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Cegar-se para ver: a poética da cegueira e a desestabilização da realidade no conto

“Antiperipléia”, de Guimarães Rosa

Autor: Lucas Diniz Vaz (UFC)


Disciplina: Literatura Brasileira IV
Turma: 01A

Resumo: Este mini ensaio pretende demonstrar como o conto, “antiperipléia”, primeiro
conto do livro "Tutaméia - Terceiras Estórias” de 1967, levanta um estudo filosófico que
desestabiliza a própria percepção da realidade ocidental através da figura do cego e do
bêbado. Sob a ótica do bêbado (narrador), o autor parcialmente cega as palavras e o
discurso para então tornar possível a incubação de uma crítica a íris limitadora,
fundamentada em uma noção de verdade, que constitui a sociedade contemporânea no
ocidente. A partir das noções de linguagem e seus fenômenos dadas por Gilles Deleuze
e Mikhail Bakhtin pretende-se que ao fim do mini ensaio, tenhamos conseguido
potencializar um olhar crítico deste conto, mostrando como ele pode servir de
metalinguagem na libertação dos modelos convencionais de leitura. Além disso, que
possamos tornar (in)visível a necessidade de desestabilizar a realidade, alargando os
sentidos e ampliando os modos de existir por meio da linguagem poética rosiana.

Palavras-chave: Cegueira; Realidade; Invenção; Guimarães; Rosa

1. Comentários sobre a noção de realidade no pensamento ocidental

Os estudos que se dedicam em traçar um percurso analítico e clínico a respeito


da construção da realidade e das interpretações que lhe damos, são amplamente
disputados e/ou discutidos por diversas áreas e em diferentes linhas de pesquisa nas
ciências humanas. Desde a conceituação mais minuciosa até a uma menção
minimamente formulada para discutir outros interesses de pesquisa, parece determinante
a construção da noção de realidade está intimamente ligada às formações discursivas
dos indivíduos em sociedade. Elaboração de visões de mundo que cumprem um
determinado acordo social coletivo construído pela cultura e pelo pensamento vigente
que o delimita.
Estamos constantemente cumprindo, seja conscientemente ou não, uma
reprodução de valores, crenças, códigos morais e éticos que nos tensionam e que nos
define enquanto indivíduos de modo temporal e espacial em um determinado período
histórico. Se observarmos com atenção a própria definição da palavra “cosmovisão”, no
dicionário Aurélio, perceberemos o seu caráter limitador, com um valor de verdade em
sua dicionarização. Tendo em vista que a obra do autor Guimarães Rosa permeia dentro
das camadas da própria linguagem e em sua constante reinvenção, se torna pertinente
para nós termos ciência do sentido dado a esta palavra, cuja definição a coloca como
“Modo particular de perceber o mundo, geralmente, tendo em conta as relações
humanas, buscando entender questões filosóficas (existência humana, vida após a morte
etc.); concepção ou visão de mundo”.
Esse modo particular seguido do verbo no infinitivo “perceber”, desta definição,
nos parece centralizar de modo muito sutil, a percepção na figura do indivíduo e em
nele deposita a capacidade de conceber o mundo por um mosaico de imagens. Não
admitindo, todavia, que a individualidade e os modos de percepção estão
constantemente influenciados por propriedades de um pensamento coletivo que rege
historicamente os modos como nos posicionamos, como realizamos a linguagem, como
definimos, principalmente, o que é a realidade. Assumindo, no fim, compromissos de
um sistema que rege a vida, as suas idealizações e as suas produções.
Paralelo a isto, o termo, que também advém do alemão “Weltanschauung”,
composto de “Welt” ('mundo') e “Anschauung” ('visão, contemplação; concepção;
ponto de vista; intuição; convicção'). Em igual concordância e ressonância, confere
também a realidade material a percepção de mundo ao campo da visão ocular, da
fisiologia, do enxergar enquanto propriedade primordial da percepção e formação dos
sentidos que dão semântica ao mundo, não admitindo, todavia, outros modos de
experimentação da realidade. Ao cálculo dessas reflexões, defendemos que para se ler
Guimarães Rosa, desde seus contos menores até ao Grande Sertão Veredas, talvez seja
necessário de modo mais ou menos consciente saber quais são os nossos modelos de
percepção elegidos em uma tradição de leitura; quais são os sentidos estabilizados que
nos estão intrínsecos e como precisamos perfurar essas camadas por meio do sentido
poético que se desloca e foge do eixo normativo.
Tais definições, inevitavelmente acabam por excluir as percepções existentes
em outros sentidos. Cujas multiplicidades sensoriais e ainda desconhecidas, formulam o
sentir e singularmente propõem diferentes experiências entre ser, tempo e mundo. Em
efeito, para o bem ou para o mal, o cerco da palavra acolhe um sentido e joga todo o
resto em uma zona de detrito e descarte. Nessa perspectiva, não estamos propondo aqui
um embate ao até necessário dicionário, mas apenas admitimos o caráter complexo dos
sentidos e que a literatura por trabalhar exatamente neste nebuloso universo, precisa ir
além do estável, do linearizado, da própria gramática e de suas práticas reguladoras e
normativas.
Por toda essa complexidade que evidentemente parece ser um beco sem saída
nos modos de existir, o campo da filosofia e das artes por essência, passou a tecer uma
série de reflexões em torno da necessidade de causar uma fissura na ótica limitadora do
pensamento e em alargar, profundamente, esses outros campos holísticos e somáticos
para entender a realidade. Em encontrar desvios que nos possibilite outras
experimentações das coisas e de estabelecer dentro do campo do sensível, uma
incipiente e possível transcendência.
Guimarães Rosa na década de 60 do século passado parece buscar esses desvios
na norma em sua escrita poética, causador, inclusive, de uma convulsão nos próprios
gêneros que tentam comportar sua obra (conto totalmente? prosa poética totalmente? É
o tamanho de uma obra ou a mera classificação de gênero que decide isto?). Sem
resposta para tais perguntas, vale seguirmos e pensarmos que o autor experimenta uma
escrita poética cuja capacidade de invenção das palavras e dos discursos desloca e faz
emergir múltiplos sentidos poéticos. Uma invenção que busca descobrir novos mundos
que são impossibilitados de se libertarem de seus significados originais convencionais,
ao estarem intrinsecamente e clinicamente tratados pela normatividade e pela
estratificação de saberes que formam a linguagem. Corroborando e valorizando o delírio
que Gilles Deleuze em prefácio de sua obra "Crítica e Clínica" (1997) propõe ao falar
de literatura:

