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Autonomia Indígena No Pensamento Político de Taiaiake Alfred, Floriberto Díaz, Gersem Baniwa e Nas Propostas Do EZLN
Autonomia Indígena No Pensamento Político de Taiaiake Alfred, Floriberto Díaz, Gersem Baniwa e Nas Propostas Do EZLN
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serem reconhecidos e respeitados pelos Estados. organização social, política e religiosa é uma luta
Um dos grandes avanços dos movimentos antiga dos povos do continente.
indígenas contemporâneos foi, sem dúvida, o A autonomia dos povos indígenas é não só
reconhecimento dos direitos indígenas em nível um assunto com uma longa história, mas também
internacional. No entanto, vale ressaltar que essas um tema complexo que deve ser abordado a partir
demandas, traduzidas em direitos, foram de três ângulos: da história, do direito e como
construídas a partir do desenvolvimento de projeto político. Por isso, o impacto e as respostas
experiências, ideias e conceitos próprios dos povos às demandas por autonomia não podem ser
indígenas. A luta pelo reconhecimento do direito à explicados fora da história dos movimentos
autodeterminação e à autonomia na DDPI da indígenas autonomistas das Américas e da
Organização das Nações Unidas exemplifica isso. legislação relativa aos direitos indígenas no âmbito
A Declaração da ONU, aprovada em internacional. Mas, além disso, é fundamental, para
setembro de 2007, reconhece em seu preâmbulo compreender porque os povos indígenas
que os povos indígenas são iguais a todos os articularam suas demandas em termos de
demais povos e que, assim como os demais povos, autodeterminação e autonomia, fazer uma imersão
têm o direito de serem diferentes, de se no pensamento político indígena contemporâneo.
considerarem diferentes e de serem respeitados Muito já foi escrito sobre a espiritualidade,
como tais. O artigo terceiro afirma que “os povos a relação especial dos povos indígenas com a
indígenas têm direito à autodeterminação. Em natureza e a terra, o Buen Vivir, seu modo de viver
virtude desse direito determinam livremente sua baseado no coletivismo, mas quando percebemos
condição política e buscam livremente o seu que, ainda hoje, muitos não indígenas ignoram
desenvolvimento econômico, social e cultural”. Os completamente os fundamentos reais das
povos indígenas almejam exercer esse direito reivindicações indígenas, nos damos conta de quão
através de um regime de autonomia. Mas o que importante é o estudo das ideias políticas de seus
querem os povos indígenas quando demandam escritores e intelectuais. Sabemos o quanto o
autonomia? O que significa para eles autonomia? desconhecimento dos valores e princípios
Desde a época das reformas constitucionais indígenas tem dificultado um diálogo intercultural
na América Latina nos anos 1980 e 1990, a sincero, por isso acreditamos que o contato, ainda
autonomia indígena tem sido um dos pontos mais que breve, com o pensamento político indígena
controversos do debate sobre os direitos indígenas. pode facilitar a aproximação e abrir caminhos para
O tema não é novo, o debate existe desde a invasão uma troca mais verdadeira. O conhecimento de
dos europeus a Abya Yala. A reivindicação por suas ideias políticas representa também uma
autonomia é tão secular quanto a opressão e a oportunidade de questionarmos uma série de
resistência a ela. O desejo de ter de volta o controle “verdades” do senso comum e refletirmos sobre
sobre seu território, seus recursos, suas formas de
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nosso próprio modo de pensar o mundo e a no México, e suas reflexões sobre o conceito de
política. Comunalidad e Gersem Luciano Baniwa,
Os escritos dos intelectuais indígenas indígena Baniwa do Alto Rio Negro, primeiro
contemporâneos são, em muitos aspectos, indígena doutor em antropologia do Brasil, e suas
desestabilizadores. Ao mesmo tempo que nos ideias sobre autonomia, “cidadania plena” e
convidam a uma reflexão profunda sobre tudo “manejo do mundo”. Por último, não poderíamos
aquilo que aprendemos como “natural” e imutável, deixar de mencionar as ideias zapatistas expressas
nos ensinam com suas propostas que existem no conceito “mandar obedecendo” e sua concepção
outros caminhos possíveis para a construção de um de autonomia. O objetivo é não só contribuir para o
mundo melhor. A maneira como os intelectuais e entendimento do que é a autonomia indígena,
ativistas indígenas vêm construindo suas demandas enquanto práxis política e discurso contra
de autonomia e autodeterminação, por exemplo, hegemônico, mas também mostrar como as
têm funcionado como um veículo para suas críticas demandas por autonomia estão intimamente
à imposição de controle por parte do Estado, ligadas à questão da retomada de poder.
levando os Estados a perceberem as
inconsistências de seus próprios princípios e do Breve História dos Movimentos Indígenas
Autonomistas nas Américas
tratamento que vêm dando aos povos indígenas.
