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NÓS – ATO III

De Romero Nepomuceno

(Primeira História)

“Os peçonhentos”

(Entra o Ator em uma cadeira de rodas, conduzido por uma enfermeira). Ator: (À enfermeira,
depois de uma longa espera) Está me irritando!!! Você não gostaria de me deixar a sós um
pouco? Vá perambular por aí. Olha, ali daquele lado, bem atrás daquelas arvores, tem um
riacho muito bonito. Não gostaria de ver? Vai lhe dar algum prazer. É melhor do que ficar aqui
sem fazer nada. Não precisa temer, não vou sair daqui. Veja meu estado!!! Numa cadeira de
rodas. Não vou sair daqui. Vá. Vá logo. Daqui a pouco você retorna e eu ainda estarei aqui. Por
favor, me deixe a sós um pouco.(Pausa) Que merda!! Saia daqui. Quero ficar sozinho. Saia, saia
daqui. Sai, sai, sai. (A enfermeira, depois de muito hesitar, sai. Pausa. A alguém da platéia) Olá,
você não gostaria de sentar aqui comigo? Um pouco só! Não?! Não quer?!. Eu gostaria de lhe
contar uma história. Os motivos pelos quais me encontro nessa situação. Só para passar o
tempo. É sobre meu ex-chefe. Meu chefe de trabalho. Que Deus o tenha!!! Sabe!! Eu até que
gostava dele!!. Sei que é difícil alguém gostar de seu chefe de trabalho, mas eu gostava dele!
Não, não, não, não é porque ele morreu que agora estou dizendo que gostava dele. Gostava
mesmo!!! Quero dizer: gostar, gostar, eu não gostava. Mas me dava muito bem com ele, até
onde é possível alguém entender um chefe. Aliás, como é difícil entender essas pessoas: os
chefes!!! É quase impossível compreender esse tipo de gente. Parece que estão sempre com
crises de identidade, sempre mal humorados, mandões, prepotentes. Você já reparou?! Tudo
que você produz, no trabalho, não está bom. Eles encontram sempre alguma coisinha
equivocada. Dizem que você poderia fazer um pouco melhor, dedicar um pouco mais ao
trabalho, vestir a camisa da empresa. Em suma: tem sempre alguma coisinha a ser ajustada!!!
O meu chefe era ainda pior, tinha um olho clinico! Todo trabalho que eu produzia _enquanto
trabalhávamos juntos_ quando ele inspecionava, os olhos caiam sobre meus erros,
clinicamente. Irritante isso, não?! Mas eu não nunca me incomodei com isso não. Sempre
passei por cima destas bobagens e até compreendia: porque chefe é assim mesmo. Esse é o
trabalho deles: inspecionar, vigiar, coordenar, mandar, controlar nossos pequenos equívocos.
No meu caso, confesso que nunca tive nada do que reclamar, pois meu primeiro chefe, era uma
pessoa muito simpática. Agradável!! Risonha!! Estava sempre pronto para me atender.
Recebia-me com uma certa deferência, respeito profissional e tudo mais. Uma maravilha de
chefe! Só tinha um pequeno detalhe que eu não gostava. Quando ele ria, as barbelas dele, que
formavam debaixo do queixo, balançavam. Balançavam mesmo!!! Como as de um galo garnisé.
Ah! Eu esqueci de lhe dizer. O meu ex-chefe, ele era um pouco gordo. Quero dizer, um pouco
não... Gordo mesmo. Obeso, enorme!!! Tão obeso que não cabia em sua própria cadeira.
Quando ele sentava, sob os braços da cadeira, pendiam aquelas nádegas enormes, assim pra
fora da cadeira. Uma coisa horrenda!!! Mas o difícil para ele não era sentar e sim levantar. Ele
tinha que segurar os braços da cadeira para que aquela bunda gigantesca não viesse junto com
ela. Lembro-me de um dia em que ele se levantou às pressas _ o superior dele o havia
chamado_ e veio tudo junto: chefe, cadeira

