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Boaventura de Sousa Santos

Construindo as Epistemologias do Sul

Antologia esencial
volume ii

ROSA
LUXEMBURG COLEÇÃO ANTOLOGIAS DO PENSAMENTO
STIFTUNG SOCIAL LATINO-AMERICANO E CARIBENHO
Construindo as
Epistemologias do Sul
De Sousa Santos, Boaventura
Construindo as Epistemologias do Sul: Antologia esencial: Volume
II: Para um pensamento alternativo de alternativas / Boaventura De
Sousa Santos; compilado por Maria Paula Meneses... [et al.] - 1a ed.
- Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO, 2018.
V. 2, 746 p.; 20 x 20 cm - (Antologías del Pensamiento Social
Latinoamericano y Caribeño / Gentili, Pablo)

ISBN 978-987-722-383-5

1. Análisis Sociológico. 2. Ensayo Sociológico. 3. Antología. I.


Meneses, Maria Paula, comp. II. Título.
CDD 301

Otros descriptores asignados por la Biblioteca virtual de CLACSO:


Sociología / Teoría Social / Periferia / Globalización / Colonialismo /
Movimientos Sociales / América Latina / Derechos humanos / Democracia /
Epistemología
Coleção
Antologias do Pensamento Social
Latino-americano e Caribenho

Boaventura de Sousa Santos

Construindo as
Epistemologias do Sul
Para um pensamento alternativo
de alternativas

Volume II
Organização e apresentação: Maria Paula Meneses, João Arriscado Nunes,
Carlos Lema Añón, Antoni Aguiló Bonet e Nilma Lino Gomes
Antologías del Pensamiento Social Latinoamericano y Caribeño
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CONOCIMIENTO ABIERTO, CONOCIMIENTO LIBRE.

Primera edición
Boaventura de Sousa Santos: Construindo as Epistemologias do Sul. Volume II (Buenos Aires: CLACSO, noviembre de 2018)

ISBN Obra completa: 978-987-722-376-7


ISBN Vol. II: 978-987-722-383-5
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firmantes, y su publicación no necesariamente refleja los puntos de vista de la Secretaría Ejecutiva de CLACSO.
Sumário

Pablo Gentili
Prefácio: Inventar outras ciências sociais............................................................................... 13

Maria Paula Meneses, João Arriscado Nunes,


Carlos Lema Añón, Antoni Aguiló Bonet e Nilma Lino Gomes
Prólogo......................................................................................................................................... 17

VOLUME I

Parte I
Pensando desde o Sul e com o Sul

Maria Paula Meneses


Apresentação.............................................................................................................................. 23

Um discurso sobre as ciências.................................................................................................. 31


Não disparem sobre o utopista................................................................................................. 71
O Norte, o Sul e a utopia.......................................................................................................... 145
As ecologias dos saberes......................................................................................................... 223
Tradução intercultural: Diferir e partilhar con passionalità.............................................. 261
Introdução às epistemologias do Sul..................................................................................... 297
Parte II
Teoria social para outro mundo possível

João Arriscado Nunes


Apresentação: Reinventando a
imaginação sociológica para rebeldias competentes.......................................................... 339

O Estado e a sociedade na semiperiferia do sistema mundial:


O caso português...................................................................................................................... 347
Os processos da globalização................................................................................................. 397
A queda do Angelus Novus: Para além da equação
moderna entre raízes e opções............................................................................................... 485
Nuestra América: Reinventar um paradigma subalterno
de reconhecimento e redistribuição...................................................................................... 541
Entre Próspero e Caliban: Colonialismo,
pós-colonialismo e inter-identidade....................................................................................... 573
Para além do pensamento abissal: Das linhas globais
a uma ecologia de saberes....................................................................................................... 639
As identidades das crises......................................................................................................... 677

Sobre o autor.......................................................................................................................... 685

Sobre os organizadores....................................................................................................... 687


VOLUME II

Pablo Gentili
Prefácio: Inventar outras ciências sociais............................................................................... 13

Maria Paula Meneses, João Arriscado Nunes, Carlos Lema Añón,


Antoni Aguiló Bonet e Nilma Lino Gomes
Prólogo......................................................................................................................................... 17

Parte III
Direito para outro mundo possível

Carlos Lema Añón


Apresentação: Sociologia crítica para um outro direito possível ....................................... 23

O direito dos oprimidos: A construção e reprodução do direito em Pasárgada................ 33


Uma ilustração: O pluralismo jurídico na Colômbia.............................................................. 59
O Estado heterogéneo e o pluralismo jurídico em Moçambique......................................... 65
Para uma concepção intercultural dos direitos humanos................................................... 111
Sociologia crítica da justiça.................................................................................................... 139
O pluralismo jurídico e as escalas do direito: O local, o nacional e o global.................... 197
Os direitos humanos: Uma hegemonia frágil........................................................................ 211
O Estado, o direito costumeiro e a justiça popular.............................................................. 225
Quando os excluídos têm direito: Justiça indígena,
plurinacionalidade e interculturalidade................................................................................ 243
Para uma teoria sociojurídica da indignação: É possível ocupar o direito?..................... 277
A resiliência das exclusões abissais em nossas sociedades:
Em direção a uma legislação pós-abissal.............................................................................. 315

Parte IV
Democracia para outro mundo possível

Antoni Aguiló Bonet


Apresentação: Democracia para um outro mundo possível............................................... 343

A crise do contrato social da modernidade e a emergência do fascismo social.............. 351


O Estado e os modos de produção de poder social............................................................. 383
A refundação do Estado e os falsos positivos...................................................................... 405
Catorze cartas às esquerdas.................................................................................................... 455
As concepções hegemónicas e contra-hegemónicas de democracia................................ 501

Parte V
Educação para outro mundo possível

Nilma Lino Gomes


Apresentação: Educação para um outro mundo possível................................................... 515

Para uma pedagogia do conflito............................................................................................. 525


Da ideia de universidade à universidade de ideias............................................................... 547
A universidade no século XXI: Para uma reforma democrática
e emancipadora da universidade............................................................................................ 601
A encruzilhada da universidade europeia............................................................................. 667
Rumo a uma universidade polifônica comprometida:
Pluriversidade e subversidade................................................................................................ 681
O Fórum Social Mundial como epistemologia do Sul.......................................................... 715

Anexo: Lista dos livros e artigos publicados em português


por Boaventura de Sousa Santos...................................................................................... 733

Sobre o autor.......................................................................................................................... 743

Sobre os organizadores....................................................................................................... 745


Prefácio
Inventar outras ciências sociais
Pablo Gentili*

B oaventura de Sousa Santos é muito mais


do que um sociólogo português empenha-
do em interpretar —de um modo extraordiná-
contrahegemônica; a construção de um novo
tipo de pluralismo jurídico que contribua com
a democratização de nossas sociedades; a re-
rio e original— os assuntos mais urgentes do forma criativa, democrática e emancipadora
nosso tempo. Seu nome é a referência e a ins- do Estado e a defesa irredutível dos direitos
piração sempre fecunda de um amplo coletivo humanos; a criação de universidades popula-
de cientistas e ativistas espalhados por todo o res que promovam diálogos interculturais, en-
mundo, organizados em redes ou trabalhando tendidos como uma forma de combate contra
sozinhos, comprometidos com a construção a uniformidade e a favor de uma ecologia de
de umas ciências sociais a serviço das grandes saberes emancipatórios e libertários. Seus ar-
causas da humanidade, das lutas pela igualda- gumentos se aglutinam em torno a uma prer-
de e dos direitos dos oprimidos. rogativa fundamental: a melhor via para cons-
Os trabalhos de Boaventura enlaçam um truir estratégias de resistência locais e globais
conjunto de temas e preocupações que se ins- requer pôr em prática um exercício de justiça
crevem na melhor das tradições do pensamen- cognitiva em que todas as vozes possam se
to social e crítico: a emergência e as lutas dos expressar em um mesmo pé de igualdade, por
movimentos sociais; os olhares alternativos meio do interconhecimento, da mediação e da
que produzem os processos de globalização celebração de alianças coletivas.
Os cinco blocos que estruturam esta antolo-
gia, cuja confecção foi realizada coletivamen-
* Secretário Executivo de CLACSO. te por destacados/as colegas conhecedores e
14 Pablo Gentili

conhecedoras do trabalho do pensador portu- articula uma pedagogia do deslocamento e da


guês, reúnem os principais temas que atraves- escuta: aprender a viajar em direção ao Sul,
sam a sua obra. Recorrer estas páginas é ler o indo ao encontro dos numerosos e heterogê-
projeto político-intelectual de Boaventura de neos espaços analíticos e modos de construir
Sousa Santos em toda a sua amplidão. conhecimento, e deixar o Sul falar, à medida
Como bom artesão, Boaventura não só ex- em que o Sul foi submetido a um processo de
plora cada um dos tópicos abordados com ma- silenciamento exercido pelo conhecimento
estria. Também é o criador de potentes ferra- científico produzido no Norte.
mentas conceituais que permitem ser combina- Em sua bagagem não estão ausentes as lu-
das com liberdade, exercitando outros modos netas nem os microscópios. De fato, o desloca-
de explorar e interpretar as realidades que ha- mento é condição para se distanciar da tradição
bitamos (e queremos transformar). O repertó- eurocêntrica e para dar lugar a outros espaços
rio de ferramentas conceituais que Boaventura analíticos que tornem observáveis realidades
generosamente coloca à disposição pode ser novas ou que foram ignoradas e invisibilizadas
pensado sob a figura de uma teoria da retaguar- pela tradição epistêmica eurocêntrica.
da: recursos que se inscrevem mais na linhagem Diante das geografias do conhecimento, Bo-
do trabalho artesanal e singular do que em um aventura nos convoca a cruzar a linha abissal:
modelo sistêmico e abrangente de interpretar uma fronteira que divide tão profundamente a
o mundo. Instrumentos que foram desenhados realidade social que tudo o que fica do outro
para desfazer uma aproximação a conhecimen- lado dela permanece invisível ou é considerado
tos e experiências que podem representar uma irrelevante. Certamente cruzá-la sem renunciar
novidade para alguns e remeter a um ecossiste- em bloco ao conhecimento produzido a partir
ma de saberes ancestrais para outros. dos centros de poder, mas fazendo uma forte
Se todo saber é um saber situado, o gesto opção por recuperar, reivindicar e legitimar
epistemológico que distingue a obra deste outros modos de saber que permitam gestar
imenso intelectual português está marcado outras ciências sociais: “A finalidade do deslo-
pela viagem. Diante das políticas dominantes camento —sustenta— é permitir uma visão te-
do conhecimento, Boaventura propõe confec- lescópica do centro e uma visão microscópica
cionar outros inventários do saber. Para isso, de tudo o que foi recusado pelo centro”.
Prefácio: Inventar outras ciências sociais 15

O convite cursado não consiste em sair para extrativismo, o epistemicídio e a eliminação


buscar um Sul essencializado. O Sul que emer- física com a qual, muitas vezes, a racionalida-
ge da obra do autor está plurilocalizado nas de moderna contribuiu. Daí que a recupera-
expressões e formas de produção do conhe- ção das experiências seja um dos elementos
cimento que cifram as Epistemologias do Sul mais valorizados.
(entre as quais se destacam a realidade portu- Os dois volumes que formam esta iniciativa
guesa, os contextos latinoamericanos, africa- da CLACSO serão, sem lugar a dúvidas, um ma-
nos e asiáticos). São os saberes nascidos e for- terial de consulta indispensável para todas as
jados ao calor das lutas contra o capitalismo, leitoras e leitores comprometidos com pensar
o colonialismo e o patriarcado o que integra o o mundo por meio de uma perspectiva origi-
índice da sua obra e se coloca em destaque por nal construída durante 40 anos de trabalho. E
meio de seus textos (muitos deles traduzidos ainda que os materiais que conformam estes
pela primeira vez ao espanhol). dois grandes volumes estejam potencialmente
Se a grande escola de Boaventura é o Sul, dirigidos a todos e todas, nos veios do texto
sua caixa curricular está organizada sobre um emerge e se percebe uma preferência pelas es-
princípio de convivialidade irredutível: a ecolo- querdas, as quais Boaventura caracteriza como
gia dos saberes. Olhares que não impõem, mas “os partidos e movimentos que lutam contra o
que solicitam outras perspectivas para questio- capitalismo, o colonialismo, o racismo, o sexis-
nar e questionar-se; perspectivas que procuram mo e a homofobia, e toda a cidadania que, sem
credibilidade e reconhecimento para os conhe- estar organizada, compartilha os objetivos e as
cimentos elaborados, mais além dos espaços aspirações daqueles que se organizam para lu-
e das lógicas acadêmicas, sem que isso leve a tar contra estes fenômenos”.
desacreditar o conhecimento científico. O ter- Esta antologia é uma merecida homenagem
mo também remete, de um modo certeiro, ao do Conselho Latinoamericano de Ciências So-
indispensável diálogo que deve ser produzido ciais a quem, com suas ideias e compromisso,
entre as ciências da vida e as ciências sociais. contribuiu de maneira decisiva para o desen-
Nenhuma mudança social pode ser promo- volvimento das ciências sociais, um intelectual
vida a partir das ciência sociais sem levar em público que peregrinou pelo Sul global, acom-
conta a devastação ecológica, a predação, o panhando-nos em numerosos espaços e mo-
16 Pablo Gentili

mentos, ajudando-nos a pensar os problemas e


os desafios do nosso tempo. E, ainda que seja
verdade que o maior temor de um explorador
consiste em se deter, esse sociólogo andarilho
que é Boaventura de Sousa Santos nos deixa
nesta obra a grata sensação de que aqui falta
o que amanhã, em seu percurso criativo pela
vida, pelo pensamento e pela luta em defesa
da dignidade humana, continuará produzindo
para nos surpreender e nos ajudar a sonhar.
Prólogo
Maria Paula Meneses, João Arriscado Nunes,
Carlos Lema Añón, Antoni Aguiló Bonet e Nilma Lino Gomes

C onstruindo as Epistemologias do Sul:


Para um pensamento alternativo de alter-
nativas é o título que dá corpo a um estimulan-
Centro de Estudos Sociais, CES (Universidade
de Coimbra), para nos fazer uma apresentação
exclusiva sobre o seu percurso e discutir, em
te exercício — apresentar os principais traba- conjunto, as várias possibilidades de organiza-
lhos de um dos mais importantes intelectuais ção da Antologia.
do nosso tempo, Boaventura de Sousa Santos. A presente Antologia apoia-se nas opções e
Esta Antologia, organizada em dois volumes, debates que, como grupo, fomos mantendo ao
é fruto de um trabalho coletivo, realizado por longo de vários meses. Foi um processo estimu-
Maria Paula Meneses, João Arriscado Nunes, lante que nos revelou, paralelamente, as interli-
Antoni Aguiló Bonet, Carlos Lema Añón e Nil- gações entre os textos e nos obrigou a repensar
ma Lino Gomes. Contámos ainda com o apoio opções temáticas e os limites de páginas. Quer
imprescindível de Margarida Gomes e Lassale- pela inovação teórica, quer pelos desafios me-
te Paiva, colaboradoras próximas de Boaven- todológicos, a obra de Boaventura de Sousa
tura de Sousa Santos, e que o têm apoiado na Santos não deixa ninguém indiferente. Nestes
organização e publicação de manuscritos. dois volumes procuramos identificar textos que
Selecionar os textos a integrar esta antologia permitam aos leitores conhecer em maior deta-
não foi tarefa fácil. Para dar conta da diversi- lhe o percurso académico e político deste autor,
dade temática que tem tratado e que procurou cujos textos refletem a sua opção inequívoca
encontrar espelhada na antologia, Boaventura por uma análise das sociedades contemporâ-
de Sousa Santos, fazendo jus ao seu espírito neas a partir da perspectiva dos oprimidos. A
colegial, convidou-nos para um encontro no sua obra, extensa e publicada em várias línguas
18 M. P. Meneses, J. Arriscado Nunes, C. Lema Añón, A. Aguiló Bonet e N. Lino Gomes

(português, espanhol, francês, inglês, alemão, que, de facto, não têm direitos, dos que vivem
romeno, e mandarim, entre outras), cobre mais do “outro lado da linha abissal”.
de quatro décadas de análises e reflexões. Do ponto de vista metodológico, esta Anto-
No seu conjunto, o trabalho de Boaventu- logia reflete também uma mudança paradig-
ra de Sousa Santos aqui recolhido debruça-se mática, de escrever sobre para escrever com,
sobre alguns dos principais tópicos e proble- dando voz a sujeitos e lutas a partir do reco-
mas do mundo contemporâneo: movimentos nhecimento da validade desses saberes nasci-
sociais, globalização contra-hegemónica, de- dos nas lutas. Esta Antologia revela igualmente
mocratização, pluralismo jurídico, reforma do que desde cedo Boaventura de Sousa Santos
Estado, epistemologia, direitos humanos, in- manifestou o desconforto com a equivalência
terculturalidade e a universidade. O seu grande epistemológica entre objetividade e neutralida-
desafio tem sido, nos últimos anos, centrado na de, o que o leva a optar for um conhecimento
reconstrução sociológica a partir das epistemo- ancorado nas práticas e nas lutas sociais que
logias do Sul, concebida como um pensamento em algum momento designou como conheci-
alternativo de alternativas, de que resultam no- mento prudente para uma vida decente.
vas propostas conceituais como, por exemplo, Ir para Sul, aprender com o Sul e desde o
as articulações entre a dominação capitalista, Sul é o lema que estrutura esta antologia, com-
colonial e patriarcal, o pensamento abissal, a binando trabalho teórico com análises empíri-
sociologia das ausências e das emergências, a cas específicas. O Sul com que pretende par-
ecologia de saberes, a tradução intercultural e tilhar a voz não é o Sul geográfico. É antes o
a artesania das práticas. As sementes desta ino- Sul epistémico.
vação assentam em trabalhos anteriores, onde Em termos de organização, e porque os tex-
conceitos como a sociedade civil íntima, socie- tos que integram cada parte foram alvo de um
dade civil estranha, ou o fascismo social permi- escrutínio ponderado de cada um de nós, op-
tem dar conta de exclusões radicais nas socie- támos por apresentar, no início de cada parte,
dades supostamente democráticas, sociedades uma curta introdução escrita individualmente.
onde a violência, a apropriação, a persistência Este roteiro apresenta o tema, justifica a opção
do trabalho escravo, do colonialismo sob no- dos textos e procura dialogar com o pensamen-
vas formas que continuam a marcar a vida dos to de Boaventura de Sousa Santos.
prólogo19

Os dois volumes que compõem a antologia tem a educação e a possibilidade de um outro


do pensamento de Boaventura de Sousa Santos projeto universitário, distinto da moderna uni-
estão organizados de forma autónoma (incluin- versidade de matriz eurocêntrica.
do o prólogo, o índice geral e, no final de cada Esta divisão temática ampla serviu de refe-
volume, a lista de trabalhos publicados pelo au- rência para a organização geral dos textos, ape-
tor em espanhol). sar de vários deles serem, muitas vezes, signifi-
A antologia está estruturada em torno a cativos para diferentes partes da antologia. Do
cinco eixos, que refletem os temas a que Bo- ponto de vista geopolítico, os textos seleciona-
aventura de Sousa Santos tem dedicado mais dos para integrar esta antologia traduzem uma
importância, nomeadamente: os desafios epis- experiência rica e diversificada, que percorre a
temológicos que o Sul global coloca, agrupa- realidade portuguesa, contextos latino-ameri-
dos na primeira parte, intitulada “Pensando canos, experiências africanas e asiáticas, num
desde o Sul e com o Sul”. A segunda parte, com permanente exercício de pensar de que lado se
o título de “Teoria social para outro mundo está quando se analisam questões sociais fra-
possível” incide sobre a teorização sociológi- turantes. Este conhecimento informado leva
ca de Boaventura de Sousa Santos. Estas duas Boaventura de Sousa Santos a acreditar que
partes compõem o primeiro volume da Anto- um conhecimento do Sul e para o Sul, se de-
logia. O segundo volume, composto de três senvolve potenciando alternativas emergentes,
partes, integra os textos do autor que apontam já que as sociedades não podem prescindir da
para uma proposta alternativa, plural, de um capacidade de pensar em alternativas. É este
outro mundo possível a partir do Sul global. desafio que está presente no subtítulo desta
Os principais temas são “Direito para outro antologia, a construção de um conhecimento
mundo possível”, correspondendo aos textos que sustente “um pensamento alternativo de
mais representativos da sociologia do direito. alternativas”, um pensamento necessariamen-
Os escritos de teoria política estão agregados te pós-abissal.
na parte intitulada “Democracia para outro Pretendemos com este trabalho oferecer
mundo possível” e finalmente, a quinta e últi- ao/à leitor/a uma panorâmica geral da obra de
ma parte, sob o título “Educação para outro Boaventura de Sousa Santos. É com o desafio
mundo possível”, agrupa os textos que deba- de pensar o mundo de forma situada, reco-
20 M. P. Meneses, J. Arriscado Nunes, C. Lema Añón, A. Aguiló Bonet e N. Lino Gomes

nhecendo a diversidade potencialmente infini-


ta de saberes e experiências, que desejamos
que esta antologia seja lida e, acima de tudo,
vivida. Cabe agora ao leitor/a avaliar se tive-
mos êxito neste nosso propósito, o propósito
de dar a conhecer a riqueza e a amplitude do
horizonte analítico de um cientista social que
consideramos ser um dos mais importantes
do nosso tempo.
Parte III

Direito para outro mundo possível


Apresentação
Sociologia crítica para um outro
direito possível
Carlos Lema Añón

A obra sociojurídica de Boaventura de Sou-


sa Santos é provavelmente a parte de sua
produção intelectual que tem recebido o mais
não são independentes do desenvolvimento
teórico e das questões abordadas a partir dos
outros âmbitos temáticos compilados nesta
amplo reconhecimento no âmbito acadêmico. antologia, o que reforça o poder explicativo de
E isso apesar de se situar numa posição de for- seu trabalho intelectual. Além disso, porque a
te contestação às limitações epistemológicas e dimensão epistêmica se articula com a dimen-
políticas das correntes hegemônicas. Mas é que são prática de um conhecimento solidário e
não seria fácil ignorar, por mais incômodas que consciente das lutas contra a injustiça, a opres-
possam ser, suas valiosas contribuições — em- são e a exclusão.
píricas e teóricas — no âmbito da pesquisa so- Precisamente por isso, uma antologia da
bre a complexidade dos fenômenos jurídicos, obra sociojurídica de Boaventura de Sousa San-
das relações entre o direito oficial e os direitos tos apresenta alguns desafios interessantes se
subalternos, da sociologia dos tribunais, do se quer captar todas estas complexidades. Por
direito e dos direitos humanos interculturais, um lado, deverá transmitir os aspectos princi-
tudo isso no marco de uma teoria sociológica pais de seu trabalho neste campo. Por outro,
original, pluralista e complexa do direito. Mas terá que articulá-lo de tal maneira que expresse
o interesse que podemos apreciar em sua obra a presença de um projeto e uma sistematiza-
sociojurídica vai muito além de tal contribui- ção, mas sem por isso deixar de refletir o crité-
ção e reconhecimento no âmbito da disciplina rio cronológico, ou seja, a maneira como este
acadêmica. Em primeiro lugar, porque suas projeto se desenvolveu no tempo. Finalmente,
contribuições a partir da Sociologia jurídica, terá que expressar as continuidades deste tra-
24 Carlos Lema Añón

balho, mas também as voltas, as mudanças e Uma sociologia jurídica crítica


inclusive as rupturas. De toda forma, o fato de Não é por acaso que uma parte destacada
a antologia sociojurídica ser um capítulo de dos textos compilados nessa seção foram pu-
um projeto que procura abranger a totalidade blicados num livro intitulado Sociologia jurí-
da obra também chega a ser vantajoso, já que dica crítica (2009) que, por sua vez, funciona-
esta seção poderá em muitas ocasiões ser lida va como a síntese sistemática do mais acabado
com proveito, uma vez posta em relação com da produção sociojurídica do autor até esse
as demais. momento. Mas também os textos posteriores
Fazer aqui menção a estes desafios não tem que incluímos, ainda que contenham novida-
finalidade outra que destacar o contexto em des e inclusive certo giro teórico, podem seguir
que pode ser lida esta antologia e seus objeti- sendo reconhecíveis na fórmula da sociologia
vos, assim como a óbvia constatação de que jurídica crítica. Se a ideia for válida para ca-
seria impossível refletir aqui todo o relevante racterizar a obra deste autor, é porque expressa
desta obra. Procura-se, por um lado, fazer um duas premissas complementares que permitem
convite à leitura de um autor iniludível, que per- entender sua proposta e o desenvolvimento de
mite se aproximar à complexidade do jurídico seu programa de pesquisa em sociologia jurí-
a partir de uma perspectiva não reducionista, dica. Em primeiro lugar, a sociologia jurídica
assim como oferecer uma orientação para con- — e isto é válido para o conjunto das ciências
tinuar com outras obras. Além desse convite, a sociais — se pretende estar à altura dos proble-
própria antologia poderia ser um instrumento mas que deve abordar e que chegam peremptó-
útil na medida que sistematiza as linhas mais rios, não pode ser senão crítica. Em segundo
relevantes de sua produção, procurando abran- lugar, uma teoria crítica do direito, uma teoria
ger tanto o temático quanto o cronológico. Por que se pergunte se — e em que condições —
último, aspira a ser inspiração — como sempre o direito pode ser emancipatório e não mera-
foi a obra deste autor — para novos projetos, mente, e em todos os casos, um instrumento do
tanto no que se refere à pesquisa acadêmica so- poder (dos poderes) e da opressão (das opres-
bre o direito, quanto à prática em organizações sões), não pode ser senão sociológica. Ou pelo
e movimentos sociais. menos estar aberta a incorporar uma perspec-
Parte III: Apresentação 25

tiva sociologista afastada das concepções for- não renunciar a enfrentar perguntas fortes, as-
malistas mais ou menos renovadas. pectos subteorizados, para não cair na imagem
Vale a pena se deter nestas duas premissas, de quem procurava o objeto perdido ao lado
já que têm ao mesmo tempo relevância meto- da luz, não porque o tivesse perdido ali, senão
dológica e política. No tocante ao primeiro, a porque ali havia luz. Exige também recuperar
perspectiva crítica de Boaventura inclui tam- outras formas de conhecimento, outras for-
bém uma crítica à própria teoria crítica. Ou mas de sociabilidade que foram invisibilizadas.
seja, à sua própria produção e enfoque. Isto se Uma ciência social que ao mesmo tempo sobre-
manifesta tanto em sua constante preocupação -teoriza e subteoriza constitui um desperdício
epistemológica e a sua capacidade para colo- da experiência. A teoria crítica que propõe
car a própria teoria “diante do espelho”, quan- Boaventura renuncia a reduzir a “realidade”
to na volta e as mudanças de tom que se terão meramente a aquilo que existe. Ao contrário,
produzido na evolução de seu pensamento e de para a teoria crítica, a realidade é um campo de
sua pesquisa no âmbito sociológico. Mas fun- possibilidades e sua tarefa é investigar o grau
damentalmente se manifesta com a pergunta de variação que existe além do empiricamente
explícita pelas condições de possibilidade de dado. Por um lado, efetivamente incorporando
uma teoria crítica consciente de suas dificulda- aquelas experiências e criatividades que foram
des e pontos fracos: por que é tão complicado negadas e ocultadas, reduzindo assim a enor-
fazer teoria crítica em um mundo com tanto me riqueza do mundo social (sociologia das au-
para criticar? Uma pergunta que supõe não sências), e por outro, incorporando o que ainda
só questões teóricas, mas também inquirir as não está, diante do fato que o germe do novo
dificuldades para articular uma pesquisa que pode ser amplificado e estudado (sociologia
esteja vinculada com as resistências anticapi- das emergências). De modo crescente, como
talistas, antipatriarcais e anticoloniais, e com propõe o projeto das epistemologias do Sul,
as lutas por um mundo melhor. Superar estas recuperando o que a fratura abissal do colo-
dificuldades exige superar o reducionismo que nialismo negou.
o paradigma hegemônico de conhecimento im- A segunda premissa é que uma teoria crítica
punha e ao qual também sucumbiu muita teo- do direito tem de ser sociológica, ou pelo me-
ria que quer ser crítica. E para fazê-lo é preciso nos sociologista, no sentido de não se limitar a
26 Carlos Lema Añón

uma compreensão do direito nem meramente uma visão instrumentalista do direito que entra
dogmática, nem formalista, nem reduzida ao no jogo jurídico como lhe seja conveniente, e
direito do Estado. Deve estar, pelo contrário, que por isso não estaria comprometida, por as-
aberta a estudar as diferentes legalidades, as sim dizer, com a melhora desta prática social.
alegalidades e ilegalidades entrecruzadas, pre- A crítica está fundamentalmente desencami-
sentes nas experiências sociais. A concepção nhada, mas também chega a ser esclarecedo-
moderna do direito, positivista jurídica em ter- ra no que acerta: o olhar do sociólogo não se
mos gerais, identifica de forma reducionista o subordina ao olhar do poder nem à sua visão
direito com o direito do Estado e assume seu es- do direito. Mas isto é um ganho para a análise,
tudo em termos formalistas que legitimam uma e ao mesmo tempo supõe que o compromis-
suposta despolitização do direito. A aceitação so não é com o direito e a sua melhora, senão
das pluralidades e complexidades jurídicas que contra a injustiça, a opressão e a exclusão no
propõe Boaventura se faz a partir da identifi- marco das lutas mais amplas, cuja legalidade
cação de três elementos estruturais do direito, ou ilegalidade será uma questão variável. As
da retórica, da burocracia e da violência, o que ferramentas jurídicas hegemônicas poderão
supõe um marco para o estudo da presença va- ser eventualmente um instrumento para estas
riável destes elementos nos distintos direitos lutas, mas sem perder de vista o horizonte de
dados, ao mesmo tempo que permite a conside- outro direito que terá que se desenvolver em
ração dos jogos de inter-legalidades presentes uma legalidade subalterna ou um direito pré-
no pluralismo jurídico. Só assim parece possí- -configurativo de outro mundo possível.
vel escapar à despolitização do jurídico para Por conseguinte, ambos pressupostos — ci-
afrontar seriamente a questão sobre em que ência social crítica e pesquisa sobre o direito
medida o direito, e em que condições, pode ser inclinado em direção ao sociológico — em boa
emancipatório, ou pelo menos um instrumento medida desenham uma proposta “anti-positi-
utilizável pelos movimentos transformadores e vista”, tanto no sentido no qual o positivismo
pelos excluídos (não só pelo direito, senão in- se manifestou nas ciências sociais, quanto no
clusive do direito). Em ocasiões, este enfoque que se refere — com suas próprias particula-
tem sido criticado e visto com desconfiança pe- ridades — ao estudo do direito. A importância
los teóricos jurídicos mais tradicionais, como daquilo que foi negado e invisibilizado é exem-
Parte III: Apresentação 27

plo de que a ciência social hegemônica é, em Além de que não deve se exagerar a con-
sua colonialidade, incapaz de ser totalmente traposição entre a sociologia do direito dos
fiel a seu próprio programa “positivista”, já que juristas frente à sociologia do direito dos so-
nem sequer é capaz de abranger o estudo de ciólogos, a formação inicial de Boaventura de
toda a realidade social. No âmbito do direito, Sousa Santos é em Direito, uma formação clás-
além disso, não só é uma proposta “anti-posi- sica que incluiu a pesquisa jurídica dogmática.
tivista” por esse motivo. Também o é por sua A mudança em direção à sociologia do direito
recusa aos dogmas do positivismo jurídico, se produz na etapa de formação na Alemanha
essencialmente ao seu formalismo e sua iden- e, especialmente, nos Estados Unidos, ao fim
tificação do direito com o direito estatal. Este dos anos sessenta e princípios dos setenta.
anti-positivismo, tanto no âmbito da ciência so- Em um ambiente política e intelectualmente
cial, quanto em particular no âmbito jurídico, é muito ativo (lutas pelos direitos civis, oposi-
sobretudo um anti-reducionismo radical, cuja ção à guerra imperialista…) tem acesso a um
audácia epistemológica não é só produtiva no momento de contestação radical ao paradig-
âmbito do conhecimento, mas também no da ma sociológico até então dominante, frente
potencialidade política de se articular com os ao qual avançavam a aceitação do pluralismo
movimentos sociais emancipatórios. jurídico, a pesquisa qualitativa, a incorporação
de um marxismo renovado e o compromisso
Do direito pós-moderno ao político. De toda forma, tratava-se de uma con-
direito pós-abissal testação que no essencial não rompia com a
Até aqui temos enfatizado, utilizando o tema visão eurocêntrica, e que inclusive acabava re-
da sociologia jurídica crítica, a presença de sultando inadequada, já não só para o estudo
determinadas linhas de continuidade na obra so- da diversidade das sociedades periféricas, mas
ciojurídica de Boaventura de Sousa Santos. Uma também para o mesmo caso semiperiférico
obra que se desenvolve e continua se desenvol- português. A superação desse eurocentrismo
vendo num período amplo. Agora é convenien- foi um dos traços de identidade do Centro de
te, junto com a referência dos textos que foram Estudos Sociais (CES) fundado já uma vez de
selecionados, ressaltar também a presença de volta à Coimbra: já nos seus inícios, a luta de-
alguns giros, mudanças de tom e até rupturas. mocrática contra a ditadura tinha se vinculado
28 Carlos Lema Añón

com as lutas anticoloniais e, do seio do CES, caso português, no contexto da ruptura com
souberam manter o fluxo com a América e a a ditadura, apresentado nesta antologia com o
África, com um impulso anticolonial no qual texto “Sociologia crítica da justiça”. É seminal,
a crítica das relações imperiais e do desperdí- junto com o anterior, porque ambas pesquisas
cio da experiência deram forma a uma nova (direito não oficial e pluralismo jurídico no
ciência social (e neste caso a uma sociologia Brasil, direito oficial em Portugal) vão servir
jurídica) diferente da hegemônica. como base para pesquisas posteriores nas que
Neste contexto podem ser situadas as pes- se aplica este modelo de consideração destes
quisas e os textos que estabelecem os alicerces dois componentes e suas relações. Começan-
do que se constituirá um programa de pesqui- do por Cabo Verde, já em 1984, onde se realiza
sa. Pode ser considerada como pesquisa fun- num rico contexto de pluralismo jurídico revo-
dacional aquela que parte de um trabalho de lucionário, no qual o poder revolucionário pro-
observação participante em uma favela brasi- move a justiça popular. Mais tarde se desenvol-
leira, apresentada aqui com o texto “O direito ve nos estudos sobre a complexidade jurídica
dos oprimidos: a construção e reprodução da da Colômbia (2001), em Moçambique, com a
legalidade em Pasárgada”. De forma significa- introdução do conceito de Estado heterogê-
tiva, é uma pesquisa sobre o direito não oficial, neo (2003) e em Angola (2012), entre outros,
portanto, uma impugnação de fato à pretensão pesquisas que têm uma presença significativa
do monopólio jurídico estatal e uma afirmação nesta antologia.
do pluralismo jurídico como crítica antiautori- Sem dúvida, no desenvolvimento deste
tária. Trata-se de um texto e de uma pesquisa programa de pesquisa surgem outras muitas
seminal na medida que já existe uma afirmação questões relevantes que são tematizadas e es-
das bases de um conceito pluralista e comple- tudadas nesse marco, e que ajudam a comple-
xo do direito, assim como da consideração dos tar e fazer mais complexo o estudo do direito
problemas da relação entre este direito não e de sua relação com a sociedade e o poder.
oficial e o direito do Estado. Pode-se desta- Somente para mencionar alguns destes assun-
car também como seminal, por outras razões, tos, é possível fazer referência à relação entre
a pesquisa sobre o direito oficial que se inicia o direito e o poder, o direito e a globalização, e
com o estudo sociojurídico dos tribunais no a referente aos direitos humanos. As relações
Parte III: Apresentação 29

entre o direito e o poder são analisadas no tex- uma frágil hegemonia”. A proposta relativa
to “O Estado e os modos de produção do po- aos direitos humanos começa por criticar a
der social” que nesta antologia se encontra na concepção hegemônica e falsamente universal
seção relativa à Sociologia política. Diante da dos mesmos, para contrapor uma proposta de
despolitização do direito que opera na concep- reconceitualização contra-hegemônica e inter-
ção moderna do direito, por meio principal- cultural dos direitos humanos.
mente da distinção entre Estado e Sociedade Todo este desenvolvimento no âmbito da
civil, se propõe um esquema da estrutura de sociologia jurídica que acabamos de evocar
poder das sociedades capitalistas, no qual di- foi denominado, com um rótulo assumido pelo
ferentes espaços estruturais geram diferentes próprio autor, como o desenvolvimento de uma
formas de poder e suas correlativas formas de concepção pós-moderna do direito, claro, na-
direito. A questão da globalização e o direito quilo que constituía uma crítica da concepção
é incorporada aqui com o texto “O pluralismo moderna do direito. Na realidade, não se trata-
jurídico e as escalas do direito: o local, o na- va de um pós-modernismo como se usa atual-
cional e o global”, mas as formas adotadas pela mente ou celebrador, senão no que se conceitu-
globalização — tanto a hegemônica com seus alizava como um pós-modernismo de oposição
localismos globalizados e globalismos locali- que, levando a sério as promessas emancipa-
zados, quanto a contra-hegemônica — apare- tórias da modernidade, constatava a impossi-
cem em outras seções desta antologia. Além bilidade de seu cumprimento no paradigma
do direito da globalização hegemônica neoli- existente, o da modernidade. Deve-se levar em
beral, analisa-se o surgimento de um direito conta que esta concepção era o desenvolvimen-
proveniente base, cosmopolita subalterno e to no âmbito jurídico de um diagnóstico mais
insurgente das lutas globais contra-hegemô- geral relativo ao esgotamento do paradigma da
nicas. Este direito proveniente base aparece modernidade ocidental. Por isso, o abandono
de novo com a conceitualização dos direitos da ideia do pós-modernismo de oposição não
humanos, tanto no texto “Em direção a uma vem a partir de uma consideração específica no
concepção intercultural dos direitos huma- âmbito da sociologia jurídica, mas sim a partir
nos” — texto que aparece no final da antolo- de uma reflexão e desenvolvimentos mais am-
gia — quanto no texto “Os direitos humanos, plos que afetam ao conjunto de sua produção
30 Carlos Lema Añón

e de seu programa de pesquisa, no que poderia pre terminavam muito bem incorporados. O
ser conceitualizado como a passagem do pós- desenvolvimento das epistemologias do Sul
-moderno ao pós-colonial. Esta mudança par- constitui o marco que abre esta ruptura com a
cial terá também suas consequências, como pesquisa inclinada em direção á linha abissal,
veremos, no âmbito da sociologia jurídica. que dividiu radicalmente as relações sociais
A mudança do pós-moderno para o pós- metropolitanas das coloniais, gerando espaços
-colonial e as epistemologias do Sul se bem nos quais a negação da humanidade e dos direi-
supõe uma ruptura, não é, contudo, radical a tos constitui exclusões radicais presididas por
respeito da produção anterior. De alguma ma- uma violência não sujeita a controle, subsistiu
neira pode-se interpretar segundo cada caso, ao final do colonialismo histórico. A ruptura
como uma mudança de tom ou como a radica- tem a ver com assumir que muitas das análi-
lização do desenvolvimento de alguns aspectos ses do direito, também os sociojurídicos, têm
já bem presentes, ainda que em alguns casos sido incompletas por se centrarem nas formas
não fossem desenvolvidos até as últimas con- metropolitanas de sociabilidade. Inclusive em
sequências. Por um lado, existia todo o traba- momentos nos quais a linha abissal de exclu-
lho realizado em contextos pós-coloniais, já são radical já estava presente também em con-
mencionados, no Brasil, em Cabo Verde, na textos geograficamente metropolitanos.
Colômbia, etc. Por outro lado, a teorização e O desenvolvimento das epistemologias do
as práticas da globalização contra-hegemônica Sul — que constitui o primeiro dos eixos te-
e a atividade do Foro Social Mundial incorpo- máticos considerados nesta antologia e ao
ravam muitos elementos que depois seriam qual é possível se remitir aqui — tem um de-
desenvolvidos por esta transformação. Deve- senvolvimento recente no âmbito da sociolo-
-se advertir também que esta mudança em di- gia jurídica do autor. Podem-se destacar três
reção ao pós-colonial não supõe assumir os textos recentes, incluídos nesta antologia, nos
estudos pós-coloniais tal e como vinham se quais se desenvolve a questão do direito e das
desenvolvendo no âmbito anglo-saxão, já que epistemologias do Sul. Por um lado, “Quando
pertenciam ao âmbito dos estudos culturais, os excluídos têm Direito: Justiça Indígena, Plu-
com uma dimensão na qual os aspectos so- rinacionalidae e Interculturalidade” constitui
ciológicos, econômicos e políticos nem sem- uma análise dos processos políticos e de trans-
Parte III: Apresentação 31

formação constitucional da Bolívia e do Equa- bito jurídico — que assinala também formas de
dor naquilo que supõe impugnação do desenho sociabilidade alternativa.
jurídico-político do Estado moderno colonial O caráter inspirador acadêmico e político
e, com isso, colocar em questão a linha abissal foi uma característica constante do trabalho de
de exclusão radical. O segundo texto é “Para Boaventura de Sousa Santos. Provavelmente
uma teoria sociojurídica da indignação: é pos- se esta analogia deixa algo claro é que este ca-
sível ocupar o Direito?”, onde se reconstrói a ráter proponente e instigador continua tão vivo
visão do direito subjacente aos movimentos da e florescente quanto nunca.
indignação ao longo do mundo, para contrapor
um direito configurativo que reflete determi-
nadas relações de poder e que de maneira cres-
cente estende a dualidade abissal colonial da
exclusão, frente a um direito reconfigurativo
— que procuraria mudar as relações de poder
e seria análogo ao uso contra-hegemônico do
direito — e principalmente frente a um direito
prefigurativo, antecipado nas práticas destes
movimentos, e que expressa uma concepção
alternativa do jurídico e do social. O terceiro
texto, “A resiliência das exclusões abissais em
nossas sociedades: em direção a um direito
pós-abissal”, representa provavelmente a for-
mulação mais explícita do direito e das episte-
mologias do Sul. Ali se parte do lado colonial
da linha abissal, onde se desenvolveram lutas
e resistências para confrontar essa exclusão
radical. Um pensamento pós-abissal deveria se
situar nesse lado da linha, que é onde a maior
inovação tem-se produzido — também no âm-
O direito dos oprimidos:
A construção e reprodução do
direito em Pasárgada*

Introdução objectivo de garantir o ordenamento social mí-


nimo das relações comunitárias. Uma dessas
P asárgada é o nome fictício de uma favela 1

do Rio de Janeiro. Devido à inacessibili- estratégias envolve a criação duma ordem ju-
dade estrutural do sistema jurídico estatal e, rídica interna, paralela (e, por vezes, oposta) à
sobretudo, ao carácter ilegal das favelas como ordem jurídica oficial do Estado. Este trabalho
bairros urbanos, as classes populares que aí vi- descreve o direito de Pasárgada visto de den-
vem concebem estratégias adaptativas com o tro (através da análise sociológica da retórica
jurídica utilizada na prevenção e na resolução
de litígios) e nas suas relações desiguais com
1 Segundo o Plano Director Decenal da Cidade do Rio o sistema jurídico oficial brasileiro (a partir da
de Janeiro, de 1992, “favela é a área predominantemente perspectiva do pluralismo jurídico).
habitacional, caracterizada por ocupação de terra por O estudo do direito de Pasárgada nasceu do
população de baixa renda, precariedade da infra-estru- meu interesse em revelar o funcionamento do
tura urbana e de serviços públicos, vias estreitas e de ali-
nhamento irregular, lotes de forma e tamanho irregular e sistema jurídico como um todo numa socieda-
construções não licenciadas, em desconformidade com de de classes, designadamente o Brasil. À época
os padrões legais.” A definição do IBGE, é bastante simi- do trabalho de campo (1970), havia no Rio de
lar, sendo as favelas classificadas como um sector censi- Janeiro mais de duzentas favelas2 que alberga-
tário especial, definido como aglomerado subnormal.

* Extraído de Santos, B. de Sousa 2014 “O direito dos


oprimidos: A construção e reprodução do direito em
Pasárgada” in O direito dos oprimidos (Coimbra: Al- 2 O SABREN (Sistema de Assentamentos de Baixa
medina) pp. 102-406. Renda) tem cerca de 750 favelas cadastradas (2005).
34 Boaventura de Sousa Santos

vam aproximadamente um milhão de pessoas3. trabalho de campo, se tornou evidente que os


Nessa altura, como agora, nem todos os pobres modos como as pessoas e os grupos sociais re-
da cidade viviam em favelas e nem todos os ha- solvem os litígios que entre eles ocorrem têm
bitantes das favelas eram pobres. É, contudo, muito a ver com os modos disponíveis para
inegável que a grande maioria dos habitantes os evitar e viceversa. A ideia de conceber os
das favelas pertencia, e pertence, aos estratos mecanismos de prevenção e de resolução em
sociais mais baixos. A favela que escolhi para Pasárgada como um sistema jurídico não ofi-
a minha investigação é uma das maiores e mais cial, relativamente autónomo, não constava
antigas do Rio de Janeiro. Chameilhe Pasárga- das hipóteses de trabalho com que estruturei
da, nome que fui buscar a um poema do poeta inicialmente a investigação. Foise, no entanto,
brasileiro Manuel Bandeira. A investigação de sedimentando à medida que aprofundei a mi-
campo foi conduzida segundo o método da ob- nha observação do “trabalho jurídico” levado a
servação participante, ainda que, por vezes, de cabo pela Associação de Moradores de Pasár-
um modo não convencional. Realizei entrevis- gada. Tornou-se claro para mim que havia um
tas em várias favelas durante o mês de junho de direito de Pasárgada, o qual funcionava em arti-
1970. Vivi em Pasárgada desde julho a outubro, culação, ora conflitual, ora complementar, com
participando o mais que podia na vida da comu- o direito oficial do Estado brasileiro4. Estava,
nidade. Voltei a Pasárgada no ano seguinte para
um período curto de entrevistas.
Os estudos sobre a resolução de litígios no 4 O Estado brasileiro revela actualmente uma aguda
âmbito da antropologia jurídica forneceram a percepção do papel dos “sistemas alternativos de reso-
principal grelha analítica para a investigação. lução de conflitos” no bom funcionamento do sistema
de justiça. Prova disso são os estudos realizados pelo
Contudo, ao longo da investigação, comecei a
Ministério da Justiça no âmbito da secretaria da refor-
prestar tanta atenção à prevenção como à re- ma do Judiciário: “Acesso à Justiça por Sistemas Alter-
solução de litígios, porque, logo no início do nativos de Resolução de Conflitos” (2005) em parceria
com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvi-
mento — PNUD, que constitui o primeiro mapeamento
3 De acordo com o censo demográfico de 2000, a ci- nacional das iniciativas voltadas à resolução alternativa
dade do Rio de Janeiro possuía um total de 5.857.904, de conflitos sem fins comerciais em actividade no país e
18,65% dos quais (1.092.476) residiam em favelas. “Justiça Comunitária, uma experiência” (2006). Ambos
O direito dos oprimidos: A construção e reprodução do direito em Pasárgada 35

pois, perante um caso de pluralismo jurídico5. operam. O estudo do direito de Pasárgada foi,
Esta perspectiva salvoume da tentação de es- assim, concebido como uma tentativa para de-
tudar Pasárgada como uma comunidade isola- senvolver uma sociologia empírica da retórica
da, erro grave e muito frequente dos estudos jurídica. Utilizando ideias e conceitos desenvol-
de antropologia jurídica até então realizados. vidos pela filosofia europeia do direito, identi-
Socorrime da sociologia e da teoria das classes fiquei algumas estruturas básicas do raciocínio
para analisar esta instância de pluralismo jurí- e da argumentação jurídicos e correlacioneios
dico, centrandome nas relações entre um sis- com outras características da estrutura social
tema jurídico subalterno, criado pelas classes e jurídica. Começo por desenvolver um quadro
populares para resistirem ou se adaptarem à conceptual e teórico adequado para deslindar
dominação de classe (o direito de Pasárgada), a estrutura do raciocínio e da argumentação
e um sistema jurídico dominante criado pelas jurídicos em Pasárgada6. Em seguida, analiso
classes dominantes para assegurar a reprodu- em profundidade a retórica jurídica subjacente
ção dos seus interesses. à prevenção e à resolução de litígios pela Asso-
Exceptuando os trabalhos de Gluckman ciação de Moradores.
(1955), Fallers (1969) e Bohannan (1957), a
antropologia e sociologia jurídicas tinham, até Justiciabilidade, processamento
então, prestado pouca atenção às estruturas do de litígios e retórica
raciocínio e da argumentação nos processos De acordo com a concepção de direito avan-
sóciojurídicos. A análise da retórica jurídica çada em outro lugar, os procedimentos regu-
fora deixada aos filósofos do direito que, ca- larizados e os padrões normativos, têm de ser
racteristicamente, haviam ignorado o contex- “considerados justiciáveis por um determinado
to sociológico em que os discursos jurídicos grupo ou comunidade”. A justiciabilidade é de-
finida por H. Kantorowicz, como a caracterís-
se encontram disponíveis on-line no site do Ministério
tica daquelas normas “que são consideradas
da Justiça do Brasil.
5 Sobre o pluralismo jurídico no Brasil, ver Santos
1974, 1979, 1995 e 2002; na Colômbia; Santos e García- 6 Para uma análise exaustiva desta questão ver San-
-Villegas, 2001; em Moçambique. tos, 1995, capítulo 3, parte I.
36 Boaventura de Sousa Santos

adequadas para serem aplicadas por um órgão que faço referência são aplicados por uma ter-
judicial num processo determinado” (1958: 79). ceira parte — na acepção corrente da literatura
Por “órgão judicial” Kantorowicz entende “uma jurídicoantropológica — num contexto de con-
determinada autoridade ligada a um determi- flito entre indivíduos ou grupos sociais.
nado tipo de casuística, isto é, a aplicação dos Segundo Gulliver, “um litígio surge de um de-
princípios a casos particulares de conflito en- sacordo entre pessoas (indivíduos ou subgru-
tre partes” (1958: 69). Como se vê, Kantorowicz pos), no qual os alegados direitos de uma das
utiliza o conceito de órgão judicial num senti- partes estão presumidamente a ser violados
do muito lato ou, segundo as suas próprias ou negados pela outra parte. Esta pode negar
palavras, “num sentido muito modesto e não a violação, ou justificá-la por referência a um
técnico” (1958: 80) dado que inclui juízes pro- direito alternativo ou precedente, ou pode ain-
fissionalizados, jurados, chefes tribais, chefes da admitir a acusação. Mas não vai ao encon-
de clã, régulos, feiticeiros, sacerdotes, sábios, tro da reclamação. A vítima pode, por qualquer
curandeiros, conselhos de anciãos, conselhos razão, concordar, e, nesse caso, nenhum litígio
de família, de linhagem ou de clã, sociedades ocorre. Se não concordar, então procurará rec-
militares, parlamentos, areópagos, juízes des- tificar a situação através de procedimentos re-
portivos, árbitros de conflitos, tribunais eclesi- gularizados e numa arena pública” (1969: 14).
ásticos, censores, tribunais do amor, tribunais O direito pode ser mobilizado, no contexto
de honra, Bierrichter e até chefes de milícias, litigioso, de três formas básicas: através da
de gangs ou de mafias. É precisamente esta am- criação de litígios, da prevenção de litígios
plitude e flexibilidade que torna o conceito útil e da resolução de litígios. Estas formas es-
para os meus objectivos analíticos. Justiciabi- tão estruturalmente relacionadas entre si, e,
lidade7 significa que os padrões normativos a consequentemente, a plena compreensão de
qualquer uma requer a análise das outras. Por
exemplo, se observarmos a díade, criação de
7 Abel (1973: 247) emprega o termo “interventor” litígios/resolução de litígios, usando, como
porque, sendo embora “um neologismo feio, está isento unidade de análise, uma situação conflitual
das conotações que o ligam a alternativas como juiz,
concreta (um “caso”), somos levados a con-
mediador ou resolutor de litígios”. “Terceira parte” é,
no mínimo, igualmente feio. ceber a criação do litígio como sendo, lógica
O direito dos oprimidos: A construção e reprodução do direito em Pasárgada 37

e cronologicamente, anterior à sua resolução. a resolução de litígios, numa determinada


Mas se, em vez de analisarmos casos isolados sociedade, ser dominada pela adjudicação
de litígio, examinarmos o fluxo constante de (“perder ou ganhar”) e, noutra, ser dominada
comportamentos litigiosos numa dada socie- pela mediação (“ceder um pouco, obter um
dade, desaparece a relação lógica e cronológi- pouco”), não ficará totalmente explicado en-
ca que acabámos de mencionar. As premissas quanto não analisarmos as diferentes estrutu-
básicas na base das quais os litígios são cria-
dos, enquadrados ou prevenidos, estão es-
não contraditórias, poder vir a ser, com o tempo, uma
truturalmente relacionadas com a resolução fonte de conflito no âmbito de relações sociais espe-
de litígios, quer porque antecipam e aceitam cíficas determinando, simultaneamente, a criação e a
as estruturas, os processos e as normas de resolução de litígios. O nosso ponto de concordância
resolução estabelecidos, ou quer porque os é uma preocupação comum com os processos sociais,
recusam. A criação, a resolução e a preven- com a dimensão dinâmica da estrutura social ou, como
Gluckman escreve, “[com] um processo, contínuo de
ção de litígios assemelhamse aos seixos de relações sociais entre determinadas pessoas e grupos
um ribeiro rápido que rolam das montanhas num sistema social ou numa cultura” (1955: XV).
no princípio do Verão: mantêm-se unidos sob Por outro lado, o meu interesse pelo papel do direito na
a corrente, mas alteram constantemente as criação de litígios parece colidir com a opinião, comum
suas posições relativas8. Assim, o facto de entre sociólogos do conflito social, de que o direito é
criado e alterado pelos conflitos. Reportando-se, simul-
taneamente, a Simmel (1955) e a Weber (1954), Coser
conclui: “Não é preciso documentar em pormenor o
8 Uma afirmação semelhante é feita por Epstein facto de a promulgação de novas leis ocorrer geral-
(1967: 205), Van Velsen (1967: 129) e Gluckman (1955: mente em áreas onde o conflito indica a necessidade
XI), na sua discussão do método de estudo de casos de criação de novas normas (…) Pode considerarse
ou, como Van Velsen prefere chamarlhe, da análise si- que os conflitos são “produtivos” de duas maneiras re-
tuacional. Porém, enquanto estes autores pretendem lacionadas: 1) levam à alteração e à criação de leis; 2)
acentuar a existência de normas contraditórias que, ao a aplicação de novas normas conduz ao incremento de
imporem uma escolha normativa às partes, se trans- novas estruturas institucionais destinadas a garantir o
formam numa fonte de litígio cujo significado social cumprimento dessas novas normas e leis” (1956: 126).
só pode ser captado por meio duma cuidadosa análise No fundo, as duas perspectivas são complementares: o
diacrónica, eu estou, sobretudo, interessado no facto direito é, ao mesmo tempo, um produto e um produtor
de uma determinada norma, ou conjunto de normas de conflito social.
38 Boaventura de Sousa Santos

ras e processos de criação e de prevenção de pessoas fazem quando decidem entrar numa
litígios nessas sociedades9. relação contratual potencialmente conflitual e
A prevenção de litígios ocupa uma posição cooperam no sentido de tornar as clausulas do
estrutural peculiar, a meio caminho entre a contrato o mais explícitas e inequívocas possí-
ausência de litígio e a sua criação. Esta posi- vel. A importância deste facto tornarseá clara
ção é duplamente ambígua, não só porque a quando analisarmos, na parte empírica deste
prevenção do litígio parece implicar, por defi- trabalho, os mecanismos de retroacção entre
nição, a ausência de litígio, mas também por- as funções de resolução de litígios e as de pre-
que, sempre que nos afastamos da situação de venção de litígios, exercidas pela terceira par-
prevenção, nos encontramos já num campo te. As normas que regem o comportamento de
da criação de litígio. No entanto, a verdade é cooperação entre as partes numa determinada
que é tão absurdo falarse de prevenção de li- relação (o contexto da prevenção de litígios)
tígios depois de o litígio ter sido criado como relacionamse, de formas significativas, ainda
o é antes de estarem presentes as condições que nem sempre óbvias, com as normas que re-
mínimas para a sua criação. Um litígio pode ser gem a resolução dos litígios que possam surgir
evitado quando as condições para a sua cria- entre as partes.
ção estão presentes numa forma embrionária, A hipótese geral de trabalho desta investi-
latente ou potencial. Sob outra perspectiva, gação é que o discurso argumentativo (retó-
um litígio pode ser evitado quando, através de rica) é a principal componente estrutural do
uma espécie de curtocircuito, é resolvido antes direito de Pasárgada e que, por isso, domina
de se ter realmente consumado. Por exemplo, os processos e os mecanismos de prevenção e
este tipo de prevenção de conflitos é o que as resolução de litígios existentes em Pasárgada.
A teoria da argumentação desenvolvida por
Perelman, a propósito da ciência moderna, é
9 Richard Abel defende que, em qualquer sociedade, usada aqui para analisar o discurso tópicore-
podemos encontrar diferentes estilos ou tipos de re- tórico do direito de Pasárgada. Passo a referir
solução de litígios, ou “resultados”, como lhes prefere os conceitos e as questões da análise retórica
chamar, e que as relações entre eles e o contexto e es-
mais pertinentes para a análise empírica. No
truturas dos litígios se podem determinar a partir de um
vasto conjunto de variáveis (1973: 228). que respeita às ilustrações, basearmeei essen-
O direito dos oprimidos: A construção e reprodução do direito em Pasárgada 39

cialmente nos trabalhos de antropologia jurídi- duas margens do rio que a atravessa. Esta últi-
ca disponíveis na altura em que o trabalho em- ma zona é muito pequena, bastante pantanosa
pírico foi efectuado e que, em minha opinião, e sujeita a cheias, o que obriga a que muitas das
continuam a ser sugestivos. barracas sejam construídas sobre estacas. É
precisamente aqui que se situam as habitações
A Prevenção e resolução de mais precárias. As ruas — muitas vezes pouco
litígios no direito de Pasárgada mais do que simples aberturas entre as barra-
cas — são estreitas e lamacentas. Meia dúzia
O cenário10
de pontes pouco sólidas unem as margens do
Pasárgada é uma das maiores e mais antigas rio, extremamente poluído, para onde conver-
favelas do Rio de Janeiro. Em 1950, a popula- gem os esgotos que vão escorrendo a céu aber-
ção era de 18 mil habitantes; em 1957, tinha to por baixo das barracas. A parte mais exten-
duplicado e em 1970 ultrapassava os 50 mil. A sa de Pasárgada situase no morro de encostas
ocupação começou por volta de 1932 e, segun- suaves, onde não é difícil construir. O tijolo e o
do os moradores mais antigos, nessa época ha- cimento são os materiais de construção mais
via apenas algumas barracas no cimo do morro utilizados, embora a qualidade das edificações
e, à volta, só campos de cultivo. Esses terrenos varie bastante. A maior parte das casas tem
eram então propriedade privada, tendo passa- electricidade e água corrente. As várias redes
do posteriormente a propriedade do Estado. de água canalizada existentes em Pasárgada,
Fisicamente, Pasárgada divide-se em duas todas ligadas à central da cidade, nem sempre
grandes zonas11: o morro e a parte plana, nas estão em bom estado. As deficiências são devi-
das ou a má gestão financeira ou a problemas
10 Para uma análise pormenorizada das características
ecológicas, sócioeconómicas, políticas, religiosas, asso-
ciativas e culturais das favelas do Rio de Janeiro, e, em em grande parte devido ao controle que os traficantes
particular, de Pasárgada, ver Santos, 1974, capítulos I e II. de droga passaram a ter sobre as actividades da comu-
11 Daqui para a frente, passo a empregar o presente nidade, sobretudo na década de oitenta, mas também
etnográfico para me referir ao período em que realizei devido ao processo de democratização do Estado bra-
o trabalho de campo: 1970. De então para cá, a vida so- sileiro na mesma década. Ver, por exemplo, Junqueira
cial e política de Pasárgada alterouse dramaticamente, e Rodrigues, 1992.
40 Boaventura de Sousa Santos

técnicos, como, por exemplo, a má conserva- O grosso da população activa é composto por
ção das canalizações ou a falta de pressão. Os operários fabris que trabalham nas fábricas
moradores que não têm água corrente em casa mais próximas. Os restantes são micro-empre-
utilizam as fontes públicas ou recorrem aos vi- sários que vivem em Pasárgada, funcionários
zinhos. A rede de electricidade, administrada públicos dos escalões mais baixos, trabalha-
por uma comissão local, serve cerca de 80% das dores municipais e trabalhadores eventuais. A
habitações, estando as restantes 20% ligadas a maioria dos operários industriais ganha o sa-
redes distribuidoras mais pequenas. lário mínimo, mas o rendimento per capita de
Hoje em dia, Pasárgada situa-se praticamen- Pasárgada oscila ao redor de uma quarta parte
te no centro da cidade e, por isso, o acesso às desse salário mínimo12.
áreas circundantes é fácil. Mas, no seu come- A vida associativa em Pasárgada é também
ço, Pasárgada estava localizada na periferia do muito intensa. Há clubes recreativos, equipas
Rio de Janeiro, em terrenos que, na altura, não de futebol, igrejas (cujos membros muitas vezes
tinham valor especulativo. Pasárgada pôde, as-
sim, expandir-se, mais ou menos livremente,
durante três décadas. Quando os preços dos 12 Nas décadas seguintes, a vida econômica do Ja-
terrenos começaram a subir — à medida que a carezinho intensificou-se ainda mais. Pedro Abramo
cidade crescia em redor de Pasárgada e a área (2003), do IPPUR, no estudo piloto realizado em par-
ceria entre a Prefeitura do Rio e o Instituto de Pesquisa
por esta ocupada foi sendo muito cobiçada, e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da UFRJ
quer para a construção de imóveis, quer para a (2003), trata da favela como um polo gerador de rique-
implantação de indústrias —, a favela era já tão za. No complexo da favela de Jacarezinho: “esta (fave-
vasta e tão desenvolvida que a sua completa re- la) possui estrutura comercial e mercado imobiliário
compatíveis com o modelo de uma cidade média em
moção teria envolvido elevados custos sociais
nosso país”. São 58 mil habitantes, 17.200 domicílios
e políticos. distribuídos em uma área de 350 mil metros quadrados,
A vida económica interna de Pasárgada é na região norte do estado, numa área próxima à esta-
muito intensa, com as suas lojas tradicionais ao ção do metrô, do trem suburbano e servida por dezenas
lado de modernas mercearias e bares. Existem, de linhas de ônibus. Dentro da favela do Jacarezinho,
a pesquisa identificou 934 estabelecimentos, unidades
à sua volta, numerosas fábricas, uma boa dúzia
produtivas registradas ou não. Deste total, 742 operam
das quais apenas a cinco minutos de caminho. de forma quotidiana em horário comercial.
O direito dos oprimidos: A construção e reprodução do direito em Pasárgada 41

se organizam em clubes sociais ou associações 3. Atuar como elemento de ligação entre as


de caridade, sob a égide do padre católico ou de autoridades regularmente constituídas e a
outros líderes religiosos), a comissão de elec- população local, auxiliando estas nas reso-
tricidade e a Associação de Moradores. Dada luções de todos os problemas atinentes à
a sua relevância para a análise do direito de comunidade.
Pasárgada, esta última associação (doravante 4. Promover atividades de caráter social, tais
designada por AM) será descrita de forma mais como de recreação e incrementação de des-
completa. A AM foi criada com o objectivo de portos.
organizar a participação, autónoma e colectiva,
5. Zelar e agir legalmente pela manutenção da
dos habitantes de Pasárgada no melhoramento,
ordem, segurança e tranquilidade das famí-
físico e cívico, da comunidade. Apesar de terem
lias.
existido outras associações de moradores no
passado, a actual foi fundada em 2 de novem- 6. Promover sempre que possível atividades
bro de 1966, os seus estatutos foram aprovados, culturais tais como conferências, palestras e
pela assembleia geral de membros, em 10 de debates públicos13.
junho de 1967 e, em 9 de outubro de 1968, foi
oficialmente reconhecida. Os estatutos da AM, A AM rapidamente se tornou conhecida na
semelhantes aos de outras associações criadas comunidade. Embora muitos possam desco-
no âmbito da Operação Mutirão do início dos nhecer os seus directores e os pormenores
anos sessenta, dão especial relevo, entre outros da organização, poucos haverá hoje em dia
objectivos estatutários, às seguintes finalidades que ignorem a sua existência. Apesar das suas
(art. 3 dos Estatutos): funções estatutárias, a AM é identificada, na
A Sociedade tem por fim: comunidade, com “melhoramentos, um lugar
1. Pleitear junto às autoridades competentes onde ir quando se tem um problema com a bar-
estaduais ou federais providências atinentes raca ou com a casa”. Os moradores recorrem
à melhoria de serviços públicos de interesse à Associação quando desejam organizar traba-
de seus associados.
2. Prestar toda assistência a seus sócios, utili- 13 Para uma análise pormenorizada das funções da
zando‑se dos meios ao seu alcance. AM, ver Santos (1974: 98 e ss.).
42 Boaventura de Sousa Santos

lho comunitário para construir ou reparar as oficial para autorizar reparações e promover
suas casas ou barracas, ou quando entendem obras públicas. Os directores da Associação
que deveriam obter autorização para as repa- falam do seu “carácter oficial”, sugerindo que
rar ou alargar, ou quando pretendem celebrar todas as acções são apoiadas pela autoridade
(ou rescindir) um contrato a elas respeitante, estatal, o que, obviamente, não é verdade. Há
ou ainda quando têm um litígio com vizinhos também a convicção de que a Associação não
sobre direitos de construção, demarcação de só reflecte a estabilidade da comunidade, mas
propriedade, direitos de passagem ou de ocu- também aumenta a segurança das relações so-
pação. Esta enumeração sugere que os mo- ciais ao conceder um estatuto jurídico à comu-
radores levam à Associação apenas aqueles nidade. Todos estes factores podem ter contri-
problemas de habitação que envolvem as suas buído para a emergência da ideia de jurisdição,
relações jurídicas públicas com a comunidade por analogia com o sistema jurídico oficial.
como um todo, ou as suas relações jurídicas A forma como a Associação vê o seu papel
privadas com outros habitantes. na comunidade não inclui qualquer jurisdição
Embora a AM pouco tenha feito relativa- sobre matéria criminal. Quando confrontada
mente a obras públicas, dado que o Estado tem com uma situação que pareça envolver um cri-
recusado o auxílio material prometido, o seu me, a Associação não trata do “assunto”, nem
empenhamento no desenvolvimento da comu- tão pouco o comunica à polícia. Limitase a di-
nidade é forte. A sua intervenção relativamente zer à alegada vítima: “Isto não é uma questão
à construção, pública e privada, tem sido refor- que possamos resolver. A polícia é que tem de
çada pelo poder que ela tem para autorizar e tratar do assunto”. A AM abstémse em matéria
supervisionar qualquer reparação nas casas criminal por várias razões. Em primeiro lugar,
e para demolir qualquer casa construída sem embora a manutenção da ordem seja um dos
a sua autorização. A AM é reconhecida como objectivos estatutários da AM, os directores
tendo competência para resolver as questões consideram que a finalidade principal da AM é
relativas a terrenos e habitação em toda a fa- o desenvolvimento da comunidade e não o con-
vela. A origem desta competência, como a de trole social. Em segundo lugar, se reivindicasse
qualquer função social informal, é problemáti- jurisdição criminal, a AM teria inevitavelmente
ca. Sem dúvida que um dos factores foi o poder que dedicar a maior parte das suas energias à
O direito dos oprimidos: A construção e reprodução do direito em Pasárgada 43

“zona de má fama” de Pasárgada, onde se con- a Associação actua como se o “assunto” fosse
centram os traficantes de droga, os criminosos exclusivamente de natureza civil. Aliás, a AM
profissionais e as prostitutas e onde o crime é concebe a sua jurisdição civil como estando li-
mais frequente. Isso iria não só desviar a AM mitada a casos relativos a questões de terrenos
de tarefas que ela e a comunidade consideram e de habitação, embora, no processamento dos
mais importantes, como iria também prejudi- litígios, outras questões possam ser levantadas.
car a sua imagem nas zonas mais respeitáveis As relações entre a AM e os organismos do
de Pasárgada. Em terceiro lugar, a autoridade Estado que funcionam em Pasárgada são um
da AM tem sido gradualmente minada por um modelo de ambiguidade. No início da década
Estado cada vez mais autoritário — estamos de sessenta, o Estado populista parecia estar
em plena ditadura militar — que abandonou empenhado numa política de desenvolvimento
as políticas de desenvolvimento comunitário comunitário das favelas mais ou menos autó-
do início dos anos sessenta, negando à Asso- nomo. Essa política foi abandonada com a che-
ciação os recursos materiais necessários à gada ao poder da ditadura militar em 1964, e,
prossecução dos serviços e das obras públicas a partir de 1967, o Estado reforçou o controle
prometidas aos moradores. Finalmente, os fun- das organizações das favelas e dos seus líde-
cionários oficiais, e a sociedade “oficial” em res no sentido de eliminar qualquer autonomia
geral, consideram as favelas e o crime como “perigosa”. Actualmente, vários organismos
quase sinónimos. A acção repressiva contra as estatais oferecem “ajuda” às organizações co-
favelas, desde as rusgas, praticamente diárias, munitárias, mas são impostas sanções se essa
da polícia até ao desalojamento de populações oferta não for aceite. Nestas circunstâncias, a
inteiras e à demolição de barracas, é frequen- AM de Pasárgada tem vindo a utilizar diferen-
temente justificada em nome da luta contra tes estratégias para neutralizar o controle do
o crime. Se a AM se envolvesse em questões Estado: evita recusar explicitamente o auxílio,
criminais, ficaria exposta às acções estatais ar- continuando, porém, a ignorar as ordens que o
bitrárias e correria o risco de ser ilegalizada. acompanham, enquanto procura fugir às san-
É verdade que, como adiante veremos, a AM ções formais com que é ameaçada.
trata de muitos litígios que envolvem um certo As relações entre a AM e a polícia, instalada
tipo de conduta criminosa. Mas, nesses casos, perto da Associação, na parte central da favela,
44 Boaventura de Sousa Santos

são muito complexas. É patente a hostilidade pequena, nas traseiras, que dá acesso ao pri-
recíproca entre a polícia e a comunidade. A co- meiro andar, ainda em construção e quase sem
munidade evita a polícia que, por seu lado, está mobília. A maior parte das actividades desen-
ciente desse facto e das suas consequências rolase na sala da frente. A sala das traseiras e o
negativas no controle social. Para conseguir primeiro andar são ocasionalmente usados pelo
penetrar melhor na comunidade, a polícia tem presidente para reuniões (por exemplo, com as
tentado manter boas relações com as associa- partes no decorrer do processamento de um li-
ções representativas, particularmente com a tígio). A sala da frente está modestamente mo-
AM. Esta aceita os “bons ofícios” que a polícia bilada: um banco comprido encostado à parede
lhe oferece, ciente, contudo, da finalidade por e três secretárias com as respectivas cadeiras
detrás dessa oferta. Em casos extremos, a AM — uma para o presidente, outra para o secretá-
pode recorrer à polícia para executar uma de- rio e a terceira para o tesoureiro. Atrás das se-
cisão, como adiante veremos. Mas, na maior cretárias estão os ficheiros. Embora as funções
parte das vezes, a AM limitase a ameaçar com estatutárias do presidente se limitem à coorde-
a polícia o morador recalcitrante, sem tomar nação e à representação, ele é a figura central
quaisquer outras medidas para punir o não da AM. Quando algum director efectivo se de-
cumprimento da decisão, pois a AM conhece o mite, o presidente assume temporariamente as
risco de se tornar demasiado identificada com suas funções. Ele e o tesoureiro são os únicos
uma instituição ostracizada pela comunidade. membros da direcção que trabalham diariamen-
Por conseguinte, a Associação e a polícia en- te nas instalações da AM. O presidente chega
tram numa interacção ritualista, no decurso da entre as nove e as dez horas da manhã, faz um
qual vão trocando sinais de mútuo reconheci- intervalo para almoço das duas às cinco da tar-
mento e boa vontade sem, no entanto, chega- de e depois trabalha até às oito. O fim da tarde
rem a uma colaboração efectiva. é, habitualmente, a parte mais activa do dia. As
A sede da AM está situada parte central de reuniões da direcção têm lugar à noite.
Pasárgada e ocupa um edifício de tijolo e ci- Só podem pertencer à Associação os habitan-
mento com dois andares. No résdochão há duas tes de Pasárgada (ou pessoas que, de qualquer
salas: uma sala à entrada, muito ampla, com modo, estejam integradas na comunidade) que
uma porta larga que abre para a rua, e uma sala paguem uma quota mensal. A AM tem cerca de
O direito dos oprimidos: A construção e reprodução do direito em Pasárgada 45

1 500 membros (chefes de família), mas poucos de Pasárgada não pretende regular a vida so-
mantêm as suas quotas em dia. Embora apenas cial fora de Pasárgada, nem questiona os crité-
os membros possam participar da assembleia rios de legalidade prevalecentes na sociedade
geral, a AM estende os seus serviços a todos mais vasta. Por outro lado, os dois sistemas
os moradores e não apenas a sócios. Ocasio- jurídicos assentam igualmente no respeito pelo
nalmente, no entanto, as pessoas não membros princípio da propriedade privada. O direito de
que requeiram os serviços da AM podem ser Pasárgada concretiza a sua informalidade e fle-
convidadas a fazer parte da associação. xibilidade importando selectivamente elemen-
tos do sistema jurídico oficial. Assim, embora
Conclusão ocupando posições diferentes ao longo de um
continuum de formalismo/informalismo, pode
A estrutura do pluralismo jurídico
afirmarse que partilham a mesma ideologia ju-
O direito de Pasárgada é um exemplo de um rídica de base. Em termos gerais, Pasárgada
sistema jurídico, informal e não oficial, cria- pode ser considerada uma sociedade microca-
do por comunidades urbanas oprimidas, que pitalista cujo sistema jurídico é, em grande par-
vivem em guetos e bairros clandestinos, para te, ideologicamente compatível com o sistema
preservar a sobrevivência da comunidade e jurídico oficial. Embora Pasárgada não esteja
um mínimo de estabilidade social numa socie- dividida por antagonismos de classes nos mes-
dade injusta onde a solvência económica e a mos termos em que o está a sociedade que a
especulação imobiliária determinam o âmbito rodeia, é inegável a existência de estratificação
efectivo do direito à habitação. Sustentei, neste social e a separação entre zonas de boa e má
trabalho, que esta situação de pluralismo jurí- vizinhança. A AM é controlada pelos estratos
dico é estruturada por uma troca desigual, em médios e superiores, que são os mais familiari-
que o direito de Pasárgada constitui a parte do- zados com a sociedade oficial e mais desejosos
minada. Estamos, portanto, na presença de um de se integrarem nela. A AM defende os interes-
pluralismo jurídico interclassista. O conflito ses dos estratos mais baixos de Pasárgada, mas
de classes é travado através de estratégias de fálo de uma forma paternalista.
resistência passiva, adaptação selectiva, con- A estratégia estatal de evitação mútua e de
frontação latente e evitação mútua. O direito adaptação pode ser ilustrada pela relativa pas-
46 Boaventura de Sousa Santos

sividade do Estado para com Pasárgada. Apesar para as interacções com a sociedade oficial. O
de ilegal e sujeito a um controle repressivo, o Estado coopta a AM utilizando, simultaneamen-
bairro é tolerado, algumas das instituições co- te, o pau e a cenoura: por um lado, concede à
munitárias são oficialmente reconhecidas e al- AM uma posição privilegiada enquanto repre-
guns equipamentos infraestruturais são conce- sentante da favela nas suas relações com os or-
didos (sobretudo em períodos eleitorais). Esta ganismos estatais e, por outro, reprime, através
tolerância continuada confere à favela um esta- de órgãos estatais ou paraestatais que actuam
tuto sóciojurídico peculiar, de algum modo ale- na favela (a Fundação Leão XIII, por exemplo),
gal ou extralegal: uma comunidade ilegal cuja qualquer tentativa de maior autonomia por par-
ilegalidade é neutralizada pela trivialidade da te da favela. De outra perspectiva ainda, a fun-
sua aceitação. A razão deste estatuto ambíguo cionalidade das instituições comunitárias reside
pode estar no facto de Pasárgada e o seu direi- em estas facilitarem a angariação de votos e
to, tal como hoje existem, serem provavelmente simultaneamente a reprodução das relações de
funcionais em relação aos interesses da estru- clientelismo que têm caracterizado o domínio
tura de poder na sociedade brasileira. Ao ocu- da classe burguesa no Brasil.
parse dos conflitos entre as classes oprimidas, o Contudo, seria errado enfatizar demasiado a
direito de Pasárgada não só liberta os tribunais integração e a adaptação entre os dois sistemas
oficiais e os gabinetes de assistência jurídica do jurídicos. Tal excesso será sempre o vício de
fardo de terem que atender os casos das favelas, uma análise que encare estes fenómenos iso-
mas também reforça a socialização dos habitan- ladamente em relação às condições sociais da
tes de Pasárgada numa ideologia jurídica que sua produção e reprodução. A integração e a
legitima e consolida a dominação de classe. Ao adaptação são estratégias utilizadas num deter-
fornecer aos moradores de Pasárgada uma for- minado momento por classes com interesses
ma pacífica de resolução e de prevenção dos lití- antagónicos. Mas esta situação de pluralidade
gios, o direito de Pasárgada neutraliza, em parte, jurídica continua a ser um reflexo de conflitos
a violência da sociedade capitalista. Ao tornar de classes e, portanto, uma estrutura de domi-
possível um quotidiano relativamente ordeiro nação e de troca desigual.
fomenta um respeito pelo direito e pela ordem A juridicidade não oficial é um dos poucos
que os moradores transportam eventualmente instrumentos a que as classes oprimidas ur-
O direito dos oprimidos: A construção e reprodução do direito em Pasárgada 47

banas podem recorrer para organizar a vida da qual o direito de Pasárgada estabelece a le-
comunitária, e conferir um mínimo de estabi- galidade da posse e propriedade da terra, usan-
lidade a uma situação de estrutural precarida- do precisamente a mesma norma que o sistema
de. Por essa via, maximizam as possibilidades jurídico oficial usa para a declarar ilegal. Vem a
de resistência contra a intervenção do Estado propósito a análise histórica do direito de pro-
ou das classes dominantes e fazem aumentar o priedade, desenvolvida por Karl Renner (1949).
custo político de tal intervenção. A avaliação Segundo ele, a função social do direito de pro-
política do direito não oficial depende das fi- priedade alterouse profundamente ao longo
nalidades sociais que se propõe atingir. No da história apesar de o seu conteúdo verbal
contexto social e político em que foi realiza- se ter mantido inalterado: a sua função social
da a investigação, a tentativa de fornecer uma passou de uma garantia da autonomia indivi-
alternativa normativa ao sistema vigente de dual nas sociedades europeias précapitalistas
propriedade da terra em bairros clandestinos para a legitimação da dominação de classe e da
deve ser vista como uma tarefa progressista. exploração nas sociedades capitalistas. O que
Aquilo que, à primeira vista, aparenta ser um Renner observou diacronicamente, observei eu
conformismo ideológico não é, provavelmente, sincronicamente numa situação de pluralismo
mais do que uma avaliação realista da constela- jurídico interclassista. Contudo, a confirmação
ção de forças e das possibilidades de luta num plena do paralelismo, exigiria uma análise em
dado momento histórico. profundidade das relações sociais dominantes
A forma como o direito de Pasárgada se em Pasárgada. Pasárgada está completamente
“desvia” do sistema jurídico oficial mostra bem integrada na sociedade carioca. A maior parte
que esse direito não oficial pode ser considera- da sua população activa trabalha fora de Pa-
do, nas circunstâncias referidas, uma estraté- sárgada. Tem um sector comercial florescen-
gia de resistência contra a opressão classista. te, bem como alguma indústria14. Esta última
Embora os dois sistemas partilhem a mesma (sobretudo, calçado, padarias e sorveterias) é
ideologia jurídica de base, usamna para fins constituída por pequenas empresas familiares
muito diferentes. No plano substantivo, anali-
sei aquilo a que chamo inversão da norma fun-
damental da propriedade de imóveis, através 14 Ver Santos, 1974: 74 e ss.
48 Boaventura de Sousa Santos

que produzem para o mercado local (que, por A inversão da norma fundamental de pro-
vezes, se estende para fora de Pasárgada). Uma priedade não é o único “desvio” do direito de
das características marcantes desta sociedade Pasárgada relativamente ao sistema jurídico
microcapitalista é uma persistente, e até cres- estatal. Há a acrescentar aquilo a que chamei
cente, estratificação social. importação selectiva do formalismo jurídico,
Ao fornecer alojamento para as classes tra- através da qual se desenvolve um sistema po-
balhadoras pobres, Pasárgada contribui para pular de formalismo. Embora a informalidade
as condições de reprodução da força de tra- seja, em geral, função da ausência de profissio-
balho. Enquanto que a sua qualidade jurídica nalização, da fraca diferenciação de papéis e do
oficial (externa), como bairro clandestino, é baixo grau de especialização, o funcionamento
um reflexo das relações sociais capitalistas, a específico dessas regras informais — o modo
sua qualidade jurídica interna, como bairro, é como são criadas, afirmadas, recusadas, altera-
uma tentativa para melhorar as condições de das, adulteradas, descuradas ou esquecidas — é
vida das classes populares e conquistar algu- determinado pelos objectivos sociais, pelos pos-
ma liberdade de acção colectiva autónoma — tulados culturais gerais e, nomeadamente, pelas
uma tarefa progressista numa situação em que ideias de justiça e de legalidade. No direito de
a existência de um enorme exército industrial Pasárgada, a principal função do formalismo é
de reserva torna a norma capitalista indiferen- assegurar a segurança e a certeza das relações
te à reprodução da força de trabalho. Embora jurídicas, sem violar o interesse primordial em
o direito de Pasárgada reflicta a ideologia ju- criar uma forma de justiça acessível, barata, cé-
rídica capitalista de base, na realidade actua lere, inteligível e razoável, em suma, uma justiça
para organizar a acção social autónoma das que seja o oposto da justiça oficial. Por fim, é
classes populares contra as condições de re- importante não esquecer que a estrutura do des-
produção impostas por um capitalismo voraz. vio do direito de Pasárgada não é rígida. Dentro
Estamos, pois, perante o inverso da situação de certos limites, está aberta à manipulação. O
referida por Renner, na qual o conteúdo liber- sistema jurídico oficial é excluído ou incorpora-
tador da ideologia jurídica servia de disfarce do no direito de Pasárgada através da argumen-
ao funcionamento opressivo do sistema jurí- tação retórica, de acordo com a estratégia de
dico estatal. resolução de cada caso. A estratégia retórica e a
O direito dos oprimidos: A construção e reprodução do direito em Pasárgada 49

estrutura social explicam, conjuntamente, a di- geral, e muito menos em Pasárgada, um viez
nâmica deste complexo processo social, sendo recorrente em certa ideologia comunitarista.
que nenhuma delas actua sem a outra. Pasárgada não é uma comunidade idílica. Tal
como a maioria dos bairros clandestinos do
A perspectiva interior mundo, é um produto da expropriação dos
camponeses, da industrialização selvagem e
Uma compreensão profunda do direito de
do crescimento urbano descontrolado. Como
Pasárgada requer a análise, não só das suas
se trata de uma comunidade residencial aber-
relações jurídicas pluralistas, mas também da
ta, bastante integrada na sociedade do asfalto,
sua estrutura interna, a perspectiva interior, a
não é de estranhar que reproduza as caracte-
partir de dentro. De facto, o principal objectivo
rísticas básicas da ideologia dominante e das
deste trabalho foi captar o direito de Pasárga-
suas estruturas sociais, económicas e políti-
da em acção, e quer o método de investigação
cas dominantes. A sua relativa autonomia (tal
(observação participante), quer a perspectiva
como se exprime no seu direito) decorre, quer
analítica (sociologia da retórica jurídica, argu-
da composição de classe que lhe é específica,
mentação jurídica), provaram ser adequados
quer da sua resposta colectiva às condições
para esse propósito.
de habitação brutalizantes, impostas pelo de-
Apesar de o direito de Pasárgada reflectir
senvolvimento do capitalismo e traduzidas em
a estratificação social da comunidade e de
políticas estatais como a ilegalidade da posse
não transcender, na sua ideologia, a tradição
dos terrenos, o controle social da comunidade
liberal do capitalismo, creio que, enquanto
através da polícia e de organismos de acção
mecanismo jurídico operativo, tem algumas
social, e a ausência de prestação de serviços
características que, em circunstâncias sociais
públicos básicos. As características do direito
diferentes, seriam desejáveis como alternati-
de Pasárgada que a seguir enumero nunca se-
va ao sistema jurídico estatal das sociedades
rão completamente desenvolvidas dentro de
capitalistas, um sistema excessivamente pro-
uma favela, como também não proporcionam,
fissionalizado, corporativo, caro, inacessível,
em Pasárgada, garantia suficiente contra a in-
moroso, esotérico e discriminatório.
justiça, a manipulação e até a violência. O meu
Seria, contudo, absurdo romantizar a vida
argumento é apenas que algumas dessas ca-
comunitária nas sociedades capitalistas em
50 Boaventura de Sousa Santos

racterísticas deviam ser constitutivas de uma estratégia para a restabelecer. Conferemse atri-
prática jurídica emancipatória numa sociedade butos profissionais e oficiais ao conhecimento
radicalmente democrática e socialista. jurídico de Pasárgada sempre que se considera
Não profissionalizado — O presidente da necessário reforçar o seu poder. A relação en-
AM é um comerciante que aprendeu a ler e a tre poder e conhecimento é assim transparen-
escrever já em adulto e que não tem qualquer te: o presidente sublinha o carácter oficial da
formação jurídica. O seu dia-a-dia inclui outras AM (poder e, consequentemente, saber) e o seu
actividades para além da prevenção e da reso- conhecimento jurídico quase profissional (sa-
lução de litígios. Por conseguinte, desempenha ber e, consequentemente, poder). Aquilo que as
as funções jurídicas de uma forma não profis- pessoas sabem sobre a AM alimentase do que
sional. O facto de as funções jurídicas não se- as pessoas sabem através da AM. O conheci-
rem profissionalizadas prendese com a fragili- mento da sua qualidade oficial convertese na
dade estrutural da AM como centro de poder qualidade oficial do seu conhecimento.
político moderno e com o padrão geral de ato- A transparência entre poder e saber não
mização do poder característico da comunida- significa que a resolução de litígios proceda
de. No entanto, vimos que a estratégia retórica sempre por via da mesma equação entre am-
do processo de resolução pode incluir uma ên- bos. Pelo contrário, há litígios resolvidos sob o
fase sobre a natureza e a qualidade do conhe- registo dominante do saber e litígios resolvidos
cimento jurídico que o presidente e a AM têm sob o registo dominante do poder, e, entre cada
do direito do asfalto e do direito de Pasárgada. um destes pólos, há lugar a variações quase in-
Essa ênfase é ainda reforçada por referências finitas. Esta variedade é assegurada pela ducti-
ocasionais ao “carácter oficial” da AM. O efei- lidade da retórica jurídica. É ela que calibra as
to cumulativo desta dramatização do estatuto relações concretas entre poder e saber.
da AM consiste em criar a ideia de que ela é Acessível — O direito de Pasárgada é aces-
dotada de um conhecimento quase profissio- sível, quer em termos de custos monetários e
nal ou quase oficial. O recurso à dramatização de tempo, quer em termos do padrão geral de
é particularmente visível nas situações em que interacção social. Os moradores de Pasárga-
a AM pressente uma ameaça à sua posição de da não pagam honorários aos advogados nem
poder e julga, por isso, necessário adoptar uma custas nos tribunais, embora lhes possa ser pe-
O direito dos oprimidos: A construção e reprodução do direito em Pasárgada 51

dido que se façam sócios da AM e que paguem gem técnica popular não é suficientemente for-
a respectiva quota. Não têm de pagar trans- te para criar opacidade ou incomunicabilidade
portes nem de perder um dia de salário, como nas interacções. Isto não significa, porém, que
aconteceria se tivessem que consultar um ad- o direito de Pasárgada seja igualmente aces-
vogado ou recorrer a um gabinete de assistên- sível a todos. Nem todos os moradores estão
cia jurídica. Além disso, os casos são julgados bem informados sobre o processamento de li-
sem grandes demoras. O presidente tem orgu- tígios conduzido pela AM. Também nem todos
lho neste contraste com os tribunais oficiais: sentem necessidade de recorrer à AM, já que
“Resolvemos a questão na hora. Os tribunais alguns podem encontrar formas alternativas
empatam. Mesmo para os casos mais simples, de resolver os litígios dentro da comunidade
a decisão demora dois a três anos”. As demo- (através de amigos, vizinhos, líderes religio-
ras não são compatíveis com as urgências que, sos, etc.). Além disso, em certas “zonas más”
habitualmente, são o estímulo para se recorrer de Pasárgada continua a praticarse uma “justi-
à AM, e esta, por seu lado, procura responder ça rude” e violenta (haverá pluralidade jurídi-
a estas condições de urgência, apesar de a ar- ca dentro de Pasárgada?). E, embora o direito
gumentação retórica necessária para se obter de Pasárgada não seja uma justiça política, no
um compromisso pressupor um ritmo que não sentido em que o direito do asfalto o é, o facto
pode ser acelerado. Mas o tempo gasto em ne- de o presidente e os directores da AM serem
gociações não se compara às demoras nos tri- eleitos dentro da comunidade significa que os
bunais oficiais. moradores têm incentivos específicos e dife-
Por fim, o modo de interacção social dentro renciados para recorrerem a ela, conforme os
da AM aproximase do que caracteriza a vida seus laços de amizade ou simpatias políticas.
quotidiana. As pessoas não se vestem de uma As sementes para a acessibilidade diferenciada
forma diferente para ir à AM, nem se entregam e até para a segmentação existem no direito de
a autoapresentações ritualistas, e usam a lin- Pasárgada, e certamente germinação, à medida
guagem corrente para transmitir os factos, as que a estratificação social e as desigualdades
posições e os argumentos do caso. forem aumentando na comunidade.
Por outro lado, o desenvolvimento no direi- Participativo — Apesar de intimamente li-
to de Pasárgada daquilo a que chamei lingua- gada à acessibilidade (sobretudo aferida pelo
52 Boaventura de Sousa Santos

grau de homologia entre interacção jurídica e devesse significar a construção de alienação, a


interacção social), a participação diz respeito transformação do familiar em estranho, do ho-
especificamente aos papéis desempenhados rizontal em vertical, da oferta em fardo. Este
pelos vários intervenientes no processamento processo, apesar de visível em Pasárgada, está
do litígio. O nível de participação e a informa- muito longe dos extremos que caracterizam o
lidade do processo jurídico estão intimamente sistema jurídico oficial do Estado moderno.
relacionados e, em Pasárgada, ambos são ele- Consensual — A mediação é o modelo do-
vados. O caso é apresentado pelas partes, às minante da resolução de litígios no direito de
vezes com o auxílio de parentes ou vizinhos. Pasárgada, tanto assim que a adjudicação pode
Nunca são representadas por juristas profis- estar disfarçada como mediação, uma situação
sionalizados. Não se sentem espartilhadas por que designei por falsa mediação. Procurase
regras formais e podem, em princípio, ventilar sempre chegar a um compromisso em que cada
todas as preocupações e circunstâncias, já que parte cede um pouco e recebe um pouco. Neste
o critério de relevância é muito amplo. Isto não aspecto, o direito de Pasárgada difere do siste-
significa que, no direito de Pasárgada, as partes ma jurídico oficial, no qual prevalece o modelo
tenham controle total do processo, como acon- da adjudicação (decisões de “tudo ou nada”),
tece na negociação, onde a terceira parte fica embora o alcance das diferenças não deva
reduzida ao papel de mensageiro ou interme- ser exagerado. A predominância da mediação
diário. Pelo contrário, o presidente pode inter- num determinado contexto institucional pode
romper as partes sempre que uma protopolítica deverse a vários factores. Pode ser reflexo de
judicial ou a estratégia argumentativa adoptada postulados culturais dominantes (o Japão é
assim o exijam e, nesses casos, o formalismo muitas vezes indicado como exemplo). Pode
do processo tende a aumentar. Acresce ainda ter que ver com o tipo de relações sociais entre
que o processo de ratificação está impregnado as partes envolvidas no litígio: se estão ligadas
de formalismo e rituais de alienação através por relações, que envolvem diferentes sectores
dos quais as partes são confrontadas com um da vida, relações complexas, ou “multiplexas”,
espaço jurídico (ainda que precário), entretan- como Gluckman as designou, a mediação desti-
to criado, e avisadas de que não devem violálo. nase a preservar o relacionamento. Por último,
É como se, em última instância, a juridicidade a mediação pode resultar do facto de o resolu-
O direito dos oprimidos: A construção e reprodução do direito em Pasárgada 53

tor do litígio carecer de poder para impor uma e político esteve distribuído, de forma relativa-
decisão, situação que tende a prevalecer nas mente ampla, pelos membros da comunidade
sociedades estruturadas sem rigidez, baseadas relevante. A componente repressiva do direito,
numa pluralidade de grupos, quasegrupos e re- pelo contrário, começou por se impor em situ-
des, onde ou não há um centro de poder ou é ações onde o sistema jurídico foi usado para
este muito fraco. pacificar países vencidos na guerra e ocupados
O primeiro factor parece ser irrelevante em pelo vencedor. Seria, contudo, absurdo avaliar,
Pasárgada uma vez que esta está fortemente em abstracto, num vazio social, o significado
imbuída da ideologia jurídica ocidental. Os ou- da retórica de Pasárgada e da sua orientação
tros factores são, porém, importantes. Devido para o consenso. É sabido que os critérios de
à grande densidade populacional e ao estilo de relevância usados para definir a “comunidade
vida comunitário (extroversão, vivências de relevante” ou o “auditório relevante”, reflectem
rua, relações face-a-face, mexericos, ofertas e reproduzem relações de poder desiguais. Por
mútuas de valores de uso em conhecimentos muito amplamente partilhado que seja, o poder
e aptidões), os vizinhos interagem intensamen- é sempre exercido contra alguém: a comunida-
te, em espaços públicos e privados, e em con- de irrelevante. Na Atenas da Grécia Antiga, os
textos de relacionamentos multiintencionais, escravos não faziam parte da comunidade rele-
que são origem frequente de litígios. Por outro vante. Consequentemente, o direito da cidade-
lado, a AM não tem poder sancionatório formal Estado, dominado pela retórica jurídica, não se
e não recorre ao auxílio da polícia por temer o lhes aplicava. Eram meros objectos de relações
impacto negativo deste na legitimidade comu- de propriedade entre os cidadãos livres. Isto
nitária da Associação. As ameaças são usadas, significa que uma ordem jurídica verdadeira-
frequentemente, como argumentos de intimi- mente democrática, dentro da comunidade re-
dação, mas a sanção limitase à mensagem. levante, pode coexistir com a opressão tirânica
Qual é o significado político da retórica jurí- da comunidade irrelevante e até basearse nela.
dica de Pasárgada? Ao longo da história, a re- Embora o direito tenha historicamente re-
tórica (quer como estilo de argumentação jurí- flectido e reproduzido processos sociais de
dica, quer como disciplina académica) sempre exclusão a partir dos quais se desenvolve a
floresceu nos períodos em que o poder social integração social, a atenção à retórica jurí-
54 Boaventura de Sousa Santos

dica levanos a distinguir — e aí reside a sua Em Pasárgada, o uso da retórica jurídica


importância para a análise sóciohistórica do pela comunidade relevante reflecte um proces-
direito — entre diferentes formas de exclusão so de exclusão externa que é, porém, o inverso
social, e, sobretudo, entre exclusão externa do caso de Atenas. A comunidade irrelevante,
e interna. A exclusão externa é um processo neste caso, é a sociedade do asfalto, relativa-
social pelo qual um grupo ou classe é exclu- mente à qual Pasárgada é impotente. O direi-
ído do poder porque está fora da comuni- to de Pasárgada é um direito clandestino, o
dade relevante, como no caso dos escravos resultado de um processo de exclusão social.
do direito ateniense. A exclusão interna é Mas, como o direito da comunidade excluída
um processo social graças ao qual um grupo se encontra numa relação de pluralismo jurí-
ou classe social é excluído do poder porque dico com o direito da comunidade excluden-
está dentro da comunidade relevante, como te, obtém-se um processo social misto do tipo
sucede com o direito estatal das sociedades acima descrito. Os moradores de Pasárgada,
capitalistas modernas e com as discrimina- por pertencerem às classes oprimidas numa
ções sociais que ele sanciona. Neste caso, o sociedade capitalista, são internamente excluí-
critério de relevância da comunidade relevan- dos, como está patente, por exemplo, no facto
te não é uniformemente aplicado em toda a de o direito estatal declarar ilegal a posse dos
comunidade. Relativamente a determinados terrenos onde habitam. No entanto, a forma es-
grupos ou classes sociais, a relevância é tão pecífica de marginalidade a que foram votados
ténue ou remota que podem ser considerados através desse processo de exclusão interna,
como excluídos dentro da comunidade. Pode tornou possível uma acção social alternativa —
também haver processos sociais mistos onde o direito de Pasárgada — que aponta para um
coexistem, em diferentes graus, elementos processo de autoexclusão externa, aliás, nun-
da exclusão externa e da exclusão interna. ca consumado. Apesar disso, como já afirmei,
Como tenho vindo a sugerir, a sociologia da a comunidade irrelevante do direito de Pasár-
retórica jurídica é uma via privilegiada para gada talvez não seja só a sociedade do asfalto,
determinar os processos sociais de exclusão mas também algumas áreas ou grupos de mo-
e de inclusão dentro de um dado campo jurí- radores no interior de Pasárgada. E, como o di-
dico e entre diferentes campos jurídicos. reito de Pasárgada é impotente relativamente a
O direito dos oprimidos: A construção e reprodução do direito em Pasárgada 55

essas duas comunidades, pode concluirse que Burgos, M. 1998 “Dos Parques Proletário ao
a retórica do direito de Pasárgada resulta mais Favela-Bairro: as políticas públicas nas
de uma impotência amplamente partilhada do favelas do Rio de Janeiro” in Zaluar, A. e
que de um poder amplamente partilhado. Altivo, M. Um Século de Favela (Rio de
Pasárgada não é uma comunidade idílica. Janeiro: Fundação Getúlio Vargas).
Longe disso. Mas tal não impede que o seu Cage, J. 1966 Silence: Lectures and Writings
direito interno sugira algumas das caracterís- (Cambridge, MA: MIT Press).
ticas de um processo jurídico emancipatório. Coser, L. 1956 The Functions of Social
Embora abundem os sinais de perversão, os Conflict (Nova Iorque: The Free Press).
instrumentos jurídicos de Pasárgada parecem Epstein, A. L. (org.) 1967 The Craft of Social
adequados a uma utilização radicalmente de- Anthropology (Londres: Tavistock).
mocrática: ampla distribuição (nãomonopoli- Kantorowicz, H. 1958 The Definition of Law
zação) de conhecimentos jurídicos, patente na (Cambridge: Cambridge University Press).
ausência de especialização profissionalizada; Kelsen, H. 1962 Teoria Pura do Direito, V. II
instituições manejáveis e autónomas, patentes (Coimbra: Amado).
na acessibilidade e na participação; justiça não Fallers, L. 1969 Law without Precedent: Legal
coerciva, patente no predomínio da retórica e Ideas in Action in the Courts of Colonial
na orientação para o consenso. Busoga (Chicago: University of Chicago
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56 Boaventura de Sousa Santos

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dissertação doutoral (Berkeley: Department
of Anthropology, University of California).
Uma ilustração: O pluralismo
jurídico na Colômbia*

A inda que o pluralismo jurídico esteja pre-


sente em todas as sociedades contempo-
râneas, cada sociedade tem um perfil específi-
direito estatal compete mais fortemente com
ordenamentos paralelos. Talvez por esta razão,
o direito estatal é internamente muito hetero-
co de pluralismo jurídico. Esta especificidade géneo, combinando dimensões despoticamen-
baseia-se em factores históricos, sociais, eco- te repressivas com dimensões democráticas,
nómicos, políticos e culturais. Em O Direito componentes altamente formais e burocráti-
dos Oprimidos analiso um caso de pluralismo cos com componentes informais e desburo-
jurídico no Brasil. No Estado Heterogéneo e o cratizadas, áreas de grande penetração estatal
Pluralismo Jurídico em Moçambique analiso com áreas de quase completa ausência do Es-
a estrutura do pluralismo jurídico em Moçam- tado, etc. Esta heterogeneidade configura uma
bique. Nesta secção identifico algumas das es- situação que anteriormente designei como plu-
pecificidades mais marcantes da pluralidade ralismo jurídico interno. A intensidade deste
jurídica na Colômbia. pluralismo jurídico é outra das especificidades
Uma primeira especificidade é a sua enor- da pluralidade jurídica na Colômbia1.
me riqueza e complexidade. Entre os países A terceira especificidade consiste na inten-
semiperiféricos ou de desenvolvimento inter- sidade da confrontação entre o pluralismo
médio, a Colômbia é um dos países em que o jurídico subnacional e o pluralismo jurídico

* Extraído de Santos, B. de Sousa 2009 “Uma ilustra-


ção: o pluralismo jurídico na Colômbia”, tradução por-
tuguesa de excertos do Capítulo 2 do livro Sociología 1 Sobre a complexa paisagem das justiças na Colôm-
jurídica crítica (Madrid: Trotta) pp. 75-80. bia ver, Santos e García-Villegas (orgs.), 2001.
60 Boaventura de Sousa Santos

supranacional. Não é fácil identificar todos os to constitucional faz dela uma justiça oficial
ordenamentos jurídicos subnacionais que com- ainda que opere segundo normas, princípios e
petem com o Estado colombiano na regulação lógicas radicalmente distintos dos que subja-
social. Algumas das dimensões ou variáveis zem ao direito estatal oficial. A justiça indígena
que parecem mais importantes para identificar é um híbrido jurídico.
a vasta paisagem jurídica colombiano podem A dimensão formal/informal permite identifi-
ser formuladas como variáveis dicotómicas, car, tanto as formas de pluralismo jurídico sub-
mas desde o início tem que se assumir que, no -nacional, como as formas de pluralismo jurí-
plano empírico, a dicotomia não é mais que os dico interno. Enquanto que a dimensão oficial/
dois extremos de um continuum no qual, de não oficial deriva de uma definição administra-
facto, se localizam de maneira diferente os tiva e política feita por quem tem o poder ins-
distintos ordenamentos jurídicos. As dimen- titucional para impor esta definição, a dimen-
sões seleccionadas para analisar o pluralismo são formal/informal relaciona-se com aspectos
jurídico na Colômbia são as seguintes: oficial/ estruturais dos direitos em presença. Segundo
não oficial; formal/informal; monocultural/mul- as categorias apresentadas acima, conside-
ticultural; cívico/armado. ro informal uma forma de direito e de justiça
A dimensão oficial/não oficial permite iden- dominada pela retórica e na qual a burocracia
tificar, por um lado, o direito estatal e, pelo está ausente ou presente de forma marginal. A
outro uma multiplicidade de direitos e justiças violência pode ou não estar presente. Em re-
locais, urbanas e camponesas, justiças comu- lação ao pluralismo jurídico interno, o Estado
nitárias, justiças indígenas, justiça das comuni- colombiano, durante a última década do século
dades afro-descendentes, justiça guerrilheira, passado, levou a cabo uma série de reformas
justiça miliciana, justiça de bandas, justiça pa- encaminhadas para informalizar a justiça das
ramilitar. A dicotomia oficial/não oficial apesar quais resultou alguma inovação institucional
de ser a mais característica dicotomia, permite (por vezes realizada e por vezes apenas projec-
igualmente situações intermédias ao longo de tada) materializada em figuras tais como a ac-
um continuum marcado pelos extremos. Qui- ção de tutela, as acções populares, a concilia-
çá a situação intermédia mais saliente seja a da ção em equidade, os juízes de paz, as casas de
justiça indígena dado que o seu reconhecimen- justiça. As reformas sobre a informalização da
Uma ilustração: O pluralismo jurídico na Colômbia 61

justiça criam assim uma dualidade interna no é possível compará-lo com o grau ou tipo de
sistema jurídico oficial, entre a justiça formal formalismo da justiça oficial.
que continua a vigorar nas áreas centrais do A terceira dimensão — monocultural/multi-
sistema judicial, e a justiça informal que vigora cultural — volta a colocar a justiça indígena no
na periferia do sistema. centro da análise, uma vez que ela, mais que ne-
No que respeita ao pluralismo jurídico sub- nhuma outra das justiças não oficiais, perten-
nacional, os ordenamentos jurídicos não ofi- ce a um universo cultural distinto daquele que
ciais são em geral informais. No entanto, o grau preside à justiça oficial. Hoje não existem sis-
de informalidade varia muito, não só entre um temas culturais puros e auto-referenciados. A
ordenamento jurídico e outro, mas também no justiça indígena está sujeita a um processo de
mesmo ordenamento em diferentes situações hibridação que, além do mais, deriva do reco-
ou tipos de litígios. A justiça comunitária cívi- nhecimento constitucional da sua existência.
ca tende a ser muito informal enquanto que a A ambiguidade deste processo de hibridação
justiça guerrilheira pode, em certas situações reside na ocultação das relações desiguais de
ser formal. A justiça indígena volta a ocupar poder entre a justiça indígena e a justiça ofi-
uma posição especial nesta dimensão. As con- cial. Uma análise correcta deste processo exige
cepções de forma, de formalismo e de grau de assim que se responda às seguintes perguntas:
formalização são apenas possíveis dentro do quem hibridiza quem? Até que ponto e com que
mesmo universo cultural. Nas condições actu- objectivos e resultados?
ais é virtualmente impossível avaliar, a partir As tensões entre monoculturalismo e mul-
de uma dada cultura jurídica, o formalismo ou ticulturalismo não se restringem às relações
o grau de formalismo de outra cultura jurídica. entre justiça indígena e justiça oficial: também
A construção de uma concepção multicultural se encontram presentes nas relações entre a
de formalismo só será possível no final de uma justiça indígena e outras justiças comunitárias
longa prática de reconhecimento efectivo da não oficiais, tais como a justiça camponesa e
diversidade multicultural das concepções de a justiça guerrilheira ou paramilitar. E, de res-
formalismo. Por isso, nas condições actuais, to, ainda que em menor grau, esta tensão pode
não é possível avaliar o grau ou tipo de forma- existir em constelações de ordenamentos jurí-
lismo da justiça indígena. Acima de tudo, não dicos que não incluem a justiça indígena.
62 Boaventura de Sousa Santos

Finalmente, a dimensão cívico/armada re- competição não se encontra igualmente distri-


presenta outra especificidade da pluralidade buída na sociedade colombiana. Existe uma di-
jurídica na Colômbia dada a proliferação de visão social do trabalho jurídico a partir da qual
grupos armados que contestam o monopólio diferentes classes e grupos sociais tem acesso
da violência por parte do Estado. Não importa a diferentes ordenamentos jurídicos. É possível
se o grupo armado ilegal diz defender as ins- afirmar que, a sociedade civil estranha e as zo-
tituições, como no caso dos paramilitares. Os nas selvagens da Colômbia — constituídas pe-
paramilitares depõem o funcionário judicial los estratos sociais que estão fora de qualquer
estatal e impõem a sua própria administração contrato social — são cobertas pelos serviços
da justiça, deixando o representante do Estado das justiças não oficiais informais, cívicas ou
sem trabalho. Esta dimensão pode ser aplicada armadas. Tais zonas podem, eventualmente,
no contexto das comunidades pobres e margi- ter acesso às áreas periféricas da justiça oficial
nais tanto urbanas como rurais na Colômbia. constituída pela justiça informal de iniciativa
Pode ser utilizada também para distinguir entre estatal. Pelo contrário, as zonas civilizadas — a
formas pacíficas de justiça comunitária, patro- sociedade civil íntima2 e os estratos sociais que
cinadas por organizações de base das comuni- estão incluídos no contrato social — são cober-
dades ou por organizações não governamen- tas, ainda de forma ineficaz, pelos serviços da
tais que actuam nas comunidades e cuja justiça justiça oficial. As limitações do contrato social
produzida é dominada pela retórica, e formas na Colômbia determinam a selectividade da pe-
de justiça patrocinadas por grupos armados netração social da justiça oficial.
(bandas, milícias) que operam nas comunida- Como disse antes, a especificidade da Co-
des e cuja justiça é dominada pela violência. lômbia não reside apenas na enorme fragmen-
A paisagem das justiças na Colômbia é muito tação do campo jurídico produzida pelo plura-
ampla. A extraordinária fragmentação do cam- lismo jurídico subnacional. Reside também no
po jurídico e as complexas articulações entre impacto jurídico-político do pluralismo jurídi-
os ordenamentos jurídicos que o compõem são co supranacional. Desde meados da década de
o outro lado da fragmentação do poder polí-
tico e administrativo do Estado colombiano.
2 Sobre os conceitos de sociedade civil íntima e so-
Esta complexa constelação de juridicidades em ciedade civil estranha, ver Santos, 2006.
Uma ilustração: O pluralismo jurídico na Colômbia 63

oitenta, a Colômbia tem estado submetida a ências. Dada a forma agressiva como a pres-
uma forte pressão dos Estados Unidos no sen- são é exercida, pode suscitar reacções nacio-
tido de adaptar a sua política criminal aos de- nalistas por parte das elites judiciais, criando
sígnios do proibicionismo fundamentalista que uma atitude de resistência passiva que se pode
domina a política norte-americana no campo transformar facilmente em imobilismo con-
das drogas ilícitas desde o início do século XX. tra as reformas em geral e, portanto, também
Esta pressão aumentou exponencialmente nos contra as reformas que é necessário introduzir
últimos anos até um ponto tal que hoje se pode urgentemente para combater a morosidade, a
falar da americanização do sistema jurídico pe- inacessibilidade e ineficácia da justiça oficial.
nal colombiano3. As inovações institucionais Outra consequência da americanização agres-
promovidas pelos programas de “rule of law” siva do sistema jurídico-penal colombiano
e de reforma judicial, provêm de uma cultura reside na eliminação da possibilidade de ex-
jurídica anglo-saxónica e são introduzidas no perimentação com outras soluções jurídico po-
sistema jurídico colombiano, de tradição euro- líticas para o problema das drogas ilícitas, em
peia continental, sem qualquer atenção quanto vista do fracasso das soluções proibicionistas
ao impacto que possam ter na coerência global fundamentalistas, reiteradamente confirmado
do sistema jurídico oficial. Neste âmbito, o di- nas duas últimas décadas.
reito estatal colombiano é uma formação jurí- A enorme fragmentação do campo jurídico
dica híbrida composta por elementos nacionais colombiano — fragmentação subnacional e
e elementos norte-americanos. As normas de supranacional — sendo um reflexo da falta de
extradição são talvez o melhor exemplo desta hegemonia do Estado e da fragmentação do po-
hibridação em conjunto com a recente imple- der político é um factor poderoso de reprodu-
mentação do sistema penal acusatório. ção de ambos. Tal fragmentação não deve, no
A americanização do sistema jurídico-penal entanto, estar sujeita a um juízo político mono-
colombiano tem também outras duas consequ- lítico. Como vimos, a pluralidade de direitos in-
clui ordenamentos jurídicos que representam o
reconhecimento do multiculturalismo e da plu-
3 Informações mais detalhadas sobre a pressão nor-
rietnicidade da sociedade colombiana e tam-
te-americana sobre o sistema jurídico colombiano são
dadas em Santos, 2009: 454-508. bém ordenamentos jurídicos que dão conta das
64 Boaventura de Sousa Santos

energias cívicas das comunidades populares, suficiente falar somente da existência de lega-
urbanas e rurais que, perante o absentismo, a lidades, mas sim de interlegalidades, ou seja,
corrupção ou a ineficácia do Estado, buscam da vigência de um direito poroso formado por
soluções autónomas, pacíficas e democráticas múltiplas redes de legalidade, de tal modo in-
para a resolução dos seus conflitos. É, pois ne- trincadas e diversas, que é possível, na mesma
cessário, diferenciar e avaliar os diferentes or- acção de cumprimento de uma regra, estar a
denamentos jurídicos que compõem a labirín- transgredir outra (Santos, 2000).
tica formação jurídica colombiana à luz da sua
distribuição, positiva ou negativa, com vista à Bibliografia
busca da paz, da democracia e de dignidade Santos, B. de Sousa 2000 A Crítica da Razão
numa sociedade em que o dinamismo social é Indolente: Contra o Desperdício da
tão notável como cruel. Experiência (São Paulo: Cortez).
Utilizo o exemplo colombiano para reforçar Santos, B. de Sousa 2006 A gramática do
que, em vez de existir uma estrutura dual em tempo. Para uma nova cultura política
que as articulações entre direito superior e infe- (Porto: Afrontamento).
rior são estáticas e facilmente identificáveis, a Santos, B. de Sousa 2009 Sociología jurídica
verdade é que as sociedades se constituem cada crítica. Para un nuevo sentido común en
vez mais em constelações jurídicas cujas arti- el derecho (Madrid: Editorial Trotta).
culações e confrontações se dão em espaços- Santos, B. de Sousa e García-Villegas, M.
-tempo diferentes e são tão variadas que se tor- 2001 El caleidoscopio de las justicias en
na difícil identificar os limites de cada ordem. Colombia (Bogotá: Colciencias/Uniandes/
As projecções de diferentes legalidades podem CES/Universidad Nacional/Siglo del
variar em extensão e visibilidade de acordo Hombre) 2 volumes.
com a escala que se use para representá-las e as
fronteiras tornam-se mais permeáveis quando
nos distanciamos do seu centro. Nesse contex-
to, a noção de dualidade de ordens normativos
já não se adequa sendo preferível a concepção
de estrutura híbrida. No mesmo sentido, não é
O Estado heterogéneo e o pluralismo
jurídico em Moçambique*

Introdução desenvolvimento neoliberal. Este modelo espe-


ra obter uma maior confiança no mercado e no
O final do século XX foi testemunho de uma
chamada global ao Estado de direito e da
reforma dos sistemas judiciais em muitos paí-
sector privado e requer um novo quadro jurídi-
co e judicial: só quando o Estado de direito for
ses do mundo. As entidades financeiras multila- aceite amplamente e se faça cumprir com eficá-
terais e as ONGs de ajuda internacional fizeram cia se garantirá a segurança e previsibilidade,
dessas mudanças uma das suas prioridades nos se baixarão os custos das transacções, se acla-
países em desenvolvimento1. A natureza global rarão e protegerão os direitos de propriedade,
deste processo e a intensidade com que foi se farão cumprir as obrigações contratuais e
implementado, tanto em termos económicos se aplicarão as normas. Em muitos países do
como políticos, reflectiu o surgimento de um mundo em desenvolvimento foram implemen-
novo modelo de desenvolvimento: o modelo de tadas profundas reformas jurídicas e judiciais
exclusivamente centradas no sistema jurídico
e judicial oficial, concebido como um sistema
1 Analiso este fenómeno detalhadamente em San- unificado, e deixando de fora a multiplicidade
tos 2002: 313-352. Ver também Tate e Valinder, 1995 e de ordenamentos jurídicos não oficiais e os me-
Scott, 1998. canismos de resolução de conflitos que haviam
coexistido durante muito tempo com o sistema
* Extraído de Santos, B. de Sousa 2009 “O Estado oficial, alguns dos quais dos inícios do período
heterogéneo e o pluralismo jurídico em Moçambique”,
colonial. O abandono das estruturas jurídicas
tradução portuguesa do Capítulo 5 do livro Sociología
jurídica crítica (Madrid: Trotta) pp. 254-289. não estatais, conjugado com a intensa chama-
66 Boaventura de Sousa Santos

da, induzida globalmente, para a reforma e as truturas jurídicas e institucionais da vida eco-
mudanças no papel do Estado, acabaram am- nómica e nas percepções sociais e culturais da
pliando o vazio existente entre a law-in-books política e da legalidade.
e a law-in-action2. Moçambique situa-se no sudoeste de Áfri-
Este texto incide na história recente e ac- ca, entre a África do Sul e a Tanzânia. Durante
tual natureza deste vazio num país africano: vários séculos foi uma colónia portuguesa, tor-
Moçambique. Centro-me em África porque a nando-se independente em 1975. A trajectória
disjunção entre a unidade, oficialmente estabe- de desenvolvimento revolucionário socialista
lecida, do sistema jurídico e a pluralidade so- que adoptou na primeira década após a inde-
ciológica e a fragmentação da prática jurídica é pendência foi abandonada em 1984 perante
hoje provavelmente mais visível em África que uma profunda crise económica e sob a pressão
em qualquer outra região do mundo em desen- das instituições financeiras multilaterais. Foi
volvimento. Na análise que desenvolvo em se- substituída por uma trajectória de desenvolvi-
guida demonstrarei que esta disjunção tem um mento democrático capitalista que mais tarde
impacto múltiplo na acção e legitimidade do foi consagrada na Constituição de 1991. Nos
Estado, no funcionamento do sistema jurídico finais dos anos setenta, estalou uma violenta
oficial, nas relações entre o controlo político e guerra civil que foi inicialmente dirigida e im-
administrativo, nos mecanismos de resolução pulsionada pelos serviços secretos da Rodésia
de conflitos que operam na sociedade, nas es- e da África do Sul. Terminou doze anos mais
tarde com o acordo de paz de 1992, deixando
para trás o campo destruído e meio milhão de
2 Desde a década de noventa, e coincidindo com o mortos. Em 1987, foi assinado o primeiro acor-
final da guerra civil, a viragem neoliberal nas políticas
do de ajuste estrutural3. Como Moçambique era
transnacionais de desenvolvimento — associadas a slo-
gans de “descentralização” e de “promoção da socieda- considerado um dos países periféricos mais
de civil” (ONGS) — produziu uma ruptura dramática pobres, foi submetido desde o início a medidas
com a anterior concepção estadista de desenvolvimen- de reestruturação especialmente severas, devi-
to e de governo centralizado. Em termos práticos, esta
mudança significou o reforço da presença da “comuni-
dade” e a (re)emergência das autoridades tradicionais, 3 Moçambique faz parte das instituições de Bretton
como discuto mais adiante. Woods desde 1984.
O Estado heterogéneo e o pluralismo jurídico em Moçambique 67

do ao seu estatuto de “adaptador forte”/”strong tradicionais, situadas em 6 das 11 províncias


adjuster”. Na actualidade é considerado uma (Maputo, Inhambane, Zambézia, Sofala, Tete e
“história de êxito”, depois de na última déca- Cabo Delgado). Foram levados a cabo estudos
da ter experimentado algum restabelecimento aprofundados em 5 tribunais comunitários —
económico e ter levado a cabo a transição de- Mafalala e Xipamanine (Maputo), Liberdade
mocrática com resultados ambíguos, mas sem (Inhambane), Munhava Central (Sofala) e Mai-
demasiada turbulência. mio (Cabo Delgado) — e 6 autoridades tradi-
A investigação empírica analisada nestas pá- cionais: os regulados Luis (Sofala), Mafambis-
ginas foi levada a cabo entre 1996 e 2002, como se (Sofala), Cumbapo (Zambézia), Zintambila
parte de um projecto de investigação muito mais (Tete), Cumbana (Inhambane) e Nhampossa
amplo sobre o sistema judicial em Moçambique (Inhambane). A recolha de informação consis-
que co-dirigi com João Carlos Trindade, juiz do tiu na observação directa de sessões do tribunal
Tribunal Supremo em Moçambique e director e acordos de resolução de conflitos, informação
do Centro de Formação Jurídica e Judicial de de arquivo quando estava disponível e entrevis-
Maputo4. Os principais resultados estão dispo- tas semi-estruturadas (foram entrevistados 60
níveis em Português (Santos e Trindade, orgs., juízes de tribunais comunitários, 23 autoridades
2003). A informação empírica mais directamen- tradicionais e 72 líderes locais — líderes religio-
te pertinente para a análise que aqui se assume sos, presidentes de associações da comunidade,
compreende uma investigação extensa centrada membros de grupos dinamizadores, adminis-
em 34 tribunais comunitários e 23 autoridades tradores locais e chefes de polícia).
Na secção 1, ocupo-me brevemente das re-
centes transformações em torno da natureza e
4 Esta investigação resulta de uma colaboração entre
do papel do Estado em África e seu impacto no
o Centro de Estudos Africanos (CEA) da Universidade
Eduardo Mondlane de Maputo e o Centro de Estudos pluralismo jurídico. Na secção 2, analiso as con-
Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, Portugal. A dições sociais e políticas que explicam a hetero-
equipa de investigação foi binacional: João Carlos Trin- geneidade da acção estatal e o pluralismo jurí-
dade, André Cristiano, Guilherme Mbilana e Joaquim dico em Moçambique. Na secção 3, centro-me
Fumo de CEA; Boaventura de Sousa Santos, Maria Ma-
nos tribunais comunitários, concebidos como
nuel Marques, Maria Paula Meneses, Conceição Gomes
e João Pedroso do CES. híbridos jurídicos, e na secção 4, nas autorida-
68 Boaventura de Sousa Santos

des tradicionais, concebidas como modernida- O impacto da globalização neoliberal em


des alternativas jurídicas e políticas. África é mais evidente nas estruturas mutá-
veis e nas práticas do Estado. Os Estados que
O Estado heterogéneo e a emergiram dos processos de independência
pluralidade jurídica converteram-se de uma forma ou outra em Es-
tados desenvolvimentistas. Ainda que existam
A emergência do Estado heterogéneo
diferenças enormes entre eles — sobretudo a
A pressão globalizadora experimentada por diferença entre os que adoptaram a trajectória
África na actualidade é quiçá mais intensa e capitalista e os que adoptaram a trajectória so-
selectiva que em qualquer outro momento an- cialista face ao desenvolvimento — os Estados
terior. Desde o século XV, a África tem estado novos apresentaram-se como as forças que
submetida a várias formas de globalização pro- impulsionavam o desenvolvimento. Eram per-
venientes do Ocidente, incluindo o colonialis- cebidos como o centro de tomada de decisões
mo, a escravatura, o imperialismo, o neocolo- económicas estratégicas, e com primazia total
nialismo e o ajuste estrutural. A intensidade do sobre a sociedade civil, uma categoria política,
mais recente fenómeno da globalização radica de resto, muito pouco usada neste período.
no facto de ser quase totalmente impossível Este modelo de Estado operou através de gran-
resistir-lhe a nível local. Surge como um impe- des aparelhos burocráticos, muitos deles her-
rativo incondicional e inevitável5. dados do Estado colonial. Aliás, este “sobredi-
mensionamento” ou “sobredesenvolvimento”
do Estado em relação à sociedade constituiu
5 É certo que as pressões globais estão sujeitas a uma das mais resistentes continuidades com o
adaptações locais, mas estas, sobretudo nos países
regime colonial (Bayart, 1993 e Young, 1994).
periféricos, estão menos abertas à negociação, ou são
marginais ou ditadas pelo capricho filantrópico das Desde meados dos anos setenta e até aos
agências internacionais ou países do centro em situ- inícios dos anos oitenta, este modelo de Esta-
ações especialmente extremas de colapso social. Uma do entrou em crise. Foi durante este período
boa ilustração disto é a iniciativa HIPIC (os Países Po- de transição, em 1975, quando os países se
bres Altamente Endividados) dirigida pelo Banco Mun-
libertaram do colonialismo Português — Mo-
dial e pelos países credores como uma forma de aliviar
a dívida externa dos países mais empobrecidos. çambique, Angola, Guiné-Bissau, as Ilhas de
O Estado heterogéneo e o pluralismo jurídico em Moçambique 69

Cabo Verde e as Ilhas de São Tomé e Prínci- Inerentemente predador e ineficaz, o Estado
pe, e todos eles, sem excepção, adoptaram a deve ser reduzido ao mínimo já que reduzir o
via socialista para o desenvolvimento6. Com o seu tamanho era o único meio de reduzir o seu
colapso final da União Soviética já eminente, o impacto negativo no desenvolvimento dos me-
Consenso de Washington, adoptado pelos paí- canismos para a solução dos problemas basea-
ses do centro sob a égide dos Estados Unidos, dos na sociedade. Em muitos países africanos,
em meados dos anos oitenta, decidiu o destino a produção da fraqueza do Estado, combinada
dos modelos de desenvolvimento nacionalista com as consequências socialmente imorais do
e socialista baseados na supremacia do Esta- ajustamento estrutural, levou alguns Estados
do. A partir de então, o Estado, que sob o mo- à beira da implosão total. Como sempre, fac-
delo de desenvolvimento anterior tinha sido a tores externos combinaram-se com factores
solução para os problemas da sociedade, con- internos para provocar guerras civis, guerras
verteu-se no grande problema da sociedade. interétnicas, o aumento da corrupção e, con-
sequentemente, da privatização do Estado e o
colapso das frágeis estruturas administrativas
6 África foi o único continente que não foi dividido do Estado, sobretudo na área das políticas de
pelo Tratado de Yalta no fim da Segunda Guerra Mun- educação, saúde e infra-estruturas básicas. A
dial e onde, portanto, a guerra fria se traduziu numa per- partir de meados da década de noventa, o pró-
manente “guerra de posição”, para usar a terminologia
gramsciana. Aliás, o colonialismo português sobreviveu prio Banco Mundial, que tinha sido o grande
mais tempo, apesar das debilidades da potência colo- promotor do Estado fraco, acabou por reco-
nial, porque serviu os interesses dos países capitalistas nhecer que o novo modelo de desenvolvimento
ao funcionar como tampão ao avanço soviético, sobre- pressupunha um Estado suficientemente forte
tudo na África Austral. Ainda em plena guerra-fria, os
e eficaz para garantir a regulação da economia
novos países independentes adoptaram a posição do
bloco que apresentava já sinais visíveis de fraqueza, o e a estabilidade das expectativas dos agentes
bloco soviético. Ao tampão colonial sucedia-se a amea- económicos e dos actores sociais em geral.
ça soviética, o que explica a guerra de desestabilização Por chegarem tarde, os novos Estados emer-
de que foram alvo, de imediato, Angola e Moçambique gentes do colonialismo Português em meados
por parte da África do Sul do apartheid. A guerra de
dos anos setenta, depois de décadas de lutas de
desestabilização deu lugar à guerra civil, que durou até
1992 em Moçambique e até 2002 em Angola. libertação, sofreram de forma ainda mais drás-
70 Boaventura de Sousa Santos

tica as consequências das novas imposições dinâmicas e até voláteis fazendo com que a
globais que afectaram de maneira profunda as natureza da pluralidade jurídica seja cada vez
tarefas mais básicas da construção de um Es- mais complexa. Na situação actual, a centra-
tado. Na secção 3 ilustro esta ideia utilizando lidade do Estado reside, em grande parte, na
para isso o exemplo de Moçambique. forma como ele organiza o seu próprio des-
Como resultado dos imperativos globais centramento. Por outras palavras, a retirada
que acabo de mencionar e pela emergência de do Estado regulador — o que se havia deno-
poderosos processos políticos supraestatais, minado a desregulação da vida económica e
o Estado-Nação africano perdeu centralismo e social — apenas se pode alcançar mediante a
dominação. Contudo, de forma aparentemen- acção do Estado, grande parte da qual tem de
te paradoxal, estes mesmos processos ocasio- ser alcançada através da legislação.
naram a emergência de actores infraestatais A forma como acontece a transformação
(por vezes, actores muito poderosos) igual- do Estado contribui para um incremento da
mente determinados, ainda que por razões heterogeneidade funcional da sua acção. Sob
muito distintas, a questionar a centralidade pressões frequentemente contraditórias, os
do Estado-Nação. O caso em questão é a ree- diferentes sectores da acção estatal assumem
mergência das autoridades tradicionais como lógicas de desenvolvimento e ritmos tão dis-
actores sociais e políticos, um fenómeno que, tintos, causando desconexões e incongruên-
como menciono mais adiante, ocorreu em cias, que por vezes já não é possível identificar
Moçambique. A combinação destas pressões um modelo coerente de acção estatal, ou seja,
produziu um duplo descentramento do Esta- um modelo comum a todos os sectores esta-
do, aos níveis infra e supraestatais. Isto não tais ou campos de acção estatal. Isto está re-
significa que o Estado tenha deixado de ser lacionado com a crescente dualidade entre os
um factor político chave. Não obstante, a for- sectores intensamente transnacionalizados da
ma como se disputa e reforma transformam- vida social e os não transnacionalizados ou os
-no num campo social cada vez mais comple- que apenas estão marginalmente transnacio-
xo no qual as relações sociais, estatais e não nalizados. A heterogeneidade da acção estatal
estatais, locais e transnacionais, interagem, auto reflecte-se na ruptura total da instável
se fundem e se confrontam em combinações unidade do direito estatal com a consequen-
O Estado heterogéneo e o pluralismo jurídico em Moçambique 71

te emergência de diferentes políticas e esti- pelas múltiplas rupturas que rapidamente se


los de legalidade estatal, cada uma das quais sucedem. Na secção 2 ilustro todos estes fac-
funciona com relativa autonomia. Em casos tores com o exemplo de Moçambique.
extremos, tal autonomia pode conduzir à for-
mação de múltiplos micro-Estados que fun- Formas velhas e novas
cionam dentro do mesmo Estado7. Denomino de pluralismo jurídico
esta nova formação política de Estado hete-
A pluralidade jurídica nas sociedades afri-
rogéneo8. Caracteriza-se pela incontrolada
canas contemporâneas é na actualidade mais
coexistência de culturas e lógicas regulatórias
complexa que em qualquer outro momento e
completamente distintas em diferentes secto-
isto deve-se, em grande parte, aos processos
res (por exemplo, em políticas económicas e
de transformação estatal acima mencionados.
em políticas de família ou religião) ou níveis
Até muito recentemente, a análise da plurali-
(local, regional e nacional) de acção estatal.
dade jurídica centrava-se na identificação de
Entre os factores mais significativos respon-
ordenamentos jurídicos locais e intraestatais,
sáveis pelo Estado heterogéneo encontra-se a
que coexistiam de distintas formas com o di-
disjunção entre o controlo político e adminis-
reito oficial nacional. Hoje em dia, junto aos
trativo sobre o território e sua população, a
ordenamentos jurídicos locais e nacionais, es-
falta de integração entre as diferentes culturas
tão a emergir ordenamentos supranacionais,
políticas e jurídicas que governam a acção do
que interferem de múltiplas formas com os pri-
Estado e o sistema jurídico oficial e os trans-
meiros. Na actualidade, a pluralidade jurídica
tornos políticos e institucionais ocasionados
subnacional funciona em combinação com a
pluralidade jurídica supranacional9.
7 Por vezes os chamados microestados agrupam-se
em torno de diferentes ministérios. Por exemplo, o Mi- 9 Em relação a este tema, ver Santos, 2002: 163-
nistério da Energia e o Ministério do Ambiente podem 351 onde a discussão que se resume nesta secção se
funcionar podem funcionar sob princípios políticos e encontra tratada detalhadamente. A pluralidade ju-
lógicas reguladoras mutuamente incompatíveis. rídica é uma das discussões centrais da sociologia e
8 A minha primeira formulação do conceito de antropologia do direito. Ver, entre outros, Nader, 1969;
Estado heterogéneo pode ser consultada em Santos, Hooker, 1975; Moore, 2000 e 1992; Galanter, 1981; Ma-
1995: 274-281. caulay, 1983; Fitzpatrick, 1983; Griffiths, 1986; Merry,
72 Boaventura de Sousa Santos

Partindo de uma perspectiva sociológica, a sociedades africanas da actualidade a plurali-


articulação entre as diferentes escalas do direi- dade de ordenamentos jurídicos é muito mais
to torna-se10, por isso, cada vez mais comple- extensa e as interacções entre eles são muito
xa. Podemos identificar três escalas — a local, mais densas. Paradoxalmente, se por um lado
a nacional e a global. Cada uma tem os seus esta relação mais densa implica uma maior
próprios fundamentos e normas jurídicas, com probabilidade de conflito e tensão entre os di-
o resultado de que as relações entre elas são ferentes ordenamentos jurídicos, também de-
com muita frequência tensas e conflituantes. monstra que estes se encontram mais abertos
Estas tensões e conflitos tendem a aumentar e susceptíveis a influenciar-se mutuamente. As
à medida que as articulações entre os diferen- fronteiras entre os diferentes ordenamentos
tes ordenamentos jurídicos e as diferentes es- jurídicos tornam-se mais porosas e cada um
calas do direito se multiplicam e aprofundam. perde a sua identidade “pura” e “autónoma” e
Enquanto que na sociedade colonial resultava apenas se pode definir em relação à constela-
fácil identificar os ordenamentos jurídicos e
suas esferas de acção, e desta forma regular
as relações entre eles — por um lado, o direito foi um dos primeiros a demonstrar que o direito con-
colonial europeu, e pelo outro, o direito con- suetudinário, longe de ser um sobrevivente, foi fruto
suetudinário dos povos autóctones11—, nas das mudanças e conflitos provocados pelo colonialis-
mo (1998, originalmente publicado em 1986). A espe-
cificidade da África do Sul neste sentido, tanto no pe-
ríodo pré como no pós-apartheid é analisada por Klug,
1988; Starr y Collier, 1989; Chiba, 1989; Benda-Beck- 2000a e 2002.
mann, 1988 e 1991; Teubner, 1992; Tamanaha, 1993; Neste tema, sobre África e concretamente sobre Mo-
Twining, 1999 e Melissaris, 2004. çambique veja-se, por exemplo, Aguiar, 1891; Lopes,
1909; Ennes, 1946; Gonçalves Cota, 1944, 1946; Mon-
10 Utilizo a expressão “escalas” no sentido em que se dlane 1969; Mondlane, 1997; Sachs e Honwana Welch,
utiliza nos mapas e não como se utiliza com a frequente 1990; Ghai, 1991; Hall e Young, 1991; Gundersen, 1992;
metáfora de “escalas de justiça”. Moiane, 1994; Moore, 1994; Ki-Zerbo, 1996; Mamdani,
11 Isto não quer dizer que os dois ordenamentos jurí- 1996 e O’Laughlin, 2000. No tocante ao pós-colonialis-
dicos existam de forma separada, em dois mundos dis- mo e à pluralidade jurídica, ver, por exemplo, Darian-
tintos. Pelo contrário, a separação foi o resultado das -Smith e Fitzpatrick, 1999; Randeria, 2004 e Comaroff
intensas e desiguais interacções entre ambos. Chanock e Comaroff, 2006.
O Estado heterogéneo e o pluralismo jurídico em Moçambique 73

ção jurídica de que faz parte. Desta porosida- Estado moderno o não oficial é tudo aquilo que
de e interpenetração desenvolve-se aquilo que não se reconhece como proveniente do Esta-
denomino de híbridos jurídicos, ou seja, enti- do. Pode ser proibido ou tolerado; no entanto,
dades jurídicas ou fenómenos que combinam a maior parte do tempo, é ignorado. A variável
distintos e com frequência contraditórios or- formal/informal refere-se aos aspectos estrutu-
denamentos jurídicos ou culturas, dando lugar rais dos ordenamentos jurídicos em funciona-
a novas formas de significado jurídico e acção. mento. Considera-se que um tipo de direito é
Na secção 3, ilustro o conceito de híbrido jurí- formal quando é dominado por intercâmbios
dico com o exemplo dos tribunais comunitá- escritos e por normas e procedimentos estan-
rios em Moçambique. dardizados, e por sua vez, considera-se infor-
As situações que implicam a hibridação ju- mal quando é dominada pela oralidade e pela
rídica como uma nova forma de pluralismo argumentação da linguagem comum. A variá-
jurídico desafiam as dicotomias convencionais vel tradicional/moderno diz respeito à origem
ao ponto das práticas jurídicas combinarem e à duração histórica do direito e da justiça.
frequentemente pólos opostos das mesmas, Diz-se tradicional o que se crê existir desde
contendo um número infinito de situações in- tempos imemoriais, não sendo possível iden-
termediárias. Apesar disto, partindo de uma tificar, com precisão, nem o momento nem os
perspectiva analítica as dicotomias são um agentes da sua criação. Pelo contrário, diz-se
bom ponto de partida sempre e quando tenha moderno, o que se crê existir há menos tempo
ficado claro desde o início que não proverão o do que aquilo que se considera ser tradicional e
ponto de chegada. As dicotomias convencio- cuja criação pode ser identificada, quer no tem-
nais mais relevantes para analisar a pluralida- po, quer na autoria12. A variável monocultural/
de jurídica em Moçambique são as seguintes: multicultural diz respeito aos universos cultu-
oficial/não oficial, formal/informal, tradicional/
moderno, monocultural/multicultural.
A variável oficial/não oficial provêm da de- 12 Esta temática tem sido amplamente debatida no
finição político-administrativa do que se reco- contexto das ciências sociais africanas pós-coloniais.
Ver Copans, 1990; Ela, 1994; Gable, 1995; Mamdani,
nhece como direito ou administração de jus-
1996; Werbner, 1996; Chabal, 1997; Fisiy e Goheen,
tiça e o que não é reconhecido como tal. No 1998; Mappa, 1998 e Mbembe, 2000 e 2001.
74 Boaventura de Sousa Santos

rais de que decorrem os diferentes direitos e mesmas camadas arqueológicas compreendem


justiças em presença13. Existe pluralismo ju- objectos e resíduos provenientes de períodos
rídico monocultural sempre que os diferentes e épocas muito distintas e que não são com
direitos e justiças pertencem à mesma cultura frequência susceptíveis de ter uma data exac-
e, pelo contrário, há pluralismo jurídico multi- ta. Utilizo a metáfora do palimpsesto para des-
cultural sempre que a diversidade dos direitos crever as complexas formas como que culturas
e justiça é o correlato de diferenças culturais políticas e jurídicas e durações históricas mui-
importantes (Santos, 1995: 506-519; 1997; 2002; to distintas se entrelaçam inextricavelmente
2006). Tomando este conjunto de variáveis ou no Moçambique contemporâneo. O seu impac-
dimensões como pontos de partida, nas sec- to nas funções e acções do Estado é interpreta-
ções seguintes analiso algumas das caracterís- do segundo o conceito do Estado heterogéneo
ticas mais importantes da pluralidade jurídica que ilustro mais abaixo.
em Moçambique. Em quase trinta anos de existência do Esta-
do independente sobrepuseram-se em Moçam-
Um palimpsesto de culturas bique culturas político-jurídicas tão diferentes
políticas e jurídicas quanto a cultura eurocêntrica colonial; a cul-
Um palimpsesto é um pergaminho ou outro tura eurocêntrica socialista, revolucionária; a
material sobre o qual se escreve a segunda vez, cultura eurocêntrica, capitalista, democrática;
sendo o escrito original o que se apaga para dar e as culturas tradicionais ou comunitárias. A
lugar ao segundo, ou simplesmente é um ma- fixação desigual destas culturas político-jurí-
nuscrito em que um escrito posterior escreve dicas tão diversas provém em grande medida
sobre um escrito anterior que foi apagado. Em da instabilidade política provocada por múlti-
arqueologia o conceito de palimpsesto utiliza- plas rupturas que se sucederam a um ritmo rá-
-se para fazer referência a situações em que as pido. De facto, durante os últimos trinta anos,
a sociedade moçambicana experimentou uma
série de transformações políticas radicais, mui-
13 Sobre o debate da temática do direito e do multi- tas delas traumáticas, que se sucederam a uma
culturalismo, veja-se Khatibi, 1983; Pannikar, 1984, 1996;
velocidade vertiginosa. As mais relevantes são
Lippman, 1985; Sheth, 1989; Le Roy, 1992; Ndegwa, 1997;
Esteva e Prakash, 1998; Tie, 1999 e Sanchez, 2001. as seguintes: o final do colonialismo, que foi
O Estado heterogéneo e o pluralismo jurídico em Moçambique 75

violento até ao seu último período (começando os seus rastros e a criar um novo começo, inca-
com a luta pela libertação nacional desde iní- paz ou pouco disposto a acomodar o passado
cios dos anos sessenta até 1975); uma ruptura imediato. Na realidade, no entanto, as rupturas
revolucionária que pretendia construir uma na- coexistiram juntamente com as continuidades,
ção desde o Rovuma a Maputo14, uma socieda- combinando as rupturas explícitas e auto-pro-
de socialista e um “Homem novo” (1975-1984); clamadas com as continuidades tácitas e, por
a agressão da Rodésia colonial e da África do isso, dando lugar a constelações e hibridações
Sul do apartheid como vingança pela solidarie- jurídicas e institucionais muito complexas.
dade oferecida por Moçambique na luta pela li- Algumas dessas constelações resultaram
bertação na região (desde finais dos anos seten- de decisões políticas, outras foram proliferan-
ta até aos oitenta); a guerra civil (desde finais do, mais ou menos subterraneamente, muito
dos anos setenta até 1992); o colapso do mo- para além das proclamações políticas. Nestas
delo económico revolucionário e a sua abrupta constelações combinaram-se culturas de maior
substituição, sob pressão externa, pelo modelo duração histórica (as culturas tradicionais, co-
capitalista neoliberal que incluiu tanto o ajuste munitárias e a cultura colonial) e culturas de
estrutural como a transição para a democracia menor duração histórica (a cultura socialista,
(1985-1994); e finalmente, a construção da de- revolucionária e a cultura capitalista, democrá-
mocracia (desde 1994 até ao presente)15. Todas tica). A cultura político-jurídica colonial, ape-
estas transformações ocorreram como ruptu- sar de rejeitada da maneira mais incondicional
ras, como processos que em vez de tirar pro- — como demonstram paradigmaticamente as
veito das características positivas das transfor- ideias do “escangalhamento do Estado” du-
mações anteriores, procuraram remover todos rante o período revolucionário —, acabou por
prevalecer até hoje, não só sob as formas mais
óbvias da legislação colonial que continuou em
14 Estes dois rios delimitam as fronteiras do norte e vigor, ou da organização administrativa, mas
do sul de Moçambique.
sobretudo em hábitos e mentalidades, estilos
15 Para uma avaliação da história política e económi- de actuação, representações do outro, etc.
ca de Moçambique dos últimos 30 anos, ver Chingono,
(Bragança e Depelchin, 1986 e Monteiro, 1999).
1996; Minter, 1998; Chabal (org.), 2002; Trindade, 2003 e
Francisco, 2003. Foi nessa cultura que se formou muito do fun-
76 Boaventura de Sousa Santos

cionalismo público que até hoje vem garantin- Neste primeiro período, a constelação de cul-
do as rotinas possíveis da administração. turas político-jurídicas foi dominada pela cultu-
Outra cultura político-jurídica que foi rejeita- ra socialista, revolucionária (daqui em diante,
da, ainda que não tão incondicionalmente, foi cultura socialista). Tratou-se de uma cultura
o conjunto das culturas tradicionais ou comu- baseada na experiência revolucionária euro-
nitárias. Consideradas produtos da ignorância peia do princípio do século XX, mas para a qual
e produtoras de obscurantismo, estas cultu- contribuíram experiências revolucionárias não
ras foram consideradas como não autónomas, europeias: latino-americanas (Cuba), asiáticas
como instrumentos da cultural colonial. Esta (China e Coreia do Norte) e africanas (o socia-
atitude de rejeição, que dominou em absoluto lismo africano, com um enfoque muito menos
nos primeiros anos pós-independência, coexis- Marxista-Leninista que o anterior e, em geral,
tiu com uma outra mais contemporizadora para com um conjunto de doutrinas muito menos ex-
com as virtualidades das culturas tradicionais plícitas, como demonstra o caso da Tanzânia).
(Santos, 1984). Por exemplo, a criação dos tri- Aparentemente a única legitimada, a verdade
bunais populares procurou cooptar selectiva- é que, como referimos, ela conviveu de modo
mente as culturas tradicionais, de modo a pô- mais ou menos subterrâneo, quer com a cultura
-las ao serviço da cultura revolucionária (Sachs colonial, quer com as culturas tradicionais.
e Honwana Welch, 1990 e Gundersen, 1992)16. A partir de final da década de oitenta, foi a
vez de a componente cultural revolucionária
entrar em recessão, cedendo o seu lugar de
16 Os tribunais populares eram considerados “uma primazia à cultura eurocêntrica, capitalista e
arma permanentemente dirigida ao inimigo de classe, democrática (daqui em diante, cultura demo-
aos reaccionários e aos traidores, aos sabotadores da
crática). Ao contrário da primeira, que fora
economia e aos exploradores sem escrúpulos, aos cri-
minosos e aos proscritos por todo o país”. Os tribunais adoptada com autonomia e com a mobilização
populares eram, portanto, o instrumento que permitia preponderante de energias internas, a cultura
à população “resolver os problemas e dificuldades que
emergem na vida da comunidade, área local, aldeia ou
bairro”. Os tribunais populares eram tidos como uma direito, o qual está crescentemente derrotando o antigo
garantia de consolidação e unidade dos Moçambica- direito da sociedade colonial-capitalista e feudal” (Pre-
nos, “o grande progresso em que a gente cria o novo âmbulo da Lei Nº 12/78).
O Estado heterogéneo e o pluralismo jurídico em Moçambique 77

eurocêntrica democrática foi adoptada sob mesmas instalações e socorrendo-se dos mes-
fortes pressões externas, o que de modo ne- mos juízes que, no período anterior, eram juízes
nhum exclui a sua adopção genuína por parte populares, os tribunais comunitários transfor-
de algumas elites políticas nacionais. Tal como maram-se numa instituição híbrida, altamente
sucedeu com o período da primazia da cultu- complexa em que se combinam as culturas
ra político-jurídica revolucionária, a cultura político-jurídicas revolucionárias, tradicionais
eurocêntrica capitalista trouxe consigo pro- e comunitárias e em que, afinal, apenas está
fundas transformações políticas, entre elas a ausente a cultura que supostamente passou a
paz, a sujeição ao capitalismo global e a tran- ter a primazia e senão mesmo o monopólio da
sição democrática. Tal como acontecera antes legitimidade oficial, a cultura democrática. Em
com a cultura eurocêntrica, revolucionária e diferentes sectores da administração pública e
socialista, a cultura eurocêntrica, capitalista e da legislação foram-se constituindo diferentes
democrática pretendeu ser a única referência constelações político-jurídicas. A componente
cultural legitimada, mas de novo teve de con- revolucionária, que foi oficialmente substituída
viver numa constelação cultural, todavia mais pela componente democrática, de facto experi-
complexa, não só com as culturas de maior mentou diferentes metamorfoses e combinou-
duração, a colonial e as tradicionais, como -se com as outras tensões culturais.
ainda com a cultura revolucionária do período Deste caldear de rupturas e de continuidades
anterior. Esta última tinha-se traduzido numa emergiu uma acção estatal altamente heterogé-
importante materialidade institucional que, nea e uma complexa matriz de pluralismo jurí-
apesar de formalmente revogada, continuou a dico interno que hoje domina o sistema jurídico
vigorar no plano sociológico. Assim, por exem- e judicial e, também a administração pública.
plo, os tribunais comunitários, criados neste Mas uma consideração integral destas caracte-
segundo período (1992) em substituição dos rísticas da vida jurídica e política em Moçam-
tribunais populares, do período anterior — bique exige que se tenha em conta outro factor
embora, ao contrário destes, desintegrados da mais recente: as duras pressões da globalização
hierarquia judicial — acabaram por dar conti- a que Moçambique tem estado sujeito no pro-
nuidade aos tribunais populares, ainda que em cesso de “ajuste estrutural”. Trata-se, pois, do
condições de grande precariedade. Usando as impacto do global no local e no nacional, em
78 Boaventura de Sousa Santos

condições em que nem o local nem o nacional as forças transnacionais e, portanto, à volta do
podem endogeneizar, interiorizar, adaptar e qual se podem gerar debates políticos e cultu-
muito menos subverter, as pressões externas. rais genuínos e intensos. A questão da possível
Nestas condições, tais pressões, porque muito correspondência ou compatibilidade entre as
intensas e selectivas, provocam alterações pro- lógicas regulatórias que presidem a estes dois
fundas em algumas instituições e em alguns qua- sectores nem sequer se põe. A heterogeneidade
dros legais, impondo-lhes lógicas de regulação e o pluralismo jurídico interno residem precisa-
muito próprias, ao mesmo tempo que deixam mente nas disjunções que, por inquestionadas,
outras instituições e quadros legais intocados e, proliferam descontroladamente17.
portanto, sujeitos às suas lógicas próprias. Da- As pressões globais que têm vindo a causar
qui decorre uma enorme fragmentação e seg- o pluralismo jurídico-institucional interno são
mentação que atravessa todo o sistema jurídico de dois tipos fundamentais: as pressões pro-
e administrativo. De um lado, sectores trans- vindas das agências financeiras internacionais
nacionalizados, operando segundo lógicas re- e dos chamados “países doadores” que incidem
gulatórias impostas pelas agências financeiras muito especificamente sobre a área econó-
multilaterais e pelos países centrais; do outro mica; e as pressões decorrentes dos mesmos
lado, sectores nacionalizados ou localizados, agentes, mas sobretudo das organizações não
operando segundo lógicas híbridas e endóge- governamentais (ONGs) estrangeiras ou trans-
nas, que, por serem indiferentes aos desígnios nacionais e que incidem principalmente no
transnacionais, são deixados às elites nacionais que podemos designar por políticas sociais em
e locais para sobre eles exercerem as suas di- sentido amplo. Ambas as pressões são muito
ferenças políticas e pessoais. Por exemplo, o
sector do direito económico e financeiro é hoje
17 Neste processo de segmentação jurídico-institucio-
um sector altamente transnacionalizado e nele nal não está excluída a hipótese de alguns sectores ju-
vigoram lógicas unívocas, pensamentos únicos, rídicos ou administrativos tentarem fazer a ponte entre
imperativos globais que deixam pouco ou ne- os dois conjuntos de lógicas regulatórias em presença.
nhum espaço à decisão política interna; pelo É, a nosso ver, o caso da lei de terras aprovada em 1997.
Permanece em aberto a questão de saber se a constru-
contrário, o sector do direito da família é um
ção de tal ponte, sempre difícil, será suficientemente
sector nacionalizado, pouco importante para sólida para ter êxito (Negrão, 2003a).
O Estado heterogéneo e o pluralismo jurídico em Moçambique 79

fortes, ao ponto de ser legítimo pôr a questão da common law, ao separar-se do acordo pos-
de saber se não estaremos perante situações de terior à Segunda Guerra Mundial, especialmen-
partilha de soberania entre o Estado moçam- te na sua versão de direito norte-americana,
bicano e os agentes de tais pressões. Na área chegou a assumir, através da globalização, um
económica é conhecida a segmentação imensa papel cada vez mais importante. Esta promo-
produzida pelo ajustamento estrutural entre o ção da common law — que por vezes pode ser
sector internacionalizado da economia e, por muito intensa — é levada a cabo em países
exemplo, o chamado sector informal. Trata-se com culturas jurídicas muito distintivas, e com
de dois mundos jurídicos e institucionais cujas lógicas e métodos de funcionamento muito
actuações são muitas vezes insondáveis. Com- distintos às que prevalecem na cultura jurídi-
pete ao Estado mantê-los distantes, gerir esta ca anglo-saxónica. Assim, são criadas discre-
heterogeneidade e nunca eliminá-la. A um nível pâncias nos sistemas jurídicos nacionais, que
estritamente jurídico, a heterogeneidade das se somam aos altos níveis de heterogeneidade
lógicas regulatórias e a dualidade dos mundos estatal e pluralismo jurídico. A cultura jurídi-
jurídicos e institucionais incluso se reprodu- ca moderna oficial de Moçambique, inspirada
zem de outro jeito. As duas principais subcul- pela cultura jurídica continental europeia, co-
turas da cultura político-jurídica eurocêntrica meçou a experimentar a influência da cultura
— o direito civil continental e a common law jurídica anglo-saxónica por duas vias: através
anglo-saxónica — estão hoje em dia ocupadas das políticas de ajuste estrutural, e devido à
com o que poderíamos chamar uma “guerra proximidade e dos estreitos laços económicos
cultural jurídica e global”18. A cultura jurídica entre os dois países, através da África do Sul,
cuja cultura jurídica é originalmente romano-
-holandesa e anglo-saxónica. A influência desta
18 Utilizo o conceito de guerras culturais jurídicas
globais para assinalar as formas extremas de competi- última detecta-se tanto no direito contratual
ção entre os diferentes sistemas jurídicos, especialmen- como no processo legislativo.
te nos países da periferia e com frequência vinculados Na “área social” ou das políticas sociais, as
a programas de ajustamento estrutural. Exemplos de segmentações e as partilhas de soberania são
tais formas extremas de competição podem consultar-
ainda mais complexas. A complexidade reside
-se entre outros em Santos, 2002: 208-215; Nader, 2002 e
Dezalay e Garth, 2002. no facto de as diferentes ONGs e, em muitos
80 Boaventura de Sousa Santos

casos, os diferentes Estados centrais que estão mentação institucional e administrativa do Es-
por detrás delas, terem diferentes concepções tado decorre de em muitas situações não haver
do que deve ser a intervenção social em domí- sequer negociações e apenas sobreposições
nios tão diferentes quanto a luta contra a po- mais ou menos anárquicas que geram exclu-
breza, as infra-estruturas básicas, a educação, sões e queixas de todas as partes envolvidas.
a saúde, a protecção da economia familiar e do Assim, queixa-se, por exemplo, o governo dis-
meio ambiente, etc. Ou seja, no domínio social trital se uma ONG internacional decidiu operar
a pressão global não é apenas forte, é também directamente com a comunidade e a partir da
muito diferenciada. A força reside ainda em auscultação das necessidades desta. Queixa-
que a pressão, longe de se conceber como im- -se o governo provincial ante a decisão de uma
posição, é concebida como solidariedade inter- ONG de apoiar directamente um município
nacional que legitimamente tem o direito de es- sem canalizar o apoio pelo governo provincial.
tabelecer as condições do seu exercício. Como Queixam-se uma ou várias ONGs nacionais no
essas condições variam de ONG para ONG e caso de uma ONG internacional ter coordena-
de país doador para país doador, e como ONGs do a sua assistência com governo provincial
e países têm concentrado as suas intervenções sem incluir as ONGs nacionais actuando no
em algumas regiões ou províncias do país, a terreno. Queixam-se os governos provinciais
heterogeneidade das políticas sociais assume e distritais no caso das ONGs internacionais
uma expressão territorial. A consequente frag- terem decidido apoiar certas áreas ou comu-
mentação e segmentação surge como resultado nidades “sem razões plausíveis”. Queixam-se,
de complexas negociações não só entre ONGs finalmente, as ONGs internacionais por não
estrangeiras e internacionais e países doado- verem definido o estatuto da sua intervenção
res, por um lado, e Estado nacional e Governos por parte do governo nacional, o que faz com
provinciais e distritais, por outro mas também que sejam vistas como “governos paralelos”
das relações desiguais entre as ONGs estran- quando de facto querem ser apenas parceiros.
geiras e internacionais e as ONGs nacionais, as É destas exclusões recíprocas que se alimenta
quais, na esmagadora maioria dos casos, estão a própria disjunção entre controlo político e
dependentes financeiramente das primeiras e, controlo administrativo e se transforma o últi-
portanto, sujeitas às suas condições. A frag- mo num apêndice do primeiro. Esta transfor-
O Estado heterogéneo e o pluralismo jurídico em Moçambique 81

mação, que pode suceder noutros contextos, é precária e o Estado parece ser com frequên-
aqui particularmente intensa e a sua especifi- cia um conjunto de micro-Estados, que se en-
cidade é estabelecida pelo facto de com frequ- contram a vários graus de distância entre eles,
ência implicar as três escalas (local, nacional e alguns deles são locais e outros nacionais ou
global) do direito e da política. transnacionais, e todos eles são portadores de
Para pôr fim às formas extremas de seg- distintas e complexas lógicas funcionais. Esta
mentação e de fragmentação da acção esta- é a condição que caracteriza tanto o Estado
tal, o Governo procurou, através do Decreto heterogéneo como o pluralismo jurídico sob as
Nº 55/98, de 13 de outubro, estabelecer algum condições da globalização. A caracterização do
controlo sobre a actuação das ONGs. O art. 6º pluralismo jurídico é apresentada em detalhe
Nº 4 estabelece que “compete ao órgão cen- nas secções seguintes.
tral de tutela da actividade da ONG a indica- Concluo a análise das condições que expli-
ção da província para a realização das suas cam a heterogeneidade e pluralidade jurídica
actividades, tendo em conta a necessidade de do Estado Moçambicano centrando-me na
aplicação do princípio da equidade no desen- disjunção do controlo político e administra-
volvimento do país”; e o art. 2º Nº 3 estipula tivo, ou seja, na incapacidade do Estado para
que “na prossecução das suas actividades as garantir tanto a separação como a igual pe-
ONGs estrangeiras estarão interditas de reali- netração territorial do controlo político e ad-
zar ou promover acções de natureza política”. ministrativo, tendo desta forma uma tendên-
Do nosso conhecimento, este Decreto não foi cia a politizar o controlo administrativo e a
ainda regulamentado e são facilmente de ima- exercitar este último de forma selectiva. Este
ginar as dificuldades na sua regulamentação. é um dos legados mais persistentes do Estado
Numa situação que contém uma grande colonial em África e intensificou-se nas duas
segmentação de práticas estatais, jurídicas, ju- últimas décadas devido à globalização neo-
diciais e institucionais, a desregulação oficial liberal, especialmente nos países que ganha-
tem sempre um alcance menor do que declara ram independência mais recentemente, como
ter e a re-regulação é muito menos homogénea é o caso dos países africanos de língua portu-
do que pretende ser. Nestas circunstâncias, a guesa. O sobredimensionamento do controlo
unidade jurídica e institucional do Estado é político em relação ao controlo administrati-
82 Boaventura de Sousa Santos

vo é hoje em dia evidente em Moçambique. mente eliminadas ou suplantadas, continuam


Em termos administrativos, o Estado debate- a sobreviver como entidades políticas e ad-
-se ainda com o problema que acompanhou ministrativas — ou autoridades tradicionais
desde sempre a criação dos Estados moder- (Geffray, 1990; Dinerman, 1999 e Chichava,
nos, entre os quais, o problema da penetração 1999). Mas para além da heterogeneidade dos
do Estado, ou seja, da sua presença política e recursos — que configura uma situação de
burocrática efectiva na totalidade do territó- bricolage burocrática — há também a hetero-
rio. A existência deste problema incita à po- geneidade da lógica operacional, provocada
litização do administrativo. Reside aqui, por pela coexistência do formal e informal, do ofi-
exemplo, uma das dificuldades em traduzir os cial e não oficial, o moderno e o tradicional,
resultados das eleições em partilha do poder, o revolucionário e o pós-revolucionário. Na
uma vez que se teme (ou se pretende, conso- secção seguinte ilustramos algumas destas
ante a perspectiva de um ou outro contendor) complexas coexistências.
que essa partilha envolva a perda do controlo
administrativo que se imagina sempre posto Pluralidades jurídicas
ao serviço do controlo político. A disjunção entrelaçadas: os tribunais
do controlo político e administrativo também comunitários como híbridos
ocasiona que, nas suas práticas quotidianas, jurídicos
a administração pública não tenha condições Nesta secção e na próxima analiso alguns
para garantir a sua própria eficácia. Por isso dos modelos de pluralismo jurídico em Moçam-
recorre a qualquer instituição que esteja lo- bique. Como já referi, a sociedade moçambica-
calmente disponível, quer sejam estruturas de na é um enorme e enormemente diferenciado
um período anterior, colonial ou revolucioná- campo social de pluralismo jurídico. A Figura 1
rio19 — as quais, apesar de terem sido legal- oferece uma visão sintética do pluralismo jurí-
dico em Moçambique. Na sua concepção privi-
legiei a dicotomia oficial/não oficial.
19 Muitos dos quadros políticos locais são sobrevivên-
cias do período revolucionário, como os membros de
“grupos dinamizadores”, “chefes de quarteirão”, “secre-
tários de bairro” (este tema será tratado mais adiante).
O Estado heterogéneo e o pluralismo jurídico em Moçambique 83

Figura 1. Pluralidade jurídica em Moçambique

A pirâmide da esquerda representa o sistema conflitos que, como ilustra a figura, estão situa-
jurídico oficial. Existem 11 tribunais provin- dos de forma distinta no continuum oficial/não-
ciais e 90 tribunais de distrito. Os tribunais de -oficial. A primeira instância são os tribunais
distrito são os tribunais mais baixos da escala e comunitários que aqui concebo como um híbri-
os que mantêm interacções mais intensas com do jurídico que combina componentes oficiais
os ordenamentos jurídicos não oficiais. Nos úl- e não oficiais; a segunda instância são as auto-
timos distingo três instâncias de resolução de ridades tradicionais e a terceira é um enorme
84 Boaventura de Sousa Santos

conjunto de associações em que se destacam bunais existe uma adopção selectiva dos es-
as associações religiosas, especialmente as tilos, fórmulas e línguas da justiça oficial em
muçulmanas. Nesta secção, concentro-me nos todos os procedimentos que se registam por
tribunais comunitários. escrito. Na maioria dos casos, não obstante,
Não existe informação fiável sobre o núme- prevalece a informalidade e a oralidade. Mes-
ro de tribunais comunitários e muito menos mo nos procedimentos mais formalizados, o
sobre o número de casos que conduzem. O nú- uso de fórmulas judiciais combina-se com o
mero de juízes varia de tribunal para tribunal uso da língua comum, directamente vinculada
ainda que para tratar os casos seja requerido à natureza oral da cultura dos arredores. Em
um mínimo de três. Dos 144 juízes analisados, qualquer dos casos, a formalidade não afecta
apenas 18% eram mulheres. Os juízes, quer se- a decisão. Parece que o seu objectivo é, aci-
jam homens ou mulheres, devem ter mais de ma de tudo, criar uma distância institucional
40 anos de idade. Mesmo nos casos em que em relação às partes e legitimar o poder do
são substituídos, em regra a selecção não al- tribunal. Todas as audiências sucedem num
tera a idade do grupo. No entanto, quando as contexto dominado pela retórica, ou seja,
substituições são de mulheres, estas tendem pela argumentação da linguagem comum. As
a ser mais jovens. Quanto à profissão, a maio- línguas nacionais predominam (existem mais
ria são trabalhadores rurais (a maioria são de 20 línguas em Moçambique) e no tribunal
mulheres), seguidos de reformados, artesões geralmente fala-se a mesma língua que a das
e operários. Em conjunto, orientam casos re- partes, sem necessidade de intérpretes20.
lacionados com assuntos de família, seguidos Em Moçambique os tribunais comunitários
de roubo, injúrias e agressão física. Também são a instituição jurídica híbrida por excelên-
existem casos relacionados com dívidas, as- cia, especialmente no que toca à dicotomia ofi-
suntos de propriedade, de habitação e acusa- cial/não oficial. Os tribunais comunitários são
ções de bruxaria.
Existem diferenças significativas entre os
tribunais na forma de funcionamento, depen- 20 Para os juízes oficiais isto é problemático, porque
a língua jurídica oficial — o Português — não é nem a
dendo se as normas são de procedimento ou
língua materna nem a língua geralmente utilizada pela
substantivas. Em alguns (muito poucos) tri- maioria dos Moçambicanos.
O Estado heterogéneo e o pluralismo jurídico em Moçambique 85

reconhecidos pela lei tendo sido criados pela assuntos menores” (Artigo 63 da Lei Nº 10/92)
Lei Nº 4/92, de 6 de maio — mas nem o seu fun- como um tipo de justiça comunitária para o
cionamento se regula pela lei nem são parte do que existem palavras de elogio na lei, “tendo
sistema jurídico oficial (por exemplo, as deci- em conta a diversidade étnica e cultural da so-
sões dos tribunais comunitários não se podem ciedade moçambicana” (Preâmbulo da Lei Nº
recorrer aos tribunais oficiais)21. A decisão de 4/92). O preâmbulo também declara que os tri-
retira-los do sistema judicial justifica-se com o bunais comunitários “permitirão aos cidadãos
novo conceito de Estado de direito introduzi- resolver as diferenças menores na comunida-
do pelo ajuste estrutural. A decisão estava em de, contribuirão para harmonizar as diversas
sintonia com a atmosfera política do momen- práticas de justiça assim como a enriquecer as
to, interessada em erradicar do Estado qual- normas, usos e costumes inclinando-se para
quer vestígio das instituições do poder popu- uma síntese criativa do direito moçambicano”.
lar do período revolucionário anterior. Assim, Não sendo nem completamente oficiais nem
os tribunais comunitários ficaram num limbo completamente não oficiais, os tribunais comu-
institucional. Devido ao facto de decidirem nitários são um híbrido jurídico, tanto dentro
os casos “com imparcialidade, bom sentido e como fora do direito oficial e da justiça.
equidade” (Artigo. 2, Nº 2, da Lei Nº 4/92) mas Deixados neste limbo, os tribunais comu-
não de acordo com a lei, não se consideram nitários adoptaram o legado dos tribunais
parte do sistema judicial. Não obstante, deve- populares, os quais, entretanto, haviam sido
riam converter-se em órgãos de justiça “para os formalmente suprimidos. A Lei que criou os
supostos de reconciliação ou de resolução de tribunais comunitários estabeleceu que os ju-
ízes dos tribunais locais e vicinais (ou seja, os
tribunais populares do período revolucioná-
21 A lei que criou os tribunais comunitários estabele-
ceu que antes que os tribunais pudessem funcionar, se rio anterior) continuariam a exercer as suas
promulgaria uma nova lei que definiria a sua jurisdição funções até que se celebrassem as primeiras
e a sua institucionalização. Até agora, esta lei não foi eleições para juízes do tribunal comunitário.
promulgada. O Parlamento Moçambicano havia pro- Como não foram celebradas eleições, os juí-
posto a aprovação da lei dos tribunais comunitários no
zes desse momento mantiveram os seus luga-
ano de 2005, mas até agora os tribunais continuam sem
regulamentação. res. A morte, a doença, a Guerra e as migra-
86 Boaventura de Sousa Santos

ções levaram a que com o decorrer dos anos pulares, em termos tanto de pessoal como de
se reduzisse o número de juízes. Para além estabelecimentos, favoreceu a adesão ao par-
disso, alguns juízes abandonaram os seus lu- tido da Frelimo. Este facto levou à polarização
gares devido à perda de prestígio social que se política da justiça comunitária, no sentido em
associou ao seu trabalho e ao sentimento de que os tribunais comunitários se consideram
terem sido “abandonados” pelo governo. Na instrumentos da Frelimo e as autoridades tra-
ausência de uma lei reguladora que definisse dicionais instrumentos da Renamo, o principal
as normas de selecção, estas substituições partido da oposição23. Esta polarização chegou
realizaram-se a partir do interior do mesmo a alguns extremos quando, por exemplo, um
contexto sociopolítico que o dos juízes ante- grupo de juízes partidários da Renamo, decidi-
riores. Os novos juízes foram seleccionados ram criar um tribunal comunitário paralelo em
por estruturas vicinais ou pela intervenção di- Mocímboa da Praia (na província do norte de
recta do partido governante, a Frelimo22. Por Cabo Delgado).
esta razão, quase todos os juízes entrevistados Os juízes entrevistados estavam ofendidos
disseram que pertenciam ao Partido da Freli- pela falta de apoio por parte do Estado: a fal-
mo e muitos deles declararam também fazer ta de artigos básicos de escritório, a falta de
parte de organizações do partido. compensação económica pelo trabalho que re-
Esta hibridação entre as funções políticas alizam, a falta de formação e orientação sobre
e judiciais também se encontra na raiz dos as normas de procedimento, a falta de solida-
problemas que enfrentam os tribunais comu- riedade por parte dos tribunais de distrito com
nitários. A continuidade com os tribunais po- aqueles que lhes remetem casos sociais. Em 10

22 A Frelimo foi o movimento que liderou a luta pela


libertação nacional. Depois da independência de Mo- 23 A Renamo nasceu como um movimento de resis-
çambique, a Frelimo sofreu um processo de transfor- tência contra a Frelimo, levando a cabo uma guerra ci-
mação política e estabeleceu-se como partido em finais vil durante mais de uma década. Depois do acordo de
dos anos setenta. Após a introdução de um sistema paz de 1992 entre a Renamo e o governo de Moçambi-
multi-partidário nos inícios dos anos noventa, a Freli- que, a Renamo passou de um movimento de resistência
mo ganhou as três primeiras eleições presidenciais e a um partido político, convertendo-se no maior partido
legislativas, conseguindo assim ser o partido no poder. da oposição do país.
O Estado heterogéneo e o pluralismo jurídico em Moçambique 87

dos 34 tribunais analisados nem sequer se dis- te as sessões do julgamento da necessidade de


punha de número suficiente de juízes para que respeitar o horário dos tribunais porque de-
o tribunal pudesse funcionar com o seu quórum pois disso o local seria ocupado “por outros”.
legal mínimo (2 membros além do Presidente). Por outro lado, a partilha do local interfere
Outros tribunais, ainda que compostos por 3 de muitas outras formas com a actividade do
ou mais juízes, vêem-se com muita frequência tribunal, como por exemplo quando os julga-
obrigados a funcionar sem um quórum quando mentos são interrompidos por membros de ou-
a um dos vários juízes se vê impossibilitado de tras entidades que partilham o mesmo espaço
assistir. Os tribunais comunitários funcionam (o “grupo dinamizador”, o Partido da Frelimo,
nos mesmos locais em que funcionavam os etc.) entrando com frequência no local para
tribunais populares de base, sendo estes mui- consultar documentos arquivados na mesmo,
to precários. Dos 34 tribunais observados, 8 à procura de papéis, etc. A falta de um local
funcionavam ao ar livre18, em locais ofereci- próprio impede os tribunais comunitários, em
dos pela organização política local do partido geral, de terem um espaço para seu uso ex-
da Frelimo, pela administração local, ou pelo clusivo e para guardar e arquivar a sua docu-
director do colégio ou do Conselho Municipal. mentação. Em 15 dos tribunais observados, os
Para além disso, 2 decorreram na casa do juiz arquivos de casos e outra documentação era
que presidia ao tribunal, um na varanda e outro guardada em casa do juiz que presidia ao jul-
no jardim; apenas 6 tribunais decorreram nos gamento ou do secretária/o.
seus locais próprios. A celebração de um tribu- O carácter híbrido dos tribunais comuni-
nal ao ar livre confere ao tribunal um carácter tários não se limita às variáveis legal/político
sazonal. Quando chove, as actividades do tri- ou oficial/não oficial. Podemos traçar em cada
bunal tem de ser interrompidas. uma das dicotomias que definem os termos de
O funcionamento nos locais oferecidos, na pluralidade jurídica e também na constelação
maioria dos casos, pela organização política de culturas jurídicas (culturas revolucionárias,
local, força os tribunais comunitários a parti- tradicionais e democrático liberais) presentes
lharem o espaço e este facto afecta as horas de no seu modo de funcionamento. A variedade
trabalho do tribunal. Em alguns casos os juízes extrema ocasiona uma paisagem de esponta-
advertiram as partes ou as testemunhas duran- neidade caótica. Faltando, em geral, apoio ins-
88 Boaventura de Sousa Santos

titucional, estando em competição com outros ridade em relação às autoridades administra-


mecanismos de resolução de conflitos — abar- tivas locais — sendo elas próprias um híbrido
cando desde a polícia aos quadros políticos político-administrativo —, as autoridades reli-
locais, que exercem funções judiciais infor- giosas e as autoridades tradicionais enquanto
malmente, até às autoridades tradicionais e as que outros estão totalmente subordinados às
organizações eclesiásticas — os tribunais co- autoridades administrativas e assumem um ca-
munitários apoiam-se em si mesmos e nas suas rácter multicultural, recorrendo em muitos ca-
habilidades para improvisar, inovar e, no final, sos as autoridades tradicionais, como quando
reproduzirem-se. Alguns permanecem muito se trata com assuntos de feitiçaria ou com pro-
activos, outros estão moribundos; alguns ga- blemas de família24. Não importa qual tipo de
nham a competência oferecida por outras ins- raciocínio jurídico ou estilo processual predo-
tituições envolvidas na resolução de conflitos, minante, dado que opera em complexas articu-
enquanto que a outros raramente são procura- lações com outros tipos ou estilos. Neste sen-
dos pelos membros da comunidade. tido, variando segundo os tribunais, os casos,
A natureza de palimpsesto das culturas po- a natureza da disputa ou o estatuto das partes,
líticas e jurídicas da Moçambique contempo- as diferentes “capas” de formalismo e informa-
rânea mencionada na secção 2 é ilustrada de lismo, de retórica revolucionária e pragmática,
forma vívida no raciocínio jurídico e estilo pro- de práticas de autonomia e práticas de contac-
cessual da resolução de conflitos nos tribunais tos combinam-se de formas distintas mas estão
comunitários. Alguns funcionam fundamental- sempre inextricavelmente interligadas.
mente numa atmosfera oficial e formal enquan- Finalmente, ainda que alguns tribunais não
to que outros assumem um carácter não oficial tenham uma relação de trabalho com os tri-
e informal. Alguns operam segundo uma lógica bunais de distrito, noutros essa relação exis-
revolucionária, situando a lealdade política aci- te. No período revolucionário, os tribunais de
ma de qualquer outra coisa, enquanto que ou-
tros aceitaram por completo os novos tempos
e o pragmatismo exigido pelas comunidades 24 Os tribunais comunitários também recorrem à As-
sociação Moçambicana de Médicos Tradicionais (AME-
principalmente interessadas na sobrevivência
TRAMO) para os casos de feitiçaria (ver também Mene-
pacífica. Alguns procuram afirmar a sua auto- ses, 2007).
O Estado heterogéneo e o pluralismo jurídico em Moçambique 89

distrito, então chamados tribunais populares instituições, segundo as normas informais de


de distrito, constituíam a ponte entre os tribu- jurisdição acordadas.
nais de justiça e os tribunais populares de base Através desta caótica rede de acções e omis-
estabelecendo com os últimos relações tanto sões, de comunicação e de não comunicação
complementares como competitivas. Este tipo entre as diferentes instituições, práticas e cul-
de articulação continua hoje em dia, ainda que turas, os tribunais comunitários contribuem
de forma esporádica e informal. Por exemplo, para “a síntese criativa do direito Moçambica-
os tribunais de distrito utilizam os tribunais co- no”, fazendo-o sob circunstâncias muito precá-
munitários e as autoridades tradicionais para rias e realmente fora da lei. O limbo jurídico
se assegurarem que se cumprem as citações joga contra os tribunais comunitários. Criou-se
judiciais. No distrito de Mueda (província de um vazio que se foi preenchendo com outros
Cabo Delgado), o tribunal de distrito e os tri- mecanismos de regulação social, sendo as au-
bunais comunitários da capital do distrito man- toridades tradicionais as que emergem como
têm uma relação estável, que foi progredindo as mais importantes entre todas.
desde a discussão da jurisdição dos tribunais
comunitários à definição conjunta das sanções Justiças multiculturais e
a aplicar em diversos casos e à rápida resolu- multiétnicas: o caso das
ção dos casos que se derivam dos tribunais co- autoridades tradicionais
munitários para os tribunais de distrito. Para Ao longo deste texto enfatizei os múltiplos e
além disso, desenvolveu-se um tipo de “divisão culturalmente diversos exemplos de resolução
do trabalho jurídico” de forma que os assuntos de conflitos e de justiça comunitária na socie-
familiares, por exemplo, são enviados pelos tri- dade moçambicana, tanto em contextos rurais
bunais de distrito para as instituições da justiça como urbanos. Além dos tribunais comunitá-
comunitária. Segundo um dos juízes de distrito rios, as autoridades tradicionais e as associa-
entrevistados, estes tipos de conflitos “não são ções sociais, culturais, religiosas e regionais
para um juiz, mas sim para que serem resolvi- funcionam como exemplos de resolução de
dos em família ou entre a vizinhança”. Neste conflitos. Das últimas, as mais importantes são
contexto, a polícia ocupa-se frequentemente as igrejas, e dentro delas, as organizações islâ-
da distribuição de litígios entre as diferentes micas, cuja influência tem vindo a aumentar em
90 Boaventura de Sousa Santos

anos recentes. Devido ao facto de a fé Islâmica Para compreender o contexto político em


não reconhecer nenhuma distinção fundamen- que operam as autoridades tradicionais em
tal entre o religioso e o não religioso, tende a Moçambique, é imperativo localizá-lo no mais
regular a vida social como um todo. Na região amplo contexto Africano. As autoridades tra-
do Centro e Norte do país, onde a presença dicionais são actualmente objecto de debate
Islâmica é historicamente mais poderosa, o di- em todo o continente Africano. Existem mui-
reito religioso converteu-se num componente tos temas em debate, entre os que se destacam
importante da pluralidade jurídica, especial- os seguintes: as autoridades tradicionais como
mente nos assuntos de família25. Trata-se de um poder local e administração; a regulação do
campo de intensa hibridação entre o direito re- acesso à propriedade; as mulheres e o poder
ligioso e o direito tradicional. Toda esta vibran- tradicional; a feitiçaria; a medicina tradicional;
te vida jurídica ocorre fora do campo jurídico a compatibilidade entre o direito tradicional e
oficial, e mobiliza culturas jurídicas e políticas o direito oficial e, em particular, a Constituição.
que estão pouco relacionadas com o que subjaz Partindo da perspectiva da globalização neoli-
ao sistema jurídico oficial. É neste aspecto que beral, as autoridades tradicionais são o exem-
o policentrismo jurídico se funde com o multi- plo paradigmático do que não se pode globa-
culturalismo e, por conseguinte, com a plura- lizar em África. Desta perspectiva, o que não
lidade jurídica multicultural. Mas de todos os se pode globalizar não interessa à globalização
exemplos de pluralidade jurídica multicultural, neoliberal, e como tal, pode ser facilmente es-
as autoridades tradicionais destacam-se como tigmatizado como uma especificidade africana,
as mais importantes, não só pelo seu papel na um obstáculo à abertura das sociedades afri-
resolução de conflitos mas também pela con- canas às virtudes da economia de mercado e
trovérsia política que as rodeia26. da democracia liberal. Mas o que se converte
em objecto de estigmatização pode ser reapro-
priado pelos grupos sociais subalternos como
25 Sobre este tema, veja-se Bonate, 2006.
algo positivo e específico, como uma fonte de
26 O papel das autoridades tradicionais na resolução resistência contra uma modernidade global
de conflitos em Moçambique tem sido enfatizado por
(ocidental) excludente. Esta reapropriação
vários investigadores Moçambicanos. Ver, entre outros,
Cuahela, 1996; Honwana, 2002 e Meneses, 2004. e resignificação foi exactamente o que come-
O Estado heterogéneo e o pluralismo jurídico em Moçambique 91