Para o propósito desse artigo, nos interessa Somente depois da Segunda Guerra
perceber como a questão da autonomia surge no Mundial é que o contexto internacional, graças à
discurso dos movimentos indígenas de alguns ascensão dos direitos humanos e da luta contra o
países das Américas, onde a demanda por racismo e a discriminação, ficou mais favorável
autonomia é mais expressiva e, particularmente, para a recepção das denúncias de violações graves
nos escritos de três intelectuais indígenas que já cometidas por Estados contra os povos indígenas e
trataram da questão. Começaremos por um breve para a promoção dos direitos indígenas.
histórico dos movimentos autonomistas nas Na década de 1960, no contexto da Guerra
Américas buscando identificar o surgimento de um Fria e das lutas por descolonização na África e
discurso comum acerca da autonomia que permita Ásia, a Assembleia Geral da ONU adota o Pacto
falar em um pensamento político indígena genuíno. Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o
Em seguida, traremos alguns elementos e conceitos Pacto Internacional dos Direitos Econômicos,
do pensamento político de três intelectuais Sociais e Culturais, que reconhecem o direito à
indígenas. Os autores escolhidos foram: Taiaiake autodeterminação dos povos. Foi a partir de 1966,
Alfred, indígena mohawk do Canadá, sua ideia quando foram adotados esses Pactos
sobre governança e o conceito mohawk Internacionais, que a agenda internacional dos
tewatatowie; Floriberto Díaz Gómez, mixe de direitos humanos passou a incluir questões
Tlahuitoltepec, antropólogo indígena de Oaxaca, relativas aos direitos das minorias étnicas, dos
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povos indígenas e de outros grupos historicamente existência cultural. Desde 1961 até finais da
excluídos e discriminados (Davis, 2008). década de 1970, o Comitê dos 243 tinha
De acordo com Shelton H. Davis (2008), o reconhecido a independência de várias dezenas de
acontecimento-chave que abriu uma nova era em países. Assim, “a partir das lutas por libertação
termos de reconhecimento internacional dos nacional, a partir das plataformas de ativistas e a
direitos das minorias étnicas, religiosas, partir da própria ONU, foi sendo construída a base
linguísticas e outras foi a inclusão do artigo 27 no teórico-política do paradigma da auto-
Pacto Internacional sobre Direitos Civis e determinação dos povos” (Cal y Mayor, 2010, p.
Políticos2: 71 – 72). Até então, não se consideravam os povos
indígenas dentro do paradigma da
Naqueles Estados em que existem minorias
étnicas, religiosas ou linguísticas, não será autodeterminação dos povos.
negado às pessoas pertencentes a tais minorias
o direito de, em comunidade com outros Nesse contexto de descolonização, a
membros do grupo, desfrutar a própria cultura,
professar e praticar a própria religião e usar a
questão da autonomia indígena começou a adquirir
própria língua. um significado especial. Segundo James Anaya,
desde esse período, a autodeterminação dos povos
Logo após a aprovação dos Pactos
se refere não apenas a um conjunto de normas de
Internacionais, a Subcomissão para a Prevenção da
direitos humanos válidas para todos os povos e
Discriminação e a Proteção das Minorias da ONU
baseadas na ideia de que todos os povos da
começou a preparar uma série de estudos visando à
humanidade têm o direito de controlar seu próprio
implementação dos direitos previstos no artigo 27
destino, mas também a formas de reparação que
e começou a examinar mais de perto a situação de
rompem com os legados do colonialismo, da
muitos povos em várias partes do mundo. Em
discriminação, da supressão da participação
1971, a Subcomissão indicou um Relator Especial,
democrática e da dominação cultural (2005, p.
José R. Martínez Cobo, que conduzisse um
137).
abrangente “Estudo sobre o problema da
Na América Latina, os anos 1960 e 1970
discriminação de povos indígenas”.
foram particularmente difíceis para os povos
Em 1976 foi assinada a Declaração
indígenas. Nessa época, surgiram as primeiras
Universal dos Direitos dos Povos em Argel
Organizações Não Governamentais (ONGs)
proclamando que “todo povo tem direito a existir”
europeias dedicadas à causa indígena como a
e declarando que a negação desse direito aos povos
International Work Group for Indigenous Affairs
que permaneciam em condição de colonizados
equivaleria à violação do direito desses povos à
3
O “Comitê dos 24” é um comitê especial criado pela
Assembleia Geral da ONU em 1961 para estudar a aplicação
2
Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966. da Declaração sobre a Descolonização (Resolução 1514 (XV)
Disponível em: de 14 de dezembro de 1960) e formular recomendações para
http://www.oas.org/dil/port/1966%20Pacto%20Internacional sua implementação. Mais informações em:
%20sobre%20Direitos%20Civis%20e%20Pol%C3%ADticos http://www.un.org/fr/decolonization/specialcommittee.shtml.
.pdf. Acesso em: 21/05/2017. Acesso em: 23/05/2017.
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(IWGIA) fundada em 1968 na Dinamarca e a 1971. Suas críticas e denúncias foram condensadas
Survival International fundada em 1969 na na Declaração de Barbados I que responsabilizava
Inglaterra, que começaram a pressionar os os Estados, as missões religiosas e as ciências
governos, contribuindo assim para crescente sociais pela “relação colonial de domínio” e pelo
visibilidade da luta dos povos indígenas como tratamento que continuava a ser dispensado aos
comunidades étnicas (Ramos, 1999, p. 3). Outra povos indígenas. A Declaração aventava a
organização importante foi a Cultural Survival “necessidade de uma ‘ruptura radical’ com as
fundada pelo professor David Maybury-Lewis em práticas colonialistas, através da ‘criação de um
1972, em Cambridge, Massachusetts (Davis, Estado verdadeiramente multiétnico’ no qual cada
2008). etnia tivesse ‘direito à autogestão e à livre escolha
Lideranças indígenas emergentes, de alternativas sociais e culturais’” (Lacerda, 2008,
juntamente com acadêmicos e com as nascentes p. 27).
