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Trans.

Revista Transcultural de Música


E-ISSN: 1697-0101
edicion@sibetrans.com
Sociedad de Etnomusicología
España

Araújo, Samuel
A violência como conceito na pesquisa musical; reflexões sobre uma experiência dialógica na Maré,
Rio de Janeiro
Trans. Revista Transcultural de Música, núm. 10, diciembre, 2006, p. 0
Sociedad de Etnomusicología
Barcelona, España

Disponible en: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=82201007

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A violência como conceito na pesquisa musical

Revista Transcultural de Música


Transcultural Music Review
#10 (2006) ISSN:1697-0101

A violência como conceito na pesquisa musical;


reflexões sobre uma experiência dialógica na
Maré,
Rio de Janeiro. [1]

Samuel Araújo et alli [2]

Resumen
Este articulo explora el uso de la violencia como concepto más bien que como
categoría descriptiva en la investigación socio-musicológica. Está basado en
investigación dialógica sober música, memoria y sociabilidad en un sector
marginal residencial de Rio de Janeiro, en el cual los etnomusicólogos sirven de
mediadores entre el conocimiento académico y un grupo de jóvenes integrantes
de las comunidades quienes definen los problemas a ser investigados y
desarrollan las herramientas conceptuales para trabajarlos. Como resultado de
de un intercambio de tres años entre la academia y las demandas de
poblaciones locales, los jóvenes involucrados en este proyecto también
reflexionan sobre el impacto de esta experiencia en relación con las políticas
públicas actuales que están dirigidas a "ayudar" a jóvenes pobres.

Abstract
This paper explores the use of violence as a concept, rather than as a
descriptive category, in socio-musical research. It draws upon a dialogic
research on music, memory and sociability within a disenfrahchised residential
area of Rio de Janeiro, in which ethnomusicologists act as mediators between
academic knowledge and a group of young community members who define
research problems and develop conceptual tools to deal with them. As a result
of a three-year exchange between academia and local demands, the youngsters
involved in the project also reflect upon the impact of this experience vis-à-
vis current public policies directed toward "assisting the needs" of the poor
youth.
A violência como conceito na pesquisa musical

Diante de ideologias de arte burguesa e percepções do sublime que


usualmente lhes correspondem, discorrer sobre música e violência
certamente sugere um contra-senso. Afinal, em tal perspectiva, o que
poderia haver, além da música, de mais exemplar da não-violência, de
sociabilidade pacífica e, portanto, de seu presumido reconhecimento
universal como valor positivo?

Uma outra compreensão do lugar da música ou seus correlatos em


contextos diversos deveria, em nosso entendimento, não só reconhecer o
papel da música e, de modo mais genérico, da comunicação sonora não-
verbal em processos sociais demarcados como violentos, mas também
situar reciprocamente formas de violência socialmente exercida em
processos musicais ou em que a música[3] desempenhe um papel-chave.
Esta, obviamente, não é tarefa fácil, face ao caráter elusivo da significação
musical. As dificuldades conceituais e empíricas são igualmente
consideráveis: como delimitar o que distingue processos musicais de
outros processos sociais, como conceber uma noção de violência (ou paz)
que seja ao menos socialmente validada entre um determinado grupo de
indivíduos e, como identificar e lidar com as formas simbólicas da
violência cujo caráter exponencialmente assimétrico e muito mais eficaz
do ponto de vista político aparece em geral sublimado em percepções de
"carência" dos excluídos?

Estabelecemos, assim, como objetivo primeiro deste trabalho examinar,


de modo sintético, perspectivas sócio-antropológicas sobre a categoria
violência, assinalando o deslocamento de abordagens da mesma como
signo de exceção ou crise social, rumo a seu estudo em dinâmicas sociais
aparentemente isentas de conflitos. Em seguida, expomos o contexto
específico de uma pesquisa musical em andamento na cidade do Rio de
Janeiro, assentada em novas formas de diálogo sistemático com
interlocutores de formação relativamente inédita, a partir da qual esta
reflexão se torna possível. Nele, como procuraremos indicar, a violência
física sistemática se faz presente, porém, de modo tão intenso quanto a
violência exercida por categorias de conhecimento formuladas a partir dos
mecanismos sociais produtores daquela mesma realidade excludente. Por
fim, buscamos localizar no plano das políticas públicas voltadas para a
juventude que afetam o contexto em questão, as quais concebem a
música em geral como instrumento de inclusão social e superação do
“estado de violência”, como um foco potencial de reflexão sobre os
potenciais usos de “violência” e “conflito” como categorias de análise na
pesquisa musical.
A violência como conceito na pesquisa musical

Por uma sócio-acústica da violência


Conforme argumentado em publicação anterior (Araújo et alli 2006),
muitos temas da etnomusicologia contemporânea, tais como a dimensão
política da diferença e as desigualdades que lhe correspondem, as formas
de violência física e simbólica exercidas entre grupos sociais e formações
nacionais, têm se evidenciado como questões supra-locais desafiando
não apenas a base conceitual, mas também a prática institucional da
disciplina. Já por muito tempo, pesquisadores vêm problematizando e
contextualizando por meio da etnografia musical as assimetrias de poder
que condicionam a experiência de músicos, públicos e repertórios,
apoiando-se em abordagens críticas de noções de autenticidade musical,
patrimônios nacionais, e valores cuja hegemonia se assenta sobre a
violência exercida por noções particulares de, por exemplo, classe, raça
ou gênero. Mas perguntamos no artigo já mencionado se isso em si seria
satisfatório e, caso contrário, o que poderia estar de fato ainda fora de
foco na pesquisa etnomusicológica?

Nossa resposta provisória a tal questão se remeteria a um tipo de


pesquisa que deve formular questões iniciais aparentemente simples. E
esta ilusória simplicidade se tornará ainda mais evidente à medida que
possibilitar um diálogo sem precedentes com “as pessoas com quem
trabalhamos”, rumo a direções e perguntas inteiramente novas,
deslocando o campo de conhecimento em questão rumo ao
compartilhamento de seu tempo e investimento em direções
enganosamente prosaicas, mas, de fato, politicamente explosivas.

Compreendemos então como um primeiro passo neste trabalho, discutir


as categorias “violência” e “conflito”, não somente como referentes a
momentos de crise, mas como ferramentas teóricas potencialmente
efetivas, embora amplamente negligenciadas, para o campo da
etnomusicologia, localizando sua relevância particular para a história
brasileira recente. Em seguida, procuraremos desvelar algumas de suas
implicações, com base em experiência etnográfica em andamento há três
anos, esperando com isso trazer a debate as práticas institucionais da
pesquisa etnomusicológica, bem como o conhecimento gerado através
delas.

Destacar a violência e o conflito como categorias negligenciadas no


campo da etnomusicologia é, de fato, uma operação perigosa, face às
inúmeras referências a contextos conflituosos em que a música opera na
pesquisa musical como um todo. No entanto ambos os termos, em tal
A violência como conceito na pesquisa musical

literatura, freqüentemente sinalizam distúrbios sociais ou individuais de


uma ordem implícita, ou ainda uma eventual negação de uma ordem
dada, quaisquer dessas possibilidades produzindo efeitos em músicos,
públicos e na música que media suas relações. O caminho que sugerimos
aqui é, porém, bem distinto, permitindo que se tome o conflito e, até certo
ponto, a violência como condições centrais à produção de conhecimento,
incluindo aí o conhecimento mais especificamente musical e análises
culturais de práticas musicais.

Neste aspecto, prestamos tributo ao trabalho do pedagogo brasileiro,


Paulo Freire, autor de livros seminais que obtiveram ressonância
internacional, como Pedagogia do oprimido (Freire 1970), escrito na
conflituosa década de 1960 (deveríamos assinalar que Freire também
serviu de inspiração a um pequeno, porém seleto grupo de
etnomusicólogos, de Catherine Ellis, na Austrália [Ellis 1994], a Angela
Impey na África do Sul [Impey 2002]). No trabalho de Freire, conflito e
violência estão já inscritos em todos os tipos de relações opressivas que
tornam o conhecimento não apenas refém de grupos dominantes,
incluindo os dominantes entre os dominantes, mas também inviável a
priori uma vez que qualquer abordagem verdadeiramente teórica da
violência como de fato socialmente produzida tornaria impossível a
perpetuação da dominação em si. Se podemos nos atrever a sumariar os
postulados de Freire em única sentença, talvez devêssemos dizer que,
sem uma reconfiguração radical da comunidade de produtores de
conhecimento rumo à colaboração horizontal, não temos muitas
alternativas a que conflitos e hostilidades irrompam por nossa porta a
qualquer momento, uma realidade que certamente tem se assomado na
consciência das pessoas em todos os quadrantes do globo afora em
tempos recentes.

Tais observações certamente nos evocarão, entre outros eventos ainda


mais dramáticos, discussões acerca da crise da representação, do
reposicionamento da voz e da autoria nativas em textos de pesquisa, e da
legitimidade da pesquisa ocidental—discussões que foram acirradas há
mais de vinte anos, e que logo se projetaram sobre o campo da
etnomusicologia (e.g., Barz e Cooley 1997). Enfrentando o grande risco de
enfadar nossos eventuais leitores, relembramos aqui algumas das
questões aparentemente antigas formuladas à época: Em que medida
uma disciplina poderia se manter íntegra após tal interpelação da
autoridade acadêmica? Como indivíduos resistentes à crença no
sobrenatural ou na supremacia de convicções particulares de culturas
específicas, cultivadas por muitos dos povos com os quais trabalhamos,
como poderíamos Nós continuar a representar as práticas culturais do
A violência como conceito na pesquisa musical

Outro, e, caso positivo, sobre que pressupostos? O que fazer então com o
conhecimento acumulado pelo colonialismo, através de relações de
dominação e exploração? Pode tudo isso ser realmente colocado em
perspectiva comparativa ou relacional com uma interpretação
efetivamente Outra, formulada por aqueles cujas vozes ainda não
obtiveram efetiva autonomia no mundo acadêmico? Estas permanecem
questões perturbadoras, embora amplamente negligenciadas, talvez por
possuírem potencial de debilitar as ciências sociais no sentido de uma
prática auto-reprodutiva, com regras de conduta estabelecidas, códigos de
ética, etc. Pierre Bourdieu, apenas para mencionar um nome ilustre
freqüentemente invocado na virada epistemológica da etnomusicologia da
década de 1980, tratou repetidas vezes deste tema em seu trabalho,
incluído o volume póstumo (Bourdieu 2005) em que reflete sobre a
improvável carreira de um filho de funcionário público provincial (a sua
própria) chegando ao topo da aristocrática hierarquia da academia
francesa.