çou a suceder na área do poder tradicional. Na nas distinções não fazem muito sentido. Desta
actualidade, a recuperação do tradicional em maneira, partindo da perspectiva do moderno
África, longe de ser uma alternativa não mo- código ético-político, uma determinada acção
derna à modernidade ocidental, é a expressão política ou administrativa pode considerar-se
de uma demanda por uma modernidade alter- corrupção, favoritismo, nepotismo, patrocínio
nativa. Devido ao que está a ocorrer em toda a ou privatização estatal; mas quando se avalia
África, e realmente por todo o Sul global, é uma do ponto de vista do código ético tradicional,
forma de globalização que se apresenta como tem-se em conta a satisfação das obrigações
uma resistência à globalização. familiares e o exercício de fidelidades comuni-
Uma das modernidades mais visíveis do tra- tárias ou étnicas. Esta ambiguidade ou dualida-
dicional reside na forma como as modernas eli- de ilustra-se mediante o dito popular “a cabra
tes estatais perseguem o “não moderno”, que pasta onde está amarrada”27.
a legitimação tradicional reforce o seu poder. A pergunta de como se articula esta legiti-
Contudo, este processo também ocorre no sen- midade dual alimenta um dos debates mais
tido inverso, quando os possuidores do poder acesos da actualidade em África28. Segundo
tradicional procuram promover os seus filhos uma das tendências, os dois poderes e as duas
ou famílias para uma carreira política ao ser- legitimidades devem manter-se separadas,
viço do Estado, para consolidar e reforçar o ainda que se outorguem à mesma pessoa. Por
poder tradicional que possuem e que vêm ame- outras palavras, as acções políticas estatais ou
açado pela concorrência estatal. Esta dupla as acções no terreno público da sociedade ci-
luta de poder pode causar conflitos de difícil
resolução. O código ético do poder moderno
baseia-se numa distinção entre o público e o 27 Este dito popular significa que as pessoas se adap-
privado e na primazia dos interesses comuns tam às limitações do meio em que vivem.
sobre os interesses sectoriais. Em contraste, 28 De uma maneira distinta, a pergunta sobre a legi-
o código ético do poder étnico baseia-se nos timidade dual na actualidade está também presente na
interesses comunitários refere-se a uma comu- América Latina após a emergência do constitucionalis-
mo multicultural de finais dos anos oitenta e princípios
nidade construída tanto por gente viva como
dos noventa (o reconhecimento constitucional da iden-
pelos seus antepassados, na qual as moder- tidade política e jurídica da população indígena).
92 Boaventura de Sousa Santos

vil moderna devem basear-se exclusivamente funciona como uma ameaça e noutras como
em códigos éticos modernos, enquanto que as uma oportunidade. Segundo as circunstancias,
acções e rituais comunitários devem basear-se as elites políticas disputam entre si ora o ca-
exclusivamente em códigos éticos tradicionais. minho político moderno, utilizando o poder ét-
Segundo outra tendência, esta separação, ain- nico como um recurso, ora o caminho político
da que correcta — o que é discutível — é im- tradicional, utilizando o poder eleitoral como
possível de manter, dado que os indivíduos não um recurso. Aqui jaz um campo fértil para a
podem manter as suas múltiplas identidades proliferação de híbridos políticos que são es-
estanques e incontaminadas. Portanto, é me- truturalmente similares aos híbridos jurídicos
lhor assumir que a contaminação e a hibrida- identificados na secção prévia.
ção entre códigos é uma condição “natural”29. Na história de África, esta não é a primeira
As normas para este jogo de dupla face va- vez que as autoridades tradicionais foram po-
riam de país a país e segundo o contexto histó- litizadas ou politicamente manipuladas. Este
rico, cultural e político. Nos países oficialmente foi também o caso durante o período colonial,
democráticos, estes conflitos devem resolver- especialmente desde finais do século XIX em
-se pelos meios eleitorais e segundo as normas diante. Sabemos que as autoridades tradicio-
impostas pelo sistema político em vigor. Con- nais eram utilizadas pelos poderes coloniais
tudo, devido a aos factores já mencionados, como uma forma de assegurar a disjunção
a legitimidade eleitoral não pode manter-se, acima assinalada entre o controlo político di-
desembocando numa frequente dependência recto e o controlo administrativo indirecto. E
de recursos comunitários, étnicos ou tradicio- com efeito, a situação actual em Moçambique
nais. O poder étnico pode desta forma ser ma- mostra uma extraordinária continuidade com
nipulado, pelo que em determinadas situações o período colonial. Limitando-me apenas ao sé-
culo XX, o estabelecimento de uma sociedade
civil dual e racializada foi formalmente reco-
29 No entanto, isto coloca algumas perguntas sérias, nhecido no Estatuto do Indigenato (o estatuto
como por exemplo, a questão de determinar a respon- das populações indígenas) adoptado em 1929.
sabilidade criminal nos casos considerados pela legis-
O Estatuto estabeleceu uma distinção entre os
lação oficial como corrupção activa ou passiva ou de
abuso de poder. “cidadãos coloniais”, submetidos às leis Por-
O Estado heterogéneo e o pluralismo jurídico em Moçambique 93

tuguesas e com direito a todos os direitos de governar, em colaboração com o escalão mais
cidadania efectiva na “metropolis”, e os indíge- baixo da administração colonial, as comunida-
nas (nativos), submetidos à legislação colonial des “nativas” descritas como tribos e que se as-
e, no seu dia a dia, às suas normas nativas con- sumia terem uma ascendência, língua e cultura
suetudinárias. Entre os dois grupos existia um comuns. O uso colonial do direito tradicional
terceiro grupo pequeno, os assimilados, cons- e as estruturas de poder eram, desta forma,
tituído por negros, mulatos, Asiáticos ou mes- uma parte integrante do processo de domina-
tiços, que tivessem alguma educação formal, ção colonial (Young, 1994; Penvenne, 1995 e
não estavam submetidos ao trabalho forçado, O’Laughlin, 2000) obcecado com a reprodução
tinham direito a alguns direitos de cidadania da sobre exploração do trabalho africano.
(uma espécie de cidadania de segunda clas- Nos anos quarenta, a integração das autori-
se) e tinham um cartão de identificação espe- dades tradicionais na administração colonial
cial que diferia do imposta à imensa massa da intensificou-se. A colónia dividiu-se em con-
população africana, os indígenas, um cartão celhos (municípios) nas zonas urbanas, e era
que as autoridades coloniais concebiam como governada pela legislação colonial e metropo-
um meio para o controlo dos movimentos de litana e circunscrições (localidades) nas zonas
trabalho forçado (CEA, 1998). Os indígenas rurais. As circunscrições eram encabeçadas
estavam submetidos às autoridades tradicio- por um administrador colonial e dividiam-se
nais, que foram gradualmente integradas na em regedorias, dirigidas por régulos (caci-
administração colonial, encarregadas com a ques), a personificação das autoridades tra-
responsabilidade de resolver disputas, de gerir dicionais. O Decreto Provincial No. 5.639, de
o acesso à propriedade, de garantir a circula- 29 de julho de 1944, atribuía aos régulos e aos
ção do trabalho forçado e o pagamento de im- seus assistentes —”cabos de terra”— o estatu-
postos (principalmente o imposto de palhota). to de auxiliares da administração (ajudantes
Como assinalaram vários autores (Mamdani, da administração). Gradualmente, estes títulos
1996; Gentili, 1999 e O’Laughlin, 2000), o regi- “tradicionais” perderam algo do seu conteúdo
me do Indigenato constituía o sistema político e os régulos e cabos de terra foram concebi-
que subordinava a imensa maioria dos Moçam- dos como uma parte efectiva do Estado colo-
bicanos às autoridades locais encarregadas de
94 Boaventura de Sousa Santos

nial30, remunerados pela sua participação na de Indigenato ser abolido em inícios dos anos
recolha do imposto de palhota, a contratação sessenta. A partir desse momento, todos os
da força de trabalho e pela produção agrícola africanos eram considerados cidadãos portu-
na zona sob o seu controlo31. Nas áreas da sua gueses e a discriminação racial converteu-se
jurisdição, os régulos e cabos de terra também numa faceta sociológica e não numa faceta
controlavam a distribuição da propriedade e jurídica da sociedade colonial. O domínio das
resolviam os conflitos seguindo as normas con- autoridades tradicionais estava realmente mais
suetudinárias (Geffray, 1990; Alexander, 1994 e integrado que antes na administração colonial.
Dinerman, 1999). Para exercitar o seu poder, os Depois da independência, a Frelimo adop-
régulos e cabos de terra tinham a sua própria tou uma posição hostil em relação às autori-
força policial. Este sistema de governação in- dades tradicionais concebidas no seu sentido
directa ilustra a que se referia a disjunção en- mais amplo, incluindo os régulos, curandeiros
tre o controlo político e administrativo acima (curandeiros), líderes religiosos, etc. Conce-
mencionada. Continuou até depois do sistema bidos como vestígios obscurantistas do colo-
nialismo e como instigadores das diferenças
regionais e étnicas, não existia lugar para eles
30 Apesar deste vínculo com a administração colonial, na construção de um Estado supra-étnico, uma
vários autores fazem referência ao papel dual de alguns cultura nacional e um modelo de desenvolvi-
régulos que utilizavam as suas posições privilegiadas mento destinado a libertar Moçambique, em
para promover programas de melhoria das condições poucas gerações, das peias do subdesenvolvi-
de vida das suas populações (Isaacman, 1990; Alexan-
mento. A primeira Constituição de Moçambi-
der, 1994). Noutras situações, tomavam a decisão de
confrontar o sistema colonial directamente, ou de fugir que, aprovada em 1975, declarava no seu Artigo
para os países vizinhos (Vail e White, 1980; CEA, 1998). 4 a “eliminação das estruturas coloniais e tradi-
31 Um exemplo disto é o Artígo 2 do Decreto Munici- cionais de opressão e exploração e mentalida-
pal No. 13.128, de abril de 1950, que outorgava às auto- de subjacente”. Assim, os Régulos foram subs-
ridades tradicionais determinadas concessões pela sua tituídos pelas novas estruturas políticas a nível
interferência nos contratos laborais; o Boletim Oficial local, as células do partido de base, denomina-
No. 2469/B/2 da Divisão Central de Assuntos Indígenas,
das grupos dinamizadores. Em conjunto com
de 25 de junho de 1952 regula, entre outros temas, os
uniformes para as autoridades tradicionais. os tribunais populares de base, encarregaram-
O Estado heterogéneo e o pluralismo jurídico em Moçambique 95

-se das tarefas que anteriormente se confiavam recuperar o seu poder e prestígio. Uma san-
às autoridades tradicionais. grenta guerra civil durante os anos oitenta de-
A abolição legal das autoridades tradicionais bilitou ainda mais as capacidades administra-
demonstrou nos anos seguintes ser um com- tivas e de bem-estar do Estado e intensificou a
plexo problema político e social para o gover- polarização política em redor das autoridades
no. Para começar, não existiam recursos para tradicionais. Esta polarização, junto com a do-
desenvolver as novas estruturas político-admi- cilidade do Estado em relação às imposições
nistrativas por todo o país, e donde se desen- neoliberais a partir de meados dos anos oitenta
volviam, não eram aceites pelas populações de em diante, estimulou o processo mediante o
forma automática. Como resultado, as autori- qual o tradicional se converteu numa forma de
dades tradicionais continuaram a governar sob reclamar uma modernidade alternativa.
diferentes formas e condições. Os tribunais po- Desde 1992 o governo tem vindo a tentar
pulares e os grupos dinamizadores recorriam tratar do tema da politização da governação de
a eles em busca de orientação e legitimidade. base: por um lado, os tribunais comunitários
No processo, alguns régulos converteram-se foram entendidos com herdeiros dos tribunais
em juízes dos tribunais populares, resolvendo populares e estiveram próximos da Frelimo,
os casos com base no direito tradicional e jus- e por outro lado, as autoridades tradicionais
tificando as suas decisões segundo a legalidade foram entendidas como uma fonte de poder
revolucionária. Outra fonte de problemas para legítima e tem estado próximas da Renamo32.
o governo surgiu com o crescimento da Rena-
mo. Renamo, inicialmente entendida como um
produto dos serviços secretos sul-africanos, 32 Esta formulação representa a tendência geral. Mas
obviamente, existem muitas autoridades tradicionais
foi-se arreigando gradualmente em algumas re-
que se posicionam publicamente junto à Frelimo. A
giões do país, alimentada pelas frustrações das este respeito, a plasticidade das autoridades tradicio-
populações com as políticas estatais desorien- nais é ilustrada eloquentemente pela inovação institu-
tadas e com enormes vazios entre as promes- cional do régulo de Mafambisse (província de Sofala)
sas e o seu cumprimento. As autoridades tradi- durante a guerra civil. Durante o decorrer da guerra, o
território do régulo foi destruído por causa do confli-
cionais, que sofriam o ostracismo da Frelimo,
to entre a Frelimo e a Renamo. De forma a conservar
consideravam a Renamo uma alternativa para a liderança tradicional na zona, o território dividiu-se
96 Boaventura de Sousa Santos

As respostas governamentais têm sido duplas. gia centrífuga de que possam beneficiar em re-
Por um lado, como mostrei na secção 3, até há lação ao controlo político da população. Como
pouco tempo, o governo não considerava ur- declara o preâmbulo do Decreto, as autoridades
gente a reforma dos tribunais comunitários. A comunitárias são aceites nas esferas — e, por-
reforma está agora em curso e é uma questão tanto, nos limites “do processo de descentraliza-
em aberto se a nova lei dos tribunais comuni- ção administrativa, aperfeiçoando a organização
tários será realmente bipartidária e, portanto, social das comunidades locais e as condições
provavelmente sobreviverá a qualquer mu- para a sua participação na administração públi-
dança governamental futura. Por outro lado, ca”. Por outro lado, o Artigo 2, estabelece que
o governo tem vindo a procurar neutralizar a “ao levar a cabo as suas funções administrativas,
hostilidade das autoridades tradicionais, coop- os órgãos locais do Estado relacionam-se com as
tando-as com a concessão de algum tipo de re- autoridades comunitárias, e escutaram as suas
conhecimento subordinado e participação na opiniões sobre a melhor forma de mobilizar e
administração local das zonas rurais. organizar a participação das autoridades locais,
A estratégia de cooptação depende da disjun- em relação à planificação e implementação dos
ção entre o controlo político e administrativo. planos e programas económicos, sociais e cultu-
O Decreto Nº 15/2000, de 20 de junho de 2000, rais, destinados a beneficiar o desenvolvimento
da Lei das Autoridades Comunitárias, ilustra a local”. Não se reconhece nenhum efeito político,
intenção do Estado de beneficiar das qualidades especialmente em relação à democracia partici-
administrativas das autoridades tradicionais, e pativa, nestes processos de escuta e interacção
simultaneamente, de neutralizar qualquer ener- ainda que recentemente tenham começado a
funcionar os Conselhos Locais, articulando as
“autoridades comunitárias” com os órgãos locais
em duas partes. A zona controlada pela Renamo con- do Estado. Finalmente, o Artigo 3 define os limi-
tinuou a ser governada por parte do régulo titular, Ma- tes do reconhecimento a que se referem a Cons-
nuel Dique Mafambisse, que procedia de uma família tituição política e o direito codificado em geral.
prestigiosa. Na zona sob controlo governamental, a O limite geral é formulado no Artigo 3 número
autoridade tradicional foi representada pelo então lí-
1, e o número 2 sublinha o carácter pragmático
der político local, José Dique Mafambisse, irmão mais
novo do régulo titular. e instrumental do reconhecimento das autorida-
O Estado heterogéneo e o pluralismo jurídico em Moçambique 97

des comunitárias, dado que os critérios de par- a especificidade das autoridades tradicionais
ticipação se fundamentam exclusivamente nas para justificar a racialização do Estado e da
“necessidades de um serviço administrativo”. sociedade. A especificidade encarnava a infe-
Esta tendência para o reconhecimento das rioridade natural das autoridades tradicionais
políticas subjacentes confirma uma clara con- face ao governo colonial moderno, a cultura
tinuidade com o passado colonial, que também africana face à cultura ocidental, os indígenas
é visível em alguns dos direitos e privilégios face aos cidadãos coloniais.
outorgados às autoridades tradicionais en- Em Moçambique e em África, em geral, exis-
quanto autoridades comunitárias: a utilização tem hoje em dia dois pontos de vista opostos
dos símbolos da República; a participação em a respeito da especificidade das autoridades
cerimónias oficiais; a utilização do seu próprio tradicionais: segundo um deles, as autoridades
uniforme ou roupa distintiva; a recepção de tradicionais são um entre vários tipos de auto-
um subsídio como resultado de ajudar o Es- ridade local e não se lhes deveria outorgar ne-
tado na recolha de impostos (Artigo 5 do De- nhum privilégio entre os diversos tipos de au-
creto 15/2000 e artigo 11º da lei 11/2005, de 19 toridade que existem na mesma comunidade;
de maio33). A principal diferença em relação segundo o outro, as autoridades tradicionais
ao período colonial reside no facto de que o não estão num plano de igualdade em relação
Estado procura neutralizar as autoridades tra- às outras autoridades locais, devido ao facto
dicionais não só através da estrita separação de apenas elas controlarem o poder dos espí-
entre as funções políticas e administrativas, ritos e o poder dos antepassados, tão decisivo
mas também através da integração das auto- no governo da comunidade pelo seu acesso
ridades tradicionais num conjunto mais am- aos rituais e pelos aspectos mágicos da vida
plo de governo local incluindo as estruturas da comunidade34. O Decreto número 15/2000,
administrativas de base e também os híbridos
político-administrativos supra-mencionados.
Pelo contrário, o Estado colonial ressaltava 34 Sobre a primeira posição, ver entre muitos outros
Ghai, 1991; Nzouankeu, 1997 e Mamdani, 1999. Sobre
a segunda, ver também, entre muitos outros, Ayittey,
33 Regulamento da Lei 8/2003, sobre os órgãos locais 1991; Van Rouveroy Van Nieuwaal e Van Dijk, 1999 e
do Estado. Williams, 2004.
98 Boaventura de Sousa Santos

o Diploma Ministerial 80/200435 e a Lei 11/2005, ções de parentesco entre as autoridades tradi-
sobre as autoridades comunitárias locais adop- cionais, os administradores estatais e as orga-
ta a primeira posição. Todos estes documentos nizações partidárias de base, e finalmente, da
legais referem-se às autoridades comunitárias força relativa e da implantação das estruturas
como sendo compostas por “os chefes tradicio- comunitárias alternativas de resolução de con-
nais, os secretários de bairro ou aldeia e como flitos, como os tribunais comunitários, as orga-
os outros líderes legítimos reconhecidos como nizações islâmicas, as igrejas, ONGs, etc. Uma
tal pelas respectivas comunidades” (artigo 1 do rede de trabalho de interacções e negociações
Decreto 15/2000). contínuas ou esporádicas está em marcha e o
Sob, ou em paralelo, a estas políticas de seu funcionamento depende tanto da prática
reconhecimento e controlo oficial fluí uma in- das diferentes instituições envolvidas como
tensa e caótica rede de entrelaçamento entre da iniciativa de cidadãos e grupos sociais in-
as diferentes legitimidades, poderes locais e teressados em beneficiar da existência de uma
culturas e práticas jurídicas. Enquanto que no pluralidade tão competitiva ou complementar.
período revolucionário os tribunais popula- Nesta rede de trabalho ajustado e plural, o
res e os grupos dinamizadores procuravam a “retorno ao tradicional” parece ter mais e mais
orientação e o apoio das autoridades tradicio- encanto, especialmente nas zonas rurais onde
nais e resolveram muitas das disputas deriva- vive a grande maioria da população. Identifi-
das deles, ainda que tenham sido oficialmente camos um crescente activismo por parte das
abolidas, na actualidade os modelos oficiais de autoridades tradicionais e aceitou-se a impli-
reconhecimento das autoridades tradicionais cação dos quadros políticos ou administrativos
e o “regresso à tradição” tem muito pouco a nas cerimónias tradicionais. Cresceu o respei-
dizer em relação à norma tradicional vigente. to e a tolerância mútua. Ainda em inícios dos
Na realidade, isto varia em função da região, anos noventa parecia que a maioria das auto-
do prestígio do régulo ou curador, da relativa ridades tradicionais intervinham apenas nas
penetração das instituições estatais, das rela- cerimónias religiosas ou espirituais como uma
forma de promover a paz (Alexander, 1994;
Honwana, 2002 e Vaughan, 2006), a situação de
35 De 14 de maio de 2004. hoje em dia aponta para uma intervenção mais
O Estado heterogéneo e o pluralismo jurídico em Moçambique 99

ampla, que se busca particularmente quando des tradicionais como instâncias de resolução
as outras autoridades locais são incapazes de de conflitos. Entre todas as dimensões do plu-
resolver problemas e conflitos36. Nestas formas ralismo jurídico em África, as autoridades tra-
de cooperação, a supra mencionada dualida- dicionais e seu direito (o direito tradicional, os
de das legitimidades tradicionais e modernas sistemas de parentesco, as tradições africanas e
que dominam o direito e a política em África o direito consuetudinário são alguns dos termos
destaca-se muito claramente, especialmente a que se utilizam na actualidade) tem sido durante
nível local37. muito tempo as mais significativas. O que distin-
Este é o complexo contexto histórico, social gue o pluralismo jurídico que promovem é a no-
e político em que operam as actuais autorida- tabilidade da variável moderno/tradicional e da
variável monocultural/multicultural. O que tem
36 Dependendo da situação, alguns líderes tradicio-
em comum as diferentes concepções das autori-
nais ofereciam directamente os seus serviços ao Esta- dades tradicionais é a ideia de que estas práticas
do sem condições, como forma de recuperar o papel jurídicas são distintas do universo eurocêntrico,
que tinham antes da ruptura provocada pela política ou simbólico e cultural que subjaz ao direito oficial
pela guerra; outros, preocupados com o tema do esta- e à justiça. O direito tradicional e a justiça, por-
tuto e do reconhecimento social esperam ainda pelo
reconhecimento estatal oficial da sua autoridade (ma- tanto, colocam duas perguntas muito comple-
terialmente traduzido em bens e serviços tais como a xas, a pergunta do que se considera tradicional
habitação e os uniformes). e a pergunta do que se considera multicultural.
37 Este clima de cooperação não impede que as auto- Ambas as questões são temas muito amplamen-
ridades tradicionais recordem os agravos do passado e te debatidos na actualidade e este debate não é
que o expressem quando o consideram apropriado. Os apenas académico, mas também político. O que
régulos e seus ajudantes eram intimidados e humilha-
está em jogo é, uma vez mais, a relação entre o
dos pelos seus antigos súbditos que passaram a ocu-
par posições de secretaria do partido com a Frelimo, controlo político e o controlo administrativo das
ou pelas autoridades estatais de um nível mais elevado populações e seus territórios, e especialmente
e as do partido (Geffray, 1990). Por causa das motiva- a pergunta da legitimidade do poder necessário
ções políticas e do clima de animosidade, alguns che- para assegurar qualquer das formas de controlo.
fes tradicionais foram “deportados” para as províncias
Como mecanismos de resolução de conflitos
do norte e “forçados” a trabalhar na infame “Operação
Produção” empreendida no início dos anos oitenta. as autoridades tradicionais são particularmente
100 Boaventura de Sousa Santos

importantes em temas como o acesso à proprie- bém como no caso dos tribunais comunitários,
dade, a família, a dívida, o dano corporal, o dano a linguagem utilizada é em conjunto a linguagem
da propriedade, a saúde/doença, a bruxaria e local das partes sem necessidade de intérpretes.
os pequenos roubos, realmente uma variedade A participação do régulo e dos seus associados
muito ampla de temas (Meneses et al., 2003). Em é central. O régulo (e por vezes os seus assesso-
todos estes assuntos, as autoridades tradicio- res ou assistentes) sentam-se a uma mesa, num
nais são um ponto-chave de uma cadeia de ins- plano mais elevado. As partes sentam-se a um
tituições que podem incluir os tribunais de dis- nível inferior, à frente ou aos lados. A audiência
trito e inclusivamente os tribunais provinciais, senta-se nos bancos ou em almofadas. O régulo
a polícia e as agências locais políticas e admi- dirige a audiência. Uma vez aberta a sessão, nor-
nistrativas. Por vezes são a primeira jurisdição malmente a pessoa que apresenta a acusação e o
procurada pelas partes, outras vezes funcionam acusado expõem o seu caso. Por as sessões se-
como instituições de apelo, e inclusivamente rem abertas ao público, normalmente convidam-
outras vezes fornecem conselho ou provas em -se os membros da audiência a participar para
casos sob o encargo de outras instituições. que exponham as suas explicações do problema.
Uma das grandes fortalezas da justiça provida Esta é uma parte muito importante do processo
pelas autoridades tradicionais é a sua reputação de resolução de conflitos. Na realidade, permite-
de ser imediata, pública, cara a cara e bastante -se que os adultos interroguem as testemunhas e
transparente. As audiências normalmente têm que dêem a sua opinião sobre o caso.
lugar em casa do régulo, na varanda ou no jar- Os conselheiros do régulo — madoda —
dim. A frequência destas audiências varia. São também apresentam a sua própria avaliação
seleccionados certos dias para a audiência, ou do conflito. Nas regiões inquiridas, não se en-
as audiências têm lugar quando as pessoas so- controu nenhum caso de uma mulher que fos-
licitam a ajuda do régulo. Nos casos que temos se régulo. No entanto, um número significa-
observado, a maioria dos régulos tendem a ce- tivo de mulheres são curadoras tradicionais.
lebrar audiência durante os fins de semana, Entre os conselheiros do régulo, normalmen-
particularmente aos domingos. A resolução de te há uma ou duas mulheres. Quando o caso
conflitos é dominada pela retórica e pela orali- envolve acusações de bruxaria, as opiniões
dade, como nos tribunais comunitários. Tam- dos madodas são importantes quanto à deci-
O Estado heterogéneo e o pluralismo jurídico em Moçambique 101

são de apelar aos curadores ou à AMETRA- guns régulos mostraram nostalgia em relação a
MO (Associação Moçambicana de Médicos estas sanções: “nos velhos tempos a autorida-
Tradicionais)38. Por vezes os curadores inter- de actuava. A pessoa era amarrada e açoitada.
vêem e prestam declarações. Agora a autoridade já não pode açoitar as pes-
O régulo delibera uma vez ouvido e conside- soas.” (entrevista com o régulo Phata, provín-
rado o problema. Na maior parte dos casos, o cia de Inhambane). No caso do regulado Luís
régulo tenta obter o consenso de ambas partes (cidade da Beira), existia uma cela nas oficinas
para manter o equilíbrio social. Quando se co- centrais. No campo da resolução de conflitos,
mete uma ofensa que se deve castigar, os prin- as relaciones das autoridades tradicionais com
cipais tipos de castigo são as multas, o serviço outras autoridades locais são bastante com-
à comunidade ou os castigos corporais como plexas, nem sempre isentas de conflitos ou
rapar a cabeça e as chambocadas (tareias). tensões. As formas de cooperação também se
Ainda que estejam proibidos por lei, parece que encontram presentes: muitos régulos enviam
os castigos corporais ainda são praticados. Al- os temas de divórcio para os tribunais comu-
nitários; os crimes sérios — como o homicídio
— são enviados para a polícia.
38 Como mostra Meneses na sua investigação sobre a Esta análise mostra que as autoridades tradi-
medicina tradicional no Moçambique contemporâneo, cionais forjam o seu espaço judicial e político
o poder do nyanga (médico tradicional) reside na sua
habilidade para identificar as tensões sociais existen- no novo quadro jurídico e político, tanto quan-
tes, contradições e áreas de desconfiança, bem como as do implementou de forma efectiva como quan-
possíveis hostilidades anti-sociais que poderiam mani- do foi deixado ao jogo indeterminado de forças
festar-se como enfermidade, má sorte ou mesmo morte jurídicas locais e políticas que competem entre
na comunidade (Meneses, 2004). O processo de iden-
si. Actuam assim utilizando um enorme leque
tificação do feiticeiro, de encontrar o agente do mal e
de o fazer confessar as suas próprias acções, também é de recursos disponíveis, alguns ancestrais e ou-
o processo pelo qual os feiticeiros se limpam da carga tros muito recentes, mas todos utilizados em
maléfica, abrindo a porta para a restauração do equilí- interacções competitivas ou complementares
brio e da boa saúde na comunidade. Mesmo no período com todos os outros nós de uma rede regula-
revolucionário, os tribunais populares com frequência
dora mista e inerentemente híbrida. Desta ca-
recorriam aos médicos tradicionais a fim de resolver os
casos que implicavam acusações de feitiçaria. deia podem emergir novas formas de governo
102 Boaventura de Sousa Santos

democrático que exigiram uma análise cuida- mais destacadas do Estado heterogéneo e do
dosa. Sob as novas leis que regulam o processo pluralismo jurídico em Moçambique quanto a
de reconhecimento e legitimação da “liderança três factores principais: as imposições da glo-
local”, aos régulos e outros líderes da comuni- balização neoliberal e seu impacto nos proces-
dade pode-se exigir que assegurem a base da sos políticos e sociais; um património cultural
sua legitimidade através de um amplo proces- africano, objecto de intensos debates e com
so de consulta popular. Se se abrisse algum profundas implicações no direito e na política;
espaço negocial seleccionando régulos, cabos a natureza e o papel do Estado, tendo presente
de terra, madoda, curadores, etc., este proces- que o Estado surgiu do colonialismo no últi-
so, ainda que incipiente, incluiria elementos de mo quartel do século XX. Tratei de ressaltar a
uma democracia participativa. complexidade dos processos jurídicos e políti-
cos num país que é independente há menos de
Conclusão três décadas; que experimentou, num período
Neste texto ressaltei algumas dimensões tão curto, uma sucessão turbulenta de regimes
ocultas da actual chamada global para a re- políticos e culturas opostas; que sofreu uma
forma jurídica e judicial, a saber, das formas sangrenta guerra civil durante mais de dez
como parece estar a funcionar como se os pa- anos e que desde 1994 está tratando de conso-
íses em desenvolvimento fossem uma tabula lidar uma transição para um regime democrá-
rasa jurídica e judicial. Por isso, a rica expe- tico-liberal.
riência social ignorada de práticas jurídicas e Ampliei os conceitos de hibridação jurídi-
judiciais variadas tem sido a principal ênfase ca com a intenção de demonstrar a porosida-
deste texto. Concretamente, centrei-me no Es- de dos limites dos diferentes ordenamentos
tado e sociedade moçambicana e na rica paisa- jurídicos e culturas presentes e os profundos
gem do pluralismo jurídico que as caracteriza. cruzamentos de fecundações ou contamina-
Propus o conceito de Estado heterogéneo para ções entre eles. Dos muitos exemplos de que
destacar a crise da moderna equação entre a como estes conceitos se podem desenvolver
unidade do Estado por um lado, e a unidade de forma frutífera, concentrei-me nos tribunais
do seu funcionamento jurídico e administra- comunitários e nas autoridades tradicionais.
tivo, por outro. Expliquei as características Reconstruo a pluralidade jurídica multicultural
O Estado heterogéneo e o pluralismo jurídico em Moçambique 103

que resulta da interacção entre o direito mo- Bibliografia


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Para uma concepção intercultural
dos direitos humanos*

Reconstrução intercultural tos humanos tenderão a operar como localis-


dos direitos humanos mo globalizado e, portanto, como uma forma
de globalização hegemónica. Para poderem
A complexidade dos direitos humanos re-
side em que estes podem ser concebidos
e praticados, quer como forma de localismo
operar como forma de cosmopolitismo insur-
gente, como globalização contra-hegemónica,
globalizado, quer como forma de cosmopoli- os direitos humanos têm de ser reconceptua-
tismo subalterno e insurgente; por outras pa- lizados como interculturais. Concebidos como
lavras, quer como globalização hegemónica, direitos universais, como tem sucedido, os di-
quer como globalização contra-hegemónica. O reitos humanos tenderão sempre a ser um ins-
meu objectivo é especificar em que condições trumento do “choque de civilizações” tal como
os direitos humanos constituem uma forma de o concebe Samuel Huntington (1993, 1997), ou
globalização contra-hegemónica. Neste traba- seja, como arma do Ocidente contra o resto
lho não tratarei de todas as condições neces- do mundo (“the West against the rest”), como
sárias, mas apenas das culturais. A minha tese cosmopolitismo do Ocidente imperial prevale-
é que, enquanto forem concebidos como direi- cendo contra quaisquer concepções alternati-
tos humanos universais em abstracto, os direi- vas de dignidade humana. Por esta via a sua
abrangência global será obtida à custa da sua
legitimidade local. Pelo contrário, o multicul-
* Extraído de Santos, B. de Sousa 2006 “Para uma turalismo emancipatório, tal como eu o enten-
concepção intercultural dos direitos humanos” in A
do e especificarei adiante, é a pré-condição de
gramática do tempo. Para uma nova cultura política
(Porto: Afrontamento) pp. 401-435. uma relação equilibrada e mutuamente poten-
112 Boaventura de Sousa Santos

ciadora entre a competência global e a legiti- na. A origem Ocidental dos direitos humanos
midade local, os dois atributos de uma política pode ser congruente com a sua universalidade
contra-hegemónica de direitos humanos no se, hipoteticamente, num dado momento his-
nosso tempo. tórico forem universalmente aceites como os
É sabido que os direitos humanos não são padrões ideais da vida moral e política. As duas
universais na sua aplicação. Actualmente são questões estão, no entanto, inter-relacionadas
consensualmente identificados quatro regimes porque a energia mobilizadora que pode ser
internacionais de aplicação de direitos huma- gerada para tornar concreta e efectiva a vigên-
nos: o europeu, o inter-americano, o africano e cia dos direitos humanos depende em parte da
o asiático1. No entanto, as vicissitudes da apli- identificação cultural com os pressupostos que
cação não predeterminam a questão da valida- os fundamentam enquanto reivindicação ética.
de dos direitos humanos. E, de facto, um dos De uma perspectiva sociológica e política, o
debates mais acesos sobre os direitos humanos esclarecimento desta articulação entre energia
gira à volta da questão de saber se os direitos mobilizadora e identificação cultural é de longe
humanos são universais, ou, pelo contrário, um mais importante que a discussão abstracta tan-
conceito culturalmente Ocidental, e, concomi- to da questão da ancoragem cultural como da
tantemente, à volta da questão dos limites da validade filosófica.
sua validade. Embora estreitamente relacio- Mas serão os direitos humanos universais
nadas, estas duas questões são autónomas. A enquanto artefacto cultural, um tipo de inva-
primeira tem a ver com as origens históricas riante cultural ou transcultural, ou seja, parte
e culturais do conceito de direitos humanos, de uma cultura global? A minha resposta é não.
a segunda com as suas reivindicações de vali- Em minha opinião, o único facto transcultural
dade num dado momento histórico. A génese é a relatividade de todas as culturas. A rela-
de uma reivindicação ética pode condicionar tividade cultural (não o relativismo) exprime
a sua validade, mas certamente não a determi- também a incompletude e a diversidade cul-
tural. Significa que todas as culturas tendem
a definir como universal os valores que consi-
1 Para uma análise mais aprofundada dos quatro re-
deram fundamentais. O que é mais elevado ou
gimes internacionais de direitos humanos, ver Santos,
1995: 330-37; 2002: 280-311, e a bibliografia aí referida. importante é também o mais abrangentemente
Para uma concepção intercultural dos direitos humanos 113

válido. Deste modo, a questão específica sobre razão, outras estratégias argumentativas têm
as condições de universalidade numa dada sido propostas para defender a universalidade
cultura é em si mesma, não-universal. A ques- dos direitos humanos. É este o caso dos autores
tão da universalidade dos direitos humanos é para quem os direitos humanos são universais
uma questão cultural do Ocidente. Logo, os di- porque são pertença de todos os seres huma-
reitos humanos são universais apenas quando nos enquanto seres humanos, ou seja, porque,
olhados de um ponto de vista ocidental. Por independentemente do seu reconhecimento
isso mesmo, a questão da universalidade dos explícito, eles são inerentes à natureza huma-
direitos humanos trai a universalidade do que na2. Esta linha de pensamento evita a questão,
questiona ao questioná-lo. “deslocando” o seu objecto. Uma vez que os se-
Sendo a questão da universalidade a respos- res humanos não detêm direitos humanos por
ta a uma aspiração de completude, e porque serem seres — a maioria dos seres não detêm
cada cultura “situa” esta aspiração em torno direitos — mas porque são humanos, é a ques-
dos seus valores fundamentais e da sua valida- tão não respondida da universalidade da natu-
de universal, aspirações diversas a diferentes reza — existe um conceito cultural invariante
valores fundamentais em diferentes culturas de natureza humana? — que torna possível a
podem conduzir a preocupações isomórficas resposta fictícia à questão da universalidade
que, dados os procedimentos de tradução in- dos direitos humanos.
tercultural adequados, se podem tornar mutu- O conceito de direitos humanos assenta
amente inteligíveis. Na melhor das hipóteses, num bem conhecido conjunto de pressupos-
será mesmo possível conseguir uma mestiça- tos, todos eles tipicamente ocidentais, desig-
gem ou interpenetração de preocupações e nadamente: existe uma natureza humana uni-
concepções. Quanto mais igualitárias forem as versal que pode ser conhecida racionalmente;
relações de poder entre culturas, mais provável a natureza humana é essencialmente diferente
será a ocorrência desta mestiçagem. e superior à restante realidade; o indivíduo
Podemos, pois, concluir que, uma vez posta,
a questão da universalidade nega a universa-
2 Para duas visões contrastantes, ver Donnely, 1989,
lidade do que questiona, independentemente
e Renteln, 1990. Ver também Henkin, 1979; Thompson,
da resposta que lhe for dada. Talvez por esta 1980; Schwab e Pollis, 1982; Ghai, 2002; Mutua, 2001.
114 Boaventura de Sousa Santos

possui uma dignidade absoluta e irredutível geral ao serviço dos interesses económicos e
que tem de ser defendida da sociedade ou do geopolíticos dos Estados capitalistas hegemó-
Estado; a autonomia do indivíduo exige que a nicos. Um discurso generoso e sedutor sobre
sociedade esteja organizada de forma não hie- os direitos humanos coexistiu com atrocida-
rárquica, como soma de indivíduos livres (Pa- des indescritíveis, as quais foram avaliadas de
nikkar, 1984: 30). acordo com revoltante duplicidade de critérios
Uma vez que todos estes pressupostos são (Falk: 1981). Mas o modelo ocidental e na rea-
claramente ocidentais e facilmente distinguí- lidade o modelo liberal ocidental do discurso
veis de outras concepções de dignidade huma- dominante sobre os direitos humanos pode
na em outras culturas, haverá que averiguar as comprovar-se em muitos outros exemplos: na
razões pelas quais a universalidade se trans- Declaração Universal de 1948, cujo rascunho
formou numa das características marcantes foi elaborado sem a participação da maioria
dos direitos humanos. Tudo leva a crer que a da população mundial; no reconhecimento ex-
universalidade sociológica da questão da uni- clusivo dos direitos individuais, com a única
versalidade dos direitos humanos se tenha excepção do direito colectivo à autodetermina-
sobreposto à sua universalidade filosófica. ção (que, no entanto, se restringiu aos povos
Sendo que estes pressupostos são claramente submetidos ao colonialismo europeu); na prio-
ocidentais e liberais, e facilmente distinguíveis ridade outorgada aos direitos civis e políticos
de outras concepções de dignidade humana em sobre os económicos, sociais e culturais; e no
outras culturas, podemos perguntar-nos o por- reconhecimento do direito à propriedade como
quê da questão da universalidade dos direitos o primeiro, e durante muitos anos, o único di-
humanos ter gerado um debate tão intenso, ou reito económico.
porque, por outras palavras, a universalidade Mas esta não é toda a história das políticas
sociológica desta questão acaba por ser mais dos direitos humanos. Em todo o mundo mui-
relevante que a sua universalidade filosófica. tos milhares de pessoas e de organizações não
Se observarmos a história dos direitos hu- governamentais têm vindo a lutar pelos direi-
manos no período imediatamente a seguir à Se- tos humanos, muitas vezes correndo grandes
gunda Grande Guerra, não é difícil concluir que riscos, em defesa de classes sociais e grupos
as políticas de direitos humanos estiveram em oprimidos, vitimizados por Estados autoritá-
Para uma concepção intercultural dos direitos humanos 115

rios e por práticas económicas excludentes ciais para uma concepção emancipatória de di-
ou por práticas políticas e culturais discrimi- reitos humanos. Todas as culturas são relativas,
natórias. Os objectivos políticos de tais lutas mas o relativismo cultural, enquanto posição
são emancipatórios e por vezes explicita ou filosófica, é incorrecto4. Mesmo que todas as
implicitamente anticapitalistas. Por exemplo, culturas aspirem a preocupações e valores cuja
têm vindo a desenvolver-se discursos e práti- validade depende do contexto da sua enuncia-
cas contra-hegemónicos que avançam propos- ção, o universalismo cultural, enquanto posição
tas de concepções não-ocidentais de direitos filosófica, é, precisamente por isso, incorrecto.
humanos e organizam diálogos interculturais Contra o universalismo, há que propor diálogos
sobre os direitos humanos. À luz destes desen- interculturais sobre preocupações isomórficas,
volvimentos, creio que a tarefa central da po- isto é, sobre preocupações convergentes ainda
lítica emancipatória do nosso tempo consiste que expressas em linguagens distintas e a par-
em transformar a conceptualização e a prática tir de universos culturais diferentes. Contra o
dos direitos humanos, de um localismo globa- relativismo, há que desenvolver critérios que
lizado, num projecto cosmopolita insurgente3. permitam distinguir uma política progressista
de uma política conservadora de direitos huma-
Quais são as premissas da nos, uma política de capacitação, de uma políti-
transformação dos direitos ca de desarme, uma política emancipatória, de
humanos num projecto uma política regulatória. Na medida em que o
cosmopolita insurgente? debate desencadeado pelos direitos humanos
A primeira premissa é a superação do de- evoluir para um diálogo competitivo entre cul-
bate sobre universalismo e relativismo cultural. turas diferentes sobre os princípios de digni-
Trata-se de um debate intrinsecamente falso, dade humana, é imperioso que tal competição
cujos conceitos polares são igualmente prejudi- induza a formação de coligações transnacionais
que lutem por valores ou exigências máximos,

3 Como referi anteriormente, para ser emancipado-


ra uma política de direitos humanos deve ser sempre 4 Para uma recensão recente do debate do universa-
concebida e praticada como parte de um conjunto mais lismo versus relativismo, ver Rajogopal, 2004: 209-216.
alargado de políticas de resistência e emancipação. Ver também Mutua, 1996.
116 Boaventura de Sousa Santos

e não por valores ou exigências mínimos (quais dade de culturas, pois se cada cultura fosse tão
são os critérios verdadeiramente mínimos? Os completa como se julga, existiria apenas uma
direitos humanos fundamentais? Os menores só cultura. A ideia de completude está na ori-
denominadores comuns?). A advertência fre- gem de um excesso de sentido de que parecem
quentemente ouvida contra os inconvenientes enfermar todas as culturas e é por isso que a
de sobrecarregar a política de direitos humanos incompletude é mais facilmente perceptível do
com novos direitos ou com concepções mais exterior, a partir da perspectiva de outra cul-
exigentes de direitos humanos (Donnelly, 1989: tura. Aumentar a consciência de incompletude
109-24) é uma manifestação tardia da redução cultural é uma das tarefas prévias à construção
do potencial emancipatório da modernidade de uma concepção emancipadora e multicultu-
ocidental à emancipação de baixa intensidade ral de direitos humanos5.
possibilitada ou tolerada pelo capitalismo mun- A quarta premissa é que nenhuma cultura
dial. Por outras palavras, direitos humanos de é monolítica. Todas as culturas comportam
baixa intensidade como o correlato de demo- versões diferentes de dignidade humana, algu-
cracia de baixa intensidade. mas mais amplas do que outras, algumas com
A segunda premissa da transformação cos- um círculo de reciprocidade mais largo do que
mopolita dos direitos humanos é que todas as outras, algumas mais abertas a outras culturas
culturas possuem concepções de dignidade do que outras. Por exemplo, a modernidade
humana, mas nem todas elas a concebem em ocidental desdobrou-se em duas concepções
termos de direitos humanos. Torna-se, por e práticas de direitos humanos profundamente
isso, importante identificar preocupações iso- divergentes — a liberal e a marxista — uma,
mórficas entre diferentes culturas. Designa- dando prioridade aos direitos cívicos e políti-
ções, conceitos e Weltanschaungen diferentes cos, a outra, dando prioridade aos direitos so-
podem transmitir preocupações ou aspirações ciais e económicos6.
semelhantes ou mutuamente inteligíveis.
A terceira premissa é que todas as culturas
são incompletas e problemáticas nas suas con- 5 Ver, por exemplo, Mutua, 2001, e Obiora, 1997.
cepções de dignidade humana. A incompletude
6 Ver, por exemplo, Pollis e Schwab, 1979; Pollis,
provém da própria existência de uma plurali- 1982; Shivji, 1989; An-na’aim, 1992; Mutua, 1996.
Para uma concepção intercultural dos direitos humanos 117

Por último, a quinta premissa é que todas determinada cultura. Funcionam como premis-
as culturas tendem a distribuir as pessoas e os sas de argumentação que, por não se discuti-
grupos sociais entre dois princípios competiti- rem, dada a sua evidência, tornam possível a
vos de pertença hierárquica. Um — o princípio produção e a troca de argumentos. Topoi fortes
da igualdade — opera através de hierarquias tornam-se altamente vulneráveis e problemáti-
entre unidades homogéneas (a hierarquia en- cos quando “usados” numa cultura diferente7.
tre estratos socio-económicos). O outro — o O melhor que lhes pode acontecer é serem des-
princípio da diferença — opera através da hie- promovidos de premissas de argumentação a
rarquia entre identidades e diferenças conside- meros argumentos. Compreender uma deter-
radas únicas. Os dois princípios não se sobre- minada cultura a partir dos topoi de outra cul-
põem necessariamente e, por esse motivo, nem tura é uma tarefa muito difícil e, para alguns,
todas as igualdades são idênticas e nem todas mesmo impossível. Partindo do pressuposto
as diferenças são desiguais. de que não é uma tarefa impossível, proponho,
Estas são as premissas de um diálogo inter- para a levar a cabo, uma hermenêutica diató-
cultural sobre a dignidade humana que pode pica, um procedimento hermenêutico que jul-
levar, eventualmente, a uma concepção mesti- go adequado para nos guiar nas dificuldades a
ça de direitos humanos, uma concepção que, enfrentar, ainda que não necessariamente para
em vez de recorrer a falsos universalismos, se as superar por inteiro.
organiza como uma constelação de sentidos A luta pelos direitos humanos e, em geral,
locais, mutuamente inteligíveis, e que se cons- pela defesa e promoção da dignidade humana
titui em rede de referências normativas capaci- não é um mero exercício intelectual, é uma prá-
tantes. Mas isto é apenas um ponto de partida. tica que resulta de uma entrega moral, afectiva
Num diálogo intercultural, a troca ocorre en- e emocional ancorada na incondicionalidade
tre diferentes saberes que reflectem diferentes do inconformismo e da exigência de acção. Tal
culturas, ou seja, entre universos de sentido
diferentes e, em grande medida, incomensurá-
veis. Tais universos de sentido consistem em 7 Nas trocas e diálogos interculturais experimenta-
mos frequentemente a necessidade de explicar ou justi-
constelações de topoi fortes. Os topoi são os
ficar ideias ou acções que na nossa cultura são eviden-
lugares comuns retóricos mais abrangentes de tes e do senso comum.
118 Boaventura de Sousa Santos

entrega só é possível a partir de uma identifica- humanos na cultura ocidental, o topos do dhar-
ção profunda com postulados culturais inscri- ma na cultura hindu e o topos da umma na cul-
tos na personalidade e nas formas básicas de tura islâmica.
socialização8. Por esta razão, a luta pelos direi- Segundo Panikkar, dharma
tos humanos ou pela dignidade humana nunca
será eficaz se assentar em canibalização ou mi- é o que sustenta, dá coesão e, portanto, força, a
metismo cultural. Daí a necessidade do diálogo uma dada coisa, à realidade e, em última instân-
intercultural e da hermenêutica diatópica. cia, aos três mundos (triloka). A justiça dá coe-
A hermenêutica diatópica baseia-se na ideia são às relações humanas; a moralidade mantém a
pessoa em harmonia consigo mesma; o direito é
de que os topoi de uma dada cultura, por mais
o princípio do compromisso nas relações huma-
fortes que sejam, são tão incompletos quanto
nas; a religião é o que mantém vivo o universo; o
a própria cultura a que pertencem. Tal incom- destino é o que nos liga ao futuro; a verdade é a
pletude não é visível a partir do interior dessa coesão interna das coisas. (…) Um mundo onde a
cultura, uma vez que a aspiração à totalidade noção de Dharma é central e quase omnipresente
induz a que se tome a parte pelo todo. O objec- não está preocupado em encontrar o “direito” de
tivo da hermenêutica diatópica não é, porém, um indivíduo contra outro ou do indivíduo peran-
atingir a completude — um objectivo inatingí- te a sociedade, mas antes em avaliar o carácter
vel — mas, pelo contrário, ampliar ao máximo dharmico (correcto, verdadeiro, consistente) ou
a consciência de incompletude mútua através adharmico de qualquer coisa ou acção no com-
de um diálogo que se desenrola, por assim di- plexo teantropocósmico total da realidade (Pani-
kkar, 1984: 39)10.
zer, com um pé numa cultura e outro, noutra.
Nisto reside o seu carácter dia-tópico9.
Um exemplo de hermenêutica diatópica é a Vistos a partir do topos do dharma, os direi-
que pode ter lugar entre o topos dos direitos tos humanos são incompletos na medida em
que não estabelecem a ligação entre a parte (o
indivíduo) e o todo (o cosmos) ou, dito de for-
ma mais radical, na medida em que se centram
8 Ver Santos (1996) sobre imagens e subjectividades
desestabilizadoras.
9 A este respeito, ver também Panikkar, 1984: 28. 10 Ver também Thapar, 1966; Mitra, 1982, e Inada, 1990.
Para uma concepção intercultural dos direitos humanos 119

no que é meramente derivado, os direitos, em gado por aquilo que o transcende. Além disso,
vez de se centrarem no imperativo primordial, o dharma tende a esquecer que o sofrimento
o dever dos indivíduos de encontrarem o seu humano possui uma dimensão individual irre-
lugar na ordem geral da sociedade e de todo o dutível: não são as sociedades que sofrem, mas
cosmos. Vista a partir do dharma, e na verda- sim os indivíduos.
de também a partir da umma, como veremos Num outro nível conceptual pode ser ensaia-
a seguir, a concepção ocidental dos direitos da a mesma hermenêutica diatópica entre o to-
humanos está contaminada por uma simetria pos dos direitos humanos e o topos da umma
muito simplista e mecanicista entre direitos na cultura islâmica. Os passos do Corão em que
e deveres. Apenas garante direitos àqueles surge a palavra umma são tão variados que o
a quem pode exigir deveres. Isto explica por seu significado não pode ser definido com ri-
que razão, na concepção ocidental dos direi- gor. O seguinte, porém, parece ser certo: o con-
tos humanos, a natureza não tem direitos: por- ceito de umma refere-se sempre a comunidade
que não lhe podem ser impostos deveres. Pelo étnica, linguística ou religiosa de pessoas que
mesmo motivo é impossível garantir direitos são o objecto do plano divino de salvação. À
às gerações futuras: não têm direitos porque medida que a actividade profética de Maomé
não têm deveres. foi progredindo, os fundamentos religiosos
Por outro lado, e inversamente, visto a partir da umma tornaram-se cada vez mais eviden-
do topos dos direitos humanos, o dharma tam- tes e, consequentemente, a umma dos árabes
bém é incompleto, dado o seu enviesamento foi transformada na umma dos muçulmanos.
fortemente não-dialético a favor da harmonia, Vista a partir do topos da umma, a incompletu-
ocultando assim injustiças e negligenciando de dos direitos humanos individuais reside no
totalmente o valor do conflito como caminho facto de, com base neles, ser impossível fundar
para uma harmonia mais rica. Além disso, o os laços e as solidariedades colectivas sem as
dharma não está preocupado com os princí- quais nenhuma sociedade pode sobreviver, e
pios da ordem democrática, com a liberdade muito menos prosperar. Exemplo disto mesmo
e a autonomia, e negligencia o facto de, sem é a dificuldade da concepção ocidental de direi-
direitos primordiais, o indivíduo ser uma en- tos humanos em aceitar direitos colectivos de
tidade demasiado frágil para evitar ser subju- grupos sociais ou povos, sejam eles as mino-
120 Boaventura de Sousa Santos

rias étnicas, as mulheres, as crianças ou os po- O reconhecimento de incompletudes mú-


vos indígenas. Este é, de facto, um exemplo es- tuas é condição sine qua non de um diálogo
pecífico de uma dificuldade muito mais ampla: intercultural. A hermenêutica diatópica desen-
a dificuldade em definir a comunidade enquan- volve-se tanto na identificação local como na
to arena de solidariedades concretas, campo inteligibilidade translocal das incompletudes.
político dominado por uma obrigação política Recentemente, vários exercícios de herme-
horizontal. Esta ideia de comunidade, central nêutica diatópica, muito diferenciados entre
para Rousseau, foi varrida do pensamento libe- si, têm sido propostos na área dos direitos hu-
ral, que reduziu toda a complexidade societal à manos entre as culturas islâmicas e as culturas
dicotomia Estado/sociedade civil. ocidentais. Alguns dos exemplos mais notá-
Mas, por outro lado, a partir do topos dos di- veis são dados por Abdullahi An-na’im (1990,
reitos humanos individuais, é fácil concluir que 1992), Tariq Ramadan (2000, 2003) e Ebrahim
a umma sublinha demasiado os deveres em de- Moosa (2004).
trimento dos direitos e por isso tende a perdoar Existe um longo debate acerca das relações
desigualdades que seriam de outro modo inad- entre islamismo e direitos humanos e da pos-
missíveis, como a desigualdade entre homens e sibilidade de uma noção islâmica de direitos
mulheres ou entre muçulmanos e não-muçulma- humanos11. Este debate abrange um largo es-
nos. A hermenêutica diatópica mostra-nos que a pectro de posições e o seu impacto ultrapassa
fraqueza fundamental da cultura ocidental con- o mundo islâmico. Embora correndo o risco
siste em estabelecer dicotomias demasiado rígi- de excessiva simplificação, duas posições ex-
das entre o indivíduo e a sociedade, tornando-se tremas podem ser identificadas neste debate.
assim vulnerável ao individualismo possessivo,
ao narcisismo, à alienação e à anomia. De igual
modo, a fraqueza fundamental das culturas hin- 11 Para além de An-na’im (1990, 1992 e 1995), veja-se
du e islâmica deve-se ao facto de nenhuma delas Dwyer, 1991; Mayer, 1991; Leites, 1991; Afkhami, 1995;
reconhecer que o sofrimento humano tem uma Gerber, 1999. Veja-se também Hassan, 1982; Al Faruqui,
dimensão individual irredutível, a qual só pode 1983. Acerca do debate mais amplo sobre a relação en-
tre modernidade e o despertar religioso islâmico, veja-
ser adequadamente considerada numa socieda-
-se, por exemplo, Shariati, 1986; Sharabi, 1992; Khaliq,
de não hierarquicamente organizada. 1999; Ramadan, 2000, e Moosa, 2004.
Para uma concepção intercultural dos direitos humanos 121

Uma, absolutista ou fundamentalista, é susten- do às circunstâncias. A aceitação de direitos


tada por aqueles para quem o sistema jurídi- humanos internacionais é uma questão de de-
co religioso do Islão, a Sharia, deve ser inte- cisão política independente de considerações
gralmente aplicado como o direito do Estado religiosas. Apenas para dar um exemplo, entre
islâmico. Segundo esta posição, há conflitos muitos, desta posição: uma lei tunisina de 1956
irreconciliáveis entre a Sharia e a concepção proibiu a poligamia com o argumento de esta
ocidental dos direitos humanos, e sempre que ter deixado de ser aceitável, tanto mais que a
tal ocorra a Sharia deve prevalecer. Por exem- exigência corânica de justiça no tratamento
plo, relativamente ao estatuto dos não-muçul- das co-esposas seria impossível de realizar na
manos, e segundo esta posição, a Sharia deter- prática por qualquer homem, com excepção
mina a criação de um Estado para muçulmanos apenas do próprio Profeta.
que apenas reconhece estes como cidadãos, An-na’im (1990, 1995) critica estas duas po-
negando aos não-muçulmanos quaisquer direi- sições extremas. A via per mezzo que propõe
tos políticos. Ainda segundo esta posição, à luz pretende encontrar fundamentos intercultu-
da Sharia, a paz entre muçulmanos e não-mu- rais para a defesa da dignidade humana, iden-
çulmanos é sempre problemática e os confron- tificando as áreas de conflito entre a Sharia e
tos são inevitáveis. Relativamente às mulheres, “os critérios de direitos humanos” e propondo
o problema da igualdade nem sequer se põe; a uma reconciliação ou relação positiva entre os
Sharia impõe a segregação das mulheres e, em dois sistemas normativos. Segundo ele, o que
algumas interpretações mais estritas, exclui-as há de mais problemático na Sharia histórica
de toda a vida pública. é o facto de excluir as mulheres e os não-mu-
No outro extremo, encontram-se os secula- çulmanos do princípio da reciprocidade. Pro-
ristas ou modernistas, que entendem deverem põe, assim, uma reforma ou reconstrução da
os muçulmanos organizar-se politicamente em Sharia. A sua proposta, a “Reforma islâmica”,
Estados seculares. Segundo esta posição, o Is- assenta numa revisão evolucionista das fontes
lão é um movimento religioso e espiritual e não islâmicas que relativiza o contexto histórico
político e, como tal, as sociedades muçulmanas específico em que a Sharia foi criada pelos
modernas são livres de organizar o seu governo juristas dos séculos VIII e IX. Nesse contexto
do modo que julgarem conveniente e apropria- histórico específico, uma construção restritiva
122 Boaventura de Sousa Santos

do “Outro” e, portanto, uma aplicação igual- postura é precisamente o que distingue a her-
mente restritiva do princípio da reciprocidade menêutica diatópica do orientalismo12. O que
foi provavelmente justificada. Mas isto deixou quero realçar na abordagem de An-na’im é a
de ter validade. Pelo contrário, existe presen- tentativa de transformar a concepção ociden-
temente um contexto distinto dentro do Islão tal de direitos humanos numa concepção in-
que justifica plenamente uma visão mais escla- tercultural ao reivindicar para eles a legitimi-
recida. Segundo An-na’im, no contexto actual, dade islâmica, em vez de renunciar a ela. Em
há todas as condições para uma concepção abstracto e visto de fora, é difícil ajuizar qual
mais alargada da igualdade e da reciprocidade das abordagens, a religiosa (fundamentalista
a partir das fontes corânicas. ou moderada, como no caso de An-na’im) ou
Seguindo os ensinamentos de Usthad Mah- a secularista, terá mais probabilidades de pre-
moud, An-na’im demonstra que uma análise valecer num diálogo intercultural sobre direi-
atenta do conteúdo do Corão e da Suna reve- tos humanos a partir do Islão. Porém, tendo
la dois níveis ou fases da mensagem do Islão: em mente que os direitos humanos ocidentais
uma, do período da Meca Antiga, e outra, do são a expressão de um profundo, se bem que
período subsequente, o período de Medina. Se- incompleto, processo de secularização, sem
gundo ele, a mensagem primitiva de Meca é a paralelo na cultura islâmica, estaria inclinado a
mensagem eterna e fundamental do Islão, que sugerir que, no contexto muçulmano, a energia
sublinha a dignidade inerente a todos os seres mobilizadora necessária para um projecto cos-
humanos, independentemente de sexo, religião mopolita de direitos humanos poderá gerar-se
ou raça. Esta mensagem, considerada demasia- mais facilmente num quadro religioso mode-
do avançada para as condições históricas do rado. Se este for o caso, a abordagem de An-
século VII (a fase de Medina), foi suspensa e a -na’im é muito promissora.
sua aplicação adiada até que no futuro as cir- Muitos outros académicos e activistas islâ-
cunstâncias a tornassem possível. O tempo e o micos têm contribuído nos últimos anos, para
contexto, diz An-na’im, estão agora presentes
no nosso tempo e no nosso contexto.
12 Sobre a construção etnocêntrica do Outro, orien-
Não me cabe avaliar a validade específica
tal, pela cultura e ciência europeias a partir do século
desta proposta para a cultura islâmica. Esta XIX, ver Said, 1978.
Para uma concepção intercultural dos direitos humanos 123

a tradução intercultural e a hermenêutica dia- que subjazem à mobilização das comunidades


tópica entre o Islão e a cultura ocidental, to- cristãs ou humanistas. Assim, a este respeito, as
mando em conta a diversidade interna de uma relações devem multiplicar-se e as trocas de expe-
e de outra. A contribuição de Tariq Ramadan é riências tornadas permanentes (2003: 14).
certamente uma das mais notáveis. Dirigindo-
-se aos muçulmanos que vivem no ocidente e Para Tariq Ramadan, o impulso para a tra-
chamando a atenção para as suas condições dução intercultural reside na necessidade cres-
socio-económicas (a maioria deles é imigran- cente de construir coligações alargadas para
te), Ramadan encoraja-os a unir forças com lutar contra a globalização neoliberal: “No Oci-
todos os outros grupos sociais oprimidos, in- dente, é necessário ser simultaneamente amigo
dependentemente das suas pertenças culturais e parceiro daqueles que denunciam a opressão
ou religiosas: global e nos convidam a todos a fazer esta mu-
dança” (2003: 14).
Quem tenha trabalhado no terreno com comuni- Na Índia, uma via per mezzo semelhante
dades de base que desenvolvem a políticas sociais está a ser prosseguida por alguns grupos de
e económicas ao nível local, certamente se surpre- defesa dos direitos humanos, particularmente
enderá com as semelhanças entre a experiência por aqueles que centram a sua acção na defe-
delas e a experiência das forças muçulmanas. Os sa dos intocáveis (dalits). Tal via consiste em
pontos de referência são certamente diferentes, fundar a luta dos intocáveis pela igualdade e
assim como os seus fundamentos e aplicação, pela justiça social nas ideias hindus de kharma
mas o seu espírito é o mesmo no sentido em que e de dharma. Para isso propõe uma reinterpre-
se nutre da mesma fonte de resistência contra os
tação destes conceitos de modo a transformá-
interesses cegos das grandes super-potências e
das multinacionais. Nós já o dissemos: não se tra-
-los em fonte de legitimidade e de mobilização.
ta de afirmar a realidade de um terceiro mundis- Por exemplo, é dada primazia ao conceito de
mo islâmico beatífico, que soaria ao que há muito “dharma comum” (sadharana dharma) em
tempo conhecemos na nossa parte do mundo. A detrimento do “dharma especial” (visesa dhar-
verdade é que o Islão, que é o ponto de referência ma) das diferentes castas, rituais e deveres. Se-
para muitos muçulmanos praticantes, faz as mes- gundo Khare, o dharma comum,
mas exigências de dignidade, justiça e pluralismo
124 Boaventura de Sousa Santos

baseado na identidade espiritual de todas as da tradução intercultural ou da hermenêuti-


criaturas, tem criado tradicionalmente um senti- ca diatópica. O resultado é a reivindicação de
do partilhado de cuidado mútuo, de renúncia à uma concepção híbrida da dignidade humana
violência e ao dano, de prossecução da equidade. e, por isso também uma concepção mestiça
Tem promovido actividades a favor do bem-estar
dos direitos humanos. Aqui reside a alternativa
público e tem atraído reformadores sociais pro-
a uma teoria geral de aplicação pretensamente
gressistas. Os activistas dos direitos humanos en-
contram aqui uma convergência com um impulso universal, a qual não é mais que uma versão pe-
especificamente indiano. A ética do dharma co- culiar de universalismo que concebe como par-
mum favorece particularmente a luta dos refor- ticularismo tudo o que não coincide com ele.
madores sociais intocáveis (1998: 204). Pela sua própria natureza, a hermenêutica
diatópica é um trabalho de colaboração inter-
O “impulso indiano” do “dharma comum” cultural e não pode ser levado a cabo a partir de
torna possível a contextualização cultural e a uma única cultura ou por uma só pessoa. Não
legitimidade local dos direitos humanos, o que é, portanto, surpreendente que a abordagem de
permite a estes deixarem de ser um localismo An-na’im, um genuíno exercício de hermenêuti-
globalizado13. A revisão da tradição hindu cria ca diatópica, seja por ele conduzida com consis-
não apenas uma abertura para as reivindica- tência desigual. Na minha perspectiva, An-na’im
ções dos direitos humanos, como convida a aceita acriticamente a ideia de direitos humanos
uma revisão da tradição de direitos humanos universais14. Ao mesmo tempo que propõe uma
de modo a poder incorporar reivindicações abordagem evolucionista crítica e contextual da
formuladas de acordo com premissas culturais tradição islâmica, faz uma interpretação da De-
distintas. Ao envolverem-se em revisões recí- claração Universal dos Direitos Humanos sur-
procas, ambas as tradições actuam como cul- preendentemente a-histórica e ingenuamente
turas hóspedes e culturas anfitriãs. Estes são universalista. A hermenêutica diatópica requer
os passos necessários ao exercício complexo não apenas um tipo de conhecimento diferente,
mas também um diferente processo de criação
13 Sobre direitos humanos na Índia e, em geral, no Sul
da Ásia, veja-se Anderson e Guha, 1998; Mahajan, 1998;
Nirmal, 1999; e Vijapur e Suresh, 1999. 14 O mesmo não podemos dizer de Tariq Ramadan.
Para uma concepção intercultural dos direitos humanos 125

de conhecimento. A hermenêutica diatópica exi- A hermenêutica diatópica conduzida a partir


ge uma produção de conhecimento colectiva, da perspectiva da cultura islâmica por An-na’im,
participativa, interactiva, intersubjectiva e reti- Ramadan e pelos movimentos feministas islâ-
cular15. Deve ser prosseguida com a consciência micos de direitos humanos, tem de ser comple-
plena de que existirão sempre áreas sombrias, mentada pela hermenêutica diatópica conduzi-
zonas de incompreensão ou ininteligibilidade da a partir da perspectiva de outras culturas e,
irremediáveis, as quais, para evitar a paralisia nomeadamente, da perspectiva da cultura oci-
ou faccionalismo, devem ser relativizadas em dental dos direitos humanos. Vista a partir da
nome de interesses comuns na luta contra a in- cultura ocidental, a hermenêutica diatópica é
justiça social. Este facto é salientado por Tariq provavelmente o único meio de integrar nela as
Ramadan quando afirma: noções de direitos colectivos, direitos da natu-
reza, direitos das futuras gerações, bem como a
O Ocidente não é monolítico nem diabólico, e os noção de deveres e responsabilidades para com
seus fenomenais recursos em termos de direitos, entidades colectivas, sejam elas a comunidade,
conhecimento, cultura e civilização são demasia- o mundo ou mesmo o cosmos.
do importantes para serem simplesmente mini-
mizados ou rejeitados. [Todavia] ser um cidadão
O imperialismo cultural e a
ocidental e muçulmano e preservar estas verdades
significa, quase sistematicamente, correr o ris-
possibilidade de uma contra-
co de ser olhado como alguém que não está bem hegemonia
“integrado”. Assim, permanece a suspeita sobre a Em face da sua íntima ligação histórica
verdadeira lealdade destas pessoas. Tudo se pro- com o colonialismo, submeter os direitos
cessa como se a nossa “integração” tivesse que ser humanos à hermenêutica diatópica é certa-
comprada com o nosso silêncio. Este tipo de chan- mente uma das mais difíceis tarefas de tra-
tagem intelectual deve ser recusado (2003: 10-11). dução intercultural. Aprender com o Sul16 é
apenas um ponto de partida, e poderá mesmo

15 Uma formulação mais elaborada sobre as relações


entre direitos humanos universais e o Islão pode encon- 16 Sobre a ideia de “aprender com o Sul”, ver Santos
trar-se em Moosa, 2004. (1995: 475-519; 2000: 340-352).
126 Boaventura de Sousa Santos

revelar-se como um ponto de partida falso se à custa da carne e do sangue dos meus antepas-
não tivermos em conta que o Sul tem sido sados (1982: 19).
activamente “desaprendido” pelo Norte ao
longo do tempo. Como Said afirma, o contex- Do meu ponto de vista, o mesmo se poderia
to imperial brutaliza tanto a vítima como o dizer sobre os direitos humanos, considerados
opressor, e induz tanto na cultura dominante no Ocidente como um dos maiores monumen-
como na dominada “não só concordância e tos da civilização ocidental. A formulação as-
lealdade mas também uma concepção invul- séptica e ahistórica que se auto-concederam
garmente rarefeita das fontes de que a cultu- oculta o lado negro das suas origens, desde os
ra realmente brota e as circunstâncias com- genocídios da expansão europeia, até ao Ther-
plexas de que os seus monumentos derivam” midor e o Holocausto. Mas esta rarefacção de
(1993: 37). Os monumentos têm, de facto, ori- culturas ocorre de igual modo nas culturas su-
gens labirínticas. Ao olhar as pirâmides, Ali bordinadas, tal como Said mostra:
Shariati comenta17:
Hoje, os jovens árabes e muçulmanos são en-
Eu senti tanto ódio para com os grandes monu- sinados a venerar os clássicos da sua religião e
mentos da civilização que ao longo da história pensamento, a serem acríticos, a não olharem o
foram glorificados sobre os ossos dos meus ante- que lêem, por exemplo, a literatura nahda ou Ab-
passados! Os meus antepassados também cons- basid, como embebidos em todo o tipo de confli-
truíram a grande muralha [sic] da China. Os que tos políticos. Só muito ocasionalmente surge um
não podiam suportar as cargas foram esmagados crítico, como, por exemplo, Adonis, o brilhante
debaixo de pedras pesadas e enterrados com elas poeta sírio contemporâneo, dizendo abertamente
nas muralhas. Foi assim que foram construídos que as leituras de turath no mundo árabe contem-
todos os grandes monumentos das civilizações — porâneo reforçam um autoritarismo rígido e um
literalismo que tem como efeito a morte do espí-
rito e a obliteração do criticismo (1993: 38).
17 Gilroy critica as “concepções super-integradoras
de culturas puras e homogéneas que significam que as Como espero que se tenha tornado eviden-
lutas políticas negras se constroem de uma forma au- te na análise da hermenêutica diatópica feita
tomaticamente expressiva das diferenças nacionais e
étnicas com as quais estão associadas” (1993: 31).
acima, o reconhecimento do empobrecimento
Para uma concepção intercultural dos direitos humanos 127

recíproco, ainda que assimétrico, da vítima e das pelo racismo e anti-semitismo europeu do
do opressor é a condição básica para um diá- século XIX (Bernal, 1987).
logo intercultural. Apenas o conhecimento da Nesta mesma linha de inquirição, as origens
densidade e da complexidade da história nos conturbadas dos direitos humanos, enquanto
permite actuar independentemente dela18. O “monumento da cultura ocidental”, não podem
exame minucioso das relações entre a vítima ser vistas apenas da perspectiva da dominação
e o opressor previne-nos contra distinções de- imperial que eles justificaram; devem sê-lo tam-
masiado estritas entre culturas, uma prevenção bém a partir do seu carácter compósito original
que é particularmente relevante no caso das enquanto artefactos culturais. Os pressupostos
culturas dominantes. De acordo com Pieterse, iluministas e racionais dos direitos humanos
a cultura ocidental não é nada do que parece, que identifiquei acima contém ressonâncias e
nem o que os ocidentais tendem a pensar que vibrações de outras culturas e as suas raízes
é: “o que é assumido como sendo a cultura ou históricas estendem-se muito para lá da Eu-
a civilização europeia é genealogicamente não ropa. Um diálogo intercultural deve partir da
necessária ou estritamente europeu” (1989: dupla constatação de que as culturas foram
369). É uma síntese cultural de muitos elemen- sempre interculturais, e de que as trocas e in-
tos e correntes, muitos dos quais não-euro- terpenetrações entre elas foram sempre muito
peus. Bernal usou a desconstrução dos concei- desiguais e quase sempre hostis ao diálogo cos-
tos de “civilização clássica” para demonstrar mopolita que aqui preconizo.
os fundamentos não-europeus desta, as contri- A questão que hoje se coloca é de saber se
buições do Egipto e da África, das civilizações será possível a construção de uma concepção
semita e fenícia, da Mesopotâmia e da Pérsia, pós-imperial de direitos humanos. Trata-se de
da Índia e China, no domínio da língua, da arte, inquirir se o vocabulário ou o guião dos di-
do conhecimento, da religião e da cultura ma- reitos humanos se encontra de tal forma car-
terial. Demonstrou também como estas raízes regado de sentidos hegemónicos que excluí a
afro-asiáticas da Grécia Antiga foram renega- possibilidade de sentidos contra-hegemónicos.
Embora completamente consciente das barrei-
ras quase inultrapassáveis, eu respondo posi-
18 Ver Santos, 1996. tivamente a esta questão básica. Nas secções
128 Boaventura de Sousa Santos

seguintes procuro especificar as condições de concepção idealista de diálogo intercultural


possibilidade da contra-hegemonia no domínio poderá esquecer facilmente que tal diálogo só
dos direitos humanos. é possível através da simultaneidade temporá-
ria de duas ou mais contemporaneidades dife-
As dificuldades de uma rentes. Os parceiros no diálogo só superficial-
reconstrução intercultural dos mente se sentem contemporâneos; na verdade,
direitos humanos cada um deles sente-se apenas contemporâneo
A hermenêutica diatópica oferece um am- da interpretação da tradição histórica da sua
plo campo de possibilidades para os debates cultura que propõe para o diálogo. É assim so-
que estão actualmente a ocorrer nas diferen- bretudo quando as diferentes culturas envolvi-
tes regiões culturais do sistema mundial sobre das no diálogo partilham um longo passado de
os temas gerais do universalismo, relativismo, trocas sistematicamente desiguais. Que possi-
multiculturalismo, pós-colonialismo, quadros bilidades existem para um diálogo intercultu-
culturais da transformação social, tradicio- ral quando uma das culturas em presença foi
nalismo e renovação cultural19. Porém, uma moldada por massivas e continuadas agressões
à dignidade humana perpetradas em nome da
outra cultura? Quando as culturas partilham tal
19 Para o debate africano, ver Paulin Hountondji, passado, a contemporaneidade presente que
1983, 1994, 2002; Olusegun Oladipo, 1989; Odera Oruka,
1990b; Kwasi Wiredu, 1990; Ernest Wamba dia Wamba, partilham no momento de iniciarem o diálogo
1991a, 1991b; Henk Procee, 1992; Mogobe B. Ramose, é, no melhor dos casos, um quid pro quo e, no
1992; Robin Horton et al., 1990; Robin Horton, 1993; P. pior dos casos, uma fraude. O dilema cultural
H. Coetzee e A. P. J. Roux, 2003. Uma amostra do rico que se levanta é o seguinte: dado que, no pas-
debate na Índia pode ler-se em Ashis Nandy, 1987a,
sado, a cultura dominante tornou impronunciá-
1987b, 1988; Partha Chatterjee, 1984; Thomas Pan-
tham, 1988; Rajeev Bhargava, 1998; Bhargava, Bagchi veis algumas das aspirações à dignidade huma-
e Sudarshan, 1999. Uma visão global sobre as diferen- na por parte da cultura subordinada, será agora
ças culturais pode ser encontrada em Galtung, 1981; possível pronunciá-las no diálogo intercultural
Oladipo, 1989; Oruka, 1990; Wiredu, 1990; Wamba dia
Wamba, 1991a, 1991b; Procee, 1992; Ramose, 1992.
Uma amostra do rico debate na Índia existe em Nandy, Uma visão global sobre as diferenças culturais pode ser
1987a, 1987b, 1988; Chatterjee, 1984 e Pantham, 1988. encontrada em Galtung, 1981.
Para uma concepção intercultural dos direitos humanos 129

sem, ao fazê-lo, justificar e mesmo reforçar a culturas como entidades incompletas. Pode
subordinação? argumentar-se que, pelo contrário, só cultu-
O imperialismo cultural e o epistemicídio ras completas podem participar em diálogos
(Santos, 1998c: 208) são parte da trajectória interculturais sem correrem o risco de serem
histórica da modernidade ocidental. Após sé- descaracterizadas ou mesmo absorvidas por
culos de trocas culturais desiguais, será justo culturas mais poderosas. Uma variante deste
tratar todas as culturas de forma igual? Será argumento reside na ideia de que só uma cul-
necessário tornar impronunciáveis algumas as- tura poderosa e historicamente auto-declarada
pirações da cultura ocidental para dar espaço à vencedora, como é o caso da cultura ocidental,
pronunciabilidade de outras aspirações de ou- pode atribuir-se o privilégio de se auto-declarar
tras culturas? Paradoxalmente — e contrarian- incompleta sem com isso correr o risco de dis-
do o discurso hegemónico — é precisamente solução. Assim sendo, a ideia de incompletude
no campo dos direitos humanos que a cultura cultural será, afinal, o instrumento perfeito de
ocidental tem de aprender com o Sul global hegemonia cultural e, portanto, uma armadilha
para que a falsa universalidade atribuída aos di- quando atribuída a culturas subordinadas.
reitos humanos no contexto imperial seja con- Esta linha de argumentação é particular-
vertida numa nova universalidade, construída mente convincente quando aplicada a cultu-
a partir de baixo, o cosmopolitismo subalterno ras não-ocidentais que no passado foram ví-
e insurgente. timas dos mais destrutivos “encontros” com
O carácter emancipatório da hermenêutica a cultura ocidental, encontros de tal maneira
diatópica não está garantido a priori e, de fac- destrutivos que, nalguns casos, levaram à ex-
to, o multiculturalismo pode ser o novo rótulo tinção cultural. É este o caso de muitas cultu-
de uma política reaccionária. Basta mencionar ras dos povos indígenas das Américas, da Aus-
o multiculturalismo do chefe do governo da trália, da Nova Zelândia, da Índia, etc. Estas
Malásia ou da gerontocracia chinesa quando se culturas foram tão agressivamente amputadas
refere à “concepção asiática de direitos huma- e descaracterizadas pela cultura ocidental que
nos” (Rajagopal, 2004: 212-216). recomendar-lhes agora a adopção da ideia de
Um dos mais problemáticos pressupostos incompletude cultural, como pressuposto da
da hermenêutica diatópica é a concepção das hermenêutica diatópica, é um exercício ma-
130 Boaventura de Sousa Santos

cabro por mais emancipatórias que sejam as logos interculturais assentes em condições es-
suas intenções20. tabelecidas por mútuo acordo. E se a resposta
O problema desta argumentação é que ela for positiva, há que identificar as condições a
conduz logicamente a dois possíveis resulta- serem discutidas.
dos alternativos ao diálogo intercultural, am- O dilema da completude cultural pode ser
bos bastante perturbadores: o fechamento assim formulado: se uma cultura se considera
cultural ou a conquista cultural. Num tempo de inabalavelmente completa não tem nenhum
intensificação das práticas sociais e culturais interesse em envolver-se em diálogos intercul-
transnacionais, o fechamento cultural é, quan- turais; se, pelo contrário, admite, como hipó-
do muito, uma aspiração piedosa que na práti- tese, a incompletude que outras culturas lhe
ca oculta e implicitamente aceita a “fatalidade” atribuem e aceita o diálogo, perde confiança
de processos caóticos e incontroláveis de de- cultural, torna-se vulnerável e corre o risco de
sestruturação, contaminação e hibridação cul- ser objecto de conquista. Por definição, não há
tural. Tais processos assentam em relações de saídas fáceis para este dilema mas também não
poder e em trocas culturais tão desiguais que penso que ele seja insuperável. Tendo em men-
o fechamento cultural se transforma na outra te que o fechamento cultural é uma estratégia
face da conquista cultural. Nestes termos, a auto-destrutiva, não vejo outra saída senão ele-
verdadeira questão é de saber se a conquista var as exigências do diálogo intercultural até
cultural em curso pode ser substituída por diá- um nível suficientemente alto para minimizar a
possibilidade de conquista cultural, mas não tão
alto que destrua a própria possibilidade do diá-
20 Neste texto concentro-me na hermenêutica dia- logo (caso em que se reverteria ao fechamento
tópica entre a cultura ocidental e as grandes culturas
cultural e, a partir dele, à conquista cultural).
orientais, no caso o hinduísmo e o islamismo. Uma her-
menêutica diatópica que envolva as culturas dos povos
indígenas suscita questões analíticas distintas e exige Condições para uma reconstrução
pressupostos específicos. Ainda que de modo prelimi- intercultural dos direitos
nar, trato deste tema em Santos (1995: 313-327) e em humanos
Santos (2000: 190-208). Incidindo sobre os povos indí-
genas da América Latina ver, a propósito deste assunto, As condições para um multiculturalismo
Santos (1997) e Santos e García-Villegas (2001). progressista variam muito no tempo e no es-
Para uma concepção intercultural dos direitos humanos 131

paço e segundo as culturas envolvidas e as Longe de pretender reconstituir a comple-


relações de poder entre elas. Apesar disso, tude cultural, a hermenêutica diatópica apro-
afigura-se-me que as seguintes orientações e funda, à medida que progride, a incompletude
imperativos transculturais devem ser aceites cultural, transformando a consciência inicial
por todos os grupos sociais e culturais interes- de incompletude, em grande medida difusa e
sados no diálogo intercultural. pouco articulada, numa consciência auto-re-
Da completude à incompletude. Como dis- flexiva. O objectivo central da hermenêutica
se atrás, a completude cultural é o ponto de diatópica consiste precisamente em fomentar
partida, não o ponto de chegada. Mais precisa- auto-reflexividade a respeito da incompletude
mente, a completude cultural é a condição que cultural. Neste caso, a auto-reflexividade ex-
prevalece no momento que antecede o início prime o reconhecimento da incompletude cul-
do diálogo intercultural. O verdadeiro ponto de tural da cultura de cada um tal como é vista
partida do diálogo é o momento de frustração ao espelho da incompletude cultural da outra
ou de descontentamento com a cultura a que cultura em diálogo. É muito neste espírito que
pertencemos, um sentimento, por vezes difuso, Makau Mutua, depois de argumentar que “os
de que a nossa cultura não fornece respostas esforços persistentes para universalizar um
satisfatórias para todas as nossas questões, corpus essencialmente europeu de direitos
perplexidades ou aspirações. Este sentimen- humanos através de cruzadas ocidentais não
to suscita a curiosidade por outras culturas e pode ter êxito”, afirma:
suas respostas, uma curiosidade quase sempre
assente em conhecimentos muito vagos dessas As críticas ao corpus dos direitos humanos por
culturas. De todo o modo, o momento de frus- parte de africanos, asiáticos, muçulmanos, hin-
tração ou de descontentamento envolve uma dus, e por um vasto conjunto de pensadores crí-
pré-compreensão da existência e da possível ticos de todo o mundo são a única via através da
qual os direitos humanos poderão ser redimidos e
relevância de outras culturas. Dessa pré-com-
verdadeiramente universalizados. Esta multicul-
preensão emerge a consciência da incompletu-
turização do corpus pode ser tentada em nume-
de cultural e dela nasce o impulso individual ou rosas áreas: buscando o equilíbrio entre direitos
colectivo para o diálogo intercultural e para a individuais e colectivos, conferindo maior efecti-
hermenêutica diatópica. vidade aos direitos sociais e económicos, articu-
132 Boaventura de Sousa Santos

lando os direitos com os deveres, e enfrentando a peita à cultura ocidental dos direitos humanos.
questão das relações entre o corpus e os sistemas Das duas versões de direitos humanos, a liberal
económicos (2001: 243). e a social-democrática (marxista ou não), deve
ser privilegiada a última porque amplia para os
Das versões culturais estreitas às versões domínios económico e social a igualdade que
amplas. Longe de serem entidades monolíti- a versão liberal apenas considera legítima no
cas, as culturas comportam grande varieda- domínio político.
de interna. A consciência dessa diversidade De tempos unilaterais a tempos partilha-
aprofunda-se à medida que a hermenêutica dos. O tempo do diálogo intercultural não pode
diatópica progride. Das diferentes versões de ser estabelecido unilateralmente. Pertence a
uma dada cultura deve ser escolhida para o di- cada comunidade cultural decidir quando está
álogo intercultural a que representa o círculo pronta para o diálogo intercultural. Devido à fa-
de reciprocidade mais amplo, a versão que vai lácia da completude — que leva cada cultura a
mais longe no reconhecimento do outro. Como desprezar a diferença face a outras culturas —,
vimos, das duas interpretações dos ensinamen- quando uma dada comunidade se dispõe ao di-
tos do Profeta constantes no Corão, An-na’im álogo intercultural tende a supor que a mesma
escolhe a que assegura o círculo mais amplo disposição existe nas outras culturas com que
de reciprocidade, a que reconhece como iguais pretende dialogar. É este precisamente o caso
muçulmanos e não-muçulmanos, homens e da cultura ocidental que durante séculos não
mulheres. Partindo de uma perspectiva dis- teve qualquer disponibilidade para diálogos
tinta, Tariq Ramadan assume uma concepção interculturais mutuamente acordados e que
contextual de diferenças culturais e religiosas agora, ao ser atravessada por uma consciência
com o objectivo de as colocar ao serviço das difusa de incompletude, tende a crer que todas
coligações interculturais na luta contra o capi- as outras culturas estão igualmente disponíveis
talismo global. Da mesma forma e pelas mes- para reconhecer a sua incompletude e, mais do
mas razões, os activistas das castas intocáveis que isso, ansiosas para se envolverem em diá-
da Índia privilegiam o “dharma comum” em logos interculturais com o Ocidente.
detrimento do “dharma especial”. O mesmo Se o tempo para iniciar o diálogo intercul-
procedimento deve ser adoptado no que res- tural tem de resultar de uma convergência
Para uma concepção intercultural dos direitos humanos 133

entre as comunidades culturais envolvidas, o tivos imperiais, enquanto no caso de culturas


tempo para o terminar ou suspender deve ser subordinadas trata-se muitas vezes de actos de
deixado à decisão unilateral de cada comuni- auto-defesa. Depende das forças políticas pro-
dade cultural. Não há nada irreversível no pro- gressistas dentro de uma determinada cultura
cesso da hermenêutica diatópica. Uma dada e através das culturas — o que acima denomi-
comunidade cultural pode necessitar de uma nei como “cosmopolitismo insurgente” — de-
pausa antes de avançar para uma nova fase do fender a política emancipatória da hermenêu-
diálogo, ou pode chegar à conclusão de que o tica diatópica de desvios reacionários.
diálogo a vulnerabiliza para além do que é to- De parceiros e temas unilateralmente im-
lerável e que, por isso, deve pôr-lhe fim. A re- postos a parceiros e temas escolhidos por
versibilidade do diálogo é crucial para impedir mútuo acordo. Sempre que uma dada comuni-
que ele se perverta e transforme em conquista dade cultural decide envolver-se num diálogo
cultural ou em fechamento cultural recíproco. intercultural não o faz indiscriminadamente,
É a possibilidade de reversão que confere ao com uma qualquer outra comunidade cultural
diálogo intercultural a qualidade de um pro- ou para discutir qualquer tipo de questões. O
cesso de negociação aberto e explicitamente requisito de que tanto os parceiros como os te-
político, que progride por via de conflitos e mas do diálogo não podem ser unilateralmente
consensos segundo regras mutuamente acor- impostos e devem antes resultar de acordos
dadas. Na ausência ou deficiente explicitação mútuos é talvez a condição mais exigente da
de tais regras, o diálogo intercultural pode hermenêutica diatópica. O específico processo
transformar-se facilmente na fachada benevo- histórico, cultural e político pelo qual a alteri-
lente sob a qual se escondem trocas culturais dade de uma dada cultura se torna particular-
muito desiguais. Daí também que o significado mente significante para uma outra cultura num
político de pôr fim unilateralmente ao diálogo dado momento varia imenso, já que resulta de
intercultural seja diferente consoante a deci- convergências únicas de uma grande multi-
são seja tomada por uma cultura dominante plicidade de factores. Em geral, pode dizer-se
ou por uma cultura subordinada. No primei- que as lutas anti-coloniais e o pós-colonialismo
ro caso, trata-se frequentemente de actos de têm tido um papel decisivo na emergência da
chauvinismo agressivo justificados por objec- alteridade significativa. Neste espírito, Tariq
134 Boaventura de Sousa Santos

Ramadan encoraja os muçulmanos no Ociden- tanto, segundo concepções rivais de igualdade


te a que, “embora no coração de sociedades e de diferença. Nestas circunstâncias, nem o
industrializadas, [se] mantenham conscientes reconhecimento da igualdade nem o reconhe-
do Sul e da sua destituição” (2003: 10). No que cimento da diferença serão condição suficiente
respeita aos temas, a convergência é muito difí- de uma política multicultural emancipatória. O
cil de alcançar, não só porque a traducibilidade multiculturalismo progressista pressupõe que
intercultural dos temas é inerentemente pro- o princípio da igualdade seja prosseguido de
blemática, como também porque em todas as par com o princípio do reconhecimento da di-
culturas há temas demasiado importantes para ferença. A hermenêutica diatópica pressupõe a
serem incluídos num diálogo com outras cultu- aceitação do seguinte imperativo transcultural:
ras. Como referi acima, a hermenêutica diató- temos o direito a ser iguais quando a diferença
pica tem de centrar-se, não nos “mesmos” te- nos inferioriza; temos o direitos a ser diferen-
mas, mas antes nas preocupações isomórficas, tes quando a igualdade nos descaracteriza.
em perplexidades e desconfortos que apontam
na mesma direcção apesar de formulados em Bibliografía
linguagens distintas e quadros conceituais vir- Afkhami, M. (ed.) 1995 Faith and Freedom:
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formalmente iguais, de que é exemplo paradig- Consensus (Philadelphia: University of
mático a exploração capitalista dos trabalha- Pennsylvania Press).
dores; atribuição de hierarquia entre diferen- An-Na’im, A. 1990 Toward an Islamic
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Sociologia crítica da justiça* **

Introdução protagonismo social e político dos juízes: um


pouco por toda a Europa e por todo o Continen-
U m dos fenómenos mais intrigantes da so-
ciologia política e da ciência política con-
temporânea é o recente e sempre crescente
te americano os tribunais, os juízes, o Ministé-
rio Público e as sentenças judiciais surgem nas
primeiras páginas dos jornais, nos noticiários
* Extraído de Santos, B. de Sousa 2009 “Sociologia
televisivos e são tema frequente de conversa
crítica da justiça”, tradução portuguesa do Capítulo 3 entre os cidadãos. Trata-se de um fenómeno
do livro Sociología jurídica crítica (Madrid: Trotta) novo ou apenas de um fenómeno que sendo ve-
pp. 81-128. lho, colhe hoje uma nova atenção pública?
** Este capítulo é complementado por Santos, 2009: Ao longo do nosso século, os juízes sempre
454-508. Aqui analiso os sistemas de justiça, e em espe- foram, de tempos a tempos, polémicos e objec-
cial os tribunais no quadro das sociedades nacionais.
to de aceso escrutínio público. Basta recordar
Em Santos, 2009: 454-508, analiso os tribunais e o sis-
tema judicial quadro dos processos de globalização, os os tribunais da República de Weimar depois
quais tem diferentes impactos nos diferentes sistemas da revolução alemã (1918) e os seus critérios
nacionais. Este texto serviu de referência teórica aos duplos na punição da violência política da ex-
estudos que dirijo na Universidade de Coimbra no âm- trema-direita e da extrema-esquerda; o Supre-
bito do Observatório Permanente da Justiça Portugue-
sa do Centro de Estudos Sociais (<www.ces.uc.pt>),
mo Tribunal dos EUA e o modo como tentou
bem como às investigações sócio-jurídicas que empre- anular a legislação do New Deal de Roosevelt
endi noutros países. Ver Santos, 1996, Santos e García- no início dos anos trinta; os tribunais italianos
-Villegas (eds.), 2001, para o caso da Colômbia, e Santos de finais da década de sessenta e da década
e Trindade (eds.), 2003, para o caso de Moçambique e de setenta que através do “uso alternativo do
Santos, 2014 para o caso do Brasil. [N. do A.]
140 Boaventura de Sousa Santos

direito” procuraram reforçar a garantia juris- constitucionalização do direito ordinário como


dicional dos direitos sociais (Sense, 1978); o meio de fundamentar um garantismo mais ou-
Supremo Tribunal do Chile e o modo como sado dos direitos dos cidadãos, mas também as
tentou impedir o processo de nacionalizações decisões económicas tomadas pelas diferentes
levado a cabo por Allende no princípio da dé- autoridades. Os juízes decidem se determinada
cada de setenta. orientação económica é contrária à constitui-
Contudo, estes momentos de notoriedade ção, e se consideram retirar-lhe os efeitos jurí-
distinguem-se do protagonismo dos tempos dicos, gera-se um gasto fiscal inesperado. Isto
mais recentes em dois aspectos importantes. leva o executivo a acusar os tribunais de usur-
Em primeiro lugar, em quase todas as situa- parem a sua autonomia no momento de deter-
ções do passado, os juízes distinguiram-se pelo minar as políticas económicas1.
seu conservadorismo, pelo tratamento discri- Por outro lado, ainda que a notoriedade
minatório da agenda política progressista ou pública ocorra em casos que constituem uma
dos agentes políticos progressistas, pela sua fracção infinitesimal do trabalho judiciário é
incapacidade para acompanhar os processos suficientemente recorrente para não parecer
mais inovadores de transformação social, eco- excepcional e para, pelo contrário, parecer
nómica e política, muitas vezes sufragados pela corresponder a um novo padrão do interven-
maioria da população. Em segundo lugar, tais cionismo judiciário. Acresce que este interven-
intervenções notórias foram, em geral, esporá- cionismo, ao contrário dos anteriores, ocorre
dicas, em resposta a acontecimentos políticos mais no domínio criminal do que nos domínios
excepcionais, em momentos de transformação cível, laboral ou administrativo e assume como
social e política profunda e acelerada. seu traço mais distintivo a criminalização da
Em contraste, o protagonismo dos juízes responsabilidade política, ou melhor, da irres-
nos tempos mais recentes, sem favorecer ne- ponsabilidade política. Tão pouco se dirige,
cessariamente agendas ou forças políticas con-
servadoras ou progressistas, tal como elas se
apresentam no campo político, assenta num 1 Uma proposta restritiva da intervenção dos juízes
na economia: Clavijo, 2001 e Kalmanovitz, 2001. Uma
entendimento mais amplo e profundo do con-
visão sobre a necessidade de um controlo judicial das
trolo da legalidade, que inclui, por vezes, a re- decisões económicas: Upriminy, 2006a.
Sociologia crítica da justiça 141

como as formas anteriores de intervencionis- agora de modo diferente e por razões dife-
mo, aos usos do poder político e às agendas rentes. Sempre que ele ocorre, levantam-se
políticas em que este se traduziu. Dirige-se an- a respeito dos juízes três questões: a questão
tes aos abusos do poder e aos agentes políticos da legitimidade, a questão da capacidade e a
que os protagonizam. questão da independência.
No entanto, o novo protagonismo judiciário A questão da legitimidade só se põe em re-
partilha com o anterior uma característica fun- gimes democráticos e diz respeito à formação
damental: traduz-se num confronto com a clas- da vontade da maioria por via da representa-
se política e com outros órgãos de poder sobe- ção política obtida eleitoralmente. Como, na
rano, nomeadamente, com o poder executivo. esmagadora maioria dos casos, os magistrados
E é, por isso, que, tal como anteriormente, se não são eleitos, questiona-se o conteúdo demo-
fala agora da judicialização dos conflitos políti- crático do intervencionismo judiciário sempre
cos. Sendo certo que na matriz do Estado mo- que este interfere com o poder legislativo ou o
derno o judiciário é um poder político, titular poder executivo.
de soberania, a verdade é que ela só se assume A questão da capacidade diz respeito aos re-
publicamente como poder político na medida cursos de que dispõe a justiça para levar a cabo
em que interfere com outros poderes políticos. eficazmente a política judiciária. A capacidade
Ou seja, a política judiciária, que é uma carac- dos juízes é questionada por duas vias. Por um
terística matricial do Estado moderno, só se lado, num quadro processual fixo e com recur-
afirma como política do judiciário quando se sos humanos e infraestruturais relativamente
confronta, no seu terreno, com outras fontes inelásticos, qualquer acréscimo “exagerado”
de poder político. Daí que a judicialização dos da procura da intervenção judiciária pode sig-
conflitos políticos não possa deixar de traduzir- nificar o bloqueamento da oferta e, em última
-se na politização dos conflitos judiciários2. instância, redundar em denegação da tutela
Como veremos adiante, não é a primeira judicial efectiva. Por outro lado, os juízes não
vez que este fenómeno ocorre, mas ocorre dispõem de meios próprios para fazer executar
as suas decisões sempre que estas, para pro-
duzir efeitos úteis, pressupõem uma prestação
2 Ver também Hirschl, 2004. activa de um qualquer sector da administração
142 Boaventura de Sousa Santos

pública. Nestes domínios, que são aqueles em poderes para se apetrechar dos recursos que
que a “politização dos litígios judiciais” ocorre considera adequados para o bom desempenho
com mais frequência, a justiça está à mercê da das suas funções.
boa vontade de serviços que não estão sob sua As questões da legitimidade, da capacidade
jurisdição e, sempre que tal boa vontade falha, e da independência assumem, como vimos,
repercute-se directa e negativamente na pró- maior acuidade em momentos em que os juízes
pria eficácia da tutela judicial. adquirem maior protagonismo social e políti-
A questão da independência dos juízes co. Este facto tem um importante significado,
está intimamente ligada com a questão da le- tanto pelo que revela, como pelo que oculta.
gitimidade e com a questão da capacidade. A Em primeiro lugar, tal protagonismo é produ-
independência dos juízes é um dos princípios to de uma conjunção de factores que evoluem
básicos do constitucionalismo moderno pelo historicamente, pelo que se torna necessário
que pode parecer estranho que seja objecto de periodizar a função e o poder judiciais nos úl-
questionamento. E em verdade, ao contrário timos cento e cinquenta anos a fim de poder-
do que sucede com a questão da legitimidade, o mos contextualizar melhor a situação presen-
questionamento da independência tende a ser te. Em segundo lugar, as intervenções judiciais
levantado pelo próprio poder judiciário sempre que são responsáveis pela notoriedade judicial
que se vê confrontado com medidas do poder num dado momento histórico constituem uma
legislativo ou do poder executivo que conside- fracção ínfima do desempenho judiciário, pelo
ra atentatórias da sua independência. que um enfoque exclusivo nas grandes ques-
A questão da independência surge assim tões pode ocultar ou deixar sub-analisado o
em dois contextos. No contexto da legitimi- desempenho que na prática quotidiana dos ju-
dade sempre que o questionamento desta leva ízes ocupa a esmagadora maioria dos recursos
o legislativo ou o executivo a tomar medidas e do trabalho judicial. Ultimamente, o debate
que o poder judicial entende serem mitigado- centrou-se entre uma justiça protagonista que
ras da sua independência. Surge também no corresponde às decisões dos altos tribunais e
contexto da capacidade, sempre que o poder uma justiça rotineira que se dedica aos casos
judiciário, carecendo de autonomia financeira mais comuns com um desempenho defeituoso,
e administrativa, se vê dependente dos outros muitas vezes ameaçada pela delinquência orga-
Sociologia crítica da justiça 143

nizada, no caso de países com problemas cróni- processo histórico por via do qual essa cultura
cos de violência; ou não conta com os recursos jurídica se instalou e se desenvolveu (desen-
necessários para fazer o seu trabalho adequa- volvimento orgânico; adopção voluntarista de
damente, o que se reflecte, por exemplo, na es- modelos externos; colonização, etc.).
cassa capacidade do juiz para a apresentação Uma análise sociológica do sistema judiciá-
de provas. O resultado disto é que os casos não rio, não pode assim deixar de abordar as ques-
se resolvem da maneira mais adequada, mas da tões de periodização, do desempenho judicial
forma possível, isto é, com os elementos carre- de rotina ou de massa, e dos factores sociais,
ados para o processo pelas partes. O resulta- económicos, políticos e culturais que condicio-
do é que o mais poderoso vencerá, já que tem nam historicamente o âmbito e a natureza da ju-
mais possibilidades de convencer o juiz do que dicialização da conflitualidade inter-individual e
a parte mais fraca3. social num dado país ou momento histórico.
Em terceiro lugar, o desempenho dos juízes,
quer o desempenho notório, quer o desempe- Os juízes e o Estado moderno
nho de rotina, num determinado país ou mo- Os juízes são um dos pilares fundadores do
mento histórico concreto, não depende tão Estado constitucional moderno, um órgão de
só de factores políticos, como as questões da soberania de par com o poder legislativo e o
legitimidade, da capacidade e da independên- poder executivo. No entanto, o significado
cia podem fazer crer. Depende de modo deci- socio-político desta postura constitucional
sivo de outros factores e nomeadamente dos tem evoluído nos últimos cento e cinquenta
três seguintes: do nível de desenvolvimento do ou duzentos anos. Esta evolução tem alguns
país, e, portanto, da posição que este ocupa no pontos em comum nos diferentes países, não
sistema mundial e na economia-mundo; da cul- só porque os estados nacionais partilham o
tura jurídica dominante em termos dos gran- mesmo sistema interestatal, mas também por-
des sistemas ou famílias de direito em que os que as transformações políticas são em parte
comparatistas costumam dividir o mundo; e do condicionadas pelo desenvolvimento económi-
co, o qual ocorre a nível mundial no âmbito da
3 Uma caracterização aparece em Uprimny, 2006b, economia-mundo capitalista implantada desde
para outra perspectiva ver Islam, 2003. o séc. XV. Mas, por outro lado, estas mesmas
144 Boaventura de Sousa Santos

razões, sugerem que a evolução varia significa- O período do Estado liberal


tivamente de Estado para Estado consoante a Este período cobre todo o séc. XIX e prolon-
posição deste no sistema interestatal e da so- ga-se até à primeira guerra mundial. O fim da
ciedade nacional a que respeita no sistema da primeira guerra mundial marca a emergência
economia-mundo. de uma nova política do Estado, a qual, no en-
Por esta razão, a periodização da postura tanto, no domínio da função e do poder judicial
socio-política dos juízes que a seguir apresen- pouco desenvolvimento conhece pelo que o pe-
tamos tem sobretudo em mente a evolução nos ríodo entre as duas guerras é neste domínio um
países centrais, mais desenvolvidos, do siste- período de transição entre o primeiro período
ma mundial. A evolução do sistema judiciário e o segundo período. Em vista disto, pela sua
em países periféricos e semiperiféricos (como longa duração histórica, o primeiro período é
Portugal, Brasil, Colômbia, etc.) rege-se por particularmente importante para a consolida-
parâmetros relativamente diferentes. Como se ção do modelo judicial moderno. Este modelo
compreenderá, à luz do que ficou dito acima assenta nas seguintes ideias:
esta evolução comporta algumas variações em 1. A teoria da separação dos poderes confor-
função da cultura jurídica dominante (tradição ma a organização do poder político e de tal
jurídica europeia continental; tradição jurídica maneira que, por via dela, o poder legislati-
anglo-saxónica, etc.), mas tais variações são vo assume uma clara predominância sobre
pouco relevantes para os propósitos analíticos os demais enquanto o poder judicial é, na
deste capítulo. prática, politicamente neutralizado4.
Distinguimos três grandes períodos no sig-
2. A neutralização política do poder judicial
nificado sócio-político da função judicial nas
decorre do princípio da legalidade, isto é,
sociedades modernas: o período do Estado li-
da proibição dos juízes decidirem contra
beral, o período do Estado-Providência, o pe-
legem, e do princípio, conexo com o pri-
ríodo actual, que, com pouco rigor, podemos
designar por período pós-Estado-Providência.
4 Sobre a neutralização política do poder judicial no
Estado Liberal, ver, em especial: Ferraz Jr., 1994; Lopes,
1994 e Campilongo, 1994 e 2000.
Sociologia crítica da justiça 145

meiro, da subsunção racional-formal nos critérios estritos de relevância jurídica e


termos do qual a aplicação do direito é de que ocorrem entre indivíduos. Por outro
uma subsunção lógica de factos a normas lado, as decisões judiciais sobre eles profe-
e como tal desprovida de referências so- ridas só valem, em princípio, para eles, não
ciais, éticas ou políticas. Assim, os juízes tendo, por isso, validade geral.
movemse num quadro juridico-político 5. Na resolução dos litígios é dada total prio-
pré-constituído apenas lhes competindo ridade ao princípio da segurança jurídica
garantir concretamente a sua vigência. Por assente na generalidade e na universalida-
esta razão, o poder dos juízes é retroacti- de da lei e na aplicação, idealmente auto-
vo ou é accionado retroactivamente, isto mática, que ela possibilita. A insegurança
é, com o objectivo de reconstituir uma re- substantiva do futuro é assim contornada,
alidade normativa plenamente constituída. quer pela securização processual do pre-
Pela mesma razão, os juízes são a garantia sente (a observância das regras de proces-
de que o monopólio estatal da violência é so), quer pela securização processual do
exercido legitimamente. futuro (o princípio do caso julgado ou da
3. Além de retrospectivo, o poder judicial é coisa julgada).
reactivo, ou seja, só actua quando solicita- 6. A independência dos juízes reside em es-
do pelas partes ou por outros sectores do tarem totalmente e exclusivamente subme-
Estado. A disponibilidade dos juízes para tidos ao império da lei. Assim concebida,
resolver litígios é, assim, abstracta e só se a independência dos juízes é uma garantia
converte numa oferta concreta de resolu- eficaz da protecção da liberdade entendida
ção de litígios na medida em que houver esta como vínculo negativo, ou seja, como
uma procura social efectiva. Os juízes nada prerrogativa de não interferência. A inde-
devem fazer para influenciar o tipo e o ní- pendência diz respeito à direcção do pro-
vel concretos da procura de que são alvo. cesso decisório e, portanto, pode coexistir
4. Os litígios de que se ocupam os juízes são com a dependência administrativa e finan-
individualizados no duplo sentido de que ceira dos juízes face ao poder legislativo e
têm contornos claramente definidos por ao poder executivo.
146 Boaventura de Sousa Santos

Esta caracterização dos juízes no período justiça retributiva, tiveram de aceitar como um
liberal é reveladora do diminuto peso político dado os padrões de justiça distributiva adopta-
destes, enquanto ramificação do poder público, dos pelos outros poderes. Foi assim que a justi-
perante o poder legislativo e o poder executi- ça retributiva se transformou numa questão de
vo. Eis as manifestações principais desta subal- direito enquanto a justiça distributiva passou
ternização política do judiciário. Este período a ser uma questão política. Aliás, sempre que
testemunhou o desenvolvimento vertiginoso excepcionalmente os padrões de justiça dis-
da economia capitalista no seguimento da re- tributiva foram sujeitos a escrutínio judicial,
volução industrial e, com ele, a ocorrência de os juízes mostraram-se refractários, à própria
maciças deslocações de pessoas, o agravamen- ideia de justiça distributiva, privilegiando siste-
to sem precedentes das desigualdades sociais, maticamente soluções minimalistas.
a emergência da chamada questão social (cri- Como sabemos, o Estado liberal apesar
minalidade, prostituição, insalubridade, habi- de se ter assumido como um Estado mínimo,
tação degradada, etc.). Tudo isto deu origem a continha em si as potencialidades para ser um
uma explosão da conflitualidade social de tão Estado máximo e a verdade é que desde cedo
vastas proporções que foi em relação a elas — meados do século XIX na Inglaterra e na
que se definiram as grandes clivagens políticas França, anos trinta do século XX nos EUA —
e sociais da época. Ora, os juízes ficaram quase começou a intervir na regulação social e na
totalmente à margem deste processo dado que regulação económica muito para além dos pa-
o seu âmbito funcional se limitava à micro-liti- tamares do Estado polícia (Santos, 1994: 103-
giosidade interindividual, extravasando dele a 118). Sempre que esta regulação foi, por qual-
macro-litigiosidade social. quer razão, objecto de litígio judicial, os juízes
Pela mesma razão, os juízes ficaram à mar- tenderam a privilegiar interpretações restriti-
gem dos grandes debates e das grandes lutas vas da intervenção do Estado.
políticas sobre o modelo ou padrão de justiça Para além disto, a independência dos juízes
distributiva a adoptar na nova sociedade, a assentava em três dependências férreas. Em
qual, por tanto romper com a sociedade ante- primeiro lugar, a dependência estrita da lei
rior, parecia trazer no seu bojo uma nova civili- segundo o princípio da legalidade; em segun-
zação a exigir critérios novos de sociabilidade. do lugar, a dependência da iniciativa, vontade
Confinados como estavam à administração da ou capacidade dos cidadãos para utilizarem os
Sociologia crítica da justiça 147

juízes dado o carácter reactivo da intervenção O período do Estado-Providência


destes; e, em terceiro lugar, a dependência or- As condições político-jurídicas descritas
çamental em relação ao poder legislativo e ao acima começaram a alterar-se, com diferentes
poder executivo na determinação dos recursos ritmos nos diferentes países, a partir do final
humanos e materiais julgados adequados para do século XIX mas só no período pós-segunda
o desempenho cabal da função judicial. guerra mundial surgiu consolidada nos países
Podemos, pois, concluir que, neste perí- centrais uma nova forma política do Estado:
odo, a posição institucional dos juízes os o Estado-Providência. Não cabe aqui analisar
predispôs para uma prática judiciária tecni- em detalhe o Estado-Providência pelo que nos
camente exigente, mas eticamente frouxa, confinamos ao seu impacto no significado so-
inclinada a traduzir-se em rotinas e, por con- cio-político da justiça.
sequência, a desembocar numa justiça trivia- 1. A teoria da separação dos poderes colap-
lizada. Nestas condições, a independência sa sobretudo em vista da predominância
dos juízes foi o outro lado do seu desarme assumida pelo poder executivo. A governa-
político. Uma vez neutralizados politicamen- mentalização da produção do direito cria
te, os juízes independentes passaram a ser um novo instrumentalismo jurídico que, a
um ingrediente essencial da legitimidade po- cada momento, entra em confronto com o
lítica dos outros poderes, por garantirem que âmbito judicial clássico (Ferraz Jr., 1994:
a produção legislativa destes chegava aos ci- 18 e ss.).
dadãos “sem distorções”5.
2. O novo instrumentalismo jurídico traduz-
-se em sucessivas explosões legislativas
e, consequentemente, numa sobre-juridi-
ficação da realidade social que põe fim à
5 Isto explica também que durante uma boa parte do coerência e à unidade do sistema jurídico.
século XIX a escola de interpretação jurídica mais im-
portante fosse a exegese. A exegese dizia que o direito
Surge um caos normativo que torna pro-
era claro, racional e sem lacunas. Portanto, o juiz não blemática a vigência do princípio da lega-
podia, nem devia interpretá-lo. O seu dever era exclusi- lidade e impossível a aplicação da subsun-
vamente aplicar a lei tal e qual havia emanado dos ór- ção lógica.
gãos de representação política (López, 2004).
148 Boaventura de Sousa Santos

3. O Estado-Providência distingue-se pela sua viduais aparecem de uma ou de outra forma


forte componente promotora do bem-estar, articulados com interesses colectivos.
ao lado da tradicional componente repressi-
va. A consagração constitucional dos direi- Esta descrição sugere, por si, que o signifi-
tos sociais e económicos, tais como o direito cado socio-político dos juízes neste período é
ao trabalho e ao salário justo, à saúde, à se- muito diferente do que detinham no primeiro
gurança no emprego, à educação, à habita- período. Em primeiro lugar, a juridificação do
ção, à segurança social, etc., significa, entre bem-estar social abriu o caminho para novos
outras coisas, a juridificação da justiça distri- campos de litigação nos domínios laboral, cí-
butiva. A liberdade a proteger juridicamente vel, administrativo, da segurança social, o que
deixa de ser um mero vínculo negativo para nuns países mais do que noutros, veio traduzir-
passar a ser um vínculo positivo, que só se -se no aumento exponencial da procura judiciá-
concretiza mediante prestações do Estado. ria e, na consequente explosão da litigiosidade.
Trata-se, em suma, de uma liberdade que, As respostas que foram dadas a este fenó-
longe de ser exercida contra o Estado, meno variaram de país para país mas incluíram
deve ser exercida pelo Estado. O Estado quase sempre algumas das seguintes reformas:
assume assim a gestão da tensão, que ele informalização da justiça; reapetrechamento
próprio cria, entre justiça social e igualda- da justiça em recursos humanos e infra-estru-
de formal, e dessa gestão são incumbidos, turas, incluindo a informatização e a automa-
ainda que de modo diferente, todos os ór- tização; criação de tribunais especiais para a
gãos e poderes do Estado. pequena litigação de massas tanto em matéria
4. Sendo a proliferação dos direitos, em parte, cível como penal; proliferação de mecanismos
uma consequência da emergência na socie- alternativos de resolução de litígios (mediação,
dade de actores colectivos em luta pelos negociação, arbitragem); reformas processuais
direitos (organizações de trabalhadores, várias (acções de defesa, acções populares, tu-
por exemplo), a distinção entre litígios indi- tela de interesses difusos, etc.)6.
viduais e litígios colectivos torna-se proble-
mática na medida em que os interesses indi-
6 Sobre este tema, ver Santos, 1994: 141-161 e a bi-
bliografia ali citada.
Sociologia crítica da justiça 149

A explosão da litigiosidade deu uma maior dos juízes passaram a ser o verdadeiro critério
visibilidade social e política aos juízes e as difi- da avaliação do desempenho judicial e, nesta
culdades que a oferta da tutela judicial teve, em medida, este desempenho deixou de ser exclu-
geral, para responder ao aumento da procura sivamente retrospectivo para passar a ter uma
suscitaram com grande acuidade a questão da dimensão prospectiva.
capacidade e as questões com ela conexas: as O dilema em que se colocaram os juízes foi
questões da eficácia, da eficiência e da acessi- o seguinte. Se continuassem a aceitar a neutra-
bilidade do sistema judicial. lização política vinda do período anterior, per-
Em segundo lugar, a distribuição das respon- severando no mesmo padrão de desempenho
sabilidades promocionais do Estado por todos clássico, reactivo, de micro-litigação, poderiam
os seus poderes fez com que a justiça se tivesse certamente continuar a ver reconhecida pa-
de confrontar com a gestão da sua quota-parte cificamente pelos outros poderes do Estado a
de responsabilidade política. A partir desse sua independência, mas fá-lo-iam, correndo o
momento estava comprometida a simbiose en- risco de se tornarem socialmente irrelevantes
tre independência dos juízes e neutralidade po- e de, com isso, poderem ser vistos pelos cida-
lítica que caracterizara o primeiro período. Em dãos como estando, de facto, na dependência
vez de simbiose passou a existir tensão, uma do poder executivo e do poder legislativo. Pelo
tensão potencialmente dilemática. contrário, se aceitassem a sua quota-parte de
No momento em que a justiça social, sob a responsabilidade política na actuação promo-
forma de direitos, se confrontou, no terreno ju- cional do Estado — nomeadamente através de
diciário, com a igualdade formal, a legitimação uma vinculação mais estreita do direito ordiná-
processual-formal em que os juízes se tinham rio à Constituição de modo a garantir uma tutela
apoiado no primeiro período entrou em crise. mais eficaz dos direitos de cidadania — corriam
A consagração constitucional dos direitos so- o risco de entrar em competição com os outros
ciais tornou mais complexa e “política” a rela- poderes e de, como poder mais fraco, começar
ção entre a Constituição e o direito ordinário e a sofrer as pressões do controlo externo, quer
os juízes foram arrastados entre as condições por parte do poder executivo, quer por parte do
do exercício efectivo desses direitos. Neste poder legislativo, pressões tipicamente exerci-
sentido, os efeitos extra-judiciais da actuação das por uma das três vias: nomeação dos juí-
150 Boaventura de Sousa Santos

zes para os tribunais superiores; controlo dos ternativas no interior do próprio judiciário. Os
órgãos do poder judicial e gestão orçamental. sectores mais progressistas, ligados à Magis-
A independência dos juízes só se tornou uma tratura Democrática, protagonizaram, através
verdadeira e importante questão política quan- do movimento pelo uso alternativo do direito,
do o sistema judicial, ou alguns dos seus secto- o enfrentamento da contradição entre igualda-
res, decidiu optar pela segunda alternativa. A de formal e justiça social. Noutros países, as
opção por uma ou outra alternativa resultou de opções foram menos claras e as lutas menos
muitos factores, diferentes de país para país. renhidas, variando muito o seu significado po-
Em alguns casos a opção foi clara e inequívoca lítico. Por exemplo, nos países escandinavos
enquanto noutros a opção transformou-se num a co-responsabilização política dos tribunais
objecto de luta no interior do judiciário. foi um problema menos agudo dado o alto de-
Pode, no entanto, afirmar-se em geral que a sempenho promocional dos outros poderes do
opção pela segunda alternativa e, pela conse- Estado-Providência.
quente politização do garantismo judicial, ten- Sempre que teve lugar, a desneutralização
deu a ocorrer com mais probabilidade nos paí- política dos juízes tomou várias formas. As-
ses onde os movimentos sociais pela conquista sumir a contradição entre igualdade formal e
dos direitos foram mais fortes, quer em termos justiça social significou antes de mais que em
de implantação social, quer em termos de eficá- litígios interindividuais, em que as partes têm
cia na condução da agenda política. Por exem- condições sociais extremamente desiguais
plo, nos anos sessenta, os movimentos sociais (patrões-operários; senhorios-inquilinos), a so-
pelos direitos cívicos e políticos nos Estados lução jurídico-formal do litígio deixasse de ser
Unidos da América tiveram um papel decisivo um factor de segurança jurídica para passar a
na judicialização dos litígios colectivos no do- ser um factor de insegurança jurídica. Para ob-
mínio da discriminação racial, do direito à ha- viar tal efeito foi necessário aprofundar o vín-
bitação, à educação e à segurança social. culo entre a Constituição e o direito ordinário
No início da década de setenta do século XX, por via do qual se legitimaram decisões prater
num contexto de forte mobilização social e po- legem ou mesmo contra legem no lugar das de-
lítica que, aliás, atravessou o próprio sistema cisões restritivas, típicas do período anterior. O
judicial, a Itália foi palco de uma luta pelas al- mesmo imperativo leva os juízes a adoptarem
Sociologia crítica da justiça 151

posições mais proactivas, — em contraste com ridas: a questão da legitimidade, a questão da


as posições reactivas do período anterior, — capacidade e a questão da independência.
em matéria de acesso ao direito e no domínio
da legitimidade processual para solicitar a tute- O período da crise do
la de interesses colectivos e interesses difusos. Estado-Providência
A mesma constitucionalização activa do di-
A partir de finais da década de setenta do sé-
reito ordinário levou por vezes os juízes a in-
culo passado, princípios da década de oitenta
tervir no domínio da inconstitucionalidade por
começavam nos países centrais as primeiras
omissão, quer suprindo a falta de regulamen-
manifestações da crise do EstadoProvidência,
tação de leis, quer pressionando para que ela
a qual se havia de prolongar por toda a década
tivesse lugar.
de oitenta até aos nossos dias.
O enfoque privilegiado nos efeitos extra-ju-
As manifestações desta crise são conheci-
diciais da decisão em detrimento da correcção
das: incapacidade financeira do Estado para
lógico-formal contribuiu para dar uma maior
atender às despesas sempre crescentes da
visibilidade social e mediática aos juízes, poten-
providência estatal, tendo presente o conheci-
ciada, também pela colectivização da litigiosi-
do paradoxo de esta ser tanto mais necessária
dade. Na medida em que, ao lado das decisões
quanto piores são condições para a financiar
que afectavam uns poucos indivíduos, passou
(ex.: quanto maior é o desemprego, meno-
a haver decisões que afectavam grupos sociais
res são os recursos para os financiar uma vez
vulneráveis, fossem eles os trabalhadores, as
que os desempregados deixam de contribuir);
mulheres, as minorias étnicas, os imigrantes, as
a criação de enormes burocracias que acu-
crianças em idade escolar, os velhos a necessi-
mularam um peso político próprio que lhes
tar de cuidados, ou os doentes pobres a neces-
permitem funcionar com elevados níveis de
sitar da atenção médica, os consumidores, os
desperdício e de ineficiência; a clientelização
inquilinos, etc., o desempenho judicial passou
e normalização dos cidadãos cujas opções de
a ter uma relevância social e impacto mediáti-
vida (de actividade e de movimentos) ficam su-
co que naturalmente o tornou num objecto de
jeitos ao controlo e à supervisão de agências
controvérsia pública e política. E a controvérsia
burocráticas despersonalizadas.
seguiu o trilho das três questões já acima refe-
152 Boaventura de Sousa Santos

Alterações nos sistemas produtivos e na re- impondo o modelo neoliberal foi ganhando
gulação do trabalho tornadas possíveis pelas importância na agenda política a ideia da
sucessivas revoluções tecnológicas, a difusão desvinculação do Estado enquanto regu-
do modelo neoliberal e do seu credo desregula- lador da economia. Falamos de ideia na
mentador a partir da década de oitenta, a sempre medida em que a prática é bastante con-
crescente proeminência das agências financeiras traditória. É certo que se assistiu a formas
internacionais (Banco Mundial, FMI), a globali- inequívocas de desvinculação como, por
zação da economia também contribuíram para o exemplo, nos casos em que o sector empre-
aprofundamento da crise do Estado-Providência. sarial do Estado foi total ou parcialmente
É hoje discutível o grau e a duração desta privatizado. E houve também a desregu-
crise, bem como a sua reversibilidade ou irre- lamentação de alguns aspectos do funcio-
versibilidade e ainda, neste último caso, que namento do mercado como a fixação dos
forma de Estado sucederá ao Estado-Provi- preços e as relações de trabalho (Santos,
dência. Tal discussão não nos interessa aqui. Gonçalves e Marques, 1995: 191-194 e 454).
Interessa-nos apenas analisar o impacto da cri- Mas o processo de desregulamentação é
se do Estado-Providência dos países centrais, contraditório na medida em que a desre-
nas duas últimas décadas, no sistema jurídico, gulamentação nalgumas áreas foi levada a
na actividade dos juízes e no significado socio- cabo de par com a regulamentação acres-
-político do poder judicial: cida de outras, e na grande maioria dos
1. A sobrejuridificação das práticas sociais, casos, a desregulamentação foi apenas par-
que vinha do período anterior, continuou
aprofundando a perda de coerência e de
unidade do sistema jurídico. Mas as suas cada. Discute-se a sua amplitude, efeitos, vantagens e
desvantagens, e também e cada vez mais, até que ponto
causas são agora parcialmente diferentes. estaremos perante uma verdadeira desregulação. Sobre
Duas delas merecem especial menção. Em esta questão ver, entre muitos outros, Santos, Gonçal-
primeiro lugar, a chamada desregulamen- ves e Marques, 1995: 73-74; Francis, 1993: 33, Dehousse,
tação da economia7. À medida que se foi 1992; Ariño, 1993: 259; Button e Swann, 1989. Desde
1997 o Banco Mundial tem vindo a rever alguns dos
aspectos mais fundamentalistas da sua política de des-
7 O tema da desregulação tem sido amplamente dis- regulação. Sobre este aspecto, ver World Development
cutido na literatura económica e jurídica da última dé- Report de 1997: “The State in a Changing World”.
Sociologia crítica da justiça 153

cial. Acresce que paradoxalmente depois Emerge, por esta via, um novo pluralismo
de décadas de regulação, a desregulamen- jurídico, de natureza transnacional. Este
tação só pode ser levada a cabo mediante novo pluralismo é simultaneamente causa
uma produção legislativa específica e por e consequência da erosão da soberania do
vezes bastante elaborada. Ou seja, a des- Estado nacional que ocorre neste período
regulamentação significa em certo sentido (Santos, 1995: 250-337)9. A erosão da sobe-
uma re-regulamentação, e portanto, uma rania do Estado acarreta consigo, nas áreas
sobrecarga legislativa adicional. em que ocorre, a erosão do protagonismo
Mas a contradição deste processo reside do poder judicial na garantia do controlo
ainda no facto de o desmantelamento da da legalidade.
regulação nacional da economia coexistir 2. Se a desregulação da economia pode criar,
e, de facto, ser integrante de processos de por si, alguma litigação, já o mesmo não se
regulação novos ocorrendo a nível interna- pode dizer da globalização da economia.
cional e transnacional8. Isto conduz-me ao Pelo contrário, a dirimição de litígios emer-
segundo factor novo na produção da infla- gentes das transacções económicas inter-
ção legislativa no terceiro período. Trata-se nacionais raramente é feita pelos juízes, já
da globalização da economia. Este fenó- que a lex mercatoria privilegia para esse
meno, que, não sendo novo, assume hoje efeito uma outra instância, a arbitragem in-
proporções sem precedentes, tem vindo ternacional. Pode, em geral, afirmar-se que
a dar azo à emergência de um novo direi- nos países centrais o aumento drástico da
to transnacional, o direito dos contratos litigação ocorrida no período anterior teve
internacionais, a chamada nova lex mer- uma certa tendência para estabilizar. Para
catoria, que acrescenta mais uma dimen- isto contribuíram vários factores. Em pri-
são ao caos normativo na medida em que meiro lugar, os mecanismos alternativos de
coexiste com o direito nacional ainda que resolução dos litígios desviaram dos tribu-
esteja por vezes em contradição com ele. nais alguma litigação ainda que seja discu-
tível até que ponto o fizeram. Em segundo

8 Em relação a este tópico ver, entre outros: Sche- 9 O pluralismo jurídico é analisado detalhadamente
rer, 1994. no texto O pluralismo jurídico e as escalas do direito.
154 Boaventura de Sousa Santos

lugar, a resposta dos juízes ao aumento da para avaliação do desempenho dos juízes
procura de tutela acabou por moderar essa em termos de produtividade quantitativa.
mesma procura, na medida em que os cus- Esta tendência fez com que massificação
tos e os atrasos da actuação dos juízes tor- da litigação desse origem a uma judicializa-
naram a via judicial menos atractiva. ção rotinizada com os juízes a evitarem sis-
Acresce que, os estudos realizados sobre a tematicamente os processos e os domínios
explosão da litigiosidade obrigaram o rever jurídicos que obrigassem a estudo ou a de-
algumas das ideias feitas sobre o acesso cisões mais complexas, inovadoras ou con-
à justiça10. Por um lado, as medidas mais troversas12. Por último, houve necessidade
inovadoras para incrementar o acesso das de averiguar em que medida o aumento da
classes mais baixas em breve foram elimi- litigação era resultado da abertura do siste-
nadas, quer por razões políticas, quer por ma jurídico a novos litigantes ou era antes
razões orçamentais. Por outro lado, ques- o resultado do uso mais intensivo e recor-
tionou-se o âmbito da tutela judicial pois rente da via judicial por parte dos mesmos
muitas vezes, apesar do seu alargamento, litigantes, os chamados repeat players (Ga-
os juízes continuaram a ser selectivos na lanter, 1974).
eficiência com que responderam à procura 3. No terceiro período, a litigação no domínio
da tutela judicial11. cível sofre, contudo, uma alteração signifi-
Nuns países mais do que noutros, o desem- cativa. A emergência neste período, sobre-
penho judicial continuou a concentrar-se tudo na área económica, de uma legalidade
nas mesmas áreas de sempre. Além disso, negociada assente em normas programáti-
o aumento da litigação agravou a tendência cas, contratos-programa, cláusulas gerais,
conceitos indeterminados, originou o sur-
gimento de litígios altamente complexos,
10 Sobre este tema ver Trubek et al., 1983, relatório mobilizando conhecimentos técnicos sofis-
final de uma investigação sobre o litígio civil nos Esta-
ticados, tanto no domínio do direito, como
dos Unidos.
11 Nos países semiperiféricos o desenvolvimento foi
similar, ver: Santos e García-Villegas (orgs.), 2001 e Ro- 12 Ver Faria, 1994: 50 pode ler-se uma importante aná-
dríguez-Garavito e Uprimny, 2006. lise dos desafios do poder judiciário neste âmbito.
Sociologia crítica da justiça 155

no domínio da economia e da ciência e tec- sociais e económicos — rigidez que resulta


nologia13. A impreparação dos magistrados, do facto de serem direitos e não exercícios
combinada com a sua tendência para se de benevolência, e, de por isso, existirem e
refugiarem nas rotinas e no produtivismo poderem ser exercidos independentemen-
quantitativo, fez com que a oferta judiciária te das vicissitudes do ciclo económico —
fosse nestes litígios altamente deficiente, o deveria, em princípio, suscitar um aumento
que de alguma maneira contribuiu para a dramático da litigação. A verdade é que tal
erosão da legitimidade dos juízes enquanto não sucedeu e nalgumas áreas como, por
mecanismos de resolução de litígios. exemplo, no domínio dos direitos laborais,
Paralelamente à crise do Estado-Providên- a litigação diminuiu. Contribuiu para isso
cia agravam-se, neste período, as desigual- um certo enfraquecimento dos movimen-
dades sociais. Este fenómeno em articu- tos sociais (nomeadamente os sindicatos)
lação com a relativa rigidez dos direitos que no período anterior tinham sustentado
politicamente a judicialização dos direitos
da segunda geração, os direitos económi-
13 Sobre a ordem jurídica da economia, ver: Santos, cos e sociais.
Gonçalves e Marques, 1995: 15-16. Aqui se dá conta da No entanto, neste período surgem novas
ampliação das fontes tradicionais do direito, e da sua áreas de litigação ligadas aos direitos da
relativa privatização por efeito da importância cres-
cente das fontes de origem privada (como os códigos terceira geração, em especial a área da
de conduta), ou pela negociação em torno da produ- protecção do ambiente e da protecção dos
ção das fontes públicas e do declive coercível, que se consumidores. Estas áreas, para as quais
reflete em diversos aspectos, como sejam o predomí- os juízes têm pouca preparação técnica,
nio das normas de conteúdo positivo sobre as de con-
são integradas no desempenho judicial na
teúdo negativo, a diminuição dos efeitos da nulidade
dos negócios, etc. Sobre o mesmo fenómeno ver tam- medida em que existem movimentos so-
bém Sayag e Hilaire, 1984; Salah, 1985; Farjat, 1986; ciais capazes de mobilizar os juízes, quer
Pirovano, 1988 e Martin, 1991. Sobre a mobilização directamente, quer indirectamente, através
do conhecimento e técnico em determinadas ramifi- da integração dos novos temas na agenda
cações do direito (por exemplo, o direito do ambiente
política ou através da criação de uma opi-
ou da informação) ver Santos, Gonçalves e Marques,
1995: 522 e Gonçalves, 1994. nião pública a seu favor.
156 Boaventura de Sousa Santos

4. Politicamente este período caracteriza-se, dinheiro. Tais concursos e contratações


não só pela crise do Estado-Providência, criaram as condições para a promiscuidade
como também pela crise da representação entre o poder económico e o poder políti-
política (crise do sistema partidário, crise co. O afrouxamento das referências éticas
da participação política). Esta última crise no exercício do poder político, combinado
tem muitas dimensões, mas uma delas con- com as deficiências do controlo do poder
fronta directamente os juízes na sua função por parte dos cidadãos, permitiram que
de controle social. Trata-se do aumento da essa promiscuidade redundasse num au-
corrupção política. Uma das grandes conse- mento dramático da corrupção.
quências do Estado regulador e do Estado- Criadas as condições para a corrupção, ela
-Providência foi que as decisões do Estado é suscetível de alastrar cada vez mais rapi-
passaram a ter um conteúdo económico e damente nas sociedades democráticas, por
financeiro que não tinham antes. A regula- três razões principais. Em primeiro lugar,
ção da economia, a intervenção do Estado nestas sociedades a classe política é mais
na criação de infraestruturas (estradas, ampla porque é menor a concentração do
saneamento básico, electrificação, trans- poder e, nesta medida, sendo mais nume-
portes públicos) e a concessão dos direitos rosos os agentes políticos, são mais nume-
económicos e sociais saldaram-se numa rosas as interfaces entre eles e os agentes
enorme expansão da administração pública económicos e, portanto, são maiores as
e do orçamento social e económico do Es- probabilidades e as oportunidades para a
tado. Especificamente, os direitos sociais, ocorrência da corrupção. Tal ocorrência é
tais como o direito ao trabalho e ao subsí- tanto mais possível quanto mais longa é a
dio de desemprego, à educação, à saúde, à permanência no poder do mesmo partido
habitação e à segurança social, envolveram ou grupo de partidos. Foi assim em Itália e
a criação de gigantescos serviços públicos, durante bastante tempo no Japão e durante
uma legião de funcionários e uma infinitude os anos oitenta em Espanha, na Inglaterra
de concursos públicos, e de contratações, e em Portugal.
empreitadas e fornecimentos por onde Em segundo lugar, a comunicação social é
passaram a circular avultadas quantias de nas sociedades democráticas um auxiliar
Sociologia crítica da justiça 157

precioso na investigação da grande crimi- polícias de investigação. Na maior parte


nalidade política e é-o tanto mais quanto dos países centrais14 o aumento de litigiosi-
menos activa é a investigação por parte dade cível no período do Estado-Providên-
dos órgãos competentes do Estado. Em cia ocorreu conjuntamente com o aumen-
terceiro lugar, a competição pelo poder po- to da criminalidade e esta não cessou de
lítico entre os diferentes partidos e grupos aumentar no período actual. Tal como na
de pressão cria clivagens que podem dar litigiosidade cível a massificação da litigio-
origem a denúncias recíprocas, sobretudo sidade suscita a rotinização e o produtivis-
quando as ligações ao poder económico mo quantitativo, no domínio judicial penal
são decisivas para a progressão na carreira o aumento da criminalidade torna manifes-
política, ou quando tais ligações se tornam tos os estereótipos que presidem à rotiniza-
por qualquer razão conflituais. ção do controlo social por parte dos juízes
A corrupção é, conjuntamente com o cri- e à selectividade de actuação que por via
me organizado ligado sobretudo ao tráfico dela ocorre.
da droga e ao branqueamento de dinheiro, Este fenómeno ocorre por várias manei-
a grande criminalidade deste terceiro pe- ras: pela criação de perfis estereotipados
ríodo e coloca os juízes no centro de um
complexo problema de controlo social.
No segundo período, a explosão da litigio- 14 Sobre a “garantia judicial” dos direitos nos países
sidade deu-se sobretudo no domínio cível semiperiféricos (neste caso, Colômbia), ver Palacio,
e foi aí que a visibilidade social e política 1989; Santos e García-Villegas (ogs.), 2001; Arango,
dos juízes teve lugar. No período actual, a 2005 e García-Villegas, Rodríguez-Garavito e Uprimny,
2006. Ver também León, 1989, uma importante colecção
visibilidade sem deixar de existir no domí-
de textos em Bergalli e Mari, 1989 e também Bergalli,
nio cível, desloca-se de algum modo para o 1990. Sobre a separação entre o dinamismo das trans-
domínio penal. formações sociais e a rigidez do sistema judicial em
A análise dos juízes no domínio penal é Espanha, ver Toharia, 1974. Uma análise mais recente
mais complexa, não só porque aqui coe- encontra-se em Andrés Ibáñez, 1989. Sobre o caso bra-
sileiro, ver a excelente antologia de textos em “Dossier
xistem duas magistraturas, como também
Judicial”, número especial da Revista USP (21, 1994),
porque o desempenho judicial depende das coordenada por Sergio Adorno.
158 Boaventura de Sousa Santos

de crimes mais frequentes, de criminosos técnico suscita, por si, a distanciação em


mais recorrentes e de factores criminogé- relação à corrupção e em última instância a
nicos mais importantes; pela criação, de sua minimização. Mas esta postura é ainda
acordo com tais perfis, de especializações potenciada, neste caso, por um outro fac-
e de rotinas de investigação por parte das tor igualmente importante: a falta de von-
polícias e do MP, sendo também os êxitos tade política para investigar e julgar crimes
nestes tipos de investigação que determi- em que estão envolvidos membros da clas-
nam as promoções nas carreiras; pela cria- se política, indivíduos e organizações com
ção de infraestruturas humanas, técnicas muito poder social e político.
e materiais orientadas para o combate ao A vontade política e a capacidade técnica
crime que se integra no perfil dominante; no combate à corrupção são os vectores
pela aversão, minimização ou distanciação mais decisivos da neutralização ou desneu-
em relação aos crimes que extravasam des- tralização política dos juízes no terceiro
se perfil, quer pelo tipo de crime, quer pelo período. São eles que determinam os ter-
tipo de criminoso, quer ainda pelos factores mos em que é travada a luta política à volta
que podem ter estado na origem do crime. da independência da justiça. Isto não quer
Esta estereotipização determina a selectivi- dizer que os temas ligados à constituciona-
dade e os limites do preparo técnico do de- lização do direito ordinário e ao reforço da
sempenho judicial, no seu conjunto, no do- garantia da tutela judicial dos direitos não
mínio do controle social. A corrupção é um continuem a ser importantes nas vicissitu-
dos crimes que extravasa dos estereótipos des políticas da questão da independência.
dominantes, quer pelo tipo de crime, quer Só que no terceiro período os argumentos
pelo tipo de criminoso, quer ainda pelo tipo mais decisivos pro e contra a independên-
de factores que podem estar na origem do cia se jogam no campo do combate à cor-
crime. Por isto, num contexto de aumento rupção e é também aqui que se discutem
da corrupção põe-se de imediato a questão com mais acuidade as outras duas questões
do preparo técnico do sistema judiciário e que atravessam o judiciário desde o primei-
do sistema de investigação para combater ro período: a questão da legitimidade e a
este tipo de criminalidade. O despreparo questão da capacidade.
Sociologia crítica da justiça 159

Enquanto no segundo período a politização contrário, assume uma posição activa de


da independência dos juízes decorria de combate à corrupção, tem de contar com
estes assumirem a quota-parte da respon- ataques demolidores à sua independência
sabilidade na realização de uma agenda por parte sobretudo do poder executivo
política que estava consagrada constitucio- ao mesmo tempo que se coloca na contin-
nalmente e cabia aos poderes do Estado no gência de ver transferida para si a confian-
seu conjunto. No terceiro período a politi- ça dos cidadãos no sistema político, o que,
zação da independência dos juízes provém por ser o único poder não directamente
sobretudo do combate contra a corrupção eleito, acaba por suscitar com acuidade a
e por isso não se limita a confrontar a agen- questão da legitimidade.
da política dos outros poderes do Estado, Esta situação quase dilemática vinca ainda
confronta também os próprios agentes po- mais o contraste entre duas concepções de
líticos e os abusos de poder de que eles são independência dos juízes que surgiram já
eventualmente responsáveis. E é por esta no período do EstadoProvidência. Por um
razão que a questão da independência se lado, a independência corporativa, orien-
confunde frequentemente neste período tada para a defesa dos interesses e privilé-
com a questão da legitimidade. gios da classe dos magistrados, coexistin-
O aumento da corrupção é apenas um dos do com um desempenho reactivo, centrado
sintomas de crise da democracia enquan- na micro-litigação clássica e politicamente
to sistema de representação política e o neutralizado. Por outro lado, a independên-
combate a ela coloca de novo o sistema cia democrática que, sem deixar de defen-
judicial perante uma situação quase di- der os interesses e os privilégios da classe
lemática. Se se demite de uma actuação dos magistrados, defende-os como condi-
agressiva neste domínio garante preserva- ção para que os tribunais assumam con-
ção da independência, sobretudo nas suas cretamente a sua quota parte de responsa-
dimensões corporativas, mas com isso co- bilidade política no sistema democrático
labora, por omissão, na degradação do sis- através de um desempenho mais proactivo
tema democrático que em última instância e politicamente controverso. Estas duas
garante a independência efectiva. Se, pelo concepções e práticas de independência
160 Boaventura de Sousa Santos

judicial pressupõem dois entendimentos da porque a sua investigação é particularmen-


partilha e da legitimidade do poder político te fácil; porque contra eles há uma opinião
no sistema democrático. Mas enquanto no pública forte a qual, se defraudada pela não
segundo período os juízes, ao optar entre repressão, aprofunda a distância entre os
uma ou outra, apenas condicionam o exer- cidadãos e a administração da justiça; por-
cício, mais ou menos avançado, da convi- que, sendo exemplares, têm um elevado
vência democrática, no terceiro período a potencial de prevenção; porque a sua re-
opção determina a própria sobrevivência pressão tem baixos custos políticos.
da democracia. Enquanto no segundo pe- O combate pontual pode, pela sua natureza,
ríodo estamos perante diferentes concep- servir para ocultar toda a outra corrupção
ções do uso do poder político, no terceiro que fica por combater e nessa medida pode
estamos perante a diferença entre o uso e o servir para legitimar um poder político ou
abuso do poder político. uma classe política decadente. Por sua vez,
Não admira, pois, que os juízes, de um modo o combate sistemático, sendo um combate
ou de outro, sejam chamados ao centro do orientado mais por critérios de legalidade
debate político e passem a ser um ingre- do que por critérios de oportunidade, pode
diente fundamental da crise da representa- tornar-se mais ou menos desgastante para
ção política, quer pelo que contribuem para o poder político visado e em casos extre-
ela, demitindo-se da sua responsabilidade mos pode mesmo deslegitimá-lo no seu
de combater o abuso de poder, quer pelo conjunto, como sucedeu em Itália.
que contribuem para a solução dela, assu- Nestas condições, por uma ou outra via, o
mindo essa responsabilidade. Aliás, esta poder judicial é, neste período, fortemen-
responsabilidade pode ser assumida em vá- te politizado. A complexidade deste facto
rios graus de intensidade. Há, por exemplo, está em que a legitimidade do poder políti-
que distinguir entre o combate pontual e o co dos juízes assenta no carácter apolítico
combate sistemático à corrupção. O com- do seu exercício. Ou seja, um poder global-
bate pontual reside na repressão selectiva mente político tem de ser exercido apoli-
incidindo sobre alguns casos de corrupção ticamente em cada caso concreto. Se no
escolhidos por razões de política judiciária: segundo período a constitucionalização do
Sociologia crítica da justiça 161

direito ordinário visou reforçar a garantia trados e, em última análise, a questão do


da tutela dos direitos, no segundo período, desajustamento entre a formação profissio-
o combate à corrupção visa a eliminação nal e o desempenho judicial socialmente
das imunidades fácticas e da impunidade exigido, o combate à grande criminalidade
em que se traduzem. O agravamento das política põe tanto a questão da preparação
desigualdades sociais no terceiro período técnica como a questão da vontade políti-
mantém viva e até reforça a primeira exi- ca. Entre uma e outra interpõem-se outras
gência (garantia da tutela dos direitos), questões que não cessam de ganhar impor-
mas agora esta não pode ser cumprida se tância, tais como, as da formação profissio-
a segunda (luta contra a corrupção) o não nal, da organização judiciária, da organiza-
for também. A garantia dos direitos dos ção do poder judicial, da cultura judiciária
cidadãos pressupõe que a classe política dominante, dos padrões e orientações po-
e a administração pública cumprem os líticas do associativismo dos magistrados.
seus deveres para com os cidadãos. Esta Estas questões “internas” do sistema ju-
articulação explicará em parte a actuação dicial não são abordadas e decididas num
do poder judicial em Itália no âmbito da vazio social. Pelo contrário, a natureza das
operação “Mãos Limpas” (Tijeras, 1994). O clivagens no seio da classe política, a exis-
activismo de uma parte do sistema judicial tência ou não de movimentos sociais e or-
italiano na defesa dos direitos económicos ganizações cívicas com agendas de pressão
e sociais no segundo período criou uma sobre o poder político, em geral, e sobre o
cultura judiciária intervencionista e poli- poder judicial, em especial, a existência ou
ticamente frontal cujas energias são rela- não de uma opinião pública esclarecida por
tivamente deslocadas no terceiro período uma comunicação social livre, competente
da garantia dos direitos para a repressão e responsável, todos estes factores interfe-
do abuso do poder político (Pepino e Rossi rem no modo como são abordadas as ques-
[eds.], 1993; Rossi [ed.], 1994). tões referidas.
Se, como referimos acima, a litigação cí- Dadas as diferenças que estes factores co-
vel tecnicamente complexa veio suscitar a nhecem de país para país não é de surpre-
questão da preparação técnica dos magis- ender que as questões judiciais sejam tam-
162 Boaventura de Sousa Santos

bém tratadas diferentemente de país para desenvolvimento condiciona o tipo e o grau


país. No entanto, não deixa de ser curioso de litigiosidade social e, portanto, de litigiosi-
que, sobretudo na Europa, estas diferen- dade judicial. Uma sociedade rural dominada
ças coexistam com algumas convergências por uma economia de subsistência não gera
igualmente significativas, fazendo com que o mesmo tipo de litígios que uma sociedade
a corrupção, o combate à corrupção e a fortemente urbanizada e com uma economia
visibilidade política dos juízes que dele de- desenvolvida. Por outro lado, embora não se
corre estejam a ocorrer em vários países. possa estabelecer uma correlação linear entre
O mesmo jogo de diferenças e de conver- desenvolvimento económico e desenvolvimen-
gências deve ser tido em conta quando se to político, os sistemas políticos nos países
analisam nos vários países europeus as menos desenvolvidos ou de desenvolvimento
duas dimensões mais inovadoras da judi- intermédio têm sido em geral muito instáveis
cialização da “questão social” no período com períodos mais ou menos longos de ditadu-
pós-Estado-Providência: a judicialização ra alternados com períodos mais ou menos cur-
da protecção do ambiente e da protecção tos de democracia de baixa intensidade. Este
dos consumidores. facto não pode deixar de ter um forte impacto
na função judicial. Tal como sucede entre os
Os juízes nos países periféricos e países centrais, estes fenómenos interagem
semiperiféricos de maneira muito diferente de país para país,
A análise precedente centrou-se na experi- quer entre os países menos desenvolvidos ou
ência e na trajectória histórica dos juízes nos periféricos, quer entre os países de desenvolvi-
países centrais, os mais desenvolvidos do sis- mento intermédio. Dado que o tipo e o grau de
tema mundial, e apenas tratou delas a evolução litigação se articula com muitos outros facto-
do significado socio-político da função judicial res para além do desenvolvimento económico,
no conjunto dos poderes do Estado. Há, pois, analisá-lo-emos na secção seguinte, em que tais
agora que ampliar a análise. factores serão também considerados.
O nível de desenvolvimento económico e Concentramo-nos por agora na articulação
social afecta o desempenho dos juízes por entre a função judicial e o sistema político. Os
duas vias principais. Por um lado, o nível de três períodos que analisámos na secção prece-
Sociologia crítica da justiça 163

dente não se adequam às trajectórias históricas semiperiféricos, que viveram nos últimos cento
dos países periféricos e semiperiféricos. e cinquenta anos longos períodos de ditadura15.
Durante o período liberal, muitos destes pa- Este facto, aliás, reforça a pertinência da distin-
íses eram colónias e continuaram a sêlo por ção entre diferentes concepções de independên-
muito tempo (os países africanos) e outros só cia dos juízes feita na secção precedente. Como
então conquistaram a independência (os países referi, a independência segundo a matriz liberal,
latino-americanos). Por outro lado, o Estado- dominante no primeiro período, é atribuída aos
-Providência é um fenómeno político exclusivo juízes na exacta medida em que estes são politi-
dos países centrais. As sociedades periféricas camente neutralizados por uma rede de depen-
e semiperiféricas caracterizam-se em geral por dências de que destacamos três: o princípio da
chocantes desigualdades sociais que mal são legalidade que conduz à subsunção lógico-for-
mitigadas pelos direitos sociais económicos, mal confinada à micro-litigação; o carácter reac-
os quais, ou não existem, ou, se existem, tem tivo dos juízes que os torna dependentes da pro-
uma deficientíssima aplicação. Aliás, os pró- cura dos cidadãos; e a dependência orçamental
prios direitos da primeira geração, os direitos e administrativa em relação ao poder executivo
cívicos e políticos, têm uma vigência precária, e ao poder legislativo. Ora, é este o tipo de in-
fruto da grande instabilidade política em que dependência que domina nos países periféricos
têm vivido estes países, caracterizados por lon- e semiperiféricos até aos nossos dias e talvez
gos períodos de ditadura. só agora esteja a ser confrontado com os tipos
A precariedade dos direitos é o outro lado da mais avançados de independência.
precariedade do regime democrático e por isso É por esta razão que os regimes ditatoriais
não surpreende que a questão da independência não tiveram grandes problemas em salvaguar-
dos juízes se ponha nestes países de modo di- dar a independência dos juízes. Desde que
ferente que nos países centrais. Nestes últimos, fosse assegurada a sua neutralidade política,
os três períodos correspondem os três tipos de
prática democrática e, portanto, variações de
15 Ainda assim, a situação está longe de ser linear.
actuação política que ocorrem num contexto Veja-se, por exemplo o caso dos direitos laborais no
de grande estabilidade democrática. Não é as- Brasil a partir da época de Vargas, analisados num texto
sim de modo nenhum nos países periféricos e inovador de Paoli, 1994.
164 Boaventura de Sousa Santos

a independência dos juízes podia servir os de- 311-338; Tate e Haynie, 1993: 707-740). Em to-
sígnios da ditadura. dos estes casos os líderes políticos tiveram a
Assim, segundo Toharia (1987), o franquis- preocupação de deixarem intocada a indepen-
mo espanhol não teve grandes problemas com dência dos juízes depois de se assegurarem do
o poder judiciário. A fim de assegurar total- controlo das áreas “sensíveis”.
mente a sua neutralização política, retirou aos A independência dos juízes na matriz liberal
tribunais comuns a jurisdição sobre os crimes é, pois, compatível com regimes não democrá-
políticos, criando para o efeito um tribunal es- ticos. O controlo político tende a ser exercido
pecial com juízes politicamente leais ao regi- pela exclusão dos juízes das áreas de litigação
me. E o mesmo sucedeu em Portugal durante o que contam politicamente para a sobrevivência
regime salazarista. Com o mesmo objectivo fo- do sistema e por formas de intimidação difusa
ram retirados aos tribunais comuns duas áreas que criam sistemas de auto-censura. O objecti-
de litigação que podiam ser fonte de controvér- vo é reduzir a independência à imparcialidade
sia: as questões laborais, que foram atribuídas do juiz perante as partes em litígio e garantir
aos tribunais de trabalho, tutelados pelo Mi- a lealdade passiva dos magistrados ao regi-
nistério das Corporações e os crimes políticos me. Esta estratégia garante ao judiciário uma
para os quais se criou o Tribunal Plenário com sobrevivência relativamente apagada, mas ao
juízes nomeados pela sua lealdade ao regime. mesmo tempo, sem a necessidade de se salien-
Este padrão de relacionamento entre regi- tar em manifestações de lealdade, sendo esta
mes autoritários e os juízes é bastante genera- uma das razões pelas quais quando os regimes
lizado e parece ocorrer, tanto em regimes au- autoritários caem, a esmagadora maioria dos
toritários de longa duração, como em “regimes magistrados é confirmada pelo novo regime e
de crise” cujo autoritarismo é supostamente de continua em funções.
curta duração. Neal Tate analisa três casos: a E, de facto, desde a década de setenta do
declaração do estado de sítio por Marcos nas século XX temos vindo a assistir ao declínio
Filipinas, em 1972; o accionamento de pode- dos regimes autoritários e aos consequentes
res de emergência por parte de Indira Gandhi processos de transição democrática. Em mea-
na Índia, em 1975; o golpe militar do General dos da década de setenta, foram os países da
Zia Ul Haq no Paquistão em 1977 (Tate, 1993: periferia europeia, na década de oitenta, os pa-
Sociologia crítica da justiça 165

íses latino-americanos, em finais da década de ta ao caso que mais nos interessa, o dos países
oitenta, os países do Leste Europeu, e em prin- europeus semiperiféricos, a consolidação dos
cípios da década de noventa, alguns países afri- direitos cívicos e políticos é muito superior à
canos. Estas transições instauraram processos dos direitos da segunda ou da terceira geração.
democráticos, muitos dos quais estão ainda Esta discrepância é fundamental para compre-
por consolidar. Tiveram lugar num momento ender o desempenho judicial nestes países e
em que nos países centrais se estava já no ter- as vicissitudes da luta pela independência face
ceiro período ou quando muito na passagem do aos outros poderes.
segundo para o terceiro período. Este calendá- Nestes países que passaram por processos
rio histórico teve consequências fundamen- de transição democrática nas três últimas dé-
tais no domínio da garantia dos direitos. De cadas os juízes só muito lenta e fragmentaria-
uma forma ou de outra, os países periféricos mente têm vindo a assumir a sua co-respon-
e semiperiféricos viram-se na contingência de sabilidade política na actuação providencial
consagrar constitucionalmente ao mesmo tem- do Estado. A distância entre a Constituição e
po os direitos que nos países centrais tinham o direito ordinário é nestes países enorme e
sido consagrados sequencialmente ao longo de os juízes têm sido, em geral, tíbios em tentar
um período de mais de um século, ou seja, no encurtá-la. Os factores desta tibieza são muitos
período liberal, os direitos cívicos e políticos, e variam de país para país. Entre eles podemos
no período do Estado-Providência, os direitos contar sem qualquer ordem de precedência: o
económicos e sociais, e no período do pósEs- conservadorismo dos magistrados, incubado
tadoProvidência os direitos dos consumidores, em Faculdades de Direito intelectualmente
da protecção ambiente e da qualidade de vida anquilosadas, dominadas por concepções re-
em geral. Obrigados, por assim dizer, a um cur- trógradas da relação entre direito e sociedade;
to-circuito histórico não admira que estes paí- o desempenho rotinizado assente na justiça
ses não tenham, em geral, permitido a consoli- retributiva, politicamente hostil à justiça distri-
dação de um catálogo tão exigente de direitos butiva e tecnicamente despreparada para ela;
de cidadania. uma cultura jurídica “cínica” que não leva a sé-
Como se compreende, as situações variam rio a garantia dos direitos, caldeada em largos
enormemente de país para país. No que respei- períodos de convivência ou cumplicidade com
166 Boaventura de Sousa Santos

maciças violações dos direitos constitucional- zado por juízes envolvidos no reforço da tutela
mente consagrados, inclinada a ver neles sim- judicial dos direitos (1994: 52).
ples declarações programáticas, mais ou me- Estas correntes de jurisprudência, ainda que
nos utópicas; organização judiciária deficiente sempre minoritárias, assumem por vezes uma
com carências enormes tanto em recursos hu- expressão organizativa, como no caso do Bra-
manos como em recursos técnicos e materiais; sil, o movimento do direito alternativo, prota-
poder judicial tutelado por um poder executi- gonizado por juízes envolvidos no reforço da
vo, hostil à garantia dos direitos ou sem meios tutela judicial dos direitos.
orçamentais para a levar a cabo; ausência de A tibieza dos juízes no domínio da justiça
opinião pública forte e de movimentos sociais distributiva e dos direitos sociais e económicos
organizados para a defesa dos direitos e um di- prolonga-se também no domínio do combate
reito processual hostil e antiquado. à corrupção o qual, como vimos, tem vindo a
Isto não significa, porém, que nalguns países constituir, juntamente com a tutela dos interes-
os juízes não tenham ao longo da década de ses difusos sobretudo nas áreas do consumo e
oitenta começado a assumir uma postura mais do meio ambiente, uma área privilegiada de pro-
activa e agressiva na defesa dos direitos. Por tagonismo político e visibilidade social dos juí-
exemplo no Brasil, como refere Faria (1994) al- zes nos países centrais. As causas desta tibieza
guns juízes, sobretudo os de primeira instância são em grande medida as mesmas que determi-
— os que contactam mais de perto com as fla- naram a tibieza no domínio da tutela dos direi-
grantes discrepâncias entre igualdade formal e tos. Mas acrescem outras específicas e que têm
justiça social — têm vindo a criar uma corrente a ver sobretudo com a falta de tradição demo-
jurisprudencial assente na constitucionaliza- crática nestes países. Um poder político concen-
ção do direito ordinário e orientada para uma trado, tradicionalmente assente numa pequena
tutela mais efectiva dos direitos. Estas corren- classe política de extracção oligárquica, soube
tes jurisprudenciais, ainda que sempre minori- ao longo dos anos criar imunidades jurídicas e
tárias, assumem por vezes uma expressão or- fácticas que redundaram na impunidade geral
ganizativa, como é o caso, também do Brasil, dos crimes cometidos no exercício de funções
do movimento do direito alternativo protagoni-
Sociologia crítica da justiça 167

políticas16. Esta prática transformou-se na pe- política e em geral a grande criminalidade orga-
dra angular de uma cultura jurídica autoritária nizada. Como vimos, o aumento da corrupção
nos termos da qual só é possível condenar “para política e o grande crime organizado a nível
baixo” (os crimes das classes populares) e nun- internacional são as grandes novidades crimi-
ca “para cima” (os crimes dos poderosos). Ali- nais do terceiro período acima analisado. Aliás,
ás, longe de serem vistos pelos cidadãos como o crime organizado, sobretudo o narcotráfico,
tendo a responsabilidade de punir os crimes da tem vinculações mais ou menos estreitas à
classe política, os juízes foram vistos como par- classe política e aos militares e, nalguns paí-
te dessa classe política e tão autoritários quanto ses latino-americanos, também aos grupos de
ela. Curiosamente, sobretudo na América La- guerrilha. Nestas condições, é fácil imaginar as
tina, sempre que se tem falado de corrupção a dificuldades com que se confrontam os juízes
respeito dos juízes não é para falar do combate ao pretenderem exercer o controlo penal nes-
à corrupção por parte dos juízes, mas sim para tes domínios. Uma das mais brutais dificulda-
falar da corrupção dos mesmos (a venalidade des consiste no risco da própria vida. Segundo
dos magistrados e dos funcionários). a Comissão Colombiana de Juristas, na Colôm-
Apesar disto, em anos mais recentes, têm bia foram assassinados 1977 e 1991, duzentos
vindo a multiplicar-se os sinais de um maior e noventa funcionários judiciais envolvidos na
activismo dos juízes neste domínio, quer para investigação ou no julgamento da corrupção
combater a corrupção dentro do sistema judi- política e do crime organizado. Este número
cial, quer para combater a corrupção da classe aumentou nos últimos anos, pois segundo a
mesma fonte, no ano de 2000 foram assassina-
dos 71 funcionários e em 2003, o número as-
16 Apesar disto, em alguns países de América Latina
cendeu a 75 funcionários judiciais. Ainda que
existem provas da crescente resistência dos cidadãos
a que mais ramificações do poder público sejam captu- nalguns casos seja possível que os assassinatos
radas pelo poder executivo, e em especial, a justiça. O estejam relacionados com a própria corrupção
caso do Equador é ilustrativo. A revolta popular contra dos juízes, neste e noutros países há inúmeros
o presidente Lucio Gutiérrez, que terminou com a sua magistrados ameaçados de morte e só agora
renúncia ao poder em 2005, teve entre as suas causas a
começam a surgir expressões de solidariedade
manipulação do presidente nas nomeações dos magis-
trados do Supremo Tribunal de Justiça. internacional entre os magistrados.
168 Boaventura de Sousa Santos

Para os países que passaram nas últimas dé- mente uma forte corrente de opinião pública e
cadas por uma transição democrática, o primei- de mobilização social no sentido da repressão
ro teste feito ao judiciário no domínio da crimi- dos crimes da ditadura e alguma teve efectiva-
nalização do abuso do poder político consistiu mente lugar no início do período democrático.
no julgamento dos responsáveis por milhares Segundo Maria Luísa Bartolomei, em meados
de assassinatos de opositores políticos e por da década de oitenta o Presidente Raul Alfon-
outras maciças e cruéis violações dos direitos sín terá negociado o fim da repressão com mi-
humanos cometidos durante a vigência dos re- litares revoltosos, em troca do fim da revolta
gimes ditatoriais. Foi um teste que o judiciário (Bartolomei, 1994: 19).
falhou em grande medida ainda que por razões Nos países em que a transição foi pactada
nem sempre a ele imputáveis17. Nos casos em como, por exemplo, no caso da Espanha, do
que a transição resultou de uma ruptura entre Brasil e do Chile a impunidade dos crimes de
o regime autoritário e o regime democrático, abuso de poder e de violação dos direitos hu-
como foi o caso de Portugal e, de algum modo manos cometidos durante a ditadura foi nego-
também, o caso da Argentina, a existência de ciada entre a classe política do regime ditato-
tribunais especiais (tribunais militares) com rial e a classe política do regime democrático
juízes ainda leais ao regime deposto, a falta de emergente. Neste caso, os juízes foram, à par-
vontade política para levar a cabo a investiga- tida, excluídos do exercício do controlo penal
ção, a existência superveniente de perdões, a neste domínio. Tal exclusão serviu, de facto,
ocorrência da prescrição, os acordos entre as para reforçar a cultura jurídica autoritária legi-
diferentes forças políticas no sentido de “pas- timadora da imunidade fáctica ou mesmo jurí-
sar uma esponja” sobre o passado, todos estes dica dos detentores do poder político.
factores contribuíram para que os crimes co- Podemos assim concluir que as trajectórias
metidos durante a ditadura ficassem em geral políticas e sociológicas do sistema judicial nos
impunes. No caso da Argentina houve inicial- países periféricos e semiperiféricos são distin-
tas das do sistema judicial nos países centrais
ainda que haja entre elas alguns pontos de con-
17 Para o caso argentino, ver Bartolomei, 1994 e
tacto. A análise comparada dos sistemas judi-
para os restantes casos latino-americanos ver Stotzky
(org.), 1993. ciais é, assim, de importância crucial para com-
Sociologia crítica da justiça 169

preender como, sob formas organizacionais e ção de resolução de litígios. Cabe, fazer uma
quadros processuais relativamente semelhan- breve referência às outras funções dos juízes
tes, se escondem práticas judiciárias muito dis- a fim de construirmos o quadro conceptual e
tintas, distintos significados socio-políticos da teórico adequado às actuações judiciais que
função judicial bem como distintas lutas pela extravasam do domínio cível. Isto é tanto mais
independência do poder judicial18. necessário quanto é certo que as diferentes fun-
ções da justiça não evoluíram todas do mesmo
As funções dos juízes modo ao longo dos três períodos.
Nas secções precedentes analisei a evolução Os juízes desempenham nas sociedades
histórica do significado socio-político da admi- contemporâneas diferentes tipos de funções.
nistração da justiça pressupondo para isso um Distinguimos os três principais: funções instru-
entendimento amplo e mutante das funções dos mentais, funções políticas, funções simbólicas.
juízes na sociedade. Ao concentrarmo-nos no Em sociedades complexas e funcionalmente
desempenho dos juízes enquanto ponto de en- diferenciadas as funções instrumentais são as
contro entre a procura efectiva e oferta efectiva que são especificamente atribuídas a um dado
da tutela judicial as funções dos juízes passa- campo de actuação social e que se dizem cum-
ram a ser entendidas de modo mais restrito, ou pridas quando o referido campo opera eficaz-
seja, os juízes enquanto mecanismos de resolu- mente dentro dos seus limites funcionais. As
ção de litígios. Esta é, sem dúvida, uma função funções políticas são aquelas através das quais
crucial, talvez mesmo a principal e aquela sobre os campos sectoriais de actuação social contri-
que há mais consenso na sociologia judiciária. buem para a manutenção do sistema político.
Mas não é certamente a única. Ao concentrar- Finalmente, as funções simbólicas, são o con-
mo-nos nela acabamos por privilegiar a justiça junto das orientações sociais com que os dife-
cível já que é através dela que se realiza a fun- rentes campos de actuação social contribuem
para a manutenção ou destruição do sistema
social no seu conjunto.
18 Este facto torna ainda mais problemático o pro- As funções instrumentais dos juízes são as
pósito de submeter os sistemas judiciais de diferentes
seguintes: resolução dos litígios, controle so-
países aos mesmos modelos institucionais e funcionais
(ver Santos, 2009: 454-508). cial, administração, criação de direito. Sobre
170 Boaventura de Sousa Santos

a resolução de litígios já falámos que baste de controlo social. No entanto, é na repressão


neste capítulo. O controlo social é o conjun- criminal que os juízes exercem especificamen-
to de medidas — quer influências interioriza- te esta função porque é aí que o padrão de so-
das, quer coerções — adoptadas numa dada ciabilidade dominante é imperativamente afir-
sociedade para que as acções individuais não mado perante o comportamento desviado. Na
se desviem significativamente do padrão do- medida em que esta afirmação coercitiva pode
minante de sociabilidade por esta razão desig- ter eficácia de prevenção, o seu conteúdo de
nado por ordem social. A função de controlo imposição externa passa a coexistir com o de
social dos juízes diz respeito à sua contribui- influência interiorizada.
ção específica para a manutenção da ordem A análise do desempenho dos juízes no do-
social e para a sua restauração sempre que mínio da justiça penal corresponde assim à
ela é violada. Desde meados do século XIX, análise da eficácia do sistema judicial no do-
coincidindo com o início do período liberal, o mínio do controlo social. Esta eficácia foi, ao
triunfo ideológico do individualismo liberal e longo dos três períodos, sempre problemática
a exacerbação dos conflitos sociais em resul- e foi-o tanto mais quanto mais rápidas foram as
tado da revolução industrial e urbana vieram transformações sociais. O sistema judicial com
pôr a questão central de como manter a ordem o seu peso institucional, normativo e burocrá-
social numa sociedade que perdia ou destruía tico teve sempre dificuldades em adaptar-se
rapidamente os fundamentos em que tal or- às novas situações de comportamento desvia-
dem tinha assentado até então. do. De alguma maneira, estamos hoje a viver,
A resposta foi encontrada no direito, na exis- com a questão do combate à corrupção, o úl-
tência de uma normatividade única, universal, timo episódio de um longo processo histórico
coerente, consentânea com os objectivos de de adaptação e os limites do seu êxito são já e
desenvolvimento da sociedade burguesa e sus- mais uma vez por demais evidentes.
ceptível de poder ser imposta pela força. As restantes funções instrumentais dos ju-
Os tribunais de justiça foram a instituição a ízes são talvez menos óbvias, e alguns dirão,
que foi confiada tal imposição. Pode dizer-se menos importantes; acima de tudo, variam
que a resolução dos litígios levada a cabo pe- muito de país para país. As funções administra-
los juízes configura, em si mesma, uma função tivas dizem respeito a uma série de actuações
Sociologia crítica da justiça 171

dos tribunais que não são nem resolução de poder executivo. Penso, no entanto, que, dei-
litígios nem controlo social. Assim, por exem- xando de lado a arquitectura constitucional e
plo, o conjunto dos actos de certificação e de olhando mais às práticas judiciárias quotidia-
notariado que os juízes realizam por obrigação nas, há muita criação de direito nos julgados
legal em situações que não são litigiosas (por (juzgados), tanto nos países da common law,
exemplo, divórcio por mútuo consentimento como nos países do direito europeu continen-
ou casamento). São também funções adminis- tal. Trata-se de uma criação precária, intersti-
trativas as actuações que, não sendo dos juízes cial, caótica mas nem por isso menos importan-
enquanto tal, são dos magistrados judiciais te, e de algum modo destinada a aumentar de
sempre que estes são chamados (comissões importância nas circunstâncias que parecem
de serviço) a exercer funções de auditoria, de estar a prevalecer no terceiro período jurídico-
consultoria jurídica, ou de magistratura de au- -político, o período do pósEstadoProvidência.
toridade nos diferentes ministérios ou depar- A criação intersticial do direito prospera, de
tamentos da administração pública. Estas fun- facto, à medida que colapsam os princípios de
ções administrativas são resíduos da sociedade subsunção lógica na aplicação do direito. Ora,
pré-liberal em que as actividades judicativas muitas das características do terceiro período
eram frequentemente exercidas conjuntamen- não fazem senão aprofundar tal colapso, como
te, e pelo mesmos oficiais do Rei, com as acti- sejam, entre outros, a emergência de normati-
vidades administrativas. vidade particularística e negociada, a comple-
A função de criação do direito por parte dos xidade crescente dos negócios traduzida no
juízes é, de todas, a mais problemática sobre- uso cada vez mais frequente de cláusulas ge-
tudo nos países de tradição jurídica europeia rais, conceitos indeterminados, princípios de
continental. Mas mesmo nos países da com- boa fé e de equidade, a pressão formal ou infor-
mon law tem sido abundantemente discutido mal sobre os juízes para agirem mais como me-
e analisado o declínio da função de criação do diadores do que como julgadores. Todos estes
direito por parte dos juízes, um declínio que se factores fazem com que se atenuem ou sejam
terá iniciado no segundo período (o período do cada vez mais difusas as fronteiras entre a cria-
EstadoProvidência) quando o equilíbrio de po- ção e a aplicação do direito. É nessas fronteiras
deres foi definitivamente destruído a favor do que a criação judicial do direito tem lugar.
172 Boaventura de Sousa Santos

Como acontece, de resto, com o conjunto função eminentemente política, quer pela re-
das funções judiciais, os três tipos de funções pressão que exerce, quer pelo modo selectivo
instrumentais influenciam-se naturalmente, como o faz.
interpenetram-se e, de facto, nenhuma delas Os sistemas políticos convivem hoje, sem
é inteligível totalmente separada das restan- grandes perturbações para a sua estabilida-
tes. É sobretudo na resolução de litígios que de, com níveis elevados de criminalidade in-
os juízes criam o direito e é também aí que se dividual, dita comum. Já o mesmo não suce-
exerce a função de controlo social mediante a de com três outros tipos de criminalidade, o
afirmação de uma normatividade que deixa de crime organizado, o crime político e o crime
depender da vontade das partes a partir do mo- cometido por políticos no exercício das suas
mento em que estas decidem submeter-se a ela funções ou por causa ou em consequência de-
(sempre que têm a possibilidade de decidir o las, como é o caso da corrupção já acima re-
contrário). Mas, por outro lado, a justiça penal ferida. As dificuldades do sistema político pe-
contém sempre uma dimensão de resolução rante estes tipos de criminalidade resultam de
de litígio não só entre o acusado e a sociedade uma situação paradoxal, susceptível de ocor-
como também entre ele e a vítima. Nos crimes rer mais frequentemente do que se pensa. Por
particulares essa dimensão é particularmente um lado, a existência desta criminalidade e a
evidente e a tal ponto que a fronteira entre jus- sua impunidade pode, para além de certos li-
tiça cível e justiça penal se torna problemática. mites, pôr em causa as próprias condições de
É em grande medida através do conjunto reprodução do sistema. Mas, por outro lado,
das funções instrumentais que os juízes exer- o mesmo pode ocorrer se a punição dessa cri-
cem também as funções políticas e as funções minalidade, pela sua sistematicidade e dureza,
simbólicas. Quanto às funções políticas, elas contribuir para cortar eventuais ligações do
decorrem desde logo do facto de os juízes se- sistema político com tal tipo de criminalida-
rem um dos órgãos de soberania. Mais do que de no caso de tais ligações serem vitais para a
interagir com o sistema político são parte in- reprodução do sistema político. Devido a este
tegrante dele. Há, pois, apenas que identificar paradoxo, a actuação repressiva dos juízes
as funções políticas especificamente confiadas ocorre frequentemente num fio de navalha,
aos juízes. A função de controlo social é uma sempre aquém das condições que poderiam
Sociologia crítica da justiça 173

maximizar a sua eficácia, e, por isso, sujeita a doProvidência, pelo dramático incremento dos
críticas contraditórias. direitos de cidadania que nele ocorreu. A partir
As funções políticas dos juízes não se esgo- de então, a garantia efectiva desses direitos foi
tam no controlo social. A mobilização dos juí- politicamente distribuída pelo poder execu-
zes pelos cidadãos nos domínios cível, laboral, tivo e legislativo, por um lado, encarregados
administrativo, etc. implica sempre a consci- da criação dos serviços e das dotações orça-
ência de direitos e a afirmação da capacidade mentais, e por outro lado, pelo poder judicial,
para os reivindicar e neste sentido é uma for- enquanto instância de recurso perante as vio-
ma de exercício da cidadania e da participação lações do pacto garantista. A crise do Estado-
política. É, por esta razão, que as assimetrias -Providência no terceiro período é basicamente
sociais, económicas, culturais na capacidade uma crise de garantismo e daí a transferência
para mobilizar os juízes, pondo uma questão de compensatória da legitimação do sistema polí-
justiça social, põem simultaneamente a ques- tico para a justiça.
tão das condições de exercício da cidadania. A Esta transferência tem criado nos países
visibilidade social e política da acessibilidade, centrais uma sobrecarga política da justiça
do custo e da morosidade da justiça, enquanto que, se não for bem gerida ou não lhe for dada
temas de debate público, deriva da capacidade resposta adequada, pode acabar por compro-
ou incapacidade integradora do sistema políti- meter a própria legitimidade dos juízes. Nos
co que por elas se explicita. países periféricos e semiperiféricos o garan-
Desta articulação entre mobilização judicial tismo esteve, por assim dizer, em crise desde
e integração política resulta uma outra função o início. Neste sentido, as responsabilidades
política dos juízes: a legitimação do poder polí- políticas do judiciário são menores apenas por-
tico no seu conjunto. Nas sociedades democrá- que é menor a legitimidade do sistema político
ticas o funcionamento independente, acessível no seu conjunto. A relativa irrelevância social
e eficaz da justiça constitui, hoje em dia, uma dos juízes é assim o outro lado da distância do
das cauções mais robustas da legitimidade do sistema político em relação aos cidadãos.
sistema político. Como vimos atrás, as condi- A transferência compensatória da legitimi-
ções para esta politização da função judicial dade está hoje a assumir outra forma, tanto
foram criadas sobretudo no período do Esta- nos países centrais, como nos semiperiféricos,
174 Boaventura de Sousa Santos

e com ela desenha-se uma outra função políti- por critérios de especialização funcional so-
ca da justiça. Trata-se, como já referimos atrás, cialmente dominantes20.
da promiscuidade entre o poder económico e o Tanto as funções instrumentais como as
poder político e da consequente criminalização funções políticas21 têm dimensões simbólicas
da política19. Enquanto a transferência com- que serão mais significativas nuns casos do
pensatória no domínio dos direitos assenta no que noutros22. Por exemplo, das funções ins-
questionamento da capacidade providencial do trumentais é a função de controlo social a que
Estado, a transferência compensatória no do- tem mais forte componente simbólica. A justi-
mínio da corrupção política assenta no questio- ça penal actua sobre comportamentos que, em
namento do sistema de representação política. geral, se desviam significativamente de valores
A função de representação substitutiva pode reconhecidos como particularmente impor-
assim vir a sobrecarregar demasiado a capaci- tantes para a normal reprodução de uma dada
dade funcional da justiça. sociedade (os valores da vida, da integridade
Estas últimas funções políticas dos juízes física, da honra, da propriedade, etc.). Ao actu-
só podem ser minimamente exercidas na ar eficazmente neste domínio produz um efeito
medida em que estes cumprem as suas fun- de confirmação dos valores violados. Uma vez
ções mais gerais, as funções simbólicas. As que os direitos de cidadania, quando interiori-
funções simbólicas são mais amplas que as zados, tendem a enraizar concepções de justi-
políticas porque comprometem todo o siste- ça retributiva e distributiva, a garantia da sua
ma social. Os sistemas sociais assentam em
práticas de socialização que fixam valores e
orientações a valores distribuindo uns e ou- 20 Sobre os espaços estruturais, ver Santos, 1995:
tras pelos diferentes espaços estruturais de 403-455.
relações sociais (família, produção, mercado, 21 Sobre as funções dos juízes e tribunais a partir de
comunidade, cidadania, mundo) segundo as uma perspectiva que procura resguardar e fomentar a
inversão privada dos países, ver Buscaglia e Ratliff, 1997.
especificidades destes, elas próprias fixadas
22 Sobre o tema mais geral da eficácia simbólica do di-
reito ver o importante estudo de García-Villegas, 1993.
19 Sobre as mudanças no papel dos juízes, ver Domin- García-Villegas parte de uma concepção distinta, e mais
go, 2000 e 2005. ampla, de eficácia simbólica.
Sociologia crítica da justiça 175

tutela por parte dos juízes tem geralmente um A primeira, que é, afinal, a conclusão mais
poderoso efeito de confirmação simbólica. abrangente da nossa análise até agora, é que
No entanto, a maior eficácia simbólica dos juízes a luta pela independência do sistema e do po-
deriva do próprio garantismo processual, da igual- der judicial é sempre, apesar das variações
dade formal, dos direitos processuais, da impar- infinitas, uma luta precária na medida em que
cialidade, da possibilidade de recurso. Em termos ocorre no contexto de algumas dependências
simbólicos, o direito processual é tão substantivo robustas do sistema judicial em relação ao
quanto o direito substantivo. Daí também que a Executivo e ao Legislativo. Trata-se de uma
perda de eficácia processual por via da inacessibi- luta com meios limitados contra outros pode-
lidade, da morosidade, do custo ou da impunidade res quase sempre hostis por uma independên-
afecte a credibilidade simbólica da tutela judicial. cia que nunca é completa. Nesta medida, a in-
Isto não significa que haja uma relação linear entre dependência só é tida como estando em causa
a eficácia do desempenho instrumental e político quando são ultrapassados os limites da falta
e eficácia simbólica. Num Estado em geral opaco de independência considerados toleráveis pe-
ou pouco transparente, um deficiente desempenho las próprias magistraturas ou pelos cidadãos
instrumental dos juízes pode não afectar a sua efi- organizados em partidos ou outras formas de
cácia simbólica, sobretudo se alguns casos exem- associação interessados em defender a inde-
plares de bom desempenho instrumental forem pendência dos juízes23.
alimentando a comunicação social e se o fizerem
de molde a que a visibilidade dos tribunais fique re-
duzida a essas zonas de atenção pública. 23 A análise comparativa dos sistemas judiciais é de
importância crescente e, contudo, muito complexa de-
Padrões de litigação vido à multiplicidade das variáveis em jogo. Sobre este
e cultura jurídica tema, ver Shapiro, 1986; Damáska, 1986; Schmidhauser,
1987; Cappelletti, 1991, 1999 e Holland (ed.), 1991. Em
Por muito significativas que sejam as dife- meu entender, a maior dificuldade na análise compara-
renças entre países com níveis de desenvolvi- da dos sistemas judiciais reside no facto destes opera-
mento distintos no que respeita às vicissitudes rem num contexto de pluralismo jurídico, o que condi-
da independência e do significado socio-políti- ciona de modo decisivo o seu desempenho, o que varia
de forma significativa de país para país. No Brasil, uma
co da justiça, suscitam duas reflexões comuns. análise muito bem documentada do pluralismo jurídico
pode ler-se em Wolkmer, 1994.
176 Boaventura de Sousa Santos

As tentações e as tentativas para exercer con- político para além dos limites convencionados
trolo político sobre a actividade judicial ocorrem e convencionais é que a independência judicial
por razões semelhantes e com recursos a meios se transforma numa luta política de primeira
igualmente não totalmente díspares: transferên- grandeza. No entanto, e ao contrário de que
cia de certas áreas de litigação do âmbito dos pode parecer, não há uma relação absoluta-
tribunais comuns para tribunais especiais ou mente unívoca e linear entre os termos da luta
para agências administrativas sob o controlo do pela independência e os termos do desempe-
poder executivo; controlo sobre a formação, o nho efectivo, na medida em que variam de país
recrutamento e a promoção dos magistrados; para país as sensibilidades políticas sobre o sig-
gestão da dependência financeira dos juízes. nificado do desempenho e das suas variações.
Para evitar este tipo de ingerências criaram-se Em face disto, é de crucial importância anali-
os Conselhos de Magistratura. Estas instituições sar com o pormenor possível os parâmetros, as
visam o autogoverno e gestão dos juízes por si características e as variações do desempenho
próprios. No entanto, ainda que se tenha avan- dos juízes. Aliás, um enfoque analítico excessi-
çado em alguns aspectos da autonomia judicial, vamente centrado sobre a independência judi-
estes conselhos dependem orçamentalmente do cial ou o protagonismo político dos juízes pode
executivo. Daí que a sua independência não seja ocultar o conhecimento do trabalho efectivo
absoluta. O que neste domínio verdadeiramente destes na esmagadora maioria dos casos e na
distingue os países periféricos dos países cen- esmagadora maioria dos dias de trabalho judi-
trais é o facto de só nos primeiros os meios de cial. É, por esta razão que passamos a referir o
controlo incluírem a intimidação séria e a pró- quadro teórico e a experiência comparada que
pria liquidação física dos juízes. servem de referência à análise de alguns dos
A segunda reflexão, que suscita a análise que vectores do desempenho efectivo dos juízes.
se segue, é que no terreno político concreto, a Como dissemos acima, é sabido que o nível
luta pela independência depende do desempe- de desenvolvimento económico e social con-
nho efectivo dos juízes. Este desempenho per- diciona a natureza da conflitualidade social e
mite uma enorme variação interna e só quan- interindividual, a propensão a litigar o tipo de
do ele se traduz em exercícios susceptíveis de litigação e, portanto, o desempenho dos juízes
ampliar a visibilidade social ou o protagonismo enquanto expressão do padrão de consumo da
Sociologia crítica da justiça 177

justiça entendido este como oferta efectiva de Contudo, é igualmente sabido que o nível de
tutela judicial perante a procura efectiva. Sen- desenvolvimento socio-económico não explica
do condicionado pelo nível de desenvolvimen- só por si o nível e o tipo de desempenho dos
to, o padrão de consumo da justiça actua por juízes uma vez que países com níveis parificá-
sua vez, sobre ele, potenciando-o ou limitando- veis de desenvolvimento apresentam perfis ju-
-o. Acresce que o aumento do desenvolvimento diciários muito distintos. Basta comparar, por
socio-económico não induz necessariamente exemplo, o Japão com os EUA ou a Holanda
o aumento da litigação, em geral, pode induzir com a Alemanha. Deve, pois, atender-se a ou-
um aumento em certas áreas ou tipos de litiga- tros factores e um deles, talvez o mais impor-
ção ao mesmo tempo que induz uma diminui- tante, é a cultura jurídica dominante do país,
ção noutras. Por esta tripla interacção a análise quase sempre articulada com a cultura política.
das relações entre o desempenho dos juízes e A cultura jurídica é o conjunto de orienta-
o nível de desenvolvimento socio-económico é ções a valores e a interesses que configuram
central a toda a sociologia judiciária24. um padrão de atitudes face ao direito e aos di-
reitos e face às instituições do Estado que pro-
duzem, aplicam, garantem ou violam o direito
24 Ver, no entanto, Henckel, 1991 que faz uma análi- e os direitos.
se da justiça civil brasileira, comparando sempre que Nas sociedades contemporâneas, o Estado é
possível com a alemã para concluir que não há dife-
renças estatísticas significativas entre o desempenho um elemento mais ou menos central da cultura
do sistema judicial de um país desenvolvido e o de um jurídica e nessa medida a cultura jurídica é sem-
país subdesenvolvido. Segundo ele, as diferenças resi- pre uma cultura juridico-política e não pode ser
dem sobretudo nos factores organizacionais (pessoal, plenamente compreendida fora do âmbito mais
qualificações, salários, infraestruturas). Trata-se de
amplo da cultura política. Por outro lado, a cul-
uma análise algo controversa na medida em que as se-
melhanças podem ser a tradução de situações sociais tura jurídica reside nos cidadãos e suas organiza-
totalmente distintas. Por exemplo, o facto de tanto na ções e, neste sentido, é também parte integrante
Alemanha como no Brasil ser baixo o recurso à assis- da cultura de cidadania. A este nível, distingue-
tência judiciária, significa, no Brasil, que mais de 2/3
da população é marginalizada do acesso à justiça, um
significado totalmente oposto do que tem na Alemanha. cazmente e o seu desempenho não suscita controvér-
Ou seja, o Estado Providência continua a funcionar efi- sias que levariam à exigência de intervenção dos juízes.
178 Boaventura de Sousa Santos