O delírio que as inventa, como processo que arrasta as palavras de um


extremo a outro do universo. São acontecimentos nas fronteiras da
linguagem. Porém, quando o delírio recai no estado clínico, as
palavras em nada mais desembocam, já não se ouve nem se vê coisa
alguma através delas, exceto uma noite que perdeu sua história, suas
cores e seus cantos. A literatura é um saude.

É preciso, com isso, desafiar o subjetivismo do leitor altamente delimitado por


valores e vícios de leitura, causando um súbito incômodo entre os espaços de cada
sintagma. Em boa parte de sua obra geral, opera-se, constantemente, uma transfusão de
sentidos, utilizando o sentido poético para desmobilizar o leitor do eixo de seu status
quo habitual e o colocando em um ambiente titubeante. Inventando palavras,
confundido sentidos e desenhando situações do cotidiano de maneira absurda para que o
leitor se aperceba, de um modo ou outro, em uma jornada nebulosa em seus sentidos e
convenções. Incuba-se, em última instância, um incômodo no espírito ocidental.
Causando um desconforto na conformidade dos sentidos, da própria delimitação e
constituição das coisas e produzindo uma crítica altamente formada em uma narrativa
que foge das situações comuns do viver. Desafiando nossas certezas e colocando-as em
crise.
Com isso, a palavra vira um lugar de encontro e desencontro, propondo uma
experiência poética sem qualquer compromisso fiel com uma noção de tempo ou de
verdade nos dilemas de seus personagens ou de responder mistérios de suas estórias. Se
sustentando, de modo quase regular, na provocação e no distanciamento da realidade
limitadora com uma narrativa cuja visão das coisas se distorce, e que, ao se distorcer,
cega-se e amplifica possíveis modos de existência que talvez nos aproxime do todo
vivo, da integração entre ser e realidade(s).

