Elaborar uma discussão sobre as influências da psicologia em
detrimento dos direitos humanos e vice-versa é uma tarefa árdua. Assim, estaremos desmembrando e conceituando ambas as partes separadamente para melhor compreensão. Sendo assim, é de suma importância analisarmos o contexto no qual a psicologia veio a surgir no Brasil. À psicologia como categoria profissional, foi regulamentada em 1962, período histórico que precedeu no país a instalação do golpe militar, regime ditatorial que suprimiu a democracia durante 21 anos (1964 a 1985). Tendo como um dos principais objetivos, na época, à adaptação e ajustamento do indivíduo (Rosato, 2011). O profissional de psicologia tinha como função a produção de perfis psicológicos, realizando diagnósticos, para posteriormente promover a adequação dos indivíduos em seus respectivos contextos, ou seja, promover solução de problemas de ajustamento. Nesta época, os locais de atuação estavam prioritariamente circunscritos ao ambiente escolar, às indústrias, direcionado para processos de seleção e recrutamento de pessoal, e atendimento psicoterapêutico individual em consultório (Rosato, 2011). Bock (2001) descreve o trabalho da psicologia como: “Psicólogo: estuda o comportamento e mecanismo mental dos seres humanos, realiza pesquisas sobre os problemas psicológicos que se colocam no terreno da medicina, da educação e da indústria e recomenda o tratamento adequado: a) projeta e realiza experimentos e estudos em seres humanos para determinar suas características mentais e físicas; b) analisa a influência de fatores hereditários, ambientais e outros mais na configuração mental e comportamento dos indivíduos; c) faz diagnósticos, tratamentos e prevenção de transtornos emocionais e da personalidade, assim como dos problemas de inadaptação ao meio social e de trabalho; d) cria e aplica testes psicológicos para determinar a inteligência, faculdade, aptidões, atitudes e outras características pessoais, interpreta os dados obtidos e faz as recomendações pertinentes (p. 26-27)”. Neste mesmo período (década de 1960), em consonância com o que ocorria no país, emergiu-se sujeitos sociais que se apresentavam como minorias reivindicando suas diferenças em relação a padrões sociais hegemônicos de normalidade. Criando movimentos de reivindicação de direitos sem que isto implicasse tutela médica ou jurídica e desqualificação social (Arantes, 2003). Essa militância minoritária foi se organizando em movimentos sociais e comunitários, em associações, cooperativas e em ONGs diversas. Ao final da década 1980, há toda uma mobilização em torno dos direitos de cidadania desses grupos, logrando-se grandes avanços na Constituição Federal de 1988 (Arantes, 2003). A partir da (re) democratização do país, o campo psicológico se ampliou e houve uma ruptura com o que inicialmente foi a proposta da profissão. Já não era mais possível manter uma Psicologia individualizante, descontextualizada e a-histórica. Assim, a nova psicologia torna-se uma rede complexa de saberes que podem ser convergentes ou não (Rosato, 2011). Dentro dessa pluralidade que envolve teoria e prática em Psicologia, é de grande interesse a discussão sobre os diversos saberes produzidos atualmente, devendo ser compreendidos seus usos e efeitos enquanto um instrumento de poder. Isso significa que a instrumentalização que pode ser feita com esses saberes/poderes tem efeitos na sociedade como um todo, pressupondo-se que a intervenção psicológica é uma ação política (Rosato, 2011). Para tanto, torna-se fundamental ter como princípio que todo e qualquer conhecimento deve sempre ser contextualizado de acordo com sua realidade social, já que inexiste indivíduo ou grupo separado de uma sociedade. Pensando em acontecimentos que levaram a constituição dos direitos humanos, no Brasil com o marco a ditadura militar, e, no mundo a Segunda Guerra Mundial, onde o massacre de aproximadamente 50 milhões de pessoas foi o embrião, no Ocidente, do que se convencionou a chama de Direitos Humanos. Em 1945 criou-se a mais importante organização internacional – Organi- zação das Nações Unidas (ONU) – com o objetivo de proteção aos Direitos Humanos, assim como manutenção da paz e da segurança em âmbito mundial. Nesta conjuntura de construção de dispositivos normativos para