-se da cultura jurídico-profissional que respeita por exemplo, os EUA e a Inglaterra ou os EUA
apenas aos profissionais do foro e que, como tal, e o Canada — e encontraram diferenças signifi-
tem ingredientes próprios relacionados com a cativas reconduzíveis a diferentes culturas jurí-
formação, a socialização, o associativismo, etc. dicas. Os EUA foram considerados como tendo
A cultura jurídica começou a ser discutida a mais elevada propensão a litigar, configuran-
a partir da década de sessenta, sobretudo nos do uma “sociedade litigiosa” como lhe chamou
EUA mas também na Itália, sob o impulso da Lieberman (1981)27.
explosão de litigiosidade que se começou a ve- Este facto suscitou um debate que se prolon-
rificar então nesses países25. A ideia era de que gou por toda a década de oitenta tendo mesmo
a propensão a litigar é maior numas sociedades nas eleições presidenciais dos Estados Unidos
que noutras e que as variações estão, em parte de 1992, sido o tema central da campanha elei-
pelo menos, ancoradas culturalmente na medi- toral (Galanter, 1993a; 1993b). Avançaram-se
da em que a propensão a litigar não aumenta então várias razões que alimentariam tal cultu-
necessariamente na mesma medida do desen- ra litigiosa desde a existência de um número ex-
volvimento económico. Se em certas socieda- cessivo de advogados ao enfraquecimento dos
des os indivíduos e as organizações mostram laços comunitários e dos compromissos de hon-
uma clara preferência por soluções consensu- ra na gestão da vida colectiva. Segundo alguns,
ais dos litígios ou de todo modo obtidas fora a propensão a litigar estaria a resultar numa
do campo judicial, noutras, a opção por litigar enorme drenagem de recursos económicos que
é tomada facilmente26. de outra maneira poderiam ser afectados às ta-
Alguns autores, como por exemplo Kritzer refas do desenvolvimento28. Outros autores e
(1989), compararam a propensão a litigar em estudos refutaram estes argumentos e puseram
países culturalmente próximos, em geral, e até
com um sistema jurídico semelhante, — como,
27 Sobre o questionamento do nível de litigio na socie-
dade dos EUA, ver Galanter, 1983, Trubek et al., 1983.
28 Olson (1992) afirma que existe nos Estados Unidos
25 Para uma bibliografia relevante deste período ver uma “indústria do litígio”, responsável em grande parte
Santos, 1994: 141-161. pelo aumento do mesmo. Uma posição oposta e bem
26 Sobre culturas jurídicas ver, Bierbrauer, 1994. fundamentada pode ler-se em Epp, 1992.
Sociologia crítica da justiça 179

mesmo em causa que tivesse havido uma explo- tradição jurídica continental, verificou que,
são da litigiosidade ou que os norte-americanos embora em todos eles tenha havido um aumen-
fossem particularmente litigiosos29. to de litigação na década de setenta, esse au-
Blankenburg por seu lado, defendeu que a ex- mento variou de país para país e as variações
plosão da litigiosidade, embora com uma dimen- não coincidiram com as dos indicadores de de-
são real, tinha sido inflaccionada pelos meios de senvolvimento (Ietswaart, 1990: 57). Em áreas
comunicação social a partir de processos par- de menor sedimentação cultural as variações
ticularmente notórios, quer pela sua natureza, foram, contudo, mais uniformes. Assim, por
quer pela dos intervenientes (Blankenburg, s/d). exemplo, verificou-se um certo decréscimo da
Nestes termos, deduzir a existência de cultura litigação directamente relacionada com a acti-
jurídica litigiosa a partir da explosão da litigiosi- vidade económica, o que poderia indiciar que
dade era incorrecto na medida em que, mesmo à medida que esta internacionalizou e tornou
dando de barato que tal explosão existia, a ver- tecnicamente mais complexa deixou de existir
dade é que a esmagadora dos litígios continuava nos tribunais um foro adequado para a resolu-
a ser resolvida fora dos tribunais30. ção dos litígios que foi gerando. Por outro lado,
No entanto, um estudo sobre os padrões de em quase todos os países desenvolvidos emer-
litigação em cinco países europeus, todos de giram novos tipos de litígios relacionados com
o surgimento da sociedade de consumo, com a
degradação do meio ambiente e com o aumen-
29 Sobre este debate ver Galanter, 1993a e 1993b. Para to dramático da mobilidade social e geográfica
além disto, outros autores sublinharam a contínua in- (rupturas de relações familiares e consequen-
cidência da solução negociada de litígios sem recurso
aos juízes, em determinadas áreas, como por exemplo
tes divórcios; questões de inquilinato).
na área dos seguros (Ross, 1980) e de responsabilidade Na análise das variações dos níveis de litigio-
civil extra-contractual (Genn, 1988). Ver também Bri- sidade é necessário distinguir entre as ondas
gham, 1993 e Galanter e Cahil, 1994. longas de litigação e as variações bruscas e de
30 Apesar disto, as diferenças nacionais perante o li- curta duração uma vez que só as primeiras são
tígio são evidentes. O próprio Blankenburg (1994: 780 e reconduzíveis, à evolução do padrão de desen-
ss.) mostra este contraste entre as culturas jurídicas de volvimento, ou à cultura jurídica dominante.
dois países europeus com níveis de desenvolvimento
semelhantes, Holanda e Alemanha. Ver também Kritzer
As variações bruscas estão em geral relaciona-
e Zemans, 1993.
180 Boaventura de Sousa Santos

das, quer com factores internos do sistema ju- de actuar sobre a procura judicial mas desta
dicial — por exemplo, uma reforma processual vez fá-lo desencorajando esta última, aumen-
que desjudicializa um certo litígio —, quer por tando com isto a discrepância entre procura
razão de transformações políticas drásticas, da potencial e procura efectiva. Nalguns países, a
Alemanha da República de Weimar e EUA do queda da procura da tutela judicial em certas
New Deal, ao Chile de Allende, Portugal do 25 áreas não tem outra justificação senão o de-
de Abril ou a França dos Socialistas em 1981. sincentivo sobre a procura resultante da fraca
Aliás, a razão pela qual a relação entre de- qualidade da oferta.
senvolvimento socio-económico e cultura jurí-
dica, por um lado, e padrão de litigação, pelo A pirâmide da litigiosidade
outro, não é unívoca reside em que o sistema O conceito de cultura jurídica é útil desde
judicial, por si ou pela interferência dos ou- que limitado nas suas ambições analíticas e
tros poderes políticos, não assiste passivo às explicativas, pois, como vimos, muitos outros
variações da procura de tutela judicial sempre factores interferem na evolução dos tipos e ní-
que estas excedem limites considerados tole- veis de litigação. Referida aos momentos mais
ráveis. Foi por essa razão que se realizaram as estáveis, a cultura jurídica é um elemento ana-
reformas de informalização da justiça já acima lítico útil. Embora o conceito tenha sido desen-
mencionadas e além delas podíamos citar mui- volvido para designar atitudes face ao direito,
tas outras: a desjudicialização dos litígios de aos direitos e a justiça, traduzíveis em elevada
cobrança das dívidas (Dinamarca), ou dos di- propensão à litigação, a verdade é que é igual-
vórcios por mútuo consentimento (Portugal); mente legítimo falar de culturas jurídicas de
a introdução da responsabilidade objectiva fuga à litigação, ou seja, de culturas com uma
nos acidentes de viação (França, Portugal); as muito baixa propensão a litigar. Em qualquer
propostas, cada vez mais insistentes para dis- caso, a utilidade deste conceito e do indicador
criminalizar o consumo de drogas (Holanda). que o sustenta (a propensão à litigação) só é
O que varia de país para país é precisamente verdadeiramente significativa quando é possí-
a capacidade de adaptação da oferta judicial vel aferir do conjunto de litígios judicializáveis
à procura judicial. Quando tal capacidade está que ocorrem numa dada sociedade ou, mesmo,
totalmente ausente a oferta judicial não deixa das relações sociais que os podem originar. Só
Sociologia crítica da justiça 181

então se pode determinar com algum rigor o pirâmide, há que conhecer a trama social que
âmbito da procura potencial da tutela judicial intercede entre a ponta e a base da pirâmide31.
e a fracção dela que se transforma em procura Os litígios são construções sociais, na medi-
efectiva. Esta investigação é extremamente di- da em que o mesmo padrão de comportamento
fícil e muitas vezes impossível. pode ser considerado litigioso ou não litigioso
O fluxo ininterrupto, indefinido e amalga- consoante a sociedade, o grupo social ou o
mado das relações sociais numa dada socie- contexto de interacções em que ocorre.
dade torna impossível qualquer quantificação Como todas as demais construções sociais,
fiável. Só assim não é nas relações sujeitas a os litígios são relações sociais que emergem e
registo (casamentos, óbitos, apólices de segu- se transformam segundo dinâmicas sociologi-
ro, registo de acidentes, cheques sem provi- camente identificáveis. A transformação delas
são, escrituras públicas, contratos de aluguer, em litígios judiciais é apenas uma alternativa
etc.). Nestes casos é possível estabelecer o entre outras e não é, de modo nenhum, a mais
que designamos por base da pirâmide da li- provável ainda que essa possibilidade varie
tigiosidade. A mesma dificuldade existe na de país para país, segundo o grupo social e a
determinação das situações litigiosas. Neste área de interacção. Aliás, o próprio processo
domínio apenas por inquérito ou outras me- de emergência do litígio é muito menos evi-
todologias indirectas é possível ter uma ideia dente do que à primeira vista se pode imaginar.
aproximada do nível global da litigiosidade O comportamento lesivo de uma norma não é
numa dada sociedade. suficiente para, só por si, desencadear o litígio.
Só a partir de um conhecimento aproximado A grande maioria dos comportamentos desse
da base da pirâmide de litigiosidade é possível tipo ocorre sem que os lesados dêem conta do
definir o perfil desta. O conceito de pirâmide de dano ou identifiquem o seu causador, sem que
litigiosidade tem vindo a ser utilizado para dar
conta, por recurso a uma metáfora geométrica,
do modo como são geridas socialmente as rela- 31 As formas pluralismo jurídico analisadas em O plu-
ções litigiosas numa dada sociedade. Sabendo- ralismo jurídico e as escalas do direito operam muitas
vezes no âmbito da pirâmide de litígios, na medida em
-se que as que chegam aos tribunais e, destas,
que diferentes ordens jurídicas intervêm no mesmo lití-
as que chegam a julgamento, são a ponta da gio em diferentes momentos ou mesmo em simultâneo.
182 Boaventura de Sousa Santos

tenham consciência de que tal dano viola uma muito maior que outros para identificar os da-
norma, ou ainda sem que pensem que é possí- nos, avaliar a sua injustiça e reagir contra eles.
vel reagir contra o dano ou contra o seu causa- Quanto mais baixa é a capacidade de identifi-
dor. Diferentes grupos sociais têm percepções cação mais difícil se torna avaliar o significado
diferentes das situações de litígio e níveis de sociológico da base da pirâmide. Subjacente
tolerância diferentes perante as injustiças em às situações identificadas como geradoras de
que elas se traduzem. Por esta razão, níveis litígio pode estar um conjunto maior ou menor
baixos de litigiosidade não significam necessa- de condutas injustamente lesivas, um conjunto
riamente baixa incidência de comportamentos em grande medida indeterminável.
injustamente lesivos. É, contudo, possível determinar os factores
São enormes os problemas conceptuais e sociais que condicionam a capacidade para dar
metodológicos do estudo das percepções e conta de danos e de os avaliar como tal. Há na-
avaliações de danos. Pessoas diferentes com turalmente factores relativos à personalidade,
percepções semelhantes de uma dada situação importantes neste domínio mas só operam em
fazem delas avaliações diferentes e vice-versa conjunto com os factores sociais, tais como a
fazem avaliações semelhantes de situações di- classe, o sexo, o nível de escolaridade, a etnia
ferentemente percebidas. Muitos trabalhado- e a idade. Os grupos sociais que ocupam nestas
res têm dificuldade em saber se estão doentes, variáveis situações de maior vulnerabilidade
se a causa da doença está relacionada com o são também aqueles em que tende a ser menor
trabalho, se o trabalho causador da doença a capacidade para transformar a experiência
viola alguma norma, ou se é possível alguma da lesão em litígio. Para além do factor de per-
reacção contra isso. Do mesmo modo, só uma sonalidade e das variáveis estruturais há ainda
inspecção dos documentos do empréstimo tor- que contar com as variáveis interpessoais, ou
naria possível saber se o devedor foi vítima de seja, com a natureza das relações entre indiví-
usura no caso de ele próprio não se ter aper- duos no contexto das quais surge uma situação
cebido disso. As pessoas expõem-se a danos potencialmente litigiosa. Por exemplo, o mes-
e são injustamente lesadas em muito mais si- mo comportamento tido por um familiar ínti-
tuações do que aquelas de que têm consciên- mo ou por um estranho pode ter significados
cia. Certos grupos sociais têm uma capacidade totalmente distintos. O tipo de domínio social
Sociologia crítica da justiça 183

em que se tecem as relações é igualmente de- reclamação ou queixa é rejeitada no todo ou


cisivo. Os indivíduos relacionam-se na família, em parte. Só então é que verdadeiramente a re-
no trabalho, na vizinhança, no mercado, na po- lação social entra na base da pirâmide.
lítica, no lazer, etc. e cada um destes domínios O trajecto até aqui percorrido é sociologi-
criam interacções que potenciam certos tipos camente muito importante para determinar o
de percepções e de avaliações e bloqueiam ou- conteúdo de justiça distributiva das medidas
tros. Por outro lado, se há relações que é fácil destinadas a incrementar o acesso à justiça.
interromper ou cancelar, há outras cuja inter- Como sabemos, tais medidas visam diminuir
rupção ou cancelamento acarretaria custos as desigualdades no consumo da justiça. Acon-
importantes para um ou para todos os inter- tece, porém, que tais medidas só podem benefi-
venientes na relação. A consistência, a multi- ciar aqueles que passam o limiar da percepção
direccionalidade, a profundidade e a duração e da avaliação do dano e da responsabilidade
da relação são factores decisivos, consoante do dano. Ora, como vimos, certos grupos so-
as circunstâncias, na criação, ou no bloquea- ciais têm mais capacidade que outros para pas-
mento de situações de litigiosidade. Aliás, deve sar tal limiar. Os que têm menor capacidade
ter-se em conta que todos estes factores ou va- estão em piores condições para serem benefi-
riáveis não são apenas decisivos no processo ciados por um incremento do acesso à justiça.
de emergência do litígio, sãono também nas Isto significa que o acesso à justiça, em países
necessárias transformações por que este passa onde é muito deficiente, é duplamente injusto
até à sua resolução quando ela ocorre. para os grupos sociais mais vulneráveis: porque
Uma vez reconhecida a existência do dano, não promove uma percepção e uma avaliação
do causador dele, e da violação de normas que mais ampla dos danos injustamente sofridos
ele acarreta não significa necessariamente que na sociedade e porque, na medida em que tal
o litígio ocorra. É necessário para isso que o percepção e avaliação têm lugar, não permite
lesado ache que o dano é de algum modo re- que ela se transforme em procura efectiva da
mediável, reclame contra a pessoa ou entidade tutela judicial.
responsável pelo dano de que é vítima e saiba Rejeitada no todo ou em parte a reclamação
fazê-lo de maneira inteligível e credível. Sem- do lesado nem por isso é desencadeado litígio.
pre que tal sucede, o litígio só surge quando tal Só o será se o lesado se inconformar e decidir
184 Boaventura de Sousa Santos

reagir perante a rejeição. Pode ter boas razões para levar a cabo esses objectivos. Aliás, como
para não o fazer. Por exemplo, o inconformis- bem notou Aubert, a relação entre objectivos e
mo pode envolver o risco de pôr globalmente mecanismos de resolução é recíproca: os ob-
em perigo uma relação que a outros níveis é jectivos influenciam a escolha dos mecanismos
benéfica para o lesado. Isto sucede sobretu- e os mecanismos escolhidos alteram os objec-
do no caso das relações multiplexas, isto é, tivos (Aubert, 1963: 33; Santos, 1977). Os objec-
relações que unem os indivíduos através de tivos dependem ainda da avaliação que é feita
múltiplos vínculos (amizade, família, religião, da lesão e da injustiça que ela constitui. Tal
etnia, negócios)32. Sempre que estes só par- avaliação tem muito a ver com a consciência
cialmente são afectados pelo comportamento dos direitos e, em última instância, com a cul-
lesivo, o desencadear do litígio pode ter um tura jurídica dominante no grupo de referência
efeito de polarização que pode contribuir para do lesado. Uma elevada consciência de direitos
aumentar a dimensão da lesão antes que pos- tende a ampliar o âmbito da lesão e, correspon-
sa ser remediada. O incentivo para “aguen- dentemente, os objectivos da sua reparação.
tar” pode nestas condições ser muito grande. Num complexo sistema de feedback, a ava-
Quanto mais desiguais são as posições sociais liação da dimensão da lesão e os objectivos da
das partes no litígio, maior é este incentivo no reparação estão, como dissemos, em íntima
caso em que o lesado é a parte com a posi- interacção com os mecanismos de resolução
ção social inferior. Se o incentivo a aguentar à disposição do lesado e com a capacidade
é neutralizado pelo impulso inconformista, deste ou do próprio mecanismo para convo-
desencadeia-se o litígio. car ao processo de resolução o causador do
Uma vez desencadeado o litígio, o seu âmbi- dano. Pode dizer-se que todas as sociedades
to pode variar enormemente não só em função minimamente complexas têm à disposição
dos factores ou variáveis de que falámos atrás, dos litigantes um conjunto mais ou menos
mas também dos objectivos dos litigantes e dos numeroso de mecanismos de resolução dos
mecanismos que julgam ter à sua disposição litígios, entendendo como tal todas as instân-
cias susceptíveis de funcionar como terceira
parte, ou seja, como instâncias decisórias ex-
32 Sobre o conceito de relações multiplexas, ver San-
tos (1977; 1988). teriores às partes em litígio. Variam enorme-
Sociologia crítica da justiça 185

mente segundo a oficialidade, a formalidade, realizar a escolha nas melhores condições.


a acessibilidade, a especialização, a eficácia, a Factores económicos, sociais e culturais
eficiência, a distância cultural, etc. Em geral, de vária ordem convergem na escolha de uma
os juízes tendem a ocupar um dos extremos dada terceira parte. A existência de escolha só
em muitas destas dimensões. De todos os me- é visível muitas vezes a nível agregado, pois, ao
canismos de resolução de litígios disponíveis, nível das decisões individuais não há, muitas
tendem a ser os mais oficiais, os mais formais, vezes, muito campo para escolhas, uma vez que
os mais especializados e os mais inacessíveis. o mecanismo utilizado surge como o único dis-
Quanto às outras dimensões, a sua posição va- ponível ou único adequado. É, por esta razão,
ria muito de país para país e de área de litígio que as resoluções sugeridas ou decididas pelas
para área de litígio. terceiras partes são geralmente aceites ainda
Não admira, pois, que antes de recorrer aos que não disponham de nenhum meio formal
juízes as partes num litígio tentem, sempre que para impor as suas decisões. O acatamento
possível, resolvê-lo junto de instâncias não ofi- da decisão pode derivar de considerações de
ciais mais acessíveis, mais informais, menos oportunidade e de cálculo dos custos do não
distantes culturalmente e que garantam um acatamento mas deriva muitas vezes da pró-
nível aceitável de eficácia. De um familiar ou pria autoridade de quem decide33.
vizinho respeitado, a uma organização comuni- São muitas as distinções possíveis entre as
tária, associação ou clube disponível, ou ainda terceiras partes. Quanto aos poderes de de-
um profissional, seja ele um advogado, um tera- cisão, distinguem-se dois tipos principais de
peuta, um padre, um assistente social, um mé- resolução do litígio pela terceira parte: me-
dico, um professor, todos são potencialmente diação, arbitragem e adjudicação. Idealmente,
terceiras partes e podem efectivamente funcio- na mediação, a terceira parte não decide nem
nar como tal dependendo de muitos factores. sequer propõe uma decisão de motu proprio,
A escolha tem sobretudo a ver com as relações limitando-se a aproximar progressivamente
que existem entre as partes em litígio, com a
área social da litigação, com os níveis de socia-
33 Sobre os mecanismos de solução de litígios nas
lização de ambas as partes com mecanismo de
chamadas “favelas” do Rio ver entre outros, Santos,
resolução e com os meios de que dispõem para 1977 e Junqueira e Rodrigues, 1992.
186 Boaventura de Sousa Santos

as posições das partes em litígio até reduzir a medida em que o direito oficial coexiste com
zero a contradição ou a diferença entre elas. outros direitos que circulam não oficialmente
Ao contrário, na arbitragem, a terceira parte na sociedade, no âmbito de relações sociais
está mandatada pelas partes para proferir uma específicas, tais como relações de família, de
decisão vinculativa por sobre as pretensões produção e trabalho, de vizinhança, etc. Esta
das partes tal qual estas as formularam. Na ad- normatividade é frequentemente mobilizada
judicação a decisão vinculativa não deriva do pelos mecanismos informais de resolução de
mandato das partes, mas da ordem jurídica a litígios. O normativismo é apenas implícito no
que estão sujeitos. caso dos critérios profissionais, tecnicodeon-
No que respeita ao estilo decisório e em arti- tológicos, que tendem a ser accionados em
culação com os poderes do decisor, é costume litígios emergentes de relações profissionais.
distinguir entre decisões mini-max e decisões Mas em quase todos estes mecanismos, ainda
soma-zero34. As primeiras procuram maximizar que nuns mais que noutros, há recurso a crité-
o compromisso entre as pretensões opostas rios éticos dominantes que intervêm em cons-
de modo a que a distância entre quem ganha telações de sentido muito complexas onde
e quem perde seja mínima e, se possível, nula. figuram também normas jurídicas e critérios
As decisões soma-zero ou decisões de adjudi- técnico-profissionais.
cação são aquelas que maximizam a distinção A predominância de um ou de outro tipo de
e a distância entre a pretensão acolhida e a pre- mecanismos de resolução varia de país para
tensão rejeitada e, portanto, entre quem ganha país, mas tem sempre muito a ver com os tipos
e quem perde. dominantes de relações sociais (mais ou me-
Quanto aos recursos normativos de que ser- nos complexas, mais ou menos duráveis, mais
ve a terceira parte para decidir, eles podem ou menos profundas, etc.) e de cultura jurídica.
ser de natureza jurídica, técnico-profissional, Uma vez submetido a um dado mecanismo de
ou ética. De um ponto de vista sociológico, as resolução, qualquer que seja o seu tipo, o litígio
sociedades são juridicamente pluralistas na é transformado pelos poderes, estilos e recur-
sos normativos do mecanismo antes mesmo de
ser eventualmente resolvido por ele. O familiar,
34 Sobre este tema ver, em especial, Nader, 1990; tam-
bém Gulliver, 1979. o terapeuta, o vizinho, a associação, a Igreja,
Sociologia crítica da justiça 187

cada um deles à sua maneira reformula, expan- neas ocorre assim, num campo de alternativas
de ou contrai o litígio à medida que toma notí- várias de resolução, e, de tal modo, que o tribu-
cia dele, de modo a adequá-lo ao tipo de solu- nal de primeira instância chamado a resolver o
ções que pode credivelmente proferir à luz dos litígio é, sociologicamente, quase sempre uma
seus poderes, estilos, e recursos normativos35. instância de recurso, isto é, é accionado depois
A resolução do litígio pode então ocorrer e ser de terem falhado outros mecanismos informais
aceite, caso em que a trajectória do litígio che- utilizados numa primeira tentativa de resolu-
ga ao fim. E o mesmo sucede se a parte lesada ção. Este facto é crucial para compreender o
se resigna perante a ausência de resolução ou desempenho judicial, na medida em que mos-
perante uma resolução que, apesar de iníqua, tra que ele não ocorre num vazio social nem
não sente poder contestar. significa o ponto zero da resolução do litígio
Se nenhumas destas situações acontecer, o chamado a resolver.
mecanismo de resolução terá falhado os seus A intervenção do juiz é sem dúvida um mo-
propósitos e a trajectória do litígio prossegue mento crucial na história de vida de um litígio,
e com um nível de polarização eventualmente mas de modo nenhum esgota a compreensão
ainda mais elevado. E pode prosseguir, quer deste em toda a sua riqueza e dimensão. Por
para se submeter a outros mecanismos de re- outro lado, o significado socio-político do
solução informal ou não oficial, quer para se desempenho judicial não pode ser o mesmo
submeter aos juízes. No primeiro caso, a aná- num país onde abundam e são eficazes os me-
lise seguirá os passos da que acabámos de fa- canismos informais de resolução de litígios
zer. No segundo caso, entramos no domínio da e num país onde tal não sucede. E o mesmo
judicialização do litígio e, portanto, no objecto se diga, dentro do mesmo país, das diferentes
do nosso estudo. O recurso à justiça enquanto áreas de prática social, algumas com vastos
instância privilegiada e especializada de reso- recursos de resolução informal e outras com
lução de litígios nas sociedades contemporâ- nenhuns. Assim, por exemplo, tais recursos
são, em princípio, mais vastos na família do
que na fábrica e nesta mais vastos do que na
35 Sobre os processos de transformação dos litígios,
prática criminal. Mas, como já afirmámos, os
ver Felstiner, Abel e Sarat, 1980: 81; Pastor, 1993: 113 e
ss.; e Blankenburg, 1994: 691 e ss. recursos de resolução de litígios de uma dada
188 Boaventura de Sousa Santos

sociedade devem ser vistos no seu conjunto ponha em risco a sua solidez institucional
e no conjunto das suas múltiplas interacções pelo facto de levar ao extremo a polarização
cruzadas. A título de ilustração, a inacessibili- entre perdedores e ganhadores. Pelo contrá-
dade da justiça, o seu magro desempenho ou a rio, é deste extremismo que se alimenta a sua
sua irrelevância na sociedade podem dever-se, solidez. O mesmo maximalismo é responsável
em parte, à existência abundante de mecanis- por um recurso exclusivo a critérios jurídicos
mos informais, acessíveis e eficazes nessa so- o mais estritamente definidos e sempre com
ciedade em resultado da dominância de uma referência exclusiva ao direito oficial, deixan-
cultura jurídica de fuga à litigação judicial. do de fora, por irrelevante, toda a normativi-
Mas, por outro lado, a existência de tais meca- dade jurídica não oficial.
nismos alternativos, longe de resultar de uma A transformação judicial a que é subme-
preferência cultural, pode apenas ser fruto de tido o litígio começa verdadeiramente quan-
uma solução de recurso em função da inaces- do é consultado o advogado e contratados
sibilidade dos tribunais. os seus serviços. E logo aí pode ver-se como
Uma vez franqueada a porta do tribunal, a a transformação judicial cria novas alternati-
intensidade do uso deste mecanismo de reso- vas de resolução algumas das quais com uma
lução pode ainda variar bastante. O processo forte componente extrajudicial. Por exemplo,
de transformação do litígio no seio dos meca- é possível que o advogado se transforme, ele
nismos de resolução informais que eventual- próprio, num mecanismo de resolução do lití-
mente intervieram e falharam em momentos gio, buscando, por exemplo, o acordo entre as
anteriores prossegue agora e com muito mais partes. Se tal não suceder ou não tiver êxito, o
intensidade dado o carácter especializado juiz intervém, mas a sua intervenção só assume
e profissionalizado da intervenção judicial. o máximo de intensidade quando o litígio pros-
Trata-se, nas sociedades contemporâneas de segue até julgamento, onde é então resolvido.
raiz liberal, de um mecanismo maximalista Em muitas situações tal não sucede porque as
que tem oficialmente o monopólio da resolu- partes desistem ou chegam a um acordo, pro-
ção dos litígios e que dispõe de poderes totais movido ou não pelo próprio juiz. Nalguns casos
para impor a sua decisão. Daí que privilegie tal promoção é mesmo obrigatória. Na maioria
um estilo de decisões de soma-zero, sem que deles trata-se de uma estratégia que tem vindo
Sociologia crítica da justiça 189

a ser crescentemente utilizada pelos magistra- Conclusão


dos com o objectivo de aliviar a sobrecarga de Neste capítulo procuro determinar o lugar
trabalho ou o bloqueamento do tribunal. Ga- dos tribunais na sociedade e no Estado moder-
lanter e outros têm chamado a atenção para o nos e sua evolução nas diferentes fases do de-
papel de mediador ou de arbítrio que o juiz tem senvolvimento capitalista. A contribuição dos
vindo crescentemente a assumir e que exerce à tribunais para a legitimação do Estado moder-
margem das normas processuais que suposta- no foi sempre complexa — tendo em mente as
mente devem regular a sua actuação (Galanter, diferentes funções dos tribunais: instrumen-
1984, 1988; Rohl, 1983). Se esta actividade de tais, políticas e simbólicas — e problemática,
mediação vem muitas vezes ao encontro dos na medida em que a própria legitimidade dos
desejos das partes, noutras vezes é-lhes suge- tribunais é questionada quando a actividade
rida pelo magistrado com uma dose maior ou judicial colide com a de outros órgãos sobera-
menor de imposição. nos. Apesar da situação ser muito distinta nos
Verdadeiramente, a ponta da pirâmide é países centrais, periféricos e semiperiféricos,
constituída pelos litígios que são resolvidos assistimos diariamente a um incremento do
por julgamento, negligenciando a diminuta protagonismo político dos tribunais. A judicia-
percentagem dos litígios que só são resolvidos lização da política está a produzir a politização
nas instâncias de recurso. Esta ponta varia de dos tribunais. Os factores que explicam estas
sociedade para sociedade. Regras processuais mudanças são analisados em outro lugar36. Os
e culturas jurídicas, judiciárias e advocatícias factores globais interagem com condições que
diferentes fazem com que seja diferente de so- variam de país para país e dos quais distingo
ciedade para sociedade a percentagem de ac- dois: a cultura jurídica dominante e o lugar
ções que são decididas por julgamento. Há sis- específico dos tribunais na paisagem muito
temas judiciários que incentivam e outros que mais ampla dos mecanismos de resolução de
desincentivam os julgamentos, e, em qualquer litígios, formais e informais, oficiais e não-
dos casos, podem fazê-lo, como já deixámos -oficiais, existentes na sociedade. Este lugar é
sugerido, por meios formais ou informais, ofi-
ciais ou não oficiais.
36 Ver Santos, 2009: 454-508.
190 Boaventura de Sousa Santos

muito distinto nos países centrais e nos países Bartolomei, M. L. 1994 Gross and Massive
periféricos. Uma ilustração deste lugar dos Violations of Human Rights in Argentina
tribunais num país periférico, Moçambique, é 1976-1983: An Analysis of the Procedure
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O local, o nacional e o global*

Introdução o espaço-tempo mais central do direito duran-


te os últimos duzentos anos, particularmente
D e um ponto de vista sociológico, e contra
o que a teoria política liberal faz supor,
as sociedades contemporâneas são jurídica
nos países centrais do sistema mundial. Com o
positivismo jurídico esta centralidade socioló-
e judicialmente plurais. Nelas circulam não gica (mais ou menos intensa) foi transformada
um, mas vários sistemas jurídicos e judiciais. numa concepção político-ideológica que con-
O facto de apenas um deles ser reconhecido verteu o Estado na fonte única e exclusiva do
oficialmente como tal afecta naturalmente o direito. A imposição desta ideologia de “cen-
modo como os outros sistemas operam nas tralismo jurídico”, como foi chamada por Gri-
sociedades, mas não impede que esta opera- ffiths, é um legado das revoluções burguesas e
ção tenha lugar. Esta relativa desvinculação da hegemonia liberal que fortaleceram o vín-
do direito em relação ao Estado significa que culo e a equiparação entre o direito e o direito
o Estado-Nação, longe de ser a única escala estatal, entendido como ordem uniforme para
natural do direito, é uma entre outras. Não todos e administrado por instituições estatais.
obstante, o Estado-Nação tem sido a escala e As demais ordens jurídicas foram considera-
das “inferiores” (desde as ordenações da Igre-
ja até às da família, associações voluntárias,
* Extraído de Santos, B. de Sousa 2009 “O pluralis- organizações económicas, etc.) e, portanto,
mo jurídico e as escalas do direito: o local, o nacional
e o global”, tradução portuguesa de excertos do Ca-
enquadrados hierarquicamente como instân-
pítulo 2 do livro Sociología jurídica crítica (Madrid: cias subordinadas ao direito e ao aparato insti-
Trotta) pp. 52-63. tucional do Estado (Griffiths, 1986: 3).
198 Boaventura de Sousa Santos

A centralidade do Estado-Nação só foi pos- Esta concepção do campo jurídico significa


sível porque as outras escalas, o local e o glo- que cada acção sócio-jurídica está enquadrada
bal, foram formalmente declaradas como não por três escalas, sendo uma delas a dominante
existentes pela teoria política liberal. Neste e desse modo a que confere o perfil geral da
capítulo, teorizo brevemente sobre estas esca- acção. A acção sócio-jurídica não se pode com-
las e a minha intenção é tríplice. Em primei- preender na sua totalidade se não forem toma-
ro lugar, trato de demonstrar que o campo do das em consideração as outras escalas presen-
direito nas sociedades contemporâneas e no tes em qualquer outra forma, ainda que esta
sistema mundial na sua totalidade é um ter- seja recessiva, e suas articulações com a escala
reno muito mais complexo e rico do que foi dominante. Neste capítulo, apresento alguns
assumido pela teoria política liberal. Em se- estudos empíricos que ilustram este conceito
gundo lugar, proponho-me demonstrar que um sociológico do campo jurídico.
campo jurídico assim é uma constelação de
diversas legalidades (e ilegalidades) que ope- O pluralismo jurídico
ram em escalas locais, nacionais e globais. Por
O conceito de direito
último, defendo que concebido desta forma, o
direito possui tanto um potencial regulador e A concepção sociológica do campo jurídico
mesmo repressivo como um potencial eman- que aqui se apresenta exige um conceito de direi-
cipador, sendo este último muito maior que do to suficientemente amplo e flexível para captu-
que o modelo de mudança normal jamais havia rar as dinâmicas sócio-jurídicas nas suas muito
postulado. A forma como o potencial do direi- diversas estruturas de tempo e espaço. O concei-
to evolui, seja no sentido da regulação ou da to de direito proposto por parte da teoria política
emancipação, não tem nada a ver com a auto- liberal — a equação entre a Nação, o Estado e
nomia ou reflexividade própria do direito, mas o direito — elaborado pelo positivismo jurídico
com a mobilização política das forças sociais dos séculos XIX e XX é demasiado redutor para
em competição1. os nossos propósitos porque reconhece apenas
uma das escalas: a nacional. A supremacia da
escala do Estado-Nação na análise sócio-jurídica
não só contribuiu para o estreitamento do con-
1 Sobre este tema ver Santos, 2000.
O pluralismo jurídico e as escalas do direito: O local, o nacional e o global 199

ceito de direito ao vinculá-lo à autoridade do ção que gera com exclusividade o que deve ser
Estado, mas também impregnou certas concep- considerado como direito.
ções de pluralismo jurídico com uma ideologia Nesse sentido, também o pluralismo jurídico
de centralismo estatal. Este foi o caso da imposi- pode ser uma das formas mediante as quais se
ção colonial do direito europeu. Este direito, en- manifesta a ideologia do centralismo jurídico.
quanto ordem estatal, não era nem empírica nem Essa concepção de pluralismo jurídico é, hoje
historicamente o único vigente nos territórios em dia, um dos principais legados que a ex-
coloniais. Contudo, o pluralismo jurídico utiliza- pansão europeia deixou aos sistemas jurídicos
do como técnica de governo permitiu o exercício nacionais não europeus. Desta forma, o pro-
da soberania colonial sobre os diferentes grupos cesso de construção nacional nas sociedades
(étnicos, religiosos, nacionais, geográficos, etc.), que se libertaram do colonialismo está também
reconhecendo os direitos pré-coloniais para ma- forjado pela ideologia da centralidade e unida-
nipulá-los, subordiná-los e colocá-los ao serviço de do Estado-Nação, isto é, a crença de que a
do projecto colonial. Por isto, Griffiths dá a esta construção do Estado moderno exige a homo-
concepção o nome de “pluralismo jurídico em geneização das diferenças sociais e territoriais
sentido débil”2, dado que se trata de um esque- (Griffiths, 1986: 5-8). No meu texto sobre o Es-
ma particular num sistema normativo altamente tado heterogéneo e o pluralismo jurídico em
centralista. O reconhecimento dos direitos tra- Moçambique ao abordar o pluralismo jurídico
dicionais por parte do direito colonial europeu em Moçambique ilustro tanto o uso colonial do
implica uma noção do direito que, em última ins- pluralismo jurídico como o legado do centralis-
tância, se sustenta numa única fonte de valida- mo jurídico. A primeira situação ocorreu nas
primeiras décadas do século XX, com a integra-
ção das autoridades tradicionais na administra-
2 Em contraste com este pluralismo em sentido dé-
bil, Griffiths define o “pluralismo jurídico em sentido ção da então colónia. A segunda teve lugar de-
forte” como uma concepção analítica que capte o plu- pois da independência (1975), quando o desejo
ralismo como facto, como estado de coisas empírico. de construir uma cultura nacional e um Estado
Com esse fim, opta pela concepção de “campo social moderno que estivesse acima das etnias levou
semi-autónomo” de Sally Falk Moore e define o direi-
o partido governante a adoptar uma posição
to como uma auto-regulação de cada campo social
(Moore, 1978). hostil frente às autoridades tradicionais.
200 Boaventura de Sousa Santos

Numa revisão da bibliografia sobre o tema da dades múltiplas entrelaçadas. Este último, por-
pluralidade de ordens jurídicas, Sally Merry dis- tanto, tem maiores dificuldades para estabelecer
tinguiu dois períodos no debate sobre o tema: (1) a fronteira entre o jurídico o não jurídico, e corre
o pluralismo jurídico clássico e (2) o novo plu- inclusivamente o risco de classificar como direi-
ralismo jurídico3. O pluralismo jurídico clássico to qualquer tipo de controlo social (Merry, 1988:
refere-se às investigações sobre as sociedades 872-874). Daí que o primeiro desafio de qualquer
coloniais e pós-coloniais e abarca, portanto, as estudo sobre a pluralidade jurídica seja a defini-
situações que Griffiths classifica como pluralis- ção de direito. Actualmente, com o alargamento
mo jurídico em sentido débil, bem como outras do âmbito da análise do pluralismo jurídico, esta
análises das intersecções entre o direito indígena tarefa torna-se ainda mais árdua.
e o direito europeu. O novo pluralismo jurídico, Como expliquei em outro lugar4, essa neces-
por seu lado, refere-se à aplicação do conceito a sidade de revisão do conceito de direito à luz
sociedades não colonizadas particularmente nos do novo pluralismo jurídico também pode ser
países industrializados. Este tipo de pluralismo explicada pelas transformações que sofreu a
promove uma mudança de perspectiva: a rela- divisão do trabalho científico entre a sociolo-
ção entre o sistema jurídico oficial e as outras gia e a antropologia a partir da segunda metade
ordens que se articulam com ele deixa de ser vis- do século XX. De maneira geral, a sociologia e
ta como algo apartado ou distinto e é abordada a antropologia do direito repartiam o trabalho
como uma relação mais complexa e interactiva, científico de maneira tal que a primeira se de-
na qual a pluralidade jurídica é vista como parte dicava ao estudo das sociedades industrializa-
do campo social. Enquanto no pluralismo jurí- das, enquanto a segunda se dedicava ao estudo
dico clássico a restrição da análise às relações das sociedades “primitivas”. O que ocorreu foi
colonizador-colonizado facilitava o estudo por que a partir da década de setenta, com a inde-
se tratar de ordens normativas distintas na sua pendência dos países colonizados, ampliaram-
estrutura conceptual, o novo pluralismo jurídico -se as fronteiras do campo de conhecimento de
amplia o campo de análise para perceber legali- ambas as disciplinas. Deste modo, a sociologia

3 Como se verá mais adiante, junto um terceiro perí-


odo à tipologia de Merry. 4 Ver Santos, 2014: 27-101.
O pluralismo jurídico e as escalas do direito: O local, o nacional e o global 201

passou a dedicar-se ao estudo das sociedades o conceito de pluralismo jurídico dá lugar a dois
“subdesenvolvidas”, do Terceiro Mundo, e a an- problemas ainda não resolvidos. Por um lado, as
tropologia voltou a sua atenção também para definições de direito dos pluralistas jurídicos so-
as sociedades industrializadas. Enquanto que a frem de uma incapacidade crónica para diferen-
sociologia, por se ter concentrado inicialmente ciar o direito da vida social e, mais concretamen-
no estudo destas últimas, tendeu a absorver os te, para distinguir as normas jurídicas das normas
conceitos da ciência jurídica, a antropologia, sociais. Por outro lado, não existe um consenso
ao voltar-se para o estudo dessas sociedades, sobre uma definição de direito que possa ser usa-
viu-se na necessidade de formular um conceito da pelos investigadores do tema. Para Tamanaha,
próprio de direito. Os antropólogos antes cos- estes problemas provocam dificuldades na reco-
tumavam ocupar-se de sociedades sem ciência lha de dados e observações cumulativas, além de
jurídica e, dada a distância entre as ditas so- darem lugar a categorias menos refinadas e redu-
ciedades e a regulação das sociedades indus- zirem as possibilidades de uma análise rigorosa
trializadas, os conceitos da ciência jurídica (Tamanaha, 2000: 298-300 e 302).
metropolitana não tinham sentido para os seus Segundo este autor, os pluralistas jurídicos
propósitos analíticos. estão de acordo na seguinte proposição negati-
Seguindo a literatura antropológica jurídica va: nem todos os fenómenos relacionados com
e a filosofia do direito antipositivista de inícios o direito, nem todos os fenómenos similares ao
do século XIX, concebo o direito com um cor- direito, têm origem no poder estatal. Desta afir-
po de procedimentos regularizados e standards mação concluem o carácter jurídico de todos os
normativos que se considera exigível — ou seja, demais tipos de ordens normativas não vincula-
susceptível de ser imposto por uma autoridade das ao Estado. O alcance destas ordens, amplia-
judicial — num grupo determinado e que con- do assim de forma indiscriminada, pode levar a
tribui para a criação, prevenção e resolução de uma situação de indefinição na qual não se sabe
disputas através de discursos argumentativos quando se deixa de falar de direito e se começa
unidos à ameaça da força. a falar da vida social em geral5.
As críticas ao pluralismo jurídico centram-
-se no conceito de direito subjacente à ideia de
pluralismo. Para Brian Tamanaha, por exemplo, 5 Ver Santos, 2014: 27-101.
202 Boaventura de Sousa Santos

Referindo-se especificamente à minha defi- aceites. A retórica como uma componente es-
nição de direito, Tamanaha critica-a com vários trutural do direito está presente, por exemplo,
argumentos. Em primeiro lugar, é uma defini- em práticas jurídicas como o acordo amistoso
ção essencialista, enquanto especifica o que de um litígio, mediação, conciliação, justiça em
acredita serem os traços essenciais do direito, equidade, etc. A burocracia é uma forma de co-
e portanto, toda a prática social a que faltem municação e uma estratégia de tomada de deci-
essas características não poderia ser cataloga- são. Baseia-se na imposição autoritária através
da como direito. Em segundo lugar, é funciona- da mobilização do potencial demonstrativo do
lista porque se baseia na ideia de que a função conhecimento profissional, das regras formais
do direito é manter a ordem social de um grupo gerais, e dos procedimentos hierarquicamente
através da aplicação de normas e a resolução organizados. A burocracia é a componente do-
de litígios. A minha resposta às objecções de minante do direito estatal e está presente em
Tamanaha ficará mais clara após a exposição práticas jurídicas como a adjudicação de casos
de dois elementos essenciais da minha defini- pelos tribunais (jogo de soma zero). Finalmen-
ção de pluralismo jurídico, isto é, os compo- te, a violência é uma forma de comunicação
nentes e espaços estruturais do direito. baseada no uso ou ameaça da força física. A
violência é utilizada pelos actores governamen-
Os componentes e espaços tais — por exemplo, a polícia — para impor o
estruturais do direito direito estatal ou pelos grupos ilegais — por
exemplo, pelas máfias — para impor o código
Considero que são três os componentes es-
que regula as suas actividades.
truturais do direito: a retórica, a burocracia e
Estes componentes estruturais não são enti-
a violência. A retórica não é apenas um tipo
dades fixas; variam internamente e nas suas ar-
de conhecimento, mas também uma forma de
ticulações recíprocas. Os campos jurídicos são
comunicação e uma estratégia de tomada de
constelações de retórica, burocracia e violên-
decisão. Baseia-se na produção de persuasão
cia. Distinguem-se pelas diferentes articulações
e de adesão voluntária através da mobilização
da retórica, burocracia e violência que os carac-
do potencial argumentativo de sequências e
teriza. Contudo, um campo jurídico complexo,
artefactos verbais e não verbais, socialmente
como o direito estatal moderno, pode abarcar
O pluralismo jurídico e as escalas do direito: O local, o nacional e o global 203

diferentes articulações em distintos sub-cam- últimos duzentos anos) orientou-se para uma
pos. Por exemplo, no direito penal, a constela- retracção gradual da retórica e uma expansão
ção jurídica pode estar dominada pela violência gradual da burocracia e da violência. O facto
e pela burocracia, no direito administrativo pela da violência ter crescido ao ritmo da burocra-
burocracia e no direito de família pela retórica. cia tem contribuído para ofuscar o carácter
Com efeito, a plasticidade do direito estatal mo- violento do campo do direito estatal. Por muito
derno é possível sobretudo porque abarca uma complexos e internamente diferenciados que
diversidade de articulações estruturais. O fac- sejam, os campos jurídicos globais analisados
to de comparar os campos jurídicos quanto às no Estado heterogéneo e o pluralismo jurídico
diferentes articulações dos componentes estru- em Moçambique e em Santos, 2009: 290-453 —
turais que constituem cada campo pode servir partindo da lex mercatoria ao direito interna-
para iluminar a análise sociológica do direito. cional dos povos indígenas — parecem apon-
Para contribuir para esta análise comparativo tar para novas configurações estruturais. Ainda
sócio-jurídica, distingo três grandes tipos de ar- que se caracterizem, em geral, por terem níveis
ticulação entre a retórica, a burocracia e a vio- baixos de burocracia, estes combinam-se em
lência: a covariação, a combinação geopolítica alguns casos com elevados níveis de retórica
e a interpenetração estrutural. e baixos níveis de violência, e em outros casos,
A covariação faz referência à correlação com altos níveis de violência e baixos níveis
quantitativa entre os componentes estruturais de retórica. Os baixos níveis de burocracia
dos diferentes campos jurídicos. Em O direi- nos campos jurídicos globais explicam-se pelo
to dos oprimidos: a construção e reprodução facto da multitude de instituições do Estado-
do direito em Pasárgada descrevo um campo -Nação não terem homólogos ao nível global ou
jurídico — o direito de Pasárgada, uma favela inter-estatal. O crescimento simultâneo da bu-
brasileira — onde a retórica é a componente rocracia e da violência, que até épocas recentes
dominante, enquanto a burocracia e a violência caracterizava a escala nacional do campo jurí-
são ambas recessivas. Aqui dá-se um contraste dico, parece desta forma ser um processo que
total com o direito estatal, onde a burocracia e está a ocorrer em todas as escalas do direito.
a violência predominam em detrimento da re- Não obstante, como assinalou Baxi (2002), a
tórica. Na realidade, a tendência secular (dos “guerra global contra o terrorismo” lançada pe-
204 Boaventura de Sousa Santos

los EUA após os ataques do 11 de setembro de A combinação geopolítica é uma forma de


2002 aumentou drasticamente o uso da violên- articulação centrada na distribuição interna da
cia unilateral como meio para a resolução de retórica, a burocracia e a violência de um de-
um conflito global. A recusa concomitante dos terminado campo jurídico. Enquanto a covaria-
EUA em juntar-se ao Tribunal Penal Interna- ção faz referência a pautas de articulação entre
cional — isto é, precisamente uma instituição componentes estruturais em geral, a combina-
que encarna um sistema penal internacional ção geopolítica centra-se na articulação entre
baseado na burocracia e na retórica em lugar diferentes pautas de um determinado campo
da violência unilateral — recalca ainda mais a jurídico. As diferentes articulações geram dife-
emergência da violência como uma componen- rentes formas de dominação política. Segundo
te estrutural do campo jurídico global. seja o componente que domine una articulação
Em outros textos6 sugiro como hipóteses concreta, teremos uma dominação política ba-
gerais as seguintes relações: quanto mais alto seada ou na adesão voluntária por persuasão
seja o nível de institucionalização burocrática ou convicção, ou em estratégias demonstra-
da produção jurídica menor será o espaço retó- tivas que levem a imposições autoritárias, ou
rico do discurso jurídico, e vice-versa; e quan- finalmente, no exercício violento do poder.
to mais poderosos sejam os instrumentos de Nos campos jurídicos complexos podem en-
violência ao serviço da produção jurídica mais contrar-se diferentes formas de dominação nas
pequeno será o espaço retórico do discurso distintas áreas de acção político-jurídica. Em
jurídico, e vice-versa. Com respeito à primeira outras ocasiões pude analisar o “movimento”
correlação, a violência pode operar como uma para “a informalização da administração da
variável interveniente nas relações entre a bu- justiça” dos avançados anos setenta e oitenta
rocracia e a retórica, em cujo caso os baixos do século passado neste sentido, defendendo
níveis de burocracia podem combinar-se com que o aumento da retórica — e a diminuição
os baixos níveis de retórica se os níveis de vio- recíproca da burocracia e da violência — nas
lência são altos. áreas jurídicas seleccionadas para a informali-
zação apontaram para uma mudança na domi-
nação política. No entanto, esta mudança de-
6 Ver O direito dos oprimidos: a construção e repro-
dução do direito em Pasárgada e Santos, 2009: 454-508. veria avaliar-se geopoliticamente em relação a
O pluralismo jurídico e as escalas do direito: O local, o nacional e o global 205

outras áreas jurídicas — como o direito penal, e por conseguinte a cultura jurídica europeia,
o direito laboral e o direito do bem-estar social foi predominantemente oral. A partir de então,
— nas quais pode identificar-se um aumento da a cultura escrita expandiu-se gradualmente e
violência ou da violência junto à burocracia em a cultura oral entrou em declínio. Mas, até ao
detrimento da retórica (Santos, 1980: 379-397). século XVIII a estrutura da cultura escrita man-
A terceira grande classe de articulação en- teve-se em processo de consolidação e perma-
tre a retórica, a burocracia e a violência é a neceu permeada pela lógica interna da cultura
interpenetração estrutural. Este é o tipo de oral. Por outras palavras, nesse período es-
articulação mais complexo porque consiste crevíamos como falávamos; isto mesmo pode
na presença e reprodução de um determinado ser detectado na escrita jurídica da época. Na
componente dominante dentro de um domi- segunda fase, desde meados século XVIII até
nado. A sua complexidade radica não só na às primeiras décadas do século passado, a pa-
suposição da análise de múltiplos processos lavra escrita dominou a nossa cultura. Então a
qualitativos, mas também no facto, de apenas rádio e os meios de comunicação audiovisual
ser inequivocamente discutível em períodos redescobriram o som das palavras e entrámos
históricos longos. As relações entre a cultura num terceiro período: um período de oralidade
oral e a cultura escrita fornecem uma ilustra- secundária. Mas esta reoralização da cultura é
ção. Estas duas formas de produção cultu- diferente da cultura oral anterior, uma vez que
ral têm diferentes características estruturais a estrutura da cultura escrita permeia e con-
(Ong, 1971; 1977). Por exemplo, a cultura oral tamina a nova oralidade. Por outras palavras,
é centrada na conservação do conhecimento, falamos como escrevemos. Se pensarmos no
enquanto a cultura escrita é centrada na ino- Estado moderno neste contexto, a minha tese
vação. A cultura oral é colectivizada, enquan- é que a retórica não só se reduz quantitativa-
to a cultura escrita permite a individualização. mente mas que a burocracia e a violência domi-
A unidade básica da cultura oral é a fórmula, nantes também a “contaminam” ou “infiltram”,
enquanto a unidade básica da cultura escrita interna e qualitativamente. Na minha análise
é a palavra. Se olharmos a história da cultura anteriormente assinalei sobre o movimento de
moderna à luz destas distinções, torna-se cla- justiça informal e com respeito à burocracia,
ro que, até ao século XV, a cultura europeia, analisei os tipos de argumentos que tendiam a
206 Boaventura de Sousa Santos

ser mais persuasivos nos ambientes informais produzem diferentes tipos de direito e, portanto,
para poder ver se, por exemplo, os argumen- de pluralismo jurídico. Eles são: o espaço-tem-
tos e modos de raciocinar que dependiam da po doméstico, o espaço-tempo da produção, o
lógica burocrática e do discurso se estavam a espaço-tempo do mercado, o espaço-tempo da
desenvolver num ambiente não burocrático. O cidadania, o espaço-tempo da comunidade e
objectivo era descobrir até que ponto a buro- o espaço-tempo mundial7. Em cada um destes
cracia (e possivelmente também a violência) se espaço-tempos estruturais, entendo o direito
estava a expandir sob a forma de retórica nas não como um sistema autónomo e fechado,
reformas dirigidas à informalização da justiça mas como uma reprodução da legalidade sob a
(Santos, 1980: 387). forma de constelações jurídicas de cujas articu-
Os elementos estruturais do direito nem lações podem resultar normatividades entrela-
sempre são percebidos ou analisados nas suas çadas. Neste sentido, os espaços-tempo estrutu-
complexas inter-relações porque a centralida- rais não tem fronteiras rigidamente definidas e
de do Estado tende a minorar o uso da violên- o contacto entre as diferentes formas de direito
cia e da retórica e elevar o direito enquanto de cada um deles dá lugar a uma hibridação ju-
produto burocrático, oficial e público destina- rídica, ou seja, a uma constelação de diferentes
do ao controlo da organização da sociedade concepções e práticas do direito. Por exemplo, o
civil e das relações privadas, em detrimento do direito de família oficial atravessa a articulação
direito “não oficial”. Na realidade, a crença na entre o direito do espaço-tempo da cidadania e
exclusividade da produção jurídica estatal re- o espaço-tempo doméstico. De forma similar, a
pousa em certas dicotomias: público-privado, articulação entre o direito do espaço-tempo da
Estado-sociedade civil, oficial/não oficial que,
no fundo, contribuem para despolitizar os res-
7 A minha teorização dos espaços estruturais faz
tantes domínios da vida social e, assim, ocultar parte de um esquema conceptual mais complexo em
o facto de que o poder e o direito se reprodu- que explico os modos de produção de poder, do di-
zem em muitos outros espaços. reito e do sentido comum nas sociedades capitalis-
Afirmo a existência de seis espaços-tempo tas. Aqui são abordados de forma simplificada apenas
para explicar como compõem a minha concepção do
estruturais em que as diferentes articulações
pluralismo jurídico. Para mais detalhes, ver Santos,
possíveis entre retórica, burocracia e violência 2000: 257-284.
O pluralismo jurídico e as escalas do direito: O local, o nacional e o global 207

cidadania, o direito do espaço-tempo da produ- resolução de litígios representam funções cen-


ção e o direito do espaço-tempo do mercado trais num sistema jurídico, o direito também
gera o direito dos contratos, o direito laboral e o cumpre uma ampla gama de funções. Algumas
direito do consumo. delas potenciam ao máximo o uso da violência
A defesa de um pluralismo jurídico cujas e servem, por exemplo, para a vingança. Outras
ordens normativas resultam apenas de conste- levam à utilização máxima da retórica e contri-
lações diferentes de espaço-tempos estruturais buem para a legitimação das relações de poder
exige um direito capaz de desempenhar uma ou para a sua transformação. Na realidade, ao
variedade de funções. Ao criticar o funciona- afirmar o funcionalismo da minha concepção
lismo presente em algumas definições de di- do direito, é Tamanaha que não logra ver outra
reito, Tamanaha adverte que um conceito de função para a aplicação das normas e para a
direito fundado na confiança de que a ordem resolução de litígios que não seja a preserva-
jurídica desempenha o papel de fonte primária ção da ordem social. Em Sociologia Crítica da
da ordem social apresenta uma dupla falha: (1) Justiça, ao analisar o sistema judicial, mostro
pressupõe que o direito joga um papel central que, no funcionamento quotidiano dos julga-
na manutenção da ordem social; e (2) exclui dos — o lugar da aplicação das normas e da
outras funções e efeitos possíveis do direito. O resolução de litígios por excelência — se cum-
direito pode ser usado para cumprir outras fun- prem três tipos de funções: instrumentais, sim-
ções com propósitos tais como habilitar, facili- bólicas e políticas.
tar, conferir estatuto, definir, legitimar, conferir Passando a outra das críticas de Tamanaha,
poder, ou ser usado como instrumento de vin- à advertência que faz contra o essencialismo
gança e reivindicação, entre outras (Tamanaha, dos conceitos do direito admitidos por muitos
2000: 301 e 302). pluralistas jurídicos contraponho o perigo de
Na minha definição do direito, a possibilida- trivialização que está presente na defesa de
de de que a retórica, a burocracia e a violên- uma concepção não essencialista do direito.
cia covariem, se combinem e se interpenetrem Ainda que algumas concepções sejam essen-
(sendo dominantes ou recessivos em diferentes cialistas por enunciar as características do di-
campos jurídicos) implica necessariamente a reito, ao mesmo tempo elas especificam quais
suposição de que, apesar do controlo social e a as práticas sociais podem receber o qualificati-
208 Boaventura de Sousa Santos

vo de “jurídico” e, assim, evitar a falácia da tri- Bibliografia


vialização: se o direito está em todos as partes, Baxi, U. 2002 “Operation ‘Enduring Freedom’:
não está em parte alguma. Na minha concep- Towards a New International Law and
ção do direito, ainda que, por um lado, rejeite Order?” in Beyond Law, Nº 25, pp. 1-15.
a trivialização ao enunciar os espaços estrutu- Griffiths, J. 1986 “What is Legal Pluralism?” in
rais em que se reproduz o direito, por outro Journal of Legal Pluralism, Nº 24, pp. 1-56.
lado ofereço uma concepção suficientemente Merry, S. 1988 “Legal Pluralism” in Law and
ampla como para que sirva como ferramenta Society Review, Nº 22, pp. 869-896.
analítica para estudar o fenómeno do plura- Moore, S. F. 2000 (1978) Law as Process: An
lismo jurídico nos seus diferentes contextos. Antroplogical Approach (Hamburgo: LIT).
Nesse sentido, concordo com Merry quando Ong, W. 1971 Rhetoric, Romance and
afirma que definir a essência do direito ou do Technology (Ithaca: Cornell University
costume é menos útil que situar estes concei- Press).
tos no conjunto das relações entre as ordens Ong, W. 1977 Interfaces of the Word: Studies
jurídicas particulares nos contextos históricos in the Evolution of Consciousness and
específicos (Merry, 1988: 889). Ao contrário da Culture (Ithaca: Cornell University Press).
impressão que dão os críticos do pluralismo Santos, B. de Sousa 1980 “Law and
jurídico, a busca de uma concepção única e Community: The Changing Nature of State
transcultural de direito que fundamente e dê Power in Late Capitalism” in International
rigor à análise do pluralismo jurídico é inútil, Journal of the Sociology of Law, Nº 8, pp.
porque em cada sociedade as articulações en- 379-397.
tre as ordens jurídicas assumem configurações Santos, B. de Sousa 2000 A Crítica da Razão
distintas ainda que se tomem como ponto de Indolente: Contra o Desperdício da
partida dicotomias fixas tão caras ao pensa- Experiência (Porto: Afrontamento).
mento jurídico moderno como formal/infor- Santos, B. de Sousa 2009 Sociología Jurídica
mal e oficial/extra oficial. Crítica. Para un nuevo sentido común en
el derecho (Madrid: Editorial Trotta).
O pluralismo jurídico e as escalas do direito: O local, o nacional e o global 209

Santos, B. de Sousa 2014 O direito dos


oprimidos (Coimbra: Almedina).
Tamanaha, B. 2000 “A Non-Essentialist Version
of Legal Pluralism” in Journal of Law and
Society, V. 27, Nº 2, pp. 296-321.
Direitos humanos:
Uma hegemonia frágil*

A hegemonia global dos direitos humanos


como linguagem de dignidade humana é
hoje incontestável1. No entanto, esta hegemo-
lavras, será a hegemonia de que goza hoje o dis-
curso dos direitos humanos o resultado de uma
vitória histórica ou, pelo contrário, de uma der-
nia convive com uma realidade perturbadora. rota histórica? Qualquer que seja a resposta
A grande maioria da população mundial não é dada a estas perguntas, a verdade é que, sendo
sujeito de direitos humanos. É objecto de dis- os direitos humanos a linguagem hegemónica
cursos de direitos humanos. Deve pois come- da dignidade humana, eles são incontornáveis,
çar por perguntar-se se os direitos humanos e os grupos sociais oprimidos não podem dei-
servem eficazmente a luta dos excluídos, dos xar de perguntar se os direitos humanos, mes-
explorados e dos discriminados ou se, pelo mo sendo parte da mesma hegemonia que con-
contrário, a tornam mais difícil. Por outras pa- solida e legitima a sua opressão, não poderão
ser usados para a subverter? Ou seja, poderão
os direitos humanos ser usados de modo con-
1 Referindo-se à difusão global do discurso dos direi-
tos humanos como gramática de transformação social tra-hegemónico? Em caso afirmativo, de que
no período pós-guerra fria, Goodale afirma que “a ge- modo? Estas duas perguntas conduzem a duas
ografia discursiva da transformação social sofreu uma outras. Por que há tanto sofrimento humano
mudança sísmica” (2013: 7). injusto que não é considerado uma violação
dos direitos humanos? Que outras linguagens
* Extraído de Santos, B. de Sousa 2013 “Direitos hu- de dignidade humana existem no mundo? E se
manos: Uma hegemonia frágil” in Se Deus fosse um ac-
existem, são ou não compatíveis com a lingua-
tivista dos direitos humanos (Coimbra: Almedina) pp.
13-27. gem dos direitos humanos?
212 Boaventura de Sousa Santos

A busca de uma concepção contra-hegemó- Comecemos por reconhecer que os direitos


nica dos direitos humanos deve começar por e o direito têm uma genealogia dupla na mo-
uma hermenêutica de suspeita em relação aos dernidade ocidental. Por um lado, uma genea-
direitos humanos tal como são convencional- logia abissal. Concebo as versões dominantes
mente entendidos e defendidos, isto é, em re- da modernidade ocidental como construídas
lação às conceções dos direitos humanos mais a partir de um pensamento abissal, um pensa-
diretamente vinculadas à sua matriz liberal mento que dividiu abissalmente o mundo entre
e ocidental2. A hermenêutica de suspeita que sociedades metropolitanas e coloniais (Santos,
proponho deve muito a Ernest Bloch, quando 2007b). Dividiu-o de tal modo que as realidades
este se interroga (1995 [1947]) sobre as razões e práticas existentes do lado de lá da linha, nas
pelas quais, a partir do século XVIII, o conceito colónias, não podiam pôr em causa a universa-
de utopia como medida de uma política eman- lidade das teorias e das práticas que vigoravam
cipadora foi sendo superado e substituído pelo na metrópole, do lado de cá da linha. E, nesse
conceito de direitos. Por que é que o conceito sentido, eram invisíveis. Ora enquanto discur-
de utopia teve menos êxito que o conceito de so de emancipação, os direitos humanos foram
direito e de direitos, como linguagem de eman- historicamente concebidos para vigorar ape-
cipação social3? nas do lado de cá da linha abissal, nas socie-
dades metropolitanas. Tenho vindo a defender
que esta linha abissal, que produz exclusões
2 A matriz liberal concebe os direitos humanos radicais, longe de ter sido eliminada com o fim
como direitos individuais e privilegia os direitos civis
do colonialismo histórico, continua sob outras
e políticos. Sobre esta matriz desenvolveram-se outras
conceções de direitos humanos, nomeadamente as de formas (neocolonialismo, racismo, xenofobia,
inspiração marxista ou socialista que reconhecem os permanente estado de excepção na relação
direitos coletivos e privilegiam os direitos económicos com alegados terroristas, trabalhadores imi-
e sociais. Sobre as diferentes conceções de direitos hu- grantes indocumentados, candidatos a asilo ou
manos ver Santos 1995: 250-378 e Santos, 2007a: 3-40.
3 Moyn (2010) considera os direitos humanos como
sendo a última utopia, a grande missão política que em alguns aspectos com as que tenho vindo a defender
emerge após o colapso de todas as outras. As suas aná- há cerca de duas décadas (Santos, 1995: 327-365). Ver
lises históricas sobre os direitos humanos convergem também Goodale (2009a).
Direitos humanos: Uma hegemonia frágil 213

mesmo cidadãos comuns vítimas de políticas tuem o senso comum dos direitos humanos
de austeridade ditados pelo capital financeiro). convencionais. Distingo quatro ilusões: a tele-
O direito internacional e as doutrinas conven- ologia, o triunfalismo, a descontextualização e
cionais dos direitos humanos têm sido usadas o monolitismo4.
como garantes dessa continuidade. A ilusão teleológica consiste em ler a histó-
Mas, por outro lado, o direito e os direitos ria da frente para trás. Partir do consenso que
têm uma genealogia revolucionária do lado de existe hoje sobre os direitos humanos e sobre o
cá da linha. A revolução americana e a revolu- bem incondicional que isso significa e ler a his-
ção francesa foram ambas feitas em nome da tória passada como um caminhar linearmente
lei e do direito. Ernest Bloch entende que a su- orientado para conduzir a este resultado. A es-
perioridade do conceito de direito tem muito colha dos percursores é crucial a este respeito.
a ver com o individualismo burguês, com a so- Nas palavras de Moyn: “estes são passados uti-
ciedade burguesa que estava a surgir nesse mo- lizáveis: a construção pós-facto dos percurso-
mento, e que, tendo ganho já hegemonia eco- res “ (2010: 12) Esta ilusão impede-nos de ver
nómica, lutava pela hegemonia política que se que o presente, tal como o passado, é contin-
consolidou com as revoluções francesa e ame- gente, que, em cada momento histórico, dife-
ricana. O conceito de lei e direito adequava-se rentes ideias estiveram em competição e que a
bem a este individualismo burguês emergente, vitória de uma delas, no caso os direitos huma-
que tanto a teoria liberal como o capitalismo ti- nos, é um resultado contingente que pode ser
nham por referência. É, pois, fácil ser-se levado explicado a posteriori, mas que não poderia
a pensar que a hegemonia de que hoje gozam ser deterministicamente previsto. A vitória his-
os direitos humanos tem raízes muito profun-
das, e que o caminho entre então e hoje foi um
4 Uma primeira formulação destas ilusões pode ver-
caminho linear de consagração dos direitos -se em Santos, 1995: 264-327. Estas ilusões constituem
humanos como princípios reguladores de uma um “regime de verdade” sendo legitimadas como uma
sociedade justa. Esta ideia de um consenso há teoria que não tem de submeter-se à negação pelas prá-
muito anunciado manifesta-se de várias formas ticas de direitos humanos que ocorrem em seu nome.
Este é também o argumento central de Goodale (2009a)
e cada uma delas assenta numa ilusão. Porque
que argumenta de modo convincente a importância da
largamente partilhadas, estas ilusões consti- abordagem antropológica para os direitos humanos.
214 Boaventura de Sousa Santos

tórica dos direitos humanos traduziu-se muitas vimentos de libertação nacional contra o colo-
vezes num ato de violenta reconfiguração his- nialismo do século XX, tal como os movimen-
tórica: as mesmas ações que, vistas da perspec- tos socialista e comunista, não invocaram a
tiva de outras conceções de dignidade humana, gramática dos direitos humanos para justificar
eram acções de opressão ou dominação, foram as suas causas e as suas lutas5. O facto de as
reconfiguradas como acções emancipatórias e outras gramáticas e linguagens de emancipa-
libertadoras, se levadas a cabo em nome dos ção social terem sido derrotadas pelos direitos
direitos humanos. humanos só poderá ser considerado inerente-
A segunda ilusão é o triunfalismo, a ideia de mente positivo se se mostrar que os direitos
que a vitória dos direitos humanos é um bem humanos têm um mérito, enquanto linguagem
humano incondicional. Assume que todas as de emancipação humana, que não se deduz
outras gramáticas de dignidade humana que apenas do facto de terem saído vencedores.
competiram com a dos direitos humanos eram Até que tal seja mostrado, o triunfo dos direitos
inerentemente inferiores em termos éticos ou humanos pode ser considerado, para uns, um
políticos. Esta noção darwiniana não toma em progresso, uma vitória histórica, e, para outros,
conta um aspeto decisivo da modernidade oci- um retrocesso, uma derrota histórica.
dental hegemónica, de facto, o seu verdadeiro Esta precaução ajuda-nos a enfrentar a ter-
génio histórico: o ter sempre sabido comple- ceira ilusão, a descontextualização. É geral-
mentar a força das ideias que servem os seus mente reconhecido que os direitos humanos,
interesses com a força bruta das armas que, como linguagem emancipatória, provêm do
estando supostamente ao serviço das ideias, é, Iluminismo do século XVIII, da revolução fran-
na prática, servida por elas. É, pois, necessário cesa e da revolução americana6. O que normal-
avaliar criticamente as razões da superioridade
ética e política dos direitos humanos. Os ideais
de libertação nacional — socialismo, comunis- 5 Este ponto é também mencionado por Moyn (2010:
89-90) que acrescenta que nem Gandhi, Sukarno ou
mo, revolução e nacionalismo — constituíram
Nasser viram a doutrina dos direitos humanos como
gramáticas alternativas de dignidade humana um instrumento de fortalecimento das lutas.
e, em determinados tempos e espaços, foram
6 Isto sem contar com os antecedentes da Renascen-
mesmo dominantes. Basta pensar que os mo- ça ou mesmo do medievalismo tardio.
Direitos humanos: Uma hegemonia frágil 215

mente não é referido é que, desde então até foi legitimada pelos invasores. O mesmo se po-
aos nossos dias, os direitos humanos foram deria dizer de Robespierre, que fomentou o ter-
usados, como discurso e como arma política, ror em nome do fervor beato e dos direitos hu-
em contextos muito distintos e com objectivos manos durante a revolução francesa8. Depois
contraditórios. No século XVIII, por exemplo, das revoluções de 1848, os direitos humanos
os direitos humanos eram parte integrante dos deixaram de ser parte do imaginário revolu-
processos revolucionários em curso, e foram cionário para passarem a ser hostis a qualquer
uma das suas linguagens. Mas também foram ideia de transformação revolucionária da so-
usados para legitimar práticas que considera- ciedade. Mas a mesma hipocrisia (dir-se-ia,
mos opressivas se não mesmo contra-revolu- constitutiva) de invocar os direitos humanos
cionárias. Quando Napoleão chega ao Egipto, para legitimar práticas que podem considerar-
em 1798, explicou assim as suas acções aos -se violação dos direitos humanos continuou
egípcios: “Povo do Egipto. Os nossos inimigos ao longo do último século e meio e é hoje talvez
vão dizer-vos que eu vim para destruir a vossa mais evidente do que nunca. Quando, a partir
religião. Não acrediteis neles. Dizei-lhes que de meados do século XIX, o discurso dos direi-
eu vim restaurar os vossos direitos, punir os tos humanos se separou da tradição revolucio-
usurpadores, e erguer a verdadeira devoção de nária, passou a ser concebido como uma gra-
Maomé”7. E foi assim que a invasão do Egipto mática despolitizada de transformação social,
uma espécie de anti-política. Os direitos huma-

7 “Proclamação de Napoleão aos Egípcios, 2 julho


1798”, apud Hurewitz (org.), 1975: 116. Vista da pers-
pectiva do “outro lado da linha”, do lado dos povos in- -Jabarti mostra em detalhe os erros gramaticais da Pro-
vadidos, a proclamação de Napoleão não enganou nin- clamação, escrita, segundo ele, em árabe corânico de
guém sobre os seus propósitos imperialistas. Eis como baixa qualidade e conclui: “Contudo é possível que não
o cronista egipcio Al-Jabarti, uma testemunha da inva- haja nenhuma inversão e que o verdadeiro significado
são, dissecta a Proclamação ponto por ponto: “Ele [Na- da frase seja ‘Eu tenho mais tropas e mais dinheiro que
poleão] prossegue então com algo ainda pior e diz (que os Mamelucos’… Assim, a sua frase ‘Eu sirvo a Deus’ é
Deus lhe traga a perdição!) ‘Eu sirvo mais a Deus que os apenas mais uma frase e mais uma mentira” (1993: 31).
Mamelucos…’. Não tenho dúvidas que se trata de uma 8 Para uma análise aprofundada sobre esta questão
mente transtornada e de um excesso de loucura…”. Al- veja-se Arendt, 1968 e 1971.
216 Boaventura de Sousa Santos

nos foram subsumidos no direito do Estado e o A quarta ilusão é o monolitismo. Debruço-


Estado assumiu o monopólio da produção do -me nesta ilusão com maior detalhe, tendo em
direito e de administração da justiça. Assim se vista o tema principal deste livro. Consiste em
explica que a revolução russa, ao contrário das negar ou minimizar as tensões e até mesmo as
revoluções francesa e americana, tenha sido contradições internas das teorias dos direitos
levada a cabo, não em nome do direito, mas humanos. Basta recordar que a declaração da
contra o direito (Santos, 1995: 104-107). Gra- revolução francesa dos direitos do homem é
dualmente, o discurso dominante dos direitos ambivalente ao falar de direitos do homem e
humanos passou a ser o da dignidade humana do cidadão. Desde o início, os direitos huma-
consonante com as políticas liberais, com o nos cultivam a ambiguidade de criar pertença
desenvolvimento capitalista e suas diferentes em duas grandes colectividades. Uma é a co-
metamorfoses (liberal, social-democrático, lectividade supostamente mais inclusiva a hu-
dependente, fordista, pós-fordista, fordista pe- manidade, daí os direitos humanos. A outra é
riférico, corporativo, estatal, neoliberal, etc.) uma colectividade muito mais restrita, a colec-
e com o colonialismo igualmente metamorfo- tividade dos cidadãos de um determinado Es-
seado (neocolonialismo, colonialismo interno, tado. Esta tensão tem desde então assombrado
racismo, trabalho análogo ao trabalho escravo, os direitos humanos. O objectivo de adoptar
xenofobia, islamofobia, políticas migratórias declarações internacionais e de regimes e ins-
repressivas etc.). Temos pois de ter em mente tituições internacionais de direitos humanos
que o mesmo discurso de direitos humanos sig- visava garantir mínimos de dignidade aos indi-
nificou coisas muito diferentes em diferentes víduos sempre e quando os direitos de perten-
contextos históricos e tanto legitimou práticas ça a uma colectividade política não existissem
revolucionárias como práticas contra-revolu- ou fossem violados. Ao longo dos últimos du-
cionárias. Hoje, nem podemos saber com cer- zentos anos, os direitos humanos foram sendo
teza se os direitos humanos do presente são incorporados nas constituições e nas práticas
uma herança das revoluções modernas ou das jurídico-políticas de muitos países e foram re-
ruínas dessas revoluções. Se têm por detrás de conceptualizados como direitos de cidadania,
si uma energia revolucionária de emancipação directamente garantidos pelo Estado e aplica-
ou uma energia contra-revolucionária. dos coercitivamente pelos tribunais: direitos
Direitos humanos: Uma hegemonia frágil 217

cívicos, políticos, sociais, económicos e cul- os trabalhadores imigrantes indocumentados,


turais. Mas a verdade é que a efectividade da descem ainda mais abaixo para a “comunida-
protecção ampla dos direitos de cidadania foi de” dos sub-humanos.
sempre precária na grande maioria dos países. A outra tensão que ilustra a natureza ilusória
E a evocação dos direitos humanos ocorreu do monolitismo é a tensão entre direitos indi-
sobretudo em situações de erosão ou violação viduais e colectivos. A Declaração Universal
particularmente grave dos direitos de cidada- dos Direitos Humanos das Nações Unidas, a
nia9. Os direitos humanos surgem como o pa- primeira grande declaração universal do últi-
tamar mais baixo de inclusão, um movimento mo século, a que se seguiriam depois muitas
descendente da comunidade mais densa de outras, reconhece apenas dois sujeitos jurídi-
cidadãos para a comunidade mais diluída da cos: o indivíduo e o Estado. Os povos são reco-
humanidade. Com o neoliberalismo e o seu nhecidos apenas na medida em que se tornam
ataque ao Estado como garante dos direitos, Estados. Deve salientar-se que quando a De-
em especial os direitos económicos e sociais, a claração foi adotada, existiam muitos povos,
comunidade dos cidadãos dilui-se ao ponto de nações e comunidades que não tinham Estado.
se tornar indistinguível da comunidade huma- Assim, do ponto de vista das epistemologias
na e dos direitos de cidadania, tão trivializados do Sul, a Declaração não pode deixar de ser
como direitos humanos. A prioridade concedi- considerada colonialista (Burke, 2010; Terret-
da por Arendt (1951) aos direitos de cidadania ta, 2012)11. Quando falamos de igualdade pe-
sobre os direitos humanos, antes prenhe de
significado, desliza para o vazio normativo10.
11 O monolitismo da Declaração Universal é bem
Neste processo, os imigrantes, em especial mais aparente que real mesmo dentro dos limites do
“mundo ocidental”. Basta ter em conta as diferenças de
interpretação tornadas públicas desde o início, no livro
9 É isso o que se passa hoje em muitos países da da UNESCO de 1948, sobre comentários e interpreta-
Europa atingidos pela crise financeira e económica da ções da Declaração (UNESCO, 1948). Os comentários
zona euro. de Jacques Maritain, Harold Laski, Teilhard de Chardin,
10 Muito antes de Arendt, em 1843, Marx referiu esta Benedetto Croce e Salvador Mandariaga à Declaração
ambiguidade entre direitos de cidadania e direitos hu- são particularmente elucidativos a este respeito. Se a
manos (1977). Declaração tinha muito pouco a ver com as realidades
218 Boaventura de Sousa Santos

rante a lei, devemos ter em mente que, quando regiões do mundo não eram iguais perante a lei
a Declaração foi escrita, indivíduos de vastas por estarem sujeitos à dominação coletiva, e
sob dominação coletiva os direitos individuais
não oferecem qualquer proteção. No tempo do
do mundo não-ocidental, mesmo no que respeita ao
“mundo ocidental” as normas que estabelecia estavam individualismo burguês e em plena vigência da
longe de ser verdades incontroversas. O comentário linha abissal, a Declaração tornava invisíveis as
amargo de Laski é revelador: “Se um documento deste exclusões do outro lado da linha abissal. Eram
tipo se destina a ter uma influência e significado dura- tempos em que o sexismo e o racismo eram
douros, é da maior importância recordar que as gran-
des declarações do passado são uma herança muito
parte do senso comum, a orientação sexual era
especial da civilização ocidental, que estão profunda- tabu, a dominação de classe uma questão in-
mente imbuídas na tradição da burguesia protestante, terna de cada país, e o colonialismo era ainda
que é em si um aspecto saliente da ascenção ao poder forte como agente histórico, apesar da inde-
da classe média e que, embora a expressão dessas de- pendência da India. Com o passar do tempo,
clarações seja universal na forma, as tentativas da sua
concretização raramente tiveram qualquer impacto
sexismo, o racismo, colonialismo, e outras for-
abaixo do nível da classe média. ‘A igualdade perante mas mais cruas da dominação de classe vieram
a lei’ não teve grande significado nas vidas da classe a ser reconhecidos como dando azo a violações
trabalhadora na maior parte das comunidades políti- dos direitos humanos. Em meados dos anos
cas, e menos ainda para os negros dos estados do Sul de 1960, as lutas anti-coloniais tornaram-se
dos Estados Unidos. A ‘liberdade de associação’ foi
conseguida pelos sindicatos na Grã Bretanha apenas parte da agenda das Nações Unidas. Contudo,
em 1871; em França, salvo um breve intervalo em 1848, tal como era entendida nesse tempo, a auto-
apenas em 1884; na Alemanha, apenas nos últimos anos -determinação dizia apenas respeito aos povos
da era de Bismark, e ainda assim parcialmente, e, de um sujeitos ao colonialismo europeu. Assim enten-
modo efectivo, nos Estados Unidos apenas com o Lei
dida, a auto-determinação deixou de fora mui-
Nacional das Relações Laborais em 1935; lei esta que se
encontra neste momento em risco no Congresso. Todos tos povos sujeitos a colonização não europeia e
os direitos proclamados nos grandes documentos deste colonização interna, sendo os povos indígenas
género são de facto afirmações de uma aspiração, cuja o exemplo mais dramático. Mais de trinta anos
satisfação se encontra limitada pela perspetiva da clas- teriam ainda de passar antes que o direito dos
se dominante de qualquer comunidade política sobre as
relações entre essas proclamações e os interesses que
povos indígenas à auto-determinação fosse re-
estão determinados em proteger” (1948: 65). conhecido nas Nações Unidas pela Declaração
Direitos humanos: Uma hegemonia frágil 219

dos Direitos dos Povos Indígenas, adoptada Por exemplo, podemos distinguir dois tipos de
pela Assembleia Geral em 200712. E antes dela, direitos colectivos, os primários e os deriva-
foram necessárias prolongadas negociações dos. Falamos de direitos coletivos derivados
para que a Organização Mundial do Trabalho quando, por exemplo, os trabalhadores se au-
aprovasse em 1989 a Convenção 169 sobre os to-organizam em sindicatos e conferem a estes
povos indígenas e tribais. Gradualmente estes o direito de representá-los nas negociações
documentos tornaram-se parte da legislação com os empregadores. Falamos de direitos
dos diferentes países. colectivos primários quando uma comunidade
Sendo que os direitos coletivos não fazem de indivíduos tem direitos para além dos direi-
parte do cânon original dos direitos humanos, tos da sua organização, ou renuncia aos seus
a tensão entre direitos individuais e coletivos direitos individuais a favor dos direitos da co-
resulta da luta histórica dos grupos sociais munidade. Estes direitos podem ser exercidos
que, sendo excluídos ou discriminados en- sob duas formas. Na sua grande maioria são
quanto grupo, não podem ser adequadamente exercidos individualmente, como quando um
protegidos pelos direitos humanos individuais. polícia shik usa o turbante, uma médica Islâ-
As lutas das mulheres, dos povos indígenas, mica usa o hijab, ou quando um membro de
afrodescendentes, vítimas do racismo, gays, uma casta inferior na Índia, um afrodescen-
lésbicas, e minorias religiosas marcam os úl- dente brasileiro ou indígena beneficia das ac-
timos cinquenta anos de reconhecimento de ções afirmativas promovidas pelo Estado. Mas
direitos colectivos, um reconhecimento sem- existem direitos que só podem ser exercidos
pre amplamente contestado e em constante colectivamente, como o direito à auto-deter-
risco de reversão. Não existe necessariamen- minação. Os direitos colectivos existem para
te uma contradição entre direitos individuais eliminar ou minorar a insegurança e a injustiça
e colectivos, mais que não seja pelo facto de suportadas pelos indivíduos que são discrimi-
existirem muitos tipos de direitos colectivos. nados como vítimas sistemáticas da opressão
apenas por serem o que são, e não por fazerem
o que fazem. Muito lentamente, os direitos co-
12 Disponível em <http://www.un.org/esa/socdev/
letivos têm-se tornado parte da agenda políti-
unpfii/documents/DRIPS_pt.pdf> acesso 18 março
de 2013. ca, quer nacional quer internacional. De qual-
220 Boaventura de Sousa Santos

quer maneira, a contradição ou tensão com as independentemente do contexto social, políti-


concepções mais individualistas de direitos co e cultural em que operam e dos diferentes
humanos estão sempre presentes13. regimes de direitos humanos existentes em
Ter presentes estas ilusões é crucial para diferentes regiões do mundo; no nosso tempo,
construir uma concepção e uma prática contra- os direitos humanos são a única gramática e
-hegemónicas de direitos humanos sobretudo linguagem de oposição disponível para con-
quando elas devem assentar num diálogo com frontar as “patologias do poder”; os violadores
outras conceções de dignidade humana e ou- dos direitos humanos, por muito horrendos
tras práticas em sua defesa. Para tornar mais que sejam os crimes por eles perpetrados, de-
claro o que tenho em mente, passo a definir vem ser punidos de acordo com os direitos
o que considero ser a versão hegemónica ou humanos; questionar os direitos humanos em
convencional dos direitos humanos. Conside- termos das suas supostas limitações culturais
ro um entendimento convencional dos direitos e políticas contribui para perpetuar os males
humanos como tendo as seguintes caracterís- que os direitos humanos visam combater; o
ticas14: os direitos são universalmente válidos fenómeno recorrente dos duplos critérios na
avaliação da observância dos direitos humanos
de modo algum compromete a validade univer-
13 Outra dimensão da ilusão do monolitismo é a ques- sal dos direitos humanos; partem de uma ideia
tão das premissas culturais ocidentais dos direitos hu- de dignidade humana que por sua vez assenta
manos e a busca por uma concepção intercultural de numa concepção de natureza humana como
direitos humanos. Neste livro, estas questões são abor-
sendo individual, auto-sustentada e qualitati-
dadas apenas no que respeita ao relacionamento entre
direitos humanos e teologia. Esta dimensão merece um vamente diferente da natureza não humana; a
tratamento mais detalhado em outros trabalhos, ver
Santos, 2007a. Ver também An-na’im, 1992; Eberhard,
2002; Merry, 2006; Goodale, 2009b. comum; mas, por outro lado, não é dominante no sen-
14 No sentido que aqui lhe atribuo, convencional sig- tido de resultar de uma esmagadora imposição coerci-
nifica menos que hegemónico e mais do que dominante. tiva (embora por vezes seja este o caso). Para muitas
Se considerarmos o mundo como sendo a “audiência pessoas em todo o mundo esta concepção ou está de-
relevante”, o entendimento dos direitos humanos aqui masiado enraizada para ser possível lutar contra ela ou
apresentado está longe de ser consensual ou de senso é demasiado distante para que valha a pena lutar por ela
Direitos humanos: Uma hegemonia frágil 221

liberdade religiosa só pode ser assegurada na portanto, a compreensão ocidental da univer-


medida em que a esfera pública esteja livre de salidade dos direitos humanos.
religião, a premissa do secularismo; o que con- A resposta convencional a esta questão é
ta como violação dos direitos humanos é defi- que tal diversidade só deve ser reconhecida na
nido pelas declarações universais, instituições medida em que não contradiga os direitos hu-
multilaterais (tribunais e comissões) e orga- manos universais. Postulando a universalidade
nizações não-governamentais (predominante- abstracta da concepção de dignidade humana
mente baseadas no Norte global);as violações subjacente aos direitos humanos, esta resposta
dos direitos humanos podem ser medidas ade- banaliza a perplexidade inerente à questão. O
quadamente de acordo com indicadores quan- facto de esta concepção ser baseada em pres-
titativos; o respeito pelos direitos humanos é supostos ocidentais é considerado irrelevante,
muito mais problemático no Sul global do que já que o postulado da universalidade faz com
no Norte Global. que a historicidade dos direitos humanos não
Os limites desta concepção de direitos hu- interfira com o seu estatuto ontológico15. Embo-
manos resultam evidentes das respostas que ra plenamente aceite pelo pensamento político
apresentam a uma das questões mais impor- hegemónico, especialmente no Norte Global,
tantes do nosso tempo. A perplexidade que ela esta resposta reduz o mundo ao entendimento
suscita está na base do impulso para a cons- que o ocidente tem dele, ignorando ou triviali-
trução de uma conceção contra-hegemónica zando deste modo experiências culturais e po-
e intercultural de direitos humanos proposta líticas decisivas em países do Sul Global. Este
neste livro. A questão pode formular-se des- é o caso dos movimentos de resistência contra
te modo: se a humanidade é só uma, por que
é que há tantos princípios diferentes sobre a
15 Outro modo de abordar a questão ontológica con-
dignidade humana e justiça social, todos pre- siste em advogar que os direitos humanos não são rei-
tensamente únicos, e, por vezes, contraditó- vindicações morais nem reivindicações de verdade. São
rios entre si? Na raiz desta interrogação está uma demanda política e o seu apelo global não pressu-
a constatação, hoje cada vez mais inequívoca, põe qualquer fundamento moral subjacente universal-
mente aceite. Este ponto é vigorosamente defendido
de que a compreensão do mundo excede em
por Goodhart (2013: 36). A questão do porquê deste
muito a compreensão ocidental do mundo e, apelo global agora fica por responder.
222 Boaventura de Sousa Santos

a opressão, marginalização e exclusão que têm tário fazê-lo. Tende a aplicar genericamente a
vindo a emergir nas últimas décadas e cujas ba- mesma receita abstracta dos direitos humanos,
ses ideológicas pouco ou nada têm a ver com esperando, dessa forma, que a natureza das
as referências culturais e políticas ocidentais ideologias alternativas e universos simbólicos
dominantes ao longo do século vinte. Estes mo- sejam reduzidos a especificidades locais sem
vimentos não formulam as suas demandas em qualquer impacto no cânone universal dos di-
termos de direitos humanos, e, pelo contrário, reitos humanos.
frequentemente formulam-nas de acordo com Neste trabalho centro-me nos desafios aos
princípios que contradizem os princípios domi- direitos humanos quando confrontados com
nantes dos direitos humanos. Estes movimen- os movimentos que reivindicam a presença da
tos encontram-se frequentemente enraizados religião na esfera pública. Estes movimentos,
em identidades históricas e culturais multisse- crescentemente globalizados, e as teologias
culares, incluindo muitas vezes a militância re- políticas que os sustentam constituem uma
ligiosa. Sem pretender ser exaustivo, menciono gramática de defesa da dignidade humana que
apenas três destes movimentos, com significa- rivaliza com a que subjaz aos direitos humanos
dos políticos muito distintos: os movimentos e muitas vezes a contradiz. Como referi acima,
indígenas, particularmente na América Latina; as concepções e práticas convencionais ou he-
os movimentos de camponeses em África e na gemónicas dos direitos humanos não são ca-
Ásia; e a insurgência islâmica. Apesar das enor- pazes de enfrentar esses desafios nem sequer
mes diferenças entre eles, estes movimentos imaginam que seja necessário fazê-lo. Só uma
comungam do facto de provirem de referências concepção contra-hegemónica de direitos hu-
políticas não-ocidentais e de se constituírem manos pode estar à altura destes desafios.
como resistência ao domínio ocidental.
Ao pensamento convencional dos direitos
humanos faltam instrumentos teóricos e ana-
líticos que lhe permitam posicionar-se com
alguma credibilidade em relação a estes mo-
vimentos, e pior ainda, não considera priori-
Direitos humanos: Uma hegemonia frágil 223

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224 Boaventura de Sousa Santos

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uma ecologia de saberes” in Revista Crítica
de Ciências Sociais, Nº 78, pp. 3-46.
Teretta, M. 2012 “’We had been fooled into
thinking that the UN watches over the
entire world’: Human Rights, UN Trust
Territories, and Africa’s Decolonization” in
Human Rights Quartely, V. 34, Nº 2, pp.
329-360.
O Estado, o direito costumeiro
e a justiça popular*

A expressão justiça popular tem sido usada


em distintas situações ao longo dos tem-
pos: (1) no ancien régime europeu, para se
sas em resposta, e usualmente em conflito com
a administração da justiça oficial1.
Na maior parte dos casos, vê-se a ideia
referir à coexistência de três tipos de justiça de justiça popular associada à organização
de acordo com os estamentos vigentes: justiça ou à participação comunitária aplicada ao
real, justiça dos senhores feudais e justiça po- tratamento de litígios quer inserida no siste-
pular; (2) nos regimes fascistas, como justiça ma jurídico estatal, ou paralelamente a este,
excepcional voltada para a eliminação dos ini- quer erigida como direito legítimo contra a
migos políticos, como a Volksjustiz de Hitler; legalidade oficial. Em ambas as situações,
(3) nos países do “socialismo real”, para toda a justiça popular assume uma relação dialé-
ou parte da administração da justiça; (4) nos tica com o Estado em variados cenários: (1)
países democráticos capitalistas, para se re-
ferir a formas de participação popular na ad-
ministração da justiça, como a presença dos 1 A análise da justiça popular como resposta das
jurados nos julgamentos; e (5) em crises revo- classes populares em crises revolucionárias e em perí-
lucionárias, como iniciativa tomada pelas mas- odos de transição política tem lugar na quarta parte da
Sociologia Crítica do Direito a propósito dos poucos
casos de justiça popular que ocorreram em Portugal
durante a crise revolucionária de 1974-1975 (ver tam-
* Extraído de Santos, B. de Sousa 2015 “O Estado, o bém Santos, 1982). Ver ainda o caso da Nicarágua, em
direito costumeiro e a justiça popular” in A justiça po- McDonald e Zatz (1992), e o do Uganda, em Khadiagala
pular em Cabo Verde (Coimbra: Almedina). (2001) e Baker 2004.
226 Boaventura de Sousa Santos

como resposta das classes populares contra O simples elenco dos diferentes tipos de jus-
as instituições da classe dominante; (2) como tiça que se têm designado por justiça popular
forma de suprir a carência na atuação estatal revela que a ideia da justiça popular é muito
em algumas áreas dos territórios2; (3) como controversa e que o conceito que a procura
expressão de sistemas de justiça que coexis- caracterizar, muito polissêmico. Na minha in-
tem com o direito estatal, contribuindo para vestigação sociológica sobre a administração
sua legitimação3; (4) como iniciativa da(s) da justiça e as instâncias de resolução de lití-
comunidade(s) cooptada pelo poder do Esta- gios, a justiça popular surgiu em pelo menos
do para a manutenção da ordem onde este não três acepções diferentes que constituem outros
tem legitimidade ou acesso; ou (5) como me- tantos possíveis tipos de justiça popular. O pri-
dida pós-revolucionária ou de consolidação meiro tipo é o direito de Pasárgada analisado
da independência, incorporada no sistema ju- em O Direito dos Oprimidos4. A resolução de
rídico como meio de pacificação e educação litígios pela Associação de Moradores de Pasár-
popular (Nina, 1993: 56). gada pode ser considerada como uma forma de
justiça popular, uma justiça de base comunitá-
ria, paralelamente ao sistema de justiça oficial
2 Por exemplo, na África do Sul, a justiça popular
tem emergido, sem reconhecimento oficial, como for- e nem sequer reconhecida como tal por este
ma de mobilização comunitária visando à solução de último, destinada a resolver conflitos intraclas-
litígios em área onde a atuação do Estado é deficien- sistas com recursos normativos largamente
te. Ver Tshehla (2002); Choudree (1999) e South Afri- partilhados. O segundo tipo é a justiça popular
can Law Comission (1999). Antes do fim do regime do
que analiso em detalhe no meu trabalho com
apartheid (1994), a justiça popular nas townships e zo-
nas rurais era muito forte e diversificada (Scharf, 1989; referência a Cabo Verde5. É uma forma da justi-
Burman e Scharf, 1990; Allison, 1990; Nina, 1995). Esta ça institucionalizada, reconhecida oficialmente
riqueza e diversidade eram o outro lado da resistência como tal, integrada de uma ou outra forma no
contra uma justiça colonialista e racializada, tão bem sistema geral de administração da justiça (o
retratada por Sachs, 1973.
3 Baxi (1985) sugere que a coexistência da justiça
popular e do direito do Estado colabora para a legitima-
ção deste último combatendo os seus aspectos negati- 4 Ver Santos, 2014.
vos e fortalecendo os positivos. 5 Ver Santos, 2015.
O Estado, o direito costumeiro e a justiça popular 227

qual é, por vezes, designado globalmente como administração da justiça ensaiadas por Angola,
justiça popular) que se caracteriza (ou preten- Moçambique, Guiné-Bissau, São Tomé e Prín-
de caracterizar) pela proximidade normativa, cipe e Cabo Verde no período imediatamente
institucional, cultural e discursiva, pela fácil posterior ao fim do colonialismo.
acessibilidade, pelo caráter desprofissionaliza- É nesse contexto que passo a tecer algumas
do de seus operadores. O terceiro tipo de jus- considerações acerca da relação entre direito
tiça popular, o mais controverso, é uma justiça costumeiro e justiça popular7. São conhecidas
explicitamente classista, protagonizada pelas experiências extremadas no contexto africano,
classes populares, em conflito com o sistema quer no sentido de uma sacralização ou aceita-
de justiça oficial, considerado burguês e/ou ção supostamente incondicional do direito cos-
protetor das elites no poder, destinada a resol- tumeiro, quer no sentido da sua total rejeição.
ver conflitos interclassistas, com escassa base
institucional, sendo estruturalmente precária e
7 Durante a fase de transição revolucionária, a jus-
fugaz. Esse tipo de justiça popular foi teoriza- tiça popular foi acionada num contexto de dualidade
do pelos marxistas no âmbito do conceito de de poderes e sem qualquer referência ao direito costu-
dualidade de poderes. Correspondem de algum meiro. Por exemplo, em relação a Angola, é o caso do
modo a este tipo os poucos casos de justiça primeiro “julgamento popular”, realizado em Luanda
popular que ocorreram durante a Revolução ainda antes da proclamação da independência (11 de
novembro de 1975). Com o título “Realizou-se ontem
de 25 de Abril de 1974 em Portugal6. Para além pela primeira vez em Luanda um julgamento popular”,
desses tipos, há vários outros que podem ir de o Diário de Luanda de 28 de agosto de 1975 noticia-
atos de linchamento isolados a sistemas com- va: “Realizou-se, pela primeira vez em Luanda, um
pletos de justiça, aos quais é dado globalmente julgamento popular. Os criminosos [6 elementos das
FAPLA acusados de violarem, roubarem e assassina-
o nome de justiça popular, como sucedeu nos
rem 11 pessoas] foram fuzilados por decisão do Povo,
países socialistas de Estado durante o século sob proposta da Secção de Justiça do Comissariado
XX, e que tinham (ou diziam ter) pelo menos Político do Estado-Maior Geral das Forças Armadas
algumas das características das inovações na Populares de Libertação de Angola (FAPLA). Presidiu
ao julgamento Manuel Pacavira, coordenador nacional
do Departamento de Organização de Massas (D.O.M.),
e membro do ‘bureau’ Político do MPLA. Participaram
6 Ver Santos, 2017. muitos populares”.
228 Boaventura de Sousa Santos

É importante reconhecer que os países africa- nicos e as técnicas de investigação tornadas


nos de língua oficial portuguesa seguem quase disponíveis pela antropologia social e cultural.
unanimemente uma posição intermédia, ainda É exemplo disso o estudo sobre a família e o
que com matizes de país para país. Isso ressalta direito tradicional, realizado em Moçambique
claro das posições tomadas no 1º Encontro dos por Francesca Dagnino, Gita Honwana e Albie
Ministros da Justiça de Angola, Cabo Verde, Sachs (1982), e publicado no Boletim Nº 5 da
Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Prín- Justiça Popular.
cipe realizado em Luanda em 1979. Pode dizer- A segunda característica da posição sobre
-se que, apesar das condições muito diferentes o direito costumeiro consiste em que o conhe-
de país para país, é possível identificar uma cimento desse direito não implica automatica-
posição comum caracterizada pelo seguinte: mente o seu reconhecimento, já que este deve
em primeiro lugar, a necessidade de conhecer ser decidido em função dos objetivos sociais
em profundidade o direito costumeiro ou os di- e políticos do Estado, os quais não coincidem
reitos costumeiros, conforme os casos, para o muitas vezes com aqueles que subjazeram ao di-
que se reconhece a necessidade de tomar pre- reito costumeiro no período colonial ou mesmo
cauções especiais. A título de exemplo, no re- no período pré-colonial. No relatório da delega-
latório do Ministro de Cabo Verde, no referido ção de Angola ao mesmo Encontro lê-se que
Encontro (1979: 56), escrevia-se:
a interligação por vezes mesmo a confusão do
Uma última palavra sobre os investigadores. Sem- costume enquanto instituto jurídico com a re-
pre que possível, o ideal seria associar os técnicos ligião é inconciliável com os princípios do ma-
formados nas Universidades ocidentais com os in- terialismo dialéctico; o mesmo cariz metafísico
telectuais tradicionais e animadores e quadros ru- do costume é factor de obscurantismo e prejudi-
rais saídos das massas populares e ligados a elas. cará tendencialmente o progresso económico e
Se colocarmos o direito costumeiro sob o controle social do país.
exclusivo dos juristas, arriscamo-nos a desnaturá-
-lo e a precipitar a sua decadência. (1979: 56) Por isso se propõe que os costumes, em vez
de fonte imediata do direito, sejam tão só uma
Isso obviamente não significa a exclusão fonte mediata e consequentemente só serão
dos juristas ou das Faculdades de Direito, des- guindados à categoria de lei “sempre que os
de que equipadas com os conhecimentos téc- mesmos sejam factor determinante do progres-
O Estado, o direito costumeiro e a justiça popular 229

so económico e social e serão rejeitados desde independentemente da necessidade de serem


que se revelem desajustados em relação aos estudados como parte do património histórico
princípios políticos orientadores da sociedade e cultural do país8.
de novo tipo que se pretende construir”. Seme-
lhantemente, no relatório de Cabo Verde sub-
metido ao referido Encontro lê-se: 8 No caso de Angola, é particularmente elucidativo
o Relatório sobre o Exercício da Justiça Privada ela-
borado pelo Tribunal Judicial da Comarca da Lunda
Mas depois de recolhidos, não se deve ficar exta- Sul e publicado em 12 de dezembro de 1978. Justiça
siado perante os usos e costumes do povo. Deve- privada era uma designação usada para referir-se ao
mos ser capazes de distinguir no seu conjunto o direito costumeiro e a todas as formas de justiça não
essencial do secundário, o positivo do negativo, o oficial, emergentes da sociedade civil. Nesse relatório,
progressista do reacionário, tudo isso em função pode ler-se (a citação é longa porque muito rica): “Pois
das exigências do progresso económico, social e analisando os factos sobre o ponto de vista histórico,
cultural de Cabo Verde. (1979: 56) étnico e cultura tradicional de ‘Direito Costumeiro’ do
nosso Povo. Porém ressaltam à nossa inteligência cer-
tos fenómenos sociais tradicionais, quer históricos ou
E conclui que jurídicos devido às constantes transformações que o
Povo sofre com própria época evolutiva e revolucio-
a reconstrução nacional, o aprofundamento da nária, não obstante, a falta de documentos histórico-
descolonização, a luta pela libertação das forças -jurídicos não escritos, mas urge começar representar
produtivas nacionais podem impor (cremos que uma grande fonte de valor a nível Nacional e por vezes
impõem) o afastamento de certas regras de direi- Internacional. Assim, a Justiça Privada, sendo uma
facto quando se transforma numa aliança‑operária
to tradicional. (1979: 56-57)
camponesa da cidade e do campo, mas sob a Direc-
ção da classe operária, numa expressão jurídica das
Um exemplo desse critério pode antever-se relações socialistas, de produção, dos interesses e da
na conclusão a que chegam os autores do es- vontade do Povo Trabalhador, daí advêm a competên-
tudo já referido (Dagnino, Honwana e Sachs, cia e a obrigação de observar a legalidade socialista,
velar pelo interesse da mesma justiça que vai ao en-
1982) sobre os direitos de família tradicionais contro dos ditames e aspirações do Povo, ao longo da
em Moçambique: as normas dos sistemas de Geração Angolana, em suma, numa salvaguarda, onde
justiça que são englobados dentro da catego- não exista a exploração do homem pelo homem como
ria de direito tradicional não têm futuro como tal a Justiça não pertence a um grupo de homens, ou
parte do sistema legal aplicado pelos tribunais, seja, de elite, pertence ao Povo e a todos os sectores
produtivos. Deixa de ter um aspecto privado para se
230 Boaventura de Sousa Santos

A terceira e igualmente importante caracterís- reitos dos juízes profissionais, pelo menos na
tica da posição que estamos a analisar é de que audiência de discussão e julgamento em todos
tanto o direito costumeiro, em sua grande diver- os tribunais; elegibilidade de todos os juízes,
sidade, como o direito novo devem ser aplicados incluindo os profissionais (uma característica
através de uma administração verdadeiramente que se tem, contudo, revelado de difícil concre-
democrática da justiça, uma justiça popular. tização); a prestação periódica de contas dos
Com diferenças de país para país, pode di- juízes perante os órgãos que os elegeram, os
zer-se que, em geral, se considera nesses países quais poderão demiti-los pelo mau desempe-
como justiça popular aquela que aspira aos se- nho das suas funções; a existência de tribunais
guintes objetivos: a colegialidade de todos os comunitários (tribunais populares de base, tri-
tribunais; a participação de juízes populares bunais de zona, comissões laborais etc.) para
ou assessores populares com os mesmos di- a resolução de pequenos conflitos, compostos
por juízes não profissionais; o princípio de que
alastrar numa Justiça Oficial, que vai ao combate da
os tribunais devem ter, acima de tudo, uma
criminalidade que alguns populares habituados a anti- função educativa; finalmente, a supressão da
gas estruturas repressivas ainda ignoram os princípios advocacia privada e sua substituição por uma
básicos de direito, de justiça, de igualdade, fraternida- advocacia popular ou defensoria pública.
de humanas imbuídas numa sociedade socialista. Se- Crê-se, pois, que tão importante quanto a
gundo informações recolhidas com alguns regionais
com quem a Comissão contactou pessoalmente, hou- dimensão normativa do sistema jurídico é a
ve sempre em Angola e no caso concreto nesta Pro- sua dimensão institucional, a dimensão pela
víncia da Lunda ordem à organização mais propícia e qual o povo interage diretamente com os sis-
adequada de estruturas tradicionais jurídicas que per- temas de justiça, que formam o direito, no
mitiam o estabelecimento dos índices de uma Justiça
cotidiano das suas práticas sociais. E é pre-
social eficiente. Verificando, experimentalmente, nos
últimos tempos a situação alterou radicalmente e as cisamente no nível da dimensão institucional
formalidades jurídicas da ordem social não são respei- que os direitos costumeiros adquirem uma
tadas como anteriormente, por o povo ter passado da renovada importância9. Para além de influên-
fase colonial repressiva, ao tempo da Liberdade. O que
nos reservará o futuro se a mesma situação manter-se
e as estruturas Jurídicas competentes não tomarem 9 A possibilidade de cooperação entre estes países
medidas necessárias para saneamento e liquidação do africanos — Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçam-
anarquismo?” (1978: 1-2). bique e São Tomé e Príncipe — no estudo do potencial
O Estado, o direito costumeiro e a justiça popular 231

cias mais recentes e quiçá mais superficiais,


a justiça popular tem as suas raízes mais pro-
fundas nas próprias práticas tradicionais afri- o crime praticado ultrapassava a sua ‘competência’. Ali-
ás é bastante importante esta experiência dos Grupos
canas por vezes significativamente transfor-
Dinamizadores de que falaremos mais adiante. A for-
madas e ampliadas pelas inovações levadas a mação de Tribunais Populares em algumas províncias
cabo durante a guerra colonial na administra- surgiu por um lado pela implementação das decisões
ção da justiça das zonas libertadas, como foi do Partido, particularmente da 8ª Reunião do Comité
particularmente o caso da Guiné e de Moçam- Central posteriormente do II Congresso da FRELIMO
e, por outro, da força e iniciativa das massas populares
bique (Rudebeck, 1974; Moiane, Honwana e organizadas que sentiam necessidade absoluta do exer-
Dagnino, 1984)10. cício da justiça para os vários casos que regularmen-
te aconteciam e que não sabiam a quem recorrer, uma
vez que os regulados foram liquidados pela revolução.
da interlegalidade tem estado presente em vários encon- É evidente que a justiça popular em Moçambique não
tros oficiais. Ver, por exemplo, Santos, 1988. começou após a independência mas já durante a Luta
10 A propósito da 1ª Reunião Nacional do Ministério Armada da Libertação Nacional”. A este último propósi-
da Justiça que se realizou no Maputo no final de agosto to cita as palavras do Ministro da Justiça Teodato Hun-
de 1979, a revista Tempo, na sua edição de 3 de setem- guana, que presidiu à reunião: “Nas Zonas Libertadas
bro de 1979 (n. 413: 23-4) noticia: “Quando as brigadas a aplicação da justiça baseava‑se na linha política da
do Ministério da Justiça se deslocaram e actuaram em FRELIMO e no estudo do direito costumeiro local. A
todas as Províncias do país foram encontrar em algu- implantação de Tribunais Populares, em particular na
mas delas experiências importantes na formação de localidade nesta fase, vai permitir continuar e desen-
Tribunais Populares. Na Província de Nampula e Cabo volver esta experiência orientando‑nos para a unifor-
Delgado, sobretudo nestas duas, funcionavam já Co- mização das medidas justas e para a rejeição e combate
missões de Justiça, que coordenavam os tribunais po- enérgico às medidas injustas anacrónicas e contrárias
pulares em exercícios nos vários distritos e localidades. à Constituição da República Popular de Moçambique.
Na Província de Nampula os tribunais ali constituídos Deste modo o Tribunal Popular será também a escola
tinham já alcançado uma certa organização para a sua onde vamos aprender o que não conhecemos e onde
constituição e funcionamento, tendo as suas decisões vamos ensinar o que aprendemos noutra parte do país.
sido amplamente apoiadas pelas massas populares que Porque a vocação do tribunal popular será a de lançar
até então e, exactamente como sucedia em quase todas do Rovuma ao Maputo as mesmas medidas para as
as províncias, viam o exercício da Justiça entregue qua- mesmas situações, ele constitui uma base permanente
se exclusivamente à Sessão dos Assuntos Sociais dos onde se revive, se cria e se constrói a unidade do povo
respectivos grupos dinamizadores que só canalizam o moçambicano. É nessa ampla perspectiva que devemos
caso para as autoridades policiais quando o assunto ou situar o nosso trabalho. Na perspectiva da revolução
232 Boaventura de Sousa Santos

A preocupação com a reconstituição da jus- Como sublinhava Albie Sachs, a propósito da


tiça popular nesses moldes foi particularmente presença da justiça islâmica em Moçambique,
forte em Cabo Verde, e em Moçambique11. Neste os tribunais populares “aplicam uma justiça
último, parece poder dizer-se que a posição crí- popular e procuram soluções concretas para
tica vigilante em relação aos direitos costumei- problemas concretos. A nova legislação não
ros na sua dimensão normativa se complementa vai ser imposta, vai ser assumida” (1981: 13).
com uma posição de suporte ativo em relação à As referências anteriores são suficientes para
sua dimensão institucional. Diz o artigo sobre os definir o perfil geral da articulação entre os di-
direitos tradicionais de família já referido: reitos costumeiros e a justiça popular adotada,
como programa de ação político-jurídica, pelos
É necessário conhecer os aspectos mais significa- novos Estados africanos. Sendo esse o progra-
tivos da forma tradicional de resolução de proble- ma, caberá agora à sociologia e à antropologia
mas, os quais foram recuperados, transformados do direito avaliar em que medida ele tem sido
e absorvidos pelo sistema de Justiça Popular, e cumprido, quais os principais obstáculos ao
os quais lhe conferem uma grande dose da sua
seu cumprimento, quais as vicissitudes, des-
vitalidade e personalidade (…) Não é acidental
vios, recuos e avanços por que tem passado.
que hoje camponeses analfabetos resolvam uma
gama de problemas do povo, de uma forma rápi- É um trabalho de investigação que deve ser le-
da e justa: eles têm atrás de si a experiência de vado a cabo com o rigor possível e a máxima
gerações de pessoas acostumadas a resolver os independência, pois só assim seus resultados
conflitos em moldes colectivos. poderão ser úteis à consecução dos objetivos
da edificação de uma justiça popular genuína.
Foi este o meu propósito ao estudar os tribu-
nais de zona em Cabo Verde, cujos resultados
em que tanto a transformação radical da sociedade que principais apresento neste livro.
cria o seu próprio destino e destrói o papel daqueles Antes, porém, gostaria de me referir a três
que tradicionalmente o retinham por possuírem forma-
questões que se podem transformar em outros
ção jurídica” (Tempo, 1979, n. 413: 24).
tantos obstáculos à construção da articulação
11 Sobre o projeto de investigação sobre os sistemas
entre direitos costumeiros e justiça popular. A
de justiça (no plural) em Moçambique, que dirigi com
João Carlos Trindade, ver Santos e Trindade (2003). primeira questão diz respeito à tensão entre a
O Estado, o direito costumeiro e a justiça popular 233

profissionalização e a desprofissionalização da romances policiais. É uma hegemonia tão en-


administração da justiça; a segunda diz respei- raizada que o senso comum dos cidadãos (mes-
to à politização ou despolitização da adminis- mo daqueles que são negativamente afetados
tração da justiça; e a terceira questão diz res- por essa ideia hegemônica) aceita como natu-
peito à própria relação entre direito e Estado. ral que o exercício da administração da justiça
esteja entregue a profissionais do direito.
Profissionalização ou Apesar dos esforços educativos em sen-
desprofissionalização tido contrário e das fortes raízes históricas
É sabido que o modelo de administração da que lhes subjazem, os novos países africanos
justiça subjacente à teoria do Estado liberal, não se devem considerar imunes à influência
estando embora a passar por uma profunda desse modelo da administração da justiça. A
crise, é ainda hoje hegemônico, e a sua hege- infiltração desse modelo pode vir a revelar-
monia revela-se precisamente pela sua capa- -se de vários modos. Em primeiro lugar, pelo
cidade de se infiltrar em sistemas jurídicos e controle progressivo que os profissionais do
judiciários que em suas proclamações o recu- direito forem adquirindo sobre o aparelho ju-
sam. Esse modelo pressupõe uma administra- diciário e pelo desenvolvimento da ideologia
ção da justiça em que a participação popular corporativa profissional com que eles forem
ou não é permitida ou é fortemente tutelada. A exercendo esse controle. Em tal situação, é
administração da justiça é institucionalizada e bem possível que a parte desprofissionalizada
profissionalizada, e a participação de leigos só da administração da justiça passe a ser ava-
é admissível enquanto inequivocamente subor- liada pela parte profissionalizada e, portanto,
dinada a instituições e profissões jurídicas. Em pelos critérios que esta impuser. E, nessas
segundo lugar, esse modelo pressupõe uma ad- condições, é fatal que o desempenho da parte
ministração da justiça unificada, centralizada e desprofissionalizada fique, em geral, aquém do
monopolisticamente apropriada pelo Estado, exigível e seja criticável por múltiplas razões,
tanto no plano institucional como no plano cul- todas elas convincentes do ponto de vista da
tural. A hegemonia desse modelo é reproduzi- lógica jurídica profissional. E, pelo contrário,
da por múltiplos canais, desde as Faculdades cumprirá tanto mais as expectativas quanto
de Direito até os meios de comunicação e os mais se aproximar do desempenho profissio-
234 Boaventura de Sousa Santos

nalizado, isto é, quanto mais descaracterizado Politização ou despolitização


for o seu exercício e quanto menos ele obede- A segunda questão diz respeito à tensão entre
cer à sua vocação específica. Um risco desse politização e despolitização da administração
tipo pode correr-se, por exemplo, quando o da justiça. Sabe-se hoje que a administração da
Ministério da Justiça (ou qualquer órgão co- justiça, como qualquer outra administração pú-
ordenador e fiscalizador da atividade judicial) blica, tem, para além da sua dimensão técnica,
utilize como fonte exclusiva de informação e uma dimensão política. Só que essa dimensão
avaliação sobre o desempenho dos assessores tende a não ser claramente explicitada. Não é
populares ou dos juízes leigos os relatórios assim nos países africanos, onde essa explicita-
sobre eles produzidos pelos juízes profissio- ção não pode ser maior. No relatório da Guiné-
nais do mesmo tribunal. O risco desse con- -Bissau ao Encontro dos Ministros da Justiça a
trole profissional e corporativo é obviamente que tenho vindo a fazer referência, sublinha-se
muito forte nos países ocidentais. É ele talvez que os julgamentos dos tribunais populares em
a causa do fracasso de recentes inovações no geral e as suas sentenças em especial devem
sentido de aumentar a participação na admi- contribuir para: a) defender o Estado, os bens
nistração da justiça12. e a economia nacional, assim como as conquis-
Esta sobreposição do profissional sobre o tas da nossa gloriosa luta, contra os crimes que
não profissional tem normalmente outra con- afetem os direitos do homem e o poder consti-
sequência: a desmotivação dos juízes popula- tuído; b) devem ainda contribuir para resolver
res ou leigos. Quer porque as suas funções são os problemas políticos, econômicos e culturais
reduzidas à irrelevância, quer porque eles pró- do Estado nesta fase da Reconstrução Nacio-
prios absorvem a ideologia profissional, pas- nal, educar massas, instituições e organizações
sam a se auto-desqualificar ou a auto-margina- no respeito e aplicação conscienciosa das leis.
lizar nas suas funções próprias e exercem-nas Essa função política global, no entanto, deve
burocrática e passivamente. ser claramente distinguida da servidão às po-
líticas conjunturais do momento e, sobretudo,
da tentação da partidarização que transforma a
administração da justiça num setor indistinto
12 Desenvolvo este tema em Santos (2007).
O Estado, o direito costumeiro e a justiça popular 235

do trabalho político partidário e, afinal, num relatos na imprensa sobre a falta de interesse
campo fértil para o exercício descontrolado do popular por esses tribunais e sobre o excesso do
sectarismo e da corrupção. A consequência, já controle do partido como possível causa desse
historicamente verificada, desse fenômeno é a desinteresse14. Segundo estudos da época, os tri-
desmotivação e o distanciamento dos cidadãos bunais de camaradas na (então) União Soviética
e, portanto, a descaracterização e a deslegiti- tinham pouca vitalidade, sobretudo nos locais
mação da justiça como justiça popular. de trabalho, e não eram tomados muito seria-
É conhecida, a partir de fontes soviéticas, a mente, nem pelas autoridades, nem pelo públi-
preocupação com a crescente desertificação po- co. A 13 de setembro de 1979, o jornal Pravda
pular dos tribunais de camaradas ressuscitados relatava que “há centenas de tribunais de cama-
por Khrushchev em 1959 como parte do proces- radas na cidade, mas nem sequer metade deles
so de desestalinização e instituídos nas fábricas
e nos bairros residenciais13. São frequentes os
radas encontravam-se supostamente dependentes dos
Tribunais Regulares do Povo, sob a alçada do Minis-
13 Os tribunais populares, que viriam a ser chamados tério da Justiça, da Procuradoria e dos sindicatos. Em
de tribunais de camaradas, foram inicialmente insti- 1938, só na República Russa, existiam cerca de 45.000
tuídos em 1917, por um decreto assinado por Trotsky, Tribunais de Camaradas. Contudo, quando do início da
como meios de fortalecimento da disciplina militar no Segunda Guerra Mundial tinham desaparecido quase
Exército Vermelho. Em 1919, Lenine assinou um decre- completamente. A razão mais plausível para tal tem a
to estabelecendo-os na indústria como meios de forta- ver com o fato de a legislação estalinista lhes ter reti-
lecimento da disciplina laboral. Tratava-se de corpos rado o grosso da sua jurisdição reservando severas pe-
informais, eleitos, que tinham o poder de julgar apenas nalizações criminais para os infratores da disciplina do
ofensas menores e impor somente uma reprimenda ou trabalho e outras ofensas menores. Foram reavivados
outra penalidade menor, visando assegurar, no essen- com Khrushchev, após a morte de Stálin, recuperan-
cial, a disciplina laboral. Em 1921, foi dado aos tribu- do parte da sua importância após o 21º Congresso do
nais de camaradas industriais o poder de impor até seis Partido, realizado em 1959 (Berman, 1978: 288-289). A
meses de privação de liberdade, mas os seus poderes importância do retorno desses tribunais de camaradas
penais foram restritos nos finais dos anos vinte. No iní- assentava na censura coletiva dos que violavam as nor-
cio da década de trinta, foram estabelecidos tribunais mas, na crítica construtiva e na censura moral, em lugar
similares em áreas rurais e em recintos de alojamento de punição (Savitsky e Mikhailov, 1984: 1125).
urbano. Nos anos trinta, todos os tribunais de cama- 14 Confirmado mais tarde, entre outros, por Wolfe, 1989.
236 Boaventura de Sousa Santos

funciona”. Uma conclusão semelhante parece


poder retirar-se de estudos polacos sobre os
tribunais sociais, correspondentes aos tribunais são organizada pela Faculdade de Direito em outubro
de camaradas soviéticos (Waltós e Skupínski, de 1962 após consulta a Fidel Castro. Estes tribunais
1984: 1153-68). Por outro lado, em qualquer des- constituíram uma experiência inovadora destinada a
ses países, o papel dos assessores populares ou aumentar a participação das massas no sistema judicial
e educar a população na nova ética socialista. Como
dos juízes leigos tem vindo a sofrer algum des- expressou Fidel, o objectivo dos tribunais populares
gaste, remetendo-se a uma posição pouco ativa foi a corrigir a conduta antissocial ‘não com sanções,
e algo desinteressada durante as audiências de ao estilo tradicional, mas sim com medidas que tinham
discussão e julgamento. Em Cuba, há indícios um profundo espírito educativo’. Os primeiros tribunais
também que, apesar da institucionalização ple- desse tipo foram criados em 1962 nas zonas rurais onde
o sistema judicial não tinha ainda chegado. Estes tribu-
na da justiça popular, não se conseguem hoje nais, compostos por juízes a meio tempo eleitos entre
(1984) os níveis de mobilização popular e de os vizinhos ou centro de trabalho, atendiam às contro-
envolvimento cívico na administração da justiça vérsias privadas e delitos menores. O facto de serem
semelhantes àqueles que se obtiveram depois de usados juízes selecionados dentro da comunidade in-
1962 quando, após o discurso de Fidel de Cas- troduziu pela primeira vez em Cuba a participação não
letrada no sistema judicial. Era feita uma verificação
tro a alunos e professores da Escola de Ciências das condições morais e revolucionárias dos candidatos
Jurídicas de Havana, se lançaram os primeiros a ocupar o cargo de juízes, e os selecionados recebiam
tribunais populares nas montanhas do Oriente. capacitação por períodos que podiam durar até 45 dias.
Um excessivo controle partidário na seleção Jovens advogados e estudantes de direito fiscalizavam
frequentemente a criação destes tribunais. Nos finais
dos juízes pode estar na base desse processo15.
do decénio existiam já mais de 2.200 Tribunais Popu-
lares em todo o país, incluindo nas cidades. Existem
numerosos aspectos que dão conta do efeito positivo
15 Uma detalhada avaliação das primeiras décadas que tiveram estes tribunais nas comunidades em que
dos tribunais populares em Cuba pode ser lida em De- prestaram serviços no desenvolvimento de conceitos
bra Evenson (1994). Segunda a autora: “Os Tribunais de justiça popular. Os instrumentos para a resolução
Populares, por seu lado, reflectiram o desejo idealista de controvérsias não foram encontrados nos códigos
de democratizar a justiça, pelo menos ao nível mais jurídicos mas da experiência comum e dos valores da
popular. Não foram criados com consulta do judiciá- comunidade. Os julgamentos eram públicos e era esti-
rio existente nem foram supervisionados por ele. Pelo mulada a sua assistência de modo a explorar ao máxi-
contrário, a sua criação correu a cargo de uma comis- mo a sua função educativa. No entanto, esta dualidade
O Estado, o direito costumeiro e a justiça popular 237

Aliás, é curioso verificar que os tribunais so- das relações muito sutis e complexas entre
ciais de aldeia instituídos na (então) União Sovi- política e justiça e aconselham à máxima pru-
ética, ainda em 1929, enraizaram-se rapidamente dência nessa matéria. Aliás, nos países africa-
porque vinham ao encontro dos tribunais tradi- nos de língua oficial portuguesa há já alguma
cionais dos camponeses, os tribunais “volost”, experiência histórica nesse domínio. Quando
continuando a produção de uma justiça assente Amílcar Cabral organizou a administração da
na mediação e de acordo com os costumes (Frier- justiça nas zonas libertadas (os chamados “co-
son, 1986: 526-45). Já o mesmo não sucedeu com mitês ou tribunais de tabanca” em que se ins-
os tribunais de camaradas e de Kolkhoz16, na piraram os tribunais de zona que analiso neste
medida em que foram encarregados de missões livro) foram dela inicialmente encarregados os
específicas no sentido de impor uma disciplina comandantes militares do partido em funções
de trabalho quer à massa operária, quer à base na zona. Sucede que (como consta do Relatório
camponesa (Solomon, 1983: 9-43). da Guiné-Bissau ao Encontro dos Ministros da
Essas experiências, hoje documentadas Justiça) os comandantes, com nenhuma prepa-
com razoável fidedignidade, são testemunho ração jurídica e com pouca preparação políti-
ca, cometeram erros, por vezes graves, e cer-
tas arbitrariedades, sobretudo nos primeiros
de sistemas judiciais deu lugar a muita confusão, à so- anos da luta, em 1963 e 1964. Isso levou a que
breposição de jurisdições e à falta de coerência na apli- o Congresso de Cassacá, de 1964, transferisse
cação da lei. Nos finais dos anos sessenta começaram dos comandantes militares para os comissá-
a surgir as primeiras críticas ao sistema, e um grupo de
rios políticos o exercício da administração da
juristas percebeu a necessidade de racionalizar o siste-
ma para possibilitar uma capacidade de prognóstico e justiça, já que estes “tinham uma preparação
uma imparcialidade maiores para a resolução de con- política mais aprofundada, ficando assim a Jus-
trovérsias. A Comissão de Assuntos Jurídicos criada tiça separada dos restantes departamentos da
pelo Partido em 1965 tomou a seu cargo a tarefa de ana- administração”17. As decisões da Conferência
lisar os problemas e elaborar uma proposta de sistema
unificado de tribunais” (1994: 73-74).
16 Referência aos tribunais que se constituíam junto 17 Wladimir Brito, num texto mimeografado de 1976,
às cooperativas agrícolas, acompanhado o processo de intitulado Tribunais Populares. Notas para uma inves-
coletivização do campo na (então) União Soviética. tigação sociológica, cita as declarações da Fidélis Ca-
238 Boaventura de Sousa Santos

de Cassacá sobre justiça estão na origem do ça Militar”, de 19 de setembro de 196618. Como


primeiro documento legal das zonas libertadas refere o preâmbulo desta Lei, produzido pelo
da Guiné-Bissau, conhecido como “Lei da Justi- Bureau Político do PAIGC, esta lei reunia “num
só texto, a par de disposições puramente disci-
plinares, os nossos Direito e Processos Penais
bral d’Almada, responsável dos Serviços da População Militares actuais. Além disso, traduzindo uma
e Justiça no bureau político do Partido Africano para a parte do esforço empreendido pelo nosso Par-
Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), publi- tido no sentido do aperfeiçoamento da organi-
cadas no jornal No Pintcha, Nº 9, de 15 de abril de 1975:
“A justiça foi integrada na administração geral daquelas
zação da nossa sociedade, fixa-se na presente
áreas libertadas. O Comandante Militar e o Comissário lei a organização dos tribunais das nossas For-
Político, que era seu adjunto, tinham ao mesmo tempo ças Armadas.” E acrescenta, justificando a im-
o poder político, o poder militar e poder judicial (…) portância e a especificidade desse código: “É
Portanto, a sua prática não era adequada para a realiza- que, se temos necessidade de dar, desde já, um
ção da justiça. Acontece que eles fizeram alguns erros
e a partir de certa altura erros bastante graves e certas
ordenamento jurídico aos diversos aspectos
arbitrariedades, já por ignorância, já por falta de pre- da nossa vida e da nossa luta, é-nos também
paração política. Em 1964, na Primeira Conferência de imperioso evitar que esse ordenamento venha
Cassacá, houve grandes mudanças tanto políticas como entravar a constante transformação, o perma-
quanto à organização das regiões libertadas. A justiça, nente renovar que é a marcha vitoriosa do nos-
nessa altura, passou para as mãos do Comandante Mi-
litar para o comissário político do Povo que era gente so povo para a Liberdade e para o Progresso.
com uma preparação política mais aprofundada” (Bri- Por isso, mais do que fixar o Direito, o Partido
to, 1976: 7-8). E Wladimir Brito acrescenta: “Portanto quer, com a publicação desta lei, fornecer um
em 1964, com a criação dos comités de tabanca, a justi- critério de orientação aos responsáveis do po-
ça passa para as mãos do presidente desse comité, que
der jurisdicional nas nossas Forças Armadas
é o comissário político. Temos então, como fruto do au-
mento da consciência da classe explorada, no decurso (1966: 1-3).
da sua luta, e da crítica generalizada feita por ela (Con- Em 1968-1969, deu-se início à criação de tri-
gresso de Cassacá), uma modificação administrativa do bunais populares nas zonas libertadas da Guiné-
aparelho judicial. Com a dinâmica da luta, é claro que
surgiram novos problemas e novas críticas ao sistema
que conduzem à elaboração da Lei da Justiça Militar 18 Disponível em <http:hdl.handle.net/11002/fms_
(1966) e à criação dos Tribunais Populares” (1976: 8). dc_40239> acesso 31 de maio de 2014.
O Estado, o direito costumeiro e a justiça popular 239

-Bissau19. Nesses tribunais os juízes, assim que O direito e o Estado


eleitos, punham o tribunal em funcionamento, A terceira e última questão diz respeito à
apreciando “casos cíveis, constituindo esses relação entre direito e Estado. É uma questão
julgamentos um período de prática para os nos- muito complexa e que se liga obviamente à an-
sos juízes populares”, parte do nosso partido. terior, embora seja mais ampla. Não cabe aqui
Essa tradição encontraria eco no Guia dos tratá-la com desenvolvimento. Menciono-a
Tribunais Populares de Cabo Verde, produzido apenas para referir que é esse um domínio em
em 1977. No caso específico do funcionamento que os países africanos podem beneficiar-se do
dos tribunais, depois de recomendar que pelo conhecimento sociológico sobre o direito dos
menos um dos juízes deveria ser elemento do países do mundo capitalista acumulado nas úl-
comité político da zona “para poder haver sem- timas décadas. Muitos estudos (entre os quais
pre uma estreita ligação entre a actividade do posso citar os que realizei nas favelas do Rio
tribunal popular e as directrizes do partido”, de Janeiro)21 revelam que nessas sociedades a
acrescentava logo de seguida: “No entanto, identificação do direito com o direito estatal,
este elemento não deverá ser o responsável inscrita na matriz político-jurídica do Estado li-
político da zona para evitar acumulação de beral e reproduzida teoricamente pela dogmáti-
responsabilidades num só indivíduo, abusos ca jurídica desde o século XIX, não correspon-
de poder e mal-entendidos”20. Isso significa que de às realidades sociojurídicas desses países.
os Estados africanos estão conscientes de que Nos bairros, nas aldeias, em grupos sociais, nas
nessas recomendações se tecem linhas muito escolas, nas famílias, em suma, fora do Estado,
finas que podem fazer pender a balança para identificam-se instâncias de produção jurídica
um lado ou para o outro. emergente das relações sociais nesses setores,
as quais se articulam de modos diversos com
o direito produzido pelo Estado. É, assim, in-
19 Ver Relatório dos serviços da população e justiça, correto reduzir a vida jurídica aos comandos
de 21 de abril de 1970. Disponível em: <http://hdl.hand-
le.net/11002/fms_dc_39953> acesso 31 de maio de 2014.
20 Este tema é investigado em detalhe no estudo que 21 Ver O direito dos oprimidos (primeira parte da So-
se segue sobre os tribunais de zona em Cabo Verde. ciologia Crítica do Direito).
240 Boaventura de Sousa Santos

normativos formais produzidos pelo Estado. em nível local e regional, sem a qual não será
Para além desses comandos, há microclimas possível criar uma verdadeira identidade na-
jurídicos, práticas jurídicas específicas que cional a caminho de uma sociedade mais justa.
emergem das relações sociais nesses setores e Passo agora a uma breve introdução contex-
que, apesar de informais, têm elevada eficácia. tualizadora sobre a investigação sociológica
Tudo isso nos leva a concluir que, mesmo dos tribunais de zona de Cabo Verde, realizada
nos países mais desenvolvidos, é errado, de em 1984.
um ponto de vista sociológico, reduzir o direi-
to ao direito estatal. Ou seja, há vários modos Bibliografía
de juridicidade, vários modos de produção ju- Allison, J. 1990 “In Search of Revolutionary
rídica, os quais se articulam de forma diversa Justice in South Africa” in The
sob a dominação do direito estatal, compondo International Journal of the Sociology of
no seu conjunto o que designamos por forma- Law, Nº 18, pp. 409-428.
ção jurídica22. Baker, B. 2004 “Popular Justice and Policing
Esse conhecimento pode ser útil aos novos the Bush War to Democracy: Uganda 1981-
países africanos onde as formas de pluralismo 2004” in International Journal of Sociology
jurídico são muito vincadas. Uma preocupação of Law, Nº 32, pp. 333-348.
excessiva em centralizar e uniformizar pode Baxi, U. 1985 “Popular justice, participatory
acabar por ser prejudicial à aceitação do novo development and power politics: The Lok
direito e à administração da justiça em constru- Adalat in turmoil” in Allo, A. e Woodman,
ção. É necessária uma sábia prudência para sa- G. R. (org.) People’s Law and State
ber salvaguardar a unidade básica da formação (Amsterdão: Foris Publications) pp. 171-
política sem, no entanto, destruir a capacidade 186.
de criatividade popular, tradicional ou nova, Brito, C. W. 1976 Tribunais populares.
Notas para uma investigação sociológica
(Bissau) mimeo.
22 Este tema virá a acompanhar-me ao longo de vá-
rias décadas e está presente em todas as partes da
Burman, S. e Scharf, W. 1990 “Creating
Sociologia Crítica do Direito que compõem esta cole- people’s justice: street committees and
ção de livros. people’s courts in a South African city” in
O Estado, o direito costumeiro e a justiça popular 241

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Quando os excluídos têm direito
Justiça indígena, plurinacionalidade e
interculturalidade*

C abe a mim apresentar os principais resul-


tados do projeto de investigação “Justiça
indígena, plurinacionalidade e interculturali-
Luis Exeni Rodríguez e, no Equador, de Agus-
tín Grijalva. Os resultados se apresentam em
dois livros, um sobre a Bolívia e outro sobre o
dade. Análise comparada do Equador e da Bo- Equador, ainda que, muitas vezes, as análises
lívia”, que tive a oportunidade de dirigir entre desenvolvidas mais especificamente para um
2010 e 2012, financiado pela Fundação Rosa dos países sejam válidas, com as adaptações
Luxemburg. Neste projeto, participaram doze necessárias, para o outro.
pesquisadores1, uma equipe plurinacional, plu-
riétnica e plurilinguística sob minha coordena- O constitucionalismo
ção geral e a coordenação, na Bolívia, de José transformador
Este projeto surge do seguimento dos pro-
cessos políticos e das transformações consti-
1 Além dos pesquisadores, que foram responsáveis tucionais que dominaram a vida social, política
pelos estudos de caso, o estudo se nutre na Bolívia e cultural de ambos países na última década.
e no Equador da contribuição de onze especialistas
A escolha da justiça indígena ou originária
convidados que escreveram os textos de análises e
contextuais que formam parte das publicações. como tema de pesquisa esteve presidida por
duas razões que estiveram muito presentes no
* Tradução portuguesa de Santos, B. de Sousa 2012 meu trabalho sociológico2. A primeira ideia é
“Cuando los excluidos tienen derecho: justicia indígena,
plurinacionalidad e interculturalidad” in Justicia indígena,
plurinacionalidad e interculturalidad en Ecuador (Quito: 2 Ver no plano teórico, Santos, 2009a. E no plano
Ediciones Abya Yala / Fundación Rosa Luxemburg). empírico-analítico, Santos e García-Villegas (eds.),
244 Boaventura de Sousa Santos

que o direito e a justiça são uma das janelas no é o fato de reivindicar uma precedência
privilegiadas para analisar as contradições, as histórica e uma autonomia cultural que de-
ambivalências, os ritmos, os avanços e retro- safiam todo o edifício jurídico e político do
cessos dos processos de transformação social, Estado moderno colonial. Por esta razão, as
sobretudo dos que se afirmam como porta- lutas indígenas têm potencial para radicali-
dores de novos projetos políticos ou como zar (no sentido de ir às raízes) os processos
momentos decisivos de transição política. O de transformação social, sobretudo quando
Estado e o direito modernos têm uma carac- assumem uma dimensão constituinte. Quan-
terística contraditória: para consolidar eficaz- do o Estado e o direito são colocados em
mente relações de poder desigual na sociedade discussão em um processo constituinte, a
têm que negar de maneira crível a existência tendência é manter o controle da discussão
de tal desigualdade. O ideal é que os oprimidos e impor limites ao questionamento. Acontece
por esse poder desigual acreditem que não há que, no final de séculos de hegemonia e co-
desigualdade porque o Estado é legítimo e so- lonização do imaginário político, o Estado e
berano e porque o direito é autônomo e univer- o direito eurocêntricos, inclusive quando são
sal. Quando isto acontece, pode-se dizer que a sacudidos, mantêm crível a linha de separa-
(des)ordem jurídico-política é hegemônica. No ção entre o que é questionável e criticável (o
entanto, em processos de transformação pro- que está deste lado da linha) e o que não o
funda, esta construção político-jurídica, apa- é (o que está do outro lado da linha)3. Aque-
rentemente inatacável em tempos normais, é a les que estão em melhores condições para
primeira a se derrubar. Daí o interesse por ana- desafiar esse controle e esses limites são os
lisar por meio do direito o que está e sempre grupos sociais que sempre foram situados do
esteve mais além dele. outro lado da linha, tornados invisíveis pre-
A segunda razão é que o que verdadeira-
mente distingue as lutas indígenas das res-
tantes lutas sociais no continente america- 3 Aqui faço referência à minha teoria do pensamento
abismal moderno que se caracteriza por desenhar
uma linha que cria a total exclusão (por negação de
2001; Santos e Trindade (eds.), 2003; Santos, 2010 e sua existência) ao que está do outro lado da linha. A
Santos e Van Dúnem (orgs.), 2012. respeito, ver Santos, 2009b.
Quando os excluídos têm direito: Justiça indígena, plurinacionalidade e interculturalidade 245

cisamente para que a linha não fosse visível, portante de um projeto político de vocação
ou seja, para a sua exclusão e sofrimento não descolonizadora e anticapitalista, uma segun-
fossem questionáveis e, em último termo, da independência que finamente rompa com
não tivessem limites. os vínculos eurocêntricos que condicionaram
No final da última década, a Bolívia e o os processos de desenvolvimento nos últimos
Equador foram os dois países latino-ame- duzentos anos.
ricanos que passaram por transformações
constitucionais mais profundas no curso das O processo de transição
mobilizações políticas protagonizadas pelos e da justiça indígena
movimentos indígenas e por outros movimen-
Entre os vínculos eurocêntricos que condi-
tos e organizações sociais e populares. Não é
cionaram as independências do século XIX se
de se estranhar, portanto, que as constituições
encontram o Estado e o direito, concebidos
de ambos países contenham embriões de uma
como monolíticos e monoculturais, o capita-
transformação paradigmática do direito e do
lismo dependente, o colonialismo interno, o
Estado modernos, até o ponto de ser legítimo
racismo, o autoritarismo e o centralismo bu-
falar de um processo de refundação política,
rocráticos, e o cânon cultural ocidental. Sobre
social, econômica e cultural. O reconhecimen-
esta base se desenharam políticas econômicas,
to da existência e legitimidade da justiça indí-
educativas, linguísticas, sanitárias, de seguran-
gena que, para nos remitir ao período poste-
ça, assistencialistas, territoriais fundadas na
rior à independência, vinha de décadas atrás,
exclusão, repressão ou invisibilização das ma-
adquire um novo significado político. Não se
neiras de viver, pensar, agir e sentir em colisão
trata só do reconhecimento da diversidade
com os princípios nacionalistas liberais.
cultural do país ou de um expediente para que
Romper com todos estes vínculos é tarefa de
as comunidades locais e remotas resolvam
uma época histórica e não de um processo polí-
pequenos conflitos em seu interior, garantin-
tico sujeito ao ciclo eleitoral da democracia li-
do a paz social que o Estado em nenhum caso
beral. Nestas circunstâncias, os projetos cons-
poderia garantir por falta de recursos mate-
titucionais apenas são pontos de partida para
riais e humanos. Trata-se, pelo contrário, de
mudanças de época, abertura a novos rumos e
conceber a justiça indígena como parte im-
novas gramáticas de luta política. Inauguram,
246 Boaventura de Sousa Santos

em geral, um processo de transição histórica e forma parte da vida das comunidades. Pode
de longo prazo. se dizer, deste modo, que a justiça indígena,
O problema destes processos é que as so- agora integrada em um projeto de construção
ciedades não podem viver a longo prazo, mas plurinacional, é a vanguarda deste projeto por-
a curto; e a curto prazo é mais provável que que é algo que já está sobre o terreno, por se
a velha política subsista e inclusive domine, tratar de uma demonstração viva e realista das
frequentemente disfarçada de nova política. possibilidades criadas pela plurinacionalida-
Ou seja, este tipo de processo de transição pa- de. No entanto, por outro lado, e de maneira
radigmática está sujeito a numerosas perver- paradoxal, rapidamente se transforma no alvo
sões, boicotes, desvios e seus piores adversá- mais fácil da velha política e de seu impulso a
rios nem sempre são aqueles que se apresen- reduzir a transformação constitucional ao que
tam como tais. Acontece, além do mais, que os é controlável deste lado da linha.
que protagonizam a transição em um primeiro A justiça indígena, até hoje aceita pelo câ-
momento raras vezes são aqueles que depois a non constitucional moderno como algo ino-
conduzem. E, com isto, o impulso constituinte fensivo, uma pequena excentricidade ou con-
inicial corre o risco de se render à inércia do cessão política, talvez funcional à dominação
poder constituído. Ou seja, os projetos cons- capitalista e colonialista, transforma-se agora
titucionais transformadores estão sujeitos, na cara mais visível e, portanto, mais amea-
muito mais que qualquer outro, a processos çadora do projeto plurinacional. Sendo a cara
de desconstitucionalização. mais visível e ameaçadora, é também a mais
Estas vicissitudes são particularmente vi- vulnerável porque sua prática sobre o terreno
síveis e graves no caso da justiça indígena e, a expõe a interpretações hostis e não carentes
em virtude disso, a justiça indígena é um dos de preconceitos por parte dos adversários da
temas mais reveladores das contradições da plurinacionalidade. A demonização da justiça
transição política na Bolívia e no Equador. indígena passa a ser um dos principais veto-
Por um lado, a justiça indígena, ao contrário res da política de desconstitucionalização. O
da plurinacionalidade, não é um projeto, algo tratamento mediático e político outorgado a
por construir, uma novidade. É uma realidade alguns casos reais de justiça indígena no pe-
que, reconhecida ou não pelo Estado, formou ríodo imediatamente posterior à promulgação
Quando os excluídos têm direito: Justiça indígena, plurinacionalidade e interculturalidade 247

das novas constituições constitui uma expres- Do monolitismo jurídico


são eloquente deste processo4. ao pluralismo jurídico
O primeiro campo de tensão e disputa se
O que está em jogo: tensões e dá entre o reconhecimento amplo da justiça
transições em um complexo processo indígena e da tradição jurídica eurocêntrica
de transição de resultado incerto plasmada na arquitetura da justiça comum ou
O reconhecimento da justiça indígena como estatal, na teoria jurídica, nos planos de estu-
parte de um projeto de plurinacionalidade do e na formação profissional dos juristas nas
muda totalmente seu significado político. É um faculdades de direito, em síntese, na cultura
reconhecimento robusto baseado em uma con- jurídica dominante. Além do mais, esta cultu-
cepção de pluralismo jurídico em sentido forte. ra jurídica dominante e hegemônica faz com
As dimensões desta mudança se expressam em que os próprios indígenas nem sempre reco-
outros campos de tensão e disputa onde se ali- nheçam como “verdadeira” justiça os modos
nham diferentes tipos de adversários. Alguns de resolver litígios e organizar a vida social em
estão presentes em mais de um campo e se suas comunidades.
manifestam em cada um deles de modo espe- O reconhecimento plurinacional da justiça
cífico. Estes diferentes campos de tensão estão indígena é impugnado porque supostamente
relacionados entre si, mas têm uma certa au- coloca em discussão três princípios fundamen-
tonomia, o que permite identificar assimetrias tais do direito moderno, eurocêntrico: o prin-
no desenvolvimento de cada um. O impacto de cípio de soberania, o princípio de unidade e o
uns sobre outros confere ao processo de tran- princípio de autonomia.
sição em seu conjunto uma enorme complexi- O princípio de soberania é hoje questiona-
dade, cujos principais traços analiso a seguir. do por múltiplos fatores e a justiça indígena
não é certamente, o mais sério. Este princípio
estabelece que o Estado tem o monopólio da
produção e da aplicação do direito. Os proces-
4 É eloquente a respeito ao tratamento mediático-
sos de integração regional e a transferência de
político do caso La Cocha 2 no Equador, assim como
a automática e desqualificadora associação que se soberania que em geral implicam, as condicio-
faz na Bolívia de casos de linchamento como suposta nalidades impostas pelas agências multilate-
expressão da “justiça comunitária”.
248 Boaventura de Sousa Santos

rais (Banco Mundial, Fundo Monetário Interna- do Estado para estar presente de maneira efe-
cional, Organização Mundial do Comércio), os tiva em todo o território nacional. O reconhe-
contratos econômicos internacionais das em- cimento oficial que chegou a ter em muitos paí-
presas multinacionais que operam nos países e ses, incluindo a Bolívia e o Equador no período
as cláusulas gerais que levam consigo — o que anterior a 2008 e 2009, foi o duplo resultado das
se conhece como a nova lex mercatoria —, são lutas indígenas que o reivindicaram e da consta-
algumas das atuais restrições e limitações jurí- tação da classe dominante de que esse reconhe-
dicas que condicionam o monopólio do Estado cimento poderia ser funcional para a gestão dos
sobre o direito. conflitos e da manutenção da paz social.
No plano sociológico e inclusive jurídico, A justiça indígena também é questionada
a justiça indígena, como fonte de direito, é a por colocar em entre linhas o princípio da
mais antiga do que qualquer dos fatores acima unidade do direito. Este princípio estabelece
mencionados e este fato se reconheceu sem que, posto que o direito tem uma única fon-
grandes sobressaltos no período colonial. Isto te, a qual é internamente homogênea, o direi-
para não argumentar que a justiça indígena co- to constitui uma totalidade bem definida que
meçou formando parte das estruturas políticas pode ser conhecida em toda a sua dimensão
que já existiam em Abya Yala no momento da em qualquer momento de criação ou interpre-
conquista colonial. Só com o positivismo jurídi- tação do direito graças aos métodos que a ciên-
co do século XIX e sua maneira de conceber a cia jurídica moderna desenvolveu e colocou a
consolidação do Estado de direito moderno — serviço do direito e dos juristas. Também este
o Estado para consolidar-se requer que exista princípio é hoje questionado por muitos fato-
uma só nação, uma só cultura, um único siste- res. Depois de décadas de incessante produção
ma educativo, um só exército, um único direito jurídica; de queda em desuso de muitas normas
— a justiça indígena se transformou em uma sem que se tenha produzido sua revogação
violação do monopólio do Estado. formal; de decisões superpostas ao longo do
Do prisma sociológico, ainda que não reco- tempo, às vezes contraditórias, dos tribunais
nhecida oficialmente como tal, a justiça indíge- superiores; depois de sucessivas sujeições dos
na continuou prevalecendo nos países saídos países periféricos às imposições políticas e ju-
do colonialismo, dada a deficiente capacidade rídicas internacionais, frequentemente em con-
Quando os excluídos têm direito: Justiça indígena, plurinacionalidade e interculturalidade 249

tradição com seu direito comum, incluindo seu Por todas estas razões, a unidade do direi-
direito constitucional; por todas estas razões, to, entendida como homogeneidade do direito,
hoje é praticamente impossível determinar não tem hoje em dia muito sentido. Tem senti-
com exatidão e exaustividade todo o direito do, pelo contrário, se a unidade do direito sig-
efetivamente vigente em um momento dado. nifica o seguinte: partir do reconhecimento da
Além do mais, esta incerteza se transformou heterogeneidade interna e externa do direito
em um recurso argumentativo dos advogados para, baseando-se nesse reconhecimento, criar
na defesa das causas patrocinadas. mecanismos que permitam superar as contra-
Por outro lado, o próprio Estado ao longo do dições e coordenar as diferenças.
século foi assumindo novas funções que modi- A heterogeneidade interna do direito se re-
ficaram sua arquitetura institucional. Dado que fere ao que antes denominei pluralismo jurídi-
estas modificações nem sempre se fizeram com co interno. É um tema complexo que não cabe
o fim de manter a coerência da ação estatal, a tratar aqui. No entanto, devemos destacar que
unidade do direito foi sacudida. Além do mais, a heterogeneidade interna, que parece ser um
por ação de pressões assimétricas, tanto inter- problema grave do direito comum, não cons-
nas como externas, sobre a atuação do Esta- titui um problema para a justiça indígena, pois
do, a regulação estatal chegou a assumir uma nunca teve a pretensão de se constituir como
grande heterogeneidade interna, dando origem sistema unitário. A justiça indígena é interna-
ao que chamei de pluralismo jurídico inter- mente muito diferente como fica plenamente
no5. Por exemplo, normas jurídicas promul- demonstrado nos estudos de caso que formam
gadas para a área ambiental frequentemente parte da nossa pesquisa. São enormes as varia-
entram em contradição com normas jurídicas ções no tipo de autoridades que administram a
promulgadas para a área de minas e energia, e justiça, na maneira de aplicá-la, nas orientações
os governos, em lugar de resolver esta contra- normativas que presidem a aplicação, nos tipos
dição, aproveitam-na para manter sob controle de litígios para cuja resolução se consideram
demandas sociais contrapostas. competentes, nas sanções que aplicam com
mais frequência, na relação entre a oralidade
a escritura, na relativa distância normativa e
5 Ver a propósito Santos, 2003 e 2009a. institucional em relação com a justiça ordiná-
250 Boaventura de Sousa Santos

ria e nas formas de articulação e cooperação tes. O pluralismo jurídico não questiona a uni-
que mantêm com ela. Há comunidades onde as dade do direito caso se estabeleçam mecanis-
autoridades indígenas resolvem todos os casos mos de coordenação entre a justiça indígena e
relevantes na comunidade. Há outras que dia- a justiça comum. Esta questão será abordada
logam e coordenam com a justiça comum para mais adiante.
resolver problemas que, em seu critério, não Finalmente, a justiça indígena é vista
são de sua competência ou geram dificuldades, como questionadora da autonomia do direi-
e portanto é melhor recorrer à justiça comum to. O princípio da autonomia do direito mo-
ou estatal para fortalecer a comunidade. Em derno é um dos mais problemáticos. Em seus
síntese, temos uma diversidade tanto nos te- termos, o sistema jurídico é um campo especí-
mas que a justiça indígena resolve, como nas fico da regulação social, dotado de uma lógi-
autoridades, nos procedimentos, nos casos, ca própria, diferente e autônoma em relação
nas sentenças e nas sanções. com outros campos da regulação social, sejam
Esta diversidade faz com que seja mais cor- o sistema político ou o sistema econômico. A
reto falar de justiça indígena em plural, ou seja, teoria dos sistemas de Niklas Luhmann levou
de justiças indígenas tal e como sugere a ex- ao extremo a teorização desta autonomia. A
pressão “normas e procedimentos próprios”. profissionalização da formação e das funções
As justiças indígenas têm em comum o fato de jurídicas se considera uma expressão da auto-
serem exercidas nas comunidades por autori- nomia do direito e simultaneamente a garantia
dades próprias e reconhecidas para isso. de sua preservação.
A heterogeneidade externa se refere ao plu- A verdade é que a autonomia do direito sur-
ralismo jurídico no sentido mais convencional. ge no pensamento jurídico liberal moderno no
O pluralismo jurídico consiste no reconheci- preciso momento em que a produção do direi-
mento da existência de mais de um sistema to e da administração da justiça passar a ser
jurídico no mesmo espaço geopolítico (o Esta- monopólio do Estado, ou seja, quando o direi-
do). A justiça indígena constitui um dos casos to se torna mais vulnerável à interferência dos
mais estudados do pluralismo jurídico e sua fatores e das forças (políticos, econômicos,
existência é reconhecida oficialmente, como sociais, culturais), que influenciam na ação
disse, em vários países de diferentes continen- do Estado. Não é de se estranhar, então, que a
Quando os excluídos têm direito: Justiça indígena, plurinacionalidade e interculturalidade 251

teoria jurídica crítica e a sociologia do direito nente intercultural não exige simplesmente
tenham questionado o princípio de autonomia um reconhecimento da diversidade, mas sim
e tenham se centrado na análise dos fatores a celebração da diversidade cultural e o enri-
políticos, econômicos e culturais que condi- quecimento recíproco entre as várias culturas
cionam tanto a produção quanto a aplicação em presença.
do direito moderno. A dificuldade em reconhecer e valorizar a
Para a justiça indígena, o problema da au- diversidade intercultural tem um nome velho,
tonomia do direito não se coloca, já que ela mas igualmente válido: chama-se colonialis-
não se imagina como uma dimensão separada mo. O colonialismo é todo sistema de natu-
da regulação social das comunidades. As au- ralização das relações de dominação e de su-
toridades que administram a justiça têm com bordinação baseadas em diferenças étnicas e
frequência outras funções que, à luz da lógi- raciais. O Estado moderno é monocultural e
ca da regulação social moderna, poderíamos é colonial nesse sentido, porque suas institui-
considerar políticas ou econômicas. Além do ções sempre viveram a partir de uma norma
mais, estas funções têm com frequência uma que é uma norma eurocêntrica que não cele-
dimensão espiritual que dificilmente encaixa bra senão, pelo contrário, oculta a diversidade.
na imaginação institucional ou cultural do di- Quando foi criada a Organização das Nações
reito comum. Unidas, em 1948, os países latino-americanos,
com poucas exceções, declararam que não ti-
Do multiculturalismo liberal nham minorias étnicas, apesar de que alguns
à interculturalidade tenham inclusive maiorias étnicas. Isso nos
O multiculturalismo liberal reconhece a pre- mostra a invisibilidade do outro, do inferior,
sença na sociedade de culturas não eurocêntri- de quem não existe, o que está do outro lado
cas à medida em que operam unicamente nas da linha, o que em meus trabalhos teóricos
comunidades que as adotam e não interferem chamo de sociologia das ausências.
na cultura dominante do resto da sociedade. Este colonialismo é tão forte que foi reconhe-
Não é este o multiculturalismo consagrado nas cido pelos próprios Estados. No Equador, o Esta-
constituições da Bolívia e do Equador. O novo do tem serviços para a descolonização do Esta-
Estado plurinacional emergente e seu compo- do e na Bolívia há um Vice-ministério de Desco-
252 Boaventura de Sousa Santos

lonização. Ou seja, o problema é reconhecido. A mais são bem conhecidos. No caso da justiça
verdade é que a descolonização das instituições, indígena, o colonialismo consiste em transfor-
das práticas e das mentalidades é um processo mar casos excepcionais em regra, e o que é um
que vai durar muito tempo porque a realidade é excesso se transforma e é representado como a
muito mais colonial do que podemos imaginar e maneira “normal” de decidir as coisas. É o que
o colonialismo se manifesta de muitas formas. O está acontecendo, de algum modo, no Equador
racismo é somente a mais conhecida. e na Bolívia. Por isso, a exceção se generaliza
Em nosso estudo, analisamos com alguma e se transforma em uma característica da justi-
profundidade dois casos de racismo que im- ça indígena. Mostrar a justiça indígena pelo que
pactam sobre a justiça indígena. Um deles, não é, quando durante séculos demonstrou toda
com base em um estudo de caso em Riobam- a sua riqueza e eficácia, resolvendo os conflitos
ba, mostra o racismo dos funcionários judiciais entre as pessoas ali onde o Estado não tinha
comuns, que se expressa claramente em como chegado. E aqui há uma estranha coincidência:
tratam os indígenas, como os olham, como se os governos estão enfrentados com a oposição
riem de suas roupas e de sua maneira de fa- e com os meios de comunicação social, mas os
lar, como produzem sua ausência quando, por três coincidem na ideia de que a justiça indígena
exemplo, um indígena espera o dobro do tem- é selvagem e bárbara. Não é algo casual. Voltare-
po que outra pessoa para o mesmo trâmite. É mos sobre esta questão mais adiante.
um racismo difuso no agir cotidiano das insti-
tuições que vêm de fato da colônia. Que outra Da nação à plurinação
palavra racista tinha a colônia, se não fosse a Quando falamos de justiça indígena não esta-
do indígena como rústico? mos nos referindo a um método alternativo de
O outro caso de racismo é a maneira em que resolução de litígios como são os casos de arbi-
se demoniza a justiça indígena, em especial no tragem, conciliações, juízes de paz, justiça comu-
âmbito político-mediático, como justiça selva- nitária. Estamos diante de uma justiça ancestral
gem, como justiça bárbara. Obviamente que a de povos originários, baseada em todo um siste-
justiça indígena em sua enorme diversidade não ma de territórios, de autogoverno, de cosmovi-
está livre de excessos, como também a justiça sões próprias. Tem uma história muito longa e
comum não está livre de excessos, que além do uma memória igualmente bastante prolongada,
Quando os excluídos têm direito: Justiça indígena, plurinacionalidade e interculturalidade 253

constituída por muito sofrimento, mas também pelo Estado. Exigem que, junto à nação cívica,
por muitíssima resistência até o presente. reconheça-se a nação étnico-cultural, a nação
Como parte de um projeto constitucional fundada em um modo de pertencimento coleti-
de plurinacionalidade, a justiça indígena ques- vo que compartilha o mesmo universo cultural
tiona frontalmente a concepção de nação pela e simbólico, a mesma ancestralidade, a mesma
qual se rege o Estado liberal moderno. Segun- relação com a terra e o território. Este reconhe-
do esta concepção, a nação é o conjunto de cimento da existência de diferentes conceitos
indivíduos que pertencem ao mesmo espaço de nação e de sua coexistência no mesmo Es-
geopolítico, o Estado. Em sentido pleno, o per- tado é o quid do projeto de Estado plurinacio-
tencimento se chama de cidadania. Este é o nal: a nacionalidade boliviana ou equatoriana
conceito de “nação cívica”. É um conceito que, coexistindo com as nacionalidades quéchua,
apesar de parecer totalmente inclusivo, escon- aymara, guarani e outras.
de muitas exclusões. Por um lado, desconhece Ainda que, na atualidade, vários Estados se
que as sociedades não são só indivíduos, mas considerem plurinacionais — do Canadá à Bél-
também grupos sociais que têm diferentes for- gica, da Suíça à Nova Zelândia, da Etiópia à Ni-
mas de pertencer ao território englobado pelo géria — o projeto plurinacional é controvertido
Estado. Por outro, reserva-se o direito de ex- e tem muitos opositores. A ideologia liberal do
cluir da forma mais intensa de pertencimento, Estado moderno como entidade unitária e mo-
a cidadania, grupos sociais inteiros que, às ve- nolítica, tanto no plano cultural como no insti-
zes, são majoritários em termos populacionais. tucional, continua sendo muito forte. Na Amé-
Historicamente estiveram excluídos da na- rica Latina, o argumento mais utilizado contra o
ção cívica os trabalhadores, as mulheres, os es- projeto plurinacional é que a plurinacionalidade
cravos, as crianças, os povos indígenas. Foi por põe em perigo a unidade e a coesão sociais, já
meio de lutas sociais, frequentemente sangren- por si mesmas frágeis em países que surgiram
tas, que estes grupos adquiriram a cidadania. da dominação colonial. As ameaças imaginárias
Tendo lutado pela conquista da cidadania, os ou reais — o caso da “Media Luna” na Bolívia
povos indígenas não questionam a legitimida- em 2008 — de secessão confirmam este perigo.
de da nação cívica. Simplesmente recusam que É um argumento sério, cujo fundamento real
seja o único conceito de nação reconhecido deve ser levado em conta na construção da plu-
254 Boaventura de Sousa Santos

rinacionalidade, mas não é um argumento que O complexo colonialismo-autoritarismo-ca-


impeça tal construção. As ameaças à unidade pitalismo opera no debate sobre a plurinacio-
e à coesão sociais nunca vieram dos povos in- nalidade por meio de uma dupla escisão, cujo
dígenas. Pelo contrário, estes foram violenta- objetivo fundamental é isolar os povos indíge-
mente excluídos de qualquer projeto de unida- nas e neutralizar suas causas mais avançadas.
de e de coesão nacionais. Só com muita luta e A primeira escisão consiste em dividir os po-
sofrimento conseguiram alguma inclusão, ape- vos indígenas do resto da sociedade. O projeto
sar de sempre precária, ainda hoje em plena vi- de plurinacionalidade deixa de ser um projeto
gência de constituições plurinacionais. Foram globalizador, uma solução para a sociedade em
as exclusões abismais dos povos indígenas seu conjunto e passa a ser considerado um pro-
— inclusive nos países onde eram demografi- blema indígena, cuja solução indígena só pode
camente majoritários, como é o caso da Bolí- causar problemas ao conjunto da sociedade.
via — que em grande medida desacreditaram a A segunda escisão tem como objetivo divi-
ideia de nação cívica e prepararam o caminho dir os povos indígenas entre si, fomentando
para o surgimento da nação étnico-cultural. divisões entre as organizações e, sobretudo,
Na minha opinião, o colonialismo está presen- separando os indígenas das lideranças de suas
te no debate sobre a plurinacionalidade por ou- organizações. Esta escisão atua por meio da
tro motivo raramente assumido no espaço públi- demonização dos líderes indígenas e da crimi-
co. É a ideia de que o colonialismo não terminou nalização dos protestos que organizam.
com as independências. Continua até hoje por O projeto plurinacional é um projeto a longo
meio de duas formas principais, o racismo e o co- prazo, talvez irreversível, mas, sem dúvidas, me-
lonialismo interno, que afetam tanto as relações nos linear do que os constitucionalistas do final
sociais quanto as identidades e subjetividades. É da década passada imaginaram. O isolamento
este colonialismo insidioso, às vezes manifesto, social e político dos povos indígenas pode ser
às vezes subterrâneo, mas sempre presente, que um dos efeitos perversos das mudanças consti-
contamina todo o debate sobre a plurinaciona- tucionais e pode levar as próprias lideranças in-
lidade. Não é só um colonialismo cultural; é um dígenas a pensar que o projeto de plurinaciona-
colonialismo que se reflete no sistema político lidade é só um tema indígena e não uma questão
(concepção do Estado e da democracia) e justifi- que afeta o país em seu conjunto. Se isso acon-
ca a exploração capitalista mais selvagem. tecer, aqueles que vaticinam o fim do projeto,
Quando os excluídos têm direito: Justiça indígena, plurinacionalidade e interculturalidade 255

verão cumpridas suas profecias. E não terão que política é a obrigação política horizontal, que
realizar grandes esforços para que isto aconteça. une os cidadãos entre si mediante a ideia da
Por estar agora relacionada com o projeto igualdade de todos diante da lei; e a obrigação
plurinacional, a justiça indígena não deixará de política vertical, que vincula por igual todos os
refletir as vicissitudes da questão da plurinacio- cidadãos com o Estado. Desta dupla obrigação
nalidade. Junto com as autonomias previstas política nasce a distinção entre o direito priva-
nas constituições, a justiça indígena é talvez do e o direito público. O privilégio concedido
a cara mais visível e, em razão disso, também à democracia representativa entre outras for-
a mais vulnerável do projeto plurinacional. Se mas possíveis de democracia. Na democracia
este fracassa, a justiça indígena continuará seu representativa, os cidadãos não tomam deci-
caminho, mas progressivamente será descarac- sões políticas; escolhem aqueles que as tomam
terizada e trivializada. Será reduzida à condi- através do voto individual. O exercício da de-
ção de um mecanismo alternativo de resolução mocracia acontece no espaço público e está
de pequenos litígios que interessam ao Estado reservado aos cidadãos. Nos espaços privados
reconhecer ou tolerar. ou comunitários, a democracia, assim como o
seu exercício por não cidadãos, é inconcebível.
Do pluralismo político eurocêntrico O Estado como representante do interesse ge-
à democracia intercultural ral, contraposto à fragmentação dos interesses
Esta seção também poderia se chamar: da na sociedade civil. A agregação dos interesses
esquerda eurocêntrica à esquerda intercultu- setoriais se dá pela via do partido político,
ral. O pluralismo político eurocêntrico tem uma que assume a exclusividade da representação
raiz liberal6 que se manifesta de múltiplas for- política dos interesses. Reconhecem-se outras
mas. O individualismo. A unidade do sistema formas de agregação de interesses, como os
político são os indivíduos e a dupla obrigação sindicatos e os movimentos sociais, mas a re-
política que os vincula. Esta dupla obrigação presentação política continua, em geral, reser-
vada aos partidos. O nacionalismo. Entendido
como a máxima expressão da unidade da na-
6 O chamado “marxismo ocidental” introduziu ção cívica, tal e como mencionei anteriormen-
mudanças significativas nesta teoria mas, como seu
próprio nome indica (“ocidental”), não subverteu as
te. Secularismo. A separação entre a Igreja e o
premissas culturais em que se baseia a teoria liberal. Estado é o fundamento estruturante da socie-
256 Boaventura de Sousa Santos

dade política (o conjunto das interações entre a esquerda latino-americana, tanto a marxista
o Estado e a sociedade civil). A liberdade reli- como a não marxista, manteve, em geral, uma
giosa é possível porque o espaço público está atitude racista e colonialista em relação aos po-
livre de religião. O capitalismo aparece como vos indígenas que, às vezes, traduzia-se em ex-
forma natural de realizar no plano socioeco- clusão e perseguição, e outras vezes em tutela
nômico o projeto liberal. Voltarei a esta carac- paternalista e captação clientelista.
terística mais adiante. Entende-se que as lutas dos povos indíge-
À luz destas características é fácil chegar nas depois das independências do século XIX
à conclusão de que os povos indígenas, tal e nunca aceitaram acriticamente este modelo de
como os povos afrodescendentes, estiveram pluralismo político. Oscilaram entre recusá-lo
durante muito tempo excluídos deste tipo de totalmente e aceitá-lo como porta de entrada
pluralismo. Tratava-se de um pluralismo que a um grau de inclusão política que lhes permi-
lhes era inerentemente hostil, não só porque tisse avançar na transformação do modelo po-
não os reconhecia como cidadãos, mas tam- lítico. As Constituições de 2008 no Equador e
bém porque se baseava em premissas filosófi- 2009 na Bolívia representam a culminação da
cas e culturais que contradiziam suas práticas segunda estratégia. Promulgadas por governos
coletivas, suas formas de vida e de organiza- de esquerda na esteira de importantes lutas
ção social. sociais protagonizadas pelos povos indígenas,
O próprio marxismo manteve intacta a ex- estas constituições preveem transformações
clusão e inclusive a invisibilidade social e importantes no sistema político e muitas res-
política dos povos indígenas, salvo algumas pondem às reivindicações dos movimentos in-
brilhantes exceções, como foi o caso de José dígenas. É particularmente notável que a Cons-
Carlos Mariátegui. Isto apesar de que o marxis- tituição da Bolívia estabeleça em seu artigo 11
mo tenha introduzido o fator de classe social o reconhecimento de três formas de democra-
neste modelo político; retirou do Estado a aura cia: a democracia representativa, a democra-
de defensor do interesse geral; assumiu a con- cia participativa e a democracia comunitária,
tradição entre a questão de classe e a questão sendo esta última a forma de democracia que
nacional; e defendeu o socialismo como via de pretende corresponder às práticas de organi-
superação do capitalismo. Apesar de tudo isto, zação política das comunidades indígenas. A
Quando os excluídos têm direito: Justiça indígena, plurinacionalidade e interculturalidade 257

complementariedade destas três formas de de- plurinacional está em que esta última inclui
mocracia em um horizonte de democracia in- tanto as dimensões culturais como as políticas,
tercultural constitui um dos principais desafios territoriais e econômicas da diversidade. Em
da plurinacionalidade. outras palavras, a diversidade plurinacional
Apesar de certos avanços (especialmen- implica o reconhecimento constitucional de
te normativos e de exercício), é evidente que que há várias formas, todas igualmente legíti-
as dificuldades, os atropelos, os bloqueios e mas, de organizar a ação política, conceber a
as descaracterizações que este processo de propriedade, administrar o território e organi-
transformação política tem estado sujeito nos zar a vida econômica. Ainda que de maneiras e
últimos anos mostram que o pluralismo políti- com ênfases diferentes, o reconhecimento des-
co eurocêntrico continua sendo dominante e ta diversidade é notório nas constituições dos
que os partidos de esquerda no governo ainda países analisados.
não se liberaram do racismo e do colonialismo A justiça indígena sempre formou parte de
que sempre os caracterizou. Neste campo, o constelações de relações sociais e econômicas
apoio social que encontram para a criminaliza- alheias ao individualismo possessivo do libe-
ção dos líderes indígenas e a demonização da ralismo, à primazia da propriedade individual
justiça indígena faz prever que o projeto cons- sobre todas as outras formas de propriedade e
titucional transformador corre o risco de ser à lógica da acumulação ilimitada e da mercan-
desconstitucionalizado. tilização da vida que subjaz no capitalismo. As
comunidades indígenas, inclusive estando indi-
Do desenvolvimento capitalista dependente retamente subordinadas ao capitalismo, manti-
ao sumak kawsay ou suma qamaña veram ao longo do tempo, através do mercado
Esta parte também poderia se chamar: da e do trabalho assalariado fora da comunidade,
natureza-recurso à natureza-mãe-terra. Aqui lógicas internas de produção e reprodução so-
radica um dos principais obstáculos para o re- cial características de sociedades e economias
conhecimento da justiça indígena como um dos camponesas fundadas nas diferentes cosmovi-
pilares do projeto constitucional. A diferença sões indígenas. Nunca se tratou de lógicas deti-
mais substantiva entre a interculturalidade no das no tempo, rígidas ou puras. Pelo contrário,
âmbito do Estado-nação e a interculturalidade evoluíram, souberam se adaptar a seu tempo
258 Boaventura de Sousa Santos

e articular-se com outras lógicas econômicas, origem e garantia da vida humana e não huma-
particulares com a lógica capitalista. Mas sem- na. Estes princípios estão muito mais próximos
pre souberam manter uma autonomia relativa. das realidades sociais e econômicas reguladas
Prova disso é o fato de ter sobrevivido ao lon- pela justiça indígena do que das realidades re-
go período de dominação colonial e capitalista. guladas pela justiça comum. Isto faria supor
De modo enfático, ambas constituições reco- que a justiça indígena é prezada precisamente
nhecem a diversidade de lógicas econômicas porque suas lógicas de ação se ajustam aos de-
vigentes na sociedade. Mas, mais do que isso, sígnios constitucionais. A gestão da terra, dos
parecem dar prioridade a lógicas indígenas recursos, do território dentro das comunidades
como princípios organizadores da sociedade indígenas esteve, em geral, sob a competência
em seu conjunto. Não se trata nem de um re- da justiça indígena.
torno a imaginados passados pré-capitalistas A verdade é que nada disto está acontecendo
nem de saltos a futuros socialistas. Aponta-se e, pelo contrário, a justiça indígena está sendo
a um horizonte pós-capitalista que, no entan- questionada, entre outras coisas, por ser supos-
to, não se define como socialista. A dificuldade tamente um obstáculo ao desenvolvimento, im-
de nomear estes objetivos constitucionais na pedindo assim os povos indígenas de participar
língua colonial fez com que as constituições plenamente no novo ciclo de desenvolvimento
recorressem, pela primeira vez na história do iniciado pelos novos governos constitucionais.
constitucionalismo moderno latino-americano, Mas de que desenvolvimento estamos falando?
a conceitos expressados nas línguas originá- Do projetado na Constituição? Não. É o desen-
rias, como sumak kawsay ou suma qamaña e volvimento capitalista dependente que carac-
outros conceitos afins. terizou os períodos anteriores aos processos
As aproximações mais prudentes a estes constitucionais. As mobilizações sociais e os
conceitos apontam para a ideia de que a orga- processos constitucionais a que conduziram
nização plural da economia e da propriedade coincidiram com a intensificação do desen-
deve ser administrada globalmente a partir dos volvimento capitalista global neoliberal impul-
princípios de reciprocidade, complementarida- sionado pelo desenvolvimento da China, pela
de, primazia do florescimento coletivo e respei- especulação financeira sobre as commodities
to pelos direitos da natureza como mãe-terra, e os recursos naturais e pela nova demanda de
Quando os excluídos têm direito: Justiça indígena, plurinacionalidade e interculturalidade 259

compra de vastas extensões de terra por par- buição social mediante programas dirigidos
te de alguns países e empresas multinacionais ao reforço de políticas públicas (na saúde e na
com o objetivo de obter reservas de terra no es- educação) e no financiamento, mediante bônus
trangeiro — sobretudo na África — como parte compensatórios, dos orçamentos familiares
de sua segurança alimentar. dos setores mais vulneráveis.
Por esta dupla razão, a histórica renda di- Criou-se, assim, um contexto em que a máxi-
ferencial do comércio internacional que pre- ma exploração dos recursos naturais aparecia
judicava quem exportava natureza em lugar como a via mais rápida para superar o subde-
de produtos manufaturados foi invertida. Du- senvolvimento. Uma oportunidade histórica
rante muito tempo se considerou que uma das imperdível, e muito menos para governos de
fatalidades da América Latina era exportar esquerda criticados tradicionalmente pelas
natureza, o que explicava seu subdesenvol- oligarquias e pela direita por não ter políticas
vimento. De repente, os recursos naturais fo- para o desenvolvimento do país. A nova distri-
ram valorizados nos mercados internacionais buição de rendimentos da exploração dos re-
e se transformaram em uma tentadora fonte cursos naturais entre os governos e as empre-
de financiamento das políticas de Estado e em sas multinacionais contribuiu ao convencimen-
especial das políticas sociais inscritas nos tex- to de amplos segmentos da população de que
tos constitucionais. esta oportunidade não podia ser desperdiçada.
Deve-se acrescentar que os governos dos Desse modo, começou o isolamento políti-
dois países, que se veem a si mesmos como co dos povos indígenas e a divisão entre suas
progressistas, de esquerda e nacionalistas, organizações por meio das medidas acima as-
encontraram diferentes formas de alterar os sinaladas. O neoextrativismo, como passou a
contratos de concessão com as empresas ex- ser chamado, consolidava-se agora com uma
trativistas a fim de impor uma nova repartição, nova justificação nacionalista, mais abrangen-
mais favorável para o país, dos rendimentos da te que as justificações antes invocadas pelas
exploração mineira, de hidrocarbonetos e ma- oligarquias. O apoio social ao neoextrativismo
deireira. Estes excedentes foram colocados a veio, como era de se esperar, dos setores que
serviço da construção de infraestruturas, mui- tradicionalmente ganharam com ele e agora vi-
to deficientes em ambos países, e da redistri- ram crescer seus lucros sem a necessidade de
260 Boaventura de Sousa Santos

suportar o peso político das lutas sociais que que a resistência indígena, motivada pela re-
suscitou. Mas o apoio surgiu também nas clas- cente legitimação que as constituições confe-
ses médias urbanas e nas comunidades rurais rem a suas lutas, tende agora a ser mais intensa
ou suburbanas em que a identidade indígena é e paralelamente a divisão entre organizações
menos forte do que a identidade camponesa, indígenas se torna mais visível do que nunca.
mineira, trabalhadora, micro ou média empre- Esta divisão é rapidamente utilizada e, se for
sária ou cocaleira. possível, manipulada pelos adversários do pro-
Os custos sociais do neoextrativismo não cesso constitucional.
se fizeram esperar e, com eles, a resistência Uma vez mais, a justiça indígena é concebi-
indígena e a resposta repressiva por parte do da como um obstáculo para o desenvolvimen-
Estado. As populações conhecem bem estes to. Sua neutralização se torna indispensável
custos: ocupação de suas terras sem consulta para abrir as comunidades ao progresso (ob-
prévia, contaminação de suas águas, destrui- viamente definido em termos eurocêntricos).
ção ambiental, violação grotesca dos direitos Para isso, o Estado recorre a várias medidas:
da Mãe Terra mediante a exploração mineira definir o território indígena como superfície
a céu aberto, reforço da presença das igrejas territorial, excluindo o subsolo; reduzir a juris-
(aproveitando-se da desorientação e deses- dição territorial ou material da justiça indígena
perança das populações), assassinatos de di- a fim de torná-la inofensiva; atribuir a outras
rigentes, deslocamentos massivos de popula- instituições, controladas pelo Estado, o contro-
ções e seu reassentamento sem nenhum res- le de acesso à terra; etc.
peito por suas reivindicações, seus territórios Esta política tem muitas outras matizes. Uma
sagrados, seus ancestrais. delas é acusar as comunidades indígenas de es-
Quando as comunidades resistem para man- tar a serviço do imperialismo e das ONGs am-
ter o controle sobre os seus territórios, recor- bientalistas norte-americanos. Esta acusação é
rem às suas autoridades e à justiça indígena convincente porque tem uma parte de verdade.
que, em muitos casos, sempre administrou o De fato, os Estados Unidos mudaram, em tem-
acesso à terra. Tal resistência é rapidamente pos recentes, suas estratégias de dominação
declarada como inimiga do desenvolvimento e continental e agora parece preferir o financia-
estigmatizada na opinião pública. E acontece mento de prometedores dirigentes indígenas,
Quando os excluídos têm direito: Justiça indígena, plurinacionalidade e interculturalidade 261

de suas organizações, de suas fundações e de o neoextrativismo estão em contradição com


seus projetos de desenvolvimento local. No a concretização dos Direitos da Natureza no
transcurso desta “ajuda para o desenvolvimen- Equador ou com a aplicação da Lei dos Direi-
to”, vão se formando líderes e membros das tos da Mãe-Terra na Bolívia. Para os primeiros,
organizações que se distanciam de seus gover- há novas condições econômicas globais que
nantes locais tidos como inimigos dos Estados não se podem desconhecer sob pena de come-
Unidos, antiimperialistas, comunistas, ateus ter suicídio político. A justiça indígena ignora
(a acusação pode variar para se adaptar me- totalmente este novo condicionamento e, por
lhor à população concreta a ser doutrinada). isso, deve ser neutralizada. E com ela todas as
Este doutrinamento torna a luta política mais reivindicações indígenas que compartilham a
complexa para todos os participantes. Tanto o mesma ignorância e o mesmo atraso.
Governo de Rafael Correa como o de Evo Mo- Por seu caráter, não se pode esperar que
rales têm um discurso e uma atuação política este enfrentamento seja frágil. Ao contrário,
antiimperialistas e isso lhes causou alguns ris- tende a ser forte e muito mais abrangente que
cos pessoais e políticos. Trata-se de um anti- a justiça indígena, porque envolve todas as es-
-imperialismo atípico que contraditoriamente truturas comunitárias. Trata-se de um enfrenta-
(ou não) permite adotar, no plano interno, o mento intenso que em ambos países têm duas
neoextrativismo como parte integrante do mo- vertentes: uma político-legislativa e outra judi-
delo neoliberal de desenvolvimento e permite cial. A vertente político-legislativa se expressa
lucros fabulosos às empresas multinacionais, mediante a disputa em torno a normas como
muitas delas norte-americanas. a Lei de Consulta, a falida tentativa da Lei de
Esta é a situação em que, com algumas dife- Águas e a Lei de Mineração no Equador, assim
renças, encontramo-nos nos dois países. A luta como a Lei do Órgão Judicial, a Lei de Revo-
entre diferentes modelos econômicos é agora lução Produtiva Comunitária Agropecuária ou
também a luta entre dois projetos de país. Os a ausência de uma Lei de Consulta na Bolívia.
campos estão enfrentados e as tensões entre Esta contradição entre o modelo capitalista
eles não deixou de crescer. de Estado neodesenvolvimentista e neoextra-
O novo Estado desenvolvimentista (como tivista, frente ao sumak kawsay ou suma qa-
vem sendo designada a atuação do Estado) e maña, tenderá a assumir formas mais e mais
262 Boaventura de Sousa Santos

violentas nos dois países. Qual é o resultado Coordenação entre a justiça indígena e a
deste enfrentamento? Por enquanto, um de justiça comum. Da dualidade de justiças à
seus traços mais violentos é a criminalização ecologia de saberes e de práticas jurídicas
da política e da justiça indígenas. As constituições da Bolívia e do Equador
No Equador, os números indicam que há, estabelecem que a justiça indígena e a justiça
pelo menos, 200 dirigentes processados, mui- comum têm a mesma dignidade constitucional,
tos deles com acusações de terrorismo ou de ou seja, são reconhecidas em paridade. Nesse
sabotagem por lutar por seus territórios e de- sentido, serão definidas formas de coordena-
fendê-los. Não pode ser parte de um bom viver ção e de cooperação a fim de evitar superpo-
mandar à prisão a 200 dirigentes que defendem sições ou contradições entre elas. São muitas
o bom viver. Há aqui uma contradição intensa. as possíveis coordenações, algumas referidas
Por outro lado, em ambos países, o campo às formas de relação, outras aos mecanismos e
social e político que respalda o projeto cons- instituições que podem concretizá-las.
titucional aceita de maneira consensual que o Antes que nada, deve-se levar em conta que,
tecido econômico e a base financeira da ação como a covigência destas duas justiças existe
estatal não se podem mudar de um dia para há muito tempo, foram se desenvolvendo ao
outro. Seria necessário definir desde já uma longo do tempo múltiplas formas de relação
política de transição que vai dando sinais pro- entre ambas. A experiência comparada nos
gressivamente mais convincentes de que a so- mostra que historicamente são possíveis as
ciedade está mudando em termos propostos na seguintes principais formas de relação: a ne-
Constituição, ainda que seja de forma mais len- gação, a coexistência à distância, a reconci-
ta do que antes se esperava e imaginava. Nes- liação e a convivialidade.
te processo de transição, um dos sinais mais A negação consiste na negativa de reconhe-
conclusivos seria não permitir a desestrutura- cer a existência de outra justiça. Esta negativa
ção anárquica das comunidades. E, para isso, assumiu formas diferentes quando proveio da
prestigiar a justiça indígena seria uma das me- iniciativa da justiça comum e quando proveio
didas a tomar, pois em condições normais, am- da iniciativa das autoridades indígenas. No pri-
plamente provadas em vários países, o desem- meiro caso, muitas vezes houve repressão vio-
penho da justiça é um fator de coesão social. lenta em relação às autoridades indígenas ou
Quando os excluídos têm direito: Justiça indígena, plurinacionalidade e interculturalidade 263

sobreposição arrogante a suas decisões como autonomia de cada uma delas e os respectivos
se não tivessem existido. Quando a negação domínios de jurisdição reservada. É uma forma
proveio da iniciativa das autoridades indíge- de relação muito complexa, sobretudo porque
nas, adotou a forma de clandestinidade das não pode ser concretizada mediante decreto.
decisões próprias e a fuga a territórios onde a Pressupõe uma cultura jurídica de convivên-
justiça comum não pudesse chegar. cia, compartilhada pelos operadores das duas
A coexistência à distância entre a justiça justiças em presença.
indígena e a justiça comum consiste no reco- Se observamos a história das relações entre
nhecimento recíproco com a proibição de con- a justiça indígena e a justiça comum na Bolívia
tatos entre elas. Esta forma de relacionamento e no Equador podemos dizer que prevaleceram,
teve sua expressão mais acabada no sistema em tempos e lugares diferentes, a negação, a co-
de apartheid da África do Sul. A justiça comu- existência e a reconciliação (esta última no pe-
nitária africana se aplicava nas townships, as ríodo mais recente). A convivialidade é uma for-
áreas reservadas à população negra e só tinha ma de relação prescrita pelas Constituições plu-
presença e vigor em tais áreas. rinacionais. Mas, como expliquei, a prescrição
A reconciliação consiste em um tipo de rela- terá pouco valor se não está sustentada por uma
ção na qual a justiça politicamente dominante cultura jurídica que veja na convivialidade uma
(a justiça comum) reconhece a justiça subal- nova forma, mais realista e eficaz, de conceber
terna e lhe outorga alguma dignidade a título e de aplicar o direito. Pelo que disse antes, é evi-
de reparação pelo modo como a justiça subal- dente que tal cultura jurídica não existe entre os
terna foi ignorada ou reprimida no passado. A operadores da justiça comum. Pelo contrário,
reconciliação tem como objetivo curar o pas- domina a cultura jurídica positivista. Sua substi-
sado, mas de tal modo que a cura não interfira tuição por outra cultura jurídica antipositivista e
demais no presente ou no futuro. intercultural é um processo que durará décadas.
Finalmente, a convivialidade é apenas um É, pois, previsível que os primeiros tempos
ideal: a aspiração de que a justiça comum e a pós-constitucionais de interação entre a justiça
justiça indígena se reconheçam mutuamente indígena e a justiça comum sejam acidentados
e se enriqueçam uma à outra no próprio pro- e estejam muito abaixo do que estabelecem as
cesso de relação, obviamente respeitando a constituições em seu espírito e em suas nor-
264 Boaventura de Sousa Santos

mas. Deve-se acrescentar que, à luz da análi- dato constitucional, é um tema novo para todos
se que proponho neste texto, haverá forças na e exige, por isso, um período de aprendizagem
sociedade e no Estado interessadas em que a e de experimentação. É um período de busca de
nova cultura jurídica nunca surja. caminhos nem sempre complementares, de so-
Nestas condições, é pedagógico começar a luções de ensaio e erro. Em tais condições, uma
destacar que, à margem da legislação, foram se solução jurisdicional é sempre melhor do que
criando, ao longo do tempo, formas de coorde- uma solução legislativa. Esta última é rígida e,
nação muito ricas e diversas entre as duas jus- ainda que corresponda a determinada conjuntu-
tiças. É o que chamamos de coordenação desde ra política e ideológica, propõe-se ter vigência
baixo, a partir de práticas concretas dos opera- por um período longo, o que torna difícil a adap-
dores ou das autoridades das duas justiças em tação às novas condições que vão surgindo.
sua tarefa cotidiana de resolver litígios. Trata- Esta observação é particularmente pertinen-
-se de uma coordenação empírica, intersticial, te em função da experiência recente na Bolívia,
cotidiana que não suscita a atenção mediática. que promulgou uma lei de coordenação entre a
Dessa coordenação empírica há muitas ilus- justiça comum e a justiça indígena: a Lei de De-
trações nos estudos que aqui apresentamos. A marcação Jurisdicional. Nossa análise mostra
construção da nova relação entre a justiça indí- que estas definições normativas constituem um
gena e a justiça comum deveria começar pela atentado contra o projeto de Estado plurina-
análise detalhada das práticas de coordenação cional. A Lei de Demarcação não é verdadeira-
que estão se fazendo no terreno. mente uma lei de coordenação, mas de destrui-
A segunda observação a ser realizada é que a ção da justiça indígena. Estamos convencidos
coordenação entre as duas justiças não tem que de que esta Lei será declarada inconstitucional.
ser feita por via legislativa. Pode ser deixada a Se não existem outras razões, há, pelo menos,
um órgão jurisdicional como, por exemplo, o o fato de ter sido promulgada sem incluir os re-
Tribunal Constitucional. É o caso de Colômbia sultados da consulta prévia realizada, ignoran-
e da África do Sul. Neste cenário são decisivas a do o que determinam a Constituição e o direito
missão e a filosofia com as quais é criado o Tri- internacional7. Além do mais, tecnicamente é
bunal, assim como a sua composição. Esta solu-
ção tem vários argumentos a favor e o principal
7 O Ministério de Justiça, por meio do Vice-
é que a coordenação, no que se refere ao man-
ministério de Justiça indígena originária camponesa
Quando os excluídos têm direito: Justiça indígena, plurinacionalidade e interculturalidade 265

uma lei mal feita. No caso do Equador, há uma pode resultar para ambos. Com base nas dis-
proposta não implementada e durante algum cussões contemporâneas sobre a administra-
tempo pareceu que a intenção era copiar a ex- ção de justiça em sociedades cada vez mais
periência boliviana. Seria uma má notícia para complexas, Ramiro Ávila, em um dos dois
aqueles que apostam no projeto constitucional. livros que publicamos no âmbito deste proje-
A solução legislativa não exime a existên- to (o livro sobre o Equador), identifica vários
cia de um órgão jurisdicional. Por isso, volto a aspectos em que a justiça comum pode apren-
destacar a importância da missão, da filosofia der da justiça indígena. Não é difícil imaginar
e da composição do Tribunal Constitucional. outros aspectos em que, de maneira recíproca,
Para respeitar o projeto constitucional, a mis- a justiça indígena pode aprender da justiça co-
são deste tribunal deve estar orientada a pro- mum. Por outro lado, no que se refere à coor-
mover gradualmente aquilo que designo como denação de baixo, nosso estudo revela que a
ecologia de saberes jurídicos, isto é, o modo justiça indígena se enriqueceu com alguns en-
de pensamento jurídico que corresponde à for- sinamentos da justiça comum. Estas mudanças
ma de relação interjudicial que designei como de soluções jurídicas conduzem ao que chamei
convivialidade. Por enquanto, domina a coexis- de interlegalidade e híbridos jurídicos.
tência, a dualidade de saberes jurídicos. Se tal A interlegalidade é de maior conhecimento
dualidade se mantém, acabará por empobrecer que as pessoas vão tendo das duas justiças o
tanto a justiça indígena como a justiça comum. que lhes permite optar, em certas circunstân-
A ecologia dos saberes jurídicos se assenta cias, entre uma e outra. Também lhes permite
na aprendizagem recíproca dos dois sistemas que certas relações sociais sejam simultanea-
em presença e no enriquecimento que disso mente reguladas por mais de um sistema jurí-
dico, sempre que for possível distinguir dife-
rentes dimensões (por exemplo, nas relações
e em coordenação com organizações indígenas e familiares: casamento, heranças, relação com
camponesas, impulsionou um amplo processo de os filhos, divórcio, violência doméstica). Em
consulta em torno ao anteprojeto de Lei de Demarcação certas circunstâncias, os cidadãos e as cidadãs
Jurisdicional, mas as principais propostas resultantes
podem optar por um sistema jurídico para a
não foram levadas em conta na aprovação da Lei por
parte da Assembleia Legislativa Plurinacional. regulação de algumas dimensões e por outro
266 Boaventura de Sousa Santos

sistema para a regulação de outras dimensões. é a mesma que a devida pela justiça comum.
Os híbridos jurídicos, por sua vez, são con- Dada assim a primazia do Direito Internacional
ceitos ou procedimentos em que é possível dos Direitos Humanos (DIDH), tanto a justiça
identificar a presença de várias culturas jurí- indígena como a justiça comum lhe devem obe-
dicas. Por exemplo, o conceito de Direitos da diência. Apesar disso, sempre que este tema é
Natureza é um híbrido jurídico. O conceito de abordado em relação à justiça indígena adquire
direito vem da cultura eurocêntrica e do direi- um dramatismo próprio. Nem sempre são boas
to moderno, mas a sua aplicação à natureza, as razões para tal dramatismo. Tendo boas e
concebida como Mãe-Terra ou Pachamama, é más razões, devemos distingui-las. Comece-
uma contribuição da cultura andina originária. mos pelas más razões.
O uso de formulários e de atas na administra- A cultura jurídica e política dominante, que
ção da justiça indígena pode ser considerado procurei definir acima em termos gerais, con-
outro híbrido jurídico. Mediante o recurso à cebe a justiça indígena segundo uma herme-
escritura, a justiça indígena busca melhorar a nêutica de suspeita. Como essa cultura é euro-
sua memória, registrar as reincidências e evitar cêntrica e monocultural, vê a justiça indígena
duplos julgamentos. com desconfiança e estranhamento, já que tem
dificuldade para entender as premissas de que
A respeito da Constituição e do Direito parte. O passado colonial do Estado moderno
Internacional dos Direitos Humanos no continente reforça essa atitude: a justiça
Na arquitetura do Estado moderno, o direito própria de gente inferior não pode deixar de
infraconstitucional não pode violar a Consti- ser inferior. Daí a referência recorrente aos ex-
tuição dada a primazia que lhe é atribuída no cessos ou às deficiências da justiça indígena.
que se refere à lei fundamental. Sempre que se Acrescente-se que se atribui a uns e outras um
reconhece oficialmente o pluralismo jurídico, significado em nada comparável ao significado
todos os sistemas de justiça reconhecidos de- atribuído aos excessos e deficiências da justi-
vem, de igual modo, obedecer à Constituição. ça comum, apesar de serem bem conhecidos
Esta segunda situação está atualmente em vi- e frequentes. Esta atitude de suspeita em rela-
gor na Bolívia e no Equador. Por isso, a obedi- ção com a justiça indígena acaba por servir aos
ência que a justiça indígena deve à Constituição interesses daqueles que a querem demonizar
Quando os excluídos têm direito: Justiça indígena, plurinacionalidade e interculturalidade 267

para criar o isolamento político dos povos indí- experiência em administração de justiça. Foi
genas e liquidar o projeto constitucional. esta solução a que se adotou na primeira ver-
As boas razões para a complexidade da su- são da Constituição da Bolívia, apesar de de-
bordinação da justiça indígena à Constituição pois não ter prevalecido. Não sendo isto possí-
e ao DIDH residem em que a justiça indígena vel, por razões políticas ou outras, é fundamen-
está fundada em uma cultura própria e um uni- tal que os membros do Tribunal Constitucional
verso simbólico muito diferentes dos que pre- deem cumprimento ao objetivo constitucional
sidem a Constituição e o DIDH. Sendo assim, de construir com o tempo uma justiça intercul-
é provável que surjam conflitos que coloquem tural assentada na ecologia de saberes jurídi-
complexos problemas de interpretação. A ex- cos. No caso da Bolívia, é fundamental que as
periência da jurisprudência constitucional da novas autoridades do Tribunal Constitucional
Colômbia é um bom exemplo disso. Plurinacional, eleitas em 2011 mediante um
Para que esses problemas possam ser resol- inédito e complexo processo de votação popu-
vidos com a atenção que merecem e em cum- lar, assumam a plurinacionalidade na justiça e
primento do mandato constitucional, há três o apego à nova Constituição Política. O grande
condições principais que são necessárias. A risco é que este Tribunal se transforme em um
primeira se refere à composição dos tribunais agente de desconstitucionalização. A respeito
constitucionais; a segunda, à própria interpre- disso, cabe também a inquietude sobre como
tação da Constituição; e a terceira, à necessida- será constituída a Corte Constitucional no
de de não fugir diante da dificuldade dos temas Equador, sendo que, por enquanto, as funções
e problemas por via do silêncio e da omissão. constitucionais são exercidas por um tribunal
Quanto à composição dos tribunais consti- de transição.
tucionais, o ideal é que expresse o próprio plu- A segunda condição tem a ver com a tra-
ralismo jurídico cuja existência se reconhece dução intercultural. Esta condição está rela-
em nível infraconstitucional. Em outras pala- cionada com a anterior e estabelece que é ne-
vras, é importante que a sua composição esteja cessário desenvolver mecanismos de tradução
formada por expertos em ambas justiças. No intercultural que permitem interpretar a Cons-
caso da justiça indígena, os melhores expertos tituição e o Direito Internacional dos Direitos
serão, em princípio, autoridades indígenas com Humanos em termos interculturais. Em outros
268 Boaventura de Sousa Santos

termos, os próprios direitos fundamentais de- dos para garantir a paridade entre os homens
vem ser submetidos à interpretação intercul- e as mulheres em todos os domínios da vida
tural. Os valores plasmados nesses direitos pública e privada?
devem ser respeitados, mas as atuações con- A segunda questão se refere à discrepância
cretas que os respeitam ou que os violam, não ente o que os princípios proclamam abstrata-
sendo eticamente neutras, podem ser objeto mente e as práticas concretas que se realizam
de interpretações opostas conforme às normas em seu nome. Esta questão não é exclusiva das
culturais de que se parte. culturas e comunidades indígenas. Pelo con-
Assim, por exemplo, o banho, as chicotadas, trário, é um problema universal. Hoje, na Eu-
os castigos físicos em geral, são uma tortura? ropa, o continente da suposta igualdade entre
Em que contexto e em que condições? Há outras homens e mulheres, os estudos sociológicos
sanções que a justiça comum aplica e que, da revelam que as mulheres ainda recebem em
perspectiva da justiça indígena, ainda são mais média 75 a 80 por cento do salário dos homens
violentas? Por exemplo, a pena de prisão perpé- pelo mesmo trabalho. Ou seja: igualdade na
tua ou de cárcere durante muitíssimos anos? teoria, desigualdade na prática. Nosso estudo
Outra questão altamente controvertida é a igualmente revela que o conceito indígena de
igualdade entre o homem e a mulher defendida complementaridade chacha-warmi oculta,
na Constituição e no DIDH. Nesse sentido, as muitas vezes, a subordinação da mulher. Isto
concepções indígenas de complementariedade é particularmente evidente em três aspectos:
entre o homem e a mulher, o chacha-warmi, a participação política, a violência familiar e o
contradizem o princípio da igualdade ou, pelo acesso à terra.
contrário, realizam isso de uma maneira dife- Esta questão sugere que o mais correto é
rente, mas igualmente válida? Neste campo, é promover exercícios de tradução intercultural
importante distinguir duas questões. A primei- entre os conceitos de igualdade entre o homem
ra é a equivalência ou não entre dois princípios e a mulher próprios do feminismo eurocêntri-
que provêm de diferentes culturas. São inco- co, por um lado, e as formas de complementari-
mensuráveis ou é possível realizar a tradução dade próprias das cosmovisões indígenas, por
intercultural entre eles e admitir que, em prin- outro. E ver de maneira concreta que práticas
cípio, marcam dois caminhos igualmente váli- os promovem e que outras os violam. Isto mes-
Quando os excluídos têm direito: Justiça indígena, plurinacionalidade e interculturalidade 269

mo é sugerido por muitas lutas das mulheres de um advogado que represente as partes pode
indígenas. Se, por um lado, mantêm alguma não ser uma violação do devido processo, se
distância em relação ao feminismo eurocêntri- as partes estiverem acompanhadas pelos com-
co (por exemplo, a renuência a defender que padres, pela família, ou seja, por pessoas que,
sua luta é contra os homens); por outro, lutam da mesma maneira que o advogado, respaldam,
dentro de suas comunidades, a partir de suas ajudam e falam em seu nome.
cosmovisões, pelos direitos das mulheres e da Então, são requeridas formas de tradução
igualdade de gênero, sem abandonar sua cultu- intercultural para definir o que é tortura, o que
ra própria nem suas cosmovisões. significa igualdade entre homem e mulher, o
Ou seja, as culturas são dinâmicas, criam que é um devido processo.
conflitos a partir do seu interior e estes con- Obviamente há excessos e todos os conhe-
flitos contribuem para a sua transformação cemos. O fato é que tanto a justiça comum
interna. Essa é a riqueza de todas as culturas, quanto a justiça indígena têm seus próprios
indígenas ou não indígenas. Por isso, neste meios para evitar tais excessos. As mesmas au-
caso, encontramos formas muito interessantes toridades originárias são conscientes de que os
de hibridação cultural que contêm elementos excessos desprestigiam a justiça e debilitam as
de um feminismo eurocêntrico que depois é comunidades e suas autoridades.
tratado de maneira muito diferente a partir da A terceira condição para resolver proble-
cosmovisão indígena. Por isso, as mulheres são mas de interpretação é evitar que a omissão
as agentes da interlegalidade nestes países. e o silêncio se transformem em uma forma
Outro possível exemplo de tradução inter- insidiosa de resolver os conflitos constitucio-
cultural é o “devido processo”. Da perspectiva nais. Esta condição hoje está em risco pela de-
intercultural é forçoso admitir que cada siste- cisão do Tribunal Constitucional de transição
ma de justiça tem maneiras diferentes e pró- do Equador de não decidir sobre o caso La Co-
prias de garantir o valor constitucional do devi- cha 2 (do ano 2010). Curiosamente o conflito
do processo. Para citar um caso, entre muitos, que subjaz a este caso não é muito diferente
a Corte Constitucional da Colômbia resolveu de outros no passado, inclusive o de La Cocha
que o “devido processo” deve ser entendido 1 (do ano 2002). Ainda que também tenham
interculturalmente: por exemplo, a ausência sido conflitivos e mediatizados, casos anterio-
270 Boaventura de Sousa Santos

res foram resolvidos com o fortalecimento das justiça — como diria García Linera — pode
comunidades e o respeito pelos direitos dentro conduzir um deterioramento perverso dos me-
das comunidades. canismos de coordenação entre justiças já pra-
O diferente do caso La Cocha 2, analisado ticados. Por exemplo, nas comunidades de La
em nosso estudo no Equador, é que se apre- Cocha houve até agora um diálogo muito rico,
senta como pretexto para um enfrentamento uma coordenação muito ampla entre a justiça
político forte entre o Governo e as comunida- indígena e a justiça comum, em que intervêm
des indígenas e para aprofundar a divisão no os policiais e os funcionários da justiça co-
interior das comunidades indígenas. Falamos mum. Lamentavelmente este diálogo se rom-
de comunidades altamente partidarizadas peu como resultado do caso La Cocha 2 e se
que transformam a justiça indígena em um ar- agrava com o silêncio da Corte Constitucional.
gumento ou tema mais de politização. Estes O silêncio está destruindo toda esta dinâmica
fatos explicam uma situação estranha e ex- de cooperação.
tremamente preocupante: que não tenha uma
decisão rápida da Corte Constitucional no A defesa da justiça indígena
caso. Este silêncio e omissão são inaceitáveis pelo Direito Internacional
em um momento crucial de construção cons- É verdade que, no âmbito constitucional aqui
titucional. No final, não é a comunidade ou a analisado, a justiça indígena deve reconhecer a
justiça indígena as que serão desacreditadas; o primazia do Direito Internacional dos Direitos
desprestígio vai recair sobre a justiça comum e Humanos (DIDH), algo que defendemos enquan-
sobre a própria Corte Constitucional. to este campo normativo for interpretado em
É necessária, então, uma coordenação de termos interculturais e não somente em termos
suma positiva entre a justiça indígena e a jus- da filosofia liberal que esteve em sua origem.
tiça comum. O caso La Cocha 2 mostra igual- Mas não é menos verdade que o DIDH contém,
mente que as decisões judiciais devem ser por sua vez, normas que protegem a justiça in-
oportunas segundo prazos razoáveis, mas em dígena, como o Convênio Nº 169 da OIT (sobre
especial devem ser decisões que prestigiem e Povos indígenas e tribais em países independen-
fortaleçam tanto a justiça indígena quanto a tes, de 1989) e a Declaração das Nações Unidas
justiça comum. Este “empate catastrófico” da sobre os direitos dos povos indígenas (de 2007).
Quando os excluídos têm direito: Justiça indígena, plurinacionalidade e interculturalidade 271