organizações não governamentais internacionais, De acordo com o exposto na Declaração de
se dirigiram à ONU para reivindicar o direito à Barbados I, os Estados deveriam garantir aos
descolonização em favor dos povos indígenas, povos indígenas “o direito de serem e
apelando para a Declaração sobre a Concessão da permanecerem eles mesmos, vivendo segundo os
Independência aos países e povos colonizados4. O seus costumes” e de “se organizarem e de se
Comitê dos 24 mostrou reservas, pois não estava governarem segundo sua própria especificidade
certo de que as comunidades indígenas eram cultural” (Declaração de Barbados I apud Lacerda,
“povos” e encaminhou a reivindicação para a 2008, p. 27). Para Rosane Lacerda, a força
Subcomissão de Prevenção à Discriminação e questionadora da Declaração de Barbados I
Proteção às Minorias. Os povos indígenas não propiciou o debate entre lideranças e intelectuais
aceitavam ser considerados como “minorias” em indígenas e indigenistas em torno da
seus próprios territórios onde viviam desde antes autodeterminação e da autonomia (2008, p. 27).
da formação e da constituição dos Estados Em 1977, o Grupo de Barbados se reuniu
nacionais e cujo desenvolvimento autônomo havia novamente e, em uma nova declaração, a
sido interrompido pelas ações de colonização Declaração de Barbados II, continuou
sofridas a partir do século XVI (Cal y Mayor, denunciando a dominação física e cultural a que os
2010, p. 72). índios ainda estavam submetidos.
Antropólogos e sociólogos se reuniram no Os movimentos indígenas da América
Simpósio sobre a Fricção Interétnica na América Latina, mesmo tendo uma história anterior,
do Sul que aconteceu em Barbados em janeiro de começaram a proliferar a partir da década de 1980.
A Federación de Centros Shuar no Equador, o
4
Resolução 1514 (XV) de 14 de dezembro de 1960 da ONU. Consejo Regional Indígena del Cauca (CRIC) na
Disponível em:
http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/spovos/dec60.htm. Colômbia e o Movimento Katarista na Bolívia são
Acesso em: 23/05/2017.
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alguns dos exemplos mais notáveis desse ativismo mudavam os termos da relação com o Estado.
indígena na região (Assies, 1999, p. 28). Segundo Segundo Marco Aparicio Wilhelmi (2007), essa
Willem Assies, esses três movimentos foram os transformação não afetou apenas a face externa dos
precursores mais claros da mudança no discurso povos indígenas, ou seja, a forma como se
identitário, que passou a enfatizar a indianidade. relacionam com outros atores, mas alterou também
Eles ressaltaram em seus discursos que “não foram as condições internas de vida e de reprodução
apenas explorados como campesinos, mas foram social, a própria identidade indígena. Ao analisar a
também oprimidos como povos ou nações mudança nos tipos de reivindicações, Wilhelmi
indígenas” (2007, p. 226). Por levarem um modo nota que a modificação da posição dos atores em
de vida diferente dos agricultores sedentários, ao jogo é em parte causa e em parte consequência da
invés das demandas por terras que caracterizaram a adoção de uma nova terminologia. Partindo da
luta campesina, apresentaram demandas por reivindicação pelo direito à “terra”, transitou-se
territórios. Pouco a pouco os discursos sobre pelo “território” para, em seguida, incorporar o
territorialidade e autonomia se entrelaçaram. As conceito de “etnodesenvolvimento” (ou
demandas territoriais que, inicialmente, surgiram “desenvolvimento com identidade”) como
como um mecanismo de defesa contra a ocupação condição prévia para a consolidação e a
da “última fronteira” se articularam a um discurso generalização da reivindicação por autonomia,
centrado na demanda de autonomia e entendida como expressão da autodeterminação
autodeterminação (Assies, 2007, p. 234). (2007, p. 242).
Os povos indígenas tornaram-se cada vez A primeira mudança de terminologia
mais visíveis nas arenas políticas nacionais e identificada por Wilhelmi (2007) no processo de
internacionais. Eles se reuniram em Altamira consolidação da demanda por autonomia, foi o
(1989) e em Quito (1990). A resistência armada salto do direito à terra para o direito ao território.
dos Mohawks em Oka no ano de 1990, a Enquanto que a ideia de terra e de propriedade da
comemoração do quinto centenário do terra leva a um conceito tipicamente civilista, falar
“descobrimento” ou “500 anos de resistência” de em território ou habitat para referir-se ao espaço
acordo com a visão dos indígenas em 1992 e a necessário onde cada povo pode desenvolver
insurgência em Chiapas que chamou a atenção livremente suas atividades econômicas, sociais,
para o movimento zapatista em 1994, são alguns políticas e religiosas, é deixar para trás o campo do
dos eventos críticos que deram um forte impulso direito privado para adentrar no do direito público.
ao processo organizativo dos povos indígenas em Com o emprego do termo “etno-
todo continente. desenvolvimento”, os povos indígenas
É possível perceber como as demandas encontraram uma maneira de ampliar ainda mais o
indígenas se transformaram paulatinamente, sentido de sua reivindicação pelo território. O que
adotando características distintas à medida que se ambiciona, com o uso da palavra, é o controle
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nossa libertação definitiva somente pode se Desde os Acordos de Paz de San Andréz
expressar como pleno exercício de nossa entre o EZLN e o governo em 1996, a autonomia
autodeterminação”. Em outra Resolução dos Povos se converteu na bandeira de luta dos povos
Indígenas do continente, a autonomia ganha indígenas no México. E exatamente porque o
conteúdo mais preciso e significa “o direito que governo não reconheceu juridicamente o direito à
temos, povos indígenas, ao controle de nossos autonomia neste Acordo e nem na reforma
respectivos territórios, incluindo o controle e o constitucional de 2001, a demanda por autonomia
manejo de todos os recursos naturais do solo, se transformou em terreno de disputa principal.
subsolo e o espaço aéreo”, e ainda, “a defesa e Segundo Mariana Mora, até 2010 a demanda por
conservação da natureza [...], o equilíbrio do autonomia havia se tornado um objetivo político
ecossistema e a conservação da vida” e também a para diversas organizações indígenas mexicanas,
constituição democrática de “nossos próprios apresentado como “uma resposta inerentemente
governos (autogovernos)” (apud Diaz-Polanco, alternativa ao neoliberalismo e como um modelo a
2006, p. 200 - 201). seguir” (2010, p. 293).