proteção internacional dos direitos, adota-se a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) em 1948. A concepção contemporânea de Direitos Humanos possui a perspectiva principal de universalidade, indivisibilidade e interdependência destes direitos. A primeira característica que diz respeito aos direitos dirigidos universalmente para todas as pessoas, refere-se à condição de ser humano para ser titular destes direitos. A segunda característica sinaliza para a indivisibilidade dos Direitos Humanos, partindo do pressuposto de inter-relação e interdependência destes direitos. Não basta que os direitos civis e políticos estejam garantidos, faz-se necessário observar também os direitos sociais, econômicos e culturais (DHESCs); se um direito é violado, os demais também o são. Os Direitos Humanos não estão imunes ao contexto sociopolítico da sua época e também são instrumentalizados de acordo com determinados interesses, como também ocorreu com a Psicologia. Percebe-se que os Direitos Humanos funcionam, na atualidade, como uma espécie de termômetro que indica o grau de civilidade de uma sociedade. Neste contexto, se elege a dignidade humana como o eixo fundamentado mesmo, tornando possível pensar nessa meta também para a psicologia, na medida que está trabalha para o desenvolvimento e a melhoria do ser humano e suas condições de vida nas mais diversas esferas. A constatação de que ambos os campos buscam, direta ou indiretamente, a dignidade humana reforça a similaridade entre a Psicologia e os Direitos Humanos (Rosato, 2011). A prática profissional da Psicologia tem relação direta com a construção dos Direitos Humanos. Uma intervenção psicológica pode contribuir para construir ou não os Direitos Humanos de uma determinada sociedade. Em relação ao fazer profissional do psicólogo, pode-se questionar o predomínio ou a ênfase nas atividades avaliativas como laudos, pareceres, relatórios e diagnósticos, embora, do ponto de vista da regulamentação da profissão e do ponto de vista da multiplicidade das abordagens em Psicologia, nada há que desautorize, isoladamente, tais atividades. No entanto, há que se observar que facilmente as avaliações tendem para a produção ou reprodução de rótulos, tão ou mais cruéis quanto estigmatizadores e totalizantes (Arantes, 2003). Conforme Arantes (2003) é importante que o psicólogo tenha clareza quanto ao caráter problemático dessas categorias, advindas na maioria das vezes do jargão médico-jurídico-policial e pensadas duplamente como crime e como doença. Segundo o mesmo autor, foi constatado um aumento nas categorias diagnosticas dos principais sistemas classificatórios usados internacionalmente em Psiquiatria e saúde mental, mostrando que tal crescimento tem sido feito a partir da patologização do normal. Ou seja, condutas e comportamentos que até então eram consideradas inclusas dentro do padrão normal de existência, passaram a ser concebidas como anormais, de ordem disfuncional ou de transtornos nos quais merecem algum tipo de intervenção terapêutica, na grande maioria, farmacológica. Estudos como de Patto (1997) demonstra o crescente números de alunos que são encaminhados para avaliação psicológica, apresentando baixos rendimentos e comportamentos irregulares (inadequados) que não atendem as expectativas de professores, administradores e técnicos escolares. Mediante a esse encaminhamento é possível identificar, em seus laudos de avaliação psicológica, as dificuldades e até mesmo distúrbios mentais, porém esse resultado é influenciado pelas diferentes classes sociais. Sendo assim, crianças da média e da alta burguesia, os procedimentos diagnósticos levarão a psicoterapias, terapias pedagógicas e orientação de pais que visam a adaptá- las a uma escola que realiza os seus interesses de classe; no caso de crianças das classes subalternas, ela termina com um laudo que, mais cedo ou mais tarde, justificará a exclusão da escola. “Os testes se transformam em artimanha, do poder, que prepara uma armadilha para a criança, que acaba vítima de um resultado que não passa de um artefato da própria natureza do instrumento e de sua aplicação, situação tanto mais verdadeira quanto mais o examinador for criança pobre e portadora de uma história de fracasso escolar produzido pela escola” (Patto, 1997, p. 51).