e aquele bundão enorme. Ele não caiu. Um outro colega o segurou. Se bem que eu adoraria
que ele caísse. Mas não caiu! O que me irritava mesmo nele, não era a sua obesidade e sim
aquele sorriso simpático. Simpático para ele, porque aquilo me irritava profundamente! Era um
sorriso largo, com os dentes enormes e as bochechas balançando. Isso até que era suportável,
mas as barbelas...!!! Ah aquelas barbelas...!!! As barbelas me tiravam do sério. Aquele balanço
era como uma punhalada recheada de falsidade e ficava ali, naquele rosto, balançando,
balançando, balançando e ele me dando as ordens ou chamando minha atenção. Que simpatia
irritante ele possuía!!! A minha vontade era de mandar ele pra aquele lugar. Mas não, eu
respirava fundo e suportava aquele momento interminável. Nos meus primeiros dias de
trabalho ele me convidou para um almoço. Era praxe dele. Fazer o social. Ainda não o conhecia
direito, mas mesmo assim fui. Afinal, precisava manter um bom relacionamento com meu
chefe. Era um restaurante caríssimo!!! Pensei logo comigo: como vou pagar a conta de um
restaurante tão grã-fino com esse salário porcaria em que fui contratado?! Quanto a isso ele
me tranqüilizou logo, dizendo que possuía uma verba de representação e que a conta seria
paga pela empresa. Sorte a minha!! Aproveitei a oportunidade e pedi o melhor e o mais caro
prato da casa. Lagosta. E que lagosta!!! Suculenta!!! Maravilhosa!!! A verdade é que a conta
chegou à cifra de no mínimo quatro salários meus. Nunca eu havia comido tão bem, como
naquele dia! O restaurante era algo, assim, paradisíaco. Acho que nunca mais freqüentarei um
restaurante como aquele. Foi um dia memorável!! Só teve um pequeno probleminha. Tive que
presenciar o meu chefe saboreando seu prato. Ele fazia um biquinho, com os lábios, e abria
aquela boca enorme para ingerir o alimento. Havia nele um prazer incontrolável e de causar
inveja. Principalmente a mim que estava de regime. Até ai, tudo bem. Mas quando ele
mastigava a comida e fazia aquele barulhinho com a boca... Isso era intolerável. Uma falta de
educação. Onde já se viu?!! Um chefe, que para se alimentar, faz barulho com a boca!!! Depois
desse almoço criei uma antipatia por ele, e como se não bastasse, ele perguntou a mim se eu
não ia comer todo o meu prato. Eu havia deixado um pouco na travessa em que o restaurante
servia os requintados almoços. Um pouco não, mais da metade, porque eu estava de regime.
Ele disse de um modo usurpador: você já foi servido? Eu disse: obrigado, estou satisfeito. Ele
perguntou: incomoda se eu comer o restinho? Não claro que não. Fique a vontade. O porco
comeu tudo em poucas garfadas, fazendo aquele barulhinho ao abrir e fechar da boca.
Intolerável!! Pouco tempo depois tive que presenciar, novamente, aquele crápula se
alimentando. Foi quando ficamos no trabalho até um pouco mais tarde. Estava apenas eu, ele
e mais um funcionário. Ele pediu pizza. Disse que era um pequeno lanchinho que ele oferecia
em gratidão à nossa dedicação ao trabalho. Era um crápula mesmo aquele sujeitinho!!! O
lanchinho que ele oferecia, não era oferecido por ele e sim pela empresa e também, não era
um lanchinho. Ele pediu sete pizzas. Ouça bem!!! Sete pizzas!!! Eu e meu colega de trabalho
comemos uma. O crápula comeu seis pizzas inteirinhas!!!

