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João Feres Júnior


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CONCEITOS POLÍTICOS DO BRASIL


LÉXICO DA HISTÓRIA DOS
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Organizador
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LÉXICO DA HISTÓRIA DOS
CONCEITOS POLÍTICOS DO BRASIL
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
Reitor Clélio Campolina Diniz
Vice-Reitora Rocksane de Carvalho Norton

EDITORA UFMG
Diretor Wander Melo Miranda
Vice-Diretor Roberto Alexandre do Carmo Said

CONSELHO EDITORIAL
Wander Melo Miranda (presidente)
Ana Maria Caetano de Faria
Danielle Cardoso de Menezes
Flavio de Lemos Carsalade
Heloisa Maria Murgel Starling
Márcio Gomes Soares
Maria Helena Damasceno e Silva Megale
Roberto Alexandre do Carmo Said

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO


Reitor Ricardo Vieiralves de Castro
Vice-Reitor Paulo Roberto Volpato Dias

INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIAIS E POLÍTICOS (IESP)


Diretor Adalberto Cardoso
Vice-Diretor João Feres Júnior
João Feres Júnior
Organizador

LÉXICO DA HISTÓRIA DOS


CONCEITOS POLÍTICOS DO BRASIL

2ª edição revista e ampliada

Belo Horizonte
Editora UFMG
2014
© 2009, Os autores
© 2009, Editora UFMG
2014, 2a ed. rev. e ampl.

Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização
escrita do Editor.
__________________________________________________________________________
L679 Léxico da história dos conceitos políticos do Brasil / João Feres
Júnior, organizador – 2. ed. rev. ampl. – Belo Horizonte : Editora
UFMG, 2014.
481 p.: il. – (Humanitas)

Contém partes do Diccionario político y social iberoamericano:


conceptos políticos en la era de las independencias, 1750-1850,
produto do projeto Iberconceptos.

Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-423-0042-0

1. Brasil – História. 2. América Latina – História. I. Feres


Júnior, João. II. Série.
CDD: 981
CDU: 94(81)
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Elaborada pela DITTI – Setor de Tratamento da Informação


Biblioteca Universitária da UFMG

DIRETORA DA COLEÇÃO Heloisa Maria Murgel Starling


COORDENAÇÃO EDITORIAL Michel Gannam
ASSISTÊNCIA EDITORIAL Eliane Sousa e Euclídia Macedo
COORDENAÇÃO DE TEXTOS Maria do Carmo Leite Ribeiro
PREPARAÇÃO DE TEXTOS Camila Figueiredo
REVISÃO DE PROVAS Alexandre Vasconcelos de Melo e Beatriz Trindade
PROJETO GRÁFICO Cássio Ribeiro, a partir de Glória Campos - Mangá
FORMATAÇÃO Gustavo Crepaldi
MONTAGEM DE CAPA Luar Furtado
PRODUÇÃO GRÁFICA Warren Marilac

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SUMÁRIO

Prefácio
A HISTÓRIA CONCEITUAL DO BRASIL NO MUNDO
IBERO-AMERICANO 09

Introdução
REFLEXÕES SOBRE O PROJETO IBERCONCEPTOS
João Feres Júnior 13

AMÉRICA/AMERICANOS
João Feres Júnior
Maria Elisa Mäder 25

CIDADÃO
Beatriz Catão Cruz Santos
Bernardo Ferreira 41

CONSTITUIÇÃO
Lúcia M. Bastos Pereira das Neves
Guilherme Pereira das Neves 59

FEDERAL/FEDERALISMO
Ivo Coser 79

HISTÓRIA
João Paulo G. Pimenta
Valdei Lopes de Araújo 103

LIBERAL/LIBERALISMO
Christian Edward Cyril Lynch 121
NAÇÃO
Marco A. Pamplona 137

OPINIÃO PÚBLICA
Lúcia M. Bastos Pereira das Neves 155

POVO/POVOS
Luisa Rauter Pereira 173

REPÚBLICA/REPUBLICANOS
Heloisa Maria Murgel Starling
Christian Edward Cyril Lynch 191

CIVILIZAÇÃO
João Feres Júnior
Maria Elisa Noronha de Sá 209

INDEPENDÊNCIA
Lúcia M. Bastos Pereira das Neves
Guilherme Pereira das Neves 233

DEMOCRACIA
Christian Edward Cyril Lynch 253

PÁTRIA
Marco A. Pamplona 275

ESTADO
Ivo Coser 301

LIBERDADE
Christian Edward Cyril Lynch 323

ORDEM
Cláudio Antônio Santos Monteiro 341
PARTIDO/FACÇÃO
Ivo Coser 359

REVOLUÇÃO
Lúcia M. Bastos Pereira das Neves
Guilherme Pereira das Neves 379

SOBERANIA
Luisa Rauter Pereira 401

O CONCEITO DE CIVILIZAÇÃO
Uma análise transversal
João Feres Júnior 423

Posfácio
DE OLHO NAS PESQUISAS FUTURAS
As camadas teóricas da história dos conceitos
João Feres Júnior 455

SOBRE OS AUTORES 479


Prefácio
A HISTÓRIA CONCEITUAL DO BRASIL NO
MUNDO IBERO-AMERICANO

Este livro contém o produto do trabalho da equipe de


pesquisadores brasileiros para o Proyecto Iberoamericano de
Historia Conceptual - Iberconceptos. A concepção original do
projeto começou a ser gestada em reunião que tive com Javier
Fernández Sebastián e Vicente Oieni durante a VII Conferência
Internacional de História dos Conceitos, em 2004. Na época
pretendíamos fundar uma associação ibero-americana de história
conceitual. A ideia da associação não prosseguiu, mas o projeto
de se fazer uma história conceitual dos países de fala espanhola
e portuguesa na Europa e na América vicejou graças ao esforço
de Javier, que conseguiu financiamento para o projeto em sua
pátria, Espanha, e organizou toda a empreitada. Vicente não
participou do projeto; eu me tornei o coordenador da equipe
brasileira.
Em sua primeira fase, o projeto Iberconceptos foi composto
por equipes de pesquisadores de nove países – Argentina, Brasil,
Chile, Colômbia, Espanha, México, Peru, Portugal e Venezuela
–, que produziram ensaios sobre a história de dez conceitos de
1750 a 1850. Os conceitos selecionados para a primeira fase
foram: América/americanos, cidadão/vecino,1 constituição,
federal/federalismo, história, liberal/liberalismo, nação, opinião
pública, povo e república/republicanos. Além dos verbetes,
também foram produzidas análises transversais de cada conceito,
usando como material de base os dez verbetes produzidos sobre
aquele determinado conceito.
O mesmo procedimento foi adotado para a segunda fase, só
que agora a lista de casos ampliou-se para doze: América Central,
Argentina, Brasil, Caribe, Chile, Colômbia, Espanha, México,
Peru, Portugal, Uruguai e Venezuela. A lista de conceitos-chave
também mudou: civilização, democracia, Estado, independência,
liberdade, ordem, partido/facção, pátria/patriota/patriotismo,
revolução e soberania.
Os verbetes produzidos na primeira fase, assim como as
análises transversais, foram publicados em um grande volume
intitulado Diccionario político y social iberoamericano: concep-
tos políticos en la era de las independencias, 1750-1850 (Editoral
del Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2009).
O trabalho da segunda fase culminou com uma grande confe-
rência em Montevidéu, em setembro de 2011, com a presença de
quase todos os autores e a apresentação dos trabalhos.
Nesta nova edição o leitor tem acesso aos textos da equipe
brasileira produzidos nas duas fases da pesquisa, em sua redação
original, ou seja, em português. Também integram este volume
dois textos introdutórios meus, um refletindo sobre o projeto
Iberconceptos em si, e as questões teóricas e metodológicas
suscitadas por ele, e outro tratando de aspectos teóricos mais
gerais da história conceitual. Por fim, o volume traz a análise
transversal do conceito de civilização, também de minha autoria,
que é um estudo comparativo da história do conceito levando
em conta todos os casos. Tal texto apresenta um desafio ímpar,
pois para escrevê-lo é necessário sair um pouco do paradigma
da história conceitual, sempre tão focado em casos nacionais.
O interesse da Editora UFMG na publicação do primeiro
volume e na reedição dos textos e incorporação dos novos
verbetes para esta nova edição precisa ser mencionado. Este é

10
provavelmente o primeiro trabalho de história conceitual do
Brasil apresentado na forma de léxico. A expansão represen-
tada pelo presente volume é muito bem-vinda. Mas o formato
léxico é somente uma das possibilidades abertas pela história
conceitual. Há muitas outras maneiras de incorporar as teses e
métodos desse enfoque ao trabalho de historiadores, cientistas
políticos e sociólogos. Espero que o presente volume, além de
sua função como obra de referência, contribua para expandir os
horizontes analíticos dos pesquisadores que porventura venham
a consultá-lo.

O organizador

NOTA
1
No caso de países de fala espanhola, o conceito de ciudadano foi estudado
conjuntamente com o conceito de vecino, pois há uma ligação semântica entre
os dois termos.

11
JOÃO FERES JÚNIOR

Introdução
REFLEXÕES SOBRE O PROJETO
IBERCONCEPTOS

A descrição rápida do projeto Iberconceptos pode dar ao


leitor a impressão errônea de que uma empreitada dessa natureza
se dá de maneira tranquila, sem grandes problemas e dilemas
resultantes de seu planejamento e consecução. Mas isso está longe
de ser verdade. Pretendo, neste breve ensaio, examinar algumas
questões de ordem prática e teórica provenientes da experiência
de se elaborar tal projeto.
As bases do projeto Iberconceptos foram propostas por Javier
Fernandez Sebastián em um texto intitulado “El mundo atlán-
tico como laboratorio conceptual (1750-1850). Bases para un
cuestionario en historia comparada de los conceptos políticos
y sociales iberoamericanos”. Nessa declaração de princípios
e diretrizes, Javier brevemente expõe os pressupostos teóricos
da empreitada que são seguidos por uma lista de questões que
os autores deveriam usar, como guias de pesquisa, para inter-
rogar as fontes. Para o olhar mais treinado, fica claro desde o
início que a proposta de Javier tem um caráter híbrido, o qual
é explicitado pelo próprio autor no trecho que imediatamente
antecede o questionário: “Entre esas cuestiones generales, para
cuya formulación nos inspiramos en parte en la Begriffsgeschichte
koselleckiana y en algunos artículos metodológicos bien cono-
cidos de Q. Skinner.”
Coerentemente com essa declaração de intenções, a lista de
questões combina preocupações advindas da Begriffsgeschichte
e aquelas mais próprias da Escola de Cambridge. Do enfoque
germânico, temos os procedimentos investigativos da onoma-
siologia, semasiologia e as questões relacionadas à história
semântica do termo, tais como: quais os sinônimos, antônimos
e palavras semanticamente vizinhas de um determinado termo;
quando ele apareceu; se caiu em desuso; se é um neologismo;
traçar sua história antes do período em questão etc. Também
vem da história conceitual a questão do paralelo entre semân-
tica histórica e história social, traduzida na preocupação de se
estabelecer as injunções sociais e políticas que acompanharam o
aumento ou a diminuição do uso do termo através do tempo e,
consequentemente, segundo o cânone koselleckiano, sua infla-
ção ou deflação semântica. Essa última questão está claramente
ligada a uma das quatro hipóteses propostas por Koselleck,
na introdução da Geschichtliche Grundbegriffe,1 a saber, a da
politização. Os autores são também instados a atentarem para a
hipótese, a da ideologização dos conceitos, que pode ser detec-
tada a partir do aparecimento de significados que apontam para
a realização futura de algo que ainda não é real no presente,
ou, em termos técnicos, para um descolamento entre espaço de
experiência e horizonte de expectativas. A hipótese da democra-
tização é traduzida na procura por determinar o espectro social
de uso de determinado conceito, se ele ficou restrito ao discurso
dos letrados, se fez parte de alguma linguagem técnica ou se se
tornou instrumento de debate público por meio de panfletos e
discursos políticos. Por fim, temos a preocupação com questões
relativas à recepção de conceitos, livros e autores, “nacionais”
e estrangeiros, outro elemento constituinte da metodologia da
Begriffsgeschichte.
No mesmo documento fundamental, há também uma série
de prescrições originadas da chamada Escola de Cambridge.

14
Primeiro encontramos o conselho de se estabelecer o pertenci-
mento de um determinado conceito a linguagens políticas de
seu tempo, que é caracteristicamente uma preocupação de J. G.
A. Pocock.2 Há recomendações para a identificação dos atores
políticos dentro de cada contexto histórico, de seus propósitos
e das audiências de semelhante discurso político. Também inte-
ressa a identificação das redescrições retóricas, à maneira como
Skinner as definiu,3 também denominadas de ressemantizações de
conceitos. Por fim, há uma preocupação em identificar os casos
em que o significado do conceito se torna objeto de disputa, inte-
resse que é comum à Begriffsgeschichte e à Escola de Cambridge.
Ainda que tenha sido o primeiro projeto coletivo a pôr
em prática uma tentativa de síntese entre as metodologias da
Begriffsgeschichte e da Escola de Cambridge, a ideia de tal síntese
precede a criação do Iberconceptos. Certamente o texto mais
influente a postular essa operação é The History of Political
and Social Concepts: A Critical Introduction,4 em que Melvin
Richter apresenta de maneira sistemática a história conceitual
produzida na Alemanha para o mundo extragermânico. Ao final
do livro, Richter faz um apelo aos historiadores do pensamento
político do mundo anglófono, mormente àqueles afiliados de
alguma forma à metodologia da Escola de Cambridge, para que
enriqueçam seus instrumentos de análise a partir do estudo da
produção teórica e substantiva da história conceitual alemã. De
maneira mais atomizada, Kari Palonen, outra importante agente
da recepção da história conceitual fora da Alemanha, também
propõe tal síntese, tentando estabelecer uma plataforma comum
entre Skinner e Koselleck.5 Alguns autores também operaram
essa síntese por meio de trabalhos monográficos, como Joern
Leonhard6 e Pasi Ihalainen.7
Na verdade, contudo, a combinação de ambas as metodolo-
gias em um só trabalho de pesquisa não se dá de maneira homo-
gênea e sem esbarrar em alguns problemas de ordem prática e
teórica. Gostaria de comentar alguns de maior relevância aqui.

15
A primeira questão diz respeito diretamente à história
conceitual, e não propriamente a sua fusão com a metodologia
da Escola de Cambridge. A Begriffsgeschichte proposta por
Koselleck não é simplesmente uma metodologia, um instrumento
de análise que possa ser livremente apropriado e adaptado aos
mais diversos objetos de estudo; ainda que Koselleck tenha suge-
rido isso por vezes, essa sugestão sempre veio acompanhada de
ressalvas.8 Não quero dizer aqui que ela não possa ser desmem-
brada ou mesmo reconstruída, mas, para que isso seja feito,
temos que entender o funcionamento de suas relações internas,
senão acabamos importando questões e premissas indesejáveis.
A Begriffsgeschichte é, por assim dizer, uma disciplina em que
teorias fundamentais e metodologias, modos de se proceder em
relação aos dados da experiência, estão fortemente imbricados.
Há uma teoria sobre relação entre a evolução semântica dos
conceitos e seus empregos nos discursos políticos, há outra sobre
a acumulação semântica diacrônica etc. Contudo, os alicerces
mais fundamentais do edifício da Begriffsgeschichte proposta por
Koselleck são sua teoria da modernidade e sua teoria do político.
Para Koselleck, a modernidade não somente se caracteriza
pela aceleração do tempo, mas também por um distanciamento
entre o que ele chama de espaço da experiência e horizonte de
expectativas. Segundo o autor, “experiência é o passado que
se faz presente, cujos eventos foram incorporados e podem
ser lembrados”, enquanto que a expectativa é “o futuro feito
presente, ela se dirige para o ainda-não, àquilo que ainda não
foi experimentado, àquilo que ainda está por ser revelado”.
Koselleck conclui que “o lugar da expectativa também é o
presente”.9
A reflexão sobre o que constitui a modernidade é um tema
recorrente do pensamento alemão; entre os trabalhos mais
importantes sobre o tema temos os de Hans Blumenberg10 e de
Karl Löwith.11 Ainda sobre a história do conceito de moderni-
dade/moderno há pelo menos quatro importantes monografias,
escritas por Hans Robert Jauss, Fritz Martini, Jost Schneider e

16
Hans Ulrich Gumbrecht – esse último trabalho um verbete da
Geschichtliche Grundbegriffe.
A concepção de Koselleck é muito similar à de Blumenberg,
ainda que para este o aparecimento de expectativas de um
futuro diferente do presente já pode ser detectado, mesmo que
de maneira marginal, no final da Antiguidade Clássica.
Koselleck também não contradiz a tese de Löwith, pois, para
os dois autores, a modernidade se caracteriza pela distensão do
futuro para além da experiência do presente, ainda que Koselleck
não atribua tão decisivamente essa nova relação com o tempo a
uma secularização da teleologia cristã. É importante notar que
a tese do descolamento entre horizonte de expectativas e espaço
de experiências é apresentada por Koselleck não como algo
específico do domínio da linguagem, mas como a experiência
definidora da modernidade, seu verdadeiro Zeitgeist. É claro
que essa teoria da modernidade tem consequências linguísticas
profundas, e tais consequências podem ser lidas na forma das
hipóteses de trabalho do método da Begriffsgeschichte. Na
verdade, a teoria da modernidade de Koselleck é responsável por
duas de suas hipóteses de trabalho fundamentais: a temporali-
zação e a ideologização dos conceitos. A primeira diz respeito à
transformação semântica de conceitos já existentes e à criação
de neologismos que denotam processos temporais – os vários
-ismos surgidos no século 19 são um exemplo importante; e a
segunda, à inscrição nos próprios conceitos do deslocamento
do horizonte de expectativas, com palavras passando a denotar
realidades que ainda não existem, mas que ao mesmo tempo
seriam desejáveis.
Outro elemento teórico da teoria da modernidade de
Koselleck é a noção de Sattelzeit – o período de transição ou de
gestação da modernidade. O autor também utiliza o vocábulo
Schwellenzeit para denotar esse período de desnaturalização das
velhas experiências com o tempo, que, na Alemanha, segundo
ele, ocorreu entre 1750 e 1850.12 Em outras palavras, metodo-
logicamente falando, Sattelzeit é o período no qual as quatro

17
hipóteses – temporalização, ideologização, politização e demo-
cratização – devem ser testadas. A centralidade dessa noção para
o todo da teoria koselleckiana é matéria de controvérsia entre
seus comentadores, e o próprio Koselleck é em grande parte
responsável por ela, pois, se na introdução da Geschichtliche
Grundbegriffe ele apresenta esse metaconceito como fundamen-
tal à Begriffsgeschichte, em ocasiões posteriores, declara que
cunhou o conceito somente para fazer o projeto de pesquisa mais
atrativo para as instituições financiadoras, e que ele é somente
uma das maneiras possíveis de se estreitar o foco da análise da
pesquisa, por estabelecer limites temporais,13 ou ainda que a
Begriffsgeschichte é um método que pode ser aplicado ao estudo
de outros períodos históricos nos quais houve intensa mudança
conceitual, e que, portanto, não depende da identificação do
Sattelzeit como precondição para sua prática.14
De fato, na apresentação mais canônica da teoria de Koselleck,
primeiro se explicaria o Sattelzeit para depois entrar nas quatro
hipóteses de pesquisa. Procedi de maneira inversa com o intuito
de desnaturalizar essa narrativa, e mostrar que o Sattelzeit pode
ser realmente deslocado sem que todo o edifício desmorone.
Ora, esse termo não é nada mais do que um sinônimo de “jovem
modernidade”, “umbral da modernidade” e que, portanto,
pode ser ignorado se descartarmos as teorias da modernidade e
optarmos por testar as quatro hipóteses em nosso material, sem
conectá-las como qualquer grande narrativa do tempo. Contudo,
Koselleck nunca procedeu dessa maneira, nem tampouco a
maioria de seus seguidores.
Do ponto de vista das questões que concernem à ordem da
investigação, e é essa que nos interessa particularmente aqui, é
expediente estabelecer um período como o Sattelzeit, ou qual-
quer outro nome, não somente por razões pecuniárias, mas
também para limitar o escopo da análise. E isso pode ser feito,
até certo ponto, sem qualquer compromisso com teorias prontas
do advento da modernidade. Como essa questão foi resolvida
no caso do projeto Iberconceptos? O período escolhido para o

18
estudo dos dez conceitos da primeira fase do projeto é o mesmo
da Geschichtliche Grundbegriffe, isto é, de 1750 a 1850. A
razão para essa escolha foi, penso eu, menos uma teoria da
modernidade do que o conhecimento prévio de que grandes
mudanças políticas e sociais ocorreram no mundo ibérico e
ibero-americano no período. Já que, ainda seguindo o cânone da
Begriffsgeschichte, mudanças políticas e sociais devem ser lidas
como índices de mudanças conceituais, pois há uma correlação
direta entre elas, então teríamos razão suficiente, advinda do
conhecimento histórico factual preliminar, de que esse período
seria fértil para se estudar história conceitual. Uma ressalva deve
ser feita, contudo. O ritmo da mudança semântica dos conceitos
através do período escolhido variou demais. Enquanto que nos
primeiros cinquenta anos do período, a última metade do século
18, esse ritmo foi lento tanto nas colônias do Novo Mundo
quanto nas metrópoles europeias, na primeira metade do século
19, os cinquenta anos finais do período escolhido, ele tornou-se
frenético, com a eclosão de todos os movimentos de libertação e
revoluções. Para a segunda fase do Iberconceptos, o período foi
deslocado até 1870, para capturar melhor a intensa atividade
conceitual do século 19.
Ainda no tocante à escolha do período, ficou claro para os
participantes do projeto que, enquanto seu limite inferior, ou
seja, o limiar do período de mudança intensa, pôde ser razoavel-
mente identificado, o limite superior, aquele em que a mudança
diminuiria de ritmo sinalizando assim que a evolução para a
modernidade estaria completa, de fato não coincidiu com a data
de 1850, e sequer pôde ser identificado. E isso talvez não seja
um problema particular que pode ser atribuído à modernidade
retardatária do mundo ibero-falante. Um breve olhar sobre a
história da Alemanha nos séculos 19 e 20 também faz pensar
quão arbitrário é supor que a modernidade, seja lá o que isso
for, está madura em 1850, pelo simples fato de que mudanças
políticas e sociais drásticas continuaram a se operar naquele

19
país, pelo menos até a segunda metade do século 20, com a
reconstrução do Plano Marshall após a Segunda Grande Guerra.
Ainda que Quentin Skinner e grande parte dos seguidores
da Escola de Cambridge tenham se dedicado a estudar o “Early
Modern Period”, ou seja, o limiar da modernidade, a metodo-
logia proposta ou encampada por esses autores prescinde de
uma teoria da modernidade. Ela é bem mais uma metodologia
pura e simples do que a Begriffsgeschichte, que se apresenta
como uma disciplina completa, como dissemos anteriormente.
No entanto, há uma série de problemas práticos que derivam
da tentativa de fusão das duas. E esses problemas estão direta-
mente relacionados ao desenho da pesquisa e ao formato final
da publicação em questão.
Se temos um léxico com verbetes razoavelmente curtos, como
é o caso de Iberconceptos, essa fusão não pode se dar de maneira
simétrica em relação às duas metodologias. O verbete é um
texto que, como qualquer texto acadêmico, e particularmente
os de história, deve conter uma narrativa. Em nosso caso, essa
narrativa deve cobrir a evolução de um conceito por mais ou
menos cem anos, identificando paralelamente importantes fatos
sociais e políticos que acompanharam essa evolução e os atores
que empregaram ativamente a palavra em seus discursos, que
por seu turno aconteceram em determinados contextos políti-
cos e institucionais. Ademais, temos que fazer todo o trabalho
básico de onomasiologia e semasiologia e traçar a evolução
semântica do conceito no período, como manda o cânone da
Begriffsgeschichte. De cara devemos notar o seguinte, enquanto
a Begriffsgeschichte é bem equipada para produzir narrativas
devido ao seu pendor para a diacronia, a metodologia da Escola
de Cambridge não é, pois privilegia a sincronia. Se escolhemos
a semântica histórica como guia, podemos de fato escrever
uma história curta de um conceito, dando conta das principais
transformações pelas quais ele passou no período. Contudo, tão
logo deixamos o plano dessa narrativa mais geral e mergulhamos
nos detalhes de um determinado momento histórico, com um

20
contexto que inclui vários atores e instituições produtoras de
discursos, corremos o risco de não conseguir manter o fio narra-
tivo, dado que este deve estar confinado a tão curto espaço. Em
outras palavras, o desvelamento de usos estratégicos, redescrições
retóricas e intencionalidade autoral, que tem como precondição
o estudo detalhado de um contexto sincrônico, é muito mais
difícil e improvável uma vez adotado esse formato de trabalho.
Talvez uma monografia sobre um conceito, com as dimensões
de um livro, seja o formato mais adequado para se tentar essa
síntese, pois os momentos de maior atividade conceitual podem
ser esmiuçados em diferentes capítulos, enquanto que a narrativa
do todo ficaria por conta da semântica histórica e da história da
recepção, duas peças da artilharia da Begriffsgeschichte.
O problema acima examinado tem consequências diretas para
o emprego de fontes de pesquisa. Tanto a Escola de Cambridge
quanto a Begriffsgeschichte são geralmente identificadas
com um movimento de abertura em relação a fontes: autores
menores, livros desconhecidos, panfletos, textos jurídicos etc.
Ironicamente, seus maiores representantes, Skinner e Koselleck,
demonstram em seus escritos predileção por grandes autores,
particularmente filósofos, mostrando-se nesses aspectos mais
próximos das abordagens tradicionais de história intelectual do
que seus seguidores talvez gostassem de admitir. De qualquer
maneira, o formato adotado também limita bastante a inclusão
de uma ampla gama de fontes. Na verdade, ele por um lado
nos leva a examinar fontes variadas, mas por outro nos força a
selecionar os usos mais distintos e raros ou mais representativos
do conceito, ou seja, aqueles que são funcionais à narrativa de
sua evolução histórica, sem, contudo, podermos descer ao ponto
da pragmática linguística, no qual, além do significado, tería-
mos que deslindar o propósito de semelhante uso conceitual em
seu contexto. Mas os problemas elencados anteriormente não
diminuem o valor da contribuição do projeto Iberconceptos.
Ainda em 2013 serão lançados em espanhol os primeiros tomos
contendo os dez verbetes de nove países, mais dez ensaios

21
comparativos sobre cada conceito. Assim como a Geschichtliche
Grundbegriffe, guardadas as devidas proporções, e o Diccionario
político y social del siglo XIX español,15 esta será uma obra de
referência que servirá tanto para aqueles interessados em escrever
análises mais detalhadas de algum conceito, como ao historia-
dor que emprega outras abordagens, ou ao cientista político
ou sociólogo interessado em história do pensamento. Ademais,
será a primeira obra de história conceitual em muitos dos países
envolvidos. No caso do Brasil, além de teses de doutorado e livros
de autores que adotam princípios e procedimentos da história
conceitual em meio a outros, tivemos recentemente algumas
publicações específicas da disciplina. História dos conceitos:
debates e perspectivas16 contém um documento importante e
muito informativo do encontro entre a Escola de Cambrigde e a
Begriffsgeschichte. Já História dos conceitos: encontros transa-
tlânticos17 traz uma coleção de trabalhos teóricos e substantivos,
cobrindo a recepção e o desenvolvimento da história conceitual
em vários países. Por fim, no mesmo período foi publicada em
tradução para o português a obra mais fundamental de teoria
da história conceitual, Futuro passado, de Reinhart Koselleck.18
A presente obra vem se somar a essa pequena mas crescente
bibliografia e contém talvez a primeira publicação na forma de
léxico sobre história conceitual do Brasil. Nesse sentido, pode
ser entendida como o primeiro volume de um léxico de história
conceitual de nosso país. O trabalho de pesquisa para o segundo
volume já está sendo feito.

NOTAS
1
Otto Brunner, Werner Conze, Reinhart Koselleck, Geschichtliche Grundbegriffe:
historisches Lexikon zur politisch-sozialen Sprache in Deutschland, Stuttgart, E.
Klett, 1972-1997.
2
J. G. A. Pocock, The Concept of a Language and the Métier d’historien: Some
Considerations on Practice, em A. Pagden (ed.), The Languages of Political
Theory in Early-Modern Europe, New York, Cambridge University Press, 1987.
3
Quentin Skinner, Reason and Rhetoric in the Philosophy of Hobbes, New York,
Cambridge University Press, 1996.

22
4
Melvin Richter, The History of Political and Social Concepts: A Critical Intro-
duction, New York, Oxford, Oxford University Press, 1995.
5
Kari Palonen, Quentin Skinner’s Rhetoric of Conceptual Change, History of
Human Sciences, v. 10, p. 61-80, 1997; Kari Palonen, Quentin Skinner: History,
Politics, Rhetoric, Cambridge, Polity Press, Malden, Blackwell Publishing, 2003.
6
Jörn Leonhard, Liberalismus: zur historischen Semantik eines europäischen
Deutungsmusters, München, R. Oldenbourg, 2001.
7
Pasi Ihalainen, Protestant Nations Redefined: Changing Perceptions of National
Identity in the Rhetoric of the English, Dutch and Swedish Public Churches,
1685-1772, Leiden, Brill, 2005.
8
Reinhart Koselleck, A Response to Comments on the Geschichtliche Grundbe-
griffe, em H. Lehmann, M. Richter (ed.), The Meaning of Historical Terms and
Concepts: New Studies on Begriffsgeschichte, Washington, German Historical
Institute, 1996; Javier Fernández Sebastián, Conceptual History, Memory, and
Identity: An Interview with Reinhart Koselleck, Contributions to the History of
Concepts, v. 1, n. 2, p. 99-127, 2006.
9
Reinhart Koselleck, “Space of Experience” and “Horizon of Expectation”: Two
Historical Categories, em Reinhart Koselleck, Futures Past: On the Semantics
of Historical Time, Cambridge, London, MIT Press, 1985.
10
Hans Blumenberg, On a Lineage of the Idea of Progress, Social Research, v. 41,
p. 5-27, 1974; Hans Blumenberg, The Legitimacy of the Modern Age: Studies
in Contemporary German Social Thought, Cambridge, MIT Press, 1983.
11
Karl Löwith, Meaning in History, London, Chicago, The University of Chicago
Press, Phoenix Books, 1949.
12
Koselleck, A Response to Comments on the Geschichtliche Grundbegriffe.
13
Ibidem, p. 69.
14
Sebastián, Conceptual History, Memory, and Identity.
15
Javier Fernández Sebastián, Juan Francisco Fuentes (ed.), Diccionario político
y social del siglo XIX español, Madrid, Alianza Editorial, 2002.
16
Marcelo Gantus Jasmin, João Feres Júnior (ed.), História dos conceitos: debates
e perspectivas, Rio de Janeiro, Loyola, PUC-Rio, 2006.
17
João Feres Júnior, Marcelo Gantus Jasmin (ed.), História dos conceitos: encontros
transatlânticos, Rio de Janeiro, PUC-Rio, 2007.
18
Reinhart Koselleck, Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos his-
tóricos, Rio de Janeiro, PUC-Rio, 2006.

23
JOÃO FERES JÚNIOR
MARIA ELISA MÄDER

AMÉRICA/AMERICANOS

No período estudado (1750-1850), o conceito de América


varia em torno de seis significados básicos: (1) um significado
geográfico, mormente descritivo, que iguala a América, ou
continente americano, ao Novo Mundo; (2) a essa definição,
um sentido político pode ser acrescentado para significar as
possessões coloniais das metrópoles europeias; (3) América
como fonte de abundância e promessa de um futuro mais prós-
pero; (4) a versão política análoga da definição 3, ou seja, de
América como espaço de liberdade, de novas formas políticas
e sociais algumas vezes associadas aos conceitos de república,
federalismo e democracia; (5) a negação de 3, isto é, a América
como o continente imaturo ou degenerado, terra de animais
pequenos e de homens primitivos e ferozes, de clima insalubre;
e, por fim, (6) a negação de 4, ou seja, o avesso à vida civili-
zada da Europa, escravidão, instabilidade política, violência e
facciosismo, muitas vezes também associados negativamente
à república, federalismo e democracia.
Os verbetes referentes aos conceitos América e americano
nos principais dicionários da língua portuguesa produzidos nos
últimos três séculos revelam muito pouca variação semântica.
Essa observação é consoante com os usos desses termos em
discursos e documentos políticos e mesmo em obras literárias.
Ademais, na maioria das vezes em que foram usados, tais
conceitos não constituíam dentro dos argumentos matéria
de contenda semântica. Aplicando a categorização proposta
por Reinhart Koselleck, América e americano não assumiram
propriamente o papel de conceitos-chave no período estudado,
pois nunca se tornaram objeto central do debate político, nem
foram dotados de definições múltiplas e antagônicas, próprias
do caráter polissêmico dos conceitos dessa categoria.1 Contudo,
não podemos desprezar o fato de esses conceitos terem sido por
vezes incorporados a discursos políticos e debates importantes
para a história do Brasil no período em questão.
Devemos notar que a pouca variabilidade semântica não faz
com que o estudo dos conceitos de América e americano seja
destituído de interesse, pois significados que não se tornam
controversos são janelas para a observação do consenso social,
das crenças e das ideias mais profundas de um povo, comuni-
dade ou grupo social. Ademais, como já observado alhures, a
terminologia geográfica, a despeito de sua aparente neutralidade
valorativa, pode conter julgamentos morais fortes e ser usada
como ferramenta de controle social e/ou justificação para ações
de política internacional.2
O dicionário da língua portuguesa composto pelo Padre D.
Raphael Bluteau, publicado em 1728, contém um longo verbete
América. A definição do termo é simples: sinônimo de “mundo
novo”, a quarta parte do mundo. De fato, a extensão do verbete
não se deve à abundância de significados do conceito em si, mas
à narrativa que se segue à sua definição. Nela Bluteau relata que
essa parte do mundo empresta seu nome de Américo Vespúcio,
que tomou posse dela em nome do “gloriosíssimo Rei de Portugal
D. Manoel”. Ademais, o texto também informa que Christovão
Colon (sic) somente se animou a empreender sua viagem de
descoberta após tomar posse, na Ilha da Madeira, das cartas
de navegação de um piloto português. “A um português deve
este mundo o descobrimento daquele novo mundo.” Portanto,
Bluteau apresenta o significado geográfico associado àquele de
pertencimento colonial. Depois de afirmar o primado português
sobre o novo continente, o verbete narra a viagem de Colombo

26
e descreve com alguns detalhes a geografia do Novo Mundo,
terminando com um comentário sobre a fonética correta do
termo. Logo em seguida, o continente é divido em América
setentrional e América meridional. Em cada uma dessas divi-
sões, são enumeradas as colônias e possessões das monarquias
europeias e também os povos “que não têm Reis”, os indígenas,
no vocabulário contemporâneo.
É interessante notar que no Dicionário de Bluteau não
há o verbete americano, ao passo que, nas várias edições do
Dicionário de Antonio de Moraes Silva, produzidas no período
em pauta (1789, 1813, 1823, 1831, 1844 e 1858), esse verbete
existe, enquanto América está ausente. Cabe lembrar que o dicio-
nário organizado por Moraes Silva foi baseado no de Bluteau,
ou seja, ele é produto de uma reforma daquele velho dicionário.
A definição de americano no Moraes é também muito simples
e se repete em todas as edições do período, “Natural da América,
ou pertencente à América”, seguida de uma citação do padre
Antônio Vieira (1608-1697): “Não quero comparar estes meni-
nos Malabares, com os Americanos, senão com os Romanos.”
Apesar do parco interesse da citação, ela serve para demonstrar
que o conceito já estava em uso no século 17. Vieira utiliza a pala-
vra América sete vezes nos Sermões. Em cinco delas, ela aparece
juntamente com Ásia e África,3 em uma somente com Ásia4 e em
uma outra sem a vizinhança desses outros continentes.5 Nessa
última passagem, o termo serve simplesmente como elemento
retórico de uma comparação reiterada. No Sermão pelo Bom
Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda (1640),
América aparece novamente ao lado de África e Ásia, entre as
terras dos bárbaros conquistadas pelos portugueses a serviço de
Deus. Desses usos, podemos perceber que o conceito pertencia à
categoria das possessões coloniais portuguesas, ou seja, nomeava
um dos continentes nos quais os portugueses tinham colônias,
e, portanto, tinham que lidar com problemas similares: conflito
com outras potências europeias, exploração colonial, controle
do território e dos mares, do tráfico, administração colonial e

27
dos povos ali residentes etc. A definição de Bluteau também
expressa esse ponto de vista colonial português, pois se apressa
em afirmar a primazia da Coroa lusitana sobre as terras do Novo
Mundo. Deve-se notar, contudo, que o Moraes de 1789 já não
faz menção a isso, optando por uma definição geográfica mais
estrita do termo, ao passo que o dicionário de Eduardo de Faria,
de 1849, editado em Portugal, repete de forma sintética o argu-
mento da possessão do Novo Mundo em nome do rei lusitano.
O termo América era também utilizado no período em
expressões compostas, tais como América portuguesa, espanhola,
meridional e setentrional. A mais importante delas foi América
portuguesa, que, até a independência, em 1822, era o termo mais
usado para se denominar a totalidade da colônia portuguesa no
Novo Mundo. A palavra Brasil até então designava somente as
capitanias sob o vice-reino do Rio de Janeiro6 – também o termo
brasileiro não teve um significado estável até, pelo menos, o
advento da independência.7
Ainda que os dicionários da língua portuguesa tenham se
restringido à definição geográfica de América, seria ingênuo
desprezar a imensa carga semântica depositada sobre o conceito
desde a descoberta do Novo Mundo, mormente pela contribui-
ção de escritores europeus como Buffon, De Pauw, Olviedo,
Montesquieu, Voltaire, Hume, Hegel, Kant e tantos outros. Duas
opiniões opostas se depreendem desse conjunto de reflexões, as
duas formuladas de uma perspectiva marcadamente europeia:
uma de abundância e promessa de prosperidade, e outra de
imaturidade, degeneração, insalubridade e, portanto, incapaci-
dade para a vida civilizada. A versão negativa parece ter sido de
algum uso nas disputas entre portugueses e habitantes da colônia
– principalmente após a mudança da Corte de Portugal para o
Rio de Janeiro em 1808 – que perduraram até a consolidação
da independência do Brasil. Do lado português, era comum
encontrarem-se argumentos apontando para a ingratidão dos
brasileiros para com Portugal. Na Carta do compadre de Lisboa
em resposta a outra do compadre de Belém ou juízo crítico sobre

28
a opinião dirigida pelo “Astro da Lusitânia”, de 1821, o Brasil
é descrito como “um gigante, em verdade, mas sem braços, nem
pernas; não falando do seu clima ardente e pouco sadio”, habi-
tado por “hordas de negrinhos, pescados nas costas da África”,
“terra dos macacos, dos pretos e das serpentes” em oposição a
Portugal, que seria “o Jardim das Hespérides, os Elísios, deste
pequeno mundo chamado Europa”, “país de gente branca, dos
povos civilizados e amantes de seu soberano”.8 Já a versão posi-
tiva da visão europeia de América, a terra da fartura e do futuro
promissor, francamente minoritária em relação à negativa, foi
recebida com entusiasmo no Brasil. Contudo, esse significado
foi com o tempo se dissociando do termo América, pelo menos
dentro do discurso político que se tornou hegemônico com a
consolidação do Estado nacional brasileiro.
É no contexto da Conjuração Mineira (1789) que o termo
América assume um conteúdo político importante e novo. Nos
Autos da Devassa, produzidos pelas autoridades portuguesas no
inquérito que se seguiu ao desbaratamento do movimento, ele
é muitas vezes empregado com sentido político, relacionado a
conceitos como o de república, liberdade, revolução e sedição,
e identificado ao projeto político dos conjurados, tanto por
parte dos inquisidores quanto por parte dos acusados. Na “1ª
Inquirição do Auto de Perguntas” ao Coronel Inácio José de
Alvarenga Peixoto, de novembro de 1789, perguntado se sabia
a causa da sua prisão, este responde que havia sido procurado
para ser informado que “nesta cidade tinham prendido a
Joaquim Silvério, e ao Alferes Joaquim José, por alcunha – o
Tiradentes –, que se supunha ser por alguma liberdade, com que
este falava em ideias de Repúblicas, e Américas inglesas...”.9 E
continua dizendo que “não tinha sido convidado por pessoa
alguma para que, faltando às obrigações de bom e leal vassalo,
concorresse para que a América conseguisse a sua liberdade, e
se formasse dela uma República...”. Ao ser perguntado sobre
a possível ajuda francesa aos revoltosos, declara que tinha
ouvido no Rio de Janeiro “a pretensão que a França, e as mais

29
cortes estrangeiras tinham a liberdade do negócio nos portos da
América e que equivocando-se, confundia esta liberdade do negó-
cio com a liberdade da América...”.10 Nota-se aqui não somente
a associação de liberdade e república com a América inglesa,
mas também com a América em geral, ainda que o acusado se
esforce para negar qualquer associação sua com tais movimentos.
Nos mesmos Autos da Devassa, encontram-se referências a
uma carta escrita por José Joaquim da Maia, quando estudante
em Montpellier, a Thomas Jefferson, então embaixador dos
Estados Unidos em Paris, com a finalidade de angariar ajuda
militar daquele país para um movimento de independência do
Brasil. Nesse documento, o conceito de América é central. Maia
opõe a América à Europa, a liberdade americana à escravidão
imposta pelos europeus, e os Estados Unidos são tomados como
o exemplo a ser seguido: “...porque a natureza, fazendo-nos
habitantes do mesmo continente, como que nos ligou pelas rela-
ções de uma pátria comum.”11 Ainda em sua carta, o autor usa o
termo América para se referir ao Brasil simplesmente. Em suma,
por um lado, o significado aqui ainda é muito próximo ao do
dicionário, Novo Mundo, continente americano, porém, a essa
unidade geográfica é associada uma finalidade política comum
que é a da conquista da liberdade frente à Europa.
Deve-se ressaltar, contudo, que os exemplos da Conjuração
Mineira e da carta de Maia são marginais ao debate político
que se travava na capital da colônia. É somente com a intensi-
ficação da agitação política durante o período de emancipação
e construção do Estado nacional brasileiro, que vai de 1810 ao
triunfo do regresso conservador no início dos anos de 1840, que
o termo América passa a ser empregado com mais frequência no
debate público, integrado ao discurso de diferentes personagens
da época. Além do termo América, a distinção entre a América do
Norte, ou setentrional, referida aos Estados Unidos, e a “outra”
América, chamada de América do Sul, meridional ou espanhola,
também é de uso corrente.

30
Dependendo do lugar de onde se fala, essa América hispânica
pode assumir significados diversos e, não raro, antagônicos.
No discurso político dominante na Corte, que pretendia impor
ao resto do país um projeto político de império centralizado
e unificado, a América hispânica muitas vezes é identificada
à república, à barbárie, à anarquia e à fragmentação política,
todos conceitos com forte conteúdo negativo. Já no discurso
das províncias que defendiam projetos políticos divergentes e
alternativos aos da Corte, como, por exemplo, Pernambuco,
a América aparece com um significado positivo, identificada à
república, ao federalismo e à liberdade.
Vejamos alguns exemplos desses vários lugares de enunciação.
Frei Caneca, revolucionário pernambucano e um dos pensadores
políticos mais combativos de seu tempo, representou, tanto pela
sua atuação política intensa – participou da Revolução de 1817 e
da Confederação do Equador em 1824 –, quanto pela sua escrita
contundente, uma das mais importantes vozes de oposição ao
projeto imperial hegemônico na Corte e ao que chamava de
“absolutismo” do imperador. No Typhis Pernambucano, peri-
ódico editado por ele de dezembro de 1823 a agosto de 1824, a
América aparece como a “quarta parte nova do mundo”, ou
como sinônimo de “Novo Mundo”, identificada aos interesses
dos “verdadeiros patriotas brasileiros” – os pernambucanos,
por exemplo –, que se diferenciavam dos “europeus trans-
plantados na América”, provavelmente os brasileiros da corte
identificados por ele aos interesses absolutistas portugueses.12
Caneca não só chama o continente de “mãe amorosa”, por
ter acolhido e beneficiado os europeus conquistadores, mas
também identifica a América ao seu povo nativo, tratado
por muitos “não como irmãos e compatriotas”. Ao protestar
veementemente contra a dissolução da Assembleia Constituinte
pelo imperador, em 1823, o frei argumenta que com aquela
atitude “inconstitucional e atentatória da soberania da nação”
o Brasil se distanciava do resto da América.13 Ainda no Typhis,
publica vários artigos de teor similar, inclusive um no qual

31
exalta a máxima do presidente dos Estados Unidos, James
Monroe – “a América para os americanos” –, por ver nela um
manifesto contra a ameaça absolutista europeia à soberania do
Brasil e das Américas. O modelo político americano vislum-
brado por Caneca era o do sistema federativo dos Articles of
Confederation e não o da Constituição Federal norte-americana
de 1787, que para ele extinguira muitos dos direitos locais.14 Ou
seja, para o autor e muitos de seus conterrâneos revolucioná-
rios, a América estava associada à liberdade local, federalismo
e república, numa chave eminentemente positiva.
Se, por outro lado, focarmos os textos que circulavam no
ambiente da Corte, um outro leque semântico se apresenta.
O Correio Braziliense, periódico mensal impresso em Londres
de 1808 a 1822, contém outros exemplos fecundos do uso do
termo. Esse impresso foi também a principal fonte de informação
na América portuguesa acerca dos processos de independência
das colônias da Espanha.15 Seu editor, Hipólito da Costa, era
monarquista constitucional de influência britânica, inimigo do
republicanismo francês e franco defensor da independência do
país. Hipólito publicava seu periódico com a firme intenção de
influenciar o pensamento das elites locais da época, e foi em
grande medida bem-sucedido, pois o Correio serviu de modelo
para o jornalismo político que surgiu no país durante o período
da independência.16 Em artigo de 1808, denominado “América”,
Hipólito saúda a independência do México e examina a situação
política do novo país frente às potências europeias: à França,
descrita como influência populista e ardilosa, e à Inglaterra,
potência comercial. Os Estados Unidos da América são citados
de passagem, somente como possível influência sobre o México.17
Em artigo de julho de 1809, comentando a independência do
território de Buenos Aires, Hipólito faz uso abundante do termo
América, sempre no sentido da totalidade do continente, do Novo
Mundo, e pressagia sua independência inevitável da Europa em
um curto espaço de tempo. Segundo o autor, por “prejuízos
[preconceitos] e educação equivocada, os europeus erram ao

32
tratar tais regiões como se estivessem em sua infância”.18 Em
março de 1810, no texto denominado “América – a oportuni-
dade da América”, o autor mostra preocupação com o destino
republicano que os novos países americanos estavam escolhendo,
condição que, segundo ele, se assemelhava muito à anarquia.19
No artigo “Estado político da América no fim de 1822”,
publicado em dezembro do mesmo ano, Hipólito da Costa
diferencia os Estados Unidos da América, “uma nação que se
faz conspícua no mundo por seu poderio” e “uma potência
que é inconquistável às forças europeias”, das “outras seções
da América”, as ex-colônias espanholas, “consideradas pelas
potências europeias como pequenas províncias em rebelião e
não dignas de serem tratadas como nações independentes”. Ao
exaltar a emancipação da América dos governos europeus a que
estava sujeita, defende o seu direito à soberania e à liberdade
como “um direito que sempre têm exercido todos os demais
povos do mundo” e que foi reconhecido pela Europa em relação
aos Estados Unidos. Ao colocar-se claramente em oposição ao
projeto de independência que pretendia manter a escravidão no
Brasil, afirma:

Como estas revoluções da América são agora fundadas nos prin-


cípios da liberdade, claro está que fica sendo incompatível com a
existência desses governos a conservação da escravatura. Assim vemos
que todos os governos da América espanhola, imitando o exemplo dos
Estados Unidos, têm já proibido o comércio da escravatura da África,
como passo preliminar para a aniquilação total da escravidão; e o Brasil,
pelas mesmas razões, há de necessariamente seguir a mesma linha de
política; e eis aqui um bem de considerável magnitude, que procede
não simplesmente da independência da América, mas dos princípios
liberais em que se estribam os promotores dessa independência.20

Aqui o Brasil, apesar de vir a se tornar uma monarquia,


aparece para ele identificado a uma América que representa a
liberdade, a revolução, as “ideias do século” e a razão. Em suma,

33
ainda que Hipólito rejeitasse o republicanismo da América hispâ-
nica, considerava digno de admiração seu exemplo de liberdade
frente às potências europeias e sua determinação no tocante à
abolição da escravidão.
Posição similar é manifestada por José Bonifácio de Andrada
e Silva, político e estadista de grande influência no período da
independência, e defensor do regime da monarquia constitu-
cional, uma solução política que evitava “os planos e astúcias
secretas dos governos republicanos da América, por uma parte,
e os da Santa Aliança da outra”. Se por um lado, Bonifácio
afirma que “o Brasil quer ser livre; e tem o exemplo de todos os
nascentes Estados que o rodeiam”, também deplora a opção pelos
“amargos sacrifícios [do] ideal republicano”, que na experiência
de nossos vizinhos se apresentava “anárquico e violento”.21 Nos
dois últimos exemplos, notamos um alargamento semântico do
conceito, que passa a expressar uma tensão entre o valor positivo
da liberdade e a negatividade de seu abuso, ou excesso.
Já nos escritos de Paulino José Soares de Sousa, o Visconde do
Uruguai, um dos mais importantes representantes do projeto de
Estado nacional centrado na Corte, defensor da monarquia e da
centralização, a América aparece identificada a valores negativos,
representando a oposição à civilização encarnada pelo Império
do Brasil. Uruguai também diferencia a América hispânica dos
Estados Unidos. Com relação à primeira diz: “Tais são as repú-
blicas hispano-americanas. Têm organização política constante-
mente mutável. Quase não têm organização administrativa. Tudo
é precário e depende do arbítrio dos chefes das revoluções.”22
Já os Estados Unidos da América são um “daqueles afortuna-
dos países onde o povo é homogêneo, geralmente ilustrado e
moralizado, e onde a sua educação e hábitos o habilitam para
se governar bem a si mesmo”.23 As duas Américas são herdeiras
da Europa, mas de “Europas” diferentes:

Há a Europa latina e a Europa teutônica. A Europa latina compre-


ende os povos do meio-dia, entre os quais estão a França, a Espanha, a

34
Itália e Portugal. A Europa teutônica, os povos continentais do Norte e
a Inglaterra. A primeira católica, a segunda protestante. Nas línguas da
primeira domina o latim, nas da segunda, o idioma germânico. Essas
duas grandes diferenças, essas duas grandes divisões reproduziram-se
na América descoberta e povoada pela Europa. A América meridional
é, como a Europa meridional, latina e católica. A América do Norte é
anglo-saxônia e protestante.24

A América meridional que vive, segundo Uruguai, na anarquia,


na desordem, na instabilidade política e na barbárie, não deve
ser o espelho da nação brasileira que se quer civilizada.
Como vemos nos exemplos acima, se tomado no plano apro-
ximadamente sincrônico do momento da independência e de
sua consolidação, o significado político do conceito de América
variava entre a associação positiva com o conceito de liberdade à
associação negativa ao exemplo de anarquia, desordem e insta-
bilidade política das repúblicas hispano-americanas. No caso
de Caneca e dos liberais exaltados, essa associação positiva se
estendia a conceitos como autonomia, federalismo e, às vezes,
república. Já os defensores da monarquia constitucional não
raro expressavam em seu discurso as contradições decorrentes
do inchaço semântico do conceito, por vezes louvando a liber-
dade americana e por outras deplorando o exemplo hispano-
-americano. Por fim, a rejeição da experiência republicana da
América espanhola é dominante no discurso de defensores da
centralização política, como Uruguai. A estigmatização das
repúblicas da América espanhola presente, por exemplo, tanto
no discurso dos liberais moderados quanto no discurso do
Regresso fez com que os Estados Unidos da América fossem
tomados cada vez mais como um caso singular, que, devido às
diferenças de língua, religião e processo de colonização, podiam
até ser admirados mas não deviam ser seguidos.
Já no plano diacrônico, além do sentido puramente geográ-
fico, que permaneceu constante, podemos dizer que o conceito
de América no início do período em questão (1750-1850) porta

35
três significados principais: o de possessão colonial portuguesa,
o de abundância e promessa de prosperidade e o de imaturi-
dade, degeneração, insalubridade. Como podemos perceber, os
termos dos últimos dois significados denotam traços marcantes
de temporalização. Esse era basicamente o mapa semântico do
conceito no período colonial, que começa a se enriquecer de
tons políticos com o advento das independências dos Estados
Unidos da América e das colônias espanholas, e o consequente
uso desses exemplos por parte de atores coloniais descontentes
com o Império português. A associação da América como o valor
da liberdade tornou-se comum a partir da primeira década do
século 19, ao mesmo tempo que a depreciação das experiências
políticas das novas repúblicas da América espanhola rapidamente
se converteu em tropo retórico daqueles que não desejavam o
governo republicano no Brasil, ou seja, da parte dominante do
espectro político brasileiro por toda a primeira metade do século
19 e além.
A simultaneidade entre a fundação de uma nova nação e
a adoção de uma nova forma de governo, que parece ter sido
fundamental na experiência política hispano-americana, não se
verificou no Brasil. A transformação da colônia em centro de fato
do Império português, com a chegada de D. João VI em 1808,
fez com que se alimentassem fortes desígnios de continuidade
política, que conseguiram sufocar por muito tempo os projetos
republicanos, federalistas e democráticos – estes frequentemente
identificados com a América. Na verdade, o conceito de Brasil,
de nação brasileira, parece ter absorvido em grande parte essa
interpretação positiva do Novo Mundo, principalmente com o
advento do romantismo, que se implanta com força a partir do
Segundo Reinado (1840-1889). A imagem da nação brasileira
moldada a partir daí se apresenta como um projeto civilizacio-
nal singular no Novo Mundo, que mistura elementos europeus,
descartados no restante do continente, como a monarquia, com
elementos nativos supostamente próprios.25

36
NOTAS
1
Reinhart Koselleck, A Response to Comments on the Geschichtliche Grundbe-
griffe, em Hartmut Lehmann, Melvin Richter (ed.), The Meaning of Historical
Terms and Concepts: New Studies on Begriffsgeschichte, Washington, German
Historical Institute, 1996; Melvin Richter, The History of Political and Social
Concepts: A Critical Introduction, New York, Oxford, Oxford University Press,
1995; Hartmut Lehmann, Melvin Richter, The Meaning of Historical Terms and
Concepts: New Studies on Begriffsgeschichte, Washington, German Historical
Institute, 1996.
2
João Feres Júnior, A história do conceito de Latin America nos Estados Unidos,
Bauru, Edusc, 2005; João Feres Júnior, The Semantics of Asymmetric Counter-
concepts: The Case of “Latin America” in the US, Anales of the Iberoamerikanska
Institutet, Göteborg, n. 7-8, p. 83-106, 2005.
3
António Vieira, Sermões: obras-primas da literatura portuguesa, prefácio e re-
visão de Pe. Gonçalo Alves, Porto, Lello & Irmão, 1959, p. 74, 106, 132, 242.
4
Ibidem, p. 244.
5
Ibidem, p. 240.
6
Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves, Corcundas e constitucionais: a cultura
política da independência (1820-1822), Rio de Janeiro, FAPERJ, Revan, 2003.
7
Ronaldo Vainfas, Dicionário do Brasil imperial, 1822-1889, Rio de Janeiro,
Objetiva, 2002.
8
Estevão Chaves de Rezende Martins (ed.), Relações Internacionais: visões do
Brasil e da América Latina, Brasília, Instituto Brasileiro de Relações Internacio-
nais, Fundação Alexandre de Gusmão-MRE, 2003.
9
Domício Proença Filho, A poesia dos inconfidentes: poesia completa de Cláudio
Manuel da Costa, Tomás Antonio Gonzaga e Alvarenga Peixoto, Rio de Janeiro,
Nova Aguilar, 1996, p. 1028.
10
Ibidem, p. 1028-1029.
11
Paulo Bonavides, Roberto Amaral, Textos políticos da história do Brasil, 3. ed.,
Brasília, Senado Federal, 2002, 10 v.
12
Joaquim do Amor Divino Caneca, Frei Joaquim do Amor Divino Caneca, orga-
nização de Evaldo Cabral de Mello, São Paulo, Editora 34, 2001, p. 59, Coleção
Formadores do Brasil.
13
Typhis Pernambucano, Recife, 1º jan. 1824.
14
Evaldo Cabral de Mello, A outra independência: o federalismo pernambucano
de 1817 a 1824, São Paulo, Editora 34, 2004.
15
João Paulo G. Pimenta, O Brasil e a América espanhola (1808-1822), Tese
(Doutorado em História Social) – Departamento de História, Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2003.
16
Isabel Lustosa, Insultos impressos: a guerra dos jornalistas na Independência,
1821-1823, São Paulo, Companhia das Letras, 2000.

37
17
Barbosa Lima Sobrinho, Antologia do Correio Braziliense, Rio de Janeiro, Cá-
tedra, 1977.
18
Ibidem.
19
Ibidem.
20
Ibidem.
21
José Bonifácio, Miriam Dolhnikoff, Projetos para o Brasil: retratos do Brasil,
São Paulo, Companhia das Letras, 1998.
22
Paulino José Soares de Souza (Visconde do Uruguai), Paulino José Soares de
Sousa: Visconde do Uruguai, organização de José Murilo de Carvalho, São Paulo,
Editora 34, 2002, p. 92, Coleção Formadores do Brasil.
23
Ibidem, p. 491.
24
Ibidem, p. 500-501.
25
Lilia Moritz Schwarcz, As barbas do imperador, São Paulo, Companhia das
Letras, 1999.

REFERÊNCIAS
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accrescentado por Antonio de Moraes Silva, natural do Rio de Janeiro.
Lisboa: Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789.
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São Paulo: Editora 34, 2002. (Coleção Formadores do Brasil).
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da lingua portuguesa. Paris: Angelo Francisco Carneiro Junior/ Typographia
de Casimir, 1836.
COSTA, Hipólito José da; PAULA, Sergio Goes de. Hipólito José da Costa.
São Paulo: Editora 34, 2001. (Coleção Formadores do Brasil).
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Sciencias de Lisboa. Lisboa: Oficina da mesma Academia, 1793.
FARIA, Eduardo de. Novo diccionario da lingua portugueza seguido de
um diccionario de synonymos. Lisboa: Typographia José Carlos de Aguiar
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FEIJÓ, Diogo Antônio; JORGE, Caldeira. Diogo Antônio Feijó. São Paulo:
Editora 34, 1999. (Coleção Formadores do Brasil).
FONSECA, José da. Diccionario da lingua portugueza, feito inteiramente
de novo e consideravelmente augmentado por J. I. Roquete. Paris: Va. J. P.
Aillaud, Guillard E.Ca., 1848.

38
MANITTI, José Caetano Cesar. Autos de devassa da Inconfidência Mineira.
Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1936.
SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da lingua portugueza, recopilado
dos vocabularios impressos até agora, e nesta segunda edição novamente
emendado, e muito accrescentado... . 2. ed. Lisboa: Typographia Lacer-
dina, 1813.
SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da lingua portugueza, recopilado
de todos os impressos até o presente por Antonio de Moraes Silva. 3. ed.
Lisboa: M. P. de Lacerdo, 1823.
SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da lingua portugueza. 4. ed. Lisboa:
Imprensa Regia, 1831.
SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da lingua portugueza, composto
por Antonio de Moraes Silva, natural do Rio de Janeiro. Quinta edição
aperfeiçoada, e accrescentada de muitos artigos novos, e etymologicos. 5.
ed. Lisboa: Typographia de Antonio José da Rocha, 1844. 2 v.
SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da lingua portugueza. 6. ed. Lisboa:
Typographia de Antonio José da Rocha, 1858.
VOCABULARIO Portuguez et Latino, Aulico... autorizado com exemplos
dos melhores escritores portuguezes, e latinos, e offerecido a El Rey de
Portugal, D. João V pelo Padre D. R. Bl., Coimbra, Collegio das Artes da
Companhia de Jesus. Lisboa: Joseph Antonio da Silva, [s.d.].

39
B E AT R I Z C ATÃ O CRUZ SANTOS
BERNARDO FERREIRA

CIDADÃO

Na língua portuguesa, bem como na espanhola, a palavra cidadão


tem uma significação mui particular, ela designava o morador ou
vizinho de uma cidade. Sabe-se que pelo direito feudal as povoações,
segundo que eram cidades, vilas ou lugares, tinham assim diferentes
direitos, gozavam certos privilégios, liberdades, isenções (...) [O
cidadão], por isso, gozava diferentes direitos que não se estendiam
a todos os membros da sociedade; (...) isto porém acabou.1

Este discurso de Pedro Araújo Lima na Assembleia


Constituinte de 1823 faz parte do debate sobre o artigo do
projeto de constituição que definia quem eram os brasilei-
ros. O artigo foi objeto de uma discussão acalorada, pois,
no momento em que o deputado faz o seu discurso, não só a
palavra cidadão assumia um novo significado, mas a própria
ideia de brasileiro era nova. Entretanto, na edição de 1823 do
Diccionario da lingua portugueza, as mudanças apontadas
por Araújo Lima permaneciam ignoradas. O cidadão era “o
homem que goza dos direitos de alguma cidade, das isenções,
e privilégios, que se contêm no seu foral, posturas”, ou “o
vizinho de alguma cidade”, ou, ainda, o “homem bom”. No
Novo diccionario critico e etymologico da lingua portugueza,
de 1836, cidadão é alguém “apto para os cargos municipais”.
Todas estas definições pertencem a um quadro de referência
de fundo hierárquico, que, aos olhos de Araújo Lima, havia
ficado para trás. Não por acaso, na sequência da sua fala, ele
insistia que “deve ser extensa esta denominação [de cidadão] a
todos os indivíduos, porque seria odioso que conservássemos
uma diferença, que traz sua origem de tempos tão bárbaros”.2
Entre o final do período colonial e as décadas iniciais do Brasil
independente, o vocábulo cidadão sofreu transformações no seu
significado cujo resultado foi o estabelecimento de um conceito
novo. Sob alguns aspectos, essas transformações são tributárias
dos rumos assumidos pelo conceito de cidadão na história euro-
peia. Isso implicou a passagem de uma compreensão hierárquica
da cidadania para um entendimento igualitário. Nesse sentido,
a história do conceito de cidadão no Brasil, entre 1750 e 1850,
acompanha e atualiza a sua trajetória no mundo europeu. No
entanto, a separação que o constituinte estabelece entre dois
tempos claramente distintos precisa ser matizada. Para que a
natureza das transformações mencionadas possa ser apreendida
na sua complexidade, é preciso associá-la a dois outros aspectos
sem os quais o quadro permaneceria incompleto e simplificado.
Referimo-nos ao papel que o conceito irá desempenhar na defi-
nição das fronteiras de pertencimento à coletividade em uma
sociedade marcada, por um lado, pela sua condição colonial e,
por outro, pela permanência de relações escravistas.
Quando Araújo Lima fazia o seu discurso na Constituinte,
ele punha em evidência uma associação muito comum no Antigo
Regime português. A condição de cidadão e a de vizinho não raro
se confundiam. Em ambos os casos, estava em jogo um estatuto
jurídico-político que definia o pertencimento de um indivíduo
à comunidade local em termos de privilégios, deveres, isenções,
costumes. Portanto, ainda que nos diferentes dicionários o
cidadão e o vizinho apareçam vinculados à habitação mais ou
menos permanente em um lugar, esta é apenas uma parte da
definição. A vizinhança, como pode se ler em Ordenaçoens do
Senhor Rey D. Manuel (1514-1521), estava associada ao gozo de
“privilégios e liberdades de vizinho, quanto a ser isento de pagar

42
os direitos reais, de que, por bem de alguns forais e privilégios
dados a alguns lugares, os vizinhos são isentos”.3 O estatuto
do vizinho é inseparável de um “direito de vizinhança”,4 que
distingue uma comunidade local como um corpo privilegiado.
As prerrogativas do vizinho se referem em primeiro lugar a esse
corpo privilegiado e é como membro do grupo, e não a título
subjetivo, que o indivíduo desfruta delas.
Segundo o jurista português Pascoal José de Melo Freire,
no livro Instituições de direito civil português, de 1789, entre a
cidadania e a vizinhança seria possível estabelecer uma diferença,
já que os direitos do cidadão teriam um alcance maior do que os
referentes aos vizinhos, fundamentalmente dirigidos ao âmbito
municipal.5 A despeito dessa provável diferença, importa salien-
tar que os dois estatutos remetem a uma mesma lógica concreta
e particularista, segundo a qual a integração do indivíduo a res
publica é concebida em termos de uma diferença baseada em
privilégios. De maneira geral, o estatuto de cidadão se refere a
um conjunto de prerrogativas, que está vinculado aos cargos
da administração local, principalmente da câmara. O cidadão
é o “homem bom”, que se distingue dos demais por uma posi-
ção superior, garantida pela hereditariedade ou alcançada por
mecanismos de enobrecimento. Assim, a definição de cidadão,
embora não se confunda com a de nobreza, se aproxima dela,
identificando-se a uma série de marcas que distinguem aqueles
que buscavam ser reconhecidos como os “principais da terra”
ou os “homens principais”.6 Na sociedade colonial, o estatuto
de cidadão tem, entre outros pré-requisitos, a ideia da “pureza
de sangue” – ou seja, a ausência da mácula que contamina a
descendência das “raças infectas”, judeus, mouros, negros,
indígenas, ciganos7 – e a inexistência de qualquer “defeito mecâ-
nico” – isto é, de qualquer vínculo com atividades manuais, os
ofícios mecânicos.8 Nesse contexto, cidadão e povo são noções
diversas. Em uma representação de 1748 do Senado da Câmara
da cidade do Rio de Janeiro sobre a procissão de Corpus Christi,
os vereadores cobram a presença dos “Cidadãos”, da “Religião”

43
(ordens religiosas), das “Irmandades e Confrarias” e do “mais
Povo”.9 O povo aqui não se confunde com o conjunto dos cida-
dãos, mas designa os ofícios mecânicos (artesãos), que exerciam
função simbólica relevante nas cerimônias régias e que haviam
tido participação política por um certo período de tempo em
algumas cidades do reino e da América portuguesa.10
Na verdade, essas noções de cidadão e de vizinho têm que ser
compreendidas no horizonte das concepções corporativas que
marcaram as representações teológico-políticas da sociedade e
da monarquia portuguesa no Antigo Regime. Para tais concep-
ções, a hierarquia social era pensada como a expressão de uma
ordem mais geral do mundo, na qual cada coisa encontra a sua
razão de ser no desempenho de uma função e na ocupação de
um lugar que lhe são próprios. O todo é o resultado da arti-
culação entre as suas diferentes partes, cada uma cumprindo
o papel que lhe compete em vista do bem comum. Em termos
das relações políticas, a perspectiva corporativa impõe o reco-
nhecimento de uma organização da vida coletiva que precede
a vontade humana e que requer a preservação da autonomia e
da diferença dos corpos sociais em relação à sua cabeça, o rei.
Este último tem como principal incumbência a preservação da
harmonia do todo através da realização da justiça, entendida
como a atribuição a cada qual daquilo que lhe compete.11 Esta
compreensão de origem medieval será reatualizada na época
moderna com a difusão no mundo português das doutrinas
políticas corporativas da Segunda Escolástica, cuja influência se
manteve na América portuguesa até o final do século 18, resis-
tindo aos esforços de reforma empreendidos pela Ilustração. Para
os autores da Segunda Escolástica, a ordem política apresenta um
duplo caráter: ela decorre de uma ordenação natural das coisas
que escapa ao arbítrio humano; simultaneamente, é pactuada,
porque resulta da transferência ao governante de direitos que
residiam originariamente nos corpos da República.12
Nesse quadro, a ideia de constituição remete, em primeiro
lugar, a uma estruturação natural da sociedade, antes de ser o

44
resultado de um ato de vontade dos cidadãos de um Estado. A
precedência da constituição e do direito sobre a livre escolha dos
membros da coletividade está na base do estatuto do cidadão.
Este último é inseparável da ideia de que a comunidade política
é produto da articulação entre corpos sociais que são por natu-
reza diversos e desiguais em direitos. Por isso, a constituição é a
condição dos pactos dos quais os cidadãos tomam parte, e não
o oposto.13 Da mesma forma, as palavras nação e pátria não
eram portadoras de um significado político vinculado à ideia
de direitos à cidadania. A pátria, em geral, designava o lugar
de origem dentro dos domínios portugueses.14 Nação, quando
compreendida em termos políticos, era, antes de tudo, a “nação
portuguesa”, sinônimo de Estado português e, portanto, expres-
são de uma unidade que se imaginava resultante da submissão e
da fidelidade de todos os súditos à monarquia.15
No contexto do Antigo Regime português e da sociedade
colonial das décadas iniciais do século 18, o estatuto de cidadão
apresenta-se como o resultado de uma concepção partilhada do
poder, segundo a qual o exercício do governo local é compreen-
dido como uma prerrogativa de alguns corpos sociais e indivíduos
e, ao mesmo tempo, como um serviço cuja merecida contrapar-
tida deveria ser a ampliação dos privilégios. Sendo assim, não é
de se espantar que, em 1655, os oficiais da câmara da cidade de
São Luiz do Maranhão demandassem junto ao rei os mesmos
privilégios que distinguiam os cidadãos da cidade do Porto desde
1490. Tampouco surpreende que o rei atendesse à reivindicação,
alegando que o fazia em retribuição aos serviços prestados pelos
súditos fiéis e na expectativa de que a fidelidade já demonstrada
viesse a se renovar.16 Como o estatuto do cidadão pressupõe o
reconhecimento prévio de uma determinada ordem da vida social,
toda disputa em torno dele se dá dentro de limites muito precisos,
que são aqueles colocados pela própria compreensão hierárquica
e, por extensão corporativa e estamental, da sociedade. É possível
disputar sobre os critérios de acesso aos privilégios que definem
a cidadania, mas não sobre a sua condição privilegiada.

45
Ao longo do século 18, esse quadro tendeu a se transformar
como resultado da incorporação de uma linguagem referida a
um novo sujeito do direito: o indivíduo. Tal fato foi o produto
da difusão de duas retóricas nem sempre convergentes, ainda
que ambas tributárias do jusnaturalismo moderno: a retórica
igualitária dos direitos subjetivos e a da soberania popular. A
repercussão no ultramar do ideário das Luzes, da independência
das colônias inglesas e da Revolução Francesa foi a principal
responsável pela assimilação dessas novas retóricas. No entanto,
a acolhida das novas ideias no mundo português se deu dentro
de limites muito claros, buscando conciliar a preservação de
estruturas sociais e políticas do Antigo Regime e um programa
de reformas modernizantes inspirado no racionalismo do século
18. Além disso, a vigilância e a censura sobre as noções que se
chocavam com as instituições da monarquia e a proibição das
tipografias na América portuguesa impunham limites à circula-
ção da palavra impressa. A disseminação de novas ideias ocorria
sobretudo por intermédio de alguns impressos, manuscritos e pela
comunicação oral e não sob a forma de uma reflexão de cunho
mais sistemático e livresco. A formação de um novo conceito
de cidadania será essencialmente clandestina e ganhará a luz do
dia com as vestes da sedição, nos movimentos de contestação
da ordem colonial que ocorrerão nos anos finais do século 18 e
início do 19. Portadores de projetos políticos distintos e, muitas
vezes, marcados por diferenças internas, alguns desses movi-
mentos trouxeram a público noções que punham em questão a
ordem do Antigo Regime e, com ela, a concepção hierárquica e
estamental da cidadania.
A Conjuração Baiana de 1798 é, nesse sentido, exemplar.
Expressão da crise do Antigo Regime, ela foi um episódio cujo
alcance permaneceu pontual e localizado. No entanto, permite
vislumbrar desdobramentos possíveis da assimilação na socie-
dade escravista de uma ideia de cidadão como titular de direitos
de caráter igualitário. Projeto abortado de revolução contra o
que se designava como o “despotismo” e a “tirania” da Coroa

46
portuguesa, a Conjuração Baiana de 1798 tem entre seus traços
distintivos a assimilação do ideário da Revolução Francesa.
Como proclamavam os pasquins afixados nas ruas da cidade
de Salvador, seria chegada a hora dos “homens cidadãos”, dos
“povos curvados e abandonados pelo rei” levantarem “a sagrada
bandeira da liberdade”.17 Ao incorporar o ideário francês, o
discurso dos conjurados atingia as bases estamentais da socie-
dade colonial e as concepções de direito que lhe eram próprias
e, ao mesmo tempo, transformava a igualdade de direitos em
condição de pertencimento à comunidade política. Na nova
ordem, as distinções de estatuto entre os homens livres seriam
abolidas e o governo seria a expressão da soberania do povo.
Como observava outro pasquim dirigido ao “poderoso e magní-
fico povo bahinense republicano”, “será maldito da sociedade
nacional todo aquele ou aquela que for inconfidente à liberdade
coerente ao homem”.18 Dessa forma, em movimento similar ao
que se verificava contemporaneamente na América do Norte e
na Europa, a legitimidade do exercício do poder se transferia do
trono para o povo. Compreendido agora como um conjunto de
indivíduos juridicamente iguais, o povo deixava de ser uma das
ordens da sociedade para se transformar no titular dos direitos
de soberania: é o povo que, na linguagem dos pasquins, “quer”,
“manda”, “ordena” fazer uma revolução, abrir os portos, elevar
a remuneração dos soldados, criar um “novo código”, punir os
oponentes do movimento.19 Se a nação no vocabulário político
dos insurgentes continua a ser sinônimo de Estado, ela já não se
identifica mais com a unidade da Coroa, mas remete à vontade
coletiva do povo.20
Na Conjuração Baiana, a noção de “liberdade coerente ao
homem” e a concepção abstrata de direito que lhe é correspon-
dente encontraram expressão em uma expectativa de eliminação
das distinções fundadas nas diferenças de cor. Como antecipava
um pasquim: “Cada um soldado é cidadão, mormente os homens
pardos e pretos que vivem escornados e abandonados, todos
serão iguais, não haverá diferença, só haverá liberdade, igualdade

47
e fraternidade.”21 A abolição da escravidão não figurava entre
as reivindicações dos revoltosos, apesar de ter sido vocalizada
por alguns deles. Ainda assim, a bandeira de uma cidadania
que eliminasse as diferenças de cor trazia consigo um potencial
de questionamento não só das desigualdades estamentais e dos
estatutos de pureza de sangue a elas associados, mas também da
própria ordem escravocrata. Essa ameaça, no final do século 18,
ganhava contornos ainda mais nítidos em função das notícias
da rebelião de escravos iniciada em 1791 na colônia espanhola
de São Domingos.
A possibilidade – entrevista na Conjuração Baiana e que se
reproduzirá em outras ocasiões – de que o ideal de uma cidadania
igualitária se disseminasse como uma demanda pela abolição
das discriminações de cor e, em último caso, como um grande
conflito social imprimirá uma tônica particular aos debates
políticos sobre o conceito de cidadão que se inauguram à época
da independência. As controvérsias em torno da amplitude dos
direitos de cidadania ocorridas na Constituinte brasileira de 1823
são um momento importante desse debate.
A discussão na Constituinte de 1823 está marcada pela neces-
sidade que então se colocava de fundar um novo corpo político
após a separação de Portugal. Dessa forma, a definição sobre o
cidadão brasileiro implicou a determinação das fronteiras que
separariam este último dos não cidadãos, isto é, de todos aqueles
que não participariam do “pacto social” sobre o qual se fundava
o Estado nascente. A linguagem é, em grandes linhas, a do
jusnaturalismo moderno. A sociedade é criada pelos indivíduos
tendo em vista a preservação dos seus direitos. Serão cidadãos
aqueles que, por meio do seu consentimento, estabelecerem um
poder comum para a sua própria segurança e conservação. No
entanto, a determinação da natureza do pacto social brasileiro
se deparava com duas grandes dificuldades. A instituição da
nova ordem se dava a partir de uma secessão no interior da
antiga “família portuguesa”: como diferenciar os cidadãos do
Estado que se formava em relação aos membros do antigo reino

48
português? Ou ainda: dado que até então todos eram igualmente
membros da “nação portuguesa”, como distinguir a partir de
agora brasileiros e portugueses? Além disso, uma outra questão
se colocava: quais dos membros da sociedade brasileira poderiam
ser considerados parte efetiva do pacto social?22 Nas palavras
de um dos constituintes: “Por ser heterogênea a (...) população”
brasileira, seria preciso diferenciar aqueles que poderiam reivin-
dicar o título de cidadão dos demais, evitando “confundir as
diferentes condições de homens por uma inexata enunciação”.23
Às vésperas do rompimento com Portugal, “brasileiro” não
indicava uma identidade política diferenciada. Com efeito, “até
o início de 1822, nascer brasileiro significava ‘ser português’;
com isto designava-se apenas o local de nascimento dentro da
nação portuguesa”.24 A palavra podia ser igualmente utilizada
para apontar os que, nascidos em Portugal, tinham residência
fixa ou interesses mais permanentes no mundo americano.25
Em fevereiro de 1822, Hipólito José da Costa, no seu jornal
Correio Braziliense, ainda acreditava ser necessário diferenciar
“brasiliense” (“o natural do Brasil”), “brasileiro” (“o português
europeu ou o estrangeiro que lá vai negociar ou estabelecer-
-se”) e “brasilianos” (“os indígenas do país”).26 Em 1823, nos
debates da Constituinte, brasileiros e portugueses passam a
ser concebidos como membros de nações diferentes. Em parte,
essa distinção se baseará no critério da naturalidade, já que os
cidadãos brasileiros se definirão, entre outras coisas, pelo fato
de terem nascido no território da nova nação. Mais do que o
critério da naturalidade, porém, será a adesão, tácita ou explícita,
à causa da independência, isto é, o engajamento no novo pacto
social, que, para os constituintes, estabelecerá a diferença entre
brasileiros e portugueses. Ponto de vista semelhante fora defen-
dido por Frei Caneca, em texto do início de 1822, publicado no
ano seguinte. Segundo ele, “pátria não é tanto o lugar em que
nascemos, quanto aquele em que fazemos uma parte e somos
membros da sociedade”.27 Seria preciso distinguir a “pátria de
lugar” (“efeito do puro acaso”) da “pátria de direito” (“ação

49
do nosso arbítrio”).28 Esta, e não aquela, seria a verdadeira
“pátria do cidadão”. De modo similar, dizia José Martiniano de
Alencar na Constituinte, “é cidadão brasileiro tanto o nascido em
Portugal como o nascido no Brasil, contanto que entrassem de
princípio no novo pacto social”.29 No momento que se desenham
os contornos do novo Estado, o que define o cidadão brasileiro
é, em primeiro lugar, o seu consentimento.
O fato de que o português seja concebido como não cidadão,
ainda que o converta em estrangeiro, não afeta o seu estatuto
jurídico de homem livre. O mesmo já não se pode dizer quando
foi preciso definir “para dentro”, e não mais “para fora”, as
fronteiras da cidadania, separando as diferentes “condições de
gente” que compunham a sociedade. Isso implicou uma tenta-
tiva de estabelecer uma distinção entre os que pactuariam para
a formação da sociedade civil e os que não possuiriam títulos
jurídicos para participar dela, os negros escravos e os índios. Daí
a necessidade de diferenciar entre o brasileiro e o cidadão brasi-
leiro. Nos termos do deputado Francisco Carneiro de Campos:

O nosso intento é determinar quais são os cidadãos brasileiros e,


estando entendido quem eles são, os outros poder-se-iam chamar sim-
plesmente brasileiros, a serem nascidos no país, como escravos crioulos,
os indígenas etc., mas a Constituição não se encarregou desses, porque
não entram no pacto social: vivem no meio da sociedade civil, mas não
fazem parte dela.30

Os índios estariam excluídos, porque, embora livres e nascidos


no país, sequer reconheceriam a existência da nação brasileira e
de suas autoridades, vivendo inclusive em “guerra aberta” contra
elas.31 Já os escravos, nascidos ou não no Brasil, a sua situação é
outra, uma vez que o seu estatuto de não cidadão será pensado
com referência a uma condição jurídica precisa: o fato de que não
são donos de si mesmos, o seu estado de privação de liberdade.
Os escravos, observava Francisco Gê Acaiaba Montezuma, em
relação “ao exercício de direitos na sociedade, são considerados

50
coisa, ou propriedade de alguém”. O seu estatuto jurídico os
tornava incapazes de serem membros da sociedade civil brasileira,
pois, como insistia Montezuma, “este nome só pode competir,
e só tem competido a homens livres”.32 Dessa forma, se esta-
belece uma clara demarcação entre cidadãos – que por serem
livres podem reivindicar a “qualidade de pessoa civil”33 – e os
escravos – que, mesmo quando naturais do país, não são livres
e não são senhores da sua própria vontade, não podem tomar
parte do pacto social, “não passam de habitantes no Brasil”.34
Havia, no entanto, uma condição adicional de homens em
relação à qual o estatuto de cidadão precisou ser definido. Uma
condição ambígua, já que livre, natural do país, habitante do seu
território, integrada à ordem política do Império e, no entanto,
marcada pela condição servil: os escravos libertos. O lugar dos
libertos no interior da sociedade política colocava no centro do
debate a questão sobre a amplitude tolerável de uma noção de
direitos de cidadania baseada na ideia de uma “liberdade coerente
ao homem”. Em outros termos, dada a continuidade da ordem
escravista, qual o grau aceitável de abstração do conceito de
cidadão em relação às desigualdades que organizavam a vida
social? Ou ainda: em uma sociedade marcada por um passado
recente de institucionalização de privilégios de sangue e de cor
e na qual condições sociais se entrelaçam a matrizes raciais,35
até que ponto seria possível estender a igualdade jurídica entre
seus membros?
Nas outras sociedades escravistas da América, a tentativa
de conciliar continuidade da escravidão africana e concepção
universalista da cidadania levou a uma exclusão dos negros e seus
descendentes, fossem eles cativos ou livres, baseada em critérios
de desigualdade racial.36 Com isso, se buscava preservar não só
a escravidão, fundando-a sobre bases raciais, mas também as
premissas individualistas do conceito de cidadão, tornando a
universalidade dos direitos compatível com a sua simultânea restri-
ção. No século 19, portanto, “raça e cidadania são duas noções
construídas de forma interligada no continente americano”.37

51
No Brasil, essa associação não se verificou. A noção de raça só
ganhará difusão mais ampla na segunda metade do século, em
um momento posterior à definição das bases constitucionais da
cidadania. Ao mesmo tempo, a ordem constitucional inaugurada
em 1824 será mais inclusiva do que no restante das sociedades
escravistas da América.
Na Assembleia Constituinte de 1823, foi consenso que o
liberto deveria ser um cidadão do Império, já que, nas pala-
vras de um deputado, com a liberdade se “restabelece o direito
natural”.38 A divergência ficou por conta de saber se os direitos
de cidadão – mais precisamente, os direitos civis – deveriam
ser estendidos aos libertos africanos e brasileiros ou exclusi-
vamente aos nascidos no país. A Constituição outorgada de
1824 consagrou o ponto de vista mais restritivo e, além disso,
impediu que os libertos participassem de uma das etapas do
processo eleitoral. De qualquer forma, a solução oferecida pela
Carta permanecia comparativamente inclusiva. A defesa de uma
concepção extensiva da cidadania partia do reconhecimento
de que “haveria grandes ciúmes, e desgostos, se uma classe de
brasileiros acreditasse que este título se queria fazer privativo a
outra classe”.39 Por isso, dizia Venâncio Henriques de Resende
na Constituinte, seria preciso “neutralizar (...) o veneno” da
“aversão” entre libertos e brancos, assegurando que os primeiros
“tivessem o interesse em ligar-se a nós pelos foros de cidadão”.40
A natureza inclusiva do conceito de cidadania consagrado na
Constituição foi, portanto, o resultado da tentativa de preser-
vação do escravismo. Até certo ponto, ela respondia a uma
expectativa de equiparação jurídica e de igualdade de direitos
independente da cor expressos “em todas as ocasiões em que a
participação popular se fez presente no processo de independên-
cia política”.41 Dado o peso numérico da população de negros e
mestiços livres (algo em torno de 30% do total da população),
ignorar essa demanda era, como reconheciam os próprios cons-
tituintes, pôr em risco a ordem escravocrata.42 Assim, na questão

52
dos direitos dos libertos – e, por extensão, daqueles que eram
brasileiros, livres, porém negros ou mestiços –, o conceito de cida-
dão se viu estreitamente associado ao problema da “segurança
pública”.43 Este será um tema do debate político na década de
1830, no qual adversários aludem ao risco da desordem social,
mobilizando argumentos simétricos: ou a implementação efetiva
da igualdade de direitos civis estabelecida na Constituição seria
capaz de conter a insatisfação com as desigualdades de cor e de
raça entre os livres; ou o apego excessivo a uma noção abstrata
de cidadania seria uma incitação à revolta de negros e mestiços
contra os brancos. A simetria dos pontos de vista remete, no
entanto, a um mesmo pano de fundo: a tensão entre o novo
conceito de cidadania consagrado na Constituição e a continui-
dade das relações escravistas.
No debate político dos anos de 1830 e 1840, duas respostas
opostas e polares buscam fazer face a essa tensão. Em linhas
gerais, elas foram expressão do antagonismo entre liberais e
conservadores e encontraram na Constituição de 1824 o quadro
de referência da sua argumentação.44 Desde os debates da
Constituinte, a discussão sobre a igualdade jurídica se restrin-
gia à esfera dos direitos civis. Como observava Pedro Araújo
Lima, “a palavra cidadão não induz igualdade de direitos”.45 A
Constituição outorgada consagrará esse ponto de vista. Segundo
Pimenta Bueno, principal comentador da Constituição imperial,
os direitos políticos seriam um atributo daqueles que, além de
membros da “sociedade civil ou nacional”, participariam da
“ordem ou sociedade política”.46 No debate político brasileiro do
século 19, a diferenciação entre cidadãos portadores de direitos
políticos e aqueles apenas titulares de direitos civis será elaborada
a partir da distinção entre cidadão ativo e passivo, originária
do constitucionalismo francês. O primeiro, nos diz Pimenta
Bueno, desfruta de uma liberdade relativa a “tudo quanto não
lhe é proibido pela lei”; já o segundo possui a liberdade política
que “decreta essa lei”.47 O exercício dos direitos políticos, diz o

53
mesmo autor, seria “uma importante função social”, antes de
ser “um direito individual ou natural”. Para possuir tais direitos,
seria preciso “oferecer à sociedade certas garantias indispensá-
veis”,48 sob a forma de “capacidades e habilitações”.49
Na Constituição de 1824, a diferenciação entre cidadão ativo
e passivo foi instituída com base em critérios censitários, que
também estabeleciam diferentes graus no exercício dos direitos
políticos. Nos debates políticos dos anos de 1830 e 1840, o prin-
cípio que sustentava os critérios censitários da Constituição – a
ideia de que a propriedade é a condição para o exercício indepen-
dente dos direitos políticos – não será, em linhas gerais, questio-
nado. No entanto, duas alternativas opostas serão derivadas do
texto constitucional, visando conciliar escravidão e cidadania.
Do ponto de vista dos liberais, as qualificações censitárias não
negariam a igualdade fundamental dos cidadãos perante a lei,
apenas estabeleceriam distinções fundadas em critérios adquiri-
dos, e não herdados. Nesse sentido, o acesso aos direitos políticos
dependeria apenas dos talentos individuais. A escravidão esta-
ria justificada pelo direito de propriedade e não por quaisquer
diferenças qualitativas entre os indivíduos. Não haveria razão,
portanto, para a existência de categorias intermediárias entre os
cidadãos e os escravos.50 Como afirmava um jornal radical dos
anos 1830, “entre nós não há mais do que povo e escravos; e
quem não é povo já se sabe que é cativo”.51 Entre os conserva-
dores – “partido” que se torna hegemônico a partir da década
de 1840 –, prevalecerá a ideia de que seria preciso demarcar
as diferenças entre os membros da sociedade, atualizando e
legitimando na nova ordem as prerrogativas que haviam orga-
nizado o Antigo Regime português. A preservação da ordem
escravocrata se torna sinônima da conservação e reprodução de
hierarquias tradicionais, que podiam ser lidas agora à luz das
exigências censitárias do texto constitucional. Dessa forma, a
associação entre cidadania, liberdade e propriedade se torna a
referência das desigualdades que deveriam existir entre livres
e proprietários (os cidadãos ativos), livres e não proprietários

54
(os cidadãos passivos) e não livres e não proprietários (os não
cidadãos).52

NOTAS
1
Diários da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa de 1823 (DAC),
24/09/1823, p. 106, disponível em <http://imagem.camara.gov.br/constituin-
te_principal.asp>, acesso em jan. 2009.
2
Ibidem.
3
Ordenaçoens do Senhor Rey D. Manuel, Coimbra, Real Imprensa da Universi-
dade, livro II, título XXI, 1797, disponível em <http://www.iuslusitaniae.fcsh.
unl.pt/verobra.php?id_obra=72>, acesso em jan. 2009.
4
Pascoal José de Melo Freire, Instituições de direito civil português (1789), em
Boletim do Ministério da Justiça, livro II, título II, § 7, 1967, disponível em
<http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verobra.php?id_obra=76>, acesso em jan.
2009.
5
Cf. Ibidem, § 5.
6
Maria Fernanda Bicalho, O que significava ser cidadão nos tempos coloniais?,
em Martha Abreu, Rachel Soihet, Ensino de história: conceitos, temáticas e
metodologia, Rio de Janeiro, Casa da Palavra, FAPERJ, 2003, p. 146.
7
Maria Luiza Tucci Carneiro, Preconceito racial em Portugal e Brasil Colônia,
3. ed., São Paulo, Perspectiva, 2005.
8
Bicalho, O que significava ser cidadão nos tempos coloniais?, p. 143.
9
Apud Beatriz Catão Cruz Santos, O corpo de Deus na América: a procissão de
Corpus Christi nas cidades da América portuguesa – século XVIII, São Paulo,
Annablume, 2005, p. 114.
10
Stuart Schwartz, Ceremonies of Public Authority in a Colonial Capital. The
King’s Processions and the Hierarquies of Power in the Seventeenth Century
Salvador, Anais de História de Além-Mar, n. 5, 2004; Santos, O corpo de Deus
na América.
11
António Manuel Hespanha, Ângela Barreto Xavier, A representação da sociedade
e do poder, em António Manuel Hespanha (coord.), O Antigo Regime (1620-
1807), Lisboa, Estampa, [s.d.], p. 122-125.
12
António Manuel Hespanha, Qu’est-ce que la constitution dans les monarchies
ibériques de l’époque moderne?, 2000, em THEMIS, disponível em <http://www.
hespanha.net/papers/2000_o-que-e-a-constituicao.pdf>, acesso em 28 nov. 2006;
Hespanha, Xavier, A representação da sociedade e do poder, p. 127-133.
13
Hespanha, Xavier, A representação da sociedade e do poder, p. 122-125;
Hespanha, Qu’est-ce que la constitution...

55
14
Márcia R. Berbel, Pátria e patriotas em Pernambuco (1817-1822): nação, identi-
dade e vocabulário político, em István Jancsó (org.), Brasil: formação do Estado
e da Nação, São Paulo, FAPESP, Hucitec, Ijuí, Unijuí, 2003, p. 348.
15
István Jancsó, João Paulo G. Pimenta, Peças de um mosaico (ou apontamentos
para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira), em C. G. Mota
(org.), Viagem incompleta: a experiência brasileira (1500-2000), São Paulo,
SENAC, 2000, v. 1; José Carlos Chiaramonte, Metamorfoses do conceito de
nação durante os séculos XVII e XVIII, em István Jancsó (org.), Brasil: formação
do Estado e da Nação, São Paulo, FAPESP, Hucitec, Ijuí, Unijuí, 2003.
16
Cf. Alvará de 15 de Abril de 1655, em José Justino de Andrade e Silva (org.),
Collecção chronologica da legislação portugueza. 1648-1656, Lisboa, Imprensa
de J. J. A. Silva, 1856, p. 226, disponível em <http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.
pt/verobra.php?id_obra=63>, acesso em jan. 2009.
17
Katia M. de Queirós Mattoso, A presença francesa no movimento democrático
baiano de 1798, Salvador, Itapuã, 1969, p. 149.
18
Ibidem, p. 155-156.
19
Ibidem, p. 158-159.
20
Jancsó, Pimenta, Peças de um mosaico, p. 147.
21
Mattoso, A presença francesa no movimento democrático..., p. 157.
22
Cf. Andrea Slemian, Seriam todos cidadãos? Os impasses na construção da ci-
dadania nos primórdios do constitucionalismo no Brasil (1823-1824), em István
Jancsó (org.), Independência: história e historiografia, São Paulo, Hucitec, 2005.
23
DAC, 23/09/1823, p. 90.
24
Gladys Sabina Ribeiro, A liberdade em construção: identidade nacional e conflitos
antilusitanos no Primeiro Reinado, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 2002, p.
46.
25
Ibidem.
26
Apud João Paulo G. Pimenta, Portugueses, americanos, brasileiros: identidades
políticas na crise do Antigo Regime luso-americano, Almanack Brasiliense, v.
3, p. 78-79, 2006, disponível em <http://www.almanack.usp.br/PDFS/3/03_ar-
tigos_2.pdf>, acesso em jan. 2009.
27
Joaquim do Amor Divino Caneca, Dissertação sobre o que se deve entender por
pátria do cidadão e deveres deste para com a mesma pátria (1823), em Evaldo
Cabral de Mello (org.), Frei Joaquim do Amor Divino Caneca, São Paulo, Editora
34, 2001, p. 98.
28
Ibidem, p. 80.
29
DAC, 26/09/1823, p. 118.
30
Ibidem, p. 106.
31
Cf. DAC, 23/09/1823, p. 90.
32
Ibidem.

56
33
Ibidem, p. 106.
34
Ibidem, p. 135.
35
Cf. Ilmar Rohloff de Mattos, O tempo saquarema, Brasília, INL, São Paulo,
Hucitec, 1987, p. 113; Keila Grinberg, O fiador dos brasileiros: cidadania, es-
cravidão e direito civil no tempo de Antonio Pereira Rebouças, Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 2002, p. 184.
36
Cf. Hebe Maria Mattos, Escravidão e cidadania no Brasil monárquico, Rio de
Janeiro, Jorge Zahar, 2000; Márcia R. Berbel, Rafael de Bivar Marquese, A
ausência da raça: escravidão, cidadania e ideologia pró-escravista nas Cortes
de Lisboa e na Assembleia Constituinte do Rio de Janeiro. 1821-1824, 2006,
disponível em <http://www.estadonacional.usp.br/noticias/eventos/A_ausen-
cia_da_raca-Berbel_Marquese.pdf>, acesso em 5 nov. 2006.
37
Mattos, Escravidão e cidadania no Brasil monárquico, p. 13.
38
DAC, 30/09/1823, p. 136.
39
DAC, 23/09/1823, p. 93.
40
DAC, 30/09/1823, p. 139.
41
Mattos, Escravidão e cidadania no Brasil monárquico, p. 22.
42
Mattos, Escravidão e cidadania no Brasil monárquico; Rafael de Bivar Marque-
se, A dinâmica da escravidão no Brasil. Resistência, tráfico negreiro e alforrias,
séculos XVII a XIX, Novos Estudos, n. 74, 2006; Berbel, Marquese, A ausência
da raça.
43
DAC, 30/09/2006, p. 136, 138.
44
Cf. Mattos, Escravidão e cidadania no Brasil monárquico, p. 33-35.
45
DAC, 24/09/1823, p. 106.
46
José Antônio Pimenta Bueno, Direito público brasileiro e análise da Constituição
do Império (1857), em Eduardo Kugelmas (org.), Marquês de São Vicente, São
Paulo, Editora 34, 2002, p. 526.
47
Ibidem, p. 550.
48
Ibidem, p. 553.
49
Ibidem, p. 551.
50
Mattos, Escravidão e cidadania no Brasil monárquico; Grinberg, O fiador dos
brasileiros.
51
Apud Marcello Basile, O Império em construção: projetos de Brasil e ação
política na Corte regencial, Tese (Doutorado em História Social), Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004, p. 165.
52
Marcia de Almeida Gonçalves, Ilmar Rohloff de Mattos, O Império da boa
sociedade: consolidação do Estado imperial brasileiro, São Paulo, Atual, 1991,
p. 17-18.

