Está en la página 1de 44

MANA 26(2): 1-44, 2020 – http://doi.org/10.

1590/1678-49442020v26n2a207 e262207

ARTIGO

Doença de Alzheimer e xamanismo:


diálogos (im)possíveis

Daniela Feriani1

1
Universidade de São Paulo, Brasil

Minha mãe enlouqueceu num sábado de manhã.


[...] Pela primeira vez, minha mãe falava a
linguagem dos loucos – daqueles que enxergam
o que não há. Dali em diante, cairíamos [...] em
uma espiral assombrada, feita de vertigem e
dor, que giraria cada vez mais rápido, apagando
o real. [...] Aos poucos, ela se transformou no
avesso de si mesma.

Heloisa Seixas, O lugar escuro.

Nesse estado (do xamanismo), não apenas


o feiticeiro sente em si a presença de uma
personalidade que lhe é estranha, mas também
sua personalidade se abole completamente e, na
realidade, é o demônio que fala por sua boca.

Marcel Mauss, Sociologia e Antropologia.


2 Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis

Linha 1: 1. Foto: Cláudia Andujar, série “sonhos” (xamanismo); 2. Foto: Susan Falzone (doença de Alzheimer) [descolorida].
Linha 2: 1. Cláudia Andujar, série “sonhos” [descolorida]; 2. Exposição “Alzheimer”, Associação Internacional de
Alzheimer [descolorida]

Relacionar os processos demenciais ao tornar-se louco ou ser outra


pessoa, estar possuído, foi algo que encontrei em cenas e relatos de meu
material de campo. É numa tentativa de compreender o que está em jogo
nesse “devir outro” que faço um diálogo entre doença de Alzheimer e
xamanismo enquanto fenômenos que lidam com processos de transformação
em situações-limite, como doença, infortúnio, desordem, morte.1 Ao narrar
um ritual xamânico, Davi Kopenawa (2015: 85) diz que o xamã “entrou em
estado de fantasma e tornou-se outro”, podendo, assim, ver e conversar com
os espíritos. Bruce Albert, em nota no mesmo livro, descreve que

“agir/entrar em estado de fantasma” se refere aos estados de alteração de


consciência provocados pelos alucinógenos e pelo sonho (mas também pela
dor ou pela doença), durante os quais a imagem corpórea/essência vital se
vê deslocada e/ou afetada. No caso, o fantasma, que cada vivente traz em si
enquanto componente da pessoa, assume o comando psíquico em detrimento da
consciência. “Tornar-se outro” (literalmente “assumir valor de outro”) refere-se
principalmente a esse processo (Albert 2015: 615/nota19; grifos meus).
Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis 3

Para Viveiros de Castro (2006: 326), o fundo em comum “... que vem
à tona no xamanismo, no sonho e na alucinação” é “quando o humano e o
não humano, o visível e o invisível trocam de lugar”.
A transmutação das coisas é o papel central do nevoeiro – tanto como
fenômeno atmosférico quanto a fumaça do cozimento dos alimentos –
percebido por Lévi-Strauss (1993) ao percorrer a mitologia ameríndia.
Cobrindo a realidade, a névoa opera como um elemento de inversão na
narrativa mítica ao interromper e reinstaurar o mundo a partir de outra
ordem, trocando as posições dos seres (humanos e não humanos).
Névoa, neblina, nevoeiro também são imagens recorrentes nos relatos
de pessoas que vivem processos demenciais para sinalizar a confusão em
um mundo que foi interrompido e se tornou estranho.2 Quando alguém diz
que perdeu algo no curso da doença, não significa algo visível, como se
olhássemos dentro da pessoa para ver o que perdeu, mas o que se perde é
um modo de ser no mundo (Das 2015). Ao embaçar a visão e a realidade,
o denso véu da doença exige outra maneira de ver e viver. Nesse ver mais,
ver além, ver em meio à névoa, em um “mundo às avessas”, onde, como
nos mitos, “tudo acontece de um modo diferente do que no mundo comum
e, frequentemente, ao inverso” (Lévi-Strauss 1993: 12), o chinelo é controle
remoto, o urso de pelúcia é uma criança, a embalagem brilhante de biscoito
vira uma borboleta (Feriani 2019b).
Compartilhando uma dimensão fantasmagórica – uma desfiguração,
uma relação entre luz e sombra, como as imagens que abrem este texto –,
doença de Alzheimer e xamanismo podem funcionar como uma dobra para
discutir noções importantes para este trabalho, como as de pessoa, doença,
realidade.3 A intenção é pensar nos deslocamentos conceituais quando se
transita de um fenômeno a outro. Quais recursos materiais, cognitivos, sociais
são acionados e por quais sujeitos em cada situação? Se, para Cesarino
(2011), a noção de pessoa, a cosmologia e a escatologia estão imbricadas e
são elementos importantes para compreender o xamanismo e o pensamento
indígena, a minha proposta é levar isso em conta como uma conexão que
me ajuda a pensar quais são os componentes centrais da medicina e do
pensamento não indígenas no que diz respeito à demência.4
O diálogo com o xamanismo se dá numa tentativa de compreender a
dimensão do imaginário, do alucinatório na doença de Alzheimer e lidar com
a questão de como uma pessoa em processo demencial pode ser interlocutora
de uma pesquisa. Tanto o xamanismo quanto a doença de Alzheimer possuem
uma dimensão mística na medida em que há o sentimento da presença
da ação de um poder invisível ou do contato com uma realidade que não
está dada nas circunstâncias reais ou cotidianas. O que é essa “realidade
outra” em cada caso? Qual é o valor analítico e inventivo do delírio nos
diferentes contextos?
4 Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis

Se, para Ricoeur (2007), a alucinação, ao anular a ausência e a distância


e fazer aparecer o objeto desejado/pensado, equivale ao encantamento, cabe
se perguntar como funciona esse ato mágico aqui (na doença de Alzheimer)
e lá (no xamanismo). O que está em jogo nessa relação entre presença
e ausência, aparição e desaparição quando se é um xamã e quando se
é um demente?
É preciso, porém, reconhecer os relacionamentos a partir dos quais
as ideias são elaboradas, posicionar-se diante deles, e não os ignorar como
se fossem iguais. Na doença de Alzheimer, os episódios de alucinação se
inserem num conjunto de diversos outros sintomas, instituições, pessoas,
substâncias que vão desenhando a própria doença e as relações ao redor
dela. Num ritual de xamanismo, são outras configurações, referências,
temporalidades que estão em jogo. Os contextos de enunciação e os sujeitos
envolvidos são singulares, mas talvez por isso cada um possa ajudar a revelar
o outro.5 Não se trata de esvaziar os mediadores que existem entre esses
diferentes campos – da magia e da ciência –, nem de anular as diferenças
entre eles, mas também não se pode negligenciar as relações possíveis
que os perpassam.
Estou ciente de que não há Xamanismo, mas xamanismos, assim como
a doença de Alzheimer também abarca uma série de situações, relações
e sujeitos diferentes. A tentativa é de olhar para essa relação como uma
analogia, na qual um pode ajudar a pensar o outro. Não se trata de uma
discussão sobre xamanismo e não pretendo esgotar este tema tão complexo
e plural. Trata-se de trazer algumas das questões presentes nesse fenômeno
como linhas que, a meu ver, ajudam a compor e descompor o emaranhado da
doença que venho tecendo. Também é importante dizer que, ainda que alguns
xamanismos possam ser relacionados a uma possessão, Cesarino (2011)
mostra que, no caso do xamanismo marubo, não se trata de uma possessão
espiritual, como, por exemplo, a que ocorre em algumas religiões – e que
algumas falas de cuidadores-familiares de pessoas em processo demencial
podem sugerir: se, na possessão, o indivíduo sai para ser substituído por um
espírito (incorporação), no xamanismo marubo não se trata nem de indivíduo
nem de substituição, mas da pessoa como duplo/dobra (pessoa compósita,
múltipla, fractal) e de replicação (excorporação) de mundos. Além disso, estou
ciente dos riscos de se nomearem e se compararem coisas como “pensamento
indígena” e “pensamento biomédico/científico”, uma vez que os mesmos
não existem enquanto tais em meio à pluralidade das situações vividas.
Assim, aciono tais termos como “ficções persuasivas” (Strathern 2013)
necessárias ao desenvolvimento do argumento aqui proposto, tentando,
sempre que possível, estar atenta aos seus alcances e limites.
Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis 5

Para mapear um campo de relações entre processos demenciais e


rituais xamânicos, este texto percorre como ambas as experiências compõem
as alteridades e lidam com eventos de alteração de consciência, como os
chamados de “alucinação”. Para isso, discuto como o espelho funciona como
coisa e metáfora para pensar o “devir-outro” presente tanto na demência, a
partir de cenas e relatos do material de campo, quanto no xamanismo, bem
como aproximações com a arte e a literatura. Sigo, então, com o deslocamento
da noção de pessoa ao mostrar como o discurso biomédico da “dissolução
do self ” se fundamenta em uma determinada concepção que toma o cérebro
como lugar central e como tal dissolução ganha usos e significados diversos
em contextos que propõem outros modos de compreender pessoa, corpo e
realidade. Por fim, argumento que o diálogo com o xamanismo permitiu-me
problematizar o discurso biomédico, ver a demência também como modo
de vida e experiência, para além de diagnóstico, e fazer uma etnografia dos
processos demenciais mais próxima de levar em conta o ponto de vista de
quem os vive.

Reflexos, refrações e distorções

Exposição “Alzheimer”, organizada pela ADI (Associação Internacional da Doença de Alzheimer), nos Estados Unidos,
com os quadros Grandson, Daughter e Husband
6 Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis

Guilherme, de 66 anos, foi à consulta no ambulatório de neurologia


acompanhado pela esposa, Rosa.

(residente6): o que o Sr. veio fazer aqui?


(paciente): ah, tá complicado; tá feia a coisa.
(residente): o que o Sr. tem?
(paciente): ah, tô tomando muito remédio.
(residente): e por quê? Conta pra mim.
(paciente): ah, tá tudo bem.
(residente para a esposa): como ele está?
(esposa): cada dia aparece uma coisa nova... ele se perde dentro de casa, não
sabe onde está o banheiro; às vezes toma banho com a água da privada. Preciso
ajudar ele a se trocar porque põe tudo ao contrário, do avesso. Ele tá muito
confuso. Não sabe mais o que é mesa, pia. Fala o dia inteirinho com a televisão.
(residente): conversa com as pessoas da TV?
(esposa): conversa; põe o sofá perto da TV para as pessoas não caírem.
(residente): e espelho? Tem conversado com o espelho?
(esposa): é, às vezes ele fala que viu um homem e aponta, é ele no espelho.
(residente): mas conversa, vê uma pessoa ou é só no espelho?
(esposa): às vezes acontece.
(residente): mas é uma conversa com conteúdo, faz sentido?
(esposa): ah, não dá pra entender. Às vezes acha que as pessoas da TV estão
querendo tomar a casa, fica bravo, diz que as pessoas ficam lá, pousam lá pra
pegar a casa. Às vezes pergunta se eu chamei – “você me chamou?” – e eu digo
que não, não sei se ele ouve vozes. Não está reconhecendo alguns parentes,
não lembra os nomes dos filhos.