Wilhelmi destaca o impulso que a Batalla reconhece a existência de um
reivindicação por autonomia recebeu no marco da pensamento político indígena unificado na
agitação política e jurídica provocada pelo levante América Latina. Esse pensamento político é
zapatista de primeiro de janeiro de 1994. Em também explicitamente anunciado na Declaração
quase todas as declarações do EZLN, sobretudo a de Quito5 de 1990 como indianismo e seus
partir do início das conversas que dariam lugar aos redatores assumem que representam 120 nações,
Acordos de San Andréz, firmados em fevereiro de tribos e organizações indígenas de 20 países da
1996 entre essa organização e o governo federal América Latina e que o encontro simboliza a
mexicano, a autonomia ocupa um lugar central. consciência de 500 anos de resistência desses
Como é possível averiguar na “Declaração política: povos. Segundo Araceli Burguete Cal y Mayor,
Autonomia, princípio político e social básico” esta declaração coloca o direito à autodeterminação
apresentada pela Coordenação do Fórum e pelos e sua realização mediante a autonomia, como o
delegados do Comitê Clandestino Revolucionário “eixo articulador do emergente movimento
Indígena (CCRI) do EZLN em Ojarasca naquele indígena continental” (2010, p. 64).
ano de 1996: Muitas organizações indígenas em todo o
continente americano assumiram a autonomia
Nuestro país es multicultural. Ello le da una
riqueza que requiere no sólo reconocimiento
jurídico sino condiciones materiales para su
5
reproducción, y el instrumento para asegurar A Declaração de Quito, produzida durante o Primeiro
tales condiciones es la autonomía, entendida Encontro Continental dos Povos Indígenas, se inscreve
como autogobierno, como derecho a darse o a dentro das atividades da Campanha “500 anos de Resistência
quitarse sus propios representantes y decidir Indígena e Popular”. Disponível em:
sobre el camino próprio (apud Wilhelmi, 2007, http://www.cumbrecontinentalindigena.org/quito.php.
p. 240). Acesso em: 22/05/2017.
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interna das comunidades indígenas varia muito, que trataremos a seguir revelam um pouco da
assim como a maneira como se relacionam com a diversidade de formas que pode assumir a
sociedade dominante. Por isso, a autonomia autonomia indígena de acordo com cada contexto,
indígena não pode ser concebida como um projeto com a história, as necessidades e as aspirações
único a ser aplicado da mesma maneira em próprias de cada povo indígena.
diferentes lugares. Como assinala Luis Hernández
Navarro, o regime de autonomia ideal não existe, Taiaiake Alfred e o tewatatowie mohawk
assim como não existe o processo ideal para se
Taiaiake Alfred é Kanien'kehaka ou
chegar a ele. A demanda autonômica expressa um
mohawk, se usarmos o termo cunhado pelos
processo muito mais profundo, que é o da
europeus. Ele nasceu no território indígena
recomposição dos povos indígenas como povos.
Kahnawake, próximo a Montreal. É intelectual,
Nesse sentido, segundo o mesmo autor, a
ativista e professor de Ciências Políticas na
diversidade de formulações nacionais da demanda
Universidade de Vitória, em Columbia Britânica
de autonomia viria a mostrar o grau desigual de
no Canadá. Atualmente, dirige o Indigenous
reorganização e construção de identidades
Governance Program nessa mesma universidade.
presentes nestes povos (Hernández Navarro, 1997
Escreveu vários livros, ensaios e artigos. Os mais
apud Wilhelmi, 2007, p. 249).
conhecidos são: Heeding the Voices of Our
Desde a perspectiva da luta indígena, trata-
Ancestors: Kahnawake Mohawk Politics and the
se de um processo político onde o que está em jogo
Rise of Native Nationalism de 1995; Peace, Power,
não é tanto a tomada do poder, mas o
Righteousness: An Indigenous Manifesto de 1999
empoderamento (Wilhelmi, 2007, p. 250). Trata-
(2nd ed. de 2009) que é um chamado para a
se, contudo, de uma disputa pelo poder. O que
libertação dos povos indígenas da opressão do
varia é o enfoque: enquanto a sociedade dominante
colonialismo e uma mensagem para os não
fala de quotas de poder e até onde o cede; para os
indígenas e Wasáse: Indigenous Pathways of
povos indígenas, o que se discute é a significação
Action and Freedom de 2005.
mesma do poder e a busca pela recuperação de sua
Para ele, os povos indígenas do Canadá
dimensão humana e coletiva. Para Wilhelmi, nisso
passam por uma crise de consciência que reflete
se encontra a complexidade do debate autonômico,
sua frustração por causa das perdas culturais, sua
em que se trava uma luta onde os atores políticos
raiva por causa do desrespeito de seus direitos e
se redefinem a si mesmos e redefinem suas
sua desilusão com aqueles indígenas que “deram as
respectivas posições, alterando os termos de uma
costas” para a tradição. Para sair dessa crise, ele
interelação repleta de desequilíbrios (2007, p. 250).