57
REFERÊNCIAS
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
CONSTÂNCIO, Francisco Solano. Novo diccionario crítico e etymologico
da lingua portuguesa. Paris: Angelo Francisco Carneiro Junior; Tipografia
de Casimir, 1836.
COSTA, Pietro. Cittadinanza. Bari: Laterza, 2005a.
COSTA, Pietro. La cittadinanza: un “geschichtlicher Grundbegriff”? In:
CHIGNOLA, Sandro; DUSO, Giuseppe (Org.). Sui concetti giuridici e
politici della costituzione dell’Europa. Milão: Franco Angeli, 2005b.
NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. A independência do Brasil e as
ideias e práticas de cidadania. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (Org.).
De Cabral a Pedro I: aspectos da colonização portuguesa no Brasil. Porto:
Universidade Portucalense Infante D. Henrique, 2001.
NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e constitucionais: a
cultura política da independência (1820-1822). Rio de Janeiro: Revan/
FAPERJ, 2003.
PASQUINS sediciosos da Conjuração Baiana. Reproduzidos. In: MATTO-
SO, Katia M. de Queirós. A presença francesa no movimento democrático
baiano de 1798. Salvador: Itapuã, 1969.
SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da lingua portugueza. Lisboa: M.
P. de Lacerdo, 1823.
VILLALTA, Luiz Carlos. 1789-1808: o império luso-brasileiro e os Brasis.
São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

58
LÚCIA M. BASTOS PEREIRA DAS NEVES
GUILHERME PEREIRA DAS NEVES

CONSTITUIÇÃO

Se a análise de um conceito consiste em distinguir “as diver-


sas significações que estão vivas na língua, mas que obtêm uma
determinação mais restrita em cada contexto do discurso”,1
compreender o significado do termo constituição, no mundo
luso-brasileiro da segunda metade do século 18 em diante,
pressupõe um recuo temporal até a Restauração de 1640,
momento de refundação da monarquia portuguesa.2 Rompido
o pacto estabelecido nas Cortes de Tomar de 1580 com Felipe
II de Espanha, coube à nação portuguesa em 1640 o direito
de aclamar um novo soberano, ato insurrecional legitimado
pela reunião em Cortes, nas quais o duque de Bragança viu-se
aclamado como D. João IV (1640-1656).3 Realização máxima
de uma reflexão sobre o poder e a sociedade com profundas
raízes nos séculos anteriores,4 a que não eram estranhas certas
vertentes da Segunda Escolástica dos jesuítas, que apoiaram o
movimento, a Restauração de 1640 surge, portanto, associada
à linguagem de um constitucionalismo antigo.
Ao longo do século seguinte, tal concepção não desapareceu,
mas passou a sofrer a concorrência de outra. Numa Europa de
monarquias compósitas,5 de que o Sacro Império Romano de
Nação Germânica constituía o modelo por excelência,6 após
a superação das guerras religiosas a partir da Paz de Vestfália
(1648), a sobrevivência no tabuleiro de poder europeu tornou-
-se cada vez mais dependente de um certo reforço do poder
do rei e de uma certa uniformização do território, a partir do
centro, às custas das liberdades de cada corpo, na periferia. Ao
mesmo tempo, à antiga ideia de pacto, substituíam-se agora os
imprescritíveis direitos do soberano, até mesmo diante da Igreja,
sob a forma de uma razão de Estado,7 vazada em argumentos e
atitudes bem distantes dos princípios cristãos. Esta foi a lingua-
gem do absolutismo, que, ao reservar para o soberano o domínio
da política, relegou as questões morais para o foro íntimo do
indivíduo, estabelecendo uma divisão entre homem e súdito.8
No caso português, a crise constitucional que conduziu D.
Pedro II ao trono, em 1683, a reunião das últimas cortes em
1697, o esplendor barroco do reinado de D. João V (1706-1750),
graças ao ouro do Brasil, e, mais que tudo, a longa governação
de Sebastião José de Carvalho e Melo (1750-1777), marquês de
Pombal, com a publicação da Dedução cronológica e analítica,9
marcaram as principais etapas da assimilação dessa linguagem
absolutista. Não foram capazes, contudo, de sufocar a tradição
do antigo constitucionalismo, embalsamado nas lembranças de
1640.
Sob esse aspecto, a melhor evidência provém do embate em
torno da proposta de um novo código de leis, travada no emble-
mático ano de 1789, entre o jurista Pascoal de Melo Freire e o
canonista António Ribeiro dos Santos. Este, com certeza, não
podia ser acusado de “monarcômaco” e de “propagador de
doutrinas populares, republicanas e sediciosas contra os prínci-
pes”, como ocorreu com seu adversário. Na realidade, a evolução
do pensamento político de Ribeiro dos Santos mostra que, se ele
afastou-se crescentemente da órbita pombalina de um “absolu-
tismo racionalista”, cujos fundamentos fora buscar em Grócio e
Pufendorf, por intermédio de Heinecke, o fez em direção a uma
concepção tradicionalista, escorada na história constitucional do
reino, em busca de um novo “ordenamento político e jurídico
pela via das Cortes tradicionais”. Segundo ele, a

60
primeira, principal e mais importante obrigação de um ministro,
que o príncipe põe à testa do governo, é manter a primeira lei consti-
tucional e fundamental de toda a sociedade civil, isto é, a da segurança
pessoal e real dos cidadãos, que foi o porquê os homens se ajuntaram
em sociedade.10

Ao contrário, para Melo Freire, o “reino não veio ao rei por


eleição e vontade dos povos, mas por conquista e sucessão”.
Nesse sentido, “o pacto social é um ente suposto, que só existe
na cabeça e imaginação alambicada de alguns filósofos”, não
havendo, entre o súdito e o monarca, senão a “eventual ‘humilde
e modesta representação’ do primeiro ao segundo”. E acrescen-
tava: “A História nos ensina, e agora experimenta a França,
quão funestíssima foi em todos os tempos a liberdade de pensar
e de escrever, assim a respeito das matérias da religião, como do
Estado”, ideias que espalhadas “pela gente do povo” são capazes
“por si só (...) de causar em poucos anos revolução, assim na
religião, como na constituição da cidade”.11
Essas duas concepções permaneceram ativas e concorrentes
praticamente ao longo de toda a regência do futuro D. João VI
(1816-1826), iniciada em 1792, após o colapso mental de D.
Maria I. Enquanto indivíduos como Rodrigo de Souza Coutinho
(1755-1812)12 e J. J. de Azeredo Coutinho (1742-1821)13 davam
continuidade ao impulso pombalino com propostas de reformas,
setores da nobreza portuguesa e de outros segmentos mani-
festavam o receio do governo a “mero arbítrio” sobre o povo
português, que trazia de volta o fantasma do despotismo minis-
terial.14 Num período de turbulência internacional, o resultado
foi uma situação de grande instabilidade política no reino, para
a qual a instalação da Corte na América, em 1808, trouxe novos
motivos de descontentamento. Durante as invasões francesas
de 1807-1811, D. João chegou a ser considerado traidor, sendo
tanto solicitada a sua deposição, para que assumisse o príncipe
D. Pedro, quanto a concessão da coroa a um nobre francês,
designado por Napoleão.15 Mais cedo, nos penhascos das Minas

61
Gerais, o cônego Vieira da Silva revelava, em seus depoimentos
à devassa da chamada Inconfidência Mineira (1789), os ecos
que trazia das concepções constitucionalistas que assimilara da
leitura do conde de Ericeira (1632-1690); enquanto o ouvidor
Tomás Antônio Gonzaga, igualmente implicado no movimento,
ostentava em sua bagagem intelectual um Tratado de direito
natural de inspiração pombalina e absolutista.16
Em contraste com a riqueza que se escondia, assim, durante
esse longo período, na ideia de constituição como “a unidade
política de um povo”,17 a pobre tradição lexicográfica luso-brasi-
leira pouco revela. No início do século 18, a palavra significava
“um estatuto, uma regra”,18 na perspectiva de um ordenamento
político, pautado nas leis fundamentais do reino, resultado das
disposições legais e da prática do direito consuetudinário, corpo-
rificadas na “antiga constituição”, que deviam ser respeitadas
pelo soberano. Em 1789, o dicionarista Antonio de Moraes Silva,
ao reformular o vocabulário do padre Bluteau (1712-1727), não
se afastou da visão de “estatuto, lei, regra civil ou eclesiástica”,
embora acrescentasse a de “compleição do corpo”, que, além
dos aspectos médicos, remetia para a concepção tradicional de
uma sociedade corporativa, típica do Antigo Regime, mantendo
tais significados nas edições seguintes, até sua morte, em 1824.19
Tais indicações sugerem, no entanto, com toda a probabili-
dade, uma outra aplicação do vocábulo, em geral no plural, de
uso mais largo e difundido na época. Constituições era termo
corrente nos meios eclesiásticos para designar o conjunto de leis,
preceitos e disposições que regulavam uma instituição como seu
estatuto orgânico. Como exemplo, servem as várias constituições
diocesanas e, na América portuguesa, as célebres Constituições
primeiras do Arcebispado da Bahia, aprovadas em 1707 por
monsenhor Monteiro da Vide, em um sínodo em Salvador, e
que permaneceram a principal legislação eclesiástica do país até
meados do século 19.20
Em fins do século 18 ou princípios do 19, com as revoluções
atlânticas – a Independência dos Estados Unidos e a Revolução

62
Francesa –, a essas acepções, veio juntar-se um outro sentido,
que tendeu a se impor como o do constitucionalismo moderno.
Constituição passou então a significar a garantia de direitos e
deveres, estabelecidos por um novo pacto social, elaborado entre
o rei e o indivíduo, símbolo da política moderna, na perspectiva
de François-Xavier Guerra.21 A constituição assumiu, assim, a
forma de “um sistema fechado de normas” que designa uma
unidade que não existe concretamente, mas apenas de maneira
ideal.22
Não obstante, se “os conceitos são criações de nosso espí-
rito, com cuja ajuda compreendemos o mundo que sai ao nosso
encontro na experiência”,23 essa nova concepção de constituição
somente ingressou no mundo luso-brasileiro após a eclosão do
movimento do Porto de 1820, que repercutiu no Brasil, nos
inícios de 1821. A espantosa quantidade de periódicos, folhetos
políticos e panfletos postos em circulação nesse momento possi-
bilitou novas discussões e inaugurou práticas políticas até então
desconhecidas no Brasil. Mais do que obras de cunho teórico,
foram esses escritos que acabaram por introduzir “palavras da
moda”, como constituição, com novos significados, que anuncia-
vam princípios, definiam direitos e deveres do cidadão. Somente
a constituição, como instrumento de um ideário político, era vista
como capaz de assegurar a possibilidade de triunfo das práticas
liberais.24 Símbolo da Regeneração vintista iniciada em 1820,
a palavra exprimia o anseio político de todos os membros das
elites política e intelectual, tanto do Brasil quanto de Portugal.
“Cortes e Constituição” foi o “grito dos portugueses”, que ecoou
por todo o mundo luso e retumbou em terras brasileiras.25 E essa
Constituição, a lei fundamental de um povo, devia ser elaborada
por uma assembleia composta pelos representantes da nação – no
caso, em Portugal, as Cortes Gerais e Extraordinárias de 1821
e, no Brasil, a Assembleia Legislativa e Constituinte de 1823.
A essa altura, o conceito de constituição inspirava-se em pelo
menos quatro vertentes significativas: a de um constituciona-
lismo histórico; a de Montesquieu; a de Benjamin Constant; e a

63
de uma versão democrática. A ideia da “excelente Constituição
antiga de Portugal”, segundo expressão de Hipólito da Costa,26
foi retomada a partir das discussões do último quartel do
século 18, definindo-se constituição enquanto um conjunto de
instituições, criadas por direito comum no passado, mas que,
corrompidas pelo tempo, exigiam reformas que as conduzis-
sem de volta à antiga ordem, como os astros realizavam suas
revoluções nas órbitas que lhes eram próprias. Defensor dessa
abordagem em 1821, por exemplo, foi o ouvidor-geral do Rio
Grande do Sul, José Antônio de Miranda. Embora admitindo a
construção de um novo pacto social como “o apoio da autori-
dade pública, o penhor da felicidade, a prosperidade geral e o
paládio da liberdade de todos os Cidadãos”, que se traduzisse
em uma constituição, ele não deixava de retomar a ideia do
“antigo pacto social e aliança”, estabelecido pelo fundador da
monarquia com o povo português e novamente ratificado por
D. João VI e seu filho D. Pedro, no dia 26 de fevereiro de 1821,
quando juraram a futura Constituição portuguesa.27 Da mesma
forma, nas discussões da Assembleia Constituinte de 1823, José
Joaquim Carneiro de Campos, um dos mais distintos juristas da
época e um dos redatores da Constituição brasileira de 1824,
defendia a ideia de que os poderes que os deputados receberam
para elaborar a Constituição não eram “absolutos e ilimitados”,
mas “restritos à forma de governo que já temos e que nos deve
servir de base para a Constituição”, uma vez que tais poderes já
estavam “distribuídos e depositados pela nação em outras vias,
muito tempo antes da nossa reunião e instalação”.28
Pautada nas ideias de Montesquieu, ou seja, no princípio da
separação dos poderes, mas também influenciada pela perspec-
tiva de um constitucionalismo histórico nos moldes de Edmund
Burke, encontrava-se a visão de José da Silva Lisboa (1756-1835),
futuro Visconde de Cairu, redator de inúmeros folhetos e perió-
dicos da época. Ele concebia a constituição como “a ata das leis
fundamentais do Estado, em que se declara o sistema geral do
governo sobre a divisão e harmonia dos três poderes”29 e em que

64
também se definiam “os direitos dos cidadãos e regulamentos dos
deputados do povo para o corpo legislativo”.30 Aproximava-se,
assim, muito mais da ideia de uma carta constitucional, como
aquela que o conde de Palmela propusera a D. João em dezembro
de 1820.31 Algo semelhante pregava um folheto anônimo inti-
tulado Diálogo instrutivo em que se explicam os fundamentos
de uma Constituição. Este a considerava uma lei fundamental,
que regulava a forma pela qual uma nação devia ser governada
e estabelecia “máximas gerais, a que todos deviam satisfazer”.32
A terceira vertente apropriava-se das propostas de Benjamin
Constant e defendia a teoria das garantias individuais, em
oposição à visão de Rousseau e da interpretação jacobina de
uma vontade geral.33 A Constituição explicada encontra-se expli-
citamente no primeiro folheto político anunciado pela Gazeta
do Rio de Janeiro (1821), publicado sem autoria, cujo objetivo
era esclarecer os leitores, em especial os das camadas mais
baixas, quanto ao conceito de constituição e quanto ao de um
governo organizado sobre bases constitucionais. Mencionando
Benjamin Constant, logo no início, como um dos esteios de seu
pensamento, afirmava que “a Constituição não era um ato de
hostilidade, mas um ato de união que determina as relações
recíprocas do monarca e do povo, sancionando os meios de se
defenderem e de se [apoiarem] e de se felicitarem mutuamente”.34
Finalmente, a vertente democrática. Uma vez que, no Rio
de Janeiro, a palavra constituição, como “tantas outras, se tem
tornado quase ininteligível, à força de acepções de que a maior
parte são absolutamente diferentes, e algumas até contraditó-
rias”, os redatores do Revérbero Constitucional Fluminense
– Januário da Cunha Barbosa e Joaquim Gonçalves Ledo – deci-
diram determinar o sentido que devia ser dado à palavra. Para
eles, a constituição de um povo não era uma “lei, nem um código
de leis”, porque “o estabelecimento de uma lei ou de um código
de leis supõe necessariamente alguma coisa anterior”. Assim, era
necessário que o povo existisse e estivesse constituído, antes de se
organizar; que os homens já tivessem se tornado “cidadãos por

65
um pacto antes de se fazerem súditos pelo estabelecimento da
lei”. Era necessário que uma convenção permanente e imutável
assegurasse “a todos os membros do corpo político o exercício
de seus direitos essenciais”.35 Conscientes da falta de unidade
do povo brasileiro, os redatores temiam a imposição de uma lei
geral que não resultasse do próprio povo. Logo, a constituição
devia garantir uma lei justa, porém, flexível, capaz de impedir a
supremacia do poder do monarca sobre os demais. De maneira
ousada para o meio em que viviam, incluíam, por conseguinte,
em suas reflexões, alguns princípios de teor democrático.
Em Pernambuco, a mesma linha de pensamento estava
presente em Frei Caneca, que definia a constituição, em 1824,
como “a ata do pacto social que fazem entre si os homens,
quando se ajuntam e associam para viver em reunião ou socie-
dade”, de modo a esclarecer as relações em que ficavam os que
governam e os governados. Tais relações nada mais eram que os
direitos e deveres que deviam defender e sustentar “a vida dos
cidadãos, a sua liberdade e a sua propriedade”.36
Mais do que algum princípio democrático abstrato, no
entanto, tais formulações ecoam, talvez, aquelas que John Locke
(1632-1704) publicou no contexto da crise inglesa de 1688-
1689. Conhecido no mundo luso-brasileiro pelo menos desde
1734, quando foi citado por Martinho de Pina e de Proença,
em Apontamentos para a educação de um menino nobre, e
tendo posteriormente servido, em 1746, de base para muitas
das reflexões de Luís Antônio Vernei em o Verdadeiro método
de estudar,37 não é difícil supor que também algo de os Dois
tratados sobre o governo do autor inglês tenha alcançado a elite
intelectual no Brasil da Independência. É verdade que, na época,
os “grandes autores foram mal lidos, mal entendidos, mal cita-
dos, truncados, falsificados”.38 Apesar disso, não deixa de haver
uma forte semelhança entre a constituição de que falam Ledo,
Januário e Caneca e a concepção de Locke de que somente “ao
povo é facultado designar a forma da sociedade política”,39 por
meio daquele acordo ou pacto que, de maneira pouco definida,

66
distingue a condição natural da condição política e que “torna
possível governar por consentimento”.40
Além disso, embora sem chegar a constituir vertentes em
termos de concepção, importa registrar dois outros tipos de
escritos característicos desse momento. Em primeiro lugar, os
satíricos. É o caso do Dicionário corcundativo, que, assumindo
o ponto de vista dos corcundas, ou anticonstitucionais, definia a
constituição como um “plano de desordem, inventado pelo espí-
rito de seita na sua efervescência, e que o povo, não sei porque
aplaude”. Achava-a desprezível por ter “começado debaixo
para cima”, pois somente “os reis e seus ministros têm o poder,
recebido do Céu, de mudar o governo, a que os outros homens
devem obedecer cegamente, como um rebanho ao seu pastor”.41
Ao seu lado, porém, circulavam escritos intitulados “orações
constitucionais”, que sugerem o pequeno grau de secularização e
de amadurecimento político da maior parte da população. Sirva
de exemplo este “Padre Nosso”:

Constituição portuguesa, que estás em nossos corações, santificado


seja o teu nome, venha a nós o teu regime constitucional (...) não nos
deixes cair em tentação dos velhos abusos, mas livra-nos destes males,
assim como do despotismo ministerial, ou anarquia popular. Amém.42

Nesses escritos de circunstâncias, a palavra constituição


aparece frequentemente em expressões como constituição polí-
tica, constituição da monarquia, constituição geral da nação
e constituição brasílica. O procedimento de recorrer a essas
qualificações parece indicar que o termo ainda não estava intei-
ramente assimilado, em sua acepção política, como o documento
fundamental, o único fiador das garantias da vida política e
social. Não menos abundante mostrava-se a adjetivação posi-
tiva que a Constituição merecia: santa, sagrada, liberal, sábia,
pacífica, feliz.43 O jornal A Malagueta afirmava que o Brasil
tinha jurado “cooperar em tudo e por tudo para a grande obra
da santa Constituição!”.44 Outros escritos davam vivas à religião

67
e à feliz Constituição. No primeiro aniversário da Regeneração
política, a oração de ação de graças proferida pelo cônego da
Real Capela Francisco da Mãe dos Homens Carvalho, no Rio
de Janeiro, sintetizou o poder mágico que a ideia de constituição
parecia assumir nesse momento:

Constituição é a defesa do Estado, o apoio do trono, a escala da


grandeza, a melhor herança do povo, o nível da perfeita igualdade
cívica. Constituição é o código universal da sociedade, a regra infalível
da justiça, o Evangelho político da Nação, o compêndio de todas as
obrigações, o manual cotidiano do cidadão.45

Em Portugal, a sensibilidade não se mostrava diversa:

Vem, pois, ó Santa Constituição, abençoada filha do Céu, único


e verdadeiro remédio para o Reino de Portugal, Brasil e Algarves (...)
desce do Céu, onde resides, vem fazer as delícias e a felicidade duma
Nação, que teme a Deus, e que é objeto da sua singular predileção.46

Paralelamente, além do caso de O Constitucional (1822), o adje-


tivo, ao identificar uma opção política, associou-se ao título de
inúmeros periódicos: Diário Constitucional (1822), Compilador
Constitucional (1822), A Verdade Constitucional (1822), O
Justiceiro Constitucional (1835), A Trombeta Constitucional
(1840), entre outros.
Todas essas acepções do conceito de constituição e suas
conotações, que as discussões da época trouxeram à luz, esti-
veram presentes, de algum modo, na elaboração da primeira
Constituição brasileira. Após a dissolução da Assembleia
Constituinte, em novembro de 1823, o imperador Pedro I justi-
ficou a medida de força por encontrar-se a pátria em perigo e,
ao mesmo tempo, prometeu uma carta “duplicadamente mais
liberal”. Elaborada pelo Conselho de Estado, presidido pelo
próprio imperador e formado por seis ministros e mais quatro

68
membros, todos brasileiros natos, a Constituição foi então
outorgada em 25 de março de 1824.47
A Carta de 1824 não diferia muito da proposta discutida
pelos constituintes na Assembleia, antes de sua dissolução.
Continha, no entanto, uma diferença fundamental: não emanava
da representação da nação, mas era concedida pela magnanimi-
dade do soberano, o que a aproximava da Carta Constitucional
francesa de Luís XVIII (França, 1814). Apesar disso, embora
não tivesse sido submetida à aprovação de uma Assembleia
Nacional, havia pelo menos alcançado a aprovação das Câmaras
Municipais, sendo considerada até mesmo como “assaz liberal”,
por alguns livros de História do Brasil, escritos em meados do
século 19, como os de José Inácio de Abreu e Lima (1845) e de
Caetano Lopes de Moura (1860). No entanto, outras influên-
cias revelaram-se de maior peso, como a Constituição francesa
de 1791 e a espanhola de 1812. De modo semelhante a esta
última, a brasileira não começava declarando direitos,48 como
ficara estabelecido pelas revoluções do final do século 18, mas
sim definindo o Império, com seu território, governo, dinastia
e cidadãos. Em seu cerne, admitia um governo monárquico
hereditário, constitucional e representativo (Artigo 3º), em que
vigorava a separação dos poderes por força de uma nítida influ-
ência de Montesquieu, embora incluísse um quarto – o poder
moderador, “chave mestra de toda a organização política”, que,
em teoria, se inspirava em Benjamin Constant. Apesar de não
fazer menção explícita à questão da soberania, ficava claro, por
meio do Artigo 11, que esta era partilhada entre o soberano e
a Assembleia Geral, o que indicava seu caráter moderado. Na
perspectiva do liberalismo francês, encontrava-se ainda, no
Artigo 179, um esboço de garantia dos direitos civis e políticos
dos cidadãos, com base na liberdade, na segurança individual
e na propriedade. Da mesma forma, a Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão de 1789 ecoava no Artigo 16, em
que se atribuía à Constituição a garantia dos direitos civis, e no
Artigo 9º, em que a harmonia dos poderes políticos aparecia

69
como o meio mais seguro para fazer efetivas as garantias que a
Constituição oferecia. Apesar disso, os cidadãos distinguiam-se,
do ponto de vista dos direitos políticos, por meio da adoção
de um critério censitário para os eleitores, o que a diferenciava
tanto da Constituição espanhola de Cádiz (Espanha, 1812),
quanto da primeira Constituição portuguesa (Portugal, 1822).
Por outro lado, se a Constituição abolia os privilégios, mantinha
intocada a questão da escravidão, embora a ela fizesse menções
indiretas ao incluir os ingênuos ou libertos nascidos no Brasil
como cidadãos, excluindo-os, porém, da definição de eleitores.
Como sinal das permanências do Antigo Regime e elemento
fundamental de identidade, a religião católica, como também
estabelecia a Constituição espanhola, continuava sendo a religião
do Império, ainda que, diferentemente, se permitisse o exercício
privado de outras religiões.49
Pouco dessa variedade encontrou expressão nos dicionários
da época. Na quinta edição, revista e ampliada, daquele de
Moraes Silva, em 1844, introduziu-se no verbete constituição
a ideia de “lei que determina a forma de governo do reino,
ou República; os direitos e deveres, e relações dos súditos, e
regentes, ou governantes”, fazendo uma alusão à Constituição
da Inglaterra.50 Na edição seguinte, de 1858, outra mudança
no conceito inclui o sentido de um “corpo de leis fundamentais
que constituem o governo de um povo”.51 Somente na edição
de 1878, porém, faz-se menção à “carta fundamental da nação
portuguesa outorgada por D. Pedro IV”.52 No trabalho de Luiz
Maria da Silva Pinto, Diccionário da lingua brasileira, o termo
aparece registrado de modo semelhante ao conceito antigo,
existindo apenas um curioso detalhe em relação ao termo
constitucional, que, para o autor, era o que “nasce do vício da
constituição”. Outros dicionários que circularam no Brasil do
Oitocentos, elaborados por portugueses, como os de Francisco
Solano Constâncio e de Eduardo de Faria, anotaram mais cedo
o sentido moderno de constituição: o primeiro, na edição de
1836, refere-se à Constituição dos Estados Unidos, da França,

70
do Brasil e de Portugal, mas não indica qualquer distinção entre
carta constitucional – outorgada – e constituição promulgada.
Já Eduardo de Faria, em sua segunda edição, datada de 1850-
1853, acrescentou que o termo designava o código político de
um Estado, citando como exemplo a Constituição de 1822,
promulgada pelas Cortes de Lisboa, e que diferenciava da Carta
Constitucional da monarquia portuguesa, decretada em 1826.
Em nenhum exemplo, encontra-se, contudo, uma definição
mais afim ao pensamento liberal, como aquela registrada no
Diccionario nacional o gran diccionario clásico de la lengua
española (1846-1847), de Ramón Joaquín Domínguez; ou seja,
“teoria e prática do governo das nações; reunião e força regula-
dora de suas leis fundamentais vigentes: a natureza, a essência,
o todo de um estado”.
Apesar das críticas dos políticos mais radicais, tanto pela
forma como foi imposta quanto por seu caráter liberal mode-
rado e pela centralização administrativa que pressupunha, a
Constituição outorgada de 1824 acabou considerada como
código sagrado da nação brasileira. Com pequenas alterações
– o Ato Adicional de 1834 e mudanças no processo eleitoral –,
permaneceu em vigor durante todo o período imperial e somente
foi substituída pela primeira Constituição republicana, em 1891.
Ao longo desse período, o debate a seu respeito, que envol-
veu juristas, deputados e senadores, não questionou a própria
Constituição, mas, sim, o seu caráter fortemente unitário e a
prática, que propiciava, de respaldar medidas autoritárias. Não
obstante, foi sobretudo a questão do unitarismo e do federalismo
que colocou, diversas vezes, em lados opostos, conservadores
e liberais, desde Frei Caneca e a Confederação do Equador de
1824.53 No outro extremo, ainda em 1870, Tavares Bastos, natu-
ral da província nordestina de Alagoas, manifestava-se a favor da
“escola revolucionária de 1831”, que procurara descentralizar o
governo e confederar as províncias por meio do Ato Adicional;
criticava a política da ordem e moderação implementada após
1840; e advertia os possíveis leitores de sua obra A província

71
de que “os que desejam a eternidade para as constituições e o
progresso lento dos povos, os que são indulgentes, moderados,
conciliadores, escusam folhear esse livro”.54 Em compensação,
apenas três anos antes, sob a invocação da Santíssima Trindade,
o desembargador Joaquim Rodrigues de Sousa publicava em São
Luís do Maranhão uma obra intitulada Análise e comentário
da Constituição política do Império do Brasil, em que criticava
veementemente o Ato Adicional de 1834 e ainda continuava a
“definir constituição política, ou do corpo político, pelos mesmos
termos por que define-se constituição humana, ou do corpo
humano”.55 De maneira semelhante, mas com a antecedência de
uma década, Pimenta Bueno, o autor do mais importante traba-
lho sobre a Constituição do Império, intitulado Direito público
e análise da Constituição do Império, continuava a defender o
modelo aprovado em 1824. Segundo ele, “nosso direito público
é a sábia constituição que rege o Império; cada um de seus belos
artigos é um complexo resumido dos mais luminosos princí-
pios de direito público filosófico ou racional”. Continuava, no
entanto, em 1857, a relacionar a Constituição com a religião:
“Graças à Providência, temos uma Constituição, que já é uma
das mais antigas do mundo, sábia, liberal e protetora (...) Ela
será sempre, como já tem sido, nossa arca de aliança em nossas
tempestades e perigos; é e será sempre a base firme de nosso
poder.”56
Como resultado, a tomar-se a concepção de Marcel Gauchet,
de que, mais do que um conjunto de crenças, a religião “é
primordialmente uma organização do mundo humano-social,
que assume a forma de uma ordem que mantém os homens
juntos por força de uma ordem exterior, anterior e superior à
vontade deles”, encontra-se talvez, após a incursão acima, uma
explicação plausível para a dificuldade demonstrada por portu-
gueses e brasileiros em lidar com a democracia, esse “poder dos
homens tomando o lugar da ordem definida pelos deuses ou
desejada por Deus”. Afinal, se “a democracia é a expressão por
excelência da saída da religião”, o que a história do conceito de

72
constituição no mundo luso-brasileiro evidencia, considerada em
sua longa duração, de 1640 ou 1750 a 1850 ou pouco depois, é
justamente a falta de “ruptura com [esse] modo de estruturação
religiosa a que esteve sujeito o conjunto das sociedades humanas
anteriores à nossa”. Ou seja, a prevalência da heteronomia do
universo tradicional sobre a autonomia do mundo moderno.57

NOTAS
1
Hans-Georg Gadamer, Acotaciones hermenéuticas, tradução de Ana Agud e
Rafael de Agapito, Madrid, Trotta, 2002, p. 248.
2
Cf. Ana Isabel Buescu, Um mito das origens da nacionalidade: o milagre de
Ourique, em Francisco Bethencourt, Diogo Ramada Curto (org.), A memória
da nação, Lisboa, Livraria Sá da Costa Editora, 1991, p. 49-69; A. Oliveira
Marques, Lamego, em Joel Serrão (dir.), Dicionário de História de Portugal,
Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1965, v. 2, p. 653-654.
3
Cf. Eduardo d’Oliveira França, Portugal na época da Restauração, São Paulo,
Hucitec, 1997; Luís Reis Torgal, Ideologia política e teoria do Estado na Res-
tauração, Coimbra, Biblioteca Geral da Universidade, 1982, 2 v.
4
Patrick Boucheron, Tournez les yeux pour admirer, vous qui exercez le pouvoir,
celle qui est peinte ici. La fresque du Bon Gouvernement d’Ambrogio Lorenzetti,
Annales HSS, Paris, v. 60, n. 6, p. 1137-1199, nov.-déc. 2005.
5
J. H. A. Elliot, Europe of Composite Monarchies, Past and Present, Oxford, n.
137, p. 48-71, nov. 1992.
6
Fred E. Schrader, L’Allemagne avant l’État-nation: le corps germanique 1648-
1806, Paris, Presses Universitaires de France, 1998.
7
Friedrich Meinecke, L’idée de la raison d’État dans l’histoire des temps modernes,
tradução de Maurice Chevallier, Genève, Droz, 1973.
8
Reinhart Koselleck, Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo
burguês, tradução de Luciana Villas-Boas Castelo-Branco, Rio de Janeiro,
EdUERJ, Contraponto, 1999, p. 26-39, em especial.
9
Joseph de Seabra da Silva, Deducção chronologica e analytica, Lisboa, Officina
de Miguel Manescal da Costa, 1767.
10
Apud José Esteves Pereira, O pensamento político em Portugal no século XVIII:
António Ribeiro dos Santos, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1983,
p. 244-250.
11
Apud Pereira, O pensamento político em Portugal no século XVIII, p. 291-
300. Cf. também Paulo Ferreira Cunha, Temas e perfis da filosofia do Direito
luso-brasileiro, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2000; Guilherme
Pereira Neves, Guardar mais silêncio do que falar: Azeredo Coutinho, Ribeiro
dos Santos e a escravidão, em José Luís Cardoso (coord.), A economia política

73
e os dilemas do império luso-brasileiro (1790-1822), Lisboa, Comissão Nacio-
nal para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001, p. 13-62;
António Manuel Hespanha, Guiando a mão invisível: direitos, estados e lei no
liberalismo monárquico português, Coimbra, Almedina, 2004, p. 34-43; António
Pedro Mesquita, O pensamento político português no século XIX: uma síntese
histórico-crítica, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2006, p. 26-38.
12
Cf. Andrée Mansuy-Diniz Silva, Portrait d’un homme d’État: D. Rodrigo de
Souza Coutinho, Comte de Linhares, 1755-1812, Paris, Centre Culturel Calouste
Gulbenkian, 2002-2006, 2 v.
13
Cf. Sérgio Buarque de Holanda, Apresentação, em J. J. da Cunha Azeredo Cou-
tinho, Obras econômicas, São Paulo, Nacional, 1966, p. 13-53.
14
Marquês de Alorna, Memórias (1803), Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, Códice
807, manuscrito.
15
Lúcia Maria Bastos P. das Neves, As representações napoleônicas em Portugal:
imaginário e política, Tese de Titular, Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2002, mimeo-
grafado.
16
Luiz Carlos Villalta, Reformismo ilustrado, censura e práticas de leitura: usos
do livro na América portuguesa, Tese (Doutorado em História), Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo,
1999; Rodrigo Elias Caetano Gomes, As letras da tradição: o Tratado de Direito
Natural de Tomás Antônio Gonzaga e as linguagens políticas na época pomba-
lina (1750-1772), Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 2004.
17
Carl Schmitt, Teoría de la Constitución (1928), tradução de Francisco Ayala,
Madrid, Alianza, 2006, p. 29.
18
Raphael Bluteau, Vocabulario portuguez & latino, Lisboa, Officina de Pascoal
Silva, 1712, v. 2, p. 485.
19
Antonio de Moraes Silva, Diccionario da lingua portuguesa, 2. ed., Lisboa,
Typographia de M. P. de Lacerdina, 1813, 2 v. (edição fac-similada, Rio de
Janeiro, 1922); Antonio de Moraes Silva, Diccionario da lingua portuguesa, 3.
ed., Lisboa, Typographia de M. P. de Lacerda, 1823, 2 v.
20
Avelino de Jesus Costa, Constituições, em Joel Serrão (dir.), Dicionário de His-
tória de Portugal, Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1963, v. 1, p. 682-683; Mario
Soares, Constituição/Constituição de 1822, em Joel Serrão (dir.), Dicionário de
História de Portugal, Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1963, v. 1, p. 672-677; José
Pedro Paiva, Constituições Diocesanas, v. 2, em Carlos Moreira Azevedo (dir.),
Dicionário de História Religiosa de Portugal, Lisboa, Círculo de Leitores, 2000,
p. 9-15; Guilherme Pereira Neves, Constituições sinodais, em Ronaldo Vainfas
(dir.), Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808), Rio de Janeiro, Objetiva,
2000, p. 145-146; Hespanha, Guiando a mão invisível, p. 68.
21
François-Xavier Guerra, A nação moderna: nova legitimidade e velhas identida-
des, em István Jancsó (org.), Brasil: formação do Estado e da Nação, São Paulo,
Hucitec, FAPESP, Ijuí, Unijuí, 2003, p. 53-60.

74
22
Schmitt, Teoría de la Constitución, p. 29.
23
Gadamer, Acotaciones hermenéuticas, p. 128.
24
Mesquita, O pensamento político português no século XIX, p. 53-57.
25
Instruções para intelligencia dos Povos nas próximas eleições de Eleitores e
Deputados de Cortes, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1822, v. 1.
26
Correio Braziliense, Londres, n. 9, 1809.
27
José Antonio de Miranda, Memória constitucional e política sobre o estado
presente de Portugal e do Brasil, Rio de Janeiro, Impressão Régia, 1821, p. 43,
88.
28
Brasil (1823), Diário da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império
do Brasil, Brasília, Senado Federal, 1973, v. 3, p. 474-475, edição fac-similada.
29
José da Silva Lisboa, Roteiro Brazilico ou coleção de princípios e documentos
de direito político em série de números, Rio de Janeiro, Tipografia Nacional,
1822, VIII, 1.
30
Ibidem, XI, 1.
31
Mesquita, O pensamento político português no século XIX, p. 48-49.
32
Diálogo instrutivo em que se explica os fundamentos de huma Constituição e a
divisão das autoridades que a formão e executão. Por hum Patriota Amigo da
Razão, Rio de Janeiro, Tipografia Real, 1821, p. 3.
33
Cf. Arno Wehling, Pensamento político e elaboração constitucional no Brasil:
estudo de história das ideias políticas, Rio de Janeiro, Instituto Histórico e Ge-
ográfico Brasileiro, 1994, p. 11-13.
34
Constituição explicada, Rio de Janeiro, Impressão Régia, 1821, p. 1. Cf. também
Hespanha, Guiando a mão invisível, p. 161-175.
35
Revérbero Constitucional Fluminense, Rio de Janeiro, n. 4, 18 jun. 1822.
36
Joaquim do Amor Divino Caneca, Frei Joaquim do Amor Divino Caneca, orga-
nização e introdução de Evaldo Cabral de Mello, São Paulo, Editora 34, 2001,
p. 559-560.
37
António Salgado Júnior, Prefácios, v. 3-4, em Luís António Verney, Verdadeiro
método de estudar (1746), Lisboa, Sá da Costa, 1950-1952.
38
Hespanha, Guiando a mão invisível, p. 14.
39
John Locke, Dois tratados sobre o governo, introdução de Peter Laslett, tradução
de Julio Fischer, São Paulo, Martins Fontes, 2005, p. 513.
40
Peter Laslett, Introdução, em John Locke, Dois tratados sobre o governo, tra-
dução de Julio Fischer, São Paulo, Martins Fontes, 2005, p. 163.
41
J. Lopes de Lima, Dicionário corcundativo ou explicação das frases dos corcun-
das, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1821, p. 5-6.
42
Regeneração constitucional ou guerra e disputa entre os corcundas e os consti-
tucionais, Rio de Janeiro, Impressão Régia, 1821, p. 20.

75
43
Lúcia Maria Bastos P. das Neves, Corcundas e constitucionais: a cultura política
da Independência, 1821-1823, Rio de Janeiro, Revan, 2003, p. 151.
44
A Malagueta, Rio de Janeiro, n. 1, dez. 1821.
45
Ibidem, p. 18.
46
Soares, Constituição/Constituição de 1822, p. 674.
47
Neves, Corcundas e constitucionais, p. 413.
48
José María Portillo Valdés, Constitución, em Javier Fernández Sebastián, Juan
Francisco Fuentes, (dir.), Diccionario político y social del siglo XIX español,
Madrid, Alianza, 2002, p. 189.
49
Adriano Campanhole, Hilton Lobo Campanhole (comp.), Todas as Constituições
do Brasil, São Paulo, Atlas, 1976, p. 523-573.
50
Antonio de Moraes Silva, Diccionario da lingua portuguesa, edição aperfeiçoada
e acrescentada de muitos artigos novos e etmologias, 5. ed., Lisboa, Typographia
de Antonio José da Rocha, 1844, v. 1, p. 499.
51
Antonio de Moraes Silva, Diccionario da lingua portuguesa, edição melhorada
e muito acrescentada pelo desembargador Agostinho de Mendonça Falcão, 6.
ed., Lisboa, Typographia de Antonio José da Rocha, 1858, v. 1, p. 531.
52
Antonio de Moraes Silva, Diccionario da lingua portuguesa, edição melhorada
e muito accrescentada com grande numero de termos novos usados no Brasil
e no Portuguez da Índia, 7. ed., Lisboa, Typographia de Joaquim Germano de
Sousa Neves, 1878, v. 1, p. 437-438.
53
Evaldo Cabral de Mello, A outra Independência: o federalismo pernambucano
de 1817 a 1824, São Paulo, Editora 34, 2004.
54
Tavares Bastos, A província: estudo sobre a descentralização no Brasil (1870),
São Paulo, Nacional, Brasília, INL, 1975, p. 9.
55
Joaquim Rodrigues de Sousa, Analyse e Commentario da Constituição Política
do Império do Brazil ou Theoria e Pratica do Governo Constitucional Brazileiro,
São Luís do Maranhão, [s.n.], 1867, XVI-XXI, XXV-XXVI e 1-3.
56
José Antonio Pimenta Bueno, Direito público brasileiro e análise da Constituição
do Império (1857), Rio de Janeiro, Ministério da Justiça e Negócios Internos,
Serviço de Documentação, 1958, IV e 560.
57
Marcel Gauchet, Un monde désenchanté?, Paris, Les Éditions de l’Atelier; Éditions
Ouvrières, 2004, p. 183.

76
REFERÊNCIAS
CARVALHO, Francisco da Mãe dos Homens. Oração de acção de Gra-
ças que na solemnidade do Anniversario do dia 24 de Agosto… recitou e
offerece... Rio de Janeiro, Impressão Régia, 1821.
CONSTÂNCIO, Francisco Solano. Novo Diccionario crítico e etymologico
da lingua portuguesa, comprehendendo: 1º Todos os vocábulos da língua
usual, dos quaes muitos se não encontrão em Bluteau e Moraes, com a
definição clara e concisa de cada hum e suas diversas accepções, justificadas
por citações dos autores clássicos quando o caso o pede; – 2º os termos
os mais usados de sciencias, artes e officios; – 3º os mais notáveis termos
antigos e obsoletos cujo conhecimento he indispensável para a intelligencia
dos documentos antigos; – 4º a synonimia, com reflexões criticas; – 5º a
etymologia analytica de todos os termos radicaes, expondo o sentido ri-
goroso das raízes primitivas latinas, gregas etc. – 6º os prefixos, suffixos,
desinências ou terminações analysadas e explicadas; – 7º observações sobre
a orthografia e pronuncia dos vocábulos. Precedida de huma introdução
grammatical por... Paris: Angelo Francisco Carneiro Editor; Typographia
de Casimir, 1836.
DOMINGUEZ, Ramón Joaquín. Diccionario nacional o Gran Diccionario
Clásico de la Lengua Española. Madrid: R. J. Dominguez, 1846-1847.
ESPANHA (1812). Constitución de Cádiz de 1812. Disponível em: <http://
club.telepolis.com/erbez/1812.htm>. Acesso em: 20 fev. 2006.
FARIA, Eduardo de (1850-1853). Novo Diccionario da Lingua Portugueza.
O mais exacto e completo de todos os Diccionarios até hoje publicados.
Contendo todas as vozes da Lingua Portugueza, antigas ou modernas, com
as suas varias accepções, accentuadas conforme e melhor pronuncia, e com
a indicação de termos antiquados Latinos, Barbaros ou viciosos. Os nomes
próprios da geographia antiga e moderna, – todos os termos próprios das
Sciencias, Artes e Officios etc. e sua definição analytica. Seguida de um
Diccionario de synonymos por... Lisboa: Typographia Lisbonense de José
Carlos d’Aguiar Vianna. 4 v.
FRANÇA (1814). Conseil Constitutionnel. Les Constitutions de la France.
Charte de 1814. Disponível em: <http://www.conseil-constitutionnel.fr/
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VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituiçoens Primeyras do Arcebispado
da Bahia Feytas & ordenadas pelo Ilustrissimo, e Reverendissimo Senhor...,
Arcebispo do dito Arcebispado & do Conselho de Sua Majestade, Pro-
postas e Aceytas em o Synodo Diecesano que o dito Senhor celebrou em
12 de Junho do anno de 1707. Coimbra, No Real Collegio das Artes da
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CONSTITUCIONAL, O. Bahia, 1822.
DIÁRIO CONSTITUCIONAL. Bahia, 1822.
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JUSTICEIRO CONSTITUCIONAL, O. Rio de Janeiro, 1835.
TROMBETA CONSTITUCIONAL, A. Rio de Janeiro, 1840.
VERDADE CONSTITUCIONAL, A. Rio de Janeiro, 1822.

78
IVO COSER

FEDERAL/FEDERALISMO

A definição contemporânea de federalismo apresenta-o


como um sistema de governo no qual o poder é dividido entre
o governo central (a União) e os governos regionais. O federa-
lismo é definido, na sua acepção positiva, como um meio-termo
entre um governo unitário, com os poderes exclusivamente
concentrados na União, e uma confederação, na qual o poder
central seria nulo ou fraco. Por sua vez, a confederação é carac-
terizada como uma aliança entre Estados independentes. Nesse
sistema, o governo central não pode aplicar as leis sobre os
cidadãos sem a aprovação dos Estados, que seriam em última
instância a fonte da soberania. A diferença essencial entre a
federação e a confederação está no fato de que na primeira o
governo central possui poder sobre os cidadãos dos Estados
ou províncias que compõem a União, sem que esta ação seja
acordada pelos Estados.1
No debate político brasileiro, a percepção de que federação
e confederação eram termos que se referiam a conteúdos polí-
ticos distintos foi se firmando lentamente ao longo do século
19, a partir da compreensão da inovação presente no arranjo
político norte-americano implantado com a Convenção da
Filadélfia, em 1789. Anteriormente esses dois conceitos eram
utilizados como sinônimos. A partir de 1834 as diferenças
entre eles emergem com clareza.
Em 1798, D. Rodrigo de Souza Coutinho, importante membro
da burocracia do Estado português, buscava implementar uma
reforma do Império português de maneira a modernizá-lo. Na
sua visão, os domínios da América eram a base da grandeza do
Império. Esse fato levava o político português a considerar que
a parte europeia do Império seria a capital e o centro, o restante
deveria ser encarado “...como províncias da monarquia, conde-
coradas com as mesmas honras e privilégios (...) todas sujeitas
ao mesmo sistema administrativo...”.2 O plano de D. Rodrigo
de Souza Coutinho previa para o Brasil dois governos, um loca-
lizado no Pará e outro no Rio de Janeiro. Em 1799, o político
português iria escrever que “o sistema Federativo [era] o mais
análogo à situação física de Portugal no Globo”.3 O uso do
termo federativo apontava para o reforço do papel dos domínios
coloniais, em particular do Brasil, já visto naquela época como
a parte mais importante do Reino; tratava-se de elevar o status
do Brasil alçando-o ao patamar de província do Reino, como as
situadas no continente europeu.
O uso que D. Rodrigo fez de federativo revelava uma ruptura
com o conteúdo anterior do termo. O conceito de federação
apresentava um sentido histórico preciso, qual seja: Estados
autônomos que firmavam um pacto de unidade. D. Rodrigo
defendia a aplicação de um “sistema federativo” ao Império
português, sendo que este não era formado por Estados indepen-
dentes, mas por colônias submetidas a um centro. D. Rodrigo
buscava no uso do termo federativo um arranjo institucional que
permitisse à colônia mais rica do Império uma autonomia e um
desenvolvimento econômico maior, sem que esse fato implicasse
a ruptura com a metrópole.
A transferência da Corte portuguesa para o Brasil, em 1808,
implicou mudanças significativas para a parte americana do
Império. A liberdade de comércio e a transferência da justiça
para a colônia foram aspectos centrais desse processo. Com a
abertura dos portos, a colônia passava a negociar com as prin-
cipais praças comerciais europeias. O deslocamento da justiça

80
representou um acesso mais rápido aos pedidos de revista de
processos. A colônia passou a usufruir de prerrogativas idênticas
àquelas da parte europeia do Império.
Em 1821, nos debates parlamentares da Constituinte de
Lisboa, o termo federalismo/confederação reaparece nas propos-
tas para o reordenamento constitucional do Império português.
Em fevereiro, estava em discussão o projeto acerca da suspen-
são dos magistrados. Para uma corrente política, tal poder
caberia exclusivamente ao rei e, para outra corrente, existiriam
no Brasil autoridades locais capazes de realizarem tal ato. O
primeiro grupo político era chamado de “integracionistas” e
considerava que não deveria haver distinções entre as partes do
Império português, que seria uma única nação. As partes que
comporiam o Império português deveriam estar submetidas ao
mesmo centro político.
O deputado Antonio Carlos, eleito pela província de São
Paulo, era um defensor da autonomia das autoridades locais
para a suspensão dos magistrados. Segundo o deputado, o
Império Britânico, os Estados Unidos da América e o Reino da
Suíça permitiam que autoridades locais suspendessem os magis-
trados. Observemos que a Suíça era designada na época como
“Confederação Helvética”. A discussão envolvia outro aspecto
extremamente importante: essa atribuição garantiria a igualdade
entre os “povos do Brasil e de Portugal”. Com essa afirmação,
Antonio Carlos deixava claro que o Reino era formado por dois
povos e que o arranjo político institucional a ser adotado deveria
respeitar essa especificidade.
O deputado Trigoso, eleito em Portugal, opôs-se a essa inter-
pretação e aos exemplos mencionados pelo deputado paulista
nos seguintes termos: “Os países citados tinham pactos antes de
serem unidos; confederaram-se para fazer um Estado.”4 Para o
deputado Trigoso, o Império português não era formado por
povos autônomos que deliberaram estabelecer um pacto de
união, mas uma nação composta por cidadãos portugueses
situados em continentes diferentes. Observe-se o uso do termo

81
pacto que está na definição latina da palavra foedus, que vem a
ser a origem de federalismo.
A ideia de Antonio Carlos, acerca do Império português,
provinha de um conjunto de propostas conhecidas como
“Lembranças e apontamentos”, cuja autoria é atribuída a José
Bonifácio. O documento pretendia oferecer um projeto de orga-
nização política para o Império português. Logo no início desse
documento, define-se a Nação portuguesa como constituída pelos
“Reinos de Portugal e do Brasil”.5 Dentre os itens que compõem
o projeto, estavam: o estabelecimento de um governo-executivo
para o Reino do Brasil, ao qual estariam submetidos os governos
provinciais;6 a elaboração de um Código Civil que respeitasse
“a diversidade de circunstâncias” entre a população do Brasil e
de Portugal;7 a igualdade de Direitos Políticos e Civis de acordo
com “a diversidade dos costumes” existentes nos dois Reinos;8 e
leis que regulassem o comércio sem que fosse tolhida a liberdade
de ambos os Reinos.9
O projeto paulista estava inserido numa concepção que
considerava o Império português como sendo formado por
partes autônomas que dotadas de certas características peculia-
res deveriam ser respeitadas no arranjo político institucional.
O projeto e as propostas paulistas não mencionavam os termos
federalismo e confederação, em suma, não apresentavam expli-
citamente um projeto de um império federativo. Entretanto, a
reação do grupo “integracionista” atacava as iniciativas paulis-
tas, acusando-as de procurar transformar o Império português
numa “confederação”.
Os deputados eleitos nas províncias da América portuguesa
não tiveram uma atuação homogênea. Podemos concentrar
as divergências confrontando duas ideias. Enquanto os depu-
tados paulistas e fluminenses falavam nos Reinos do Brasil e
de Portugal, o deputado baiano Lino Coutinho discursava nos
seguintes termos: “O Brasil não se deve olhar como um só país,
são tantos países diferentes quantas as províncias do Brasil (...)
As províncias do Brasil podem chamar-se de reinos.”10

82
Os deputados das províncias da Bahia e de Pernambuco se
opuseram ao fortalecimento do governo do Rio de Janeiro,
presente na proposta paulista. Para esses deputados não haveria
o Reino do Brasil, mas as províncias portuguesas na América.
Nesse sentido, para essa corrente política, a proposta paulista,
centrada na autonomia do governo situado no Rio de Janeiro, ao
qual estariam submetidos os governos provinciais, soava como
um novo pacto colonial.
É fundamental assinalar os sentidos políticos distintos entre
o federalismo paulista/fluminense e o baiano/pernambucano no
debate de 1821. Para o primeiro grupo, tratava-se de assegurar a
autonomia para o Reino do Brasil, tomado como uma unidade,
enquanto que, para o segundo, se buscava obter a autonomia
para as províncias que formavam o Império português na
América.
A Independência do Brasil de Portugal suscitou um reforço
das ideias de confederação/federação. Para a corrente federalista
pernambucana, por meio da ruptura com Portugal, as antigas
partes que compunham o Império português na América fica-
riam livres para deliberar sobre a sua organização política.
Para essa corrente, a Constituinte reunia províncias soberanas
que após a ruptura teriam livremente deliberado participar da
Constituinte. Essa compreensão contribui para os conflitos na
Constituinte de 1823. Essa ideia entrará em confronto com a
corrente centralizadora. Para os centralizadores, a Constituinte
era organizada a partir de dois fatos preexistentes, quais sejam,
a unidade nacional e a forma de governo monárquica. Conforme
o deputado geral Maia:

(...) porque quando os povos do Brasil se derão as mãos, e procla-


marão a sua independência, foi com a pronunciação de um governo
monárquico, que se estendesse a todas as partes do Império; e não se
restringirão a haver constituições parciais; sobre a qual se estabelecesse
depois a constituição geral da federação de estados, que em tal caso
deveria seguir-se.11

83
Com a Independência e a abertura da Assembleia Constituinte
em 1823 os termos federação/confederação estiveram no centro
do debate político. Houve duas correntes a favor da federação. A
primeira não se fazia representar explicitamente no Parlamento,
mas principalmente nos jornais da época. Tal corrente era
formada pelos republicanos, também chamados de Farroupilhas.
Seu projeto associava a forma de governo republicana com o
modelo federativo. Esse modelo somente seria compatível com
a forma republicana, na medida em que a federação implicava
transferência de poderes para a sociedade – os cargos seriam
eleitos nas províncias, e a República era o governo eleito pelo
povo de forma que existiria uma compatibilidade natural entre
os dois. A segunda corrente estava presente no Parlamento e
nos jornais sob sua influência. Sua principal diferença teórica
era a sustentação da compatibilidade entre a forma de governo
monárquica e o arranjo federativo. Logo no início dos debates
parlamentares, entrava em discussão uma emenda estabelecendo
que o Império brasileiro compreendesse “confederalmente”
as províncias que formavam o antigo Império português na
América. Ao longo desses debates, os defensores dessa proposta
utilizavam indistintamente os termos federação e confederação.
Da mesma maneira, citavam como exemplos desse arranjo
institucional a Confederação Helvéltica, os Estados Unidos da
América e os Principados Germânicos. Citavam como fontes inte-
lectuais os Articles of Confederation e Montesquieu. Podemos
perceber que os exemplos históricos reuniam no mesmo modelo
a confederação e a federação, porém a fonte intelectual era
fortemente marcada pelo conceito de confederação. A inovação
norte-americana ainda não havia sido percebida.
O Dicionário de Moraes Silva na sua edição de 1823 traz
o termo federado definido como confederado, ou seja, ainda
remetendo à confederação. Na Constituinte de 1823, o deputado
Carvalho Melo definia federação da seguinte maneira:

84
Federação, dizem os escritores políticos, é a união de associações
e estados independentes que se unem pelos laços de uma constituição
geral, na qual se marcam os deveres de todos, dirigidos ao fim comum
da prosperidade nacional, e nela se regulam alianças ofensivas e defen-
sivas; resoluções de paz e de guerra.12

A etimologia da palavra federalismo também apontava para


uma aliança de Estados independentes:

Não viemos aqui para fazer um novo dicionário jurídico; os termos


federal, federativo, federação, se derivam do termo foedus, que significa
pacto e aliança com inimigos ou amigos independentes para paz ou
guerra (...) É bem conhecida a Confederação Helvética, a dos antigos
estados gerais da Holanda, quando esta se constituiu em república e a
confederação do corpo germânico, composta de estados independentes,
ainda que associados para resistência a inimigos comuns, contribuindo
cada estado com seu contingente de soldados e dinheiro para as des-
pesas gerais de sua associação, até sendo cada estado regido por sua
particular forma de governo.13

A definição de federação mobilizava a ideia de uma reunião


de Estados soberanos com fins de defesa ou de ataque, sem que
a União dispusesse de poderes autônomos sobre os cidadãos dos
Estados soberanos. Portanto, a definição era ainda formulada
por meio do conteúdo relativo à ideia de confederação.
Nos debates parlamentares, o termo federalismo/confede-
ração ganha um sentido político. Vejamos quais os principais
aspectos da corrente federalista. Para esse grupo, a constituição,
após sua elaboração, deveria retornar às províncias para ser
aprovada. Tal concepção revelava a precedência das províncias
no arranjo constitucional. Para os federalistas, a Nação seria
formada pelos estados que a compõem, pois é neles que reside
o poder soberano. A concepção de que a província deteria o
poder soberano demonstra a presença, na corrente federalista
no Brasil, da compreensão deste arranjo constitucional nos

85
moldes de uma confederação. Nesta, o poder central é nulo ou
fraco e não dispõe de forças para agir nas partes componentes
do Estado. Essas partes poderiam se retirar do pacto, como
previam os federalistas brasileiros, caso não acordassem com
as leis promulgadas, e, neste caso, o poder central não teria
legitimidade para obrigá-las a participar do pacto. De acordo
com o deputado geral Montezuma: “(...) ninguém ignora que
o direito natural e público (...) dá a faculdade a cada uma das
províncias do Império para sancionar ou deixar de sancionar a
constituição que lhe for apresentada.”14
Para os federalistas, não existiria uma oposição entre federa-
ção e a forma de governo monárquica. Segundo Carneiro Cunha:

(...) federação não se opõe à monarquia constitucional, como há


exemplos, tanto na história antiga, como na moderna, e mesmo na
Europa (...) podendo haver em cada uma das províncias uma primeira
assembleia provincial, que tenha a iniciativa das leis regulamentares, e
que informando com mais conhecimentos à assembleia dos represen-
tantes da nação tudo quanto for mister para promover a sua prosperi-
dade, consiga-se desta sorte o bem, que todos desejamos. Considerada,
e admitida por esta forma a federação opor-se-á à integridade do
Império? Não, decerto.15

Na concepção federalista, apresentada na constituinte, entre o


súdito e a União está a província, é esta que empresta conteúdo
à ação estatal levada a cabo sobre os habitantes. Sendo assim,
cada província deveria possuir autonomia para adaptar as leis e
os planos nacionais às suas realidades específicas, e ter a liberdade
para definir quais seriam os seus interesses, as suas prioridades.
As províncias estariam unidas em torno de uma forma de governo
que velasse pela sua liberdade de buscar e efetivar seus objetivos.
A ação do Estado que atinge o cidadão é portadora dos interesses
provinciais, o Estado não é um órgão que se revela ao cidadão
como mensageiro de interesses gerais, que transcendem à socie-
dade provincial. Diretamente ligado a essa ideia, estava o tema

86
dos funcionários públicos. A aplicação das leis deveria caber
a funcionários públicos que fossem escolhidos nas províncias.
Esses funcionários estariam, segundo Montezuma, “(...) mais
ligados, mais interessados pelo solo onde exercem jurisdição,
pois é seu país natal”.16
É recorrente entre os federalistas a imagem da província como
um cidadão ativo que deve dispor de liberdade para organizar
seus assuntos e definir livremente seus interesses, desde que não
altere a forma de governo monárquica. Conforme Cornélio
França:

(...) a província deve considerar-se para com a nação em geral assim


como um particular para com a província; quando se impõe não se
pergunta quais são os meios de que se serve para cumprir a imposição:
assim se a nação precisa de um tanto, que se lhe importa que a pro-
víncia dos direitos ou de exportação? Concorrendo elas com a quota
que lhe determina, tem feito o que devem, e não deve ficar à arbítrio
da assembleia geral tal e tal imposto: porque ele pode ser muito bom
em uma província e não em outra, e ninguém melhor que as mesmas
assembleias pode conhecer isto.17

Em 1839, defendendo as medidas descentralizadoras, inspira-


das nas ideias federalistas, adotadas entre 1832 e 1834, Diogo
Feijó, ex-ministro da Justiça, ex-regente, proprietário do jornal
O Justiceiro e naquele momento senador, legitimava o controle
do legislativo provincial sobre a polícia judiciária com base no
domínio que o chefe de família possui sobre a organização da
economia doméstica:

Na verdade, já se mostrou que a polícia interna é essencial a toda


corporação, desde a família até a associação geral, que dela depende a
existência e a conservação da mesma sociedade; sendo isto assim, como
é que, podendo o chefe de família regular a sua economia doméstica,
o município, a sua economia municipal, o mestre, a economia de sua

87
aula, na qual regula o serviço e os castigos correcionais etc., as câmaras
legislativas da mesma sorte, como então se quer negar este direito às
províncias?18

O legislativo provincial, eleito pelos cidadãos ativos, deveria


regular a polícia judiciária tendo em vista os interesses da
província.
Os grupos paulista e fluminense, que na Constituinte de
Lisboa haviam sustentado um projeto descentralizador, agora
atacavam os federalistas. Os defensores da centralização argu-
mentavam que a introdução do federalismo poria em risco a
unidade nacional. Tal ameaça decorria da necessidade, presente
na proposta federalista, de que o pacto constitucional retornasse
às províncias para ser aceito: “Se ela [a emenda que estipulava
uma monarquia federal] passasse, era o mesmo que dizer,
desmanchem-se os laços que nos ligam; cada uma das províncias
separa-se, faça o seu governo e se depois a união não lhes aprou-
ver, façam como quiserem a sua federação.”19 Outro aspecto
negativo do federalismo era enfatizado por Silva Lisboa. Segundo
esse deputado geral, o federalismo permitiria o surgimento dos
chefes políticos que iriam monopolizar o aparelho do Estado,
sem outra ambição que não o controle com a finalidade de se
tornar o chefe incontestável da sua região:

O sistema federal também se estabeleceu nos Estados Unidos da


América do Norte; e nestes últimos tempos têm praticado semelhantes
confederações nas colônias de Espanha até a terra do fogo (...) a fim
de se obterem as pretensões dos ambiciosos, que aspiravam a figurar
cada um nas suas províncias e monopolizaram as respectivas honras
do estado.20

Esse traço do argumento centralizador encontrava eco no exem-


plo da América hispânica, conforme a visão desta corrente. As
ex-colônias espanholas eram sempre lembradas de maneira
negativa. O federalismo e a forma de governo republicana

88
haviam criado em cada ex-colônia diversos chefes políticos que
se consideravam líderes incontestes, dispostos ao uso das armas
para fazer valer seu projeto político. José Bonifácio definia a
América espanhola como anárquica e violenta, deixando claro
que as antigas colônias da Espanha não possuíam um poder
central forte e capaz de coibir os chefes locais de se utilizarem
da violência para resolver seus assuntos políticos.
A dissolução da Constituinte por D. Pedro I e a derrota
das emendas federalistas estão na raiz do movimento separa-
tista que eclodiu na província de Pernambuco com o nome de
Confederação do Equador, proclamada em 2 de julho de 1824.
Esse movimento pretendia estabelecer uma República federal,
que reunisse, além de Pernambuco, as províncias limítrofes Ceará
e Paraíba, e também o Rio Grande do Norte.
A derrota da Confederação do Equador e a manutenção da
monarquia unitária na Constituição de 1824 não impediram que
projetos inspirados no modelo federalista estivessem presentes
no debate político brasileiro. A recepção da ideia de federalismo
no Brasil nos anos 20 e 30 do século 19 estabelece uma asso-
ciação entre essa ideia e a perspectiva de que a descentralização
deveria ser estendida não apenas às províncias, mas também ao
município.
Os debates parlamentares acerca da criação do cargo de juiz
de paz (1827) e do Código do Processo (1832) revelam explicita-
mente a presença das ideias federalistas. O juiz de paz era eleito
diretamente no município. O Código do Processo criou o júri
popular, que era sorteado dentre os cidadãos da localidade. O
promotor era escolhido pelo presidente de província (nomeado
pelo poder central) a partir de uma lista tríplice feita pela câmara
municipal dentre os cidadãos locais. Com o Código do Processo,
o juiz de paz que inicialmente era um juiz de pequenas causas
teve seus poderes ampliados e passou a ser o responsável pelo
recolhimento de provas para o inquérito policial e por conceder
o passaporte para os súditos transitarem pelo país. Tornava-se
desta forma uma peça importante na engrenagem do Judiciário,

89
rivalizando em atribuições com o juiz de direito. Esse funcio-
nário era nomeado pelo poder central, deveria ser formado em
Direito, dispunha de um salário e poderia ser deslocado por todo
território nacional. Com o Código do Processo, figuras impor-
tantes do aparelho judiciário passaram a ser eleitas, escolhidas
ou sorteadas no município. Ocorreu, assim, uma transferência
de atribuições, que antes pertenciam exclusivamente ao poder
central, para os municípios.
Os defensores desse modelo mobilizavam o mesmo conteúdo
nos debates da Constituinte de 1823: a importância de que o
eleito fosse um cidadão da localidade. A escolha de um cidadão
saído da localidade era um sinal de que este seria reconhecida-
mente um homem capaz de exercer o cargo de acordo com os
interesses da província. O eleito deveria ser um amador e não
um funcionário do governo, movível a qualquer momento; dessa
maneira, os direitos da sociedade estariam protegidos contra
o Estado. Um artigo publicado no jornal O Astro de Minas
associava o regime federativo com a eleição ou a escolha dos
funcionários a partir do local de sua atuação:

Certamente uma das principais garantias dos cidadãos é a respon-


sabilidade dos delegados do poder; porque sem esta todas as garantias
são improcedentes e quiméricas. As autoridades despachadas pela corte
para os diferentes Estados mui facilmente podem bigodear o clamor dos
povos a respeito das suas prepotências e malversações (...) Finalmente
pode-se estabelecer como regra, apesar de uma ou outra exceção,
que todo poder, cuja responsabilidade está longe do foco das suas
ações, é infalivelmente mais, ou menos, arbitrário e por consequência
sempre pesado aos Povos. Não será assim com o regime federativo.
As autoridades escolhidas pelo mesmo Estado onde tem de exercer as
suas funções vem a responsabilidade iminente, como Dâmocles, tinha
a espada que o devia punir pendente por um fio sobre a sua cabeça.21

O Astro de Minas foi um jornal ligado aos liberais modera-


dos. Por sua vez, o jornal A Nova Luz Brasileira, seguidor da

90
linha política dos liberais exaltados, exprimia a mesma ideia:
“Ora federadas as Províncias Constitucionalmente e inter-
vindo na nomeação dos Presidentes, Comandantes de Armas e
Magistrados, não haverá melhor escolha.”22 Em 1834, Bernardo
Pereira de Vasconcelos assinalava com precisão as mudanças
ocorridas nos Estados Unidos a partir da convenção de 1787:

Na Constituição dos Estados Unidos de 1778 os estados sobe-


ranos não permitiam ao governo geral arrecadar de indivíduos a
soma necessária para as despesas da União; o governo orçava as suas
despesas econômicas e as províncias deviam dar a quantia necessária
para fazer face a estas despesas, elas passavam a impor, a arrecadar e
a remeter para o governo geral, mas o resultado foi que a maior parte
das províncias se arrogarão o direito de investigar se o governo geral
tinha feito o seu orçamento com excesso; e disto resultou que não
mandavam os meios necessários para a União, e esta foi a principal
razão porque se convocou a convenção geral de 1787, que reforçou
este artigo da Constituição e determinou que o governo geral em todas
as ocasiões não contratasse com os estados como entidades coletivas,
mas sim como indivíduos, que pudesse mandar recrutar, impor etc.,
enfim independentes de todos os atos porque se achava autorizado
pela Constituição.23

Inicialmente, nos Estados Unidos, os estados uniram-se sem


conceder maior poder à União, sem permitir que as ações desta
chegassem até o cidadão, submetido unicamente aos poderes esta-
duais. Com a Convenção da Filadélfia, o governo geral passou a
deter poderes capazes de atingir o cidadão, sem necessariamente
passar pelos estados. Os federalistas nos Estados Unidos eram
aqueles que defendiam o reforço do poder da União frente aos
estados. Estava clara a trajetória histórica dos Estados Unidos:
a ex-colônia inglesa teria saído de um arranjo institucional, no
qual os estados eram soberanos e reunidos apenas com fins
defensivos, para um novo modelo, no qual o governo central

91
dispondo de maiores poderes desempenhava um papel distinto
daquele efetuado anteriormente.
O pensamento federalista brasileiro efetuava a distinção entre
federalismo e confederação e centrava a defesa do seu projeto
na transferência de atribuições para a província, que poderia
cuidar dos interesses provinciais. Nesse sentido, discursava o
deputado Souza Martins:

A palavra federação pode-se depreender por verdadeira etimologia –


aliança, liga, união – concordo que não convém ao Brasil uma federação
tal como a dos estados da Alemanha etc. Esta deve ter a oposição da
maioria da câmara; mas não acho justo nivelar uma tal federação com
as reformas que se vão agora estabelecer; estas reformas constitucionais
nada mais são que dar algumas atribuições legislativas aos conselhos
gerais [termo que antes de 1834 designava o legislativo provincial] sem
dependência do poder geral; neste sentido não merece censura a fede-
ração, no sentido de dar a certas autoridades locais certas atribuições
que não podem ser exercitadas pelo governo central.24

Em 1831, entrava no debate parlamentar um projeto de


reforma da Constituição, cujo primeiro artigo estabelecia o
seguinte: “O governo do Império do Brasil será uma monarquia
federativa.” Em outro artigo ficava estabelecida a discriminação
das rendas provinciais das rendas do governo central. De acordo
com os centralizadores, tal proposta introduziria o modelo fede-
ralista no Império, tendo como efeito a reprodução da situação
existente na América espanhola. Lino Coutinho responde aos
centralizadores da seguinte maneira:

O que embaraça que isto sejam ideias federativas, se são ideias de


justiça e ordem? (...) Não há povo que queira estar assim apertado
e oprimido. Todos querem que as suas províncias tenham certos
meios administrativos, certa governança que tenda a promover o

92
bem particular da província, no que vai igualmente compreendido o
bem geral do império.25

A corrente centralizadora percebia o movimento de associar a


ideia de federação à concessão de maior autonomia às províncias,
de maneira que estas velassem pelos interesses provinciais, sem
que esse fato envolvesse considerar as províncias como estados
soberanos, conforme o modelo confederativo. O deputado
Calmon discursava:

A federação que desejamos, dizem eles, não é a germânica ou a hel-


vética ou da antiga Holanda ou da América do Norte, é apenas aquela
que consiste em dar aos governos provinciais maiores atribuições para
o expediente de negócios locais. E nisto insistem, senhores.26

O pensamento político brasileiro também entendia a ideia de


federalismo como um arranjo constitucional no qual as provín-
cias poderiam velar pelos seus interesses. Em 1832, Evaristo da
Veiga, deputado e jornalista, escrevia em favor das províncias:
“Deixemos que as províncias falem por si mesmas. Não estão
invadidas pela barbárie e devem conhecer seus próprios interesses
muito melhor que os teóricos da Corte.”27 Em 1839, o senador
Alencar, defendendo as medidas descentralizadoras adotadas
entre os anos de 1830 e 1834, dizia:

A Assembleia Geral, ocupada com o todo da nação, talvez não seja


a mais apropriada para se ocupar dos negócios muito peculiares das
províncias (...) Eu digo que os legisladores de 34 tiveram em vista esta
ideia: os deputados provinciais podem conhecer melhor aquilo que
convém (nessas pequenas coisas) às suas respectivas províncias do que
um senador ou deputado colocado na corte e que muitas vezes não
tem viajado todo o Brasil.28

93
As leis nacionais seriam adaptadas às circunstâncias locais
pelas assembleias provinciais. Ficava claro que as leis nacionais
não dependiam da aprovação das assembleias provinciais, como
no modelo confederativo, e que o governo geral possuía auto-
nomia para aprovar leis que dissessem respeito às províncias.
A justificativa para que essa tarefa coubesse às assembleias
provinciais era o seu conhecimento maior das condições locais
e o seu interesse no sentido de promover o desenvolvimento
local. Podemos perceber que, para os federalistas, a ideia dos
interesses provinciais emergia com um conjunto de assuntos
distintos dos interesses gerais. Tais interesses requeriam uma
preocupação que somente aqueles que olhavam exclusivamente
a dinâmica provincial possuíam. Nesse sentido, o pensamento
federalista enfatizava que o legislativo provincial velava pelos
interesses provinciais da mesma maneira que o cidadão ativo
pela “economia doméstica”. A ideia de que o federalismo era um
arranjo institucional, que permitia às províncias cuidarem dos
seus “negócios internos”, está na raiz do movimento republicano
que eclodiu na província do Rio Grande do Sul. No cerne desse
movimento, estão a situação econômica da província e a insa-
tisfação com a centralização de poderes nas mãos do presidente
da província, nomeado pelo poder central. A economia do Rio
Grande do Sul era caracterizada pelo fornecimento de carne e
couro para o mercado interno brasileiro, no qual ela sofria a
concorrência dos países do Prata; as queixas contra as baixas
taxas cobradas sobre os impostos dos produtos da bacia do Prata
desempenharam um papel importante na eclosão do movimento.
No ideal de uma república federativa rio-grandense estava a capa-
cidade do governo em aumentar os impostos sobre os produtos
do Prata, medida que a República de Piratini, proclamada em
1837, adotou. Dessa forma, podemos assinalar a presença da
ideia de que federação envolveria a autonomia das províncias
em gerirem seus assuntos internos, entre os quais estava o tema
do controle sobre os impostos.

94
O pensamento federalista brasileiro considerava que a descen-
tralização favoreceria o clima de competição entre as províncias,
o que, dentro de certos limites, poderia vir a ser um elemento de
progresso para o país:

Sabe-se que existem entre certas províncias certa rivalidade, certo


ciúme, aliás, necessários até certo ponto: esta rivalidade, este desejo
de primarem umas sobre outras, sendo razoável, pode vir a ser um
princípio de progressão, sem dúvida de grande vantagem para o
Brasil; mas se exorbitarem de certos limites, nós veremos que o Brasil
se fracionará.29

O pensamento centralizador argumentava que essa rivalidade


poderia conduzir à desagregação interna. Frente a essa crítica,
o ideal federalista objetava com o seguinte argumento:

Eu não vejo, contudo, que já se tocou neste ponto, que ele traga
consigo tão graves inconvenientes, nem que dê lugar a verificar-se um
quadro tão triste como o que foi apresentado pelo Sr. Cunha, acontecer-
-lhe-ia o mesmo que sucede a respeito dos indivíduos, alguns dos quais
são mais ricos e outros mais pobres. Haviam de florescer as províncias
mais abundantes em produtos e ficar atrasadas aquelas que produzissem
menos, as quais se verão por isso forçadas a limitar suas despesas, em
proporção às suas rendas, até chegarem à maior prosperidade.30

A corrente política federalista não foi plenamente vitoriosa


na sua tentativa de transformar o Império brasileiro em uma
monarquia federativa. Porém, várias leis foram adotadas com
vista a implementar uma descentralização política e adminis-
trativa. A principal lei aprovada foi o ato adicional em 1834.
De acordo com este, os cargos do aparelho judiciário previstos
em leis e códigos nacionais poderiam sofrer alterações nas suas
funções e no seu número pelo legislativo provincial. Com o
ato adicional, diversos legislativos provinciais iniciaram uma

95
diminuição da descentralização, esvaziando as atribuições trans-
feridas para o município em seu favor. O ato adicional marca
uma importante inflexão em parte da corrente federalista. As
diversas revoltas armadas que eclodiram no Império levaram
diversos líderes federalistas a defender um esvaziamento dos
cargos eleitos ou escolhidos no município em favor do legislativo
provincial. Importantes líderes políticos como Limpo de Abreu
(1836) e Alves Branco (1835) passavam a sustentar, nos seus
relatórios de ministro da Justiça, a necessidade de que as leis
descentralizadoras fossem adotadas somente em cidades com um
determinado nível de “civilização e nas capitais”. Posteriormente,
Tavares Bastos (1870), um destacado defensor do ato adicional,
irá escrever que o erro do Código do Processo foi imaginar que
no país o “nível de civilização fosse igual”. Segundo Tavares
Bastos, o órgão encarregado de avaliar o grau de extensão da
descentralização seria o legislativo provincial. A vantagem do ato
adicional teria sido controlar a descentralização que ameaçava
tragar a unidade nacional.
Na concepção federalista, a nação é composta pelas diversas
províncias que a compõem; para os centralizadores, a concep-
ção de nação é distinta. O senador Silva Lisboa considerava
nos seguintes termos a emenda que estabelecia que o Império
brasileiro fosse uma monarquia federativa:

Chegamos ao grande artigo. Este é que é o forte deste projeto. O


que se trata nele de destruir a soberania nacional para estabelecer
soberanias provinciais (...) A primeira coisa de que se trata é de uma
metamorfose, é de mudar as coisas para uma forma inteiramente
nova, o que é contrário ao que diz o artigo 1º da Constituição, de que
o império do Brasil é a associação política dos cidadãos brasileiros, e
não a associação das províncias.31

Para o pensamento centralizador, a nação seria composta pelos


cidadãos e pelo poder soberano, o qual deveria estar concentrado,

96
de maneira a que os diversos interesses que compõem o Império
não caminhassem para a fragmentação; tal qual havia ocorrido
na América hispânica.
O conceito de federalismo era formulado, pelos centraliza-
dores, da seguinte maneira:

As principais vantagens e qualidades da monarquia são a concen-


tração do poder, a unidade e a força; a qualidade essencial do elemento
federal é o fracionamento do poder; combinar estes dois elementos de
modo que não se prejudiquem e se destruam mutuamente é uma das
coisas mais difíceis em política (...) é indispensável marcar com exatidão
as raias de cada um desses poderes, para que se não encontrem no
mesmo terreno, porquanto os governos federativos são muito sujeitos
a conflitos, e por isso, quando mal combinados, têm em si o germe da
sua dissolução.32

No pensamento centralizador, o federalismo apontava para a


possibilidade de que o poder estivesse disperso, dificultando a
ação estatal. Na avaliação de um dos mais importantes políti-
cos centralizadores, Paulino José Soares de Souza – deputado,
presidente de província, senador, ministro da Justiça e autor dos
principais livros em favor da centralização –, o fracionamento
do poder permite que o cidadão seja controlado pelo capricho
pessoal de indivíduos que pela sua posição social dispõem de
recursos. As leis descentralizadoras ao transferirem atribuições
para o legislativo provincial e para o município teriam produzido
esta situação:

(...) não parece que a população desses lugares possa ser chamada de
população de homens livres, e Cidadãos de um Império Constitucional,
mas sim hum complexo de pequenos feudos onde há senhores e vassalos,
e onde as Autoridades Policiais e Criminais são em tudo deles depen-
dentes, e ainda mais do que se eles tivessem a regalia de nomeá-los tal
é o estado de aviltamento e coação em que elas se acham.33

97
Observemos no trecho que o autor expõe a experiência fede-
ralista como causadora de uma situação na qual os indivíduos
que controlavam os poderes do Judiciário – os cargos eleitos ou
escolhidos na província e município – estabeleciam para com os
demais cidadãos uma relação de dependência pessoal, fato que
levava o autor a designar a situação como sendo entre senhor
e vassalos. A fragmentação do poder, característica do federa-
lismo, produzia um “complexo de pequenos feudos” imune às
ações do poder central, que emergia como o portador da lei,
entendida como uma relação impessoal. A principal caracte-
rística do feudalismo, apresentada por Paulino José Soares de
Souza, vem a ser “o poder não somente de administrar, como
também de governar, repartido em mil mãos, e fracionado por
mil maneiras”.34 No pensamento centralizador, ocorre uma
aproximação entre o conceito de federalismo (a fragmentação
do poder) e de feudalismo (o poder fracionado, repartido).
Para esta corrente, a centralização do poder estava associada
à modernidade. Conforme Paulino José Soares de Souza escre-
veu: “(...) a centralização é o mais poderoso instrumento da
civilização.”35

NOTAS
1
Florence Elliot, Federation, em Dictionary of Politics, Harmondsworth, Penguin
Books, 1974; Lucio Levi, Federalismo, em Noberto Bobbio (org.), Dicionário de
política, Brasília, Editora UnB, 1986; Jim Bulpitt, Federalism, em Ian McLean
(ed.), Dictionary of Politics, Oxford, Oxford University Press, 1996; Wyn Grant,
Confederation, em Ian McLean (ed.), The Concise Oxford Dictionary of Politics,
London, Oxford University Press, 1996.
2
Apud Kenneth Maxwell, Acomodação, em A devassa da devassa: a Inconfidência
Mineira, Brasil-Portugual, 1750-1808, tradução de João Maia, 3. ed., Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1985, p. 239.
3
Apud Maxwell, Acomodação, p. 254.
4
Apud Márcia Regina Berbel, A nação como artefato: deputados do Brasil nas
cortes portuguesas 1821-1822, São Paulo, Hucitec, FAPESP, 1999, p. 128.
5
José Bonifácio de Andrada e Silva, Lembranças e apontamentos, Cap. I, Art. 4º.,
em Edgard de Cerqueira Falcão (org.), Obras científicas, políticas e sociais de
José Bonifácio de Andrada e Silva, Santos, Revista dos Tribunais, v. II, 1963.
6
Ibidem, Cap. II, Art. 2º.

98
7
Ibidem, Art. 5º.
8
Ibidem, Cap. I, Art. 2º.
9
Ibidem, Art. 4º.
10
Apud Berbel, A nação como artefato, p. 131.
11
Sessão de 17 de setembro de 1823. Brasil, Câmara dos Deputados, Anais...,
1823.
12
Ibidem, p. 151.
13
Silva Lisboa em sessão de 17 de setembro de 1823. Ibidem, p. 157.
14
Ibidem.
15
Carneiro Cunha em Assembleia Constituinte de 17 de setembro de 1823. Ibidem,
p. 152-153.
16
Sessão de 17 de setembro de 1823.
17
Cornélio França, sessão da Câmara dos Deputados de 2 de julho de 1834. Brasil,
Câmara dos Deputados, Anais..., 1834, p. 15.
18
Diogo Feijó, sessão do Senado em 26 de julho de 1839. Brasil, Senado, Anais...,
1839, p. 371.
19
Carvalho Melo, sessão de 17 de setembro de 1823, p. 152.
20
Silva Lisboa, sessão de 17 de setembro de 1823, p. 157.
21
Do Federalista, publicado em O Astro de Minas, São João Del-Rei, 28 jun. 1832.
22
A Nova Luz Brasileira, Rio de Janeiro, 04 jan. 1831.
23
Bernardo Pereira de Vasconcelos, sessão da Câmara dos Deputados de 1 de julho
de 1834, p. 10.
24
Souza Martins, sessão da Câmara dos Deputados de 4 de julho de 1834, p. 29.
25
Lino Coutinho, sessão da Câmara dos Deputados, de 17 de maio de 1831, p.
48.
26
Calmon, sessão de 01 de setembro de 1832, p. 234.
27
Aurora Fluminense, Rio de Janeiro, 8 jun. 1832.
28
Alencar, sessão do Senado de 29 de julho de 1839, p. 11.
29
Evaristo da Veiga, sessão da Câmara dos Deputados, 26 de junho de 1834.
30
Lino Coutinho, sessão da Câmara dos Deputados, 17 de maio de 1831, p. 49.
31
Silva Lisboa, sessão do Senado, 30 de julho de 1832.
32
Uruguai, sessão de 17 de junho de 1839.
33
Paulino José Soares de Souza Uruguai, Relatório de Ministro da Justiça, Rio de
Janeiro, Tipografia Nacional, 1842, p. 26.
34
Idem, Ensaio sobre o Direito Administrativo, Rio de Janeiro, B. L. Garnier,
1862, p. 344.
35
Ibidem, p. 345.

99
REFERÊNCIAS
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de Janeiro: Tipografia Nacional, 1836.
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1937.
BRANCO, Manuel Alves. Relatório de Ministro da Justiça. Rio de Janeiro:
Tipografia Nacional, 1835.
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HOLANDA, Sérgio Buarque de (Org.). O Brasil monárquico. São Paulo:
Difel, 1985. t. II. v. II. (História geral da civilização brasileira.)
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1836.
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Brasil do século XIX. São Paulo: Globo, 2005.
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Arquivo Nacional, 1962.
LEITE, Renato Lopes. Republicanos e libertários: pensadores radicais no
Rio de Janeiro (1822). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
MATTOS, Ilmar Rohloff. O tempo saquarema: a formação do Estado
Imperial. 3. ed. Rio de Janeiro: Access, 1994.
MATTOS, Hebe. Escravidão e cidadania no Brasil monárquico. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

100
MELLO, Evaldo Cabral de. A outra Independência: o federalismo pernam-
bucano de 1817 a 1824. São Paulo: Editora 34, 2004.
NEQUETE, Lenine. O Poder Judiciário no Brasil a partir da Independência.
Porto Alegre: Sulina, 1973.
OTTONI, Teófilo. Discursos parlamentares. Seleção e introdução de Paulo
Pinheiro Chagas. Brasília: Câmara dos Deputados, 1979.
ROCHA, Justiniano. Ação; reação; transação. Rio de Janeiro: Tipografia
Imperial, 1855.
SILVA, Antonio Moraes. Dicionário da língua portugueza. Lisboa: [s.n.],
1823, 1831, 1844.

101
J O Ã O PA U L O G . P I M E N TA
VA L D E I L O P E S D E A R A Ú J O

HISTÓRIA

LINHAS GERAIS DA EVOLUÇÃO DO LÉXICO


No Vocabulário de Bluteau, o verbete história confere
peso à história antiga, pois o relato bíblico, sendo o mais
confiável, deveria preponderar no caso de divergência com
autores modernos (“de todas as Histórias, a mais certa é a da
Sagrada Bíblia”). Longos parágrafos são dedicados à defesa da
cronologia bíblica, porém reservando autoridade para o relato
profano nos fatos da história moderna.1 Em Bluteau a história é
sagrada e erudita, com o léxico impregnado dos topoi da tradi-
ção retórica ciceroniana e refletindo perfeitamente o tipo de
história que no século 18 português se produzia em locais como
a Academia Real de História (1720), a Academia Brasílica dos
Esquecidos (1724-1725) e a Brasílica dos Renascidos (1759).2
Já na primeira edição do Dicionário de Moraes Silva (1789),
o verbete é enxugado do peso da história sagrada, e o histo-
riador começa a ser claramente diferenciado do cronista.3 Na
edição de 1831, é acrescentado um parágrafo sobre a divisão
da história no qual Silva procurou esclarecer as diferenças entre
história universal (cujo exemplo é a de Bossuet) e história geral.
Com ele, a edição de 1850-1853 do Dicionário de Eduardo
Faria polemiza, ao dizer que Bossuet nunca havia escrito
uma história universal, mas apenas “discurso sobre a história
universal”.4 Afirma também que seria pouco útil ou exequível
uma história que apresentasse um quadro único e que, por isso,
deveria ser dividida “em três grandes idades ou três histórias
que se sucedem, tendo cada uma delas seu caráter particular,
que são: a história antiga, a da idade média, e a moderna, as
quais se pode ajuntar uma quarta, que é a contemporânea”.5 O
esforço de Faria indica claramente que o termo história já não se
referia apenas ao livro, mas a uma realidade exterior que devia
inclusive ditar sua forma de apresentação.
O que esses dicionários, de forte presença no mundo luso-
-brasileiro, parecem indicar é, de um lado, um esforço de refi-
nar as definições de palavras da língua, procurando estabilizar
o campo semântico; de outro, uma crescente centralidade do
conceito de história, que deixa de ser apenas uma “narração dos
sucessos” para concentrar um conjunto de novas experiências
sociais e categorias explicativas. Mas seria apenas a partir da
década de 1870 que os dicionários6 começariam a normalizar a
definição do conceito moderno de história, associando-o a outros
de movimento, como evolução e progresso.

A LAICIZAÇÃO DAS NARRATIVAS (1750-1807)


Quando D. José I iniciou seu reinado em 1750, o Império
português encontrava-se em meio a dificuldades no tocante à
sua inserção no cenário de competição internacional, centrado
em países da Europa ocidental que, sendo potências coloniais,
tinham em territórios ultramarinos espaços fundamentais de
atuação. Embora as dificuldades portuguesas nesse cenário
viessem pautando consciências entre os estadistas lusos desde a
independência em relação à Espanha (1640), seria somente com a
abertura de um novo campo de ação, possibilitado pela ascensão
de D. José, que o persistente agravamento da situação geral seria
enfrentado por uma ampla mobilização iniciada na alta cúpula
política imperial, cujo epicentro era a metrópole, mas que desde
o início definiria a centralidade da América, obedecendo à lógica
de complementaridade entre metrópole e colônia em busca do
“bem comum”, ponto central do programa reformista.

104
A diferenciação de perfis políticos e econômicos entre
aquelas que agora eram as duas partes principais do Império
português se processaria tendo por base dois séculos e meio de
uma contraditória história de simbiose, individuação e comple-
mentaridade, na qual Portugal e América compuseram, junto
com porções asiáticas e africanas, uma unidade. No caso da
América, tal processo encontrara manifestações no plano da
narrativa de acontecimentos passados que, não deixando de ser
portugueses, eram, segundo obras a eles voltadas, singulares
por conta do espaço no qual ocorreram. Um grande número
de obras mesclando passagens sobre tais acontecimentos com
descrições geográficas e de tipos sociais nativos foi escrita por
portugueses da América e da Europa, dentre as quais algumas
trazendo já em seus títulos uma palavra indicativa de seu caráter
primordial: História.
A partir de 1750, a política reformista portuguesa se coadu-
nará com uma ampliação dessa produção. De um lado, com
a escrita de obras eruditas, o Estado contará com um espaço
privilegiado de reforço da lógica de complementaridade entre
metrópole e colônias; de outro, os autores de ditas obras terão
renovadas as oportunidades de promoverem a obtenção, para
portugueses naturais da América, de títulos nobiliárquicos
“de serviço”. A lógica a permear tal objetivo será a da própria
configuração regional da colonização portuguesa da América,
expressa no plano de identidades coletivas das quais os naturais
daquela porção do Império eram portadores: a coletividade
mais abrangente era a nação portuguesa, condição da qual
todos compartilhavam e que, por seu turno, determinava suas
condições identitárias específicas. As narrativas sobre o passado
da América seguiriam essa mesma lógica, incidindo sobre acon-
tecimentos cuja unidade (“Brasil” ou “América”, por exemplo)
continuaria a ser, sobretudo, uma criação intelectual de seus
autores: ou uma simples somatória de espaços de pouca ou
nenhuma ligação direta entre si, ou a consagração de espaços

105
regionais como locus de narração, nobilitação e perpetuação
coletiva.
Assim, a narrativa dos acontecimentos passados encontrará
terreno fértil para disseminação, configurando um processo no
qual a ideia de história se mostrará indicadora e produtora de
transformações cuja magnitude dificilmente poderia ser vislum-
brada naquela metade de século. Transformações que levariam
não somente ao aprofundamento das dificuldades sentidas
pelo Império português, mas até mesmo à criação de condições
históricas que possibilitariam, nas primeiras décadas do século
seguinte, a ruptura entre Portugal e seus domínios americanos e
a formação, nestes, de uma unidade política nacional e soberana,
não mais portuguesa, e sim brasileira.
Na metade do século 18, contudo, o conceito de história se
apresenta, na América portuguesa, segundo as premissas bási-
cas de seu sentido no mundo luso em geral, agregando matizes
a ele conferidos pela dupla condição de singularidade e tipici-
dade do mundo colonial. Para essa direção, aponta a obra do
pernambucano Loreto Couto, Desagravos do Brasil e glórias de
Pernambuco (1757), produzida com o intuito de louvar feitos
passados de naturais daquela capitania e, com isso, valorizá-la
como espaço de realizações presentes. Em passagens dedicadas a
criticar outras “histórias”, isto é, livros,7 Couto desenvolve várias
possibilidades de cronologia do povoamento da América a partir
da criação do mundo.8 Além de corroborar o esforço de Bluteau
em definir os campos da história sagrada e da história profana
– esta subvertida àquela – por história, Couto frequentemente
indica narrativas ligadas a lugares territoriais mais específicos
do que a “América” ou a campos diversificados do saber. Há
referências a “todas as histórias”;9 igualmente às “histórias de
França e Espanha”, às “histórias do nosso Reino, e de muitos
estrangeiros”, às “nossas histórias” (isto é, do Brasil).10 Quanto
a campos do saber, as referências são à “história antiga, e
moderna”, à “história sagrada, e profana”, à “história genea-
lógica” e à “História Eclesiástica”.11

106
No entanto, as elaborações de Couto são distantes das de
Bluteau em um ponto sensível. Este registra alguns sentidos
que se tornarão lugares-comuns ao campo semântico de histó-
ria, incluindo-se aí “todo o gênero de matérias”, em especial a
chamada história natural.12 Em língua portuguesa, essa compre-
ensão parecerá capaz de produzir um gênero próprio muito
influente, a chamada História Geral, cuja definição variara – e
variaria – ao longo das décadas, mas que, em meados do século
18, tinha como meta uma descrição completa da realidade de
determinado território e de uma variedade de saberes, uma
somatória, portanto, das diversas “histórias” acima referidas.
Em Desagravos do Brasil..., contudo, as referências a uma
totalidade desse tipo não são encontradas, havendo apenas a
distinção entre “História, e Filosofia Natural”.13 De outra parte,
Bluteau e Couto convergem no que diz respeito aos atributos
clássicos da história ciceroniana. Se para o primeiro “a história
é a testemunha do tempo, a luz da verdade, a vida da memória,
a mestra da vida, e a mensageira da Antiguidade”,14 para o
segundo a história de Pernambuco ofereceria muitos exemplos
de validade de tais assertivas.15
A polissemia inerente ao conceito de história começará a
sofrer mutações no último quartel do século 18, com as várias
“histórias” começando a esboçar uma unificação em torno de
um campo de experiência comum, sob a forma de algo que
poderíamos chamar de “narrativas ilustradas”. A este movimento
corresponderá um sensível declínio no prestígio da concepção
de uma história sagrada, até então subordinadora das histórias
profanas, com a correspondente valorização de um sentido de
articulação entre todas elas, bem como da crescente recorrência a
métodos de crítica da veracidade das fontes. Por fim, começarão
a surgir testemunhos de uma fundamental alteração nas sensibi-
lidades coletivas no espaço colonial: a percepção de aceleração
no tempo vivido e representado – isto é, do tempo histórico.
Ainda na conjuntura do reformismo português, indícios dessas
mutações são encontrados em dois poemas de autores naturais de

107
Minas Gerais: O Uraguay (1769), de Basílio da Gama, e Vila Rica
(1773), de Cláudio Manoel da Costa; o primeiro narra as guerras
hispano-portuguesas contra os povos indígenas chefiados pelos
jesuítas na América do Sul; o segundo, a elevação do povoado de
Vila Rica à condição de vila. Em ambos, a referência à história
é fundamental, merecendo o termo figurar logo nas primeiras
estrofes.16 Trata-se de uma história específica, de realizações
individuais, mas de heróis – no primeiro caso, o ministro do
rei, Sebastião José de Carvalho e Melo, no segundo, Antonio de
Albuquerque Coelho de Carvalho, governador e capitão-general
de Minas e São Paulo – e, portanto, superiores, por seu caráter
exemplar. A centralidade da ideia nos dois poemas parece, assim,
indicativa de um processo de unificação do passado em torno de
uma referência única, que não apenas mantém as “várias histó-
rias”17 como surge por meio delas, além de implicar consenso
em torno da prevalência da história profana à história sagrada.
Essas transformações são reforçadas nas notas complemen-
tares ao texto poético. Nelas, há um aprofundamento e uma
explicitação dos critérios de seleção e crítica dos acontecimentos
passados, com didática exposição de significados de termos,
fatos, personagens e intenções referidas no texto principal. Os
dois autores referem-se a tradições, mas também a livros, docu-
mentos escritos, testemunhos orais deles próprios ou por eles
recolhidos e, assim, indicam uma “história” una.18
Percebe-se como a tarefa de reformar o Império, racionali-
zando sua administração, integrando melhor seus territórios e
reconhecendo-lhes especificidades, fomentou a ideia de “histó-
ria” enquanto uma categoria una e abrangente, conferindo-lhe
maior centralidade no vocabulário político-social. Contudo, se
tal hegemonia estava organicamente inserida nos propósitos
reformistas, as contradições inerentes a essa política mostrar-se-
-iam capazes de fomentar um movimento que, a médio prazo,
caminharia em sentido oposto: o difícil estabelecimento dos
limites integradores das diferenças entre metrópole e colônias,

108
sobretudo das especificidades destas no conjunto, que por um
lado haviam se tornado condição do reformismo, mas por outro,
acirrariam essas mesmas especificidades a ponto de torná-las, em
muitas situações, mais problemáticas que de costume.
Na América portuguesa dos últimos anos do século 18, indí-
cios daquilo que, em última instância, se revelava um aprofun-
damento da crise geral iniciada antes – o quadrante português
da crise do Antigo Regime – encontram-se, conforme afirmado
há pouco, em manifestações de mudança qualitativa na relação
social com o tempo. Vila Rica, por exemplo, contém ao menos
duas passagens em que a narrativa se defronta com tal situação.19
As Minas Gerais, que já em 1773 sentiam os efeitos de uma
nova inserção no cenário luso-americano, logo se mostrariam
especialmente favoráveis à recepção e reelaboração dos novos
paradigmas políticos em circulação no mundo ocidental. Porém,
em termos de consciências e comportamentos coletivos, as
preocupações do reinado reformista de D. Maria I, iniciado em
1777, não se restringiriam aos habitantes das Minas, embora
destes viessem os primeiros sinais de alerta. A descoberta de uma
conspiração tramada em 1788 e 1789 e as sucessivas investiga-
ções revelariam, ao mesmo tempo, articulações inter-regionais,
um movimento político eivado de carizes inovadores no cenário
luso-americano e eloquentes testemunhos de difusão de um novo
regime de temporalidade, de uma nova concepção de futuro e,
inevitavelmente, de um novo sentido de história. Uma realidade
confirmada e reiterada por praticamente todos os movimentos
similares doravante tramados na América portuguesa, onde a
ruptura com noções tradicionais de história, se nem sempre era
plenamente concebida pelas alarmadas autoridades coloniais,
denunciava a dificuldade de afirmação da política reformista e
o correspondente aprofundamento da crise.20

109
A FORMAÇÃO DAS MACRONARRATIVAS
ILUSTRADAS (1808-1831)
Marco fundamental da crise do Antigo Regime português,
a transferência da Corte de Lisboa para o Rio de Janeiro em
1808 abriu um período de inédita aceleração histórica no mundo
luso-americano. Seus atores são unânimes em perceber o cará-
ter memorável do acontecimento, que não apenas acentuaria
a ideia de especificidade do continente americano no conjunto
do Império português, como lhe conferiria uma nova dignidade
histórica. Tal percepção atribuía ao presente funções de fundação
mítica, capaz de orientar o olhar para o futuro em um momento
carregado de incertezas. Essa tentativa de sondar o futuro a partir
do presente ficou registrada pela presença recorrente de uma
famosa máxima de Leibniz – “o presente está prenhe de futuro”
– muito utilizada por atores políticos da época. Aos poucos se
consolidava a experiência do presente como um momento de
transição para um futuro que se procurava prognosticar.
Tal o caso do Correio Braziliense, cujo editor, Hipólito da
Costa, recorreu a narrativas ilustradas para defender um tipo de
emancipação da América – isto é, amadurecimento natural em
relação à Europa, sem rupturas. No Correio, a versão providen-
cialista da história está ausente, substituída pela possibilidade
de obter orientação através da análise racional de leis históricas.
As narrativas ilustradas aparecem constantemente adaptadas de
fontes inglesas e escocesas para a história do Império português.
O caráter especialmente histórico do tempo presente é cons-
tantemente sublinhado, justificando o empenho do Correio em
estabelecer a verdade, pois seriam os jornais os “anais moder-
nos”, de onde os historiadores, no futuro, retirariam seus fatos.21
No Correio, a história é orientadora moral, juíza e guardiã
da posteridade, fonte para uma história filosófica capaz de
revelar as vocações dos povos. Nesse ponto é central a leitura
ilustrada de Tácito. No interior da macronarrativa ilustrada
são lidos os principais eventos contemporâneos, em especial a

110
expansão napoleônica – razão de ser da transferência da Corte
para o Brasil –, entendida como a ameaça de um retorno a um
“despotismo universal” semelhante ao dos romanos, impedindo
“assim os progressos de civilização”.22 As medidas de abertura
do comércio colonial adotadas por D. João foram lidas pelo
Correio como o fim do “Antigo sistema colonial”, isto é, o início
de uma nova era.23
Ao lado da noção cada vez mais forte de circunstâncias histó-
ricas a exigir medidas adequadas ao tempo, pode-se encontrar
a recorrência a exemplos do passado – longínquo ou recente
– como alerta.24 Tanto em Portugal como no Brasil, essa nova
percepção da história era acompanhada da necessidade de se
escrever uma história geral e filosófica capaz de apontar causas
e soluções para a crise. Embora em Portugal não faltassem
manifestações a favor do empreendimento, será do britânico
Southey a primeira história filosófica do Brasil. Southey firma
uma visada ampla sobre o processo colonizador do Brasil, visto
já como um império que, “descoberto por acaso, e ao acaso
abandonado por muito tempo, (...) com a indústria individual e
cometimentos particulares (...) tem crescido (...) tão vasto como já
é, e tão poderoso como um dia virá a ser”.25 Pela primeira vez as
teorias civilizatórias da ilustração europeia eram aplicadas para
a escrita de uma “história do Brasil” como unidade autônoma
com relação à história de Portugal.
O programa histórico desenvolvido no interior da Academia
das Ciências de Lisboa apontava para outra direção: uma
restauração da cultura portuguesa que passava pela leitura
dos clássicos lusitanos, nitidamente atrelada a uma persistente
concepção reformista setecentista da monarquia e da nação
portuguesas. Contudo, inovação e conservação deveriam estar
equilibradas em um projeto político e cultural que enfrentasse
os tempos modernos. Para José Bonifácio, natural da capitania
de São Paulo e secretário da Academia, o filósofo, ao restaurar
a língua portuguesa, deveria “lima[r] com jeito e arte a ferrugem
antiga, que o tempo deixara; e corrig[ir] o que há de anômalo

111
ao gosto, e à razão (...) se favorece o comércio livre de novas
ideias e conceitos; sujeitá-los todavia às leis precisas da polícia
nacional”.26
Em outro discurso, Bonifácio recapitularia a narrativa ilus-
trada desde seu momento clássico, passando pela decadência
romana e as invasões germânicas. Estas, apesar da aparência
catastrófica, teriam inoculado novo ânimo na história europeia,
permitindo mais adiante a valorização das línguas vernáculas e,
com elas, dos diversos povos europeus. Trata-se de uma caracte-
rização do tempo presente e de sua conquista de autoconfiança.27
Os limites da macronarrativa ilustrada mostram uma experiência
de aceleração do tempo que apresentava perspectivas distintas
entre aqueles que se viam no interior do Brasil e no “velho”
Portugal. Para homens nascidos na América como Hipólito e
Bonifácio, o peso de um passado decadente parecia relativizar-se
frente ao espaço “virgem” do Novo Mundo, sendo mais fácil
recomeçar do que corrigir o Velho.28
Bonifácio procurou aplicar à história das Letras em Portugal
princípio narrativo equivalente; no entanto, para ele o que se
verifica são sucessivos períodos de decadência, sendo o mais
recente aquele marcado pela invasão francesa. No governo de
D. João V, a criação da Academia de História era “digna de
nossos agradecimentos pelos trabalhos corajosos de seus Sócios
em explorar e cavar as ricas minas de nossa História, que até
então estavam em grandíssima parte escondidas e desaproveita-
das”.29 Aqui, a metáfora geológica confere à erudição histórica
uma concretude que lhe faltava nas tradicionais referências às
“páginas da história”. A narrativa que orienta a compreensão de
Bonifácio organiza-se em torno da existência da República das
Letras como força trans-histórica. Essa compreensão permitia
uma visão cosmopolita da história, muito ao gosto dos intelec-
tuais que de toda a parte do mundo português eram chamados
a socorrer o Império.
No interior da Academia de Ciências, fundiam-se demandas
por uma história erudita e, ao mesmo tempo, filosófica, capaz de

112
iluminar o passado e orientar o presente por meio de uma narra-
tiva elevada (“cumpre esperar que virá tempo, em que tenhamos
os nossos Gibbons, e os nossos Humes”30). Aos “azedos filóso-
fos” que viam na história apenas um cortejo caótico de fatos,
Bonifácio contrapunha as novas possibilidades de uma história
filosófica e pragmática.31
Frente às novas exigências documentais, estéticas e filosó-
ficas, a “História do Brasil” ainda não encontrara uma forma
adequada dentro da tradição historiográfica portuguesa. A reali-
zação de Southey refletia uma evolução do gênero no mundo
britânico, e não no português. Neste havia uma rica tradição
cronística e, mais recente, de corografias, mas faltava ainda
uma concepção de história geral capaz de apresentar de forma
orgânica o processo histórico. Exemplo dessa limitação pode ser
encontrado na Corografia brasílica, em que o país é mostrado
sob a perspectiva de um patrimônio do rei a ser inventariado.32
Já nas Memórias de José da Silva Lisboa (1818), a situação é
outra. As teorias dos estágios civilizatórios são empregadas para
defender um otimismo reformista de longo prazo que procu-
rava colocar as bandeiras revolucionárias em uma perspectiva
histórica secular: “Agora acelerar-se-á a época agourada por
sábios da Europa, que entre os seus habitantes indígenas (por
ora embriões da espécie) surgirão também, algum dia, seus
Newtons e Lockes.”33 Lisboa escreveu uma história da América
portuguesa nos quadros do providencialismo lusitano, sem, no
entanto, comprometer suas tentativas de compreensão racional
e processual da história. Na mesma linha, segue o também
monarquista Gonçalves dos Santos, em memórias publicadas em
1825: “Foi então que a Providência (...) inspirou aos sobreditos
vice-reis os planos de reforma, e melhoramento.”34 “Reformas”
e “melhoramentos” tanto mais importantes de serem narrados
quanto mais presentes faziam-se, em solo americano, manifesta-
ções políticas de contestação não mais restritas ao mau governo,
mas aos próprios fundamentos do poder monárquico.

113
Se na Europa a Revolução Francesa marcou uma nova sensi-
bilidade histórica, no quadro especificamente luso-americano
a expansão napoleônica e seus desdobramentos se mostraram
cruciais para transformações no campo conceitual. A visão de
Napoleão como representante de uma vontade trans-histórica
de domínio universal parece ter limitado – ainda que não
excluído – a recepção do conceito moderno de revolução,35
dando nova vida a formas mais conservadoras de experimentar
o processo histórico, apegadas ao passado, do que é sintoma
a centralidade dos conceitos de restauração e regeneração.
Em 1821, pressionado pela eclosão da Revolução
Constitucionalista do Porto (1820), D. João VI deixou o Rio
de Janeiro e o Brasil entregues ao príncipe-regente D. Pedro.
A conjuntura que permitira imaginar um futuro mimetizado
na ideia de um Império luso-brasileiro, complexificada com
a criação do Reino do Brasil (1815), logo se esgotaria, bem
como suas imagens históricas correspondentes. Criticando o
partido dos “desejadores do governo antigo”, o Revérbero
Constitucional Fluminense afirmava, em agosto de 1822, que
“a espécie humana tem de tal forma dilatado a esfera de suas
luzes, que não pode mais conter-se na concentração dos poucos
conhecimentos dos séculos passados”.36
O projeto de independência do Brasil como separação
política total de Portugal resultou de uma rápida radicalização
nas ideias articuladas de “emancipação” e “autonomia”, de
modo a atingirem outra, de criação de um novo Estado e de
uma nova esfera de soberania. Ao seu cabo, ainda que não
desaparecessem totalmente sonhos de uma reunificação, os
intelectuais e homens públicos envolvidos nesse projeto se
veriam diante da necessidade de dar conta de uma experiência
de ruptura revolucionária – em seu sentido moderno – que sua
formação anterior procurara evitar.

114
A NAÇÃO COMO METANARRATIVA
HISTORIOGRÁFICA (1831-C.1850)
A formação do Estado nacional, amparado por renovadas
elites escravistas ligadas a interesses econômicos em expansão,
definiu os limites para uma atuação intelectual ligada a quadros
burocráticos. Paralelamente ao avanço conservador da década
de 1830, também os campos discursivos foram se transfor-
mando.37 A nova ordem, inaugurada com a abdicação de D.
Pedro I em 1831, trazia a necessidade de construção de uma
história nacional.
Na formação desse campo de experiência da nacionalidade,
a história da literatura assumiria funções de vanguarda.38 No
entanto, para homens como Bonifácio, em 1825 ainda era difícil
pensar uma literatura brasileira que não fosse, de algum modo,
uma continuação da portuguesa.39 Não se fala de duas histórias
literárias separadas, e não há ainda uma história do Brasil escrita
sob a ótica nacional brasileira. Sensível a tal demanda, o francês
Denis lançaria um programa de uma literatura independente
para uma nação independente: seu Resumo literário foi um dos
primeiros documentos que relacionaram independência política,
história e nacionalidade brasileiras.40
Para os egressos do processo de Independência, a situação
política do Brasil exigia a dedicação a novas tarefas: redescobrir
o passado (inclusive literário), revisar a história colonial, dedicar-
-se às letras que a dominação metropolitana havia bloqueado
e que as lutas políticas haviam sufocado. Quando Gonçalves
de Magalhães publicou o texto considerado o manifesto do
romantismo literário brasileiro, o conceito de literatura deixava
de se referir apenas ao conjunto de obras organizadas ao longo
de uma grade de gêneros e passava a ser a representação de
todo um campo de experiência: “Eu [literatura] sou o espírito
desse povo, e uma sombra viva do que ele foi.”41 Transformada
em processo, a literatura assumia o papel de totalidade, como
dimensão capaz de produzir e preservar a identidade de uma

115
comunidade, por meio da qual a história deixava de ser apenas
a sucessão de acontecimentos isolados, tornando-se fator de
desenvolvimento dessa identidade.
Na revista Nitheroy, pela primeira vez reflexões históricas e
estéticas unificam-se em torno dessa nova tarefa. A escrita da
história deveria apresentar qualidades dramáticas e poetológicas
sem abdicar de seu compromisso com a verdade factual, pois
“toda a história, como todo o drama, supõe lugar da cena, atores,
paixões, um fato progressivo, que se desenvolve, que tem sua
razão, como tem uma causa, e um fim. Sem estas condições nem
há história, nem drama.”42 Mas os projetos de uma história da
literatura e de uma poesia românticas ainda não correspondem
a uma escrita da história nacional.
Em 1836, John Armitage publicou sua History of Brazil
(versão brasileira em 1837), peça de luta política liberal na qual
a imagem de um imperador belicoso e passional – D. Pedro I – é
contraposta à sociedade civil comercial, aplicando o modelo das
narrativas ilustradas para explicar os fatos de 1831. No fundo,
é uma história da formação da sociedade civil, uma história que
“já não pode ser considerada como mera resenha das tiranias e
carnificinas, mas antes como o arquivo das experiências tendentes
a mostrar a maneira de assegurar aos governados as vantagens
do governo”.43
Essa crescente politização da escrita da história é uma das
motivações para a criação, em 1838, do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, com o qual abriu-se o espaço institucio-
nal em que foram pensadas as bases de uma história nacional
a partir de um campo de experiência moderno.44 Tal projeto
procuraria integrar os avanços da historiografia com o objetivo
de produzir uma história nacional brasileira, rompendo assim
com vários dogmas do modelo ilustrado (como o seu compro-
misso com a “sociedade civil”). Para Cunha Barboza, o Brasil já
poderia iniciar a escrita de sua história, pois era o único país da
América a possuir uma “literatura nacional”.45 Aqui fica claro
que a própria história, como processo real, deveria “produzir as

116
condições para a sua escrita”. O princípio organizador já não
dependeria apenas das hipóteses racionais, começando a ser
procurado na própria realidade histórica. Também a experiência
do tempo histórico afastava-se das concepções cíclicas e da ideia
de uma natureza humana limitada.46
A meta-história nacional se consolidaria na década de 1840.
Barboza lembrava da censura e da herança da fragmentação
que no período colonial teriam impedido a visão total que a
história requer:

Estes fatos liam-se derramados em vários escritos, ou conservavam-


-se amortecidos na memória dos homens. Relatados diversamente
por escritores, ou nacionais ou estrangeiros, não podiam, até o feliz
momento de proclamar-se a nossa Independência, fundar base sólida
a nossa nacionalidade.47

O elemento de novidade nessa reflexão é a elevação da


Independência a fio condutor da história. Esse evento não apenas
teria produzido as condições da escrita, mas seria ele mesmo
o grande objeto da narrativa. A história do Brasil deveria ser,
desde sua origem, a história de seu processo de emancipação.
Como em toda a filosofia da história, o fim estava no começo.

NOTAS
1
Raphael Bluteau, Vocabulario portuguez et latino, Lisboa, Joseph Antonio da
Silva, 1712-1721, 8 t.
2
Íris Kantor, Esquecidos e renascidos: historiografia acadêmica luso-americana
(1724-1759), São Paulo, Hucitec, Salvador, UFBA, 2004.
3
Antonio de Moraes Silva, Diccionario da lingua portugueza, 3. ed., Lisboa, M. P.
de Lacerdo, 1823; Antonio de Moraes Silva, Diccionario da lingua portugueza,
4. ed., Lisboa, Imprensa Régia, 1831; Antonio de Moraes Silva, Diccionario da
lingua portugueza, 5. ed., Lisboa, Typographia de Antonio José da Rocha, 1844,
2 v.
4
Eduardo de Faria, Novo diccionario da lingua portugueza, Lisboa, Tipografia
de José Carlos de Aguiar Vianna, 1850-1853.
5
Ibidem, grifo nosso.

117
6
Antonio de Moraes Silva, Diccionario da lingua portugueza, 9. ed., Lisboa,
Empreza Litteraria Fluminense de Santos, Vieira & Commandita, 1877-1878.
7
Domingos Loreto Couto, Desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco, Recife,
Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1981, p. 95, 359, 379, 393.
8
Ibidem, p. 37, 58-59.
9
Ibidem, p. 90, 236.
10
Ibidem, p. 474, 522-523.
11
Ibidem, p. 358, 364, 379-380, 523.
12
Bluteau, Vocabulario portuguez et latino.
13
Couto, Desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco, p. 522-523.
14
Bluteau, Vocabulario portuguez et latino.
15
Couto, Desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco, p. 236.
16
Ivan Teixeira (org.), Obras poéticas de Basílio da Gama, São Paulo, Edusp,
1996, p. 195; Domício Proença Filho (org.), Poesia dos inconfidentes: poesia
completa de Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e Alvarenga
Peixoto, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1996, p. 377.
17
Teixeira, Obras poéticas de Basílio da Gama, p. 232; Proença Filho, Poesia dos
inconfidentes, p. 383, 396.
18
Teixeira, Obras poéticas de Basílio da Gama, p. 203, nota 217; p. 222, nota
182; p. 238, nota 33; Proença Filho, Poesia dos inconfidentes, p. 359.
19
Proença Filho, Poesia dos inconfidentes, p. 430, 432.
20
István Jancsó, A construção dos Estados nacionais na América Latina: aponta-
mentos para o estudo do Império como projeto, em Tamas Szmrecsányi, José
Roberto do Amaral Lapa (org.), História econômica da independência e do
Império, São Paulo, Hucitec, 1996, p. 3-26.
21
Correio Braziliense, Londres, p. 321, 1808.
22
Ibidem, p. 44.
23
Ibidem, p. 123.
24
João Paulo G. Pimenta, Brasil y las independencias de Hispanoamérica, Castelló
de la Plana, Universitat Jaume I, 2007.
25
Robert Southey, History of Brazil, London, Longman and Co., 1810, p. 39.
26
José Bonifácio de Andrada e Silva, Discurso contendo a história da Academia
Real das Ciências, desde 25 de junho de 1812 até 24 de junho de 1813 (1813),
em Obras científicas, políticas e sociais, São Paulo, GTE das Homenagens ao
Patriarca, 1965, v. 1, p. 141; Correio Braziliense, XV, p. 52, 1815.
27
José Bonifácio de Andrada e Silva, Discurso contendo a história da Academia
Real das Ciências, desde 25 de junho de 1814 até 24 de junho de 1815 (1815),
em Obras científicas, políticas e sociais, São Paulo, GTE das Homenagens ao
Patriarca, 1965, v. 1, p. 358-359.

118
28
Ibidem, p. 360.
29
Ibidem, p. 364.
30
Ibidem, p. 367-368.
31
Ibidem, p. 368.
32
Manuel Ayres de Casal, Corografia brasílica ou, relação histórico-geográfica do
Reino do Brazil, Rio de Janeiro, Impressão Régia, 1817, p. 15.
33
José da Silva Lisboa, Memória dos benefícios políticos do governo de El-Rey
Nosso Senhor D. João VI, Rio de Janeiro, Impressão Régia, 1818, p. 129.
34
Luís Gonçalves dos Santos, Memórias para servir à história do reino do Brasil,
Belo Horizonte, Itatiaia, São Paulo, Edusp, 1981, p. 36.
35
João Paulo G. Pimenta, A política hispano-americana e o Império português
(1810-1817): vocabulário político e conjuntura, em István Jancsó (org.), Brasil:
formação do Estado e da nação, São Paulo, Hucitec, FAPESP, Unijuí, 2003,
p. 123-139.
36
Revérbero Constitucional Fluminense, Rio de Janeiro, p. 128, 1822.
37
Ilmar Rohloff de Mattos, O tempo saquarema: a formação do Estado imperial,
São Paulo, Hucitec, 1987.
38
Valdei Lopes de Araújo, A experiência do tempo: conceitos e narrativas na
formação nacional brasileira (1813-1845), São Paulo, Hucitec, 2008.
39
José Bonifácio de Andrada e Silva, Poesias avulsas de Américo Elysio, Bordeaux,
[s.n.], 1825, p. 137.
40
Ferdinand Denis, Resume de l’histoire littéraire du Portugal suivi du resume de
l’histoire littéraire du Brésil, Paris, Lecointe et Durey, 1826, p. 513 e seguintes.
41
Nitheroy, Revista Brasiliense: Ciências, Letras e Artes (1836), São Paulo, Bra-
siliense, n. I e II, 1978, edição fac-similada.
42
Ibidem, p. 142.
43
John Armitage, História do Brasil (1837), Belo Horizonte, Itatiaia, São Paulo,
Edusp, 1981, p. 25.
44
Manoel L. S. Guimarães, Nação e civilização nos trópicos: o IHGB e o projeto
de uma História Nacional, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p.
5-27, 1988; Lúcia M. P. Guimarães, Debaixo da Imediata Proteção de Sua
Majestade Imperial o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889),
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 156,
n. 388, p. 459-613, jul.-set. 1995.
45
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (RIHGB), Rio de Janeiro,
1839, p. 360.
46
Ibidem, p. 78.
47
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (RIHGB), Rio de Janeiro,
1843, n. 5, suplemento, p. 5.

119
REFERÊNCIAS
SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da lingua portugueza. Lisboa:
Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789.
SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da lingua portugueza. 2. ed. Lisboa:
Typographia Lacerdina, 1813.

