série de práticas (coisas realizadas, não somente a desenvoltura de papéis ou
identidades) as quais possibilitaram que a dominação por parte dos homens continuasse a se
difundir na sociedade (CONNELL, 2013). Distinta das outras masculinidades, em especial das
masculinidades subordinadas, a masculinidade hegemônica não se definiu na normalidade. Ela
é compreendida como o que é correto, o que é idealizado e hegemônico relativo a um ideal
masculino, a uma estrutura. Nesse sentido, diferentemente do que o pós-estruturalismo de análise
de gênero entende como norma, ela é um modelo, que geralmente os homens adotam, que ocupa
uma posição de hegemonia de um modelo dado pelas relações de gênero e repleta de exigências
que pretendem que os homens se curvem a ela e que legitimem a subordinação feminina. Apesar
disto, a hegemonia não significa, necessariamente, ações violentas, por mais que seja sustentada
pela força. Ela significa, dessa forma, “a ascendência alcançada através da cultura, das instituições
e da persuasão” (CONNELL, 2013).
A partir desta terminologia, diversas pesquisas receberam suporte para dialogar a respeito das
atribuições dadas ao sexo masculino e das diversas formas que o homem pode manifestar sua
masculinidade. Há, desta maneira, existência de diversos tipos de masculinidades que consistem
em práticas realizadas no tecido social, diferenciando-se de acordo com as relações de gênero,
imersas em uma trama social individual (CONNELL, 2013).
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a partir das normas presentes nos discursos, logo, a pluralidade das masculinidades constituem-
se em categorias vazias, nas quais está inserida a diversidade. Aqui, a ação sociológica da estrutura
de gênero é entendida como individual (CONNELL, 2014).
Trabalho, economia, violência, identidade e raça são algumas esferas onde as masculinidades se
sustentam. No trabalho, espera-se que os homens sejam responsáveis e provedores do lar. Isso,
no entanto, faz com que “las dificultades para obtener seguridad y permanencia laboral en una
proporción de la población de hombres lleva consigo la movilidad de muchos de ellos, con la
consecuente ausencia en la familia por períodos largos” (Rodríguez & Vázquez, 2008, p. 88).
Além disso, as atribuições de gênero também afetam a economia, pois “traducidas en mandatos
como el de proveedor, empiezan a tener dificultades al no poderse cumplir cabalmente porque
las condiciones estructurales de la economia no lo favorecen” (RODRIGUEZ; VÁZQUEZ, 2008,
p. 89).
Mediante esta lógica, cabe aqui discorrer a respeito da justiça de gênero que coloca homens em
cargos de poder e produzem hierarquias de riqueza e pobreza. Isto, por sua vez, tem sido tema de
vários conflitos ao longo das últimas décadas, “abarcando as práticas da maioria dos movimentos
feministas em todo mundo, que envolvem maior pluralidade e inclusão social” (CONNELL,
2014, p.9). Ainda, cabe aqui ressaltar que justiça em relação a inclusão social não é a mesma coisa
que equilibrar a distribuição de recursos materiais ou afirmar a igualdade de direitos entre os
gêneros, já que pessoas incluídas socialmente não tem as mesmas necessidades o tempo todo. É
preciso, portanto, critérios de justiça que diminua a desigualdade e controle da riqueza e do acesso
à renda e à habitação por parte dos homens (CONNELL, 2014). Em acréscimo, tem-se que a
violência contra mulheres se encontra no âmbito da desigualdade da dinâmica social que
privilegia o masculino. Nesse sentido, a violência “integra, portanto, uma arena que compõe o
conflito de justiça e injustiça no âmbito de inclusão social” (CONNELL, 2014, p.6) e se encontra
em múltiplas dimensões das questões de gênero.
Ainda sobre o âmbito da violência, uma vez que se tem a imagem de que uma pessoa do sexo
masculino deveria ser viril e forte, tais atribuições sustentam um lugar propício para que haja a
violência contra a mulher, pois muitas das vezes, o homem manifesta atos violentos para reafirmar
a figura de virilidade. Por outra parte, as mulheres também reproduzem e exercem tal violência
contra elas e contra outras mulheres, a fim de legitimar o poder e a norma de gênero
(RODRIGUEZ; VÁZQUEZ, 2008). Esse movimento consiste na configuração da “identidade”.
A identidade masculina está associada ao “macho”: “una figura anclada al esencialismo, a una
concepción arbitraria, y que puede estar basada en la valentía, la virilidad, el carácter y el control
sobre las mujeres y también sobre otros hombres” (RODRIGUEZ; VÁZQUEZ, 2008, p.93). Por
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fim, a raça muito tem a ver com as masculinidades, já que diferentes raças exercem domínio e
poder sobre outras, configurando imagens e reproduzindo a normatividade (RODRIGUEZ;
VÁZQUEZ, 2008).
É visto, portanto, que o estudo sobre conceito de masculinidade hegemônica e os estudos sobre
masculinidades são úteis no campo da violência masculina contra mulheres, visto que tais
modelos, ao questionar a respeito dos modelos essencialistas associados ao masculino, colocam
em discussão o lugar do masculino e o lugar do feminino nas relações de poder entre os gêneros.
Isto, por sua vez, problematiza as relações de poder existentes entre os gêneros e dá ferramentas
para compreender de que forma a fabricação e a legitimação das masculinidades e feminilidades
imbricadas nas relações de poder entre os gêneros são performatizadas e disseminam a violência
de gênero contra a mulher.
Por intermédio das discussões das teóricas pós-estruturalistas, entende-se como sujeito aquele que
é constituído e produzido pelo poder e pelos discursos. Paralelo a este olhar, o “gênero” é
entendido como uma matriz discursiva binária que normativamente produz sujeitos posicionados
segundo essa norma. Este construto não é presumido pela sua materialidade, ou seja, não é
presumido pelo sexo biológico. Gênero e sexo, assim, são categorias distintas, que operam de
forma diferente (BUTLER, 1998).
Neste sentido, o corpo não é “sexuado” se a ele não for atribuído um sentido significativo, “um
corpo é estar exposto a uma modelagem e a uma forma social, e isso é o que faz da ontologia do
corpo uma ontologia social” (BUTLER, 2015, p.16). Neste processo, o gênero se encontra como
uma categoria relativa de convergência entre um conjunto de relações, cultura e história,
rompendo com as categorias de corpo, sexo, gênero e sexualidade e imerso em um processo de
ressignificação subversiva e de proliferação para além da estrutura binária masculino e feminino
(BUTLER, 2003).
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se o corpo para encontrar algo, para legitimar alguma coisa. Sim, nós temos um corpo, o conceito
de corpo, mas o uso do corpo, o “status” do corpo, isto depende do contexto social e histórico”
(SCOTT, 1990, p.10).
Desta forma, uma vez que os corpos são produzidos e performatizados a partir das normas e
relações de poder existentes na sociedade, este processo constitui sujeitos e causam efeito sobre a
prática social e sobre as relações de poder entre os gêneros, que pode produzir e repercutir a
violência de gênero contra mulheres, na medida que são impressos, nos corpos modelos, e
comportamentos esperados por cada gênero.
Nesse sentido, o homem pode também ser subjugado na sociedade em que vivemos. A partir do
momento que se espera que este não apresente sensibilidade frente às situações da vida e que
assuma um papel de valente e de proteção ante os seus, há o surgimento de “silêncios masculinos”
oriundos de uma depreciação e negação daquilo que se diverge do “ser homem” e ter “um ponto
de vista masculino” na sociedade (NÚÑEZ NORIEGA, 2008).
Violência de gênero
Tanto os homens como as mulheres sofrem de violência de gênero. Frente às atribuições sociais
esperadas a serem exercidas por homens e por mulheres, os comportamentos configurados como
“desviantes” aos padrões, são subjugados, questionados e, por vezes, extremamente rechaçados.
Entretanto, os sexos sofrem a violência de formas diferentes. Enquanto os homens tendem a
serem vítimas de violências por parte do espaço público, as mulheres, predominantemente,
sofrem a violência doméstica. Isto, por sua vez, remete a uma problemática em questão:
considerando que frequentemente a violência contra a mulher é exercida em uma esfera
doméstica, muitas das vezes ela é socialmente tolerada e escondida pela vítima, em prol da
sacralidade da instituição familiar (OLIVEIRA, 2012).
Na declaração 48/104 da “Assembleia Geral das Nações Unidas” sobre a eliminação da violência
contra a mulher (adotada em 20 de dezembro de 1993), em seu segundo artigo, a violência de
gênero foi conceituada como aquela que abarca os seguintes atos, sem se limitar a eles: a) violência
física, sexual e psicológica que se produz na família, incluindo maus tratos, o abuso sexual de
meninas no lar, a violação pelo marido, os atos de violência perpetuados por outros membros da
família e a violência relacionada com a exploração; b) a violência física, sexual e psicológica
perpetuada dentro da comunidade em geral, a violação, o abuso sexual, o mau trato psicológico
e as intimidações no trabalho, em instituições escolares e em outros lugares, o comércio ilegal de
mulheres e a prostituição forçada; c) a violência física, sexual e psicológica perpetuada o tolerada
pelo Estado, em qualquer lugar que ocorra (RODRIGUÉZ, 2001).
Segundo Smigay (2002) a violência de gênero é, portanto, resultante de um sistema de poder que
delimita privilégios. Ao analisarmos os modelos de intervenção de violência, segundo a autora, é
possível estabelecer 3 recortes: 1. Perspectivas clínicas, onde o foco é no sujeito psicológico e em
como ele sofre; 2. Perspectivas psicoeducativas, onde o foco paira nas condutas disfuncionais ou
desviantes; 3. Perspectivas feministas, em que o foco está no sujeito político.
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Compreendendo que a dominação masculina é o ponto chave para entender a violência na esfera
privada, a perspectiva feminista analisa a violência como um cenário onde os membros são
atingidos de uma forma diferente. Neste contexto há a socialização de gênero onde os homens
sustentam o modelo da “virilidade triunfante” e algumas mulheres, em decorrência da imersão
cultural ainda patriarcal, justificam e se colocam em submissão. No entanto, apesar de submeter-
se à violência, o vitimado não é passivo, pois aciona estratégias de resistência e de contrarreação,
admitindo que suas perdas são mais onerosas que as do dominante (SMIGAY, 2002).
Considerando os estudos apontados, pode-se perceber o quão importante eles são para as
reflexões críticas acerca da violência contra mulheres. De um lado, os estudos pós-estruturalistas
de análise de gênero, ao considerar que o sujeito é constituído por meio da repetição de normas
que imprime nos corpos modos de ser e estar, auxilia para que sejam postas à tona questões
referentes aos binarismos, heteronormatividade, corporeidade, opressões e aspectos relacionais
políticos que nos fazem refletir sobre com o gênero, com seu caráter performático, regula os
corpos e comportamentos que auxilia para haja a violência contra as mulheres. Por outro lado,
os estudos sobre masculinidades, por se remeterem a ideias sobre uma “identidade”, “posições”
e “atribuições sociais” ao masculino e complementarmente ao feminino nos auxilia a
compreender como foram historicizadas as categorias “homem” e “mulher” e como elas
delimitaram e delimitam verdades, padrões e normas que constituem, a todo o momento,
subjetividades.
Em complemento, é possível pensar que estas teorias apreendem a realidade sem a necessidade
da criação de estereótipos ou identidades fixas. Dessa forma, entendemos estas duas teorias como
discursos possíveis de entendimento e inteligibilidade para compreender a construção da
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violência e suas relações com o masculino. Apesar da existência de tensões relativas às diferenças
conceituais e teóricas das duas teorias, acreditamos que é possível produzir diálogos e conexões
em diferentes pontos, ações e intervenções para problematizar a construção da masculinidade e a
produção de violência contra mulheres a partir do processo de subjetivação dos corpos adestrados
socialmente. Além disso, acreditamos que tais teorias refinam o olhar do pesquisador, destacando
como a produção de sujeitos dentro e fora da norma promovem e sustentam a violência de
gênero. Em complemento, destacamos a contribuição destas teorias na interpelação com o fazer
cientifico atual, já que compreendem a sociedade em sua complexidade, cheia de inquietudes,
desigualdades e contradições. Além disso, têm-se que estudar gênero seria também estudar como
o sistema sexo-gênero opera nos sujeitos definindo, desde o nascimento, a expectativa de
comportamento masculino que pode configurar identidades, subjetividades, práticas, relações
sociais e violência de gênero (NÚÑEZ NORIEGA, 2008).
Por fim, enfatizamos que nossa intenção neste trabalho foi convidar a uma reflexão, sem a
intenção de respostas acabadas, mas sim movimentos que possam lançar luz a aprimoramentos e
aprofundamentos teóricos no campo, de forma a avançar no combate a violência contra mulher
e na transformação das relações de gênero em nossa sociedade. Em complemento, evidencia-se a
importância de se teorizar a respeito das múltiplas masculinidades e sobre a regulagem dos corpos
por intermédio das normas sociais a fim de problematizar sobre o que é ser homem e ser mulher
na sociedade em que vivemos, o que é violência de gênero e como a construção simbólica dos
gêneros se relaciona com a violência contra mulheres.
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O filme Kill Bill do diretor Quentin Tarantino retrata a história de uma mulher em busca de
vingança, poderia ser só mais um filme do gênero, porém a obra vai além, com um trabalho de
imagens, sons, cores e uma narrativa que levou a peça a outro patamar. Para Tonguette:
A personagem sem nome de Uma Thurman não faz nada de errado sob os olhos de Tarantino; a
criação conjunta por Tarantino e Thurman da personagem principal – denominada "A Noiva"
porque foi espancada e dada como morta pelo onipresente Bill (David Carradine) e por seus
capangas no dia do seu casamento – confirma, ao menos para aquele que escreve estas linhas, a
posição decisivamente feminista deste filme.
Podemos dizer que o posicionamento do diretor, fez de Kill Bill e em especial da Noiva um ícone
feminista, afirmando que a mulher pode e deve ocupar qualquer papel no cinema mundial. Nossa
meta será mostrar como a obra constrói este ambiente feminista, bem como o diretor construiu
na obra uma imagem inovadora do feminino, utilizando uma análise de imagem, cor e narrativa.
O trabalho será feito através de pesquisa bibliográfica e documental, tendo como base a psicologia
dos arquétipos e da ideia de animus e anima de Carl Jung, estudos de semiótica de Michel
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Iremos explicar como a obra, através de vários pontos, realiza o aproveitamento ao máximo do
personagem feminino, mostrando a importância de uma obra que realize a inserção dos aspectos
das mulheres além dos clássicos clichês, e trazer o tema com o intuito de instigar o leitor à visão
semiótica da construção da imagem do feminino como poderoso e libertário, demonstrando
assim como o cinema ainda estar tomado por uma visão machista que limita o espaço para o
gênero.
Tarantino possui muitos trabalhos junto ao cinema, todavia, diversificou muito as suas funções.
Traz de uma maneira construtiva ideias que fazem a obra ter características que a tornam peculiar,
diferenciada, e consequentemente interessante. Kill Bill, a obra em análise, demonstra seu
diferencial em pontos como o uso das cores e a relação existente a referenciar a outras obras e
gêneros. Além de trabalhar com uma simbologia nas características dos personagens, exaltando a
figura feminina. A análise de imagens simbólicas nesse filme enaltece o perfil mítico dos
personagens. Segundo Carl G. Jung:
Do inconsciente emanam influências determinantes, as quais, independentemente da
tradição, conferem semelhança a cada indivíduo singular, e até identidade de experiências,
bem como da forma de representá-las imaginavelmente. Uma das provas principais disto é o
paralelismo quase universal dos motivos mitológicos, que denominei arquétipos, devido à
sua natureza primordial. (JUNG, 2000, p.71)
Para Jung, os arquétipos são um repertório de imagens e temas comuns à experiência humana
que se manifestam de forma simbólica no inconsciente coletivo. O arquétipo é uma história, uma
narrativa (MARTINO, 2009). Ele define um dos arquétipos como anima/animus, que são
aspectos inconscientes de um indivíduo. O inconsciente do homem encontra expressão como
uma personalidade interior feminina: a Anima; e no inconsciente da mulher, esse aspecto é
expresso como uma personalidade interna masculina: o Animus.
A ideia de Identidade Cultural foi criada pelo teórico jamaicano Stuart Hall. O texto aponta para
o passado e descreve antes de problematizar as novas questões. Quem o lê pode tratá-lo como
uma caixa de ferramentas contendo categorias a serem usadas em diversos momentos, sobretudo
para situar a preocupação contemporânea com a identidade.
Identidades modernas estão sendo "descentradas", isto é, deslocadas ou fragmentadas. Seu
propósito é o de explorar esta afirmação, ver o que ela implica, qualificá-la e discutir quais
podem ser suas prováveis consequências. (HALL, 1991, p.1)
Ele classifica inicialmente a identidade em três tipos de sujeito: sujeito do Iluminismo: pessoa
humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado; o sujeito sociológico é uma pessoa
que se molda através das relações com outras pessoas importantes para ele, que mediavam para o
sujeito os valores; e o sujeito pós-moderno, não possui uma identidade fixa, essencial ou
permanente. Tornasse móvel formada e transformada continuamente. (HALL, 1991). Com a
ideia exposta podemos identificar que cada sujeito possui uma subjetividade que vai nortear o
consumo, e que vai ser norteado pelo mesmo consumo isso se dá devido ao grande volume de
conteúdo que a modernidade tardia trouxe para a vida da sociedade humana.
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O sujeito pós-moderno é apontado por Hall como o produto de grandes avanços nas teorias
sociais e nas ciências humanas, ele utiliza cincos pontos como referência para construção do
descentramento do sujeito pós-moderno, são eles: o pensamento marxista, a descoberta do
inconsciente por Freud, os estudos de Saussure e de Foucault e, por fim, os movimentos sociais
e revolucionários da era moderna. Conforme Maria V. da Costa:
O primeiro trata da impotência do homem diante de sua realidade; dependente das decisões
de seus antepassados. Freud contribui com sua descoberta do inconsciente, trazendo à
discussão a ideia inovadora de construção da identidade à partir das experiências vividas e
das relações inconscientes. Saussure e Foucault são responsáveis por um “descentramento”
na questão linguística e social. Saussure mostra-nos que a linguagem é algo preexistente ao
indivíduo, e, por isso, ele é obrigado a incorporá-la, aceitando suas regras de significação
através de um repasse cultural. (COSTA, 2007, p.81.)
As ideias de Saussure no campo da semiologia trazem uma nova leitura aos signos linguísticos:
Saussure, que consagrou a sua vida a estudar a língua, partiu precisamente do princípio de
que a língua não era o único sistema de signos que exprima ideias do qual nos servimos para
comunicar. Imaginou por isso a semiologia como uma ciência geral dos signos, inventar, e no
seio da qual a linguística, o estudo sistemático da língua, teria a primazia e exerceria o seu
domínio (JOLY, 2002, p.33.).
Já os estudos de Foucault são voltados para a análise do controle exercido pelas instituições
sociais, com seu “poder disciplinar” sobre as ações do homem. Sendo assim, ambos concordam
com o fato de que somos seres culturalmente condicionados (HALL, 2001).
Na obra “As palavras e as coisas” publicada em 1966, mostra a ciência da filosofia por Michael
Foucault, Segundo Martino:
As duas categorias não existem separadas: há um binômio saber-poder. Na medida em que o
conhecimento leva a ação – afinal, é necessário decidir o que fazer -, não existe ação possível
sem um saber específico que explique e dê uma estrutura a essa ação. Sem conhecimento
específico não há ação possível. (MARTINO, 2009, p.149)
Esta relação que Foucault faz entre saber e poder, explicado no livro Teoria da Comunicação: Ideias,
conceitos e métodos, assim como a comparação que ele faz com palavras e as coisas, imagens e
conceitos em suas obras se faz um paralelo com o que Tarantino usa na obra, com o objetivo de
analisar as cores em relação aos sentimentos, momentos e caracterização de personagens.
Especificamente no capitulo Las Meninas, destaca a importância das cores e suas intensidades,
dando assim sensações e mais importância a certa parte da obra. No caso, seria a parte central
aonde se encontra a garotinha, que Foucault analisa desde o início da obra de Velásquez até os
pontos mais sórdidos; o efeito de luz que é dado e o direcionamento de tal que fazem com que a
pintura consiga ser analisada com outros olhos.
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avaliação da qualidade das obras, nem tem pretensão. Um determinado filme, por exemplo, pode
cumprir os três requisitos e seguir sendo sexista ou misógino”. Ele foi criado por Alison Bechdel
em uma história em quadrinhos dos anos 80, que discorreu sobre a forma como as mulheres são
retratadas no cinema.
Em Kill Bill, a protagonista, Beatrix Kiddo (Uma Thurman), é uma mulher em busca de justiça. O
filme foi dividido em duas partes: Volumes 1 e 2. Bill (David Carradine) é o organizador de um
grupo de elite denominado Esquadrão Assassino Víboras Mortais, DIVA. Todas as "víboras"
possuem um codinome que se refere a alguma serpente venenosa, sendo a mais mortal de todas,
Mamba Negra (Beatrix, personagem de Uma Thurman), ex-namorada de Bill, também chamada
de A Noiva. No dia do ensaio para a cerimônia de seu casamento; A Noiva, grávida, é vítima de
um ataque de Bill e das "víboras", que acreditam tê-la matado. A Noiva não morre, mas entra em
coma profundo. Quatro anos depois, ela acorda e decide se vingar de Bill e de cada um de seus
comparsas assassinos. Após exterminar suas ex-companheiras O-Ren Ishii (Lucy Liu) e Vernita Green
(Vivica A. Fox) em Kill Bill, A Noiva ainda possui mais dois inimigos na sua “Lista da Morte” -
Budd (Michael Madsen) e Elle Driver (Daryl Hannah) - antes que ela possa partir para seu objetivo
final: matar Bill.
Em Kill Bill, A Noiva, ex-componente de um grupo de extermínio, liderada por Bill – seu mestre
e namorado- descobre estar grávida, e foge para o Texas; ao passar do tempo iria se casar, mas Bill
a visita e atira contra sua cabeça, deixando-a em coma. Passado o tempo, acorda e não vendo mais
o filho no ventre, entra numa busca incessante para encontrá-lo, passando por cima de tudo e
todos. A personalidade anima se expressa na figura da personagem como mãe, o sentimento
feminino no inconsciente da personagem é que a encoraja a matar pessoas, buscar informação,
passar por diversos obstáculos em busca do filho tirado de seu ventre. Assim como a ressurreição,
representada pela saída do coma, transportando o personagem do seu mundo comum (o qual,
no caso da Noiva, predestinada a casar e construir sua família) a um caminho especial, em busca
do seu objetivo.
A Noiva possui a chance de recomeçar tudo de novo, tentando alcançar as suas metas de vida, ou
seja, o casamento e a maternidade; mas ela decide seguir outro caminho, o da vingança,
carregando consigo a fúria, a violência, percorrendo uma estrada escura, sem luz, sem sinalização,
sem direção. Articular a característica do arquétipo animus a esta personagem é válido ao pensar
na mulher forte frente à luta, tanto no fato de A Noiva vestir a armadura de guerra em busca do
seu referencial, quanto pensar no filme como uma obra em que as mulheres são fortes,
articulosas, habilidosas e dentro do âmbito da luta física, já que o grupo de assassinos ‘Víboras
Mortais” era composto por lutadoras e assassinas mulheres. Apenas o líder da organização, Bill,
era homem; podendo relacionar como sendo a voz do inconsciente do grupo nas mulheres,
ressaltando a “parte masculina” no inconsciente feminino que define o animus. Sente-se
fragmentos de anima/animus na mesma personagem, se observando suas características; como
Jung destaca para esse arquétipo:
Voltada para fora, a anima é volúvel, desmedida, caprichosa, descontrolada, emocional, às
vezes demoniacamente intuitiva, indelicada, perversa, mentirosa, bruxa e mística. O animus,
pelo contrário, é rígido, cheio de princípios, legalista, dogmático, reformador do mundo,
teórico, emaranhando-se em argumentos, polêmico, despótico. (JUNG, 2000, p.129)
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Ainda na questão dos arquétipos, analisa-se na obra o endeusamento da mulher. Segundo a teoria
junguiana: as deusas são arquétipos, fontes derradeiras de padrões intuitivos, emocionais, que
fluem de nossos pensamentos, sentimentos, instintos e comportamentos, caracterizados e
tipificados como puramente “femininos”. A Noiva, por ter perdido seu filho, a sua felicidade,
sente-se amargurada e utiliza o sentimento de vingança para acertar as contas com Bill e com os
ex-companheiros. Adota o comportamento destruidor, sem pensar nas consequências de seu
desatino, assassinando várias pessoas, até chegar aos verdadeiros culpados. A Noiva se perde,
amargurada, desesperada, potencializada pelo seu lado agressivo e pelo desejo de vingança, bem
ao contrário do simbólico de uma noiva, do feminino. Para o animus vir para o consciente, ele
precisa ser reconhecido e assumir a posição de mediador entre o inconsciente e o consciente. A
Noiva, por exemplo, no estado de possessão do animus negativo se desestrutura, fazendo que siga
em frente, empunhando sua espada, fria como a lâmina de sua arma. Além disso, analisa-se
também por esse aspecto o fato de as deusas possuírem uma posição especial fazer relação à
posição das assassinas no filme; como também o fato de terem codinomes, o que também faz
referência à análise mítica.
Beatrix Kiddo, também conhecida por Mamba Negra, Arlene Machiavelli, A Noiva ou Mamãe. A
mulher que abandona tudo por amor, mãe que perdeu sua filha, a ronin sem honra em busca de
vingança ou o samurai que dá a morte honrada a seus inimigos, este são apenas alguns pontos
possíveis de ser apontado na personagem de Uma Truman em Kill Bill, essa fragmentação de
identidades é a estrutura do sujeito pós-moderno conforme Stuart Hall (1991) “A identidade
torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas
pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (HALL,
1991, p.13).
Os personagens femininos também passaram por este processo, com as mudanças sociais trazidas
pelo movimento feminista, apontado por Hall (1991) como um movimento que questionou a
noção de que os homens e as mulheres eram parte da mesma identidade, a "Humanidade",
substituindo-a pela questão da diferença sexual. O filme diferente da maioria passa com folga no
teste de Bechdel. Na obra temos seis personagens femininas de importância, com nomes próprios,
que mantém diálogos entre si e estes diálogos são sobre temas diversos; estes pontos podem
parecer sem relevância, porém, quando olhamos para a grande maioria dos filmes mundiais
muito poucos são os que passam, o que não é o caso de Kill Bill.
Voltando A Noiva e a ideia de fragmentação, na cena do despertar do coma vemos a “mãe”, este
fragmento da identidade do personagem é mostrado através da imagem composta pelo desespero
dela ao perceber seu ventre vazio na continuidade da cena, enquanto ela sofre uma tentativa de
estupro, a “guerreira” surge matando sem pena o violentador.
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Tarantino utiliza todas as ferramentas possíveis do cinema: imagens, sons e narrativa para criar
uma personagem feminina que leva o telespectador a uma composição de imagem totalmente
diferente do senso comum. Pensando através da semiologia de Saussure um dos cinco
descentramentos de Hall que para Matine Joly (2002) “Saussure descreveu-a como uma entidade
psíquica com duas faces indissociáveis, ligando um significante (os sons) a um significado (o
conceito) ”. (JOLY, 2002, p.33). Podemos apontar que signo linguístico dos nomes dela exerce
uma função de identificação de qual aspecto está presente no momento. Significante é à própria
pronúncia dos nomes e o significado é criado dentro da própria narrativa, um exemplo desta
utilização se encontra nos capítulos: capítulo 1: (2), aonde em narrativa durante primeira luta do
filme ela se auto apresenta com Mamba Negra, outro momento é no capítulo 5: Confronto na
Casa das Folhas Azuis, quando temos a grande batalha do primeiro filme, neste momento ela é
chamada por seu codinome Mamba Negra e diálogo com Gogo, jovem psicopata. Capítulo
6: Massacre em Two Pines, descobrimos que para seu noivo, ela tem o nome de Arlene, Capítulo
8: O Cruel Treinamento de Pai Mei, ela é a jovem Beatrix Kiddo. Assim demonstramos como a
personagem representa no filme o conceito de sujeito pós-moderno, essa ideia está representada
pelos elementos que indicam a influência e troca de identidades constantes. A Noiva vive uma
“personagem” com uma identidade temporária, que tem começo e fim. A cada novo “impulso”,
institui-se uma nova identidade que se transforma e se ajusta a acontecimentos posteriores, e que
também pode ser abandonada a qualquer momento e trocada por outra.
Como a construção dos arquétipos masculino e feminino que se apresentam no filme, transmite
a ideia de como os sentimentos de gênero se interligam na personagem principal. A exposição da
construção de uma psicologia de arquétipos na criação dos personagens em “Kill Bill”, transforma
o conceito da identidade feminina como construção da masculinidade.
Para Stuart Hall (2000), quando olhamos para questões de identidade, devíamos ter em mente:
“como nós temos sido representados”, “como essa representação afeta a forma como nós
podemos representar a nós próprios” (HALL, 2000, p.117). Assim tomando esta premissa dos
estudos de Hall podemos levantar o questionamento sobre como as representações do universo
da sétima arte influencia na construção da identidade de gênero, seja masculina ou feminina. O
que foi realizado no filme em questão serve como ferramenta de desconstrução de estigmas do
que é ser homem ou ser mulher tão bem propagado pelo cinema americano.
O filme se difere por apresentar a protagonista “A noiva”, como uma mulher que não apresenta
apenas o polo feminino em suas características, mas interliga com o sentimento masculino de seu
subconsciente. Diferente de outras obras cinematográficas, por exemplo, que criam uma “fórmula
pronta”, uma jornada para a personagem feminina; que geralmente apresentam apenas as
características de uma mulher, gerando assim, um tipo de segregação dos conceitos de
sentimentos e gênero.
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orientação sexual”, (HALL, 2002. p. 12). Se fizemos uma releitura desta citação podemos assim
coma a identidade negra é atravessada por outras identidades, as outras identidades são
atravessadas por um agregado de outras identidades inclusive a primeira. Então o balanço
constate entre os dois aspectos da teoria junguiana da protagonista da história afirma que todo
ser esta neste constante processo de atravessamento das identidades.
No cinema é muito comum a utilização de cores para dar força e intensidade na cena, um dos
diretores mais famosos que se utiliza deste artifício é Quentin Tarantino. No filme Kill Bill (2003,
2004) as estratégias de cores vão além do comum, fazendo analogia as pessoas e quadrinhos.
Assim temos presentes na obra, cores que representam sentimentos; feixes de luz chamando
atenção e transições iluminadas.
Com base em filmes de kung fu dos anos 70, Tarantino adota para a identidade visual de seu
filme o amarelo como cor predominante. Percebemos isso claramente, por exemplo, nos cartazes,
cenários, iluminação e na roupa de Beatrix Kiddo que foi inspirada na veste de um dos ícones dos
filmes de luta, Bruce Lee, usada no filme O Jogo da Morte, de 1978. Podemos lembrar que este foi
o último filme de Bruce Lee, e que, além disso, não foi finalizado devido à sua morte, este exemplo
mostra uma referência bastante clara, através da cor (o amarelo e as listras pretas). “Esta cor para
os japoneses representa a traição e o poder” (GALHARDO, 2004), esta colocação da personagem
utilizando a veste amarela em homenagem ao grande nome do cinema de arte marciais,
demonstra como o autor construiu através das cores a personagem como o ícone feminista.
Em Las Meninas, usasse de iluminações amarelas para chamar atenção por ser uma cor forte e
vibrante, como apontou Foucault, ele marca e chama atenção. Outro momento de citação do
amarelo é quando o monge, que aparece como recepcionista no início do confronto na Casa das
Folhas Azuis, traja uma veste desta cor com faixa preta em ziguezague na cintura, para ficar no
meio da personagem ou no meio do quadro de filmagem; dando assim o que Foucault chama de
ponto central. No caso das muitas cenas em preto e branco no filme, todas têm um estilo
diferente, criados a partir da iluminação e do tratamento de imagem. Pegamos como exemplo o
capítulo final do Volume 1. Nele, a sequência de luta contra os “88 Loucos” tem as cores
substituídas pelo preto e branco.
Mais do que um recurso estético, Tarantino relembra uma prática muito comum nos anos
70. Para que os filmes de kung fu passassem inócuos pela censura norte-americana, os
distribuidores faziam cópias em preto-e-branco das cenas consideradas mais violentas. A falta
da cor vermelha do sangue nas telas permitia que os filmes fossem aprovados e exibidos na
TV (VIEIRA, 2004).
Ironia ou não, a versão japonesa do DVD de Kill Bill traz essa cena toda a cores. Este é um
exemplo de como as referências de Tarantino necessitam de amplo conhecimento por parte do
expectador para que esse as perceba e entenda.
Temos também muitas cenas alaranjadas, um exemplo onde a presença da cor é de extrema
importância para caracterizar a referência. No início da cena de luta dos “88 Loucos”, é mostrado
um close-up dos olhos de Beatrix, seguido por um flashback laranja amarelado do massacre. Essa
cena é referência direta ao filme, A morte anda a cavalo (Da Uomo a uomo) de Giulio Petroni. É
uma situação na qual, caso não tivesse sido utilizada a cor, a referência não se caracterizaria
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claramente. Outra cena na qual o laranja aparece de maneira forte, deixando claro o gosto de
Tarantino pelas cores chamativas, é uma cena onde Beatrix sobrevoa um céu alaranjado. Ao
retomar o céu alaranjado presente no filme Goke é notório a preocupação com a iluminação que
dá realismo a uma cena extremamente imaginaria.
Assim concluímos que em Kill Bill, Tarantino nos revela uma bagagem cultural enorme, e
consegue nos mostrar de maneira fascinante. Ele demonstra extrema habilidade em costurar
referências, e o faz através de artifícios variados, dentre esses, o uso da cor. Fica evidente como as
cores podem ser utilizadas para fazer citações e como, em algumas situações, este recurso chega a
ser indispensável para expor as referências ao público de maneira clara. É um exemplo
interessante de uma estratégia de aplicação de cores sendo utilizada na fotografia de cinema, de
como a cultura pop é influenciada pelas transformações da sociedade pós-moderna, e como ele
consciente ou inconscientemente demonstra como nossa identidade se encontra fragmentada.
Finalmente, podemos dizer que todos elementos que compõe Kill Bill deixam claro que não se
trata apenas de um filme pop, de arte marcial de um faroeste, mas sim um filme sobre e acima de
tudo, em homenagem ao cinema pop e suas vertentes.
Referencial bibliográfico
MARTINO, Luís Mauro Sá (2009). Teoria Da Comunicação: Ideias, conceitos e métodos. São
Paulo : Editora Vozes,
JUNG, Carl G (2000). Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis: Vozes.
HALL, Stuart (2014). Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Brasil: Lamparina.
HALL, Stuart (2014). Quem precisa de identidade?. In: SILVA, Tomaz Tadeu. Identidade e
diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes.
JOLY, Martine (2002). Introdução à Analise da Imagem. São Paulo: Papirus.
FOUCAULT, Michel (2007). As Palavras e as Coisas. Brasil: Martins Editora.
ROLIM, Marcos. O teste de Bechdel. Disponívelem:
http://www.extraclasse.org.br/edicoes/2013/10/o-teste-de-bechdel/> acesso em: 29 de maio de
2016.
COSTA, Maria H. B. e V.. A Tensão Pós-Moderna no Cinema. Disponível em:
revistas.unisinos.br/index.php/ciencias_sociais/article/view/5650/2855> acesso em: 30 de
maio de 2016.
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Resumo. A violência é um dos temas mais polêmicos e recorrentes na mídia sobre futebol. Ela é
produzida na cultura e seus diferentes significados são construídos em um terreno de lutas por
significação. Em diversas narrativas sobre os confrontos entre torcedores existe certa tolerância
quando esses acontecem através dos cânticos e xingamentos. Os estádios de futebol podem ser
entendidos como uma tribuna de insultos. Se a violência física tende a ser praticada
eventualmente, a violência verbal está sempre presente nos espetáculos futebolísticos. Por sua
presença constante ela raramente é noticiada pela imprensa. Eventualmente, poderão ser lidas
como não violentas e produzindo, inclusive, um efeito catártico nos indivíduos. Neste espaço de
intensa atuação das pedagogias de masculinidades com fortes vínculos machistas e heterossexistas,
os gritos e ofensas são dirigidos a todos que participam do espetáculo esportivo: jogadores,
treinadores, árbitros, jornalistas e torcedores. Dentre os diversos conteúdos utilizados para essas
ofensas no contexto brasileiro, a homofobia e o racismo aparecem com protagonismo.
Entretanto, apenas as manifestações de caráter racista são entendidas como violência. A partir do
chamado “caso Aranha”, em que o então goleiro do Santos foi chamado de macaco por
torcedores do Grêmio durante a Copa do Brasil de 2014, ocorrido na Arena do Grêmio e da
punição da Fifa à seis federações nacionais por cantos homofóbicos, durante as Eliminatórias
para a Copa do Mundo de 2018, nos propomos a problematizar como essas manifestações são
entendidas a partir de diálogos realizados com torcedores de futebol nos estádios em dias de jogos.
Durante um ano conversamos com torcedores do Grêmio, antes das partidas realizadas na Arena
e escutamos o que eles pensavam sobre racismo e homofobia. As primeiras interpretações nos
permitem visualizar que os sujeitos são sensíveis as pautas antirracismo e anti-homofobia, mas em
muitos casos não reconhecem esses conteúdos nos cânticos, afirmando que os mesmos pertencem
a certa cultura de estádio. Com esse cenário seria possível falar em violência, homofobia ou
racismo nesses contextos?
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Em 28 de agosto de 2014, em partida válida pelas oitavas de final da Copa do Brasil, Grêmio
Foot-Ball Porto-Alegrense1 e Santos Futebol Clube2 se enfrentaram na Arena do Grêmio, em
Porto Alegre. Próximo ao final da partida, o goleiro da equipe paulista afirmou que torcedores
do Grêmio posicionados na Arquibancada Inferior Norte (setor com ingressos mais baratos e que
é destinado aos torcedores que assistem às partidas em pé e às torcidas organizadas) o chamaram
de “preto fedido” e “macaco”, além de fazerem sons de macaco em direção ao atleta. Ao ser
ofendido, o goleiro voltou-se para os torcedores e bateu nos braços afirmando “Sou preto, sim.
Sou negão, sim3”. O árbitro da partida, Wilton Pereira Sampaio, ao ser informado por outros
jogadores e pelos auxiliares deu uma reprimenda ao goleiro entendendo que este estava
provocando a torcida4. Ao final da partida o goleiro se manifestou: “Fiquei bem nervoso. Com o
perdão da palavra, fiquei p... Isso dói. Não é possível. Me chamaram de preto, de macaco. Bati
no braço e disse que sou preto mesmo, se eles consideram isso como ofensa5”.
No domingo seguinte, dia 31 de agosto de 2014, o Grêmio retornou a Arena para enfrentar o
Bahia pela 18ª rodada do Campeonato Brasileiro da Série A. A torcida Geral do Grêmio, da mesma
forma que fazia recorrentemente, inclusive na partida diante do Santos pela Copa do Brasil,
cantou grande parte de seus cânticos históricos em que a referência feita ao Sport Club
Internacional6, rival do Grêmio, era através dos termos “macaco” e sua derivação “macacada”. As
torcidas de Grêmio e Internacional cumprem o mesmo ritual de xingar os torcedores rivais da
dupla Grenal, mesmo quando os confrontos não incluem os dois adversários históricos. Essas
manifestações até então estavam ancoradas em sua permissividade historicamente construída.
Arlei Damo recorda que nos estádios “são permitidas certas manifestações que ordinariamente
não seriam toleradas, pois, assim como o templo é o lugar da prece, o estádio é a tribuna dos
insultos” (2014a, p. 25). Entretanto, ao contrário do apoio ou da adesão dos demais torcedores
presentes ao estádio aos cânticos entoados pela torcida, as manifestações oriundas da Geral foram
recebidas com vaias pelos demais torcedores. O então presidente do clube, Fábio Koff, suspendeu
a torcida pelos cânticos, lidos por ele como racistas, uma vez que o clube seria julgado na semana
seguinte pelos episódios ocorridos no confronto pela Copa do Brasil7.
1
De agora em diante nos referimos ao clube apenas como Grêmio.
2
De agora em diante nos referimos ao clube apenas como Santos.
3
Disponível em http://globoesporte.globo.com/futebol/times/santos/noticia/2014/08/racismo‐grupo‐de‐gremistas‐tira‐aranha‐do‐serio‐
sou‐negao‐sim.html. Acesso em 30/12/2014, às 15h36.
4
Ao final da partida, melhor informado, o árbitro alterou a súmula encaminhada ao Superior Tribunal de Justiça Desportiva em que relatava
o episódio.
5
Disponível em http://zh.clicrbs.com.br/rs/esportes/gremio/noticia/2014/08/aranha‐protesta‐contra‐ato‐de‐racismo‐na‐arena‐doi‐
4585928.html. Acesso em 02/01/2015, às 20h37.
6
De agora em diante nos referimos ao clube apenas como Internacional.
7
Disponível em http://globoesporte.globo.com/futebol/times/gremio/noticia/2014/08/koff‐ve‐cantos‐de‐macaco‐como‐ato‐proposital‐
que‐torcedor‐e‐esse.html. Acesso em 02/01/2015, às 21h02.
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Neste trabalho nos propormos a discutir diferentes modos como as manifestações verbais podem
ser entendidas nos estádios de futebol, privilegiando as percepções de torcedores presentes aos
estádios em investigação feita para tese de doutoramento em que, no intervalo de um ano,
dialogamos com torcedores nos dias das partidas para verificar a interpretação que esses atores
davam a diferentes episódios, incluindo certa restrição ao que poderia ser cantado ou não nas
praças esportivas. Nessa disputa entre permitido e proibido, violência ou manifestação
naturalizada nos interessa verificar como esses atores percebem essas manifestações nesse
contexto específico.
Para tentar responder nossas indagações, este texto está divido em cinco seções. Após essa breve
introdução, discutiremos algumas das interpretações sobre as diferentes formas de violência no
espetáculo esportivo, especialmente as que acontecem nos estádios de futebol. Depois,
pontuamos a importância que a socialização em estádios de futebol apresenta para a construção
de masculinidade dos sujeitos torcedores. Seguimos com as falas dos torcedores propriamente
ditas. Fechamos o texto com um pequeno diálogo tentando apontar caminhos interpretativos
que sempre poderão ser revisados e questionados.
8
Ver BANDEIRA; SEFFNER, 2016.
9
Disponível em http://www.correiodopovo.com.br/blogs/hiltormombach/2014/09/34422/aranha‐no‐pais‐do‐racismo‐
institucionalizado/?utm_medium=twitter&utm_source=twitterfeed. Acesso em 12/01/2015, às 19h19.
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A violência, como qualquer outro artefato cultural, não é um conceito essencial, fixo ou estável.
Nos estádios de futebol alguns cânticos e/ou xingamentos10 endereçados aos adversários ou às
torcidas de equipes rivais poderão ser chamados de violentos enquanto outros não receberão a
mesma adjetivação. Essa diferenciação não acontece apenas se examinarmos as manifestações dos
torcedores em dimensão histórica, ela acontece, também, se fizermos este exame num corte
apenas contemporâneo. Não há uma concordância definitiva acerca do que seja considerado
violento ou não em termos de cânticos e xingamentos e este é um terreno para sempre movediço
sujeito à ação de muitos atores.
A violência é um tema bastante recorrente e polêmico nas discussões sobre futebol. Diferentes
atores, que participam de discussões que vão desde as mesas redondas televisivas passando por
discussões acadêmicas, têm na violência um assunto de destaque e, eventualmente, de
legitimação. Se, por um lado, as eventuais agressões entre atletas poderão colocar jornalistas
esportivos em lugares diferentes na hora de defender se essas atitudes fazem parte do
enfrentamento esportivo ou não, por outro, a violência envolvendo torcedores, quase sempre
focados sobre os torcedores organizados, foi um dos temas que mais legitimidade possuiu, e segue
possuindo, para justificar investigações acadêmicas sobre o esporte mais popular do Brasil.
Dentre as ações nomeadas como violentas por diferentes atores envolvidos com o futebol, o que
alguns poderão chamar de violência outros poderão ler como parte do jogo. Para um atleta ser
agredido e não revidar poderia ser uma opção acertada para evitar sanções da arbitragem. Ao
mesmo tempo, aceitar a agressão poderia colocar a masculinidade viril desse mesmo atleta em
questão. Para os jornalistas esportivos, mas não exclusivamente, a única violência pautada sem
discussão é a que envolve torcedores de futebol. Se parte da lógica de que essa violência é
injustificável e que seus protagonistas são sujeitos não civilizados quase sempre tratados pela
alcunha de “violentos”11.