Este direito internacional veio plasmar, de texto sociopolítico em que emerge é uma sen-
melhor ou pior modo, a atuação das institui- tença verdadeiramente importante. Mas, como
ções dos diferentes sistemas regionais de direi- sugere a própria declaração do povo Sarayaku,
tos humanos. É o caso do Sistema Interameri- a sentença da Corte não significa um reconhe-
cano de Direitos Humanos e de suas duas insti- cimento pleno da autodeterminação indígena.
tuições principais: a Comissão Interamericana As limitações são outros tantos campos de
de Direitos Humanos e a Corte Interamericana polêmica na jurisdição internacional sobre os
de Direitos Humanos. Apesar das críticas sobre povos indígenas: o reconhecimento do prin-
elas, a Comissão e a Corte tomaram decisões cípio de autonomia interna dos povos indíge-
importantes, em especial na última década, a nas como princípio do qual emanam todos os
favor do reconhecimento das posições indí- outros; o impacto da plurinacionalidade no
genas sobre o princípio de autodeterminação entendimento e na extensão do princípio de
com um impacto direto na justiça indígena, autonomia; o tempo, a natureza, o processo e
considerada um componente essencial da au- os objetivos da consulta (consulta ou consen-
tonomia interna dos povos indígenas e do con- timento); o subsolo (em especial os recursos
trole sobre os seus territórios. naturais) como parte dos territórios; a possível
No último dia 27 de julho, a Corte emitiu uma contradição entre a racionalidade que preside
sentença sobre um litígio que se arrasta há uma as cosmovisões indígenas e a exploração de re-
década e meia entre o povo Kichwa Sarayaku e cursos para fins comerciais; a identificação dos
o governo equatoriano (Povo Indígena Kichwa infratores (somente o Estado ou também as
de Sarayaku versus Equador). Esta sentença é empresas multinacionais?); critérios para uma
notável pela análise detalhada dos fatos, pelo repartição justa dos benefícios; etc.
tratamento jurídico cuidadoso do quadro nor-
mativo que pode servir de base à resolução do Propostas
litígio. Nela se condena o Estado equatoriano O laborioso trabalho de pesquisa que realiza-
por não ter salvaguardado os direitos do povo mos neste estudo comparado permitiu chegar
Sarayaku, em especial o direito à consulta. a conclusões que nos habilitam para formular
Esta sentença foi comemorada como uma com confiança algumas propostas para a con-
vitória para o povo Sarayaku, já que no con- dução dos projetos constitucionais na Bolívia
272 Boaventura de Sousa Santos

e no Equador a fim de fortalecê-los e, desse 2. Levar a sério a justiça indígena não é


modo, vencer as forças que estão empenhadas levar a sério o projeto de transformação
no caminho da desconstitucionalização. Estas pluralista, descolonizador e democratiza-
propostas se dirigem aos governos dos dois pa- dor da sociedade e do Estado. Na Bolívia
íses, aos partidos e organizações políticas, aos e no Equador isto significa levar a sério o
movimentos e organizações sociais e indígenas projeto constitucional. Este projeto impli-
e aos cidadãos e cidadãs em geral. ca o reconhecimento prático do pluralismo
1. A especificidade da justiça indígena resi- jurídico como parte de um processo mais
de em que os povos indígenas não são ape- amplo que envolve o reconhecimento do
nas indivíduos que têm direitos consagra- pluralismo político plurinacional, o plura-
dos no direito comum. São comunidades lismo na gestão do território, o pluralismo
que têm direito próprio. Esta especificidade intercultural e o pluralismo das formas de
está patente no título do meu texto. A dupla organizar a economia e conceber a proprie-
existência jurídica dos povos indígenas é a dade. Este reconhecimento pluridimensio-
expressão de uma conquista política ine- nal implica que os avanços e retrocessos
quivocamente positiva para o conjunto da no pluralismo jurídico são simultaneamen-
sociedade e não só para os povos indígenas. te produtos e produtores de avanços e re-
Trata-se de uma reparação histórica alcan- trocessos no pluralismo político, cultural,
çada por meio de séculos de resistência ati- territorial e socioeconômico.
va e de sofrimento inenarrável. 3. O tratamento a dar à justiça indígena não
Esta duplicidade jurídica significa que os é uma questão de técnica jurídica, ainda
povos indígenas são, por assim dizer, bilín- que tenha uma forte dimensão técnica. É
gues do ponto de vista jurídico. Falam dois sobretudo uma questão política. Uma su-
direitos: o próprio, que lhes compete como posta concepção não política desta questão
povos ou nações; e o direito comum, que esconde a opção política de reduzir a justi-
lhes compete como cidadãos bolivianos ou ça indígena a uma excrescência técnica ou
equatorianos. Este é o sentido do pluralis- a um localismo cultural que para ser inofen-
mo jurídico plurinacional. sivo tem que ser mantido dentro do que é
aceitável na normatividade eurocêntrica,
Quando os excluídos têm direito: Justiça indígena, plurinacionalidade e interculturalidade 273

isto é, dentro do que é discutível neste lado 6. A unidade plurijurídica e plurinacional


da linha. A demonização descaracterizado- do Estado é garantida pela subordinação
ra da justiça indígena choca frontalmente das duas justiças e não somente da justiça
com o projeto constitucional e, por isso, so- indígena à Constituição e ao Direito Inter-
mente serve a quem o quer destruir. nacional dos Direitos Humanos (DIDH).
4. Nos países estudados, o futuro da justi- Esta subordinação deve ter em mente que a
ça comum está intrinsecamente ligado ao justiça comum pertence ao mesmo univer-
futuro da justiça indígena e vice-versa. so cultural a que pertencem a Constituição
Querer fortalecer, prestigiar ou legitimar e o DIDH, o que facilita a interpretação e
uma a custa da outra tende a produzir o adjudicação jurídicas. No caso da justiça
efeito contraproducente de provocar o en- indígena, o assunto é mais complexo por-
fraquecimento, o desprestígio e a deslegiti- que pertence a um universo cultural total
mação de ambas justiças. ou parcialmente diferente. Daí que uma su-
bordinação politicamente correta da justiça
5. Uma igualdade robusta entre as duas jus-
indígena à Constituição e ao DIDH implica
tiças implica, pelo menos temporalmente,
sua abordagem intercultural.
a discriminação positiva a favor da jus-
tiça indígena. Após séculos de discrimina- Esta abordagem supõe um tríplice reco-
ção negativa (opressão, humilhação, des- nhecimento. Primeiro, o reconhecimento
conhecimento, negação, criminalização) é de que tanto a Constituição quanto o DIDH
necessário adotar medidas diferenciadas expressam valores cujo espírito deve ser
para permitir à justiça indígena a possibi- respeitado. Segundo, o reconhecimento de
lidade de gozar efetivamente de igualdade. que a concretização desses valores não é
Com as necessárias adaptações, devemos culturalmente neutra e, por isso, pode ser
recorrer à discriminação positiva do tipo obtida por via de diferentes mediações cul-
de que hoje, em vários países, garante o turais. Por exemplo, o valor da igualdade
acesso à educação superior de grupos so- entre o homem e a mulher é um valor a se
ciais que foram historicamente vítimas do respeitar incondicionalmente. No entanto,
racismo (indígenas e afrodescendentes). sua realização pode ser alcançada por via
da simetria e da paridade eurocêntricas ou
274 Boaventura de Sousa Santos

da complementaridade chacha-warmi indí- o Tribunal Constitucional de Transição no


gena. Cada uma destas vias deve ser seguida Equador opta por não decidir no caso de La
de acordo com uma lógica de pertencimen- Cocha 2. Ambas justiças saem debilitadas,
to cultural crítico e não segundo uma lógica desprestigiadas e deslegitimadas de tão ab-
de alienação cultural. E terceiro, o reconhe- surda omissão.
cimento de que qualquer destas vias está su- 8. A coordenação de baixo entre a justiça
jeita à discrepância entre o que se proclama indígena e a justiça comum deve ser va-
em abstrato ou publicamente e o que se pra- lorizada toda vez que expressa o rito e a
tica na vida concreta, pública e privada. direção da construção de interlegalidade.
7. A coordenação entre as duas justiças deve As práticas concretas de convivência ou de
ser conduzida segundo a lógica da ecolo- articulação entre as duas justiças realizadas
gia de saberes jurídicos e não segundo a pelas populações são múltiplas e revelam
lógica da dualidade de saberes jurídicos. a criatividade social e cultural muito mais
Será um processo longo de transição que além do que pode ser legislado. Tais práti-
irá avançando à medida que as duas justi- cas incluem a utilização de cada uma delas
ças se dispuserem a aprender uma com a como instância de recurso para decisões da
outra e a enriquecer-se mutuamente por outra; a hibridação conceitual e processual;
meio dos mecanismos de convivência que o chamado fórum shopping, isto é, a opção
criam. Neste processo, as complementarie- por uma das justiças na presença sempre
dades entre o direito comum e o direito in- que a outra aparece como estruturalmente
dígena deverão ser ampliadas e celebradas tendenciosa a favor ou contra uma das par-
como lucro democrático. Por sua vez, as tes (como no caso das mulheres indígenas
contradições devem ser resolvidas de acor- que recorrem à justiça comum em situa-
do com uma lógica de soma positiva, ou ções de violência doméstica).
seja, mediante decisões ou procedimentos
dos que resulte o esforço jurídico, o prestí- Conclusão
gio social e a legitimação política das duas
Depois de dois anos de estudo e de um am-
jurisdições em presença. Isso não aconte-
plo e cuidadoso processo de trabalho de cam-
ce, por exemplo, como já foi dito, quando
Quando os excluídos têm direito: Justiça indígena, plurinacionalidade e interculturalidade 275

po, sistematização e análise, a equipe de pes- concepções de cultura, de justiça, de poder e


quisa de ambos países produziu um conjunto de economia.
de dados e análises novas que podem contri- Ao longo da nossa pesquisa ficou muito cla-
buir positivamente ao desafio de avançar, em ro que a questão da justiça indígena não é uma
países como a Bolívia e o Equador, em direção questão (somente) cultural. É igual e principal-
a uma nova forma de convivência entre os sis- mente uma questão de economia política. O fu-
temas jurídicos. turo da justiça indígena depende de saber se o
Nossa pesquisa mostra que o estudo das re- timão vai na direção do capitalismo dependen-
lações entre a justiça e a justiça comum não te (neoextrativista) ou na direção do sumak
é um estudo das relações entre o tradicional e kawsay ou suma qamaña.
o moderno. É mais um estudo entre duas mo- Se realmente se busca cumprir o manda-
dernidades rivais, uma indocêntrica e outra eu- to constitucional de uma coordenação entre
rocêntrica. Ambas são dinâmicas e cada uma justiças em um Estado plurinacional, deve-se
delas tem regras próprias para se adaptar ao ir caminhando lentamente das dualidades de
novo, para responder frente às ameaças, enfim, saberes jurídicos às ecologias de saberes jurí-
para se reinventar. dicos. Será um caminho politicamente muito
Tanto a justiça indígena quanto a justiça co- difícil, com muito sofrimento humano, árdua
mum são parte de contextos políticos, sociais luta política, muita incompreensão e forte po-
e culturais, e devem ser entendidas nesses larização. Talvez seja uma utopia. No entanto,
contextos. Os projetos constitucionais nos uma utopia realista.
dois países não criarão somente uma situação Seja como for, os avanços não são irreversí-
de pluralismo jurídico. Darão lugar a múltiplos veis. As constituições políticas da Bolívia e do
pluralismos que, por enquanto, surgem no de- Equador não estão escritas em pedra e para
bate político e na luta social como múltiplas sempre. Ao contrário, são projetos políticos
dualidades: de saberes, de temporalidades, de importantes e novos, mas também muito vul-
reconhecimentos, de escalas e de produtivida- neráveis. Expressam uma luta entre o velho e
des. O projeto constitucional avança à medida o novo. As transições são sempre assim. Seu
que tais dualidades se tornam ecologias, isto desenlace sempre é incerto. Estamos diante
é, sistemas de convivência entre diferentes de uma aposta decisiva para a vida dos dois
276 Boaventura de Sousa Santos

países nas próximas décadas. Todos temos a paisagem das justiças em Moçambique
responsabilidade de saber de que lado esta- (Porto: Afrontamento).
mos. Estamos do lado do velho ou do lado do Santos, B. de Sousa e Van Dúnem, J. O.
novo? A equipe que realizou este estudo apos- Serra (eds.) 2012 Sociedade e Estado
ta, sem dúvidas, pelas possibilidades emanci- em construção: desafios do direito e da
padoras do novo. democracia em Angola. Luanda e justiça:
pluralismo jurídico numa sociedade
Bibliografia em transformação — V. I (Coimbra:
Santos, B. de Sousa 2003 “O Estado Almedina).
heterogêneo e o pluralismo jurídico” in
Santos, B. de Sousa e Trindade, J. (eds.)
Conflito e transformação social: uma
paisagem das justiças em Moçambique
(Porto: Afrontamento).
Santos, B. de Sousa 2009a Sociología jurídica
crítica. Para un nuevo sentido común en
el derecho (Madrid: Editorial Trotta).
Santos, B. de Sousa 2009b Una epistemología
del Sur (México, DF: Siglo XXI Editores).
Santos, B. de Sousa 2010 Refundación del
Estado en América Latina. Perspectivas
desde una epistemología del Sur (La Paz:
Plural Editores).
Santos, B. de Sousa e García-Villegas, M. (eds.)
2001 El caleidoscopio de las justicias
en Colombia (Bogotá: Siglo de Hombre
Editores).
Santos, B. de Sousa e Trindade, J. C. (eds.)
2003 Conflito e transformação social: uma
Para uma teoria sócio-jurídica
da indignação
É possível ocupar o direito?*

N este trabalho, apresento uma proposta


preliminar para uma teoria sócio-jurídica
do direito à luz da novíssima onda de protes-
(queda do muro de Berlim), que conduziram a
mudanças estruturais em todo o mundo. Pare-
ce-me exagerada uma tal caracterização das re-
tos sociais que tiveram lugar entre 2011 e 2013 voltas da indignação, sobretudo tendo em men-
em diferentes países e regiões do mundo. A sua te as mudanças, muito desiguais de país para
intensidade e dispersão atingiu uma magnitu- país, a que deram azo. Aponta, no entanto, para
de que levou Christopher Chase-Dunn (2013) o significado da simultaneidade dos processos,
a caracterizar este período como a “Revolu- da semelhança dos modos convocação e da
ção Mundial de 2011”, uma data equivalente a convergência das narrativas da transformação.
outros importantes momentos de mobilização
popular e protesto, tais como 1789 (revolu- As revoltas da indignação
ção francesa), 1791-1804 (revolução haitiana), Os protestos que tenho em mente são a Pri-
1848 (revoluções burguesas que atravessaram mavera Árabe no Norte de África e no Próximo
vários países europeus), 1911 (revolução chi- Oriente1, o movimento Occupy Wall Street, que
nesa), 1917 (revolução russa), 1959 (revolução subsequentemente se expandiu para outras ci-
cubana), 1968 (movimento estudantil), e 1989

* Extraído de Santos, B. de Sousa 2017 “Para uma teoria 1 Ver Bradley (2012a) e (2012b). Ver também
sócio-jurídica da indignação: É possível ocupar o direito?” in Noueihed e Warren (2012); Pollack (2011); Seigneurie
As Bifurcações da Ordem. Revolução, Cidade, Campo e In- (2012: 484-509); Weyland (2012: 917-934); Tanoukhi e
dignação (Coimbra: Almedina) pp. 356-380. Mazrui (2011: 148-162) e Kuhn (2012: 649-683).
278 Boaventura de Sousa Santos

dades americanas2, o movimento dos indigna- junho de 2013, os protestos maciços no Brasil
dos na Europa do Sul3, o movimento estudantil contra os transportes públicos e os serviços
chileno de 20124, o movimento #Yosoy132 con- públicos em geral6. Isto para não falar de ou-
tra a fraude eleitoral no México5, e por fim, em tros contextos de luta com menor visibilidade
mediática, mas não menos importantes, como,
por exemplo, a África do Sul, que em 2012 as-
2 Ver Pickerill e Krinsky (2012: 279-287); Hedges sistiu a mais protestos sociais que qualquer
(2013); Greene e Kuswa (2012: 271-288); Edelman (2013: outro lugar do mundo7. Ou da Índia8, onde se
99-118); Calhoun (2013: 27-38); Gitlin (2012, 2013a: 3-25,
2013b: 39-43); Harcourt (2012: 33-55); Byrne, (org.) desenrola uma tremenda luta dos camponeses
(2012); Gessen et al. (orgs.) (2011); Van Gelder (org.) contra a pilhagem dos seus recursos naturais, a
(2011); Writers for the 99% (2012); Roberts (2012: 754- mesma que enfrentam também os camponeses
762); Mitchell (2012: 8-32); Taussig (2012: 56-88); Nixon moçambicanos9 e tantos outros em distintas
(2012: 3-25); Pickerill e Krinsky (2012: 279-287).
partes do mundo10. Apesar de não abordar aqui
3 Sobre os protestos e mobilizações em Espanha,
Portugal e na Grécia, ver SuNotissima et al. (2012);
Castañeda (2012: 1-11); Calle Collado (2011 e 2012: 61- 6 Ver Arantes (2013); Vainer (2013); Weissheimer
69); Charnock e Ribera-Fumaz (2014); Cruells e Ibarra (2013); Porto-Gonçalves e Soares (2013) e Oliveira
(orgs.) (2013); Fuster Morell (2012: 386-392); Gámez (2013); Vainer et al. (2013); Peschansky e Moraes (2013:
Fuentes (2015: 1-7); González-Bailón et al. (2013: 943- 111-124).
965); Kornetis (2014: 1-16); La Parra Pérez (2014: 1-19);
Peña-López, Congosto e Aragón (2013: 359-386); Taibo 7 Ver Holdt et al. (2011); Alexander, Lekgowae Mmo-
(2013: 155-158); Viñas Viejo (2012: 123-156); Mendes pe (2012); Friedman (2012); Zuern (2013: 175-180 e
(2013); Theodossopoulos (2013: 200-221); Feixa e Ju- 2015: 477-486); Clark (2014); Nyamnjoh (2016).
ris (2009: 421-442); Monedero (2013); Nuño de la Rosa 8 Para o caso da Índia, ver Sharma, (2012); Kunnath
(2014: 111-125); Aguirre Rojas (2012). Ver também Fo- (2012); Levien (2012: 933-969); Lerche, Shah e Harriss-
minaya Flesher (2014a: 1-22, 2014b e 2014c). -White (2013: 337-350); Baka (2013: 409-428); Sampat
4 Sobre este movimento, ver Oyarzún Serrano (2012: (2015: 765-790).
227-228); Espinoza e González (2012: 1-2); Rifo (2013: 9 Sobre Moçambique, ver Mosca e Selemane (2011);
223-240); Martín, Muñoz e Solís (2013: 1-17). Human Rights Watch (2013); Brito et al. (2014); Castel-
5 Ver Meneses (2015); Sancho (2013) e “Manifesto -Branco (2014); Mosse (2014); Via Campesina (2015);
del #YoSoy132 al pueblo de México”: disponível em Mimbire (2016).
<http://www.yosoy132media.org/asambleas-2/asamble- 10 Para uma visão geral dos protestos, ver Werbner,
as-metropolitanas/discurso-frente-a-televisa/>. Webb e Spellman-Poots (orgs.) (2014).
Para uma teoria sócio-jurídica da indignação: É possível ocupar o direito? 279

de modo específico estas lutas, não quis deixar São mobilizações das classes trabalhadoras e
de lhes fazer referência pela sua importância incidem sobre questões económicas ou mate-
no contexto em questão. riais (direitos laborais). Procuram ter impacto
Não é meu propósito apresentar aqui uma nas políticas públicas e, portanto, também no
caracterização plena das diferentes revoltas e Estado. Por sua vez, os novos movimentos so-
protestos, do seu contexto histórico, composi- ciais resultam das contradições da sociedade
ção social, orientação política, formas de mobi- pós-industrial que afetam sobretudo a velha e
lização, discursos e narrativas de resistência e a nova classe media; veem-se como emanações
alternativa. Limito-me a algumas observações da sociedade civil, só marginalmente se inte-
analíticas que podem ajudar a fundamentar o ressam pela política partidária e a sua acção é
argumento principal deste trabalho. Nos últi- dirigida a questões culturais, de estilo de vida
mos quarenta anos, as teorias ocidentalocên- e identitárias. Embora organizados de acordo
tricas dos movimentos sociais têm vindo a pro- com diferentes lógicas, tanto os velhos como
por uma distinção chave entre novos e velhos os novos movimentos sociais possuem algum
movimentos sociais11. Embora discordando em grau de institucionalização, embora os novos
muitas questões, estas teorias tendem a concor- movimentos sociais tendam a resistir à buro-
dar com a classificação do movimento laboral cratização. Embora possam organizar protes-
como velho, e dos movimentos que emergiram tos e outras formas de ação direta, a sua activi-
(ou se fortaleceram) nos finais dos anos ses- dade não se centra neles.
senta do século passado, em resultado do mo- Critico, em outro lugar, algumas das linhas
vimento estudantil, como novos, tal como os analíticas e conceptuais que fundamentam es-
movimentos feministas, indígenas, ecológicos, tas caracterizações12. Aqui, refiro apenas o ca-
anti-racistas, pacifistas, gays e lésbicas. Segun- racter duplamente ocidentalocêntrico destas
do estas teorias, os movimentos velhos surgi- teorias. Embora os dois tipos de movimentos
ram das contradições da sociedade industrial. possam coexistir num dado país num determi-
nado momento, as categorias usadas (“velho” e
“novo”) apontam para uma sequência histórica.
11 Ver McAdam; McCarthy e Zald (orgs.) (1996); McA-
dam, Tarrow e Tilly (2001); Habermas (1981); Touraine
(1985: 749-787); Laclau (1985); Mouffe (1984: 139-143);
Melucci (1980: 199-226). 12 Ver Santos, 2006b.
280 Boaventura de Sousa Santos

De facto, esta sequência pode corresponder tos que, superficialmente, pela sua temática e
às realidades sociológicas e políticas do Norte tipologia de organização, poderiam ser classi-
global (Europa e América do Norte) mas tem ficados como novos movimentos; no entanto,
muito pouco que ver com as condições sociais de facto encontram-se envolvidos em questões
de outras regiões do mundo. No Sul global — a políticas e económicas, de produção e distribui-
maior parte do qual esteve sob o domínio co- ção, que confrontam directamente o Estado ca-
lonial europeu até meados do século passado pitalista. Por exemplo, os movimentos ecológi-
e mesmo finais do século, no caso dos países cos em todo o Sul global que lutam contra mega
sujeitos ao colonialismo português — e mesmo projectos, roubo de terras, deflorestação, e a
nos países da Europa do Sul que estiveram su- sobre-exploração dos recursos naturais procu-
jeitos a regimes ditatoriais ao longo de muitas ram defender os seus direitos ancestrais à água,
décadas, movimentos sociais velhos e novos terra e território. Trata-se de um “ecologismo
emergiram virtualmente em simultâneo. Além dos pobres”, como lhe chamou Joan Martinez
disso, a distinção entre questões materialistas e Alier14, que envolve questões materiais e econó-
não materialistas é altamente problemática fora micas, assim como questões culturais, identitá-
do Norte global13. Existem muitos movimen- rias ou de estilo ou modo de vida.
Na última década, e seguindo a mesma sequ-
ência lógica, surgiu uma terceira categoria de
13 Referindo-se especificamente ao caso do Brasil,
Reiter (2011: 153-168) afirma que o conceito de “novos movimentos sociais, os “novíssimos movimen-
movimentos sociais” caracterizado pela incidência na tos sociais”15, ou “novos novos movimentos
identidade não pode ser linearmente transferido para o
contexto latino-americano. A América Latina nunca vi-
venciou o viés pós-materialista que levou os movimen- giram como resposta às novas oportunidades financei-
tos sociais europeus a serem denominados “novos”. ras proporcionadas por doadores internacionais e ao
Mais ainda, como o caso das organizações negras no carácter patrimonialista e autoritário do Estado, uma
Brasil demonstra, os movimentos sociais latino ameri- realidade que o conceito de novos movimentos sociais
canos baseados na identidade são muito mais antigos é incapaz de captar.
do que a literatura sugere. O que constituiu de facto
uma novidade latino americana dos anos de 1980 foi a 14 Ver Alier (2003).
emergência massiva de organizações não-governamen- 15 Tenho usado esta categoria no meu trabalho, em-
tais (ONGs). No caso do Brasil, estas organizações sur- bora de um modo desviante ou heterodoxo. Insatisfeito
Para uma teoria sócio-jurídica da indignação: É possível ocupar o direito? 281

sociais”16. Richard Day (2005: 1-15) defende que momento em que uma nova militância irrompe
o novo activismo radical que surgiu nos finais na superfície daquilo que de outro modo seria
da década de noventa e nos inícios de 2000 re- uma serena política democrática liberal. Na
presenta um novo tipo de acções colectivas ca- década seguinte foram sucedidos por muitas
racterizadas pelo seu posicionamento radical, mobilizações de tipologia similar ou não, mas
embora as suas raízes recuem até aos novos sempre guiados por repertórios de luta autóno-
movimentos sociais dos anos de 1960 — femi- mos e anarquistas.
nismos, movimento Americano pelos direitos Falando de um modo geral, estas mobiliza-
civis, Poder Vermelho (movimentos dos índios ções são de um tipo semelhante àquelas que
norte-americanos), anti-colonialismo, lutas inspiraram o uso do conceito de “multitude” por
gay e lésbicas — e, recuando ainda mais no Toni Negri e Michael Hardt (2000) em Empire.
tempo, até às “velhas” tradições do marxismo Mas Day (2005: 5) rejeita este conceito porque,
e do socialismo anarquista. Para Day, o novo do seu ponto de vista, “parece muito difícil re-
activismo radical emerge com os protestos de conciliar o proletariado global com as críticas
Seattle em 1999 contra a Organização Mundial pós-marxistas das políticas que dão centralida-
do Comércio (OMC) durante a reunião dos pa- de às lutas da classe operária, ou com os apelos
íses do G8, que segundo este autor, marcam o do feminismo anti-racista por uma descoloni-
zação da teoria e o exercício da solidariedade
em todos os eixos da opressão”. Segundo Day
com a viragem cultural da teoria crítica nos anos oiten- (2005: 5), o “activismo radical contemporâneo”
ta, e particularmente com o foco excessivo na socieda-
não busca um retorno à teoria e à prática da
de civil (um conceito muito problemático do meu ponto
de vista, ver Santos, 2002b: 457), e o correspondente Velha Esquerda do século XIX e inícios do XX,
abandono da problemática estatal, transformada num nem à Nova Esquerda dos anos de 1960 a 1980.
tópico privilegiado do pensamento conservador, escre- O que se passa aqui é uma outra coisa, distinta,
vi sobre o “Estado como novíssimo movimento social” que tento por vezes identificar com o termo no-
com o objetivo de orientar a teoria crítica e as políti-
víssimos movimentos sociais de modo a des-
cas de esquerda no sentido de “repensar” e “refundar o
Estado”. Ver também Santos e Exeni (orgs.) (2012b) e crever as correntes que mais me interessam.”
Santos e Grijalva (orgs.) (2012c). Day argumenta, ainda, que os novíssimos
16 Ver Feixa, Pereira e Juris, 2009. movimentos sociais são radicais naquilo que
282 Boaventura de Sousa Santos

consideram ser mudanças fundamentais. Não mundo sem tomar o poder, inspirado nos Neo-
se referem apenas ao conteúdo dos modos de -Zapatistas. Enfatiza que mais do que o envolvi-
dominação e exploração actuais, mas também mento com o poder político, os novos activis-
às formas que lhes deram origem. Assim, por tas radicais lutam para recuperar, estabelecer
exemplo, as políticas radicais indígenas, em e aumentar a sua capacidade de determinar as
vez de defender o auto-governo no seio do Es- condições da sua própria existência, encora-
tado colonial, desafiam a noção europeia de jando outros a fazer o mesmo17.
soberania sobre a qual assentam os sistemas Esta análise tem sido objecto de críticas di-
estatais. Deste modo, o activismo radical con- versas18. Embora capte bem a natureza autóno-
temporâneo vai para além das possibilidades ma e neoanarquista de algumas das acções co-
e limites da reforma liberal, sem pôr de lado lectivas das décadas recentes, não oferece uma
completamente as tentativas de mudança do imagem adequada do activismo contemporâ-
status quo. Rejeita quaisquer políticas de in- neo como um todo, uma crítica que se aplica
tegração ou inclusão nas estruturas políticas igualmente às análises de Negri e Hart em Em-
e sociais existentes e, portanto, qualquer ten- pire. No meu trabalho sobre lutas sociais e po-
tativa de reformar ou transformar o Estado. líticas e mobilizações contemporâneas, tenho
Incide sobre experiências de pequena escala optado por uma abordagem mais ampla, epis-
na construção de modelos alternativos de or- temologicamente reflectida e empiricamente
ganização social, política e económica por ofe- fundamentada, enfatizando a diversidade e a
recerem um modo de evitar tanto uma espera heterogeneidade das diferentes formas de ac-
eterna pela chegada da revolução como a per- ção colectiva (Santos, 2006b). De facto, se nos
petuação das estruturas existentes por via de concentrarmos nos movimentos sociais e nas
reivindicaçõess reformistas. lutas que tem decorrido no Sul global, muitas
“Ao recusar apresentar reivindicações vão
para além do ciclo em que pedidos de ‘liber-
17 Para outras análises seguindo a mesma linha, ver
dade’ ou ‘direitos’ são usados para justificar
para além de Holloway (2002); Thompson (2008: 24-49).
uma intensificação do controlo e disciplina nas
18 Ver, por exemplo, a crítica de Patnaik (2008: 25-27)
sociedades” (Day, 2005: 15). Day ecoa o ma-
à crítica do conceito gramsciano de hegemonia retoma-
nifesto de John Holloway (2002) de mudar o do por Day. Ver também, Reitan (2007: 445-460).
Para uma teoria sócio-jurídica da indignação: É possível ocupar o direito? 283

das categorias analíticas (materialismo versus sa de contemporaneidade deve reconhecer a


cultura; velho versus novo versus novíssimo; coexistência de diferentes formas de ser con-
Estado versus sociedade civil; autónomas ver- temporâneo. As categorias usadas para descre-
sus orientadas para tomar o poder) são inade- ver acções colectivas provenientes de diferen-
quadas ou totalmente irrelevantes. Afinal, é a tes contextos devem ser utilizadas com alguma
epistemologia que conduz a análise que deve precaução. A advertência de Edward Said so-
ser sujeita ao escrutínio crítico. É o que tenho bre a viagem das teorias aplica-se igualmente
feito com a minha proposta das “epistemolo- às categorias analíticas (1983: 226-247). Estas
gias do Sul” (Santos, 2014). Neste sentido tento também viajam, e, se não prestarmos atenção
demonstrar na minha análise do Fórum Social às condições da viagem, podem conduzir-nos
Mundial, e dos movimentos e organizações que a análises reducionistas; a sobrecarga metodo-
nele convergem, que a celebração da diversi- lógica ou conceitual não conseguirá ocultar a
dade não impede a emergência de algumas pobreza do entendimento empírico. Se o pre-
formas de convergência e articulação, embora sente de diferentes acções colectivas responde
limitadas (Santos, 2006b). a diferentes passados (e provavelmente apela a
Para os objetivos analíticos deste texto, é futuros também distintos), devemos estar par-
importante levantar as seguintes questões. Pri- ticularmente atentos às diferenças entre elas
meiro, de forma a fazer justiça às diferentes for- mesmo quando são significativas as semelhan-
mas de acção colectiva que ocorrem tanto no ças superficiais. Uma análise irreflectida de um
Norte como no Sul global, devemos compreen- determinado tipo de acção colectiva orientada
der que a sua contemporaneidade se reduz ao para a identidade pode ignorar que a identida-
facto trivial de ocorrerem em simultâneo. A um de tem diferentes significados em diferentes
nível mais profundo, cada uma destas acções contextos e para diferentes grupos sociais, e
é contemporânea apenas com o seu contexto que, por isso, a economia política pode ser um
histórico, social e político, mesmo quando este fundamento identitário tão importante como a
contexto se relaciona de formas complexas cultura e ou a religião.
com outros contextos. Diferentes histórias não A segunda questão é que devemos distin-
podem encaixar confortavelmente num modo guir entre protestos e mobilizações, por um
único de ser aqui e agora. Uma concepção den- lado, e movimentos e organizações, por outro.
284 Boaventura de Sousa Santos

Os protestos e revoltas a que me refiro nes- velam ou escondem os vestígios de antigas ex-
te texto dificilmente podem ser concebidos periências, seja pelo recurso selectivo a elas,
como movimentos sociais, por, em geral, se seja pelas promessas, tantas vezes irrealistas,
apresentarem desprovidos de uma institucio- de ruptura e inovação. Uma tal acumulação
nalização mínima capaz de garantir a susten- de experiências sobrepostas deve preparar-
tabilidade das suas acções ao longo do tem- -nos para sermos confrontados, quer com uma
po. Obviamente, movimentos, associações e surpreendente ressurreição dos mortos, quer
organizações podem estar por trás dos pro- com a morte prematura das possibilidades
testos (sejam eles a Irmandade Muçulmana que pareciam até agora promissoras.
na Primavera Árabe do Egipto, ou diferentes Aos protestos e mobilizações que tiveram
“colectivos de barrio” no movimento dos in- lugar em diferentes regiões do mundo em 2011-
dignados em Espanha). Além disso, os protes- 2013 atribuí a denominação genérica de “re-
tos e mobilizações podem dar origem a novos voltas da indignação”. Concebo-as como pre-
movimentos, associações ou organizações. senças colectivas19, e não como movimentos,
Algumas das iniciativas autónomo-anarquis- sublinhando deste modo os diferentes traços
tas mencionadas por Day emergiram dos pro- que as caracterizam: o seu carácter extra-insti-
testos e mobilizações dos inícios de 2000 ou tucional, organização minimalista, surgimento
foram fortalecidas por eles. Algumas destas inesperado, espontaneidade real ou aparente
associações e movimentos autónomos repre- de agregação, volatilidade (uma imensa capa-
sentam um dos caminhos da resistência con- cidade de se mover de demandas limitadas ou
tra o capitalismo, colonialismo e patriarcado, locais para demandas amplas e nacionais) e,
mas estão longe de representar a totalidade em geral, presença efémera. As palavras “digni-
do “activismo radical contemporâneo”. Em dade”, “indignação” e “indignidade” foram am-
termos de activismo social (ou ausência de ac- plamente utilizadas nos protestos. No sentido
tivismo social, dependendo das expectativas e que aqui lhe atribuo, “indignação” não se refere
frustrações), o nosso tempo é um palimpses- exclusivamente ao movimento dos indignados
to em que diferentes experiências sociais têm
sido sobrepostas em camadas sucessivas; as
novas ou mesmo novíssimas experiências re- 19 Ver Santos (2014: 192) e Santos (2015: 17-36).
Para uma teoria sócio-jurídica da indignação: É possível ocupar o direito? 285

da Europa do Sul. Trata-se antes, de uma desig-


nação genérica que abrange todos os protestos
ocorridos entre 2011 e 2013, e que pode ser usa- indignação geral, esta pode conduzir à revolta e à con-
sequente destabilização do regime. Se não fosse pela
da para expressar a revolta contra um estado de
indignação, os tiranos poderiam continuar a cometer
coisas extremamente injusto (“indignação”) ou excessos sentindo-se seguros, enquanto que os sujeitos
para caracterizar um estado de coisas que priva se continuariam a sentir cada vez mais receosos e iso-
um indivíduo ou um grupo da dignidade huma- lados. Como Stolze enfatiza, a indignação é responsá-
na mais básica (“indignidade”). Para Espinosa20, vel tanto pela queda como pela ascensão de Estados.
Assim, a indignação está intimamente ligada tanto ao
a indignação está ligada à revolta da multitude medo como à esperança. Sendo uma paixão, afecto ou
contra a injustiça das leis. A indignação é a rai- emoção negativa, a indignação só pode ser convertida
va que se produz em cada um contra o mal que num sentimento activo quando submetida àquilo a que
é feito a nós ou ao outro; não existe indignação Espinosa na Ética denominou de “terapia cognitiva”.
sem a convicção de que alguém sofreu um dano Dado que as paixões contêm elementos de percepção
e crença, é possível transformá-las, através da razão,
injusto21. O registo é ético e mobiliza as razões em percepções e crenças mais positivas e enriquece-
doras. Stolze especula sobre o modo como esta tera-
pia cognitiva poderia funcionar no caso da indignação:
20 Ver Espinosa (2000). “Não se trataria de eliminarmos o efeito de indignação
21 Dada a frequência com que a ideia de indignação mas antes de usarmos a razão para reconstruir imagi-
surge nos protestos e nos debates políticos correntes, nativamente as causas subjacentes à indignação. Esta
pode ser útil analisar o conceito tal como ele é enten- reconstrução teria um duplo efeito (a) transformar a
dido por Espinosa, um dos filósofos da modernidade indignação, de uma influência triste, numa influência
ocidental que mais atenção dedicou às questões éticas feliz e (b) aumentar o nosso poder para compreender,
e políticas. Embora a indignação (indignatio) seja re- agir, ou talvez mesmo eliminar a fonte da indignação”
ferida apenas nove vezes nos escritos de Espinosa (na (Stolze, 2000: 14). Isto pode parecer demasiado opti-
Ética e Tratado Político, ver Giancotti 1970, trata-se de mista, dados os limites do conhecimento racional em
um conceito central da filosofia Espinosiana. Ver Stolze Espinosa. Devemos recordar que a forma mais elevada
(2000); Macherey (1994) e Matheron (1988, 1994: 153- de conhecimento para Espinosa, era o “terceiro tipo de
165). Segundo Espinosa, a indignação é uma paixão que conhecimento”, o conhecimento intuitivo das nossas
consiste em “um ódio por alguém que fez mal a outrem” emoções. Sobre os limites do pensamento racional em
(Espinosa, 1993), sendo uma tristeza atribuída a uma Espinosa, ver DeDijn (2004: 37-56). Para uma análise
causa externa. Sempre que os tiranos, ou os regimes psicológica da indignação, ver por exemplo Kahneman,
opressivos em geral, agem de um modo tal que incita à Daniel e Sunstein (2007).
286 Boaventura de Sousa Santos

e paixões que abundam nestes protestos22. A as seguintes características. Primeiro, a indig-


ênfase é colocada na acção colectiva e na re- nação resulta da extrema desigualdade social
jeição radical de um determinado status quo, das sociedades capitalistas contemporâneas.
e não na imaginação de uma sociedade futura A intensidade da denúncia é expressa na po-
melhor. Apela à rebelião ou à revolta mais do larização entre os 1% da sociedade e os 99% da
que à revolução ou à reforma. Esta negativida- sociedade. De facto, esta denúncia é já muito
de constitui o cerne de uma concepção de direi- antiga. Consideremos a seguinte citação:
to implícita em muitos dos protestos, embora
as diferenças significativas entre eles convidem Se uma pessoa não soubesse nada acerca da vida
a uma maior especificação. do povo deste nosso mundo cristão e lhe fos-
Em geral, podemos identificar nos protestos, se perguntado “há um certo povo que organiza
com maior ou menor primazia ou intensidade, o modo de vida de tal forma que a esmagadora
maioria das pessoas, noventa e nove por cen-
to delas, vive de trabalho físico sem descanso e
22 Tenho defendido que a racionalidade que subjaz sujeita a necessidades opressivas, enquanto um
às ações tanto das sociedades como dos indivíduos é por cento da população vive na ociosidade e na
composta de duas correntes, a corrente fria e a corren- opulência. Se o tal um por cento da população
te quente. A corrente fria é a corrente do conhecimen- professar uma religião, uma ciência e uma arte,
to dos obstáculos e das condições da transformação.
que religião, arte e ciência serão essas?” A respos-
A corrente quente é a corrente da vontade refletida de
agir, de transformar, de vencer os obstáculos. A corren- ta não poderá deixar de ser: “uma religião, uma
te fria impede-nos de sermos enganados; conhecendo ciência e uma arte pervertidas”.
as condições e os obstáculos mais dificilmente nos dei-
xamos condicionar. A corrente quente, por sua vez, im- Dir-se-á que se trata de um extracto dos
pede-nos de nos desiludirmos facilmente; a vontade do manifestos do Movimento Occupy ou do Mo-
desafio sustenta o desafio da vontade. O medo exagera-
vimentos dos Indignados do início da presente
do de sermos enganados acarreta o risco de transfor-
mar as condições em obstáculos incontornáveis e, com década. Nada disso. Trata-se de uma entrada
isso, conduzir ao quietismo e ao conformismo. Por sua do diário de Leão Tolstói no dia 17 de março
vez, o medo exagerado de nos desiludirmos cria uma de 1917, pouco tempo antes de morrer (Tols-
aversão total a tudo o que não é visível nem palpável e, tói, 1934). Segundo, a indignação surge contra
por esta outra via, conduz igualmente ao quietismo e ao
conformismo (Santos, 2006a: 118-119).
a emergência ou endurecimento da ditadura,
Para uma teoria sócio-jurídica da indignação: É possível ocupar o direito? 287

seja sob a forma de uma ditadura pessoal (na Quarto, os protestos são, na esmagadora
Primavera Árabe) ou da uma ditadura impes- maioria dos casos, pacíficos, mesmo quando
soal (disfarçada de democracia) dos mercados confrontados com a brutalidade policial. Final-
financeiros e do capital financeiro global (Oc- mente, as redes sociais do ciberespaço cons-
cupy e movimentos dos indignados). Domina tituíram o elemento chave para a agregação e
um imaginário democrático (não socialista), articulação desta resistência.
baseado na distinção entre o ideal de democra- Apesar destas características gerais comuns
cia (ou “democracia real”) e as democracias de são significativas as diferenças entre os protes-
baixa intensidade da realidade política do nos- tos e mobilizações de 2011 e 2013. Distingo três
so tempo. genealogias: a Primavera Árabe; a indignação
Terceiro, a desconfiança nas instituições no Sul da Europa e no Brasil; e os movimen-
estatais e não estatais, justifica a preferência tos Occupy nos Estados Unidos. A Primavera
por formas de luta extra-institucionais. Os in- Árabe (que agrega protestos e mobilizações
dignados nas sociedades democráticas partem muito distintas) emergiu das ruínas do nacio-
do princípio que as instituições democráticas nalismo Árabe, uma espécie de nacionalismo
foram “ocupadas” pelos grupos ou interesses populista cujo líder mais destacado foi Gamal
não democráticos dominantes. As instituições Abdel Nasser, Presidente do Egipto entre 1958
estão vigentes, mas não desempenham as fun- e 1970. No mundo ocidental, dominado pela
ções para que foram criadas. Estamos a entrar islamofobia, a exigência de democracia por
numa época pós-institucional, na qual a deso- parte dos protestos e das associações que os
bediência política mais do que a desobediência apoiavam constituiu uma surpresa reconfor-
civil se justifica. Os indignados tomaram as tante. Os movimentos dos indignados na Eu-
ruas e as praças por estes serem os únicos es- ropa do Sul resultaram da profunda crise da
paços públicos que não foram ocupados pelo social-democracia europeia. Os direitos sociais
capital financeiro. Além disso, as deliberações e económicos, que pareciam parte do ADN da
que forem tomadas durante o processo de pro- política europeia pós-segunda Guerra Mundial,
testo e resistência devem idealmente sê-lo por começaram a ser questionados, especialmente
meio de democracia directa, assembleia demo- depois da crise financeira de 2008. Em poucos
crática, desconfiando de líderes e porta-vozes. anos, deixaram de ser vistos como uma con-
288 Boaventura de Sousa Santos

quista social irreversível e passaram a ser con- mocracia em plutocracia, se não em cleptocra-
siderados um luxo insustentável, deixando a cia, retirava sentido a qualquer reivindicação
velha e nova classe media à beira da pobreza, e perante o Estado. Podemos perguntar-nos se,
os seus filhos, a maioria dos quais com muitos de um modo insidioso, o neoliberalismo não es-
anos de escolaridade, sem perspetivas de um taria presente nos protestos na forma veemen-
futuro digno. No Brasil, os protestos estavam te com que se denunciava o Estado predador,
inicialmente também relacionados com as cri- assim como na defesa da autonomia individual
ses dos direitos sociais e económicos próprios e colectiva, como um valor fundamental.
da social-democracia. Mas enquanto a social-
-democracia europeia era antiga e baseada em O direito e as revoltas da
pressupostos universais, no Brasil a social- indignação
-democracia tinha dez anos de idade e estava Como seria de esperar, os manifestantes
baseada em políticas compensatórias massivas não estavam minimamente interessados em
(benefícios de diferentes tipos indexados aos desenvolver uma reflexão sobre o direito e o
recursos económicos). Graças a elas, cerca de seu papel na sociedade. Uma vez que o direito
50 milhões de brasileiros puderam aceder à so- simboliza, melhor que qualquer outro atributo
ciedade de consumo. Na maioria dos casos, os do Estado moderno, a ideia de instituição e de
protestos e mobilizações resultaram da contra- institucionalização (o direito e a ordem), seria
dição entre o acesso fácil a produtos de con- de esperar que os movimentos dos indignados
sumo e a inacessibilidade ou deficiente quali- tivessem muito pouco a dizer sobre o direito,
dade dos serviços públicos (saúde, educação, mesmo quando tiveram muito a dizer sobre di-
transportes). Nos Estados Unidos da América, reitos humanos ou de cidadania. Afinal, a maior
os protestos e mobilizações representaram a parte dos protestos foi declarada ilegal e, desde
bancarrota social e ideológica do neoliberalis- o primeiro momento, ocorreram diversas tenta-
mo. Dentre todos os protestos e mobilizações, tivas de os banir. O recurso dos manifestantes à
o movimento Occupy foi aquele em que as polí- acção directa de ocupação sublinha o impulso
ticas negativas de indignação alcançaram a sua anti-institucional ou extra-institucional subja-
formulação mais intensa. A denúncia radical da cente aos protestos. Além disso, a justificação
extrema desigualdade e da degeneração da de- para o recurso à acção directa, especialmente
Para uma teoria sócio-jurídica da indignação: É possível ocupar o direito? 289

em contextos democráticos, foi a de que as te à teoria crítica do direito e às questões que


instituições estatais, supostamente ao serviço formulei acima, o meu interesse analítico era
dos cidadãos e encarregadas da salvaguarda específico. As revoltas da indignação pareciam
dos seus direitos de cidadania, não estavam a contradizer a teoria sociológica do direito que
desempenhar as funções para que tinham sido tenho vindo a desenvolver ao longo dos anos.
criadas. Tinham sido tomadas de assalto pela Uma das características principais desta teoria
classe política ou pela elite no poder de modo é a ideia de que, em determinadas condições, o
a servir os seus interesses particulares. direito pode ser usado para promover a trans-
Em face da ausência de uma reflexão autóc- formação social progressista, aquilo que tenho
tone sobre o papel do direito na sociedade pro- vindo a designar por uso contra-hegemónico
ponho aqui é uma reconstrução hipotética. Se do direito. Este tema está tratado na introdu-
as revoltas da indignação tivessem tido tempo ção deste livro em que me interrogo sobre a
ou interesse para desenvolver a teoria crítica possibilidade do direito ser emancipatório23. A
do direito subjacente às suas lutas, qual teria esta questão, a resposta das revoltas da indig-
sido o seu perfil? Como conceberiam o direi- nação parece ser um redundante “não”. Lendo
to? Qual seria, segundo elas, o papel do direi- ou ouvindo as suas declarações, senti-me con-
to na sociedade? Qual o conceito de direito frontado com a ideia de estar a alimentar uma
subjacente à sua acção colectiva? O meu inte- fantasia reformista liberal sem qualquer impor-
resse nestas questões é simultaneamente polí- tância para a vida real. Se eles estavam certos,
tico e analítico. Participei em algumas destas estaria eu errado?
mobilizações em Coimbra, Lisboa e Madrid, e Em face das diferenças entre os três tipos
demonstrei a minha solidariedade para com de revoltas e mobilizações indicados acima, é
os manifestantes por vários meios ao meu al- de supor que não lhes subjaza uma concepção
cance, inclusive escrevendo artigos para a monolítica de direito. Existem, contudo, al-
imprensa, participando em debates e dando
entrevistas na rádio e na televisão. Partilhei
muitas das suas preocupações e lutas e pelas
23 Sobre este tema ver Santos, 2017: 19-114 em que me
mesmas razões experimentei um sentimento
interrogo sobre a possibilidade do direito ser emanci-
similarmente intenso de indignação. No tocan- patório. Ver também em Santos, 2011.
290 Boaventura de Sousa Santos

gumas “afinidades electivas”24 entre diversos poder, e a reconfigurar a correlação de forças


elementos implicitamente presentes em to- na sociedade. O direito reconfigurativo é o
das elas, embora com diferentes intensidades. que está subjacente àquilo que tenho vindo a
Crucial para a concepção de direito subjacen- denominar o uso contra-hegemónico do direi-
te às revoltas da indignação é a configuração to analisado detalhadamente na Introdução.
das relações de poder predominantes na socie- Direito prefigurativo é um direito expressivo
dade. O direito estatal constitui uma compo- ou performativo, um direito que expressa, na
nente central desta configuração. O direito não prática, a antecipação de uma sociedade di-
é de modo algum independente em relação às ferente baseada num conjunto de relações de
relações de poder que dominam a sociedade. poder totalmente distinta. Em seguida refiro
Direito é política por outros meios. Mas o pro- cada um deles separadamente.
fundo enraizamento do direito nas relações de
poder e na política (e vice-versa) podem ser Direito configurativo: a
vistos de três perspectivas distintas. De modo dualidade abissal do direito25
a identificá-las, distingo entre três tipos de di- Segundo as revoltas da indignação, nas so-
reito: direito configurativo, direito reconfigura- ciedades capitalistas de hoje existe uma duali-
tivo, e direito prefigurativo. Direito configura-
tivo é um direito que reflecte uma determinada
configuração das relações de poder. Se estas 25 O pensamento moderno ocidental é um pensamen-
relações de poder forem desiguais e destina- to abissal. Consiste num sistema de distinções visíveis
das a produzir injustiça e opressão, o direito e invisíveis, sendo que estas últimas fundamentam as
será igualmente injusto e opressivo. Direito primeiras. As distinções invisíveis são estabelecidas
por meio de linhas radicais que dividem a realidade so-
reconfigurativo é um direito em processo de
cial em dois mundos distintos: o mundo “deste lado da
ser utilizado de modo a alterar as relações de linha” (modos de sociabilidade metropolitana) e o mun-
do “do outro lado da linha” (modos de sociabilidade
colonial). A divisão é de tal modo radical que “o outro
24 O conhecido título do romance de Goethe, poste- lado da linha” desaparece como realidade, é produzi-
riormente adoptado por Max Weber para analisar as afi- do como inexistente. Inexistência significa não existir
nidades electivas entre a emergência do capitalismo e a de um modo que possa ser socialmente relevante ou
ética protestante (Weber, 1930). compreensível. Tudo aquilo que é produzido como ine-
Para uma teoria sócio-jurídica da indignação: É possível ocupar o direito? 291

dade abissal do direito, uma espécie de plura- dos opressores e o direito dos oprimidos. Esta
lismo legal não reconhecido pelos estudiosos divisão é tão radical quanto invisível. Os dois
do direito. Mais do que uma dualidade entre o tipos de direito coexistem no mesmo espaço
direito estatal e não estatal, trata-se de uma du- geopolítico e a articulação entre eles é intrínse-
alidade arraigada ao âmago do direito estatal ca apesar de invisível. De facto, são produzidos
capitalista. Concebê-lo como uma discrepância pelo mesmo poder legislativo e adjudicados
entre o direito nos livros e o direito na prática, pelo mesmo sistema judicial. E, no entanto,
ao estilo da sociologia do direito convencional, são incomensuráveis. Ambos operam através
implica enfrentar um desvio contingente e a de desvios sistemáticos aos princípios que era
possibilidade desta discrepância poder ser su- suposto defenderem. A discrepância entre o
perada. Para os indignados ambas as premissas direito nos livros e o direito na prática, mais
estão erradas. O direito estatal oficial foi pré- do que um desvio ou aberração, é constitutiva
-ocupado pelas elites no poder, pelos opresso- deste tipo de “ocupação prévia” do direito pe-
res. Esta pré-ocupação opera através de uma los opressores. Ao negar o carácter constituti-
divisão radical entre dois sistemas jurídicos: vo da discrepância entre o direito nos livros e
o direito dos 1% e o direito dos 99%, o direito o direito na prática e ao proclamar a unidade,
neutralidade, autonomia e universalidade do
direito, a ideologia político-jurídica dominante
xistente é excluído de forma radical, não chega a ser se- e o conhecimento jurídico especializado não
quer reconhecido como excluído. A característica fun- conseguem imaginar a coexistência dos dois
damental do pensamento abissal é a impossibilidade da sistemas jurídicos. Qualquer tentativa por par-
co-presença dos dois lados da linha. O mundo “deste te dos excluídos do poder — os oprimidos, de
lado da linha” é considerado universal na medida em
longe a grande maioria da população — de en-
que esgota o campo da realidade relevante: para além
da linha há apenas inexistência, invisibilidade e ausên- contrar formas alternativas de “ocupar” o direi-
cia não-dialética. No interior do mundo “deste lado da to é imediatamente neutralizada, considerada
linha” também há exclusões, mas não são radicais ou perigosa ou mesmo ininteligível.
abissais como as que o separam do mundo “do outro Contudo, a invisibilidade desta dualidade do
lado da linha”. O pensamento jurídico moderno domi-
direito não é um produto exclusivo da hegemo-
nante é igualmente um pensamento abissal. Ver Santos
2014: 118-135. nia ainda dominante do direito liberal. Resul-
292 Boaventura de Sousa Santos

ta também do chamado “viés de normalidade” o mais optimisticamente possível quaisquer


e tem sido fortemente reforçado pelos media avisos de que a reversibilidade pode estar no
corporativos26. Consiste na tendência humana horizonte ou de que está já em curso. Contra
para subestimar os sinais da aproximação de as provas em contrário, continuam a acreditar
um grande desastre por nunca o terem viven- que o direito representa um projecto soberano
ciado e terem, por isso, dificuldade em calcu- e que defende o bem comum através do gover-
lar a magnitude das suas consequências. Into- no democrático.
xicadas com promessas de progresso infinito, No que toca à dualidade entre o direito dos
as pessoas tendem a tomar como irreversíveis 1% e o direito dos 99%, as pessoas tendem a in-
quaisquer melhorias que obtenham ao longo terpretar as mudanças que ocorrem (sobretudo
da sua história de vida27. Tendem a interpretar a concentração de riqueza e a “pré-ocupação”
do Estado e do seu direito por parte de inte-
resses minoritários poderosos) como fatores
26 O conceito de “viés de normalidade” foi desenvol- que não comprometem a unidade fundamental
vido pelas teorias do risco e desastre. O viés de norma- do direito. De facto, o viés de normalidade leva
lidade, refere-se ao estado mental que se desencadeia o cidadão comum a acreditar que, apesar de
em pessoas confrontadas com um desastre. O viés da
normalidade leva as pessoas mesmo informadas e es- todas as suas deficiências, a democracia conti-
clarecidas a subestimar a possibilidade de um desastre nua a funcionar para benefício de todos os ci-
e suas consequências — é uma tendência do compor- dadãos, e o direito ainda está do lado de David
tamento humano para acreditar que algo que nunca sempre que Golias tenta impor a sua força. Esta
aconteceu jamais acontecerá. Também faz com que as
crença é reforçada por uma outra, que designo
pessoas sejam incapazes de lidar com o desastre quan-
do ocorre. Faz com que subestimem tanto a possibili- de “viés do dano preventivo”: trata-se da ideia
dade da ocorrência do desastre como os seus possíveis de que maiores males e desastres mais graves
efeitos, tendendo a interpretar os avisos do modo mais serão evitados no futuro, se as pessoas concor-
otimista possível, aproveitando quaisquer ambiguida- darem em suportar no presente um dano com-
des para inferir uma situação de menor gravidade. Para
parativamente menor ao seu bem-estar.
um exemplo trágico do viés de normalidade em acção,
ver o caso do ciclone de 1991 no Bangladesh que cus-
tou a vida a 140.000 pessoas (Matsuda, 1993: 319-325). neste ponto efectuo uma reconstrução do discurso im-
27 Como espero que seja facilmente compreendido, plícito dos indignados sobre estas questões.
Para uma teoria sócio-jurídica da indignação: É possível ocupar o direito? 293

A linha abissal que divide os dois sistemas a cabo dentro dos limites do processo democrá-
jurídicos possui algumas similaridades com a tico liberal. Estas lutas permitiram alcançar al-
que dividiu o direito metropolitano e o direito guma medida de redistribuição social, em parte
colonial durante o período histórico do colo- devido à expansão dos direitos sociais e econó-
nialismo, exceptuando o facto de ambos os di- micos. As relações de poder dominantes foram
reitos serem agora exercidos num mesmo terri- assim alteradas nos países centrais do sistema
tório geográfico. No jogo de espelhos jurídicos mundo; a expressão acabada desta mudança foi
prevalecente na sociedade, não existe nenhum a social-democracia europeia e o Estado provi-
meio de o direito se reflectir em sua totalidade dência. Nos últimos trinta anos, as elites do po-
fraturada pela linha abissal. Permanece assim der, impulsadas pelo capital financeiro global,
invisível o facto que o direito e a ordem são o conseguiram reverter este processo histórico,
outro lado da desordem, que o primado do di- sequestrando a democracia e colocando-a ao
reito vai de par com o primado da ilegalidade. serviço dos seus interesses exclusivos. O re-
Por outras palavras, permanece invisível o fac- sultado é vivermos hoje em sociedades politi-
to de o “direito e ordem 1” serem o outro lado camente democráticas mas socialmente fascis-
do “direito e ordem 2” (o que os 99% conside- tas28. Esta cisão política espelha a cisão jurídica.
ram ser a desordem que lhes é imposta pelos
1%), e que nas nossas sociedades o “Estado de
direito 1” vai de mãos dadas com o “Estado de
direito 2” (que 99% consideram uma ilegalidade 28 O fascismo a que me refiro não é um regime políti-
que lhes é imposta pelos 1%). co, mas antes um regime social e civilizacional. Em vez
Segundo os indignados, a linha abissal que de sacrificar a democracia às exigências do capitalismo,
ele trivializa a democracia a ponto de se tornar desne-
divide o coração do direito nas sociedades ca-
cessário, ou sequer vantajoso, sacrificá-la para promo-
pitalistas nunca foi tão radical e destrutiva para ver o capitalismo. É um tipo de fascismo pluralista,
a vasta maioria das nossas sociedades como é produzido pela sociedade e não pelo Estado. Este com-
hoje. É o resultado da contra-revolução que os porta-se, aqui, como mera testemunha complacente, se
1% empreenderam nos últimos trinta anos con- não mesmo como cúmplice activo. Estamos a entrar
num período em que os Estados democráticos coexis-
tra as conquistas sociais que os 99% obtiveram
tem com formas de sociabilidade fascizantes. Trata-se,
nas décadas anteriores através das lutas levadas por conseguinte, de uma forma nova de fascismo.
294 Boaventura de Sousa Santos

O funcionamento do direito dual burocracia e violência30 — encontra-se hoje


Examinemos mais detalhadamente a duali- completamente ausente, se é que alguma vez
dade entre o direito dos 1% e o direito dos 99%. existiu. Pelo contrário, existe agora um dese-
De partida é importante notar que esta cisão, quilíbrio estrutural entre os três componentes.
apesar da sua natureza radical, foi alcançada O direito dos 1% opera quase exclusivamente
sem qualquer suspensão da Constituição, e sem pela retórica. Nos últimos anos, a proliferação
qualquer declaração de estado de emergência. do direito soft e de formas de governação base-
O direito dos 1% é um direito estatutário, adas na observância voluntária demonstrou de
um direito pessoal no sentido Weberiano29. modo dramático a prevalência da retórica no
O direito dos 99% é um direito territorial; é o direito dos 1%31. Por outro lado, o direito dos
modo de actuação do direito quando se dirige 99% opera através da burocracia e da violência,
às necessidades e aspirações dos 99%. O direi- e, em muitos contextos recentes, mais pela vio-
to dos 1% é concebido pelos poderosos como lência que pela burocracia, facto ilustrado na
exclusivamente seu, como pertencendo ao seu criminalização do protesto social32. A retórica
estatuto social privilegiado; como consequên-
cia, a aplicação do direito é regida pela ideia
“de quem faz o quê contra quem”, em vez da 30 Sobre as três componentes estruturais do direito
estatal moderno, ver Santos, 1995: 430.
ideia “do que é feito contra não importa quem”.
Segundo a concepção do direito dos indigna- 31 Ver a propósito, Santos e Rodriguez-Garavito,
2005: 29-64.
dos, a articulação equilibrada dos três elemen-
32 Nos últimos quinze anos muitos países promulga-
tos estruturais do direito moderno — retórica,
ram leis anti-terrorismo que têm sido frequentemente
usadas para reprimir e punir protestos sociais pacífi-
cos. Por exemplo, em toda a América Latina, os povos
indígenas têm sido punidos à luz de severas leis anti-
29 Referindo-se à codificação monárquica patrimonial -terrorismo por bloquearem estradas em protesto con-
da Europa Central, Max Weber escreveu: “constituído tra as corporações transnacionais, impedindo assim os
essencialmente pelo mero direito estatutário de um pe- camiões das companhias de mineração ou de madeira
queno estrato de privilegiados e deixando intocadas as de penetrarem nos seus territórios ancestrais. Sobre
instituições especiais dos outros estratos, especialmen- a criminalização do protesto social, ver, entre outros,
te os camponeses, i.e., a grande maioria dos sujeitos” Gupta (2000: 1066-1071); Medina e Ortega Breña (2011:
(Weber, 1978: 858). 88-101); Aguirre (2007: 65-75); Daibert (2014).
Para uma teoria sócio-jurídica da indignação: É possível ocupar o direito? 295

é quando muito usada como indutor de resigna- do uma ilegalidade cometida por um indivíduo
ção para aqueles que se confrontam com o uso ou grupo poderoso afecta os interesses de ou-
excessivo da força burocrática do Estado33 ou tros indivíduos ou grupos poderosos. Ao invés,
com a violência física da polícia. a ilegalidade dos poderosos cometida contra os
impotentes fica em larga medida impune, como,
Duas ilegalidades por exemplo, o roubo de salário34, corte de salá-
rios e pensões violando contratos e acordos em
Do mesmo modo que existem dois direitos,
nome de supostamente necessárias medidas de
existem também duas ilegalidades: a ilegalida-
austeridade, comissões de crédito excessivas,
de dos poderosos e a ilegalidade dos impoten-
despejos ilegais, ou penas de prisão demasiado
tes. A ilegalidade dos poderosos actua de dois
longas por ofensas económicas menores.
modos: primeiro, pela impunidade ou em alguns
Em contraste, o direito dos 99% trata a ilega-
casos, pelo recurso à concessão de imunidade,
lidade dos impotentes com uma dureza exces-
e, segundo, pela promoção de alterações na lei
siva. Pequenas violações do direito criminal,
por processos políticos fraudulentos de modo
civil ou administrativo tendem a ser duramente
a servir os seus interesses. No primeiro caso,
punidas. O exemplo mais significativo dos últi-
recorrem aos seus amplos recursos interpesso-
mos anos foi a criminalização do protesto so-
ais, financeiros e organizacionais para distorcer
cial. A aplicação de severas leis anti-terrorismo
a adjudicação jurídica de modo que lhes seja
contra dissidentes políticos ou activistas so-
vantajoso; no segundo, manipulam o processo
ciais tornou-se a norma, envolvendo não só du-
legislativo quer através de envolvimento em
ras punições por ligeiros distúrbios na ordem
corrupção ilegal (subornos, abuso de poder,
pública, mas também brutalidade policial, e a
tráfico de influências) ou em corrupção “legal”
grotesca violação de privacidade através das
(lobbying). A ilegalidade só é tratada de acordo
formas mais invasivas de vigilância.
com o princípio da igualdade perante a lei quan-
Além disso, em muitos casos, os indignados
agem em autodefesa, resistindo contra os ac-
33 Tal como sucedeu com o uso da retórica da “guer-
ra contra o terror” como justificação para leis secretas, 34 São hoje muitos os estudos nos EUA sobre o roubo
castigos desproporcionados, restrição dos direitos dos de salário (wage theft). Ver por exemplo, Bobo (2009) e
réus, campos de detenção secretos, Guantánamo, etc. Meixell e Eisenbrey (2014).
296 Boaventura de Sousa Santos

tos ilegais dos poderosos, que o direito dos 1% do sacrifícios imensos aos 99%, e poupando os
deixa impunes. Este quadro é particularmente 1%, embora um pequeno sacrifício por partes
dramático no caso dos camponeses e povos in- destes últimos tivesse diminuído consideravel-
dígenas que bloqueiam as estradas para evitar mente os efeitos negativos da crise em geral35.
a devastação das suas florestas pelo agro-negó- Outro exemplo vem da chamada guerra contra
cio ou pelas indústrias da madeira, ou resistem o terror36. Neste caso, o controlo social indu-
à expulsão das suas terras e territórios por pro- zido em seu nome torna-se tão arbitrário que
motores de mineração em larga escala, agricul- considerá-lo ilegal não capta a sua real dimen-
tura industrial, barragens ou outros mega-pro- são, o facto de estar totalmente para além dos
jectos levados a cabo sem o seu consentimento mais básicos limites jurídicos. É o caso de leis
ou consulta, a que direito internacional obriga, secretas e de interpretações secretas do direi-
e na maioria dos casos, com a cumplicidade de to que resultam em acusações perante um tri-
governos corruptos. bunal secreto não sendo permitido ao réu (ou
ao seu advogado) conhecer as leis com base
O legal, o ilegal, e o alegal nas quais ele ou ela são acusados e eventual-
mente condenados37. Os serviços secretos têm
O direito configurativo tem também uma
a capacidade de aceder à maior parte das co-
propensão para o compromisso com formas
de controlo social que não cabem na dicoto-
mia convencional legal/ilegal. Para estas for-
mas de controlo social, o único comportamen- 35 Isto foi particularmente visível no caso das “me-
to eficaz é um comportamento discricionário didas de austeridade” impostas pelos governos conser-
vadores da Grécia, Portugal e Espanha desde 2011. Ver
quase ilimitado e, de facto, considerado tanto Santos, 2011.
mais eficiente quanto mais arbitrário. É o cam-
36 Existe uma imensa bibliografia sobre este tópico.
po da alegalidade. Apenas dois exemplos de Ver, por exemplo, Garlinger (2009: 1105-1147); Herman
diferentes áreas de controlo social. Enquanto (2006: 67-132); Besar (2012: 121-135); Rubel (2007: 119-
geria a crise financeira e orçamental, a elite no 159); Fenster (2014: 309-362); Sall (2013: 1147-1170).
poder pôde recorrer a medidas de emergência 37 A lei Patriot Act, que foi promulgada nos EUA no
de legalidade constitucional duvidosa, impon- seguimento do ataque às Torres Gémeas, tem sido obje-
to de interpretações secretas, ver Rudesill (2016).
Para uma teoria sócio-jurídica da indignação: É possível ocupar o direito? 297

municações electrónicas da maioria das pes- acumulação primitiva38. Segundo Marx, estas
soas, quer sejam suspeitos de quaisquer actos formas de acumulação de capital eram parti-
criminosos ou não, tal como foi exposto por cularmente violentas e ilegais, consistindo em
Edward Snowden. O ciberespaço, Guantá- acções, tais como apropriação de terras comu-
namo, e as salas de trânsito dos aeroportos nitárias seguida da expulsão dos camponeses
internacionais parecem ser locais e espaços de modo a expandir a indústria têxtil do século
privilegiados de alegalidade, zonas cinzentas XIX em Inglaterra. A acumulação primitiva vi-
para além da dicotomia legal/ilegal que funda- sava criar as condições para uma reprodução
menta os princípios do direito moderno. Estes mais normal, pacífica, legal e sustentável das
espaços e linhas de acção estão destinados a relações económicas capitalistas. Por isso,
expandir-se à medida que a democracia se es- Marx concebia-as como constitutivas da fase
vazia, o estado de excepção se normaliza, e a inicial do capitalismo.
cidadania desliza para a servidão. Contudo, torna-se agora evidente, que esta
acumulação primitiva, mais do que uma mera
Direito internacional e relações fase, é uma característica constante do ca-
internacionais pitalismo quando analisado à escala global,
e continua hoje sob diferentes formas39. Pri-
No campo das relações internacionais, o
meiro, e mais importante, o neocolonialis-
direito dos 1% é o direito da pilhagem e da
mo e a guerra imperialista continuam, como
apropriação violenta. O direito internacional é
no passado, a garantir o acesso aos recursos
a mais estrondosa e violenta instância da divi-
naturais. Segundo, a apropriação massiva
são abissal entre o direito dos 1% e o direito
e indevida de terras em África e na América
dos 99%. No que respeita ao direito internacio-
Latina, e a expulsão massiva de camponeses
nal, o direito dos 1% é o direito que protege
e povos indígenas das terras que cultivam há
a nível transnacional os interesses das elites
no poder nos países centrais e das elites-sa-
télites da periferia e semiperiferia do sistema 38 Ver Marx (1970: VIII).
mundial. Este direito opera segundo os modos 39 Este argumento foi inicialmente apresentado por
de acumulação de capital a que Marx chamou Rosa Luxemburg (1951 [1913]) sendo recentemente re-
tomado por Harvey (2006).
298 Boaventura de Sousa Santos

gerações, abre caminho a uma exploração Direito prefigurativo


sem precedentes (tanto em escala como em As revoltas da indignação geraram o direito
intensidade) dos recursos naturais. Trata-se prefigurativo, um direito de ocupação dos es-
de projectos de mega-infra-estruturas (gran- paços públicos, que é autoatribuído e por isso
des barragens ou auto-estradas), mineração a não imposto. Trata-se de um direito de baixo
céu aberto em grande escala, e agricultura in- para cima que surge do próprio exercício da
dustrial de plantações destinadas a agro-com- ocupação quando esta se mantem por um tem-
bustíveis ou rações para animais. Terceiro, po mínimo40. A ocupação de espaços públicos
através do roubo de salários e pensões, corte implica a criação de uma concepção alternativa
nos benefícios sociais e o despejo de pessoas desse lugar, por um certo período de tempo e
das suas casas hipotecadas, existe hoje uma para um considerável número de pessoas. Esta
transferência de riqueza sem precedentes das ocupação exige a adopção de algum tipo de
classes médias empobrecidas para os 1%, tudo ordem e regulamentação, regras capazes de re-
em nome da “resolução” da crise financeira, compensar comportamentos legítimos e punir
resgatando bancos e remunerando especula- os ilegítimos, bem como algum tipo de mecanis-
dores, os mesmos que desencadearam a crise mo de cumprimento da lei de modo a garantir a
com o seu comportamento irresponsável, se aplicação destas normas. Por terem implicado
não mesmo criminoso. ocupações e resistência continuada, as revoltas
Da perspectiva dos indignados, o direito é da indignação tenderam a gerar estas normas
basicamente direito configurativo; o direito
dividiu-se em dois com o propósito de oprimir
as maiorias em nome do bem comum, que, 40 Inspirado por Hermann Kantorowicz (1958), tenho
vindo a defender no meu trabalho uma ampla concep-
em termos reais, é o bem exclusivo dos 1%.
ção do direito (primeiras formulações em Santos, 1974
O direito configurativo é, por isso, um terreno e 1977). Referindo-se a um período mais recente, Glenn
intrinsecamente hostil para os indignados, os (2003), Santos (1995, 2002b), Tamanaha (1997, 2001,
quais não têm qualquer ilusão quanto à possi- 2004) e Twining (2000, 2001, 2009) avançaram com
bilidade de a ele recorrerem para sustentar as argumentos a favor de concepções mais amplas do di-
reito que incluem pelo menos alguns exemplos de “di-
suas causas.
reito não estatal”. E acertadamente acrescentam: “Isto,
como seria de esperar, encontrou alguma resistência”.
Para uma teoria sócio-jurídica da indignação: É possível ocupar o direito? 299

através de formas de participação e deliberação mo jurídico a que o movimento dos indignados


baseadas em assembleias41 e alcançadas por reconhece algum valor positivo. Apesar da sua
consenso. Contudo, de modo a prevenir que a aparência precária, incipiente e embrionária,
dissidência de pequenas minorias se trans- este direito prefigurativo pertence ao mesmo
forme em poder de veto, alguns movimentos tipo de direito prefigurativo que existiu em al-
adoptaram a regra da maioria e mesmo do voto gumas zonas libertadas durante o movimento
secreto. Estas regras e a sua regulamentação de libertação anti-colonial43 e que, desde alguns
são o contrato social fundacional da ocupação. anos, está em vigor nos territórios autónomos
Tal como o direito dos 1%, também o direito da dos neo-Zapatistas44.
ocupação é autoatribuído — é uma autorregula-
mentação — e opera com base na retórica; sen- Direito reconfigurativo: pode o
do quase destituído de burocracia e violência. direito ser emancipatório?
Este direito é prefigurativo no sentido em Defendo que o uso contra-hegemónico do
que tanto na sua concepção como no seu exer- direito por parte das classes populares e de
cício, testemunha uma antevisão ou antecipa-
ção real de uma sociedade alternativa numa
sociedade alternativa em que a democracia, a zonas libertadas do capitalismo que tenho vindo a
justiça e a igualdade sejam verdadeiramente teorizar em tempos mais recentes. Ver a propósito a
minha aula magistral “É possível ser utópico hoje? A
vividas42. Trata-se da única forma de pluralis-
utopia do futuro ou o futuro da utopia”, disponível em
<https://www.youtube.com/embed/OViEBnkJQAc>. É
41 A ideia do carácter de assembleia parece ser a úni- também semelhante ao conceito de utopia real avan-
ca característica eurocêntrica que continua vigente. çado por Wright (2010) para se referir a práticas reais
Não o socialismo, nem o comunismo, nem a democra- existentes que se desviam de forma fundamental dos
cia liberal, mas o anarquismo, o que não deixa de ser modos convencionais ou hegemónicos de conceber a
interessante se recordarmos que Gandhi quando visitou economia ou a política.
a Europa em 1904, referiu que se tivesse que optar por 43 Para o caso das zonas libertadas da Guiné-Bissau
alguma ideologia europeia, possivelmente seria o anar- na luta contra o colonialismo português conduzida por
quismo não violento. Amílcar Cabral, ver Santos, 2015a.
42 Esta ideia de uma real previsão ou antecipação 44 Para o caso dos neozapatistas, ver Subcomandante
é semelhante ao conceito de utopia concreta ou de Marcos, 2001 e 2004.
300 Boaventura de Sousa Santos

grupos sociais oprimidos pressupõe, entre ou- presentes condições do capitalismo global, não
tras condições, que a mobilização jurídica seja é possível a transformação social pela via do
parte de uma mobilização política mais ampla. activismo jurídico e judicial.
A mobilização jurídica pro-activa envolve (1) Para os indignados, as condições para um
o recurso aos tribunais para apresentar quei- uso contra-hegemónico do direito, se é que algu-
xas e reivindicações, em vez de o fazer apenas ma vez existiram, deterioraram-se ao ponto de
para se defender contra acusações criminais; delas restar apenas uma triste fantasia liberal,
(2) a pressão sobre a burocracia estatal encar- uma esperança vã. A democracia liberal provou
regada da aplicação efectiva dos direitos; (3) ser impotente na neutralização dos impulsos do
a mobilização para alterações legislativas que capitalismo neoliberal para a acumulação infi-
favoreçam os interesses destes grupos social- nita de riqueza e para um poder político anti-
mente vulneráveis. A mobilização política pode -democrático. Mesmo nos países centrais do
implicar diferentes tipos de activismo político sistema mundo, a cidadania e os direitos huma-
pacífico, incluindo acção directa para forçar a nos estão a ser erodidos; a vigilância destrói a
entrada de reivindicações na agenda política. privacidade para além da nossa imaginação; go-
As revoltas da indignação parecem dizer-nos vernos eleitos respondem perante agências de
que as condições para a mobilização jurídica rating e os mercados financeiros, e não perante
emancipatória não existem, ou que se estão a os cidadãos; a corrupção parece endémica; as
deteriorar de tal modo que a mobilização polí- transferências de riqueza dos pobres para os
tica deve deixar de se articular com a mobiliza- ricos alcançaram níveis escandalosos que an-
ção jurídica. Para os indignados, a impossibi- teriormente se pensava só serem possíveis em
lidade de uma mobilização jurídica resulta da regimes ditatoriais; e as guerras imperialistas
emergência de um novo tipo de autoritarismo são sucessivamente reinventadas. Tudo isto
no seio de sociedades politicamente democrá- decorre sem que ocorra uma suspensão formal
ticas que assenta no extra-institucionalismo das normas e garantias constitucionais. Sob tais
de cima para baixo ou desinstitucionalização, condições, não é possível qualquer reconfigura-
simultaneamente tornado possível e invisibili- ção significativa do direito.
zado pela divisão abissal entre o direito dos 1% O direito só pode ser recuperado como ins-
e o direito dos 99%. O resultado é que sob as trumento emancipatório se a democracia for re-
Para uma teoria sócio-jurídica da indignação: É possível ocupar o direito? 301

fundada, e, de certo modo, reinventada. Assim político. Por outras palavras, sem uma recon-
se explica a importância dos apelos para uma figuração profunda das relações de poder num
“democracia real”45 no movimento dos indig- sentido mais equitativo e democrático não é
nados46. Essencialmente, a “democracia real” possível reconfigurar o direito. Deste modo, o
designa um regime político que efectivamente apelo não é dirigido, como de costume, à legis-
promove a igualdade política, social e econó- lação constitucional, mas antes a uma democra-
mica e o respeito pela igualdade na diferença, cia radical e a uma profunda reforma do Estado
transformando relações de poder desigual em impulsionada de baixo para cima através de um
relações de autoridade partilhada na socie- processo político, participativo, no qual os 99%
dade como um todo e não apenas no domínio exerçam um forte poder constituinte. Tenho de-
signado este processo de “constitucionalismo
transformador”, tendo em mente alguns pro-
45 Se recuarmos cem anos ninguém poderia então cessos constitucionais recentes em países da
imaginar que as revoltas populares pudessem reclamar América latina, como o Equador e a Bolívia47.
uma democracia real porque ao tempo a democracia
era um privilégio das elites, excluindo a grande maioria Conclusão
da população que não tinha sequer direito de voto.
Tenho vindo a defender nos últimos anos, que
46 Segundo a Carta por la Democracia (Carta pela
Democracia), o enquadramento proposto pelas polí- precisamos não de alternativas ao status quo,
ticas de austeridade não pode ser aceite. Nunca tanta mas antes de um pensamento alternativo de al-
riqueza esteve tão mal distribuída e de acordo com cri- ternativas48. Se isto é verdade, devemos contem-
térios tão anti-democráticos e injustos. É por isso que plar formas de ultrapassar as velhas distinções
uma completa reconsideração do papel das economias
políticas é necessária de forma a estabelecer o princí-
entre reforma e revolução, ou entre transforma-
pio do bem-estar das populações acima dos interesses ção social paradigmática e sub-paradigmática.
privados, financeiros e corporativos. O que está em Como mostram os protestos de 2011-2013, as
jogo é o reconhecimento real, e não apenas formal, de
que as leis do mercado devem ser subordinadas ao pa-
pel social da economia. Ver a propósito, Objetivos Po-
líticos del 15M Barrio del Pilar (Madrid), disponível em 47 Ver Santos e Exeni (orgs.), 2012b e Santos e Grijal-
<https://barriodelpilar15m.wordpress.com/2014/06/28/ va (orgs.) 2012c, bem como a bibliografia aí citada.
objetivos-politicos-del-15m>. 48 Ver Santos 2014: 42.
302 Boaventura de Sousa Santos

lutas sociais estão a tornar-se mais voláteis e tento dar conta das possibilidades de transfor-
menos estruturadas em termos de organização, mação social progressista, embora esteja cada
objectivos e formas de luta. Podem combinar vez mais céptico em relação às transformações
objectivos reformistas limitados e objectivos do direito de pequena escala, reformistas e sub-
revolucionários amplos, e podem mover-se ra- -paradigmáticas. Alguém que viveu uma parte
pidamente entre ambos. Além disso, embora da sua vida sob ditadura nunca deixa de reco-
extra-institucionais no seu impulso inicial e for- nhecer que, dependendo das circunstâncias, os
mas de mobilização, algumas mobilizações de movimentos reformistas mais limitados podem
protesto evoluíram para formas de acção polí- necessitar de energia revolucionária e correr o
tica institucional. Isto é particularmente visível risco de comportamento ilegal, de modo a serem
no caso do partido político Podemos, formado bem-sucedidos52. Diferentes contextos históri-
por alguns grupos do movimento dos indig- cos podem também explicar porque na Primave-
nados em Espanha, considerado como um dos ra Árabe, os indignados lutavam por uma demo-
partidos mais bem-sucedidos deste país, como cracia de tipo ocidental, enquanto os indignados
as eleições gerais de dezembro de 2015 viriam a do sul da Europa e, em especial, os do movimen-
confirmar49. Tanto nos meus estudos empíricos to Occupy, consideravam a prática deste tipo de
mais recentes50 como no meu trabalho teórico51, democracia como irremediavelmente corrupta e
inutilizável para propósitos progressistas.
Retornando à minha concepção do uso con-
49 No rescaldo das eleições gerais de 20 de dezembro
de 2015, o secretário-geral do Podemos, Pablo Iglesias, tra-hegemónico do direito, não concebo as re-
afirmou: “Hoje nasceu uma nova Espanha. Inaugura-se voltas da indignação como provas de uma total
uma nova etapa política no país. As forças da mudança refutação da minha teoria, mas antes como uma
obtiveram mais de 20 por cento dos votos, mais de 5 chamada de atenção para a necessidade de uma
milhões de votos em todo o país”, recordando também
revisão crítica: sem uma mudança profunda dos
que o Podemos foi a força mais votada na Catalunha e
no País Basco e a segunda mais votada em comunidades
como Madrid e Galiza (em ambos os casos atrás do PP).
52 Vivi parte da minha vida adulta em Portugal sob a
50 Ver Santos, 2017. ditadura de Salazar, que durou 48 anos e terminou ape-
51 Ver a seção “Direito reconfigurativo: Pode o direito nas em 1974 na sequência da revolução dos Cravos. Ver
ser emancipatório?”. Santos, 2017: 117-212.
Para uma teoria sócio-jurídica da indignação: É possível ocupar o direito? 303

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A resiliência das exclusões abissais
em nossas sociedades
Em direção a uma legislação pós-abissal*

Introdução de cinco séculos de prover soluções para o


mundo, a Europa parece incapaz de resolver
R ecentemente concluí um grande projeto
subvencionado pelo Conselho Europeu de
Pesquisa (European Research Council, ERC),
seus próprios problemas. Deveria aprender
das experiências do hemisfério Sul, mas desa-
“ALICE, espelhos estranhos, lições insuspei- fortunadamente o preconceito colonial ainda
tadas: conduzindo a Europa em direção a sobrevive na Europa, a tal ponto que não sente
uma nova forma de compartilhar experiências que possa aprender nada do mundo exterior.
mundiais”1. O objetivo deste projeto é desen- Depois de tudo, os europeus se consideram
volver novos paradigmas teóricos e políticos mais desenvolvidos. Eles resolveram todos os
de transformação social. Em toda a Europa e problemas contra os que outros ainda comba-
o hemisfério Norte em conjunto, há um senti- tem e, portanto, nada útil pode vir dali. Isto
mento de fatiga intelectual e política. Depois impede que a Europa aprenda do mundo, que
hoje é um campo fascinante de inovação, alter-
nativas e criatividade, que não alcançam nem
nossas notícias, nem nossas universidades.
1 Pode-se consultar em inglês em: <http://alice.ces. Não alcançam nossas teorias porque estas são,
uc.pt/en/>.
ocasionalmente, parte de uma epistemologia
da cegueira2, no sentido de que nos permitem
* Tradução portuguesa de Santos, B. de Sousa 2017
“The Resilience of Abyssal Exclusions in Our Societies:
Toward a Post-Abyssal Law” in Tilburg Law Review, Nº
22, Nº 1-2, pp. 237-258. 2 Desenvolvo esse conceito em Santos, 2014: 118-135.
316 Boaventura de Sousa Santos

ver certas coisas mas nos cegam ante outras. revolução. Mas eram tempos promissores, um
As coisas não vistas poderiam ser valiosas, mas período de esperança no meio do medo. Como
não temos as lentes adequadas para divisá-las. vocês recordarão, Spinoza tinha afirmado, dois
O ponto de partida de meu estudo se situa, séculos antes, que nossas vidas estão governa-
basicamente, nos princípios do século XX, das por dois afetos ou emoções básicas: o te-
quando foi exposta uma importante questão mor e a esperança3. De acordo com ele, deveria
social na Europa. A Europa estava em crise: haver um equilíbrio entre ambas, porque a es-
conflitos sociais, prostituição, delinquência, perança sem temor engendra o voluntarismo e,
doenças, problemas sanitários, camponeses ocasionalmente, o caos. Em sentido inverso, o
expulsos de suas terras que migravam às cida- temor sem esperança nos conduz à paralisia,
des onde não havia capacidade para albergá- à decadência e provavelmente à resignação.
-los. Este grupo de problemas causado pela pri- Naquele momento, a esperança provavelmente
meira revolução industrial foi chamado de “a prevalecia sobre o temor, apesar de todos os
questão social”, em um momento no qual havia problemas da questão social.
muito conhecimento científico para lidar com Contudo, com uma intensidade diferente,
estas problemáticas. No final do século XIX e havia na agenda política dois modelos princi-
princípios do XX, apenas nos encontrávamos pais de transformação social: a revolução e o
no início das ciências sociais que, de fato, reformismo. Desde o início, estes campos es-
desenvolveram-se na Europa para abordar a tavam divididos e fragmentavam o movimen-
mencionada questão social. Este foi o principal to da classe operária. Por um lado, estavam
impulso depois do desenvolvimento das ciên- as forças revolucionárias e o conhecimento
cias sociais. científico que as impulsava, a saber, o marxis-
mo. Por outro lado, estavam os reformistas
Revolução e reformismo que consideravam que por meio da legislação
O conhecimento que se desenvolveria, en- e da democracia liberal podia se conseguir o
tão, estava dirigido à consolidação das formas
principais de transformação social. A revolução 3 Veja mais a respeito desse tema em Spinoza
industrial tinha acontecido ao redor de 1830 e (1955: 176): “Não há esperança sem temor, nem temor
estávamos vivendo as consequências de dita sem esperança”.
A resiliência das exclusões abissais em nossas sociedades 317

mesmo objetivo ao qual apontava a revolução. na ciência e no conhecimento científico como


Estava a ideia de que a sociedade futura seria meios privilegiados para resolver os problemas
socialista, mas havia duas maneiras de alcan- sociais. Em segundo lugar, ambas colocavam o
çar essa meta: uma rompia com as instituições foco na ideia de que a transformação social se
vigentes, como a Revolução Russa, enquanto produziria por meio de um Estado centraliza-
a outra pedia uma transformação pacífica pro- do e um sistema legal unificado. Assim, haveria
gressista, em função da qual, por meio das ins- uma legislação, um Estado, um sistema educa-
tituições legais, chegaríamos ao mesmo tipo de tivo e, mais adiante, um sistema de saúde e um
sociedade. Especialmente depois do fracasso sistema de bem estar.
da revolução alemã (1918-1921), a ideia de que No início do século XXI, o mais perturbador
a revolução era inapropriada para os países é que acumulamos tanto conhecimento sobre a
menos desenvolvidos como a Rússia chegou a transformação social e, no entanto, é cada vez
se impor. Para países mais desenvolvidos, no mais difícil imaginar uma sociedade melhor
entanto, a transformação social — ou seja, o do que a atual, inclusive quando esta parece
reformismo — seria menos traumática. Em tão fatalmente defeituosa, promotora de uma
qualquer caso, estes eram os dois modelos de violência sem precedentes e de uma desigual-
transformação social. dade social repulsiva. No início do século XX,
O que acontece hoje em dia? Estamos no iní- existia uma verdadeira falta de conhecimento
cio do século XXI e ficamos sem um modelo científico sobre a sociedade. Cem anos depois,
convincente de transformação social progres- sabemos muito mais e, mesmo assim, os re-
sista: nem revolução, nem reformismo. Desde sultados não são brilhantes. Temos muito co-
a década de oitenta, quando Margaret Thatcher nhecimento sobre nossas sociedades, mas este
declarou que não há alternativa, a Europa apa- conhecimento é aparentemente inútil. O saber
rentemente tem se conformado com adminis- que desenvolvemos nas universidades não evi-
trar a sociedade atual como “o fim da história”. ta que as nossas sociedades vivam sob formas
Os dois modelos de transformação social, no descomunais de falsa consciência: pensemos
início do século XX, eram muito diferentes e no processo pelo qual as vítimas ficam contra
ambas partes estavam polarizadas, mas tinham outras vítimas, e os oprimidos votam em seus
algo em comum. As duas compartilhavam a fé próprios opressores para que os governem.
318 Boaventura de Sousa Santos

Consideremos o caso de África do Sul, onde teto dormindo na calçada e, quando cheguei à
os sul-africanos pobres estão enfrentando os minha casa, não podia dormir. Como era pos-
imigrantes da Nigéria, de Moçambique e do sível que em uma sociedade tão desenvolvida,
Zimbábue. Estes imigrantes, apesar de eles as pessoas não tivessem uma vivenda na qual
contarem com menos de 1% da riqueza da Áfri- dormir pelas noites? Naquela ocasião, tive que
ca do Sul, são vítimas do racismo e da xeno- tomar uma pastilha para poder dormir durante
fobia. A população branca representa 8,4% da a noite, ansioso como estava por causa do des-
população e possui 86% da riqueza da África tino dessas pessoas. Hoje em dia, entre a minha
do Sul. As vítimas ficam contra as vítimas. Nas casa e o meu escritório em Madison, Wisconsin,
eleições presidenciais de 2016 nos Estados vejo entre vinte e quarenta pessoas sem teto,
Unidos, os trabalhadores brancos pobres en- mesmo quando faz 2 ou 5 graus abaixo de zero,
frentaram os trabalhadores latinos. Na Euro- e já não tomo pastilhas para dormir enquanto
pa, convencem as classes médias empobreci- penso em seus destinos. O horror foi trivializa-
das de que seus inimigos são os trabalhadores do. Eu me acostumei com isto e provavelmente
imigrantes e os refugiados. Depois da Segunda muitas outras pessoas como eu também.
Guerra Mundial, houve um tempo em que as O conhecimento que acumulamos sobre a
pessoas quase sentiam vergonha de ser ricas sociedade ao longo do último século contri-
e pagavam taxas de impostos muito elevadas buiu para nos fazer mais sensíveis à injustiça
— 70% ou mais — para construir um Estado social ou mais cínicos ou céticos a respeito das
de bem-estar. Hoje, vivemos em um mundo no possibilidades de lutar por uma sociedade me-
qual, seguindo Oxfam, os oito multimilionários lhor? Deveríamos desenvolver outros tipos de
mais endinheirados têm tanta riqueza quanto a conhecimentos que nos permitissem produzir
metade mais pobre da população mundial (uns diagnósticos radicais de nossas sociedades, to-
3,5 bilhões). Isto é normal ou é a banalização mando maior consciência da experiência social
do horror, a trivialização da anormalidade? no mundo, que é uma experiência de sofrimen-
Sempre lembrarei que, durante uma visita to, mas também de criatividade e inovação da
à Escola de Economia de Londres (London qual com frequência não somos conscientes?
School of Economics) na década de oitenta, de O projeto ALICE era, precisamente, sobre
caminho à casa, vi duas ou três pessoas sem isto. Realizamos nossa pesquisa em alguns pa-
A resiliência das exclusões abissais em nossas sociedades 319

íses fora da Europa, a saber: Equador, Bolívia, crise da civilização se os desafios que supõem
Brasil, África do Sul, Índia e Moçambique. De- não forem abordados de um modo adequado
pois comparamos os resultados com os de Por- e progressista. Não são necessariamente expe-
tugal, Espanha, Reino Unido, França e Itália. rimentados como crise. Frequentemente são
Tentamos compreender como podíamos ver as concebidos como “a nova normalidade” pro-
realidades procedentes de distintos continen- duzida por crises mais visíveis, como a finan-
tes. Podíamos aprender de cada uma delas? ceira, que tendem a ser permanentes e, portan-
Podíamos ver os perigos ou as possibilidades to, a se naturalizar.
de cada uma delas? Era um tipo diferente de
diálogo, mas com o fim de levá-lo adiante, pre- Primeiro perigo: desfigurar o Estado
cisávamos de um tipo diferente de conheci-
O primeiro perigo é a desfiguração do Esta-
mento. Começarei com um diagnóstico radical
do. O Estado liberal moderno se organizou ori-
de nosso tempo.
ginalmente para servir aos interesses da classe
burguesa nascente. No entanto, as lutas sociais
Os sete perigos dos últimos cento e cinquenta anos têm confe-
Vivemos em tempos difíceis e inquietantes. rido à organização do Estado um nível alto de
As classes populares e os grupos sociais opri- contradição e tensão. Por um lado, o Estado
midos enfrentam hoje, em geral, sete perigos garante a reprodução do capital mediante uma
principais para seus já precários modos de diversidade de mecanismos — disciplinando o
vida, sua segurança humana e qualquer pros- trabalho, garantindo os direitos de propriedade
pecto de uma vida melhor que puderem ainda individual, financiando pesquisas cujos frutos
conservar. Estes perigos não são percebidos beneficiam as empresas, e também mediante
do mesmo modo ou com a mesma intensida- impostos injustos, diplomacia econômica, inter-
de em todo o mundo ou nos distintos grupos venções militares, etc.—. Por outro lado, o mes-
sociais. Não são novos, mas o modo em que mo Estado gera relações não comerciais entre
se articulam entre si é novo, e de maneira tal os cidadãos como concessões que resultam das
que cria níveis dramáticos de vulnerabilidade conquistas das lutas populares. Por exemplo, a
social, gera instabilidade institucional, exage- criação dos bens e serviços públicos, a legisla-
ra no discurso político e pode conduzir a uma
320 Boaventura de Sousa Santos

ção para a proteção do trabalho e a segurança exercer sua soberania. No caso da dívida, o Es-
social, os salários mínimos, etc. Na Europa, a tado depende dos credores e não tem prerroga-
complexa interação de interesses compensató- tiva soberana (como vimos recentemente com
rios terminou por cristalizar uma forma estatal a crise da dívida “soberana” de alguns países
específica, conhecida como o Estado de bem europeus. Por razões de público conhecimen-
estar e em um regime político que o sustentava to, os Estados Unidos estão isentos). Por meio
conhecido como a democracia social. do crédito ao consumo e da privatização do
Esta forma específica de organização estatal sistema de previdência, os cidadãos tornam-se
está hoje se desfigurando e se reconfigurando. igualmente dependentes de credores, especial-
O objetivo é desfazer a proliferação de relações mente no caso dos proprietários de vivendas,
não comerciais tornando-as, tanto quanto for sob constante ameaça de execuções hipote-
possível, comerciais. Este objetivo está sendo cárias, e dos estudantes endividados, desde a
perseguido mediante os seguintes meios. Em mudança do financiamento escolar de bolsas
primeiro lugar, a inculcação ideológica da na- em empréstimos. Em terceiro lugar, a demo-
tureza predatória da ação estatal, da ineficiên- nização da ideia de responsabilidade coletiva
cia da administração e intervenção estatais da ou problemas coletivos, e sua substituição pela
sociedade. Enquanto antes, de acordo com o ideia de culpa ou fracasso pessoal na gestão de
ideal do Estado de bem estar, um Estado forte problemas individuais. Finalmente, a conver-
era uma pré-condição para uma sociedade civil são das inquietudes relacionadas com a segu-
forte, hoje uma sociedade civil forte, segundo rança humana (a liberdade a respeito do temor
é concebida pelo neoliberalismo, requer um e do desejo de possessão) em interesses rela-
Estado fraco. Como regra geral, a intervenção cionados com a segurança nacional e a substi-
estatal tende a ser vista como uma intrusão ile- tuição das políticas de bem estar por políticas
gítima nas oportunidades para o investimento de vigilância e de controle. O princípio do Es-
e a rentabilidade privados. Em segundo lugar, a tado capitula frente ao princípio do mercado,
mudança da ação estatal baseada em impostos outorgando a este último a prioridade para or-
passou à ação estatal baseada em dívida. No ganizar as relações sociais tanto dentro quanto
caso dos impostos, o Estado se posiciona ati- fora do Estado.
vamente ao atuar dentro de limites internos e
A resiliência das exclusões abissais em nossas sociedades 321

Segundo perigo: esvaziar a democracia to as enormes diferenças de poder e riqueza


O segundo perigo é o esvaziamento da de- separam (e reúnem) as partes do contrato, a
mocracia. A democracia liberal moderna trata parte menos poderosa tende a ficar à mercê do
de direitos, representação e participação. Atrás desejo da parte mais poderosa e deve se sub-
destes pilares e das lutas sociais que tornaram meter às suas condições, assim como os países
possíveis, a democracia se encontrava no co- do hemisfério Sul têm se rendido diante das
ração da organização estatal contraditória que condições do FMI e do Banco Mundial. A regra
mencionávamos anteriormente. Em geral, foi formal da equidade dos partidos é minada mais
por meio das lutas pela democracia que o Esta- do que nunca no período moderno pela regra
do se tornou um campo em disputa e que emer- informal do poder de veto dos mais poderosos
giu a tensão entre democracia e o capitalismo. sobre as possibilidades de vida dos menos po-
Esta tensão foi limitada, no entanto, quando a derosos. Chamo esta condição social de fascis-
democracia liberal cedeu ante o capitalismo mo social e sustento que, enquanto as regras do
em momentos cruciais, como ilustrou drasti- neoliberalismo não forem afetadas por forças
camente a história europeia durante o último compensatórias confiáveis e sólidas, viveremos
século. A diferença entre a democracia liberal em sociedades que são politicamente democrá-
e a neoliberal é que esta última é hostil a qual- ticas e socialmente fascistas. Diferentemente
quer tipo de redistribuição social progressista, do fascismo histórico, não é o Estado que é
ou seja, à distribuição em favor das classes po- fascista. São fascistas as formas de sociabilida-
pulares. Pelo contrário, a redistribuição social de baseadas em desigualdade e discriminação
regressiva — isto é, a acumulação de riquezas que o Estado não consegue abordar de maneira
e o crescimento exponencial da desigualdade efetiva, ou das quais é um cúmplice ativo. Com
social — é bem vista. Em consequência, duran- a crise financeira, emerge um novo estado de
te os últimos trinta anos tem se desenvolvido exceção, cujo aparato repressivo não está só
um descomunal ataque aos direitos econômi- dirigido em direção aos “terroristas perigosos”
cos e sociais. À medida em que se acentua o e aos “ilegais” (trabalhadores imigrantes sem
ataque aos direitos socioeconômicos, a meta- documentos), mas também aos cidadãos que
narrativa do contrato social é substituída pela cumprem as leis, atacando seus direitos, salá-
metanarrativa do contrato individual. Enquan- rios e aposentadorias.
322 Boaventura de Sousa Santos

Terceiro perigo: destruir a natureza destas duas temporalidades coincide com a


O terceiro perigo é a destruição da nature- que domina a ação política democrática (o ci-
za. Em termos históricos, este é o perigo que só clo eleitoral), e o capitalismo neoliberal extra-
recentemente tem emergido como uma questão tivista é hoje mais voraz dos recursos naturais
de gravidade. Para muitos, é hoje o mais sé- do que nunca, a destruição da natureza parece
rio de todos e o que se manifesta mais global continuar imparável, trivializada pelo cinismo e
e aleatoriamente no mundo, mesmo quando as pela negação pública, ou por pseudosoluções,
formas de lidar com suas dramáticas manifesta- como é o caso do capitalismo ecológico.
ções (acontecimentos extremos) variam ampla-
mente. Pela primeira vez na história, o desen- Quarto perigo: desvalorizar o trabalho
volvimento capitalista está afetando seriamente O quarto perigo é a desvalorização do tra-
a capacidade da natureza para restaurar seus balho. As lutas históricas da classe operária
ciclos vitais, alcançando assim limites ecoló- pelos direitos do trabalho foram uma das vias
gicos que são considerados pelos expertos in- principais pelas quais as classes populares ob-
dependentes e comissões das Nações Unidas tiveram acesso à cidadania e se envolveram
como linhas vermelhas detrás das quais o dano no processo democrático. Esta é provavel-
é irreversível e a vida na Terra corre risco. Este mente a área que mostra mais claramente as
perigo ilustra da maneira mais clara as franjas tensas articulações entre os três princípios do
temporais contraditórias da ação social em nos- regime moderno: o Estado, o mercado e a co-
sas sociedades, que parecem estar divididas em munidade4. Por meio da intervenção estatal,
duas temporalidades extremas: a temporalida- frequentemente a continuação de distúrbios
de da urgência e a da mudança paradigmática, sociais, o contrato individual entre o trabalha-
sendo que a primeira requer ação imediata já dor e o empregador em um mercado sem ne-
que amanhã poder ser muito tarde, e a segunda nhuma especificidade, o mercado da força de
demanda mudanças na produção e no consu- trabalho foi gradualmente condicionado pelo
mo, nas relações sociais e nas concepções da
natureza que provavelmente demorarão várias
gerações para se realizar. Dado que nenhuma 4 A respeito dos três pilares da regulação social mo-
derna, veja Santos (1995: 1-5).
A resiliência das exclusões abissais em nossas sociedades 323

contrato social entre classes sociais regula- mos anteriormente, a maior parte do trabalho
do pelo Estado. A força de trabalho foi então dedicado à reprodução da força de trabalho
considerada como uma matéria prima espe- tem sido historicamente trabalho não assala-
cial que envolvia importantes componentes riado e majoritariamente uma carga para as
não comerciais. Sobre a comunidade recaiu a mulheres. Hoje a precariedade e a virtualida-
tarefa de reproduzir a força de trabalho não de do trabalho estão apagando a diferença en-
remunerado, realizado majoritariamente pe- tre pago e não pago no interior do próprio tra-
las mulheres. A regulação da força de trabalho balho produtivo, supostamente assalariado.
e dos direitos dos trabalhadores que ela garan- Este desbotamento toma diferentes formas:
tiu foi um processo político desenvolvido em a escritura constante de currículos e carta de
nível nacional. Foi a componente chave dos apresentação, o tempo investido em entrevis-
tipos de capitalismo nacionalmente regulados tas, frequentemente em vão, a preparação no
que, portanto, diferiam de um país ao outro. lar para as tarefas de trabalho do dia seguinte,
Tudo isto começou a mudar com a globali- a disponibilidade durante as 24 horas para os
zação neoliberal, cujo impulso principal era pedidos do empregador, as horas extras não
transformar a força de trabalho em um recur- pagas, etc. Algumas destas constituem o que
so global, ao mesmo tempo em que a impedia se denominou como roubo de salários.
de se tornar um mercado de trabalho global A outra distinção que está se apagando é
unificado. Gradualmente o trabalho assalaria- aquela que diferencia o tempo de trabalho do
do está se tornando uma matéria prima como tempo livre ou de lazer. Mediante diversos
qualquer outra, sendo que o trabalho sem di- mecanismos está se eliminando a liberdade
reitos ou sem condições para exercê-los é a do tempo livre: o desemprego prolongado e a
experiência vital de mais e mais trabalhadores ansiedade permanente em relação com a cres-
em todo o mundo. Neste processo têm se en- cente insegurança do trabalho, a obsessão com
redado crescentemente duas distinções chave o estado físico para um bom desempenho pro-
das sociedades modernas: a distinção entre dutivo no trabalho, o lazer industrializado de
trabalho assalariado e trabalho não assala- modo tal que o tempo de lazer é submetido a
riado, e aquela entre o tempo de trabalho e o um ritmo similar que o do tempo de trabalho.
tempo livre ou de lazer. Como já menciona-
324 Boaventura de Sousa Santos

Quinto perigo: mercantilizar o Dado que esta ideologia se traduz em políticas


conhecimento educativas e de pesquisa, e é internalizada por
Durante os últimos trinta anos, a relação en- grandes setores da comunidade acadêmica, o
tre a ciência e o conhecimento tem mudado, e que começou como uma ameaça externa à au-
essas mudanças têm tido um impacto decisivo tonomia da educação científica e universitária
nas universidades. A natureza do conhecimen- logo poderia se tornar uma segunda natureza
to na sociedade tem mudado sob diferentes interna. Privadas de financiamento público
designações tais como a revolução da informa- adequado, as áreas do conhecimento sem valor
ção e da tecnologia, a sociedade do conheci- de mercado, e os departamentos das universi-
mento, a inovação social, o espírito empresa- dades nos quais estas se ensinam e se pesqui-
rial e a rentabilidade social. Em vez de servir sam, vão se tornar dependentes da filantropia
a objetivos de progresso social a longo prazo, privada5. No pior dos casos, essas áreas serão
o conhecimento científico é chamado a servir atingidas por um novo padecimento que pode
às necessidades imediatas da acumulação ca- ser descrito como sehnsucht patente ou priva-
pitalista. Assim, o valor do conhecimento está ção relativa patente.
se tornando o valor do mercado do conheci-
mento. Na gíria político-econômica, o valor de Sexto perigo: recolonizar a diferença
uso do conhecimento retrocede diante do seu O sexto perigo é a recolonização da diferen-
valor de câmbio. Pelo contrário, a bondade pú- ça. A diferença colonial foi a essência do colo-
blica do conhecimento reside cada vez mais nialismo histórico. Já sabemos que a diferença
em seu caráter de bem privado. Com o fim de colonial sobreviveu ao final do colonialismo
ficar produtivamente a serviço da produção de histórico e continua afetando as sociedades
mercadorias, o conhecimento científico tem contemporâneas sob distintas formas, tais
que ser ele mesmo uma mercadoria. Em linha
com isto, a universidade não só deve produzir
força de trabalho qualificada para o mercado,
5 Desenvolvo esta problemática em meu livro de
mas também se tornar ela mesma um mercado 2017, Decolonising the University. The Challenge of
e se conduzir como uma empresa comercial. Deep Cognitive Justice (Newcastle upon Tyne: Cam-
bridge Scholars Publishing).
A resiliência das exclusões abissais em nossas sociedades 325

como o racismo e a violência racial, a xeno- Norte. A imigração está sendo abordada como
fobia, a islamofobia, a purificação e caracte- uma problemática de segurança nacional e a
rização étnicas, as políticas de (contra, claro) imaginação repressiva parece não ter limites
migração e asilo, as intervenções militares im- (campos de reclusão, deportação, bloqueio do
perialistas e as mudanças de regimes, etc. Nada acesso a serviços básicos, prevenção da entra-
disto é novo, mas sua intensidade é nova, espe- da por terra ou mar, arriscando vidas, como
cialmente considerando que acontece depois se sabe). O Mediterrâneo está se tornando um
de décadas de discursos públicos de reconhe- cemitério líquido de pessoas em busca de uma
cimento da diferença, do multiculturalismo, vida minimamente digna, um cemitério que re-
da ação afirmativa e dos diálogos entre civili- colhe corpos que conseguiram escapar da guer-
zações. Hoje parece evidente que as necessi- ra e do cemitério seco do deserto do Saara. Por
dades da acumulação capitalista prevalecem outro lado, em países com grandes recursos na-
sobre o reconhecimento da diferença sempre turais, a explosão da matéria prima na primeira
que esta última interfere nos imperativos da década do milênio conduziu a uma nova ênfase
acumulação. O crescimento exponencial da no setor primário (ecoando, de fato, o velho sa-
desigualdade social no interior dos países e queio colonial de matéria prima), em direção
entre eles, causada pelo neoliberalismo, está a um modelo de desenvolvimento extrativista
levando em direção a dois fenômenos aparen- que tem intensificado o colonialismo interno
temente não relacionados que, segundo meu no qual os camponeses, os povos indígenas, os
ponto de vista, são manifestações gêmeas da afrodescendentes e os dalits estão sendo ex-
mesma condição histórica que reclama a reco- pulsos de seus territórios ancestrais para ser
lonização da diferença. Uma é vista como uma colocados à disposição de megaprojetos de mi-
problemática internacional e a outra, como neração, exploração petroleira, energia hidro-
nacional, mas ambas são problemáticas nacio- elétrica, agricultura de monocultura industrial
nais e internacionais ao mesmo tempo. Por um e silvicultura. Tanto quanto nos tempos colo-
lado, a extrema exclusão social combinada em niais, sua resistência é vista como um obstácu-
alguns países com a dramática degradação do lo para o progresso, um produto da ignorância,
meio ambiente está provocando grandes trân- do atraso ou da infantilidade. O colonialismo
sitos de pessoas, tanto no Sul, quanto do Sul ao não acabou, simplesmente mudou. Temos que
326 Boaventura de Sousa Santos

enfrentar o que foi um erro do marxismo ao se bito urbano pelas classes médias baixas, tanto
enfocar no capitalismo e desatender a resiliên- as históricas quanto as novas. Devido às crises
cia e a perversidade do colonialismo nas rela- financeiras e econômicas, estas classes caem
ções sociais. Ao longo de toda a modernidade abruptamente na pobreza ou, menos dramati-
ocidental existiram três formas de dominação: camente, veem suas antigas ou novas expec-
o colonialismo, o capitalismo e o patriarcado, tativas de uma vida decente repentinamente
embora as relações entre estas tenham variado frustradas. Frente à ausência de respostas ins-
segundo o tempo e o espaço. titucionais a suas frustrações, manifestam-se
nas ruas e nas praças6.
Sétimo perigo: criminalizar O outro processo se refere ao fato de que
o protesto social as populações rurais são afetadas pelo desen-
volvimento dos processos mencionados ante-
O último perigo é a criminalização do pro-
riormente. Sua resistência a tais projetos, com
testo social. É difícil dizer se hoje tem mais
frequência mediante cortes de estradas para
protestos sociais do que antigamente. No en-
evitar que as empresas mineiras e as madei-
tanto, é seguro afirmar que o protesto social
reiras ingressem em seus territórios e campos,
está sendo crescentemente criminalizado.
enfrenta medidas repressivas que envolvem ha-
Dois tipos de processos sociais, um basica-
bitualmente as forças militares7. Muitos líderes
mente urbano e o outro rural, parecem estar
da resistência são presos e, às vezes, assassi-
envolvidos, embora enfrentem o mesmo tipo
nados por mercenários a serviço das empresas
de resposta repressiva autoritária. A democra-
ou dos proprietários de terras. As bases legais
cia está sendo desinstitucionalizada devido
para a criminalização com frequência se acham
à crise de representação e à crise gêmea de
na legislação antiterrorista promulgada em nu-
participação desinstitucionalizada. A alterna-
merosos países em cumprimento das diretivas
tiva que os cidadãos indignados ainda têm é
o protesto social. As causas de fundo são com
frequência a erosão dos direitos econômicos e 6 Desenvolvo esta problemática em Santos (2015a:
sociais, e a consequente degradação dos servi- 115-142). Veja também Santos (2015b).
ços públicos, particularmente sentida no âm- 7 Desenvolvo esta problemática em Santos e Chaui
(2013).
A resiliência das exclusões abissais em nossas sociedades 327

ditadas pelo Conselho de Segurança das Na- gência do novo. De modo que ficamos presos
ções Unidas depois do 9 de setembro. em uma transição, em um tempo de má forma-
A reação repressiva contra estes protestos ções que nos são, ao mesmo tempo, familiares
sociais tende a ser mais brutal nas áreas rurais e ameaçadoras devido a suas proporções, sua
que nas urbanas. No entanto, em geral, seu de- forma e o modo em que se nos apresentam.
senvolvimento sugere a emergência de estados Em suma, um tempo de monstros. Identifico
de exceção não declarados que restringem os quatro monstros principais.
direitos dos cidadãos, estejam ou não envolvi-
dos nos protestos. Este é o caso, por exemplo, Primeiro monstro:
da vigilância generalizada de movimentos e co- A droneficação do poder
municações.
O primeiro monstro é a droneficação do po-
Estes sete perigos têm um impacto decisivo
der. Os drones militares são a metonímia de uma
nas formas em que funcionam as instituições
forma de poder tão poderosa que não tem que se
e em que se exerce o poder. Seguindo Antonio
preocupar com as represálias dos inimigos, não
Gramsci, observo dito impacto na forma de
se imagina tendo que se preparar para a derro-
quatro monstros.
ta, nem celebra a vitória, porque a vitória é uma
rotina informática e não é heroica: seus heróis
Os quatro monstros são bytes informáticos que nem sequer conhe-
Em sociologia política, a ideia dos monstros cem seus amos. A principal característica desta
é uma referência a Antonio Gramsci8, um re- forma de poder é que nunca segue as mesmas
conhecido marxista italiano de princípios do regras do jogo que as do seu adversário. É por
século XX. Ele disse que estávamos em um isso que, mais que adversários, tem inimigos.
momento no qual o novo não terminava de Utilizando os conceitos de Chantal Mouffe, o
nascer e o velho resistia, impedindo a emer- conflito democrático e agônico se torna despóti-
co e antagônico. A droneficação do poder acon-
8 “A crise consiste precisamente no fato de que o tece nos reinos convencionais da política (seja,
velho está morrendo e o novo não termina de nascer, como já mencionamos, um estado de exceção
neste meio aparece uma grande variedade de sintomas não declarado ou guerras não declaradas), da
mórbidos”, em Gramsci (1972: 276)
328 Boaventura de Sousa Santos

economia (por meio da operação de mercados mas não estão funcionando de acordo com suas
financeiros amplamente desregulados) ou dos próprias regras. É uma espécie de exercício for-
meios (mediante a crescente concentração de mal do poder por parte de autoridades formais.
meios corporativos). Nas três instâncias, gran- Darei dois exemplos de diferentes países.
des massas de população alcançam ver que seus Donald Trump, neste ponto, é um poder infor-
modos de vida são drasticamente afetados da mal que legisla pelo Twitter. É possível imagi-
noite para o dia por decisões opacas a cargo de nar uma maneira mais informal de exercitar o
mega-atores amplamente desconhecidos e im- poder “democrático”? Vimos investimentos do
possíveis de serem responsabilizados. fabricante de automóveis Ford serem cance-
Outra forma de poder extremo é o capital lados pelas publicações em Twitter de Trump.
financeiro, a forma social de capitalismo domi- Sei que, como pessoas de negócios, provavel-
nante na atualidade. Funciona como um drone mente são mais inteligentes do que esta ques-
em muitos países. No caso da Europa, na década tão do twitteio. Sabem que vão obter algum
atual, na Grécia, em Portugal e na Espanha. De benefício ao não investir no México. Em qual-
um momento para o outro, sua dívida cresce 10 quer caso, decidir políticas pelo Twitter é in-
ou 20% porque algumas pessoas estão especulan- formal, mas ao mesmo tempo é poderoso, por-
do com a dívida externa desses países a partir de que o Presidente dos Estados Unidos é quem
seus computadores. Nada acontece na economia twitteia. Outro exemplo é o Presidente Rodri-
real, mas as pessoas são mais pobres no dia se- go Duterte nas Filipinas. Quer se desfazer dos
guinte e aqueles que provocaram este empobre- criminosos, principalmente dos drogados e
cimento repentino se tornam muito mais ricos. dos narcotraficantes, simplesmente matando-
-os em vez de processá-los e enviá-los à prisão.
Segundo monstro: É um exercício de poder informal por parte do
as institucionalidades paralelas presidente de uma república que foi eleito de-
mocraticamente. Estes são dois exemplos ex-
O segundo monstro é que as instituições são
tremos de uma forma emergente de poder que
utilizadas para operar extra institucionalmente.
consiste em utilizar as instituições para atuar
Se prestamos atenção no que acontece na polí-
extra institucionalmente.
tica, em ocasiões, nossas instituições estão ali,
A resiliência das exclusões abissais em nossas sociedades 329

Terceiro monstro: lavra “crise” chegou até a denotar o ponto de


a violência sacrificial inflexão de uma doença: estar doente e ter a
O terceiro monstro é a violência sacrificial oportunidade de se curar e ficar saudável nova-
em nossa sociedade, ou seja, o fato de que mente. Sempre que temos uma crise, temos que
sacrificamos nossos valores mais prezados explicar a crise para restaurar a normalidade
sob pretexto de defendê-los. A modernidade do sistema, seja nosso corpo ou nossa socie-
ocidental tem tido repetidamente a ilusão de dade. O que acontece quando a crise se torna
que deveríamos tentar salvar a humanidade permanente? Vivemos em sociedades que, du-
destruindo parte dela. Esta é uma destruição rante os últimos trinta anos, têm estado em
salvadora e sacrificial cometida em nome da uma crise permanente. Quando a crise se torna
necessidade de cumprir radicalmente todas permanente, acontece uma virada insidiosa e
as possibilidades habilitadas por uma realida- majoritariamente invisível: em vez de reclamar
de social ou política dada, sobre a qual se su- uma explicação, a crise é utilizada para expli-
põe que se tem um poder total. Assim operava car tudo. Nas ciências sociais, dizemos que a
o colonialismo, engendrando o genocídio dos crise deixa de ser uma variável dependente e
povos indígenas, ou seja, eliminando-os sob se torna uma variável independente. O gover-
pretexto de garantir a sua salvação. Foi assim no recorta salários e aposentadorias devido à
no período das lutas imperialistas que causa- crise. Então, em vez de ser explicada, a crise
ram milhões de mortes nas duas guerras mun- explica tudo. O único que não está em crise em
diais e outras muitas guerras coloniais. Foi nossa sociedade é a própria crise. Todo o res-
assim durante o estalinismo, com o gulag, e to parece estar em crise. Isto leva à política do
no nazismo, com o holocausto. Hoje em dia, ressentimento, na qual as pessoas se enfrentam
é assim no neoliberalismo, com o sacrifício entre elas, vítimas contra vítimas, e oprimidos
coletivo da periferia do sistema mundial e das contra oprimidos.
classes populares em todo o planeta.
A linha abissal
Quarto monstro: a crise permanente Este diagnóstico me conduziu à ideia de que
precisamos de uma intervenção epistemoló-
O último monstro é o conceito de crise.
gica. Precisamos de um tipo de conhecimento
Desde a sua raiz grega krinein, “decidir”, a pa-
diferente, porque a ciência moderna e o direi-
330 Boaventura de Sousa Santos

to moderno têm legitimado os sete perigos ao em geral. Esta divisão é o que chamo de uma
lhes outorgar estatuto científico e legal respec- divisão muito radical entre as relações sociais
tivamente, e ao fazer isso, foram cúmplices da metropolitanas e as relações sociais coloniais.
ascensão dos monstros. Sob estas condições, Começou muito cedo, no início do século XVI,
pode a lei ser emancipatória9? Tenho trabalhado e continua existindo hoje em dia de diferentes
com o Movimento Sem Terra no Brasil10 e com formas, depois de ter sobrevivido ao final do co-
o povo indígena no Equador11. Eles utilizam os lonialismo histórico. A ideia é que aquilo válido
tribunais e a constituição para promover seus para as relações sociais metropolitanas não é
direitos. Sob que condições pode a lei ser eman- válido para as relações coloniais. Desenha-se
cipatória? Responder a esta pergunta positiva- uma “linha abissal” entre estas duas realidades
mente hoje é muito mais difícil do que há dez de modo que se tornam incomensuráveis. As re-
anos atrás. Para mim era muito mais fácil, na- lações sociais metropolitanas estão governadas
quele então, dizer que a lei pode ser emancipa- pela tensão entre a regulação e a emancipação,
tória. Na atualidade, tenho muito mais dúvidas. enquanto as relações coloniais estão reguladas
No entanto, com o fim de compreender o que pela tensão entre a violência e a apropriação. A
acontece na Europa e no mundo, levei meu tra- diferença entre ambas é que do lado metropoli-
balho para fora da Europa para ver o que acon- tano das relações sociais pode haver exclusão,
tecia ali. Também viajei na história para obser- mas não é uma exclusão radical ou abissal, já
var as causas de fundo do problema. Cheguei à que os grupos excluídos podem reclamar direi-
conclusão de que, desde o início da modernida- tos de modo realista. São plenamente humanos,
de em diante, temos uma divisão em nossa te- frequentemente até cidadãos. Portanto, podem
oria social que é invisível para o povo europeu reclamar direitos. Do lado colonial, do outro
lado da linha, a exclusão social é abissal ou ra-
dical, dado que os grupos excluídos não podem
9 Formulo esta pergunta e tento respondê-la no capí-
tulo 9 de minha obra, titulada “Pode ser a lei emancipa- reclamar direitos realisticamente porque fre-
tória?” (Santos, 2002: 439-495) quentemente não são nem sequer “plenamente
10 Ver Santos e Carlet (2010: 60-82). humanos”. Explicarei isto em detalhe, porque
é importante compreender que esta linha abis-
11 Mais informação a respeito em meu livro co-edita-
do com Agustín Grijalva (2012). sal não termina com o fim do colonialismo. Em
A resiliência das exclusões abissais em nossas sociedades 331

nossas sociedades, cidades e ruas, há uma linha em muitos países de todos os continentes, do
abissal que separa a forma metropolitana, civili- trabalho análogo à escravidão, para utilizar a
zada, de estabelecer relações sociais e a forma expressão das Nações Unidas, mostram que
violenta, colonial, de fazer o mesmo. E estamos a exploração não abissal dos trabalhadores
divididos por isto. Darei alguns exemplos. (lutas no âmbito da regulação/emancipação),
conquistada mediante muita luta e sofrimento,
A legislação trabalhista poderia estar se deslocando em direção à ex-
ploração abissal levada adiante no âmbito da
A luta pelos direitos trabalhistas foi um dos
apropriação/violência.
veículos mediante os quais as classes popula-
res cruzaram a linha abissal e deixaram a terra
da colonialidade para alcançar a terra da me- A cidadania
trópole12. Em décadas recentes, no entanto, Sempre aprendemos que a cidadania con-
como mencionei anteriormente, o capitalismo siste na inclusão, porque um cidadão é um
global neoliberal tem conduzido uma guerra estado mais elevado de um ser humano. Um
de classes contra o emprego com direitos, a le- cidadão tem direitos e deveres, de modo que
gislação trabalhista, as paritárias coletivas e a a cidadania refere-se à inclusão. Mas devemos
organização sindical. A expansão do trabalho ter em mente que a grande maioria das pes-
precário, o roubo dos salários e a ascensão, soas do mundo não são cidadãos, não perten-
cem a nenhuma cidadania com direitos e de-
veres. As teorias da cidadania desenvolvidas
12 A emergência dos direitos trabalhistas e da legis- pela modernidade ocidental são tanto teorias
lação trabalhista como direito protecionista aconteceu da inclusão (no lado metropolitano da linha
nas sociedades metropolitanas que, nesse momento, abissal) quanto da exclusão (no lado colonial
eram basicamente a Europa e a América do Norte. Ao da linha abissal). Apelo a um pensamento pós-
mesmo tempo, nas colônias, a legislação trabalhista era
-abissal, uma forma de pensar a cidadania da
a legislação penal, a legislação da escravidão e o tra-
balho forçado. Estas duas realidades simultâneas tor- perspectiva dos não-cidadãos. Aos direitos hu-
naram-se incomensuráveis devido à linha abissal que manos, na perspectiva dos humanos conside-
as separa. Ver meu livro Epistemologies of the South rados pelas políticas e ideologias dominantes
(Epistemologias do Sul) (Santos, 2014: 118-135).
332 Boaventura de Sousa Santos

como não-humanos. Ao Estado de bem-estar público ou entram em suas casas, tornam-se


e à segurança social, na perspectiva daqueles objetos de apropriação e violência (sociabilida-
jogados no que eu chamei de sociedade civil de colonial). Portanto, estas mulheres de fato
incivilizada, como os trabalhadores imigran- cruzam a linha abissal todos os dias. Vejamos
tes indocumentados ou que procuram asilo, este caso mais detalhadamente. Uma mulher
confinados em campos de concentração, com tem um emprego no qual tem direitos, mas pro-
frequência durante muitos anos. Às zonas de vavelmente seja excluída porque não recebe
não-ser que não estão habitadas por catego- o mesmo salário do que um homem que faz o
rias gerais abstratas, mas por grupos reais de mesmo tipo de trabalho. Isto é exclusão não
pessoas em contextos sociais e históricos con- abissal, exclusão com direitos. Quando chega
cretos. Por exemplo, graças às corajosas lutas em sua casa, esta mulher é estuprada ou com
levadas adiante pelos movimentos feministas, frequência assassinada pelo marido; ou ela é
muitas mulheres hoje estão do lado metropoli- vítima de um estupro coletivo, como acontece
tano da linha e, em consequência, as discrimi- frequentemente na Índia. Esta mulher cruzou a
nações das quais são vítimas não são abissais e linha abissal porque neste ponto não é plena-
podem ser enfrentadas dentro do âmbito regu- mente humana, já não tem direitos. Ela os tem
lação/emancipação. Mas as mulheres em mãos enquanto está no trabalho, mas perde todos os
de Boko Haram, ou as vítimas de feminicídio seus direitos quando não é tratada como um
no México, ou as vítimas de estupro coletivo verdadeiro ser humano. De forma similar, um
na Índia, encontram-se todas na zona do não- muçulmano ou um trabalhador descendente de
-ser. Sua exclusão é abissal e opera dentro do árabes que trabalha em um restaurante pode
âmbito de apropriação/violência. Ainda mais, e ser discriminado porque o seu salário é menor
provavelmente menos advertido, é o fato de as do que o dos trabalhadores nascidos no país,
mulheres serem, em nossas sociedades, força- mas tem direitos. Quando este mesmo traba-
das a viver frequentemente nos dois lados da lhador sai do restaurante, ele pode ser objeto
linha: trabalham no setor formal da economia de suspeita e ser considerado o perpetrador de
como trabalhadoras com direitos (sociabilida- um ato terrorista. Seus direitos apenas podem
de metropolitana), mas quando saem do traba- ser invocados nesse caso. A mesma coisa acon-
lho e caminham pela rua, viajam em transporte tece com os jovens negros nos Estados Unidos:
A resiliência das exclusões abissais em nossas sociedades 333

são vítimas prováveis da brutalidade policial. Em nossa análise legal do direito, devemos
Isto não acontece só nos Estados Unidos. O prestar atenção nesta situação porque as teorias
mesmo se observa no Brasil. Na cidade de Sal- que temos desenvolvido são incompletas. Eu
vador, Bahia, onde a maior parte da população mesmo tenho escrito extensamente sobre a so-
é negra, a média de jovens brasileiros negros ciologia da lei e sempre me enfoquei nas formas
assassinados por dia pela policia é de quatro metropolitanas da sociabilidade. Não tinha tan-
pessoas. Eles têm direitos? Não, por causa da ta consciência do funcionamento da lei em tipos
sua cor de pele são considerados subumanos. de relações coloniais, porque estas frequente-
Portanto, estas pessoas têm direitos quando es- mente acontecem mais além das nossas socie-
tão na escola ou no trabalho mas, ao sair destes dades. Agora a linha abissal está se movendo da
lugares, cruzam a linha abissal e, ao fazer isso, geografia colonial em direção às sociedades eu-
seus direitos já não estão ali para protegê-los, ropeias, de modo que o problema deve ser abor-
nem com uma mínima eficácia. dado pela legislação e pela política europeias. É
provável que nós tenhamos de mudar o nosso
A resiliência abissal currículo e a nossa forma de entender, inclusive
também a nossa própria história.
As teorias desenvolvidas pela modernidade
ocidental deixam de lado muitas pessoas, ra-
zão pela qual a maior parte da população não A inovação do outro lado da linha
é sujeito de direitos humanos em termos reais. As pessoas que estão do lado colonial da so-
Ao contrário, são objetos dos discursos domi- ciabilidade não são só vítimas; elas resistem à
nantes sobre os direitos humanos. De fato, a humilhação, à discriminação e à exclusão. São
maior parte da população mundial não tem di- inovadoras e encontram soluções porque não
reitos, mas são ocasionalmente bombardeadas são cínicas e querem sobreviver. Estão vivas
por nossos discursos sobre direitos humanos hoje e não sabem se estarão vivas amanhã, de
na Europa. Em consequência, há uma linha modo que criam meios para sobreviver. Têm
abissal resiliente: as pessoas que ficam do ou- cooperativas, economias camponesas, econo-
tro lado da linha estão abissalmente excluídas, mias indígenas, economias feministas, artes e
ou seja, trata-se de uma exclusão sem direitos. artesanato feito por mulheres de todo o mun-
334 Boaventura de Sousa Santos

do. Não são consideradas muito relevantes mo legal. Passargada é o nome fictício de um
porque estes tipos de economia não formam assentamento urbano. Usei o nome fictício
parte de uma economia capitalista. Não é o porque, naquele momento, o Brasil se encon-
tipo de economia para a qual treinamos os trava sob uma ditadura e identificar a comuni-
nossos povos nas escolas de negócios, porque dade podia ser arriscado para as pessoas que
estas economias estão baseadas na solidarie- moravam ali. Eram consideradas populações
dade e na reciprocidade, não na acumulação marginais perigosas e, em consequência, alvo
infinita do capital. Com frequência, as pesso- privilegiado das políticas repressivas. Naquele
as envolvidas nestas lutas desenvolvem suas momento, assim como hoje, muitas ideias inte-
próprias leis. Há uma lei que emerge de baixo ressantes e práticas inovadoras têm emergido
para cima por meio de sua luta. Dado que estas do outro lado da linha, mas nunca chegaram
pessoas não têm acesso a advogados, porque até nós porque tendemos a ignorá-las ou vê-las
seus serviços são caros ou não estão disponí- por meio de lentes europeias, tornando-as irre-
veis, elas se reúnem para criar outras formas levantes. Se as trouxermos para a conversação
de ordem social. legal global, desenvolveremos o que chamo de
Há muitos anos, quando preparava minha um direito pós-abissal, ou seja, uma concepção
dissertação doutoral em Yale, vivi durante uns da lei que vai denunciar a linha abissal com o
meses em uma favela no Rio de Janeiro. Meu objetivo de desbancá-la. Se não denunciarmos
trabalho era basicamente sobre a ordem pú- a linha abissal, não será possível superá-la. Há
blica em um assentamento informal13. Essas um tempo, quando alegava por ações afirma-
pessoas viviam em um assentamento ilegal e, tivas para combater a discriminação contra a
portanto, não tinham acesso a tribunais onde população negra no Brasil, muitos dos meus
se julgasse segundo o direito oficial. Desen- amigos de esquerda me diziam que estava pro-
volveram sua própria lei. Chamaram-na de di- duzindo racismo no Brasil. Da sua perspectiva,
reito de Passargada. A partir deste momento, o Brasil era uma democracia racial e ao afirmar
desenvolveu-se o meu interesse pelo pluralis- que havia racismo estrutural, estava de fato
incitando práticas racistas. Se não houvesse
racismo, por que 75% dos pobres são negros?
13 Mais a respeito em Santos (1995: 111-249). Porque eram mais pobres quanto mais escura
A resiliência das exclusões abissais em nossas sociedades 335

a sua pele? Tinha racismo na “democracia ra- Uma ruína também é uma semente e temos
cial”. Para abordar a discriminação racial es- que ver os emergentes que surgem destas ruí-
trutural, é preciso reconhecer e denunciar sua nas. A democracia hoje está se tornando uma
existência. Para superar a linha abissal, deve- ruína, do mesmo modo em que a revolução já
mos denunciar a sua existência. se tornou há muito tempo. Debatemos cada
vez mais sobre cada vez menos, porque as coi-
O direito pós-abissal sas mais importantes do nosso mundo estão
Uma vez denunciada a linha abissal, temos fora da nossa capacidade de debate. São de-
que nos deslocar em direção a outra noção de cididas por Goldman Sacks, uma metonímia
lei. Não posso desenvolvê-la muito aqui, mas para o capital financeiro global, não por nós.
posso esboçar a ideia. Em qualquer período Se seguirmos esvaziando a democracia, logo
da sociedade, temos que lutar e batalhar com nos encontraremos frente a uma ruína e o re-
instrumentos que estão à nossa disposição. formismo legal também será uma ruína. Para
Nosso tempo é o tempo das ruínas dos mode- lutar contra isto, devemos reunir os dois mo-
los de transformação social: a revolução social delos de transformação social que o século XX
e a reforma social. Não podemos desperdiçar concebeu como pólos opostos. Em outras pala-
essas ruínas. Temos que transformá-las em se- vras, precisamos revolucionar a democracia e
mentes. Este conceito de “semente ruína” é um democratizar a revolução. Temos que expandir
conceito chave no meu trabalho, como pode o debate democrático para além do sistema po-
se observar no meu próximo livro titulado The lítico definido em termos estritos. As ideias que
End of the Cognitive Empire: The Coming of apresento a seguir devem ser temas importan-
Age of Epistemologies of the South14. tes na refundação das escolas de direito e das
ciências sociais.

14 As sementes ruínas são um presente ausente e, ao


mesmo tempo, memória e alternativa futura. Represen-
tam tudo o que os grupos sociais reconhecem como vivas na sua memória e nos interstícios mais recônditos
concepções, filosofias, e práticas originais e autenticas das suas alienadas vidas diárias. São as fontes da sua
que, em vez de ter sido historicamente vencidas pelo dignidade e da sua esperança por um futuro pós-capi-
colonialismo e o capitalismo modernos, permanecem talista e pós-colonial. Mais a respeito em Santos (2018).
336 Boaventura de Sousa Santos

Os temas pós-abissais decisões. A ideia de um orçamento participa-


Os bens públicos tivo no Brasil e na América Latina está sendo
agora imitada na Europa. Em umas poucas dé-
O direito dos bens públicos. Devemos come-
cadas, a democracia representativa será uma
çar a pensar sobre coisas que não podem ser
ruína se não for sustentada pela democracia
vendidas nem compradas, do espaço exterior
participativa.
até a água. Devemos reclamar que há coisas
que são tanto patrimônio comum da humani-
O direito plurinacional e intercultural
dade quanto garantias para o futuro da huma-
nidade. Não devem ser objetos de apropriação. Uma terceira ideia é o direito estatal como
um direito plurinacional e intercultural. A
O pluralismo democrático Europa é cada vez mais intercultural e se en-
frentam duas reações. A primeira é negá-lo e ir
Também devemos desenvolver para a lei
contra isto, o que observamos em todas partes.
de um profundo pluralismo democrático uma
A segunda é afirmar esta interculturalidade e,
nova constituição vinda de baixo. Por exem-
às vezes, a plurinacionalidade (Santos, 2010).
plo, o Artigo 11 da Constituição Boliviana es-
James Tully escreveu sobre por que o consti-
tabelece três tipos de democracia que os cida-
tucionalismo se tornou um império da unifor-
dãos devem respeitar por igual: a democracia
midade (2007: 315-358). Deveria haver mais
representativa, a democracia participativa e a
formas diversas de organização estatal. Por
democracia comunitária — uma democracia
que tudo tem que ser feito do mesmo modo em
por consenso típica dos povos indígenas —.
regiões tão diferentes? Devem considerar-se di-
Houve um tempo no qual tivemos todos estes
ferentes formas de governo.
tipos de democracia na Europa, mas, desde a
década de oitenta, chegamos até a crer que a
A dignidade
única forma legítima de democracia é a demo-
cracia liberal, que consiste em votar uma vez A quarta ideia é que precisamos de uma nova
cada quatro anos. Em uma democracia parti- lei de dignidade. Ficamos estancados na ideia
cipativa, tomaríamos decisões em conselhos dos direitos humanos, mas estes são só uma
cidadãos em vez de escolher a quem toma as das linguagens da dignidade. Há outras lin-
A resiliência das exclusões abissais em nossas sociedades 337

guagens da dignidade e temos que lhes prestar riana, um membro da oposição venho até mim
atenção (Santos, 2015c). O Artigo 71 da Cons- para procurar a confirmação de que os povos
tituição Equatoriana estabelece os direitos da indígenas estavam insanos ao outorgar direi-
Pacha Mama (Mãe Terra). A ideia é que a natu- tos a um objeto tal qual a natureza. Disse-lhe
reza tem direitos. Nós não podemos imaginar que ele tinha razão, porque a concepção euro-
a natureza ter direitos, porque em nossa cul- centrista de que a natureza outorgara direitos
tura não somos spinozianos, mas cartesianos. a um objeto é uma loucura. E acrescentei que
A concepção ocidental dos direitos humanos o problema era que a concepção indígena não
está infestada de uma simetria muito simplista era eurocentrista. Para os povos indígenas, a
e mecanicista entre direitos e deveres. Outor- Mãe Terra é uma entidade viva que não nos per-
ga direitos só àqueles de quem pode demandar tence. Pelo contrário, nós lhe pertencemos16.
deveres. Isto explica porque de acordo com os Dado que existem diferentes concepções de
direitos humanos ocidentais, a natureza não dignidade, porque não as estudamos em nossas
tem direitos: porque não é possível lhe impor
nenhum dever15. Para o modo de conhecimento
ocidental, a natureza é um recurso natural, não 16 Muito recentemente, a Nova Zelândia também ou-
um espaço sagrado. Os rios e os bosques não torgou status legal de personalidade a rios e bosques
são sagrados porque nós não nos vemos como específicos, permitindo que o próprio meio ambiente
tenha direitos. À diferença do Equador e da Bolívia, os
formando parte da natureza. De fato, estamos direitos da natureza na Nova Zelândia não formam parte
enfrentados à natureza do mesmo modo em de seu direito constitucional, senão que protegem enti-
que a natureza se opõe à nossa humanização. O dades naturais específicas. As comunidades nativas da
pensamento europeu dominante é filho da Es- Nova Zelândia foram fundamentais na criação de novos
marcos legais que outorgaram personalidade jurídica e,
cola de Frankfurt, na qual Adorno e Horkhei-
portanto, direitos às terras e aos rios. De fato, a Nova Ze-
mer deixaram bem clara esta polarização. lândia outorgou personalidade jurídica aos mais de 2126
Quando fui assessor da Constituição Equato- quilômetros quadrados (821 milhas quadradas) do Par-
que Re Urewara e ao rio Whanganui, o terceiro maior do
país. Isto foi parte dos esforços do governo por reparar
15 Pela mesma razão, é impossível outorgar direitos a injustiça histórica que aconteceu durante a fundação
às futuras gerações: elas não têm direitos porque não do Estado da Nova Zelândia: a conquista colonial da ter-
têm deveres. ra em detrimento dos seus povos nativos.
338 Boaventura de Sousa Santos

escolas de direito e de ciências sociais? Porque me ajudam tanto quanto eu os ajudo. O conhe-
não correspondem a esses espaços? A globali- cimento científico é valioso, mas é só um tipo
zação tem avançado tanto com as tecnologias de conhecimento. É incompleto e devemos
da informação que agora entendemos que estas estar abertos a outros tipos. Se fizermos isso,
inovações são importantes, não porque sejam seremos capazes de desenvolver alternativas a
boas para os povos indígenas, mas porque são partir destas “sementes ruínas”.
relevantes também para nós. O conceito de Pa- Atrevo-me a falar contra mim mesmo? Duran-
cha Mama é bom para nós, não só para eles. te mais de quarenta anos ensinei em universida-
Existe uma razão pela qual 75% da biodiversi- des em que, com frequência, passei muito tempo
dade do mundo está em territórios indígenas e formando conformistas incompetentes. Agora é
não nos nossos. tempo para formar rebeldes competentes.

