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Uma antologia de
Abele Rizieri Ferrari
Textos Subterrâneos
textosubterraneos@riseup.net
www.textosubterraneos.tk
Compilação, tradução, notas e prefácio: Textos Subterrâneos
Grafismo: Textos Subterrâneos
Primeira edição: Abril 2013
Todos os textos foram traduzidos a partir dos originais em italiano,
excepto o apêndice III: Renzo Novatore, traduzido do original em francês.
Este livro está escrito em desacordo ortográfico. A sua reprodução é
completamente livre e pode ser descarregado em formato digital em
www.textosubterraneos.tk
Índice
Novatore: Uma biografia 9
Um elogio ao rebelde 37
Os vagabundos de espírito 77
Pensamentos e máximas 87
Grito rebelde 91
Flores silvestres 99
O expropriador 109
Parábola 113
A misteriosa 185
No turbilhão 245
5
impossível completá-la desta forma e a ele devemos a nossa
gratidão. Queremos também salientar a edição inglesa de Verso
il Nulla Creatore, editada pela Venemous Butterfly, e também os
sites com traduções em inglês theanarchistlibrary.org e anar-
chyinitaly. A eles recorremos sempre que tínhamos dúvidas de
interpretação do texto original.
Queríamos também enviar o nosso agradecimento ao Marco,
ao Bruno, ao Mário e ao Aragorn pela ajuda e pelo apoio dado
para que esta vontade de editar Abele Rizieri Ferrari se tornasse
uma realidade. A eles devemos também este trabalho. E por úl-
timo agradecemos a todos aqueles que, embora se encontrem
aqui anónimos, nos motivaram e nos deram força para agora
apresentarmos esta tradução. A todos vocês dedicamos este livro.
Textos Subterrâneos
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Existem também pessoas que só conseguem sentir prazer
em grupo. Os verdadeiros heróis comprazem-se sozinhos.
C. Baudelaire
Journaux Intimes
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
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NOVATORE: UMA BIOGRAFIA
Novatore:
Uma biografia
Não banho as minhas palavras
na mentira;
A acção é o controle de todo o homem.
Píndaro
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NOVATORE: UMA BIOGRAFIA
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NOVATORE: UMA BIOGRAFIA
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NOVATORE: UMA BIOGRAFIA
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
coisa. Estava só. Só com a morte! E, ainda assim, a vida era bela.
Bela, bela!
Não eram capazes de capturar Novatore. O seu velho amigo
Auro5 contou que em seguida chegaram a organizar-se, entre a
Liguria e Emilia, batidas de caça formadas por cento e cinquen-
ta homens armados com o objectivo de fazer rusgas em casas,
galinheiros e estábulos, na vã tentativa de encontrar o “perigo-
síssimo bandido anarquista contra o qual tinha sido dada a or-
dem de disparar à queima-roupa.”
De facto, não obstante a guerra ter acabado e muitos oposi-
tores terem voltado ao seu país natal após um longo período de
deserção, ou após o seu exílio, Novatore permanecia impossível
de ser descoberto (embora estivesse bem perto da sua cidade
natal, Arcola), armado com duas precisas pistolas Mauser para
sua autodefesa, empenhado em escrever os seus habituais ar-
tigos escarnecedores no Il Libertario, tentando conspirar, nas
noites sem luar, misteriosos planos subversivos. Precisamente
naquele período, no final de 1918, morre (provavelmente por
doença) um dos seus três filhos. Foi nessa única e trágica oca-
sião que Novatore abandonou por um momento a sua coerên-
cia proverbial e correu em direcção a casa, desafiando solda-
dos e polícias, para dar o último adeus ao pequeno, pálido e
evidentemente amado, cadáver do filho. História comovente,
quase uma ficção teatral. Pelo contrário, tratava-se da vida real
de um homem, uma vida que poucos compreendiam e que
muitos queriam destruir antes do tempo.
No Verão de 1919, ocorreram por toda a Itália tumultos con-
tra a carestia de vida, a falta de trabalho, a fome. Os sindicatos
estavam num frenesi e na primeira linha estavam sempre os
anarquistas; à exploração respondia-se com a greve, aos fechos
das fábricas pelos patrões respondia-se com a criação de con-
selhos operários e a autogestão, à violência respondia-se com
violência. Em muitas bocas, nas praças, corria a palavra de or-
dem “fazer o mesmo que na Rússia”, uma referência evidente
à revolução implementada pelos bolcheviques de Lenin dois
anos antes. Novatore, que não suportava sindicalistas, socialis-
tas e comunistas, decide, sem pensar muito, unir-se àquelas
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NOVATORE: UMA BIOGRAFIA
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NOVATORE: UMA BIOGRAFIA
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NOVATORE: UMA BIOGRAFIA
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NOVATORE: UMA BIOGRAFIA
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NOVATORE: UMA BIOGRAFIA
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NOVATORE: UMA BIOGRAFIA
Arcola, La Spezia
Extraído de novatore.it
NOTAS
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NOVATORE: UMA BIOGRAFIA
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NOVATORE: UMA BIOGRAFIA
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15. Os Arditi del Popolo foram uma milícia popular antifascista forma-
da em Junho de 1921, composta por militantes de diversas tendên-
cias de esquerda: anarco-sindicalistas, socialistas de esquerda,
comunistas e republicanos. O seu principal objectivo era a criação
de grupos armados para fazer frente aos esquadrões de acção fas-
cistas. Ainda que politicamente plural, esta era uma organização
da classe trabalhadora, alistando-se nela trabalhadores de fábri-
cas, do campo, dos caminhos-de-ferro, dos estaleiros, dos portos,
e também dos transportes públicos. Alguns grupos de classe média
também se implicaram, estudantes, trabalhadores de escritórios
e de outras profissões liberais. Os Arditi del Popolo tinham uma or-
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NOVATORE: UMA BIOGRAFIA
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
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UM ELOGIO AO REBELDE
Um elogio ao
rebelde
O tipo do criminoso é o tipo do homem forte colocado em
condições desfavoráveis, um homem forte posto enfermo. O que
lhe falta é a selva virgem, uma natureza e uma forma de existir
mais livres e perigosas, nas quais seja legítimo tudo o que no
instinto do homem forte é arma de ataque e de defesa. As suas
virtudes foram proscritas pela sociedade: os seus instintos mais
enérgicos, que lhe são inatos, misturam-se imediatamente com
os efeitos depressivos, com a suspeita, o medo, a desonra. Mas
esta é quase a fórmula da degeneração fisiológica. Quem tem de
fazer às escondidas, com uma tensão, uma previsão, uma an-
gústia prolongadas, aquilo que melhor pode fazer, torna-se for-
çosamente anémico; e como a única colheita que obtém dos seus
instintos é sempre perigo, perseguição, calamidades, também o
seu sentimento se vira contra esses instintos – sente-os como uma
fatalidade. É assim na nossa sociedade, na nossa domesticada,
medíocre, castrada sociedade onde um homem vindo da nature-
za, chegado das montanhas ou das aventuras do mar degenera
necessariamente em criminoso.
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UM ELOGIO AO REBELDE
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UM ELOGIO AO REBELDE
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UM ELOGIO AO REBELDE
Textos Subterrâneos
NOTAS
1. O autor afirma n`O Poema do Mal (que se encontra inserido nesta
antologia dentro do conjunto de textos que compõem Por cima
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PARA O NADA CRIADOR
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II
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PARA O NADA CRIADOR
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III
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PARA O NADA CRIADOR
Chora e desespera...
Pois o cansaço torna-o débil, converteu-o em cristão.
Então, ele agarra a sua irmã Vida pela mão e procura confiná-
-la ao reino da morte.
Mas o Anticristo – o espírito do instinto mais misterioso e pro-
fundo – reclama para si a Vida, gritando-lhe barbaramente: Re-
comecemos!
E a Vida recomeça!
Porque não quer morrer.
E se Cristo simboliza o cansaço da vida, o pôr-do-sol do pen-
samento: a morte da ideia!
O Anticristo simboliza o instinto da vida.
Simboliza a ressurreição do pensamento.
O Anticristo é o símbolo de uma nova aurora.
IV
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PARA O NADA CRIADOR
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
da feroz conspiração.
Todos os antigos apóstolos das rãs também estavam presen-
tes. A guerra foi decidida e o príncipe das víboras negras benzeu
os exércitos fratricidas em nome daquele deus que disse “não
matarás”, enquanto que o simbólico vigário da morte implorou
à sua deusa que viesse dançar pelo mundo.
Então o socialismo – como hábil acrobata e experiente saltim-
banco – saltou para a frente. Saltou sobre a corda esticada da
especulação política sentimental, cingiu a testa de negro; e,
lamentando-se e chorando, falou mais ou menos desta for-
ma: “Eu sou o verdadeiro inimigo da violência. Sou o inimigo
da guerra e o maior inimigo da revolução. Sou o inimigo do
sangue”.
E depois de ter ainda falado de “paz” e de “igualdade”, de “fé”
e de “martírio”, de “humanidade” e de “porvir”, tocou uma can-
ção sobre os motivos do “sim” e do “não”, baixou a cabeça e
chorou...
Chorou as lágrimas de Judas, que não são sequer o “lavo as
minhas mãos” de Pilatos!
E as rãs partiram...
Partiram em direcção ao reino da suprema cobardia humana.
Partiram em direcção à lama de todas as trincheiras.
Partiram...
E veio a morte!
Veio ébria de sangue e dançou macabramente pelo mundo.
Durante cinco longos anos...
Foi então que os grandes vagabundos de espírito, novamente
repugnados, subiram mais uma vez para o dorso das suas
águias livres, para ascenderem vertiginosamente à solidão dos
seus longínquos glaciares, rindo e maldizendo.
Também o espírito de Zarathustra – o mais verdadeiro aman-
te da guerra e o mais sincero amigo dos guerreiros – deve ter
ficado bastante repugnado e revoltado, pois alguém o ouviu ex-
clamar: “Vocês deveriam ser, para mim, aqueles que estendem
o seu olhar à procura do inimigo – do vosso inimigo. E nalguns
de vocês o ódio incendeia-se à primeira vista. Vocês devem pro-
curar o vosso inimigo, combater a vossa guerra, apenas pelas
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PARA O NADA CRIADOR
vossas ideias!
E se a vossa ideia sucumbe, que a vossa rectidão grite pelo tri-
unfo!”
Mas, ai de mim! A repreensão heróica do bárbaro libertador
de nada valeu!
As rãs humanas não souberam distinguir o seu inimigo, nem
combater pelas próprias ideias. (As rãs não têm ideias!)
E não conhecendo o seu inimigo, nem tendo ideias próprias,
combaterão pela barriga dos seus irmãos em Cristo, pelos seus
iguais na democracia.
Combaterão contra si próprias, pelo seu inimigo.
Abel, ressuscitado, morria às mãos de Caim uma segunda vez.
Mas desta vez por si só!
Voluntariamente...
Voluntariamente, porque poderia revoltar-se e não o fez...
Porque poderia ter dito: não!
Ou sim!
Porque dizendo: “não”, poderia ter sido forte!
Porque dizendo: “sim”, teria demonstrado “acreditar” na “cau-
sa” pela qual combatia.
Mas não disse nem “sim” nem “não”.
E partiu!
Como cobarde!
Como sempre!
E partiu...
Foi em direcção à morte!...
Sem saber o porquê.
Como sempre.
E a morte veio...
Veio para dançar pelo mundo: por cinco longos anos!
E dançou macabramente pelas trincheiras lamacentas de to-
das as partes do mundo.