Nessa lógica, o próprio poder público designa um grande número de policiais para os jogos
impedindo, inclusive, que diversos eventos ocorram na mesma cidade simultaneamente para que
se possa garantir a segurança dos espectadores. A presença bastante equipada (cassetetes, bombas
de efeito moral, balas de borracha, cavalos e cães) dos policiais produz um cenário belicoso, onde
os confrontos físicos parecem estar sempre “potencialmente” presentes (TOLEDO, 1996). No
contexto futebolístico a violência a ser enfrentada constantemente é aquela que envolve
enfrentamentos físicos.
10
É uma tarefa bastante complicada conseguir distinguir o que é cântico do que é xingamento neste contexto. Essa ambiguidade decorre,
em grande medida, da forma como os diferentes atores interagem com o ambiente em que esses são produzidos e qual o lugar entre
profanadores ou profanados os diferentes sujeitos se encontrem.
11
Criticando essa leitura essancialista que critica o comportamento dos indivíduos que acabariam marcado através da alcunha de “violentos”,
José Garriga Zucal ilustra a forma como são comumente descritos por jornalistas ou pelas autoridades envolvidas na avaliação dos incidentes
que acontecem nos estádios de futebol: “Los que comenten actos violentos son señalados, demonizados, reprimidos y encarcelados ya que
sus acciones son parte de una naturaleza que no pueden cambiar, y por ello no existe prevención posible: solo represión” (2016, p. 237).
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Existe um recorrente esforço por parte dos jornalistas esportivos e de alguns pesquisadores
acadêmicos em separar o que seria violência “simbólica” de violência “real”. Essa separação pode
ser conceitualmente lida da seguinte forma: “a violência real, que é perceptível pelas agressões
físicas de contato, enquanto a violência simbólica é visível pelas agressões verbais e/ou gestuais”
(REIS, 2005, p. 114)12. Mesmo entendendo que essa divisão seja pouco prudente é necessário
não ignorar que essa chamada violência simbólica aparece com muito mais legitimação do que os
enfrentamentos físicos. Diversas narrativas sobre os confrontos entre torcedores demonstram
certa tolerância quando esses acontecem através dos cânticos e xingamentos.
A violência simbólica envolve apenas atitudes verbais e/ou gestuais, sendo que
normalmente ela é emocionalmente satisfatória e agradável, produzindo até mesmo um
efeito catártico no indivíduo. A violência afetiva é aquela em que os indivíduos se
manifestam com o intuito de demonstrar seus sentimentos e de liberar a energia
provocada pela tensão causada pela ansiedade da partida e pela expectativa do resultado.
Ela é socialmente aceita e, nos estádios de futebol, pode ser observada a partir dos gestos
e gritos realizados pelos torcedores e de algumas canções e hinos cantados por eles (REIS,
2005, p. 112).
Algumas das discussões sobre o caráter socialmente aceito da violência simbólica, afetiva ou verbal
começaram a ser colocados em questão. Além das polêmicas envolvendo um grito de macaco
dirigido ao então goleiro do Santos, Aranha, na Arena do Grêmio, alguns grupos nas redes sociais
e a própria Fédération Internationale de Football Association (Fifa) se posicionaram favoráveis à
diminuição dos insultos machistas e homofóbicos nos estádios de futebol. A entidade máxima
do futebol chegou a punir, no segundo semestre de 2015, seis federações por cânticos entendidos
por ela como homofóbicos13. A Confederação Brasileira de Futebol (CBF) foi punida em 20 mil
francos após a partida contra a Colômbia pelas Eliminatórias para a Copa do Mundo de 2018,
realizada no dia 06 de setembro de 2016. No comunicado, a entidade afirmou:
12
Heloisa Reis não parece estar utilizando a expressão “violência simbólica” tal como Bourdieu a empregou em A dominação maculina: “Ao
tomar ‘simbólico’ em um de seus sentidos mais correntes, supõe‐se, por vezes, que enfatizar a violência simbólica é minimizar o papel da
violência física e (fazer) esquecer que há mulheres espancadas, violentadas, exploradas, ou, o que é ainda pior, tentar desculpar os homens
por essa forma de violência. O que não é, obviamente, o caso. Ao se entender ‘simbólico’ como o oposto de real, de efetivo, a suposição é
de que a violência simbólica seria uma violência meramente ‘espiritual’ e, indiscutivelmente, sem efeitos reais (1999, p. 46).
13
Disponível em: http://www.sul21.com.br/jornal/fifa‐multa‐federacoes‐de‐futebol‐por‐cantos‐homofobicos‐de‐torcida/. Acesso em
17/01/2017, às 15h36.
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Todos estes procedimentos têm relação com torcedores que mostraram uma conduta
discriminatória ou antidesportiva, chegando inclusive a entoar cantos homofóbicos em
alguns casos. A Comissão Disciplinar da Fifa emitiu seus vereditos depois de analisar as
circunstâncias específicas de cada expediente, em particular, as súmulas dos árbitros, a
postura da federação e o relatório do observador antidiscriminação do jogo e das provas
disponíveis. Em alguns casos, também foram levados em conta certos atenuantes, como os
esforços das federações para conscientizar os espectadores e lutar contra a discriminação14
A homofobia nos estádios de futebol poderia ser associada a violência estrutural, que seriam as
formas de violência que atravessam e constituem a intimidade dos indivíduos (SEFFNER, 2004).
Para nossa perspectiva, melhor do que falar em violência estrutural seria pensá-la como violência
naturalizada. Essa naturalização permite que essas atitudes como os cânticos punidos pela Fifa
não sejam pensadas como violentas. Aqui temos um claro limite epistemológico na utilização do
termo violência. Se por um lado, optamos por pluralizar os sentidos da palavra violência, por
outro ao assumirmos que esses cânticos e xingamentos são uma forma de violência, nossa forma
de perguntar sobre este fenômeno já está, também, constituída pelos traços que a palavra carrega.
Se pensarmos que os estádios de futebol são um importante lugar em que se realizam construções
de masculinidade, algumas violências serão permitidas, incentivadas e naturalizadas, inclusive
deixando de ser consideradas violências, e sendo vistas como um exercício saudável, e no local
apropriado, para expressão desses modos de masculinidade15. A violência é produzida na cultura
e seus diferentes significados são construídos em um terreno de lutas por significação. Para alguns,
ser violento ali, no campo ou na torcida, durante aqueles 90 minutos, é algo positivo, pois
extravasaria o que poderia causar problemas em outros locais, e tudo ali se esgota. Para outros,
ao contrário, as atitudes violentas produzidas nos campos de futebol tendem a reforçar os
comportamentos que serão transferidos para fora dos 90 minutos e do seu local apropriado, o
estádio, e vão gerar violência contra outras pessoas16. José Garriga Zucal aponta que para pensar
no que pode ser definido como violência em um contexto específico, deve-se investigar pela
legitimidade de determinadas ações. O autor salienta, entretanto, que “es necesario pensar las
tensiones que existen entre distintas legitimidades, entendiendo que muchas veces lo legítimo
para una mayoría no lo es para todos” (2010, p. 29).
Nessa disputa por legitimidade, a mesma CBF que, através de seu Superior Tribunal de Justiça
Desportiva (STJD) havia punido o Grêmio por cânticos racistas dirigidos ao goleiro Aranha,
solicitou junto aos demais filiados que a Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol)
entrasse com um recurso junto à Fifa alegando que os supostos gritos homofóbicos não fossem
punidos por fazerem parte da “cultura do futebol”. O argumento era de que esses gritos ofensivos
não teriam caráter homofóbico. A Fifa rejeitou o pedido da Conmebol e manteve as sanções
14
Disponível em: http://globoesporte.globo.com/futebol/selecao‐brasileira/noticia/2016/10/fifa‐multa‐cbf‐por‐gritos‐homofobicos‐de‐
torcedores‐em‐brasil‐x‐colombia.html. Acesso em 10/01/2017, às 9h46.
15
Ver BANDEIRA; SEFFNER, 2013 e BANDEIRA, 2010
16
É relevante destacar, também, como a violência pode ser criada por marcadores daquele espaço. Torcedores poderão utilizar a violência
para a disputa de honras masculinas (MOREIRA, 2013) e, mesmo, organizar a sociabilidade entre eles (ALABARCES, 2012). A violência,
também, pode permitir que o protagonismo das ações nos estádios de futebol seja disputado para além das quatro linhas do campo de jogo
(RIBEIRO, 2007).
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econômicas e, inclusive, a perda do direito da seleção do Chile de jogar no estádio Nacional Julio
Martínez Prádanos, em Santiago, por ser reincidente. A secretária-geral da Fifa, Fatma Samoura,
argumentou:
O que posso dizer é que precisamos que as pessoas sejam educadas, mesmo que esteja na sua
história, na sua cultura, usar palavras não amigáveis contra o adversário. Isso tem de parar.
Para a Fifa, a tolerância é zero em relação à homofobia, discriminação racial e discriminação
de gênero17
Nas palavras dos torcedores do Grêmio é possível identificar que, para alguns deles, a
naturalização dos xingamentos nos estádios de futebol é parte integrante dessa sociabilidade. Eles
dizem que situações como a que aconteceram no caso Aranha “sempre existiram” e acreditam
que o clube tenha servido para dar de exemplo após sua punição. Alguns torcedores afirmaram
que após esse episódio outras situações semelhantes aconteceram, mas entendem que a
impunidade seria uma regra no contexto do futebol brasileiro.
17
Disponível em: http://esportes.estadao.com.br/noticias/futebol,fifa‐rejeita‐pedido‐da‐conmebol‐para‐frear‐punicoes‐por‐
homofobia,10000082128. Acesso em 10/01/2017, 10h17.
18
Todos os nomes foram substituídos para garantir o anonimato dos indivíduos que participaram dos diálogos.
19
Utilizamos o itálico para nos referirmos a falas literais de nossos interlocutores.
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e “puto” são termos recorrentes na Arena na tentativa de ofender diferentes atores envolvidos no
espetáculo esportivo. Mesmo que a discussão sobre a existência ou não de violência em episódios
que utilizam as expressões verbais permaneçam é difícil ignorar que os mesmos são utilizados
como moeda ofensiva dentro das trocas verbais nos estádios de futebol.
Everaldo aponta que no estádio existe certa permissividade para a utilização de termos como
macaco ou filho da puta, mas “tu sais do estádio e acabou, isso não existe mais. É aquele momento do
jogo, a torcida pegando no pé”. Mesmo acreditando que a manifestação dos torcedores tenha sido
equivocada, ele acredita que o episódio tomou proporções maiores do que seria necessário. Essa
permissividade a determinadas manifestações nesse espaço acaba colocando essas atitudes entre
o permitido, esperado e naturalizado. Os torcedores passam por diferentes práticas pedagógicas,
quase sempre a partir de movimentos de reiteração que acabam colocando essas formas de ação
como desejadas ou, no mínimo, como adequadas (BANDEIRA, 2010).
A “adrenalina do jogo” foi apontada por alguns como o motivo da ofensa. Hernán entende que
“na adrenalina do jogo muita gente fala besteira, muita gente fala coisa que não deveria falar, mas eu acho
que tu estás no estádio, tu tens liberdade para falar algumas coisas, tu ficas com raiva”. Alguns torcedores
apontam que, eventualmente, as pessoas que chamaram o goleiro de macaco não são racistas, mas
estavam envolvidas com o “calor do momento” ou com o “calor do jogo”. Cristian, outro
torcedor, acredita que a menina, Patrícia Moreira20, se expressou mal porque, conforme ele
entende, “na hora da empolgação tu falas qualquer abobrinha, qualquer besteira”. Ele entende que ela
não desejou ofender o goleiro por ser negro, mas falou na “hora da empolgação”. Novamente
cabe questionar se o tempo do jogo encerra e esgota o que se manifesta nos estádios ou se essas
manifestações compõem um conjunto de conteúdos que poderá ser acionado fora das praças
esportivas.
A ludicidade é apontada como argumento para que as falas ditas nos estádios não sejam
consideradas como violência. Alguns torcedores acreditam que algumas falas são produzidas na
ordem da brincadeira e que não deveriam ser levadas a sério. Ezequiel aponta para a inexistência
de sentido denotativo nas formas de se manifestar no estádio, “se falar filho da puta não está falando
que a mãe é puta, está falando uma forma de se expressar”. Existe uma reclamação de que o futebol
estaria ficando “chato” em função do controle das manifestações nesse espaço. Os torcedores
entendem que os cânticos seriam brincadeiras que dariam o clima do estádio, sendo recorrente
em diferentes práticas esportivas.
O diálogo entre o estádio de futebol e o circuito mais amplo da cultura aparece de forma bastante
tensa. José Garriga Zucal (2010) aponta sobre integrantes das hinchadas argentinas que participam
de enfrentamentos violentos, descritos por eles como “combates” ou “peleas” sabem que são
descritos por atores que não compartilham dos mesmos códigos como violentos. Os torcedores
reclamam que a interdição de determinados cânticos, especialmente os que incluem os termos
macaco e macacada, na torcida do Grêmio seria provocado por atores e discursividades que viriam
“de fora” do estádio ou da torcida. Luciano aponta que as críticas ao que se canta no estádio é
20
Por ter sido flagrada com uma câmera do canal de televisão ESPN, a torcedora acabou personalizada no episódio tendo sofrido algumas
agressões e participado de outros programas de televisão para tentar justificar o episódio.
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feita por “gente externa que não conhece o futebol daqui ou não conhece a rivalidade daqui que cria
polêmica em cima disso”.
O estádio também acaba produzindo uma relação assimétrica entre aqueles que jogam e aqueles
que pagam para ver jogar. Alguns torcedores reclamaram que o goleiro não deveria reclamar
porque “ele é jogador”. A este trabalhador estaria imputada como uma de suas obrigações
suportar as provocações vindas das arquibancadas. Esse entendimento não é exclusivo ao futebol
e aos torcedores. Durante episódio envolvendo o jogador de voleibol, Michael, que foi chamado
de veado durante uma partida pela Superliga de Voleibol masculino, Murilo, então atleta da
seleção brasileira da modalidade lembrou que os jogadores precisam aguentar as provocações
vindas das arquibancadas (BANDEIRA, 2013).
O torcedor, Jackson, entendeu que existiu, sim, um ato racista na Arena no episódio envolvendo
o, então, goleiro do Santos. Entretanto ele justificou que o uso do termo macaco na torcida
gremista era justificado por sua rivalidade histórica com o Internacional que teria feito, inclusive
a adoção do animal como um de suas mascotes. Rafael, amigo de Jackson, acusou esse “negócio”
do politicamente correto para apontar a discussão sobre os termos cantados e gritados nos
estádios de futebol. Apesar dos protestos por terem entendido que apenas o Grêmio foi punido,
Rafael entende que “se todos os clubes forem punidos por causa de situações assim é válido porque tu
ajudas a educar”.
Outro entendimento localizado nas falas dos torcedores aponta de que as ofensas como às que
foram dirigidas ao goleiro Aranha fazem parte do contexto dos enfrentamentos. Os amigos
Marcelo e Marcos acreditam que, durante as partidas, seria legítimo o torcedor tentar utilizar
todas as possibilidades para desestabilizar o adversário com o objetivo de ajudar sua equipe a
vencer. Alan, outro torcedor, acredita que a intenção da torcedora era ofender o goleiro e que a
escolha do termo é compatível com a lógica do enfrentamento, “o Aranha estava fazendo cera e o
juiz estava deixando, aí tu vais dizer o que para ele, Aranha burro? Não, vai chamar de macaco mesmo”.
Alguns torcedores também responsabilizam o goleiro pelo episódio lembrando que, naquele
momento, o Grêmio estava perdendo a partida e o goleiro estava “fazendo cera”. Aqui a discussão
entre jogo e não jogo parece produzir algum sentido. Segundo Huizinga (1993), os jogos podem
ser entendidos como suspensão temporária da vida comum. Esse espaço de experimentação
permitiria alguns deslocamentos, especialmente aos entendimentos de seriedade que produzem
as ações do cotidiano. A tal “cera” realizada pelo goleiro é um episódio recorrente dentro das
partidas, tal qual o que os torcedores entendem por xingamentos, “calor do momento/jogo”,
“hora da empolgação” ou “pilhas da torcida”. Entretanto, o conteúdo utilizado para tais
xingamentos sempre dialoga com o espectro mais amplo da sociedade. Édison Gastaldo lembra que:
(...) à primeira vista, trata-se apenas de futebol, mas o sistema de valores que fundamenta as
interações é basicamente o enquadramento moral da sociedade como um todo, com sua
demanda pela defesa da honra, da dignidade e da autonomia, atributos bastante vinculados
à identidade de gênero masculino no Brasil (2010, p. 313).
Javier Sebastián Bundio (2016) faz um estudo histórico sobre os cânticos das torcidas argentinas
no estádio e demonstra claramente como seus conteúdos se alteraram ao longo do século XX. Os
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cânticos presentes nos estádios de nosso país vizinho por vezes repetem o que se escuta por aqui,
entretanto alguns conteúdos cantados lá não são repetidos no Brasil assim como o contrário
também ocorre. Além disso, a própria alcunha “gaúcho, veado” reclamada por alguns torcedores
não pode ser cantada em qualquer lugar. Não faz sentido que a torcida do Grêmio ou do
Internacional, em Porto Alegre, a utilizem como moeda de troca no mercado simbólico das trocas
jocosas.
Um argumento que nos permitimos ler como bastante conservador e muito recorrente nas
discussões, especialmente sobre sexualidade, e que também foi possível ouvir dos torcedores
aponta que esse seria um problema menor frente a outros mais graves. O enfrentamento a
preconceitos sexuais e étnicos é sempre jogado para depois. Depois que resolvermos problemas
mais graves poderemos voltar nosso olhar para isso. Essa fala pode ser ilustrada pelo torcedor
Matheus: “a gente tem problemas sociais hoje muito mais graves do que chamar uma pessoa de preto. É
crime, é injúria racial, é racismo, é errado, mas a gente tem outras situações para evoluir antes disso”.
Ao mesmo tempo, existem alguns torcedores favoráveis a interdição do termo macaco na Arena
do Grêmio, para fazer referência aos torcedores do Internacional. Maurício aponta que não se
sentia bem em ouvir e cantar os históricos cânticos de rivalidade entre as torcidas e lembrou que
“se eles não querem ser chamados de macaco, não chama de macaco e acabou, não precisa polemizar”.
Fernando, torcedor que se auto identificou como negro disse que gostou da interdição do termo,
“até por ser negro eu me sinto mais confortável, antes eu não me sentia tão confortável”. Germán, amigo
de Fernando, reconheceu que já fez muitas referências racistas e homofóbicas dentro do estádio,
“macaco, nem só dentro de um cântico, talvez xingando um jogador do Inter, talvez seja branco ou negro”.
Fernando que gostou da interdição do termo macaco recordou que “eu já chamei o D’Alessandro21
de bicha, de tudo”. Ozéia lembrou da dificuldade que seria posta ao tentar pensar uma manifestação
ofensiva dirigida a outrem, “a gente não é negro, a gente não tem a real noção do que é uma pessoa te
chamar de macaco tu sendo negro. É fácil teorizar, mas a gente não sabe, não tem como saber, mas deve ser
horrível”.
Talvez o mais óbvio que se poderia dizer nesse momento é que diferentes atores percebem as
manifestações verbais nos estádios de formas distintas. Essa obviedade perde, talvez, sua
simplicidade quando pensamos em investigações anteriores em que essas distintas interpretações
não estavam postas enquanto questão (BANDEIRA, 2010). As manifestações verbais eram
entendidas como autorizadas e as discussões sobre seus sentidos muito restritas.
21
Principal jogador do Internacional durante esta década.
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Por mais que falem em clima de estádio e critiquem que as indagações a essas manifestações sejam
feitas por atores “de fora” do futebol, é difícil imaginar que os conteúdos presentes nesse contexto
específico não dialoguem com o circuito mais amplo da cultura. Desde o final da década passada
com a confirmação do Brasil como país sede para a Copa do Mundo de futebol masculino da
Fifa de 2014, diferentes indagações a forma de torcer no Brasil foram feitas o que permitiram,
em alguma medida, catalisar a entrada em discussão de conteúdos que já ocupavam protagonismo
nas lutas por significação nisso que nos permitimos chamar de circuito mais amplo da cultura.
Os torcedores ainda não reconhecem, em sua maioria, as injúrias como uma forma de violência.
Entretanto eles parecem entender com velocidade como esses jogos funcionam. É bastante
interessante perceber como racismo e homofobia dialogam nas falas dos torcedores. Torcedores
do Grêmio reclamam comumente de serem proibidos de utilizar o termo “macaco” e lembram
que são chamados de “gaúcho veado” sem restrições. A homofobia acaba aparecendo como
problema ou como questão apenas para comparar com o racismo e sua interdição. Parece que o
veado só é um problema quando gritam contra nós e nós não podemos gritar macaco. Quando
gritamos veado, novamente não temos problema. Parece existir grande dificuldade em pensar o
que se pode e o que não se pode considerar violento neste zoológico linguístico dos estádios de
futebol. Este terreno de lutas por significações se encontra em disputa e é essa disputa que nos
permite questionar os ditos tidos como naturalizados nesse contexto de tamanho protagonismo
na construção de masculinidades no Brasil. Tal qual os campeonatos que se sucedem, essa luta
por legitimidade de manifestações ainda terá novos enfrentamentos.
Referências
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É importante referir que tais discursos eram evidenciados em músicas associadas ao gênero
contemporaneamente conhecido como funk ostentação, o qual era apreciado pelo grupo de
estudantes em questão. Também é importante destacar que os jovens escutavam e
compartilhavam tais músicas através de seus aparelhos celulares, muitas vezes em meio às
atividades de sala de aula, não acatando assim a legislação vigente que proíbe o uso de tais aparatos
nas escolas das redes de ensino das quais fazem parte.
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De acordo com as perspectivas teóricas elencadas, o conceito de juventude remete à ideia de uma
categoria plural, distante das classificações etárias e das descrições biológica como modos únicos
para descrevê-la e contextualizá-la, tal como abordam autores como Feixa (1999) e Dayrell (2001).
Da mesma forma, entende-se que a cultura midiática está presente no cotidiano de nossos jovens
contemporâneos e segundo Kellner (2001) a cultura midiática (construída, incessantemente, por
meio de imagens e sons) modela uma visão prevalecente de mundo, fomentando opiniões
políticas e comportamentos sociais, definindo o que é considerado bom ou mau, positivo ou
negativo, moral ou imoral, fornecendo a matéria prima para a construção das identidades dos
indivíduos.
Segundo Hall (1997), a cultura, para a perspectiva dos Estudos Culturais, é o locus central de uma
sociedade. É na cultura que são estabelecidas, mas também contestadas, as distinções entre os
indivíduos. Segundo tal perspectiva, as diferenças étnicas, de gênero e de classe constituem-se e
são articuladas no âmbito cultural. Tal posição é corroborada por Sardar e Van Loon (2005). Os
autores apontam que a cultura é o espaço, a arena onde estão situadas a crítica e as ações políticas.
Assim, considerando que a cultura assume o papel central nas transformações de uma sociedade,
os Estudos Culturais buscam compreendê-la em toda a sua complexidade.
Atualmente, nossa cultura globalizada é marcada pela era digital e pelo consumo, sendo que tais
dimensões se mantêm intrinsicamente relacionadas. Segundo Kellner (2001), há uma cultura
veiculada pela mídia cujas imagens, sons e espetáculos que auxilia “[...] a urdir o tecido da vida
cotidiana, dominando o tempo de lazer, modelando opiniões políticas e comportamentos sociais,
fornecendo o material com que as pessoas forjam sua identidade” (KELLNER, 2001, p.09). Nesse
sentido, a rádio, a televisão, o cinema a internet, especialmente as redes sociais fornecem
22
O grifo foi feito pela autora.
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“modelos” daquilo que significa ser homem ou mulher, bem-sucedido ou fracassado, poderoso
ou impotente – modelos esses que são utilizados pelas pessoas para construir o seu senso de classe,
de etnia e raça, de racionalidade, de sexualidade, de pertencimento, ou não, a uma dada
comunidade. Pode-se afirmar que a cultura modela uma visão prevalecente de mundo, e também
fornece a matéria prima para a construção das identidades dos indivíduos.
Desta forma, compreendo que a cultura é um campo de conhecimento complexo, que inclui
todos os costumes, hábitos e aptidões adquiridos pelo ser humano durante o processo de
socialização. A cultura também é definida em ciências sociais como um conjunto de ideias,
comportamentos, símbolos e práticas sociais, aprendidos de geração em geração através da vida
em sociedade. Com a socialização, ao longo do tempo, os homens foram mudando seus costumes,
hábitos e conhecimentos acerca de si, da sociedade e da vida, tais mudanças são conhecidas como
processos culturais, dos quais:
Cabe salientar que gênero é uma construção histórica e cultural, uma estrutura ampla e complexa,
pois engloba a economia, o Estado, as instituições, a família e a sexualidade, indo além das
dicotomias dos “papéis de sexo” ou da biologia reprodutiva. Para Connell (1995), diferentes
masculinidades são produzidas no mesmo contexto social; as relações de gênero incluem relações
entre homens, relações de dominação, marginalização e cumplicidade. Uma determinada forma
hegemônica de masculinidade tem outras masculinidades agrupadas em torno dela.
Connell (1995) define a masculinidade como “uma configuração de prática em torno da posição
dos homens na estrutura das relações de gênero” (1995, p. 188). Segundo a mesma autora “gênero
é, nos mais amplos termos, a forma pela qual as capacidades reprodutivas e as diferenças sexuais
dos corpos humanos são trazidas para a prática social e tornadas parte do processo histórico”
(1995, p. 189). A partir do conceito de gênero, pode-se compreender que:
No Gênero, a prática social se dirige aos corpos. Através dessa lógica, as masculinidades são
corporificadas, sem deixar de ser sociais. Nós vivenciamos as masculinidades (em parte) como
certas tensões musculares, posturas, habilidades físicas, formas de nos movimentar, e assim
por diante (CONNEL, 1995, p.189).
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Importante destacar que os processos de constituição das subjetividades dos jovens estão
implicados nas formas como esses elencam para vivenciar as masculinidades na
contemporaneidade, uma vez que “os modos de subjetivação, são, precisamente, as práticas de
constituição dos sujeitos” (CASTRO, 2009, p. 408). Vale pontuar ainda que, segundo Larrosa
(2000), a “constituição das subjetividades está relacionada aos aspectos da experiência de si, nas
quais o sujeito relaciona-se consigo mesmo, ou seja, os modos pelos quais ele se observa, analisa
e reconhece a si próprio”.
Caminhos metodológicos
Após digitalizar e tabelar tal questionário, foram destacadas as opiniões e músicas mais frequentes
e ainda, outros temas do cotidiano dos jovens. Assim, foram organizados Grupos de Discussão
com os jovens, no quais foram debatidos e analisados os videoclipes das músicas mais citadas
pelos jovens, as quais se destacaram Menino Sonhador (Mc Pedrinho)23, 4M Nato (Mc Davi)24 e
Baile de Favela (Mc João)25. A análise dos discursos dos artefatos midiáticos (músicas e videoclipes)
foi realizada a partir de Michel Foucault (2012).
Compartilho com Carla Beatriz Meinerz (2011, p. 486) o entendimento de que a metodologia
do grupo de discussão abre a possibilidade de escuta sensível, que não se fundamenta apenas em
rigores teóricos para sua realização, uma vez que tal escuta é dependente da postura “política,
afetiva e ética do pesquisador”. Compreendo assim que tais metodologias potencializam análises
sobre a constituição das subjetividades dos estudantes na contemporaneidade e, por conseguinte,
na constituição das masculinidades juvenis contemporâneas.
23
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jEzijNHkrgE
24
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=izZXW7hmY2A
25
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kzOkza_u3Z8
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Em nossa sociedade a cultura está intrinsicamente relacionada ao consumo, o consumo faz parte
do dia a dia das pessoas, e essa realidade é expressa através das manifestações culturais da periferia.
A música (samba e funk) e a dança são exemplos de expressões culturais que retratam a realidade
das favelas. Segundo Michael Herschmann (2005), apesar de ter sido visibilizado na década de
1970 na conhecida casa de espetáculo Canecão, o funk encontrou o seu espaço posteriormente
nos bairros dos subúrbios cariocas. Nos tempos atuais, é possível afirmar que o referido gênero é
produzido/consumido por "diversos grupos e segmentos sociais, e pela indústria cultural em
geral." (HERSCHMANN, 2005, p. 73).
De acordo com Dayrell (2002) o funk, assim como o rap tem sua origem na música negra norte-
americana, a qual incorporou sonoridades africanas, baseadas, segundo o referido autor, no ritmo
e na tradição oral. De um modo geral, tal ritmo musical é associado às classes sociais de menor
poder aquisitivo e, por conseguinte, com uma suposta menor possibilidade de aquisição de bens
de consumo. A forte presença do funk em nossa sociedade, em especial do estilo ostentação, pode
ser percebida nas trilhas sonoras de novelas de grande audiência, na presença de artistas do
gênero, em programas de televisão e também pelos numerosos shows que os artistas realizam
mensalmente. Sobre a popularização do funk, vale destacar as palavras do DJ Malboro, um dos
percussores do estilo no Brasil: “É a verdadeira Música Popular Brasileira, a MPB, [...]. Acho que
não existe nada hoje no Brasil que tenha tanta força ou que seja ligado de um modo tão
verdadeiro ao que as pessoas pensam como o funk”. (DJ Malboro - PLATT e NEATE, 2008, p.
85).
As músicas relacionadas ao funk ostentação traçam, em sua maioria, narrativas acerca dos
“benefícios” que o acúmulo de bens e de patrimônio proporciona aos homens jovens: a
companhia de belas mulheres e a elevação de um status frente aos demais. O mesmo estilo musical
apresenta músicas que descrevem os desejos femininos como unicamente relacionados à vaidade
e à beleza. Nas canções, tais desejos são atendidos, de um modo geral, por homens que pagam às
mulheres o que elas querem. Os relacionamentos afetivos também são organizados a partir da
mesma lógica; mulheres namoram homens que "bancam" tudo o que elas desejam.
Apesar de grande parte dos jovens gostarem das músicas citadas, eles reconhecem que os clipes
apelam para carros de luxo, bebidas caras e principalmente para a exposição sensualizada de
mulheres para sua popularização na web. Os jovens também acreditam que homens ricos
consigam relacionar-se com um número maior de mulheres. No entanto, tais mulheres seriam
“as interesseiras” e não “as de fé”, aquelas que os jovens procurariam para ter um relacionamento
sério.
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Não é o caso dos alunos pesquisados, mas muitas vezes o estilo de vida rap e funk possibilita a
muitos desses jovens uma ampliação significativa das hipóteses de vida (GIDDENS, 1995), uma
vez que abre espaços para os jovens sonharem com outras alternativas de vida que não aquelas
restritas, oferecidas pela sociedade. Segundo Dayrell (2002) a vivência do estilo possibilita a esses
jovens práticas, relações e símbolos por meio dos quais se afirmam com uma identidade própria,
como jovens. Enfim, o estilo se coloca como mediador de um determinado modo de ser jovem.
Como afirma Vargas (2015), é possível pensar que as músicas alinhadas com o funk ostentação
visibilizem a ideia de que, na contemporaneidade, o mundo configura-se como um palco de
performances, no (e do) qual somos consumidores de bens de consumo, de bens culturais e até
mesmo de relacionamentos. Como afirma Bauman, as sociedades contemporâneas padecem da
síndrome consumista, na qual os desejos e anseios pelos bens materiais devem ser atendidos de
26
Os 4m’s se referem a money (dinheiro), música, mulher e maconha.
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forma quase imediata. Nas palavras do autor, tal síndrome envolve a “[...] enfática negação da
virtude da procrastinação e da possível vantagem de se retardar a satisfação [...] encurta
radicalmente a expectativa de vida do desejo e a distância temporal entre este e a sua satisfação,
assim como entre a satisfação e o depósito de lixo” (BAUMAN, 2008, p. 111). Também as
palavras de Dayrell (2002, p. 124) são profícuas para a problematização:
Vivemos no Brasil uma situação paradoxal. Nas últimas décadas vem ocorrendo uma
modernização cultural, consolidando uma sociedade de consumo, ampliando o mercado de
bens materiais e simbólicos, mas que não é acompanhada de uma modernização social.
Assim, os jovens pobres inserem-se, mesmo que de forma restrita e desigual, em circuitos de
informações, por meio dos diferentes veículos da mídia, e sofrem o apelo da cultura de
consumo, estimulando sonhos e fantasias, além dos mais variados modelos e valores de
humanidade.
Conclusão
Entendo a juventude como parte de um processo mais amplo de constituição de sujeitos, mas
que tem especificidades que marcam a vida de cada um. A juventude constitui um momento
determinado, mas não se reduz a uma passagem; ela assume uma importância em si mesma. Todo
esse processo é influenciado pelo meio social concreto no qual se desenvolve e pela qualidade das
trocas que se proporciona. Deste modo, os alunos pesquisados apresentam especificidades e
constroem determinados modos de ser jovem de acordo com os recursos que dispõem o que não
significa que haja um único modo de ser jovem nas camadas populares. “Essa diversidade se
concretiza com base nas condições sociais (classes sociais), culturais (etnias, identidades religiosas,
valores) e de gênero, e também das regiões geográficas, dentre outros aspectos” (DAYRELL, 2003,
p. 42).
A masculinidade expressa nas músicas de funk, estilo mais ouvido por esses jovens, é representada
pelo poder de consumir artefatos de luxo e pela possibilidade de ter a companhia de belas
mulheres. Os jovens se identificam com a manifestação cultural que denota o poder de consumo
das classes populares, assim o grupo social, no qual os indivíduos se identificam pelas formas
próprias de vivenciar e interpretar as relações e contradições, entre si e com a sociedade, produz
uma cultura própria.
Entendo que apenas re(conhecendo) nossos alunos de forma integral que vamos conseguir lhes
proporcionar metodologias diferenciadas, bem como formar professores preparados para lidar
com diversidade que compõe a realidade de uma sala de aula, afim de proporcionar um ensino
mais crítico, ativo, reflexivo, significativo e humano para a sociedade.
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preparar, de forma massiva, uma mão de obra mais qualificada (alfabetização e matemática básica)
para servir o mercado de trabalho industrial.
Esse modelo tradicional rígido prejudica o desenvolvimento de uma sociedade mais consciente,
uma vez que impossibilita aos alunos o acesso ao conhecimento de maneira mais crítica e
reflexiva, desestimula a criatividade espontânea dos alunos, além de não explorar o
desenvolvimento de diversas habilidade e competências dos mesmos. Essa ideologia de ensino
tradicional nas instituições gera dogmas, preconceitos e alienação entre os alunos, pois ao abordar
apenas a norma (o que está dentro dos padrões sociais, como por exemplo, questões sexuais
heteronormativas) exclui toda a diversidade (sexual, étnico e social) e realidade vivenciada pelos
alunos.
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Resumo: O presente trabalho aborda as especificidades de uma pesquisa que vem sendo realizada
no município de Carangola, localizado na Zona da Mata do Estado de Minas Gerais. Trata-se de
um estudo de caso sobre a violência contra a mulher em uma cidade de pequeno porte. Visa
comprovar que a influência do patriarcado é determinante do comportamento dos/das
agressores/as e interfere na decisão das mulheres em denunciar a violência. Esse estudo utiliza a
História Oral como metodologia de pesquisa tendo em vista que possibilita evidenciar o papel
das emoções nas memórias das mulheres que sofrem violências. Permite dar vozes e romper o
silêncio que envolve as relações cotidianas das famílias e conhecer a dinâmica da vida pessoal em
conexão com os processos coletivos. A pesquisa também analisa os dados do Sistema Único de
Saúde (SUS), através do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), do
Ministério da Saúde, que fornece os registros de atendimento por violência doméstica contra
crianças, mulheres e idosos. O fenômeno da violência tem-se manifestado de forma crescente em
cidades de pequeno porte, no interior do país. Em tais regiões, os modos de vida conferem estreita
relação entre espaços públicos e privados, mútuo controle, julgamento moral e intensa recriação
narrativa das ações de indivíduos e suas famílias, reforçando discursos normativos patriarcais.
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Introdução
A presença das mulheres na Historiografia vem crescendo nas últimas décadas e permitindo o
enfoque do cotidiano e a emergência de uma pluralidade de protagonistas. Dessa maneira, a
produção historiográfica abandona a centralidade do sujeito universal para abordar experiências
coletivas e individuais e, ainda, as subjetividades de mulheres, transpondo o silêncio e a
invisibilidade as quais estavam relegadas.
Com o estudo do cotidiano feminino emergem relações de poder existentes no âmbito privado,
diluídas nas relações de trabalho e na família, nas quais permite‐se conhecer problemas sociais
enfrentados por elas, como a violência que se manifesta de diversas formas e atinge todas as classes
sociais.
Assim, o presente texto analisa os dados do Sistema Único de Saúde (SUS), através do Sistema
de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), do Ministério da Saúde, que fornece os
registros de atendimento por violência doméstica contra crianças, mulheres e idosos. Neste texto,
são apresentados os dados do SINAN de 2014 e 2015, fornecidos pela Secretaria Municipal de
Saúde da localidade analisada. Por tratar-se de uma pesquisa em curso, são discutidas aqui
informações acessórias ao contexto da violência contra a mulher na localidade pesquisada.
Tendo em vista que o fenômeno da violência tem-se manifestado de forma crescente em cidades
de pequeno porte, no interior do país, o lócus desse estudo é o município mineiro de Carangola,
localizado na Zona da Mata do Estado. Em cidades menores, como essa, os modos de vida
conferem estreita relação entre espaços públicos e privados, mútuo controle, julgamento moral e
intensa recriação narrativa das ações de indivíduos e suas famílias, reforçando discursos
normativos patriarcais, o que pode contribuir para o número de casos de violência e baixo índice
de denúncias.
A violência contra a mulher é um fenômeno social que atinge todas as classes sociais e que
encontra no espaço doméstico, seu maior campo de atuação. Possui como vetor um ciclo que
inicia com ofensas verbais, construindo um ambiente de tensão, evolui para crises mais graves –
nas quais a violência se materializa – e desemboca com o arrependimento do agressor, momento
no qual tenta se redimir da agressão por meio de presentes e demonstrações de afeto. Esse ciclo
de violência é reforçado pelo silêncio, omissão e negligência que pode culminar com o assassinato
da mulher.
A morte de uma mulher vítima de violência apresenta-se como um ponto final de um continuum
de terror (Pasinato, 2011) permeado por atos violentos vivenciados no cotidiano e tolerados pela
sociedade.
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No Brasil, em função do legado colonial agrário e escravocrata, o modelo de família patriarcal foi
se estabelecendo e se ajustando a realidades e especificidades de diferentes regiões do país.
Emergiu no Nordeste colonial brasileiro, na sociedade açucareira, descrita por Gilberto Freyre
(2004) como um extenso grupo composto pelo núcleo conjugal e uma ampla rede de agregados,
escravos, parentes, concubinas e bastardos. Com o passar do tempo, o patriarcado foi alterando
sua configuração, mas manteve suas premissas pautadas no poder e na autoridade masculinos.
Com o advento das transformações do século XIX e o início da industrialização, o formato das
famílias brasileiras foi modificado para um modelo de família conjugal, perdendo as funções
econômicas e políticas que detinha e passa a concentrar suas atribuições específicas de procriação
e disciplina do impulso sexual (BRUSCHINI, 1990, p. 63).
O modelo de família urbana, com valores típicos da sociedade burguesa, surge no contexto da
abolição da escravidão, da crescente imigração e o desenvolvimento industrial, do século XIX.
Percebem-se neste período, algumas alterações nas configurações familiares, por exemplo, o
casamento das mulheres que antes era realizado na faixa etária de 12 a 18 anos e passa a ser feito
entre os 18 e 24 anos. Azzi (1987) nos diz que tal mudança decorre de uma maior preparação
cultural da mulher para a vida. Disserta ainda que nesse período a infidelidade masculina vai
deixando de ser praticada abertamente, o número de filhos passa a diminuir, mas a virgindade
continua a ser apregoada, fazendo com que o controle das jovens, por parte dos pais fosse
mantido.
Tal modelo de família pautado nos ideais burgueses começou a ser detentor de seus próprios
códigos morais, tendo em vista que cada família se tornou um núcleo isolado e restrito. Na obra
“Família e conflito conjugal” Carmine Martuscello (1992) discorre sobre dois tipos de estruturas
familiares: a aristocrática e a burguesa, e como a família burguesa tornou-se um microcosmo e
estabeleceu mais autonomamente seus critérios de comportamento e funcionamento, em
comparação com a família aristocrática. Para a autora, essa diferenciação colocou a família cada
vez mais como célula independente e isolada, trazendo autonomia ao mesmo tempo em que
trouxe alheamento e solidão. Acrescenta ainda que, com a modernização da vida familiar a
mulher arcou com o ônus da restrição de sua atuação social. Nesse novo arranjo a vida familiar
exigia um tipo de mulher dedicada ao cuidado dos filhos e com a organização da casa, da mesma
forma em que sua sexualidade prestava-se mais a atender aos desejos do homem do que aos seus.
Na família conjugal moderna, a mulher seria a esposa afetiva, ainda submissa ao marido, o qual
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deveria ser o único provedor do lar. Essa nova configuração familiar transformou a mulher em
“rainha do lar” e fortaleceu a hierarquia com relação a papéis femininos e masculinos,
determinando ao homem a função de chefe da casa e à mulher, sua subalterna e dependente.
Dessa forma, inúmeros casos de assassinatos de mulheres são veiculados pela mídia, alcançam
apelo popular e são justificados pelo fato das vítimas viverem ou agirem de forma contrária ao
ideal feminino. É por meio dessa dominação simbólica que a sociedade tolera a violência
praticada, pois passa a ser baseada em punições ao que é considerado desvio de comportamento.
Por sua vez, o corpo da mulher, visto como propriedade masculina e instrumento de poder é o
campo no qual o homem “defende sua honra”, canaliza suas frustrações, a falta de dinheiro e/ou
desemprego.
Eva Blay (2008) chama atenção para o aumento do número de assassinatos de mulheres na última
década do século XX, mesmo com mudanças comportamentais da sociedade que passa a exigir
cada vez mais a punição dos agressores de mulheres. Esse paradoxo destacado por Blay pode ser
compreendido quando a pesquisadora apresenta dados que confirmam que razões superficiais
resultam em assassinatos e tem provocado o “barateamento da vida humana” (BLAY, 2008, p.
83).
Analisando processos criminais e matérias de jornais, Blay disserta que pequenas desavenças,
palavras ou gestos criam desencontros violentos, que por vezes se aliam à necessidade de
afirmação da masculinidade, desejo de vingança ou vontade de estar em evidência perante
determinado grupo social.
Um alerta levantado por Pasinato (2011) é a hipótese de que o patriarcado pode não estar se
extinguindo e sim sofrendo transformações para se manter num mundo em que os papéis sociais
de gênero estão mudando em velocidade vertiginosa.
Mais do que se discutir definições homogêneas para conceitos e tipos de assassinatos, é veemente
pensar os diversos tipos de violências contra a mulher como um problema social de nossa
sociedade, bem como estratégias de enfrentamento diário. Tendo em vista que a sociedade tem
se transformado e o patriarcado também tem sofrido mutações para acompanhar os processos de
mudanças, uma pergunta se faz pujante: quando vamos, de vez, nos libertar do patriarcado?
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O uso da história oral para tratar da violência contra a mulher numa pequena cidade do interior
de Minas Gerais possibilita evidenciar o papel das emoções nas memórias dessas mulheres.
Permite dar vozes e romper o silêncio que rodeia as relações cotidianas das famílias.
Por ser construída no sentido físico e moral da pessoa, a memória da violência está nas dimensões
simbólica e psicológica e em categorias como inconsciente e recalque e, pode estar também,
materializada no corpo. Compõe o que Pollak (1989) nomeia de “memórias subterrâneas” e que
estão silenciadas por inúmeros fatores: medo, vergonha, dependência financeira, falta de apoio,
ou por outros aspectos dolorosos de suas vidas.
Essas experiências silenciadas tornam a memória um campo de batalha, o que faz dela seletiva.
Pollak (1992) nos diz sobre o trabalho da própria memória em si, pois, cada vez que está
relativamente constituída, ela efetua um trabalho de manutenção, de continuidade, de
organização.