Conclusão Bibliografia
Se observarmos de perto estes e outros te- Gramsci, A. 1972 Selections from the Prison
mas similares, teremos um panorama mais notebooks of Antonio Gramsci (Nueva
amplo do direito e do conhecimento. O conhe- York: International Publishers).
cimento que se desenvolve a partir da luta, de Santos, B. de Sousa 1995 Toward a New
baixo para cima, do conhecimento das pesso- Common Sense: Law, Science and Politics
as. Para dar conta da diversidade epistemológi- in the Paradigmatic Transition (Nueva
ca do mundo temos que nos comprometer com York: Routledge).
o que chamo de “ecologia dos conhecimentos Santos, B. de Sousa 2002 Toward a New Legal
legais”. O conceito de ecologia de conhecimen- Common Sense. Law, globalization, and
tos implica reunir o conhecimento acadêmico emancipation (Londres: Butterworths).
com o não acadêmico. Hoje dedico a metade Santos, B. de Sousa 2010 Refundación del
do meu tempo a ambientes universitários e a Estado en América Latina. Perspectivas
outra metade a organizações e movimentos desde una Epistemología del Sur (Lima:
sociais. Faço isto porque vejo o quanto enri- Instituto Internacional de Derecho
quecem minha teoria outros conhecimentos y Sociedad, Programa Democracia y
destas áreas que não são acadêmicas, e como Transformación Global).
A resiliência das exclusões abissais em nossas sociedades 339

Santos, B. de Sousa 2014 Epistemologies of Marginalized communities and access to


the South. Justice against Epistemicide justice (Abingdon: Routledge) pp. 60-82.
(Nueva York: Routledge). Santos, B. de Sousa e Chaui, M. 2013 Direitos
Santos, B. de Sousa 2015a “Towards a Socio- humanos, democracia e desenvolvimento
Legal Theory of Indignation” in Baxi, U.; (São Paulo: Cortez).
McCrudden, C. e Paliwala, A. (eds.) Law’s Santos, B. de Sousa e Grijalva, A. (eds.) 2012
Ethical, Global and Theoretical Contexts. Justicia indígena, plurinacionalidad e
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(Cambridge: Cambridge University Press) Yala / Fundación Rosa Luxemburg).
pp. 115-142. Spinoza, B. 1955 On the Improvement of
Santos, B. de Sousa 2015b Revueltas de the Understanding (Nueva York: Dover
indignación y otras conversas (La Paz: Publications).
OXFAM CIDES-UMSA / Ministerio de Tully, J. 2007 “The Imperialism of Modern
Autonomías). Constitutional Democracy” in Loughlin,
Santos, B. de Sousa 2015c If God Were a M. e Walker, N. (eds.) The Paradox of
Human Rights Activist (Stanford: Stanford Constitutionalism: Constituent Power
University Press). and Constitutional Form (Oxford: Oxford
Santos, B. de Sousa 2017 Decolonising University Press) pp. 315-358.
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Cognitive Justice (Newcastle upon Tyne:
Cambridge Scholars Publishing).
Santos, B. de Sousa 2018 The End of the
Cognitive Empire: The Coming of Age of
Epistemologies of the South (Nueva York:
Duke University Press).
Santos, B. de Sousa e Carlet, F. 2010 “The
movement of landless rural workers in
Brazil and their struggles for access to law
and justice” in Ghai, Y. e Cottrell, J. (eds.)
Parte IV

Democracia para outro


mundo possível
Apresentação
Democracia para um outro
mundo possível

Antoni Aguiló Bonet

U ma antologia é sempre um trabalho de ris-


co pelo grau de parcialidade que implica.
Selecionar significa separar, escolher, excluir.
possibilidades de abordagem nos campos da
epistemologia e das ciências sociais contempo-
râneas. Como os cristais de um caleidoscópio,
Todas as antologias amputam um corpo de a quantidade de livros, artículos, entrevistas,
maiores dimensões e por isso a seleção sempre cursos, informes, conferências e poemas que
é uma entre uma infinidade de possibilidades configuram seu pensamento, mostra um mosai-
igualmente válidas. Considerando que nenhu- co de formas que, juntas, formam uma figura
ma antologia pode aspirar a ser completa, a caleidoscópica que o próprio Santos denomina
tarefa deste compilador não constitui a última um “pensamento alternativo das alternativas”:
palavra, nem se poderá encontrar nesta sele- um pensamento crítico, transgressor, senti-
ção de textos políticos de Boaventura de Sou- pensante e criativo que ao longo de mais de
sa Santos mais que a expressão de um dos di- quarenta anos continua se reinventando, for-
versos critérios possíveis para realizá-la. Uma mando sociabilidades rebeldes e alimentando
seleção que convida a se aproximar aos textos resistências contra-hegemônicas. Todos e cada
e as ideias políticas deste sociólogo militante um desses cristais constituem o pensamento
que logra uma reflexão crítica, sistemática e de Boaventura e, no entanto, nenhum pode
rigorosa de grande relevância acadêmica e im- refleti-lo em sua totalidade.
plicação prática. A presente antologia reúne cinco textos
A riqueza, a complexidade e a heterogenei- escritos entre meados da década de oitenta
dade da extensa produção escrita de Boaven- e a atualidade. Os textos respondem a duas
tura de Sousa Santos abrem um sem-fim de urgências contextuais: a resposta resistente
344 Antoni Aguiló Bonet

frente às agressões econômicas, sociais e polí- lações coloniais, mercantilistas e patriarcais


ticas perpetradas pela globalização neoliberal preponderantes.
e a procura de alternativas plurais a partir da Selecionar textos políticos de Boaventura de
perspectiva das classes e dos grupos sociais Sousa Santos não resulta fácil dada a diversida-
que têm sofrido sistematicamente as opres- de interna dos seus conteúdos. Mesmo assim,
sões, discriminações e explorações do capi- sem descuidar as especificidades de cada um,
talismo, do colonialismo e do patriarcado. Os é possível identificar alguns denominadores
textos são representativos da sociologia políti- comuns aos textos aqui reunidos. Em primeiro
ca de Santos não somente porque estabelecem lugar, todos eles apresentam elementos para
suas bases teóricas, mas sim porque além dis- consolidar o que poderia se chamar um pen-
so mostram o caráter dual da mesma. Existe samento político pós-abissal dotado de instru-
uma dualidade de textos que em ocasiões se mentos epistemológicos e metodológicos que
distinguem, mas que é necessário confrontar devem se estender além do que o senso comum
de modo permanente: por um lado, escritos de convencional identifica como democracia: um
caráter mais científico-acadêmico que propor- procedimento baseado na eleição periódica de
cionam um olhar mais analítico e, por outro, representantes e na limitação da participação
textos de intervenção social publicados no cidadã direta. Este desenho sustenta que as
marco de determinadas controvérsias e con- pessoas comuns não têm interesse na política,
junturas sociopolíticas. As cartas às esquerdas que as políticas públicas são complicadas e que
são um claro exemplo que combina ambas di- a maioria da cidadania é incapaz de compreen-
mensões: a análise lúcida do presente com o der o que fazem os indivíduos especializados
chamamento à união das forças progressistas na formulação de políticas públicas. Portanto,
e a formulação de propostas transformadoras. o melhor é as pessoas comuns não participa-
Não obstante, além do caráter dual, todos e rem diretamente desses assuntos, e deixarem
cada um dos textos compilados enriquecem as decisões e sua implementação nas mãos de
nossas práticas e interrogações na medida que quem tem o interesse e o conhecimento espe-
ampliam a reflexão política crítica, propõem cialista. Em consequência, a democracia é só
novos horizontes de ação e contribuem a criar um procedimento formal esvaziado de conte-
constelações de luta subalterna contra as re- údo para garantir a livre concorrência entre
Parte iv: Apresentação 345

elites pelo voto popular e decidir quem tem o que advoguem por um modelo de democracia
poder de organizar as prioridades do governo. entendido como governo do povo.
Em segundo lugar, os textos selecionados Em quarto lugar, apostam por uma ecologia
promovem a ampliação do experimentalismo de escalas que assume as diferenças locais, na-
democrático, que insiste na aprendizagem, na cionais, regionais e globais, e que reforça na
inovação e no encontro colaborativo, o que escala estatal e global as experiências demo-
significa que a democracia é capaz de trans- cráticas alternativas, delimitadas a contextos
formações sociais e institucionais baseadas locais, como o caso do orçamento participa-
não somente no uso inteligente dos recursos tivo de Porto Alegre que foi difundido em ou-
disponíveis, mas também no exercício da so- tras localidades do Brasil, da América Latina
berania popular concebida como uma prática e mais recentemente da Europa. Em algumas
experimental e criativa capaz de pôr a prova ocasiões não se trata de assumir tanto os me-
e modificar o statu quo capitalista, racial e pa- canismos quanto os princípios nos que estas
triarcal vigente. experiências se inspiram. A deliberação numa
No terceiro lugar, caracterizam-se por pro- assembleia, por exemplo, termina sendo difi-
curar formas de complementariedade demo- cilmente praticável quando se trata de grandes
crática orientadas a novos tipos de articulação populações, mas o princípio de que as decisões
e decisão político-pública. Complementarie- devem ser consultadas com a cidadania e que
dade significa encontro e articulação social e não pode ser uma elite quem tome as decisões,
institucional entre diferentes e legítimas expe- pode se assumir a grande escala.
riências democráticas. A complementariedade Deste modo, a presente seleção incorpo-
entre formas de democracia representativa, ra os principais elementos de uma sociologia
participativa e radical é um terreno fértil para política articulada em torno ao projeto de de-
a criação de formas participativas de política mocracia radical encaminhado à convergência
e institucionalidade. Existem distintos tipos de dos interesses dos grupos oprimidos que lutam
complementariedade, mas para estas poderem em prol da expansão dos processos de descolo-
acontecer é necessário legitimar a diversidade nização, desmercantilização e democratização
democrática — aquilo que Santos chama demo- das relações sociais em seus mais diversos âm-
diversidade — e criar espaços participativos bitos. Uma seleção que incide tanto em alguns
346 Antoni Aguiló Bonet

dos principais temas que atravessam a socio- permitindo entrever a profundidade que pode
logia política de Santos — o predomínio estru- alcançar o pensamento de Santos.
tural dos processos de exclusão no contexto Três são os principais eixos temáticos sobre
da globalização neoliberal, os déficits das de- os quais se articulam os textos: o debate sobre
mocracias liberais de baixa intensidade sobre a democracia, a reforma democrática e inter-
as que se sustentam as sociedades capitalistas cultural do Estado, e por último, o diálogo com
globalizadas, etc. —, quanto em suas contri- as esquerdas e os movimentos sociais. Cada
buições mais originais, como a emergência do um se ocupa de temas e conteúdos que esta
fascismo social, a análise das constelações de introdução só pode abordar em seus aspectos
poder e resistência, a procura de um novo sen- mais elementares.
so comum político para resignificar a democra-
cia, o Estado e o espaço público a partir das Debate sobre a democracia
epistemologias do Sul, a recuperação por meio No capítulo “As concepções hegemônicas
da sociologia das ausências de experiências de e contra-hegemônicas de democracia”1, San-
democracia invisibilizadas, a procura de for- tos efetua uma crítica radical às chamadas
mas alternativas de democracias mediante a concepções hegemônicas da democracia, um
sociologia das emergências e a defesa do diálo- corpo heterogêneo de teorias sobre o signifi-
go intercultural e interpolítico entre as forças cado da democracia e da participação política
de esquerda. desenvolvidas no contexto da modernidade
A seleção reflete, por um lado, o caráter ocidental que se consolida sobretudo durante
transdisciplinar da sociologia política de San- a primeira metade do século XX, com as con-
tos — por exemplo, em relação à sociologia do tribuições de autores como Max Weber, Han
direito, esta é inseparável da sociologia políti- Kelsen, Joseph Schumpeter, Norberto Bobbio,
ca, já que ambas se interpenetram —, e pelo Giovanni Sartori e Robert Dahl, entre outros.
outro, as continuidades e descontinuidades de Além de suas diversas formulações, as con-
certas linhas de pensamento que a atravessam.
Assim, os materiais compilados constituem um
itinerário por uma posição teórica sólida, coe-
1 Este capítulo forma parte do livro Pneumatóforo:
rente, em evolução e criatividade constantes, escritos políticos (1981-2017) (Coimbra: Almedina).
Parte iv: Apresentação 347

cepções hegemônicas partilham um mesmo en- Frente às concepções hegemônicas, Santos


foque normativo da democracia, assim como a propõe um projeto de democracia contra-he-
preferência por um conjunto de dispositivos gemônica ou “democracia de alta intensidade”,
institucionais que se inscrevem no marco da te- no qual esta se concebe como todo processo de
oria política liberal. Dois são os postulados dos transformação de relações desiguais de poder
quais se partem: um, o princípio do Estado mí- em relações de autoridade partilhada e reco-
nimo que tem de se abster de qualquer interfe- nhecimento mútuo. O desafio consiste em de-
rência em relação com a liberdade natural dos mocratizar todos os âmbitos de poder e saber,
cidadãos; e dois, a primazia de uma concepção ou seja, os diferentes espaços-tempos de poder
instrumental, formal, procedimental, eleitoral e dominação abordados no capítulo “O Estado
e minimalista da democracia, que Santos quali- e os modos de produção do poder social”2. A
fica de “democracia de baixa intensidade”. democracia de alta intensidade é portadora de
As concepções hegemônicas se confrontam uma concepção substantiva, radical e intercul-
com as concepções contra-hegemônicas que tural da democracia radicalmente oposta ao
oferecem visões alternativas da democracia fechamento liberal por meio da redução dos
e representam uma luta pelo reconhecimento espaços, os sujeitos, os temas e os processos
da demodiversidade: a diversidade de concep- considerados constitutivos da política.
ções e práticas democráticas que coexistem
no mundo. A demodiversidade se entrega a Reforma democrática e
uma tarefa dupla. Por um lado, denunciar as intercultural do Estado
limitações da democracia liberal que tem se A reforma do espaço público, e em particu-
revelado como um sistema político ineficiente, lar do Estado, alterado ao longo das últimas
opaco, reprodutor de desigualdades, subordi-
nado a interesses privados e sustentado, em
boa medida, pela corrupção, o conformismo e 2 Este capítulo teve uma primeira formulação no tex-
a apatia. Por outro, resgatar experiências de- to “On Modes of Production of Social Power and Law”
mocráticas alternativas desacreditadas pela publicado em International Journal of Sociology of
Law, V. 13, 1985, pp. 299-336, e dépois formou parte do
concepção da democracia predominante na
livro Pela mão de Alice. O social e o político na pós-
academia e na sociedade. -modernidade (Coimbra: Almedina), 2013.
348 Antoni Aguiló Bonet

décadas pelas reformas do neoliberalismo glo- Estado de selecionar, coordenar e hierarqui-


bal que limitaram suas funções reguladoras e zar os interesses dos agentes não estatais que
distributivas, é um dos elementos chave da so- participam na gestão do espaço e do poder
ciologia política de Santos, na qual a proposta público. Isso implica uma estrutura organi-
de reforma do Estado passa fundamentalmente zacional híbrida, heterogênea e flexível que
por dois processos. supere a dicotomia entre o Estado — a esfera
O primeiro, patente no capítulo “A crise do pública — e a sociedade civil — a esfera pri-
contrato social da modernidade e a emergên- vada — que estabelece o consenso do Esta-
cia do fascismo social”3, consiste na transfor- do mínimo, e na qual o Estado constitui um
mação do Estado em um “Estado experimen- campo de disputas no qual se expressam as
tal”, redistributivo, que garanta a igualdade tensões, os interesses e cosmovisões subja-
de oportunidades, além de critérios mínimos centes entre as forças enfrentadas.
de inclusão que façam possível a participação Assim então, a sociologia política de San-
ativa da cidadania no relativo ao controle, tos concebe o Estado como um “novíssimo
acompanhamento e avaliação dos distintos movimento social” pensado nos termos de
projetos institucionais. Trata-se de configu- uma organização reticular formada por um
rar um modelo de Estado mais transparente conjunto heterogêneo de fluxos, redes e or-
e descentralizado que, por um lado, perde ganizações onde se combinam e inter-rela-
exclusividade em quanto a sua capacidade de cionam elementos estatais e não estatais,
regulação social, agora mais aberta e plural, nacionais, locais e globais, entre os quais o
mas que, por outro, ganha força no terreno Estado atua como agente articulador capaz
da meta-regulação, ou seja, na capacidade do de se comprometer com as demandas e as lu-
tas dos movimentos e organizações sociais.
Propõe, portanto, uma sociologia política
3 Publicado originalmente em português com o títu- que transita em direção a uma visão do Es-
lo Reinventar a democracia (Lisboa: Gradiva), 1998, e tado que rompe com as premissas do senso
publicado depois com esse título em A gramática do comum político liberal, que fazem deste uma
tempo. Para uma nova cultura política (Porto: Afron- instituição minimalista, neutra e separada da
tamento), 2006.
sociedade civil.
Parte iv: Apresentação 349

O segundo processo, abordado no capítulo também recolhem formas avançadas de plura-


“A refundação do Estado e os falsos positivos”4, lismo econômico, social e político, consagram
refere-se à refundação intercultural e plurina- diferentes regimes de propriedade e autono-
cional do Estado. O constitucionalismo trans- mia territorial, concepções não eurocêntricas
formador pelo qual advoga a sociologia jurídica dos direitos humanos — como os direitos da
e política crítica de Santos, supõe uma ruptura Pachamama — e, no caso boliviano, se reco-
com a concepção liberal da nação, regida pelo nhecem três formas de democracia: a repre-
princípio segundo o qual a um Estado corres- sentativa, a participativa e a comunitária, o que
ponde uma nação. Reconhecer a plurinaciona- abre um horizonte para o exercício de formas
lidade de um Estado supõe um avanço teórico de democracia intercultural.
e político que significa passar de uma concep-
ção do Estado baseada na homogeneidade a Esquerdas e movimentos sociais
outra baseada na heterogeneidade cultural. O Este tema é abordado sobretudo no capítu-
reconhecimento da existência de nações étni- lo “Catorze cartas às esquerdas”5, escritas en-
cas em convivência supõe a legitimação de dis- tre 2011 e 2016, e amplamente divulgadas em
tintas adscrições identitárias compatíveis com diferentes idiomas. As cartas são um resumo
a nação cívico-política moderna. As Constitui- de toda a trajetória de um intelectual e ati-
ções do Equador de 2008 e da Bolívia de 2009, vista político vinculado com os movimentos
que o próprio Boaventura, como intelectual mi- sociais emancipadores e as organizações de
litante, acompanhou de perto, representam no esquerda ao longo dos últimos quarenta anos;
contexto latino-americano dois dos modelos um intelectual que sempre se viu como um
atuais que mais se afastam do Estado nacional intelectual de retaguarda, partidário de uma
eurocêntrico, já que não somente são reconhe- contra-hegemonia cosmopolita, insurgente e
cidos como Estados plurinacionais, mas que proveniente da base, que implica a articula-
ção de uma diversidade de movimentos e or-

4 Este capítulo forma parte do livro Refundación del


Estado en América Latina. Perspectivas desde una epis- 5 Capítulo integrado em Pneumatóforo. Escritos Polí-
temología del Sur (Lima: IIDS-PDTG), 2010, pp. 67-111. ticos 1981-2018 (Coimbra: Almedina), 2018, pp. 285-326.
350 Antoni Aguiló Bonet

ganizações de âmbito local, estatal e global, a nossas conceitualizações e práticas democrá-


fim de criar inteligibilidade recíproca e unida- ticas, além de contribuir para difundir a obra
de de ação entre saberes, estratégias, objeti- de uma das figuras mais destacáveis de nosso
vos e práticas coletivas. tempo, comprometida com o pensamento críti-
Em síntese, Boaventura de Sousa Santos co, democrático e emancipador.
desenvolve uma sociologia política fundada
em elementos inclusivos, comunitários, expe-
rimentais e participativos que situa, no centro
de sua proposta, os valores da solidariedade,
o reconhecimento igualitário da diferença, a
justiça social, a justiça epistêmica e a eman-
cipação social. Trata-se de uma sociologia
política vinculada às lutas do Sul global anti-
capitalista, anticolonialista, antipatriarcal e
anti-imperialista; que se volta em direção aos
movimentos sociais em suas diferentes manei-
ras de enfrentar as formas de dominação, ex-
ploração e opressão; que mostra um pluriverso
de respostas nascidas da diversidade epistemo-
lógica, política e cultural do mundo; e que se
orienta na direção da criação de sociabilidades
inconformistas, do retorno do Estado social,
da preservação de bens comuns, da refunda-
ção participativa e intercultural do Estado e da
cidadania, da radicalização da democracia, da
defesa da dignidade humana e da formulação
cosmopolita dos direitos humanos.
Esperamos que esta compilação seja uma
ferramenta de trabalho efetiva para enriquecer
A crise do contrato social da
modernidade e a emergência do
fascismo social*

O contrato social é a grande narrativa em


que se funda a obrigação política mo-
derna ocidental, uma obrigação complexa e
lógico que estabelece o carácter inovador da
sociedade civil reside, como é sabido, na con-
traposição entre esta e o estado de natureza ou
contraditória porque foi estabelecida entre ho- estado natural. Não surpreende, pois, que as
mens livres e, pelo menos em Rousseau (1973 diferenças bem conhecidas na concepção do
[1762]), para maximizar e não para minimizar contrato social entre Hobbes, Locke e Rousse-
essa liberdade. O contrato social é assim a ex- au se espelhem em diferentes concepções do
pressão de uma tensão dialéctica entre regula- estado natural ou estado de natureza1. Quanto
ção social e emancipação social que se repro- mais violento e anárquico é o estado de na-
duz pela polarização constante entre vontade tureza, maiores são os poderes investidos no
individual e vontade geral, colectiva, entre o Estado saído do contrato social. As diferenças
interesse particular e o bem comum. O Estado a este respeito entre Hobbes (1946), por um
nacional, o direito e a educação cívica são os lado, e Locke (1952) e Rousseau, por outro,
garantes do desenrolar pacífico e democrático são enormes. Comum a todos eles, no entanto,
dessa polarização num campo social que se é a ideia de que a opção de abandonar o esta-
designou por sociedade civil. O procedimento do natural para constituir a sociedade civil e o
Estado moderno é uma opção radical e irrever-
* Extraído de Santos, B. de Sousa 2006 “A crise do
contrato social da modernidade e a emergência do fas- 1 Analiso com grande detalhe as diferentes concep-
cismo social” in A gramática do tempo. Para uma nova ções do contrato social em Santos, 1995: 63-71; 2000:
cultura política (Porto: Afrontamento) pp. 295-316. 120-129.
352 Boaventura de Sousa Santos

sível. Segundo eles, a modernidade é proble- so3. O segundo critério é o da cidadania terri-
mática e plena de antinomias, entre coerção torialmente fundada, pelo que é fundamental
e consentimento, entre igualdade e liberdade, distinguir dos cidadãos todos aqueles, que não
entre soberano e cidadão, entre direito natu- sendo cidadãos, partilham com eles o mesmo
ral e direito civil — mas deve resolvê-las pelos espaço geopolítico. Só os cidadãos (homens)
seus próprios meios sem se munir de recursos são parte no contrato social. Todos os outros
pré-modernos ou contra-modernos. — sejam eles mulheres, estrangeiros, imigran-
Como qualquer outro contrato, o contrato tes, minorias (e, às vezes, maiorias) étnicas —
social assenta em critérios de inclusão que, são dele excluídos. Vivem no estado de nature-
portanto, são também critérios de exclusão2. za mesmo quando vivem na casa dos cidadãos.
São três os critérios principais. O primeiro é Por último, o terceiro critério é o (do) comér-
que o contrato social inclui apenas os indiví- cio público dos interesses e, portanto, a sepa-
duos e suas associações. A natureza é assim ração entre espaço público e espaço privado.
excluída do contrato, e é significativo a este Só os interesses exprimíveis na sociedade civil
respeito que o que está antes ou fora dele se são objecto do contrato. Estão, portanto, fora
designe por estado de natureza. A única natu- dele a vida privada, os interesses pessoais de
reza que conta é a humana e mesmo esta ape- que é feita a intimidade, o espaço doméstico,
nas para ser domesticada pelas leis do Estado e em suma, o espaço privado.
pelas regras de convivência da sociedade civil. O contrato social é a metáfora fundadora da
Toda a outra natureza ou é ameaça ou é recur- racionalidade social e política da modernidade
ocidental. Os critérios de inclusão/exclusão
que ele estabelece vão ser o fundamento da le-
2 O contrato social articula o sistema da desigual-
gitimidade da contratualização das interacções
dade com o sistema da exclusão, ainda que a sua filo-
sofia o vincule exclusivamente ao sistema da exclusão. económicas, políticas, sociais e culturais. A
Como segundo esta filosofia toda a inclusão garante a abrangência das possibilidades de contratuali-
igualdade, o sistema de exclusão e o sistema de desi- zação tem como contrapartida uma separação
gualdade sobrepõem-se. A verdade é que a igualdade
que o contrato social garante é formal e não material
e por isso a inclusão no contrato tende a reproduzir o 3 Este tema é analisado em Santos, 1987, e Santos,
sistema de desigualdade. Meneses e Nunes, 2004.
A crise do contrato social da modernidade e a emergência do fascismo social 353

radical entre incluídos e excluídos. Embora a valores, um sistema comum de medidas, um


contratualização assente numa lógica de inclu- espaço-tempo privilegiado. O regime geral de
são/exclusão, ela só se legitima pela possibili- valores assenta na ideia do bem comum e da
dade de os excluídos virem a ser incluídos. Por vontade geral. Destas ideias decorre uma sé-
isso os excluídos são declarados vivos em re- rie de valores que por serem muito partilhados
gime de morte civil. A lógica operativa do con- permitem estabilizar as expectativas dos cida-
trato social está, assim, em permanente tensão dãos quanto à vida em comum. São princípios
com a sua lógica de legitimação. As possibilida- agregadores de sociabilidade que tornam pos-
des imensas do contrato coexistem com a sua sível designar por sociedade as interacções
inerente fragilidade. Em cada momento ou cor- autónomas e contratuais entre sujeitos livres e
te sincrónico, a contratualização é simultanea- iguais. Por esta via, a sociedade é um conjunto
mente abrangente e rígida. Diacronicamente, é de expectativas estabilizadas.
um campo de lutas sobre os critérios e os ter- O sistema comum de medidas baseia-se
mos da exclusão e da inclusão que pelos seus numa concepção de espaço e de tempo homo-
resultados vão refazendo os termos do contra- géneos, neutros, lineares, que servem de me-
to. Os excluídos de um momento emergem no nor denominador comum a partir do qual se
momento seguinte como candidatos à inclusão definem as diferenças relevantes. A técnica da
e, quiçá, podem ser incluídos num momento perspectiva introduzida pela pintura renascen-
posterior. Mas, em obediência à lógica operati- tista é a primeira formulação moderna desta
va do contrato, a inclusão dos novos incluídos concepção4. Importante também é o aperfeiço-
pode envolver a exclusão de sectores até agora amento da técnica das escalas e das projecções
incluídos. O progresso da contratualização tem na cartografia moderna a partir de Mercator.
assim o seu quê de sísifico. Nesta perspectiva a Com base nesta concepção é possível, por um
flecha do tempo é, quando muito, uma espiral. lado, separar a natureza da sociedade e, por
As tensões e antinomias que subjazem à outro, estabelecer um termo de comparação
contratualização social não são, em última quantitativo entre interacções sociais massivas
instância, resolúveis por via contratual. A sua
gestão controlada assenta em três pressu-
postos metacontratuais: um regime geral de 4 Ver Santos, 2000: 209-242.
354 Boaventura de Sousa Santos

e muito diferenciadas5. As diferenças qualitati- das sejam comuns e procedam por correspon-
vas entre elas ou são ignoradas ou são redu- dência e homogeneidade. É por isso que a úni-
zidas aos indicadores quantitativos que delas ca solidariedade possível é uma solidariedade
podem dar conta aproximativamente. O dinhei- entre iguais, seja ela a solidariedade dos cida-
ro e a mercadoria são as concretizações mais dãos na guerra ou no serviço militar obrigató-
puras do sistema comum de medidas. Por via rio ou a solidariedade operária na greve.
deles, o trabalho, o salário, os riscos e os danos O espaço-tempo privilegiado é o espaço-tem-
são facilmente mensuráveis e comparáveis. po estatal, nacional. É neste espaço-tempo que
Mas o sistema comum de medidas vai mui- se consegue a máxima agregação de interesses
to para além do dinheiro e das mercadorias. A e é ele que define as escalas e as perspectivas
perspectiva e a escala, combinadas com o sis- em que podem ser observadas e mensuradas
tema geral de valores, tornam possível a men- as interacções não-estatais e não-nacionais.
suração da gravidade dos crimes e da pena: a É por isso, por exemplo, que o governo dos
uma graduação das escalas de gravidade do cri- municípios se designa por governo local. É no
me corresponde uma graduação das escalas de espaço-tempo nacional estatal que a economia
privação da liberdade. A perspectiva e a esca- consegue a sua máxima agregação, integração
la aplicadas ao princípio de soberania popular e gestão e é também nele que as famílias or-
tornam possível a democracia representativa: ganizam a sua vida e estabelecem o horizonte
a um número X de habitantes corresponde um de expectativas ou de ausência delas. É por
número Y de representantes. Por via das homo- referência ao espaço-tempo nacional estatal
geneidades que cria, o sistema comum de me- que se define a obrigação política dos cidadãos
didas permite ainda estabelecer correspondên- perante o Estado e deste perante os cidadãos,
cias entre valores antinómicos. Por exemplo, sendo essa também a escala das organizações
entre liberdade e igualdade é possível definir e das lutas políticas, da violência legítima e da
critérios de justiça social, de redistribuição e promoção do bem-estar social. O espaço-tem-
de solidariedade. O pressuposto é que as medi- po nacional estatal não é apenas uma perspec-
tiva e uma escala; é também um ritmo, uma
duração, uma temporalidade, e um território.
5 Sobre a cartografia, ver Santos, 2000: 183-208. O espaço-tempo nacional é assim também o
A crise do contrato social da modernidade e a emergência do fascismo social 355

espaço-tempo da deliberação política (os ci- -tempo nacional e estatal, pelas formas de con-
clos eleitorais), do processo judicial (o ritmo e flitualidade, negociação e administração que
os prazos dos processos judiciais) e, em geral, lhe são próprias.
da acção burocrática do Estado (prazo médio A ideia do contrato social e os seus princí-
da resposta dos serviços do Estado às solicita- pios reguladores são o fundamento ideológico
ções dos cidadãos). e político da contratualidade real que organiza a
Finalmente, o espaço-tempo nacional esta- sociabilidade e a política nas sociedades moder-
tal é o espaço-tempo privilegiado da cultura nas. Saliento as seguintes características dessa
enquanto conjunto de dispositivos identitários organização contratualizada. O contrato social
que estabelecem um regime de pertença e legi- visa criar um paradigma sócio-político que pro-
timam a normatividade que serve de referên- duz de maneira normal, constante e consistente
cia às relações sociais confinadas no território quatro bens públicos: legitimidade da governa-
nacional: do sistema educativo à história na- ção, bem-estar económico e social, seguran-
cional oficial, das cerimónias oficiais aos feria- ça e identidade cultural nacional. Estes bens
dos nacionais. públicos só são realizáveis em conjunto: são,
Estes princípios reguladores são congruen- no fundo, modos diferentes mas convergentes
tes entre si. Se, por um lado, o regime geral de de realizar o bem comum e a vontade geral. A
valores é o garante último dos horizontes de prossecução destes bens públicos desdobrou-se
expectativas dos cidadãos, por outro, o campo numa vasta constelação de lutas sociais, sendo
de percepção do horizonte das expectativas e as lutas de classes as que melhor exprimiam a
das suas convulsões é possível por via do sis- divergência fundamental de interesses gerados
tema comum de medidas. Perspectiva e escala pelas relações sociais de produção capitalista6.
são, entre outras coisas, dispositivos visuais Por via desta divergência e das antinomias ine-
que criam um campo de visão e, portanto, tam-
bém uma área de ocultação. A visibilidade de
certos riscos, danos, desvios, vulnerabilidades 6 Outros tipos de lutas de grupos sociais excluídos
tem correspondência na identificação das cer- do contrato social, como as revoltas de escravos, dos
povos colonizados, das mulheres, etc., vieram a assu-
tas causas, inimigos e agressores. Uns e outros
mir grande importância e têm sido alvo de análise nas
são geríveis privilegiadamente pelo espaço- últimas décadas.
356 Boaventura de Sousa Santos

rentes ao contrato social entre autonomia indi- tos e da negociação e contratação colectiva são
vidual e justiça social, entre liberdade e igual- momentos decisivos do longo percurso históri-
dade, as lutas pela prossecução do bem comum co da socialização da economia7. Por ele se foi
foram sempre lutas por definições alternativas reconhecendo que a economia capitalista não
do bem comum. Essas lutas foram-se cristali- era apenas constituída por capital, factores de
zando em contratualizações parcelares — me- produção e mercado, mas também por traba-
diante a institucionalização dos conflitos, a lhadores, pessoas e classes com necessidades
concertação social, a negociação colectiva, etc., básicas, interesses próprios e legítimos e, em
— incidindo sobre menores denominadores co- suma, direitos de cidadania. Neste percurso, os
muns entretanto acordados. Essas contratuali- sindicatos tiveram um papel decisivo, o de re-
zações foram-se, por sua vez, traduzindo numa duzir a concorrência entre trabalhadores, fonte
materialidade de instituições que asseguraram o primacial da sobre exploração a que estavam
respeito e a continuidade do acordado. inicialmente sujeitos.
Da prossecução contraditória dos bens pú- A materialidade normativa e institucional em
blicos assim referida e das contratualizações que se traduziu a socialização da economia es-
e compromissos a que foi dando azo resulta- teve a cargo do Estado, regulando a economia,
ram três grandes constelações institucionais, mediando os conflitos, reprimindo os trabalha-
todas elas vazadas no espaço-tempo nacional dores até ao ponto de lhes extorquir consensos
estatal: a socialização da economia, a politi- repressivos. A centralidade do Estado na socia-
zação do Estado, a nacionalização da identi- lização da economia foi um factor decisivo na
dade cultural. outra constelação institucional: a politização
A socialização da economia deu-se por via do Estado. Esta ocorreu pela própria expansão
do reconhecimento progressivo da luta de clas- da capacidade reguladora do Estado.
ses enquanto instrumento, não de superação A expansão da capacidade reguladora do Es-
do capitalismo, mas de transformação do capi- tado nas sociedades capitalistas assumiu duas
talismo. A regulação do tempo de trabalho, das formas principais: o Estado-Providência no cen-
condições de trabalho e do salário, a criação
de seguros sociais obrigatórios e de segurança
social, o reconhecimento da greve, dos sindica- 7 Ver Santos (org.), 2004a.
A crise do contrato social da modernidade e a emergência do fascismo social 357

tro do sistema mundial e o Estado desenvolvi- móveis e parcelares dos diferentes grupos so-
mentista na periferia e semiperiferia do sistema ciais são territorializadas e temporalizadas no
mundial8. À medida que estatizou a regulação, espaço-tempo nacional. A nacionalização da
o Estado fez dela um campo de luta política e identidade cultural reforça os critérios de in-
nessa medida ele próprio se politizou. Tal como clusão/exclusão que subjazem à socialização
a cidadania se constituiu a partir do trabalho, a da economia e à politização do Estado, confe-
democracia esteve desde o início vinculada à so- rindo-lhes uma duração histórica mais longa e
cialização da economia. Ou seja, a tensão entre uma maior estabilidade.
capitalismo e democracia é constitutiva do Esta- Este vasto processo de contratualização so-
do moderno metropolitano, e a legitimidade des- cial política e cultural e os critérios de inclusão/
te, maior ou menor, esteve sempre vinculada ao exclusão em que assenta tem três limites que
modo mais ou menos equilibrado como resolveu passo a assinalar. O primeiro decorre do carác-
essa tensão. O grau zero da legitimidade do Es- ter colonialista da modernidade ocidental já que
tado moderno é o fascismo, a rendição total da os espaços coloniais sempre foram concebidos
democracia perante as necessidades de acumu- como permanecendo no estado de natureza,
lação do capitalismo. O grau máximo da legitimi- donde só poderiam sair, não por via de con-
dade do Estado moderno reside na conversão, trato, uma vez que este pressupõe a igualdade
sempre problemática, da tensão entre democra- dos contratantes, mas por via da ocupação e da
cia e capitalismo num círculo virtuoso em que usurpação. O segundo é inerente aos próprios
cada um deles prospera aparentemente na me- critérios. A inclusão tem sempre por limite
dida em que os dois prosperam conjuntamente. aquilo que exclui. A socialização da economia
Nas sociedades capitalistas este grau máximo foi foi obtida à custa de uma dupla dessocialização,
obtido nos Estados-Providência declarados “de- a da natureza e a dos grupos sociais aos quais
senvolvidos” da Europa do Norte e no Canadá. o trabalho não deu acesso a cidadania. Sendo
Por último, a nacionalização da identidade uma solidariedade entre iguais, a solidariedade
cultural é o processo pelo qual as identidades entre trabalhadores não teve de se aplicar ao
que extravasava do círculo da igualdade. Por
isso, as organizações operárias nunca se deram
8 Desenvolvo este tema igualmente em Santos, 2006,
e em Santos e García-Villegas, 2001. conta, nalguns casos até hoje, que o local de tra-
358 Boaventura de Sousa Santos

balho e de produção é frequentemente o cená- tendeu a ser mais limitada e ainda mais precá-
rio de crimes ecológicos, de graves discrimina- ria que no centro. O contrato conviveu sempre
ções sexuais, étnicas e raciais. Por outro lado, a com o status; os compromissos foram sempre
politização e publicização do Estado teve como momentos evanescentes entre os pré-compro-
contrapartida a despolitização e a privatização missos e os pós-compromissos; a economia
de toda a esfera declarada pelo Estado como foi socializada em pequenas ilhas de inclusão10
não estatal. A democracia pôde expandir-se na que passaram a existir em vastos arquipélagos
medida em que o seu espaço se restringiu ao de exclusão; a politização do Estado cedeu
Estado e à política que ele passou a sintetizar. frequentemente à privatização do Estado e à
Finalmente, a nacionalização da identidade cul- patrimonialização da dominação política; a
tural assentou frequentemente no etnocídio e identidade cultural nacionalizou muitas vezes
no epistemicídio. Conhecimentos, memórias, apenas a caricatura de si mesma. E mesmo nos
universos simbólicos e tradições diferentes países centrais a contratualização variou imen-
daqueles que foram eleitos para ser incluídos samente entre, por exemplo, países de forte
e convertidos em nacionais foram suprimidos, tradição contratualista, como a Alemanha ou
marginalizados ou descaracterizados, e com a Suécia, e países subcontratualistas, como o
eles os grupos sociais que os sustentavam. Reino Unido e os Estados Unidos da América.
O terceiro limite tem a ver com as desigual-
dades articuladas pelo sistema mundial moder- A crise do contrato social
no constituído por países centrais, periféricos Com todas estas variações, o contrato so-
e semiperiféricos9. A contratualização das for- cial, os seus critérios de inclusão e de exclu-
mas de sociabilidade teve diferentes âmbitos e são e os seus princípios meta-contratuais têm
diferentes formas consoante a posição do país presidido à organização da sociabilidade eco-
no sistema mundial: foi mais ou menos inclu- nómica, política e cultural das sociedades mo-
siva, mais ou menos estável, mais ou menos dernas. Este paradigma social, político e cultu-
democrática, mais ou menos detalhada. Na
periferia e na semiperiferia, a contratualização
10 Nos espaços coloniais, as ilhas de inclusão eram
ainda mais diminutas uma vez que os benefícios do con-
9 O trabalho fundador desta proposta é Wallerstein, trato estavam reservados aos colonos e a uma minoria
1974, baseado na historiografia de Fernand Braudel. de autóctones.
A crise do contrato social da modernidade e a emergência do fascismo social 359

ral atravessa desde há mais de uma década um e eles próprios estão fragmentados e desorga-
período de grande turbulência que incide não nizados. O poder disciplinar é hoje um poder
apenas nos seus dispositivos operativos mas crescentemente indisciplinar, à medida que as
também nos seus pressupostos, uma turbulên- ciências perdem a confiança epistemológica e
cia tão profunda que aponta para uma convul- se vêem forçadas a partilhar o campo do sa-
são epocal e uma transição paradigmática. ber com conhecimentos rivais, eles próprios
Ao nível dos pressupostos, o regime geral capazes de gerar formas diferentes de poder.
de valores parece não resistir à crescente frag- Por outro lado, o Estado perde centralidade
mentação da sociedade, dividida em múltiplos e o direito oficial desorganiza-se passando a
apartheids, polarizada ao longo dos eixos coexistir com o direito não oficial de múlti-
económicos, sociais, políticos, culturais e re- plos legisladores fácticos, os quais, pelo po-
ligiosos. Não só perde sentido a luta pelo bem der económico que comandam, transformam
comum como também parece perder sentido a facticidade em norma, disputando ao Esta-
a luta por definições alternativas de bem co- do o monopólio da violência e do direito12. A
mum. A vontade geral parece ter-se transfor- proliferação caótica dos poderes torna difícil a
mado numa proposição absurda. Nestas con- identificação dos inimigos e, por vezes, a pró-
dições, alguns autores falam mesmo do fim da pria identificação das vítimas13.
sociedade. A verdade é que nos encontramos Os valores da modernidade ocidental — a
num mundo pós-foucaultiano, o que, aliás, nos liberdade, a igualdade, a autonomia, a sub-
faz pensar retrospectivamente quão organiza- jectividade, a justiça, a solidariedade — e as
do era o mundo anarquista de Foucault (1977,
1980). Segundo ele, coexistiriam de modo
complexo dois grandes modos de exercício de 12 Nos Estados periféricos e semiperiféricos a situa-
poder, o poder disciplinar dominante, centra- ção é mais visível, pois que coexistem vários sistemas
do nas ciências, e o poder jurídico, em declí- de regulação social, com quem o próprio Estado dialo-
nio, centrado no Estado e no direito11. Hoje, ga. Este tema, que desenvolverei noutro volume desta
colecção, é analisado por mim em Santos, 2006 e San-
estes poderes coexistem com muitos outros tos e García-Villegas, 2001. Veja-se igualmente os textos
que integram o Volume 3 da colecção “Reinventar a
11 Analiso criticamente a proposta de Foucault em Emancipação Social” em Santos (org.), 2004b.
2000a: 245-252. 13 Sobre todo este tema, ver Santos, 2002a.
360 Boaventura de Sousa Santos

antinomias entre eles permanecem, mas estão lência que atinge toda a cidade ou todo o país:
sujeitos a uma crescente sobrecarga simbó- uma explosão imprevisível da escala do confli-
lica, ou seja, significam coisas cada vez mais to. Assim, um fenómeno aparentemente trivial
díspares para pessoas ou grupos sociais dife- e sem consequências é posto em equação com
rentes, e de tal modo que o excesso de sentido outro, dramático e com consequências fatais
se transforma em paralisia da eficácia e, por- para a sociedade. Esta mudança abrupta e im-
tanto, em neutralização. previsível da escala dos fenómenos ocorre hoje
A turbulência do tempo presente nota-se so- nos mais diversos domínios da prática social.
bretudo no sistema comum de medidas. O tem- Na esteira de Prigogine (1979, 1980, 1997), pen-
po e o espaço neutros, lineares e homogéneos, so que as nossas sociedades atravessam um pe-
que sempre dominaram apenas num pequeno ríodo de bifurcação, ou seja, uma situação de
canto do mundo, estão a desaparecer das ciên- instabilidade sistémica em que uma mudança
cias mas o seu desaparecimento ao nível das mínima pode produzir, de modo imprevisível e
rotinas institucionais do Estado, do quotidiano caótico, transformações qualitativas. A turbu-
e das relações sociais é bastante mais proble- lência das escalas destrói sequências e termos
mático. Tenho-me referido à turbulência por de comparação e, ao fazê-lo, reduz alternativas,
que passam actualmente as escalas em que nos e cria impotência ou promove passividade.
habituamos a ver e a identificar os fenómenos, A estabilidade das escalas parece estar reduzi-
os conflitos e as relações. Como cada um destes da ao mercado e ao consumo, e, mesmo aí, com
é o produto da escala em que os observamos, mutações radicais de ritmo e explosões de âmbi-
a turbulência nas escalas cria estranhamento, to que obrigam a transformações constantes da
desfamiliarização, surpresa, perplexidade e in- perspectiva sobre os actos de comércio, as mer-
visibilização. Tenho dado o exemplo da violên- cadorias e os objectos, a ponto de a intersubjec-
cia urbana como paradigmático da turbulência tividade se transmutar facilmente em interobjec-
de escalas14. Uma disputa relativamente cir- tualidade. A mesma transformação constante de
cunscrita pode desencadear uma onda de vio- perspectiva está a ocorrer nas tecnologias de in-
formação e de comunicação onde aliás a turbu-
lência das escalas é o acto originário e condição
14 Ver Santos, 2000: 209-238. de funcionalidade. Aí a crescente interactividade
A crise do contrato social da modernidade e a emergência do fascismo social 361

das tecnologias dispensa cada vez mais a dos uti- indígena ou da biodiversidade, por outro. Qual-
lizadores e por essa via a interactividade desliza quer destas temporalidades colide frontalmen-
subrepticiamente para a interpassividade. te com a temporalidade política e burocrática
Finalmente o espaço-tempo nacional es- do Estado. O tempo instantâneo dos mercados
tatal está a perder a primazia, convulsionado financeiros inviabiliza qualquer deliberação ou
pela importância crescente dos espaços-tempo regulação por parte do Estado. A desacelera-
global e local que com ele competem. A deses- ção desta temporalidade só pode ser obtida
truturação do espaço-tempo nacional estatal ao nível da escala em que ocorre, a escala glo-
ocorre também ao nível dos ritmos, das dura- bal, e, portanto, através da actuação interna-
ções e das temporalidades. O espaço-tempo cional15. Por outro lado, o tempo glacial é um
nacional estatal é feito de ritmos e de tempora- tempo demasiado lento e denso para se poder
lidades diferentes, mas compatíveis e articulá- compatibilizar adequadamente com qualquer
veis: a temporalidade eleitoral, a temporalida- das temporalidades estatais nacionais. Aliás,
de da contratação colectiva, a temporalidade as aproximações recentes entre o tempo esta-
judicial, a temporalidade da segurança social, a tal e o tempo glacial têm-se traduzido em pou-
temporalidade da memória histórica nacional, co mais do que tentativas por parte do tempo
etc. A coerência entre estas temporalidades é o estatal de canibalizar e descaracterizar o tem-
que dá configuração própria ao espaço-tempo po glacial. Basta ver como tem sido tratada
nacional estatal. Ora esta coerência é hoje cada em muitos países a questão indígena, a ques-
vez mais problemática porque é diferente o im- tão étnica ou a onda global de leis nacionais
pacto produzido em cada uma das temporali- de patentes e de propriedade intelectual com
dades pelo espaço-tempo global e local. impacto decisivo na questão da biodiversidade
Acresce que vão crescendo de importância em resultado do acordo do TRIPS com que foi
temporalidades ou ritmos totalmente incompa- concluído o Uruguay Round16.
tíveis com a temporalidade estatal nacional no
seu conjunto. Duas delas merecem referência
15 Sobre a centralidade desta questão no Fórum So-
especial. O tempo instantâneo do ciber-espaço, cial Mundial, ver Santos, 2005, e a bibliografia aí citada.
próprio das globalizações por um lado, e o tem-
16 Ver Brush e Stabinsky, 1996; Shiva, 1997; Kuruk,
po glacial da degradação ecológica, da questão 1999; Villareal, Helfrich e Calvillo, 2005.
362 Boaventura de Sousa Santos

Como o espaço-tempo nacional estatal tem visíveis os sinais de crise deste paradigma. No
sido até agora o espaço-tempo hegemónico, entanto, à primeira vista, a situação actual,
ele conforma não apenas a acção do Estado, longe de configurar uma crise do contratua-
mas as práticas sociais em geral e é também lismo social, caracteriza-se pela sua consa-
nestas que se repercute a concorrência do tem- gração sem precedentes. Nunca se falou tanto
po instantâneo e do tempo glacial. Tal como de contratualização das relações sociais, das
sucede com a turbulência das escalas, estes relações de trabalho, das relações políticas
dois tempos convergem, por vias diversas, na do Estado com organizações sociais. Mas esta
redução das alternativas, na criação de impo- nova contratualização tem pouco a ver com a
tência e na promoção da passividade. O tempo que foi fundada na ideia moderna e ocidental
instantâneo colapsa as sequências num pre- do contrato social. Em primeiro lugar, trata-se
sente infinito que trivializa as alternativas pela de uma contratualização liberal individualista,
sua multiplicação tecno-lúdica, fundindo-as moldada na ideia do contrato de direito civil,
em variações do mesmo. Ao contrário, o tempo entre indivíduos e não na ideia do contrato so-
glacial cria uma distância tão grande entre as cial entre agregações colectivas de interesses
alternativas que elas deixam de ser comensurá- sociais divergentes. O Estado, ao contrário do
veis e contraponíveis, vagueando em sistemas que se passa no contrato social, tem uma inter-
de referência incomunicáveis. Por esta razão venção mínima, de assegurar o cumprimento
é cada vez mais difícil visualizar e optar entre do contrato enquanto ele não for denunciado,
modelos alternativos à noção hegemónica de sem, no entanto, poder interferir nas condições
desenvolvimento17. e nos termos do acordado. Em segundo lugar,
É, todavia, ao nível dos dispositivos opera- ao contrário do contrato social, a nova contra-
cionais da contratualização social que são mais tualização não tem qualquer estabilidade, po-
dendo ser denunciada a qualquer momento por
qualquer das partes. Não se trata de uma opção
17 O tema do impacto das concepções eurocêntricas radical e antes de uma opção trivial. Em ter-
de desenvolvimento no chamado Terceiro Mundo é ceiro lugar, a contratualização liberal não reco-
debatido por vários autores, sendo de destacar a obra
nhece o conflito e a luta como elementos estru-
de Gandhi, 1938; Rodney, 1972; Alvares, 1992; Escobar,
1995; Visvanathan, 1997; Crewe e Harrison, 2002. turais do combate. Pelo contrário, substitui-os
A crise do contrato social da modernidade e a emergência do fascismo social 363

pelo assentimento passivo a condições supos- favoráveis. O status pós-moderno manifesta-se


tamente universais consideradas incontorná- como contrato abusivo, leonino.
veis. Assim, o chamado consenso de Washing- A crise da contratualização moderna consis-
ton, configura-se um contrato social, ele ocorre te na predominância estrutural dos processos
a nível internacional entre os países capitalis- de exclusão sobre os processos de inclusão.
tas centrais. Para todas as outras sociedades Estes últimos ainda vigoram e até em formas
nacionais, ele apresenta-se como um conjunto avançadas que permitem a compatibilização
de condições inexoráveis de aceitação acrítica virtuosa dos valores da modernidade, mas
sob pena de implacável exclusão. São essas confinam-se a grupos cada vez mais restritos
condições inelutáveis globais que depois sus- que impõem a grupos muito mais amplos for-
tentam os contratos individuais de direito civil. mas de exclusão abissais. A predominância
Por todas estas razões a nova contratuali- dos processos de exclusão apresenta-se sob
zação é, enquanto contratualização social, um duas formas, na aparência contraditórias: o
falso contrato, uma mera aparência de compro- pós-contratualismo e o pré-contratualismo.
misso constituído por condições impostas sem O pós-contratualismo é o processo pelo qual
discussão ao parceiro mais fraco no contrato, grupos e interesses sociais até agora incluí-
condições tão onerosas quanto inescapáveis. dos no contrato social são dele excluídos sem
Sob a aparência do contrato, a nova contratua- qualquer perspectiva de regresso18. Os direitos
lização configura a reemergência do status, ou de cidadania, antes considerados inalienáveis,
seja, dos princípios de ordenação hierárquica são-lhes confiscados e, sem estes, os excluídos
pré-moderna onde as condições das relações passam da condição de cidadãos à condição de
sociais estavam directamente ligadas às posi- servos. O pré-contratualismo consiste no blo-
ções das partes na hierarquia social. De fac-
to, não se trata de um regresso ao passado. O
status é agora apenas o efeito da enorme desi- 18 Nos espaços coloniais estas situações sempre ocor-
gualdade de poder económico entre as partes reram e de modo muito abrupto. Por exemplo, as po-
no contrato individual e na capacidade que tal pulações autóctones, que Portugal, até finais do século
XIX, considerava como “portugueses”, passaram a ser
desigualdade dá à parte mais forte para impor
declaradas, a partir de inícios do século XX e por um
sem discussão as condições que lhe são mais mero acto legislativo, como indígenas ou assimiladas.
364 Boaventura de Sousa Santos

queamento do acesso à cidadania por parte de dêem conta de que anteriormente eram afinal
grupos sociais que anteriormente se considera- cidadãos sem o saberem nem terem exercido
vam candidatos à cidadania e tinham a expec- os direitos de que eram titulares. Neste caso,
tativa fundada de a ela aceder. o pré-contratualismo é vivido subjectivamente
A diferença estrutural entre pós-contratu- como pós-contratualismo, como aconteceu re-
alismo e pré-contratualismo é clara e os pro- centemente na Argentina.
cessos políticos que promovem um e outro são As exclusões produzidas, tanto pelo pós-
distintos. No entanto, surgem frequentemente -contratualismo, como pelo pré-contratualis-
confundidos, tanto no discurso político domi- mo são radicais e inelutáveis, e a tal ponto
nante como nas vivências e inteligibilidades que os que as sofrem, apesar de formalmente
pessoais dos grupos atingidos por eles. Ao cidadãos, são de facto excluídos da socieda-
nível do discurso político, é frequentemente de civil e lançados num estado de natureza.
apresentado como pós-contratualismo o que Na sociedade do início do século XXI, o esta-
é estruturalmente pré-contratualismo. Fala-se do de natureza é a ansiedade permanente em
de pactos sociais e de compromissos anterior- relação ao presente e ao futuro, o desgoverno
mente assumidos que agora se torna impossível iminente das expectativas, o caos permanen-
continuar a honrar quando, de facto, a situação te nos actos mais simples de sobrevivência ou
anterior nunca passou de contratos-promessas de convivência.
e de pré-compromissos que em verdade nunca O pós-contratualismo e o pré-contratualis-
se realizaram. Passa-se assim do pré-contratu- mo são o produto de transformações profun-
alismo ao pós-contratualismo sem nunca se ter das por que estão a passar os três dispositivos
passado pelo contratualismo. Assim tem suce- operacionais do contrato social anteriormen-
dido sobretudo nos quase-Estados-Providência te analisados: a sociabilização da economia,
que têm vigorado em muitos países semiperi- a politização do Estado, a nacionalização da
férios ou de desenvolvimento intermédio. Do identidade cultural. As transformações são
mesmo modo, ao nível das vivências e percep- diferentes em cada um deles mas, directa ou
ções das pessoas e grupos sociais atingidos, é indirectamente, decorrem do que podemos de-
frequente que ante a perda súbita da estabili- signar por consenso liberal, o qual se desdobra
zação mínima das expectativas, as pessoas se em quatro consensos principais.
A crise do contrato social da modernidade e a emergência do fascismo social 365

Em primeiro lugar, o consenso económico terior tem, contudo, outras implicações, pois
neoliberal, também conhecido por consenso de ultrapassa o domínio económico e mesmo so-
Washington (Santos, 1995: 276, 313, 356; 2001). cial. Nele o Estado deixa de ser o espelho da
O consenso de Washington, apesar de hoje bas- sociedade civil para passar a ser o seu opos-
tante desgastado pelas suas próprias contradi- to, e a força do Estado passa a ser a causa da
ções e pelas lutas dos que se lhe têm oposto, fraqueza e da desorganização da sociedade
conformou as grandes transformações político- civil. O Estado, mesmo o Estado formalmen-
-económicas do capitalismo mundial nas três te democrático, é considerado inerentemente
últimas décadas. Diz respeito à organização opressivo, ineficiente e predador, pelo que o
da economia global, incluindo a produção, os seu enfraquecimento é pré-condição para o
mercados de produtos e serviços, os mercados fortalecimento da sociedade civil. Este con-
financeiros, e assenta na liberalização dos mer- senso é, todavia, atravessado pelo seguinte
cados, desregulamentação, privatização, mini- dilema: já que apenas o Estado pode produzir
malismo estatal, controle da inflação, primazia a sua própria fraqueza, é necessário um Esta-
das exportações, cortes nas despesas sociais, do forte para produzir essa fraqueza eficien-
redução do défice público, concentração do temente e sustentá-la coerentemente. Assim,
poder mercantil nas grandes empresas multina- o enfraquecimento do Estado produz efeitos
cionais e do poder financeiro nos grandes ban- perversos que colocam em causa as próprias
cos transnacionais. As grandes inovações ins- tarefas atribuídas ao Estado fraco: o Estado
titucionais do consenso económico neoliberal fraco não pode controlar a sua fraqueza19.
são as novas restrições à regulamentação esta- O terceiro consenso é o consenso democrá-
tal, os novos direitos internacionais de proprie- tico liberal e consiste na promoção internacio-
dade para investidores estrangeiros e criadores nal de concepções minimalistas de democracia
intelectuais e a subordinação dos Estados na- como condição de acesso dos Estados nacio-
cionais a agências multilaterais, como o Banco nais aos recursos financeiros internacionais.
Mundial, o Fundo Monetário Internacional e Or-
ganização Mundial do Comércio.
19 O conceito de Estado fraco tem sido muito ques-
O segundo consenso é o consenso do Es-
tionado. Veja-se, por exemplo, para o caso africano,
tado fraco. Relacionado com o consenso an- Abrahamsen, 2000, e Hill, 2005.
366 Boaventura de Sousa Santos

A convergência entre este consenso e os an- dividual. Esta é uma das dimensões principais da
teriores tem sido reconhecida como estando judicialização da política, tema a que tenho de-
ancorada na própria origem da modernidade dicado vários trabalhos (Santos et al, 1996; San-
política. A verdade é que, enquanto a teoria de- tos e García-Villegas, 2001; Santos e Trindade,
mocrática do século XIX estava tão preocupa- 2003; Santos, 2006). O consenso liberal em suas
da em justificar a soberania do poder estatal, múltiplas vertentes tem um impacto profundo
enquanto capacidade reguladora e coercitiva, nos três dispositivos operacionais do contrato
quanto em justificar os limites do poder do Es- social. O impacto mais decisivo reside no pro-
tado, o consenso democrático liberal não está cesso de dessocialização da economia, na redu-
minimamente preocupado com a soberania do ção desta à instrumentalidade do mercado e das
poder estatal, sobretudo na periferia e semipe- transacções. É este o campo privilegiado do pós-
riferia do sistema mundial, e as funções regula- -contratualismo e do pré-contratualismo. Como
doras do Estado são vistas mais como incapa- vimos, no modelo da contratualização social da
cidades do que como capacidades do Estado. modernidade capitalista o trabalho foi a via de
Por último, o consenso liberal integra ainda acesso à cidadania, quer pela extensão aos tra-
o consenso do primado do direito e dos tribu- balhadores dos direitos cívicos e políticos, quer
nais, que deriva do modelo de desenvolvimen- pela conquista de direitos novos específicos ou
to promovido pelos três consensos anteriores. tendencialmente específicos do colectivo de tra-
Este modelo dá total prioridade à propriedade balhadores, como o direito do trabalho e os di-
privada, às relações mercantis e ao sector priva- reitos económicos e sociais. A erosão crescente
do, cuja operacionalidade assenta em transac- destes direitos, combinada com o aumento do
ções seguras e previsíveis, garantidas contra os desemprego estrutural, conduz à passagem dos
riscos de violações unilaterais. Tudo isto exige trabalhadores de um estatuto de cidadania para
um novo quadro jurídico e atribui aos tribunais um estatuto de lumpen-cidadania. Para a grande
um novo papel, bastante mais central, enquanto maioria destes trabalhadores, trata-se de uma
garantes do comércio jurídico e instâncias de passagem sem regresso, do contratualismo para
resolução de litígios. O marco político da con- o pós-contratualismo.
tratualização social deve, pois, ceder o lugar ao Aliás, como disse acima, o estatuto de cida-
marco jurídico e judicial da contratualização in- dania de que estes trabalhadores partiam era
A crise do contrato social da modernidade e a emergência do fascismo social 367

já de si tão precário e rarefeito que, em muitos com poderes para impor o cumprimento dos
casos, a passagem parece ser mais verdadeira- novos contratos sociais globais21. Na ausência
mente uma passagem directa do pré-contratu- de uma e de outras, a concorrência internacio-
alismo ao pós-contratualismo e só o manuseio nal entre trabalhadores aumenta e, com ela, a
retrospectivo das expectativas faz com que a lógica da exclusão que lhe é característica. Em
passagem pareça ocorrer do contratualismo muitos países, a maioria dos trabalhadores que
para o pós-contratualismo. Por outro lado, num entram de novo no mercado de trabalho fazem-
contexto de mercados globais liberalizados, de -no desprovidos de quaisquer direitos. São, pois,
controle generalizado da inflação e contenção incluídos segundo uma lógica de exclusão, e a
do crescimento económico20, combinados com falta de expectativas de melhoria futura impede
novas tecnologias que permitem criar riqueza que se considerem sequer candidatos à cidada-
sem criar emprego, o aumento do nível de em- nia. Muitos outros nem sequer conseguem en-
prego num país é sempre obtido à custa da re- trar no mercado de trabalho e essa impossibili-
dução do nível de emprego noutro país. Aqui re- dade, se para alguns é conjuntural e provisória,
side o aumento da concorrência internacional é para outros estrutural e permanente. De uma
entre trabalhadores. A redução a nível nacional ou de outra forma, em todas estas situações
da concorrência entre trabalhadores foi o gran- predomina a lógica de exclusão. Estamos pe-
de feito histórico do movimento sindical e qui- rante uma situação de pré-contratualismo sem
çá constitui hoje em dia um obstáculo à maior qualquer possibilidade de transitar para uma si-
eficácia dos sindicatos no controle da concor- tuação de contratualismo.
rência internacional entre trabalhadores. Tal Quer pela via do pós-contratualismo, que
controle exigiria, por um lado, a internaciona- pela do pré-contratualismo, o aprofundamen-
lização do movimento operário e, por outro, a to da lógica de exclusão cria novos estados de
criação de autoridades políticas supranacionais natureza: a precaridade de vida e a servidão
engendradas pela ansiedade permanente do

20 Conforme refere Jean-Paul Fitoussi, é a própria


preocupação com o controle da inflação, inerente à ló- 21 Em Santos (org.), 2004a, são discutidos vários
gica dos mercados financeiros, que impede que o cres- exemplos de cooperação nacional e transnacional no
cimento se instale de forma estável (1997: 102-103). Sul global entre organizações de trabalhadores.
368 Boaventura de Sousa Santos

trabalhador assalariado quanto ao montante a emergência de uma sub-classe de excluídos,


e continuidade do trabalho, pela ansiedade maior ou menor consoante a posição periférica
do desempregado em busca de trabalho, ou ou central da sociedade no sistema mundial,
daqueles que não têm sequer condições para constituída, quer por grupos sociais em mobi-
procurar trabalho, pela ansiedade dos traba- lidade descendente estrutural (trabalhadores
lhadores autónomos quanto à continuidade não qualificados, mulheres, desempregados,
do mercado que eles próprios têm de criar trabalhadores imigrantes, minorias étnicas),
todos os dias para assegurar a continuidade quer por grupos sociais para quem o trabalho
dos seus rendimentos e, ainda, pela dos traba- deixou de ser um expectativa realista ou nun-
lhadores clandestinos sem quaisquer direitos ca o foi (desempregados de longa duração,
sociais. A estabilidade de que fala o consen- jovens incapazes de entrar no mercado de tra-
so neoliberal é sempre a das expectativas dos balho, deficientes, largas massas de campone-
mercados e dos investimentos, nunca é a das ses pobres na América Latina, na África e na
expectativas das pessoas. Aliás, a estabilidade Ásia). Esta classe de excluídos assume nos
dos primeiros só é obtenível à custa da insta- países centrais a forma de terceiro mundo in-
bilidade das segundas. terior, o chamado terço inferior na sociedade
Por todas estas razões, o trabalho deixa de dois terços. Nos EUA, a tese da underclass
cada vez mais de sustentar a cidadania e, vice- tem sido formulada por William Julius Wilson
-versa, esta deixa cada vez mais de sustentar para caracterizar os negros dos guetos urba-
o trabalho. Ao perder o seu estatuto político nos atingidos pelo declínio da indústria e pela
de produto e produtor de cidadania, o traba- desertificação económica das innercities (Wil-
lho reduz-se à penosidade da existência, quer son, 1987). Wilson define a underclass segundo
quando existe, quer quando falta. É por isso seis características principais: residência em
que o trabalho, apesar de dominar cada vez espaços socialmente isolados das outras clas-
mais as vidas das pessoas, está a desaparecer ses; ausência de emprego de longa duração;
das referências éticas que sustentam a autono- famílias monoparentais chefiadas por mulhe-
mia e auto-estima dos sujeitos. res; ausência de qualificação ou de formação
Em termos sociais, o efeito cumulativo do profissional; longos períodos de pobreza e de
pré-contratualismo e do pós-contratualismo é dependência da assistência social; tendência
A crise do contrato social da modernidade e a emergência do fascismo social 369

para entrar em actividades criminosas, do tipo Se passarmos do centro do sistema mun-


street crime. Esta classe aumentou significati- dial para a periferia e a semiperiferia, a classe
vamente dos anos setenta para os anos oitenta dos excluídos aumenta para metade ou mais
e juvenilizou-se tragicamente. A percentagem da população dos países e os factores de ex-
de pobres com menos de 18 anos era de 15% em clusão são ainda mais tenazes na sua eficácia
1970 e de 20% em 1987, sendo particularmente dessocializadora. O crescimento estrutural da
dramático o aumento da pobreza infantil. O ca- exclusão social, quer por via do pré-contratua-
rácter estrutural da exclusão e, portanto, dos lismo, quer por via do pós-contratualismo, e a
obstáculos à inclusão a que esta classe está su- consequente ampliação de estados de natureza
jeita, está bem patente no facto de, apesar de os — que sempre permaneceram como continui-
negros americanos demonstrarem uma melho- dades do período colonial — donde não se tem
ria educacional intergeracional notável, tal es- a opção individual ou colectiva de sair, confi-
forço não teve qualquer tradução na obtenção gura uma crise de tipo paradigmática, epocal,
de emprego regular e a tempo inteiro. Segundo que alguns designam por desmodernização ou
Lash e Urry, três factores principais contribuí- contra-modernização. Segundo o mais recente
ram para tal nos países centrais: o declínio do relatório do emprego a nível mundial publica-
emprego industrial no conjunto da economia; do pela Organização Mundial do Trabalho (ILO,
a fuga do emprego remanescente dos centros 2005), 1.4 mil milhões de empregados do mun-
da cidade para os subúrbios; a redistribuição do (metade do total) ganhava em 2005 menos
do emprego segundo diferentes tipos de áreas de 2 dólares por dia (o limiar da pobreza) e cer-
metropolitanas (Lash e Urry, 1996: 151)22. ca de 191.8 milhões pessoas estava desempre-

22 Para os autores que trabalham com o conceito de


pobreza é cada vez mais importante distinguir entre di- dos países do Sul da Europa e colmatada pelas redes
ferentes tipos (e não apenas graus) de pobreza, a fim de solidariedade familiar e a economia paralela); po-
de dar conta do crescimento dos excluídos do contrato breza marginal, que afecta uma minoria marcada por
social, aqueles que na minha proposta, estão a ser lan- trajectórias de não inserção; e pobreza desqualificante,
çados no novo estado de natureza e vivem sujeitos ao em crescimento numérico, dos que ficam totalmente à
regime de fascismo social. Por exemplo, Serge Paugam margem do sistema produtivo. Será esta última a que
(2005) distingue entre pobreza integrada (característica configura a exclusão do contrato social.
370 Boaventura de Sousa Santos

gada, um aumento de 2.2 milhões em relação emergência do fascismo social23. Não se trata
ao ano anterior. Particularmente preocupante do regresso ao fascismo dos anos trinta e qua-
é o facto de a taxa de desemprego entre os jo- renta do século passado. Ao contrário deste
vens (15-24 anos) ser mais de três vezes supe- último, não se trata de um regime político mas
rior à dos adultos. antes de um regime social e civilizacional. Em
Mas o indicador mais perturbador do aumen- vez de sacrificar a democracia às exigências do
to da exclusão à escala global é o nível da desi- capitalismo, promove a democracia até ao pon-
gualdade entre o Norte global e o Sul global que to de não ser necessário, nem sequer conve-
não cessa de aumentar. Como aponta o Relatório niente, sacrificar a democracia para promover
do Desenvolvimento Humano da ONU de 2005 o capitalismo. Trata-se, pois, de um fascismo
“os 500 indivíduos mais ricos do mundo têm um pluralista e, por isso, de uma forma de fascismo
rendimento conjunto maior do que o rendimen- que nunca existiu. As formas fundamentais do
to dos 416 milhões de pessoas mais pobres. Para tipo fascista de sociabilidade são as seguintes.
além destes extremos, os 2.5 milhões de pessoas A primeira forma é o fascismo do apartheid
que vivem com menos de dois dólares por dia — social. Trata-se da segregação social dos ex-
40% da população mundial — representam 5% cluídos através de uma cartografia urbana di-
do rendimento mundial. Os 10% mais ricos, que vidida em zonas selvagens e zonas civilizadas.
vivem quase todos em países de rendimento ele- As zonas selvagens são as zonas do estado
vado, representam 54%” (UNDP, 2005). de natureza hobbesiano. As zonas civilizadas
Vivemos, pois, uma situação complexa, que são as zonas do contrato social e vivem sob a
comporta muitos riscos. A questão é de saber constante ameaça das zonas selvagens. Para
se contém algumas oportunidades para a subs- se defenderem, transformam-se em castelos
tituição virtuosa do velho contrato social da neofeudais, os enclaves fortificados que carac-
modernidade ocidental por um outro, menos
vulnerável à proliferação da lógica de exclusão.
23 Não analiso aqui a situação complexa dos paí-
A emergência do fascismo social ses que estiveram sob domínio colonial até meados
ou mesmo finais do século XX. Aí, os riscos residem
Analisemos antes de mais os riscos. Julgo na perpetuação do Estado colonial no período pós-
que todos eles se podem resumir num só: a -independência.
A crise do contrato social da modernidade e a emergência do fascismo social 371

terizam as novas formas de segregação urbana acção estatal nas zonas selvagens e nas zonas
(cidades privadas, condomínios fechados, ga- civilizadas. Nas zonas civilizadas, o Estado age
ted communities). A divisão entre zonas selva- democraticamente, como Estado protector,
gens e zonas civilizadas está a transformar-se ainda que muitas vezes ineficaz ou não confiá-
num critério geral de sociabilidade, um novo vel. Nas zonas selvagens, o Estado age fascisti-
espaço-tempo hegemónico que atravessa todas camente, como Estado predador, sem qualquer
as relações sociais, económicas, políticas e cul- veleidade de observância, mesmo aparente, do
turais e que por isso é comum à acção estatal e direito. O polícia que ajuda o menino das zonas
à acção não estatal. Está inscrito, hoje em dia, civilizadas a atravessar a rua é o mesmo que
no coração do quotidiano. No domínio da ac- persegue e eventualmente mata o menino das
ção estatal está a dar origem a uma nova forma zonas selvagens.
de Estado paralelo. Em trabalhos anteriores, A segunda forma do fascismo social é o fas-
tenho falado do Estado paralelo para caracteri- cismo paraestatal. Trata-se da usurpação de
zar formas de acção estatal caracterizadas pela prerrogativas estatais (de coerção e de regula-
grande discrepância entre o direito escrito e a ção social) por parte de actores sociais muito
acção estatal prática24. Julgo que em tempo de poderosos, muitas vezes com a conivência do
fascismo social o Estado paralelo assume uma próprio Estado, que ora neutralizam, ora su-
nova forma. Consiste num duplo padrão da plementam o controle social produzido pelo
Estado. O fascismo paraestatal tem duas ver-
tentes principais: o fascismo contratual e o
24 Esta forma de Estado traduz-se na não-aplicação fascismo territorial.
ou aplicação selectiva das leis, no adiamento da en- O fascismo contratual é o que ocorre nas
trada em vigor de medidas já aprovadas por lei, na
situações atrás descritas em que a diferença
não punição da violação das leis, nos cortes nos orça-
mentos de funcionamento das instituições, etc. Enfim, de poder entre as partes no contrato de direito
numa política Estatal de distanciação em relação às civil (seja ele um contrato de trabalho ou um
próprias leis e instituições, em que as próprias insti- contrato de fornecimento de bens ou serviços)
tuições passam a actuar autonomamente como micro- é de tal ordem que a parte mais fraca, vulne-
-Estados, dotados de uma concepção própria do grau
rabilizada por não ter alternativa ao contrato,
de aplicação da lei recomendável na sua esfera de ac-
ção (Santos, 1993: 31). aceita as condições que lhe são impostas pela
372 Boaventura de Sousa Santos

parte mais poderosa, por mais onerosas e des- fazê-lo sem a participação nem o controle dos
póticas que sejam. O projecto neoliberal de cidadãos, torna-se conivente com a produção
transformar o contrato de trabalho num con- social de fascismo paraestatal. Estamos peran-
trato de direito civil como qualquer outro confi- te uma nova forma de governo indirecto, muito
gura uma situação de fascismo contratual. Esta semelhante à que vigorou nas colónias onde o
forma de fascismo ocorre hoje frequentemente Estado colonial confiava às autoridades gentíli-
nas situações de privatização dos serviços pú- cas a realização de certos serviços de controle
blicos, da saúde, da segurança social, da elec- das populações.
tricidade, da água, etc. As populações das to- A segunda vertente de fascismo paraestatal
wnships à volta de Joanesburgo vivem hoje na é o fascismo territorial que existe sempre que
contingência de perder o acesso à água potável actores sociais com forte capital patrimonial
por não terem meios de pagar as contas às em- retiram ao Estado o controle do território onde
presas que controlam o fornecimento privado actuam ou neutralizam esse controle, coop-
de água (Desai, 2002). Nestes casos, o contra- tando ou violentando as instituições estatais
to social que presidiu a produção de serviços e exercendo a regulação social sobre os habi-
públicos no Estado-Providência e no Estado tantes do território sem a participação destes e
desenvolvimentista é reduzido ao contrato in- contra os seus interesses. São territórios colo-
dividual do consumo de serviços privatizados. niais privados dentro de Estados quase sempre
Nesta redução passam a extravar do âmbito pós-coloniais25.
contratual aspectos decisivos da produção dos A terceira forma de fascismo social é o fas-
serviços que, por esta razão, se tornam extra- cismo da insegurança. Trata-se da manipula-
contratuais. É nestas situações que melhor se ção discricionária da insegurança das pessoas
revela a conivência entre o Estado democráti- e grupos sociais vulnerabilizados pela precari-
co e o fascismo paraestatal. Ao assumir valên- dade do trabalho, ou por acidentes ou aconte-
cias extracontratuais, o fascismo paraestatal cimentos desestabilizadores, produzindo-lhes
assume funções de regulação social anterior-
mente exercidas pelo Estado. Este, implícita
25 Para uma análise desta situação na Colômbia, ver
ou explicitamente, subcontrata a agentes pa-
Santos e García-Villegas, 2001. Para o caso de Moçam-
raestatais o desempenho dessas funções e, ao bique, veja-se Santos e Trindade (orgs.), 2003.
A crise do contrato social da modernidade e a emergência do fascismo social 373

elevados níveis de ansiedade e de insegurança Tais ilusões prospectivas proliferam hoje so-
quanto ao presente e ao futuro de modo a fazer bretudo nos seguros de saúde e nos fundos de
baixar o horizonte de expectativas e a criar a pensões privados.
disponibilidade para suportar grandes encar- A quarta forma de fascismo social é o fascis-
gos para obter reduções mínimas dos riscos e mo financeiro. É talvez a forma mais virulen-
da insegurança. No domínio deste fascismo, o ta de sociabilidade fascista. É o fascismo que
lebensraum dos novos führers é a intimidade comanda os mercados financeiros de valores
das pessoas e a sua ansiedade e insegurança e de moedas, a especulação financeira global,
quanto ao presente e ao futuro de si próprias um conjunto hoje designado por economia de
e de suas famílias nas áreas básicas da sobre- casino. Esta forma de fascismo social é a mais
vivência e da qualidade de vida. Opera pelo pluralista na medida em que os movimentos fi-
accionamento duplo de ilusões retrospectivas nanceiros são o produto de decisões de investi-
e de ilusões prospectivas e é hoje particular- dores individuais ou institucionais espalhados
mente saliente no domínio da privatização das por todo o mundo e, aliás, sem nada em comum
políticas sociais da saúde, da segurança social, senão o desejo de rentabilizar os seus valores.
da educação e da habitação. As ilusões retros- Por ser o mais pluralista é também o fascismo
pectivas consistem em acentuar a memória da mais virulento porque o seu tempo-espaço é o
insegurança e da ineficácia dos serviços públi- mais refractário a qualquer intervenção demo-
cos encarregados de executar essas políticas, crática. Significativa é, a este respeito, a res-
o que em muitos países não é tarefa difícil, posta do corrector da bolsa de valores quan-
ainda que o desencadear desta ilusão só seja do lhe perguntavam o que era para ele o longo
possível através de comparações enviesadas prazo: “longo prazo para mim são os próximos
entre condições reais de produção dos servi- dez minutos”. Este espaço-tempo virtualmente
ços e critérios ideais de avaliação dos serviços instantâneo e global, combinado com a lógica
produzidos. Por sua vez, as ilusões prospecti- de lucro especulativa que o sustenta, confere
vas visam criar horizontes de segurança pro- um imenso poder discricionário ao capital fi-
duzidos no sector privado inflacionados pela nanceiro, praticamente incontrolável apesar de
invisibilização de certos riscos e pela oculta- suficientemente poderoso para abalar, em se-
ção das condições de prestação de segurança. gundos, a economia real ou a estabilidade po-
374 Boaventura de Sousa Santos

lítica de qualquer país. E não esqueçamos que, ideia de desenvolvimento nacional e a inten-
de cada cem dólares que circulam diariamen- sificação da concorrência mercantil interna-
te no globo, noventa e oito pertencem a esta cional, não já só entre trabalhadores e países,
economia de casino e apenas dois à economia como também entre cientistas (cada vez mais
real. A discricionaridade no exercício do poder proletarizados), planos de estudo, projectos de
financeiro é virtualmente total e as consequên- pesquisa, programas de extensão (cada vez me-
cias para os que são vítimas dele — por vezes, nos solidários, cada vez mais vistos como fon-
povos inteiros — podem ser arrasadoras. te de receitas). O confisco da possibilidade de
A virulência do fascismo financeiro reside deliberação democrática na área da educação
em que ele, sendo de todos o mais internacio- terá repercussões cujo carácter devastador,
nal, está a servir de modelo e de critério opera- particularmente para o pensamento crítico e
cional a novas instituições de regulação global, comprometido com a cidadania, dificilmente
crescentemente importantes apesar de pouco poderão ser exageradas. Se este projecto for
conhecidas do público. O que hoje se discute concretizado, os disposições sobre a educa-
na Organização Mundial de Comércio sobre o ção em virtualmente todas as Constituições do
novo round de negociações para a liberaliza- mundo, serão gradualmente substituídos pelo
ção na área dos serviços é extremamente pre- constitucionalismo global das universidades
ocupante. Por exemplo, na área da educação globais e do capital que as sustenta.
superior está em risco a própria sobrevivência Uma segunda forma de fascismo financeiro
das universidades públicas nacionais e seus ampliado, também ele muito pluralista, global
projectos autónomos de abordagem dos pro- e secreto, é o que decorre da avaliação dos Es-
blemas e aspirações nacionais. O objectivo é tados nacionais por parte das empresas de ra-
criar um capital universitário global que leve ting, ou seja, das empresas internacionalmente
a cabo a mercantilização global da universida- acreditadas para avaliar a situação financeira
de com o mínimo de interferência nacional26. dos Estados e os consequentes riscos e opor-
Trata-se de levar ao extremo o fim de qualquer tunidades que eles oferecem aos investidores
internacionais. As notas atribuídas — que vão
de AAA a D — são determinantes para as con-
26 Trato deste tema com algum detalhe em Santos,
2004. dições em que um país ou uma empresa de
A crise do contrato social da modernidade e a emergência do fascismo social 375

um país pode aceder ao crédito internacional. são no mercado de valores de um país. Aliás,
Quanto mais alta a nota, melhores as condi- o poder discricionário destas empresas é tan-
ções. Estas empresas têm um poder extraordi- to maior quanto lhes assiste a prerrogativa de
nário. Segundo o jornalista do New York Times atribuírem qualificações não solicitadas pelos
Thomas Friedman, “o mundo do pós-guerra países ou devedores visados.
fria tem duas superpotências, os Estados Uni- O fascismo financeiro nas suas várias formas
dos da América e a agência Moody’s” — uma e âmbitos é exercido por empresas privadas
das seis agências de rating, junto da Securi- cuja acção está legitimada pelas instituições
ties and Exchange Commission; as outras são financeiras internacionais e pelos Estados he-
Standard and Poor’s, Fitch Investors Services, gemónicos. São um fenómeno híbrido paraes-
Duff and Phelps, Thomas Bank Watch, IBCA tatal e supraestatal. A sua virulência reside no
— e justifica esta afirmação acrescentando que seu potencial de destruição, na sua capacidade
“se é verdade que os Estados Unidos da Amé- para lançar no estado de natureza da exclusão
rica podem aniquilar um inimigo utilizando o países pobres inteiros.
seu arsenal militar, a agência de qualificação
financeira Moody’s tem poder para estrangular Sociabilidades alternativas
financeiramente um país, atribuindo-lhe uma Os riscos que corremos em face da erosão
má nota” (Warde, 1997: 10-11). do contrato social são demasiado sérios para
De facto, num momento em que os devedo- que ante eles cruzemos os braços. Há, pois, que
res públicos e privados entram numa batalha buscar alternativas de sociabilidade que neutra-
selvagem à escala mundial para atrair capitais, lizem ou previnam esses riscos e abram o cami-
uma má nota e, portanto, a desconfiança dos nho a novas possibilidades democráticas. Não
credores, pode significar o estrangulamento se trata de tarefa fácil dado que a desregulação
financeiro do país. Os critérios adoptados pe- social provocada pela crise do contrato social é
las empresas de rating são em grande medida tão profunda que acaba por desregular as pró-
arbitrários, reforçam as desigualdades no siste- prias resistências aos factores de crise e as exi-
ma mundial e dão origem a efeitos perversos: o gências emancipatórias que lhe dariam sentido.
simples rumor de uma próxima desqualificação Ante isto, há que definir de modo mais am-
(baixa nota) pode provocar enorme convul- plo os termos de uma exigência cosmopolita
376 Boaventura de Sousa Santos

subalterna e insurgente capaz de interromper ção entre acção conformista e acção rebelde,
o círculo vicioso do pré-contratualismo e do a acção que com base em Epicuro e Lucrécio
pós-contratualismo. A nível muito geral, essa designo por acção-com-clinamen. A acção
exigência traduz-se na reconstrução ou rein- conformista é a acção que reduz o realismo
venção de um espaço-tempo que favoreça e ao que existe. Ao contrário, a acção rebelde é
promova a deliberação democrática. Começa- dotada do clinamen, o quantum que pertur-
rei por identificar brevemente os princípios a ba as relações de causa e efeito e investe os
que deve obedecer tal reinvenção. movimentos os átomos de criatividade e de
Pensamento alternativo de alternativas O indeterminação. O conhecimento-emancipa-
primeiro princípio é que não basta pensar em ção e a ecologia de saberes — ao buscarem
alternativas, já que o pensamento moderno de activamente o que no real dado esconde o
alternativas tem-se mostrado extremamente real suprimido — favorecem a ocorrência de
vulnerável à inanição, quer porque as alterna- acções-com-clinamen.
tivas são irrealistas e caem no descrédito por Num período de turbulência de escalas não
utópicas, quer porque as alternativas são rea- basta pensar a turbulência de escalas. É pre-
listas e são, por essa razão, facilmente coopta- ciso que o pensamento que as pensa seja ele
das por aqueles cujos interesses seriam negati- próprio turbulento. A acção-com-clinamen é
vamente afectados por elas. Precisamos, pois, a acção turbulenta de um pensamento em tur-
de um pensamento alternativo de alternativas. bulência. O seu carácter pouco organizado per-
Tenho vindo a propor uma epistemologia que, mite redistribuir socialmente a ansiedade e a
ao contrário da epistemologia moderna, pro- insegurança, criando condições para que a an-
mova activamente esse pensamento, o que de- siedade dos excluídos se transforme em causa
signo por uma epistemologia do Sul, baseado de ansiedade para os incluídos e se torne so-
no conhecimento-emancipação e na ecologia cialmente evidente que a redução da ansiedade
dos saberes. de uns não é possível sem a redução da ansie-
Acção-com-clinamen. O segundo princípio dade dos outros. Sendo certo que cada sistema
orientador da reinvenção da deliberação de- é tão forte quanto o seu elo mais fraco, penso
mocrática exige que nos centremos na distin- que nas condições actuais o elo mais fraco do
A crise do contrato social da modernidade e a emergência do fascismo social 377

sistema de exclusão reside precisamente na ca- da modernidade combina de modo complexo


pacidade deste para impor tão unilateral quan- a flecha do tempo com a espiral do tempo, as
to impunemente a ansiedade e a insegurança transformações recentes do espaço-tempo es-
a grandes massas de populações. Quando hoje tão a desestruturar essa combinação. Se nas
os Estados hegemónicos e as instituições fi- zonas civilizadas, onde se intensifica a inclusão
nanceiras multilaterais elegem a ingovernabi- dos incluídos, a flecha do tempo dispara impul-
lidade como um dos problemas centrais das sionada pela vertigem de um progresso sem
sociedades contemporâneas, nada mais fazem precedentes, nas zonas selvagens dos excluí-
do que expressar a ansiedade e a insegurança dos sem remédio a espiral do tempo comprime-
quanto à possibilidade de a ansiedade e a inse- -se até se transformar num tempo circular onde
gurança serem redistribuídas pelos excluídos a sobrevivência não tem outros horizontes se
aos incluídos. não o de sobreviver à sempre iminente ruptura
Espaços-tempo de deliberação democráti- de si própria.
ca. O terceiro princípio é o de que, sendo certo Com base nestes princípios, penso ser possí-
que o fascismo social se alimenta basicamente vel definir algumas das dimensões da exigência
da promoção de espaços-tempo que impedem, cosmopolita subalterna e insurgente da recons-
trivializam ou restringem os processos de deli- trução do espaço-tempo da deliberação demo-
beração democrática, a exigência cosmopolita crática. O sentido último dessa exigência é a
do tempo presente tem como componente cen- construção de um contrato social de tipo novo,
tral a reinvenção de espaços-tempo que pro- construído sobre pressupostos muito distintos
movam a deliberação democrática. Em todas daqueles que sustentaram o contrato social
as sociedades e culturas está a ocorrer, não só moderno ocidental. É antes de mais um contra-
a compressão do espaço-tempo, como também to muito mais inclusivo porque deve abranger
a segmentação do espaço-tempo. A divisão en- não apenas o ser humano e os grupos sociais,
tre zonas selvagens e zonas civilizadas é mani- mas também a natureza. Em segundo lugar, é
festação eloquente da segmentação do espaço- um contrato intercultural porque a inclusão se
-tempo como condição da compressão deste. dá tanto por critérios de igualdade como por
Por outro lado, se é certo que a temporalidade critérios de diferença. Em terceiro lugar, sen-
378 Boaventura de Sousa Santos

do certo que o objectivo último do contrato é Bibliografia


reconstruir o espaço-tempo da deliberação de- Abrahamsen, R. 2000 Disciplining
mocrática, este, ao contrário do que sucedeu Democracy: Development Discourse and
no contrato social moderno, não pode confinar- Good Governance in Africa (Londres: Zed
-se ao espaço-tempo nacional estatal e deve Books).
incluir igualmente os espaços-tempos local, Alvares, C. 1992 Science, Development and
regional e global. Por último, o novo contrato Violence: The Revolt against Modernity
não assenta em distinções rígidas entre Esta- (Nova Delhi: Oxford University Press).
do e sociedade civil, entre economia, política e Brush, S. B. e Stabinsky, D. (orgs.) 1996
cultura, entre público e privado. A deliberação Valuing Local Knowledge: Indigenous
democrática, enquanto exigência cosmopolita, People and Intellectual Property Rights
não tem sede própria, nem uma materialidade (Washington, DC: Island Press).
institucional específica. Crewe, E. e Harrison, E. 2002 Whose
Na presente fase de transição paradigmáti- Development? An Ethnography of Aid
ca, a construção do novo contrato social tem (Londres/Nova Iorque: Zed Books).
de passar pela neutralização da lógica de ex- Desai, A. 2002 We are the Poors: Community
clusão decorrente do pré-contratualismo e do Struggles in post-Apartheid South Africa
pós-contratualismo nos domínios em que eles (Nova Iorque: Westview Press).
ocorrem com mais virulência. Duas das áreas Escobar, A. 1995 Encountering Development:
de reflexão e intervenção que se me afiguram The Making and Unmaking of the Third
mais importantes são: a reinvenção solidária World (Princeton: Princeton University
do Estado a partir da análise aprofundada da Press).
sua crise; e a redescoberta democrática do tra- Fitoussi, J.-P. 1997 O Debate-Tabu: Moeda,
balho concomitantemente com a reinvenção Europa, Pobreza (Lisboa: Terramar).
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O Estado e os modos de produção
de poder social*

Introdução final do capitalismo enquanto sistema” (1980:


374). Ao contrário, segundo a outra concep-
À medida que nos aproximamos do fim do
século XX as nossas concepções sobre a
natureza do capitalismo, do Estado, do poder
ção, formulada por A. Hirschman, o capitalis-
mo não pode ser criticado por ser repressivo,
e do direito tornam-se cada vez mais confusas alienante ou unidimensional em contraste com
e contraditórias. Eis dois exemplos, um, a res- os seus valores básicos, porque o capitalismo
peito da natureza do capitalismo e outro, a res- realizou precisamente o que se pretendia que
peito do Estado. se realizasse, nomeadamente “reprimir certos
Nos últimos quinze anos foram apresenta- impulsos e tendências e produzir uma perso-
das duas concepções radicalmente diferentes nalidade humana menos multifacetada, menos
sobre a natureza do desenvolvimento capi- imprevisível e mais ‘unidimensional’” (1977:
talista. Segundo uma delas, formulada por I. 132). Por outras palavras, “o capitalismo visou
Wallerstein, “o capitalismo nunca funcionou, desde o início a realização do que rapidamente
nem pode, em caso algum, funcionar de acordo foi denunciado como a sua pior característica”
com a sua ideologia e, por isso, o triunfo final (1977: 132). Deste modo a sobrevivência do ca-
dos valores capitalistas será o sinal da crise pitalismo assenta, para a primeira concepção,
na negação prática da sua ideologia e, para a
segunda, na incessante afirmação desta.
* Extraído de Santos, B. de Sousa 2013 “O Estado e
os modos de produção de poder social” in Pela mão de O mesmo grau de contradição pode ser de-
Alice. O social e o político na pós-modernidade (Coim- tectado entre recentes concepções do Estado.
bra: Almedina) pp. 121-138. Enquanto muitos autores criticam a tendência
384 Boaventura de Sousa Santos

crescente do Estado para penetrar ou mesmo dade não é linearmente reconduzível aos
absorver a sociedade civil e para o fazer de diferentes paradigmas teóricos ou políticos
formas cada vez mais autoritárias — o que se- de que partem e parece antes radicar na ne-
gundo as formas, ou segundo os autores, tem bulosidade do próprio objecto de análise.
sido descrito como “autoritarismo regulador”, Em minha opinião, são três as causas desta
“democracia vigiada”, “neo-corporativismo”, nebulosidade. Em primeiro lugar, continua-
“fascismo benévolo” — outros autores con- mos a analisar os processos de transforma-
vergem na ideia, aparentemente contraditória ção social do fim do século XX com recurso a
com a anterior, de que o Estado é crescente- quadros conceituais desenvolvidos no século
mente ineficaz, cada vez mais incapaz de de- XIX e adequados aos processos sociais então
sempenhar as funções de que se incumbe. De em curso. Em segundo lugar, o Estado-Nação
acordo com esta concepção, o Estado ou ca- continua a predominar enquanto unidade de
rece de recursos financeiros (o argumento da análise e suporte lógico da investigação, o
crise financeira) ou de capacidade institucional que nos impede de captar cientificamente a
(o argumento da incapacidade da burocracia lógica própria e a autonomia crescente, quer
do Estado para se adaptar ao acelerado ritmo das estruturas e dos processos locais típicos
de transformação social e economia) ou carece de unidades de análise mais pequenas (a ló-
ainda dos mecanismos que na sociedade civil gica infra-estatal), quer dos movimentos glo-
orientam as acções e garantem a sua eficácia bais, ao nível do sistema mundial (a lógica
(o argumento da falta de sinais de mercado na supra-estatal). Em terceiro lugar e apesar dos
actuação do Estado). Nestas análises, o Esta- espaços teóricos inovadores das últimas dé-
do ora surge como um leviatão devorador ora cadas, a teoria sociológica continua a ser ba-
como um empreendedor falhado1. sicamente derivada das experiências sociais
Poderia multiplicar os exemplos de con- das sociedades centrais e, nessa medida, pou-
cepções contraditórias cuja contraditorie- co adequada à análise comparada e inclinada
a suscitar generalizações espúrias. Pode mes-
mo dizer-se que, quanto mais geral é a teoria
1 A tal ponto que hoje se insiste na necessidade da
sociológica, maior é a probabilidade de ser
elaboração de uma teoria do fracasso do Estado. Ver,
por exemplo, Janicke (1980). baseada na experiência social e histórica dos
O Estado e os modos de produção de poder social 385

países centrais e enviesada a favor destes úl- latentes, para, de seguida, apresentar, em tra-
timos (o viés do centrocentrismo). ço grosso, o perfil possível de uma alternativa
Destas três causas, tratarei no presente tex- conceitual cujas virtualidades para analisar a
to, da primeira e da terceira. Penso, de facto, sociedade portuguesa são apenas apontadas.
que o problema básico da contraditoriedade
das concepções referidas e de tantas outras pa- A distinção Estado/sociedade civil
ralelas reside no quadro conceptual em que se
As raízes contraditórias da distinção
movem. Esse quadro é constituído por um con-
junto de conceitos que, a meu ver, qualquer que A fixidez e a evidência com que as ortodo-
tenha sido a sua utilidade no passado, é hoje xias conceituais (ou quaisquer outras) se nos
um obstáculo teórico, ao avanço do nosso co- apresentam tendem a obscurecer os proces-
nhecimento sobre o Estado e a sociedade, um sos históricos, mais ou menos longos e quase
obstáculo tanto maior quanto o nosso objecti- sempre contraditórios, da sua constituição.
vo é conhecer, não uma sociedade central, de- A reflexão crítica sobre elas não pode, pois,
senvolvida, mas uma sociedade semiperiférica, deixar de começar pelo desvelamento da sua
a sociedade portuguesa. O núcleo central desse historicidade. Para isso teremos de recorrer a
quadro conceptual é constituído pela distinção alguns conceitos em relativo desuso, mas com
Estado/sociedade civil e pelos seus vários co- inegáveis virtualidades para analisar o período
rolários como, por exemplo, a separação entre do desenvolvimento capitalista que aqui nos in-
o económico e o político, a redução do poder teressa, o longo século XIX de Eric Hobsbawm
político ao poder estatal e identificação do di- que termina com a primeira guerra mundial
reito com o direito estatal. (Hobsbawm, 1987).
Procurarei mostrar neste texto que a distin- Tem sido afirmado que o dualismo Estado/
ção Estado/sociedade civil e os seus corolários sociedade civil é o mais importante dualismo
são hoje uma “ortodoxia conceitual” e que, por no moderno pensamento ocidental (Gamble,
isso, a sua predominância no discurso político 1982: 45). Nesta concepção, o Estado é uma
é perfeitamente compatível com a sua falência realidade construída, uma criação artificial e
teórica. Começarei por mostrar as raízes con- moderna quando comparada com a sociedade
traditórias desta distinção e as suas funções civil. No nosso século, ninguém melhor do que
386 Boaventura de Sousa Santos

Hayek expressou essa ideia: “As sociedades nhum, que a economia moderna dispense uma
formam-se, mas os Estados são feitos” (1979: acção estatal esclarecida.2
140). A modernidade do Estado constitucional Isto é particularmente evidente em Adam
do século XIX é caracterizada pela sua orga- Smith para quem a ideia de comércio gera liber-
nização formal, unidade interna e soberania dade e a civilização vai de par com a defesa das
absoluta num sistema de Estados e, principal- instituições políticas que garantam um comér-
mente, pelo seu sistema jurídico unificado e cio livre e civilizado. Ao Estado cabe um papel
centralizado, convertido em linguagem univer- muito activo e, de facto, crucial na criação de
sal por meio da qual o Estado comunica com a condições institucionais e jurídicas para a ex-
sociedade civil. Esta, ao contrário do Estado, é pansão do mercado.3 Como Billet muito bem
concebida como o domínio da vida económica,
das relações sociais espontâneas orientadas 2 Este é muito claramente o caso dos iluministas es-
pelos interesses privados e particularísticos. coceses convertidos pelo pensamento do século XIX em
Contudo, o dualismo Estado/sociedade civil doutrinadores do laissez faire. Sabemos hoje que o não
nunca foi inequívoco e, de facto, mostrou-se, foram ou que o foram, por assim dizer, só retrospecti-
à partida, prenhe de contradições e sujeito a vamente, ou seja, com respeito à ordem corporativa do
Estado feudal. Ao contrário, estavam bem conscientes
crises constantes. Para começar, o princípio da de que a economia moderna conduziria à emergência
separação entre Estado e sociedade civil englo- de um Estado com um potencial para influenciar a vida
ba tanto a ideia de um Estado mínimo como a do povo incomensuravelmente superior do Estado feu-
de um Estado máximo, e a acção estatal é si- dal. Só isto explica que estivessem tão preocupados em
desenhar soluções políticas que impedissem a ocorrên-
multaneamente considerada como um inimigo
cia do abuso de poder, de “les grands coups d’autorité”
potencial da liberdade individual e como a con- de que falava Montesquieu.
dição para o seu exercício. O Estado, enquanto
3 Tem havido algum debate acerca do papel das insti-
realidade construída, é a condição necessária tuições políticas e jurídicas no pensamento de Adam Smi-
da realidade espontânea da sociedade civil. O th. Contra a opinião que começa a ser geralmente acei-
pensamento setecentista está totalmente im- te (Viner, 1927; Billet, 1975; Samuels, 1979), Hirschman
buído desta contradição dado que ao libertar a tende a minimizar esse papel. No entanto, ele próprio
reconhece que, “ao que parece, Smith defendeu menos
actividade económica das regras corporativas
um Estado com funções mínimas do que um Estado cuja
do ancien régime não pressupõe, de modo ne- capacidade para excessos fosse limitada” (1977: 104).
O Estado e os modos de produção de poder social 387

afirma, do primeiro ao último capítulo de An insolúveis. A primeira é que, dado o carácter


Inquiry into the Nature and Causes of the We- particularístico dos interesses na sociedade ci-
alth of Nations, ficamos impressionados com vil, o princípio do laissez faire não pode ser
a ideia, fundamental no pensamento de Adam igualmente válido para todos os interesses. A
Smith, de que a natureza das instituições e as sua coerência interna baseia-se numa hierar-
práticas políticas duma nação afectam decisi- quia de interesses previamente aceite, candi-
vamente a sua capacidade para um desenvolvi- damente expressa na máxima de John Stuart
mento económico firme. Comparando Portugal Mill: “qualquer desvio do laissez faire, a menos
e Espanha com a Grã-Bretanha, Adam Smith que ditado por um grande bem, é um mal in-
considera o carácter despótico dos dois primei- dubitável” (1921: 950). A discussão do princí-
ros Estados, os “governos violentos e arbitrá- pio fez-se sempre à sombra da discussão dos
rios”, como responsáveis pela estagnação eco- interesses a que o princípio se aplicava. Assim,
nómica e relativa pobreza: “A indústria não é ali a mesma medida jurídica pôde ser objecto de
nem livre nem defendida e os governos civis e interpretações opostas, mas igualmente coe-
eclesiásticos de Espanha e Portugal são de tal rentes. Exemplo disto foi o caso da legislação
ordem que só por si bastariam para perpetuar o de 1825-65 sobre as sociedades por acções,
seu estado actual de pobreza” (1937: 509). considerada por uns como um bom exemplo
Mais impressionante ainda é que para Adam do laissez faire por eliminar as restrições à
Smith o despotismo tanto pode ser o resulta- mobilidade do capital, e por outros, como uma
do de um governo arbitrário, que governe pela nítida violação desse mesmo laissez faire por
força, sem restrições institucionais ou legais, conceder às sociedades comerciais privilégios
como resultado de um governo fraco, uma au- que eram negados aos empresários individuais
toridade instável, incapaz de manter a ordem e (Taylor, 1972: 12). Isto explica porque é que a
a lei e de desempenhar as funções reguladoras Inglaterra vitoriana foi considerada por uns a
exigidas pela economia (Billet, 1975: 439; Vi- idade do laissez faire, e por outros, o embrião
ner, 1927: 218). do Welfare State.4
A ideia da separação entre o económico e
o político baseado na distinção Estado/socie-
4 À luz disto não surpreende que a crise do Estado-
dade civil e expressa no princípio do laissez -Providência ou a crise da regulação, tal como tem
faire parece estar ferida de duas contradições vindo a ser discutida nos últimos anos, seja concebida
388 Boaventura de Sousa Santos

A segunda contradição refere-se aos meca- o peso desta ortodoxia conceptual no próprio
nismos que activam socialmente o princípio marxismo. Pondo de lado a teoria política libe-
do laissez faire. O século XIX inglês testemu- ral francesa e inglesa do século XVIII e conside-
nhou, não só um incremento da legislação so- rando apenas os antecedentes mais próximos
bre política económica e social, mas também do pensamento de Marx — o contexto alemão
o aparecimento duma amálgama de novas ins- —, deve sublinhar-se que, segundo Hegel, a so-
tituições estatais como a “Factory Inspectora- ciedade civil é uma fase de transição da evolu-
te”, o “Poor Law Board”, o “General Board of ção da “ideia”, sendo a fase final o Estado. A
Health”, etc. É interessante notar que algumas família é a tese, a sociedade civil é a antítese e
dessas leis e dessas instituições se destinavam o Estado é a síntese. A sociedade civil é o “sis-
a aplicar políticas de laissez faire. Como Dicey tema de necessidades”, a destruição da unidade
sublinhou, “sinceros adeptos do laissez faire da família e a atomização dos seus membros,
aceitavam que, para atingirem os seus fins, o em suma, o domínio dos interesses particula-
aperfeiçoamento e o fortalecimento dos me- rísticos e do egoísmo, um estádio que será su-
canismos governamentais era uma necessida- perado pelo Estado, o supremo unificador dos
de absoluta” (1948: 306). Isto significa que as interesses, a ideia universal, a concretização
políticas do laissez faire foram aplicadas, em plena da consciência moral (Hegel, 1981: sec.
grande medida, através duma activa interven- 140). Há, de algum modo, em Hegel duas linhas
ção estatal. Por outras palavras, o Estado teve de pensamento sobre o Estado e a sociedade ci-
de intervir para não intervir. vil. Uma, altamente subsidiária do pensamento
Perante tudo isto surge a pergunta: se a dis- liberal inglês e francês, é a distinção conceptu-
tinção Estado/sociedade civil estava tão cheia al entre o Estado e a sociedade civil enquanto
de contradições como é que foi tão amplamen- entidades contraditórias. A outra, distintamen-
te aceite, considerada tão óbvia e tão do sen- te hegeliana, é a ideia de que o conceito de so-
so comum? Antes de tentar responder a esta ciedade civil não está no mesmo pé (no mesmo
pergunta, gostaria de ilustrar resumidamente nível especulativo) que o conceito de Estado:
corresponde a um estádio menos desenvolvido
da consciência a ser efectivamente subsumido
por alguns como um regresso ao capitalismo do lais-
no Estado e, nesse sentido, a separação entre
sez faire e por outros, como o embrião de uma nova
forma de Estado. Estado e sociedade civil enquanto dois concei-
O Estado e os modos de produção de poder social 389

tos opostos e ao mesmo nível de abstração, é económica que sustenta a superestrutura polí-
teoricamente insustentável. Esta última con- tica e jurídica não é, portanto, uma distorção
cepção, apesar do seu conteúdo mistificador, completa do pensamento de Marx como se tem
é, hoje fundamental, em minha opinião, para feito crer recentemente.5
a compreensão do processo histórico das so-
ciedades capitalistas. Foi, no entanto, posta de
lado nas discussões que se seguiram a Hegel. A
reificação da dicotomia Estado/sociedade civil 5 Aliás, a metáfora da base/superestrutura tem per-
surgiu sem demora, em grande parte devido aos sistido, mais ou menos disfarçada, em todas as tenta-
tivas de reformulação da questão a que ela procurou
trabalhos de Lorenz von Stein.
dar resposta. Entre elas, a tentativa mais influente no
Apesar da tentativa que Max Adler fez para marxismo ocidental dos últimos trinta anos foi, sem dú-
a libertar desse cunho (1922), creio que a con- vida, a da escola francesa do estruturalismo marxista
cepção de Marx corresponde à versão reificada althusseriano (a teoria das instâncias — económica,
da distinção Estado/sociedade civil. Inverteu-a, política e ideológica — relativamente autónomas; o
conceito de sobredeterminação; o princípio da deter-
mas não a superou. Descobriu que as alegadas
minação económica em última instância). Apesar da
leis “naturais” da economia clássica escondiam sua sofisticação teórica, o seu viés economicista, é
relações sociais de exploração que o Estado, por demais evidente, na obra do mais brilhante teórico
só aparentemente neutro, tinha como função do Estado, da política e do direito desta escola, Nicos
garantir. Em vez do interesse social universal, o Poulantzas. Ao analisar a relação de propriedade, por
ele concebida como elemento da instância económica,
Estado representava o interesse do capital em Poulantzas salienta que ela pertence estritamente à
conseguir a sua reprodução. No entanto, em- instância económica e deve, por isso, ser claramente
penhado como estava em discutir a economia distinguida das formas jurídicas de que é investida, isto
clássica no seu próprio terreno, Marx deixou-se é, da propriedade jurídica (1978a: 26). E critica Mauri-
cair na armadilha da separação entre economia ce Godelier por ignorar que as relações de produção e
as forças produtivas pertencem à mesma combinação
e política e acabou por reduzir a política e o di- estrutural do económico enquanto a propriedade (jurí-
reito à acção estatal. Não conseguiu aperceber- dica) dos meios de produção pertence à superestrutura
-se em que sentido real (e não apenas metafó- (1978a: 67). Estas formulações de Poulantzas, publica-
rico) as “relações económicas” eram também das pela primeira vez em 1968, foram de longe as mais
influentes. O pensamento de Poulantzas, como é sabi-
relações marcadamente políticas e jurídicas na
do, evoluiu bastante nos últimos anos da vida deste. Ver
sua constituição estrutural. A metáfora da base Poulantzas (1978b).
390 Boaventura de Sousa Santos

As funções latentes da distinção têm lugar no mesmo processo de trabalho devi-


Estado/sociedade civil do ao controle do capital sobre este último, en-
Como é possível explicar a natureza eviden- quanto atributo da sua propriedade dos meios
te da noção do “económico” como um domínio de produção. Desde que o Estado garanta o
separado e autónomo e das correspondentes cumprimento do direito de propriedade, as re-
noções do “político” e do “jurídico” como atri- lações económicas ocorrem e reproduzem-se
butos exclusivos do Estado? Como se explica por si na esfera privada da fábrica. Parece, as-
a persistência da dicotomia Estado/sociedade sim, que a exterioridade do Estado e da política
civil apesar das suas contradições internas e relativamente às relações de produção deriva
permanentes crises? da concepção das relações de produção como
Como acontece com todas as teorias sociais, uma questão económica e privada entre indiví-
esta ortodoxia conceptual tem o seu quê de duos privados dentro da sociedade civil.
verdade. No feudalismo, o trabalho necessá- Se reflectirmos melhor, esta derivação não
rio (isto é, o trabalho requerido para a subsis- é logicamente necessária. Sem mesmo pôr em
tência dos servos) e o sobretrabalho (isto é, o causa a exterioridade das instituições políticas
trabalho efectuado pelos servos para garantir a e jurídicas do Estado relativamente às relações
subsistência e a acumulação dos senhores feu- de produção, seria igualmente lógico conceber
dais) estavam separados no tempo e no espaço. essas relações dentro da fábrica como um con-
Dado que os senhores feudais não detinham a junto de processos políticos e jurídicos, ape-
propriedade dos meios de produção, tinham de nas com a especificidade de ocorrerem exte-
depender das instituições políticas e jurídicas riormente ao Estado, sob o controle directo do
do Estado para se apropriarem do sobretraba- capital. E, de facto, não seria difícil descobrir
lho dos servos. De certo modo, como os senho- dentro da fábrica corpos legislativos, grupos de
res feudais não detinham a propriedade priva- poder, coligações, regulamentações jurídicas,
da dos meios de produção, o seu poder social mecanismos de resolução de conflitos, san-
estava intimamente ligado à sua propriedade ções positivas e negativas, vigilância policial,
privada do Estado. No capitalismo, pelo con- etc. Porque é que esta concepção alternativa da
trário, o trabalho necessário e o sobretrabalho realidade da fábrica não foi adaptada? Porque
é que esta enorme variedade de processos so-
O Estado e os modos de produção de poder social 391

ciais foi toda amalgamada no conceito amorfo sobretudo no período do capitalismo liberal, a
de “relações económicas”? imagem será quase o negativo da anterior. Re-
A meu ver, a separação entre político e eco- conhecemos, obviamente, o enorme progresso
nómico permitiu, por um lado, a naturalização operado em termos de tecnologias de produ-
da exploração económica capitalista, e por ção, mas quanto às relações sociais de produ-
outro, a neutralização do potencial revolucio- ção somos levados a concluir como Meiksins
nário da política liberal, dois processos que Wood que “em nenhum outro sistema de pro-
convergiram para a consolidação do modelo dução, o trabalho é tão completamente disci-
capitalista das relações sociais. plinado e organizado, e nenhuma outra organi-
Se, num exercício de imaginação, comparar- zação da produção responde tão directamente
mos as relações sociais ao longo dos tempos, é às exigências da apropriação” (1981: 91). Este
no campo das relações políticas, as relações na controlo, sem precedentes, sobre a produção
esfera pública, que as sociedades capitalistas é aquilo a que Marx chamava o despotismo da
mais inequivocamente representam o progres- fábrica (1970), e Braverman descreveu como
so civilizacional. Pela primeira vez na história, o significando a progressiva degradação do pro-
Estado tornou-se verdadeiramente público, isto cesso de trabalho (1974).
é, deixou de constituir propriedade privada de Creio que a dicotomia economia/política
qualquer grupo específico.6 A concessão de direi- tornou estas duas imagens incomparáveis e
tos cívicos e políticos e a consequente universa- incomensuráveis. Separou-as de tal forma que
lização da cidadania transformaram o Estado na a configuração política das relações sociais,
consubstanciação teórica do ideal democrático onde se condensava o progresso civilizacional,
de participação igualitária no domínio social. deixou de poder ser o modelo da configuração
Se, pelo contrário, considerarmos as rela- económica das relações sociais. Confinado à
ções de produção nas sociedades capitalistas, esfera pública, o ideal democrático ficou neu-
tralizado ou profundamente limitado no seu
potencial emancipador. Convergentemente, a
6 Até ao século XVIII a privatização do poder do Es- conversão da esfera pública na sede exclusi-
tado assumia múltiplas formas. Uma das mais vulga-
va do direito e da política desempenhou uma
res era a compra e venda de cargos públicos. Ver, por
exemplo, Swart (1949). função legitimadora fundamental ao encobrir
392 Boaventura de Sousa Santos

o facto de o direito e de a política do Estado As várias sociedades civis


democrático só poderem funcionar como parte Quanto à primeira objecção, deve, antes de
duma configuração política e jurídica mais am- mais, salientar-se que a “reemergência da so-
pla, onde estão incluídas outras formas antide- ciedade civil” é, em si mesma, um fenómeno
mocráticas de direito e de política. complexo, nela sendo possível distinguir pelo
menos três lógicas distintas.7 A primeira reme-
Para a construção de uma te para a concepção liberal clássica da socie-
alternativa conceitual dade civil (enquanto pluralidade atomística
A crítica da distinção Estado/sociedade civil de interesses económicos privados); domina
defronta-se com três objecções fundamentais. hoje o discurso político, sobretudo conserva-
A primeira é que não parece correcto que se dor, nas sociedades capitalistas tanto centrais
ponha em causa esta distinção precisamente como periféricas ou semiperiféricas. A segun-
no momento em que a sociedade civil parece da subjaz aos novos movimentos sociais (eco-
estar, por toda a parte, a reemergir do jugo do lógicos, antinucleares, pacifistas, feministas)
Estado e a autonomizar-se em relação a ele, e demarca-se mais ou menos radicalmente da
capacitando-se para o desempenho de funções concepção liberal, apelando para a ideia de
que antes estavam confiadas ao Estado. A se- uma sociedade civil pós-burguesa e antimate-
gunda objecção é que, mesmo admitindo que a rialista (Offe, 1984; 1985; Arato e Cohen, 1984).
distinção é criticável, é difícil encontrar uma A terceira foi a que dominou a reflexão teórica
alternativa conceptual ou é mesmo logicamen- dissidente na fase final dos regimes socialistas
te impossível, pelo menos enquanto vigorar a de Estado do Leste Europeu: a sociedade civil
ordem social burguesa (Giner, 1985). A tercei- socialista, distinta de qualquer das duas con-
ra objecção é que sobretudo nas sociedades cepções anteriores (Heller, 1984; Feher, Heller,
periféricas e semiperiféricas (como a nossa) Markus, 1984).
caracterizadas por uma sociedade civil fraca,
pouco organizada e pouco autónoma, é poli-
ticamente perigoso pôr em causa a distinção 7 Com outras preocupações teóricas S. Giner distingue
Estado/sociedade civil. quatro concepções de sociedade civil: liberal clássica, he-
geliana, marxista clássica, neomarxista (1985: 247).
O Estado e os modos de produção de poder social 393

Estas distinções devem pôr os cientistas togoverno, da expansão da subjectividade, do


sociais de sobreaviso. Por um lado, nem a comunitarismo e da organização autónoma dos
sociedade civil pós-burguesa ou antimateria- interesses e dos modos de vida. Mas esse nú-
lista, nem a sociedade civil socialista foram cleo tende a ser omitido no discurso dominante
pensadas pela distinção Estado/sociedade ci- ou apenas subscrito na medida em que corres-
vil tal como esta se constituiu historicamente ponde às exigências do novo autoritarismo.
e merecem por isso consideração separada.
Por outro lado, e precisamente tendo isto em As formas de poder social
conta, devemo-nos interrogar, no que respeita
A segunda objecção — a de que é difícil ou
à “reemergência da sociedade civil” no discur-
impossível formular uma alternativa à distin-
so político dominante, sobre se se trata dis-
ção Estado/sociedade civil — só pode ser res-
so mesmo ou de outro fenómeno, quiçá bem
pondida através da apresentação de uma tal
distinto, que por razões ideológico-políticas
alternativa. É o que faço a seguir, resumindo
assume essa distinção.
em jeito de escrita radiográfica um outro texto
A meu ver, o que está verdadeiramente em
em que a alternativa é apresentada e justifica-
causa na “reemergência da sociedade civil” no
da detalhadamente (Santos, 1985a). O ponto de
discurso dominante é um reajustamento estru-
partida é o conceito de poder pois é ele tam-
tural das funções do Estado por via do qual o
bém que subjaz à distinção Estado/sociedade
intervencionismo social, interclassista, típico
civil. De facto, esta distinção visa sobretudo
do Estado-Providência, é parcialmente substi-
impor uma concepção homogénea e bem defi-
tuído por um intervencionismo bicéfalo, mais
nida de poder e atribuir-lhe um lugar específico
autoritário face ao operariado e a certos sec-
e exclusivo. A concepção é, como sabemos, a
tores das classes médias (por exemplo, a pe-
concepção do poder político-jurídico e o lugar
quena burguesia assalariada) e mais diligente
do seu exercício é o Estado. Todas as outras
no atendimento das exigências macro-econó-
formas de poder, na família, nas empresas, nas
micas da acumulação de capital (sobretudo do
instituições não estatais são diluídas no con-
grande capital). É inegável que a “reemergên-
ceito de relações privadas e de concorrência
cia da sociedade civil” tem um núcleo genuíno
entre interesses particulares.
que se traduz na reafirmação dos valores do au-
394 Boaventura de Sousa Santos

Este paradigma tem vindo a ser objecto de É, pois, necessário encontrar uma via inter-
múltiplas críticas. A mais recente e mais radi- média entre a concepção liberal e a concepção
cal foi, sem dúvida, a de Foucault (1975; 1976). foucaultiana. A minha proposta é que as socie-
Segundo Foucault, a partir do século XVIII, dades capitalistas são formações ou configura-
precisamente no momento em que a teoria li- ções políticas constituídas por quatro modos
beral procurava identificar o poder social com básicos de produção de poder que se articulam
o poder do Estado, surgiu nas sociedades mo- de maneiras específicas. Esses modos de pro-
dernas uma outra forma de poder bem mais dução geram quatro formas básicas de poder
disseminada e eficaz, o poder disciplinar, ou que, embora interrelacionadas, são estrutural-
seja, o poder da normalização das subjectivi- mente autónomas (ver Quadro I).8
dades tornado possível pelo desenvolvimento
e institucionalização das diferentes ciências
sociais e humanas. Esta forma de poder — o
poder-saber das disciplinas — cercou e esva-
ziou o poder político-jurídico e de tal modo
que, ao lado dele, o poder do Estado é hoje
apenas uma entre outras formas de poder e
nem sequer a mais importante. O problema
desta concepção é que, embora chame, e bem,
a atenção para a multiplicidade de formas de
poder em circulação na sociedade, não permi-
te determinar a especificidade de cada uma
delas nem a hierarquia entre elas. Por outro
lado, fiel às suas convicções anarquistas, Fou-
cault leva longe demais o argumento da proli-
feração das formas de poder e a tal ponto que
ele se torna reversível e autodestrutivo. É que
se o poder está em toda a parte, não está em
8 A primeira formulação desta proposta pode ler-se
parte nenhuma. em Santos (1985a).
O Estado e os modos de produção de poder social 395

Quadro 1. Mapa estrutural das sociedades capitalistas


Componentes
Elementares Unidade de Forma Mecanismo de Forma de Modo de
Espaços prática social institucional poder direito racionalidade
Estruturais
Família, casamento Direito Maximização de
Espaço doméstico Sexos e gerações Patriarcado
e parentesco doméstico afectividade
Direito da Maximização do
Espaço da produção Classe Empresa Exploração
produção lucro
Direito Maximização da
Espaço da cidadania Indivíduo Estado Dominação
territorial lealdade
Contratos, acordos
Direito Maximização da
Espaço mundial Nação e Organizações Troca desigual
sistémico efectividade
Internacionais

Distingo nas sociedades capitalistas qua- giada, um mecanismo de poder, uma forma de
tro espaços (que também são quatro tempos) direito e um modo de racionalidade.
estruturais: o espaço doméstico, o espaço da O espaço doméstico é constituído pelas rela-
produção, o espaço da cidadania e o espaço ções sociais (os direitos e os deveres mútuos)
mundial. Cada um deles constitui um feixe de entre os membros da família, nomeadamen-
relações sociais paradigmáticas. Não são obvia- te entre o homem e a mulher e entre ambos
mente os únicos espaços/tempos que vigoram (ou qualquer deles) e os filhos. Neste espaço,
ou circulam na sociedade, mas todos os demais a unidade de prática social são os sexos e as
representam, no essencial, combinações diver- gerações, a forma institucional é o casamento,
sas entre os quatro conjuntos de relações so- a família e o parentesco, o mecanismo do po-
ciais paradigmáticas. Cada espaço estrutural é der é o patriarcado, a forma de juridicidade é
um fenómeno complexo constituído por qua- o direito doméstico (as normas partilhadas ou
tro componentes elementares: uma unidade de impostas que regulam as relações quotidianas
prática social, uma forma institucional privile- no seio da família) e o modo de racionalidade
396 Boaventura de Sousa Santos

é a maximização do afecto. O espaço da pro- nal são as agências, os acordos e os contratos


dução é constituído pelas relações do processo internacionais, o mecanismo de poder é a tro-
de trabalho, tanto as relações de produção ao ca desigual, a forma de juridicidade é o direito
nível da empresa (entre produtores directos sistémico (as normas muitas vezes não escritas
e os que se apropriam da mais-valia por estes e não expressas que regulam as relações desi-
produzida), como as relações na produção en- guais entre Estados e entre empresas no plano
tre trabalhadores e entre estes e todos os que internacional) e o modo de racionalidade é a
controlam o processo de trabalho. Neste con- maximização da eficácia.
texto, a unidade da prática social é a classe, Não me posso deter aqui nas virtualidades
a forma institucional é a fábrica ou empresa, analíticas e teóricas desta alternativa concep-
o mecanismo do poder é a exploração, a for- tual. Direi tão-só que: flexibiliza a rigidez es-
ma de juridicidade é o direito da produção (o trutural, pluralizando as estruturas sociais sem
código da fábrica, o regulamento da empresa, contudo cair no interaccionismo amorfo; per-
o código deontológico) e o modo de raciona- mite criar várias interfaces entre as condicio-
lidade é a maximização do lucro. O espaço da nantes estruturais e as acções sociais autóno-
cidadania é constituído pelas relações sociais mas; torna possível regressar ao indivíduo sem
da esfera pública entre cidadãos e o Estado. no entanto o fazer de uma forma individualista;
Neste contexto, a unidade da prática social é repõe o espaço doméstico que a teoria clássica
o indivíduo, a forma institucional é o Estado, tinha atirado, jacobinamente, para o lixo das
o mecanismo de poder é a dominação, a forma relações privadas; permite colocar a sociedade
de juridicidade é o direito territorial (o direi- nacional num espaço mundial, mas de tal modo
to oficial estatal, o único existente para a dog- que este é concebido como uma estrutura in-
mática jurídica) e o modo de racionalidade é a terna da própria sociedade nacional, ou seja,
maximização da lealdade. Por último, o espaço como matriz organizadora dos efeitos perti-
da mundialidade constitui as relações econó- nentes que as condições mundiais exercem
micas internacionais e as relações entre Esta- sobre cada um dos espaços estruturais. Acima
dos nacionais na medida em que eles integram de tudo, esta concepção permite mostrar que
o sistema mundial. Neste contexto, a unidade a natureza política do poder não é um atributo
da prática social é a nação, a forma institucio- exclusivo de uma determinada forma de poder.
O Estado e os modos de produção de poder social 397

É antes o efeito global da combinação entre as distinção Estado/sociedade civil foi elaborada
diferentes formas de poder. em função das condições económicas sociais e
Mas a virtualidade principal desta concep- políticas dos países centrais num período bem
ção é que ela permite responder adequada- definido da sua história. Esta distinção assen-
mente à terceira objecção contra a eliminação tava em dois pressupostos. Primeiro, era fácil
da distinção Estado/sociedade civil, ou seja, à delimitar o Estado, pois, ao contrário do que
ideia de que tal eliminação é particularmente sucedia com a sociedade civil, era uma cons-
perigosa nas sociedades periféricas e semipe- trução artificial e dispunha de uma estrutura
riféricas dotadas de sociedades civis fracas e formal. O segundo pressuposto era o de que o
pouco autónomas. Estado fora, de facto, feito pela sociedade ci-
vil segundo as necessidades e interesses des-
Hipóteses sobre o Estado ta, dela dependendo para a sua reprodução e
e as formas de poder social consolidação. As necessidades e os interesses
em Portugal eram fundamentalmente económicos e foram
Procurarei mostrar que esta proposta con- eles que deram materialidade à ideia da socie-
ceptual permite formular três questões que dade civil forte e autónoma.
considero fundamentais para compreender o Uma vez convertida em teoria política do-
Estado e a sociedade em Portugal. Em primei- minante e exportada como tal para sociedades
ro lugar, a questão de saber se a sociedade civil periféricas e semiperiféricas que entretanto se
portuguesa é de facto fraca e pouco autónoma. foram formando e transformando, a distinção
Em segundo lugar, se a centralidade do Estado liberal não podia deixar de definir estas socie-
é igual ou diferente da centralidade dos Esta- dades como sendo sociedades fracas e pouco
dos dos países centrais. Em terceiro lugar, sob autónomas. Nelas, a relação Estado/sociedade
que condições sociais a centralidade do Estado civil invertia-se por completo: nas sociedades
se combina com a ineficácia da sua actuação. coloniais o que se poderia designar por so-
Antes de mais cabe perguntar se as socie- ciedade civil era um produto total do Estado
dades civis semiperiféricas (Portugal, o caso colonial e nas demais sociedades periféricas e
que nos interessa particularmente) são de fac- semiperiféricas o “sobredesenvolvimento” do
to fracas e pouco autónomas. Como se sabe, a Estado e o seu papel decisivo na economia tes-
398 Boaventura de Sousa Santos

temunhava de igual modo a subordinação da dades civis centrais. Aliás, é essa autonomia e
sociedade civil em relação ao Estado. A hege- auto-regulação que torna possível que o espaço
monia desta concepção foi tal que passou a do- doméstico preencha algumas das lacunas da
minar todo o discurso político ainda que com providência estatal e assim se constitua em so-
alguns matizes importantes reveladores, aliás, ciedade providência, como lhe tenho chamado.
da fragilidade teórica da concepção de base. Portanto, o primeiro argumento a favor da
Por exemplo, enquanto o discurso conserva- alternativa conceptual é que, além da sua maior
dor tendeu a conceber a fraqueza da socieda- discriminação analítica, ela permite compara-
de civil como um efeito da força do Estado, o ções não sistematicamente enviesadas contra
discurso social-democrata tendeu a conceber a as sociedades semiperiféricas. O segundo ar-
fraqueza da sociedade civil como uma causa da gumento é mais complexo e com ele pretendo
força do Estado. mostrar que a centralidade do Estado nos paí-
É este também o quadro teórico e político ses centrais é diferente da centralidade do Es-
com que se tem analisado a sociedade portu- tado numa sociedade como a portuguesa e que
guesa e as conclusões não podem deixar de ser esse facto, de importância capital, não pode
as mesmas. No entanto, se atentarmos bem, ser explicado em termos da dicotomia Estado/
este quadro teórico explica muito pouco da so- sociedade civil. Como referi acima, a autono-
ciedade portuguesa e se nos libertarmos dele mia da sociedade civil nas sociedades centrais
chegaremos a conclusões significativamente significa basicamente que o espaço de produ-
diferentes. Assim, à luz da proposta conceptual ção moldou, segundo as suas necessidades e
que defini acima, a sociedade civil portuguesa os seus interesses, o espaço da cidadania e,
só é fraca e pouco autónoma se, seguindo o portanto, o Estado. Manifestação disto mesmo
modelo das sociedades centrais, a identificar- é o facto de a industrialização ter precedido o
mos com o espaço da produção ou com o espa- parlamentarismo enquanto regime político do-
ço da cidadania. Se, ao contrário, atentarmos minante e de este, tanto na sua constituição,
no espaço doméstico, verificamos que a socie- como no seu funcionamento, ter correspondi-
dade civil portuguesa é muito forte, autónoma do aos interesses gerais da expansão do capi-
e auto-regulada ou, em todo o caso, é mais talismo. Aliás, a pujança do espaço da produ-
forte, autónoma e auto-regulada que as socie- ção manifestou-se também no modo como ele
O Estado e os modos de produção de poder social 399

transformou o espaço doméstico, e, portanto, em relação a ele uma grande autonomia, um


a família, em função das exigências da repro- facto que, entre nós se tem vindo a reproduzir
dução da força de trabalho assalariada. Por sob várias formas até ao presente. Por outro
esta via, criou-se um certo isomorfismo entre lado, o espaço da produção manteve sempre
o espaço da produção, o espaço doméstico e o uma grande heterogeneidade interna bem sim-
espaço da cidadania ao mesmo tempo que para bolizada na heterogeneidade das actividades
os países que primeiro se industrializaram o produtivas, na desarticulação ou fraca com-
espaço mundial não constituiu qualquer efeito plementaridade entre sectores, nos grandes
condicionante negativo (ou seja, não havia nes- desequilíbrios de produtividade intersectorial
sa altura países desenvolvidos cuja dominância e intrasectorial e, finalmente, na coexistência
era necessário defrontar). do modo de produção capitalista como outros
Este isomorfismo foi a base social da cha- modos de produção não capitalista. A mesma
mada racionalidade formal do Estado, da sua heterogeneidade se verificou no espaço do-
capacidade para exercer eficazmente as suas méstico a qual lhe proporcionou uma lógica
funções dentro dos limites hegemonicamente de reprodução relativamente autónoma, tanto
estabelecidos. O isomorfismo significou, por em relação ao espaço de produção, como em
exemplo, que as três formas de poder, o pa- relação ao espaço da cidadania, condicionada
triarcado, a exploração e a dominação, pudes- e, de algum modo, potenciada pela posição de
sem ser funcionalmente muito diferenciadas dependência da sociedade semiperiférica no
e autónomas e, ao mesmo tempo convergir espaço mundial.
substancialmente nos efeitos do exercício des- A grande heterogeneidade interna dos vá-
sa autonomia, cada uma delas confirmando e rios espaços estruturais e a não correspon-
potenciando a eficácia das restantes. dência entre os seus diferentes requisitos de
Na semiperiferia as coisas passaram-se de reprodução produziu um défice de hegemonia
modo muito diferente. Por um lado, a moder- ou se preferirmos, um défice de objectivos na-
nização do espaço da cidadania precedeu a do cionais o qual foi coberto ou compensado pelo
espaço da produção (por exemplo, o parlamen- “excesso” de autoritarismo do Estado. Em
tarismo, mesmo restrito ou restritivo, precedeu Portugal, este “excesso” assumiu, tanto formas
o grande surto de industrialização), e manteve democráticas, como formas ditatoriais e foi (e
400 Boaventura de Sousa Santos

continua a ser) exercido, tanto directamente to que aqui apresento) está em que, na semipe-
pelo Estado, como pelas várias organizações riferia, os factores da centralidade do Estado
(meios de comunicação, partidos, empresas, são igualmente factores da ineficácia deste. A
sindicatos, famílias oligárquicas, etc.) que em heterogeneidade interna do espaço doméstico
qualquer dos espaços estruturais exercem, por e do espaço de produção e a não correspon-
delegação ou subcontratação, poderes estatais dência entre os respectivos requisitos de repro-
ou para-estatais. Daqui resultaram (e continu- dução criam autonomias relativas em cada um
am a resultar) duas consequências. Por um destes núcleos estruturais da sociedade portu-
lado, dada a sua heterogeneidade interna, cada guesa cujo efeito emergente é o de subverter,
um dos espaços estruturais e sua forma de po- transformar, apropriar, em suma, bloquear a
der é funcionalmente muito dependente dos actuação do Estado. Assim, ao contrário do
restantes para se reproduzir; por outro lado, que se passa nos países centrais, é tão impor-
a relativa autonomia entre eles e o correspon- tante determinar a autonomia relativa do es-
dente défice de isomorfismo faz com que as paço de cidadania (do Estado) em relação aos
relações entre eles sejam instáveis e, para se restantes espaços estruturais como determinar
sustentarem, necessitem da presença estrutu- a autonomia relativa destes em relação àquele.
rante de um vínculo autoritário. A primazia do político, ou melhor, do espaço
A centralidade do Estado português enquan- de cidadania sob a forma do Estado, coexiste,
to Estado semiperiférico distingue-se assim e deste modo, com a sua dependência em rela-
antes de mais da dos Estados dos países cen- ção aos outros espaços e nessa medida a forma
trais por ser mais autoritária e menos hege- do poder do Estado, a dominação, exerce-se,
mónica e por ser mais difícil determinar onde na prática, em complexas combinações com as
o Estado acaba e o não-Estado começa. Mas, formas de poder características dos outros es-
para além disto, e um tanto paradoxalmente, paços estruturais, o que confere grande parti-
este tipo de centralidade é uma centralidade cularismo à actuação do Estado (clientelismo,
que não se sabe impor eficazmente, ou seja, nepotismo, corrupção, etc.). Tal particularis-
cujos resultados de exercício ficam sempre mo pode resultar da interpenetração entre o
aquém da lógica que lhes subjaz. A decifração espaço da cidadania e o espaço doméstico e,
deste aparente paradoxo (o terceiro argumen- portanto, entre dominação e patriarcado, por
O Estado e os modos de produção de poder social 401

exemplo no caso em que a actuação do Estado é não só incompleto como contraditório, o


e o exercício da cidadania são delegados infor- que, por sua vez, contribui para a grande he-
malmente em famílias oligárquicas, ainda hoje terogeneidade e fragmentaridade da actuação
poderosas em muitas zonas ou sectores sociais do Estado. Tal heterogeneidade assume várias
do país e mesmo no interior do próprio Esta- formas, algumas das quais já analisei em traba-
do. Ou pode resultar da interpenetração entre lhos anteriores. Menciono aqui uma raramente
o espaço de cidadania e o espaço de produção referida. Reside no modo como a actuação da
e, portanto, entre dominação e exploração, por burocracia do Estado oscila entre a extrema ri-
exemplo nos casos em que empresários ou em- gidez, distância e formalismo com que obriga o
presas adquirem rendas políticas de monopólio cidadão anónimo e sem referências (a que cha-
cobradas sobre os seus trabalhadores ou sobre mo sociedade civil estranha) a cansar-se aos
própria actuação do Estado ou ainda nos casos balcões de serviços inacessíveis, a preencher
em que o Estado é, em si, um espaço de produ- formulários ininteligíveis, e a pagar impostos
ção sobredimensionado, de tal modo que uma injustos e a extrema flexibilidade, intimidade e
fracção significativa da classe média tem a sua informalidade com que trata, para os mesmos
base social no próprio Estado, isto é, no orça- efeitos, o cidadão conhecido e com boas refe-
mento do Estado. O particularismo da actua- rências (a sociedade civil íntima).
ção do Estado pode ser finalmente uma forma Trata-se de uma oscilação entre o Estado
de interpenetração entre o espaço de cidadania predador e o Estado protector segundo uma
e o espaço mundial e, portanto, entre domina- lógica de racionalidade totalmente oposta à do
ção e troca desigual nos casos em que os países espaço de cidadania (a maximização lealdade)
centrais ou as organizações internacionais que porque se trata de uma lealdade interpessoal,
eles controlam se apropriam de parte da sobe- ainda que obtida à custa da privatização de re-
rania do Estado nacional. cursos públicos, uma lógica de racionalidade
Ao contrário do que se passa nos países cen- em todo o caso mais próxima da racionalidade
trais, não se trata de influências exercidas so- do espaço doméstico (a maximização da afec-
bre o Estado e sua acção mas da configuração tividade) do que da racionalidade do espaço de
interna do próprio poder do Estado. O autori- produção (a maximização do lucro). Talvez por
tarismo estatal, por ser relativamente ineficaz, isso, estas e outras manifestações de particula-
402 Boaventura de Sousa Santos

rismo e de heterogeneidade fazem com que a Billet, L. 1975 “Political Order and Economic
actuação do Estado não mereça sequer a con- Development: Reflections on Adam Smith’s
fiança da classe dominante no espaço da pro- Wealth of Nations” in Political Studies, Nº
dução, o empresariado capitalista. Para além 23, pp. 430.
desta ser fragmentada enquanto classe, o Es- Braverman, H. 1974 Labor and Monopoly
tado só a sabe servir fragmentariamente. Este Capital (Nova Iorque: Monthly Review).
padrão de actuação do Estado é simultanea- Dicey, A. V. 1948 Law and Public Opinion in
mente causa e efeito de as práticas de classe, England (Londres: Macmillan).
ao contrário do que sucede (ou sucedeu até há Feher, F.; Heller, A. e Markus, G. 1984
pouco) nos países centrais, não se traduzirem Dictatorship over Needs (Londres:
linearmente em políticas de classe. Blackwell).
Procurei mostrar que a distinção Estado/ Foucault, M. 1975 Surveiller et Punir (Paris:
sociedade civil, para além do seu simplismo Gallimard).
e reducionismo gerais, é particularmente ina- Foucault, M. 1976 La Volonté de Savoir (Paris:
dequada para analisar uma sociedade semipe- Gallimard).
riférica como, por exemplo, a sociedade Por- Gamble, A. 1982 An Introduction to Modern
tuguesa. O descaso das condições históricas, Social and Political Thought (Londres:
sociais, políticas e económicas específicas de Macmillan).
uma sociedade deste tipo dá origem a um efei- Giner, S. 1985 “The Withering away of Civil
to de ocultação particularmente amplo. Society?” in Praxis International, Nº 5, pp.
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O Estado e os modos de produção de poder social 403

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404 Boaventura de Sousa Santos

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A refundação do Estado
e os falsos positivos*

A parentemente, o Estado passa por profun-


das transformações ocorridas a partir do
colapso financeiro de 20081. As mudanças an-
portanto os respectivos Estados foram força-
dos a insistir na ortodoxia, ou se rebelaram e
foram objeto de sanções ou, no melhor dos ca-
teriores, produzidas pelos colapsos financeiros sos, foram ignorados. O foco do debate é saber
locais ou regionais dos anos setenta, oitenta e até que ponto as mudanças em andamento há
noventa do século passado afetaram países com várias décadas afetam a estrutura institucional
pouca influência nos negócios internacionais, e organizacional do Estado moderno, o conjun-
to de instituições mais estável da modernida-
de ocidental. As mudanças na ação do Estado
1 O Estado é um dos dispositivos (conjunto institu- no subcontinente latino-americano durante os
cional, normativo e ideológico) da modernidade oci- últimos vinte anos deram força ao argumento
dental no qual melhor é possível observar que as mu-
de que “o Estado está de volta”. Mas, que tipo
danças aparentemente profundas e rápidas ocultam,
muitas vezes, permanências muito estáveis. O outro de Estado está de volta? Para responder a essa
dispositivo é, provavelmente, a propriedade privada. pergunta, faço distinção entre duas vertentes
Houve alguma mudança profunda neste domínio nos de transformação do Estado: a primeira, que
últimos trezentos anos? chamo de Estado-comunidade-ilusória, e a se-
gunda, o Estado das veias fechadas.
* Tradução portuguesa de Santos, B. de Sousa 2010
“La refundación del Estado y los falsos positivos” in
Refundación del Estado en América Latina. Perspec-
O Estado-comunidade-ilusória
tivas desde una epistemología del Sur (Lima: IIDS- O Estado-comunidade-ilusória é o conjunto
-PDTG) pp. 67-111. de reformas recentes que procuram devolver
406 Boaventura de Sousa Santos

alguma centralidade ao Estado na economia e de do Estado; promiscuidade entre os poderes


nas políticas sociais. Faze-o sem comprometer político e econômico, que pode assumir formas
a lealdade à ortodoxia neoliberal internacional, “normais” (as sociedades, grupos de pressão,
mas usando todo o campo de manobra que, no concessões e a governança) e formas “patoló-
plano interno, tal ortodoxia lhe concede con- gicas” (tráfico de influências, abuso de poder,
junturalmente. Algumas das características corrupção); mudanças da estrutura política do
principais dessa transformação são: políticas Estado com o aumento do poder do Executivo
de redistribuição de riqueza mediante transfe- (e em especial do ministro das Finanças) e com
rências diretas e concentradas aos grupos so- a autonomia do Banco Central; recuperação tí-
ciais mais vulneráveis, às vezes condicionadas mida da regulação que o capital financeiro quis
pela obrigação de exercer direitos universais, evadir no período anterior, mas, sempre que for
como a educação de seus filhos, ou destinando possível, por via de autorregulação; políticas
recursos para o sistema de saúde; investimen- de descentralização e desconcentração; despo-
to forte nas políticas de educação; o Estado litização do direito — não como instrumento
competitivo se sobrepõe ao Estado protetor, de transformação social, mas sim como instân-
já que as políticas sociais são vistas como uma cia de resolução de litígios visando que as tran-
questão técnica de redução de pobreza e não sações econômicas sejam mais previsíveis — e,
como um princípio político de coesão social ao mesmo tempo, investimento (às vezes signi-
(outro acordo social mais inclusivo); a lógica ficativo) de recursos públicos no melhoramen-
e a avaliação da ação do Estado são definidas to do sistema judicial (em termos humanos,
por critérios de eficiência derivados dos rela- técnicos e de infraestrutura), muitas vezes por
cionamentos mercantis (“gerencialismo”), e os pressão externa (como no caso paradigmático
cidadãos são convidados a comportar-se como da Colômbia)2; promoção de formas de trans-
consumidores dos serviços do Estado; enfoque parência, como os pressupostos participativos,
especial na administração pública, em seu de- os conselhos municipais de serviços, mas sem-
sempenho, em seu tamanho, na simplificação pre em escala subnacional; uma retórica nacio-
e desburocratização dos serviços; busca de
associações público-privadas na produção de
2 Ver: Santos e García-Villegas (eds.), 2001 e San-
serviços que antes estavam sob responsabilida- tos, 2009b.
A refundação do Estado e os falsos positivos 407

nalista ou inclusive anti-imperialista que, às ve- também os limites) da imaginação política do


zes, coexiste com o dócil (nos melhores casos) fim do capitalismo e do fim do colonialismo.
alinhamento com os intuitos imperiais. O Estado moderno passou por diferentes or-
O Estado-comunidade-ilusória tem uma dens constitucionais: Estado liberal, Estado
vocação política nacional-popular e transclas- social de direito, Estado colonial ou de ocupa-
sista. A “comunidade” reside na capacidade ção, Estado soviético, Estado nazista-fascista,
do Estado de incorporar algumas demandas Estado burocrático-autoritário, Estado desen-
populares por via de investimentos financei- volvimentista, Estado de apartheid, Estado
ros e simbólico-ideológicos. A ação repressiva secular, Estado religioso e, o mais recente
do Estado assume, ela mesma, uma fachada (possivelmente também o mais antigo), Esta-
simbólico-ideológica (a “segurança cidadã”). do de mercado. É comum a todos uma con-
O caráter “ilusório” habita no sentido classis- cepção monolítica e centralizadora do poder
ta do transclassismo. As tarefas de acumula- do Estado; a criação e o controle de frontei-
ção deixam de se contrapor às de legitimação, ras; a diferenciação entre nacionais e estran-
para se transformar em seu espelho: o Estado geiros e, às vezes, entre diferentes categorias
transforma interesses privados em políticas de nacionais; a universalidade das leis, apesar
públicas, não porque ele é “o comitê da burgue- das exclusões, discriminações e exceções que
sia”, mas sim porque é autônomo na defesa do elas mesmas sancionam; uma cultura, uma et-
bem comum. Por outro lado, ao denunciar as nia, uma religião ou uma região privilegiadas;
mais arrogantes manifestações do poder clas- organização burocrática do Estado e de suas
sista (demonizando a ostentação, os bônus e as relações com as massas de cidadãos; divisão
gratificações), o Estado torna os fundamentos entre os três poderes de soberania com assi-
desse poder ainda mais invisíveis e intocados. metrias entre eles, tão originárias (os tribu-
nais não têm meios para fazer executar suas
A refundação do Estado: próprias decisões) como contingentes (a su-
as veias fechadas premacia do Executivo em tempos recentes);
A refundação do Estado moderno capita- mesmo quando o Estado não tem o monopólio
lista colonial é um desafio muito mais amplo. da violência, sua violência é de uma categoria
Atualmente ele sintetiza as possibilidades (e superior, já que pode usar contra “inimigos
408 Boaventura de Sousa Santos

internos” as mesmas armas projetadas para é também uma luta social, cultural, por sím-
combater aos “inimigos externos”. bolos, mentalidades, habitus e subjetivida-
Quando os movimentos indígenas, na Amé- des. É a luta por uma nova hegemonia.
rica Latina e no mundo, levantam a bandeira –– Terceira: esta luta não pode ser exercida ex-
da refundação do Estado, fazem-no por terem clusivamente pelos grupos historicamente
sofrido historicamente e por seguirem sofren- mais oprimidos (no subcontinente, os povos
do hoje em dia as consequências de todas as indígenas originários, os afrodescendentes,
características acima mencionadas do Estado os trabalhadores rurais e as mulheres); é
moderno em muitas de suas metamorfoses (no preciso criar alianças com grupos e classes
subcontinente latino-americano, especialmen- sociais mais amplos.
te, o Estado colonial, o Estado liberal, o Estado
–– Quarta: a refundação do Estado é acima de
desenvolvimentista, o Estado burocrático au-
tudo uma demanda civilizatória e, como tal,
toritário e o Estado de mercado). Nesse con-
exige um diálogo intercultural que mobilize
texto, a refundação do Estado tem sete dificul-
diferentes universos culturais e diferentes
dades principais:
conceitos de tempo e de espaço. A fim de que
–– Primeira: não é fácil transformar radicalmen-
esse diálogo intercultural tenha espaço é ne-
te uma instituição que, em sua forma moder-
cessária a convergência mínima de vontades
na, tem mais de trezentos anos. Além disso,
políticas muito diferentes e historicamente
como se pode transformar radicalmente uma
formadas mais pelo choque cultural que pelo
entidade quando o objetivo final é de fato
diálogo cultural, mais pelo desconhecimen-
mantê-la? Refundar o Estado não significa
to do outro que por seu reconhecimento.
eliminá-lo; ao contrário, pressupõe reconhe-
cer nele capacidades de engenharia social –– Quinta: por seu âmbito, a refundação do Esta-
que justificam a tarefa política de refundação. do não implica trocar somente sua estrutura
política, institucional e organizacional; requer
–– Segunda: a longa duração histórica do Esta-
muito mais trocar as relações sociais, a cultu-
do moderno o faz estar presente na socieda-
ra e, em especial, a economia (ou pelo menos
de muito além de sua institucionalidade e,
as articulações e relações entre os diferentes
por isso, a luta pela refundação do Estado,
sistemas econômicos em vigor na sociedade).
além de uma luta política em sentido estrito,
A refundação do Estado e os falsos positivos 409

–– Sexta: enquanto para os aliados do movi- ção: o capitalismo e o colonialismo. A distân-


mento indígena a refundação do Estado cia que assumem em relação à tradição crítica
significa criar algo novo, para o movimento eurocêntrica está justamente no fato de não se
indígena (ou para uma parte significativa do poder imaginar o fim de um sem o fim do outro.
movimento) o Estado que se quer refundar A magnitude da tarefa mostra que a refundação
tem suas raízes em formas que precedem a do Estado é um processo histórico de longo
Conquista e que, apesar da repressão, con- prazo, uma parte da transição de longo prazo
seguiram sobreviver de modo fragmentário analisada anteriormente. Durante a transição,
e diluído nas regiões mais pobres e mais re- emergirão instituições e mentalidades transi-
motas. Além disso, quando existem, são so- cionais ou híbridas que anunciarão o novo e ao
mente em escala local. mesmo tempo parecerão confirmar o velho. As
–– Sétima: o fracasso da refundação mais am- alianças irão mudar, assim como os instrumen-
biciosa do século passado, o Estado dos tos de luta. Haverá muitos passos para trás,
sovietes, pesa fortemente na imaginação mas o importante é que estes sejam menos que
política emancipadora. Por outro lado, a os passos dados para a frente.
transformação progressista menos radical No contexto atual do subcontinente, a re-
(porque é reformista) do Estado moderno, fundação do Estado está mais avançada na
a socialdemocracia europeia, segue atraindo Bolívia e no Equador, mas os temas e proble-
os líderes populistas do subcontinente, por mas que suscita são importantes para toda a
mais que as agências do capitalismo global região e também para o mundo. Nesse senti-
(BM, IMF e OMC) insistam em declará-la his- do, podemos falar do subcontinente latino-
toricamente superada. -americano como um campo avançado de
lutas anticapitalistas e anticolonialistas. Com
esse horizonte em mente, seleciono a seguir
Os movimentos indígenas da América Latina
alguns temas que analiso em poucos detalhes,
estão conscientes das dificuldades, pois sabem
destacando somente em que medida cada um
que a refundação do Estado não acontecerá
deles nos obriga a tomar distância da tradição
enquanto permanecerem em vigor na região os
crítica eurocêntrica.
dois grandes sistemas de dominação e explora-
410 Boaventura de Sousa Santos

O constitucionalismo tricas), uma legalidade nova (pluralismo jurídi-


transformador co), um regime político novo (democracia in-
A refundação do Estado pressupõe um cons- tercultural) e novas subjetividades individuais
titucionalismo de um novo tipo. É uma moda- e coletivas (indivíduos, comunidades, nações,
lidade muito diferente do constitucionalismo povos, nacionalidades). Essas mudanças, em
moderno, que foi concebido pelas elites polí- conjunto, poderão garantir a realização de po-
ticas com o objetivo de constituir um Estado líticas anticapitalistas e anticoloniais.
e uma nação com as seguintes características: Os casos da Bolívia e do Equador ilustram,
espaço geopolítico homogêneo no qual as dife- de diferentes formas, as imensas dificuldades
renças étnicas, culturais, religiosas ou regionais de construir um constitucionalismo transfor-
não contam ou são suprimidas; bem delimitado mador. Vejamos primeiro o caso da Bolívia3.
por fronteiras que o diferenciam do exterior e Entre 2000 e 2006, o movimento social foi o
o homogeneízam internamente; organizado por verdadeiro condutor do processo político e de-
um conjunto integrado de instituições centrais monstrou uma enorme capacidade de articula-
que cobrem todo o território; com capacidade ção e proposta. A mais contundente foi o Pacto
para contar e identificar a todos os habitantes; de Unidade, que apresentou um documento
regulado por um sistema de leis único e possui- coerente e um mandato das organizações so-
dor de uma força coercitiva sem igual, que lhe ciais, especialmente as indígenas originárias
garante a soberania interna e externa. camponesas (Conamaq, CIDOB, CSUCTB, bar-
No lado oposto, a vontade constituinte das tolinas, colonizadores), dirigido aos constituin-
classes populares no subcontinente durante tes sobre o conteúdo e a orientação política do
as últimas décadas se manifesta em uma vas- Estado plurinacional4.
ta mobilização social e política que configura
um constitucionalismo vindo de baixo, prota- 3 Nos próximos parágrafos, seguirei de perto a bri-
gonizado pelos excluídos e seus aliados, com lhante análise da próxima publicação do processo
o objetivo de expandir o campo político mais constituinte boliviano realizado pelo grande intelectual
à frente do horizonte liberal, mediante uma e constituinte Raúl Prada.
institucionalidade nova (plurinacionalidade), 4 A experiência do Pacto de Unidade foi sistematiza-
uma territorialidade nova (autonomias assimé- da por Garcés, 2009.
A refundação do Estado e os falsos positivos 411

A partir da eleição de Evo Morales e sua con- Vejamos algumas das dificuldades e aciden-
sagração como presidente e como inka (com a tes: a Lei de Convocatória para a Assembleia
cerimônia do Tiahuanaco)5, o protagonismo do Constituinte não respeitou a demanda de que
processo passou gradualmente do movimento a representação política devia expressar a plu-
popular para o Executivo. O movimento seguiu rinacionalidade, o que implicava que parte dos
apoiando o processo, o que foi crucial em cer- constituintes deveria ser escolhida diretamen-
tos momentos em que quase paralisou. Mas al- te por suas organizações (contrariamente a
gumas vezes esse apoio foi instrumental e nem isso, o mecanismo de seleção foi eleitoral); a
sempre se traduziu na preservação das deman- Assembleia foi declarada originária, mas rara-
das do movimento social popular. Podemos di- mente teve autonomia; foi certamente bloquea-
zer que o processo constituinte, à medida que da, durante sete meses, por causa da polêmica
avançava, ia mudando as relações de força a sobre se os votos necessários para as decisões
favor da oposição conservadora, que somen- deviam ser maioria absoluta ou dois terços;
te por miopia política não pôde reivindicar a a ausência de deliberações foi debilitando a
aprovação do texto final como uma vitória. As Constituinte, e os encontros territoriais, embo-
dificuldades do processo constituinte foram ra por um lado tenham ajudado a relegitimar
múltiplas, e algumas se manifestaram desde o a Assembleia, ao mesmo tempo aprofundaram
início. Além disso, as mudanças e percalços en- as divisões, especialmente regionais6; inicia-
frentados pela Assembleia Constituinte signifi- dos os trabalhos das comissões e a redação de
caram quase sempre retrocessos com relação artigos, surgiu um tema de ruptura, aparente-
ao Pacto de Unidade — um modelo de acordo mente lateral, mas que se revelou decisivo para
entre organizações importantes —, conside- descarrilar o processo constituinte: a questão
rado como um mandato para os constituintes da capitalidade (qual seria a “capital plena” do
que estavam a favor do processo, muitos deles país: La Paz ou Sucre?). Com isso, um tema de
membros ou dirigentes dessas organizações. forte carga histórica, mas hoje em dia pouco
mais que uma rivalidade, adquiriu relevância
5 Esta cerimônia indígena-originária foi realizada em
janeiro de 2005 e foi replicada em janeiro de 2010 para 6 Como eu mesmo observei no encontro territorial
o segundo mandato do presidente reeleito Morales. realizado na Santa Cruz, que causou turbulência.
412 Boaventura de Sousa Santos

inusitada. Assim, a decisão do MAS — de que titui uma prova da grande dificuldade de passar
não se discutisse a questão da capitalidade na da velha à nova ordem constitucional. Segundo
Constituinte7 — provocou violência em Sucre Garcés (2010),
contra os constituintes, a tal ponto de que sua
vida chegou a correr perigo e, por isso, tiveram (…) a presença de camponeses e indígenas na
que ser evacuados e refugiar-se no Liceu Mili- Assembleia Constituinte não só se deu como evi-
tar, a fim de que a sessão pudesse continuar. dência da diversidade cultural do país, mas sim
Cercados por populares enfurecidos, de novo em qualidade de atores políticos. Isso contribuiu
para a ativação de dispositivos de discriminação
sua vida esteve em perigo, e em uma ação tão
racista historicamente ocultos.
vivaz como desesperante, decidiram aprovar o
texto constitucional. Como não havia tempo
Os testemunhos dos congressistas originá-
para ler todo o texto, leram apenas o índice
rios e indígenas sobre a violência racista so-
e deram o documento como aprovado. Nesse
frida na carne e no sangue são dilaceradores.
momento, já não se encontravam os constituin-
Em primeiro lugar, fica claro o indicador que
tes de alguns grupos da oposição, que tinham
permite fazer evidente o “objeto” do ataque: a
abandonado a Assembleia. O texto seria lido e
vestimenta. A saia, o poncho, as sandálias e o
aprovado mais tarde na cidade de Oruro.
chapéu são os marcadores de etnicidade que
Há outro aspecto do processo constituinte
tornam visível e representam o que deve ser
boliviano que ajuda a explicar muito do que
anulado ou segregado. Uma vez identificado
aconteceu, mas que raramente é mencionado
o objeto de desprezo, este se concretiza em
como um “acidente” do processo: o constante
ações: coisas que se dizem e que se fazem.
racismo contra os constituintes indígenas. Ou
seja, um processo orientado à plurinacionali-
Os congressistas e as congressistas identificados
dade e à interculturalidade provocou as mais e identificadas como “índios/índias” em deter-
frias manifestações de racismo, o que se cons- minado momento da violência manifestada em
Sucre são chamados(as) analfabetos(as), mama-
cas, porcos(as), sujos(as), índios(as), cholos(as),
7 Mais um caso de interferência nos trabalhos da
camponeses(as), collas, índios(as) de merda,
Constituinte, atitude de entorpecimento que foi recor-
rente durante todo o processo. ovelhas, animais, cachorra maldita, indígenas,
A refundação do Estado e os falsos positivos 413

incapazes. São ameaçados de terem que deixar Assembleia Constituinte, o Congresso se trans-
suas casas e advertidos de que serão esquarteja- forma em Congresso Constituinte, e prepara a
dos como Túpac Katari. São negados a eles o alu- versão definitiva da Constituição que será refe-
guel de quartos, o atendimento em restaurantes rendada em um Referendo Nacional, realizado
e hospitais, a venda de comida no mercado; são
em janeiro de 2009.
insultados, golpeados, cuspidos, vaiados, perse-
O Congresso mudou 144 artigos e, segundo
guidos; são jogados fora junto com bananas e to-
mates. (Garcés, 2010) Raúl Prada, todas as modificações foram de
caráter conservador. Foram produzidas perdas
Esses incidentes e contratempos, o abando- principalmente para o movimento popular, in-
no de uma parte da oposição, que basicamen- dígena originário camponês. Entre as mudan-
te não queria nenhuma Constituição, mesmo ças, podemos destacar as seguintes: não foi
que fosse a mais favorável, e a preocupação definido o número de inscrições especiais indí-
do Executivo por chegar a um acordo com a genas na Assembleia Legislativa Plurinacional,
oposição, tudo isso fez com que nem sequer a reduzindo-se, logo, a somente sete na Lei Elei-
Constituição aprovada em Oruro tivesse força toral Transitiva; a reforma agrária foi impedida
para se impor como a nova Carta Magna. Entra- ao determinar a não retroatividade da lei sobre
mos, então, em um grave processo de perda de o tamanho máximo da propriedade da terra;
autonomia e da exclusividade da Assembleia foi restringida a justiça comunitária indígena
cada vez que se organizam, a partir do Exe- ao confinar sua aplicação a indígenas em seus
cutivo e do Congresso, comissões que de fato territórios e entre si; foi alterada a composição
revisam o texto sem sequer ter poder constitu- do Tribunal Constitucional Plurinacional, que
cional para fazê-lo. São vários os momentos de passou a exigir como requisito para todos os
“interferência”, da Comissão Multipartidária à membros a formação jurídica acadêmica eu-
Comissão de Redação (que ao mesmo tempo rocêntrica, e apenas alguns deles que tivessem
em que corrige erros gramaticais e inconsis- conhecimento dos direitos indígenas.
tências, muda o conteúdo de vários artigos), Apesar de todas essas concessões, a direita
passando pelo Diálogo de Cochabamba com míope e desmoralizada, com seu maximalis-
os prefeitos. Finalmente, sobre as ruínas da mo e golpismo fracassados, não reivindicou
uma vitória pela aprovação da Constituição.
414 Boaventura de Sousa Santos

Ao contrário, foram as forças progressistas plurinacional, apesar dos cortes feitos, reaparece
as que celebraram, e também as organizações em distintos lugares da Constituição: o plurina-
populares, não sempre conscientes das mu- cional é uma transversal na composição da Cons-
danças conservadoras introduzidas na última tituição e no novo “modelo de Estado”.
Em todo caso, a Constituição adotada na Bolívia
versão passada.
não é um texto que tenha terminado de resolver
Considerando todos esses aspectos, Raúl
o grande problema da colonização nem os gran-
Prada, um dos constituintes mais lúcidos e ati- des problemas com respeito às colocações popu-
vos, fez este balanço do processo constituinte: lares, com relação a alternativas ao capitalismo.
Mas embora não se tenha terminado de resolver
Acredito que se trata de um texto de transição, os problemas, foram sim criados mecanismos
porque em realidade a Constituição cria meca- para uma transição a outras condições políticas,
nismos de transição para um Estado plurina- econômicas, sociais, morais, éticas e jurídicas,
cional e comunitário; isto é, um trânsito des- particularmente no que diz respeito aos direi-
colonizador, um trânsito para um novo mapa tos, estabelecendo enunciações constitucionais
institucional, um trânsito para um Estado des- como base para depois construir instrumentos
centralizado administrativa e politicamente; legais e institucionais encaminhados a orientar
para as autonomias indígenas, que é o lugar no e interpretar os novos relacionamentos entre os
qual se cria o Estado plurinacional. Onde está cidadãos e entre o Estado e a sociedade. Fazen-
o Estado plurinacional? Realmente está nas au- do um balanço geral, pode-se dizer que a força do
tonomias indígenas, esse é o espaço no qual a processo constituinte de 2000 a 2006 foi criada
transformação do Estado se produz, no qual ou- nas condições da correlação de forças expressas
tra institucionalidade é reconhecida. no texto constitucional. Acredito que a aprova-
O que não está claro é como a institucionalidade ção da Constituição Política do Estado é uma
indígena e comunitária fará parte da organização vitória do movimento social, do movimento in-
do Estado, de um nível central, de um Estado dígena e do movimento popular. Esse processo
transversal. Estamos diante de um texto consti- constituinte não terminou: continua; a grande
tucional avançado porque, comparando-o com briga daqui para a frente será a aplicação práti-
o do Equador, nele se faz um enunciado sobre o ca do texto constitucional, a grande disputa será
Estado plurinacional, mas o plurinacional não se a interpretação e aplicação da Constituição na
repete nas outras partes da Constituição; é só um materialidade jurídica das leis e na materialidade
enunciado. Por outro lado, no caso boliviano, o
A refundação do Estado e os falsos positivos 415

política das instituições. Nos prováveis cenários Assembleia Constituinte se afirmou como rup-
desse futuro imediato, o grande perigo é também tura com respeito ao passado, como estratégia
a desconstitucionalização do texto constitucio- antissistêmica — provavelmente mais antissis-
nal. O heroico foi que, apesar de sua dissemina- têmica que a da Bolívia pelo aniquilamento da
ção e fragmentação das comissões, das crises
imagem da classe política “tradicional” produ-
permanentes e das dificuldades crescentes, a
zido por Correa — e como constitucionalismo
Assembleia Constituinte conseguiu manter um
fio condutor, pôde alinhavar a trama dos movi- vindo de baixo, com uma ampla participação
mentos sociais no desenvolvimento dramático popular na apresentação e a discussão de pro-
da própria Assembleia Constituinte; conseguiu postas9. As tensões mais fortes no processo
passar em seu texto constitucional e sobreviveu constituinte foram de dois tipos e, apesar de
aos embates e conspirações das oligarquias re- sua intensidade, foi possível administrá-las
gionais; enfim, conseguiu impor seu espírito im- dentro da “normalidade democrática”. A pri-
petuoso apesar das 144 modificações feitas pelo meira grande tensão surgiu com a intervenção
Congresso. (Prada, 2010) do presidente Correa nos trabalhos da Assem-
bleia Constituinte, o que contrariava o caráter
No Equador, o processo constituinte foi originário da mesma. De algum modo, Correa
bem mais tranquilo. No referendo de 15 de procurava manter certo controle político so-
abril de 2007, uma entristecedora maioria se bre normas constitucionais em discussão a
pronunciou a favor da convocatória de uma respeito de temas tão diversos como a relação
Assembleia Constituinte8. O partido do presi- entre extrativismo e ambientalismo (limites
dente Correa (Alianza País) conquistou 80 dos
130 lugares em jogo. Assim como na Bolívia, a
9 “Os níveis de discussão coletiva do projeto cons-
titucional não têm antecedentes no país. Mais de dois
milhões de exemplares circulam em diversos pontos
8 Uma excelente análise do processo constituinte da sociedade, o que tem aberto a ocasião para que os
pode ler-se no Franklin Ramírez, 2008; veja-se também cidadãos comuns se informem e debatam sobre os de-
Birk, 2009; sobre as questões mais controvertidas leia-a talhes da nova Carta Magna. A Constituição vigente —
reflexão muito comprometida e muito lúcida do Alber- aprovada em 1998 em um quartel militar e sem contar
to Acosta, que foi presidente da Assembleia quase até o com o pronunciamento popular — pode ser adquirida
final (Acosta, 2008). em livrarias especializadas” (Ramírez, 2008: 8).
416 Boaventura de Sousa Santos

ambientais da exploração mineira), mode- A outra grande tensão, que cresceu à me-
lo econômico, autonomia indígena (consulta dida que o processo constituinte avançava,
prévia ou consentimento prévio para projetos ocorreu com os setores conservadores — com
extrativistas em territórios indígenas), pluri- forte presença da alta hierarquia da igreja
nacionalidade, direitos sexuais, aborto, etc. católica, ligada ao opus Dei, e a perseguição
As posições mais conservadoras do presidente midiática — à medida que se percebia o rumo
(mais flexíveis do que relutantes com relação tomado pela orientação normativa da Consti-
à proteção da natureza, à autonomia indígena tuição e de quanto contrariava suas ideologias
e aos direitos sexuais) geraram um conflito e interesses. A batalha eleitoral pelo referen-
com os congressistas mais progressistas, que do sobre a nova Constituição foi considerada,
acabou polarizando-se em torno das duas mais tanto pelo presidente Correa — que liderou
importantes personalidades do novo processo a campanha pela Constituição — como pela
político: Rafael Correa e Alberto Acosta, pre- oposição conservadora, como “a mãe de todas
sidente da Assembleia, fundador do Alianza as batalhas”. Em 28 de setembro de 2008, essa
País e membro de seu gabinete político10. Esse batalha terminou com uma incontestável vitó-
conflito se agravou com a renúncia de Acosta à ria do presidente e dos partidos e movimentos
presidência da Assembleia pouco tempo antes sociais que o apoiaram.
que o processo constituinte fosse concluído11. Entre as razões que explicam as diferenças
entre esses dois processos constituintes, po-
demos destacar as seguintes: primeiro, na Bo-
10 Este conflito ajuda a explicar o que aconteceria o
lívia, o nível de conflitividade social no período
projeto Yasuni ITT, mencionado mais adiante.
imediatamente anterior ao processo consti-
11 O referendo sobre a convocatória determinava que
tuinte foi muito superior ao do Equador. Prin-
a nova Constituição estaria redigida em oito meses. Aos
sete meses somente 57 artigos estavam definitivamente
passados. Acosta solicitou ao presidente da República
dois meses mais para terminar a redação. O presiden- anterior, a Assembleia aprovou 387 artigos em três se-
te, invocando a deterioração da imagem da Assembleia manas. O discurso de renúncia do Alberto Acosta é um
na opinião pública, forçou a renúncia de Acosta. Com documento impressionante pela maneira como sinteti-
o novo presidente da Assembleia, e certamente sem za as novidades ou rupturas históricas da nova Consti-
a qualidade do debate que tinha tido lugar no período tuição (Acosta, 2008: 43-59).
A refundação do Estado e os falsos positivos 417

cipalmente depois da “guerra do gás” (outubro funcionamento da Assembleia, principalmen-


de 2003), a direita começou a organizar-se e en- te sobre o modo de votação e aprovação. O
controu na autonomia regional o eixo central MAS, que pretendia a votação por maioria
de sua oposição. Era uma agenda muito forte simples, teve de ceder e aceitar a maioria qua-
porque a força política dos estados da “Media lificada. Por outro lado, a Lei de Convocatória
Luna” (Santa Cruz, Pando, Beni e Tarija) era à Assembleia Constituinte de março de 2006
muito grande e muito superior à de Guayaquil, foi resultado de concessões importantes do
no Equador, onde o Alianza País (AP), uma for- MAS à oposição. Por exemplo, ele teve de re-
ça de esquerda, ganhou as eleições (mais de nunciar à proposta inicial de admitir a repre-
60% dos votos) pela primeira vez na história do sentação indígena nomeada pelas autoridades
país. Além disso, a reivindicação autonômica indígenas (e não por via partidária).
na Bolívia representava um dilema para o MAS, Terceiro, a heterogeneidade social, política
já que a autonomia e o autogoverno eram, e cultural da Assembleia Constituinte foi muito
igualmente, importantes bandeiras indígenas, maior na Bolívia do que no Equador, um fator
apesar de sua orientação política ser contrária ainda mais importante pelo tamanho desigual
à orientação da “Media Luna”. das duas assembleias (255 congressistas na
Segundo, no Equador o controle político da Bolívia e 130 no Equador). No caso boliviano,
Assembleia pelo Alianza País era muito supe- a presença indígena — junto com o grupo de
rior ao controle político exercido pelo MAS, trabalhadores rurais e setores populares —
na Bolívia, sobre a Assembleia. No Equador, teve o papel principal, e já no caso equatoriano
a AP tinha a grande maioria dos congressis- foi reduzida (em grande medida, as demandas
tas e precisava apenas da maioria simples indígenas foram impulsionadas por congressis-
(metade mais um) para aprovar os artigos e tas não indígenas, em especial pelo primeiro
o texto final. Por outro lado, na Bolívia o MAS presidente da Assembleia, Alberto Acosta).
tinha uma maioria menos significativa (51%) Apesar de suas diferenças, os dois pro-
e precisava de uma maioria qualificada (dois cessos constituintes revelam com a mesma
terços dos votos) para aprovar o texto consti- nitidez as dificuldades de realizar, dentro do
tucional. De fato, um dos primeiros conflitos contexto democrático, transformações po-
ocorreu em torno do regulamento geral de líticas profundas e inovações institucionais
418 Boaventura de Sousa Santos

que rompam com o horizonte capitalista, mesma forma, houve um debate intenso sobre
colonialista, liberal e patriarcal da moderni- a descentralização, a regionalização e as auto-
dade ocidental. Se olharmos para além do la- nomias não apenas no interior da Assembleia,
birinto dos incidentes, dos contratempos, da mas também entre o governo e os municípios,
desinformação hostil difundida pelos meios as prefeituras, as juntas paroquiais e as organi-
de comunicação, dos personalismos dramati- zações indígenas. No Equador, a especificidade
zados, poderemos ver que alguns dos temas maior foram as polêmicas sobre temas que não
mais controversos nos dois processos cons- eram constitucionais, mas relacionados à nova
tituintes tiveram algo em comum. Por exem- legislação (expedida pela Assembleia median-
plo, o caráter plurinacional ou simplesmente te mandatos constituintes), tais como a nova
intercultural do Estado, o manejo dos recur- legislação tributária, trabalhista e mineira, par-
sos naturais e o âmbito do direito dos povos ticularmente a última. Também foi polêmico o
indígenas (consulta prévia ou consentimento tópico sobre o direito humano à água e à ges-
prévio), a questão da autonomia, os limites tão da água (se cabe ao Estado central definir
da jurisdição indígena. ou dirimir esses assuntos com base no interes-
Mas até mesmo em temas comuns houve di- se público, ou se corresponde às comunidades
ferenças de ênfase. No caso da Bolívia, a ques- de usuários)13.
tão autonômica foi particularmente polêmica, O constitucionalismo transformador é uma
porque através dela eram discutidos o contro- das instâncias (possivelmente a mais decisi-
le político e o controle dos recursos naturais. va) do uso contra-hegemônico de instrumen-
No Equador, a vitória de Correa em Guayaquil tos hegemônicos que mencionei anteriormen-
desarmou a oposição regional à nova Consti- te. As Constituições modernas são chamadas
tuição12. Por outro lado, a questão da autono-
mia tinha sido forte no início da década. Da
13 Para a análise das diferenças entre os dois proces-
sos constituintes muito contribuíram as comunicações
12 No Equador, o conflito regional não está tão for- pessoais com o Agustín Grijalva (26 de fevereiro de
temente cruzado pelo fator étnico como na Bolívia. É 2010), Fernando Garcés e Franklin Ramírez (ambas de
acima de tudo um conflito político e econômico. 27 de fevereiro de 2010).
A refundação do Estado e os falsos positivos 419

frequentemente de folhas de papel, simboli- pressupõe a existência de um espaço-tempo


zando a fragilidade prática das garantias que externo, “fora” das instituições, no qual seja
consagram e, em realidade, o subcontinente possível alimentar a pressão contra a hegemo-
latino-americano viveu dramaticamente a nia. Assim, qualquer fratura na mobilização
distância que separa o que os anglo-saxões pode reverter o conteúdo oposicional das nor-
chamam de law-in-books e law-in-action14. mas constitucionais ou esvaziar sua eficácia
Isso pode acontecer também com o consti- prática. Chamamos isso de desconstitucio-
tucionalismo transformador e seu caráter nalização da Constituição, da qual há muitos
contra-hegemônico, pois o fato de assentar-se exemplos na região e no mundo.
na força das mobilizações sociais que com-
batem as visões hegemônicas e conseguem O Estado plurinacional
impor democraticamente visões contra-he- No contexto latino-americano, a refundação
gemônicas não necessariamente o resguarda do Estado passa em alguns casos pelo reconhe-
dessa possibilidade. As instituições hegemô- cimento da plurinacionalidade16. Implica um
nicas são a expressão da inércia das classes desafio radical ao conceito de Estado moderno
e ideias hegemônicas. São relações sociais e, que se assenta na ideia de nação cívica — con-
por isso, também campos de disputa, mas são cebida como o conjunto dos habitantes (não
assimétricas e desiguais nas possibilidades de necessariamente residentes) de certo espaço
luta que oferecem aos diferentes grupos ou geopolítico, a quem o Estado reconhece o esta-
classes em disputa15. Por isso, a mobilização tuto de cidadãos — e, portanto, na ideia de que
contra-hegemônica das instituições estatais em cada Estado só há uma nação: o Estado-na-
ção. A plurinacionalidade é uma demanda pelo
reconhecimento de outro conceito de nação, a
14 Isto não significa que as Constituições sejam pura-
mente nominais. Expressaram exclusões e lutas sociais
e tiveram graus variáveis de força normativa. 16 O mesmo acontece hoje em alguns países da Áfri-
15 Esta realidade está implícita nessa formulação um ca, nos quais a plurinacionalidade costuma ser designa-
tanto enigmática de Zavaleta: “todas as instituições são da como federalismo étnico. Ver Akiba, 2004: 121-155;
formas organizadas dos fracassos humanos” (1983: 11). Keller, 2002: 33-34; Berman, Eyoh e Kymlicka, 2004.
420 Boaventura de Sousa Santos

nação concebida como pertencimento comum nova organização territorial, a democracia


a uma etnia, cultura ou religião. Na linguagem intercultural, o pluralismo jurídico, a inter-
dos direitos humanos, a plurinacionalidade im- culturalidade, políticas públicas de novo tipo
plica o reconhecimento de direitos coletivos (saúde, educação, segurança social), novos
dos povos ou grupos sociais em situações nas critérios de gestão pública, de participação
quais os direitos individuais das pessoas que cidadã, de serviço e de servidores públicos.
os integram são ineficazes para garantir o reco- Cada uma delas constitui um desafio às pre-
nhecimento e a persistência de sua identidade missas sobre quais o Estado moderno se as-
cultural ou o fim da discriminação social de que senta. Antes de ver brevemente cada uma des-
são vítimas. Como demonstrado pela existên- sas implicações, é necessário ter em mente
cia de vários Estados plurinacionais (Canadá, que o reconhecimento da plurinacionalidade
Bélgica, Suíça, Nigéria, Nova Zelândia, etc.), a significa outro projeto de país, outros fins da
nação cívica pode coexistir com várias nações ação estatal e outros tipos de relação entre o
culturais dentro do mesmo espaço geopolítico, Estado e a sociedade. O reconhecimento das
do mesmo Estado. O reconhecimento da plu- diferenças nacionais ou culturais não impli-
rinacionalidade tem aparelhadas as noções de ca uma sobreposição de cosmovisões sem
autogoverno e autodeterminação, mas não ne- regras ou um hibridismo ou ecletismo sem
cessariamente a ideia de independência. Assim princípios. Ao contrário, inclui hierarquias,
o entenderam os povos indígenas do subconti- entre elas: dentro da mesma cultura ou nação
nente e os instrumentos/tratados internacionais podem-se preferir algumas versões em detri-
sobre os povos indígenas, como por exemplo, mento de outras, já que as diferentes nações
o Convênio 169 da OIT, e mais recentemente ou identidades culturais presentes estão longe
a Declaração das Nações Unidas Sobre os Di- de ser homogêneas.
reitos dos Povos indígenas, aprovada em 7 de
setembro de 2007. Projeto de país
A ideia de autogoverno subjacente à plu- O sentido político da refundação do Esta-
rinacionalidade tem muitas implicações: um do deriva do projeto de país consagrado na
novo tipo de institucionalidade estatal, uma
A refundação do Estado e os falsos positivos 421

Constituição17. Quando, por exemplo, as Cons- o princípio do bom viver (sumak kawsay ou
tituições do Equador e da Bolívia18 consagram soma qamaña) como paradigma normativo da
ordenação social e econômica, ou quando a
Constituição do Equador consagra os direitos
17 No caso do Equador, três livros importantes fo- da natureza entendida segundo a cosmovisão
ram organizados por Alberto Acosta e Esperanza Mar- andina da Pachamama19, definem que o proje-
tínez, todos publicados em Quito pela Abya Yala, em
2009: Plurinacionalidad: democracia na diversidad;
El buen vivir: una vía para el desarrollo; e Derechos
de la naturaleza: el futuro es ahora. São três livros estatal, privada e social cooperativa. III. A economia
de intervenção política nos que com diversas contri- plural articula as diferentes formas de organização eco-
buições se busca traçar as características mais impor- nômica sobre os princípios de complementariedade,
tantes do projeto de país. Ver também Walsh, 2009. reciprocidade, solidariedade, redistribuição, igualdade,
18 Constituição do Equador de 2008, Artigo 275: “O segurança jurídica, sustentabilidade, equilíbrio, justiça e
regime de desenvolvimento é o conjunto organizado, transparência. A economia social e comunitária comple-
sustentável e dinâmico dos sistemas econômicos, po- mentará o interesse individual com o viver bem coletivo.
líticos, socioculturais e ambientais, que garantem a IV. As formas de organização econômica reconhecidas
realização do bom viver, do Sumak kawsay. O Estado nesta Constituição poderão constituir empresas mistas.
planejará o desenvolvimento do país para garantir o V. O Estado tem como máximo valor o ser humano e
exercício dos direitos, a consecução dos objetivos do garantirá o desenvolvimento mediante a redistribuição
regime de desenvolvimento e os princípios consagra- equitativa dos excedentes econômicos em políticas so-
dos na Constituição. O planejamento propiciará a equi- ciais, de saúde, educação, cultura, e no reinvestimento
dade social e territorial, promoverá o acordo, e será em desenvolvimento econômico produtivo. / Artigo 307.
participativa, descentralizada, desconcentrada e trans- O Estado reconhecerá, respeitará, protegerá e promo-
parente. O bom viver exigirá que as pessoas, comuni- verá a organização econômica comunitária. Esta forma
dades, povos e nacionalidades gozem efetivamente de de organização econômica comunitária compreende
seus direitos, e exerçam responsabilidades no marco os sistemas de produção e reprodução da vida social,
da interculturalidade, do respeito a suas diversidades, fundados nos princípios e visão próprios das nações e
e da convivência harmônica com a natureza”. povos indígenas, originários e camponeses”.
Constituição da Bolívia de 2009, Artigo 306: “I. O modelo 19 Constituição do Equador, Artigo 71: “A natureza ou
econômico boliviano é plural e está orientado a melho- Pachamama, onde se reproduz e realiza a vida, tem di-
rar a qualidade de vida e o viver bem de todas as bolivia- reito a que se respeite integralmente sua existência e a
nas e os bolivianos. II. A economia plural está constituí- manutenção e regeneração de seus ciclos vitais, estru-
da pelas formas de organização econômica comunitária, tura, funções e processos evolutivos”.
422 Boaventura de Sousa Santos

to de país deve orientar-se por caminhos muito nacional21. Da mesma maneira, não impede que
distintos dos que conduzem às economias capi- a unidade nacional continue sendo celebrada
talistas do presente, dependentes, extrativistas e intensificada; impede somente (o que é mui-
e agroexportadoras. Nestas constituições, por to) que em nome da unidade se desconheça ou
outro lado, privilegia-se um modelo econômi- desvalorize a plurinacionalidade22.
co-social solidário e soberano (León, 2009: 65; Tanto nesses como em outros domínios, as
Acosta, 2009: 20), situado em um relaciona- opções constitucionais dão orientações, umas
mento harmonioso com a natureza que, na for- mais inequívocas que outras, ao legislador co-
mulação de Eduardo Gudynas (2009: 39), deixa mum, aos movimentos sociais e aos cidadãos
de ser um capital natural para se transformar sobre como organizar o espaço público e o es-
em um patrimônio natural. Isso não nega que paço privado, as instituições político-adminis-
a economia capitalista seja acolhida na Cons- trativas e as relações sociais e culturais; enfim,
tituição, mas impede (o que é muito) que as como posicionar o projeto e o debate civiliza-
relações capitalistas globais determinem a ló- tórios no âmbito cotidiano. Os casos da Bolívia
gica, a direção e o ritmo20 do desenvolvimento e do Equador são particularmente complexos
nesse domínio, já que a ideia de plurinaciona-
lidade está marcada tanto pelas identidades
culturais como pela demanda de controle dos
20 Constituição da Bolívia, Artigo 8: “I. O Estado as- recursos naturais. Na Bolívia, esta última é a
sume e promove como princípios ético-morais da so-
ciedade plural: ama qhilla, ama llulla, ama suwa (não
seja preguiçoso, não seja mentiroso nem seja ladrão),
soma qamaña (viver bem), ñandereko (vida harmonio- 21 Magdalena León (2009: 64) mostra que o sumak
sa), teko kavi (vida boa), ivi maraei (terra sem mau) e kawsay terá que conviver com economias regidas pela
qhapaj ñan (caminho ou vida nobre). II. O Estado se acumulação e estará presente em formas de economia
sustenta nos valores de unidade, igualdade, inclusão, solidária e de economia de cuidado (protagonizada por
dignidade, liberdade, solidariedade, reciprocidade, res- mulheres em condições de subordinação).
peito, complementariedade, harmonia, transparência, 22 Constituição da Bolívia, Artigo 3: “A nação boli-
equilíbrio, igualdade de oportunidades, equidade social viana está conformada pela totalidade das bolivianas e
e de gênero na participação, bem-estar comum, respon- os bolivianos, as nações e povos indígenas originários
sabilidade, justiça social, distribuição e redistribuição camponeses, e as comunidades interculturais e afrobo-
dos produtos e bens sociais, para viver bem”. livianas que em conjunto constituem o povo boliviano”.
A refundação do Estado e os falsos positivos 423

demanda pela nacionalização dos recursos, a conceitos de nação que superem essa pola-
uma luta que vem, no mínimo, desde a Revolu- rização. A criação de campos “internacionais”
ção de 1952 e que volta a ser central na chama- dentro dos países pode ser uma nova forma de
da “guerra da água” (2000) e na “guerra do gás” experimentalismo político transmoderno.
(2003). Nesse processo há uma construção da
nação boliviana desde baixo, formulada por Za- Nova institucionalidade
valeta de maneira essencial com o conceito do A plurinacionalidade implica o fim da ho-
nacional-popular. A ideia de nação boliviana é mogeneidade institucional do Estado24. A he-
estranha às oligarquias, não às classes popula- terogeneidade pode ser interna ou externa.
res; por isso não há necessariamente uma con- É interna sempre que no seio da própria ins-
tradição entre nacionalização dos recursos na- tituição estejam presentem diferentes modos
turais e plurinacionalidade. Ao adotar ambas as de pertencimento institucional em função dos
demandas, o movimento indígena fundamenta direitos coletivos. É externa sempre que a du-
sua ação na ideia de que somente um Estado alidade institucional paralela e/ou assimétrica
plurinacional pode “fazer” nação perante o es- for a via para garantir o reconhecimento das
trangeiro (veias fechadas) e, ao mesmo tempo, diferenças. Há, assim, dois tipos de diferenças
fazer “nação” contra o colonialismo interno. A
pluralidade da nação é o caminho para cons-
truir a nação da plurinacionalidade23. Por isso, 24 Os desafios são enormes e estão bem identificados
a plurinacionalidade não é a negação da nação, e analisados em um estudo notável: O estado do Estado
mas o reconhecimento de que a nação está in- na Bolívia, editado pelo José Luis Exeni, 2007. Diz Exe-
conclusa. A polarização entre nação cívica e ni, no “Relatório Nacional Sobre Desenvolvimento Hu-
mano”, sobre a complexidade da nova arquitetura polí-
nação étnico-cultural é um ponto de partida,
tico-institucional: “Aqui radica possivelmente o maior
mas não necessariamente um ponto de chega- desafio e dificuldade em términos de desenho de regras
da. O próprio processo histórico pode conduzir formais e incorporação de práticas informais a fim de
redefinir a questão democrática e a representação polí-
tica não apenas em sua dimensão de autorização, mas
23 Luis Taipa tem razão ao afirmar que “por isso po- também, especialmente, em matéria de controle social
dem coexistir críticas à ideia de Estado homogêneo e rendição de contas, por um lado, e na expressão da
com a demanda e projeto de nacionalização que é talvez diferença e a representação de identidades múltiplas,
a ideia com mais consenso hoje na Bolívia” (2008: 67). por outro” (2007: 486).
424 Boaventura de Sousa Santos

derivadas do reconhecimento da plurinaciona- tes critérios de representação política das di-


lidade: as que podem ser expressas no seio das ferentes culturas ou nações. O que hoje é um
próprias instituições (compartilhadas) e as que absurdo do ponto de vista da cultura política
exigem instituições diferentes (duais). liberal, amanhã pode ser aceito como uma prá-
Um exemplo de instituição compartilhada é tica de igualdade na diferença; e não terá que
a recentemente eleita25 Assembleia Legislativa excluir a possibilidade de que com o passar
Plurinacional da Bolívia, na qual estão reco- do tempo as diferenças entre as várias formas
nhecidas sete inscrições especiais indígenas de representação sejam minimizadas, mas em
originárias camponesas, cujos representantes seus princípios básicos, pelo menos nas práti-
são nomeados a princípio segundo normas e cas políticas em que se traduzem. A avaliação
procedimentos próprios da nação de onde pro- política desses processos de hibridação deve
vêm, embora sua postulação como candidatos ser feita com base nos níveis e qualidade de in-
seja feita mediante organizações políticas26. Ou clusão e de participação que produzem.
seja, o caráter plurinacional da Assembleia Na- Outro exemplo é o novo Tribunal Constitu-
cional não deriva da presença por via eleitoral cional Plurinacional, uma instituição-chave em
de representantes de várias culturas ou nações, um Estado plurinacional, já que a ele competirá
mas mediante a equivalência entre os diferen- resolver alguns dos conflitos mais complexos
resultantes da coexistência e da convivência
das várias nações no mesmo espaço geopolí-
25 Nas eleições gerais de 6 de dezembro de 2009, no tico. Para ser verdadeiramente plurinacional,
marco da nova Constituição Política do Estado, foi
não basta que o Tribunal incorpore diferentes
eleita na Bolívia a Assembleia Legislativa Plurinacional
(em substituição do até agora existente Congresso Na- nacionalidades: é preciso que o próprio proces-
cional), composta por 36 senadores e 130 deputados, 7 so de sua conformação seja plurinacional27. No
dos quais foram eleitos em inscrições especiais indíge- caso do Equador, o antigo Tribunal Constitu-
nas originárias camponesas.
26 O processo político que, no regime eleitoral tran-
sitivo, negociação detrás negociação, conduziu a este 27 O artigo 197 da Constituição boliviana estabelece que
número (inicialmente maior) mostra a assimetria, neste “o Tribunal Constitucional Plurinacional estará integrado
caso a favor do sistema eurocêntrico de representação por magistradas e magistrados eleitos com critérios de
política. Isto é, os critérios de representação são menos plurinacionalidade, com representação do sistema ordi-
plurinacionais que a plurinacionalidade representada. nário e do sistema indígena originário campesino”.
A refundação do Estado e os falsos positivos 425

cional se transformou na Corte Constitucional A heterogeneidade institucional interna se


prevista na nova Constituição, com os poderes aplica a muitas outras instituições: de agên-
outorgados por ela. Funcionará com a com- cias de planejamento às agências que finan-
posição que tinha antes que os mecanismos ciam a pesquisa científica, das forças arma-
constitucionais de nomeação de juízes sejam das à polícia, do sistema de saúde ao sistema
criados28. A Corte Constitucional (atualmente de educação.
chamada de Corte Constitucional para o Perí-
odo de Transição) assumiu plenamente seus
e em consonância com seus métodos culturais de ensi-
novos poderes29. no e aprendizagem. A Corte decidiu a favor dos deman-
dantes com uma argumentação de alto nível jurídico e
político-cultural centrada em dois eixos fundamentais:
28 A justificação desta decisão, tomada como resul- a diferença jurídico-política e a diferença epistemológi-
tado das deficiências e omissões do Regime de Tran- ca ou cognitiva. Por um lado, as normas constitucionais
sição, consta no ofício 002-DC-SG de 21 de outubro de e internacionais reconhecem a especificidade cultural
2008, publicado no Registro oficial 451 de 22 de outu- da educação indígena, e por isso seus métodos não po-
bro de 2008. dem ficar submetidos a um critério estranho a sua re-
29 Uma das sentenças mais notáveis deste novo perí- alidade e cosmovisão. Por outro lado, o conhecimento
odo foi redigida por Nina Pacari e se refere a uma ação é epistemologicamente diferente, já que, a diferença do
por descumprimento apresentada pelos representantes conhecimento científico ocidental, não se produz em
da Universidade intercultural das Nacionalidades e Po- “centros”, mas nas próprias comunidades, “sob uma
vos indígenas Amwtay Wasi contra o Conselho Nacional cosmovisão completamente diferente da convencional,
de Educação Superior (Conesup). A Universidade apre- aonde a pessoa vai até um centro de estudos em busca
sentou uma proposta para abrir três programas em di- de conhecimento, quando, nestas realidades dos povos
ferentes regiões do país, que foi recusada pelo Conesup indígenas, o conhecimento está na natureza, nos mes-
com o argumento de que a Universidade tinha sua sede mos povos, em seu entorno; em consequência, o centro
na Quito e que ali deviam ser repartidos seus programas. de estudos deve transladar-se até aqueles lugares para
Em sua demanda a Corte, a Universidade invocou que receber e nutrir-se, junto com os mesmos povos, de seus
o Conesup tinha considerado e tratado à universidade saberes ou conhecimentos” (caso 002709-AN, com sen-
indígena como uma universidade convencional e que tença de 9 de dezembro de 2009). Um caminho traçado
dessa maneira violava os direitos coletivos dos povos para o que deve ser uma verdadeira justiça intercultural,
indígenas consagrados na Constituição e nos tratados na melhor tradição da justiça intercultural do subconti-
internacionais, particularmente seu direito a estabele- nente, da qual a Corte Constitucional da Colômbia foi
cer instituições de educação em seus próprios idiomas pioneira na década de noventa.
426 Boaventura de Sousa Santos

Um terceiro exemplo de uma instituição Como diz José Luis Exeni (2009), que foi
compartilhada de importância crucial para a presidente da Corte Nacional Eleitoral até 1º
construção da nova democracia boliviana é o maio de 2009, não será fácil regular a constru-
Órgão Eleitoral Plurinacional (artigo 245 e ção democrática do novo modelo de Estado,
seguintes), que é o quarto órgão de soberania, que acolhe a realidade sócio-política de 36 na-
ao lado do Legislativo, do Executivo e do Ju- ções e povos indígenas originárias camponesas
diciário. Sua competência geral consiste em (e, além disso, das comunidades interculturais
controlar e fiscalizar os processos de repre- e afrobolivianas) e é caracterizado na Cons-
sentação política. Mais que uma competên- tituição com 11 adjetivos-atributos: unitário,
cia, é um desafio muito grande, dada a com- social, de direito, plurinacional, comunitário,
plexidade da representação política na nova livre, independente, soberano, democrático, in-
Constituição. Inclui não apenas diferentes tercultural, descentralizado e com autonomias.
escala de democracia representativa (nacio- E se pergunta:
nal, departamental, municipal), mas também
diversas formas de organização de interes- Como embasar uma democracia de alta intensi-
ses (partidos e agrupamentos cidadãos) e de dade (a boliviana) que consiga assentar institu-
democracia (representativa, participativa e cionalmente, sob o princípio de autoridade com-
comunitária). Além disso, a competência do partilhada, o desafio da demo-diversidade? Como
superar esse perverso triângulo latino-americano
órgão eleitoral vai até o ponto de regular e fis-
de democracia eleitoral, desigualdade e pobreza?
calizar a democracia interna das organizações
Qual é a implicação disso, em um horizonte de
políticas e fiscalizar as normas e procedimen- experimentalismo constitucional, para a estrutu-
tos próprios nos povos e nações indígenas ori- ra e o alcance do regime político e, em especial,
ginárias camponesas. A composição do órgão da institucionalidade eleitoral boliviana? Concre-
em si mesmo deve expressar a natureza pluri- tamente: sobre que bases principistas e normati-
nacional do Estado e, por isso, a Constituição vas terá de ser situado o desenvolvimento legis-
estabelece a obrigatória presença de autorida- lativo permanente do regime eleitoral, em geral,
des eleitorais indígenas originárias campone- e do órgão eleitoral, especificamente, a partir da
sas (ao menos dois no âmbito nacional e um rápida conformação da Assembleia Legislativa
em cada departamento). Plurinacional? (Exeni, 2009)
A refundação do Estado e os falsos positivos 427

Um exemplo de instituições duais, enquan- De fato, o pluralismo jurídico (direito ances-


to isso, são as autonomias territoriais (ver tral, por um lado, e direito eurocêntrico, por
mais adiante). A Constituição da Bolívia, em outro) é outro caso de dualidade institucional,
seu compartimento a respeito da “Estrutura e como veremos no tópico seguinte.
organização territorial do Estado”, reconhece
quatro tipos de autonomias: departamental, O pluralismo jurídico
regional, municipal e indígena originário cam- A simetria liberal moderna — todo o Estado
ponesa. A Constituição do Equador, por sua é de direito e todo o direito é do Estado — é
vez, reconhece cinco governos autonômicos uma das grandes inovações da modernidade
(artigo 238) e prevê a criação de inscrições ocidental. É também uma simetria muito pro-
territoriais indígenas e pluriculturais com re- blemática, não somente porque desconhece
gimes especiais (artigo 242). Há uma dualida- toda a diversidade de direitos não estatais exis-
de entre as diferentes formas de autonomia, já tentes nas sociedades, mas também porque
que somente a indígena (ou pluricultural, no afirma a autonomia do direito com relação ao
caso equatoriano) pode invocar o pluralismo político no mesmo processo em que faz sua va-
jurídico. Embora as diferentes formas de au- lidez depender do Estado31.
tonomia tenham faculdades legislativo-norma- O constitucionalismo plurinacional consti-
tivas, somente a indígena, no contexto de sua tui uma ruptura com esse paradigma ao esta-
livre determinação, tem autonomia jurídica,
que deriva do reconhecimento constitucional
31 A distância entre esta simetria liberal e a realida-
do direito ancestral30.
de jurídico-política das sociedades está na base de dois
dos debates centrais da sociologia do direito. O debate
sobre o pluralismo jurídico: como é possível conciliar
30 Artigo 2 da Constituição Política do Estado Pluri- a postulada unicidade do direito (oficial) com a plurali-
nacional da Bolívia: “Dada a existência pré-colonial das dade real de diferentes sistemas jurídicos (não oficiais)
nações e povos indígenas originários camponeses e seu na sociedade? E o debate sobre a autonomia do direi-
domínio ancestral sobre seus territórios, garante-se sua to: que tipo de Estado subjaz à autonomia do direito?
livre determinação no contexto da unidade do Estado, Autonomia com relação a que? Quais são as condições
que consiste em seu direito à autonomia, ao autogover- políticas para que a autonomia do direito não seja total-
no, a sua cultura, ao reconhecimento de suas institui- mente impossível ou totalmente fraudulenta? Ver San-
ções e à consolidação de suas entidades territoriais”. tos, 2009b: 29-51 e Yrigoyen, 2004.
428 Boaventura de Sousa Santos

belecer que a unidade do sistema jurídico não legalidade demoliberal e legalidade cosmopo-
pressupõe sua uniformidade. No contexto da lita (Santos, 2009: 542-611). O contraste entre
plurinacionalidade, o reconhecimento consti- elas aparece melhor pelos tipos de sociabili-
tucional de um direito indígena ancestral — já dade de zona de contato entre diferentes uni-
presente em vários países do subcontinente versos culturais que cada paradigma jurídico
— adquire um sentido ainda mais forte: é uma tem tendência a privilegiar ou sancionar. Faço
dimensão central não somente da intercultura- distinção entre quatro classes de sociabilidade:
lidade, mas também do autogoverno das comu- violência, coexistência, reconciliação e convi-
nidades indígenas originárias. Os dois ou três vialidade. A violência é o tipo de encontro no
sistemas jurídicos — eurocêntrico, indocêntri- qual a cultura dominante reivindica um con-
co e, em alguns países ou situações, afrocêntri- trole total sobre a zona de contato e, como tal,
co — são autônomos, mas não incomunicáveis; sente-se legitimada para suprimir, marginar ou
e as relações entre eles constituem um desafio. inclusive destruir a cultura subalterna e seu
Depois de dois séculos de suposta uniformi- direito. A coexistência é a sociabilidade típica
dade jurídica não será fácil para os cidadãos, do apartheid cultural, em que se permite que
organizações sociais, atores políticos, serviços as diferentes culturas jurídicas se desenvol-
públicos, advogados e juízes adotar um concei- vam separadamente e segundo uma hierarquia
to mais amplo de direito que, ao reconhecer a muito rígida, e em que os contatos, as mesclas
pluralidade de ordens jurídicas, permita des- ou as hibridações são evitadas firmemente ou
conectar parcialmente o direito do Estado e proibidas completamente. Nesse caso, são ad-
religá-lo com a vida e a cultura dos povos32. mitidos direitos paralelos, mas com estatutos
Dois tipos de legalidade estarão em presen- totalmente assimétricos que garantem simulta-
ça e em conflito, que em outro lugar chamei de neamente a hierarquia e a incomunicabilidade.
A reconciliação é a classe de sociabilidade que
se fundamenta na justiça restaurativa, em sa-
32 Podem ser antecipados os difíceis desafios da in- nar as ofensas do passado. É uma sociabilidade
terpretação intercultural do direito, como um exem- orientada para o passado em lugar de para o fu-
plo entre muitos, a partir da noção de direito dos
turo. Por essa razão, com frequência se permite
guaranis: tekomboe yiambae, que significa “costumes
sem donos”. que os desequilíbrios de poder do passado con-
A refundação do Estado e os falsos positivos 429

tinuem reproduzindo-se sob novas aparências. para o direito eurocêntrico. Os limites cons-
Os sistemas de direito presentes se comunicam titucionais das jurisdições indígenas (limites
segundo regras que concebem, por exemplo, o pessoais, materiais e territoriais) não bastam
direito comunitário ou indígena como sobre- para eliminar conflitos em um contexto nor-
vivência residual de um passado em vias de mativo que já não é de legalidade, mas sim de
superação. Por último, a convivialidade é, de interlegalidade. A solução para tais conflitos
certo modo, uma reconciliação orientada ao será sempre precária, arriscada e provisória,
futuro. As ofensas do passado se saldaram de pois obriga à tradução intercultural (o que é
tal forma que facilitam as sociabilidades que devido processo no direito ancestral? Pode
se fundamentam em intercâmbios tendencial- um sonho ser fundamento de legítima defe-
mente iguais e na autoridade compartilhada. sa?). Mas esse é o caminho da dignidade e
Os diferentes universos jurídicos são tratados do respeito reciprocamente compartilhados,
como visões alternativas de futuro que, quando o caminho da descolonização. Dentro e fora
entram em conflito, aceitam um modus viven- do campo jurídico, instituições e práticas de
di definido de acordo com regras constitucio- intermediação surgirão, e a mais importante
nais em consenso. de todas será o Tribunal Constitucional Pluri-
Cada uma dessas sociabilidades é tanto pro- nacional, no caso da Bolívia, e a Corte Consti-
dutora como produto de uma constelação jurí- tucional, no caso do Equador.
dica concreta. Uma constelação jurídica domi- Em seu artigo 30, a Constituição boliviana
nada pelo demoliberalismo tende, no máximo, estabelece um vasto conjunto de direitos das
a favorecer a reconciliação, e muitas vezes fica nações e povos indígenas originários campo-
na coexistência ou inclusive na violência. Uma neses. É a expressão constitucional da cor-
constelação jurídica dominada pelo cosmopo- respondência, pela primeira vez na história do
litismo tende a favorecer a convivialidade. So- país, entre a forte presença da população e o
mente essa última respeita o princípio da pluri- protagonismo político dos povos indígenas33.
nacionalidade.
O reconhecimento oficial dessa conviviali-
33 Em tempos recentes, a justiça indígena na Bolívia
dade implica mudanças, tanto para o direito
foi demonizada pelos meios de comunicação devido à
ancestral (internamente muito diverso), como ocorrência de alguns casos de justiça privada ou de au-
430 Boaventura de Sousa Santos

Entre os direitos está o da jurisdição própria, mente reconhecidos os direitos dos povos e
cujo âmbito está definido nos artigos 190, 191 e nacionalidades indígenas (artigo 57) e a juris-
19234. Na Constituição do Equador estão igual- dição indígena (artigo 171)35.
Entretanto, a comparação das duas soluções
constitucionais revela que há muitas semelhan-
totutela exercidos com bastante violência. As autorida- ças entre elas. Em ambos os casos a jurisdição
des indígenas denunciaram essas práticas como alheias
indígena deve respeitar os direitos e garantias
à justiça indígena, que principalmente se caracteriza
pela busca de mecanismos de reintegração social e de
reparação do dano.
34 Artigo 190: “I. Os povos e nações indígenas cam- sões da jurisdição indígena camponesa original, suas
poneses exercerão suas funções jurisdicionais e com- autoridades poderão solicitar o apoio dos órgãos com-
petitivas por meio de suas autoridades e aplicarão seus petentes do Estado. III. O Estado promoverá e forta-
próprios princípios, valores, normas e procedimentos lecerá a justiça camponesa indígena original. A Lei de
culturais. II. A jurisdição dos indígenas camponeses Demarcação Jurisdicional determinará os mecanismos
indígenas respeita o direito à vida, o direito à defesa e de coordenação e cooperação entre a jurisdição indíge-
outros direitos e garantias estabelecidos nesta Consti- na camponesa com a jurisdição ordinária e a jurisdição
tuição. / Artigo 191. I. A jurisdição camponesa indígena agroambiental e todas as jurisdições constitucional-
original é baseada em um vínculo particular das pes- mente reconhecidas”.
soas que são membros da respectiva nação ou cidade 35 Artigo 171: “As autoridades das comunidades in-
camponesa indígena. II. A jurisdição indígena é exerci- dígenas, povos e nacionalidades exercerão funções
da nas seguintes áreas de validade pessoal, material e jurisdicionais, baseadas em suas tradições ancestrais e
territorial: Estão sujeitos a esta jurisdição os membros em seu próprio direito, em seu âmbito territorial, com
da nação camponesa indígena originária, quer agindo garantia de participação e decisão das mulheres. As
como autores ou réus, queixosos ou queixoso, supostas autoridades aplicarão suas próprias normas e procedi-
ou debitados, recorrentes ou revisados. Esta jurisdi- mentos para a solução de seus conflitos internos, e que
ção conhece os assuntos indígenas camponeses origi- não sejam contrários à Constituição e aos direitos hu-
nais de acordo com o que é estabelecido em uma Lei manos reconhecidos em instrumentos internacionais.
de Demarcação Jurisdicional. Esta jurisdição aplica-se O Estado garantirá que as decisões da jurisdição indí-
a relações jurídicas e atos que são realizados ou cujos gena sejam respeitadas pelas instituições e autoridades
efeitos ocorrem dentro da jurisdição de um povo indí- públicas. Tais decisões estarão sujeitas ao controle de
gena camponês. / Artigo 192. I. Toda autoridade pública constitucionalidade. A lei estabelecerá mecanismos de
ou pessoa obedecerá às decisões da jurisdição indígena coordenação e cooperação entre a jurisdição indígena
camponesa original. II. Para o cumprimento das deci- e a jurisdição ordinária”.
A refundação do Estado e os falsos positivos 431

consagrados na Constituição, e no caso do Demarcação Jurisdicional”, o que significa que


Equador se faz a exigência de igual participa- até que a lei seja promulgada (cuja necessidade
ção das mulheres, uma exigência já prevista no ou constitucionalidade é duvidosa), a vigência
projeto constitucional da CONAIE. A vigência material é geral, como no Equador. Por último,
pessoal, material e territorial da jurisdição in- as duas Constituições preveem a criação de
dígena é igualmente semelhante. A jurisdição mecanismos de coordenação e cooperação en-
indígena se aplica exclusivamente aos indíge- tre a justiça indígena e a justiça comum36.
nas, o que suscita o problema da jurisdição Muito provavelmente, muitos dos conflitos
aplicável quando os conflitos envolvem indí- entre a jurisdição indígena e a jurisdição co-
genas e não indígenas, o que ocorre frequente- mum terminarão sendo solucionados pelas cor-
mente. Por outro lado, a jurisdição indígena se tes constitucionais, como ocorre na Colômbia.
aplica nos territórios indígenas, o que suscita
dois problemas: o primeiro é a delimitação do A nova territorialidade
território, que em muitos casos pode não ser O Estado liberal moderno é a construção po-
muito clara; o segundo é o problema dos con- lítica da descontextualização moderna do mun-
flitos entre indígenas quando ocorrem fora do do da vida. Na ciência ou no direito, o universal
território. A Constituição do Equador fala de é o que é válido independentemente do contex-
conflitos internos. A formulação boliviana é to. A credibilidade do universal é fortalecida
mais ampla e explícita: “aplica-se às relações e por metáforas de homogeneidade, igualdade,
feitos jurídicos que se realizam ou cujos efeitos atomização, indiferenciação. As duas mais im-
se produzem dentro da jurisdição de um povo portantes são a sociedade civil e o território
indígena originário camponês”. Ou seja, admi- nacional. A primeira nivela as populações; a
te que a jurisdição se aplica fora do território segunda, o espaço geopolítico. As duas se cor-
quando os conflitos entre indígenas vulnerem respondem, pois apenas pessoas indiferencia-
os bens jurídicos indígenas (com efeitos den- das podem viver em um espaço indiferenciado.
tro do território). Quanto à vigência material, a
Constituição da Bolívia estabelece que a juris-
dição indígena conhece assuntos indígenas “de
36 Sobre a justiça indígena na nova Constituição do
conformidade ao estabelecido em uma Lei de Equador, ver Grijalva, 2008.
432 Boaventura de Sousa Santos