2. Considerações sobre a definição de cegueira

Pensando na característica da cegueira que dá tônus ao conto "Antiperipléia",


vale fazer um contorno na própria gênese da subjetividade no ocidente. Legitimou-se na
cultura ocidental a ideia de que a visão é o veículo processador de imagens e produtor
de representações do mundo. Que significamos o mundo a partir do que vemos e que
deslocamos essas imagens ao cálculo do signo, da carga semântica das palavras, cuja
sintaxe serve de cola para fazer coexistir os sentidos de um discurso. Um território onde
uma palavra contamina uma outra, formando um significado maior do todo e que
estabelece a percepção do mundo e da existência. Entretanto, esse sentido estável não é
completamente estável na medida que sua colocação, em diferentes contextos e formas,
lhes dão outros significados emergentes. Para firmar esse fio de pensamento, ver
(BAKHTIN, 1997,p. 401-402) que a respeito da construção de sentido diz que:
Definição do sentido em toda a profundidade e a complexidade de sua
essência. O ato de compreensão é concebido como descoberta do que
existe, mediante o ato da visão (contemplação), e como adjunção,
mediante a elaboração criadora a que o submetemos. Presunção do
contexto posterior em sua extensibilidade, cotejo com o todo acabado
e cotejo com o contexto inacabado. O sentido assim entendido (no
contexto inacabado) não é pacífico nem cômodo (não se pode
tranqüilizar-se nem morrer nele).

Para Bakhtin, a imagem do mundo convertida em palavra corresponde a uma


elaboração que decidimos coletivamente a partir do que vemos e concebemos,
cercando-a e atribuindo-lhe sentido. Entretanto, nunca completamente definida, nem
“pacífico nem cômoda", elas comportam outros sentidos possíveis. Diante disso, se a
própria palavra enquanto representação do mundo já é profundamente delimitada,
cercando por sua vez a cosmovisão do mundo, a própria noção de visão é também, no
mínimo, redutora. Isso porque outras sensibilidades também exercem essa
contemplação e também possuem essa “elaboração criadora” da realidade, essa potência
sensorial possível.
Assim, nos levamos a crer que somos em algum nível existencial, cegos, na
medida que concebemos uma única forma universal de sentidos e de modos de vida.
Temos, na filosofia grega, remando contra, Platão com a sua alegoria da caverna. Dando
a ver a necessidade de sair de si e das representações de mundo já estabelecidas para
então ter acesso a uma totalidade da vida. Mais a frente, já na filosofia moderna, Martin
Heidegger, em “O que é metafísica?”, de 1929, coloca em crise os estabelecimentos de
verdades conclusivas da realidade e que nelas demarcam-se os discursos agenciadores
de poderes e ideologias.
Todas essas contribuições nos levam, portanto, em tratar a cegueira não no
sentido biológico de uma pessoa com deficiência, mas de olhar a cegueira presente no
conto como uma materialização de uma cegueira condicionante da realidade, daquilo
que acordamos coletivamente e definidos como realidade. Apurar dentro de
“antiperipléia” de Guimarães Rosa, os delírios que desafiam a ótica das coisas e as
próprias palavras de contextos inacabáveis, com sentidos inacabáveis e em constante e
perpétuo movimento. A necessidade de cegar as palavras de seus significados
instaurados, da herança de seus sentidos e de confundir as ordenações estabelecidas no
pensamento.
Com isso, causar incômodo por meio do absurdo; ou por meio do riso, da
comicidade, ou por meio da aproximação com o leitor ao criar uma imagem distorcida
daquilo que ele vive, dando vida a uma percepção outra, “deslinearizando” a vida em
uma literatura oca. Oca no sentido de propor reflexões por meio de uma linguagem
inventiva e cheia de lacunas a serem preenchidas pelos sentidos de quem lê. É dentro
desta ociosa busca por uma fissura no que somos, que surge neste pequeno conto de seis
páginas, uma situação simples e comum com temáticas altamente filosóficas.
O então já mencionado conto, que abre o livro "Tutaméia - terceiras estórias”, de
1967, parece propor por si só uma possível pista de leitura. Em caráter de
apresentação, materializa-se nas palavras rosianas a figura do homem cego, Seô Tomé,
cuja voz e características são apresentadas pela visão distorcida do bêbado que lhe
servia de guia e que no lugar de narrador detém a ordem dos acontecimentos, das ações
dos envolvidos e do discurso altamente trapaceiro. Propriedade onde aqui especulamos
residir o exercício de uma fissura dos valores delimitados.
Ambos, a figura de um homem imaculado de visão ocular e, portanto, sem
limitações da imagem física e um bêbado que busca fugir da realidade a partir do auto
entorpecimento, causam a construção de um acontecimento inusitado e sem resposta,
que vira e mexe se resvala em questões profundas da filosofia, questões que
dialeticamente foram debatidas ao longo da história e que surge de maneira delicada em
um caso de amor e tragédia local. Guimarães Rosa, ao materializar a cegueira da nossa
cosmovisão ocidental, talvez tenha nos dado indícios de um possível modo singular de
enxergar mesmo que pelas brechas.