Nas entrevistas que vêm sendo realizadas para este estudo, tem-se observado que o tipo de
sociabilidade interfere mais na atitude de denunciar os agressores e na dificuldade de
enfrentamento pós-denúncia do que no fato de relatar a situação de violência a qual estiveram
submetidas.
Dados da pesquisa
O município de Carangola está situado na Zona da Mata de Minas Gerais, na confluência com
os Estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo, com uma população de 32.296 habitantes27, sendo
16.604 mulheres. Essa cidade não possui Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher
(DEAM) e os casos de violência são atendidos pela Delegacia de Polícia e encaminhados para o
Ministério Público, que por sua vez, direciona as mulheres para atendimentos psicossociais no
Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS)28.
27
Dados populacionais do Censo Populacional realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010, e, seguindo a
previsão deste Instituto, a população estimada nos dias atuais seria de 33.412 habitantes.
28
O Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) é uma unidade pública estatal, de abrangência municipal ou regional,
referência para a oferta de trabalho social a famílias e indivíduos em situação de risco pessoal e social, por violação de direitos, que
demandam intervenções especializadas no âmbito do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) (BRASIL, 2011).
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Uma forma de identificar o número de casos de violências ocorridas nos municípios brasileiros
é através do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), do Ministério da Saúde,
que fornece os registros de atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS) por violência
doméstica contra crianças, mulheres e idosos. A notificação da violência doméstica, sexual e/ou
outras violências foi implantada no SINAN, do Ministério da Saúde, em 2009. A notificação deve
ser realizada de forma universal, contínua e compulsória, nas situações de suspeita ou
confirmação de violências envolvendo crianças, adolescentes, mulheres e idosos, atendendo às
Leis 8.069 (Estatuto da Criança e Adolescente), 10.741 (Estatuto do Idoso) e 10.778 (notificação
compulsória de violência contra a mulher), quando do atendimento ambulatorial das mulheres
nos hospitais e unidades de Pronto Atendimento. A notificação é realizada pelo gestor de saúde
do SUS, mediante o preenchimento de uma ficha de notificação específica (WAISELFISZ, 2015,
p. 12).
A fim de conhecer os dados referentes a violência contra a mulher na cidade de Carangola, foi
solicitado junto a Secretaria Municipal de Saúde o acesso aos número do SINAN. Foram
franqueados os registros dos anos 2014 e 2015, os quais demonstram que nos 76 casos de
violência contra a mulher em Carangola, registrados pelo SINAN naquele período, todos
agressores são do sexo masculino. O gráfico 1 demonstra quem são os agressores apontados nos
prontuários:
Os dados supracitados demonstram que “cônjuge” e “ex-cônjuges” são aqueles que mais agridem
as mulheres, na cidade mineira de Carangola. Sabe-se que o espaço doméstico é o local onde as
relações de poder e dominação mais se manifestam. É nele que ocorre a maior incidência nos
casos de violência contra a mulher, que preferencialmente, é cometida por pessoas conhecidas
(WAISELFISZ, 2015).
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Violência e agressividade fazem parte da dinâmica identitária masculina tendo em vista que tais
atributos compreendem o recurso dos quais lançam mão na iminência da perda do poder que
exercem. Dessa maneira, pode-se afirmar que a violência e o poder estão imbricados nas relações
sociais.
No que se refere aos dados do SINAN de Carangola, exceto os que são categorizados como
“desconhecidos”, os outros 68 agressores possuem algum tipo de relação de proximidade com as
vítimas. Tal fato denota que os conflitos estão circunscritos ao ambiente doméstico e que
envolvem pessoas que compõe o âmbito das relações pessoais das mulheres.
A violência praticada por homens que estão diretamente relacionados às vítimas tende a ser
naturalizada fazendo com que os casos sejam tratados como problemas de foro privado, gerando
banalização da violência perante a sociedade e, por conseguinte, silenciamento por parte das
vítimas.
Ainda com base nos números apresentados, analisando os registros por classificação ordinal, o
terceiro maior causador das agressões, apontado pelas mulheres carangolenses, foram
categorizados como “desconhecidos”. Tal fato leva-nos a lançar questionamentos a respeito de
quem seriam esses “desconhecidos”, apontados pelas vítimas. Seriam, de fato, “desconhecidos”?
Por se tratar de uma cidade de pequeno porte, as pessoas estão muito próximas umas das outras
e suas relações sociais e profissionais também. Alegar que a agressão foi cometida por um
“desconhecido” poderia ser uma maneira de se resguardar quanto ao julgamento moral da
comunidade? Seria uma forma de proteção quanto a possíveis represálias?
Depois dos “conhecidos”, os “amigos” seguem no ranking dos agressores, seguidos pelos “pais” e
“irmãos”. Esses dados também corroboram com o que a literatura afirma sobre a relação
hierárquica que confere ao homem a posição de mando e à mulher a posição de submissão.
Segundo Moreira, Ribeiro e Costa (1992), essa lógica é tão profundamente internalizada pelos
indivíduos que faz com que a violência seja uma característica intrínseca à relação entre os sexos.
A violência insere-se nas relações interpessoais entre os sexos e não se limita a questões
geracionais, como apontado pelos dados aqui apresentados. Percebe-se o registro de agressões por
parte de genro, filho e neto, o que reforça a ideia de que o legado patriarcal ainda é forte em
nossa sociedade, sobretudo em regiões interioranas do país. Essas regiões são as que mais
carregam o legado patriarcal no comportamento de sua população, tendo em vista que a formação
da sociedade brasileira teve sua base em locais onde a cultura do patriarcado se firma na figura
do patriarca e no forte predomínio da ordem privada sobre a ordem pública.
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Assim, o patriarcado se ampara na violência para exercer o poder dos homens sobre as mulheres,
atribuindo um caráter de propriedade a elas, principalmente devido a proximidade no convívio
social e familiar.
Nesses casos de violências contra as mulheres, por ocorrerem em espaços privados e praticados
por pessoas conhecidas (Waiselfisz, 2015), a denúncia é vista como imprópria e acaba sendo
tolerada pela sociedade. Tal fato pode levar a crer que o número de casos apontados pelos dados
do SINAN dos anos de 2014 e 2015 de Carangola/MG, não é condizente com a realidade da
violência vivenciada pelas carangolenses no cotidiano, em suas relações privadas.
Em busca de respostas
O silenciamento das mulheres no que tange as violências às quais estão submetidas é uma
realidade. Abarca alguns fatores, quer sejam emocionais, econômicos e sociais. No aspecto
emocional, o silêncio pode se dar em razão da relação afetiva entre o agressor e a vítima. O
silenciamento pode também ocorrer devido a dependência financeira da mulher, ou ainda em
função de aspectos sociais, temendo o julgamento e/ou a incompreensão da família ou da
comunidade a que pertence a vítima.
Essa pesquisa possui muitas perguntas a serem respondidas e é por isso que a História Oral
constitui-se como ferramenta fundamental para encontrar possíveis respostas e, também, buscar
possibilidades de enfrentamento a situações de violências praticadas contra mulheres, em
especial, cidadãs de uma localidade pequena, onde a visibilidade é inevitável e as redes de
enfrentamento à violência são inconsistentes.
O tema da violência contra a mulher é instigador e necessário para a busca de uma sociedade
igualitária. Faz parte de uma complexa teia de relações cotidianas, por vezes naturalizadas,
omitidas e silenciadas.
Referências
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In.: RIBEIRO, Ivete (Org.). Sociedade Brasileira Contemporânea. Família e valores.
Teresópolis: Edições Loyola, 1987.
BLAY, Eva Alterman. Os jornais na passagem para o século XXI. In. __. Assassinato de mulheres
e Direitos Humanos. São Paulo: USP, Curso de Pós-Graduação em Sociologia: Ed. 34, 2008. p.
51-93.
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http://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Cadernos/orientacoes_cre
as.pdf. Acesso em: 11 jul. 2016.
BRUSCHINI, Maria Cristina Aranha. Mulher, casa e família: cotidiano nas camadas médias
paulistanas. São Paulo: Fundação Carlos Chagas. Vértice, Editora Revista dos Tribunais, 1990.
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da
economia patriarcal. 49 ed. São Paulo: Global, 2004.
MARTUSCELLO, Carmine Neto. Família e Conflito Conjugal. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1992.
MOREIRA, Maria Ignez Costa; RIBEIRO, Sônia Fonseca; COSTA, Karine Ferreira. Violência
contra a mulher na esfera conjugal: jogos de espelhos. In.: COSTA, Albertina de Oliveira e
BRUSCHINI, Cristina (Orgs.). Entre a virtude e o pecado. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos,
1992. p. 169-189.
WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2015. Homicídio de Mulheres no Brasil. ONU
Mulheres / Organização Pan-Americana da Saúde / Organização Mundial da Saúde / Secretaria
Especial de Políticas para as Mulheres / Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais. Brasília,
2015. Disponível em: <
http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf> Acesso em
25 jul. 2016.
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Apresentação
O nosso objetivo consiste em traçar o perfil dos Homens Autores de Violência que são
encaminhados para os Grupos Reflexivos de Gênero da Central de Apoio à Execução de Penas e
Medidas Alternativas (CEAPA) de Santa Cruz de Capibaribe e sua relação com a violência
doméstica e familiar contra a mulher. A questão que nos anima seria se esses homens se
apresentam como uma verdadeira ameaça para suas companheiras ou teria sido a violência um
incidente conjugal, que, mesmo inspirando todo o cuidado, teria poucas chances de agravamento
e letalidade. Por um lado, trata-se de conhecer quem está cumprindo Penas Alternativas com
participação em Grupo Reflexivo Masculino; e, por outro lado, por que razão ou circunstância a
pena lhe foi imputada. A combinação dessas dimensões nos permite entender como a violência
de gênero é processada no circuito da justiça criminal e converte-se numa pena alternativa em
que se espera que constitua, não só uma forma de castigo adequada para incidentes menores, mas
uma oportunidade de promover transformações nas relações desses homens com as mulheres e
consigo mesmos.
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Para dar conta dessas questões em Pernambuco, foi elaborado, no âmbito do Pacto pela Vida, o
Plano Estadual para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra as Mulheres (2008)29, que
deveria ter validade de nove anos, 2007-2016. Baseado em princípios, diretrizes e garantias, o
Plano divide seus programas, estratégias e ações em cinco dimensões: prevenção, proteção,
punição, assistência e produção de conhecimento. A dimensão que nos interessa particularmente
inscreve-se no eixo punição. A dimensão da punição compreende, no documento, o circuito da
justiça, responsável pela condenação do homem que agride a sua companheira: delegacias,
promotorias e varas de violência doméstica e familiar contra a mulher. Às delegacias cabem a
repressão, a investigação, o inquérito e o enquadramento legal da queixa apresentada. As
promotorias apresentam o caso às varas ou juizados, que decidirão a sentença para cada situação
particular. O plano não faz referência aos grupos reflexivos como modalidade de pena. Com
efeito, pelo referencial teórico que informa o documento, os homens são tratados como
“agressores” e a política concentra-se em fortalecer os instrumentos garantidores da punição,
especialmente no sentido de evitar que homens violentos permaneçam uma ameaça para a
segurança das mulheres.
Um dos pontos que suscitam mais expectativas a respeito das penas alternativas, especificamente
as de intervenção com Homens Autores de Violência, é o de recuperação do “agressor”. Essa
esperança ganha apoio no reconhecimento público e acadêmico de que o sistema prisional se
encontra em crise – superlotação, pouco investimento, custo elevado e sem efeito de
ressocialização – e que, portanto, outras medidas podem e devem ser adotadas com maior sucesso,
em determinados casos. Alguns estudos, na falta de dados estatísticos válidos e confiáveis30,
acompanham a intervenção com Homens Autores de Violência e acenam para as oportunidades
de “redenção” do apenado – mudança de atitude que se segue de um profundo arrependimento
sobre um mal cometido (AGUIAR, 2009; PRATES, 2013)31.
29
Outro documento de referência é o livro editado pela Secretaria, Das Lutas à Lei (PERNAMBUCO. Secretaria da Mulher, 2011).
30
O relatório do Instituto Latino Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente (ILANUD/Brasil, 2006)
aponta que não existem dados válidos e confiáveis (capazes de retratar fielmente a realidade e não descontínuos metodologicamente)
suficientes que possam estimar o valor de reincidência do cumpridor de penas alternativas, nem mesmo se considerarmos apenas o regime
prisional. Até o momento, são suspeitas afirmações generalizantes, embora, em determinadas circunstâncias estritas, haja indícios quanto a
capacidade das penas alternativas em evitar novas contravenções.
31
Na maior parte o sucesso é estimado à luz da ausência de reincidência. Consideramos que esses resultados são muito imprecisos. Em
primeiro lugar, a reincidência é um critério vago: afinal o que é reincidir, quando estamos tratando de violência doméstica? Muito do que
ocorre no âmbito privado não chega ao conhecimento público, portanto, não há como saber se a violência realmente cessou ou se assumiu
novas formas, mais discretas. Em segundo lugar, do ponto de vista comparativo com os que não passam por intervenção, os resultados
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Há que se considerar que esses grupos são formados segundo o discernimento dos juízes. No caso
particular dos cumpridores de penas alternativas, por um lado, implica em verificar como a
circunstância complexa da violência de gênero passa pelo crivo do magistrado e converte-se em
um crime de menor potencial ofensivo32. E, por outro lado, situar, sob que perspectiva,
compreende-se que esses homens oferecem risco e estão dispostos a adotar outras formas de vida.
A fim de definir o perfil do autor e a situação de violência doméstica, trabalhamos com dados
secundários (FLICK, 2013; GIL, 2007), levantados e colecionados por outros agentes.
Procedemos a coleta de informações processuais e sentenças disponíveis ao público no site do
Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE). Conquanto o acesso mais detalhado dos processos e
sentenças seja restrito – incluindo os depoimentos ou defesas –, consultamos alguns metadados
do processo. Trabalhamos também com dados coletados pela equipe técnica da CEAPA de Santa
Cruz do Capibaribe numa ficha de “entrevista psicossocial – autor do fato” durante um mutirão
criminal promovido pelo Fórum de justiça da comarca de Santa Cruz do Capibaribe, em 2013.
A ficha de “entrevista psicossocial – autor do fato” reúne uma série significativa de informações.
Por ter sido elaborada e utilizada em função de um mutirão da justiça criminal, foram coletadas
informações acerca do arguido que são relevantes para a decisão judicial. As fichas foram
preenchidas por duas técnicas diferentes da CEAPA de Santa Cruz do Capibaribe, uma psicóloga
e a outra assistente social. Embora tenham sido coletadas mais de cem fichas no mutirão,
trabalhamos apenas com aquelas em que houve condenação (40), e dessas destacamos 25, que
mantinham uma padronização suficiente.
Dividimos o Trabalho em três partes. Na primeira parte, discutimos como se tem avaliado a
aplicação das Penas Alternativas nos casos de violência doméstica praticada contra a mulher. Na
segunda parte, tratamos do modo como a justiça lida com os menores incidentes de violência e
os encaminham para os Grupos Reflexivos Masculinos. Consideramos as sentenças levantadas
no site do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Fizemos uso das fichas de entrevistas psicossocial
das CEAPA a fim fornecer um quadro representativo do perfil do cumpridor e da situação de
violência dos homens autores de violência que cumprem ou cumpriram penas alternativas no
Grupo Reflexivo Masculino de Santa Cruz do Capibaribe, inspirados no modelo ecológico de
Heis (1998). Por fim, apresentamos algumas considerações finais em caráter conclusivo.
1. Pensando as alternativas
tronam‐se ainda mais imprecisos. Cumpridores de Penas Alternativas não oferecem o mesmo risco do que os encarcerados. Desse modo,
comparar resultados de reincidência entre esses grupos seria inadequado.
32
Crimes cujas penas não ultrapassam dois anos, a não ser em casos em que se preveja tratamento especial: lesão corporal leve, vias de fato,
ameaça, calúnia, difamação, injúria, etc.
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Bárbara Soares (2012) propõe-se a exercitar uma reflexão acerca das implicações para a política
de enfrentamento da violência contra a mulher da adoção irrestrita da noção de violência contra
a mulher. Segundo Soares (2012), tomada como efeito unívoco da dominação patriarcal, a
violência contra a mulher requer uma resposta política, “a criminalização generalizada”: “A noção
de que a violência é um crime tornou-se uma premissa inquestionável, válida para qualquer
situação em que a mulher for agredida, independente do contexto, da intensidade e da forma de
agressão” (SOARES, 2012,p. 196).
Diante desse cenário, urge discutir os efeitos do endurecimento punitivo para os homens autores
de violência: teria o encarceramento (provisório ou punitivo) o verdadeiro efeito dissuasório
esperado? Segundo a autora:
A ideia de que algumas noites ou meses passados em uma cela possam transformar um autor
de violência doméstica em uma pessoa mais pacífica e respeitosa dos direitos alheios não
parece muito realista. Tanto mais se o preso obedecer ao script da dominação viril, que, no
ambiente prisional, encontrará as condições mais favoráveis para se exacerbar (SOARES,
2012, p.199)
Soares (2012) crê que a criação de centros de educação e reabilitação para os “agressores”, embora
escassos e carentes de maior formalização, podem constituir estratégias promissoras, que
permitiriam aos homens expressarem seus pontos de vista e atribuírem novos sentidos às suas
relações com as companheiras e consigo mesmo, desde que não seja “transformado em mera
prelação doutrinária” (SOARES, 2012: 205), em que o homem deve assumir integralmente a
culpa pelo incidente violento, mesmo quando há coparticipação da companheira, nos termos
colocados por um modelo que fixa posições para homens e mulheres, agressores e vítimas,
respectivamente.
Em seu artigo “Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero” e em sua obra
“gênero, patriarcado e violência”, Saffioti (2001 e 2004) reconhece as dificuldades do movimento
feminista em acatar a necessidade de se realizar um trabalho de intervenção mais profundo com
os Homens Autores de Violência: “como os recursos são escassos, tem-se priorizado o trabalho
com vítimas” (2001, p.122). Mesmo assim, Saffioti exalta o empenho realizado em se trabalhar
também com Homens Autores de Violência: “(...) trabalhando-se apenas uma das partes da
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relação, não se redefine a relação, seja ela marital, filial ou a que envolve outras personagens”
(2001, p.122). Deve-se evitar um trabalho parcial, focado em apenas um lado da questão; e frisar
que o problema da violência é relacional, portanto há outro lado que até então permaneceu
restrito à expectativa da intervenção rigorosa de máxima punição. Ela cita duas experiências em
que os juízes poderiam determinar a participação dos homens que cometeram algum tipo de
violência contra suas companheiras em grupos reflexivos formados por equipes multidisciplinares
ou prestar serviços em entidades de apoio a mulheres vítimas de violência doméstica. Saffioti
(2001) dá um grande crédito ao sucesso dessas experiências, indicando a redução do “índice de
recaída” (embora não ofereça elementos para pensar essa avaliação).
Debert e Gregori (2008) reconhecem a falha da pena de prisão, quanto a sua capacidade de
ressocialização e reintegração social, diante de um cenário desumano sedimentado ao longo de
décadas de descaso com o sistema prisional, segundo uma visão pragmática de sua razão de ser.
Contudo, as autoras são bastante céticas quanto as alternativas apresentadas e sua lógica
reconciliatória regida por uma ética do tratamento. O mote é a reconstrução da harmonia
familiar, não pela via da intervenção sobre as causas do conflito, mas através de mecanismos
terapêuticos de controle de sua manifestação realizado por especialistas de diversas ordens e
mediante a aplicação de técnicas de mediação de conflitos.
Medrado et al (2010) aborda a LMP enquanto dispositivo legal tomado como tecnologia de
governo da vida. Para o autor, as tecnologias constituem “um conjunto de conhecimentos,
instituições, pessoas, sistemas de valores, estruturas físicas e espaços nos quais e a partir dos quais
se estabelecem estratégias de governamentalidade” (METRADO et al, 2010, p.127).
A LMP, ao nomear o autor de violência como “agressor” – a fim de diferenciá-lo como ser vil e
perigoso –, aponta para duas possibilidades para gerenciar a ameaça que ele representaria à
mulher: a punição e o tratamento. O ato da nomeação do autor de violência como agressor,
portanto, desdobra-se em linhas de ação prática que guardam coerência discursiva com o termo.
A ideia de tratamento tomaria como ponto de partida o ser rude, hostil, incontido e
temperamental encarnado no agressor.
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aquele que pratica a violência, mas a incondicionalidade da imputação traz consigo o risco de
desdobrar-se na incapacidade de escuta: ele mente ou é esquivo, dissimulado e enganador.
Para Medrado et al (2010), as diferentes concepções de agressor confluem para uma visão comum
que o caracteriza, não pela conduta desviante ou “natureza biológica”, mas, a partir de sua moral,
como indivíduo incapaz de autogoverno, portanto, carente de uma reabilitação terapêutica que
restitua o controle sobre si mesmo. Como corolário da forma universalizante de atuação da
justiça, “o modo como o discurso contemporâneo sobre o controle do crime combina formas
aparentemente incompatíveis na caracterização dos problemas abordados e nas formas de
solucioná-los” (MEDRADO et al, 2010, p.134) tenderia a negar ou ocultar a dinâmica política
que atua por trás das manifestações de violência. O que resta, pelo solapamento das
especificidades das relações de poder desiguais entre homens e mulheres, é o agressor comum,
cuja conduta se explicaria pela ausência de liames morais com a comunidade ampla e a concessão
irrestrita aos próprios caprichos egoístas.
Art. 44. As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade,
quando:
I – aplicada a pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for
cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se
o crime for culposo;
II – o réu não for reincidente em crime doloso;
III – a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem
como os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente.
Para resolver esse quebra-cabeça precisamos ir além do enquadramento criminal para caracterizar
a situação de violência. Lori Heis (1998) apresenta um modelo que, ao menos de três maneiras,
avança na compreensão da violência baseada em gênero. Em primeiro lugar, seu modelo
apresenta-se como instrumento heurístico capaz de reunir e organizar uma diversidade de fatores
preditivos da violência de gênero. Em segundo lugar, o esquema baseia-se nos dados disponíveis
sobre o fenômeno, em diversos países e contextos socioculturais. E, em terceiro lugar, consideram-
se as ocorrências tanto de violência física como sexual.
O modelo ecológico de Heis (1998) compreende a violência baseada em gênero como produto
de um conjunto de fatores em múltiplos níveis: nas esferas pessoais, situacionais e socioculturais.
Essa constelação de fatores preditivos foi identificada a partir de indícios e levantamentos
estatísticos de uma ampla diversidade de estudos. Posteriormente, os fatores identificados foram
organizados na forma de círculos concêntricos, cujo núcleo representa a dimensão pessoal e a
maior circunferência, a dimensão sociocultural. Devemos destacar que, mesmo para Heis (1998),
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o status causal dos fatores não é sempre claro: em alguns casos é possível afirmar apenas que, com
determinada frequência, estão presentes nos episódios de violência; noutros, há divergências
quanto ao modo como operam para produzir a violência. Adotamos os fatores preditivos segundo
foi-nos possível identificar nos relatos constantes nas fichas de entrevista psicossocial. Alguns
deles ficaram de fora por força da insuficiência do instrumento.
Embora a previsão criminal do tipo de delito e a pena cominada possam conduzir a aplicação de
penas alternativas, é a identificação do sujeito e sua diferenciação com relação ao tipo “nocivo à
sociedade” que vai definir a adequada resposta punitiva por parte do Estado. Da conhecida
economia da justiça, em que o tempo que se permanecerá “fora de circulação” é determinado
pela gravidade do mal feito, o tipo de punição deverá ser decidido com a agregação de outro fator
à equação: além do delito, o tipo de sujeito sobre quem recairá uma pena. Mesmo que a avaliação
da personalidade estivesse presente antes, agora ela torna-se um fator delimitador claro de tipos
puníveis. Divide-se em duas categorias distintas o que antes era estimado apenas pelo montante
de “maldade” e “nocividade” presente sem solução de continuidade: definiam-se os extremos,
mas tudo o mais no meio ficava nublado. Passa-se, então, a exigir uma diferenciação clara entre
os tipos puníveis: os recuperáveis e os incorrigíveis (ROSE, 2000).
Prates (2013) apresenta-os em termos de uma dicotomia própria: haveria “os agressores” e “os
autores de violência”. Eles seriam distintos em termos da gravidade do delito. Os primeiros
caracterizariam aqueles que cometeram crimes graves contra as mulheres (lesão corporal grave,
tentativa de homicídio, estupro ou homicídio). Os segundos, os que, além de não apresentar
antecedentes criminais, cometeram alguma agressão “leve”. Acreditamos que essa classificação é
parcial, na medida em que leva em conta apenas a gravidade do delito e a reincidência. Elas são
condições necessárias, mas não suficientes para a concessão de Pena ou Medida Alternativa, e,
sendo assim, para uma distinção criminológica dos sujeitos.
O Juiz deve proceder, com efeito, a uma avaliação quanto a possibilidade de um indivíduo vir a
cometer novas atrocidades e condições de reparo de suas inclinações pessoais para causar danos
a outras pessoas. São imputações subjetivas que recaem, não apenas sobre a conduta desviante,
mas sobre o próprio indivíduo: aquele capaz de tais atos e passíveis de recuperação e reintegração
ao convívio social e familiar. Por ofício, ele precisa decidir, em cada caso, qual a pena mais
adequada ao perfil do réu, utilizando o que estiver a sua disposição para esse julgamento. Uma
vez que o imputado atenda aos requisitos objetivos para a concessão de pena alternativa, ele
deverá ainda preencher os requisitos subjetivos como condição de suficiência (ILANUD, 2006).
Assim identificamos tendências nos perfis dos cumpridores que resultam das escolhas e seleção
operadas no curso do processo criminal, mais do que um perfil representativo do patriarca
“moderado”. É o produto final do processo que analisamos. Não nos foi possível comparar com
aqueles que receberam penas mais severas ou não foram penalizados de todo seja por que a queixa
registrada nunca foi a julgamento ou por que receberam sentença absolvitória por falta de
materialidade ou culpa. Esses dados poderiam relativizar melhor os encontrados e permitir
ampliar o alcance de nossas conclusões.
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2.1. As sentenças
Foi-nos impossível determinar, no momento, com que regularidade as penas alternativas são
aplicadas. Não obstante, a totalidade de nossa amostra – 25 casos estudados de Santa Cruz de
Capibaribe – enquadrou-se nos crimes de Lesão Corporal (art. 129 do CPB), praticada contra
ascendente, descendente, irmão, conjugue ou companheiro, com quem conviva ou tenha
convivido (§ 9º, introduzido pela Lei 11.340/06 – LMP). Em alguns casos, concorre o crime de
ameaça (art. 147 do CPB). Desse modo, as penas não poderiam ser superioras a dois anos. Como
réus primários, ao assumirem a responsabilidade pelos atos, as penas gravitavam em torno de um
ano e seis meses e um ano e nove meses quando concorria a Ameaça além da Lesão Corporal.
É verdade que, conforme dissemos, a reincidência constitui um indicador fraco para estimar o
sucesso das medidas adotadas para impedir novos incidentes de violência. E a ausência de novos
incidentes tramitando na justiça nesses quatro anos apenas comprova a sua inadequação. Cumpre
lembrar, contudo, uma característica importante do grupo analisado: todos os processos da nossa
amostra estavam represados por alguma razão nos tribunais, portanto não representam o tempo
médio dos julgamentos de Violência Doméstica e Familiar em geral.
Os elementos condicionantes da aplicabilidade das penas alternativas (art. 44, inciso III do CPB)
– culpabilidade, antecedentes e conduta social – estão presentes nas sentenças de modo
padronizado e informam os seguintes contextos. Da culpabilidade, “está comprovada,
considerando-se reprovável sua conduta porque responsável pela estabilidade familiar, provocou
desnecessariamente conflito no âmbito do próprio lar, agredindo fisicamente e moralmente
pessoa que convivia em sua companhia”. Dos antecedentes, “não há registro de fatos
desabonadores de sua conduta na folha de antecedentes criminais, exceto aquele que trata os
presentes autos”. E da Conduta Social, “mostra-se dentro do comportamento esperado para o
homem médio, muito embora tenha lhe faltado o equilíbrio suficiente para manter a paz no
âmbito da própria família”.
33
http://www.tjpe.jus.br/consulta/processual/1grau (último acesso: 01/04/2014).
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2.2. O perfil
Para caracterizar a situação de violência, partiremos do perfil do homem: idade, religião, nível de
escolaridade, ocupação, nível de renda, estado civil e relação com drogas, especificamente o
álcool. Com esses atributos, vínculos socais e pertencimentos, pretendemos recompor o perfil do
Homem Autor de Violência cumpridor de pena alternativa.
Os homens têm em média 37 anos. Mais de 75% situam-se na faixa de 20 a 40 anos: 40% até 30
e 35% de 31 a 40 anos. São poucos casos, portanto, de homens com mais de 41 anos. O mais
velho entre eles tinha 60 anos de idade. Percebemos, portanto, que são jovens adultos e adultos
jovens os autores de violência, distintos da imagem de um patriarca velho governando a casa,
portador de tradições machistas e dominadoras.
Em sua maioria, os homens declararam-se como católicos (56%); seguidos pelos Evangélicos e
Testemunhas de Jeová (20%). Os demais (24%) declararam-se sem religião. A associação entre
religião e a violência doméstica pode ser resultado de uma visão de mundo tradicionalista.
Contudo, apenas essa correlação não permite concluir a respeito da participação da visão de
mundo religiosa sobre a violência doméstica. E, conforme se pode observar na amostra, há uma
parcela significativa de homens que se declararam sem religião.
A grande maioria tem apenas o Ensino Fundamental 1 incompleto, 64%. O maior nível é o
ensino médio completo, 4%. A baixa qualificação reflete sobre a sua capacidade de rendimentos
no mercado de trabalho: 60% recebe um salário mínimo ou menos. O maior nível de renda é de
mais 1 a 3 Salários Mínimos: 36%. Os 4% restantes não têm renda. A maior parte exerce
atividades na área de serviços – motoristas, moto-taxistas, serventes, e etc. – ou são empregados
na indústria de manufatura e agricultores. O baixo nível de renda e a situação no mercado de
trabalho podem constituir fatores de estresse na vida desses homens. De fato, quando
perguntados sobre o que esperam do futuro, respondiam que desejavam estabilidade financeira
ou um negócio próprio a fim de dar um futuro melhor para os filhos.
Os dados sobre as companheiras ou ex não são tão consistentes. Contudo, podemos constatar
que a grande parte exercia alguma atividade remunerada, especificamente como costureira, com
renda de um salário mínimo. Em apenas um caso, encontramos uma dona-de-casa. Se por um
lado, isso poderia retirar a carga de responsabilidade pela manutenção do lar; por outro lado,
colocaria em questão a exclusividade de controle do homem sobre os recursos da casa. Mas nada
atesta essa relação de modo definitivo.
Quanto ao uso de drogas, a maioria diz fazer uso do álcool ou álcool e cigarro, 60%. Não
demonstram desejo de parar ou diminuir, e alegam fazer uso apenas recreacional. Em um caso, o
entrevistado fez questão de frisar que o incidente nada teve a ver com a bebida. É espantoso que,
em 40% dos casos, os homens afirmaram que não fazem uso do álcool. Evidentemente, não
podemos esperar um autodiagnostico preciso quanto a toxicodependência alcoólica. Também
não fica claro se o uso de bebidas alcoólicas esteve associado ao incidente de violência. Apenas o
relato dos fatos poderá jogar luz sobre essa questão.
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Ao considerarmos o estado civil, podemos verificar a presença de homens solteiros (52%), casados
(24%) e em união estável (24%). Os solteiros não estão necessariamente desacompanhados. Em
36% dos casos, os homens mantiveram sua relação com a ofendida, na condição de companheiras
ou esposas. Alegam conviverem em harmonia. Os que se separaram encontraram novas
companheiras ou voltaram a se casar, e afirmam igualmente manterem relações amistosas com a
ex.
A situação de violência doméstica e familiar contra a mulher pode ser entendida como a
disposição dos objetos (materiais, emocionais e/ou simbólicos), presentes ou passados, que
definem um contexto de ação, especificamente de violência. Para caracterizar a situação de
violência, procuramos referências na bibliografia disponível: primeiramente em Azevedo (1985)
e, em seguida, em Heist (1998). Contudo, em virtude das limitações dos documentos utilizados,
fizemos algumas adaptações.
Definimos três tipos de conflitos: domésticos, familiares e conjugais. É importante assinalar que
eles podem aparecer associados numa mesma situação. Não se trata, portanto, de reduzir a um
único fator o incidente violento. Do mesmo modo, percebemos que eles têm um vetor: embora
seja algo latente na relação, um dos dois assume a iniciativa para a sua resolução. Buscamos, na
medida do possível, identificar o vetor. Nem sempre o vetor é aquele que agride. As agressões
ocorrem em todos os casos por parte dos homens (significa que ele não é uma variável). Mas, em
algumas outras situações, as mulheres também agridem. Assim, nos conflitos, devemos apontar
qual o vetor e se a agressão é mútua. Definimos, enfim, os conflitos da seguinte forma:
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Dos 25 casos coletados, 06 não contêm qualquer descrição inteligível do incidente. Desse modo,
foram descartados. Os demais, 19 casos, foram classificados segundo as categorias que
apresentamos acima. A fim de demonstrar a coerência de aplicação, selecionamos um caso para
descrever na íntegra o incidente para cada situação. A descrição é livre: não é a mera transcrição
do texto, mas uma apresentação coerente dos acontecimentos.
Os Conflitos Conjugais, como era de se esperar, constituem a maioria: dos 19 casos da amostra,
12 foram conflitos conjugais. A maior parte teve como vetor a mulher: em 8 casos, dos quais
apenas 2 foram de agressão mútua. O que esses dados querem realmente dizer? Na maior parte
das vezes, o comportamento do homem diante da relação afetiva entre os dois não agrada a
mulher. Ela, inconformada, procura mudar a situação; mas o homem, não aceitando, agride-a
arbitrariamente. Trata-se de um cenário bastante típico, principalmente quando envolve bebida
alcoólica (7 dos 12 casos de conflitos conjugais da amostra), segundo a descrição abaixo (Situação
1).
Situação 1: O Sujeito 13 informou que, depois do trabalho, saiu para ajudar um amigo numa
mudança. Em seguida, foram beber. Quando chegou em casa, não se sabe a que horas ou em
que condições, sua companheira reclamou. O Sujeito 13, descontente, agrediu-a com uma
cadeira de plástico e fez-lhe um corte superficial na cabeça.
Situação 2: O Sujeito 07 afirma ter chegado em casa quando encontrou, conforme relata, a
sua companheira embriagada e os filhos na rua. Ele, então, iniciou uma discussão com ela.
Não está claro, mas o Sujeito 07 afirma que a mulher foi agressiva com ele, em função do que
desferiu golpes contra ela.
Houve cinco ocorrências de Conflitos Familiares, na maior parte das vezes iniciados pelo
Homem. A bebida alcoólica não é relevante nesses incidentes e as agressões mútuas são a exceção.
No total, foram cinco incidentes, sendo quatro de iniciativa masculina e apenas um envolvendo
bebida alcoólica (Situação 3).
Situação 03: O Sujeito 05 sentia-se incomodado com roupa da filha. Não fica claro o porquê.
A companheira intercedeu, dando início a uma discussão. No meio da discussão, o Sujeito
05 relatou que a agarrou pelo pescoço e a jogou no chão.
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Do ponto de vista geral, observamos que as agressões mútuas, segundo os relatos, não são a regra,
mesmo quando o vetor é a mulher: em cinco dos 19 casos analisados. Por sua vez, a bebida
aparecia no contexto em cerca de 50% dos casos, ou seja, um pouco mais da metade. Vale
salientar que 60% dos homens confirmaram fazer uso do álcool de modo recreacional: em 9 de
15 casos que confirmaram beber, o álcool estava envolvido no episódio de violências
(considerando apenas os 19 casos inteligíveis dos 25 analisados). Os conflitos conjugais são
majoritários na amostra. Há incidência do consumo de bebidas no desenlace das agressões, mas
seu significado é diferenciado segundo o contexto: o consumo de bebida alcoólica dos homens
era mais problemático nos casos de violência conjugal ao passo que o consumo pelas mulheres
era mais significativo nos conflitos familiares. As agressões mútuas não eram a regra. Homens ou
mulheres aparecem como vetores, segundo o contexto: as mulheres tendem a trazer à tona os
conflitos em situações em que a relação afetiva está em questão; enquanto os homens, nas de
desacordo quanto a criação dos filhos e condução das atividades domésticas.
Registramos tendências que indicam formas de convivência doméstica, familiar e afetiva cuja
dinâmica aponta para a constituição de relações baseadas em diferenciais e jogos de poderes
referenciados no gênero. As formas como se iniciam, estruturam e chegam a termo os conflitos
denunciam as reivindicações recíprocas de gênero na relação a dois e com seus dependentes.
Embora apontem para jogos de poder baseados em gênero (GREGORI, 1989) e para a
predominância do homem no âmbito doméstico, os levantamentos não nos autorizam concluir
quanto a prevalência de um tipo patriarcal puro: chefe da unidade doméstica, cuja vontade situa-
se acima dos demais, de modo incontestável, tendo a seu dispor diversos instrumentos de controle
e opressão. O fato de alguns conflitos terem sido iniciados pela mulher revela dinâmicas
complexas de poder, mais abertas do que o modelo de patriarcado pode sugerir: as reações e a
resistência refletem ao mesmo tempo a recusa e a manutenção da ordem de gênero. As agressões
estão implicadas com sentimentos fortes de injustiça trazidos à tona pela compreensão de cada
um sobre os limites e obrigações colocados pelas relações entre gêneros. Embora não atenda
integralmente ao modelo de dominação patriarcal, os dados corroboram para vermos nos
conflitos sinais de desacordo de ideias, sentimentos e interesses fundados na desigualdade de
gênero e o no modo como ela é percebida e mantida.
Considerações finais
Das dimensões abordadas – a sentença, o perfil e a situação de violência –, podemos tirar algumas
conclusões que oferecerem alguns insights sobre como compreender o fenômeno da violência
doméstica e familiar contra a mulher e a forma como recebe tratamento pela justiça e
encaminhamento para os grupos reflexivos. A Justiça tende a focalizar o aspecto criminal do
incidente. Ao fazê-lo, reduz a violência de gênero que ocorre no âmbito doméstico à disposição
criminológica do homem: incapacidade de autocontrole e de gestão do ambiente doméstico. As
penas alternativas emergem como uma solução para os casos que, pela sua irrelevância criminal,
não teriam recebido pena que atendesse aos requisitos punitivos colocados pela LMP. Assim,
menos do que uma alternativa ao encarceramento, registra uma ampliação do poder punitivo do
Estado.
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Por fim, as situações de conflito são bastante variadas: domésticos, familiares e conjugais. Há uma
diversidade de combinações relativamente a quem toma inciativa no conflito e a mutualidade das
agressões. Embora a maioria dos homens tenha declarado beber de modo recreacional,
verificamos que não é em todo caso que a bebida se fez presente e não são apenas os homens que
fazem uso de bebida e têm nela um fator interveniente no conflito. Seja como for, as declarações
transcritas tendem a retratar situações de conflito em que, às vezes a mulher tem a inciativa, mas
sempre o homem quer ter o último argumento contundente.
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Resumo
O Construcionismo Social emerge da crítica pós-moderna às metanarrativas atemporais,
universalizantes e não-localizadas e da crise da Psicologia Social com o objetivo de representar
uma alternativa válida frente ao modelo empiricista desta ciência. Kenneth Gergen, um expoente
do movimento construcionista, propõe a desestabilização de convenções sociais por meio de
profunda crítica interna, sendo este o objetivo deste trabalho: desestabilizar a categoria
Masculinidade Hegemônica, desconstruindo-a, ao suspeitar de sua autoridade e transcender
possíveis descrições, para então reconstruí-la no esforço de propor novas versões, na possibilidade
de promover a transformação social. A Masculinidade tradicional e idealizada, definida como
Hegemônica, é aqui entendida como padrões de práticas normativas, que incorpora uma forma
de ser homem, exigindo de todos os homens um posicionamento em relação a ela, legitimando
a ideologia que coloca as mulheres na condição de subordinação. Para desestabilizá-la, resgata-se
o conceito de Self para Gergen, que o descreve como um discurso produzido por condições sócio-
históricas concretas e que as narrativas sobre este estão disponíveis no social para sustentar
relacionamentos. Com a pós-modernidade, promovida pelo desenvolvimento tecnológico e
midiático ocorrido nas últimas décadas, produz-se uma condição que arrasta o Self em múltiplas
e contraditórias direções em um processo de saturação social e, assim, a construção de um Self
Saturado. Propõe-se, desta forma, a suspeita de uma Masculinidade Hegemônica e a emergência
de inúmeras masculinidades disputando sentidos, produzindo consensos e dissensos. Destas
produz-se, tal como o conceito de Self, uma Masculinidade Saturada, ampliada pelos diversos
relacionamentos, gerando complexos diálogos internos, inviabilizando uma identidade fixa e
única, possibilitando uma forma mais espaçosa e flexível de se relacionar com o mundo, ou seja,
impossibilita uma Masculinidade Hegemônica. A Masculinidade Saturada, por possuir
fundamentos epistemológicos do Construcionismo Social, deve ser entendida por sua localidade
e seu processo histórico-cultural, como linguagem, performativa, nasce no interior do diálogo
com os outros. A desestabilização da Masculinidade Hegemônica e a opção por Masculinidade
Saturada não nega a posição de poder e a hierarquia de gênero, mas sim, busca dentro das
inúmeras narrativas de masculinidade, revelar as que privilegiam a igualdade e a democratização
de direitos.
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Introdução
A discussão acerca do conceito de Masculinidade e o seu uso tem crescido nos últimos anos, seja
para o planejamento de políticas (VILLELA, PEREIRA, 2012), ou para construção de estratégias
de atendimento a homens autores de violência contra mulheres (BEIRAS, CANTERA, 2012;
2014; 2015; ANDRADE, 2014; BANIN; BEIRAS, 2016), ou ainda, para discutir ações de saúde
do homem (VASCONCELOS et. al., 2016).
Assim, poderíamos dizer que esse trabalho tem um interesse em dar um passo a frente dessa
discussão, contudo, nossa intenção é dar um passo para trás, não como quem quer se fixar ao
passado, mas sim para nos afastarmos e olhar o conceito de masculinidade, em especial, o
conceito de Masculinidade Hegemônica proposto por Raewyn Connell34. Este olhar terá como
binóculos o Construcionismo Social e as possibilidades epistemológicas que propõe os autores
deste movimento para pensar as várias verdades científicas.
Construcionismo Social
Esses fundamentos, também compreendidos como mitos por Maria Conceição Nogueira, Sofia
Neves e Carlos Barbosa (2005), são: Mito do Conhecimento Válido que represente de modo
correto e fiel a realidade; o Mito do Objeto como elemento que constitui o mundo; o Mito da
Realidade independente dos indivíduos; e o Mito da Verdade como critério decisório.
34
Optamos por citar ao longo do texto Raewyn Connell mesmo quando o texto utilizado estiver apresentando o nome Robert Connell.
Mantivemos apenas nas Referências para que o leitor possa localizar as obras sem dificuldades.
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Ao suspeitar desse modo de produzir a Verdade que explica o mundo, o Construcionismo Social
apresenta alternativas epistemológicas (CONCEIÇÃO NOGUEIRA, NEVES, BARBOSA,
2005) que partem da compreensão que existem inúmeras verdades, e que estas disputam sentidos
e modos particulares de explicar o que reconhecem enquanto mundo (GERGEN, GERGEN,
2010).
Partindo dessas alternativas epistemológicas à ciência moderna é que Kenneth Gergen (1992)
encontra caminhos para pensar o Self como uma construção relacional, em contraposição a
compreensão romântica, que entende o Self como constituído de características profundas e
idiossincráticas das pessoas (paixão, alma, afetos) e, da mesma forma, contrária a compreensão
moderna, em que o Self está ligado a uma compreensão racional (opiniões, crenças).
Essas duas compreensões de Self são postas em questão na pós-modernidade, e portanto, pelo
Construcionismo Social, isso porque, partem de uma compreensão essencialista do Self,
afirmando que ele é, e não um contínuo está em constante construção e reconstrução (GERGEN,
1992). O Self, portanto, embora aparente apresentar uma identidade fixa e linear, não o é, estando
em fluxo contínuo, que compreendemos como um conjunto de espirais.