Dançou com pés de relâmpago...
Dançou e riu-se...
Riu-se e dançou...
Por cinco longos anos!
Ah! Como é vulgar a morte que dança sem ter sobre as costas
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VI
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PARA O NADA CRIADOR
VII
A guerra!
Recordam-na?
Que gerou a guerra?
Eis:
A mulher vendeu o seu corpo e chamou amor livre à sua pros-
tituição.
O homem, que se “esquivou” a fabricar projécteis e a pregar
a sublime beleza da guerra, chamou à sua cobardia: “esperteza
perspicaz e astúcia heróica!”
Aquele que sempre viveu da infâmia inconsciente, da cobar-
dia, da humildade, da indiferença e de fracas renúncias, impre-
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PARA O NADA CRIADOR
VIII
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PARA O NADA CRIADOR
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PARA O NADA CRIADOR
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PARA O NADA CRIADOR
XI
Está provado...
A vida é dor!
Mas nós aprendemos a amar a dor, para amar a vida!
Porque, ao amar a dor, aprendemos a lutar.
E na luta – somente na luta – encontramos a alegria de viver.
Permanecer em suspenso a metade, não é o nosso ofício.
O semicírculo simboliza o velho “sim e não”.
A impotência do viver e do morrer.
É o círculo do socialismo, da piedade e da fé.
Mas nós não somos socialistas...
Somos anarquistas. E individualistas, e niilistas, e aristocratas.
Porque vimos das montanhas.
De perto das estrelas.
Vimos do alto: a rir e a maldizer!
Vimos para acender sobre a terra uma selva de fogueiras, para
iluminá-la ao longo da noite que precede o grande meio-dia.
E as nossas fogueiras serão extintas apenas quando o incêndio
do sol brote majestosamente sobre o mar. E se esse dia não vier,
as nossas fogueiras continuarão a crepitar tragicamente entre a
escuridão da noite eterna.
Porque amamos tudo aquilo que é grande.
Somos os amantes de todos os milagres, os defensores de to-
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PARA O NADA CRIADOR
XIII
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PARA O NADA CRIADOR
XIV
XV
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PARA O NADA CRIADOR
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
Diziam:
“Nós queríamos ascender ao céu do sol livre...
Nós queríamos ascender ao céu da vida livre...
Nós queríamos ascender lá acima, onde um dia o olhar do
poeta pagão se fixou:
Onde se erguem carvalhos que permanecem invioláveis entre
os homens e os grandes pensadores; onde a beleza desce, invo-
cada pelos poetas puros, e permanece serena entre os homens;
onde o amor cria a vida e respira alegria!”
Em cima, onde a vida exulta e se expande numa harmonia
cheia de esplendor...
E por isso, por esse sonho lutamos, por esse grande sonho
morremos...
E à nossa luta deu-se o nome de crime.
Mas o nosso “crime” não deve ser considerado senão uma vir-
tude titânica, senão um esforço prometeico de libertação.
Porque fomos os inimigos de toda a dominação material e de
todo o nivelamento espiritual.
Porque nós, para além de toda a escravidão e de todo o dogma,
vemos a vida dançar livre e nua.
E a nossa morte deve ensinar-vos a beleza de viver heroica-
mente!”
Oh mortos, oh mortos! Oh nossos mortos...
Nós ouvimos a vossa voz...
Ouvimo-la falar desta forma, no silêncio solene das nossas
noites profundas!
Profundas, profundas, profundas!
Porque nós somos os sentimentais.
O nosso coração é uma tocha, a nossa alma um farol, a nossa
mente um incêndio!...
Nós somos a alma da vida!...
Somos os madrugadores que bebem o orvalho no cálice das
flores.
Mas as flores têm as raízes fosforescentes arraigadas na
escuridão da terra.
Naquela terra que bebeu o vosso sangue.
Oh mortos! Oh nossos mortos!
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PARA O NADA CRIADOR
Esse vosso sangue que brada, que ruge, que quer ser libertado
para se lançar em direcção ao céu e conquistar as estrelas! Essas
vossas irmãs, longínquas e luminosas, que vos viram morrer.
E nós – os vagabundos de espírito, os solitários da ideia – que-
remos que a nossa alma, livre e grande, abra as suas asas ao sol.
Queremos que o anoitecer social seja celebrado neste crepús-
culo da sociedade burguesa, para que a última noite negra se
torne vermelha de sangue.
Porque os filhos da aurora devem nascer do sangue...
Porque os monstros das trevas devem ser mortos ao nascer
do sol...
Porque as novas ideias individuais devem nascer das tragédias
sociais...
Porque os homens novos devem ser forjados no fogo!
E só da tragédia, do fogo e do sangue, nascerá o verdadeiro
Anticristo pleno de humanidade e de pensamento.
O verdadeiro filho da terra e do sol.
O Anticristo deve nascer das ruínas fumegantes da revolução
para animar os filhos da nova aurora.
Porque o Anticristo é aquele que vem do abismo para elevar-
-se para além de todos os limites.
É o inimigo volitivo da cristalização, do pré-estabelecimento,
da conservação!...
É ele que conduzirá os homens através das misteriosas ca-
vernas do desconhecido para o eterno descobrimento de novas
fontes de vida e de novos pensamentos.
E nós – os espíritos livres, os ateus da solidão, os demónios do
deserto – sem testemunhas – fomos já impelidos para os cumes
mais extremos...
Porque – para nós – todas as coisas devem ser levadas até ao
máximo das suas consequências.
Mesmo o Ódio.
Mesmo a Violência.
Mesmo o crime!
Porque o Ódio dá força.
A violência destrói.
O crime renova.
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
A crueldade cria.
E nós queremos destruir, renovar, criar!
Porque tudo o que é baixa vulgaridade deve ser superado.
Porque tudo o que vive deve ser grande.
Porque tudo o que é grande faz parte da beleza!
XVII
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PARA O NADA CRIADOR
indicar o caminho.
Esse caminho sem fim que é o da eternidade.
Os olhos dos nossos mortos dizem-nos o “Porquê” da vida,
mostrando-nos o fogo secreto que arde no nosso mistério.
Daquele nosso mistério secreto que ninguém cantou até hoje...
Mas hoje o crepúsculo é vermelho...
O pôr-do-sol está ensanguentado...
Estamos próximos da celebração trágica do grande anoitecer
social.
O tempo já fez soar nos sinos da história as primeiras batidas
madrugadores de um novo dia.
Basta, basta, basta!
É a hora da tragédia social!
Nós destruiremos rindo.
Nós incendiaremos rindo.
Nós mataremos rindo.
Nós expropriaremos rindo.
E a sociedade cairá. A pátria cairá. A família cairá.
Tudo cairá, porque o Homem livre nasceu.
Nasceu aquele que, através do choro e da dor, aprendeu a arte
dionisíaca da alegria e do riso.
Chegou a hora de afogar o inimigo no sangue...
Chegou a hora de lavar a nossa alma no sangue.
Basta, basta, basta!
Que o poeta transforme a sua lira num punhal!
Que o filósofo transforme o seu estudo numa bomba!
Que o pescador transforme o seu remo num machado formidável.
Que o mineiro saia armado com o seu ferro luzidio dos antros
mortíferos das minas escuras.
Que o camponês transforme a sua pá fecunda numa lança
guerreira.
Que o operário transforme o seu martelo numa foice e num
machado.
E avante, avante, avante!
Está na hora, está na hora – está na hora!
E a sociedade cairá.
A pátria cairá.
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
A família cairá.
Tudo cairá, porque o Homem livre nasceu.
Avante, avante, avante, oh alegres destruidores.
Sob a bandeira negra da morte, nós conquistaremos a Vida!
Rindo!
E iremos torná-la nossa escrava.
Rindo!
E a amaremos rindo!
Porque homens sérios são apenas aqueles que sabem agir rindo.
E o nosso ódio ri...
Riso encarnado. Avante!
Avante, pela destruição total da mentira e dos fantasmas!
Avante, pela conquista integral da Individualidade e da Vida!
Renzo Novatore
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OS VAGABUNDOS DE ESPÍRITO
Os vagabundos
de espírito
Pode dar-se o nome de vagabundos – disse Stirner – a to-
dos aqueles que o bom burguês considera suspeitos, hostis e
“perigosos”. Por outro lado, a burguesia desagrada a qualquer
tipo de vagabundagem; e também existem os vagabundos de
espírito, os quais, sentindo-se a sufocar sob o mesmo tecto dos
seus pais, vão à procura de mais espaço e de mais luz longin-
quamente. Em vez de permanecerem acantoados no antro fa-
miliar a removerem as cinzas de uma opinião moderada, em
vez de aceitarem como verdade indiscutível a necessidade de
alívio e conforto procurada por tantas gerações, eles ultrapas-
sam a fronteira traçada pelo campo paterno e, pelo caminho
da crítica, vão até onde a sua indomável curiosidade e a sua
incerteza os conduz. Estes vagabundos extravagantes também
pertencem à classe dos inquietos volúveis, instáveis, formada
pelo proletariado; e quando deixam supor a sua falta de do-
micílio moral, são chamados de “turbulentos”, “cabeças quen-
tes”, “exaltados”...
Oh, os vagabundos de Espírito! Os pálidos subversivos im-
penitentes! Aqueles que galopam, sem descanso, através das
regiões intermináveis das suas fantasias caprichosas, criadoras
de coisas novas!
Zarathustra disse um dia, quando falava para eles: “A terra ain-
da é livre para as almas grandes. Existem ainda muitos portos
para as almas solitárias e gémeas, em redor dos quais paira o
perfume de mares tranquilos: A vida ainda é livre: livre para as
almas livres.”
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
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OS VAGABUNDOS DE ESPÍRITO
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
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OS VAGABUNDOS DE ESPÍRITO
Renzo Novatore
Cronaca Libertaria, Milão, 1917
NOTAS
1. Personagens da peça Når vi døde vågner (Quando despertarmos
de entre os mortos) de Henrik Ibsen. A peça gira em torno da re-
lação de Arnold Rubek com a sua antiga modelo e amante, Irene.
Este está casado com Maia Rubek mas encontra-se infeliz. Ao re-
encontrar Irene dá-se a revelação de que ambos se sentiam mortos
desde que se separaram, havendo uma tentativa de voltarem a es-
tar juntos. A peça termina com a Arnold a exortar a um ressuscitar
de algo que estaria morto, a que Irene acede caso seja feito acima
das nuvens da tempestade que se avizinha, no cume da montanha
e à luz do sol. Este sobem a montanha para poderem viver de novo,
mas uma avalanche acaba por ceifar-lhes a vida. (N.T.)
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
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À CONQUISTA DE NOVAS AURORAS
À conquista de
novas auroras
Construímos o nosso ninho sobre a árvore do porvir; as águias
trituram para nós a comida no seu bico arqueado. Na verdade,
não é comida que os impuros também possam provar. Eles acre-
ditariam estar a comer fogo e queimariam a boca.
Nietzsche
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À CONQUISTA DE NOVAS AURORAS
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
Renzo Novatore
Il Libertario, La Spezia, Ano XV, 17 de Março de 1917
NOTAS
1. Deus grego dos sonhos, filho de deus Hipnos, deus do sono,
e da deusa Prasiteia, deusa do descanso, e sobrinho de
Tânatos, deus da morte. O seu nome vem de morphé, forma,
já que moldava os sonhos dos mortais e apareceria neles de
diversas formas. (N.T.)
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PENSAMENTOS E MÁXIMAS
Pensamentos e
máximas
“O homem deve o seu braço à República, a sua inteligência
aos Deuses, a sua pessoa à família: mas os sentimentos do seu
coração são livres.” Assim escreveu Platão.