120
CHRISTIAN E D WA R D CYRIL LYNCH

LIBERAL/LIBERALISMO

Um exame da história das ideias no Brasil deve levar em


consideração algumas circunstâncias que a diferenciam dos
demais países da América Ibérica. A primeira é que, até 1808,
a legislação portuguesa impediu a introdução de tipografias
em território brasileiro. Não havendo jornais em circulação ou
livros impressos, os leitores se contentavam com a literatura
produzida na Europa e que atravessava o Atlântico legalmente
ou por via clandestina. Além disso, Portugal evitou criar univer-
sidades ou faculdades nos territórios ultramarinos, ficando o
saber disponível ao público restrito às bibliotecas dos conven-
tos e às escolas mantidas por religiosos. Os filhos da elite eram
obrigados a se deslocar até a Europa, onde faziam seus estudos
superiores na Universidade de Coimbra. Por isso, não havia
consciência de uma identidade brasileira própria até as vésperas
da Independência. Uma terceira circunstância excepcional foi
a transferência da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro em
1808 e a elevação do Brasil, em 1815, à categoria de Reino
Unido a Portugal e Algarves. Assim, quando a resistência das
cortes de Lisboa em admitir alguma autonomia ao Brasil levou
os portugueses da América a considerar uma alternativa seces-
sionista, a experiência monárquica autônoma teve um peso
fundamental na escolha desse regime de governo. Daí que o
conceito de liberalismo no Brasil esteve estreitamente vinculado
à compreensão da natureza da monarquia constitucional.
No contexto de Antigo Regime, não há vestígio do sentido
moderno da palavra liberal. Segundo o Dicionário de Bluteau
de 1716, liberal era pessoa generosa “que, com prudente mode-
ração, gratuitamente, e com boa vontade dá dinheiro, ou cousa
que o valha”. O termo podia também designar alguém que
muito prometia, sem cumprir – “liberal em prometer, liberal em
dar palavras, mas sem efeito”. Mais interessante é o significado
seguinte que, a partir da palavra latina liberalis, isto é, bem-
-nascido, fazia de liberal sinônimo de “pessoa de qualidade”,
distinto dos “plebeus e escravos” – ou seja, nobre. Eram artes
liberais aquelas que se opunham às artes mecânicas, ou seja,
que eram praticadas “sem ocupar as mãos”, sendo “próprias
de homens nobres, e livres não só da escravidão alheia, mas
também da escravidão de suas próprias paixões”. A difusão dessa
concepção de liberal como nobre devia ser tão ampla ou maior
ainda no Brasil do que em Portugal, pois qualquer um que tivesse
escravos podia viver conforme a lei da nobreza: não exercia
trabalho manual, andava de carruagem e mantinha criados de
libré.1 De qualquer forma, o Dicionário de Bluteau de 1713 já
deixava entrever possíveis desdobramentos semânticos, já que,
no verbete liberalidade, adiantava o dicionarista ter essa palavra
“grande analogia” com liberdade: “O liberal, dando o que tem,
descativa em certo modo, e faz livre o que no seu poder estava
como preso, e debaixo da chave do seu domínio.”2
Num quadro tal, é mais do que compreensível o caráter pouco
igualitário dos planos autonomistas daquela que teria sido –
porque não se concretizou – a mais célebre rebelião contra o
domínio da Coroa portuguesa: a Inconfidência Mineira. Embora
presente certa concepção clássica de governo republicano, isto
é, que governasse com a justiça de acordo com a lei, não havia
espaço para a igualdade civil na república imaginada por Cláudio
Manuel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga.3 O exemplo norte-
-americano os interessava antes como precedente bem-sucedido
de rebelião anticolonial do que como modelo de construção
jurídico-institucional. Sob o influxo da Revolução Francesa, é

122
possível que tenham sido menos restritivas as concepções dos
conspiradores da Conjuração Carioca de 1794. O eventual entu-
siasmo da elite colonial arrefeceria, todavia, na década seguinte,
quando ela percebeu que a apologia da liberdade e da igualdade
contra o domínio português poderia contagiar os pobres e os
próprios escravos contra seus senhores. O exemplo havia sido
dado pela rebelião na ilha de São Domingos, quando os escravos
massacraram os colonizadores franceses. Desde que ganhavam
potencialmente um cunho racial e social, ideais que, para a elite
proprietária, significavam fim do jugo metropolitano e liberdade
de comércio poderiam ter interpretação diversa entre os estra-
tos inferiores da população, como se percebera da Conjuração
Baiana de 1798.4
A chegada da Corte bragantina ao Rio de Janeiro em 1808
provocou alterações significativas, ainda que modestas, na
estreiteza do debate político. Ela introduziu uma tipografia,
permitiu atividades manufatureiras, possibilitou que estrangei-
ros visitassem e residissem no Brasil, criou cursos superiores e,
principalmente, acabou com o monopólio comercial português.
A despeito da censura e da dificuldade de circulação de outras
folhas que não as de caráter oficial, cerca de mil e cem impressos
saíram do prelo até 1822. Foi nesse período que começou a se
difundir no Brasil uma noção moderna de liberdade, ou seja, não
mais a liberdade dos antigos, republicana clássica ou constitu-
cional antiquária, ou de liberdade como privilégio, mas de uma
liberdade caracterizada pelos direitos e garantias individuais,
baseados em critérios isonômicos.
Antes da apologia do liberalismo em sentido político, houve
a do liberalismo econômico, de que se fez advogado o angló-
filo baiano José da Silva Lisboa. Ele escreveu a primeira obra
publicada no Brasil sobre as vantagens da liberdade comercial,
as Observações sobre o Comércio Franco no Brasil.5 Por conta
da difusão das doutrinas econômicas do iluminismo escocês, a
superação de concepções mercantilistas foi acusada pela edição
do Dicionário de Moraes, em 1812: além de quem era “largo

123
no dar, e despender, sem avareza, nem mesquinharia”, ou quem
exercia trabalhos não mecânicos, também era liberal, agora,
aquilo ou aquele que era “livre, franco”. O exemplo fornecido
era exatamente de cunho comercial: um “liberal navegação”.6
Já inaugurado o regime constitucional, o deputado mineiro
Bernardo Pereira de Vasconcelos sustentou a indissolubilidade
entre liberalismo econômico e político: “Favor e opressão signi-
ficam a mesma coisa em matéria de indústria; o que é indispen-
sável é guardar-se o mais religioso respeito à propriedade e à
liberdade do cidadão brasileiro.”7 Do ponto de vista da difusão
do ideário político liberal, a grande referência do período joanino
foi o jornal de Hipólito José da Costa, o Correio Braziliense ou
Armazém Literário, publicado em Londres, entre 1808 e 1823,
e que, destinado ao público brasileiro, tinha ampla e franca
circulação no Brasil. Das páginas de seu periódico, circularam
escritos que defendiam a liberdade de imprensa e a necessidade
de reforma da monarquia à maneira das instituições inglesas.
Assim era que, em 1809, Hipólito da Costa já sustentava que “a
liberdade individual do cidadão é o primeiro bem; e protegê-la
é o primeiro dever de qualquer governo”. Sem a liberdade de
“falar e escrever”, ele ajuntava, “a nação não prospera, porque
os dons e vantagens da natureza são poucos para reparar os erros
do governo e porque se alguém descobre o remédio ao mal, não
lhe é permitido o indicá-lo”. À conta desses motivos, Hipólito
da Costa criticava os ministros de D. João que tentavam impedir
“a propagação de ideais liberais”.8
A despeito desses precursores, a divulgação maciça dos novos
conceitos políticos começou somente em 1821, quando chegaram
de Portugal as notícias da Revolução do Porto, exigindo o retorno
do Rei a Lisboa e convocando uma Assembleia Constituinte.
Exaltado, carregado da linguagem do republicanismo clássico e
do contratualismo, esse primeiro movimento liberal do mundo
luso-brasileiro, conhecido como vintismo, era tributário direto
do liberalismo espanhol de Cádiz e, por via reflexa, do discurso
revolucionário francês de 1789-1791. A aceitação da liberdade

124
de imprensa provocou uma explosão de manifestações públicas
impressas, classificada pelo autor de uma delas como “uma
guerra literária, que tem inundado todo o Portugal e Brasil de
panfletos e folhas volantes”.9 Esses panfletos eram escritos em
linguagem exaltada, desabrida, personalista; eram verdadeiros
“insultos impressos”.10 O liberal era apresentado como aquele
que queria tanto “o bem de sua pátria” quanto “a liberdade”; que
“ama o monarca, respeita-o, quando é respeitável, amaldiçoa-o
quando é indigno e tirano, e prefere a morte a um jugo insupor-
tável”. Já o “liberalismo” ou a “liberalidade de ideias”,11 por sua
vez, era “a justiça mais pura e mais elevada aplicada a nossas
ações e, portanto, a fonte de todas as nossas virtudes”.12 Ao
liberalismo era também atribuída a capacidade de resolver todos
os males que afligiam portugueses dos dois lados do Atlântico:
visto que o regime liberal tinha “a virtude d’Arca Noemítica, hão
de habitar à sua sombra diversos caracteres, e todos em perfeita
paz”, concluía-se naturalmente que “uma nação (...) com um
governo constitucional, ativo, vigilante e enérgico, será certa-
mente uma potência de grande respeito, e consideração política,
e terá um lugar distinto entre as Nações de primeira ordem”.13
Pouco frequente o emprego da expressão liberalismo durante
o período de efervescência do vintismo – ao exemplo, aliás, do
que se passava em Portugal –, os liberais se valiam de outras,
como constitucionalismo ou governo representativo, tomados
como sinônimos dos dois lados no mundo português.14 Num
primeiro momento, eles parecem ter sido intercambiáveis, porque
somente era liberal quem queria a Constituição e, com ela, o
governo representativo. Daí que cada um deles timbrasse em se
declarar “muito liberal e muito constitucional”, desejosos todos
de gozar “dos benefícios de uma Constituição liberal”.15 Segundo
o Amigo dos Homens e da Pátria, que escrevia naquele ano em
Salvador da Bahia, a Constituição era o veículo que permitiria
o advento do sistema representativo; era “a norma, ou a regra,
que uma sociedade unanimemente estabelece para a sua geral
conservação, tranquilidade e bem-estar”.16 Mas persistia também

125
a noção antiquária de Constituição. O autor de Reflexões sobre
a Necessidade de Promover a União dos Estados de que Consta
o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves nas Quatro Partes
do Mundo, publicado em 1822 em Lisboa, entendia que “as
Cortes se propuseram formar a Constituição da Monarquia, ou
antes, reformar a antiga Constituição Portuguesa”.17 José da Silva
Lisboa já distinguia entre as antigas leis fundamentais medievais
o conceito moderno de Constituição: ele entendia

por constituição de um Estado o complexo de leis, a que se destina


a perpetuidade, qualquer que seja depois a instabilidade das institui-
ções humanas. Em consequência, leis constitucionais, no meu humilde
entender, são as que antes se chamavam leis fundamentais do Estado,
que não se podem derrogar sem ruína do mesmo Estado, ou de sua
forma de Governo.18

Do outro lado do espectro político, os vintistas brasileiros


invocavam a tese da perfectibilidade humana, para avançar que
o progresso impunha a realização de um novo pacto político.
O deputado paulista Diogo Antônio Feijó explicava de forma
detalhada esse nexo entre Constituição e direitos fundamentais:

Qual o objetivo de toda a instituição política, ou de toda a espécie


de governo? A garantia dos direitos e da liberdade de cada um (...)
O melhor governo, qualquer que seja a sua forma, é pois aquele que
afiança os direitos de cada um, e que é obrigado a submeter-se à
Constituição.19

Já o governo ou monarquia representativa era uma modali-


dade equidistante da democracia e da monarquia pura. Era o que
explicava em 1823 a principal figura do direito público brasi-
leiro – o Marquês de Caravelas: “A monarquia representativa é
um governo misto, que se combina umas vezes com elementos
democráticos, outras vezes com a aristocracia e democracia

126
conjuntamente.”20 Também o Marquês de Barbacena afirmava
que “a monarquia representativa é a melhor forma de governo
de quantas até aqui se tem imaginado; e a sua principal perfeição
consiste no equilíbrio ou contrapeso, como alguns chamam, entre
os poderes, de que ele se compõe”.21 Essa linha de moderação
era compartilhada nas páginas do jornal Aurora Fluminense pelo
carioca Evaristo Ferreira da Veiga: “Nada de jacobinismo de
qualquer cor que seja. Nada de excessos. A linha está traçada – é
a da Constituição. Tornar prática a Constituição que existe sobre
o papel deve ser o esforço dos liberais.”22 No entanto, por conta
da Carta francesa de 1814 e, com ela, do surgimento de propostas
constitucionalistas vazadas em modelos mais moderados que o
do vintismo, cedo se esboçou uma distinção entre constitucio-
nalismo e liberalismo. No entender dos vintistas, eram liberais
somente aqueles que, como eles, queriam uma Constituição
como a espanhola de 1812, pautada por um regime unicame-
ral e pela submissão do monarca ao Legislativo. Empregados
pelos propalados liberais para designar os que viam como seus
inimigos, os contraconceitos de liberalismo e constitucionalismo
eram, respectivamente, servilismo e absolutismo ou despotismo,
também chamado anticonstitucionalismo e corcundismo. Os
servis, cortesãos, absolutistas, pés de chumbo ou corcundas
(corcundas de tanto se curvarem ao poder) eram os defensores
do despotismo ministerial, usufrutuários de privilégios, contrá-
rios a uma sociedade de méritos e de igualdade, e que por isso
queriam preservar o antigo regime de opressão, de escravidão.
Os primeiros incluídos no rol dos servis ou dos corcundas eram
os ministros do Rei, que

monopolizavam com uma prostituição inaudita, as medalhas, as


honras, as condecorações, que só são, e devem ser, o exclusivo patri-
mônio dos homens beneméritos, que têm feito relevantes serviços à
Pátria e ao Estado (...) Ministros, que senão podem considerar senão
como o refugo dos portugueses, vergonha da humanidade, e a escória
do servilismo.23

127
O Dicionário de Moraes Silva acusaria esse sentido político da
palavra liberal somente em 1844: “Não servil, independente,
partidista do sistema liberal neste último sentido.”24
Ocorre que não era apenas os absolutistas alcunhados de
corcundas ou servis pelos liberais de extração vintista. Depois
da crise entre o príncipe regente D. Pedro, no Rio de Janeiro, e
as cortes de Lisboa, da qual resultou a Independência do Brasil,
também foram acusados aqueles que, não sendo absolutistas,
preferiam uma organização constitucional mais equilibrada,
à inglesa – o que era o caso de Hipólito José da Costa – ou
com velada preponderância da Coroa – como José Bonifácio
de Andrada e Silva. Para eles, os princípios vintistas e asseme-
lhados eram “inteiramente teoréticos e inexequíveis”, levando
à “anarquia de muitos” e, depois, ao “despotismo de um só”.
A eles também eram creditados as guerras civis e os golpes de
Estado na França e na Espanha, bem como o banho de sangue
na América hispânica. Embora justificassem um governo forte
pelas dificuldades de construção do novo Império, eles rejeita-
vam o absolutismo e reconheciam a inevitabilidade do governo
representativo. Daí que os chamados coimbrãos não recusavam o
ideário do liberalismo ou do sistema representativo, filiando-se,
porém, à retórica dos monarquianos franceses de 1789, como
Malouet, Mounier e Clermont-Tonnerre. Era esse o estilo de
liberalismo – o monarquiano – que tinha o aval do imperador.
Ao abrir a Constituinte de 1823, Pedro I declararia que “o povo
do Brasil (...) quer uma Constituição, mas não quer demagogia
e anarquia”, e que por isso era necessária uma Carta erigida
“sobre bases sólidas, cuja sabedoria os séculos testemunharam
a verdade, para dar aos povos uma justa liberdade, e ao Poder
Executivo, toda a força de que ele precisa”.25 Em outubro de
1823, o secretário do imperador, o português Francisco Gomes
da Silva, o Chalaça, colocava de forma clara a divergência entre
os liberais monarquianos e os liberais vintistas: “Ou queremos
monarquia constitucional, isto é, um governo misto, ou queremos
uma monarquia republicana.”26

128
O resultado foi que os coimbrãos e suas ideias monarquianas
passaram a ser atacados pelos vintistas, que lhes negavam a
qualidade de liberais. Como os absolutistas, eles eram também
servis, corcundas, pés de chumbo, despóticos ou simplesmente
absolutistas. Assim, o vintista Joaquim do Amor Divino Rabelo,
o Frei Caneca, acusava o ministério de José Bonifácio de despó-
tico, porque agia “com os seus terrores, com as suas sugestões,
e levando mão das suas arbitrariedades de devassas, prisões,
expatriações; não respeitando a liberdade dos povos, a segu-
rança das vidas e pessoas dos cidadãos”, e não deixava “que
falem os escritos, veículo da opinião pública”.27 Os liberais
defensores da Coroa forte, por sua vez, tachavam os vintistas de
republicanos, demagogos, democratas e jacobinos – ou, como
queria José Bonifácio, “facção oculta e tenebrosa de furiosos
demagogos e anarquistas”.28 Essa oposição culminou com a
dissolução da Constituinte pelo imperador. Elaborada pelo
Conselho de Estado e outorgada pelo monarca em março de
1824, a nova Carta era um compromisso entre coimbrãos ou
realistas e os vintistas ou liberais: se, por um lado, os primeiros
haviam conseguido nela introduzir o bicameralismo e reforçar
o poder da Coroa ao atribuir-lhe também o exercício do poder
moderador, por outro, foi inserida uma declaração de direitos
digna das malogradas constituições ibéricas. Nem por isso o
confronto cessou. O antagonismo entre liberais de esquerda e
de direita levou a um confronto interinstitucional que opunha
a Coroa, o Conselho de Estado e o Senado, com sua linguagem
monarquiana, à Câmara de Deputados, com seu discurso ultrali-
beral. Os liberais de esquerda, já autodenominados liberais tout
court, invocavam o paradigma do governo parlamentar inglês
como o único que efetivamente a ele correspondia e fora da qual
tudo era absolutismo, tirania ou despotismo.29
O período posterior, que cobre o período regencial (1831-
1840), caracterizou-se pela hegemonia dos antigos liberais,
denominados agora moderados porque combatiam à direita
os antigos realistas, acusados de pretender a restauração de

129
Pedro I (os caramurus), e à esquerda, os exaltados, que queriam
o federalismo e simpatizavam com o modelo institucional norte-
-americano. O principal doutrinário do Partido Moderado era
o deputado Evaristo Ferreira da Veiga, que declarava querer o
governo “monárquico constitucional representativo, em que os
dons da liberdade podem ser melhor saboreados, no remanso
da paz que ele oferece, contidas as facções com o prestígio da
realeza”.30 Promovida por moderados e exaltados com a resis-
tência dos realistas, a reforma constitucional de 1834 se deu no
caminho daquilo que julgavam “o verdadeiro liberalismo”, que
passava pela concepção presidencialista do Poder Executivo
e por uma descentralização político-administrativa. Não é de
se admirar que, eleito depois regente do Império numa eleição
nacional em dois graus, como um presidente norte-americano,
Diogo Antônio Feijó negasse prazenteiro que o Brasil ainda
fosse uma “monarquia temperada”. Tratava-se agora de uma
monarquia democrática:

Compare-se o nosso governo com o dos Estados Unidos e conhecer-


-se-á que no essencial são ambos os Estados governados pelo mesmo
sistema, e que a maior diferença está no nome e em certas exterioridades
de nenhuma importância para a causa pública (...) De monarquia, só
temos o nome.31

Até o início da década de 1830, a prática da monarquia


constitucional era interpretada à Montesquieu, predominando
a teoria do governo misto ou temperado – segundo a qual a
Câmara dos Deputados representava o elemento popular; o
Senado vitalício, o aristocrático; e a Coroa, o monárquico – e a
da separação de poderes –, que identificava as duas câmaras ao
Poder Legislativo e o imperador ao Executivo. Dali por diante,
porém, sob o influxo do liberalismo doutrinário e a primeira das
reformas eleitorais inglesas, consolidou-se uma terceira teoria,
a do governo das maiorias ou governo parlamentar, segundo a
qual a demissão e a nomeação dos ministros pela Coroa careciam

130
também da confiança do Parlamento. Enquanto o regente Feijó
continuava a sustentar que o princípio do “governo das maio-
rias” era “absurdo e subversivo de toda a ordem no Brasil, além
de inconstitucional”,32 o oposicionista carioca Firmino Rodrigues
Silva retrucava que “no sistema representativo – governo sem
maioria – é frase absurda que não tem explicação alguma”.33 Em
1844, o Dicionário de Moraes Silva incorporou enfim a ideia
de “sistema, ou governo representativo”, qualificando como
“aquele em que a autoridade soberana é exercida em nome
do povo, por representantes ou delegados escolhidos por ele”.
Na mesma edição, surge também o registro do sentido político
da palavra liberal: “Usa-se também para designar os governos
representativos.”34
Em 1837, com a morte de Pedro I em Portugal e a ameaça
de separatismo das províncias, a ala direita dos moderados se
destacou para aliar-se aos antigos realistas e fundar o Partido
Conservador ou saquarema. Tratava-se, segundo seus líderes,
de podar os excessos provocados pela reforma constitucional e
restaurar a configuração institucional monarquiana de 1824. De
fato, os regressistas entendiam que o progresso só poderia se dar
dentro da ordem, e que, para isso, teriam de retrogradar, o tanto
quanto possível, à época anterior ao predomínio “democrático” da
Regência, ou seja, ao tempo do reinado de Pedro I, quando ponti-
ficava o “princípio monárquico”. Ao mesmo tempo que admitia
a teoria do governo das maiorias (diverso de parlamentarista),
o conservadorismo brasileiro absorveu o discurso monarquiano
precedente, criando um governo parlamentar pautado pela tutela
da Coroa. A fundação do Partido Conservador levou os demais
moderados a criar seu próprio partido – Liberal ou luzia. Já por
esse tempo, liberal deixara de ser meramente antônimo de abso-
lutista, para se tornar sinônimo de pessoa de ideias avançadas,
isto é, de progressistas – contrários, portanto, aos conserva-
dores ou regressistas. A filosofia da história, segundo a qual o
motor da civilização era a luta entre a unidade, a monarquia, o
governo, a autoridade ou a ordem, de um lado, e a pluralidade,

131
a democracia, a sociedade, a liberdade ou o progresso, de outro,
era o pano de fundo que orientava os grupos políticos para
interpretar o funcionamento do governo parlamentar, do biparti-
darismo e do papel da Coroa em torno de um consenso mínimo.
Sua alternância no poder era fundamental para que a resultante
dessa dialética fosse o progresso dentro da ordem. Assim, um
liberal extremado como o mineiro Teófilo Benedito Otoni podia
se referir, no início da década de 1860, aos “dois princípios que
estão em luta eterna em todos os governos possíveis, o princípio
progressista e o conservador”.35 Teórico do liberalismo conser-
vador, o Visconde do Uruguai entendia que havia um falso
paralelismo entre ser liberal e ser membro do Partido Liberal,
para ele coisas muito diferentes: “Digo a opinião chamada liberal,
porque estou profundamente convencido de que é contrária à
verdadeiramente liberal.”36 No Brasil, o verdadeiro liberal era
o conservador, que exigia, pela centralização, o robustecimento
da autoridade do Estado, agente civilizador capaz de se impor
à aristocracia rural, acessar a população subjugada no campo e
fazer valer os direitos civis. Daí que Uruguai achasse que “grande
liberal por excelência é um verdadeiro tiranete, que quer dispor
e dispõe de tudo a seu talante, que o que se quer é substituir o
que chamavam o filhotismo e a oligarquia por um filhotismo e
oligarquia verdadeiros e maior”.37 Dado seu caráter pulverizador
e particularista, a retórica liberal do progresso era veiculada por
aqueles que queriam o privatismo e a fragmentação, isto é, um
autêntico “regresso”; ao passo que a retórica conservadora da
ordem, garantindo a unidade nacional e o interesse público, é que
havia conseguido forjar o pouco de verdadeiro progresso que o
país conseguira desde a Independência. Era justamente porque o
conservador amava a liberdade “que se devem empregar todos os
meios para salvar o país do espírito revolucionário, porque este
produz a anarquia, e a anarquia destrói, mata a liberdade, a qual
somente pode prosperar com a ordem”.38 Esse discurso liberal
de direita encontrará seu zênite durante os primeiros vinte anos
do reinado de Pedro II. Não por acaso, foi nessa mesma época

132
– 1858 – que o Dicionário de Moraes Silva acusou, finalmente,
a entrada do verbete liberalismo, entendido como “Sistema,
adoção das ideias liberais. Procedimento político regulado por
essas ideias; o contrário de servilismo.”39

NOTAS
1
Maria Beatriz Nizza da Silva, Ser nobre na Colônia, São Paulo, Editora Unesp,
2005, p. 23.
2
Raphael Bluteau, Vocabulário português et latino, áulico... autorizado com
exemplos dos melhores escritores portugueses e latinos, e oferecido a El-Rei de
Portugal, D. João V, Coimbra, Colégio das Artes da Companhia de Jesus, Lisboa,
José Antônio da Silva, 1713.
3
Eliane Cristina Deckmann Fleck, Os inconfidentes – intérpretes do Brasil do
século XVIII, em Günter Axt, Fernando Schüler, Intérpretes do Brasil: cultura
e identidade, Porto Alegre, Artes e Ofícios, 2004, p. 31.
4
Keila Grimberg, O fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e Direito Civil
no tempo de Antônio Pereira Rebouças, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
2002, p. 53.
5
Wilson Martins, História da inteligência brasileira, São Paulo, Cultrix, 1974,
v. 2, p. 19.
6
Antonio de Moraes Silva, Dicionário da língua portuguesa, recopilado dos vo-
cabulários impressos até agora, e nesta segunda edição novamente emendado,
e muito acrescentado, 2. ed., Lisboa, Tipografia Lacerdina, 1813.
7
Otávio Tarquínio Sousa, Bernardo Pereira de Vasconcelos, Belo Horizonte,
Itatiaia, 1988, p. 73.
8
Hipólito José Costa, Antologia do Correio Braziliense, organização e seleção de
Barbosa Lima Sobrinho, Rio de Janeiro, Cátedra, 1977.
9
Compadre de Rio de Janeiro, Justa Retribuição dada ao Compadre de Lisboa
em Desagravo dos Brasileiros Defendidos por Várias Asserções, que Escreveu
na sua Carta em Resposta ao Compadre de Belém, Segunda Edição Correta e
Aumentada (1822), em Conselho Federal de Cultura (Brasil), O debate político
no processo da Independência, introdução de Raimundo Faoro, Rio de Janeiro,
Conselho Federal de Cultura, 1974.
10
Isabel Lustosa, Insultos impressos: a guerra dos jornalistas na independência –
1821-1823, São Paulo, Companhia das Letras, 2000.
11
José Antônio de Miranda, Memória constitucional e política sobre o estado pre-
sente de Portugal e do Brasil (1821), em Conselho Federal de Cultura (Brasil), O
debate político no processo da Independência, introdução de Raimundo Faoro,
Rio de Janeiro, Conselho Federal de Cultura, 1974, VI.

133
12
Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves, Corcundas e constitucionais: a cultura
política da independência (1820-1822), Rio de Janeiro, Revan, 2003, p. 147.
13
Exame Analítico-Crítico da Questão: o Rei, e a Família Real de Bragança de-
vem, nas Circunstâncias Presentes, Voltar a Portugal ou Ficar no Brasil? Bahia,
Tipografia da Viúva Serva e Carvalho, com Licença da Comissão de Censura
(1820), em Conselho Federal de Cultura (Brasil), O debate político no processo
da Independência, introdução de Raimundo Faoro, Rio de Janeiro, Conselho
Federal de Cultura, 1974, p. 23.
14
Telmodos Santos Verdelho, As palavras e as ideias na Revolução Liberal de
1820, Coimbra, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1981.
15
Miranda, Memória constitucional e política..., IX.
16
Maria Beatriz Nizza da Silva, A cultura luso-brasileira: da reforma da Univer-
sidade à Independência do Brasil, Lisboa, Editorial Estampa, 1999, p. 230.
17
Reflexões sobre a Necessidade de Promover a União dos Estados de que Cons-
ta o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves nas Quatro Partes do Mundo
(1822), em Conselho Federal de Cultura (Brasil), O debate político no processo
da Independência, introdução de Raimundo Faoro, Rio de Janeiro, Conselho
Federal de Cultura, 1974, p. 4.
18
José Honório Rodrigues, A Assembleia Constituinte de 1823, Petrópolis, Vozes,
1974.
19
Diogo Antônio Feijó, Diogo Antônio Feijó, organização, introdução e notas de
Jorge Caldeira, São Paulo, Editora 34, 1999, p. 144.
20
Brasil, Assembleia Constituinte Brasileira (AACB), Anais, 26/06/1823.
21
Brasil, Atas do Senado Imperial (ASI), 27/06/1832.
22
Otávio Tarquínio Sousa, Evaristo da Veiga, Belo Horizonte, Itatiaia, 1988.
23
Miranda, Memória constitucional e política..., IX.
24
Antonio de Moraes Silva, Dicionário da língua portuguesa. Quinta edição,
aperfeiçoada, e acrescentada de muitos artigos novos, e etimológicos, 5. ed.,
Lisboa, Tipografia de Antonio José da Rocha, 1844.
25
AACB, Anais, 03/05/1823.
26
Hélio Viana, Dom Pedro I jornalista, São Paulo, Melhoramentos, 1967, p. 174.
27
Joaquim do Amor Divino Rabelo Caneca, Ensaios políticos: crítica da Constitui-
ção outorgada; Bases para a formação do pacto social e outros, Rio de Janeiro,
PUC-Rio, 1976.
28
Lustosa, Insultos impressos.
29
Bernardo Pereira Vasconcelos, Manifesto político e exposição de princípios,
introdução do Senador Petrônio Portella, Brasília, Senado Federal, 1978, p. 120.
30
Sousa, Evaristo da Veiga.
31
Feijó, Diogo Antônio Feijó, p. 166.

134
32
Raimundo Faoro, Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro,
11. ed., Rio de Janeiro, Globo, 1997.
33
Nélson Lage Mascarenhas, Um jornalista do Império: Firmino Rodrigues Silva,
São Paulo, Nacional, 1961.
34
Silva, Dicionário da língua portuguesa.
35
Teófilo Otoni, Circular dedicada aos srs. eleitores de senadores pela província
de Minas Gerais, no quatriênio atual, e especialmente dirigida aos srs. eleitores
de deputados pelo segundo distrito eleitoral da mesma província para a próxima
legislatura, em Basílio Magalhães, A circular de Teófilo Otoni, Revista do Ins-
tituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, p. 160, 1916, separata
do tomo LXXVIII, parte 2.
36
Paulino José Soares de Sousa Uruguai, Ensaio sobre o direito administrativo
(1862), Rio de Janeiro, Ministério da Justiça, 1960, p. 493, grifo meu.
37
José Antônio Soares de Sousa, A vida do Visconde de Uruguai, edição ilustrada,
Rio de Janeiro, Nacional, 1944, p. 619.
38
Ibidem, p. 163.
39
Antonio de Moraes Silva, Dicionário da língua portuguesa, 6. ed., Lisboa, Ti-
pografia de Antonio José da Rocha, 1858.

REFERÊNCIAS
ANDRADA E SILVA, José Bonifácio de. José Bonifácio de Andrada e
Silva. Organização de textos e introdução de Jorge Caldeira. São Paulo:
Editora 34, 2002.
BARBOSA, Januário da Cunha; LEDO, Gonçalves. Revérbero Constitu-
cional Fluminense, Escrito por Dous Brasileiros Amigos da Nação e da
Pátria. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1822. t. I-II.
BRASIL. Atas da Câmara dos Deputados (ACD).
CONSELHO FEDERAL DE CULTURA (BRASIL). O debate político no
processo da Independência. Introdução de Raimundo Faoro. Rio de Janeiro:
Conselho Federal de Cultura, 1974.
FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. O Arcaísmo como projeto:
mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil no Rio de Janeiro
(c.1790-c.1840). Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998.
GONZAGA, Tomás Antônio. Tratado de direito natural. Organização e
apresentação de Keila Grinberg. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
JAVARI, Barão de (Org.). Império brasileiro: falas do trono, desde o ano
de 1823 até o ano de 1889, acompanhadas dos respectivos votos de graça
da câmara temporária e de diferentes informações e esclarecimentos sobre

135
todas as sessões extraordinárias, adiamentos, dissoluções, sessões secretas
e fusões com um quadro das épocas e motivos que deram lugar à reunião
das duas câmaras e competente histórico, coligidas na secretaria da Câmara
dos Deputados. Prefácio de Pedro Calmon. Rio de Janeiro: Itatiaia, 1993.
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136
MARCO A. PA M P L O N A

NAÇÃO

Falar de nação, ou dos demais conceitos congêneres, implica


atenção às várias camadas de tempos superpostos que carregam
e às composições bastante específicas desses muitos tempos que
em diferentes momentos costumam expressar.
O período que nos interessa aqui – de 1750 a 1850 – mostra-
-se particularmente rico para demarcarmos as sutis mudan-
ças de ênfase entre os distintos significados que comporta o
vocábulo. As profundas transformações políticas e sociais
experimentadas entre 1760 e 1830 – associadas ao ciclo das
revoluções modernas, iniciado nas colônias com a Revolução
Americana, seguido pelas Revoluções Francesa e do Haiti
e ampliado com as revoluções liberais desencadeadas nas
metrópoles ibéricas e com as independências das suas colônias
americanas – intervieram radicalmente. Ao longo desses anos,
novos, diferentes e acelerados processos de mudanças semân-
ticas foram caracterizando o termo. Em especial, tratou-se de
redefinir a conotação política que já então particularizava a
palavra nação e ampliá-la, ajustando-a a diferentes conjun-
turas.
Assim, ainda que a inicial polissemia característica do vocá-
bulo fosse mantida, com seus conhecidos aspectos de natureza
étnica e cívica, a identificação com o político fortaleceu-se e
ganhou novos contornos.
Num espaço de tempo não superior ao de duas gerações,
novos conteúdos se afirmaram e ressignificaram progressiva-
mente o termo. Mesmo quando os velhos significados perma-
neciam (é o caso do conteúdo étnico que sempre acompanhou
o termo natio, identificando-o à descendência ou à gens), eram
os vínculos entre nação e Estado, ou nação e ordem política,
os que marcariam as vozes mais representativas desse embate
cultural no período.
Observamos isso, inicialmente, por meio da análise do léxico
político e do seu registro nos dicionários de época. O Vocabulário
portuguez e latino, do padre Raphael Bluteau, publicado em
1716, já definia nação como um “nome coletivo, que se diz da
Gente, que vive em alguma grande região ou Reino, debaixo do
mesmo Senhorio”. E, acrescentava:

Nisso se diferencia nação de povo, porque nação compreende


muitos povos, & assim Beirões, Minhotos, Alentejões, & c. compõem
a nação Portuguesa; Bávaros, Saxões, Suábios, Hamburguenses,
Brandenburguenses, & c. compõem a nação Alemã; Castelhanos,
Aragoneses, Andaluzes, & c. compõem a nação Espanhola.1

Tal percepção – ao associar a Nação ao Reino, à autoridade


de um mesmo Senhorio, à Monarquia – via-se ainda relacionada
ao contexto do Antigo Regime. Junto a ela, outros sentidos
prévios do termo continuam sendo lembrados, mantendo-se a
associação a etnias, castas, a uma mesma língua, ascendência
ou origem comum. Há inclusive referências ao que Bluteau
chamou de “Nações de extraordinário e monstruoso feitio de
que fazem menção Autores antigos & modernos”. Dentre esses
estranhos grupos, destacam-se os Masuyûs, uma nação do
Grão-Pará mencionada pelo padre Simão de Vasconcellos, no
seu livro Notícias do Brasil, sobre os quais afirma, fantasiosa-
mente, serem “casta de gente que nasce com os pés às avessas”.
Também os Curinqueans são citados como habitantes das terras
do Grão-Pará, com “dezesseis palmos de alto, aos quais todos

138
os outros têm muito respeito”.2 Tácito, falando-nos de Gentiles
nationes, os da mesma nação, ou Cícero, mencionando a Gentilia
sacrificia, também são citados. Aí estão, enfim, as nações asso-
ciadas a vários grupos étnicos, a vários “outros”, definidos de
inúmeras maneiras, mas, especialmente, em função do seu lugar
de origem. Assim, as nações continuavam a designar o modo
como na Antiguidade os romanos se referiam aos “bárbaros”
que habitavam o Império, vindos de diferentes regiões; ou como
eram classificados os estudantes, de forma a atribuir-lhes uma
identidade nas universidades medievais – por exemplo, os da
Universidade de Paris, representando a fidèle nation de Picardie
ou a honorable nation de France, entre outras.3
Também o Dicionário da língua portuguesa de Antonio de
Moraes Silva, ao longo de várias edições – como na sua quarta
edição, de 1831 –, registrava o significado “antigo” do vocábulo,
associando-o a atributos etnoculturais e ao estrangeiro – ao
não igual ou “outro” – e, sobretudo, àquele que não podia ser
reconhecido como par, ou cidadão. Daí a expressão “Gente de
Nação”. O Dicionário de Moraes Silva registrava esse último
termo, identificando-o aos “descendentes de Judeus, Cristãos-
-novos. Raça, casta, espécie.” Observamos, entretanto, que o
significado antigo não era o primeiro a vir anunciado no verbete.
Uma definição principal e mais ampla em geral o precedia, tal
como no Dicionário de Bluteau. Em ambos os léxicos, o primeiro
significado do termo nação vinha referido a civitas e descrevia
sobretudo “a gente de um paiz, ou região, que tem Lingua, Leis
e Governo á parte”. Como exemplos concretos desses grandes
aglomerados de gente, politicamente organizados, vinham cita-
das a “Nação Francesa, Espanhola, Portuguesa”. Tidas como
modernas, nelas valorizava-se, sobretudo, a ordem política, ainda
que fossem admitidos a unidade de língua e o território como
expressões importantes para particularizá-las.
Na 5ª edição do Dicionário de Moraes Silva, de 1844, o
termo nação manteve os mesmos significados da edição anterior
de 1831. O registro da etimologia de algumas palavras – por

139
exemplo, “Nação” (do latim natio, onis) – era a única novidade
apresentada. Foi apenas com a 6ª edição do Dicionário, em
1858, que as grandes transformações semânticas observadas
previamente apareceram consolidadas. Reproduzamos na íntegra
o verbete nela presente para melhor comentá-lo.

Nação, s. f. (do Lat. natio) A gente de um país, ou região, que


tem lingua, leis, e governo à parte: v. g. a nação Francesa, Espanhola,
Portuguesa. §. Gente de Nação; i. e. descendente de Judeus, Cristãos
novos. §. Nação; fig. raça, casta, especie. Prestes.
+ (Nação, Povo. Sin.) No sentido literal e primitivo. A palavra
nação indica uma relação comum de nascimento, de origem; e povo
uma relação de número, e de reunião. A nação é uma dilatada família;
o povo é uma grande reunião de seres da mesma espécie. A nação
consiste nos descendentes de um mesmo pai, e o povo na multidão de
homens reunidos em um mesmo sitio. Em outra accepção a palavra
nação compreende os naturais do paiz; e o povo todos os habitantes.
Um povo estrangeiro que forma uma colônia em país longínquo,
continua ainda a ser Inglês, Português, Espanhol etc. é-o por nação,
ou de origem. Diversos povos reunidos, ligados por differentes rela-
ções comuns em um mesmo paiz, formam uma nação; e uma nação
se divide em vários povos, diversos uns dos outros por differenças
locais e físicas, ou políticas e morais. A nação está intimamente unida
ao paiz pela cultura, ela o possui; o povo está no país, ele o habita. A
nação é o corpo dos cidadãos; o povo é a reunião dos reinicolas. Uma
nação divide-se em muitas classes; o povo é uma delas; é a parte mais
numerosa de que a nação é o todo.4

Após as quatro primeiras linhas, em que são reproduzidas


definições presentes em edições anteriores, nos deparamos com
acréscimos, de fato, novedios. Primeiramente, está a apresenta-
ção de nação como sinônimo de povo, não mais a sua soberania
repousando no Monarca ou no Reino, indicando-nos que o
jusdivinismo progressivamente cedera lugar ao jusnaturalismo.
Em segundo lugar, ressignifica-se uma distinção fundamental

140
entre esses dois termos. A nação, inicialmente associada à
origem e à relação comum de ascendência, vem agora descrita
como “uma dilatada família” que “consiste nos descendentes
de um mesmo pai”. E, o povo, inicialmente, identificado a uma
mera relação de número, uma reunião; é agora a “multidão de
homens reunidos em um mesmo sítio”. E, enquanto a primeira
expressão compreende apenas “os naturaes do paiz”, a segunda
diz respeito a “todos os [seus] habitantes”.
Tais diferenças e redefinições se dão a partir do sentido novo
e fundamental que a palavra nação começou a revelar nos anos
que se seguiram ao vintismo, no mundo ibérico – nos referimos
ao sentido de separação, de distinção de um povo em relação
a outro. Uma tal dimensão que não escapou absolutamente a
Moraes Silva. Assim, quando o autor nos diz, por exemplo,
que “[um] povo estrangeiro que forma uma colônia em país
longínquo, continua ainda a ser Inglês, Português, Espanhol etc.
é-o por nação, ou de origem”, ele está entendendo o “nacional”
como algo que se situa na base do “internacional”; e, simulta-
neamente, como o oposto ao estrangeiro. Em suma, o adjetivo
“nacional” passou a significar não só o que é “relativo à nação”,
mas o que é “relativo à nossa nação”, com a exclusão das
outras. E é nessa última acepção, com a particularização agora
de uma dada nação entre as outras, que passamos a assistir ao
desenvolvimento dos muitos nacionalismos que marcaram o
século 19. No mundo luso-brasileiro, a diferenciação conceitual
mais importante entre os dois termos tratados deu-se à época
do vintismo e foi, a saber, aquela que acabou identificando a
nação ao “corpo dos cidadãos”. Assim, enquanto o vocábulo
povo permaneceu associado ao conjunto maior dos habitantes
do reino, à “reunião dos reinicolas”, a relação entre nação e
civitas viu-se reforçada ou enfatizada. Nação tornou-se indis-
sociada, no léxico político do período, da ideia de uma dada
ordem política, ou de uma “república” (do latim respublica,
res e publica, a coisa pública); ou o “que pertence, e respeita ao
público de qualquer Estado”. E, segundo a definição bastante

141
clara de Moraes Silva, nação referia-se não a todos, mas apenas
aos que eram cidadãos, aos que gozavam de direitos e privilégios
em algum foro, aos que habitavam cidades ou vilas e, em suma,
aos que, por se encontrarem nessa condição, como pertencentes
a uma particular “vizinhança”, ou compondo um dado “corpo
de cidadãos”, passavam a poder reivindicar a sua representação
na nação moderna que se afirmava. As definições de cidadão e
de cidade que predominaram a partir dos anos de 1820, e que
nos são dadas por Moraes Silva nessa mesma edição, bem como
as de povo, reiteram essa perspectiva. É a nação que, como
“conceito fundamental”,5 se faz combinar a esses outros de simi-
lar importância – povo, cidadão etc. –, redefinindo, informando
e direcionando o conteúdo político e social da própria língua.
Cidadão (do latim civis) referia-se ao homem que gozava
dos direitos de alguma cidade, de isenções ou privilégios que
a condição de “vizinho” em uma cidade lhe conferia. Era no
Brasil sinônimo de “homem bom”. Com a frase “faziam um juiz
cidadão da cidade, ou vila, e outro fidalgo”, Moraes também
deixa claro que cidadão não se confundia com fidalgo. Sua
definição é melhor precisada quando analisamos a descrição que
ele mesmo faz de cidade (do espanhol ciudad, do latim civitas).
Primeiramente, a cidade é descrita apenas como “povoação de
graduação superior às Vilas. Antigamente deram este nome
a vilas, ou Concelhos, e povoações grandes.” E sua definição
plena se dá quando Moraes afirma que “a Cidade por excelên-
cia se entende daquela onde estão os que falam”. As gentes da
cidade ou da vila opõem-se, pois, às da corte. Os cidadãos são
já votantes e eleitores e é nessa condição que poderão passar a
representar a nação.
A representação da nação, em suma, não se fazia por indiví-
duos quaisquer e não podia ser o somatório numérico daqueles,
tomados isoladamente. Ela era a representação de “um certo
tipo de gente”, de “uma dada condição de gente” – daqueles
que pertenciam a corpos (políticos) específicos. O “cidadão”
era, pois, sinônimo de “pessoa honrada” ou “vizinho de alguma

142
cidade”; correspondia, via de regra, aos homens de propriedade
e posição no conjunto da população do Império brasileiro; repre-
sentava a “boa sociedade” naquela ordem, no dizer de Ilmar
Rohloff de Mattos.6 O “cidadão” vinha identificado às muitas
polities anteriores – associadas quer às vilas, comunidades de
súditos e vizinhanças –, em especial àquelas profundamente
enraizadas nas instituições coloniais do passado e que puderam
parcialmente sobreviver. Nessas comunidades, os significados se
sobrepuseram uns aos outros, misturaram-se tradição e moder-
nidade, no dizer de François-Xavier Guerra. Ainda que restritos
ao caso do México, os seus estudos mostraram como essa rela-
ção, ao mesmo tempo de oposição e complementaridade, e de
permanente ambiguidade entre tradição e modernidade, contri-
buiu para manter a polissemia de alguns desses conceitos – tais
como cidadão, soberano, povo etc. – abusivamente empregados
ao longo do século 19.7
A chamada regeneração vintista portuguesa e seus imediatos
desdobramentos no ultramar representaram uma primeira e
importante inflexão para o processo de transformação semântica
do vocábulo nação e das demais expressões a ele diretamente
relacionadas. A singularidade luso-brasileira, entretanto, come-
çou antes – nos anos de 1808 e 1815. O fato de Portugal ser
uma monarquia compósita e um agregado de reinos não impediu
o caráter unitário do Estado de prevalecer. Diferentemente da
Espanha, a monarquia plural que produziu “nações” hispânicas
de seus fragmentos, durante a ocupação,8 o Reino português e
seus domínios foram mantidos. Contribuíram para isso, primei-
ramente, a transmigração da Corte para o Rio de Janeiro em
1808; em segundo lugar, a criação do Reino Unido de Portugal,
Brasil e Algarves, em 1815.
Durante os anos iniciais da década de 1820, entretanto,
constrangimentos vários, de natureza estrutural e conjuntu-
ral, criaram circunstâncias particulares que acabaram redi-
recionando as ações políticas dos principais agentes. É desse
período a profusão de “atos de fala”9 enunciados no interior

143
de comunidades argumentativas específicas (nos referimos, por
exemplo, aos debates em jornais, constituintes, cortes e assem-
bleias). É no interior desses espaços, dependendo sempre de
variáveis temporais e de lugar, e referido a meios sociais determi-
nados, que o sentido convencional de um dado termo começa a
mudar, ora mais rápida, ora mais lentamente. É observando tais
“atos de fala” que podemos perceber como e quando os velhos
significados passam a perder o seu peso, misturam-se com novas
conotações e começam a atribuir positividade a expressões antes
tidas como derrogatórias; ou mesmo a condenar aquelas antes
consideradas corretas. Quando antigas designações se mostram
inadequadas à realidade ou incompatíveis com as novas ideias
professadas, elas costumam ser redefinidas. O resultado final
apresentado pelos dicionários é importante, mas encontra-se já
cristalizado. O léxico não nos permite a percepção do embate
mais vivo, captar todas as tensões que a fala em ato carrega, com
sua intencionalidade e emoção, e que, num ou noutro momento
específico, sofre transformações.
Para captarmos um pouco dessa dinâmica, cabe procedermos
a uma rápida análise de certas falas que foram marcantes na
conjuntura cambiante dos anos que se seguiram ao vintismo.
Para uma periodização desses anos cruciais do ponto de vista da
afirmação do Estado-nação moderno na América portuguesa,
sugerimos a diferenciação, grosso modo, de dois momentos de
inflexão-chave. Um primeiro momento, associado ao debate em
torno do constitucionalismo (1821-1822), contempla tanto a
defesa de um governo constitucional ainda nos marcos do reino
de Portugal, como a opção pelo governo constitucional com a
separação e criação do Império do Brasil. Assim, reconhecer-se
“brasileiro”, entre 1820 e 1822, não significava necessariamente
abrir mão do sentimento de pertencimento político à “grande
família lusitana”. Entretanto, o termo politizava-se crescen-
temente, com a adesão à “causa do Brasil”, e transitava da
defesa da “paridade de direitos entre os Reinos” para a adesão

144
à independência e à unidade do novo Império brasílico, após o
setembro de 1822.
Isso ficou bastante claro em algumas das vozes mais repre-
sentativas dos embates culturais à época, e que foram veiculadas
pela imprensa que apoiava a separação do Brasil de Portugal.
Assim, juntamente com as discussões de A Malagueta, de Luís
Augusto May, os debates apresentados no menos exaltado
Revérbero Constitucional Fluminense ao longo desses anos
revelaram magistralmente essas muitas tensões. O primeiro
número do Revérbero, por exemplo, não poupou elogios ao
“memorável 24 de Agosto de 1820”, que desferira, afirmava o
hebdomadário, um golpe mortal ao absolutismo. Ele era dirigido
aos “portugueses de ambos os Mundos!”, “de um e outro hemis-
fério”, e os dois brasileiros responsáveis pelo jornal – Joaquim
Gonçalves Ledo e o cônego e poeta Januário da Cunha Barbosa
– intitulavam-se “amigos da nação e da pátria”. A epígrafe que
se repetiria em todos os próximos números – Redire sit nefas
(“Voltar atrás é crime”) – lembrava o compromisso coletivo de
conservar “intacta, inviolável, e sagrada a santa e augusta obra
da nossa regeneração política”, associada ao 24 de Agosto de
1820. Tratava-se, diziam eles, de não deixar apagar “o sagrado
fogo da Liberdade, que accendido no Doiro, inflammou-se no
Tejo, e generalisou-se do Amazonas ao Prata”. Finalizavam o
primeiro número com o brado: “Avante, Amigos da Nação e
do Rei; unidos triunfaremos, e divididos voltaremos ao nada.”10
Maior ressignificação dos sentidos dessas e de outras
expressões em uso no período – brasileiro, brasílico, português,
corcunda, nação, reino, império, pátria etc. – ficaria por conta
da nova conjuntura, após a separação efetivada em 1822. Há
uma maior politização dos termos utilizados. Assim, nos anos
seguintes (1823-1824), o eixo do debate viu-se deslocado para
outras direções. No novo cenário, o anticonstitucionalismo
acabou se confundindo com o apoio ao português. Foi essa a sutil
mudança operada também em relação ao corcundismo, como nos
lembra Lúcia Bastos em seu trabalho.11 O epíteto de “corcunda”,

145
inicialmente conferido aos defensores do absolutismo, passou a
ser aplicado àquele que apoiava o interesse português em geral.
Em contrapartida, a partir de meados de 1822, especialmente
na imprensa local, a “causa brasílica” associou-se à luta contra
“a revoltante agressão” dos portugueses e ao movimento pela
independência e pela edificação de um Império brasílico, como
alternativa ao Império luso-brasileiro. A reunião em junho do
mesmo ano de uma Assembleia Geral Constituinte e Legislativa,
composta de deputados das muitas províncias brasílicas, serviu
para reforçar mais ainda essa conotação. A expressão corcunda
passou a designar, de forma pejorativa, o antibrasílico, agora
aqui entendido como aquele que se opunha à causa da separação
do Brasil.12
A partir de 1823, com os debates da Constituinte e após a
Constituição outorgada, em 1824, seriam deslanchadas novas
discussões sobre os poderes das províncias brasílicas, dando
início às discussões sobre as autonomias provinciais.
O segundo momento de inflexão que assinalamos para o perí-
odo é aquele marcado pela tensão entre a Corte e os governos
provinciais e locais, pela disputa entre centralização e federa-
lismo, disputa essa fortemente acirrada na década de 1830. Ao
projeto de unidade sob a direção do Rio de Janeiro, acalentado
por grupos articulados ao aparato político lá instalado desde
1808, opunha-se a resistência daquelas elites provinciais mais
ciosas de sua autonomia. Cabe lembrar que séculos de coloni-
zação haviam engendrado unidades político-administrativas
que mantinham fracos vínculos entre si e demandavam maior
autonomia para gerir seus interesses, sem a interferência de
governos a elas externos, fosse o de Lisboa, fosse o do Rio de
Janeiro. Parece que a arquitetura de poderes no Portugal do
Antigo Regime deixara suas marcas, pois, como insiste em afir-
mar Nuno Gonçalo Monteiro, uma das peculiaridades do reino
era “a inexistência de poderes formalizados em âmbito regional”.
A instância de poder local privilegiada era a municipal – com

146
conselhos municipais, marcadamente “a-regionais e antirregio-
nais” – não a provincial.13
Por outro lado, os desafios à manutenção da ordem escravista,
a transferência da Corte para a colônia e os acontecimentos a ela
subsequentes advindos com o vintismo haviam introduzido no
panorama político a alternativa de unidade da América portu-
guesa em um único Estado. A tensão entre a proposta de unidade
capitaneada pela Corte e a autonomia das províncias acabaria
por marcar a história das décadas de 1830 e 1840. A unidade
sob a direção de um Estado com capacidade de defender os inte-
resses escravistas só era aceitável para as elites provinciais se lhes
fosse garantida autonomia suficiente para gerir suas províncias
e alguma participação na condução da, agora, política nacional.
A partir das reformas liberais da década de 1830 e, em
especial, do Ato Adicional de 1834, ensaiou-se algo do novo
modelo. Estabeleceu-se a divisão constitucional das respectivas
competências do governo central e dos governos provinciais.
Tratava-se de impedir que tendências centrífugas retalhassem
a antiga colônia em diversas unidades políticas autônomas,
reclamadoras de soberania. Isso implicava a construção de um
aparelho institucional, no qual as elites provinciais pudessem
defender seus interesses específicos e, ao mesmo tempo, influen-
ciar a política geral – o que se daria por meio das representações
na Câmara dos Deputados.
De 1831 a 1837, abriu-se um quadro de enorme instabilidade
política, que se fez acompanhar do sufocamento de insurreições
de norte a sul em um território ainda em consolidação. Tais
conflitos aceleraram a tentativa de institucionalização, por parte
do Império, das chamadas instâncias de poder provinciais. Com
a abdicação de D. Pedro, as reivindicações localistas recrudes-
ceram e foram a principal marca das décadas de 1830 e 1840.
Em diferentes momentos, três províncias proclamaram sua
independência: no norte o Pará, no centro a Bahia e no sul o Rio
Grande. Cinco grandes revoltas se seguiram ao Ato Adicional: no
Pará a Cabanagem (1835-1840), na Bahia a Sabinada (1837), no

147
Maranhão a Balaiada (1838-1841) e as mais controladas revoltas
de São Paulo e Minas Gerais (1842). Em meio à Farroupilha,
na província do Rio Grande, proclamou-se uma República inde-
pendente e, por dez anos (1835-1845), manteve-se uma guerra
fratricida na região contra o poder central.
Ao longo do último decênio de lutas (1840-1852), consolidou-
-se a chamada direção saquarema, logo simbolizada pela famosa
“trindade” – Eusébio de Queiroz, Joaquim José Rodrigues Torres
(futuro Visconde de Itaboraí) e Paulino Soares de Souza (futuro
Visconde do Uruguai). Tecendo seus interesses a partir da Corte
e passando pela província fluminense, os saquaremas consegui-
riam se espalhar pelas demais regiões abrangidas pelo Império.14
A discussão, pois, de quem deveria ser cidadão na nova
ordem e a formação mesma da nação como efetiva comunidade
de cidadãos caracterizaram esses anos de drásticas mudanças. A
adoção do princípio mesmo da “soberania do povo” iniciou uma
transformação mais profunda da moldura normativa existente
até o momento para a legitimação do poder político.
Época de profunda ressignificação do vocabulário político
e das linguagens em uso, os anos que se seguiram ao vintismo
podem ser vistos como um período, acima de tudo, inventivo. É
quando – diríamos – os contemporâneos passaram a explorar,
talvez pela primeira vez, o significado mais radical de uma lingua-
gem de direitos. Entretanto esses homens e mulheres de carne
e osso, que certamente atuaram e sofreram, o fizeram a partir
das instituições e organizações às quais estavam vinculados, a
partir das unidades políticas e sociais de ação que conheciam e
nas quais se viam inseridos naquele tempo de mudanças.

NOTAS
1
Raphael Bluteau, Vocabulário portuguez e latino, Coimbra, Collegio das Artes
da Cia de Jesus, 1716, p. 658.
2
Ibidem.
3
Liah Greenfeld, Nationalism: Five Roads to Modernity, Cambridge, Harvard
University Press, 1992; Jürgen Habermas, The European Nation-State – Its

148
Achievements and Its Limits. On the Past and Future of Sovereignty and Citi-
zenship, em Gopal Balakrishnan (coord.), Mapping the Nation, London, Verso,
1996, p. 281-294.
4
Antonio de Moraes Silva, Dicionário da língua portugueza: composto por An-
tonio de Moraes Silva, 6. ed., Lisboa, Impressão Régia, 1858, grifos do autor.
5
Reinhart Koselleck, Historia de los conceptos y conceptos de historia, Ayer,
Madrid, v. 1, n. 53, p. 35, 2004.
6
Ilmar Rohloff de Mattos, O tempo saquarema: a formação do Estado Imperial,
4. ed., Rio de Janeiro, Access, 1999.
7
François-Xavier Guerra, Modernidad y independencias: ensayos sobre las re-
voluciones hispánicas, 2. ed., México, Mapfre, Fondo de Cultura Económico,
2001; François-Xavier Guerra, A nação moderna: nova legitimidade e velhas
identidades, em István Jancsó (org.), Brasil: formação do Estado e da Nação,
São Paulo, Hucitec, 2003, p. 33-60.
8
Guerra, A nação moderna, p. 60.
9
J. G. A. Pocock, Linguagens do ideário político, São Paulo, Edusp, 2003.
10
Revérbero Constitucional Fluminense, Rio de Janeiro, n. 1, p. 3, 12, 1821.
11
Lúcia Bastos Pereira das Neves, Corcundas e constitucionais: a cultura política
da independência (1820-1822), Rio de Janeiro, Revan, FAPERJ, 2003.
12
Ibidem, p. 138-139.
13
Nuno Gonçalo Monteiro, Os concelhos e as comunidades, em José Mattoso
(dir.), História de Portugal, Lisboa, Estampa, 1993, v. 4, p. 309.
14
Mattos, O tempo saquarema, p. 190.

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CONSTÂNCIO, Francisco Solano. Novo diccionario crítico e etymologico
da lingua portuguesa, comprehendendo: 1º Todos os vocábulos da língua
usual, dos quaes muitos se não encontrão em Bluteau e Moraes, com a
definição clara e concisa de cada hum e suas diversas accepções, justificadas
por citações dos autores clássicos quando o caso o pede; – 2º os termos
os mais usados de sciencias, artes e officios; – 3º os mais notáveis termos
antigos e obsoletos cujo conhecimento he indispensável para a intelligencia
dos documentos antigos; – 4º a synonimia, com reflexões criticas; – 5º a
etymologia analytica de todos os termos radicaes, expondo o sentido ri-
goroso das raízes primitivas latinas, gregas etc; – 6º os prefixos, suffixos,
desinências ou terminações analysadas e explicadas; – 7º observações sobre
a orthografia e pronuncia dos vocábulos. Precedida de huma introdução
grammatical por... . Paris: Angelo Francisco Carneiro Editor; Typographia
de Casimir, 1836.
CONSTÂNCIO, Francisco Solano. Novo diccionario crítico e etymolo-
gico da lingua portuguesa, comprehendendo: 1º Todos os vocábulos da
língua usual, dos quaes muitos se não encontrão em Bluteau e Moraes,
com a definição clara e concisa de cada hum e suas diversas accepções,
justificadas por citações dos autores clássicos quando o caso o pede; – 2º
os termos os mais usados de sciencias, artes e officios; – 3º os mais notá-
veis termos antigos e obsoletos cujo conhecimento he indispensável para
a intelligencia dos documentos antigos; – 4º a synonimia, com reflexões
criticas; – 5º a etymologia analytica de todos os termos radicaes, expondo
o sentido rigoroso das raízes primitivas latinas, gregas etc; – 6º os prefi-
xos, suffixos, desinências ou terminações analysadas e explicadas; – 7º
observações sobre a orthografia e pronuncia dos vocábulos. Precedida de
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accepções, accentuadas conforme e melhor pronuncia, e com a indicação
de termos antiquados Latinos, Barbaros ou viciosos. Os nomes próprios

150
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153
LÚCIA M. BASTOS PEREIRA DAS NEVES

OPINIÃO PÚBLICA

Na segunda metade do século 18, as testemunhas inquiri-


das – fosse nas devassas de caráter político1 conduzidas pela
justiça régia por ocasião de um levante ou sedição, fosse nas
inquirições eclesiásticas, realizadas por ação de um bispo ou
da Inquisição – começavam com frequência seus depoimentos
com a expressão de que sabiam, por ouvir dizer, que algo
tinha ou não passado.2 Profundamente marcada pela cultura
oral e pelos traços próprios do Antigo Regime, aos quais se
somara, no entanto, a peculiaridade da escravidão, a socie-
dade da América portuguesa evidenciava dessa maneira que
a concepção de opinião permaneceu, por um longo tempo,
vinculada à de voz popular ou voz geral.3 Esta, num ambiente
de cultura predominantemente oral, traduzia a tradição imemo-
rial e o bom-senso corrente da comunidade, tanto uma quanto
outro atualizados, sem que seus membros participantes se
dessem conta, de acordo com as circunstâncias, em oposição
ao conhecimento letrado, dotado de evidências e de motivos
racionais, situado em determinado tempo e lugar, no sentido
mais propriamente histórico do termo.4 De meados do século
18 a meados do século 19 – quer dizer, do início da atuação do
marquês de Pombal (1750-1777) em Lisboa, à consolidação do
Império do Brasil com Pedro II, passando pela transferência da
Corte portuguesa para o Rio de Janeiro em 1808 –, estudar o
conceito de opinião pública no mundo luso-brasileiro exige, por
conseguinte, que se leve em conta tais características.
Não é rica, porém, a tradição lexicográfica luso-brasileira. Seu
fundador, o padre de origem francesa Raphael Bluteau (1638-
1734), registrou opinião como “o que se entende e se julga de
alguma coisa, conforme notícias que se têm”, o que fazia dela
um grande mal, já que poderia levar a muitas contendas sobre
religião e razão.5 Indicava, portanto, um significado qualitativo,
sob a forma de um julgamento coletivo em matéria de moral,
reputação e gosto. Cem anos mais tarde, Antonio de Moraes
Silva (1755-1824), natural do Brasil, procurou atualizar a obra
de Bluteau, mas não se afastou do mesmo significado: opinião
era “parecer, ditame, sentimento, juízo, que se forma de alguma
coisa”,6 sentido que se repete nas edições seguintes do dicionário,
elaboradas após sua morte, até o final do século 19. Outros dicio-
naristas luso-brasileiros também o mantiveram: “Conceito, repu-
tação, boa ou má”;7 “parecer, juízo, dictame, persuasão íntima,
crença”.8 Em suma, não há qualquer referência ao conceito de
opinião pública nos dicionários luso-brasileiros consultados até
o final do Oitocentos, surgindo esse sintagma para a semântica
histórica somente com a oitava edição de Moraes Silva, datada
de 1890. Nela, indicando enfim uma transformação do conceito,
a expressão traz o sentido de “o que o público pensa; o que se
diz ou julga em geral a respeito de uma questão social, política,
econômica, patriótica ou de interesse nacional, ou sobre pontos
de religião, de moralidade, de honra”.9
Que a expressão não constasse dos dicionários até 1890,
porém, não quer dizer que não integrasse anteriormente “a
língua em sua sabedoria”, como diria Gadamer.10 O início da
construção do conceito moderno de opinião pública no mundo
luso-brasileiro, enquanto uma “invenção política”, para utili-
zar a expressão de Keith Baker,11 relaciona-se, como seria de se
esperar, ao momento em que as discussões políticas começaram
a ultrapassar o domínio restrito do círculo privado da Corte para
alcançar os novos espaços públicos de sociabilidade, surgidos

156
paralelamente às Luzes12 – os cafés, as academias, as livrarias
e, até mesmo, as sociedades secretas, que, sob a proteção do
segredo,13 converteram a palavra em coisa pública, como salien-
tou François-Xavier Guerra.14
No Brasil, coincidindo com a chegada da família real, o
passo fundamental se deu com a tardia introdução da imprensa
na América portuguesa em 1808. Nesse contexto, surgiram os
primeiros periódicos – a Gazeta do Rio de Janeiro (10/09/1808)
e a Idade d’Ouro do Brasil (Bahia, 14/05/1811) –, que, embora
apresentassem, sobretudo, um caráter noticioso, característico
das gazetas antigas,15 emitiam, algumas vezes, opiniões sobre
as questões políticas da época. Opinião, nesse momento, já
começava a despontar como uma palavra que significava um
ponto de vista em oposição à antiga autoridade dogmática.16
Essas notícias passavam a valorizar o interesse dos leitores por
tais acontecimentos, possibilitando uma discussão mais pública
dos fatos. As gazetas eram “as relações de negócios públicos, o
que constitui essencialmente a História do tempo, ou para falar
com mais propriedade, a coleção de documentos para escrever
a História”.17 Alguns meses antes, em junho de 1808, Hipólito
José da Costa (1774-1823) iniciara, em Londres, a redação do
Correio Braziliense, considerado pela historiografia como o
primeiro periódico brasileiro. Partilhando os valores e atitudes
comuns que se manifestavam na República das Letras, Hipólito
pretendia ser o “primeiro despertador da opinião pública” e
atrair a curiosidade dos povos para os fatos recentes. Acreditava
que “o primeiro dever do homem em sociedade é de ser útil aos
membros dela”, cabendo a este espalhar as Luzes, que “tiram
das trevas ou da ilusão aqueles que a ignorância precipitou no
labirinto da apatia, da inépcia e do engano”.18
As condições mais efetivas para uma relativa ruptura no conte-
údo do conceito ocorreram, no entanto, por força dos primeiros
ensaios de uma relativa liberdade de imprensa, resultante das
ideias liberais, que se propagaram de forma mais intensa, a
partir do movimento constitucionalista iniciado na cidade do

157
Porto, Portugal, no dia 24 de agosto de 1820. Com a adesão das
províncias do Pará e da Bahia, logo seguidas pelo Rio de Janeiro,
no início de 1821, esse ano converteu-se naquele da pregação
de uma cultura política do liberalismo. Por meio da ampla e até
então quase inédita circulação de uma literatura de circunstância,
sob a forma de panfletos baratos, que se imprimiam no Rio e na
Bahia ou que chegavam de Lisboa, as notícias e, junto com elas,
as ideias passaram a alcançar uma plateia socialmente mais larga
e variada, que deixava de encará-las como novidades do domínio
privado para vê-las como pertencentes a um domínio público.19
Na visão do emigrado francês Cailhé de Geine, autor de um
Rapport sur la situation de l’opinion publique ao intendente geral
de polícia da Corte,20 era fácil perceber que o “espírito público”
se corrompia todos os dias no Rio de Janeiro, desde a chegada
das notícias acerca da revolução liberal da Espanha. Alertava-se
para a gravidade da situação, uma vez que muitas obras eram
lidas “diante de um auditório já predisposto” a “passagens mais
infestadas do espírito revolucionário das obras francesas mais
perniciosas”, traduzidas “para o português, para a edificação
dos ignorantes”. Essa propaganda não se limitava a “reuniões
secretas”, mas se manifestava “no salão dourado, na humilde loja
e mesmo na praça pública”. Segundo o viajante Johann Moritz
Rugendas (1802-1858), que chegou ao Brasil em 1821, esse foi
um dos traços característicos do Rio de Janeiro, nesse momento.
“Gente de todas as classes se entrega a conversações políticas
(...) essas discussões em plena rua lembram a vida pública dos
antigos; formam a opinião e a exprimem.”21
Por essa mesma época, a literatura de circunstância formada
por jornais, folhetos e panfletos veiculava a ideia de opinião
pública com novas conotações, embora revestisse a palavra
com uma concepção característica da Ilustração. Tratava-se
de considerá-la uma autêntica força política, cuja objetividade
provinha da razão e cuja eficácia resultava do impulso propiciado
pelo progresso das Luzes, mas avessa, com certeza, às transfor-
mações bruscas da ordem, ainda que destinada a assegurar o

158
reinado da sabedoria e da prudência sobre a Terra. Despontava
sua função diretiva, na qual as elites ilustradas representavam
um ponto de equilíbrio entre o soberano e seus súditos, condu-
zindo às reformas ilustradas, necessárias a uma regeneração
política.22 Sob esse ângulo, já em 1º de março de 1821, José da
Silva Lisboa, em seu periódico O Conciliador do Reino Unido,
considerava a opinião como “a rainha do mundo” e, em número
posterior, afirmava que o homem ilustrado devia “bem dirigir
a Opinião Pública a fim de atachar os desacertos populares e as
efervescências frenéticas de alguns compatriotas (...) que antes
preferem arder que luzir”. Tal visão concebia uma opinião geral
formulada pelos homens de letras e imposta de cima para baixo
às demais opiniões individuais. Com isso, a opinião deixava de
ser um julgamento público, que o indivíduo partilhava com a
sociedade, para passar a constituir uma reflexão privada sobre
os negócios públicos, algo que tornava possível a sua discussão
de público ou em público. Ao invés de geradores e manipulado-
res de ideias, os letrados transformavam-se em porta-vozes de
uma evidência. Era “um dever do cidadão (...) dirigir a opinião
pública, e levá-la, como pela mão, ao verdadeiro fim da felici-
dade social”.23
Em julho de 1821, a própria Gazeta do Rio de Janeiro, consi-
derada como o órgão que representava os pontos de vista do
governo, incluiu um artigo na seção “Correspondência” em que
o autor expunha o “estado da opinião pública em São Paulo”,
revelando a ressonância que alcançara o movimento liberal na
maior parte da sociedade local, embora esta continuasse a valo-
rizar a prudência e o bom-senso. Outro periódico, O Papagaio,
em 1822, suspendeu seus trabalhos por julgar que os objetivos
propostos tinham sido alcançados, uma vez que se achava
“consolidada a opinião pública sobre os verdadeiros interesses
do Brasil e de toda a família portuguesa”. Já o redator do Correio
do Rio de Janeiro, se não dispunha de suficiente “cabedal de
Luzes para ilustrar e dirigir a opinião pública”, acreditava possuir
grande “firmeza de caráter e probidade para manifestá-la”.24

159
Nessa perspectiva, a opinião pública tornava-se o “farol dos
que governam e desejam acertar”.25 Como informava o redator
de o Macaco Brasileiro,26 o príncipe regente D. Pedro conhecia
e buscava “este termômetro”, percebendo que o idolatravam
pelo calor e energia com que soube merecer o título de Perpétuo
Defensor do Brasil. Afinados com as práticas do liberalismo,
quase todos os periódicos desse período do constitucionalismo
luso-brasileiro evidenciavam a preocupação, que os indivíduos
ilustrados tinham, de dirigir a opinião pública ou de erigir-se
em seu porta-voz e destacavam o papel exercido pela educação
e pelos periódicos na constituição dessa opinião.
Ainda nesse ambiente, no bojo da discussão sobre a liberdade
de expressão e as ideias constitucionais, os escritos impressos
vislumbravam também, ainda que timidamente, uma nova
acepção em relação à opinião pública, vista como uma instância
crítica. Se a liberdade de imprensa era a “sentinela da liberdade
política”, pois possibilitava ao homem ilustrado descobrir “uma
verdade útil ou o brado do Patriota”, permitia ainda acender
o “archote da opinião pública”, único instrumento capaz
de fazer intimidar “os inimigos da Nação e da Liberdade”.27
Registrava-se, assim, que a “liberdade de pensar e de comunicar”
os pensamentos era “como um dom o mais precioso” de que
pode gozar um mortal sobre a terra, pois a discussão pública
das opiniões constituía-se no “meio seguro de dar a conhecer a
verdade, e talvez ele seja o único”.28 Mesmo aqueles que eram
contrários à liberdade de expressão utilizavam-se do conceito
nas suas argumentações, alertando para o seu papel, doravante,
fundamental na sociedade. José Joaquim de Carvalho, físico-mor
da província de Pernambuco, ao testemunhar na devassa contra
Frei Caneca (1824), afirmava que esse era o redator do jornal
Typhis, sendo o principal fim de seus escritos “o dirigir a opinião
pública”, o que fazia “certamente de um modo subversivo da
boa ordem”.29 Logo, devia haver uma vigilância por parte das
autoridades em relação aos “escritos que se publicam dirigindo a

160
opinião pública”, pois estes, muitas vezes, representavam “uma
maneira própria para produzir a anarquia e a guerra civil”.30
Nesse sentido,

o conceito passava a ser incorporado ao mundo letrado como um


dos valores das linguagens do liberalismo, uma vez que opinião pública
estava intimamente associada à ideia de liberdade – aquela se constituía
no “verdadeiro termômetro do governo liberal”.31

Após o processo de independência, efetivado em 1822, a


utilização do conceito opinião pública foi constante, mesmo em
períodos de menor liberdade de expressão. O próprio imperador
do Brasil, em suas proclamações, apontava para o papel relevante
da opinião como fundamento de todo o governo legítimo: “O
governo constitucional que se não guia pela opinião pública ou
que a ignora, torna-se o flagelo da humanidade (...) A Providência
concedeu-me o conhecimento desta verdade: baseei sobre ela o
meu sistema, ao qual sempre serei fiel.”32 Ao longo dos debates na
Assembleia Constituinte de 1823, afirmava-se que a “verdadeira
opinião pública” devia ser considerada como a “força moral”
daquele Congresso.33 Igualmente, a ideia de público se trans-
formava numa referência honrosa nesses escritos, sobrepondo-
-se ao interesse particular, como a cláusula mais imperiosa do
pacto social. Abria-se mão das preocupações com os indivíduos,
em especial com os pertencentes a um grupo de privilegiados,
e passava-se a pensar a Nação como um todo, utilizando-se a
palavra a serviço do ideal liberal.34
Em outros momentos de tensão, no entanto, como aquele
em que ocorreu um confronto de ideias entre o Poder Executivo
e o Poder Legislativo, levando, inclusive, ao fechamento da
Assembleia Constituinte (1823), a opinião pública era vista, por
alguns redatores de jornais, como uma forma de manipulação e
de conquista do público leitor:

161
O que é Opinião Pública? Respondo: opinião pública, ou publicada,
que entre nós vale o mesmo, é qualquer calúnia, asneira ou inépcia má
que sai à luz em letra de forma, contanto que apareça à face do mundo
em certos periódicos, por certos indivíduos de certa súcia. Assim para
ter esta opinião pública basta beijar certos traseiros altanados e saber
gastar alguns cobrinhos para imprimir desaforos e frioleiras, que te
vierem à cabeça, contanto que digas mal de muita gente boa (...) e que
fales muito em despotismo, liberdade, soberania do povo, direitos do
homem, veto absoluto, duas Câmaras etc.35

Após o fechamento da Assembleia Constituinte, em novembro


de 1823, e a outorga da Constituição pelo imperador (1824), a
consolidação do debate político para além da esfera privada da
Corte voltou a ocorrer com a abertura da primeira Legislatura,
em 1826. A Câmara, apoiada pela imprensa, passou a ter voz
atuante na formação do cidadão, começando a medir forças com
o Poder Executivo. Na visão do deputado pela província de São
Paulo, Francisco de Paula Souza e Melo, o período entre 1826
e 1831 foi decisivo para o desenvolvimento do espírito público,
permitindo que a nação declarasse “de todo a sua opinião”.
Havia uma oposição entre “os desejos nacionais e a marcha do
governo”, que culminou com o 7 de abril, data da abdicação de
Pedro I. Ocorreu, portanto, em sua perspectiva, uma revolução
moral, consequência de uma “guerra surda e lenta”, mas cons-
tante entre “a autoridade que presidia os destinos do Brasil e a
opinião pública”. Além da tribuna, mola poderosa para alcançar
tal objetivo, foi “o espírito público” no Brasil que demonstrou
a necessidade de mudanças.36
Verifica-se, por conseguinte, que outra concepção de opinião
pública começou a esboçar-se, no final do primeiro reinado e
no início do período regencial, motivada por discussões mais
intensas na arena política e por um clima de maior liberdade de
expressão e de manifestação política. São dessa época as primei-
ras referências ao Tribunal da Opinião Pública, que parecem
dispensar a interferência dos membros da República das Letras

162
para legitimar o conceito, aproximando-se da perspectiva dos
jacobinos franceses e daqueles que pregavam a ideia de uma
soberania popular.37 Tal visão era partilhada pelos exaltados,
difundida através da Nova Luz Brasileira, jornal radical, que
afirmava: “Opinião pública é o modo de pensar expresso e
uniforme de mais da metade de um Povo sobre qualquer objeto:
daqui vem a influência, poder e direção que dá a todos os negó-
cios; sua vitória é sempre certa: desgraçado daquele que lhe faz
oposição.”38 Aceitava ainda a ideia de que o espírito público era
“uma opinião geral, formada pelo conhecimento que o Povo
tem de seus direitos e dos princípios gerais, que estabelecem e
conservam esses mesmos direitos”. Sem esse espírito público,
isto é, “sem ilustração do Povo a respeito de seus direitos não
há liberdade; porque o Cidadão ignorante é escravo, ou cadáver
social”.39 Da mesma forma, a opinião pública devia contar com
as garantias da liberdade a fim de que ocorresse uma participação
ativa do cidadão na política.40
Nas palavras do deputado José de Alencar no Parlamento, em
maio de 1831, a Câmara devia seguir sempre a opinião pública,
pois a maioria da representação nacional precisava estar mais de
acordo com “os sentimentos da nação”, expressos pela opinião
pública, do que com o chefe da nação. Com isso, a opinião
pública transformava-se em instrumento de intervenção direta na
vida política, na provável expressão da vontade de uma maioria,
ainda que representada por deputados, aos quais cabia parte da
soberania nacional.41
Paulatinamente, a ideia da opinião assumia o lugar de “rainha
do universo”, capaz de emitir um juízo imparcial, de cunho
infalível, diante do qual se desfaziam os receios humanos.42
Fundamentada na supremacia da razão e na presença de uma
elite intelectualizada, o conceito adquiria novas conotações, que
remetiam para a concepção de uma vontade da maioria, produ-
zida pelo conjunto de cidadãos que devem se fazer representar em
assembleia para decidir o bem comum. Atribuía-se, até mesmo, a
essa “voz poderosa” a capacidade de denunciar crimes, como os

163
do ministério de Pedro I, levando à sua demissão.43 E, se ela nem
sempre ditava as Leis, muitas vezes, obrigava “aos Legisladores
a corrigi-las e modificá-las”.44
A partir de 1837, o regresso conservador, no entanto, ganhou
força até que o golpe da maioridade de 1840 colocou D. Pedro II
no trono, inaugurando o Segundo Reinado. Estava estruturado
o Império do Brasil com base na unidade nacional, na centra-
lização política e na preservação do trabalho escravo. Apesar
dessa conjuntura, a perspectiva de opinião pública não deixava
de consolidar-se como uma fonte de legitimidade do poder
político. Ao comentar a queda do ministério dos conservadores,
em 1843, e o retorno ao poder dos liberais, o jornal O Novo
Tempo afirmava que “a vontade nacional, livre das cadeias que
a sujeitavam, vai erguendo-se ufana e majestosa em favor do
ministério de 2 de fevereiro”, ou seja, o novo ministério liberal.
“Pouco dura o reinado da tirania [ministério conservador, janeiro
de 1843 a fevereiro de 1844]: os Cláudios e Neros do Brasil
desta vez caíram sob o peso da opinião pública e cobertos das
maldições dos brasileiros.”45 A perspectiva moderna de opinião
pública passava a compor o discurso político da época, embora
expresso de forma mais contundente nos debates apresentados
pela imprensa periódica do que nas discussões do Parlamento.
Aliás, como explicitava o periódico radical A Marmota, em 1857,
a imprensa era “órgão da opinião pública”, que devia sempre
pronunciar-se a fim de “prevenir os males”, ao invés de preparar
o terreno para eles com seu silêncio.46
No entanto, essa nova visão estava longe de constituir-se
em hegemônica. Ainda se distinguia a opinião como elemento
legítimo da autoridade, representada pelas elites intelectuais e
políticas, de uma opinião popular, fruto da plebe, considerada
como massa ignorante ou um “punhado de facinorosos”,47 que
perturbavam o sossego público, especialmente, em uma socie-
dade constituída, em sua grande maioria, por escravos. Para
Mariano José Pereira da Fonseca (1773-1848), marquês de
Maricá, ainda que sem mencionar opinião pública, o “governo

164
das nações é, e deve ser, o seu entendimento e a sua vontade; e
não é aos pés que se há de dar o encargo de pensar e querer”.48
Da mesma forma, outro político conservador, Paulino José Soares
de Souza (1807-1866), Visconde do Uruguai, propunha que
se esclarecesse “a opinião do público” (grifo meu) para certos
assuntos, “preparando-o, pela imprensa e pela tribuna, para
formar o seu juízo, e auxiliar, com a força que este tem, quais-
quer reformas e melhoramentos que possam ser necessários”.49
Da mesma maneira, nas inquirições judiciais, persistia a ideia de
opinião como um mero julgamento, pautado, muitas vezes, na
voz geral. Regente único e senador do Império, ao ser implicado
nas revoltas liberais de 1842, Diogo Antônio Feijó (1784-1843)
defendeu-se com o argumento de que estava sendo incriminado
como “cabeça do movimento” pela “voz pública unicamente e
nada mais”, uma opinião vaga, segundo ele, que não podia ter
valor em depoimentos, mormente em crimes com a natureza de
uma rebelião.50
Por conseguinte, em meados do Oitocentos, quando se aboliu
o tráfico africano (1850), o conceito de opinião pública ainda
não se desprendera, inteiramente, da carga que trazia do passado,
típico de uma sociedade do Antigo Regime; nem se convertera
de todo naquela entidade racional, universal e unitária, como
veio a ocorrer no mundo contemporâneo.51 Conservava-se uma
pluralidade de sentidos, cujo emprego via-se, em geral, moldado
pela conjuntura. Nesse amplo leque, os significados do conceito,
sempre colocados em xeque pelo espectro da escravidão, partiam
daquele defendido pelos homens de Letras, profundamente
arraigados à visão, embora esmaecida, das Luzes luso-brasileiras;
passavam pelo conceito de uma nova instância de legitimidade
política, distinta do poder governamental – vislumbrado por
alguns liberais – próxima das formulações de Locke;52 e chega-
vam até a concepção contemporânea, em que a multiplicidade de
ideias oriundas da população surgia como reflexo da crescente
complexidade presente na sociedade da época e, por consequên-
cia, como um instrumento moral de controle por parte do poder

165
político oficial. Essa perspectiva plural podia ser encontrada,
principalmente, na imprensa, como em um texto do Echo da
Serra, transcrito no jornal moderado – Aurora Fluminense. Para
o redator, a opinião pública era “a soma das ideias ou noções
comuns a todos os indivíduos de uma mesma sociedade”, consis-
tindo na elaboração de “verdades morais e políticas”, ditadas
“pela natureza e razão, consagradas pelo legislador e vivamente
sentidas por todos os membros da sociedade”. Ao mesmo tempo,
se ela revestia-se de um “caráter diretivo que obra poderosamente
sobre a conduta dos indivíduos”, a opinião também poderia
ser conduzida pela reflexão dos filósofos esclarecidos, pois o
“verdadeiro e único meio de se criar a opinião pública” é através
de “uma boa educação”.53 Diante das enormes desigualdades
sociais e, em particular, do escravo, a opinião pública não podia
resultar de várias opiniões parciais, pois desse processo nasciam
as seitas e as facções. Persistia a perspectiva da opinião como
una, próxima às concepções da cultura política do absolutismo.
Por conta dessas limitações, a concepção de opinião pública
como uma “pluralidade de indivíduos que se exprimem em
termos de aprovação ou sustentação de uma ação, servindo de
referencial a um projeto político definido”54 – e dotada, portanto,
do poder de alterar o rumo dos acontecimentos –, ainda teve
de aguardar distintas conjunturas de tensão, após 1850, para
tornar-se hegemônica. Indício desse processo foi o aparecimento
de periódicos que traziam o conceito em seu título, como A
Opinião Pública: Jornal Político e Noticioso, de Fortaleza, em
1861, que estampava uma epígrafe de Thiers: “Quando os dire-
tores de um partido procuram sufocar a opinião geral, por meio
de imposições exageradas, sucede ordinariamente, que mais o
irritam calando eles em completa desmoralização.”
Não é de se surpreender, assim, que date de 1890, após a
Abolição da Escravidão (1888) e a Proclamação da República
(1889), o primeiro registro em dicionário do conceito em seu
sentido moderno. Afinal, a opinião pública é também um
“produto social”,55 fruto dos meios disponíveis para que se

166
constituísse e consolidasse um espaço público – jornais, redes
de sociabilidades, leis sobre liberdade de imprensa, direitos dos
cidadãos, manifestações políticas, liturgias cívicas, educação,
entre outros. “Mas como criar a opinião pública em um país onde
não se lê, nem se crê?” O processo de construção desse edifício
social requeria, por conseguinte, uma reforma de costumes,
“derramando a instrução e incutindo a fé nas gerações novas”.56
Apesar disso, a onipresença dos cativos, a manutenção da menta-
lidade escravocrata e a persistência de traços de uma sociedade
do Antigo Regime retardaram a consolidação do processo.

NOTAS
1
Cf. Autos da Devassa – Prisão dos letrados do Rio de Janeiro (1794), Rio de
Janeiro, EdUERJ, 2002; Arquivo Público do Estado da Bahia, Autos da Devassa
da Conspiração dos Alfaiates (1798), ed. Maria Helena O. Flexor, Salvador,
Secretaria da Cultura e Turismo, Arquivo Público do Estado, 1988, 2v.
2
Cf. Guilherme Pereira das Neves, Murmuração, em Ronaldo Vainfas (dir.),
Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808), Rio de Janeiro, Objetiva, 2000,
p. 416-417.
3
Cf. Donald Ramos, A “voz popular” e a cultura popular no Brasil do século
XVIII, em Maria Beatriz Nizza da Silva (coord.), Cultura portuguesa na Terra
de Santa Cruz, Lisboa, Estampa, 1995, p. 137-154.
e
4
Arlette Farge, Dire et mal dire: l’opinion publique au XVIII siècle, Paris, Seuil,
1992, p. 13-19.
5
Raphael Bluteau, Vocabulario portuguez & latino, Lisboa, Officina de Pascoal
Silva, 1720, v. 6, p. 87-88.
6
Antonio de Moraes Silva, Diccionario da lingua portuguesa, 2. ed., Lisboa,
Typographia de M. P. de Lacerdina, 1813 (Rio de Janeiro, 1922, 2 v., p. 367,
ed. fac-similada).
7
Luiz Maria da Silva Pinto, Diccionario da Lingua Brasileira por..., natural da
província de Goyaz, Ouro Preto, Typographia de Silva, 1832 (Goiânia, 1996,
ed. fac-similada).
8
Francisco Solano Constâncio, Novo diccionario crítico e etymologico da lingua
portuguesa. Comprehendendo: 1º Todos os vocábulos da língua usual, dos
quaes muitos se não encontrão em Bluteau e Moraes, com a definição clara e
concisa de cada hum e suas diversas accepções, justificadas por citações dos
autores clássicos quando o caso o pede; – 2º os termos os mais usados de
sciencias, artes e officios; – 3º os mais notáveis termos antigos e obsoletos cujo
conhecimento he indispensável para a intelligencia dos documentos antigos;
– 4º a synonimia, com reflexões criticas; – 5º a etymologia analytica de todos

167
os termos radicaes, expondo o sentido rigoroso das raízes primitivas latinas,
gregas etc.; – 6º os prefixos, suffixos, desinências ou terminações analysadas e
explicadas; – 7º observações sobre a orthografia e pronuncia dos vocábulos.
Precedida de huma introdução grammatical por..., Paris, Angelo Francisco
Carneiro Editor, Typographia de Casimir, 1836, p. 729.
9
Antonio de Moraes Silva, Diccionario da lingua portuguesa, 8. ed. ver. e melho-
rada, Rio de Janeiro, Editora Empresa Literária Fluminense, 1890, v. 2, p. 439.
10
Hans-Georg Gadamer, Acotaciones hermenéuticas, tradução de Ana Agud e
Rafael de Agapito, Madrid, Trotta, 2002, p. 257.
11
Keith Michael Baker, Au tribunal de l’opinion: essais sur l’imaginaire politique
au XVIIIe siècle, Paris, Payot, 1993, p. 219; Keith Michael Baker, Politique et
opinion publique sous l’Ancien Régime, Annales. Economies. Societés. Civili-
sations, Paris, v. 1, n. 42, p. 41-71, jan.-fev. 1987.
12
Jürgen Habermas, L’espace public. Archéologie de la publicité comme dimension
constitutive de la société bourgeoise, tradução de Marc B. de Launay, Paris, Payot,
1993; Craig Calhoun (ed.), Habermas and the Public Sphere, Cambridge, MIT
Press, 1997.
13
Reinhart Koselleck, Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo
burguês, tradução de L. V.-B. Castelo-Branco, Rio de Janeiro, EdUERJ, Con-
traponto, 1999.
14
François-Xavier Guerra, Modernidad y independencias: ensayos sobre las revo-
luciones hispánicas, México, Mapfre, FCE, 1992.
15
Maria Beatriz Nizza da Silva, A primeira gazeta da Bahia: Idade d’Ouro do
Brasil, 2. ed. revista e ampliada, Salvador, EdUFBA, 2005.
16
Telmo dos Santos Verdelho, As palavras e as ideias na Revolução Liberal de
1820, Coimbra, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1981, p. 136-137.
17
Idade d’Ouro do Brasil, Bahia, n. 26, 1813.
18
Correio Braziliense, Londres, n. 1, jun. 1808.
19
Lúcia Maria Bastos P. das Neves, Corcundas e constitucionais: a cultura política
da Independência, 1821-1823, Rio de Janeiro, Revan, 2003, p. 36-40.
20
Caillé Geine, Rapport sur la situation de l’opinion publique, Biblioteca Nacional
do Rio de Janeiro, Divisão de manuscritos II – 179, 3, 9-12, 1820 (manuscrito).
21
João Mauricio Rugendas, Viagem pitoresca através do Brasil (1835), tradução
de Sergio Milliet, Belo Horizonte, Itatiaia, São Paulo, Edusp, 1979, p. 223.
22
Lúcia Maria Bastos P. das Neves, Leitura e leitores no Brasil, 1820-1822: o
esboço frustrado de uma esfera pública de poder, Acervo, Rio de Janeiro, v. 1-2,
n. 8, p. 132-133, jan.-dez. 1995.
23
Conciliador Nacional, Pernambuco, 1822.
24
Prospecto para um novo periódico intitulado Correio do Rio de Janeiro, que
sairá todos os dias, excepto nos domingos e dias santos, Rio de Janeiro, Imprensa
Nacional, 1822.

168
25
Revérbero Constitucional Fluminense, Rio de Janeiro, n. 6, 2/07/1822.
26
Macaco Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 5, 1822.
27
Revérbero Constitucional Fluminense, n. 5, 15/11/1821.
28
Quaes os bens e os males que podem resultar da liberdade da Imprensa; e qual
era a influencia que elles podem ter no momento em que os representantes da
nação portugueza se vão congregar?, Rio de Janeiro, Tipografia Real, 1821, p. 1.
29
Joaquim do Amor Divino Caneca, Frei Joaquim do Amor Divino Caneca, orga-
nização e introdução de Evaldo Cabral de Mello, São Paulo, Editora 34, 2001,
p. 618.
30
O Constitucional, Bahia, n. 42, 15/07/1822.
31
Revérbero Constitucional Fluminense, n. 6, 2/07/1822.
32
Proclamação: Habitantes do Brasil, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1823.
33
Brasil, Diário da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do
Brasil (24/05/1823), Brasília, Senado Federal, 1973, 3 v., p. 114, 116 (edição fac-
-similada).
34
François-Xavier Guerra, Annick Lempérière et al. Los espacios públicos en
Iberoamérica: ambigüedades y problemas. Siglo XVIII-XIX, México, Centro
Francés de Estudios Mexicanos y Centroamericanos, FCE, 1998, p. 6-8.
35
O Tamoyo, Rio de Janeiro, n. 21, 9/10/1823.
36
Brasil, Annaes da Câmara dos Deputados de 1831 (14/05/1831), t. 1, Rio de
Janeiro, Tipografia Nacional, 1877.
37
Cf. Marco Morel, As transformações dos espaços públicos: imprensa, atores
políticos e sociabilidades na cidade imperial (1820-1840), São Paulo, Hucitec,
2005.
38
Nova Luz Brasileira, Rio de Janeiro, n. 21, 19/02/1830.
39
Nova Luz Brasileira, n. 20, 16/02/1830.
40
Marcello Basile, Luzes a quem está nas trevas: a linguagem política radical nos
primórdios do Império, Topoi, Rio de Janeiro, n. 3, p. 116, 2001.
41
Brasil, Annaes da Câmara dos Deputados de 1831, 26/05/1831.
42
O Carijó, Rio de Janeiro, n. 54, 01/06/1833.
43
Astrea, Rio de Janeiro, n. 518, 07/01/1830.
44
Echo da Serra, transcrito em Aurora Fluminense, Rio de Janeiro, n. 322, 07/04/1830.
45
O Novo Tempo, Rio de Janeiro, n. 62, 10/10/1844.
46
A Marmota, Rio de Janeiro, n. 893, 23/10/1857.
47
Brasil, Annaes da Câmara dos Deputados de 1831, sessões de 1831.
48
Íris, Rio de Janeiro, p. 598, 1/10/1848.

169
49
Paulino José Soares de Souza Uruguai, Ensaio sobre o Direito Administrativo
(1862), em Visconde do Uruguai, organização e introdução de José Murilo de
Carvalho, São Paulo, Editora 34, 2002, p. 73.
50
Diogo Antônio Feijó, Diogo Antônio Feijó, organização e introdução de Jorge
Caldeira, São Paulo, Editora 34, 1999, p. 228-229.
51
Baker, Au tribunal de l’opinion, p. 264.
52
Koselleck, Crítica e crise, p. 49-56.
53
Aurora Fluminense, n. 322, 7/04/1830.
54
Mona Ozouf, L’opinion publique, em Keith Michael Baker (ed.), The French
Revolution and the Creation of Modern Political Culture, Oxford, Pergamon
Press, 1987 (v. 1, The Political Culture of The Old Regime).
55
António Manuel Hespanha, Guiando a mão invisível: direitos, estados e lei no
liberalismo monárquico português, Coimbra, Almedina, 2004, p. 15.
56
Tribunal do Povo: Órgão da Opinião Pública, Fortaleza, n. 3, 18/03/1877.

REFERÊNCIAS
FARIA, Eduardo de. Novo diccionario da lingua portugueza. O mais exacto
e completo de todos os Diccionarios até hoje publicados. Contendo todas
as vozes da Lingua Portugueza, antigas ou modernas, com as suas varias
accepções, accentuadas conforme e melhor pronuncia, e com a indicação
de termos antiquados Latinos, Barbaros ou viciosos. Os nomes próprios
da geographia antiga e moderna, – todos os termos próprios das Sciencias,
Artes e Officios etc. e sua definição analytica. Seguida de um Diccionario
de Synonymos por... . Lisboa: Typographia Lisbonense de José Carlos
d’Aguiar Vianna, 1850-1853. 4 v.
FERNÁNDEZ SEBASTIÁN, Javier; FUENTES, Juan Francisco (Dir.).
Diccionario político y social del siglo XIX español. Madrid: Alianza, 2002.
FONSECA, Mariano José Pereira da. Máximas, pensamentos e reflexões do
Marquês de Maricá. Edição dirigida e anotada por Sousa da Silveira. Rio
de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura/ Casa de Rui Barbosa, 1958.
SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da lingua portuguesa. Composto
pelo padre D. Raphael Bluteau, reformado e acrescentado por Antonio de
Moraes Silva, natural do Rio de Janeiro. Lisboa: Oficina de Simão Tadeu
Ferreira, 1789. 2 v.
SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da lingua portuguesa. 3. ed. Lisboa:
Typographia de M. P. de Lacerda, 1823. 2 v.

170
SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da lingua portuguesa. Quinta
edição aperfeiçoada e acrescentada de muitos artigos novos e etimologias.
5. ed. Lisboa: Typographia de Antonio José da Rocha, 1844. 2 v.
SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da lingua portuguesa. 6. ed. me-
lhorada e muito acrescentada pelo desembargador Agostinho de Mendonça
Falcão. Lisboa: Typographia de Antonio José da Rocha, 1858. 2 v.
SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da lingua portuguesa. 7. ed. melho-
rada e muito acrescentada com grande numero de termos novos usados no
Brasil e no Portuguez da Índia. Lisboa: Typographia de Joaquim Germano
de Sousa Neves, 1878. 2 v.
SOUSA, Paulino José Soares. Visconde do Uruguai. Organização e intro-
dução de José Murilo de Carvalho. São Paulo: Editora 34, 2002.

PERIÓDICOS
CONCILIADOR DO REINO UNIDO, O. Rio de Janeiro, 1821.
CORREIO DO RIO DE JANEIRO. Rio de Janeiro, 1822-1823.
GAZETA DO RIO DE JANEIRO. Rio de Janeiro, 1808-1822.
OPINIÃO PÚBLICA. Pelotas, 1868.
OPINIÃO PÚBLICA: Jornal Politico e Noticioso, A. Fortaleza, 1861.
PAPAGAIO, O. Rio de Janeiro, 1822. A República e o Marquês de Maricá.

171
LUISA RAUTER PEREIRA

POVO/POVOS

Em meados do século 18, predominavam no Império


colonial português concepções e práticas “corporativas” da
sociedade, de origem medieval. A organização político-social
se caracterizava por uma hierarquia fundada numa ordem
universal imutável cujas partes ou órgãos possuíam responsabi-
lidades, privilégios e deveres, indispensáveis à sua manutenção.
O rei era sua cabeça, seu centro moral e espiritual, garantidor
e protetor de sua paz, harmonia, sossego e felicidade. Tinha a
responsabilidade de governar de acordo com a justiça e equi-
dade, de ouvir as queixas e dar solução aos conflitos. Nessa
concepção, a palavra povo e sua variação no plural, povos,
apareciam em documentos de todo o período colonial como
o conjunto da população habitante de uma região ou colônia,
o que era entendido como o conjunto dos vassalos ou súditos
ou o conjunto das ordens e corpos que mantinham com o rei
um dever de obediência e lealdade. Na documentação legada
pelas câmaras municipais, os principais órgãos de representa-
ção política do “povo” do Antigo Regime português, esse uso
é abundante. Em janeiro de 1785, o Senado da Câmara do Rio
de Janeiro enviou uma representação ao Conselho Ultramarino
pedindo para que fosse revogada a lei que proibiu aos cirurgi-
ões não formados em universidades atuarem como médicos,
tendo em vista o pequeno número destes e a vasta população
de “vinte e cinco mil almas”. A Câmara reconheceu que a lei
fora feita com o intuito de garantir a “felicidade dos povos”,
mas achou por bem recorrer àquela mesma “providência, que
tem feito felizes os Leais Vassalos de Vossa Majestade...”. A essa
representação, a junta respondeu que a pretendida revogação não
se devia realizar, pois precipitaria o “povo em um muito maior
dano do que pretendem evitar, ofendidos e fraudados tantos
legais, e saudáveis providências em benefício da conservação e
saúde dos Povos”.1
Entretanto, esse “povo” que figurava nos documentos das
câmaras estava em muitos casos referido apenas aos “cidadãos”
do período, isto é, os “homens bons”, o conjunto dos “chefes de
família abastados e respeitáveis habilitados a votar”.2 Uma vez
que a massa da população era índia, negra, mestiça ou despos-
suída e dependente, e por estes motivos, alijada dos mecanismos
formais de representação, era vista como elemento integrante,
mas de posição inferior, do grande laço de vassalagem que unia
os integrantes do Império ao rei. O povo era então muitas vezes
um conceito restrito aos brancos proprietários e também aos
homens de negócios.
O povo também era o Terceiro Estado da sociedade de ordens
do Antigo Regime, aquele que tinha o dever e o “direito” ao
trabalho.3 Em Representação de junho de 1748, em que o Senado
da Câmara do Rio de Janeiro pediu providências ao rei e ao bispo
para que houvesse maior participação na Procissão do Corpo de
Deus, o “povo” aparece contraposto aos “cidadãos” e ao clero:

[Na dita Procissão], não só falta a maior parte dos Cidadãos, (...)
e a este respeito também a religião que a acompanha, Irmandades e
Confrarias, e o mais Povo se faz público por editais a celebração desta
festividade, e nesta forma se vai pondo em algum esquecimento e fervor
devido com que se deve concorrer para ela...4

No decorrer do século 18, entretanto, o surgimento de inúme-


ros novos grupos sociais forçou um processo de pluralização
de estamentos. No interior do povo, cada vez mais passaram

174
a haver os limpos e os vis (ou plebe),5 isto é, aqueles dignos de
participação no sistema político e aqueles indignos por condição
social, tipo de ocupação ou origem de sangue. Os territórios
coloniais portugueses constituíram o local onde a falta de clareza
na demarcação das três ordens tradicionais foi mais evidente.
Percebendo o fenômeno, o frade D. Domingos do Loreto Couto
declarou nos seus célebres Desagravos do Brasil e glórias de
Pernambuco de 1757 que

não é fácil determinar nestas Províncias quais sejam os homens da


Plebe; porque aquele que é branco na cor, entende estar fora da esfera
vulgar. Na sua opinião o mesmo é ser alvo, que ser nobre, nem porque
exercitem ofícios mecânicos perdem esta presunção...6

Segundo Schwartz, no século 18, autoridades coloniais


apontavam o problema de que nos territórios brasileiros havia
uma população, mas não um povo. As tradicionais instituições
representativas portuguesas – as cortes – nunca haviam sido
completamente instituídas na colônia, e o conceito de “povo”
como Terceiro Estado na sociedade de ordens, isto é, orgânica
e constitucionalmente vinculado ao corpo da política, era frágil
ou ausente em decorrência do sangue impuro e dos costumes da
população. Por isso, segundo o autor, o termo “plebe” (ou vulgo,
canalha) e não “povo” passou a ser cada vez mais utilizado pelas
autoridades coloniais em referência à população da colônia.7
O Império português também recepcionou nas últimas déca-
das do 18, ao seu modo, as luzes do século. Além do tradicional
corporativismo, as teorias do direito natural tiveram influência
numa nova conceituação do povo: conjunto de indivíduos
detentores de direitos inatos e constituidores da sociedade civil.
O intelectual mineiro Thomaz Antonio Gonzaga escreveu em
1772 um tratado no qual justificou o absolutismo através de
argumentos jusnaturalistas. Segundo Gonzaga, o poder do rei é
divino, logo este só pode ser julgado por Deus. O povo dá origem
à sociedade, mas apenas escolhe a forma de governo e “elege”

175
aqueles que irão exercitar o Império, não sendo a origem do
próprio poder. Portanto, “o rei não pode ser de forma alguma
subordinado ao povo; e por isso ainda que o rei governe mal
e cometa algum delito, nem por isso o povo se pode armar de
castigos contra ele”.8 Sua alegação se opõe não somente ao
direito natural de extração laica, mas também às teorias pactistas
da segunda escolástica ibérica que postulavam o povo como a
origem da soberania real e a possibilidade de que, em caso de
despotismo, este poderia retomar para si a soberania e se rebelar
contra o rei. Este pactismo ganhava relevo num momento em
que o despotismo sufocava as colônias, e muitos teóricos, como
Gonzaga, apoiados pelo governo, procuraram combatê-lo.
Ao final do século 18, conjurações em Minas Gerais (1789),
Rio de Janeiro (1794) e Bahia (1798) criticaram abertamente o
despotismo metropolitano e trouxeram novas conceituações do
povo, no bojo de uma linguagem política renovada. Os princí-
pios do direito natural iluminista, reforçados pelo exemplo das
revoluções na América e na França, forneciam aos conjurados
novas ferramentas críticas, notadamente a ideia de liberdade,
igualdade e soberania dos povos ou do povo. Estas se somavam
à tradição pactista ibérica9 de crítica ao despotismo, conferindo
ao povo um novo lugar no mundo político. Também, a partir
de então, cada vez mais o conceito de povo deixa de significar
para muitos grupos políticos apenas aquela realidade estática
e avalizada pelas tradições do Antigo Regime – os vassalos, os
súditos, o terceiro estado – e passa a conter uma nova dimensão,
orientação ao futuro.
No movimento mineiro de 1789, composto basicamente por
membros da elite urbana nascente, padres e intelectuais, embora
se conclamasse genericamente o “povo” para participar da luta
contra a tirania, não se viu o povo pobre e mestiço, a plebe,
como participante legítimo da nova sociedade a ser criada. Os
conspiradores tinham no horizonte proclamar uma república
nos moldes norte-americanos com um povo composto de cida-
dãos proprietários e ilustrados.10 Este povo, inexistente ainda

176
na realidade, era projetado para o futuro: por meio de auxílio,
educação e repressão, a plebe poderia no futuro se transmutar
em povo. Na Conjuração Baiana de 1798, entretanto, houve
maior participação de membros de menor condição social e de
cor ligados ao artesanato urbano. O desejo de igualdade em todos
os níveis foi muito mais radical e o povo aparecia já claramente
como uma realidade constituída no presente, como mostrou um
dos “avisos ao povo” produzidos pelos revolucionários: “os
homens e pardos que vivem abandonados, todos serão iguais,
não haverá diferença: só haverá Liberdade Popular”.11
Com a transferência da Corte de Lisboa para o Rio de
Janeiro em 1808, em meio ao furacão napoleônico, as provín-
cias passaram a ver o Rio de Janeiro como antes viam Portugal:
a corporificação do centralismo monárquico e o agente da
opressão colonial.12 Desse modo, a Província de Pernambuco
explodiu em 1817 em movimento revolucionário contra a
imposição de um governador pela Coroa. Ao jusnaturalismo
iluminista uniram-se mais uma vez as concepções tradicionais
da vassalagem e do pacto ou contrato entre súditos e o rei. Ao
“povo pernambucano”, caberiam privilégios e liberdades pela
lealdade prestada ao rei por ocasião da grande obra da expulsão
dos holandeses no século 17. No documento citado por Evaldo
Cabral de Mello, o Deão Portugal justificava sua participação
na rebelião argumentando que “a posse e direito da casa de
Bragança eram fundados num contrato bilateral; e havendo sido
ela quem primeiro faltou às suas obrigações, estavam os povos
desobrigados da lealdade jurada”.13
“1817” foi, porém, um marco numa nova percepção do
conceito desenvolvida na crise do Antigo Regime português:
o povo armado como elemento de atuação explosiva na vida
pública. A figura do “povo-soldado” e do povo unido à “tropa” é
frequente nas fontes. O réu João Luiz Freire, em seu depoimento
durante a devassa realizada na repressão, se disse inocente, tendo
sido constrangido a acompanhar “um povo desenfreado e em
tumulto (...) debaixo do comando dos oficiais respectivos”.14

177
Ainda no calor da revolução, Luís de Mendonça avaliou que
“o grito de defesa [contra o despotismo] foi geral” e “o povo se
tornou soldado e protetor dos soldados”.
O movimento em Pernambuco teve, porém, um caráter forte-
mente aristocrático. Os líderes do movimento – proprietários
rurais – projetavam uma sociedade de “classes nobres” com
manutenção das distinções sociais da sociedade colonial: homens
bons, plebe e escravos. O espírito de Ancien Régime dos revo-
lucionários das classes superiores se mostra claramente, mesmo
após a repressão que os levou à prisão junto com os membros
da plebe. Em passagem célebre, Antonio Carlos Andrada e Silva,
chefe maior do movimento, declarou seu arrependimento aos
tribunais: “Derrubando-me da ordem da nobreza a que pertencia,
me punha a par da canalha e ralé de todas as cores, e me segava
em flor as mais bem fecundas esperanças de ulterior avanço, e
de maiores dignidades.”15
A Revolução Constitucional de 1820 em Portugal ensejou
um processo de transformação mais profundo e abrangente do
significado do conceito. Foi o momento de instauração de um
“novo pacto”16 entre povo e rei, aquele entendido agora, não
mais apenas como vassalo e súdito, mas como povo cidadão,
origem e lugar de soberania, o que se expressaria numa consti-
tuição livre. Entretanto, os acontecimentos foram vistos pelos
contemporâneos, não exatamente como uma novidade, mas
como “a restituição de suas antigas e saudáveis instituições
corrigidas e aplicadas segundo as luzes do século (...) a restitui-
ção dos inalienáveis direitos que a natureza concedeu a todos os
povos”.17 No Brasil, as províncias se declararam desligadas do
governo do Rio de Janeiro e solidárias à “causa de Portugal”,
preparando-se para eleger seus representantes. Em 1821, o peri-
ódico Revérbero Constitucional Fluminense lembrou como foi
“belo e majestoso o espetáculo da Liberdade plantando o seu
estandarte no Brasil (...) marcando os verdadeiros fundamen-
tos da sociedade, que pousão sobre o livre consentimento dos
povos”.18 Entretanto, mais uma vez, este “livre consentimento

178
dos povos” se tornou um problema para as elites políticas favo-
ráveis às liberdades constitucionais. Para a historiadora Iara Lis
C. Souza, os anos imediatamente posteriores à Revolução em
Portugal até a Independência em 1822 foram marcados pela
irrupção da presença do povo nas ruas e praças públicas, com
suas diversas reivindicações, anseios e muitas vezes também com
violência.19 As elites liberais se atemorizavam quando o espaço
público era tomado pela “gente turbulenta”, pois pairava o
profundo temor de uma revolução escrava e popular. Sob pena
da desordem, era imprescindível estabelecer quem era a plebe a
ser excluída do processo. Um participante, referindo-se à plebe,
declarou que, quando se lhe delegava o direito à participação,
a “baixa populaça sem instrução” dizia “quantas parvoíces
lhe lembrasse”.20 Mesmo as províncias com anseios republi-
canos aderiram ao projeto de monarquia constitucional. Essa
atitude refletia a preponderância inicial do projeto de Império
luso-brasileiro frente à opção de independência. O periódico
Revérbero Constitucional Fluminense se referia entusiastica-
mente aos “portugueses de ambos os Mundos!”,21 revelando,
entre outras coisas, que as elites coloniais não queriam se afastar
da “civilização” por medo de uma revolução escrava e popular.
Era, portanto, fundamental reivindicar a unidade soberana do
povo português em ambos os continentes. Participante ativo nas
cortes, o deputado José Bonifácio defendia, para a “manutenção
da integridade da Monarquia Portuguesa”, a

convocação de uma Assembleia Luso-brasiliense, que investida


daquela porção de Soberania, que essencialmente reside no Povo deste
grande, e riquíssimo Continente, constitua as bases sobre que se devam
erigir a sua Independência (...) e a sua união com todas as outras partes
integrantes da Grande Família Portuguesa (...)22

Estes primeiros anos da década de 1820 se distinguem, porém,


pela construção do conceito de povo-nação brasileiro, ou “brasi-
liense”, diferente do português. Ao longo dos calorosos debates,

179
as cortes começaram a demonstrar suas verdadeiras intenções
de restauração de todos os mecanismos de opressão colonial,
enfraquecendo o ideal de união com Portugal sob o regime
constitucional. A defesa da “causa do Brasil” entrou aos poucos
na ordem do dia, forjando os primeiros sinais mais definidos do
conceito de um povo especificamente brasileiro. A partir de 1822,
o povo passou a ser uma identidade coletiva política, cultural ou
social e não mais apenas de moradia e nascimento.
A emergência do ilustrado povo-cidadão dos anos de 1820 na
linguagem política não fora hegemônica. D. Pedro foi aclamado
imperador numa “emancipação” política que optou pela segu-
rança da monarquia constitucional comandada por um membro
da casa dinástica portuguesa. Num país das proporções do Brasil
e com uma população cativa tão numerosa, a opção republicana
significaria para as elites políticas articuladoras do processo o
perigo do desmembramento político e territorial e de uma revo-
lução escrava. D. Pedro foi aclamado imperador de acordo com a
tradição portuguesa com festejos em praça pública, coordenados
pelas Câmaras Municipais. Em documentos enviados ao Rio de
Janeiro, em que tais eventos eram descritos ao imperador, o povo
ou os povos ressurgiram como a população de súditos ou vassalos
leais. Em Olinda, a Câmara remeteu ao novo imperador os “anti-
gos votos de fidelidade, vassalagem e contentamento, de todo
o povo desta cidade, Capital da Capitania de Pernambuco”.23
Ao mesmo tempo, em uma vila baiana, o povo apareceu ainda
como terceiro estado diferenciado dos cidadãos ou “homens
bons” e clero. A Câmara declarou que “havendo-se consultado
a vontade dos cidadãos e homens bons decidiram (...) que era
chegada a hora de ser Aclamado Augustíssimo Imperador pelo
Clero, Povo e Tropa, que juntos estavam na Praça e Casas da
Câmara e nas ruas imediatas”.
Nos debates da Assembleia Constituinte instaurada em
1823, o povo foi elemento-chave: qual seria o sistema político
e administrativo adequado ao “povo independente”24 recém-
-constituído? Na discussão em torno de projeto de lei sobre a

180
organização dos governos provinciais, que pretendia abolir as
juntas de governo eletivas formadas no período da revolução
constitucional em Portugal e substituí-las por uma administração
una escolhida pelo Rio de Janeiro, o conceito apresentou usos em
conflito. Para um grupo de deputados, delegar ao povo a escolha
de seus governadores e legisladores locais significaria promover
a desordem e a “anarquia”, pois o povo “que é sempre falto de
luzes vai na boa-fé do que lhe pregão os mal-intencionados que
o descaminha para seus fins particulares”.25 Na mesma linha,
Moniz Tavares argumenta que os governos locais devem ser
impostos pelo governo central, pois a “canalha só ama o pres-
tigio, só reputa excelente o que vem de fora (...)”.26 Para outro
grupo, menos numeroso, as juntas não deviam ser abolidas, pois
era uma instituição “que os povos esposaram, que receberam com
gosto e que tanto tem respeitado que ainda quando na desordem
tem insurgido contra algumas juntas, é para as substituírem por
outras ainda temporárias, mas nunca por um só indivíduo”.27
Numa visão, o exercício da liberdade política era não apenas um
direito do povo, mas uma forma de formá-lo, de constituí-lo e
aprimorá-lo. Na outra, o povo era incapaz e identificado à plebe,
devendo ser tutelado pelas elites políticas do Rio.
Temendo um aprofundamento das tendências liberais e fede-
ralistas, D. Pedro dissolveu a assembleia e impôs ao povo uma
constituição, que, através de instituições como o poder mode-
rador e o conselho de Estado, garantiu a máxima concentração
do poder político em suas mãos. No mesmo ano, Pernambuco
foi novamente palco de um novo movimento revolucionário,
desta vez, mais claramente republicano, marcado pelo ideal
federativo e pelo ódio aos portugueses. Diferente de 1817, o
movimento que proclamou a Confederação do Equador contou,
para além da aristocracia rural, com a participação mais intensa
de membros dos estratos populares, negros libertos e mulatos. A
utilização do conceito ganha ares igualitários ligados ao trabalho
e à produção: o apoio de toda a população era imprescindível
para o projeto republicano. Poucos meses antes da eclosão do

181
movimento, um importante jornal pernambucano, o Sentinela
da Liberdade, denunciava os privilégios dados aos nobres e
portugueses na obtenção de cargos públicos, “enquanto que o
povo que é o todo da sociedade passa uma vida isolada e triste
no meio dos trabalhos e vexames da sociedade, que ele alimenta
e defende”. A matéria prosseguia citando um diálogo de autoria
do filósofo e revolucionário francês, o Conde Volney. O diálogo
se dava entre o “Povo produtor, ativo, e patriota” e os “Reis,
Fidalgos, e grandes dissipadores, ociosos, e destruidores do bem
da pátria”. Aos fidalgos que defendiam seus privilégios natos, o
Povo respondia: “As riquezas procedem de nós [o povo], e vós as
absorveis, e chamais a isto governar? Classe privilegiada, corpo
distinto que nos sois estranho, formai vossa nação à parte, e
vejamos o como vos subsistis.”28
Pedro logo conseguiu vencer a confederação, mas sua política
centralizadora e autoritária, bem como acusações sobre suas
ligações com a elite portuguesa acabaram por derrubá-lo em
1831, pressionado a abdicar por uma “revolução gloriosa (...)
operada pelos esforços, e patriótica união do povo e tropa do Rio
de Janeiro”.29 Nos anos seguintes, como o herdeiro do trono era
menor, o governo ficou a cargo de regentes, momento em que os
liberais venceram momentaneamente os absolutistas. Os liberais
conseguiram impor reformas no sentido de diminuir centraliza-
ção de poder do Primeiro Reinado, dotando as províncias de uma
série de liberdades no campo político e administrativo, como,
por exemplo, a eleição de juízes.
No período regencial dos anos de 1830, o país foi assolado
pela guerra civil nas províncias. As disputas entre chefes locais e
governo central em torno da nomeação de governadores, o ódio
aos portugueses e seus privilégios eram elementos causadores de
grande tensão nas diversas regiões do país. Nestes movimentos,
os poderes regionais e o povo pobre emergiram contundente-
mente no cenário político nacional. O conceito de povo se revela
primeiramente associado à luta universal pela liberdade contra o
despotismo, às identidades regionais e ao projeto federalista. No

182
manifesto de 1836, o presidente da recém-criada República do
Rio Grande, Bento Gonçalves, declarou que os “rio-grandenses”
eram “um povo brioso que quer ser livre” em luta pela “causa
da justiça contra a iniquidade [que] é a causa dos povos contra
os seus opressores”.30 Em outros movimentos como a Sabinada
na Bahia, a Balaiada no Maranhão e a Cabanagem no Pará, a
presença da população pobre e de cor foi mais marcante, o que
delineou outros contornos ao uso do conceito. À liberdade do
povo, se somava o desejo de igualdade, o que trouxe profundos
temores para as elites imperiais das províncias e do governo
central. Foi preciso distinguir claramente mais uma vez o povo
da plebe.
Em famosa memória histórica da Balaiada, o político e literato
conservador Domingos José Gonçalves de Magalhães, então
secretário de governo do Maranhão e um dos organizadores da
repressão, lastimou a ação sanguinária de uma “raça cruzada
de índios, brancos e negros, a que chamam cafuzos”, “massas
brutas” animadas exclusivamente pelo “espírito de rapina”.31
Em oposição a essa “população”, o verdadeiro povo, isto é, os
proprietários rurais e urbanos, assistiam assustados ao terrível
espetáculo das “vilas tomadas” e “fazendas devastadas”.32 Os
Conservadores ou Regressistas como Gonçalves de Magalhães
não se confundiam absolutamente com a questão da igualdade.
Para estes, os homens eram naturalmente desiguais, cada qual
com seu lugar e função na sociedade. A distinção entre o povo
participante do sistema político e a plebe era clara e inquestio-
nável. Na concepção conservadora, havia uma hierarquia entre
os súditos, numa “cadeia de fidelidades e lealdades”,33 não uma
sociedade de indivíduos autônomos e iguais.
Já os políticos liberais viam o povo como princípio político e
legislador fundamental, o portador da “vontade geral”. Porém,
a formação do grande povo cidadão era uma realidade trans-
posta para o futuro e a manutenção da distinção entre “povo”
e “plebe” permanecia, portanto, fundamental. A presença desta
última separava os liberais entre “exaltados” e “moderados”,

183
pois a reivindicação de igualdade econômica e política trazia o
perigo da desordem social e do separatismo republicano. Até
onde levar os princípios de igualdade e liberdade numa socie-
dade escravista, onde crescia a massa de homens livres pobres e
de cor? Essa questão enfraqueceu a frente liberal, dando espaço
para uma reação conservadora.
O maranhense João Francisco Lisboa expressou claramente a
visão liberal a respeito do povo no que diz respeito à participação
política. O ativista e político participou da Balaiada nos anos de
1830, mas sempre deplorou os excessos revolucionários da plebe.
No Jornal de Timon, publicado no Maranhão no ano de 1852,
analisou de forma satírica o processo eleitoral maranhense. No
dia das eleições, a cidade assistia à “...aparição de figuras (...)
pertencentes à classe conhecida pela designação geral de patuleia,
que quer dizer povo, na acepção de plebe ou gentalha”.34
A plebe ou patuleia, na visão desse liberal, não possuía outra
motivação para a participação política além do “amor do ganho
ou da novidade”, e os “instintos de desordem”.35 A solução
apontada por Lisboa o aproxima claramente do conservadorismo
mais aguerrido com a negação da própria vida política e sua
substituição por “cargos puramente administrativos”.36
Segundo Ilmar Rohloff de Mattos, ao longo da regência, os
conservadores ou saquaremas esvaziaram as pretensões liberais,
aproveitando-se de suas contradições políticas, impondo sua
direção ao Estado. Os liberais não conseguiram evitar a Lei de
Interpretação do Ato Adicional de 1841, que cerceou novamente
as tênues liberdades provinciais de 1834. Organizaram, então,
o golpe da maioridade, que coroou ainda criança o imperador
D. Pedro II para tentar conter o regresso conservador, porém,
mais uma vez fracassaram na tentativa de frear a centralização
de poder que acabou se impondo no Segundo Reinado.
A estabilidade política que caracterizou o Segundo Reinado
ainda teria que ultrapassar mais uma última grande perturbação
provincial: a Revolução Praieira em Pernambuco. Por um lado,
ela foi uma continuidade do impulso que havia ocasionado os

184
movimentos do período regencial. Porém, a isso se somavam a
notória influência do movimento francês ocorrido no mesmo
ano de 1848 e o ideário socialista utópico. No Manifesto ao
Mundo, publicado em janeiro de 1849, foi reivindicado o “voto
livre e universal do povo brasileiro” e o “direito universal ao
trabalho”.37 Nos escritos revolucionários e de apoio ao movi-
mento, a massa pobre foi vista sem sombra de dúvida como
parte integrante do povo, isto é, como participante legítima do
mundo político. Um cronista conservador apontou como causa
da revolução, entre outras coisas, a ação das “classes inferiores
e ignorantes da população que julgando-se deserdadas dos seus
supostos direitos, nutriam no coração os sentimentos de ódio,
de inveja e de vingança contra as classes superiores...”.38
Para Figueira de Melo, portanto, o movimento revolucionário
de 1848 era apenas um distúrbio da plebe, sendo o povo um
conceito restrito às classes ilustradas e superiores. Após essa
última grande revolta provincial, houve um grande acordo entre
conservadores e liberais em torno do governo de D. Pedro II,
a partir do qual foram restauradas as instituições tipicamente
centralizadoras: o poder moderador e o Conselho de Estado.
Ambos os grupos, conservador e liberal, passaram a pautar cada
vez mais sua ação pelo temor profundo em relação aos distúrbios
da plebe: ideia de ordem suplantou qualquer reivindicação mais
radical de igualdade no cenário político imperial.
O terror provocado pelas revoltas dos anos de 1830 e 1840
e a estabilização conservadora que deu origem ao Segundo
Reinado ensejaram uma série de reflexões no campo político e
cultural sobre o povo como nacionalidade. Depois das desor-
dens regenciais, era preciso consolidar em todas as regiões um
sentimento legítimo de pertencimento nacional, que pudesse
ajudar a garantir a unidade territorial e política. Literatura e
Historiografia foram os lugares de produção deste discurso. O
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro criado em 1838 foi
responsável pelo primeiro esforço de escrita da história nacional,
com a coleta e publicação de fontes históricas e o incentivo à

185
pesquisa. Foi por meio de um de seus concursos que em 1847 o
alemão von Martius definiu as diretrizes do projeto de escrita da
história nacional: o estudo da peculiaridade do país, destinado a
ser o local de união e aperfeiçoamento de três raças fundadoras:
brancos, negros e índios.39 Nesse processo, o branco europeu,
pelo braço forte do Estado, era o agente que teria levado ordem
e civilização às raças atrasadas. Dando continuidade a esses
primeiros passos, o historiador Francisco Adolfo de Varnhagen
escreveu a primeira grande história do Brasil. A relação entre as
três raças, notadamente nos fenômenos da escravidão e miscige-
nação, era ponto central na obra. Quanto ao segundo fenômeno,
por exemplo, Varnhagen deplora o fato de que “os primeiros
colonos que vieram ao Brasil (...) juntavam-se logo, mesmo sem
ser em lei da graça, com alguma índia, que, segundo vimos, os
próprios escritores não deixavam de achar bonitas”.40
A literatura das primeiras décadas do século também se
concentrou na descoberta da singularidade do povo brasileiro.
Em autores como o romancista José de Alencar e o poeta
Gonçalves Dias, para citar os mais importantes, o índio é ideali-
zado como o herói virtuoso, o portador mítico da nacionalidade
mais genuína. No poema “O Canto do Guerreiro”, o poeta enal-
tece a valentia do índio: “Na caça ou na lide / Quem há que me
afronte?! / A onça raivosa / Meus passos conhece, / O inimigo
estremece, / E a ave medrosa / Se esconde no céu. / – Quem há
mais valente, / – Mais destro que eu?”.
Nesse período de cem anos da história brasileira, assistimos
ao surgimento do conceito de povo-cidadão como o lugar
da soberania política. Entretanto, os significados ligados ao
Antigo Regime – o conjunto dos súditos, vassalos, e o terceiro
estado – ainda se mostraram atuantes na linguagem política,
ao mesmo tempo em que a distinção entre o povo legítimo e a
plebe – ou canalha, patuleia, populaça – marcou todo o perí-
odo. Tais elementos deram contornos e limites dos projetos de
liberdade e igualdade e soberania popular, relegando a noção
de um verdadeiro povo de cidadãos ao futuro. A unidade

186
nacional – o conceito de povo-nação – foi então concebida
pelas elites em torno da noção de unidade de cultura, geografia
e raça, num vínculo menos com a vida política do que com a
natureza física do país.