Como se procurará evidenciar mais adiante neste texto, a pesquisa em


andamento aqui tomada como referência parece apontar para a violência
simbólica através da música e da comunicação sonora não-verbal como
uma constante na vida de sujeitos concretos, como dimensão crucial de
sua experiência de mundo. Um parêntese: as condições de emergência e
predominância da violência física (por exemplo, estagnação econômica
levando ao tráfico de drogas como alternativa de “sobrevivência”) podem
ser mais conjunturais e efêmeras que as associadas à violência simbólica,
que provavelmente não desapareceria num mundo de menor desequilíbrio
sócio-econômico. Em tal quadro, qualquer emprego acrítico (i.e. que não
seja filtrado pela experiência crítica dos próprios indivíduos e grupos por
eles constituídos) da música, seja qual for seu conteúdo ou estratégia,
tende a reforçar os mecanismos que produzem e perpetuam a
desigualdade e a exclusão.

Daí a importância de se assumir uma sócio-acústica da violência como


base de uma reflexão sobre a sociedade que requer não apenas o
reposicionamento de referências conceituais e teórico-metodológicas
estabelecidas no meio acadêmico (talvez a tarefa mais fácil), mas
também, o que parece mais difícil, a busca simultânea de sentido na
agência simbólica sob a hegemonia aparentemente irresistível da forma
mercadoria. A práxis do pesquisador como mediador requer, portanto, um
compromisso político, que começa com sua própria autocrítica e envolve o
confronto contínuo de sua formação e conhecimento com um mundo em
permanente transformação.
A violência como conceito na pesquisa musical

Violência e vida social: perspectivas


selecionadas
A herança das filosofias do direito natural construída em torno do século
XVII é freqüentemente invocada, consciente ou inconscientemente, no
debate público contemporâneo sobre a violência. A categoria sociabilidade
definida seminalmente por Samuel von Pufendorf (1672), como “uma
disposição de homem a homem, graças à qual cada um se considera
ligado aos demais através da bondade, paz e caridade”, levando a “um
estado de sociabilidade pacífica, em geral afinado com a natureza e as
finalidades da espécie humana” (apud Abbagnano 1998:913) parece
embasar perfeitamente a premissa de que a violência constitui um estado
de exceção, não a regra, da vida social; em outras palavras uma ameaça
à ordem e, apenas em casos extremos e excepcionais, sua mantenedora.
No entanto, em tempos relativamente recentes, um importante etnólogo,
em trabalho significativamente intitulado Desordem (Balandier 1997),
procurou trabalhar teoricamente a consciência e perplexidade pós-
modernas diante do lugar do caos nas mais distintas formações sociais,
sugerindo que a preocupação com a ordem pode ter inibido, mais que
ajudado, a reflexão sobre a vida em sociedade por um período muito
longo. Esta preocupação com o enquadramento de fenômenos em geral,
mormente os sociais, em suas respostas “lógico-estruturais” ordenadas,
mais que tentar compreender seus momentos descontínuos, ou seus
estados “caóticos”, fatalmente excluiriam, ainda de acordo com Balandier,
qualquer possibilidade de emergência de uma teoria do movimento e da
incerteza, ambos por ele percebidos como os reais motores não-lineares
do “mundo turbulento” de hoje.[4] Seguindo o argumento do autor, não
constitui surpresa sua eleição da violência como um dos mais importantes
temas para uma necessária reconfiguração das ciências sociais visando
adequá-las ao tratamento de seu objeto modificado, caos ao invés de
ordem. Assim percebida, a violência não deveria, segundo ele, ser mais
entendida como acidente em relações de qualquer tipo, mas como um
elemento estruturante poderoso, e tão mais assim quanto for capaz de
aparecer eufemizado nas práticas individuais e sociais cotidianas.

Em outro influente ensaio etnológico, refletindo sobre a organização social


das sociedades nativas da América do Sul, Pierre Clastres (2004) já
apontava[5] que a violência pode ser vista como aspecto constitutivo do
que denominou sociedades-contra-o-estado e sociedades-para-a-guerra.
Em tais formações, argumenta, a violência social contra o Outro é uma
A violência como conceito na pesquisa musical

permanente possibilidade, como reafirmação do desejo de independência


e manutenção de um modo de vida autárquico e relativamente auto-
suficiente. No entanto, em tais situações os eventos violentos (guerra) se
mantêm intermitentes e de forma relativamente desorganizada (cada
homem deles participa em igualdade de condições), muito freqüentemente
causando pouquíssimas baixas. Este tipo de formação social
eventualmente permite, porém, um importante desdobramento: a
emergência, em seu interior, de grupos de guerreiros, nos quais o uso da
violência é tornado eficiente de modo relativamente mais sistemático e
predatório levado a efeito por um segmento especializado de uma
sociedade-contra-o-estado. Embora diferenciado do corpo social mais
amplo em que se insere como um grupo que sistematicamente planeja e
lidera ações de guerra contra grupos externos (o Outro), aos guerreiros de
uma sociedade–contra-o-estado são oferecidos signos de distinção à
medida que demonstrem bravura e audácia em ações que, no entanto,
jamais se direcionam à acumulação material, mas sim a um crescente
prestígio social—i.e., não deveria advir daí qualquer tipo de diferenciação
política ou econômica que os distinguisse do corpo social mais amplo.
Paradoxalmente, como aponta Clastres (idem), à medida que tais provas
devem ser contínuas, a vida de um guerreiro permanece em eterno
perigo, fazendo do mesmo um “ser-para-a-guerra” (nos termos de
Clastres), o que fornece à sociedade um meio de prevenir que transforme
sua capacidade diferencial em poder decisório que pudesse se sobrepor
ao desejo de igualdade, independência e autonomia presente em
sociedades-contra-o-estado.

Sobre conflito e violência na história brasileira


recente.
Qualquer observador da história sócio-política brasileira certamente terá
assinalado a progressiva transformação da violência criminal urbana em
um dos tópicos de maior projeção no debate público nacional. Inquéritos
recentes detectaram fortes indicadores de que já teria se tornado um dos
principais temas eleitorais—de acordo com uma enquête específica[6],
seria considerado pela população brasileira o quarto tópico em
importância no debate eleitoral, logo após o desemprego, saúde e drogas,
nesta ordem. Conversas informais nas ruas, noticiário e editoriais de
imprensa, ou alocuções políticas dificilmente serão capazes de evitar o
assunto à medida que a vida cotidiana, notadamente nas cidades mais
densamente populosas, parece estar refém de eclosões de violência a
A violência como conceito na pesquisa musical

qualquer minuto. Enquanto um prestigioso instituto de pesquisa sócio-


econômica[7] concebeu, sob uma metodologia deveras sofisticada, um
indicador social sem precedentes no mundo, o “índice do medo”, um
referendo nacional sobre o desarmamento ocorreu em outubro de 2005[8].

Desde o final da década de 1970 e durante os anos 80, sobre uma


percepção amplamente justificada de que o crime organizado no meio
urbano, mas principalmente nas áreas metropolitanas de São Paulo e Rio
de Janeiro, estava assumindo formas novas e desproporcionais, as
ciências sociais no Brasil passaram a dedicar uma atenção mais
sistemática e crescente à violência de fundo criminal como objeto de
estudo.[9] Embora outras formas de organização criminosa—incluindo
certas empresas do chamado crime de “colarinho branco” (i.e., corporativo
ou cometido por esferas da classe média alta)—estivessem registradas
como ativas no mesmo período, a atividade do tráfico de drogas aparecia
ao público em geral como a forma por excelência da violência urbana
ligada ao crime. As interpretações inicialmente formuladas (para um
comentário de fundo histórico sobre esta literatura, ver Misse 1995)
possuíam freqüentemente um fundamento econômico e tendiam a politizar
o assunto durante o período em que uma ditadura militar havia
aparentemente derrotado todo o tipo de alternativas socialistas e obtido
sucesso em impor uma forma de inserção dependente na geopolítica do
capitalismo mundial.

O eventual e problemático “retorno à democracia”, através da eleição do


primeiro presidente civil em 1985, após vinte e um anos de poder militar,
foi concomitante à reconstrução paulatina do ativismo político livre em
várias frentes. Estas variavam da militância no espectro mais amplo logo
disponível de partidos políticos (apenas duas frentes eram admitidas
legalmente durante a ditadura) até a participação em novas organizações
da sociedade civil, muitas das quais concentradas no que se poderia
talvez designar genericamente de “temáticas antigas com nova
visibilidade”, tais quais movimentos pelos direitos da mulher, de gays e
lésbicas, lado a lado de “questões de vulto reequacionadas em forma e
conteúdo”, tais quais organizações pró-ativas contra a discriminação e
desigualdade raciais. Este incremento da atividade política também esteve
relacionado, obviamente, à percepção—ou, talvez melhor dizendo,
evidência—amplamente compartilhada de que muitos obstáculos
permaneciam obstruindo a construção de uma democracia mais estável.
Entre estes, registremos tão somente as desigualdades sócio-econômicas
e raciais, além da persistência de uma das taxas de concentração de
renda mais dramáticas do planeta.
A violência como conceito na pesquisa musical

Um fenômeno paralelo, emergindo dos mesmos vetores, foi a progressiva


disseminação de organizações não-governamentais (ONGs) no Brasil,
com focos direcionados a responder de modo mais imediato questões em
áreas percebidas como carentes de desempenho ativo ou de investimento
do Estado e de outras agências públicas em geral. Assim, a atuação das
ONGs tem sido relacionada a temas de visibilidade como ecologia,
pobreza, prevenção de doenças sexualmente transmissíveis,
oportunidades de mobilidade social através da educação e da arte, todos
percebidos como alternativas à desintegração social e a formas de
sociabilidade violenta.