Essa construção, tão hegemônica quanto arbi- De fato, por ser anterior ao Estado moderno,
trária, converte a realidade sociológica, políti- não é o território que deve justificar sua auto-
ca e cultural em um inevitável desvio que deve nomia, mas o Estado que deve justificar os limi-
ser mantido dentro de limites politicamente to- tes que impõe em nome do interesse nacional
leráveis. Quanto mais grave ou ameaçador for (do qual faz parte, paradoxalmente, o interesse
considerado o desvio, e quanto mais exigente na promoção das autonomias)37.
for o critério de tolerância política, mais autori- Nas eleições departamentais e municipais da
tária e exclusiva será a democracia liberal. Bolívia, realizadas em 4 de abril de 2010, deu-
O constitucionalismo plurinacional rompe -se um passo decisivo na construção do Estado
radicalmente com essa construção ideológica. plurinacional, através das autonomias depar-
Por um lado, a sociedade civil, sem ser descar- tamentais, regionais, municipais e indígenas.
tada, é recontextualizada pelo reconhecimento Pela primeira vez, foram eleitos governadores
da existência de comunidades, povos, nações e assembleias municipais, além da eleição de
e nacionalidades. Por outro lado, o território prefeitos e conselheiros municipais. O caráter
nacional passa a ser o contexto geoespacial plurinacional do Estado esteve expresso na
de unidade e integridade que organiza as rela- eleição direta de 23 assembleístas departamen-
ções entre diferentes territórios geopolíticos tais das nações e povos indígenas originários
e geoculturais, de acordo com os princípios camponeses, que são minoria populacional nos
constitucionais da unidade na diversidade e in- respectivos departamentos do país. Este é o
tegridade, com reconhecimento de autonomias terceiro progresso concreto após a eleição (por
assimétricas. A assimetria entre as autonomias voto), em dezembro de 2009, de sete deputados
reside no fator gerativo que as sustenta: a) o indígenas em distritos especiais e da aprova-
fator político-administrativo da descentraliza-
ção e da justiça regional, ou b) o fator políti-
co-cultural da plurinacionalidade e da justiça 37 Um dirigente do Conselho Nacional de Ayllus e Ma-
histórica (no caso das autonomias indígenas rkas del Qullasuyu (Conamaq) formulou assim a dife-
originárias camponesas). No último caso, a rença entre os distintos tipos de autonomia: “A autono-
mia indígena é a sabedoria; a autonomia departamental
autonomia do território tem uma justificativa
é o desenvolvimento” (Seminário sobre Autonomia In-
e uma densidade histórico-cultural específicas. dígena, Cochabamba, 8 de outubro de 2009).
A refundação do Estado e os falsos positivos 433

ção por referendo da criação de 11 autonomias sos estão predominantemente em territórios


indígenas (de âmbito municipal). As nações e indígenas. O que está em questão não é a “etni-
povos indígenas registraram perante o corpo cização” da riqueza (da etnicização da pobreza
eleitoral as próprias normas e procedimentos há muita evidência histórica, já que é o código
através dos quais elegeram, designaram ou genético do colonialismo), mas um novo e mais
nomearam seus assembleístas. A diversidade inclusivo critério de solidariedade nacional. A
dessas normas e procedimentos próprios para demanda por justiça histórica nada mais é do
a eleição ou designação dos seus representan- que a denúncia da brutal falta de solidariedade
tes (ver o quadro no apêndice) constitui uma nacional ao longo de séculos. Como explicar o
poderosa afirmação da demodiversidade e da fato de que os mais pobres vivem nos territó-
democracia intercultural38. rios onde há mais riqueza? Devemos reinventar
Os fatores geradores das autonomias são a solidariedade com base em princípios verda-
decisivos para determinar o tipo de controle deiramente pós-coloniais: ações afirmativas ou
que o Estado central pode legitimamente exer- discriminação positiva em favor das comunida-
cer dentro dos territórios autônomos. Como des indígenas de origem camponesa, como pré-
se sabe, as autonomias indígenas dispõem de -requisito da solidariedade plurinacional.
um contexto jurídico internacional39, reconhe-
cido pelos Estados plurinacionais, que, entre Nova organização do Estado e
outras coisas, regula o controle dos recursos novas formas de planejamento
naturais e a distribuição dos benefícios de sua Todas as mudanças mencionadas até agora
exploração. Nisso consiste o caráter intensa- que derivam da ideia de um Estado plurinacio-
mente controverso das autonomias indígenas, nal requerem uma nova organização do Estado
especialmente considerando que esses recur- em si, ou seja, como um conjunto de institui-
ções políticas e administrativo-burocráticas de
38 Comunicação pessoal de José Luis Exeni R., 8 de
gestão e planejamento público40. É verdadei-
abril de 2010.
39 A Convenção 169 da OIT e a Declaração das Na- 40 Nas Constituições da Bolívia e do Equador há certa
ções Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, obsessão adjetiva em distinguir o novo Estado da ma-
aprovada em 7 de setembro de 2007. triz liberal moderna:
434 Boaventura de Sousa Santos

ramente neste nível que podemos avaliar em toral) de circunscrições indígenas especiais
que medida o princípio da plurinacionalidade (artigo 146). A Constituição do Equador define
está presente no novo pacto político e em que a organização do Estado como “participação
medida esse princípio é relativizado e articu- e organização do poder” (título IV), estabele-
lado com outros princípios. Uma comparação ce a “participação na democracia” (capítulo
sistemática das duas Constituições mostra que 1) como orientação central, define cinco “fun-
a plurinacionalidade é muito mais vinculante ções” do Estado-legislativo, executivo, judicial
no caso da Bolívia do que no do Equador, o e a justiça indígena, de transparência e contro-
que se explica pelos processos políticos que le social e eleitoral — e na função legislativa,
estiveram na base das novas Constituições. exercida pela Assembleia Nacional, não reco-
No Equador, o princípio da plurinacionalidade nhece a representação indígena por meios não
está em permanente tensão com o princípio eleitorais, ao contrário do que era proposto no
da participação cidadã, que é de fato o eixo projeto da CONAIE.
transversal mais forte da arquitetura constitu- Em termos teóricos, o princípio da plurina-
cional, a começar pela definição dos órgãos de cionalidade não se choca com o da participa-
soberania. Enquanto a Constituição da Bolívia ção. Ao contrário, a plurinacionalidade implica
define quatro órgãos: Legislativo, Executivo, a ideia de formas mais avançadas e complexas
Judicial e Eleitoral; e no corpo Legislativo, que de participação. Juntamente com a participa-
designa como Assembleia Legislativa Plurina- ção cidadã, de raiz republicana liberal, reco-
cional, permite a representação (por via elei- nhece a participação de povos ou nacionali-
dades. A articulação e possível tensão entre
os dois princípios, penetra na organização e
Constituição da Bolívia, Artigo 1: “A Bolívia é consti-
funcionalidade do Estado em diferentes níveis.
tuída em um Estado unitário social de direito, pluri-
nacional, comunitário, livre, independente, soberano, A título ilustrativo, vejamos o caso da gestão e
democrático, intercultural, descentralizado e com do planejamento públicos. Na Bolívia, está em
autonomias”. preparação a Lei de Gestão Pública do Estado
Constituição do Equador, Artigo 1: “O Equador é um Es- Plurinacional. Duas ideias centrais devem ser
tado constitucional de direitos e justiça social, demo-
destacadas. A primeira é que a construção do
crático, soberano, independente, unitário, intercultural,
plurinacional e laico”. novo modelo de Estado exige desmontar o co-
A refundação do Estado e os falsos positivos 435

lonialismo no próprio aparelho do Estado, ma- Acontece que temos três modelos na Constitui-
nifestado em práticas racistas e no excesso de ção: modelo de Estado, modelo territorial e mo-
burocratização da administração pública, e seu delo econômico. Nessa perspectiva, o modelo
efeito retardador das operações do aparelho econômico se converte no suporte dos outros
modelos, por isso acreditamos que isso afeta a
público. A segunda é que as políticas públicas
nova organização do Executivo41. Queremos dar
exigem um planejamento cíclico que concatene
preponderância à economia social e comunitária,
tempos de execução de ações e obtenção de re- à intervenção estatal e nos abrirmos ao modelo
sultados com o objetivo final de viver bem, de ecológico da economia, como está na Constitui-
acordo com as diferentes temporalidades espa- ção. Deduzimos dessa situação, que se torna im-
ciais que conformam arquipélagos ecoculturais portante um Superministro da Economia. Neste
e administrativos do país. O projeto (fevereiro ponto, concretamente, temos um problema com
de 2010) da lei estabelece em seu artigo 1 que o planejamento. Acreditamos que três modelos de
planejamento foram deixados para trás e não são
(…) a gestão pública plurinacional comunitária e apropriados para o caráter do Estado plurinacio-
intercultural é o conjunto de processos integrais nal comunitário autônomo: o modelo soviético,
e complementares que articulam as políticas e o modelo keynesiano e o modelo da CEPAL; que
estratégias públicas participativas com a cosmo- o planejamento deve ser substituído por instru-
visão holística e comunitária, própria dos povos e mentos mais dinâmicos, mais flexíveis e abertos,
nações indígenas de origem camponesa, no mar- como propõe a Constituição: uma participação
co do pluralismo institucional. integral e participativa. Tudo isso é importante le-
var em conta quando passamos a variadas formas
Em comunicação pessoal (3 de fevereiro de de autonomia.
2010), Raúl Prada, vice-ministro de Planeja-
mento Estratégico do Estado, expõe de manei-
ra eloquente os desafios de um tipo de gestão
pública e planejamento que deve romper com 41 O Anteprojeto de Lei de Organização do Órgão Exe-
cutivo, elaborado pelo Ministério da Economia e Finan-
os modelos do passado e conferir materialida- ças (janeiro de 2010), propõe uma reorganização orien-
de prática ao princípio de plurinacionalidade: tada a garantir que o pluralismo institucional reflita os
diferentes pluralismos consagrados na Constituição:
econômico, sociocultural, político, regional e judicial.
436 Boaventura de Sousa Santos

No Equador, os desafios da participação são gena, não é compreendido pelas organizações


vivenciados com igual intensidade, mas com indígenas como uma propriedade exclusiva
uma ênfase diferente. Aqui, a participação cida- dos indígenas e, por outro lado, consideram-
dã é o eixo central na busca pelo planejamento -no como uma contribuição decisiva dos povos
participativo. Da mesma forma, a presença do indígenas ao patrimônio comum do país. Mas
princípio da plurinacionalidade é clara. Na ver- o reconhecido caráter decisivo da contribuição
dade, o Plano Nacional de Desenvolvimento, indígena deveria ser traduzido em práticas de
que para o período 2007-2010 teve esse mesmo planejamento correspondentes à importância
nome, foi rebatizado de “Plano Nacional para da contribuição, o que não parece ser o caso,
o Bem Viver 2009-2013: Construindo um Es- por enquanto43.
tado plurinacional e intercultural”, orientado As tensões a esse respeito, no seio do gover-
que “o novo período de governo reflete a mu- no equatoriano, se revelam no contraste — qua-
dança de paradigma” (Senplades, 2009: 10)42. se uma “dissonância cognitiva” — entre a lógica
No entanto, a ideia de bem viver não aparece subjacente à elaboração do Plano e a prática do
constituída em práticas participativas basea- governo em promulgar leis que afetam os povos
das no contexto da plurinacionalidade, ou seja, indígenas sem consulta prévia, o que viola não
não se dá atenção privilegiada às concepções somente a Constituição, mas também a Con-
e práticas dos povos indígenas. O bem viver, venção 169 da OIT e a Declaração sobre os Di-
ou sumak kawsay, conceito de origem indí- reitos dos Povos indígenas na Assembleia Geral
da ONU (02 de outubro de 2007). Na verdade,
o Plano foi elaborado com base em uma diver-
42 Segundo René Ramírez, secretário nacional de sificada participação cidadã — observadorias
Planejamento e Desenvolvimento, a ideia original era
propor uma “moratória sobre o desenvolvimento” (co-
municação pessoal, 8 de outubro de 2009). O fato de
que são grandes as tensões dentro do Executivo entre 43 Não está claro se, na prática, as estratégias de pla-
a vertente desenvolvimentista (subscrita pelo presiden- nejamento no Equador e na Bolívia são muito diferen-
te) e a vertente do “bem viver” é expresso na capa da tes. Pelo contrário, há indícios de que, apesar dos dis-
publicação do Plano. Embora o título principal seja o cursos diferentes, as práticas mostram a mesma tensão
que está no texto, o topo da capa diz: “República do entre desenvolvimentismo e o bem viver (como os boli-
Equador. Plano Nacional de Desenvolvimento”. vianos preferem dizer), como veremos mais adiante.
A refundação do Estado e os falsos positivos 437

cidadãs para implementar políticas, a consulta resultado de um ato político consensual entre
cidadã nacional e regional, e o diálogo e con- grupos étnico-culturais muito diferentes, com
sulta com os atores sociais e institucionais —, um passado histórico de relações que, apesar
e os princípios metodológicos das oficinas de de sua violência intrínseca, abre, na presente
consulta cidadã são muito inovadores a respei- conjuntura, uma janela de oportunidade para
to das teorias e práticas convencionais de pla- um futuro diferente. Por essa razão, no contex-
nejamento dominadas pelo autoritarismo téc- to da plurinacionalidade, a interculturalidade
nico-burocrático. Estes princípios são: diálogo só é realizada como democracia intercultural.
de saberes, valor da experiência, a diversidade Por democracia intercultural no subconti-
como riqueza, a deliberação acima do consen- nente latino-americano, compreendo: a) a co-
so, do pensamento fragmentado ao pensamen- existência de diferentes formas de deliberação
to complexo, eixos transversais, flexibilidade democrática, do voto individual ao consenso,
(SENPLADES, 2009: 14). das eleições à rotação ou ao ato de mandar
Neste, como em todos os demais casos, a obedecendo, da luta para assumir cargos à
refundação do Estado de acordo com os prin- obrigação-responsabilidade de assumi-los (o
cípios de plurinacionalidade, interculturalida- que chamo de demodiversidade); b) diferentes
de e participação democrática é um processo critérios de representação democrática (re-
político complexo e de longo prazo. Durante presentação quantitativa, de origem moderna,
muito tempo os princípios e os discursos ca- eurocêntrica, ao lado da representação quali-
minharão bem à frente das práticas. A maior tativa, de origem ancestral, indocêntrica); c)
ou menor distância entre eles será a medida reconhecimento dos direitos coletivos dos po-
da maior ou menor intensidade da democrati- vos, como condição do exercício efetivo dos
zação da democracia. direitos individuais (cidadania cultural como
condição de cidadania cívica); d) reconheci-
A democracia intercultural mento dos novos direitos fundamentais (simul-
A plurinacionalidade é o reconhecimento de taneamente individuais e coletivas): o direito
que a interculturalidade não resulta de um ato à água, à terra, à soberania alimentar, aos re-
voluntário de arrependimento histórico daque- cursos naturais, à biodiversidade, às florestas
les que têm o privilégio de fazê-lo. É antes o e ao conhecimento tradicional; e, e) além dos
438 Boaventura de Sousa Santos

direitos, educação orientada para formas de tais e municipais de 4 de abril de 2010 são uma
sociabilidade e de subjetividade estabelecidas poderosa afirmação da democracia intercultural
na reciprocidade cultural: um membro de uma (veja a seção anterior e a tabela no Apêndice). A
cultura só está disposto a reconhecer outra democracia intercultural suscita, entre outros,
cultura se sentir que sua própria cultura é res- dois problemas que mostram até que ponto ela
peitada, e isso se aplica tanto às culturas indí- se afasta da tradição democrática eurocêntrica.
genas como as não indígenas. O primeiro problema consiste em como verificar
As Constituições da Bolívia e do Equador já o caráter genuíno das deliberações por consen-
consagram a ideia da democracia intercultural. so e unanimidade, ou o caráter democrático da
Por exemplo, a Constituição da Bolívia (artigo seleção de cargos por rotação. Quando são vis-
11) estabelece que são reconhecidas três formas tas de fora das comunidades, como ocorre fre-
de democracia: a representativa, a participativa quentemente, essas questões não são genuínas
e a comunitária. Trata-se de uma das formula- no plano teórico — da teoria política liberal —,
ções constitucionais sobre democracia mais já que negam na própria formulação da questão
avançadas do mundo44. As eleições departamen- a possibilidade de outra resposta que não seja a
negativa. Ou seja, são modos monoculturais de
interrogar a democracia intercultural. Quando,
44 Constituição da Bolívia, Artigo 11: “A República ao contrário, esses problemas são destacados
da Bolívia adota para seu governo a forma democrá-
tica participativa, representativa e comunitária, com a partir de dentro das comunidades, eles assu-
equivalência de condições entre homens e mulheres. mem um significado pleno e devem ser discuti-
II. A democracia é exercida das seguintes formas, que dos, pois, como sabemos, as comunidades não
serão desenvolvidas pela lei: 1. Direta e participativa, são política ou culturalmente homogêneas, e as
por meio do referendo, da iniciativa legislativa cidadã,
diferenças de patrimônio, de sexo ou idade po-
da revogação do mandato, da assembleia, do conselho
municipal e de consulta prévia. As assembleias e con- dem ser decisivas no debate.
selhos terão caráter deliberativo de acordo com a lei. O segundo problema, que também é geral-
2. Representativa, mediante eleição de representantes mente formulado como uma crítica monocultu-
por voto universal, direto e secreto, de acordo com a
lei. 3. Comunitária, através da eleição, designação ou
nomeação de autoridades e representantes por normas dígenas de origem camponesa, entre outros, de acordo
e procedimentos próprios para das nações e povos in- com a lei”.
A refundação do Estado e os falsos positivos 439

ral da interculturalidade, é que as comunidades ferentes tipos de direitos. Os direitos coletivos


originais constituem enclaves não democráticos primários pertencem à comunidade e, portan-
nos quais, por exemplo, as mulheres são siste- to, podem, em determinadas circunstâncias,
maticamente discriminadas. Por outro lado, ao entrar em conflito com os direitos individuais.
privilegiar os direitos coletivos, a democracia Nesse caso, haverá instâncias próprias para re-
intercultural acabaria violando os direitos indi- solvê-los, e a resolução deverá incluir frequen-
viduais. São duas críticas importantes quando temente um trabalho de tradução intercultural.
são formuladas com o objetivo de melhorar o Por exemplo, não é legítimo decidir, a partir do
desempenho da democracia intercultural, e não direito eurocêntrico, se o devido processo foi
com o propósito de declará-la inconstitucional. ou não violado em um caso de justiça indígena
Com relação ao primeiro, é cada vez mais cla- (a ausência de representação por advogados
ro para as mulheres indígenas que o bem viver profissionais no sistema de justiça indígena
começa em casa, e é por isso que elas são hoje seria, por definição, uma violação do devido
protagonistas de um dos movimentos de mulhe- processo legal). Ao contrário, será necessário
res mais ativos e inovadores do subcontinente45. definir critérios interculturais que estabeleçam
Com relação ao segundo, os direitos coleti- equivalências entre diferentes formas de alcan-
vos não necessariamente colidem com os di- çar os objetivos do devido processo como um
reitos individuais. Existem direitos coletivos direito consagrado na Constituição. Além dis-
de vários tipos: derivados e primários. Quando so: a tradução intercultural terá que levar em
os trabalhadores ou professores organizam seu conta, igualmente, que a relação entre direitos
sindicato e nele delegam a defesa de seus direi- e deveres não é uma constante universal: ela
tos trabalhistas individuais, o sindicato exerce varia de cultura jurídica para cultura jurídica.
o direito coletivo derivado de representar seus No direito indígena, a comunidade é mais uma
membros. Neste caso, não há conflito entre di- comunidade de deveres do que de direitos, e
por isso aquele que não aceita seus deveres
também não têm direitos46.
45 Não é por outra razão que o supracitado artigo 11
da Constituição da Bolívia acrescenta à enumeração
dos tipos de democracia o esclarecimento “com equiva- 46 Este exemplo não é acadêmico. É um caso real
lência de condições entre homens e mulheres”. analisado em nossa investigação sobre o pluralismo
440 Boaventura de Sousa Santos

Deve-se acrescentar que os direitos coleti- (mistura de sangues) foi quase sempre negada
vos primários podem ser exercidos de duas ma- como hibridização conceitual, dada a identifi-
neiras: individualmente (por exemplo, quando cação tendencial do mestiço-alvo com os bran-
um sikh usa seu turbante, se trata de um direito cos e a cultura eurocêntrica47. Nesse contexto,
coletivo que se exerce individualmente); mas a luta indígena pela plurinacionalidade não
existem direitos coletivos que são exercidos pode deixar de ser hostil à ideia de miscigena-
apenas de maneira coletiva, como é o direito ção. No entanto, há alguma complexidade nes-
à autodeterminação ou ao autogoverno. Os di- se domínio que não pode ser ignorada. Como
ferentes direitos coletivos permitem resolver lidar, por exemplo, com o caso dos mestiços
ou dirimir injustiças estruturais ou históricas, empíricos que se identificam como indíge-
e fundamentam ações afirmativas necessárias nas48? São indígenas ou aliados de indígenas?
para libertar comunidades ou povos da opres- E o que pensar dos que se identificam como
são sistemática, ou para garantir a sustentabili- mestiços, aliados dos indígenas, e são defen-
dade de comunidades coletivamente inseguras. sores da plurinacionalidade49? O protagonismo

É possível outra miscigenação? 47 Sobre a distinção entre hibridização empírica e


A miscigenação pós-colonial conceitual, ver De la Cadena, 2002; 2005.
emergente 48 A mesma pergunta pode ser feita no caso dos
mulatos e sua identificação com os negros. A cate-
No contexto latino-americano, a miscigena-
goria de afrodescendente é hoje preferida a incluir
ção é um produto do colonialismo e das polí- negros e mulatos.
ticas indígenas. Mesmo quando foi reconheci-
49 Nesse contexto, o texto de Fernando Garcés é mui-
da a identidade cultural indígena, o progresso to revelador, baseado em entrevistas com membros da
sempre foi associado a aculturação eurocêntri- Assembleia Constituinte (2010). Nas entrevistas, surge
ca e branqueamento. A hibridização empírica várias vezes a ideia de que a grande maioria da popula-
ção é mestiça (alguns falam de 80% da população) e não
indígena. As variações nos censos populacionais mais
jurídico na Colômbia e o papel do Tribunal da Corte recentes realizados na Bolívia mostram a variabilidade
Constitucional na tradução jurídica intercultural. Ver do peso relativo das diferentes identidades definidas
Santos e García-Villegas, 2001, vol. 2. pela autoidentificação.
A refundação do Estado e os falsos positivos 441

indígena, com sua bandeira de plurinacionali- com o futuro. A plurinacionalidade institui no-
dade, poderá correr o risco de invisibilizar ou vos tipos de relações interétnicas e intercul-
suprimir as aspirações de uma grande parte da turais, das quais surgirão novas hibridações
população que se considera mestiça e é uma empíricas, culturais e conceituais. Como deve
parte decisiva do processo de transformação ser concebida, a partir da plurinacionalidade, a
social em curso? miscigenação emergente da nova lógica episte-
A partir de outra perspectiva, agora é evi- mológica e política?
dente que historicamente o conceito de mes- A interculturalidade frequentemente des-
tiço teve múltiplos significados (Hale, 1996), taca o problema de saber o que há de comum
que a categoria social mestiça oculta enormes entre diferentes culturas, de modo que o pre-
diferenças sociais, que ao lado dos indígenas- fixo inter possa fazer sentido. A distinção en-
-brancos sempre coexistiu o mestiço-índio e tre intraculturalidade e interculturalidade é
que suas relações eles frequentemente repro- muito complexa, pois o limiar a partir do qual
duziam a diferença colonial e racial. Tudo isso uma cultura se distingue da outra é produto de
revela que a hibridização conceitual existe e uma construção social que muda (com) as con-
deve ser o ponto de partida para uma análise dições da luta político-cultural. A intercultura-
mais complexa da miscigenação e da opressão lidade não pode ser capturada em geral. O que
que disfarça, e para definir políticas emancipa- subjaz como elemento comum ao trabalho de
tórias nesse campo. Estou, então, de acordo interculturalidade em um determinado espaço-
com Cecilia Salazar (2008) quando ela diz: -tempo histórico (organização, comunidade,
região ou país) é o modo específico pelo qual
(…) o que eu penso em troca é que esse estado de esse espaço-tempo concebe e organiza a inter-
transição deve ser resolvido historicamente, não culturalidade. Isto é, a interculturalidade é uma
em termos do mestiço como amálgama, mas do jornada que é feita caminhando; trata-se de
mestiço, em sua expressão social mais oprimida, um processo histórico duplamente complexo,
que é a do mestiço-índio.
pois: a) trata-se de transformar relações verti-
cais entre culturas em relações horizontais, ou
Outra dimensão da complexidade desse
seja, submeter um passado longínquo a uma
tema tem menos a ver com o passado do que
aposta de futuro diferente; e, b) não pode levar
442 Boaventura de Sousa Santos

ao relativismo, já que a transformação ocorre terculturalidade. Sua prática ao longo do tem-


em um contexto constitucional determinado. po dará origem a uma mestiçagem (humana,
Mais importante do que conhecer o terre- cultural, conceitual, vivencial, filosófica) de
no comum é identificar o movimento político- um novo tipo50. A miscigenação colonial é uma
-cultural que progressivamente modifica as miscigenação alienada, porque separa as rela-
mentalidades e as subjetividades no sentido de ções de produção da miscigenação do produto
reconhecer a igualdade/equivalência/comple- mestiço. O encontro, muitas vezes violento e
mentaridade/reciprocidade entre as diferenças. sempre regulado unilateralmente pelo “misci-
Só então o diálogo surge como enriquecedor, genador”, se oculta eficazmente atrás do pro-
porque é também o momento em que todas as duto visivelmente bilateral. Por outro lado, a
culturas presentes aparecem como incompletas, miscigenação pós-colonial — por enquanto,
cada uma problemática à sua maneira e incapaz nada mais que um projeto — é dialógica e plu-
por si mesma de responder às aspirações dos rilateral, tanto em sua produção quanto em
povos determinados a construir uma sociedade seus produtos. As relações de produção de
verdadeiramente inclusiva, isto é, uma socieda- miscigenação, ao assumir uma forma coopera-
de inclusiva na definição dos critérios que de- tiva, mudam suas lealdades ideológicas. A ideia
terminam o que é inclusão e o que é exclusão. A
interculturalidade não leva ao esquecimento ou
à fusão de culturas presentes. Muda, no entan- 50 Essa miscigenação de novo tipo é o grande projeto
to, sua presença: passa a ser uma presença que, político de Anzaldúa quando afirma: “O que eu quero é
por ser incompleta, é também uma ausência. O contar com as três culturas — a branca, a mexicana e
exercício repetido de incompletudes recíprocas a indiana. Eu quero a liberdade de poder esculpir e for-
mar meu próprio rosto, cortar a hemorragia com cin-
transforma progressivamente os diálogos em
zas, moldar meus próprios deuses a partir de minhas
diálogos transmodernos, transocidentais, tran- entranhas. E se ir para casa me é negado, então terei
sindígenas e transafricanos. As culturas em pre- de me levantar e reclamar meu espaço, criando uma
sença (e em ausência) não perderão suas raízes, nova cultura — uma cultura mestiça — com minha
mas criarão, a partir delas, novas opções. própria madeira, meus próprios tijolos e argamassa
e minha própria arquitetura feminista” (2004: 79, pu-
O reconhecimento da plurinacionalidade é
blicado originalmente em 1987). Ver também Eskalera
um mandato político para a promoção da in- Karakola, 2004.
A refundação do Estado e os falsos positivos 443

de branco-mestiço, que tanto tem contribuído rais, a relação privilegiada com a Mãe Terra,
para o isolamento de movimentos indígenas, o direito próprio, o autogoverno, a soberania
camponeses e afrodescendentes, será gradu- alimentar, esses sim são objetivos políticos de
almente reconfigurada ou retraduzida cultu- longo alcance, e sua justificativa está no novo
ralmente como indiomestiço ou afromestiço, o marco civilizatório protagonizado pelos povos
que mudará significativamente as identidades indígenas, e que está conquistando cada vez
culturais e os processos de alianças. mais aliados.
Qual será o impacto da miscigenação pós-
-colonial na plurinacionalidade? A plurinacio- As mulheres e a
nalidade, sendo um momento constitutivo, é refundação do Estado
também um momento estável ou permanente O feminismo, em geral, tem contribuído de
em tudo o que se constrói social, política e cul- maneira decisiva para a crítica da epistemolo-
turalmente a partir dela? Como mencionei an- gia eurocêntrica dominante51, e o feminismo
tes, a interculturalidade pós-colonial não elimi- pós-colonial ou descolonizador é de impor-
na, mas, ao contrário, reafirma a existência de tância transcendente na construção das epis-
cada cultura como forma de atingir os demais. temologias do Sul, da interculturalidade e da
A miscigenação pós-colonial, por sua vez, am- plurinacionalidade, um feito que não mereceu
plia enormemente a diversidade através da hi- a devida atenção. Por feminismo pós-colonial,
bridização infinita que agora se transforma em entendo o conjunto de perspectivas feminis-
propriedade livre e comunal dos produtores tas que: a) integram a discriminação sexual no
associados à miscigenação. Durante um longo âmbito mais amplo do sistema de dominação e
período de transição, são esperados conflitos desigualdade nas sociedades contemporâneas,
entre o impulso centrípeto de miscigenação e o no qual se destacam o racismo e o classismo;
impulso centrífugo da plurinacionalidade. Nem b) eles também fazem isso com o objetivo de
a miscigenação nem a plurinacionalidade são descolonizar as correntes eurocêntricas do fe-
fins em si mesmas. A plurinacionalidade é um
instrumento valioso para lutar contra o colo-
nialismo, o capitalismo e o racismo. O controle
51 Minha primeira análise sobre este tema se encontra
dos territórios ancestrais, dos recursos natu- em Santos, 1995: 32-33.
444 Boaventura de Sousa Santos

minismo, dominantes por décadas e talvez até a determinassem também. Ao fazê-lo, ajudou a
incluso na atualidade; c) orientam seu olhar essencializar o ser mulher e, assim, a esconder
crítico para sua própria diversidade, ao ques- as enormes desigualdades entre as mulheres.
tionar as formas de discriminação das quais as Como Sueli Carneiro (2001) diz,
mulheres são vítimas, no seio das comunidades
dos oprimidos e ao afirmar a diversidade den- (…) as mulheres negras tiveram uma experiên-
tro da diversidade52. O feminismo pós-colonial cia histórica diferenciada que o discurso clássico
não desenvolveu até agora uma teoria da refun- sobre a opressão da mulher não coletou. Assim
dação do Estado intercultural e plurinacional, como tampouco se deu conta da diferença qua-
litativa que o efeito da opressão sofrida teve e
mas é possível imaginar algumas característi-
ainda tem sobre a identidade feminina das mu-
cas de sua contribuição decisiva.
lheres negras.
Em primeiro lugar, o caráter cumulativo
das desigualdades. A suposta incomensura-
Por sua vez, na Declaração das Mulheres In-
bilidade das diferentes formas de desigual-
dígenas no XI Encontro Feminista Latino-Ame-
dade e de dominação está na base do Estado
ricano e do Caribe (Tenochtitlán, México, 16 a
monocultural moderno, pois torna credível a
20 de março de 2009), pode-se ler:
igualdade jurídico-formal dos cidadãos: como
as diferenças entre os cidadãos são múltiplas (…) vivemos, as mulheres indígenas, as muitas
(potencialmente infinitas) e não se acumulam, discriminações por ser mulher, por ser indíge-
é possível a indiferença para com elas. O fe- na, por ser pobre, por ser camponesa, etc. (…)
minismo eurocêntrico aceitou a ideia da inco- falta responsabilidade do movimento feminista
mensurabilidade das diferenças ao concentrar- para envolver as mulheres indígenas em pé de
-se exclusivamente na desigualdade de gênero, igualdade53. Somos o outro olhar do feminis-
como se as outras formas de desigualdade não mo, no qual buscamos transformar as relações
desiguais e o sistema de dominação patriarcal
(…) Que as abordagens feministas respeitem a
52 Ver o texto seminal de Anzaldúa, 1987; bem como
Crenshaw, 1991 e 2000; Vargas, 2009; Curiel, 2002; Suá-
rez-Navaz e Hernández, 2008; Harding, 2008 e a biblio- 53 Sobre as tensões entre o feminismo indígena zapa-
grafia ali citada. tista y o feminismo urbano mexicano ver Millán, 2006.
A refundação do Estado e os falsos positivos 445

diversidade cultural no discurso e na prática. que denunciam mais fortemente o mito latino-
(…) é urgente a desconstrução das abordagens -americano da democracia racial, precisamen-
etnocêntricas do movimento feminista e do dis- te porque são as que mais sofrem duramente
curso acadêmico54. suas consequências, como mulheres e como
negras ou indígenas. Suas contribuições para
Ao enfocar no caráter cumulativo das desi- a democracia intercultural são de dois tipos.
gualdades, o feminismo pós-colonial se desvia O primeiro pode ser chamado de a desigual-
da tradição crítica eurocêntrica e confere ao Es- dade na diferença; o segundo, a diversidade
tado intercultural e plurinacional seu mais pro- na igualdade.
fundo sentido descolonizador e anticapitalista. A desigualdade na diferença consiste em
Em segundo lugar, da democracia racial à questionar sua própria identidade étnico-racial
democracia intercultural. Em suas lutas, as para denunciar as discriminações de que são
mulheres indígenas e afrodescendentes são as vítimas as mulheres, dentro de suas comunida-
des supostamente homogêneas. Na Declaração
54 Essa afirmação, um tanto dolorosa, de diferença mencionada, a seguinte proposta pode ser lida,
em relação às irmãs mulheres, não contém fechamento sem restar dúvida:
étnico (etnocentrismo ao contrário). Pelo contrário, a
mesma Declaração inclui a seguinte proposta de parce- Gerar processos de reflexão dentro de mulheres
ria de aprendizagem intercultural: “Reconhecendo a ne- indígenas e povos indígenas sobre algumas práti-
cessidade urgente de construir entre todas as mulheres
cas, o que chamam de usos e costumes, que afe-
indígenas, camponeses, feministas, lésbicas e todos os
demais movimentos, mudanças estruturais em nossas tam nossa dignidade e trabalham pela a transfor-
sociedades nacionais que todos os dias nos tira, mata mação e eliminação das mesmas55.
sistematicamente e uniformiza todos igualmente e pul-
veriza, minimiza nossa força unida para lutar e mudar
o sistema de dominação, exclusão e patriarcal que vi-
vemos (…) [propomos] construir alianças no nível de 55 Helen Safa compara as questões de gênero no mo-
nossos países com mulheres indígenas e não indígenas, vimento indígena e o movimento dos afrodescenden-
mulheres camponesas, para conhecer sobre o feminis- tes. Segundo ela, as mulheres afrodescendentes têm
mo e o olhar das mulheres indígenas de acordo com mais facilidade que as mulheres indígenas em afirmar
nossos ritmos e tempos para ir criando nossos concei- seus direitos em suas comunidades e movimentos
tos e definições. (2005: 308).
446 Boaventura de Sousa Santos

Essa contribuição para a refundação do Es- sumak kawsay ou de Pachamama, esse con-
tado Plurinacional é fundamental, porque im- ceito requer um trabalho de tradução intercul-
pede a hipertrofia da nação étnica, sua trans- tural que deve ser realizado pelos movimentos
formação em um ator coletivo comunitário de mulheres indígenas e não indígenas. A ideia
indiferenciado e estereotipado, onde os opri- central desse conceito é que nem o homem e
midos não podem ser, por definição, também nem a mulher isolados são plenamente cida-
opressores, e onde supostas manifestações de dãos ou pessoas inteiras de sua comunidade.
consenso não são mais do que visões muito se- Eles são a metade de um todo e apenas juntos
letivas de direitos coletivos, que deixam de fora constituem um ser completo perante a comu-
os direitos coletivos e individuais das mulhe- nidade. O trabalho da intelectual e ativista ai-
res. Outra contribuição igualmente importante mara María Eugenia Choque Quispe (2009: 36)
reside em mostrar que o tradicional, ancestral, sugere duas observações sobre esse conceito.
não moderno, ou como for que você queira A primeira é que, algo que talvez aconteça em
chamar, não é estático, mas dinâmico e muda todas as culturas, uma coisa são os princípios e
de acordo com sua própria lógica, seu ritmo e a outra as práticas. “Essa visão que ainda está
tempo, sem se tornar dependente de pregações ancorada no essencialismo andino, ignora a
liberais eurocêntricas de origem “onguística”. realidade cotidiana das pessoas.” Na prática, a
A segunda contribuição do feminismo des- complementaridade pode significar o reconhe-
colonizador para a democracia intercultural é cimento da importância econômica da mulher,
a diversidade na igualdade. Não há uma for- mas também sua subordinação política; pode
ma única e universal para formular a igualda- criar equidade no plano simbólico, mas restrin-
de de gênero. Na visão do mundo indígena, as gir a mulher a um papel passivo na vida públi-
relações entre homem e mulher são concebi- ca. A segunda observação é que o trabalho das
das como chacha-warmi, o conceito aimara mulheres indígenas não está em descartar o
e quéchua que significa complementaridade e conceito de chacha-warmi, mas em ressigni-
que é parte integrante de um conjunto de prin- ficá-lo, de tal modo que se consegue eliminar
cípios orientadores dos povos indígenas, onde na prática a hierarquia que se oculta por trás
também são incluídos a dualidade, a reciproci- da complementaridade. Não será um trabalho
dade, o andar junto. Tal como os conceitos de político fácil, especialmente em sociedades
A refundação do Estado e os falsos positivos 447

nas quais todos são irmãos e as formas de en- para construir o que chamei de globalização
cobrir a subordinação são, portanto, mais sutis contra-hegemônica (Santos, 2005: 235-310), da
e mais difíceis de eliminar. Mas essa é a alterna- qual o Fórum Social Mundial foi uma das ma-
tiva para transformar sua própria cultura sem nifestações mais eloquentes da última década56.
desprezá-la ou substituí-la por outra, e assim, No entanto, a desterritorialização teve o efeito
contribuir para o enriquecimento do patrimó- negativo de desvalorizar, ou mesmo ocultar, os
nio político-cultural da luta feminista mundial diferentes contextos em que ocorre a discrimi-
até agora dominada por visões eurocêntricas e nação sexual e seu impacto nas lutas pela liber-
liberais. Como afirma Vargas: tação das mulheres. Como afirmei anteriormen-
te, o feminismo descolonizador teve o mérito de
(…) talvez o ponto de encontro de um diálogo recontextualizar a discriminação das mulheres
intercultural similar seria como alcançar as con- pertencentes a minorias (e às vezes a maiorias)
dições para que a complementaridade e paridade étnicas ou raciais e, acima de tudo, no caso das
propostas pela cosmovisão indígena se tornem mulheres indígenas, camponeses e afrodescen-
parte da utopia feminista e criadas condições reais
dentes, a recontextualização tem significado
para sua equalização para todos e tudo. (2009: 8)
também a reterritorialização da luta feminista,
Terceira contribuição do feminismo desco-
lonizador para a refundação do Estado inter- 56 A participação dos movimentos feministas no
cultural e plurinacional: o corpo como terra e FSM tem sido decisiva. Entre as articulações feminis-
território, água, árvores e recursos naturais. tas transnacionais, menciono as seguintes: Articulação
Continental de Mulheres da Coordenadora Latino-Ame-
O feminismo eurocêntrico, tanto em suas ver- ricana de Organizações do Campo, Marcha Mundial das
sões liberais quanto nas radicais (marxistas e Mulheres, Articulação Feminista MarcoSur, Develop-
não-marxistas), deu uma contribuição funda- ment Alternatives With Women for a New Era, Forum
mental para desterritorializar as relações entre des Femmes Africaines pour a Monde de l’Économie,
Fédération Démocratique Internationale des Femmes,
as vítimas de discriminação sexual ao concei-
Rede Latino-Americana e Caribenha de Mulheres Ne-
tuar e articular politicamente equivalências en- gras, Rede Latino-Americana de Mulheres Transfor-
tre formas e vítimas de discriminação nas mais mando a Economia, Rede de Educação Popular entre
diferentes partes do mundo. Contribuiu, assim, Mulheres, Women’s Global Network for Reproductive
Rights, World March of Women.
448 Boaventura de Sousa Santos

dada a centralidade da terra e do território nas epistemológico-políticos permitem reconhecer


lutas pela identidade e contra a discriminação. A a existência de um debate civilizador, e aceitar
terra e o território têm diferentes significados de suas consequências no processo de construção
luta para os diferentes movimentos, mas estão de uma democracia intercultural e da refun-
presentes e são centrais para todos eles: para as dação do Estado. A grande dificuldade deste
feministas indígenas é a luta pelo autogoverno e debate é que pressupõe uma educação públi-
pela plurinacionalidade; para as camponesas é ca (cidadã e comunitária) adequada, uma edu-
a luta pela reforma agrária e pela soberania ali- cação que: a) legitime e valorize o debate; b)
mentar; para as afrodescendentes, é a luta pela capacite os participantes no debate para uma
reconstituição das comunidades de escravos re- cultura de convivência e enfrentamento capaz
sistentes, quilombos ou palenques. E em todos de sustentar altos níveis de incerteza e risco; c)
os casos, a perspectiva feminista enriqueceu as prepare a classe política convencional para a
lutas mais amplas em que se integram. Como diz perda do controle do debate, uma vez que o de-
a líder camponesa do Movimento dos Sem-Terra bate está na sociedade como um todo, ou não
(MST) do Brasil, Itelvina Massioli (2009): passaria de uma retórica política vazia; d) crie
um novo tipo de inconformismo e rebeldia, que
(…) com certeza, nós, mulheres, elevamos o ní- saiba fluir entre a identidade de onde vêm as
vel político da organização camponesa em nosso raízes, e a desidentificação a partir do qual as
continente, pela capacidade de intervenção e de opções, ou seja, uma rebeldia mais competente
trazer os temas feministas para o interior do mo- que a que nos trouxe até aqui; e) enfim, oriente-
vimento camponês.
-se para a criação de um novo senso comum in-
tercultural, o que implica outras mentalidades
A educação para a democracia e subjetividades57.
intercultural e a refundação do
Estado a partir da epistemologia
do Sul 57 A decisão da Corte Constitucional do Equador so-
Os dois instrumentos centrais da epistemo- bre a Universidade Intercultural das Nacionalidades e
logia do Sul são a ecologia do conhecimento Povos Indígenas AmawtayWasi, analisada anteriormen-
te, fornece indicações preciosas sobre os quadros epis-
e a tradução intercultural. Esses instrumentos
temológicos e institucionais da educação intercultural.
A refundação do Estado e os falsos positivos 449

A ecologia dos saberes e a tradução inter- e consistência. Por outro lado, visa facilitar a
cultural devem ser parte importante desse am- autoeducação de cientistas/estudantes/artis-
plo processo educacional, o que implica uma tas sociais progressistas comprometidos com
transformação profunda tanto dos sistemas os novos processos de transformação social,
oficiais de educação pública como do que cha- oferecendo-lhes a oportunidade de um diálogo
mamos de educação popular e comunitária. direto com seus protagonistas. Isso permitiria
Em outras obras, detalhei, por exemplo, as identificar, e quando possível, eliminar a dis-
mudanças que a universidade como a conhe- crepância entre as estruturas analíticas e teóri-
cemos hoje precisa enfrentar58, propondo a cas em que foram formadas, e as necessidades
criação de uma Universidade Popular dos Mo- e aspirações concretas que surgem de novas
vimentos Sociais (UPMS)59. práticas transformadoras.
A UPMS visa superar a distinção entre teoria
e prática, reunindo ambos através de encon- O Estado experimental
tros sistemáticos entre aqueles que se dedicam O que melhor caracteriza a natureza política
principalmente na prática da mudança social e do processo histórico de refundação do Esta-
aqueles que se concentram principalmente na do é, provavelmente, o experimentalismo60.
produção teórica. Por um lado, pretende facili-
tar a autoeducação de ativistas e líderes comu-
nitários de movimentos sociais e organizações 60 É necessário esclarecer que a noção de Estado ex-
não governamentais, proporcionando-lhes perimental não está em contradição com o projeto do
estruturas analíticas e teóricas adequadas. Es- Estado plurinacional. A plurinacionalidade é, no con-
sas estruturas permitiriam aprofundar a com- texto boliviano e equatoriano, a matriz estrutural da re-
fundação do Estado. O experimentalismo do Estado é
preensão reflexiva de sua própria prática, seus
parte da metodologia política e institucional da criação
métodos e objetivos, melhorando sua eficácia do Estado plurinacional. Os processos políticos que
buscam criar o Estado plurinacional estão ocorrendo
dentro de um marco de transformação democrática.
Isso significa que as forças políticas e sociais que lutam
58 Ver Santos, 2008d. pelo novo projeto de Estado estão condenadas a fazê-lo
59 Ver <http://www.universidadepopular.org/pages/ de fora e dentro do Estado. Isto é, o estado plurinacio-
es/inicio.php>. nal será construído em parte a partir do antigo Estado
450 Boaventura de Sousa Santos

De fato, o ato de ruptura fundamental com o acidentes próprios de um constitucionalismo


constitucionalismo moderno eurocêntrico é de baixo e transformador. Algumas questões
a instituição de um Estado experimental. Um terão que ser deixadas em aberto, provavel-
processo de refundação do Estado é semicego mente para futuras assembleias constituintes.
e semi-invisível, não tem orientações precisas O experimentalismo pode assumir duas for-
nem sempre segue o caminho que os cidadãos mas: a reflexiva e a não reflexiva. A forma re-
e os povos imaginam. Não há receitas do tipo flexiva consiste em pressupor, em disposições
“tamanho único”, tão queridas para o libera- transitórias, que as instituições criadas são
lismo moderno; todas as soluções podem ser incompletas e que as leis têm um prazo de va-
perversas e contraproducentes. Não é possível lidade curto. Em termos organizacionais, isso
resolver todas as questões ou prever todos os significa que: a) as inovações institucionais e
legislativas entram em vigor por um curto pe-
ríodo de tempo (a ser definido de acordo com
moderno. Este é um enorme desafio, já que o Estado
Plurinacional questiona não somente as tradições e es-
o tema) ou somente em uma parte do território
truturas políticas e institucionais, mas também as men- ou em um determinado setor da administra-
talidades funcionais e burocráticas, a cultura monocul- ção pública; b) as inovações são monitoradas/
tural republicana e, em última instância, o conceito de avaliadas de forma permanente por centros de
sociedade civil e as relações desta com o Estado. Este pesquisa independentes, os quais produzem re-
desafio é tão exigente que frequentemente se questiona
a própria viabilidade de refundar o Estado. Se tal possi- latórios regulares sobre o desempenho e sobre
bilidade é admitida, como defendo, é prudente pensar a existência de forças externas ou internas in-
que estamos ante a um processo histórico de destrui- teressadas em distorcer tal desempenho; c) Ao
ção e de construção institucional que a cada momento final do período experimental, há novos deba-
se apresenta como algo transitório e provisório, como
tes e decisões políticas para determinar o novo
um campo de disputa em que o institucional, o político
e o cultural se confundem. Ao assumir o caráter provi- perfil das instituições e das leis, uma vez avalia-
sório e transitório da institucionalidade e disputar em dos os resultados do monitoramento.
cada momento o sentido histórico de seu desenvolvi- O experimentalismo não reflexivo, por sua
mento, é o que chamo de Estado experimental. No caso vez, é o experimentalismo resultante de prá-
boliviano e equatoriano, o experimento envolve tanto o
ticas políticas repetidamente interrompidas e
Estado de plurinacionalidade quanto a plurinacionali-
dade do Estado. contraditórias, que ainda assumem uma forma
A refundação do Estado e os falsos positivos 451

política própria, a forma política do experimen- que permite ao povo manter por mais tempo o
talismo reflexivo. poder constituinte, por todo o tempo em que
O estado experimental é o desafio mais radi- a experimentação ocorrer e as revisões sejam
cal ao Estado moderno, cujas instituições e leis, decididas. É, portanto, um processo constituin-
e sobre tudo as Constituições, estão aparente- te prolongado que gera uma tensão contínua
mente gravadas em pedra. Obviamente, a reali- entre o constituído e o constituinte.
dade não poderia ser mais contrastante: a obso-
lescência das Constituições e a eficácia muitas Bibliografia
vezes meramente simbólica das leis ordinárias, Acosta, A. 2008 Bitácora constituyente
para usar o conceito de Mauricio García-Ville- (Quito: Abya Yala).
gas (1993). Por outro lado, o Estado em proces- Acosta, A. 2009 “Siempre más democracia
so de refundação assume a transitoriedade das nunca menos: a manera de prólogo” in
soluções não apenas por razões técnicas, mas Acosta, A. e Martínez, E. (eds.) El buen
também por questões políticas. O processo de vivir: una vía para el desarrollo (Quito:
refundação do Estado é um processo altamente Abya Yala).
conflitivo, e a evolução da transição, que será Acosta, A. e Martínez, E. (eds.) 2009 El buen
longa, acabará por depender se os diferentes vivir: una vía para el desarrollo (Quito:
eixos de conflito (étnicos, regionais, classistas, Abya Yala).
culturais) acumulam-se e sobrepõem-se, ou se, Akiba, O. (ed.) 2004 Constitutionalism &
caso contrário, eles se neutralizam. Society in Africa (Aldershot/Burlington:
Uma das vantagens do experimentalismo é Ashgate Publishing).
permitir uma relativa suspensão de conflitos e Alzaldúa, G. 1987 Borderlands/La Frontera.
a criação de uma semântica política ambígua, The New Mestiza (São Francisco: Aunt Lute
na qual não há vencedores ou perdedores de- Books).
finitivos. Cria um tempo político que pode ser Alzaldúa, G. 2004 “Los movimientos de
precioso para diminuir a polarização. Essa efi- rebeldía y las culturas que traicionan”
cácia política é a dimensão instrumental do in Hooks, B. et al. Otras inapropiables:
Estado experimental. No entanto, sua defesa feminismos desde las fronteras (Madrid:
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452 Boaventura de Sousa Santos

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Catorze cartas às esquerdas*

Primeira carta às esquerdas grupos em meios para os seus fins. O capita-


lismo não é a única fonte de dominação, mas é
Ideias básicas para um recomeço das uma fonte importante.
esquerdas (agosto de 2011) Os diferentes entendimentos deste ideal le-

N ão ponho em causa que haja um futuro


para as esquerdas, mas o seu futuro não
vai ser uma continuação linear do seu pas-
varam a diferentes clivagens. As principais re-
sultaram de respostas opostas às seguintes per-
guntas. Poderá o capitalismo ser reformado de
sado. Definir o que têm em comum equivale modo a melhorar a sorte dos dominados, ou tal
a responder à pergunta: o que é a esquerda? só é possível para além do capitalismo? A luta
A esquerda é um conjunto de posições políti- social deve ser conduzida por uma classe (a clas-
cas que partilham o ideal de que os humanos se operária) ou por diferentes classes ou grupos
têm todos o mesmo valor, e são o valor mais sociais? Deve ser conduzida dentro das institui-
alto. Esse ideal é posto em causa sempre que ções democráticas ou fora delas? O Estado é, ele
há relações sociais de poder desigual, isto é, próprio, uma relação de dominação, ou pode ser
de dominação. Neste caso, alguns indivíduos mobilizado para combater as relações de domi-
ou grupos satisfazem algumas das suas neces- nação? As respostas opostas a estas perguntas
sidades, transformando outros indivíduos ou estiveram na origem de violentas clivagens. Em
nome da esquerda cometeram-se atrocidades
* Extraído de Santos, B. de Sousa 2018 “Catorze car-
contra a esquerda; mas, no seu conjunto, as es-
tas às esquerdas” in Pneumatóforo. Escritos Políticos querdas dominaram o século XX (apesar do na-
1981-2018 (Coimbra: Almedina) pp. 347-404. zismo, do fascismo e do colonialismo) e o mun-
456 Boaventura de Sousa Santos

do tornou-se mais livre e mais igual graças a elas. mundo mostra que há imensas realidades não
Este curto século de todas as esquerdas termi- capitalistas, guiadas pela reciprocidade e pelo
nou com a queda do Muro de Berlim. Os últimos cooperativismo, à espera de serem valorizadas
trinta anos foram, por um lado, uma gestão de como o futuro dentro do presente. Quinto, o
ruínas e de inércias e, por outro, a emergência século passado revelou que a relação dos hu-
de novas lutas contra a dominação, com outros manos com a natureza é uma relação de domi-
actores e linguagens que as esquerdas não pude- nação contra a qual há que lutar; o crescimento
ram entender. Entretanto, livre das esquerdas, económico não é infinito. Sexto, a propriedade
o capitalismo voltou a mostrar a sua vocação privada só é um bem social se for uma entre
anti-social. Voltou a ser urgente reconstruir as várias formas de propriedade e se todas forem
esquerdas para evitar a barbárie. protegidas; há bens comuns da humanidade
Como recomeçar? Pela aceitação das se- (como a água e o ar). Sétimo, o curto século
guintes ideias. Primeiro, o mundo diversificou- das esquerdas foi suficiente para criar um espí-
-se e a diversidade instalou-se no interior de rito igualitário entre os humanos que sobressai
cada país. A compreensão do mundo é muito em todos os inquéritos; este é um património
mais ampla que a compreensão ocidental do das esquerdas que estas têm vindo a dilapidar.
mundo; não há internacionalismo sem inter- Oitavo, o capitalismo precisa de outras formas
culturalismo. Segundo, o capitalismo concebe de dominação para florescer, do racismo ao
a democracia como um instrumento de acumu- sexismo e à guerra e todas devem ser comba-
lação; se for preciso, redu-la à irrelevância e, tidas. Nono, o Estado é um animal estranho,
se encontrar outro instrumento mais eficiente, meio anjo meio monstro, mas, sem ele, muitos
dispensa-a (o caso da China). A defesa da de- outros monstros andariam à solta, insaciáveis
mocracia de alta intensidade é a grande ban- à cata de anjos indefesos. Melhor Estado, sem-
deira das esquerdas. Terceiro, o capitalismo é pre; menos Estado, nunca.
amoral e não entende o conceito de dignidade Com estas ideias, vão continuar a ser várias
humana; a defesa desta é uma luta contra o ca- as esquerdas, mas já não é provável que se ma-
pitalismo e nunca com o capitalismo (no capi- tem umas às outras e é possível que se unam
talismo, mesmo as esmolas só existem como para travar a barbárie que se aproxima.
relações públicas). Quarto, a experiência do
Catorze cartas às esquerdas 457

Segunda carta às esquerdas Está em curso um processo global de de-


sorganização do Estado democrático. A or-
Ante o neoliberalismo ganização deste tipo de Estado baseia-se em
(setembro de 2011) três funções: a função de confiança, por via
A democracia política pressupõe a existên- da qual o Estado protege os cidadãos contra
cia do Estado. Os problemas que vivemos hoje forças estrangeiras, crimes e riscos colecti-
na Europa mostram que não há democracia eu- vos; a função de legitimidade, através da qual
ropeia porque não há Estado europeu. E porque o Estado garante a promoção do bem estar;
muitas prerrogativas soberanas foram transfe- e a função de acumulação, com a qual o Es-
ridas para instituições europeias, as democra- tado garante a reprodução do capital a troco
cias nacionais são hoje menos robustas por- de recursos (tributação, controlo de sectores
que os Estados nacionais são pós-soberanos. estratégicos) que lhe permitam desempenhar
Os défices democráticos nacionais e o défice as duas outras funções.
democrático europeu alimentam-se uns aos Os neoliberais pretendem a desorganizar o
outros e todos se agravam por, entretanto, as Estado democrático através da inculcação na
instituições europeias terem decidido transfe- opinião pública da suposta necessidade de vá-
rir para os mercados financeiros (isto é, para rias transições. Primeira: da responsabilidade
meia dúzia de grandes investidores, à frente dos colectiva para a responsabilidade individual.
quais o Deutsche Bank) parte das prerrogativas Segundo os neoliberais, as expectativas da vida
transferidas para elas pelos Estados nacionais. dos cidadãos derivam do que eles fazem por si
Ao cidadão comum será hoje fácil concluir (la- e não do que a sociedade pode fazer por eles.
mentavelmente só hoje) que foi uma trama bem Tem êxito na vida quem toma boas decisões ou
urdida para incapacitar os Estados europeus tem sorte e fracassa quem toma más decisões
no desempenho das suas funções de protecção ou tem pouca sorte. As condições diferencia-
dos cidadãos contra riscos colectivos e de pro- das do nascimento ou do país não devem ser
moção do bem estar social. Esta trama neolibe- significativamente alteradas pelo Estado. Se-
ral tem vindo a ser urdida em todo o mundo, e gunda: da acção do Estado baseada na tributa-
a Europa só teve o privilégio de ser “tramada” à ção para a acção do Estado baseada no crédito.
europeia. Vejamos como aconteceu. A lógica distributiva da tributação permite ao
458 Boaventura de Sousa Santos

Estado expandir-se à custa dos rendimentos num mal quando, de facto, é um bem. Entre
mais altos, o que, segundo os neoliberais, é in- quem dá esmola e quem a recebe não há igual-
justo, enquanto a lógica distributiva do crédito dade possível, um é sujeito da caridade e o ou-
obriga o Estado a conter-se e a pagar o devido tro é objecto dela.
a quem lhe empresta. Esta transição garante a Perante este perturbador receituário neoli-
asfixia financeira do Estado, a única medida beral, é difícil imaginar que as esquerdas não
eficaz contra as políticas sociais. Terceira: do estejam de acordo sobre o princípio “melhor
reconhecimento da existência de bens públi- Estado, sempre; menos Estado, nunca” e que
cos (educação, saúde) e interesses estratégicos disso não tirem consequências.
(água, telecomunicações, correios) a serem
zelados pelo Estado para a ideia de que cada Terceira carta às esquerdas
intervenção do Estado em área potencialmente
A urgência de esquerdas reflexivas
rentável é uma limitação ilegítima das oportu-
(dezembro de 2011)
nidades de lucro privado. Quarta: do princípio
da primazia do Estado para o princípio da pri- Quando estão no poder, as esquerdas não
mazia da sociedade civil e do mercado. O Es- têm tempo para reflectir sobre as transforma-
tado é sempre ineficiente e autoritário. A força ções que ocorrem nas sociedades e quando o
coercitiva do Estado é hostil ao consenso e à fazem é sempre por reação a qualquer acon-
coordenação dos interesses e limita a liberda- tecimento que perturbe o exercício do poder.
de dos empresários que são quem cria riqueza A resposta é sempre defensiva. Quando não
(dos trabalhadores não há menção). A lógica estão no poder, dividem-se internamente para
imperativa do governo deve ser substituída na definir quem vai ser o líder nas próximas elei-
medida do possível pela lógica cooperativa de ções, e as reflexões e análises ficam vinculadas
governança entre interesses sectoriais, entre a esse objetivo. Esta indisponibilidade para re-
os quais o do Estado. Quinta, dos direitos so- flexão, se foi sempre perniciosa, é agora suici-
ciais para os apoios em situações extremas de da. Por duas razões. A direita tem à sua dispo-
pobreza ou incapacidade e para a filantropia. O sição todos os intelectuais orgânicos do capital
Estado social exagerou na solidariedade entre financeiro, das associações empresariais, das
cidadãos e transformou a desigualdade social instituições multilaterais, dos think tanks, dos
Catorze cartas às esquerdas 459

lobbistas, os quais lhe fornecem diariamente o das revoluções democráticas que avassala-
dados e interpretações que não são sempre fal- ram a Europa em 1848. A polarização social
tos de rigor e sempre interpretam a realidade era enorme porque o operariado (então uma
de modo a levar a água ao seu moinho. Pelo classe jovem) dependia do trabalho para so-
contrário, as esquerdas estão desprovidas de breviver mas (ao contrário dos pais e avós) o
instrumentos de reflexão abertos aos não mili- trabalho não dependia dele, dependia de quem
tantes e, internamente, a reflexão segue a linha o dava ou retirava a seu belprazer, o patrão;
estéril das facções. Circula hoje no mundo uma se trabalhasse, os salários eram tão baixos e
imensidão de informações e análises que pode- a jornada tão longa que a saúde perigava e a
riam ter uma importância decisiva para repen- família vivia sempre à beira da fome; se fosse
sar e refundar as esquerdas depois do duplo despedido, não tinha qualquer suporte exceto
colapso da social-democracia e do socialismo o de alguma economia solidária ou do recurso
real. O desequilíbrio entre as esquerdas e a di- ao crime. Não admira que, nessas revoluções,
reita no que respeita ao conhecimento estraté- as duas bandeiras de luta tenham sido o direito
gico do mundo é hoje maior que nunca. ao trabalho e o direito a uma jornada de traba-
A segunda razão é que as novas mobiliza- lho mais curta. 150 anos depois, a situação não
ções e militâncias políticas por causas histo- é totalmente a mesma mas as bandeiras conti-
ricamente pertencentes às esquerdas estão ser nuam a ser actuais. E talvez o sejam hoje mais
feitas sem qualquer referência a elas (salvo do que o eram há 30 anos. As revoluções foram
talvez à tradição anarquista) e muitas vezes sangrentas e falharam, mas os próprios gover-
em oposição a elas. Isto não pode deixar de nos conservadores que se seguiram tiveram
suscitar uma profunda reflexão. Está a ser fei- de fazer concessões para que a questão social
ta? Tenho razões para crer que não e a prova não descambasse em catástrofe. A que distân-
está nas tentativas de cooptar, ensinar, mini- cia estamos nós da catástrofe? Por enquanto,
mizar, ignorar a nova militância. Proponho al- a mobilização contra a escandalosa desigual-
gumas linhas de reflexão. A primeira diz res- dade social (semelhante à de 1848) é pacífica
peito à polarização social que está a emergir e tem um forte pendor moralista-denunciador.
das enormes desigualdades sociais. Vivemos Não mete medo ao sistema financeiro-demo-
um tempo que tem algumas semelhanças com crático. Quem pode garantir que assim conti-
460 Boaventura de Sousa Santos

nue? A direita está preparada para a resposta sentirem confortáveis com formas de democra-
repressiva a qualquer alteração que se torne cia de alta intensidade (no interior dos partidos
ameaçadora. Quais são os planos das esquer- e na república) esse será o sinal de que devem
das? Vão voltar a dividir-se como no passado, retirar-se ou refundar-se?
umas tomando a posição da repressão e ou-
tras, a da luta contra a repressão? Quarta carta às esquerdas
A segunda linha de reflexão tem igualmente
Colonialismo, democracia
muito a ver com as revoluções de 1848 e con-
e esquerdas (janeiro de 2012)
siste em como voltar a conectar a democracia
com as aspirações e as decisões dos cidadãos. As divisões históricas entre as esquerdas
Das palavras de ordem de 1848, sobressaíam foram justificadas por uma imponente cons-
liberalismo e democracia. Liberalismo signifi- trução ideológica mas, na verdade, a sua sus-
cava governo republicano, separação ente Es- tentabilidade prática — ou seja, a credibilidade
tado e religião, liberdade de imprensa; demo- das propostas políticas que lhes permitiram
cracia significava sufrágio “universal” para os colher adeptos — assentou em três factores:
homens. Neste domínio, muito se avançou nos o colonialismo, que permitiu a deslocação da
últimos 150 anos. No entanto, as conquistas acumulação primitiva de capital (por despos-
têm vindo a ser postas em causa nos últimos 30 sessão violenta, com incontável sacrifício hu-
anos e nos últimos tempos a democracia mais mano, muitas vezes ilegal mas sempre impune)
parece uma casa fechada, ocupada por um gru- para fora dos países capitalistas centrais onde
po de extraterrestres que decide democratica- se travavam as lutas sociais consideradas deci-
mente pelos seus interesses e ditatorialmente sivas; a emergência de capitalismos nacionais
pelos interesses das grandes maiorias. Um re- com características tão diferenciadas (capita-
gime misto, uma democradura. O movimento lismo de Estado, corporativo, liberal, social-
dos indignados e do occupy recusam a expro- -democrático) que davam credibilidade à ideia
priação da democracia e optam por tomar de- de que haveria várias alternativas para superar
cisões por consenso nas sua assembleias. São o capitalismo; e, finalmente, as transforma-
loucos ou são um sinal das exigências que vêm ções que as lutas socias foram operando na
aí? As esquerdas já terão pensado que se não se democracia liberal, permitindo alguma redis-
Catorze cartas às esquerdas 461

tribuição social e separando, até certo ponto, o (Índia, Brasil, África do Sul, e o caso especial
mercado das mercadorias (dos valores que têm da China, humilhada pelo imperialismo oci-
preço e se compram e se vendem) do mercado dental durante o século XIX) e a tal ponto que
das convicções (das opções e dos valores po- não sabemos se haverá no futuro novas metró-
líticos que, não tendo preço, não se compram poles e, por implicação, novas colónias.
nem se vendem). Se para algumas esquerdas Quanto aos capitalismos nacionais, o seu
tal separação era um facto novo, para outras, fim parece traçado pela máquina trituradora do
era um ludíbrio perigoso. neoliberalismo. É certo que na América Latina
Os últimos anos alteraram tão profunda- e na China parecem emergir novas versões de
mente qualquer destes factores que nada será dominação capitalista, mas intrigantemente
como dantes para as esquerdas tal como as co- todas elas se prevalecem das oportunidades
nhecemos. No que respeita ao colonialismo, as que o neoliberalismo lhes confere. Ora, 2011
mudanças radicais são de dois tipos. Por um provou que a esquerda e o neoliberalismo são
lado, a acumulação de capital por desposses- incompatíveis. Basta ver como as cotações bol-
são violenta voltou às ex-metrópoles (furtos sistas sobem na exacta medida em que aumen-
de salários e pensões; transferências ilegais de ta desigualdade social e se destrói a protecção
fundos colectivos para resgatar bancos priva- social. Quanto tempo levarão as esquerdas a
dos; impunidade total do gangsterismo finan- tirar as consequências?
ceiro), pelo que uma luta de tipo anti-colonial Finalmente, a democracia liberal agoniza
terá de ser agora travada também nas metró- sob o peso dos poderes fácticos (máfias, ma-
poles, uma luta que, como sabemos, nunca çonaria, opus dei, transnacionais, FMI, Banco
se pautou pelas cortesias parlamentares. Por Mundial) e da impunidade da corrupção, do
outro lado, apesar de o neocolonialismo (a abuso do poder e do tráfico de influências. O
continuação de relações de tipo colonial en- resultado é a fusão crescente entre o merca-
tre as ex-colónias e as ex-metrópoles ou seus do político das ideias e o mercado económico
substitutos, caso dos EUA) ter permitido que dos interesses. Está tudo à venda e só não se
a acumulação por despossessão no mundo vende mais porque não há quem compre. Nos
ex-colonial tenha prosseguido até hoje, parte últimos cinquenta anos as esquerdas (todas
deste está a assumir um novo protagonismo elas) deram um contributo fundamental para
462 Boaventura de Sousa Santos

que a democracia liberal tivesse alguma credi- como se fosse necessário para a sua situação
bilidade junto das classes populares e os con- não piorar ainda mais? Porque é que a estabili-
flitos sociais pudessem ser resolvidos em paz. dade dos mercados financeiros só é possível à
Sendo certo que a direita só se interessa pela custa da instabilidade da vida da grande maio-
democracia na medida em que esta serve os ria da população? Porque é que os capitalistas
seus interesses, as esquerdas são hoje a grande individualmente são, em geral, gente de bem e
garantia do resgate da democracia. Estarão à o capitalismo, no seu todo, é amoral? Porque é
altura da tarefa? Terão a coragem de refundar que o crescimento económico é hoje a panaceia
a democracia para além do liberalismo? Uma para todos os males da economia e da socieda-
democracia robusta contra a antidemocracia, de sem que se pergunte se os custos sociais e
que combine a democracia representativa com ambientais são ou não sustentáveis? Porque é
a democracia participativa e a democracia di- que Malcolm X estava cheio de razão quando
recta? Uma democracia anticapitalista ante um advertiu: “se não tiverdes cuidado, os jornais
capitalismo cada vez mais antidemocrático? convencer-vos-ão de que a culpa dos problemas
sociais é dos oprimidos, e não de quem os opri-
Quinta carta às esquerdas me”? Porque é que as críticas que as esquerdas
fazem ao neoliberalismo entram nos noticiários
Democratizar, desmercantilizar,
com a mesma rapidez e irrelevância com que
descolonizar (abril de 2012)
saem? Porque é que as alternativas escasseiam
Porque é que a actual crise do capitalismo no momento em que são mais necessárias?
fortalece quem a causou? Porque é que a ra- Estas questões devem estar na agenda de
cionalidade da “solução” da crise assenta nas reflexão política das esquerdas sob pena de, a
previsões que faz e não nas consequências que prazo, serem remetidas ao museu das felicida-
quase sempre as desmentem? Porque é que está des passadas. Isso não seria grave se esse facto
a ser tão fácil ao Estado trocar o bem-estar dos não significasse, como significa, o fim da felici-
cidadãos pelo bem-estar dos bancos? Porque é dade futura das classes populares. A reflexão
que a grande maioria dos cidadãos assiste ao deve começar por aí: o neoliberalismo é, antes
seu empobrecimento como se fosse inevitável de tudo, uma cultura de medo, de sofrimento
e ao enriquecimento escandaloso de poucos e de morte para as grandes maiorias; não se
Catorze cartas às esquerdas 463

combate com eficácia se não se lhe opuser uma desmercantilizar, descolonizar. Democratizar a
cultura de esperança, de felicidade e de vida. própria democracia, já que a actual se deixou
A dificuldade que as esquerdas têm em assu- sequestrar por poderes anti-democráticos. É
mirem-se como portadoras desta outra cultu- preciso tornar evidente que uma decisão de-
ra decorre de terem caído durante demasiado mocraticamente tomada não pode ser destruí-
tempo na armadilha com que as direitas sem- da no dia seguinte por uma agência de rating
pre se mantiveram no poder: reduzir a realida- ou por uma baixa de cotação nas bolsas (como
de ao que existe, por mais injusta e cruel que pode vir a acontecer proximamente em Fran-
seja, para que a esperança das maiorias pareça ça). Desmercantilizar significa mostrar que usa-
irreal. O medo na espera mata a esperança na mos, produzimos e trocamos mercadorias, mas
felicidade. Contra esta armadilha é preciso par- que não somos mercadorias nem aceitamos
tir da ideia de que a realidade é a soma do que relacionar-nos com os outros e com a nature-
existe e de tudo o que nela é emergente como za como se fossem apenas mercadorias. Somos
possibilidade e como luta pela sua concretiza- cidadãos antes de sermos empreendedores ou
ção. Se não souberem detectar as emergências, consumidores e para o sermos é imperativo que
as esquerdas submergem ou vão para o museu, nem tudo se compre e nem tudo se venda, que
o que dá no mesmo. haja bens públicos e bens comuns como a água,
Este é o novo ponto de partida das esquer- a saúde, a educação. Descolonizar significa er-
das, a nova base comum que lhes permitirá de- radicar das relações sociais a autorização para
pois divergirem fraternalmente nas respostas dominar os outros sob o pretexto de que são in-
que derem às perguntas que formulei. Uma vez feriores: porque são mulheres, porque têm uma
ampliada a realidade sobre que se deve actuar cor de pele diferente, ou porque pertencem a
politicamente, as propostas das esquerdas de- uma religião estranha.
vem ser credivelmente percebidas pelas gran-
des maiorias como prova de que é possível lutar Sexta carta às esquerdas
contra a suposta fatalidade do medo, do sofri-
À esquerda do possível (maio de 2012)
mento e da morte em nome do direito à espe-
rança, à felicidade e à vida. Essa luta deve ser Historicamente, as esquerdas dividiram-se
conduzida por três palavras-guia: democratizar, sobre os modelos de socialismo e as vias para
464 Boaventura de Sousa Santos

os realizar. Não estando o socialismo, por agora, mesmo texto. Assim sendo, é perturbadora a
na agenda política — mesmo na América Latina disjunção atual entre as esquerdas europeias
a discussão sobre o socialismo do século XXI e as esquerdas de outros continentes, nomea-
perde fôlego —, as esquerdas parecem dividir- damente as esquerdas latino-americanas. En-
-se sobre os modelos de capitalismo. À primeira quanto as esquerdas europeias parecem estar
vista, esta divisão faz pouco sentido pois, por de acordo em que o crescimento é a solução
um lado, há neste momento um modelo global para todos os males da Europa, as esquerdas
de capitalismo, de longe hegemónico, domina- latino-americanas estão profundamente divi-
do pela lógica do capital financeiro, assente na didas sobre o crescimento e o modelo de de-
busca do máximo lucro no mais curto espaço senvolvimento em que este assenta. Vejamos
de tempo, quaisquer que sejam os custos so- o contraste. As esquerdas europeias parecem
ciais ou o grau de destruição da natureza. Por ter descoberto que a aposta no crescimento
outro lado, a disputa por modelos de capitalis- económico é o que as distingue das direitas,
mo deveria ser mais uma disputa entre as direi- apostadas na consolidação orçamental e na
tas do que entre as esquerdas. De facto, assim austeridade. O crescimento significa emprego
não é. Apesar da sua globalidade, o modelo de e este, a melhoria das condições de vida das
capitalismo agora dominante assume caracte- maiorias. Não problematizar o crescimento
rísticas distintas em diferentes países e regiões implica a ideia de que qualquer crescimento é
do mundo e as esquerdas têm um interesse vital bom. É uma ideia suicida para as esquerdas.
em discuti-las, não só porque estão em causa as Por um lado, as direitas facilmente a aceitam
condições de vida, aqui e agora, das classes po- (como já estão a aceitar, por estarem conven-
pulares que são o suporte político das esquer- cidas de que será o seu tipo de crescimento a
das, como também porque a luta por horizontes prevalecer). Por outro lado, significa um retro-
pós-capitalistas — de que algumas esquerdas cesso histórico grave em relação aos avanços
ainda não desistiram, e bem — dependerá mui- das lutas ecológicas das últimas décadas, em
to do capitalismo real de que se partir. que algumas esquerdas tiveram um papel de-
Sendo global o capitalismo, a análise dos terminante. Ou seja, omite-se que o modelo de
diferentes contextos deve ter em mente que crescimento dominante é insustentável. Em
eles, apesar das suas diferenças, são parte do pleno período preparatório da Conferência da
Catorze cartas às esquerdas 465

ONU Rio+20, não se fala de sustentabilidade, rica Latina a ser exportadora de natureza para
não se questiona o conceito de economia verde os centros imperiais que saqueiam as imensas
mesmo que, para além da cor das notas de dó- riquezas e destroem os modos de vida e as cul-
lar, seja difícil imaginar um capitalismo verde. turas dos povos. A confrontação é tão intensa
Em contraste, na América Latina as esquer- que põe em causa a estabilidade política de pa-
das estão polarizadas como nunca sobre o mo- íses como a Bolívia ou o Equador.
delo de crescimento e de desenvolvimento. A O contraste entre as esquerdas europeias e
voracidade da China, o consumo digital seden- latino-americanas reside em que só as primei-
to de metais raros e a especulação financeira ras subscreveram incondicionalmente o “pacto
sobre a terra, as matérias-primas e os bens colonial”, segundo o qual os avanços do capi-
alimentares estão a provocar uma corrida sem talismo valem por si, mesmo que tenham sido
precedentes aos recursos naturais: exploração (e continuem a ser) obtidos à custa da opres-
mineira de larga escala e a céu aberto, explora- são colonial dos povos extraeuropeus. Nada de
ção petrolífera, expansão da fronteira agríco- novo na frente ocidental enquanto for possível
la. O crescimento económico que esta corrida fazer o outsourcing da miséria humana e da
propicia choca com o aumento exponencial da destruição da natureza.
dívida socio-ambiental: apropriação e contami- Para superar este contraste e iniciar a cons-
nação da água, expulsão de muitos milhares trução de alianças transcontinentais seriam
de camponeses pobres e de povos indígenas necessárias duas condições. As esquerdas eu-
das suas terras ancestrais, deflorestação, des- ropeias deveriam pôr em causa o consenso do
truição da biodiversidade, ruina de modos de crescimento que, ou é falso, ou significa uma
vida e de economias que até agora garantiram a cumplicidade repugnante com uma demasia-
sustentabilidade. Confrontadas com esta con- do longa injustiça histórica. Deveriam discutir
tradição, uma parte das esquerdas opta pela a questão da insustentabilidade, pôr em cau-
oportunidade extractivista, desde que os ren- sa o mito do crescimento infinito e a ideia da
dimentos que ela gera sejam canalizados para inesgotável disponibilidade da natureza em
reduzir a pobreza e construir infraestruturas. que assenta, assumir que os crescentes custos
A outra parte vê no novo extrativismo a fase sócio-ambientais do capitalismo não são su-
mais recente da condenação colonial da Amé- peráveis com imaginárias economias verdes,
466 Boaventura de Sousa Santos

defender que a prosperidade e a felicidade da do impossível. Está em saber estar sempre no


sociedade depende menos do crescimento do lado esquerdo do possível.
que da justiça social e da racionalidade am-
biental, ter a coragem de afirmar que a luta Sétima carta às esquerdas
pela redução da pobreza é uma burla para dis-
A mudança de paradigma
farçar a luta que não se quer travar contra a
(junho de 2012)
concentração da riqueza.
Por sua vez, as esquerdas latino-americanas A que esquerdas me dirijo? Aos partidos e
deveriam discutir as antinomias entre o cur- movimentos sociais que lutam contra o capita-
to e o longo prazo, ter em mente que o futu- lismo, o colonialismo, o racismo, o sexismo e
ro das rendas diferenciais geradas atualmente a homofobia, e a todos os cidadãos que não se
pela exploração dos recursos naturais está nas consideram organizados, mas partilham os ob-
mãos de umas poucas empresas multinacio- jetivos e aspirações daqueles que se organizam
nais e que, no final deste ciclo extractivista, os para lutar contra tais objetivos. É um público
países podem estar mais pobres e dependentes muito vasto, sobretudo porque inclui aqueles
do que nunca, reconhecer que o nacionalismo que têm práticas de esquerda sem se conside-
extractivista garante ao Estado receitas que rarem de esquerda. E, no entanto, parece tão
podem ter uma importante utilidade social se, pequeno. Nas últimas semanas, as esquerdas
em parte pelo menos, forem utilizadas para fi- tiveram a oportunidade de vivenciar a riqueza
nanciar uma política da transição, que deve co- global das alternativas que oferecem e de iden-
meçar desde já, do extrativismo predador para tificar bem as forças de direita a que se opõem.
uma economia plural em que o extrativismo só Infelizmente, essa oportunidade foi desperdi-
seja útil na medida em que for indispensável. çada. Na Europa, as esquerdas estavam avas-
As condições para políticas de convergência saladas pelas crises e urgências do imediato e,
global são exigentes, mas não são impossíveis noutros continentes, os média ocultaram o que
e apontam para opções que não devem ser des- de novo e de esquerda pairava no ar.
cartadas sob pretexto de serem políticas do Refiro-me à Conferência da ONU Rio+20 e à
impossível. A questão não está em ter de op- Cúpula dos Povos que se realizaram no Rio de
tar pela política do possível contra a política Janeiro. A primeira realizou-se na Barra da Ti-
Catorze cartas às esquerdas 467

juca e a segunda no Aterro do Flamengo. Eram ticas que os movimentos sociais de todo o
poucos os quilómetros que as separavam, mas mundo estão a levar a cabo para permitir que
havia um vasto oceano de distância política as gerações vindouras usufruam do planeta em
entre elas. Na Barra, estavam os governos e condições pelo menos iguais às de que dispo-
a sociedade civil bem comportada, incluindo mos. Milhares de pessoas, centenas de eventos,
as empresas multinacionais que cozinhavam um conjunto inabarcável de práticas e de pro-
os discursos e organizavam o cerco aos nego- postas de sustentabilidade. Alguns exemplos:
ciadores oficiais. Na Barra, a direita mundial defesa dos espaços públicos nas cidades que
deu um espectáculo macabro de arrogância e priorizem o pedestre, o convívio social, a vida
de cinismo ante os desafios incontornáveis da associativa, com gestão democrática e parti-
sustentabilidade da vida no planeta. Nenhum cipação popular, transportes coletivos, hortas
compromisso obrigatório para reduzir os gases comunitárias e praças sensoriais; economia
do efeito estufa, nenhuma responsabilidade cooperativa e solidária; soberania alimentar,
diferenciada para os países que mais têm po- agricultura familiar e educação para a alimen-
luído, nenhum fundo para o desenvolvimento tação sem produtos agrotóxicos; novo para-
sustentável, nenhum direito de acesso univer- digma de produção-consumo que fortaleça as
sal à saúde, nenhuma quebra de patentes far- economias locais articuladas translocalmente;
macêuticas em situações de emergência e de substituição do PIB por indicadores que inclu-
pandemias. Em vez disso, a economia verde, o am a economia do cuidado, a saúde colectiva, a
cavalo de Troia para o capital financeiro pas- sociedade decente e a prosperidade não assen-
sar a gerir os bens globais e os serviços que a te no consumo compulsivo; mudança na matriz
natureza nos presta gratuitamente. Qualquer energética baseada nas energias renováveis
cidadão menos poluído entende que não é ven- descentralizadas; substituição do conceito de
dendo natureza que a podemos defender e não capital natural pelo de natureza como sujei-
acredita que os problemas do capitalismo se to de direitos; defesa de bens comuns, como
possam resolver com mais capitalismo. Mas foi a água e a biodiversidade, que apenas permi-
isso o que os média levaram ao mundo. tem direitos de uso temporários; garantia do
Ao contrário, a Cúpula dos Povos foi a ex- direito à terra e ao território das populações
pressão da riqueza do pensamento e das prá- camponesas e indígenas; democratização dos
468 Boaventura de Sousa Santos

meios de comunicação; tributação penalizante exercido em favor das minorias mais ricas?
das atividades extrativas e industriais conta- Porque é que, neste domínio, é cada vez mais
minantes; direito à saúde sexual e reprodutiva difícil distinguir entre os países do Norte e os
das mulheres; reforma democrática do Estado países do Sul?
que elimine a pandemia da corrupção e trave a
transformação em curso do Estado protector Os factos
em Estado predador; transferências de tecno- Nos últimos anos, os partidos socialistas de
logia que atenuem a dívida ecológica. vários países europeus (Grécia, Portugal e Es-
Se as esquerdas quiserem ter futuro, têm de panha) mostraram que podiam zelar tão bem
adoptar o futuro que está contido nestas pro- pelos interesses dos credores e especuladores
postas e transformá-las em políticas públicas. internacionais quanto qualquer partido de di-
reita, não parecendo nada anormal que os di-
Oitava carta às esquerdas reitos dos trabalhadores fossem expostos às
Os direitos humanos: as últimas cotações das bolsas de valores e, portanto, de-
trincheiras (agosto de 2012) vorados por elas. Na África do Sul, a polícia ao
serviço do governo do ANC, que lutou contra o
Quem poderia imaginar há uns anos que par-
apartheid em nome das maiorias negras, mata
tidos e governos considerados progressistas ou
34 mineiros em greve para defender os interes-
de esquerda abandonassem a defesa dos mais
ses de uma empresa mineira inglesa. Bem per-
básicos direitos humanos, por exemplo, o di-
to, em Moçambique, o governo da Frelimo, que
reito à vida, ao trabalho e à liberdade de ex-
conduziu a luta contra o colonialismo portu-
pressão e de associação, em nome dos impera-
guês, atrai o investimento das empresas extrac-
tivos do “desenvolvimento”? Acaso não foi por
tivistas com a isenção de impostos e a oferta
via da defesa desses direitos que granjearam
da docilidade (a bem ou a mal) das populações
o apoio popular e chegaram ao poder? Que se
que estão a ser afectadas pela mineração a céu
passa para que o poder, uma vez conquistado,
aberto. Na Índia, o governo do partido do Con-
se vire tão fácil e violentamente contra quem
gresso, que lutou contra o colonialismo inglês,
lutou para que ele fosse poder? Por que razão,
faz concessões de terras a empresas nacionais
sendo um poder das maiorias mais pobres, é
e estrangeiras e ordena a expulsão de milhares
Catorze cartas às esquerdas 469

e milhares de camponeses pobres, destruindo mento da sua cota anual à OEA, retira o seu
os seus meios de subsistência e provocando um candidato à CIDH e toma a iniciativa de criar
enfrentamento armado. Na Bolívia, o governo um grupo de trabalho para propor a reforma da
de Evo Morales, um indígena levado ao poder CIDH no sentido de diminuir os seus poderes
pelo movimento indígena, impõe, sem consulta de questionar os governos sobre violações de
prévia e com uma sucessão rocambolesca de direitos humanos. Curiosamente, a suspensão
medidas e contra-medidas, a construção de da construção da barragem acaba agora de ser
uma auto-estrada em território indígena (Par- decretada pelo Tribunal Regional Federal da 1ª
que Nacional TIPNIS) para escoar recursos Região (Brasília) com base na falta de estudos
naturais. No Equador, o governo de Rafael Cor- de impacto ambiental.
rea, que corajosamente concede asilo político
a Julian Assange, acaba de ser condenado pela Os riscos
Corte Interamericana de Direitos Humanos por Para responder às questões com que co-
não ter garantido os direitos do povo indígena mecei esta carta vejamos o que há de comum
Sarayaku em luta contra a exploração de petró- entre todos estes casos. Todas as violações
leo nos seus territórios. E já em maio de 2003 a de direitos humanos estão relacionadas com
Comissão tinha solicitado ao Equador medidas o neoliberalismo, a versão mais anti-social do
cautelares a favor do povo Sarayaku que não capitalismo nos últimos cinquenta anos. No
foram atendidas. Norte, o neoliberalismo impõe a austeridade às
Em 2011, a Comissão Interamericana de grandes maiorias e o resgate dos banqueiros,
Direitos Humanos (CIDH) solicita ao Brasil, substituindo a protecção social dos cidadãos
mediante uma medida cautelar, que suspenda pela protecção social do capital financeiro. No
imediatamente a construção da barragem de Sul, o neoliberalismo impõe a sua avidez pe-
Belo Monte (que, quando pronta será a tercei- los recursos naturais, sejam eles os minérios,
ra maior do mundo) até que sejam adequada- o petróleo, o gás natural, a água ou a agro-
mente consultados os povos indígenas por ela -indústria. Os territórios passam a ser terra e
afectados. O Brasil protesta contra a decisão, as populações que nelas habitam, obstáculos
retira o seu embaixador na Organização dos ao desenvolvimento que é necessário remover
Estados Americanos (OEA), suspende o paga- quanto mais rápido melhor. Para o capitalismo
470 Boaventura de Sousa Santos

extractivista a única regulação verdadeiramen- nente americano a medida mais urgente é tra-
te aceitável é a auto-regulação, a qual inclui, var o passo à reforma da CIDH em curso. Nessa
quase sempre, a auto-regulação da corrupção reforma estão particularmente activos quatro
dos governos. As Honduras oferecem neste países com quem sou solidário em múltiplos
momento um dos mais extremos exemplos aspectos da sua governação, o Brasil, o Equa-
de auto-regulação da actividade mineira onde dor, a Venezuela e a Argentina. Mas no caso da
tudo se passa entre a Fundação Hondurenha reforma da CIDH estou firmemente ao lado dos
de Responsabilidade Social Empresarial (FUN- que lutam contra a iniciativa destes governos e
DAHRSE) e a embaixada do Canadá. Sim, o Ca- pela manutenção do estatuto actual da CIDH.
nadá que há vinte anos parecia ser uma força Não deixa de ser irónico que os governos de di-
benévola nas relações internacionais e hoje é reita, que mais hostilizam o sistema interame-
um dos mais agressivos promotores do impe- ricano de direitos humanos, como é o caso da
rialismo mineiro. Colômbia, assistam deleitados ao serviço que
Quando a democracia concluir que não é os governos progressistas objectivamente lhes
compatível com este tipo de capitalismo e deci- estão a prestar.
dir resistir-lhe, pode ser demasiado tarde. É que, O meu primeiro apelo é aos governos bra-
entretanto, pode o capitalismo ter já concluído sileiro, equatoriano, venezuelano e argentino
que a democracia não é compatível com ele. para que abandonem o projecto da reforma. E
o apelo é especialmente dirigido ao Brasil dada
O que fazer? a influência que tem na região. Se tiverem uma
Ao contrário do que pretende o neolibera- visão política de longo prazo, não lhes será di-
lismo, o mundo só é o que é porque nós que- fícil concluir que serão eles e as forças sociais
remos. Pode ser de outra maneira se a tal nos que os têm apoiado quem, no futuro, mais pode
propusermos. A situação é de tal modo grave vir a beneficiar do prestígio e da eficácia do
que é necessário tomar medidas urgentes mes- sistema interamericano de direitos humanos.
mo que sejam pequenos passos. Essas medidas Aliás, a Argentina deve à CIDH e à Corte a dou-
variam de país para país e de continente para trina que permitiu levar à justiça os crimes de
continente, ainda que a articulação entre elas, violação dos direitos humanos cometidos pela
quando possível, seja indispensável. No conti- ditadura, o que muito acertadamente se con-
Catorze cartas às esquerdas 471

verteu numa bandeira dos governos Kirchner 2009; para não falar nas reiteradas solicitações
na política dos direitos humanos. para o encerramento do centro de detenção
Mas porque a cegueira do curto prazo pode de Guantánamo. Por sua vez, a recente deci-
prevalecer, apelo também a todos os activistas são da Corte no caso “Povo Indígena Kichwa
de direitos humanos do continente e a todos de Sarayaku versus Equador”, de 27 de julho
os movimentos e organizações sociais — que passado, é um marco histórico de direito inter-
viram no Fórum Social Mundial e na luta con- nacional, não só a nível do continente, como
tinental contra a ALCA a força da esperança a nível mundial. Tal como a sentença “Atala
organizada — que se juntem na luta contra a Riffo y niñas versus Chile” envolvendo a dis-
reforma da CIDH em curso. Sabemos que o criminação em razão da orientação sexual. E
sistema interamericano de direitos humanos como esquecer a intervenção da CIDH sobre a
está longe de ser perfeito, quanto mais não violência doméstica no Brasil que conduziu à
seja porque os dois países mais poderosos da promulgação da Lei Maria da Penha?
região nem sequer subscreveram a Convenção Os dados estão lançados. À revelia da CIDH
Americana de Direitos Humanos (EUA e Cana- e com fortes limitações na participação das
dá). Também sabemos que, no passado, tanto a organizações de direitos humanos, o Conse-
Comissão como a Corte revelaram debilidades lho Permanente da OEA prepara um conjunto
e selectividades politicamente enviesadas. Mas de recomendações para serem apresentadas
também sabemos que o sistema e as suas ins- para aprovação na Assembleia Geral Extraor-
tituições têm vindo a fortalecer-se, actuando dinária, o mais tardar até março de 2013 (até
com mais independência e ganhando prestígio 30 de setembro, os Estados apresentarão as
através da eficácia com que têm condenado suas propostas). Do que se sabe, todas as re-
muitas violações de direitos humanos. Desde comendações vão no sentido de limitar o po-
os anos de 1970 e 1980, em que a Comissão le- der da CIDH para interpelar os Estados em
vou a cabo missões em países como o Chile, a matéria de violação de direitos humanos. Por
Argentina e a Guatemala e publicou relatórios exemplo: dedicar mais recursos à promoção
denunciando as violações cometidas pelas di- dos direitos humanos e menos à investigação
taduras militares, até às missões e denúncias de violações; encurtar de tal modo os prazos
depois do golpe de Estado das Honduras em de investigação que tornam impossível uma
472 Boaventura de Sousa Santos

análise cuidada; eliminar do relatório anual esquerdas construir tal alternativa? Sim, mas
a referência a países cuja situação dos direi- só se se transformarem e se unirem, o que é
tos humanos merece atenção especial; limitar exigir muito em pouco tempo.
a emissão e extensão de medidas cautelares; Ofereço o meu contributo para a configura-
acabar com o relatório anual sobre a liberda- ção de tal alternativa. Primeiro, as esquerdas
de de expressão; impedir pronunciamentos devem centrar-se no bem-estar dos cidadãos e
sobre violações que pairam como ameaças não nas possíveis reações dos credores. A his-
mas ainda não foram concretizadas. tória mostra que o capital financeiro e as insti-
Cabe agora aos activistas de direitos huma- tuições multilaterais (FMI, BCE, BM, Comissão
nos e a todos os cidadãos preocupados com Europeia) só são rígidas na medida em que as
o futuro da democracia no continente travar circunstâncias não as forçarem a ser flexíveis.
este processo. Segundo, o que historicamente une as esquer-
das é a defesa do Estado social forte: educação
Nona carta às esquerdas pública obrigatória gratuita; serviço nacional
de saúde tendencialmente gratuito; segurança
Ante a conjuntura: as esquerdas
social sustentável com sistema de pensões as-
europeias (fevereiro de 2013)
sente no princípio da repartição e não no de
2013 na Europa será um desastre no plano capitalização; bens estratégicos ou monopólios
social e imprevisível no plano político. Conse- naturais (água, correios) nacionalizados.
guirão os governos europeus criar a estabili- As diferenças entre as esquerdas são impor-
dade que lhes permita terminar o mandato ou tantes, mas não ofuscam esta convergência de
ocorrerão crises políticas que obriguem a con- base e foi ela que sempre determinou as prefe-
vocar eleições antecipadas? Digamos que cada rências eleitorais das classes populares. É certo
uma destas hipóteses tem 50% de chances de que a direita também contribuiu para o Estado
se realizar. Assim sendo, é necessário que os social (basta lembrar Bismark na Prússia), mas
cidadãos tenham a certeza de que a instabilida- fê-lo sempre pressionada pelas esquerdas e re-
de política que possa surgir é o preço a pagar cuou sempre que essa pressão baixou, como é
para que surja uma alternativa de poder e não o caso, desde há 30 anos, na Europa. A defesa
apenas uma alternância no poder. Poderão as do Estado social forte deve ser a prioridade
Catorze cartas às esquerdas 473

das prioridades e, portanto, deve condicionar os riscos não são superiores aos que os cida-
todas as outras. dãos europeus já estão a correr: os do Sul, em-
O Estado social não é sustentável sem de- pobrecer acorrentados à condição de periferia,
senvolvimento. Neste sentido haverá diver- fornecendo mão-de-obra barata à Europa de-
gências sobre o peso da ecologia, da ciência senvolvida; e todos em geral, perda progressiva
ou da flexissegurança no trabalho, mas o acor- de direitos em nome da austeridade, aumento
do de fundo sobre o desenvolvimento é inequí- do desemprego, privatizações, democracias re-
voco e esta é, portanto, a segunda prioridade a féns do capital financeiro. O risco da alternati-
unir as esquerdas, já que, como a salvaguarda va é um risco calculado destinado a pôr à prova
do Estado social é prioritária, tudo tem de ser a convicção com que o projeto europeu está a
feito para garantir o investimento e a criação ser salvaguardado.
de emprego. A credibilidade reside, por um lado, na
E aqui entra a terceira prioridade que deve- convicção e na seriedade com que se for-
rá unir as esquerdas. Se para garantir o Esta- mular a alternativa e no apoio democrático
do social e o desenvolvimento é preciso rene- com que ela contar e, por outro lado, no facto
gociar com a troika e os restantes credores, de o país ter mostrado que é capaz de fazer
então tal renegociação tem de ser feita com sacrifícios de boa-fé (Grécia, Irlanda e Por-
determinação. Ou seja, a hierarquia das prio- tugal são exemplo disto). Apenas não aceita
ridades torna claro que não é o Estado social sacrifícios impostos de má-fé, sacrifícios im-
que se deve adaptar às condições da troika, postos como máximos apenas para abrir ca-
mas, ao contrário, que devem ser estas a adap- minho para outros maiores. A oportunidade
tar-se à prioridade em manter o Estado social. está aí para ser aproveitada.
Esta é uma mensagem que tanto os cidadãos A indignação generalizada e expressa mas-
como os credores entenderão bem, ainda que sivamente nas ruas, praças, redes sociais,
por razões diferentes. centros de saúde e de estudos, entre outros
Para que a unidade assim criada entre as es- espaços, não se plasmou num bloqueio social
querdas tenha êxito político, há que considerar à altura dos desafios presentes. O actual con-
três fatores: risco, credibilidade e oportunida- texto de crise requer uma nova política de fren-
de. Quanto ao risco, é importante mostrar que tes populares à escala local, estatal e europeia,
474 Boaventura de Sousa Santos

formados por uma pluralidade heterogénea de rebeldia competente e alternativas realistas à


sujeitos, movimentos sociais, ONGs, universi- situação presente.
dades, instituições públicas, governos, entre
outros actores que, unidos na sua diversidade, Décima carta às esquerdas
sejam capazes, mediante formas de organiza-
Democracia ou capitalismo?
ção, articulação e acção flexíveis, de lograr
(dezembro de 2013)
uma unidade firme de acção e propósitos.
O objectivo é unir as forças das esquerdas em No início do terceiro milénio as esquerdas
alianças democráticas estruturalmente seme- debatem-se com dois desafios principais: a re-
lhantes às que constituíram a base das frentes lação entre democracia e capitalismo; o cres-
anti-fascistas do período entre guerras, com o cimento económico infinito (capitalista ou
qual existem semelhanças perturbadoras. Men- socialista) como indicador básico de desenvol-
ciono apenas duas: a profunda crise financeira vimento e de progresso. Nesta carta, centro-me
e económica e as desanimadoras patologias da no primeiro desafio.
representação (crise generalizada dos partidos Ao contrário do que o senso comum dos
políticos e sua incapacidade para representar últimos cinquenta anos nos pode fazer pen-
os interesses das classes populares) e da parti- sar, a relação entre democracia e capitalismo
cipação (o sentimento de que votar não muda foi sempre uma relação tensa, senão mesmo
nada). O perigo do fascismo social e seus efei- de contradição. Foi-o certamente nos países
tos, cada vez mais sentidos, torna necessária a periféricos do sistema mundial, o que duran-
formação de frentes capazes de lutar contra a te muito tempo foi chamado Terceiro Mundo
ameaça fascista e mobilizar as energias demo- e hoje se designa por Sul global. Mas mesmo
cráticas adormecidas da sociedade. No início nos países centrais ou desenvolvidos a mes-
do século XXI, estas frentes devem emergir de ma tensão e contradição esteve sempre pre-
baixo, de uma politização mais articulada com sente. Basta lembrar os longos anos do nazis-
a indignação que flui nas ruas. mo e do fascismo.
Esperar sem esperança é a pior maldição Uma análise mais detalhada das relações en-
que pode cair sobre um povo. A esperança não tre capitalismo e democracia obrigaria a distin-
se inventa, constrói-se com inconformismo, guir entre diferentes tipos de capitalismo e sua
Catorze cartas às esquerdas 475

dominância em diferentes períodos e regiões trabalhadores e suas famílias. A burguesia teve


do mundo e entre diferentes tipos e graus de in- sempre pavor de que as maiorias pobres to-
tensidade de democracia. Nesta carta concebo massem o poder e usou o poder político que
o capitalismo sob a sua forma geral de modo as revoluções do século XIX lhe concederam
de produção e faço referência ao tipo que tem para impedir que tal ocorresse. Concebeu a de-
vindo a dominar nas últimas décadas, o capita- mocracia liberal de modo a garantir isso mes-
lismo financeiro. No que respeita à democracia mo através de medidas que mudaram no tem-
centro-me na democracia representativa, tal po, mas mantiveram o objetivo: restrições ao
como foi teorizada pelo liberalismo. sufrágio, primazia absoluta do direito de pro-
O capitalismo só se sente seguro se governa- priedade individual, sistema político e eleitoral
do por quem tem capital ou se identifica com com múltiplas válvulas de segurança, repres-
as suas “necessidades”, enquanto a democracia são violenta de atividade política fora das ins-
é idealmente o governo das maiorias que nem tituições, corrupção dos políticos, legalização
têm capital nem razões para se identificar com dos lóbis. E sempre que a democracia se mos-
as “necessidades” do capitalismo, bem pelo trou disfuncional, manteve-se aberta à possibi-
contrário. O conflito é, no fundo, um conflito lidade do recurso à ditadura, o que aconteceu
de classes, pois as classes que se identificam muitas vezes.
com as necessidades do capitalismo (basica- No imediato pós-segunda guerra mundial
mente a burguesia) são minoritárias em rela- muito poucos países tinham democracia, vas-
ção às classes (classes médias, trabalhadores tas regiões do mundo estavam sujeitas ao colo-
e classes populares em geral) que têm outros nialismo europeu que servira para consolidar o
interesses cuja satisfação colide com as neces- capitalismo euro-norte-americano, a Europa es-
sidades do capitalismo. tava devastada por mais uma guerra provocada
Sendo um conflito de classes, afirma-se so- pela supremacia alemã, e no Leste consolidava-
cial e politicamente como um conflito distribu- -se o regime comunista que se via como alterna-
tivo: por um lado, a pulsão para a acumulação tiva ao capitalismo e à democracia liberal.
e concentração da riqueza por parte dos capi- Foi neste contexto que surgiu na Europa
talistas e, por outro, a reivindicação da redis- mais desenvolvida o chamado capitalismo de-
tribuição da riqueza criada em boa parte pelos mocrático, um sistema de economia política
476 Boaventura de Sousa Santos

assente na ideia de que, para ser compatível desemprego e do ataque ao poder dos sindica-
com a democracia, o capitalismo deveria ser tos (1980-), uma medida complementada com
fortemente regulado, o que implicava a nacio- o endividamento do Estado em resultado da
nalização de sectores-chave da economia, a luta do capital contra a tributação, da estag-
tributação progressiva, a imposição da nego- nação económica e do aumento das despesas
ciação coletiva e até, como aconteceu na en- sociais decorrentes do aumento do desem-
tão Alemanha Ocidental, a participação dos prego (meados de 1980-) e, logo depois, com
trabalhadores na gestão das empresas. No pla- o endividamento das famílias, seduzidas pelas
no científico, Keynes representava então a or- facilidades de crédito concedidas por um sec-
todoxia económica e Hayek, a dissidência. No tor financeiro finalmente livre de regulações
plano político, os direitos económicos e sociais estatais, para iludir o colapso das expectativas
(direitos do trabalho, educação, saúde e segu- a respeito do consumo, educação e habitação
rança social garantidos pelo Estado) foram o (meados de 1990-).
instrumento privilegiado para estabilizar as ex- Até que a engenharia das soluções fictícias
pectativas dos cidadãos e as defender das flu- chegou ao fim com a crise de 2008 e se tornou
tuações constantes e imprevisíveis dos “sinais claro quem tinha ganho o conflito distributivo:
dos mercados”. o capital. Prova disso: a conversão da dívida
Esta mudança alterava os termos do confli- privada em dívida pública, o disparar das desi-
to distributivo, mas não o eliminava. Pelo con- gualdades sociais e o assalto final às expectati-
trário, tinha todas as condições para o acirrar vas de vida digna da maioria (os trabalhadores,
logo que abrandasse o crescimento económico os pensionistas, os desempregados, os imigran-
que se seguiu nas três décadas seguintes. E as- tes, os jovens em busca de emprego,) para ga-
sim sucedeu. Desde 1970, os Estados centrais rantir as expectativas de rentabilidade da mi-
têm vindo a gerir o conflito entre as exigências noria (o capital financeiro e seus agentes). A
dos cidadãos e as exigências do capital, recor- democracia perdeu a batalha e só não perderá
rendo a um conjunto de soluções que gradual- a guerra se as maiorias perderem o medo, se
mente foram dando mais poder ao capital. Pri- se revoltarem dentro e fora das instituições e
meiro, foi a inflação (1970-1980), depois, a luta forçarem o capital a voltar a ter medo, como
contra a inflação acompanhada do aumento do sucedeu há sessenta anos.
Catorze cartas às esquerdas 477

Nos países do sul global que dispõem de origem de conflitos, que se têm vindo a agravar,
recursos naturais a situação é, por agora, di- com os grupos socias ligados à terra e aos terri-
ferente. Nalguns casos, como por exemplo em tórios onde se encontram os recursos naturais,
vários países da América Latina, pode até dizer- os povos indígenas e os camponeses.
-se que a democracia está a vencer o duelo com Nos países do Sul global com recursos na-
o capitalismo e não é por acaso que em países turais, mas sem democracia digna do nome,
como a Venezuela e o Equador se tenha come- o boom dos recursos não trouxe consigo ne-
çado a discutir o tema do socialismo do século nhum ímpeto para a democracia, apesar de,
XXI, mesmo que a realidade esteja longe dos em teoria, a mais fácil resolução do conflito
discursos. Há muitas razões para tal, mas tal- distributivo facilitar a solução democrática e
vez a principal tenha sido a conversão da China vice-versa. A verdade é que o capitalismo ex-
ao neoliberalismo, o que provocou, sobretudo tractivista obtém melhores condições de ren-
a partir da primeira década do século XXI, uma tabilidade em sistemas políticos ditatoriais
nova corrida aos recursos naturais. ou de democracia de baixíssima intensidade
O capital financeiro encontrou aí e na espe- (sistemas de quase-partido-único) onde é mais
culação com produtos alimentares uma fonte fácil a corrupção das elites, através do seu en-
extraordinária de rentabilidade. Isto tornou volvimento na privatização das concessões e
possível que governos progressistas, entretan- das rendas extractivistas. Não é, pois, de es-
to chegados ao poder no seguimento das lutas perar nenhuma profissão de fé na democracia
e dos movimentos sociais das décadas anterio- por parte do capitalismo extractivista, até por-
res, pudessem proceder a uma redistribuição que, sendo global, não reconhece problemas
da riqueza muito significativa e, em alguns paí- de legitimidade política.
ses, sem precedente. Por sua vez, a reivindicação da redistri-
Por esta via, a democracia ganhou uma nova buição da riqueza por parte das maiorias não
legitimação no imaginário popular. Mas por chega a ser ouvida, por falta de canais demo-
sua própria natureza, a redistribuição de rique- cráticos e por não poder contar com a solida-
za não pôs em causa o modelo de acumulação riedade das restritas classes médias urbanas
assente na exploração intensiva dos recursos que vão recebendo as migalhas do rendimento
naturais e antes o intensificou. Isto esteve na extractivista. As populações mais diretamente
478 Boaventura de Sousa Santos

afetadas pelo extrativismo são os camponeses injusto e descontroladamente violento tem


em cujas terras estão a jazidas de minérios ou de centrar-se na busca de uma conceção de
onde se pretende implantar a nova economia democracia mais robusta cuja marca genéti-
de plantação, agro-industrial. São expulsas de ca seja o anti-capitalismo.
suas terras e sujeitas ao exílio interno. Sempre Depois de um século de lutas populares que
que resistem, são violentamente reprimidas e fizeram entrar o ideal democrático no ima-
sua resistência é tratada como um caso de po- ginário da emancipação social, seria um erro
lícia. Nestes países, o conflito distributivo não político grave desperdiçar essa experiência e
chega sequer a existir como problema político. assumir que a luta anti-capitalista tem de ser
Desta análise conclui-se que o futuro da de- também uma luta anti-democrática. Pelo con-
mocracia atualmente posto em causa na Eu- trário, é preciso converter o ideal democráti-
ropa do Sul é a manifestação de um problema co numa realidade radical que não se renda ao
muito mais vasto que está a aflorar em diferen- capitalismo. E como o capitalismo não exerce
tes formas nas várias regiões do mundo. Mas, o seu domínio senão servindo-se de outras for-
formulado assim, o problema pode ocultar uma mas de opressão, nomeadamente, do colonia-
incerteza bem maior do que a que expressa. lismo e do patriarcado, tal democracia radical,
Não se trata apenas de questionar o futuro da além de anti-capitalista, tem de ser também
democracia. Trata-se também de questionar a anti-colonialista e anti-patriarcal.
democracia do futuro. Pode chamar-se revolução democrática ou
A democracia liberal foi historicamente democracia revolucionária — o nome pouco
derrotada pelo capitalismo e não me parece importa —, mas é necessariamente uma de-
que a derrota seja reversível. Portanto, não mocracia pós-liberal, que não aceita ser des-
há que ter esperança em que o capitalismo caracterizada para se acomodar às exigências
volte a ter medo da democracia liberal, se do capitalismo. Pelo contrário, assenta em dois
alguma vez teve. Esta última sobreviverá na princípios: o aprofundamento da democracia
medida em que o capitalismo global se pu- só é possível à custa do capitalismo; em caso
der servir dela. A luta daqueles e daquelas de conflito entre capitalismo e democracia é a
que veem na derrota da democracia liberal a democracia real que deve prevalecer.
emergência de um mundo repugnantemente
Catorze cartas às esquerdas 479

Décima primeira carta às esquerdas Ora o modelo de crescimento que estava


em vigor antes da crise era o alvo principal da
Ecologia ou extractivismo? crítica dos movimentos ambientalistas e eco-
(dezembro de 2013) lógicos precisamente por ser insustentável e
Na décima carta às esquerdas afirmei que produzir mudanças climáticas que, segundo
as esquerdas se debatem no início do terceiro os dados da ONU, seriam irreversíveis a muito
milénio com dois desafios principais: a relação curto prazo, segundo alguns, a partir de 2015.
entre democracia e capitalismo; o crescimento Este desaparecimento rápido da narrativa eco-
económico infinito (capitalista ou socialista) lógica mostra que o capitalismo tem precedên-
como indicador básico de desenvolvimento e cia, não só sobre a democracia, como também
de progresso. Nesta carta, centro-me no se- sobre a ecologia e o ambientalismo.
gundo desafio. Ora, é hoje evidente que, no limiar do século
Antes da crise financeira, a Europa era a re- XXI, o desenvolvimento capitalista toca os limi-
gião do mundo onde os movimentos ambien- tes de carga do planeta terra. Em meses recen-
talistas e ecológicos tinham mais visibilidade tes, diversos recordes de perigo climático foram
política e onde a narrativa da necessidade de ultrapassados nos EUA, na Índia, no Ártico, e
complementar o pacto social com o pacto na- os fenómenos climáticos extremos repetem-se
tural parecia ter uma grande aceitação pública. com cada vez maior frequência e gravidade. Aí
Surpreendentemente ou não, com o eclodir da estão as secas, as inundações, a crise alimentar,
crise, tanto estes movimentos como esta nar- a especulação com produtos agrícolas, a escas-
rativa desapareceram da cena política e as for- sez crescente de água potável, o desvio de terre-
ças políticas que mais diretamente se opõem à nos agrícolas para os agrocombustíveis, o des-
austeridade financeira reclamam crescimento matamento das florestas. Paulatinamente, vai-se
económico como única solução e só excepcio- constatando que os fatores de crise estão cada
nalmente fazem uma ressalva algo cerimonial à vez mais articulados e são afinal manifestações
responsabilidade ambiental e à sustentabilidade. da mesma crise, a qual, pelas suas dimensões, se
E, de facto, os investimentos públicos em ener- apresenta como crise civilizatória.
gias renováveis foram os primeiros a ser sacrifi- Tudo está ligado: a crise alimentar, a crise
cados às políticas de ajustamento estrutural. ambiental, a crise energética, a especulação
480 Boaventura de Sousa Santos

financeira sobre as commodities e recursos vimento dependente, permitiu que as forças


naturais, a grilagem e a concentração de terra, progressistas, antes vistas como “inimigas do
a expansão desordenada da fronteira agrícola, desenvolvimento”, se libertassem desse fardo
a voracidade da exploração dos recursos natu- histórico, transformando o boom numa ocasião
rais, a escassez de água potável e a privatiza- única para realizar políticas sociais e redistri-
ção da água, a violência no campo, a expulsão buição do rendimento. As oligarquias e, nal-
de populações das suas terras ancestrais para guns países, sectores avançados da burguesia
abrir caminho a grandes infraestruturas e me- industrial e financeira altamente internaciona-
gaprojectos, as doenças induzidas pelo meio lizados perderam boa parte do poder político
ambiente degradado dramaticamente eviden- governamental, mas em troca viram aumenta-
tes na incidência de cancro mais elevada em do o seu poder económico. Os países mudaram
certas zonas rurais do que em zonas urbanas, sociológica e politicamente a ponto de alguns
os organismos geneticamente modificados, os analistas verem nelas a emergência de um novo
consumos de agrotóxicos, etc. A Conferência regime de acumulação, mais nacionalista e es-
das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento tatista, o neodesenvolvimentismo, tendo como
Sustentável realizada em junho de 2012, Rio 20, base o neo-extrativismo.
foi um fracasso rotundo devido à cumplicidade Seja como for, este neo-extrativismo tem na
mal disfarçada entre as elites do Norte global e sua base a exploração intensiva dos recursos
as dos países emergentes para dar prioridade naturais e, portanto, levanta o problema dos li-
aos lucros das suas empresas à custa do futuro mites ecológicos (para não falar nos limites so-
da humanidade. ciais e políticos) desta nova (velha) fase do ca-
Em vários países da América Latina a valo- pitalismo. Isto é tanto mais preocupante quanto
rização internacional dos recursos financeiros é certo que este modelo de “desenvolvimento”
permitiu uma negociação de novo tipo entre é flexível na distribuição social, mas rígido na
democracia e capitalismo. O fim (aparente) da sua estrutura de acumulação. As locomotivas
fatalidade da troca desigual (as matérias pri- da mineração, do petróleo, do gás natural, da
mas sempre menos valorizadas que os produ- fronteira agrícola são cada vez mais potentes
tos manufaturados), que acorrentara os países e tudo o que lhes surge no caminho e impede
da periferia do sistema mundial ao desenvol- o trajeto tende a ser trucidado enquanto obstá-
Catorze cartas às esquerdas 481

culo ao desenvolvimento. O seu poder político recursos humanos? Quando não houver dinhei-
cresce mais do que o seu poder económico, a ro para políticas compensatórias generosas e o
redistribuição social de rendimento confere- empobrecimento súbito criar um ressentimen-
-lhes uma legitimidade política que o modelo to difícil de gerir em democracia? Quando os
de desenvolvimento anterior nunca teve, ou só níveis de doenças ambientais forem inaceitá-
teve em condições de ditadura. veis e sobrecarregarem os sistemas públicos
De tão atrativas, estas locomotivas são exí- de saúde a ponto de os tornar insustentáveis?
mias em transformar os sinais cada vez mais Quando a contaminação das águas, o empobre-
perturbadores do imenso débito ambiental cimento das terras e a destruição das florestas
e social que criam num custo inevitável do forem irreversíveis? Quando as populações
“progresso”. Por outro lado, privilegiam uma indígenas, quilombolas e ribeirinhas expulsas
temporalidade que é afim à dos governos: o das suas terras cometerem suicídios colectivos
boom dos recursos não dura sempre, e, por ou deambularem pelas periferias de cidades
isso, há que aproveitá-lo ao máximo no mais reclamando um direito à cidade que lhes será
curto espaço de tempo. O brilho do curto sempre negado?
prazo ofusca as sombras do longo prazo. En- Estas perguntas são consideradas pela ide-
quanto o boom configurar um jogo de soma ologia económica e política dominante como
positiva, quem se lhe interpõe no caminho, é cenários distópicos exagerados ou irrelevan-
visto como ecologista infantil, ou camponês tes, fruto do pensamento crítico treinado para
improdutivo ou indígena atrasado e, é muitas maus augúrios. Em suma, um pensamento mui-
vezes objeto de suspeição enquanto “popula- to pouco convincente e de nenhuma atração
ções facilmente manipuláveis por ONGs sabe para os grandes média.
se lá ao serviço de quem”. Neste contexto, só é possível perturbar
Nestas condições, torna-se difícil acionar o automatismo político e económico deste
princípios de precaução ou lógicas de longo modelo mediante a ação de movimentos e
prazo. Que se passará quando o boom dos re- organizações sociais, suficientemente cora-
cursos terminar? Quando for evidente que o in- josos para darem a conhecer o lado destruti-
vestimento nos recursos naturais não foi devi- vo deste modelo sistematicamente ocultado,
damente compensado com o investimento em dramatizarem a sua negatividade e forçarem
482 Boaventura de Sousa Santos

a entrada desta denúncia na agenda política. tanto nas relações entre humanos como nas re-
A articulação entre os diferentes fatores de lações entre humanos e a natureza.
crise deverá levar urgentemente à articula-
ção entre os movimentos sociais que lutam Décima segunda carta às esquerdas
contra eles. É um processo lento em que o
O significado da onda Podemos
peso da história de cada movimento conta
(novembro de 2014)
mais que o que devia, mas são já visíveis arti-
culações entre lutas pelos direitos humanos, Os países do Sul da Europa são social e po-
soberania alimentar, contra os agrotóxicos, liticamente muito diferentes, mas estão a so-
contra os transgénicos, contra a impunidade frer o impacto da mesma política equivocada
da violência no campo, contra a especulação imposta pela Europa Central e do Norte, via
financeira com produtos alimentares, pela re- União Europeia (UE), com resultados desi-
forma agrária, direitos da natureza, direitos guais mas convergentes. Trata-se, em geral, de
ambientais, direitos indígenas e quilombolas, congelar a posição periférica destes países no
direito à cidade, direito à saúde, economia so- continente, sujeitando-os a um endividamen-
lidária, agroecologia, taxação das transações to injusto na sua desproporção, provocando
financeiras internacionais, educação popular, activamente a incapacitação do Estado e dos
saúde colectiva, regulação dos mercados fi- serviços públicos, causando o empobrecimen-
nanceiros, etc. to abrupto das classes médias, privando-os dos
Tal como acontece com a democracia, só jovens e do investimento na educação e na in-
uma consciência e uma ação ecológica robus- vestigação, sem os quais não é possível sair do
ta, anti-capitalista, pode fazer frente com êxito estatuto periférico. Espanha, Grécia e Portugal
à voragem do capitalismo extrativista. Ao “eco- são tragédias paradigmáticas.
logismo dos ricos” é preciso contrapor o “eco- Apesar de todas as sondagens revelarem
logismo dos pobres” assente numa economia um alto nível de insatisfação e até revolta pe-
política não dominada pelo fetichismo do cres- rante este estado de coisas (muitas vezes ex-
cimento infinito e do consumismo individualis- pressadas nas ruas e nas praças), a resposta
ta, e antes baseada nas ideias de reciprocidade, política tem sido difícil de formular. Os par-
solidariedade, complementaridade vigentes tidos de esquerda tradicionais não oferecem
Catorze cartas às esquerdas 483

soluções: os partidos comunistas propõem a a partir do Sul que permitiu canalizar criati-
saída da UE, mas os riscos que tal saída envol- vamente a indignação nas ruas de Espanha.
ve afasta as maiorias; os partidos socialistas É um partido de tipo novo, um partido-mo-
desacreditaram-se, em maior ou menor grau, vimento, ou melhor, um movimento-partido
por terem sido executores da política auste- assente nas seguintes ideias: as pessoas não
ritária. Criou-se um vazio que só lentamente estão fartas da política, mas sim desta políti-
se vai preenchendo. Na Grécia, Syriza, nasci- ca; a esmagadora maioria dos cidadãos não se
do como frente em 2004, reinventou-se como mobiliza politicamente nem sai à rua para se
partido em 2012 para responder à crise, e pre- manifestar, mas está cheia de raiva em casa
encheu o vazio. Pode ganhar as próximas elei- e simpatiza com quem se manifesta; o ativis-
ções. Em Portugal, o Bloco de Esquerda (BE), mo político é importante, mas a política tem
nascido quatro anos antes do Syriza, não se de ser feita com a participação dos cidadãos;
soube reinventar para responder à crise, e o ser membro da classe política é algo sempre
vazio permanece. Na Espanha, o novo partido transitório e tal qualidade não permite que
Podemos constitui a maior inovação política se ganhe mais que o salário médio do país;
na Europa desde o fim da Guerra Fria e, ao a internet permite formas de interação que
contrário do Syriza e do BE, não são visíveis não existiam antes; os membros eleitos para
nele traços da Guerra Fria. os parlamentos não inventam temas ou posi-
Para entender Podemos, é preciso recuar ções, veiculam os que provêm das discussões
ao Fórum Social Mundial, aos governos pro- nas estruturas de base; a política partidária
gressistas que emergiram na América Latina tem de ter rostos, mas não é feita de rostos; a
na década de dos mil, aos movimentos sociais transparência e a prestação de contas têm de
e aos processos constituintes que levaram ser totais; o partido é um serviço dos cidadãos
esses governos ao poder, às experiências de para os cidadãos e por isso deve ser financia-
democracia participativa, sobretudo a nível do por estes e não por empresas interessadas
local, em muitas cidades latino-americanas a em capturar o Estado e esvaziar a democracia;
partir da experiência pioneira de Porto Alegre ser de esquerda é um ponto de chegada e não
e, finalmente, à Primavera Árabe. Em suma, um ponto de partida e, portanto, prova-se nos
Podemos é o resultado de uma aprendizagem factos. Exemplo: quem na Europa é a favor da
484 Boaventura de Sousa Santos

Parceria Transatlântica para o Investimento e política que propõe. Em 2012, foi criado na
Comércio não é de esquerda, mesmo que mili- Índia o Partido Aam Admi (partido do homem
tante de um partido de esquerda. Este tratado comum, conhecido pela sigla em inglês AAP).
visa os mesmos objetivos que a Área de Livre Este partido, de inspiração gandhiana e centra-
Comércio das Américas, vulgo ALCA, propos- do na luta contra a corrupção e na democracia
ta por Bill Clinton em 1994 e engavetada em participativa, toma como impulso originário o
2005, em resultado do vigoroso movimento de facto de o homem comum (e a mulher comum,
protesto popular que mobilizou as forças pro- como acrescentaram as mulheres que se filia-
gressistas de todo o continente. ram no partido) não ser ouvido nem tomado
Em suma, o código genético do Podemos em conta pelos políticos instalados. Um ano
reside em aplicar à vida interna dos partidos depois da sua fundação tornou-se no segundo
a mesma ideia de complementaridade entre partido mais votado para a assembleia legisla-
democracia participativa e democracia repre- tiva de Delhi.
sentativa que deve orientar a gestão do siste- É possível uma onda Podemos que alastre a
ma político em geral. Convém salientar que outros países? As condições variam muito de
Podemos é uma versão particularmente feliz e país para país. Por outro lado, Podemos não é
potencialmente mais eficaz de inovações polí- uma receita, é uma orientação política geral no
ticas que têm surgido em diferentes partes do sentido de aproximar a política dos cidadãos
mundo, tendo por pano de fundo o inconfor- e de mostrar que tal aproximação nunca será
mismo perante o esvaziamento da democracia possível se a atividade política se circunscre-
representativa provocado pela corrupção e ver a votar de quatro em quatro anos em políti-
pela captura dos partidos de governo pelo ca- cos que se apropriam dos mandatos e os usam
pital. Em Itália, surgiu em 2009 o Movimento para fins próprios.
Cinco Estrelas, liderado por Beppe Grillo, com Curiosamente, na Inglaterra acaba de ser
fortes críticas aos partidos políticos e defen- criado um partido, Left Unity, diretamente ins-
dendo práticas de democracia participativa. pirado pelas ideias que subjazem ao Syriza e ao
Teve um êxito eleitoral fulgurante, mas as suas Podemos. Em Portugal, a onda Podemos é bem
posições radicais contra a política criam gran- necessária, dado o vazio a que me referi acima.
de perplexidade quanto ao tipo de renovação Portugal não tem a mesma tradição de activis-
Catorze cartas às esquerdas 485

mo que a Espanha. Em Portugal, Podemos será íses, os esforços para formular e dar credibili-
um partido diferente e, neste momento, terá dade a uma nova política de esquerda não con-
pouca repercussão. Portugal vive o momento seguiram até agora furar o bloqueio da política
Costa. Em face dos fracos resultados do Parti- oligárquica tradicional. No caso do México, há
do Socialista (PS) nas últimas eleições para o que referir tentativas tão diversas quanto La
Parlamento Europeu, António Costa, presiden- Otra Campaña, por iniciativa do Exército Za-
te da Câmara de Lisboa, disputou com êxito a patista de Libertação Nacional, ou movimento
liderança a secretário-geral do partido, eleito político aglutinado em redor de López Obrador,
no último congresso. A disputa tomou a forma e, no caso da Colômbia, o Polo Democrático e
de eleições primárias abertas a militantes e sim- todas as vicissitudes por que passou até hoje
patizantes do partido. As eleições foram muito (polo democrático independente, polo demo-
participadas e mostraram o que disse atrás: a crático alternativo).
distância dos cidadãos é só em relação à políti- Nos países onde as forças progressistas con-
ca do costume, sem horizonte de mudança em seguiram grandes vitórias na primeira década
face de uma situação socioeconómica intolerá- do século XXI e onde os partidos de governo
vel e injusta. O momento Costa faz com que a foram, eles próprios, emanação de lutas po-
onda Podemos em Portugal se destine sobretu- pulares recentes, poderá pensar-se que a onda
do a preparar o futuro: para colaborar com o Podemos teve aqui a sua fonte e por isso nada
PS, caso este esteja interessado numa política de novo pode fazer acontecer. Refiro-me ao
de esquerda; ou para ser uma alternativa, caso Partido dos Trabalhadores (PT) no Brasil, ao
o PS se descredibilize, o que fatalmente ocorre- Movimiento al Socialismo (MAS) na Bolívia, à
rá se ele se aliar à direita. Alianza Pais no Equador e ao Partido Socialista
Será possível que a onda Podemos chegue à Unido (PSUV) na Venezuela. Trata-se de reali-
América Latina, como que devolvendo ao con- dades políticas muito distintas, mas parecem
tinente a inspiração que recebeu deste e da sua ter duas características em comum: procura-
brilhante primeira década do século XXI? Cer- ram dar voz política às classes populares em
tamente seria importante que isso ocorresse grande medida oprimidas pelas classes domi-
nos dois grandes países governados por forças nantes, ainda que concebam as classes popu-
conservadoras, México e Colômbia. Nestes pa- lares, não como colectivos, mas antes como
486 Boaventura de Sousa Santos

grupos de indivíduos pobres; tiveram êxito po- à conclusão de que a democracia representati-
lítico e o exercício do poder de governo pode va liberal atingiu o seu grau zero, minada por
estar a descaracterizar a marca de origem (seja dentro por forças anti-democráticas, velhas e
por via do caudilhismo, da corrupção, ou da novas oligarquias com poder económico para
rendição aos imperativos do desenvolvimento capturar o sistema político e o Estado e os pôr
neoliberal, etc.). O desgaste político é maior ao serviço dos seus interesses. Nunca como
nuns do que noutros, apesar das vitórias recen- hoje se tornou tão evidente que vivemos em
tes, algumas delas retumbantes (caso do MAS sociedades politicamente democráticas, mas
nas eleições de 2014). Nestes países, tal como, socialmente fascistas. A onda Podemos é uma
de resto, nos dois outros países com governos metáfora para todas as iniciativas que tentam
de centro-esquerda assentes em partidos mais uma solução política progressista para o pânta-
antigos, a Argentina e o Chile, a onda Pode- no em que nos encontramos, uma solução que
mos, se vier a ter alguma relevância, tenderá não passe por rupturas políticas abruptas e po-
a assumir duas formas: reformas profundas no tencialmente violentas.
interior destes partidos (mais urgentemente re- Os EUA são neste momento um dos países
clamadas no PT do que nos outros partidos); do mundo onde o grau-zero da democracia é
criação de novos partidos-movimento anima- mais evidente. E certamente o país do mundo
dos pela mesma dinâmica interna de democra- onde a retórica da governação democrática é
cia participativa na formulação das políticas e mais grosseiramente desmentida pela reali-
na escolha dos líderes. dade política plutocrática e cleptocrática. De-
Como o caso do indiano AAP mostra, o im- pois que o Tribunal Supremo permitiu que as
pulso político que subjaz ao Podemos não é empresas financiassem os partidos e as cam-
um fenómeno da Europa do Sul/América Lati- panhas como qualquer cidadão, e, portanto,
na. Pode aparecer sob outras formas noutros anonimamente, a democracia recebeu o seu
continentes e contextos. Um pouco por toda golpe final. As agendas das grandes empresas
a parte, 25 anos depois da queda do Muro de passaram a controlar totalmente a agenda polí-
Berlim, os cidadãos e as cidadãs que acredita- tica: da mercantilização total da vida ao fim dos
ram na promessa da democracia, anunciada ao poucos serviços públicos de qualidade; da eli-
mundo como o fim da história, estão a chegar minação da proteção do meio ambiente e dos
Catorze cartas às esquerdas 487

consumidores à neutralização da oposição sin- são portadores da energia política vital que a
dical; da transformação da universidade num onda Podemos transporta.
espaço de aluguer para serviços empresariais
à conversão dos professores em trabalhadores Décima terceira carta às
precários e dos estudantes em consumidores esquerdas
endividados para toda a vida; da submissão,
As esquerdas: pactos, Constituição e
nunca como hoje tão estrita, da política exter-
hegemonia (janeiro de 2016)
na aos interesses do capital financeiro global
à incessante promoção da guerra para alimen- O futuro da esquerda não é mais difícil de
tar o complexo industrial-securitário-militar. prever que qualquer outro facto social. A me-
Em face disso, não surpreende que muitos dos lhor maneira de o abordar é fazer o que designo
norte-americanos inconformados com o status por sociologia das emergências. Consiste em
quo tenham começado a ler ou a reler Marx e dar atenção especial a alguns sinais do presen-
Lenine. Encontram nestes autores a explicação te por ver neles tendências, embriões do que
convincente do estado de coisas a que chegou a pode vir a ser decisivo no futuro. Neste texto,
sociedade norte-americana. Não os seguem na dou especial atenção a um facto que, por ser
busca de alternativas, de ideias para refundar incomum, pode sinalizar algo de novo e impor-
a política democrática do país, pois conhecem tante. Refiro-me aos pactos entre diferentes
os catastróficos resultados políticos da prática partidos de esquerda. A família das esquerdas
leninista (e trotskista, convém não esquecer). não tem uma forte tradição de pactos. Alguns
Surpreendentemente, combinam essas leituras ramos desta família têm mais tradição de pac-
com a da Democracia na América de Alexis tos com a direita do que com outros ramos da
de Tocqueville e a sua apologia da democra- família. Dir-se-ia que as divergências internas
cia participativa e comunitária nos EUA das na família das esquerdas são parte do seu códi-
primeiras décadas do século XIX. É aí que vão go genético, tão constantes têm sido ao longo
buscar a inspiração para a refundação da de- dos últimos duzentos anos. Por razões óbvias,
mocracia nos EUA, a partir da complementari- as divergências têm sido mais extensas ou mais
dade intrínseca entre democracia representati- notórias em democracia. A polarização vai por
va e democracia participativa. Sem o saberem, vezes ao ponto de um ramo da família não re-
488 Boaventura de Sousa Santos

conhecer sequer que o outro ramo pertence à te a pele das “instituições europeias”) no poder
mesma família. Pelo contrário, em períodos de nos últimos cinco anos foi tão devastadora
ditadura têm sido frequentes os entendimen- para os direitos de cidadania e para a credibi-
tos ainda que terminem mal termina o período lidade do regime democrático que as forças de
ditatorial. À luz desta história, merece uma re- esquerda começam a estar convencidas que as
flexão o facto de em tempos recentes termos novas ditaduras do século XXI vão surgir sob
vindo assistir a um movimento pactista entre a forma de democracias de baixíssima intensi-
diferentes ramos das esquerdas em países de- dade. Serão ditaduras que se apresentam como
mocráticos. A Europa do Sul é um bom exem- ditamoles ou democraduras, a governabilidade
plo: a unidade em volta do Syriza na Grécia possível ante a iminência do suposto caos nos
apesar de todas as vicissitudes e dificuldades; tempos difíceis que vivemos, o resultado técni-
o governo liderado pelo Partido Socialista em co dos imperativos do mercado e da crise que
Portugal com o apoio do Partido Comunista e explica tudo sem precisar de ser, ela própria,
do Bloco de Esquerda no rescaldo das eleições explicada. O pacto resulta de uma leitura políti-
de 4 de outubro de 2015; alguns governos au- ca de que o que está em causa é a sobrevivência
tonómicos em Espanha, saídos das eleições de de uma democracia digna do nome e de que as
2015 e, no momento em que escrevo, a discus- divergências sobre o que tal significa têm agora
são sobre a possibilidade de um pacto a nível menos premência do que salvar o que a direita
nacional entre o Partido Socialista, Podemos e ainda não conseguiu destruir.
outros partidos de esquerda em resultado das A segunda pergunta mais difícil de respon-
eleições legislativas de 6 de dezembro de 2015. der. Como dizia Espinosa, as pessoas (e eu di-
Há sinais de que noutros espaços da Europa e ria, também as sociedades) regem-se por duas
na América Latina possam vir a surgir num fu- emoções fundamentais, o medo e a esperança.
turo próximo pactos semelhantes. Duas ques- O equilíbrio entre elas é complexo, mas sem
tões se impõem. Porquê este impulso pactista uma delas não sobreviveríamos. O medo do-
em democracia? Qual a sua sustentabilidade? mina quando as expectativas de futuro são ne-
A primeira pergunta tem uma resposta plau- gativas (“isto está mau, mas o futuro pode ser
sível. No caso da Europa do Sul, a agressivida- pior”); por sua vez a esperança domina quan-
de da direita (tanto a nacional, como a que ves- do as expectativas de futuro são positivas ou
Catorze cartas às esquerdas 489

quando, pelo menos, o inconformismo com a dos pactos serão vítimas do seu êxito? O êxito
suposta fatalidade das expectativas negativas dos governos pactados à esquerda irá traduzir-
é amplamente partilhado. Trinta anos depois -se na atenuação do medo e no devolver de al-
do assalto global aos direitos dos trabalhado- guma esperança às classes populares, ao mos-
res; da promoção da desigualdade social e do trar, por via de uma governação pragmática e
egoísmo como máximas virtudes sociais; do inteligente, que o direito a ter direitos é uma
saque sem precedentes dos recursos naturais conquista civilizacional irreversível. Será que,
e da expulsão de populações inteiras dos seus no momento em que voltar a luzir a esperança,
territórios e da destruição ambiental que isso as divergências voltarão à superfície e os pac-
significa; do fomentar da guerra e do terroris- tos serão deitados ao lixo? Se tal acontecer,
mo para criar Estados falhados e tornar as so- isso será fatal para as classes populares que
ciedades indefesas perante a espoliação; da im- rapidamente voltarão ao silenciado desalento
posição mais ou menos negociada de tratados perante um fatalismo cruel, tão violento para
de livre comércio totalmente controlados pelos as grandes maiorias quanto benévolo para as
interesses das empresas multinacionais; da su- pequeníssimas minorias. Mas será também fa-
premacia total do capital financeiro sobre o ca- tal para as esquerdas no seu conjunto porque
pital produtivo e sobre a vida das pessoas e das ficará demonstrado durante algumas décadas
comunidades; depois de tudo isto, combinado que as esquerdas são boas para remendar o
com a defesa hipócrita da democracia liberal, é passado, mas não para construir o futuro. Para
plausível concluir que o neoliberalismo é uma que tal não aconteça, dois tipos de medidas
máquina imensa de produção de expectativas têm de ser levadas a cabo durante a vigência
negativas para que as classes populares não dos pactos. Duas medidas que não se impõem
saibam as verdadeiras razões do seu sofrimen- pela urgência da governação corrente e que,
to, se conformem com o pouco que ainda têm e por isso, têm de resultar de vontade política
sejam paralisadas pelo pavor de o perder. bem determinada. Chamo às duas medidas:
O movimento pactista no interior das es- Constituição e hegemonia.
querdas é o produto de um tempo, o nosso, de A Constituição é o conjunto de reformas
predomínio absoluto do medo sobre a espe- constitucionais ou infraconstitucionais que re-
rança. Significará isto que os governos saídos estruturam o sistema político e as instituições
490 Boaventura de Sousa Santos

de maneira a prepará-los para possíveis emba- tram os protestos que abalaram muitos países a
tes com a ditamole e o projecto de democracia partir de 2011, a confiança nas elites tem vindo
de baixíssima intensidade que ela traz consigo. a deteriorar-se sem que, no entanto, o sistema
Consoante os países, as reformas serão dife- político (pelo seu desenho ou pela sua prática)
rentes como serão diferentes os mecanismos permita aos cidadãos recuperar a sua capaci-
utilizados. Se nalguns casos é possível refor- dade e competência para intervir activamente
mar a Constituição com base nos parlamentos, na vida política. Sistemas eleitorais enviesados,
noutros será necessário convocar Assembleias partidocracia, corrupção, crises financeiras ma-
Constituintes originárias dado que os parlamen- nipuladas, eis algumas das razões para a dupla
tos seriam o obstáculo maior a qualquer refor- crise de representação (“não nos representam”)
ma constitucional. Pode também acontecer que, e de participação (“não merece a pena votar, são
num certo contexto, a “reforma” mais impor- todos iguais e nenhum cumpre o que promete”).
tante seja a defesa activa da Constituição exis- As reformas constitucionais visarão um duplo
tente mediante uma renovada pedagogia consti- objectivo: tornar a democracia representativa
tucional em todas as áreas de governação. Mas mais representativa, passe o pleonasmo; com-
haverá algo comum a todas as reformas: tornar plementar a democracia representativa com a
o sistema eleitoral mais representativo e mais democracia participativa. De tais reformas re-
transparente; reforçar a democracia represen- sultará que a formação da agenda política e o
tativa com a democracia participativa. Os mais controle do desempenho das políticas públicas
influentes teóricos liberais da democracia re- deixam de ser um monopólio dos partidos e
presentativa reconheceram (e recomendaram) passam a ser partilhadas pelos partidos e por
a coexistência ambígua entre duas ideias (con- cidadãos independentes organizados democra-
traditórias) que garantem a estabilidade demo- ticamente para o efeito.
crática: por um lado, a crença dos cidadãos de O segundo conjunto de reformas é o que de-
que têm capacidade e competência para intervir signo por hegemonia. Hegemonia é o conjunto
e participar activamente na política; por outro, de ideias sobre a sociedade e interpretações do
um exercício passivo dessa competência e des- mundo e da vida que, por serem altamente par-
sa capacidade mediante a confiança nas elites tilhadas, inclusivamente pelos grupos sociais
governantes. Em tempos recentes, e como mos- que são prejudicados por elas, permitem que
Catorze cartas às esquerdas 491

as elites políticas, ao apelarem para tais ideias Décima quarta carta às esquerdas
e interpretações, governem mais por consenso
do que por coerção, mesmo quando governam Manifesto incompleto (junho de 2016)
contra os interesses objetivos de grupos so- 1. Em seu processo de refundação, as esquer-
ciais maioritários. A ideia de que os pobres são das devem partir de uma leitura rigorosa
pobres por culpa própria é hegemónica quando do tempo presente. Está a consolidar-se
é defendida não apenas pelos ricos, mas tam- globalmente um regime de acumulação
bém pelos pobres e pelas classes populares em capitalista que assenta na financeirização
geral. Nesse caso são, por exemplo, menores do capital, na concentração da riqueza,
os custos políticos das medidas que visam eli- na exploração intensiva dos recursos na-
minar ou restringir drasticamente o rendimen- turais, na redução ou eliminação dos di-
to social de inserção. A luta pela hegemonia reitos sociais, qualquer que seja o grau de
das ideias de sociedade que sustentam o pacto inclusão social que permitem. Este regime
entre as esquerdas é fundamental para a sobre- de acumulação torna mais evidente do que
vivência e consistência dele. Essa luta trava-se nunca que a acumulação primitiva violenta
na educação formal e informal, na comunica- e ilegal é parte constitutiva do seu dinamis-
ção social, na investigação científica, na acti- mo. Correspondentemente, a articulação
vidade cultural, nas organizações sociais, na que sempre existiu entre capitalismo, co-
opinião pública e na opinião publicada. Através lonialismo (racismo, colonialismo interno,
dela, constroem novos sentidos e critérios de etc.) e patriarcado (sexismo, violência se-
avaliação da vida social e da ação política que xual, etc.) é hoje particularmente insidiosa.
tornam mais difícil a contra-reforma dos ramos Este regime de acumulação está em rota
reacionários da direita, os primeiros a irromper de colisão com a democracia, mesmo com
num momento de fragilidade do pacto. Para a democracia de baixa intensidade que é
que esta luta tenha êxito é preciso impulsionar característica das sociedades capitalistas,
políticas que, a olho nu, são menos urgentes e colonialistas e patriarcais. Daí o fortaleci-
menos compensadoras. Se tal não ocorrer, a es- mento de pulsões fascistas.
perança não sobreviverá ao medo. Temos de distinguir dois tipos de fascis-
mo, o social e o político. O fascismo social
492 Boaventura de Sousa Santos

ocorre ao nível das relações sociais sempre político pode ser uma tentação sempre que
que a parte mais forte nessas relações tem a senzala se aproxima demasiado da Casa
um poder tão superior ao da parte mais Grande. As classes trabalhadoras podem
fraca que lhe permite dispor de um direito também ser seduzidas pela proposta fas-
não oficial de veto sobre os desejos, as ne- cista quando se sentem ameaçadas no seu
cessidades ou as aspirações de vida digna nível de vida por grupos sociais colocados
da parte mais fraca. Este direito despótico abaixo deles, sobretudo se estes forem es-
de veto faz com que a parte mais fraca não trangeiros ou de cor escura ou mais escura.
possa realisticamente invocar eficazmente Até agora, a memória social das atrocidades
nenhuma proteção jurídica para lutar con- cometidas nas guerras europeias do século
tra a opressão. A mulher vítima de violência XX e das ditaduras latino-americanas da se-
doméstica, o trabalhador sujeito a condi- gunda metade do século XX têm mantido
ções análogas ao trabalho escravo, o jovem o fascismo político fora da agenda política.
afro-brasileiro das periferias das grandes Por sua vez, a convivência da democracia
cidades, vivem muitas vezes em situação política com o fascismo social tem tornado
de fascismo social. Vivemos em socieda- dispensável o recurso ao fascismo político.
des que são politicamente democráticas e É, no entanto, perturbador que, enquanto
socialmente fascistas. Quanto mais se res- movimento opositor, o fascismo político
tringirem os direitos sociais e económicos tem vindo a ganhar peso tanto na Europa
e quanto menos eficaz for a acção judicial como nas Américas e também na Índia. Na
contra as violações dos direitos existentes, Europa tem muito a ver com o racismo, a
maior é o campo do fascismo social. imigração, os refugiados e a xenofobia. Na
O fascismo político é um regime político América Latina pode ser o reverso do fra-
ditatorial nacionalista, racista, sexista, casso das políticas de esquerda da última
xenófobo. Em certas circunstâncias pode década, combinado com os sempre presen-
ser a solução preferida pelas classes domi- tes racismo, colonialismo interno e sexis-
nantes quando a prática democrática afeta mo. Uma vez frustradas as expectativas de
significativamente os seus interesses. Em mobilidade social ascendente criadas entre
sociedades de matriz colonial, o fascismo as classes populares pelos governos de-
Catorze cartas às esquerdas 493

mocráticos de esquerda, a frustração pode É trágico que, em tempos recentes, tenha


plasmar-se numa opção política pelo fas- sido mais fácil a forças importantes de es-
cismo, sobretudo se a frustração for vivida querda (em geral, de orientação social-de-
muito intensamente, se for acirrada pelos mocrática ou de centro-esquerda) realizar
média reacionários, se houver à mão bo- alianças com forças de direita do que com
des expiatórios, sejam eles estrangeiros ou outras forças de esquerda. Mas as dificul-
estratos sociais historicamente vítimas de dades na concretização de articulações de
racismo e de sexismo. O crescimento dos esquerda não são, em geral, da responsa-
movimentos fascistas é funcional aos go- bilidade de apenas um sector da esquerda.
vernos de direita reacionária na medida em Infelizmente, o sectarismo tem-se distribu-
que lhe permite legitimar mais autoritaris- ído generosamente. As teses seguintes fa-
mo e mais cortes nos direitos sociais e eco- lam de esquerda no singular para designar
nómicos, mais criminalização do protesto o campo de consensos práticos que devem
social em nome da defesa da democracia. subjazer às alianças entre as esquerdas.
2. A esquerda vai certamente continuar a 3. A refundação da esquerda exige uma re-
ser uma pluralidade de esquerdas, mas fundação da política concebida enquanto
a pluralidade tem de saber ultrapassar a teoria e prática do exercício e da transfor-
fragmentação e articular-se no respeito da mação do poder em seu sentido mais am-
diferença ainda que maximizando con- plo. O poder é sempre expressão de rela-
vergências e minimizando divergências. ções desiguais que permitem a quem o tem
O fortalecimento do fascismo social com representar o mundo como seu e transfor-
fachada política democrática vai exigir um má-lo de acordo com as suas necessidades,
esforço adicional na busca de consensos interesses e aspirações, seja esse mundo a
que permitam um novo tipo de frente de- família, a empresa, a comunidade, a escola,
mocrática, mas com a mesma abrangência o mercado, a cidadania, o globo terrestre.
das frentes populares na Europa dos anos O poder só é democrático quando é exer-
1930 ante a ameaça do fascismo enquanto cido para ampliar e aprofundar a democra-
regime político (e não “apenas” enquanto cia. No seu sentido mais amplo, a democra-
regime social como acontece atualmente). cia é todo o processo de transformação de
494 Boaventura de Sousa Santos

relações desiguais de poder em relações de isto é, governar sem dominar os parâme-


autoridade partilhada. Por isso não há so- tros gerais do poder que domina nas rela-
ciedades democráticas; há sociedades que, ções económicas, sociais, políticas, cultu-
quando governadas pela esquerda, estão rais e internacionais. É um governo que,
em processo de democratização e, quando para não ser frágil, tem de ser duplamente
governadas pela direita, em processo de forte: seguro nas raízes e musculado nas
fascistização. Governar à esquerda é am- asas. É um governo que para ser sustentável
pliar a democracia tanto nas relações po- não pode apoiar-se apenas nas instituições
líticas como nas relações sociais. Governar políticas e jurídicas. Deve saber relacionar-
à direita é restringir a democracia nessas -se organicamente com os movimentos e
mesmas relações. organizações sociais e mesmo com a acção
4. Tanto na oposição como no poder, a es- directa e pacífica dos cidadãos e cidadãs.
querda deve manter a coerência entre os Deve sobretudo saber que as novas forças
meios e os fins. Não há fins honrosos quan- de direita procurarão essa mesma relação,
do os meios para os obter são vergonhosos. pelo que a mobilização social e a acção di-
A mesma coerência é exigida entre estar na recta não são monopólio da esquerda. Pelo
oposição e estar no governo. Nas socieda- contrário, podem ser as armas mais efica-
des dominadas pelo capitalismo, o colonia- zes contra a esquerda. Por isso, a esquerda
lismo e o patriarcado, a zona de conforto suicida-se sempre que desperdiça ou negli-
da esquerda é a oposição. Quando no go- gencia a confiança que em si depositam os
verno o desconforto do poder exercido na movimentos e as organizações sociais. A
sociedade tem de ser o espelho do poder confiança fortalece-se com a proximidade
do desconforto no interior da esquerda. solidária assente no respeito da autonomia;
Quando confortável no governo, a esquer- enfraquece-se com a distância arrogante e
da engana quem nela confia e engana-se ao a voracidade do controle.
confiar em quem nunca deveria. 6. No Brasil, o actual regime político não
5. Nas condições actuais, governar à esquer- permite que se governe de modo coerente
da significa governar contra a corrente, à esquerda. A prioridade da esquerda dever
ser a reforma política e não o regressar ao
Catorze cartas às esquerdas 495

governo a todo custo ou o mais rápido pos- ditadura e democracia, as forças anti-
sível. Não merece a pena ter ganhos a curto democráticas têm hoje meios de ganhar
prazo se eles rapidamente se transformam influência dentro dos partidos democráti-
em perdas de longo prazo. A reforma políti- cos, inclusive dos que se designam de es-
ca pode exigir a convocação de uma assem- querda. No actual contexto, são antidemo-
bleia constituinte originária. Tal exigência cráticas as forças que apenas respeitam a
terá de enfrentar a poderosa contra-refor- democracia na medida em que ela respeita
ma liderada pelo sistema judicial e pelos os seus interesses económicos ou outros,
media. A reforma política deve ser orienta- não admitindo que tais interesses possam
da para permitir uma revolução cultural e ser reconfigurados ou afetados negativa-
social que, a prazo, a sustente e a defenda mente em resultado da competição demo-
da persistente contra-reforma política. crática, nomeadamente quando esta procu-
7. A reforma política deve ser orientada por ra atender a interesses de outros grupos ou
três ideias: a democracia representativa classes sociais. A debilidade da democra-
perdeu a capacidade de se defender das cia representativa reside na facilidade com
forças antidemocráticas; para que a de- que hoje minorias sociais se convertem em
mocracia prevaleça é necessário inventar maiorias políticas e, paralelamente, na faci-
novas institucionalidades que permitam lidade com que maiorias sociais se conver-
articular, nas diferentes escalas de gover- tem em minorias políticas.
nação, a democracia representativa e a 9. Articular a democracia representativa
democracia participativa; em sociedades com a democracia participativa pressu-
dominadas por relações capitalistas, co- põe refundar o sistema político. A articu-
lonialistas e patriarcais a democracia, tal lação da democracia representativa (os ci-
como a esquerda, está sempre em risco; dadãos elegem os decisores políticos) com
só uma vigilante economia de cuidado lhes a democracia participativa (os cidadãos e
permite sobreviver e florescer. as comunidades organizam-se para tomar
8. Ao contrário do que aconteceu no tempo decisões políticas) exigirá uma refundação
em que havia uma separação clara entre do sistema político no seu conjunto (novas
instituições, por exemplo, um quarto orgão
496 Boaventura de Sousa Santos

de soberania vocacionado para o controle ou interesse para aderir a partidos ou par-


cidadão das políticas públicas que o afec- ticipar em movimentos. Mas quando vem
tam directamente a cidadania) e não ape- para a rua só surpreende as elites políticas
nas do regime político (sistema de parti- que perderam o contacto com “as bases”.
dos, sistema eleitoral, etc.). Pressupõe que 10. Dado que a democracia representativa
os cidadãos se possam organizar por ou- está muito mais consolidada que a demo-
tras formas que não os partidos para inter- cracia participativa, a articulação entre
vir ativamente na política, via eleições ou as duas terá sempre de ter presente esse
referendos. Pressupõe que os partidos po- desequilíbrio. O pior que pode acontecer
líticos de esquerda existentes sejam refun- à democracia participativa é ter todos os
dados de modo a que eles próprios sejam defeitos da democracia representativa e
internamente organizados por via de arti- nenhuma das suas virtudes.
culações entre democracia representativa
11. A reforma política não vale por si. O seu
e democracia participativa (assembleias e
objectivo é facilitar a revolução democráti-
ou círculos de cidadãos e cidadãs simpa-
ca nas relações económicas, sociais, cultu-
tizantes). Esta última deve ter um papel
rais e internacionais. Por sua vez, essa re-
central em três áreas: definição da agenda
volução tem por objectivo diminuir gradual
política; selecção de candidatos aos órgãos
e sustentadamente as relações de poder
da democracia representativa; vigilância
desigual e as consequentes injustiças pro-
sobre cumprimento dos termos dos man-
vocadas pelas três formas de dominação
datos. Os novos partidos terão a forma de
moderna: capitalismo, colonialismo e pa-
partido-movimento e saberão viver com o
triarcado. Estas três formas de dominação
facto de não terem o monopólio da repre-
operam articuladamente. Tanto o colonia-
sentação política. Não há cidadãos despo-
lismo como o patriarcado existiram muito
litizados; há cidadãos que não se deixam
antes do capitalismo moderno, mas foram
politizar pelas formas dominantes de politi-
profundamente reconfigurados por este
zação, sejam elas partidos ou movimentos
para servir os objectivos da expansão do
da sociedade civil organizada. A esmagado-
capitalismo. O patriarcado foi reconfigura-
ra maioria dos cidadãos não tem condições
Catorze cartas às esquerdas 497

do para desvalorizar o trabalho das mulhe- vê interessadamente como politicamente


res na família e na reconstituição da força democráticas. Nas condições actuais em
de trabalho. Apesar de ser um trabalho que domina a forma mais anti-social de
iminentemente produtivo porque produz capitalismo (o capitalismo financeiro), a
a própria vida e foi falsamente concebido dominação capitalista mais do que nunca
como trabalho reprodutivo. Essa desvalo- exige a dominação colonialista e sexista.
rização abriu o caminho para a desvaloriza- É por isso que as conquistas contra a dis-
ção do trabalho assalariado das mulheres. criminação racial ou sexual são tão pronta-
O patriarcado continua vigente apesar de mente revertidas quando necessário.
todas as lutas e conquistas dos movimen- 12. O drama das lutas contra a dominação
tos feministas e de mulheres. Por sua vez, da época moderna foi o terem-se centrado
o colonialismo, assente na inferioridade numa das formas de dominação, negli-
natural de certos grupos humanos, foi cru- genciando ou mesmo negando a existên-
cial para justificar a pilhagem e a despos- cia das outras formas. Assim, a esquerda
sessão, o genocídio e a escravatura em que política tem sido no seu melhor anticapita-
assentou a chamada acumulação primitiva. lista, mas quase sempre racista e sexista.
Acontece que essas formas de acumulação Não podemos esquecer que a social de-
capitalista particularmente violenta, lon- mocracia europeia, que permitiu regular o
ge de corresponder a uma fase do desen- capitalismo e criar sociedades mais justas
volvimento capitalista, é um componente através da universalização dos direitos so-
constitutivo deste. Por isso, o fim do colo- ciais e económicos, foi tornada possível
nialismo histórico não significou o fim do pela exploração violenta das colónias eu-
colonialismo enquanto forma de sociabili- ropeias e, mais tarde, pela subordinação
dade e continua hoje vigente nas formas de neocolonialista do mundo não europeu. A
colonialismo interno, discriminação racial, fragilidade e a reversibilidade das conquis-
violência policial, trabalho escravo, etc. O tas sociais residem em que as formas de
patriarcado e o colonialismo são os facto- dominação negadas minam por dentro as
res que alimentam e reproduzem o fascis- conquistas contra a dominação reconheci-
mo social nas sociedades que o capitalismo da. Assim, uma luta de esquerda orientada
498 Boaventura de Sousa Santos

para dar um rosto mais humano ao capita- a pena apenas porque a alma da esquerda
lismo, mas que despreze a existência de ra- era bem pequena.
cismo, de colonialismo e de sexismo, pode, 13. A política de esquerda tem de ser conjun-
não só causar imenso sofrimento humano, tamente anticapitalista, anticolonialista
como pode acabar fortalecendo o capitalis- e antisexista, sob pena de não merecer ne-
mo que quis controlar e deixar-se derrotar nhum destes atributos.
ingloriamente por ele.
14. Obviamente, as diferentes lutas sociais
Isto explica em parte que os governos não podem lutar todas contra as diferen-
progressistas da América Latina da última tes formas de dominação da mesma ma-
década tenham tão facilmente minimizado neira e ao mesmo tempo. O facto de as três
os “danos colaterais” da exploração de- formas de dominação não poderem, em ge-
senfreada dos recursos naturais causada ral, reproduzir-se isoladamente umas das
pelo consenso das commodities e aparen- outras não significa que em certos contex-
temente nem se tenham dado conta que tos a luta contra uma delas não esteja mais
o neo-extrativismo representava a conti- próxima ou seja mais urgente. O importan-
nuidade mais directa com o colonialismo te é que, por exemplo, ao conduzir uma
histórico contra o qual sempre se manifes- luta contra o colonialismo se tenha presen-
taram. Tais danos envolveram a expulsão te nas bandeiras e articulações de luta que
de camponeses e indígenas das suas ter- a dominação colonialista não existe sem a
ras e territórios ancestrais, o assassinato dominação capitalista e sexista.
de líderes sociais por sicários a mando
15. A esquerda do futuro tem de ser intercul-
de empresários sem escrúpulos e num
tural e de se organizar com base na prio-
contexto de total impunidade, expansão
ridade da articulação das lutas contra
da fronteira agrícola para além de toda a
as diferentes dominações como condição
responsabilidade ambiental, o envenena-
necessária da eficácia das lutas. Como
mento de populações do campo sujeitas à
as diferentes tradições de luta criaram as
pulverização aérea de herbicidas e pestici-
culturas oposicionais específicas (histórias
das, alguns deles proibidos internacional-
fundadoras, narrativas e linguagens pró-
mente. Tudo isto aparentemente mereceu
Catorze cartas às esquerdas 499

prias, bandeiras específicas de luta agrega- e despatriarcalizado para nos poder ajudar
dora), a articulação entre lutas/movimen- a imaginar e a desejar uma sociedade mais
tos/organizações envolverá em maior ou justa e mais digna de que nos está dada a
menor medida algum trabalho de tradução viver no tempo presente.
intercultural.
16. A interculturalidade irá introduzir na
agenda política duas formas dominação-
-satélite que fornecem ao capitalismo, ao
colonialismo e ao patriarcado o óleo que
lhes permite funcionar com maior legi-
timidade social: a dominação da nature-
za e a dominação causada pelo conheci-
mento académico dominante nas nossas
universidades e centros de pesquisa. Com
isto, duas outras dimensões de injustiça se
tornarão visíveis: a injustiça ecológica e a
injustiça cognitiva. Somadas às restantes,
estas duas formas de injustiça obrigarão
a uma revolução cultural e cognitiva com
impacto específico nas políticas de saúde e
de educação. Será então tão possível valo-
rizar os conhecimentos populares nascidos
na luta contra a dominação como deixar de
festejar como heróis da nossa história ho-
mens brancos responsáveis por genocídios,
tráfico de escravos, roubo de terras. No pla-
no teórico, o marxismo, que continua a ser
tão importante para analisar as sociedades
do nosso tempo, terá de ser descolonizado
As concepções hegemónicas e
contra-hegemónicas de democracia*

A história da democracia ao longo do século


XX foi em boa parte contada por aqueles
que tinham um interesse, não necessariamen-
transformava em algo bem distinto, a demo-
cracia neoliberal.
Na primeira década do nosso século foram
te democrático, em promover um certo tipo criadas na América Latina as condições políti-
de democracia, a democracia liberal, e invisi- cas para repor o debate sobre o pluralismo e a
bilizar ou, quando impossível, demonizar ou- diversidade democráticas e com isso restabele-
tros tipos de democracia. Mesmo assim houve cer na prática o princípio da demodiversidade,
períodos, sobretudo no início do século XX e um conceito fundamental no meu trabalho te-
no imediato pós-segunda guerra mundial, em órico sobre a democracia. As condições foram,
que os debates foram relativamente plurais e obviamente, as dos governos de esquerda que,
a diversidade das aspirações democráticas, no bojo de fortes movimentos sociais, chega-
intensamente vivida. A partir de finais da dé- ram ao poder em países como a Venezuela, o
cada de oitenta, o pluralismo e a diversidade Brasil, a Argentina, o Equador, a Bolívia e o
foram desaparecendo e o debate, ou o não- Uruguai. Infelizmente, perante as urgências da
-debate, passou a centrar-se na democracia governação e os tipos de regimes políticos em
liberal enquanto esta sub-repticiamente se que elas se inseriram, o debate ou nunca teve
lugar ou, quando teve, ficou muito aquém das
expectativas. A segunda década do milénio está
* Extraído de Santos, B. de Sousa 2018 “As concep- dominada, talvez como nunca, pelo monopólio
ções hegemónicas e contra-hegemónicas de democra-
de uma conceção de democracia de tão baixa
cia” in Pneumatóforo: escritos políticos (1981-2018)
(Coimbra: Almedina). intensidade que facilmente se confunde com
502 Boaventura de Sousa Santos

a anti-democracia. Com cada vez mais infeliz tica. Essa disputa, travada no final de cada uma
convicção, vivemos em sociedades que são po- das guerras mundiais e ao longo do período
liticamente democráticas e socialmente fascis- da guerra fria, envolveu dois debates princi-
tas, uma ideia que será desenvolvida adiante. pais. Na primeira metade do século, o debate
Até quando o fascismo se mantém como regi- centrou-se em torno da desejabilidade da de-
me social e não passa a fascismo político é uma mocracia (Weber, 1919; Schmitt, 1926; Kelsen,
questão em aberto. Daí a pergunta que formulei 1929; Michels, 1949; Schumpeter, 1942)1. Se,
no prefácio: para onde vai a democracia? Ve- por um lado, tal debate foi resolvido em favor
jamos com mais detalhe os caminhos teóricos da desejabilidade da democracia como forma
que nos trouxeram até aqui. de governo, por outro lado, a proposta que se
Quando no final da década de noventa per- tornou hegemónica no final das duas guerras
guntaram a Amartya Sen qual tinha sido o mundiais implicou uma restrição das formas de
acontecimento mais importante do século XX participação e soberania ampliadas em favor
respondeu sem hesitação: a emergência da de um consenso em torno de um procedimento
democracia (1999: 3). Com uma visão mais eleitoral para a formação de governos (Schum-
pessimista do século XX, também Immanuel peter, 1942). Essa foi a forma hegemónica de
Wallerstein se perguntava no início da década prática da democracia no pós-guerra, em parti-
passada como é que a democracia tinha pas- cular nos países que se tornaram democráticos
sado de uma aspiração revolucionária no sécu- após a segunda onda de democratização2.
lo XIX a um slogan adoptado universalmente,
mas vazio de conteúdo no século XX (2001: 1).
1 Este debate iniciara-se no século XIX, pois até
Estas duas posições, apesar de muito diver- então e por muitos séculos a democracia tinha sido
gentes, convergem na constatação de que a de- considerada consensualmente perigosa e, por isso, in-
mocracia assumiu um lugar central no campo desejada. O seu perigo consistia em atribuir o poder de
político durante o século XX. Se continuará a governar a quem estaria em piores condições para o fa-
zer: a grande massa da população, iletrada, ignorante e
ocupar esse lugar neste século é uma questão
social e politicamente inferior (MacPherson, 1966).
em aberto.
2 A ideia das ondas de democratização deve-se a
O século XX foi efetivamente um século de
Samuel Huntington (1991). A primeira onda teria ocor-
intensa disputa em torno da questão democrá- rido entre as primeiras décadas do século XIX e do século
As concepções hegemónicas e contra-hegemónicas de democracia 503

Um segundo debate permeou a discus- relação com as classes agrárias; a relação en-
são em torno da democracia no pós-segunda tre os sectores agrários e os sectores urbanos e
guerra mundial: trata-se do debate acerca das o nível de rutura provocado pelo campesinato
condições estruturais da democracia (Moore, ao longo do processo de modernização (Moo-
1966; O’Donnell, 1973; Przeworski, 1985) que re, 1966). O objetivo de Moore era explicar por
foi também um debate sobre a compatibilida- que a maior parte dos países não eram demo-
de ou incompatibilidade entre a democracia e cráticos nem poderiam vir a sê-lo senão pela
o capitalismo (Wood, 1996)3. Barrington Moore mudança das condições que neles prevaleciam.
inaugurou esse debate nos anos sessenta atra- Este debate sobre os requisitos estruturais
vés da introdução de uma tipologia que permi- da democracia articulava-se com o debate so-
tia indicar os países com propensão democrá- bre as virtualidades redistributivas da demo-
tica e os países sem propensão democrática. cracia. Tal debate partia do pressuposto que,
Para Moore, um conjunto de condições estru- na medida em que certos países venciam a
turais explicariam o fato de relativamente pou- batalha pela democracia, passavam a usufruir
cos países terem regimes democráticos no iní- de uma certa propensão distributiva caracte-
cio da segunda metade do século XX: o papel rizada pela chegada da social-democracia ao
do Estado no processo de modernização e sua poder (Przeworski, 1985). Haveria, portanto,
uma tensão entre capitalismo e democracia,
tensão essa que, uma vez resolvida a favor da
XX, a segunda onda, entre meados da década de quarentas democracia, colocaria limites à propriedade e
e meados da década de sessentas com o fim do nazismo e
implicaria ganhos distributivos para os secto-
a independência das colónias europeias, e a terceira onda,
entre meados da década de setentas e meados da década de res sociais desfavorecidos. Os marxistas, por
noventas, com as transições democráticas no Sul da Europa, seu lado, entendiam que essa solução exigia
na América Latina e na Europa de Leste. uma refundação da democracia uma vez que
3 Este debate, como de resto quase todos os outros nas sociedades capitalistas não era possível
sobre a democracia, tinha sido antecipado por Rousseau democratizar a relação fundamental em que
([1762] 1989), quando afirmava no Contrato Social que se assentava a produção material — a relação
só poderia ser democrática a sociedade onde não hou-
entre o capital e o trabalho. Daí que, no âmbito
vesse ninguém tão pobre que tivesse necessidade de se
vender e ninguém tão rico que pudesse comprar alguém. desse debate, se discutissem modelos de de-
504 Boaventura de Sousa Santos

mocracia alternativos ao modelo liberal: a de- (Sen, 1999: 4). Por outro lado, com o desmon-
mocracia participativa, a democracia popular te do Estado-Providência e com os cortes das
nos países da Europa de Leste, a democracia políticas sociais a partir da década de oitenta,
desenvolvimentista dos países recém-chega- também pareceram desconfirmadas as análises
dos à independência. de autores como Przeworski acerca dos efeitos
distributivos irreversíveis da democracia. Rea-
As concepções hegemónicas de bre-se, assim, a discussão sobre o significado
democracia estrutural da democracia em particular para os
A discussão democrática da última déca- chamados países em desenvolvimento, hoje, os
da do século XX mudou os termos do debate países do Sul Global.
democrático do pós-guerra. A extensão do À medida que o debate sobre o significado
modelo hegemónico, liberal, para o Sul da Eu- estrutural da democracia muda os seus termos,
ropa ainda nos anos setenta e, posteriormen- uma outra questão veio à tona: o problema da
te, para a América Latina e a Europa do Leste forma da democracia e da sua variação. Essa
(O’Donnell, Schmitter e Whitehead, 1986) pa- questão recebeu a sua resposta mais influente
receu desatualizar as análises de Moore e de na solução elitista proposta por Joseph Schum-
Przeworski. Tais análises pareciam obsoletas peter, de acordo com a qual o problema da
com as suas discussões sobre os impedimen- construção democrática em geral deveria deri-
tos estruturais da democracia, na medida em var dos problemas enfrentados na construção
que passamos a ter muitas dezenas de países da democracia na Europa no período de entre-
em processo de democratização, países esses -guerras. A partir dessa resposta funda-se o que
com enormes variações no papel do campesi- poderíamos chamar de conceção hegemónica
nato e nos seus respectivos processos de urba- da democracia. Os principais elementos dessa
nização. Amartya Sen é um dos que celebra a conceção seriam a tão apontada contradição
perda de credibilidade da ideia das condições entre mobilização e institucionalização (Hun-
estruturais quando afirma que a questão não é a tington, 1969; Germani, 1971); a valorização
de saber se um dado país está preparado para a positiva da apatia política (Downs, 1956), uma
democracia, mas antes a de partir da ideia que ideia muito salientada por Schumpeter para
qualquer país se prepara através da democracia quem o cidadão comum não tinha capacidade
As concepções hegemónicas e contra-hegemónicas de democracia 505

ou interesse político senão para escolher os quê participar se qualquer que seja o meu voto
líderes a quem incumbiria tomar as decisões nada muda”; e a patologia da representação, o
(1942: 269); a concentração do debate demo- facto dos cidadãos se considerarem cada vez
crático na questão dos desenhos eleitorais das menos representados por aqueles que elege-
democracias (Lijphart, 1984); o tratamento do ram: “depois de eleitos, os deputados não ser-
pluralismo como forma de incorporação par- vem os interesses de quem os elegeu com base
tidária e disputa entre as elites (Dahl, 1956; nos programas que apresentaram ao eleitora-
1971) e a solução minimalista ao problema da do; servem interesses pessoais ou de grupos
participação pela via da discussão das escalas sociais ou económicos poderosos”. As “pato-
e da complexidade (Bobbio, 1986; Dahl, 1991). logias” eram afinal o resultado esperado pelas
Todos esses elementos que poderiam ser apon- teorias democráticas liberais elitistas que do-
tados como constituintes de uma conceção minaram o debate ao longo do século XX, uma
hegemónica da democracia não conseguiram vez que desencorajavam a mobilização social
enfrentar adequadamente o problema da qua- em prol da ampliação e aprofundamento dos
lidade da democracia que voltou à superfície processos democráticos.
com a chamada “terceira onda de democratiza-
ção”. Quanto mais se insistia na fórmula clássi- As concepções contra-
ca da democracia liberal, de baixa intensidade, hegemónicas de democracia
menos se conseguia explicar o paradoxo de a Nas margens do discurso dominante sobre
extensão da democracia ter trazido consigo a democracia estiveram sempre presentes, ao
uma enorme degradação das práticas democrá- longo do século XX, conceções contra-hege-
ticas. Aliás, a expansão global da democracia mónicas de democracia. A diversidade destas
liberal coincidiu com uma crise grave desta nos conceções é enorme mas, em geral, as “seme-
países centrais onde mais se tinha consolida- lhanças de família” que existem entre elas são
do, uma crise dramatizada pelo movimento de as seguintes: a indeterminação dos resultados
Maio de 68. Em termos de teoria democrática, nos processos democráticos é o melhor antído-
a crise assentava numa dupla patologia: a pa- to do totalitarismo; os limites da representação
tologia da participação, sobretudo em vista do política são particularmente visíveis em socie-
aumento dramático do abstencionismo: “para dades socialmente muito desiguais e cultural-
506 Boaventura de Sousa Santos

mente muito diversas; se a representação re- estender as potencialidades distributivas, tanto


solve bem o problema da escala, resolve muito simbólicas como materiais, da democracia às
mal o da prestação de contas e o das identida- classes populares que mais poderiam benefi-
des coletivas; assim, para certos grupos sociais ciar delas; daí a necessidade de conceber a de-
(por exemplo, povos indígenas, populações mocracia como uma nova gramática social que
afro-descendentes), a inclusão democrática rompa com o autoritarismo, o patrimonialismo,
pressupõe o questionamento da identidade que o monolitismo cultural, o não-reconhecimento
lhes foi atribuída externamente por um Estado da diferença; tal gramática social implica um
colonial ou por um Estado autoritário e discri- enorme investimento nos direitos económicos,
minatório; os limites da representação só são sociais e culturais.
superáveis na medida em que a democracia Alguma vez formulei assim, em termos de
representativa se articular com a democracia direitos humanos, o meta-direito que subjaz a
participativa; os movimentos sociais, pela in- uma conceção contra-hegemónica de demo-
tensidade que emprestam às reivindicações cracia: temos o direito a ser iguais quando a
temáticas, têm sido fundamentais para reno- diferença nos inferioriza; temos o direito a ser
var a agenda política e, deste modo, ampliar diferentes quando a igualdade nos descaracte-
significativamente o campo do político4, pelo riza6. Nas sociedades contemporâneas estrutu-
que os partidos e políticos e os movimentos radas pelos três grandes tipos de dominação
sociais devem encontrar formas de articulação moderna, capitalismo, colonialismo e patriar-
no respeito das respectivas autonomias5; a de- cado, a democracia contra-hegemónica tem de
mocracia não se reduz ao procedimentalismo, ter uma intencionalidade anti-capitalista, anti-
às igualdades formais, e aos direitos cívicos e -colonialista e anti-patriarcal.
políticos pois por via deles nunca foi possível As transições democráticas da “terceira
onda”, sobretudo no Sul da Europa e na Améri-
ca Latina, apesar de moldadas pelos princípios
4 Ver Alvarez, Dagnino e Escobar, 1998; Jelin e Hers-
da democracia liberal, tiveram uma vocação
chberg, 1996, e Avritzer, 2002.
5 A experiência do Fórum Social Mundial veio dar
um ímpeto muito específico à valorização do papel po-
lítico dos movimentos sociais. Ver Santos, 2005. 6 Ver Santos, 1997: 30.
As concepções hegemónicas e contra-hegemónicas de democracia 507

contra-hegemónica que, no caso português na África do Sul e a consagração constitucio-


se plasmou na ideia de um regime democráti- nal (Constituição de 1996) de uma nova rela-
co como via para o socialismo consagrada na ção entre o princípio da igualdade e o princípio
Constituição de 1976. Em geral, os direitos eco- do reconhecimento da diferença8. O terceiro
nómicos e sociais adquiriram uma nova centra- momento foram os processos constituintes na
lidade, bem como os mecanismos de participa- Bolívia e no Equador que vieram a dar origem
ção, ainda que muitos deles nunca viessem a às Constituições políticas mais desviantes da
ser regulamentados. A Constituição brasileira norma eurocêntrica do neo-constitucionalismo
de 1988 é um bom exemplo disso. Iniciou-se, do pós-guerra, a Constituição do Equador de
assim, um período de renovação democrática e 2008 e a Constituição da Bolívia de 2009. Em
também de muitas contradições que viriam a re- ambas as Constituições misturam-se universos
dundar mais tarde em amargas frustrações. En- culturais eurocêntricos e indígenas, propõem-
tre os momentos mais luminosos deste período -se formas avançadas de pluralismo económi-
que se prolongou até ao fim da primeira década co, social e cultural, desenham-se regimes de
de dos mil, saliento três, muitos distintos entre autonomia territorial e de participação sem
si, mas igualmente significativos. Todos eles precedentes no continente (o reconhecimento
apontaram para um novo experimentalismo
democrático em sociedades muito desiguais e
muito heterogéneas, social e culturalmente. O Novos Manifestos” em que, entre outros temas, analisei
primeiro foram as experiências de democracia as experiências de democracia participativa na África
do Sul, Brasil, Colômbia, Índia, Moçambique e Portugal.
participativa a nível local a partir da década de
Ver Santos, 2002a e Santos (org.), 2003.
noventa sobretudo no Brasil, mas também na
8 Ver Klug (2000). De uma outra forma, a Colômbia,
Índia. Estas experiências, sobretudo na forma
um país atravessado pela violência e pela guerra civil,
de orçamentos participativos, difundiram-se assumira no início da década de noventa, num raro mo-
por toda a América Latina e mais recentemente mento de intensa negociação democrática (Constituição
pela Europa7. O segundo foi o fim do apartheid de 1991), um robusto reconhecimento da diversidade
etno-cultural do país. Este reconhecimento deu origem
a uma jurisprudência constitucional intercultural que
7 No início da década dirigi um projecto internacio- serviria de modelo a outros países do continente nas dé-
nal intitulado “Reinventar a Emancipação Social: Para cadas seguintes. Ver Santos e García-Villegas (2001).
508 Boaventura de Sousa Santos

da plurinacionalidade como base material e po- jeto, que inclui os países estudados no projeto
lítica do reconhecimento da interculturalida- anterior (ver nota 7) e, além deles, a Bolívia e o
de), defendem-se conceções não eurocêntricas Equador, procuro identificar e analisar experi-
de direitos humanos (o art. 71 da Constituição ências económicas, sociais e políticas que pos-
do Equador consagra os direitos da natureza) e sam ampliar e aprofundar o reconhecimento da
finalmente, atribui-se igual dignidade constitu- diversidade do mundo e dessa forma constitu-
cional a diferentes tipos de democracia (o art. am aprendizagens globais. Ou seja, aprendiza-
95 da Constituição reconhece a democracia re- gens que uma Europa arrogante e colonialista,
presentativa, a participativa e a comunitária)9. viciada em ensinar o mundo e nunca em apren-
Estes três momentos abriram caminho para der dele, deverá tomar em conta. Trata-se de si-
um novo experimentalismo democrático que nais de futuros emancipatórios pós-europeus e
acabou por envolver a própria estrutura do não, de um futuro emancipatório eurocêntrico,
Estado. Isso me levou a conceber o Estado o futuro que se foi constituindo no passado he-
como novíssimo movimento social (Santos, gemónico dos últimos cinco séculos.
1998: 59-74) e, nos casos da Bolívia e do Equa- Entre as experiências-aprendizagens está,
dor, a falar de uma autêntica refundação do obviamente, o vasto experimentalismo demo-
Estado moderno. crático a que me referi. Este projeto terminou
no final de 2016 num momento em que era evi-
Onde estamos e o que fazer? dente a frustração das elevadas expectativas
Nos últimos cinco anos, tenho estado a diri- que esse experimentalismo gerou. A esperança
gir um outro projecto internacional, intitulado da nação arco-íris sonhada por Nelson Man-
“ALICE — Espelhos estranhos, lições imprevis- dela tem sido traída perante as continuidades
tas: definindo para a Europa um novo modo de evidentes do antigo regime, tanto no domínio
partilhar as experiências o mundo”10. Neste pro- económico como no cultural, uma situação
que alguns dos investigadores que participam
neste projeto, designam por neo-apartheid. A
9 Ver Santos (2010). democracia participativa perdeu muito do seu
impulso contra-hegemónico inicial, em muitas
10 Este projeto pode ser consultado em <www.alice.
ces.uc.pt>. situações foi instrumentalizada, cooptada, dei-
As concepções hegemónicas e contra-hegemónicas de democracia 509

xou-se burocratizar, não se renovou, nem em degradação dos direitos económicos e sociais
termos sociais nem em termos geracionais. No estão a fazer com que o círculo da reciproci-
pior dos casos, conseguiu ter todos os defeitos dade cidadã se estreite e mais e mais cidadãos
da democracia representativa e nenhuma das passem a viver na dependência de grupos so-
suas virtudes. Por sua vez, as elevadas expec- ciais poderosos que têm um direito de veto
tativas suscitadas pelos processos boliviano e sobre os seus modos e expectativas de vida,
equatoriano têm igualmente sido parcialmente sejam eles, filantropos, narcotraficantes, lati-
frustradas, sobretudo no Equador, tendo em fundiários industriais, empresas de mega-pro-
vista que o modelo desenvolvimento económi- jetos e de mineração. A isso chamo o fascismo
co adotado, centrado na exploração intensiva social, um regime social que é o outro lado das
dos recursos naturais, acabou por colidir com democracias de baixa intensidade.
os princípios da interculturalidade e da pluri- Por outro lado, enquanto a democracia libe-
nacionalidade e por prevalecer sobre eles. ral reconhece a existência de dois mercados, a
Entretanto, em muitos dos países estuda- democracia neoliberal reconhece apenas um.
dos, a própria democracia representativa so- Para a democracia liberal, há dois mercados de
freu um enorme desgaste. Ele deveu-se a uma valores: o mercado político da pluralidade de
conjunção de fatores, todos eles convergindo ideias e convicções políticas em que os valores
na transformação da democracia liberal em não têm preço, precisamente porque são con-
democracia neoliberal, uma transformação vicções ideológicas de que se alimenta a vida
sub-reptícia já que teve lugar sem qualquer sus- democrática; e o mercado económico, que é
pensão ou revisão das constituições vigentes. o mercado dos valores que têm preço, o qual
Esta transformação ocorreu por via de dois é precisamente determinado pelo mercado de
processos convergentes. Por um lado, a preva- bens e serviços. Estes dois mercados devem
lência crescente do capitalismo financeiro glo- manter-se totalmente separados para que a
bal corroeu a soberania dos Estados ao ponto democracia liberal possa funcionar de acordo
de transformar Estados soberanos em presas com os seus princípios. Ao contrário, a demo-
fáceis de especuladores financeiros e de suas cracia neoliberal dá total primazia ao mercado
guardas-avançadas, as agências de notação de dos valores económicos e, por isso, o mercado
crédito e o FMI. A concentração de riqueza e a dos valores políticos tem de funcionar como se
510 Boaventura de Sousa Santos

fosse um mercado de ativos económicos. Ou Bibliografia


seja, mesmo no domínio das ideologias e das Alvarez, S.; Dagnino, E e Escobar, A. 1998
convicções políticas tudo se compra e tudo Cultures of Politics, Politics of Cultures:
se vende. Daí a corrupção endémica do siste- Re-visioning Latin American Social
ma político, uma corrupção, não só funcional, Movements (Boulder: Westview Press).
como necessária. A democracia, enquanto gra- Avritzer, L. 2002 Democracy and the Public
mática social e acordo de convivência cidadã, Space in Latin America (Princeton:
desaparece para dar lugar à democracia instru- Princeton University Press).
mental, a democracia tolerada enquanto serve Bobbio, N. 1986 O Futuro da Democracia
os interesses de quem tem poder económico e (São Paulo: Paz e Terra).
social para a pôr ao serviço dos seus interesses. Dahl, R. A. 1956 A Preface to Democratic
Vivemos, pois, uma conjuntura perigosa em Theory (Chicago: University of Chicago
que um a um foram desaparecendo ou sendo Press).
descaracterizados ao longo dos últimos cem Dahl, R. A. 1971 Polyarchy: Participation and
anos os vários imaginários de emancipação Opposition (New Haven: Yale University
social que as classes populares foram gerando Press).
com as suas lutas contra a dominação capita- Dahl, R. A. 1991 Democracy and its Critics
lista, colonialista e patriarcal. O imaginário da (New Haven: Yale University Press).
revolução socialista foi dando lugar ao imagi- Downs, A. 1956 An Economic Theory of
nário da social-democracia e este ao imaginá- Democracy (Nova Iorque: Harper).
rio da democracia sem adjetivos e apenas com Germani, G. 1971 Política y sociedad en
complementos de direitos humanos. una época de transición: De la sociedad
Isto leva-nos a pensar que é preciso ter a tradicional a la sociedad de masas
coragem de avaliar com exigência crítica os (Buenos Aires: Paidós).
processos e os conhecimentos que nos trou- Huntington, S. P. e Harvard University —
xeram até aqui e de enfrentar com serenidade Center for International Affairs 1969
a possibilidade de termos de começar tudo Political Order in Changing Societies
de novo. Este livro pretende ser um modesto (New Haven: Yale University Press).
contributo para isso.
As concepções hegemónicas e contra-hegemónicas de democracia 511

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512 Boaventura de Sousa Santos

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Parte V

Educação para outro


mundo possível
Apresentação
Educação para um outro
mundo possível

Nilma Lino Gomes

A reflexão sobre o lugar da educação nas


preocupações e reflexões de Boaventura
de Sousa Santos está intrinsecamente ligada
la que não evita os conflitos, mas entende-os
como parte constitutiva dos processos pedagó-
gicos. Trata-se de uma compreensão mais alar-
a uma expressiva característica do autor: o gada e profunda que não reduz educação à es-
fato de ser um intelectual-ativista cuja vida é colarização, mas que a entende como processo
orientada por uma inquietude epistemológica pleno de formação humana presente em toda e
e política diante do mundo e da ciência. In- qualquer sociedade. Educação como forma de
quietude essa, que se expressa na sua atitude conhecer melhor e atuar de forma politicamen-
inconformista e rebelde diante da globalização te posicionada no mundo e na vida. Educação
capitalista, das desigualdades sociais, da injus- como direito social, humano que articula justi-
tiça social e cognitiva. A produção teórica de ça social e cognitiva.
Boaventura e a sua atuação política refletem A educação é vista e compreendida na ten-
a sua aposta de que é possível produzir co- são e na confluência de sujeitos sociais que se
nhecimento comprometido com os processos afirmam existentes, resistentes em lutas por
de emancipação social e com as lutas contra- credibilidade e liberdade transgressoras. De
-hegemônicas. Um outro mundo é possível e a possibilidade de alternativas concretas que se
educação emancipatória desempenha um im- contrapõem às leituras e posturas hegemônicas,
portante papel nesse processo. conservadoras e autoritárias que reduzem o su-
Boaventura não dialoga com toda e qualquer jeito da educação a um mero aprendiz de letras e
concepção de educação, mas, sim, com uma números, a um sujeito genérico e universal sem
concepção emancipatória de educação, aque- gênero, sem raça, sem classe, sem sexualidade.
516 Nilma Lino Gomes