3. Um possível périplo para ler o conto “antiperipléia” e o mar de palavras


"Tutaméia - Terceiras estórias”

Dada nossa chave de leitura em um mar de sentidos rosianos e tendo em vista


que exatamente nada deste autor é em vão ou puramente estético (até quando não tem
sentido direto com a obra, tem como objetivo colocar críticos literários em saia justa), é
valioso para nós refletir o título “antiperipléia”. Um dialogismo que mais do que uma
mistura de A + B = AB, pretende ir além com uma necessidade de cegar toda uma
forma de leitura e recepção de palavras. Por definição, “périplo”, utilizada como
principal método de navegação dos Fenícios, Gregos e Romanos, era um manuscrito em
que os tripulantes registravam em ordem, pontos estratégicos por onde os barcos e os
navios passavam, tais como: portos, cais, docas, elementos naturais que por
singularidade poderiam servir de demarcação do caminho, entre outros possíveis
registros náuticos.
Por incipiente tecnologia, na prática, o périplo servia de carta náutica,
permitindo exatamente que os navegantes fizessem seus destinos e rotas de modo
certeiro e organizado, com risco mínimo, senão nenhum, de se perder em mar aberto ou
de prolongar além da conta uma rota já planejada. Guimarães, em toda sua esperteza e
perspicácia de leitura, insere a esta palavra o prefixo “anti”, e na sutilidade de seu
regionalismo ou pelo seu caráter puramente inventivo, transforma “périplo” em
“peripléia”. Que foneticamente, importante ressaltar, se assemelha muito à palavra
"peripécia", remetendo a trapaça ou ao incomum ou na língua do fortalezense a velha
"gaiatice".
Tudo isso para aqui defender que a invenção dessa palavra ou brincadeira desta a
coloca em um lugar desestabilizado, propondo um sentido outro para compreender não
só o próprio conto como a obra de maneira geral. O caminho da investigação nos leva a
especular de que há neste conto uma sugestão para que o leitor se desgoverne da leitura
convencional, da metafísica delimitada e todos os seus caminhos que cercam a
experiência humana. O autor estaria, assim, propondo um anti périplo, um anti controle
de viagem, que ao mesmo tempo é uma peripécia constante, uma filosofia brincante,
que se embebeda de vida e que forma uma outra experiência de leitura.
Por esses motivos e razões, se não há um guia para se viver a vida ou um único
modo de experienciar a literatura, defendemos aqui que o conto “antiperipléia”, é
também, para além de uma experiência literária, uma carta náutica descompensada e
perdida na própria subjetividade humana. Uma dica para que o leitor embace sua íris
viciada, que se perca em um navio com um périplo enganoso no mar das palavras. Ao
começar o livro com esse caso da cegueira, da trapaça e do entorpecimento, com o
dialogismo metafórico que de primeira mão já confunde o leitor no título, o autor parece
instruir sem polir ou sem didatizar, um conjunto desordenado de caminhos.
Sem a racionalidade dos sentidos, da linguagem e dos discursos, sem as certezas
e conformismos que tanto nos deixam em um falso lugar de segurança espiritual. Dentro
dos fundamentos da existência ocidental: a linearidade, as dicotomias e entre
pormenores aspectos e valores cunhados pelo pensamento vigente, tornou-se
determinante que para se alcançar materialmente algo, o indivíduo parte de um lugar até
o outro, uma constante relação de causas e efeitos, partidas e chegadas, onde tudo
precisa necessariamente produzir um objetivo utilitário.
Assim como um navio sem périplo, sem fins e sem objetivos, o personagem
narrador, é o oposto. O bêbado (chamaremos ele assim de maneira carinhosa), parece
buscar a sensibilidade do momento, do tempo e do espaço em cada argumento.
Correndo atrás de um outro modelo de percepção perante sua desvinculação da
realidade em que se encontra e a sua falta de pertencimento com a própria vida. Isso se
circunscreve na medida em que ele tenta se livrar de um possível crime e do lugar social
que o cerca em um lugar de suspeita: “Tudo, para mim, é viagem de volta. Em qualquer
ofício, não; o que eu até hoje tive, de que meio que entendo e gosto, é ser guia de cego:
esforço destino que me praz” (ROSA, 1967).
Na fala inicial do conto, em que ele se explica ao delegado, percebe-se uma
profunda lucidez na tradução dos sentidos para as palavras no exercício argumentativo.
Um personagem que não tem certezas, nômade de si mesmo, que reconhece a limitação
de suas experiências ao se auto negar mediante uma afirmação anterior >> não; o que
até hoje tive<<. Até no entendimento e no gosto que acredita ter, estas são fundadas por
uma certeza duvidosa, um incômodo misterioso e necessário de existir e que
desestabiliza a todo momento suas crenças. Afinal, são as certezas que a todo momento
circunscrevem a escrita de um périplo da vida e anulam com isso outros caminhos
possíveis de percepção e experiência.
O personagem, na margem do que é considerado exemplo na sociedade, se torna
uma anomalia do que está estável ao ser colocado como guia de pessoas cegas.
Exatamente por viver fora da linha da norma e ser os olhos distorcidos de quem
fisiologicamente não enxerga, ele imprime em seu discurso, constantes comentários que
metaforizam essas construções de realidade e essa necessidade de navegar sem rumo,
desse rompimento com o falso senso de objetivos que forma o ente ocidental. Ou, de
que talvez a vida nunca nos dê essa opção de controle, que tudo é mera ilusão e acordos
universais, quando o narrador diz que (ROSA, 1967) “Deandávamos, lugar a lugar, sem
prevenir que já se estava no vir para aqui. Tenho culpas retapadas. A gente na rua,
puxando cego, concerne que nem se avançar navegando — ao contrário de todos.”
É também por meio do absurdo que muitas vezes se perfura o véu do
convencional, nos permitindo olhar por uma fissura, pelas brechas passíveis de
interpretações. Ao desenrolar do conto, vemos as tentativas constantes do bêbado de se
livrar da situação-problema da história. Livrar-se do “background” que se dá por meio
do acontecimento resultante em morte do personagem sêo Tomé; homem rico e bem
“apessoado” em que ele guiava e que por ser cego teria caído em uma ribanceira e
falecido. O caso também envolve uma relação de amor entre uma mulher e Tomé,
situação que coloca o bêbado em um jogo de trapaça, sob o qual ele mesmo opera e
adorna com uma filosofia muito consciente e fugitiva:

Essa era a diversa, muito fulana: feia, feia apesar dos poderes de Deus.
Mas queria, fatal. Ajoelhou para me pedir, para eu ao meu Seô Cego
mentir. Procedi. — “Esta é bonita, a mais!” — a ele afirmei, meus
créditos. O cego amaciou a barba. Ele passeou a mão nos braços dela,
arrojo de usos. Soprou, quente como o olho da brasa. Tive nenhum
remorso. Mas os dois respiravam, choraram, méis, airosos (ROSA,
1967, p 4)

Nesse trecho, o bêbado relata o caso de amor de uma mulher apaixonada pelo
homem cego e o fato curioso seguinte de que ela lhe comprova com bebida para que ele
construísse a falsa beleza dela ao cálculo imaginativo do senhor Tomé. Partes que nos
levam a um certo grau de nebulosidade que contorna os nossos valores e cuja própria
visão as regula. A ideia de que nosso modelo de percepção-visão reduz completamente
nossos pensamentos e que a concepção de beleza, construída socialmente e portanto
inventada, é dada ao homem cego por meio do seu guia. Recebendo a imagem, por sua
vez, o personagem logo constrói a imagem acústica da mulher de modo mental, tendo
como referencial apenas o toque corporal e a transmissão de características do seu guia
"beberrão".
Assim sendo, apesar das palavras construírem as imagens daquela realidade
idealizada, o homem rico reformula a imagem da mulher para si sem o respaldo visual,
vivendo somente a partir da sensibilidade do toque e da crença no discurso trapaceiro do
guia. A noção de beleza ou de classes (o dado social) se esfarela e some como areia de
praia, na medida em que o bêbado inventa essa ilusória imagem, enquanto Tomé a
legítima e lhe atribui valor de verdade. É na invenção e acordo desse olhar, que Tomé
acredita e dá continuidade a sua relação, seguindo totalmente contra as diretrizes de sua
classe ou de seus conceitos. O bêbado, completamente alheio daquela realidade, traz ao
nosso cálculo imaginativo essa fragilidade semântica de que, inventada ou não, tudo
parece ser questão de crença. Propriedade que o narrador personagem do conto aparenta
entender e desenvolver em seu benefício próprio.
É essa atitude filosófica do bêbado perante a realidade que nos interessa.
Profundamente vertiginosa e enganosa, justamente porque todas as camadas de
significação são permeáveis e representam um conjunto de invenções, de visões
distorcidas mais ou menos questionáveis em suas formações. Tendo em vista que nem
tudo é completamente universal, há, nesse personagem, uma utilização desta
superestimada sensibilidade da visão, que todos valorizam mais do que ele, de modo
sempre colado a um comentário sarcástico que metaforiza a cegueira ocidental. Cego é
aquele que vê ou aquele que acha que vê? Essa pergunta ameaça surgir de diferentes
formas ao longo do conto, sempre com uma carcaça de frase diferente, sempre com uma
carcaça de discurso diferente.
No entanto, é nele [bêbado] que se concentra as caracterizações, o teor auto
depreciativo, a necessidade de fuga da realidade, o vício e a evidente tentativa de ser
cego para ver uma outra forma de existência. A bebida enquanto mudança fisiológica,
do entorpecimento, é uma possibilidade de enxergar uma ilusão ou uma supra realidade
momentânea:

Patrão meu, não. Eu regia – ele acompanhava: pegando cada um em


ponta do bordão, ocado com recheios de chumbo. Bebo, para impor
em mim amores aos outros? Ralhavam, que, passado já da idade de
guiar cego, à mão cuspida, mesmo eu assim, calungado, corcundado,