A eleição de Luiz Inácio Lula da Silva—ex-líder sindical metalúrgico e


preso político sob o regime militar, além de fundador e primeiro presidente
do Partido dos Trabalhadores—como presidente da república em 2002
pode ser—e, de fato, tem sido— percebida como um símbolo de
emergência e auto-reconhecimento dos movimentos sociais na história
recente do país. Não por acaso, o slogan principal da campanha
presidencial vitoriosa preconizava “Que a esperança vença o medo”.

Analisando a cultura da violência em sociedade construída à base de


concepções de propriedade privada e de Estado nacional, tal como a que
emerge durante as três últimas décadas na cidade do Rio de Janeiro,
permite traçarmos relações de afinidade e contraste com a teorização da
violência proposta por Pierre Clastres entre “sociedades-contra-o-estado”.
Em retrospecto, a violência, tanto em sua dimensão física quanto
simbólica, tem moldado vários aspectos da história sócio-política brasileira
por muito tempo. Entre estes, poderíamos lembrar rebeliões e repressão
em inúmeras formas: confrontos bélicos no período colonial, insurreições
da população negra escravizada, discriminação racial, hierarquias
culturais ativas, conflitos de terra, tortura brutal de prisioneiros políticos,
mortes por crime violento, obstáculos sócio-econômicos insuperáveis e
assim por diante.

Muitos analistas (e.g., Zaluar 2004; Misse 1995; Machado da Silva 1999)
concordam que o crescimento observado em indicadores da violência,
bem como da predominância de representações específicas da mesma no
debate público, se encontram invariavelmente associados à hegemonia do
tráfico de drogas nas áreas desassistidas pelo poder público.
Configurando um novo quadro das relações sociais no Rio de Janeiro das
últimas décadas, isto teria levado a referências alarmantes, registradas
nas mais diversas mídias, à existência de um estado-dentro-do-estado de
caráter criminoso ou para-legal; em senso comum, um Estado paralelo. As
ciências sociais têm desconstruído sistematicamente esta imagem
A violência como conceito na pesquisa musical

ideologicamente enviesada e demonizadora, que, na verdade, traduzia o


medo generalizado entre setores de classe media e classe media alta, em
que pese o fato de os eventos mais violentos terem lugar na áreas
residenciais mais pobres. Em contraponto à ênfase imediatista e
sensacionalista da questão, tais estudos têm apontado que sua gênese
estaria ligada, de fato à interação de diversos fatores, a saber: índices de
pobreza e desigualdade extremos; desemprego estrutural; facções
relativamente pouco estruturadas, embora com algum nível de
organização, controlando de modo violento pontos de venda de droga no
varejo; violência policial indiscriminada contra os pobres; o comércio
internacional atacadista de drogas e armas; e a cumplicidade social de
estratos socialmente diferenciados da sociedade, através de expedientes
como corrupção estatal e auto-consumo da “população civil”—todos os
fatores contribuindo coletivamente para a configuração de uma complexo
quebra-cabeças de não-fácil equação em termos de políticas públicas
(Misse 1995).

Os sinais mais visíveis da violência, sugerem estes estudiosos, possuem


mais correlações com as organizações de pequena escala, relativamente
autônomas entre si e precariamente estruturadas—embora mortalmente
predatórias—, por sua vez identificadas com um ou mais esquemas de
proteção a detentos em penitenciárias, conhecidos como “comandos”[10]
—i.e., detentos dirigindo ações organizadas, fora da prisão, por meio de
intermediários e telefones celulares. As micro-estruturas do varejo de
drogas possibilitam assim ligações locais com o fortemente estruturado
comércio internacional de armas e drogas, relacionado, por seu turno, à
corrupção de altos escalões do aparelho estatal. Os comandos[11], através
de organizações de pequena escala aliadas nas áreas residenciais mais
pobres e socialmente desassistidas, como as assim chamadas favelas,
estabelecem autoritariamente os limites reais e imaginários para a
circulação e a sociabilidade em áreas oficialmente definidas como bairro
residencial. O indivíduo que cruza tais barreiras arrisca a própria vida por
motivos tão absurdos como uma visita a parentes ou freqüência a uma
festa ou atividade musical em espaços controlados por organizações
diferentes daquela dominante no lugar em que mora.

Neste quadro, a emergência de uma cultura de guerreiros entre jovens


moradores de favelas lembra algumas das características destacadas por
Clastres em certas “sociedades-contra-o-estado”. Demonstrações de
bravura, crueldade e audácia transformam jovens e pobres “soldados”
(como são comumente denominados por suas facções) em “seres-para-a-
morte” em acepção análoga à proposta por Clastres, os quais dificilmente
ultrapassam a média de vinte e seis anos de idade (Zaluar 2004). No
A violência como conceito na pesquisa musical

entanto, em contraste com as sociedades-contra-o-estado, sua


capacidade de impor o terror à sociedade civil, incluindo “suas próprias
comunidades”[12], é, sem dúvida, imensa. Muito freqüentemente também,
este terror se alimenta da cobertura sensacionalista da mídia
transformando um “dono” isolado e relativamente desarticulado de um
ponto varejista em um “poderoso capo”. Daí infere-se uma importante
distinção em relação à teorização proposta por Clastres: uma facção
específica surge no corpo social mais amplo, concentrando poder
destrutivo real, e, como tal, assumindo o controle assumir o controle,
agindo no interior de uma sociedade de Estado como uma co-extensão do
mesmo (Machado da Silva 1999). A caracterização dos guerreiros
proposta por Clastres, no entanto, também parece aplicável no caso dos
jovens armados do tráfico de drogas, uma vez que a morte em combate
de um suposto chefe pela polícia ou facção rival—geralmente alardeada
como um evento de magnitude por todos os lados envolvidos—apenas
significa a substituição de um jovem morto por outro ser-para-a-morte, tão
temporariamente poderoso e frágil quanto seu predecessor.

Outra importante dimensão desta violenta escalada em torno do controle


do varejo do tráfico é, como apontado por Misse (1995), o papel crucial
por ela desempenhado na manutenção de padrões duradouros e
socialmente orquestrados de sub-remuneração da mão-de-obra no Brasil,
bem como sua estreita ligação com formas perversas de integração social
que impedem que a maioria da população usufrua o exercício pleno da
cidadania. Tal situação torna lucrativa a atividade ilícita em geral, qualquer
que seja sua natureza, e permanente a possibilidade de crescentes
demonstrações de violência criminosa. Dito de outro modo, seria ingênuo
acreditar, como insistem muitos interesses políticos que se aproveitam
deste terror socialmente produzido, que debilitar ou mesmo erradicar o
tráfico de drogas significaria reduzir ou eliminar este tipo de violência.
Neste sentido, vale recordar a advertência de Clastres, de que conhecer
mal a violência, -- i.e. assumir que possa ser erradicada da experiência
humana-- , significa conhecer igualmente mal a sociedade.

Um dos mais evidentes resultados dessa crescente desigualdade tem sido


a emergência de áreas residenciais desassistidas pelo poder público e
submetidas ao poder do crime em virtualmente todas as cidades
brasileiras, muitas das quais são rotuladas favelas, como se tornou
comum no país a partir de um assentamento urbano específico do século
XIX no Rio de Janeiro. Através de sua história de mais de um século,
favelas têm estado sujeitas a representações elitistas de medo (reduto das
“classes perigosas”) e admiração (por sua cultura singular e vigorosa, em
particular sua música), levando a políticas públicas de erradicação e
A violência como conceito na pesquisa musical

realocação, de eficácia variada (Zaluar e Alvito 2000). Diferentes


categorias têm sido aplicadas para definição de tais areas urbanas,
nenhuma delas, porém, obtendo consenso entre seus residentes ou
outsiders. Os primeiros utilizam alternativamente os termos favela ou
comunidade, enquanto a polícia prefere a expressão militar “complexo”
(e.g., Complexo da Maré), ao passo que o jargão tecnocrático neoliberal
recente produziu o híbrido “favela-bairro”.

É importante aqui um parêntese para que possamos destacar a enorme


ambigüidade conceitual, notada por Löic Wacquant (2004), no que
concerne às categorias desenvolvidas acerca dos núcleos residenciais
urbanos das grandes metrópoles que congregam majoritariamente os
estratos subalternos da hierarquia social de base capitalista. “Favela”, no
caso brasileiro, seria algo definível entre “slum”, “ghetto” e “inner city” no
caso norte-americano, encerrando, segundo o sociólogo francês, os
quatro requisitos que elevariam os três termos em inglês de um plano
meramente descritivo e circunstancial a categoria sociológica abrangente:
estigma, constrangimento/repressão (constraint), confinamento espacial e
a criação de instituições locais voltadas para o atendimento de demandas
internas (WACQUANT 2004). No contexto mundial da década de 1990, de
hegemonia neo-liberal, desindustrialização e conseqüente deterioração de
redes institucionais “tradicionais” (laborais, culturais etc.) dos guetos
teriam levado, ainda segundo o mesmo autor, à hegemonia do tráfico de
drogas como instituição nas áreas em questão.