Essa concepção de educação pode ser com- não tem a pretensão de totalidade, embora esta
preendida, na obra do autor, nas suas mais va- seja uma das tentações que ele sofre quando
riadas reflexões e análises. Dentre estas, res- passa de marginal a conhecimento reconheci-
salto a sua formulação teórica sobre as duas do pelo cânone (Santos, 2002; 2004).
formas de conhecimento inscritas no paradig- Como essas duas formas de conhecimento se
ma da modernidade, a saber, o conhecimento- encontram numa tensão dialética é possível que
-regulação e o conhecimento-emancipação que o conhecimento-regulação abra espaços para
se constroem numa tensão dialética. a emancipação, assim como o conhecimento-
Para Boaventura o conhecimento-regulação -emancipação pode também atuar de forma re-
não regula somente conceitos, mas, também, gulatória na vida dos sujeitos, das consciências
valores, práticas, culturas e corpos. O conhe- e dos corpos. E é preciso encontrar alternativas
cimento-emancipação vai além, libertando os nesse processo. Uma delas é reavaliar o conhe-
sujeitos e afirmando-os na totalidade da sua cimento-emancipação e conceder-lhe a prima-
formação humana. Consequentemente, o co- zia sobre o conhecimento-regulação.
nhecimento-emancipação se apresenta como A imersão epistemológica e política na cons-
uma referência epistemológica para a constru- trução do conhecimento-emancipação realiza-
ção de uma educação emancipatória. da por Boaventura o leva a um caminho ainda
Boaventura nos alerta que o conhecimento- mais desafiador: faz-se necessário produzir ou-
-emancipação não está fora da modernidade, tras epistemologias que coloquem em destaque
mas foi marginalizado pela ciência moderna. É a ecologia de saberes, ou seja, a constelação
nele que é possível ampliar e questionar a pri- de conhecimentos que povoa o mundo, indaga,
mazia do conhecimento científico, colocando- rivaliza e enriquece a ciência. Para isso é preci-
-o no cerne das relações de poder, sobretudo, so produzir uma sociologia das ausências e das
localizando-o na relação “norte imperial” e “sul emergências e realizar a tradução intercultural.
colonizado”. O conhecimento científico, no Nessa busca, o autor percorre diversos ca-
conhecimento-emancipação, é visto como uma minhos: interroga e critica a ciência moderna
forma de saber, contextualizado e localizado e sua forma arrogante de arvorar para si a pri-
historicamente. É o saber produzido pela ci- mazia no campo do conhecimento e propõe a
ência moderna. O conhecimento-emancipação construção de epistemologias pós-modernas e
Parte v: Apresentação 517

pós-coloniais. Contudo, o seu olhar aguçado As provocações teóricas do autor para o


sobre a diversidade epistemológica do mundo campo educacional não se limitam a repensá-
lhe instiga a ir mais além na busca de cami- -lo. Elas nos convocam a ir além e descoloni-
nhos epistemológicos emancipatórios e con- zar o sistema educacional desde a educação
tra-hegemônicos: é preciso criar condições e básica até o ensino superior, superando mo-
fazer emergir as Epistemologias do Sul. Quan- noculturas e produzindo ecologias e compre-
to mais Boaventura aprende com o Sul, mais endendo que as lutas contra-hegemônicas por
ele analisa e aprofunda o conceito de Episte- educação se dão em diferentes escalas: local,
mologias do Sul. nacional e transnacional.
Ao avaliarmos o percurso da reflexão teóri- Esta apresentação está dividida em duas
ca de Boaventura e sua relação com a educa- partes. A primeira, “Tensões entre o conheci-
ção, é possível notar como as Epistemologias mento hegemônico e contra-hegemônico nas
do Sul foram se consolidando ao propor, em instituições educativas: escola básica e univer-
2003, no contexto do Fórum Social Mundial, a sidade” está organizada em cinco capítulos.
Universidade Popular dos Movimentos Sociais No primeiro capítulo, Boaventura dialoga
(UPMS) e a nos desafiar, nos seus estudos com a educação básica. Discute que a pedago-
mais recentes, a produzir processos combina- gia está sendo interrogada pelo tempo em que
dos e articulados para descolonizar as práticas vivemos, um tempo paradoxal de conflito e re-
e o conhecimento. petição, os quais muitas vezes impossibilitam-
Esses eixos orientadores do pensamento -nos de pensar a transformação social. Para
de Boaventura e seu diálogo com a educação superar essa situação a educação deve se confi-
constam dessa parte da antologia. Os capítulos gurar em um projeto educativo emancipatório.
selecionados não são os únicos, mas aqueles A universidade, sobretudo a pública, consi-
considerados como os mais expressivos da derada como um bem público permanentemen-
sua contribuição para a reflexão educacional te ameaçado por pressões internas e externas
e que têm inspirado educadoras e educadores é o foco dos outros quatro capítulos selecio-
comprometidos com uma concepção e práticas nados. Ela se configura como um campo de
emancipatórias de educação nos mais diversos disputa e tem sido historicamente tensionada
lugares do mundo. a mudar, sobretudo a partir dos anos 60 do
518 Nilma Lino Gomes

século XX, pela entrada paulatina de sujeitos ria ser radical, emancipatório e orientado para
diversos, de setores sociais não hegemônicos uma pedagogia do conflito1.
que tensionam o campo do conhecimento com Um projeto educativo emancipatório é ade-
os seus saberes e experiências sociais. quado para o presente, orientado a combater
A segunda parte, “As lutas e as práticas con- a trivialização do sofrimento humano trazendo
tra-hegemônicas como espaço-tempo de pro- imagens desestabilizadoras do passado con-
dução de um conhecimento emancipatório” é cebido, não como fatalidade, senão como um
composta por um único capítulo no qual o Fó- produto da iniciativa humana. É um projeto de-
rum Social Mundial (FSM) é o foco da análise. sestabilizador, pois carrega em si a memória e
Não somente o seu aspecto organizativo e polí- a denúncia, a comunicação e a complexidade.
tico é discutido, mas, principalmente, o fato de Consiste em recuperar a nossa capacidade de
ser a operação epistemológica da sociologia de assombro e de indignação e orientá-la para a
ausências e sociologia de emergências. conformação de subjetividades inconformistas
e rebeldes. Maximizar essa desestabilização é a
Tensões entre o conhecimento razão de ser desse projeto. Por isso, ele possui
hegemônico e contra-hegemônico uma densa carga de conflitualidade.
nas instituições educativas: escola As reflexões de Boaventura nesse capítulo
básica e universidade nos levam a indagar: em meio a tanto sofri-
O capítulo “Para uma pedagogia do conflito” mento humano indesculpavelmente causado é
(Santos, 2015: 11-33) é um exercício de articu- possível construir uma educação que se mostre
lação entre as principais reflexões epistemoló- inconformada com toda a sorte de desigualda-
gicas de Boaventura e o desafio de construir
um projeto educativo para a Educação Básica. 1 Esse artigo foi publicado pela primeira vez, em
Inspirado pela possibilidade e novidade de português, em 1996. É resultado da conferência de Boa-
construção de uma proposta inovadora de edu- ventura de Sousa Santos durante o “III Seminário Inter-
cação, o autor desafia aos educadores e a si nacional de Reestruturação Curricular: Novos Mapas
Culturais; Novas Perspectivas Educacionais” realizado
mesmo a refletir sobre qual seria o projeto de em Porto Alegre-Brasil, no ano de 1995. Lembremos
educação possível e coerente com uma visão que é também em 1995 que o conceito de Epistemolo-
democrática de sociedade. Esse projeto deve- gias do Sul passa a ser formulado pelo autor.
Parte v: Apresentação 519

des e injustiça? A resposta do autor é radical: ses com que se defrontava a universidade, a
uma educação para o inconformismo deve ser saber, a crise de hegemonia, de legitimidade
ela mesma inconformista. Deve resultar em e institucional.
conhecimentos e práticas que se inconformam Boaventura constrói uma análise-denún-
diante desse mesmo sofrimento. cia, em 1994, que se concretizou ao longo
O critério da boa e da má aprendizagem está, dos anos que se seguiram. Ele percebe com
portanto, na capacidade da educação cumprir profundidade que o modelo de gestão de con-
um projeto educativo emancipatório que faça tradições com o qual a universidade convivia,
emergir os modelos dominados e emergentes de forma tensionada, não poderia continuar
por meio dos quais é possível aprender um vigorando por muito tempo. As pressões se-
novo tipo de relacionamento mais igualitário e riam cada vez maiores, a universidade sofre-
justo entre saberes e, portanto, entre pessoas e ria de uma profunda instabilidade e os seus
entre grupos sociais. Um relacionamento que membros seriam cada vez mais obrigados a
nos faça aprender o mundo de forma edifican- desviar energias das tarefas intelectuais e
te, emancipatória e multicultural. sociais para as tarefas organizativas e insti-
No capítulo “Da ideia de universidade à uni- tucionais. A crise institucional tenderia a ab-
versidade de ideias” (Santos, 2012: 225-284), as sorver as atenções da comunidade universitá-
universidades públicas são o foco central das ria de tal modo que as outras duas crises (de
reflexões. O texto, publicado inicialmente em hegemonia e de legitimidade) se resolveriam
1994, analisa a complexa situação de tensão pela negativa. A crise de hegemonia pela des-
vivida pela universidade entre as exigências caracterização intelectual da universidade e a
cada vez maiores que vem da sociedade, as res- crise de legitimidade pela crescente desvalo-
trições do financiamento do Estado e a rigidez rização dos diplomas universitários.
funcional e organizativa da própria universida- Na segunda parte, “Para uma universidade
de em relação às mudanças. de ideias”, sendo coerente com o seu otimismo
Na primeira parte do capítulo, “Fins sem trágico e a sua inquietude de ser um rebelde
fins”, o autor identifica e analisa detalhada- competente Boaventura propõe várias saídas,
mente, sobretudo nos países centrais, a ma- as quais tem como alicerce a afirmação de que
neira como estavam sendo geridas as três cri- é necessário pensar um outro modelo de atu-
520 Nilma Lino Gomes

ação universitária perante as crises identifica- “A universidade no século XXI. Para uma
das. Uma atuação ativa, autônoma e estrategi- reforma democrática e emancipadora da uni-
camente orientada para médio e longo prazos. versidade” (Santos, 2015: 88-153) é o texto es-
Tal atuação é cuidadosamente discutida por crito, em 2004, dez anos depois da publicação
meio de onze teses para uma universidade do capítulo “Da ideia de universidade à univer-
pautada pela ciência pós-moderna. Para cada sidade de ideias”. Nele, Boaventura rediscute a
tese, somos levados a refletir sobre propos- situação vivida pela universidade, em especial
tas de soluções ou ilustrações de caráter pro- a pública. Chama a nossa atenção para a exis-
gramático e provocatório, apresentadas pelo tência de um projeto de globalização neoliberal
autor, que olham para a universidade e suas da universidade, que a desestabiliza, levando-a
crises e apontam caminhos de emancipação. a uma nova crise. Para a superação desta, so-
Esses dizem respeito a promoção da discussão mente com uma reforma criativa, democrática
transdisciplinar, a garantia do desenvolvimen- e emancipatória da universidade pública que
to equilibrado entre as ciências naturais, as so- parta das lutas por uma globalização contra-he-
ciais e as humanidades, o debate sobre dupla gemônica. Isso exige enfrentar a globalização
ruptura epistemológica, a transformação das neoliberal e contrapô-la com uma globalização
atividades de extensão até elas transformarem alternativa, contra-hegemônica de universida-
a universidade, o uso estratégico do potencial de como bem público. Uma resposta às deman-
da autonomia institucional para fazer coliga- das sociais, pondo fim a uma história de exclu-
ções políticas com os grupos e as organizações são dos grupos sociais e de seus saberes. Uma
em que a memória da inovação ainda esteja democratização radical que exige pressões por
presente e a potencialização da dimensão sim- um Estado público2.
bólica e lúdica da universidade via transgres-
são igualitária e organização de festas do novo
senso comum, entendidas como configurações 2 Esse capítulo é um aprofundamento das ideias de-
de alta cultura, cultura popular e cultura de senvolvidas na primeira versão do livro A Universida-
massas, por meio das quais a universidade po- de do século XXI, apresentada em Brasília-Brasil, em
2004, no âmbito do Calendário Oficial de Debates sobre
derá ter um papel modesto mas importante de
a Reforma Universitária do Ministério da Educação do
re-encantamento da vida coletiva. Brasil, sendo Ministro o Dr. Tarso Genro. As análises
Parte v: Apresentação 521

Em tempos de globalização neoliberal e ca- uma universidade emancipatória no século XXI


pitalista, universidade e Estado são campos de faz parte da sua compreensão de que qualquer
disputa. Há intencionalidades conservadoras e projeto de educação sintonizado com as lutas
capitalistas de enfraquecimento do Estado, as contra-hegemônicas é em si mesmo emancipa-
quais repercutem na incapacidade epistemoló- tório e conflitivo.
gica da universidade e das funções sociais da “A encruzilhada da Universidade Europeia”
educação. A direção em que for a reforma da (Santos, 2017: 289-300) tem como eixo central
universidade é a direção em que caminha a re- as reflexões advindas do período de avaliação
forma do Estado. Por isso, é importante enten- do processo de Bolonha, originado pela Decla-
der que a disputa em jogo é uma só. ração de Bolonha assinada pelos ministros da
O foco nos sujeitos sociais como atores po- educação da União Européia, em 1969, com
líticos, organizados em lutas emancipatórias objetivo de reformar o ensino superior na Eu-
aparece nas análises e proposições do autor ropa e criar o Espaço Educação superior eu-
por uma reforma emancipatória da universi- ropeia (EEES). Para Boaventura, não há um
dade. São os cidadãos, organizados em grupos consenso sobre as intenções e os resultados de
sociais, sindicatos, movimentos sociais, orga- Bolonha. Passadas duas décadas após o início
nizações não governamentais, construindo ar- desse processo, as universidades apenas de-
ticulações cooperativas entre a universidade e ram respostas simples às perguntas complexas
os interesses sociais que representam. que as dinâmicas sociais, científicas e institu-
Boaventura se reencontra com a concepção cionais lhes colocaram. O mais grave é que as
de educação defendida no artigo “Por uma pe- mais simples são as não respostas, os silêncios,
dagogia do conflito”, selecionado nessa antolo- dando por certo o novo senso comum sobre a
gia. É possível dizer que, para o autor, construir missão da universidade.
Ao discutir os desafios enfrentados pela uni-
versidade europeia Boaventura vai mais além e
do autor sobre a situação da universidade contidas no nos alerta para o fato de que a situação está co-
capítulo “Da ideia de universidade à universidade de locada para todos os continentes, independen-
ideias” no livro De la mano de Alicia. Lo social y lo po-
temente dos motivos, argumentos ou soluções
lítico em La postmodernidad, publicado originalmente
em 1994, são aqui aprofundadas. propostas. Trata-se de uma crise paradigmática
522 Nilma Lino Gomes

atravessada pela universidade e os desafios a nhecimento tendo como eixo orientador a crí-
ela colocados pelo século XXI, no qual os pro- tica à universidade moderna e sua relação com
blemas modernos enfrentados pela universida- o conhecimento. Por isso, ele merecerá uma
de não têm apresentado soluções modernas. apresentação mais detalhada nessa seleção.
As novas dinâmicas sociais, políticas e eco- Boaventura analisa experiências de uni-
nômicas têm interpelado a universidade. Po- versidades populares existentes em diversos
rém, as respostas têm sido simples e fracas, lugares do mundo, desde o surgimento da pri-
diante da robustez dos problemas colocados. meira instituição que assim se autonomeou
Ao responder de forma simples a universidade até as mais recentes que, de fato, rompem
se vê convertida em um dos problemas socie- com o elitismo do saber científico e são orga-
tários que ela tenta resolver. As respostas sim- nizadas por sujeitos sociais oriundos de cole-
ples dão por certo o futuro da universidade e tivos sociais diversos.
por isso as reformas que elas convocam não As universidades populares, com cadên-
conseguem superar a perplexidade causada pe- cias diferenciadas e temáticas diversas se
las perguntas complexas que a realidade exige. unem no fato de serem experiências antica-
Na verdade, elas assumem que a perplexidade pitalistas, anticoloniais e antipatriarcais. Tem
não faz sentido. como marcas a pluriversidade e subversão, as
Boaventura propõe doze perguntas comple- quais só podem se realizar em uma universi-
xas com o objetivo de transformar a perplexi- dade polifônica.
dade em energia positiva, aprofundar e reorien- A polifonia pode ser realizada de duas for-
tar o movimento de reforma da universidade. mas: Tipo 1 e Tipo 2. O Tipo 1 ocorre dentro
Contudo, tanto as perguntas quanto a possibi- dos limites das configurações institucionais
lidade de respostas indicam que não há visão existentes, mesmo que as reformem profunda-
única e nem previsão de consenso. A conflitua- mente. O objetivo é construir a pluriversidade.
lidade está ali também instalada. Já a universidade polifônica do tipo 2 ocorre
O capítulo “Rumo a uma universidade poli- fora das instituições convencionais. Ela se re-
fônica comprometida: pluriversidade e subver- aliza por meio do uso contra-hegemônico de
sidade” (Santos, 2017: 377-433), apresenta uma uma ideia hegemônica — a ideia da universi-
densa reflexão sobre a descolonização do co- dade. O objetivo é construir a subversão, um
Parte v: Apresentação 523

termo que capta tanto o caráter subalterno educativo emancipatório e conflitivo de refun-
dos grupos sociais muitas vezes envolvidos em dação democrática da universidade.
suas iniciativas, quanto a maneira subversiva
em que intervém na ideia convencional da uni- As lutas e as práticas contra-
versidade (Santos, 2017). hegemônicas como espaço-tempo
As epistemologias do Sul estão no cerne da de produção de um conhecimento
pluriversidade. Enquanto parte de uma trans- emancipatório
formação epistemológica elas poderão desem- O capítulo “O Fórum Social Mundial como
penhar um papel crucial ao privilegiar os co- epistemologia do Sul” (Santos, 2005: 25-44)
nhecimentos (sejam científicos ou artesanais / destaca e reafirma o potencial emancipatório
práticos / populares / empíricos) nascidos na da constelação de conhecimentos contra-hege-
luta ou produzidos para serem utilizados nas mônicos que instiga e são produzidos pela di-
lutas contra a dominação. versidade de movimentos sociais reunidos no
Por ser aquela com a qual Boaventura tem Fórum Social Mundial (FSM).
maior inserção e familiaridade o capítulo dedi- O FSM nos coloca diante de uma alternativa
ca um maior espaço à descrição da Universi- epistemológica: não haverá justiça social glo-
dade Popular dos Movimentos Sociais (UPMS), bal sem justiça cognitiva global.
compreendida como forma itinerante de Uni- O FSM age como uma denúncia contra os
versidade Polifônica Tipo 2 (PU-2), ou seja conceitos de racionalidade e eficiência do co-
aquela que não possui escritório físico ou, se nhecimento hegemônico, os quais são incapazes
o fizer, não é usado como um local de apren- de captar a riqueza da diversidade das práticas
dizado. A itinerância pode ocorrer dentro do e experiências sociais do mundo. O ocultamen-
mesmo país ou pode ser transnacional. to e o descrédito dessas práticas constituem um
A ideia de uma universidade polifônica con- desperdício da experiência social.
tinua ganhando terreno de múltiplas formas. Entender o FSM como Epistemologias do Sul
Boaventura atribui esse movimento, principal- significa reconhecer as ausências e fazer emer-
mente, a tenacidade e a imaginação de todos gir conhecimentos e experiências sociais ativa-
aqueles que entendem que a noção de uma mente produzidos como ausentes pelas disputas
“universidade popular” faz parte do projeto políticas e epistemológicas geradas pela globa-
524 Nilma Lino Gomes

lização neoliberal. Globalização essa, que cons- Bibliografia


trói um movimento de descrédito, ocultação e Santos, B. de Sousa (org.) 2004 Conhecimento
trivialização da globalização contra-hegemônica prudente para uma vida decente (São
ao qual acompanham o descrédito, ocultação e Paulo: Cortez).
trivialização do conhecimento que informa prá- Santos, B. de Sousa 2002 A crítica da razão
ticas e agentes contra-hegemônicos. indolente. Contra o desperdício da
A operação epistemológica realizada pelo experiência (Porto: Afrontamento).
FSM consiste em dois processos presentes na Santos, B. de Sousa 2005 Foro social mundial,
obra de Boaventura: a sociologia de ausências manual de uso (Barcelona: Icaria) pp. 25-
e a sociologia de emergências. A primeira tem 44.
como objetivo principal identificar e valorizar Santos, B. de Sousa 2012 De la mano de
as experiências sociais disponíveis no mundo, Alicia. Lo social y lo político en la
apesar da declaração de sua inexistência pela postmodernidad (Bogotá: Universidade de
racionalidade e conhecimento hegemônico. A Los Andes/Siglo del Hombre Editores) pp.
segunda, visa identificar e expandir a indica- 225-284.
ções de possíveis experiências futuras, sob a Santos, B. de Sousa 2015 La universidad en el
aparência de tendências e latências que são Siglo XXI (México, DF: Siglo XXI Editores)
muito ativamente ignoradas pela racionalidade pp. 11-33.
e conhecimento hegemônico. (Santos, 2017). Santos, B. de Sousa 2017a Justicia entre
O FSM se constitui como espaço de conflu- Saberes: Epistemologías del sur contra el
ência de movimentos e coletivos emancipató- Epistemicidio (Madrid: Ediciones Morata)
rios, intelectuais-ativistas e sujeitos sociais que pp. 289-300.
se afirmam existentes. Produzem experiências Santos, B. de Sousa 2017b Decolonising
sociais, conhecimentos, valores e culturas con- the University: The Challenge of Deep
tra-hegemônicos. Resistem nas lutas por cre- Cognitive Justice (Newcastle upon Tyne:
dibilidade e liberdade transgressora. Por isso, Cambridge Scholars) pp. 377-433.
suas ações abordam mais ou menos o tipo ideal
de sociologia das emergências.
Para uma pedagogia do conflito* **

Introdução justa e mais solidária e a sua impossibilidade


política. Este tempo paradoxal cria-nos a sen-
V ivemos num tempo paradoxal. Um tempo
de mutações vertiginosas produzidas pela
globalização, a sociedade de consumo e a so-
sação de estarmos vertiginosamente parados.
Vivemos, de facto, num tempo simultanea-
ciedade de informação. Mas também um tempo mente de conflito e de repetição. O grão de
de estagnação, parado na impossibilidade de verdade da teoria do fim da história está em
pensar a transformação social, radical. Nunca que ela é o máximo de consciência possível
foi tão grande a discrepância entre a possibi- de uma burguesia internacional que vê final-
lidade técnica de uma sociedade melhor, mais mente o tempo transformado na repetição
automática e infinita do seu domínio. O lon-
* Extraído de Santos, B. de Sousa 1996 “Para uma pe-
go prazo colapsa assim no curto prazo e este,
dagogia do conflito” in Silva, L. H. da et al. Novos Mapas que foi sempre o quadro temporal do capita-
Culturais, Novas Perspectivas Educacionais (Porto lismo, permite finalmente à burguesia produ-
Alegre: Editora Sulina). zir a única teoria da história verdadeiramente
** Palestra proferida no III Seminário Internacional burguesa, a teoria do fim da história. O total
sobre Reestruturação Curricular: Novos Mapas Cultu- descrédito desta teoria não interfere em nada
rais, Novas Perspectivas Educacionais, organizado pela
Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre, de
com o sucesso dela enquanto ideologia espon-
1 a 6 de julho de 1996. Duas décadas depois, motivou a tânea dos vencedores. O outro lado do fim da
discussão das suas propostas que se reflectiram no livro história é o slogan da celebração do presente
Freitas, A. L. e Moraes, S. Campos (orgs.) 2009 Contra tão cara às versões capitulacionistas do pen-
o desperdício da experiência. A pedagogia do conflito samento pós-moderno.
revisitada (Porto Alegre: Redes Editora). [N. do A.]
526 Boaventura de Sousa Santos

A ideia da repetição é o que permite ao pre- Mas será assim? Estará a vitória da burgue-
sente alastrar ao passado e ao futuro, canibali- sia internacional consumada? Será o presente
zando-os. Estamos perante uma situação nova? capaz de repetir-se para sempre? A verdade é
Até agora a burguesia não pudera elaborar uma que a repetição do presente é a repetição da
teoria da história exclusivamente segundo os fome e da miséria para uma parte cada vez
seus interesses. Vira-se sempre em luta com mais importante da população mundial, é a
adversários fortes, primeiro as classes domi- repetição de novos fascismos transnacionais
nantes do antigo regime e depois, as classes públicos e privados que, sob a capa de uma
trabalhadoras. O desfecho dessa luta estava democracia sem condições democráticas, es-
sempre no futuro, o qual, por essa razão, não tão a criar um apartheid global, é, finalmente,
podia ser visto como mera repetição do passa- a repetição do agravamento dos desequilíbrios
do. Os nomes deste movimento orientado para ecológicos, da destruição maciça da biodi-
o futuro foram vários, tais como, a revolução, versidade, da degradação de recursos que até
o progresso, a evolução. Como o desfecho da agora garantiram a qualidade de vida na terra.
luta não estava predeterminado, a revolução Perante isto, haverá energias no passado ou no
pôde ser burguesa e operária, o progresso pôde futuro suficientes para impedir que o presente
ser visto como consagração do capitalismo ou se repita indefinidamente?
como sua superação, o evolucionismo pôde ser As energias do futuro parecem desvanecer-
reivindicado tanto por Herbert Spencer, como -se pelo menos enquanto o futuro continuar a
por Marx. ser pensado nos termos em que foi pensado
Foi neste quadro que a transformação social, pela modernidade ocidental, ou seja, o futuro
a racionalização da vida individual e colectiva como progresso. Os grandes vencidos do pro-
e a emancipação social, passaram a ser pensa- cesso histórico capitalista, os trabalhadores e
das. À medida que se foi construindo a vitória da os povos do terceiro mundo, descreem hoje
burguesia, o espaço do presente como repetição do progresso porque foi em nome dele que
foi-se ampliando. Hoje a burguesia sente que a viram degradar-se as suas condições de vida
sua vitória histórica está consumada e ao vence- e as suas perspectivas de libertação. Penso
dor consumado não interessa senão a repetição que neste momento, e pelo menos transitoria-
do presente. Daí a teoria do fim da história. mente, há que buscar energias progressistas
Para uma pedagogia do conflito 527

sobretudo no passado. Não se trata de uma sestabilizadora que nos fornece do conflito e
tarefa fácil porque a teoria da história da mo- do sofrimento humano. Será através dessas
dernidade desvalorizou sistematicamente o imagens desestabilizadoras que será possível
passado em benefício do futuro. O passado recuperar a nossa capacidade de espanto e de
foi sempre concebido como reaccionário e o indignação e de, através dela, recuperar o nos-
futuro como progressista. Foi assim que a bur- so inconformismo e a nossa rebeldia.
guesia viu a sua luta e foi assim também que Nesta reside, em meu entender, o cerne de
a classe operária viu a sua luta. Esta teoria da um projecto educativo emancipatório, adequa-
história fez com que facilmente fossem esque- do ao tempo presente. Trata-se de um projec-
cidos o sofrimento, a injustiça, a opressão, to- to orientado para combater a trivialização do
dos superáveis num futuro próximo e radioso. sofrimento, por via da produção de imagens
Foi assim que a classe operária se viu menos desestabilizadoras a partir do passado conce-
como herdeira de escravos do que como van- bido não como fatalidade, mas como produto
guarda dos libertadores. da iniciativa humana. Um passado indesculpá-
A mesma teoria da história contribuiu para vel precisamente por ter sido produto de ini-
trivializar, banalizar os conflitos e o sofrimento ciativa humana que, tendo opções, podia ter
humano de que é feita a repetição do presen- evitado o sofrimento causado a grupos sociais
te neste fim de século. O sofrimento humano e à própria natureza. Deste modo, o objectivo
mediatizado pela sociedade de informação está principal do projecto educativo emancipatório
transformado numa telenovela interminável consiste em recuperar a capacidade de espanto
em que as cenas dos próximos capítulos são e de indignação e orientá-la para a formação de
sempre diferentes e sempre iguais às cenas dos subjectividades inconformistas e rebeldes.
capítulos anteriores. Esta trivialização traduz- Só o passado como opção e como conflito é
-se na morte do espanto e da indignação. E capaz de desestabilizar a repetição do presen-
esta, na morte do inconformismo e da rebeldia. te. Maximizar essa desestabilização é a razão
Penso, pois, ser necessário uma outra teo- de ser de um projecto educativo emancipató-
ria da história que devolva ao passado a sua rio. Para isso, tem de ser, por um lado, um pro-
capacidade de revelação, um passado que se jecto de memória e de denúncia e, por outro,
reanime na nossa direcção pela imagem de- um projecto de comunicação e cumplicidade.
528 Boaventura de Sousa Santos

Tratarei agora de definir, a traço grosso, o ção do sofrimento e da opressão e veja neles o
perfil de um tal projecto educativo. Limitar-me- resultado de indesculpáveis opções.
-ei ao seu perfil epistemológico deixando de A educação para o inconformismo tem de ser
lado as questões institucionais e organizacio- ela própria inconformista. A aprendizagem da
nais, bem como os processos políticos concre- conflitualidade dos conhecimentos tem de ser
tos que o poderão levar à prática. ela própria conflitual. Por isso, a sala de aula
A conflitualidade do passado, enquanto cam- tem de transformar-se ela própria em campo de
po de possibilidades e de decisões humanas, é possibilidades de conhecimento dentro do qual
assumida no projecto educativo como conflitu- há que optar. Optam os alunos tanto quanto os
alidade de conhecimentos. Para este projecto professores e as opções de uns e outros não
educativo não há uma, mas muitas formas ou têm de coincidir nem são irreversíveis. As op-
tipos de conhecimento. Todo o conhecimento ções não assentam exclusivamente em ideias
é uma prática social de conhecimento, ou seja, já que as ideias deixaram de ser desestabiliza-
só existe na medida em que é protagonizado e doras no nosso tempo. Assentam igualmente
mobilizado por um grupo social, actuando num em emoções, sentimentos e paixões que confe-
campo social em que actuam outros grupos rem aos conteúdos curriculares sentidos ines-
rivais protagonistas ou titulares de formas ri- gotáveis. Só assim é possível produzir imagens
vais de conhecimento. Os conflitos sociais são, desestabilizadoras que alimentem o inconfor-
para além do mais, conflitos de conhecimen- mismo perante um presente que se repete, re-
to. O projecto educativo emancipatório é um petindo as opções indesculpáveis do passado.
projecto de aprendizagem de conhecimentos O objectivo último de uma educação transfor-
conflituantes com o objectivo de, através dele, madora é transformar a educação, converten-
produzir imagens radicais e desestabilizadoras do-a no processo de aquisição daquilo que se
dos conflitos sociais em que se traduziram no aprende, mas não se ensina, o senso comum. O
passado, imagens capazes de potenciar a in- conhecimento só suscita o inconformismo na
dignação e a rebeldia. Educação, pois, para o medida em que se torna senso comum, o saber
inconformismo, para um tipo de subjectividade evidente que não existe separado das práticas
que submete a uma hermenêutica de suspeita a que o confirmam. Uma educação que parte da
repetição do presente, que recusa a trivializa- conflitualidade dos conhecimentos visará, em
Para uma pedagogia do conflito 529

última instância, conduzir à conflitualidade en- aplicação de conhecimentos. Os sistemas edu-


tre sensos comuns alternativos, entre saberes cativos da modernidade ocidental foram mol-
práticos que trivializam o sofrimento humano e dados por um tipo único de conhecimento, o
saberes práticos que se inconformam com ele, conhecimento científico e por um tipo único
entre saberes práticos que aceitam o que exis- da sua aplicação, a aplicação técnica. De fac-
te, só porque existe, independentemente da to, a criação moderna dos sistemas educativos
sua bondade, e saberes práticos que só aceitam coincide com a consolidação da ciência mo-
o que existe na medida em que merece existir, derna enquanto modo hegemónico de raciona-
finalmente entre saberes práticos que olham lidade, a racionalidade cognitiva-instrumental,
as decisões pelo que está a jusante delas e as uma racionalidade que se afirma pela sua efi-
converte em consequências fatais e saberes cácia na transformação material da realidade.
práticos que olham as decisões pelo que está Depois da primeira revolução industrial, essa
a montante delas e as converte em indesculpá- eficácia traduziu-se na conversão progressiva
veis opções humanas. da ciência em força produtiva, um processo
Passarei agora a descrever os três conflitos histórico que atinge hoje o paroxismo com a
de conhecimentos que, em meu entender, de- fusão praticamente total entre ciência e produ-
vem presidir ao projecto educativo. Não têm ção de bens e serviços. Nenhuma delas é hoje
todos o mesmo nível ou intensidade de confli- pensável sem a outra. Os sistemas educativos
tualidade. Apresentá-los-ei por ordem crescen- modernos pressupõem, no entanto, que entre
te de intensidade. ciência e produção há uma distância e que essa
distância é medida pela aplicação técnica da
A aplicação técnica e a aplicação ciência. São as seguintes as características da
edificante da ciência aplicação técnica da ciência:
O primeiro conflito não é propriamente um 1. Quem aplica o conhecimento está fora da
conflito de conhecimentos1. É um conflito na situação existencial em que incide a aplica-
ção e não é afectado por ela.
2. Existe uma separação total entre fins e
1 Para uma análise mais detalhada deste conflito meios. Pressupõem-se definidos os fins e a
(Santos, 1989). aplicação incide sobre os meios.
530 Boaventura de Sousa Santos

3. Não existe mediação deliberativa entre o As consequências deste modelo de aplica-


universal e o particular. A aplicação pro- ção da ciência moderna são hoje bem conhe-
cede por demonstrações necessárias que cidas. Na sua origem, este modelo visou con-
dispensam a argumentação. verter todos os problemas sociais e políticos
4. A aplicação assume como única a definição em problemas técnicos e resolvê-los de modo
da realidade dada pelo grupo dominante e científico, isto é, eficazmente com total neutra-
reforça-a. Escamoteia os eventuais confli- lidade social e política. Punha à disposição dos
tos e silencia as definições alternativas. decisores políticos e dos actores sociais um co-
nhecimento certo e rigoroso, que desagregava
5. A aplicação do know-how técnico torna
os problemas sociais e políticos nas suas dife-
dispensável, e até absurda, qualquer dis-
rentes componentes técnicas e lhes aplicava
cussão sobre um know-how ético. A natu-
soluções eficazes, inequívocas e consensuais
ralização técnica das relações sociais obs-
porque sem alternativa. Os problemas eram
curece e reforça os desequilíbrios de poder
no século XIX de monta: a desorganização da
que as constituem.
sociedade rural e a anomia urbana causada
6. A aplicação é unívoca e o seu pensamen- pela urbanização caótica, a industrialização
to é unidimensional. Os saberes locais ou vertiginosa; a revolta das “classes perigosas”
são recusados ou são funcionalizados e, vivendo na miséria ao lado da abundância; as
em qualquer caso, tendo sempre em vista a rivalidades colonialistas e imperialistas entre
diminuição das resistências ao desenrolar os Estados-nacionais e a iminência da guerra,
da aplicação. a degradação da natureza pelo uso selvagem
7. Os custos da aplicação são sempre inferio- dos recursos naturais. Olhando em retrospec-
res aos benefícios e uns e outros são avalia- to, o portentoso desenvolvimento científico,
dos quantitativamente à luz de efeitos ime- que desde então ocorreu, não resolveu nenhum
diatos do grupo que promove a aplicação. desses problemas e, quiçá, contribuiu para
Quanto mais fechado o horizonte contabi- agravá-los. Por isso, o modelo de aplicação
lístico, tanto mais evidentes os fins e mais técnica da ciência não tem hoje a credibilidade
disponíveis os meios. que tinha no século XIX. Aliás, é o descrédito
deste modelo uma das dimensões principais
Para uma pedagogia do conflito 531

do descrédito no futuro já que o progresso que 3. A aplicação é, assim, um processo argu-


este prometeu foi sempre concebido como mentativo e a adequação, maior ou menor,
consequência do progresso da ciência. O fac- da aplicação reside no equilíbrio, maior ou
to de o modelo de aplicação técnica da ciência menor, das competências argumentativas
continuar hoje a subjazer ao sistema educativo entre os grupos que lutam pela decisão do
só é compreensível por inércia ou por má fé, ou conflito a seu favor (o consenso não é mé-
por ambas: pela inércia da cultura oficial e das dio, nem é neutro).
burocracias educativas; pela má fé da institu- 4. O cientista deve, pois, envolver-se na luta
cionalidade capitalista que utiliza o modelo de pelo equilíbrio de poder nos vários contex-
aplicação técnica para ocultar o carácter políti- tos de aplicação e, para isso, terá de tomar
co e social da desordem que instaura. o partido daqueles que têm menos poder.
Em face disto, o projecto educativo eman- Cada mecanismo de poder cria a sua pró-
cipatório tem de criar um campo epistemoló- pria micro-hegemonia. Quem tem menos
gico em que o modelo de aplicação técnica da desse poder tende, por isso, a não ter argu-
ciência seja posto em conflito com um modelo mentos para ter mais desse poder e, muito
alternativo. O conflito entre os dois modelos menos, para ter tanto poder quanto o do
passará a constituir, neste domínio, o cerne do grupo hegemónico. A aplicação edificante
processo de ensino-aprendizagem. Como mo- consiste em revelar argumentos e tornar
delo alternativo proponho o modelo de aplica- legítimo e credível o seu uso.
ção edificante da ciência, o qual se pauta pelas
5. A aplicação edificante procura e reforça
seguintes características:
as definições emergentes e alternativas da
1. A aplicação tem sempre lugar numa situa-
realidade; para isso, deslegitima as formas
ção concreta em que quem aplica está exis-
institucionais e os modos de racionalidade
tencial, ética e socialmente comprometido
em cada um dos contextos, no entendimen-
com o impacto da aplicação.
to de que tais formas e modos promovem
2. Os meios e os fins não estão separados e a a violência em vez da argumentação e o
aplicação incide sobre ambos. Os fins só se silenciamento em vez da comunicação, o
concretizam na medida em que se discutem estranhamento em vez da solidariedade.
os meios adequados à situação concreta.
532 Boaventura de Sousa Santos

6. Para além de um limite crítico socialmen- ciência corre um duplo risco. Por um lado,
te definível, uma maior participação numa sabe que os seus objectivos não são obtí-
visão moral e política é melhor que um veis exclusivamente com base na ciência e
acréscimo no bem-estar material. O know- na argumentação. Há interesses materiais e
-how técnico é imprescindível, mas o sen- lutas entre classes e outros grupos sociais
tido do seu uso é-lhe conferido pelo know- que usam outros meios para impor o que
-how ético que, como tal, tem prioridade lhes é benéfico. Por isso, a luta pela aplica-
na argumentação. ção edificante é sempre precária, integra-
7. Os limites e as deficiências dos saberes -se (por vezes sem saber) noutras lutas e os
locais nunca justificam a recusa in limi- seus resultados nunca são irreversíveis. É,
ne destes, porque isso significa o desarme pois, uma luta sem pressupostos nem segu-
argumentativo e social de quanto são com- ranças. Uma luta por um fim sem fim.
petentes neles. Se o objectivo é ampliar o Por outro lado, a aplicação edificante tem,
espaço de comunicação e distribuir mais nesta fase de transição paradigmática, de
equitativamente as competências argu- partir dos consensos locais para criar mais
mentativas, os limites e as deficiências de conflito, em resultado do maior esclareci-
cada um dos saberes locais superam-se, mento das razões contingentes que susten-
transformando esses saberes por dentro, tam muito do que surge como socialmente
interpenetrando-se com sentidos produzi- necessário. Este conflito ampliado é visto
dos noutros saberes locais, desnaturalizan- como condição da ampliação do espaço
do-se através da crítica científica. de comunicação e do alargamento cultu-
8. A ampliação da comunicação e a equili- ral ético e político dos argumentos utili-
bração das competências visa a criação záveis pelos vários grupos em presença.
de sujeitos socialmente competentes. Os Mas, devido às condições que sustentam
mecanismos de poder tendem a alimentar- o primeiro risco, não há garantias de que
-se da incompetência social e, portanto, a potenciação do conflito não possa indu-
da “objectivação” dos grupos sociais opri- zir algum grupo ao recurso à violência, ao
midos, pelo que a aplicação edificante da silenciamento e ao estranhamento, assim
reduzindo a comunicação e a argumenta-
Para uma pedagogia do conflito 533

ção em vez de as aumentar. À ciência que cientista nos vários discursos locais, pró-
se pauta pela aplicação edificante não inte- prios dos vários contextos de aplicação.
ressa que a transformação seja moderada Esta transformação não pode ser exigível
ou radical, reformista ou revolucionária; em pleno e sem contradições ao cientista
interessa tão-só que ela ocorra pela amplia- ou técnico individual. A reflexividade, para
ção da comunicação e da argumentação, o ter algum peso, tem de ser colectiva. Mas,
que, obviamente, não obsta à intensidade para além disso, a transformação é pro-
do conflito ou à incondicionalidade do em- piciada por novas formas de organização
penho de quantos nele participam. da investigação, por meios alternativos de
9. A aplicação edificante vigora dentro da premiar a excelência do trabalho científico.
própria comunidade científica e técnica. Estas formas alternativas chocam-se com a
Os cientistas e os técnicos apostados nela materialidade e a resistência das soluções
lutam pelo aumento da comunicação e da vigentes. E também aqui se verificam os
argumentação no seio da comunidade cien- dois riscos anteriormente apontados: não é
tífica e técnica e lutam, por isso, contra as possível controlar pela ciência ou técnica
formas institucionais e os mecanismos edificante as consequências do aumento da
de poder que nela produzem violência, si- conflitualidade que ela promove nesta fase
lenciamento e estranhamento. Mas, além de transição paradigmática; os resultados,
disso, a transformação dos saberes locais além, de reversíveis, podem ser contrapro-
ocorre com a transformação do saber cien- ducentes e deixar, por momentos, tudo
tífico e com esta ocorre a transformação pior do que dantes. E também não há segu-
do sujeito epistémico, do ser cientista e ros contra estes riscos.
do ser técnico. Porque a aplicação é con- 10. Mas se na comunidade científica, como
textualizada tanto pelos meios como pelos em qualquer outra, não há seguros contra
fins e porque lhes preside know-how ético, estes riscos é, pelo menos, possível deter-
o cientista ou o técnico edificante tem de minar o perfil dos conflitos em que esses
saber falar como cientista e como não cien- riscos se correrão. A aplicação edificante
tista no mesmo discurso científico e, com- não prescinde de aplicações técnicas, mas
plementarmente, tem que saber falar como submete-se às exigências do know-how
534 Boaventura de Sousa Santos

ético. Ao contrário, a aplicação técnica é mana e opção responsável se os professores


mais radical e prescinde militantemente do e os alunos tiverem capacidade de iniciativa
know-how ético. e de opção para conhecer e avaliar as con-
sequências das opções tomadas e das que o
O projecto educativo conflitual faz do confli- podiam ter sido e não foram. A qualidade da
to entre o modelo de aplicação técnica e o mo- pedagogia do conflito mede-se pela qualidade
delo de aplicação edificante um dos eixos prin- das opções que no conflito são tomadas por
cipais do ensino-aprendizagem. Professores e professores e alunos.
alunos discutem os dois modelos, as diferenças
e as semelhanças entre eles e simulam campos Conhecimento-como-regulação e
de experimentação social em que seja possí- conhecimento-como-emancipação
vel visualizar as consequências da adopção O segundo conflito de conhecimento que de-
da cada um deles. A pedagogia deste conflito, verá animar um projecto pedagógico emanci-
como a dos demais, não é fácil em virtude da patório é mais intenso que o anterior uma vez
desigualdade estrutural dos modelos em confli- que se não confina às opções de aplicação de
to. Enquanto um deles tem detido o monopólio um certo tipo de conhecimento e antes se es-
da aplicação da ciência, o outro não passa de tende ao próprio conhecimento a ser aplicado.
uma potencialidade promissora. Professores e A ciência moderna, como disse, é hoje a forma
alunos terão de se tornar exímios na pedagogia de conhecimento hegemónico tanto no siste-
das ausências, ou seja, na imaginação da ex- ma educativo como fora dele. Trata-se, contu-
periência passada e presente se outras opções do, de uma hegemonia em risco em virtude de
tivessem sido tomadas. Só a imaginação das muitos factores, incluindo o que acima referi
consequências do que nunca existiu poderá de- da crescente e crescentemente visível discre-
senvolver o espanto e a indignação perante as pância entre o brilho das promessas da ciência
consequências do que existe. e a mediocridade, se não mesmo o horror, de
A solução do conflito pedagógico entre alguns dos seus desempenhos. Para além des-
modelos de aplicação da ciência não está pré- se, há outros, de recorte mais distintamente
-determinada à partida. O passado só será epistemológico, que têm vindo a pôr em causa
coerentemente concebido como iniciativa hu- o rigor e a objectividade do conhecimento cien-
Para uma pedagogia do conflito 535

tífico, e os pressupostos em que assenta como, tituição desse conflito matricial, se aprofunde
por exemplo, a dicotomia sujeito/objecto ou a a crise da confiança epistemológica da ciência
concepção da natureza como entidade separa- moderna e se criem energias para a emergência
da da sociedade e da cultura. Estes questiona- de novos conflitos epistemológicos.
mentos têm contribuído para diminuir a con- Concebo esse conflito matricial como um
fiança epistemológica da ciência moderna e a conflito entre o conhecimento-como-regulação
tal ponto que, segundo alguns, entre os quais e o conhecimento-como-emancipação3. Tenho
me incluo, estamos a entrar num longo período vindo a defender que não há conhecimento em
de transição paradigmática em cujo decurso o geral, nem ignorância em geral. Cada forma de
paradigma da ciência moderna, ferido de uma conhecimento conhece em relação a um certo
crise irreversível e final, será substituído por tipo de ignorância e, vice-versa, cada forma de
um outro paradigma de conhecimento ainda ignorância é ignorância de um certo tipo de
por definir, mas que eu tenho designado como conhecimento. Cada forma de conhecimento
paradigma de um conhecimento prudente para implica assim uma trajectória de um ponto A,
uma vida decente2. designado por ignorância, e por um ponto B,
O segundo conflito de conhecimento a cons- designado por saber. As formas de conheci-
truir no campo pedagógico parte da ideia da mento distinguem-se pelo modo como carac-
transição paradigmática, mas, em vez de pro- terizam os dois pontos e as trajectórias entre
ceder a uma análise prospectiva do paradigma eles. Na modernidade ocidental, esta trajectó-
emergente, procede a uma arqueologia da mo- ria é simultaneamente uma sequência lógica e
dernidade com o objectivo de reconstruir um uma sequência temporal. O movimento da ig-
conflito epistemológico matricial em que, aliás, norância para o saber é também o movimento
a ciência moderna começou por participar, do passado para o futuro.
mas que passou a ocultar à medida que se foi Tenho vindo a defender que o paradigma da
constituindo em forma hegemónica de conhe- modernidade comporta duas formas principais
cimento. A ideia é a de que, a partir da recons- de conhecimento: o conhecimento-como-regu-

3 Analiso com grande detalhe este conflito epistemo-


2 Sobre este debate, cf. Santos (2003). lógico noutro lugar (Santos, 1995).
536 Boaventura de Sousa Santos

lação e conhecimento-como-emancipação. O social passasse a ser concebido como ordem e


conhecimento-como-regulação consiste numa o colonialismo, como um tipo de ordem. Para-
trajectória entre um ponto de ignorância desig- lelamente, o passado passou a ser concebido
nado por caos e um ponto de conhecimento, como caos e a solidariedade como um tipo de
designado por ordem. O conhecimento-como- caos. O sofrimento humano pôde assim ser jus-
-emancipação consiste numa trajectória entre tificado em nome da luta da ordem e do colo-
um ponto de ignorância chamado colonialismo nialismo contra o caos e a solidariedade. Esse
e um ponto de conhecimento chamado solida- sofrimento humano teve e continua a ter des-
riedade. Apesar de estas duas formas de co- tinatários sociais específicos — trabalhadores,
nhecimento estarem igualmente inscritas no mulheres, minorias étnicas e sexuais — cada
paradigma da modernidade, a verdade é que no um deles a seu modo considerado perigoso
último século o conhecimentocomo-regulação precisamente porque representa o caos e a
ganhou total primazia sobre o conhecimento- solidariedade contra os quais é preciso lutar
-como-emancipação. Com isto, a ordem passou em nome da ordem e do colonialismo. A neu-
a ser a forma hegemónica de conhecimento e o tralização epistemológica do passado tem sido
caos, a forma hegemónica da ignorância. sempre a contraparte da neutralização social e
Esta hegemonia do conhecimentocomo- política das “classes perigosas”.
-regulação permitiu a este recodificar nos seus O projecto original da ciência moderna com-
próprios termos o conhecimento-como-eman- portava, assim, um equilíbrio entre conheci-
cipação. Assim, o que era saber nesta última mentocomo-regulação e conhecimento-como-
forma de conhecimento transformou-se em -emancipação. Porém, à medida que a ciência
ignorância (a solidariedade foi recodificada moderna foi ganhando terreno sobre formas
como caos) e o que era ignorância transfor- alternativas de conhecimento — dos saberes
mou-se em saber (o colonialismo foi recodifi- locais à religião, da filosofia às humanidades —
cado como ordem). Como a sequência lógica e, sobretudo, à medida que se foi convertendo
da ignorância para o saber é também a sequ- em força produtiva do capitalismo industrial, o
ência temporal do passado para o futuro, a he- equilíbrio entre as duas formas de conhecimen-
gemonia do conhecimentocomo-regulação fez to rompeu-se e a ciência moderna passou a ser
com que o futuro e, portanto, a transformação conhecimentocomo-regulação por excelência.
Para uma pedagogia do conflito 537

A reanimação do passado na nossa direcção, imaginar estratégias para reduzir, no campo


proposta pelo projecto pedagógico que estou a pedagógico, essa assimetria. Trata-se de inven-
propor, consiste, neste domínio, em reconsti- tar exercícios retrospectivos e exercícios pros-
tuir o conflito entre o conhecimentocomo-re- pectivos que nos permitam imaginar o campo
gulação e o conhecimento-comoemancipação. de possibilidades que seria aberto à nossa sub-
O conflito pedagógico será, pois, entre duas jectividade e nossa sociabilidade se houvesse
formas contraditórias de saber, entre o saber um equilíbrio entre o conhecimentocomoregu-
como ordem e colonialismo e o saber como so- lação e o conhecimento-comoimaginação.
lidariedade e como caos. Estas duas formas de
saber servem de suporte a formas alternativas Imperialismo cultural e
da sociabilidade e de subjectividade. Ao campo multiculturalismo
pedagógico compete experimentar, pela imagi- O terceiro conflito epistemológico a instau-
nação da prática e pela prática da imaginação, rar no projecto pedagógico que aqui proponho
essas sociabilidades e subjectividades alterna- é ainda mais amplo que os anteriores. Enquanto
tivas, ampliando as possibilidades do humano o conflito entre o modelo técnico e o modelo
até incluí-las a todas e até poder optar por elas. edificante da aplicação da ciência e o conflito
Também aqui as opções não estão pré-deter- entre o conhecimento-comoregulação e o co-
minadas. A pedagogia do conflito é uma peda- nhecimento-comoemancipação ocorrem den-
gogia de alto risco contra o qual não há apóli- tro dos limites da modernidade eurocêntrica,
ces de seguro. Tal como no conflito anterior, a o terceiro conflito transborda destes limites e,
luta é, à partida, desigual, entre uma forma de por isso, para além de ser um conflito epistemo-
conhecimento dominante, — o conhecimento- lógico, é, acima de tudo, um conflito cultural.
-comoregulação — e uma forma de conheci- O mapa cultural que subjaz aos sistemas
mento dominada, marginalizada, suprimida, educativos da modernidade é, cartografica-
— o conhecimento-comoemancipação — que mente falando, um mapa com uma projecção
o campo pedagógico reconstitui por meio da de Mercator, o grande cartógrafo dos Países
imaginação arqueológica. O reconhecimento Baixos cujas técnicas de projecção cartográfi-
desta assimetria é, contudo, constitutiva da ex- cas foram adoptadas por toda a Europa e partir
periência pedagógica e a partir dele podemse do séc. XVII. A característica central da pro-
538 Boaventura de Sousa Santos

jecção de Mercator é que coloca o continente No final da década de sessenta, o movimento


europeu no centro do mapa, inflaccionando a estudantil de Maio de 68 representa outro sig-
sua dimensão em detrimento dos outros conti- nificativo momento de turbulência na medida
nentes. Em termos simbólicos, o mapa educa- em que, pela primeira vez, no mundo desen-
tivo da modernidade é um mapa de Mercator. volvido, o modelo de sociedade eurocêntrica é
A cultura eurocêntrica ocupa quase todo o ta- submetido a uma crítica cultural e civilizacio-
manho do mapa e só marginalmente, e sempre nal que engloba tanto as sociedades capitalis-
em função do espaço central, são desenhadas tas como as sociedades comunistas do Leste
as outras culturas indígenas, culturas negras e Europeu. As cumplicidades entre liberalismo e
culturas de minorias étnicas ou outras. É este marxismo são expostas pela primeira vez. Com
o mapa o imperialismo cultural do Ocidente. a década de setenta inicia-se o processo de ero-
Neste mapa o conflito entre culturas ou não são do modelo social que dominara nos países
aparece de todo ou aparece como conflito solu- desenvolvidos do pós-guerra, ao mesmo tempo
cionado pela superioridade da cultura ociden- que os países do chamado terceiro mundo pro-
tal em relação às outras culturas. Por isso, no curam um novo equilíbrio mundial simbolizado
sistema educativo hegemónico as outras cultu- pela subida dos preços do petróleo, pela der-
ras ou estão ausentes ou estão merecidamente rota dos americanos no Vietnam e pela luta na
vencidas, marginalizadas, suprimidas. ONU por uma nova ordem económica mundial.
Este mapa de imperialismo cultural está A dramática intensificação das interacções
hoje a passar por um período de grande tur- transnacionais a partir da década de 80 dá iní-
bulência, um período que se iniciou no pós- cio ao momento de turbulência em que nos en-
-guerra, com as imagens de horror de guerra e contramos agora. A globalização da economia,
de destruição que revelaram o lado sinistro da por um lado, proclamou globalmente a hege-
cultura eurocêntrica, com o processo de des- monia do fundamentalismo neo-liberal, por ou-
colonização e a emergência de novos estados tro lado, fez deslocar progressivamente o eixo
portadores de culturas nacionais reais ou ima- do dinamismo capitalista do oceano Atlântico
ginadas, mas em qualquer caso não eurocêntri- para o oceano Pacífico, conferindo uma nova
cas, e com a luta dos movimentos dos negros visibilidade às culturas asiáticas. O liberalis-
no Estados Unidos. mo económico e as políticas de ajustamento
Para uma pedagogia do conflito 539

estrutural foram proclamadas globalmente, neo-liberal e tendo visto fracassar no passado


de par com a democracia liberal ocidental. As outras estratégias de desenvolvimento de raiz
transições democráticas na América Latina ocidental, como, por exemplo, o nacionalismo
ocorreram simultaneamente com a perda do e o socialismo, alguns povos islâmicos adop-
rendimento global dos países do continente e tam políticas afirmativas de identidade que
o agravamento dramático das desigualdades vão ser amalgamadas pelos media ocidentais
sociais. A África foi integrada neste modelo da sob a designação de fundamentalismo islâmi-
maneira mais cruel pela exclusão total, pela co. Por outro lado, as formas de globalização
fome, pelas epidemias e pela guerra. No final hegemónica confrontaram-se com formas de
da década a modernidade ocidental em sua globalização contra-hegemónica, isto é, coli-
versão liberal, tanto económica como política, gações transnacionais de movimentos sociais
dá por consumada a sua vitória. A queda do em luta contra o modelo de desenvolvimento
Muro de Berlim, o início do desmantelamento e a cultura hegemónica, grupos de direitos
do apartheid na África do Sul são os momentos humanos, de indígenas, e de minorias étnicas,
decisivos dessa vitória. A vitória é sobretudo grupos ecológicos, feministas, pacifistas, mo-
tecnológica confirmada, tanto pela guerra do vimentos artísticos e literários de orientação
Golfo, como pelas novas tecnologias da infor- pós-colonial e pós-imperial.
mação e da telecomunicação. Não surpreende Toda esta conflitualidade e diversidade tem
que esta acumulação de êxitos tenha sido o ter- vindo a causar uma turbulência enorme nos
reno adequado para a teoria do fim da história. mapas culturais que serviram de base aos sis-
No entanto, este é apenas um dos lados da temas de educação eurocêntricos. Julgo serem
história dos últimos quinze anos. Os processos detectáveis duas tendências contraditórias:
de globalização ocorreram de par com proces- uma que vai no sentido do agravamento dos
sos de localização, com a adopção de políti- conflitos culturais no final do século; outra que
cas de identidade por parte de grupos sociais vai no sentido oposto, o do fim de tais conflitos.
vitimizados, directa ou indirectamente, pela A primeira tendência, a do agravamento dos
globalização hegemónica, minorias étnicas, conflitos, surge sob duas formas, uma hegemó-
povos indígenas, grupos de imigrantes, mu- nica e outra, contra-hegemónica. A forma he-
lheres, etc. Vitimizados pelo fundamentalismo gemónica tem origem na intelectualidade oci-
540 Boaventura de Sousa Santos

dental mais conservadora que se recusa a ver energias para promover uma dada forma de
no domínio global da economia de mercado, sociabilidade e para a defender sempre que
a consumação da vitória da cultura ocidental. ela estiver ameaçada por sociabilidades rivais.
Pelo contrário, pensa que o domínio económi- Neste contexto, a distinção entre luta económi-
co esconde uma vulnerabilidade cultural cres- ca e luta cultural deixa de fazer sentido.
cente face às culturas não europeias, abrangen- A segunda tendência da turbulência cultural
do populações cada vez maiores e assumindo contemporânea é de sentido oposto à primeira
posições de confrontação hostil com a cultura e defende que nas condições globais geradas,
eurocêntrica, como é especificamente o caso tanto pela sociedade de consumo, como pela
do Islão. Para esta intelectualidade conserva- sociedade de informação, os conflitos culturais
dora, de que o porta-voz é Samuel Huntington, terão cada vez menor acutilância. A globaliza-
estamos a entrar num novo período de choque ção da comunicação social e da informação, o
de civilizações, um choque entre o Ocidente e incremento das interacções transnacionais de
o resto cultural do mundo. bens, de pessoas e de serviços produzem uma
As formas contra-hegemónicas de agrava- tal compressão do tempo e do espaço que as
mento dos conflitos culturais são protagoni- diferenças culturais que sempre foram fruto
zadas pelos movimentos e grupos sociais que da distância e da incomunicabilidade acabarão
lutam pela afirmação da identidade cultural por dissolver-se.
contra a homogeneização descaracterizada Esta tendência assume duas formas dife-
pretendida pela cultura hegemónica. Uma for- rentes, ambas hegemónicas. Uma consiste na
ma particularmente vincada desta afirmação é versão ultra-liberal do relativismo cultural, na
precisamente o fundamentalismo islâmico em ideia de que todas as culturas e todas as ver-
sua luta contra o fundamentalismo ocidental. sões da mesma cultura tem uma singularidade
Comum às formas hegemónicas e contra- original que não permite, nem comparações,
-hegemónicas é a ideia de que os modelos so- nem diálogos profundos entre elas. Todas são
ciais de desenvolvimento e, portanto, também igualmente válidas. Deve, pois, admitir-se a
a luta contra eles, não se sustentam apenas no sua coexistência pacífica e que cada um es-
plano económico. Pressupõem um substracto colha a que lhe estiver mais próxima. A outra
cultural amplamente partilhado que forneça forma de ver a tendência para a atenuação dos
Para uma pedagogia do conflito 541

conflitos culturais faz uma leitura da situação que hoje dominam entre culturas, relações ca-
cultural parcialmente contraditória com a an- óticas, de coexistência e de interdependência.
terior. Assenta na ideia de que os contactos Para outros, o imperialismo cultural, longe de
entre culturas, sendo cada vez mais intensos, ter acabado, apenas mudou de forma. Assume
fazem com que estas percam gradualmente a agora formas camaliónicas, ora a forma do
sua integridade e a sua singularidade. No lugar choque de culturas (Huntington), ora a forma
de culturas singulares estão a surgir culturas da hibridização e da cultura global. Para estas,
híbridas, produtos de fertilizações e contami- a hibridização é sempre uma troca desigual
nações cruzadas entre culturas. O fenómeno de que reproduz, sob outra forma, a existência de
hibridização torna mesmo difícil falar de cultu- culturas dominantes e culturas dominadas, en-
ras dominantes e dominadas já que todas estão quanto a cultura global não é mais que a globa-
sujeitas ao mesmo processo de diluição da es- lização de certas características específicas da
pecificidade. Uma outra versão, parcialmente cultura eurocêntrica.
diferente, da teoria da hibridização, é a ideia de Esta enorme diversidade de leituras da situ-
que por sobre as culturas existentes, todas elas ação cultural do nosso tempo tem estado, em
específicas e parcelares, está a emergir uma geral, ausente dos sistemas educativos. O de-
cultura global, uma cultura sem raízes nem le- bate, quando tem lugar, ocorre nas margens do
aldades locais, que é partilhada por gente em sistema em iniciativas extra-curriculares dos
toda a parte do mundo, uma cultura cosmopo- professores e dos estudantes, mas raramente
lita que subjaz ao que é globalmente comum a penetram no curriculum. Em minha opinião,
toda a humanidade. um projecto educativo emancipatório tem de
A coexistência de leituras tão discrepantes colocar o conflito cultural no centro do seu
da nossa condição cultural contemporânea curriculum. As dificuldades para o fazer são
mostra só por si a turbulência a que estão a enormes, não só devido à resistência e à inér-
ser sujeitos os mapas culturais que serviram de cia dos mapas culturais dominantes, mas tam-
base aos sistemas educativos modernos. Para bém devido ao modo caótico como os conflitos
alguns, esses mapas, mesmo que alguma vez culturais têm vindo a ser discutidos do nosso
tenham sido expressão do imperialismo cul- tempo. Acresce que a comunicação, aparente-
tural, deixaram de o ser em face das relações mente facilitada pela sociedade de informação,
542 Boaventura de Sousa Santos

continua a ter muitos obstáculos, a ser selecti- dagógico para o multiculturalismo enquanto
va e a reduzir muita gente e muitas causas ao modelo emergente da interculturalidade. O
silêncio. Mesmo algumas políticas contra-hege- modelo dominante, do imperialismo cultural,
mónicas como, por exemplo, as da afirmação não reconhece outro tipo de relações entre
da identidade nacional, étnica, sexual, cultural culturas senão a hierarquização segundo crité-
têm, em suas versões mais extremas, contri- rios que são tidos como universais ainda que
buído para o separatismo e para a criação de sejam específicos de um só universo cultural,
guettos culturais mutuamente incomunicáveis. a cultura ocidental. À luz destes critérios é a
O projecto educativo emancipatório tem, superioridade cultural própria das culturas do-
pois, neste domínio, responsabilidades acres- minantes que justifica a existência de culturas
cidas. Tem de, por um lado, definir correcta- dominadas. Esta superioridade pode afirmar-se
mente a natureza do conflito cultural e tem de de várias formas inclusive através de formas
inventar dispositivos que facilite a comunica- que aparentemente negam a ideia de hierarquia
ção. Não esqueçamos que, ao contrário dos como a hibridização e a cultura global. Qual-
dois conflitos anteriores, o conflito cultural não quer destas têm por limite não bulir com a he-
ocorre no seio da mesma cultura, mas antes gemonia da cultura ocidental.
num espaço intercultural que tem de ser cons- Compete, antes de mais, ao campo pedagó-
truído para que a comunicação seja possível. gico emancipatório criar imagens desestabi-
Proponho que o conflito seja definido como lizadoras deste tipo de relacionamento entre
conflito entre o imperalismo cultural e o mul- culturas, imagens criadas a partir das culturas
ticulturalismo. Mais do que de um conflito de dominadas e da marginalização, opressão e
culturas, trata-se de um meta-conflito de cultu- silenciamento a que são sujeitas e, com elas,
ras. Ou seja, trata-se de um conflito entre duas os grupos sociais que são seus titulares. Estas
maneiras distintas de conceber o conflito entre imagens desestabilizadoras ajudarão a criar o
culturas, dois modelos de interculturalidade. espaço pedagógico para um modelo alternati-
Tal como nos anteriores conflitos, o campo vo de relações interculturais, o multiculturalis-
pedagógico tem de criar pela imaginação uma mo. Como se trata de um modelo emergente, o
conflitualidade que é negada pelo modelo he- tipo de comunicação e de relacionamento que
gemónico. Tem, em suma, de criar espaço pe- estabelece entre as culturas está ainda pouco
Para uma pedagogia do conflito 543

estruturado, é de mais difícil aprendizagem e em argumentos inteligíveis e credíveis noutra


deve por isso ocupar lugar central na experiên- cultura. Para dar um exemplo, tenho vindo
cia pedagógica. noutros trabalhos (1995: 337-347) a propor
Proponho como dispositivo de comunica- uma hermenêutica diatópica entre o topos dos
ção multicultural o que designo por herme- direitos humanos da cultura ocidental e o to-
nêutica diatópica. Trata-se de um procedi- pos da dharma na cultura Hindu, e entre o to-
mento hermenêutico baseado na ideia de que pos dos direitos humanos e o topos da umma
todas as culturas são incompletas e de os to- na cultura islâmica, neste caso em diálogo
poi de uma dada cultura, por mais fortes que com Abdullahi Ahmed An-na’im (1990; 1992).
sejam, são tão incompletos quanto a cultura Elevar a incompletude ao máximo de cons-
a que pertencem. Os topoi fortes são as prin- ciência possível abre possibilidades insuspeita-
cipais premissas da argumentação dentro de das à comunicação e à cumplicidade. Trata-se
uma dada cultura, as premissas que tornam de um procedimento difícil, pós-colonial e pós-
possível a criação e a troca de argumentos. -imperial e, em certo sentido, pós-identitário. A
Esta função dos topoi cria uma ilusão de tota- própria reflexividade sobre as condições que a
lidade assente na sinédoque pars por toto. Por tornam possível e necessária é uma das mais
isso, a incompletude de uma dada cultura só exigentes condições da hermenêutica diatópi-
é avaliável a partir dos topoi de outra cultura. ca. Com um forte conteúdo utópico, a energia
Vistos de outra cultura, os topoi de uma dada para a pôr em prática advém-lhe de uma ima-
cultura deixam de ser premissas da argumen- gem desestabilizadora que designo por epis-
tação para passarem a ser meros argumentos. temicídio, o assassínio do conhecimento. As
O objectivo da hermenêutica diatópica é ma- trocas desiguais entre culturas têm sempre
ximizar a consciência da incompletude recí- acarretado a morte do conhecimento próprio
proca das culturas, através de um diálogo com da cultura subordinada e, portanto, dos grupos
um pé numa cultura e o outro pé, noutra. Daí sociais seus titulares. Nos casos mais extre-
o seu carácter diatópico. A hermenêutica dia- mos, como o da expansão europeia, o episte-
tópica é um exercício de reciprocidade entre micídio foi uma das condições do genocídio.
culturas que consiste em transformar as pre- A perda de confiança epistemológica por que
missas de argumentação de uma dada cultura passam actualmente os mapas culturais hege-
544 Boaventura de Sousa Santos

mónicos torna possível identificar o âmbito e par do diálogo multicultural. O terceiro pres-
a gravidade dos epistemicídios cometidos pela suposto é o de que das várias versões de uma
modernidade hegemónica eurocêntrica. A ima- dada cultura deve ser escolhida para o diálogo
gem de tais epistemicídios será tanto mais de- multicultural a que oferece o campo mais vas-
sestabilizadora quanto mais consistência tiver to de reciprocidade e a mais ampla abertura a
a prática da hermenêutica diatópica. outras culturas. Dou o exemplo de um tópico
A hermenêutica diatópica é o dispositivo importante na cultura ocidental, os direitos
privilegiado do multiculturalismo enquan- humanos. Existem na cultura ocidental duas
to modelo emergente de interculturalidade. grandes tradições de direitos humanos: a libe-
Trata-se de um modelo muito exigente. Apli- ral que dá prioridade aos direitos cívicos e po-
cado de forma ingénua ou descuidada pode líticos, negligenciando os direitos económicos
transformar-se facilmente no seu contrário, e sociais; e a tradição marxista que, sem perder
ou seja, numa forma de imperialismo cultural. de vista os direitos cívicos e políticos, dá prio-
Daí a atenção que deve ser dada aos seus pres- ridade aos direitos económicos e sociais. Des-
supostos e às condições da sua aplicação. O tas duas tradições deve ser escolhida para o
primeiro pressuposto é o de que, embora to- diálogo multicultural a tradição marxista uma
das as culturas aspirem a valores últimos, só vez que ela tem um campo de reciprocidade
a cultura ocidental os define em termos de va- mais amplo: os direitos económicos e sociais
lores universais. Por esta razão, a questão do são fundamentais para o exercício efectivo dos
universalismo atraiçoa o que pergunta no acto direitos cívicos e políticos.
de perguntar. Por outras palavras, a questão do As condições de prática do multiculturalis-
universalismo é uma questão particular, espe- mo são ainda mais exigentes que os seus pres-
cífica da cultura ocidental. supostos. Depois de séculos de dominação
O segundo pressuposto é o de que, sendo to- cultural, pergunta-se se é legítimo ou sequer
das as culturas incompletas, todas as culturas possível tentar um diálogo tanto quanto possí-
são também relativas; no entanto, o relativis- vel igualitário entre culturas. Acresce que essa
mo, enquanto postura filosófica, é incorrecto. dominação cultural se caracterizou, entre ou-
Ou seja, cada cultura tem várias versões e nem tras coisas, por tornar impronunciáveis alguns
todas são igualmente adequadas para partici- dos temas ou aspirações mais fundamentais
Para uma pedagogia do conflito 545

das culturas dominadas. Enquanto a pronúncia gógica emancipatória. O conflito serve, antes
desses temas não lhes for devolvida, o diálogo de mais, para vulnerabilizar e desestabilizar os
intercultural pode perversamente, e apesar das modelos epistemológicos dominantes e para
boas intenções, contribuir para o aprofunda- olhar o passado através do sofrimento huma-
mento da sua dominação. no que, por via deles e da iniciativa humana a
O projecto pedagógico emancipatório que eles referida, foi indesculpavelmente causado.
aqui vos proponho conhece todas estas di- Esse olhar produzirá imagens desestabilizado-
ficuldades, mas sabe também que têm de ser ras susceptíveis de desenvolver nos estudantes
superáveis sob pena de caminharmos cada vez e nos professores a capacidade de espanto e
mais aceleradamente para uma situação de de indignação e a vontade de rebeldia e de in-
apartheid global. Por isso, parte dessas mes- conformismo. Essa capacidade e essa vontade
mas dificuldades e da necessidade de serem serão fundamentais para olhar com empenho
superadas para instaurar o campo pedagógico os modelos dominados ou emergentes através
em que o multiculturalismo surja como uma dos quais é possível aprender um novo tipo
alternativa credível e ao imperialismo cultural. de relacionamento entre saberes e, portanto,
entre pessoas e entre grupos sociais. Um re-
Conclusão lacionamento mais igualitário, mais justo que
Propus-vos nesta comunicação um projec- nos faça aprender o mundo de modo edifican-
to pedagógico conflitual e emancipatório cujo te, emancipatório e multicultural. Será este o
perfil epistemológico procurei desenhar a tra- critério último da boa e da má aprendizagem.
ço grosso. Identifiquei três grandes conflitos
epistemológicos que, por ordem crescente de Bibliografia
conflitualidade, designei por conflito entre a An-na’im, A. A. 1990 Toward an Islamic
aplicação técnica e a aplicação edificante da Reformation (Syracuse: Syracuse
ciência; conflito entre conhecimento-como-re- University Press).
gulação e conhecimento-como-emancipação; An-na’im, A. A. (ed.) 1992 Human Rights in
conflito entre imperialismo cultural e multicul- Cross-Cultural Perspectives. A Quest for
turalismo. Defendi que estes conflitos devem Consensus (Philadelphia: University of
ocupar o centro de toda a experiência peda- Pennsylvania Press).
546 Boaventura de Sousa Santos

Santos, B. de Sousa 1989 Introdução a


uma Ciência Pós-Moderna (Porto:
Afrontamento).
Santos, B. de Sousa 1995 Toward a New
Common Sense: Law, Science, and Politics
in the Paradigmatic Transition (Nova
Iorque: Routledge).
Santos, B. de Sousa 2003 Conhecimento
prudente para uma vida decente: um
discurso sobre as ciências revisitado
(Porto: Afrontamento).
Da ideia de universidade
à universidade de ideias*

U m pouco por todo o lado a universidade


confronta-se com uma situação complexa:
são-lhe feitas exigências cada vez maiores por
impermeabilidade às pressões externas, enfim,
à aversão à mudança.
Começarei por identificar os principais parâ-
parte da sociedade ao mesmo tempo que se metros da complexa situação em que se encon-
tornam cada vez mais restritivas as políticas de tra a universidade para, de seguida, construir o
financiamento das suas actividades por parte ponto de vista a partir do qual a universidade
do Estado. Duplamente desafiada pela socie- deve defrontar os desafios que lhe são postos.
dade e pelo Estado, a universidade não pare-
ce preparada para defrontar os desafios, tanto Fins sem fim
mais que estes apontam para transformações A notável continuidade institucional da uni-
profundas e não para simples reformas parce- versidade sobretudo no mundo ocidental suge-
lares. Aliás, tal impreparação, mais do que con- re que os seus objectivos sejam permanentes.
juntural, parece ser estrutural, na medida em Em tom joco-sério Clark Kerr afirma que das
que a perenidade da instituição universitária, oitenta e cinco instituições actuais que já exis-
sobretudo no mundo ocidental, está associada tiam em 1520, com funções similares às que
à rigidez funcional e organizacional, à relativa desempenham hoje, setenta são universidades
(Kerr, 1982: 152)1. Em 1946, repetindo o que
* Extraído de Santos, B. de Sousa 2013 “Da ideia de
universidade à universidade de ideias” in Pela mão de
Alice. O social e o político na pós-modernidade (Coim- 1 Sobre a história das universidades, ver entre mui-
bra: Almedina) pp. 309-355. tos Bayen (1978).
548 Boaventura de Sousa Santos

afirmava já em 1923, Karl Jaspers, bem dentro Tendo certamente presente a tradição em
da tradição do idealismo alemão, definia as- que se integra Jaspers (Schelling, Humboldt e
sim a missão eterna da universidade: é o lugar Schleiermacher), Ortega y Gasset insurgia-se
onde por concessão do Estado e da sociedade em 1930 contra a “beataria idealista” que atri-
uma determinada época pode cultivar a mais buía à escola uma força criadora “que, ela não
lúcida consciência de si própria. Os seus mem- tem nem pode ter” e considerava a universida-
bros congregam-se nela com o único objectivo de alemã, enquanto instituição, “uma coisa de-
de procurar, incondicionalmente, a verdade e plorável”, para logo concluir que se “a ciência
apenas por amor à verdade (Jaspers, 1965: 19). alemã tivesse que nascer exclusivamente das
Daqui decorreriam, por ordem decrescente virtudes institucionais da universidade seria
de importância, os três grandes objectivos da bem pouca coisa” (Ortega y Gasset, 1982: 28
universidade: porque a verdade só é acessível e ss.). Apesar disto, ao enumerar as funções
a quem a procura sistematicamente, a investi- da universidade, Gasset não ia muito além de
gação é o principal objectivo da universidade; Jaspers: transmissão da cultura; ensino das
porque o âmbito da verdade é muito maior que profissões; investigação científica e educação
o da ciência, a universidade deve ser um centro dos novos homens de ciência (Ortega y Gas-
de cultura, disponível para a educação do ho- set, 1982: 41).
mem no seu todo; finalmente, porque a verdade Esta (aparente?) perenidade de objectivos
deve ser transmitida, a universidade ensina e só foi abalada na década de sessenta, perante
mesmo o ensino das aptidões profissionais deve as pressões e as transformações a que foi então
ser orientado para a formação integral (Jaspers, sujeita a universidade. Mesmo assim, ao nível
1965: 51 e ss.). No seu conjunto, estes objecti- mais abstracto, a formulação dos objectivos
vos — cada um deles inseparável dos restantes manteve uma notável continuidade. Os três fins
— constituiriam a ideia perene da universidade, principais da universidade passaram a ser a in-
uma ideia una porque vinculada à unidade do vestigação, o ensino e a prestação de serviços.
conhecimento. Esta ideia que, além de una, é Apesar de a inflexão ser, em si mesma, signifi-
também única na civilização ocidental, exigiria, cativa e de se ter dado no sentido do atrofia-
para sua realização (aliás, nunca plena), um dis- mento da dimensão cultural da universidade e
positivo institucional igualmente único. do privilegiamento do seu conteúdo utilitário,
Da ideia de universidade à universidade de ideias 549

produtivista, foi sobretudo ao nível das políti- (nomeadamente as que têm merecido mais
cas universitárias concretas que a unicidade atenção nos últimos anos) e a ideia da univer-
dos fins abstractos explodiu numa multiplici- sidade fundada na investigação livre e desinte-
dade de funções por vezes contraditórias entre ressada e na unidade do saber. Pode, no entan-
si. A explosão das funções foi, afinal, o corre- to, argumentar-se que esta contradição, mesmo
lato da explosão da universidade, do aumento que hoje exacerbada, existiu sempre, dado o
dramático da população estudantil e do corpo carácter utópico e ucrónico da ideia de univer-
docente, da proliferação das universidades, da sidade (Bienaymé, 1986: 3). Já o mesmo se não
expansão do ensino e da investigação universi- pode dizer das contradições entre as diferentes
tária a novas áreas do saber. funções que a universidade tem vindo a acumu-
Em 1987, o relatório da OCDE sobre as uni- lar nas últimas três décadas. Pela sua novidade
versidades atribuía a estas dez funções princi- e importância e pelas estratégias de ocultação
pais: educação geral pós-secundária; investiga- e de compatibilização que suscitam, estas con-
ção; fornecimento de mão-de-obra qualificada; tradições constituem hoje o tema central da
educação e treinamento altamente especializa- sociologia das universidades.
dos; fortalecimento da competitividade da eco- A função da investigação colide frequente-
nomia; mecanismo de selecção para empregos mente com a função de ensino, uma vez que
de alto nível através da credencialização; mo- a criação do conhecimento implica a mobi-
bilidade social para os filhos e filhas das famí- lização de recursos financeiros, humanos e
lias operárias; prestação de serviços à região e institucionais dificilmente transferíveis para
à comunidade local; paradigmas de aplicação as tarefas de transmissão e utilização do co-
de políticas nacionais (ex. igualdade de opor- nhecimento. No domínio da investigação, os
tunidades para mulheres e minorias raciais); interesses científicos dos investigadores po-
preparação para os papéis de liderança social dem ser insensíveis ao interesse em fortalecer
(OCDE, 1987: 16 e ss.). a competitividade da economia. No domínio
Uma tal multiplicidade de funções não pode do ensino, os objectivos da educação geral e
deixar de levantar a questão da compatibilida- da preparação cultural colidem, no interior da
de entre elas. Aliás, a um nível mais básico, a mesma instituição, com os da formação profis-
contradição será entre algumas destas funções sional ou da educação especializada, uma con-
550 Boaventura de Sousa Santos

tradição detectável na formulação dos planos vindo a ocupar desde a idade média, e a produ-
de estudos da graduação e na tensão entre esta ção de padrões culturais médios e de conheci-
e a pós-graduação. O accionamento de meca- mentos úteis para as tarefas de transformação
nismos de selecção socialmente legitimados social e nomeadamente para a formação da
tende a colidir com a mobilidade social dos fi- força de trabalho qualificada exigida pelo de-
lhos e filhas das famílias operárias tal como a senvolvimento industrial (Moscati, 1983: 22); a
formação de dirigentes nacionais pode colidir contradição entre a hierarquização dos saberes
com a ênfase na prestação de serviços à comu- especializados através das restrições do aces-
nidade local. so e da credencialização das competências e as
Qualquer destas contradições e quaisquer exigências sócio-políticas da democratização e
outras facilmente imagináveis criam pontos de da igualdade de oportunidades; e, finalmente,
tensão, tanto no relacionamento das universi- a contradição entre a reivindicação da autono-
dades com o Estado e a sociedade, como no mia na definição dos valores e dos objectivos
interior das próprias universidades, enquanto institucionais e a submissão crescente a crité-
instituições e organizações. Dado que não pa- rios de eficácia e de produtividade de origem e
rece possível nas condições macro-sociais pre- natureza empresarial.
sentes superar estas contradições, o objectivo Porque é de sua natureza não intervir ao ní-
das reformas da universidade propostas um vel das causas profundas das contradições, a
pouco por toda a parte nos últimos anos tem gestão das tensões tende a ser sintomática e
sido fundamentalmente o de manter as contra- representa sempre a reprodução controlada
dições sob controlo através da gestão das ten- de uma dada crise da universidade. A primeira
sões que elas provocam, recorrendo para isso a contradição, entre conhecimentos exempla-
expedientes que noutro lugar designei por me- res e conhecimentos funcionais, manifesta-se
canismos de dispersão (Santos, 1982). como crise de hegemonia. Há uma crise de
Esta gestão de tensões tem sido particular- hegemonia sempre que uma dada condição so-
mente problemática em três domínios: a con- cial deixa de ser considerada necessária, única
tradição entre a produção de alta cultura e de e exclusiva. A universidade sofre uma crise de
conhecimentos exemplares necessários à for- hegemonia na medida em que a sua incapaci-
mação das elites de que a universidade se tem dade para desempenhar cabalmente funções
Da ideia de universidade à universidade de ideias 551

contraditórias leva os grupos sociais mais atin- funções latentes, com longa tradição na socio-
gidos pelo seu défice funcional ou o Estado logia, é sobretudo útil para analisar relações in-
em nome deles a procurar meios alternativos tersistémicas, no caso, entre o sistema univer-
de atingir os seus objectivos. A segunda con- sitário e o sistema de ensino superior, ou entre
tradição, entre hierarquização e democratiza- este e o sistema educativo, ou ainda entre este
ção, manifesta-se como crise de legitimidade. e o sistema social global. Por exemplo, numa
Há uma crise de legitimidade sempre que uma situação de estagnação económica, o défice de
dada condição social deixa de ser consensual- desempenho da função manifesta de formação
mente aceite. A universidade sofre uma crise da força de trabalho pode ser compensado,
de legitimidade na medida em que se torna como de facto tem vindo a suceder, pela fun-
socialmente visível a falência dos objectivos ção latente de “parque de estacionamento”. A
colectivamente assumidos. Finalmente, a ter- universidade desempenha esta função ao aco-
ceira contradição, entre autonomia institucio- lher e ao deixar permanecer no seu seio por um
nal e produtividade social, manifesta-se como período mais ou menos prolongado gente que
crise institucional. Há uma crise institucional não se arrisca a entrar no mercado de trabalho
sempre que uma dada condição social estável com credenciais de pouco valor e que se serve
e auto-sustentada deixa de poder garantir os da universidade como compasso de espera en-
pressupostos que asseguram a sua reprodução. tre conjunturas, usando-a produtivamente para
A universidade sofre uma crise institucional na acumular títulos e qualificações que fortaleçam
medida em que a sua especificidade organiza- num momento posterior a sua posição no mer-
tiva é posta em causa e se lhe pretende impor cado. Por outro lado, perante uma forte pres-
modelos organizativos vigentes noutras insti- são social no sentido da expansão do sistema
tuições tidas por mais eficientes. universitário, a universidade pode responder a
A gestão das tensões produzidas por esta tri- essa pressão mediante o desempenho da fun-
pla crise da universidade é tanto mais comple- ção latente de “arrefecimento das aspirações
xa quanto é certo que as contradições entre as dos filhos e filhas das classes populares”, ou
funções manifestas da universidade “sofrem” a seja, reestruturando-se de modo a dissimular,
interferência das funções latentes da universi- sob a capa de uma falsa democratização, a con-
dade. Esta distinção entre funções manifestas e tinuação de um sistema selectivo, elitista.
552 Boaventura de Sousa Santos

A um nível mais geral, a sociologia tem vin- Tanto Bourdieu e Passeron (1970) como
do a mostrar como as aparentes contradições Offe (1977) demonstraram que o sistema edu-
entre funções no seio do sistema educativo cativo funciona de modo a que a contradição
podem esconder articulações mais profundas entre o princípio da igualdade de oportunida-
entre este e os outros subsistemas sociais, ar- des e da mobilidade social através da escola,
ticulações detectáveis nas distinções entre fun- por um lado, e a continuação, a consolidação
ções económicas e funções sociais, ou entre e até o aprofundamento das desigualdades so-
funções instrumentais e funções simbólicas. ciais, por outro, não seja socialmente visível,
As dificuldades hoje comumente reconhecidas dessa forma contribuindo para perpetuar e le-
de planificar adequadamente o sistema educa- gitimar uma ordem social estruturalmente in-
tivo em função das necessidades previsíveis da coerente, “obrigada” a desmentir na prática as
mão-de-obra no mercado de trabalho dos pró- premissas igualitárias em que se diz fundada.
ximos anos e, portanto, o deficiente desempe- Daí que a análise das contradições e das crises
nho das funções económicas e instrumentais de um dado subsistema, por exemplo, da uni-
da universidade não impedem esta, antes pelo versidade, deva ser sempre contextualizada
contrário, de desempenhar adequadamente no nível sistémico em que tem lugar. As con-
funções sociais e simbólicas, como, por exem- tradições a um dado nível são congruências
plo, a função de inculcar nos estudantes va- a um outro, a eclosão ou o agravamento das
lores positivos perante o trabalho e perante a crises num dado subsistema pode ser com-
organização económica e social de produção, pensada pela eliminação ou atenuação das
regras de comportamento que facilitem a in- crises noutro sistema. Talvez por isso a rigidez
serção social das trajectórias pessoais, formas global do sistema social possa conviver sem
de sociabilidade e redes de interconhecimento problemas com as muitas turbulências secto-
que acompanham os estudantes muito depois riais; talvez por isso a proliferação das crises
da universidade e muito para além do merca- raramente conduza à polarização cumulativa
do de trabalho, interpretações da realidade que dos factores de crise; talvez por isso os meca-
tornam consensuais os modelos dominantes de nismos de dispersão das contradições passem
desenvolvimento e os sistemas sociais e políti- tão facilmente por mecanismos de resolução
cos que os suportam. das contradições.
Da ideia de universidade à universidade de ideias 553

Tanto a crise de hegemonia como a crise de crise configuram-se no período do capitalismo


legitimidade e a crise institucional eclodiram organizado por via das lutas pelos direitos
nos últimos vinte anos e continuam hoje em sociais (entre os quais, o direito à educação)
aberto. No entanto, são diferentes os tempos e económicos cujo êxito conduziu ao Estado-
históricos dos factores que as condicionam, tal -Providência. Finalmente, na crise institucional
como são diferentes as lógicas das acções que está em causa a autonomia e a especificidade
visam controlá-las. A crise de hegemonia é a organizacional da instituição universitária. Os
mais ampla porque nela está em causa a exclu- factores desta crise configuram-se no período
sividade dos conhecimentos que a universidade do capitalismo desorganizado e decorrem em
produz e transmite. É também aquela cujos fac- geral, da crise do Estado-Providência.
tores condicionantes têm maior profundidade Passarei agora a tratar com alguma extensão
histórica. Se aceitarmos a divisão do desenvol- a crise de hegemonia, por ser a mais ampla e
vimento do capitalismo em três períodos — o por estar, assim, presente nas demais. Por falta
período do capitalismo liberal (até finais do sé- de espaço far-se-á apenas uma breve referência
culo XIX); o período do capitalismo organizado à crise de legitimidade e à crise institucional.
(de finais do século XIX até aos anos sessenta);
e o período do capitalismo desorganizado (de A crise de hegemonia
finais dos anos sessenta até hoje) — os facto- A centralidade da universidade enquanto
res da crise de hegemonia configuram-se logo lugar privilegiado da produção de alta cultura
no primeiro período. De facto, a proclamação e conhecimento científico avançado é um fe-
da ideia da universidade é de algum modo re- nómeno do século XIX, do período do capita-
activa, surge no momento em que a sociedade lismo liberal, e o modelo de universidade que
liberal começa a exigir formas de conhecimen- melhor o traduz é o modelo alemão, a universi-
to (nomeadamente conhecimentos técnicos) dade de Humboldt.
que a universidade tem dificuldade em incor- A exigência posta no trabalho universitá-
porar. Na crise de legitimidade está em causa o rio, a excelência dos seus produtos culturais
espectro social dos destinatários dos conheci- e científicos, a criatividade da actividade in-
mentos produzidos e, portanto, a democratici- telectual, a liberdade de discussão, o espírito
dade da transmissão destes. Os factores desta crítico, a autonomia e o universalismo dos ob-
554 Boaventura de Sousa Santos

jectivos fizeram da universidade uma institui- objecto das ciências emergentes, da etnologia,
ção única, relativamente isolada das restantes do folclore, da antropologia cultural rapida-
instituições sociais, dotada de grande prestí- mente convertidas em ciências universitárias.
gio social e considerada imprescindível para a A centralidade da universidade advém-lhe de
formação das elites. ser o centro da cultura-sujeito. A crise desta
Esta concepção da universidade, que já no dicotomia no pós-guerra resulta da emergência
período do capitalismo liberal estava em rela- da cultura de massas, uma nova forma cultural
tiva dessintonia com as “exigências sociais” com uma distinta vocação para cultura-sujeito
emergentes, entrou em crise no pós-guerra e assim disposta a questionar o monopólio até
e sobretudo a partir dos anos sessenta2. Esta então detido pela alta cultura. A cultura de
concepção repousa numa série de pressupos- massas tem uma lógica de produção, de distri-
tos cuja vigência se tem vindo a mostrar cada buição e de consumo completamente distinta
vez mais problemática à medida que nos apro- e muito mais dinâmica da que é própria da cul-
ximamos dos nossos dias. Estes pressupostos tura universitária e os seus produtos vão aper-
podem formular-se nas seguintes dicotomias: tando o cerco à alta cultura universitária, quer
alta cultura — cultura popular; educação — porque reciclam constantemente os produtos
trabalho; teoria — prática. desta, quer porque concorrem com ela na for-
mação do universo cultural dos estudantes. In-
Alta cultura / cultura popular capaz de transformar esta nova forma cultural
numa cultura-objecto, a universidade deixa de
A dicotomia alta cultura — cultura popular
ser o produtor central de cultura-sujeito e nes-
constitui o núcleo central do ideário modernis-
sa medida perde centralidade.
ta. A alta cultura é uma cultura-sujeito enquan-
A gestão da tensão daqui decorrente foi obti-
to a cultura-popular é uma cultura-objecto,
da por diferentes mecanismos de dispersão ao
longo dos últimos trinta anos. Os anos sessenta
2 A crise de hegemonia é, sem dúvida, a mais profun- foram dominados pela tentativa de confrontar a
da das que a universidade atravessa. A ela se quererá cultura de massas no seu próprio terreno, mas-
provavelmente referir Eduardo Lourenço quando fala
sificando a própria alta cultura. Foi este, sem
da crise da universidade que “ultrapassa o acidental e
corrigível estado de universidade em crise” (1988: 74). dúvida, um dos efeitos, nem sempre assumido,
Da ideia de universidade à universidade de ideias 555

do processo de democratização da universida- este preço começou a revelar-se demasiado


de. A explosão da população universitária, a alto. A atenuação da tensão entre alta cultura
alteração significativa da composição de classe e cultura de massas provocara uma outra ten-
do corpo estudantil e a ampliação dos quadros são que, não fora a contradictio in adjecto, se
de docentes e investigadores possibilitaram a poderia designar entre alta cultura alta e alta
massificação da universidade e com ela a ver- cultura de massas. A denúncia insistentemente
tigem da distribuição (senão mesmo da produ- repetida da degradação da produção cultural
ção) em massa da alta cultura universitária. No na esmagadora maioria das universidades veio
limite, admitiu-se que a escolarização universal a dar origem, nos anos oitenta, à reafirmação
acabaria por atenuar consideravelmente a di- do elitismo da alta cultura e à legitimação das
cotomia entre alta cultura e cultura de massas. políticas educativas destinadas a promovê-lo.
Não foi, contudo, isto o que sucedeu. A A última e mais dramática apologia do eli-
massificação da universidade não atenuou a tismo da alta cultura é, sem dúvida, o livro de
dicotomia, apenas a deslocou para dentro da Allan Bloom, A Cultura Inculta (1988)3, pelo
universidade pelo dualismo que introduziu que merece uma referência mais detalhada. Se-
entre universidade de elite e universidade de gundo Bloom, a universidade tal como hoje a
massas. Tal como teve lugar, a democratização conhecemos é um produto do projecto ilumi-
da universidade traduziu-se na diferenciação- nista e este é um projecto elitista, um projecto
-hierarquização entre universidades e entre que implica a liberdade “para os raros homens
estas e outras instituições de ensino superior. teóricos se ocuparem da investigação racional
A produção da alta cultura permaneceu em no pequeno número de disciplinas que tratam
grande medida controlada pelas universidades os primeiros princípios de todas as coisas”
mais prestigiadas, enquanto as universidades (1988: 256). A universidade é, assim, uma ins-
de massas se limitaram à distribuição da alta- tituição aristocrática destinada a “encorajar o
-cultura ou, quando a produziram, baixaram o
nível de exigência e degradaram a qualidade.
Este foi o preço que a universidade teve de pa- 3 Utilizo a versão portuguesa porque é a mais acessí-
vel aos leitores e porque nos passos aqui seleccionados
gar para tentar manter a sua centralidade na
a tradução está mais ou menos correcta. Em geral, po-
produção de cultura-sujeito. Nos anos setenta rém, a tradução é indecorosamente descuidada.
556 Boaventura de Sousa Santos

uso não instrumental da razão por si própria, ra com as humanidades e destas com a grande
proporcionar uma atmosfera onde a superiori- tradição ocidental.
dade moral e física do dominante não intimi- Deste modo, a dispersão da contradição entre
de a dúvida filosófica, preservar o tesouro dos alta cultura e cultura de massas, que nos anos
grandes feitos, dos grandes homens e dos gran- sessenta fora tentada no terreno desta última,
des pensamentos que se exige para alimentar através da massificação da universidade, passa
essa dúvida” (1988: 244). Nestas condições, a agora, nos anos oitenta, a ser tentada no terreno
universidade não pode ser uma instituição de- da alta cultura, através da consagração dos privi-
mocrática e convive mal com a democracia, légios que a esta são devidos. Este novo mecanis-
sobretudo porque nesta “não há uma classe mo de dispersão aponta para um certo regresso
não democrática” (1988: 245). É, pois, neces- à condição que dominou até aos anos cinquenta,
sariamente uma instituição impopular que mas tem agora um significado social e político
“deve resistir à tentação de querer fazer tudo muito distinto, porque, ao contrário de então, a
pela sociedade” (1988: 249). À luz desta con- afirmação da inevitabilidade do elitismo implica
cepção, os anos sessenta foram “um desastre”; agora a liquidação das aspirações democráticas
liquidaram por completo o que ainda restava da que acompanharam nos anos sessenta as políti-
universidade: “não sei de nada de positivo que cas de massificação. Entre os anos sessenta e os
esse período nos tivesse trazido” (1988: 312). anos oitenta são, pois, accionados dois mecanis-
Aliás, a devastação foi tão completa que “é mos de dispersão de sinal contrário. Através de
difícil imaginar que haja quer os meios quer a ambos a universidade procura manter a sua cen-
energia dentro da universidade para constituir tralidade enquanto produtora de cultura-sujeito,
ou reconstituir a ideia de um ser humano culto num caso diluindo-se mas correndo o risco de
e estabelecer de novo uma educação liberal” descaracterização, no outro, concentrando-se
(1988: 369). Não é aqui o lugar de proceder a mas assumindo o risco do isolamento.
uma apreciação global do manifesto bloomia-
no. Apenas desejo salientar que a divulgação e Educação / Trabalho
repercussão que ele tem tido é reveladora de
A hegemonia da universidade não é pensá-
um certo regresso aos anos cinquenta e à iden-
vel fora da dicotomia educação-trabalho. Esta
tificação, corrente neste período, da alta cultu-
Da ideia de universidade à universidade de ideias 557

dicotomia começou por significar a existência fora inicialmente desempenho de força física
de dois mundos com pouca ou nenhuma comu- no manuseio dos meios de produção, passou
nicação entre si: o mundo ilustrado e o mundo a ser também trabalho intelectual, qualificado,
do trabalho. Quem pertencia ao primeiro esta- produto de uma formação profissional mais ou
va dispensado do segundo; quem pertencia ao menos prolongada. A educação cindiu-se entre
segundo estava excluído do primeiro. Esta di- a cultura geral e a formação profissional e o
cotomia atravessou, com este significado, todo trabalho entre o trabalho não qualificado e o
o primeiro período do desenvolvimento capita- trabalho qualificado.
lista, o período do capitalismo liberal, mas já A resposta da universidade a esta transfor-
no final do período começou a transformar-se mação consistiu em tentar compatibilizar no
e a assumir um outro significado que se viria seu seio a educação humanística e a formação
a tornar dominante no período do capitalismo profissional e assim compensar a perda de
organizado. A dicotomia passou então a sig- centralidade cultural provocada pela emer-
nificar a separação temporal de dois mundos gência da cultura de massas com o reforço da
intercomunicáveis, a sequência educação-tra- centralidade na formação da força de traba-
balho. Esta transformação da relação entre os lho especializada. Esta resposta, plenamente
termos da dicotomia acarretou inevitavelmen- assumida nos anos sessenta, trouxe consigo,
te a transformação interna de cada um dos ter- como já referi, a diferenciação interna do ensi-
mos. De algum modo, a dicotomia instalou-se no superior e da própria universidade. Ao lado
no interior de cada um deles. Assim, a educa- das universidades “tradicionais” surgiram ou
ção, que fora inicialmente transmissão da alta desenvolveram-se outras instituições especi-
cultura, formação do carácter, modo de acul- ficamente vocacionadas para a formação pro-
turação e de socialização adequado ao desem- fissional, mantendo graus diversos de articu-
penho da direcção da sociedade, passou a ser lação com as universidades: Community and
também educação para o trabalho, ensino de Junior Colleges nos EUA, Fachhochschule na
conhecimentos utilitários, de aptidões técnicas Alemanha, Institutes Universitaires de Tech-
especializadas capazes de responder aos desa- nologie na França, Polytechnics na Inglaterra.
fios do desenvolvimento tecnológico no espa- Por seu lado, as universidades, que entretanto
ço da produção. Por seu lado, o trabalho, que se multiplicaram, passaram a conhecer novas
558 Boaventura de Sousa Santos

formas de diferenciação e de estratificação: informação) têm, no seu conjunto, mostrado a


entre as faculdades profissionais tradicionais crescente inviabilidade de tal correspondência
(Direito e Medicina), as novas ou ampliadas estável. A duração do ciclo de formação uni-
faculdades de especialização profissional (En- versitária de um dado perfil profissional é cada
genharias, Ciências e Tecnologia, Economia, vez maior que a do ciclo de consumo produtivo
Administração), e as faculdades “culturais” deste. Esta descoincidência é agravada pela ri-
(Letras e Ciências Sociais). gidez institucional da universidade, e pela con-
A diferenciação e a estratificação no inte- sequente dificuldade em captar atempadamen-
rior do sistema universitário não deixou de te os sinais do mercado de trabalho e de agir
perturbar a unidade do saber subjacente à em conformidade. Daí que a universidade seja
“missão” e à forma institucional tradicional constantemente confrontada, ora com a produ-
da universidade, mas garantiu, durante algum ção de excesso, ora com a produção deficiente
tempo, a centralidade desta num mundo tec- de perfis profissionais, sem que as solicitações
nológico em mudança acelerada. No entanto, de profissionalização tenham o mínimo de es-
porque tal garantia assentava na dicotomia tabilidade que permita esboçar uma resposta.
educação-trabalho, o questionamento desta Quando esta é tentada, o mais provável é que
no período do capitalismo desorganizado não não atinja os seus objectivos ou até atinja os
poderia deixar de revelar a fragilidade desta objectivos contrários.
estratégia de centralização. Mas a dicotomia educação-trabalho é hoje
O questionamento da dicotomia educação- questionada a um nível mais profundo, o ques-
-trabalho processa-se hoje a dois níveis. Em tionamento da própria sequência educação-tra-
primeiro lugar, a relação sequencial entre edu- balho. Em primeiro lugar, a acelerada transfor-
cação e trabalho pressupõe uma correspon- mação dos processos produtivos faz com que
dência estável, entre a oferta de educação e a a educação deixe de ser anterior ao trabalho
oferta de trabalho, entre titulação e ocupação. para ser concomitante deste. A formação e o
A estagnação dos anos setenta e as saídas que desempenho profissional tendem a fundir-se
se têm vindo a procurar para ela (tais como as num só processo produtivo, sendo disso sinto-
novas formas de industrialização, o terciário mas as exigências da educação permanente, da
de ponta, a indústria do conhecimento e da reciclagem, da reconversão profissional, bem
Da ideia de universidade à universidade de ideias 559

como o aumento da percentagem de adultos produção com oferta maleável de formação


e de trabalhadores-estudantes entre a popu- profissional cada vez mais volátil. Aliás, o pró-
lação estudantil. Em segundo lugar, a própria prio espaço da produção transforma-se por ve-
concepção de trabalho tem vindo a alterar- zes numa “comunidade educativa” onde as ne-
-se no sentido de tornar mais ténue a ligação cessidades de formação, sempre em mutação,
entre trabalho e emprego, fazendo com que o são satisfeitas no interior do processo produ-
investimento na formação deixe de ter senti- tivo. Por outro lado, e em aparente contradi-
do enquanto investimento num dado emprego. ção com isto, a mutação constante dos perfis
Acresce ainda que a miragem “pós-industrial” profissionais tem vindo a recuperar o valor da
acena com ganhos de produtividade que farão educação geral e mesmo da formação cultural
diminuir significativamente o tempo de traba- de tipo humanista. Em face das incertezas do
lho produtivo e, com isso, a centralidade do mercado de trabalho e da volatilidade das for-
trabalho na vida das pessoas. Sendo certo que mações profissionais que ele reclama, conside-
os conhecimentos adequados à formação de ra-se que é cada vez mais importante fornecer
produtores não se adequam à formação de con- aos estudantes uma formação cultural sólida
sumidores — num caso são necessários conhe- e ampla, quadros teóricos e analíticos gerais,
cimentos específicos, no outro são necessários uma visão global do mundo e das suas transfor-
conhecimentos gerais —, a tendência para pri- mações de modo a desenvolver neles o espírito
vilegiar a formação de consumidores acabará crítico, a criatividade, a disponibilidade para
por se repercutir no núcleo curricular. inovação, a ambição pessoal, a atitude positiva
Mas o questionamento da dicotomia educa- perante o trabalho árduo e em equipa, e a capa-
ção-trabalho tem ainda duas implicações, de cidade de negociação que os preparem para en-
algum modo contraditórias, para a posição da frentar com êxito as exigências cada vez mais
universidade no mercado do trabalho. Por um sofisticadas do processo produtivo.
lado, é hoje evidente que a universidade não Verifica-se, assim, um certo regresso ao
consegue manter sob o seu controle a educa- generalismo, ainda que agora concebido, não
ção profissional. A seu lado, multiplicam-se como saber universalista e desinteressado
instituições de menores dimensões, maior fle- próprio das elites, mas antes como formação
xibilidade e maior proximidade ao espaço da não-profissional para um desempenho pluri-
560 Boaventura de Sousa Santos

profissionalizado. O relatório da OCDE sobre que marginalizada, a educação humanística,


a universidade a que já fiz referência privilegia pronta a ser reactivada no momento em que
“a preparação ampla para uma grande varieda- for nesse sentido a pressão social dominante.
de de condições subsequentes imprevisíveis” A permanência e estabilidade da universida-
em detrimento de “um treinamento específico de são, para isso, um recurso inestimável e
para uma tarefa que daqui a cinco ou dez ou mesmo a rigidez institucional de que frequen-
vinte anos pode já não existir” (OCDE, 1987: temente é criticada funcionará por vezes a fa-
12). E a propósito cita os resultados de um in- vor, se não da sua centralidade, pelo menos
quérito recente a empresários ingleses sobre da sua sobrevivência. Mas a contradição de
as suas expectativas a respeito da formação base permanece e não deixará de se mani-
universitária. Sem surpresa, o inquérito revela festar em novas tensões. É que uma coisa é
que se espera que a universidade seleccione a reivindicação da hegemonia por via da au-
os jovens mais capazes e lhes forneça alguns tonomia funcional (o desempenho de uma
conhecimentos específicos. Mas, curiosamen- função que lhe é própria e que, por isso, lhe
te, espera-se acima de tudo que a universida- é atribuída em exclusivo) e outra, a reivindi-
de os submeta a experiências pedagógicas cação da hegemonia por via da dependência
que, independentemente do curso escolhido, funcional (a tentativa de manter a exclusivi-
criem flexibilidade, promovam o desenvolvi- dade por via da incorporação das funções em
mento pessoal e agucem a motivação indivi- dado momento importantes). Esta diferença
dual (OCDE, 1987: 66). está particularmente bem documentada na
Colocada perante transformações que não dicotomia que se segue.
controla e pressionada por exigências con-
traditórias, a universidade procura gerir a Teoria / prática
sua posição ameaçada através de uma conta-
Desde o século XIX a universidade preten-
bilidade de ganhos e perdas de desempenho
de ser o lugar por excelência da produção de
funcional. Confrontada com as antimonias da
conhecimento científico. Não admira, pois,
formação profissional a que, sob pressão so-
que a sua reputação seja tradicionalmente
cial, pretendeu vincular a sua hegemonia, não
medida pela sua produtividade no domínio da
deixa de manter em segunda linha, e ainda
Da ideia de universidade à universidade de ideias 561

investigação. É possível que alguns tipos de florescimento dos valores morais essenciais à
universidades conquistem reputação apesar formação do carácter4.
de predominantemente dedicadas ao ensi- A marca ideológica do desinteresse e da au-
no, como, por exemplo, alguns Liberal Arts tonomia na busca da verdade fez com que o
Colleges americanos ou as Grandes Écoles prestígio se concentrasse na investigação pura,
francesas, mas são excepções que confirmam fundamental ou básica e que incluísse nesta as
a regra. A busca desinteressada da verdade, humanidades e as ciências sociais. Daí a dico-
a escolha autónoma de métodos e temas de tomia entre teoria e prática e a prioridade ab-
investigação, a paixão pelo avanço da ciên- soluta da primeira.
cia constituem a marca ideológica da uni- Qualquer que tenha sido a sua tradução real
versidade moderna. São a justificação última no período do capitalismo liberal e na primei-
da autonomia e da especificidade institucio- ra fase do período do capitalismo organizado,
nal da universidade. Subjazem às regras e esta ideologia universitária entrou em crise no
aos critérios de contratação e de promoção pós-guerra e nos anos sessenta viu-se frontal-
na carreira, tanto dos investigadores, o que mente confrontada com a reivindicação do en-
não surpreenderia, como dos docentes. De volvimento da universidade e do conhecimento
facto, os docentes são sempre considerados por ela produzido na resolução de problemas
investigadores-docentes. Se é verdade que o económicos e sociais prementes. Foi assim
objectivo da formação profissional, apesar posta em questão a dicotomia entre a teoria e a
de toda a atenção que tem merecido desde a prática, e as tensões daí decorrentes têm vindo
década de sessenta, não conseguiu eliminar o a ser geridas com recurso a diferentes mecanis-
objectivo educacional geral da universidade, mos de dispersão.
não é menos verdade que este, apesar de ine- A vertente principal do apelo à prática foram
rente à ideia da universidade, não conseguiu as exigências do desenvolvimento tecnológico,
nunca suplantar o objectivo primordial da in-
vestigação. Aliás, a investigação foi sempre
considerada o fundamento e a justificação da 4 Não é por acaso que na classificação (hierarquiza-
ção) das universidades americanas elaborada pela Car-
educação de “nível universitário” e a “atmos-
negie Foundation as universidades mais prestigiadas
fera de investigação”, o contexto ideal para o são incluídas no grupo “Research Universities I”.
562 Boaventura de Sousa Santos

da crescente transformação da ciência em for- minantes, ter procurado dar alguma resposta
ça produtiva, da competitividade internacional (mesmo que apenas cosmética) aos interesses
das economias feita de ganhos de produtivida- e aos grupos sociais dominados. Convocada
de cientificamente fundados. As mesmas condi- em direcções opostas, a universidade pôde to-
ções que, no domínio da educação, reclamaram mar cada uma delas sem mudar de lugar.
mais formação profissional reclamaram, no do- À luz disto, deve ter-se presente que, ao con-
mínio da investigação, o privilegiamento da in- trário do que fazem crer os relatórios oficiais,
vestigação aplicada. Mas o apelo à prática teve nacionais e internacionais, a questão da rele-
uma outra vertente, mais sócio-política, que se vância económica, social e política da univer-
traduziu na crítica do isolamento da universida- sidade, tal como foi levantada a partir dos anos
de, da torre de marfim insensível aos problemas sessenta, incluiu vertentes muito diversas e
do mundo contemporâneo, apesar de sobre discrepantes. O amalgamento destas em pala-
eles ter acumulado conhecimentos sofisticados vras de ordem abstractas, como, por exemplo,
e certamente utilizáveis na sua resolução. o apelo à “inserção da universidade na comu-
Posta perante a questão da sua relevância nidade”, facilitou todos os reducionismos, e a
económica, social e política, a universidade verdade é que esta palavra de ordem significa,
procurou mais uma vez usar expedientes que nos relatórios de hoje, pouco mais que as rela-
salvaguardassem a sua centralidade sem, no ções entre a universidade e a indústria ou entre
entanto, comprometer a sua identidade funcio- a universidade e a economia. Ao contrário, pro-
nal e institucional tradicional. E mais uma vez curarei distinguir no que se segue entre o papel
os resultados ficaram aquém das promessas, da universidade no acréscimo de produtividade
mas não tanto que tenham feito perigar, pelo industrial e o papel da universidade na valoriza-
menos até agora, a permanência da universida- ção social e cultural da comunidade envolvente.
de. Neste caso, a razão talvez resida no facto
de os apelos à prática decorrerem de interesses A universidade e a produtividade
muito distintos e até antagónicos, sustentados
A interpelação da universidade no sentido
por grupos ou classes sociais com desigual po-
de participar activamente no desenvolvimen-
der social, e de a universidade, sem deixar de
to tecnológico do sistema produtivo nacional
privilegiar os interesses e os grupos sociais do-
Da ideia de universidade à universidade de ideias 563

tem vindo a ser formulada com cada vez maior segundo lugar, o próprio Estado criou centros
insistência e traduz-se em duas problemáticas de investigação não universitários, dotados de
principais: a da natureza da investigação básica maior flexibilidade e isentos dos “vícios da uni-
e a das virtualidades e limites da investigação versidade”, especializados em áreas de ponta
aplicada nas universidades. (novos materiais, biotecnologia, inteligência
A natureza da investigação básica tornou-se artificial, robótica, energia) e disponíveis para
problemática nos últimos trinta anos, quer por- articulações de diferentes tipos e graus com
que os seus custos aumentaram exponencial- os centros universitários. Em terceiro lugar, o
mente, quer porque a conversão progressiva Estado procurou seleccionar as universidades
da ciência em força produtiva acabou por pôr e os centros de investigação com maior capa-
em causa a própria validade da distinção entre cidade de investigação e concentrar neles os
investigação básica e aplicada. A questão dos recursos financeiros disponíveis.
custos agravou-se nos anos setenta com a crise Enquanto os dois primeiros tipos de medi-
financeira do Estado e com a multiplicação dos das afectaram a centralidade da universidade
centros universitários de investigação resultan- a partir de fora, o último tipo afectou-a a partir
te da explosão universitária da década anterior. de dentro. Tal como já sucedera no contexto
Em consequência, a centralidade e, nalguns pa- das dicotomias alta cultura — cultura de mas-
íses, a exclusividade da universidade na investi- sas e educação — trabalho, produziu-se a dife-
gação básica, que fora até então pensada como renciação e estratificação entre universidades.
solução e contabilizada como benefício, passou Neste caso, o processo foi facilitado pela con-
a ser pensada como problema e contabilizada vicção de que a expansão da universidade nos
como custo. As manifestações desta inversão anos sessenta relaxara os critérios de contrata-
foram várias. Em primeiro lugar, as grandes ção e de promoção, fazendo entrar para o cor-
empresas multinacionais, transformadas em po docente pessoas abaixo do nível de excelên-
agentes económicos privilegiados da nova or- cia e sem motivação para a investigação. Este
dem económica internacional, criaram os seus processo está de resto em curso e as propostas
próprios centros de investigação básica e apli- vão no sentido de concentrar a maioria dos
cada e a excelência dos seus resultados pôde recursos nalgumas universidades, financiando
rivalizar com os dos centros universitários. Em nas restantes as tarefas de síntese e de disse-
564 Boaventura de Sousa Santos

minação do conhecimento e os programas de de da questão das relações entre a universida-


actualização dos docentes5. A execução de tais de e a indústria. Os factores macro-económicos
propostas está, no entanto, a debater-se com determinantes deste processo são a relativa
múltiplas dificuldades e resistências. É que, estagnação económica dos países centrais no
apesar de apenas uma fracção dos docentes de início da década de setenta, com prolonga-
uma fracção das universidades fazer efectiva- mentos até ao presente, e a convicção, hoje
mente investigação e contribuir para o avanço generalizada, de que tal estagnação se ficou a
do conhecimento, a verdade é que o universo dever menos aos choques do petróleo do que
simbólico da vida universitária continua povo- ao declínio absoluto e relativo da produtivida-
ado pela prioridade da investigação e a defini- de da indústria (OCDE, 1984: 11), declínio esse
ção do prestígio, tanto institucional, como pes- que, também consensualmente, é atribuído à
soal, continua vinculada à realidade ou à ficção desaceleração da inovação tecnológica. Este
verosímil da performance científica. A concen- fenómeno é particularmente evidente nos EUA
tração dos recursos para a investigação cria onde, no início da década de oitenta, a indús-
nas instituições excluídas uma marginalização tria gastava em investigação e desenvolvimen-
muito mais ampla que a que decorre do fecho to uma percentagem dos seus lucros inferior à
de centros de investigação, com repercussões que gastava em meados da década de sessenta
dificilmente previsíveis tanto no corpo docente e o investimento incidia mais em transforma-
como no corpo discente. ções parcelares dos produtos existentes do que
A política de concentração de recursos tem em inovações estruturais (Bok, 1982: 137).
vindo a ser complementada por uma outra, a O consenso sobre a relação entre declínio
do incitamento à procura de recursos externos, da produtividade e desaceleração da mudança
não estatais. Esta última implica uma pressão tecnológica coloca no centro da saída da crise
no sentido do privilegiamento da investigação a questão da velocidade e eficiência com que
aplicada e é responsável pela grande actualida- se pode traduzir o conhecimento científico
em produtos e processos úteis e, consequen-
temente, no centro da questão, a universidade
5 Por exemplo, no Canadá 26 das 71 universidades
e a investigação científica que nela tem lugar.
absorvem 90% dos fundos disponíveis para a investiga-
ção (OCDE, 1987: 31). Sendo certo que a universidade sempre se ima-
Da ideia de universidade à universidade de ideias 565

ginou vocacionada para a investigação básica cialmente, substituí-los por outros: relevância
e organizada em função das exigências desta, económica e perspectivas de lucros dos temas
não será difícil imaginar a turbulência simbó- de investigação; virtualidade destes para cria-
lica e institucional produzida pelo incitamento rem novos produtos e processos; probabilidade
cada vez mais insistente à investigação aplica- de serem financiados por empresas sediadas na
da e pelas medidas em que se vai traduzindo. região da universidade. Se estas se permitirem
Expressão disso é o facto de a discussão so- impor a investigação de temas intrinsecamente
bre este tema estar a incidir primordialmente pouco importantes mas economicamente mui-
na análise dos custos e dos benefícios para a to relevantes, o resultado será provavelmente
universidade decorrentes de uma ligação mais o de investigadores capazes serem “desviados”
intensa à indústria. É sintomático também que para a investigação de rotina empreendida ape-
os benefícios mais convictamente reconheci- nas em razão da sua rentabilidade.
dos sejam os financeiros, quer os que decorrem Este risco está relacionado com um outro, o
directamente dos projectos de investigação fi- do pacto fáustico. Os investigadores que acei-
nanciados pela indústria, quer os que indirec- tam ou promovem o financiamento industrial
tamente podem resultar do aumento da com- das suas investigações podem ficar na depen-
petitividade internacional da economia (mais dência da empresa financiadora. As remune-
fundos estatais e não estatais disponíveis para rações vultuosas que recebem e os melhores
a universidade). equipamentos e outras infraestruturas de in-
Pelo contrário, os custos e os riscos são mui- vestigação de que passam a dispor são obtidos
tos e variados. Em primeiro lugar, o risco de à custa da perda de autonomia, de conflitos
alteração degenerativa das prioridades científi- constantes entre as pressões do curto prazo
cas. Até agora, os investigadores universitários da empresa e as perspectivas de longo prazo
imaginaram-se a decidir os temas de investiga- próprias dos critérios científicos de investiga-
ção em função do seu interesse intrínseco, do ção e de inevitáveis cedências na avaliação da
desafio que colocam às teorias consagradas, das maturidade, representatividade ou fiabilidade
promissoras descobertas que sugerem. O privi- dos resultados.
legiamento da investigação aplicada pode per- O imaginário universitário é dominado pela
turbar estes critérios de prioridade e, tenden- ideia de que os avanços de conhecimento cien-
566 Boaventura de Sousa Santos

tífico são propriedade da comunidade científi- risco, o das vantagens “desleais” conferidas às
ca, ainda que a sua autoria possa ser individu- empresas financiadoras decorrentes do aces-
alizada. A discussão livre dos procedimentos so privilegiado à informação para além do que
e etapas da investigação e a publicidade dos respeita estritamente ao projecto de investiga-
resultados são considerados imprescindíveis ção financiado. Este risco converte-se por ve-
para sustentar o dinamismo e a competitivida- zes num tema de discussão pública como, por
de da comunidade científica. A “comunidade” exemplo, no caso do contrato no valor de 23
industrial tem outra concepção de dinamismo, milhões de dólares entre a empresa Monsanto
assente nas perspectivas de lucro, e outra con- e a Faculdade de Medicina de Harvard. Trata-
cepção de competitividade, assente nos ga- -se de uma questão complexa que obriga a dis-
nhos de produtividade. Se as suas concepções tinguir (com que critérios, é o que se discute)
se sobrepuserem às da comunidade científica, entre vantagens merecidas em função do es-
teremos, em vez da publicidade dos resultados, forço de financiamento e vantagens não mere-
o secretismo, em vez da discussão enriquece- cidas. Uma das suas repercussões tem lugar na
dora, o mutismo sobre tudo o que é verdadei- política de licenciamento de patentes quando
ramente importante no trabalho em curso, em estes pertencem à universidade (licenciamen-
vez da livre circulação, as patentes. As investi- to em regime de exclusividade ou em regime
gações mais interessantes e os dados mais im- de não exclusividade?).
portantes serão mantidos em segredo para não Embora a seriedade de muitos destes riscos
destruir as vantagens competitivas da empresa só seja avaliável a longo prazo, a discussão a
financiadora e os resultados só serão revelados seu respeito tende a ser feita em função dos
quando forem patenteáveis. Os sinais de uma impactos imediatos. E estes são sobretudo vi-
tal “perversão” têm vindo a acumular-se e a síveis a dois níveis. Ao nível do corpo docen-
perturbação que estão a causar em alguns sec- te, pela acentuação das diferenças de salários
tores da comunidade científica está já presente entre os docentes cujos temas de investigação
e, até com insistência, nos relatórios oficiais são economicamente exploráveis e os restan-
(OCDE, 1984; OCDE, 1987: 58 e ss.). tes docentes, diferenças que se repercutem
Uma lógica de investigação e de divulgação nos investigadores e docentes mais jovens
dominada pelas patentes acarreta um outro quando têm de optar entre vários objectos
Da ideia de universidade à universidade de ideias 567

possíveis de investigação. A esta diferencia- Os valores da ética científica — o comunismo,


ção corresponde um alargamento, que alguns o desinteresse, o universalismo, o cepticis-
consideram perigoso, do que se deve entender mo organizado, para usar o elenco de Merton
por “actividade aceitável ou legítima” de um (Merton, 1968: 604 e ss.; Santos, 1978) — são
investigador universitário (predominância do parte integrante do universo simbólico univer-
trabalho de consultoria de empresas; forma- sitário e são importantes enquanto tal, mas a
ção e gestão de empresas, etc.) (OCDE, 1987: prática universitária esteve sempre mais ou
60). A “distorção comercial” acaba por trans- menos longe de os respeitar. As relações com
formar-se numa “distorção institucional”6. a indústria começaram já no século XIX e,
O segundo nível diz respeito ao declínio das com a indústria da guerra, no início dos anos
humanidades e das ciências sociais, áreas de quarenta; as lutas de prestígio e de prioridade
menor comerciabilidade, tradicionalmente entre departamentos e entre centros de inves-
prestigiadas, com grande expansão nos anos tigação vem de há muito; a cobiça dos prémios
sessenta e que agora correm o risco de mar- (Nobel e outros) é há muito responsável pelo
ginalização, apesar de reclamadas pelo novo secretismo e pelo “individualismo possessivo”;
generalismo a que acima fiz referência. os critérios de avaliação e as exigências buro-
A preocupação com os impactos imediatos cráticas das instituições estatais e não estatais
tem vindo a impedir uma reflexão mais cuida- de financiamento sempre obrigaram a “distor-
da sobre as consequências a médio e a longo ções” variadas na avaliação e na apresentação
prazo. Por outro lado, tem contribuído para dos resultados e esses mesmos financiamen-
ocultar o facto de que a situação emergente tos, através dos seus critérios de prioridade
não significa uma alteração de qualidade, mas dos temas a investigar, sempre estabeleceram
tão-só de grau em relação à situação anterior. diferenças entre áreas e entre remunerações
dos docentes. Estamos, pois, perante uma al-
teração de grau, que, de resto, não é por isso
6 Os perigos decorrentes desta distorção são hoje menos significativa.
evidentes e aparecem com cada vez mais insistência em Como se verá melhor adiante ao analisar a
publicações de organismos internacionais que ainda há
crise institucional, o modo como tem vindo a
pouco viam sobretudo benefícios na ligação universida-
de-indústria. Ver, OCDE (1988). ser discutida esta questão é reveladora de uma
568 Boaventura de Sousa Santos

estratégia de dispersão das contradições por sociais, quer por não ter sabido ou querido pôr
parte da universidade. Fragilizada por uma a sua autonomia institucional e a sua tradição
crise financeira e incapaz, por isso, de resistir de espírito crítico e de discussão livre e desin-
ao impacto da luta pela produtividade ou de teressada ao serviço dos grupos sociais domi-
definir soberanamente os termos desta luta, a nados e seus interesses.
universidade procura adaptar-se criativamen- A reivindicação da responsabilidade social
te às novas condições, tentando maximizar os da universidade assumiu tonalidades distintas.
benefícios financeiros e exorcizando os riscos Se para alguns se tratava de criticar o isola-
através de um apelo ao “equilíbrio de funções” mento da universidade e de a pôr ao serviço da
e à prevenção contra a “sobrecarga funcional” sociedade em geral, para outros tratava-se de
(OCDE, 1984: 12). denunciar que o isolamento fora tão-só aparen-
te e que o envolvimento que ele ocultara, em
A universidade e a comunidade favor dos interesses e das classes dominantes,
era social e politicamente condenável. Por ou-
Como referi atrás, para além da vertente
tro lado, se para alguns a universidade devia
economicista e produtivista, o apelo à práti-
comprometer-se com os problemas mundiais
ca, teve, a partir dos anos sessenta, uma outra
em geral e onde quer que ocorressem (a fome
vertente, de orientação social e política, que
no terceiro mundo, o desastre ecológico, o ar-
consistiu na invocação da “responsabilidade
mamentismo, o apartheid, etc.), para outros, o
social da universidade” perante os problemas
compromisso era com os problemas nacionais
do mundo contemporâneo, uma responsabili-
(a criminalidade, o desemprego, a degradação
dade raramente assumida no passado, apesar
das cidades, o problema da habitação, etc.) ou
da premência crescente desses problemas e
mesmo com os problemas regionais ou locais
apesar de a universidade ter acumulado sobre
da comunidade imediatamente envolvente (a
eles conhecimentos preciosos. Esta vertente
deficiente assistência jurídica e assistência
teve, assim, um cunho marcadamente crítico.
médica, a falta de técnicos de planeamento
A universidade foi criticada, quer por raramen-
regional e urbano, a necessidade de educação
te ter cuidado de mobilizar os conhecimentos
de adultos, de programas de cultura geral e de
acumulados a favor de soluções dos problemas
formação profissional, etc.).
Da ideia de universidade à universidade de ideias 569

O movimento estudantil dos anos sessenta A ideia e a prática da multiversidade foi su-
foi, sem dúvida, o porta-voz das reivindica- jeita a um fogo cruzado. Os tradicionalistas fize-
ções mais radicais no sentido da intervenção ram duas críticas principais. A primeira era que
social da universidade. Entre estas reivindica- o intervencionismo sujeitaria a universidade a
ções e as reivindicações dos conservadores e pressões e tentações descaracterizadoras: mui-
tradicionalistas que recusavam, por corruptor tos dos programas de extensão não estariam
do ideário universitário, qualquer tipo de in- baseados em conhecimentos sólidos; os pro-
tervencionismo, foi emergindo ao longo da dé- fessores envolvidos em actividades de consul-
cada um tipo de intervencionismo moderado, toria e de extensão dedicariam menos tempo
reformista, que teve a sua melhor formulação ao ensino e à investigação e, com o decorrer do
na ideia da multiversidade americana teori- tempo, perderiam a lealdade à universidade e
zada por Clark Kerr (1982) a partir de 1963. aos seus verdadeiros objectivos; os programas
Ancorada numa longa tradição que remonta socialmente relevantes expandir-se-iam à custa
às “land-grant universities”, a multiversidade do definhamento dos departamentos de filoso-
é, muito sucintamente, uma universidade fun- fia, de cultura clássica ou de história medieval.
cionalizada, disponível para o desempenho A segunda crítica era que o crescimento preci-
de serviços públicos e a satisfação de neces- pitado da universidade conduziria à ampliação
sidades sociais conforme as solicitações das desmesurada dos serviços administrativos e à
agências financiadoras, estatais e não esta- criação de burocracias poderosas, asfixiadoras
tais. Trata-se de uma “instituição no centro da iniciativa e da liberdade dos docentes. Em
dos acontecimentos” (Kerr, 1982: 42) e estes suma, do ponto de vista conservador, a voca-
tanto podem ser a colaboração com as forças ção da universidade seria o investimento inte-
armadas e a CIA, a ligação à indústria ou às as- lectual de longo prazo, a investigação básica,
sociações de agricultores, como a assistência científica e humanística, uma vocação por na-
técnica aos países do terceiro mundo, o apoio tureza isolacionista e elitista.
às escolas das zonas urbanas degradadas, a Mas a multiversidade foi também atacada
organização de “clínicas de vizinhança” para pelo movimento estudantil e em geral pela es-
as classes populares, a assistência jurídica e querda intelectual (Wallerstein e Starr, 1971). A
judiciária aos pobres. crítica fundamental foi a de que a universidade,
570 Boaventura de Sousa Santos

com sua total disponibilidade para ser funcio- sabilidade social da universidade foi sendo re-
nalizada e financiada acabava por se tornar de- duzida às ligações com a indústria. No entanto,
pendente dos interesses e grupos sociais com no caso americano, a tradição de reformismo
capacidade de financiamento, ou seja, da clas- universitário e a especificidade das relações
se dominante, do establishment. Recusando-se jurídicas (sobretudo fiscais) e institucionais
a estabelecer as suas prioridades sociais, e a das universidades com as cidades e as comu-
propor definições alternativas para os proble- nidades onde estão instaladas fez com que a
mas e as necessidades sociais selecionados ideia da multiversidade mantivesse o seu ape-
pelo governo e outras instituições, a universi- lo ideológico e se continuasse a traduzir em
dade capitulava à subserviência e à passivida- programas de orientação social, sobretudo de
de ainda que sob a capa de frenético activismo. âmbito comunitário. Das iniciativas exaltantes
Num notável texto de reflexão escrito no meio dos anos sessenta — escritórios de advocacia
da turbulência estudantil, Wallerstein afirmava gratuita e clínicas médicas e dentárias instala-
que “a questão não está em decidir se a univer- dos no ghetto por iniciativa das faculdades de
sidade deve ou não deve ser politizada, mas direito e de medicina, respectivamente; pro-
sim em decidir sobre a política preferida. E as gramas de investigação e de consultoria sobre
preferências variam”. (Wallerstein, 1969: 29). problemas urbanos organizados de colabora-
A crítica conservadora passou a ouvir-se ção entre os departamentos de sociologia e de
com mais insistência nos anos setenta e nos urbanismo por um lado, e as agências adminis-
anos oitenta. Um bom exemplo é o debate ac- trativas locais, por outro; acções de educação
tual sobre as teses de Alan Bloom, já analisa- contínua e de educação de adultos a cargo dos
das. Muitos dos programas orientados para a departamentos de educação; abertura das bi-
minoração dos problemas sociais das classes bliotecas universitárias à população; múltiplas
desprivilegiadas e das minorias étnicas e ráci- iniciativas do tipo “universidade aberta”; etc.
cas foram cancelados. Outros, mais vincula- etc. — algumas sobreviveram até aos nossos
dos ao establishment (sobretudo militar), que dias e outras têm-se mesmo expandido. Por
tinham sido cancelados nos anos sessenta sob exemplo, em muitas faculdades de direito, os
pressão da crítica estudantil, voltavam a ser serviços de assistência jurídica e judiciária
activados. Em muitas universidades, a respon- gratuita, que eram extracurriculares nos anos
Da ideia de universidade à universidade de ideias 571

sessenta, foram integrados no plano de estu- os programas que envolvem poucos recursos
dos enquanto forma de “educação clínica”, (sobretudo humanos) e que visam ajudar um
isto é, de trabalho prático de estudantes sob dado grupo local sem antagonizar outros. Esta
a orientação dos professores. Têm-se também última orientação revela bem em que medida a
mantido alguns dos programas de apoio téc- universidade pretende controlar o seu desen-
nico à renovação urbana, sobretudo das zo- volvimento comunitário e exercê-lo de modo
nas degradadas, tal como os programas para a manter um distanciamento calculado peran-
grupos especialmente carenciados (crianças te conflitos sociais. Incapaz de se isolar com-
abandonadas, velhos, cegos, deficientes) e os pletamente das pressões que lhe são feitas, a
programas de reciclagem (a midcareer edu- universidade procura geri-las de modo a repro-
cation) para quadros médios e superiores da duzir, em condições sempre novas, a sua cen-
administração pública e privada. tralidade simbólica e prática sem comprometer
A teorização hoje dominante dos programas demasiado a sua estabilidade institucional.
de extensão é reveladora dos limites da aber- Na Europa, tanto o modelo alemão da uni-
tura da universidade à comunidade e dos ob- versidade, como o modelo inglês, como ainda
jectivos que lhe subjazem. Em primeiro lugar, a as diferentes combinações entre eles, criaram
abertura desempenha um importante papel de uma ideia de universidade que, à partida, ofe-
relações públicas em comunidades com longo rece a esta melhores condições para manter-se
rol de queixas e ressentimentos contra a uni- resguardada das pressões sociais e para fazer
versidade, desde as isenções fiscais, ao expan- desse isolamento a razão de ser da sua centra-
sionismo das infraestruturas em detrimento lidade. Em última análise, essa ideia consiste
de outras actividades locais e ao desassossego em fazer esgotar as responsabilidades sociais
provocado pela boémia estudantil. Em segundo da universidade na investigação e no ensino.
lugar, considera-se que os serviços de extensão Mostrei atrás que o isolamento obtido por esta
comunitária devem ter uma forte componente via será sempre muito relativo, pois que o ques-
técnica de modo a evitar que a universidade tionamento, recorrente nas últimas décadas,
se substitua ilegitimamente a outras institui- sobre o que se deve investigar (investigação
ções ou se descaracterize no desempenho das básica ou aplicada) ou sobre o que se deve en-
funções. Por último, devem ser privilegiados sinar (cultura geral ou formação profissional)
572 Boaventura de Sousa Santos

tem vindo a ser accionado por pressões sociais outros exemplos possíveis, o mais importante
a que a universidade de uma ou de outra forma foi talvez o da universidade de Brasília, sob o
vai dando resposta. Deve, no entanto, salien- reitorado de Cristovam Buarque, acima de tudo
tar-se a eficácia selectiva desta ideia europeia pelo modo como procurou articular a tradição
de universidade. Se é certo que ela contribuiu elitista da universidade com o aprofundamen-
para resguardar relativamente a universidade to do seu compromisso social. Num notável
(sobretudo no continente europeu) das rei- texto programático intitulado Uma Ideia de
vindicações mais radicais dos anos sessenta Universidade, Buarque afirma que “a política
no sentido do envolvimento da universidade da universidade deve combinar o máximo de
no equacionamento ou mesmo na solução dos qualidade académica com o máximo de com-
problemas mundiais, nacionais ou locais, não promisso social… O que caracterizará o produ-
impediu que as universidades, a braços com to, portanto, é a sua qualidade, sua condição de
uma grave crise financeira, se lançassem na elite, mas o que caracterizará o seu uso é o seu
luta pela produtividade e na abertura à “co- compromisso amplo — a sua condição antie-
munidade” industrial. E de tal modo que hoje litista” (1986: 22). Com base nestas premissas
a responsabilidade social da universidade está é formulada uma política de extensão muito
virtualmente reduzida aos termos da sua coo- avançada: “considera-se que o conhecimen-
peração com a indústria. to científico tecnológico e artístico gerado na
No entanto, a concepção mais ampla de Universidade e Institutos de pesquisa não são
responsabilidade social, de participação na únicos. Existem outras formas de conhecimen-
valorização das comunidades e de intervenção to surgidas da prática de pensar e de agir dos
reformista nos problemas sociais continua vi- inúmeros segmentos da sociedade ao longo de
gente no imaginário simbólico de muitas uni- gerações que, por não serem caracterizadas
versidades e de muitos universitários e tende como científicas, são desprovidas de legitimi-
a reforçar-se em períodos históricos de tran- dade institucional. Essas práticas estão sendo
sição ou de aprofundamento democráticos. recuperadas à luz de uma actividade orgânica
Na América Latina, por exemplo, tem vindo a com a maioria da população” (Buarque, 1986:
concretizar-se de forma inovadora em países 63). Do ambicioso Programa Permanente de
em processo de transição democrática. Entre Participação Colectiva elaborado pelo Decana-
Da ideia de universidade à universidade de ideias 573

to de Extensão, destaco o projecto Ceilândia década de oitenta, a mesma concepção pode,


constituído por dois subprojectos: em áreas diferentes do globo e em condições
sociais e políticas distintas, circunscrever-se à
O subprojecto de história popular que visa res- cooperação com a indústria ou, pelo contrário,
gatar a luta dos moradores da área pelos lotes abranger um amplo programa de reforma so-
residenciais, conteúdo que será incorporado ao cial. Tal ductilidade, servida pela estabilidade e
sistema escolar como material básico de ensino pela especificidade institucional da universida-
no local; e o subprojecto de saúde popular, ba-
de, torna possível que esta continue a reclamar
seado no trabalho com plantas medicinais, com
uma centralidade social que a cada momento
a implantação de hortas medicinais e farmácia
verde e com grande participação de raizeiros, vê escapar-se-lhe mas que, a cada momento,
benzedoras, curandeiros, profissionais de saúde, procura recuperar com recurso a diferentes
estudantes, agrónomos, etc. mecanismos de dispersão, um imenso arsenal
de estratégias de ampliação e de retracção, de
De salientar ainda o projecto do Direito inovação ou de regressão, de abertura e de fe-
Achado na Rua que visa recolher e valorizar to- chamento, que estão inscritas na sua longa me-
dos os direitos comunitários, locais, populares, mória institucional.
e mobilizá-los em favor das lutas das classes Dado o modo como se reproduzem as con-
populares, confrontadas, tanto no meio rural, tradições e as tensões nas dicotomias alta
como no meio urbano, com um direito oficial cultura-cultura popular, educação-trabalho,
hostil ou ineficaz7. teoria-prática, em processos sociais cada vez
O espaço concedido a esta proposta da Uni- mais complexos e acelerados, a universidade
versidade de Brasília tem por objectivo mos- não pode deixar de perder a centralidade, quer
trar a extrema ductilidade do apelo à prática porque a seu lado vão surgindo outras institui-
e da concepção de responsabilidade social da ções que lhe disputam com sucesso algumas
universidade em que se traduziu. Em plena das funções, quer porque, pressionada pela “so-
brecarga funcional”, é obrigada a diferenciar-se
internamente com o risco permanente de des-
7 No âmbito deste projecto, foi publicada uma no-
caracterização. Daí, a crise de hegemonia que
tável antologia de textos cuja última edição é de 1990
(Curso de Extensão Universitária à Distância, 1990). tenho vindo a analisar. Os recursos de que a
574 Boaventura de Sousa Santos

universidade dispõe são inadequados para re- senso a seu respeito será tanto maior quanto
solver a crise, uma vez que os parâmetros desta maior for a sua consonância com os princípios
transcendem em muito o âmbito universitário, filosófico-políticos que regem a sociedade de-
mas têm sido até agora suficientes para impedir mocrática. Há-de ser este também o critério de
que a crise se aprofunde descontroladamente. legitimidade da universidade moderna. E à luz
Como resulta da análise precedente, a crise dele não admiraria que a legitimidade da uni-
de hegemonia é a mais ampla de todas as cri- versidade fosse, à partida, bastante precária.
ses que a universidade atravessa, e de tal modo A universidade moderna propunha-se produ-
que está presente nas restantes. Por esta razão, zir um conhecimento superior, elitista, para o
e também por falta de espaço, limito-me, a se- ministrar a uma pequena minoria, igualmente
guir, a uma breve referência à crise de legitimi- superior e elitista, de jovens, num contexto ins-
dade e à crise institucional. titucional classista (a universidade é uma so-
ciedade de classes) pontificando do alto do seu
A crise de legitimidade isolamento sobre a sociedade.
Enquanto não foi posta em causa, a hege- Apesar disto, a legitimidade da universida-
monia da universidade constituiu fundamen- de não foi seriamente questionada durante
to bastante da legitimidade da universidade o período do capitalismo liberal e para isso
e, portanto, da aceitação consensual da sua contribuiu decisivamente o facto de o Estado
existência institucional. No entanto, os facto- liberal, que foi a forma política da sociedade
res que conduziram à crise de hegemonia no moderna neste período, não ter, ele próprio,
pós-guerra e que foram referidos na secção an- um forte conteúdo democrático. Este, de res-
terior só parcialmente explicam a crise de legi- to, começou por ser mesmo muito débil e só
timidade tal como ela se veio a configurar, e é se foi fortalecendo à medida que foram tendo
por isso que se devem distinguir as duas crises, êxito as lutas dos trabalhadores pelo sufrágio
apesar de a crise de hegemonia estar presente universal, pelos direitos civis e políticos, pela
na crise de legitimidade. organização autónoma dos interesses, pela ne-
Na sociedade moderna o carácter consen- gociação sobre a distribuição da riqueza nacio-
sual de uma dada condição social tende a ser nal. O êxito destas lutas provocou alterações
medido pelo seu conteúdo democrático; o con- tão profundas que veio a configurar, a partir
Da ideia de universidade à universidade de ideias 575

de finais do século XIX, um novo período de aspiração socialmente legitimada, a universi-


desenvolvimento capitalista, o período do ca- dade só pode legitimar-se, satisfazendo-a. Por
pitalismo organizado, em cujo decurso a for- isso, a sua função tradicional de produzir co-
ma política do Estado liberal foi substituída, nhecimentos e de os transmitir a um grupo so-
nas sociedades europeias desenvolvidas, pelo cial restrito e homogéneo, quer em termos das
Estado-Providência, ou Estado social de direi- suas origens sociais, quer em termos dos seus
to, uma forma política muito mais democrática destinos profissionais e de modo a impedir a
apostada em compatibilizar, dentro do marco sua queda de status, passa a ser duplicada por
das relações sociais capitalistas, as exigências estoutra de produzir conhecimentos a cama-
do desenvolvimento económico com os princí- das sociais muito amplas e heterogéneas e com
pios filosófico-políticos da igualdade, da liber- vista a promover a sua ascensão social. Daí, a
dade e da solidariedade que subjazem ao pro- implicação mútua da crise de hegemonia e da
jecto social e político da modernidade. crise da legitimidade: o tipo de conhecimen-
Compreende-se, pois, que a legitimidade da tos produzidos (questão de hegemonia) tende
universidade moderna, apesar de sempre precá- a alterar-se com a alteração do grupo social a
ria, só tenha entrado em crise no período do ca- que se destina (questão de legitimidade). Por
pitalismo organizado e de resto, tal como a crise isso, as respostas da universidade à crise de
da hegemonia, só no final do período, na década hegemonia analisada acima — incorporação
de sessenta. A crise da legitimidade é em gran- limitada da cultura de massas, da formação
de medida o resultado do êxito das lutas pelos profissional, da investigação aplicada e da ex-
direitos sociais e económicos, os direitos huma- tensão à comunidade — só são plenamente
nos da segunda geração, entre os quais pontifica compreensíveis se tivermos em mente que com
o direito à educação (Santos, 1989a). elas a universidade pretende incorporar, de
A crise de legitimidade ocorre, assim, no modo igualmente limitado, grupos sociais até
momento em que se torna socialmente visível então excluídos (filhos da classe operária, da
que a educação superior e a alta cultura são pequena burguesia, e de imigrantes, mulheres,
prerrogativas das classes superiores, altas. minorias étnicas).
Quando a procura de educação deixa de ser No momento em que a procura da univer-
uma reivindicação utópica e passa a ser uma sidade deixou de ser apenas a procura de ex-
576 Boaventura de Sousa Santos

celência e passou a ser também a procura de sobrepondo à diferenciação e estratificação da


democracia e de igualdade, os limites da con- universidade segundo o tipo de conhecimen-
gruência entre os princípios da universidade tos produzidos, analisadas acima, a diferencia-
e os princípios da democracia e da igualdade ção e estratificação segundo a origem social
tornaram-se mais visíveis: como compatibilizar do corpo estudantil. Os múltiplos dualismos
a democratização do acesso com os critérios referidos, entre ensino superior universitário
de selecção interna?; como fazer interiorizar e não universitário, entre universidades de
numa instituição que é, ela própria, uma “so- elite e universidades de massas, entre cursos
ciedade de classes” os ideais de democracia e de grande prestígio e cursos desvalorizados,
de igualdade?; como fornecer aos governados entre estudos sérios e cultura geral, definiram-
uma educação semelhante à que até agora foi -se, entre outras coisas, segundo a composição
fornecida aos governantes sem provocar um social da população escolar.
“excesso de democracia” e, com isso, a sobre- A partir da década de sessenta, os estudos
carga do sistema político para além do que é sociológicos foram revelando que a massifica-
tolerável?; como é possível, em vez disso, adap- ção da educação não alterava significativamen-
tar os padrões de educação às novas circuns- te os padrões de desigualdade social. Hoje, são
tâncias sem promover a mediocridade e desca- os relatórios oficiais a atestá-lo. Em jeito de
racterizar a universidade? balanço à “ênfase igualitária” dos últimos vin-
Posta perante tais questões, a universidade te anos, o relatório da OCDE a que me tenho
mais uma vez se prestou a soluções de com- vindo a referir afirma: “Apesar de a expansão
promisso que lhe permitiram continuar a re- do ensino superior que teve lugar na maioria
clamar a sua legitimidade sem abrir mão, no dos países nos anos sessenta e princípios dos
essencial, do seu elitismo. Em resumo, pode anos setenta ter melhorado, ao que parece, as
dizer-se que se procurou desvincular na práti- oportunidades dos grupos socialmente despri-
ca, e à revelia do discurso ideológico, a procu- vilegiados, a verdade é que a posição relativa
ra da universidade da procura de democracia destes grupos não melhorou significativamente
e de igualdade, de tal modo que a satisfação sobretudo depois de meados dos anos setenta”
razoável da primeira não acarretasse a satis- (OCDE, 1987: 34). Segundo, o mesmo relatório,
fação exagerada da segunda. Isto foi possível a percentagem de filhos de famílias operárias
Da ideia de universidade à universidade de ideias 577

a frequentar as universidades alemãs aumen- irremediável. Para os que promoveram o de-


tou significativamente nos anos sessenta, mas senvolvimento desigual, a universidade, ape-
mantém-se entre 12% e 15% desde 1970. Seme- sar de todas as transformações para quebrar
lhantemente, em França essa percentagem era o seu isolamento ancestral, não mudou no es-
de 8% em 1962 e de apenas 12% em 1982, apesar sencial, pois manteve sempre um núcleo duro
de a população estudantil ter aumentado nesse capaz de impor os critérios de excelência e
período de 282.000 para 773.000. Ao contrário, os objectivos de educação integral. Para os
ainda segundo o mesmo relatório, em pratica- adeptos da expansão democrática, a universi-
mente todos os países da OCDE é mais elevada dade deixou-se funcionalizar pelas exigências
a percentagem de filhos de famílias operárias do desenvolvimento capitalista (mão-de-obra
a frequentar o ensino superior não universi- qualificada) e defraudou as expectativas de
tário (OCDE, 1987: 35). O facto de o direito à promoção social das classes trabalhadoras
educação ter vindo a significar, para os filhos através de expedientes de falsa democratiza-
das famílias operárias, o direito à formação ção9. A diversidade de opiniões é, neste caso,
técnica profissional é revelador do modo como reveladora da ambiguidade própria da lei do
a reivindicação democrática da educação foi desenvolvimento desigual. É de crer que esta
subordinada, no marco das relações sociais continue em vigor no futuro próximo, e, de
capitalistas, às exigências do desenvolvimento resto, sem grandes sobressaltos, quer porque
tecnológico da produção industrial fortemente a pressão demográfica terminou, quer porque
sentidas a partir da década de sessenta8. está a aumentar o número de estudantes com
Perante a reivindicação social de um mo- expectativas mais limitadas (adultos10, estu-
delo de desenvolvimento mais igualitário, a
universidade expandiu-se segundo uma lei
de desenvolvimento desigual (Moscati, 1983: 9 Num pequeno livro publicado em 1975, já eu de-
66). Para aqueles que sempre estiveram con- nunciava a falsa democratização da universidade, ao
mesmo tempo que defendia uma democratização global
tra a expansão, como, por exemplo, A. Bloom,
da universidade que incluía a democratização adminis-
a universidade descaracterizou-se de modo trativa, geográfica, curricular, pedagógica, institucio-
nal, profissional e sócio-económica (Santos, 1975).
10 O Center for Education Statistics dos EUA previu
8 Ver, também, Courtois (1988). que em 1990, 47% dos estudantes do ensino superior
578 Boaventura de Sousa Santos

dantes trabalhadores, estudantes financiados O valor que está em causa na crise institu-
pelas empresas11, etc.). Perante estas condi- cional é a autonomia universitária e os factores
ções diminuem os custos de uma política de que têm vindo a tornar cada vez mais proble-
discriminação social e por isso não admira que mática a sua afirmação são a crise do Estado-
em muitos países a prioridade em garantir o -Providência e a desaceleração da produtivi-
acesso à universidade aos grupos sociais des- dade industrial nos países centrais. Os dois
privilegiados seja hoje menor do que era nos factores, ambos caracterizadores do período
anos sessenta e setenta (OCDE, 1987: 21). do capitalismo desorganizado, estão interliga-
dos, mas é possível, e conveniente, analisá-los
A crise institucional em separado.
A crise do Estado-Providência é muito com-
De todas as crises da universidade, a crise
plexa e tratei dela com algum detalhe noutro
institucional é, sem dúvida, a que tem vindo
lugar (Santos, 1990). Bastará aqui mencionar
a assumir maior acuidade nos anos oitenta.
que essa crise se tem vindo a manifestar atra-
Em parte, porque nela se repercutem, tanto
vés da deterioração progressiva das políticas
a crise de hegemonia, como a crise de legi-
sociais, da política da habitação e da política da
timidade, em parte, porque os factores mais
saúde à política da educação. Invocando a crise
marcantes do seu agravamento pertencem
financeira — nem sempre comprovada e quase
efectivamente ao terceiro período do desen-
nunca causa suficiente — o Estado tem vindo
volvimento capitalista, o período do capitalis-
a proceder a reestruturações profundas no seu
mo desorganizado.
orçamento e sempre no sentido de desacelerar,
estagnar e mesmo contrair o orçamento social.
americano teriam mais de 25 anos de idade. Mas mais dramática que a evolução do nível das
11 Cada vez mais empresas estão dispostas a financiar despesas é a evolução do seu conteúdo. Rapi-
parte da educação dos seus empregados mas a maio- damente o Estado tem vindo a passar da con-
ria estabelece restrições quanto ao tipo de cursos que dição de produtor de bens e serviços (escolas,
financiam (cursos curtos; cursos relacionados com o ensino) para a de comprador de bens e serviços
emprego). A isenção de impostos do financiamento da
produzidos no sector privado. Em consequên-
educação dos empregados tem funcionado como um
incentivo poderoso. Ver Mitchell (1989). cia, a universidade pública, que na Europa tem
Da ideia de universidade à universidade de ideias 579

um predomínio absoluto no sistema de ensino Este último efeito liga-se com o segundo
superior, tem vindo a sofrer cortes orçamentais factor da crise institucional da universidade:
mais ou menos significativos, sobretudo na área a desaceleração da produtividade industrial.
das ciências sociais e humanidades, ao mesmo Qualquer que tenha sido o diagnóstico des-
tempo que é obrigada a defrontar-se com a cres- te fenómeno, a terapêutica centrou-se desde
cente concorrência da universidade privada, cedo na investigação científica e tecnológi-
fortemente financiada pelo Estado. ca, e a partir desse momento a universidade
Os cortes orçamentais provocam três efei- viu-se convocada a uma participação mais
tos principais na vida institucional da univer- activa na luta pela produtividade industrial.
sidade. Porque são selectivos, alteram as po- Vimos atrás que a universidade reagiu a essa
sições relativas das diferentes áreas do saber convocação seguindo uma estratégia de mini-
universitário e das faculdades, departamentos mização do risco de perda de hegemonia. Em
ou unidades onde são investigadas e (ou) ensi- face dos cortes orçamentais não admira que
nadas, e, com isto, desestruturam as relações entre os benefícios esperados dessa participa-
de poder em que assenta a estabilidade institu- ção os financeiros tenham sido os mais acari-
cional. Porque são sempre acompanhados do nhados. No entanto, os fluxos provindos das
discurso da produtividade, obrigam a univer- empresas, porque subordinados aos critérios
sidade a questionar-se em termos que lhe são de rentabilidade do investimento próprios da
pouco familiares e a submeter-se a critérios de indústria, acabaram por exercer uma pressão,
avaliação que tendem a dar do seu produto, convergente com a dos cortes orçamentais,
qualquer que ele seja, uma avaliação negativa. no sentido da avaliação do desempenho da
Por último, porque não restringem as funções universidade. Por outras palavras, a participa-
da universidade na medida das restrições orça- ção da universidade na luta pela produtivida-
mentais, os cortes tendem a induzir a universi- de acabou por virar essa luta contra a própria
dade a procurar meios alternativos de financia- universidade e o impacto institucional daí de-
mento, para o que se socorrem de um discurso corrente não se fez esperar.
aparentemente contraditório que salienta si- Conformada por estes factores, a crise insti-
multaneamente a autonomia da universidade e tucional da universidade assume variadíssimos
a sua responsabilidade social. aspectos. Referir-me-ei brevemente a um deles,
580 Boaventura de Sousa Santos

em meu entender, o mais importante: a avalia- mo que implicitamente, uma comparação entre
ção do desempenho universitário. modelos institucionais e seus desempenhos.
Seja como for, a exigência da avaliação é
A avaliação do desempenho concomitante da crise de hegemonia. À medida
universitário que a universidade perde centralidade torna-se
mais fácil justificar e até impor a avaliação do
A pretensão hegemónica da universidade
seu desempenho. Não admira, pois, que esta
como centro de produção de conhecimentos
exigência tenha crescido muito nas duas últi-
científicos e de educação superior, combina-
mas décadas. Confrontada com ela, a univer-
da com a sua especificidade organizativa e a
sidade não encontrou até hoje uma via própria
natureza difusa dos serviços que produz, fez
e inequívoca de lhe dar resposta. Se, por um
com que a ideia da avaliação do desempenho
lado, a exigência da avaliação parece estar em
funcional da universidade fosse olhada com
contradição com a autonomia universitária,
estranheza e até hostilidade. À primeira vis-
por outro lado, parece ser desta o correlato
ta, compreende-se mal uma tal atitude, pois
natural. A universidade tem tendido a ver so-
a universidade é uma sociedade compulsiva-
bretudo a contradição e a assumir uma posi-
mente virada para a avaliação, da avaliação
ção defensiva, traduzida no accionamento de
do trabalho escolar dos estudantes à avaliação
vários mecanismos de dispersão. Por sua vez,
dos docentes e investigadores para efeitos de
uma tal posição tem impedido a universidade
promoção na carreira. Mas, por outro lado, é
de assumir um papel mais activo na fixação do
compreensível que a compulsão da avaliação
sentido e dos critérios de avaliação.
interna desenvolva por si uma certa rejeição
São reconhecidas as múltiplas dificuldades
da avaliação externa, pois é disso que se trata
da avaliação do desempenho funcional da uni-
quando se fala da avaliação do desempenho da
versidade. Podem agrupar-se em três grandes
universidade. Mesmo que seja efectuada pela
problemáticas: a definição do produto univer-
própria universidade, tal avaliação será sempre
sitário, os critérios da avaliação e a titularidade
externa, quer porque coloca a utilidade social
da avaliação.
da universidade num conjunto mais amplo de
Quanto à definição do produto da uni-
utilidades sociais, quer porque envolve, mes-
versidade, as dificuldades são o correlato da
Da ideia de universidade à universidade de ideias 581

multiplicidade de fins que a universidade tem um enviesamento de base na avaliação do de-


vindo a incorporar e a que acima fiz referên- sempenho da universidade.
cia. Perante tal multiplicidade perguntar-se-á Esta questão prende-se com a dos critérios
qual é o produto da universidade ou sequer de avaliação. Neste domínio, a dificuldade
se faz sentido falar em produto. Como afirma maior está em estabelecer medidas para a ava-
Bienaymé, a variedade de produtos esperados liação da qualidade e da eficácia. Mesmo acei-
da universidade é tal que torna tão difícil exi- tando que a universidade produz “produtos”,
gir que a universidade os produza todos com é reconhecido que muitos deles não são sus-
a mesma eficácia como estabelecer entre eles ceptíveis de mensuração directa. Como medir
uma hierarquia inequívoca (Bienaymé, 1986: a formação do carácter ou mesmo o progresso
106). A produção e transmissão do conheci- científico? Não há medidas directas, e mesmo
mento científico, a produção de trabalhadores o recurso a medidas indirectas não deixa de le-
qualificados, a elevação do nível cultural da vantar alguns problemas. Mencionarei dois, o
sociedade, a formação do carácter, a identifi- quantitativismo e o economicismo.
cação de talentos, a participação na resolução Perante a inefabilidade das qualidades ins-
dos problemas sociais são produtos, não só critas nos produtos a avaliar, os agentes e insti-
muito variados, como difíceis de definir. Aliás, tuições avaliadoras tendem a privilegiar as me-
como deixei dito atrás, a produção de um de- didas quantitativas, um procedimento bastante
les colide frequentemente com a de um outro, familiar aos cientistas sociais, desde há muito
pelo que, se não for estabelecida uma hierar- confrontados com a necessidade de operacio-
quia, a universidade estará sempre aquém do nalizar os conceitos e estabelecer indicadores
desempenho adequado em alguns destes pro- do comportamento das variáveis selecciona-
dutos. Questionável é ainda se se pode falar das. É, no entanto, hoje reconhecido que a qua-
de “produtos” em alguns dos desempenhos, lidade transborda sempre das quantidades em
como, por exemplo, a formação do carácter que é operacionalizada. Tomemos um exemplo.
ou a elevação do nível cultural. Pode mesmo Perante a verificação de que a França produz
entender-se que o uso do termo “produto” e mais diplomas universitários que a Alemanha
“produção” envolve a opção por uma metáfo- apesar de possuir uma taxa de enquadramento
ra economicista e materialista que introduz (número de alunos por docente) muito infe-
582 Boaventura de Sousa Santos

rior (23 na França; 9 na Alemanha) (Bienaymé, teria tido tempo para escrever a “Crítica da Ra-
1986: 317), fácil será concluir que o sistema zão Pura” (Chaui e Giannotti, 1987: A 21).
universitário francês é mais eficaz que o ale- O quantitativismo está intimamente ligado
mão. No entanto, tal conclusão nada diz sobre com o economicismo. Na sociedade contem-
a qualidade dos diplomas, o nível de excelên- porânea, o arquétipo do produto social defini-
cia exigido, ou o impacto do tipo de formação do quantitativamente é o produto industrial. O
no desempenho profissional dos diplomados. economicismo consiste em conceber o produ-
É certo que qualquer destes factores pode ser, to universitário como um produto industrial,
por sua vez, operacionalizado em indicadores ainda que de tipo especial, e consequentemen-
quantitativos, mas, pelos mesmos motivos, te em conceber a universidade como uma orga-
acabará por reproduzir, no seu âmbito, a irre- nização empresarial. Este viés está hoje muito
dutibilidade da qualidade à quantidade. difundido e a sua vigência incontrolada repre-
O problema do quantitativismo não se põe senta um perigo importante para a autonomia
apenas ao nível da falibilidade dos indicadores. institucional da universidade.
O recurso à operacionalização quantitativa leva O perigo deriva basicamente de dois vec-
inconscientemente a privilegiar na avaliação os tores: o ciclo do produto e o processo da sua
objectivos ou produtos mais facilmente quanti- produção. Quanto ao primeiro vector, o ciclo
ficáveis (Simpson, 1985: 535). Por exemplo, por do produto, o perigo resulta de o produto in-
essa razão, pode fazer-se incidir a avaliação na dustrial ter um ciclo muito mais curto do que
produção de conhecimentos científicos (medi- o do produto universitário. A lógica da renta-
da pelo número de publicações) em detrimento bilidade do investimento tende a favorecer o
da formação do carácter dos estudantes. Por curto prazo em detrimento do longo prazo, e
outro lado, a interiorização, no seio da comu- por isso só um número reduzido de empresas
nidade universitária, da avaliação quantitativa faz investimento estratégico, orientado para
pode distorcer as prioridades científicas dos o médio ou longo prazo. A aplicação desta ló-
docentes e investigadores. Como afirma Gian- gica ao desempenho da universidade tende a
notti, se Frederico, O Grande, tivesse exigido favorecer utilidades de curto prazo, sejam elas
quarenta “papers” para recontratar Kant para a cursos curtos em detrimento de cursos longos,
cadeira de Filosofia, em Konigsberg, Kant não formações unidireccionadas em detrimento de
Da ideia de universidade à universidade de ideias 583

formações complexas, investigação competiti- monia da universidade o facto de o discurso


va em detrimento de investigação pré-competi- da ligação universidade-indústria propor a
tiva, reciclagem profissional em detrimento de submissão da lógica da universidade à lógi-
elevação do nível cultural, etc., etc. E isto é tan- ca da indústria, e não o contrário, como seria
to mais perigoso quanto é certo que, como refe- pensável noutro contexto13.
rirei adiante, a universidade é uma das poucas O perigo da desvalorização da especificida-
instituições da sociedade contemporânea onde de da universidade torna-se ainda mais eviden-
é ainda possível pensar a longo prazo e agir em te quando se tem em conta o segundo vector,
função dele. o processo de produção. A universidade é uma
A pressão do curto prazo tem um impacto organização trabalho-intensiva, isto é, exige
institucional muito específico, pois conduz uma mobilização relativamente grande de for-
a reestruturações que visam adequar a acti- ça de trabalho (docentes, funcionários e estu-
vidade universitária às exigências da lógica dantes) quando comparada com a mobilização
empresarial. É este, de resto, um dos impac- de outros factores de produção. Isto significa
tos da ligação da universidade à indústria que que, à luz dos critérios de produtividade vigen-
mais atenção merece. Tal ligação nada tem de tes na sociedade capitalista, a produtividade da
negativo, antes pelo contrário12, se a lógica universidade será sempre inferior à de uma or-
institucional da universidade for respeitada. ganização capital-intensiva, como tendem a ser
Acontece, porém, que o discurso dominante as empresas mais directamente interessadas na
sobre os benefícios de tal ligação tende a pôr ligação com a universidade. Se a universidade
em confronto as duas lógicas institucionais e não puder impor, como pressuposto de base, o
a desvalorizar a lógica universitária naquilo
em que ela não coincide com a lógica empre-
sarial. É, aliás, ilustrativo da perda de hege- 13 A comparação entre estruturas organizacionais das
universidades e das empresas começa hoje a ser um
tema de investigação. Sobre a comparação das práticas
12 Neste sentido, identificando as alternativas entre di- de planeamento estratégico, ver Kelly e Shaw (1987).
ferentes sistemas de ligação à indústria e suas virtualida- Sobre a especificidade das estruturas organizativas da
des para enfraquecer ou, pelo contrário, fortalecer a po- universidade, ver Millett (1977). Ver ainda Goldschmidt
sição da universidade, ver Connor, Wylie, Young (1986). (1984) e Etzkowitz (1983).
584 Boaventura de Sousa Santos

princípio de que a sua produtividade, enquanto decorrente da liberdade para procurar e ge-
organização, será sempre inferior à produtivi- rir recursos doutras proveniências, redunda
dade que ela pode gerar noutras organizações, em dependência em relação aos novos finan-
corre o risco de se deixar descaracterizar ao ciadores. Acresce que o velho financiador, o
ponto da ligação universidade-indústria se Estado, ao mesmo tempo que procura deso-
transformar numa ligação indústria-indústria. nerar-se da responsabilidade de financiar em
Este risco conduz-nos directamente ao exclusivo o orçamento da universidade, tem
terceiro grupo de dificuldades na avaliação vindo a tornar-se mais vigilante e intromissor
do desempenho da universidade, as que de- no que respeita à aplicação e gestão dos finan-
correm da definição da titularidade da ava- ciamentos que ainda mantém.
liação. Estas são talvez as dificuldades mais Por todas estas razões, a universidade vê-
dificilmente contornáveis e, também por isso, -se confrontada com uma crescente pressão
aquelas em que a atitude defensiva da univer- para se deixar avaliar, ao mesmo tempo que se
sidade mais se tem evidenciado. De facto, a acumulam as condições para que lhe escape a
questão da titularidade da avaliação é a que titularidade da avaliação. A titularidade da ava-
mais directamente confronta a autonomia da liação põe-se sobretudo quando se trata de ava-
universidade. Hoje, mais do que nunca, será liações globais, avaliações de departamentos,
fácil à universidade pública reconhecer que, de faculdades ou mesmo de universidades no
se a dependência exclusiva do orçamento do seu todo. Nestes casos, a auto-avaliação, embo-
Estado a onerou com subordinações e sub- ra possível e desejável, não satisfará certamen-
missões, gravosas e humilhantes, sobretudo te quem tem mais interesse na avaliação, os
em épocas de crise social ou política, por ou- financiadores, sejam eles públicos ou privados.
tro lado, grangeou-lhe alguns espaços de au- Aliás, dadas as dependências recíprocas que se
tonomia que agora, em perigo de perdê-los, se criam no interior das unidades sob avaliação, é
lhe afiguram preciosos14. Por outras palavras, duvidoso que a auto-avaliação possa ser mais
a recente autonomia em relação ao Estado, do que justificação das rotinas estabelecidas.
Daí, a figura do avaliador externo e a ambiva-
lência com que os departamentos e as universi-
14 No mesmo sentido, ver Price (1984-1985). dades a têm aceitado.
Da ideia de universidade à universidade de ideias 585

Mas a questão da titularidade não se levan- avaliação. Se é certo que a perda de hegemonia
ta apenas a respeito da pessoa ou da filiação da universidade contribuiu para justificar junto
do avaliador mas também a respeito do con- das agências financeiras, e sobretudo do Esta-
trolo dos critérios de avaliação e dos objec- do, a exigência da avaliação, não é menos certo
tos de avaliação. Quanto a estes últimos, o que, perante o público em geral, tal exigência
que está em causa é saber se a universidade está vinculada à crise de legitimidade da uni-
pode reivindicar ser avaliada exclusivamente versidade. Efectivamente, numa sociedade de-
em função dos “produtos” que se propôs pro- mocrática, parece evidente que a universidade
duzir. Se a universidade for avaliada à luz de dê conta dos fundos públicos, apesar de tudo
objectivos que não se propôs, terá pedido a significativos, que absorve, fundos, em grande
titularidade da avaliação mesmo que os ava- medida, provindos dos impostos pagos pelos
liadores sejam internos. cidadãos. Em vez de enfrentar esta exigência, a
A referência que acabei de fazer aos dife- universidade pública, sobretudo europeia, tem
rentes tipos de dificuldades da avaliação do vindo a evitá-la sob múltiplos pretextos e re-
desempenho funcional da universidade mostra correndo a formas variadas de resistência pas-
que tais dificuldades são obviamente reais e siva. O perigo desta atitude está, entre outras
algumas até insuperáveis, mas mostra também coisas, na oportunidade que pode dar às uni-
que algumas delas se devem ao modo como a versidades privadas para justificarem, sob os
universidade tem vindo a enfrentar a questão mesmos pretextos, a recusa a serem avaliadas.
da avaliação. E, mais uma vez, é fácil concluir Num período em que as universidades privadas
que a universidade se tem limitado a dispersar se multiplicam e absorvem fundos públicos
a contradição que vê existir entre a avaliação e cada vez mais importantes, a falta de transpa-
a autonomia, entre autonomia e produtividade. rência neste sector da educação universitária
Teríamos um quadro bem diferente se, em pode dar origem a formas de concorrência des-
vez de contradição, a universidade visse na leal de que as universidades públicas acabarão
avaliação a salvaguarda da sua autonomia. por ser as maiores vítimas.
Nesse caso, a universidade estaria em melho- A posição defensiva, “dispersiva”, da uni-
res condições para negociar participativamen- versidade neste domínio tem uma justificação
te os objectos, os critérios e a titularidade da plausível: a universidade não tem hoje poder
586 Boaventura de Sousa Santos

social e político para impor condições que ga- ela, em diálogo com as comunidades que lhe
rantam uma avaliação equilibrada e desprecon- são mais próximas (internacionais, nacionais,
ceituosa do seu desempenho. Tal impotência locais), a decidir dos objectivos em função dos
é, como vimos, a outra face da perda de hege- quais deve ser avaliada. Em segundo lugar, que
monia. Mas, tal como referi, a gestão da crise a avaliação externa seja sempre interpares,
de hegemonia deixa alguma margem para lutar isto é, seja feita “por gente da comunidade aca-
contra tal impotência. démica capaz de distanciar-se do clientelismo
Trata-se, de facto, de uma questão política, de cada centro” (Giannotti, 1987: 91).
por mais que as exigências da avaliação sejam Contudo, a autonomia e a especificidade ins-
formuladas em termos tecnocráticos (eficiên- titucional da universidade tem vindo a impedir
cia; conhecimento do produto universitário; a busca de tais coligações. No que respeita às
gestão racional), e é como questão política que coligações no interior, a “sociedade de classes”
deve ser enfrentada pela universidade. Aliás, as que a universidade tem sido tradicionalmente
abordagens tecnocráticas da problemática da não facilita a constituição de uma comunidade
avaliação escondem a fraqueza política da uni- universitária, certamente a várias vozes, mas
versidade, sobretudo da universidade pública. que inclua docentes e investigadores em dife-
Perante isto, a universidade só poderá resol- rentes fases da carreira, estudantes e funcio-
ver a crise institucional se decidir enfrentar a nários. Tal dificuldade é hoje particularmente
exigência da avaliação e, para que tal possa ser gravosa, pois a universidade só pode ser uma
feito com sucesso, a universidade tem de pro- força para o exterior se possuir uma força in-
curar coligações políticas, no seu interior e no terior, e a democratização interna da univer-
seu exterior, que fortaleçam a sua posição na sidade é a pré-condição da constituição desta
negociação dos termos da avaliação15. Se tal su- força. No que respeita às coligações exteriores,
ceder, a universidade terá provavelmente con- a “torre de marfim” que a universidade tam-
dições de fazer duas exigências que a meu ver bém foi durante séculos é ainda uma memória
são fundamentais. Em primeiro lugar, que seja simbólica demasiadamente forte para permitir
à universidade a procura de aliados externos
sem ver nisso uma perda de prestígio ou uma
15 No mesmo sentido, ainda que com referência especí-
fica às universidades americanas, ver Benveniste (1985). perda de autonomia.
Da ideia de universidade à universidade de ideias 587

Por estas razões, tem sido difícil à universi- do nosso sistema industrial. Quanto à crise de
dade resolver esta dimensão marcante da sua legitimidade, ela só veio a eclodir depois do 25
crise institucional. E porque assim tem sido, de Abril de 1974 no seguimento da explosão so-
tem-se refugiado em mecanismos de dispersão cial, e também escolar, em que se traduziu. Por
que, no caso desta crise, dificilmente poderão ter eclodido mais tarde que nos países centrais
manter controlados durante muito tempo os e também por ser suportada por uma estrutura
factores que a vão agravando. demográfica relativamente específica, a crise
de legitimidade tem hoje uma acuidade entre
Para uma universidade de ideias nós muito superior à que tem nos países cen-
Neste texto ocupo-me da universidade em trais. Quanto à crise institucional, ela é sem
geral, tendo sobretudo em mente a universida- dúvida a que mais atenções suscita neste mo-
de dos países centrais. Não me ocupo especifi- mento. A estagnação ou mesmo a contracção
camente da universidade portuguesa. Adianto, do orçamento estatal da educação tem vindo
no entanto, que a análise das crises da univer- a submeter a universidade a uma austeridade
sidade feita na primeira parte deste texto se tanto mais difícil de suportar quanto a situação
aplica em termos gerais e com adaptações à anterior fora sempre de evidente mediocridade
universidade portuguesa, apesar de a moderni- em relação à das restantes universidades eu-
zação desta ter ocorrido mais tarde que a das ropeias. Tal austeridade, combinada com um
restantes universidades europeias16. Quanto à discurso de privatização que incita a universi-
crise de hegemonia, pode dizer-se que ela não dade a procurar fontes alternativas de finan-
assumiu até agora as proporções que assumiu ciamento que, entretanto, dado o nosso nível
nos países mais desenvolvidos, o que tem a ver de desenvolvimento industrial, são difíceis de
fundamentalmente com o estado intermédio encontrar, coloca a universidade portuguesa
do nosso desenvolvimento e com a estrutura perante dilemas muito mais sérios do que os
que são enfrentados pelas restantes universida-
des europeias.
16 Sobre o processo de laicização da universidade Talvez, por isso, a universidade portuguesa
portuguesa (ao tempo, apenas a universidade de Coim-
necessite, mais que a universidade dos países
bra), enquanto dimensão da sua modernização, ver Ca-
troga (1988). centrais, de reflectir sobre uma estratégia de
588 Boaventura de Sousa Santos

longo prazo. É disso que trato nesta segunda tituição cada vez mais instável e os seus mem-
parte. Ciente de que me refiro à universidade bros cada vez mais forçados a desviar energias
em geral, tenho sobretudo presente a universi- das tarefas intelectuais e sociais da universi-
dade portuguesa. dade para as tarefas organizativas e institucio-
Na primeira parte deste texto, procurei mos- nais. A crise institucional tenderá a absorver as
trar que o questionamento da universidade, atenções da comunidade universitária e, para
sendo um fenómeno talvez tão antigo quanto a além de certo limite, tal concentração fará com
própria universidade, tem-se ampliado e inten- que as outras duas crises se resolvam pela ne-
sificado significativamente nos últimos anos, gativa: a crise de hegemonia, pela crescente
razão por que é legítimo falar de crise da uni- descaracterização intelectual da universidade;
versidade, mesmo admitindo que tal caracte- a crise de legitimidade, pela crescente desvalo-
rização, pelo seu uso indiscriminado, não seja rização dos diplomas universitários.
talvez a melhor. Mostrei também que a univer- É, pois, necessário pensar noutro modelo
sidade, longe de poder resolver as suas crises, de actuação universitária perante os factores
tem vindo a geri-las de molde a evitar que elas de crise identificados, uma actuação “activa”,
se aprofundem descontroladamente, recorren- autónoma, e estrategicamente orientada para
do para isso à sua longa memória institucional o médio e longo prazo. Apresento a seguir as
e às ambiguidades do seu perfil administrativo. teses que, em meu entender, devem servir de
Tem-se tratado de uma actuação ao sabor das bússola numa tal actuação.
pressões (reactiva), com incorporação acrítica
de lógicas sociais e institucionais exteriores Teses para uma universidade pautada
(dependente) e sem perspectivas de médio ou pela ciência pós-moderna
longo prazo (imediatista).
1. A ideia da universidade moderna faz parte
Penso que tal modelo de gestão das contra-
integrante do paradigma da modernidade.
dições não pode continuar a vigorar por muito
As múltiplas crises da universidade são
mais tempo. As pressões tendem a ser cada vez
afloramentos da crise do paradigma da mo-
mais fortes, as lógicas externas, cada vez mais
dernidade e só são, por isso, resolúveis no
contraditórias, o curto prazo, cada vez mais ti-
contexto da resolução desta última.
rânico. Com isto, a universidade será uma ins-
Da ideia de universidade à universidade de ideias 589

2. A universidade constituiu-se em sede privi- verá se assumir plenamente esta condição


legiada e unificada de um saber privilegia- epistemológica. Refugiando-se no exercí-
do e unificado feito dos saberes produzidos cio da “ciência-normal”, para usar a termi-
pelas três racionalidades da modernidade: nologia de Thomas Kuhn (1970), num mo-
a racionalidade cognitivo-instrumental mento histórico em que a ciência futurante
das ciências, a racionalidade moral-práti- é a “ciência revolucionária”, a universidade
ca do direito e da ética e a racionalidade será em breve uma instituição do passado.
estético-expressiva das artes e da literatu- Só o longo prazo justifica a universidade no
ra. As ciências da natureza apropriaram a curto prazo.
racionalidade cognitivo-instrumental e as 4. A universidade que se quiser pautada pela
humanidades distribuíram-se pelas outras ciência pós-moderna deverá transformar
duas racionalidades. As ciências sociais os seus processos de investigação, de ensi-
estiveram desde o início fracturadas entre no e de extensão segundo três princípios: a
a racionalidade cognitivo-instrumental e prioridade da racionalidade moral-prática
a racionalidade moral-prática. A ideia da e da racionalidade estético-expressiva so-
unidade do saber universitário foi sendo bre a racionalidade cognitivo-instrumental;
progressivamente substituída pela da he- a dupla ruptura epistemológica e a criação
gemonia da racionalidade cognitivo-ins- de um novo senso comum; a aplicação edi-
trumental e portanto, das ciências da na- ficante da ciência no seio de comunidades
tureza. Estas representam, por excelência, interpretativas17.
o desenvolvimento do paradigma da ciên-
5. A prioridade da racionalidade moral-prática
cia moderna. A crise deste paradigma não
e da racionalidade estético-expressiva so-
pode deixar de acarretar a crise da ideia da
bre a racionalidade cognitivo-instrumental
universidade moderna.
significa antes de mais que as humanidades
3. Estamos numa fase de transição paradig- e as ciências sociais, uma vez transforma-
mática, da ciência moderna para uma ci- das à luz dos princípios referidos, devem
ência pós-moderna (Santos, 1987; 1989b).
Trata-se de uma fase longa e de resultados
imprevisíveis. A universidade só sobrevi- 17 Sobre estes princípios, ver Santos (1989b).
590 Boaventura de Sousa Santos

ter precedência na produção e distribuição As resistências à dupla ruptura epistemoló-


dos saberes universitários. Isto não implica gica serão enormes, tanto mais que a comu-
a marginalização das ciências naturais mas nidade científica não foi treinada para ela.
tão-só a recusa da posição dominante que Compete à universidade criar as condições
hoje ocupam. A natureza é cada vez mais para que a comunidade científica possa
um fenómeno social e, enquanto tal, cada reflectir nos pesados custos sociais que
vez mais importante. Correspondentemen- o seu enriquecimento pessoal e científico
te, o comportamento anti-social mais pe- acarretou para comunidades sociais bem
rigoso tende a ser o que viola as normas mais amplas. A primeira condição consiste
sociais da natureza. A investigação destas em promover o reconhecimento de outras
normas e a formação de uma “personali- formas de saber e o confronto comunicati-
dade de base” socializada nelas deve ser a vo entre elas. A universidade deve ser um
função prioritária da universidade. ponto privilegiado de encontro entre sa-
6. A dupla ruptura epistemológica é a atitude beres. A hegemonia da universidade deixa
epistemológica recomendada nesta fase de de residir no carácter único e exclusivo do
transição paradigmática. A ciência moderna saber que produz e transmite para passar
constituiu-se contra o senso comum. Esta a residir no carácter único e exclusivo da
ruptura, feita fim de si mesma, possibilitou configuração de saberes que proporciona.
um assombroso desenvolvimento científico. 7. A aplicação edificante da ciência é o lado
Mas, por outro lado, expropriou a pessoa prático da dupla ruptura epistemológica. A
humana da capacidade de participar, en- revalorização dos saberes não científicos e
quanto actividade cívica, no desvendamento a revalorização do próprio saber científico
do mundo e na construção de regras práti- pelo seu papel na criação ou aprofunda-
cas para viver sabiamente. Daí a necessida- mento de outros saberes não científicos im-
de de se conceber essa ruptura como meio plicam um modelo de aplicação da ciência
e não como fim, de modo a recolher dela os alternativo ao modelo de aplicação técnica,
seus incontestáveis benefícios, sem renun- um modelo que subordine o know-how téc-
ciar à exigência de romper com ela em favor nico ao know-how ético e comprometa a
da construção de um novo senso comum. comunidade científica existencial, ética e
Da ideia de universidade à universidade de ideias 591

profissionalmente com o impacto da aplica- 9. Na fase de transição paradigmática, a uni-


ção. À universidade compete organizar esse versidade tem de ser também a alternativa
compromisso, congregando os cidadãos e à universidade. O grau de dissidência mede
os universitários em autênticas comunida- o grau de inovação. As novas gerações de
des interpretativas que superem as usuais tecnologias não podem ser pensadas em
interacções, em que os cidadãos são sem- separado das novas gerações de práticas e
pre forçados a renunciar à interpretação da imaginários sociais. Por isso, a universida-
realidade social que lhes diz respeito. de, ao aumentar a sua capacidade de res-
8. A universidade é talvez a única instituição posta, não pode perder a sua capacidade
nas sociedades contemporâneas que pode de questionamento.
pensar até às raízes as razões porque não 10. A diluição da universidade em tudo o que
pode agir em conformidade com o seu no presente aponta para o futuro da socie-
pensamento. É este excesso de lucidez dade exige que a universidade reivindique a
que coloca a universidade numa posição autonomia institucional e a especificidade
privilegiada para criar e fazer proliferar organizacional. A universidade não poderá
comunidades interpretativas. A “abertura promover a criação de comunidades inter-
ao outro” é o sentido profundo da demo- pretativas na sociedade se não as souber
cratização da universidade, uma democra- criar no seu interior, entre docentes, estu-
tização que vai muito para além da demo- dantes e funcionários. Para isso é necessá-
cratização do acesso à universidade e da rio submeter as barreiras disciplinares e
permanência nesta. Numa sociedade cuja organizativas a uma pressão constante. A
quantidade e qualidade de vida assenta em universidade só resolverá a sua crise ins-
configurações cada vez mais complexas de titucional na medida em que for uma anar-
saberes, a legitimidade da universidade só quia organizada, feita de hierarquias suaves
será cumprida quando as actividades, hoje e nunca sobrepostas. Por exemplo, se os
ditas de extensão, se aprofundarem tanto mais jovens, por falta de experiência, não
que desapareçam enquanto tais e passem a podem dominar as hierarquias científicas,
ser parte integrante das actividades de in- devem poder, pelo seu dinamismo, domi-
vestigação e de ensino. nar as hierarquias administrativas.
592 Boaventura de Sousa Santos

As comunidades interpretativas internas Disposições transitórias e ilustrações


só são possíveis mediante o reconhecimen- Perante um longo prazo que pode ser exal-
to de múltiplos curricula em circulação no tante, o curto prazo só será medíocre se se dei-
interior da universidade. Não se trata de xar medir por si mesmo. Para que tal não suce-
oficializar ou de formalizar os curricula da, aponto, a seguir, sem qualquer preocupação
informais, mas tão-só de os reconhecer en- de exaustividade, algumas disposições transi-
quanto tais. Um tal reconhecimento obriga tórias com as respectivas ilustrações. Algumas
a reconceptualizar a identidade dos docen- das disposições são verdadeiramente de curto
tes, dos estudantes e dos funcionários no prazo, outras só o serão aparentemente. O seu
seio da universidade. São todos docentes carácter programático e, por vezes, provoca-
de saberes diferentes. As hierarquias entre tório, visa apenas suscitar o debate sobre os
eles devem ser estabelecidas num contex- problemas que me parecem mais importantes.
to argumentativo. Por isso, as soluções ou ilustrações aqui pro-
11. A universidade deve dispor-se estrategica- postas devem ser entendidas como ficções que
mente para compensar o inevitável declí- ajudam a formular a realidade dos problemas.
nio das suas funções materiais com o for- –– Para as teses, em geral. O grande perigo
talecimento das suas funções simbólicas. para a universidade nas próximas décadas é
Numa sociedade de classes, a universidade o de os dirigentes universitários se limitarem
deve promover transgressões interclassis- a liderar inércias. As grandes transformações
tas. Numa sociedade à beira do desastre não podem ser postas de parte só porque a
ecológico, a universidade deve desenvolver universidade criou a seu respeito o mito da
uma apurada consciência ecológica. Numa irreformalidade. É de prever que a curto pra-
sociedade de festas e prazeres industriali- zo a crise institucional monopolize o esforço
zados, a universidade deve pós-modernizar reformista. A discussão, em anos recentes,
os saberes festivos da pré-modernidade. O dos estatutos das universidades portuguesas
verdadeiro mercado para o saber universi- é disso exemplo. O importante é que tais es-
tário reside sempre no futuro. tatutos sejam concebidos como “disposições
transitórias”, como soluções facilitadoras
dos objectivos acima enunciados.
Da ideia de universidade à universidade de ideias 593