A contínua construção e reconstrução do Self acontece dentro do que Gergen (1992) denomina
de saturação social, sendo o grande fluxo de informações que acontece pela democratização das
mídias sociais, onde os sujeitos estão mais expostos a uma multiplicidade de modelos e influências
contextuais, nem sempre coerentes e em consenso, que os atravessam a todo momento,
impossibilitando a manutenção de um Self fixo e estável.
Esse grande fluxo de modelos e possibilidades de alternativas, povoando o Self, permitem que o
sujeito, embora aparente ter um senso de coerência interna e uma identidade, possa surpreender
com características ou comportamentos até então nunca revelados (GERGEN, 1992),
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acontecendo quando esse sujeito é colocado frente a outras relações conversacionais que o
permitam uma “nova” linguagem para narrar sua realidade.
Destacamos, que esses modelos e possibilidades só são possíveis por meio da linguagem e
discursos que são preexistentes ao sujeito, da mesma forma, para acessarmos o Self só será possível
por meio da linguagem, ou seja, das narrativas produzidas pelo sujeito acerca do si, o que nos leva
a afirmação de que o Self é uma construção social, onde sem a linguagem não haverá nenhuma
possibilidade de um Self (GERGEN, 1992, 2011).
Contudo, a grande quantidade de linguagens e discursos que vão chegando ao sujeito e sendo de
alguma forma internalizadas, o Self vai ampliando suas possibilidades de agir no mundo,
construindo, desconstruindo e reconstruindo relacionamentos e narrativas, sempre nessa espiral
de constante mudança (GERGEN, 1992). É justamente essa espiral de mudanças constantes que
possibilita a construção de um Self Saturado, onde o sujeito, em sua rede conversacional, em uma
relação pode ser um e em outra relação pode ser outro, dependendo com quem está se
relacionando. Em outras palavras, seu Self enquanto construção narrativa pode “mudar”
conforme o contexto em que está inserido.
Com a saturação do Self, ou seja, com as inúmeras narrativas a sua disposição em seus
intercâmbios conversacionais, o Self se expande em multifrenia (GERGEN, 1992), dissociando a
ideia de sujeito e a possibilidade de dizer o que é meu e o que é do outro. Nas palavras de Gergen
(1992, p. 26) “un yo realmente saturado, deja de ser un Yo”, ou seja, surge um Self Vazio, que
será preenchido na interdependência relacional, o que significa afirmar que, na pós-modernidade
o Self deixa de ser algo estático e do indivíduo para ser um Self Relacional.
Assim, reafirma Gergen (2011), o Self é socialmente construído, dentro de um contexto histórico
e cultural, da mesma forma, é uma realização social, ou seja, é possível devido a linguagem em
uso, na prática conversacional, em interação contínua. Ainda, os discursos do Self são
performativos, onde as palavras viram ação, carregando uma história dos relacionamentos,
manifestando-as e estendendo-as (GERGEN, 2011).
Masculinidade Hegemônica
Todas as sociedades possuem registros sobre como conceituam Gênero, contudo, nem todas
possuem um conceito definido para a Masculinidade (CONNELL, 2003). Em termos históricos,
tal como o contexto em que o Construcionismo Social encontrou espaço para se tornar possível
enquanto alternativa as ciências positivistas, da mesma forma a década de 1970 possibilitou um
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terreno fértil para iniciar uma virada na compreensão de Gênero e, portanto, abrindo espaço
para as discussões sobre a masculinidade (CONNELL, 1995).
Os chamados "Estudos dos Homens", enquanto disciplina, e, por consequência, o estudo das
masculinidades, surgiram no final da década de 1970 e início da década seguinte, como uma
resposta positiva frente aos "Estudos das Mulheres" e ao Feminismo, quando começou-se a
perceber que o sistema de gênero havia sido ignorado na análise de homens enquanto sujeitos de
pesquisa (KIMMEL, 2008).
Contudo, é inevitável destacar que o Feminismo exerceu, e ainda exerce, grande relevância na
construção do conceito de Masculinidade (CONNELL, 1995; KIMMEL, 2008), em dois aspectos,
em especial, sendo o primeiro deles, conforme aborda Michael Kimmel (2008), a compreensão
do Gênero enquanto sistema de classificação que estabelece critérios que estabelece que as
mulheres se tornem femininas e os homens masculinos, e enquadra-os em relações de poder que
produzem a desigualdade.
Sendo assim, a masculinidade não é um objeto coerente em que se possa construir uma ciência
universalizante, justamente por não ser um objeto isolado, mas participante de uma estrutura
maior, em sociedades que definem mulheres e homens com qualidades diferenciadas entre si
(CONNELL, 1995).
A masculinidade não é uma entidade fixa encarnada no corpo ou nos traços da personalidade
dos indivíduos. As masculinidades são configurações práticas que são realizadas na ação
social e, dessa forma, podem se diferenciar de acordo com as relações de gênero em cenário
social particular. (p. 250).
Em nosso cenário social particular, estabelecido pelo patriarcado, Connell (1995), estabelece o
conceito de Masculinidade Hegemônica, como sendo um conjunto de práticas que homens e
mulheres exercem, hierarquizando as relações entre os gêneros, colocando e legitimando os
homens em posição de superioridade frente as mulheres.
Contudo, essas práticas de legitimação que tornam possível uma Masculinidade Hegemônica não
hierarquiza apenas as relações entre homens e mulheres, pois, a compreensão que existe uma
Masculinidade Hegemônica requer reconhecer que existem outras masculinidades que são
subalternas a ela (CONNELL; MESSERSCHMIDT, 2013).
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Embora outras críticas sejam apontadas, Connell e Messerschmidt (2013) apontam que a única
crítica a ser considerada é a tendência das pesquisas de colocar o estudo de homens distanciado
das mulheres, como se não fossem importantes para uma análise que seja realmente relevante.
As críticas e o modo como Connell e Messerschmidt (2013) as desconstroem são utilizadas aqui
como ponte para abordarmos a entrarmos na discussão acerca da Masculinidade Saturada e o
modo como ela pode ser utilizada dentro de uma perspectiva socioconstrucionista.
Essa compreensão de que o Self é uma construção relacional nos permite questionar: Poderia a
Masculinidade Hegemônica ser compreendida como uma construção social? Ou mesmo uma
construção relacional?
Para Sheila McNamee (2012) nosso sentido do que significa ser uma pessoa e o que significa viver
no mundo não existe além das tradições e práticas locais de intercâmbio comunitário em que
participamos. Em outras palavras, o que McNamee (2012) pretende dizer é que quando
começamos a pensar os sujeitos a partir de uma postura relacional, vemos a construção de um
sentido do Self como uma realização também relacional. E o que isso tem a ver com a
Masculinidade Saturada? Queremos trazer duas citações de Connell e Messerschmidt (2013) que
consideramos importantes para seguirmos a diante no nosso objetivo.
A primeira citação trata que "[...] as masculinidades hegemônicas podem ser construídas de forma
que não correspondam verdadeiramente à vida de nenhum homem real. Mesmo assim esses
modelos expressam, em vários sentidos, ideais, fantasias e desejos muito difundidos."
(CONNELL; MESSERSCHMIDT, 2013, p. 253). A segunda citação que escolhemos destacar
está focada no contexto: "No nível local, padrões de hegemonia da masculinidade estão
embutidos em ambientes sociais específicos [...]" (CONNELL; MESSERSCHMIDT, 2013, p.
253).
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Podemos traduzir a primeira citação como as linguagens e discursos que coexistem, onde, destas,
produz-se, tal como o conceito de Self, a Masculinidade Saturada. Cabe-nos lembrar que estes
ambientes sociais podem ser traduzidos, no Construcionismo Social, como contextos em uma
mesma cultura, com elementos diferentes, mas também como ambientes culturais diferentes,
tanto no nível das microrrelações, como em relações mais ampliadas.
Não pode-se descolar do contexto histórico e cultural em que a Masculinidade Saturada é possível de ser
pensada. Esta localidade está presente na segunda citação, o que, para o Construcionismo Social, pode-se
afirmar que para cada ambiente social específico há uma determinada masculinidade que será hegemônica
e possibilitará a utilização de determinadas narrativas que a legitima ou resiste a ela.
Como exemplo, um professor de Psicologia Social em uma sala de aula com suas alunas (corpos
femininos) terá sua masculinidade colocada em uma relação diferente do que esse mesmo
professor, agora como aluno de artes marciais, em uma turma com outros alunos (corpos
masculinos). A linguagem que utilizará para as conversações serão colocadas em ação de modos
diferentes nestes contextos diferentes, em outras palavras, poderá não ter a mesma
performatividade, podendo até ser a mesma, mas terá efeitos diferentes, como também pode ser
diferente em adaptação aos diferentes contextos.
Esse sujeito não se relaciona apenas nesses dois contextos, mas em inúmeros outros, da mesma
forma, seus relacionamentos também vão além do contato físico, são virtuais, em redes sociais e
na utilização de meios de comunicação (séries televisivas, filmes de outras nacionalidades, por
exemplo), ou seja, o Self é saturado de inúmeras possibilidades de performar sua masculinidade,
"[...] na qual a mente individual perde sua base ontológica, transformando todos os constituintes
do Self em construções culturais historicamente contingentes" (RASERA, JAPUR, 2005, p. 25).
Estamos insistindo na performatividade, que na opinião de Íñiguez (2005) Judith Butler pode
contribuir com o Construcionismo Social com sua compreensão sobre esta Performatividade,
independente da discussão se tudo é uma construção social ou uma construção discursiva.
Acreditamos nessa contribuição, pois tal como Gergen (1992) pensa o Self a partir do seu
esvaziamento, o Self Vazio, para em seguida, ser preenchido pelas inúmeras linguagens presentes
no mundo, Butler (2002, 2003) também concebe o Gênero como uma categoria vazia, preenchida
por questões culturais e discursos e assim constroem as inteligibilidades dos corpos.
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Afirmamos, tal como Íñiguez (2001), que as narrativas constroem subjetividades, isso porque a narração
tem um efeito modulador do que sentimos e no que fazemos, sendo impossível escapar da linguagem, pois
ela mesma constitui a própria realidade. Como já foi abordado, através da linguagem que são transmitidos
todos os produtos elaborados socioculturalmente e apenas através da linguagem podemos nos colocar em
contato com a nossa experiência que entendemos como subjetividade (BEIRAS, 2012).
O que queremos dizer com isso? Tão importante quanto localizar quais as masculinidades estão
disputando sentido em determinado contexto, em uma disputa em que a vencedora será
denominada como hegemônica pelas/os pesquisadoras/es, para a/o pesquisador/a que tem
como base os fundamentos socioconstrucionistas é também se relacionar com esses corpos que
colocam suas masculinidades em ação e compreender como estão narrando estas masculinidades
naquele determinado contexto, sem esquecer que ao estabelecer uma conversação com estes,
outras masculinidades podem emergir das narrativas.
Para Gergen (2007) contarmos histórias para nos fazermos compreensivos não é ir longe demais,
pois não contamos apenas nossas vidas como histórias, mas também existe um sentido
significativo em que nossas relações com os outros acontece na forma de narrativas, ou seja, é
possibilitar que nossa experiência fique visível, na mesma direção de Joan Scott (1998), e
portanto, inteligível.
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seus efeitos nos corpos, estes saturados no paradoxo de tanta informação, tantas possibilidades,
tanto narcisismo, tanta individualidade.
Esse paradoxo, ao tensionar as normas e as relações de poder que regulam o cotidiano de corpos
performáticos, que encontram e desencontram, constroem e desconstroem (n)as narrativas que
legitimam a desigualdade e a diferença entre os gêneros, pode permitir que aquilo que foge aos
enquadramentos, que escapa a norma, saia da marginalidade e dispute sentidos nos jogos de
verdade, portanto, as relações de poder entre as narrativas não desaparecem com a Masculinidade
Saturada, mas amplia a matriz de inteligibilidade.
Considerações finais
Mantendo o posicionamento crítico que o Construcionismo Social nos implica, a escolha pela
nomeação de Masculinidade Saturada em vez de Masculinidade Relacional vem justamente de
uma escolha epistemológica em não querer substituir uma masculinidade pela outra, mas sim
trazer a discussão a possibilidade de inúmeras masculinidades que atravessam o sujeito estarem
presentes e disputando sentidos neste mesmo sujeito e, como narrativas, serem colocadas em atos
performativos dependendo do contexto em que se relaciona.
Como exemplo, podemos citar o trabalho desenvolvido com grupos de homens autores de
violência contra mulher (BEIRAS, CANTERA, 2012; 2014; 2015, BEIRAS, 2014), onde, ao
possibilitar que estes homens entrem em contato com outros homens, e portanto, com outras
masculinidades e outras narrativas, possam rever a sua e o modo como se relacionam com o
mundo, possibilitando que esses enquadramentos normativos rompem consigo mesmos
(BUTLER, 2015).
O que representa isso? Nas palavras de Butler (2015, p. 29) […] representa a possibilidade de
colapso da norma; em outras palavras, é um sintoma de que a norma funciona precisamente por
meio da gestão da perspectiva de sua destruição, uma destruição inerente às suas construções".
Assim, quando o enquadramento rompe-se, aquela realidade aceita sem discussão entra em
colapso, expondo aquilo que procurava controlar com este enquadramento.
Com esta concepção de Masculinidade Saturada, acreditamos que nos afastamos dos quatro
mitos da ciência positivista moderna (CONCEIÇÃO NOGUEIRA, NEVES, BARBOSA, 2005)
e nos aproximamos das alternativas epistemológicas do Construcionismo Social, que vão além da
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postura crítica. Podemos afirmar que buscamos que a Masculinidade Saturada também seja
antiessencialista, questionadora das masculinidades geralmente aceitas, determinada pelo
contexto histórico e cultural, tendo a linguagem um papel importante em sua compreensão.
Neste sentido, o que pretendemos com este estudo, foi justamente o que González Rey (2012)
propõe como tarefa do Construcionismo Social, romper com a ideia de que a realidade objetiva
é única e passível de ser descoberta, na intenção de garantir posicionamento objetivo no
julgamento das formas universais das dimensões éticas, políticas ou de qualquer outro domínio
das práticas humanas.
Essa ruptura já é sugerida no texto de Connell e Messerschmidt (2013), tratamos apenas de pensá-
la pela ótica socioconstrucionista, assim, deixamos em aberto o conceito de Masculinidade
Saturada, para que possa da mesma forma ser colocado sob suspeita, desconstruído,
democratizado e, por fim, reconstruído em novas versões úteis para as pesquisas, estratégias e
políticas públicas com interesse nas masculinidades.
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Introdução
As políticas de saúde têm como desafio se adequar às constantes transformações que ocorrem no
perfil de morbimortalidade das populações. No Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) convive
com uma tripla carga de doenças, necessitando controlar as doenças infecciosas e investir na
redução da violência e de doenças crônicas (MARINHO; PASSOS; FRANÇA, 2016).
Em 2012, a taxa de mortalidade da população brasileira na faixa etária de 15 a 29 anos foi elevada,
correspondendo a 1,5 mortes/1.000 jovens. Dos óbitos registrados no período de 2000 a 2012,
79,6 % eram do sexo masculino e suas principais causas foram as violências e os acidentes
(NEVES; GARCIA, 2015). Em relação aos anos de vida perdidos prematuramente (YLL), os
maiores aumentos registrados no período de 1990 a 2010, entre os homens em geral, foram em
decorrência de transtornos relacionados ao abuso de álcool, diabetes, doença renal crônica,
suicídio, cirrose, doença hipertensiva e homicídios (MARINHO; PASSOS; FRANÇA, 2016).
Na tentativa de melhorar os indicadores de saúde da população, o Ministério da Saúde do Brasil
(MS) compreendeu que as ações deveriam perpassar pelo cuidado específico ao homem jovem e
adulto. Assim, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH) foi
formulada para qualificar a saúde da população masculina na perspectiva de linhas de cuidado
que resguardem a integralidade da atenção, tais como violência, doença cardiovascular e
reprodução/sexualidade (BRASIL, 2009).
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Método
Trata-se de uma revisão integrativa (SOUSA; SILVA; CARVALHO, 2010) que permitiu realizar
uma síntese dos principais estudos e documentos institucionais sobre a temática saúde do
homem, política pública e sofrimento psíquico (MENDES; SILVEIRA; GLAVÃO, 2008). Foram
avaliados estudos publicados entre janeiro/2010 e agosto/2016, nas bases de dados Literatura
Latino Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (Lilacs), Scientific Electronic Library Online
(Scielo), Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), bases de dissertações e teses, documentos
institucionais do Ministério da Saúde relativos à saúde do homem, bases que apresentam
pesquisas nacionais relacionadas a ciências da saúde e especializadas na temática de saúde do
homem.
A busca dos artigos seguiu os seguintes critérios: a inclusão de artigos publicados entre 2010 a
2016, redigidos em língua portuguesa, artigos na íntegra, publicações com foco na política de
saúde do homem e o sofrimento psíquico; e exclusão: publicações com formato em livros, cartas,
resenhas, temas livres, editorais, que não estiverem disponíveis na integra. Utilizou como
descritores: saúde do homem, políticas públicas de saúde, homens, estresse psicológico, em língua
portuguesa. A pesquisa foi realizada nos meses de julho a agosto de 2016.
Neste trabalho, somente serão analisados documentos institucionais disponíveis na homepage do
Ministério da Saúde. Os mesmos foram selecionados de acordo com a disposição apresentada no
Portal da Saúde – Secretária de Atenção à Saúde (SAS) – Departamento de Ações Programáticas
Estratégicas (DAPES)/ Saúde do Homem. Os dados coletados serão apresentados, de maneira,
sistematizada (figura 1), o qual são compostos pelos seguintes tópicos: apresentação do site,
destaque, legislação, publicações, financiamento e fale conosco. Esses dados estão
disponibilizados no link - http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/o-
ministerio/principal/secretarias/sas/daet/saude-do-homem
Resultados e Discussões
Para dinamizar a apresentação do resultado foi construída uma sistematização dos documentos
apresentados no portal da saúde, do Ministério da Saúde (figura 1).
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PORTARIA Nº 1.944, DE 27
Legislação DE AGOSTO DE 2009
Institui no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), a
Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem.
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A Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH) foi constituída pela
Portaria nº 1.944/GM, do Ministério da Saúde, em 27 de agosto de 2009. A mesma surge das
demandas de saúde dos homens, como as relativas à morbimortalidade, agravos e violência, como
também da necessidade de (re)organização da rede de atenção à saúde, com a inclusão da saúde
masculina. Ela visa promover ações de promoção de saúde e atividades especificas à esta
população, assim como a qualificação do profissional de saúde (BRASIL, 2016).
O segundo documento, Campanha Pai Presente: Cuidado e Compromisso, não estava disponível
no site. E o terceiro ressalta a garantia de direito que os homens/pais têm de acompanhar o
trabalho de parto, parto e pós-parto imediato nas unidades hospitalares (BRASIL, 2005),
demonstrando a importância desse acompanhamento para o homem e a mulher.
Relativo ao tópico publicações, os materiais encontrados são: publicações do próprio MS, como,
o Perfil da situação de saúde do homem no Brasil e a Política Nacional de Atenção Integral à
Saúde do Homem, que foram descritos em parágrafos anteriores. O Fortalecimento da Política
Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (MOURA, 2013); Plano de Ação
Nacional 2009 – 2011 (BRASIL, 2009); Cadernos HumizaSUS – Volume 4 – Humanização do
Parto e do Nascimento (BRASIL, 2014); Vigitel - Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para
Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico/VIGITEL (BRASIL, 2013). Como também,
materiais gráficos e educativos da CNSH/DAET/SAS/MS; alguns artigos científicos sobre saúde
dos homens; Manuais e pesquisas da sociedade civil e outras instituições, documentos descrito
nos parágrafos seguintes.
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nas reais necessidades deles. Complementando essa publicação, foi construído o Plano de Ação
Nacional (2009-2011), que visa a implantação e implementação da política nas unidades
federativas. O plano apresenta nove eixos a serem trabalhos pelos municípios, são eles: a
implantação da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem, Promoção de saúde;
Informação e comunicação; Participação, relações institucionais e controle social; Implantação e
expansão do sistema de atenção à saúde do homem; Qualificação de profissionais da saúde;
Insumos, equipamentos e recursos humanos; Sistemas de Informação, e Avaliação do Projeto-
piloto.
Seguindo as ações da Política foi publicado o quarto volume dos Cadernos HumanizaSUS, que
enfoca experiências de maternidades que trabalham com a humanização do Parto e do
Nascimento. Este trabalho serviu de base para a construção do processo de trabalho da Rede
Cegonha. O último documento, o VIGETEL (2013), apresenta dados de saúde e doença de cerca
de 56 mil pessoas, no ano de 2016. Foi coletado dados de excesso de peso e obesidade, tabagismo,
detecção precoce de câncer, consumo alimentar, prática de atividade física, e avaliação de saúde
e doenças crônicas. A conclusão desse estudo aponta para aumento do excesso de peso e
estabilidade da obesidade, aumento da prática de atividade física e redução do tabagismo.
Os materiais gráficos e educativos ressaltam a importância que o homem deve ter com o cuidado
à saúde. São eles: folder sobre a PNAISH; relativo a paternidade e a Lei do acompanhante. Há
uma preocupação nesses materiais com enfoque por faixa etária, gênero e raça.
Os artigos científicos abordam as temáticas dos documentos referidos acima e publicados nas
principais revistas cientificas relativas a ciências da saúde e saúde coletiva, e estudos em parcerias
entre o MS, as instituições de ensino, através dos grupos de pesquisa e as organizações não
governamentais (ONG), por exemplo, o Promundo – ONG que trabalha em prol da equidade
de gênero em todo mundo. Um dos temas que transversaliza essas publicações é a inclusão de
gênero na saúde.
Verifica-se na descrição dos trabalhos disponíveis no Portal da Saúde do Homem, que podemos
refletir a existência de um entrelaçamento nas informações, que perpassam sobre a temática do
sofrimento psíquico/saúde mental.
Um outro tema apontado nos documentos está relacionado a Paternidade, no artigo de Cortez
et al. (2016), os autores discutem a representação social do homem-pai junto aos profissionais de
saúde. O manuscrito traz em suas considerações, a falta de infraestrutura profissional e das
unidades de saúde, em acolher este homem-pai, e que o papel principal desta pessoa é prover, ou
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A elaboração da identidade masculina vem atrelada a concepção patriarcal, em que o homem foi
“educado” para não se aprofundar nos afetos – e sim no prover. Contudo, as modificações
culturais e sociais apontam que a masculinidade é constituída num continum.
A masculinidade pode ser vista como um espaço simbólico para estruturar a identidade do
homem. Porém, existem diversos modelos de masculinidade disponíveis, mas o mais
encontrado é o modelo hegemônico, no qual se destaca a dominação e a heterossexualidade
(FERNANDES, 2011, p.27).
Considerações Finais
Conclui-se que os materiais dispostos no Portal da Saúde do Homem não trazem a questão do
sofrimento psíquico diretamente relacionada à política nacional de saúde do homem e que a
mesma traz a perspectiva patogênica, do cuidado vinculado à doença e não ao doente. Contudo,
pode-se pensar que os temas abordados na política trazem transversalizados ou implícitos a
questão do sofrimento psíquico, mas não perpassando pela questão do gênero masculino, e que
a política/documentos foram construídos na lógica da doença. Necessário, portanto, maior
espaço para o aprofundamento dessa temática na implantação da política e, assim, melhorar o
cuidado à essa população.
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Resumo: Este artigo é resultado de uma pesquisa etnográfica realizada ao decorrer do ano de
2015, em uma escola pública da rede estadual de Alagoas. O objetivo do trabalho é compreender
a lógica das “brincadeiras” realizadas por adolescentes estudantes do ensino médio envolvendo o
gênero e a sexualidade. Para tanto, foram realizadas observações da rotina escolar de estudantes
na sala de aula e demais espaços de sociabilidade da escola. Além disso, foi utilizada a proposta
vídeo-discussão que consistia na exibição de filmes que tratavam sobre heteronormatividade no
ambiente escolar e familiar. O termo “brincadeiras”, aqui utilizado se refere ao discurso nativo
para a prática de uma “pedagogia do insulto” (Junqueira, 2011), que compreende: violência
simbólica e física, para com os sujeitos de expressão não-heteronormativa; e práticas regulatórias
envolvendo sujeitos que apresentam uma “performance atípica de gênero” (Butler, 2009). Havia
também “brincadeiras” de caráter menos frequente, nesse caso praticadas por estudantes
geralmente descritos na literatura como vítimas da “pedagogia do insulto”. É importante ressaltar
que a confiabilidade na dimensão lúdica do ato fazia com que a escola não encarasse as
“brincadeiras” como algo problemático e nem as/os estudantes que praticavam as “brincadeiras”
se percebessem enquanto agressoras/es. Porém as “brincadeiras” revelam práticas regulatórias
violentas envolvendo o gênero e a sexualidade no espaço escolar, que adquirem contornos
específicos de acordo com a “moralidade” local. Nesta pesquisa, a noção de “alarde” mobilizada
por as/os estudantes evidencia uma moralidade sexual compartilhada que tolera as relações
homoeróticas desde que elas não sejam assumidas de forma explícita. As "brincadeiras" são,
portanto um obstáculo para uma educação de qualidade que promova o respeito aos direitos
humanos.
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Introdução
Uma das lembranças mais significativas de minha trajetória escolar está atrelada aos últimos anos
do ensino fundamental, nesse período conheci Hugo, um de meus grandes amigos. Hugo hoje se
define gay, mas na época era criança demais para saber o que significava. Na sala de aula nossos
colegas de classe sempre se referiam a Hugo como “viado”, “bichinha”, “Britney”. Hugo não agia
como os demais meninos, era o melhor amigo das meninas e amava cantar e dançar música pop.
Eu e mais duas amigas próximas a ele, sabíamos o quanto as “brincadeiras” o magoavam, e de
como ele inventava desculpas para não ir à escola por causa disso. Achávamos errado o que faziam
a ele, mas também não saíamos em sua defesa. Eu ficava intrigada por que as pessoas se
incomodavam tanto com o fato de Hugo cantar e dançar, e gastavam tanto tempo fazendo
“brincadeiras”.
de exceção, além de seus alvos preferenciais a partir das situações que observei dentro e fora da
sala de aula. Apresento os argumentos acionados pelas/os estudantes que evidenciam aspectos da
moralidade do bairro. E por último faço considerações sobre os efeitos das “brincadeiras” nas
vidas daquelas/es que escapam das fronteiras da heteronormatividade.
35
Neste caso, os Estágios Obrigatórios em Ciências Sociais, e a minha participação no Programa de Iniciação à Docência ‐
PIBID/CAPES/UFAL/Ciências Sociais (2014‐16).
36
Este artigo explora algumas das questões abordadas na monografia de conclusão de curso: “Discretos e Alarmosos”: Conflitos relacionados
ao gênero e a sexualidade no cotidiano escolar, defendida em outubro de 2016 como requisito parcial para obtenção do título de Licenciada
em Ciências Sociais da Universidade Federal de Alagoas. A monografia foi orientada pela professora Nádia Elisa Meinerz, da banca de
aprovação do trabalho fez parte às professoras Débora Allebrandt e Evelina Antunes Fernandes de Oliveira. Aqui, foi possível incorporar
algumas das inúmeras contribuições dos membros da banca. Neste sentido, renovo meus agradecimentos à orientadora da monografia e
aos membros da banca.
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Estranhando o familiar
A primeira etapa do trabalho de campo consistiu em estranhar o familiar. Em primeiro lugar, por
que o espaço escolar é algo comum em nossa sociedade. Quase todas/os, vivenciamos a
experiência de escolarização. Em segundo lugar por que a instituição em que realizei esta pesquisa,
a Escola Estadual José Saramago,37 está situada em um bairro da parte alta de Maceió, do qual fui
moradora. Além disso, pouco antes da realização da pesquisa cumpri o estágio obrigatório em
ciências sociais nesta escola. Estava então, pesquisando em uma realidade da qual fazia parte.
Uma das principais questões que norteiam a construção do conhecimento antropológico é a
relação com a alteridade, o método etnográfico através do convívio prolongado entre o
pesquisador(a) e o grupo estudado, torna possível explorar esta complexa relação. Porém quando
tomamos como universo de pesquisa uma realidade da qual fazemos parte, a alteridade é
construída pelo pesquisador(a). Sobre este tipo de investimento, Velho mostra a distância entre
familiaridade e conhecimento:
(...) ter familiaridade com fatos, situações e mesmo pessoas não significava conhecê-las,
pois se tratava de outra ordem de significados. Conhecer exigiria de nós um esforço de
aproximação e distanciamento que poderia fornecer indicações para uma compreensão
mais complexa dos fenômenos em que estávamos diretamente envolvidos, através de
experiência, emoções, sentimentos e formas de classificação internalizadas. (2011, p.166).
Sem sombra de dúvida tinha “familiaridade” com o universo que pretendia adentrar, mas não o
“conhecia” na profundidade que se espera de uma pesquisa antropológica.
chamou a minha atenção, devido às relações estabelecidas entre as/os estudantes onde as
“brincadeiras” envolvendo o gênero e a sexualidade, aconteciam de forma contínua. Tendo como
alvo preferencial “Daniel” estudante que se definia como um “gay assumido” e utilizava
regularmente maquiagem. Dentre as/os estudantes do 1ºC que mais implicava com Daniel, era
Carlos. O jovem era membro da Igreja (Assembleia de Deus) e condenava explicitamente não
apenas o comportamento de Daniel, mas a homossexualidade de uma forma geral.
Para compreender a lógica das “brincadeiras” no cotidiano escolar, foram realizadas observações
da rotina escolar de estudantes na sala de aula e demais espaços de sociabilidade da escola, como
pátios e corredores. Além das situações cotidianas, utilizei como estratégia metodológica para
37
Com o proposito ético de preservar a identidade da escola será utilizado um nome fictício. O mesmo vale em relação aos interlocutores
citados ao decorrer do texto.
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abordagem diretiva do tema, o espaço da biblioteca da escola para a exibição de vídeos38 sobre o
tema gênero e sexualidade. Os filmes tratavam sobre heteronormatividade no ambiente escolar e
familiar; e sobre a troca de papeis em relação às expectativas hegemônicas de gênero. O objetivo
dessa proposta era fazer com que as/os estudantes falassem sobre o tema, sem necessariamente
fazer perguntas sobre isso. Durante a pesquisa ocorreu uma greve das/dos servidoras/es estaduais
da educação. Por causa disso as/os estudantes tiveram um remanejamento das aulas, tendo mais
tempo ocioso, o que contribuiu para a exibição dos curtas sobre gênero e sexualidade na
biblioteca da escola.
É importante ressaltar que as “brincadeiras” que ocorriam na escola não têm qualquer dimensão
lúdica, tratando-se na realidade de práticas regulatórias violentas envolvendo o gênero e a
sexualidade no espaço escolar. As “brincadeiras” ocorriam de
forma frequente na escola, e tinham como alvos preferenciais sujeitos não heterossexuais
correspondendo ao que é descrito na literatura sobre homofobia e educação como “pedagogia do
insulto”, segundo Junqueira (2011, p.11), ela compreende: xingamentos, apelidos, insinuações,
violência simbólica, violência física, para com as/os sujeitos de expressão não-heteronormativa;
E/ou sujeitos que apresentavam uma “performance atípica de gênero”. Segundo Butler (2009, p.
25), a performance atípica diz respeito a quando os sujeitos improvisam e escapam das normas
pré-estabelecidas de gênero, se engajando em ações que são importantes para a própria construção
e abertura de novas possibilidades em relação a ele.
As “brincadeiras” mais comuns consistiam, na feminilização dos rapazes a partir de termos como
“viado”, ou “racha”, e na masculinização das garotas a partir de apelidos como “bolacheira”,
“sapatão” e “jeitão”. Havia também “brincadeiras” de exceção, nesse caso, praticadas por sujeitos
descritos na literatura como vítimas da “pedagogia do insulto”. Dentre os sujeitos que eram alvos
das “brincadeiras” na escola, destaco Daniel, estudante do 1º ano, que se definia como um “gay
assumido”. Além disso, o jovem fazia uso regular de maquiagem. Era comum o uso de delineador
nos olhos e, cílios postiços, além de uma longa franja quase na altura olhos. Nas festividades da
escola além desses elementos, passava batom nos lábios, e durante as aulas de educação física o
recurso a um short-saia demarcando o seu abandono a um modelo de masculinidade hegemônica.
Daniel também expressava o desejo de tomar hormônios para ficar mais “feminino”.
38
Exibi quatro vídeos ao decorre da pesquisa: 1) VESTIDO Novo. Direção de Elena Trapé. 2007. (13 min.), son., color. Legendado. Durante a
festa de carnaval da escola, a professora avisa que todas/os estudantes devem se fantasiar de dálmata. Um dos meninos Mário aparece com
um vestido rosa, e seu colega de classe, Santos o chama de “Viadinho”. 2) ERA uma vez outra Maria. Direção de Cintia Viana. 2006. (20 min.),
son., color. Maria é uma adolescente que compara a forma como homens e mulheres são tratados em nossa sociedade. 3) MUNDO ao
contrário Heterofobia. Direção de K. Rocco Shields. Produção de Rachel Diana. 2011. (19 min.), son., color. Legendado. Em um mundo paralelo
a homossexualidade é considerada a única forma correta de sexualidade. Assim, quando uma adolescente heterossexual, começa a mostrar
o seu interesse para com o sexo oposto, ela passa a vivenciar as mais diversas perseguições: familiar, escolar, religiosa. 4) ACORDA,
Raimundo... Acorda!. Direção de Alfredo Alves. 1990. (15 min.), son., color. Em uma realidade paralela, as mulheres oprimem os homens.
Raimundo é casado e tem que cuidar dos filhos, da casa e da esposa que o agride constantemente.
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Ao contrário do que é descrito na literatura sobre homofobia e educação, Daniel não era uma
vítima passiva das “brincadeiras”. Em alguns momentos ele fazia outros usos e respostas à
“pedagogia do insulto”. O rapaz costumava responder as “brincadeiras” dirigidas a si mesmo,
acionando uma prática de enfrentamento que operava no mesmo registro do insulto. Quando
provocado, ele respondia colocando em dúvida à masculinidade dos que implicavam com ele.
Daniel também praticava “brincadeiras”, nesse caso dirigidas aos colegas denominados
“incubados”, termo utilizado por ele para definir rapazes que em sua percepção eram “gays”, mas
“não se assumiam” ou haviam desistido de se “assumir”.
Apesar de Daniel reagir à “pedagogia do insulto” não sendo uma vítima passiva da violência. É
inegável que as “brincadeiras” incomodavam o jovem, isso era expresso especialmente na relação
que Daniel tinha com a instituição escolar, algo repleto de conflito. Sua postura sobre a
instituição oscilava, às vezes dizia que terminaria os estudos, em outros momentos falava sobre o
desejo de sair da escola e seguir na prostituição. Essa possibilidade era lembrada pelo adolescente
como um caminho não só em relação à escola, mas também em relação à sua família que não
aceitava sua orientação sexual. Daniel afirmava que a prostituição garantiria a sua independência
desses dois espaços. O recurso à violência como forma de reagir ao preconceito é também muito
marcante na relação de Daniel com a escola. Em alguns momentos quando o provocavam com
termos femininos, Daniel partia para a violência física, chegando uma vez a quebrar um cone nas
costas de um colega que o chamou de “viado”. Ele andava armado na escola com um estilete para
se defender de alguns colegas, pois já chegou a ser agredido fisicamente.
Na escola as práticas regulatórias envolvendo o gênero e a sexualidade que eram definidas por
as/os estudantes como “brincadeiras”, em geral demonstram o desconforto perante o
rompimento de um padrão hegemônico em relação à masculinidade e, de forma secundária, em
relação às expectativas de feminilidade. As “brincadeiras” também poderão ser realizadas com
garotos e garotas, mesmo que não expressem uma “performance atípica de gênero” sendo
percebidos como “másculo” ou “feminina” respectivamente, como exemplificado nas
“brincadeiras”, praticadas por Daniel, que configuravam outros usos a “pedagogia do insulto”.
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Apesar das garotas nunca iniciarem as “brincadeiras”, elas costumavam acompanhar os colegas
em situações específicas. Uma dessas situações ocorreu durante a festa junina da escola, quando
Daniel apareceu no pátio da escola, bastou um estudante gritar “viado” para se referir a ele, que
todas/os estudantes começaram a fazer o mesmo, os gritos de “viado” só eram abafado pelo som
da banda formada por estudantes que tocava na ocasião. Do outro lado do pátio, direção,
coordenação e professoras/es ficaram completamente indiferentes ao que ocorria. Nessa mesma
ocasião as/os estudantes também se mostraram incomodados com um dos casais que dançava na
festa, nesse caso o professor de dança e uma ex-aluna. O casal realizava uma coreografia típica do
forró estilizado: acrobacias no ar, jogadas de cabelo, e aberturas de escala. Os últimos dois
movimentos eram realizados pelo professor e não pela moça como costuma ocorrer na maioria
das vezes. As estudantes pareciam incomodadas pelo fato do professor realizar a coreografia. Uma
das estudantes Michelle, exclamava: “Oia tá vendo isso aí? Dançar com viado é difícil (por que
ele) dança mais que você”. Outra questão que envolve o incômodo das garotas frente à
apropriação do feminino diz respeito ao fato de Daniel ter sido impedido de participar da
quadrilha da escola. Daniel dizia que foi expulso porque estava “batendo muito cabelo”, essa
expressão era uma forma dizer que estava chamando mais atenção que as colegas, o que as teria
deixado incomodadas.
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O segundo grupo que sofria com as “brincadeiras” era o das estudantes que apresentavam um
“jeitão”. O termo se referia aos contornos masculinos presentes no corpo das garotas. As
“brincadeiras” sobre o “jeitão” eram executadas tanto pelos rapazes quanto pelas garotas tendo
como alvos preferenciais duas estudantes do 2º ano. Uma delas era Silvia, que tinha voz grave e
teria dito estar apaixonada por uma colega de classe no ano anterior. Essa colega espalhou a
história pela escola, e Silvia passou a ser alvo de deboches e recriminações por parte das/dos
colegas de classe, a maioria da turma se recusava a falar com ela, e a jovem era extremamente
solitária e retraída.
Outra estudante era Marcela, que também era jogadora do time de futebol. Marcela não utilizava
maquiagem, brincos ou qualquer outro acessório que demarcassem feminilidade, tinha uma voz
grave, cabelos curtos e vestia roupas largas, sendo o total oposto de suas colegas de time, que
faziam uso desses acessórios de forma constante. A adolescente definia o seu estilo de vestir
enquanto “largado”, mas afirmava que o mesmo não dizia nada sobre a sua “opção sexual”, pois
ela gostava de meninos. Tais considerações vão ao encontro do que é descrito por Meinerz, (2011,
p. 180) acerca do “jeitão”, algo que coloca em jogo um tipo específico de atitude frente às práticas
regulatórias que materializam o sexo em gênero, não se tratando de um desejo de “ser homem”
ou uma “essência masculina”, mas de uma expressão corporal que pode ou não estar relacionada
à sexualidade, e se relaciona a certas práticas esportivas e um modo de vestir, que pode ser
qualificado como masculino, mas que remete a noções de conforto e comodidade.
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Daniel também fazia usos e respostas à “pedagogia do insulto”. Ele fugia das representações
comumente associadas às vítimas da violência homofóbica, dentre elas a passividade, a busca por
agradar os colegas agressores ou o desprezo por si próprio (Miskolci, 2010, p.81). O jovem
respondia as “brincadeiras” utilizando um enfrentamento que operava no mesmo registro do
insulto. Quando Carlos, ou algum dos outros garotos o provocava, Daniel expressava uma reação
relativamente agressiva provocando a masculinidade dos colegas. Um dia, durante uma das aulas
de matemática, acompanhei um duelo verbal entre Daniel e Carlos; Carlos sentou-se perto de
Daniel e disse: “Tu ainda vai virar homem, né Racha?” Daniel de forma ríspida respondeu:
“Mostro já o cu pra você ver o homem”. Carlos foi para o fundo da sala afastando-se de Daniel.
Ele então puxou a banca e ficou próximo a Carlos, em tom afetado começou a dizer: “Carlinhos
meu marido, sente perto de mim, eu te amo”. Em seguida “Carlinhos meu pai disse que você tem
que ir lá em casa, por que minha menstruação não tá vindo”. A turma ria, enquanto Carlos reagiu
dizendo que cortaria a cara de Daniel se ele não parasse, além de afirmar que Daniel “era uma
abominação aos olhos de Deus”.
Daniel também praticava “brincadeiras”, que eram dirigidas aos rapazes que em sua percepção
eram gays, mas não se “assumiam” ou haviam desistido de se “assumir”. Daniel os chamava em
tom de ofensa de “incubados”. Em uma dessas situações, durante o intervalo, Daniel começou a
apontar para um rapaz estudante do 2º ano, e em tom de crítica dizer: “Ele não se assume”, “É
gay incubado”. Um colega de Daniel, Jônatas, explicou a história desse rapaz, afirmando que o
jovem teria dito ser “ex-gay” no começo do ano para que os colegas de classe não mais implicassem
com ele. Ao perceber as (in)diretas, constrangido, o rapaz baixou a cabeça e saiu apressado. Essa
não era a primeira vez que Daniel fazia uma acusação desse tipo em relação a um dos estudantes.
As/os estudantes não viam nas “brincadeiras” uma forma de discriminação, por essa razão
também não se percebiam enquanto agressoras/es. Porém é interessante notar que o grupo
reconhecia que sujeitos alvos preferenciais das brincadeiras, ou seja, estudantes não
heterossexuais e/ou que apresentavam uma performance atípica de gênero, eram vítimas de
discriminação dentro e fora da escola. A discriminação para o grupo estava relacionada
especialmente aos casos de agressão física, que eram amplamente reprovados. Mesmo reprovando
a discriminação direcionada aos sujeitos que escapam dos pressupostos heteronormativos e
expressando preocupação sobre isso. As/os estudantes também consideravam esses mesmos
sujeitos, os principais responsáveis pelas discriminações que sofriam.
Tendo como exemplo Silvia, Celina uma de suas colegas de classe a considerava culpada pelas
discriminações que passava na escola. Segundo Celina, Silvia sempre foi discriminada por causa
da voz, e tudo piorou depois que Silvia disse estar apaixonada por uma garota da escola. Celina
considerava Silvia culpada pela discriminação que sofria, pois não era “discreta”, fazia “alarde” e
denominou o comportamento da colega de “safadeza”. Tais categorias “alarde”, “discrição” e
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“safadeza” também eram utilizadas para referir-se a Daniel. Sobre a implicância que alguns na
escola tinham com Daniel e Silvia, Cesar estudante do 1º ano, dizia:
— Assim tem o viadinho e o gay, tudo bem ser gay, o gay é o que é e fica na dele, não faz
alarde e nem nada. Já o viadinho fica cheio de coisinha. Eu não concordo, se você nasceu
homem, seja homem e se nasceu mulher seja mulher, agora ficar viado e sapatão não dá.
(Transcrição de áudio, 23.07.15).
Celina fazia uma comparação entre um colega gay que admira, ao contrário de Daniel:
— Eu acho assim que essas pessoas têm culpa da discriminação que sofrem elas procuram
isso sabe. Por que não tem necessidade de você tá mostrando. Tem um menino que
trabalha no SENAC onde eu estudo e ele é super discreto, ninguém diz que ele é. Aí pega
e fica se beijando, sabe que pra gente o que eles fazem é errado, fica procurando sofrer a
discriminação. (Transcrição de áudio, 23.07.15).