Tal fato, como apontado por José Murilo de Carvalho (PANDOLFI e


GRYNSZPAN 2003), coincide com a fundação, também a partir da
Segunda Guerra Mundial, de várias organizações sediadas no Brasil que
seguem um modelo de sociedade filantrópica sem fins lucrativos centrada
na assistência às carências dos mais pobres setores da sociedade,
definidas a partir de percepções vigentes entre as próprias organizações
(habitação, saúde, educação profissional etc.). Com a redemocratização,
a partir da década de 1980, multiplicaram-se no Brasil ONGs com focos
bem mais diversificados (ecologia, auto-sustentabilidade, sobrevivência
cultural, ensino de música, etc.) e não necessariamente direcionados aos
setores mais pobres da sociedade. O surgimento de ONGs criadas por
movimentos comunitários de tipos variados, tanto em áreas rurais quanto
urbanas, representa um estágio mais recente da trajetória sinteticamente
recuperada neste texto (idem).

Um aspecto relevante para a perspectiva particular aqui apresentada é a


ênfase de vários dos assim chamados “projetos sociais” em focos
artísticos, a música incluída, que são geralmente patrocinados por
A violência como conceito na pesquisa musical

agências e instituições externas à comunidade, públicas e privadas, e


administradas financeira e operacionalmente pelas ONGs. Os projetos
artísticos, em geral de ensino, em alguns casos com ideal
profissionalizante, são tipicamente propostos à ONG comunitária por
artistas ou coletivos artísticos externos à comunidade (i.e., não-residentes
em seus limites espaciais). A credibilidade dos proponentes, seja quais
forem os critérios que a avaliem, constitui fator capital na captação de
recursos, mas eventualmente a projeção social do artista-proponente
também terá uma influência muito grande, ou talvez ainda maior que a da
própria ONG, sobre a abertura de determinadas portas. Os programas ou,
termo mais recorrente entre as partes envolvidas, “projetos artísticos”,
incluindo os musicais, possuem focos variados, desde a transmissão de
noções de leitura e escrita musicais à formação de orquestras e grupos de
flauta-doce ou de percussão. Rotineiramente, inexiste integração
curricular ou mesmo informal entre os mesmos, o que reflete, de um modo
geral, a dificuldade das ONGs em acompanhar os diversos projetos em
andamento sob sua tutela. Disso resulta uma certa desarticulação e, não
raro, contradições entre os respectivos conteúdos e objetivos dos
inúmeros projetos abrigados por uma ONG[13].

Contexto de pesquisa
A concepção da pesquisa sobre a música, memória e sociabilidade na
Maré, Rio de Janeiro, atualmente em andamento, surgiu como
desdobramento de uma série de discussões entre professores e alunos da
área de etnomusicologia no âmbito da Escola de Música da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tentando assimilar alguns dos debates
cruciais em antropologia (as assim chamadas “crises” da representação e
da autoridade etnográfica, o valor e modo de inserção da voz nativa como
contribuição ao debate acadêmico, etc.) e, em conseqüência deles,
procurando vislumbrar objetivos e metodologias de pesquisa
experimentais. Estudos de pequena escala, conduzidos principalmente
por alunos de pós-graduação (CAMBRIA 2002, MARQUES 2003)[14],
resultaram em trabalhos de pesquisa e dissertações que buscavam
combinar estratégias mais tradicionais de observação participante com
formas “dialógicas” de etnografia, estas incluindo cuidadosa negociação
de focos e formas de difusão das respectivas pesquisas. À medida que
tais discussões se tornaram mais sólidas e os resultados parciais mais
palpáveis e difundidos através de dissertações, publicações e
participações em simpósios, algumas ONGs comunitárias da cidade do
Rio de Janeiro procuraram pelo Laboratório de Etnomusicologia da UFRJ
A violência como conceito na pesquisa musical

(LE/UFRJ), em busca de parcerias direcionadas ao estabelecimento de


bancos de dados locais, talvez como “resultado” mais imediatamente
identificável dos projetos anteriores. Representantes de ONGs estiveram
presentes, por exemplo, em painel sobre etnomusicologia aplicada
realizado no XXXVI Congresso Mundial do Iinternational Council for
Traditional Music (ICTM), revelando interesse em replicar experiências
anteriores do Laboratório com a formação de bancos de dados em
comunidades das cidades de Cachoeira (MARQUES 2003) e Ilhéus
(Cambria 2002), ambas localizadas no estado da Bahia.

Por razões variadas, a primeira parceria do LE/ foi firmada com o CEASM
(Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré), uma ONG criada por
moradores de uma das áreas residenciais do Rio mais estigmatizadas
pela equação favela-exclusão-tráfico-violência, representação parcial mas
decerto recorrente como “verdade”, por viés conservador e discriminatório,
em certo espectro do imaginário carioca, de formuladores de políticas
púbicas a agentes do aparelho repressivo de Estado.

A população da Maré é estimada em cerca de 132.000 habitantes,


distribuídos em subáreas distintas (o cálculo do número varia entre 11 e
16 subunidades), envolvendo distinções sociais, econômicas e
demográficas significativas. As populações respectivas de cada uma
dessas comunidades variam entre algo em torno de 8.000 e 25.000
habitantes, e derivam de populações removidas de outras favelas
localidades do Rio ou de processos migratórios de trabalhadores não-
qualificados para o trabalho industrial—em sua maioria, nordestinos—ou
até mesmo de movimentos migratórios internacionais como é o caso dos
mais de 1.000 angolanos, entre estudantes e refugiados de guerra, que lá
vivem. Tais referenciais delineiam apenas os contornos humanos e
culturais mais amplos da área da Maré, pontuados por uma dura
exposição a violentas incursões policiais, à corrupção do poder público e a
lutas sangrentas entre facções do tráfico de drogas em disputa pelo
controle de territórios.

Por outro lado, a parceira institucional do LE-UFRJ é uma das mais


visíveis e reputadas ONGs comunitárias do Rio de Janeiro, dispondo de
considerável infra-estrutura (quatro prédios localizados na comunidade,
dependências administrativas bem equipadas, salas de aula com bom
suporte de equipamentos, salas de informática, biblioteca e alguns bancos
de dados) e um forte foco na preparação de jovens da Maré para o exame
vestibular ao ensino superior, com ênfase óbvia nas instituições públicas e
gratuitas. Tanto quanto se pode afirmar através de continuada
interlocução com lideranças locais, um retorno desejado dos programas
A violência como conceito na pesquisa musical

de arte endossados pela ONG é a complementação do foco mais


instrumental desta última (admissão aos cursos universitários), por meio
do desenvolvimento de outras capacidades que contribuam para a
formação geral do indivíduo.

O objetivo inicial da colaboração CEASM/LE-UFRJ foi então definido em


torno da criação de um banco de dados sobre a produção musical na
Maré, antevendo-se sua contribuição para a experiência global de seus
moradores, notadamente os participantes de projetos culturais, em áreas
como música, dança, teatro, contação de estórias, memória social, etc.

Música e sociabilidade na Maré


Uma versão inicial do projeto foi preparada por uma equipe do LE-
UFRJ,[15] tendo como principais pontos de partida: a) - o retorno positivo,
tanto em termos éticos quanto epistemológicos, de experiências prévias
em pequena escala, envolvendo modos alternativos de etnografia cujos
respectivos focos foram negociados entre os pesquisadores universitários
e membros dos grupos estudados, e o envolvimento destes em vários
estágios da pesquisa propriamente dita[16]; b) - em contraste com os muitos
dos projetos artísticos em andamento, a ênfase nos recursos musicais
produzidos ou disponíveis localmente; c) - a experiência acumulada
considerável em sub-campos da pesquisa acadêmica qualificados como
“aplicados”, “advocatícios”, e “participativos” nas ciências humanas,
incluída a etnomusicologia, e a disponibilidade de literatura a eles
relacionada; d) - o suporte institucional de agências de fomento e da
universidade em meio a um quadro político de crescente consciência das
acachapantes desigualdades sociais, políticas e econômicas vigentes no
país. [17]

Discussões intensas com representantes da ONG (diretores, educadores


e historiadores) levaram ao desenvolvimento de um projeto de um ano de
duração restrito a duas sub-áreas da Maré e envolvendo três estágios
básicos. O primeiro deles consistiria de dois encontros semanais por um
período de quatro de meses com um grupo de vinte estudantes de escola
de 2º grau residentes na comunidade, selecionados entre voluntários em
sua maioria já ligados a outros projetos, com o objetivo de identificar áreas
temáticas para o banco de dados e desenvolver uma base conceitual para
a documentação a constar do banco de dados. Para tal, utilizou-se
estratégia moldada em torno da teoria de conhecimento esboçada por
Paulo Freire (1970, 1996), em que os pesquisadores universitários servem
A violência como conceito na pesquisa musical

tão somente como mediadores do debate entre os pesquisadores


“nativos” sobre categorias e objetos relevantes para a pesquisa musical.

O segundo estágio daria início à documentação propriamente dita de


práticas musicais e depoimentos em suportes de áudio e imagem,
preparando os materiais para a terceira e última etapa do projeto inicial, a
de construção de um banco de dados de acesso público na Maré,
localizado em uma das dependências do CEASM,[18] e o desenvolvimento
de programas de difusão de seu conteúdo entre a comunidade e entre o
público em geral, aqui incluído o meio acadêmico.