NOTAS
1
Parecer de uma junta sobre representação da Câmara acerca de Médicos e
Cirurgiões, Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Rio de Janeiro, caixa 143,
doc. 61.
2
Charles Boxer, O império marítimo português, São Paulo, Companhia das Letras,
2002.
3
Joel Serrão (dir.), Dicionário de história de Portugal, Porto, Figueirinhas, 1992.
4
Representação do Senado sobre a Procissão do Corpo de Deus, Arquivo His-
tórico Ultramarino (AHU), Rio de Janeiro, avulsos, caixa 48, doc. 42; António
Manuel Hespanha, História de Portugal: o Antigo Regime (1620-1807), Lisboa,
Estampa, 1993, v. 4.
5
Hespanha, História de Portugal.
6
Domingos do Loreto Couto, Desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco, Rio
de Janeiro, Tipográfica da Biblioteca Nacional, 1904, p. 226.
7
Stuart Schwartz, Gente da terra braziliense da nasção. Pensando o Brasil: a cons-
trução de um povo, em C. G. Mota (org.), Viagem incompleta. A experiência
brasileira (1500-2000). Formação: Histórias, São Paulo, Ed. Senac, 2000.
8
Tomaz Antonio Gonzaga, Tratado de direito natural, São Paulo, Martins Fontes,
2004, p. 147.
9
Luiz Carlos Villalta, Lilia Moritz Schwarcz, Laura de Mello e Souza (org.),
1789-1808: o império luso-brasileiro e os Brasis, Rio de Janeiro, Companhia
das Letras, 2000.
10
Kenneth Maxwell, A devassa da devassa: a Inconfidência Mineira – Brasil e
Portugal. 1750-1808, São Paulo, Paz e Terra, 2001.
11
Apud F. Borges de Barros, Os confederados do Partido da Liberdade: subsídios
para a história da Conjuração Baiana de 1798-1799, Bahia, Imprensa Official
do Estado, 1922, p. 77.
12
Maria Odila da Silva Dias, A interiorização da Metrópole (1808-1853), em C.
G. Mota, Brasil em 1822: dimensões, São Paulo, Perspectiva, 1972.
13
Carta da pastoral do cabido da Sé de Olinda apud Jerônimo Martiniano Figueira
de Melo, Chronica da Rebelião Praieira, Rio de Janeiro, Tipografia do Brasil de
J. J. da Rocha, 1849, p. 137.
14
Pastoral dos Governadores do Bispado, confirmados pelo governo provisório.
Documentos Históricos, Biblioteca Nacional, 1976, n. 103, p. 132.

187
15
Apud Carlos Guilherme Mota, Nordeste 1817. Estruturas e argumentos, São
Paulo, Edusp, 1972, p. 40.
16
Iara Lis Souza, Pátria coroada. O Brasil como corpo político autônomo (1780-
1831), São Paulo, Editora Unesp, 1999.
17
Manifesto da Nação Portuguesa aos Soberanos e Povos da Europa, de Fernandes
Thomaz apud Souza, Pátria coroada, p. 84.
18
Revérbero Constitucional Fluminsense, Rio de Janeiro, p. 42, 15 out. 1821.
19
Souza, Pátria coroada.
20
Apud Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves, Corcundas e constitucionais: a
cultura política da Independência (1820-1822), Rio de Janeiro, Revan, FAPERJ,
2003, p. 216.
21
Revérbero Constitucional Fluminsense, Rio de Janeiro, 16 set. 1821.
22
José Bonifácio de Andrada e Silva, Obra política de José Bonifácio, Brasília,
Centro Gráfico do Senado Federal, 1973, p. 242.
23
As Câmaras Municipais e a Independência. Conselho Federal de Cultura, De-
partamento de Imprensa Nacional, 1973, p. 106.
24
Brasil, Câmara dos Deputados, Anais, 1-6, 1823, p. 34.
25
Ibidem, p. 120.
26
Ibidem, p. 124.
27
Ibidem, p. 54.
28
Sentinela da Liberdade, Pernambuco, 1823.
29
Proclamação em nome da Assembleia Geral aos povos do Brasil sobre os acon-
tecimentos do 7 de abril de 1831, em Lydinea Gasman, Documentos históricos
brasileiros, Brasília, Ministério da Educação e Cultura, Fundação Nacional de
Material Escolar, 1976, p. 39.
30
Manifesto ao povo rio-grandense, Biblioteca Nacional, 1836.
31
Domingos José Gonçalves de Magalhães, Memória histórica e documentada
da Revolução da Província do Maranhão. Desde 1839 até 1840, São Paulo,
Siciliano, 2001, p. 21.
32
Ibidem, p. 71.
33
Ilmar Rohloff de Mattos, O tempo saquarema: a formação do Estado Imperial,
4. ed., Rio de Janeiro, Access, 1999, p. 148.
34
João Francisco Lisboa, José Murilo de Carvalho, Jornal de Timon: partidos e
eleições no Maranhão, São Paulo, Companhia das Letras, 1995, p. 183.
35
Ibidem, p. 184.
36
Ibidem, p. 331.

188
37
Manifesto ao mundo, em Lydinea Gasman, Documentos históricos brasileiros,
Brasília, Ministério da Educação e Cultura, Fundação Nacional de Material
Escolar, 1976, p. 40.
38
Melo, Chronica da Rebelião Praieira, p. 4.
39
Manoel J. S. Guimarães, Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional, Estudos Históricos,
Rio de Janeiro, n. 1, 1988.
40
Nilo Odália (org.), Varnhagen: história, São Paulo, Ática, 1979, p. 68.

REFERÊNCIAS
MANIFESTO ao mundo. In: CARNEIRO, Edson. A Insurreição Praieira
(1848-1849). Rio de Janeiro: Conquista, 1960.
MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro veio. O imaginário da restauração
pernambucana. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997.
PRECISO onde Luís de Mendonça justifica a Revolução de 1817. In: RI-
BEIRO, João. História do Brasil. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1935.
p. 416-418.
PRECISO onde Luís de Mendonça justifica a Revolução de 1817. In:
GASMAN, Lydinea. Documentos históricos brasileiros. Brasília: Ministério
da Educação e Cultura / Fundação Nacional de Material Escolar, 1976.
PROCLAMAÇÃO em nome da Assembleia Geral aos povos do Brasil sobre
os acontecimentos do 7 de abril de 1831. In: ARMITAGE, João. História
do Brasil. Rio de Janeiro: Zelio Valverde, [s.d.], p. 382-383.
QUINTAS, Amaro. O sentido social da Revolução Praieira. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1967.
RIBEIRO, Gladys Sabina. A liberdade em construção. Identidade nacional
e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 2002.

189
H E L O I S A M A R I A M U R G E L S TA R L I N G
C H R I S T I A N E D WA R D C Y R I L L Y N C H

REPÚBLICA/REPUBLICANOS

No Brasil, o que mais chama a atenção no conceito de


república entre 1750-1850 é o fato de os dicionários não
acusarem qualquer modificação nos sentidos registrados no
Dicionário de Bluteau já em 1713. O primeiro explicava a
república como “qualquer gênero de estado” voltado para
o bem comum – perfeitamente compatível, portanto, com a
monarquia, a aristocracia ou a democracia. Nesse sentido é
que era compreendido o adjetivo repúblico – “zeloso do bem
da república”; “amigo do bem público”. O segundo sentido
era mais restrito: “Estado governado por magistrados, eleitos,
e confirmados pelo povo: ou mais amplamente, Estado gover-
nado por muitos.” Um século depois, o Dicionário de Moraes
reiterava ambos os significados ao definir a república como
“o que pertence e respeita ao público de qualquer estado”,
e “Estado, que é governado por todo o povo, ou por certas
pessoas”. Este último se aproximava daquele de democracia,
definida como “forma de governo, na qual o sumo império,
ou os direitos majestáticos residem atualmente no povo, e
são por ele exercidos”. Mas a correlação não era explícita.
Limitando-se a se referirem também à República das Letras,
as edições de 1823, 1831, 1846 e 1877 nada acrescentaram
politicamente àqueles dois significados. É possível que essa
invariabilidade se deva à resistência à forma republicana,
já que o Brasil foi o único país independente duradouramente
monárquico do subcontinente. Isso naturalmente não impediu
que, para além dos dicionários ordinários, periódicos, discursos e
opúsculos tenham registrado outros sentidos do conceito. Nesse
quadro, a história do conceito de república no Brasil entre 1750 e
1850 pode ser sincronicamente dividida em quatro grandes fases.
A primeira corresponde ao período entre 1750 e 1792, em que
o conceito esteve principalmente associado à tradição clássica que
remontava a Políbio e Cícero, que ao traduzir do grego o termo
politeía de Aristóteles como res publica, legara ao mundo latino
o duplo sentido do conceito. Mais amplo, o primeiro concebia
a constituição da comunidade voltada para o bem comum; ao
passo que o segundo, mais restrito, exprimia o de governo gerido
por magistrados extraídos da camada popular. No século 18,
este último sentido era associado à herança da matriz medieval
e renascentista da tradição republicana, que sobrevivia com
dificuldade às margens dos Estados absolutos. No Brasil de
então, ele definia uma dimensão de autonomia administrativa
local relacionada aos cargos e ao funcionamento das câmaras
municipais. Os cargos camarários eram designados como os
cargos honrosos da república e eram acessíveis aos denominados
homens bons da terra, bastando ser natural da colônia, possuir
bens e ser “civilizado no trato das gentes”.1 Contudo, por conta
dos constrangimentos impostos pela autoridade metropolitana
à participação dos colonos na gestão da administração local, à
medida que avançava o século, o conceito de república passou
também a ser utilizado no sentido mais restrito de governo
popular. Protestava-se contra a justiça inoperante e lenta; o
empobrecimento dos súditos; a avareza régia; o lançamento de
tributos sem consulta; os excessos e desordens na Fazenda Real;
as desigualdades da tributação; a tirania das autoridades colo-
niais; as dificuldades de representação junto ao soberano e aos
tribunais do Reino. Assim, durante a primeira metade do século
18, a república podia significar uma maneira de os colonos se
posicionarem contra a usurpação de direitos e abusos praticados

192
pelos funcionários ultramarinos. A revolta expressava também
uma reação àquilo que entendiam como um rompimento de
acordos tácitos, no contexto das relações entre a metrópole e
sua área colonial, a partir do estabelecimento de limites e obriga-
ções mútuas.2 Nesse contexto, o culto ao modelo constitucional
veneziano exercia papel saliente. Graças aos colonos florentinos
fixados na região desde o início da colonização,3 era Veneza que
os aristocratas rebelados de Olinda tinham em vista durante a
Guerra dos Mascates (1710). O mesmo ocorria com os sedicio-
sos de Vila Rica, em Minas Gerais, naquele mesmo ano. Veneza
significava a construção de um corpo político e administrativo
circunscrito aos grupos detentores de bens na capitania – os
portadores de virtude, privilégio dos homens principais da
terra. Por outro lado, para o governador de Minas Gerais, o
conde de Assumar, república era sinônimo de degradação dos
costumes em geral: o republicano era um mau vassalo, falho em
virtudes, incapaz de compartilhar valores, infenso aos mecanis-
mos da governabilidade. Minas Gerais era “uma república, em
que atualmente está armado o atrevimento, e os direitos quase
sempre desarmados”. No caso de serem bem-sucedidas as atitu-
des sediciosas, ficaria “o Estado reduzido a uma república de
24 e seu doge”.4
Conforme o século caminhava para o seu fim, essa leitura da
república como autonomia se aperfeiçoou para exprimir uma
forma de comunidade política que exigia de seus membros a
participação na condução dos negócios públicos – única forma
de governo em si mesma boa. Os conspiradores da Inconfidência
Mineira, em 1789, entendiam seu movimento como uma tenta-
tiva de impedir ou retardar o descomedimento dos homens e
das instituições, o que passava por romper com a corrupção
dos costumes e de reatar com a autoridade da lei. Para Joaquim
José da Silva Xavier, o Tiradentes, tratava-se de restaurar uma
antiga ordem de leis inscritas na natureza das coisas, pertur-
bada e violada pelo despotismo de monarcas absolutos. Daí
que repetisse: “Não diga levantar, diga restaurar.”5 O ponto

193
de partida desses homens estava no ideal de cidade tão caro ao
republicanismo anglo-americano, que significava independência
e autogoverno. Eles haviam aprendido algumas coisas sobre a
política da liberdade, em especial com a leitura dos artigos da
Confederação norte-americana e das constituições dos Estados
que a integravam: que o poder estava na soberania, liberdade e
independência dos diversos Estados; que esse poder se concen-
trava nos legislativos e, em particular, nas câmaras baixas; e
que a liberdade só florescia em Estados pequenos.6 Ao invés de
pretender consolidar a área colonial portuguesa sob um governo
nacional, os conspiradores preferiam vincular o sistema político
da capitania a um processo local de discussão e negociação legis-
lativa, que só poderia passar pelo revigoramento das câmaras
municipais.7 Elas eram as únicas instituições, conhecidas pelos
homens naturais do país, de representação dos interesses locais
e de continuidade administrativa, respaldadas na autoridade,
exercendo particular atração a homens que queriam ocupar
cargos onde vissem sua competência reconhecida e sua ascensão
social realizada.8 Eram também homens que compartilhavam
uma concepção utilitária da virtude, e, não por acaso, muitos
estavam envolvidos com o contrabando de ouro.
No entanto, é apenas depois de 1792 que se fixa no Brasil
um sentido de república claramente para além daquele consa-
grado pela tradição clássica – aquele sinônimo de democracia. A
origem, claro está, estava nos ecos da república francesa, apor-
tados em Salvador no final do ano de 1793 e acoimados como
francesias. A palavra francesia designava ações e sentimentos
antimonárquicos, autonomistas ou antirreligiosos, a que seus
adversários aludiam como as “abomináveis ideias francesas”.9
Nesse contexto, a Sociedade Literária do Rio de Janeiro serviu de
sede para um ensaio sedicioso em 1794. Conversando um pouco
sobre tudo, seus membros debatiam sobre os acontecimentos
da Revolução Francesa e, mais do que com um conceito, eles
lidavam com uma linguagem do republicanismo que permitia
veicular a noção da política como atividade pública. República

194
era principalmente sinônimo de leis francesas e essas signifi-
cavam uma garantia de um governo de iguais. Ou, para usar
a definição de Silva Alvarenga: “Não há melhor governo do
que o governo de iguais desde que restrito aos iguais.” João
Antunes, por exemplo, constatara que “as repúblicas pagavam
tudo o que tiravam aos vassalos”; João Veloso sonhava gozar
a liberdade e por isso gostaria de estar na França “para passar
bem”. Jacó Milliet, por sua vez, julgava que a “guerra que
faziam os republicanos era justa e os reis da Europa todos eram
uns ladrões”. Francisco Antônio entendia que “as leis francesas
eram boas pela igualdade que introduziam entre os homens, e
que só quando os franceses cá chegassem se poriam as cousas
direitas”. Um alfaiate chegou a declarar que a lei dos franceses
era “justa e santa (...) Assim como o rei pode matar os homens,
também os ditos podem matar o rei”. Nesse sentido, a leitura
carioca do termo república foi mais produto da interpretação
desse vocabulário do que de adesão àquela forma de governo.
Tanto pela persistência do ideal republicano clássico da aristo-
cracia rural como pela simpatia de alguns setores urbanos da
capital, Recife, pelo discurso igualitário jacobino, a tradição
republicana encontraria seu reduto por excelência durante a
primeira metade do século 19, na província de Pernambuco.
Descontentes com a drenagem de tributos locais pela Corte do
Rio de Janeiro, levantou-se a aristocracia rural pernambucana
na chamada Revolução de 1817, cuja nota distintiva era a ausên-
cia de povo. Embora os chefes da rebelião não explicitassem
se a revolta era contra os agentes locais da Coroa ou contra a
própria, desmentiam pressurosos os boatos de que aboliriam a
escravidão. Segundo um contemporâneo, eles só pronunciavam a
palavra república “em voz baixa e só discorrem sobre a doutrina
dos direitos do homem com os iniciados”, já que ela “não seria
compreendida pela canalha”.10 Já a inspiração constitucional
oscilava entre a Constituição termidoriana e a norte-americana.
De fato, o conselheiro José Maria de Avelar Brotero, primeiro
professor de Direito Constitucional de São Paulo, anotaria em

195
1837 a mudança semântica: “É um termo genérico, que significa
‘coisa pertencente à cidade’. Nossos avós diziam: ‘F., cidadão
republicano, membro da câmara etc.’, e então nem se lembravam
das democracias. Vulgarmente chamam ‘repúblicas’ os governos
democráticos.”11
O terceiro momento do conceito data de 1821, isto é, da
chegada das notícias da Revolução Constitucionalista do Porto
e da proclamação da liberdade de imprensa. Conforme refe-
rido, o significado que então prevaleceu foi aquele que o fazia
sinônimo de democracia ou de governo popular eletivo. Para o
Manual político constitucional, publicado em Lisboa naquele
ano, “o governo democrático ou republicano é aquele em que
o povo é livre e se governa a si mesmo pelos seus magistrados,
que ele mesmo elege”.12 No entanto, diferentemente do ocorrido
na América hispânica, o encaminhamento de uma fórmula de
transição do Antigo Regime para o governo constitucional, que
preservava a forma monárquica de governo, levou o conceito
de república a passar para o segundo plano, escondido seu
significado sob as fórmulas de uma monarquia democrática ou
republicana. A aceitação da monarquia constitucional reduziu a
antiga oposição entre direita absolutista e esquerda republicana
a uma luta entre adeptos de uma monarquia republicana, isto
é, democrática, como era a do liberalismo vintista, e que aqui
assumiu também aspirações federalistas, americanista, e uma
monarquia temperada, isto é, um governo misto à inglesa, com
acentos unitaristas, europeísta. Era o que, já na Constituinte de
1823, explicava um deputado da esquerda liberal: “De certo
tempo para cá o Brasil parece dividido em dous partidos. Todos
desejam a independência, porém uns seguem ideias democráti-
cas, e outros aristocráticas.”13 Se, por um lado, havia uma clara
associação entre conceitos como monarquia, governo misto,
unitarismo e Europa, simetricamente se associavam república,
democracia, federalismo e América. A direita liberal tachava
a esquerda de “facção oculta e tenebrosa de furiosos demago-
gos e anarquistas”;14 “iluminados, carbonários, radicais”, que

196
“tem desordenado e ensanguentado a Europa, e que ameaçam
o sossego de todos os povos e a estabilidade dos governos”.15
Por sua vez, a esquerda acusava a direita liberal de chamar de
republicanos “todos aqueles que não apoiam medidas violentas,
leis parciais, caprichosas e bárbaras; leis, enfim, do sanguino-
lento Draco”.16 Durante a Constituinte, o secretário particular
do imperador, Francisco Gomes da Silva, colocaria o dilema
político com toda a clareza: “Ou queremos monarquia constitu-
cional, isto é, um governo misto, ou queremos uma monarquia
republicana.”17
Do lado direito do espectro político liberal, estavam aqueles
para quem a monarquia constitucional representativa era “o
único governo capaz de fazer a felicidade e a prosperidade das
nações; porque marchando a honra com a civilização, e com as
luzes do século, é o único que oferece a tríplice aliança da força,
da sabedoria e da liberdade”.18 Como explicava o marquês de
Caravelas, a monarquia constitucional era uma modalidade
equidistante entre democracia ou república e monarquia ou
absolutismo: “A monarquia representativa é um governo misto,
que se combina umas vezes com elementos democráticos, outras
vezes com a aristocracia e democracia conjuntamente.”19 Daí
que o ministro do Reino, depois do Império, José Bonifácio
de Andrada e Silva, pedisse “uma Constituição que, opondo
barreiras invencíveis ao despotismo, quer real, quer aristocrá-
tico, quer democrático, afugente a anarquia”.20 Os modelos de
monarquia republicana ou república eram condenados por ele
como “totalmente teoréticos e metafísicos e por isso inexequíveis;
assim o provam França, Espanha, e ultimamente, Portugal”.21
Para ele, contra a forma de governo democrática pesava também
o mau exemplo das repúblicas hispânicas, que “tendo saído de
um governo monárquico, pretenderam estabelecer uma licen-
ciosa liberdade; e depois de terem nadado em sangue, não são
mais que vítimas da desordem, da pobreza e da miséria”.22 O
exemplo norte-americano, por sua vez, era rejeitado pela incom-
patibilidade entre as duas matrizes culturais, que não eram “da

197
mesma família”. “Se nós queremos monarquia”, lembrava o
marquês de Caravelas, “não devemos procurar coisas que nela
ficam deslocadas”.23 Identificada a monarquia ao unitarismo, a
república era vista pelo marquês de Baependi como sinônimo
de federalismo: “Temos a combater o partido dos republicanos,
que sustentam e apregoam a separação de todas as províncias em
repúblicas independentes, mas confederadas entre si, à imitação
dos Estados Unidos da América.”24 José Bonifácio explicava
melhor ao caracterizar os republicanos federalistas como bispos
sem papa, a que eu também chamarei os incompreensíveis. Estes
que não querem ser monárquico-constitucionais, que não podem
ser corcundas e que não querem ser republicanos de uma só
república, querem um governo monstruoso; um centro de poder
nominal, e cada província uma pequena república, para serem
nelas chefes absolutos, corcundas despóticos.25
Desse modo, federalismo se tornava feudalismo, e república,
despotismo. Do lado esquerdo do espectro político, aqueles que
até então tendiam ou abraçavam o republicanismo acharam mais
prudente ou cômodo aderir à fórmula de emancipação política
sob o patrocínio do príncipe regente, imaginando, porém, uma
monarquia constitucional que, na esteira do vintismo português,
privilegiasse os elementos democráticos ou republicanos, o que
passava necessariamente por enfraquecer o poderio monárquico
e fortalecer a câmara popular. Eles combatiam as propostas de
uma segunda câmara, de caráter aristocrático, de conceder o
veto absoluto ao monarca, como uma tentativa de “remoçar
no Brasil a rançosa e encarquilhada aristocracia”.26 Ao indica-
rem que se imitasse a Constituição de Cádiz ou a Portuguesa,
o que jornalistas como João Soares Lisboa, Gonçalves Ledo
e Januário da Cunha Barbosa propunham era uma república
travestida de monarquia: “Na verdade, que desejavam os mais
acérrimos democratas do Brasil? Liberdade. Como haviam de
assegurá-la? Por uma Constituição. E que Constituição mais livre,
mais cheia mesma de formas republicanas, que a Constituição
de Portugal?”27 Também o radical Cipriano Barata elogiava a

198
Constituição Portuguesa que, conforme preconizava Mably,
decepara a autoridade real a ponto de fazer dela uma “fera sem
unhas, domesticada e presa”.28 Por outro lado, o fato de o Brasil
estar na América era um dos mais frequentes argumentos em
favor do modelo democrático ou republicano de monarquia.
Ela era sinônima de liberdade e de democracia – ao contrário da
Europa, associada aos governos aristocráticos e à Santa Aliança.
Era o que explicava o deputado Henriques de Resende: uma
vez que “o Brasil pertence todo, e deve pertencer ao sistema
americano”, a monarquia brasileira deveria se fundamentar “em
alicerces próprios do nosso terreno, e não sobre as mesmas insti-
tuições do sistema europeu, porque a experiência nos mostra que
as plantas exóticas não podem prosperar em nossos climas”.29 A
estratégia de ocultação dos republicanos atrás das ambiguidades
semânticas do próprio conceito de república, que oscilavam entre
seu sentido clássico e seu sentido moderno, foi denunciada por
um deputado governista que tentava impedir a diplomação de
um candidato eleito na Constituinte:

Confessa o pretendente [a deputado] ser um republicano e para


torcer o sentido óbvio que ocorria a todos os leitores que era a demo-
cracia, desculpou-se com a filologia da palavra res publica, mas caiu
miseravelmente no fim de tal carta, apontando exemplos de democra-
cias puras, quais as de Roma e da América Inglesa.30

Abraçar uma monarquia democrática era assim uma forma


de aceitar a monarquia sem deixar de ser republicano. Somente
no limite da ruptura contra o imperador, a esquerda liberal
provincial recorreu às armas e declarou-se abertamente repu-
blicana. Foi o caso da Confederação do Equador, rebelião que
se alastrou de Pernambuco pelo Nordeste brasileiro depois que
Pedro I dissolveu a Constituinte para impor o projeto da direita
liberal, em 1824. Para os republicanos pernambucanos, pesa-
vam contra a Carta outorgada o vício da origem, o unitarismo,
o poder moderador, o Conselho de Estado e o Senado Vitalício

199
– todos os elementos que, para a direita liberal, asseguravam a
monarquia temperada contra a democrática. “De nova inven-
ção maquiavélica”, o poder moderador era “a chave mestra da
opressão da nação brasileira e o garrote mais forte da liberdade
dos povos”, por meio da qual o imperador poderia dissolver
a Câmara, “a representante do povo”, saindo ileso o Senado,
“representante dos apaniguados do Imperador”, e ficando o
povo “indefeso nos atentados do Imperador contra os seus direi-
tos”.31 Como fundamento de sua decisão separatista, os rebeldes
pernambucanos invocavam uma concepção americana e nativista
de pátria, que só voluntariamente poderia se submeter a um
governo nacional. Segundo o argumento, só uma Constituinte
poderia elaborar o pacto que associaria entre si as províncias do
Brasil, independentes desde que desaparecera o laço que as unia
a Portugal. Ou seja, os republicanos de Pernambuco se recusa-
vam a reconhecer o governo nacional do Rio de Janeiro como o
centro de um Brasil uno e indiviso, justificando o ato de rebeldia
e de secessão invocando a prévia existência de uma cláusula
resolutiva tácita – a do contrato descumprido pelo Imperador,
ao dissolver a Constituinte e impor unilateralmente a Carta.32
Era o chefe intelectual da rebelião, o Frei Caneca, que explicava:

Quando aqueles sujeitos do sítio do Ipiranga, no seu exaltado


entusiasmo, aclamaram a Sua Majestade Imperial, e foram imitados
pelos aferventados fluminenses, Bahia podia constituir-se república;
Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande, Ceará e Piauí, federação;
Sergipe d’El-Rei, reino; Maranhão e Pará, monarquia constitucional;
Rio Grande do Sul, estado despótico.33

E concluíam os confederados em seu manifesto: “O sistema


americano deve ser idêntico; desprezemos instituições oligárqui-
cas, só cabidas na encanecida Europa.”34
Como se vê, os republicanos eram principalmente vintistas
extremados, que somente premidos ao último limite rompiam
com a fórmula de transigência da monarquia constitucional.

200
Tanto assim que, mesmo depois da abdicação de Pedro I, em
1831, sob as regências chefiadas por senadores, em meio às guer-
ras civis provinciais e em plena febre federalista daquela década,
a adesão ao republicanismo continuava a não se efetuar senão
em último caso. Dentro da dicotomia república-federalismo e
monarquia-unitarismo, os manifestos republicanos eram todos
provinciais e se referiam à forma republicana, não como algo
bom em si mesma, mas instrumentalmente – como um meio de
conseguir emancipação do governo nacional. No Rio Grande
do Sul, Bento Gonçalves declarava que perdidas

as esperanças de concluírem com o Governo de Sua Majestade


Imperial uma conciliação fundada nos princípios de Justiça Universal,
os rio-grandenses (...) solenemente proclamaram e juraram a sua inde-
pendência política, debaixo dos auspícios do governo republicano,
dispostos todavia a federarem-se, quando nisso acordem as províncias
irmãs que venham adotar o mesmo sistema.35

Os baianos da revolta da Sabinada, por sua vez, chegaram ao


cúmulo de proclamar a independência provisória da província,
“somente até a maioridade do Imperador o Senhor D. Pedro II”.36
Sintomaticamente, não havia qualquer proposta de república
unitária. Embora combatessem as instituições constitucionais
com argumentos semelhantes aos dos confederados pernambu-
canos, federalistas, os exaltados da Corte também relutavam
em dar o passo seguinte, que era aderir à república. Ezequiel
Correia dos Santos, por exemplo, reconhecia em abstrato que a
república democrática era “coisa boa, e muito boa”, por ser um
governo não patrimonial, temporário e responsável. No entanto,
por receio da repressão, da desordem ou da impopularidade da
ideia, ele preferia dizer-se favorável a uma “monarquia ameri-
cana sui generis” – democrática, constitucional, federalista, não
hereditária e eletiva. Ou seja, uma república norte-americana,
com o chefe de Estado vitalício.37

201
Como conceito autônomo, portanto, a república era bastante
débil. Os exaltados ou abertamente republicanos foram sempre
minoritários em relação aos moderados que, na busca de um
meio-termo, queriam uma descentralização mais prudente,
lastrada no liberalismo da Monarquia de Julho. Combatendo à
direita “o desejo de vestirem a nossa monarquia com as galas e
velhos atavios que o regime gótico legou aos povos europeus” e,
à esquerda, “a ideias da república que se enfeitava com as nobres
cores da liberdade”, mas que comprometia “a prosperidade e
os destinos do Brasil”, o deputado e jornalista Evaristo Ferreira
da Veiga buscava “o justo meio, condenando, quer as visões do
republicanismo, quer os sonhos não menos absurdos da monar-
quia aristocrática”.38 A ala esquerda moderada simpatizava antes
com um sistema de separação de poderes à moda americana do
que com o governo parlamentar à europeia; entretanto, queriam
manter a monarquia por receio da desordem republicana, acre-
ditando que aquela fosse melhor garantia da ordem, por conta
da “solidez do governo pela perpetuidade do seu primeiro
magistrado”.39 Além disso, os moderados combatiam a concep-
ção restrita e nativista de pátria ostentada pelos exaltados: “A
organização política dos Estados”, explicava Evaristo, “é hoje
diversa da dos antigos, que ligavam ao nome – pátria – ideias
muito mais restritas, que nasciam da natureza das associações
antigas, sendo hoje preferida a indústria e a proteção dos direitos
de cada um”.40 Um colega seu não destoaria: “A pátria é todo
o lugar onde um indivíduo vive seguro debaixo da proteção das
leis, apesar de sempre ficar alguma lembrança do lugar onde o
homem passa a sua meninice, da árvore a que se acostumava
abrigar-se etc.”41 Preocupavam-se assim com a autonomia das
províncias, mas também em cimentar a unidade nacional.
O ponto máximo de prestígio da república e do federalismo
foi a reforma constitucional de 1834, bancada pelos moderados
e pelos exaltados, e que consagrou uma forma de Estado híbrida,
entre o federalismo e o unitarismo, e decretou que o regente fosse
eleito pela nação numa eleição em dois graus. Dali por diante,

202
o ímpeto federalista e radical cessou, e a desordem política,
econômica e social esfriou a ideia republicana americanista junto
à maior parte da classe política. O quarto momento do conceito
no Brasil começou justamente, então, quando ficou claro que,
ao invés de reduzir as ameaças de separatismo, o experimento
descentralizador e democratizante da reforma constitucional
as havia antes fomentado, aprofundando a desordem, e que o
caminho para a paz estava na fórmula inversa – reforçar o poder
do governo central e prestigiar o elemento monárquico. Vários
argumentos justificavam esse abandono do ideal republicano
e federalista. O primeiro deles era a falta de civismo do povo
brasileiro estampada no regime escravocrata, que faria da repú-
blica no Brasil uma caricatura ridícula. Era o que comentava um
articulista pernambucano já em 1821:

Uma república brasileira, proclamando a liberdade e a igualdade,


nunca poderia deixar de produzir o contraste burlesco de se ver um
pequeno número de homens brancos envoltos em cambraias e tafetás,
conduzidos em palanquins ou redes, por pretos de pés descalços, que
se compram, vendem, alugam e açoitam liberal e constitucionalmente,
como as mulas, machos e cavalos em Madrid, Londres e Paris.42

Justamente porque a república era “o mais perfeito e, por


isso, demandando a maior soma de virtudes da parte do maior
número dos membros de qualquer associação”, o deputado
Martim Francisco Ribeiro de Andrada entendia em 1832 que
ela era impraticável no Brasil: “Não temos diante dos olhos
diariamente testemunhos não interrompidos da nossa imorali-
dade e do desregramento habitual de nossos costumes?”43 Outro
argumento era o de que a república era uma opção irrefletida,
própria da mocidade. Invocando o próprio exemplo – pois
participara da revolução de 1817 – o deputado Antônio Carlos
de Andrada Machado explicava que era “a superabundância de
vida”, a educação clássica, o desconhecimento dos interesses
públicos e a falta de maturidade que inclinava a juventude à

203
“vida procelosa da democracia”. Com efeito, a maturidade e a
experiência lhe haviam ensinado a moderação, ou seja, o gosto
pelo meio-termo representado pela monarquia constitucional.
E concluía: “A mocidade inclina-se mais ao republicanismo,
a meia-idade à monarquia constitucional e a velhice conserva
o que a meia-idade lhe legou.”44 Conforme se adentrava na
década de 1840 e desapareciam completamente os federalistas
e especialmente os republicanos, era o conceito de monarquia
que passava a encarnar as virtudes que geralmente eram atri-
buídas às repúblicas – aquelas relacionadas ao governo do bem
comum e ao interesse público, atribuindo-se àquelas outras
os vícios do partidarismo e do privatismo. Segundo explicava
Paulino José Soares de Sousa, Visconde do Uruguai e chefe
intelectual do Partido Conservador, no ano de 1862, a república
era uma forma de governo “que não tem, nem pode ter outro
móvel, senão os interesses, as opiniões, as paixões dos partidos
políticos, que é o governo cujo chefe deve ser responsável, para
que não se desmande de todo”.45 De fato, a última rebelião do
Império, a Revolta da Praieira, ocorrida em 1848 no Recife, não
manifestaria pretensões republicanas nem separatistas, e ainda
quarenta anos depois, numa carta íntima, um general sinteti-
zaria de forma lapidar suas expectativas em torno da forma de
governo republicana: “República, no Brasil, e desgraça completa
é a mesma coisa.”46

NOTAS
1
Raphael Bluteau, Vocabulário português e latino, Coimbra, Real Colégio das
Artes da Companhia de Jesus, 1713; Fernanda Bicalho, A cidade e o império: o
Rio de Janeiro no século XVIII, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.
2
Carla M. J. Anastasia, Vassalos rebeldes. Violência coletiva nas Minas na pri-
meira metade do século XVIII, Belo Horizonte, C/Arte, 1998; Luciano Raposo
de Almeida Figueiredo, O império em apuros: notas para o estudo das alterações
ultramarinas e das práticas políticas no império colonial português, séculos XVII
e XVIII, em Júnia F. Furtado (org.), Diálogos oceânicos, Belo Horizonte, Editora
UFMG, 2001.

204
3
Evaldo Cabral de Mello, O mito de Veneza no Brasil, em Um imenso Portugal:
história e historiografia, São Paulo, Editora 34, 2002.
4
Stuart Schwartz, Segredos internos, São Paulo, Companhia das Letras, 1988.
5
Autos da Devassa da Inconfidência Mineira (ADIM), Brasília, Câmara dos De-
putados, Belo Horizonte, Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, 1980,
v. 1, p. 104 e 152.
6
Kenneth Maxwell, A devassa da devassa: a Inconfidência Mineira: Brasil-Portugal
– 1750-1808, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997; João Pinto Furtado, O manto
de Penélope: história, mito e memória da Inconfidência Mineira, São Paulo,
Companhia das Letras, 2002.
7
ADIM, 1980.
8
A. J. R. Russell Wood, O governo local na América portuguesa, Revista de
História – USP, São Paulo, v. 55, n. 109, 1977.
9
István Jancsó, Na Bahia contra o Império: história do ensaio de sedição de 1798,
São Paulo, Salvador, Hucitec, 1995.
10
Mello, O mito de Veneza no Brasil, p. 38.
11
José Maria de Avelar Brotero, A filosofia do direito constitucional (1842),
introdução de José Afonso da Silva, São Paulo, Malheiros, 2007, p. 55.
12
Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves, Corcundas e constitucionais: a cultura
política da independência (1820-1822), Rio de Janeiro, Revan, 2003, p. 192.
13
Brasil, Assembleia Constituinte Brasileira (AACB), Anais, 22/07/1823.
14
Isabel Lustosa, Insultos impressos: a guerra dos jornalistas na independência –
1821-1823, São Paulo, Companhia das Letras, 2000.
15
AACB, 17/05/1823.
16
AACB, 19/06/1823.
17
Hélio Viana, Dom Pedro I jornalista, São Paulo, Melhoramentos, 1967, p. 174.
18
Brasil, Câmara dos Deputados (ACD), Anais da Câmara dos Deputados,
10/06/1826.
19
AACB, 26/06/1823.
20
Ibidem, 03/05/1823.
21
Ibidem.
22
Ibidem.
23
Brasil, Senado Imperial (ASI), Anais, 16/06/1832.
24
AACB, 26/05/1823.
25
José Bonifácio de Andrada e Silva, José Bonifácio de Andrada e Silva, organização
de textos e introdução de Jorge Caldeira, São Paulo, Editora 34, 2002, p. 174.
26
Lustosa, Insultos impressos, p. 209.

205
27
Januário da Cunha Barbosa, Gonçalves Ledo, Revérbero Constitucional Flumi-
nense, Escrito por Dous Brasileiros Amigos da Nação e da Pátria, tomos I e II,
Rio de Janeiro, Tipografia Nacional, 1822, p. 176.
28
Lustosa, Insultos impressos, p. 339.
29
AACB, 29/07/1823.
30
Ibidem, 16/05/1823.
31
Joaquim do Amor Divino Caneca, Ensaios políticos, Rio de Janeiro, PUC-Rio,
1976, p. 70.
32
Mello, O mito de Veneza no Brasil.
33
Joaquim do Amor Divino Caneca, Frei Joaquim do Amor Divino Caneca, intro-
dução e organização de Evaldo Cabral de Mello, São Paulo, Editora 34, 2001,
p. 468.
34
Reynaldo Carneiro Pessoa (org.), A ideia republicana no Brasil através de do-
cumentos (textos para seminários), São Paulo, Alfa Ômega, 1973, p. 16.
35
Ibidem, p. 31.
36
Ibidem, p. 32.
37
Marcello Otávio Basile, Ezequiel Corrêa dos Santos: um jacobino na Corte
Imperial, Rio de Janeiro, Editora FGV, 2001, p. 35.
38
Otávio Tarquínio de Sousa, Evaristo da Veiga, Belo Horizonte, Itatiaia, 1988,
p. 177.
39
Diogo Antônio Feijó, Diogo Antônio Feijó, organização, introdução e notas de
Jorge Caldeira, São Paulo, Editora 34, 1999, p. 166.
40
ACD, 26/06/1832.
41
Ibidem, 25/06/1832.
42
Mello, O mito de Veneza no Brasil, p. 15.
43
ACD, 12/05/1832.
44
Ibidem, 18/05/1838.
45
Paulino José Soares de Sousa Uruguai, Ensaio sobre o direito administrativo, 2.
ed., Rio de Janeiro, Ministério da Justiça, 1960, p. 261.
46
Márcio Tavares Amaral, Marechal Deodoro, São Paulo, Três, 1974, p. 128.

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no ano de 1720. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1994.
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SILVA, Antonio Moraes. Dicionário da língua portuguesa, recopilado
dos vocabulários impressos até agora, e nesta segunda edição novamente
emendado, e muito acrescentado. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1831.
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Paulo: Companhia das Letras, 1999.
VENTURI, Franco. Utopia e reforma no iluminismo. Bauru: Edusc, 2003.

207
JOÃO FERES JÚNIOR
MARIA ELISA NORONHA DE SÁ

CIVILIZAÇÃO

O termo civilização tem características conceituais particu-


lares que devem ser levadas em conta para permitir a compre-
ensão correta de sua evolução histórica. Como bem notou
Koselleck, uma das consequências semânticas do processo de
transição para a modernidade foi a aparição dos singulares
coletivos: termos que antes eram usados no plural passam a
ser empregados no singular para denominar de maneira sinté-
tica um processo ou ente social como um todo (exemplo: de
direitos a direito, de histórias a história etc.). Segundo o autor,
durante essa transição aparecem também muitos neologismos.
Ou seja, a experiência do mundo se altera tão substancialmente
que ele passa a não caber mais no vocabulário que antes o
descrevia, daí a necessidade de criação de novos termos. No
caso do conceito de civilização na língua portuguesa, ambos
processos parecem ter ocorrido. Como tal o termo não existia
até o começo do século 19, quando passa a ser empregado em
diversos contextos e para distintos propósitos.
Tanto no Brasil como em outros lugares onde foi empre-
gado, o termo civilização apresentou acentuado caráter
contraconceitual, isto é, seu campo semântico foi povoado
por oposições dicotômicas a outros termos como selvage-
ria, ignorância, irreligiosidade, falta de lei, mas sobretudo
barbárie. Como tal, o conceito serviu para distinguir, separar e
diferenciar povos, nações, grupos humanos e mesmo indivíduos,
hierarquizando-os do ponto de vista material e, não raro, moral:
a civilização ocupa o polo positivo da dicotomia, enquanto seu
oposto ocupa o negativo.
Se tomarmos todo o processo de evolução do termo no perí-
odo que nos interessa, temos os seguintes estágios: do período
colonial até o começo do século 19 não havia o termo civilização;
a partir das primeiras décadas do século ele passa a ser empre-
gado, mas em um sentido de estágio, como padrão de medida
de diferenciação entre bárbaros e civilizados; a partir de meados
do século 19 o termo adquire o caráter de coletivo singular e
passa a denotar um processo temporalizado que engloba toda a
humanidade. Essa é, contudo, uma avaliação muito geral desse
caminho de evolução. Precisamos aqui revelar seus meandros.
Ademais, seria interessante testar a hipótese de Pim den Boer,1
de que o conceito de “civilização” passou em vários lugares do
mundo por um processo de nacionalização. Isto é, se passa de
um uso de civilização que se refere a uma concepção universal de
história, na qual se inclui a América, a um uso que remete a uma
forma de ser particular, à definição de uma identidade nacional.
O estudo da história do conceito de civilização não pode se
dar sem uma avaliação das palavras que pertencem à mesma
raiz etimológica. Isso é particularmente necessário por tratar-
-se de neologismo baseado em uma raiz já existente: civil-. Os
dicionários da língua portuguesa revelam um dado da evolução
desse conceito que não foi detectado em estudos do termo “civi-
lização” em outras línguas como alemão, holandês, italiano,
espanhol e francês.2 O Dicionário de Bluteau, publicado no
início do século 18, não contém o termo ou mesmo palavras
derivadas do radical civil-, mas traz o verbete bárbaro e vários
de seus derivados. Aqui, bárbaro aparece basicamente de duas
maneiras, uma descritiva, como um termo que gregos, romanos
e portugueses usavam para denominar todos os estrangeiros, e

210
outra fortemente valorativa, associada a maus costumes, cruel-
dade, sacrifícios humanos e ignorância.3
A segunda edição do Dicionário de Moraes traz informa-
ções bem distintas. O termo civilização não foi captado pelo
dicionarista, mas outros termos da família civil- estão presentes
no volume. Por exemplo, o termo cível é definido como aquele
“que compõe o corpo da mercancia, e mecânicos; oposto à
Corte. Gente cível; não cortesã. § fig. Não nobre, § it. Gente
vil, de más manhas”. O termo civeldade, hoje um arcaísmo,
aparece como “ação vil, vileza, indignidade”.4 Temos aqui dois
dados interessantes: um conteúdo descritivo que define cível
como relativo ao povo comum, em contraposição à nobreza,
associado a um julgamento de valor que associa essa condição
à baixeza, à falta de qualidades e virtudes. O verbete civil, da
mesma edição do dicionário, dá uma pista de que esse significado
negativo já era pretérito: “Baixo, mesquinho; gente civil: epíteto
que se dava aos mecânicos, que moravam em cidades cercadas,
e não nos campos, em castelos como a gente nobre, e guerreira;
aliás vilãos.” Essa interpretação é confirmada pelo verbete civi-
lidade: “s.f. antiq. Ação de homem do povo, de mecânico, vil.
Comment. D’Albuquerque. ‘sofrer civilidade’; I. é, vilanias. §
Outros escrevem civeldade. § Civilidade de hoje significa cortesia,
urbanidade, opp. rusticidade, grosseria.”5 O verbete civilidade
captura um câmbio semântico interessante, confirmando que o
uso pejorativo dos termos da família civil-, que atribuía baixeza
à condição do homem comum, já estava caindo em desuso e
que os significados positivos de cortesia e urbanidade passaram
a ser associados à civilidade – dado corroborado por um sem-
-número de usos do termo em textos do começo do século 19.
É importante notar que o caráter contraconceitual também já
se faz presente no fechamento do verbete, quando o dicionarista
opõe civilidade a rusticidade e grosseria. Em suma, no tocante à
raiz civil-, parece ter havido um processo de câmbio semântico
tão drástico que praticamente inverteu o significado do termo.

211
Vale adicionar que enquanto no Bluteau nenhuma palavra
da família civil- foi usada na definição por oposição do termo
bárbaro, na segunda edição do Moraes ele é definido como
“homem rude, sem polícia nem civilidade, oposto ao civilizado
e urbano”,6 dado que corrobora a tese de que durante o hiato
da publicação desses dois dicionários se consolidou a oposição
entre palavras derivadas do racial civil- e barbárie, oposição essa
que perdura até os dias de hoje.
O termo civilização apareceu somente na quarta edição do
Dicionário de Moraes, a de 1831, de maneira muito sintética:
“O ato de civilizar: o estado do povo civilizado.” Mas em um
verbete semanticamente próximo, “policiado”, encontramos
definição bem mais rica:

Civilizado, policiado, polido: um povo é civilizado quando,


tendo deixado os costumes bárbaros, se governa por leis. É policiado
quando, pela obediência às leis, tem adquirido o hábito das virtudes
sociais. E polido quando em suas ações mostra elegância, urbanidade
e gosto. No povo civilizado reinam as leis. No povo policiado reinam
os bons costumes. No povo polido reina a urbanidade e gosto, que é
consequência do luxo. As leis estabelecem a civilização entre os povos
bárbaros, formando os bons costumes...7

Aqui temos uma linha evolutiva em que a civilização constitui o


primeiro estágio dos povos que saem da barbárie e a polidez, seu
derradeiro. A sequência fica clara no exemplo dado: “Os gregos
começarão a civilizar-se antes de Licurgo e Sólon; policiaram-se
no século destes dois célebres legisladores; e poliram-se no século
de Péricles.” É importante notar que essa passagem compa-
rando os três termos semanticamente relacionados se repete nas
edições de 1844 e de 1858, a quinta e a sexta, mas agora ela não
aparece mais no verbete “policiado”, e sim em “civilizado”. Por
fim, outro dicionário contemporâneo, o de Luiz Maria da Silva
Pinto,8 confirma os achados do Moraes e do Bluteau, repetindo
de forma abreviada as definições comentadas acima.

212
Um documento importante para estabelecermos os limites da
introdução do termo na língua portuguesa é o Diretório que se
deve observar nas povoações dos índios do Pará e Maranhão,9
conjunto de leis redigidas em 1755 e publicadas em 1757 por
D. José I, que regulamentou a política indigenista pombalina. O
texto de pouco mais de 20 páginas utiliza termos derivados da
raiz civil- 27 vezes. No documento encontram-se muitas refe-
rências à civilidade/incivilidade dos índios e à ideia de civilizar
como uma ação que conduz a esta civilidade. Entre as medidas
propostas, temos: estabelecer o uso exclusivo da língua portu-
guesa; estimular o casamento entre índios e brancos, assim como
um convívio social e comunitário nas novas povoações ou nas
antigas missões que então se elevavam a vilas; sujeitar os habitan-
tes dessas povoações, índios e brancos, às mesmas leis civis que
regiam as populações urbanas de Portugal; organizar o governo
econômico dessas povoações através da implantação do trabalho
agrícola, do comércio e demais atividades econômicas sugeridas
pelo ambiente de cada povoação, do trabalho remunerado e
do sistema de tributação, entre outras. O Diretório expressa a
política laicizada que elevava os índios à condição de “vassalos
úteis”, buscando prover o crescimento econômico da colônia,
rebaixando a catequização – antes a justificativa dominante da
política indigenista portuguesa – à condição de um dos instru-
mentos (entre outros) de colonização e assimilação dos índios
selvagens. Nas recomendações números 5 e 6 diz-se que o ensino
da língua portuguesa é a base “fundamental da civilidade” e um
dos meios mais eficazes de se arrancar os “povos rústicos da
barbárie”. Nota-se aqui o vocábulo civilidade sendo usado com
o mesmo sentido que décadas mais tarde civilização vai adquirir:
o de um estágio, ideal, de sociabilidade diametralmente oposto
à barbárie. Ou seja, estamos perante um caso em que o conceito
aparece antes do termo.
Outro elemento semântico importante que já aparece no
Diretório e que vai atravessar toda a história do conceito no
período estudado é a associação da civilização com a questão

213
indígena. Ou melhor, a identificação do índio como um problema
a ser resolvido por meio de sua civilização. É inclusive no sentido
preciso de “ato de civilizar”, “de tornar civil”, de “promover a
civilidade” que o termo faz suas primeiras aparições. Ainda que
haja câmbio semântico dos primeiros usos do conceito desde
o início do século 19 aos anos de 1870, ele não perdeu esse
sentido mais direto de promover o bárbaro ou selvagem, por
meio da urbanização e da educação, ao estado civil, o que não
raro significava viver de maneira ordenada sob o império das
leis e da religião cristã.
Nas primeiras décadas do século 19, o termo civilização
começa a ser usado com mais frequência, na maioria das vezes
com o significado de “ato de civilizar”. As exceções correspon-
dem a um significado que alude a um patamar de sofisticação
atingido por uma determinada sociedade ou grupo de sociedades.
Ele aparece já com tal significado em 1808 no jornal Correio
Braziliense, em trecho no qual o autor argumenta que havia mais
civilização na nação portuguesa do que nas outras,10 e em vários
outros textos publicados pelo jornal.
As páginas do Correio dão azo a outras descobertas e inferên-
cias. Nelas encontram-se os primeiros registros do termo civili-
zação que extrapolam o mero sentido de “ato de civilizar” em
direção a um ideal. Esse sentido é dominante nos textos do jornal,
que foi publicado de 1808 a 1822. O contexto cosmopolita da
edição do Correio, editado e impresso por Hipólito da Costa, em
Londres, é a explicação mais plausível para a presença abundante
do termo civilização em suas páginas, em contraposição a outras
publicações impressas no Brasil como O Patriota, que contém
pouquíssimas ocorrências do conceito, sendo que as exceções
expressam o sentido mais antigo de “ato civilizacional”. Nos
primeiros anos do Correio, o termo aparece dominantemente
em trechos de políticos e figuras ilustres dos Estados Unidos,
Inglaterra, França ou Portugal, traduzidos para o português,
mas Hipólito passa a empregá-lo crescentemente com o passar
do tempo. O cosmopolitismo talvez explique também o fato

214
de que a aplicação do conceito nos textos do jornal extrapola
a questão indígena (doméstica), abarcando comparações entre
nações e povos de todo o mundo.
O campo semântico de civilização nas páginas do Correio é
amplo. Sua vocação contraconceitual é clara. Ou seja, civilização
é o polo positivo de uma série de oposições conceituais. Como
polo positivo, estava associada a termos como Europa, educa-
ção, comércio, indústria, comunicações, cristianismo, império
das leis, polidez e bons costumes. O polo oposto era povoado
pelos conceitos de barbarismo, selvageria, despotismo, tirania
e violência. O conceito de civilização servia desde então para
marcar oposições binárias entre um grupo de países civilizados,
que já atingiram aquele patamar, e o resto, como na fala de D.
Manuel reproduzida em dezembro de 1808, na qual se utiliza a
expressão “nações civilizadas”, um tipo de bordão repetido um
sem-número de vezes nos textos publicados no jornal durante
as duas primeiras décadas do século 19. É claro que essa riqueza
semântica não deve ser assumida como automaticamente parti-
lhada por toda comunidade de leitores do jornal na América de
colonização portuguesa, ou mesmo pelos membros da Corte.
Significados similares aos encontrados no jornal estão
também no discurso dos opositores da Corte. Em escrito de
1823, Frei Caneca argumenta que o regime monárquico é
próprio para a Europa, “por estar muito avançada na civiliza-
ção”, enquanto que os países do Novo Mundo, por não terem
as ordens sociais tão solidificadas e diferenciadas, deveriam
adotar o sistema federal.11 Textos que apareceram no Typhis
Pernambucano um ano depois da publicação das Cartas de
Caneca, fazem uso de expressões como “história dos povos
civilizados” ou “civilização dos povos” com intuito idêntico,
para defender o republicanismo contra o regime monárquico,
mas o significado é o mesmo de civilização como um estado
atingido por um “clube” de nações.12

215
Vale notar o exemplo do Visconde de Cairu, que se refere
aos romanos antigos como tendo “civilizado o mundo” e
constituído “a maior monarquia do mundo civilizado” 13
e aos gregos antigos como um povo civilizado. Um dos
pioneiros seguidores do iluminismo escocês no Brasil, Cairu
também associa a civilização ao aumento do comércio entre
os povos,14 empregando o termo muitas vezes acrescido do
adjetivo “universal”. Em Cairu nota-se claramente o uso de
civilização como um padrão, onde estão ausentes formas de
temporalização que possam articular o conceito a teorias da
história e da temporalidade. Desse modo, os romanos e gregos
do passado eram civilizados assim como os povos europeus do
presente também o são, basta que eles adotem leis virtuosas
e costumes liberais.
Encontramos traços de temporalização do conceito em alguns
poucos textos do Correio Braziliense. O mais antigo não é de
autoria de um português, reinol ou da colônia, mas do presi-
dente dos Estados Unidos, de 1809, reproduzido em tradução
para o português. Nele fala-se de promessas do “progresso da
civilização”.15 No mesmo ano, há um texto do próprio jornal no
qual se faz referência aos “graus de civilização” de maneira bem
evolutiva e aos “progressos da civilização”.16 Em 1810, outro
texto do jornal faz referência aos “progressos de civilização, a
que o mundo todo atualmente aspira”.17 Mas esses traços de
temporalização coexistiam com referências ao termo com signi-
ficado mais estático, como na expressão “nações civilizadas”,
abundantemente utilizada em todo o período, e que se refere
a uma espécie de clube ao qual pertence um seleto número de
nações, mormente as europeias, com destaque para Inglaterra
e França.18
Um dos usos mais célebres do termo dá-se no título de um
projeto apresentado por José Bonifácio de Andrada e Silva
à Assembleia Constituinte em 1823: Apontamentos para a
civilização dos índios bravos do Império do Brasil. Segundo o
autor, a civilização seria impulsionada pela adoção do regime

216
constitucional no Brasil, contudo a existência de muitos selva-
gens e gentios nas terras do país recém-saído do jugo português
constituía um entrave ao projeto civilizacional. Aparentemente
a solução sugerida por José Bonifácio não diferia muito das
recomendações pombalinas, às quais ele faz referência explí-
cita. Eram elas: promover a justiça, abrir comércio com os
bárbaros, favorecer os matrimônios, a catequização, estabelecer
presídios militares, organizar bandeiras e aldeamentos, ensinar
a ler, escrever e contar, e criar novos hábitos de sociabilidade.
Bonifácio também sublinha a necessidade de se “introduzir
brancos e mulatos morigerados para misturar as raças, ligar os
interesses recíprocos dos índios com a nossa gente, e fazer deles
todos um só corpo da nação, mais forte, instruída e empreen-
dedora”,19 outra medida já prevista pelo Diretório pombalino.
É importante, porém, ressaltar os diferentes contextos políticos
em que os textos foram escritos, pois tratava-se, com Bonifácio,
de pensar a questão da civilização dos índios no momento
posterior à independência, o da construção do Império do Brasil
como corpo político autônomo. Na base desse projeto estava a
possibilidade da universalização dos direitos civis e políticos aos
cidadãos livres. Para o autor, o problema para a efetivação desses
direitos estava no tratamento que índios e negros recebiam dos
brancos, capaz de perverter a capacidade racional daqueles com
o constante apelo à força – fonte da imoralidade permanente, da
falta de observância dos direitos e de civilização.
Durante o período estudado, Bonifácio foi um dos raros auto-
res que incluiu a escravidão como um problema civilizacional
do Brasil. Sua posição encontra-se em uma representação feita à
mesma Assembleia Constituinte sobre o assunto da escravidão.
Segundo o autor, a escravidão era causa da degenerescência
moral da nação, pois tornava os senhores indolentes e inclina-
dos a toda sorte de vícios. A solução proposta é gradual: fim do
tráfico, emancipação paulatina, abrandamento do sofrimento
e a instituição da religião católica. Em suas próprias palavras:
“(...) por todos esses meios nós lhes daremos toda a civilização

217
de que são capazes no seu desgraçado estado, despojando-os o
menos que pudermos da dignidade de homens e cidadãos.”20
É interessante notar que o conceito de civilização parece não
ter sofrido intensa utilização política durante o período da inde-
pendência. Ou seja, ele não foi mobilizado para estabelecer dife-
renças entre partidos e facções e, portanto, não sofreu o inchaço
semântico que geralmente decorre desse processo. Essa realidade
começa a se transformar no período regencial. Em 1831, com a
abdicação de D. Pedro I, inaugurou-se formalmente no Brasil o
chamado período regencial, que compreendeu os anos de 1831 a
1840, quando o país passou a ser governado por regentes esco-
lhidos pela Assembleia Geral. Nos primeiros anos da Regência,
foram aprovadas medidas que consagraram a autonomia local
e provocaram mudanças importantes no sistema político-admi-
nistrativo do Império. Dentre elas, destaca-se o Ato Adicional,
aprovado em agosto de 1834, que reformava a Constituição de
1824, abolindo o Conselho de Estado, estabelecendo a Regência
Una, eletiva e temporária, e criando as Assembleias Legislativas
Provinciais, com amplas atribuições. Os anos que se seguiram
à promulgação do Ato Adicional estão de fato entre os mais
agitados da história do Império, com ameaças à unidade nacio-
nal pretendida pela Corte do Rio de Janeiro, provocadas pelas
várias rebeliões que eclodiram entre 1835 e 1838 em diferentes
províncias. O Ato Adicional representou, por isso, um divisor
de águas com enorme impacto sobre a vida política do país,
provocando um rearranjo das forças partidárias em torno da
questão da descentralização e de seus efeitos.
Os “regressistas”, que posteriormente comporão o Partido
Conservador, levantarão a bandeira da necessidade de revisão
da estrutura institucional, visando, segundo eles, ao restabeleci-
mento da autoridade e da ordem, contra a “anarquia” reinante
e o “perigo” da dissolução territorial do Império. Suas propos-
tas e ações constituirão a chamada “reação centralizadora” ou
“regresso conservador”, concretizada, sobretudo, na Lei de

218
Interpretação do Ato Adicional, de maio de 1840, que anula
todas as conquistas anteriores. A partir daí, abriu-se um caminho
que levou, em meados do século 19, a uma estrutura política e
administrativa bastante centralizada no Império do Brasil.
Importa salientar a relevância desse período, por ter sido nele
que se originaram fundamentais redefinições de ideias, conceitos
e projetos que implicaram a construção de novos significados e
procedimentos no campo da política. Dentre os mais importantes
líderes políticos do grupo dos conservadores estavam Bernardo
Pereira de Vasconcelos e o Visconde do Uruguai.
Para o Visconde do Uruguai, teria ocorrido na história do
Brasil, durante as Regências, um desvio de seu caminho em
direção à civilização. Associando o período regencial, com suas
medidas liberais e descentralizadoras, a um espírito revolu-
cionário que teria levado a nação à desordem, ele condenava
veementemente as revoltas nas províncias, associando-as aos
“horrores friamente perpetrados pela barbaridade, pela lascí-
via, pela vingança e por outras paixões alheias à política”, pois,
afinal, naqueles sertões, rebelava-se

uma massa enorme de homens ferozes, sem moral, sem religião


e sem instrução alguma, eivados de todos os vícios da barbaridade!
(...) Nem o sexo, nem a idade, nem a propriedade, nada respeitaram!
Parece que era sua missão apagar até os últimos vestígios da nossa
civilização nascente!21

Daí ser possível entender o papel fundamental desempenhado


por ele no Regresso Conservador, quando, por intermédio da
elaboração e adoção de uma série de medidas centralizadoras,
acreditava estar trazendo a nação brasileira de volta para o
caminho da ordem, do progresso e da civilização. Trata-se de
uma ordem política e social que, para Uruguai, não ocorreria
naturalmente, mas que resultaria da ação política coordenada e

219
da expansão da capacidade regulatória do governo do Estado,
por meio da criação de um aparato administrativo subordinado
a um comando único. Diz ele:

Para estes e outros casos semelhantes são indispensáveis medidas


extraordinárias, porque não basta a ação ordinária das leis para
destruir um Estado tão tirânico e tão violento, e que é inteiramente
excepcional. Muito se deve esperar do tempo e da civilização, mas a
sua ação é lenta, e aqueles males não podem esperar somente dela o
urgente e indispensável remédio.22

Civilizar significava, então, generalizar o princípio da ordem


estendendo o raio de ação da autoridade.
O conceito de civilização ocupou, assim, um importante
papel na agenda saquarema. As revoltas populares do período
regencial muito contribuíram para propagar o medo das elites,
já que muitos desses eventos eram percebidos como provocados
pelos descontentamentos e protestos populares dos homens livres
e pobres que formavam o mundo da desordem. Além disso, a
maioria da população era formada por negros escravos. Nesse
contexto, a civilização, considerada claramente uma virtude
europeia, contrastava com a barbárie das massas, consideradas
“visivelmente” não europeias. E o ato de civilizar essas cama-
das significava inculcar nelas as boas maneiras, a polidez e a
civilidade europeias, tornando-as menos violentas e propensas
a revoltas. A ênfase está aqui na ideia de ação, civilizar podendo
significar educar, prover instrução pública, criar boas leis, incen-
tivar a imigração, entre outras coisas.
Nota-se também o quanto os construtores do Império brasi-
leiro se esforçaram em associar o traço que mais os diferenciava
do resto da América – sua forma de governo monárquica, seu
caráter hereditário e suas instituições políticas – à civilização, à
estabilidade, à ordem e, principalmente, à garantia da manuten-
ção de uma suposta unidade territorial e de uma continuidade.

220
No discurso saquarema está presente também a ideia de
que, para se atingir a civilização, as condições particulares da
sociedade brasileira demandavam medidas particulares, a elas
adaptadas, e não a importação cega de modelos políticos e
constitucionais estrangeiros. O epíteto conservador é adequado
pois, como no caso de Bernardo Pereira de Vasconcelos, um
dos mais importantes defensores do regresso conservador, já
há uma consciência temporal “moderna” de um movimento do
século em direção à maior liberdade e igualdade; contudo, o
autor argumenta que, “em vez de fazer produzir os efeitos que
a civilização espera, nos fará retrogradar”.23 Vasconcelos insiste
no argumento de que não podemos perder de vista o “estado de
civilização” do país, pois “nenhuma reforma terá êxito se não
for adequada às circunstâncias nacionais”.24
Diferentemente de Bonifácio, duas décadas antes, Vasconcelos
usou o argumento da adaptação às condições locais para defen-
der a escravidão e sua consonância com o projeto civilizacional.
“Eu digo que a associação brasileira hoje precisa de adotar uma
economia política em grande parte contrária à geralmente admi-
tida, por isso que a abolição do tráfico deve trazer tendências
barbarizadoras (...)” Isso é feito invertendo-se a associação entre
escravidão e barbárie. Acrescenta o autor: “(...) é uma verdade:
a África tem civilizado a América! Renuncio a todas as teorias
(...) quero só o positivismo dos fatos.”25 Vasconcelos estabelece
uma particular relação entre agricultura e civilização: já que a
grande lavoura de exportação de produtos coloniais dependia da
mão de obra escrava negra, era a escravidão quem propiciava,
no fundamental, a civilização que distinguia o Império do Brasil
no concerto das nações civilizadas.
Em meados do século 19, com o Império consolidado e a
hegemonia saquarema afirmada, o tema da ordem passará ao
segundo plano, sendo suplantado pelo da necessidade de difu-
são da civilização. Partindo da crença de que o poder político
de alguma maneira molda a nação, a centralização político-
-administrativa engendrada nesse período teria tido também

221
esse objetivo, abrindo caminho para a civilização. Esta devia se
estender a partir de agora para dentro da nação, por meio, prin-
cipalmente, da construção de uma língua, de uma literatura, de
uma educação e de uma história nacionais. O Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro - IHGB, criado em 1839, torna-se, em
meados do século 19, palco importante do debate acerca desse
projeto. De certa forma, nesse debate, há uma volta à centra-
lidade do indígena como problema da civilização no país. A
História geral do Brasil de Francisco Adolpho de Varnhagen,
publicada em Madri no ano de 1854, é o texto principal desse
debate. A simples comparação lexicométrica desse texto com o
Diretório dos Índios26 do período pombalino demonstra o quanto
o uso das palavras derivadas do radical civil- evoluiu no período
de aproximadamente um século que separa a publicação de cada
texto. No Diretório, termos derivados da raiz civil- aparecem 23
vezes em 20 páginas de texto. Já na História geral eles aparecem
211 vezes em aproximadamente 1000 páginas, o que demonstra
uma centralidade ainda maior dessa família de conceitos no
segundo texto. Enquanto que no Diretório o termo civilização
não consta, na História geral ele representa sozinho mais da
metade das ocorrências de termos da família civil-. Ele já está
presente na frase que abre o livro: “Quando a Grécia, herdeira
da antiga civilização fenícia, babilônica e egípcia (...)”27
O intuito declarado da obra de Varnhagen é mostrar que
“um novo império”, o Brasil, passava a “figurar na Orbe entre
as nações civilizadas”.28 Mas a concretização da civilização no
Brasil e seu progresso esbarravam no problema das populações
bárbaras e semibárbaras que ocupavam as grandes extensões do
interior do país. Varnhagen descreve os índios como original-
mente desprovidos de qualquer traço de civilização, em grande
parte porque eram nômades: “(...) as gentes que habitavam o
Brasil” não se encontravam em estado de “civilização, mas de
barbárie e de atraso”.29 Daí o autor elabora uma conclusão que
ecoa a clássica passagem orientalista da Filosofia da história

222
de Hegel: “(...) de tais povos na infância não há história: há só
etnografia.”30
Varnhagen é bem claro quanto aos métodos que deveriam
ser usados para resolver o problema civilizacional dos índios:
“Foi a experiência e não o arbítrio nem a tirania, quem ensinou
o verdadeiro modo de levar os bárbaros, impondo-lhes à força
a necessária tutela, para aceitarem o cristianismo e adotarem
hábitos civilizados (...)”31 Ao contrário de Bonifácio, seu prede-
cessor no assunto, que via a escravidão como um entrave à civi-
lização, Varnhagen escreve que “‘a escravidão e a subordinação
são o primeiro passo para a civilização das nações’, disse, com
admirável filosofia e coragem, o virtuoso e sábio bispo brasileiro
Azeredo Coutinho”,32 sugerindo que o índio escravizado, igua-
lado à condição do negro, já seria um progresso. Para o autor,
era preciso espalhar os escravos índios pelo país e não aldeá-los,
como fizeram os jesuítas, pois assim seus hábitos selvagens seriam
mais facilmente quebrantados.33
Ele também é claro quanto ao caráter eminentemente europeu
da civilização e também da nacionalidade brasileira: “Claro está
que o elemento europeu é o que essencialmente constitui a nacio-
nalidade atual.” E a partir desse diagnóstico, vaticina: “(...) e com
mais razão (pela vinda de novos colonos da Europa) constituirá
a [nação] futura”, obtendo daí consequências de ordem política
e epistemológica: “(...) é com esse elemento cristão e civilizador
que principalmente devem andar abraçadas as antigas glórias da
pátria e, por conseguinte, a história nacional.”34 Nessa passagem
o autor se opõe abertamente àqueles historiadores que querem
inscrever o elemento africano e o índio na história nacional. Para
consolidar sua posição, cita Alberdi: “Pero siempre es la Europa
la obrera de nuestra civilización.”35
É importante notar que Varnhagen está engajado em uma
controvérsia contra aqueles que denomina “defensores dos
direitos dos índios”; contra as “tendências indiscretas e falsas
do patriotismo caboclo”.36 Contudo, a semântica do conceito de
civilização na História geral não traz muitas inovações, a não

223
ser sua associação com a questão da identidade nacional. Ela é
em geral desprovida de sinais claros de temporalização, pouco
abstrata – o termo é usado para denominar um sem-número de
civilizações particulares (egípcia, grega, fenícia, ameríndia etc.)
sem nunca alçar-se à condição de coletivo singular –, e profun-
damente eurocêntrica. O mesmo não se dá, contudo, com a
utilização que deles o fazem seus contendores.
Varnhagen não estava sozinho nesse debate que se travou não
somente no campo da história em geral, mas também da história
da literatura brasileira, essa última com a função principal de
narrar o desenvolvimento do espírito nacional. João Manuel
Pereira da Silva e Caetano Maria Lopes Gama37 descrevem os
índios de maneira muito semelhante, imputando a eles total falta
de civilização.
Contudo, outros autores da época, como José Ignácio de
Abreu e Lima, chamaram a atenção para as civilizações que exis-
tiam no continente antes da chegada de Colombo.38 Raimundo
José da Cunha Matos, mesmo sem discordar totalmente de
Varnhagen, reconhece uma história indígena anterior à “história
geral da terra de Santa Cruz”, com três estágios civilizacionais,
e pretende que aquela seja entendida como uma introdução a
essa.39 Segundo Ignacio Accioli de Cerqueira e Silva, o IHGB
chegou demasiadamente rápido “à conclusão desiludida que, até
agora, faltavam no Brasil quaisquer vestígios dessa civilização”.40
Para o autor, existiam antes da “conquista muitos centros de
uma civilização primitiva, cujas mútuas relações se ignoram”.41
Mais afirmativo ainda no tocante à historicidade do índio e,
portanto, a sua capacidade para a civilização é Joaquim Manuel
de Macedo ao dizer que: “Os índios não estavam, portanto, fora
da civilização, mas pertenciam a ela, ainda que ‘atrasados em
civilização’.”42
José Joaquim Machado d’Oliveira vai além ao argumentar que,
antes da chegada dos portugueses, “os índios não eram excluídos da
civilização”, pois “sua incapacidade de atuar autonomamente em

224
termos de civilização não prejudicou a princípio a sua aptidão
para a mesma, já que os índios tinham mostrado no passado
muita receptividade à civilização”.43 Ao invés dos selvagens
antropófagos de Varnhagen, o autor descreve o índio como figura
sociável, de “índole dócil e condição pacífica”, que

associou-se de boa mente, abriu seu coração com candura à civili-


zação, e renunciou a todos os hábitos e costumes por uma religião que
não conhecia, e que se afigurava de uma expressão severa, e por homens
cuja ambição de riquezas e avidez de predomínio não sabia calcular.44

Ou seja, Machado d’Oliveira coloca em dúvida a virtude da


empreitada colonial portuguesa.
Como vimos acima, no debate acerca da historicidade dos
índios e, portanto, de sua importância para a narrativa da história
da civilização no Brasil, o conceito de civilização ainda apresen-
tava uma semântica marcadamente “antiga”, ou seja, ele repor-
tava mormente um ideal europeu, desprovido de traços fortes
de temporalização e de abstração. Ainda que o projeto fosse o
de construir a história da nação, essa nação era vista como um
arremedo da civilização europeia que via como puro empecilho
as hordas de negros e indígenas que povoavam o Brasil.
Com o advento do romantismo, o conceito vai sofrer altera-
ções importantes. José de Alencar, um dos maiores expoentes da
geração romântica, relativiza o valor da civilização. Por exemplo,
em seu romance O gaúcho, o povo dos pampas é comparado
favoravelmente aos “filhos das cidades, enervados pela civiliza-
ção”,45 que é também culpada por babujar a virgindade primi-
tiva das margens do rio Uruguai.46 Em outro romance, Alencar
acusa os “poetas da civilização” de fazerem “pura imitação” por
colherem suas impressões da leitura de livros e não da experiência
direta da natureza.47
Ao mesmo tempo, Alencar usa o conceito de civilização
para favorecer a América em comparação ao Velho Mundo:

225
“O gênero humano pressentiu esta alta missão regeneradora da
América, dando-lhe a designação de novo mundo.” Alencar não
se referia somente aos Estados Unidos, mas a todo o continente:
“(...) de feito, é nas águas lustrais do Amazonas, do Prata e do
Mississipi, que o mundo velho e carcomido há de receber o
batismo da nova civilização e remoçar.”48 Em O tronco do ipê,
por meio dos personagens de Alice e Adélia, o autor critica a
importação acrítica de modismos franceses e defende uma síntese
nacional “da formosura e elegância com os pequenos misteres
domésticos”.49
No final do livro, em meio a ressalvas, o escritor apresenta a
civilização como um processo de propagação continental “que
vai estreitando a união de povos ligados pelo mesmo amor à
liberdade, e pelas mesmas aspirações de engrandecer o nome
americano”.50 Ou seja, aqui vemos traços claros de temporali-
zação até então difíceis de encontrar em textos anteriores. Em
livro posterior, O sertanejo, faz novamente uso da palavra civi-
lização como sujeito de uma sentença; como processo histórico
abrangente.51
Alencar vai mais longe na refutação das teses defendidas
por Varnhagen e outros. Ao criticar o poema Os timbiras de
Gonçalves Dias em carta ao Dr. Jaguaribe, Alencar mostra-se
contrário à ideia de que à civilização brasileira deveria ser atri-
buída uma matriz puramente europeia: “(...) o conhecimento
da língua indígena é o melhor critério para a nacionalidade da
literatura.” A razão está exatamente em contrapor à Europa o
que é próprio do Brasil, ou seja, em rejeitar um projeto pura-
mente mimético: “[Tal conhecimento] nos dá não só o verdadeiro
estilo, como as imagens poéticas do selvagem, os modos de seu
pensamento, as tendências de seu espírito, e até as menores
particularidades de sua vida.”52
O mesmo Gonçalves Dias, a despeito de ter-se envolvido em
controvérsia pública com Alencar, tem uma visão parecida à dele
no tocante ao conceito de civilização brasileira e do papel do índio
nela. Dias se refere aos índios Tupi como “os mais civilizados”

226
entre os índios quando da chegada dos portugueses, confirmando
a opinião de que eram eles “os judeus da América”,53 algo que
contraria a ideia de que eram todos bárbaros canibais. Em outra
obra, o autor escreve: “[os índios] são o princípio de todas as
nossas coisas; são os que deram a base para o nosso caráter
nacional, ainda mal desenvolvido, e será a coroa da nossa pros-
peridade o dia da sua inteira reabilitação.”54
Em suma, com a geração romântica o conceito de civilização
começa a mostrar sinais de temporalização e abstração explícitos.
Ironicamente, essa é a mesma geração que promove também
uma nacionalização do conceito, fenômeno aludido por Pim den
Boer, algo que necessariamente tenciona seu caráter universal
e abstrato. Há de se notar que, a despeito de algumas exceções
como José Bonifácio, os negros sequer eram tema do debate
acerca da civilização, e sua condição de escravos era ignorada ou
até justificada pelas próprias necessidades do processo civiliza-
cional, como em Bernardo Pereira de Vasconcelos e Varnhagen.

NOTAS
1
Pim den Boer, Civilisation (Beschaving), Amsterdam, Amsterdam University
Press, 2001.
2
Sandro Chignola, Civis, Civitas, Civilitas: Translations in Modern Italian and
Conceptual Change, Contributions to the History of Concepts, v. 3, n. 2, p. 234-
253, 2007; Pim den Boer, Civilisation (Beschaving); Pim den Boer, Towards a
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the History of Concepts, v. 3, n. 2, p. 207-233, 2007; Javier Fernández Sebastián,
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in Deutschland, Stuttgart, Klett-Cotta, 1992, p. 679-774.
3
Raphael Bluteau, Vocabulario Portuguez, E Latino... Autorizado Com Exemplos
Dos Melhores Escritores Portuguezes, e Latinos, Coimbra, Collegio das Artes
da Companhia de Jesus, 1712, t. 2, p. 45-46.
4
Antônio Moraes Silva, Diccionario De Lingua Portugueza, Composto Pelo Padre
D. Raphael Bluteau, Reformado e Acrescentado Por Antônio Moraes Silva, 2.
ed., Lisboa, Oficina de Simão Thaddeo Ferreira, 1813, p. 401.
5
Ibidem, p. 402.

227
6
Ibidem, p. 263.
7
Ibidem.
8
Luiz Maria da Silva Pinto, Diccionario da lingua brasileira por Luiz Maria Da
Silva Pinto, natural da Provincia de Goyaz, Typographia de Silva, 1832.
9
Mendonça Furtado, Diretório que se deve observar nas povoações dos índios do
Pará e Maranhão. Officina de Miguel Rodrigues, Impressor do Eminentíssimo
Senhor Cardeal Patriarca, Lisboa, 1758.
10
Hipólito José da Costa, Correio Braziliense, ou Armazém Literário, n. 2, Brasília,
São Paulo, Correio Braziliense, Imprensa Oficial, 2001, p. 123.
11
Joaquim do Amor Divino Caneca, Cartas De Pítia a Damião [1823], em Evaldo
Cabral de Mello (org.), Frei Joaquim do Amor Divino Caneca, São Paulo, Editora
34, 2001, p. 217.
12
Typhis Pernambucano, 29 abr. 1824 e 27 maio 1824, em Evaldo Cabral de Mello
(org.), Frei Joaquim do Amor Divino Caneca, São Paulo, Editora 34, 2001, p.
303-533.
13
Visconde de Cairu, Estudos do bem-commum e Economia Política, Rio de
Janeiro, Impressão Régia, 1819-1820, p. 62.
14
Ibidem, t. I, p. 1, 134.
15
Correio Braziliense, Londres, n. 8, p. 29, 1809.
16
Ibidem, n. 15, p. 147-149, 1809.
17
Ibidem, n. 31, p. 629, 1810.
18
Ibidem, n. 32, p. 86-87, 1811.
19
José Bonifácio de Andrada e Silva, Apontamentos para a Civilização dos indios
bravos do Império do Brazil. Projeto apresentado à Assembleia Geral Constituinte
e Legislativa, 1823, em Jorge Caldeira (org.), José Bonifácio de Andrada e Silva,
São Paulo, Editora 34, 2002, p. 198.
20
José Bonifácio de Andrada e Silva, Representação à Assembleia Geral Constituinte
e Legislativa do Império do Brasil sobre a Escravatura. Projeto apresentado à
Assembleia Geral Constituinte e Legislativa, 1823, em Jorge Caldeira (org.), José
Bonifácio de Andrada e Silva, São Paulo, Editora 34, 2002, p. 209.
21
Paulino José Soares de Souza, Relatorio da Repartição dos Negocios da Justiça
do anno de 1840 apresentado à Assembléa Geral Legislativa, na sessão ordinaria
de 1841, pelo respectivo Ministro e Secretario de Estado Paulino José Soares de
Sousa, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1841, p. 9.
22
Paulino José Soares de Souza, Relatorio da Repartição dos Negocios da Justiça
do anno de 1842 apresentado à Assembléa Geral Legislativa, na 1ª sessão da 5ª
legislatura, pelo respectivo Ministro e Secretario de Estado Paulino José Soares
de Sousa, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1843, p. 91.
23
Bernardo Pereira de Vasconcelos, Discurso na Câmara dos Deputados, sessão
de 1º de julho de 1834, em José Murilo de Carvalho (org.), Bernardo Pereira de
Vasconcelos, São Paulo, Editora 34, 1999, p. 223.

228
24
Ibidem, p. 218.
25
Bernardo Pereira de Vasconcelos, Discurso no Senado, sessão de 25 de abril de
1843, em José Murilo de Carvalho (org.), Bernardo Pereira de Vasconcelos, São
Paulo, Editora 34, 1999, p. 268.
26
Mendonça Furtado, Diretório que se deve observar nas povoações dos índios
do Pará e Maranhão.
27
Francisco Adolpho de Varnhagen, História geral do Brasil, 1. ed., Madri, 1854,
t. 2, p. 1.
28
Ibidem, p. 10.
29
Ibidem, p. 97-103.
30
Ibidem, p. 107-108.
31
Ibidem, p. 177.
32
Ibidem, p. XXI.
33
Ibidem, p. XXII.
34
Ibidem, p. XXV.
35
Ibidem, p. 474.
36
Ibidem, p. 484.
37
João Manuel Pereira da Silva, História da fundação do império brazileiro, Rio
de Janeiro, B. L. Garnier, 1864; Caetano Maria Lopes Gama, Carta ao 1º. Se-
cretário do Instituto Manoel Ferreira Lagos, Rio de Janeiro, 22 de Novembro
de 1850, AIRGB, lata 138, documento 13.
38
José Ignácio de Abreu e Lima, Sinopse ou dedução cronológica dos fatos mais
notáveis da história do Brasil [1845], 2. ed., Recife, Prefeitura da Cidade do
Recife, Secretaria de Educação e Cultura, Fundação de Cultura Cidade do Recife,
1983, p. 7, Coleção Recife.
39
Raimundo José da Cunha Matos, Dissertação ácerca do systema de escrever a
historia antiga e moderna do Imperio do Brasil, RIHGB, p. 131, 1863.
40
Ignacio Accioli de Cerqueira e Silva, Dissertação historica, ethnographica e po-
litica sobre as tribus aborigenes que habitavam a provincia da Bahia ao tempo
em que o Brasil foi conquistado; sobre as suas matas, madeiras e animaes que a
povoaram, etc. [1849], RIHGB, p. 13, 1874.
41
Ibidem, p. 64.
42
Joaquim Manuel de Macedo, Lições de história do Brasil para uzo dos alumnos
do Imperial Collegio De Pedro Segundo, 4. ed., Rio de Janeiro, Livraria Garnier,
1861, p. 23.
43
José Joaquim Machado d’Oliveira, Qual era a condição do sexo feminino entre
os indigenas do Brasil? [1842], RIHGB, p. 174, 1863.
44
Ibidem, p. 197.

229
45
José Martiniano de Alencar, O gaúcho, 1. ed., Rio de Janeiro, B. L. Garnier,
1870, p. 240.
46
Ibidem, p. 6.
47
Idem, Senhora, Rio de Janeiro, B. L. Garnier, 1875, p. 15.
48
Idem, O gaúcho, p. 14.
49
Idem, O tronco do ipê, Rio de Janeiro, B. L. Garnier, 1871, p. 34-36.
50
Ibidem, p. 264-265.
51
Idem, O sertanejo, 1. ed., Rio de Janeiro, B. L. Garnier, 1875, p. 1.
52
Idem, Iracema, Rio de Janeiro, B. L. Garnier, 1865, p. 195.
53
Antônio Gonçalves Dias, Poesia completa e prosa escolhida, 1. ed., Rio de
Janeiro, Typographia Universal Laemmert, 1846, p. 31.
54
Idem, Reflexões sobre os Anais históricos do Maranhão por Bernardo Pereira de
Berredo, Guanabara, Revista Mensal, Artística, Científica e Literária, t. I, Rio
de Janeiro, Tipografia Guanabarense de L. A. F. de Menezes, 1850, p. 28-29.

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231
LÚCIA M. BASTOS PEREIRA DAS NEVES
GUILHERME PEREIRA DAS NEVES

INDEPENDÊNCIA

Segundo o escritor francês Marcel Proust,

as palavras não mudam tanto de significação durante séculos


como para nós os nomes no espaço de alguns anos. Nossa memória
e nosso coração não são bastante grandes para que possam ser fiéis.
Não temos suficiente lugar, em nosso pensamento atual, para guardar
os mortos ao lado dos vivos.1

Ao longo das últimas décadas do século 18 e primeiras do 19,


no mundo luso-brasileiro, nem a memória nem o coração foram
grandes o bastante para se mostrarem fiéis e conservarem os
mesmos nomes. Personagens e instituições diferentes sucede-
ram-se na boca da cena, ainda que nem sempre representassem
alterações significativas, servindo a substituição apenas para
disfarçar o desgaste anterior que tinham sofrido. No entanto,
ao contrário do que aparentemente escreveu o autor de Em
busca do tempo perdido, em poucos anos, nesse mundo do
pensamento em língua portuguesa, algumas palavras adquiri-
ram novas significações, exigindo a convivência forçada dos
vivos com os mortos, até que estes viessem a ser definitivamente
enterrados – se é que chegaram a sê-lo algum dia.
Em 1713, o Vocabulário do padre Raphael Bluteau registrava
independência como “liberdade de fazer o que se quer”, dando
como exemplo a frase “obra Deus com suma independência”.
Tomava independente por aquele que “tem em si todo o preciso
para viver felizmente e que está independente da próspera ou
adversa fortuna alheia”.2 Que esse sentido permaneceu domi-
nante ao longo do século, confirma o Dicionário de Antonio
de Moraes Silva, tanto em sua primeira edição de 1789 quanto
na seguinte, de 1813, nas quais independência surgia como o
“oposto à dependência; a liberdade de sujeição, de fazer o que se
quer sem autoridade, ou consentimento de outrem; sem respeitos
etc.; de viver a seu arbítrio”.3
Na segunda metade do século 18, é primeiro na metrópole que
o termo de que aqui se ocupa aparece, no exato sentido presente
nos dicionários da época. Em 1770, Miguel Tibério Pedegache
Brandão, no Prólogo à sua tradução de uma obra de Febrônio,
mencionava que era “o direito e a soberana independência dos
Príncipes Seculares nas matérias temporais” de que tanto depen-
dia “o bom regime das sociedades e a conservação do Estado”.4
Na América, os substantivos liberdade e liberdades e os adjetivos
livre e independente mostram-se frequentes nos discursos de
Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, registrados por meio
de depoimentos, quando da devassa da Inconfidência Mineira
(1789). Uma testemunha assinalava que “a voz pública” passara
a veicular “as notícias gerais das liberdades e despropósitos” que
ele tinha espalhado pela estrada ligando a capitania ao Rio de
Janeiro. Associado a tais comportamentos encontrava-se o de
“exagerar a beleza, fertilidade e riqueza do país de Minas Gerais,
e que por estes motivos podia bem ficar independente”, assim
como o de condenar a saída “para a Europa [d]os tesouros da
América”.5
Diante do acontecimento extraordinário de 1808, com a vinda
da Corte portuguesa para o Brasil, não se falou de independên-
cia. Publicadas em 1825, as Memórias para servir à História
do Brasil de Luís Gonçalves dos Santos, testemunha ocular do

234
episódio, deixam de registrar o rompimento político que ocorrera
três anos antes, mas vaticinavam o futuro, que já se conhecia,
ao considerar o dia da chegada de D. João ao Rio de Janeiro
“como aquele em que começou a raiar a aurora da felicidade,
prosperidade e grandeza, a que algum dia o Brasil se há de elevar,
sendo governado de perto pelo seu soberano”. Este não perderia
“um só momento de promover a felicidade dos seus Estados do
Brasil, a mais bela e rica porção do globo”.6
Apesar da imagem idílica,7 na prática, criavam-se as raízes
de novas tensões.8 Em 6 de março de 1817, “uma revolução
bem inesperada” irrompeu em Pernambuco, arvorando-se “o
estandarte da independência”. Tinha sido anunciada, prossegue
o comerciante francês Louis-François de Tollenare, por “conci-
liábulos feitos à moda maçônica”, em que “se fizeram brindes
à independência, contra a tirania real e contra os portugueses
da Europa”.9
Do Rio de Janeiro, onde se encontrava preso, depois de
mostrar-se incapaz de opor-se ao movimento, Caetano Pinto de
Miranda Montenegro caracteriza-o como revolução, mas não
menciona independência.10 Nos documentos da própria devassa,
o governo provisório rebelde da vizinha capitania da Paraíba
data seus ofícios do “1º da Independência”.11 Em carta ao irmão
Martim Francisco, o ouvidor Antônio Carlos Ribeiro de Andrada
contava que no “dia seis do corrente, (...) levantou Pernambuco
a bandeira da independência e o conseguiu”. Para José Bonifácio,
prosseguia: “Foi um sucesso assombroso”, tendo todos “jurado
defender a causa da liberdade e não se sujeitarem mais ao poder
real”. Fala-se em “boa causa da nossa independência”; lembra-
-se o “odioso tempo da escravidão”; dão-se “vivas à Religião,
à Independência, à Pátria e seu governo”; mas não havia distin-
ção de nacionalidade, “pois portugueses, sois americanos, sois
brasileiros, sois pernambucanos”.12
Embora se mencione “eternizar a independência da Pátria”,
trata-se de independência, sem mais nem menos, por conse-
guinte, que tende a predominar; ou seja, ninguém parece pensar

235
em independência do Brasil, e nem mesmo de Pernambuco. Ao
contrário, conserva-se em grande medida o significado tradicio-
nal, associado à liberdade, à falta de sujeição.13
Em 1820, foram insatisfações semelhantes que fizeram
Portugal bradar por sua independência, não só em relação à
Inglaterra, que dominava o país desde as invasões napoleônicas,
mas, especialmente, em relação ao Brasil.14 Reduzido o pequeno
reino europeu a colônia da antiga colônia, na qual passara a
residir o soberano, suas elites dirigentes encontravam-se sujeitas
ao que não desejavam.
As repercussões do movimento na América, porém, antes de
despertarem qualquer rejeição ou animosidade, criaram senti-
mentos semelhantes, favoráveis à regeneração constitucional que
a convocação de cortes anunciava. De início, no Novo Mundo,
quando mencionada a ideia, folhetos e jornais adotaram uma
postura de oposição à independência: “Nas circunstâncias
presentes pois, a independência do Brasil (...) não tem funda-
mento algum; é uma erupção tão prematura e intempestiva, que
só aumentaria os seus males e desafiaria a sua degradação.”15
Na realidade, para eles, naquele momento inicial, a ideia de
independência diante do movimento constitucional português
representava a volta ao Antigo Regime. Assim, no dizer de
Oliveira Lima,16 1821 foi o ano do constitucionalismo, enquanto
que somente mais tarde as noções de separação e de indepen-
dência assumiram o proscênio, mas em três vertentes diferentes.
Num polo, encontravam-se aqueles que tomavam a indepen-
dência como “uma quimera”,17 com encantos imaginários que só
podiam acarretar ao Brasil, “a revolução, a anarquia, a guerra
civil e a total desgraça dos bons cidadãos”.18 Além de deputa-
dos que identificavam as aspirações de independência como
manifestações de jacobinismo, essa vertente incluía autores de
jornais e folhetos fiéis às Cortes de Lisboa, em especial da Bahia,
do Maranhão e do Pará,19 províncias que só vieram a aceitar a
separação por imposição da força armada. Para seus argumentos,
recorriam a outros jogos retóricos, em que não deixaram de, pelo

236
menos, criar um verbo: diziam que os brasileiros pretendiam
assassinar os europeus “a fim de se independenciarem”, uma
vez que Portugal “pretendia escravizá-los”.20
No polo oposto, sobretudo a partir de 3 de junho de 1822,
quando se convocou a Assembleia brasileira, vieram a situar-se
os partidários de uma certa separação. No entanto, ao longo do
processo, tais posições evoluíram, dando origem a duas correntes
principais. De um lado, aquela dos coimbrãos, assim chamados
em função de suas afinidades com as tendências reformistas
propostas por Rodrigo de Sousa Coutinho no passado. De outro,
a dos brasilienses, menos cosmopolita e mais ressentida com os
gravames que caracterizavam a condição colonial, levando-a a
uma concepção do poder semelhante à do humanismo cívico.21
De início, as diferenças não se mostraram grandes, propondo-
-se uma “independência moderada”, em que haveria união de
coroas, mas leis, assembleias e regimentos específicos a cada
Reino, conforme a necessidade experimentada de convocar uma
Assembleia brasileira para adaptar a Constituição portuguesa aos
interesses do Novo Mundo. Medida que O Papagaio, redigido
por um secretário de José Bonifácio, explicava decorrer de “o
espírito público” não desejar “uma independência absoluta”,
mas sim “uma independência administrativa”, compatível com
os interesses dos dois reinos.22 Contudo, a atitude foi vista pelo
Congresso lisboeta como uma declaração de ruptura total.
De fato, em 9 de abril, ao comentar os combates na Bahia e a
ação violenta das tropas portuguesas chefiadas por Madeira de
Melo, o jornal brasiliense Revérbero Constitucional Fluminense
já explicitava a proposta de independência: “(...) não é com baio-
netas que se prega a Liberdade (…); o que até hoje têm feito os
militares enviados da Europa para o Brasil (…) promove mais
a independência deste Reino, que a natureza aconselha e que
Portugal tanto procura obstar.”23 Da vila de Itu, no interior de
São Paulo, declarava-se que “o Brasil todo vai já sem dúvida
formar o majestoso círculo, de que V[ossa] A[lteza] R[eal] é o
centro, e a Nação inteira vai conservar sua desejada unidade,

237
sem perder a mútua independência”.24 Confirmando a impor-
tância do constitucionalismo naquele momento, ao comentar o
Decreto de 3 de junho de 1822 que convocava uma Assembleia
Constituinte, coube ao Correio do Rio de Janeiro dar um passo
adiante: “Rompeu-se o véu, desapareceu a mancha efêmera
que ofuscava a luz; o Brasil já não é colônia, já não é Reino, já
não são províncias de Ultramar; o Brasil é mais que tudo isso, é
Nação livre, independente.”25
Em face da radicalização implicada por algumas medidas
adotadas pelas Cortes de Lisboa em relação ao Brasil desde fins
de 1821, o ideário separatista tornou-se inevitável. No Manifesto
de 6 de agosto, o coimbrão José Bonifácio expôs os motivos
que levavam a vontade geral do Brasil a proclamar “à face do
universo a sua independência política”.26 No entanto, essa inde-
pendência não significava ingratidão em relação à Mãe-Pátria;
representava somente o direito que o Brasil tinha de fazer seu
código de leis e de promover sua felicidade, como, aliás, também
fizera Portugal. Em suma, a “nossa independência de Portugal
não é mais do que aquela de um filho que se emancipa”.27
A partir do final de 1822 e ao longo de 1823, independência
foi, sem dúvida, o vocábulo que mais êxito logrou na lingua-
gem da política, mas seu uso não era capaz de ocultar um certo
temor. Continuava-se a temer a “cabala antibrasílica”,28 que
tinha o objetivo de promover a “odiosa dependência”,29 assim
como temia-se o desmembramento da América portuguesa.
Preocupação semelhante já estava presente em outro Manifesto,
este aos povos do Brasil, também de 6 de agosto, no qual o
brasiliense Gonçalves Ledo exortava que não se ouvisse “entre
vós outro grito que não seja união – do Amazonas ao Prata”
– nem retumbasse “outro eco, que não seja independência”.30
Destaque-se ainda que foram muitos poucos os periódicos que
passaram a ter em seu título a palavra independência naquele
primeiro momento. Registre-se O Independente Constitucional,
periódico baiano, publicado em 1º de março de 1823,
constituindo-se como o principal porta-voz das lutas que se

238
travavam pela consolidação da independência brasileira em
território baiano.
Nesse processo, foi a aclamação de D. Pedro como impera-
dor constitucional, em 12 de outubro, por meio de uma festa
de caráter popular, que representou o divisor de águas. Como
afirmava a vila de Sabará, todos acordavam “em declarar a
independência deste vasto e riquíssimo Reino do Brasil”. 31
Reconhecia-o também o jornal português Trombeta Lusitana32
ao considerar que o evento esclarecia, além de qualquer dúvida,
“as ideias que os políticos haviam desde algum tempo formado
a respeito do novo Estado brasílico”, pois, com “este passo, o
Brasil cheg[ara] ao ponto preciso da sua independência”. A partir
de então, a união das províncias passava a representar a força
do Brasil, enquanto “o conhecimento desta [constituía] o escudo
contra nossos inimigos”.33 Fato igualmente destacado por um
deputado de Pernambuco à Constituinte, ao dirigir-se ao Senado
de Olinda, quando declarou que “as províncias do Brasil fazem
todas juntas um só todo: o engrandecimento de uma anda na
razão direta da prosperidade das outras”; este era o motivo por
que os “demagogos de Portugal tanto se esforçavam para desunir-
-nos”, pois a “união era o mais violento garrote que podíamos
dar à sua louca esperança de suplantar-nos”.34 Em consequência,
para construir a nação, o governo devia ter a atenção voltada
para as províncias do norte, onde uma autêntica guerra civil
ocorrera para assegurar a independência35 – naturalmente, do
ponto de vista do Rio de Janeiro.
Dessa maneira, despontava uma certa identidade coletiva
quando se considerava que os portugueses podiam sonhar que
o Brasil era “uma colônia, tirando-lhe o verdadeiro, como
conhecido nome, de um Império rico, extensivo, poderoso e
independente, que [devia] gozar da sua liberdade, como usam
os demais povos civilizados da Europa e do mundo inteiro”;36
e quando se afirmava a importância de que aparecesse “mais
na história política das nações o exemplo do valor brasileiro,
proclamando a sua Independência”.37 Portanto, da aclamação à

239
solene coroação de Pedro I, em 12 de outubro e 1º de dezembro de
1822, respectivamente, definiu-se, “no entusiasmo da liberdade”,
a condição do Brasil como país independente. O fechamento
pelas armas da Assembleia Constituinte em novembro de 1823; a
outorga da Constituição por Pedro I e a rebelião conhecida como
Confederação do Equador, envolvendo Pernambuco e províncias
vizinhas, em 1824; o reconhecimento do novo país em 1825; e
a morte de D. João VI, agora também imperador do Brasil, em
1826, foram os principais acontecimentos que pontuaram os
anos imediatos, indicando as inúmeras dificuldades enfrentadas
ao longo do Primeiro Reinado. Tratava-se de combinar a antiga
estrutura executiva da administração, que D. João VI legara ao
filho, com as formas de representação da sociedade que surgiram
na esteira do movimento constitucional português. Tais acon-
tecimentos realçaram novas arestas da ideia de independência.
Estas vieram à luz, entre 1826 e 1829, nos debates parlamentares
da primeira Legislatura ordinária.
Na fala do trono proferida na abertura da legislatura de 1828,
a menção por Pedro I da Espanha como o único país europeu
que ainda não reconhecera a independência do Brasil38 conduz a
uma longa discussão sobre a resposta que a Câmara devia dar,
dividindo-se os oradores entre manifestar sua repulsa ao fato ou
ignorá-lo. Enquanto o padre Lopes Gama, futuro redator de O
Carapuceiro, célebre jornal pernambucano, afirmava não saber
“que obrigação tenha a Espanha de reconhecer este império e
de entreter conosco relações que nada influem na existência
política de duas nações”, Holanda Cavalcanti indaga-se: “(…)
deixaremos de ser nação independente, porque a Espanha nos
não quer reconhecer?” Do lado oposto, Lino Coutinho conside-
rava que “se nós não fazemos a guerra à tirania com as armas,
é preciso que lha façamos com palavras” e, portanto, “havemos
de falar da Espanha e dizer que o seu rei quer subjugar os seus
povos”.39 Mais adiante, Lino Coutinho indagava se não “terá
o homem sábio obrigação de guiar e conduzir o ignorante? E
não terá uma nação livre obrigação de mostrar à nação escrava

240
os bens resultantes da constituição?” E arrematava: “Nunca
Fernando VII deixará de ser inimigo do imperador do Brasil:
poderá ele ver a sangue frio que um jovem príncipe procla-
masse a nossa independência e fosse até dar uma constituição
a Portugal?” Argumento que, curiosamente, era o conservador
arcebispo da Bahia quem vinha reforçar, ao julgar que toda “a
causa da obstinação da Espanha em não reconhecer a nossa
independência provém do ódio e rancor, que ela professa à
liberdade americana”, pois, “desviando-se das velhas máximas
da política europeia”, Fernando VII “não pode sofrer que um
príncipe da sua linhagem (…) proclamasse ele mesmo o grito da
nossa independência”.40
Talvez ainda mais significativa seja outra intervenção de
Lopes Gama, defendendo, apesar de numerosos protestos, que,
na aclamação do imperador, os povos tinham tido em vista “o
princípio da legitimidade”.