Ah!!! E aquele barulhinho da boca!!! Iequi, iequi, iequi. Que coisa ensurdecedora!!! De
enlouquecer qualquer cristão!!! Aquele barulho ficou dias a fio nos meus ouvidos!!! Iequi,
iequi, iequi, iequi, iequi, iequi, iequi... Insuportável!!! Poucos meses depois que fui contratado,
aconteceu algo comigo e meu chefe, que foi no mínimo estranho, inusitado mesmo. Vou lhe
contar tudo, desde o começo. Um primo meu, num final de semana, me convidou para
conhecer um canil que ele estava construindo. O propósito desse meu primo era cruzar
cachorros e depois, vender as crias às lojas veterinárias. Dizia ele que ganharia muito dinheiro
com isso e me queria como sócio no novo empreendimento. Entusiasmado com a idéia fui
conhecer o canil de meu primo. Era uma coisa meia... Como posso dizer...? Acho que uma
palavra só define tudo: ordinário. Essa é a palavra: ordinário. Era um canil vagabundo e
pestilento cheio de cachorros doentes e sem pedigree. Nessa visita ao canil, acabei por
conseguir alguns carrapatos como prêmio. Nesses carrapatos é que esta o estranho, o
inusitado. Já vou me explicar. Na segunda-feira, quando cheguei ao trabalho, estava grudado
em minha perna, um carrapato enorme. Aquilo começou a coçar e involuntariamente retirei o
inseto da perna, com as pontas da unha. Ali, no coçar, ele veio preso à unha e começou a
passear na minha mão. Pus-me a observar o inseto, assim como numa distração. Fiquei
durante muito tempo me divertindo com aquele parasita. Ele estava gordo. Havia sugado
sangue demais, mais do que era capaz. . Foi quando me lembrei de meu chefe. E num ato
instintivo, conduzi o inseto até meu dedo polegar. Apontei para meu chefe e disse: comeu
demais desgraçado, vai morrer. Esmaguei entre as unhas dos meus polegares a sanguessuga, e
o sangue escorreu pelos meus dedos. Mas o estranho, o inusitado, o curioso é que naquele
instante meu olhar, casualmente, estava voltado para o meu chefe, que se encontrava aturdido
com seus afazeres em sua mesa de trabalho. E no momento em que eu dilacerei o peçonhento,
o barulho que ele fez incomodou profundamente meu chefe. Incomodou tanto que ele
levantou a cabeça procurando de onde vinha aquele estrondo silencioso. Pensei comigo: mera
coincidência. Um ploc, sim porque foi isso que ouvi, um ploc de um inseto não poderia soar
como bomba aos ouvidos de uma pessoa. O tempo foi passando e no final do expediente,
novamente, encontrei outro carrapato sugando minha perna. Esse estava aqui, perto de meu
joelho. E o desgraçado estava mais gordo do que o anterior. Não pensei duas vezes. Arranquei
o inseto e o coloquei entre as unhas. Olhei para meu chefe. Queria saber se fora coincidência
ou não o que havia acontecido há pouco. Prestei atenção. Ele estava com a cabeça baixa,
distraído com seu trabalho. Tudo que se ouvia, era só silêncio. Esmaguei o parasita. Ploc. Ele
outra vez pulou da cadeira. Algo o incomodara. Levou as mãos até as têmporas e percebi que
ele sentira uma leve tontura. O que afinal estava acontecendo? Eu não tinha a menor
capacidade para compreender aquilo!!! No outro dia, bem cedo, procurei pelo meu primo. Ele
tentou me convencer da sociedade, mas tudo o que eu queria dele eram novos carrapatos.
Fomos até à sua chácara e peguei vários deles, colocando dentro de um vidrinho. Com todo
corre-corre,