Para compreender a moralidade presente e aceita no bairro, é importante atentar para uma
narrativa contada pelas/os estudantes em distintos momentos da pesquisa. Trata-se de relatos de
uma briga que teria ocorrido próximo à escola, na associação dos moradores do bairro no começo
do ano anterior. Sobre o mesmo assunto, as/os estudantes apresentavam versões distintas sobre
o ocorrido, para alguns a história havia acontecido, outras/os diziam que tudo não passava de
uma “lenda” devido às distintas versões sobre o “não” ocorrido. As versões sobre o fato realmente
eram díspares, basicamente se tratava de três versões principais, que apresentavam alguns outros
detalhes a partir de cada interlocutor. Trago as três versões que considero mais completas: a
primeira versão é de Daniel e Jônatas (1º ano), a segunda versão é de Bianca e Rafaela (2º ano), e
a última é de Ezequiel (1º ano). As versões têm em comum o cenário, e os personagens principais,
mas o desfecho de cada uma é bem diferente:
Daniel e Jonatas me contaram uma história curiosa hoje, sobre uma briga que aconteceu na
associação dos moradores. Segundo Daniel tudo começou em uma noite de calor, “os viados” do
bairro e da escola todos muito femininos parecidos com ele foram jogar futebol, na associação
dos moradores. A associação fica ao lado da escola, a única coisa que divide os espaços é um
muro. Jônatas interrompe Daniel, para caracterizar melhor os “viados do bairro”, faz questão de
frisar que eram muito femininos e mais velhos. Daniel explicita que estava lá quando tudo
aconteceu, Jônatas não teria participado, mas ouvido falar através dos amigos. Ele discordava de
Daniel em relação ao horário, pois o ocorrido teria se passado à tarde. Segundo Daniel, enquanto
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jogavam futebol um de seus amigos, também estudante da escola, é atingido por uma pedra. Ele
para de jogar e começa a sangrar na testa. O grupo percebe o que ocorreu, interrompe o jogo e
olha ao redor para ver de onde a pedra teria vindo. Um dos “viados velhos” olha em direção ao
muro da escola e vê em cima do muro, um rapaz estudante do turno noturno. Daniel diz que o
rapaz era o único no muro, e os “viados velhos”, foram imediatamente em direção a ele. O rapaz
começa a fugir, pula o muro da escola. Os “viados velhos” vão atrás dele. No fim o confronto
ocorre na rua, o rapaz sozinho leva uma surra dos “viados velhos”. Daniel encerra a história assim:
“Porque assim a gente é tudo unido mexeu com um, mexeu com todos, viado não é bagunça”.
(Diário de Campo, 17.06.15).
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fez uma comparação entre os “viados” que segundo ele teriam apanhado na associação e o
personagem Mário do filme “Vestido Novo”, para ele, ambos comportamentos eram “safadeza”:
“Minha sobrinha é pequena, e ela sabe o que é certo e errado, e sabe que não pode se vestir de
menino. Isso não existe!” (Diário de Campo, 17.08.15).
Nesse sentido era realizada a divisão “lésbica-gay” versus “sapatão-viadinho”. Sobre a construção
das identidades sociais entre os grupos populares. Sarti (1996), afirma que a mesma é construída
em um processo relacional, em que o contraste é definido em termos estruturais. Há a necessidade
de afirmação de um grupo de referência, e diferenciação desse mesmo grupo, para a construção
de uma identidade social positiva. Enquanto lésbicas e gays, eram apontados como dignos de
respeito por sua “discrição” entendida, enquanto “invisibilidade” de sua orientação sexual,
devido ao fato de se adequarem as normas hegemônicas de gênero. Os sujeitos, “sapatão e
viadinho” eram vistos como os responsáveis pelas discriminações que sofriam, visto que deixavam
sua sexualidade visível “alarde”, devido a sua “performance atípica de gênero. O comportamento
destes era descrito como “safadeza”, uma espécie de ato deliberado que o sujeito poderia optar
por fazer ou não, mas que fazia, quebrando assim as normas da reciprocidade social.
Considerações finais
As “brincadeiras” no cotidiano escolar representam uma das inúmeras formas que pode assumir
a “pedagogia do insulto”. Considerando as distintas formas que as regulações sobre o gênero e a
sexualidade assumiam na escola, as “brincadeiras” eram praticadas por todas/os estudantes. Em
seu caráter mais frequente elas ocorriam em torno da feminilização dos rapazes, e masculinização
39
Um professor afirmava que a história era “lenda urbana”, outra professora do fundamental apresentou uma versão muito diferente
das/dos estudantes. Segundo ela a briga foi motivada por uma falta no futebol, feita por um rapaz que era gay, daí a associação com
“homofobia”, mas tudo foi “coincidência”
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das garotas. Havia também outros usos e respostas das “brincadeiras”, fugindo das considerações
recorrentes da literatura sobre as “vítimas” da pedagogia do insulto. Além disso, as “brincadeiras”
adquirem contornos específicos de acordo com a “moralidade” local.
As “brincadeiras” são uma expressão de violência no cotidiano escolar para com os sujeitos que
escapam dos pressupostos heteronormativos, e se configuram enquanto obstáculo a uma
educação de qualidade, em que as diferenças entre os sujeitos não se configurem em
desigualdades.
Referencias:
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pp. 95-126. ISSN 1809-4481.
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entre as classes trabalhadoras. Disponível em:
<http://www.abep.nepo.unicamp.br/docs/anais/pdf/1984/T84V01A26.pdf>. Acesso em: 20
set. 2015.
MISKOLCI, Richard (2010). (org.) Marcas da Diferença no Ensino Escolar. São Carlos:
EdUFSCar.
OLIVEIRA, Roberto Oliveira de (2010). O trabalho do antropólogo. 3. ed. São Paulo: Paralelo.
PROFÍRIO, Ana Luiza Gomes (2015). Saúde e Religião. A relação entre a relação entre “irmãos”
e “obreiros”: trilhando os caminhos entre a orientação, a indiferença e o acolhimento. In: REA
ABANNE. Disponível:<http://eventos.livera.com.br/trabalho/981019700_30_06_2015_22-35
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SARTI, Cintia (1996). A família como espelho: Um estudo sobre a moral dos pobres na periferia
de São Paulo. São Paulo: Autores Associados.
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Introdução
40
A Jaula de Ouro (Diego Quemada‐Diez, 2013) apresenta jovens que decidem cruzar a fronteira do México ‐ Estados Unidos.
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Nesse sentido, as subjetividades são potencializadas pela incorporação de culturas nos espaços
considerados como fronteiriços. A fronteira pode ser entendida como um campo que delimita os
paradigmas ou visões de mundo das organizações sociais de um determinado grupo. Contudo, o
objetivo deste trabalho é analisar o sentido de cinema transnacional e de fronteira por uma
perspectiva intersubjetiva e também simbólica das sensações dos indivíduos envolvidos nos
processos de interdependência de desejos nas geografias-afetivas.
O ambiente da cidade tem diferentes formulações conceituais do seu espaço urbano: paisagem,
lugar e trajeto, estes estão instituídos no cenário urbano. Esses conceitos podem ser resgatados
quando da análise da cidade e das representações – sociais, estéticas, culturais, simbólicas – nela
existente41. Aqui, nos interessa o conceito de lugar da cidade, por que este infere sentidos
simbólicos, afetivos e de poder da cidade42 nordestina de Fortaleza, especificamente do lugar da
Praia do Futuro, ponto central do nosso estudo, e de Berlim, que aparece como um lugar de
contra-afetividade ao lugar anteriormente mencionado. As afetividades e as contra-afetividades
relacionadas ao lugar ressoam nas configurações das geografias-afetivas dos espaços por onde
ocorrem as relações sociais.
O filme analisado tem como pano de fundo a Praia do Futuro, e se passa em dois momentos: o
primeiro se situa em 2004, quando o guarda-vidas cearense Donato resgata o turista alemão
Konrad de um afogamento na Praia do Futuro. O outro se passa em 2012, quando o irmão de
Donato, Ayrton, um entusiasta aficionado por motocicletas, sai da Praia do Futuro em busca do
irmão do outro lado do mundo, em Berlim. Os dois lugares – Brasil e Alemanha – e as suas
singularidades identitárias e geográfico-afetivas são locais por onde narrativas transnacionais
tratam do tema do medo e da fuga da personagem principal, que é homossexual, nos seus
respectivos cenários sociais.
41
Ver Costa (2016a, 2016b).
42
As contribuições de Relph (2012) e Domosh (1992) são perpendiculares à compreensão da construção do lugar e das paisagens urbanas da
cidade. Os autores colocam que essas variações do espaço urbano da cidade são sensíveis às intervenções dos indivíduos que significam o
espaço, produzindo um sentido simbólico e de poder nos lugares e nas paisagens.
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Diante desse contexto, algumas outras discussões encontram campo no aspecto central da nossa
análise do filme Praia do Futuro do que se entende por “medo” e “mar”. A análise nesse ponto
concentra-se na plasticidade do discurso fílmico em construir uma imagem que conjuga
elementos que misturam sensações e sentidos afetivos das personagens.
43
Ver Schafer (1991).
44
Os Incompreendidos (François Truffaut, 1959) e A História da Eternidade (Camilo Cavalcanti, 2014) são alguns dos muitos exemplos.
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Figura 1
Este último personagem, Ayrton, aparece na trama como um fantasma, que surge no contexto da
história como um dispositivo – um mensageiro – de um conflito que estava adormecido em
Donato, quando este deixou Praia do Futuro. Ayrton tem um sotaque carregado da região do
nordeste brasileiro45, é apaixonado por velocidade e vai buscar respostas que não foram deixadas
por Donato anos atrás. Nesse ínterim, no discurso do filme existe um jogo simbólico do espaço:
apesar da distância entre os lugares, a fronteira geográfica é quebrada por um dos personagens,
que adentra em uma região que representa a imagem sensível de Donato, a geografia e as
características ambientais da cidade de Berlim (Figura 2).
45
Ver Naficy (2010).
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provoca medo – que estão a todo o momento pisando num terreno não discutido, não totalmente
esclarecido. Nesse processo, a construção das paisagens e dos lugares na imagem cinematográfica
que, com efeito, representa os sentimentos das personagens em seus ambientes particulares de
“medo” – na Praia do Futuro – e “solidão” – em Berlim –, flexionam o sentido de posse do tipo
geográfico-afetivo. A afetividade do lugar também pode ser transmitida pelas lembranças e
memórias no indivíduo que as carrega, e Ayrton é, efetivamente, um recipiente das afetividades
que Donato procurou esquecer. Por isso o sentido de fantasma na personagem Ayrton.
Figura 2
O personagem Ayrton também enfrenta os seus “medos”. O fator do sotaque e a busca por
aprender a língua alemã fazem com que ele se perceba em dois ambientes que exigem
transformações e mudanças interiores; até porque, para ele, o irmão agora era “um fantasma que
fala alemão”. O “medo” do mar, de adentrar nas águas da Praia do Futuro, é enfrentado no
sentido simbólico: Ayrton se encanta com as paisagens da cidade de Berlim, e o mar da cidade é
menos assustador, apesar do clima frio e do tempo nublado. Um lugar de contra-afetividade,
portanto, ressoa nas personagens de maneiras emocionalmente singulares, pois as sensações
geográfico-afetivas estão delimitadas com o estado das coisas, dos espaços, das emoções e dos
sentidos de cada um (Figura 3).
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Os personagens em Praia do Futuro estão sempre em fuga, motivados por seus “medos”
particulares. No caso de Ayrton é o medo que o incentiva de ir à busca do seu irmão, num lugar
de contra-afetividade, inicialmente. Lugares afetivos e não-afetivos são condutores para as fugas,
mas são as sensações que cada qual tem dos espaços, que fazem com que eles estejam em contínuo
movimento. A velocidade das motos e os desejos de ser super-herói – o Aquamen, na figura de
Donato, e o speed race, na imagem de Ayrton –, são também ferramentas para as fugas: mas nem
o fato de ser um super-herói facilita a missão de enfrentar os “medos” internos. Muitas vezes, os
super-heróis fogem dos seus “medos”, pois estes não podem ser enfrentados pela força, como
quer o irmão de Donato.
Figura 3
Tendo em vista a construção das corporalidades das personagens no contexto fílmico, coexiste ao
desejo a tentativa do no-touch. Os homens em cena mantêm as características de masculinidades,
apesar de serem arquétipos de uma estrutura que afirma uma posição dos corpos46. Não há,
portanto, uma narrativa dos corpos que se sustenta na concepção da feminilidade dos sujeitos
gays, ou de uma passividade, como demonstra a relação das personagens Donato e Konrad. No
entanto, o que se tem são relações formalizadas por tentativas de descoberta, e também por
insinuações de caracteres de dominação de um sujeito sob o outro, o que acreditamos ser fruto
da formação militar de Konrad e a formação de bombeiro de Donato. As instituições que
estruturam os corpos dos seus soldados, assim, também imperializa os sentidos de se relacionar
com os outros.
46
Boi Neon (Gabriel Mascaro, 2014) aborda uma questão sobre a dilatação de gênero e de como as corporalidades são condições também
do espaço em que são construídas (COSTA, 2016c). Acerca disso, uma cinematografia brasileira mais recente tem indicado filmes que tratam
da potencialidade das corporalidades das personagens na relação com o contexto fílmico: A História da Eternidade (Camilo Cavalcanti, 2014),
Tatuagem (Hilton Lacerda, 2013), Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (Daniel Ribeiro, 2014), entre outros.
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Considerações finais
Referências
_______. (2016c). Cabra Macho e Moça Sonhadora: discurso sobre dilatação de gênero no filme
Boi Neon. In: V Seminário Internacional Curta o Gênero, 2016, Fortaleza. Anais eletrônicos...
Fortaleza: Fábrica de Imagens.
NAFICY, H. (2010). “Situando o cinema com sotaque”. In: FRANÇA, A. e LOPES, D. (Orgs.).
Cinema, globalização e interculturalidade. Chapecó: Argos.
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Com esses números podemos observar que os primeiros anos do Ensino Fundamental ao lado
da Educação Infantil tornaram-se uma espécie de “gueto ocupacional feminino”. Por meio de
diferentes discursos a presença das mulheres nessas etapas educacionais é naturalizada e sua
feminilidade não sofre nenhum questionamento. Ao contrário, possuir os atributos construídos
social e culturalmente sobre a feminilidade legitima sua atuação com os pequenos. Por outro
lado, as construções impostas à masculinidade realizam um processo inverso, os homens que
ousam entrar nesse ‘gueto’ despertam suspeitas, questionamentos, vigilância e são vistos como
sujeitos fora do lugar.
Atuar nessa etapa escolar é visto então como uma extensão da maternidade e ainda que não seja
mãe, parece que ser mulher basta e justifica sua atuação. E os homens? Quais discursos ditos e
não-ditos são requeridos na tentativa de justificar sua inadequação na docência com as crianças?
Ao que parece nem a possibilidade da paternidade impede os olhares suspeitas sobre os poucos
homens que atuam na educação de crianças pequenas.
Nesse sentido, a profissão para muitos tem o objetivo de diminuir dúvidas sobre a sua
masculinidade. Mas, o que fazem aqueles sujeitos cuja escolha profissional é um dos elementos
que motiva os questionamentos das suas masculinidades? Ao que parece para muitos a sua
atuação profissional se desenha como um deslize na sua masculinidade. É o que acontece com
muitos homens que atuam nos anos iniciais do Ensino Fundamental.
47
Disponível em: http://cultiveduca.ufrgs.br/0.html
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Neste texto, a partir de um recorte de duas entrevistas realizadas entre os meses de setembro e
dezembro de 2016 com dois professores que atuam em diferentes escolas de um meio rural no
interior baiano, nos ocuparemos de algumas reflexões sobre a vigilância, questionamentos e
tensões em torno das suas masculinidades. Para tanto, neste trabalho analisaremos a resposta dos
profissionais a seguinte pergunta: Em algum momento você sentiu que sua masculinidade e
sexualidade foram questionadas? Os dois são sujeitos da pesquisa “O gênero vai à roça48: a
presença de professores homens nos anos iniciais no meio rural de um interior baiano”. Em
desenvolvimento desde agosto de 2015 no Programa de Pós-graduação em Educação da UFRGS
a investigação tem como objetivo analisar as questões de gênero e sexualidade que a presença
desses professores suscita na comunidade escolar, pais e nos próprios educadores.
Inscrito numa perspectiva pós-estruturalista este estudo não se propõe buscar a causa ou motivo
pelos quais o magistério de crianças, especialmente dos anos iniciais, é feminilizado, tampouco
tenciona apresentar respostas prontas. Pesquisas que compartilham dessa perspectiva “ [...] se
preocupam mais em descrever e problematizar processos por meio dos quais significados e saberes
específicos são produzidos, no contexto de determinadas redes de poder, com certa consequências
para determinados indivíduos e/ou grupos” (MEYER, 2014, p. 53). Nosso modo de pesquisar,
portanto, reconhece a provisoriedade das verdades, bem como suas implicações com o poder e as
políticas, e desse modo faz esforços em compreender, mais do que em produzir explicações
definitivas e fechadas.
A pesquisa foi desenvolvida em duas escolas do meio rural, no interior baiano. A escolha pelos
anos iniciais levou em conta um reduzido número de pesquisas nessa etapa da educação. A mesma
justificativa se aplica à escolha do local. Pesquisas que interseccionam gênero, sexualidade e o
meio rural ainda são escassas na Educação. No que diz respeito a metodologia da pesquisa,
escolhemos uma pesquisa do tipo etnográfico (ANDRÉ, 1996).
48
Optamos por chamar roça alternando com meio ou zona rural no lugar de campo por acreditarmos que há uma visão romantizada nessa
nomenclatura e que muitas vezes é reforçada em boa parte por meio da literatura, da música, da mídia e outros produtos culturais. Contudo,
ao nos referirmos a Educação nessa ambiência usaremos Educação do/no Campo, em respeito a Legislação vigente e a luta dos movimentos
sociais por essa denominação.
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Para uma definição de etnografia, podemos recorrer às palavras de Balestrin e Soares (2014)
quando explicam que “A etnografia é conhecida como uma experiência de pesquisa (nascida no
campo antropológico, mas não restrita a ele) que enfatiza o contato direto e prolongado do/as
do pesquisado com o local e o grupo que são alvos de investigação” (BALESTRIN; SOARES,
2014, p. 95 grifos nossos). As autoras apontam ainda as ferramentas centrais da pesquisa
etnográfica com as quais trabalhamos na produção de dados desta pesquisa, a saber: a observação
participativa, as entrevistas, registro em diário de campo, análise documental, etc. Sobre a
pesquisa do tipo etnográfica Marli André esclarece que tal escolha permite que o pesquisador
fique bem perto do local pesquisado,
[...] Conhecer a escola mais de perto significa colocar uma lente de aumento na dinâmica das
relações e interações que constituem o seu dia a dia, apreendendo as forças que a
impulsionam ou que a retêm, identificando as estruturas de poder e os modos de organização
do trabalho escolar e compreendendo o papel e a atuação de cada sujeito nesse complexo
interacional [...] (ANDRÉ, 1996, p. 33 grifos meus).
As lentes de aumento escolhidas para chegar perto da escola foram os estudos de gênero,
sexualidade, masculinidades, feminilidades, poder, etc. Outro elemento que justifica a nossa
escola metodológica é que “[...] ao nos apoiarmos nos estudos feministas e de gênero, aportados
em uma perspectiva pós-estruturalista, entendemos que o/as pesquisador/a não consegue está em
uma posição distante ou neutra do objeto que está investigado” (KLEIN; DAMICO 2014, p.68).
Portanto, estar no local da pesquisa, ser um “nativo” se apresenta como significativa oportunidade
no caminhar investigativo.
Conforme já apontamos, as análises que seguem são produzidas a partir de uma pergunta sobre
a masculinidade dos professores que integra o roteiro de entrevistas realizadas com os dois
professores que participam da pesquisa. Em respeito ao que preconiza a ética na pesquisa foi
solicitado a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido -TCLE e posteriormente
realizada a entrevista que foi gravada com consentimento dos professores. Foi solicitado que os
participantes escolhessem um nome de alguma árvore com a qual se identifica para substituir o
seu nome ao longo da pesquisa. Ademais, não serão indicados os nomes das escolas e da
comunidade rural onde atuam esses professores.
Entre “Eu achava que você era viado” e “eu sempre tive aquele padrão”: as falas dos professores
Jatobá e Jacarandá
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Já o professor Jacarandá tem 27 anos, também é pedagogo. Está na docência a quatro anos. É
contratado pela prefeitura através de Regime Especial de Direito Administrativo – REDA. O
professor começou como agente de limpeza, depois de estudar voltou para a escola como
professor. Iniciou sem gostar de ensinar nos anos iniciais, mas diz que com o tempo aprendeu a
gostar. Jacarandá relata que teve outros colegas homens durante a graduação, eram três no total
e não havia interação entre os homens e as mulheres.
Quando perguntado se em algum momento, desde que escolheu ser professor e ao longo da sua
atuação profissional, sentiu que sua masculinidade e sexualidade foram questionadas. O
professor Jacarandá responde que sim e relata
Eu já fui, eu já fui assim, interpretado como homossexual, sabe, é... por escolher essa
profissão sim. Eu já vi bem no pejorativo, pessoas me dizerem assim ‘eu achava que você era
viado’. Até alunos já me corrigiram entre aspas, me chamaram atenção no meu modo de
sentar, de cruzar as pernas ‘olha professor como senta. Quem senta assim é mulher’. Então
você percebe que esses meninos não trazem isso nato de si, eles foram preenchidos pela uma
educação familiar onde homem tem que sentar diferenciado. [...] Há essa vigilância, de você,
se saber se ali é um homem, tem que se comportar como homem. (Professor Jequitibá)
De acordo com Teresa de Lauretis “[...] o gênero, como representação e como auto-representação,
é produto de diferentes tecnologias sociais [...] epistemologias e práticas críticas
institucionalizadas, bem como das práticas da vida cotidiana” (LAURETIS, 1994, p, 2008). O
recorte do clássico texto de Lauretis é suficiente para pensarmos que as masculinidades são
assentadas nesse lugar de construção, de instabilidade e disputas. Por meio de diversas
“tecnologias de gênero”, de práticas da vida cotidiana e de discursos reiterados, as masculinidades
se constituem e a escolha profissional faz parte dessas tecnologias que produzem e normatizam os
sujeitos e as suas masculinidades.
Assim, a fala do professor ao relatar que seus alunos (crianças de 6 a 10 anos) chamam atenção
para seu modo de sentar, tido como “feminino” nos ensina que desde cedo é ensinado à essas
crianças uma masculinidade a ser prosseguida, não podendo em nada afastar-se do padrão
imposto pelas normatizações, nem ao menos ao sentar-se. Para Seffner (2003) as masculinidades
só podem ser definidas no interior das relações de gênero e sexualidade, vista como fruto de
“tensões, disputas e interesses próprios da cultura e tem sua existência marcada pelas disputas de
significados” (SEFFNER, 2003 p,124). Diferentes masculinidades se produzem no mesmo espaço
social, porém, a masculinidade hegemônica, presente e reforçada nesses espaços serve como
modelo para a construção das demais (SEFFNER, 2003).
Na busca de se aproximar dos modelos hegemônicos há muitas vezes uma comparação entre as
masculinidades e a busca por possuir elementos que delas se aproximam “[...] é portanto nas
trajetórias de vida dos homens que aparecem como representantes mais credenciados da
masculinidade hegemônica que os demais buscam elementos para definir seu modo de viver”
(SEFFNER, 2003, p.140). O professor ao ser questionado “eu achava que você era viado” estava
sendo suspeito de fugir a essa masculinidade atrelada a heterossexualidade e posta como
hegemônica. Escolher ser professor surge então como um elemento que reforça o olhar vigiante
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sobre esse sujeito. Educar crianças pequenas é construído culturalmente como lugar de afeto,
cuidado, amor, delicadeza e, portanto, não é “lugar para homem de verdade”.
Os professores homens são constantemente questionados, vigiados por toda comunidade escolar
e demais membros da comunidade. Nada é natural nessas normatizações, o próprio professor
Jacarandá é ciente que as falas dos alunos em sala de aula refletem as construções sociais, [...]
Então você percebe que esses meninos não trazem isso nato de si, eles foram preenchidos pela uma educação
familiar onde homem tem que sentar diferenciado [...].
Não. Quando eu estrei logo na faculdade, eu, como sempre gostei de camisa fechada, de
manga cumprida e tal, então eu colocava e as vezes eu coloca até encima, abotoava e tal, [risos]
elas ficavam ‘ah você não vai passar o tempo todo com essa camisa e tal’ ai elas conseguiram
desabotoar um botão. Ai foi um alívio para todo mundo eu ter deixado desabotoar um botão.
Mas ai nunca fui questionado, por que eu sempre tive aquele padrão, aquele padrão que eu
já levo mesmo. Achavam que eu era muito radical na minha postura masculina, assim, achava
que eu era muito radical, que eu tinha que me soltar mais. Não participava de todas as
brincadeiras. É meu jeito. (Professor Jatobá)
O professor se apressa a responder não. A ideia de ter a sua masculinidade questionada parece
nem ser cogitada pelo profissional. Contudo, ele relata sobre a sua graduação, de como um
“padrão” mantido por ele o isentava de questionamentos por parte das colegas. A visão polarizada
do mundo faz os sujeitos buscarem se manter em um determinado polo, sem transitar entre si.
Nessa lógica, ser homem de verdade, ou macho de verdade, para usar um termo recorrente na
roça, é se manter longe de qualquer elemento que possa ser associado ao feminino.
Desse modo, por mais que o professor estivesse no curso de Pedagogia e em uma turma repleta
de mulheres, ele buscava manter-se alinhado ao “padrão”. “O corpo masculino pensado e
modelizado pela cultura judaico-cristã, pela cultura burguesa, é um corpo censurado e
instrumental, um corpo docilizado, um corpo com medo de corpos.” (ALBURQUEQUE
JÚNIOR, 2010, p.26). Desse modo o corpo dócil e disciplinarizado do professor desejava se
manter intocável dentro das suas roupas, dentro do seu corpo travado para o lúdico, para o
movimento. Os corpos masculinos são engessados, nem todos os movimentos lhe são permitidos.
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As colegas questionavam sua rígida masculinidade, mas ele não sedia, conforme relata, o máximo
de liberdade foi um botão da camisa. Ao que parece há por parte de alguns sujeito um certo
pânico de deixar de ser “ macho de verdade”. Nas palavras do professor Jatobá “[...] Achavam que
eu era muito radical na minha postura masculina, assim, achava que eu era muito radical, que eu tinha
que me soltar mais. Não participava de todas as brincadeiras. É meu jeito”. Nolasco (1993) aponta para
um padrão rigoroso imposto aos homens na construção das suas masculinidades, nas palavras do
autor
A masculinidade que Jatobá busca transmitir desde a escolha das suas roupas ao seu
comportamento se inscrever no modelo de masculinidade hegemônica. Um modelo normativo
e que pune severamente aos que não se enquadram. Marcio Caetano (2016) argumenta que “No
que diz respeito as aprendizagens sobre masculinidades e feminilidades, a escola e a família são
espaços privilegiados para que os sujeitos acessem os elementos necessários para a construção de
suas performatividades. (CAETANO, 2016, p.150). Os elementos aos quais Jatobá lança mão
para construir sua performatividade é fruto de investimentos dessas instituições pedagógicas que
deseja fabricar os sujeitos como bonecos moldados em um molde de masculinidade hegemônica,
estável, inabalável e inquestionável. Missão impossível.
Comentamos com o professor se ele percebe que o fato dele ser da comunidade e casado de
alguma forma o isenta de alguns questionamentos, ele concorda que sim. Então questionamos
quando o professor é de outro lugar e se não for casado, etc. O professor responde ““A comunidade
fica de olho e, quem chega a comunidade fica de olho e vai percebendo tudo na pessoa e vai com aquele olhar
crítico, aquele olhar vigilante, aquele olhar questionador, e ai tudo, qualquer vacilo que der ai eles caem
encima com os comentários, comentando.
O professor homem é vigiado, testado, analisado. O fato de ser filho da comunidade parece
isentar o professor de questionamentos sobre sua masculinidade, é como se os olhos guardiãs já
tivessem confirmado e autenticado a sua masculinidade. Segundo a fala do professor Jatobá e ao
que foi percebido ao longo da pesquisa de campo, o professor oriundo de outra região ou da
cidade fica de forma espacial sob os olhares vigilantes e questionadores, desse modo “Nada parece
escapar aos olhares das instituições reguladoras, que observam a forma como seus tutelados
sentam, caminham, gesticulam, falam, desejam: produzem suas performatividades.” (CAETANO,
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2016, p.179). Olhares atentos para punir os que ousem desobedecer. Olhares voltados inclusive
para os sujeitos que acreditam estar inscritos na masculinidade hegemônica. Se daqueles que não
estão no padrão hegemônico é requerido enquadrar-se, ao considerados enquadrados é exigido a
permanência sem deslizes. Portanto, somos todos normatizados, enquadrados, disciplinados e
vigiados.
Conclusões?
Referências
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culturais, desafios para o encontro da diferença. Campina Grande: EDUEPB, 2010 Disponível
em http://books.scielo.org/id/tg384/pdf/machado-9788578791193-02.pdf. Acesso em maio de
2016.
ANDRÉ, Marli Eliza Dalmazo Afonso de. Etnografia da prática escolar. Editora Papirus, 1995.
ARROYO, Miguel G. A escola do campo e a pesquisa do campo: metas. In: MOLINA, Mônica
Castagna.(Orgs) Educação do Campo e Pesquisa: questões para reflexão Brasil. Ministério do
Desenvolvimento Agrário. – Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2006.
BALESTRIN, Patrícia Abel. Soares, Rosângela. “Etnografia de tela”: uma aposta metodológica
In: MEYER, D. E. E.; PARAÍSO, M. A. (Orgs.). Metodologias de pesquisas pós-críticas em
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FONSECA, Thomaz Spartacus Martins. Quem é o Professor Homem dos Anos Iniciais?
Discursos, representações e relações de gênero. Juiz de Fora: UFJF, 2011. Dissertação (Mestrado
em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Juiz de Fora,
Juiz de Fora, 2011.
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KLEIN, Carin. Damico, José. O uso da etnografia pós-moderna para a investigação de políticas
públicas de inclusão social In: MEYER, D. E. E.; PARAÍSO, M. A. (Orgs.). Metodologias de
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LAURETIS, Teresa de. A tecnologia do gênero. In: Tendências e impasses: o feminismo como
crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
MEYER, Dagmar Estermann e PARAÍSO, Marlucy Alves (Org.). Metodologias de Pesquisas Pós-
críticas em Educação. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2014.
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Marie Jane Soares Carvalho, Breno
Gonçalves Bragatti Neves, Rafaela da Silva Melo. Cultiveduca. Brasil no. BR512014001340-5, 18
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2017.
VIANNA, Cláudia Pereira. O sexo e o gênero da docência. Cadernos. Pagu. 2002. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/cpa/n17-18/n17a03 Acesso em janeiro 2016.
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A representação social do que é ser homem, tem grande influência na forma como os homens
lidam com sua saúde e no cuidado de si. Essa máxima tem relação direta com o conceito
predominante de masculinidade e exerce influências diferenciadas entre as classes sociais,
principalmente na sociedade capitalista.
Falar sobre masculinidade sucede o estudo de gênero, que teve sua origem no debate sobre o
feminismo49 e sobre as diferenças desiguais manifestadas pela ideologia do patriarcado que reitera
a “superioridade” do homem em relação à mulher, deturpando a compreensão e o significado de
cuidado para os homens e transferindo essa responsabilidade (quase exclusivamente) à mulher.
O papel social desempenhado por homens e mulheres, nesta sociedade, foi construído através da
história. E apesar das inúmeras mudanças ocorridas ao longo dos séculos, somente a partir da
segunda metade do século XX é que se iniciou um debate sobre o significado de sexualidade,
gênero e sobre a atribuição destinada a cada um deles: gênero feminino e masculino. Tais estudos,
inicialmente centralizados na questão feminista, conferiu a possibilidade de entender os papéis
desempenhados pelo homem e pela mulher como construções baseadas nas dimensões sociais,
históricas e econômicas. Permitindo-nos perceber a diversidade na compreensão de homens e
mulheres, dos papéis sociais que lhes são atribuídos e, mais ainda, na disparidade inerente às
diferenças de gênero e entre as classes.
Desde o nascimento, meninos e meninas, são ensinados e instruídos de acordo com o padrão
hegemônico de comportamento que se espera de cada um dos sexos, assim o modo como se
relacionam socialmente por toda a vida tem relação direta com aquilo que lhes é ensinado ainda
na infância.
49
“O conceito de masculinidade é um conceito inerentemente relacional (CONNELL, 1995) e só existe em contraste com o conceito de
feminilidade. A feminilidade e a masculinidade variam e dependem do contexto histórico, institucional, social e cultural. A masculinidade e
a feminilidade correspondem a processos através dos quais as relações sociais se configuram em função do género, nos diferentes contextos
da vida social.” (CEOTTO; TRINDADE, 2015, p. 112).
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A representação social do que é ser homem ou mulher que é ensinada às crianças influenciará
diretamente o modo como ambos os sexos se relacionarão nos diferentes espaços sociais e, até
mesmo, determinarão (ou limitarão) os sentimentos, emoções e gostos de cada um deles.
Outro ponto a ser observado nessa relação desigual é que, historicamente, o homem ocupou o
espaço público enquanto a mulher se restringiu à esfera privada do lar, o que contribuiu para a
legitimação do machismo, dificultando o acesso das mulheres ao mercado de trabalho, por
exemplo, e complexificando a aproximação dos homens com as tarefas desempenhadas no lar,
como cuidar dos filhos.
Podemos dizer, portanto, que “gênero trata-se de uma percepção de mundo, de relações de
dominação, dos conflitos entre os sexos, da definição de papéis, da divisão sexual do trabalho,
entre outras relações que abarcam esse universo” (LOLE, 2006, p. 20).
Até a década de 1970, falar sobre o papel do homem era o mesmo que apontar atitudes e condutas
hegemonicamente impostas ao mesmo, limitando a compreensão da complexidade no interior
do conceito da masculinidade, a observância de suas múltiplas formas e as possibilidades de
mudança do significado e da representação deste conceito (CONNELL, 1995, p. 190). E ampliar
a compreensão desse novo conceito significaria um ganho para o debate das relações sociais
produzidas e reproduzias a partir da desigualdade de gênero, de forma a ampliar a discussão sobre
a violência, desigualdade e relações de poder.
Como resultado dos estudos sobre gênero e sexualidade, surgiram novas questões a respeito do
mundo masculino, questões derivadas das mudanças de comportamento do homem moderno
que, segundo Silva (2000 apud CEOTTO; TRINDADE, 2015, p. 111), “ao se deparar com a
reconfiguração social, cria uma nova forma de vivenciar sua masculinidade, pois, aparentemente
perdeu a noção de sua própria identidade, precisando assim buscar novos valores para
compreender a si dentro desta nova configuração social”.
Dessa forma, são elaborados novos conceitos para dar conta dos novos objetos de estudo que emergem
como resultado dos debates do Movimento de Liberação, dentre os quais, destacamos o conceito de
“masculinidade hegemônica” (FIALHO, 2006, p. 3).
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Mas afinal, onde está o problema em considerar um determinado modelo masculino como
padrão? Marlise Almeida considera desnecessário o conceito de hegemonia e afirma que: “[...] a
dominação masculina ou o regime do patriarcado terminam por dissimular o caráter
eminentemente relacional entre gêneros (com referência às mulheres)” (ALMEIDA, 2001, p. 27
apud LOLE, 2006, p. 18).
Lole (2006, p. 18) coloca que a autora ao examinar os processos sociais intragêneros mostra que
o conceito de masculinidade hegemônica reflete aquilo que não mudou nos estudos de gênero,
ou seja, aquilo que se mantém como dominante na própria masculinidade. Nas palavras da
Almeida: “[...] a supremacia da heterossexualidade sobre a homossexualidade, da raça sobre as
outras raças, etc.” (ALMEIDA, 2001, p. 27 apud LOLE, 2006, p. 18).
Outra questão é o desprezo das mudanças produzidas pelo movimento dialético da história e a
implicação dessas mudanças na esfera da produção e reprodução das relações sociais. Os avanços
obtidos a partir das lutas e dos debates sobre gênero devem ser mantidos e superados e não apenas
mencionado como fatos históricos. Entretanto, o que vemos atualmente é a manutenção de uma
sociedade patriarcal e machista, apoiada na perspectiva de desigualdade de gênero.
50
Regime que se baseia na ideia de liberdade e de soberania popular; regime em que não existem desigualdades e/ou privilégios de classes.
(Dicionário Online)
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Ao longo da história, a postura apropriada que se esperava dos homens era a de provedor, viril e
invulnerável. E em todas as instituições pelas quais o homem perpassa ao longo de sua vida, como
escola, família e igreja, por exemplo, eles recebem a instrução de que sua função é de fato a de
chefe (no lar, no trabalho ou na rua). Por isso, suas emoções, sentimentos e comportamentos
devem se distanciar ao máximo do universo feminino, pois, demonstrá-las pode significar sinais
de fraqueza e, portanto, de incompetência para ocupar os papéis confiados a eles.
Esses dados históricos são indícios de que, na verdade, a definição de um padrão masculino
hegemônico tem mais a ver com a disputa pela hegemonia51, do que propriamente por status ou
pelo bem-estar do homem em si. E que, por isso, o padrão de hegemonia pode ser contestado ou
superado ao longo do tempo (CONNELL, 1995, p. 191).
Segundo Connell (1995), é provável que presenciemos agora, como produto da globalização, a
instauração de novas formas de masculinidade hegemônica, pois as condições para a hegemonia
estão mudando, com o crescimento do debate e dos movimentos feministas a nível mundial, com
a estabilização de novas formas de sexualidade e com a criação de uma economia a nível global.
Com o terreno de teste desse novo modelo de globalização das finanças, a desregulamentação dos
mercados e o crescimento de impérios empresariais fora do controle de qualquer governo e
qualquer processo democrático existente, o padrão hegemônico que, provavelmente, será
produzido nesse contexto é de um homem com perfil violento e autoritário como estratégia de
ação econômica, herdando os prazeres e hábitos da masculinidade patriarcal (CONNELL, 1995,
p. 193).
Esse novo modelo de masculinidade hegemônica que gradativamente ganha espaço na sociedade
é, na verdade, uma grande perda para os avanços promovidos pela abertura do debate de gênero
51
“Hegemonia, então, sempre se refere a uma situação histórica, uma série de circunstâncias nas quais o poder é conquistado e consolidado.
A construção da hegemonia não é um problema de puxar e empurrar entre os grupos estabelecidos, mas é parcialmente um problema de
formação desses grupos. Entender os diferentes tipos de masculinidades demanda, acima de tudo, uma análise das práticas nas quais a
hegemonia é constituída e contestada. Em suma, as técnicas políticas da ordem social e patriarcal”. (CARRIGAN et. alii., 1992, p. 94 apud
LOLE, 2006, p. 21).
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Outra grande perda tem relação direta com o padrão comportamental do homem moderno que, permeado
por uma rotina estressante de trabalho e trânsito, estabelece péssimos hábitos que influenciarão
diretamente na sua saúde física, mental e psicológica. E essa perda pode ser ainda maior, se pensarmos
nas diferenças existentes entre o homem pertencente à classe trabalhadora e o homem burguês, pois “as
características do masculino e do feminino são definidas pelo contexto social e cultural em que foram
engendradas; o gênero revela-se por meio de práticas produzidas e moldadas nas interações dos sujeitos
em seu ambiente e contexto cultural.” (COSTA-JÚNIOR; MAIA, 2009, p. 55).
Como já mencionado neste trabalho, o papel de provedor sempre fora atribuído ao homem e por isso, a
categoria trabalho sempre ocupará um lugar central em sua formação como homem, muito mais relevante
do que o cuidado com a saúde. Manter o emprego e o sustento da família sempre foi (e ainda é) a maior
preocupação do homem (considerando o padrão atual de masculinidade hegemônica). Quanto a isso,
Costa-Júnior e Maia (2009, p. 59), afirmam que “se há uma preocupação com a sobrevivência econômica
atual e futura, a manutenção do emprego e da renda parece ser mais importante do que a manutenção da
saúde”. Essa questão é uma realidade tanto para classe trabalhadora, quanto para classe dominante.
O fato é que, independente da classe à qual o homem moderno pertença, na sociedade capitalista a
representação social do que é ser homem vai exercer grande influência na forma como ele vai lidar com
sua saúde e o cuidado de si, pois a concepção do que é ser homem tem relação intrínseca com sua
percepção da vida e de tudo que a envolve e o conceito de masculinidade vai interferir diretamente na
compreensão dos papéis atribuídos ao sexo masculino e na forma como o homem vai aprender a lidar
com as particularidades desse gênero.
Dessa forma, concluímos que o legado herdado pelo homem ao longo da história tem ligação direta com
a forma como o homem enfrenta sua saúde e o cuidado consigo mesmo. Exercendo uma influência
negativa sobre sua percepção de autocuidado, gerando agudização de quadros de saúde que, se
identificados previamente, poderiam ser eliminados, evitando o agravamento do quadro clínico e o risco
de morte.
Saúde do Homem
Algumas pesquisas comparativas, entre homens e mulheres, têm comprovado o fato de que
homens são mais susceptíveis às doenças, sobretudo às graves e crônicas. Isso, porque eles
apresentam dificuldade em compreender a necessidade de buscar atendimentos nos serviços de
atenção básica, onde as medidas preventivas poderiam contribuir para a diminuição de um estado
clínico agudizado. “Há autores que associam esse fato à própria socialização dos homens, em que
o cuidado não é visto como uma prática masculina.” (GOMES; NASCIMENTO; ARAÚJO,
2007, p. 565).
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O avanço nas pesquisas resultou, nos anos 1990, na consolidação das noções de poder,
desigualdade e iniquidade de gênero na maioria dos estudos sobre homens e saúde, viabilizando
a compreensão dos processos de saúde e doença nos diferentes seguimentos de homens
(SCHRAIBER; GOMES; COUTO, 2005). Assim:
[...] em sociedades que atribuem poder, sucesso e força como características masculinas, os
homens buscam no processo de socialização, o distanciamento de características relacionadas
ao mundo feminino, como: sensibilidade, cuidado, dependência e fragilidade, por exemplo.
Estas atribuições simbólicas diferenciadas entre homens e mulheres resultam, muitas vezes,
para os homens, em comportamentos que os predispõe a doenças, lesões e mortes. O mais
comum é que homens casados dependam de suas mulheres no cuidado à saúde.
(SCHRAIBER; GOMES; COUTO, 2005, p. 10).
Desta forma, entendemos que a masculinidade não é determinada exclusivamente pelo aspecto
biológico, mas também pelos aspectos psicológicos, educacionais e sociais.
Segundo Costa-Júnior e Maia (2009), as prescrições acerca do que é ser homem e, portanto, do
masculino, não determinam somente os comportamentos interpessoais a serem adotados e
esperados socialmente, mas influenciam na forma como os homens percebem e lidam com seus
corpos. Uma vez que, na nossa sociedade, o corpo masculino ainda é percebido como um corpo
invulnerável, livre de doenças, sempre preparado e apto para o trabalho e extremamente
necessário à sobrevivência da família (COSTA-JÚNIOR; MAIA, 2009, p. 56).
52
Metrosexual: homem que cuida muito da aparência, homem que zela pela sua aparência, indivíduo que valoriza a imagem. (Dicionário
Online).
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Os dados sobre a mortalidade e sobremortalidade dos homens com respeito à maioria das
enfermidades em relação às mulheres desmistifica a ideia de que o homem adoece menos
que as mulheres. Isso indica que a explicação desse fenômeno passa também por uma questão
de gênero, em que homens e mulheres sob efeito de elementos culturais distintos,
desenvolvem padrões de comportamentos diferentes com relação ao autocuidado com a
saúde. (ALVES et. alii., 2011, p. 152).
Tal afirmação demonstra uma realidade que perpassa historicamente a trajetória do universo
masculino, gerando duras consequências para a saúde do homem. De acordo com o Suplemento
Saúde da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, no nosso país, aproximadamente 23,5%
das mulheres, em comparação a 18,2% dos homens, auto-avaliaram seu estado de saúde como
‘regular’, ‘ruim’ ou ‘muito ruim’; 7% entre as mulheres, e 5,6% entre homens referem-se a uma
atual restrição de atividades rotineiras por motivos de saúde (COSTA-JÚNIOR; MAIA, 2009, p.
56). Isso, porque, de modo geral, as mulheres utilizam com muito mais frequência os serviços de
atenção básica à saúde e, mesmo apresentando maiores índices de doenças crônicas, ainda
morrem menos do que os homens, justamente por procurarem os serviços de atenção primária,
mantendo uma rotina de prevenção e manutenção da saúde.
Outra pesquisa comparativa (entre dois grupos de homens), referente às doenças relatadas pelos
homens e diagnosticadas pelo médico, em buscas espontâneas à serviços de saúde, expressam que
as enfermidades que mais acometem os homens são: hipertensão (7,89%), diabetes (5,36%) e/ou
ambas. E em relação a outras doenças, 10,52% dos homens afirmaram ser acometidos por outras
doenças, tais como gastrite, hérnia de disco, problemas respiratórios e úlcera. Dessa forma,
somando-se aos 31,76% dos homens que mencionaram frequências relativas ao aparecimento de
enfermidades, chegar-se-á a um total de 42,28% de homens que têm ciência do seu quadro
clínico. Já 57,89% afirmaram não possuir doença alguma. Nesse caso, a procura pelo serviço de
saúde pode ser entendida como preocupação e cuidado com a própria saúde. (ALVES et. alii.,
2011).