Mas disso tudo eu não concordo senão com o que diz respeito
aos sentimentos do coração; o resto, para além de ser muito
discutível, poderá mesmo ser ofensivo.
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
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PENSAMENTOS E MÁXIMAS
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Renzo Novatore
Il Libertario, La Spezia, Ano XVI, n.695, 1917
NOTAS
1. O autor referir-se-á aqui ao poema do abade alemão Alberto de
Stade (1187? – 1264) sobre a Guerra de Tróia. (N.T.)
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
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GRITO REBELDE
Grito rebelde
Dedicado à plebe
Max Stirner
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GRITO REBELDE
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GRITO REBELDE
ainda sacrificar-te!
Pobre plebe!
E pensar que também os cegos terão a necessidade de se aper-
ceberem, desde já, que quem não aceitar a eterna guerra pela
afirmação e pelo triunfo, terá de aceitar a eterna escravidão
pelo triunfo dos terríveis fantasmas, inimigos declarados do Eu.
Sim, oh plebe, eu decidi ser, mais uma vez, profundamente
sincero contigo. E eis o que te disse a minha sinceridade – Hoje
sacrificas-te na ensanguentada trincheira por uma causa que
não é a tua, amanhã possivelmente sacrificar-te-ás nas ruas
ensanguentadas pela Revolução, para permitir que em seguida
um novo verme parasitário e corroente se erga de um mar de
sangue, saído numa corrente quente e fumegante das tuas veias
queimadas, para que seja elevado a novo ídolo e se sente sobre
ti próprio, tal qual o antigo Deus.
O refrão do Amor, da Piedade e do Direito consagrado, voltará
a fazer-se ouvir, tocado com muita mestria pelas novas harpas,
componentes da mais antiga sinfonia.
Escuta-me plebe! Devo dizer-te ainda mais uma outra coisa. E
aquilo que ainda tenho para te dizer é aquilo que mais me pesa.
Aqui estou, portanto. Eu sou ÚNICO e enquanto tu fores plebe
eu não me poderei associar a ti. Quando eu o fizer, será para te
persuadir a golpeares o meu inimigo, que é o teu patrão. Mas
tu, como plebe, não te deixarás persuadir, pois ainda adoras em
demasia o teu Senhor.
Tu ainda queres continuar a viver ajoelhada. Mas eu com-
preendi a Vida!
E quem compreendeu a vida não pode viver de joelhos.
Eu compreendi, ainda para mais, as armadilhas que os pro-
prietários de tudo isto prepararam para mim.
Quando eles me viram avançar, com audácia, à conquista da
minha vida, armado com toda a minha força sem escrúpulos,
puseram diante do meu olhar ávido todos os seus fantasmas
ridículos e insanos.
Tentaram aterrorizar-me com o espantalho do “sagrado”; mas
visto que eu, o Iconoclasta, o Ímpio, escarneço e ridicularizo
tudo o quanto é “sagrado” ou está “consagrado” e que, tal como
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
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GRITO REBELDE
Renzo Novatore
Cronaca Libertaria, Ano I, n.2, 10 de Agosto de 1917
NOTAS
1. Segundo Platão, Sócrates foi condenado pelo tribunal da cidade
de Atenas, acusado de descrença nos deuses e nos costumes da
cidade, de introduzir novos deuses na cidade e de corromper a ju-
ventude com as suas ideias. Na altura de escolher entre o exílio ou
o corte da língua, acabou por decidir pela terceira opção que lhe foi
dada, a morte, sendo condenado a beber a cicuta. O autor faz, aqui,
a crítica ao sacrifício tanto de Sócrates como de Cristo, baseados na
ideia de um reino dos céus ou dos bem-aventurados. (N.T.)
97
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
ou 414 a.C. e 323 a.C.. Símbolo do rebelde, diz-se que vivia num
barril, como um mendigo, deambulando pelas ruas de Atenas com
uma lamparina acesa à procura de um homem honesto. A sua vida,
despojada de bens materiais, e a sua filosofia, tinham por base a
procura de uma auto-suficiência em busca da plena liberdade, sen-
do que esta deveria ser realizada na prática e não na teoria. Diz-se
também que via com desdenho e escárnio a acumulação de posses
e que quando Alexandre o Grande se aproximou dele para lhe ofe-
recer os seus préstimos, ele apenas lhe pediu que não lhe tapasse
o sol, sendo essa uma representação dos valores da sua filosofia.
(N.T.)
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FLORES SILVESTRES
Flores silvestres 1
Prólogo. Mesmo nas charnecas sem fim dos inóspitos de-
sertos, as flores germinam. Flores silvestres que emanam per-
fumes pecaminosos e que, com os seus espinhos, fazem san-
grar as próprias mãos daqueles que as apanham, mas que têm,
porém, a sua grandiosa história de alegria, de dor e de amor.
Repito: são flores raras e silvestres que surgem do nada que cria,
foram fecundadas pelo sol e depois cruelmente arremessadas
pelo furacão, assim!
Estas flores são pensamentos que germinaram na profunda e
meditativa solidão da minha alma, enquanto lá fora, no mundo
que não me pertence mais, se enfurece a loucura sulcada pelo
fogo electrizante do raio que rompe implacavelmente.
E eu, vagabundo impenitente, que adoro galopar pelos alegres
e assustadores caminhos deste meu reino solitário e deserto, fi-
carei satisfeito por apanhar de vez em quando um molho des-
tas flores silvestres, para coroar esta bandeira rebelde que, uma
vez reprimida de forma brutal e cobarde, canta novamente pelo
alegre refrão do eterno retorno.
***
Aquele que não sabe estar à altura das próprias acções, reco-
nhecendo-se, somente a si como seu próprio juíz, poderá talvez
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
***
***
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FLORES SILVESTRES
***
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Renzo Novatore
Cronaca Libertaria, Milão, Ano I, n.8, 20 de Setembro de 1917
Não sei porquê, quando penso nos NOSSOS (!) escrupulosos (!)
jornalistas, nos fornecedores da “nossa cara pátria”, sem falar nos
heróis da frente de combate interna, com toda aquela elite de
RE-VO-LU-CIO-NÁ-RIOS intervencionistas que se estão a subli-
mar num belo banho quente de um brilhante sol itálico, parece
que oiço a melodiosa voz de Laerte, na Odisseia de Homero, a
exclamar num inebriante delírio de alegria: “Que sol – brilha hoje
no céu, queridos Deuses! – Competirão as virtudes dos filhos e
dos netos – Jamais nasceu um dia tão belo quanto este!”
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
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FLORES SILVESTRES
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
***
Renzo Novatore
Cronaca Libertaria, Milão, Ano I, n.10, 4 de Outubro de 1917
NOTAS
1. Flores silvestres é uma coluna de Abele Rizieri Ferrari, no jornal
Cronaca Libertaria, assinada sob o pseudónimo Renzo Novatore.
Por essa mesma razão juntamos aqui duas dessas rubricas extraí-
das das páginas desse periódico, indicando as datas em que foram
publicadas. (N.T.)
104
EM DIRECÇÃO AO FURACÃO
Em direcção ao
furacão
Permaneceremos com a cabeça erguida
até que seja de dia, e tudo aquilo que
pudermos fazer, não deixaremos
que seja feito antes de nós.
W. Goethe
105
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
que eu sei que a única e mais bela moldura, dentro da qual so-
bressai livre, solene e majestosa a soberba Individualidade hu-
mana, é o Nada, o verdadeiro Nada!
Nenhuma prisão imunda poderá alguma vez prender esta
minha alma rebelde e iconoclasta; e hoje menos que nunca!
Hoje, que o enorme sino do tempo soou – sim, soaram fortes
pancadas para quebrar as mais duras cervizes da plebe idiota
–, é do Nada que devem sair furiosamente as destemidas falan-
ges de chamas negras que, no ímpeto passional da revolta es-
pontânea, constituirão a crepitante coluna de fogo que, vindo
diante do povo, darão o primeiro anúncio da destruição final.
Esta é a hora da amargura febril, da terrível ansiedade!
Esta é a hora que precede a hora divina da tragédia iminente,
em que se dará a heróica Morte e a heróica Grandeza.
Oh hora sagrada, que me dás toda a febril intensidade do es-
pírito, eu amo-te!
Não trocarei a amargura que tu me causas por toda a medío-
cre doçura do mundo; não trocarei a febre que me martela as
têmporas, que me incendeia a testa, pela tranquilidade e a paz
de todos os homens vis!
Oh Satanás, inspira-me! Inspira-me, irmão divino!
Dá-me o poder infernal de incendiar todos aqueles espíritos
virgens que ainda não estiveram soterrados no monte de es-
trume das falsas teorias; faz com que possa cativar para perto
de mim um punhado de destemidos amantes da heróica e li-
bertária Grandeza ou da Heróica Morte.
Que fiquem aí! Aí devem ficar! Que as almas temerárias fiquem
tranquilamente a apodrecer na companhia dos seus estúpidos
santos e do velho cretino bom deus!
Mas nós caminharemos! Chegou a hora de caminhar para to-
dos aqueles que, dominando o ideal, se converteram em sím-
bolo e encarnação.
Embalados pela divindade da nossa dor, seguiremos adiante
e, com o exemplo dos factos, indicaremos aos homens quais
são os caminhos que conduzem à nova luz! Cairemos? Não
importa! Queremos a libertação desta estúpida vida de humil-
dade, de escravidão, de servidão, onde o homem deve caminhar
106
EM DIRECÇÃO AO FURACÃO
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
Renzo Novatore
Il Libertario, La Spezia, Ano XVIII, n.721, 27 de Fevereiro de 1919
NOTAS
1. Referência à pena de morte ditada a Abele Rizieri Ferrari por de-
serção. (N.T.)
108
O EXPROPRIADOR
O Expropriador
A minha liberdade e os meus direitos são tantos quanto a
minha capacidade de poder. Também a felicidade e a grandeza,
tê-las-eis apenas na medida da minha força!
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
entre os homens...
Mas os homens serão iguais perante o estado e livres no So-
cialismo... Ele – o socialismo – renegou a Força, a Juventude,
a Guerra! Mas quando os burgueses, que são os pobres de es-
pírito, não querem saber de serem iguais aos plebeus, que são
os pobres da carne, então também o socialismo aceita, lamen-
tando-se, a guerra. Sim, também o socialismo aceita matar e
expropriar. Mas em nome de um ideal de igualdade e de frater-
nidade humana... Dessa santa igualdade e fraternidade que
começou com Caim e Abel!...
Mas com o socialismo pensa-se por metade; é-se livre por
metade; vive-se por metade!... O socialismo é intolerância, é
incapacidade de viver, é a fé do medo. Eu vou mais além disso!
O socialismo considera o bem a igualdade e o mal a desigual-
dade. Bons os servos e maus os tiranos. Eu atravessei o limiar
do bem e do mal para viver a minha vida intensamente. Vivo
hoje e não posso esperar pelo amanhã. A espera é coisa do povo
e da humanidade, por isso não pode ser assunto meu. O futuro
é a máscara do medo. A coragem e a força não têm futuro pelo
simples facto de que são elas mesmas o futuro que se revolta
contra o passado e o destrói.
A pureza da vida avança apenas com a nobreza do coração,
que é a filosofia da acção.”
Apontei: “A pureza dessa tua vida parece roçar o crime!”