Políticas públicas para a juventude: críticas e


considerações acerca de uma nova concepção.
“De uns tempos para cá tenho pensado muito nos projetos pelos quais
passei e de fato sinto que sempre fomos tratados como seres
necessitados de ações concretas que pudessem nos ajudar a sair de uma
situação de risco”

Esta fala de Jaqueline[19] constitui um bom ponto de partida para fazermos


neste artigo algumas considerações relevantes, acerca das políticas
públicas para a juventude, no Brasil, em particular, na cidade do Rio de
Janeiro. Tratamos aqui de iniciativas governamentais ou originadas a
partir de organizações filantrópicas, que têm como objetivo principal criar
para os jovens alternativas aos caminhos da marginalidade. Normalmente,
esses projetos atuam nas áreas favelizadas da cidade, já que esses
locais, supostamente excluídos da sociedade formal são vistos como o
grande foco de ações criminosas.

Sendo assim, “é melhor prevenir do que remediar”. Conhecido ditado


popular, que traduz em parte as ações de inúmeros projetos sociais
atuantes em favelas, onde muitos jovens encontram-se engajados na
prática de capoeira, música, teatro, futebol, entre outras atividades. A
presença de tais iniciativas em muitos casos tem por base o argumento
sintetizado por esse ditado, ou seja, em um contexto de criminalidade
intensa é preciso afastar o jovem de qualquer possibilidade de
envolvimento com práticas ilegais. Neste sentido, a ocupação do tempo
torna-se essencial, uma vez que, como afirma outro ditado famoso:
“mente vazia é oficina do diabo”, isto é, ócio disponível para o favelado é
sempre um sinal de perigo. Para esse personagem, “tão coitado ou
A violência como conceito na pesquisa musical

potencialmente perigoso” torna-se imprescindível um emprego ou um


projeto social, valendo a lembrança de que a primeira hipótese, no atual
cenário nacional, anda difícil, enquanto a segunda se multiplica cada vez
mais.

Tal lógica é perversa, pois parte de um entendimento parcial da favela.


Nesse modo de pensar, os jovens residentes favelados são potenciais
criminosos, seja pelo contexto local de violência ou mesmo pelas
condições adversas que enfrentam. De acordo com esse raciocínio os
projetos sociais, afastando os jovens da criminalidade, estariam também
colaborando para a “segurança pública”.

De todo modo, nem todos os projetos lançam esse olhar criminalizante


sobre os espaços populares. Entretanto, muitos ainda guardam forte dose
de estereótipo. Sem meias palavras, ao invés de “coitados” os favelados
tornam-se “exóticos”. Traduzindo esta situação por meio de mais um
ditado popular, “a necessidade é mãe da criatividade”. Aqui, o objetivo é
fazer com que a favela ao invés de produzir o inimigo público número um,
ofereça o grande craque do futebol, ou, quem sabe, o sambista do
momento.

Nenhuma das duas perspectivas, apesar de dispensarem aos jovens


tratamento diferenciado, discute as condições que permitem a favelização
e possíveis soluções para que se construa uma cidade mais justa. É um
perfil de trabalho assistencialista e não transformador, tornando com isso
difícil imaginar que esse jovem “atendido” de fato se tornará um
protagonista de mudanças significativas para ele mesmo e para seus
pares (vizinhos, amigos, parentes e demais da rede comunitária).

As políticas públicas para a juventude, nesse sentido, discutem muito


pouco as questões concernentes ao que denominam “protagonismo
juvenil” que, na maioria das vezes, entende a participação dos jovens nos
processos políticos de mudanças como meros executores de projetos já
pré-concebidos, seja por iniciativas dos próprios governos, seja por
iniciativas das diversas ONGs.

Destacaremos aqui, como uma concepção contrastante, a colaboração


por período de mais de três anos entre uma equipe de pesquisadores do
Laboratório de Etnomusicologia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro e uma equipe de pesquisadores, formada pela anterior, entre 20
jovens residentes do Bairro Maré, área residencial na cidade do Rio de
Janeiro estigmatizada pela exclusão social e violência relacionada ao
comércio ilegal de drogas e à desintegração do tecido social como um
A violência como conceito na pesquisa musical

todo. Procuraremos estabelecer inicialmente correlações entre a pesquisa


etnomusicológica e a pedagogia de Paulo Freire, procurando destacar
nesta as implicações da revolução cognitiva proposta. Em seguida,
empreenderemos um balanço do processo de formação de um grupo de
pesquisa musical na Maré e de suas primeiras experiências em definir
focos de pesquisa e registros de som e imagem. Por fim, coloca-se em
questão os eixos das políticas públicas para a juventude, sugerindo novos
enfoques que as direcionem para além do plano emergencial em que
geralmente são pensadas.

Com base nos princípios da pedagogia de Paulo Freire, eixo fundamental


do projeto, argumenta-se aqui que, a partir do momento em que os
moradores se redefinem como sujeitos históricos, se auto-pesquisam e
produzem documentos (textuais, sonoros e audiovisuais) que conduzam à
reflexão sobre si mesmos, mais que à triste contemplação de sua própria
virtualidade, o direito à autoria coletiva, no sentido freireano de autonomia
do pensar e fazer, se insinua como subversão da discussão hoje
predominante centrada exclusivamente em noções de autoria como
propriedade privada. Com isso, procura-se apontar para aqueles vetores
que realmente impulsionam a configuração do “problema”, como a
regulação da vida por concepções de mercado, o drama agudo da
exclusão social e a banalização da vida cotidiana rumo à “representação”
sem significado. Resgatar o papel das representações sonoras e
imagéticas—sugere-se—se torna possível tão somente em outro quadro
de relações cognitivas, em que o conhecimento, em si, deixe de ser índice
de relações assimétricas de poder e instrumento de dominação,
separando antagonicamente sujeitos e objetos sociais, para tornar-se um
patrimônio humanamente construído e compartilhado.

Um encontro entre o pensamento de paulo


freire e a etnomusicologia
De um modo geral, a pesquisa etnomusicológica é concebida pelo senso
comum como o estudo de uma cultura musical estranha à experiência do
pesquisador. Sob esse viés, a compreensão dos fenômenos,
conhecimentos, acordos e desavenças que constituem uma tal cultura
parecerá ao pesquisador tão mais difícil quanto estranhas forem a práticas
por ele observadas, a língua que veicula os conhecimentos pertinentes à
cultura e os discursos em torno dos mesmos. A pesquisa propriamente
dita requereria, assim, a observação e participação do pesquisador, na
A violência como conceito na pesquisa musical

medida do possível, na cultura sendo pesquisada, a realização de


registros variados da mesma (caderno de campo, vídeo, áudio etc.) e a
interpretação do observado e registrado em termos de uma discussão
acadêmica que, muito comumente, toma a forma escrita como principal
veículo. Poderíamos dizer, portanto, que esse tipo de pesquisa assume
inicialmente uma postura bastante despojada de pretensões em relação
ao conhecimento estranho e desafiador, que já se encontra construído no
universo a ser observado, através de um processo de iniciação
progressiva, até que a aquisição de uma certa competência cultural, ou a
capacidade de operar com os códigos de conduta “internos às culturas
observadas”, permitam um discurso mais reflexivo acerca das mesmas. O
grau em que esse discurso vai poder reivindicar autoridade sobre a cultura
observada e excelência na interpretação da mesma vai depender de
muitos fatores, como, entre muitos outros, a legitimação de tal pesquisa
no campo de conhecimento em questão, o renome do pesquisador a
instituição que representa, a quantidade de publicações por ela gerada e a
repercussão do trabalho realizado será tão maior quanto o forem o
“exotismo” atribuído implícita ou explicitamente à cultura pesquisada na
percepção do meio acadêmico que valoriza o racionalismo e a ciência e,
conseqüentemente, o desafio interpretativo enfrentado pelo pesquisador,
e o reconhecimento dos pesquisados por “algo bom” que a pesquisa lhes
tenha retornado. Quando, porém, essa interpretação (“conhecimento”)
leva à identificação de alguma forma de distorção, estereotipação ou
estigma atribuídos à cultura em estudo, ou, pior, chega ser contestada
pelos próprios pesquisados, põe-se sob suspeita não apenas o trabalho
de pesquisa específico responsável por esse tipo de desacordo entre
pesquisados e pesquisadores, mas toda a área de pesquisa por estes
últimos representada.

Por outro lado, ao nos defrontarmos com percepções de senso comum


relativas à educação (incluída a musical), que muitas vezes estão
embutidas em práticas educacionais concretas, e em muitas das
experiências já mencionadas de ensino de artes através de ONGs,
também podemos encontrar semelhante margem de equívoco entre o que
se propõe como caminho à construção do conhecimento, o papel ativo
reservado exclusivamente ao educador, e, por outro lado e como um
termo antagônico ao conhecimento, a experiência daqueles que deveriam
ser sujeitos desse processo de construção, os educandos. Tais
concepções e práticas foram denominadas “bancárias” por Paulo Freire
(1996), implicando que a experiência e universo cognitivo dos educandos
é reduzido a uma espécie de estado de latência “à espera de” um
conhecimento pré-formatado em contextos socialmente distantes e,
muitas vezes, adversos à promoção da autonomia do educando.
A violência como conceito na pesquisa musical

Desnecessário lembrar aqui os muitos paradoxos dessa charada. Um


exemplo apenas: a redução relativa de índices de analfabetismo que tem
por único efeito o incremento dos índices do assim chamado
analfabetismo funcional.

Notemos aqui a simetria quase absoluta entre os dois processos


cognitivos comentados brevemente até aqui. No primeiro, pesquisa
etnomusicológica, o conhecimento (uma cultura musical “estranha”) é
dado como pré-existente à intervenção de um agente externo, o
pesquisador, que fará de início um grande esforço de codificação em
termos simultaneamente inteligíveis às culturas respectivas dos
pesquisados (tanto quanto for possível, a chamada teoria musical nativa)
e do pesquisador (a chamada “teoria da música”, quase sempre extraída
música erudita ocidental), para finalmente ser capaz de decodificar seus
significados em termo inteligíveis tão somente à própria cultura do
pesquisador (“a verdadeira teoria”), já que o pesquisado dificilmente terá
acesso ao (ou interesse pelo) produto final da pesquisa. No segundo caso,
da ação educativa, o conhecimento (em nosso caso, “a música” também
definida como uma cultura “estranha”) já se encontra pré-codificado em
termos inteligíveis à cultura do agente “externo”, o educador (em geral, no
nosso caso específico, música com teor “educacional” avalizada por
instâncias escolares), que procura decodificá-lo em termos inteligíveis aos
educandos (supostamente carentes de “conhecimentos musicais”).