Os psicólogos também se posicionam dessa maneira, porém de forma
sútil e científica. Os laudos indicam os altos níveis de repetências e exclusão dos alunos de escolas públicas com o comportamento de rebeldia ou portador de alguma anormalidade, porém, há referência à pobreza e ao meio social que reduzem o olhar do profissional em avaliar o indivíduo de forma integral (Patto,1997). A crítica realizada pelo autor é referente aos diferentes níveis de profundidade, como: Os conteúdos, para avaliar o nível intelectual os psicólogos fazem perguntas cujas respostas, para serem avaliadas como corretas, requerem do avaliando uma visão ideológica de mundo. A definição de inteligência e de personalidade contido nos testes de QI. A crítica vem sobretudo dos Piagetianos, que destacam o fato de que esses testes medem produtos de processos mentais, ignorando o processo de produção da resposta, mais importante na determinação do estágio de desenvolvimento intelectual (e não de uma capacidade intelectual estática) do que o resultado alcançado. O critério estatístico e adaptativo de normalidade que lhes serve de base. A situação de testagem, podendo ser destacados dois problemas: a falta de clareza a respeito das “regras do jogo” presentes em situações de exame psicológico e a inclusão da rapidez da resposta na definição de inteligência. Cagliari (1985) chama a atenção para o fato de que na vida em família, na escola e nas situações de teste as perguntas dos adultos têm significados e funções muito diferentes para as crianças, o que contribui para confundi-las nas situações de avaliação; quanto a rapidez da resposta, além da natureza ideológica do conceito de inteligência empregado, existe o fato agravante de o examinando ignorá-lo, pois faz parte da técnica de aplicação não o informar a respeito. A psicologia deve ir além das discussões teóricas. Deve-se dispor a avaliar e classificar os indivíduos e na sociedade com um olhar aberto e qualifica-lo com o caráter mais amplo para a própria concepção de ciência do sujeito. Essa psicologia tem sido vista como positivista, reveladora das motivações e potenciais de forma mais objetiva e fiscalista (Leopoldo e Silva, 1997, apud Patto,1997, p.52). É esperado durante uma avaliação:
“Ir a raiz, definir os seus compromissos sociais e históricos, localizar a
perspectiva que o construiu, descobrir a maneira de pensar e interpretar a vida social da classe apresentada esse conhecimento como universal (...). A perspectiva crítica pode (...) descobrir toda a amplitude do que se acanha limitadoramente sob determinados conceitos, sistemas de conhecimento ou métodos” (Martins, 1997, apud Patto, 1995, p. 54).
Portanto, é indicado e esperado dos profissionais uma postura ética,
transparência, conhecimento teórico e cientifico na avaliação psicológica. A psicologia deve oferecer um profissional que se aproxima dos pensamentos, ideias, condições psicológicas e sociais de forma integral, ofertando assim para análise e interpretação de estudos do indivíduo e do meio que está se construindo como ser humano (Patto, 1997). REFERÊNCIAS
Arantes, E.M.de M., Os Direitos Humanos na Prática Profissional dos
psicólogos: D.H e a Prática da Avaliação, 2003. Bock, A. M. B. História da organização dos psicólogos e a concepção de fenômeno ideológico. Em: Jacó-Vilela, A. M.; Cerezzo, A. C.; Rodrigues, H. de B. C. (Org.). Clio-Psyquê Hoje – Fazeres e dizeres psi na história do Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. Cagliari, L.C. O príncipe que virou sapo. Cadernos de Pesquisa, v.55, p.50-62, 1985. Patto, M. H. S., Para uma crítica da Razão Psicométrica, 1997. Rosato, Cássia Maria. Psicologia e Direitos Humanos: cursos e percursos comuns. Psicologia Revista, [S.l.], v. 20, n. 1, p. 9-27, ago. 2011.