Respondeu: “O crime é a síntese suprema da liberdade e da
vida. O mundo moral é o mundo dos fantasmas. Existem espec-
tros e sombras de espectros, existe o Ideal, o Amor universal, o
Porvir. Eis a sombra dos espectros: existe a ignorância, o medo,
a cobardia. Trevas profundas. Talvez trevas eternas. Eu também
vivi, um dia, nessa triste e imunda prisão. Depois muni-me de
uma tocha sacrílega para incendiar os fantasmas e violentar a
noite. Quando me aproximei dos ferrugentos portões do bem
e do mal, derrubei-os furiosamente e atravessei o seu limiar. A
burguesia lançou-me o seu anátema moral e a plebe idiota a
sua maldição moral.
Mas uma e outra são humanidade. Eu sou um homem. A hu-
manidade é minha inimiga. Ela quer apertar-me entre os seus
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O EXPROPRIADOR
Renzo Novatore
Iconoclasta!, Pistoia, Ano I, 1ª s., n.10, 26 de Novembro de 1919
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
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PARÁBOLA
Parábola
Sim: eu sou um ser multiforme e uma realidade complicada!
Só posso penetrar, contemplar e compreender a verdadeira e
profunda essência deste meu ser, enigmático e misterioso, no
espelho das recordações passadas e no sonho do porvir.
Homens, oh meus caros irmãos perdidos e renegados, em ver-
dade vos digo que sou um egoísta generoso; mas não vos posso
oferecer mais do que a minha própria sombra. Se vocês me
quiserem encontrar, eu moro dentro desta sombra. Eu moro na
casa alegre da mais prazenteira dor. Mas digam-me, oh meus
irmãos, digam-me meus amigos: quem de vocês soube resistir
sempre ao olhar do Demónio tentador, ao olhar da Serpente
pecadora?
Irmãos, eu sou o Mal, o Grande, o Verdadeiro, o Magnífico Mal!
Olhem para a minha sombra. Eu vivo dentro dela, docemente
embalado pelos braços invisíveis da minha amante etérea, da
minha loucura divina e infernal (chamaram-lhe assim porque
nasceu de um louco amplexo nos bosques sagrados da Dor, en-
tre o Sonho e a Imaginação, entre a Matéria e a Ideia). Mas ela
não é, como a Morte, uma amante de carne branca e cheirosa.
Oh irmãos, não! As vossas amantes de carne fizeram com que
se perdessem. A minha de espírito e luz, enalteceu-me, trans-
figurou-me, purificou-me e redimiu-me...
Oh Sombra! Oh Sombra minha, salva-me agora do olhar cínico
dos meus irmãos rivais, já que o Mal e a Loucura, estreitamente
abraçados, dançam agora dentro do mais profundo e luminoso
abismo deste meu ser.
Oh, quanto é sublime o divino mistério da LOUCURA!
Agora contemplo o Arco Sagrado do fogo sempiterno. Sobre
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
Renzo Novatore
Iconoclasta!, Pistoia, 1920
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NO CÍRCULO DA VIDA
No círculo da vida
Em memória de Bruno Filippi
Oscar Wilde
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
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NO CÍRCULO DA VIDA
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
***
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NO CÍRCULO DA VIDA
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
Renzo Novatore
Iconoclasta!, Pistoia, Ano I, 2ª s., n.1, 1 de Janeiro de 1920
NOTAS
1. O autor refere-se aqui a Giovanni Papini (1881-1956), escritor,
ensaísta, poeta e jornalista italiano que utilizava comummente
um tom satírico nos seus escritos. Papini participou em diversas
revistas culturais e literárias, sendo integrado dentro da corrente
futurista. Os seus primeiros escritos eram inequivocamente ateís-
tas, tendo-se tornado, posteriormente, um adepto fervoroso do
catolicismo e do fascismo, vindo a ser vice-presidente do Liga Eu-
ropeia de Escritores, fundada pelo ministro da propaganda nazi
Joseph Goebells em 1942. (N.T.)
120
NO CÍRCULO DA VIDA
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
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O MEU INDIVIDUALISMO ICONOCLASTA
O meu
individualismo
iconoclasta
Abandonei para sempre a vida das planícies.
H. Ibsen
1.
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
2.
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O MEU INDIVIDUALISMO ICONOCLASTA
3.
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4.
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O MEU INDIVIDUALISMO ICONOCLASTA
5.
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O MEU INDIVIDUALISMO ICONOCLASTA
6.
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7.
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O MEU INDIVIDUALISMO ICONOCLASTA
curso convosco!
Mas quando pararem, eu continuarei a minha louca e triunfante
caminhada em direcção à grande e sublime conquista do Nada!
Cada Sociedade que construam terá as suas margens, e nas
margens de cada Sociedade vaguearão os heróicos e dissolu-
tos vagabundos, com os seus pensamentos virgens e selvagens,
que só sabem viver preparando sempre novas e formidáveis ex-
plosões de rebeldia!
Eu estarei entre eles!
E depois de mim, tal como antes de mim, existirão sempre
aqueles que dirão aos homens: “Voltem-se para vós próprios
em vez de se virarem para os vossos deuses ou para os vossos
ídolos: descubram o que está escondido dentro de vós, tragam-
-no para a luz: revelem-se a vós próprios!”
Porque todo aquele que, procurando na sua intimidade, ex-
trai o que está misteriosamente escondido nela, é uma sombra
que obscurece todas as formas de Sociedade que existem sob
os raios do Sol!
Todas as sociedades tremem quando a altiva aristocracia dos
Vagabundos, dos Únicos, dos Inacessíveis, dos dominadores do
ideal, e dos Conquistadores do Nada, avança desinibida. Vinde,
pois, Iconoclastas, avante!
“Já o céu, prenhe de presságios, se obscurece e silencia!”
Renzo Novatore
Iconoclasta!, Arcola, Janeiro de 1920
NOTAS
1. Referência a Friedrich Nietzsche (1844 – 1900) e à personagem do
seu livro Also sprach Zarathustra, (Assim Falava Zarathustra). (N.T.)
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
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O MEU INDIVIDUALISMO ICONOCLASTA
quistas), Max Nordau faz a sua análise social a partir de uma in-
terpretação médica das patologias que acredita evidenciarem essa
degeneração moral da sociedade. Para Nordau, essa decadência
moral reflectia-se também no crescente sentimento anti-semita do
continente europeu. (N.T.)
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
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UMA VIDA
Uma Vida
Para os amigos de Nichilismo
Memórias
Charles Baudelaire
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
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UMA VIDA
Aflição
Charles Baudelaire
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
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UMA VIDA
Fuga
Nihil, nihil!
***
...
Chegaram?
Nunca vi céu tão pacífico quanto as vossas faces, oh amigos.
Como é belo compreendermo-nos uns aos outros!
***
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
***
***
***
Renzo Novatore
Nichilismo, Ano I, n.2, Milão, 20 de Abril - 5 de Maio de 1920
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TAMBÉM SOU NIILISTA
II
141
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
III
A vida – para mim – não é boa nem má, nem é uma teoria,
nem uma ideia. A vida é uma realidade, e a realidade da vida
é a guerra. Para quem nasce guerreiro, a vida é uma fonte de
alegria, para os outros, não é mais do que uma fonte de humi-
lhação e de dor. Não peço mais à vida a alegria despreocupada.
Ela não me poderia dá-la, e eu não saberia mais o que fazer com
ela agora que a minha adolescência passou...
Peço-lhe, ao invés, a alegria perversa das batalhas que me dão
os frémitos dolorosos das derrotas e os arrepios voluptuosos
das vitórias.
Derrota na lama ou vitória ao sol, canto a vida e amo-a!
Não existe descanso para a minha alma rebelde senão na
guerra, tal como não existe maior felicidade para a minha
alma vagabunda e negadora senão na afirmação desinibida
da minha capacidade de viver e de festejar. Cada derrota serve
apenas como prelúdio sinfónico para uma nova vitória.
IV
142
TAMBÉM SOU NIILISTA
VI
143
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
Renzo Novatore
Nichilismo, Ano I, n.4, Milão, 21 de Maio de 1920
NOTAS
1. No Édipo Rei de Sófocles, a personagem principal, Édipo, con-
fronta-se com a Esfinge, figura mitológica grega, que lhe propõe a
resolução de um enigma para o poupar à morte: Que criatura pela
manhã tem quatro pés, ao meio-dia tem dois, e à tarde tem três? Édi-
144
TAMBÉM SOU NIILISTA
145
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
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PERVERSIDADE ESPIRITUAL
Perversidade
espiritual
I
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
II
A Noite voltou.
Que Noite terrível e negra, povoada de Fantasmas...
Serão eles os fantasmas do medo? Serão eles as sombras do
arrependimento? Serão eles danças macabras de verdades
desconhecidas?
Oh Luz, porque não me iluminas? Oh Trevas, porque não me
envolves?
III
148
PERVERSIDADE ESPIRITUAL
IV
VI
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
Renzo Novatore
Nichilismo, Ano I, n.7, Milão, 6 de Julho de 1920
150
ROSAS NEGRAS
Rosas negras
Estava – não sei há quanto tempo – estendido no meu leito
púrpura, mas não conseguia descansar. As minhas têmporas
palpitavam, a minha testa ardia como se tivesse febre, uma con-
fusão de pensamentos sombrios andavam às voltas na minha
mente e, blasfemando, em vão implorei a Morfeu que me aco-
lhesse nos seus braços. De repente, vi a porta do meu quarto
abrir-se violentamente e uma Desconhecida entrou levemente.
Olhei para ela: os seus olhos belos e profundos encerravam to-
dos os segredos do céu e todos os mistérios dos mares. Os seus
cabelos eram longos e louros; da sua boca emanava um per-
fume a romã madura que avidamente espera por uma mordi-
dela; as suas mãos rosadas eram finas e transparentes, e os seus
pequenos pés eram brancos e elegantes.
Quem era ela? Não sei. Sei apenas que era diferente das outras
Desconhecidas que já me tinham aparecido.
Aproximou-se sorrindo e passou, suavemente, os seus dedos
esguios pelo meu cabelo longo e despenteado.
«Meu querido, meu pobre louco», disse-me, «porque tens de
martirizar-te sempre desta forma? Não vês que, nas têmporas,
os teus cabelos negros já começam a ficar brancos? Não vês,
pois, que os teus pobres olhos estão quase a saltar das tuas ór-
bitas e que todos os músculos faciais mudam as tuas feições
através do espasmo de uma contracção violenta? Não vês como
estás transfigurado? Porquê esta tua inútil e contínua aflição?
Não sou eu aquela com quem sonhavas, aquela por quem es-
peravas? Aqui estou!
Ah, vem, vem comigo meu pobre, meu terno amor.
151
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
***
152
ROSAS NEGRAS
Agora a minha Musa está envolta pelo negro e a minha lira toca
canções fúnebres. Um véu negro cobre as minhas emoções.
Sinto que a minha alma gostaria de se libertar, mais uma vez,
para além dos limites da dor, à procura dos caminhos que o
pródigo Verão acolchoa de ervas e de flores; mas o Fado, contra
o qual o homem ruge impotente, reprimindo a sua raiva, feriu-a
de morte. Desde então, as flores – as belas flores brancas – mur-
charam para ela e as nuvens dispersaram-se – a bela casa dos
sonhos – e, abraçando o cadáver da Desconhecida, precipitei-
-me num abismo.
Uma marcha fúnebre ecoava à minha volta. Quem sabe ama-
nhã eu também estarei morto.