Depois de ouvir o relato, o médico disse que conversar com a


TV e com o espelho indica uma “dissolução do self ”, aparecendo no
estágio mais avançado da doença. “É um sintoma psicótico, a perda da
noção de realidade”.
A ideia de que a doença de Alzheimer e outras demências dissolvem
o self é frequente nos relatos de familiares, médicos e outros profissionais.7
“Sua mãe não existe mais. O que existe é uma entidade, que tomou o lugar
dela. Não sei que entidade é essa, nem o que se passa em sua mente. Só sei
que ela não é mais sua mãe”, diz o marido de Seixas. “Eu não podia negar.
Minha mãe não estava mais ali. O que tinha diante de mim era outra pessoa.
Ou várias” (Seixas 2013: 91).
Foucault (2005) problematiza a tênue separação entre loucura,
doença e mal, mostrando como, para cada contexto, há a predominância
de um dos termos ou a correlação entre eles. A partir da psiquiatria,
Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis 7

no final do século XIX, a loucura passa a ser uma doença do cérebro e a se


constituir na relação médico-paciente. É vista como oposta à razão, como
negatividade – a demência, enquanto desordem e decomposição, seria a
principal representante.
Se a confabulação e o delirium são vistos pelos médicos como ilusão,
invenção – a pessoa acha ou interpreta algo diferente do que acontece e,
por isso, são fenômenos do pensamento –, a alucinação, como fenômeno da
sensopercepção, é tida como outra realidade – a pessoa, de fato, ouve/vê
algo. Há ainda uma fluidez entre memória e alucinação: dizer que comeu
bolo de chocolate com os pais, já falecidos, é uma lembrança ou uma visão
– ou as duas coisas? A memória, aqui, também pode estar assombrada
(Feriani 2017a).
Para o neurologista Oliver Sacks (2013: 14), experiências alucinatórias
são “parte essencial da condição humana”, podendo aparecer em diferentes
situações, como sonho, doença, uso de drogas, privação, práticas espirituais.
Se a alucinação é um fenômeno mais geral do próprio funcionamento do
cérebro, presente também em pessoas saudáveis, o que faz com que ela se
torne um sintoma patológico? Como pretendo mostrar, acredito que isto
esteja relacionado com certa noção de pessoa.
Em um programa chamado “A ciência dos anjos”, neurocientistas
investigavam o “fenômeno do terceiro homem”, quando o cérebro cria
uma presença para ajudar a pessoa a sair de uma situação limite, como de
vida e morte, alta carga de stress ou confusão.8 Alguém disse ter visto um
espírito – ou um fantasma – que o ajudou a sair de um prédio em chamas,
indicando o caminho. Uma mulher contou ter visto o marido – já falecido
– quando quase se afogou durante um mergulho, que a teria ajudado a
encontrar a corda mestra e a subir à superfície. Há ainda um astronauta
que, isolado há três meses no espaço, viu e ouviu o pai, também já morto,
incentivando-o a continuar na missão que lhe tinha sido dada. “Meu pai
estava lá, fisicamente”.
Vendo o programa, não conseguia parar de pensar nas cenas de
alucinação que estava observando na pesquisa de campo. Tal como lá, as
pessoas diziam ouvir e/ou ver parentes que já tinham morrido. Qual era,
então, a diferença?
Em “O feiticeiro e sua magia”, Lévi-Strauss conta como um índio
nambikwara, tendo sido acusado de feitiçaria, apresenta diferentes versões
sobre o que teria acontecido. Ao não conseguir ser absolvido se desculpando,
assume a acusação, apresentando relatos cada vez mais cheios de detalhes.
Não se tratava de punir o crime, nem de averiguar a verdade, mas de atestar
a realidade da feitiçaria, ainda que ela tenha sido “forçada”, “inventada”.
8 Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis

Lévi-Strauss mostra como a eficácia das práticas mágicas exige a crença


na magia, que se dá em três direções: a crença do feiticeiro na eficácia de
suas técnicas, a do doente no poder do próprio feiticeiro e a da sociedade
ou do grupo.
A feitiçaria – ou o xamanismo – implica uma “fabulação de uma
realidade em si desconhecida”. Trata-se de um “sistema de interpretação
em que a invenção pessoal desempenha um papel importante” (Lévi-Strauss
1975b: 194). O xamã não apenas encena os acontecimentos, mas ele também
os revive efetivamente, voltando ao “normal” – para usar uma expressão do
próprio Lévi-Strauss – ao término da sessão.
Em “A eficácia simbólica”, ao trazer um canto Cuna para ajudar num
parto difícil, Lévi-Strauss também mostra como a cura depende da crença
da paciente e do grupo no xamã, mesmo que a mitologia narrada não
corresponda a uma “realidade objetiva”: “espíritos protetores e espíritos
maléficos, monstros sobrenaturais e animais mágicos fazem parte de um
sistema coerente que funda a concepção indígena do universo” (Lévi-Strauss
1975a: 213). Ao ouvir a narrativa mítica, a paciente sente as dores narradas.
Ao compreender, a paciente se resigna e fica curada. E Lévi-Strauss
assim continua, fazendo a relação com o nosso sistema de cura.

Nada de comparável ocorre com nossos doentes quando se lhes explica a causa
de seus problemas invocando secreções, micróbios e vírus. Talvez sejamos
acusados de paradoxo se respondermos que é assim porque os micróbios
existem, e os monstros não existem. Contudo, a relação entre micróbio e
doença é externa ao espírito do paciente, é uma relação de causa e efeito, ao
passo que a relação entre monstro e doença é interna a esse mesmo espírito,
consciente ou inconsciente, é uma relação entre símbolo e coisa simbolizada,
ou, como dizem os linguistas, entre significante e significado. O xamã fornece
à sua paciente uma linguagem na qual podem ser imediatamente expressos
estados não formulados, e de outro modo informuláveis. E é a passagem para
essa expressão verbal (que ao mesmo tempo permite viver de forma ordenada e
inteligível uma experiência atual, mas que sem isso seria anárquica e indizível)
que provoca o desbloqueio do processo fisiológico, isto é, a reorganização, num
sentido favorável, da sequência de cujo desenrolar a paciente é vítima (Lévi-
Strauss 1975a: 213).

Na medicina não indígena, parece não haver essa complementaridade


de que fala Lévi-Strauss: o doente, aqui, transforma-se em paciente,
numa posição passiva e alienada – ainda que ele esteja a todo momento
tentando se mostrar, de algum modo. Além disso, na doença de Alzheimer,
parece haver uma confusão em relação a quem é, afinal, o paciente:
Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis 9

é o doente – o qual, às vezes, não se vê como tal – ou é o familiar-cuidador


que busca uma solução para a situação que está vivendo?
Nesse deslocamento entre medicina ocidental e xamanismo, o escritor
estadunidense Dick Russell conta a experiência que ele teve com o filho,
Franklin, diagnosticado com esquizofrenia aos 17 anos.9 Um dia, Franklin
disse: “I don’t know what’s happening; I can’t find my old self again”.
Algum tempo depois, foi hospitalizado. A evolução do quadro se deu com
o que os médicos denominaram de sintomas psicóticos, pensamentos
paranoides e alucinações.10
Na busca por compreender essa outra realidade, Russell conheceu
Malidoma Somé, uma renomada xamã africana. Para os Dagara, povo ao
qual pertence Somé, os esquizofrênicos não são doentes, mas curandeiros
em potencial, mensageiros de outros mundos. “La cultura occidental ha
ignorado sistemáticamente el nacimiento del curandero”, afirma.11
Quando foi aos Estados Unidos pela primeira vez, em 1980, para fazer
pós-graduação, Somé ficou impressionada ao visitar doentes mentais num
hospital psiquiátrico e notar que, apesar de os sintomas serem os mesmos que
ela via em seu povo, a forma de tratamento era oposta, vendo-os de maneira
patológica, como uma doença que precisava parar. Sem a ajuda necessária
para perceber esse mundo espiritual, as pessoas entravam em crises e graves
perturbações, tornando-se loucas, o que se agravava com a quantidade de
medicamentos, os quais, para ela, impediam a integração entre os mundos
e o desenvolvimento da pessoa como alguém que veio para curar.
Somé conta a história de Alex, um jovem estadunidense de 18 anos
internado no hospital psiquiátrico com depressão grave, alucinações e
pensamento suicida. Os médicos já tinham dado um monte de medicamentos,
mas ele não melhorava e não sabiam mais o que fazer. Somé, então, pede
permissão para levá-lo com ela para África. Após oito meses, Alex levava
uma vida “normal”: as crises tinham diminuído consideravelmente e ele
participava dos rituais juntamente com os curandeiros. Um tempo depois,
Alex pôde aceitar o chamado de outros seres e comunicar mensagens que
os espíritos tinham para esse mundo. Ele ficou quatro anos entre os Dagara,
cursou psicologia e dizia se sentir mais seguro lá do que nos Estados
Unidos. A última notícia que Somé teve foi a de que Alex estava fazendo
pós-graduação em psicologia em Harvard, contra todas as especulações de
que ele nunca conseguiria concluir os estudos – nem mesmo se sairia do
hospital onde estava internado desde os 14 anos.
Em um relato impressionante, com uma linguagem coerente, erudita
e gramaticalmente impecável, Daniel Paul Schreber conta sua experiência
com o que ele chamou de “doença nervosa”, passando pelas relações
10 Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis

familiares e profissionais até as diversas internações e o “sistema de crenças


sobrenaturais” que desde então o acompanha. Ao negar ser um doente mental
por não estar desprovido de razão, ele escreve suas memórias numa tentativa
de mostrar a veracidade, ainda que incompreensível para muitos, de suas
“ideias delirantes”. Diagnosticada como demência paranoide ou psicose, a
doença de Schreber poderia ter outra configuração quando deslocada do
paradigma biomédico. Em muitos momentos de sua descrição como aquele
que ouve vozes (ou almas ou raios) – um portador da “língua dos nervos” –,
parecia-me muito mais a fala de um xamã do que de um psicótico.

Eu vejo com meu olho espiritual os astros que são ao mesmo tempo portadores
das vozes e do veneno de cadáver, que é descarregado no meu corpo, na forma
de longos fios esticados, descerem para minha cabeça, partindo de algum
lugar extremamente distante no horizonte. Eles são visíveis só para o meu olho
espiritual, quando meus olhos se fecham por milagre ou quando eu mesmo
os fecho voluntariamente, isto é, nestes momentos eles se espelham do modo
indicado no meu sistema nervoso interno como longos fios deslizando para a
minha cabeça. [...] os fios de raios que zarpam na direção da minha cabeça,
ao que tudo indica, provenientes do Sol ou talvez de numerosos outros corpos
cósmicos remotos, não chegam a mim em linha reta, mas fazendo uma espécie
de curva ou parábola... (Schreber 1984: 201; 203).

E ainda: “As almas com as quais eu estivera em conexão nervosa na


clínica de Flechsig naturalmente me acompanharam à minha nova morada”
(: 85), ao ser levado para outro hospital.
Para a antropóloga Tanya Luhrmann, as “vozes alucinatórias” (ouvir
vozes) são moldadas culturalmente tanto no que se refere ao conteúdo quanto
à forma de tratamento.12 Se, nos Estados Unidos, tais vozes são mais duras,
ásperas e severas (“harsher”), não são assim que elas são vistas na África e
na Índia, onde são mais benignas, positivas (algumas pessoas as associam
com familiares ou Deus), podendo assumir uma dimensão de entretenimento.
Para os estadunidenses, as vozes são como intrusas, resultado de um cérebro
danificado, e recebem tratamento médico, o que não acontece – ou, ao
menos, não de uma maneira tão frequente e taxativa – nos outros lugares
pesquisados, onde são tidas como relacionamentos, complementando a
própria pessoa.
Numa página do Facebook sobre demência, uma filha compartilhou o
seguinte relato:
Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis 11

As pessoas que não entendem o que é Alzheimer insistem em dizer que minha
mãe foi vítima de macumba ou que está com algum encosto, ficam falando pra
levar em alguma igreja, em igreja espírita, não entenderam ainda que minha
mãe está doente e tem diagnóstico [...] só porque minha mãe não fala coisa
com coisa, conversa sozinha e outras atitudes, sintomas dessa doença que a
gente já sabe [...].

Nos comentários do post, algumas pessoas disseram já ter ouvido que


a doença estaria associada à feitiçaria ou como “coisa do demônio”.13
“É cômodo comparar o xamã em transe ou o protagonista de uma cena
de possessão a um neurótico”, afirma Lévi-Strauss (2003: 18), admitindo já
ter feito isto ao mostrar como a psicanálise e o xamanismo compartilham
elementos em comum. Apesar de considerar legítimo tal paralelo, adverte
que há, porém, restrições:

em primeiro lugar, nossos psiquiatras, diante de documentos cinematográficos


relativos a danças de possessão, declaram-se incapazes de reduzir essas
condutas a qualquer uma das formas de neuroses que eles costumam observar.
Por outro lado, e principalmente, os etnógrafos em contato com feiticeiros, ou
com possuídos habituais ou ocasionais, contestam que esses indivíduos, sob
todos os aspectos normais fora das circunstâncias socialmente definidas nas
quais se entregam a suas manifestações, possam ser considerados como doentes
(Lévi-Strauss 2003: 18).

Se é possível considerar as condutas descritas como “transe” e


“possessão” do mesmo tipo daquelas que, em nossa sociedade, chamamos
psicopatológicas, “é então a conexão com estados patológicos que deve ser
considerada como contingente e como resultante de uma condição particular
à sociedade em que vivemos” (Lévi-Strauss 2003: 19). Citando o estudo de
Nadel (1946), Lévi-Strauss mostra que este autor

sustenta que existe uma relação entre os distúrbios patológicos e as condutas


xamanísticas, mas que consiste menos numa assimilação das segundas aos
primeiros do que na necessidade de definir os primeiros em função das segundas.
Precisamente porque as condutas xamanísticas são normais, resulta que, nas
sociedades com xamãs, possam permanecer normais certas condutas que,
noutra parte, seriam consideradas como (e seriam efetivamente) patológicas
(Lévi-Strauss 2003: 21).