sustenta que é preciso abandonar os valores da
O pensamento político dos três intelectuais
sociedade norte-americana e começar a agir como
indígenas com relação à autonomia e a experiência
“povo autodeterminado”. Ele defende a
e propostas autonômicas do movimento zapatista
importância “da restauração do orgulho das
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natureza e à ordem natural. Eles reconhecem a viva del pensamiento mixe; ayuujktsënää’yën,
existência de poder em todos os elementos que ayuujkwenmää’ny, ayuujkmëjkäjtën. Nessa obra se
compõem o universo e ensinam a respeitar e encontram os ideais de Díaz Gómez para o
acomodar esse poder em todas as suas formas. No reconhecimento e para uma vida digna das
que diz respeito à governança, para os mohawk comunidades indígenas. Díaz Gómez, que faleceu
não existe “uma autoridade absoluta, uma cedo, deixou um legado importante. Juntamente
imposição coercitiva de decisões, não existe com Jaime Luna cunhou o conceito de
hierarquia e nem uma entidade separada de comunalidad e, por meio dele, foi capaz de
decisão” (2009, p. 80). transmitir, para os não indígenas e para as futuras
A luta coletiva pela autodeterminação gerações indígenas, sua vivência e sua condição
indígena, para Taiaiake Alfred, é uma luta por indígena como uma maneira de ser.
liberdade e justiça. O caminho para a Díaz Gómez constrói sua concepção de
autodeterminação é árduo e cheio de obstáculos, comunalidad a partir da crítica às formulações
como ele mesmo coloca, mas necessário diante da teóricas sobre a autonomia regional. Ele considera
ameaça real de existência dos povos. A única que a discussão sobre as autonomias não deve ficar
forma, segundo ele, para assegurar a sobrevivência confinada às dissertações teóricas, mas “deve
dos povos indígenas é “recuperar sua força, sua provir das realidades concretas nas quais se
sabedoria e sua solidariedade, honrando e manifestam certas práticas autonômicas,
revitalizando os ensinamentos tradicionais” (2009, conservadas apesar e até mesmo contra o Estado-
p. 11). Isso não quer dizer que a cultura indígena nação dominante” (2007, p. 34). Ele não descarta
deva ser compreendida a partir de uma abordagem as valiosas contribuições da teoria, mas defende
tradicionalista essencialista. Alfred propõe o que que as discussões devem ser enriquecidas em uma
chama de “self-conscious traditionalism”, ou seja, perspectiva “de complementaridade de ideias”
(2007, p. 36).
An approach which sees culture as a dynamic
process, and traditionalism as a constant No nível da comunidade, é possível falar
referencing back and forth between what is
remembered of the past and what is demanded em uma diversidade de experiências de controle
by the exigencies of the present. (1995, p. 75)
sobre as decisões internas e suas respectivas
execuções. É na comunidade que as relações entre
Floriberto Díaz Gómez e o Conceito de as pessoas e o espaço e entre as pessoas elas
Comunalidad
mesmas acontecem. Mas a comunidade é algo mais
Floriberto Díaz Gómez é indígena do povo que um simples agregado de indivíduos. Segundo
mixe, antropólogo e ativista. Em 2007, sua esposa, Díaz Gómez, para os indígenas, a comunidade é
Sofia Robles Hernandez publica, junto com Rafael conjunto de “pessoas com história, passado,
Cardoso Jímenez, uma compilação com os escritos presente e futuro, que não apenas podem ser
do esposo intitulada Escrito. Comunalidad energía definidas concretamente, fisicamente, mas também
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espiritualmente na sua relação com toda a Diáz Gómez explica que estes princípios
natureza”. A comunalidad é o conceito criado para comunitários são os que consolidam os direitos que
definir a imanência da comunidade. Os elementos eles reivindicam e demandam que sejam
que definem a comunalidad são: a terra como mãe reconhecidos pelo Estado e pela sociedade.
e território; o consenso em assembleia na tomada Quando ele demanda o “respeito irrestrito a estes
de decisão; o serviço gratuito como exercício de princípios” via autonomia (2007, p. 64) é
autoridade; o trabalho coletivo como um ato de exatamente porque estes princípios não foram
recreação e os ritos e cerimônias como expressão abandonados pela sua comunidade e porque eles,
do dom comunal (2007, p. 40). como outros povos indígenas, lograram suportar as
A importância dada à terra como Madre tentativas de enfraquecê-los enquanto povo e
Tierra na definição dos princípios da comunalidad conseguiram manter e adaptar seus valores e
é um dos pontos fortes do pensamento de Diáz modos de ser.
Gómez. Para explicar a relação de seu povo com a Nesse sentido, para o povo mixe,
terra, ele contrasta a visão indígena da sacralidade autodeterminação é a autodeterminação
da terra com a visão ocidental da “sociedade comunitária que tem um povo sobre sua terra e
egoísta, privatizante e monetarista” que tratou a recursos naturais; é a possibilidade de nomear as
terra como se “ela não tivesse vida” e não fosse autoridades comunitárias e a capacidade de
sagrada (2007, p. 54). Ele explica que “a desempenhar os serviços; é a organização e
propriedade comunal é a forma de posse mais execução do tequio; é o uso do idioma e de outras
recomendada em relação à terra” (2007, p. 58). expressões culturais (2007, p. 64).