Agora já não me posso rir de nada nem de ninguém; estou só
com a minha dor. Creio que sou uma flor nascida no campo da
morte, porque sinto dentro de mim o mortífero e angustiante
gemido de todos os falecidos. Sim, ainda sinto o ardente beijo
do sol e as carícias do vento nos meus cabelos, mas o sofrimen-
to – o meu verdadeiro sofrimento – vem das raízes que ainda
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
Renzo Novatore
Nichilismo, Ano I, n.11, Milão, 10 de Setembro de 1920
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AS MINHAS MÁXIMAS(DO LIVRO DE NOTAS DOS MEUS PENSAMENTOS INTÍMOS)
As minhas máximas
(do livro de notas dos
meus pensamentos
íntimos)
DEUS – Criação de uma fantasia doentia. Habitante de men-
tes senis e impotentes. Companheiro e confortador de espíritos
grosseiros, nascidos para a escravidão. Cocaína para histéricos.
Um comprimido para mentes constipadas, fechadas ao saber.
Marxismo para corações fracos.
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
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AS MINHAS MÁXIMAS(DO LIVRO DE NOTAS DOS MEUS PENSAMENTOS INTÍMOS)
Renzo Novatore
Iconoclasta!, Pistoia, n.12, 15 de Outubro de 1920
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
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O TEMPERAMENTO ANARQUISTA NO TURBILHÃO DA HISTÓRIA
O temperamento
anarquista no
turbilhão da
história
No anarquismo – nos factos da vida experienciados de forma
prática e material – existem, acima das duas concepções filosó-
ficas distintas, comunista e individualista, que o dividem no
campo teórico, dois instintos espirituais e físicos que servem
para distinguir dois caracteres comuns às duas tendências
teóricas e filosóficas. Apesar de serem filhos do mesmo sofri-
mento social, os dois são instintos diferentes que dão origem a
dois tipos de sofrimento distintos de origem hedonística.
Existem aqueles que sofrem – diria Nietzsche – por excesso de
vida (comunistas e individualistas) e existem aqueles que so-
frem devido ao empobrecimento da vida. Pertencem, a estes úl-
timos, aqueles comunistas e individualistas que são amantes da
tranquilidade e da paz, do silêncio e da solidão. Aos primeiros,
pertencem aqueles comunistas e individualistas que sentem o
eu interior como um poderoso frémito dionisíaco trasbordante
de energia, e a vida como uma manifestação heróica de força e
de vontade. São os que têm a necessidade instintiva e irresistí-
vel de lançar a chama do seu “eu” contra os muros do mundo
159
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
160
O TEMPERAMENTO ANARQUISTA NO TURBILHÃO DA HISTÓRIA
dade de QUERER!
O direito e a liberdade são a Força!
Aquilo que para os outros é um sacrifício doloroso, para nós
deve ser uma dádiva e um jubiloso holocausto.
É necessário atirarmo-nos sobre a onda do tempo passado, an-
dar à garupa dos séculos, ressuscitar com virilidade a História,
para voltar a beber nas nascentes virgens das quais brota ainda
o sangue, quente e fumegante, dos primeiros sacrifícios huma-
nos feitos de forma livre.
É necessário voltarmos a entrar, nus e descalços, entre as pe-
dras vivas da selva legendária e alimentarmo-nos, como os nos-
sos antepassados, de miolos de leão1 e de natureza selvagem.
Só dessa forma – como Maria Vesta2 – podemos dizer ao pri-
meiro Herói que soube oferecer, estoicamente e serenamente,
as suas carnes às chamas vermelhas de uma fogueira inimiga,
lúgubre e crepitante: Tal como tu, também nós podemos agora
cantar durante os suplícios.
A Vida que a sociedade nos oferece não é uma vida plena, livre
e festiva. É uma vida reprimida, mutilada e humilhante.
Devemos recusá-la.
Se não temos a força e a capacidade para arrebatar violenta-
mente das suas mãos essa vida elevada e rica que fortemente
sentimos, lancemos este espectro sobre o trágico altar do sa-
crifício e da renúncia final.
Pelo menos podemos colocar uma heróica coroa de beleza so-
bre o rosto ensanguentado da arte que ilumina e cria.
É melhor entrar nas chamas de uma fogueira e cair com o
crânio rachado sob uma rajada de tiros de um pelotão de exe-
cução do que aceitar esse espectro de vida irónica, que não é
mais do que uma torpe comédia.
Oh amigos, chega de cobardia. Oh companheiros, chega de ter
a ilusão ingénua do “acto generoso das multidões”. Chega.
A multidão é palha que o socialismo deixou apodrecer no es-
tábulo da burguesia.
Errico Malatesta 3, Pasquale Binazzi4, Dante Carnesecchi5 e os
outros milhares de desconhecidos que apodrecem naqueles
buracos miasmáticos e mortíferos que são as prisões da monar-
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
162
O TEMPERAMENTO ANARQUISTA NO TURBILHÃO DA HISTÓRIA
Renzo Novatore
Il Libertario, La Spezia, Ano XVIII, n. 793, 8 de Dezembro de 1920
NOTAS
1. Na mitologia grega, Aquiles foi alimentado pelo centauro Quirão
com miolos de animais selvagens para obter as suas qualidades.
Alimentar-se de miolos de leão significaria, portanto, adquirir
coragem. (N.T.)
163
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
164
CHICOTADA
Chicotada
Senhor sectário de Lodi 1.
Li no n.13 do «Iconoclasta!», o conteúdo vulgar e estercorário
que você, sob o título: Individualismo ou futurismo?, teve o
prazer de vomitar contra mim.
Pois bem: já sabia que você era um socialistóide epiléptico,
desde que tive a paciência franciscana de ler os seus abortos
científicos (?) e filosóficos (???), contaminados por uma moral-
zinha pútrida.
Ocorreu-me que você fosse um baboso jesuíta, sectário e im-
potente, quando eu – com aquela superioridade serena e se-
gura que me caracteriza – respondi com um texto amigável e
ultra-sereno (escrito com o qual acariciei, por fim, a sua vai-
dade, induzindo-o a aceitar uma discussão) àquele ataque
bilioso e estúpido que você me dirigiu. Resposta à qual fugiu
cobardemente, não encontrando nem mesmo a força – devido
à sua presumida impotência – de confessar a sua incapacida-
de polémica de sustentar aquilo que erradamente pensa! Que
você se creia (habitualmente) um pequeno deus da anarquia,
sem sequer ter compreendido o abecedário, é um facto que até
mesmo as crianças já devem saber: mesmo muitos leitores sim-
patizantes perceberam que você é um Caco2 histérico, invejoso
da minha caneta, e ruborizaram-se de vergonha por si.
Que a sua alma seja uma mistura vulgar de uma moral man-
zoniana3 hipócrita e clerical, cheia de intolerância cristã anti-
-anarquista e anti-libertária, é algo que, se não me engano,
você mesmo se deve ter apercebido: que você seja um cego e
um fanático adorador da filosofia (???) ministerial, reaccionária
e anti-anarquista, daquele mentiroso quadrumeno do pensa-
mento e da arte que corresponde ao nome de Benedetto Croce,
165
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
***
166
CHICOTADA
Renzo Novatore
Iconoclasta!, Ano II, n.1-2, 20 de Fevereiro de 1921
NOTAS
1. O autor refere-se a Camillo Berneri, nascido a 28 de Maio de
1897 em Lodi. Este texto é a resposta a uma polémica iniciada por
Berneri nas páginas do Iconoclasta! sobre o individualismo e o fu-
turismo. (N.T.)
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
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NO REINO DOS FANTASMAS
No reino dos
fantasmas
Não existia mais do que a Beleza e a Força, mas, para que hou-
vesse um equilíbrio, os brutos e os fracos inventaram a Justiça.
Raffaele Valente
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
170
NO REINO DOS FANTASMAS
***
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
Brunetta L`Incendiaria
Vertice, Arcola, 21 de Abril de 1921
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ACIMA DAS DUAS ANARQUIAS
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
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ACIMA DAS DUAS ANARQUIAS
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***
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ACIMA DAS DUAS ANARQUIAS
leito da morte.
Pobres, pequenas, grandes irmãs minhas que sempre amei e
jamais possui. Eu amo-vos! Amo-vos! Amo-vos!
Digam-me, oh minhas irmãs com vida, oh minha irmãs fa-
lecidas: Quem? Quem de vocês foi a mais célebre, a maior, a
mais pervertida?
Ah, lembro-me, lembro-me!...
Foste tu Clara 2!... Mas onde estás agora?
Conheci-te através d`O Jardim dos Suplícios de Octave
Mirbeau3. Conheci-te e amei-te! Tu és a mais rara e refinada
criatura, a mais romanticamente e profundamente humana
e cruel, que eu alguma vez soube ter experienciado agradav-
elmente a vida e deliciosamente o amor, entre os gemidos
excruciantes dos supliciados e o perfume das flores. Quando
te imagino a correr, louca e leve, sob o prelúdio flavo do cre-
púsculo de ouro, para encontrar um relvado avermelhado de
sangue e fazer dele um leito nupcial e nele te dares ao mais
profundo amplexo de amor, sinto-me eufórico de admiração
por ti.
Ah, romântica e refinada criatura, como sabes penetrar no
milagre divino das flores e como te ensina a sublimar o per-
fume sensual do Thalictrum chinês...
Só uma grande luxuriosa e uma grande pervertida como tu,
poderia ouvir – mesmo por entre os gritos excruciantes e ter-
ríveis dos supliciados – a forte e poderosa voz da natureza
instintiva que grita: “Amem-se!... Amem-se!... Façam também
vocês como as flores... Não existe mais do que o Amor ver-
dadeiro!” E eu compreendo e sinto o teu amor pecaminoso
e amoral, oh Clara, amaldiçoado e abominado pela pureza
castrada da moral dos pudicos e dos homens. Sinto que se
ergue, louco e impetuoso, das profundezas subterrâneas do
instinto, para se desprender – com a harmonia musical de
desejos e de mistérios –, libertino e soberbo, perante o espe-
ctáculo bárbaro e cruel dos sacrifícios humanos e para celebrar
a vibração suprema e poderosa da ALEGRIA mais dolorosa-
mente profunda, que ecoa nos corações sangrentos da vida
mais trágica e plena.
177
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
***
Renzo Novatore
Vertice, Arcola, 21 de Abril de 1921
NOTAS
1. Jules Bonnot (1876-1912), anarquista ilegalista francês, foi o ter-
ror da burguesia francesa no princípio do século XX. Associado a
outros anarquistas ilegalistas, cometeram uma série de assaltos
a bancos entre 1911 e 1912, tendo ficado conhecidos por serem
os primeiros a utilizarem o automóvel como meio de escape. Este
grupo foi denominado pelos meios de comunicação como “La
Bande à Bonnot”, depois de Jules Bonnot ter dado uma entrevista
ao jornal Le Petit Parisien onde terá dito “Gastaremos as nossas
balas contra a polícia, e se eles não aparecerem, nós sabemos
onde os encontrar.” Bonnot foi morto depois de ter sido cercado
por cerca de 500 polícias numa casa em Paris, tendo havido uma
troca de tiros do qual resultaram três polícias feridos, e de estes
terem feito explodir com dinamite o edifício em que estava re-
fugiado para depois o fuzilarem quando o encontraram quase
inconsciente. (N.T.)
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ACIMA DAS DUAS ANARQUIAS
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
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O SONHO DA MINHA ADOLESCÊNCIA
O sonho da minha
adolescência
Que a sabedoria dos pútridos cobardes não se ria nem se es-
candalize a idiota castidade das senhoritas de bem.