Em ambas as situações, portanto, o senso comum tomaria o agente


externo como termo ativo de uma desejável equação cognitiva: entre o
conhecimento produzido pelo pesquisador e o conhecimento que
conforma a experiência do pesquisado, entre o conhecimento depositado
no educador e o a ser depositado no educando. Em ambas, essa equação
tenderá ao fracasso, como assinalado tanto por Paulo Freire quanto por
certos antropólogos e etnomusicólogos, quanto maior for o fosso entre a
experiência e poder de vocalização das diferentes culturas impedidas de
real diálogo, quanto maior negação de um papel mais ativo ao pesquisado
ou ao educando, quanto maior a violência simbólica da cultura dominante
sobre as subalternas.

Colocamos diante da pesquisa colaborativa que se iniciava na Maré as


seguintes questões: o que aconteceria se pudéssemos vislumbrar um
outro mundo em que tanto a pesquisa quanto a ação educativa
reservassem um papel ativo a, respectivamente, pesquisados e
educandos? (Ninguém educa ninguém, insiste Paulo Freire em várias
ocasiões) Poder-se-ia imaginar a produção de um outro tipo de
conhecimento em tal mundo transformado, talvez qualitativamente
A violência como conceito na pesquisa musical

superior ao do modo “tradicional” (no sentido de “tradições disciplinares”)


ou “bancário”? Nesse caso, dissolver-se-ia qualquer distinção entre
pesquisa e educação?

Olhar local definindo temas para uma pesquisa


da Maré
Um grande número de questões potenciais emergiu durante as
discussões da primeira etapa da pesquisa em foco. Por questão de
espaço, examinaremos aqui apenas algumas entre as mais recorrentes.

As diferenças entre as experiências musicais individuais no âmbito do


próprio grupo de residentes locais foram imediatamente percebidas pelo
mesmo e discutidas como traço presente na experiência comunitária como
um todo. Após algumas discussões que serviram ao amadurecimento da
questão e superação, parcial pelo menos, de certo individualismo na
apreciação da experiência alheia, a noção de paisagem sonora
(SCHAFER 1977a, 1997b) foi introduzida pelos pesquisadores
universitários e reconhecida, de um modo geral, como pertinente à
questão em análise. Na paisagem sonora da Maré, foram identificados
gêneros definidos inicialmente o pagode, forró, rock, reggae, gospel
(música popular evangélica) e o funk (incluído o “proibidão”, ligado à
apologia do tráfico de drogas), mas também incluindo, tipos de música
ouvidos por segmentos minoritários, como o pop africano ouvido por
angolanos. Constatou-se também muito rapidamente que cada um desses
gêneros pode ser “a” escolha exclusiva de um indivíduo ou fazer parte de
um espectro mais amplo de opções em seu cardápio auditivo, o mesmo
podendo ser dito sobre as fontes de experiência musical para os
residentes da comunidade, que envolvem uma ampla gama de recursos
midiáticos, eventos públicos e privados, em espaços fechados ou abertos,
próximos ou distantes (outros bairros, centro da cidade), um leque enfim,
não muito diferente do disponível à maioria dos habitantes da cidade. À
medida que tais discussões foram aprofundadas, as distinções entre
gostos musicais foram reconhecidas como relacionadas a fatores como
idade, educação formal, afiliação religiosa, período de residência na Maré
e proximidade relativa com o tráfico de drogas (o que não significa
necessariamente envolvimento direto).

É relevante notar também que a revelação e análise iniciais dessas


diferenças, com se poderia esperar, deu margem a extensos períodos de
A violência como conceito na pesquisa musical

silêncio significativo (ver FREIRE 1970) entre os participantes do grupo


em formação durante os primeiros encontros. Pouco a pouco, no entanto,
determinadas estratégias de interação propostas pelos pesquisadores
universitários[20] abriram a cada um dos participantes a possibilidade de
apreciação de forma e conteúdo dos estilos musicais preferidos pelos
demais estudantes.

Outro tema significativo que emergiu nas primeiras discussões foi o


impacto da violência sobre a vida social em geral, mas particularmente
sobre a vida musical. Violência, nas discussões realizadas, apareceu
quase sempre relacionada ao tráfico de drogas (as “guerras” por território)
e/ou à ação policial em geral. É importante registrar que os exemplos de
violência abordados nos debates sejam freqüentemente associados aos
sons significativos de suas variadas manifestações, as referências
específicas podendo ir do volume de um alto-falante de entidade de
religiosa tentando “abafar” o ruído amedrontador da luta armada a rajadas
de metralhadora em meio ao baile que segue. Isso, por outro lado, torna
particularmente mais relevante a ênfase na categoria “som” do que em
noções, mesmo as mais elásticas e abrangentes de “música”, ao tratar-se
de mapeamento do contínuo entre a criação e a experiência mediadas
pelo som. Nesse ponto, vale retomar a noção de paisagem sonora de
Schafer, ressaltando, porém seu caráter descritivo de uma realidade dada,
a partir da qual se pensa novas formas de intervenção ou composição.
Vale, porém, destacar igualmente a relevância de se pensar o contínuo
que move a experiência humana entre sons perceptíveis e sons
significativos, estes últimos marcados por situações mais ou menos
ritualizadas, ou, em outras palavras, as formas de agência sobre as
paisagens sonoras e as condições de sua produção (ver ARAUJO 1992).

Não obstante a violência física em estado latente e o terror que se impõe


em dados momentos, a violência tem aparecido mais freqüentemente nos
discursos dos pesquisadores da Maré sob sua forma mais sub-reptícia e
eficazmente perversa: como violência simbólica (BOURDIEU 1997).
Reconhecida apenas ocasionalmente e, ainda assim, em estágio muito
recente das discussões, a violência simbólica aparece muitas vezes sob a
forma da depreciação da produção local—ou até mesmo incredulidade
diante do fato de que esta idéia possa ter sentido—pelos próprios
residentes, talvez como resultado de anos de políticas voltadas ao que
lhes “falta”. A adoção de uma perspectiva dialógica e não diretiva, com
ênfase em questões que sejam relevantes aos sujeitos do diálogo, sempre
encontra uma grande resistência interna dos próprios (ver FREIRE, 1970).
No entanto, à medida que são superados os mecanismos de violência
simbólica que lhes impõem visões de mundo conservadoras, e a eles
A violência como conceito na pesquisa musical

próprios contrárias, não apenas é modificada a atitude em relação à


construção de conhecimento, dissolvendo contradições inexistentes entre
o plano particular e o geral, mas continuamente reinventada a agenda de
pesquisa de temáticas significativas.

A violência simbólica tem aparecido também sob a forma de conceitos


acerca de práticas locais mas concebidos a partir de visões externas
socialmente legitimadas, tais como o discurso acadêmico ou de agências
de Estado, que “congelam”, por assim dizer, as práticas sociais, falhando
em reconhecer, ou, de acordo com Bourdieu (1997), “reconhecendo”
erroneamente estratégias práticas dinâmicas, apresentando-as como
categorias relativamente “fechadas” que não fazem o menor sentido no
mundo real. Isso tem sérias implicações uma vez que as discussões entre
os pesquisadores residentes na Maré têm revelado usos particulares
locais de categorias aparentemente estabelecidas com diferentes sentidos
no meio acadêmico, lado a lado do uso de categorias de amplo uso local
que permanecem absolutamente excluídas dos estudos acadêmicos da
exclusão e da violência. Conseqüentemente, tem surgido como questão a
pertinência ou mesmo a relativa inocuidade de muitos rótulos e
abordagens centradas em categorias aparentemente estabelecidas
(samba, forró, funk etc.) que permeiam a literatura sobre as culturas
musicais populares no Brasil vis-à-vis a extremamente significativa,
embora amplamente ignorada, práxis sonora que move as lutas diárias
pela sobrevivência física e emocional.

Políticas (1): Ação do estado e proliferação de


ONGs
Nosso último objetivo neste artigo é considerar em que medida os
resultados do projeto de formação de pesquisadores entre residentes da
Maré, realizado em parceria com uma instituição universitária pública,
abre caminho a se pensar em políticas públicas alternativas para a
juventude que tenham a música como foco. Antes disso, cabem algumas
considerações acerca da proliferação de projetos sociais geridos por
ONGs em áreas pobres da cidade. Compete-nos, acima de tudo,
questionar diante disso se as políticas para juventude que partem dessas
organizações atendem de fato as reais necessidades das populações a
que são, ao menos em tese, destinadas e se contribuem efetivamente
para transformações estruturais da sociedade.
A violência como conceito na pesquisa musical

Inicialmente, devemos não nos esquecer que as ONGs estão inseridas


dentro de um projeto político neoliberal que entende a ação do Estado
como idealmente descentralizada sob as rédeas da iniciativa privada.
Nesse sentido, as diversas atividades promovidas pelas organizações não
governamentais caracterizam-se, na maioria dos casos, pela substituição
do poder público, construindo uma rede de produtos culturais
mercadológicos (livros sobre violência, CDs de grupos musicais diversos,
etc) que objetivam angariar mais recursos para a manutenção das
próprias instituições e, assim, realizarem outros projetos sociais de cunho
“salvacionista” e assistencial. Um círculo vicioso perverso que pouco toca
em questões de transformação de fato e concepção de um novo mundo.