O estudo de Nadel teria mostrado que, em sociedades sem xamanismo, a


frequência das psicoses e das neuroses tende a se elevar, enquanto nas outras
sociedades é o próprio xamanismo que se desenvolve, sem crescimento dos
12 Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis

distúrbios mentais. Isto não significa que não haja loucos nessas sociedades,
“mas sim que nós mesmos tratamos às cegas fenômenos sociológicos como
se eles pertencessem à patologia”. E conclui: “Na realidade, é a noção
mesma de doença mental que está em causa. Pois, se o mental e o social
se confundem, como afirma Mauss, seria absurdo, nos casos em que social
e fisiológico estão diretamente em contato, aplicar a uma das duas ordens
uma noção (como a de doença) que só tem sentido na outra” (Lévi-Strauss
2003: 21).
É possível acionar outras relações, nas quais diferentes recursos estão
disponíveis. Quando perguntei à Sílvia se a mãe dela, Eunice, diagnosticada
com doença de Alzheimer, tinha alucinação, ela pareceu não compreender a
pergunta. Dei como exemplo dizer ter visto alguém que já faleceu, pois notava
certa frequência desses episódios nas famílias que estava acompanhando.
Sílvia respondeu que não veria dessa forma, uma vez que são espíritas e,
portanto, acreditam nessa possibilidade. Eunice, inclusive, já foi médium e
psicografava cartas no centro espírita que frequentava com a mãe, que lhe
passou as concepções religiosas.
A presença da mãe é marcante nas conversas com Eunice. “Bom,
querida, o papo está muito bom, mas tenho que ir pra casa. Minha mãe
já deve estar preocupada, me procurando”, disse-me depois de passar
uma tarde com ela. Quando eu a convidei pra passear, demostrou receio,
dizendo que precisava primeiro falar com a mãe, porque conhecia “a peça”,
referindo-se à braveza da matriarca. Outro dia, ao olhar o relógio, contou
que estava à espera da mãe para almoçar.
Às vezes, Eunice se referia a uma criança. Um dia, conversávamos
no quarto e, ao ouvir um barulho, disse, preocupada, ter deixado o bebê
na cadeira da sala, questionando se ele teria caído. A psicóloga via como
alucinação. Sílvia, porém, cogitava a possibilidade de ser uma experiência
mediúnica, ao invés de um sintoma patológico.
Não apenas os episódios de alucinação são tidos como potenciais
para um “devir louco”, mas outras situações também parecem indicar esse
processo, como a desorientação espacial e temporal, o não reconhecimento
de si, dos parentes e da casa onde mora, a desinibição, a falta de higiene
pessoal, além de outras ações que parecem fugir de qualquer lógica, como
guardar roupa no armário da cozinha, comer ração do cachorro, beber água
sanitária, entrar no chuveiro de roupa, usar colcha de cama como toalha de
mesa e tantas outras.
“Welcome to my World”, convida-nos Joe. Se a doença instaura um
outro mundo, é preciso se perguntar que mundo é esse.
Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis 13

Espelho, espelho meu...

Reflections, de Tom Hussey, usado por uma indústria farmacêutica para lançar um remédio para postergar o declínio
da memória, indicado para a fase inicial da doença de Alzheimer14

A travessia não é fácil. “O mais difícil, pra mim, é: eu não sei se eu


entro na paranoia dele ou se eu o trago para a realidade, se eu contrario e
mostro que não é assim. Eu compartilho a paranoia ou não?”, perguntou
uma filha que cuida do pai, numa reunião da ABRAz – Associação Brasileira
de Alzheimer.
Diante da recomendação de “não bater de frente” e “entrar no mundo
deles”, mentir passa a ser uma alternativa, sem, porém, dissolver as dúvidas
e o mal-estar. Em Aguzzoli (2014), uma pessoa dizia mentir para a avó que
iam viajar no dia seguinte porque ela ficava “contente e tranquila”, mas se
sentia mal por isso, perguntando “em que momento devemos nos desprender
da moralidade para focarmos no bem-estar do doente?” A resposta foi do
psiquiatra Eduardo Sabbi:

É muito diferente uma conversa entre duas pessoas em que ambas possuem o
mesmo entendimento da realidade e outra em que uma delas pode estar vivendo
parcialmente fora dela. Não nos achamos mentirosos, por exemplo, quando
contamos um sonho onde fizemos peripécias que somente ali aconteceriam.
Nem chamamos o diretor de um filme de ficção de mentiroso porque colocou
nele cenas impossíveis de acontecer. Se entendermos que muitas vezes o doente
14 Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis

com Alzheimer está impossibilitado de interagir 100% dentro da realidade, em


função do seu comprometimento cerebral, poderemos também nos permitir
entrar um pouco na forma fantasiosa com que ele consegue se integrar à vida.
Não se trata de uma imoralidade, mas de uma viagem despretenciosa cujo único
compromisso é preservar quem gostamos e nos manter afetivamente conectados
a ele (Aguzzoli 2014: 230).

Ao comparar a realidade das pessoas com doença de Alzheimer a um


sonho e um filme de ficção científica, nos quais há outros modos de se
perceberem as coisas e onde tudo é possível, o psiquiatra não vê problema
em “mentir” – a própria conotação de mentira se perde – ou de entrar na
fantasia do doente, uma vez que este já vive num “mundo paralelo”. Para
Didi-Huberman (2013: 302), a imagem pautada pela memória psíquica, como
o sonho e a fantasia, “zomba das contradições lógicas”. O autor resgata as
expressões de Warburg e Freud – “situações incompreensíveis” e “inversão
no contrário”, respectivamente – as quais, ao deformarem a representação,
parecem à primeira vista inteiramente ininteligíveis, provocando dubiedade
e estranheza nos espectadores (: 264).
Para Sacks (1997: 11), os casos clínicos estão na “intersecção de fato
e fábula”, história e fantasia. Os pacientes são como “figuras estranhas”,
“viajantes em terras inimagináveis”: “[...] suas vidas e jornadas a meu ver
possuem um quê de fabulosas...”.
Em Aliceheimer´s: Alzheimer´s through the looking glass, a antropóloga
médica Dana Walrath conta a experiência de cuidar da mãe, Alice, ao longo
dos três anos em que moraram juntas. Numa mescla de textos e desenhos,
a autora privilegia o ponto de vista da enferma, numa tentativa de entrar
em seu “mundo maravilhoso”, numa espécie de “viagem mágica”, trazendo
outros aspectos dessa experiência para além dos danos da doença. Para ela,
“Life with dementia is filled with alternate realities and magic, both scary
and uplifting. Accepting wonderland as our baseline made day to day life
an adventure”.15
Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis 15

Colagens de Dana Walrath 16


16 Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis

“Joeland”, “Wonderful World of Dementia”, “Neverland”, “Mr.


Alzheimer´s”, “Alzheimer´s land”, “Dream Land” são algumas das
expressões usadas por Joe.17 Ao longo dessa jornada, ele se vê cada vez
mais cindido entre dois mundos, duas realidades. “I was in a state of, in
betweenness, between here and there. I finally started eating but with my
fingers and slowly got back to where I should be”; “I live in a multiple of
realities, unlike you I never know when I will pop in or out of any of them”.
Nesse mundo outro, Joe diz que sonho e realidade – “ whatever you call it”
ou “this shitty reality I call life” – estão se tornando o mesmo: ele acorda,
ouve vozes, e não consegue distinguir em que estado está.
A sensação de estar se tornando outra pessoa – ou outras (“I have others
in my brain now”) – é frequente. Ele se sente como se o Joe que ele era/foi
estivesse sentado vendo uma peça de teatro cujos atores são os “outros Joe”
e aqueles que ele conhece, mas que já não fazem mais parte do mundo dele
– e vice-versa. “I feel like I am fading away from Joe and going somewhere
and I cannot stop it any longer”. “Duplo” e “máscara” – noções caras ao
pensamento xamânico – são nomes acionados por William Utermohlen para
se referir ao devir e à pluralidade desse processo de transformação ontológica
ao longo da doença de Alzheimer.18

Duplo autorretrato (1996) e Máscara (1996), de William Utermohlen

A travessia de Alice (Carroll, 2010) tem muitas características em comum


com as cenas e os relatos vistos ao longo de minha pesquisa. Como Alice, os
viajantes do mundo da demência vivem um mundo às avessas, com outras
referências, no qual a confusão, a desorientação, o descompasso temporal, o
nonsense estão fortemente presentes, além da constante ameaça de perder
o nome e a linguagem. Se Alice precisa comer biscoito para matar a sede e
correr para ficar no mesmo lugar, Guilherme deita a televisão para as pessoas
não caírem, vó Nilva abre o cigarro para depois fechá-lo. Se Alice perde o
caminho para o bosque, Joe se perde no próprio jardim, Kris não sabe onde
é o banheiro de casa.
Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis 17

A nomeação ou a linguagem é um dos principais dilemas que as pessoas


com doença de Alzheimer se defrontam. Se, para Alice, o livro que ela
encontra “é todo em alguma língua que não sei”, para Kris, as instruções da
máquina de lavar eram como se fosse uma língua estrangeira (“It’s like the
instructions are written in a foreign language”).19 Se Alice encontrou palavras
difíceis, inventadas, Joe precisou inventar uma linguagem – “Joenese”,
“soap box” – para se comunicar. As palavras teimam em não sair, a fala se
enrola, torna-se truncada, incompreensível – como a fala de fantasma a que se
refere Kopenawa (2015); uma fala que delira e sobrepõe a função referencial
e a função poética/metafórica – “o rio está cabeçudo”, “o trator anda que
nem casa”, como me disse João; ou “a natureza é vodca”, quando Maria
me contou o tanto que gostava de plantas: exemplos de como a linguagem,
aqui, também se torce, abre para outras dimensões.
Se a humanidade de Alice no “mundo do espelho” é a desmedida, os
doentes de Alzheimer também passam por constantes revisões do humano,
podendo assumir, em algumas situações, um quê de monstruosidade e
assombro. A “perda da humanidade” – tal como me disse um neurologista
– é tida principalmente quando há desinibição (tirar as roupas em público,
falar palavrão, ficar obsceno), falta de autocuidado e de higiene (como fazer
xixi e defecar em locais inapropriados e/ou mexer nos excrementos, não
tomar banho) e compulsão (comer de maneira desmoderada). Os médicos
se referem a essas situações como “volta dos instintos”, num processo de
animalização que borra a fronteira do humano.
“Não ter mais noção” é uma expressão acionada pelos cuidadores-
familiares para tentar dar conta disso. São essas cenas que parecem mais
incomodá-los e deixá-los atônitos – mais do que a perda de memória.
Se a expressão médica “dissolução do self ” se refere principalmente ao
comprometimento da memória (tida como localizada na cabeça ou no
cérebro) ou a uma memória alucinada (ao não se reconhecer no reflexo
do espelho), a “perda da humanidade” diz mais respeito ao corpo, a um
comportamento considerado estranho, bizarro, inadequado.
A própria noção de realidade – e, portanto, do que significa alucinação
– se desloca nessa travessia. Para Seixas (2013: 68), os delírios da mãe
indicam que “o real fora estilhaçado como um espelho, trazendo consigo
maus augúrios e uma impossibilidade – jamais seria possível colar-lhe
os pedaços”. O aspecto “mais cruel” da doença seria a “realidade móvel,
fugidia”. “As coisas aqui são tão fugidias!”, disse Alice, no mundo às avessas.
Quando não conseguiu ler o livro porque a escrita estava ao contrário,
Alice colocou-o em frente ao espelho para que as palavras ficassem na
direção certa. Para as pessoas em processo demencial, os “fantasmas”
18 Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis

são reais, literais. Segundo Deleuze, o delírio opera no real – não existe
outro elemento que não seja o real. O delírio não é uma inadequação ao
real, mas a invenção de uma subjetividade, de um estilo de vida. Não se
trata de negar o real, mas uma determinação única e ontológica do mesmo
(Seligmann-Silva 2003).
O delírio pode ser uma maneira de tocar um mundo, uma vida com
sentido. “O que é melhor: que a pessoa tenha sensatez o tempo todo ou uma
vida que faça sentido pra ela, mesmo que seja uma mentira?”, questionou a
neurolinguista voluntária da ABRAz diante da dúvida da filha se contava à
mãe que os pais tinham morrido quando ela insistia em vê-los. Sacks (2013)
diz que, para Freud, os delírios são tentativas de reconstituição e reorientação
de um mundo que se tornou caótico. O autor mostra como alguns pacientes
não queriam se livrar deles, pois mais os ajudavam do que atrapalhavam. “‘O
senhor certamente não iria proibir uma alucinação amigável a uma velha
frustrada como eu!’”, teria lhe dito Gertie C., uma paciente que esperava
toda noite “a visita de um cavalheiro de outra cidade”, que trazia “amor,
atenção e presentes invisíveis” (: 88). “Não vejo mais ‘coisas’. Parecia tão
real, tão vivo antes. Será que tudo parecerá morto quando eu for tratado?”
(Sacks 1997: 122), questionou Miguel O., que, depois de medicado, deixou
de imaginar e desenhar o que via, mostrando-se desanimado por considerar
ter uma vida com menos sentido e criatividade. “Estamos em terreno estranho
aqui, onde todas as considerações usuais podem ser invertidas – onde a
doença pode ser bem-estar e a normalidade, mal-estar, onde a excitação
pode ser um cativeiro ou uma libertação e onde a realidade pode residir na
ebriedade e não na sobriedade” (Sacks 1997: 125).
Nessa inversão, o espelho – como o nevoeiro – relaciona diferentes
elementos. Deleuze (1992), ao mostrar como o cinema moderno opera
um movimento entre imagens que não é um prolongamento linear, toma
o espelho como aquilo onde uma imagem atual e uma imagem virtual se
relacionam e compõem uma imagem cristal, “um circuito em que as duas
imagens não param de correr uma atrás da outra, em torno de um ponto de
indistinção entre o real e o imaginário” (: 71). Para ele, “o imaginário não é
o irreal, mas a indiscernibilidade entre o real e o irreal. Os dois termos não
se correspondem, eles permanecem distintos, mas não cessam de trocar sua
distinção” (: 89). Trata-se da “potência do falso”, da “forma do tempo como
devir” que “põe em questão todo um modelo de verdade” (Deleuze 1992: 89).
Se, no cinema ou no sonho, a conotação moral de mentira se perde porque
entramos em outra realidade onde tudo é possível, o mundo da demência
também exige de nós esse acordo.
Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis 19

“A alternativa é ouvir essas histórias não como ficção ou como sinais


disfarçados da verdade, mas como algo real”, escreveu Taussig (1993) sobre
os relatos de tortura contra os índios em Putumayo, por ocasião do ciclo da
borracha, “quando ocorreu uma íntima dependência mútua entre a verdade
e a ilusão e entre o mito e a realidade” (: 87). O que está em questão, assim,
não é “verificar se os fatos são reais, mas em que consiste a política de sua
interpretação e representação” (: 15). Para Taussig (1993, 2011), situações
como doença, feitiçaria, morte levam à incerteza diante do que é visto,
à dúvida no ato da percepção, e nos põe no limite entre a consciência e
a inconsciência, a realidade e a ilusão, criando uma figura ambivalente
– “realismo mágico”, “normalidade do anormal”, “monstruosidade do
cotidiano”. A realidade incerta – a névoa – torna-se uma “força social
fantasmagórica”, uma “obscuridade epistemológica e ontológica”, como na
relação entre brancos e índios, em Taussig, e como na composição da doença
de Alzheimer, em minha pesquisa.
A opacidade da experiência e o transbordamento da linguagem parecem
encontrar no espelho uma expressão poderosa – como é no xamanismo e
na doença de Alzheimer. Ele é a travessia para um mundo-outro, onde a
linguagem se perde, o sujeito se dissolve, a visão embaça. O espelho, como
coisa e metáfora, objeto e signo, dentro e fora, aparição e desaparição, real
e irreal, luz e sombra, conecta por desconexão – o que está em jogo, aqui,
não é a identidade, mas a fractalidade; não é o reflexo, mas a refração.
A tradução como divergência (Cesarino 2011) exige o reconhecimento
de que o mundo de lá – o mundo da demência – é outro mundo. Novamente,
um exercício de olhar de outro modo. Mas, como bem alertou Eduardo
Viveiros de Castro (2011: 897), “ter olhos diferentes não significa ver ‘as
mesmas coisas’ de ‘modos’ diferentes: significa que você não sabe o que o
outro está vendo quando ele ‘diz’ que está vendo a mesma coisa que você”.
Não se trata de outra visão de mundo, mas de outro mundo – “Welcome to
my World”.
Quando Célia ficou apavorada porque o macaco da televisão ia invadir
a sala, quando Juracir me contou que comeu bolo de chocolate com os pais,
quando Eunice ficou preocupada porque a mãe estava esperando por ela,
quando João viu peixes nadarem por entre seus pés enquanto aguardava
a consulta médica, quando tantos outros conversaram com um estranho no
espelho, eu precisei suspender o meu mundo – caso contrário, diria que se
tratava de um sintoma psicótico – para investigar que mundo era aquele.20
É como se precisássemos aprender a mesma lição que Tuhami ensinou
a Crapanzano (1980): que o real é uma metáfora para a verdade, criado e
recriado no encontro etnográfico. Ou, como nos mostra os testemunhos
20 Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis

do trauma, o real, às vezes, é tanto, por demais, que beira ao absurdo, à


ficção, como algumas das cenas que presenciei em campo: tentar mudar o
canal da TV com um chinelo, entrar vestido para tomar banho, vestir a camisa
como se fosse calça, usar detergente para cozinhar. A alucinação é real, não
é uma representação do real, é o real, mas eu, enquanto não demente, não
sabia que real era aquele – ou era real a seu modo.21
“Assim”, continua o autor, “quando seus interlocutores indígenas lhe
dizem (sob condições, como sempre, que cabe especificar) que os pecaris
são humanos, o que o antropólogo deve se perguntar não é se ‘acredita ou
não’ que os pecaris sejam humanos, mas o que uma ideia como essa lhe
ensina sobre as noções indígenas de humanidade e de ‘pecaritude’” (Viveiros
de Castro 2002: 136). Da mesma forma, não se trata de acreditar ou não na
alucinação dos doentes ou na explicação dos médicos, mas de ver o que elas
dizem sobre a doença e suas relações, sobre o contexto de enunciação no
qual estão inseridas e, desse modo, alargar as próprias referências.

“Espelhos que brilham”: deslocando a noção de pessoa

1. Fausto Podavini. 2. Susan Falzone

Azize (2010) investiga a concepção de pessoa na difusão neurocientífica


– ou o que ele chama de “a nova ordem cerebral”, uma “equivalência
entre cérebro e indivíduo”. A mente – emoções, sentimentos, escolhas,
ações, comportamentos – aparece como “um epifenômeno do cérebro, uma
consequência da atividade neuronal” (: 01). “De certa forma, temos um novo
cogito, não mais com a forma penso, logo existo, mas sim uma espécie de
existo porque tenho um cérebro que pensa” (: 02). Nesse sentido, a ideia de
perder/afetar o cérebro – ou a expressão “perder a cabeça” – como prejuízo
das funções cognitivas significa deixar de ser, “perder o eu”.22
Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis 21

Rose (2001) fala em “self neuroquímico” e em “neuro-ontologia” (Rose,


N. & Abi-Rached, J. 2013). Para ele, os discursos psi do século XX trouxeram
uma nova maneira de relatar nossos eus em termos de neuroses, traumas,
desejos inconscientes, numa linguagem do cérebro, neuroquímica. Jennifer
S. Singh (2011) mostra como algumas pessoas com Síndrome de Asperger se
definem como “neurodiferentes”, não se vendo como doentes ou a doença
se torna uma maneira de ser e viver. Para a doença de Alzheimer, parece não
haver espaço para abraçar a doença como traço da personalidade, mas um
esforço de demonstrar que a personalidade permanece, apesar da doença.23
A doença pode tanto ser aquela que ofusca o “eu” quanto a que
se confunde com ele. Ora a doença é a pessoa, ora ela é um estranho.
“‘Suponhamos que fosse possível eliminar os tiques’, disse Ray, que tem
Síndrome de Tourette, ‘o que sobraria? Eu sou composto de tiques – não há
mais nada’” (Sacks 1997: 115). Apesar de a Síndrome de Tourette ser vista
como possessão, uma vez que a pessoa é tomada, sobressaltada por gestos,
imitações e tiques involuntários, Ray não conseguia imaginar a vida sem ela.
Na doença de Alzheimer, isto pode ser visto na ambiguidade “é a doença
ou é a pessoa”, esse entre/devir que confunde ainda mais os familiares no
manejo do cuidado.24
A pessoa como cérebro – ou o “cérebro como pessoa” (Azize 2010)
– vai ao encontro da ideologia moderna (Dumont 1985). Alguns estudos
mostram como a doença de Alzheimer é tida como uma patologia da vida
contemporânea, uma metáfora da sociedade de consumo, ao abalar valores
como autonomia, indivíduo, independência, autocuidado, sendo vista, para
essas sociedades, como o mal, o horror, a epidemia, a doença do século
(Robbins 2008; Burke 2015; Wearing 2015; Goldman 2015). Mais do que
o envelhecimento populacional, talvez seja isto que está por trás do temor
apocalíptico que a ronda, ao abalar não só os paradigmas biomédicos, mas
também sociais e filosóficos (Feriani 2017b).
“Dissolução do self” só faz sentido tendo em vista uma noção de pessoa
na qual unicidade, coerência, consciência e autonomia são os elementos
centrais. “O centro é onde a imaginação ocidental do século XX situa o ego,
a personalidade. Pois, para essa visão ocidental moderna, a ‘pessoa’ é um
agente, autor de pensamento e ação, estando, portanto, situada ‘no centro’
das relações” (Strathern 2006: 394). Ao dissolver ou transformar o centro, a
doença de Alzheimer abala essa noção. Como a pessoa assume uma forma
diferente da que estamos acostumados a ver, ela parece não existir.25
O discurso biomédico, na tentativa de detectar sintomas, valoriza as
perdas e os declínios, mas não os possíveis ganhos e rearranjos que a doença
também pode trazer. Muitas pessoas em processo demencial afirmaram –
22 Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis

seja em conversas comigo ou através de leituras de relatos autobiográficos


– estar mais abertas emocionalmente e atentas a cenas que antes passavam
despercebidas, como o vento soprando as folhas de uma árvore, as nuvens
que mudam de formas, as crianças brincando na rua: outras temporalidade e
percepção do mundo, até mesmo uma nova configuração neuronal – alguns
notaram o cérebro mais imagético, ou seja, veem as palavras como imagens,
numa espécie de “storyboard mental”, segundo a expressão de Kris.
Sacks (1997) tem uma visão crítica dos testes neurológicos, percebendo
os seus limites. Ao aplicá-los em Rebecca, uma paciente com grave prejuízo
cognitivo – considerada “débil mental”, “estúpida”, “tola” por algumas
pessoas –, não mostraram as habilidades e as capacidades da paciente,
que tinha uma imaginação extraordinária. Enquanto ela “se desintegrava
horrivelmente nos testes formais”, mantinha-se “coesa” e composta” (:
201) em atividades de contemplação do mundo ao redor, expressando-se
de maneira poética e espiritual. Rebecca via e percebia o mundo de outro
modo e isto os testes não conseguiam revelar.
Numa tentativa de se contrapor ao discurso biomédico, algumas
narrativas mostram como o corpo é a expressão primeira e a mais duradoura.
Para Franzen (2012), o pai, com doença de Alzheimer, permaneceu
se expressando até o fim, mesmo quando as palavras não mais saíam.
“Impressiona-me, acima de tudo, a aparente persistência de sua vontade”
(: 14). A recusa em comer, os olhares, os gestos poderiam, assim, evidenciar
o desejo do pai em não mais querer viver daquele modo ou, ao menos,
como ele via e sentia a vida que vinha levando, bem como as atitudes e os
comportamentos dos outros ao seu redor. Seguindo Merleau-Ponty (1945),
o self resistiria porque reside na corporalidade: é o corpo, e não a cognição,
responsável pela subjetividade, experiência e agência – a expressão usada
é “embodied selfhood” (Kontos 2006).26 Como a coerência do self não é
mostrada nos modos que os outros estão acostumados a reconhecê-la, as
pessoas com doença de Alzheimer são facilmente compreendidas em termos
de uma ruptura radical com a personalidade.
Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis 23

Linha 1: 1. Alex ten Napel; 2. William Utermohlen; 3. Alex ten Napel.