Eu sou uma adolescente precoce que, depois de completar
uma longa viagem através dos fosforescentes labirintos das
mais assustadoras profundidades, retorno ao cume para cantar
ao sol a sacrílega e soberba canção da minha vida ainda jovem
e livre.
Alguém me disse: “Tu serás mulher, depois esposa, depois mãe!...”
Eu respondi, desta forma, com uma pergunta: Que queres
dizer com mulher, esposa e mãe? Não direi aqui aquilo que me
foi respondido; apenas sei que ao pensar nisso riu, sim, ainda
riu. O Amor compreendido como missão?! A mulher, esposa e
mãe? Não, não, não! Eu não serei esposa, eu não serei mãe! A
minha revolta não pode ficar pela metade, nem fazer asneiras.
A minha revolta – acima da família – lança também os seus dar-
dos contra a natureza. Eu não quero ser esposa, eu não quero
ser mãe. Não, não, não!
***
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
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O SONHO DA MINHA ADOLESCÊNCIA
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
***
Sibilla Vane
Vertice, Arcola, 21 de Abril de 1921
184
A MISTERIOSA
A Misteriosa
Encontrámo-nos na margem de um rio num quente meio-dia
de Agosto. Ela olhou para mim, eu olhei para ela...
A sua carne branca e cheirosa emanava o perfume sensual de
todas as flores festivas e os seus olhos irradiavam a divina luz
do sol.
Nas suas veias azuis corria, quente e fecundo, todo o sangue
humano, e o poderoso palpitar do seu grande coração era o
enorme palpitar de todo o Universo.
Na sua alma existiam abismos assustadores que continham
todas as trevas povoadas de espíritos espectrais da negação e
todos os cumes habitados pelos espíritos radiosos de todas as
luzes da afirmação.
Ela simbolizava o infinito e o finito, o enigma e a verdade, o
revelado e o desconhecido, a esfinge e o mistério...
Nunca tinha visto uma imagem tão perfeita de cigana
vagabunda sem qualquer objectivo.
Disse-me: “Sim, sim, compreendo aquele fulgurante ponto
interrogativo que brilha assim, estranhamente, nos teus olhos,
como um diamante de virtudes maléficas incrustado num anel
de ouro. Sim, sim, compreendo!...”
Tu queres dizer-me: “Nós já nos vimos alguma vez...?”
“Realmente...” Mas ela não me deixou acabar. Cortou-me a
palavra a metade – com um grito – e disse-me “cala-te, cala-te”.
“Não me fales daquilo que sabes, não me fales daquilo que
sabes, não me fales daquilo que passou...” E continuou: “De res-
to, acontece-te aquilo que acontece a quase todos os homens.
Tu não me tiveste mais do que em sonhos e muito deformada!
É, por isso, uma história vulgar, a do nosso amor. Mas agora
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A MISTERIOSA
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A MISTERIOSA
Mario Ferrento
Vertice, Arcola, 21 de Abril de 1921
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UMA “FÊMEA”
Uma “Fêmea”
Amo-te sobretudo quando a animação
Se evade do teu rosto prostrado;
Quando no horror se afoga o teu coração;
Quando no teu presente se dá a revelação
Da terrível nuvem do passado.
Charles Baudelaire
***
Fêmea?
Sim, porventura!...
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
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***
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UMA “FÊMEA”
***
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
***
***
Renzo Novatore
Il Proletario, Pontremoli, Ano I, n.1, 5 de Junho de 1922
194
BANDEIRAS NEGRAS
Bandeiras negras
I
Caminhamos...
II
195
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
III
Morte!...
Quem se lembra ainda da dança macabra do sinistro e mons-
truoso deus da guerra?
Quem se lembra ainda da guerra?
Passou muito tempo desde esse dia, mas sobre esta terra des-
graçada, e ainda assim nobre, fertilizada por cadáveres estéreis
e cheia de sangue infértil, nenhuma flor virgem ideal, feita de
espiritualidade e de pureza, cresce hoje em dia!
Não. As flores que nascem hoje no solo árido desta terra en-
sanguentada em vão, não são flores plenas de vida, capazes de
uma grande esperança, de lutas viris, de pensamentos vigoro-
sos; são flores de morte nascidas nas trevas, que crescem no so-
frimento do inconsciente, devastadas pelo furacão, arrastadas à
deriva no rio do esquecimento...
***
196
BANDEIRAS NEGRAS
***
197
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
198
BANDEIRAS NEGRAS
IV
A guerra!...
Que renovação trouxe a guerra?
Onde está a heróica transfiguração do espírito?
Onde é que estiveram alguma vez penduradas as tábuas fos-
forescentes dos novos valores humanos?
Em que templo sagrado foram depositadas as milagrosas ân-
foras de ouro que contêm os grandes e inflamados corações dos
génios criadores; dos heróis dominadores – que os frenéticos
defensores da grande guerra nos tinham prometido?
Onde brilha o majestoso sol do novo grande meio-dia?
Rios de sangue assustadores lavaram todas as glebas do mun-
do e, uivando, atravessaram todos os caminhos da terra.
Torrentes de lágrimas aterradoras fizeram ecoar o seu lamen-
to, excruciante e angustiante, através dos turbilhões mais
recônditos e obscuros de todos os continentes do mundo.
Montanhas de ossos e de carne humana apodreceram na lama
por todos os lados, e berraram ao sol por todas as partes.
Mas nada se transformou: – foi tudo inútil!
Só a verminosa barriga burguesa arrotou de farta; e a do pro-
letariado roncou de fome!
E basta!
Se com Cristo e com o cristianismo a alma humana foi con-
duzida para o frio e para o vazio do nada do para lá da vida;
com Karl Marx e com o socialismo foi obrigada a descer até aos
intestinos...
O ronco que depois da guerra ressoou pelo mundo e fez
tremer a humanidade, não foi outro senão um ronco da bar-
riga que o socialismo traiu, abafou, sufocou, estrangulou, logo
que se apercebeu que começava a colorir-se com um pouco de
conteúdos ideais...
Consumada esta cobardia suprema, inominável, nasce e
cresce a mais sombria, a mais imunda, a mais negra reacção.
Era lógico – natural – fatal!
Era humano...
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
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BANDEIRAS NEGRAS
VI
VII
201
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
VIII
Aquilo que a guerra não fez, e não podia fazer, pode, e deve
fazê-lo, a revolução!
IX
202
BANDEIRAS NEGRAS
Caminhamos!...
E no teatro da humanidade, a nossa posição é ao extremo de
toda a extrema-esquerda.
XI
203
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
XII
204
BANDEIRAS NEGRAS
Mesmo o «crime»!
Porque o ódio transmite a força que ousa.
A violência e o «crime» são o génio que destrói e a beleza
que cria!
E nós queremos ousar.
Destruir – renovar – criar!
Porque tudo aquilo que é baixo e vulgar tem de ser derrubado,
destruído.
Deve permanecer apenas tudo aquilo que é grande,
Porque tudo aquilo que é grande pertence à Beleza.
E a vida deve ser bela.
Mesmo na dor.
Mesmo no furacão!...
XIII
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
Transportamos
archotes refulgentes.
Acendemos
fogueiras crepitantes!
A nossa bandeira é negra.
A nossa estrada é o infinito.
E o nosso ideal supremo
é o vértice ou o abismo!
Caminhamos!...
Caminhamos...
E se o nosso sonho fosse uma quimera?
E se a nossa luta fosse inútil e vã? E se a renovação da humani-
dade fosse algo impossível de realizar?
Ah, não! Nós caminharemos na mesma.
Pela nossa própria dignidade.
Por amor às nossas ideias.
Pela liberdade do nosso espírito.
Pela paixão da nossa alma.
Pela necessidade da nossa vida.
É melhor morrer como herói num esforço de libertação e de
auto-elevação, que vegetar como impotente e cobarde nesta re-
alidade repugnante.
206
BANDEIRAS NEGRAS
humanas:
Vocês que são destruidoras de todos os preconceitos:
Vocês que são as verdadeiras e únicas inimigas de todas as ver-
gonhas humanas – de todas as mentiras sinistras!
Vocês que, cheias de dor e de sangue, cantam a eterna revolta.
Renzo Novatore
Il Proletario, Ano I, n.2, Potremoli, Julho de 1922
207
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
208
OS CANTOS DO MEIO-DIA
Os cantos do
meio-dia
Em verdade vos digo que também existe um futuro para o Mal;
mas o meio-dia mais tórrido ainda não foi descoberto.
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
II
III
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OS CANTOS DO MEIO-DIA
IV
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
***
Luz de crepúsculo.
Oiço o canto de um pássaro: vejo-o voar através da transpa-
rência melancólica de um Anoitecer agonizante e dissipar-se lá
longe, no azul veludo das sombras distantes.
Uma certa associação de ideias fez-me parecer ver os sonhos
alados da minha juventude dissiparem-se, também eles, lá
longe, entre as sombras infelizes e tristes do esquecimento...
VI
VII
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OS CANTOS DO MEIO-DIA
213
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
***
VIII
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OS CANTOS DO MEIO-DIA
***
IX
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
XI
216
OS CANTOS DO MEIO-DIA
XII
217
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
«Amanhã!»
E hoje?
Hoje não nos resta senão gritar o trágico Não da nossa nega-
ção e da nossa revolta.
Pela realização da nossa individualidade; pela conquista
da nossa liberdade; pela posse plena e integral da nossa vida!
Porque nós – os vagabundos – somos os inassimiláveis da re-
volta e da negação!
Renzo Novatore
Il Proletario, Ano I, n.3, Pontremoli, 15 de Agosto de 1922
218
COM SINCERA PIEDADE
Charles Baudelaire
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COM SINCERA PIEDADE
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VI
VII
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COM SINCERA PIEDADE
VIII
Renzo Novatore
Il Proletario, Anno I, n.3, Pontremoli, Agosto de 1922
NOTAS
1. Figura medieval, os Goliardos eram personagens boémias, co-
nhecidas pelas suas críticas sociais corrosivas e satíricas, especial-
mente contra a Igreja e contra os costumes das classes possidentes.
A sua imagem é a do clérigo vagabundo ou a do estudante devasso,
compondo poemas e canções de tom escarnecedor, cínico, satírico
ou erótico, que eram declamados ou cantadas em locais públicos,
estando essa imagem bastante ligada ao espírito dissoluto da ta-
berna. Eram, na sua altura, rebeldes contra a ordem instituída,
usando o cómico e o burlesco como forma de denúncia e, por isso
mesmo, acabaram por ser perseguidos e condenados pelos po-
deres instituídos. (N.T.)
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
224
COM SINCERA PIEDADE
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
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DO INDIVIDUALISMO E DA REBELIÃO
Do individualismo e
da rebelião
Há quem afirme que o homem é, por natureza, um ser social.
Outros afirmam que o homem é, por natureza, anti-social.
Pois bem; confesso que nunca fui capaz de compreender o
que querem dizer com esse seu «por natureza»: mas compreendi,
porém, que uns e outros estão errados, pois o homem é social e
anti-social ao mesmo tempo.
A necessidade, o dever, os afectos, o amor e a simpatia, são os
elementos que o levam à sociabilidade e à união.
A vontade de independência e o desejo de liberdade, levam-no
à solidão e ao individualismo. Mas, enquanto o individualismo
funciona e se realiza contra a sociedade, a sociedade defende-
-se dos ataques deste. A guerra entre o «societarismo» e o «indi-
vidualismo» é, por isso, uma guerra fecunda, de vitalidade e de
energia. Mas, da mesma forma que o indivíduo é necessário à
sociedade, esta por sua vez é necessária ao indivíduo.