cabeçudão. Povo sabe as ignorâncias. Então, eu, para também não ver
hei-de recordar o alheio? Bebo. Tomo, até me apagar, vejo outras
coisas. Ele carecia de esperar, quando eu me perfazia. bêbado e
deitado. Me dava conselhos. Cego suplica de ver mais do que quem
vê. (ROSA, 1967, p 4)

O personagem narrador e "antiperipluoso", busca sentir algo além em suas fugas


constantes para o alcoolismo. Sua função, em contrapartida, lhe dá uma breve ilusão de
ser necessário mesmo diante dessa falta de pertencimento. Assim, o narrador que já
possui uma visão distorcida do mundo, a transmite ao seu patrão, que por sua vez recebe
a representação da representação da realidade. Se distanciando profundamente do
mundo das idéias platônicas, mas concebendo, todavia, uma experiência outra e
possível dentro de uma lógica auto enganosa que rege a coletividade.
Ao crer, também, que não tem um patrão mas e se enxergar como uma extensão
humana dele, o guia de cego se sente completamente livre de sua imagem social
>>calungado, corcundado, cabeçudão<< , e por ser ouvido talvez pela primeira vez na
vida, exerce sua função de desconstruir a realidade e inventa uma. Quando ele diz que
“Cego suplica de ver mais do quem vê” (ROSA, 1967), estaria ele apontando para a
cegueira universal constituinte da humanidade? De que a visão e sua tradução do real é
completamente revestida por uma película redutora e que precisamos ser titubeantes
com nossas certezas?
De todo modo, todos os personagens apresentam uma cegueira em diferentes
graus e níveis; no sentido de criarem suas próprias idealizações/ilusões. Todos vivem
uma certeza ambígua e incerta, de que pior do que a cegueira fisiológica é a própria
anulação do eu e do próprio vínculo com a metafísica idealizadora. Com o desenrolar,
temos a informação de que a mulher trai o seu esposo com o Seô Tomé, o que acaba por
trazer mais camadas para o conto. O autor alimenta, cada vez mais, o vício de leitura
que nós leitores temos, de esperar e receber uma premiação ao final, descobrindo a
causa da morte ou os envolvidos nela, etc.
Todavia, sem dar qualquer sugestão disso, o autor retira o doce da mão do leitor
e o prepara para o que vai vir, tanto no conto quanto na obra geral. Não haverá, nessa
perspectiva, o cumprimento dos gostos ou das necessidades subjetivas de cada um
visando uma interpretação final de mundo, de idealização da própria literatura, mas
apenas uma jornada pessoal dentro do caos de si e da estória apresentada. Tudo isso
misturado e ao mesmo tempo desordenado, sendo possivelmente vislumbrado no
seguinte questionamento: “Só sendo cego quem não deve ver? [...] tenho de emendar a
doideira e cegueira de todos?” (ROSA, 1967).
Curiosamente, quando Seô Tomé passa a dizer ao bêbado que estava voltando a
enxergar, o narrador considera um delírio e, na tentativa de se livrar do delegado que o
questiona desde o início, propõe um caso de suícidio por motivos de decepção ou
descontentamento frente aquela realidade que lhe aparece e que foge da imagem que
ele mesmo (o patrão cego) construiu para si:
E seô Tomé, no derradeiro, variava: falando que começava a tornar a
enxergar! Delírios, de paixão, cobiçação, por querer, demais, avistar a
mulher — os traços — aquela formosura que, nós três, no desafeio, a
gente tinha tanto inventado. Entrevendo que ela era real de má-figura,
ele não pode, desiludido em dor, ter mesmo suicidado, em despenho?
O pior cego é o que quer ver... Deu a ossada (ROSA, 1967, p.5)