A outra noção importante que explica seu
conceito de comunalidad é o tequio. O tequio é o Gersem Baniwa: autonomia, “cidadania plena”
e “manejo do mundo”
trabalho coletivo que expressa a capacidade do ser
humano de combinar seus interesses individuais e No Brasil, no momento da Constituinte, os
familiares com os da comunidade, é obrigatório e movimentos indígenas se apresentaram como
sem retribuição monetária (2007, p. 59). Por representantes das “Nações Indígenas” 6
no espaço
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político de negociações com o Estado. No discurso participação nas decisões que lhes dizem respeito.
sobre autonomia, apresentaram como essencial para sua Para eles, adquirir cidadania significa ter o direito
autonomia, o reconhecimento da plena cidadania, o de acesso a todos os benefícios que os outros
reconhecimento dos direitos territoriais e do usufruto
brasileiros têm. Gersem Baniwa explica que o
exclusivo do solo e do subsolo, a demarcação das terras
acesso à tecnologia de informação é um dos
e o respeito às suas organizações sociais e culturais.
primeiros passos rumo a essa cidadania plena. É
Segundo Lia Zanotta Machado, trata-se “do
fundamental, segundo ele, para que os povos
entendimento de direitos coletivos no interior da
indígenas possam pensar e decidir por eles mesmos
abrangência do Estado brasileiro, onde a ideia de
nações indígenas está presente, mas não chega a sobre qualquer assunto, que o acesso a informações
conformar uma ideia forte de Estado plurinacional” qualificadas, que ajudem na tomada de decisões
(1994, p. 6). igualmente qualificadas e conscientes, seja
Gersem Luciano Baniwa explica que a luta do garantido (2006, p. 90).
movimento indígena no Brasil, desde a Constituinte, Gersem Baniwa considera que o acesso a
tem sido uma luta por uma cidadania indígena uma educação de qualidade e adequada e o acesso
brasileira. Uma cidadania diferenciada que incorporasse
a recursos tecnológicos e digitais representam para
à noção tradicional de cidadania, “limitada e
os povos indígenas hoje novas possibilidades de
etnocêntrica” (2006, p. 87),
recuperação e consolidação dos processos
O reconhecimento do direito à diferenciação autônomos. No entanto, a efetividade de uma
legítima que garantisse a igualdade de
condições – não por semelhança mas por cidadania plena não depende apenas desses
equivalência – criando novos campos sociais e
políticos nos quais os índios seriam cidadãos acessos, é preciso que outros direitos já
do Brasil e, ao mesmo tempo, membros plenos reconhecidos avancem, como o direito à autonomia
de suas respectivas sociedades étnicas. [...]
Cidadania diferenciada significa que os povos e à autodeterminação (2006, p. 93).
indígenas, além do usufruto dos direitos
universais do cidadão brasileiro ou planetário, Na prática, a autonomia dos povos
possuem também o usufruto de direitos
específicos relativos à cultura, às tradições, aos indígenas do Brasil continuou acontecendo. Muitos
valores, aos conhecimentos e aos ritos (2006,
p. 89). povos, mesmo após a instalação do Estado
brasileiro, continuaram a definir e organizar as
Para os povos indígenas a cidadania aldeias em seus territórios de acordo com seus
brasileira tem um sentido de inclusão e de sistemas sociais, econômicos, jurídicos e
religiosos. Para Gersem Baniwa, a luta
Brasil, não houve nenhum problema em chamar os povos
indígenas de "Primeiras Nações". Sobre a história da luta dos contemporânea do movimento indígena brasileiro
povos indígenas pela denominação “povos indígenas” na
ONU e sobre a campanha contra o CIMI em 1987, ver por autonomia significa “a luta pela emancipação
RESENDE, Ana Catarina Zema de, Direitos e Autonomia
social, política e econômica dos povos indígenas,
Indígena no Brasil (1960 – 2010): uma análise histórica à
luz da teoria do Sistema Mundo e do pensamento decolonial, capaz de tirá-los das péssimas condições de vida a
Tese de Doutorado, 2014. Disponível em:
http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/17769/1/2014_Ana que estão submetidos como resultado de séculos de
CatarinaZemaDeResende.pdf.
dominação e exploração colonial” (2006, p. 93).
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Gersem Baniwa explica que, em termos indígenas não sejam mais excluídos da vida
conceituais, autonomia é uma forma de exercício política, econômica e cultural do país (2006, p. 95).
do direito à autodeterminação, não é o mesmo que Finalmente, Gersem Baniwa reconhece que
independência e nem envolve soberania e que, o a construção de espaços de autonomia vai
direito à autodeterminação implica respeito aos depender não apenas das tendências ideológicas e
direitos indígenas e reconhecimento das políticas dos governos, mas também da capacidade
autoridades indígenas, de suas formas de de gestão do movimento indígena para que ele “se
organização e representação política em todos os torne um campo de autogoverno dos povos
níveis de poder. Desse modo, o que os povos indígenas enquanto canal para sua participação nas
indígenas brasileiros pretendem é fortalecer suas tomadas de decisão que lhes dizem respeito em
comunidades como entidades socioculturais qualquer nível de governo do Estado” (2006, p.
autônomas e uma maior representação e 97). Nesses processos de construção de autonomia
participação política no governo do país (2006, p. indígena, algumas debilidades e fraquezas já foram
94). identificadas. Gersem Baniwa dá o exemplo de
Para entender o que os povos indígenas algumas lideranças indígenas que passaram a
querem dizer e defender para si quando “copiar modos negativos de viver e de se
reivindicam autonomia e autodeterminação, de relacionar, contrariando os princípios de autonomia
acordo com Gersem Baniwa, é preciso considerar a coletiva dos povos” e “interpretando autonomia
história de colonização que os subjugou em todos como sinônimo de autoritarismo, como é comum
os aspectos de suas vidas étnicas e lembrar que, na prática de governantes brancos”. Ele cita o caso
desde o século XIX, com a conformação do Estado daquelas lideranças que passaram a tomar decisões
brasileiro como expressão dos interesses das elites impositivas e prejudiciais aos seus povos como
colonizadoras, os povos indígenas, assim como os arrendar suas terras para fazendeiros,
negros, foram excluídos do projeto político. Desde principalmente nas regiões Centro-Oeste e Sul do
que os povos indígenas começaram a fazer valer país, o que tem levado a um aumento da fome, da
seus direitos coletivos por meio de suas miséria e da violência. Por isso, é necessário que o
organizações representativas, eles nunca movimento indígena aprofunde e democratize cada
reivindicaram soberania política diante do Estado- vez mais o debate e a prática de autonomia interna
nação dominante. O que eles propõem é a não autoritária (2006, p. 97 – 98).