Não se conhece nenhuma possibilidade de existência para o
individualismo se não existisse uma sociedade contra a qual
este se pudesse afirmar e viver; expandir-se e regozijar!
***
227
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
***
***
***
Se o meu pai se revoltou contra o meu avô para não ser escra-
vo da «fé» paterna, eu revolto-me contra o meu pai para não ser
escravo da sua «fé» que o tornou, por sua vez, rebelde.
Como poderia fazer com que o meu filho fosse amanhã o que
eu sou hoje?
***
***
228
DO INDIVIDUALISMO E DA REBELIÃO
***
***
Ah!, muitos são ainda aqueles que olham para a obra. Mas eu,
antes de olhar para a obra, olho para o autor desta. Mas mesmo
para muitos – muitos mesmo – anarquistas, parece que o indi-
víduo conta muito pouco...
A maior parte deles encontram-se ainda entre a ralé que diz:
«Os homens não contam. Contam os factos e as ideias». E é esta
a razão para que, mesmo entre nós, muitos seres superiores e
sublimes tenham sido atirados para a lama, enquanto que mui-
tos idiotas foram elevados até ao sol.
***
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
Renzo Novatore
Il Proletario, Ano I, Pontremoli, 17 de Setembro de 1922
230
EM DEFESA DO ANARQUISMO HERÓICO E EXPROPRIADOR
Em defesa do
anarquismo heróico
e expropriador
O crime é a manifestação vigorosa da vida plena, completa,
exuberante, que quer expandir-se livremente e exultar para além
de todas as regras e de todos os limites, não reconhecendo obs-
táculos nem nas pessoas, nem nas coisas...
E é precisamente esse o lado estético do crime que o redime, sub-
lima e o eleva à luz clara e brilhante de uma verdadeira e própria
obra de arte.
T. Brunetti
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EM DEFESA DO ANARQUISMO HERÓICO E EXPROPRIADOR
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EM DEFESA DO ANARQUISMO HERÓICO E EXPROPRIADOR
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
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EM DEFESA DO ANARQUISMO HERÓICO E EXPROPRIADOR
Renzo Novatore
L`Adunata dei Refrattari, Nova Iorque, Ano II, n.22,
7 de Julho de 1923
NOTAS
1. Poucos são os dados biográficos existentes sobre Giuseppe De Lu-
isi que possam aclarar quem foi de facto este anarquista ilegalista
tornado símbolo do “anarquismo heróico” por Abele Rizieri Ferrari
neste seu escrito. (N.T.)
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
242
O CANTO DA ETERNIDADE
O Canto da
eternidade
Eis o vasto mar tranquilo, o meu mar tranquilo e sereno!
Os pequenos barcos já ladeiam os rochedos risonhos.
Como são estreitos e frágeis os pequenos barcos!
Oh meus pálidos e melancólicos amigos com titânicos co-
rações de heróis, venham, venham! Chegou a minha hora e
encontro-me sereno. Os pescadores de belos cabelos grisalhos
já chegaram à areia solarenga da praia, oh amigos! Não vêem
como os remos de ouro resplandecem ao sol? Vocês não vêem
que naquela direcção, ao longe, a nossa companheira nos sorri?
Aqui me sento e vos espero!
***
Chegaram, portanto?
Nunca vi nenhum céu tão sereno como os vossos rostos, oh
amigos! Como é belo incorporarmo-nos e partirmos juntos,
sem armas, para uma viagem tão longa...
***
243
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
***
***
Oh! que pobre, que coisa miserável era aquela terra árida onde
outrora viviamos! Ainda se lembram dela, meus amigos?
Lá, a aurora surgia e a noite caía! Lá, os homens mediam o
tempo. Oh! amigos, amigos! Sinto que me assalta uma piedade
infinita por aquela pobre terra! Não nos... esquecemos.
***
Renzo Novatore
Veglia, Paris, n.1, Maio de 1926
244
NO TURBILHÃO...
No turbilhão...
«Insensatos»... «irresponsáveis»... «cegos»... «loucos»... «anor-
mais»... «dementes»... «pode-se também ter piedade»... «pode-
-se também sentir compaixão»...
Lembram-se?
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
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NO TURBILHÃO...
247
FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
Renzo Novatore
Culmine, Buenos Aires, Ano III, n. 24-25, 1927
NOTAS
1. Giuseppe Mariani (1898 – 1974), anarquista individualista ita-
liano, trabalha como alfaiate e depois como ferroviário, até que
é destacado para o exército em 1917 para combater na Primeira
Guerra Mundial, donde desertou, acabando por ser absolvido da
acusação de desertor após ter simulado uma doença mental. Em
1919 vai para Milão, trabalhando como mecânico, onde começa
a ter contacto com os ambientes de tendência anarco-individua-
lista. Acaba por ser detido, acusado de ter participado em atenta-
dos conjuntamente com Bruno Filippi. Posteriormente forma um
grupo de tendência individualista com Ettore Aguggini e Giuseppe
Boldrini, tendo-se refugiado na Suiça após alguns atentados co-
metidos. Em 1920 regressa a Milão para continuar a sua militân-
cia num período de forte repressão para o movimento anarquista,
em que vários jornais são atacados e encerrados, como é o caso
do diário Umanità Nova, e vários anarquistas detidos, como é o
caso de Errico Malatesta. Como resposta a essa vaga repressiva,
comete com os seus companheiros Ettore Aguggini e Giuseppe
Boldrini, com a cumplicidade de Elena Melli, um atentado contra
o Hotel Diana a 23 de Março de 1921, acreditando que o chefe de
polícia Giovanni Gasti se encontrava no Hotel naquele momento.
A explosão da bomba acabou por atingir a plateia do Teatro Dia-
na, adjacente ao Hotel, provocando a morte de 21 pessoas e 80
feridos, não alcançando o objectivo de atingir Giovanni Gasti. A
repressão contra o movimento anarquista não se fez esperar e
Mariani, Aguggini e Boldrini são presos. É condenado a ergastolo
(prisão perpétua), tendo permanecido 10 anos em isolamento na
248
NO TURBILHÃO...
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
250
A AMIZADE E OS AMIGOS
A amizade e os
amigos
Um “Homem” disse-me: “Não compreendo as tuas ideias
e não aprovo a tua forma de pensar; mas não creio que sejas
ridículo.” Afastei-me dele sem lhe responder e continuei o meu
passeio na calçada oposta.
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A AMIZADE E OS AMIGOS
Renzo Novatore
Ruta, Paris, 1950
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O poema do mal1
Em verdade vos digo que também existe um futuro para o Mal;
mas o meio-dia mais tórrido ainda não foi descoberto.
F. Nietzsche
Lembro-me!...
A notícia chegou-me depois da dança triunfal de um meio-dia
festivo.
O sol estava quase a pôr-se e começava a mergulhar entre os
redemoinhos de um mar de sangue, ondulando entre os turbi-
lhonantes cumes de imensas montanhas de fogo.
Era um pôr-do-sol trágico, épico, impressionante!
A notícia chegou fria, cínica, implacável...
Condenado à morte!
Mas como?! Condenado à morte?
Mas se durante todo o dia houve no céu uma dança frenética
de sol e de luz...
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IX
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vermelha e encarnada.
Todos os pontos interrogativos que enchiam a minha pobre
mente enferma de luzes sinistras, transformaram-se em alegres
pontos de exclamação, brilhantes e sorridentes.
XI
Amplexo trágico
E tão forte era o amor do Demónio, que a Deusa ficou reduzida
a cinzas com o seu beijo.
O. Wilde
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O velho estremeceu.
Um longo arrepio de tristeza e de dor contorceu os músculos
do seu rosto pálido de marfim, e os seus olhos luminosos quase
se extinguiram...
- Este, disse-me, é o livro do Demónio. É um livro maldito.
Contém o Evangelho de uma religião clandestina, praticada por
uma obscura e perversa falange de ciganos vagabundos do Ori-
ente. Necessitas queimar rapidamente este livro e atirar as suas
cinzas para dentro de uma caverna...
Depois olhou-me nos olhos e fez um gesto de susto e de terror
indescritível; deu um grito e disse-me: Chegou a minha hora,
vejo nos teus olhos o espírito ameaçador e sangrento de Caim.
Amaste-me como um discípulo, mas matar-me-ás como um ir-
mão; no entanto está escrito: tu não matarás!...
Respondi: Quem fixa os olhos no seu próprio irmão não pode
ver senão a sua própria imagem. E acrescentei: Um grande
poeta da vida bebeu o cálice do prazer e o da dor até à última
gota, e sentenciou: Todos nesta vida matámos ou mataremos,
há quem mate com um beijo, há quem mate com a verdade, há
quem mate com a mentira. Só o homem corajoso e generoso
mata com a espada...
- Tu, oh velho, foste Caim primeiro do que eu. Caim da minha
alma. Ensinavas-me o amor divino e vi-te contorceres-te na
senil voluptuosidade do amor humano. Roubaste-me a loura
filha de Arhan, que eu adorava em segredo com um amor di-
vino, místico e puro. E é apenas por tua culpa que as grandes
e luminosas verdades do mundo se transformam hoje, para
mim, numa única e grande mentira. Oh velho, senil e infame,
desprezo-te!
Falando desta forma, peguei numa pedra pesada e esmaguei a
branca cabeça do profeta.
Depois peguei no meu livro e li ainda uma outra vez o longo
mote em latim: «Quem não viola, pelo menos uma vez, as sa-
gradas leis de Deus, não é digno de amá-lo; mas quem as viola
ou se suicida, ou mata para sempre o seu Deus.»
A lua pálida tinha aparecido no horizonte como uma foice de
ouro e procurava, com os seus raios prateados, o sangue ver-
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nem crianças.
Não comiam, não trabalhavam, não dormiam, não procria-
vam, não morriam.
Eram uma raça de pigmeus estéreis e imortais.
Perguntei-lhes em que estação e em que ano se encontravam.
Não compreenderam e não responderam.
Um dia, chegou àquela ilha um náufrago branco. Perguntei-
-lhe de onde vinha e ele respondeu-me: Da terra do Sol!
- Oh náufrago branco, oh náufrago branco, gritei, tu és meu ir-
mão, tu és da minha raça... Leva-me de volta para a nossa antiga
terra, eu quero o Sol.
E falando desta forma, abracei-o comovido e beijei, sentindo-
-me renovado, a sua pálida face.
- Ai de mim, ai de mim!, suspirou com uma profunda tristeza
o náufrago branco, eu fui banido daquela terra. Baniram-me os
meus irmãos, depois daquele dia em que ousei tornar-me após-
tolo de um estranho homem chamado «O grande libertador do
espírito ou o assassino de Deus», discursando contra os maca-
cos que subiram à árvore de todas as magnificências, procla-
mando-se, esses animais, os novos senhores da alma humana;
os meus irmãos amaldiçoaram-me e baniram-me, chamando-me
«a Sombra» daquele homem estranho de que ninguém sabe al-
guma coisa.
Olhei fixamente os olhos do náufrago branco; ele também
olhou os meus...
Olhámo-nos longamente em silêncio, pálidos, desalentados,
mudos.
Parecia que cada um de nós procurava qualquer coisa estra-
nha no próprio segredo, nas memórias longínquas.
De repente, um relâmpago sinistro atravessou o meu ser...
- Diz-me, perguntei ao náufrago branco, és o corpo da minha
alma, ou és a alma do meu corpo?
- Quem é a alma? Quem é o corpo?
O náufrago não respondeu, mas vi que o seu corpo ia diminu-
indo lentamente e pouco depois não era mais do que uma som-
bra que partia de ao pé de mim...