O narrador, além de reconhecer a farsa da imagem da mulher que foi inventada


pelos três, sugere ao delegado que ao ver a imagem física da mulher, Seô Tomé teria
tido desgosto e tirado a própria vida. Temos em nosso quadro analítico: uma pessoa
cega, uma pessoa entorpecida de seus sentidos e uma pessoa apaixonada, e portanto
totalmente imersa no jogo trapaceiro para conseguir manter a relação. Três cegueiras de
naturezas distintas (genética, artificial e sentimental), e três modelos de existência que
juntos constroem uma invenção, uma farsa, uma fissura no convencional.

4. Uma brecha, uma conclusão não conclusiva

Com isso, levamos a crer que o conto “antiperipléia”, que inicia o livro
"Tutaméia - Terceiras Estórias” de 1967, consiste profundamente na invenção de uma
devir visão. Uma visão outra. Talvez fosse mais coerente dizer que se almeja tornar
visível aquilo que deixamos invisível, seja no uso da própria linguagem ou na própria
construção da realidade que formamos e que constantemente idealizamos. Uma leitura
que pode ser uma navegação à deriva onde a perspicaz linguagem rosiana é um barco
cego que não enxerga terra firme. Um guia para enxergar além.
A partir do dialogismo que forma o título do conto, apostamos neste mini ensaio
que ele pode ser lido também de um modo metalinguístico. Onde o leitor pode se
desvencilhar das próprias convenções e de seus modos de leitura para então se dispor a
se perder e conseguir ter uma experiência mais ampla e menos redutora do livro em sua
integridade poética. No plano narrativo, se não há tantas intervenções dialógicas e
inventivas de palavras, há uma situação-problema submetida ao grau trapaceiro,
inventivo e na mesma medida filosófico do personagem narrador, o bêbado.
Acreditamos que haja, nesse personagem-narrador, uma constante tentativa de perfurar
as certezas redutoras, às convenções, aos vícios e todas as outras características que
formam uma cegueira existencial na contemporaneidade de seu tempo mas também em
sua atemporalidade.
Possibilitando, talvez, uma outra forma de enxergar a vida por meio do sentido
poético que transita, como um navio, no vasto campo literário. Ainda sim, por exercício
do que aqui foi ensaiado, esta conclusão não busca concluir algo mas incipientemente
propor uma atitude questionadora, provocadora e minimamente perdida para se poder
experienciar a vasta obra do Guimarães Rosa. Sob esses fins, penso que demos a ver a
necessidade de desestabilizar nossa realidade conformista e de alargar cada vez mais a
apreciação da literatura e da própria vida. Ser um (ROSA, 1967)“ habitual no diferente,
com o senhor, Seô Desconhecido”

5. Referências

BAKHTIN , Mikhail. Estética da criação verbal. 1997.

COSMOVISÃO. In: DICIO, Dicionário Online de Português. 2023. Disponível em:


https://www.dicio.com.br/ . Acesso em: 20/06/2023

DELEUZE , Gilles. Crítica e clínica. [S. l.: s. n.], 1997.

ROSA, Guimarães. Tutaméia - Terceiras estórias. 1967.

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