Quando no Brasil tratou-se de aclamar a Sua Majestade Imperial, em


bem poucas províncias eram conhecidas suas virtudes; todos sabemos
do estado de desmembração em que se achava o Império nessa ocasião
(...) Foi pois mais pela legitimidade do que pelas suas virtudes que os
brasileiros unanimemente aclamaram S[ua] M[ajestade] I[mperial].41

Ao que contrapõe Lino Coutinho:

(...) quando o Brasil quebrou os ferros da escravidão e separou-se


do reino e se pôs no estado de independência, não reconheceu legiti-
midade; era senhor de si, era soberano e podia escolher uma forma
qualquer de governo (…) e a nação (...) escolheu seu chefe o príncipe
então regente, pelas suas virtudes.42

Se a questão do reconhecimento da independência do Brasil


pela Espanha era capaz de desvelar dessa forma alguns pressu-
postos da elite intelectual e política daquele momento quanto ao

241
rompimento dos laços de sujeição com Portugal, a extensão que
assumiu o debate em torno do requerimento apresentado pelo
bacharel Manuel Caetano Soares expõe um outro nervo sensível:
quem era, ou não, brasileiro, isto é, filho da independência. O
deputado Holanda Cavalcante lembrou as atitudes que Soares
havia tomado contra o Brasil, mas, na realidade, o “desejo desse
homem era ver o Brasil com uma constituição e, por isso, o queria
unido a Portugal, onde a esse tempo principiava a florescer a
árvore de liberdade”. Afinal, muita “gente houve que quis ser
português constitucional”.43 Já para Raimundo da Cunha Matos,
embora o suplicante tivesse sido “criminoso”, nascera no Brasil
e seus conhecimentos podiam mostrar-se “interessantes”. Assim,
como se tinham “recebido muitos estrangeiros, devemos da
mesma forma receber este homem!”44 Além da lógica confusa e
da retórica profusa, a interminável discussão acaba por distinguir
uma preocupação mais ampla com as ideias dos indivíduos –
constitucionais ou não – de uma perspectiva bastante estreita,
que fundamentava o brasileiro na mera oposição ao português.
Alguns dias depois, uma vez estabelecidos os primeiros cursos
superiores no país em 1827, a discussão do projeto que habili-
tava os formados em universidades estrangeiras para atuarem no
Brasil volta a mostrar a mesma linha de divisão. Segundo Paula
e Souza, por exemplo, um deputado afirmara

que tinha fins políticos os estudantes estudarem em universidades


estrangeiras, como Alemanha etc., onde se conhece bem qual é o espírito
dominante, que sendo tais estudantes admitidos em nossa magistratura,
algum receio tinha da nossa liberdade; absolutamente, eu não tenho
esse receio: o homem ilustrado em toda a parte defende a liberdade.45

Provavelmente, a evidência mais clara do que se escondia,


por essa época, na palavra independência encontra-se sobre-
tudo nas extensas discussões quanto aos assuntos religiosos.
Acerca de projeto para conter os abusos dos párocos, propi-
ciado pelas contínuas queixas dos povos, o deputado Costa

242
Aguiar intervinha, dizendo já ter sustentado “que todos esses
direitos de padroado, que todos esses princípios que regiam para
Portugal, caducaram para conosco desde o feliz e necessário
momento da nossa separação”. Não obstante, talvez seja Lino
Coutinho quem melhor captou o que julgavam estar envolvido
na questão: “Se nós nos separamos da nossa Mãe-Pátria a fim
de sermos livres e independentes, devemos agora sujeitar-nos ao
papa?”46 Apesar disso, ao discutir-se um projeto de lei de orga-
nização das câmaras municipais e indagando-se sobre a parti-
cipação nelas de eclesiásticos, ou não, Souza e França introduz
uma curiosa reflexão:

(...) é preciso que os clérigos do Brasil se vão pouco a pouco naciona-


lizando, porque este é o único meio que todas as nações têm procurado
para conciliarem opiniões; quando fazem a sua regeneração sobre a
ruína do despotismo, vão nacionalizando aquela porção de cidadãos
que estavam desnacionalizados.47

Em suma, diante do que foi possível verificar, até o final do


Primeiro Reinado, pelo menos, a ideia de independência limitou-
-se quase exclusivamente ao sentido indicado pelo padre Raphael
Bluteau no início do século 18, equivalendo à falta de sujeição,
à autonomia, à liberdade. Aliás, em 1858, a sexta edição do
Dicionário de Moraes Silva, “melhorada e muito acrescentada
pelo desembargador Agostinho de Mendonça Falcão”, conser-
vava as definições anteriores, acrescentava explicitamente a
remissão à liberdade:

A liberdade consiste no poder completo e inteiro de usar as facul-


dades da alma e do corpo. A independência consiste na isenção ou
desapego de todo o laço e de toda a sujeição exterior, que possa influir
sobre este uso, e pôr-lhe obstáculo. A liberdade recai sobre as ações;
a independência, sobre a vontade.48

243
Apesar disso, tampouco faltaram formulações a anunciar
certas tensões, que logo vieram à luz, decorrentes da dificuldade
para atribuir a independência, ou liberdade, que cabia a cada
componente do Império. Em 1828, intervenções de Holanda
Cavalcante mostram com clareza a insatisfação com o trata-
mento desigual dispensado pelo Rio de Janeiro a Pernambuco,
em particular, mas também às demais províncias, de modo
geral. Certa vez, afirma que a comissão da Câmara importara-se
apenas com o deficit do Rio de Janeiro, esquecendo daquele das
demais províncias, embora Pernambuco apresentasse “a atitude
mais brilhante”, enquanto “na Bahia cunha-se moeda falsa; no
Rio de Janeiro há desordens em todo sentido; a província de
Minas Gerais pede todos os dias diminuição dos seus tributos;
São Paulo, que se lhe mandem fazer estradas; e o Ceará, que se
lhe deem esmolas!”49
O desencontro entre o imperador e os representantes da nação
resultou na abdicação ao trono de D. Pedro I, em 7 de abril de
1831. A abdicação ainda foi considerada como “dia memorável
para o Brasil, pelo heroísmo de seus filhos, triunfo da liberdade
constitucional e derrota dos inimigos da independência, glória e
nacionalidade brasileira!”50 Era, enfim, uma espécie de “consa-
gração da independência”, quando “a monarquia completou
sua metamorfose e fez-se brasileira” na pessoa de Pedro II, como
disse José de Alencar em 1865.51
Se o ano de 1831 representou o “grande movimento desta
nova independência nacional”, as manifestações de descontenta-
mento, no entanto, multiplicaram-se. Mais uma vez, era Holanda
Cavalcante quem observava que, “na época da declaração da
independência”, com exceção do subsídio literário, era tal a hete-
rogeneidade financeira, “que tantas eram as províncias quanto
os sistemas de impostos”, conservando-se a situação em seguida,
apesar da exigência de “uniformidade de impostos” imposta pelo
“sistema constitucional”. Do mesmo modo, outro deputado, com
base na Constituição, considerava “que a Assembleia (…) podia
decretar que em cada Câmara ou em cada Província houvesse

244
um cofre separado dos cofres nacionais”. Ainda sobre a lei do
orçamento, Castro e Silva insistia, porém, que o Brasil constituía
“um patrimônio único, uma peça inteiriça”, a fim de indagar:
“(...) como queremos nós, pois, fazer estado no estado, ou estados
independentes, como parece querer esta lei?”52
Preocupações semelhantes transpareciam igualmente no
âmbito político. Ao discutir-se o projeto que regulamentava as
atividades da regência, representando a posição unitária, Diogo
Feijó manifesta-se contrário à aprovação de certo artigo, por
considerar que, aprovado, “está dado o primeiro passo para a
independência das províncias, porque logo que possam fazer
suas leis e sancioná-las, que precisam mais para serem indepen-
dentes?”53 Ao ser proposta a eleição popular dos presidentes
das províncias, Carneiro da Cunha intervém para alegar que,
“estando nós ainda no foco da revolução”, tais emendas podiam
“ser causa de luta nas províncias e de muita perturbação, em
razão de não haver nelas união e uniformidade de opinião,
podendo mesmo acontecer que a opinião pública se não manifeste
com aquele desinteresse que se deve”. Como exprimiu-se em
seguida, “(...) queria que tudo se fizesse para o povo e pelo amor
do povo, mas nada pelo povo”.54 A proposta mais urgente dizia
respeito à divisão dos poderes, que cumpria aprimorar, “pois
quanto à federação, ela existia já, podendo ser mais ou menos
lata, assim como tinha existido também nos Estados Unidos,
ainda no tempo em que dependiam da metrópole”.55
Durante a experiência inédita das Regências (1831-1840),
eclodiram as tendências centrífugas acumuladas nas províncias
desde a chegada da família real em 1808 e a transformação do
Rio de Janeiro em nova Lisboa nos trópicos. Para muitos polí-
ticos, as províncias deviam ser independentes e autônomas. Na
visão do baiano Cipriano Barata, “triste” era a “sorte das provín-
cias enquanto forem olhadas como reservatório de colonos que
trabalham em benefício da Capital [Rio de Janeiro], bem como
antigamente para Lisboa”.56 Defendia a eleição dos presidentes
de província, dos comissários militares e dos magistrados pelo

245
povo de suas respectivas províncias, porque continuando a ser
eleitos pelo Ministério do Rio de Janeiro e sendo responsáveis
somente diante deste, não haveria nem boa administração nem
sossego, pois tudo se faria “ao arbítrio daquela capital, bem
como antigamente ao arbítrio de Lisboa”. Bento Gonçalves,
chefe da Revolta dos Farroupilhas ou Guerra dos Farrapos
(1835-1845), no sul do país, explicava o movimento como uma
defesa das liberdades provinciais ameaçadas, embora, no início
da campanha, ainda reafirmasse sua lealdade à ordem monár-
quica. Em manifesto, porém, lançado no ano de 1838, assumia
um discurso mais violento, afirmando que um só recurso restava
à salvação da província. “Esse recurso e esse meio eram a nossa
independência política e o sistema republicano.”57 A autonomia/
independência das províncias fazia-se presente, mesmo entre
alguns moderados, como nas páginas do jornal O Carapuceiro,
de Lopes da Gama. Nestas, clamava-se pela necessidade de
“reformas” na Constituição do Brasil, principalmente naque-
las coisas que diziam respeito “à servil e pesada dependência”
em que se encontravam “as províncias a respeito da Corte”.58
Naquele momento, independência significava a não sujeição ao
centralismo do governo da Corte do Rio de Janeiro, lembrado
como um governo autoritário e absoluto como aquele da antiga
metrópole. Desse modo, Tavares Bastos, em sua clássica obra
A província, continuou a ser defensor incansável da federação,
pois somente esta poderia salvar o país da estagnação que a
monarquia centralizadora conduzira. Com a independência do
Brasil, perpetuou-se “nesta parte da América a centralização”,
uma vez que “nossas províncias mudaram de amo, mas o sistema
de governo não mudou”.59
Os movimentos e revoltas do período regencial foram ora
contidos por meio de medidas descentralizadoras, como o Ato
Adicional de 1834, considerado pelos políticos da época como
“a gloriosa reforma que consumou a independência do Brasil”,60
ora, com maior frequência, subjugadas pela força e pelo temor
de desagregação social que as experiências americanas tinham

246
inspirado, até que a proclamação da maioridade de Pedro II
(1840) restabelecesse um certo princípio de legitimidade. Daí
em diante, no entanto, tais diferenças e tensões permaneceram
por muitas décadas no coração das disputas e lutas políticas.
Em 1849, o general pernambucano Abreu e Lima, que fizera
parte do Exército e do círculo imediato de Simon Bolívar, afir-
mava que uma das decepções de “nossa independência” consistia
“na igualdade de direitos politicos”, de que ficaram gozando
os portugueses pela Constituição brasileira de 1824. Para ele,
essa fatal circunstância, “singular entre os povos que se têm
tornado independentes”, piorou, em muito, o “nosso estado
de colônia sem melhorar em nada o da nossa emancipação”;
éramos, ainda, portugueses, “mas portugueses degenerados,
com todos os seus vícios, sem nenhuma de suas virtudes”. Nesse
caso, a independência continuava a representar a não sujeição a
Portugal, enquanto a emancipação aproximava-se da perspectiva
de verdadeira liberdade.61
Esboçando uma certa perspectiva distinta, nos anos 40 do
Oitocentos, quando da questão que envolveu Brasil e Inglaterra
sobre o tráfico negreiro, o conceito de independência adquiriu a
acepção de soberania da nação, embora permanecesse o signi-
ficado de não sujeição às ordenações inglesas. O Bill Aberdeen
(1845), auge da pressão inglesa contra o tráfico de escravos,
provocou enorme reação por parte do governo imperial. A
Câmara dos Deputados considerava os atos do Parlamento
britânico inconciliáveis “com os princípios de independência e
soberania nacional”.62 No Senado, Limpo de Abreu proclamava
que tal ato do “Parlamento e do governo inglês, em verdade,
viola[va] abertamente os direitos de independência do Brasil”.63
Igualmente, em finais de 1864, nos momentos que antecederam
a Guerra do Paraguai (1864-1870), o ato do presidente do
Paraguai, ao apresar o navio brasileiro Marquês de Olinda,
que se dirigia para o Mato Grosso, foi considerado arbitrário,
violando todas as regras do direito internacional.64 A tomada
de posição do governo imperial contra Solano López visava

247
defender a soberania, a honra e a independência do Brasil que
se acharam ameaçadas. Machado de Assis, em suas crônicas no
Diário do Rio de Janeiro, esperava, inicialmente, que das nego-
ciações pendentes na questão do Prata era possível “fundar a
nossa verdadeira independência e soberania”.65 Para Machado
de Assis, a guerra tornava-se motivo de orgulho e de defesa da
soberania brasileira. Portanto, tratava-se de uma guerra legítima.
Essa era, em sua visão, “a guerra da independência e da defesa”.
E conclui:

Quando o governo blanco, há pouco expulso de Montevidéu, encheu


a medida da nossa paciência, com as depredações e assassinatos dos
nossos patrícios, não havia outra saída mais honrosa que a de fazer
justiça por nossas mãos. Pouco depois veio o insulto do Paraguai.
Assim é que o povo brasileiro se levantou de todas as partes, enérgico
e entusiasta, para defender os seus irmãos ofendidos na campanha
oriental e na província de Mato Grosso.66

A independência nacional confundia-se com a honra e o orgulho


do Brasil.
Por conseguinte, ao longo desses anos convulsionados ou
mesmo na fase de relativa paz e prosperidade do Segundo
Reinado (1840-1889), parece difícil perceber que a palavra
independência tenha adquirido alguma nova dimensão, com
raras exceções nos anos 60 do século 19, em que se aproximou
do conceito de soberania. Para a maioria das elites intelectuais e
políticas, ela conservou, do início ao fim, o significado jurídico
fundamental de viver sem dependência, associado à prerrogativa
de fazer as próprias leis, seja para o Brasil em relação a Portugal
e vice-versa, seja para as províncias diante do centro de poder
no Rio de Janeiro. Se assim for, a generalização de seu emprego
no período, que parece incontestável, talvez não se prenda à
aquisição de uma nova perspectiva do mundo, pressuposta pelo
ingresso na modernidade, mas, sim, a uma conjuntura que, junto
a grupos até então subordinados, fomentou esperanças inéditas

248
de assegurar novas vantagens, desde que se mantivessem os
antigos mecanismos de poder e as regras de sua distribuição,
que todos conheciam. Daí, de um lado, o caráter retórico dos
discursos, assentado num campo de experiências já há muito
consolidado. De outro, a falta de um projeto, de um horizonte de
expectativas67 que definisse o futuro a construir. Em 1870, marco
incontornável do processo que conduziu à queda do Império, o
Manifesto Republicano encerra-se com o apelo de que “[s]omos
da América e queremos ser americanos”,68 como se a natureza
das coisas ainda se antepusesse à história dos homens; como se
os mortos ainda dominassem os vivos. Nessas condições, não
importavam nem as liberdades negativas dos modernos, nem os
direitos cívicos dos antigos, que inspiraram Quentin Skinner69
a falar em liberdade antes do liberalismo, posto que ainda
faltavam à experiência dos brasileiros, pelo menos, até meados
do século 19, aqueles processos fundamentais de politização,
ideologização, democratização e temporalização70 que, pela ótica
de Reinhart Koselleck, representam o ingresso na modernidade.

NOTAS
1
Marcel Proust, O caminho de Guermantes, trad. de M. Quintana, Rio de Janeiro,
Globo, 1953, p. 414.
2
Raphael Bluteau, Vocabulario portuguez & latino, Lisboa, Officina de Pascoal
Silva, 1713, v. 4, p. 103.
3
Antonio de Moraes Silva, Diccionario da lingua portuguesa, composto pelo
padre D. Raphael Bluteau, reformado e acrescentado por Antonio de Moraes
Silva, Lisboa, Oficina de Simão Tadeu Ferreira, 1789, v. I, p. 710.
4
Miguel Tibério Pedegache Brandão, Prólogo (1770), apud Rodrigo E. Gomes,
As letras da tradição: o Tratado de Direito Natural de Tomás Antônio Gonzaga
e as linguagens políticas na época Pombalina (1750-1772), dissertação (mestra-
do), Programa de Pós-Graduação em História, Niterói, Universidade Federal
Fluminense, 2004, p. 124.
5
Autos da Inconfidência Mineira, apud Tarcísio de Souza Gaspar, Palavras no
chão: murmurações e vozes em Minas Gerais no século XVIII, dissertação (mes-
trado), Programa de Pós-Graduação em História, Niterói, Universidade Federal
Fluminense, 2008, p. 311, 331, 332.
6
Luís Gonçalves dos Santos, Memórias para servir o Reino do Brasil (1825), Belo
Horizonte, Itatiaia, São Paulo, Edusp, 1981, p. 187.

249
7
Sérgio Buarque de Holanda, Visão do paraíso, São Paulo, Companhia Editora
Nacional, 1977.
8
Cf. Evaldo Cabral de Mello, A outra Independência. O federalismo pernambu-
cano de 1817 a 1824, São Paulo, Editora 34, 2004.
9
L. F. de Tollenare, Notes dominicales prises pendant un voyage en Portugal et
au Brésil en 1816, 1817 et 1818, Paris, Presses Universitaires de France, 1972,
p. 545.
10
Francisco Pereira da Costa, Anais pernambucanos, Recife, Arquivo Público
Estadual, 1958, v. VII, p. 431.
11
Documentos Históricos, Revolução de 1817, Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional,
1953, v. 101, p. 76.
12
Ibidem, p. 32, 68, 26, 36.
13
Ibidem, p. 15.
14
Cf. Valentim Alexandre, Os sentidos do império: questão nacional e colonial na
crise do antigo regime português, Porto, Afrontamento, 1993, p. 795-815.
15
José Antonio Miranda, Memória constitucional e política sobre o estado presente
de Portugal e do Brasil, Rio de Janeiro, Tipografia Régia, 1821, p. 61, 67.
16
M. de Oliveira Lima, O movimento da independência: 1821-1822, Belo Hori-
zonte, Itatiaia, São Paulo, Edusp, 1989, p. 75.
17
Idade d’Ouro do Brazil, Salvador, n. 88, 1822.
18
O Conciliador do Maranhão, São Luís, n. 205, 1823.
19
Cf. Maria Beatriz Nizza da Silva, Movimento constitucional e separatismo no
Brasil: 1821-1823, Lisboa, Livros Horizonte, 1988.
20
Diário Constitucional, Salvador, n. 21, 1822, grifo nosso.
21
Cf. R. Barman, Brazil: The Forging of a Nation (1798-1852), Stanford, Stan-
ford University Press, 1988, p. 76-77; e Lúcia M. Bastos P. Neves, Corcundas e
constitucionais: a cultura política da Independência, 1820-1822, Rio de Janeiro,
Revan, FAPERJ, 2003, p. 86-88.
22
O Papagaio, Rio de Janeiro, 10-V-1822.
23
Revérbero Constitucional Fluminense, Rio de Janeiro, 9-IV-1822.
24
Narração do procedimento da Vila de Itu, em consequência dos fatos de 23 de
maio de 1822, na cidade de São Paulo, Rio de Janeiro, Tipografia do Diário,
1822, p. 11.
25
Correio do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 6-VI-1822.
26
Manifesto do Príncipe Regente do Brasil aos Governos e Nações Amigas, [Rio
de Janeiro], Imprensa Nacional, 1822, f. 1.
27
O Volantim, Rio de Janeiro, set. 1822.
28
O Espelho, Rio de Janeiro, n. 123, 21-I-1823.
29
Diário do Governo, Rio de Janeiro, n. 36, 14-II-1823.

250
30
Gonçalves Ledo, Manifesto de S.A.R., o príncipe regente constitucional e defensor
perpétuo do Brasil aos povos deste reino, [Rio de Janeiro], Imprensa Nacional,
1822, p. 3, grifo no original.
31
Gazeta do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n. 139, 10-XI-1822.
32
Trombeta Lusitana, Lisboa, n. 31, dez. 1823.
33
O Espelho, n. 118, 3-I-1823.
34
Manoel Caetano de Almeida e Albuquerque, Análise das instruções das Câma-
ras municipais aos eleitos deputados à Constituinte, Rio de Janeiro, Tipografia
Nacional, 1823, não paginado.
35
Domingos Alves Branco Moniz Barreto, Justificação patriótica demonstrada
em duas cartas dirigidas ao mui alto, poderoso e magnânimo Imperador Cons-
titucional do Brasil (...) pelo cidadão (...), Rio de Janeiro, Tipografia Nacional,
1823, p. 19.
36
Gazeta do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n. 140, 21-XI-1822.
37
Ibidem, n. 142, 26-XI-1822, grifo no original.
38
Brasil, Fala do Trono, Rio de Janeiro, [s. n.], p. 141, 1889.
39
Brasil, Annaes do Parlamento brazileiro (10-V-1828), Câmara dos Srs. Depu-
tados, Rio de Janeiro, Typographia Parlamentar, 1876, p. 45.
40
Ibidem, 12-V-1828, p. 51.
41
Ibidem, 10-V-1828, p. 44.
42
Ibidem, p. 45.
43
Ibidem, 27-VI-1828, p. 219-220.
44
Ibidem, 28-VI-1828, p. 227, 224.
45
Ibidem, 4-VII-1828, p. 46, grifo nosso.
46
Ibidem, 9-VII-1828, p. 78-79, 19-V-1828, p. 114.
47
Ibidem, 18-VI-1828, p. 150.
48
Antonio de Moraes Silva, Diccionario da lingua portuguesa, melhorada e muito
acrescentada pelo desembargador Agostinho de Mendonça Falcão, 6. ed., Lisboa,
Tip. de Antonio José da Rocha, 1858, p. 188 e 278, grifos do autor.
49
Annaes, 12-VIII-1828, 1876, p. 74.
50
Brasil, Fala do Trono, p. 199.
51
José de Alencar, Cartas de Erasmo (1865), Obra completa, Rio de Janeiro,
Editora José Aguilar, 1960, v. 4, p. 1078.
52
Brasil, Annaes do Parlamento brazileiro (28-VII-1831), Câmara dos Srs. De-
putados, Rio de Janeiro, Typographia de H. J. Pinto, 1873, p. 279; Ibidem,
29-VII-1831, p. 283; Ibidem, 1-VIII-1831, p. 8.
53
Ibidem, 21-V-1831, p. 74.
54
Ibidem, 24-V-1831, p. 84, 87.

251
55
Ibidem, 9-IX-1831, p. 136.
56
Sentinela da Liberdade na sua Primeira Guarita, a de Pernambuco, onde Hoje
Brada Alerta!!, Pernambuco, n. 1, 16-VII-1834.
57
Em Sandra Jatahy Pesavento, Uma certa revolução Farroupilha, em Keila Gin-
berg, Ricardo Salles, O Brasil Imperial, 1831-1870, Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 2009, v. 2, p. 235-267, 248.
58
Lopes da Gama, em O Carapuceiro, Recife, 21-VI-1834.
59
Tavares Bastos, A província: estudo sobre a descentralização no Brasil (1870),
São Paulo, Editora Nacional, Brasília, INL, 1975, p. 50.
60
Ibidem, p. 63.
61
José Ignácio de Abreu e Lima, Cartilha do povo por Franklin, Pernambuco, Typ.
da Viúva Roma & Filhos, 1849, p. 4.
62
Brasil, Fala do Trono, p. 407.
63
Limpo de Abreu, Discurso pronunciado na sessão do dia 15 de julho de 1850 na
Câmara dos Deputados, transcrito em Paulino José Soares de Sousa, Visconde
do Uruguai, org. e int. José Murilo de Carvalho, São Paulo, Editora 34, 2002,
p. 537-562, 569.
64
Brasil, Fala do Trono, p. 602-606.
65
Machado de Assis, Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 3-VII-1864.
66
Ibidem, 25-IV-1865.
67
Reinhart Koselleck, “Espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”: duas
categorias históricas, em Futuro passado. Contribuição à semântica dos tempos
históricos, Rio de Janeiro, Contraponto, PUC-Rio, 2006, p. 305-327.
68
Manifesto Republicano (1870) transcrito em R. C. Pessoa (org.), A ideia repu-
blicana no Brasil através dos documentos: textos para seminários, São Paulo,
Alfa-Ômega, 1973, p. 60; cf. Leslie Bethell, O Brasil e a ideia de “América
Latina” em perspectiva histórica, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 22,
n. 44, p. 289-321, jul-dez. 2009.
69
Quentin Skinner, La Liberté avant le libéralisme, Paris, Seuil, 2000.
70
Cf. M. Richter, Reconstructing the History of Political Languages: Pocock,
Skinner and the Geschichtliche Grundbegriffe, History and Theory,
Middletown, v. 29, n. 1, p. 38-70, 1990; e João Feres Júnior, Para uma histó-
ria conceitual crítica do Brasil: recebendo a Begriffsgeschichte, em João Feres
Júnior, Marcelo Jasmin (org.), História dos conceitos: diálogos transatlânticos,
Rio de Janeiro, PUC-Rio, Edições Loyola, IUPERJ, 2007, p. 109-117.

REFERÊNCIAS
INDEPENDENTE CONSTITUCIONAL, O. Salvador, 1823.
SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da lingua portuguesa. 2. ed. Lisboa:
Tip. de M. P. de Lacerdina, 1813. 2v. [Ed. fac-símile: Rio de Janeiro, 1922].

252
CHRISTIAN E D WA R D CYRIL LYNCH

DEMOCRACIA

Do ponto de vista diacrônico, pode-se compreender o


conceito de democracia no Brasil como sofrendo mutações
em três momentos particulares. Até 1792 a democracia é
considerada uma forma de governo da Antiguidade Clássica
e possui conotação principalmente histórica. Daquele ano em
diante, sob o impacto da Revolução Francesa, a democracia
passa a ser considerada uma forma de governo sinônima de
república, ou seja, de governo do povo pelo povo. Depois do
advento do governo constitucional e representativo, durante
a década de 1820, surge um sentido mais palatável de demo-
cracia, inspirada nos Estados Unidos, marcada pela ausência
de aristocracia hereditária e pela presença de autogoverno,
na forma federativa, compatível com a democracia: trata-se
da monarquia democrática. Embora conheça certo sucesso
na primeira metade da década de 1830, o conceito cai em
descrédito durante a reação monárquica unitária, ancorada
na noção de que a monarquia constitucional tem por modelo
o governo misto. O debate passa a girar em torno da necessi-
dade de reforçar-se ou o princípio monárquico ou o princípio
democrático da Constituição de 1824. O último período exami-
nado é o de 1868-1870, quando o conceito ganha significados
adicionais cujos desdobramentos estão para além do período
aqui contemplado.
No primeiro período, entre 1770 e 1792, o conceito de
democracia é compreendido principalmente como uma forma
de governo que, a despeito de resistir aqui e ali como cidades-
-Estado, possui uma dimensão eminentemente histórica. O
Dicionário de Bluteau de 1712 define a democracia como “um
governo político, diretamente oposto à monarquia, porque é
popular, e nele a eleição dos magistrados depende dos sufrágios
do povo”. Os exemplos são justamente extraídos da Antiguidade:
“Nas Repúblicas de Roma e de Atenas floresceu a democracia
ou governo democrático.” No verbete “democrático”, o autor
do dicionário pôde manifestar mais claramente a sua opinião
ao qualificar aquele governo como “monstruoso”. E explicava:
“É governo vulgar e o vulgo sempre há sido, e com domínio,
monstro formidável: tem conselho, tem razão, tem esfera, tem
segredo e tem revolução. Todos querem ter cabeças.”1
No Brasil, o estudo da história dos conceitos é particularmente
difícil pela proibição de tipografias imposta pelo governo metro-
politano até 1808. Entretanto, até onde se verifica, o conceito de
democracia não era diferente daquele anotado por Bluteau. Em
1772, em seu Tratado de direito natural, seguindo a classifica-
ção de Pufendorf, Tomás Antônio Gonzaga sustentava que os
governos se dividiam entre regulares e irregulares. Os regulares
teriam o poder político concentrado “à maneira de um corpo
que se anima de uma só alma, se regem e governam por uma
só cabeça”, ao passo que, nos irregulares, prevaleceria uma
constituição mista, como na Inglaterra. Os governos regulares
possuiriam três formas: a monarquia, a aristocracia e a demo-
cracia. Se o poder da cidade estivesse “em um conselho formado
dos votos de todos”, ela se chamaria “democracia” e aqueles que
a compunham, “povo”. Haja vista que o bom governo deveria
agir com presteza e diligência, a democracia era a pior de todas
as formas de governo: até “que se ajunte um povo, se conformem
os votos e se decida a coisa, já muitas vezes tem chegado o mal a
termos que não têm remédio, à maneira do enfermo que morrer
pela indeliberação do médico”.2

254
No segundo período, a partir de 1792, o sentido do conceito
de democracia que prevalece está associado aos “abomináveis
princípios franceses”, invariavelmente republicanos, democrá-
ticos e igualitários.3 Os membros da Sociedade Literária do Rio
de Janeiro, interditada pelo vice-rei, sustentavam que “o governo
das repúblicas deve ser preferido ao das monarquias, e que os reis
são uns tiranos opressores dos vassalos”.4 Se um deles entendia
não haver “melhor governo do que o governo de iguais”, outro
considerava que “as leis francesas eram boas pela igualdade que
introduziam entre os homens”, e que “só quando os franceses
cá chegassem se poriam as cousas direitas”.5 Depois de 1798,
porém, após uma tentativa de sedição em Salvador, de que bran-
cos pobres, mulatos e escravos tomaram parte e que se pregava
uma república niveladora, o entusiasmo das elites coloniais com a
democracia esmoreceu. Os sediciosos se dirigiam ao “poderoso e
magnífico povo baiense republicano” e clamavam que, depois da
revolução, “todos serão iguais, não haverá diferença, só haverá
liberdade, igualdade e fraternidade”.6
É que o governo dos iguais deixava de ser bom quando se
pretendia estendê-lo aos desiguais, ou seja, aos pobres (“o povo
mecânico”), ou pior ainda, aos escravos. Eis por que, quando
a aristocracia pernambucana levantou-se contra a Coroa, em
1817, os insurretos só pronunciavam a palavra república “em voz
baixa” e só discorriam sobre a doutrina dos direitos do homem
“com os iniciados”, já que ela “não seria compreendida pela
canalha”.7 Por outro lado, os defensores da monarquia absoluta
equiparavam os frondeurs pernambucanos aos jacobinos fran-
ceses de 1792. O redator do periódico governista Idade d’Ouro
do Brasil advertia que, por aquele motivo, a palavra “patriota”
se tornara “sinônimo de impostor, perturbador e velhaco. Os
patriotas não se lembram do bem público, lembram-se de sua
fortuna particular: não têm pena dos vossos males; têm inveja
dos vossos bens. São Robespierres e Marats.” Era, em suma,
uma “rebelião de demagogos”.8 No Dicionário de Moraes de
1813, a democracia é definida como forma de governo no qual

255
“o sumo império, ou os direitos majestáticos residem atualmente
no povo e são por ele exercidos”. O referido dicionário registra
ainda os verbetes “democratismo”, qualificado como “o regime
democrático, suas instituições, doutrinas, fórmulas e sentimentos
próprios dos democratas ou democracias”; e “democratizar”,
neologismo que já refletia o processo de independência das
antigas colônias europeias: “Dar constituição democrática; ou
mudar a constituição em democracia, reduzir a democracia.”9
Estas são definições que não sofrerão variações, pelo menos até
a década de 1870.
Com o final do Antigo Regime e a instalação do processo
político ao cabo do qual emergiria o Brasil independente como
monarquia constitucional, em 1822, o espectro político dividiu-se
então basicamente em dois grandes grupos. Ligado à antiga elite
metropolitana ocupava a direita do espectro político o primeiro
partido, dito “coimbrão” (porque era formado de graduados
da Universidade de Coimbra). Declaravam-se claramente anti-
democráticos porque desejavam instaurar no âmbito do Reino
Unido uma monarquia constitucional à inglesa: um governo
misto marcado pelo equilíbrio entre os elementos monárquico
(a Coroa), aristocrático (o Senado vitalício) e o democrático
(a Câmara dos Deputados). Assim, preocupado com o projeto
unicameral que se desenhava nas Cortes de Lisboa, em 1821,
o redator do periódico O Correio Braziliense, Hipólito José
da Costa, defendia a necessidade de “harmonizar os elementos
monárquico e democrático” do projeto de Constituição por meio
de uma Câmara Alta. Ela poderia manter “o justo equilíbrio
entre as pretensões de uns e outros, evitando a aceleração na
fatura das leis e o demasiado desejo de inovação, que sempre
existe mais ou menos em todas as assembleias populares, e
contendo os abusos do Executivo”.10 A aspiração dos coimbrãos
continuou a mesma após a independência. Assim, na Fala do
Trono que abriu a Assembleia Constituinte brasileira de 1823,
o imperador advertia os deputados de que o modelo inglês era
o único que, “pondo barreiras inacessíveis ao despotismo, quer

256
real, quer aristocrático, quer democrático”, poderia “afugentar
a anarquia” e plantar “a árvore da liberdade”.11 Embora se reco-
nhecesse que, para além da democracia pura, havia também a
democracia representativa, nenhum dos governistas do reinado
de D. Pedro I qualificava como tal a monarquia constitucional.
Para o deputado e ministro da Fazenda Martim Francisco de
Andrada, a diferença entre a democracia representativa e a
monarquia constitucional estava no fato de que, nesta última, o
monarca possuía o direito de veto sobre os projetos de lei enca-
minhados pelo Parlamento, ou seja, “tal ou qual ingerência no
Poder Legislativo”.12 O deputado Carneiro de Campos apontava
que o caráter distintivo das democracias era a supremacia do
Legislativo sobre o Executivo: “Nas democracias (...) o supremo
magistrado não pode ser mais do que o agente passivo e executor
da verdade imediata do povo.”13
A democracia como forma pura, associada à república,
era o inimigo a ser combatido. Prometendo jamais alistar-se
sob “as bandeiras esfarrapadas da suja e caótica democra-
cia”, o primeiro-ministro de D. Pedro I, José Bonifácio de
Andrada e Silva, declarava em 1823 pertencer ao partido dos
“monárquico-constitucionais”, cujos adeptos “fitam suas vistas
na felicidade do Estado; não querem democracias nem despo-
tismo; querem liberdade, mas liberdade bem entendida, e com
estabilidade”.14 Por isso, ele não concorreria “para a formação
de uma Constituição demagógica, mas sim monárquica”.15 A
oposição ao seu ministério queria uma monarquia falsa, “na
qual o monarca fosse um postulado gratuito e sem força, um
verdadeiro fantasma, como o de Portugal”, verdadeira máscara
de uma “república federal”.16 Seus membros acusavam o segundo
partido – o dos brasilienses – de querer irradiar para o Brasil os
“perigos do governo democrático”, ameaçando-o “pelo exemplo
e contágio dos Estados continentais da América”.17 Os oposicio-
nistas eram, assim, considerados por José Bonifácio uma “facção
oculta e tenebrosa de furiosos demagogos e anarquistas”.18 Os
democratas eram “iluminados, carbonários, radicais”, que “têm

257
desordenado e ensanguentado a Europa e ameaçam o sossego de
todos os povos e a estabilidade dos governos”.19 No começo da
década de 1820, o mais conservador membro da direita liberal,
José da Silva Lisboa, futuro Visconde de Cairu, sustentava que
a participação política estava legitimamente circunscrita àqueles
que fossem esclarecidos e compreendessem adequadamente os
seus interesses: “O governo deve atender à opinião pública das
classes ilustradas, mas não condescender com a populaça móvel
e mutável, agitada por ambiciosos demagogos.”20 Estes últimos
tentavam iludir “o vulgo” com seu “catecismo jacobínico”,
recheado “com falsos dogmas do paradoxista de Genebra” (isto
é, Rousseau), “para constituir o povo no mais feroz dos tiranos”
e afinal instituir o “despotismo da gentalha”.21
De modo geral, circularam desde então pelo menos oito
argumentos a justificar a impossibilidade de democracia no
Brasil. O primeiro deles ecoava a tese montesquiana de que as
democracias eram próprias de comunidades pequenas, quando
se tratava de estabelecer no Brasil um dos maiores impérios do
mundo. Por isso, alegava em 1823 o imperador D. Pedro I, a
democracia era “um absurdo neste vaso e grande Império”.22
O segundo argumento contrário à democracia era extraído da
filosofia cíclica da história, que condenava as formas puras de
governo por sua instabilidade crônica. Assim, depois de susten-
tar que a “igualdade absoluta entre os homens” era “a quimera
a mais perigosa de todas na sociedade”, o mesmo Revérbero
Constitucional Fluminense lembrava a impossibilidade de se
“fazer leis e executá-las democraticamente”. É que “a habilidade
e superioridade de talentos promoverá demagogos, e assim a
democracia tenderá sempre à aristocracia e esta à tirania, como
se tem observado em todas as idades do mundo”.23 Dez anos
depois, já senador do Império, o Marquês de Caravelas comba-
teria a reforma constitucional patrocinado pela esquerda liberal,
empregando um argumento semelhante:

Ora, Senhores, se tais princípios [democráticos] passam, quem


governa o Brasil? A Câmara dos Deputados. Que elemento é este? O

258
democrático. Que governo teremos? O oligárquico. O que se segue dele?
A anarquia; e atrás da anarquia, o que vem? O despotismo, porque,
depois que os povos veem correr rios de sangue, procuram um homem
que os livre do estado de desgraça a que têm chegado, e que os dirija;
e este, aproveitando-se da ocasião, os governa despoticamente, como
fez Napoleão.24

O terceiro argumento contrário à democracia residia no


caráter anacrônico da democracia. Gonçalves Ledo e Januário
da Cunha Barbosa salientavam que, embora fossem “modelos
de patriotismo”, as democracias não eram mais possíveis no
século 19, quando “a dissipação, o espírito mercantil, o luxo, a
corrupção moral e o egoísmo têm se desenvolvido geralmente”.
Por isso, a tentativa de instaurar uma democracia só faria “trans-
tornar a ordem das coisas”.25 Outro argumento antidemocrá-
tico – o quarto – alegava que, na monarquia constitucional, o
elemento que prevalecia era o aristocrático e não o democrático
– entendendo-se por “aristocracia” o segmento social destacado
por suas virtudes e méritos. Era o que, na Constituinte de 1823,
explicava o futuro Marquês de Caravelas:

Nós não temos aristocracia feudal (...) A nossa é de mérito, e esta é


um elemento indispensável em todas as sociedades; é filha da natureza
e fundada na preeminência intelectual e moral. Sem ela, não pode a
máquina social ter o seu andamento regular.26

Em 1854, o senador Francisco de Paula Cavalcanti de


Albuquerque ensinava que a aristocracia era o “governo dos
melhores” e, como tal, era “da essência do governo e um
elemento de ordem e de progresso”. Uma vez que a riqueza
territorial e financeira sempre teria influência nos negócios
públicos, era melhor organizá-la e legitimá-la para dela tirar os
melhores proveitos “morais e intelectuais”. Uma aristocracia
assim constituída, concluía ele, não repugnaria à democracia
nem à monarquia.27

259
O quinto argumento antidemocrático residia na oposição
entre democracia e governo representativo. Quem na Constituinte
mais uma vez esclarecia este aspecto era o deputado Carneiro de
Campos, futuro Marquês de Caravelas:

Bem poucos cidadãos podem dispor do tempo preciso para meditar


e curar dos negócios do Estado, muito mais fazendo a complicação
extrema da arte social, com que a maioria das pessoas da povoação
seja inábil para as funções políticas. Nestes termos, esta desistência
geral que faz a Nação por si mesma cuidar dos seus interesses, d’onde
nasceu o belo e admirável sistema representativo, é obra da necessidade,
aconselhada e aprovada pela razão.28

Os coimbrãos também descartavam a tese oposicionista de que a


democracia estadunidense pudesse servir de modelo para o Brasil.
Era o que verberava o já referido deputado Antônio Carlos de
Andrada Machado:

A analogia dos Estados Unidos, só a cegos pode impor; é mister


dormir ao pino do meio-dia e ter os olhos fechados ao clarão meridiano
para não ver a diferença de um povo nutrido desde o berço em ideias
democráticas, para outro que, criado no seio da monarquia absoluta,
não tem a frugalidade, temperança e amor da igualdade, condições
insupríveis das formas republicanas.29

Era sem dúvida o reconhecimento da singularidade da popu-


lação no Brasil, que em virtude da escravidão, do analfabetismo
e de sua irregular distribuição pelo território nacional inviabili-
zava a possibilidade de qualquer veleidade de democracia como
forma de governo. Tínhamos população, mas não tínhamos povo
propriamente dito. Em 1821, o futuro deputado José Severiano
Maciel da Costa, Marquês de Queluz, explicava que os escravos
eram inimigos potenciais do Estado e impediam a formação
da nacionalidade: “No Brasil, por efeito do maldito sistema

260
de trabalho por escravos, a população é composta de maneira
que não há uma classe que constitua verdadeiramente o que se
chama povo.”30 Não poderia haver Império sem um governo que,
embebido no espírito do despotismo ilustrado, forjasse o povo
brasileiro por um regime tutelar que promovesse o amálgama
das etnias, a educação para a liberdade, a civilização dos índios,
a imigração estrangeira, a distribuição de terras, a construção de
universidades e a extinção do tráfico negreiro. Por esses moti-
vos sociológicos, somente um governo monárquico esclarecido
poderia formar o povo, resgatando-o de sua condição decaída.
Assim, embora reconhecesse em 1817 que “as aparências de
democracia” eram “as que mais lisonje[avam] os indivíduos
das classes mais numerosas”, Hipólito da Costa defendia a
monarquia para o Brasil, “conforme (...) a educação, modo de
vida, religião e costumes daquele país”.31 Em 1862, o Visconde
de Uruguai, chefe e intelectual do Partido Conservador, repeti-
ria que, no quadro de uma comunidade política invertebrada,
somente um governo unitário poderoso e imparcial poderia
preparar a sociedade para a liberdade. A tentativa de implantar
a democracia em curto prazo só geraria desordem e caudilhismo,
como demonstrava a experiência das repúblicas hispânicas: “Não
sou inimigo da democracia. Tem ela muitas coisas boas, mas é
preciso não a exagerar e conservá-la nos seus justos limites; aliás,
pode produzir, como tem produzido, grandes males.”32
Já o segundo partido que surgiu quando da queda do Antigo
Regime, opositor dos coimbrãos, era visto em 1821 como o
partido democrata, que aspirava a uma “independência repu-
blicana” e à instauração de “governos provinciais indepen-
dentes”.33 Também chamado de Partido Liberal ou luzia, ele
possuía duas alas: uma moderada, de grandes proprietários de
terras, ligados à escravidão, e outra exaltada, daqueles ligados
a elementos urbanos de média extração. Ambos atacavam a
direita coimbrã, depois chamada conservadora ou saquarema,
identificada pelos liberais como uma “facção luso-aristocrática”,
uma “oligarquia”.34

261
Embora críticos da aristocracia, os liberais moderados manti-
nham uma relação muito ambígua com a democracia. Eles não se
sentiam confortáveis na defesa da democracia porque receavam
a pretensão niveladora das classes subalternas, a respeito das
quais ela mesma figurava como aristocrata. Ou seja, embora
rejeitassem a aristocracia, os moderados também não estavam
confortáveis com a democracia. Era o que explicava o futuro
deputado Diogo Antônio Feijó: “Tanto amo o governo monár-
quico, representativo, como abomino a democracia pura e a
aristocracia num país que tem a felicidade de não a possuir.” E
acrescentava: “Eu confesso que amo mais o governo absoluto de
um só que o chamado liberal de muitos, quer sejam democratas,
quer sejam aristocratas.”35 Ou seja, os moderados eram liberais
sem ser democratas, que postergavam o ideal republicano ou
democrático para um futuro distante. Depois da abdicação de
Pedro I em 1831, o deputado moderado Bernardo Pereira de
Vasconcelos prontamente declarou que não desejava “que tão
depressa se desse um salto da monarquia para a democracia”. O
país ainda não estava preparado para “um sistema de governo
puramente democrático”, isto é, republicano.36
Quanto aos exaltados, eles o eram mais no sentido da liber-
dade do que da igualdade: a democracia era “o regime o mais
livre possível”.37 Assim, o ícone do radicalismo pernambucano
da independência, o Frei Caneca, defendia a “democracia pura”
em termos que a aproximavam mais do liberalismo de Sieyès e
de De Tracy do que do igualitarismo jacobino que o sucedeu.
Estavam, assim, em perfeita sintonia com o liberalismo portu-
guês e espanhol das décadas de 1810 e 1820. Todavia, não iam
muito mais longe que os moderados na busca de uma monar-
quia, não aristocrática, mas democrática. Assim, por exemplo,
o redator do Typhis Pernambucano, o Frei Caneca salientava
em 1824 que, embora “a tendência do Brasil” fosse para “o
governo democrático”, seria possível uma acomodação com
a monarquia, se esta resolvesse abraçar o ideal de um “regime
constitucional representativo” adaptado às circunstâncias locais.

262
Para Caneca, o Império constitucional por ele defendido era uma
modalidade de governo “colocado entre a monarquia e o governo
democrático”, reunindo “em si as vantagens de uma e de outra
forma, e repulsa[ndo] para longe os males de ambas. Agrilhoa o
despotismo e estanca os furores do povo indiscreto e volúvel”.38
Pode-se, pois, concluir que, à época da independência, tanto
a direita como a esquerda brasileiras eram genericamente libe-
rais; tinham maiores ou menores reservas em relação à chamada
democracia pura e por isso aspiravam organizar a monarquia
constitucional a partir do modelo de um governo misto. As
divergências entre as duas alas do Partido Liberal despontavam,
todavia, quando se discutia o modo por que aquela mistura
deveria ser compreendida. O inimigo era o projeto constitucional
coimbrão, identificado com a Carta francesa de Luís XVIII – uma
“Constituição servil” no entender do baiano Cipriano Barata:
“Isto não é Constituição, é cativeiro disfarçado debaixo de certas
formalidades.”39 Ao contrário dos coimbrãos, que pretendiam um
governo misto entendido à moda inglesa, associado à forma de
Estado unitária, os liberais defendiam um arcabouço institucional
que associava o federalismo norte-americano, adotado então na
Colômbia e no México, ao modelo monárquico das constituições
portuguesa de 1822 e espanhola de 1812. O resultado seria uma
monarquia democrática na qual um poder legislativo unicame-
ral todo-poderoso em relação ao monarca pairaria sobre um
conjunto de províncias confederadas e, como tal, praticamente
independentes do poder central.
Foram os políticos e escritores liberais, moderados e exal-
tados, que passaram a veicular no final da década de 1820 um
significado mais palatável de democracia marcada pela ausên-
cia de aristocracia hereditária e pela presença de autogoverno,
na forma federativa, compatível com a democracia: trata-se
da monarquia democrática. Para sustentarem suas pretensões
de fortalecimento do Parlamento e das províncias contra os
postulados coimbrãos, os liberais argumentaram que a socie-
dade brasileira não era invertebrada, porque era representada

263
por um conjunto altivo de proprietários de índole democrática.
As “circunstâncias particulares” do Brasil recomendavam a
adoção de instituições análogas à dos Estados Unidos, ainda
que adaptadas à monarquia. O Frei Caneca sustentava que, se
por um lado “o espírito da Europa” era o “do servilismo e da
escravidão”, o espírito do brasileiro era o “de independência, de
insubordinação e de liberdade extrema” por descender de indí-
genas e europeus emigrados, avessos ambos a qualquer noção de
submissão voluntária. Além desse amor à liberdade, inclinavam
os brasileiros à democracia; à “simplicidade dos seus costumes”;
à “falta das classes salientes da nobreza europeia”; à “impotência
de seu clero”; à “sua localidade entre governos republicanos”; e
à aversão aos três séculos de “escravidão” colonial. Concluindo
que “ideias velhas não podem reger o mundo novo”,40 Caneca
justificava a acomodação do novo Império à forma confede-
rativa de Estado, à adoção do unicameralismo e à rejeição do
veto absoluto do monarca. Depois da abdicação de Pedro I, em
1831, os liberais insistiram em mobilizar o conceito de demo-
cracia enquanto forma de sociedade para justificar as reformas
constitucionais pretendidas. Era o que explicava o senador Diogo
Antônio Feijó em 1835: decorrente da diversidade de condições
em face da sociedade europeia, o caráter democrático da Nação
brasileira criava óbices invencíveis às pretensões aristocráticas
dos velhos coimbrãos. A tentativa de recriar a fidalguia entre nós
era “objeto de riso para o homem sensato, e de estranheza para
o rústico”, que reforçava “o sentimento de igualdade” entre os
brasileiros. Com esse argumento, Feijó advogava a reforma da
Constituição, medida indispensável para “purificar a monar-
quia” dos hábitos aristocráticos do Primeiro Reinado. Somente
assim se chegaria à monarquia democrática, que era monárquica,
“mas sem baixeza, sem a menor sombra de aviltamento no seu
caráter nobre, livre e independente”.41
Com o desaparecimento dos liberais exaltados na segunda
metade da década de 1830, pode-se dizer que durante os trinta
anos seguintes vigorou um quase consenso da elite política

264
em torno do modelo político da monarquia constitucional e
representativa. Esta era entendida como produto de um equi-
líbrio entre o princípio monárquico, expressivo da ordem, da
autoridade, do unitarismo, encarnado pela Coroa, e o princípio
democrático, expressivo, por sua vez, do progresso, da liberdade
e da descentralização, encarnado pela Câmara dos Deputados.
Do ponto de vista partidário, os conservadores encarnariam o
princípio monárquico; os liberais, o democrático. Era esse equi-
líbrio dinâmico que permitiria à monarquia constitucional forjar
o progresso na ordem. Na década de 1850, essa concepção da
dinâmica do regime receberia a chancela da filosofia da história:
num opúsculo, o deputado Justiniano José da Rocha interpre-
tava as vicissitudes da história política do Brasil independente a
partir daquela luta entre o elemento monárquico e o elemento
democrático: este teria prevalecido durante a Regência, e aquele,
no começo do reinado de D. Pedro II. Como resolução àquela
antítese, o autor defendia uma transação entre os princípios, que
poderia ser materializada por um governo de coalizão entre os
dois partidos: era a Conciliação.42 Essa ideia de síntese marcou
as décadas de 1850 e 1860. Assim, depois de saudar “a estrela
radiante da democracia que se levanta, quando o astro da Idade
Média desaparece no ocaso”, o jovem Tavares Bastos recuava em
1862 para consagrar aquela fórmula superadora das antíteses:
“Monarquia e democracia, ordem e liberdade, Constituição e
paz, são as primeiras inscrições de todas as bandeiras.”43
No entanto, é fundamental chamar a atenção para os limites
do conceito liberal de democracia no Brasil, geralmente circuns-
crita ao espaço senhorial graças a uma distinção implícita no
significado da palavra povo, empregada tanto como populus
para se referir à elite, quanto como plebs para designar as
camadas sociais subalternas. Embora não abundem exemplos
de manipulação explícita dos dois significados, alguns podem
ser aqui citados. Em 1831, o deputado moderado Evaristo da
Veiga esclarecia:

265
Quando dizemos povo, claro está que não falamos da massa igno-
rante ou destituída de interesse na ordem social que os demagogos
adulam e de que fazem o objeto de suas especulações; mas sim dos
homens pensantes, honestos e que nada tendo a ganhar na anarquia
olham para qualquer aparência de menos prezo que se note a respeito
da Nação, do seu decoro e prosperidade.44

É possível detectar a mesma cisão nos escritos dos liberais


exaltados durante a década de 1820, que também lutavam
contra as qualificações de desordeiros ou niveladores que lhe
eram assacadas pelos adversários. Quando um “aristocrata
servil” qualificou seu partido como o representante da canalha,
em 1824, o exaltado Frei Caneca protestou: o que queria das
democracias não era o nivelamento, mas tão somente o “espírito
da república”.45 Posição semelhante era a de Cipriano Barata
que, embora obcecado em atacar os privilégios e veleidades do
“partido aristocrático”, jamais empregou, em toda a sua produ-
ção como jornalista, o conceito de democracia. Em 1860, na
Circular aos eleitores de Minas Gerais – o panfleto mais radical
de seu tempo –, Otoni também deixava claro que a democracia
com que sonhava era a “democracia pacífica, a democracia da
classe média, a democracia da gravata lavada, a democracia que
com o mesmo asco repele o despotismo das turbas ou a tirania
de um só”.46 Só a Revolução Pernambucana de 1849 pareceu
escapar a uma definição exclusivamente liberal de democracia, ao
anunciar pretender “o voto livre e universal do povo brasileiro”,
bem como “o trabalho como garantia de vida para o cidadão
brasileiro”.47 Essas foram reivindicações que caíram, contudo,
inteiramente no vazio.
Por fim, na literatura política do último período (1868-1870),
o conceito de democracia apresenta quatro significados. Os dois
primeiros eram meras continuidades do significado do período
anterior e denotavam combate à autonomia do poder monár-
quico e promoção da descentralização política. No primeiro
caso, contra o predomínio do poder pessoal, do imperialismo,

266
do absolutismo, os membros do novo Partido Liberal passaram
a postular a “transformação ou progresso de nossas instituições
no sentido democrático”.48 Mais à esquerda, os radicais exigiam a
abolição do poder moderador, do Conselho de Estado, do Senado
vitalício e da Justiça Administrativa, bastiões da autonomia
do poder monárquico.49 Quando resolveram fundar o Partido
Republicano, dois anos depois (1870), esses radicais reivindica-
ram o título de único “partido democrático”, numa tentativa
de fazer os conceitos de república e democracia passarem por
equivalentes. O objetivo evidente desse expediente retórico era o
de obrigar todos aqueles que se dissessem avançados ou demo-
cratas a abandonarem os compromissos com a monarquia. Daí
seguia também o explícito repúdio do paradigma do governo
misto, classificado como “uma ficção sem realidade”.50
A democracia servia não apenas para rechaçar a autonomia
do poder monárquico, mas também para, mais uma vez, exigir
a descentralização política em proveito das províncias. Em A
Província, o liberal Tavares Bastos anunciava pretender, “como
então queriam os patriotas da independência”, democratizar
nossas instituições; nesse sentido, “o sistema federal” era por
ele considerado “a base sólida de instituições democráticas”.51
A centralização sujeitava os povos a uma espécie de despotismo
mais ou menos dissimulado, que afastava o Estado da sociedade;
por conseguinte, absolutismo e centralização tornavam-se equi-
valentes. Também os radicais criticavam a centralização política,
prometendo conseguir “sem revolução armada, sob a forma
democrática federal, a posição que [lhes] compete no continente
americano”.52 No ano seguinte, já republicanizados, os radicais
chamavam a atenção, em seu manifesto, para o fato de que a
geografia do Brasil já se encarregara “de estabelecer o princípio
federativo antes ainda da ideia democrática”. Ou seja, a vocação
do país para a democracia – e, portanto, para a república e para
a federação – estava escrita na sua própria natureza. Não queria
dizer outra coisa a fórmula do Manifesto Republicano: “Somos
da América e queremos ser americanos.”53

267
Havia, porém, dois significados propriamente novos do
conceito que surgiam no final da década de 1860: democracia
enquanto forma político-eleitoral e democracia como sociedade
igualitária. A primeira implicava estender o direito de voto para
além do círculo preexistente de cidadãos; a segunda, a ampliação
do círculo de cidadãos na esfera civil pela extinção da escra-
vidão. Em nome de ambas as causas, Tavares Bastos repetia
que a sociedade brasileira era democrática: “O sentimento da
igualdade domina aqui até com os seus habituais excessos.” A
diferença é que, agora, aquele caráter democrático justificava
uma reforma eleitoral capaz de “avigorar o elemento democrático
da Constituição” pela instituição da eleição direta.54 Também os
radicais pediam “o sufrágio direto e generalizado”.55 Do mesmo
modo, a extinção da escravatura também estava inscrita nos
principais programas dos liberais entre 1868 e 1870, fossem
eles moderados ou radicais. O prócer liberal Nabuco de Araújo
explicava: “Do falseamento da eleição derivam-se todas as nossas
dificuldades políticas, bem como do trabalho escravo todos os
nossos atrasos industriais.”56 Os radicais também assinalaram,
entre os seus propósitos, aquele de substituir “o trabalho escravo
pelo trabalho livre”.57
Todavia, forçoso é reconhecer a incipiência e a ambiguidade
com que emergiram aquelas duas novas dimensões da demo-
cracia. Ao reivindicarem a reforma eleitoral em nome da demo-
cracia, nem os liberais, nem os radicais, nem os republicanos se
comprometeram com o sufrágio universal. Para Tavares Bastos
o sufrágio universal era apenas um “belo ideal das antigas demo-
cracias, para que tendem as modernas, mas que estava e ainda
está distante de nossa pátria, onde a ignorância e o fanatismo
por toda a parte disputam o terreno à civilização”.58 Embora a
generalização do sufrágio constasse de sua plataforma política,
o tema não recebeu qualquer ênfase por parte dos radicais. Pior:
quando eles passaram ao republicanismo, o tópico referente à
extensão do sufrágio simplesmente desapareceu – como se o
repúdio da monarquia já fosse, por si mesmo, prova bastante

268
de radicalismo. No que tange à abolição da escravatura, era
ainda maior a debilidade do conceito de democracia. Embora o
Partido Liberal incluísse a progressiva emancipação dos escravos
em seu programa de 1869, muitos de seus membros se opuseram
ao projeto de Lei do Ventre Livre apresentado pelo gabinete
conservador do Visconde do Rio Branco, alegando que se tratava
de uma imposição da Coroa. Como se percebe, a abolição era
para a maioria do partido um tópico secundário: a prioridade era
criticar o “poder pessoal” que o alijara do poder. Além disso, na
medida em que o Brasil era o último país independente e cristão a
praticar o escravismo, a extinção desse regime se prendia menos
ao problema da democracia do que ao do imperativo de civilizar
o país, ou de melhorar a sua imagem internacional.59 A situação
não era melhor do lado dos radicais: embora “a substituição do
trabalho servil pelo trabalho livre” figurasse no programa do
partido, o tópico não foi abordado em nenhuma das conferências
públicas por eles organizadas. Quanto aos republicanos, sequer
mencionaram o assunto em seu manifesto.
Assim, o que prevalece durante todo o período aqui exami-
nado é uma definição da democracia como liberdade e quase
nunca como igualdade. Ela era quase sempre entendida implici-
tamente como um estágio final de liberalização da sociedade, de
cujo governo o elemento monárquico e a centralização política
poderiam ser neutralizados ou dispensados. Do mesmo modo, a
universalidade aparente do conceito de povo, subjacente àquele
de democracia, estava restrita ao âmbito do populus, ou seja, da
parcela esclarecida e abastada da população. Enquanto forma
igualitária, as referências à democracia se faziam exclusivamente
à questão do “privilégio monárquico”, porque a comunidade
política, que mobilizava aquele conceito, sempre se representava
como socialmente democrática. Assim, a democracia raramente
era descrita no período em termos afirmativos: seu projeto se
resumia na manutenção do status quo, desembaraçado apenas
do “poder pessoal” e da centralização política. Na incapacidade
ou impossibilidade de figuração do povo soberano enquanto ente

269
político, seja pela tímida projeção do populus, seja pela evidência
do atraso e alijamento da imensa plebs, foram “as províncias”,
genericamente referidas, que acabaram por representar concreta-
mente o papel de “povo”. Daí que a democracia, entendida como
regime da participação política do povo soberano, acabasse, na
prática, interpretada somente como regime não monárquico de
autogoverno das oligarquias provinciais. A análise do conceito
de democracia no período assinalado contribui assim para escla-
recer o pensamento político hegemônico da Primeira República,
cujo advento materializou aquele ideal “democrático” por meio
de um regime de federalismo centrífugo fortemente oligárquico.

NOTAS
1
Raphael Bluteau, Diccionário portuguez & latino, Lisboa, Officina de Paschoal
Silva, 1712, p. 1137.
2
Tomás Antônio Gonzaga, Tratado de direito natural, Keila Grinberg (org. e
apr.), São Paulo, Martins Fontes, 2004, p. 135-137.
3
Apud István Jancsó, Na Bahia contra o império: história do ensaio de sedição
de 1798, São Paulo, Hucitec, 1995, p. 141.
4
Wilson Martins, História da inteligência brasileira, São Paulo, Cultrix, 1974,
p. 505.
5
Apud Luciano Raposo de Almeida Figueiredo, O império em apuros: notas para
o estudo das alterações ultramarinas e das práticas políticas no império colonial
português séculos XVII e XVIII, em Júnia F. Furtado (org.), Diálogos oceânicos,
Belo Horizonte, Editora UFMG, 2001, p. 341.
6
Apud Jancsó, Na Bahia contra o império, p. 124.
7
Apud Evaldo Cabral de Mello, A outra independência: o federalismo pernam-
bucano de 1817 a 1824, São Paulo, Editora 34, 2004, p. 38-39.
8
Apud Maria Beatriz Nizza da Silva, A primeira gazeta da Bahia: Idade d’Ouro
do Brasil, São Paulo, Cultrix, 1978, p. 159.
9
Antonio de Moraes Silva, Dicionário da língua portuguesa, recopilado dos vo-
cabulários impressos até agora, e nesta segunda edição novamente emendado,
e muito acrescentado, Lisboa, Tipografia Lacerdina, 1813, p. 453.
10
Hipólito José da Costa, Antologia do Correio Braziliense, Barbosa Lima Sobrinho
(org. e sel.), Rio de Janeiro, Editora Cátedra, 1977, p. 233.
11
Anais da Assembleia Constituinte Brasileira de 1823 (AACB), Fala do Trono,
3-V-1823.

270
12
Ibidem, 16-V-1823.
13
Ibidem, 26-VI-1823, grifo nosso.
14
Ibidem, 15-VII-1823.
15
Ibidem, 04-V-1823.
16
Isabel Lustosa, Insultos impressos: a guerra dos jornalistas na independência –
1821-1823, São Paulo, Companhia das Letras, 2000, p. 348.
17
Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves, Corcundas e constitucionais: a cultura
política da independência (1820-1822), Rio de Janeiro, Revan, 2003, p. 331.
18
Lustosa, Insultos impressos, p. 261.
19
AACB, Fala do Trono, 17-V-1823.
20
Visconde de Cairu (José da Silva Lisboa), Manual de política ortodoxa, Rio de
Janeiro, Tipografia Nacional, 1832, p. 137.
21
Apud Lustosa, Insultos impressos, p. 211.
22
D. Pedro I, Proclamações, cartas, artigos, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional,
1972, p. 67.
23
Januário da Cunha Barbosa, Gonçalves Ledo, Revérbero Constitucional Flumi-
nense, Escrito por Dois Brasileiros Amigos da Nação e da Pátria, Rio de Janeiro,
Tipografia Nacional, 1822, p. 345.
24
Anais do Senado do Império do Brasil, 27-VI-1832.
25
Barbosa, Ledo, Revérbero Constitucional Fluminense, p. 111.
26
AACB, Fala do Trono, 25-V-1823.
27
Francisco de Paula de Almeida e Albuquerque, Breves reflexões retrospectivas,
políticas, morais e sociais sobre o Império do Brasil e suas relações com outras
nações, Paris, Tipografia de W. Remquet & Cia, 1854, p. 68.
28
AACB, Fala do Trono, 6-XI-1823.
29
Ibidem, 16-V-1823.
30
Martins, História da inteligência brasileira, p. 105.
31
Costa, Antologia do Correio Braziliense, p. 155.
32
Visconde do Uruguai (Paulino José Soares de Sousa), Ensaio sobre o direito
administrativo, 2. ed., Rio de Janeiro, Ministério da Justiça, 1960, p. 483.
33
Apud Silva, A primeira gazeta da Bahia, p. 181.
34
Marcello Otávio Basile, Ezequiel Corrêa dos Santos: um jacobino na corte
imperial, Rio de Janeiro, FGV, 2001, p. 50.
35
Diogo Antônio Feijó, Diogo Antônio Feijó, Jorge Caldeira (org., int. e notas),
São Paulo, Editora 34, 1999, p. 64.
36
Apud Wlamir Silva, Liberais e povo: a construção da hegemonia liberal moderada
na província de Minas Gerais, São Paulo, Hucitec, 2009, p. 168.

271
37
Frei Joaquim do Amor Divino Caneca, Frei Joaquim do Amor Divino Caneca,
Evaldo Cabral de Mello (org. e int.), São Paulo, Editora 34, 2001, p. 452.
38
Ibidem, p. 502.
39
Cipriano Barata, Sentinela da liberdade e outros escritos, Marco Morel (org. e
ed.), São Paulo, Edusp, 2008, p. 209.
40
Caneca, Frei Joaquim do Amor Divino Caneca, p. 141.
41
Feijó, Diogo Antônio Feijó, p. 135.
42
José Justiniano da Rocha, Ação, Reação e Transação, em Raimundo Magalhães
Jr., Três panfletários do Segundo Reinado, São Paulo, Companhia Editora Na-
cional, 1956, p. 127.
43
Aureliano Candido Tavares Bastos, Os males do presente e as esperanças do
futuro, 2. ed., Rio de Janeiro, Companhia Editora Nacional, 1976, p. 41.
44
Basile, Ezequiel Corrêa dos Santos, p. 53.
45
Caneca, Frei Joaquim do Amor Divino Caneca, p. 427.
46
Teófilo Otoni, Circular aos eleitores de Minas Gerais, em Basílio Magalhães, A
“circular” de Teófilo Otoni, separata do t. LXXVIII, p. 2, Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), Rio de Janeiro, Imprensa Nacional,
1916, p. 78.
47
Apud Vamireh Chacon, História dos partidos brasileiros: discurso e prática dos
seus programas, 2. ed., Brasília, UnB, 1985, p. 198.
48
Tavares Bastos, Os males do presente e as esperanças do futuro, p. 14.
49
Américo Brasiliense, O programa dos partidos e o segundo império, Rio de
Janeiro, Fundação Casa de Rui Barbosa, 1979, p. 33.
50
Apud Chacon, História dos partidos brasileiros, p. 251.
51
Aureliano Candido Tavares Bastos, A província, Rio de Janeiro, Garnier, 1870,
p. 65.
52
Ibidem, p. 8.
53
Apud Chacon, História dos partidos brasileiros, p. 270.
54
Tavares Bastos, Os males do presente e as esperanças do futuro, p. 143.
55
Brasiliense, O programa dos partidos e o Segundo Império, p. 38.
56
José Tomás Nabuco de Araújo, O centro liberal, Vamireh Chacon (int.), Brasília,
Senado Federal, 1979, p. 49.
57
Apud Brasiliense, O programa dos partidos e o Segundo Império, p. 33.
58
Tavares Bastos, Os males do presente e as esperanças do futuro, p. 143.
59
Nabuco de Araújo, O centro liberal, p. 49.

272
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introdução de Alberto Venâncio Filho. Brasília: Câmara dos Deputados,
1979. p. 470.

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MARCO A. PA M P L O N A

PÁTRIA

As transformações sofridas pelo vocábulo pátria no mundo


ibérico, em especial no período que vai de meados do século
18 à metade do século 19, associaram-se inevitavelmente às
Revoluções Atlânticas e, mais especificamente, à conjuntura
das guerras napoleônicas na península. Observou-se nesse
momento, quando do recurso à linguagem de um patriotismo
republicano no enfrentamento dos invasores, o forjar-se de
um conceito de pátria baseado em princípios de liberdade e
bom governo.
Não mais referida apenas à dimensão religiosa do patrio-
tismo antigo, a terra pátria, identificada sempre ao lugar e/ou
comunidade de origem, vinha associada, desde a modernidade,
mais ao estado da sociedade a que se pertencia, onde podia e
devia haver leis voltadas para o interesse de todos e onde um
governo atento ao bem comum deveria existir e fazer-se prote-
tor o suficiente ao ponto de suscitar um intenso amor pátrio
por parte dos seus filhos. Semelhante ao amor nutrido pelos
pais, esse amor do cidadão pela pátria apresentava-se, ademais,
virtuoso e racional, expresso em atos de serviço (officium) e
cuidado (cultus).1
O Dicionário do padre Raphael Bluteau, em seu tomo VI,
publicado em 1720,2 mantinha, em início do século 18, ambos
os sentidos antigos lembrados acima. A pátria era “a terra,
vila, cidade, ou reino, em que se nasceu”. E, completava, deveria
“ama[r] cada um a sua pátria como origem do seu ser, e centro
do seu descanso”. Assim,

a pátria de Ulysses, não era Roma, cabeça do mundo, e trono de


glória mundana, nem era sua pátria Atenas, honra da Grécia, e cadeira
de Minerva. Pátria deste famoso varão era Ithaca, ilhéu do mar Jonio,
estéril, e deserto, saiu dele para a guerra de Troia, em que militou dez
anos, e depois de outros dez anos de navegação foi deixar a ossada
no seu penedo.

“O nome Pátria” continua, “se derivou de Pater, porque ela


é nosso pai, pronuncia-se com terminação feminina, porque
também é nossa mãe, e por isso como o pai, e mãe a devemos
estimar, e amar”.3
A presença da dimensão política aparece numa única frase,
ao final do verbete, em que a ideia de sacrifício pela pátria
é mencionada como sinônimo do sacrifício pela res publica:
“Expor a vida para o bem da pátria. Vovere caput pro salute
Reipublica. Cic.”4 E, ela pode ser vista, igualmente, no trata-
mento de outros termos correlatos, como no caso da definição
que nos dá dos patrícios ou “padres da pátria”.5 O uso do termo
pátria continuou enfatizando, em fins do século 18, a dimensão
da localidade, do governo local ligado às vilas ou cidades, “ajun-
tamentos de homens sociavelmente congregados”, “habitadas
de homens que vivem com sociedade e subordinação”.6 Era
com esse governo e suas leis que se identificavam os do mesmo
país, isto é, os “paisanos”, ou conterrâneos da mesma pátria:
“Fulano, meu paisano. Civis meus. Cic. Popularis meus. Cic.
Conterraneus meus.”7
A partir de meados do século 19, outros lexicógrafos pouco
acrescentaram às definições de Bluteau. É o caso de Antonio de
Moraes Silva que, em 1858, num minúsculo verbete sobre a pátria,
definiu-a como “a terra de onde alguém é natural”. E, quando
menciona, logo a seguir, o adjetivo “pátrio”, percebe-se que este já

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aparece associado ao termo nação: fala-se “da pátria, os pátrios
lares, o direito pátrio de cada nação”.8 Também Eduardo Faria,
em 1859, em seu Diccionario da lingua portugueza e diccionario
de synonimos, não fez mais que reiterar as definições anteriores
ao mencionar o amor à pátria e o patriotismo: o primeiro “é um
sentimento natural”, “o apelo que temos naturalmente ao solo
em que nascemos, e aos objetos que nos recordam as primeiras
impressões de infância etc.”; o segundo “é uma virtude”, “é o
efeito do amor da pátria; é o ardente e efetivo desejo de servir e
defender a pátria, e de contribuir para a sua prosperidade, glória,
e engrandecimento”.9
Em todos esses casos, nota-se a crescente politização sofrida
pelo termo, acentuada, especialmente, ao longo das três primei-
ras décadas do século 19. No mundo ibérico como um todo,
na península e nas Américas, assistiu-se ao afastamento das
lealdades do Antigo Regime e à progressiva ultrapassagem das
lealdades meramente locais, do vilarejo ou município. Com a
subsunção da pátria ao Estado-nação e sua articulação à lingua-
gem da tradição republicana, pode-se identificar também o início
da passagem de liberdades associadas a homens inseridos em suas
corporações e strata específicos – isto é, liberdades associadas
apenas ao bem comum destes – para a liberdade (o singular
coletivo) associada à res publica, ou seja, ao bem comum de
indivíduos abstratos, aí incluídos os que passaram a querer se
pensar enquanto cidadãos e a querer agir como tais.
No cenário da América portuguesa, essa transformação
do termo pátria pode ser acompanhada por meio de muitos
registros. Para tratar de alguns deles, e assim exemplificar o
dito acima, selecionamos três momentos marcantes na história
política daquela realidade espacial de contorno político ainda
bastante indefinido, que os contemporâneos designavam com a
expressão genérica de “continente do Brasil” e em relação à qual
o longínquo Norte amazônico permanecia estranho.
Essas três conjunturas políticas, bastante demarcadas,
encontram-se referidas:

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a) Em primeiro lugar, aos últimos 30 anos do século 18,
quando, em meio às habituais revoltas e insurreições
coloniais clássicas (os conhecidos motins de soldados
reclamando o atraso dos soldos; os saques aos arma-
zéns, em época de carestia de víveres; as contestações
de excessos fiscais e as constantes redefinições de
hegemonias entre os poderes locais) desenvolveram-
-se novas rebeldias ou sedições, bem expressadas
pelos conhecidos eventos da Inconfidência nas Minas
Gerais (1789) e da Conjuração Baiana (1898);
b) Em segundo, ao momento das transformações polí-
ticas mais acentuadas que levariam à independência
– isto é, os primeiros 30 anos do século 19. Iniciado
com as invasões napoleônicas à península e seguido
das profundas mudanças desencadeadas pelas revo-
luções liberais em ambos os lados do Atlântico, esse
momento identificou-se ao pôr-se em movimento ou
à soltura do complexo “mosaico de pátrias”10 que
então compunham o Império luso-brasileiro. Com
uma defasagem de quase uma década em relação ao
doceanismo hispânico, os ventos liberais bafejaram
na América portuguesa somente ao final do período
joanino (1808-1821), iniciado com a transmigração
da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro e que
teve como ápice a elevação do Brasil à condição de
Reino Unido a Portugal e ao Algarve, em 1815. Com
a instituição das Cortes Extraordinárias em Lisboa,
porém, novas mobilizações ocorreram na colônia e
rapidamente conduziram às independências, a partir
de 1822, e a um primeiro ensaio de soberania política,
sob o instável reinado de Pedro I, que se estendeu
até 1831. Ainda que o “mosaico de pátrias” brasí-
licas continuasse em grande parte subordinado ao
longo da década de 1820 ao novo Império do Brasil,
representado pelo governo pedrino, as tentativas de

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manutenção das autonomias prévias de certas cida-
des provinciais e a busca de outras independências
em que circularam projetos políticos mais radicais
não puderam ser sustadas. As insurreições no Pará
(1822) e Maranhão (1823), na Bahia (1822-1823),
e a Revolução em Pernambuco (1824), que culmi-
nou na fugaz Confederação do Equador, foram
expressões notáveis desses esforços. No período,
entretanto, apenas uma dessas revoltas mostrou-se
bem-sucedida – a da Cisplatina, onde a derrota, em
1828, das tropas imperiais levou à criação imediata
da República Oriental do Uruguai; e
c) Em terceiro e último lugar, ao tumultuado período
das Regências, de 1831 a 1840, iniciado com a
abdicação de D. Pedro I e marcado por importan-
tes medidas político-administrativas que acabaram
favorecendo enormemente a autonomia das elites
regionais. Dessas medidas, as mais importantes, as
que criaram condições políticas mais estáveis para
negociações futuras, foram: a criação da Guarda
Nacional (1832), o Código do Processo Criminal
(1832) e o Ato Adicional à Constituição de 1824
(1834). A década viu-se também caracterizada pela
irrupção de levantamentos armados nas capitais – os
levantes da Ilha das Cobras e da Sociedade Militar
no Rio de Janeiro, por exemplo –, que tiveram “a
tropa e o povo” como protagonistas;11 e, sobretudo,
pelo aumento em intensidade das revoltas e insurrei-
ções nas províncias, entre 1831 e 1848, muitas delas
com demandas separatistas. Dentre esses acirrados
conflitos envolvendo as elites dissidentes de diferen-
tes províncias do Império do Brasil destacaram-se,
ao extremo Norte, a Cabanagem (no Pará, 1835-
1840), a Sabinada (Bahia, 1837-1838) e a Balaiada
(Maranhão, 1838-1840). Em todas, foi bastante

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notável o envolvimento de setores médios e popula-
res, com a participação dos chamados “homens do
comum”, engrossados pela mobilização de homens
livres e pobres, libertos e, por vezes, até escravos. E,
para além disso, explodiu nas províncias do Sul um
novo movimento republicano, desencadeando talvez
a mais feroz, senão a mais longa revolta armada do
período. Conhecida como a Farroupilha ou “Guerra
dos Farrapos”, essa insurreição durou dez longos
anos (1834-1845) até ser derrotada pelas forças do
imperador.
Na análise de alguns discursos políticos importantes produ-
zidos nessas três conjunturas, percebe-se a força da linguagem
do patriotismo nas terras brasílicas. A sua politização inicial era
sentida nas décadas finais do século 18; sua maior e derradeira
transformação efetuou-se ao longo das primeiras décadas do
século 19, quando a expressão passou a ser utilizada em meio às
revoluções liberais e movimentos de independências em curso,
e pôs-se a serviço da busca de soberania política; e, ao final, já
em direção a meados do século 19, ocorreu a crescente aproxi-
mação do conceito de pátria ao de nação. Este último momento
esteve em consonância com a explicitação progressiva de uma
nova liberdade pactuada, a que daria sentido ao novo Império
do Brasil que, então, se consolidava.
Os registros deixados pelas autoridades e pelos revoltosos
sobre as insurreições e movimentos revolucionários que atin-
giram as províncias brasílicas nessas diferentes épocas, as falas
dos deputados das duas partes do Reino português nas sessões
das Cortes Gerais reunidas em Lisboa, em 1822, os editoriais
publicados nos principais jornais do Rio de Janeiro, por ocasião
da Convocação de Cortes Constituintes no Brasil e do juramento
ao imperador feito pelas Câmaras e Juntas nas províncias, e o
texto das leis e regulamentos criados durante o período das
Regências são alguns dos discursos políticos que utilizamos. Em
que pese as suas distintas abrangências e naturezas, destaca-se em

280
todos um denominador comum: a ordem como preocupação dos
dirigentes identificados aos homens de condição daquela socie-
dade. Ao longo das cambiantes conjunturas que todos estavam
experimentando, e independentemente de posições políticas mais
ou menos liberais assumidas, esses homens foram protagonistas
nos eventos. Em suma, foi dentro dos marcos de fundação dessa
nova liberdade (no singular) que a ressignificação do termo pátria
e sua afirmação como conceito acabaria se dando.
É preciso lembrar que as então conhecidas pátrias na América
portuguesa eram as que haviam resultado da própria coloniza-
ção e de suas transformações ao longo de quase três séculos.
Vinham identificadas às antigas vilas e cidades onde haviam
sido estabelecidas as primeiras Câmaras para responder pela
justiça, fazenda e milícias frente ao poder régio. Desse modo,
constituíam um espaço de experiência privilegiado para a atua-
ção da “nobreza da terra”12 na sua relação com os “homens do
comum” de suas províncias. Eram o espaço por excelência dos
“homens de condição”, detentores de prestígio e posição social
na ordem colonial, resultantes de um amálgama de patrimônios
ao mesmo tempo tangíveis (isto é, associados à propriedade de
terras, aos escravos, rebanhos, redes de comércio etc.) e intangí-
veis (o cabedal de honras, mercês e prestígio, que lhes franqueava
o acesso à esfera de gestão do Estado).
Os órgãos administrativos e judiciários locais construídos na
colônia variaram muito de região para região, aplicando cada
qual ao seu modo o conjunto de leis presentes no livro V das
Ordenações Filipinas, as quais vigiam no Brasil desde 1603. A
maneira como distintas abrangências – a atlântica, a portuguesa,
a brasílica e a local – organizaram hierarquias e diferenças na
colônia, a forma como tais instâncias se relacionaram, a maior ou
menor importância das atividades econômicas que desenvolviam
entre si e a composição das respectivas populações das províncias
(mais densas ou rarefeitas e com maior ou menor proporção
de população livre em comparação com a escrava e indígena)
engendraram sempre variantes muito diversas desses governos

281
locais. A essas polities, chamadas aqui, desde o início, de “pátrias
luso-americanas” ou “brasílicas”, se identificaram os que, não
raras vezes, se indispuseram contra a Corte nas províncias, se
fazendo conhecer como patriotas – os pernambucanos, mineiros,
paulistas e outros. Em alguns casos, em momentos deveras extra-
ordinários, elites locais e setores populares podiam, por vezes, se
aproximar; mas isso só ocorria em tempos de turbulência política
e apenas temporariamente. Ao fim e ao cabo, clivagens outras
continuariam a separar os “homens do comum” daqueles ditos
“de condição” e acabariam inviabilizando a concretização da
ideia de que um bem comum e uma só liberdade deveriam ser
partilhados entre todos.
Qual fora o real significado de patriota para os contempo-
râneos em cada uma daquelas conjunturas especiais que apon-
tamos? Por que se havia de tornar importante a manifestação
dessa identidade local, particularmente no segundo momento
por nós sublinhado – o das independências? O que diferenciou
o uso do termo pátria no contexto do Império luso-brasileiro, ou
do Antigo Regime, do seu uso após a independência, nos tempos
das várias “pacificações” empreendidas contra as manifestações
liberais consideradas exacerbadas pelo Império brasileiro na
década de 1820? Mais ainda, qual o seu significado no tempo
das Regências, em meio às novas medidas liberalizantes e às
contestações regionais radicais amplificadas daquele período,
algumas empunhando a bandeira separatista?
Foi em fins do século 18, com o surgimento de novas rebeldias
ou sedições – como nos eventos de Minas Gerais (1789) e Bahia
(1798) –, que a própria forma de organização do poder tornou-se
alvo de críticas ao ponto de se conceber a possibilidade de sua
substituição por uma outra ordem. Os objetivos e motivações
que puseram os homens em movimento naqueles dois eventos e
o conjunto de práticas de natureza subversiva que engendraram,
diferentemente do ocorrido quando das sublevações coloniais

282
tradicionais, anunciavam a ideia de revolução, ao menos
enquanto possibilidade.
A utilização do termo revolução em meio aos ecos da
Revolução Americana e da Revolução Francesa no mundo
atlântico revelava a presença de um certo “ensaio consciente
de instaurar uma nova ordem”. Tais sedições de fins do século
vinham associadas à discussão sobre um novo modo de gestão
da res publica, não mais buscando reordenar as condições opera-
tivas vigentes, visando à restauração de uma ordem perdida.
Tratava-se de um novo significado de liberdade que, entendido
como condição de igualdade, acabava chocando-se violentamente
com a “matriz tradicional” (do termo), que até então via nas
liberdades (no plural) a afirmação tão somente das “desigualda-
des” e privilégios vigentes. A veiculação das ideias de revolução
e liberdade com seus novos significados tornou-se tanto mais
perigosa quando, no contexto da sedição de 1798, deixou de
vir circunscrita ao universo dos homens livres (já ampliado e
bastante heterogêneo, de per si) e passou a contar, ainda que no
limite, com a participação de escravos.13
São hoje conhecidos, por meio das descrições que estudiosos
fizeram desses eventos, o pensamento e o cotidiano de muitos
dos sediciosos. Percebe-se que a participação de “homens do
comum” ao lado de “homens de condição” adensou-se. Para a
Bahia, foram valiosas neste sentido as anotações deixadas pelo
soldado granadeiro Luís Gonzaga das Virgens e Veiga, perso-
nagem atípico na sedição de 1798, que acabou sendo trazido
para o centro dos acontecimentos, em função de uma devassa.
No caso da sedição carioca, ganharam importância as notas
encontradas nos pertences de Manuel Inácio da Silva Alvarenga,
preso quando tentava restaurar a Sociedade Literária do Rio
de Janeiro em 1794. Nessas notas vinham esboçados os pontos
principais do novo estatuto e revelava-se neles o rompimento das
formas tradicionais de sociabilidade de letrados, com afirmações
como a que “não deve haver superioridade alguma no seu [da

283
Sociedade Literária] interior” e que a Sociedade “será dirigida
igualmente por modo democrático”.14
Mas não nos deteremos mais nesta primeira conjuntura,
marcada pelo reforço das identidades locais e sua maior politi-
zação. Como dissemos, foi ao longo do período joanino, diante
da “maior proximidade” ao poder da Coroa sediada no Rio de
Janeiro, que a irrupção de revoltas em algumas províncias adqui-
riu conotações mais diferenciadas. A Revolução Pernambucana
de 1817, por exemplo, constitui um momento particularmente
rico para examinarmos a experimentação e atribuição de novos
sentidos ao termo pátria.
A inédita situação política criada pela mudança da Corte
para o Rio de Janeiro e a elevação do Brasil à condição de Reino
Unido iriam repercutir, de forma diferenciada, sobre aquelas
múltiplas identidades locais. Após o falecimento da rainha D.
Maria em 1816, o regente D. João foi aclamado rei de Portugal,
na própria cidade do Rio de Janeiro, o que acabou por magni-
ficar mais ainda os benefícios da nova situação política para as
províncias do Sudeste.15 Não se tratava apenas de dar continui-
dade à tendência de crescimento da região, observada desde fins
do século 18, quando da administração de D. Rodrigo de Souza
Coutinho, por ocasião do boom da mineração. Tratava-se de
consolidar os novos privilégios auferidos, os quais, entremea-
dos às práticas das elites provinciais cada vez mais fortalecidas
no Sudeste, se fariam enraizar na região. Diferentemente foi a
sorte das províncias do Norte, ressentidas pelo declínio econô-
mico e pouco beneficiadas no período. Estas haviam perdido a
comunicação mais direta com Lisboa, delas bem mais próxima
se levado em conta o tempo de viagem, quando a urbe lusitana
deixou de ser a sede do reino.
Esse contexto maior produziu o cenário para a efervescência
revolucionária pernambucana. A politização do termo pátria,
fortemente presente nos registros sobre 1817, sublinhava a perda
de eficácia de velhas fórmulas identitárias do Antigo Regime e
o advento de novas questões associadas ao tempo mais rápido

284
das revoluções. Isso era percebido na perspectiva das autoridades
constituídas, como por exemplo, a do governador Caetano Pinto
de Miranda Montenegro, quem, numa tentativa fracassada de
aplacar os ânimos exaltados no Recife às vésperas da revolta,
conclamava os “nascidos em Portugal” e os “nascidos no Brasil”
à harmonia por serem “todos portugueses, todos vassalos do
mesmo soberano, todos concidadãos do mesmo reino unido”.16
Também o discurso entre os revoltosos – como era o caso do
inflamado carmelita, o Frei Caneca – fazia uso de categorias
semelhantes,17 embora defendesse posições bem diferentes das
do governador. Criticando o espírito de rivalidade que “traz[ia]
inquietos em todo Brasil os portugueses europeus e os lusos
indígenas do mesmo Brasil”, Caneca constatou ser esse “mau
humor” mais forte em Pernambuco. A rivalidade que rebentara
com ímpeto em 1710 e se mostrara “com toda ostentação e ufania
em 1817” fazia-se presente numa verdadeira onda que “vai
minando e solapando, quanto pode, as bases da sociedade”.18
Em 1822, ano em que escreveu suas Dissertações..., e comen-
tou o espírito de 1817, Caneca mencionou a “falsa ideia” que
então se tinha de pátria – entendida apenas como “aquele lugar
em que se viu a primeira luz do dia” –, a qual levara os “lusos
europeus e os estabelecidos nesta província”, em particular,
a considerarem o território do Brasil apenas como fonte de
enriquecimento, por isso “não amando o país em que estão
estabelecidos” e nem tomando os seus naturais como irmãos
compatriotas. Os lusos europeus, afirmava, negaram-lhes o
direito aos lugares e empregos úteis da nação, reputando-os
inábeis para os mesmos no seu país natal. Tornaram o pernam-
bucano estigma da indignidade e inaptidão, na sua pátria e fora
dela, no reino. Os da terra, por sua vez, reagiram à ação dos que
ali chegavam, vendo-os sempre como “estranhos ao seu país”,
meros “desfrutadores da sua riqueza e fertilidade”. Em oposição
a essas gastas identidades pretéritas e aos conflitos que vez por
outra ensejavam, Caneca defendeu a ideia de que

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ser natural de um país é o efeito de um puro acaso, mas ser cidadão
de um lugar em que não nascemos, é uma ação do nosso arbítrio, é
uma obra da nossa escolha, um fato que, mais do que outro qualquer,
prova ser existência da liberdade, a mais digna qualidade do homem,
e que se distingue plenamente das bestas.19

Dava preferência, assim, ao termo “pátria de direito” sobre


“pátria de lugar”, e enfatizava a preeminência dos interesses a
defender doravante, em caso de conflito entre ambas as pátrias.
Nas suas palavras:

É, portanto, levado do sincero desejo da perfeição dos meus compa-


triotas, a fim de evitar para o futuro as ruinosas consequências de ideias
inexatas e falsos juízos (...) que eu, a despeito da minha insuficiência,
tomo esta pequena tarefa de, nas horas vagas de meus deveres públicos,
elucidar uma matéria, em que vejo não se pensar com a devida retidão.

Recordando que não escrevia para “os homens letrados; sim para
o povo rude e que não tem aplicação às letras (...)”, afirmava que
“a falsa ideia que se tem feito da pátria do cidadão tem sido uma
das maiores causas da rivalidade entre os europeus estabelecidos
no novo mundo e os indígenas dele”.20
Nas passagens citadas, fica evidente a diminuição de ênfase em
relação aos sentidos de patrius (como terra dos antepassados), ou
pagus (como paese ou pays, identificado ao campo ou à aldeia de
origem), e a consequente modificação da carga telúrica, moral e
afetiva inicial do vocábulo. Este se viu ampliado, modificou-se e
ganhou os contornos mais precisos de uma natureza política. A
“pátria de direito”, diria respeito, agora, tanto aos portugueses
indígenas de Pernambuco, como aos portugueses europeus nele
estabelecidos, em função dos interesses coletivos que ambos
desejariam preservar.
Uma conjuntura bem mais desestabilizadora anunciou-se a
partir da vitória liberal em Portugal. Com o estabelecimento das
Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa em fins de

286
1821 e a decisão de fazer retornar o príncipe regente D. Pedro I
a Lisboa, as elites até então fortalecidas do eixo do Sudeste e das
províncias circunvizinhas viram sua autonomia ameaçada e sua
importância correndo o risco de ser drasticamente diminuída.
O próprio vintismo, entretanto, acabou abrindo-lhes o caminho
para a discussão ampliada do tema das liberdades pactuadas ou
do contrato social que deveria ser instalado no reino do Brasil,
criando as condições para que pensassem as diferentes formas
de torná-lo corpo político autônomo.
Esse novo e multifacetado debate manifestou-se inicialmente
no interior das próprias Cortes portuguesas, consideradas pelos
liberais o fórum máximo e mais legítimo da ordem política
monárquica daquele momento, e logo passou às Câmaras e
Juntas Provisórias (nestas últimas também incentivadas pelas
Cortes), permeando as eleições provinciais e locais. Aflorando
em praticamente todos os conflitos e insurreições da década de
1820, tais debates foram expressos, à época, por meio de uma
vasta produção de panfletos, periódicos e pasquins. Nesses
novos espaços de sociabilidade puderam circular livremente as
categorias com as quais os contemporâneos operavam e davam
sentido ao campo político. Os veículos impressos discorriam
sobre o que compreendiam ou deveriam compreender os homens
de condição e os homens do comum, por constituição, represen-
tação, cidadão, deputado, monarquia e, é claro, pátria e nação.
A adoção do constitucionalismo liberal coincidiu com esse novo
momento de intensa reativação e politização da linguagem do
patriotismo na América portuguesa.
As falas retiradas dos debates nas Cortes Gerais e Extraordinárias
da Nação Portuguesa durante o mês de setembro de 1822, quando
delas ainda participavam os deputados brasileiros de importantes
províncias, contêm antecipações de algumas das ressignificações
que veremos operadas ao longo da década. Em meio às ambi-
guidades comuns das enunciações e atos de fala proferidos,
observou-se, por exemplo, a maior demarcação do termo pátria,

287
paralelamente ao reforço de outros conceitos por vezes tornados
suas sinonímias – o caso de nação e reino.
Acreditava-se que a partir do momento em que se exigisse a
retirada da Corte portuguesa do Rio de Janeiro, as províncias
brasílicas voltariam à submissão às Cortes Gerais. Os nascidos
no Brasil oscilaram, então, entre a defesa das prerrogativas da
pátria, as quais no seu entendimento deveriam ser resguardadas,
e o pensar-se ou sentir-se português, uma condição – também é
importante lembrar – entendida pelos ilustrados como natural
e elogiosa, sinônima mesmo da cobiçada civilização europeia
reivindicada na colônia pelos grupos sociais mais abastados
ligados ao comércio e à produção em geral, identificada à defesa
e manutenção de interesses há muito estabelecidos. A nação era
percebida pelos liberais vintistas pautada na ideia de uma unidade
atlântica, na concepção de uma única identidade nacional entre
as diferentes partes componentes do mundo português. Falava-se,
pois, da “Nação inteira, [d]os Portugueses de ambos os hemisfé-
rios”, lembrando-se que “nas Bases da Constituição (...) a nação
portuguesa é uma derramada por ambos os hemisférios”.21
Mas, a propalada unidade da nação ou reino começava a
ganhar nuances cada vez mais particularizadas nas falas dos
delegados do Brasil, chegados entre agosto de 1821 e julho de
1822 a Lisboa e incomodados com as medidas “recolonizadoras”
anunciadas pelos pares lusitanos. Dois deles, particularmente,
Costa Aguiar, representante por São Paulo, e Cipriano Barata,
pela Bahia, criticaram duramente o parecer da Comissão. O
deputado paulista deixou claro que considerava injusto Portugal
pretender ter mais direitos do que o Brasil. Segundo ele, “o
Brasil reassumindo a sua soberania, a exemplo de Portugal, pode
constituir-se a seu modo, e lançar mão dos mesmos direitos, de
que Portugal usou para mudar a sua antiga forma de governo,
depois dos célebres dias 24 de Agosto e 15 de Setembro de
1821”. Afinal, perguntava ele, “como uma parte soberana da
nação pode pretender subjugar a outra parte dissidente maior e
também soberana?”22

288
Além disso, Costa Aguiar apresentou o movimento de apoio
ao príncipe regente como a “dissidência das províncias coligadas
do sul”, que obedecia a um sentimento majoritário, não restrito
ao Governo, e existia, de fato, “nos povos” do Reino do Brasil:

Srs., não vos iludais, e menos o interesse mal entendido vos faça
supor o que não existe: não é só uma província, porém sim as que
compõem e formam o vasto Império do Brasil, à exceção do Maranhão
e Pará, que têm proclamado o Governo do Rio de Janeiro; foram elas
as que rogaram a S[ua] A[lteza] R[eal] se dignasse tomar o agradável
e elevado nome de protetor, e defensor perpétuo do reino do Brasil, e
o Príncipe Real, o Sr. D. Pedro conhecendo perfeitamente o estado de
convulsão em que ficaria aquele reino, se ele não aceitasse tão gloriosa
oferta, por uma ação de si e do seu grande coração assim acordou.23

Lembrou à corte o espectro da desordem e anunciou a convoca-


ção de uma Assembleia Geral e Constituinte da nação brasiliana
como o passo seguinte e natural que não deveria ser descartado.
O deputado pela Bahia, Cipriano Barata, fez uso de tom
ainda mais radical e, denunciando “o orgulho aspirando às anti-
gas preeminências de Portugal; e [que] disfarçadamente parece
querer tirar ao Brasil a categoria de Reino, a qualidade política
de Nação combinada”,24 afirmou que “os direitos das Nações
que estão em guerra civil, de fato como os Reinos de Portugal,
e Brasil, hão de ser reconhecidos pela sorte das armas”.

Os povos do Brasil têm direitos iguais, e perfeitos como os de


Portugal: o Brasil está firme sobre as bases da Constituição, que ele
só quer abraçar na parte que lhe convier aos seus direitos e interesses
(...) o Reino do Brasil está igual a Portugal; e um igual politicamente
não obedece a seu igual.

O “governo de Sua Alteza”, concluiu, “é de direito e é de fato;


e por isso legítimo”.25

289
Na nova imprensa independentista que passou a tomar conta
do Rio de Janeiro entre 1821 e 1823 e nos jornais das principais
cidades e vilas, as análises da conjuntura política e as propostas
de ação veiculadas aprofundariam mais ainda as ressignificações
em marcha dos conceitos de pátria e nação, fazendo circular
ideias que, com o tempo, definiriam boa parte das posições dos
defensores do chamado Partido Brasileiro. E, mesmo que tais
escritos se destinassem, sobretudo, aos membros da “boa socie-
dade”, aos associados às instâncias locais de poder, sabemos
que as ideias neles presentes há muito já reverberavam entre os
homens do comum.
O Revérbero Constitucional Fluminense (1821-1822),26 publi-
cado no Rio de Janeiro e encarregado de difundir o apoio ao
príncipe regente, em seu artigo inaugural, dirigido aos “Amigos
da Nação e do Rei”, apresentou uma ode ao constitucionalismo,
avivando na memória dos habitantes cariocas a importância dos
acontecimentos do Porto e de Lisboa, respectivamente em 24 de
agosto e em 15 de setembro de 1820, que haviam trazido a todos
o “clarão brilhantíssimo da Regeneração Civil”.27
Entretanto, os interesses dos “Portugueses de um ou outro
hemisfério”, até então considerados “amados compatriotas”,
logo passaram a colidir abertamente nas folhas do jornal. A
grande virada se deu quando, comentando os acontecimentos do
Fico de 9 de janeiro de 1822 – quando D. Pedro, sem abrir mão
de um futuro governo dual sobre os dois territórios, explorou
as rivalidades no interior das elites brasileiras28 –, os redatores
imputaram abertamente às cortes os “terríveis males que amea-
çavam de perto o Brasil”. Defenderam o Augusto Regente,
atribuindo-lhe a condição de “penhor da nossa paz, centro da
nossa força e principal elo da nossa união”29 e pregaram para
isso a “reunião de três grandes Províncias, que n’Ele e conosco,
reconhecem um centro necessário para gloria e tranquilidade
deste Reino”.30
Em artigo de agosto de 1822, à pátria política, nação em
formação, foi dada, pela primeira vez, a dimensão de território.

290
Nele, o jornal referia-se ao Brasil como “a minha adorada
Pátria, este riquíssimo trato de terras, que se abrange entre o
Rio das Amazonas, e da Prata, entre o Oceano, e os Andes”
e, vaticinava a seguir, “(...) destinado pela natureza a vir a ser
um poderoso e grande Império, (...) se todos os seus habitantes
atuarmos coletivamente com a mesma vontade”.31 Os vínculos
entre bem comum, cidadão e pátria se viram igualmente refor-
çados: “Quando os cidadãos são indiferentes ao bem da Pátria;
tudo vai perdido” porque “ser indiferente ao bem público é
degradação da dignidade do homem; é ser escravo, é ter, como
diz Homero, meia alma”.32
Execrando os republicanos, entendidos como aqueles que,
em seus “desvarios e aberrações”, sucumbiram à concepção
de uma “igualdade absoluta entre os homens, quimera a mais
perigosa de todas na sociedade”, alertaram contra tal forma de
governo, “inadmissível em território tão vasto como o Brasil”.33
Consideraram a “Monarquia Representativa Constitucional”,
ao contrário, “a melhor (...) para segurança, tranquilidade, e
prosperidade dos governados”, concluindo, com um chamado
aos “brasileiros”: “Eia, vamos, unamo-nos a S.A.R.; cuja felici-
dade, e a nossa são recíprocas.”34
Durante os anos iniciais de afirmação da soberania política do
novo Estado-nação independente, quando o “mosaico de pátrias”
também foi posto em movimento, outras independências ou a
simples preservação de autonomias foram tentadas. Vitoriosas –
como no caso da Cisplatina – ou tendo os seus projetos políticos
ensaiados e logo abortados – como nas insurreições do Pará,
Maranhão, Bahia e, especialmente, Pernambuco –, essas outras
experiências revelaram a enorme instabilidade ainda partilhada
por todos e a extrema dificuldade de reordenação do “mosaico”
sob a nova monarquia criada a partir do Rio de Janeiro.
A progressiva subsunção da pátria à nação apareceu muito
mais vezes nos discursos políticos. Transitou-se das “pequenas
pátrias”, identificadas às províncias ou regiões, para a “Pátria
grande”, o singular coletivo, numa desesperada tentativa de se

291
conferir à nação/coroa toda a carga afetiva que o termo pátria
naturalmente encerrava. A “Pátria grande”, grafada com maiús-
cula, expressava também o imenso território imaginado, aquele
mais projetado que efetivamente controlado, e que também
passava a lhe conferir sentido. Apesar de os conflitos nas provín-
cias terem sido intensos e numerosos, a ação política dos regentes
foi incansável para manter o “mosaico” sob o comando imperial
e preservar a integridade do território projetado. Escapou-lhe
a Balaiada, no Maranhão, e a Guerra dos Farrapos, no Sul, só
pacificadas efetivamente em 1845, já no Segundo Reinado.
As propostas liberais do tempo das Regências – 1831 a 1841
– cabem ainda ser recuperadas brevemente aqui.
A abdicação de D. Pedro I abrira um incômodo período de
“Vacância Régia”, em que diferentes propostas políticas foram
testemunhadas, opondo liberais moderados, exaltados e os
chamados “caramurus” ou restauradores, para dar conta da
crescente instabilidade nas províncias. Depois de duas Regências
Trinas (uma provisória que não passou de três meses e outra
permanente, que durou até 1835), elegeu-se um único regente
para governar em nome do infante: Diogo Antônio Feijó, de
1835 a 1837, e Pedro Araújo Lima, de 1837 a 1840. A grande
preocupação das Regências era afastar qualquer possibilidade
de ruptura política ou rebelião. Para além do medo de que parte
da elite política passasse a não reconhecer o poder de D. Pedro
II como imperador, havia, como sempre, o medo do “perigo
das ruas” – vadios, capoeiras, elementos marginalizados – e da
massa escrava, cuja mobilização nessas ocasiões era bastante
temida. A lembrança do trauma do Haiti, cujo fantasma ainda
rondava nesses anos os escravocratas das Américas, somara-se,
enfim, às reais dificuldades de se estabelecer um “sistema nacio-
nal de dominação, com base na solução monárquica”,35 as quais
permaneceriam até o final da década de 1830.
Nesse contexto, paralelamente à continuidade da coerção
por meio das armas às elites provinciais insurgentes e demais
revoltosos, três importantes medidas político-administrativas

292
foram implementadas: a criação da Guarda Nacional, a criação
do Código do Processo Criminal (1832) e o Ato Adicional (1834).
Na década anterior já ficara patente a importância dos pode-
res locais institucionalizados. As Câmaras serviram ao objetivo
de instaurar a soberania do novo Império do Brasil. Devido à
sua reconhecida antiguidade nas vilas e cidades desde o período
da colônia, elas asseguraram a legitimidade de D. Pedro. Com
funções administrativas e judiciárias, a Câmara debatia e arbi-
trava, em âmbito local, o poder político e respondia pela justiça,
fazenda e milícias frente ao poder régio. A vereança na Câmara,
juntamente com a provedoria da Santa Casa da Misericórdia e
a organização de milícias constituíram importantes cargos de
prestígio na esfera municipal, passíveis de destacar e conferir
real poder ao homem de condição. Por meio deles, se podia ser
alçado e, eventualmente, concorrer à representação em outras
instâncias, como na província ou na Corte. A Câmara servia-lhe,
assim, como importante e privilegiado lugar de aprendizado
político, espaço de negociação dos seus mais caros interesses.36
Simultaneamente, dela dependia o controle permanente dos
livres e libertos para demarcar aquela fronteira que não se podia
ultrapassar, de modo algum, na ordem escravista. Era sempre
necessário prevenir-se contra o risco da desordem social, e cabia
à Câmara estar preparada para aplacá-lo ou contê-lo.
Foram essas dimensões do poder local nas províncias que
se alinharam ao longo da década de 1820 à nova ordem – seja
àquela preconizada pelas Cortes Constituintes (quando da sua
instalação como centro de poder paralelo ao da Coroa, sediada
no Rio de Janeiro), seja à que emanava do sistema do Rio de
Janeiro, em consonância com o príncipe – e quebraram o nexo
que as unia a um centro comum no passado.
Com a dissolução da monarquia portuguesa no Brasil, a Bahia
aderiu inicialmente ao sistema das Cortes de Lisboa. O Pará e o
Maranhão, pensava-se, a seguiriam de perto. Já em Pernambuco,
os patriotas liberais radicalizaram e encaminharam a proposta
da Confederação do Equador, buscando uma autonomia frente

293
aos dois polos. Mas, no Sudeste, os patriotas de São Paulo e de
Minas Gerais não hesitaram em alinhar-se imediatamente a D.
Pedro e, assim, acompanharam o movimento unificador deslan-
chado no Rio de Janeiro.
A população local, certamente, sentia mais a incidência da
Câmara nas suas vivências do que a do distante monarca. O
novo Estado não poderia prescindir da anuência desses poderes
locais e devia esforçar-se para obtê-la pela negociação, ou a
qualquer custo pela força, se inevitável fosse. As pátrias locais
ou pequenas tenderam, de fato, a subsumir-se na grande pátria/
nação que estava sendo erguida, mas esta última ainda depen-
deria das primeiras para fazer-se efetivamente presente e eficaz.
Assim, valendo-se de antigas práticas e apostando na seme-
lhança de (revestir-se com) uma permanência,37 as Câmaras se
viram progressivamente redimensionadas na sua importância.
Elas mesmas se tornaram as contratantes desses novos tempos,
passando a celebrar com o novo príncipe o pacto moldado pela
monarquia constitucional após a independência, engendrando,
a partir daí, um novo contrato social.
Nos tempos das Regências, deu-se um enorme aprimoramento
dessas instâncias locais de poder, com as medidas político-admi-
nistrativas renovadoras da burocracia imperial implementadas.
Desde 1827, a criação dos juízes de paz – juízes leigos, eleitos
pela população local, para o exercício de funções conciliadoras
– permitira ampliar os mecanismos de coerção na esfera local.38
Junto à subsequente formação da Guarda Nacional e promulga-
ção do Código do Processo Criminal, em 1832, aqueles se viram
mais fortalecidos nas suas funções.
A Guarda Nacional tinha os seus efetivos recrutados em
diferentes províncias, entre os cidadãos brasileiros que podiam
ser eleitores locais nas vilas ou cidades que habitavam (isto é,
homens de 21 a 60 anos, com renda superior a 200 mil réis nas
grandes cidades e 100 mil réis nas demais regiões, que mantives-
sem moradia fixa na localidade). Segundo seus idealizadores, era
um instrumento ideal para a garantia da segurança e da ordem.

294
Sua base era inteiramente municipal e sua organização dependia
totalmente das elites políticas locais. Junto à gestão das Santas
Casas de Misericórdia, responder pela Guarda Nacional passara
a ser uma das principais atividades do poder municipal, que
deveria utilizá-la para combater grupos ou facções de caráter
contestatório das autoridades imperiais. A fidelidade dos aliados
locais para isso fazia-se fundamental. Porque, controlada pelo
âmbito local, era ela que podia encarregar-se de “defender a
Constituição, a liberdade, a independência e a integridade do
Império, mantendo a obediência às leis, conservando a ordem e
a tranquilidade pública”.39
Quanto ao Código do Processo Criminal, criado no mesmo
ano e considerado uma das medidas liberalizantes mais avança-
das do período, ele oferecia mais largas garantias de defesa aos
indivíduos locais acusados de crimes, entre elas, a introdução
do habeas corpus. Punha-se fim às antigas devassas do passado,
presididas pela justiça ferrenha enviada pela Corte e impunha-se
alguns limites ao excesso ou abuso de autoridade.
O Código também ampliara os poderes e esfera de ação dos
juízes de paz. Estes passaram a ter autoridade para prender
criminosos procurados pela Justiça e julgar delitos cujo castigo
máximo não excedesse 100 mil réis e seis meses de cárcere. A
eles agregaram-se também os poderes policiais, a gerência dos
inspetores de quarteirões e a gerência da investigação de crimes
e criminosos. Com o Código, tornam-se esses juízes a expressão
maior da presença do Estado nas localidades mais longínquas
do Império; eram eles os representantes diretos das leis centrais,
a autoridade com legitimidade e com maior interação com as
questões locais.
O Ato Adicional, em 1834, fechou esse conjunto de medidas
que expressaram o novo contrato social em afirmação. A maior
preocupação dos seus formuladores era com a concessão de mais
autonomia às províncias, sem que para isso tivessem de adotar
uma monarquia federativa. As medidas do Ato chocavam-se
apenas parcialmente com a organização centralizada adotada

295
pelo Estado brasileiro nos seus primeiros tempos, inspirado
muito fortemente por Portugal. Isso porque continuava-se a
manter a mesma postura de concentrar as decisões do Império
na Corte. Como havia precauções quanto à concessão excessiva
de autonomias aos poderes regionais, após o Ato a concentração
de poder ficou delegada às assembleias provinciais, as quais
decidiriam sobre as deliberações encaminhadas pelos municípios.
Após 1834, essas assembleias legislativas provinciais obtiveram
bastante autonomia, mas nunca chegaram a contestar o poder
moderador, nem a organizar-se para implementar um Estado
Federativo. Coube-lhes, apenas, minimizar a tendência das
Câmaras Municipais à pulverização do poder.
Às assembleias legislativas provinciais foi atribuída a compe-
tência para elaborar o próprio regimento, desde que em harmonia
com as imposições gerais do Estado. Coube-lhes legislar sobre: a
divisão civil, judiciária e eclesiástica local, assim como a instrução
pública nas províncias. Suas atribuições envolveram, ademais,
casos de desapropriação, fixação de despesas e impostos, criação
de cargos e empregos, construção de estradas, penitenciárias e
outras obras públicas. Porém, mesmo com a alteração profunda
sugerida para a competência desses chefes de províncias, um perí-
odo inicial de relativa falta de recursos nas províncias, durante os
anos de sua implementação, acabou emperrando, de certo modo,
a capacidade de utilização plena dessa autonomia concedida.40
Uma última medida importante do Ato foi a convocação de
eleição de um regente “Uno” para o Império do Brasil, vista por
alguns como tendenciosamente progressista, e que deu início a
um modelo de Estado por vezes associado às experiências repu-
blicanas. Se o federalismo ganhou força com as medidas do Ato
Adicional (valorizando a defesa de uma política que atendesse
às necessidades locais das províncias, enquanto reforçava a
manutenção da autoridade central), nas décadas de 1830 e 1840,
também os momentos mais críticos das revoltas, algumas delas
de cunho separatista, foram vivenciados.

296
Em 1835 explodiram a Cabanagem no Norte41 e a Farroupilha
no Sul,42 além dos movimentos sociais e agitações que já vinham
surgindo constantemente desde 1831, anunciando reivindicações
de caráter “regionalista” contra a excessiva centralização dentro
do Império e, sobretudo, envolvendo diversos e heterogêneos
segmentos da população. Coube à rearticulação das forças polí-
ticas a partir de 1835, com a emergência do Regresso e a anteci-
pação da maioridade do príncipe em 1841, permitir a redução
de conflitos no interior das elites políticas bastante assustadas
no período regencial com as ameaças à ordem.
Até o final da década, com a consolidação da direção saqua-
rema no reinado de D. Pedro II, esse espaço público recuaria.
Mas, se herdava muitas das propostas veiculadas durante as
Regências, também os novos quadros políticos foram herdados,
com a divisão entre conservadores e liberais surgida na década
de 1840, a qual caracterizaria o Segundo Reinado em sua matu-
ridade, expressando algumas das mudanças que contribuíram
para redefinir e fundir os elementos das antigas facções dos
caramurus, dos moderados e dos exaltados dos primeiros tempos.
Na década de 1840, enfim, o uso do termo pátria continuaria
remetendo-se a lugares variados e sendo empregado no plural.
Mas ele também sofreria modificações e tenderia a se singula-
rizar, sendo utilizado cada vez mais na sua identificação com
a nação, à medida que esta aprofundava sua sinonímia com o
Estado imperial.

NOTAS
1
Maurizio Viroli, For Love of Country: An Essay on Patriotism and Nationalism,
Oxford Clarendon Press, 1997, p. 19-20.
2
Raphael Bluteau, Diccionário portuguez & latino, Lisboa, Officina de Paschoal
Silva, 1720, v. VI, p. 320-321. Os oito tomos de Bluteau foram publicados de
1712 a 1727.
3
Ibidem, p. 320.
4
Ibidem, p. 321.
5
Ibidem, p. 319.

297
6
Ibidem, p. 309.
7
Ibidem, p. 187-188.
8
Antonio de Moraes Silva, Diccionario da lingua portugueza, composto por
Antonio de Moraes Silva, natural do Rio de Janeiro, sexta edição, melhorada, e
muito accrescentada pelo desembargador Agostinho de Mendonça Falcão, sócio
da Academia Real das Sciencias de Lisboa, Lisboa, Typographia de Antonio José
da Rocha, 1858, t. II, p. 171.
9
Eduardo Faria, Diccionario da lingua portugueza e diccionario de synonimos,
para uso dos portuguezes e brazileiros, 4. ed., Lisboa, Escriptorio de Francisco
Arthur da Silva, 1859, p. II.
10
A ideia do “mosaico” é utilizada por István Jancsó em alguns dos seus últimos
textos. Ressalta as diferenças de magnitude demográfica entre as distintas partes
da América portuguesa e a percepção do que chamou de “assimetria americana”
onde as estruturas da vida social conseguem se tornar simultaneamente replicantes
e desviantes dos paradigmas europeus – uma característica brasílica, dirá, de
reinvenção pela inversão do modelo reinol de articulação das esferas pública
e privada de existência, função de condição periférica e subordinada, que per-
duraria até a consolidação do Império brasileiro. István Jancsó, Independência,
independências, em Independência: história e historiografia, São Paulo, Hucitec,
2005, p. 17-48.
11
José Murilo de Carvalho, Teatro de sombras: política imperial, 2. ed., Rio de
Janeiro, Civilização Brasileira, 2006, p. 251.
12
Evaldo Cabral de Mello, Rubro veio: o imaginário da restauração pernambucana,
2. ed., Rio de Janeiro, Topbooks, 1997.
13
István Jancsó, Na Bahia contra o império: história do ensaio de sedição de 1798,
São Paulo, Hucitec, 1996, p. 157-201, 205.
14
Idem, A sedução da liberdade: cotidiano e contestação política no final do século
XVIII, em História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América
portuguesa, São Paulo, Cia. das Letras, 1997, v. 1, p. 387-437 (coleção dirigida
por Fernando A. Novaes e volume organizado por Laura de Mello e Souza);
Afonso Carlos Marques dos Santos, No rascunho da nação. Inconfidência no
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, 1992.
15
Ilmar Rohloff de Mattos, Construtores e herdeiros. A trama dos interesses na
construção da unidade política, em Independência: história e historiografia, São
Paulo, Hucitec, 1987, p. 271-300.
16
Francisco Moniz Tavares, História da revolução de Pernambuco de 1817 (1840),
Recife, Governo do Estado, 1969, p. 112 et seq.
17
Maria de Lourdes Viana Lyra, “Pátria do cidadão”: a concepção de pátria/nação
em Frei Caneca, Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 18, n. 36, 1998;
Marco Morel, Frei Caneca: cristianismo e revolução, São Paulo, Brasiliense,
1987.
18
Frei Caneca, Dissertações sobre o que se deve entender por pátria do cidadão e
deveres deste para com a mesma pátria, em Obras políticas e literárias de Frei

298
Joaquim do Amor Divino Caneca. Colecionadas pelo Comendador Antônio
Joaquim de Mello, Recife, Ed. Universitária da UFPE, 1972, p. 185. Fac-símile
da primeira edição de 1875.
19
Ibidem, p. 199.
20
Ibidem, p. 177 et seq.
21
Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa, Ata de 19 de setem-
bro de 1822, p. 489, 495, disponível em <http://debates.parlamento.pt/page.
aspx?cid=mc.c1821>, acesso em 15 maio 2013.
22
Ibidem, p. 483.
23
Ibidem, p. 482.
24
Ibidem, p. 491.
25
Ibidem, p. 493.
26
Sob a direção de Joaquim Gonçalves Ledo e Januário da Cunha Barbosa, o Re-
vérbero, iniciado em setembro como hebdomadário, trazia em todos os números
a epígrafe Redire sit nefas (O regresso jamais), deixando claro qual o compro-
metimento dos redatores. Não foi, entretanto, o único impresso de vanguarda
no Rio de Janeiro. Ao seu lado, fortalecendo a corrente separatista, estiveram
também O Espelho (out. 1821), de Manuel Ferreira de Araújo Guimarães, e A
Malagueta (dez. 1821), de Luis Augusto May. Revérbero Constitucional Flu-
minense (1821-1822), ed. fac-similar, 3 v., Rio de Janeiro, Edições Biblioteca
Nacional, 2005.
27
Ibidem, v. I, p. 26.
28
Lucia Bastos Pereira das Neves, Ronaldo Vainfas (org.), Dicionário do Brasil
joanino 1808-1821, Rio de Janeiro, Objetiva, 2008, p. 131.
29
Revérbero Constitucional Fluminense, v. I, p. 179-180.
30
Ibidem, p. 181.
31
Ibidem, v. II, p. 125-126.
32
Ibidem, p. 126.
33
Ibidem, p. 128-129.
34
Ibidem, p. 130, 136.
35
Carvalho, Teatro de sombras, p. 250.
36
Iara Lis Franco Schiavinatto, Cultura política do primeiro liberalismo constitucio-
nal. A adesão das Câmaras no processo de autonomização do Brasil, Araucária,
v. 18, p. 220-235, 2007.
37
Ilmar Rohloff de Mattos, O tempo saquarema, São Paulo, Hucitec, 1987.
38
Thomas Flory, El Juez de Paz y el jurado en el Brasil imperial 1821-1871, Mé-
xico, FCE, 1986.

299
39
Brasil, Coleção de Leis do Império do Brasil - Ano 1831, Rio de Janeiro,
Typografia Nacional, 1875.
40
Paulo Pereira Castro, A experiência republicana, em Sérgio Buarque de Hollanda
(dir.) e Pedro Moacyr Campos (assist.), História geral da civilização brasileira,
São Paulo, Difel, 1985, t. II, O Brasil monárquico, v. 2 - dispersão e unidade,
p. 37 et seq.
41
Julio José Chiavenato, Cabanagem: o povo no poder, São Paulo, Brasiliense, 1984;
Pasquale Di Paolo, Cabanagem: a revolução popular na Amazônia, 2. ed., Belém,
CEJUP, 1986.
42
Sandra Jatahy Pesavento, A Revolução Farroupilha, São Paulo, Brasiliense, 1986.