Linha 2: 1. Alejandro Kirckuk; 2. Alex ten Napel;
Linha 3: 1. Susan Falzno; 2. Alex ten Napel; 3. William Utermohlen.
24 Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis

Linha 1: 1. Fábio Messias; 2. Susan Falzone;


Linha 2: 1. Alejandro Kirchuk; 2. Susan Falzone.
Linha 3: 1. Susan Falzone; 2. Fausto Podavini27
Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis 25

Se são as atividades cotidianas que fornecem os fios para a composição


do diagnóstico da doença de Alzheimer, no qual não conseguir comer,
tomar banho, vestir-se, fazer supermercado, pagar conta indicam o processo
demencial (Feriani 2017b), são também essas atividades acionadas para
reivindicar uma posição de sujeito e compor uma noção de pessoa à revelia
da biomedicina. Não comer, aqui, além de ser um possível sintoma da doença,
pode ser a persistência da vontade do doente, assim como o não tomar banho
pode ser “manipulação”, “mentira”, “esperteza”. Entre a doença e a pessoa,
o corpo assume o lugar da metamorfose e pode indicar tanto um processo
de humanização quanto de animalização.
No pensamento ameríndio,

“não reconhecer mais os parentes” significa não mais ocupar a perspectiva


humana; um dos sinais diagnósticos de metamorfose (e toda doença é
metamorfose, especialmente quando causada por abdução de alma) não é
tanto a mudança de aparência do eu na percepção dos outros, mas a mudança
de percepção pelo eu da aparência dos outros, detectável por estes outros na
mudança de comportamento do sujeito em questão. A pessoa doente perde a
capacidade de ver os outros como coespecíficos, isto é, parentes, e começa a
vê-los como o animal/espírito que lhe capturou a alma os vê – como bichos de
presa, tipicamente. Esta é uma das razões por que pessoas doentes são perigosas
(Viveiros de Castro 2011: 902).

Viveiros de Castro mostra como, no perspectivismo ameríndio, o humano


é um ponto de vista, uma perspectiva de um “eu” que assume uma posição
de sujeito na relação com outros seres e outros mundos. O ponto de vista
como multiplicidade – e não múltiplos pontos de vista – faz com que cada ser
se veja como humano e o outro como um não humano: assim, por exemplo,
a onça se vê como humano e vê o caçador como predador ou espírito. Não
se vê animais e espíritos como humanos em “condições normais”, mas em
situações especificas, como sonhos, alucinações, doenças, rituais, caça.
Todos são gente, mas não é possível ser gente ao mesmo tempo: se um
ser assume a posição de humano, isto faz com que o outro obrigatoriamente
seja um não humano – a alteridade, aqui, é o que constitui essa relação tensa:
ao responder ao chamado de um não humano (um animal ou um espírito),
assume-se, com isso, que o outro é o humano, consequentemente o “eu”
que responde se torna o não humano. Assim, para o autor, se é verdade
que a perspectiva cria o objeto, ela também cria o sujeito. Nesse sentido,
a aparência engana não porque está em desacordo com alguma (suposta)
essência, mas porque, por ser aparição, tem um ponto de vista, “e toda
perspectiva ‘engana’” (Viveiros de Castro 2011: 896).
26 Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis

Quando a pessoa em processo demencial responde ao chamado do


“fantasma”, da aparição, da alucinação – que, para ela, não assume tal
conotação, e esta é uma diferença importante –, ocorre a destituição de
sua posição de pessoa (como na expressão “dissolução do self ”) – em
algumas situações, como vimos, a própria humanidade está em perigo.
Não estou querendo, com isso, transportar o perspectivismo ameríndio,
um pensamento indígena altamente complexo e situado, para a doença de
Alzheimer – há diferenças ontológicas e cosmológicas importantes entre
o “multinaturalismo” indígena e o “multiculturalismo” não indígena –,
mas de vê-lo, em seu valor de contraste, como uma analogia “boa para
pensar ” nos devires – humano, pessoa, animal, espírito, outro – que se
deslocam ao longo da constituição e da vivência da doença. O “eu” – ou o
sujeito – corre o risco de se transformar num “outro” – ou objeto – de outrem
(Viveiros de Castro 2011).
Se o ponto de vista se dá no corpo, é pelo corpo que se assume uma
posição de sujeito; o corpo não só como fisiológico ou morfológico, mas,
sobretudo, como um conjunto de afecções – “os corpos são o modo pelo
qual a alteridade é apreendida como tal” (Viveiros de Castro 1996: 128). Na
doença de Alzheimer, o corpo é um dispositivo importante para reivindicar
um lugar de fala e compor uma noção de pessoa ao avesso do paradigma
biomédico. Se as palavras e os domínios cognitivos vão se apagando, fica o
corpo: uma lágrima, um olho que brilha, uma mão que segura um cobertor,
uma risada, uma birra, um rosto.
Ao abalar alguns pressupostos, o “mundo às avessas” da demência se
aproxima de outros mundos. Se, no mundo não indígena – ou na filosofia
dita “ocidental”, com todas as ressalvas que este termo exige –, a máxima é
“penso, logo existo”, o “mundo maravilhoso” de Alice e da demência parece
se emaranhar com o “existe, logo pensa” do modo de vida indígena (Viveiros
de Castro 2011, 2012) – ou, para o doente de Alzheimer, “existo, logo penso”.
Se Alice conversa com flores e insetos, algumas pessoas com doença de
Alzheimer conversam com o reflexo no espelho. Se Alice vê unicórnios,
Célia fica aflita porque o macaco da novela vai invadir a sala. Ao sacudir
uma noção de pessoa que se pauta pelo cérebro – e o cérebro como local do
pensamento –, a doença de Alzheimer, em algumas de suas linhas de fuga,
reivindica outras maneiras de expressão, como o corpo, a vontade, o desejo,
a recusa – “sinto, logo existo” como contranarrativa ou contramáxima.
Nesses deslocamentos entre humano e animal, subjetividade e
“dissolução do self ”, memória e alucinação, a noção de pessoa se faz num
embate narrativo-performático. Pôr em relação a neurociência e o xamanismo
me ajudou a ficar atenta às estratégias de nomeação e suspensão, figuração e
Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis 27

desfiguração que constituem a doença de Alzheimer não só como diagnóstico,


mas também como modo de vida e estética,28 o que permitiu ressignificar
as experiências dos próprios doentes. Para isso, foi preciso deslocar a noção
de pessoa: da neuroimagem às imagens xamânicas, da alucinação como
patologia à alucinação como signo, da clínica à crítica. Se a “dissolução
do self ” não dá conta de compreender a complexidade de um processo
demencial, é preciso dissolver a dissolução – ou vê-la em sua potencialidade.
Severi (2007) mostra como é através da imagem contraintuitiva – ou
quimera –, ao ocupar o lugar de uma memória coletiva, que o xamã define
o seu estatuto como enunciador. Ocorre uma transformação simbólica da
identidade do xamã através da voz – ou vozes, já que ele incorpora diversos
outros (não humanos, inclusive) que ocupam aquele para quem o ritual se
destina. Numa crise de comportamento, a pessoa pode imitar os gestos de
um animal sobrenatural.29 O doente, assim como o xamã, encarna os espíritos
animais que estariam causando sua doença: ele acolhe o animal em seus
pensamentos e fala sua língua.
A voz, aqui, não significa apenas palavra, mas também entonação, crise,
ruído, sofrimento, onomatopeia: é a voz do olhar interior, do espírito, daquilo
que não está dado a ver. O xamã transforma o uso “normal” da linguagem,
conferindo ao contexto de comunicação uma forma particular que o distingue
das interações ordinárias da vida cotidiana. Também em Cesarino (2011), o
xamã, como replicador de mundos, torce a linguagem – os cantos assumem
uma conotação poética e metafórica, quase incompreensível. Trata-se de
construir uma dimensão sobrenatural, pensada como um duplo invisível
ou como um mundo possível que tem uma existência paralela àquela
do mundo real.
Essa articulação entre visível e invisível, real e irreal, cotidiano e
sobrenatural que ocorre na voz do xamã pode nos ajudar a pensar no que
é tido como alucinação para alguém em processo demencial? Como ver
o contexto de enunciação numa doença tida como comprometedora dos
domínios cognitivos? Se, para o xamã, a identidade plural e a “linguagem
torcida” fazem dele um enunciador, garantindo a visão clara dos outros
mundos e a eficácia do ritual, o “devir-outro” e a língua emaranhada das
pessoas em processo demencial – a fala truncada, incompreensível, que
inventa e delira – parecem garantir a eficácia da doença, a qual vai calando,
aos poucos, o enunciador, além de indicar um processo de desritualização
– o distanciamento da vida social e a invisibilidade do trabalho do cuidado.
Porém, se não se trata, aqui, de um ritual, também não é o cotidiano tal
como antes da doença: o cotidiano se transforma, assombra-se – como
Guilherme, que usou o chinelo como controle remoto e vestiu a camisa como
28 Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis

se fosse calça; Joe, apavorado porque os alimentos da geladeira iam atacá-lo;


Kris, que não soube ligar a máquina de lavar; Odalina, que usou detergente
para cozinhar.
Em Oniska, Pedro Cesarino (2011) tenta compreender o pensamento
marubo através dos cantos xamânicos, os quais acionam uma noção de
pessoa, cosmologia e escatologia. O xamã é um duplo, um variante, um
“corpo carcaça” que habita diversos seres. A pessoa, como entidade e
não como indivíduo, é uma coletividade de singularidades, num processo
contínuo de transformação e relação entre mundos.
A pessoa como uma dobra para fora implica simultaneidade, conexão e
não substituição e fusão. Para Pedro Pitarch (2018), a dobra é um operador
para lidar com a alteridade enquanto metamorfose, oscilação, multiplicidade.
A dobra põe em relação coisas que estariam separadas no mundo ordinário,
como vivos e mortos, humanos e não humanos. É um virar do avesso em que
frente e verso estão apegados um ao outro: o que importa é a relação e não
o que os distingue. Não se trata de uma distinção física, mas ontológica:
entrar num outro mundo com outras coordenadas. Tal como um doente de
Alzheimer que está em constante processo de transformação, como humano
e não humano, demente e lúcido, autor e não autor, presente e ausente, a
dobra é o devir outro.
No pensamento indígena ou, segundo Pitarch, como figura
mesoamericana da relação, a dobra corresponde à noção de pessoa enquanto
composta por diversos fragmentos. A pessoa se desdobra, ou seja, escuta/olha/
atravessa o outro mundo, em situações como doença, sonho, embriaguez.
Nessas situações-limite, há a revelação do aspecto mais estranho de nós
mesmos, o “outro de si”. Assim, ver-se no espelho não é ver a si mesmo, nem
mesmo é ver o humano: é ver o outro mundo, os mortos, os antepassados,
os espíritos. O espelho, ao invés de mostrar identidade e unicidade, revela
a alteridade e a pluralidade, o passado mitológico. A imagem fragmenta e
multiplica o si mesmo.
Viveiros de Castro (2006) mostra como o espelho, no xamanismo,
aparece como luminosidade-invisibilidade (o brilho é tanto que ofusca a
visão em condições cotidianas/ “normais”) e multiplicidade dos espíritos,
funcionando como uma travessia entre mundos. Os espelhos, aqui,
Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis 29

não enfatizam a propriedade icônica que têm os espelhos de reproduzir


imagens. O que os exemplos sublinham é, antes, a propriedade que têm
os espelhos de ofuscar, refulgir e resplandecer. Os espelhos sobrenaturais
amazônicos não são dispositivos representacionais extensivos, espelhos
refletores ou “ reflexionantes”, mas cristais intensivos, instrumentos
multiplicadores de uma experiência luminosa pura, fragmentos relampejantes
(Viveiros de Castro 2006: 333).

