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Resumo: Este mini ensaio pretende demonstrar como o conto, “antiperipléia”, primeiro
conto do livro "Tutaméia - Terceiras Estórias” de 1967, levanta um estudo filosófico que
desestabiliza a própria percepção da realidade ocidental através da figura do cego e do
bêbado. Sob a ótica do bêbado (narrador), o autor parcialmente cega as palavras e o
discurso para então tornar possível a incubação de uma crítica a íris limitadora,
fundamentada em uma noção de verdade, que constitui a sociedade contemporânea no
ocidente. A partir das noções de linguagem e seus fenômenos dadas por Gilles Deleuze
e Mikhail Bakhtin pretende-se que ao fim do mini ensaio, tenhamos conseguido
potencializar um olhar crítico deste conto, mostrando como ele pode servir de
metalinguagem na libertação dos modelos convencionais de leitura. Além disso, que
possamos tornar (in)visível a necessidade de desestabilizar a realidade, alargando os
sentidos e ampliando os modos de existir por meio da linguagem poética rosiana.
Essa era a diversa, muito fulana: feia, feia apesar dos poderes de Deus.
Mas queria, fatal. Ajoelhou para me pedir, para eu ao meu Seô Cego
mentir. Procedi. — “Esta é bonita, a mais!” — a ele afirmei, meus
créditos. O cego amaciou a barba. Ele passeou a mão nos braços dela,
arrojo de usos. Soprou, quente como o olho da brasa. Tive nenhum
remorso. Mas os dois respiravam, choraram, méis, airosos (ROSA,
1967, p 4)
Nesse trecho, o bêbado relata o caso de amor de uma mulher apaixonada pelo
homem cego e o fato curioso seguinte de que ela lhe comprova com bebida para que ele
construísse a falsa beleza dela ao cálculo imaginativo do senhor Tomé. Partes que nos
levam a um certo grau de nebulosidade que contorna os nossos valores e cuja própria
visão as regula. A ideia de que nosso modelo de percepção-visão reduz completamente
nossos pensamentos e que a concepção de beleza, construída socialmente e portanto
inventada, é dada ao homem cego por meio do seu guia. Recebendo a imagem, por sua
vez, o personagem logo constrói a imagem acústica da mulher de modo mental, tendo
como referencial apenas o toque corporal e a transmissão de características do seu guia
"beberrão".
Assim sendo, apesar das palavras construírem as imagens daquela realidade
idealizada, o homem rico reformula a imagem da mulher para si sem o respaldo visual,
vivendo somente a partir da sensibilidade do toque e da crença no discurso trapaceiro do
guia. A noção de beleza ou de classes (o dado social) se esfarela e some como areia de
praia, na medida em que o bêbado inventa essa ilusória imagem, enquanto Tomé a
legítima e lhe atribui valor de verdade. É na invenção e acordo desse olhar, que Tomé
acredita e dá continuidade a sua relação, seguindo totalmente contra as diretrizes de sua
classe ou de seus conceitos. O bêbado, completamente alheio daquela realidade, traz ao
nosso cálculo imaginativo essa fragilidade semântica de que, inventada ou não, tudo
parece ser questão de crença. Propriedade que o narrador personagem do conto aparenta
entender e desenvolver em seu benefício próprio.
É essa atitude filosófica do bêbado perante a realidade que nos interessa.
Profundamente vertiginosa e enganosa, justamente porque todas as camadas de
significação são permeáveis e representam um conjunto de invenções, de visões
distorcidas mais ou menos questionáveis em suas formações. Tendo em vista que nem
tudo é completamente universal, há, nesse personagem, uma utilização desta
superestimada sensibilidade da visão, que todos valorizam mais do que ele, de modo
sempre colado a um comentário sarcástico que metaforiza a cegueira ocidental. Cego é
aquele que vê ou aquele que acha que vê? Essa pergunta ameaça surgir de diferentes
formas ao longo do conto, sempre com uma carcaça de frase diferente, sempre com uma
carcaça de discurso diferente.
No entanto, é nele [bêbado] que se concentra as caracterizações, o teor auto
depreciativo, a necessidade de fuga da realidade, o vício e a evidente tentativa de ser
cego para ver uma outra forma de existência. A bebida enquanto mudança fisiológica,
do entorpecimento, é uma possibilidade de enxergar uma ilusão ou uma supra realidade
momentânea:
Com isso, levamos a crer que o conto “antiperipléia”, que inicia o livro
"Tutaméia - Terceiras Estórias” de 1967, consiste profundamente na invenção de uma
devir visão. Uma visão outra. Talvez fosse mais coerente dizer que se almeja tornar
visível aquilo que deixamos invisível, seja no uso da própria linguagem ou na própria
construção da realidade que formamos e que constantemente idealizamos. Uma leitura
que pode ser uma navegação à deriva onde a perspicaz linguagem rosiana é um barco
cego que não enxerga terra firme. Um guia para enxergar além.
A partir do dialogismo que forma o título do conto, apostamos neste mini ensaio
que ele pode ser lido também de um modo metalinguístico. Onde o leitor pode se
desvencilhar das próprias convenções e de seus modos de leitura para então se dispor a
se perder e conseguir ter uma experiência mais ampla e menos redutora do livro em sua
integridade poética. No plano narrativo, se não há tantas intervenções dialógicas e
inventivas de palavras, há uma situação-problema submetida ao grau trapaceiro,
inventivo e na mesma medida filosófico do personagem narrador, o bêbado.
Acreditamos que haja, nesse personagem-narrador, uma constante tentativa de perfurar
as certezas redutoras, às convenções, aos vícios e todas as outras características que
formam uma cegueira existencial na contemporaneidade de seu tempo mas também em
sua atemporalidade.
Possibilitando, talvez, uma outra forma de enxergar a vida por meio do sentido
poético que transita, como um navio, no vasto campo literário. Ainda sim, por exercício
do que aqui foi ensaiado, esta conclusão não busca concluir algo mas incipientemente
propor uma atitude questionadora, provocadora e minimamente perdida para se poder
experienciar a vasta obra do Guimarães Rosa. Sob esses fins, penso que demos a ver a
necessidade de desestabilizar nossa realidade conformista e de alargar cada vez mais a
apreciação da literatura e da própria vida. Ser um (ROSA, 1967)“ habitual no diferente,
com o senhor, Seô Desconhecido”
5. Referências