Dos outros homens entrevistados no grupo 2, 6,81% afirmaram terem sido diagnosticados como
portadores de hipertensão e 2,27% com diabetes, além de 13,63% de outras doenças não
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especificadas nos questionários utilizados, tais como problemas respiratórios e cálculo renal. Esse
resultado nos ajuda a perceber o descuido com a própria saúde, uma vez que, mesmo com
diagnóstico de uma doença crônica, os homens não buscam os serviços para tratá-la ou para fazer
acompanhamento, promovendo a agudização do quadro de saúde. Dentre os que não relataram
diagnósticos de doenças, encontram-se 77,27% dos homens. Esse dado nos permite questionar a
real ausência de doenças na medida em que não ir ao médico impossibilita a constatação de
alguma doença, considerando que existem enfermidades que são assintomáticas. (ALVES et. alii.,
2011).
Segundo Laurenti (1998 apud SCHRAIBER; GOMES; COUTO, 2005), pesquisas apontam que
existem quatro grupos de doenças que oscilam entre os países da América, e que sempre estão
presentes como principais causas de morte de homens, são elas: neoplasias malignas (como
cânceres de estômago, pulmão e próstata); doenças isquêmicas do coração; doenças
cerebrovasculares e causas externas (destacando-se acidentes de carros e homicídios). Esses dados
nos mostram que certos agravos são compreendidos como produtos do comportamento
masculino no ambiente social e/ou na relação trabalho-adoecimento, e mantêm uma relação
direta com o padrão de comportamento masculino e com o exercício da masculinidade
hegemônica (SCHRAIBER; GOMES; COUTO, 2005). Má alimentação, consumo excessivo de
bebida alcoólica, tabagismo, sedentarismo, alto nível de stress por conta do trabalho ou por
questões pessoais, dentre outras questões, são fatores contributivos para a reincidência de agravos
clínicos e, consequentes mortes.
Considerando os estudos de Helman (1987 apud SCHRAIBER; GOMES; COUTO, 2005), que
investigou aspectos de personalidade masculina em busca de correlação com riscos para
cardiopatias, podemos perceber que o padrão de risco encontrado na pesquisa, centra-se na figura
do homem ambicioso, hostil, obcecado com o tempo, competitivo e individualista, designando
tais características como “síndrome vinculada à cultura” especialmente no grupo de homens de
classe média e de meia idade. Destaque-se que todas estas características estão associadas ao
padrão hegemônico de masculinidade.
Por fim, o reflexo da socialização de gênero nos processos de morbidade relativos ao ambiente de
trabalho aponta como o trabalho, categoria fundante do ser social e, consequentemente, da
constituição da identidade masculina, ou mesmo a falta dele (como o desemprego/ a não-
ocupação), tem consequências para o adoecimento e o cuidado com a saúde. Destacando o stress
ocupacional – relacionado à competência e possibilidades de conseguir avanço na carreira –, os
riscos de desempenho de tarefas perigosas, não-acatamento de normas de segurança no uso de
equipamentos e em certas atividades no trabalho, compreendemos que todos eles são
desempenhos ou comportamentos bastante convergentes com os padrões constituintes do perfil
masculino de morbi-mortalidade53. E em termos de desemprego ou dificuldade de recolocação
no mercado de trabalho, há os comportamentos associados ao uso abusivo de álcool, já
53
“Na temática da morbi‐mortalidade dos indivíduos de sexo masculino, quando se considera o câncer de pulmão e o de próstata, ressaltam‐
se dois comportamentos culturalmente marcados pelas distinções de gênero: o hábito de fumar, fator de risco bem estabelecido para o
câncer de pulmão e o padrão de uso dos serviços de saúde no caso do câncer de próstata, denotando a forma de relacionar‐se com ações
preventivas para o cuidado de si” (SCHRAIBER; GOMES; COUTO, 2005, p. 10).
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Por outro lado, se tratando do cuidado preventivo com a saúde, o trabalho tem sido considerado
como um impedimento aos acessos de serviços de saúde ou ao acompanhamento de tratamentos
já estabelecidos, uma vez que a falta de tempo, a impossibilidade de deixar as atividades do
trabalho pendentes, ou o medo de que a descoberta de uma doença possa resultar na perda do
emprego são fatores que contribuem diretamente para o adoecimento no trabalho, seja por
doenças ocupacionais ou não. (SCHRAIBER; GOMES; COUTO, 2005).
A centralidade do trabalho na vida do homem e os “prejuízos” que a sua perda pode trazer ao
trabalhador, faz com que os homens limitem seu cuidado com a saúde e com o corpo a ações
pontuais para alívio de dores ou incômodos que possam vir acometê-los. Ao invés de procurarem
os serviços de atenção básica de saúde, para consultas periódicas e exames de rotina, se
“consultam” com farmacêuticos, em busca de um alívio mais rápido, sem que seja necessário
perder horas ou o dia de trabalho para ir ao médico. Além disso, esse cuidado paliativo e pontual
pode não ser suficiente para a manutenção da saúde e com o passar do tempo, o estado clínico
do homem pode se agudizar, levando-o a um quadro de emergência, muitas vezes irreversível. No
entanto, dados do IBGE, referentes à força de trabalho, tornam inconsistente a argumentação
masculina da não busca dos homens aos cuidados preventivos com a saúde por serem provedores
do lar. Os dados revelam um aumento no número de mulheres em atividade profissional que
passou de 47,2% em 1992 para 52,4% no ano de 2007, e um decréscimo no número de homens
em atividade que em 1992 era de 76,6% passando em 2007 a ser de 72,2% (ALVES et. alii.,
2011).
O agravamento de doenças crônicas e a consequente morte de homens, por falta de cuidado com
a saúde, embora não seja uma realidade exclusiva aos mesmos, é mais latente no universo
masculino do que no feminino, uma vez que faz parte do cotidiano das mulheres, o cuidado com
a saúde, começando pelos inúmeros programas e pelas políticas de atenção à mulher, oferecidos
pelo governo. Como afirma Lole (2003), a respeito do Programa de Atenção Integral à Saúde da
Mulher - PAISM, que em sua estrutura e ações, acaba por distinguir lugares sociais sexuados, que
conformam desigualdades de gênero, dificultando a concretização dos direitos reivindicados pela
própria política, cujo um deles tem a ver com a divisão da responsabilidade (entre homens e
mulheres) na questão reprodutiva.
Enquanto o foco inicial da noção de saúde reprodutiva e dos estudos produzidos na área de
Saúde Coletiva voltava-se ao reconhecimento e proteção dos direitos reprodutivos das
mulheres, a partir de meados dos anos 90 alguns pesquisadores e militantes do campo
passaram a reconhecer a necessidade da inclusão dos homens, especialmente no tocante a
comportamentos e valores que intervêm nos processos relacionais de saúde reprodutiva e
sexualidade incluindo as questões dos indivíduos e seus direitos como parte da reprodução.
(SCHRAIBER; GOMES; COUTO, 2005, p. 11).
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A partir dos anos 1990 novas demandas começaram a surgir, impulsionando o aquecimento nos
debates sobre desigualdades de gênero, a fim de solucionar problemas que tomavam grandes
proporções. Segundo Arilha (2001 apud SCHRAIBER; GOMES; COUTO, 2005) o
reconhecimento e a necessidade de enfocar os homens no debate da saúde reprodutiva tinha
ligação direta com a urgência imposta pela pandemia de HIV/Aids, com a crescente visibilidade
da violência contra a mulher e com a comprovação do desequilíbrio de gênero nas decisões e
cuidados no campo da saúde sexual e reprodutiva.
Como demonstra Figueroa-Perea (1998 apud SCHRAIBER; GOMES; COUTO, 2005), esse
comportamento masculino tem que ver com a busca da auto-afirmação da masculinidade
hegemônica e, produz, na maioria das vezes, a banalização quanto aos riscos de contaminação por
Infecções Sexuais Transmissíveis (IST), bem como a indiferença quanto à atitudes de prevenção
e de proteção para consigo e para com as parceiras. Por isso, é importante ressaltar a questão do
planejamento familiar, a discussão sobre as relações afetivo-sexuais e das IST como aspectos
constitutivos da saúde reprodutiva e da saúde em geral, sob a luz da sexualidade, como assuntos
relevantes para a saúde do homem.
Alguns aspectos referentes ao universo masculino foram apresentados nesse tópico, a fim de
evidenciar as particularidades do homem em relação ao cuidado de si e seu desprezo no que tange
à procura por atendimento de saúde, nos fazendo compreender que tal procura se encontra
intimamente relacionada à concepção de gênero, ou nesse caso, ao que significa ser homem.
Constatou-se, também que, ações preventivas, por inúmeros motivos (de ordem cultural ou social)
não fazem parte da realidade desta população, uma vez que não é vista como uma prática do
universo masculino.
A partir destas observações, entendemos que há um longo caminho a ser percorrido na direção
de traspassar as barreiras estabelecidas sócio-historicamente, que mantêm comportamentos e
atitudes negligentes em relação à saúde por parte de uma parcela significativa da população
masculina, constatando a relevância da implementação da Política Nacional de Atenção Integral
à Saúde do Homem - PNAISH, na intervenção no processo saúde-doença de modo geral,
estimulando os homens a incorporarem novas práticas mais salutares ao seu modo de vida.
54
Conjugalidade: concernente à união dos esposos: fidelidade conjugal.
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Referências
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BRASIL. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Ações
Programáticas e Estratégicas. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem.
Brasília, Novembro de 2008.
CARRARA, Sérgio; RUSSO, Jane A.; FARO, Livi. A Política de Atenção à Saúde do Homem no
Brasil: os Paradoxos da Medicalização do Corpo Masculino. Physis: Revista de Saúde Coletiva,
Rio de Janeiro, v. 19, n. 3, 2009.
CEOTTO, Eduardo Coelho; TRINDADE, Zeidi Araujo. Representação Social de Masculinidade na
revista Men’s Healt Brasil no período 2006-2009. Revista Electrónica de Psicología Política, Argentina,
Año 13, N. 35, p. 110-132, Diciembre de 2015.
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Introdução
A temática de violência de gênero se torna, pois, agenda obrigatória em todos os ramos dos setores
públicos e privados, que deve andar de modo transversal, a fim de oferecer não só segurança e
acesso à justiça, como também trabalhar no sentido de se criar mecanismos de prevenção a essa
cultura machista tão difundida, sendo a educação um dos melhores meios para desconstruir esses
paradigmas. Nesse norte, dentre as diversas formas do pensamento na atualidade, uma afirmação
é uníssona: a escola tem um papel e uma função a desempenhar nessa construção, sendo ela um
forte mecanismo para essa discussão, haja vista a sua relevância na participação do caráter de
seus/suas estudantes enquanto cidadãos e cidadãs, que pode se restringir a reproduzir os valores
já socialmente firmados ou instigar as suas alunas e os seus alunos a pensar criticamente e avaliar
certas condutas socialmente crivadas.
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Numa outra perspectiva, encontra-se o trabalho realizado pelo Centro Estadual de Referência da
Mulher Fátima Lopes, instituição veiculada à Secretaria Estadual da Mulher e da Diversidade
Humana, que atua no acolhimento, atendimento e acompanhamento de mulheres que se
encontram em situação de vulnerabilidade, com destaque para as violências sexual, doméstica e
familiar. Também faz parte da atuação do referido Centro de Referência o trabalho de divulgação
desses serviços; capacitar profissionais que atuam como porta de entrada no socorro dessas
mulheres; e participar de eventos capazes de trazer à baila debates de gênero, inclusive em escolas
privadas e públicas, estaduais e municipais.
Portanto, o que este texto busca é analisar as atuações do Centro durante o ano de 2015 junto às
unidades escolares e o corpo docente da Escola Municipal de Ensino Infantil e Ensino
Fundamental Professor José Miranda e da Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio
Francisco Ernesto do Rêgo, todas localizadas em Queimadas, com o fito de, a partir dessa
experiência, verificar seus impactos e consequências.
Essas escolas possuem a sua relevância contextual: Ana Alice Macedo e Michele Domingos
estudaram na Escola Estadual comumente conhecida por “Ernestão”; Isabela Monteiro foi aluna
da Escola Municipal José Miranda, além de ter lecionado nessas duas instituições de ensino após
terminar o seu curso de Pedagogia.
Do ponto de vista dos procedimentos técnicos e metodológicos, a pesquisa tem em seu corpo
duas etapas: a primeira se constitui em uma revisão bibliográfica feita em parceria com o coautor
deste trabalho, bacharel em ciências jurídicas, com quem se buscou sites especializados, textos,
artigos, revistas acadêmicas sobre as questões de gênero, violência contra a mulher e fundamentos
teóricos. A segunda etapa se constitui em um relato de experiência da advogada do centro
Estadual de Referência da Mulher Fátima Lopes, no trabalho de debate de gênero e violência
contra a mulher promovida por esta instituição nas unidades de ensino acima apontadas, em
turnos da manhã e/ou tarde, totalizando-se nove visitas e dez encontros que tiveram por público
alvo alunas e alunos do ensino fundamental e médio, professores e professoras da rede de ensino,
e, em um desses encontros, a participação de mães e pais, durante os meses de junho, julho e
agosto de 2015.
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Discussão teórica
Cavalcanti (2007) estabelece por violência todo o ato de brutalidade, constrangimento, abuso,
proibição, desrespeito, discriminação, imposição, invasão, ofensa, agressão física, psíquica, moral
ou patrimonial contra alguém, caracterizando relações que se baseiam na ofensa e na intimidação
pelo medo e pelo terror.
A autora, embasada na Teoria de Thomas Hobbes55, completa a sua linha de raciocínio no sentido
de que a violência é uma “constante na natureza humana”, de modo que toda a construção da
sociedade deve se pautar no sentido de enfrentar e conter o avanço dessa violência que é inerente
ao nosso comportamento. (2007).
Em seu livro “Sobre a Violência", Arendt (1994) lança discussões interessantes sobre a ligação
existente entre o poder e a violência, sendo esta tão somente a mais flagrante manifestação
daquele: “Ao que parece, a resposta dependerá do que compreendemos como poder. E o poder,
ao que tudo indica, é um instrumento de dominação, enquanto a dominação, assim nos é dito,
deve a existência a um ‘instinto de dominação’ (ARENDT, pg. 33). Lembramo-nos
imediatamente do que Sartre disse a respeito da violência quando em Jouvenel, que “um homem
sente-se mais homem quando se impõe e faz dos outros um instrumento de sua vontade, o que
lhe dá um ‘prazer incomparável’.” (ÍDEM)
Ora, como já dito anteriormente, ao longo do nosso processo histórico, papéis distintos de gênero
foram consolidados ao homem, atribuindo-lhe força e poder, enquanto que coube à mulher as
concepções de fragilidade e de submissão.
Neste sentido, a concepção de gênero vem para distinguir a dimensão biológica do social, ou seja,
ainda que se saiba que existe, na espécie humana, fêmeas e machos, a qualidade de ser mulher
ou de ser homem, isto é, o seu gênero, é oriunda de uma série de características atribuídas
psicológica e culturalmente.
Scott observa que o gênero deve ser visto “como elemento constitutivo das relações sociais,
baseadas em diferenças percebidas entre os sexos, e como sendo um modo básico de significar
relações de poder” (SCOTT, 1990, p.14).
55
Para o filósofo jusnaturalista Thomas Hobbes (2006, p. 21), a igualdade dos homens no estado de natureza é a do medo mútuo: “Todos os
homens no Estado de natureza têm o desejo e a vontade de ferir”
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A esse processo atribui-se o termo violência de gênero, que pode ser entendido como a
determinante relação de poder de dominação do homem e de submissão da mulher que,
reforçados pelo patriarcado, “induzem as relações violentas entre os sexos”. (WANIA
PASINATO, 2006).
Desse modo, a violência contra a mulher é um fenômeno histórico e de questão social grave, com
consequências diretas na vida e, em geral, na vida reprodutiva daquela que foi vítima. A sua forma
mais comum de manifestação é através do abuso cometido pelo seu companheiro, que envolve
desde agressão psicológica e/ou física, até a violência sexual.
Neste momento, faz-se importante esclarecer que muito embora a violência de gênero contra a
mulher e a violência doméstica estejam vinculadas entre si, esta se manifesta como espécie
daquela, ou, melhor explicando,
A violência doméstica, por sua vez, possui, em seu corpo, a característica de ocorrer dentro do
ambiente doméstico (unidade familiar) e/ou familiar (aqueles indivíduos que compõem, por
laços naturais ou por afinidade, o ambiente familiar), abraçando qualquer relação íntima de afeto,
de acordo com o que contempla o artigo 5º da Lei 11.340 de 07 de agosto de 2006, amplamente
conhecida como Lei Maria da Penha.
No seu artigo 7º, a lei segue lecionando, em um rol exemplificativo, que nada impede de abrigar
outras situações denominadas como violência de gênero, as cinco formas de violência doméstica
e intrafamiliar mais conhecidamente praticadas: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.
O fato é que, mesmo com as mudanças processuais, penais e simbólicas trazidas por essa nova
legislação, mulheres continuam sendo assassinadas no Brasil. No ano de 2013, o IPEA (Instituto
de Pesquisa Econômica Aplicada) revelou dados inéditos acerca da violência contra mulher e
estimou que, entre 2009 e 2011, o Brasil registrou 16,9 mil feminicídios, ou seja, “mortes de
mulheres por conflito de gênero”, especialmente em casos de agressão perpetrada por parceiros
íntimos, o que implica em uma taxa de 5,8 casos para cada grupo de 100 mil mulheres56.
56
Confira o estudo “Violência contra a mulher: feminicídios no Brasil” aqui:
http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/130925_sum_estudo_feminicidio_leilagarcia.pdf>
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Já de acordo com o mapa da violência contra mulheres de 201557, apontou-se o nível elevado de
violência contra a mulher dentro do Estado da Paraíba, que chegou a triplicar em 229,2% desde
a implementação da Lei 11.340/2006 até o ano de 2013, chegando-se a ocupar a 6ª posição no
ranking dos estados mais violentos contra mulheres.
Foram esses dados produzidos que destacaram a necessidade de um reforço às ações previstas pela
Lei Maria da Penha, o que acabou gerando na alteração do Código Penal sobre o qual se inseriu,
em março de 2015, através da Lei de número 14.104, o feminicídio como circunstância
qualificadora do crime de homicídio, por ser compreendido como uma forma extrema de
violência de gênero contras as mulheres, e que se caracteriza quando o crime for praticado contra
a mulher nas hipóteses de (I) violência doméstica e familiar e (II) menosprezo ou discriminação à
condição de mulher (Artigo 1º da Lei 13.104/2015).
Entrementes, a verdade é que nos esquecemos, como bem aponta a professora Marília
Montenegro, que a Lei 11.340/2006 foi “muito além das medidas de caráter penal, pois
apresentou várias medidas de proteção e prevenção à mulher, todavia a projeção, tanto no campo
teórico, como prático, foi dada às medidas repressivas de natureza penal” (MONTENEGRO, pg.
35).
O artigo 8º dessa lei, por exemplo, ao lançar algumas diretrizes sobre medidas integradas de
prevenção, estabelece, dentre os seus incisos:
57
Mapa da Violência 2015 Homicídio de Mulheres no Brasil.
Disponível:<file:///C:/Users/jack/AppData/Local/Temp/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf>. Acesso em: 6 jun. 2016.
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Análises e resultados
Faz-se necessário, portanto, que serviços como delegacias, juizados, ministérios públicos,
defensorias públicas, hospitais, centros de referência, conselhos tutelares, hospitais, postos de
58
O nome é em homenagem a defensora pública Fátima Lopes, que foi morta em 2010 em um acidente de trânsito na cidade de João Pessoa
e que, durante em vida, sonhava em abrir um centro de apoio à mulher vítima de violência.
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saúde, sociedade civil organizada, escolas, universidades e tantos outros, dialoguem entre si, pois
todos esses aparelhos podem servir como porta de entrada, quer seja de forma direta ou indireta.
Desse modo, com o fito de chamar essas entidades para o enfretamento à violência contra a
mulher, o CERMFL também assumiu o papel de divulgador dos equipamentos voltados à defesa
da mulher em situação de vulnerabilidade, bem como destacar as responsabilidades dessas
instituições e o seu papel dentro da rede. Logo, por todo o estado da Paraíba, uma série de
palestras, capacitações, rodas de diálogos, debates e apresentações vêm sendo oferecidas por esse
centro, no sentido de se desconstruir certas concepções de gênero, refletir a questão da violência
contra a mulher e explanar sobre os dispositivos legais que protegem essas mulheres, levando-o a
visitar 27 municípios, em 246 apresentação, com a estimativa de 9.701 ouvintes.
No ano de 2015, mais especificamente, nos meses de junho, julho e agosto, a pedido do Comitê
de Solidariedade Ana Alice – formado pela articulação de mulheres e homens do polo da
Borborema com o intuito de lutar pela resolução deste e de outros crimes de violência contra a
mulher –, e em virtude da proximidade do julgamento do assassino da jovem, que foi a júri
popular no dia 18 de agosto daquele ano, o Centro de Referência realizou um trabalho intenso
junto às escolas de Queimadas para refletir com alunas e alunos, professoras e professores, mães
e pais, sobre questões de gênero e violência contra a mulher com o tema: “Este não é o mundo
que a gente quer!”.
Dentre as cinco escolas visitadas, duas são usadas como objeto desta pesquisa: a Escola Municipal
de Ensino Infantil e Ensino Fundamental Professor José Miranda e a Escola Estadual de Ensino
Fundamental e Médio Francisco Ernesto do Rêgo (Ernestão). As visitas foram feitas nos turnos
da manhã e da tarde, e, no Ernestão, foi promovida mais de uma palestra por turno.
Aqui, a primeira preocupação foi adaptar a temática a esse universo. Para tanto, algumas
atividades lúdicas foram necessárias. Começávamos as apresentações informando quem éramos
e a qual instituição pertencíamos; tem-se como destaque a atuação da coordenadora do Centro
de Referência, Isânia Petrúcio, queimadense e pedagoga de formação, que tinha uma habilidade
natural para conversar com esse público. Em seguida, lançávamos alguns brinquedos variados no
chão e pedíamos que dois meninos e duas meninas viessem nos ajudar a guardá-los em duas
caixas, uma verde com desenhos de carros e outra de tom avermelhado, com desenhos de coração.
Era interessante ver que, só com essa informação, os meninos sempre corriam para pegar a
primeira caixa e nela guardar todos os brinquedos que eles entendiam pertencer ao universo
masculino, como bola, carros e bonecos de ação, enquanto que as meninas rapidamente se
dirigiam à segunda caixa, e nela colocavam as bonecas, livros de princesa e panelinhas.
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Com o intuito de romper as barreiras que separam e ditam estereótipos, tentávamos fazê-las
compreender que todas e todos podem usar a cor que quiser, vestir o que bem entender e,
principalmente, que brincadeira não tem sexo: as meninas sabem jogar bola e os meninos podem
sim brincar de boneca.
“Os meninos não podem brincar de casinha!”, uma aluna por volta dos seus 10 anos, de olhos
redondos e amendoados, exclamou.
Aquela reação chamou a minha atenção, pois geralmente, nesses encontros, o que percebemos é
que meninos costumam rejeitar mais a ideia de abarcar o mundo compreendido como das
meninas do que o contrário; de igual forma, eles são mais resistentes em deixar que elas entrem
no mundo deles.
Conversamos com a garota expressiva e dissemos que não havia problema dos meninos brincarem
de casinha, que, inclusive, era bom, pois as brincadeiras, além de uma forma de aprendizagem,
são reflexos do que podemos fazer quando adultos. Os meninos, ao se divertirem com uma
boneca, podem aprender a cuidar dos seus filhos quando estiverem mais velhos. Podem aprender
a ser pai.
Ela nos fitou intensamente, viu que os demais colegas de classe concordavam timidamente com
o que dizíamos, e então meneou a cabeça, a fim de demonstrar que precisaria de um tempo para
engolir aquela ideia tão absurda.
“Vocês estão errados! Não é certo que eles brinquem de casinha”, falou com mais veemência em
sua voz. Um professor, que estava ao lado, ainda questionou, “mas você não gosta de brincar de
bola?” “Sim, gosto. Mas menino NÃO PODE brincar de boneca!”.
Então lhe perguntamos como era a divisão dos afazeres domésticos em seu lar. Não muito foi a
minha surpresa quando ela nos disse que, embora tanto o seu pai quanto a sua mãe trabalhassem
fora, era à genitora que cabia toda a responsabilidade da casa. O pai, enquanto homem e por ser
homem, NÃO PODIA (com o mesmo tom de que os meninos não podem) e nem tampouco
devia realizar esse tipo de trabalho.
- “E o seu irmão, ajuda em casa?”
- “Não.”
- “E você?”
- “Eu lavo os pratos e varro a casa”
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E aí estava a maior dúvida dela: por que um homem teria que fazer qualquer tipo de serviço
doméstico? Ou querer brincar disso? Afinal, em sua casa, o normal é que o homem não pegue
“nem um copo d´água”, já que tem uma mulher ao seu lado para servir. Todo dia ela vivencia
isso, sem questionar (ou, quem sabe, sem poder questionar), e assim o reproduz em seu discurso
tão somente aquilo que enxerga. Então, quando alguém entra em sala e diz o contrário, nada
mais natural do que ela se opor e alegar que estamos errados.
Com esse público houve uma preocupação maior em atraí-los através de outras mídias, como por
exemplo a reflexão sobre músicas que objetivam as mulheres e a apresentação do vídeo “Era uma
vez outra Maria”, que tem uma alegoria significativa de um lápis contornando a vida da jovem
protagonista, que queria escrever a sua própria história, mas se sentia muitas vezes impossibilitada
de experimentar novos mundos, por ter que, em razão do seu sexo, portar-se como a menina de
cabelo impecável que se senta de pernas fechadas e que tem que lavar a louça e aprender desde
cedo quais brincadeiras são para o seu gênero imposto.
Já uma garota, nessa hora, começou a chorar e teve que sair da palestra por um tempo, enquanto
o debate estava mais acirrado. Após se acalmar, ela retornou ao grupo e pediu a fala para contar
o seu testemunho: estava cansada de ser vista como “periguete” e ser desrespeitada física e
moralmente, não só pelos/as alunos/as, mas também pelos/as professores/as.
Em conversas informais depois com as diretoras dessas unidades educadoras, elas confessaram
que nem sempre a escola sabe lidar com as questões de gênero que por vezes são levantadas e que
não raros são os momentos em que os/as próprios professores/as reforçam essas categorias de
gênero, de modo que uma capacitação entre os mesmos se demonstra de assaz importância, pois,
como Auad, bem lembra, muitas vezes, “as meninas, para serem consideradas boas alunas,
precisam ser mais comportadas que os meninos, o que provoca por vezes o seu silêncio e menor
motivação para expressarem suas ideias” (AUAD, 206).
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O cenário apresentado explicita a necessidade de uma realidade escolar que deve analisar, definir
e por em prática estratégias de discussões de temas tidos como transversais no currículo escolar,
a exemplo da questão de gênero e do machismo. De modo que essas experiências do centro de
referência com as escolas do município de Queimadas se mostrou relevante tanto para as
instituições de ensino, quanto para o próprio Centro de Referência.
Considerações finais
Os estudos de gênero e raça/etnia nos convidam a olhar e a pensar de maneira diferente sobre
nossa condição histórica e sobre a origem das desigualdades sociais. A discussão sobre as relações
de gênero preocupa-se em mostrar que as referências culturais são sexualmente produzidas, e
tenta evitar as posições fixas e naturalizadas construídas socialmente.
Para Scott (1990), gênero como categoria de análise, se baseia na relação entre duas proposições:
“gênero tanto é um elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre as diferenças
percebidas entre os sexos, quanto uma maneira primária de significar relações de poder”
(SCOTT, 1990, pg. 14). O aspecto essencial do gênero formulado por Scott é expor as estratégias
de dominação que sustentam a construção binária da diferença entre os dois sexos.
Nesse sentido, a luta contra os mecanismos e manifestações de cunho discriminatório ganha uma
nova dimensão orquestrada pela luta contra as desigualdades entre os sexos, com vistas a formular
políticas públicas voltadas para esses segmentos e promover cada vez mais essas discussões em
todos os ambientes, a fim de se reduzir as disparidades existentes no cenário político, econômico,
cultural e social.
Assim, Dias (2007) afirma que no que tange à violência contra a mulher, a responsabilidade é de
todas e todos, pois “a sociedade ainda cultiva valores que incentivam a violência, o que impõe a
necessidade de se tomar consciência de que a culpa é de todos” (2007, pg. 65).
No entanto, as escolas nem sempre entendem esse seu papel, tampouco compreendem que a
qualidade do processo de integração depende da estrutura organizacional da instituição como um
todo.
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Estudos que abordam paternidade demonstram que a prática do cuidado dos homens-pais com
filhas e filhos têm refletido uma ressignificação dessa atividade, a partir de fatores sócio-histórico-
cultural-ideológicos mutáveis no tempo (BRUSCHINI; RICOLDI, 2012; FALCÃO; GOMES,
2012; GABRIEL; DIAS, 2011).
Porém, apesar da crescente abordagem do cuidado de crianças por homens, não se pode afirmar
que exista uma ampla visibilidade desses pais que participam ativamente no processo reprodutivo,
sendo esta invisibilidade constatada quando, por exemplo, a concepção e criação de filhos são
consideradas atributos exclusivos das mulheres, presumindo de forma quase imperceptível o lugar
do pai.
Ribeiro, Gomes e Moreira (2015, p. 3594) ao abordarem a inserção do pai cuidador como
parceiro na promoção da saúde em políticas públicas voltadas à saúde da mulher e da criança,
pontuam que
No entanto, é sabido que o cuidado com a própria saúde é um aspecto que não faz parte,
propriamente, do repertório de preocupações masculinas. Da mesma forma, o cuidado
com o outro também não é algo inscrito nesse repertório, ou não na perspectiva que vem
sendo proposta. A negação do medo, a exposição ao risco, o silenciamento acerca de dores
físicas e emocionais são considerados traços da masculinidade hegemônica, que devem
ser valorizados, em oposição à fragilidade e emotividade feminina hegemônica.
O cuidado com os filhos pode ser considerado como uma ocupação na qual o pai pode se engajar
e desempenhar de forma significativa. Assim como outras ocupações cotidianas, as experiências
e vivências contemporâneas de cuidado ecoam o comportamento e padrão de envolvimento entre
homens, mulheres, filhos e comunidade (AOTA, 2014).
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No entanto, essa questão envolve novas formas de representações e relações familiares, tensões e
ambivalências, o que provoca questionamentos de como essa experiência está acontecendo no
sentido vivencial-significativo, diante das expectativas quanto ao desempenho do papel paterno
propriamente dito (GABRIEL; DIAS, 2011; SILVA et al, 2012).
Metodologia
Este estudo caracterizou-se como exploratório e qualitativo, e foi realizado com oito (08) pais de
classe média, participantes de um grupo de apoio à gestação em Recife - PE.
Foram convidados a participar do estudo homens que atendiam aos seguintes critérios de
inclusão: participar ou terem participado do grupo de apoio à gestação por um período mínimo
de três (03) meses, consecutivos ou não; com idade acima de 18 anos com filhos na faixa etária
entre seis (06) meses e seis (06) anos. A escolha desta faixa etária das crianças foi realizada
considerando que até os seis (06) meses de idade a maioria está em período de amamentação
exclusiva, o que sugere um maior envolvimento materno, podendo impossibilitar uma
participação paterna mais ativa (BRASIL, 2013).
Os dados foram coletados através de uma agenda, categorizados em áreas de atividades cotidianas
e serviram para apresentar o contexto real de cuidado frente ao contexto presumido, como
subsídio às entrevistas que foram realizadas subsequentemente¹.
As entrevistas ocorreram em locais de escolha dos próprios participantes e tiveram duração média
de 30 minutos. As entrevistas foram transcritas na integra e os dados analisados através da técnica
de análise de conteúdo com temática operacionalizada nas seguintes etapas: 1. pré-análise, com
leitura profunda e exaustiva do material selecionado; 2. exploração do material, com identificação
dos núcleos de sentido e redação que abarque partes do texto de análise, conclusões do
pesquisador, dados de outros estudos e conceitos teóricos; 3. tratamento dos resultados,
inferência e interpretação (GOMES, 2009).
Para fins desse recorte, as categorias temáticas que serão exploradas na discussão dos dados a
seguir são concepções e referências de cuidado e paternidade: conceito, benefícios e dificuldades.
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Resultados e Discussão
Participaram do estudo oito (08) homens-pais. O perfil sócio-demográfico dos entrevistados foi
caracterizado por estarem na faixa etária entre 22 e 51 anos, com idade média de 36,2 anos. Mais
da metade dos participantes se declarou de cor branca (33%) e parda (33%). Com relação à renda
familiar média, foi maior que oito (08) salários mínimos (SM) para 67% dos pais. Três
entrevistados têm dois (02) filhos; dois, têm um (01) filho; e três têm três (03).
(...) seria promover a exposição de alguém, né? e conspirar pra que ela esteja exposta no
momento certo, na medida certa, a coisas que vão fazê-la crescer fisicamente,
espiritualmente, emocionalmente... (aos) n’s aspectos da vida de um ser humano... isso
seria o cuidar pra mim (...) (P3)
Pode-se afirmar que a acepção do cuidado perpassa os mais variados campos do saber em sua
construção histórica; e pode ser inferido enquanto domínio das relações: com o outro, consigo,
com o ambiente. Muitas vezes culturalmente considerado natural e instintivo da mulher, o que
tem reverberado na exclusão do homem dessa atividade (BRUSCHINI; RICOLDI, 2012;
FALCÃO; GOMES, 2012; GABRIEL; DIAS, 2011). No entanto, os discursos evidenciam uma
introjeção do conceito contrária à caracterização enquanto atributo feminino, uma vez que os
participantes se colocam no lugar de responsáveis pelo cuidado, utilizando sua experiência
paterna como exemplo.
Este cuidado envolve diferentes aspectos, caracterizados pelos homens-pais como: físicos (dar o
ou ajudar no banho, alimentar-se, vestir-se); emocionais (compartilhar carinho, afeto, amor) e
psicológicos (promover o fortalecimento para enfrentar desafios). O que reflete uma nova
configuração do cuidado pelo homem-pai.
Ao conceber o cuidado como atividade construída socialmente, e diante dos novos modelos e
arranjos familiares, faz-se cada vez mais presente a ressignificação do conceito, que repercute uma
maior participação do homem enquanto cidadão “privado”, envolvendo-se, ativamente, na vida
sexual e reprodutiva do casal, cuidado com os filhos e atividades domésticas. Ao trazer as
perspectivas emocionais e psicológicas, os homens-pais rompem com os modelos tradicionais de
paternidade que subjugam o homem a suprir unicamente as necessidades físicas dos seus filhos.
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No que concerne às referências de cuidado vivenciadas pelos homens pais, apesar de todos
referenciarem as figuras paternas, houve diferentes perspectivas entre os participantes.
Um dos pais, por exemplo, trouxe o quanto seu pai foi presente e decisivo como referência de
cuidado, já que, ao contrário de sua mãe, preocupava-se com questões para além das necessidades
físicas:
Eu tenho uma relação divina com meu pai, assim, o meu pai é tudo pra mim... ele (...)
sempre teve esse cuidado de além da tua visão física, tipo, além da preocupação se eu tenho
o que comer, se eu tenho o que vestir, se eu to doente, se não sei... ele sempre teve o cuidado,
a intenção de saber QUEM EU ERA, O QUE EU QUERIA (...) (P1)
Outro pai fala que toda a referência de cuidado foi de sua mãe, já que seu pai era ausente:
“referências eu tenho a minha mãe (...) eu tinha uma mãe muito presente e, ao contrário de pai, pai ausente...
aí o afeto da mãe é que foi terminado passado”.
Ainda citando as divergências nesse sentido, um dos entrevistados cita o quanto a referência
positiva do cuidado de pai e mãe o influencia no cuidado com suas filhas: “(...) é bem registrado na
minha cabeça a atenção que meus pais tinham comigo mesmo trabalhando fora (...) o cuidado que eles
tiveram comigo foi perfeito a ponto de eu replicar com as minhas filhas”.
Um homem-pai traz a visão hegemônica do cuidado: a mãe zelosa, o pai que impõe limites, mas
avalia positivamente esse cuidado e o utiliza como referência.
Este último, além de citar os pais, cita figuras históricas como referência, as quais ele denomina
como símbolo de cuidado: “(...) eu tenho grandes figuras de referência como a figura, por exemplo, de
Jesus Cristo (...) pelo exemplo de vida que essas pessoas apresentaram (...) esqueceram de si pra atender às
necessidades das outras pessoas...”.
Gabriel e Dias (2011) abordam a ambiguidade de sentimentos que pode ser enfrentada pelo
homem ao se deparar com a paternidade. Uma vez que a parentalidade poderá reavivar a
experiência de infância desse homem com seus próprios pais, em um exercício que pode ser de
afirmação da criação recebida, ou negação, o que repercute na reconstrução do modelo de
cuidado que terá com o próprio filho.
Ao contrário do modelo de pai “tradicional”, da mãe que cuida, e o pai que provê; percebe-se que
o cuidado mencionado na fala dos pais entrevistados representa um mudança conceitual para a
perspectiva do pai cuidador. Uma vez que todos enfatizaram que o significado vai para além das
necessidades do suprir, devendo abarcar mais amplamente o indivíduo, objeto de cuidado, em
seus aspectos psicoemocionais.
O discurso hegemônico do papel de pai enquanto provedor e que impõe limites, ainda se fez
presente nas falas de três, dos oito pais entrevistados. Contudo, o conceito de paternidade trazido
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passa por uma emoção trazida pelo desempenho desse papel e uma preocupação com o preparo
dos filhos para o futuro. A responsabilidade que o pai tem em criar bem os filhos para mundo,
colocar limites, dar afeto, carinho e amor.
Acho que uma das funções do ser pai é estabelecer o limite e fazer o filho cumprir
esse limite (...) obviamente que, para isso, não é necessário nenhum tipo de
agressão, de atitude violenta (...) até porque colocar limite é um gesto de amor, no
meu ponto de vista, amar também é colocar limites... não somente dar carinho,
alisar, né? (P6)
(...)ser pai pra mim foi transformação (...) eu quero ser uma pessoa melhor, um
mundo melhor pra ele... então, minha concepção do que é o mundo, do que são
as pessoas, minha relação com as pessoas, tudo isso mudou depois que ele veio...
(P1)
Mas, de acordo ainda com esses autores, surgiram outras discussões que ora convergiam, ora
divergiam, para o papel paterno enquanto participante direto do cuidado com os filhos. E que a
introdução do homem nas esferas da vida reprodutiva podia atuar, de forma a modificar, e
equalizar as diferenças de gênero no âmbito doméstico.
Portanto, os discursos evidenciam uma transição do papel do pai “tradicional” para o pai
“contemporâneo” que Ribeiro, Gomes e Moreira (2015) definiram como uma mudança do
patriarcalismo para a parentalidade, este último, mais amplo e que incorpora o maior
envolvimento paterno na criação e desenvolvimento dos filhos.
Essa parentalidade fica ainda mais notória, quando é pedido aos pais participantes para exporem
a relação do cuidado com a paternidade. A concepção dessa relação foi unânime entre os pais
entrevistados, que trouxeram como intrínseco à paternidade.
(...) participar como pai e ser cuidador, para mim, são duas coisas
entrelaçadas, né? Tão vinculadas, tão fortes, que não da para distinguir o
que é uma coisa da outra...” (P2)
Pontua-se que a maioria trouxe a questão do cuidado para além do prover e cuidar fisicamente –
alimentar, trocar fralda etc. –, citando a questão afetiva como preponderante para determinar o
pai cuidador.
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Quando foram indagados sobre a percepção do cuidado com os filhos na rotina, todos se
mostraram surpresos com os dados obtidos com o uso da agenda, com a observação de que a
percepção é de que o tempo atribuído ao cuidado com o filho é pouco, insuficiente.
(...) o que eu percebi é que eu passo, tipo, mais tempo com ele do que eu posso perceber
assim... realmente eu fiquei surpreso... porque quando você está com ele, (...) o tempo
realmente acaba não importando muito... (...) eu achei maravilhoso (...) de ver
quantitativamente que eu, claro que isso nunca vai medir a qualidade do tempo que eu
passo com ele, né? (...) eu dedico boa parte do meu tempo pra ele... eu achei maravilhoso... (P1)
Apesar de avaliarem positivamente os impactos advindos com a paternidade, todos citam grandes
mudanças prioritariamente em áreas como lazer, trabalho e estudo relacionadas ao tempo, além
de mudança de planos e revisão de planejamento financeiro familiar.
(...) eu tive que abrir mão de fazer uma faculdade, eu não tenho, por exemplo, uma
graduação... eu tive que abrir mão de fazer vários cursos que poderia estar fazendo, ou
que eu gostaria de fazer, ou que eu ainda quero fazer... (risos) mas que agora por exemplo
eu não posso... porque a gente definiu e optou por priorizar a educação das crianças
agora... ai a vivência perto deles e a educação deles agora... (P3)
Observa-se uma tentativa de adequação das atividades com o filho, transferindo o conceito de
uma área para outra. Como por exemplo, quando um pai cita que transforma o dar banho no
filho no seu próprio momento de lazer.
(...) você conciliar algumas coisas também transferir um pouco do que é lazer para estar
com ele (...) claro que, tipo, se você buscar aproveitar aquele momento, acho que dá para
aproveitar bastante... fazer a hora do banho,(...) uma festa... ele bate na água e tal... então,
você brincar com ele, você acaba rindo e isso é ótimo (...) (P1)
Benefícios? Todos! nossa... o sorriso que minha filha dá para mim... já garante a minha
felicidade, já garante o meu dia... a felicidade do meu dia, né? Então... isso me dá mais
tranqüilidade (...) mais vontade de trabalhar... o meu dia fica melhor... (...) eu levo o meu
dia com mais gosto... com mais felicidade... (P5)
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pais traz a falta de preparo para lidar com a paternidade, apesar de forte referência positiva
paterna. Dentro da linha do preparo, mas em outra visão, outro pai diz que a dificuldade reside
no fato de não ter certeza se atende às necessidades da filha, uma vez que ela ainda não fala, o
que o angustia. Os demais trazem a preocupação com o futuro dos filhos, suas escolhas e
comportamentos.
O caráter ambíguo dos sentimentos que mediam o desempenho da função paterna também foi
constatado na pesquisa de Gabriel e Dias (2011). As autoras discorreram sobre a percepção
masculina acerca da paternidade participativa e suas implicações no cotidiano dos pais
pesquisados. Assim como na pesquisa dessas autoras, esse estudo também traz o predomínio das
experiências positivas na descrição dos entrevistados permeadas pela felicidade em desempenhar
essa função paterna.
Considerações Finais
De uma forma geral, observou-se que os conceitos de cuidado e paternidade trazidos pelos pais
entrevistados estão permeados pela inserção dos homens, de forma “naturalizada”, enquanto co-
responsáveis pela vida reprodutiva do casal e do cuidado com os filhos, com extremo
envolvimento afetivo. O que reafirma a mudança conceitual do papel do homem somente como
provedor da casa e disciplinador dos filhos.
Diante da invisibilidade dos homens pais pelos profissionais de saúde, quando se trata da
participação no planejamento reprodutivo e práticas contraceptivas, a perspectiva de gênero deste
estudo pode contribuir para o planejamento de ações de promoção de saúde sexual e reprodutiva
voltadas mais especificamente para o público masculino. Embora não seja objetivo desta pesquisa
ampla generalização das suas conclusões.
Apesar do pequeno número da amostra não permitir generalizações, é possível refletir dentro
desse contexto que, apesar das análises evidenciarem desequilíbrio na divisão das atividades
cotidianas de trabalho, lazer, cuidado pessoal, entre outros, todos os entrevistados trouxeram uma
percepção positiva do impacto do exercício da paternidade no cotidiano dos homens-pais
entrevistados. O que reforça que uma análise deve considerar a significação do evento para
abordar de forma mais fidedigna a situação a ser analisada.
Enfatiza-se a necessidade de ampliação do estudo que abarque uma amostra maior e/ou contextos
diferenciados.