“transformação do Estado unitário e homogêneo Em sua tese de doutoramento em
em Estado plural e descentralizado, o qual Antropologia defendida em 2011 na Universidade
possibilite em seu interior a existência e o de Brasília, Gersem Baniwa comenta ainda
desenvolvimento de espaços de autonomia e algumas dificuldades para implementação da
interdependência justos e equitativos”, ou seja, autonomia indígena no Brasil. Ele diz que no
espaços capazes de fazer com que os povos Brasil, diferentemente de outros países do
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continente americano, o debate sobre autonomia educação indígena no Alto Rio Negro, ele acredita
indígena tem avançado muito pouco. Enquanto que que a escola seria então um instrumento
em muitos países vizinhos os conceitos de privilegiado de empoderamento técnico,
autonomia, autodeterminação e autogoverno fazem acadêmico e político que habilitem os povos
parte do vocabulário político cotidiano e das indígenas ao acesso e interação com o mundo
práticas em políticas públicas, no Brasil, estas moderno, a partir de relações menos assimétricas.
palavras ainda soam “nos ouvidos dos militares, Um acesso à modernidade que não significa
juízes e políticos (mesmo de esquerda) como abdicar de seus modos próprios de vida, mas
ameaça à soberania do Estado-nação” (2011, p. “aperfeiçoar e melhorar a capacidade das tradições
321). Ele reforça então que, no Brasil, os indígenas em satisfazer as demandas e necessidades atuais”.
não almejam o Estado ou qualquer forma de poder Para Gersem Baniwa, a Escola Indígena é então
centralizador e que o objetivo de suas lutas por uma das opções para que os povos indígenas
autonomia visa apenas existir ou sobreviver e não possam construir e apropriar-se de conhecimentos
dominar ou subjugar. Ele argumenta que nessa que os ajudem a retomar a autonomia étnica e
busca por espaço e autonomia, comunitária para o “manejo do mundo” (2011, p.
336). Essa retomada de autonomia que é uma
[...] não basta apenas garantir o direito e as
condições de sobrevivência ou de existência, retomada do “manejo do mundo” exige um
pois o que dá sentido à vida (realização
individual e coletiva) é a capacidade de seu processo de “domesticação do mundo” e não de
controle ou manejo. Controle e manejo não
significam domínio ou subjugação, referem-se
dominação ou subjugação. A escola foi escolhida
fundamentalmente ao papel de sujeito que cabe então como o local de “domesticação do mundo”
ao homem e aos grupos sociais diante da
necessidade de equilíbrio e harmonia do do branco e como o principal instrumento de
mundo. Ou seja, o equilíbrio do mundo (da
natureza) está acima do equilíbrio da trabalho e luta para que os povos indígenas possam
humanidade, pois este depende daquele. A
autonomia comunitária, étnica e territorial garantir condições de comunicabilidade com o
reivindicada pelos povos indígenas obedece
aos marcos legais do Estado-nação constituído.
mundo dominante (língua portuguesa e outras),
Desta maneira, a autonomia cultural não é conhecer o funcionamento da sociedade dominante
nenhuma ameaça ao Estado-nação, limita-se à
manutenção e reconquista de um alto grau de e apropriar-se dos instrumentos úteis da sociedade
manejo sobre a tomada de decisões que afetam
o grupo étnico local, ou seja, controle dos dominante (2011, p. 339).
recursos naturais e culturais, nos marcos de
seus territórios, o que requer um Estado forte,
capaz de garantir a integridade do direito EZLN e suas Propostas Autonômicas
(2011, p. 324).
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No entanto, não devemos esquecer o papel diferentes pessoas e grupos que resistem ao
importante que ainda ocupa nessa estrutura o capitalismo” (Diez, 2012, p. 200). A sanção da
Exército Zapatista em relação à tomada de reforma constitucional significou para os zapatistas
decisões (Diez, 2012, p. 219). Enfim, apesar das o fechamento do sistema institucional e a ruptura
dificuldades e das limitações que a implementação com o sistema político.
do princípio do “mandar obedecendo” pode trazer, Foi a partir da Sexta Declaração e do
é importante lembrar que se trata de uma lançamento da Outra Campanha que os zapatistas
concepção bem diferente de delegação de poder passaram a dar ênfase na importância de não votar,
que acaba questionando a forma tradicional da não promover negociações com os partidos
democracia representativa. políticos e não dar apoio a nenhuma candidatura.
O movimento zapatista, desde suas Essa leitura abstencionista não deve ser
primeiras manifestações, centrou suas críticas ao interpretada, segundo Juan Diez, como uma
regime de partido de Estado mostrando que este se simples posição antipolítica, mas como uma
limitava a um exercício autoritário do poder. O decisão do movimento de “desafiar a noção
subcomandante Marcos acusava, em um dominante de política, revestindo-a de novos
documento de 19957, o sistema de partido de sentidos” (2012, p. 220).