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mesmo assim, cheguei antes do inicio do expediente daquele dia e com o vidrinho guardado
no bolso do paletó. Esperei. Aquele seria um novo dia em que ele, com sua gratidão, compraria
pizzas em agradecimento às horas-extras prestadas ao nosso patrão. E nos deliciamos com as
pizzas ao som do iequi-iequi de sua boca. Aguardei mais ainda. Esperei que todos saíssem. Eu
sabia que era costume dele somente abandonar o trabalho depois que o último também o
fizesse. E fiquei fingindo que estava trabalhando até o momento que ficamos a sós. Apalpei o
bolso para me certificar se o vidrinho estava lá. Estava. Peguei o vidro e retirei um carrapato.
Esmaguei o inseto. Ele ressaltou na cadeira. Peguei o segundo inseto. Esmaguei novamente. Ele
percebera de onde vinha o estrondo silencioso. Veio em minha direção. Esmaguei outro. Ele
tonteou. Esmaguei mais um e ele fraquejou as pernas. Esmaguei mais, e mais, e mais. Seu
corpo desabou no chão, como um porco imundo. E não parei de esmagar, mesmo com ele
caído. E esmaguei, esmaguei, esmaguei, esmaguei, esmaguei todos os peçonhentos. Parei. O
corpo estava lá, caído no chão. Aproximei-me. Olhei para aquele porco disforme. Os olhos
abertos e esbugalhados. Apalpei o pulso. Ele estava morto. Infarto fulminante!!! Dei um
sorriso tímido de satisfação. E berrei como um tolo: estou livre, livre, livre. Vã ilusão a minha.
No outro dia, quando cheguei no trabalho, estava lá meu novo chefe. E que preciso dizer: não
foi o último. Esse foi apenas o segundo. E por que não dizer também, bastante diferente do
primeiro. Era esguio, elegante, vestia terno sempre muito bem talhado. Não possui barbelas e
nem parecia com bull-dog. Era sério, o que significava que eu não teria mais que ver aquelas
bochechas e barbelas dançantes. Compenetrado, conhecedor de suas obrigações. Um pouco
resmungão, mas suportável. Meu relacionamento com ele era primoroso!!! Tudo ia muito
bem, até que um dia ele resolveu comentar sobre meu desempenho no trabalho. Pronto!!! A
coisa tomou caminhos indesejáveis e eu tive que tomar algumas providências. Lembrei do
canil de meu primo. Fui lá e enchi, um novo vidrinho, de carrapatos. Aguardei pelo momento
em que estivéssemos a sós. Com um prazer enorme dilacerei um peçonhento. Dilacerei o
segundo, e depois mais um e depois outro. Nada!!! Que decepção!!! Ele continuou em sua
mesa de trabalho como se nada acontecesse. Os carrapatos não faziam efeitos sobre ele. Tudo
o que ocorreu é que ele, ao se levantar casualmente de sua mesa e passando pela minha,
perguntou o que eu fazia com um vidrinho cheio de carrapatos. Dei uma risadinha sem graça e
inventei uma desculpa qualquer. Desconcertado!!! Era esse meu sentimento naquele
momento. Desconcertado!!! Mas minha oportunidade não tardaria! Meses depois fui
convidado por um amigo para acompanhá-lo numa pescaria. Fui. E aí encontrei minha
salvação!!!

Nessa pescaria, no acampamento, tinha lá um gato pestilento. O bichano distribui pulga para
todo mundo!!! Inclusive a mim que usava inseticida, aquela coisa nojenta que os pescadores
passam no corpo para se protegerem dos maruins. Resolvi testar o comportamento de meu
chefe com as pulgas. Batata!!! Funcionou como uma navalha!!! O resultado e os modos que
usei foram os mesmos praticados com o meu primeiro chefe. Infarto fulminante, olhos
esbugalhados e tudo mais!!! Livre... Livre novamente!!! Quero dizer... Nem tanto. No dia
seguinte estava lá outro chefe. E porque não dizer: o meu último chefe. Com esse a coisa
funcionou às avessas. Um pedófilo...!!! Isso sim é o que ele é. Não que ele saia por aí
promovendo orgias infantis, não, nada disso!!! Mas ele come as mentes juvenis. Tem sempre
alguém ao seu lado para puxar-lhe o saco. Um canalha esse último chefe que tive!!! Tem um
rosto muito estranho! Como eu posso descrever o rosto dele!!?? Eh!!! Acho que ele é filho de
alemães. Corpulento, alto, quase dois metros de altura, um narigão que chegava antes de seu
próprio corpo, traços fortes, bíceps largos. Parece com aqueles garotões que freqüentam
academias. Uma carinha de mandaruvá!!! Sarda, muitas sardas!!! O rosto todo pintadinho, e o
sangue lhe sobe, quando alguma coisa o importuna. Fica todo rubro de ódio! Depois de alguns
meses de trabalho, com o novo chefe, o diretor de administração, contratou uma poda num
coqueiro defronte ao nosso prédio. Neste mesmo dia, o meu chefe me convidou para tomar
um cafezinho na cafeteria ao lado do coqueiro que fora podado. Fui. Inocentemente eu fui!
Quando atravessamos o coqueiro, em sua volta, no passeio, estava lá um mandarová, deste
tamanho. Daqueles coloridos, furta cor: branco, preto, amarelo. O mandarová parecia um arco-
íris. Bonito!!! Muito bonito!!! Ocorre que meu chefe tem fobia por esse tipo de inseto. Mesmo
parecendo com um deles!!! E quando os vê, ele mata. Instintivamente, meu chefe, esmagou o
coitadinho com a sola de seu sapato. Subiu em cima do pequeno inseto e rodou a sola com a
força e peso de seu corpo. (Entra a enfermeira) Deste dia em diante, desde que ele praticou
esse ato horrendo, digo horrendo porque o resultado foi que eu parei numa cama de hospital,
nunca mais sai dessa cadeira de rodas. Enfermeira: Senhor Francisco. Senhor Francisco
terminou seu banho de sol. Ator: Lá vem ela novamente!!! Enfermeira: E não adianta
reclamar!! O médico foi claro quanto a isso: banho de sol nunca superior a trinta minutos.
Vamos andando. (Sai o Ator, conduzido pela enfermeira).