Para Davi Kopenawa (2015), “não são espelhos de se olhar, são


espelhos que brilham”. E, ao brilharem, ofuscam a visão – apenas os xamãs
conseguem ver.
Nesse jogo de espelho, a linguagem do xamã reverbera e ecoa de modo a
obter uma “interminável polifonia onde quem fala é sempre o outro” (Viveiros
de Castro 1986: 570 citado em Cesarino 2011). Surge, assim, um “paradoxo
autoral” (Cesarino 2011). Enquanto recipiente, o xamã não é autor de seus
cantos: ele replicaria informações dos outros mundos através de visões, num
processo mnemônico alargado pelo uso de algum alucinógeno.
Na doença de Alzheimer, como vimos, o espelho também ganha uma
dimensão importante ao revelar a estranheza de um outro mundo para o
qual o doente foi arremessado. Porém, aqui, o não reconhecimento de si ao
se olhar no espelho, lido a partir de certa noção de pessoa – que é diferente
da noção indígena –, é tido como um sintoma patológico, uma perda da
noção de realidade, indicando o último estágio da doença. Se no pensamento
indígena os fragmentos luminosos são comparados a cristais pelos quais os
espíritos atravessam mundos (Viveiros de Castro 2006), aqui, na demência,
estilhaços parecem ser mais apropriados para revelar uma fractalidade
negativa e perigosa: se os estilhaços brilham e ofuscam, revelam e deformam,
eles também ferem, tal como Jimmie, que ficou apavorado ao se olhar no
espelho e não se ver (Sacks 1997). A dissolução do sujeito ganha, assim,
configurações diferentes quando se é demente e quando se é xamã.
30 Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis

1. “Cabeça” (2000), último autorretrato de William Utermohlen. 2. “The Great Being”, desenho de Allen Ginsberg
sobre sua experiência alucinatória em rituais xamânicos, no Peru (Taussig 2011: 14)

O doente de Alzheimer, ao habitar outros mundos ou, ao menos,


tensionar certas noções de realidade e pessoa, também traz o problema da
tradução e autoria – “é a doença que fala”; “é a doença, não é ele!”; “não sei
se é a doença ou a esperteza” –, mas por motivos diferentes. Se, no xamã,
o devir outro reverbera em polifonia e numa noção de pessoa compósita,
no doente de Alzheimer, segundo a concepção médica, o devir, ao invés de
contribuir para a composição da pessoa, acaba por dissolvê-la como uma
“não pessoa” e sua voz é silenciada, deslegitimada.30 Se, para o xamã, o
alucinógeno alarga o processo mnemônico, para o demente a alucinação é
tida como um entrave à memória e ao conhecimento. O uso do alucinógeno,
lá, e a doença, aqui, parecem ter um equivalente simbólico como meios para
acessar o real através da imaginação, com diferenças importantes no que se
refere à durabilidade (passageira, num caso; duradoura, em outro), posição
do sujeito (xamã, de um lado; doente, de outro) e conteúdo do delírio (parece
haver um limite entre alucinação e nonsense que é ultrapassado pela doença
de Alzheimer com a noção de “bizarro”, “absurdo”, “assombro”).
Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis 31

Sobre travessias e o que se vê do lado de lá

Fotos: Alejandro Kirchuk

Se eu pude estabelecer relações entre doença de Alzheimer, xamanismo


e literatura numa tentativa de ver mais e além do que normalmente se vê
quanto à doença – como ver pessoa onde se diz que não tem –, também é
importante estar ciente dos distanciamentos entre campos tão diferentes.
Se a abertura do ver os atravessa – um ver alucinatório, que vê o invisível
–, as consequências disso não se equivalem.
O “nonsense” do mundo de Alice (Carroll 2010) é diferente do
“nonsense” do mundo da demência. Se, em Alice, parte-se de um cotidiano
que já é extraordinário, fantasioso – um mundo que, desde o início, é à parte
–, na demência é o cotidiano mais banal que está em jogo: são as atividades
domésticas mais corriqueiras que se tornam assombradas. Se Alice precisa
aprender as regras de um jogo de xadrez vivo e ir enfrentando os obstáculos
32 Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis

e as criaturas mais estranhas para se tornar rainha, as pessoas em processo


demencial têm de lidar com o dia a dia de atividades como tomar banho,
comer, vestir-se, atender o telefone, fazer supermercado, pagar contas. Não
deveria ter nada de misterioso nisso. Apesar de se mostrar constantemente
espantada com o que encontra, Alice não se depara com o terror – ou, ainda, o
tragicômico – tal como os doentes e familiares-cuidadores aqui descritos. Se,
num caso, é o extraordinário que se torna cotidiano, no outro, é o cotidiano
que se torna extraordinário.
Como para o escritor, também para o xamã o ponto de partida é um
cotidiano transformado pelo ritual, por uma entrada especial, uma situação
extraordinária, uma suspensão, realizada com preparação e cautela para
amenizar os incidentes que podem surgir. Apesar dos riscos de toda travessia,
escritores e xamãs partem de um lugar tido como seguro e podem voltar a
ele, ainda que as coisas possam sair do controle e que sejam transformados
ao longo dessa passagem.
É diferente para alguém em processo demencial: a travessia, aqui,
é um processo contínuo, inexorável, através do qual pode ou não se ter
consciência dela; não há um “lugar seguro” para o qual voltar, um lugar
anterior à doença, apesar das suas flutuações – um constante movimento
entre lucidez e demência, lembrança, esquecimento e alucinação – e de
esforços para fazer dela uma forma de vida, um cotidiano, uma realidade –
ainda que assombrados.31
A relação entre clínica, xamanismo e literatura – ou a dobra deleuziana
entre clínica e crítica – permitiu-me buscar outras referências que, por
contraste, iluminam a reflexão sobre a doença de Alzheimer. Se, na clínica, a
potência e a polissemia da dissolução tendem a se ofuscar pela negatividade
patológica, na literatura e no xamanismo elas brilham como cura, saúde,
devir. Nessa travessia, podemos acompanhar como literal e metáfora, fatos
e delírios se interpenetram e como, ao longo dos deslocamentos entre
campos, sujeitos e situações, pessoa, doença e realidade vão se compondo
e descompondo, como estilhaços num jogo de espelhos. O sintoma – como
a alucinação, por exemplo – foi visto tanto num sentido clínico quanto
simbólico, como uma sobreposição entre patologia e signo: como algo
submerso, o sintoma permitiu apreender o que, ao dobrar e desdobrar as
linhas que compõem a doença de Alzheimer, revela e ofusca, aparece e
desaparece, num movimento de cavar para irromper, como um sismógrafo
que capta tremores silenciosos e profundos (Didi-Huberman 2013).
Além disso, como mostrei em outro lugar (Feriani 2019a), o diálogo
entre doença de Alzheimer e xamanismo – e também com as imagens da
pesquisa – abriu o meu próprio modo de ver o meu tema e de fazer etnografia.
Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis 33

Mapear esse campo de relações levou meu estudo para outras direções: da
alucinação na clínica ao ver alucinatório da imagem, da “dissolução do self ”
ao ponto de vista demente (ou grafia-demente), da névoa como embaçamento
da visão à névoa como outro modo de ver-viver. Foi assim que eu também
atravessei o espelho, puxei linhas de fuga. Doença de Alzheimer, xamanismo
e etnografia funcionaram como uma tríade para pensar e experimentar o
deslocamento, a estranheza, o devir, a troca de posição e a dissolução do
sujeito: tudo aquilo, enfim, que atravessa quem sofre um processo demencial,
um ritual xamânico e uma (boa) pesquisa.

Recebido em 12 de fevereiro de 2020


Aprovado em 09 de agosto de 2020

Daniela Feriani é antropóloga, pós-doutoranda na Universidade de São Paulo,


mestre (2009) e doutora (2017) pela Universidade Estadual de Campinas. É
pesquisadora no Grupo de Antropologia Visual (GRAVI), no Laboratório de
Imagem e Som (LISA) da USP, e no Laboratório Antropológico de Grafia e
Imagem (La’grima / Unicamp). Estuda a composição da doença de Alzheimer e
outras demências como diagnóstico, experiência e estética a partir de fotografias,
vídeos, blogs, obras de arte, bordados, autobiografias, metáforas, gestos, cenas,
relatos. Tem interesse nas relações entre: imagem e palavra; tempo e memória;
corpo e linguagem; noção de pessoa e doença; (auto)biografia e etnografia; ex-
periência, escrita e experimentação; aparição e desaparição; realidade e delírio.
http://orcid.org/0000-0002-7735-6174
E-mail: danielaferiani@yahoo.com.br
34 Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis

Notas

1 Este artigo é parte de uma pesquisa que venho realizando desde o doutorado
– Entre sopros e assombros: estética e experiência na doença de Alzheimer, orientado
por Guita Grin Debert – e que se desdobrou no projeto de pós-doutorado – Como
narrar a perda do narrar: autobiografias de pessoas em processo demencial, com
supervisão de Sylvia Caiuby Novaes –, ambos financiados pela Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). O material aqui apresentado resulta
de pesquisa de campo em diferentes frentes, como: acompanhamento de consultas
médicas nos ambulatórios de neurologia e psiquiatria geriátrica de um hospital
universitário; participação em reuniões do grupo de apoio da Associação Brasileira
de Alzheimer (ABRAz); visitas domiciliares às famílias; reunião de imagens sobre
doença de Alzheimer disponíveis na internet; leitura de blogs e autobiografias de
pessoas em processo demencial. Os sujeitos da pesquisa são, sobretudo, as pessoas
com demência e os familiares-cuidadores (cônjuges e filhos, na maioria), provenientes
principalmente de classes sociais mais desfavorecidas.

2 Alguns se referem aos “foggy days” como dias de grande desarticulação e


desordem no cotidiano, que os impedem de fazer tarefas habituais, como cozinhar,
fazer supermercado, acompanhar uma conversa, pagar contas, limpar a casa, ligar
a máquina de lavar roupa, tomar banho, mudar o canal da televisão. Os relatos
autobiográficos de pessoas com a doença têm sido buscados em pesquisa de campo,
blogs e livros.

3 A noção de dobra é inspirada em Gilles Deleuze. Trata-se de um recurso


analítico para pensar a relação entre doença de Alzheimer e xamanismo não como
oposições binárias ou dualidades, mas como paradoxos, analogias, coexistências
tensas – por vezes, contraditórias – entre sujeitos, questões, situações. Deslocar
a doença de Alzheimer para além da biomedicina é uma estratégia tanto para
compreender e problematizar o discurso biomédico quanto para buscar outros modos
de ver e viver a doença.

4 Há vários tipos de demência (como frontotemporal, Corpus de Levy, alcóolica,


pós-Acidente Vascular Cerebral, mista), sendo a doença de Alzheimer considerada a
mais comum (de 60 a 80% dos casos, segundo Alzheimer´s Association, em https://alz.
org/alzheimers-dementia/difference-between-dementia-and-alzheimer-s). Ainda que
haja algumas particularidades, as fronteiras são tênues e passíveis de controversas
(Feriani 2017b). Além disso, com a popularização e a visibilidade que vem ganhando
nos últimos anos, “doença de Alzheimer ” acaba sendo um termo guarda-chuva
para designar uma multiplicidade de situações. Tendo em vista a complexidade
do diagnóstico e uma vez que não cabe a mim diagnosticar, mas ver como se dá a
constituição desse nome ao longo de diferentes campos e sujeitos, tenho preferido
usar “demência” ou ainda “processos demenciais”.

5 O contexto de enunciação chama a atenção para o acordo pragmático que


as pessoas envolvidas na comunicação estabelecem entre si – ver Favret-Saada
(1977). Funciona, aqui, para mostrar que a deterioração causada pela demência
Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis 35

não é resultado apenas de um processo neurológico, mas sociocultural, em que a


capacidade de interação depende da disposição dos sujeitos envolvidos – dementes e
não dementes. Em alguns relatos autobiográficos, as pessoas em processo demencial
se perguntam de quem, afinal, é o problema – dos enfermos ou dos supostamente
saudáveis que não são capazes de entrar nesse mundo-outro e estabelecer uma relação
possível. Talvez a demência cause tanto temor por revelar nossa incapacidade de nos
comunicarmos de outras maneiras – isto serve, inclusive, para repensar estratégias de
pesquisa. Criar um contexto de enunciação pode ter ressonância na ideia de “não bater
de frente”, dita aos cuidadores pelos médicos e voluntários da Associação Brasileira
de Alzheimer em situações tidas como difíceis, como quando o enfermo diz querer
ir para casa ao não reconhecer o próprio local de moradia, recusar-se a tomar banho
ou desejar ver os pais e outros parentes já falecidos.

6 Residente é um estudante de medicina em processo de especialização (ou


residência, como dizem) e é quem, em um hospital universitário, atende o paciente
acompanhado pelo cuidador. Após a realização dos procedimentos necessários
à consulta, o médico (professor) é chamado para ouvir o relato do caso e auxiliar
no diagnóstico e nas medidas a serem tomadas, como solicitação de exames e
medicamentos.