REFERÊNCIAS
FONSECA, Gondim da. Biografia do jornalismo carioca (1808-1908). Rio
de Janeiro: Livraria Quaresma, 1941.
GOUVÊA, Maria de Fátima S. Política provincial na formação da mo-
narquia constitucional brasileira. Rio de Janeiro 1820-1850. Almanack
Braziliense, n. 7, p. 119-137, maio 2008.
IPANEMA, Marcelo; IPANEMA, Cybelle. Imprensa na Regência: obser-
vações estatísticas e de opinião pública. Revista do IHGB, Rio de Janeiro,
Departamento de Imprensa Nacional, v. 307, p. 94, 1975.
MELLO, Evaldo Cabral de. Frei Joaquim do Amor Divino Caneca. São
Paulo: Editora 34, 2001.
MOREL, Marco. Frei Caneca. Entre a Marília e a Pátria. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2000.
SCHIAVINATTO, Iara Lis Franco. Pátria coroada. O Brasil como corpo
político autônomo, 1780-1831. São Paulo: Editora Unesp, 1999.

300
IVO COSER

ESTADO

Em 1770, António Ribeiro dos Santos sustentava que ao


“sumo poder do imperante civil” caberia “o direito abso-
luto de moderar e dirigir, indistintamente, as ações de todos
os membros dos corpos políticos” em favor da “utilidade
comum”.1 Esse poder, continuava o autor, era um “império,
indiviso e íntegro de uma só e mesma potestade”, capaz de
regular “todas as partes dos estados”.2 Essa formulação repre-
sentava o programa político contrário à ideia de um modelo
orgânico. Neste último, o soberano era encarregado de manter
a harmonia entre as partes da sociedade e o fazia a partir do
respeito ao estatuto (privilégio) de cada parte, o qual não pode-
ria ser rompido, seja em razão da sua origem divina seja pelo
seu fundamento nos costumes. No argumento de Ribeiro dos
Santos, o soberano torna-se a única fonte do direito, podendo
alterá-lo quando considerasse necessário sem que fosse limi-
tado pelos privilégios, cabendo a este sumo poder subordinar
os aparelhos políticos escolhendo os encarregados de acordo
com as tarefas. O período pós-independência encontrará esse
argumento como hegemônico, ocorrendo disputas de diferentes
interpretações.
A leitura do termo Estado no Dicionário de Moraes, na sua
edição de 1813 e que se manterá inalterada na seguinte (1823),
nos permite destacar quatro sentidos: situação física ou moral
de uma pessoa ou coisa, o pertencimento de um indivíduo a um
grupo social, nobreza, povo etc., o cargo que ocupa no Estado
e, por último, a razão de Estado, os motivos políticos que dizem
respeito exclusivamente a este.3
A elevação do Brasil à categoria de Reino Unido em 1815
marcava um período de enormes mudanças políticas e econô-
micas dentro do Império português. A eclosão da Revolução do
Porto (1820) e o retorno da família real, em 1821, abriram um
debate político acerca do arranjo institucional que deveria vir a
reger o Império português.
Observemos o uso e conteúdo do termo Estado em dois
trabalhos escritos, com orientações políticas distintas. O primeiro
chama-se Memória constitucional e política sobre o Estado
presente de Portugal e Brasil (1821), escrito por José Antonio
de Miranda. Neste, o autor reconhecia o desenvolvimento que
o Brasil havia sofrido, e que Portugal tinha perdido importância
política e econômica; entretanto, defendia um arranjo institucio-
nal que mantivesse unidas as duas partes do Império português.
O segundo trabalho vem a ser o jornal Revérbero Constitucional
Fluminense, dirigido por Januário da Cunha Barbosa e Joaquim
Gonçalves Ledo, publicado entre 1821 e 1822. Era favorável
à independência do Brasil e considerava que esse movimento
deveria ser conduzido pela pressão dos cidadãos ativos e pelo
príncipe regente. Nos dois trabalhos podemos encontrar três
usos para o termo Estado: a) como situação, em que se utiliza
estado em letras minúsculas distinguindo-se de Estado escrito
em maiúsculas; b) como partes do Império, como no modelo
confederativo/federativo; e c) como uma comunidade política que
reúne a sociedade civil e o governo. Essa comunidade política
teria um poder de decisão a partir do qual as leis se originariam
e se espalhariam.
Observemos o primeiro uso. No jornal Revérbero Constitucional
Fluminense (R.C.F.), encontramos a seguinte frase: “No estado
atual das coisas, em que o espírito de Constituição faz hoje quase
parte nossa existência comum (...).”4

302
Com relação à ideia de Estado no modelo confederativo,
vejamos o texto de José Antonio de Miranda. Esse autor parece
entender o Império português a partir do modelo confedera-
tivo. Ao comentar a vinda da família real para o Brasil, escreve:
“Quando V. Majestade se transportou em 28 de novembro de
1808 para seus Estados do Brasil, declarou que na paz geral
voltaria para Sua antiga Corte de Lisboa.”5
Finalmente, o terceiro uso. O R.C.F. analisa a proposta das
Cortes de Lisboa de retirar a autonomia política e econômica
do Brasil. Tal ação acarretaria a seguinte situação:

E não se lembram [os deputados portugueses] que a desordem e a


anarquia reinam sempre nos países onde o ponto central é destruído,
onde não existe unidade de ação, nem concentração de poder e de
vontade nacional? Só se lembram quando a organização moral de
um Estado é destruída no centro daqueles limites que lhe foram tra-
çados pela natureza, não subsiste por longo tempo neste Estado nem
Liberdade, nem Independência!6

José Antonio Miranda assinala que um dos principais moti-


vos do descontentamento dos súditos relacionava-se com o
comportamento dos funcionários e dos ministros. Ambos teriam
se apropriado dos cargos do “Estado”, fato que acarretava a
perda da “confiança pública”, da “opinião pública”.7 Podemos
assinalar dois conteúdos: a) a ideia da separação entre o cargo,
as atribuições delimitadas por lei, e a pessoa que o ocupa; e b)
a necessidade de que o Estado, para cumprir sua missão, tenha
o apoio de um público.
Esse aspecto está diretamente associado ao fim a que se destina
o Estado, de onde este retira sua legitimidade e que pode acarre-
tar o desaparecimento deste. A legitimidade é rompida, segundo
os autores, “quando, aberrando de todos os seus deveres, um
homem só e os seus favoritos devoram toda a substância do
Estado”.8 Nesse sentido, a tirania e o despotismo são a antítese
do Estado, pois representam a vontade ilimitada de um só que

303
faz do seu capricho a regra. A ideia de que o Estado retira sua
legitimidade do pacto firmado com a sociedade aponta para o
tema da origem e do conteúdo deste. Assinalar o conteúdo do
pacto é importante para estabelecer a substância da legitimidade.
No texto de José Antonio Miranda podemos encontrar duas
origens para o Estado.
Na primeira, o homem se encontra num “estado de natureza”
no qual as relações eram regidas pela força.9 Segundo o autor:

Foi necessário criar uma pessoa moral, cuja vontade representasse


todas as vontades, cuja força fosse a soma geral de todas as forças e
que, dirigida pelo órgão da razão, interpretasse, fixasse os direitos,
regulasse os deveres e prescrevesse as obrigações de cada indivíduo
para com a sociedade e para com os membros que a compõem, esta-
belecendo uma medida justa, certa e invariável e que estabelecesse as
bases da segurança pública, da felicidade de todos e da prosperidade
geral. Esta foi a origem, a causa da sociedade civil.10

Mais adiante o autor escreve que

os homens depositaram toda a parte da liberdade natural em só


homem, e [que] esta soma geral consistiu a Autoridade Pública que
por meio de regras ou Leis, que são as condições da sociedade, pode
governar a grande família e reunião dos sócios, o povo, o Estado ou
Nação, se dirigindo ao importante fim da felicidade geral.11

O homem que recebeu essa autoridade pública é chamado de


“Chefe da Nação, Supremo Magistrado, o Rei, o Soberano”.12
Ao estabelecer essa origem, o autor segue o modelo da teoria
jusnaturalista, a passagem do estado de natureza para a sociedade
civil através de um pacto, no qual os indivíduos renunciam ao
seu direito natural em favor de uma autoridade pública que irá
estabelecer as regras em favor do bem geral.13 Nessa passagem
podemos salientar que Estado e Nação são sinônimos. O Estado

304
seria a reunião dos cidadãos, dando apoio para construir um
centro de poder cujo objetivo seria a felicidade. No entanto, o
autor aponta que essa autoridade é apenas um homem, o qual
conduz o Estado, a Nação e os cidadãos. Dessa maneira, o autor
estabelece a forma de governo monárquico como resultado natu-
ral do pacto e o soberano como distinto do Estado.
No modelo acima, o Estado tem sua origem num pacto, sua
procedência é construída a partir de um modelo racional sem
referência a eventos históricos, e a sua finalidade vem a ser
apontar para o dever do Soberano para com o seu público. No
mesmo texto o autor menciona um outro modelo de origem do
pacto. Nele, o pacto remonta a um passado remoto.14 Segundo
o autor, esse “pacto social” remonta ao episódio nos campos
de Lamego,15 em que o “Povo Português” e o “Fundador da
Monarquia” teriam estabelecido as bases da Constituição, que
em razão da ação do tempo foi lentamente corrompida, sendo
necessária uma ação que retome seus princípios.
Conforme observamos, a possibilidade de o Estado ser
controlado pelo capricho pessoal em oposição à regra da lei era
um dos principais temores dos grupos políticos. O processo de
independência coloca em primeiro plano a questão do papel do
monarca no Estado. Ao longo dos debates, esteve sempre em
pauta a polêmica sobre a possibilidade de que o papel ativo deste
acarretasse o despotismo, levando o Estado à sua dissolução.
O R.C.F. estava orientado para a consecução da indepen-
dência do Brasil; desta maneira sua preocupação residia no
modo através do qual seria elaborado o pacto que regeria o
novo Estado:

Uma constituição não é um ato de hostilidade, é um ato de união,


que fixa as relações recíprocas do Monarca e do Povo e indica-lhes
os meios de sustentar-se, apoiar-se mutuamente, coadjuvar-se; (...)
preservá-los dos encontros inesperados e de lutas involuntárias. Quanto
mais sincera for a adesão com aquele que guia o carro do Estado, tanto
nos devemos esmerar em pôr barreiras em torno dos precipícios.16

305
O R.C.F. reserva ao monarca o papel de condutor do “carro do
Estado”, sinalizando que seu papel não será meramente passivo.
Sua ação será conjunta à do governo, do qual ele faz parte.
Monarca e governo devem agir em sintonia. Ambos conduzem
o Estado. O governo deve conduzir “a nau do Estado ao porto
da felicidade”.17 O monarca está inserido no Poder Executivo:
o R.C.F., citando Benjamin Constant, aponta que o Soberano
mantém o equilíbrio entre os poderes;18 é ele a “mola” que
confere movimento ao Poder Executivo, “temperado e graduado
pelo Poder Legislativo”.19 Podemos perceber que, se o Estado é
um carro, a mola que o movimenta é impulsionada pelo monarca,
que o faz dentro de certas regras pactuadas na sociedade. Sua
ação sofre a limitação, não apenas da lei, mas também do Poder
Legislativo e da opinião pública.
Os debates políticos iniciados após a Independência revelam
que a ideia de que o monarca desempenharia um papel ativo no
Estado irá sofrer uma oposição feroz. Um dos seus principais
oponentes será Frei Joaquim do Amor Divino Caneca. A forma
de governo que guiaria o novo Estado poderia ser a monar-
quia, mas o ponto polêmico residia na autonomia provincial e
no papel que o monarca deveria ter no arranjo constitucional.
Citando Montesquieu, Frei Caneca estabelece que, quando a
mesma pessoa concentra o Poder Legislativo e o Executivo,
“não há liberdade”.20 No argumento de Caneca, a prerrogativa
do monarca em participar do governo – entre as prerrogativas
que a Constituição de 1823 concedia ao monarca estava o veto
às iniciativas do Legislativo, a dissolução deste e a escolha dos
senadores a partir de uma lista tríplice – configura a possibilidade
de uma vontade sem freios. Essa vontade terminaria por destruir
o Estado, tornando-o um instrumento de capricho pessoal. Nessa
linha de raciocínio, Frei Caneca citava Emerich Vattel, afirmando
categoricamente que se deve “desviar de cima do Estado tudo
quanto se opõe ao direito da sua conservação e ao adiantamento
da sua prosperidade”.21 Nesse sentido, a vontade ilimitada do
monarca ameaça de morte o Estado; o despotismo é a antítese

306
do Estado. Este é entendido como uma organização, na qual os
cargos não pertencem aos funcionários ou ao monarca, e como
o resultado de um consentimento da sociedade, sendo um instru-
mento da sua felicidade. A nação, ou os povos do Brasil, como
na tradição do federalismo brasileiro oitocentista, segundo Frei
Caneca, antecedia ao Soberano e ao Estado.
A dissolução da constituinte, a Constituição outorgada por D.
Pedro I, a imposição da monarquia unitária e o poder moderador
conduzem Frei Caneca a condenar o novo arranjo constitucional:

Sem representação nacional, sem Cortes Soberanas que elas mesmas


formem a nossa Constituição, não há Império. Debaixo dessa condição
impreterível é que aclamamos a SM e SM o jurou também de sua parte.
Se por vossas tramas SM faltar ao seu dever, e não celebrar já e já as
Cortes Soberanas está dissolvido o pacto e o Brasil seguirá o seu destino
através da mais sanguinolenta guerra. Será melhor que a nau do Estado
seja uma nau opitergina do que render-se ao valor de algum Pompeu.22

Nesse trecho podemos perceber o uso conjunto dos termos


Estado, Império e Constituição. A definição do termo Império,
segundo o Dicionário de Moraes (1813) é a seguinte: “(...)
jurisdição sobre a qual o Soberano entrega aos magistrados o
direito de julgar controvérsias, impor pena de morte e confiscar
os bens; e impor a julgar a pena de morte.” A razão de Estado
remete ao último recurso deste, qual seja, o uso da força: “S.M.
está tão persuadido que a única atribuição que tem sobre os
povos é esta do poder da força, a que chamam outros a última
razão dos Estados.”23 Estado e Império remetem ao domínio
sobre um determinado território e sobre uma determinada
população, sobre a qual é exercida, em última instância, a
pena de morte. No argumento de Frei Caneca, a concentração
de atribuições nas mãos do monarca tornava o Estado um
instrumento do seu capricho, rompendo o pacto fundado em
última instância na felicidade dos cidadãos e tornando-o um
instrumento da mera força. Nesse sentido, o termo oposto

307
ao de Estado era o de despotismo, significando o uso de mera
força sem o consentimento dos cidadãos, violando as leis prees-
tabelecidas e dispondo da organização pública conforme seus
caprichos pessoais.
O argumento favorável ao papel forte do monarca dentro do
Estado não defendia que este fosse o instrumento do capricho
pessoal; reconhecia a necessidade de que fosse limitado pela
Constituição, mas estabelecia uma outra oposição, além de
Estado e despotismo, qual seja, a possibilidade de que a ausên-
cia de um poder central forte leve à fragmentação do “país
em grande número de pequenos Estados inimigos; assim terão
que passar por séculos de matança e miséria antes que possam
ressurgir do estado de barbárie em que estarão submergidos”.24
O ex-ministro da Justiça, Diogo Antonio Feijó, destacava os
elementos que conferiam tranquilidade ao Brasil, e um deles era
a existência de um poder central que impedisse a fragmentação
em pequenos Estados, instáveis e sujeitos aos caprichos dos seus
generais. Tal situação afligia as antigas colônias espanholas, nas
quais os chefes locais utilizavam-se dos cargos públicos segundo
seus interesses.25
Os conflitos políticos que levaram à abdicação de D. Pedro
I (1831) e à elaboração de uma legislação descentralizadora
(1827-1834) alteraram profundamente o debate político brasi-
leiro. Essa legislação permitiu que diversas atribuições da Justiça
fossem exercidas por cidadãos ativos, eleitos ou escolhidos nos
municípios. Segundo seus defensores, os funcionários do Estado
iriam se comportar dentro das suas atribuições caso fossem
eleitos e suas decisões transpostas dos locais fechados para os
espaços públicos, nos quais estariam sob a vigilância dos cida-
dãos.26 Durante a eleição para os cargos e no desempenho das
suas funções, o cidadão ativo iria conhecendo e implantando
os limites entre o público e o privado, aplicando a justiça não
de acordo com seus interesses pessoais, mas de acordo com a
lei.27 Somente dessa maneira poder-se-ia impedir que o Estado
se tornasse o instrumento do capricho pessoal. Ezequiel Correa

308
dos Santos, um liberal exaltado, definiu no seu jornal diversos
termos, dentre eles o de Estado:

O que quer dizer Estado: é a forma de governo que a sociedade adota


e abraça para sua felicidade. Da definição se conclui que o governo
absoluto é tirânico; porque absorvendo todos os poderes e sendo em
benefício de uma só pessoa e seus sequazes não pode fazer a verdadeira
felicidade do Povo, a qual é o fim de todo governo; por isso, o Estado
absoluto só existe por engano, força.28

No argumento de Ezequiel Correa dos Santos, associar a ideia


de Estado à busca da felicidade implicava assegurar a partici-
pação dos cidadãos nos assuntos públicos, não como agentes
passivos, mas como eleitores e ocupantes de cargos no aparelho
público. A ideia de que a “sociedade abraça o Estado” deve
ser entendida como o envolvimento dos cidadãos ativos nos
assuntos públicos. Somente dessa maneira poderia ser evitado
o absolutismo, e a sociedade obteria a sua felicidade. A ideia de
um Estado absoluto é um contrassenso, pois o Estado não pode
estar assentado somente na força. O Estado não é apenas uma
técnica de organização política e social, mas possui um conjunto
de fins específicos – assegurar a felicidade e a participação dos
cidadãos e possuir uma Constituição que impeça o arbítrio.
Entre os anos de 1837 e 1843 essa legislação é revisada, emer-
gindo um conjunto de leis que centraliza o preenchimento dos
cargos do Judiciário no Executivo, esvaziando a participação dos
cidadãos na organização desse aparelho. Esse contexto político
ficará conhecido como o Regresso Conservador.
Para a corrente política que realiza esse projeto, o Executivo
desempenha um papel-chave no conceito de Estado:

É ele [o Executivo] quem encaminha a marcha do Estado, o pen-


samento e espírito nacionais para as ideias mais ou menos liberais,
para uma organização administrativa mais ou menos protetora, quem

309
reprime ou deixa impunes os abusos dos funcionários públicos (...)
e por isso sobre ele pousam as esperanças ou desgostos populares.29

O conceito de Estado repousa sobre uma organização adminis-


trativa, na qual a pessoa que ocupa um cargo não pode fazer uso
pessoal deste. Entretanto, o controle sobre esse aspecto passa a
estar concentrado no Executivo, deixando de ser uma tarefa dos
cidadãos ativos. Essa organização administrativa encontra-se
separada da política, a qual pode implicar princípios liberais ou
conservadores, de acordo com as oscilações da opinião pública.
Conjuntamente ao destaque conferido ao Executivo, essa
corrente enfatiza o papel da administração: “A administração
é o coração do Estado, é a sua mola central, dela deve partir a
vida, a energia para animar todos os meios do bem público.”30
No conceito de Estado ganha ênfase a ideia da separação entre a
administração e a política. A administração deveria ser deixada
longe das oscilações da política de maneira que os cargos públi-
cos não se tornassem instrumentos de perseguição política. Para
Uruguai e Bueno, o conceito de Estado é pensado a partir da
separação entre administração e política. A continuidade da
administração, um quadro de funcionários assalariados, dotados
de um treinamento específico, capazes de serem deslocados pelo
território nacional de maneira que não estabeleçam vínculos
com as localidades, garantindo que os direitos dos indivíduos
não sejam feridos:31 essa corrente reconhecia a incapacidade do
Estado para dispor de uma administração pública formada exclu-
sivamente por funcionários com esses atributos.32 Entretanto,
ao longo do século 19, ela buscou ampliar, através de reformas
parciais, a presença desse tipo de funcionário na administração
pública.33
Para essa corrente, o Estado é entendido como portador do
“interesse público”: “(...) o Estado (...) personifica o interesse
público e tem que absorver ou modificar certos direitos e certos
interesses individuais, sacrificando-os aos interesses gerais.”34
Segundo Joaquim Ribas, o Estado tem duas tarefas: na primeira,

310
compete-lhe defender a população das agressões externas; a
segunda seria subordinar ao fim social todos os fins parciais
das individualidades.35 Conforme esse autor irá escrever em
outro trecho, “cabe ao Estado promover os interesses gerais
ou coletivos”.36 A ideia que se manifesta nesses usos remete à
precedência do Estado enquanto portador do interesse geral
sobre os interesses particulares, e esse aspecto configura-se como
fundamental para a sua legitimidade.37
A partir de 1858, diversos autores buscam introduzir o Direito
Administrativo no debate político brasileiro. Essa formulação é
fortemente influenciada pelo Direito Administrativo francês. O
motivo teórico pelo qual se justificava tal empreendimento era o
seguinte: o Estado, como portador do interesse geral, não pode
entrar em contato com o particular como outro particular; as
regras jurídicas destinadas a dirimir os conflitos entre interesses
e direitos particulares, nesse caso, revelam-se inadequadas. O
Estado, enquanto portador do interesse geral, pode vir a ferir
legitimamente direitos e interesses particulares, sacrificando o
bem particular ao bem público. Nesse sentido, torna-se neces-
sário estabelecer o contencioso administrativo e a dualidade
jurisdicional. Reconhecem-se os direitos civis: não se trata de
negá-los, mas de estabelecer uma precedência legal do interesse
geral sobre o interesse particular.
Para essa corrente na definição do Estado, está presente a
ideia de que o interesse público corporificado no Estado segue
uma lógica distinta dos interesses particulares. Segundo essa
corrente, os motivos da ação assentada no interesse individual são
propensos ao egoísmo e incapazes de alcançar o interesse geral.38
Caso essa ação, movida pelos interesses individuais, fosse
colocada como o motor da ação do Estado, implicaria o sacri-
fício de bens coletivos. A própria ideia de “razão de Estado” é
formulada no sentido acima; sua legitimidade provém da neces-
sidade de ferir interesses individuais que, presos ao egoísmo, não
percebem uma dimensão mais ampla. Dentre os exemplos que
são mencionados como uma aplicação dos princípios do Direito

311
Administrativo à realidade brasileira encontrava-se o aprisiona-
mento das embarcações envolvidas no tráfico de escravos.

O apressamento de embarcações empregadas no tráfico e a liberdade


dos africanos apreendidos são questões da ordem judiciária. Contudo
o Conselho do Estado as julga em segunda instância, por virtude do
artigo 8º da Lei 581, de 4 de setembro de 1850. Razões de Estado.
Era preciso atacar vigorosamente o tráfico. A morosidade e o rigor das
formas judiciárias tornavam os tribunais judiciários menos próprios
para conseguir esse fim com o vigor e presteza que convinham.39

A ideia de razão de Estado aponta para a necessidade do


Estado – em situações nas quais a sua segurança encontra-se
ameaçada – de violar normas jurídicas, morais, econômicas e
políticas.40 No contexto histórico mencionado acima – o combate
ao tráfico escravo –, a razão de Estado não é apenas o mero
recurso à força em razão de sua sobrevivência. De acordo com
Uruguai, a escravidão era um obstáculo ao desenvolvimento da
sociedade brasileira.41 Entretanto, a própria sociedade não era
capaz de compreender o seu interesse geral. Segundo diversos
ministros da Justiça, existia na sociedade brasileira uma “crença”
favorável à continuidade do tráfico, fato que dificultava a sua
repressão. Essa crença era devido à difusão da escravidão na
sociedade brasileira. Os interesses dos grupos sociais envolvidos
no tráfico, os compradores e os traficantes, não permitiam que
se efetuasse um cálculo que envolvesse uma ponderação para
além da sua dinâmica imediata.
Essa compreensão do papel do Estado como personificando
um interesse geral inacessível aos particulares encontra amparo
em uma narrativa histórica na qual esse papel é posto em relevo.
A construção do conceito de Estado envolve mobilizar a ideia
de um processo histórico. Segundo Uruguai, “a História narra
longamente as seculares e porfiadas lutas”42 que tiveram que
ser travadas para superar a dispersão do poder característica da
sociedade feudal. Esse fracionamento do poder impediu que “as

312
nações da Europa marchassem com energia para um determinado
fim”.43 Essa análise acerca do feudalismo e do papel positivo da
concentração de atribuições no Estado é retirada da historiografia
doutrinária francesa. Dentre os autores citados por essa corrente
podemos encontrar tal ideia em François Guizot e Laferrière.
De acordo com Guizot, o Estado e a centralização, longe de
serem obstáculos para o desenvolvimento da civilização, são
seu principal esteio. O Estado não pode ser visto apenas como o
servo dos interesses da sociedade, mas deve ser vigiado para que
não fuja ao controle dela. Os interesses existentes na sociedade
devem ser capturados pelo Estado de tal maneira que revelem aos
agentes sociais uma esfera que não podem compreender apenas
pela sua posição social. Dessa maneira, o Estado, no pensamento
doutrinário francês, desempenha um papel distinto daquele do
liberalismo anglo-saxão.
O processo de superação da sociedade feudal produziu,
segundo Uruguai, uma dupla origem para a civilização europeia:
“A civilização europeia, que é a de todo mundo, tem uma origem
dupla: procede dos romanos e dos povos germânicos. Assim há
a Europa Latina e Europa Teutônica.”44 O Brasil pertenceria à
Europa Latina; nela predomina a “centralização” e existe pouco
espaço para o self-government: “(...) o indivíduo tem pouca inge-
rência nos assuntos públicos.” Segundo Uruguai, o Brasil não
tomou parte nas lutas do rei contra os senhores feudais, mas teve
a sorte de vir depois e aproveitar as instituições da civilização
latina: “Herdamos a centralização da Monarquia portuguesa.”45
Nesse modelo de Estado, o poder público assume a construção
do interesse geral, enquanto os cidadãos são movidos pelos seus
interesses egoístas. Dessa maneira, o Direito Administrativo,
com sua ênfase no tema do Estado como dispondo de um campo
jurídico de ação enquanto portador de um interesse geral, possui
uma enorme importância.
Tal concepção é fortemente combatida por Aureliano Candido
Tavares Bastos. Para esse autor, os males da sociedade brasileira
vividos naquele momento podem ser compreendidos corretamente

313
caso seja observado “o processo histórico”.46 Portugal, segundo o
autor, quando colonizou o Brasil, declinava quando comparado
à “Inglaterra, precursora da liberdade moderna”.47 E o que vem
a ser a liberdade moderna?

A história do progresso humano não é mais (...) do que as fases do


desenvolvimento (...) da liberdade (...) Em verdade, o progresso social
está na razão da expansão das forças individuais, de que essencialmente
depende, como se não há de condenar o sistema político que antepõe
ao indivíduo o governo, a um ente real um ente imaginário.48

Expressando a mesma ideia, mas com outras palavras: “(...)


vivemos num século de interesses práticos.”49 O Brasil teria
herdado de Portugal um Estado que tolhe a liberdade. Os males
que afligem o Brasil são o resultado de um princípio político
que imprime sua marca, independentemente do partido ou do
ocupante do cargo:

A meu ver, os erros administrativos e econômicos que afligem o


Império não são exclusivamente filhos de tal ou tal indivíduo que há
subido ao poder, de tal ou tal partido que há governado: constituem
um sistema seguido compacto, invariável. Eles procedem todos de
um princípio político afetado de raquite, de uma ideia geradora fun-
damental: a onipotência do Estado, e no Estado a máquina central, e
nesta máquina certas e determinadas rodas que imprimem movimento
ao grande todo.50

No argumento de Tavares Bastos, podemos assinalar a ideia de


um processo histórico e de um princípio político que imprimem
um sentido, independentemente da vontade dos atores. A mesma
ideia podemos encontrar no seu adversário político, o Visconde
do Uruguai. De acordo com este, ao redigir seu livro, buscou
evitar “apreciações” pessoais; seu olhar procurou analisar as
“peças” do “sistema” e observar a “História”, os “costumes”, os

314
“recursos da indústria”, os “hábitos religiosos” que lentamente
vão conformando o comportamento dos indivíduos.51 Em ambos,
o conceito de Estado é pensado a partir do processo histórico e
dos elementos sociais que transmitem seu sentido a despeito da
intenção dos atores.
Segundo Tavares Bastos, no Brasil o Estado bloqueia a liber-
dade e o desenvolvimento, pois ocorre “a intervenção do Estado
em todas as esferas da atividade social, desde a indústria até a
religião, desde as artes até as ciências. Há depois a absorção dos
interesses da circunferência no centro, a acumulação de negó-
cios diversos em um ponto único”.52 Por sua vez, o Visconde do
Uruguai define o Estado como personificação do interesse geral,
tendo como função guiar os interesses egoístas para o bem-estar e
grandeza nacionais. Em sentido distinto, Tavares Bastos entende
que o Estado deveria agir como o garantidor da expansão dos
interesses individuais, e dessa expansão viria a liberdade. A
própria forma de governo, monarquia ou república, seria um
aspecto secundário; o principal seria que o Estado permitisse
“a mais plena expansão”53 dos interesses individuais. Para esse
autor, a introdução do Direito Administrativo é um elemento que
irá apenas reforçar a ideia mencionada acima: a onipotência do
Estado e o bloqueio dos interesses individuais e da liberdade.54
No final da década de 1850, as leis do Regresso Conservador
começam a ser rediscutidas; seus adversários alegam que teria
havido um excesso centralizador. A magistratura teria se
tornado refém do poder central. As leis ficavam na dependência
da conveniência do partido no poder. O cargo público era um
instrumento para perseguir adversários. Tal problema recebe
de Tavares Bastos e do Visconde do Uruguai análises distintas.
Para Tavares Bastos, a principal ameaça do despotismo não
provém da sociedade, mas da presença excessiva do Estado: “(...)
no Brasil (...) deve-se recear a prepotência da autoridade.”55 A
prepotência da autoridade nasce de um Estado que antepõe o
indivíduo e seus interesses ao aparelho público. O Estado, ao
invés de representar a sociedade, teria como meta controlar e

315
esvaziar os interesses desta; eis a causa da violação da liber-
dade. No pensamento do Visconde do Uruguai, o despotismo
provém principalmente da sociedade brasileira, que ao longo
da sua história não teria sido formada no self-government, nem
possuiria a “semelhança dos elementos sociais” necessária para
tal organização.56 Os elementos que caracterizam o Estado cons-
titucional são assegurados pela separação da administração da
política, pelo aperfeiçoamento dos seus mecanismos – o tema
do Direito Administrativo –, pela fiscalização do Legislativo e
pela precedência do interesse geral.
O Visconde do Uruguai e Tavares Bastos representam concep-
ções distintas de Estado e do funcionamento deste na sociedade
brasileira. Para o Visconde do Uruguai, o modelo de Estado era
proveniente do que ele designava como “Europa Latina”; seus
autores mais citados e que lhe servem de base provêm do Direito
Administrativo francês e da escola doutrinária. A história revela
dois modelos de organização estatal: um seria característico
dos povos latinos, enquanto o outro estaria ligado aos povos
anglo-saxões.
No seu modelo de Estado, os interesses individuais consti-
tuem-se como um elemento fundamental do progresso da socie-
dade; é este que distingue o selvagem do civilizado. As diversas
revoltas que haviam sacudido o Império eram, em parte, devidas
à inexistência dos laços de interesse entre os homens pobres livres,
porém sua dinâmica é egoísta, incapaz de apreender o “interesse
geral” da sociedade. Somente o Estado, num modelo de organi-
zação centralizado, pode introduzir esse elemento. Tal aspecto
é reforçado pela sua compreensão da sociedade brasileira e sua
história. A colonização portuguesa não introduziu práticas que
preparassem a sociedade para o self-government, entretanto tal
aspecto não se constitui por si só um problema, pois conforme
ele mesmo escreve, “herdamos a centralização da monarquia
portuguesa”, aspecto que conferiu unidade ao Estado brasi-
leiro e o colocou na ordem dos países latinos. No entanto, essa
sociedade é marcada pela heterogeneidade social e pela ausência

316
de laços econômicos entre as diversas regiões que compõem o
Império; somente o Estado pode vislumbrar a unidade que não
existe no plano do costume e da economia. O tema da adminis-
tração ganha enorme importância. O Estado, como um órgão
no qual os cargos não pertencem ao ocupante, deve possuir uma
administração separada das oscilações da política.
Tavares Bastos concebe o Estado como o garantidor da
expansão dos interesses individuais e da liberdade que advém
desse fato. O processo histórico revela que o progresso resulta da
expansão dos interesses individuais. Portugal, em razão do seu
atraso, teria transplantado para o Brasil um Estado adversário
dessa ideia. A independência não teria representado uma ruptura
com esse Estado. Apenas durante o Ato Adicional (1834) houve
uma tentativa, logo interrompida pelo Regresso Conservador,
de reformar esse Estado. Nesse sentido, o autor entende que
o principal elemento não reside no reforço da administração,
mas no recuo do poder de intervenção e de regulação do Estado
sobre a sociedade.

NOTAS
1
Apud Antonio Manuel Hespanha, Angela Barreto Xavier, A representação
da sociedade e do Poder, em Antonio Manuel Hespanha (coord.), História de
Portugal, Lisboa, Estampa, 1993, v. 4: O Antigo Regime, p. 140.
2
Ibidem.
3
Antonio de Moraes Silva, Dicionário da língua portuguesa, recopilado dos vo-
cabulários impressos até agora, e nesta segunda edição novamente emendado,
e muito acrescentado, Lisboa, Tipografia Lacerdina, 1813.
4
Revérbero Constitucional Fluminense, Rio de Janeiro, Tipografia Nacional,
22-I-1822.
5
José Antonio de Miranda, Memória constitucional e política sobre o estado
presente de Portugal e Brasil, Rio de Janeiro, Typographia Regia, 1821, p. 14.
6
Revérbero, p. 104, 8-I-1822.
7
Miranda, Memória constitucional, p. 28-32.
8
Revérbero, p. 128, 22-I-1822.
9
Miranda, Memória constitucional, p. 42.

317
10
Ibidem, p. 45-46.
11
Ibidem, p. 46-47.
12
Ibidem, p. 47.
13
Norberto Bobbio, Michelangelo Bovero, Sociedade e Estado na filosofia política
moderna, São Paulo, Brasiliense, 1987.
14
Miranda, Memória constitucional, p. 88-89.
15
Ibidem, p. 88.
16
Revérbero, p. 123, 30-VII-1822.
17
Ibidem, p. 231, 19-III-1822.
18
Ibidem, 6-VIII-1822.
19
Ibidem.
20
Frei Joaquim do Amor Divino Caneca, Sermão de aclamação a D. Pedro I (1823),
em Frei Joaquim do Amor Divino (1777-1825), Evaldo Cabral de Mello (org.
e int.), São Paulo, Editora 34, 2001, p. 224.
21
Ibidem, p. 217.
22
Frei Joaquim do Amor Divino Caneca, Typhis Pernambucano (29-I-1824), em
Frei Joaquim do Amor Divino (1777-1825), Evaldo Cabral de Mello (org. e
int.), São Paulo, Editora 34, 2001, p. 345.
23
Frei Joaquim do Amor Divino Caneca, O Caçador (1823), em Frei Joaquim
do Amor Divino (1777-1825), Evaldo Cabral de Mello (org. e int.), São Paulo,
Editora 34, 2001, p. 564.
24
Silva Lisboa (1822) apud Lúcia Bastos Pereira das Neves, Corcundas e consti-
tucionais, Rio de Janeiro, Revan, FAPERJ, 2003, p. 186.
25
Diogo Antonio Feijó, Causas da tranquilidade do Brasil (1834), em Diogo An-
tonio Feijó (1784-1843), Jorge Caldeia (org.), São Paulo, Editora 34, 1999, p.
136.
26
A Malagueta, Rio de Janeiro, 13-II-1829; A Nova Luz Brasileira, Rio de Janeiro,
7-I-1831; O Astro de Minas, Rio de Janeiro, 28-VI-1832.
27
Ver Aurora Fluminense, Rio de Janeiro, 3-IX-1832, 15-II-1833.
28
A Nova Luz Brasileira, 30-I-1830.
29
José Antonio Pimenta Bueno, Direito público brasileiro e a análise da constituição
do império (1858), Brasília, Senado Federal, 1978, p. 250.
30
Ibidem, p. 255.
31
Paulino José Soares de Uruguai (Visconde do Uruguai), Bases para uma melhor
organização das administrações provinciais, Rio de Janeiro, Typografia Nacional,
1858.
32
Ibidem; Maria Sylvia de Carvalho Franco, Homens livres na ordem escravocrata,
4. ed., São Paulo, Editora Unesp, 1997, p. 53.

318
33
Nicolau Tolentino, Relatório de presidência da província do Rio de Janeiro,
1856/1858; Uruguai, Bases para uma melhor organização; Paulino José Soares
de Uruguai (Visconde do Uruguai), Ensaio sobre o direito administrativo (1862),
Brasília, Ministério da Justiça, 1997.
34
Uruguai, Ensaio sobre o direito administrativo, p. 61.
35
Joaquim Ribas, Direito administrativo brasileiro, Rio de Janeiro, Pinto Livreiros,
1866, p. 46.
36
Ibidem, p. 46-47.
37
Ibidem, p. 5; Uruguai, Ensaio sobre o direito administrativo, p. 73; Vicente
Pereira do Rego, Elementos de direito administrativo brasileiro para uso das
faculdades de direito do Império pelo Dr. Vicente Pereira do Rego, Recife,
Typographia Commercial de Geraldo Henrique de Mira & C, 1860, p. 8.
38
Ribas, Direito administrativo brasileiro, p. 46; Uruguai, Ensaio sobre o direito
administrativo, p. 63.
39
Uruguai, Ensaio sobre o direito administrativo, p. 72.
40
Friedrich Meinke, La esencia de razón de Estado, em La idea de la razón de Estado
en la edad moderna, Madrid, Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales,
1997.
41
Ver Brasil, Anais da Câmara dos Deputados, 15-VII-1850.
42
Uruguai, Ensaio sobre o direito administrativo, p. 345.
43
Ibidem, p. 344.
44
Ibidem, p. 415.
45
Ibidem, p. 345.
46
Aureliano Candido Tavares Bastos, Os males do presente e as esperanças do
futuro (1861), São Paulo, Ed. Nacional, 1975, p. 39.
47
Idem, A província (1870), São Paulo, Ed. Nacional, 1937, p. 70.
48
Ibidem, p. 19.
49
Ibidem.
50
Idem, Os males do presente, p. 12.
51
Uruguai, Ensaio sobre o direito administrativo, p. 6-8, 42, 345.
52
Bastos, A província, p. 21.
53
Ibidem, p. 68.
54
Ibidem, p. 109.
55
Ibidem, p. 222.
56
Uruguai, Ensaio sobre o direito administrativo, p. 353.

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322
CHRISTIAN E D WA R D CYRIL LYNCH

LIBERDADE

Embora seja razoável reconhecer que o impacto do conceito


de liberdade seja diverso em cada comunidade nacional, tendo
em vista os contextos políticos, sociais e econômicos particula-
res que plasmam a cultura política de cada uma delas, é preciso
chamar a atenção para o caso particular dos países da América
Ibérica. No ambiente europeu e da Nova Inglaterra, o conceito
de liberdade impactou sociedades que, apesar de hierárquicas,
eram marcadas por certa homogeneidade cultural e étnica, real ou
imaginada. Essa homogeneidade era flagrantemente menos visí-
vel na América Ibérica, onde o mestiçamento dos povos ibéricos
com povos autóctones e outros, trazidos de continentes, como
o africano, conferiram à sociedade uma complexidade extra-
ordinária, que lançava novos ingredientes sobre as hierarquias
preexistentes no mundo europeu ocidental. O caso do Brasil é
paradigmático dessa complexidade, na medida em que, além da
mestiçagem da população de origem europeia com a indígena,
foi o país do subcontinente que recebeu um maior contingente de
origem africana e, pior, escravizada. O Dicionário de Bluteau de
1789 possui nove sentidos para a palavra liberdade, quatro dos
quais são relevantes para compreender o conceito de liberdade
no Brasil entre 1770 e 1870: liberdade como autodeterminação
no plano internacional; liberdade como status pessoal; liberdade
no contexto da construção da nação; e, por fim, liberdade no
contexto de construção do Estado.

323
Conforme referido, o primeiro sentido trata da compreensão
da liberdade como sinônimo de independência nacional e de
capacidade para mantê-la ou adquiri-la. Ela vinha prevista já no
Dicionário de Bluteau de 1789: “O estado da nação, que não
reconhece superioridade a outra.”1 Como se percebe, ela mantém
vínculos com a linguagem do republicanismo clássico, opondo-
-se à ideia de escravidão e de cativeiro da comunidade política,
subjugada por outra, estrangeira. Essa conotação da liberdade
nacional no âmbito da ordem internacional surge, por exemplo,
em 1813, no jornal O Patriota, editado por Manuel Ferreira
de Araújo no Rio de Janeiro, sede da monarquia absolutista
portuguesa. De caráter acentuadamente governista, o artigo em
questão alude à libertação da península Ibérica dos “godos”, isto
é, dos exércitos franceses. A liberdade, segundo o articulista, era
uma força vinculada ao “patriotismo”. Ao contrário do que ele
dizia em suas manifestações públicas, “o déspota do continente”,
Napoleão Bonaparte, não pretendia “devolver a liberdade” à
Polônia, e sim subjugá-la no pior “cativeiro”; do mesmo modo,
o objetivo das coligações antibonapartistas e seus “escravos”
(leia-se soldados) era o de restituir “a liberdade” à Europa. Se o
imperador da Áustria havia sido reduzido por Napoleão à condi-
ção de um “rei escravo”, o rei da Prússia convidava seus vassalos
a “sustentarem o nobre empenho da liberdade da Europa”.2
Como se percebe, nessa dimensão, o conceito de liberdade se
aplica como sinônimo de autodeterminação das comunidades
políticas no plano internacional, nada tendo a ver com o status
de liberdade individual no interior da comunidade política. O
que se defende é a soberania nacional, pouco importando se o
governo desse país seja constitucional ou absoluto.
Nessa mesma seara, surge o tema da liberdade enquanto
capacidade do povo da América portuguesa de ser livre, no
sentido de ser independente de Portugal. Nessa chave, a liber-
dade (independência) era entendida como o resultado natural
do progresso das Luzes, ou seja, da civilização. No período
colonial, frequentemente se justifica o governo metropolitano

324
sobre a colônia pela inaptidão dos colonos ao autogoverno. A
falta de liberdade dos súditos é essencial ao primado da ordem
e da justiça, já que, maus e ignorantes, os habitantes da colônia
tenderiam aos maus costumes e à anarquia. Ao aludir, por exem-
plo, à tentativa efetuada por habitantes da capitania de Goiás
de questionarem a autoridade do capitão-general nomeado pela
Coroa vice-rei do Brasil, o Marquês do Lavradio, negava peremp-
toriamente a capacidade daqueles “povos sumamente inquietos
e turbulentos” de possuírem “a liberdade de se nomearem”
governo próprio, “poder que só pertence ao Rei ou às pessoas
a quem ele o quer delegar”. Uma característica que patenteava
a falta de aptidão da população da terra à liberdade era sua
aversão ao trabalho. “A preguiça destes habitantes é sumamente
extraordinária”, escrevia Lavradio em 1770, para quem as gentes
da terra não tinham “interesse que os anim[asse]”, esmorecendo
“com grande facilidade”. Daí a “decadência e miséria em que
se achavam estes povos”.3 A solução estava em que o governo
metropolitano compelisse os livres ao trabalho, sempre, porém,
com justiça, doçura e jeito.
Depois da independência, a autonomia do novo Estado
brasileiro haveria de ser justificada a partir do mesmo quadro
explicativo: a sociedade colonial se desenvolvera a ponto de se
autogovernar e emancipar-se de Portugal. Não se questionava
o postulado básico de Lavradio, isto é, que havia povos feitos
para serem governados por outros devido à sua incapacidade
para o autogoverno. Argumentava-se, sim, que o Brasil amadu-
recera o suficiente para conseguir sua liberdade. Tomando
como base a teoria da perfectibilidade humana de Benjamin
Constant, para fazer uma analogia entre o indivíduo e as nações
infantes, o Espectador Brasileiro declarava em 1824 que força
alguma era capaz de “impedir a marcha de uma nação, que
se decidiu a tomar uma posição respeitável na brilhante linha
dos povos civilizados”. Desde que a opinião pública atingisse
um determinado grau de esclarecimento, seria impossível que
a nação permanecesse sob o jugo da tirania ou dependente de

325
outra nacionalidade, pois ela fatalmente haveria de escutar “a
voz da liberdade e da independência”. Havia, porém, sempre
grande preocupação com a repercussão da independência junto
às potências europeias, refletindo a apreensão do governo brasi-
leiro acerca do reconhecimento internacional do novo país. O
medo era o de que, junto à opinião europeia, o Brasil ainda fosse
julgado demasiado atrasado para ser livre. Eis por que incum-
bia aos brasileiros provar à Europa que nossa independência,
sob o signo da monarquia constitucional, “não foi feita com
precipitação de um louco entusiasmo”, mas como resultado
de um processo de esclarecimento. E lamentava que a Europa
desconhecesse o grau de maturidade a que os brasileiros teriam
chegado: “Nós somos no seu conceito uma nação atrasada, um
povo imberbe, esquecido na ignorância das artes e das ciências.”4
A independência do Brasil era assim o consectário da consciência
da liberdade adquirida pela opinião pública brasileira, graças ao
seu progresso em matéria de esclarecimento e civilização.
A segunda dimensão do conceito de liberdade que circulava
no Brasil do período se refere à liberdade como status pessoal.
Neste caso, percebe-se no período que ela possui três diferentes
acepções: a antiga, a jacobina e a “bem-entendida” ou “consti-
tucional” (liberal). Na primeira acepção, o dicionário distinguia
entre a liberdade metafísica, entendida como “a faculdade, que
a alma tem de fazer ou deixar de fazer alguma coisa, como mais
quer”, e o sentido moderno da liberdade civil, descrito à maneira
de Montesquieu: “a faculdade de poder fazer impunemente, e sem
ser responsável, tudo o que não é proibido pelas leis, sem haver
quem arbitrariamente tome conhecimento disso.”5 Essa tentativa
de distinguir entre o conceito metafísico e o civil da liberdade
encontra ilustração anterior no Tratado do Direito Natural do
mineiro Tomás Antônio Gonzaga (1772). A “liberdade natural”
era o “livre-arbítrio”, isto é, a “liberdade da alma”, a “liberdade
moral”. No paradisíaco “estado de natureza”, o homem empre-
gava adequadamente o seu livre-arbítrio, ou seja, fazia um uso de
sua “consciência” que o levava a obedecer às “leis naturais”, de

326
modo que a “liberdade moral”, interna, encontrava correspon-
dência na “liberdade externa”. Depois do pecado original e da
expulsão do “estado de natureza”, porém, o homem perdera a
inocência, esquecendo os ditames da “lei natural” para empregar
seu livre-arbítrio em ações que satisfizessem os “seus apetites
torpes e depravadas paixões”. Daí que Deus aprovara “as socie-
dades humanas”, a que o homem era naturalmente inclinado, por
temor das maldades próprias e alheias. Nelas, o homem mau ou
ignorante seria obrigado pelos governantes a praticar as ações
justas prescritas pela lei natural, por meio da lei civil, destinada
a cercear a “liberdade física” com ela incompatível. Como era a
própria lei natural que podava a “liberdade externa” dos súditos,
eles estavam obrigados a obedecer aos seus monarcas, incum-
bidos de tutelá-los para manter o primado da justiça de Deus
na Terra. Refutando Grócio, Gonzaga negava que a lei natural
pudesse ter validade ainda que Deus não existisse; a sociedade
civil havia sido criada não apenas para impor a paz, mas para
que ela pudesse cumprir suas obrigações para com Deus.6
Não tardou, porém, o advento da conotação revolucionária
ou jacobina de liberdade como status pessoal, ou seja, como
oposição violenta ao governo injusto e ao desejo igualitário de
participação política nos negócios públicos. No aviso ao povo
brasiliense, lançado pelos sediciosos de Salvador em 1798, a
liberdade consistia “no estado feliz, no estado livre de abati-
mento: a liberdade é a doçura da vida, o descanso do homem
com igual paralelo de uns para os outros; finalmente, a liberdade
é o repouso e a bem-aventurança no mundo”. A origem da
ideologia do movimento era a República francesa, sobre a qual
todas as nações do mundo tinham os olhos fixos; “a liberdade
é agradável a todos”. Ecoando Rousseau, a liberdade chegava
à Bahia de braços dados com a igualdade e a fraternidade,
numa moldura republicana que pregava o restabelecimento da
liberdade originária e a consequente derrubada do “rei tirano”.
Vitoriosa a revolução, “todos serão iguais, não haverá diferença;
só haverá liberdade, igualdade e fraternidade”.7 Pouco depois,

327
por ocasião da repressão à chamada Conjuração carioca de 1794,
o vice-rei, o Conde de Resende, também acusou os membros de
uma sociedade literária do Rio de Janeiro de sustentarem que

os reis não são necessários; que os homens são livres e podem em


todo o tempo reclamar a sua liberdade; que as leis por que se governa
a nação francesa são justas; e que o mesmo que aquela nação praticou
se devia praticar neste continente; que a Sagrada Escritura, assim como
dá poder aos reis para castigar os vassalos, o dá aos vassalos para
castigar os reis.8

Exagerada, evidentemente, para aqueles que defendiam a


monarquia absoluta, essa concepção exaltada da liberdade não
era vista com olhos muito melhores por aqueles que aderiram
ao movimento constitucionalista e pretendiam uma liberdade
liberal, ou seja, “constitucional”. Segundo o “catecismo constitu-
cional” do periódico baiano A Idade d’Ouro do Brasil, em artigo
datado de 1821, o povo francês fizera um grande abuso da pala-
vra liberdade. Diante das “várias significações” do conceito, ele
chamava a atenção para o significado político “bem-entendido”
da liberdade: era aquela “que se goza debaixo dos governos
sábios e justos, nos quais conta cada um com a segurança de sua
pessoa e bens, sem receio que a malícia do seu vizinho o faça
suspeito ao Estado”. Ao contrário da “liberdade selvagem”, que
era a jacobina, a “liberdade política”, liberal, era regulada pela lei
para que pudéssemos dispor dos nossos interesses, sem prejudicar
o Estado ou o bem-estar dos demais cidadãos. “Nos governos
constitucionais, ninguém é livre para o mal: a Constituição corta
o abuso dos tribunais; cada indivíduo pode gritar pela lei em seu
abono.”9 Esse sentido “bem-entendido” do conceito de liberdade
foi central no desenvolvimento do regime monárquico brasileiro.
Assim, por exemplo, na década de 1830, o governo moderado
que prevalecia durante o período regencial ecoava a cantilena da
liberdade bem-entendida por seus principais órgãos da imprensa.
Exemplo disso estava n’O Novo Farol Paulistano, de Costa

328
Carvalho: “A moderação é a nossa divisa. Nas circunstâncias
atuais, nenhuma virtude é tão necessária: aborrecemos tudo
quanto é excesso; os excessos são incompatíveis com a liberdade
e com a prosperidade da pátria.”10 Em 1858, o Dicionário de
Moraes fez anotar expressamente essa concepção de liberdade,
ao distingui-la cuidadosamente do conceito de independência:
“Em política e em moral, não há liberdade sem dependência; e
por esta razão a dependência, que põe limites à liberdade, fixa
a sua extensão e assegura o gozo dela.”11
O terceiro sentido ou dimensão geral que apresentava o
conceito de liberdade no Brasil diz respeito ao lugar ou ao papel
da “liberdade bem-entendida” no debate ideológico dos dois
partidos que disputavam o poder em torno de projetos alterna-
tivos de construção do Estado: o Partido Liberal ou luzia, e o
Conservador ou saquarema. Em linhas gerais, pode-se dizer que
os liberais eram majoritoriamente vinculados à grande proprie-
dade rural e seguiam mais de perto a matriz liberal anglo-saxã,
para quem a liberdade dos cidadãos era garantida pela não
interferência do Estado na esfera privada. A única intervenção
legítima do Estado, além da garantia da ordem pública, se dava
no intuito de dinamização da economia agrária, pelos investimen-
tos em transportes para o escoamento da produção e na garantia
do abastecimento de mão de obra destinada à grande lavoura.
Daí que, logo depois de instaurada a liberdade de imprensa, em
1821, os jornais ligados aos interesses da lavoura, como A Idade
d’Ouro do Brasil, sustentassem que o Estado deveria deixar de
perturbar os fazendeiros “com chicanas sobre a demarcação
de suas terras”. O personagem símbolo do despotismo, isto é,
do Estado, era o funcionário, que se intrometia nos negócios
de suas fazendas, regulando a economia e as relações sociais,
embaralhando as relações e as hierarquias no interior do país,
favorecendo uns em detrimento de outros – isto é, do “povo”.
Segundo o “sistema da corte”, apenas aqueles “mandões” – os
funcionários – eram livres, mas para praticar o mal; “o povo
há de gemer e calar”. Eis por que “o povo” (leia-se: a grande

329
propriedade rural) “quer a Constituição e os mandões a detestam
como peste”.12
Em matéria de organização do Estado nacional, os seguido-
res dessa orientação tenderam à apologia do parlamentarismo
como sistema de governo e da descentralização como forma
de Estado, chegando frequentemente à defesa do federalismo.
Para os liberais ou luzias, esses eram desenhos institucionais
essenciais à garantia da liberdade, porque deixavam os cidadãos
e produtores econômicos livres para operarem conforme seus
interesses. O mais notável arauto dessa concepção “negativa” de
liberdade na década de 1860 foi o deputado alagoano Aureliano
Candido Tavares Bastos. Ao invés de condenar o conflito como
manifestação do particularismo, o Estado brasileiro deveria
valorizar “o espírito livre da empresa particular”,13 desregulando
a economia, promovendo a concorrência entre os produtores
nacionais e estrangeiros, cassando monopólios, privilégios e
protecionismos alfandegários. O Estado deveria se limitar ao
papel de “representante e, por assim dizer, o comissário de uma
nacionalidade, cujas funções se limitam a manter a ordem e distri-
buir a justiça”.14 Segundo Tavares Bastos, “para que um povo
se aperfeiçoe e aumente em virtudes, é mister que seja livre. É a
liberdade que excita o sentimento da responsabilidade, o culto
do dever, o patriotismo, a paixão do progresso”. Toda a orien-
tação adversária, isto é, do Partido Conservador ou saquarema,
pressupunha um regime de tutela do Estado sobre o indivíduo
que, para Tavares Bastos, era intolerável:

Negam ao país aptidão para governar-se por si, e o condenam por


isso à tutela do governo. É pretender que adquiramos as qualidades e
virtudes cívicas, que certamente nos faltam, sob a ação de um regime
de educação política que justamente gera e perpetua os vícios opostos.15

De fato, a ala direita do espectro político, corporificada no


final da década de 1830 no Partido Conservador, sustentou
sempre a impossibilidade de criar e manter o Império, isto é, o

330
novo Estado nacional, sem garantias de ordem e de autoridade
que compensassem o potencial disruptivo da liberdade; por isso
reforçavam o papel do imperador e da centralização política. De
uma forma geral, essa orientação era tributária do despotismo
ilustrado e pressupunha a tese de que a sociedade brasileira era
ainda insubsistente, frágil, e que era a necessidade de reforçá-la
e protegê-la da desagregação que impunha o fortalecimento da
autoridade do Estado. Assim, por exemplo, quando da Revolta
Pernambucana de 1817, deflagrada em nome da liberdade, os
defensores da Coroa alegavam que ela não passava de pretexto
para que os grandes senhores rurais, livres da tutela do monarca,
melhor oprimissem o povo miúdo: “A liberdade é capaz de tudo.
Os soldados fazem roubos de noite e de dia, e os que governam
esta cáfila de ladrões andam com o olho em quem tem alguma
pataca. Não se vê aqui senão fidalgos e valentões que querem
esmagar tudo.”16 O já referido Espectador Brasileiro sustentava,
em 1821, que a liberdade, para ser verdadeira, deveria estar
vinculada à centralização monárquica, capaz de preservar a
ordem pública e garantir a nova ordem nacional: “A liberdade
procura um centro para não se confundir com a licença; a liber-
dade quer, em todos, uniformidade de ideias e de sentimentos.”17
Quase 50 anos depois, o principal chefe do Partido Conservador,
um saquarema, José Joaquim Rodrigues Torres, Visconde de
Itaboraí, repetiria no Senado a concepção de liberdade defendida
pelos conservadores ou saquaremas:

A liberdade que é licença e desordem, o Partido Conservador repele e


detesta; a liberdade que é condição suprema e indeclinável da dignidade
e da vida dos povos livres, o Partido Conservador zela e a quer. Se a
liberdade é pretexto para oprimir direitos, ela é uma ficção detestável;
se a liberdade é o símbolo da anarquia, traduzida pela igualdade da
servidão, nós, os conservadores, a não queremos. 18

Para Itaboraí, a liberdade bem-entendida era a liberdade legítima,


a liberdade constitucional: “Os princípios de ordem, que têm

331
sido a crença e a prática do nosso partido, não os abandonemos,
não; seja-nos com eles cara a liberdade constitucional.”19
Considerada em perspectiva mais ampla, nessa concepção
conservadora, o Estado nacional não surge como o destruidor
da liberdade, mas, ao contrário, como o agente civilizador, que
garante a liberdade não apenas para os grandes proprietários,
mas também para aqueles que os grandes proprietários opri-
miam dentro de seus latifúndios. Essa concepção “positiva” de
liberdade, que via com bons olhos a expansão do Estado e o
papel do “funcionário”, teve seu mais eminente representante na
pessoa de Paulino José Soares de Sousa, Visconde do Uruguai,
prócer conservador. Discursando na Câmara contra os liberais
revoltados em Minas e em São Paulo em 1842, Uruguai susten-
tava que, sem a ordem institucional do Estado, a liberdade não
passava de feudalismo e anarquia.

Eu amo sim, certamente, a liberdade; devo-lhe muito. É por isso


que entendo que se devem empregar todos os meios para salvar o
país do espírito revolucionário, porque este produz a anarquia, e a
anarquia destrói, mata a liberdade, a qual somente pode prosperar
com a ordem.20

Segundo Uruguai, não era possível estabelecer a liberdade num


ambiente previamente estabilizado pela ordem do Estado, que
tinha um papel civilizador a desempenhar num ambiente social-
mente desregrado como aquele do Brasil depois da independên-
cia. Nos Estudos práticos sobre a administração das províncias
do Brasil, de 1865, ele registrava que, frente à realidade de
abandono e isolamento das populações do interior, dominadas
pelos senhores rurais, a tarefa integradora e reguladora do Estado
nacional estava apenas no início. Para Uruguai, “a grande missão
liberal do Partido Conservador tem sido a de combater e derrocar
esses castelos, senão a bem da liberdade (dominação) de poucos,
a bem da liberdade de muitos”.21

332
O quarto e último sentido ou dimensão do conceito de liber-
dade, decorrente do anterior, dizia respeito ao problema da
construção da nação, porque tocava no grave e sensível problema
da escravidão disseminada no país a partir do tráfico africano.
Veja-se que o Dicionário de Bluteau de 1789 já o previa ao dar,
como equivalente de liberdade, a “alforria, que consegue ou
se dá ao cativo”.22 Em 1844, no Dicionário de Moraes, surgiu
expressamente um exemplo desse sentido, tirado da realidade:
“(...) dar as liberdades: aos escravos que vão do Brasil etc. a lei
manda que ao entrar no Reino fiquem forros.”23 No verbete
“negro”, a versão de 1813 do Dicionário de Moraes estabelecia
a equivalência entre homem negro e escravo: “Cor negra: v.g.
vestido de negro. Homem preto: v.g. comprei um negro.”24
Na América portuguesa, predominavam dois sentidos no
conceito de escravidão: o político e o civil. No sentido político,
a escravidão era um termo empregado pelas elites para designar
a falta de liberdade da colônia em face da metrópole e, depois
da independência, a falta de liberdade da classe proprietária
em face do Estado, devido à centralização política ou ao poder
pessoal do imperador. No sentido civil, porém, a escravidão
aludia à condição dos escravos negros, ou seja, a toda uma
parcela da população que estava à margem da cidadania. As
esferas política e civil simplesmente não se misturavam. Era
rotineiro, assim, que jornais liberais da primeira metade da
década de 1830, como o moderado Astro de Minas, de Bernardo
de Vasconcelos, ou mesmo o radical Sentinela da Liberdade, de
Cipriano Barata – cujas seções políticas atacassem o “despo-
tismo” do governo, ou o estado de “escravidão” a que as Cortes
portuguesas queriam reduzir o Brasil, ou contra a interferência
do imperador na política –, apresentassem em seus classifica-
dos anúncios de compra e venda de “escravos” para servir os
leitores com amas de leite, cozinheiros, pajens, mordomos,
cocheiros, carroceiros etc. Diogo Antônio Feijó, padre e senador
liberal de tendência federalista que chegou à condição de regente
do Império, chegava mesmo a explicar, em 1835, que a elite

333
branca e proprietária brasileira, isto é, a “nação”, era democrá-
tica e amante da liberdade, justamente porque era senhora de
escravos. O “sentimento de igualdade profundamente arraigado
no coração dos brasileiros” devia-se, segundo Feijó, ao fato de
que a escravidão lhes incutira no espírito, enquanto senhores
de escravos, um “caráter já de independência e soberania que o
observador descobre no homem livre, seja qual for o seu estado,
profissão ou fortuna”. Quando o “cidadão”, isto é, o senhor de
escravos, percebia “desprezo ou ultraje da parte de um rico ou
poderoso desenvolve-se imediatamente o sentimento de igual-
dade; e se ele não profere, concebe ao menos no momento este
grande argumento: Não sou seu escravo”.25 Ou seja, a virtude
pública da liberdade e da cidadania para as camadas superiores
da sociedade surgiria da opressão exercida no âmbito privado
contra as camadas inferiores.
É certo que o problema da escravidão negra se justificava aos
olhos das elites locais de uma forma mais abrangente, porque
todos os que não eram brancos e pertencentes aos estratos supe-
riores da sociedade eram geralmente vistos como indolentes e
indispostos ao trabalho e por isso potencialmente passíveis de
a ele serem obrigados mediante coerção. Viu-se que essa era a
visão, em 1770, do vice-rei, o Marquês do Lavradio; no entanto,
ela continuava fortemente presente na visão de mundo dos
grandes proprietários rurais cerca de cem anos depois. As atas
do Congresso Agrícola de 1878 demonstram que boa parte dos
grandes proprietários rurais, sequiosa de mão de obra barata,
acreditava ser dever do governo tomar providências para

acabar com a vadiação. Nos povoados do interior, em cada porta


de venda, encontram-se quatro, cinco, seis e mais libertos ou emanci-
pados, que não querem trabalhar. Pois bem, que o governo promova
uma medida correcional ou policial, que os obrigue a prestarem o
serviço da lavoura.26

334
No entanto, o que para alguns era um problema de caráter da
população brasileira, para outros, mais bem-avisados, era um
problema da própria disseminação da escravidão negra como
regime de trabalho no país. Num país em que trabalhador era
sinônimo de escravo, o exercício ostensivo do ócio ou da preguiça
equivalia a uma manifestação de poder – o poder da liberdade.
Para o comerciante português Vilhena, que escrevia da Bahia em
1800, a recusa ao trabalho era ainda mais acentuada no caso
dos escravos alforriados que, “querendo mostrar aos cativos
a diferença que vai da liberdade ao cativeiro”, entregavam-se
“aos vícios que a ociosidade lhes sugere, e como lhes falta quem
os corrija e os admoeste, vêm de comum a morrer bêbados ou
nas enxovias”. A conclusão de Vilhena, porém, não era diversa
daquela de Lavradio, trinta anos antes, ou dos fazendeiros de
café, de oitenta anos depois. Parecia-lhe mais cristão que os liber-
tos, ao invés de entregues à própria sorte, ficassem “responsáveis
sempre a um tutor ou diretor que coativamente os desviasse do
mal e os dirigisse para o bem”, não os deixando “entregues à sua
brutal vontade”. Também os livres do Brasil, “onde de tal forma
campeia o ócio”, deveriam ser obrigados “por lei a trabalhar”.27
A disseminação da escravatura, entendida como ausência de
liberdade pessoal de um segmento considerável da população,
tinha reflexo direto no sentido da liberdade política, tal como
pretendida pelos setores dominantes. O ódio racial impedia a
expansão dos anseios de liberdade da própria elite em face do
governo colonial ou metropolitano. Em 1800, o mesmo Vilhena
comentava: “É raro o escravo que não apetece ver morto o
senhor, e tardando a alguns o complemento deste ímpio desejo,
aproveitam toda a boa ocasião que se lhes oferece, matando
os senhores, já a cacetadas, já a golpes de machado, já a faca-
das.”28 Qualquer concepção mais radical de liberdade poderia
incitar os escravos a se rebelarem. Daí a moderação com que
os colonos deveriam falar sobre liberdade política. Em 1817,
os rebelados pernambucanos que tomaram o governo contra
a “opressão” política e fiscal da monarquia absoluta naquela

335
capitania rapidamente desmentiram os boatos de que libertariam
os escravos, salientando que a abolição do cativeiro só poderia
ser efetuada num futuro distante, de modo regular, lento e
legal.29 Quatro anos depois, às vésperas da independência, em
1821, era Carneiro de Campos, futuro Marquês de Caravelas e
autor da Constituição do Império, que manifestava seus temo-
res. Escrevendo a um colega, Carneiro fazia ver “o quanto é
heterogênea a povoação deste país, composta pela maior parte
de escravos, inimigos natos, com toda a razão e justiça (...), dos
homens brancos”. Seu temor era o de que a transição para o
governo constitucional levasse o país a cair nas mãos de demago-
gos que se voltassem, no intuito de atingirem seus objetivos, para
os escravos, incitando à desobediência e ao ódio. Nesse caso, o
que aconteceria “logo que qualquer dos partidos os convoque,
acenando-lhes com a liberdade”? A resposta, concluía Carneiro,
estava “na ilha de São Domingos”, isto é, era a guerra racial e
o massacre dos brancos.30
Para concluir, é interessante pensar no entrecruzamento da
liberdade tal como vista pelos partidos políticos e no problema
da escravidão. Embora, na teoria, a perspectiva liberal anglo-
-saxã dos luzias devesse favorecer a sua atuação no sentido de
pelo menos encaminhar o processo de extinção da escravatura,
na prática, foram os saquaremas quem efetivamente tiveram
condições de enfrentar o problema, já que sua ideologia de matriz
despótico-ilustrada os permitia colocarem-se acima dos interesses
da “sociedade”, que era escravocrata, em nome dos interesses
ou da razão de Estado. Todas as quatro leis que desde 1850
encaminharam a extinção da escravidão foram promulgadas por
gabinetes conservadores sustentados ostensivamente pela Coroa
– que era, na verdade, em todos os casos, a força propulsora do
movimento. Em 1871, o Presidente do Conselho de Ministros,
o conservador Visconde do Rio Branco, explicitou o dilema
aos liberais e aos conservadores dissidentes que o acusavam de
instrumento do absolutismo imperial, por pretender aprovar a
Lei do Ventre Livre:

336
Alegou-se muitas vezes que a aprovação do projeto era uma sub-
serviência à vontade imperial e que, portanto, à nação não cabia a
iniciativa da ideia! Mas ainda que assim fosse, o que pretendiam os
impugnadores com tão tribunícia apreciação? Deter o carro civilizador,
para não parecer que acompanhara-se o imperante? Não desenvolver
o princípio da liberdade, continuando a conduzi-la apenas em estátua
sobre os ombros dos escravos, para não dizer-se que César vivificara
essa mesma estátua, imprimindo-lhe o movimento? É, em verdade, um
dos maiores contrassensos, reservado para estes tempos, perpetuar a
escravidão para atacar o cesarismo.31

O argumento do conservador Rio Branco, porém, não foi capaz


de evitar o progressivo desprestígio da monarquia em face da
elite agrária e escravocrata, que começou então, em nome da
liberdade política, a encarar a possibilidade de livrar-se da
tutela da monarquia. Em O Brasil em 1870, o liberal Sousa
Carvalho pôs o dedo na ferida: “Tem-se falado em libertar os
pretos (...) No Brasil, não falta somente forrar os negros; falta
também emancipar os brancos” – ou seja, a elite proprietária em
face da tutela da Coroa. “O que é vergonhoso é o absolutismo
do governo, a violência da autoridade, a inércia e a inépcia da
administração.”32 Como diziam então, alforriado o negro, era
hora de alforriar o branco. Era o que proclamava o senador
liberal Zacarias de Góis e Vasconcelos, em 1871: “Extinga-se
a escravidão dos negros, e um dia virá também a liberdade dos
cidadãos ora oprimidos.”33 Contra a libertação dos escravos, os
adversários da reforma social opunham, portanto, a libertação
dos senhores de terra do despotismo político da Coroa, pelo
parlamentarismo ou pela república, que chegaria cerca de vinte
anos depois.

337
NOTAS
1
Raphael Bluteau, Diccionario da lingua portugueza. Composto pelo Padre D.
Rafael Bluteau, reformado e acrescentado por Antonio de Moraes Silva, natural
do Rio de Janeiro, Lisboa, Simão Tadeu Ferreira, 1789, t. II, p. 1145.
2
Lorelai Kury (org.), Iluminismo e Império no Brasil: O Patriota, Rio de Janeiro,
Editora Fiocruz, 2007, p. 325.
3
D. Luís de Almeida Portugal (Marquês do Lavradio), Cartas do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, Instituto Estadual do Livro, 1978, p. 43.
4
Nelson Dimas Filho, Jornal do Commercio: a notícia dia a dia, 1827/1987, Rio de
Janeiro, Fundação Assis Chateaubriand, Gráfica Editora Jornal do Commercio,
1987, p. 65.
5
Bluteau, Diccionario da lingua portugueza, p. 435.
6
Tomás Antônio Gonzaga, Tratado de direito natural, São Paulo, Martins Fontes,
2004, p. 113.
7
István Jancsó, Na Bahia, contra o Império: história da sedição de 1798, São
Paulo, Hucitec, 1996, p. 55.
8
Maria Beatriz Nizza da Silva, A cultura luso-brasileira: da reforma da universi-
dade à independência do Brasil, Lisboa, Editorial Estampa, 1999, p. 32.
9
Idem, A primeira gazeta da Bahia: Idade d’Ouro do Brasil, São Paulo, Cultrix,
1978, p. 87.
10
Arnaldo Daraya Contier, Imprensa e ideologia em São Paulo (1822-1842):
matizes do vocabulário político e social, Petrópolis, Vozes, 1979, p. 77.
11
Antonio de Moraes Silva, Diccionario da lingua portugueza, composto por
Antonio de Moraes Silva, natural do Rio de Janeiro, sexta edição, melhorada, e
muito acrescentada pelo desembargador Agostinho de Mendonça Falcão, sócio
da Academia Real das Ciências de Lisboa, Lisboa, Tipografia de Antonio José
da Rocha, 1858, 2 t., p. 256.
12
Silva, A primeira gazeta da Bahia, p. 54.
13
Aureliano Candido Tavares Bastos, Os males do presente e as esperanças do
futuro (1861), 2. ed., Rio de Janeiro, Companhia Editora Nacional, 1976,
p. 89.
14
Idem, Cartas do Solitário (1862), 2. ed., Rio de Janeiro, Companhia Editora
Nacional, 1975, p. 45.
15
Idem, A província: estudo sobre a descentralização no Brasil (1870), edição
fac-similar, Brasília, Senado Federal, 1997, p. 76.
16
Silva, A primeira gazeta da Bahia, p. 45.
17
Dimas Filho, Jornal do Commercio, p. 67.
18
Joaquim Nabuco, Um estadista do império, 5. ed., Raimundo Faoro (pref.),
Evaldo Cabral de Mello (posf.), Rio de Janeiro, Topbooks, 1997, p. 874.
19
Ibidem.
20
José Antônio Soares de Sousa, A vida do Visconde do Uruguai, ed. il., Rio de
Janeiro, Companhia Editora Nacional, 1944, p. 254.

338
21
Paulino José Soares de Sousa (Visconde do Uruguai), Estudos práticos sobre a
administração das províncias do Brasil. Primeira parte, Rio de Janeiro, Tipografia
Nacional, 1865, p. 221.
22
Bluteau, Diccionario da lingua portugueza, p. 232.
23
Idem, Diccionario da lingua portugueza, composto por Antonio de Moraes Silva,
quarta edição, Reformada, Emendada, e muito Acrescentada pelo Mesmo Autor:
Posta em Ordem, Correta, e Enriquecida de Grande Numero de Artigos Novos
e dos Sinônimos por Teotônio José de Oliveira Velho, Lisboa, Impressão Régia,
1831, 2 t., p. 234.
24
Idem, Diccionario da lingua portugueza, Lisboa, Typographia Lacerdina, 1813,
p. 332.
25
Diogo Antônio Feijó, Diogo Antônio Feijó, Jorge Caldeira (org., int. e notas),
São Paulo, Editora 34, 1999, p. 136.
26
Atas do Congresso Agrícola de 1878, Edição fac-similar dos Anais do Congresso
Agrícola no Rio de Janeiro em 1878, Introdução de José Murilo de Carvalho,
Rio de Janeiro, Fundação Casa de Rui Barbosa, 1988, p. 67.
27
Luís dos Santos Vilhena, Recopilação de notícias soteropolitanas e brasílicas,
Salvador, Imprensa Oficial, 1921.
28
Ibidem.
29
Evaldo Cabral de Mello, A outra independência: o federalismo pernambucano
de 1817 a 1824, São Paulo, Editora 34, 2004.
30
Marquês de Resende, Memória histórica de D. Fr. Francisco de S. Luís Saraiva,
Lisboa, Academia Real de Ciências, 1864, p. 66.
31
Miguel Paranhos do Rio Branco, Centenário da Lei do Ventre Livre, Rio de
Janeiro, Departamento de Imprensa Nacional, 1971, p. 65.
32
Antônio Alves de Sousa Carvalho, O Brasil em 1870, Rio de Janeiro, Garnier,
1870, p. 78.
33
José Honório Rodrigues, História, corpo do tempo, São Paulo, Perspectiva,
1975, p. 45.

REFERÊNCIAS
JASMIN, Marcelo Gantus; FERES JR., João. História dos conceitos: dois
momentos de um encontro intelectual. In: ___. (Org.). História dos con-
ceitos: debates e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio/Edições
Loyola/IUPERJ, 2006. p. 27-64.
KOSELLECK, Reinhart. Historia y hermenéutica. Introd. José Luis
Villacañas e Faustino Oncina. Barcelona: Ediciones Paidós/I. C. E. de la
Universidad Autonóma de Barcelona, 1997.
SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da lingua portugueza, composto
por Antonio de Moraes Silva, natural do Rio de Janeiro, quinta edição,
aperfeiçoada, e acrescentada de muitos artigos novos, e etimológicos.
Lisboa: Tipografia de Antonio José da Rocha, 1844. 2 t. (acrescentada
e revista pelo reverendo padre Antonio de Castro, ex-Comissário dos
Estudos em Portugal).

339
CLÁUDIO ANTÔNIO SANTOS MONTEIRO

ORDEM

O termo ordem (do latim ordo) é pleno, abarca todos os


domínios do conhecimento: o teológico, o filosófico, o cientí-
fico. Seu sentido fundamental é o de sucessão de um estado a
outro. Ou de uma razão geral, em conformidade com os prin-
cípios da causalidade ou da lei, sempre explicitando condição,
sentido ou composição (natural ou racional) na organização
social, política e econômica (privada ou pública), do lar, da
cidade, do Estado, sempre comprometido com o valor de
finalidade. Apesar de todas as acepções do conceito, uma ideia
lhes é comum: a de uma relação inteligível (cognitiva). Nesse
caso, ordem se opõe à desordem, às paixões, ao irracional, à
desobediência.1
No mundo luso-brasileiro do cruzar dos séculos 18 e 19, o
conceito de ordem, tal como se encontra no vocabulário portu-
guês de Raphael Bluteau de 1713, é definido pela sua acepção
mais comum: disposição, colocação das coisas no lugar que lhe
convém, classificação. Está aliado à natureza, amparado pelas
influências de um racionalismo que prende-se a concepções
naturalistas características de um período pré-ilustração. Um
século mais tarde o dicionário do lexicógrafo Moraes ainda
define ordem nos mesmos termos que Bluteau. Com efeito,
nesse intervalo (séculos 18-19) o termo não apresenta mudança
de sentido. Essa inércia do conceito não impediu porém que,
em circunstâncias históricas específicas, vivenciadas no Brasil
da primeira metade do século 19, se tenha registrado sentidos
mais restritos e outras atribuições ao vocábulo ordem, como
encontramos em discursos políticos, cartas, nos códigos legais
e nos discursos da imprensa.
Vale dizer: o conceito ordem é associado, relaciona-se,
explicita-se e por vezes confunde-se com inúmeros outros
termos (arranjo, lei, autoridade, obediência, sossego, quietação,
descanso, tranquilidade do espírito, felicidade). No seu sentido
normativo é com o termo polícia que o vocábulo ordem mais
guarda relação. Bluteau inicia assim a definição de polícia: “A
boa ordem que se observa e as leis que a prudência estabelece
para as sociedades humanas nas cidades e Repúblicas.” Um
século depois, na primeira definição de Moraes (1813), polícia
significa “o governo, a administração interna da República, a
segurança do cidadão, conduta, cultura, governar bem a casa”.
Tanto ordem como polícia se opõem à desordem, esta última
definida como “desarranjo de coisas, que não estão no estado,
no lugar, que houverão de ter, falta de ordem”.2
No Brasil, entre os anos de 1770 e 1870, o conceito ordem
pode ser isolado em dois momentos específicos, cada um
atribuindo aos conceitos ordem e desordem um sentido: um
primeiro, multissecular, o da dominação colonial (séculos 16 a
18); um segundo, entre os anos de 1820-1840, no qual as ideias
de ordem social, política e econômica registram-se em diferentes
discursos.
No primeiro caso, ordem registra-se como a aceitação e
conformação dos colonos à lógica secular criada pela domina-
ção colonial, marcada por uma concepção de ordem universal
e imutável, tal como expressa a Representação a sua Majestade
dos senhores dos engenhos de cana e tabacos da Bahia, datado
de janeiro de 1752: seus 81 signatários defendem a reorganização
do tráfico Atlântico de escravos pois, caso contrário, “[e]sta é a
desordem do Brasil”. A visão de mundo organizado dos signa-
tários da Representação, que não necessariamente compõem a
elite colonial, expõe quatro planos distintos de abrangência: a
Atlântica, a portuguesa, a brasilica, e a local, e entende o Brasil

342
como parte integrante do reino português.3 O termo desordem
aqui é destituído de qualquer sentido político no âmbito local
(Bahia), o que implica a expressão da aceitação local da ordem
colonial, da ordem social (a escravidão), do domínio metropoli-
tano, na medida em que o que se pretende é, antes de mais nada,
o ajuste prático da dominação. Nessa perspectiva, no âmbito
colonial e suas finalidades, ordem limita-se à organização de
um determinado espaço – o colonial –, no qual essa organização
não implica, não condiciona e não aponta transformações futu-
ras desse ordenamento, havendo, portanto, uma concepção do
princípio ordenador (ordem colonial) como fator estruturante
da vida prática na colônia. Aqui os atributos ao conceito não
rompem ou transformam seu sentido fundamental – o da ordem
multissecular da dominação.
Em outras palavras, no tempo colonial, no Brasil, verifica-
-se um grande atraso político e legislativo, sendo adotadas, na
colônia, as leis portuguesas das ordenações filipinas, corpo legal
que se baseia nos códigos manoelinos, que são, por sua vez,
cópia das ordenações afonsinas de 1446. Por esse ângulo é que
podemos falar em ordem multissecular da dominação colonial, a
ordenação da região colonial se estabelecendo no espaço exterior
à região, ou seja, na metrópole.
No cruzar dos séculos 18 e 19, no contexto das transforma-
ções culturais e políticas em curso na Europa sob as influências
do Iluminismo inglês e francês, o termo ordem assume concep-
ções mais restritas.
Somente a partir da crise do sistema colonial, no último
quartel do século 18, tornou-se possível a constatação daquela
diferença, indicando um conjunto de transformações na ordem
mundial e nas colônias, que dão origem à crise do sistema colo-
nial e aos movimentos que antecederam a própria independência.
Lento reconhecimento, num processo não linear, que tanto supõe
a distinção inicial entre mazombos e reinóis, quanto a constata-
ção do antagonismo de interesses dos habitantes da colônia e da

343
metrópole, para finalmente se construir na condição subjetiva
fundamental do processo de emancipação.4
É também tempo de mudanças profundas em Portugal,
como a própria vinda da Corte portuguesa para o Brasil (1808)
indica. A Coroa no Brasil reafirma sua dominação positiva no
âmbito de sua nova residência: o Rio de Janeiro. Em alvará de
10 de maio de 1808, do príncipe regente D. João, é criada a
Intendência Geral da Polícia e dos Estados do Brasil. A institui-
ção tem a competência jurisdicional da colônia, sendo da sua
responsabilidade criar e organizar um corpo policial capaz de
prevenir as ações consideradas “perniciosas” e subversivas à
dominação, agora tendo como centro o Rio de Janeiro, o prin-
cipal polo irradiador. Representando a autoridade do monarca,
a nova instituição acumula um conjunto de poderes (Legislativo,
Judiciário e Executivo). Trata-se assim, efetivamente, da instala-
ção da polícia, que, na definição de Raphael Bluteau, é sinônimo
de ordem (em sua primeira definição), ou que, cem anos depois,
em Moraes, é também sinônimo de governo. Logo, a política
e o governo são, para os portugueses, casos de polícia (da boa
ordem) no mundo luso-brasileiro do início do século 19.
Assim, ordenação social em sentido positivo, na colônia, era
tornar os habitantes coloniais vassalos do rei, processo confli-
tante com o espaço social heterogêneo da colônia, e o agravo
do intenso movimento do tráfico de escravos que, entre 1799
e 1821, aumenta a população escrava de 35% para 46%. Os
esforços para construir os “vassalos do rei” nas diferentes partes
da ex-colônia foram acidentados e revelam os limites do projeto,
entre o centro organizador (o Rio de Janeiro) e as outras partes
do Brasil, até então sem a conexão regular com o centro organi-
zador na colônia. Com efeito, até as vésperas da independência,
era ainda à antiga metrópole portuguesa, no caso Lisboa, que a
maior parte das províncias do Império se conectavam.
Nas primeiras décadas do século 19, a construção do Brasil como
corpo político sofre o embate de duas principais forças antagôni-
cas: em uma ponta, a peninsular e, na outra, a americana, ambas

344
gerações igualmente marcadas pelos estímulos da Ilustração
portuguesa e francesa, por um lado e, por outro, pelos efeitos
da Revolução Constitucionalista do Porto.
No terreno Americano, com a supressão do exclusivismo
comercial (com a abertura dos portos em 1808) e a brusca
mudança que alterou o tradicional equilíbrio político entre
capitanias, abriu-se uma nova conjuntura, impondo outros
parâmetros para o debate político, que passou desde então a
incorporar ingredientes que antes eram tipicamente peninsula-
res.5 Ao mesmo tempo, entre as elites americanas locais, havia
a percepção de que a nova situação (Corte no Brasil) ampliaria
a sua participação na gestão da coisa pública, sobretudo após a
elevação do Brasil a Reino Unido a Portugal e Algarves (1815),
quando a identidade luso-americana poderia tornar-se brasileira
e como tal se autonomizar.
O maior símbolo dessa tentativa de autonomização local
no espaço brasileiro foi a Revolução Pernambucana de 1817,
movimento que denuncia por excelência os limites do alcance da
ordem imposta pela Coroa portuguesa fixada no Rio de Janeiro,
ao mesmo tempo que apresenta o arranjo político e social possível
naquele espaço em convulsão.
Amparados pelos princípios iluministas, isto é, da lei, os
revolucionários de Pernambuco proclamam um novo governo
onde “a natureza, o valor, a vista espantadora da desgraça, a
defesa natural, reagiam contra a tirania e a injustiça” da Corte no
Rio de Janeiro, emissora de “ordens homicidas”.6 Momento no
qual o povo (a boa sociedade) local, por força das circunstâncias
políticas, ergue uma Junta Governativa provisória contra os arbí-
trios da Coroa, principalmente no que diz respeito aos pesados
encargos fiscais e à administração local da região, que gravitava
na órbita dos portugueses, como representantes da Coroa. Nesse
contexto, o atributo do termo homicida à ordem real esvazia o
vocábulo ordem da noção de ordem natural, secular e imutável,
tal como prevalecia no mundo colonial, para lhe conferir um
sentido positivo do tempo (arbitrário e circunstancial), com

345
base no ideal de um governo iluminado (dentro da lei). Nessas
circunstâncias, às imposições consideradas da ordem absolutista
da Coroa, os revoltosos de Pernambuco se utilizaram do termo
patriota e patriotismo como principal referência ao vazio de
poder local: “Os patriotas no fim de duas horas acharam-se
sem chefe, sem governador; era preciso precaver as desordens da
anarquia no meio de uma povoação agitada e de um povo revol-
tado”,7 o que justifica a constituição de um “governo provisório
patriótico”. Muito embora o movimento de Pernambuco não
deixe claro se a rebeldia era contra o governo local ou da Coroa,
o manifesto da Junta Governativa pernambucana é expressão
do embate de dois paradigmas concorrentes que anunciam os
limites da antiga relação colonial: precisamente entre, de um
lado, o da ordem dos “poderes despóticos”, no caso da Coroa
e, de outro, o paradigma da liberdade iluminista, da ordem da
lei; embora o problema da forma de governo nacional não seja
ainda uma questão, é no patriota que se deposita a ordem em
momentos pontuais.
Entretanto, o embate no terreno colonial não altera a visão
subjetiva dos redatores do manifesto quanto ao seu pertenci-
mento em termos de nacionalidade à nação lusa, quando afirmam
que: “A pátria é a nossa mãe comum, vós sois seus filhos, sois
descendentes dos valores lusos, sois portugueses, sois america-
nos, sois brasileiros, sois pernambucanos”,8 perspectiva que, ao
mesmo tempo, atende à necessidade dos chefes locais de definir
a quais pernambucanos se destina o manifesto: aos descendentes
da civilização. Dessa forma, se livram as elites da região do grave
risco da sua indiferenciação com os homens negros e pardos que
compunha a maior parte da população pernambucana.
Um segundo momento mais intenso de variações de sentido
do vocábulo ordem se processa, portanto, com a transferência da
Corte portuguesa para o Brasil. A chegada no Brasil da notícia da
Revolução Constitucionalista do Porto traz profunda mudança
no panorama político e aprofunda as noções de ordem e desor-
dem política e social no espaço brasileiro. Acelera-se o processo

346
de corrosão dos antigos laços coloniais, que se processa desde a
Abertura dos Portos (1808) e a elevação do Brasil a Reino Unido
a Portugal e Algarves (1815). Portugueses e brasileiros, fazendei-
ros e comerciantes, funcionários da Coroa, militares aderiram à
revolução pelos mais diversos e contraditórios motivos: portu-
gueses a entendiam como possibilidade do restabelecimento do
pacto colonial; brasileiros a entendiam como uma conquista no
caminho liberal, como possibilidade do aprofundamento das
transformações iniciadas em 1808 e 1815. A concreta possibili-
dade da reunião, agora sob bases constitucionais, do Brasil e de
Portugal sob forma de um só reino, o do Império luso-americano,
é o aspecto político prevalecente no Brasil. Nessa conjuntura,
fica claro para muitos brasileiros que o movimento de 1821 no
Porto visava à organização constitucional do país. Entretanto,
a instalação das Juntas Governativas, tanto em Portugal como
no Brasil, não significava uma ruptura definitiva com o passado.
Para José Bonifácio, a garantia da liberdade no Brasil está em
relação direta com a boa ordem que este guardaria no interior
do “império constitucional”, com a representação dos brasileiros
em Portugal. Nas palavras de Bonifácio, a liberdade na antiga
colônia repousava na fórmula da construção de uma ordem
monárquica e constitucional que garantisse e respeitasse a igual-
dade entre as duas partes do reino, uma fórmula, segundo ele,
“mais análoga aos seus costumes [do povo brasileiro]”, e uma
garantia da liberdade no Brasil, opção importante justamente por
evitar o espectro da desordem que reina na República, ou seja:
“sem que fosse preciso recorrer aos enormes sacrifícios do ideal
republicano”,9 da anarquia e da violência. Por outro lado, em
posição contrária às sustentadas por Bonifácio, para os editores
do Revérbero Constitucional Fluminense (Joaquim Gonçalves
Ledo e Januário da Cunha Barbosa), a garantia de liberdade
no Brasil só seria possível através da construção de uma ordem
constitucional que consagrasse as especificidades do Brasil, em
respeito à maior porção territorial do reino luso-brasileiro, que
a justo título exigia que a sede do governo fosse o Brasil, ou que
o Brasil tivesse um governo central.10

347
A intenção recolonizadora das Cortes de Lisboa agrava as
tensões entre colônia e metrópole. A perspectiva de uma monar-
quia dual, como pretendeu José Bonifácio, cai por terra no curso
do movimento vintista e, finalmente, a Independência se processa
na forma da monarquia constitucional, conforme militou o
jornal Revérbero Constitucional Fluminense, prevalecendo a
fórmula da reunião das Províncias do Brasil em torno da Lei e do
Governo: “(...) sendo a Constituição o nosso principal apoio, e o
nosso Regente o centro do Governo.”11 Confessos militantes da
liberdade conforme o modelo republicano iluminista, no Brasil,
por força das circunstâncias internas inscritas em uma sociedade
marcada, por um lado, pela “persistência crônica das heranças
coloniais”12 e, por outro, pelo problema agudo da escravidão, a
opção por uma monarquia constitucional democrática parecia ao
Revérbero Constitucional Fluminense a alternativa mais condi-
zente ao Brasil. O ideal de uma “democracia coroada” implicava
o arranjo político de construção de um governo que, embora sob
a forma monárquica, não eliminava por completo o paradigma
da república, mas preservava o Brasil de suas anarquias.
Frustradas as tentativas de harmonia de interesses entre
portugueses e brasileiros, a ideia de reino unido progressi-
vamente tem o seu sentido esvaziado. Nesse novo horizonte
político as concepções de ordem guardam relação direta com
o termo liberdade. “O espírito da Ordem Constitucional é hoje
o móbil, ou o objeto da ação principal do mundo”,13 única
ordem de governo capaz de se garantir contra os excessos da
liberdade da democracia e do poder absoluto. “Um governo só
é legítimo” quando “a nação, satisfeita, vê desempenhado o fim
de todos os sistemas de legislação, isto é, liberdade e proprie-
dade”.14 Nesses termos, os editores do Revérbero definiam o
princípio ordenador que, doravante, nos anos de 1820, norte-
aria o sentido de governo: a construção de uma democracia
coroada. Fórmula que, simultaneamente, define despotismo,
tirania e poder absoluto como os espectros da desordem e da
ameaça da liberdade.

348
Mas, governo e ordem para quem, em uma sociedade marcada
pelas persistências das heranças coloniais e socialmente pelo
problema agudo da escravidão?
O arranjo inicial de uma monarquia constitucional “ungida”
pela boa sociedade – quer dizer, pelas classes proprietárias de
terra e de escravos, pela sua clientela e pelos comerciantes de
grosso trato – garantiu a ordem interna no processo mais agudo
da Independência, mas esse arranjo não resistiu à comunhão
de interesses duráveis entre, de um lado, o Poder Executivo, o
Imperador e, de outro, o Legislativo, representado pelos inte-
resses das diferentes elites locais. Muito embora D. Pedro I seja
o herdeiro de uma monarquia hereditária, como a Constituição
de 1824 confirmou, foi aclamado pelo povo, fato que poten-
cialmente impunha limites ao governante. Sua determinação do
fechamento da Assembleia Constituinte e a posterior promul-
gação da Carta Constitucional se tornam um fato inconciliável
com os múltiplos interesses em jogo no Legislativo.
No projeto reformista de José Bonifácio para o Brasil fica
claro que, para o tribuno brasileiro, a ordem política, ou a
“regeneração do Brasil”, dependia diretamente do esforço
político legislativo de se “atacar a ordem moral da sociedade”
no sentido de sua regeneração: abolição gradual da escravidão,
educação pública e reforma do regime de terras no Brasil.15 Na
perspectiva do tribuno, a ordem social antecede a ordem política,
sendo esta última uma consequência feliz da primeira, “da ordem
moral”, única capaz de garantir a liberdade e a felicidade do
povo [entendido aqui como os participantes da boa sociedade].
Caso contrário, ficaria impossível combinar “tantos elementos
discordes e contrários, e amalgamar tantos metais diversos, para
que saia um todo homogêneo e compacto, que não se esfarele ao
pequeno toque de qualquer nova convulsão política”.16 E indaga
Bonifácio: como construir uma constituição liberal e duradoura
em um país continuamente habitado por uma multidão imensa
de escravos brutais e inimigos?17

349
Com efeito, entre 1808 e 1831 são lançadas as bases daquilo
que, num futuro próximo, configuraria os contornos políticos
e sociais definidores do perfil do Estado e da nação tal como se
afirma, no século 19, no Brasil. Nessa perspectiva, a chegada da
Corte (1808), a criação do Reino Unido a Portugal e Algarves
(1815), o rompimento definitivo entre os reinos do Brasil e de
Portugal (1822), a outorga da Carta Constitucional (1824) e a
abdicação de D. Pedro I (1831) são partes de um mesmo processo
de construção do Estado em que fica nítido o aprofundamento
das noções de ordem política e ordem social, conforme o para-
digma iluminista europeu, bem como dos sentidos particulares
empregados ao conceito ordem pelos agentes sociais no terreno
que se definia como Brasil.
Por sua vez, o efeito da desintegração do espaço luso-brasileiro
no terreno americano condiciona igualmente o perigo de frag-
mentação das partes do território americano, problema mais
visível desde a fixação da Corte no Brasil, conforme demonstra,
nas classes dominantes americanas, o seu impasse entre, de um
lado, a obediência à dominação multissecular do centro do poder
metropolitano e, de outro, o novo espaço organizador do poder,
o Rio de Janeiro. Embate mais visível, sobretudo nos centros
administrativos locais, como Rio de Janeiro (em conexão com
São Paulo e Minas Gerais), e nos centros como Salvador, Recife
e Belém do Grão-Pará, marcados pelas experiências de mando e
de poder metropolitano.18
A abdicação de D. Pedro I em 1831 possibilita florescer com
mais vigor e nitidez os embates entre as diferentes tendências
políticas presentes em torno das opções políticas a se seguir na
construção de um poder autônomo, agora brasileiro. O vazio
do poder encerra um processo que trouxe para o centro da
discussão política sentidos mais restritos aos vocábulos ordem
e desordem no Brasil.
Na condição de regente único, com Diogo Feijó, ressurge a
orientação de ordem social tal como foi pensada por Bonifácio.
Para o regente, a precondição para a construção da nova ordem

350
política brasileira passava, em primeiro plano, pela exigência
da eliminação das heranças coloniais, entendidas como forças
“desorganizantes” e desagregadoras do espaço brasileiro. Para
tanto, tal como Bonifácio, o regente aponta para a necessidade
da extinção do tráfico atlântico e da gradual extinção do traba-
lho escravo, resquícios do tempo colonial. Para Feijó, “quanto
mais se eliminarem de nossas instituições a fórmula do governo
absolutista, tanto mais depressa formar-se-á o hábito de amor à
liberdade”. Segundo Feijó, “o Brasil tem necessidade da monar-
quia, mas não dos seus abusos”,19 o absolutismo e sua herança
escravista são identificados como a desordem social e política
do novo reino. Então, ordem para Feijó diz respeito “à maneira
por que um povo é governado” em conformidade com a lei e a
justiça social.20
Evento emblemático, o 7 de Abril de 1831 (abdicação de D.
Pedro I) consagrou o espaço público como arena de luta parti-
dária e representativa dos diferentes projetos políticos, sendo
três as principais tendências políticas mais visíveis. Situados no
centro do campo político, por meio deste, os liberais moderados
(sustentam o postulado clássico liberais), almejavam promover
reformas político-institucionais no sentido de reduzir os poderes
do imperador, conferindo maiores prerrogativas à Câmara dos
Deputados paralelamente à autonomia do Judiciário, no sentido
de uma monarquia liberal sob a observância dos direitos civis.21
À esquerda, encontravam-se os liberais exaltados, de feições
jacobinas matizadas pelo modelo de governo americano – a
construção de uma República Federalista – , em que se conjugam
princípios liberais clássicos com ideais democráticos. O terceiro
grupo congrega os caramurus, alinhados aos princípios de uma
versão do liberalismo conservador, contrários a qualquer trans-
formação na Constituição outorgada de 1824.
Vale dizer que o fechamento da Assembleia Constituinte e a
outorga da Constituição de 1824, seguidos da posterior abdica-
ção de D. Pedro I, fizeram com que as questões políticas trans-
bordassem dos limites dos debates parlamentares e da imprensa

351
para as ruas, conforme registram as inúmeras revoltas regenciais
entre as décadas de 1830 e 1840. Desse agitado horizonte político
emerge então o Estado imperial brasileiro.
Contra o espírito federalista dos exaltados, Diogo Feijó
infere que a separação das províncias do Brasil é “a desgraça
do Império e a extinção do nome brasileiro”.22 Na perspectiva
de Feijó, a ordem política do Brasil é sinônimo de liberdade, a
qual somente seria efetuada pela conquista do povo em romper
com a herança colonial, que deveria ser eliminada a partir da
reforma constitucional, para se retirar os traços mais evidentes
do Absolutismo. Isso foi realizado através do Ato Adicional na
Reforma Constitucional de 1834, que ampliou consideravel-
mente os poderes locais provinciais, ao mesmo tempo represen-
tando um artifício político na tentativa de conciliar os diferentes
interesses das elites regionais, divididas entre moderados, exal-
tados e restauradores.
As crises no período regencial (1831-1840), oriundas das dife-
rentes concepções de ordem política das elites locais, expressas
em movimentos como a Cabanagem, a Balaiada, a Sabinada e
a Revolução Federalista, fazem com que os debates políticos
locais não se circunscrevam aos limites dos poderes instituídos
no Parlamento e nas municipalidades provinciais. Em “Minhas
Recordações”, o mineiro Francisco de Paula Ferreira de Resende
infere que: “Nesse tempo [da Regência], o Brasil vivia, por
assim dizer, muito mais na praça pública do que mesmo no lar
doméstico”,23 estando liberais moderados e exaltados à frente
dos movimentos que sacudiam o Império. Diante dos distúrbios,
Diogo Feijó conclui, ao sair do poder, que a primeira necessidade
de um governo é o caráter de estabilidade. Uma estabilidade que
a constituição das guardas nacionais no início da Regência não
pôde resguardar, ainda que tenham sido criadas para a manu-
tenção da ordem local.
Entretanto, a presença da plebe, ou da “canalha”, nos movi-
mentos provinciais, desunia tanto exaltados como moderados,
pois a associação entre liberdade e igualdade entre os homens

352
livres tornavam tênues os limites entre a revolução de cunho
republicano e a desordem. É por esse tempo, com as medidas
regressistas, a partir de 1837, que fica estampada a progressiva
e contínua identificação do verdadeiro elemento responsável
doravante pela organização de um sistema nacional de institui-
ções e pela definição de uma ordem pública: o burocrata ou o
senhor de terras e escravos.
Ao contrário do que propunha Bonifácio e mais tarde Diogo
Feijó, a construção do Estado nacional e sua própria constituição
só foram possíveis sob a égide do regime escravista, sendo venci-
das, por definitivo, as tendências que, no início do processo de
independência e nos anos iniciais de regência, sustentaram que
a ordem social era um condicionante e uma garantia da ordem
política, única asseguradora da liberdade.
Nessa perspectiva, a ordem era condição da liberdade, e a
garantia dessa última era o fundamento ético da primeira. A
fórmula da ordem tal como se apresentou no Brasil imperial
ganha sentido pela direta relação com as condições objetivas
da sociedade da época, marcada pela herança colonial e pelo
problema agudo da escravidão. Nesse sentido, a ordem repre-
sentava as condições ideais da sociedade, mas sua realização
não levava em consideração quaisquer definições ou princípios
abstratos.24 Tal fato expressou a inteira impossibilidade de
uma ordenação do espaço público sem a mediação do governo
imperial, transformado no espaço onde os diferentes interesses
das elites poderiam se manifestar, através da organização e
representação de duas instituições partidárias – o Partido Liberal
(1837) e o Partido Conservador (1836). Até o final dos anos de
1860, as disputas políticas entre liberais e conservadores não se
processavam através de grandes disputas ideológicas, estando
em jogo o exercício do poder; assim, não há propriamente
desacordo sobre as concepções de ordem social escravocrata e
de ordem política imperial. Pode-se entrever uma alteração do
jogo político-ideológico somente a partir da Lei do Ventre Livre

353
(1871) no que diz respeito ao regime de trabalho e ao regime polí-
tico, sobretudo com a fundação do Partido Republicano (1870).
Assim, com os perigos representados pelo mundo da desordem
(homens pobres e livres e escravos), ordem no Brasil imperial
implica a total inviabilidade da expansão da liberdade, conforme
as tendências no cruzar dos séculos 18-19. Daí, a restituição do
princípio do poder ordenador ao poder moderador – em tese,
motivo de recriminações dos elementos mais progressistas, mas
que, na prática, verifica-se como principal árbitro das disputas
regionais e única condição possível de se preservar uma ordem
social excludente, a escravocrata – com uma ordem política de
baixa representatividade popular. Sendo assim, foi sob o governo
da casa – dos senhores proprietários de terras e de escravos – que
a ordem foi restaurada no Brasil do século 19,25 única fórmula
capaz de congregar o interesse da ordem política com os inte-
resses das elites regionais, expressos, sobretudo, na conservação
do tráfico atlântico e na manutenção da escravidão.
Entretanto, a falência final do Segundo Reinado no Brasil,
em 1889, não impediu que a fórmula política da ordem imperial
conservadora, construída a partir da ideia de uma “democracia
coroada”, designasse um lugar particular ao Brasil Império – o
da ordem e da estabilidade –, sobretudo quando comparado
aos movimentos de independência na América do Sul, onde o
espectro da desordem foi insistentemente ressaltado e associado
à ordem republicana. Nesse sentido, desde os movimentos de
independência das antigas colônias ibéricas, a ideia republicana
no Brasil é alojada em um segundo plano, fruto das condições
históricas objetivas vivenciadas no Brasil no intervalo de tempo
entre as décadas de 1820 e 1830.

354
NOTAS
1
André Lalande, Vocabulaire technique et critique de la philosophie, Paris, PUF,
1988, 2 v., p. 721.
2
Raphael Bluteau, Vocabulário portuguez et latino, Lisboa, Joseph Antonio da
Silva, 1712-1721, 8 t., p. 102.
3
István Jancsó, Independência, independências, em István Jancsó (org.), Indepen-
dência: história e historiografia, São Paulo, FAPESP, Hucitec, 2005, p. 26-27.
4
Ilmar Rohloff de Mattos, O tempo saquarema. A formação do Estado imperial,
São Paulo, Hucitec, 1987, p. 19-20.
5
Kenneth Maxwell, Por que o Brasil foi diferente? O contexto da independência,
em Carlos Guilherme Mota (org.), Viagem incompleta, a experiência brasileira,
2. ed., São Paulo, SENAC, 1999, p. 200.
6
Jorge Caldeira, Brasil. A história contada por quem viu, São Paulo, Mameluco,
2008, p. 304-305.
7
Ibidem.
8
Ibidem, p. 305.
9
José Bonifácio de Andrada e Silva apud Jorge Caldeira (ed., org. e int.), José
Bonifácio de Andrada e Silva, São Paulo, Editora 34, 2008, p. 108.
10
Revérbero Constitucional Fluminense, Rio de Janeiro, n. 2, p. 131-134, 1821.
11
Ibidem, n. 11, p. 243.
12
Sérgio Buarque de Holanda, A herança colonial: sua desagregação, em Sérgio
Buarque de Holanda (org.), História geral da civilização brasileira: O Brasil mo-
nárquico, 3. ed., São Paulo, Difusão Europeia do Livro, 1970, t. II, O processo
de emancipação, p. 10-11.
13
Revérbero Constitucional Fluminense, n. 15, p. 131, 1822.
14
Ibidem.
15
Caldeira, José Bonifácio de Andrada e Silva, [1823] 2008, p. 7.
16
Ibidem, p. 25.
17
Ibidem, p. 26.
18
Evaldo Cabral de Mello, A outra Independência. O federalismo pernambucano
de 1817 a 1824, São Paulo, Editora 34, 2004, p. 17.
19
Diogo Antônio Feijó apud Caldeira, Brasil, p. 167.
20
Ibidem, p. 182.
21
Marcelo Basile, O laboratório da nação: a era regencial (1831-1840), em Keila
Grinberg e Ricardo Salles (org.), O Brasil Imperial (1831-1870), Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 2009, v. II.
22
Feijó apud Caldeira, Brasil, p. 153.

355
23
Francisco de Paula Ferreira de Resende, Minhas recordações, Belo Horizonte,
Imprensa Oficial, 1987, p. 67.
24
Ricardo Salles, E o vale era o escravo. Vassouras, século XIX, senhores e escravos
no coração do Império, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2008, p. 50.
25
Mattos, O tempo saquarema, p. 29.

REFERÊNCIAS
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imperial. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
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Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
COSTA, Emília Viotti da. Da monarquia à república. Momentos decisivos.
São Paulo: Brasiliense, 1987.
DOLHNIKOFF, Miriam. José Bonifácio de Andrada e Silva. Projeto para
o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto.
Mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia
colonial tardia: Rio de Janeiro, c. 1790-c. 1840. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2001.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1994.
IPANEMA, Marcello de; IPANEMA, Cybele de. Revérbero Constitucional
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LIMA, Oliveira. O Império do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1921.
MOREL, Marco; FERREIRA, Tânia Maria Bessone da C.; NEVES, Lúcia
Maria Bastos P. (Org.). História e imprensa. Representações culturais e
prática de poder. Rio de Janeiro: DP & G, 2006.
NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial
(1777-1808). São Paulo: Hucitec, 1986.
PIMENTA, João Paulo G.; JANCSÓ, István. Peças de um mosaico (ou apon-
tamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira).
In: MOTA, Carlos Guilherme (Org.). Viagem incompleta, a experiência
brasileira. 2. ed. São Paulo: SENAC, 1999.
PINTO, Luiz Maria da Silva. Dicionário da língua brasileira. Ouro Preto:
Typografia da Silva, 1832.

356
SILVA, Antonio de Moraes. Dicionário da língua portuguesa. Lisboa:
Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789.
SILVA, Antonio de Moraes. Dicionário da língua portuguesa. 2. ed. Lisboa:
Typographia Lacerdina, 1813.
SILVA, Antonio de Moraes. Dicionário da língua portuguesa. 3. ed. Lisboa:
M. P. de Lacerdo, 1823.
SILVA, Antonio de Moraes. Dicionário da língua portuguesa. 4. ed. Lisboa:
Imprensa Régia, 1831.
SILVA, Antonio de Moraes. Dicionário da língua portuguesa. 5. ed. Lisboa:
Typografia de Antonio José da Rocha, 1844. 2 v.