Estado no México mostrando que não se tratava Para Baschet, a autonomia zapatista deve
apenas de uma união entre o governo e o partido de ser entendida como um projeto político de amplo
Estado, o Partido Revolucionário Institucional alcance. Não se trata de um simples projeto local
(PRI), mas “de todo um sistema de relações ou regional destinado especificamente aos povos
políticas, econômicas e sociais que invadem as indígenas. Trata-se de um levante indígena em
organizações políticas opositoras e a chamada busca de autonomia, mas também de uma luta por
‘sociedade civil’”. Desde o início, o projeto libertação nacional e rebelião pela humanidade e
político zapatista visava uma mudança profunda na contra o neoliberalismo.
cultura política mexicana propondo novas formas
de fazer política (Diez, 2012, p. 220). Considerações Finais
Com o avançar da luta e, sobretudo, após a
sanção da reforma constitucional em 2001, o O tema da autonomia ganhou importância
movimento zapatista não se orienta mais para o nas três últimas décadas nos discursos dos
sistema político e as instituições, mas passa a movimentos indígenas e nos debates sobre a
nível das práticas sociais e das subjetividades, com demonstrar aqui, há uma variedade de posturas
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causa de sua interação com o multiculturalismo propositivo. Para eles é chegado o tempo de os
neoliberal (González et al., 2010, p. 57 - 58). povos indígenas se levantarem, dizerem “basta” e
De qualquer forma, para examinar com atuarem por eles mesmos ou agirem como “povo
cuidado os diferentes conteúdos que aparecem nas autodeterminado”. Diáz sustenta que os próprios
diferentes propostas de autonomia, é necessário indígenas devem se responsabilizar pela
considerar de onde vem a proposta: do Estado e do recuperação de sua identidade como povos e
poder ou das organizações e comunidades comunidades “sem cair no jogo das palavras sujas
indígenas. A partir do Estado, a autonomia pode política e academicamente de ‘grupos’, ‘minorias’,
ser concebida como “uma proposta de ‘etnias’, etc. e defenderem seu direito a conservar e
reorganização político-administrativa favorável a desenvolver a comunalidad” (2007, p. 64) e Alfred
uma democracia mais direta – ‘democratizar a condena toda forma de vitimização e diz que para
democracia’ e que permite uma verdadeira confrontar a perda de autonomia decorrente do
participação cidadã”. Do ponto de vista racismo, entre tantos outros efeitos do
econômico, ela pode ser entendida como “um colonialismo, é preciso reaprender a pensar por si
possível modelo alternativo de desenvolvimento mesmo, rejeitando a estrutura imposta pela relação
‘autossustentável’ ao alcance das comunidades colonial e revitalizando a visão indígena do
locais”. A partir das comunidades indígenas que a mundo. Nesse processo de revitalização dos
propõem, a autonomia aparece como um projeto valores e recuperação da identidade cultural,
político contra hegemônico (Gros, 2001, p. 4). Alfred insiste sobre a responsabilidade que devem
No pensamento político indígena, a ter os indígenas não apenas para com os membros
autonomia é percebida de diferentes maneiras. Não da comunidade, mas também para com os outros
é, portanto, uma noção fácil de ser apreendida. A povos e para com as gerações futuras. A luta por
forma como cada povo apresenta sua demanda de autonomia, nesse sentido, consiste em um processo
autonomia varia de acordo com o contexto político de descolonização que implica também em uma
local, com suas experiências históricas e com suas coexistência pacífica com os outros povos e com o
necessidades e aspirações específicas. Para Estado. Essa mesma ideia pode ser encontrada no
Taiaiake Alfred e Floriberto Díaz, a luta por pensamento de Gersem Baniwa.
autonomia tem a ver com o resgate dos valores e De fato, como explicou Gersem Baniwa, no
princípios tradicionais; não de forma essencialista, Brasil, as diferentes formas de autonomia em
mas a partir do que Taiaiake Alfred chama de construção não visam negar as principais
“tradicionalismo autoconsciente”, ou seja, um instituições vigentes, mas sim “torná-las mais
tradicionalismo consciente que se nutre do passado flexíveis e abertas, com capacidade de
sem fazer abstração da realidade contemporânea e promoverem a coexistência pacífica e solidária de
dos limites impostos pelo presente. Ambos todos os brasileiros” (2006, p. 95). Para ele, os
conclamam seu povo a ser mais contestador e avanços alcançados pelos povos indígenas no
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Brasil em termos políticos e sociais podem ser defesa de seus modos próprios de viver e pensar e
definidos como o início de processos de coloca para o mundo, por sua vez, a necessidade de
autonomia. Trata-se, portanto, de uma autonomia aprender a viver com outros mundos possíveis.
que se fundamenta na vontade de interagir, de
participar e não de excluir componentes culturais e
políticos diversos. Ao defenderem seus direitos Referências Bibliográficas
territoriais autogestados, suas culturas e
ALFRED, Taiaiake. “Sur le rétablissement du
conhecimentos tradicionais, os povos indígenas respect entre les peuples kanien'kehaka et
brasileiros têm mostrado “o avanço de uma luta québécois”, Argument. Politique, Société, Histoire.
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peuples-kanienkehaka-et-quebecois.html.
Esse esforço transformador fica mais
ALFRED, T. Heeding the Voices of Our
evidente nas propostas zapatistas de autonomia. No
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caso do EZLN, mesmo que sua luta por autonomia Rise of Native Nationalism. Toronto, Oxford
University Press, 1995. Disponível em:
tenha sido até aqui conduzida por comunidades
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ng_the_voices-1.pdf.
histórica e cultural negada, ela se dirige ao
conjunto da população mexicana e a todos os Wasáse: Indigenous Pathways of Action and
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capitalismo ao qual a luta zapatista opõe um
Peace, Power, Righteousness: An Indigenous
projeto de emancipação social e uma experiência Manifesto, 2nd edition. Don Mills, Oxford
de autogoverno. De acordo com Baschet, trata-se University Press, 2009.
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indgena-y-estado-plurinacional-en-america-
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