7 A expressão “dissolução do self ” foi ouvida principalmente dos residentes


e médicos do ambulatório de neurologia, onde acompanhei as consultas. De
qualquer forma, a expressão é bem conhecida e usada para se referir à doença, de
maneira geral, tanto na bibliografia quanto por médicos, profissionais de saúde,
cuidadores e familiares – ver Herskovits (1995), Clare (2003), Langdon, Eagle &
Warner (2007) e Beard & Fox (2008), Sabat, S.R. & Harré, R. (1992). Apesar de esses
autores mostrarem como a “dissolução do self” é ressignificada pelos relatos dos
próprios enfermos, eles não questionam a expressão em si, ainda que a tomem de
maneira contextual, relacional e heterogênea. Estudos centrados na pessoa, com a
valorização da experiência subjetiva dos enfermos, do ambiente interacional e contexto
sociocultural, em contraposição ao estigma da “dissolução do self ”, tiveram como
precursor o psicólogo social Kitwood (1997), desencadeando o que ficou conhecido
como personhood movement (Leibing 2006) – ver O’Connor et al ((2007), Halewood
(2016) e Leibing (2018). Na proposta de Das (2015), a antropologia pode contribuir
para uma mudança de perspectiva da psicopatologia ao perceber que o que está em
jogo não é a teoria narrativa do self em si, mas como nós colocamos as palavras dessas
pessoas no mundo. O desafio é o de como posicionar essas vozes no cotidiano, como
devolvê-las à vida. Nessa direção, seja a partir da linguagem ou da valorização do
corpo como expressão primordial da subjetividade, temos os estudos de Biehl (2008),
McLean (2006), Kontos (2006), Chatterji (1998; 2006). É nessa linha de pesquisa, de
recolocar as vozes das pessoas em processo demencial no mundo – ou em um mundo
possível –, que meu trabalho se insere, questionando a expressão “dissolução do self ”
ao mostrar como ela se conecta a determinada noção de pessoa, doença e realidade,
numa tentativa de alargar os referenciais metodológicos e teóricos ao buscar conexões
inesperadas, como, por exemplo, com o xamanismo, a arte, as imagens e a literatura.

8 Programa foi ao ar pelo canal Discovery em 24/06/2014.


36 Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis

9 Ele escreveu um livro intitulado My Mysterious Son: A Life-Changing


Passage Between Schizophrenia and Shamanism. A notícia pode ser lida em https://
www.washingtonpost.com/posteverything/wp/2015/03/24/how-a-west-african-
shaman-helped-my-schizophrenic-son-in-a-way-western-medicine-couldnt/.
Acesso em 12/04/2015.

10 Por ter sintomas semelhantes, a esquizofrenia já foi considerada “demência


precoce”. No ambulatório de psiquiatria geriátrica, acompanhei o caso de uma senhora
que vinha sendo tratado como esquizofrenia e que posteriormente foi reclassificado
como doença de Alzheimer.

11 Disponível em https://td38.wordpress.com/2015/06/05/lo-que-ve-un-chaman-
en-un-hospital-psiquiatrico/. Acesso em 17/07/2015.

12 Em http://news.stanford.edu/2014/07/16/voices-culture-luhrmann-071614/.
Acesso em 20/09/2016.

13 Post publicado em 20/12/2016, na página “Quem tem um mal de Alzheimer


em casa”?

14 Disponível em https://www.tomhussey.com/PROJECTS/REFLECTIONS/
thumbs. Acesso em 06/08/2020.

15 Em http://well.blogs.nytimes.com/2016/06/21/alzheimers-disease-as-an-
adventure-in-wonderland/? smid=fb-share&_r=3 Acesso: 22/06/2016.

16 Disponível em www.psupress.org/books/titles/978-0-271-07468-9.html.
Acesso em 22/06/2016.

17 Estadunidense diagnosticado em 2006 e autor do blog http://living-with-


alzhiemers.blogspot.com.br/.

18 William Utermohlen (1933-2007) foi um artista norte-americano diagnosticado


com doença de Alzheimer aos 61 anos. Ele fez uma série de autorretratos ao longo da
evolução da demência – em https://www.williamutermohlen.org/index.php/about/9-
about/essays. Acesso em 15/07/2020.

19 Estadunidense diagnosticada aos 46 anos e autora do blog http://


creatingmemories.blogspot.com.br/.

20 Isso não significa negar que a doença de Alzheimer tenha uma materialidade
– e que a medicina não seja um importante meio de conhecimento e tratamento da
mesma –, mas mostrar como essa materialidade transborda e se conecta com/tensiona
outras relações, como as noções de pessoa, doença, memória, velhice, realidade.

21 Essa é uma tentativa de fazer um acordo pragmático entre ontologias, uma


tradução em que uma não se reduza à outra, de pensar o pensamento do outro ou
levar o pensamento nativo a sério (Viveiros de Castro 2002). É diferente de quando
os médicos reconhecem que a alucinação é real e, por isso, não se deve confrontar,
mas, enquanto médicos que precisam oferecer tratamento e explicação, classificam
a partir da realidade deles como “sintoma psicótico”, “perda da noção de realidade”
– mas, afinal, de que realidade estamos falando?
Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis 37

22 Algumas pessoas se referem à doença de Alzheimer com a expressão “não


está bem da cabeça” ou como “caducou” / “está caduco”.

23 Ainda que a doença de Alzheimer não seja vista como traço da personalidade
– apesar de alguns traços de personalidade serem elencados como fatores de risco
para a doença –, existe uma reivindicação de uma diferença ontológica criada pela
doença – “Bem-vindo ao meu mundo”, escreve Joe. Se tal reivindicação pode ser
importante para que essas pessoas sejam ouvidas e reconhecidas, ela pode criar
um abismo ou uma dicotomia entre “nós”, saudáveis, e “eles”, doentes, podendo
prejudicar a comunicação e a convivência.

24 Em uma reunião da ABRAz, uma filha disse: “minha mãe gosta de tomar
banho à noite, mas ela engana a gente e não toma. Quando eu pergunto, ela diz que
já tomou, mas eu não sei se ela esqueceu ou se tá sendo esperta, isso sim!”. Um filho,
que também cuida da mãe, complementou: “ela tem resposta pra tudo. Não sei se é
a doença ou a malandragem dela”.

25 A inspiração, aqui, é na advertência da própria Strathern ao pesquisar os


processos de objetificação na Melanésia: “Na realidade, o sujeito individual esteve
presente em toda a minha exposição; apenas ela/ele não assume a forma que estamos
acostumados a ver” (Strathern 2006: 393).

26 As pessoas em processo demencial parecem radicalizar ou levar até as


últimas consequências o argumento de Merleau-Ponty. Para estudos sobre o corpo
nas demências, ver Kontos (2006); Kontos & Naglie (2009); Kontos et al (2011);
Engel (2017).

27 Ao longo da pesquisa, encontrei muitas imagens sobre doença de Alzheimer,


como ensaios fotográficos, obras de arte, vídeos de campanhas de conscientização
etc. Chamou-me a atenção a quantidade de rostos/retratos: mais de 70%. O discurso
médico da “dissolução do self ” coexiste, assim, com uma grande quantidade de
rostos, gestos, expressões. Isto também me incentivou a discutir a noção de pessoa
que está em jogo nos processos demenciais. Sobre os autores das fotos, temos: Susan
Falzone, no ensaio “Grace”, fotografa a tia, com doença de Alzheimer. Disponível
em: http://www.hypeness.com.br/2014/04/fotografo-capta-o-cotidiano-da-tia-com-
alzheimer-em-serie-sombria-e-emocionante/; Alejandro Kirchuk, no ensaio “La noche
que me quieras”, fotografa a avó, com doença de Alzheimer, e o avô, como cuidador.
Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/videos_e_fotos/2012/02/120214_
galeria_alzheimer_pu.shtml; Alex ten Napel, no ensaio “Alzheimer ”, fotografa
idosos em uma Instituição de Longa Permanência, na Holanda. Disponível em:
http://www.huffingtonpost.com/2014/10/10/alex-ten-napel_n_5955594.html; Fábio
Messias, no ensaio “Essa luz sobre o jardim”, fotografa o cotidiano dos avós – ele,
com doença de Alzheimer; ela, como cuidadora. Disponível em: http://cargocollective.
com/fabiomessias/Essa-Luz-Sobre-o-Jardim; Fausto Podavini, no ensaio “Mirella”,
fotografa um casal de idosos – ele, com doença de Alzheimer, e a esposa como
cuidadora. Disponível em: http://www.hypeness.com.br/2013/05/projeto-fotografico-
tocante-mostra-o-dia-a-dia-de-uma-esposa-cuidando-do-marido-com-alzheimer/.
38 Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis

28 Tomo estética tal como Cesarino (2011): como “uma reflexão sobre a
configuração dos códigos sensíveis, das imagens e das metáforas” (: 16) – para ele, que
constitui o pensamento xamanístico; para mim, que constitui a doença de Alzheimer.

29 Esse comportamento estranho pode levar a ser identificado como loucura.


Para Severi (2007), a loucura é interpretada em termos acústicos, com a presença de
uma “voz outra” – por exemplo, a voz do animal – no corpo do doente.

30 Em alguns momentos da pesquisa, ao conversar com as pessoas em processo


demencial, era comum familiares e/ou médicos fazerem sinais negativos, numa
tentativa de fazer com que eu desconsiderasse aquelas falas.

31 É importante dizer que, apesar de estabelecer uma tríade entre doentes


de Alzheimer, xamãs e escritores/antropólogos como uma analogia boa para pensar
proximidades e distanciamentos, não considero que existe uma alteridade radical
entre tais sujeitos, uma vez que coexistem e um pode vir a se tornar o outro – inclusive,
um dos fantasmas de estudar este tema é a possibilidade sempre latente de que eu
também poderei ser uma pessoa em processo demencial. A estratégia de pensar em
“nós” e “eles”, “mundo de lá” e “mundo de cá” foi para ajudar a mapear o campo
de relações aqui proposto, bem como de levar a sério o convite de Joe – “bem-vindo
ao meu mundo”.
Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis 39

Referências bibliográficas

AGUZZOLI, Fernando. 2014. Quem, eu? New Brunswick, New Jersey, and
Uma avó. Um neto. Uma lição de London: Rutgers University Press.
vida. Caxias do Sul, RS: Belas-Letras. pp. 218-239.
AZIZE, Rogério Lopes. 2010. A nova CLARE, Linda. 2003. “Managing threats
ordem cerebral: a concepção de to self: awareness in early stage
“pessoa” na difusão neurocientífica. Alzheimer´s disease”. Social Science
Tese de Doutorado em Antropologia, & Medicine, 57:1017-1029.
Museu Nacional / UFRJ. CRAPANZANO, Vincent. 1980. Tuhami
BEARD, Renée L. & FOX, Patrick J. 2008. – Portrait of a Moroccan. Chicago:
“Resisting social disenfranchisement: University of Chicago Press.
negotiating collective identities and DAS, Veena. 2015. Affliction: health,
everyday life with memory loss”. disease, poverty. New York: Fordham
Social Science & Medicine, 66:1509- University Press.
1520. DELEUZE, Gilles. 1992. Conversações.
BIEHL, João. 2008. “Antropologia do São Paulo: Ed. 34.
devir: psicofármacos – abandono DIDI-HUBERMAN, Georges. 2013. A
s o c i a l – d e s e j o ” . Re v i s t a d e imagem sobrevivente: história da
Antropologia, USP, v. 51, n. 02. arte e tempo dos fantasmas segundo
BURKE, Lucy. 2015. “The locus of Aby Warburg. Rio de Janeiro:
our dis-ease: Narratives of family Contraponto.
life in the age of Alzheimer ’s”. In: DUMONT, Louis. 1985. O individualismo:
Aagje Swinnen & Mark Schweda uma perspectiva antropológica da
(eds.), Popularizing Dementia: Public ideologia moderna. Rio de Janeiro:
Expressions and Representations of Rocco.
Forgetfulness. Aging Studies, v. 6:23- E N G E L , C í n t i a . 2 0 1 7 . “C o r p o s
42. Bielefeld, Germany: Transcript e experiências com demências:
Verlag. seguindo emaranhados de
CARROLL, Lewis. 2010. Através do subjetividades e substâncias”.
espelho e o que Alice encontrou lá. Anuário Antropológico, II:301-326.
Rio de Janeiro: Zahar. FAVRET-SAADA, Jeanne. 1977. Les mots,
CESARINO, Pedro de Niemeyer. 2011. La mort, les sorts. Paris: Gallimard.
Oniska: Poética do xamanismo na FERIANI, Daniela. 2017a. “Rastros da
Amazônia. São Paulo: Perspectivas. memória na doença de Alzheimer:
C H AT T E R J I , R o m a . 1 9 9 8 . “A n entre a invenção e a alucinação”.
Ethnography of Dementia: A Case Revista de Antropologia, v. 60, n. 02.
Study of an Alzheimer ’s Disease _____. 2017b. “Pistas de um cotidiano
Patient in the Netherlands”. Culture, assombrado: a saga do diagnóstico na
Medicine and Psychiatry, 22:355-382. doença de Alzheimer”. Ponto Urbe,
_____. 2006. “Normality and Difference: v. 20, n. 01.
Institutional Classification and the _____. 2019a. “Da alucinação na clínica
Constitution of Subjectivity in a ao ver alucinatório da imagem:
Dutch Nursing Home”. In: Annette um percurso etnográfico”. GIS –
Leibing & Lawrence Cohen (orgs), Gesto, Imagem, Som – Revista de
Thinking about dementia: culture, Antropologia, 4 (1):14-49.
loss, and the Anthropology of senility.
40 Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis

_____. 2019b. “A embalagem brilhante 31, n. 5:688-704. Disponível em:


que virou uma borboleta”. Tessituras https://doi.org/10.1111/j.1467-
– Revista de Antropologia e 9566.2009.01158.x.
Arqueologia, v. 7, n. 2. KONTOS, Pia. C. et al. 2011. “Dementia
FOUCAULT, Michel. 2005. História da care at the intersection of regulation
loucura. São Paulo: Perspectiva. and reflexivity: a critical realist
FRANZEN, Jonathan. 2012. “O cérebro perspective”. Journal of Gerontology,
do meu pai”. Revista Piauí, n.69, v. 66, n. 1:119-128. Disponível em:
junho. https://doi.org/10.1093/geronb/
GOLDMAN, Marlene. 2015. “Purging gbq022.
the world of the Whore and the horror. KOPENAWA, Davi & ALBERT, Bruce.
Gothic and apocalyptic portrayals of 2015. A queda do céu: palavras de
dementia in Canadian fiction”. In: um xamã yanomami. São Paulo:
Aagje Swinnen & Mark Schweda Companhia das letras.
(eds.), Popularizing Dementia: Public LANGDON, Shani A.; EAGLE, Andrew
Expressions and Representations of & WARNER, James. 2007. “Making
Forgetfulness. Aging Studies, v. 6:69- sense of dementia in the social world:
88. Bielefeld, Germany: Transcript a qualitative study”. Social Science &
Verlag. Medicine, 64:989-1000.
HALEWOOD, Michael. 2016. “Do those LEIBING, Annette. 2006. “Divided
diagnosed with Alzheimer’s disease gazes: Alzheimer ’s disease, the
lose their souls? Whitehead and person within, and death in life”. In:
Stengers on persons, propositions and Annette Leibing & Lawrence Cohen,
the soul”. The Sociological Review, v. Thinking about dementia: culture,
64, n. 4:786-804. Disponível em: loss, and the anthropology of senility.
https://doi. org/10.1111%2F1467- New Jersey: Rutgers University
954X.12398. Press. pp. 240-268.
H E R S K OV I T S , E l i z a b e t h . 1 9 9 5 . _____. 2018. “On Heroes, Alzheimer’s,
“Struggling over subjectivity: debates and Fallacies of Care: Stories of
about the “self ” and Alzheimer´s Utopia and Commitment”. In: H.-P.
Disease”. Medical Anthropology Zimmermann (org.), Kulturen der
Quarterly. 9 (2):146-164. Sorge: Wie unsere Gesellschaft ein
KITWOOD, Tom. 1997. Dementia Leben mit Demenz ermöglichen kann.
reconsidered: the person comes first. Rio de Janeiro: Campus. pp. 177-194.
Buckingham: Open University Press. LÉVI-STRAUSS, Claude. 1975a [1949]. “A
KONTOS, Pia C. 2006. “Embodied eficácia simbólica”. In: Antropologia
selfhood: an ethnographic exploration estrutural. Rio de Janeiro: Tempo
of Alzheimer´s Disease”. In: Annette brasileiro.
Leibing & Lawrence Cohen (orgs.), _____. 1975b. “O feiticeiro e sua magia”.
Thinking about dementia: culture, In: Antropologia estrutural. Rio de
loss, and the Anthropology of senility. Janeiro: Tempo Brasileiro.
New Brunswick, New Jersey, and _____. 1993. História de Lince. São Paulo:
London: Rutgers University Press. Companhia das Letras.
K O N T O S , P i a . C . & N AG L I E , _____. 2003 [1968]. “Introdução à obra
Gary. 2009. “Tacit knowledge of de Marcel Mauss”. In: Sociologia
caring and embodied selfhood”. e Antropologia. São Paulo: Cosac &
Sociology of Health & Illness, v. Naify.
Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis 41

McLEAN, Athena. 2006. “Coherence _____. 2013. A mente assombrada. São


without facticity in dementia: the Paulo: Companhia das Letras.
case of Mrs. Fine”. In: Annette SEIXAS, Heloisa. 2013. O lugar escuro:
Leibing & Lawrence Cohen (orgs.), uma história de senilidade e loucura.
Thinking about dementia: culture, Rio de Janeiro: Objetiva.
loss, and the Anthropology of senility. SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.).
New Brunswick, New Jersey, and 2003. História, memória, literatura:
London: Rutgers University Press. o testemunho na era das catástrofes.
pp.157-179. Campinas, S.P.: Editora da Unicamp.
MERLEAU-PONTY, Maurice. 1945. SEVERI, Carlo. 2007. Le principe de la
Fenomenologia da percepção. São chimère: une anthropologie de la
Paulo: Martins Fontes. mémoire. Paris: Éditions Rue d’Ulm-
O’CONNOR, Deborah. et al. 2007. musée du quai Branly.
“Personhood in dementia care: S I N G H, J e n n i f e r S . 2 0 1 1 . “ T h e
Developing a research agenda Vanishing Diagnosis of Asperger ’s
for broadening the vision”. Disorder ”. In: P. J. McGann &
Dementia, v. 6, n. 1:121-142. David J. Hutson (eds.), Sociology of
Disponível em: https://doi. Diagnosis, v. 12:235-257, Emerald
org/10.1177%2F1471301207075648. Group Publishing Limited.
PITARCH, Pedro. 2018. “A linha da STRATHERN, Marilyn. 2006 [1988]. O
dobra. Ensaio de cosmologia gênero da dádiva: problemas com
mesoamericana”. Mana, v. 24, n. 1. as mulheres e problemas com a
RICOEUR, Paul. 2007. A memória, a sociedade na Melanésia. Campinas,
história, o esquecimento. Campinas, S.P.: Editora da Unicamp.
S.P.: Editora da Unicamp. _____. 2013. Fora de contexto: as ficções
ROBBINS, Jessica C. 2008. “‘Older persuasivas da antropologia. São
americans’ and Alzheimer´s disease: Paulo: Terceiro nome.
citizenship and subjectivity in TAUSSIG, Michael. 1993 [1987].
contested time”. Michigan: Michigan Xamanismo, colonialismo e o homem
Discussions in Anthropology, 17:14- selvagem: um estudo sobre o terror e
43. a cura. São Paulo: Paz e Terra.
ROSE, Nikolas & ABI-RACHED, Joelle. _____. 2011. I swear I saw this: Drawings
2013. Neuro: the new brain sciences in Fieldwork Notebooks, Namely My
and the management of the mind. Own. Chicago: Univ. Press.
Princeton: Princeton University VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo.
Press. 1996. “Os pronomes cosmológicos e
ROSE, Nikolas. 2001. “The politics of o perspectivismo ameríndio”. Mana,
life itself ”. Theory, culture & society, 2 (2): 115-144.
18 (6):1-30. _____. 2002. “O nativo relativo”. Mana,
SABAT, Steven R. & HARRÉ, Rom. 1992. 8 (1): 113-148.
“The construction and deconstruction _____. 2006. “A floresta de Cristal: notas
of self in Alzheimer´s disease”. sobre a ontologia dos espíritos
Ageing and Society, 12:443-461. amazônicos”. Cadernos de Campo,
SACKS, Oliver. 1997. O homem que São Paulo, n. 14/15: 319-338.
confundiu sua mulher com um _____. 2011. “O medo dos outros”. Revista
chapéu – e outras histórias clínicas. de Antropologia, v. 54, n. 2: 885-917.
São Paulo: Companhia das Letras.
42 Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis

_____. 2 0 1 2 . “ ‘ Tr a n s f o r m a ç ã o ’ n a
antropologia, transformação da
‘antropologia’”. Mana, 18 (1): 151-
171.
WEARING, Sadie. 2015. “Deconstructing
the American family. Figures of
parents with dementia in Jonathan
Franzen’s The Corrections and A.M.
Homes’ May We Be Forgiven”. In:
Aagje Swinnen & Mark Schweda
(eds.), Popularizing Dementia: Public
Expressions and Representations of
Forgetfulness. Aging Studies, v. 6:43-
68. Bielefeld, Germany: Transcript
Verlag.
Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis 43

DOenÇA de ALZHeIMer e ALZHeIMer’s dIseAse And


XAMAnIsMO: dIÁLOGOs (IM) sHAMAnIsM: (IM)POssIBLe
POssÍVeIs dIALOGUes

Resumo Abstract

Relacionar os processos demenciais During my fieldwork I often heard people


ao tornar-se louco ou ser outra pessoa, relating dementia to insanity, becoming
estar possuído, foi algo que encontrei someone else, or being possessed.
em cenas e relatos de meu material de Attempting to understand what is at stake
campo. É numa tentativa de compreender in this “becoming another”, I propose a
o que está em jogo nesse “devir outro” dialogue between Alzheimer ’s disease
que faço um diálogo entre doença de and shamanism as phenomena that
Alzheimer e xamanismo enquanto deal with processes of transformation
fenômenos que lidam com processos de in extreme situations, such as disease,
transformação em situações-limite, como misfortune, disorder, and death. Such
doença, infortúnio, desordem, morte. a dialogue, which involves similarities
Tal diálogo, que percorre aproximações and differences, allows us to think about
e distanciamentos, permite pensar nos the shifts in the notions of person, illness
deslocamentos das noções de pessoa, and reality between distinct subjects and
doença e realidade entre os diferentes fields. Taking discussions on shamanism
sujeitos e campos. Ao trazer a discussão as a contrast value, an analogy that is
sobre xamanismo como um valor de “good to think”, I turn to other references
contraste, uma analogia “boa pra for understanding Alzheimer’s disease
pensar”, busquei outras referências para not only as a diagnosis, but also as
a compreensão da doença de Alzheimer an experience, a way of life, “another
não só como diagnóstico, mas também world”. The aim is to demonstrate
como experiência, modo de vida – um how the biomedical discourse of the
“mundo outro” – , mostrando como o “dissolution of the self ” is based on a
discurso biomédico da “dissolução de specific notion of person.
self ” se fundamenta em uma noção Ke y w o r d s : A l z h e i m e r ’ s d i s e a s e ;
específica de pessoa. Shamanism: Delusion; Notion of person;
Palavras-chave: Doença de Alzheimer; Ethnography.
Xamanismo; Alucinação; Noção de
pessoa; Etnografia.
44 Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis

EnFerMedAd de ALZHeIMer Y
CHAMAnIsMO: dIÁLOGOs (IM)
POsIBLes

Resumen

Relacionar los procesos de demencia


con volverse loco o ser otra persona o
estar poseído fue algo que encontré en
escenas e informes de mi material de
campo. En un intento de comprender
qué está en juego en este “convertirse
en otro”, propongo un diálogo entre
la enfer medad de Alzheimer y el
chamanismo como fenómenos que se
ocupan de los procesos de transformación
en situaciones extremas, como la
enfermedad, el infortunio, el desorden
y la muerte. Tal diálogo, que navega
entre aproximaciones y distancias, nos
permite pensar los desplazamientos de
las nociones de persona, de enfermedad
y de realidad entre los diferentes sujetos
y campos. Al presentar la discusión
sobre el chamanismo como un valor de
contraste, una analogía “buena para
pensar”, busqué otras referencias para
entender la enfermedad de Alzheimer no
solo como un diagnóstico, sino también
como una experiencia, una forma de
vida, “otro mundo”, mostrando cómo el
discurso biomédico de “disolución del
self ” se basa en una noción específica
de persona.
Pa l a b r a s c l a v e : e n f e r m e d a d d e
Alzheimer; Chamanismo; Alucinación;
Noción de persona; Etnografía.

También podría gustarte