357
IVO COSER

PARTIDO/FACÇÃO

O Dicionário de Moraes, na sua edição de 1789, apresenta


a seguinte definição de partido: “Partido. f.m. parcialidades,
partes, bando, facção v.g. lançou-se ao partido dos hereges;
fazer em seu partido, i.e. ser-lhe útil e favorável.” Partido
está associado aos termos facção e cabala. O termo facção
era entendido como um sinônimo de cabala, a qual possuía
o seguinte conteúdo: “Cabala. Conspiração/Facção, partido.
Partes.”1 O termo cabala era usualmente utilizado com o
sentido de uma ação que é realizada longe dos olhos do público,
uma conspiração, em razão dos seus motivos não serem dignos:
“Conspiração de pessoas que têm intento para mau fim;
pessoas que conspiram para esse fim.”2 Em 1812, José da Silva
Lisboa publicou uma reunião de extratos de Edmund Burke
e nessa coletânea podemos encontrar a seguinte definição:
“A facção não é local nem territorial, é um mal geral. Onde
parece estar menos em ação sempre em vigor de vida. O seu
espetáculo está na corrupção da nossa natureza.”3 Podemos
assinalar que o termo partido possui o seguinte sentido: uma
ação conduzida por uma parte do todo, o qual deveria perma-
necer unido; sendo seus motivos pouco dignos, essa ação era
conduzida de maneira velada do público.
Em 1821, com o retorno da família real para Portugal,
inicia-se um debate político sobre o arranjo institucional
que deveria vir a reger o Império português. Duas posições
predominam: na primeira, o Brasil deveria dispor de autono-
mia política e econômica, sendo a parte mais rica do Império;
a segunda sustentava que, com o retorno da família real para
Portugal, a situação política e econômica deveria retornar ao
modelo anterior à invasão napoleônica. Em meio a esse debate
foi publicado Memória constitucional e política sobre o estado
presente de Portugal e Brasil, escrito por José Antonio de
Miranda, ouvidor do Rio Grande do Sul. Nesse texto, o termo
partido emerge associado aos conflitos desencadeados durante
a Revolução Francesa, provocados pelos “infames regicidas,
encarniçados demagogos Robespierre, Danton, Marat e outros
(...)”.4 Silvestre Pinheiro Ferreira, conselheiro de D. João VI,
discorrendo sobre a possibilidade do retorno da família real,
indaga: “[c]omo se há de impedir o partido dos peninsulares no
Brasil e geralmente nas colônias?”5 A perspectiva de volta da
família real abre a possibilidade de que sejam formados partidos.
Aspecto que o autor enxerga como negativo, buscando inclusive
os meios de impedir tal fato. O termo partido possui, também, o
sentido de tomar parte. Ainda versando sobre o retorno da famí-
lia real e da perda de autonomia do Brasil no Império português,
o jornal Revérbero Constitucional Fluminense (R.C.F.) assinala
a ideia de que era inevitável “tomar partido”, ou seja, escolher
um dos lados em conflito. O R.C.F. pergunta qual o caminho
que a família real irá tomar em meio ao debate: “Poderemos
porventura acalentar o partido que a família real tomará?”6
Mesmo a família real seria forçada a tomar partido. Nessa
acepção, tomar parte/partido não era o mesmo que participar
de um partido, o qual era um agrupamento faccioso. O mesmo
jornal registra: “Um homem de partido deixa de ser homem,
não é mais que um escravo que voluntariamente renunciou ao
uso da própria razão; é uma máquina pronta para obedecer ao
primeiro agente que o empregar a serviço da sua ambição.”7
Ainda segundo o R.C.F., os brasileiros que não defendiam a
autonomia do Brasil (“a Santa Causa”), mas sim a posição das
Cortes de Lisboa, formam o “partido dos servis”.8 O debate

360
político desencadeado com a volta da família real aponta para a
ideia de que era inevitável “tomar partido”. Nesse uso, partido,
como agrupamento, está associado a facção; a seguir uma ideia
em detrimento da razão e do bem público, tendo em vista apenas
a busca do proveito próprio.
O acirramento do debate acerca da situação política e econô-
mica do Brasil no Império português e o desencadeamento do
processo de independência conduzem a alterações significativas
no conteúdo do termo partido. Sierra e Mariscal, observando
os efeitos políticos causados pela Revolução Constitucional do
Porto no Brasil, assinalam a existência de três partidos: o euro-
peu, o aristocrata e o democrata.9 Seu uso do termo partido não
aponta para um sentido negativo, mas apenas para a formação
de correntes políticas que visavam influir nos acontecimentos.
João Soares Lisboa, um dos mais importantes jornalistas
do Brasil, assinalava uma importante distinção entre partido e
facção: “Os políticos têm assim extremado o partido e a facção:
o termo partido por si mesmo nada tem de odioso; o da facção,
o é sempre, quando faz partido sedicioso no Estado. A facção é
como a de César e de outros, que à força de armas subverteram o
governo de seu país.”10 A passagem muito provavelmente foi reti-
rada do termo partido escrito por Voltaire para a Encylopédie:
“A palavra partido não é em si repulsiva; a palavra facção sempre
é. A facção de César tornou-se logo um partido dominante que
engoliu a República.”11 No contexto político que emergiu após
a independência esta distinção será mantida. O debate político
no Primeiro Reinado e no início da Regência forçou os liberais
moderados a enfrentarem aqueles que eram chamados, na época,
de absolutistas ou caramurus, defensores das iniciativas de D.
Pedro I. Os liberais moderados buscavam legitimar a oposição
que faziam a D. Pedro I, e que não seria anticonstitucional, nem
contrária à liberdade.
Numa passagem da sua Carta aos eleitores mineiros (1827),
Bernardo Pereira de Vasconcelos respondia aos absolutistas que
teimavam em criticar os partidos no Legislativo, mostrando que

361
a sua existência não era um mal ao país, muito pelo contrário,
era um instrumento necessário para o bom funcionamento de
um sistema liberal. Isto porque não se devia confundir partido
com facção. O país-mãe desse sistema, a Inglaterra, possuía dois
partidos nitidamente separados, fato que não feria a liberdade.
Vejamos esta passagem:

No Parlamento inglês, os dois partidos em que é divido produzem


muitos bens, e removem milhares de inconvenientes. (...) Diriam os
absolutistas: há partidos na Câmara dos Deputados, ai da liberdade da
pátria, ai do trono e da religião –, e o povo, não estando ainda então
habilitado para distinguir entre partido e facção, e não conhecendo os
grandes bens dos partidos nas Assembleias, ouviria a esses inimigos
da pátria, da liberdade e do trono.12

Podemos ressaltar que, para Vasconcelos, os partidos não só


existem, como são distintos das “facções”. Os absolutistas são
ironizados porque, ao perceberem a sua existência, imediata-
mente temem pela liberdade. Vasconcelos ironiza o temor dos
absolutistas; estes não percebem a sua existência no país-modelo
do sistema liberal, a Inglaterra. Lá, tories e whigs marcam sua
presença no Legislativo com toda a legitimidade, sem que a
liberdade esteja em perigo.
Por outro lado, há um receio da parte de Vasconcelos, qual
seja, o de que o eleitorado brasileiro, ainda pouco “ilustrado”,
não tivesse condições de perceber os benefícios que os partidos
trazem e terminasse por dar ouvidos aos absolutistas, confun-
dindo “partido” com “facção”.
Vasconcelos distinguia claramente dois tipos de grupos políti-
cos. O “partido”, segundo ele mesmo escreve, não traria nenhum
mal à liberdade; que a Câmara estivesse divida entre partidos
distintos não é, por si, um mal. Mas o perigo à liberdade nasceria
caso o Legislativo estivesse dividido em “facções”. Certamente
por estar na oposição, era necessário que Vasconcelos legitimasse
sua posição e a dos liberais moderados, no conflito de ideias que

362
o opunha aos absolutistas. A oposição ao imperador não estava
organizada da mesma maneira que as “facções”.
A abdicação do imperador D. Pedro I (1831) e a promulgação
do Código do processo (1832) desencadearam uma intensificação
do debate político brasileiro. Com o Código do processo, diversos
cargos do aparelho judiciário e repressivo que eram preenchidos
pelo poder central passaram a ser escolhidos, mediante eleição,
sorteio ou nomeação, no município. Setores consideráveis da
população livre foram mobilizados para a vida política. Diversos
grupos políticos percebem nas eleições uma experiência através
da qual o cidadão ativo iria conhecer a necessidade dos parti-
dos e sua diferença para com as cabalas. O receio mencionado
por Bernardo Pereira de Vasconcelos de que a população não
reconhecesse a importância seria superado pela prática política.
Evaristo da Veiga, deputado geral e jornalista, descrevia num
artigo de jornal13 o comportamento de um cidadão ativo numa
eleição para juiz de paz e a sua descoberta da diferença entre
cabala e uma reunião de cidadãos em torno de “desejos e espe-
ranças”. O evento que desencadeia a participação do cidadão nas
eleições é a ameaça a sua propriedade. Após esse evento, o eleitor
percebe que a eleição de juiz de paz tinha reflexos na sua esfera
privada; que um juiz de paz capaz de preservar a ordem pública,
assegurando ao cidadão a tranquilidade, era essencial para a sua
felicidade. O eleitor, armado dessa conclusão, resolve tomar parte
nas eleições. É importante assinalarmos que Evaristo considera
essa participação como um impulso que ainda não encontrou sua
forma correta. Vale a pena descrever como Evaristo apresenta
esse primeiro arroubo participativo: o cidadão decide participar
da eleição de juiz de paz; ao se envolver, fica sabendo que uma
cabala estava em ação. Contudo, recusa-se a tomar parte de
uma ação coletiva. Nesta, cidadãos movidos pelo bem público,
como ele, buscavam a vitória eleitoral. Outros cidadãos também
recusaram participar dessa ação pública virtuosa, e essa recusa
terminou por permitir a vitória da cabala. Evaristo deixava
claro que, nesse primeiro impulso participativo, o eleitor ainda

363
não compreendia a natureza pública da política. Sua decisão de
participar da política não envolve uma ação com outros cidadãos.
Com a vitória da cabala, o cidadão descobre a importância de
que, na política, a ação deve envolver outros cidadãos. A ação
na política o obriga a interagir com outros cidadãos e também
a mobilizar outros valores. O cidadão, para convencer outros
cidadãos, deve mobilizar valores distintos daqueles presentes na
esfera privada. Nesse outro momento, os cidadãos irão se agrupar
num movimento que mobilizará princípios políticos distintos
daqueles vigentes na cabala. Essa reunião seria produzida pela
confluência de opiniões, e sua ação seria movida por “desejos e
esperanças”, visando contribuir para a vida pública. Participar
de um movimento organizado para vencer as eleições e ocupar
cargos eletivos em nome de princípios políticos é uma prática
distinta daquela feita pela facção/cabala.
Nesse contexto político, Evaristo discutia a situação política
francesa após a restauração de 1814 e sugeria sua aplicação para
o caso do Brasil:

(...) os homens que têm entrado na vida ativa desde a restauração,


que se educarão debaixo do fogo da Tribuna, e da Imprensa Livre. (...)
Esses saberão soltar a eleição das afeições, ou interesses privados das
paixões de localidade, para se ligarem invioladamente ao interesse de
partido na elevada acepção do tema.14

O contexto político francês era caracterizado pela extrema


instabilidade. Apenas para lembrarmos alguns fatos: a República
havia sido proclamada (1792); Napoleão foi coroado imperador
(1804); e, em 1814, a monarquia é restaurada. Temos, portanto,
uma vida política extremamente ativa, com os partidários de cada
regime extremamente mobilizados. Nessa situação, marcada por
uma extrema partidarização, Evaristo assinala a possibilidade de
que os partidos venham a desempenhar um papel positivo. Isso
ocorreria quando o partido se separasse dos interesses mesqui-
nhos da localidade – um aspecto, aliás, bastante destacado por

364
Burke. Ao longo de todo o artigo, Evaristo chamava a atenção
do leitor brasileiro para essa atitude dos jovens franceses, assi-
nalando a sua importância para a vida política brasileira. A
intenção de Evaristo era clara, não se tratava apenas de uma
análise despreocupada do caso francês, mas de um exemplo a
ser seguido.
Segundo Evaristo, os “interesses de localidade” devem sair
do seu campo estreito para se orientarem na direção do “partido
na acepção elevada do tema”. Em outras palavras, os interesses
de localidade devem galgar um patamar mais elevado. Esse ato
de superação dos estreitos limites das paixões de localidade
seria efetuado por um agrupamento partidário. A vida partidá-
ria educaria o cidadão em direção a uma participação mais de
acordo com os interesses públicos. Em outro artigo, ao tratar
das eleições para juiz de paz, Evaristo atribui aos caramurus a
organização de facções com o intuito de “cabalar” votos. Ou seja,
de efetuar uma trama, uma conspiração contrária aos interesses
da sociedade. Portanto, Evaristo também conhecia e operava
com a distinção entre partido e facção, guardando para o partido
uma tarefa mais nobre – elevar os interesses – do que aquela das
facções, meros grupos com fins escusos frente ao bem público.
No debate político brasileiro emerge a ideia de que a existência
de partidos não se constitui num mal, desde que distintos das
facções. Diogo Feijó, político vinculado aos liberais moderados,
comenta a existência no Brasil de três partidos:

Entretanto, existem dois partidos, ambos poderosos, o dos restau-


radores e o dos moderados: aquele por suas riquezas, condecorações
e antigas influências, contando por chefe, o ex-imperador (...) Este
partido, o dos moderados, é poderoso por seu número, porque conta
com a nação, cujos votos e opiniões representa; pela santidade da
causa que defende, que é a propriedade nacional; e ainda mesmo por
princípios, porque detesta excessos, porém, em honra da verdade não
tem sabido aproveitar-se das circunstâncias.15

365
Por último, o partido dos exaltados: “O Partido Exaltado,
não existe, ao menos não o conhecemos. Depois do 7 de Abril
[abdicação do imperador] (...) surgiram alguns estourados, desti-
tuídos de consideração e de títulos que justificassem a empresa
de dirigir os negócios públicos.”16 Feijó atribui à corrente política
da qual participa o mesmo termo – partido –, com o qual designa
os seus adversários, os exaltados e os restauradores. O termo
partido passa a designar uma reunião de cidadãos em torno de
ideias que podem ser trazidas a público, pois são movidas por
princípios legítimos que visam promover o bem.
A diferença entre partido e facção/cabala irá aparecer no
Dicionário de Moraes, na sua edição de 1844. Na definição de
facção são assinaladas as diferenças em relação ao termo partido:

Facção: Partido idêntico a Facção. Partido sedicioso em algum


Estado. (Facção, Partido, sinônimos) (...) Por facção entende-se uma
reunião de homens, que ativamente maquinam em segredo, ou às claras,
para derrubar e destruir por todos meios que têm ao seu alcance, os que
se opõem às suas vistas ou aos seus interesses (...) A palavra partido
por si só nada tem de odioso, a facção o é sempre.17

Com o Código do processo, as disputas eleitorais chegaram


aos grandes centros, e também às pequenas cidades. Quando
observamos os relatórios dos ministros de Justiça e os discursos
parlamentares proferidos no Legislativo federal, podemos perce-
ber a preocupação com o conteúdo das disputas políticas nos
locais considerados menos “civilizados”. Na medida em que tais
disputas se desenrolavam nesse espaço social, a distinção entre
partido e facção/cabala desaparece. As disputas são travadas por
partidos que não são movidos por princípios, mas por interesses
particulares; cabalas e partidos são utilizados como sinônimos.
Em 1832, o ministro da Justiça anunciava os conflitos arma-
dos como o principal problema do Império: “[o] espírito sedi-
cioso (...) não tem ainda cessado de dilacerar diferentes províncias
do Império.” Observemos o uso do termo sedicioso, o mesmo

366
adjetivo utilizado por João Soares Lisboa para diferenciar partido
de facção. Segundo Soares Lisboa o “partido sedicioso” seria uma
facção, mas não um partido. Em 1834, Alves Branco mencionava
a capital da província de Alagoas como tendo sido palco de
grandes desordens. O resultado das eleições para a Assembleia
Provincial beneficiou “exclusivamente os candidatos de uma
das cabalas, que dominavam na Província”.18 Os protestos da
oposição não encontravam nenhuma esperança na Assembleia.
O resultado foi a eclosão de um grande conflito. Gente armada
de todos os cantos da província afluíram para a capital. Como
resultado desta ação, o vice-presidente, responsável pelo triunfo
da cabala, foi deposto, da mesma forma que outras autoridades
civis e militares. Conclui o ministro da Justiça: “As primeiras
eleições foram anuladas, substituindo-se todos estes funcio-
nários por gente da parcialidade da nova facção triunfante, e
assassinando-se diversas pessoas.”19
No mesmo relatório do ministro da Justiça, os males decorren-
tes da Revolta da Cabanagem que explodiam no Pará provinham
do fato de que o “coração do homem ignorante e sem educação
quando o espírito de partido o domina (...) se acha livre de todo
obstáculo e de toda repressão das Leis”.20 Aqui encontramos o
termo partido na descrição de um evento que, frente aos olhos da
elite política da época, era a expressão de um espírito bárbaro,
estreito, que desconhecia o bem comum, apenas dando vazão
ao interesse particular.
A distinção entre partido e facção, apesar de apontada, é
pensada, entre os conservadores, em razão do estado da civiliza-
ção. Segundo Justiniano José Rocha, político e jornalista ligado
aos conservadores, é da natureza do “sistema representativo
despertar ambições que, em países mais moralizados” do que o
Brasil, são controladas. Nestes, “as cabalas são menos onipo-
tentes”. Infelizmente, em razão do atraso existente no Brasil, os
partidos “despertam o ódio” entre as províncias, acirrando o
“provincialismo”, um dos grandes males que afetavam o país.21

367
Segundo o relatório do ministro da Justiça de 1841, na
disputa política que provocou a Revolta da Cabanagem, estariam
presentes “paixões alheias à política”.22 Segundo Paulino José
Soares de Souza, “nas pequenas localidades” a disputa política
é movida “por intrigas de famílias e outras causas puramente
locais”.23 Num discurso proferido na Câmara dos Deputados,
Paulino descrevia as disputas políticas nas pequenas localidades:

As pequenas facções que nas localidades disputam as eleições dos


juízes de paz e das câmaras (...) cometem excessos para que (...) sejam
eleitos do partido os mais decididos (...) para abater e nulificar o con-
trário. (...) Cada partido, muitas vezes, não é político, mas de famílias
e de influências locais, procura colocar a autoridade nas mãos dos seus
para não ser oprimido, e para oprimir e vingar-se.24

Podemos assinalar o seguinte: o termo partido, quando utili-


zado na descrição das disputas políticas travadas nas pequenas
localidades, nos sertões, ganha o conteúdo de uma facção. Nesse
espaço social, o partido não é uma reunião de cidadãos em torno
de princípios políticos, um portador de “doutrinas”,25 de inte-
resses elevados,26 passando a possuir um sentido semelhante ao
da facção/cabala. O partido passa a simbolizar um agrupamento
que visa obter cargos com o objetivo, inconfessável em público,
de perseguir adversários. Dessa maneira, o termo partido equi-
vale à cabala (“uma conspiração para um fim mau”, segundo o
Dicionário de Moraes, 1813).
Em 1852, Francisco Lisboa escreveu sobre os costumes
políticos na sua província natal, o Maranhão, distante do eixo
principal do Império. Na pintura desse quadro, Lisboa foge
intencionalmente da descrição e da análise das pessoas envolvidas
nos eventos; sua preocupação é a de captar os traços que confi-
guram a atividade política, qualquer que seja o personagem. O
que ocorre no Maranhão ocorre independentemente da pessoa
envolvida. Como o autor escreveu no seu “Prospecto” ao Jornal
de Timon: “A pintura dos costumes privados (...) não entra como

368
elemento principal no plano deste trabalho; (...) Mas o seu fim
primário ficará sendo sempre a pintura de nossos costumes polí-
ticos (...)”27 É importante destacar que Lisboa percebe e distingue
um funcionamento distinto dos partidos em razão da sua locali-
zação social. Lisboa recomendava a suspensão do funcionamento
dos partidos e das eleições nas pequenas províncias, mas não
nos grandes centros, pois nestes o funcionamento era distinto:

Se as necessidades do sistema que a nação adotou exigem experi-


ências e ensaios nos grandes teatros e centros de população, sejam eles
dispensados ou pelo menos consideravelmente reduzidos nos pontos
de menor importância. Desenvolvam o governo e os partidos a sua
política nas grandes províncias (...).28

Para Lisboa, tentava-se mostrar a política na província como


idêntica à da Corte, ilusão que gerava resultados funestos para
a ordem política.29 Segundo Lisboa, a atividade política nas
pequenas províncias era estéril e improdutiva, nada gerava para
a sociedade. Seus atores apenas buscavam empregos públicos;
para aqueles menos afortunados, estes eram a sua única forma
de sobrevivência, e para aqueles que já possuíam uma posição
material superior, eram um aumento do patrimônio. Entre os
membros dos partidos que disputavam as eleições, não havia
nenhum outro motivo que os ligasse que não fosse a busca dos
empregos públicos. Os partidos provinciais se resumiam a meras
expressões de “famílias”: “[n]as províncias não há nem houve em
tempo algum partidos políticos, reduzindo-se toda a contenda a
ciúmes e ódios de família, que entre si pleiteiam a preponderância
nos negócios.”30 A expressão “centros de população” era usual
em relatórios ministeriais e discursos parlamentares denotando
as regiões mais civilizadas. Segundo Lisboa, o experimento libe-
ral – os sistemas de partidos e de eleições – deveria ser adotado
apenas nessas áreas civilizadas (centros de população/grandes
províncias). Podemos considerar que no argumento de Lisboa
esteja implícita a ideia de que apenas nessas regiões estariam

369
presentes os pré-requisitos materiais e culturais necessários para
um bom funcionamento do sistema de partidos.
Para Lisboa, o funcionamento das eleições e dos partidos nas
pequenas províncias – aquelas onde os traços sociais da civili-
zação eram mais fracos – mostrava-se completamente distinto
daquele existente na Corte ou nos países nos quais o sistema
liberal foi moldado (países estrangeiros). Lisboa identificava,
claramente, na Corte uma presença maior de traços sociais e
culturais que forneceriam uma base para o funcionamento do
sistema liberal. A inexistência dessa base reduz os partidos e as
eleições a uma mera contenda de ódios familiares.
Durante os anos de 1837 até 1843 a legislação descentrali-
zadora é revista, sendo aprovada em seu lugar um conjunto de
leis centralizadoras que passaram a ser chamadas de regresso
conservador. Esse conjunto de leis centralizou os poderes no
âmbito central, retirando atribuições dos municípios e províncias.
A partir dessas leis formam-se dois grupos: os “conservadores/
saquaremas”, defensores das leis centralizadoras, e os “liberais/
luzias”, adeptos de leis descentralizadoras. Tais termos passam
a designar deputados, senadores, ministros etc. que pertenciam
a esses grupos. Entretanto, nenhum dos dois grupos jamais
elaborou um programa formalmente. Esses dois grupos passam a
disputar o poder central, e as disputas políticas mais importantes
se concentram na esfera nacional – Legislativo e Ministério –,
ficando relegada a segundo plano a esfera municipal e provincial.
O principal defensor das leis centralizadoras, Paulino José
Soares de Souza (o Visconde do Uruguai), distinguia entre a
luta política travada nas pequenas localidades daquela que se
desenvolvia em torno do poder central:

A Lei de interpretação do ato adicional, e a de 3 de dezembro de


1841, modificaram profundamente esse estado de coisas [o uso dos
empregos com a finalidade de oprimir]. Pode por meio delas ser mon-
tado um partido, mas pode também ser desmontado quando abuse. Se
é o governo que o monta terá contra si em todo Império todo o lado

370
contrário. Abrir-se-á uma luta vasta e larga porque terá de basear-se
em princípios, e não a luta mesquinha e odienta, mais perseguidora e
opressiva das localidades.31

Podemos sustentar que Uruguai estabeleceu uma distinção


entre partidos que disputam o poder e que se organizam, tendo
em vista “princípios”, daqueles que o fazem objetivando “empre-
gos”. Segundo o Visconde do Uruguai, nas disputas políticas
nas localidades, “a questão era em grande parte de empregos
por meio dos quais cada dominador quer assegurar-se em seu
bairro”.32 No argumento de Uruguai está presente a distinção
entre partido e facção: os partidos seriam agrupamentos mobili-
zados em torno de princípios e que disputam o poder político em
sentido distinto; a facção seria o grupo reunido com o objetivo
de obter cargos com o intuito de perseguir, violar a lei, buscar
a realização de interesses pessoais.
Entretanto, ele não pensava o tema do partido em termos
abstratos, ou seja, longe das determinações sociais existentes na
sociedade brasileira. Sua preocupação não estava voltada para
uma teoria dos partidos em abstrato, mas para o seu funciona-
mento no contexto nacional. É a partir deste que ele aborda o
tema do partido e das facções. Tal distinção era formulada em
razão do espaço social no qual ocorria a disputa política. Nas
regiões mais civilizadas, os grupos seguiam a forma do partido –
organizados em torno de princípios –, ao passo que nas regiões
menos civilizadas predominavam as facções – organizadas com
o mero objetivo de conquistar cargos e de perseguir adversários.
A partir de 1853, forma-se a opinião de que os partidos libe-
rais e conservadores deveriam abandonar as antigas divergências
e unir seus esforços em pontos em comum que representassem
progresso para o país. Tal política foi posta em prática princi-
palmente no 12º gabinete do Segundo Reinado chefiado por
Honório Hermeto Carneiro Leão. Justiniano José da Rocha
publicou importante livro no qual sustentava a seguinte ideia:
“O período da transação está começando; dizei-nos onde param

371
as antigas parcialidades, onde os seus ódios? Há muito desapa-
receram.”33 A ideia de que os partidos Liberal e Conservador
deveriam desaparecer emerge para o Visconde do Uruguai como
um erro. Em 28 de maio de 1858, Uruguai ponderava os motivos
pelos quais não havia aderido à conciliação:

Começarei por declarar que nunca compreendi, e ainda hoje não


compreendo esta política. Creio que o governo, apregoando-a do
modo pelo qual o faz, promete aquilo que não pode fazer, e atribui a
si resultados que não são seus. Conciliar, creio eu, segundo a signifi-
cação literária dessa palavra, é fazer concordar pessoas divididas por
opiniões e interesses. Há sempre na sociedade interesses que não se pode
fazer concordar; há sempre opiniões que não são possíveis de serem
homologadas (...) – Senhores, há na sociedade humana uma ebulição
constante que tende transformá-la. Não está no poder do governo fazer
a sociedade como ele entende; há de recebê-la tal qual ela é. O tempo
altera e modifica tudo à roda de nós, modifica-nos também todos os
dias; não pensamos hoje como pensávamos há anos; não temos hoje
os mesmos interesses que nos moviam em épocas anteriores.34

Sete anos após o início da conciliação, Uruguai expunha, no


plenário, as discordâncias, que certamente havia manifestado
no âmbito privado, para com a conciliação. A sociedade era
dividida por opiniões e interesses que não cabiam ao governo
aplainar. Em outras palavras, liberais e conservadores deveriam
permanecer em campos opostos, pois exprimiam princípios polí-
ticos distintos, e não a mera busca por cargos. O partido era um
agrupamento necessário para a vida política de uma sociedade.
Nela estariam sempre presentes “opiniões e interesses” distintos,
e seria impossível suprimi-los. A forma mais adequada para que
estes se fizessem presentes na arena política era o partido.
Em 1864, é formado o Partido Progressista, resultado da
união de conservadores moderados e liberais desiludidos com o
Partido Liberal. Em discurso proferido no Senado, Silveira da
Mota afirmava:

372
O Partido Progressista é um partido novo. Não toma sobre si a
responsabilidade das crenças e tradições dos extintos partidos (...)
aceita sem distinção (...) o concurso de todos os que quiserem (...)
realizar na administração pública do País os princípios e regras no
seguinte programa.35

Após essa introdução advinha o programa do partido. É


importante ressaltar dois aspectos: a designação do grupo como
partido e a elaboração de um programa. Da mesma maneira irá
proceder o Partido Republicano (1870): “É a voz de um partido
que se alça hoje para falar ao país.”36 O conceito de partido como
um grupo organizado em torno de ideias políticas, dispondo de
um programa e de uma organização, distinto da facção/cabala,
encontrava-se consolidado no pensamento político brasileiro. A
presença dessa distinção não afastou o uso negativo de partido
no debate político, mas apontou para a possibilidade de um
conteúdo positivo para este termo.

NOTAS
1
Pedro José da Fonseca, Dicionário português e latino, Lisboa, Reggia Oficina
Typografia, 1771.
2
Antonio de Moraes Silva, Dicionário da língua portuguesa, recopilado dos vo-
cabulários impressos até agora, e nesta segunda edição novamente emendado,
e muito acrescentado, Lisboa, Tipografia Lacerdina, 1813.
3
Edmund Burke, Extratos das obras políticas e econômicas de Edmund Burke,
trad. de José da Silva Lisboa, Rio de Janeiro, Imprensa Régia, 1812, p. 52.
4
José Antonio de Miranda, Memória constitucional e política sobre o estado
presente de Portugal e Brasil, Rio de Janeiro, Typographia Regia, 1821, p. 35.
5
Silvestre Pinheiro Ferreira, Memórias políticas sobre os abusos gerais e modo
de os reformar e prevenir a revolução popular redigidas por ordem do príncipe
regente em 1814 e 1815 (1815), em Ideias políticas, Rio de Janeiro, Editora
PUC-Rio, 1976, p. 26.
6
Revérbero Constitucional Fluminense, Rio de Janeiro, p. 229, 19-III-1822.
7
Ibidem, p. 35, 10-VI-1822.
8
Ibidem, p. 176, 27-VIII-1822.

373
9
Apud Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves, Corcundas e constitucionais: a
cultura política da independência (1820-1822), Rio de Janeiro, Revan, 2003,
p. 290.
10
Lisboa (1822) apud Neves, Corcundas e constitucionais, p. 196.
11
Voltaire apud Giovanni Sartori, O partido como parte, em Partidos e sistemas
partidários, Brasília, Universidade de Brasília, 1982, p. 23.
12
Bernardo Pereira de Vasconcelos, Carta aos eleitores mineiros (1827), em José
Murilo de Carvalho (org. e int.), Bernardo Pereira de Vasconcelos, São Paulo,
Editora 34, 1999, p. 72.
13
Aurora Fluminense, Rio de Janeiro, 15-II-1833.
14
Ibidem, p. 482.
15
O Justiceiro, São Paulo, 7-XI-1834.
16
Idem, 13-XI-1834.
17
Antonio de Moraes Silva, Diccionario da lingua portugueza, composto por An-
tonio de Moraes Silva, natural do Rio de Janeiro, quinta edição, aperfeiçoada,
e acrescentada de muitos artigos novos, e etimológicos, Lisboa, Tipografia de
Antonio José da Rocha, 1844, 2 t.
18
Relatório do Ministro da Justiça, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1834,
p. 13.
19
Ibidem, p. 14.
20
Ibidem, p. 13.
21
O Brasil, Rio de Janeiro, 20-11-1841.
22
Relatório do Ministro da Justiça, 1841, p. 7.
23
Relatório de Presidente de Província, Rio de Janeiro, Typografia Nacional, 1839,
p. 1-2.
24
Brasil, Anais da Câmara dos Deputados, Sessão da Câmara, 3-XI-1841.
25
Silva, Dicionário da língua portugueza.
26
Aurora Fluminense, 1833.
27
João Francisco Lisboa, Jornal de Timon (1852), em José Murilo de Carvalho
(int. e notas), Jornal de Timon, São Paulo, Companhia das Letras, 1995, p. 35.
28
Ibidem, p. 326.
29
Ibidem, p. 86.
30
Ibidem, p. 127.
31
Paulino José Soares de Souza (Visconde do Uruguai), Ensaio sobre o direito
administrativo (1862), Brasília, Ministério da Justiça, 1997, p. 381.
32
Ibidem, p. 380.

374
33
Justiniano José da Rocha, Ação, Reação e Transação (1855), em R. Magalhães Jr.
(ed.), Três panfletários do Segundo Reinado, São Paulo, Cia. Editora Nacional,
1956, p. 216.
34
Apud José Antônio Soares de Sousa, A vida do Visconde do Uruguai, São Paulo,
Editora Nacional, 1944, p. 571-572.
35
Silveira Mota, sessão de 6-VI-1864, apud Américo Brasiliense, Os programas
dos partidos e o Segundo Império (1878), Brasília, Senado Federal, 1979.
36
Manifesto Republicano apud Brasiliense, Os programas dos partidos e o Segundo
Império.

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377
LÚCIA M. BASTOS PEREIRA DAS NEVES
GUILHERME PEREIRA DAS NEVES

REVOLUÇÃO

No início do Oitocentos, na América portuguesa e, poste-


riormente, ao longo do Império do Brasil, como predomi-
nantemente na Europa, o conceito de revolução guardava
um caráter diversificado, ora despertado pelas conjunturas
que marcaram o período, ora reelaborado para atender aos
interesses dos agentes históricos envolvidos. Assumia, assim,
significados múltiplos, que iam do movimento dos astros às
mutações da natureza, dos governos e das sociedades. Adquiria
ainda um sentido catastrófico de decadência, de destruição da
ordem divina ou de desorganização universal; ou já indicava
crises políticas e rupturas, como a Revolução Inglesa de 1688,
a Independência das colônias inglesas da América e a própria
Revolução Francesa.1
Um tanto quanto surpreendentemente, no início do
século 18, em seu Vocabulário português,2 o padre Raphael
Bluteau indicava vários sentidos para o termo: inicialmente,
“tempos revoltosos, revoltas e perturbações na república”; em
seguida, “revolução dos astros”; “revolução na astronomia”;
“revolução na astrologia”; “revolução no Estado, mudança,
nova forma de governo”; “revolução de humores no corpo”;
“revolução nos cabelos”; “revolução das almas”. Situado
entre o classicismo e uma pré-ilustração, Bluteau emprestava
ao termo não só o sentido de um ciclo completo de mudança,
mas também o de um acontecimento extraordinário que ocorre
no mundo. Como exemplos, por outro lado, recorria aos escri-
tos da Antiguidade Clássica, embora não fosse capaz de usar a
palavra como os ingleses faziam, ao relacioná-la a um aconteci-
mento político preciso e geograficamente circunscrito, como a
Revolução Gloriosa de 1688.
Quase cem anos mais tarde, em 1813, em sua segunda recom-
pilação do Vocabulário, Antonio de Moraes Silva mantinha os
diversos significados para a palavra, demonstrando que muitos
usos antigos conservavam-se vivos, mas se mostrava bem mais
superficial quanto ao emprego relacionado à política. Incluía
apenas um sentido figurado, como “revoluções nos estados,
mudanças na forma”. Faltava-lhe uma ideia explícita e precisa
de revolução e era ao termo revolta que atribuía o sentido de
“levantamento, perturbação da ordem doméstica, política”.3
Desconhecimento ou cautela, em função dos tempos que vivia?
Afinal, a essa altura, o autor já tinha sido perseguido pela
Inquisição em 1799, e o mundo luso-brasileiro se posicionara
explicitamente contra os “abomináveis princípios jacobinos”.4
Na perspectiva pragmática das Luzes ibéricas, das quais a
América portuguesa foi herdeira, o ideal reformador limitava-
-se à proposição de uma mudança conduzida pelo poder oficial,
em nome da utilidade comum e da felicidade pública, capaz de
levar a uma melhoria nas condições de vida dos súditos, tanto
na economia quanto nas comunicações, no ensino e nas artes
de governar.5 Por essa ótica, evita-se o próprio uso da palavra,
preferindo-se reforma, sempre concebida como uma alteração
não violenta. Do que decorria a frequente utilização de conceitos
como restauração ou regeneração, mesmo em conjunturas confli-
tuosas. Ao mesmo tempo, não se pode esquecer que, naquela
época, a ideia de restauração encontrava-se profundamente
entranhada no mundo luso-brasileiro, servindo de verdadeiro
instrumento de legitimação para a existência de Portugal desde
1640, quando da ruptura com a Espanha e a ascensão dos
Braganças ao trono.

380
Tradição tão forte que, em 1858, nem eco da perspectiva
inversa emerge da sexta edição do Dicionário de Moraes Silva.6
No verbete “Revolução” – após os sentidos tradicionais de
“ato de revolver o que estava assentado”, de “[m]ovimento
pela órbita, giro (...) começo e acabamento do giro, círculo e
periodismo deles” e de movimento dos humores que altera a
saúde –, encontra-se “Revolução nos estados; mudanças que os
alteram na forma e polícia, povoação etc.[;] revoltas, perturba-
ções”. Entretanto, não só os exemplos continuam a ser aqueles
de Bluteau – de Évora e de Pernambuco contra os holandeses no
século 17 –, como remete para “Insurreição”, verbete no qual
distingue esse movimento de motim, sedição e revolução, para
concluir que uma “insurreição vencida, aniquilada, não é mais
que uma revolução; e se teve por alvo sacudir o jugo estrangeiro
para recobrar a independência nacional, reclama o nome de
restauração”.7
De fato, no mundo luso-brasileiro, ainda que os aconteci-
mentos de 1789 tenham emprestado um sentido mais preciso
ao conceito de revolução, passando a identificar uma agitação
violenta que irrompia de forma surpreendente, semelhante à
ideia de guerra civil, o termo apresentava-se sempre qualificado
de alguma forma. Semanas apenas após a Tomada da Bastilha,
por exemplo, a Gazeta de Lisboa,8 que também circulava no Rio
de Janeiro, continuava a registrar a Revolução Francesa como
sendo a “famosa revolução de Paris”.9
Mais adiante, porém, à medida que o processo revolucionário
se desenrolava, não houve mais dúvidas quanto a essa “extra-
ordinária e temível revolução”, que propagava “horrorosos
(...) sentimentos políticos”, cujos abomináveis princípios, fatais
aos soberanos e aos povos, não podiam deixar de despertar
a preocupação das autoridades.10 Dava-se início à construção
de uma representação simbólica da França revolucionária que
enfatizava o lado negro e macabro do acontecimento e de suas
repercussões, ao envolvê-lo em visões de sangue e de terror. O
conceito adquiria, assim, um sentido profundamente negativo,

381
sendo o movimento concebido como uma “tríplice conspiração”,
urdida contra o altar, o trono e a sociedade civil pela “pestilen-
cial irmandade” dos jacobinos, ou como “a peste da Europa e o
terror das potências”, conforme a visão do jesuíta secularizado
como Abbé Barruel.11
Após a profunda alteração provocada nas instituições e no
mapa político europeu por força da Revolução Francesa e do
furacão napoleônico, foi o princípio monárquico, entretanto,
que saiu vitorioso, estabelecendo, a partir do Congresso de
Viena (1815), o aparente triunfo da reação e da restauração.
Do ponto de vista histórico, o conceito de restauração12 igno-
rou as conquistas realizadas ao longo da Revolução, acabando
por toldar, assim, o novo horizonte de expectativas que se
abrira. Restauração passou a funcionar como o polo oposto
da Revolução, não só em relação ao passado, mas também em
relação ao futuro, à medida que correntes inovadoras, pouco a
pouco, voltavam a reorganizar-se.
No mundo luso-brasileiro, apesar de todas as suas especifi-
cidades, a conjuntura foi geralmente marcada por um embate
semelhante. Contudo, tanto para conservadores como para libe-
rais, execrava-se qualquer possibilidade de mudança através de
uma revolução, assim como revestia-se cada vez mais o conceito
de um sentido de horror, ao identificá-lo com os próprios prin-
cípios da Revolução Francesa. Desse modo, em 1808, ano-chave
para mudanças profundas na América portuguesa, não se pode
afirmar que o conceito moderno de revolução tivesse sido incor-
porado ao ideário da época. Com a presença do soberano em
terras brasileiras, na visão dos letrados mais esclarecidos como
Hipólito da Costa, o redator do Correio Braziliense, publicado
em Londres a partir dessa época, fazia-se necessário substituir o
despotismo dos governos militares das capitanias por um governo
civil bem regulado.13 Para alcançar tal objetivo era necessária a
adoção de medidas de caráter cultural e particularmente peda-
gógico, que servissem à “reforma das instituições viciosas e dos
abusos do despotismo”,14 mas não mudanças bruscas, advindas

382
de uma revolução. A ideia convertia-se numa revolução do espí-
rito, guiada por uma perspectiva de reforma.
Em 1817, em meio a crescentes tensões no interior do Império
português, eclodiu, em 6 de março, a Gloriosa Revolução de
Pernambuco, movimento de tendência autonomista e repu-
blicana, considerado pela historiografia regional como um
prenúncio da Independência de 1822 e até da República de
1889. O movimento não deixou de ser compreendido como uma
revolução, por constituir uma ruptura com o governo do Rio
de Janeiro, uma vez que este, com a presença da Corte portu-
guesa, assumira o lugar de metrópole. Apesar disso, o conceito
de revolução, a que recorriam os participantes, não implicava
uma mudança profunda na ordem da sociedade. Segundo os
próprios membros do governo provisório, a revolução era “filha
do céu”; logo, o “céu a protegerá”. A empresa devia consolidar
a felicidade dos povos, mas resguardando as propriedades, a
ordem social e a “santa religião”.15 Além disso, a fórmula dos
impressos oficiais proclamava 1817 como a “segunda restaura-
ção de Pernambuco”,16 reforçando a ideia de retorno ao poder
legítimo, uma vez que D. João VI, ao favorecer o Rio de Janeiro,
havia traído o pacto de fidelidade entre si e seus súditos.17 Como
no século 17, permanecia, por conseguinte, uma visão providen-
cialista da revolução.
Por outro lado, também foi Hipólito da Costa quem começou
a pensar o conceito de revolução aplicado ao contexto polí-
tico, no sentido de ruptura e crise. Influenciado pelas ideias de
Edmund Burke, que assimilara no ambiente inglês, demonstrava,
com certeza, horror à Revolução Francesa, mas, ao distinguir
revoluções físicas e morais, entendia por estas “a mudança
repentina, em qualquer país, da forma de governo, da religião,
das leis ou dos costumes”. No entanto, dignas de aprovação
eram “aquelas mudanças graduais e melhoramentos nas leis, que
se fazem necessários pelos progressos da civilização e que são
ditados pelas circunstâncias dos tempos”.18 Portanto, de Burke,
assimilara a ideia de uma perfeita continuidade entre o passado

383
e o presente,19 mas visando a “reformas úteis”, desde que não
fossem “feitas pelo povo”, das quais sempre decorriam “más
consequências”.20
A partir de 1821, valendo-se da nova conjuntura, foram,
no entanto, os escritos constitucionais, ao circularem nos dois
lados do Atlântico, que inseriram a palavra revolução no campo
semântico da política luso-brasileira. Ainda que de utilização
mais restrita, o termo não deixou de ser empregado para definir
o movimento político que sacudiu o mundo ibérico entre 1820 e
1821. Na opinião do Revérbero Constitucional Fluminense, peri-
ódico publicado no Rio de Janeiro, a “Revolução de Portugal, se é
que assim se deva chamar a luta da justiça contra o despotismo”,
tinha viabilizado o estabelecimento do sistema representativo.21
Não obstante, herança do vocabulário político francês que fazia
lembrar o estigma da Revolução Francesa, o emprego exigia
justificação. Afinal, se

a palavra revolução é sempre terrível aos ouvidos dos tiranos,


também o deve ser aos ouvidos do povo, porque toda revolução traz
consigo inconvenientes. Mas há casos em que ela é indispensável e
então sofrem-se alguns males para conseguir muito maior soma de
bens. Um inverno rijo é uma revolução; mas sem o inverno não pode
medrar a primavera e o verão.22

Na realidade, essa curiosa revolução não implicava obrigato-


riamente uma transformação nas estruturas vigentes. Na ótica
de seus participantes, embora fosse necessário assegurar uma
mudança política significativa, deviam conservar-se a ordem
e a submissão, evitando-se “os perigosos tumultos, filhos da
anarquia”, típicos de uma revolução.23 Para José da Silva Lisboa,
formado em Coimbra e defensor dos princípios da economia
política, mas natural do Brasil, a revolução era uma “praga”, que
destruía a felicidade de toda uma geração e produzia a “anarquia
e a guerra civil”.24 Em outra obra, o Roteiro Brasílico, chegou a
afirmar: “As obscenas harpias da Revolução da França surgiram

384
da anarquia, do caos, que gerou tantas coisas monstruosas e
prodigiosas; e voando sobre nossas cabeças, casas e mesas, nada
deixaram impoluto e não contaminado.”25
Por isso, mais do que revolução, predominava na época o
conceito de regeneração,26 que acabou por identificar o próprio
movimento vintista e o conjunto do movimento liberal, iniciado
em Portugal em 24 de agosto de 1820, repercutindo no Brasil
em 1821. Os objetivos dos dois reinos passavam a coincidir:
desterrar o despotismo e regenerar a nação. Assim, saudava-se a
adesão do Rio de Janeiro ao movimento, em 26 de fevereiro de
1821, como o “Dia de Salvação e de Regeneração do Reino do
Brasil!”27 A ideia de regeneração política previa “uma reforma
de abusos e uma nova ordem de coisas”, a fim de empreender
uma ação salvadora e restituir os antigos direitos que a nação
havia perdido devido ao despotismo, que grassava por todo o
Império, incluindo o Brasil.28 E, para muitos, essa mudança,
embora natural, resultava da mão toda-poderosa de Deus. Em
discurso que antecedeu as eleições dos deputados às Cortes de
Lisboa, o bispo do Pará, Romualdo de Sousa Coelho, afirmava
que “nossa Regeneração política” tivera êxito porque era “um
efeito da Divina Providência”.29 Em suma, esperavam-se por
reformas úteis, que implicassem mudanças de cunho político e
social, mas repudiavam-se movimentos violentos. Desse modo, a
ideia de revolução continuava próxima do sentido astronômico,
pressupondo, no fundo, o retorno a uma situação anterior.
De qualquer modo, no momento da Independência, o termo
revolução não deixou de ser usado para referir-se ao processo
de libertação que os povos da América iniciavam contra suas
metrópoles: “(...) o Novo Mundo em revolução fez vez de suas
forças físicas e morais para quebrar para sempre os grilhões,
usados no tempo, que o conservavam debaixo da dependência
da Europa.”30 Era um momento de ruptura. Segundo os autores
do Revérbero Constitucional Fluminense, a própria separação do
Brasil de Portugal definia-se como uma revolução: “Províncias
do Brasil, é chegada a época da nossa glória; a nossa revolução

385
é única nos fastos do universo. E um príncipe, que precede os
votos de seu povo, é um pai, que diz aos seus filhos – chegou o
tempo de vossa emancipação.”31 Ou, anos mais tarde, ao falar da
Independência, outro jornal fluminense, Astrea, afirmava que D.
Pedro, “para libertar o Brasil do terrível jugo, não de Portugal,
mas das Cortes portuguesas, se pôs à frente da Revolução do
Brasil”.32
Ao mesmo tempo, no entanto, permaneciam os cuidados com
a utilização do termo. Afinal, ele carregava consigo o medo dos
efeitos dos “princípios revolucionários modernos”, que agora
ameaçavam o Novo Mundo, a partir do “exemplo da ilha de
São Domingos”, ou seja, a sublevação de escravos. Fato “tão
horroroso” e “ainda tão recente”, que por si só bastava “para
aterrar os proprietários deste continente”.33
Naquele momento, a ideia de revolução caminhava entre
dois extremos. Num polo, situavam-se os indivíduos que perten-
ciam à elite brasiliense, ou seja, aqueles quase exclusivamente
formados no Brasil, mas que tinham assimilado as novas ideias
do pensamento francês e norte-americano por meio da leitura
de livros proibidos. Constituíam um grupo mais ousado, que
aceitava o princípio revolucionário em última instância, embora
não deixasse de colocar a nova ordem política numa linha de
continuidade, ao invés de ruptura, com as instituições políticas
do Reino Unido: manutenção da dinastia de Bragança, ainda
que subordinada ao Poder Legislativo; confirmação da religião
católica e da prática das cortes, mas que, doravante, deviam ser
deliberativas.
No polo oposto, estavam os partidários da Contrarrevolução,
que defendiam as ideias absolutistas, considerando o movimento
constitucional uma desordem caótica. No Brasil, adquiriram
pequena visibilidade, limitando-se àqueles que sugeriram, diante
das primeiras notícias, o abandono da parte europeia do Império
por D. João, para evitar o contágio revolucionário na América,
como foi o caso do ministro Tomás Vilanova Portugal.34

386
Entre uma e outra corrente, situavam-se os liberais moderados
que, herdeiros da peculiar Ilustração portuguesa, defendiam uma
mudança gradual, através de reformas de cunho político e cultu-
ral, excluindo a via revolucionária. Predominantemente gradua-
dos pela Universidade de Coimbra, compunham a chamada elite
coimbrã, e tinham servido à Coroa, tanto em Portugal – onde
alguns nasceram – quanto no Brasil.35
Após a Independência, o Primeiro Reinado foi um período
de paz armada entre o imperador e o Parlamento, na expres-
são de um político de meados do Oitocentos, em que se teve o
propósito de abolir os velhos usos do absolutismo e de extinguir
as instituições que se afiguravam como um prolongamento da
herança portuguesa. Isso ocorreu especialmente a partir de 1826,
quando a Primeira Legislatura ordinária procurou marcar os
limites da soberania e definir as fronteiras do poder da Coroa.
Assim, ao longo das tensões e conflitos que distinguiram o
Primeiro Reinado, o termo revolução integrou-se de maneira mais
consistente às linguagens políticas em uso, mas ainda prosseguiu
sob suspeita. Na discussão do voto de graça ao imperador pela
abertura da Assembleia Geral, em 10 de maio de 1828, saudava-
-se a nomeação de um novo representante diplomático pelos
Estados Unidos, recompondo-se “os laços da natural amizade
com este povo coirmão, que primeiro estreou na América a
estrada da regeneração e da independência e saboreou as vanta-
gens de um governo representativo”.36 Mesmo entre as elites
político-intelectuais que advogavam ideias liberais em oposição
ao centralismo de Pedro I, evitava-se a revolução, no sentido
moderno. Na Aurora Fluminense, afirmava Evaristo da Veiga:
“Nada de excessos. Queremos a Constituição. Não queremos a
Revolução.”37 Na Assembleia, acrescentava Lino Coutinho: “(...)
estamos no tempo de reformas, e é necessário reformar tudo no
civil, no político e na religião.”38
A essa altura, até para os chamados exaltados, que veiculavam
uma linguagem de teor mais radical, o uso do termo revolução
não deixava de revelar-se ambíguo, ao denotar uma perspectiva

387
de ruptura com o passado, mas que, no fundo, orientava-se
pelos princípios da antiga linguagem do humanismo cívico. Já
no decorrer da crise entre os poderes Legislativo e Executivo,
o periódico Nova Luz Brasileira, que começara a circular em
dezembro de 1829, trouxera à luz um “Dicionário crítico cívico”,
do qual não fazia parte o vocábulo “revolução”.39 Constavam,
sim, “rebelião” e “insurreição”. Para seu redator, Ezequiel
Correia dos Santos, era necessário “fazer distinção” destes
termos e de suas significações. Rebelião era “a desobediência
de qualquer pessoa ao Contrato Social, fazendo-se senhor do
governo”; era o movimento feito pelos tiranos que, “abusando
da força e confiança do Povo”, usurpavam os poderes da socie-
dade civil. Diferentemente, na insurreição, são “os patriotas que
atacam para destruir os tiranos e a tirania e restabelecer a boa
ordem”. Portanto, insurreição era o “justo levantamento do
Povo contra os que atacam o Contrato Social”; era uma “justa
revolução para (...) reformar ou mudar o governo se é vicioso
e perverso”. Desse modo, os brasileiros não tinham feito uma
rebelião, mas sim “uma justa e virtuosa insurreição, ou revolução
contra a tirania de Portugal”, para tornar seu país livre e feliz.
Possivelmente, sua visão inspirava-se na ideia de insurreição
da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1793:
“Quando o governo viola os direitos do povo, a insurreição é
para o povo; e para cada porção do povo, o mais sagrado dos
direitos, e o mais indispensável dos deveres” (art. 35); ou na de
Frei Caneca:

Derrame-se o sangue tirânico sobre o altar da liberdade, e a mão do


justo, que abriu as veias à coroada vítima, é digna de oferecer o incenso
mais puro e aceitável à divindade; e ficando o sacrificador sobranceiro
à morte e ao tempo, a pátria lhe entoará hinos, lhe levantará altares.40

Para Ezequiel, ainda que a revolução não fosse “motim, nem


sedição”, ela era honrosa, pois o revolucionário pelejava pelo
bem da ordem e pelo bem comum de sua pátria, tornando-se, por

388
isso, um cidadão virtuoso. A revolução se justificava como um
último recurso capaz de pôr fim a um governo despótico, sendo
legítima em função do antigo e apregoado direito de resistência
dos povos à tirania. Tal resistência representava a coragem
heroica dos cidadãos, fundamento da liberdade. Portanto, “qual-
quer indivíduo tem o direito de se opor às armas” de um governo
que for contra o Contrato Social e a liberdade.41 Era uma clara
referência ao governo absoluto de Pedro I, mas sua justificativa
não deixava de estar calcada na ótica do humanismo cívico.42
Paralelamente, contudo, ele próprio adotava uma estranha
perspectiva de futuro ao procurar substituir o governo monár-
quico absolutista por uma sui generis “monarquia americana”.
Tratava-se de uma monarquia democrática, constitucional,
representativa e federativa, não hereditária e eletiva, podendo
o príncipe ser eleito por toda a vida, mas estando igualmente
sujeito a ser destituído, caso violasse os direitos do cidadão e
da Constituição. A República, em si mesma, Ezequiel somente
passou a defender nos últimos números de seu jornal, em setem-
bro e outubro de 1831. Dessa maneira, se a Nova Luz Brasileira
não deixava de trazer uma linguagem política nova, acabava
muitas vezes por usá-la para revestir uma argumentação antiga.
De qualquer forma, foi no momento da abdicação de Pedro
I, em 7 de abril de 1831, que o conceito moderno de revolução
veio a integrar mais diretamente o vocabulário político brasileiro,
passando a data a representar para muitos a da verdadeira inde-
pendência do Brasil. Rompia-se definitivamente com Portugal,
pois agora assumia um soberano nascido e criado no Brasil.
Para os exaltados, acabava-se com “a farsa da independência
Ipiranga”. Em consequência, chegara-se ao ponto máximo:
“(...) segundo as coisas humanas, a revolução apresentava-se
inevitável.”43 Não obstante, se os moderados concediam que
a abdicação fora uma revolução – mas “revolução espantosa,
sem uma gota de sangue” –, continuavam também a insistir
que o espírito do século 19 era o de um “espírito regenerador”
e “reformador”, que não se reduzia unicamente à política,

389
compreendendo ao mesmo tempo a religião. 44 Para eles, a
revolução não devia significar rompimento com a monarquia.
Conforme Bernardo Pereira de Vasconcelos, em sua “Exposição
de Príncipios”, a “nação não teve intuito de subverter as insti-
tuições constitucionais e mudar a dinastia, nem o de consagrar
a violência e proclamar a anarquia”, e concluía pela observação
de que apenas usara do “incontestável direito de resistência à
opressão”.45 Assim, a revolução tornava-se o direito de resistir
à tirania, mas sem recurso à violência.
Nas discussões da Câmara dos Deputados, passou-se a
considerar igualmente que o Brasil fizera “uma revolução”.
Poder-se-ia, então, deixar impunes aqueles que colocaram o
país “à borda do precipício, aqueles que tanto trabalharam por
escravizá-lo?”46 Bernardo Pereira de Vasconcelos reconhecia que
o ministério “tinha entendido sua missão e marchado no sentido
da revolução, fazendo mudanças que eram absolutamente neces-
sárias”. Lino Coutinho pedia à Câmara que “se não arrepiasse
com esta palavra – revolucionário –, pois não queria dizer anar-
quias, mortes, destruições etc., mas unicamente ato pelo qual a
nação, reassumindo seus direitos, procurou o seu bem ser pela
expulsão do tirano que a oprimia”.47 Por conseguinte, a revolução
realizada por meio da abdicação era, ao mesmo tempo, feliz e
gloriosa, tendo se afastado do sentido mais radical, que envolvia
desordem e anarquia da arraia miúda ou dos escravos. Daí a
necessidade de adjetivos que qualificassem o termo, indicando
que, muitas vezes, o uso decorria muito mais de uma questão
retórica do que de convicção. Afinal, o objetivo maior ainda era
a manutenção da boa sociedade.48 Holanda Cavalcanti chegou a
declarar que os deputados estavam confundindo o uso da palavra
revolução, pois no Brasil ele “não via ainda atos revolucioná-
rios”, já que tudo caminhava “debaixo dos princípios consti-
tucionais”. Para o orador, só ocorreria uma revolução quando
“houvesse mudanças de princípios”, o que não se dera, “porque
toda a nação queria só constituição”.49 Para os deputados, as
“revoluções fazem-se quando são necessárias, quando o poder

390
se arma contra a liberdade do povo, mas não contra um poder
legal que promove a felicidade e liberdades pátrias”.50 E foi na
quarta edição do Dicionário de Moraes, justamente datada de
1831, que se registrou a inclusão de um sentido político e de um
projeto de mudança em relação ao conceito: “Revolução nos
estados; mudanças que os alteram na forma e polícia, povoação
etc.; revoltas, perturbações: sucessões de coisas.”51
Apesar desse espírito, o período das Regências (1831-1840)
trouxe uma crise da ordem estabelecida. Inúmeras revoltas e
insurreições eclodiram desde o extremo norte até o sul do país.
Para os mais radicais, eram revoluções que representavam “dias
fecundos de tentativas patrióticas”.52 Para outros, constituíam
conflitos das elites contra o centralismo do Rio de Janeiro. De
qualquer modo, fragilizado o poder central por residir em um
imperador-menino, temia-se, naquele momento, que a maior
tensão provocasse a rivalidade entre as províncias e degenerasse
em guerra civil. Tais tensões foram denominadas à época de
revolução, mas com frequência também de revoltas, motins,
insurreições, ajuntamentos ilícitos, sedições,53 demonstrando que
o conceito continuava a apresentar o sentido de mudança polí-
tica, mas realizada no âmbito das camadas dirigentes. Violências
e desordens, quando consideradas revoluções, precisavam ser
contidas, até mesmo segundo liberais e moderados. Na Bahia
de 1835, a Revolta dos Malês – etnia africana islamizada que
atuou como catalisadora do movimento – não foi considerada
uma revolução, mas fez, sim, reascender junto aos grupos
dirigentes o atávico pavor de que se repetisse a sublevação de
escravos que ocorrera no Haiti em 1792. Do lado das elites, o
movimento separatista do Rio Grande do Sul, embora contasse
com participação popular, durou de 1835 a 1845, em busca de
autonomia em relação ao Rio de Janeiro e em defesa da ideia
de federação, mas ficou conhecido como Guerra ou Revolução
dos Farroupilhas.
Diante dessas tensões, o liberal Bernardo Pereira de Vasconcelos
viu a necessidade de “deter o carro das revoluções” e fez-se

391
conservador. Depois da abdicação de 1831, a Revolução de 7
de Abril, surgia o Regresso ou, nas palavras de Justiniano José
da Rocha (1855), a Reação, equivalentes tupiniquins para a
Restauração bourbônica.
Quase no mesmo momento – em Paris, porém –, ainda sob
os efeitos da Revolução de 1830, que levara ao trono o rei-
-burguês Luís Felipe, e do escândalo da estreia do Hernani de
Victor Hugo, afirmação do romantismo francês, Gonçalves de
Magalhães considerava na Nitheroy – Revista Brasiliense54 que o
estado da civilização do Brasil, comparado com o das anteriores
épocas, era notável, devido à “expiração do domínio português”.
O Brasil era “filho da civilização francesa, e como Nação é filho
dessa revolução famosa que abalou todos os tronos da Europa, e
repartiu com os homens a púrpura e os cetros dos reis”. Distante
do dia a dia do país, soava bem, retórica e poeticamente, o
conceito de revolução.
A declaração de maioridade do imperador Pedro II em
1840 e o início do Segundo Reinado não levaram o conceito a
perder suas dubiedades. Em 1848, foi associado à Revolta ou
Revolução Praieira, em Pernambuco, que representou o estertor
da concepção de pátrias locais, que ainda tolhia a visão unitária
e centralizadora do Regresso. No ano seguinte, nas críticas de
Francisco Sales de Torres Homem ao governo, em O Libelo do
Povo, sob o pseudônimo de Timandro, revolução significava a
derrubada do poder arbitrário, para pôr fim às cabalas palacianas
e à corrupção, embora trouxesse consigo “a renovação social
e política sem convulsões e sem combate, da mesma maneira
que a natureza prepara[va], de dia em dia, de hora em hora, a
mudança das estações”.55 Sem distinguir as ideias de regeneração
e revolução, ele ainda conservava uma perspectiva cíclica, que
apenas substituía os astros pelas estações.
A partir de então, a chamada “política da conciliação” asse-
gurou uma espécie de hibernação política do conceito durante
a década de 1850. Em seguida, contudo, anunciaram-se novos
tempos. Com a mudança da lei eleitoral (Lei dos Círculos, 1855),

392
a ascensão dos liberais, a criação de novos partidos, como a Liga
Progressista (o primeiro a redigir e publicar um programa),56 e
o surgimento de clubes políticos, os debates ganharam espaços
inéditos para além da tribuna do Parlamento e da imprensa. Uma
vez mais, a palavra revolução voltou a circular nas discussões.
Em princípio, continuava ligada ao direito de resistência em casos
arbitrários e, “em qualquer hipótese” que ocorresse, sempre devia
haver uma “solução regular, pacífica e a mais conveniente ao
bem-estar da sociedade” que tomasse o seu lugar.57 Em 1868,
no entanto, o programa do Centro Liberal chegou a afirmar de
forma contundente: “Ou a reforma, ou a revolução; a reforma
para conjurar a revolução.”58 E, no mesmo ano, o Clube Radical
apresentou propostas de mudanças mais drásticas, como a aboli-
ção do Conselho de Estado, da Guarda Nacional, da vitaliciedade
do Senado e da escravidão. No entanto, por mais que atacassem
alguns princípios fundamentais da monarquia, não reivindicavam
práticas revolucionárias.
Foi ainda nessa década que surgiu, pela primeira vez, um
periódico com a palavra revolução no título. Publicado em
Niterói, capital da província do Rio de Janeiro, a partir de
1862, A Revolução Pacífica: Jornal Político, Literário e Agrícola
defendia, porém, a “revolução por meio da discussão lúcida,
calma, tranquila e desapaixonada, à mercê da qual se convence
e persuade”, a fim de demonstrar a necessidade “indeclinável”
que tinha o país de ver reformadas muitas de suas leis e insti-
tuições. Colocava-se inteiramente contrário à “revolução das
praças públicas e dos campos”, à “revolução que pede sangue
e exige o sacrifício das vidas e, portanto, promove a agitação, o
terror e a anarquia”. No fundo, tratava-se ainda de regenerar,
no sentido dos séculos anteriores.
Em 1878, surgiu A Revolução: Folha de Propaganda
Democrata, que pregava a revolução “nos costumes, nas
instituições político-sociais, no aperfeiçoamento dos instru-
mentos de prática”. Influenciado pelas ideias evolucionistas,
mostrava a necessidade de convencer o público, por meio da

393
propaganda, “sob a influência da civilização filosófica e socioló-
gica do século”.59 Somente em 1882, todavia, o jornal Revolução:
Órgão Realista, Republicano, Livre Pensador e Socialista chegou
a pregar “a revolução violenta” como “único meio de salvação
do país”.60 Assim sendo, não é de se admirar que na 8ª edição
do Dicionário de Moraes, de 1891, o sentido moderno de revo-
lução continuasse a aparecer no final do verbete, enquanto este
continuava a ser aberto pela acepção de movimento da natureza
e dos astros.61
Em suma, não obstante o impulso de entusiasmo desper-
tado pela Revolução de 7 de Abril de 1831, fazendo com que
o Império do Brasil começasse a discutir o conceito, derivado
de Montesquieu62 e entendido como modificação da estrutura
política, o sentido moderno de uma ruptura profunda, embora
conhecido, permaneceu inaceitável para as elites políticas e
intelectuais até 1870. Proveniente da Revolução Francesa, via-se
preterido pelo exemplo inglês que, paulatinamente, “com recor-
dações e tradições históricas”,63 alcançara o sistema constitucio-
nal. Nas linguagens políticas do período, revolução continuava a
constituir, predominantemente, um processo que desestabilizava
o tempo físico e transtornava a natureza das coisas, destinado
pela Providência Divina para flagelos dos povos, ao final do
qual, porém, numa perspectiva cíclica, retornava-se à situação
anterior. Nessas condições, somente poucos, sem conseguir
desprender-se tampouco de uma perspectiva reformista, pare-
ciam dotados de condições para superar essa visão litúrgica do
mundo e reconhecer o potencial dos homens para interferir na
vida pública em seu próprio proveito.

NOTAS
1
Alain Rey, Révolution, histoire d’un mot, Paris, Gallimard, 1989, p. 58; Reinhart
Koselleck, Crítica e crise, Luciana V.-B. Castelo-Branco (trad.), Rio de Janeiro,
Ed. UERJ, Contraponto, 1999, p. 225-227.
2
Raphael Bluteau, Diccionário portuguez & latino, Lisboa, Officina de Paschoal
Silva, 1720, v. VI, p. 7, 319-320.

394
3
Antonio de Moraes Silva, Diccionario da lingua portuguesa, 2. ed., Lisboa, Tip.
de M. P. de Lacerdina (ed. fac-símile, Rio de Janeiro, 1922), 1813, p. 2, 629.
4
A. Mansuy-Dinis Silva, Portrait d’un homme d’État: D. Rodrigo de Souza Cou-
tinho, Comte de Linhares, 1755-1812, Lisboa, Paris, Commission Nationale pour
les Commémorations des Découvertes Portugaises, Centre Culturel Calouste
Gulbenkian, 2002, p. 298.
5
Sérgio Buarque de Holanda, Apresentação, em J. J. da Cunha Azeredo Couti-
nho, Obras econômicas, São Paulo, Ed. Nacional, 1966, p. 13-53; Maria Odila
da Silva Dias, Aspectos da Ilustração no Brasil, Revista do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 278, p. 105-170, jan.-mar. 1968;
Antônio Manuel Hespanha, Poder e instituições na Europa do Antigo Regime,
Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1984.
6
Antonio de Moraes Silva, Diccionario da lingua portuguesa, 6. ed., Lisboa,
Tipografia de Antonio José da Rocha, 1858, p. 737.
7
Ibidem, p. 212.
8
Gazeta de Lisboa, Lisboa, 4-VIII-1789.
9
Caetano Beirão, D. Maria I: 1777-1792, 4. ed., Lisboa, Empresa Nacional de
Publicidade, 1944, p. 372-379.
10
Carta de Lei de 17 de dezembro de 1794, apud Antonio Delgado da Silva, Col-
leção da Legislação Portuguesa (legislação de 1791 a 1801), Lisboa, Tipografia
Maigrense, 1828, p. 194; Antonio de Moraes Silva, Diccionario da lingua
portuguesa, melhorada e muito acrescentada pelo desembargador Agostinho
de Mendonça Falcão, 6. ed., Lisboa, Tip. de Antonio José da Rocha, 1858, 2v.
11
M. l’Abbé Barruel, Mémoires pour servir à l’histoire du Jacobinisme (1797/1798),
Hambourg, P. Fauche Libraire, 1803, v. 1, p. VI, XVIII; José Agostinho de
Macedo, O segredo revelado ou a manifestação do systema dos pedreiros-
-livres e illuminados e sua influencia na fatal revolução francesa: obra extraída
das memórias para a história do jacobinismo do abade Barruel e publicada em
portuguez etc., Lisboa, Imp. Régia, 1809, p. I. Para Agostinho de Macedo, ver
Maria Ivone de Ornellas de Andrade, A contrarrevolução em português: José
Agostinho de Macedo, Lisboa, Colibri, 2004.
12
Reinhart Koselleck, La Restauración y los acontecimientos subsiguientes (1815-
1830), em L. F. Furet Bergeron, R. Koselleck, La época de las revoluciones
europeas, 1780-1848, México, Siglo XXI, 1982, p. 187-216.
13
Correio Braziliense, Londres, n. 1, p. 64-65, 1-VI-1808.
14
João Bernardo da Rocha, Memoriais a D. João VI, Georges Boisvert (édition et
commentaire), Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 1973, p. 76.
15
Documentos Históricos, Ofício do Governo Provisório de Pernambuco a Hipólito
da Costa. Revolução de 1817, Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, 1953, v. 101,
p. 9, 15 e 19.
16
Evaldo Cabral de Mello, A outra Independência. O federalismo pernambucano
de 1817 a 1824, São Paulo, Editora 34, 2004, p. 46.

395
17
Ângela Barreto Xavier, António Manuel Hespanha, A representação da socie-
dade e do poder, em A. M. Hespanha, O Antigo Regime (1620-1807), Lisboa,
Estampa, 1993, p. 121-155.
18
Correio Braziliense, n. 93, p. 187, 16-II-1816.
19
J. G. A. Pocock, Burke and the Ancient Constitution: A Problem in the His-
tory of Ideas, em Politics, Language and Time. Essays on Political Thought
Politics, Language and Time. Essays on Political Thought and History, New
York, Atheneum, 1971, p. 202-232.
20
Lúcia Maria Bastos P. Neves, “Pensamentos vagos” sobre o Império do Brasil:
as invasões francesas em Portugal, a Corte na América e o Correio Brazilien-
se, em Alberto Dines (ed.), Hipólito José da Costa e o Corrreio Braziliense:
estudos, São Paulo, Imprensa Oficial, Brasília, Correio Braziliense, v. 30,
t. 1, 2002, p. 469-513.
21
Revérbero Constitucional Fluminense, Rio de Janeiro, n. 11, 22-I-1822.
22
Idade d’Ouro do Brasil, Bahia, n. 20, 22-II-1821.
23
Pastoral do Arcebispo da Bahia sobre a Instrucção Christã e Constitucional aos
seus Diocesanos, Lisboa, Imp. Nacional, 1821, p. 21.
24
José da Silva Lisboa, Reclamação do Brasil, Rio de Janeiro, Tip. Nacional, 1822,
p. XII.
25
Ibidem, p. 24.
26
Maria Cândida Proença, A primeira regeneração: o conceito e a experiência
nacional (1820-1823), Lisboa, Livros Horizonte, 1990; Telmo dos S. Verdelho,
As palavras e as ideias na Revolução de 1820, Coimbra, Instituto Nacional de
Investigação Científica, 1981, p. 289-292.
27
Conciliador do Reino Unido, Rio de Janeiro, n. 1, 1-III-1821.
28
A Regeneração constitucional ou guerra e disputa entre os carcundas e os
constitucionais: origem destes nomes, e capitulação dos corcundas escrita pelo
constitucional europeu ao constitucional brasileiro e oferecida a todos os ver-
dadeiros constitucionais, Rio de Janeiro, Imp. Régia, 1822, p. 3.
29
Discurso que recitou o Bispo do Pará, D. Romualdo de Souza Coelho, no dia
do mês de dezembro de 1821, em que se procedeu a eleição dos Deputados das
Cortes, Maranhão, Tip. Nacional, 1822, p. 3.
30
Correio do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n. 32, 17-V-1822.
31
Revérbero Constitucional Fluminense, 10-IX-1822.
32
Astrea, Rio de Janeiro, n. 638, 17-III-1831.
33
Proclamação aos habitantes de Pernambuco, Rio de Janeiro, Imp. Nacional,
1822, p. 3.
34
Cf. Manuel Valentim Alexandre, Os sentidos do Império: questão nacional e
questão colonial na crise do Antigo Regime português, Porto, Afrontamento,
1993, p. 445-539.

396
35
Cf. Roderick J. Barman, Brazil: The Forging of a Nation (1798-1852), Stanford,
Stanford University Press, 1988; Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves, Corcun-
das e constitucionais: a cultura política da Independência (1820-1822), Rio de
Janeiro, Revan, FAPERJ, 2003.
36
Brasil, Annaes da Câmara dos Deputados de 1828, Rio de Janeiro, Tip. Parla-
mentar, 1876, p. 43, grifo nosso.
37
Evaristo da Veiga, Aurora Fluminense, Rio de Janeiro, 25-VI-1828.
38
Annaes da Câmara dos Deputados de 1828, p. 79.
39
Cf. Marcello Basile, Luzes a quem está nas trevas: a linguagem política radical
nos primórdios do Império, Topói, Rio de Janeiro, v. 3, p. 91-130, 2000.
40
Frei Joaquim do Amor Divino Caneca, Dissertação sobre o que se deve enten-
der por pátria do cidadão e deveres deste para com a mesma pátria, em Obras
políticas e literárias de Frei Joaquim do Amor Divino Caneca, coligidas pelo
Comendador Antônio Joaquim de Mello (1822), Recife, Tipografia Mercantil
do Recife, 1875-1876 (edição fac-símile de 1972), v. 2, p. 216.
41
Ezequiel Correia dos Santos, Nova Luz Brasileira, Rio de Janeiro, n. 51, 52,
p. 4, 11-VI-1830.
42
J. G. A. Pocock, The Machiavellian Moment: Florentine Political Thought and
the Atlantic Republican Tradition, Princeton, Princeton University Press, 1975;
Quentin Skinner, Liberdade antes do liberalismo, Raul Fiker (trad.), São Paulo,
Editora Unesp, 1999.
43
O Filho da Terra, Rio de Janeiro, n. 4, 28-X-1831.
44
Cartas ao Povo, Rio de Janeiro, abr. 1831.
45
Bernardo Pereira de Vasconcelos, Bernardo Pereira de Vasconcelos, José Murilo
de Carvalho (org. e int.), São Paulo, Editora 34, 1999, p. 201.
46
Brasil, Annaes do Parlamento Brazileiro. Câmara dos Srs. Deputados. Sessão de
7-V-1831. Tomo primeiro, Rio de Janeiro, Typographia de H. J. Pinto, 1873,
p. 17.
47
Ibidem, 13-V-1831, p. 35.
48
Ilmar Rohloff de Mattos, O tempo saquarema, São Paulo, Hucitec, Brasília,
INL, 1987.
49
Brasil, Annaes do Parlamento Brazileiro, 13-V-1831, p. 36.
50
Ibidem, 16-V-1831, p. 46.
51
Antonio de Moraes Silva, Diccionario da lingua portuguesa, 4. ed., Lisboa,
Impressão Régia, 1831, v. 2, p. 651.
52
Aureliano Candido Tavares Bastos, A província: estudo sobre a descentralização
no Brasil (1870), São Paulo, Ed. Nacional, 1975, p. 112.
53
Ilmar Rohloff de Mattos, O gigante e o espelho, em Keila Grinberg, Ricardo
Salles (org.), O Brasil imperial. v. 2 – 1831-1889, Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 2009, v. 2, p. 30-31.

397
54
Nitheroy – Revista Brasiliense, Paris, n. 1, p. 149, 1836.
55
Francisco Sales Torres Homem (Timandro), O Libelo do Povo (1849), em
Raimundo Magalhães Júnior, Três panfletários do Segundo Reinado, Rio de
Janeiro, Academia Brasileira de Letras, 2009, p. 121.
56
José Murilo de Carvalho, As conferências radicais do Rio de Janeiro: novo espaço
de debate, em José Murilo de Carvalho (org.), Nação e cidadania no Império:
novos horizontes, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2007, p. 23.
57
Zacarias de Góis e Vasconcelos, Zacarias de Góis e Vasconcelos (1861), Cecília
Helena de Salles Oliveira (org. e int.), São Paulo, Editora 34, 2002, p. 130-131.
58
Américo Brasiliense, Os programas dos partidos políticos e o Segundo Reinado
(1878), Brasília, Senado Federal, 1979, p. 44-60.
59
A Revolução: Folha de Propaganda Democrata, Rio de Janeiro, n. 1, 12-VII-
1878.
60
Revolução: Órgão Realista, Republicano, Livre Pensador e Socialista, Rio de
Janeiro, n. 2, 17-IX-1882.
61
Antonio de Moraes Silva, Diccionário da lingua portugueza, 8. ed., rev. e me-
lhorada, Rio de Janeiro, Emp. Litterária Fluminense, 1891, v. 2, p. 718.
62
Rey, Révolution, histoire d’un mot, p. 72-75.
63
Paulino José Soares de Sousa (Visconde do Uruguai), Visconde do Uruguai, José
Murilo de Carvalho (org. e int.), São Paulo, Editora 34, 2002, p. 501.

REFERÊNCIAS
ANDRADE, Maria Ivone de Ornellas de. José Agostinho de Macedo: um
iluminista paradoxal. Lisboa: Colibri, 2001.
A REVOLUÇÃO PACÍFICA: Jornal Político, Literário e Agrícola. Niterói,
1862.
BARBOSA, Januário da Cunha. Sermão de Acção de Graças pela Feliz
Restauração do Reino de Portugal prégado na Real Capella do Rio de Ja-
neiro na Manhã de 19 de dezembro de 1808, por Barbosa. Rio de Janeiro:
Impressão Régia, 1809.
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino. Lisboa: Officina de
Pascoal Silva, 1712-1727. 10 v.
LISBOA, José da Silva. Roteiro Brazilico ou coleção de princípios e do-
cumentos de direito político em série de números. Rio de Janeiro: Tip.
Nacional, 1822. p. II.

398
NEVES, Guilherme Pereira das. Como um fio de Ariadne no intrincado
labirinto do mundo: a ideia do império luso-brasileiro em Pernambuco
(1800-1822). Ler História, Lisboa, v. 39, p. 35-58, 2000.
ROCHA, Justiniano José da. Ação, reação, transação. Duas palavras
acerca da atualidade (1855). In: MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. Três
panfletários do Segundo Reinado. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de
Letras, 2009.
SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da lingua portuguesa. 3. ed. Lisboa:
Tip. de M. P. de Lacerda, 1823. 2 v.

399
LUISA RAUTER PEREIRA

SOBERANIA

Esta história do conceito de soberania revela desagregação


dos usos e significados da tradição luso-brasileira, cujas bases
remontam aos primórdios da formação do reino português
no século 17. Um primeiro movimento nesse sentido consistiu
no desenvolvimento da ideia da soberania real originada do
consentimento dos povos, que ganha relevância já em finais do
século 17 e principalmente no século 18. Tal concepção passou
a abalar o tradicional e estável conceito da soberania por direito
de conquista, doação e por conformidade a uma ordem divina.
Essa primeira desestabilização, entretanto, se verificou ainda em
grande medida no interior dos limites da tradição: tratava-se
ainda de um conceito de soberania teórico e abstrato, próprio
de um pensamento do Antigo Regime, que não atentava ainda
para os problemas da prática e ordenação do poder. A transfor-
mação conceitual se acelera com o movimento constitucional de
1820 nos dois lados do Atlântico. Embora os significados tradi-
cionais ligados à soberania real tenham continuado presentes,
a soberania do povo e da nação e o problema de sua prática
efetiva trouxeram ao conceito novos elementos. O povo e o
rei, que antes tinham seus lugares precisos e estáveis no interior
de uma concepção tradicional de soberania e de governo, se
transformaram em conceitos problemáticos e imprecisos numa
realidade política marcada pela contingência. A partir dos anos
de 1820, o conceito de soberania, portanto, encerrou quatro

401
dilemas fundamentais: 1) A soberania seria exercida diretamente
pelo povo-nação ou através de uma representação controlada e
restrita?; 2) A soberania seria exercida pelo povo-nação através
do consentimento passivo na forma consultiva, ou de forma
ativa e decisiva, através de seus representantes na Assembleia?;
3) A soberania pertenceria ao povo somente ou ao povo e ao
monarca?; 4) A soberania seria exercida de forma centralizada
na Assembleia Nacional na Corte ou seria partilhada com os
poderes legislativos provinciais? Tais dilemas presentes já nos
primeiros anos do Império brasileiro acompanhariam os usos e
significados do conceito por todo o período tratado.
No Diccionário da lingua portugueza escrito por Raphael
Bluteau em 1789, a soberania é a “qualidade de ser soberano e
os direitos anexos a ela”. Ser soberano, por sua vez, significa ser
“independente de outra potência humana”, o que o dicionarista
atribui ao rei, rainha ou príncipe.1 No que podemos chamar,
portanto, de uma “tradição política portuguesa” de origem
medieval e bastante forte ainda durante todo o século 18 na
colônia, a soberania era vista como um atributo essencialmente
real. O rei era o único titular do poder soberano sobre os povos
e territórios. Os argumentos remontavam às origens históricas
do reino. Em primeiro lugar, o poder dos soberanos e a sujei-
ção dos vassalos vinham de “conquista em guerra justa”,2 pois
D. Afonso Henriques havia resgatado os povos e territórios da
opressão dos infiéis, trazendo a religião e a liberdade. Seu direito
vinha igualmente da concessão do título dada pelo rei espanhol
pelo sucesso na Guerra de Reconquista. Por último, os povos
agradecidos pela libertação teriam acatado o novo soberano, o
que teria sido ratificado na primeira reunião das Cortes em 1143.
Toda essa imagem histórica, entretanto, era legitimada em última
instância pela religião com a aparição de Cristo após a grande
batalha contra os muçulmanos no Campo de Ourique em 1139,
o que teria justificado as escolhas aparentemente humanas.
A soberania real, entretanto, tinha um significado preciso,
que não podia ser confundido com poder absoluto, tirania ou

402
despotismo. Uma metáfora bastante utilizada para pensar a
natureza da soberania real era a da família: um reino era visto
como composto de núcleos familiares, cada um com seu pai e
chefe natural. O rei era então concebido também como um pai
de todas as famílias, que tinha o dever de cuidar, proteger, ouvir
seus filhos. Porém, seu papel não era interferir arbitrariamente
no reino, mas cuidar para sua conservação. A soberania era
vista, sobretudo, como um poder encarregado de cuidar para a
manutenção de uma ordem mística imutável que lhe ultrapassava
e o englobava: a justiça.
Na colônia americana, o levante contra o domínio holan-
dês em Pernambuco havia trazido para o centro do discurso
político também a ideia do povo como a origem da soberania
real, constituindo o que Evaldo Cabral de Mello chamou de
“discurso político do nativismo pernambucano”, que por sua vez
já havia sido formulado por ocasião da luta portuguesa contra
o domínio espanhol. Nas primeiras décadas do Setecentos, no
célebre conflito entre nobres da terra e comerciantes, a nobreza
pernambucana reivindicou para si a vitória sobre o invasor,
reafirmando, portanto, sua forte fidelidade ao rei. No momento
da Restauração, argumentavam, havia sido “pactuado” com
D. João IV que a nobreza teria determinados privilégios, como
ter seu governador escolhido entre nobres locais e outros. Tais
compromissos estariam sendo desrespeitados naquele momento,
o que configuraria a quebra do pacto primordial. Daí o direito
de retorno da soberania “aos povos” para a garantia de sua
conservação, fundamento da rebelião.3 Nesta concepção, a
soberania real era fruto, portanto, de um verdadeiro pacto, um
acordo, entre o monarca e a “nobreza da terra”.
Na segunda metade do século, a política levada à frente pelo
Marquês de Pombal, primeiro-ministro do reinado de D. José
I, procurou destruir toda essa concepção da soberania real,
que ecoava ainda do Portugal medievo. Combatia-se a ideia
de que a soberania régia não era suprema, primeiro pelo dever
de respeito às jurisdições locais, aos direitos costumeiros dos

403
corpos do reino; e segundo, de acordo com as concepções mais
recentes pós-restauração, de que a soberania real seria mediada
pela aceitação dos povos e da Igreja.4 O esforço teórico e político
do discurso pombalino se dirigiu a legitimá-la unicamente pelos
direitos de conquista, doação e sucessão e pelo ordenamento
natural e divino, que fazia da soberania una e indivisível do rei
a mais apropriada forma de organização do mundo humano.5
Essas disposições se traduziram em medidas práticas no plano
da administração colonial, ocasionando movimentos diversos
de contestação nas diversas regiões coloniais. A linguagem polí-
tica dos conjurados das Minas em 1789, do Rio de Janeiro de
1794, e da Bahia em 1798 revelava ao mesmo tempo o apego às
concepções tradicionais portuguesas e também o novo referencial
do século ilustrado. Sua inspiração vinha primordialmente da
tradição portuguesa de crítica à tirania, que postulava o direito
de rebelião e o retorno da soberania aos povos, ideia também
presente em autores como Rousseau.6 O povo a retomar a sobe-
rania de que falavam era, sobretudo, os “homens bons” reunidos
em câmaras municipais, como na tradição do Antigo Regime
português. Tratava-se, especialmente no movimento mineiro, da
defesa de certa concepção da soberania e das dignidades nobres
a serem respeitadas, frente às novas concepções e práticas do
absolutismo pombalino.
No movimento sedicioso de 1817, o argumento do retorno
do poder soberano aos povos animou o movimento contra o que
era considerado o despotismo da Corte sediada no Rio de Janeiro
desde 1808. A rebelião era justificada pelo fato de a Coroa ter
desrespeitado os compromissos assumidos por D. João IV e por
D. Affonso VI na ocasião da Restauração (isenções pactuadas
de natureza fiscal e administrativa: interdição da criação de
novos impostos e reserva de cargos locais para os naturais da
capitania). Outra injustiça alegada era de caráter mais geral: um
pacto mais antigo e mais abrangente de que participavam todos
os portugueses do reino e das possessões ultramarinas havia sido
desrespeitado. Teria havido, na visão dos revolucionários, uma

404
dupla violação: do estatuto especial de que gozava Pernambuco
e do pacto fundador da nação portuguesa.7
Com o movimento constitucional em Portugal em 1820, a
soberania ressurgiu como palavra-chave, pois se tratava naquele
momento de “recuperar a primitiva soberania usurpada pelos
abusos do poder”.8 Para os constitucionais, não era exatamente
uma revolução que instaurava a soberania do povo ou da nação
a partir de uma ruptura com o passado. A ideia de “regeneração”
ou de “restauração” significava, ao mesmo tempo, a retomada
das antigas e tradicionais liberdades de que os povos sempre
haviam gozado na história do reino de Portugal, então usurpa-
das pelo despotismo; também significava retomar a soberania
a que os povos tinham direito por natureza, de acordo com as
teorias jusnaturalistas ilustradas e com os exemplos dados pelas
revoluções atlânticas. O passado era, ao mesmo tempo, negado e
retomado: voltar a um passado de liberdade e ao mesmo tempo
negar um período de opressão e despotismo, em que os direitos
naturais haviam sido esquecidos.
Essa genérica e teórica retomada da soberania pelo povo,
nos moldes ainda de um tipo de pensamento à moda do Antigo
Regime, revelou rapidamente seu caráter problemático frente à
contingência do momento. O retorno da soberania aos povos
implicava os dilemas da prática política da representação. Em
20 de abril, reuniram-se na Praça do Comércio os eleitores de
Paróquia, que iriam iniciar o processo de votação para a esco-
lha de deputados para participarem das Cortes em Portugal. O
que deveria ter sido uma reunião “seleta” tomou outro rumo
quando a população comum, a “gente miúda”, se aglomerou em
volta do espaço reservado aos legítimos eleitores e interveio no
processo. O povo em praça pública aos gritos exigiu a adoção
temporária da Constituição de Cádiz e a formação de um novo
ministério escolhido pela Assembleia. O episódio teve fim com
a repressão violenta das tropas e um saldo de mortos e feridos.
O sucedido na Praça do Comércio do Rio de Janeiro pôs em
evidência duas concepções de soberania que estavam em jogo

405
nesses primórdios do constitucionalismo liberal luso-brasileiro.
Menos expressa teórica e conceitualmente, a primeira delas, que
podemos denominar de “radical” e “democrática”, concebia que
o princípio da “soberania do povo” deveria se traduzir imedia-
tamente num poder popular baseado na participação ativa e
direta. Oposta a essa, havia a concepção mais restrita em que o
povo só poderia ser soberano através de seus representantes em
Assembleia, isto é, de que o princípio deveria se traduzir não em
atos diretos, mas numa delegação, autorização, consentimento.
Nesse sentido, os representantes do povo não seriam os manda-
tários da vontade popular, constituindo antes um corpo restrito
afastado do povo tumultuoso. Esta última concepção podia se
identificar, notadamente nos círculos mais próximos ao poder,
a ideia tradicional da representação política dos povos como
simples consulta e consentimento tácito, ideia que se vinculava à
do rei bondoso e paternal que consente em ouvir as queixas dos
povos reunidos em cortes (concepção defendida especialmente
pelos nobres burocratas pertencentes à Corte). Nesse sentido, o
ministro Silvestre Pinheiro Ferreira, comentando o ocorrido na
Praça do Comércio, declara que

El-Rei, sem autorizar nem conceder este princípio [a soberania do


povo], faz de próprio moto o que sempre se fez, (...) pois que eis aí
ouvidos os povos pelo único modo por que o podem ser, que é pela voz
de homens que os mesmos povos já indicaram como os mais dignos de
sua confiança [os eleitores].9

A ideia da soberania do povo, como atuação direta no espaço


público, não teve a adesão dos principais grupos presentes no
vintismo luso-brasileiro, o que significou um acordo tácito
quanto à ideia de soberania do povo consubstanciada num
mecanismo de representação restrito, controlado e, sobretudo,
afastado das turbulências populares. É importante salientar a
importância que teve no Constitucionalismo dos anos de 1820
a ideia dos limites necessários da soberania do povo, mesmo

406
nos grupos considerados mais radicais, na crítica às Cortes
portuguesas, e mais democráticos. Nos anos de 1820, já eram
reconhecidos e discutidos pelos constitucionais brasileiros os
“males” ocasionados pelo poder desmesurado dado ao povo
no período jacobino da Revolução Francesa e nas revoluções
hispano-americanas. Benjamin Constant, muito citado no perí-
odo, já havia chamado a atenção para a opressão do povo que
poderia advir da própria soberania popular, sendo, portanto,
forçoso reconhecer o caráter limitado desta no mundo moderno.
A liberdade política moderna não se caracterizaria pelo exercício
direto como na democracia clássica, mas pela delegação e repre-
sentação. O Revérbero Constitucional Fluminense explicitou
bem a ideia ao afirmar que

se todo despotismo é ilegal, segue-se conseguintemente que é mister


não dar uma latitude indefinida a esta soberania, onde quer que se ela
ache, para que não degenere em arbitrariedade. Se concedermos a um
homem um poder imenso derivado da divindade, ou se estabelecermos
que a Soberania do Povo é ilimitada, criamos e lançamos ao acaso na
Sociedade Humana um grau de poder demasiadamente grande em si
mesmo e que por si mesmo é um mal, ou seja confiado a um, a alguns,
ou a todos.10

Porém, após a formação desse primeiro consenso entre as


elites, uma segunda cisão em torno do conceito de soberania
se impôs aos constitucionais. De um lado, para certa vertente,
o povo era a única fonte do poder soberano, logo apenas seus
deputados poderiam encarnar institucionalmente a soberania;
na segunda vertente, os imperativos da ordem e da harmonia
impunham o controle e a vigilância do monarca sobre a sobe-
rania popular e sua representação. Em outros termos, numa,
só o povo em Assembleia é soberano; em outra, a soberania é
partilhada entre o povo em Assembleia e o rei. O periódico O
Bem da Ordem expressou muito bem a segunda concepção ao
afirmar que a nação é “composta de duas partes distintas, mas

407
essenciais, que são o rei e o povo; se o povo é soberano, o rei
que é o chefe do povo será o soberano do soberano, crescendo
assim tanto em dignidade e respeito, quanto mais o povo avultar
em prerrogativa”.11 O rei continuaria a ser “a cabeça e parte
essencial desse corpo moral”, reafirmando assim a tradição
monárquica portuguesa no interior do Novo Regime. Nesse
sentido, segundo O Espelho, citando Constant, a Constituição
feita pela Assembleia não seria “um ato de hostilidade”, mas “um
ato de união” que fixava as “relações recíprocas do monarca, e
do povo”, e lhes indicava “os meios de sustentar-se, de apoiar-se
e de ajudar-se mutuamente”.12
Ao final do ano de 1821, o conceito de soberania passou a
se ligar intrinsecamente à ideia de um corpo legislativo sediado
no Brasil. Já estava claro para os constitucionais brasileiros de
ambas as vertentes que o intuito dos liberais portugueses era o de
recolonizar o Brasil. O ideal de união dos dois reinos sob o regime
constitucional começou lentamente a se arrefecer no espírito do
constitucionalismo brasileiro, e a defesa da “Soberania Brasílica”
entrou na ordem do dia. Na imprensa, todas as tendências se
uniram na crítica às medidas arbitrárias das Cortes, e muitos
jornais falam abertamente na necessidade da formação de um
corpo legislativo brasileiro, que era “essencial e inseparável da
soberania do Brasil”.13 Ainda segundo o periódico, “nada com
mais prioridade pode representar a sociedade ou um povo e nação
do que uma Assembleia, ou ajuntamento (...), e é da escolha
desses mesmos, que tem cada um o seu Direito representativo,
de que se forma a suma Soberania”.14
A primeira representação nacional tomou forma com o decreto
de 16 de fevereiro de 1822 assinado pelo regente D. Pedro,
que havia se recusado a voltar para Portugal, como queriam
as Cortes portuguesas. Era um “Conselho de Procuradores”
que seria presidido e convocado pelo regente, uma espécie de
Conselho de Estado para mediar a relação entre povo e rei.
Tal órgão consubstanciou a ideia tradicional de representação
consultiva e não deliberativa, que tinha adeptos no grupo mais

408
conservador do constitucionalismo brasileiro. Aqui a soberania
do povo não era total mas partilhada e, sobretudo, controlada
pelo poder monárquico. O Conselho ia de encontro à ideia inicial
dos formuladores do pedido que lhe dera origem, José Clemente
Pereira e Joaquim Gonçalves Ledo, membros da Câmara do Rio
de Janeiro, partidários de outra visão da soberania do povo. Eles
haviam reivindicado uma “junta de representantes do povo”,
sem a participação e controle do regente e com amplos poderes.15
Mais tarde, diante da pouca aceitação do Conselho de
Procuradores, em maio, o Senado da Câmara do Rio entregou
a D. Pedro um pedido para convocação de uma verdadeira
Assembleia Constituinte brasileira. Tal pedido foi reiterado pelo
próprio Conselho de Procuradores no mês seguinte. Era preciso,
diante das investidas recolonizadoras de Portugal, garantir a
soberania do Reino Unido do Brasil através de um poder legis-
lativo. Tal poder representaria

o brado de um povo nobre, que reassumindo seus direitos, usando


de sua inauferível Soberania, requer com decoro uma Assembleia
Constituinte no Brasil, buscando na Constituição Brasileira o pronto
remédio dos seus males (...).16

Essa história do conceito de soberania encerra um terceiro


dilema da prática política. Na Constituinte convocada pelo
imperador em 1823, já após a Independência, fora questão de
primeira ordem o modo como se daria na prática o exercício
da soberania num país de vastas dimensões e com províncias
que recentemente estiveram diretamente ligadas a Portugal e
às Cortes revolucionárias portuguesas. O problema da forma e
organização do poder local se tornava premente e se conjugava
ao problema do exercício prático da soberania. Se a soberania
residia na nação representada por deputados nas Cortes, era
preciso esclarecer o lugar do poder regional. As juntas de governo
criadas nas diversas cidades e vilas com o apoio das Cortes de
Lisboa poderiam trazer o perigo da pluralidade de soberanias,

409
logo era preciso reafirmar o caráter nacional da soberania e a
prevalência da Assembleia do Rio de Janeiro. Portanto, era impe-
rioso afirmar que “a soberania reside essencialmente na nação”
e nunca que “o povo inteiro de uma província é soberano”, pois,
do contrário, “teríamos tantas soberanias quantas províncias, o
que seria ridículo, absurdo e desgraçada anarquia”.17
Com o fechamento da Assembleia e a outorga de uma carta
constitucional pelo imperador, saiu vitorioso definitivamente o
princípio da soberania centralizada e partilhada entre o povo e o
rei, com o poder moderador preconizado por Benjamin Constant,
tendo o Conselho de Estado vitalício como sua maior expressão
institucional. Nessa concepção, o incipiente estado de civilização
do povo não permitia que ele fosse plenamente soberano.
O concerto político que levou D. Pedro ao poder em 1822
começou a se enfraquecer na segunda metade da década de 1820.
Diversas tendências políticas se uniram em torno das críticas
ao “despotismo” do imperador, o que levou à abdicação em
nome de seu filho em 7 de abril de 1831, após fortes protestos
de rua. O evento, que trouxe ao poder um governo regencial,
foi interpretado na época como uma verdadeira revolução da
“soberania nacional, manifestada pela reunião da tropa e do
povo”.18 Porém, por trás da aparente unidade revolucionária, o
Sete de Abril trouxe à tona, de forma ainda mais contundente e
violenta, os dilemas da soberania na sociedade imperial brasileira.
Em torno do mesmo movimento, havia grupos distintos. Os
liberais exaltados se bateram contra o imperador em nome de
uma concepção revolucionária de soberania popular: esta não
residiria nem no governante, nem no parlamento, mas no povo,
entendido como totalidade abstrata sem distinções de classe
ou raça, à exceção dos escravos. Mesmo com a existência da
Assembleia, o povo permaneceria detentor da soberania, o que
implica a atuação direta e permanente no espaço público. Para
o periódico A Nova Luz Brasileira, a soberania

410
significa o poder que se acha unido e é inseparável do Povo, que
compõe a massa da nação; o qual Poder é uma entidade moral composta
dos entendimentos, vontades e forças particulares, e por consequência
produzida pelos poderes de todos os cidadãos; e esta entidade é que
exprime a vida política da mesma Nação: por isso este Poder Soberano
não se pode dividir, nem repartir, nem emprestar, nem dar, nem alienar
por qualquer via, modo ou maneira que seja. A Soberania, ou Poder
Soberano, significa Poder que está acima de tudo; poder sem igual.
Este poder nasce da essência ou substância interna da sociedade, (...)
por isso a Soberania pertence unicamente à nação inteira, isto é, ao
povo: nenhum indivíduo, nenhuma família pode ter o Poder Soberano
como coisa sua própria. A palavra Soberano não se pode confundir
com a palavra Monarca.19

Porém, o grupo que tomou o poder com a Revolução do


Sete de Abril era pertencente à facção dos liberais moderados,
partidários de outra visão da soberania. Para os moderados,
a soberania residia no povo ou na nação, mas sua atuação só
poderia se dar através de seus representantes em Assembleia. Os
moderados supunham defender uma concepção “moderna” de
soberania do povo, isto é, fundada na utilidade e na razão prática,
afastada, portanto, dos princípios abstratos da ilustração que
teriam levado ao terror revolucionário jacobino. Essa concepção
apareceu muito claramente nos debates parlamentares em torno
das reformas da Constituição. Para o deputado Montezuma,
que se declara um “respeitador da soberania do povo”, não se
pode fundar a política em princípios teóricos e abstratos. Para o
deputado, os povos “querem que a política assente sobre fatos,
e mais que tudo sobre a política e geral utilidade”.20 Trata-se
de uma concepção que traz o tempo histórico para a definição
da soberania: mais uma vez, argumentava-se, o estado atual do
povo não permitia sua plena soberania.
O segundo dilema da soberania que ressurgiu nesse momento
foi a disputa entre a concepção da Assembleia como única sobe-
rana e a concepção da soberania partilhada entre o povo e o

411
rei. Nessa última visão, o rei, e não a Assembleia Nacional, era
considerado o primeiro representante da vontade nacional e seu
intérprete maior. A soberania real viria da aclamação, que expres-
sava um vínculo direto entre os povos e o monarca, anterior à
formação da Assembleia de representantes e da Constituição. Tal
conceito de soberania teve como seu maior porta-voz o Marquês
de Caravelas, por ocasião das discussões no Senado a respeito
da reforma constitucional cujo projeto inicial pretendia pôr fim
ao poder moderador, ao Conselho de Estado e à vitaliciedade do
Senado, os grandes esteios do poder real. Caravelas defendeu a
necessidade do veto real, uma das prerrogativas do poder mode-
rador, como um “direito do povo, pra prevenir que se estabeleça
o despotismo oligárquico” da Assembleia.21
Uma das primeiras ações do grupo liberal moderado no poder
foi propor reformas que abalassem os alicerces dessa concepção
monárquica de soberania, com o fim do poder moderador, do
Conselho de Estado e da vitaliciedade do Senado. Somente a
Assembleia deveria deter a soberania. Porém, após vigorosos
debates, a lei que de fato foi promulgada em 12 de agosto de
1834 foi menos ambiciosa, mantendo o poder moderador e a
vitaliciedade do Senado. A disputa entre as duas concepções de
soberania, entretanto, se manteve ao longo de todo o período
imperial, dando ensejo a conflitos diversos entre os poderes
Legislativo e Executivo, e a revoltas nas diversas províncias do
país.
A disputa entre a concepção unitarista e federalista de
soberania também foi marcante nesses primórdios dos anos
de 1830. Deveriam as províncias do Império ser consideradas
soberanas? Diversas tendências políticas liberais e conserva-
doras no poder concordavam com a necessidade de reformas
descentralizadoras. Entretanto, era imprescindível estabelecer
certos limites aos anseios federalistas, que não poderiam ferir
a unidade nacional. No Senado, o Visconde de Cairu foi uma
das vozes mais contundentes ao declarar-se contrário à criação
de Assembleias provinciais, pois isso equivaleria a “destruir a

412
Soberania Nacional para estabelecer Soberanias Provinciais”.22
Na Câmara dos Deputados, o grande líder moderado Bernardo
Pereira de Vasconcelos declarou nas sessões dedicadas à discussão
do projeto na Câmara ser contrário a que as províncias pudes-
sem ter escolha sobre aderir ou não às reformas, pois delegar às
províncias “o direito de se constituírem (...) não é compatível
com a Constituição nem com a soberania nacional”.23 O perigo
do desmembramento, tal como ocorrera com os vizinhos da
América espanhola, fazia a ala moderada recuar diante do fede-
ralismo mais radical.
A aprovação das reformas do Ato Adicional não foi sufi-
ciente para calar as ambições de poder das elites provinciais e
o consequente conflito com a visão nacional da soberania. No
movimento Farroupilha na província do Rio Grande do Sul, que
proclamou a República de Piratini em 1836 e a defendeu dos
ataques das tropas imperiais até 1845, o princípio federativo foi
ardorosamente defendido, assim como o fim do poder modera-
dor. Em outros movimentos, a concepção radical de soberania
popular veio novamente à tona. Foram os casos da Balaiada no
Maranhão, da Cabanagem no Pará e da Sabinada na Bahia, em
que as disputas entre as elites em torno do governo provincial,
pelo federalismo e pela supremacia da Assembleia contra o poder
moderador, deram ensejo a que a “plebe” urbana e a rural se
revelassem diretamente na cena política, desafiando a estrita e
controlada concepção liberal da soberania do povo. Não foi
apenas no espaço parlamentar representativo, mas nas ruas e com
violência que o povo mostrou sua face e seus anseios específicos.
Ao final dos anos de 1830, diante das ameaças de frag-
mentação do Império e de desordem social, verificou-se na
Câmara dos Deputados um movimento para frear as conquistas
liberal-federalistas e para retomar as prerrogativas da Coroa,
o chamado regresso conservador. Muitos pontos das reformas
federalistas foram suprimidos, ao mesmo tempo que se conferiu
a maioridade ao imperador, pondo fim ao período regencial.
Diante das ameaças à ordem e ao Império, as elites políticas

413
se uniram em torno de um conceito de soberania, de cunho ao
mesmo tempo monárquico e liberal conservador caracterizado
pela concepção de que o monarca é o primeiro representante da
nação, acima de todos os outros poderes, lugar que lhe é dado
pelo vínculo direto e afetivo com “o povo”. Este povo, por suas
características históricas, não poderia ser o único titular da sobe-
rania, precisando de tutela. Tal concepção procurou, portanto,
afastar qualquer expressão direta da soberania do povo, além
de afirmar a centralização do poder soberano no governo do
Rio de Janeiro. Tal conceito de soberania foi um dos esteios à
estabilidade política que caracterizou a maior parte do Segundo
Reinado.
A concepção monarquista de soberania acima exposta foi bem
desenvolvida no célebre livro de José Antônio Pimenta de 1857.
O problema da soberania exige, para o autor, a compreensão do
pacto político constituinte da nação brasileira que teria ocorrido
na Independência. Naquele momento, a nação se tornou sobe-
rana, isto é, o povo tomou para si o poder, a força e a independên-
cia, tornando-se uma força coletiva e suprema, ganhando, assim,
“o indisputável direito de determinar as formas, instituições,
garantias fundamentais, o modo e condições da delegação do
exercício desse mesmo poder”.24 Porém, a essa concepção liberal
de soberania da nação se mesclava uma concepção monárquica,
pois, continua Bueno, a nação brasileira delegou seu poder aos
seus representantes: a Assembleia Geral e o imperador. Além de
optar pela forma monárquica, a nação escolhera a antiga dinastia
de Bragança como sua mais alta representante, uma vez que esta
já contava com a gratidão nacional e o prestígio de ser a “antiga
soberana nacional do Brasil e de Portugal”.
Na década de 1860, uma onda de críticas à concepção de
soberania do regresso conservador iniciado no final dos anos de
1830 começou se apresentar na cena pública. Dissidências conser-
vadoras e liberais criticaram o “poder pessoal” do rei em nome
da soberania nacional. No final da década, as críticas se radi-
calizaram com uma dissidência do Partido Liberal que formou

414
o Partido Republicano em 1870. Foi a partir de então, que a
chamada “geração de 1870” passou a atacar a tradição política
imperial forjada nos anos de 1830 e 1840. Novas correntes
liberais tanto republicanas como monarquistas, além de alguns
positivistas, trouxeram novos elementos para o conceito político
de soberania. Os argumentos de cunho histórico e sociológico
moldaram a semântica do conceito de soberania, mas com o
objetivo político, não de legitimação, como na tradição imperial,
mas de crítica ao estado de coisas vigente.
O Manifesto Republicano de 1870 percebeu a história
brasileira como o conflito entre o despotismo e a soberania do
povo. A opção monárquica brasileira teria sido fruto de uma
“emboscada política” que teria sobrepujado a evolução natural
da soberania do povo no seio da nação brasileira. O sistema
político imperial se caracterizou pela conciliação impossível e
ultrapassada entre dois sistemas contraditórios: a “soberania
do povo” e o poder dinástico e hereditário. A hereditariedade
do poder seria a “negação da própria soberania nacional”, pois
“como as gerações se sucedem, e se substituem, fora iníquo que
o contrato de hoje obrigasse de antemão a vontade da geração
futura, dispondo do que não lhe pertence, e instituindo uma
tutela perene”.25
Já para as novas correntes liberais monarquistas, o problema
brasileiro ia muito além do âmbito da política e de uma pretensa
“deturpação” histórica da soberania nacional. Antes de se pensar
em aprofundar a soberania do povo, era preciso transformar
sua base histórico-social: o povo. Logo, economia, cultura e
sociedade constituíam o foco das reformas pretendidas por esses
grupos, e a abolição da escravatura, o primeiro passo no caminho
das transformações políticas. O político liberal Joaquim Nabuco
argumentava que não eram os sistemas políticos que faziam o
povo tomar a frente dos governos e governar-se, já que, tanto
na Inglaterra monárquica quanto nos Estados Unidos republi-
cano, o governo do povo era uma realidade.26 Era preciso em
sua perspectiva, em primeiro lugar, entender o estado do povo

415
brasileiro e transformá-lo no sentido de que ele não necessitasse
mais de qualquer tutela e estivesse pronto para o autogoverno,
isto é, para a expansão da soberania do povo. Em sua opinião,
os republicanos não se ocupavam em conceitualizar mais clara-
mente o povo no sentido histórico e sociológico mais concreto,
simplesmente por não possuírem em seus quadros e projetos
qualquer ligação com ele, sendo apenas um movimento de elites
ressentidas após a lei de 1871 que deu liberdade aos escravos
nasciturnos. Aferravam-se, para Nabuco, portanto, a uma
concepção abstrata de “soberania do povo” que, em verdade,
era restrita às camadas mais abastadas da sociedade.
Os positivistas, por sua vez, grupo minoritário, lutavam pela
república, mas repudiavam absolutamente a ideia de soberania
do povo ou da nação. Em sua percepção do momento histórico
brasileiro, o país estava mergulhado na anarquia intelectual, pois
a política estava ainda dominada pela ideia da soberania do povo.
Era preciso, portanto, acelerar a marcha da história, trazendo
o progresso ditado pelas leis positivas. Para autores positivistas
ortodoxos, como Animal Falcão e Miguel Lemos, a “soberania
do povo” era uma ideia metafísica, pertencente a uma fase da
sociedade que deveria ser superada. A “vontade do povo” não
era em si um critério político válido de intervenção no mundo
real, uma vez que frequentemente era contrária às necessidades
sociais e às leis históricas fundamentais.27
Vimos que os principais dilemas da soberania política
evidenciados após o movimento constitucional de 1820 foram
momentaneamente “resolvidos” na vitória do conceito conser-
vador monárquico com o regresso do final dos anos de 1830
e, sobretudo, com a ascensão do reinado de D. Pedro II. Uma
soberania centralizada no monarca e na Corte, longe da partici-
pação popular irrestrita, mas que deveria se dar apenas através
de mecanismos excludentes e restritivos de representação. Um
conceito centrado no vínculo entre o monarca e o povo-nação,
povo este que estaria em uma fase embrionária no processo
de civilização. As críticas às instituições e à tradição política

416
imperial pelas novas correntes políticas e intelectuais dos anos
de 1870 não foram capazes de ultrapassar muitos dos impas-
ses colocados nas primeiras décadas do século. Enquanto os
republicanos combatiam a soberania monárquica afirmando
uma teórica e dogmática soberania popular e questionando o
suposto pacto entre rei e povo que fundamentaria a soberania
monárquica, positivistas e liberais monarquistas defendiam
soluções que afastavam definitivamente o povo da soberania:
enquanto os positivistas defenderam a soberania de um estado
republicano autoritário, liberais monarquistas, como Joaquim
Nabuco, defenderam a continuidade da prevalência da sobe-
rania monárquica sobre a soberania do povo, enquanto este
estivesse seguindo sua lenta marcha civilizacional. Em todas as
propostas, pouco se avançou na concretização de mecanismos
de participação popular efetiva, uma falta que se estendeu para
o período republicano. A história só conseguiu construir duas
alternativas: uma soberania do povo abstrata e excludente, uma
vez que na verdade dizia respeito a uma parte muito pequena da
população; e uma soberania concentrada no poder do Estado
e do monarca, entidades que deveriam tutelar um povo ainda
e sempre incapaz de concretizar seus direitos de participação.

NOTAS
1
Raphael Bluteau, Diccionario da lingua portugueza, Lisboa, Officina de Simão
Thaddeo Ferreira, 1789, p. 407.
2
Marquês de Penalva, Dissertação a favor da Monarquia, Porto, Edicões Gama,
1799, p. 87. (Título original: Dissertação a favor da Monarquia. Onde fe prova
pela razão, authoridade, e experiencia fer efte o melhor e mais jufto de todos os
Governos; e que os noffos Reis são os mais absolutos, e legítimos Senhores de
Feus Reinos: offerecida a sua alteza Real o Príncipe do Brazil nosso senhor pelo
Marquez de Penalva, Lisboa, na Regia officina Typografica, M. DCC. XCIX,
por ordem de sua magestade).
3
Evaldo Cabral de Mello, A fronda dos mazombos. Nobres contra mascates.
Pernambuco 1666-1715, São Paulo, Editora 34, 2003.
4
José Sebastião da Silva Dias, Pombalismo e teoria política. Cultura, história e
filosofia, Coimbra, Instituto Nacional de Investigação Científica, Lisboa, Centro
de História da Cultura da Universidade Nova Lisboa, 1982, v. 1.

417
5
Ribeiro Santos apud Dias, Pombalismo e teoria política; Tomaz Antonio Gon-
zaga, Tratado de direito natural (1772), São Paulo, Martins Fontes, 2004.
6
Eliane Cristina Deckmann Fleck, Os inconfidentes – intérpretes do Brasil, em
Günter Axt, Fernando Shuler, Intérpretes do Brasil. Cultura e identidade, Porto
Alegre, Artes e Ofícios, 2004.
7
Mello, A fronda dos mazombos.
8
Telmo dos Santos Verdelho, As palavras e as ideias na Revolução Liberal de
1820, Coimbra, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1981.
9
Silvestre Pinheiro Ferreira, Cartas sobre a Revolução do Brasil, Revista do Ins-
tituto Histórico e Geográfico Brasileiro, t. 51, p. 17, 1888.
10
Revérbero Constitucional Fluminense, Rio de Janeiro, 30-VII-1822.
11
O Bem da Ordem, Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, n. 5, 1821, apud Maria
Beatriz Nizza da Silva, Formas de representação política na época da Indepen-
dência, Brasília, Câmara dos Deputados, 1987, p. 50.
12
O Espelho, Rio de Janeiro, n. 1, X-1821.
13
O Macaco, Rio de Janeiro, n. 7, 1822.
14
Ibidem.
15
Apud Maria Beatriz Nizza da Silva, Movimento constitucional e separatismo no
Brasil (1821-1823), Lisboa, Livros Horizonte, 1988.
16
Revérbero Constitucional Fluminense, 25-VI-1822.
17
Idade d’Ouro do Brasil, Bahia, n. 116, 9-XI-1821, apud Silva, Movimento
constitucional e separatismo no Brasil (1821-1823), p. 101.
18
Anais da Câmara dos Deputados, 13-V-1831, Brasília, Publicações Oficiais, p. 321,
disponível em <http://imagem.camara.gov.br/diarios.asp?selCodColecaoCsv=A>,
acesso em 12 jul. 2010.
19
Apud Marcelo Basile, Ezequiel Correa dos Santos: um jacobino na corte imperial,
Rio de Janeiro, FGV, 2001.
20
Anais da Câmara dos Deputados, 31-VIII-1832, p. 331.
21
Anais do Senado Imperial, VI-1832, Brasília, Portal Publicações do Senado
Federal, p. 445, disponível em <http://www.senado.gov.br/publicacoes/anais/
asp/IP_AnaisImperio.asp>, acesso em 12 set. 2010.
22
Ibidem, 30-VI-1832.
23
Anais da Câmara dos Deputados, 27-VI-1834.
24
José Antonio Pimenta Bueno, Direito público brazileiro e analyse da constituição
do império, Rio de Janeiro, Typhographia imp. e const. de J. Villeneuve e C.,
1957, p. 260.
25
Quintino Bocaiúva, Manifesto Republicano de 3 de dezembro de 1871, em Paulo
Bonavides, Roberto Amaral, (org.), Textos políticos da história do Brasil, v. II,
Império. Segundo Reinado, Brasília, Senado Federal, 2002, p. 493.

418
26
Fernando Cruz Gouveia, Joaquim Nabuco. Entre a monarquia e a república,
Recife, FUNDAJ, Editora Massangana, 1989.
27
Miguel Lemos, O positivismo e a escravidão moderna, Rio de Janeiro, Templo
da Humanidade, 1934.