(Segunda História)

“E se a porta não abrir?”

Naquela manhã, Alberto Machado procedera tudo como de costume: ainda sobre a cama,
alongou seu corpo preguiçosamente por alguns instantes; beijou sua esposa, que ainda
dormia, com hálito fétido; tomou um gole frio do café que estava

sobre a mesa; comeu pequenas bolachas contemplando a amarelada escritura pública de seu
apartamento, dependurada na parede. Sorriu um sorriso curto de satisfação, pois aquela
escritura era motivo de orgulho: resumia todo o seu espírito empreendedor e vários anos de
trabalho. Era um apartamento pequeno, apenas um conjugado de quarto, sala, cozinha e
banheiro, num desses não raros espigões das grandes cidades, com lojas comerciais no
primeiro piso. Ali, passara os últimos vinte anos de sua vida, sempre a cumprir os rituais
domésticos do mesmo modo e com sua forma particular de ser e de agir. Sete horas. Estava na
hora do gato siamês sorver o leite da tigela, servido com sucrilhos. Alberto Machado, para dar
um ar de importância ao seu cotidiano, fingia estar atrasado para o trabalho, que só se iniciaria
às oitos horas e a poucos quarteirões dali. Mas, mesmo assim, apressara para servir o gato,
transbordando o leite da tigela e sujando o chão que era lambido pelo felino. Entreolhou, outra
vez, o relógio de pulso, pegou suas chaves sobre a mesa, abriu a porta da sala e foi chamar o
elevador no final do corredor. Antes, porém, de cerrar a porta, de longe contemplou, mais uma
vez, a escritura de seu apartamento e o sorriso lhe retornara ao rosto enchendo-o novamente
de orgulho. Aquele gesto lhe dava força para continuar a jornada. Desceu pelo elevador e, de
longe, num gesto mecânico, cumprimentou o cabeleireiro, que abria pontualmente o seu
estabelecimento comercial. A cidade já estava acordada e Alberto Machado seguia pela rua a
caminho do trabalho. Trabalho simples: apenas transportar correspondências, documentos,
objetos e valores dentro e fora da repartição. Às vezes auxiliava nos serviços de copa e cozinha,
operava alguns equipamentos do escritório, transmitia mensagens via fax.; coisas assim, nada
muito sofisticado. Gostava dos dias em que efetuava serviços externos, pois assim via o
movimento da cidade. Era uma pessoa atenciosa com todos, prestativo e, com esse
comportamento, conseguira fazer algumas amizades no trabalho, não que fossem amigos
íntimos, que ele pudesse visitar. Não, eram apenas pessoas com as quais ele deveria manter
um bom relacionamento, fazia parte do seu trabalho. Como sempre, depois de um árduo dia
de trabalho, Alberto Machado retornara para casa. Curiosamente, dessa vez, ao passar pelas
lojas comerciais, cumprimentou o cabeleireiro, que não respondeu ao seu aceno. Pensou:
“certamente não me reconheceu, passei muito depressa”. Não deu importância ao ocorrido e
foi entrando no hall do elevador, quando o porteiro o interrompeu: - Por favor, senhor, queira
se identificar. Riu com ironia para o porteiro, que era o mesmo desde a inauguração do
prédio. - Não está me reconhecendo? Sou eu, o morador do apartamento 1.725. Pensou que
o porteiro tivera uma súbita caduquice, daquelas doenças que degeneram a cabeça das
pessoas e elas esquecem tudo por alguns momentos, mas depois voltam ao normal e ficam
nesse vaivém de esquecer e lembrar as coisas. Tentou forçar a passagem. O porteiro não
permitiu. - É melhor se identificar. Como ele nunca comparecia às reuniões do
condomínio, imaginou que seria uma nova resolução da qual ele não tinha sido comunicado.
Ordens dos condôminos. E pensou em mais tarde reclamar com o síndico. Porém, para não
criar nenhum constrangimento, entregou sua carteira de identidade ao porteiro. - Qual
apartamento, senhor Francisco?