Poderíamos citar inúmeros casos que exemplificam essa relação entre


poder público, população e instituições terceirizadas, entretanto, nos
deteremos apenas em três. A educação é o primeiro exemplo bastante
significativo dessa realidade. Por que, afinal, grandes quantias de
recursos que muitas vezes partem do próprio Estado acabam indo
diretamente para as ONGs e não para a escola enquanto instituição?

A resposta a essa questão, certamente, não se resume em poucas


palavras escritas e nem constitui intenção deste artigo analisar
profundamente esse ponto. Cabe-nos apenas constatar a existência do
problema e atentar para o fato de que é insatisfatório, no Brasil, o
investimento no sistema público educacional. Especialmente, no que
concerne ao ensino fundamental e médio, o sucateamento das instituições
escolares torna-se crescente, o que dificulta muito o acesso por parte dos
jovens (de classe pobre) ä uma educação de boa qualidade que
contemple todos os aspectos de uma formação, não apenas para o
mercado de trabalho, mas para uma compreensão ampla do mundo.
Neste vácuo, deixado pelo próprio Estado, as “soluções” logo aparecem
sob a forma de uma ONG. Delega-se a tais iniciativas inúmeros projetos
de complementação escolar com verbas públicas sob gerenciamento
privado, na maioria das vezes, inibindo a pressão social por mais
investimentos diretos em educação (i.e., nas escolas públicas, salários
dos professores, etc).

Entretanto, os resultados obtidos com as ações não governamentais


pouco efeito produzem na vida dos estudantes que, ora são preparados,
exclusivamente, para o exercício de funções subalternas no mercado de
trabalho (auxiliar de serviços gerais, office boy, etc), ora são envolvidos
em atividades “lúdicas” em artes com pouquíssimo objetivo pedagógico.

O segundo exemplo da relação entre Estado, sociedade e ONGs, trata-se


A violência como conceito na pesquisa musical

justamente dos chamados “projetos culturais” que se espalham de forma


impressionante nos espaços de favela na cidade e que se embasam,
quase sempre, no mesmo argumento anteriormente comentado neste
texto: é preciso que o favelado esteja sempre fazendo alguma atividade
artística, pois, dessa forma, diminuirão as chances de que o mesmo
ingresse no tráfico de drogas.

Nesse sentido, grande número de projetos culturais em favelas acaba


assumindo a posição de postos de trabalho em substituição ao emprego
formal, alternativa cada vez mais difícil de encontrar. De certo modo, são
vistos pelos jovens como um ganho a mais enquanto procuram
paralelamente uma ocupação profissional.

O maior problema, no entanto, é a duração desses projetos (contratos


temporários que não garantem a menor estabilidade) e o tipo de
organização do ensino que caracteriza a instituição promotora da
iniciativa. Em alguns casos, os jovens estão ali para aprender de uma
forma acrítica, em que ele é apenas o receptor de determinado ensino e
não tem qualquer participação na formulação dos conteúdos. Será que os
organizadores estariam preocupados em saber o que os jovens sentem,
se eles se importam ou até mesmo se gostariam de assumir
responsabilidades ou trocar experiências cotidianas além da participação
em projetos?

Uma outra questão importante a se levantar diz respeito à própria fantasia


profissional que é vendida dentro de tal perspectiva. Parece haver o
pressuposto de que todos aqueles garotos que aprendam a tocar
minimamente um instrumento, a cantar ou a dançar estariam prontos para
ingressar no mercado artístico. Neste mundo fantástico é criada a ilusão
de que todos têm aptidão para arte, farão sucesso e ganharão muito
dinheiro desta maneira. Sendo assim, cada vez mais são mostrados,
nacional e internacionalmente, os exemplos de vitórias individuais como o
modelo esperado. Cabe aqui, contudo, perguntar: será que há tanto
espaço assim, no meio artístico, para todos os artistas e grupos
formados? E ainda: o que fazer com o jovem que não se interessar por
dançar ou cantar, por exemplo? Será que todos da favela já nascem com
paixão pelo tambor? A vitória individual daquele indivíduo transformará
toda a sociedade?

Dentro dessa perspectiva, novamente o individualismo e o mérito pessoal


é que importam. O fato de a grande maioria das pessoas não poder tocar
tambor para sobreviver não faz nenhuma diferença, o que importa é que
aquele indivíduo em particular não vai entrar para o tráfico, virar
A violência como conceito na pesquisa musical

assaltante, ou de alguma forma incomodar a classe média, salvemos um e


ele, então, servirá de exemplo. Outra vez, os jovens são individualmente
responsabilizados pelas mazelas nacionais (negro indolente, indígena
preguiçoso, pobre vagabundo), enquanto nossa “democracia plena e
justa” proporcionaria então a mesma condição a todos, igualdade de
oportunidades (“querer é poder”).

Enquanto a maior parte da população negra e pobre é duramente


reprimida e expropriada de direitos, uma minoria surge como exemplo de
possibilidade de ascensão social através da arte, (dos projetos culturais) e
com isso, fazendo com que aquele sujeito pobre se ache incompetente, já
que alguém que compartilha sua condição social chegou lá! Porque ele
também não consegue?

Propomos que a questão principal, nesse sentido, seja: de que adianta o


menino bater tambor durante o dia, sonhando entrar para o seleto grupo
de artistas da “exuberante” música popular brasileira, e à tarde, supondo
que ainda vá à escola, não assistir aula de matemática, física ou história
por falta de professor?

Essas são questões essenciais que nos permitem pensar o grau de


eficiência desses projetos e quais formas alternativas de planejamento de
políticas públicas para e com a juventude podem ser pensadas de uma
maneira mais interessante e dialógica. Até porque um outro
questionamento a respeito desse assunto não poderia de deixar de ser
registrado neste artigo: muitos jovens de classe média e alta tiveram toda
a vida acesso a educação de boa qualidade, às artes em geral e à dita
cultura “letrada” e, ainda assim, muitos deles traficam e consomem
drogas. Será que, para eles, a “cultura” ou a “arte” não funcionaram?

Por último, nosso terceiro exemplo da relação entre Estado e sociedade


civil está intimamente ligado ao problema da violência. Ao se planejar
políticas públicas para a juventude de forma intrinsecamente ligada à
questão da segurança pública, o Estado entende o jovem envolvido com o
tráfico de drogas – e, de maneira mais geral, o espaço de moradia
representado por ele – como o responsável pelo grande estado de mazela
em que se encontra a sociedade.

A construção desta “imagem perigosa” parte, em grande medida, dos


próprios meios de comunicação que formam a opinião pública negativa a
respeito dos espaços favelados.

A exemplo disso, recentemente, o jornal O Globo, de circulação nacional,


A violência como conceito na pesquisa musical

publicou uma série de reportagens intitulada “Ilegal e Daí?” em que, ao


discutir a questão da moradia em favelas, quase sempre aborda a tese do
aumento da violência nas áreas próximas a esses espaços, apontando a
remoção das populações faveladas para áreas afastadas da cidade como
única alternativa “sensata”. Nesse sentido, o Estado se exime do dever de
proteção a todos os cidadãos, independentemente, de sua classe social; e
se exime também de sua responsabilidade como produtor de parte desta
violência.

A violência policial aqui merece destaque, já que, ultimamente, a polícia


militar do Rio de Janeiro tem sido acusada por diversas instituições de
promover o terror e assassinatos em áreas pobres da cidade com a
utilização de um blindado, popularmente denominado de “caveirão”. Não
por acaso, uma campanha contra essa ação do Estado está sendo
articulada em todo o país, através de diversas organizações com apoio,
inclusive da Anistia Internacional. Vale a pena colocar aqui, alguns
absurdos produzidos pelo Batalhão de Operações Especiais da Polícia
Militar (BOPE). Em seus exercícios matinais no Parque Guinle, Zona Sul
carioca, o grupo de agentes repetia: “O interrogatório é muito fácil de
fazer, pega o favelado e dá porrada até doer, o interrogatório é muito fácil
de acabar, pega o bandido e dá porrada até matar”. (O Globo, 24 de
setembro de 2003).

Hoje, na internet, também se encontra facilmente em comunidades


policiais músicas do gênero “proibidão”,[21] atribuídas a PMs. Alguns
exemplos de textos de música são significativos: “Bope vai te pegar, Bope
vai te pegar, homem de preto, qual é tua missão? Entrar pela favela e
deixar corpo no chão”. Outra fala do carro blindado denunciado: “O terror
deste Rio é o Caveirão, entra em favela, invade o morrão. Se você canta e
tem amor à vida, vamos meter bala e não é perdida”.

Esses são exemplos da cultura de violência presente também no próprio


Estado. Além disso, o combate à violência não é abordado de uma
maneira mais ampla. A violência do silêncio, da falta de uma educação de
qualidade e de equipamentos básicos de saúde, por exemplo, não são
abordadas. A violência é então quase que integralmente vista como um
problema circunscrito à vida pessoal de um determinado indivíduo pobre.
Sendo assim, basta “convencê-lo” da importância de “seguir um outro
caminho”, que a segurança pública estará garantida.

Políticas (2): Musicultura como uma proposta


A violência como conceito na pesquisa musical

de formulação e gestão de ações para e com a


juventude
Todas as críticas apresentadas neste artigo a respeito das concepções
atuais de políticas para o jovem, obviamente, não significam afirmar que a
construção de uma forma de trabalho diferente seja algo de fácil
realização, ou que acontecerá em um passe de mágica, de um dia para o
outro. Até porque pensar novas formas de trabalhar com os jovens sob a
ótica das políticas públicas implica efetivamente em uma reconstrução
quase que total dos métodos vigentes.