Por fim, essa pesquisa instigou, de forma fecunda, novas possibilidades de investigação dessa
temática. Nesse sentido, apontamos a premência de pesquisas que abordem de forma comparativa
o uso do tempo para o cuidado com os filhos em perspectivas de gênero e de classe social; além
de se ampliar para o papel do homem diante das atividades domésticas.
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Resumo
Neste trabalho apresento as possíveis contribuições de uma Psicologia Social Crítica das identidades aos
construtos feministas sobre as Masculinidades. O elemento motivador de tal articulação é a pesquisa de
mestrado, que ora desenvolvo, intitulada: “Homens que agridem: estudos sobre narrativas de história de
vida por homens autores de violências de gênero na cidade de Fortaleza”. Tal articulação se fez necessária
tendo em vista as poucas produções que relacionam Teoria Crítica e Masculinidades. A terminologia
“crítica” é tratada a partir do viés pós marxista, como foi desenvolvido pelos autores filiados a Escola de
Frankfurt e difundido por diversos autores contemporâneos. Como sabemos, as recentes compreensões
híbridas das Masculinidades lançam desafiadoras proposições acerca das categorias gênero e identidade.
Por prismas diversos e coexistentes, esses olhares formam imagens como em um caleidoscópio, como diz
Guita Debert. Destarte, para alcançar o objetivo proposto, busquei o caminho da pesquisa bibliográfica,
mergulhando nos escritos sobre o sintagma Identidade-Metamorfose-Emancipação na perspectiva crítica
de Ciampa (1987) e Lima (2009/2012). Nestes autores, encontrei proposições sobre a constituição
narrativa das identidades e os conceitos de reconhecimento e reconhecimento perverso. Seguindo
articulações sobre masculinidades, tenho me apropriado das articulações de Schpun (2004) e Boris (2002),
os quais discutem as masculinidades sob múltiplas óticas, reforçando a pluralidade necessária à temática,
como também à Bourdieu (2014) no tocante às discussões da dominação masculina. E por fim, recorro a
Butler (2003/2015), almejando uma vertente emancipatória sobre as construções de gênero, dinâmicas de
normatividade e enquadramento. A partir da contribuição dos autores, destaco as relações entre os
homens e as políticas de identidade forjadas na atual conjuntura social. Foi possível suscitar que
identidade é narrativa, apresenta-se de forma performática a partir de interpretações autorreferenciais,
possibilitando a construção de personagens e performances repostas ou não. Esses movimentos são
metamorfoses de si-mesmo em busca de emancipação, conceito que se conecta aos diferentes estilos de
masculinidades apontados por Schpun. Diante disso, apresentarei questionamentos sobre homens autores
de violência de gênero, os quais são atravessados por práticas científico-jurídicas, as quais lançam discursos
massificadores sobre estes. Afinal, é sempre importante lembrar que as Masculinidades perpassam
questões de gênero e identidade e são produto das dialéticas indivíduo/sociedade;
interioridade/exterioridade; história/estória e permanência/mudança, constituindo-se como
metamorfoses.
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Introdução
Nas próximas páginas pretendo estabelecer relações plausíveis entre a Psicologia Social Crítica,
os estudos de identidade oriundos desta, e os trabalhos feministas sobre gênero, mais
especificamente, daqueles que abordam a temática das masculinidades em uma perspectiva
emancipadora. Tais articulações foram possíveis com o prosseguimento da pesquisa de mestrado
“Homens que agridem: estudos sobre narrativas de história de vida por homens autores de
violências de gênero na cidade de Fortaleza”. Essa pesquisa busca problematizar as violências de
gênero sob a ótica da Psicologia Social criticamente orientada, especificamente, com base nos
estudos sobre identidade como metamorfose humana em busca de emancipação.
No calor das discussões feministas, Scott (1991) ensina que as relações de gênero denotam
ligações íntimas com os movimentos políticos e culturais, sendo categorias que se influenciam e
determinam. Para ela, uma afirmação de força e controle tomou a forma de uma política sobre
as mulheres, de sorte que, a diferença sexual é concebida em termos de dominação e de controle
das mulheres. Estas relações estão intrinsecamente ligadas às dinâmicas íntimas, subjetivas e, ao
mesmo tempo, perpassam aspectos políticos – poder exercido – e práticas socioculturais – práticas
de dominação –, “O gênero é uma das referências recorrentes pelas quais o poder político foi
concebido, legitimado e criticado.” (SCOTT, 1991, p. 27). Portanto, gênero é um elemento-chave
nas discussões sobre subjetividade e sociedade.
Desse modo, os estudos pertinentes ao campo de gênero exigem análises relacionadas às práticas
sociais posicionantes dos seres humanos. Neste sentido, as categorias identitárias passam,
necessariamente, por determinações de gênero. E, ainda, tais produções de identidades e
subjetividades têm relação com práticas produtivas de uma sociedade. No momento atual,
vivenciam-se o alargamento do capitalismo e a captura das subjetividades, suas diferenças e ideais
de igualdade. Essa apreensão reverbera em aprisionamento das possibilidades humanas, ao se
considerar o fato de que a máquina do capital deve girar no mesmo lugar sem variações.
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Com suporte no exposto, é possível pensar a sociedade capitalmente administrada pelo prisma
da negatividade, ou seja, pelo avesso do discurso hegemônico. Tal exercício de luta contra o que
está posto denuncia a contradição entre pretextos libertários e procedimentos liberais. Sociedade
e sujeito pensam estar de mãos dadas, mas estão algemados um ao outro, servindo aos desejos do
capital. Capital criado como um Frankenstein e considerado, não um monstro, mas um deus
forjado. Diante disso, o pensamento crítico passa a questionar os ditames liberais no intuito de
promover deslocamentos diante da massificação.
No Brasil, a partir das contribuições de Silvia Lane, nasce a compreensão de uma Psicologia Social
Crítica sobre o homem em movimento, alcançando, assim uma Psicologia consciente do seu
alcance político. A terminologia “crítica” é tratada a partir do viés pós marxista, como foi
desenvolvido pelos autores filiados a Escola de Frankfurt e difundido por diversos autores
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Nas contribuições de Lima; Ciampa; Almeida (2009), encontramos a ideia de que, com
inspirações no materialismo histórico-dialético, o (a) Psicólogo (a) Social Crítico, toma seu lugar
de agente político, adotando uma práxis emancipadora. Neste sentido, trabalhar com a Psicologia
Social criticamente orientada é questionar a hegemonia do que está posto. É assumir uma posição
política frente à realidade de desigualdades, opressão e controle humano.
A partir desse referencial de práxis, os (as) pesquisadores (as) adotam uma atitude teórico-prática,
e porque não dizer, ética. Entendem estas instâncias como indissociáveis e imbricadas uma na
outra. Portanto, as produções acadêmicas nessa perspectiva, até mesmo as ditas teóricas, devem
possuir propostas de releitura, reinterpretação e revolução possíveis da sociedade.
Nestes processos de produção de novas realidades sociais, as dimensões dialéticas ganham força,
uma vez que, a concepção é de um homem produto e produtor histórico-social, “que é, por sua
vez, a dialética entre a igualdade e a diferença, entre a individualidade e a coletividade” (p.227).
Dessarte, compreendemos as dimensões humanas como constructos históricos e sociais, e, neste
sentido, as questões de identidade ganham novas sustentações.
Aqui lanço mão dos estudos sobre identidade numa perspectiva da Psicologia Social Crítica. Essa
perspectiva é pautada no homem em movimento, que se desloca e é deslocado constantemente,
como um continuum de ‘sendo’ e não um estático ‘é’, constituído nas relações. Aqui a
temporalidade aufere dimensões fundamentais, visto que a trajetória de vida de determinada
pessoa é perpassada no tempo e, neste, há possibilidades de percursos e dinâmicas subjacentes
(CIAMPA, 1984, 1987).
Diante do anteposto, posso afirmar que o capitalismo, enquanto sistema globalmente articulado,
transcende a esfera econômica, fundamentando uma racionalidade colonizadora da vida. Esta
racionalidade, por sua vez, orienta teorias e práticas voltadas à manutenção do capital.
Mecanismos de produção são forjados e, não se detém aos produtos comercializados nas vitrines,
antes disso, captura vidas humanas e as subjuga a formas de vida minuciosamente roteirizadas.
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Seguindo articulações sobre masculinidades e violências, Lia Machado in Schpun (2004) e seus
colaboradores, as construções do ideário social masculino trazem consigo relações fortes com
valores impressos em manifestações de violência. Elementos como poder, controle, potência,
virilidade e hierarquia (todos com implicações sexuais) são marcantes em narrativas de homens
que cometeram algum ato de violência física contra a companheira.
Certo discurso de fraqueza está presente no discurso daqueles que cometeram violência e não
colocam em si as razões para tal. Já em outros discursos a justificativa dos atos violentos se dá
ideia de “ter moral de homem” (p.44), que implicaria na fidelidade da mulher e sua obediência.
Assim, a virilidade seria algo evocado quando a expectativa sobre as companheiras não era
atendida, ou imaginavam que elas não estavam atendendo. Diante de todos esses discursos, vê-se
tentativas de apoderamento do corpo da mulher e anulação de suas subjetividades pelo “macho
social” (p.45).
Na compreensão do sociólogo francês Pierre Bourdieu (2014, p.143), “os gêneros, longe de serem
simples ‘papéis’ [...] estão inscritos nos corpos e em todo um universo do qual extraem sua força”.
Este, portanto, demonstra o profundo enraizamento desse construto nas relações humanas.
No exame deste autor, as divisões sexuais são justificadas no corpo, mas de forma arbitrária, e
socialmente construída. A dominação masculina, então, está atrelada às forças históricas
responsáveis pela “transformação da história em natureza, do arbitrário cultural em natural”
(p.12). Tal dominação impressa nos rituais sociais mais básicos é cultivada em formas de
conhecimento androcêntricos, os quais privilegiam o masculino em detrimento do que é
considerado de ordem feminina.
Ao longo de seu estudo, Bourdieu desenvolve o conceito de Violência Simbólica, o qual refere-
se à sorrateira e invisível violência que monta o cenário social e dita as regras entre homens e
mulheres, subjugando-os e violentando-os nas dimensões da comunicação e do conhecimento.
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Bourdieu (2014) ainda ensina sobre as relações entre virilidade e violência, que os homens
também são prisioneiros e vítimas da representação dominante. No ser homem está implicado
um imperativo “dever-ser”, um ethos esperado, o qual não deve ser questionado, apenas é, e deve
continuar sendo, visto que “é evidente em si mesma”. Essa força sobre os homens é entendida
pelo autor como um “realizar de uma identidade constituída em essência social e assim
transformada em destino [...] O privilégio masculino é também uma cilada e encontra sua
contrapartida na tensão e contensão permanentes, levadas por vezes ao absurdo, que impõe a
todo homem o dever de afirmar, em toda e qualquer circunstância, sua virilidade” (p.75-76).
Cabe aqui evocar a perspectiva pós-estruturalista de Judith Butler (2015), na qual, a vida humana
é atravessada, necessariamente por discursos normativos. Neste sentido, não podemos conceber
as vidas humanas e suas relações de gênero, sem recorrer às análises das esferas discursivas.
Segundo a filósofa, há uma problemática epistemológica da apreensão e não apreensão das vidas
humanas. Para compreender melhor essa dimensão, a autora retoma o conceito de
enquadramento, postulado por Goffman, através do qual, expõe que as relações de vida e morte
estão diretamente ligadas a um determinado enquadramento. Neste sentido, há um ideal
preestabelecido do que é e não é vida. E, portanto, para alguém ser considerado um “ser”, uma
vida, passível de reconhecimento, este deve adequar-se à determinado enquadre.
A normatividade, então, encara tais pessoas como grande problemática. Passam a ser
“enquadrados”, no sentido de fichados/incriminados, mas, ao mesmo tempo, não possuem o
reconhecimento ontológico de suas vidas. Os enquadramentos, portanto, são operações de poder.
Poder exercido que promove a exclusão de experiências no campo visual. Não são apenas “vidas
que não devem ser vistas”, mais que isso, vidas invisíveis ou nem mesmo vidas são.
Que são essas pessoas? As ditas minorias situam-se nessa condição, os outsiders também. Por não
serem nomeadas, representadas, reconhecidas, essas pessoas passam pelos processos de
precarização da vida aquém da ancoragem social. Mulheres, negros, mulçumanos, gays, pessoas
com transtornos mentais, e outros são vidas não vivas para a normatividade. Por estarem fora do
quadro hegemônico, enfrentam culpabilidade e o desamparo da esfera pública.
Para Butler, a precariedade é condição intrínseca da vida humana, justamente, por precisarmos
de outros para sobreviver desde cedo. O nascimento já é uma condição precária. Todavia, só a
precariedade de alguns é reconhecida e assistida. Diante de tal realidade, uma provocação deve
ser feita: “deveria haver uma maneira mais inclusiva e igualitária de reconhecer a precariedade, e
que isso deveria tomar forma como políticas sociais concretas no que diz respeito a questões como
habitação, trabalho, alimentação, assistência médica e estatuto jurídico.” (p. 30).
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Prosseguindo no pensamento, as vidas que não são consideradas passíveis de luto (não valiosas),
vivenciam a fome, o subdesemprego ou escassez dele, violação de direitos e exposição constante
à violência e à morte. Como não pensar no Estado (e sua ausência consciente) após tal reflexão?
Como não associar tal condição de miserabilidade à operação do estado? Aqui há um paradoxo,
visto que grande parte das violências sofridas por essas pessoas têm a conivência dos governos.
Violências arbitrárias passam a ser rotina para tais pessoas, uma vez que são vidas descartáveis.
Mas, ao sofrer tais violências e violações, a quem recorrer? Recorrem ao mesmo Estado pedindo
proteção. “[...] recorrem ao Estado em busca de proteção, mas o Estado é precisamente aquilo do
que elas precisam ser protegidas” (p.47).
Desse modo, para Judith Butler, a concepção de vida precária deve ser observada com mais
atenção, e o foco das reflexões deve recair menos sobre as políticas de identidade e mais na
distribuição diferenciadas de reconhecimento da precariedade. Para que populações se tornem
lamentáveis, não se faz necessário conhecer a realidade singular de cada pessoa em risco ou em
situação de violação. Na verdade, o campo político precisa reconhecer a precariedade como
condição comum a todos, todavia, não reconhecida e sujeita a desigual distribuição da riqueza e
das práticas de exposição de algumas populações à situação de violência.
Sob essa ótica, é possível pensar no caso das mulheres que sofrem violência de gênero por seus
companheiros, familiares, conhecidos, colegas de trabalho, vizinhos. As possibilidades de agressão
e violação são muitas. Estas mulheres, por muitos anos, sofreram as injustiças na pele e na alma
e contando com um elemento a mais, o silêncio do Estado. A conivência e o cinismo envolvidos
no enquadramento da violência de gênero como pequeno delito é prova do descaso e da condição
de população não passível de lamento que tais mulheres encaravam.
Após 2006 com a Lei Maria da Penha, algumas políticas públicas vêm sendo implementadas e a
visibilidade da precariedade de tais vidas, paulatinamente, é encarada de frente. Mas, no tocante
à garantia de direitos e luta contra as injustiças, se faz necessário permanecer, se faz necessário
lutar constantemente e não deixar cair no esquecimento.
Para a filósofa, o “gênero” de alguém não diz tudo o que uma pessoa vem a ser. Certamente, se
alguém “é” mulher, isso não é tudo o que esse alguém é. Nem sempre o gênero se constitui de
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Com amparo na crítica às dicotomias que a divisão sexo/gênero produz, a pensadora parte para
a crítica do sujeito como ‘sujeito uno’ que é produzido, na esfera da política representacional,
principalmente pelas instâncias jurídicas. Ela entende não ser possível reduzir um sujeito a uma
identidade, sem limitá-lo. Portanto, esse ideal de sujeito unitário pode ser prejudicial até mesmo
que com ideais emancipatórios. Para Butler, o exercício preciso sobre gênero na dimensão política
é “justamente formular, no interior dessa estrutura constituída, uma crítica às categorias de
identidade que as estruturas jurídicas contemporâneas engendram, naturalizam e imobilizam”
(p.22).
Diante de tais colocações, uma relação é factível com a temática de homens apreendidos como
“agressores”. A esfera da jurídica criminal, com o discurso de prevenção e punição sobre atos de
violência contra a mulher, nomeia os homens autores destas violências como “agressores” e tal
representação ganha força nos discursos oficiais e não oficiais. Cabe refletir, até que ponto essa
categoria identitária não reforça a naturalização e imobilização dos sujeitos assim representados.
Neste sentido, outras questões ainda podem surgir sobre as práticas de categorização, tais como,
quem são os homens tidos por “agressores”? Eles são “agressores” – como identidade estática?
Entendo que estes são sujeitos capturados pela cultura machista que se perpetua por gerações. As
constituições de suas masculinidades parecem se dar por meio de rituais eminentemente
violentos; assim, por que não refletir também sobre sua(s) condição(ções) de vítima(s) de processos
socioculturais de perpetuação da violência? Seguindo esse veio, Boris (2002) considera que as
masculinidades são elaborações socioculturais, muitas vezes levadas pela negatividade do
feminino, constituindo-se como categoria frágil. A violência é um critério pertencente aos rituais
de formação das masculinidades. Logo, como um produto socialmente constituído, o homem é
agressivo e possui a imagem de criatura violenta desde as sociedades mais arcaicas.
Parece que esses homens, principalmente os judicializados, passam por um processo próximo ao
que Lima (2010) chama de “reconhecimento perverso”, uma vez que lhes são atribuídos
diagnósticos sociais que desconsideram toda a sua história, podendo fazê-los crer que o problema
é de ordem individual apenas e “que reduz as infinitas possibilidades de criação das personagens
à representação de uma identidade fetichizada, estigmatizada”. (p. 230).
A captura da subjetividade desses homens, desta forma, sucede pela lógica de reprodução da
violência como possibilidade única de existir; a captura, pelo Legislativo, uma vez que a Lei Maria
da Penha (2006), em toda a sua redação, os trata apenas como “agressores” e não como homens,
bem como a mídia e a opinião pública; recebem rótulos marcantes para a formulação de suas
subjetividades e punições, muitas vezes, ineficazes.
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outros eixos de relação de poder, os quais tanto constituem a ‘identidade’ como tornam equívoca
a noção singular de identidade” (p. 21).
Se a noção estável de gênero dá mostras de não mais servir como premissa básica da
política feminista, talvez um novo tipo de política feminista seja agora desejável para
contestar as próprias reificações de gênero e da identidade – isto é, uma política feminista
que tome a construção variável da identidade como um pré-requisito metodológico e
normativo, senão como um objetivo político. (p.23).
Essa proposta de um feminismo com base na variabilidade das categorias identidade e gênero se
aproxima com a compreensão da Psicologia Social Crítica, já citada anteriormente. Ancorado
nessas discussões, posso afirmar que para melhores análises das violências de gênero, é preciso
superar o binômio “Mulheres vítimas” versus “Homens agressores”, dar importância às narrativas
dos homens autores de violência e investigar os processos que envolvem a elaboração do gênero
e da identidade destes homens.
Considerações finais
Na direção de uma perspectiva crítica da sociedade capitalista, os fenômenos sociais podem ser
compreendidos como produtos e produtores de formas de viver, o que se aplica ao conceito de
gênero. Lima (2009), por sua vez, expressa a noção de que o discurso social é determinante para
elaborar a identidade na formação e reposição de personagens, uma vez que representação e
reconhecimento são concomitantes e contínuos. Os personagens exercidos podem, entretanto,
em virtude da necessidade de reconhecimento, vir a se transformar em fetiche, tal qual, para
Marx, a mercadoria se faz. Assim, as personagens exercidas pelo sujeito parecem ter ligação direta
com a relação de poder que estas dão acesso. Deste modo, o processo de “mesmice” parece
conceder ao sujeito a sensação de imutabilidade, de estagnação da identidade.
Assim, na compreensão da Psicologia Social Crítica, essa condição pode ser denominada de
‘fetichismo da personagem’ e, ainda, ‘identidade mito’. Isto serve aos ideais do capital, pois torna
o ser humano refém de uma suposta identidade atemporal e imutável, impedindo-o de buscar a
emancipação. Desse modo, a teoria crítica da sociedade é expressa como fundamental às análises
do fenômeno em pauta.
Considerando o exposto, entendo que pensar em uma perspectiva crítica exige um deslocamento
significativo. Tal exercício amargoso, mas necessário, alumia a vista frente às lutas que merecem
ser pelejadas, direciona o discurso para causas revolucionárias e impulsiona o pensamento a
realidades possíveis, mas ainda não experimentadas. Com os diálogos elaborados aqui e com bases
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em novos que virão, penso ser possível desenvolver uma jornada rumo às novas realidades menos
violentas.
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Resumo
Esta pesquisa visa a realizar uma avaliação sobre o funcionamento do primeiro núcleo de atenção
aos autores de violência sexual cometida contra crianças e adolescentes. Esta experiência é
pioneira dentro do organograma de uma secretaria estadual de saúde no Brasil (no caso, a
secretaria do Distrito Federal), e o combate ao ciclo da perpetuação da violência passa também
pela atenção e cuidado dos conflitos e medos internos dos autores, incluindo a violência sexual,
pois trata o problema em sua causa. Por isso, é importante analisar a estrutura e organização deste
espaço para que se avalie o que já ocorreu de positivo, disseminando a ideia para outras
organizações e instituições.
Introdução
A Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes (VSCA), compreendida por sua coerção, seu
abuso e sua exploração por meio de comentários ou investidas sexuais, é um grave problema de
saúde pública, sendo resultado de fatores psicológicos, sociais, culturais e até econômicos,
tornando complexo seu entendimento (HABIGZANG et al, 2005). Segundo dados da Secretaria
de Direitos Humanos da Presidência da República, em 2014, 24.575 queixas de violência sexual
foram recebidas pelo serviço de denúncia Disque 100 (serviço gratuito de denúncia de violência
sexual por telefone do governo federal), sendo 19.165 referentes a abuso sexual e 5.410 à
exploração sexual (BRASIL, 2015). Com uma média de 67 notificações por dia, a cada hora,
quase três denúncias de VSCA foram registradas no país em 2014. Apesar disto, houve uma
redução de 28% na quantidade de denúncias de abuso e de 25% nas de exploração sexual de
crianças e adolescentes em relação a 2013 (BRASIL, 2015).
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Observa-se que diversos estudos têm se preocupado em retratar a VSCA, porém com maior
enfoque à vítima e aos progenitores que não cometeram a violência (ESBER, 2008). Como
consequência, os Autores de Violência Sexual (AVS) têm sido tratados de forma secundária,
sendo abordados apenas por meio de estatísticas quantitativas (ESBER, 2008). Além disso, as
ações e os programas que abordam os AVS quase sempre trazem o viés de que esses indivíduos
possuem alguma anormalidade psíquica, ignorando-se a conjuntura sócio histórica que também
está envolvida na constituição de seus comportamento, gerando explicações extremamente
moralistas em relação ao tema, sem dar atenção à subjetividade que é exigida ao se analisá-lo
(ESBER, 2008). A lacuna relacionada ao atendimento do AVS pelo poder público é ainda maior
(SILVA, 2011). Como resultado, tem-se que a taxa de reincidência deste tipo de crime varia entre
18 a 45% (SERAFIM et al, 2009).
Da mesma forma, o Sistema Único de Saúde (SUS), não possui políticas que incluam os AVS em
suas diretrizes. Devido à discriminação que esses sujeitos ainda sofrem de toda a sociedade,
acredita-se que, pelo ato da VSCA cometida, eles não sejam merecedores de ações voltadas a sua
saúde, permanecendo na maioria das vezes à margem deste cuidado (ESBER, 2008). A
responsabilidade de visibilizá-los e incorporá-los a políticas públicas fica a cargo do Sistema de
Justiça, por meio de programas de reeducação em penitenciárias, e da Assistência Social, após a
pena já ter sido cumprida. Apesar disso, o viés desses programas públicos continua sendo
patologizante e culpabilizador, dando pouca importância ao processo sócio histórico destes AVS,,
não contribuindo para sanar o problema em sua causa (ESBER, 2008).
O presente estudo não tem a pretensão de esgotar o tema da relação entre os AVS e o SUS ou da
relação entre os AVS e a Assistência Social, ainda que isso não venha sendo o foco das políticas
e pesquisas desenvolvidas até o momento, como se pôde observar ao longo da construção deste
artigo. Aqui, é analisada a articulação entre os AVS e as políticas implementadas pelo Estado,
com o intuito de prevenir ou enfrentar este problema, por meio de uma iniciativa recente que
visa a prevenção da violência sexual contra crianças e adolescentes. Para tanto, será analisado o
novo programa do governo do Distrito Federal (DF) que atende autores de violência sexual, um
núcleo pioneiro e inédito dentro do organograma de uma Secretaria Estadual de Saúde no Brasil.
O programa foi formado em 2013 pela Secretaria de Saúde do Distrito Federal (SES-DF), com
vistas à atenção e ao atendimento do autor (adulto) de violência sexual cometida contra crianças
e adolescentes. Com este escopo em vista, se estabelece como objetivo deste estudo delimitar sua
natureza, explicitando suas propriedades e qualidades intrínsecas, de modo a mostrar sua
possibilidade de responder à determinada situação social. Antes de apresentar o programa,
algumas reflexões sobre AVS na literatura e a sua relação com as políticas públicas no Brasil serão
traçadas; em seguida, o método empregado e a análise somativa591 do programa serão descritos;
e, por fim, a conclusão será delineada, observando possibilidades e limitações do artigo.
59
Adotam‐se neste artigo as premissas de Ala‐Harja e Helgason (2000) e Cunha (2006) para avaliação somativa: aquela que é realizada após
a implementação de um programa para verificar sua efetividade e fazer o julgamento do seu valor geral.
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Para Silva (2011), no meio acadêmico, os aspectos relacionados aos AVS são considerados de
modo secundário, permanecendo pouco visíveis nas discussões. A temática da VSCA começou a
ganhar maior importância no Brasil a partir da década de 1980 (FERRARI; VECINA, 2002). Em
relação aos estudos desenvolvidos, Esber (2008) critica a literatura que se utiliza do Manual
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM IV, de 1995 -, pois esse propõe que os
AVS possuem características genéticas ou psíquicas defeituosas, levando-os a perturbações
mentais que os afastam da normalidade. Assim, não se questiona o tipo de sociedade em que os
AVS viveram e se sofreram o mesmo tipo de violência na infância, o que estimula somente uma
espécie de demonização desses indivíduos (ESBER, 2008).
Os estudos que Esber (2008) critica afirmam que os AVS apresentam distorções cognitivas, com
pensamentos irracionais e exagerados que se acredita que perpetuem estados psicopatológicos,
como depressão e ansiedade, reforçando ideias e emoções negativas e interferindo na maneira
como a pessoa interpreta determinado acontecimento ou evento (BURNS, 1989). Para Saradjian
e Nobus (2003), tais distorções funcionariam como pensamentos permissivos desenvolvidos pelo
AVS para promover sua desinibição ao violentar, assim como diminuir sua culpa relacionada ao
ato de VSCA e manter sua autoimagem positiva. Isto significaria que, nos períodos anteriores,
durante e posterior à violência, o AVS necessariamente apresentaria pensamentos e
comportamentos padronizados e distorcidos em relação à(s) criança(s) e/ou ao(s) adolescente(s)
(SARADJIAN; NOBUS, 2008).
Azevedo e Guerra (2000) também apoiam a ideia de que os sujeitos que cometem estes crimes
sexuais não devem ser caracterizados como loucos, psicopatas ou pedófilos, pois isso torna
insatisfatória e inalcançável as explicações para a VSCA, fazendo com que os atos cometidos pelos
AVS fiquem sempre à margem de um entendimento mais profundo e substancial. Sanderson
(2005) se posiciona a favor de uma desmistificação da figura do AVS contra crianças e
adolescentes, pois esses não possuem um único traço de personalidade, característica física ou
classe social: advêm de todos os nichos da sociedade, grupos étnicos e faixas etárias, formando
um cenário bastante heterogêneo, fato esse também destacado por Campos e Schor (2008).
Para Madanes (1997), os comportamentos dos AVS não devem ser considerados imutáveis pela
sociedade, o que poderia conduzir as autoridades a tratá-los sem qualquer esperança de
reeducação e convivência em sociedade. É preciso conhecer a história desses sujeitos, buscando
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os significados e sentidos que os levaram a cometer os atos de violência sexual, sem a intenção de
justificá-los, mas sim de compreendê-los (ESBER, 2008). Corroborando com essas ideias,
Sanderson (2005) afirma que as pesquisas atuais têm mostrado que poucos AVS possuem
problemas mentais ou psicológicos confirmados e diagnosticados. Fagundes (2003) explica que
essa mudança de lógica de um modelo biologicista para um modelo multidisciplinar aceita
diferentes explicações para a ocorrência da VSCA, incluindo razões históricas, sociais e culturais.
Nessa acepção, algumas pesquisas mais recentes têm se debruçado sobre métodos de tratamentos
psicológicos visando à reeducação e ressocialização de AVS (FAGUNDES, 2003).
Smallbone e Wortley (2004a), por sua vez, condenam a ideia da especialização de ofensores em
determinada prática criminal, reforçando o pensamento de que existe uma grande gama de
comportamentos criminais que essas pessoas podem cometer e que esta especificidade pode ser a
exceção, e não a regra geral. Reis (2001) afirma que a maioria dos AVS tem entre 20-24 anos,
porém, Smallbone e Wortley (2004b) constatam que é comum o início tardio da ocorrência de
VSCA pelos AVS (média de 32 anos) e que esses geralmente já cometeram algum crime não
sexual anteriormente ao primeiro contato com a criança ou adolescente.
Para Parkinson et al (2003), agrupar os AVS em uma categoria distinta de tipificação criminal
pode não fornecer subsídios para analisar a relação desses sujeitos com a criminalidade em geral.
A respeito disso, Reis (2001) evidencia que a ausência de dados devido à subnotificação da
agressão – visto que o agressor, via de regra, é um conhecido da vítima – dificulta o conhecimento
real da situação. Lussier et al (2005), descrevem que os criminologistas têm confrontado a ideia
da especialização dos AVS em crimes sexuais, afirmando que eles podem cometer outros tipos e
formas de crimes não sexuais. A respeito dos AVS terem sido vítimas de violência sexual na
infância, os autores concluíram que pessoas que foram abusadas no passado podem desenvolver
um interesse sexual desviante (LUSSIER et al., 2005).
Ao estudarem 143 AVS, Greenberg et al (2005) concluíram que metade deles haviam sido
violentado sexual ou fisicamente antes dos 16 anos de idade e um terço havia sido expulso de
casa também até essa idade, demonstrando que há uma relação de ocorrência de VSCA na idade
adulta com construções afetivas negativas na infância e adolescência. Já nos estudos de Sullivan
e Beech (2004), foram feitas comparações demográficas entre os AVS e os AVS profissionais (que
são os que utilizam seu espaço de trabalho para cometer a violência sexual), chegando à conclusão
que, do primeiro grupo, 60% dos entrevistados sofreu abuso sexual na infância, e do segundo,
51%.
A falta de vínculos afetivos estáveis e sólidos, tanto na infância quanto na idade adulta, pode
também ser um fator preponderante para este fenômeno. Gutiérrez-Lobos et al (2001)
constataram que os pais ou outras figuras masculinas representativas não eram presentes nas vidas
dos AVS, além de que estes agressores possuíam um grande grau de isolamento emocional, não
sendo capazes de demonstrar afeto e carinho, o que poderia conduzir a comportamentos sexuais
inapropriados. Para Schmickler (2006), a questão social e histórica de cada indivíduo AVS pode
auxiliar na construção da VSCA, pois esses sujeitos geralmente são atingidos na infância por uma
violência estrutural que os retira a possibilidade de exercerem sua cidadania, impedindo que seus
desejos, direitos e deveres sejam adequadamente exteriorizados e discutidos. Essa barreira cria
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nos AVS desejos e sentimentos negativos, como a vingança, a raiva, o medo, a vergonha, dentre
outros, podendo repercutir na vida de crianças e adolescentes (ESBER, 2008).
O tema VSCA era pouco abordado no Brasil até a década de 1980 e, ao ser aprovado em 1990,
o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) não representou uma política de proteção integral
(SILVA, 2011). Azambuja (2006) e Esber (2008) advertem que, ainda que um AVS já cumpra
pena privativa de liberdade, faz-se necessário desenvolver políticas e implementar programas de
atendimento. Alencar (2012) observa que a VSCA tem sido tratada pelas políticas públicas
brasileiras com um viés punitivo, sem levar em conta o contexto em que as situações ocorrem,
trazendo sempre a ideia da repressão, enfoque esse, que não tem se mostrado eficaz na redução
desse tipo de crime, dados os altos índices de reincidência, os altos custos financeiros para
manutenção destes AVS nas prisões e os altos custos sociais pela quebra dos vínculos sociais e
pela seletividade criminal. (ALENCAR, 2012).
No Brasil, uma característica comum aos processos que envolvem essa questão é a falta de
articulação entre as instituições, o que torna desconexo o cuidado e a atenção às famílias
envolvidas (HABIGZANG et al., 2005). Com o objetivo de modificar esse cenário e estimular o
trabalho em rede entre as instituições, foi instituído em 2000 pelo governo federal, em conjunto
com diferentes setores da sociedade civil, o Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual
Infanto-juvenil (PNEVSIJ). Por meio de seis eixos estratégicos que estabelecem metas, parcerias e
prazos a serem cumpridos para reduzir os casos de violência sexual contra menores, o documento
propõe um atendimento de qualidade para as vítimas e para suas famílias, integrando diferentes
atores em uma rede intersetorial (SECRETARIA DE DIREITOS HUMANOS, 2015).
Para Schmickler (2006) e Silva (2011), quando o tema da VSCA é abordado pelas políticas
públicas, há uma tendência em se concentrar a atenção às vítimas e aos familiares não agressores,
sobretudo após a publicação do ECA. Hoje, porém, segundo Café e Nascimento (2012), algumas
experiências isoladas de atendimento aos AVS pelo poder público reconhecem a importância de
incorporá-los na lógica do tratamento familiar para interromper o ciclo de reprodução dessa
violência. Esses autores estudaram uma abordagem psicoterapêutica realizada com seis AVS
cumprindo pena na Penitenciária Odenir Guimarães, que obteve resultados satisfatórios (CAFÉ;
NASCIMENTO, 2012). Esber (2008) também realizou uma pesquisa sobre as abordagens
psicoterapêuticas adotadas pelo sistema público penal no mesmo local, que revelou que os AVS
possuem características bastante heterogêneas que nem sempre são consideradas na hora da
formulação de políticas ou ações públicas direcionadas à ressocialização. Campos e Schor (2008),
por sua vez, analisaram 937 notificações de VSCA e o perfil sócio-demográfico-epidemiológico da
população e constataram conclusão semelhante à de Esber (2008)..
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metas) o atendimento multiprofissional especializado para os AVS que altere a perspectiva cíclica
da VSCA (PAIXÃO; DESLANDES, 2010). Portanto, atualmente no Brasil, a oferta e a inclusão
dos AVS de atendimento pelo Estado, geralmente vem sendo realizado em iniciativas isoladas
(PAIXÃO; DESLANDES, 2010; SILVA, 2011).
Metodologia
Houve coleta de dados secundários e os mesmos foram analisados por meio de análise de
documentos fornecidos pelo núcleo pesquisado. Os sujeitos da pesquisa para a coleta de dados
primários foram dois profissionais técnicos (nível operacional) que trabalham no núcleo. Como
instrumento de coleta destes dados, foi elaborado um roteiro de entrevista com questões
estruturadas e semiestruturadas. As entrevistas foram gravadas e realizadas pelo próprio
pesquisador, em fevereiro de 2016, com 20 perguntas, divididas em três eixos: o primeiro era a
respeito da caracterização do respondente, o segundo sobre o perfil dos AVS atendidos e o
terceiro sobre o núcleo formado na SES-DF.
Posteriormente, os dados obtidos foram analisados por meio de uma análise tipológica. Nesse
processo de análise, a partir de critérios pré-determinados, filtram-se elementos que possam
descrever e detalhar especificamente um determinado tipo (MAYRING, 2002). Com base nesse
escopo, considerou-se que o programa em questão é um tipo com características empíricas
marcantes. Assim, foram estabelecidos os critérios de análise para o tipo em análise, conforme as
recomendações de Mayring (2002).
Análise e discussão
A equipe deste núcleo é composta por três psicólogos, um psiquiatra e dois assistentes sociais. O
acompanhamento dos pacientes com atendimentos individuais e familiares é feito por meio de
atendimentos quinzenais, totalizando oito encontros com cada grupo. Dois grupos já foram
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concluídos (em 2014 e em 2015) e um terceiro grupo está em andamento. Como meta futura,
almeja-se o desenvolvimento de dois grupos de acompanhamento de AVS por ano. Foram
entrevistados dois técnicos do núcleo, ambos funcionários da SES-DF. No que se refere à
formação acadêmica, um tem formação em Psicologia e Mestrado em Psicologia Clínica e o
segundo entrevistado tem formação em Assistência Social e Especializações em: Violência na
Saúde, Terapia Familiar e Dinâmica de Grupo. Ambos trabalham no programa desde o início de
sua formulação, em maio de 2013.
Foram atendidos até o momento 100 AVS, sendo homens de todas as classes sociais e de diversas
faixas etárias: o mais novo possuía 25 anos e o mais velho, 72 anos, o que ratifica as pesquisas
nesta temática, como a de Esber (2008) e a de Campos e Schor (2008), que afirmam que não
existe um perfil para os AVS.
A seleção para que os AVS participem do grupo é feita com base em alguns critérios: devem ser
do sexo masculino; ter sido cometido violência intrafamiliar (porém, não precisa necessariamente
haver grau de parentesco entre vítima e autor, que podem ser: agregados, vizinhos ou conhecidos
da família); os AVS que estiverem em crise psiquiátrica e/ou em uso contínuo de drogas ilícitas
têm prioridade para serem atendidos pelo programa e fazem, concomitantemente,
acompanhamento nos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS-AD)60.
A desistência por parte dos AVS tem ocorrido somente entre o processo de seleção e o primeiro
encontro, ou seja, depois que eles começam a frequentar os encontros, não houve desistência. Os
entrevistados relataram que, primeiramente, os AVS começam negando a ação de VSCA, porém,
com o passar dos encontros, começam a desenvolver um processo profundo e importante de
reflexão sobre a VSCA, entendendo que o ato é errado e que cometeram um crime, como afirma
Esber (2008).
60
Os CAPS‐AD são centros públicos de assistência a pessoas em sofrimento por uso e abuso de álcool e outras drogas.
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administrativa. O programa está sob determinação de legislações federais, como os Códigos Penal
e Processual Penal, e também no que concerne às ações e programas de saúde do Governo
Federal, entretanto, a metodologia empregada pelo núcleo, a escolha dos profissionais e a seleção
dos participantes (os AVS) é de iniciativa da SES-DF..
Com base nesse escopo, os entrevistados também ressaltam que o local em que está instalado o
núcleo ainda não é o adequado (pois o programa divide espaço com outras áreas da secretaria),
haja vista que por se tratar de um tema complexo deveria ser realizado em um local separado e
específico. No que se refere à relação entre o núcleo e a participação da sociedade organizada
(Organizações Não-Governamentais ou Conselhos), essa se restringe, até o momento, à
modalidade de apoio por universidades, na supervisão da metodologia a ser empregada no
tratamento aos AVS enquanto pesquisa, porém também sem qualquer fornecimento de
tecnologias, recursos materiais ou humanos.
As pesquisas na área de VSCA trazem as duas formas com que se pode lidar com o tema dos
AVS: ou incluindo os autores em classificações de doenças mentais, estipulando intervenções
padronizadas, ou buscando um entendimento histórico e psicossocial para a ocorrência da VSCA.
O primeiro tipo de abordagem é mais clássico e mais comum; já o segundo é mais recente e ainda
enfrenta bastante resistência por parte dos pesquisadores.
Na prática, essa última abordagem pode conduzir os profissionais que atuam com a temática a
entenderem melhor as causas que levam os AVS a cometerem VSCA, pois busca na construção
de personalidade de cada um deles os motivos para a ocorrência destes atos. Entretanto, o que se
verificou é que gestores que atuam na Saúde Pública ainda não definiram agendas estratégicas
para discutir esse tema sob a perspectiva de tratamento integrado ao problema, pois a prioridade
ainda está direcionada para a defesa e garantia de direitos às vítimas.
Nesse sentido, cabe destacar a importância do programa de atendimento aos AVS da SES-DF,
podendo ser considerado também uma inovação em políticas públicas no Brasil de VSCA, que
busca trabalhar dentro do contexto holístico de intervenção com AVS, na lógica psicossocial de
vida desses indivíduos. Mesmo assim, os técnicos e profissionais que trabalham no programa
pesquisado enfrentam situações complexas no seu cotidiano. Apesar das dificuldades de
investimento e de estrutura, advogam a favor da implementação do programa, o que foi
corroborado pelas pesquisas sobre a temática apresentadas no texto. Como em qualquer pesquisa,
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o trabalho desenvolvido apresentou limitações no tempo de sua conclusão, pois nos meses de
coleta de dados - dezembro de 2015, janeiro e fevereiro de 2016 -, os funcionários do programa
revezaram seus períodos de férias, além de que outros estavam afastados por licenças médicas.
Mesmo assim, julga-se que a pesquisa conseguiu atingir seu objetivo de apresentar uma avaliação
qualitativa sobre um programa inovador na temática da VSCA e poder contribuir para que outras
organizações envolvidas com o tema, públicas ou privadas, conheçam as dificuldades e as
vantagens de se implantar tais programas.
Como configurado ao longo do texto, os AVS também fazem parte do ciclo da violência, também
possuem um histórico a ser conhecido e desvendado, e mantê-los invisíveis dentro do SUS não
trouxe até agora resultados satisfatórios na diminuição da incidência de VSCA. Isso reafirma a
importância de se investir em centros de acolhimento e atenção aos AVS, pois há concordância
com as pesquisas que afirmam que a maior parte desses indivíduos não são portadores de doenças
e podem ser estimulados a agir com a razão, refazendo seus papéis na família e na sociedade.
Nesse sentido, conclui-se, assim, que há uma necessidade premente de se incluir os AVS nas
políticas públicas que visam à redução da morbimortalidade por violência sexual através de
programas de reeducação e ressocialização, pois tal olhar holístico para o problema pode trazer
outras hipóteses e teorias sobre a temática, estimulando novas pesquisas e intervenções e, assim,
buscar entender melhor este mal que aflige todos os dias não somente crianças e adolescentes,
mas todo o aparato familiar e social das quais fazem parte.
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DISCURSO E HEGEMONIA:
A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO PL 867/15
Victor Guimarães de Medeiros; Valéria Damasceno Coelho; Anna Christina Freire
Barbosa
Universidade do Estado da Bahia
victorgm.direito@gmail.com
valeriadamascenoc@gmail.com
acbarbosa@uneb.br
Resumo
Este trabalho visa a discutir os possíveis efeitos advindos da aprovação do Projeto de Lei 867/15,
conhecido como Movimento Escola Sem Partido, na manutenção dos paradigmas patriarcais que
regem a sociedade brasileira. Através de levantamento bibliográfico e por meio do método
histórico-comparativo, o estudo, de cunho exploratório, debruça-se sobre o artigo terceiro do
PL61, a fim de perceber a contribuição do discurso jurídico para a formação e perpetuação de
papeis sexuais. Nesse contexto, discute-se a prevalência de um modelo vinculante aos homens
para que se encaixem em padrões pré-estabelecidos, de forma a homogeneizar o ontologicamente
masculino. A partir disso, inquire-se acerca da manutenção da concepção de masculinidade
hegemônica através da vedação dos debates de gênero em sala de aula, do ponto de vista de sua
constitucionalidade. Ao analisar a figura masculina ao longo da história, percebe-se a prevalência
do ideário de que o homem deve ser ensinado, desde criança, a ser insensível, dominador e até
mesmo violento. Tal prática coaduna com o influxo de naturalização dos papéis sexuais,
tergiversando o construtivismo social. Desse modo, a pluralidade de masculinidades é obstada,
viesando a livre construção e manifestação da expressão de gênero. Com efeito, nota-se que
quanto mais rígidos são os papéis sexuais, mais alto é o nível de intolerância para com os que não
se submetem ao paradigma dominante. Consoante a isso, tem-se os dados do relatório de 2012
da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, por meio do qual se constata a
manifestação das admoestações concernentes à formação modelar imposta para que homens
sigam uma expressão de gênero estrutural, estática e universal. Assim, as diretrizes do PL, se
aprovadas, vêm por massificar o ambiente escolar através de um discurso uníssono e desprovido
61
Durante o processo de produção do artigo, o teor do Projeto de Lei em tramitação foi alterado, de modo a suprimir a expressa vedação ao
debate sobre gênero. Todavia, o conteúdo material permanece nas entrelinhas da atual redação. Ademais, o texto original do Projeto
continua sendo divulgado pelos sites oficiais do Movimento Escola Sem Partido como modelos de PL a serem apresentados em Municípios e
Estados.