Não percebera que o porteiro lhe chamou por outro nome. Estava por demais contrariado e
impaciente para chegar logo em casa. Para ficar livre do porteiro respondeu num tom meio
bruto. - Vou ao meu apartamento, ora essa!!! - Apartamento de quem? - Do senhor Alberto
Machado. Devolvendo a carteira de identidade e procurando na lista dos moradores, o
porteiro ainda de cabeça baixa disse: - Não. Não mora nenhum Alberto Machado neste
prédio! O senhor tem certeza de que está no endereço correto? A pessoa a quem o senhor
procura, sabe o número do apartamento dele, senhor Francisco? - Pare com essa brincadeira
idiota. Meu nome não é Francisco e você sabe muito bem disso. Moro neste prédio há mais de
vinte anos e agora você vem pedir identificação. Que coisa ridícula é essa? - Mas, senhor
Francisco....!!!! - Meu nome não é Francisco. Já disse isso! - Mas é o que está escrito aqui na
sua carteira de identidade! - Na minha carteira de identidade?! Ele verificou a identidade e
estava escrito: “Francisco Machado”. Por um momento acreditou que trocara a carteira de
identidade com alguém. Quem sabe com um irmão?! Mas não. Não poderia trocar a carteira
com um irmão, pois ele era filho único; nem mesmo com um parente, vez que os seus
familiares moravam em outra cidade distante dali e não encontrava com eles havia muito
tempo. E, de fato, a carteira era a sua, podia se ver pela fotografia. Estava lá a sua velha foto,
de quando ainda era moço e não possuía nenhum cabelo branco, nem rugas no rosto. Mas
como explicar isso, se a foto era realmente a dele, mas o nome não correspondia ao seul!!? E
pensou que estivesse esquecido o seu próprio nome. Mas isso também não seria possível, pois
se ele esquecera o seu próprio nome, o porteiro o reconheceria, não haveria necessidade dele
se identificar ou, no máximo, o porteiro o chamaria por outro nome, aquele que seria o seu
verdadeiro. Acreditou, por um instante que ele não era ele mesmo, e sim outra pessoa, ou,
quem sabe, errou de endereço. Saiu do prédio para certificar de que estava no endereço
correto. - Rua Aldeota, número 45. Que bobagem! Como poderia me enganar com o meu
próprio endereço?! Já meio descontrolado, retornou ao hall do elevador com decisão de
forçar a sua passagem, por bem ou por mal, quando o porteiro educadamente o interceptou:
- Por favor, a sua identificação. - Pare com essa brincadeira, quero ir para minha casa. -
Desculpe-me, mas o senhor não mora aqui neste prédio. Se ficar insistindo dessa maneira, eu
sou obrigado a chamar a polícia. Então ele percebeu que o porteiro não ia permitir a sua
entrada. Resolveu entrar pelos fundos do prédio, pulando o muro e utilizando o elevador de
serviços. Antes, porém, certificou-se novamente de que não estava no endereço errado. Pulou
o muro e quando chegou à garagem do prédio, viu o seu gato siamês. O reconhecera pela
coleira e pelo seu jeito dengoso no caminhar. Sentira-se aliviado. Parecia que um grande peso
havia deixado seu corpo. Agora as coisas faziam sentido. Tudo estava sobre controle e concluiu
que tudo não passava de um grande equívoco ou uma brincadeira de mau gosto do porteiro. Já
pensava até em repreender a sua esposa por deixar o seu gato solto assim. Ele poderia ser
atacado por um cachorro qualquer e se aproximou do

