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Hoje, para se realizar uma pesquisa dentro da psicologia social crítica é condição sine qua
non que o investigador saiba o lugar social e subjetivo de onde age, fala, observa e
escreve. Assim, sendo eu mulher, branca, paulista de classe média e descendente de
imigrantes judeus, é deste lugar que eu falo.
O racismo em que fui criada não se dava pelo ódio aos negros, mas também
racista, foi a forma como os brancos de minhas relações sociais e eu representávamos os
“outros” negros: com pena, com dó, com ausência. Quer dizer: nosso racismo nunca
impediu que convivêssemos com os negros ou que tivéssemos relações de amizades
e/ou amorosas com eles. No entanto, muitas vezes essas eram relações em que os
brancos se sentiam quase como fazendo “caridade” ou “favor” de relacionar-se com os
negros, como se com a nossa branquitude fizéssemos um favor de agregar valor a eles,
porque, afinal, estávamos permitindo aos negros compartilhar o mundo de “superioridade”
branca. Um sentimento de “superioridade” racial tão maléfico quanto o racismo daqueles
que acham que os negros são inferiores biológica e moralmente.
Acredito que, dentro da psicologia social, para além de todas as lutas contra a
desigualdade racial em relação ao que diz respeito ao acesso a recursos materiais, uma
das contribuições que um branco pode fazer pela e para a luta antirracista é denunciar os
privilégios simbólicos e materiais que estão postos nessa identidade. A intenção é dizer
que me expor como também pertencente ao grupo opressor e denunciar o racismo que já
foi parte de minha identidade e contra o qual hoje luto conscientemente para desconstruir
é romper o silêncio chamado pela psicóloga Maria Aparecida Bento de “pacto narcísico”
entre brancos, e que necessariamente se estrutura na negação do racismo e
desresponsabilização pela sua manutenção.
Nesta primeira década do século XXI, é possível perceber discursos que apontam o
Brasil como um lugar de pacífica convivência racial, com fluidas classificações de cor e
raça e estudos que mostram a duradoura e sólida iniquidade e injustiça racial como
fatores determinantes da estrutura social brasileira. O pensamento racial está arraigado
na estrutura social e cultural e na constituição dos sujeitos em nossa sociedade.
O branco não é apenas favorecido nessa estrutura racializada, mas é também produtor
ativo dessa estrutura, através dos mecanismos mais diretos de discriminação e da
produção de um discurso que propaga a democracia racial e o branqueamento. Esses
mecanismos de produção de desigualdades raciais foram construídos de tal forma que
asseguraram aos brancos a ocupação de posições mais altas na hierarquia social, sem
que isso fosse encarado como privilégio de raça. Isso porque a crença na democracia
racial isenta a sociedade brasileira do preconceito e permite que o ideal liberal de
igualdade de oportunidades seja apregoado como realidade. Desse modo, a ideologia
racial oficial produz um senso de alívio entre os brancos, que podem se isentar de
qualquer responsabilidade pelos problemas sociais dos negros, mestiços e indígenas.
A leitura dos estudos críticos sobre branquitude apontou que se há algo comum
neste processo de construção da identidade racial é que ele é construído nas sociedades
contemporâneas como lugar de privilégios materiais e simbólicos em que sujeitos
considerados brancos trafegam soberanos, em sociedades estruturadas pelo racismo,
delimitando assim fronteiras hierarquizadas entre brancos e outras construções
racializadas.
Outra consideração fundamental para se pensar a branquitude, é a compreensão
de que esta identidade racial tem fronteiras e distinções internas que hierarquizam os
brancos através de outros marcadores sociais, como classe social, gênero, origem,
regionalidade e fenótipo.
O enfoque se deu, portanto, na compreensão daquilo que define “quem somos nós”
e “quem são os outros”, o que nos permite construir, ainda, as fronteiras externas entre
brancos e não brancos. Na segunda parte do trabalho, a compreensão recaiu sobre as
fronteiras internas da branquitude. Procurei, ali, responder como os significados
construídos sobre branquitude hierarquizam e criam divisões internas no próprio grupo de
brancos.
O primeiro elemento demarcador apontado por mim como parte do que caracteriza
as divisões entre “nós brancos” e “outros não brancos” em São Paulo são os marcadores
espaciais simbolizados como “lugar de branco”, que estão associados diretamente a
bairros, ambientes e lugares onde se acumu- la riqueza. Esses lugares simbolizam,
também, a ideia de progresso paulista. Mostram que a construção da branquitude e da
identidade paulistana associada à ideia de civilização, progresso, e riqueza, anunciada na
estrofe “São Paulo engrandece a nossa terra”, da música Aquarela do Brasil,
entrecruzam-se e constroem-se mutuamente. Desta forma, em São Paulo não há
somente padrões de ocupação urbana que formatam a distribuição racial. Há, também,
conceituações sobre raça que derivam das várias formas de como o espaço urbano é
compreendido.
A dimensão estética, assim, pode ocupar uma posição privilegiada para se pensar a
luta anti-racista e é este referencial estético que é explorado para propor uma lógica da
identificação que ponha em cena o sujeito a partir da relação estética com o outro. A
identificação,pressupõe o modelo emergente de identidades flexíveis, que permite aos
sujeitos uma certa circulação de valores e aparências, seja para identificar-se com um
modelo ou para negá-lo, ou, ainda, para pertencer a um certo grupo de pessoas. E para
que haja esta vivência conjunta, as políticas públicas voltadas para a igualdade racial,
como as cotas, o reconhecimento da história, do espaço, a ação do movimento negro,
são essenciais para que os brancos consigam se deslocar da posição de norma e
hegemonia cultural e tentem se olhar como socialmente racializados, tentem adquirir uma
crítica à branquitude. São, pois, as relações com os significados construídos, hora por
sujeitos negros, hora pela estética negra ou pelo esforço das organizações negras, que
determinam as fissuras entre a brancura e o poder da branquitude nos poucos brancos
anti-racistas apresentados neste estudo.