Infelizmente, colocar em questão políticas públicas para a juventude


envolve, ainda, um desafio que parece ainda distante das preocupações
de legisladores, técnicos, acadêmicos e até mesmo, de modo geral, de
movimentos sociais: discutir o papel ativo do jovem não somente na
execução ou gestão, mas acima de tudo na formulação de tais políticas.
Dar instrumentos à formulação e legitimá-la no quadro institucional vigente
significa, em outras palavras, o reconhecimento e exercício do jovem
como autor de seu próprio tempo e espaço, e como cidadão com direito a
tal autoria. Desnecessário dizer que a concepção de autoria de que aqui
se trata, e conseqüentemente de direitos autorais, diverge radicalmente
daquela de cunho individualista e privado, derivada de noções de
propriedade industrial.

Sob esta ótica, afinada com as proposições de Paulo Freire acerca do


diálogo como condição fundamental do conhecimento, políticas públicas
que não contemplem os jovens como co-autores (muito além, portanto,
até mesmo da idéia de co-gestão) serão sempre suscetíveis à alienação
parcial ou completa dos mesmos e ao iminente esvaziamento das ações
que lhes são dirigidas.

O projeto Musicultura parte do próprio Estado, através da Universidade


Federal do Rio de Janeiro, a partir da efetivação de uma parceria com
uma organização fundada por moradores da favela da Maré, e busca
implementar na prática a ação conjunta entre poder público e população,
no planejamento de políticas públicas protagonizadas, de fato, pelos
jovens.

Nesse sentido, o grupo Musicultura trabalha com dois conceitos básicos: o


primeiro, de que os jovens não estão “perdidos” e, portanto, não
necessitam serem “salvos” de coisa alguma, e o segundo é a própria
dinâmica do projeto que parte da concepção freireana de produção
A violência como conceito na pesquisa musical

dialógica do conhecimento. Ou seja, a idéia central do projeto é o foco na


participação efetiva da juventude no processo de criação e formulação de
atividades de pesquisa, manifestando a liberdade de opinião, sem
hierarquias e privilegiando, dessa forma, a participação política na própria
periferia e, de uma maneira geral, na sociedade.

Comentario Final
Em síntese, este texto partiu de uma proposta de adoção da categoria
violência como instrumento conceitual para compreensão da vida social,
em contraponto a seu caráter descritivo de momentos excepcionais ou de
crise de uma ordem estabelecida, de um estado ideal ou natural de
sociabilidade pacífica, prevalente, por bom período, em parte considerável
da literatura em ciências sociais. Em seguida procurou contextualizá-la em
uma pesquisa colaborativa, envolvendo parceria estável entre uma
unidade acadêmica pública e uma organização não-governamental
fundada por moradores de uma área densamente povoada e desassistida
pelo poder público na cidade do Rio de Janeiro. Finalmente, colocou em
pauta a questão: devem as políticas públicas para a juventude nestas
áreas, que freqüentemente possuem a sua base noções
instrumentalizadoras da arte em geral e da música em particular, restringir-
se à ação emergencial ou integradora à ordem vigente? Ou devem ter seu
conteúdo expandido—ou, quiçá, transformado—em ações legitimadoras
do direito à plena inserção social, incluindo possibilidades de auto-
representação e formulação política?

Adotando uma perspectiva de pesquisa que toma como fundamental os


conceitos de conflito, diálogo e participação elaborados na obra de Paulo
Freire, em contraposição à acepção timidamente participativa prevalente
em outros quadrantes teóricos, a experiência aqui debatida abre a
possibilidade de redefinição da categoria “direito” para além de um mero
mecanismo de acesso à propriedade privada, rumo à construção mais
equânime e justa da cidadania.

Notas
● [1] Os autores agradecem o apoio financeiro e institucional à pesquisa que
serve de base a este texto do Conselho Nacional de Pesquisa e
Desenvolvimento (2003-2005), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado
A violência como conceito na pesquisa musical

do Rio de Janeiro (2005-2006), Universidade Federal do Rio de Janeiro


(2003-2006), Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré/Rede Memória
(2003-2006) e Cenpes-Petrobrás (2006-2007).
● [2] Este texto, produzido coletivamente, é co-assinado por Samuel Araújo e
membros do grupo de pesquisa Musicultura: Diogo Vítor Araújo, Geandra N.
do Nascimento, Ingrid Barreto da Silva Alves, Humberto Salustriano,
Nathália Faustino, Jaqueline Souza de Andrade, Jéssica A. de Macedo,
Sinésio Jefferson Andrade Silva, Mariluci Correia do Nascimento, Alexandre
Dias da Silva, Sibele D. Mesquita, Mário Rezende do Carmo Travassos,
Gilmar Santos da Cunha, Rosana Lisboa Lima, Otacília dos S. Silva e
Fernanda Santiago França.
● [3] A própria categoria “música”, em si, já poderia ser argüida como uma
forma de violência conceitual imposta ao mundo colonial como um todo,
gerando impasses disciplinares consideráveis até hoje (ver, a propósito,
Merriam 1964, Gourlay 1984 e Araújo 1992).
● [4] Ele dedica o livro aos netos, “adentrando este mundo turbulento”
(Balandier 1997).
● [5] Escrito originalmente em 1988.
● [6] Ver IBOPE 2002.
● [7] Ver Fundação Getúlio Vargas 2002.
● [8] A ilegalidade do comércio de armas no Brasil dirigido a compradores
privados, proposta defendida pelo governo e diversas ONGs em plebiscito
nacional, foi derrotada de modo patente por cerca de 60% dos eleitores
brasileiros.
● [9] Um indicador sendo a criação de grupos de pesquisa sobre a violência
nas principais universidades, como a Universidadede de São Paulo (em
1987), e a proliferação de estudos sociológicos sobre o tema, que logo
ultrapassariam estudos em outros campos até então mais tradicionalmente
engajados com a temática, como a psicologia, a educação e outros (Misse
1995). Misse aponta também o contraste entre as tradições sociológicas no
Brasil e nos Estados Unidos, onde a violência tem sido um tópico estável
para a chamada Escola de Chicago desde a década de 1920. É ainda
oportuno notar que uma Lei de Segurança Nacional se encontra em vigor no
Brasil desde 1934—promulgada sob um governo revolucionário burguês e
constitucionalmente ratificada até os dias de hoje; a mesma equaciona a
ação política “violenta” e “desordeira” a “crime,” tornado este último uma
categoria sócio-científica nada neutra e até bastante suspeita.
● [10] Pelo menos três comandos são reconhecidos igualmente pela polícia e
por criminosos: o Comando Vermelho (CV), o Terceiro Comando (TC) e o
Amigos dos Amigos (ADA). A literatura especializada também indica que o
termo commando foi usado pela primeira vez pela polícia durante o período
da ditadura military, uma época em que prisioneiros “comuns” e “políticos”
estabeleciam relações intermitentes no sistema penal brasileiro (ver Misse
1995).
A violência como conceito na pesquisa musical

● [11] Em alerta contra “a ditadura do tráfico”, um jornal brasileiro de


circulação nacional reportou em 2002 que 1,092,783 pessoas morando nas
estimadas 605 favelas do Rio, i.e. 18.6% da população ou 1 em cada cinco
moradores da cidade, se sentiam obrigadas a respeitar as “leis” ditadas
pelos traficntes de drogas (O Globo, Rio de Janeiro, 20/2/2005, p. 18).
● [12] O termo “comunidade” é freqüentemente utilizado por moradores para
se referirem às áreas em que vivem, mas está longe de ser uma categoria
válida sociologicamente, como veremos mais adiante neste artigo. O seu
uso por parte de indivíduos envolvidos com o crime está relacionado ao
controle de uma determinada área por sua respectiva facção, e apenas
circunstancial, mas não necessariamente, ao envolvimento de longo curso
do mesmo indivíduo com o local ao longo de sua história de vida.
● [13] Em seminário acontecido no Rio em 2003, por exemplo, representante
de uma das maiores, senão a maior, ONG da cidade manifestou a
preocupação da entidade com o problema (no caso, mais de 900 projetos
sociais simultâneos), eleito como tema prioritário para seminário interno no
ano seguinte.
● [14] Mais informações sobre história, demografia e cultura locais podem ser
obtidas no sítio eletrônico www.ceasm.org.br .
● [15] Compreendendo dois doutores, um mestre formado pela UFRJ e três
alunos de pós-graduação.
● [16] Por exemplo, como colaboradores em registros sonoros, tradutores de
variações lingüísticas locais etc.
● [17] Não discutimos aqui, por extrapolar os limites do trabalho e a
competência do autor, em que medida se encaminha a efetiva solução ou
apenas se tergiversa a respeito do tema, mas parece evidente que,
frustradas ou não, as expectativas manifestadas publicamente desde as
eleições de 2002 são no sentido de sua superação.
● [18] O CEASM foi recentemente contemplado com um Ponto de Cultura,
programa de auxílio à criação de centros de fomento à cultura do Ministério
da Cultura, tendo apresentado o projeto Museu da Maré, que prevê, entre
outras ações, o abrigo e continuidade do banco de dados em gestação
sobre a produção musical local.
● [19] Jovem universitária e moradora da Maré, co-autora deste artigo.
● [20] Por exemplo, mostrando video-documentários registrando diferentes
práticas musicais na Maré ou através da realização de entrevistas
levantando as histórias de vida, com ênfase na experiência musical, dos
próprios pesquisadores residentes.
● [21] Proibidão é um termo que se refere a canções de apologia ao tráfico no
estilo funk produzido em comunidades populares do Rio de Janeiro,
encontrados em CDs de confecção doméstica vendidos ilegalmente em toda
a cidade. Sua aplicação à produção de funks com conteúdo de ameaça a
moradores das favelas atribuída a integrantes da tropa de elite da polícia é
A violência como conceito na pesquisa musical

relativamente recente.

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