animal para apanhá-lo e levá-lo para dentro de casa, mas o gato siamês saiu, bramindo, numa
corrida arisca. Alberto Machado não compreendeu o que estava se passando ou, se
compreendeu iludiu a si mesmo e continuou a caminho de seu apartamento. Achou que não
deveria usar o elevador de serviços, pois poderia ser visto por alguém e seguiu pelas escadas
do prédio até o décimo sétimo andar. Verificou o número. Era o seu. Um mil setecentos e vinte
e cinco. Retirou seu chaveiro do bolso e, num gesto ritualístico, enfiou a chave na fechadura.
Forçou. A porta não abriu. Forçou novamente e a porta continuava trancada. Imaginou que
trocara a chave e a retirou da fechadura. Mas não, não trocara a chave. No chaveiro havia
apenas duas chaves, uma de sua casa, que não servia, e outra da sua mesa de trabalho. Ainda
sem compreender o que se passava, olhou pelo olho mágico constante da porta e viu sua
esposa na cozinha preparando o jantar. Bateu na porta. Ela veio abrir. - Pois não, o que o
senhor deseja? - Meu bem, sou eu!!! Ela o olhou por alguns momentos numa tentativa de
reconhecer aquele rosto e disse: - Desculpe-me, mas eu não o conheço. Um pouco
embaraçado e sem saber muito como proceder ele disse: - Desculpe-me, senhora.
Eu devo ter me enganado com o número do apartamento. Agora, Alberto Machado
compreendera tudo. De cabeça baixa, pensativo e num caminhar constante, continuou subindo
as escadas daquele prédio até alcançar o terraço. Lá do alto contemplou a cidade em sua volta
e, sem hesitação, saltou para o que seria o seu grande vôo. Ele pulou, mas o corpo não caiu.
(Terceira História)

“O homem sem cabeça”

Manhãzinha fria e preguiçosa, daquelas de sol cinzento. Para quem trabalhou a semana inteira,
um domingo assim pode ser útil. Eu estava debaixo do meu edredom e levantei disposto a ter
uma conversa comigo mesmo. Naquele dia, tudo estava diferente. Nada, absolutamente nada
passava desapercebido. Meus sentidos estavam aguçados. Lavei meu rosto com a fria água da
pia e quando o levantei, vi minha imagem refletida no espelho. Não parecia comigo, mas era
eu. Tinha certeza. Reconheci-me por uns traços que rasgavam meu rosto tornando-o disforme,
distante. Eu olhei nos meus olhos e, aqueles olhos, por mais estranhos que me parecessem,
eram meus. Eu olhei tão profundamente para mim mesmo e vi, lá nas entranhas do meu ser,
um pedaço pequenino, era o que sobrara de mim. Não tive dúvidas. Chamei-me para uma
conversa. Em outros tempos, eu conversei tanto comigo mesmo, que acabei me transformando
nisto (algo que não sei bem o que é). Foram tantas conversações, proibições e modificações no
meu ser, que resultaram no que sou. Eu aceitei tantas idéias novas e rejeitei outras tantas, que
acabei por me transformar nisto. Isso pode, aquilo não pode e assim fui me construindo.
Nunca da forma que gostaria, e sim da forma que me foi permitida. Naquele dia não. A
conversa que teria comigo mesmo, visava a resgatar o meu verdadeiro eu.