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A Vampira Loura
Ao aproximar-se deram-se, subitamente, dois sentimentos em
mim: o desejo e o medo.
Leonardo da Vinci
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caminhei muito...
- Vês? Os meus pés sangram, e para além dos meus pés tam-
bém o meu coração sangra!
- Oh homem, ouve-me!
- A realidade deixou-te doente.
- A verdade atormentou-te.
- A humanidade entristeceu-te!
- Eu sei, eu sei! Todas essas coisas tristes e más deixaram-te
doente de sonho e de solidão.
- De ideal e de distância!
Eu ouvia a minha estranha visita em silêncio, e observando o
segredo escondido dentro dos seus olhos cheios de céu, sorria
com uma certa ironia amarga.
- Não, não, disse-me, não te rias assim, faz-me mal!
- Pelo contrário, ouve-me ainda.
- Eu conheço um oásis longínquo, um oásis de alegria e feli-
cidade, no meio do qual existe uma virgem nascente de água
claríssima.
- Perto da nascente existe uma rocha enorme, antiquíssima,
na qual se formou uma pequena piscina.
- A cada nascer do sol e a cada pôr-do-sol uma selvagem filha
dos bosques mergulha nua para se banhar na piscina.
- Ela deve ser a senhora do oásis, o objecto dos teus sonhos!
- Vem, vem vê-la.
- O oásis é deserto e não é habitado por ninguém.
- Só um Deus adolescente, eternamente jovem e belo – que de
dia se veste de ervas e de flores, e pela noite se envolve em véus
de ouro –, por ali passa destilando os violentos perfumes das
pétalas das flores desconhecidas, e tocando na sua lira vibrante
misteriosas canções de amor.
Fez uma pausa, olhou para mim, sorriu-me e continuou:
- Queres, então, vir comigo?
- Eu conduzir-te-ei àquele oásis de felicidade e alegria.
- Quando a selvagem filha dos bosques – a senhora do oásis
– sai para fora da rocha, unta todo o seu corpo com um óleo
vermelho de rosas, e pela noite o jovem Deus queima muitos
grãos de incenso para que o perfume se expanda por todo o oá-
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«Os seus pés são duas rosas vermelhas, as suas mãos são dois
lírios brancos, os seus olhos são duas pedras preciosas do mar,
a sua boca é uma romã cheirosa, doce e madura.»
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«Os seus pés são duas rosas vermelhas, as suas mãos são dois
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Deus está morto, o seu trono foi derrubado, o céu rasgado dei-
xa agora passar as águias para além das fronteiras bíblicas que
dividiam o reino do homem do reino de Deus.
Mas quem destruirá o reino do homem?
Quando nascerá aquele que destruirá, depois de Deus e de-
pois do Homem, as tuas vulgares armadilhas, oh Santa Mãe
Natureza?
***
***
Crescei e multiplicai-vos.
Os pontos de contacto que o rebelde, místico e santo naza-
reno, teve contigo – oh velha Mãe Natureza – são os teus pontos
mais abjectos...
Mas agora, quem se insurge contra ti não é o rebelde místico e
santo, mas o ateu e iconoclasta que se insurge contra as tuas leis.
E só quando o espírito niilista deste novo rebelde tiver com-
penetrado nas multidões, dominando o povo através da con-
quista de todas as almas humanas, é que a humanidade encon-
trará finalmente o caminho que poderá conduzi-la em direcção
aos cumes brancos do seu melhor e mais glorioso fim.
Nihil, nihil!
Oh brancas flores de neve, oh Morte!
Oh morte, oh Eternidade!...
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A Amante do Demónio
Surgiste do negro abismo
ou desceste das estrelas?
O demónio encantado segue
as tuas saias como um cão.
C. Baudelaire
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Por três dias e três noites, a cidade esteve em festa. Por três
dias e três noites, os sinos soaram e fogueiras foram acesas.
Por três dias e três noites, os pequenos de espírito gritaram:
- Viva Idiota, o grande Rei!
E o Rei gritou:
- Vivam os pequenos de espírito, viva o meu povo!
Mas, por três dias e três noites, o jovem chorou...
Os ricos ofereceram vinho, pão e mel aos pobres, e estupraram
as mais belas das suas virgens filhas.
Os pobres, comovidos e admirados, choraram de uma alegria
sincera perante tanta bondade...
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O Monstro da Noite
O viajante encontra-se agora numa atmosfera límpida e fres-
ca e pode contemplar o sol, enquanto que debaixo dele tudo se
perde novamente na escuridão da noite.
A. Schopenhauer
II
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Sonhei...
E no sonho vi a Beleza estender as suas grandes asas pelo
mundo, e toda a Terra encher-se de sons estranhos, de luz su-
prema, de verdade eterna, de canções imortais.
***
Sonhei...
Sonhei com o aparecimento de uma milagrosa manhã em
que todos os seres animados acordavam no mistério da Aurora,
sem rancor na alma e sem ódio e tristeza no coração, e que cada
homem tinha a sua lei e o seu sonho e caminhava com os seus
grandes olhos postos no Sol!
Sonhei com o aparecimento de uma manhã em que homens
e mulheres se levantavam pela Aurora com um fogo sagrado de
amor aceso no coração, com o fogo puro da inocência infantil
aceso nos olhos...
Sonhei...
Sonhei com a reconciliação dos homens com as flores, com a
terra, com a natureza.
Sonhei com a estrondosa e alegre gargalhada de Dionísio,
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IV
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Entrámos.
Um grande jardim, fulgurante de sol, estendia-se diante de
nós. Imensas sebes de rosas e de espinheiros nadavam selvati-
camente no mar do seu perfume, entre o sorriso verde das ervas
e música das mais variadas cores.
Das frondes de todas as plantas, pendia fruta fragrante e ma-
dura, e ao longo das alamedas erguiam-se grandiosos monu-
mentos de ouro, de prata e de mármore, em honra e glória dos
grandes antepassados.
***
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POR CIMA DO ARCO: ARTE LIVRE DE UM ESPÍRITO LIVRE
***
Renzo Novatore
NOTAS
1. Este pequeno poema foi escrito nas montanhas de Reggio Emilia,
depois de ter sido condenado à morte a 21 de Outubro de 1918 pelo
Tribunal Militar de Spezia pelo crime de deserção. (N.A.)
2. Figura mitológica grega, ele era o Senhor dos Ventos e rei da ilha
flutuante de Eólia. O seu poder de controlar os ventos foi-lhe con-
cedido por Zeus, e ele mantinha-os encerrados numa gruta, liber-
tando-os de acordo com a sua vontade ou por vontade dos deuses.
(N.T.)
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BALADA CREPUSCULAR: PRELÚDIO SINFÓNICO DE “DINAMITE”
Balada Crepuscular:
Prelúdio sinfónico
de “DINAMITE”
Esta é a hora dos meus pensamentos sombrios.
O meu Demónio dorme.
O Demónio vermelho,
da minha alegria infernal,
dorme no misterioso crepúsculo
desta minha alma.
Fumo...
Fumo desesperadamente,
intensamente. Sempre!
Sempre! Sempre! Sempre!
Queria pensar, escrever, cantar...
Mas o meu Demónio dorme.
O Demónio vermelho,
da minha alegria infernal,
dorme no misterioso crepúsculo
desta minha alma.
E os pensamentos não aparecem...
Nem o riso e a maldição!
Esta é a minha hora negra,
de negra melancolia!
***
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
***
***
Quem?
Quem me terá feito tanto mal?
Quem é o maléfico artífice
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BALADA CREPUSCULAR: PRELÚDIO SINFÓNICO DE “DINAMITE”
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
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Quem?
Quem me terá feito tanto mal?
As mulheres e o amor?
Os homens e a amizade?
A sociedade e as suas leis?
A humanidade e a sua fé?
Talvez todos!
Talvez ninguém!
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BALADA CREPUSCULAR: PRELÚDIO SINFÓNICO DE “DINAMITE”
Não sei...
Sinto-me tão mal...
Tão mal! Tão mal! Tão mal!
Aqui... na alma!
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
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O sol pôs-se.
(o belo Sol de ouro)
O Anjos da noite
estão a morrer...
As folhas verdes são caveiras,
frias, escarnecedoras...
O rio (o belo rio transparente)
é agora uma serpente negra
assustadoramente estendida
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BALADA CREPUSCULAR: PRELÚDIO SINFÓNICO DE “DINAMITE”
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APÊNDICE I: RENZO NOVATORE FOI ASSASSINADO
G. Romiti
Il Proletario, Ano I, n.5, Pontremoli, 12 de Dezembro de 1922
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APÊNDICE II: NO SEGUNDO ANIVERSÁRIO DA MORTE DE RENZO NOVATORE
No segundo
aniversário da
morte de Renzo
Novatore
...Com o rochedo,
o tempestuoso furacão
e as vagas do Oceano.
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APÊNDICE II: NO SEGUNDO ANIVERSÁRIO DA MORTE DE RENZO NOVATORE
E a luta veio.
Mas foi uma luta outonal, fustigada por um vento gélido.
Mas ele que a quis, enfrentou-a.
Heroicamente.
Até que caiu como porta-estandarte de uma nova vida, procu-
rando manter bem alta a sua chama.
Cai e, num último esforço, derrotou o Outono amarelo fusti-
gado por um vento gélido.
E com a morte conquistou a sua última vitória.
Cala-se a sua lira rebelde enquanto a chama luzidia se erguia
no foro por ele construído.
Cala-se a sua lira rebelde e o grito percursor saciou mais uma
vez o nosso sentir elevado da sua poesia.
De Renzo Novatore, o Hércules imolado pela acção libertária.
NOTAS
1. Deus romano, equivalente a Apolo na mitologia grega. Era a per-
sonificação da beleza e da luz, do ideal estético por excelência. (N.T.)
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
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APÊNDICE III: RENZO NOVATORE
Renzo Novatore
O anarquismo é o esforço heróico que o indivíduo realiza para
se libertar de todos os entraves que oprimem o seu espírito e o
seu corpo – para destruir todas as leis, religiões, morais –, para
reagir contra a baixeza conformista e servil das multidões abúli-
cas e sem vigor – para viver intensamente a sua vida para lá do
bem e do mal. Na espontaneidade inflamada de um sul tropical
ou de uma Grécia embriagada de Dionísio e de Afrodite.
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
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APÊNDICE III: RENZO NOVATORE
Enzo Martucci
L`Unique, n.15, Novembro de 1946
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FLORES SILVESTRES, UMA ANTOLOGIA DE ABELE RIZIERI FERRARI
NOTAS
1. Personagem mitológica grega, ele era um bandido que vivia na
serra de Elêusis. O seu mito fala-nos de uma cama de ferro que
oferecia aos viajantes para descansarem e à qual estes se deveriam
ajustar. Se excedessem o tamanho da cama, ele amputava esse ex-
cesso, e se, pelo contrário, fossem demasiado pequenos, eram es-
ticados até que ficassem ajustados a ela. Para que as suas vítimas
nunca se pudessem ajustar à cama, ele utilizava a artimanha de ter
duas camas de tamanhos diferentes que oferecia de acordo com o
tamanho dos viajantes. Foi Teseu que terminou com o terror que
infligia às suas vítimas, cortando-lhe a cabeça e os pés. (N.T.)
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“Todas as sociedades tremem quando a altiva
aristocracia dos Vagabundos, dos Únicos, dos
Inacessíveis, dos dominadores do ideal, e dos
Conquistadores do Nada, avança desinibida.
Vinde, pois, Iconoclastas, avante!”