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421
JOÃO FERES JÚNIOR

O CONCEITO DE CIVILIZAÇÃO
uma análise transversal

C’est le sens de ce mot, son sens général, humain, po-


pulaire, qu’il faut étudier. Il y a presque toujours, dans
l’acception usuelle des termes les plus généraux, plus de
vérité que dans les définitions en apparence plus précises
et plus rigoureuses de la science.
François Guizot1

Assim como outros conceitos do nosso léxico, o de civi-


lização é usado até os dias de hoje. O artigo “The Clash of
Civilizations?”, de Samuel P. Huntington, que serviu de base
para o livro em cujo título o ponto de interrogação já não
mais aparece,2 assim como os atentados de 11 de setembro de
2001 ajudaram muito a ativar debates onde o termo tinha um
papel fundamental. Huntington previa que o contexto pós-
-Guerra Fria seria marcado pelo conflito entre grandes blocos
culturais (cristão, muçulmano, hindu, confucionista etc.) e
acusava a cultura muçulmana-árabe de ser particularmente
avessa aos valores fundamentais do Ocidente cristão, como
o pluralismo e a democracia. A despeito do uso do termo
civilização no título das obras e também de sua aparição nos
referidos debates, o observador atento notaria que, na verdade,
o conceito mais operacional nos argumentos trocados é o de
cultura. Civilização, assim, opera mais como um slogan, uma
buzzword. Escreve Huntington na primeira página do artigo:
“(...) as grandes divisões da humanidade… serão culturais.”3
Logo depois define civilização como “uma entidade cultural”,4
ou em maior detalhe: “Uma civilização é, portanto, o mais alto
agrupamento cultural e a mais abrangente identidade cultural
que os povos têm...”5
A literatura crítica sobre o conceito de civilização, assim
como a leitura dos verbetes sobre o conceito de civilização
que compõem este dicionário, mostra que essa dependência
do conceito de cultura não existia nos séculos 18 e 19, quando
civilização foi definida abundantemente por meio de referên-
cias diretas a aspectos materiais, políticos e morais dos povos.
A evolução semântica do conceito de civilização até os dias de
hoje mostra uma peculiaridade interessante quando comparada
à de outros termos do vocabulário social e político. A partir do
século 19 e principalmente ao longo do século 20, parte signifi-
cativa do vocabulário social e político foi recebida pelas ciências
sociais, que se desenvolveram nesse período. Os conceitos, que
já eram empregados na linguagem comum, ganharam assim
uma camada semântica extra como termos técnicos e analíticos.
Esse é o caso de Estado, Direito e Justiça, entre muitos. Alguns
termos, contudo, não foram plenamente incorporados pelas
ciências sociais; esse parece ser o caso de civilização. O termo
cultura, seu parente semântico e hoje concorrente em muitas
línguas modernas, tornou-se o principal conceito analítico da
antropologia e mais recentemente dos Cultural Studies, além de
ter sido adotado por uma miríade de outras disciplinas como a
História, Sociologia e a Ciência Política. Já o termo civilização
foi apropriado somente por alguns historiadores, o mais recente
e ilustre talvez seja Fernand Braudel.6 A tentativa de Huntington
de ressuscitar o uso do termo civilização de modo analítico
encontrou enorme resistência. Por que as coisas tomaram esse
caminho? A resposta talvez repouse no fato de o termo civiliza-
ção não conseguir facilmente cumprir o papel de termo técnico,
ou seja, despido de julgamentos de valores, à maneira como

424
requerem as ciências sociais behavioralistas e pós-behavioralistas.
Como bem nota Brett Bowden,7 tal conceito reúne elementos
descritivos e valorativos. Talvez o fato de o conceito ter sido
usado tantas vezes como justificativa de projetos colonialistas
tenha selado seu destino de marginalidade nas ciências humanas;
essa é uma hipótese consonante à interpretação de Bowden.
Nosso próprio projeto Iberconceptos pode servir de contraexem-
plo. Hipoteticamente, ele poderia ser cognominado Projeto de
História Conceitual da Civilização Ibérica, mas tal título sequer
foi aventado pelos membros do grupo.
Apesar da origem europeia, a experiência americana foi
também responsável pelo destino do conceito de civilização,
não somente na língua inglesa, mas também no português e
espanhol – ainda que esse desenvolvimento histórico e semân-
tico não tenha sido suficientemente explorado pela literatura
especializada, algo que torna a presente iniciativa ainda mais
meritória. O presente ensaio pretende ser uma reflexão sobre
a história desse conceito nos países onde essas duas línguas
ibéricas são faladas, no período que vai de 1750 a 1870. Mais
especificamente, ele será baseado nos verbetes sobre o conceito
de civilização compostos por: Geneviève Verdo (Argentina), João
Feres Júnior e Maria Elisa Mäder (Brasil), Consuelo Naranjo
Orovio (Caribe-Antilhas), Sajid Alfredo Herrera Mena (América
Central), Isabel Torres e Gabriel Cid (Chile), Carlos Villamizar
Duarte (Colômbia), Javier Fernández Sebastián (Espanha),
Guillermo Zermeño (México), Marcel Velázquez Castro (Peru),
Fátima Sá e Melo Ferreira e Sérgio Campos Matos (Portugal),
Ariadna Islas Buscasso (Uruguai) e Luis Ricardo Dávila e Luis
Daniel Perrone (Venezuela).
As teses acerca do desenvolvimento semântico do conceito
de civilização levantadas pela literatura crítica são muitas e não
totalmente congruentes, e quase todas versam sobre experiências
europeias. Um exame detalhado delas tomaria todo este ensaio
e mais. Assim, no presente texto pretendo examinar os desen-
volvimentos semânticos ocorridos no mundo de fala ibérica à

425
luz de algumas dessas teses, somente aquelas que parecem mais
relevantes. Prosseguirei então da seguinte maneira: na próxima
seção elencarei as teses que considero mais relevantes ao estudo
do conceito de civilização no Mundo Ibérico, adicionando a elas
questões advindas da metodologia da história conceitual, que,
a meu ver, são capazes de emprestar poder sintético e clareza
à análise.

FORTUNA CRÍTICA
Na introdução do livro Civilisation: le mot et l’idée, Henri
Berr detecta o caráter duplo, descritivo e valorativo, do termo
civilização, para logo em seguida declarar que os ensaios que
compõem o livro rejeitam o segundo, ou seja, o valorativo, e seu
conteúdo subjetivo. Trata-se de fazer um estudo da palavra e
das ideias, segundo ele.8 Outros tantos autores identificaram o
duplo caráter do termo. Interessa aqui particularmente aqueles
que refletiram sobre o conceito, ou a ideia, e não aqueles que
o utilizaram de maneira naturalizada, como uma palavra que
descreve algo no mundo de maneira incontroversa – o que pode-
mos chamar de tratamento instrumental do termo. O propósito
do presente estudo, assim como o dos verbetes, é fazer uma
história do conceito, tanto de seu uso normativo como do descri-
tivo. Tal posição já é em si nutrida por um espírito cético, que
duvida de que um termo dotado de tamanha carga normativa
possa se constituir em um descritor de algo no mundo de maneira
incontroversa. Muitos autores que estudaram o conceito de civi-
lização adotaram démarche similar. O próprio livro Civilisation:
le mot et l’idée é um exemplo; As máscaras da civilização, de
Jean Starobinski, é outro. Mesmo autores que usam o conceito
de maneira instrumental no seu trabalho, como ferramenta de
análise, como Fernand Braudel9 e Norbert Elias10, sentiram-se
premidos a fazer uma introdução refletindo sobre a evolução
semântica do conceito.

426
A posição cética defendida aqui em tudo se coaduna com a
metodologia da história dos conceitos. Isto é, o paradigma da
história conceitual evita a cilada de ter de optar pelo aspecto
descritivo ou normativo dos conceitos. Os elementos descri-
tivos e normativos são tomados como partes da semântica do
conceito e, portanto, como objetos a serem estudados. Também
não precisamos nos ater à separação entre objetivo e subjetivo,
própria do paradigma cartesiano, pois a inspiração fenome-
nológica embutida na história conceitual foca a experiência e
a construção da linguagem através de um processo social de
atribuição de significado intersubjetivo, que nunca é totalizante
ou propriamente objetivo, pois se encontra fracionado como a
própria sociedade. Assim, a história conceitual rejeita a busca
da univocidade e da perfeição conceitual, que hoje são comuns
nas ciências humanas e sociais, especialmente naquelas que
perseguem, mesmo que retoricamente, o modelo das ciências
naturais, tais como amplos setores da sociologia e da ciência
política. É contra essa concepção que as abordagens de Reinhard
Koselleck e de Quentin Skinner,11 para citar apenas os nomes
mais célebres, pleiteiam a necessidade de se resgatar a linguagem
em seus múltiplos usos e significados.
A história conceitual, da maneira como a concebeu Koselleck,
é especialmente bem equipada para detectar os aspectos norma-
tivos da linguagem. Três das quatro hipóteses básicas adotadas
na feitura da Geschichtliche Grundbegriffe prestam-se a esse
serviço: a temporalização (Verzeitlichung), que corresponde à
disposição de inserir conceitos políticos e sociais modernos na
filosofia da história, esquematizados teleologicamente e divididos
em períodos, fases e estados de desenvolvimento; a ideologização
(Ideologisierbarkeit), que corresponde a um processo de aumento
do “grau de abstração de muitos conceitos que já não são capazes
de refletir a mudança dos acontecimentos ou as transformações
sociais”, daí, por exemplo, o surgimento de singulares coletivos
como história, direito ou mesmo civilização; e a politização
(Politisierung) do vocabulário social e político, que redunda na

427
nova utilização de conceitos como “armas de guerra” em bata-
lhas ideológicas entre classes, grupos de status e movimentos
sociais.12 A hipótese da democratização (Demokratisierung),
ou seja, a expansão progressiva da penetração social do uso de
conceitos sociais e políticos, não será tratada aqui pelo simples
fato de que o desenho da pesquisa não nos permite testá-la de
maneira satisfatória, pois para tal precisaríamos ter instrumentos
para avaliar a circulação social dos termos.
Além das hipóteses de Koselleck, desejamos perguntar se algu-
mas das teses defendidas por autores que estudaram o conceito
de civilização na Europa se aplicam aos casos dos países de fala
ibérica. Vamos começar aqui pelas teses acerca da semântica do
conceito propriamente dita. Da literatura secundária a respeito
do tema despontam pelo menos quatro definições fundamentais
do conceito de civilização. São elas: 1) ato de civilizar; 2) modelo
ou padrão; 3) processo; 4) expressão da nacionalidade.
O primeiro significado, o de ato de civilizar, é notado por
Javier Sebastián na primeira aparição do termo em língua espa-
nhola, em texto de autoria do padre jesuíta Juan José Delgado
acerca de algumas tribos filipinas. Delgado chama de bárbaros
os costumes daqueles que ainda se recusavam a viviren policia,
acrescentando que tais tribos parecem fugir daquilo que conduz
a sua civilização.13 O ensaio de Delgado apareceu em 1754, ou
seja, dois anos antes da publicação de L’ami des hommes de
Mirabeau – obra que é reputada por muitos comentadores como
a primeira aparição do termo em língua europeia. A evidência
proporcionada por Sebastián é sólida e revela um viés franco-
cêntrico da literatura secundária ou pelo menos um possível
preconceito contra a língua espanhola. Se formos para além do
mero emprego lexical, notamos que o significado estrito de ato
de civilizar adotado por Delgado é muito mais antigo do que
seu século. O verbo civilizar já era usado desde o final da idade
média em francês e estava presente nos principais dicionários
das línguas neolatinas produzidos no século 18, ou seja, bem
antes do vocábulo civilização, que passa a ser usado com mais

428
frequência em francês, inglês, e logo em seguida nas principais
línguas neolatinas, com exceção do italiano, somente a partir
do último quarto do século 18.14
A partir do descobrimento do Novo Mundo, ou seja, já a
partir do século 16, o projeto de “civilizar” os indígenas foi
muitas vezes aventado. Mesmo que o verbo usado nem sempre
tenha sido esse, de radical civil-, o significado era o mesmo: fazer,
se necessário com o uso da força, que os indígenas passassem a
viver em cidades, regidas por leis civis e por costumes cristãos,
isto é, arrancá-los da prática de supostos costumes bárbaros,
como o canibalismo e a poligamia, e submetê-los ao governo
civil português.15 No Plano de Colonização dos índios do Brasil
feito pelo jesuíta Manoel de Nóbrega, o termo usado era “alde-
amento”.16 As Reducciones paraguaias, implantadas algumas
décadas depois, foram projeto em tudo similares.17
Ao analisar a história do conceito de civilização na França,
Raymonde Monnier diz que nos anos de 1760 e 1770 o termo
já era usado em duas acepções modernas, perfectiva e imperfec-
tiva; a primeira é a que chamamos aqui de “modelo ou padrão”,
segundo a qual o termo descreve o alto grau de desenvolvimento
de uma nação, e a segunda designa um processo dinâmico e
gradual segundo o qual uma sociedade primitiva avança em
direção a estágios mais elevados, por meio do desenvolvimento
moral e material.18 Aqui nos deparamos com um problema inter-
pretativo interessante, que em grande medida tem a ver com a
imprecisão do uso do conceito de “moderno” como ferramenta
analítica. Seria o ato de civilizar dos jesuítas do século 16 um
conceito moderno? Ou somente as formas modelar e de processo,
que a autora atribui ao século 18, merecem essa designação?
A noção de temporalização de Koselleck pode nos ajudar a
responder a essa questão.
Como notou com propriedade Anthony Pagden,19 as etnolo-
gias dos povos do Novo Mundo feitas pelos padres catequistas,
como Bartolomeu de Las Casas (1967) e José Acosta (1977),
por exemplo, continham um germe de temporalização. Havia

429
nelas já teorias de estágio e a possibilidade de passagem de um
estágio a outro superior, como é o caso explicitado na retórica
dos defensores dos projetos de aldeamento. Havia também a
percepção nítida de um padrão ou modelo, representado pela
catolicidade europeia, que ocupava o ápice da escala, aspectos
que não escapam a Pagden. Ao mesmo tempo, contudo, a tempo-
ralização não era clara e inequívoca, como mais tarde, no Século
das Luzes, se tornaria, pois esses esquemas conviviam com a ideia
de Juízo Final, uma interrupção abrupta do tempo que em si é
destituída de imanência histórica, pois depende da intervenção
extemporânea de Deus no mundo. O que os padres portugueses
e espanhóis começaram a fazer foi traduzir diferenças culturais
(usos e costumes) em diferenças temporais (primitivismo, atraso
etc.), abrindo assim a possibilidade para um amplo leque de
argumentos morais que vão da justificação do colonialismo à
refutação da tese da escravidão natural dos indígenas.20
Assim, não me parece recomendável assumirmos que os
significados de modelo e de processo sejam em si modernos,
se por modernos entendemos conceitos insuflados por uma
concepção temporal de história imanente, nutrida pela ideia de
perfectibilidade humana e aberta ao progresso sem fim determi-
nado.21 Nem as concepções de Mirabeau ou mesmo de Guizot
se encaixam perfeitamente nesse critério. Mas se isso é verdade,
então devemos esperar encontrar em nossas fontes significados
dotados de concepções diversas de temporalidade, tanto as pré-
-Iluministas quanto as mais afeitas ao espírito das Luzes. Isso é
consonante com a tese de Koselleck acerca da contemporaneidade
do não contemporâneo: o acúmulo de experiência histórica na
linguagem faz com que em um dado tempo convivam noções
com diferentes concepções de temporalidade. Dessa maneira,
antes de determinar a temporalização do conceito a priori, como
uma consequência natural de algum suposto Zeitgeist, temos que
analisar cada uso para avaliar a concepção de temporalidade
nele imbricada.

430
Em suma, os significados de ato, de modelo e mesmo de
processo já estavam presentes antes de nosso período de análise.
O que não havia era uma concepção de temporalidade propria-
mente secularizada, linear e não teleológica, como descrita por
Carl Löwith em 1949, concepção essa que é em grande medida
também adotada por Koselleck como um dos signos da moder-
nidade. Uma leitura mesmo que cursiva dos verbetes mostra
que o grau em que o conceito de civilização é interpenetrado
por essa nova noção temporal varia muito de exemplo para
exemplo de uso.
Claramente ligado ao processo de temporalização do conceito
está o de ideologização. Aqui temos um fato peculiar que atinge
o conceito em questão, pois se por um lado ele parece já ter
nascido como um singular coletivo, por outro, passou por um
processo de pluralização que não ocorreu com outros conceitos.
Ou seja, quase como um processo inverso ao que foi descrito
por Koselleck, de uma civilização passou-se a se falar de várias
civilizações, a grega, a romana, a asteca, a espanhola, a brasileira
etc., como não deixa de notar Braudel.22 Isso não significa que o
uso da fórmula singular desapareceu, muito pelo contrário, ele
passou a conviver com os usos plurais, não raro em tensão com
eles. Essa tensão entre singular e plural, que está presente tanto
nos trabalhos de Guizot23 como nos de Arnold Toynbee,24 só
para citar dois nomes muito influentes na propagação do uso do
termo, é também notada nas análises da semântica do conceito
feitas por Lucien Febvre, Norbert Elias, Jean Starobinski e Brett
Bowden. Febvre afirma que a versão singular é sempre feita da
perspectiva de um eu coletivo que se coloca como superior e,
portanto, dotado dos quesitos morais e materiais modelares,
enquanto o uso plural, em sua época defendido mormente
por etnólogos, tenta colocar em pé de igual valor as diferentes
culturas.25 Bowden argumenta que o singular coletivo serviu de
esteio ideológico para um sem-número de projetos coloniais.26
Em uma formulação que remete a Hegel, Starobinski defende que
o surgimento do conceito de civilização, no singular, é produto

431
da tomada de consciência do Ocidente de si mesmo, ou seja, de
um ato reflexivo que produz a autoconsciência e, a partir daí,
é capaz de nomear outras civilizações ao mesmo tempo que se
coloca como superior a todas elas.27 Avaliação parecida já havia
sido feita por Elias ao anotar que o conceito de civilização serve
para que o Ocidente se jacte como superior a outros povos no
tocante a uma miríade de aspectos morais, culturais e técnicos,
e assim justifique seus projetos de conquista e colonização. O
autor escreve: “o lema ‘civilização’ conserva sempre um eco
da Cristandade Latina e das Cruzadas de cavaleiros e senhores
feudais.”
Uma faceta importante da ideologização é sua interação com
as diferentes definições básicas do conceito. A civilização como
ato de civilizar o bárbaro ou selvagem pode muito bem ser arti-
culada a uma teoria de estágios, com um modelo no ápice que
corresponde ao estágio mais excelente. Nesse caso podemos ter
boas justificativas para projetos coloniais, como de fato ocor-
reu na primeira onda do colonialismo europeu já citada aqui,
ainda antes da consolidação do termo civilização. Mesmo uma
temporalização “pré-moderna” foi capaz de gerar um horizonte
de expectativas onde se justifica arrancar o selvagem de seus
modos bárbaros para colocá-lo em um estágio superior, mesmo
que esse estágio não seja ainda o modelo. A definição modelar
pode, por seu turno, prescindir de uma teoria de estágios e ser
usada em oposição binária à barbárie. Tal uso é muito comum em
justificativas mais severas de erradicação da barbárie ou mesmo
na fórmula mais branda de “clube de nações civilizadas”, muito
comum no século 19, inclusive em nossa amostra. Por fim, a
definição de civilização como expressão da nacionalidade coloca
a ideologização em um patamar diferente daquele pensado por
Koselleck,28 pois não se trata mais de propor aquilo que ainda
não é, por meio da construção de uma narrativa unilinear da
história universal, mas sim de projetar um devir que é a realização
do espírito de um povo, de uma nação. Assim, a pluralização
do conceito se faz sem negar a positividade da civilização ou

432
mesmo seu aspecto universal; dessa maneira, pode-se reclamar
para um determinado modus vivendi nacional o valor de contri-
buição inestimável a esse processo de desenvolvimento de toda
a humanidade.
Mas o aspecto da ideologização só é bem entendido se a ele
juntarmos a politização do conceito de civilização. Aqui também
temos algo muito interessante, pois por toda sua história o
conceito de civilização – assim como vocábulos que foram seus
diretos predecessores históricos, como cristão, polícia, polidez,
refinamento etc. – tem sido usado como o elemento positivo de
um par de contraconceitos assimétricos que tem “bárbaro”, e a
partir do século 16 também o “selvagem”, no polo negativo.29
Do ponto de vista metodológico, o interesse aqui repousa no fato
de que a hipótese da politização foi pensada por Koselleck para
a análise de conceitos-chave, ou seja, daqueles que se tornam
cruciais para o entendimento e o autoentendimento de uma
comunidade política.30 Não há reflexão teórica, contudo, acerca
da aplicabilidade dessa hipótese para o caso de contraconceitos
assimétricos. Qual seria o problema em fazê-lo? A resposta tem
a ver com o termo “assimétrico”, definido pelo autor como
a condição em que um grupo nomeia e outro é nomeado, e o
grupo nomeado é, ao mesmo tempo, incapaz de reagir ao ato de
nomeação. Daí advém o caráter assimétrico. Ou seja, o grupo
nomeado está quase sempre fora da comunidade política, seja
por ser marginal a ela ou por se tratar de povos que vivem em
países estrangeiros. Será que poderíamos falar de politização
nesse caso? Parece-me que ainda assim, no caso do conceito de
civilização, essa hipótese pode ser produtiva, particularmente nos
casos de consumo interno, ou seja, quando o conceito é usado
para nomear grupos de pessoas que habitam a nação, mas não
estão plenamente integrados à comunidade política (indígenas,
negros, camponeses, a plebe etc.). Em outras palavras, as lutas
em torno da incorporação ou não de parcelas da população ao
sistema político geralmente se travam em torno do significado

433
de contraconceitos assimétricos, na definição dos limites entre
o Eu coletivo e seus outros.

CIVILIZAÇÃO NA AMÉRICA
O que podemos dizer acerca da evolução semântica do
conceito de civilização nos diversos países da América?
O ATO DE CIVILIZAR E O MODELO
Quando Guizot publicou suas conferências sobre o tema da
civilização no ano de 1830, o conceito já estava sofrendo um
processo de temporalização em algumas línguas europeias de
seu tempo. No entanto, em nossa mostra de texto não é muito
comum encontrar evidências de temporalização explícita do
conceito antes dessa data. Isto é, os usos mais comuns do conceito
de civilização até quase a metade do século 19 estão associados
ao que se denominou “significado modelar”: a civilização é
concebida simplesmente como um modelo a se imitar, europeu,
da vida em cidades, regida por leis e em conformidade com a
polícia e com a cortesia. Não é raro também encontrar o conceito
associado à religião cristã e à educação.
Outro significado presente é o de “ato de civilizar”. Tal signi-
ficado já se faz presente no verbete civilização do Dicionário
Castellano de 1786: “(...) ação de civilizar e domesticar alguns
povos selvagens: a civilização dos brasileiros foi muito difícil
para os missionários.”31 É interessante notar que o exemplo dado
pelo Dicionário não vem da América espanhola, mas do Brasil.
Esse mesmo significado se observa nas vozes de outros países
do mundo ibérico. O ato em si, em seu sentido mais concreto, se
refere à solução prática do “problema indígena”; porém, quando
esse projeto vem mesclado à missão religiosa de conversão de
indígenas pagãos, ele tende a ser justificado mais pelos ditados da
fé e por questões práticas de governabilidade do que por razões
inerentes a uma concepção imanente da história.

434
É compreensível que os primeiros usos da palavra “civili-
zação” se refiram ao “ato de civilizar”. Sabemos que o verbo
“civilizar” começou a ser utilizado antes da aparição da palavra
civilização, como fartamente documentado pela literatura crítica.
Além disso, o projeto de “aldeamento” dos indígenas como
medida para sua cristianização foi articulado pelos jesuítas no
Brasil já no século 16 e depois se espalhou para outros lugares.
Para que a conversão fosse exitosa, os indígenas eram obrigados
a abandonar sua vida na selva, com seus costumes “bárbaros”,
para viver em aldeias, povos pequenos sob o domínio dos
sacerdotes. Isto é, a reforma do espaço social e da sociabilidade
se implantou como uma medida com objetivos temporais e
espirituais.
Encontramos o mesmo projeto, por exemplo, em Vicente
Carvalho, que, ao discorrer sobre os indígenas chilenos, escre-
veu que é necessário “reduzir a população, para que, vivendo
em civilização e sujeitos à legislação, sejam úteis ao Estado e
aptos para receber as impressões da verdade evangélica”.32 O
autor desconhecido de “Notícias dos campos de Buenos Aires
e Montevidéu para Sua disposição”, dirigida ao rei em 1803,
sugere também a pregação do Evangelho, para promover “a
extinção de bandidos e foragidos que inundam aqueles campos; a
civilização política e moral de seus habitantes; a propagação legal
da espécie humana (…) Estes são objetos que nós propomos para
a cura daquela Babilônia.”33 E esse significado adentra o século
19 e é adotado em textos que tratam da questão da civilização.
Podemos encontrá-lo nos Apontamentos para a civilização dos
Índios bravos do Império do Brasil escritos por José Bonifácio34
e também na Venezuela, organizando o projeto da Ley sobre
Reducción y Civilización de Indígenas, de 1841.35
O ato de civilizar, com o decorrer dos anos, passa também
a ser expresso por meio de esquemas temporais advindos das
Luzes, como na passagem abaixo já de meados do século 19:

435
A Araucânia, filha do atraso e da ignorância, resta constrangida
de estupidez e imperícia, se coloca em movimento, atrevendo-se a se
dirigir contra as formas de civilização, levantando seu grito selvagem
e orgulhoso para cobrir de vergonha e desonra o nome do Chile. A
civilização por uma parte, a barbárie por outra se colocam em luta e
o triunfo não deve ser posto em dúvida no século em que estamos; o
século da ilustração e do saber é o século da liberdade que não se deixará
vitimar pelo gênio das trevas e da mais cega opressão. A Araucânia se
levanta hoje contra o Chile, porém amanhã, o Chile soltará seu braço
de ferro sobre os temerários indígenas para reduzi-los à impotência,
ao nada e fazer desaparecer de seu território uma horda de bandidos
revelados à luz da razão e da verdade.36

Aqui, o que guia e em última instância justifica a redução dos


índios à civilização é um Zeitgeist que em si expressa a auto-
consciência da diferença entre o presente, o século da liberdade,
e o passado.
O ato de civilizar, porém, inclusive antes de receber esse nome,
já significava a imposição de um ideal, que chamamos aqui de
significado modelar. E esse modelo no princípio não era expresso
pelo termo civilização, senão por outros termos com significados
similares como polícia e polidez. A definição da palavra “poli-
ciado”, do Dicionário de Moraes da língua portuguesa expressa
bem o parentesco semântico dos termos:

Civilizado, Policiado, Polido: um povo é civilizado quando,


tendo deixado os costumes bárbaros, se governa por leis. É policiado
quando, pela obediência às leis, tem adquirido o hábito das virtudes
sociais. E polido quando em suas ações mostra elegância, urbanidade
e gosto. No povo civilizado reinam as leis. No povo policiado reinam
os bons costumes. No povo polido reina a urbanidade e gosto, que é
consequência do luxo. As leis estabelecem a civilização entre os povos
bárbaros, formando os bons costumes...37

436
No entanto, “civilizado” é um termo novo aqui, visto que
as palavras polidez e principalmente polícia já carregavam o
significado modelar de excelência europeia,38 urbana e bem
governada muito antes que essas palavras derivadas do radical
civil- começassem a ocupar esse espaço semântico. O Dicionário
Castellano traz significados similares aos do de Moraes para
as palavras polícia e polidez, associadas a leis, bons costumes,
ordem e urbanidade.39 O Dicionário de Bluteau, de 1728, que
reflete uma semântica do português do século 17 ou mesmo
anterior, obviamente não contém o verbete civilização e, para
os termos civil e civilidade, traz definições técnicas (direito civil,
arquitetura civil, guerra civil etc.) ou francamente negativas
(descortesia, grosseria e rusticidade). O próprio dicionarista
narra que esse sentido negativo é uma inversão do sentido origi-
nal dos vocábulos latinos civilitas e civilis. Já o verbete polícia é
ampliado e contém todas as qualidades positivas que mais tarde
serão associadas à concepção modelar de civilização, como boa
ordem, leis justas, bom governo e bons costumes.
O verbete polícia ainda contém outra evidência forte dessa
tese de deslocamento semântico:

(...) nenhuma nem outra polícia se acha nos povos a que chamamos
de bárbaros, como v.g. o gentio do Brasil, (…) [os quais] andam nus,
(…) vive neles tão apagada a luz da razão, quase como nas mesmas
feras, parecem mais brutos em pé que racionais, nem tem arte nem
polícia alguma.40

A barbárie, que será mais tarde o contraconceito mais perfeito


de civilização, sua completa negação, aparece no dicionário
como o oposto de polícia e não das palavras de radical civil-.
Nas primeiras décadas do século 19 nossa mostra contém
muitos casos do uso do conceito de civilização como um modelo
a imitar. Esse modelo era especialmente europeu, refinado,
polido, cristão e urbano. É evidente que o significado modelar
poderia ser facilmente combinado ao ato de civilizar, porém

437
esses significados não vêm necessariamente juntos. Cabe assi-
nalar que, apesar de haver muitas vezes referência à fé cristã, ela
entra como mais um dos elementos do modelo. Isto é, a conversão
dos pagãos não é necessariamente o propósito principal aqui.
O conceito modelar foi utilizado muitas vezes para fazer
comparações entre nações e povos, e associado a ele encontramos
o uso muito frequente da ideia de “clube das nações civilizadas”
em contraposição aos povos bárbaros do mundo, como no caso
colombiano, em referência de 1809,41 na Espanha,42 no Brasil
(onde tal noção aparece várias vezes nas páginas do Correio
Braziliense, do começo do século 19) e em muitas referências na
Venezuela. Nesse caso, a conceituação serve para produzir uma
geografia dualista do mundo, dividido entre civilizados e não
civilizados. O modelo mais utilizado é a Europa, porém, muitas
vezes, nações europeias específicas são eleitas. Descontando as
preferências regionais, a França é o modelo mais citado, seguido
por Inglaterra e Estados Unidos. Espanha e Portugal também são
citados como exemplos de civilização em relação a suas colônias
na América, todavia esse uso é menos frequente e geralmente
está envolto em polêmicas.
O conceito modelar de civilização carece de um sentido
temporal forte. Como programa social e político ele reclama a
eleição de um ideal estrangeiro e a articulação dos meios para
sua emulação. Em outras palavras, o processo da civilização
corresponde a uma mudança da barbárie para o clube das
nações civilizadas. Não obstante, há uma diferença fundamental
aqui entre o uso do significado modelar por parte de europeus
e sua adaptação ao debate político interno aos países do Novo
Mundo. Enquanto no primeiro caso trata-se quase sempre de
defender a superioridade da própria posição, no segundo, o
reconhecimento de inferioridade frente ao modelo justificaria
sua emulação. Tomemos o exemplo encontrado na Gaceta del
Gobierno de México acerca de como devem atuar os países da
América: “(...) proporcionar a seus povos todas as vantagens
compatíveis com a civilização em que se falava, para aumentar

438
estas no que fosse possível, e ir caminhando para se colocar no
patamar das demais culturas.”43
Apesar de o texto sugerir a existência de um processo, o dese-
nho é binário e o processo é simplesmente a transição de uma
condição, da barbárie, a outra, à de civilização.
Os dois significados que vimos até agora, o ato de civilizar e
o modelo, são plenamente compatíveis com a condição colonial.
Sua falta de temporalização também aponta para a perpetuação
dessa condição de subordinação. Isso é particularmente certo no
caso do ato de civilizar. No caso da definição modelar temos já a
possibilidade de tensão entre o modelo a almejar e aquele de fato
adotado pelos colonizadores. Em outras palavras, se Espanha e
Portugal não pertencessem ao clube das nações civilizadas, então
não poderíamos aspirar a ter implantada, por meio da coloni-
zação, uma civilização nos trópicos. Por outro lado, se nossos
colonizadores são incapazes de imitar o modelo, teremos de
desfazer os elos que nos unem a eles para alcançar a civilização.
Dito isso, devemos assinalar que existe uma quantidade
muito pequena de referências à utilização do conceito de civili-
zação como argumento para rechaçar o jugo metropolitano nos
processos de independência. Ou seja, as evidências reconhecidas
em nosso projeto mostram que o conceito de civilização não
foi muito acionado nos debates que acompanharam as lutas de
independência. Isso pode ter ocorrido pelo termo em português
e espanhol ter sido plenamente introduzido no uso corrente das
línguas um pouco tardiamente em relação aos movimentos de
emancipação. No entanto, a questão da eleição de modelos, isto
é, a adoção de parâmetros culturais e instituições espanhóis e
portugueses vis-à-vis os modelos francês, inglês e norte-ameri-
cano, esteve presente durante várias décadas que se seguiram à
independência política, ou mesmo anteriormente, com variações
em cada contexto “nacional”.

439
O PROCESSO CIVILIZATÓRIO
A noção de civilização como processo deve ser buscada
em meio a outros significados, muitas vezes mesclada a eles,
e corresponde à aquisição de um caráter temporal pleno pelo
conceito. Porém, é importante notar que esse movimento de
temporalização se realiza em um campo semântico marcado
por dois núcleos, o material e o espiritual, ou seja, a civilização
entendida como progresso material e/ou como desenvolvimento
moral e institucional da sociedade. Assim, as referências tempo-
ralizadas, não raramente, são expressadas combinando esses dois
elementos, como no exemplo do México: “Queremos que venha
a civilização, queremos o desenvolvimento material, porém de
maneira que o povo mexicano tome parte no movimento e por
este meio suba ao mesmo nível da civilização que nos invade.”44
Inclusive a reação católica antiliberal ao rechaçar o conceito,
como ocorreu nos casos de Espanha, Peru e em alguns outros
países de maneira mais tímida, o faz nos termos que denotam
temporalização de um campo semântico dominado pelos dois
núcleos, como se nota na seguinte citação sobre o Peru:

Não sabemos que nenhum preceito evangélico ordene, como meio


indispensável para a salvação eterna, a construção de ferrovias, de telé-
grafos elétricos, ou de palácios de cristal para a exposição dos produtos
da indústria e das artes. E o que fazer com esta espécie de tarefas, o
movimento econômico, a grandeza política, o crescimento das artes, o
aumento das comodidades e dos prazeres e todo o conjunto de aumen-
tativos que emprega o mundo quando querem definir a civilização?45

Nessa crítica ao modelo europeu feita pelo venezuelano


Fermin Toro, notam-se os mesmos elementos:

Arrastada, se pode dizer, pela Europa, recebendo suas ideias, seus


usos e costumes, sua civilização entra sem haver passado pela difícil
tarefa de adquiri-la com seu próprio desenvolvimento, pouco a pouco

440
e no curso dos séculos, nesta situação, dizemos, não progredirá em
ideias e, consequentemente, nas necessidades, mais que nos meios de
fazê-las?46

A abundância de termos temporais nessas passagens é impres-


sionante. Em nossa amostra os usos temporalizados iniciam nas
primeiras décadas do século 19, porém muito timidamente, e só
se tornam mais numerosos em meados do mesmo século.
Exemplos precoces, do começo do século, vêm da Argentina,
como no título do artigo “Exame dos progressos da civilização
na América do Sul, depois de sua conquista”, de 1815.47 Também
vemos temporalização marcada nas deliberações do Congresso
de Cúcuta, de 1821:

O presente é o século das instituições sociais em que todos os povos


se armam contra a tirania e ao que parece se elevaram à maior perfeição
dos elementos da política. Não nos apresentemos, portanto, ao mundo
como ignorantes e pouco civilizados; adotemos uma constituição que
não nos desonre em nosso século.48
(...)
A democracia absoluta é a infância da civilização e não queremos
retroceder tanto (…) Consequentemente, portanto, e com disposição
à ilustração do século, estamos prontos para preferir o governo
representativo.49

O sentido temporalizado que expressa a urgência do tempo


presente, um Zeitgeist autoconsciente, como na passagem
acima, também se faz óbvio em referências como a de Esteban
Echeverría, que declara ser a América “a oficina da nova civili-
zação”.50 Em 1847, o uruguaio Manuel Herrera y Obes coloca
a civilização como causa imanente de si própria:

[E]ssa potência irresistível da civilização, que [corria] o mundo sob


as formas do comércio, das artes, da indústria, dos livros, que em todas

441
as cabeças deixa uma ideia, em todos os corações um interesse, que
começa no bem-estar de cada homem e acaba na felicidade pública.51

Referências a uma narração universal da história da civiliza-


ção também estão presentes: “Se o ‘cetro da civilização’ havia
passado da Ásia à Europa, os americanos deviam abrigar espe-
ranças de que algum dia passaria ‘às mãos da jovem América’
[o presidente da Costa Rica, Tomás Guardia, se dirigindo ao
congresso do país em 1 de maio de 1873].” Ou em passagens
como esta: “(…) a civilização do século estava exigindo a cons-
trução de novas prisões, nas quais se corrijam os presos sem os
destruírem. As que existem atualmente pertencem a outra época
em que dominavam ideias menos favoráveis à humanidade.”52
Em suma, a autoconsciência histórica de excepcionalidade
do tempo presente em relação ao passado está nessas passagens
abundantemente conectada ao conceito de civilização. A história
se faz universal e imanente, e a civilização por vezes torna-se a
expressão viva da própria história.
Cabe assinalar que o conceito de civilização como processo
plenamente temporalizado parece ter-se implantado definitiva-
mente no período imediatamente posterior às independências.
Contudo, sua aplicação não tem lugar sem algumas tensões
importantes. Como vimos, os significados modelar e de ato de
civilizar são intensamente eurocêntricos. Isso acarreta o problema
de aplicar de maneira bem-sucedida o conceito a contextos não
europeus. Tal tensão está relacionada ao fato de que as inde-
pendências foram realizadas mediante o rechaço, pelo menos
em parte, do projeto do colonizador europeu. Isto é, existe uma
contradição imediata na ideia de instalar algo que está sendo
rechaçado. Essa contradição, todavia, encontrou algumas solu-
ções práticas. Uma delas foi declarar Espanha e Portugal como o
oposto da civilização europeia, como se nota no caso argentino
e em muitos outros. Porém surge também uma nova aderência a
pautas culturais e institucionais espanholas e portuguesas depois
que o processo de independência se completa.

442
Além da questão de se adotar ou não a referência ibérica,
o contexto político da utilização do próprio conceito havia
mudado. Antes se tratava de uma situação colonial, agora os
autores escrevem como cidadãos de repúblicas e de governos
constitucionais, e a questão da civilização se converte em um
problema predominantemente interno. Mais concretamente, o
problema prático se refere à adequação da civilização europeia
às realidades dos novos países que surgiram. Em outras palavras,
trata-se de como produzir, do ponto de vista interno, civilização
nos novos países? Uma solução adotada em muitos lugares foi a
de afirmar que a civilização poderia sim se desenvolver no Sul;
porém, para que esse processo obtivesse êxito, não se deveria
imitar simplesmente a Europa, isto é, buscar pular de uma vez as
etapas do desenvolvimento social, material e moral percorridas
por França, Inglaterra e inclusive pelos Estados Unidos.
O problema principal para o sucesso desse projeto foi muitas
vezes identificado com a suposta má qualidade do povo, como
neste exemplo do México: “Os americanos ao nascer já tinham
andado o caminho da civilização, caminho complicado que os
demais povos atravessaram após mil erros e fatalidades”; dife-
rentemente, o México tinha enormes dificuldades para libertar-
-se do atraso, marcado pelo “heterogêneo da população, pela
impunidade dos crimes, pelo oportunismo político depois de 13
anos de guerra”.53
Essa compreensão da natureza da população teve consequên-
cias políticas diretas. Já em 1819, em meio a discussões acerca
do senado constitucional proposto por Bolívar em Angostura, o
deputado Fernando Peñalver defendeu a centralização política
da república e rechaçou a adoção de um regime federalista com
o seguinte argumento: “(…) contudo, Repúblicas tão perfeitas
não são próprias para povos que estão na infância da liberdade,
encharcadas de vícios da escravidão, e sem os costumes, as virtu-
des e a civilização que elas exigem.”54
Em 1822, encontramos na Gazeta do Império Mexicano um
autor peruano recomendando a monarquia constitucional no

443
lugar da democracia, porque “a ilustração e a civilização dos
povos se fricciona com a natureza de sua população, e com a
qualidade de seus usos, costumes e opiniões”, que no Peru estão
reduzidas à “escuridão da ignorância tanto na parte alta como
na baixa”, porque o governo anterior jamais se preocupou em
“remover os obstáculos à instrução e à civilização”.55 Domingo
Faustino Sarmiento, em seu Facundo, civilización y barbarie
(1845), parece ter uma concepção similar, compartilhada com
a Geração de 1837 da Argentina. A principal preocupação
desses autores consiste na busca de instituições que estejam em
conformidade com os costumes e a singularidade argentinos. No
entanto, ao mesmo tempo, como afirma Sarmiento, essa nova
civilização tem que livrar-se do elemento selvagem: “Esta é a
questão: ser ou não ser selvagem.”56
Argumentos semelhantes foram utilizados pelo Partido
Conservador na defesa da centralização política no Brasil, como
solução para as revoltas do período da Regência. Paulino Soares
de Souza, o Visconde do Uruguai, associa as insurreições aos
“horrores friamente perpetrados pela barbaridade, pela lascívia,
pela vingança e por outras paixões alheias à política” de

uma massa enorme de homens ferozes, sem moral, sem religião


e sem instrução alguma, eivados de todos os vícios da barbaridade!
(...) Nem o sexo, nem a idade, nem a propriedade, nada respeitaram!
Parece que era sua missão apagar até os últimos vestígios da nossa
civilização nascente!57

Bernardo Pereira de Vasconcelos, outro campeão do regresso


conservador, reconhece haver um movimento do século em
direção à maior liberdade e igualdade; contudo, argumenta
que “no lugar de produzir os efeitos que a civilização espera,
a fará retroagir”. Vasconcelos insiste no argumento de que
não devemos perder de vista o “estado da civilização” do país,
porque “nenhuma reforma será exitosa se não é apropriada às
circunstâncias nacionais”.58

444
Em nossa coleção de verbetes, essas “circunstâncias nacionais”
aparecem estreitamente vinculadas ao caráter da população, ou
mais especificamente, à presença de muitos negros, indígenas e
mestiços entre eles. Inclusive, tal interpretação serviu até para
justificar a escravidão, a princípio tão contrária à civilização,
como medida necessária em face da má qualidade da popula-
ção local. Entre muitos outros, temos o exemplo de Francisco
Arango y Parreño, que na Representación de la Ciudad de La
Habana a las Cortes, de 1811, defendeu, contra a proposta de
suprimir a escravidão, a compatibilidade entre essa instituição e
a civilização,59 já que os negros africanos eram povos bárbaros
e canibais.60 Na Gaceta del Gobierno de México encontra-se o
argumento de que “a Espanha não inventou a escravidão, mas
aproveitou sua existência devido à barbárie dos africanos, para
salvar da morte seus prisioneiros e aliviar sua triste condição”.61
O informe apresentado por Zeno Correa à Junta de
Información, em Porto Rico, exprime a tensão entre o conceito
universal e abstrato e os “imperativos” da questão nacional: “(...)
compreendo que a civilização do século demanda a abolição [da
escravidão], mas estou convencido de que a abolição sempre
trará perturbações”, que, por seu turno, seriam contrárias ao
desenvolvimento da própria civilização.62 A semelhança entre
essa formulação e o argumento que Pereira de Vasconcelos
fizera algumas décadas antes é grande. O verbete do Caribe
e Antilhas assevera que a partir do final da década de 1850 o
uso do conceito de civilização na justificação da escravidão se
tornou raro na região. Esse movimento vinha acompanhado da
rejeição da capacidade civilizadora da Espanha, inclusive por ter
povoado suas colônias com “uma raça contrária à civilização”.63
A concepção de civilização como processo é marcada pela
temporalização, que não estava presente tão claramente nas
versões modelar e de ato de civilizar. É importante notar que o
argumento da exceção, ou da diferença em relação à Europa,
como justificação da centralização política e mesmo da escravi-
dão, também expressa aspectos da politização do conceito e de

445
sua ideologização. Tal conclusão era também referendada pelo
próprio Guizot, segundo o qual o despotismo e a existência de
“homens sem direitos e despossuídos (...) são desculpados se
contribuíram em algo com a civilização”.64
Assim, nos processos de consolidação política que, não rara-
mente, envolveram esforços de colonização interna de índios,
negros e mestiços, pode-se negar direitos civis e políticos e
promover a centralização política em nome da civilização. O que
mudou, então, em relação ao ato de civilizar, não é o objetivo
em si mesmo, mas a retórica de justificação e a estratégia para
atingir esse objetivo, agora bem temporalizada, dotada de etapas
que devem ser adaptadas às condições locais.

NAÇÃO E CIVILIZAÇÃO
Em sua análise histórica do termo civilização, Fernand Braudel
declara que durante o século 19 o emprego do termo passou de
singular para plural. Se verdadeiro, esse é um desenvolvimento
interessante, pois revela-se contraditório à noção de Koselleck,
cuja tendência na modernidade vai em direção à singulariza-
ção e maior abstração dos conceitos. Braudel proclama que o
século 18, quando o conceito foi gestado, com sua crença no
progresso, reservou a civilização somente para a Europa e o
Ocidente, ao passo que o século 20 perdeu esses juízos de valor
e agora reconhece as várias civilizações do mundo.65 Devemos
acrescentar que Braudel publicou essas ideias antes do livro de
Huntington e do 11 de setembro. Mas além da anedota, esse
processo de pluralização do conceito, que ele reconhece, ainda
que incompleto, é verdadeiro, e foi em parte produto do que Pim
den Boer chamou nacionalização do conceito de civilização.66 Isso
significou um processo de ideologização do conceito que foi além
daquilo previsto por Koselleck em sua teoria da modernidade.
Den Boer, autor de um livro sobre o conceito de civilização no
projeto holandês de história conceitual,67 argumenta que a nacio-
nalização do conceito foi um fenômeno do final do século 19,

446
que ocorreu predominantemente nos países germânicos. Assim,
é interessante notar, em dissonância com as ideias do autor,
que esse fenômeno também se nota nos países americanos, já a
partir de meados do século 19, ainda que de maneira tímida. Na
Espanha, os historiadores românticos reivindicam o pluralismo
da civilização, o que é o mesmo que dizer, como o faz Larra em
meados dos anos de 1830, “o caráter peculiar da civilização
de cada povo”.68 Décadas mais tarde, Gil de Zárate equipara
o conceito de civilização com o “espírito de nacionalidade”.69
No Peru, Sebastián Lorente introduziu a expressão “civi-
lização peruana” em 1863. Com uma visão influenciada por
Garcilaso, celebra a civilização incaica e aposta na redenção do
índio. Posteriormente, se criou a cátedra História da Civilização
Peruana na Faculdade de Letras da Universidade Nacional Maior
de São Marcos, em 1876. Vejamos outro exemplo na citação
do presidente da Costa Rica, Tomás Guardia, de 1873: “Nos
sobra a seiva de uma raça jovem e vigorosa aquecida pelo sol
intertropical; e nossa civilização, jovem também, se tornará uma
civilização do mundo.”70
No Brasil, o movimento romântico também mostrou distan-
ciamento crítico ao modelo europeu e elege o índio como
representante da nascente civilização brasileira. José de Alencar,
o maior expoente da segunda geração, declara, ainda que reto-
ricamente, que “o conhecimento da língua indígena é o melhor
critério para a nacionalidade da literatura”.71 Em outro texto o
autor também enxerga uma civilização americana em contrapo-
sição à velha Europa: “(...) é nas águas lustrais do Amazonas,
do Prata e do Mississipi, que o mundo velho e carcomido há
de receber o batismo da nova civilização e remoçar.”72 Assim,
Alencar vai além de Guardia, que reclamava um lugar ao sol no
concerto das civilizações para a nascente Costa Rica, ao postular
a superação por parte da América da velha civilização europeia.
Nas duas citações, os marcadores temporais são claros, assim
como a premissa de uma narrativa universal que se caracteriza
como uma competição entre particulares “nacionais”. Isto é,

447
ambas contêm aspectos de temporalização, ideologização e
politização claros e característicos dessa última fase da evolução
semântica do conceito.
Nessa última fase, o conceito de civilização passa a compar-
tilhar muitos significados com os termos “nação”, “cultura”
e “raça”, todos compreendidos de maneira marcadamente
essencialista. O caráter universal do termo se perde em parte,
ainda que não possamos descontar completamente concepções,
similares à formulada no século anterior por Herder, de um
universal formado por contribuições pontuais de particularidades
nacionais. O caráter eurocêntrico também é afetado, contudo,
de maneira variada, pois a adesão ao elemento nacional muitas
vezes foi mais retórica e, em nenhum caso, significou o rechaço
total do padrão europeu.

CONCLUSÃO
Neste ensaio pretendemos ter tratado de alguns aspectos
cruciais do desenvolvimento semântico do conceito de civiliza-
ção, levando em conta as formulações europeias e sua recepção
nas colônias e, depois, nas nações do continente americano de
fala ibérica. Como mostramos, as hipóteses da temporalização,
ideologização e politização se confirmaram em nossos verbetes,
mas sua evolução obedeceu a padrões heterogêneos que foram
ao mesmo tempo particulares à evolução do conceito de civili-
zação, ao longo de seus significados básicos, e também sujeitos
às contingências de cada caso.
Mas além desses temas substantivos, gostaria de, por fim,
chamar a atenção à questão acerca da natureza do conceito de
civilização. Trata-se de um conceito-chave ou de um contra-
conceito, ou ainda de outra espécie de conceito? Se tomarmos
a contestação como condição sine qua non para a formação de
um conceito-chave, como quer Melvin Richter,73 teremos um
problema. O conceito de civilização foi raramente contestado.
Quase sempre os publicistas e autores que o utilizaram foram

448
favoráveis à civilização. Raras vezes discutiram-se definições
contrastantes do conceito – a reação católica, que se expressou
mais marcadamente em alguns países, é provavelmente a exceção
mais importante. Entretanto, podemos ver que o conceito teve
seu papel na justificativa da colonização europeia, na oposição
às metrópoles europeias, nos processos de independência (ainda
que não muito pronunciado), na colonização interna durante
os processos de consolidação política e na consolidação das
identidades nacionais.
A falta de contestação direta se reflete na evolução semântica
do conceito de civilização, que se faz mormente pela deposição de
novos significados sem a supressão dos anteriores, com exceção
da nacionalização, quando a universalidade e o eurocentrismo
foram parcialmente rechaçados. Isso confirma o diagnóstico de
que civilização é um “conceito-ônibus”, que carrega um fardo
muito amplo de significados, como não deixaram de notar quase
todos seus comentadores. A explicação da falta de contestação
no plano da história social parece residir no fato de que aqueles
que são objeto do projeto civilizatório (índios, negros, mestiços)
historicamente estiveram alijados do espaço público, isto é, não
tinham acesso à política, e, portanto, à contestação dos signifi-
cados que os rebaixavam.
O caráter contraconceitual da civilização é proeminente, pois
muitas vezes o vemos usado em contraposição à barbárie, aos
selvagens, aos índios, aos negros, ao despotismo, à escravidão
etc. Assim, a resposta parece ser que “civilização” se ajusta
melhor à definição de contraconceito assimétrico de Koselleck do
que à sua definição de conceito-chave. Isso mostra que é muito
importante incluir o estudo de contraconceitos assimétricos em
nossos planos de investigação, além de procurar desenvolver
uma teoria que dê conta de suas peculiaridades.

449
NOTAS
1
François Pierre Guillaume Guizot, Histoire de la civilisation en Europe: depuis
la chute de l’Empire romain jusqu’à la Révolution française, Paris, Libraire
Académique Didier et Cie, 1881, p. 12.
2
Samuel P. Huntington, The Clash of Civilizations?, Foreign Affairs, v. 3, n. 72,
p. 22-49, 1993.
3
Ibidem, p. 22.
4
Ibidem, p. 23.
5
Ibidem, p. 22.
6
Fernand Braudel, A History of Civilizations, New York, A. Lane The Penguin
Press, 1994.
7
Brett Bowden, The Empire of Civilization: The Evolution of an Imperial Idea,
Chicago, University of Chicago Press, 2009.
8
Lucien Febvre et al., Civilisation: le mot et l’idée, Paris, Renaissance du Livre,
1930, p. XII.
9
Fernand Braudel, Gramática das civilizações, São Paulo, Martins Fontes, 1989.
10
Norbert Elias, The Civilizing Process, New York, Pantheon Books, 1982.
11
Reinhart Koselleck, A response to comments on the Geschichtliche Grundbegriffe,
em Hartmut Lehmann, Melvin Richter, The Meaning of Historical Terms and
Concepts: New Studies on Begriffgeschichte, Washington D.C., German Histori-
cal Institute, 1996, v. 15, p. 59-70; Quentin Skinner, Meaning and Understanding
in the History of Ideas, History and Theory, v. 8, n. 1, p. 3-53, 1969.
12
Reinhart Koselleck, Einleitung, em Otto Brunner, Werner Conze, Reinhart
Koselleck, Geschichtliche Grundbegriffe: historisches Lexikon zur politisch-
sozialen Sprache in Deutschland, Stuttgart, E. Klett, 1972-1997.
13
Javier Fernández Sebastián, The Concept of Civilization in Spain, 1754-2005:
From Progress to Identity, Contributions to the History of Concepts, v. 4, n. 1,
p. 84, 2008.
14
Febvre et al., Civilisation; Sandro Chignola, Civis, civitas, civilitas: Translations
in Modern Italian and Conceptual Change, Contributions to the History of
Concepts, v. 3, n. 2, p. 234-253, 2007.
15
José Eisenberg, As missões jesuíticas e o pensamento político moderno: encontros
culturais, aventuras teóricas, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2000.
16
Serafim Leite, Novas cartas jesuíticas (de Nóbrega a Vieira). Biblioteca Pedagógica
Brasileira, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1940, Série 5a, Brasiliana.
17
Barbara Anne Ganson, The Guaraní under Spanish rule in the Río de la Plata,
Stanford, Stanford University Press, 2003.
18
Raymond Monnier, Usages d’un couple d’antonymes au 18e siècle: la civilisation
et son revers, la barbarie, Dix-Huitième Siècle, v. 40, p. 525-526, 2008.

450
19
Anthony Pagden, The Fall of Natural Man: The American Indian and the Origins
of Comparative Ethnology, Cambridge, New York, Cambridge University Press,
1982.
20
João Feres Júnior, Political Philosophy, Ethnology, and Time: a Study of the
Notion of Historical Handicap, Kriterion, v. 105, p. 19-42, 2002.
21
Karl Löwith, Meaning in History, Chicago, The University of Chicago Press,
London, Phoenix Books, 1949.
22
Braudel, A History of Civilizations.
23
François Pierre Guillaume Guizot, Pierre Rosanvallon, Histoire de la civilisation
en Europe: depuis la chute de l’Empire romain jusqu’à la Révolution française;
suivie de Philosophie politique de la souveraineté (1828), Paris, Hachette, 1985.
24
Arnold Toynbee, A Study of History, London, Oxford University Press, 1934,
6v.
25
Febvre et al., Civilisation.
26
Brett Bowden, Civilization. Critical Concepts in Political Science, Milton Park,
Abingdon, Oxon, New York, Routledge, 2009.
27
Jean Starobinski, La palabra civilisation, Prismas. Revista de Historia Intelectual,
Buenos Aires, Universidade Nacional de Quilmes, n. 3, p. 31, 1999.
28
Segundo Koselleck, ideológico é o tipo de discurso que projeta um futuro que
ainda não é parte da experiência do presente. Em sua análise do advento da
modernidade tal operação é ligada ao surgimento de conceitos cada vez mais
gerais e até universais. (Reinhart Koselleck, Futures Past: On the Semantics of
Historical Time, Cambridge, London, The MIT Press, 1985.)
29
Koselleck, Futures Past.
30
Koselleck, Einleitung.
31
Esteban de Terreros y Pando, Diccionario castellano con voces de ciencias y
artes, y sus correspondientes en las tres lenguas francesa, latina e italiana (1765),
Madrid, Arcos, Libros, 1987, t. I, ed. fac-símile.
32
Vicente Carvallo, Descripción histórico-jeográfica del Reino de Chile, Colección
de historiadores de Chile y documentos relativos a la historia nacional, Santiago,
Imprenta de la Estrella de Chile, t. IX, p. 367, 1796.
33
Rogelio Brito Stifano (transcrição, prólogo e notas), Dos noticias sobre el estado
de los campos de la Banda oriental al finalizar el siglo XVIII, Revista Histórica
del Museo Histórico Nacional, Montevidéu, XVIII, p. 389, 1953.
34
José Bonifácio de Andrada e Silva, Apontamentos para a civilização dos Índios
bravos do Império do Brazil: Projeto apresentado à Assembleia Geral Constituinte
e Legislativa, 1823.
35
Elena Plaza, Venezuela y la Piedad Ilustrada (La Secularización de las Misiones
entre 1830 y 1847), Politeia, Caracas, Instituto de Estudios Políticos, Universidad
Central de Venezuela, v. 29, n. 36, p. 103-138, 2006.
36
El Correo del Sur, Concepción, 29-I-1859.

451
37
Antonio de Moraes Silva, Dicionário da língua portuguesa, Lisboa, Officina de
Simão Tadeu Ferreira, 1831, p. 263.
38
Isso é também verdade para a língua francesa. Ver Febvre et al., Civilisation.
39
Esteban de Terreros y Pando, Diccionario castellano con las voces de ciencias y
artes y sus correspondientes en las tres lenguas francesa, latina e italiana: P-Z,
Madrid, La Prenta de la Viuda de Ibarra, Hijos y Compañía, 1788, p. 169.
40
Raphael Bluteau, Diccionário Portuguez & Latino, Lisboa, Officina de Paschoal
Silva, 1712, v. 1, p. 575.
41
El Redactor Americano: Periódico del Nuevo Reyno de Granada (1806-1809),
Santafé de Bogotá, Imprenta Real, p. 55, 04-III-1809.
42
Pedro Rodríguez Campomanes, Bosquejo de política económica española
(c. 1750), Jorge Cejudo (ed.), Madrid, Editora Nacional, 1984, p. 140-141.
43
Gaceta del Gobierno de México, México, p. 2, 14-XI-1820.
44
El Siglo XIX, México, p. 1, 17-XI-1870.
45
El Católico, n. 10, p. 116, 30-VI-1855.
46
Fermín Toro, La Doctrina Conservadora. Pensamiento Político del Siglo XIX,
Caracas, Presidencia de la República, 1839-1842/1960, v. I, p. 102.
47
Gaceta de Buenos Aires, Buenos Aires, t. 2, 9-IX-1815.
48
Congresso de Cúcuta, Actas del Congreso de Cúcuta (1821), Bogotá, Fundación
Francisco de Paula Santander, 1989, v. 1, p. 56-57.
49
Ibidem, p. 80.
50
Esteban Echeverría (1837), em Félix Weinberg (ed.), El Salón Literario de 1837,
Buenos Aires, Hachette, 1977, p. 171.
51
Manuel Herrera y Obes, Estudos sobre a situação (1847), em Juan E. Pivel De-
voto, Historia de los partidos políticos en el Uruguay, Montevidéu, Tipografía
Atlántida, 1943, p. 57.
52
El Faro Salvadoreño, San Salvador, n. 220, p. 1, 1 de febrero de 1869; n. 229,
p. 1, 12 de abril de 1869; n. 289, p. 1, 13 de junio de 1870.
53
Águia Mexicana, Ciudad de México, p. 1, 16-III-1824.
54
Correo de Orinoco, Caracas, n. 34, 24-VII-1819.
55
Gazeta do Império Mexicano, México, p. 5, 26-IX-1822.
56
Domingo Faustino Sarmiento, Facundo, Civilización y Barbarie (1845), Buenos
Aires, Colihue, 2006, p. 68.
57
Paulino José Soares de Souza, Relatorio da Repartição dos Negocios da Justiça
do anno de 1840 apresentado à Assembléa Geral Legislativa, na sessão ordinaria
de 1841, pelo respectivo Ministro e Secretario de Estado Paulino José Soares de
Sousa, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1841.

452
58
Bernardo Pereira de Vasconcelos, Discurso de 1º de julho de 1834, Bernardo
Pereira de Vasconcelos, José Murilo de Carvalho, São Paulo, Editora 34, 1999.
59
Francisco Arango y Parreño, Obras de D. Francisco de Arango y Parreño, La
Habana, Publicaciones de la Dirección de Cultura del Ministerio de Educación,
1952, t. II, p. 169.
60
Ibidem, p. 276.
61
Gaceta del Gobierno de México, p. 3, 2-V-1818.
62
El Progreso, Puerto Rico, p. 12, 13 jun. 1873.
63
Francisco Frías y Jacott, Em defensa de Cuba, em Reformismo agrario, La Ha-
bana, Publicaciones de la Secretaría de Educación, Dirección de Cultura, 1937,
p. 157-158.
64
Guizot e Rosanvallon, Histoire de la civilisation en Europe.
65
Fernand Braudel, Gramática das civilizações, São Paulo, Martins Fontes, 1987.
66
Pim den Boer, Civilization: Comparing Concepts and Identities, Contributions
to the History of Concepts, v. 1, n. 1, p. 51-62, 2005.
67
Pim den Boer, Civilisation (Beschaving), Amsterdam, Amsterdam University
Press, 2001.
68
Mariano José de Larra, Profesores nuevos. Señor Alcalá Galiano: compatibilidad
del desempeño de un ministerio y una cátedra, El Español, p. 7, 18 jun. 1836.
69
É claro que no caso da Espanha existia o problema ainda mais urgente, de
definir seu lugar e contribuição à civilização da Europa, frente a outras nações
concorrentes. Algumas nações optaram por abraçar o conceito de civilização,
França (Raymond Monnier, The Concept of Civilisation from Enlightenment
to Revolution: An Ambiguous Transfer, Contributions to the History of Con-
cepts, v. 4, n. 1, p. 106-136, 2008), Inglaterra, Espanha (Fernández Sebastián,
The Concept of Civilization in Spain), outras por rechaçá-la como influência
estrangeira e adotar um termo local, civilta, na Itália (Chignola, Civis, civitas,
civilitas), e Kultur, na Alemanha (Otto Brunner, Werner Conze, Reinhart
Koselleck, Geschichtliche Grundbegriffe: historisches Lexikon zur politisch-
sozialen Sprache in Deutschland, Stuttgart, E. Klett, 1972), por exemplo.
70
Mensaje del Presidente de la República de Costa Rica al Congreso Nacional, 1
de mayo de 1873. Gaceta Oficial, semestre 1, n. 24, p. 2, 3 maio 1873.
71
José Martiniano de Alencar, Iracema, lenda do Ceará, Rio de Janeiro, Typ. de
Vianna & Filhos, 1865, p. 195.
72
Idem, O gaúcho, romance brasileiro, Rio de Janeiro, B. L. Garnier, 1870, v. 2,
p. 14.
73
Melvin Richter, The History of Political and Social Concepts: A Critical
Introduction, New York, Oxford, Oxford University Press, 1995.

453
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Indias. Valencia: Valencia Cultural, 1977.
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STAROBINSKI, Jean. As máscaras da civilização. São Paulo: Companhia
das Letras, 2001.
TAYLOR, Charles. Sources of the Self: The Making of the Modern Identity.
Cambridge: Harvard University Press, 1989.

454
JOÃO FERES JÚNIOR

POSFÁCIO: DE OLHO NAS PESQUISAS


FUTURAS

As camadas teóricas da história dos


conceitos

O presente ensaio é organizado em torno da questão de


como a ciência política e as ciências sociais em geral podem se
beneficiar das teorias fundamentais da história dos conceitos. A
crescente recepção do Begriffsgeschichte, particularmente dos
escritos de Reinhard Koselleck, em diversos ambientes acadê-
micos nas décadas recentes em si, já justificaria uma análise
mais detalhada desse tópico. É verdade, porém, e compreensí-
vel, que os historiadores estejam na vanguarda dessa recepção,
seguindo, adotando, remendando, expandindo e até combi-
nando argumentos teóricos e metodológicos de Koselleck a
ideias de outros autores. Por exemplo, o projeto holandês de
história conceitual adotou um desenho de equipe de pesquisa
diferente daquele do Geschichtliche Grundbegriffe, no qual foi
dada ênfase ao trabalho coletivo sobre cada conceito, e não a
ensaios individuais; na produção de textos longos, da extensão
de um livro, sobre cada conceito; e na expansão do material de
pesquisa, que passou a contar com fontes literárias.1 Tentativas de
integrar a metodologia da Begriffsgeschichte e algumas práticas
metodológicas da Escola de Cambridge, principalmente aque-
las prescritas por Quentin Skinner e J. G. A. Pocock, são uma
outra forma de recepção que está em pleno crescimento. Um
exemplo importante desse caminho está no Diccionario político
y social del siglo XIX español,2 cujo segundo tomo está prestes
a ser publicado. Ambas publicações são produto do projeto de
pesquisa mais amplo de história conceitual3 hoje em desenvol-
vimento, o Iberoconceptos,4 do qual o presente livro também é
produto.5 Os trabalhos monográficos de Jörn Leonhart e Pasi
Ihalainen,6 entre outros, também tentam uma síntese entre as
duas metodologias supracitadas.
Existem pelo menos duas importantes exceções para esse
padrão de recepção: as contribuições de Melvin Richter e Kari
Palonen. Ambos são cientistas políticos, mais especificamente
teóricos políticos, e ambos pretendem apontar caminhos pelos
quais a teoria política possa se beneficiar do tesouro metodo-
lógico e teórico legado por Koselleck. Como alguns autores
e trabalhos citados acima, eles também propõem algum tipo
de síntese entre as metodologias da Escola de Cambridge e da
Begriffsgeschichte. De fato, Richter parece ter sido o primeiro
autor a defender tal síntese,7 mostrando como a abordagem da
Begriffsgeschichte, com toda sua sofisticação filosófica, pode
contribuir para o trabalho dos teóricos políticos de língua inglesa
e também explorando os muitos aspectos comuns compartilha-
dos pela Escola de Cambridge e pela Begriffsgeschichte. Richter
parece ter tido dois objetivos em mente com seu trabalho inova-
dor, ambos relacionados à teoria política: primeiro, mostrar
como a história do pensamento político pode ser enriquecida
pelo estudo de sua “nova” abordagem e, segundo, convencer
os teóricos políticos de que a pesquisa qualitativa não deve
negligenciar a historicidade da linguagem política.

456
Ambos os objetivos dos esforços de Richter, para serem bem
compreendidos, devem ser situados nos contextos disciplinar e
institucional da academia norte-americana. Nos Estados Unidos,
a teoria política e a filosofia política são principalmente pratica-
das em departamentos e programas de ciência política, pois os
departamentos de filosofia são dominados pela filosofia analítica
e pela filosofia da linguagem.8 Um teórico político nos Estados
Unidos é comumente um cientista político que se especializa em
teoria. Uma grande parte de ensino e pesquisa em teoria polí-
tica concentra-se na interpretação da tradição do pensamento
político ocidental. Assim, a história do pensamento político é
uma disciplina-chave na profissão, e a contribuição da Escola de
Cambridge rejuvenesceu essa disciplina, identificando inconsis-
tências e falhas em práticas de pesquisa estabelecidas de longa
data e propondo novas interpretações para temas importantes
como republicanismo e liberalismo, entre outros.9 Desse modo,
o objetivo primário de Richter equivaleria a aumentar a força e a
sofisticação da história do pensamento político através da incor-
poração de critérios vindos do programa da Begriffsgeschichte,
ou seja, uma tentativa de ir além das inovações trazidas por
Cambridge.
A segunda meta de Richter objetiva alcançar todo o campo
da teoria política e não somente a prática da história do pensa-
mento político. Novamente, o contexto disciplinar nos ajuda a
entender melhor o que está em jogo aqui. A publicação de A
Theory of Justice, de John Rawls,10 iniciou um debate acadêmico
que até agora não se extinguiu. Embora muitas das primeiras
figuras-chave desse debate fossem filósofos, teóricos políticos
rapidamente se incorporaram a ele, produzindo o que é gene-
ricamente conhecido como teoria política normativa. Hoje em
dia, adeptos da história do pensamento político nos Estados
Unidos compartilham o campo da teoria política com adeptos
da teoria política normativa. Embora teóricos e mesmo cientis-
tas políticos em geral possam identificar a primeira variedade
de acadêmicos, os historicamente informados, com o front

457
normativo, os normativistas puros não recebem tão facilmente
o rótulo “histórico”, pois muitos parecem não se preocupar com
aspectos da historicidade no emprego de termos polissêmicos
como justiça, igualdade, liberdade, democracia, distribuição etc.
Isto é, tratam conceitos políticos como se os seus significados
fossem claros ou pudessem ser controlados e limitados por uma
definição lapidada em “laboratório”, sem muita preocupação
com alterações, rupturas e instabilidade semânticas. Assim, a
Begriffsgeschichte seria, na visão de Richter, uma terapia ou
mesmo um remédio contra esses vícios anistóricos da profissão
de teórico da política.
O cientista político finlandês Kari Palonen é outro importante
fomentador do diálogo entre Begriffsgeschichte e a Escola de
Cambridge.11 Além de advogar essa causa metodológica, Palonen
também produziu textos que exploram mais diretamente as
ligações entre Begriffsgeschichte e teoria política. Sua produção
prolífica também inclui a aplicação e desenvolvimento das ideias
de Koselleck sobre temporalização ao estudo de fenômenos polí-
ticos contemporâneos, particularmente ao funcionamento dos
parlamentos.12 Palonen é mais assertivo que Richter na crítica
à teoria política normativa contemporânea, pois, segundo ele,
autores como Jürgen Habermas e John Rawls, entre muitos
outros, têm uma compreensão deficiente dos conceitos-chave
que são o cerne de sua teoria, e tal deficiência reside exatamente
na ignorância da complexidade semântica desses conceitos, que
é em parte histórica.13
Uma vez que temos uma boa ideia, ainda que geral, da locali-
zação epistêmica da história conceitual em relação à teoria polí-
tica e de seu potencial crítico, podemos finalizar a apresentação
de nosso plano de voo. Meu intuito aqui é explorar caminhos
alternativos para abordar essa questão. Tanto a recepção da
história conceitual em espaços acadêmicos extragermânicos
como as tentativas de síntese teórica e metodológica de Richter
e Palonen são por demais focadas na historiografia. Todos
buscam dar prosseguimento ou reformar uma produção que

458
tem por objetivo precípuo produzir uma narrativa histórica. O
propósito que me move aqui é outro. Pretendo avaliar critica-
mente as teorias de Koselleck de maneira a apontar caminhos
para a pesquisa em teoria política e social e nas ciências sociais
em geral. Esse processo de produzir novo material a partir do
trabalho de Koselleck requer adaptação, reconstrução, rearranjo,
crítica, ou até mesmo supressão de parte de sua produção. Assim,
a ideia não é tomar o autor e seu trabalho como uma totalidade
inquebrantável, mas, pelo contrário, apropriar mais ou menos
livremente suas contribuições de modo que novos procedimentos
e ideias possam ser articulados.

KOSELLECK: KANTIANO OU HEGELIANO?


Antes de me debruçar sobre a teoria de Koselleck e lidar
com alguns de seus temas, vou tentar situá-lo em relação à
teoria política como um todo, ou melhor, particularmente em
relação à teoria política produzida no mundo acadêmico de fala
inglesa, que hoje é dominante. Outras áreas da disciplina de
ciência política também são dominadas pelos debates e temas
desenvolvidos na academia de língua inglesa. Não bastassem
o pioneirismo da ciência política norte-americana no mundo e
sua extensa estrutura institucional e produção, depois da queda
do Muro de Berlim e do fim da União Soviética, a democracia
capitalista liberal tornou-se um regime político hegemônico, e,
por conseguinte, um tema fundamental para a teoria política,
o que causou um deslocamento da teoria marxista e de outras
abordagens radicais para a periferia da reflexão acadêmica e do
debate público.
O debate que se iniciou com a publicação do livro de Rawls
versa sobre as instituições de uma democracia liberal e assu-
miu rapidamente uma configuração polarizada: de um lado,
liberais igualitários, e de outro, comunitaristas. Originalmente
focado no tema da redistribuição de recursos materiais e de
oportunidades, tal debate, ao evoluir, passou a incluir outros

459
temas como legitimação, lei, republicanismo, deliberação e
participação política, reconhecimento, multiculturalismo etc.
A ele se juntaram pensadores de outros países, como Jürgen
Habermas, Axel Honneth e Chantal Mouffe, só para citar poucas
figuras notáveis. Não obstante, instituições acadêmicas de língua
inglesa (universidades, associações, editoras acadêmicas etc.)
continuam a ser o centro de irradiação do debate, cujo objeto é
ainda, em grande medida, limitado aos valores e instituições da
democracia liberal.
A polaridade “liberais versus comunitários” que organiza
tal debate não deve ser interpretada erroneamente. A fidelidade
ao liberalismo é comum à maioria dos autores envolvidos nesse
debate, conclusão à qual chegaram tanto Michael Walzer quanto
Charles Taylor, ambos partícipes de primeira hora, ao refletir
sobre ele décadas depois.14 A fim de alcançar maior clareza
analítica, vou substituir o rótulo pela expressão “kantianos
versus hegelianos”, sugerida pelo filósofo Richard Rorty em seu
diagnóstico sobre a filosofia moral contemporânea. Segundo este
autor, kantianos são aqueles que acreditam que uma pessoa deve
ter seus direitos respeitados somente pelo fato de pertencer à
espécie humana: “Estas são as pessoas que acham que há coisas
tais como uma dignidade humana intrínseca, direitos humanos
intrínsecos, e uma distinção anistórica entre as exigências da
moralidade e as de prudência. Chamo-as de kantianos.”15
Do outro lado estão os hegelianos:

Pessoas que dizem que “humanidade” é somente uma noção bioló-


gica e não uma noção moral; que não há dignidade humana que não
seja derivada da dignidade de alguma comunidade específica; e não
há recurso a critérios imparciais que nos ajudarão a pesar os méritos
relativos de diferentes comunidades reais ou imaginadas.16

É preciso entender que essas categorias, da maneira que as emprega


Rorty, não se referem estritamente às filosofias ou mesmo às
teorias políticas de Kant e Hegel, mas são generalizações a partir

460
de suas características principais. Assim, os atuais kantianos
podem não falar na linguagem de Kant, porém tendem a perce-
ber os indivíduos como universal e abstratamente dotados de
uma vontade racional e a derivar implicações morais e políticas
a partir desse “fato”. Hegelianos, por outro lado, dão maior
importância a valores compartilhados e à experiência histórica,
às identidades coletivas e práticas sociais, e derivam consequên-
cias políticas a partir deles, ainda que nos dias de hoje tendam a
rejeitar as noções metafísicas de Hegel, como Idea, espírito, abso-
luto etc. Obviamente nesta tipologia os comunitaristas seriam
classificados como hegelianos, com raras exceções, enquanto
concepções procedimentalistas de justiça e democracia ficariam
no campo dos kantianos.
A pergunta que eu gostaria de fazer aqui é: como deve
Koselleck ser classificado em relação a essas categorias opostas?
Desde o início, é preciso dizer que não há uma resposta simples
para essa pergunta. Desse modo, temos que nos aproximar da
resposta a partir de diferentes ângulos, a fim de conseguir uma
melhor compreensão de suas dificuldades e, assim, melhor loca-
lizar Koselleck no campo teórico.
Vamos primeiro considerar aspectos epistemológicos do
esforço de Koselleck. Em mais de uma ocasião, o autor apresen-
tou seu projeto como uma espécie de ciência histórica, insinuando
a possibilidade de se alcançar precisão através de refinamento
metodológico. Essa visão cientificista da abordagem de Koselleck
é corroborada por comentaristas como Sandro Chignola, que
identificam no cientificismo de Koselleck uma clara influên-
cia kantiana,17 e Palonen, que também descreveu o projeto
de Koselleck como neokantiano.18 No entanto, essa ligação é
bastante indireta. Na realidade, a rejeição de Koselleck a uma
teorização normativa e sua crença na possibilidade de separar
análise “objetiva” de julgamentos morais, expressas, por exem-
plo, em sua crítica à tendência normativa de Quentin Skinner, o
aproxima de fato de teóricos neokantianos como Max Weber19
– uma conexão que Kari Palonen explora repetidamente. No

461
entanto, embora Palonen compare a abordagem de Koselleck à
de Weber, ele prefere remeter os dois autores a uma inspiração
filosófica comum diversa, o perspectivismo nietzschiano.
Koselleck pode ser considerado kantiano por uma razão dife-
rente. A afirmação de Kant de que há um abismo intransponível
entre a linguagem e a realidade se assemelha à concepção de
Koselleck de conceito, como uma “dobradiça” entre a experi-
ência e a linguagem.20 Isto é, segundo o historiador, o conceito
medeia a relação entre linguagem e realidade, ou seja, pelo menos
no âmbito do pensamento, nunca se tem acesso direto à segunda.
Ademais, a noção utilizada por ele na definição de conceito é a
de “experiência”, o que já em si representa um distanciamento
fenomenológico em relação à realidade, como algo diretamente
apreensível pelo intelecto. Outra semelhança entre esses autores
é a premissa segundo a qual existem categorias extralinguísticas
anteriores à experiência do mundo. Koselleck defende essa ideia
contra o argumento de Hans Georg Gadamer de que a condição
humana é eminentemente linguística, sintetizado em sua noção
de Sprachlichkeit.21 A posição de Koselleck parece ser aqui bem
mais próxima à de outro de seus mestres, Carl Schmitt. Enquanto
as categorias de Kant procuram explicar a experiência do sujeito
transcendental do conhecimento, isto é, elas são epistemológicas,
as categorias propostas por Schmitt e Koselleck são ontológicas:
eles pretendem abordar a natureza básica de estar no mundo,
mesmo antes de considerar as capacidades racionais humanas.
A influência do pensamento de Schmitt, no entanto, não se
restringe a essa instância. A concepção de Koselleck da natureza
da política – ou do político, para seguir a terminologia de um
debate corrente na teoria política22 –, com seu impacto sobre a
semântica dos conceitos e o papel que estes desempenham na
sociedade é fortemente marcada pelo pensamento de Schmitt.
Segundo tal concepção, a característica que definiria a política
é o agonismo, se não o antagonismo, ou seja, o conflito aberto.
O modelo agonístico de política é crucial para a construção
da Begriffsgeschichte. De acordo com Koselleck, conceitos são

462
comumente utilizados como armas em conflitos políticos para
denegrir, menosprezar ou atacar adversários.23 Outra consequên-
cia que a natureza da política teria é a do alargamento do campo
semântico dos conceitos, processo que marca sua passagem da
condição de simples palavra à de um conceito-chave ou funda-
mental (Grundbegriffe). À medida que é acionada pelas forças
vivas da política em constante conflito, uma palavra passa a ser
depositório de diferentes concepções e projetos de mundo; isso
enriquece tremendamente seu campo semântico, tornando-a,
assim, um conceito fundamental – sem o qual não seria possível
entender a sociedade e a política de seu tempo.24
Tais significados, por sua vez, não permitem a síntese racio-
nal e consensual, e seria uma quimera inútil tentar obtê-la por
meio da análise de textos históricos. Como essa pluralidade de
significados é produzida pelas energias vitais e pelos interesses
díspares de indivíduos e grupos, à medida que se encontram no
debate público, acordos podem até ocorrer, mas apenas como
um produto contingente e fugaz de um processo que se asseme-
lha mais à guerra. Assim, esses acordos devem ser interpretados
mais como tréguas do que como consensos racionais estáveis.
Essa concepção difere imensamente daquela esposada pela
filosofia contemporânea normativa kantiana, que entende
consenso racional como a característica definidora da política,
seja este obtido através do exercício da razão pública, tal como
proposto por Rawls em Political Liberalism,25 seja através de
um processo ideal de deliberação que cumpre uma série de
critérios pragmáticos, como na teoria da ação comunicativa
de Habermas.26 Tal diferença pode ser creditada, em parte, à
oposição entre o realismo científico de Koselleck e o normati-
vismo idealista da teoria política kantiana. Enquanto o filósofo-
-historiador parece estar interessado apenas em descrever “o
que é”, os outros estão empenhados em propor “o que deve
ser”. Entretanto, há mais nisso do que posturas epistemológicas
diversas. Através do uso de uma argumentação contrafactual,
Habermas defende que a política contemporânea não pode ser

463
compreendida se removermos a razão, ou melhor, o raciocínio
comunicativo, o qual alcança consenso por meio da persuasão.
Utilizando a terminologia habermasiana, a concepção de ação
política via linguagem esposada por Koselleck seria semelhante
à racionalidade estratégica ou instrumental, não à racionalidade
comunicativa.
A concepção agonística de política de Koselleck não é inteira-
mente semelhante à teoria política hegeliana tampouco. Embora
hegelianos tendam a criticar a ênfase dada pelos kantianos à
racionalidade abstrata e formal, sua concepção de política é
baseada na ideia de compreensão mútua, valores partilhados e
práticas sobre as formas de uma concórdia local substantiva.27
Ironicamente, hegelianos dos dias de hoje comparam essa visão
agonística da política às formas mais reacionárias do liberalismo,
como a teoria libertária de Robert Nozick, por exemplo.28
Não é coincidência que, no âmbito da teoria política norma-
tiva, a autora que parece estar mais próxima à concepção de
Koselleck é Chantal Mouffe, que propõe uma teoria agonística
da democracia baseada na leitura de Carl Schmitt. Segundo
Mouffe, o conflito, e não o consenso, deve ser reconhecido
como o elemento central da política. Sem ele, noções tais como
cidadania ativa e ação política fazem pouco sentido. Isto também
implica reconhecer que as deliberações mais democráticas são
realmente tréguas negociadas por partes em conflito e não
produto do consenso racional alcançado pelo entendimento
mútuo e pela persuasão.29
Mas há elementos hegelianos mais sutis na própria concep-
ção de Koselleck, que raramente são identificados por seus
comentaristas. Sua crença na linguagem, ou melhor, na comu-
nidade linguística como a primeira unidade analítica da história
conceitual, o aproxima de teorias comunitaristas hegelianas.
Poderíamos dizer que Koselleck nos apresenta uma concepção
pós-metafísica da comunidade que prescinde de uma base ética
comum forte (Sittlichkeit) para se constituir enquanto tal. No

464
projeto da Begriffsgeschichte de Koselleck, podemos pressentir
a existência de uma comunidade, formada por partes desi-
guais, assimétricas e beligerantes, mas ainda uma comunidade
definida por interações mútuas mediadas pela linguagem e
instituições. Assim, não é uma coincidência que o método da
Begriffsgeschichte tenha sido escolhido e repetidamente apli-
cado ao estudo de casos nacionais: Alemanha, França, Espanha,
Holanda etc. É sabido que a unidade entre língua, nação e Estado
é um tema recorrente desde o século 19, tanto no discurso inte-
lectual quanto no político. A hipótese de que a teoria da história
conceitual de Koselleck utiliza essa unidade como suposição é
merecedora de maior atenção. Infelizmente, não há espaço neste
ensaio para seguir esse caminho. Mesmo que tal tema nunca seja
abordado em termos teóricos abstratos, as tendências atuais de
estudos multinacionais, transnacionais e comparativos podem
testar, na prática, em que medida a Begriffsgeschichte está presa
à base nacional. Outras tendências recentes, como os estudos de
tradução e recepção, também contribuem para uma avaliação
crítica do lugar da “nação” na história conceitual.
Independentemente dos prováveis traços comunitários presen-
tes na teoria de Koselleck e também das suas claras inclinações
kantianas, sua teoria não é fácil de ser conciliada com a atual
teoria política normativa, particularmente com seu ramo mains-
tream de língua inglesa, que é dominado por autores que se defi-
nem a partir das tradições das teorias morais kantiana e hegeliana
ou da teoria crítica da Escola de Frankfurt. Koselleck rejeitou
explicitamente tal normativismo aberto e sua teoria realista da
política parece não ter lugar para ele. Isso não significa que sua
contribuição teórica não possa ser produtivamente apropriada
a partir de outras abordagens críticas da teoria e ciência social,
como pretendo mostrar na seção seguinte.

465
AS CAMADAS DA TEORIA DA
BEGRIFFSGESCHICHTE
Da forma como é usado hoje em dia, o conceito de “teoria”
é muito amplo e, por vezes, equívoco. Ele pode significar coisas
diversas, desde uma única proposição composta de concei-
tos abstratos a um conjunto mais ou menos sistemático de
proposições sobre a realidade empírica. Alguns comentaristas
identificaram uma série de teorias nos textos de Koselleck.30
Meu objetivo aqui não é cobrir todas essas prováveis teorias ou
comentar as análises anteriores, mas simplesmente expor o que
considero ser as teorias mais básicas que estruturam o projeto
da Begriffsgeschichte de Koselleck, tornando assim esse projeto
mais inteligível e útil aos acadêmicos engajados na análise crítica
de dados sociais e políticos. Assim, meu objetivo não é produzir
uma interpretação filosófica profunda do sistema teórico e meto-
dológico proposto por Koselleck, mas elucidar seus elementos e
sugerir como podem ser reorganizados, reinterpretados, ou até
mesmo descartados, dependendo da tarefa prática à mão.
No nível mais básico da teorização de Koselleck encontra-
-se o que ele tem chamado teoria da historicidade, ou Historik.
Em seu debate com Gadamer, publicado em Hermeneutics und
Historik,31 ambos os autores reconhecem abertamente sua dívida
com a ontologia de Heidegger, entretanto Koselleck se opõe à
adesão total de Gadamer à virada linguística através da noção
de Sprächlichkeit, que denota a natureza estritamente linguística
da experiência humana.32 Koselleck afirma que existem dados
ontológicos mais profundos que determinam as condições de
possibilidade de histórias (Geschichten) e dá o nome de Historik
à ciência que estuda essas condições. Segundo o autor, como a
hermenêutica de Gadamer está contida inteiramente dentro do
campo da linguagem, ela só pode operar no plano da Historie,
a ciência da história, ou melhor, a arte de sua representação
como narrativa.

466
Para Koselleck, há condições extralinguísticas que são expres-
sas por meio da linguagem, mas a precedem ontologicamente.
Essas condições são melhor capturadas por pares de conceitos
opostos. O primeiro é composto pelo “estar para a morte” de
Heidegger complementado pelo “poder de matar”. Em segundo
lugar, há a oposição entre amigo e inimigo, tornada famosa pela
teoria política de Carl Schmitt. Terceiro, vem a oposição dentro
e fora, que corresponde à tradução espacial da oposição anterior.
Em quarto lugar, o conflito de gerações determinado pela condi-
ção biológica natural da espécie humana. Cada nova geração tem
o impulso de se opor às anteriores como modo de se afirmar no
mundo. Por fim, temos a oposição entre o senhor e o escravo,
uma antiga relação que ainda está muito presente em todas as
relações de dependência: pessoal, política e internacional.
Agora vamos rapidamente nos mover para um nível médio de
abstração, no qual encontramos a teoria ontológica do político
de Koselleck, que é fortemente baseada nas ideias de Schmitt.
Para ele, a política apresenta-se como um tipo particular de
experiência humana marcada, sobretudo, pelo conflito, guerra
e inimizade. Koselleck se interessa particularmente pela maneira
como essa natureza do político se imprime no reino linguístico.
Como já dissemos anteriormente, aqui é onde o contraste entre
sua teoria e aquelas baseadas no consenso da comunicação
política é mais explícito. Koselleck não nega inteiramente o
consenso, em vez disso, define-o não como o objetivo maior da
comunicação política, mas como um resultado contingente de
um processo essencialmente conflituoso. Para ele, comunicação
política, ou discurso político, possui muito mais funções do que
apenas a de produzir consenso racional. Ela é usada para conven-
cer com apelo às emoções, persuadir as pessoas a acreditar em
coisas que ainda não são verdadeiras (ideologia), induzindo-as
assim a agir, prejudicar, denegrir e solapar a legitimidade de
adversários etc. Na verdade, Koselleck está bastante interessado
no uso de conceitos como instrumentos de guerra.

467
Na extremidade menos abstrata do edifício teórico de
Koselleck, encontra-se a sua teoria da modernização, articulada
como uma narrativa do desenvolvimento social e político do
Ocidente. O seu tema principal nesse nível teórico é o advento
do mundo moderno, ou melhor, da visão moderna de mundo
ou, mais precisamente, da consciência histórica moderna. Sua
opinião sobre tais assuntos mudou ao longo da carreira. Em
sua tese de doutorado, publicada como livro, Kritik und Krise,33
encontramos uma narrativa sombria da história ocidental, que já
está anunciada no subtítulo do livro: “a patogênese do mundo
burguês.” Aqui a influência do pensamento de Schmitt não pode
ser negligenciada. A narrativa do advento da modernidade é
focada no Estado. De acordo com Koselleck, o Estado moderno
nasceu na Europa, nos séculos 16 e 17, como uma solução para
as guerras religiosas, cuja característica mais proeminente era a
separação institucional entre os poderes temporal e espiritual.
A monarquia absolutista rapidamente se tornou a forma
política dominante para expressar essa separação de poderes.
No século 18, ela continuou a ser o regime político dominante;
entretanto, o século também presenciou o nascimento do
Iluminismo, um movimento cultural que a tomou como seu
maior inimigo. O Iluminismo, particularmente o seu ramo francês
racionalista, adotou o lema “igualdade e liberdade” como a única
utopia (racional) que valeria a pena ser almejada pela humani-
dade, marcando, portanto, o absolutismo como um regime de
hierarquia fixa e de dependência. O Iluminismo, assim, pariu a
Revolução Francesa, que pôs fim à era da monarquia absolutista.
Mas Koselleck identifica nesse nascimento da modernidade
uma série de problemas e perigos. O racionalismo excessivo leva
ao utopismo excessivo, e isso faz com que o conflito ideológico
torne-se o dado dominante da política nos séculos 19 e 20. Ainda
de acordo com a visão de Koselleck, se a dissidência ideológica
não puder ser resolvida através do recurso à experiência, ela
conduz a conflitos políticos e civis. A ideologia é um discurso
que aponta para o futuro, para aquilo que ainda não é. Portanto,

468
ela é usada para reinterpretar o passado segundo os termos de
seus objetivos futuros. Como resultado, os ideólogos não raro
fogem da responsabilidade de suas ações e são muito propensos
a entender atrocidades do passado como passos necessários para
um futuro melhor.
Outro efeito perverso do utopismo que caracteriza a moderni-
dade é a divisão entre a moral e a política. A moralidade adquire
padrões abstratos mais elevados enquanto a política é desvalo-
rizada como algo negativo, corrupto e abjeto, muito próxima
à experiência humana real. Essa é uma crise fundamental do
mundo moderno. É interessante notar que autores hegelianos e
comunitaristas fazem o mesmo tipo de objeção a teorias deon-
tológicas como a de Rawls.34
A visão de Koselleck da modernização mudou consideravel-
mente no Geschichtliche Grundbegriffe e nos textos que escreveu,
na preparação desse léxico. De modo geral, o autor mudou do
pessimismo para o cientificismo cético. Enquanto em Kritik und
Krise ele abertamente expressa preocupações normativas fortes
sobre o destino da Europa e do Ocidente, nos textos posteriores
Koselleck apresenta uma teoria bastante descritiva da moderni-
dade. Muito tem sido dito e escrito sobre esse tópico. No entanto,
para os fins do presente ensaio, é suficiente apresentar apenas
as características mais gerais dessa visão. O elemento-chave na
segunda teoria da modernidade de Koselleck é a divisão entre
espaço de experiência (Erfahrungsfeld) e horizonte de expecta-
tivas (Erwartungshorizont). É esta divisão que separa autocons-
ciência moderna de concepções do passado. Koselleck também
define a modernidade como uma época caracterizada pela
aceleração contínua do tempo, o que, eventualmente, alcançaria
os seus limites, levando a um período de maior estabilidade.35
O projeto de representar o advento da modernidade como
uma ruptura, uma descontinuidade, também se reflete no meta-
conceito de Sattelzeit (ou Swellenzeit), o período do limiar da
modernidade. Segundo o autor, esse período seria aquele a partir
do qual o passado começou a se apresentar como algo distinto,

469
estranho, o qual não mais se repetirá. Koselleck às vezes se refere
a esse metaconceito ironicamente,36 sugerindo que foi proposto
apenas para tornar mais aceitável o projeto da Geschichtliche
Grundbegriffe para as agências financiadoras de pesquisa. No
entanto, essa ironia deve ser colocada em perspectiva, dado o
modo orgânico no qual a noção de Sattelzeit se encaixa em todo
o corpo de sua teoria da modernidade.
Baseado nesse diagnóstico da modernidade, Koselleck trabalha
quatro hipóteses relacionadas às mudanças que essa nova era
trouxe para a semântica e a circulação social de conceitos: tempo-
ralização (Verzeitlichung), ideologização (Ideologisierbarkeit),
democratização (Demokratisierung) e politização (Politisierung).
Deve-se observar o caráter heterogêneo dessas hipóteses. Enquanto
temporalização e ideologização são claramente processos relacio-
nados à evolução histórica da semântica de conceitos, democrati-
zação e politização têm a ver principalmente com a sua circulação
na sociedade, isto é, essas duas hipóteses pertencem ao domínio
da história social e não propriamente ao da semântica histórica.

EXPANDINDO OS HORIZONTES TEÓRICOS


O que se deve fazer diante de um autor dotado de uma
carga teórica tão rica e variada como Koselleck? Obviamente,
a resposta depende da tarefa à mão. De um ponto de vista pura-
mente teórico, as ideias de Koselleck podem ser questionadas;
suas inconsistências, lacunas e tensões expostas e exploradas de
maneira produtiva. O objetivo de destruir a teoria de alguém
raramente é louvável e muitas vezes não é muito útil, a não ser
que o autor-alvo seja uma autoridade de grande estatura no
campo e isso impeça outras formas mais produtivas e criativas
de trabalho intelectual. Penso que a formulação teórica é muito
mais útil quando o autor é capaz de construir a partir da teoria
de outra pessoa, sem poupá-la de críticas, mas com o objetivo
de expandir os horizontes intelectuais do campo, como tentei
fazer com Koselleck em trabalhos anteriores.37 Nos parágrafos

470
seguintes, tentarei identificar algumas possibilidades abertas
a autores envolvidos nesse segundo tipo de projeto e àqueles
dispostos a aplicar a teoria à investigação empírica.
Vamos começar com a teoria mais abstrata de Koselleck,
sua antropologia filosófica, também chamada de Historik. Há
elementos muito interessantes nesse plano de seu edifício teórico,
particularmente a sua posição tensa acerca da virada linguística.
A crença de que os historiadores devem se contentar única e exclu-
sivamente com a interpretação de textos, ou melhor, de textos
do mesmo tipo, não contribui para a qualidade de suas análises.
Pelo contrário, isso os leva a ignorar o contexto social em que
os textos foram produzidos, o qual, em termos koselleckianos,
significa desconsiderar a história social. É claro que praticamente
toda a informação que vem de um passado remoto é textual, mas
os textos que contêm tais informações são de natureza variada,
nem todos eles são peças de filosofia política. Desse modo, nem
todos apresentam os mesmos problemas hermenêuticos que
marcam textos teóricos complexos. Documentos administrativos,
dados estatísticos, jornais, panfletos e até mesmo ficção podem
dizer muito sobre o contexto social e político de um determinado
período, e esses dados são cruciais para se entender o significado
de uma obra de filosofia política. Restringir a pesquisa ao debate
“filosófico” não é um bom conselho metodológico. Infelizmente,
há uma tendência persistente no campo da história intelectual,
apesar de toda a conversa de alargar o âmbito da investigação
para autores “menores”, de se concentrar quase exclusivamente
em grandes autores e obras mais destacadas.
Outro elemento interessante da Historik de Koselleck é a ideia
de estudar as condições de possibilidade de histórias, ou seja,
de diferentes trajetórias históricas. Essa linha de raciocínio pode
ser usada para suspender o imperativo da intenção autoral. É
claro que se pode sempre tentar reconstruir a intenção autoral,
porém fazer isso não é sempre a opção mais sábia. Por exemplo,
quando em um determinado período ou contexto não há dados-
-chave, mas apenas conceitos estabelecidos, teorias, linhas de

471
raciocínio, argumentos etc., é muito mais útil identificar esses
elementos linguísticos e analisar as condições de possibilidade
abertas e interditas por eles. Esses elementos de forma recorrente
funcionam como justificativas que podem ser postas em prática
pelas instituições. Em outras palavras, a análise de tais elementos
linguísticos sempre pode ser comparada com as medidas reais
e políticas adotadas pelas instituições, a fim de verificar a sua
eficácia. Assim, aqui, em vez da intenção autoral, a teoria de
Koselleck parece apontar para a intertextualidade como um
meio de interpretar o passado linguisticamente.
Os dois conselhos derivados da teoria mais abstrata de
Koselleck podem ser produtivamente conectados. Os estudos
de justificativas adotadas pelas instituições sociais e políticas,
tais como o sistema jurídico, policial, sistema penitenciário,
política externa, saúde pública etc., são muitas vezes carregados
de conceitos dicotômicos que dividem o mundo social em cate-
gorias opostas (saudável/doente, inocente/culpado, nacionais/
estrangeiras etc.). Essas justificativas são muitas vezes produto
de um complexo processo discursivo, e não de um debate entre
os luminares. Contudo, o mais importante, os indivíduos e
grupos reais que são apontados e sofrem oposição, só pode ser
conhecido através do estudo da história social.
A teoria do político, de Koselleck, pode ser entendida como
um caso particular da condição basicamente dicotômica da
experiência humana. Ou, inversamente, a própria condição
humana pode ser pensada, nessa perspectiva, como eminen-
temente política. O caráter contraditório da política é, para
Koselleck, a causa por trás da inflação semântica sofrida pelos
conceitos básicos. Isto é, uma palavra se torna um conceito
básico quando é incorporada pelo discurso de disputa de forças
sociais, que tendem a redefini-lo de acordo com seus próprios
fins particulares. Essa compreensão da natureza da política e
social da linguagem deve fazer pesquisadores conscientes da
polissemia de conceitos-chave e levá-los a se concentrar em casos
particulares em que são utilizados como instrumentos de guerra,

472
para denegrir ou anular argumentos e forças sociais contrários.
Neste caso, quando o conflito político é mais ou menos evidente
e exercido através do debate político, o historiador ou cientista
social pode estar interessado em recuperar a intenção original
autoral. No entanto, deve-se estar ciente de que os agentes não
são inteiramente controladores do significado dos conceitos que
eles usam, e que uma grande parte do significado dos conceitos
é produto de um processo histórico de deposição da experiência
humana (na forma de significado) da qual os agentes raramente
são totalmente conscientes. Assim, ter em consideração a baga-
gem semântica ampla de um conceito é sempre necessário, mesmo
quando o contexto em que é usado é fortemente político.
O nível mais concreto de formulação teórica de Koselleck, a
sua narrativa da modernidade, é de longe o mais problemático.
Metaconceitos como o Sattelzeit, a ruptura entre o espaço de
experiência e o horizonte de expectativas, e a aceleração do
tempo não devem ser considerados como pontos de referência,
segundo os quais a modernização deve ser medida em outro
lugar. Não há nenhuma razão sólida para se acreditar que todas
as sociedades que se modernizam passam pelo Sattelzeit ou que
este tenha um começo e um fim. Será que sociedades como a
Inglaterra, a França ou os Estados Unidos experimentaram essas
coisas da maneira imaginada por Koselleck? E os retardatários
da grande narrativa da modernização como a Alemanha e a
maior parte do resto da Europa? Não foram recolhidas evidên-
cias suficientes até agora para apoiar as afirmações teóricas de
Koselleck sobre a modernidade. Se esse for o caso para a Europa
e os Estados Unidos, pesquisadores dispostos a trabalhar com
contextos extraeuropeus devem ser aconselhados a não assumir
essa teoria da modernidade como dados factuais.
O mesmo poderia ser dito a respeito da temporalização, ideo-
logização, democratização e politização de conceitos. Estes devem
ser tratados no máximo como hipóteses. Também não há razão
para acreditar que os conceitos não passaram por outros proces-
sos semânticos e sociais, e cabe a cada pesquisador a hipótese e

473
a determinação do que realmente aconteceu em cada caso. Por
exemplo, Pim den Boer formulou o caso em que o conceito de
civilização passou por um processo de nacionalização durante
o século 19.38
Em suma, como muitas outras teorias da modernidade e
da modernização, a de Koselleck, se tomada como verdade
essencial factual sobre o que é a modernidade, pode se tornar
um impedimento para uma boa investigação. Ao cometer esse
erro, responde-se de forma adiantada às questões; algo que o
pesquisador deve fazer através da análise cuidadosa de fontes.

NOTAS
1
Karin Tilmans, Wyger Welema, Applying Begriffsgeschichte to Dutch History:
Some Remarks on the Practice and Future of a Project, Contributions to the
History of oncepts, v. 2, n. 1, p. 43-58, 2006.
2
Javier Fernández Sebastián, Juan Francisco Fuentes (ed.), Diccionario político
y social del siglo XIX español, Madrid, Alianza Editorial, 2002.
3
O projeto de história conceitual da Europa, batizado recentemente com o nome
de Europaeum, está em discussão há muitos anos, mas ainda não conseguiu se
estruturar. Entre os problemas enfrentados está a diversidade linguística e de
cultura acadêmica entre as nações.
4
Javier Fernández Sebastián et al. (ed.), Diccionario político y social iberoameri-
cano: conceptos políticos en la era de las independencias, 1750-1850, Madrid,
Editorial del Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2008.
5
Iberconceptos é um projeto de história dos conceitos sociais e políticos do Mundo
Atlântico na era das independências. A coordenação central é de Javier Fernández
Sebastián. Em sua primeira fase, o projeto contou com nove equipes nacionais
de estudiosos trabalhando numa lista de dez conceitos-chave no período de
1750-1850. Tal fase foi finalizada com a publicação do Diccionario político y
social del mundo iberoamericano (Javier Fernández Sebastián (ed.), Diccionario
político y social del mundo iberoamericano: La era de las revoluciones, 1750-
-1850, Madrid, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2009, v. I). A
segunda fase contou com 13 equipes nacionais e também já foi encerrada. A
publicação do segundo tomo do dicionário deve se dar ainda em 2013.
6
Jörn Leonhard, Liberalismus. Zur historischen Semantik eines europäischen,
Munich, Deutungsmusters, 2001; Pasi Ihalainen, Protestant Nations Redefined:
Changing Perceptions of National Identity in the Rhetoric of the English, Dutch
and Swedish Public Churches, 1685-1772, Leiden, Brill, 2005.

474
7
Melvin Richter, Reconstructing the History of Political Languages: Pocock,
Skinner, and the Geschichtliche Grundbegriffe, History and Theory, v. 29, n. 1,
p. 38-70, 1990; Melvin Richter, The History of Political and Social Concepts:
A Critical Introduction, New York, Oxford, Oxford University Press, 1995;
Melvin Richter, Appreciating a Contemporary Classic: Geschichtliche Grundbe-
griffe and Future Scholarship, em Hartmut Lehmann, Melvin Richter (ed.), The
Meaning of Historical Terms and Concepts: New Studies on Begriffsgeschichte,
Washington D.C., German Historical Institute, 1996; Melvin Richter, Opening
a Dialogue and Recognizing an Achievement, em Erich Rothacker (ed.), Archiv
für Begriffsgeschichte, Bonn, Bouvier Verlag, 1996.
8
John G. Gunnell, Between Philosophy and Politics: The Alienation of Political
Theory, Amherst, University of Massachusetts Press, 1986; John G. Gunnell, The
Descent of Political Theory: The Genealogy of an American Vocation, Chicago,
University of Chicago Press, 1993.
9
Quentin Skinner, Meaning and Understanding in the History of Ideas, History
and Theory, v. 8, n. 1, p. 3-53, 1969; Quentin Skinner, The Paradoxes of Po-
litical Liberty, em S. McMurrin (ed.), The Tanner Lectures of Human Values,
Utah, University of Utah Press, 1986, v. 7; Quentin Skinner, Razão e retórica na
filosofia de Hobbes, São Paulo, Unesp, Cambridge, Cambridge University Press,
1996; J. G. A. Pocock, Politics, Language, and Time: Essays on Political Thought
and History, New York, Atheneum, 1971; J. G. A. Pocock, The Machiavellian
Moment: Florentine Political Thought and the Atlantic Republican Tradition,
Princeton, Princeton University Press, 1975; J. G. A. Pocock, Virtue, Commerce,
and History: Essays on Political Thought and History, Chiefly in the Eighteenth
Century, Cambridge, New York, Cambridge University Press, 1985.
10
John Rawls, A Theory of Justice, Cambridge, Belknap Press of Harvard University
Press, 1971.
11
Kari Palonen, Quentin Skinner’s Rhetoric of Conceptual Change, History of
Human Sciences, v. 10, p. 61-80, 1997; Kari Palonen, The History of Concepts
as a Style of Political Theorizing. Quentin Skinner’s and Reinhart Koselleck’s
Subversion of Normative Political Theory, European Journal of Political Theory,
v. 1, n. 1, p. 96-111, 2002; Kari Palonen, Die Entzauberung der Begriffe: das
Umschreiben der politischen Begriffe bei Quentin Skinner und Reinhart Koselleck,
Münster, Lit.Verlag, 2004, p. 137.
12
Kari Palonen, The Politics of Limited Times: The Rhetoric of Temporal Judg-
ment in Parliamentary Democracies, 1. Aufl., Baden-Baden, Nomos, 2008.
13
Palonen, Die Entzauberung der Begriffe.
14
Michael Walzer, Communitarian Critique of Liberalism, Political Theory, v. 18,
n. 1, p. 6-23, 1990; Charles Taylor, Cross-purposes: The Liberal-Communitarian
Debate, em D. Matravers, J. E. Pike (ed.), Debates in Contemporary Political
Philosophy: An Anthology, London, New York, Routledge-Open University,
2003.
15
Richard Rorty, Postmodernist Bourgeois Liberalism, em T. Docherty (ed.),
Postmodernism: A Reader, New York, Columbia University Press, 1993.
16
Ibidem.

475
17
Reinhart Koselleck, Temporalizar la historia. Sobre la Historik de Reinhart
Koselleck, Isegoría, v. 37, p. 11-33, 2007.
18
Palonen, Die Entzauberung der Begriffe.
19
Javier Fernández Sebastián, Juan Francisco Fuentes, Conceptual History,
Memory, and Identity: An Interview with Reinhart Koselleck, Contributions to
the History of Concepts, v. 2, n. 1, p. 99-127, 2006.
20
Reinhart Koselleck, A Response to Comments on the Geschichtliche Grund-
begriffe, em H. Lehmann, M. Richter (ed.), The Meaning of Historical Terms
and Concepts: New Studies on Begriffgeschichte, Washington D.C., German
Historical Institute, 1996.
21
Reinhart Koselleck, Hans Georg Gadamer, Hermeneutik und Historik: vorgelegt
am 6. Dezember 1986, Sitzungsberichte der Heidelberger Akademie der Wissens-
chaften, Philosophisch-Historische Klasse; Jahrg. 1987, Bericht 1, Heidelberg,
C. Winter Universitätsverlag, 1987.
22
Todd May, The Political Thought of Jacques Rancière: Creating Equality, Ed-
inburgh, Edinburgh University Press, 2008.
23
Reinhart Koselleck, Einleitung, em O. Brunner, W. Conze, R. Koselleck (ed.),
Geschichtliche Grundbegriffe: historisches Lexikon zur politisch-sozialen Sprache
in Deutschland, Stuttgart, E. Klett, 1972.
24
Ibidem.
25
John Rawls, Political Liberalism, John Dewey Essays in Philosophy, New York,
Columbia University Press, 1993.
26
Jurgen Habermas, The Theory of Comnicative Action, Boston, Beacon Press,
1989.
27
Michael J. Sandel, Liberalism and the Limits of Justice, Cambridge, New York,
Cambridge University Press, 1982; Michael J. Sandel, Liberalism and Its Critics.
Readings in Social and Political Theory, New York, New York University Press,
1984; Alasdair C. MacIntyre, After Virtue: A Study in Moral Theory, Notre
Dame, University of Notre Dame Press, London, Verso, 1981; Charles Taylor,
Hegel, Cambridge, New York, Cambridge University Press, 1975.
28
Robert Nozick, Anarchy, State, and Utopia, New York, Basic Books, 1974.
29
Chantal Mouffe, The Challenge of Carl Schmitt, Phronesis, London, Verso,
1999; Chantal Mouffe, The Democratic Paradox, New York, Verso, 2000.
30
Palonen, Die Entzauberung der Begriffe.
31
Koselleck e Gadamer, Hermeneutics und Historik.
32
Hans Georg Gadamer, Truth and Method, New York, Crossroad, 1989.
33
Reinhart Koselleck, Kritik und Krise: ein Beitrag zur Pathogenese der bèurgerli-
chen Welt, Freiburg, K. Alber, 1959.
34
Taylor, Cross-purposes.

476
35
Reinhart Koselleck, Aceleración, prognosis y secularización, Madrid, Pre-Textos,
2003.
36
Fernández Sebastián e Fuentes, Conceptual History, Memory, and Identity.
37
João Feres Júnior, The Semantics of Asymmetric Counterconcepts: The Case
of “Latin America” in the US, Anales of the Iberoamerikanska Institutet,
n. 7/8, p. 83-106, 2005; João Feres Júnior, Building a Typology of Forms of
Misrecognition: Beyond the Republican-Hegelian Paradigm, Contemporary
Political Theory, v. 5, n. 3, p. 259-277, 2006.
38
Pim der Boer, Civilisation (Beschaving), Amsterdam, Amsterdam University
Press, 2001.

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SOBRE OS AUTORES

João Feres Júnior (Org.)


Doutor em Ciência Política pela City University of New York, pro-
fessor de Ciência Política do Instituto Universitário de Pesquisas do
Rio de Janeiro (IUPERJ), coordenador do projeto Iberconceptos no
Brasil, editor da revista Contributions to the History of Concept
e coorganizador de História dos conceitos: debates e perspectivas
(2006) e História dos conceitos: encontros transatlânticos (2007).

Beatriz Catão Cruz Santos


Doutora pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professora
adjunta da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)
e autora de O pináculo do Temp(l)o: o sermão do padre Antônio
Vieira e o Maranhão do século XVII (1997) e O corpo de Deus na
América: a festa de Corpus Christi nas cidades da América portu-
guesa – século XVIII (2005).

Bernardo Ferreira
Doutor em Ciência Política pelo IUPERJ, professor do Departamento
de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ) e autor de O risco do político: crítica ao liberalismo e teoria
política no pensamento de Carl Schmitt (Editora UFMG e IUPERJ,
2004).

Christian Edward Cyril Lynch


Doutor em Ciência Política pelo IUPERJ, professor da Pós-Graduação
em Direito e Sociologia da UFF e da Pós-Graduação em Direito da
Universidade Gama Filho (UGF) e pesquisador da Fundação Casa
de Rui Barbosa (FCRB).
Cláudio Antônio Santos Monteiro
Doutor em História Contemporânea pela Université Robert Schuman,
Strasbourg, França, professor do Programa de Mestrado em História
Social da Universidade Severino Sombra, Vassouras-RJ.

Guilherme Pereira das Neves


Professor associado do Departamento de História da UFF, pesquisa-
dor principal do projeto Pronex-FAPERJ/CNPq intitulado Raízes do
Privilégio e autor de E receberá mercê: a mesa da consciência e ordens
e o clero secular no Brasil, 1808-1828 (1997), prêmio de monografia
do Arquivo Nacional.

Heloisa Maria Murgel Starling


Vice-Reitora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) –
gestão 2006-2010, professora adjunta do Departamento de História
da UFMG, coordenadora do Projeto República: Núcleo de Pesquisa,
Documentação e Memória, coorganizadora de Corrupção: ensaios
e críticas (Editora UFMG, 2008) e Sentimentos do mundo: ciclo de
conferências dos 80 anos da UFMG (Editora UFMG, 2009).

Ivo Coser
Doutor em Ciência Política pelo IUPERJ, professor adjunto do Depar-
tamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) e autor de Visconde do Uruguai: centralização e federalismo
no Brasil 1823-1866 (Editora UFMG e IUPERJ, 2008).

João Paulo G. Pimenta


Professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo
(USP), especialista em História Política do Brasil e da América hispâ-
nica nos séculos XVIII e XIX, coautor de A corte e o mundo (2008).

Lúcia M. Bastos Pereira das Neves


Professora titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ),
pesquisadora principal do Pronex Dimensões da Cidadania, autora
de Corcundas e constitucionais: a cultura política da independência
(2003), Napoleão Bonaparte: imaginário e política em Portugal (2008)
e coorganizadora de O Brasil Joanino (2008).

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Luisa Rauter Pereira
Doutoranda em Ciência Política no IUPERJ, mestre em História Social
da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(PUC-Rio), professora substituta no Departamento de História da UFF
em 2006 e 2007, pesquisadora da área de História das Linguagens e
Conceitos Políticos no Brasil Oitocentista.

Marco A. Pamplona
Doutor em História pela Columbia University, em Nova York, professor
do Departamento de História da PUC-Rio, autor de Revoltas, repúblicas
e cidadania (2003) e coorganizador de Nacionalismo no Novo Mun-
do: a formação de estados-nação no século XIX (2008) e da Coleção
Margens sobre as Revoluções de Independência e Nacionalismos nas
Américas (2008/2009).

Maria Elisa Mäder


Doutora em História Social pela UFF, professora do Departamento
de História da PUC-Rio e coorganizadora da Coleção Margens so-
bre as Revoluções de Independências e Nacionalismos nas Américas
(2008/2009).

Maria Elisa Noronha de Sá


Doutora em História Social pela UFF, professora do Departamento de
História da PUC-Rio. Coorganizadora da Coleção Margens sobre as
Revoluções de independências e nacionalismos nas Américas e autora
de Civilização e barbárie. A construção da ideia de nação: Brasil e
Argentina (2012).

Valdei Lopes de Araújo


Doutor em História pela PUC-Rio, professor da Universidade Federal
de Ouro Preto (UFOP), membro do Núcleo de Estudos em História da
Historiografia e Modernidade (NEHM) e autor de A experiência do
tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-
1845) (2008).

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