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Sentei na cama e dei início ao diálogo. Estava eu e meu outro eu (aquele que era eu no
princípio, mas que agora não é mais eu). E começamos a discussão. Apesar de haver uma certa
intimidade entre os meus “eus”, a comunicação foi por demais complicada, pois havia um “eu”
que estabelecia alguns princípios, cujos princípios não foram aceitos pelo outro. Pronto! Foi o
que bastou. A conversa tomou proporções indesejáveis, incontroláveis e não havia meio de
contornar aquela situação. Então, tomei uma decisão simples. Muito simples, mas que eu
julgue acertada. Eu resolvi decepar minha cabeça. Cortá-la, extraí-la de meu corpo. No armário
do quarto, não sei por que razão, havia uma caixa de ferramentas. Abri. Procurava por alguma
ferramenta que tivesse essa função: decepar cabeças. Não encontrei. Tudo que encontrei foi
um pequeno serrote que poderia fazer o serviço. Não pensei duas vezes. Com a mão esquerda
segurei um feixe do meu parco cabelo e com a direita, o serrote. Coloquei-o rente ao maxilar
inferior e comecei a serrar o meu pescoço. E fui serrando... serrando... serrando... serrando, e
arranquei, arranquei a minha cabeça. Com uma tesoura desbastei a aspereza de uns brancos
nervos pontiagudos, que insistiam em não ficar quietos. Quanto a minha cabeça?! A minha
cabeça eu joguei na latrina, dei descarga. O movimento circular da água, o revolver da água foi
engolindo, engolindo, engolindo a minha cabeça, como numa despedida. E fiquei feliz! Muito
feliz! Um pouco fatigado, é verdade. Mas muito, muito feliz. Fui dormir. Resolvi descansar um
pouco. No outro dia a garoazinha persistia em cair lá fora. Minha esposa já preparava o café da
manhã e eu ainda continuava ali, deitado na cama, disposto, muito disposto. Depois, levantei e
fui para o banheiro proceder meu asseio matinal. Somente quando fui lavar o rosto é que eu
me lembrei de que não tinha mais a cabeça. Mas mesmo assim, fiz todos os gestos matinais:
lavei o rosto, escovei os dentes, fiz a barba, penteei os cabelos, vesti meu terno azul-marinho e
coloquei minha gravata listrada, descendo, em seguida, para tomar meu desjejum. Quando eu
cheguei na cozinha a minha esposa estava lá. -Bom dia! Disse ela apressada com seus afazeres
domésticos. - Bom dia! Respondi com minha disposição matinal. Daí a pouco, sem muito
alardeio, ela me perguntou: - Você vai para o trabalho assim, desse jeito?! - O que tem?! Estou
usando o mesmo terno e a minha mesma gravata listrada, que uso sempre! - Não é isso,
homem. Você está sem cabeça. - Ah! Você notou?! Não fiquei bem?! - Claro que não! Pelo
menos ponha um chapéu, ora essa! No cabideiro da sala, peguei meu sobretudo, minha pasta
executiva, meu guarda-chuva, meu chapéu, tanto recomendado pela minha esposa, e fui para
o trabalho. Engraçado!!! Ainda na saída da minha casa, alguns vizinhos cumprimentaram-me
discretamente. Eu também os respondi com gestos discretos e um reservado “bom dia”. Mas, o
estranho em tudo isso, é que quando eu cheguei no meu trabalho, ninguém, absolutamente
ninguém me cumprimentou. É verdade que eu estava sem cabeça e que, provavelmente, meus
colegas não me reconheceram. Mas a verdade é que me reconheceram sim. Tenho certeza que
eles me reconheceram, pois meu terno azulmarinho e minha gravata listrada eram bastante
conhecidos em toda a repartição. Claro que eles me reconheceram. Eu não tenho dúvida
nenhuma que eles me reconheceram. Só no final do expediente é que eu entendi o
comportamento de todos. Recebi uma carta da direção da empresa. Estava lá escrito em letras
garrafais: “motivo da demissão - justa causa, improbidade administrativa”. Improbidade
administrativa!!! Pelo menos sabiam

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o que estavam fazendo?!!! Improbidade administrativa! O que fazer ante a isso?! Nada a fazer.
Peguei meus pertences que estavam sobre a mesa e fui embora. Sabe... mesmo com aquela
chuvinha, persistente, insistente que cai lá fora, eu achei que não deveria ir para casa. Eu
queria passear um pouco. Descansar daquele dia fatigante. Ver vitrines, pessoas perambulando
pelas ruas. Ver vitrines, porque não?! Ainda me lembro da silhueta formada pelo meu corpo,
refletida na vitrine, sobreposta as roupas finas e outras utilidades humanas. Estavam lá: o meu
sobretudo, o meu guardachuva, a minha pasta executiva e meu chapéu. Sim... meu chapéu,
sem cabeça. Tarde da noite...tarde da noite eu retornei para casa. Quando entrei na minha
rua, eu pude ver que algumas casas, elas estavam abandonadas. A verdade é que alguns
vizinhos haviam se mudado. Provavelmente aqueles que mal me cumprimentaram no início
daquela manhã. Não dei muita atenção ao fato. Entrei para casa. Quando eu entrei em casa,
sobre a mesa, encontrei um bilhete deixado pela minha esposa. Naquele bilhete, ela dizia que
havia se mudado para um outro apartamento que temos. Dizia também que havia se mudado
por que não conseguiria viver com um homem sem cabeça. Somente quando eu li,
atentamente, aquele bilhete, palavra por palavra é que eu compreendi tudo. Compreendi e
achei que deveria buscar de volta a minha cabeça. Com grande ânimo entrei no vaso sanitário
e dei descarga. Infelizmente... infelizmente, nas profundezas daquele esgoto, não encontrei
mais a minha cabeça.

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