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Introdução
O movimento “Escola Sem Partido” tem ganhado força por todo o cenário nacional, inclusive de
representantes do povo atuantes no poder legiferante nacional, os quais têm apresentado Projetos
de Lei tal como o PL 867/2015. Nesse âmbito, muito se discute sobre a existência de uma
doutrinação nas escolas, inclusive acerca de questões de gênero. Seguidores do movimento
defendem a total vedação às discussões de gênero em sala de aula, por acreditarem que questões
como orientação sexual e identidade de gênero possam ser “transmitidas” aos alunos, o que iria
de encontro à “moral sexual” do Brasil.
A partir desses acontecimentos, o presente artigo advém das inquietações geradas pela
apresentação do referido Projeto de Lei à apreciação na Câmara dos Deputados, o que demonstra
a clara tentativa de imposição de um estilo de vida à multifacetada sociedade brasileira. Logo,
abordando a matéria a partir dos estudos das masculinidades, inquire-se acerca da manutenção
da concepção de masculinidade hegemônica através da vedação dos debates de gênero em sala de
aula, do ponto de vista de sua constitucionalidade.
Em seguida, discute-se a formação dos papéis sexuais e como a naturalização destes pode
ocasionar efeitos extremamente negativos para o bem comum. Com efeito, traça-se as diferentes
formas de dominação de gênero, inclusive a do homem pelo homem, nosso objeto de estudo. As
diferentes formas de masculinidades formam entre si espécies de hierarquias, estando no topo a
masculinidade hegemônica, ao passo que subjuga as outras através de reprimendas aos que não
se curvam diante do seu poder.
Por fim, trata do Projeto de Lei em si e suas bases conservadoras que visam a cercear a pluralidade
através de métodos jurídicos que podem agravar a situação de homens LGBTs por todo o país.
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Como muito se discute em diversas searas do saber, o colonialismo português ainda repercute
nas mais diversas instituições da conjuntura contemporânea, levando em conta seu papel na
construção do país (FREYRE, 2003). À era colonial, fora construída uma sólida relação de
dependência política e econômica com o Senhor de Terras e seus escravos, o que tirava, de certo
modo, uma parte do poder da metrópole Portugal para os assuntos internos e localizados
(SOUZA, 2000).
Denota-se, então, o poder exercido pelo patriarca, o qual era o dono dos latifúndios, das
plantações e da mão de obra. Ademais, sua influência direta iria mais adiante, estendendo-se não
só pela sua família nuclear, mas a perpassar a esfera privada e alcançar a pública. O modelo
patriarcal colonialista passou, então, a ter um caráter prescritivo para toda a sociedade
(SAFFIOTI, 2015; MATOS, 2001). Era essa soberania político-econômica do patriarca que
conferia à família o poder de: “influência como alfa e ômega da organização social do Brasil
colonial.” Com isso, “o patriarcalismo familiar pode desenvolver-se sem limites ou resistências
materiais ou simbólicas” (SOUZA, 2000, p. 75).
Essa figura soberana era ensinada desde criança a construir sua identidade autoritária e cruel,
sendo a violência masculina um dos elementos estruturais principais da cultura patriarcal colonial
(MATOS, 2001), sendo repassada de geração a geração. Seguindo esse ponto, é fácil a percepção
da figura do patriarca como um ser extremamente autocrático. Partindo do que Freyre chama de
“poder de mando” o déspota local exercia seu poder sobre seus filhos, que deveriam portar-se já
como adultos e realizar as vontades do Senhor de Terras (FREYRE, 2003), bem como aprender
e reproduzir a lógica de desmandos vindos do pai e de sua representação masculina, configurando-
se, pois, como uma clara intervenção na construção do ontologicamente masculino.
Outrossim, essa estrutura patriarcal teve, e tem, repercussão até os dias atuais, já que nunca
encontrou real ruptura: “o patriarcalismo dá sinais no mundo inteiro de que ainda está vivo e
passando bem.” (CASTELLS, 1999, p. 278 apud SAFIOTTI, 2015). Acerca disso, apontam
Desouza, Baldwin e John:
Nesse sentido, ressalta-se o ideário de masculinidade associado ao patriarca, o qual ecoa, até o
presente, na concepção de masculinidade no Brasil atual, manifestando-se pelo machismo.
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Por outro lado, o construtivismo social se vale das variantes histórico-sociais e culturais de gênero
e sexualidade como forma de legitimação dessas desigualdades. Entende-se que meninos e
meninas aprendem papéis masculinos e femininos na família e na escola, sendo esses papéis
reforçados durante as interações da vida cotidiana por intermédio dos meios de comunicação de
massa (BRYM, 2008). Dessa forma, não há como se esperar uma massificação das expressões de
gênero baseando-se em papéis sexuais. Nesse sentido, pontuam Medrado e Lyra:
Assim, o primeiro exercício para definição de nosso marco conceitual consiste em
reafirmar a necessidade de desnaturalizar as prescrições e práticas sociais atribuídas
a (e incorporadas e naturalizadas por) homens e mulheres, consideradas marcações
masculinas e femininas (2008, p. 815).
A naturalização dos papéis sexuais acaba, por muitas vezes, legitimando a prevalência de um
modelo vinculante aos homens para que se encaixem em padrões pré-estabelecidos, de forma a
homogeneizar o ontologicamente masculino. Observa-se, comumente, na sociedade, o ideário de
que o homem deve ser ensinado, desde cedo, a ser insensível, dominador e até mesmo violento,
culminando em práticas que sustentam a desigualdade entre os gêneros (PASCOE, 2007;
SAFIOTTI, 2015). Tal prática é um processo histórico de manutenção e perpetuação do influxo
patriarcal, contemporaneamente, através da masculinidade hegemônica.
E mais, passou-se a compreender que o gênero não engloba somente a oposição “homem-mulher”
(SAFIOTTI, 2015). Mais que isso, o gênero cruza com uma rede de relações que levará em conta
questões “vinculadas às estruturas de classe, poder e etnicidade, que estruturam as relações
sociais” (CECHETTO, 2004, p. 57).
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Atrelado a isso, passou-se a compreender que a dominação masculina de gênero não se refere
somente às mulheres, mas também aos próprios homens, que acabariam figurando no polo
passivo dessa relação de opressão do homem pelo homem (SAFIOTTI, 2015), partindo das
diversas masculinidades.
Com efeito, deve-se reconhecer o grande espectro de masculinidades, de modo a superar a visão
binária e oposta entre masculino e feminino, cada uma delas sendo a expressão material de
contextos políticos, econômicos e culturais (CECHETTO, 2004). Assim, sobre as
masculinidades:
Connell argumenta que os homens adotam e incorporam configurações diferentes
de masculinidade, dependendo de suas posições dentro de uma hierarquia social
de poder. Masculinidade hegemônica, o tipo de prática de gênero que, em
determinado espaço e tempo, apoia a desigualdade de gênero, está no topo dessa
hierarquia. Masculinidade cúmplice, que descreve os homens que se beneficiam da
masculinidade hegemônica, mas não a adotam; Masculinidade subordinada, que
descreve homens que são oprimidos por definições da masculinidade hegemônica,
principalmente homens gays; Masculinidade marginalizada, que descreve homens
que podem ter posições de poder em termos de gênero, mas não em termos de
classe ou raça. (PASCOE, 2007, p. 7. Tradução nossa)
A isso, acrescenta-se que, além de não se compreender a masculinidade como algo singular a
todos, ainda se pode perceber que, num mesmo contexto sociopolítico, os homens podem agir
de acordo com a conveniência de um momento discursivo particular. Assim:
Com efeito, Connel (2013), ao versar sobre o entendimento de Demetriou, traz que o autor
entende haver conotações distintas para a masculinidade hegemônica, a partir de sua
hierarquização: uma externa que se relaciona com a institucionalização da dominação masculina
sobre a feminina; e outra interna, que concerne à hierarquização social de um grupo masculino
sobre todos os outros grupos de homens.
Dada essa hierarquização social do ser masculino, pode-se notar que a masculinidade hegemônica:
[...] se apropria de outras masculinidades, não importando o quanto pareça
pragmaticamente útil na continuidade da dominação. [...] A masculinidade
hegemônica não se adapta simplesmente às condições de transformação histórica.
Em vez disso, o bloco masculino hegemônico é uma hibridização cuja apropriação
de elementos diversos o faz capaz de se reconfigurar e adaptar às especificidades
de novas conjecturas históricas. (CONNEL, 2013, p. 261)
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A partir disso, o autor cita o crescimento da visibilidade da masculinidade gay, o que tornou
possível que muitos homens heterossexuais adotassem elementos das práticas de homens gays,
chegando a uma nova composição híbrida da feição de gênero. Contudo, apesar de essa
apropriação poder deixar mais turva as disparidades entre as masculinidades, não chega a
desarticular o patriarcado.
Então, mesmo que se passe a haver uma maior aceitabilidade para com homens gays, espera-se
que estes se portem de acordo com os ditames da masculinidade hegemônica, a qual se torna
híbrida para continuar em situação de poder. Todavia, continua não sendo socialmente aceito o
homem que extrapola o que fora posto pelo grupo hegemônico, cabendo-lhe reprimendas.
Relatório sobre violência homofóbica no brasil em 2012 e sua revelação sobre as violências
Neste ponto, faremos uma breve discussão acerca de alguns dos dados apontados no “Relatório
sobre violência homofóbica no Brasil: ano de 2012”, produzido pela Secretaria de Direitos
Humanos da Presidência da República a partir de dados do Poder Público Federal. Escolheu-se
esse relatório porque traz, exatamente, as repercussões62 da supremacia da masculinidade
hegemônica, bem como seus reflexos punitivos e atentatórios à dignidade da pessoa humana.
De início cabe caracterizar a homofobia como uma violência, ou seja, uma transgressão de
qualquer forma à integridade do ofendido, seja integridade física, psíquica, sexual ou moral
(SAFIOTTI, 2015). Ademais, é algo que sobrepuja os crimes contra a vida e lesões corporais
tipificadas no Código Penal brasileiro (BRASIL, 1940). Em razão de seu caráter multifacetado,
esse tipo de violência se manifesta de diversas maneiras, pois:
[...] ela não se reduz à rejeição irracional ou ódio em relação aos homossexuais, pois
também é uma manifestação arbitrária que qualifica o outro como contrário, inferior ou
anormal. Devido à sua diferença, esse outro é alijado de sua humanidade, dignidade e
personalidade” (BRASIL, 2013, p.10).
Neste estudo, entendemos a homofobia como qualquer ato atentatório à dignidade e/ou
integridade de um indivíduo, em razão de uma presunção acerca de sua orientação sexual,
identidade de gênero ou expressão de gênero.
62
Nesse sentido, deve‐se pontuar, também, o mal estar físico e psíquico gerado nos homens, resultando, inclusive, em altas taxas de suicídio,
em virtude das próprias expectações baseadas no ideário geral de masculinidade hegemônica, no decorrer do processo de socialização e
construção da identidade individual (MARQUES, 2009; CORNEJO, 2010).
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Para além do que já foi apresentado sobre o patriarcado, é possível depreender que este atribui
certas condições privilegiadas aos homens que se sentem contemplados com a masculinidade
hegemônica; é exatamente por isso que o sistema se perpetua arduamente através desse esforço
prescritivo (CONNEL, 2013), por oferecer um modo de vida diferenciado, repleto de poder.
Para a manutenção desse sistema, é necessário que os próprios homens a quem são outorgados
esses privilégios o defendam veemente, caso contrário, estariam em pé de igualdade. Partindo
dessa premissa, é possível compreender que esse homem, socialmente dominador e violento,
como elucidado anteriormente, acaba por agir num intento admoestatório para com aqueles que
“traíram o patriarcado”, ou seja, aqueles que se encontram fora do eixo da masculinidade
hegemônica (CORNEJO, 2010).
O intento de reduzir as expressões de gênero à unicidade patriarcal acaba por colocar os homens
como principais vítimas de violências homofóbicas, uma vez que é uma agressão do homem
hegemônico contra o homem não hegemônico, a fim de que este último passe a se portar como
o primeiro (MARQUES, 2009).
Levando-se em consideração que existem formas de reprimenda, com caráter punitivo, aos
indivíduos que são considerados como transgressores da norma heteronormativa (CORNEJO,
2010), percebe-se que dentro da população LGBT os homens gays são aqueles que mais sofrem
violência de cunho homofóbico. Destarte, pode-se compreender que os papéis sexuais masculinos
são mais rígidos, uma vez que há maior índice de admoestação àqueles que não seguem a norma.
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Ademais, não é apenas a população LGBT que sofre as consequências deletérias da opressão às
masculinidades subordinadas, estando, qualquer pessoa que não seja percebida dentro dos
padrões heteronormativos, sujeita à violência, independente de sua orientação sexual e
identidade de gênero.
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Finalmente, cabe apontar que, no tocante ao universo geral das violações discriminatórias, a mais
recorrente é a por orientação sexual, figurando 76,37% das denúncias apuradas, seguidas pelas
discriminações por identidade de gênero, que representa 15,21% das denúncias (BRASIL, 2013,
p. 34). Todavia, não obstante esses dados, parte atuante do poder legiferante nacional enseja
concretizar a abolição da discussão de gênero em salas de aula, como se discorre a seguir.
A (in)constitucionalidade do PL Nº 867/2015
É percebendo isso que se analisa a intenção do Projeto de Lei nº 867/15, que pretende inserir
nas diretrizes educacionais o denominado Movimento “Escola Sem Partido”. O inteiro teor do
Projeto, apresentado em 23 de março de 2015, apresenta, em seu artigo terceiro, a seguinte
normativa:
Art. 3º. São vedadas, em sala de aula, a prática de doutrinação política e ideológica bem como a
veiculação de conteúdos ou a realização de atividades que possam estar em conflito com as
convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes.
Contudo, ao se realizar uma busca rápida pelos sites oficiais do Movimento63, verifica-se que o
modelo de projeto de lei que é oferecido por eles são bem mais literais em suas vedações,
contendo proibição direta aos discursos de gênero:
Art. 3º. O Poder Público não se imiscuirá na orientação sexual dos alunos nem permitirá
qualquer prática capaz de comprometer o desenvolvimento de sua personalidade em
63
A “justificativa” do PL nº 867/2015 direciona o leitor à página http://www.escolasempartido.org/, que, por sua vez, direciona à página
http://www.programaescolasempartido.org/ para o acesso aos modelos de projeto de lei.
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Fato é que, quando analisados cuidadosamente, ambos pretendem dizer a mesma coisa. A
“doutrinação ideológica” e a “veiculação de conteúdos ou realização de atividades” que entrem
em conflito com as convicções religiosas ou morais se utilizam de um véu de “liberdade” para
esconder sua verdadeira natureza, que é a de manutenção de uma sociedade com papeis sexuais
bem definidos e delineados. A própria “justificativa” do Projeto não permite outra interpretação,
ao falar em conduta “moral sexual”64 que estaria tendo a adesão incentivada por determinadas
correntes ideológicas.
Considera-se, assim, o jovem como uma “folha em branco”, capaz de ser preenchido através dos
ensinamentos dos professores. Ignora, portanto, toda a percepção de mundo e do próprio “eu”
adquiridas até então, além de enfatizar a pseudo-capacidade de controle sobre os impulsos sexuais.
As noções de controle do próprio corpo e de seus desejos, assim como da parcela de influência
que o professor/educador pode de fato exercer sobre uma pessoa, são controvertidas na doutrina.
Contudo, as posições extremas devem ser rechaçadas, o que, por si só, já seria suficiente para
afastar o Projeto de Lei, já que ele concebe, em sua versão mais pura e simples, a concepção
bancária da educação (FREIRE, 2015).
Fato é que existem verdades latentes na sociedade que não podem ser ignoradas, principalmente
pelas diretrizes educacionais. Um exemplo delas é a homossexualidade. Outro exemplo, a
homofobia.
É este último, tão cotidiano e presente, que é responsável pelos dados apresentados na seção
anterior. E, apesar de também ser um assunto revertido de controvérsias teóricas, apresenta um
núcleo praticamente constante: o que faz com que este seja um grupo-alvo de violência é o fato
de ser transgressor de uma normalidade imputada ao longo de muitos séculos – a binária relação
homem-mulher. Esta relação, tão sólida há poucas décadas, começou a apresentar indícios de
fragilidade.
64
“É fato notório que professores e autores de livros didáticos vêm‐se utilizando de suas aulas e de suas obras para tentar obter a adesão dos
estudantes a determinadas correntes políticas e ideológicas; e para fazer com que eles adotem padrões de julgamento e de conduta moral –
especialmente moral sexual – incompatíveis com os que lhes são ensinados por seus pais ou responsáveis”.
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Contudo, esta não é uma tarefa fácil. De fato, o texto-corpo do Projeto revela uma situação bem
exemplificada por Guacira Lopes Louro, ao afirmar que ao passo em que as denominadas
“minorias sexuais” ganham visibilidade, os setores mais tradicionais da sociedade “renovam (e
recrudescem) seus ataques, realizando desde campanhas de retomada dos valores tradicionais da
família até manifestações de extrema agressão e violência física” (2001, p. 542).
A dita “doutrinação ideológica”, portanto, diz nas entrelinhas que um professor é capaz de
influenciar a orientação sexual de alguém, o que remete à época de surgimento da AIDS, em que
era forte na sociedade a ideia de que a homossexualidade podia ser “transmitida” (LOURO,
2001). A escolha feita pelo Projeto é clara: simplesmente fecha os olhos diante das minorias
sexuais que, inevitavelmente, existem e são vítimas de homofobia diariamente.
O problema maior do PL, porém, é que, ao ignorar a existência desses grupos, reitera e corrobora
para a perpetuação do padrão binário, se tornando em uma “norma regulatória”, que são aquelas
que:
[...] regulam e materializam o sexo dos sujeitos e que [...] precisam ser constantemente
repetidas e reiteradas para que tal materialização se concretize. [...] As normas regulatórias
do sexo têm, portanto, um caráter performativo, isto é, têm um poder continuado e
repetido de produzir aquilo que nomeiam e, sendo assim, elas repetem e reiteram,
constantemente, as normas dos gêneros na ótica heterossexual. (LOURO, 2001)
Ademais, tais normativas não devem ser utilizadas como mero instrumento retórico. Evita-se, assim, a
chamada “legislação-álibi”, que tem como objetivo apenas esvaziar as pressões sociais. Se a Constituição
brasileira assim se caracterizasse, não passaria de uma “constituição simbólica”, nos dizeres do doutrinador
brasileiro Marcelo Neves (1994), situação inaceitável em um Estado Democrático de Direito.
Desse modo, sendo os direitos fundamentais cláusulas pétreas do sistema constitucional, e estando eles
submetidos a uma necessária concretização, é inaceitável que sejam atingidos negativamente por uma Lei
ordinária, o que se pretende com o PL em estudo.
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Considerações finais
Percebe-se, então, que a sociedade brasileira nasceu sustentada sobre pilares patriarcais. Os influxos desse
sistema moldaram o ideário do ontologicamente masculino ao longo dos séculos, enrijecendo os papeis
sexuais, o que repercute diretamente na naturalização e conseguinte normatização destes.
A estrutura sociocultural brasileira, assim, sofre com os problemas da dominação de gênero, seja ela sobre
mulheres, como também sobre os próprios homens. Essa situação, que se faz sentir nos âmbitos público e
privado, apresenta mazelas institucionalizadas, que corroboram com a manutenção da unicidade e da
soberania da masculinidade hegemônica. Isso acaba por deixar aqueles que não se submetem/enquadram
ao padrão imposto à margem da sociedade.
Tal quadro reverte-se em um ainda pior: o da violência. Os dados apresentados revelam que a intolerância
aumenta proporcionalmente à rigidez dos papeis sexuais. Essa realidade, apesar de se expressarem
comumente através das admoestações de cunho homofóbico, atinge qualquer pessoa que não seja
percebida dentro do espectro heteronormativo.
É, portanto, uma situação que obsta a realização dos direitos e garantias fundamentais, elencados na
Constituição Federal do Brasil. Ainda assim, o Projeto de Lei nº 867/2015 é um exemplo de que mais
obstáculos podem ser acrescidos à concretização do Estado Democrático de Direito.
De fato, com a aprovação do PL, as minorias sexuais teriam seus direitos à vida, à igualdade e à liberdade
tolhidos e prejudicados, já que ele dificulta a superação do sistema vigente. E, ao fazê-lo, mostra-se
inconstitucional, não devendo, portanto, ser aprovado pelos legisladores, representantes diretos do povo
brasileiro.
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Introdução
Este artigo busca realizar uma análise da evolução jurisprudencial dos entendimentos da Ministra
do Superior Tribunal de Justiça Nancy Andrighi, e como esses desaguaram na elaboração da Lei
nº. 13.058/2014, que alterou dispositivos do Código Civil que dispõem sobre a matéria da guarda
compartilhada. Ele também se propõe a buscar entender como instâncias inferiores do judiciário
vêm reagindo a esses posicionamentos.
Destarte, para uma melhor compreensão didática, o presente texto será dividido em três partes:
em um primeiro momento iremos fazer um breve apanhado histórico da evolução legislativa
acerca da matéria; em seguida, será feita uma análise pormenorizada de três decisões da Ministra
Nancy Andrighi para, por fim, tecermos algumas conclusões acerca da importância de se fazer
estudos detidos de cada caso para que assim se possa chegar a uma solução minimamente
equânime dentro do âmbito judicial, haja vista que, como restará claro no decorrer deste
trabalho, o capítulo pertinente à guarda compartilhada é novo e ainda está longe de ser pacificado
pelo judiciário.
Temos na nossa Constituição Federal a formalização da igualdade entre homens e mulheres por todo o
seu corpo, em especial no seu artigo 5º, inciso I, que expressamente fala sobre a igualdade entre gêneros.
Por sua vez, em seu artigo 226, temos agora que a Constituição referencia especificamente os direitos e
deveres conjugais estabelecidos no seu parágrafo 5º, ideia esta complementada com o que traz o artigo 227
do mesmo diploma, o qual versa sobre os deveres da família, da sociedade e do Estado com os menores.
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Vejamos agora o nosso atual Código Civil, Lei nº 10.406/2002. Porém, antes de discutirmos
sobre o que ocorre com a guarda quando não há a coabitação dos pais, precisamos compreender
o que vem a ser o conceito de guarda, encontrado no artigo 1.631 do ordenamento civilista, o
qual assim dispõe, “Art. 1.631. Durante o casamento e a união estável, compete o poder familiar
aos pais; na falta ou impedimento de um deles, o outro o exercerá com exclusividade” (BRASIL,
CC/2002), saliente-se que no parágrafo único do referido artigo, já se permite o suprimento
judicial de eventual desacordo entre os detentores da guarda.
Mais interessante ainda é o artigo seguinte a este, o qual assim dispõe “Art. 1.632. A separação
judicial, o divórcio e a dissolução da união estável não alteram as relações entre pais e filhos senão
quanto ao direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos.” (BRASIL,
CC/2002).
Ou seja, resta claro que, apenas com este arcabouço jurídico montado, já seria o suficiente para
que o judiciário apontasse as suas soluções no sentido da aplicação da guarda compartilhada,
mas, como veremos adiante, os desafios são maiores.
No parágrafo 2º do artigo 1.583, assim definiu esta Lei: “§ 2o A guarda unilateral será atribuída
ao genitor que revele melhores condições para exercê-la e, objetivamente, mais aptidão para
propiciar aos filhos os seguintes fatores (BRASIL, Lei nº 11.698/2008)”. Por sua vez, o parágrafo
2º do inciso II do artigo 1.584 trouxe ainda o seguinte dispositivo: “§ 2o Quando não houver
acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, será aplicada, sempre que possível, a guarda
compartilhada” (BRASIL, Lei nº 11.698/2008).
Ou seja, pela clara interpretação da norma e do sistema jurídico que o permeia, deveriam os
magistrados, na ausência de acordo entre as partes, decidir no sentido de aplicar a guarda
compartilhada. No entanto, mesmo sob tal égide legislativa, ao se fazer um apanhado das decisões
judiciais que se antecedem a 2014, percebe-se que, na maior parte dos casos em que se insurgia
desacordo entre os litigantes, o juiz acabava por optar pela guarda unilateral, a qual pertencia na
grande maioria das vezes, à mulher, em total desacordo com as normativas constitucionais
impostas sobre a igualdade dos gêneros e sobre s responsabilidade quanto à parentalidade. Ora,
tal posicionamento do nosso judiciário provinha da reprodução de um entendimento
conservador sobre o qual se embasa certos estigmas e padrões sociais que responsabilizam em
primazia a mulher na criação dos filhos, em detrimento aos pais, que não raras as vezes são
apresentados apenas como provedores da criança.
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Tanto é que, percebendo o desvirtuamento da aplicação da norma, em 2014 foi aprovada uma
nova reforma nesta parte do Código Civil, Lei 13.058/2014, que veio trazer o significado da
Expressão “Guarda Compartilhada”. substituindo o teor do parágrafo 2º do artigo 1.583 para o
seguinte “Na guarda compartilhada, o tempo de convívio com os filhos deve ser dividido de forma
equilibrada com a mãe e com o pai, sempre tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos
filhos.” (BRASIL, CC/2002).
Com essa alteração, a modalidade de guarda compartilhada passou a ser regra, enquanto a
modalidade unilateral passou a ser exceção, tendo de haver clara motivação do juiz para ser
deferida, algo muito além dos meros desentendimentos entre os casais que serviam de justificativa
para o juízo deferir a guarda como unilateral e privar o menor do poder paternal de um dos seus
genitores.
Ademais, temos que esta nova alteração legislativa, apesar de bem vinda, não foi suficientemente
clara. Em verdade, após mais de um ano de vigência desta lei, a sua aplicação vem se dando apenas
pela forma, não se adentrando de fato no conteúdo e significado deste novo modelo de exercício
do poder parental dos pais. É que, de fato, ocorre cotidianamente o deferimento da guarda
denominada como compartilhada - seja ela em acordo judicial, extrajudicial ou sentença - em
conjunto a outras disposições que ferem de morte este conceito, como o deferimento de
alimentos ao filho a serem pagos por um dos cônjuges - normalmente o homem - ao outro -
normalmente a mulher - para que este gerencie os gastos com o menor, que passará a residir com
este "ex-cônjuge gestor".
1. Ausente qualquer um dos vícios assinalados no art. 535 do CPC, inviável a alegada
violação de dispositivo de lei.
2. A guarda compartilhada busca a plena proteção do melhor interesse dos filhos, pois
reflete, com muito mais acuidade, a realidade da organização social atual que caminha
para o fim das rígidas divisões de papéis sociais definidas pelo gênero dos pais.
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8. A fixação de um lapso temporal qualquer, em que a custódia física ficará com um dos
pais, permite que a mesma rotina do filho seja vivenciada à luz do contato materno e
paterno, além de habilitar a criança a ter uma visão tridimensional da realidade, apurada
a partir da síntese dessas isoladas experiências interativas.
10. A guarda compartilhada deve ser tida como regra, e a custódia física conjunta - sempre
que possível - como sua efetiva expressão.
Antes de adentrarmos na discussão desta decisão, cabe uma análise histórica do caso. Trata-se de
uma Ação de guarda, com pedido liminar, em que narrou o autor que, após tentativa da recorrida
de levar o filho para morar em outra cidade, decidiu pedir a guarda do menor, tanto para manter
incólume a situação de seu filho, quanto por apresentar melhores condições de criar o mesmo
quando comparado com a genitora.
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Em 25 de agosto de 2006, o Juiz de primeiro grau deferiu o pedido liminar de guarda provisória,
concedendo que o pai levasse o filho consigo e, no mês seguinte, foi concedido pedido de visitas
à mãe até o julgamento final da demanda.
Veio parecer do Ministério Público do Estado de Minas Gerais no sentido de fixação da guarda
do menor, de forma compartilhada, igualitariamente, pelos genitores, o que levou ao juiz de
primeiro grau a julgar parcialmente procedente os pedidos formulados pelo pai autor, deferindo
a guarda compartilhada do filho do ex-casal. Esta decisão foi objeto de Embargos de declaração,
em que ficou determinado que a criança ficasse, alternadamente, com os pais nos finais de
semana, feriados e férias escolares e, durante as semanas, também de forma alternada, por quatro
dias com um dos genitores e três com o outro.
Nisto, o pai, irresignado, apelou ao Tribunal de Justiça do estado de Minas Gerais, que negou
provimento à apelação interposta, mantendo a guarda compartilhada fixada e também
preservando os períodos em que o menor passará com cada um dos genitores, nos termos da
seguinte ementa:
Ainda insatisfeito, apresentou o pai recurso especial, em que, além de violações legais, sustentou
não só a ocorrência de omissão do acórdão recorrido, como também que a guarda compartilhada
só deve ser deferida quando houver relacionamento cordato entre os pais, aduzindo ainda, que a
fórmula adotada pelo Juízo de 1º grau, e ratificada pelo Tribunal de origem, quanto à
permanência do menor alternadamente na casa dos pais, mesmo durante a semana, caracteriza
guarda alternada, que é repudiada pela doutrina, pelos efeitos deletérios que tem sobre a psique
da criança.
Com isto em mãos, a Ministra, ao relatar este recurso, lançou um verdadeiro ponto de inflexão
em matéria de guarda compartilhada no ordenamento jurídico brasileiro, ao apresentá-la como
a melhor forma de proteção do interesse dos menores, pois reflete, de um lado, com mais
precisão a realidade social atual em que os papeis de gênero não são mais estanques, e de outro,
para que os filhos possam usufruir durante a sua formação, no máximo possível, do ideal
psicológico de um duplo referencial. Tudo isto em contraponto à normativa vigente à época,
que compreendia a guarda unilateral como regra, apesar dos comandos legais claramente
delineados pela ministra apontarem no sentido contrário.
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Para além do que foi dito, na decisão foi definido que, mesmo que haja debates entre os cônjuges
divorciantes, isto não configuraria óbice suficiente para impedir a aplicação da guarda em sua
modalidade compartilhada, pois apesar deste ser o momento crítico de evidenciação das
diferenças do antigo casal, o melhor interesse do menor, ainda assim, dita a aplicação, como
regra, da guarda compartilhada, mesmo na ausência de consenso. Entrementes, cumpre lembrar
que esta decisão, apesar de paradigmática no que tange ao estabelecimento das conceituações
de guarda, não tocou em nenhum aspecto os reflexos que teriam nas prestações de alimentos
decorrentes da ampliação do seu regime.
E, por fim, porém de máxima relevância, a Magistrada debate o ponto fundamental de construção
do que vem a ser de fato a guarda compartilhada e a relação entre a custódia legal e a custódia
física dos filhos menores, ponto este que merece uma análise mais detida.
Inicialmente ela afirma que concorda com os termos definidos pelas instâncias inferiores quanto
à definição da guarda compartilhada, os quais podem ser vistos abaixo:
Quanto aos dias que cada qual deverá ficar com a criança deverá imperar o bom senso
dos pais levando-se com conta os interesses da própria criança, aliás, como já decidido.
De qualquer forma, entendo que cada um dos pais deverá ter a criança, DE FORMA
ALTERNADA aos sábados, domingos e feriados. Nos dias da semana o pai poderá ficar
com a criança por quatro dias na primeira semana e a mãe por três, TAMBÉM DE
FORMA ALTERNADA, quando a mãe, na próxima semana ficará com a criança por
quatro e o pai por 3 e assim sucessivamente.
Idem com relação às festas de fim de ano, QUANDO DEVERÁ SER TAMBÉM DE
FORMA ALTERNADA: Um ficará no Natal e o outro na Confraternização Universal
(primeiro dia do ano).
Cada um terá a criança em sua companhia por 15 dias nas férias escolares de meio e fim
de ano, TAMBÉM ALTERNADAMENTE. (BRASIL, 2011, com destaques no original)
Este, em verdade, foi o ponto de insurgência do pai recorrente, ao qual caracterizou de Guarda
Alternada, que era repudiada pela doutrina e pela jurisprudência à época. No entanto, em seu
voto, a ministra desconstrói, ponto a ponto, o que o requerente vem a entender por guarda
alternada e constrói, após isto, o entendimento de guarda compartilhada que deveria servir de
base para os tribunais inferiores.
Primeiramente, ao afirmar que “Vê-se do texto legal, com clareza, que não é o Poder Familiar
extirpado de nenhum de seus atributos, salvo a guarda física, nos casos de guarda unilateral” (o
artigo é anterior à Lei 11.698/2008 que introduziu a guarda compartilhada), o que ela quer
dizer, de fato, é que o Código Civil de 2002, notadamente em seu artigo 1.632, define
claramente que não há perda do poder parental com a separação e o divórcio, apenas o que
ocorre na guarda unilateral é a definição da guarda física a um dos cônjuges, o que nas palavras
dela foi assim dito: “Para essa situação, não haveria a necessidade de se inovar a legislação, pois
a guarda unilateral já existente separa a custódia física exercida por apenas um dos pais da
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custódia legal, que já era, sob o regime anterior, ao menos em tese, compartilhada”. (BRASIL,
2011).
É oportuno salientar que, no entanto, apesar da configuração jurídica sobre custódia estar à
época assim disposta, na prática o que o ocorria era que, deferida a guarda unilateral e a
custódia física a um dos genitores, este tinha um poder gravitacional sobre a custódia legal, o
que levava a um distanciamento cada vez maior na criação dos filhos por parte do genitor que
não detinha a guarda.
Continuando em seu voto, a ministra explica que “Na verdade, a força transformadora dessa
inovação legal está justamente no compartilhamento da custódia física, por meio da qual ambos
os pais interferem no cotidiano do filho.”, e ainda que “Quebra-se, assim, a monoparentalidade
na criação dos filhos, fato corriqueiro na guarda unilateral, que é substituída pela
implementação de condições propícias à continuidade da existência de fontes bifrontais de
exercício do Poder Familiar.”, deixando claro que a formação desta criança “é fruto dessa fusão
de posicionamento e posturas distintas, que são combinadas na mente da criança, em
composição solo, na qual conserva o que entende ser o melhor de cada um dos pais e alija o
que reputa como falha.” para daí concluir que “A ausência de compartilhamento da custódia
física esvazia o processo, dando à criança visão unilateral da vida, dos valores aplicáveis, das
regras de conduta e todas as demais facetas do aprendizado social.”, e ainda, “Dessa forma, a
custódia física não é um elemento importante na guarda compartilhada, mas a própria essência
do comando legal, que deverá ser implementada nos limites possíveis permitidos pelas
circunstâncias fáticas.” (BRASIL, 2011)
Por fim, ainda em seu voto, a ministra diferencia os termos da guarda compartilhada deferida
na primeira instância e mantida nas instâncias superiores do modelo de guarda alternada, ao
dizer que “Na guarda alternada, a criança fica em um período de tempo semana, mês, semestre
ou ano sob a guarda de um dos pais que detém e exerce, durante o respectivo período, o Poder
Familiar de forma exclusiva” (R.Esp Nº 1.251.000 - MG - 2011/0084897-5), pois, tal fórmula,
de acordo com o voto da magistrada, representaria verdadeiro retrocesso, até
comparativamente, à modalidade de guarda unilateral, ao fixar referências de autoridade e
regras de conduta em lapsos temporais estanques, como também ao privar o genitor que não
detém a guarda no período alterno sobre qualquer controle sobre o processo de criação do seu
filho, o que vai de encontro com o conceito de guarda compartilhada, que pressupõe o exercício
conjunto da custódia física, um processo integrativo, que permite ao menor a convivência com
ambos os pais ao mesmo tempo e prescinde da interação deles no processo de criação.
Como vemos com este voto, a ministra de fato inaugurou um ponto de inflexão no ordenamento
jurídico, ao estabelecer que, fundamentada mesmo sob a égide da lei nº 11.698/2008, o regime
de guarda aplicável aos menores quando ambos os pais possuíssem condições de deter a guarda
de seus filhos deveria ser a guarda compartilhada, de maneira efetiva, maximizando na medida
do possível o convívio entre os genitores e filhos deles.
No entanto, tal orientação não foi seguida pelos tribunais inferiores, que continuaram emitindo
decisões no sentido de que a guarda compartilhada só seria possível de ser aplicada quando
houvesse comprovadamente uma relação harmônica e cordial entre os genitores dos menores.
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Tanto é que foi editada, com inspiração nesta decisão de 2011, a lei de número 13.058/2014,
que alterou o Código Civil de 2002 para categoricamente estabelecer a guarda compartilhada
como modalidade a ser perseguida e estabelecida enquanto padrão no âmbito judicial.
Nele, a magistrada reafirma, apenas com a nova roupagem dada pela nova legislação, os mesmos
argumentos por ela levantados em seu voto de 2011 ao notar que “perdura ainda hoje o debate
sobre a conveniência/possibilidade de se estatuir a guarda compartilhada na ausência de
consenso – entenda-se: quando um dos ascendentes recusa a implantação da fórmula, no período
pós-separação” e que “esse empeço é, de regra, artificialmente criado por um dos ascendentes,
normalmente por aquele que detém uma guarda unilateral provisória.” (BRASIL, 2015), para
com isso, arrematar que, acaso haja interesse por um dos ascendentes na guarda compartilhada,
este deverá ser o modo a ser perseguido e estabelecido pelo magistrado de piso, compulsando-se
como a melhor modalidade a ser aplicada ao caso até que se prove o contrário – presunção júris
tantum.
Porém, os tribunais inferiores não estão em sua maioria afinados com este entendimento do
Superior Tribunal de Justiça, como veremos adiante.
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Vejamos então alguns casos pontuais que foram julgados nos tribunais estaduais neste interregno
entre 2011 até os dias atuais, para termos um panorama da distancia entre o decidido pelo
Superior Tribunal de Justiça e o decidido nos tribunais inferiores. Antes de tudo, porém, saliente-
se que esta é apenas uma seleção de amostras que, em nenhum momento tem a pretensão de
buscar traçar um panorama estatístico de como as decisões vêm sendo tomadas. Dito isto, segue-
se abaixo a primeira ementa:
Neste caso, decidido em 2013, o ministério público, arvorando-se como defensor dos direitos das
filhas menores, arguiu que, ante a ausência de estudo social que amparasse a alternância de
residência livremente pactuada entre os pais, o acordo por eles proposto não deveria ser
homologado.
Ou seja, no caso em tela, o Ministério Público quis forçar uma verdadeira residência fixa aos
filhos do casal, indo de encontro ao que foi livremente pactuado por eles, no sentido de tentar
forçar que um dos genitores assumisse sua residência como fixa para os menores, o que vai,
claramente, de encontro à orientação esposada no tópico anterior, ante a imperiosidade de
compartilhamento da custódia na máxima medida do possível para configuração de uma real
guarda compartilhada.
Agora vejamos um acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, julgado em
03 de setembro de 2015, ou seja, já sob a luz das novas diretrizes legais da lei 13.058/2014,
processo com os seguintes dados - TJ-RS - Apelação Cível: AC 70064986011 RS e que foi assim
ementado:
1. O agravo retido interposto pelo autor não comporta conhecimento, na medida em que
não reiterado no recurso de apelação.
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Neste caso, temos que o regime de guarda foi alterado da modalidade unilateral da mãe para
compartilhada, ambos os pais, onde, pasmem, ficou fixado neste regime um pernoite semanal
com o pai além dos fins de semanas alternados.
Frise-se, ainda, que, inicialmente cabe uma análise detida dos pormenores que levaram o
magistrado a decidir neste sentido, quais sejam: a tenra idade da criança, o fato da violência
ocorrida na residência materna ter sido realmente um fato episódico, a profissão do pai o deixar
muitos dias fora de casa entre outros.
No entanto, pelos estudos sociais apresentados, o seu ambiente familiar paterno apresentava-se
até melhor do que o da genitora, porém, o juízo decidiu no sentido de fixar uma guarda
“compartilhada” muito mais aproximada da modalidade unilateral, na qual apenas algumas
migalhas de dias foram relegas ao pai requerente, que desejava uma convivência muito maior com
sua filha.
Neste caso, uma solução muito mais adequada ao espírito da guarda compartilhada aqui discutido
seria, por exemplo, condicionar os pais a discutir a guarda da filha de acordo com as viagens a
trabalho do genitor, estando ele com a filha quando estivesse na cidade descansando, e deixando
ela com a genitora quando fosse viajar, isto apenas à titulo de exemplo.
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Conclusão
Temos que, diante de tudo que foi aqui exposto, ainda há um grande descompasso entre a
realidade traçada nos precedentes lançados sobre a matéria no Superior Tribunal de Justiça e o
dia-a-dia vivenciado nos fóruns e tribunais, visto que esta matéria envolve o íntimo das famílias
em seu momento mais frágil, de dissolução dos vínculos afetivos entre aqueles que em outro
momento geraram filhos.
No entanto, nenhum dos agentes envolvidos - juízes, advogados, Ministério Público e até os
próprios pais – possuem a disposição de tempo, energia, preparo e vontade para estabelecer as
atribuições e os períodos de convivência sob guarda compartilhada, conforme preceitua o novo
§3º do artigo 1.584 do Código Civil, preferindo fáceis soluções pró-forma, onde se diz que há
uma guarda “compartilhada”, mas internamente os mecanismos que a regulam são muito mais
aproximados de uma guarda unilateral; pois, para se ter, de fato, uma guarda compartilhada, é
fundamental que haja o compartilhamento da custódia física dos menores, e não apenas uma
divisão da tutela jurídica.
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SUMÁRIO COMPLETO
VOLUME 01
LA CO-PRODUCCIÓN DE NARRATIVAS CON MUJERES FEMINISTAS COMO MÉTODO-
PROCESO PARA EL DESPRENDIMIENTO ANDROCÉNTRICO ANTI-MASCULINISTA | Luciano
Fabbri
QUE HOMEM É ESSE?! Uma análise junguiana sobre os homens, a afetividade e a conjugalidade em
transformação | Patrícia Cristina de Conti e Durval Luiz de Faria
VEJEZ MASCULINA Y CALIDAD DE VIDA | Rosa María Flores Martínez e Sagrario | Garay Villegas
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UMA "VISÃO PARCIAL" SOBRE SER HOMEM NO SERVIÇO SOCIAL | Vivian Matias dos Santos;
Laudicena Maria Pereira Barreto; Valeria Nepomuceno Teles de Mendonça; Henrique da Costa Silva;
Maria Angélica Pedrosa de Lima Silva
SER HOMEM É SER MACHISTA... É PEGAR MULHER? O QUE DIZEM JOVENS ARACAJUANOS
| Francis Fonseca Oliveira; Claudiene Santos
VOLUME 02
SERÁ QUE ELE É? O JOGO DE IDENTIDADES HÉTERO E HOMOSSEXUAIS MASCULINAS NO
AMBIENTE DE TRABALHO | Adriana Marques Rabelo; Luiz Antônio Mattos do Carmo; Simone
Costa Nunes
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Las Masculinidades indígenas en la Educación Intercultural Bilingüe. Ejes de reflexión desde el feminismo
decolonial. | Fernanda Rodríguez
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VOLUME 03
DA TRADIÇÃO À RUPTURA: REPRESENTAÇÕES DO MASCULINO NA LITERATURA
BRASILEIRA | Cláudia Maria Ceneviva Nigro; Juliane Camila Chatagnier
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VOLUME 04
MASCULINIDADES, HOMENS E VIOLÊNCIAS: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS PARA
TENSIONAR E DESNATURALIZAR ESTA RELAÇÃO | Ana Luíza Casasanta Garcia; Adriano Beiras
A NOIVA: “MITO, COR E IDENTIDADE” | George André Pereira de Souza; Lorrayne Bárbara Ferreira
do Nascimento; Antônio Carlos Ribeiro Vieira
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Anales (textos completos) del VI Coloquio Internacional de Estudios sobre Varones y Masculinidades. Vol. 04
Recife: UFPE; IFF/Fiocruz; Instituto PAPAI, 2019
ISSN 2178‐4787
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Anales (textos completos) del VI Coloquio Internacional de Estudios sobre Varones y Masculinidades. Vol. 04
Recife: UFPE; IFF/Fiocruz; Instituto PAPAI, 2019
ISSN 2178‐4787