–– Para as teses 1, 2, 3, 4. A universidade deve exemplo, as universidades procurarão cele-


promover a discussão transdisciplinar so- brar contratos de prestação de serviços com
bre a crise do paradigma da modernidade as empresas de televisão a serem pagos atra-
e, em especial, da ciência moderna, sobre vés da concessão de tempo de antena). Ao
a transição paradigmática e sobre os pos- lado dos prémios de investigação no campo
síveis perfis da ciência pós-moderna. Deve da “ciência normal” devem instituir-se pré-
procurar-se que a discussão inclua, desde o mios de investigação no campo da “ciência
início, cientistas naturais, cientistas sociais, revolucionária”.
e investigadores de estudos humanísticos. –– Para a tese 5. A universidade deve garantir
Por se tratar de uma discussão de importân- o desenvolvimento equilibrado das ciências
cia vital para o futuro da universidade, deve naturais, das ciências sociais e das humani-
ser contabilizada como actividade curricular dades, o que pode envolver, no curto prazo,
normal (tempo de investigação e de ensino) uma política de favorecimento activo, tanto
dos docentes e dos investigadores que nela das ciências sociais, como das humanida-
se envolverem. des. Não é viável uma universidade que não
Esta discussão deve começar no seio de cada disponha de amplas oportunidades de inves-
universidade e servir de estímulo à constitui- tigação e de ensino nestas áreas ou as não
ção de várias comunidades interpretativas saiba integrar na investigação e ensino das
com posições diferentes, e até antagónicas, ciências naturais. A ecologia e as belas artes
sobre o tema em discussão. Deverá, poste- podem ser catalisadores privilegiados de tal
riormente, envolver outras universidades, integração. Mas a integração não implica a
instituições de ensino, associações científi- negação de conflitos. O conflito entre as ci-
cas, culturais e profissionais. ências e as humanidades é um dos conflitos
Os primeiros resultados das discussões de- culturais mais marcantes do nosso tempo
verão ser amplamente divulgados para ser- e a universidade não tem querido até agora
virem de premissas para novas discussões enfrentá-lo até às últimas consequências18.
ainda mais amplas. A divulgação será mul-
timédia. Os custos de tal divulgação podem
ser cobertos por meios inovadores (por 18 No mesmo sentido, ver Graff, que acrescenta que
apesar da sua importância o conflito entre ciências e
594 Boaventura de Sousa Santos

Activistas sociais (sobretudo os activistas res culturais) e valorizará adequadamente,


sociais da natureza), artistas e escritores no plano escolar, os seus desempenhos. Em
devem ser uma presença constante nas ac- muitas áreas, será possível substituir as for-
tividades curriculares de investigação e de mas de avaliação normal pela avaliação do
ensino, pois que as normas sociais da natu- aproveitamento social ou artístico dos co-
reza não são dedutíveis da “ciência normal”. nhecimentos adquiridos.
Sendo certo que as actividades ditas “cir- Deve promover-se o envolvimento de docen-
cum-escolares” dos estudantes tendem a tes, investigadores e funcionários nas acti-
privilegiar a intervenção social, humanísti- vidades escolares de tipo circum-escolar. A
ca, artística e literária, a universidade deve atribuição de benefícios profissionais liga-
deixar de as fazer girar à sua volta e, pelo dos a tal envolvimento deve depender da
contrário, tomar medidas para girar em volta avaliação dos desempenhos.
delas. Para isso, a universidade considerará –– Para a tese 6. No curto prazo, a dupla ruptu-
os estudantes nelas envolvidos como docen- ra epistemológica será sempre assimétrica e
tes e investigadores de tipo novo (animado- a universidade estará muito mais à vontade
na execução da primeira ruptura (“ciência
humanidades não faz parte dos temas de investigação normal”) do que na execução da segunda
nem das ciências nem das humanidades: “o conflito não ruptura (“ciência revolucionária”). Nas so-
é estudado porque não é especialidade de ninguém — ciedades com menor nível de desenvolvi-
ou então é estudado (por uns poucos) porque é especia- mento científico, como é o caso de Portu-
lidade de todos” (Graff, 1985: 70). Um desses estudos,
feito pelo lado das humanidades, pode ler-se em Hart- gal, admite-se mesmo que as universidades
man (1979). Reconhecer e assumir esse conflito deve, dêem temporariamente prioridade à primei-
contudo, ser entendido como primeiro passo de uma ra ruptura, desde que o façam tendo sempre
demarche epistemológica muito mais ambiciosa, a du- em vista que se trata da primeira ruptura e
pla ruptura epistemológica, de cujos labores tanto a ci-
não da única ruptura.
ência moderna como as humanidades, afinal, igualmen-
te modernas, emergirão profundamente transformadas. A dupla ruptura epistemológica deverá pau-
Não admira, pois, que a concepção de humanidades que tar-se pelo princípio da equivalência dos sa-
eu defendo esteja nos antípodas da que é defendida por beres às práticas sociais em que são origina-
Allan Bloom (1988).
Da ideia de universidade à universidade de ideias 595

dos. A prática social que produz e se serve do ência que se adquire em práticas situadas
saber científico é uma prática entre outras. nas fronteiras da competência profissional.
A universidade deve participar na definição Para tais situações-limite não há receitas
das virtualidades e dos limites desta prática nem itinerários. Cada um constrói os seus19.
no contexto doutras práticas sociais onde se –– Para as teses 7 e 8. As chamadas activida-
geram outras formas de conhecimento: téc- des de extensão que a universidade assu-
nico, quotidiano, artístico, religioso, onírico, miu sobretudo a partir dos anos sessenta
literário, etc. constituem a realização frustrada de um
As configurações de saberes são sempre, objectivo genuíno. Não devem ser, portanto,
em última instância, configurações de prá- pura e simplesmente eliminadas. Devem ser
ticas sociais. A democratização da univer- transformadas. As actividades de extensão
sidade mede-se pelo respeito do princípio procuraram “extender” a universidade sem
da equivalência dos saberes e pelo âmbito a transformar; traduziram-se em aplicações
das práticas que convoca em configurações técnicas e não em aplicações edificantes da
inovadoras de sentido. A universidade será ciência; a prestação de serviços a outrem
democrática se souber usar o seu saber he- nunca foi concebida como prestação de
gemónico para recuperar e possibilitar o de- serviços à própria universidade. Tais activi-
senvolvimento autónomo de saberes não-he-
gemónicos, gerados nas práticas das classes
sociais oprimidas e dos grupos ou estratos 19 Para mim, as situações-limite mais instrutivas fo-
socialmente discriminados. ram as do período (1970) em que passei entre os favela-
dos do Rio de Janeiro (Santos, 1981), a minha actuação
Um novo senso comum estará em gestação enquanto delegado da Universidade de Coimbra nas re-
quando essas classes e grupos se sentirem lações com o Movimento das Forças Armadas durante
competentes para dialogar com o saber he- o período de 1974-75 (Santos, 1985), o período em que
partilhei, nas aldeias e bairros das ilhas de Cabo Verde,
gemónico e, vice-versa, quando os univer-
a sabedoria jurídica popular dos tribunais de zona (San-
sitários começarem a ter consciência que a tos, 1984) e, acima de tudo, a minha prática de doze
sua sabedoria de vida não é maior pelo facto anos enquanto sócio de uma cooperativa de pequenos
de saberem mais sobre a vida, uma consci- agricultores dos arredores de Coimbra, a Cooperativa
de Produção Agro-Pecuária de Barcouço (COBAR).
596 Boaventura de Sousa Santos

dades estiveram, no entanto, ao serviço de mo funcionários. Devem ser pensadas novas


um objectivo genuíno, o de cumprir a “res- formas de “serviço cívico” em associações,
ponsabilidade social da universidade”, um cooperativas e comunidades, etc.
objectivo cuja genuinidade, de resto, reside A avaliação destas actividades deve dar
no reconhecimento da tradicional “irrespon- atenção privilegiada ao desempenho do
sabilidade social da universidade”. know-how ético, à análise dos impactos e
Deste núcleo genuíno, e por pequenos pas- dos efeitos perversos e sobretudo à apren-
sos, se deve partir para transformar as ac- dizagem concreta de outros saberes no pro-
tividades de extensão até que elas trans- cesso de “extensão”.
formem a universidade. O envolvimento da O aprofundamento deste conteúdo edifican-
universidade com a indústria na luta pelos te numa aplicação ainda predominantemen-
acréscimos de produtividade não deve ser te técnica deve prosseguir com a abertura
enjeitado, mas os serviços a prestar devem preferencial da universidade (das suas salas
ter sempre um conteúdo de investigação for- de aula e dos seus laboratórios, das suas bi-
te e os benefícios financeiros que eles pro- bliotecas e das suas instalações de recreio)
porcionam só em pequena medida devem ser aos membros ou participantes das associa-
atribuídos aos docentes ou investigadores ções ou acções sociais em que a universida-
directamente envolvidos e, pelo contrário, de tenha decidido envolver-se. A avaliação
devem engrossar um fundo comum com que desta abertura deverá ser feita de modo a
a universidade financia prestações de servi- premiar tanto os processos em que a compe-
ços em áreas ou a grupos sociais sem capaci- tência em saberes não científicos se sabe en-
dade de remuneração. Deve evitar-se a todo riquecer enquanto tal no contacto comuni-
o custo que os “serviços à comunidade” se cativo e argumentativo com a competência
reduzam a serviços à indústria. A universida- em saber científico, como os processos em
de deverá criar espaços de interacção com que a competência em saberes científicos
a comunidade envolvente, onde seja possível se sabe enriquecer enquanto tal no contacto
identificar eventuais actuações e definir prio- comunicativo e argumentativo com a com-
ridades. Sempre que possível, as actividades petência em saberes não científicos.
de extensão devem incluir estudantes e mes-
Da ideia de universidade à universidade de ideias 597

–– Para as teses 9 e 10. A universidade é a insti- em que a memória da inovação esteja ain-
tuição que nas sociedades contemporâneas da presente. A promoção das comunidades
melhor pode assumir o papel de empresá- internas e o reconhecimento dos curricula
rio schumpeteriano, o empreendedor cujo informais visa formar uma universidade a
sucesso reside na “capacidade de fazer as várias vozes e com múltiplas aberturas para
coisas diferentemente” (Schumpeter, 1981: coligações alternativas. Sem estas, a autono-
131 e ss.). Com o aumento da complexida- mia da universidade pode ser o veículo da
de social e da interdependência entre os di- sua submissão a interesses sectoriais domi-
ferentes subsistemas sociais, os riscos e os nantes, e, como tal, afeitos ao que existe e
custos da inovação social (industrial ou ou- hostis à inovação social. O medo que isto
tra) serão cada vez maiores e cada vez mais possa estar a ocorrer na universidade portu-
incomportáveis para as organizações sociais guesa não é inverosímil.
e políticas que a têm promovido, sejam elas –– Para a tese 11. A mera permanência insti-
os partidos, os sindicatos ou as empresas. tucional da universidade faz com que a sua
A autonomia institucional da universidade, existência material tenha uma dimensão sim-
o facto de dispor de uma população signi- bólica particularmente densa. Esta dimensão
ficativa relativamente distanciada das pres- é um recurso inestimável, mesmo que os
sões do mercado, das prestações sociais e símbolos em que se tem traduzido devam ser
políticas, e ainda o facto de essa população substituídos. Numa sociedade desencantada,
estar sujeita a critérios de eficiência muito o re-encantamento da universidade pode ser
específicos e relativamente flexíveis, fazem uma das vias para simbolizar o futuro. A vida
com que a universidade tenha potencialida- quotidiana universitária tem um forte com-
des para ser um dos equivalentes funcionais ponente lúdico que favorece a transgressão
do empreendedor liquidado pela crescente simbólica do que existe e é racional só por-
rigidez social. que existe. Da transgressão igualitária, à cria-
Para que tal potencialidade seja concretiza- ção e satisfação de necessidades expressivas
da, a universidade tem de fazer coligações e ao ensino-aprendizagem concebido como
políticas com os grupos e as organizações prática ecológica, a universidade organizará
festas do novo senso comum. Estas festas se-
598 Boaventura de Sousa Santos

rão configurações de alta cultura, cultura po- Chaui, M. e Giannotti, J. A. 1987 “Marilena e
pular e de cultura de massas. Através delas, Giannotti debatem rumos da Universidade”
a universidade terá um papel modesto mas in Folha de São Paulo, 4 de janeiro.
importante no re-encantamento da vida co- Connor, A. I.; Wylie, J. e Young, A. 1986
lectiva sem o qual o futuro não é apetecível, “Academic-industry liaison in the United
mesmo se viável. Tal papel é assumidamente Kingdom: economic perspectives” in
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A universidade no século XXI
Para uma reforma democrática
e emancipatória da universidade*

Introdução te aos desafios com que se defronta no limiar


do século XXI.
O que aconteceu nestes últimos vinte anos?
Como caracterizar a situação em que nos
encontramos? Quais as respostas possíveis Os últimos vinte anos
aos problemas que a universidade enfrenta Cumpriu-se, mais do que eu esperava, a pre-
nos nossos dias? Procurarei responder a estas visão que fiz há quase vinte anos.
três perguntas no que se segue. Na primeira Apesar de as três crises estarem intimamen-
parte, procederei à análise das transforma- te ligadas e só poderem ser enfrentadas con-
ções recentes no sistema de ensino superior juntamente e através de vastos programas de
e o impacto destas na universidade pública. acção gerados dentro e fora da universidade,
Na segunda parte, identificarei e justificarei os previa (e temia) que a crise institucional vies-
princípios básicos de uma reforma democrá- se a monopolizar as atenções e os propósitos
tica e emancipatória da universidade pública, reformistas. Assim sucedeu. Previa também
ou seja, de uma reforma que permita à univer- que a concentração na crise institucional pu-
sidade pública responder criativa e eficazmen- desse levar à falsa resolução das duas outras
crises, uma resolução pela negativa: a crise de
hegemonia, pela crescente descaracterização
* Extraído de Santos, B. de Sousa 2013 “A universi- intelectual da universidade; a crise da legitimi-
dade no século XXI. Para uma reforma democrática e
emancipadora da universidade” in Pela mão de Alice.
dade, pela crescente segmentação do sistema
O social e o político na pós-modernidade (Coimbra: universitário e pela crescente desvalorização
Almedina) pp. 357-414. dos diplomas universitários, em geral. Assim
602 Boaventura de Sousa Santos

sucedeu também. Há, pois, que investigar o justiça, decidiu reduzir o seu compromisso
porquê de tudo isto. político com as universidades e com a educa-
A concentração na crise institucional foi fa- ção em geral, convertendo esta num bem que,
tal para a universidade e deveu-se a uma plura- sendo público, não tem de ser exclusivamente
lidade de factores, alguns já evidentes no início assegurado pelo Estado, a universidade públi-
da década de noventa, outros que ganharam ca entrou automaticamente em crise institucio-
um peso enorme no decorrer da década. A cri- nal. Se esta existia antes, aprofundou-se.
se institucional era e é, desde há pelo menos Pode dizer-se que nos últimos trinta anos a
dois séculos, o elo mais fraco da universidade crise institucional da universidade na grande
pública porque a autonomia científica e peda- maioria dos países foi provocada ou induzida
gógica da universidade assenta na dependência pela perda de prioridade do bem público uni-
financeira do Estado. Enquanto a universidade versitário nas políticas públicas e pela conse-
e os seus serviços foram um inequívoco bem quente secagem financeira e descapitalização
público que competia ao Estado assegurar, esta das universidades públicas. As causas e a sua
dependência não foi problemática, à semelhan- sequência variaram de país para país2.
ça do que se passa, por exemplo, com o sistema Em países que ao longo das últimas três dé-
judicial, em que a independência dos tribunais cadas viveram em ditadura, a indução da crise
não é afectada pelo facto de serem financiados
pelo Estado1. No momento, porém, em que o
Estado, ao contrário do que se passou com a 2 No caso do Brasil, o processo expansionista de
industrialização, quase totalmente assente no endivida-
mento externo, entre 1968 e 1979, conduziu, sobretudo
1 Há sistemas diferentes de financiamento do sistema depois de 1975, a uma profunda crise financeira cujos
judicial e alguns garantem mais independência — como, efeitos se tornaram particularmente graves a partir de
por exemplo, no caso em que o sistema judicial tem po- 1981-1983 e que se prolonga até hoje. A crise financeira
deres para formular o seu próprio orçamento e o apre- do Estado repercutiu-se na universidade pública, tanto
sentar ao Parlamento, como sucede no Brasil ao contrá- mais que simultaneamente aumentou a demanda social
rio do que ocorre em Portugal. A reflexão política sobre pela expansão da educação básica. Sobre a crise da uni-
a relação entre independência e financiamento obrigaria versidade brasileira, e suas especificidades no contexto
a identificar as diferenças entre lugares que os tribunais da crise da universidade latino-americana, ver a exce-
e as universidades ocupam na reprodução do Estado. lente análise de Avritzer, 2002.
a universidade no século XXI 603

institucional teve duas razões: a de reduzir a financeira das universidades públicas. Tratou-
autonomia da universidade até ao patamar ne- -se de uma autonomia precária e até falsa:
cessário à eliminação da produção e divulga- porque obrigou as universidades a procurar
ção livre de conhecimento crítico3; e a de pôr a novas dependências bem mais onerosas que a
universidade ao serviço de projectos moderni- dependência do Estado e porque a concessão
zadores, autoritários, abrindo ao sector priva- de autonomia ficou sujeita a controlos remotos
do a produção do bem público da universidade estritamente calibrados pelos Ministérios das
e obrigando a universidade pública a compe- Finanças e da Educação. Assim, da passagem
tir em condições de concorrência desleal no da ditadura para a democracia correram, por
emergente mercado de serviços universitários. debaixo das manifestas rupturas, insuspeita-
Nos países democráticos, a indução da crise das continuidades.
esteve relacionada com esta última razão, so- A indução da crise institucional por via da
bretudo a partir da década de oitenta, quando crise financeira, acentuada nos últimos vinte
o neoliberalismo se impôs como modelo global anos, é um fenómeno estrutural decorrente
do capitalismo. Nos países que neste período da perda de prioridade da universidade públi-
passaram da ditadura à democracia, a elimi- ca entre os bens públicos produzidos pelo Es-
nação da primeira razão (controlo político de tado4. O facto de a crise institucional ter tido
autonomia) foi frequentemente invocada para como motivo próximo a crise financeira não
justificar a bondade da segunda (criação de um significa que as suas causas se reduzam a esta.
mercado de serviços universitários). Pelo contrário, há que perguntar pelas causas
Nestes países, a afirmação da autonomia das
universidades foi de par com a privatização do
4 Como voltarei a acentuar adiante, não quero com
ensino superior e o aprofundamento da crise
isto ser entendido como estando a subscrever uma teo-
ria conspiratória do Estado contra a universidade públi-
ca. Verificada a perda de prioridade — o que basta para
3 No caso do Brasil é discutível até que ponto a dita- o argumento que estou a desenvolver — há que averi-
dura militar afectou a autonomia universitária — sobre- guar os factores que levaram a universidade a perder a
tudo em comparação com o que aconteceu no Chile ou corrida na luta pelos fundos do Estado num contexto de
na Argentina — e se a afectou uniformemente ao longo maior competição, provocado pela redução global nos
de todo o período em que durou. fundos e pelo aumento das demandas sociais.
604 Boaventura de Sousa Santos

da própria crise financeira. A análise destas re- e que a verdadeira alternativa está na criação
velará que a prevalência da crise institucional do mercado universitário5. O modo selvagem e
foi o resultado de nela se terem condensado o desregulado como este mercado emergiu e se
agravamento das duas outras crises, a de he- desenvolveu são a prova de que havia a favor
gemonia e a de legitimidade. E neste domínio dele uma opção de fundo. E a mesma opção
houve, nos últimos anos, desenvolvimentos explicou a descapitalização e desestruturação
novos em relação ao quadro que descrevi no da universidade pública a favor do emergente
início da década de noventa. Passo a indicá-los. mercado universitário com transferências de
A perda de prioridade na universidade públi- recursos humanos que, por vezes, configuram
ca nas políticas públicas do Estado foi, antes um quadro de acumulação primitiva por parte
de mais, o resultado da perda geral de priori- do sector privado universitário à custa do sec-
dade das políticas sociais (educação, saúde, tor público6.
previdência) induzida pelo modelo de desen-
volvimento económico conhecido por neolibe-
ralismo ou globalização neoliberal que, a partir 5 Como mostrarei adiante, a ideia da irreformabili-
da década de oitenta, se impôs internacional- dade da universidade tem uma ponta de verdade que
aliás vem de longe. No caso português (que nessa altu-
mente. Na universidade pública ele significou ra também era brasileiro), a reforma da Universidade
que as debilidades institucionais identificadas de Coimbra levada a cabo pelo Marquês de Pombal em
— e não eram poucas —, em vez de servirem 1772 foi feita “a partir de fora” pelo entendimento que o
de justificação a uma vasto programa político- Marquês tinha de que a universidade, entregue ao cor-
porativismo dos lentes (como hoje diríamos), nunca se
-pedagógico de reforma da universidade públi-
reformaria por si só. As universidades criam inércias
ca, foram declaradas insuperáveis e utilizadas como quaisquer outras instituições e, para além disso,
para justificar a abertura generalizada do bem são dotadas de um valor social — ligado à produção
público universitário à exploração comercial. de conhecimento — que facilmente sobrepuja o valor
Apesar das declarações políticas em contrário real (em termos de produção e de produtividade) do
conhecimento efectivamente produzido por alguns dos
e de alguns gestos reformistas, subjacente a
universitários.
este primeiro embate da universidade com o
6 No caso do Brasil, este processo acelerou-se com
neoliberalismo está a ideia de que a universida-
o sistema privilegiado de aposentadorias do sector
de pública é irreformável (tal como o Estado) público que facultava aos professores universitários
a universidade no século XXI 605

Nalguns países, havia uma tradição de uni- nas universidades europeias medievais. Depois
versidades privadas sem fins lucrativos, as da segunda guerra mundial, traduziu-se na for-
quais, aliás, com o tempo, tinham assumido mação, ao nível da pós-graduação, de estudan-
funções muito semelhantes às públicas e goza- tes dos países periféricos e semiperiféricos nas
vam e gozam de estatuto jurídico híbrido, entre universidades dos países centrais e, em tempos
o privado e o público. Também elas foram ob- mais recentes, assumiu ainda outras formas
jecto da mesma concorrência por se considerar (por exemplo, parcerias entre universidades de
que a sua natureza não lucrativa não permitia a diferentes países), algumas delas de orientação
sua expansão. A opção foi, pois, pela mercado- comercial. Nos últimos anos, porém, avançou-
rização da universidade. Identifico neste pro- -se para um novo patamar. A nova transnacio-
cesso duas fases. Na primeira, que vai do início nalização é muito mais vasta que a anterior e a
da década de oitenta até meados da década de sua lógica, ao contrário desta, é exclusivamen-
noventa, expande-se e consolida-se o mercado te mercantil.
nacional universitário. Na segunda, ao lado do Os dois processos marcantes da década —
mercado nacional, emerge com grande pujança o desinvestimento do Estado na universidade
o mercado transnacional da educação superior pública e a globalização mercantil da univer-
e universitária, o qual, a partir do final da dé- sidade — são as duas faces da mesma moeda.
cada, é transformado em solução global dos São os dois pilares de um vasto projecto glo-
problemas da educação por parte do Banco bal de política universitária destinado a mudar
Mundial e da Organização Mundial do Comér- profundamente o modo como o bem público
cio. Ou seja, está em curso a globalização neo- da universidade tem sido produzido, transfor-
liberal da universidade. Trata-se de um fenóme- mando-o num vasto campo de valorização do
no novo. É certo que a transnacionalização das capitalismo educacional. Este projecto, que se
trocas universitárias é um processo antigo, ali- pretende de médio e longo prazo, comporta
ás, quase matricial, porque visível desde início diferentes níveis e formas de mercadorização
da universidade. Das formas tratarei adiante.
Quanto aos níveis, é possível distinguir dois.
aposentar-se precocemente (milhares deles antes de
O primeiro nível de mercadorização consiste
completar 50 anos) e, na sequência, “migrar” para uma
universidade privada. em induzir a universidade pública a ultrapas-
606 Boaventura de Sousa Santos

sar a crise financeira mediante a geração de áreas da vida social. A educação, tal como saú-
receitas próprias, nomeadamente através de de, tal como o ar que respiramos estão sujeitos
parcerias com o capital, sobretudo industrial. a essa lógica que só não é inelutável na medida
Neste nível, a universidade pública mantém em que os actores sociais lhe fizerem frente,
a sua autonomia e a sua especificidade insti- explorando as suas contradições, aumentando
tucional, privatizando parte dos serviços que os custos políticos da sua aplicação. A segun-
presta. O segundo nível consiste em eliminar da nota diz respeito ao processo histórico que
tendencialmente a distinção entre universida- vulnerabilizou universidade pública e a tornou
de pública e universidade privada, transfor- presa fácil da valorização capitalista. Nesse
mando a universidade, no seu conjunto, numa processo participaram certamente forças so-
empresa, uma entidade que não produz apenas ciais externas, hostis à universidade pública,
para o mercado, mas que se produz a si mes- mas não podemos ocultar ou minimizar o pa-
ma como mercado, como mercado de gestão pel do “inimigo interno”, o facto de as universi-
universitária, de planos de estudo, de certifica- dades se terem isolado socialmente pelo modo
ção, de formação de docentes, de avaliação de como contemporizaram com a mediocridade
docentes e estudantes. Saber se e quando este e a falta de produtividade de muitos docentes;
segundo nível for atingido ainda fará sentido pela insensibilidade e arrogância que revela-
falar de universidade como bem público é uma ram na defesa de privilégios e de interesses
questão retórica. corporativos socialmente injustos; pela inefi-
Vejamos cada um dos pilares do vasto projec- ciência por vezes aberrante no uso dos meios
to político-educacional em curso. Antes disso, disponíveis, tornando-se presa fácil de buro-
porém, duas notas de precaução. A primeira é cracias rígidas, insensatas e incompreensíveis;
que este projecto não deve ser entendido como pela falta de democracia interna e a sujeição a
resultado de uma qualquer teoria da conspi- interesses e projectos partidários que, apesar
ração contra a universidade pública. Trata-se, de minoritários no seio da comunidade univer-
outrossim, de uma componente de um proces- sitária, se impuseram pela força organizativa
so bem mais amplo, a incessante necessidade que souberam mobilizar; e, finalmente, pela
de submeter à valorização capitalista — trans- apatia, o cinismo e o individualismo com que
formando utilidades em mercadorias — novas muitos docentes passaram ao lado destas reali-
a universidade no século XXI 607

dades como se elas e a instituição que as vivia dos os países europeus, um sector privado não
não lhe dissessem respeito. Como ficará claro universitário dirigido para o mercado de tra-
ao longo deste texto, a defesa da universidade balho. Este facto levou as universidades a res-
pública só faz sentido se for concomitante de ponder com a modificação estrutural dos seus
uma profunda reforma da universidade pública programas e com o aumento da variedade des-
que actualmente conhecemos. tes. Nos EUA, onde as universidades privadas
ocupam o topo da hierarquia, as universidades
A descapitalização da públicas foram induzidas a buscar fontes alter-
universidade pública nativas de financiamento junto de fundações,
A crise da universidade pública por via da no mercado e através do aumento dos preços
descapitalização é um fenómeno global, ainda das matrículas. Hoje, em algumas universida-
que sejam significativamente diferentes as suas des públicas norte-americanas o financiamento
consequências no centro, na periferia e na se- estatal não é mais que 50% do orçamento total7.
miperiferia do sistema mundial. Na periferia, onde a busca de receitas alter-
Nos países centrais, a situação é diferencia- nativas no mercado ou fora dele é virtualmente
da. Na Europa onde o sistema universitário é impossível, a crise atinge proporções catastró-
quase totalmente público, a universidade pú- ficas. Obviamente que os males vinham de trás,
blica tem tido, em geral, poder para reduzir o mas agravaram-se muito na última década com
âmbito da descapitalização ao mesmo tempo a crise financeira do Estado e os programas de
que tem desenvolvido a capacidade para gerar ajuste estrutural. Um relatório da UNESCO de
receitas próprias através do mercado. O êxito 1997 sobre a maioria das universidades em Áfri-
desta estratégia depende em boa medida do
poder da universidade pública e seus aliados 7 Este fenómeno assume diversas formas noutros
políticos para impedir a emergência significati- países. Por exemplo, no Brasil e em Portugal estão a
va do mercado das universidades privadas. Em proliferar fundações, com estatuto privado, criadas
Espanha, por exemplo, essa estratégia teve êxi- pelas universidades públicas para gerar receitas atra-
vés da venda de serviços, alguns dos quais (cursos de
to até agora, enquanto em Portugal fracassou especialização) competem com os que devem prestar
totalmente. Deve, no entanto, ter-se em conta gratuitamente. Tais receitas são, por vezes, utilizadas
que, ao longo da década, emergiu, em quase to- em complementos salariais.
608 Boaventura de Sousa Santos

ca traçava um quadro dramático de carências de O caso do Brasil é representativo da tentati-


todo o tipo: colapso das infra-estruturas, ausên- va de aplicar a mesma lógica na semiperiferia
cia quase total de equipamentos, pessoal docen- e, por ser bem conhecido, dispenso-me de o
te miseramente remunerado e, por isso, desmo- descrever9. Basta referir o relatório do Banco
tivado e propenso à corrupção, pouco ou nulo Mundial de 2002 onde se assume que não vão
investimento em pesquisa. O Banco Mundial (isto é, que não devem) aumentar os recursos
diagnosticou de modo semelhante a situação e, públicos na universidade e que, por isso, a so-
caracteristicamente, declarou-a irremediável. lução está na ampliação do mercado univer-
Incapaz de incluir nos seus cálculos a impor- sitário, combinada com a redução dos custos
tância da universidade na construção dos pro- por estudante (que, entre outras coisas, serve
jectos de país e na criação de pensamento crí- para manter a pressão sobre os salários de do-
tico e de longo prazo, o Banco entendeu que as centes) e com a eliminação da gratuidade do
universidades africanas não geravam suficien- ensino público, tal como está agora a ocorrer
te “retorno”. Consequentemente, impôs aos em Portugal10.
países africanos que deixassem de investir na
universidade, concentrando os seus poucos re-
cursos no ensino primário e secundário e per- Daqui a concluir-se que o Sul não tem direito a ter pro-
mitissem que o mercado global de educação dução científica própria vai um passo. Sobre a universi-
dade em África com especial incidência em Angola ver
superior lhes resolvesse o problema da univer-
Kajibanga, 2000. Ver também Meneses, 2005.
sidade. Esta decisão teve um efeito devastador
9 Na defesa da universidade pública no Brasil tem-se
nas universidades dos países africanos8.
destacado Marilena Chauí. Ver, por último, Chauí, 2003.
Importante também Buarque, 1994, e Trindade, 1999.
8 A política do Banco Mundial para o ensino superior Ver também Avritzer, 2002.
em África teve várias vertentes. Uma delas foi a criação 10 À revelia disto, é mister reconhecer que, no caso
de institutos politécnicos anti-generalistas, orientados do Brasil, se é verdade que o governo central não fez
para a formação profissional; a outra consistiu em con- qualquer esforço para expandir o gasto com o ensino
ceber o trabalho universitário como exclusivamente superior na década de noventa, não é menos verdade
trabalho docente, sem espaço para a investigação. O que muitos governos estaduais criaram universidades
pressuposto é que o Sul não tem condições para pro- públicas nesse período (Ceará, Bahia e, mais recente-
dução científica própria nem as terá no médio prazo. mente, Rio Grande do Sul).
a universidade no século XXI 609

Trata-se de um processo global e é a essa es- nomia veio aprofundar a segmentação ou du-
cala que deve ser analisado. O desenvolvimen- alidade dos mercados de trabalho entre países
to do ensino universitário nos países centrais, e no interior de cada país. Veio, por outro lado,
nos trinta ou quarenta anos depois da segunda permitir que, tanto a pool de mão-de-obra quali-
guerra mundial, assentou, por um lado, nos ficada, como a pool de mão-de-obra não quali-
êxitos da luta social pelo direito à educação, ficada, pudesse ser recrutada globalmente — a
traduzida na exigência da democratização primeira, predominantemente através da fuga
do acesso à universidade, e, por outro lado, de cérebros (brain drain) e da subcontratação
nos imperativos da economia que exigia uma (outsourcing) de serviços tecnicamente avan-
maior qualificação da mão-de-obra nos secto- çados, a segunda, predominantemente através
res chave da indústria. A situação alterou-se da deslocalização das empresas e também atra-
significativamente a partir de meados da déca- vés da imigração, muitas vezes clandestina. A
da de setenta com a crise económica que então disponibilidade global de mão-de-obra qualifica-
estalou. A partir de então gerou-se uma contra- da fez com que o investimento na universidade
dição entre a redução dos investimentos pú- pública dos países centrais baixasse de priori-
blicos na educação superior e a intensificação dade e se tornasse mais selectivo em função das
da concorrência entre empresas, assente na necessidades do mercado. Acontece que, neste
busca da inovação tecnológica e, portanto, no domínio, emergiu uma outra contradição entre
conhecimento técnico-científico que a tornava a rigidez da formação universitária e a volatili-
possível e na formação de uma mão-de-obra dade das qualificações exigidas pelo mercado.
altamente qualificada. Essa contradição foi contornada, por um lado,
No que respeita às exigências de mão-de- pela criação de sistemas não universitários de
-obra qualificada, a década de noventa veio formação por módulos e, por outro lado, pela
revelar uma outra contradição: por um lado, o pressão para encurtar os períodos de formação
crescimento da mão-de-obra qualificada ligada universitária e tornar a formação mais flexível e
à economia baseada em conhecimento, por ou- transversal e, finalmente, pela educação perma-
tro, não o decréscimo, mas antes o crescimento nente. Apesar das soluções ad hoc, estas contra-
explosivo de emprego com baixíssimo nível de dições continuaram a agudizar-se enormemente
qualificação. A globalização neoliberal da eco- na década de noventa com um impacto descon-
610 Boaventura de Sousa Santos

certante na educação superior: a universidade, do consumo e, portanto, mediante pagamen-


de criadora de condições para a concorrência e to, o direito à educação sofreu uma erosão
para o sucesso no mercado, transforma-se, ela radical. A eliminação da gratuidade do en-
própria, gradualmente, num objecto de concor- sino universitário e a substituição de bolsas
rência, ou seja, num mercado. de estudo por empréstimos foram os instru-
Para além de certo limite, esta pressão pro- mentos da transformação dos estudantes de
dutivista desvirtua a universidade, até porque cidadãos em consumidores12. Tudo isto em
certos objectivos que lhe poderiam estar mais nome da ideologia da educação centrada no
próximos têm sido esvaziados de qualquer pre- indivíduo e da autonomia individual. Na Aus-
ocupação humanista ou cultural. É o caso da trália, desde 1989 os estudantes universitários
educação permanente, que tem sido reduzida financiam um quarto das despesas anuais com
à educação para o mercado permanente. Do a sua formação e, em 1998, a Inglaterra subs-
mesmo modo, a maior autonomia que foi con- tituiu o sistema de bolsas de estudo pelo de
cedida às universidades não teve por objecti- empréstimos. O objectivo é pôr fim à demo-
vo preservar a liberdade académica, mas criar cratização do acesso à universidade e ao efei-
condições para as universidades se adaptarem to de massificação que ela provocara mesmo
às exigências da economia11. dentro dos fortes limites em que ocorreu. Por
No mesmo processo, com a transformação sua vez, nalguns países centrais as alterações
da universidade num serviço a que se tem demográficas dos últimos trinta anos contri-
acesso, não por via da cidadania, mas por via buem também para abrandamento da pressão
democrática pelo acesso à universidade13. Na
Europa domina hoje a ideia de que entramos
11 Como nada acontece segundo determinações fér-
reas, as universidades públicas podiam ter visto neste
processo uma oportunidade para se libertarem do en-
gessamento administrativo em que se encontravam (e 12 Uma questão distinta é a de saber qual é a qualida-
encontram) mas não o fizerem por estarem minadas de da cidadania quando só os filhos das classes altas
pelo corporativismo imobilista que se aproveita da hos- têm o privilégio de aceder ao ensino gratuito, como tem
tilidade do Estado para não fazer o que sem ela igual- sido o caso do Brasil.
mente não faria. 13 O caso do Brasil é emblemático da pressão oposta.
a universidade no século XXI 611

já num período de pós-massificação, uma como no Sul, mas com consequências muito
ideia com que também se pretende legitimar diversas14. Aliás, através dele, as desigualdades
a mercantilização. Nalguns países europeus entre universidades do Norte e universidades
menos desenvolvidos a pressão pelo acesso do Sul agravam-se enormemente.
continua mas é, de algum modo, suprimida As despesas mundiais com a educação as-
pelos bloqueios a montante da universidade, cendem a 2000 biliões de dólares, mais do
sobretudo no ensino secundário. É o caso de dobro do mercado mundial do automóvel. É,
Portugal onde a taxa de abandono do ensino pois, à partida, uma área aliciante e de grande
médio é uma das mais altas da Europa. potencial para um capital ávido de novas áre-
as de valorização. Desde o início da década de
A transnacionalização noventa, os analistas financeiros têm chamado
do mercado universitário a atenção para o potencial de a educação se
O outro pilar do projecto neoliberal para a transformar num dos mais vibrantes merca-
universidade é a transnacionalização do mer- dos no século XXI. Os analistas da empresa de
cado de serviços universitários. Como disse, serviços financeiros Merril Lynch consideram
este projecto está articulado com a redução que o sector da educação tem hoje caracte-
do financiamento público, mas não se limita a rísticas semelhantes às que a saúde tinha nos
ele. Outros factores igualmente decisivos são: anos setenta: um mercado gigantesco, muito
a desregulação das trocas comerciais em geral; fragmentado, pouco produtivo, de baixo nível
a defesa, quando não a imposição, da solução tecnológico mas com grande procura de tecno-
mercantil por parte das agências financeiras logia, com um grande défice de gestão profis-
multilaterais; e a revolução nas tecnologias sional e uma taxa de capitalização muito baixa.
de informação e de comunicação, sobretudo o
enorme incremento da Internet, ainda que uma
esmagadora percentagem dos fluxos electróni- 14 Por Norte entendo neste texto os países centrais
ou desenvolvidos, quer se encontrem no Norte geográ-
cos se concentre no Norte. Porque se trata de
fico, quer no Sul geográfico, como sucede com a Aus-
um desenvolvimento global, ele atinge a uni- trália e a Nova Zelândia. Por contraposição, o Sul é o
versidade como bem público tanto no Norte conjunto dos países periféricos e semi-periféricos.
612 Boaventura de Sousa Santos

O crescimento do capital educacional tem sido 2. A economia baseada no conhecimento


exponencial e as taxas de rentabilidade são das exige cada vez mais capital humano como
mais altas: 1000 libras esterlinas investidas em condição de criatividade no uso da infor-
1996 valeram 3405 em 2000, ou seja, uma valo- mação, de aumento de eficiência na eco-
rização de 240%, enormemente superior à taxa nomia de serviços e ainda como condição
de valorização do índice geral da bolsa de Lon- de empregabilidade, uma vez que quanto
dres, o FTSE: 65% (Hirtt, 2003: 20). Em 2002, mais elevado for o capital humano, maior
o Fórum EUA-OCDE concluiu que o mercado é a sua capacidade para transferir capaci-
global da educação se estava a transformar dades cognitivas e aptidões nos constantes
numa parte significativa do comércio mundial processos de reciclagem a que a nova eco-
de serviços. nomia obriga.
As ideias que presidem à expansão futura do 3. Para sobreviver, as universidades têm de
mercado educacional são as seguintes: estar ao serviço destas duas ideias mestras
1. Vivemos numa sociedade de informação15. — sociedade de informação e economia
A gestão, a qualidade e a velocidade da in- baseada no conhecimento — e para isso
formação são essenciais à competitividade têm de ser elas próprias transformadas por
económica. Dependentes da mão-de-obra dentro, por via das tecnologias da informa-
muito qualificada, as tecnologias de infor- ção e da comunicação e dos novos tipos de
mação e de comunicação têm a caracterís- gestão e de relação entre trabalhadores de
tica de não só contribuírem para o aumen- conhecimento e entre estes e os utilizado-
to da produtividade, mas também de serem res ou consumidores.
incubadoras de novos serviços onde a edu-
4. Nada disto é possível na constância do pa-
cação assume lugar de destaque.
radigma institucional e político-pedagógico
que domina as universidades públicas. Este
paradigma não permite: que as relações en-
15 Como é fácil de ver, todas estas ideias traduzem o
mundo à luz da realidade dos países centrais. Por exem- tre os públicos relevantes sejam relações
plo, a fractura digital entre o Norte e o Sul mostra que mercantis; que a eficiência, a qualidade
o modo como vive a grande maioria da população mun- e a responsabilização educacional sejam
dial não tem nada a ver com a sociedade de informação.
a universidade no século XXI 613

definidas em termos de mercado; que se mento16. São elas também as que estrutu-
generalize, nas relações professor-aluno, ram o Acordo Geral sobre o Comércio de
a mediação tecnológica (assente na pro- Serviços (GATS) na área da educação ac-
dução e consumo de objectos materiais e tualmente em negociação na Organização
imateriais); que a universidade se abra (e Mundial de Comércio, de que farei menção
torne vulnerável) às pressões dos clientes; adiante. A posição do Banco Mundial na
que a concorrência entre “os operadores do área da educação é talvez das mais ideoló-
ensino” seja o estímulo para a flexibilidade gicas que este tem assumido na última dé-
e adaptabilidade às expectativas dos em- cada (e não têm sido poucas) porque, tra-
pregadores; que a selectividade orientada tando-se de uma área onde ainda dominam
para a busca dos nichos de consumo (leia- interacções não mercantis, a investida não
-se recrutamento de estudantes) com mais pode basear-se em mera linguagem técnica,
alto retorno para o capital investido. como a que impõe o ajuste estrutural17. A
5. Em face disto, o actual paradigma institu- inculcação ideológica serve-se de análises
cional da universidade tem de ser substi- sistematicamente enviesadas contra a edu-
tuído por um paradigma empresarial a que cação pública para demonstrar que a edu-
devem estar sujeitas tanto as universidades cação é potencialmente uma mercadoria
públicas, como as privadas, e o mercado como qualquer outra e que a sua conversão
educacional em que estas intervêm deve em mercadoria educacional decorre da du-
ser desenhado globalmente para poder
maximizar a sua rentabilidade. O favore-
cimento dado às universidades privadas 16 Muitas destas ideias não são originárias dos think
decorre de elas se adaptarem muito mais tanks do Banco Mundial. A importância que o Banco
facilmente às novas condições e impera- assume, neste domínio, nos países periféricos e semi-
periféricos reside no modo como sintetiza estas ideias
tivos. São estas as ideias que presidem à e as transforma em condicionalidades de ajuda ao “de-
reforma da educação proposta pelo Banco senvolvimento”. Ver também Mehta, 2001.
Mundial e mais recentemente à ideia da 17 Em 1998 o Banco Mundial criou um novo organis-
reconversão deste em banco de conheci- mo, a Edinvest, destinado especificamente a promover
a educação privada a todos os níveis.
614 Boaventura de Sousa Santos

pla constatação da superioridade do capi- litem a expansão da educação superior privada


talismo, enquanto organizador de relações enquanto complemento essencial da educação
sociais, e da superioridade dos princípios superior pública18.
da economia neoliberal para potenciar as A transformação da educação superior
potencialidades do capitalismo através da numa mercadoria educacional é um objectivo
privatização, desregulação, mercadoriza- de longo prazo e esse horizonte é essencial
ção e globalização. para compreender a intensificação da transna-
cionalização desse mercado actualmente em
O zelo reformista do Banco dispara em todas curso19. Desde 2000, a transnacionalização ne-
as direcções onde identifica as deficiências da
universidade pública e, nelas, a posição de po- 18 No Brasil, no governo de Fernando Henrique Car-
der dos docentes é um dos principais alvos. A doso, o Ministério da Educação, através do Programa
liberdade académica é vista como um obstácu- de Recuperação e Ampliação dos Meios Físicos das
lo à empresarialização da universidade e à res- Instituições de Ensino Superior e em parceria com o
Banco Nacional de Desenvolvimento Económico e So-
ponsabilização da universidade ante as empre-
cial (BNDES), viabilizou uma linha de financiamento
sas que pretendem os seus serviços. O poder de cerca de R$ 750 milhões para instituições de ensino
na universidade deve deslocar-se dos docentes superior, com recursos provenientes de empréstimo do
para os administradores treinados para promo- Banco Mundial. Estes recursos foram em grande par-
ver parcerias com agentes privados. Aliás, o te canalizados para as universidades privadas. Desde
1999, o BNDES emprestou R$ 310 milhões às univer-
Banco Mundial prevê que o poder dos docentes sidades privadas e apenas R$ 33 milhões às universi-
e a centralidade da sala de aula declinará ine- dades públicas (<universianet.com> e comunicação
xoravelmente à medida que se for generalizan- pessoal de Paulino Motter).
do o uso de tecnologias pedagógicas on line. 19 Para o caso Europeu deve ter-se em mente o pa-
Em consonância com isto, os países periféricos pel do European Round Table of Industrialists (<http://
e semiperiféricos podem contar com a ajuda www.ert.be/>) que ao longo dos anos tem vido a produ-
financeira do Banco dirigida prioritariamente zir relatórios sobre a educação em geral e a educação
universitária em especial. Entre 1987 e 1999, um dos seus
para a promoção da educação superior priva- grupos de trabalho ocupava-se exclusivamente da edu-
da, desde que reduzam o seu financiamento ao cação. A interferência excessiva do ERT na configuração
sector público e criem quadros legais que faci- do processo de Bolonha e a estreiteza das concepções
a universidade no século XXI 615

oliberal da universidade ocorre sob a égide da que não estão a ser satisfeitas; aumento da mo-
Organização Mundial do Comércio no âmbito bilidade de estudantes, docentes e programas;
do Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços incapacidade financeira de os governos satisfa-
(GATS)20. A educação é um dos doze serviços zerem a crescente procura de educação supe-
abrangidos por este acordo e o objectivo des- rior. É este potencial de mercado que o GATS
te é promover a liberalização do comércio de visa realizar mediante a eliminação das barrei-
serviços através da eliminação, progressiva e ras ao comércio nesta área. O GATS distingue
sistemática, das barreiras comerciais. O GATS quatro grandes modos de oferta transnacional
transformou-se em pouco tempo num dos te- de serviços universitários mercantis: oferta
mas mais polémicos da educação superior, transfronteiriça; consumo no superior. É este
envolvendo políticos, universitários e empre- potencial de mercado que o GATS visa realizar
sários. Os seus defensores vêem nele a opor- mediante a eliminação das barreiras ao comér-
tunidade para se ampliar e diversificar a oferta cio nesta área.
de educação e os modos de a transmitir de tal O GATS distingue quatro grandes modos de
modo que se torna possível combinar ganho oferta transnacional de serviços universitários
económico com maior acesso à universidade. mercantis: oferta transfronteiriça; consumo
Esta oportunidade baseia-se nas seguintes con- no estrangeiro; presença comercial; presença
dições: forte crescimento do mercado educa- de pessoas.
cional nos últimos anos, um crescimento ape- A oferta transfronteiriça consiste na pro-
nas travado pelas barreiras nacionais; difusão visão transnacional do serviço sem que haja
de meios electrónicos de ensino e aprendiza- movimento físico do consumidor. Nela se in-
gem; necessidades de mão-de-obra qualificada cluem educação à distância, aprendizagem on
line, universidades virtuais. É por enquanto
um mercado pequeno mas com forte poten-
do saber universitário que o animam — conhecimento cial de crescimento. Um quarto dos estudan-
como inovação quantificável emergindo linearmente de
tes que seguem, a partir do estrangeiro, cur-
investigação orientada para o desenvolvimento econó-
mico — fazem temer o pior sobre o perfil e desempenho sos em universidades australianas fá-lo pela
da universidade pós-Bolonha a médio prazo. Internet. Três grandes universidades norte-
20 Sobre o GATS ver, por exemplo Knight, 2003. -americanas (Columbia, Stanford e Chicago)
616 Boaventura de Sousa Santos

e uma inglesa (London School of Economics) a fim de aí vender os seus serviços. Estão nes-
formaram um consórcio para criar a Cardean te caso os pólos locais ou campi-satélite de
University que oferece cursos no mundo intei- grandes universidades globais e o sistema de
ro pela Internet21. franquia (franchise) contratado com institui-
O consumo no estrangeiro consiste na pro- ções locais. É uma área de grande potencial
visão do serviço através do movimento trans- e é aquela que mais directamente choca com
nacional do consumidor. É esta actualmente a as políticas nacionais de educação, uma vez
grande fatia da transnacionalização mercantil que implica que estas se submetam às regras
da universidade. Um estudo recente da OCDE internacionalmente acordadas para o investi-
calcula que este comércio valia, em 1999, 30 mento estrangeiro.
biliões de dólares. No início de 2000, 514 mil Finalmente, a presença de pessoas consiste
estrangeiros estudavam nos EUA, mais de na deslocação temporária ao estrangeiro de
54% oriundos da Ásia. Só a Índia contribuía fornecedores de serviços sediados num dado
com 42 mil estudantes. Esta área, como qual- país, sejam eles professores ou pesquisadores.
quer das outras, é reveladora das assimetrias Esta é uma área para a qual se prevê um gran-
Norte/Sul. No ano lectivo de 1998/99, apenas de desenvolvimento futuro dada a crescente
707 estudantes norte-americanos estudavam mobilidade de profissionais. A vastidão de pro-
na Índia. jecto de mercadorização da educação está pa-
A terceira área é a presença comercial e tente no seu âmbito: educação primária, secun-
consiste em o produtor privado de educação dária, superior, de adultos e outra. Esta última
superior estabelecer sucursais no estrangeiro categoria residual é importante porque é aqui
que se inclui a transnacionalização de serviços,
de testes de língua, recrutamento de estudan-
21 Outro exemplo é o da Western Governor’s Univer- tes e avaliação de cursos, programas, docentes
sity, uma instituição de ensino on line nascida de uma e estudantes. Não vou entrar nos detalhes da
parceria entre os governadores de alguns estados dos aplicação do GATS sujeita a três princípios: a
EUA e grandes empresas multinacionais das áreas de nação mais favorecida, tratamento nacional e
educação e informação. Outro caso é a Jones Inter-
acesso ao mercado. Se aplicados, sobretudo o
national University, criada pelo magnate da TV cabo,
Glenn Jones. segundo, significarão o fim da educação como
a universidade no século XXI 617

um bem público22. É certo que estão previs- recentes mostram que a maior parte dos paí-
tas excepções, que são possíveis negociações ses ainda não assumiu compromissos na área
e que a liberalização do comércio educacio- da educação superior. Quatro dos países mais
nal será progressiva. Mas o processo está em periféricos do mundo — Congo, Lesoto, Jamai-
curso e julga-se imparável. O GATS é descrito ca e Serra Leoa — assumiram compromissos
como um acordo voluntário, uma vez que se- incondicionais. Impossibilitados de desenvol-
rão os países a decidir os sectores que aceitam ver por si próprios a educação superior, entre-
ser sujeitos às regras do acordo e a definir o gam a fornecedores estrangeiros essa tarefa.
calendário para que tal aconteça. Mas, como Os EUA, a Nova Zelândia e a Austrália são os
é sabido, nesta área, tal como tem acontecido mais entusiastas dos benefícios do GATS por
noutras, os países periféricos e semiperiféri- razões totalmente opostas às anteriores, pois
cos serão fortemente pressionados para assu- são os países mais exportadores de mercado-
mirem compromissos no âmbito do acordo e rias universitárias e, como tal, são os que têm
muitos deles serão forçados a isso como parte mais a ganhar com a eliminação das barreiras
dos pacotes de ajuste estrutural e outros afins comerciais. Dos 21 países que já assumiram
impostos pelo Banco Mundial, pelo FMI e por compromissos na área da educação superior,
países credores ou doadores. são eles os únicos que já apresentaram propos-
O GATS está a transformar-se em mais uma tas de negociação.
condicionalidade e é por isso que ele é tão A União Europeia (UE) assumiu alguns com-
polémico. Será, pois, importante ver o modo promissos mas com limitações e ressalvas. A
como os países estão a reagir ao GATS. Dados estratégia da UE é baseada na ideia de que as
universidades europeias não estão por agora
preparadas para competir em boas condições
22 No momento em que os Estados tiverem que garan-
tir a liberdade de acesso ao mercado universitário em (ou seja, em condições lucrativas) no mercado
condições de igualdade a investidores estrangeiros e transnacional da educação superior. Há, pois,
nacionais, todos os condicionamentos políticos ditados que defendê-las e prepará-las para competir.
pela ideia do bem público nacional serão vulneráveis à É este o sentido político das Declarações da
contestação, sobretudo por parte dos investidores es-
Sorbonne e de Bolonha e das reuniões de se-
trangeiros, que verão neles obstáculos ao livre comér-
cio internacional. guimento que se seguiram. O objectivo é criar
618 Boaventura de Sousa Santos

um espaço universitário europeu que, pese Trata-se de uma posição significativa uma vez
embora as especificidades de cada país — que que a África do Sul exporta serviços educacio-
são de manter, sempre que possível — deve ter nais para o resto do continente. Fá-lo, contudo,
regras comuns quanto às estruturas curricu- no âmbito de acordos bilaterais e num quadro
lares, sistemas de certificação e de avaliação, de mútuo benefício para os países envolvidos e
etc., de modo a facilitar a mobilidade de estu- precisamente fora do regime da política comer-
dantes e professores no interior da Europa e a cial. Esta condicionalidade de benefício mútuo
conferir coerência à oferta europeia quando se e de respeito mútuo está ausente da lógica do
lançar em formas mais avançadas de transna- GATS e por isso ele é recusado, uma recusa ali-
cionalização. Esta estratégia, sendo defensiva, ás assente na experiência da oferta estrangeira
partilha contudo os objectivos da transnacio- de educação superior e da política do Banco
nalização do mercado universitário e, por essa Mundial que a apoia, a qual, segundo os res-
razão, tem sido contestada pelas associações ponsáveis da educação da África do Sul, tem
de universidades europeias e pelas associações tido efeitos devastadores na educação superior
de docentes. Estas pedem aos países europeus do continente. A recusa do GATS baseia-se na
que não assumam nenhum compromisso no ideia de que lhe são estranhas quaisquer con-
âmbito do GATS e propõem em alternativa siderações que não as comerciais e que com
que sejam reduzidos os obstáculos à transna- isso inviabiliza qualquer política nacional de
cionalização da educação (comercial ou não educação que tome a educação como um bem
comercial) através de convenções e agendas público e a ponha ao serviço de um projecto
bilaterais ou multilaterais, mas fora do regime de país23. Um exemplo dado pelo próprio Minis-
de política comercial. tro da Educação da África do Sul — ao tempo,
Entre os países semiperiféricos cito o caso o Professor Kader Asmal — em comunicação
da África do Sul por ser um caso que ilustra ao Portfolio Committee on Trade and Indus-
bem os riscos do GATS. A África do Sul tem try da África do Sul, em 4 de março de 2004,
vindo a assumir uma posição de total reserva
em relação ao GATS: recusa-se a subscrever
23 Outros países africanos têm-se distinguido na defe-
compromissos comerciais na área da educação
sa de projectos nacionais de educação e pesquisa. Por
e incita outros países a que façam o mesmo. exemplo, o Senegal.
a universidade no século XXI 619

ilustra isso mesmo. É sabido que, com o fim do riféricos e mesmo nos países centrais, ainda
apartheid, a África do Sul lançou um vastíssi- que nestes haja mais capacidade de manobra
mo programa contra o racismo nas instituições para resolver os problemas conjunturais. Mas
de educação e que teve, entre os seus alvos para além destes, há problemas estruturais
principais, as chamadas “universidades histo- que são identificáveis globalmente. Embora a
ricamente brancas”, um programa envolvendo expansão e transnacionalização do mercado
uma multiplicidade de acções entre as quais a de serviços universitários dos últimos anos
acção afirmativa no acesso. A luta anti-racista tenham contribuído decisivamente para es-
é assim uma parte central do projecto de país ses problemas, não são a única causa. Algo
que subjaz as políticas de educação. É contra de mais profundo ocorreu e só isso explica
este pano de fundo que o Ministro da Educa- que a universidade, apesar de continuar a ser
ção dá como exemplo de conduta inaceitável o a instituição por excelência de conhecimen-
facto de uma instituição estrangeira se ter pre- to científico, tenha perdido a hegemonia que
tendido instalar na África do Sul, recrutando tinha e se tenha transformado num alvo fácil
especificamente estudantes das classes altas e de crítica social. Penso que na última década
particularmente estudantes brancos. Comen- se começaram a alterar significativamente as
tou o Ministro: “Como podem imaginar, pode relações entre conhecimento e sociedade e as
ser muito profundo o impacto destas agendas alterações prometem ser profundas ao ponto
nos nossos esforços para construir uma educa- de transformarem as concepções que temos
ção superior não-racista na África do Sul (As- de conhecimento e de sociedade. Como disse,
mal, 2003: 51). a comercialização do conhecimento científico
é o lado mais visível dessas alterações. Penso,
Do conhecimento universitário ao no entanto, que, apesar da sua vastidão, elas
conhecimento pluriversitário são a ponta do iceberg e que as transformações
Os desenvolvimentos da última década co- em curso são de sentido contraditório e as im-
locam desafios muito exigentes à universida- plicações são múltiplas, inclusive de natureza
de e especificamente à universidade pública. epistemológica. O conhecimento universitário
A situação é quase de colapso em muitos pa- — ou seja, o conhecimento científico produzi-
íses periféricos e é difícil nos países semipe- do nas universidades ou instituições separadas
620 Boaventura de Sousa Santos

das universidades, mas detentoras do mesmo socialmente, é indiferente ou irrelevante para o


ethos universitário — foi, ao longo do século conhecimento produzido.
XX, um conhecimento predominantemente A organização universitária e o ethos uni-
disciplinar cuja autonomia impôs um processo versitário foram moldados por este modelo
de produção relativamente descontextualizado de conhecimento. Acontece que, ao longo da
em relação às premências do quotidiano das última década, se deram alterações que de-
sociedades. Segundo a lógica deste proces- sestabilizaram este modelo de conhecimento
so, são os investigadores quem determina os e apontaram para a emergência de um outro
problemas científicos a resolver, define a sua modelo. Designo esta transição por passagem
relevância e estabelece as metodologias e os do conhecimento universitário para o conheci-
ritmos de pesquisa. É um conhecimento homo- mento pluriversitário24.
géneo e organizacionalmente hierárquico na Ao contrário do conhecimento universitário
medida em que agentes que participam na sua descrito no parágrafo anterior, o conhecimento
produção partilham os mesmos objectivos de pluriversitário é um conhecimento contextual
produção de conhecimento, têm a mesma for- na medida em que o princípio organizador da
mação e a mesma cultura científica e fazem-no sua produção é a aplicação que lhe pode ser
segundo hierarquias organizacionais bem de- dada. Como essa aplicação ocorre extra-mu-
finidas. É um conhecimento assente na distin- ros, a iniciativa da formulação dos problemas
ção entre pesquisa científica e desenvolvimen- que se pretende resolver e a determinação dos
to tecnológico e a autonomia do investigador critérios da relevância destes é o resultado de
traduz-se numa certa irresponsabilidade social uma partilha entre pesquisadores e utilizado-
deste ante os resultados da aplicação do co-
nhecimento. Ainda na lógica deste processo de
produção de conhecimento universitário a dis- 24 Michael Gibbons e outros (1994) chamaram a esta
tinção entre conhecimento científico e outros transição a passagem de um conhecimento de modo 1
conhecimentos é absoluta, tal como o é a rela- para um conhecimento de modo 2. Sobre as dificulda-
ção entre ciência e sociedade. A universidade des da transição do conhecimento universitário para o
conhecimento pluriversitário, com especial atenção ao
produz conhecimento que a sociedade aplica
caso português, ver a lúcida análise de Estanque e Nu-
ou não, uma alternativa que, por mais relevante nes, 2003.
a universidade no século XXI 621

res. É um conhecimento transdisciplinar que, O conhecimento pluriversitário tem tido a


pela sua própria contextualização, obriga a um sua concretização mais consistente nas par-
diálogo ou confronto com outros tipos de co- cerias universidade-indústria e, portanto, sob
nhecimento, o que o torna internamente mais a forma de conhecimento mercantil. Mas, so-
heterogéneo e mais adequado a ser produzido bretudo nos países centrais e semiperiféricos,
em sistemas abertos menos perenes e de or- o contexto de aplicação tem sido também não
ganização menos rígida e hierárquica. Todas mercantil, e antes cooperativo, solidário, atra-
as distinções em que assenta o conhecimento vés de parcerias entre pesquisadores e sindica-
universitário são postas em causa pelo conhe- tos, organizações não-governamentais, movi-
cimento pluriversitário e, no fundo, é a própria mentos sociais, grupos sociais especialmente
relação entre ciência e sociedade que está em vulneráveis (imigrantes ilegais, desemprega-
causa. A sociedade deixa de ser um objecto das dos, doentes crónicos, idosos, portadores de
interpelações da ciência para ser ela própria HIV/AIDS, etc.), comunidades populares, gru-
sujeita de interpelações à ciência. Esta contra- pos de cidadãos críticos e activos. É um vasto
posição entre estes dois modelos de conheci- conjunto de utilizadores que vai desenvolvendo
mento tem o exagero próprio dos tipos ideais. uma relação nova e mais intensa com a ciência
Na realidade, os conhecimentos produzidos e a tecnologia e que, por isso, exige uma maior
ocupam lugares diferentes ao longo de con- participação na sua produção e na avaliação
tinuum entre os dois pólos extremos, alguns dos seus impactos. Nos países pluriétnicos e
mais próximos do modelo universitário, outros multinacionais, o conhecimento pluriversitá-
mais próximos do modelo pluriversitário. Esta rio está a emergir ainda do interior da própria
heterogeneidade não só desestabiliza a especi- universidade quando estudantes de grupos mi-
ficidade institucional actual da universidade,
como interpela a hegemonia e a legitimidade
desta na medida em que a força a avaliar-se por tem vindo a ocorrer nos países centrais e, muito selec-
critérios discrepantes entre si25. tivamente, nos países semiperiféricos. Mas não excluo
que algumas universidades dos países periféricos sem-
pre tenham produzido a sua própria versão de conhe-
25 Como resulta claro do texto, a passagem do conhe- cimento pluriversitário, antes dele se ter transformado
cimento universitário ao conhecimento pluriversitário em algo que sucede ao conhecimento universitário.
622 Boaventura de Sousa Santos

noritários (étnicos ou outros) entram na uni- universidade à sua capacidade para produzir
versidade e verificam que a sua inclusão é uma conhecimento economicamente útil, isto é,
forma de exclusão: confrontam-se com a tábua comercializável. Por outro lado, uma pressão
rasa que é feita das suas culturas e dos conhe- hiper-publicista social difusa que estilhaça o
cimentos próprios das comunidades donde se espaço público restrito da universidade em
sentem originários. Tudo isso obriga o conhe- nome de um espaço público muito mais amplo
cimento científico a confrontar-se com outros atravessado por confrontos muito mais hetero-
conhecimentos e exige um nível de responsabi- géneos e por concepções de responsabilização
lização social mais elevado às instituições que o social muito mais exigentes26. Esta contraposi-
produzem e, portanto, às universidades. À me- ção entre uma pressão hiper-privatista e uma
dida que a ciência se insere mais na sociedade, pressão hiper-publicista não só tem vindo a de-
esta insere-se mais na ciência. A universidade sestabilizar a institucionalidade da universida-
foi criada segundo um modelo de relações uni- de, como tem criado uma fractura profunda na
laterais com a sociedade e é esse modelo que identidade social e cultural desta, uma fractura
subjaz à sua institucionalidade actual. O conhe- traduzida em desorientação e tacticismo; tradu-
cimento pluriversitário substitui a unilaterali- zida, sobretudo, numa certa paralisia disfarça-
dade pela interactividade, uma interactividade da por uma atitude defensiva, resistente à mu-
enormemente potenciada pela revolução nas dança em nome da autonomia universitária e da
tecnologias de informação e de comunicação. liberdade académica. A instabilidade causada
À luz destas transformações, podemos con- pelo impacto destas pressões contrapostas cria
cluir que a universidade tem vindo a ser posta impasses onde se torna evidente que as exigên-
perante exigências contrapostas, mas com o cias de maiores mudanças vão frequentemente
efeito convergente de desestabilizarem a sua de par com as maiores resistências à mudança.
institucionalidade actual. Por um lado, a pres-
são hiper-privatística da mercantilização do
conhecimento, das empresas concebidas como
consumidoras, utilizadoras e mesmo co-produ- 26 Neste domínio deve ter-se em conta o papel decisi-
vo dos media. Aliás, as relações entre a universidade e
toras do conhecimento científico, uma pressão
os media, não tratadas neste texto, merecem uma refle-
que visa reduzir a responsabilidade social da xão detalhada.
a universidade no século XXI 623

O fim do projecto de país? senvolvimento ou de modernização nacionais,


A passagem do conhecimento universitário protagonizados pelo Estado, que visavam criar
para o conhecimento pluriversitário é, por- ou aprofundar a coerência e a coesão do país
tanto, um processo muito mais amplo que a enquanto espaço económico, social e cultural,
mercantilização da universidade e do conhe- território geo-politicamente bem definido —
cimento por ela produzido. É um processo para o que foi frequentemente preciso travar
mais visível hoje nos países centrais, ainda que guerras de delimitação de fronteiras — dotado
também presente nos semiperiféricos e perifé- de um sistema político considerado adequado
ricos. Mas tanto nestes como nos países peri- para promover a lealdade dos cidadãos ao Es-
féricos teve lugar, ao longo das duas últimas tado e a solidariedade entre cidadãos enquan-
décadas, uma outra transformação altamente to nacionais do mesmo país, um país onde se
desestabilizadora para a universidade, uma procura viver em paz, mas em nome do qual
transformação que, estando articulada com também se pode morrer. Os estudos humanís-
a globalização neoliberal, não tem apenas di- ticos, as ciências sociais, mas, muitas vezes,
mensões económicas nem se reduz à mercanti- também as próprias ciências naturais, foram
lização da universidade. É, pelo contrário, uma orientados para dar consistência ao projecto
transformação eminentemente política. Nestes nacional, criar o conhecimento e formar os
países, a universidade pública — e o sistema quadros necessários à sua concretização. Nos
educacional como um todo — esteve sempre melhores momentos, a liberdade académica
ligada à construção do projecto de país, um e a autonomia universitária foram parte in-
projecto nacional quase sempre elitista que tegrante de tais projectos, mesmo quando os
a universidade devia formar. Isso foi tão evi- criticavam severamente. Este envolvimento foi
dente nas universidades da América Latina no tão profundo que, em muitos casos, se trans-
século XIX ou, no caso do Brasil, já no século formou na segunda natureza da universidade.
XX, como no caso das universidades africanas A tal ponto que, questionar o projecto político
e de várias asiáticas, como é o caso da Índia, nacional, acarretou consigo questionar a uni-
depois da independência em meados do século versidade pública. O defensismo reactivo que
XX. Tratava-se de conceber projectos de de- tem dominado a universidade, nomeadamente
em suas respostas à crise financeira, decorrem
624 Boaventura de Sousa Santos

de a universidade, dotada de uma capacidade e os do capitalismo nacional de que tem estado


reflexiva e crítica que nenhuma outra institui- politicamente dependente.
ção social tem, estar a concluir — com uma O ataque neoliberal teve, pois, por alvo pri-
lucidez que só surpreende os incautos — que vilegiado o Estado nacional e especificamente
deixou de haver projecto nacional e que, sem as políticas económicas e as políticas sociais
ele, não haverá universidade pública27. Efecti- onde a educação tinha vindo a ganhar peso. No
vamente, nos últimos vinte anos, a globaliza- caso da universidade pública, os efeitos des-
ção neoliberal lançou um ataque devastador à te ataque não se limitaram à crise financeira.
ideia de projecto nacional, concebido por ela Repercutiram-se directa ou indirectamente na
como grande obstáculo à expansão do capita- definição de prioridades de pesquisa e de for-
lismo global. Para o capitalismo neoliberal, o mação, não só nas áreas das ciências sociais
projecto nacional legitima lógicas de produção e de estudos humanísticos, como também nas
e de reprodução nacional tendo por referência áreas das ciências naturais, sobretudo nas mais
espaços nacionais, não só heterogéneos entre vinculadas a projectos de desenvolvimento tec-
si, como ciosos dessa heterogeneidade. Acres- nológico28. A incapacitação política do Estado
ce que a caucionar essas lógicas está uma en- e do projecto nacional repercutiu-se numa cer-
tidade política, o Estado nacional, com poder ta incapacitação epistemológica da universi-
de império sobre o território, cuja submissão
a imposições económicas é, à partida, proble-
mática em função dos seus interesses próprios 28 As situações variam de país para país. Por exemplo,
em Portugal o ataque neoliberal só se manifestou nos
dois últimos anos e o seu impacto está ainda por definir.
27 Outra questão, bem distinta, é a de saber-se até que O Brasil tem mantido um elevado nível de financiamen-
ponto a universidade não perdeu, ela própria, a capa- to das ciências sociais. No caso da política científica
cidade para definir um projecto de país, estando agora europeia, 7º Programa-Quadro de Investigação e Desen-
reduzida à capacidade de identificar a sua ausência. As volvimento Tecnológico, que enquadra as actividades
orientações para a reforma da universidade que adiante de I&D a financiar pela Comissão Europeia no período
apresento visam criar as condições para que, no novo 2006-2010, dá uma ênfase maior que o programa-quadro
contexto em que a universidade se encontra, lhe seja anterior às áreas tecnológicas (“plataformas tecnológi-
possível definir, em termos igualmente novos, um pro- cas”, “política espacial”, “investigação em segurança”,
jecto de país e não apenas a falta dele. etc.) (comunicação pessoal de Tiago Santos Pereira).
a universidade no século XXI 625

dade e na criação de desorientação quanto às de acção. De outro modo, não se justificaria o


suas funções sociais. As políticas de autonomia apoio que a diplomacia desses países dá a tais
e de descentralização universitárias, entretan- projectos. É o colonialismo de terceira geração
to adoptadas, tiveram como efeito deslocar o que tem, neste caso, por protagonista as coló-
fulcro dessas funções dos desígnios nacionais nias do colonialismo de segunda geração.
para os problemas locais e regionais. A crise de Para os países periféricos e semiperiféricos
identidade instalou-se no próprio pensamento o novo contexto global exige uma total rein-
crítico e no espaço público universitário — que venção do projecto nacional sem a qual não ha-
ele alimentara e de que se alimentara — posto verá reinvenção da universidade. Como se verá
na iminência de ter de se esquecer de si pró- adiante, não há nesta exigência nada de nacio-
prio para não ter de optar entre, por um lado, nalismo. Há apenas a necessidade de inventar
o nacionalismo isolacionista do qual sempre se um cosmopolitismo crítico num contexto de
distanciara e agora se tornava totalmente ana- globalização neoliberal agressiva e excludente.
crónico, e, por outro lado, uma globalização
que, por efeito de escala, miniaturiza o pensa- Da fala ao écran
mento crítico nacional, reduzindo-o à condição Nesta última década, tão dominada pela mer-
de idiossincrasia local indefesa ante a impará- cantilização, há ainda um terceiro factor, não
vel torrente global. exclusivamente mercantil, responsável pelo
Trabalhando nas águas subterrâneas, esta abalo da universidade. Trata-se do impacto das
falta de projecto de país não sabe afirmar-se se novas tecnologias de informação e comunica-
não através de mal-estar, defensismos e parali- ção na proliferação das fontes de informação
sias. Penso, no entanto, que a universidade não e nas possibilidades de ensino-aprendizagem
sairá do túnel entre o passado e o futuro em à distância. A universidade é uma entidade
que se encontra enquanto não for reconstruído com forte componente territorial bem evidente
o projecto de país. Aliás, é isso precisamente no conceito de campus. Essa territorialidade,
o que está a acontecer nos países centrais. As combinada com o regime de estudos, torna
universidades globais dos EUA, da Austrália e muito intensa a co-presença e a comunicação
da Nova Zelândia actuam no quadro de projec- presencial. As novas tecnologias de informa-
tos nacionais que têm o mundo como espaço ção e de comunicação vêm pôr em causa esta
626 Boaventura de Sousa Santos

territorialidade. Com a conversão das novas as inércias, atadas à ideia de que a universidade
tecnologias em instrumentos pedagógicos, a sabe estar orgulhosamente parada na roda do
territorialidade é posta ao serviço da extra-ter- tempo, não permitirem enfrentar os riscos e
ritorialidade e a exigência da co-presença está maximizar as potencialidades.
a sofrer a concorrência da exigência de estar
on line. O impacto destas transformações na Que fazer?
institucionalidade da universidade é uma ques- Na segunda parte, procurarei identificar al-
tão em aberto. Para já, é sabido que a transna- gumas das ideias-mestras que devem presidir a
cionalização do mercado universitário assenta uma reforma criativa, democrática e emancipa-
nelas e que, ao lado das universidades conven- tória da universidade pública29. Talvez a primei-
cionais, estão a proliferar o ensino à distância e
as universidades virtuais. É também sabido que
esta transformação é responsável por mais uma
29 Ao longo deste texto, quando me refiro à univer-
desigualdade ou segmentação no conjunto glo- sidade pública assumo o seu carácter estatal. Bresser
bal das universidades, a fractura digital. O que Pereira, que foi Ministro da Ciência e Tecnologia e da
falta saber é, por um lado, em que medida estas Administração Federal e Reforma do Estado no gover-
transformações afectarão a pesquisa, a forma- no de Fernando Henrique Cardoso, tem sido um dos
ção e a extensão universitária nos lugares e nos mais destacados defensores da ideia da universidade
pública não-estatal. Não é este o lugar para fazer uma
tempos em que elas se tornarem disponíveis e crítica detalhada desta proposta. Direi apenas que, para
facilmente acessíveis, e, por outro lado, o im- além de ser pouco provável que se possa adoptar com
pacto que terá a sua ausência nos lugares e nos êxito o modelo das universidades norte-americanas em
tempos onde não estiverem disponíveis ou, se contexto semiperiférico, esta proposta contém vários
riscos: assume o fim da gratuidade do ensino público;
disponíveis, dificilmente acessíveis. Ao enume-
aprofunda o desvinculamento do Estado em relação à
rar estas questões em aberto não quero sugerir universidade pública, já que o Estado deixa de ser o seu
uma visão pessimista ou negativa do uso po- financiador exclusivo; aumenta e desregula a competi-
tencial das novas tecnologias da informação e ção entre a universidade pública e a universidade priva-
comunicação por parte das universidades. Pre- da e como esta, ao contrário do que se passa nos EUA,
é de qualidade inferior à universidade pública é natural
tendo apenas salientar que será desastroso se
que o nivelamento se dê por baixo.
a universidade no século XXI 627

ra questão seja a de saber quem são os sujeitos larizados entre processos contraditórios de
das acções que é preciso empreender para en- transnacionalização, a globalização neoliberal
frentar eficazmente os desafios que defrontam a e a globalização contra-hegemónica.
universidade pública. No entanto, para identifi- Este projecto de país tem de resultar de um
car os sujeitos, é necessário definir previamen- amplo contrato político e social desdobrado em
te o sentido político da resposta a tais desafios. vários contratos sectoriais, sendo um deles o
À luz do precedente, torna-se claro que, apesar contrato educacional e, dentro dele, o contrato
de as causas da crise da universidade serem da universidade como bem público. A reforma
múltiplas e algumas delas virem de longa data, tem por objectivo central responder positiva-
elas estão hoje reconfiguradas pela globaliza- mente às demandas sociais pela democratiza-
ção neoliberal e o modo como afectam hoje a ção radical da universidade, pondo fim a uma
universidade reflecte os desígnios desta última. história de exclusão de grupos sociais e seus
Tal como tenho defendido para outras áreas da saberes de que a universidade tem sido prota-
vida social30, o único modo eficaz e emancipa- gonista ao longo do tempo e, portanto, desde
tório de enfrentar a globalização neoliberal é muito antes da actual fase de globalização ca-
contrapor-lhe uma globalização alternativa, pitalista. Se a resposta a esta última tem de ser
uma globalização contra-hegemónica. Globali- hoje privilegiada é apenas porque ela inviabi-
zação contra-hegemónica da universidade en- liza qualquer possibilidade de democratização
quanto bem público significa especificamente o e muito menos de democratização radical. É
seguinte: as reformas nacionais da universida- por esta razão que as escalas nacional e trans-
de pública devem reflectir um projecto de país nacional da reforma se interpenetram. Não é,
centrado em escolhas políticas que qualifiquem pois, possível uma solução nacional sem arti-
a inserção do país em contextos de produção culação global. A natureza política do projecto
e de distribuição de conhecimentos cada vez e do contrato deriva do tipo de articulação que
mais transnacionalizados e cada vez mais po- se busca. O contexto global é hoje fortemen-
te dominado pela globalização neoliberal, mas
não se reduz a ela. Há espaço para articulações
30 Ver Santos, 2000; 2001 (org.); 2003a (org.); 2003b
nacionais e globais baseadas na reciprocidade
(org.); 2004 (org.).
628 Boaventura de Sousa Santos

e no benefício mútuo que, no caso da univer- cial na construção do lugar do país num mundo
sidade, recuperam e ampliam formas de inter- polarizado entre globalizações contraditórias.
nacionalismo de longa duração31. Tais articu- A globalização neoliberal assenta na destrui-
lações devem ser de tipo cooperativo mesmo ção sistemática dos projectos nacionais e, como
quando contêm componentes mercantis, ou estes foram muitas vezes desenhados com a
seja, devem ser construídas fora dos regimes colaboração activa das universidades e dos uni-
de comércio internacional. A nova transnacio- versitários, é de esperar que, da sua perspectiva,
nalização alternativa e solidária assenta agora a universidade pública seja um alvo a abater en-
nas novas tecnologias de informação e de co- quanto não estiver plenamente sintonizada com
municação e na constituição de redes nacio- os seus objectivos. O que está em causa não é
nais e globais onde circulam novas pedagogias, isolar a universidade pública das pressões da
novos processos de construção e de difusão globalização neoliberal, o que, além de ser im-
de conhecimentos científicos e outros, novos possível, podia dar a impressão de que a univer-
compromissos sociais, locais, nacionais e glo- sidade tem estado relativamente isolada dessas
bais. O objectivo consiste em resituar o papel pressões. Ora tal não é o caso e, aliás, pode mes-
da universidade pública na definição e resolu- mo dizer-se que parte da crise da universidade
ção colectiva dos problemas sociais que agora, resulta de ela se ter já deixado cooptar pela glo-
sejam locais ou nacionais, não são resolúveis balização hegemónica. O que está em causa é
sem considerar a sua contextualização global. uma resposta activa à cooptação, em nome de
O novo contrato universitário parte assim da uma globalização contra-hegemónica.
premissa que a universidade tem um papel cru- A globalização contra-hegemónica da uni-
versidade como bem público, que aqui propo-
nho, mantém a ideia de projecto nacional, só
31 Deve ter-se em mente que uma articulação inter-
-universitária não comercial não é, em si mesma, benig- que o concebe de modo não nacionalista ou
na. No passado, muitas articulações desse tipo foram o autárquico. No século XXI só há nações na me-
veículo privilegiado de dominação colonial. No âmbito dida em que há projectos nacionais de qualifi-
da reforma que aqui proponho deve submeter-se a es- cação de inserção na sociedade global.
crutínio todo esse passado colonial. A reforma demo-
Para os países periféricos e semiperiféricos,
crática da universidade fará pouco sentido se não for
também uma reforma anti-colonialista. não há qualificação sem que a resistência à glo-
a universidade no século XXI 629

balização neoliberal se traduza em estratégias A globalização contra-hegemónica da uni-


de globalização alternativa. A dificuldade e, por versidade como bem público é, pois, um pro-
vezes, o drama da reforma da universidade em jecto político exigente que, para ter credibilida-
muitos países reside no facto de ela obrigar a de, tem de saber ultrapassar dois preconceitos
repor a questão do projecto nacional que os contraditórios mas igualmente enraizados: o
políticos dos últimos vinte anos não querem de que a universidade só pode ser reformada
em geral enfrentar, quer porque ela é uma areia pelos universitários e o de que a universidade
na engrenagem da sua rendição ao neolibera- nunca se auto-reformará. Para isso, o projecto
lismo, quer porque a julgam ultrapassada en- tem de ser sustentado por forças sociais dispo-
quanto instrumento de resistência. A universi- níveis e interessadas em protagonizá-lo. O pri-
dade pública sabe que sem projecto nacional meiro protagonista das reformas que proponho
só há contextos globais e estes são demasiados é a sociedade politicamente organizada: grupos
poderosos para que a crítica universitária dos sociais e profissionais, sindicatos, movimen-
contextos não acarrete a descontextualização tos sociais, organizações não-governamentais
da própria universidade. O excesso de lucidez e suas redes, governos locais progressistas,
da universidade permite-lhe denunciar que o interessados em fomentar articulações coo-
rei vai nu e só por isso a reforma da universi- perativas entre a universidade e os interesses
dade será sempre diferente de todas as outras. sociais que representam. Ao contrário do Esta-
Será autoritária ou democrática consoante a do, este protagonista tem historicamente uma
instância política se recusar ou aceitar ver-se relação distante e por vezes mesmo hostil com
ao espelho. Não há meio-termo32. a universidade precisamente em consequência
do elitismo da universidade e da distância que
esta cultivou durante muito tempo em relação
32 Dada a desmoralização da universidade pública,
acredito que muitos não vejam nesta lucidez e muito aos sectores ditos não cultos da sociedade. É
menos “excesso de lucidez”. Outros, sobretudo univer- um protagonista que tem de ser conquistado
sitários, exercitam esse excesso de lucidez contra a por via da resposta à questão da legitimidade,
universidade não vendo nela nada mais que privilégios ou seja, por via do acesso não classista, não ra-
e corporativismos. Com nenhum destes grupos de críti-
cista, não sexista e não etnocêntrico à univer-
cos será possível contar para levar a cabo uma reforma
progressista e democrática da universidade pública. sidade e por todo um conjunto de iniciativas
630 Boaventura de Sousa Santos

que aprofundem a responsabilidade social da ção solidária da universidade. Sem esta opção,
universidade na linha do conhecimento pluri- o Estado nacional acaba por adoptar, mais ou
versitário solidário. menos incondicionalmente, ou por ceder, mais
O segundo protagonista é a própria universi- ou menos relutantemente, às pressões da globa-
dade pública, ou seja, quem nela está interessa- lização neoliberal e, em qualquer caso, transfor-
do numa globalização alternativa. Se o primeiro mar-se-á no inimigo da universidade pública por
protagonista é problemático, este não o é me- mais proclamações que faça em contrário. Dada
nos, o que à primeira vista pode surpreender. A a relação de proximidade e de amor-ódio que o
universidade pública é hoje um campo social Estado manteve com a universidade ao longo do
muito fracturado e no seu seio digladiam-se século XX, as opções tendem a ser dramatizadas.
sectores e interesses contraditórios. É certo Para além destes três protagonistas há nos
que em muitos países, sobretudo periféricos e países semiperiféricos e periféricos um quarto
semiperiféricos, tais contradições são por en- grupo que, não tendo, em geral, condições para
quanto latentes já que o que domina é a posição ser protagonista da reforma que aqui propo-
defensiva da manutenção do status quo e da nho, pode, no entanto, integrar o contrato so-
recusa, quer da globalização neoliberal, quer cial que dará legitimidade e sustentatibilidade
da globalização alternativa. Esta é uma posi- à reforma. Trata-se do capital nacional. É certo
ção conservadora, não por advogar a manuten- que os sectores mais dinâmicos do capital na-
ção do status quo, mas porque, desprovida de cional — os sectores potencialmente mais efi-
alternativas realistas, acabará por ficar refém cazes na construção do contrato social — es-
dos desígnios da globalização neoliberal da tão transnacionalizados e, portanto, integrados
universidade. Os universitários que denunciam na globalização neoliberal hostil ao contrato
esta posição conservadora e, ao mesmo tempo, social. No entanto, o processo de transnaciona-
recusam a ideia da inelutabilidade da globaliza- lização destes sectores nos países periféricos e
ção neoliberal serão os protagonistas da refor- semiperiféricos não ocorre sem contradições e
ma progressista que aqui proponho. a busca de condições que melhorem a sua in-
Finalmente, o terceiro protagonista da res- serção na economia global depende de conhe-
posta aos desafios é o Estado nacional sempre cimento científico, tecnológico ou gerencial
e quando ele optar politicamente pela globaliza- produzido nas universidades.
a universidade no século XXI 631

Nesta medida podem ter interesse em asso- sidade na definição e solução colectivas dos
ciar-se a uma reforma que defenda a univer- problemas sociais, nacionais e globais.
sidade pública, sobretudo nos casos em que
não há alternativas extra-universitárias de pro- Lutar pela definição da crise
dução de conhecimento de excelência. Desta Para sair da sua posição defensiva, a univer-
posição geral sobre a reforma da universidade sidade tem de estar segura que a reforma não
pública e seus protagonistas decorrem os se- é feita contra ela33. A ideia de contrato educa-
guintes princípios orientadores. cional é aqui crucial porque não há contrato
quando há imposições ou resistências inego-
Enfrentar o novo com o novo ciáveis. Para que tal não suceda, é necessário
As transformações da última década foram conhecer em que condições e para quê a uni-
muito profundas e, apesar de terem sido domi- versidade deve sair da posição defensiva. Para
nadas pela mercadorização da educação supe- isso, é necessário revisitar os conceitos de cri-
rior, não se reduziram isso. Envolveram trans- se de hegemonia e de legitimidade. O ataque à
formações nos processos de conhecimento e universidade por parte dos Estados rendidos
na contextualização social do conhecimento. ao neoliberalismo foi de tal maneira maciço
Em face disso, não se pode enfrentar o novo que é hoje difícil definir os termos da crise que
contrapondo-lhe o que existiu antes. Em pri- não em termos neoliberais. Aliás, reside aqui a
meiro lugar, porque as mudanças são irrever- primeira manifestação da perda de hegemonia
síveis. Em segundo lugar, porque o que existiu da universidade. A universidade perdeu a ca-
antes não foi uma idade de ouro ou, se o foi, pacidade de definir a crise hegemonicamente,
foi-o para a universidade sem o ter sido para o isto é, com autonomia mas de modo que a so-
resto da sociedade, e, no seio da própria uni- ciedade se reveja nela. Aliás, é esta perda que
versidade, foi-o para alguns e não para outros.
A resistência tem de envolver a promoção de
alternativas de pesquisa, de formação, de ex- 33 Com isto quero tão só dizer que o espírito da refor-
ma não pode ser o de privatizar a universidade pública.
tensão e de organização que apontem para a Obviamente que a reforma terá de ir contra tudo aquilo
democratização do bem público universitário, que na universidade pública resiste à sua transforma-
ou seja, para o contributo específico da univer- ção num sentido progressista e democrático.
632 Boaventura de Sousa Santos

justifica a nível mais profundo a dominância de de académica e de expertise que impediu de


posições defensivas. É por isso crucial definir trazer para a universidade novos perfis pro-
e sustentar uma definição contra-hegemónica fissionais capazes de lidar criativamente com
da crise. as transformações; incapacidade de articular
Nestes últimos vinte anos, a universidade a preciosa experiência de interacção presen-
sofreu uma erosão talvez irreparável na sua cial com a interacção à distância; uma cultura
hegemonia decorrente das transformações na institucional de perenidade que desvaloriza as
produção do conhecimento, com a transição, mudanças. As reformas devem partir da cons-
em curso, do conhecimento universitário con- tatação da perda de hegemonia e concentrar-
vencional para o conhecimento pluriversitá- -se na questão da legitimidade.
rio, transdisciplinar, contextualizado, interac-
tivo, produzido, distribuído e consumido com Lutar pela definição de
base nas novas tecnologias de comunicação e universidade
de informação que alteraram as relações entre Há uma questão de hegemonia que deve ser
conhecimento e informação, por um lado, e resolvida, uma questão que, parecendo residu-
formação e cidadania, por outro. A universida- al, é central, dela dependendo o modo como a
de não pôde, até agora, tirar proveito destas universidade poderá lutar pela sua legitimida-
transformações e por isso adaptou-se mal a de: é a questão da definição da universidade. O
elas quando não as hostilizou34. Como vimos, grande problema da universidade neste domí-
isso deveu-se a uma pluralidade de factores: nio tem sido o facto de passar facilmente por
crise financeira, rigidez institucional, muitas universidade àquilo que o não é. Isto foi pos-
vezes exigida pelo mesmo Estado que procla- sível devido à acumulação indiscriminada de
ma flexibilidade; uma concepção de liberda- funções atribuídas à universidade ao longo do
século XX. Como elas foram adicionadas sem
articulação lógica, o mercado do ensino supe-
34 Isto não significa que muitas universidades não te- rior pôde auto-designar o seu produto como
nham usado criativamente as novas tecnologias de in-
formação e comunicação para democratizar o acesso ao
universidade sem ter de assumir todas as fun-
conhecimento e, sobretudo, para estreitar as relações ções desta, seleccionando as que se lhe afigu-
com a sociedade. O texto refere-se à tendência geral. raram fonte de lucro e concentrando-se nelas.
a universidade no século XXI 633

As reformas devem partir do pressuposto que educacional, um sistema universitário em que as


no século XXI só há universidade quando há pós-graduações e a pesquisa estejam concentra-
formação graduada e pós-graduada, pesquisa e das numa pequena minoria de universidades.
extensão. Sem qualquer destes, há ensino supe- No que respeita às universidades privadas — no
rior, não há universidade. Isto significa que, em caso de estas quererem manter o estatuto e a de-
muitos países, a esmagadora maioria das univer- signação de universidades — o seu licenciamen-
sidades privadas e mesmo parte das universida- to deve estar sujeito à existência de programas
des públicas não são universidades porque lhes de pós-graduação, pesquisa e extensão sujeitos
falta a pesquisa ou a pós-graduação. A reforma a frequente e exigente monitorização. Tal como
deve, pois, distinguir, mais claramente do que acontece com as universidades públicas, se as
até aqui, entre universidade e ensino superior35. universidades privadas não puderem sustentar
No que respeita às universidades públicas que autonomamente tais programas, devem fazê-lo
o não são verdadeiramente, o problema deve através de parcerias, quer com outras universi-
ser resolvido no âmbito da criação de uma rede dades privadas, quer com universidades públi-
universitária pública, proposta adiante, que pos- cas. A definição do que é universidade é crucial
sibilite às universidades que não podem ter pes- para que a universidade possa ser protegida da
quisa ou cursos de pós-graduação autónomos concorrência predatória e para que a sociedade
fazê-lo em parceria com outras universidades no não seja vítima de práticas de consumo frau-
âmbito da rede nacional ou mesmo transnacio- dulento. A luta pela definição de universidade
nal. Não é sustentável e muito menos recomen- permite dar à universidade pública um campo
dável, do ponto de vista de um projecto nacional mínimo de manobra para poder conduzir com
eficácia a luta pela legitimidade.

35 Este texto aborda exclusivamente a questão da uni- Reconquistar a legitimidade


versidade e só por isso não trato do papel do ensino Afectada irremediavelmente a hegemonia, a
superior não universitário. Atribuo a este último grande legitimidade é simultaneamente mais premen-
importância e apenas me parece que a sua distinção em
relação à universidade deve ser clara para que o ensino
te e mais difícil. A luta pela legitimidade vai as-
superior não universitário não caia na tentação de dedi- sim ser cada vez mais exigente e a reforma da
car energias a tentar passar por aquilo que não é. universidade deve centrar-se nela.
634 Boaventura de Sousa Santos

São cinco as áreas de acção neste domínio: dos segmentos mais altos poucas iniciativas
acesso; extensão; pesquisa-acção; ecologia de tomaram, para além de defenderem os seus
saberes; universidade e escola pública. As duas critérios de acesso, invocando o facto, muitas
primeiras são as mais convencionais, mas terão vezes verdadeiro, que as mais persistentes dis-
de ser profundamente revistas; a terceira tem criminações ocorrem a montante da universi-
sido praticada em algumas universidades latino- dade, a nível de educação primária e secundá-
-americanas e africanas durante alguns perío- ria. É de prever que a transnacionalização dos
dos de maior responsabilidade social por parte serviços de educação superior agrave o fenó-
da universidade; a quarta constitui uma decisiva meno da segmentação porque o transnaciona-
inovação na construção de uma universidade liza. Alguns fornecedores estrangeiros dirigem
póscolonial; a quinta é uma área de acção que a sua oferta para os melhores alunos vindos
teve no passado uma grande presença mas que das escolas secundárias mais elitistas ou vin-
tem de ser hoje totalmente reinventada. dos da graduação das melhores universidades
nacionais. Num sistema transnacionalizado, as
Acesso melhores universidades dos países periféricos
e semiperiféricos, que ocupam o topo da seg-
Na área do acesso, a maior frustração da
mentação nacional, passarão a ocupar os es-
última década foi que o objectivo de demo-
calões inferiores da segmentação global. Das
cratização do acesso não foi conseguido. Na
quatro formas de serviços transnacionalizados,
maioria dos países os factores de discrimina-
o consumo no estrangeiro é um dos mais res-
ção, sejam eles a classe, a raça, sexo ou etnia,
ponsáveis pelo novo brain drain, particular-
continuaram a fazer do acesso uma mistura de
mente evidente na Índia, mas também presente
mérito e privilégio. Em vez de democratização,
nalguns países africanos, como por exemplo
houve massificação e depois, já no período da
no Quénia e no Gana. Entre as ideias-mestras
alegada pós massificação, uma forte segmenta-
por que se deve pautar a área de acesso, distin-
ção do ensino superior com práticas de autênti-
go as seguintes:
co dumping social de diplomas e diplomados,
1. Nos países onde a discriminação no aces-
sem que nenhumas medidas anti-dumping efi-
so à universidade assenta, em boa parte,
cazes tenham sido tomadas. As universidades
nos bloqueios ao nível do ensino básico e
a universidade no século XXI 635

médio, a reforma progressista da univer- cado de trabalho, cada vez mais incerto,
sidade, por contraposição à proposta pelo uma população onerada pela certeza de
Banco Mundial, deve dar incentivos à uni- uma dívida que pode levar 20 anos a saldar.
versidade para promover parcerias activas, As bolsas devem ser concedidas mediante
no domínio pedagógico e científico, com as contrapartidas de trabalho nas actividades
escolas públicas36. universitárias no campus ou fora do cam-
2. A universidade pública deve permanecer pus. Por exemplo, estudantes de licencia-
gratuita e aos estudantes das classes tra- turas poderiam oferecer algumas horas
balhadoras devem ser concedidas bolsas semanais em escolas públicas, como tuto-
de manutenção e não empréstimos37. Se res, ajudando alunos com dificuldades de
não for controlado, o endividamento dos aprendizagem.
estudantes universitários será a prazo uma Nas sociedades multinacionais e pluri-cul-
bomba relógio. Estamos a lançar num mer- turais, onde o racismo, assumido ou não, é
um facto, as discriminações raciais ou ét-
nicas devem ser confrontadas enquanto tal
36 Em vários países há experiências concretas de com programas de acção afirmativa (cotas
colaboração entre as universidades e instituições de e outras medidas) que devem visar, não só
ensino médio e básico. Em Portugal, por exemplo, vá- o acesso, como também o acompanhamen-
rias faculdades e centros de investigação “adoptam” to, sobretudo durante os primeiros anos
algumas instituições para parcerias mais intensas de
colaboração pedagógica e de divulgação científica. O
onde são por vezes altas as taxas de aban-
Programa “Ciência Viva” criado em 1996 tem feito um dono. Sem dúvida que a discriminação ra-
bom trabalho de intermediação entre as universidades cial ou étnica ocorre em conjunção com a
e o ensino médio e básico. Ver adiante a secção sobre discriminação de classe, mas não pode ser
universidade e escola pública. reduzida a esta e deve ser objecto de medi-
37 Talvez seja mais correcto designar a área do aces- das específicas. Na Índia, a discriminação
so como acesso/permanência ou mesmo acesso/perma- de casta é objecto de acção afirmativa, ape-
nência/sucesso, uma vez que o que está em causa é ga-
rantir, não só o acesso, mas também a permanência e o
sar de actuar em conjunção com a discrimi-
sucesso dos estudantes oriundos de classes ou grupos nação de classe e de sexo. Na África do Sul,
sociais discriminados. a discriminação racial é objecto de acção
636 Boaventura de Sousa Santos

afirmativa, apesar de actuar em conjunção ções privadas de ensino superior em troca


com a discriminação de classe. A reforma da manutenção de isenções fiscais e pre-
da universidade deve dar uma centralidade videnciárias já concedidos pelo Estado38.
muito específica às acções contra a discri- De acordo com a proposta do Executivo,
minação racial. Tal como acontece na Ín- as instituições que aderirem ao programa
dia e na África do Sul, tais acções devem deverão destinar pelo menos 10% das suas
estar articuladas com medidas em outras vagas para estudantes de baixa renda e
esferas, como o acesso a empregos públi- professores da rede pública de educação
cos e, em geral, ao mercado de trabalho, básica. A segunda proposta legislativa
vinculando-se ao projecto do país e dando determina que as instituições públicas fe-
testemunho dele. derais de educação superior deverão des-
3. No Brasil, as políticas de acção afirmativa tinar pelo menos 50% das suas vagas para
assumem hoje grande destaque e merecem estudantes das escolas públicas. Estas va-
uma referência especial. Em resposta à gas, por sua vez, deverão ser distribuídas
crescente pressão de movimentos sociais de forma a reflectir a composição étnica
pela democratização do acesso ao ensino de cada unidade da Federação, cabendo
superior, especialmente do movimento ne- às respectivas instituições de educação
gro, o Governo Lula lançou no primeiro se-
mestre de 2004 o programa “Universidade
para Todos” (PROUNI) que preconiza uma 38 Os incentivos fiscais concedidos pelo governo fe-
acção afirmativa baseada em critérios ra- deral às instituições privadas filantrópicas represen-
tam R$ 839,7 milhões ao ano. Este montante refere-se à
ciais e socioeconômicos. Dois projectos de renúncia fiscal. De acordo com a legislação brasileira,
lei elaborados pelo Ministério da Educação as instituições filantrópicas são isentas do recolhimen-
e já encaminhados ao Congresso Nacional to da contribuição previdenciária patronal e outros tri-
definem o escopo e os instrumentos dessa butos federais. Além dos incentivos fiscais, o ensino
nova política de inclusão social no ensino superior privado conta neste ano com uma dotação
de R$ 829 milhões para o programa de Financiamen-
superior. O primeiro projecto prevê bolsa to Estudantil. Desde a sua instituição, em 1999, o Fies
de estudo integral para alunos de baixa já beneficiou cerca de 218 mil estudantes (Folha de S.
renda a conceder pelas próprias institui- Paulo, 12/04/2004).
a universidade no século XXI 637

superior fixar o percentual de vagas a se- de acção afirmativa, a despeito do acumulo


rem preenchidas por estudantes negros e de provas quanto ao seu carácter elitista40
indígenas. Em consonância com o princí- e têm proposto medidas alternativas de in-
pio da autonomia universitária, o projecto clusão social que preservem o critério de
garante latitude para que cada instituição mérito para ingresso no ensino superior41.
determine os critérios de distribuição e de 4. A avaliação crítica do acesso e, portanto,
selecção para o preenchimento das vagas dos obstáculos ao acesso — como, de resto
reservadas a estudantes de baixa renda e a discussão das áreas da extensão e da eco-
grupos raciais sub-representados no ensi- logia de saberes — deve incluir explicita-
no superior. Estas propostas representam
um esforço meritório no sentido de comba-
ter o tradicional o elitismo social da univer- 40 Um estudo recente revelou, por exemplo, que ape-
sidade pública, em parte responsável pela nas uma rua, a Bela Cintra, localizada na região afluente
perda de legitimidade social desta, sendo, dos Jardins, concentra mais ingressantes no vestibular
por isso, de saudar. Têm, no entanto, en- da USP de 2004 do que 74 bairros periféricos da zona
frentado muita resistência. O debate tem sul. Os bairros da elite de São Paulo, que representam
19,5% da população total do município, respondem por
incidido no tema convencional da contra- 70,3% dos ingressantes da USP, enquanto os bairros pe-
posição entre democratização do acesso e riféricos, que concentram 80,5% da população, ocupam
a meritocracia mas também em temas no- apenas 29,7% das vagas da universidade (Folha de S.
vos, como o do método da reserva de vagas Paulo, 30/5/2004). O estudo foi realizado pelo Núcleo
de Apoio a Estudos da Graduação (Naeg), vinculado ao
e as dificuldades em aplicar o critério racial
Instituto de Matemática e Estatística da USP. Os resul-
numa sociedade altamente miscigenada39. tados completos estão disponíveis na página do Naeg
Algumas das universidades públicas mais (<www.naeg.prg.usp.br>).
prestigiadas e competitivas, como a Uni- 41 É o caso da USP que, em vez de facilitar o acesso,
versidade de São Paulo (USP), têm resis- se propõe “reforçar a competitividade dos jovens po-
tido à pressão social em prol de políticas bres”. Para isso, está abrindo cursos preparatórios para
o vestibular destinados a alunos de escolas públicas e
expandindo a isenção da taxa de inscrição no vestibu-
39 Quanto ao tema do critério racial, o projecto do lar para alunos com carências económicas (Folha de S.
governo propõe o critério de autodeclaração. Paulo, 30/5/2004).
638 Boaventura de Sousa Santos

mente o carácter colonial da universidade a degradação ambiental, na defesa da diversi-


moderna. A universidade não só participou dade cultural. Esta é uma área que, para ser le-
na exclusão social das raças e etnias ditas vada a cabo com êxito, exige cooperação inter-
inferiores, como teorizou a sua inferiori- governamental entre, por exemplo, Ministros
dade, uma inferioridade que estendeu aos da Educação, do Ensino Superior e Tecnologia,
conhecimentos produzidos pelos grupos da Cultura e das Áreas Sociais. A extensão en-
excluídos em nome da prioridade episte- volve uma vasta área de prestação de serviços
mológica concedida à ciência. As tarefas e os seus destinatários são variados: grupos
da democratização do acesso são, assim, sociais populares e suas organizações; movi-
particularmente exigentes porque questio- mentos sociais; comunidades locais ou regio-
nam a universidade no seu todo, não só nais; governos locais; o sector público; o sector
quem a frequenta, como os conhecimentos privado. Para além de serviços prestados a des-
que são transmitidos a quem a frequenta. tinatários bem definidos, há também toda uma
outra área de prestação de serviços que tem a
Extensão sociedade em geral como destinatária. A título
de exemplo: “incubação” da inovação; promo-
A área de extensão vai ter no futuro próximo
ção da cultura científica e técnica; actividades
um significado muito especial. No momento
culturais no domínio das artes e da literatura.
em que o capitalismo global pretende funcio-
Para que a extensão cumpra este papel é
nalizar a universidade e, de facto, transformá-
preciso evitar que ela seja orientada para ac-
-la numa vasta agência de extensão ao seu ser-
tividades rentáveis com o intuito de arrecadar
viço, a reforma da universidade deve conferir
recursos extra orçamentários42.
uma nova centralidade às actividades de ex-
Nesse caso, estaremos perante uma privati-
tensão (com implicações no curriculum e nas
zação discreta (ou não tão discreta) da univer-
carreiras dos docentes) e concebê-las de modo
sidade pública. Para evitar isso, as actividades
alternativo ao capitalismo global, atribuindo às
universidades uma participação activa na cons-
trução da coesão social, no aprofundamento da 42 É isto o que está a acontecer no Brasil com mui-
democracia, na luta contra a exclusão social e tas das actividades de extensão das fundações das
universidades.
a universidade no século XXI 639

de extensão devem ter como objectivo priori- mais forte nos anos sessenta e 1970 do que é
tário, sufragado democraticamente no interior hoje. Tal como acontece com as actividades
da universidade, o apoio solidário na resolução de extensão, a nova centralidade a conceder
dos problemas da exclusão e da discriminação à pesquisa-acção deve-se ao facto de a trans-
sociais e de tal modo que nele se dê voz aos nacionalização da educação superior trazer no
grupos excluídos e discriminados. seu bojo o projecto de transformar a universi-
dade num centro de pesquisa-acção ao serviço
Pesquisa-acção do capitalismo global. Também aqui, como em
A pesquisa-acção e a ecologia de saberes geral, a luta contra esta funcionalização só é
são áreas de legitimação da universidade que possível através da construção de uma alterna-
transcendem a extensão uma vez que tanto ac- tiva que marque socialmente a utilidade social
tuam ao nível desta como ao nível da pesquisa da universidade, mas formule essa utilidade de
e da formação. A pesquisa-acção consiste na modo contra-hegemónico.
definição e execução participativa de projec-
tos de pesquisa, envolvendo as comunidades Ecologias de saberes
e organizações sociais populares a braços com As ecologias de saberes são um aprofunda-
problemas cuja solução pode beneficiar dos re- mento da pesquisa-acção. É algo que implica
sultados da pesquisa. Os interesses sociais são uma revolução epistemológica no seio da uni-
articulados com os interesses científicos dos versidade e, como tal, não pode ser decretada
pesquisadores e a produção do conhecimento por lei. A reforma deve apenas criar espaços
científico ocorre assim estreitamente ligada à institucionais que facilitem e incentivem a sua
satisfação de necessidades dos grupos sociais ocorrência. A ecologia de saberes é, por assim
que não têm poder para pôr o conhecimento dizer, uma forma de extensão ao contrário, de
técnico e especializado ao seu serviço pela fora da universidade para dentro da universi-
via mercantil. A pesquisa-acção, que não é de dade. Consiste na promoção de diálogos entre
modo nenhum específica das ciências sociais, o saber científico ou humanístico, que a uni-
não tem sido, em geral, uma prioridade para versidade produz, e saberes leigos, populares,
a universidade. Tem, no entanto, uma longa tradicionais, urbanos, camponeses, provindos
tradição na América Latina, apesar de ter sido de culturas não ocidentais (indígenas, de ori-
640 Boaventura de Sousa Santos

gem africana, oriental, etc.) que circulam na semelhante se passa nos países centrais onde
sociedade. De par com a euforia tecnológica, os impactos negativos ambientais e sociais do
ocorre hoje uma situação de falta de confiança desenvolvimento científico começam a entrar
epistemológica na ciência que deriva da cres- nos debates no espaço público, forçando o co-
cente visibilidade das consequências perversas nhecimento científico a confrontar-se com ou-
de alguns progressos científicos e do facto de tros conhecimentos, leigos, filosóficos, de sen-
muitas das promessas sociais da ciência mo- so comum, éticos e mesmo religiosos. Por esta
derna não se terem cumprido. Começa a ser confrontação passam alguns dos processos de
socialmente perceptível que a universidade, promoção da cidadania activa crítica. As eco-
ao especializar-se no conhecimento científico logias de saberes são conjuntos de práticas que
e ao considerá-lo a única forma de conheci- promovem uma nova convivência activa de sa-
mento válido, contribuiu activamente para a beres no pressuposto que todos eles, incluindo
desqualificação e mesmo destruição de muito o saber científico, se podem enriquecer nesse
conhecimento não-científico e que, com isso, diálogo. Implica uma vasta gama de acções de
contribuiu para a marginalização dos grupos valorização, tanto do conhecimento científico,
sociais que só tinham ao seu dispor essas for- como de outros conhecimentos práticos, consi-
mas de conhecimento. Ou seja, a injustiça so- derados úteis, cuja partilha por pesquisadores,
cial contém no seu âmago uma injustiça cogniti- estudantes e grupos de cidadãos serve de base
va. Isto é particularmente óbvio à escala global à criação de comunidades epistémicas mais
já que os países periféricos, ricos em saberes
não científicos, mas pobres em conhecimento
científico, viram este último, sob a forma da cia encontrará no seio da universidade uma vez que esta
foi historicamente o grande agente do epistemicídio
ciência económica, destruir as suas formas de
cometido contra os saberes locais, leigos, indígenas, po-
sociabilidade, as suas economias, as suas co- pulares em nome da ciência moderna. No Brasil, a resis-
munidades indígenas e camponesas, o seu meio tência será quiçá maior uma vez que a elite universitária
ambiente43. Sob formas muito diferentes, algo se deixou facilmente iludir pela ideia auto-congratula-
tória do país novo, país sem história, como se no Brasil
só houvesse descendentes de imigrantes europeus dos
43 A vinculação recíproca entre injustiça social e in- séculos XIX e XX e não, portanto, também povos ances-
justiça cognitiva será uma das ideias que mais resistên- trais, indígenas e descendentes de escravos.
a universidade no século XXI 641

amplas que convertem a universidade num es- versidade e, dentro desta, a um departamento
paço público de interconhecimento onde os ci- ou unidade orgânica específica, e que responde
dadãos e os grupos sociais podem intervir sem a solicitações de cidadãos ou de grupos de ci-
ser exclusivamente na posição de aprendizes. dadãos, de associações ou movimentos cívicos
Quer a pesquisa-acção, quer a ecologia de sabe- ou de organizações do terceiro sector e, em cer-
res situam-se na procura de uma reorientação tos casos, empresas do sector privado para o
solidária da relação universidade-sociedade. É desenvolvimento de projectos que sejam clara-
este o caso das “oficinas de ciência” (science mente de interesse público (identificação e pro-
shops). Com base nas experiências de pesquisa- posta de resolução de problemas sociais, am-
-acção e de activismo de cientistas e estudantes bientais, nas áreas do emprego, do consumo, da
nos anos setenta, foram criadas as oficinas de saúde pública, da energia, etc., etc.; facilitação
ciência que viriam a constituir um movimento da constituição de organizações e associações
com algum dinamismo em vários países euro- de interesse social comunitário; promoção de
peus. Depois de um período de relativo declí- debates públicos, etc.). A solicitação é estudada
nio, o movimento está hoje a ressurgir na Eu- em conjunto através de procedimentos partici-
ropa, com o apoio de programas da Comissão pativos em que intervêm todos os interessados
Europeia, e também noutras partes do mundo. e os responsáveis da oficina de ciência. Estes
Nos EUA, um movimento próximo, ainda que últimos contactam os departamentos ou espe-
com outras características, é o da “pesquisa co- cialistas da universidade em causa ou, eventual-
munitária” (community-based research). Este mente, da rede interuniversitária de oficinas de
movimento, já organizado internacionalmente ciência potencialmente interessados em inte-
na rede “conhecimento vivo” (living knowled- grar o projecto. Constitui-se então uma equipa,
ge), visa criar um espaço público de saberes que inclui todos os interessados, e que desenha
onde a universidade possa confrontar a injus- o projecto e a metodologia participativa de in-
tiça cognitiva através da reorientação solidária tervenção44. Em universidades de alguns países
das suas funções. As oficinas de ciência são um
híbrido onde se combina a pesquisa-acção e a
44 A participação só é genuína na medida em que con-
ecologia de saberes. Uma oficina de ciência é
diciona efectivamente os resultados e os meios e mé-
uma unidade que pode estar ligada a uma uni- todos para chegar a ele. Sob o nome de participação e
642 Boaventura de Sousa Santos

(Dinamarca, por exemplo), as oficinas de ciên- As oficinas de ciência são apenas um entre
cia são integradas nas actividades curriculares vários exemplos de como a universidade, en-
de diferentes cursos. São oferecidos seminários quanto instituição pública, poderá assumir uma
de formação para os estudantes que desejem orientação solidária tanto na formação dos
participar em oficinas de ciência e os trabalhos seus estudantes como nas suas actividades de
de fim de curso podem incidir sobre os resulta- pesquisa e de extensão. Para além das oficinas
dos dessa participação. O mesmo se passa com de ciência, outras iniciativas estão em curso
a realização de teses de pós-graduação, que po- que visam a contextualização do conhecimento
derão consistir num projecto que responde à científico. Têm em comum a reconceptualiza-
solicitação a uma oficina de ciência. As oficinas ção dos processos e prioridades de pesquisa a
de ciência são uma interessante experiência de partir dos utilizadores e a transformação des-
democratização da ciência e de orientação soli- tes em co-produtores de conhecimento. Veja-
dária da actividade universitária. Embora algu- -se, por exemplo, a contribuição dos doentes
mas delas — sob a pressão da busca de receitas de AIDS no desenvolvimento de ensaios clíni-
no mercado — tenham evoluído no sentido de cos e da própria orientação da agenda de pes-
se transformarem em unidades de prestação quisa da cura da doença, no caso do Brasil e da
remunerada de serviços, os modelos solidários África do Sul.
continuam a ter um forte potencial de criação
de nichos de orientação cívica e solidária na Universidade e Escola Pública46
formação de estudantes e na relação das uni- Ao tratar o tema do acesso referi a neces-
versidades com a sociedade, e de funcionarem sidade de vincular a universidade à educação
como “incubadoras” de solidariedade e de cida- básica e secundária. Esta vinculação merece
dania activa45. um tratamento separado por se me afigurar ser
uma área fundamental na reconquista da legi-
de outros similares, como, por exemplo, consulta, são
timidade da universidade. É uma área muito
hoje conduzidos projectos de “assistência” Norte-Sul
indisfarçavelmente neocoloniais.
45 Uma análise das oficinas de ciência pode ler-se em 46 Esta secção deve muito aos meus diálogos com
Wachelder, 2003. Paulino Motter.
a universidade no século XXI 643

vasta pelo que neste texto me concentro num na preocupação obsessiva com a medição dos
tema específico: o saber pedagógico. Este tema resultados da aprendizagem através da aplica-
abrange três sub-temas: produção e difusão de ção periódica de testes padronizados. Temas
saber pedagógico; pesquisa educacional; e for- como eficiência, competição, performance,
mação dos docentes da escola pública. É um choice e accountability ganharam centralida-
tema de importância crescente, avidamente co- de na agenda educacional. As pesquisas pro-
biçado pelo mercado educacional, onde a uni- duzidas fora das universidades, patrocinadas
versidade já teve uma intervenção hegemónica e financiadas por organismos internacionais
que entretanto perdeu. Este facto é hoje res- e fundações privadas, passaram a ter uma
ponsável pelo afastamento da universidade em enorme influência sobre as políticas públi-
relação à escola pública — a separação entre o cas de educação, condicionando as escolhas
mundo académico e o mundo da escola — um dos gestores dos sistemas públicos de ensino.
afastamento que, a manter-se, minará qualquer Excluída do debate e frequentemente acusa-
esforço sério no sentido de relegitimar social- da de defender o status quo das corporações
mente a universidade. do ensino público e de opor-se às reformas,
Sob a égide da globalização neoliberal, or- a universidade recolheu-se ao papel de ques-
ganismos internacionais, organizações não- tionar o discurso dominante sobre a crise da
-governamentais e uma plêiade de fundações escola pública e não se esforçou em formular
e institutos privados têm vindo a assumir al- alternativas. Daí que os educadores e gestores
gumas das funções da universidade pública escolares comprometidos com projectos pro-
no desenvolvimento da educação pública, em gressistas e contra-hegemónicos se queixem
especial no campo da pesquisa educacional da falta de envolvimento e apoio da universida-
aplicada. Esta mudança na titularidade das fun- de pública. Igualmente, na área da formação,
ções repercute-se no conteúdo do seu desem- as reformas educacionais das últimas décadas
penho. Essa mudança manifesta-se na primazia revelam uma estratégia deliberada de desquali-
das metodologias quantitativas, na ênfase em ficação da universidade como locus de forma-
estudos de carácter avaliativo e de diagnóstico ção docente. A marginalização da universidade
informados pela racionalidade económica, ba- corre de par com a exigência da qualificação
seada na análise custo-benefício, e, finalmente, terciária dos professores de todos os níveis
644 Boaventura de Sousa Santos

de ensino47. do que resulta a progressiva pri- ser afirmado é o compromisso da universidade


vatização dos programas de capacitação para com a escola pública. A partir daí, trata-se de
professores. O “treinamento e capacitação de estabelecer mecanismos institucionais de cola-
professores” tornou-se um dos segmentos mais boração através dos quais seja construída uma
prósperos do emergente mercado educacional, integração efectiva entre a formação profissio-
testemunhado pela proliferação de instituições nal e a prática de ensino. Entre outras directri-
privadas que oferecem cursos de capacitação zes, a reforma aqui defendida deve propugnar:
de professores para as redes de ensino. O fosso 1. Valorização da formação inicial e sua ar-
cavado entre a universidade pública e o saber ticulação com os programas deformação
pedagógico é prejudicial, tanto para a escola continuada;
pública, como para a universidade. A resis-
2. Reestruturação dos cursos de licenciatura
tência desta última ao novo receituário edu-
de forma a assegurar a integração curricu-
cacional não pode reduzir-se à crítica já que a
lar entre a formação profissional e forma-
crítica, num contexto de crise de legitimidade
ção académica;
da universidade, acaba por vincar o isolamen-
to social desta. Para dar um exemplo, a crítica 3. Colaboração entre pesquisadores univer-
produzida nas faculdades de educação tem re- sitários e professores das escolas públicas
forçado a percepção de que a universidade está na produção e difusão do saber pedagógi-
sobretudo empenhada na defesa do status quo. co, mediante reconhecimento e estímulo
Romper com esta percepção deve ser um dos da pesquisa-ação.
objectivos centrais de uma reforma universitá-
ria progressista e democrática48. O princípio a
como referência prática. Por exemplo, no Brasil, algu-
mas universidades federais responderam criativamente
às novas exigências estabelecidas pela LDB, criando
47 É este o caso do Brasil onde a nova lei de direc- licenciaturas especialmente desenhadas para atender
trizes de bases da educação nacional (LDB, 1996) es- professores das redes estaduais e municipais de ensi-
tabelece que a partir de 2007 todos os professores da no que não possuem formação profissional académica.
educação básica devem ter formação de nível superior. Uma experiência bem-sucedida tem sido desenvolvida
48 Experiências inovadoras de integração entre uni- pela Universidade Federal de Pelotas (comunicação
versidades públicas e sistemas de ensino devem servir pessoal de Paulino Motter).
a universidade no século XXI 645

4. Criação de redes regionais e nacionais de necessário ao desenvolvimento tecnológico


universidades públicas para desenvolvi- que torne possível os ganhos de produtividade
mento de programas de formação continu- e de competitividade das empresas. A pressão
ada em parceria com os sistemas públicos é tão forte que vai muito para além das áreas
de ensino. de extensão, já que procura definir à imagem
dos seus interesses, o que conta como pesquisa
Universidade e indústria relevante, o modo como deve ser conduzida e
apropriada. Nesta redefinição colapsa não só a
As áreas de conquista de legitimidade que
distinção entre extensão e produção de conhe-
acabei de referir são áreas que devem ser par-
cimento, como a distinção entre pesquisa fun-
ticularmente incentivadas, porque estão global-
damental e pesquisa aplicada.
mente em risco. São também as áreas mais con-
Nos Estados centrais, e sobretudo nos EUA,
sistentemente articuladas com um projecto de
a relação entre o Estado e a universidade tem
reforma progressista. Há, no entanto, uma área
vindo a ser dominada pelo imperativo central
de legitimação e de responsabilização social
neste domínio: a contribuição da universidade
que tem vindo a assumir nos últimos vinte anos
para a competitividade económica e também
uma premência sem precedentes. Trata-se da
para a supremacia militar. As políticas de pes-
relação entre a universidade e o sector capita-
quisa têm sido orientadas de modo a privilegiar
lista privado enquanto consumidor ou destina-
a pesquisa nas áreas que interessam às em-
tário de serviços prestados pela universidade.
presas e à comercialização dos resultados da
Como vimos, este sector surge hoje crescente-
pesquisa. Os cortes no financiamento público
mente como produtor de serviços educacionais
da universidade são vistos como “incentivos”
e universitários. Aqui refiro-me a ele enquanto
a que a universidade procure financiamentos
consumidor. A popularidade com que circulam
privados, entre em parcerias com a indústria,
hoje, sobretudo nos países centrais, os con-
patenteie os seus resultados e desenvolva acti-
ceitos de “sociedade de conhecimento” e de
vidades de comercialização incluindo a comer-
“economia baseada no conhecimento” é reve-
cialização da sua própria marca.
ladora da pressão que tem sido exercida sobre
A resposta a esta pressão assume algum
a universidade para produzir o conhecimento
dramatismo e é o domínio que mais dificulda-
646 Boaventura de Sousa Santos

des levanta à universidade. Por quatro razões Neste domínio, a reforma progressista da
principais: porque é o domínio em que é maior universidade como bem público deve pautar-se
a disjunção entre o modelo institucional tra- pelas seguintes ideias:
dicional da universidade e o modelo novo que 1. É crucial que a comunidade científica não
está implícito nos desempenhos exigidos; por- perca o controlo da agenda de pesquisa
que nele a universidade entra em concorrência científica. Para isso, é necessário antes de
directa com outras instituições e actores que mais que a asfixia financeira não obrigue a
emergiram do modelo novo com objectivos universidade pública a recorrer à privatiza-
muito distintos dos da universidade; porque é ção das suas funções para compensar os
aqui que os modelos de gestão pública da uni- cortes orçamentais. É crucial que a aber-
versidade são mais directamente postos em tura ao exterior não se reduza à abertura
causa e comparados negativamente com os ao mercado e que a universidade possa
modelos privados de gestão; porque torna mais desenvolver espaços de intervenção que,
evidente que a legitimação e responsabilização de algum modo, equilibram os interesses
da universidade em relação a certos interesses múltiplos e mesmo contraditórios que cir-
e aos grupos sociais que os sustentam pode culam na sociedade e que, com maior ou
significar a deslegitimação e a desresponsabi- menor poder de convocação, interpelam a
lização da universidade em relação a outros universidade. Mesmo nos EUA, onde a em-
interesses e outros grupos sociais subalternos, presarialização do conhecimento avançou
populares. É neste domínio que ocorre a trans- mais, é hoje defendido que a liderança tec-
formação do conhecimento como bem público nológica deste país assenta num certo equi-
em bem privado ou privatizável, transaccioná- líbrio entre a pesquisa fundamental, reali-
vel no mercado. A universidade é pressionada zada, sem directo interesse comercial, nas
para transformar o conhecimento e os seus universidades, e a pesquisa aplicada sujeita
recursos humanos em produtos que devem ao ritmo e ao risco empresarial.
ser explorados comercialmente. A posição no
2. As agências públicas de financiamento da
mercado passa a ser crucial e, nos processos
pesquisa devem regular — mas sem elimi-
mais avançados, é a própria universidade que
nar — o controlo da agenda por parte da
se transforma em marca.
a universidade no século XXI 647

comunidade universitária em nome de in- Não se exclui a utilidade para a própria uni-
teresses sociais considerados relevantes e versidade de uma interacção com o meio em-
que obviamente estão longe de ser apenas presarial em termos de identificação de novos
os que são relevantes para a actividade em- temas de pesquisa e de aplicação tecnológica
presarial. O recurso crescente aos concur- e de análises de impacto. O importante é que a
sos para a chamada pesquisa direccionada universidade esteja em condições de explorar
(targeted research) tem de ser moderado esse potencial e para isso não pode ser posta
por concursos gerais, em que a comunida- numa posição de dependência e muito menos
de científica, sobretudo a mais jovem, tenha de dependência ao nível da sobrevivência em
a possibilidade de desenvolver criativa e li- relação aos contratos comerciais. O tema mais
vremente novas áreas de pesquisa que, por polémico nesta área é a do patenteamento do
enquanto, não suscitam nenhum interesse conhecimento. Nos países centrais a luta por
por parte do capital ou do Estado. A pesqui- patentes, sobretudo em áreas comercialmen-
sa direccionada centra-se no que é impor- te mais atractivas como, por exemplo, as da
tante hoje para quem tem o poder de definir biotecnologia, está a transformar por com-
o que é importante. Com base nela, não é pleto os processos de pesquisa e as relações
possível pensar o longo prazo e, como refe- no interior da comunidade científica, uma vez
ri, é este talvez o único nicho de hegemonia que bloqueia a colegialidade dos processos
que resta à universidade. Por outro lado, a de pesquisa e a discussão livre e aberta dos
pesquisa direccionada e, muito mais ainda, resultados. Segundo muitos, põe em causa o
a pesquisa comercialmente contratualizada próprio avanço da ciência, para além de pro-
e a consultoria impõem ritmos de pesquisa vocar uma distorção fatal nas prioridades da
acelerados impelidos pela sede de resulta- pesquisa. O problema do patenteamento é um
dos úteis. Estes ritmos impedem a matura- dos que melhor revela a segmentação global
ção normal dos processos de pesquisa e de da produção de conhecimento. Ele só é re-
discussão de resultados, quando não atro- levante nos poucos países em que há grande
pelam os protocolos de pesquisa e os crité- capacidade de absorção comercial do conhe-
rios de avaliação dos resultados. cimento produzido.
648 Boaventura de Sousa Santos

O reforço da responsabilidade asfixia financeira não lhe permite sequer de-


social da universidade sempenhar as funções mais tradicionais49.
Reconheço que o que acabo de propor é Uma vez criadas as condições, a universi-
um vasto programa de responsabilização so- dade deve ser incentivada a assumir formas
cial da universidade. Julgo, no entanto, que só mais densas de responsabilidade social, mas
através dele a universidade pública pode lu- não deve ser funcionalizada nesse sentido. A
tar eficazmente pela sua legitimidade. A uni- responsabilidade social da universidade tem
versidade tem de entender que a produção de de ser assumida pela universidade, aceitando
conhecimento epistemológica e socialmente ser permeável às demandas sociais, sobre-
privilegiado e a formação de elites deixaram tudo àquelas oriundas de grupos sociais que
de poder assegurar por si só a legitimidade não têm poder para as impor. A autonomia
da universidade a partir do momento em que universitária e a liberdade académica — que,
perdeu a hegemonia mesmo no desempenho no passado, foram esgrimidas para desres-
destas funções e teve de as passar a desempe- ponsabilizar socialmente a universidade —
nhar num contexto competitivo. A luta pela assumem agora uma nova premência, uma
legitimidade permite ampliar o potencial des- vez que só elas podem garantir uma resposta
tas funções, complementando-as com outras empenhada e criativa aos desafios da respon-
onde o vínculo social seja mais transparente. sabilidade social. Porque a sociedade não é
Mas para que isso ocorra, a universidade tem uma abstracção, esses desafios são contextu-
de ser dotada das condições adequadas tanto ais em função da região, ou do local e, portan-
financeiras como institucionais. Ao contrário
do que o capitalismo educacional faz crer, as
49 A gravidade da asfixia financeira é potenciada pelo
deficiências no desempenho da responsabili-
facto de a universidade, em geral, não administrar bem
dade social da universidade não decorrem do os recursos financeiros e humanos de que actualmen-
excesso de autonomia, mas, pelo contrário, te dispõe. Um dos aspectos centrais da reforma será a
da falta dela e dos meios financeiros adequa- aposta na maximização desses recursos. Por exemplo,
dos. O Estado e a sociedade não podem recla- porque é que em Portugal são raras as universidades
públicas que oferecem cursos nocturnos enquanto nas
mar da universidade novas funções quando a privadas isso é prática corrente?
a universidade no século XXI 649

to, não podem ser enfrentados com medidas o debate e a crítica sobre o longo prazo das
gerais e rígidas. sociedades se pode realizar com muito menos
restrições do que é comum no resto da socie-
Criar uma nova institucionalidade dade. Este cerne de hegemonia é demasiado
A quinta grande área da reforma democráti- irrelevante nas sociedades capitalistas de hoje
ca e emancipatória da universidade pública diz para poder sustentar a legitimidade da univer-
respeito ao domínio institucional. Disse acima sidade. É por isso que a reforma institucional
que a virulência e saliência da crise institucio- se tem de centrar nesta última. A reforma ins-
nal residem no facto de ela ter condensado o titucional que aqui proponho visa fortalecer a
aprofundamento das crises de hegemonia e legitimidade da universidade pública num con-
de legitimidade. Por isso me centrei até ago- texto da globalização neoliberal da educação e
ra nestas duas crises. Tenho vindo a defender com vista a fortalecer a possibilidade de uma
que a reforma da universidade deve centrar-se globalização alternativa. As suas áreas prin-
na questão da legitimidade. De facto, a per- cipais podem resumir-se nas seguintes ideias:
da de hegemonia parece irremediável, não só rede, democratização interna e externa, avalia-
pelo surgimento de muitas outras instituições, ção participativa.
como também pelo incremento da segmenta-
ção interna da rede de universidades, quer a Rede
nível nacional, quer a nível global. A universi- A primeira ideia é a de rede nacional de uni-
dade não é hoje a organização única que já foi e versidades públicas. Em quase todos os países
a sua heterogeneidade torna ainda mais difícil há associações de universidades, mas tais as-
identificar o que é50. Os processos de globaliza- sociações estão longe de constituir uma rede.
ção tornam mais visível essa heterogeneidade Na maior parte dos casos, são meros grupos de
e intensificam-na. O que resta da hegemonia da pressão que reivindicam colectivamente bene-
universidade é o ser um espaço público onde fícios de que só individualmente se apropriam.
Muito para além disso, proponho que o bem
50 Daí a importância da luta pela definição da univer- público da universidade passe a ser produzi-
sidade que referi acima. do em rede, o que significa que nenhum dos
650 Boaventura de Sousa Santos

nós da rede pode assegurar por si qualquer das proponho, no sentido de fortalecer a universi-
funções em que se traduz esse bem, seja ele a dade pública no seu conjunto de modo a quali-
produção de conhecimento, a formação gradu- ficá-la para discutir os termos da sua inserção
ada e pós-graduada ou a extensão. Isto implica na globalização da universidade, a construção
uma revolução institucional e uma revolução da massa crítica é uma precondição e essa só
nas mentalidades51. As universidades foram é obtível na grande maioria dos países quan-
desenhadas institucionalmente para funcionar do se põem recursos em conjunto, se buscam
como entidades autónomas e auto-suficientes. sinergias e se maximiza o desempenho funcio-
A cultura da autonomia universitária e da li- nal a partir dos contributos diferenciados que
berdade académica, apesar de esgrimida pu- os diferentes nós da rede podem dar. Assim, a
blicamente em nome da universidade contra construção da rede pública implica a partilha
actores externos, tem sido frequentemente de recursos e de equipamentos, a mobilidade
usada, no interior do sistema universitário, de docentes e estudantes no interior da rede
para contrapor universidade contra universi- e uma padronização mínima de planos de cur-
dade. Onde existe, a competição pelo ranking sos, de organização do ano escolar, dos siste-
incentiva à separação e, como é feita a partir mas de avaliação. Nada disto tem de eliminar
das desigualdades existentes num dado mo- as especificidades com que cada universidade
mento e sem nenhuma medida compensatória, pretende responder ao contexto local ou re-
tende a aguçar ainda mais o topo da pirâmide gional em que se insere. Pelo contrário, essa
e, com isso, a aprofundar a segmentação e a especificidade, ao ser mantida, pode ser va-
heterogeneidade52. Se a reforma é feita, como lorizada no interior da rede. Por exemplo, no
Brasil, tenho-me apercebido de experiências
riquíssimas de extensão nas universidades do
51 Talvez, por isso, seja de programar processos de Norte e do Nordeste que são totalmente des-
transição que garantam uma passagem inter-geracional, conhecidas ou desvalorizadas no Centro-sul
pois é de prever que as gerações mais velhas (e hoje com
e Sul. E estou seguro que o inverso também
mais poder) resistam a qualquer mudança neste sentido.
52 A ideia de estabelecer rankings não é, em si, negati-
va. Tudo depende dos critérios que o definem e do modo, reforma que proponho, as hierarquias deveriam servir
transparente ou não, como são aplicados. No quadro da sobretudo para a aferir o desempenho das redes.
a universidade no século XXI 651

ocorre. A rede visa, pois, fortalecer a univer- “relações internacionais” — já existem. Só que
sidade no seu conjunto ao criar mais poliva- têm de ser intensificadas até ao ponto de se-
lência e descentralização. Não se trata de levar rem tão constitutivas da rede que deixam de
as universidades de excelência a partilhar de ser consideradas exteriores ou apendiculares.
tal modo os seus recursos que possa pôr em A reforma deve incentivar a constituição da
causa essa mesma excelência. Trata-se antes rede, mas a rede não se decreta. É preciso criar
de multiplicar o número de universidades de uma cultura de rede nas universidades, o que
excelência, dando a cada uma a possibilidade não é tarefa fácil, pois nem sequer no interior
de desenvolver o seu potencial de nicho com da mesma universidade tem sido possível criar
a ajuda das demais. Ao contrário do que é cor- redes. Tal cultura não se cria de um momen-
rente pensar-se, num contexto de globalização to para o outro. Talvez se crie de uma geração
neoliberal, a concentração da pesquisa e da para a outra e penso que o impulso para ela ad-
pós-graduação em poucas universidades ou virá em boa medida da percepção de que, sem
centros de excelência expõe a universidade rede, a universidade pública sucumbirá inglo-
pública a grandes vulnerabilidades, sobretudo riamente ao mercado e à transnacionalização
nos países periféricos e semiperiféricos. Como do comércio da educação superior. Quando a
referi acima, essas universidades, mesmo as rede for uma questão de sobrevivência a uni-
melhores, são presa fácil das universidades versidade saberá transformá-la numa questão
globais dos países centrais, e sê-lo-ão tanto de princípio. Uma vez criada a rede, o seu de-
mais quanto mais isoladas estiverem. A refor- senvolvimento está sujeito a três princípios da
ma com vista a uma globalização solidária da acção básicos: densificar, democratizar, quali-
universidade como bem público tem de partir ficar. A teoria das redes fornece hoje pistas or-
da solidariedade e da cooperação no interior ganizacionais preciosas. Podem ser multinível
da rede nacional de universidades. Mas, como e multiescalares, devem fomentar a formação
referirei adiante, esta rede nacional deve estar de nódulos (clusters) e, em geral, promover
à partida transnacionalizada, isto é, deve inte- o crescimento da multiconectividade entre as
grar universidades estrangeiras apostadas em universidades, os centros de pesquisa e de ex-
formas de transnacionalização não mercantil. tensão, os programas de divulgação e publica-
Obviamente que essas relações — ditas hoje ção do conhecimento.
652 Boaventura de Sousa Santos

Penso que na constituição da rede poderá tituição de uma rede de universidades — bem
ser útil ter em mente o exemplo dos países na lógica do que tem ocorrido noutras áreas do
europeus53. Como referi atrás, a política uni- comércio mundial —, não me parece que me-
versitária europeia visa a criação de uma rede nos do que isso se deva esperar, sobretudo dos
universitária europeia que prepare as universi- grandes países semiperiféricos, como o Brasil,
dades europeias no seu conjunto para a trans- dado, por um lado, o potencial de desenvolvi-
nacionalização da educação superior. Ainda mento que têm e, por outro, a fragilidade desse
que não concorde com a excessiva ênfase no potencial se não for correctamente aproveita-
lado mercantil da transnacionalização, penso do. A organização das universidades no inte-
que é uma estratégia correcta porque parte da rior da rede deve ser orientada para viabilizar
verificação de que as relações entre as universi- e incentivar a prossecução das quatro áreas de
dades europeias se pautaram até há pouco pela legitimação: acesso, extensão, pesquisa-acção
heterogeneidade institucional, a enorme seg- e ecologia de saberes. Mas, para além disso,
mentação, o quase total isolamento recíproco, deve facilitar a adaptação da universidade às
ou seja, condições que à partida enfraquecem a transformações que estão a ocorrer na pro-
inserção das universidades europeias no con- dução do conhecimento. O modelo de institu-
texto globalizado da educação superior. O que cionalidade que hoje domina foi moldado pelo
os países europeus estão a fazer a nível supra- conhecimento universitário e não se adequa
-nacional é certamente uma tarefa mais difícil ao conhecimento pluriversitário. A passagem,
da que é exigida a nível nacional. E se uma re- como vimos, é de conhecimento disciplinar
gião central do sistema mundial conclui pela para conhecimento transdisciplinar; de circui-
sua vulnerabilidade à escala global neste domí- tos fechados de produção para circuitos aber-
nio e decide preparar-se ao longo de mais de tos; de homogeneidade dos lugares e actores
uma década para a remediar, através da cons- para a heterogeneidade; da descontextualiza-
ção social para a contextualização; da aplica-
ção técnica à disjunção entre aplicação comer-
53 Mas atente-se também na rede AUGM (Associação cial e aplicação edificante ou solidária. Esta
de Universidades do Grupo Montevideo) que congrega
passagem é mais evidente nos países centrais
15 universidades públicas do Mercosul (comunicação
pessoal de Denise Leite). mas é já detectável nos países semiperiféricos
a universidade no século XXI 653

ou periféricos, ainda que nestes últimos a pas- tes, ou em França na luta contra a desresponsa-
sagem não seja autónoma e antes heterónoma bilização do Estado na área da ciência e da cul-
e, no pior dos casos, resultado de imposições tura. O modelo de conhecimento universitário
das agências financeiras internacionais. Na convencional domina ainda hoje os cursos de
fase de transição em que nos encontramos os graduação mas sofre uma crescente interferên-
dois tipos de conhecimento coexistem e o de- cia do conhecimento pluriversitário ao nível da
senho institucional tem de ser suficientemente pós-graduação e da pesquisa. O facto de as uni-
dúctil para os albergar a ambos e para possi- dades orgânicas tradicionais terem sido mol-
bilitar que o conhecimento pluriversitário não dadas pelo modelo universitário explica em
seja contextualizado apenas pelo mercado e, boa parte a resistência destas a concederem à
pelo contrário, seja posto ao serviço do interes- pós-graduação e à pesquisa a centralidade que
se público, da cidadania activa e da construção devem ter nas próximas décadas. Há, pois, que
de alternativas solidárias e de longo prazo. As criar outras unidades orgânicas transfacultá-
mudanças institucionais não vão ser fáceis mas rias e transdepartamentais que, aliás, podem
elas são o único meio de resistir com êxito às estar ancoradas na rede e não exclusivamente
enormes pressões para alinhar a organização e em nenhuma das universidades que a integram.
a gestão das universidades com o modelo neo- A maior integração entre as pós-graduações e
liberal de sociedade. O pressuposto das refor- os programas de pesquisa deve ser um dos ou-
mas que proponho é que o Estado reformista tros objectivos centrais das novas unidades.
pretenda dar condições à universidade para
resistir a tais pressões. Claro que se for o pró- Democracia interna e externa
prio Estado a fazer pressão para a empresaria-
Para além da criação da rede, a nova insti-
lização da universidade então compete a esta
tucionalidade deve ter por objectivo o apro-
resistir à reforma do Estado. É o que tem vindo
fundamento da democracia interna e externa
a acontecer em Espanha, na luta dos reitores
da universidade. Quando se fala da democra-
e professores da universidade pública contra a
tização da universidade tem-se normalmente
tentativa de reforma conservadora da universi-
em mente a questão do acesso e o fim das dis-
dade, na Itália especificamente na luta contra a
criminações que o limitam. Mas a democrati-
precarização do vínculo contratual dos docen-
654 Boaventura de Sousa Santos

zação da universidade tem outras dimensões. pluriversitário; provém sobretudo de grupos


Em tempos recentes, a democratização externa historicamente excluídos que reivindicam hoje
da universidade tem sido um importante tema a democratização da universidade pública. O
de debate. A ideia da democratização externa modelo pluriversitário, ao assumir a contextu-
confunde-se com a responsabilização social da alização do conhecimento e a participação dos
universidade, pois o que está em causa é a cria- cidadãos ou comunidades enquanto utilizado-
ção de um vínculo político orgânico entre a uni- res e mesmo co-produtores de conhecimento,
versidade e a sociedade que ponha fim ao isola- leva a que essa contextualização e participação
mento da universidade que nos últimos anos se sejam sujeitas a regras que tornem transparen-
tornou anátema, considerado manifestação de tes as relações entre a universidade e o seu
elitismo, de corporativismo, de encerramento meio social e legitimem as decisões tomadas no
na torre de marfim, etc. O apelo à democracia seu âmbito. Este segundo apelo à democracia
externa é ambíguo porque é feito por grupos externa visa, de facto, neutralizar o primeiro, o
sociais diferentes com interesses contraditó- apelo da privatização da universidade. O apelo à
rios. Por um lado, o apelo vem do mercado edu- privatização teve na última década um impacto
cacional que invoca o défice democrático da enorme nas universidades de muitos países, ao
universidade ou para justificar a necessidade ponto de os investigadores universitários terem
de ampliar o acesso à universidade, o que só é perdido muito do controle que tinham sobre as
possível mediante a privatização da universida- agendas de pesquisa. O caso mais gritante é o
de, ou para defender a maior aproximação da modo como se definem hoje as prioridades de
universidade à indústria. Em ambos os casos, pesquisa no domínio da saúde, onde as grandes
a democratização externa implica uma nova doenças que afectam a grande parte da popula-
relação da universidade com o mundo dos ne- ção do mundo (malária, tuberculose, HIVAIDS)
gócios e, em última instância, a transformação não têm lugar nas prioridades de pesquisa54. A
da universidade num negócio. Mas, por outro
lado, o apelo à democratização externa provém
das forças sociais progressistas que estão por 54 A malária tem uma incidência exclusiva nos países
do Sul; a tuberculose tem uma incidência treze vezes
detrás das transformações em curso na pas-
superior no Sul que no Norte; a SIDA tem também uma
sagem do modelo universitário para o modelo incidência maior no Sul que no Norte, mas é suficien-
a universidade no século XXI 655

partir do momento em que os mecanismos de tico a essa democracia interna. A razão é óbvia:
auto-regulação da comunidade científica pas- a funcionalização da universidade ao serviço
sam a estar dependentes dos centros de poder do capital exige a proletarização de docentes
económico, só uma pressão democrática exter- e pesquisadores, a qual não pode ocorrer en-
na poderá levar a que os temas sem interesse quanto os mecanismos de democracia interna
comercial, mas de grande impacto social, en- estiverem activos, pois são eles que sustentam
trem nas agendas de pesquisa. A necessidade a liberdade académica que barra a passagem à
de uma nova institucionalidade de democracia proletarização. Esta só é atingível a partir de um
externa é fundamental para tornar transparen- modelo de gestão e de organização empresarial,
tes, mensuráveis, reguláveis e compatíveis as com profissionalização de funções e uma estri-
pressões sociais sobre as funções da universi- ta separação entre administração, por um lado,
dade. E sobretudo para as debater no espaço e docência e pesquisa pelo outro. A democracia
público da universidade e torná-las objecto de externa proposta pelo capital é, assim, forte-
decisões democráticas. Esta é uma das vias de mente hostil à democracia interna. Já o mesmo
democracia participativa para o novo patamar não sucede com a democracia externa de ori-
de legitimidade da universidade pública. Arti- gem comunitária ou solidária. Pelo contrário,
culada com a democracia externa está a demo- a democracia interna pode potenciar a demo-
cracia interna. Este é um tema que adquiriu nos cracia externa e vice-versa. Em face disto, a re-
países centrais um grande destaque na década forma da universidade como bem público deve
de sessenta e todos os países que passaram por defender a democracia interna da universidade
períodos de ditadura na segunda metade do sé- pelo valor dela em si mesma, mas também para
culo XX introduziram formas de governo demo- evitar que a democracia externa seja reduzida
crático da universidade logo que a ditadura foi às relações universidade-indústria. A democra-
derrubada. A pressão empresarial sobre a uni- cia externa pode ser concretizada, por exem-
versidade tem vindo a fazer um ataque sistemá- plo, através de conselhos sociais, social e cul-
turalmente diversos, com participação assente
na relevância social e não nas contribuições
temente perturbadora no Norte para justificar que na
financeiras, definida em base territorial (local
vacina da AIDS se invista sete vezes mais que na vacina
da malária. Ver Archibugi e Bizzarri, 2004. regional), sectorial, classista, racial, sexual. A
656 Boaventura de Sousa Santos

participação nos órgãos de democracia interna te, nomeadamente com as tarefas de legitima-
deverá assim ser informada pelos princípios da ção e com a valorização das transformações na
acção afirmativa, trazendo para os Conselhos produção e na distribuição do conhecimento e
os grupos e os interesses sociais até agora mais suas ligações às novas alternativas pedagógi-
distantes da universidade55. O importante é que cas. Isto significa que o desempenho dos pro-
os conselhos não sejam uma mera fachada e, fessores e das unidades orgânicas tem de ser
para isso, para além das suas funções consul- visto à luz destes critérios. Também aqui há
tivas, devem ter participação nos processos de que tomar opções entre uma avaliação tecno-
democracia participativa que forem adoptados crática e uma avaliação tecno-democrática ou
no interior da universidade. participativa. A primeira é hoje fortemente re-
comendada pelo capital educacional transna-
Avaliação participativa cional. Trata-se de uma avaliação quantitativa,
externa, quer do trabalho de docência, quer do
Finalmente, a nova institucionalidade deve
trabalho de pesquisa, deixando-se de fora o de-
incluir um novo sistema de avaliação que
sempenho de quaisquer outras funções, nome-
abranja cada uma das universidades e a rede
adamente as de extensão por mais relevantes
universitária no seu conjunto. Para ambos os
que sejam no plano social. No caso da pesqui-
casos devem ser adoptados mecanismos de au-
sa, centra-se no que é mais facilmente contabi-
to-avaliação e de hetero-avaliação. Os critérios
lizável através de técnicas bibliométricas que
de avaliação devem ser congruentes com os
diferenciam tipos e locais de publicação ou o
objectivos da reforma indicados anteriormen-
impacto das publicações medido por índices
de citação. Nas áreas de extensão, menos fa-
cilmente quantificáveis, pouca avaliação tem
55 No Brasil, onde essa distância é enorme, o êxito
da articulação entre democracia interna e democra- sido feita e quando ocorre tende a privilegiar
cia externa depende da vontade política e da eficácia as relações universidade-indústria e a centrar-
que presidirem às medidas no domínio do acesso, da -se em critérios quantitativos, como, por exem-
pesquisa-acção, da extensão e da ecologia dos saberes. plo, o número de patentes. A fixação dos cri-
Os diferentes grupos sociais só serão convencidos das
térios através dos mecanismos de democracia
vantagens da participação no governo da universidade
se esta tiver um retorno bem concreto. interna e externa é fundamental uma vez que
a universidade no século XXI 657

são eles que definem o valor do retorno das di- viabilidade se os princípios que a norteiam não
ferentes actividades universitárias. A universi- forem complementados por duas decisões polí-
dade não deve promover modelos idênticos à ticas: uma tem a ver com a regulação do ensino
actividade docente, mas sim modelos diferen- superior privado e a outra, com a posição dos
ciados que valorizem as competências especí- governos face ao GATS no domínio da educa-
ficas de cada grupo de docentes, garantindo ção transnacionalizada. Passo a tratar breve-
uma qualidade mínima dentro de cada modelo mente cada uma delas.
ou vertente. Isto permite ampliar o retorno so-
cial da universidade e a introduzir incentivos A universidade privada
internos para novas actividades, serve como
Quanto à universidade privada, e partin-
escudo contra a pressão unilateral dos in-
do do princípio que a universidade é um bem
centivos mercantis. Os modelos de avaliação
público, a grande questão é saber se e em que
participativa tornam possível a emergência de
condições pode um bem público ser produzido
critérios de avaliação interna suficientemente
por uma entidade privada. Tratei acima o sec-
robustos para se medirem pelos critérios de
tor privado como consumidor de serviços uni-
avaliação externa. Os princípios de auto-ges-
versitários. Passo agora a centrar-me no sector
tão, auto-legislação e auto-vigilância tornam
privado como produtor. É um sector interna-
possível que os processos de avaliação sejam
mente muito diferenciado.
também processos de aprendizagem política
Alguns produtores de serviços são muito
e de construção de autonomias dos actores e
antigos, enquanto outros, a maioria, surgiram
das instituições. Só estes princípios garantem
nas duas últimas décadas. Alguns têm objecti-
que a auto-avaliação participativa não se trans-
vos cooperativos ou solidários, não lucrativos,
forme em auto-contemplação narcisista ou em
enquanto a esmagadora maioria busca fins lu-
trocas de favores avaliativos.
crativos. Algumas são verdadeiras universida-
des, a maioria não o é e, nos casos piores, são
Regular o sector universitário privado meras fabriquetas de diplomas-lixo. Algumas
A reforma da universidade como bem pú- são universidades com excelência em áreas de
blico que acabei de delinear não terá qualquer pós-graduação e pesquisa e enquanto outras
658 Boaventura de Sousa Santos

chegam a estar sob suspeita de serem fachadas sitário com a consequente descapitalização e
para lavagem de dinheiro ou tráfico de armas. desarticulação da universidade pública. Como
O modo como se constituiu este sector privado disse, tratou-se de uma opção política e países
de ensino superior diverge de país para país. diferentes tomaram opções diferentes. Portu-
Mas nos países periféricos e semiperiféricos, gal é um caso paradigmático do que acabei de
em que havia um sector público universitário, descrever. A Espanha é um caso parcialmente
o desenvolvimento do sector privado lucrativo diferente57. Por um lado, a autonomia regional
assentou em três decisões políticas: estancar levou a que cada comunidade autónoma qui-
a expansão do sector público através da crise sesse criar a sua universidade, o que produziu
financeira; degradar os salários dos professo- uma enorme expansão da universidade públi-
res universitários a fim de os forçar a buscar ca. Por outro lado, as tentativas do ex-Primei-
emprego parcial no sector privado56; actuar ro Ministro José María Aznar (1996-2004) de
com uma negligência benigna e premeditada equiparar o tratamento das universidades pú-
na regulação do sector privado, permitindo-lhe blicas e privadas e facilitar a transferência de
que ele se desenvolvesse com um mínimo de recursos das primeiras para as segundas foram
constrangimentos. Deste modo, o sector priva- parcialmente frustradas pela forte oposição
do foi dispensado de formar os seus próprios da comunidade universitária. Mesmo assim,
quadros e aproveitar-se de todo o conhecimen- as universidades privadas têm vindo a crescer
to e formação produzidos na universidade pú- em Espanha e, em Madrid, são já maioritárias,
blica. Isto significou uma maciça transferência ainda que a maioria dos estudantes frequente
de recursos da universidade pública para as universidades públicas58. É evidente que o caso
novas universidades privadas, uma transfe-
rência de tal montante e tão selvagem que é
legítimo concebê-la como um processo de acu- 57 Devo as informações sobre o caso espanhol a Juan
mulação primitiva por parte do capital univer- Carlos Monedero.
58 Em Espanha, tal como em Portugal, há dois tipos
de universidades privadas, as universidades católicas,
56 No caso do Brasil, outro factor foi permitir a apo- que, em Espanha, estão muito ligadas ao Opus Dei, e
sentadoria precoce, com salário integral, das universi- as universidades-negócio que surgiram sobretudo na
dades públicas. década de noventa. Um tema não abordado neste texto
a universidade no século XXI 659

brasileiro se aproxima mais do caso português realizadas no mercado de diplomas universitá-


do que do caso espanhol59. Assim sendo, o pri- rios. Assenta ainda na necessidade de corrigir
meiro sinal do verdadeiro objectivo de uma alguns dos efeitos da concorrência desleal e da
reforma da universidade pública será dado apropriação indevida de recursos de que a uni-
pelo modo como nessa reforma (ou fora dela) versidade pública foi vítima nas duas últimas
o Estado se posicionar perante as universida- décadas. Em face disto, a reforma da universi-
des privadas. Se o Estado assumir uma atitude dade como bem público tem de pautar-se por
cúmplice com o que se passa nestas últimas, as este princípio: compete ao Estado fomentar a
universidades públicas poderão concluir sem universidade pública, não lhe compete fomen-
mais que a reforma é feita contra elas, deven- tar a universidade privada; a relação do Estado
do tirar daí as devidas ilações. Naturalmente os com esta última deve ser qualitativamente dife-
adeptos do credo neoliberal exigirão igualdade rente: uma relação de regulação e fiscalização.
entre o sector público e sector privado, uma Num período de austeridade financeira, não se
exigência que obviamente não fizeram quando justifica que fundos públicos sejam canalizados
se criou o sector privado. O tratamento prefe- para o sector privado. Por sua vez, a regulação
rencial que a reforma deve dar à universidade da universidade privada deve ser tanto indirec-
pública não assenta apenas no facto de a uni- ta como directa. A regulação indirecta decorre
versidade pública realizar funções de interes- da expansão e da qualificação da universidade
se público que, por definição, não podem ser pública de modo a fazer subir o patamar do ne-
gócio universitário rentável. A situação diverge
de país para país mas, em geral, com a excep-
é a emergência de um novo tipo de universidades vin- ção dos Estados Unidos da América, o sector
culadas a igrejas protestantes de várias denominações, universitário privado ocupa a base da pirâmide
um fenómeno sobretudo evidente na América Latina, da qualidade, não o topo. A regulação directa
mas também presente em África. do mercado universitário faz-se a montante,
59 No Brasil, o primeiro impulso ao sector universi- com as condições de licenciamento e certifi-
tário privado deu-se na ditadura, na década de setenta. cação, e a jusante, com a avaliação dos resul-
Mas a verdadeira expansão e consolidação do mercado
tados. O licenciamento deve estar sujeito a re-
educacional ocorreu no governo de Fernando Henrique
Cardoso (1995-2002). novação e a avaliação deve seguir os critérios
660 Boaventura de Sousa Santos

de avaliação das universidades públicas. Tem de arremesso contra a exigência regulatória. A


de se evitar a todo o custo o dumping social maneira de avançar é através de um contrato
da formação universitária, uma situação imi- social, sempre e quando os actores em causa
nente em sectores do mercado saturado (por aceitarem os princípios políticos que orientam
exemplo, cursos de direito ou de gestão) e qua- a contratualização. Trata-se de um contrato di-
se sempre concentrados nas regiões de maior ferente daquele que é estabelecido com as uni-
densidade populacional. versidades públicas. No caso das universida-
A regulação estatal do mercado universitário des privadas com fins lucrativos, o contrato é
é um tema polémico e politicamente sensível exigido pela natureza dos serviços prestados e
por duas razões principais. Em primeiro lugar, o carácter mercantil da sua prestação. No caso
o sector privado cresceu descontroladamente das universidades privadas comprovadamente
e tem hoje um poder político muito excessivo sem fins lucrativos, o contrato social educacio-
em relação ao que poderia decorrer da qualida- nal tem de ser diferente, tanto do que vigora no
de dos serviços que presta. Este poder político sector público, como do que vigora no sector
é potenciado pela acção das agências interna- privado lucrativo.
cionais que promovem a transnacionalização
dos serviços de educação superior, já que ela O Estado e a transnacionalização
própria assenta num mercado que se quer des- do mercado da educação superior
regulado. Em segundo lugar, o sector privado, O último princípio da reforma da universida-
quando ocupa a base da pirâmide da qualidade, de como bem público decorre da análise que fiz
tende a prestar serviços aos filhos das classes sobre a polarização entre globalizações contra-
trabalhadoras e grupos sociais discriminados60. postas que hoje caracteriza as relações trans-
Estes facilmente se transformam numa arma nacionais. Consiste em fomentar e intensificar
as formas de cooperação transnacional que já
existem e multiplicá-las no quadro de acordos
60 O caso brasileiro apresenta alguma particularidade bilaterais ou multilaterais segundo princípios
neste domínio na medida em que as instituições priva-
das também são frequentadas por um expressivo estra-
de benefício mútuo e fora do quadro dos re-
to de classe média, em geral pessoas já empregadas, gimes comerciais. É este o sentido da globali-
com um nível relativamente elevado de renda. zação alternativa na área da universidade. Por
a universidade no século XXI 661

razões diversas, os exemplos mencionados va exigente mas realista fora da qual não será
acimada Europa e da África do Sul merecem possível a nenhum país desta região resistir in-
meditação. Nos países periféricos e semipe- dividualmente à avalanche da mercadorização
riféricos há que procurar sinergias regionais global da universidade61.
por ser a esta escala que a densificação das
redes é mais fácil e mais eficaz na luta contra Conclusão
a globalização neoliberal da universidade. No A universidade no século XXI será certa-
caso dos países de língua oficial portuguesa, a mente menos hegemónica, mas não menos
Comunidade dos Países de Língua Portugue- necessária que o foi nos séculos anteriores. A
sa (CPLP) é um espaço multilateral com um sua especificidade enquanto bem público resi-
enorme potencial para a transnacionalização
cooperativa e solidária da universidade. Aos
países semiperiféricos deste espaço, Brasil e 61 No caso da Comunidade de Países de Língua (CPLP)
foi criado em 2004 o espaço de ensino superior da CPLP
Portugal, cabe a iniciativa de dar os primeiros (Declaração de Fortaleza) com objectivos semelhantes
passos nessa direcção: cursos de graduação e ao do espaço de ensino superior europeu criado pelo
de pós-graduação em rede, circulação fácil e processo de Bolonha. Pouco se avançou nesse projec-
estimulada de professores, estudantes, livros e to até hoje. Entretanto em abril de 2008 o Ministro das
informações, bibliotecas on line, centros trans- Relações Exteriores do Brasil anunciou a criação da
Universidade da CPLP, no Nordeste do Brasil, na cida-
nacionais de pesquisa sobre temas e problemas de de Redenção. Quanto a este e outros projectos no
de interesse específico para a região, sistema interior da CPLP há que avaliá-los à luz das relações de
de bolsas de estudos e linhas de financiamento intercâmbio universitário que lhes subjazem. A tenta-
de pesquisa destinados aos estudantes e pro- ção neocolonialista, não apenas por parte de Portugal
(o que não surpreende por ter sido a potência coloni-
fessores interessados em estudar ou pesquisar
zadora neste espaço) mas também por parte do Brasil
em qualquer país da região, etc.. Este espaço (uma ex-colónia com mais poder económico que o ex-
regional deve articular-se com o MERCOSUL -colonizador) deve ser combatida. Fundamentalmente
e, em geral, com a América Latina, cabendo a trata-se de saber se o poder de concepção e de gestão
Portugal e ao Brasil articular-se com a Espa- destas iniciativas é distribuído segundo regras acorda-
das pelos países sem interferência do poder financeiro
nha, os países latino-americanos e africanos
de cada um deles. Na medida em que tal interferência
na realização deste projecto. É uma alternati- existir, haverá muito possivelmente neocolonialismo.
662 Boaventura de Sousa Santos

de em ser ela a instituição que liga o presente gência de um mercado universitário, primeiro
ao médio e longo prazo pelos conhecimentos nacional e agora transnacionalizado, ao tornar
e pela formação que produz e pelo espaço pú- mais evidentes as vulnerabilidades da universi-
blico privilegiado de discussão aberta e crítica dade pública, constitui uma tão profunda ame-
que constitui. Por estas duas razões, é um bem aça ao bem público que ela produz ou devia
público sem aliados fortes. A muitos não lhes produzir. A conjunção entre factores de ame-
interessa o longo prazo e outros têm poder su- aça interna e factores de ameaça externa está
ficiente para pôr sob suspeita quem ousa sus- bem patente na avaliação da capacidade da
peitar deles, criticando os seus interesses. A universidade pensar o longo prazo, talvez a sua
universidade pública é, pois, um bem público característica mais distintiva. Quem trabalha
permanentemente ameaçado, mas não se pen- hoje na universidade sabe que as tarefas uni-
se que a ameaça provém apenas do exterior; versitárias estão dominadas pelo curto prazo,
provém também do interior. É possível que, pelas urgências do orçamento, da competição
neste texto, eu tenha salientado mais a ameaça entre faculdades, do emprego dos licenciados,
externa que a ameaça interna. Ao contrário, no etc.. Na gestão destas urgências florescem ti-
meu primeiro trabalho sobre a universidade, pos de professores e de condutas que pouco
mencionado no prefácio, dei mais atenção à préstimo ou relevância teriam se, em vez de
ameaça interna. A razão desta inflexão de ên- urgências, fosse necessário identificar e poten-
fase deve-se ao facto de os factores da ameaça ciar as emergências onde se anuncia o longo
interna, antes identificados, estarem hoje a ser prazo. Este estado de coisas, que se deve certa-
potenciados através de uma perversa interac- mente a uma pluralidade de factores, não pode,
ção, que escapa a muitos, com os factores da contudo, deixar de ser pensado em conjunção
ameaça externa. Estou mais consciente do que com os sinais que poderosos actores sociais
nunca que uma universidade socialmente os- vão dando do exterior à universidade. Qual é o
tracizada pelo seu elitismo e corporativismo e retorno social de pensar o longo prazo, de dis-
paralisada pela incapacidade de se auto-inter- por de espaços públicos de pensamento crítico
rogar no mesmo processo em que interroga a ou mesmo de produção de conhecimento para
sociedade, é presa fácil dos prosélitos da glo- além daquele que é exigido pelo mercado? Na
balização neoliberal. É por isso que a emer- lógica do Banco Mundial, a resposta é óbvia: o
a universidade no século XXI 663

retorno é nulo, se existisse, seria perigoso e, se Estado, quer sob a forma dos actores mercantis
não fosse perigoso, não seria sustentável, pois nacionais e transnacionais, quer sob a forma de
estaria sujeito à concorrência dos países cen- agências internacionais ao serviço de uns e de
trais que têm neste domínio vantagens compa- outros, a reforma da universidade como bem
rativas inequívocas. Se esta lógica global e ex- público tem um significado que transcende
terna não encontrasse o terreno propício para em muito a universidade. É verdadeiramente
ser apropriada local e internamente, não seria um teste aos níveis de controlo público do Es-
por certo tão perigosa. A proposta que apresen- tado e aos caminhos da reforma democrática
tei neste texto está nos antípodas desta lógica do Estado. Como procurei mostrar, a universi-
global e externa e procura criar as condições dade enquanto bem público é hoje um campo
para que ela não encontre um terreno acolhe- de enorme disputa. Mas o mesmo sucede com
dor que facilite a sua apropriação interna e o Estado. A direcção em que for a reforma da
local em cada universidade, e em cada uma a universidade é a direcção em que está a ir a
seu modo. A universidade é um bem público reforma do Estado. De facto, a disputa é uma
intimamente ligado ao projecto de país. O sen- só, algo que os universitários e os responsáveis
tido político e cultural deste projecto e a sua políticos devem ter sempre presente.
viabilidade dependem da capacidade nacional
para negociar de forma qualificada a inserção Bibliografia
da universidade nos contextos de transnacio- Archibugi, D. e Bizzarri, K. 2004 “Committing
nalização. No caso da universidade e da edu- to Vaccine R&D: A global science policy
cação em geral, essa qualificação é a condição priority” in SPRU Electronic Working Paper
necessária para não transformar a negociação Series, Nº 112. Disponível em <http://www.
em acto de rendição e, com ele, o fim da univer- sussex.ac.uk/spru/publications/imprint/
sidade tal como a conhecemos. Só não haverá sewps/sewp112/sewp112.pdf>.
rendição se houver condições para uma globa- Asmal, K. 2003 “’Implications of the General
lização solidária e cooperativa da universidade. Agreement on Trade in Services (GATS)
Porque os aliados são poucos e porque os inte- on Higher Education’, presentation by the
resses hostis ao florescimento da universidade Minister of Education, Kader Asmal, to the
pública têm já hoje muito poder no interior do Portfolio Committee on Trade and Industry”
664 Boaventura de Sousa Santos

in Kagisano Issue, Nº 3, outono, 4 de Knight, J. 2003 “Trade in Higher Education


março, pp. 47-53. Services: the implications of GATS” in
Avritzer, L. 2002 A crise da universidade Kagisano Issue, Nº 3, pp. 5-37.
(Belo Horizonte) mimeo. Mehta, L. 2001 “The World Bank and its
Banco Mundial 2002 World Bank Higher emerging knowledge empire” in Human
Education in Brazil: Challenges and Organization, V. 60, Nº 2, pp. 189-196.
Options (Nova Iorque: World Bank) março. Meneses, M. P. 2005 “A questão da
Buarque, C. 1994 A Aventura da Universidade ‘Universidade Pública’ em Moçambique
(São Paulo: UNESP/Paz e Terra). e o desafio da abertura à pluralidade de
Chauí, M. 2003 “A universidade pública sob saberes” in Cruz e Silva, T.; Araújo, M. G.
nova perspectiva”, conferência de abertura e Cardoso, C. (org.) Lusofonia em África:
da 26ª reunião Anual da ANPED, Poço de história, democracia e a interrogação
Caldas, 5 de outubro. africana (Dakar: Codesria) pp. 45-66.
Estanque, E. e Nunes, J. A. 2003 “Dilemas e Santos, B. de Sousa 2000 A crítica da razão
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em Angola” in Africana Studia, Nº 3, pp. Santos, B. de Sousa 2004 (org.) Reconhecer
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a universidade no século XXI 665

Cosmopolitismo Multicultural (Porto:


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Ruínas na República dos Professores
(Petrópolis: Editora Vozes).
Wachelder, J. 2003 “Democratizing Science:
Various routes and visions of Dutch Science
Shops” in Science, Technology & Human
Values, V. 28, Nº 2, pp. 244-273.
A encruzilhada da
universidade europeia*

A o refletirmos sobre a universidade euro-


peia, ou mesmo sobre a universidade a ní-
vel mundial, este é um momento em que é tão
aconteçam. O grande filósofo Ernst Bloch es-
creveu que, para toda a esperança, há sempre
um caixão: Heil e Unheil.
importante olhar para o passado como para o Apesar de o nosso objetivo principal ser
futuro. No caso da Europa, encontramo-nos refletir fundamentalmente sobre a universi-
atualmente bem no meio do processo de Bo- dade europeia, seria pouco inteligente pensar
lonha. É um período propenso a flutuações in- que os desafios que a universidade europeia
tensas entre avaliações positivas e negativas, enfrenta hoje em dia não estão presentes em
entre os sentimentos de que é ou demasiado todos os continentes, por mais diferentes que
tarde ou demasiado cedo para alcançar os possam ser as razões, os argumentos e as solu-
resultados almejados. Na minha perspetiva, ções propostas.
essas flutuações intensas na análise e na ava- Em geral, podemos afirmar que a universi-
liação constituem um sinal de que tudo perma- dade está a atravessar — tal como o resto das
nece em aberto, de que o fracasso e o suces- sociedades contemporâneas — um período
so pairam igualmente no horizonte e de que de transição paradigmática. Esta transição
depende de nós fazer com que um ou o outro pode ser caracterizada da seguinte forma: en-
frentamos problemas modernos para os quais
não temos soluções modernas. Muito sucinta-
* Extraído de Santos, B. de Sousa 2013 “A encruzi- mente: os nossos problemas modernos resi-
lhada da Universidade Europeia” in Pela mão de Alice.
dem na prossecução dos ideais da Revolução
O social e o político na pós-modernidade (Coimbra:
Almedina) pp. 415-427. Francesa — liberdade, igualdade, fraternidade.
668 Boaventura de Sousa Santos

Nos últimos dois séculos não fomos capazes um período de impulsos reformistas intensos
de alcançar esses ideais, nem na Europa, nem em todo o mundo. Na maioria dos casos, foram
muito menos no resto do mundo. As soluções motivados pelos movimentos estudantis dos fi-
encontradas não conseguiram concretizar os nais dos anos sessenta e do início dos anos se-
objectivos maiores pelos quais se combateu tenta. Contudo, nos últimos quarenta anos, por
arduamente. Quando falo em soluções, refiro- razões distintas mas convergentes, em diversas
-me ao progresso científico e tecnológico, à partes do mundo a universidade converteu-se,
racionalidade formal e instrumental, ao Esta- em mais um problema e não numa solução
do burocrático moderno, ao reconhecimento para os problemas sociais.
das divisões e discriminações de classe, raça e No que diz respeito à universidade, o proble-
género e à institucionalização dos conflitos so- ma pode ser formulado desta maneira: a univer-
ciais suscitados por elas através de processos sidade está a ser confrontada com perguntas
democráticos, ao desenvolvimento de culturas fortes, para as quais não forneceu, até ao mo-
e identidades nacionais, ao secularismo e ao mento, mais do que respostas fracas. As pergun-
laicismo, e assim por diante. tas fortes são perguntas que atingem as raízes
A universidade moderna, particularmen- da própria identidade histórica e da vocação da
te a partir de meados do século XIX, foi uma universidade, de modo a interrogar não tanto
componente fundamental dessas soluções. Na os pormenores do seu futuro, mas antes se a
verdade, foi à luz delas que a autonomia insti- universidade, tal como a conhecemos, terá re-
tucional, a liberdade académica e a responsabi- almente um futuro. São, por isso, perguntas que
lidade social foram originalmente concebidas. suscitam um tipo particular de perplexidade.
A crise generalizada das soluções modernas As respostas fracas tomam o futuro da uni-
arrastou consigo a crise da universidade. Nos versidade por garantido. As reformas a que ape-
últimos quarenta anos, por razões diferentes, lam acabam por ser um convite ao imobilismo.
mas convergentes, em diferentes partes do As respostas fracas não atenuam a perplexida-
mundo, em vez de uma solução para os pro- de suscitada pelas perguntas fortes, podendo,
blemas societais, a universidade tornou-se um pelo contrário, aumentá-la. Na realidade, estas
problema adicional. Depois da Segunda Guer- respostas fracas partem do princípio de que a
ra Mundial, o início da década de setenta foi perplexidade é inútil.
A encruzilhada da universidade europeia 669

Como proponho e aprofundo mais adian- colha entre tipos diferentes de dependência, e
te, devemos aproveitar as perguntas fortes e na qual a própria ideia de um projecto nacio-
transformar a perplexidade que estas provo- nal se tornou um obstáculo para as conceções
cam em energia positiva de modo a aprofundar dominantes de desenvolvimento global? Será
e reorientar o movimento reformista. A perple- a universidade global uma resposta possível?
xidade resulta do facto de nos encontrarmos Nesse caso, quantas dessas universidades glo-
perante um campo aberto de contradições, no bais seriam viáveis? O que aconteceria ao gran-
qual existe uma competição inacabada e des- de número das universidades restantes? Se se
regulada entre diferentes possibilidades. Mos- pretendesse que as elites globais fossem for-
trando a magnitude do que está em causa, estas madas nas universidades globais, onde se en-
possibilidades abrem espaço para a inovação contrariam, na sociedade, os aliados e a base
política e institucional. social para as universidades não globais? Que
tipo de relações haveria entre universidades
Perguntas fortes globais e não globais? Poderá a atenção foca-
Apresento seguidamente alguns exemplos lizada nos rankings contribuir para a coesão
das perguntas fortes com que se confronta do espaço do ensino superior europeu ou, pelo
a universidade no início do século XXI. Sem contrário, para a sua segmentação através de
pretender ser exaustivo, seleciono doze des- uma concorrência injusta e do crescimento do
tas perguntas. internacionalismo comercial?
Primeira pergunta forte: dado o facto de a Uma segunda pergunta forte pode ser for-
universidade ter funcionado como elemento mulada assim: a ideia de uma sociedade do
constitutivo do edifício do Estado-Nação mo- conhecimento implica que o conhecimento
derno — formando as respetivas elites e buro- está em todo o lado; qual é o impacto desta
cracia e fornecendo o conhecimento e a ideo- ideia numa universidade moderna criada so-
logia subjacentes ao projeto nacional — como bre o pressuposto de que constituía uma ilha
pode a missão da universidade ser refundada de saber numa sociedade de ignorância? Qual
em um mundo globalizado, um mundo no qual é o lugar ou a especificidade da universidade
a soberania do Estado é, cada vez mais, uma como um centro de produção e difusão do co-
soberania partilhada ou simplesmente uma es- nhecimento numa sociedade com muitos ou-
670 Boaventura de Sousa Santos

tros centros de produção e difusão do conhe- beldes competentes, e que considere o conhe-
cimento? Ou, pelo contrário, poderão as novas cimento exclusivamente como uma mercado-
tecnologias de produção e disseminação do ria e nunca como um bem público?
conhecimento (internet ebook, ejournal, eli- Quarta pergunta forte: A universidade moder-
braries, etc.) minar as práticas tradicionais e na foi, desde o início, uma instituição transna-
elitistas de gate-keeping na publicação de li- cional ao serviço de sociedades nacionais. No
vros e revistas científicas e académicas, pos- seu melhor, a universidade moderna é um mode-
sibilitando novas práticas de peer reviewing, lo pioneiro dos fluxos internacionais de ideias,
mais equalitárias, culturalmente sensíveis e professores, estudantes e livros. Vivemos num
paradigmaticamente liberais? mundo globalizado, mas não num mundo homo-
Terceira pergunta forte: No seu melhor, a geneamente globalizado. Existem não apenas
universidade moderna foi um lugar de pensa- lógicas diferentes que determinam o movimento
mento livre e independente e de celebração da dos fluxos globalizados, mas também diferentes
diversidade, mesmo se sujeita aos limites es- relações de poder por detrás da distribuição dos
treitos das disciplinas, quer nas ciências, quer custos e dos benefícios da globalização. De par
nas humanidades. Tendo em conta que, nos úl- com a ganância transnacional existe uma solida-
timos trinta anos, a tendência para transformar riedade transnacional. De que lado estará a uni-
o valor do conhecimento no valor de mercado versidade? Tornar-se-á numa empresa transna-
do conhecimento se tornou cada vez mais for- cional ou numa cooperativa ou organização sem
te, poderá haver algum futuro para um conhe- fins lucrativos transnacional? Existe alguma
cimento não-conformista, crítico, heterodoxo, contradição entre a nossa ênfase no desenvolvi-
não mercantilizável, bem como para os profes- mento cultural e social e a ênfase de alguns po-
sores, investigadores e estudantes que desen- líticos europeus e de think-tanks poderosos no
volverem este tipo de conhecimento? Se sim, desenvolvimento económico e a contribuição
qual seria o seu impacto sobre os critérios de da universidade para a competitividade global
excelência e de competitividade interuniversi- dos negócios europeus? Que razão levou a que
tária? Se não, poderemos continuar a chamar alguns dos melhores esforços reformistas fora
universidade a uma instituição que produza da Europa (por exemplo, no Brasil) a adotarem
apenas conformistas competentes, e jamais re- o slogan: “Nem Bolonha nem Harvard”?
A encruzilhada da universidade europeia 671

Quinta pergunta forte: A longo prazo, a ideia Sexta pergunta forte: o prestígio do empre-
da Europa só será sustentável como a Europa go vai de par com a qualificação e escassez do
das ideias. Ora, a universidade tem sido histo- mesmo. A universidade moderna tem estado
ricamente um dos pilares da Europa das ideias, no cerne da produção social de elevadas qua-
por mais questionáveis que essas ideias possam lificações de emprego. Se os rankings conse-
ter sido. Isto foi possível através da concessão guirem fragmentar o sistema universitário eu-
à universidade de um grau de autonomia inima- ropeu e o futuro sistema universitário global,
ginável em qualquer outra instituição estatal. O que empregos e que qualificações serão gera-
lado negativo desta autonomia foi o isolacionis- dos por que universidades? O sistema mundial
mo social, a falta de transparência, a ineficiên- está construído sobre uma hierarquia integrada
cia organizacional, um prestígio social desliga- de países do centro, países periféricos e países
do das realizações académicas. Segundo o seu semiperiféricos. A presente crise financeira e
desígnio original, o processo de Bolonha devia económica tem mostrado que a mesma hierar-
ter posto fim a este lado negativo sem afetar sig- quia existe na Europa e, como tal, a coesão so-
nificativamente a autonomia da universidade. cial tem revelado o seu lado negativo: existe na
Será que este desígnio tem sido levado a cabo condição de não afetar a hierarquia estrutural,
sem resultados perversos? Será que o processo de que os países se mantenham centrais, pe-
de Bolonha é uma rutura com os aspetos nega- riféricos ou semiperiféricos, sem ascenderem
tivos da universidade tradicional, ou, pelo con- nem descerem na hierarquia. Será que teremos
trário, um brilhante exercício de reordenação universidades periféricas, semiperiféricas e
de inércias e reciclagem de antigos vícios? Será centrais, mesmo que estas não coincidam ne-
possível estandardizar procedimentos e crité- cessariamente com a localização na hierarquia
rios abrangendo tantas culturas universitárias dos países nos quais se situam? Será que o pro-
diferentes sem aniquilar a diversidade e a ino- cesso de Bolonha vai tornar essas hierarquias
vação? Será possível promover a transparência, mais rígidas ou mais fluidas? Dependendo da
a mobilidade e o reconhecimento mútuo, pre- distribuição geopolítica dos rankings, será que
servando a diversidade institucional e cultural? a hierarquia entre as universidades contribuirá
Por que razão as boas ideias e os ideais nobres para acentuar ou atenuar as hierarquias entre
são tão facilmente cooptados pelos burocratas? países europeus?
672 Boaventura de Sousa Santos

Sétima pergunta forte: À medida que a uni- cializável, qual o impacto que será exercido
versidade diversifica os graus de qualificação sobre ele se esse conhecimento for avaliado
— primeiro, segundo e terceiro ciclos e graus exclusivamente segundo o respetivo valor de
de pós-doutoramento — a iliteracia social au- mercado? Qual será o futuro da responsabili-
menta nos graus inferiores, justificando assim dade social se a extensão universitária for re-
o maior valor dos graus mais elevados. De fac- duzida a um expediente ou a um fardo para
to, trata-se de um movimento em espiral. Terá angariar recursos financeiros? O que aconte-
já esgotado o seu potencial de desenvolvimen- cerá ao imperativo de tornar a universidade
to? Quantos ciclos mais teremos no futuro? relevante para as necessidades da sociedade,
Estaremos a criar iliteracia infinita no mesmo partindo do princípio de que essas necessida-
processo em que criamos conhecimento infini- des não se reduzem às do mercado e podem
to? Será que as universidades periféricas e se- até contradizê-las?
miperiféricas ficarão encarregadas de resolver Nona pergunta forte: A universidade (ou
o problema da iliteracia, ficando o monopólio pelo menos a universidade pública) inseriu-
do conhecimento altamente qualificado reser- -se historicamente nos três pilares da regula-
vado às universidades centrais? ção social moderna — o Estado, o mercado
Oitava pergunta forte: Será que a univer- e a sociedade civil. Contudo, o equilíbrio da
sidade poderá preservar a sua especificidade presença destes pilares na estrutura e funcio-
e a sua autonomia relativa, sendo governada namento da universidade foi variando ao lon-
por imperativos de mercado e pelas exigên- go do tempo. Na verdade, a universidade eu-
cias do mercado de trabalho? Tendo em conta ropeia moderna começou em Bolonha, como
a validade altamente problemática da análise uma iniciativa da sociedade civil. Mais tarde,
custo-benefício no domínio da investigação e o Estado reforçou a sua presença, que se tor-
desenvolvimento, será que a universidade terá nou dominante a partir de meados do século
a possibilidade de assumir custos certos na XIX, e nas colónias, particularmente depois de
expectativa de lucros incertos, tal como sem- se tornarem independentes. Nos últimos trinta
pre fez no passado? O que acontecerá ao saber anos, o mercado assumiu o controlo na estru-
que não tem e não deve ter valor de mercado? turação da vida universitária. Em poucas déca-
No que diz respeito ao conhecimento comer- das, a universidade deixou apenas de produzir
A encruzilhada da universidade europeia 673

conhecimento e profissionais para o mercado, tivos eurocêntricos, fossem eles a celebração


para se tornar ela própria um mercado, o mer- romântica do Outro ou a subjugação colonial
cado da educação terciária, e finalmente, pelo e destruição desse Outro. Em ambos os casos,
menos de acordo com visionários poderosos, o conhecimento do Outro tinha como função
para passar a ser gerida como uma organiza- demonstrar a superioridade e, por conseguin-
ção de mercado, uma organização comercial. te, a universalidade da cultura europeia. Era
Desde então, as preocupações da sociedade imprescindível um conhecimento detalhado,
civil têm sido facilmente confundidas com os colonial ou imperial do Outro. Por exemplo, a
imperativos de mercado ou subordinadas a minha universidade, a Universidade de Coim-
eles, e o Estado tem usado frequentemente o bra, fundada em 1290, contribuiu de forma
seu poder coercivo para impor imperativos de determinante para o desenvolvimento de um
mercado às universidades relutantes. Será que conhecimento empenhado na empresa colo-
o processo de Bolonha é uma resposta criativa nial. A qualidade e a intensidade do trabalho
a exigências neoliberais, unidimensionais ou, preparatório desenvolvido pelos missionários
pelo contrário, uma maneira de as impor atra- antes do embarque para além-mar é impressio-
vés de um processo europeu transnacional que nante, e ainda mais admirável quando compa-
neutralize a resistência nacional? rado com o trabalho preparatório dos executi-
Décima pergunta forte: as universidades vos do Banco Mundial e do Fundo Monetário
europeias e muitas outras universidades no Internacional quando evangelizam o mundo
resto do mundo que seguiram o modelo eu- com a ortodoxia neoliberal nas cabeças e nas
ropeu foram instrumentais na disseminação algibeiras. Do conhecimento que estes preten-
de uma mundivisão eurocêntrica, uma visão dem ter não se pode dizer aquilo que o grande
suficientemente poderosa (tanto em termos líder dos movimentos de libertação africanos,
intelectuais como militares) para reivindicar Amílcar Cabral, afirmou sobre o conhecimento
uma validade universal. Esta reivindicação colonial: “A procura desse conhecimento, ape-
não implicava ignorar as diferenças culturais, sar do seu cariz unilateral, subjetivo e muitas
sociais e espirituais do mundo não-europeu. vezes injusto, contribui de facto para enrique-
Pelo contrário, pressupunha o conhecimento cer as ciências humanas e sociais em geral”
dessas diferenças, mesmo que sujeito a obje- (Cabral, 1982: 197-203).
674 Boaventura de Sousa Santos

A décima primeira questão é a seguinte: Es- produtos e produtoras de modelos específicos


tará a universidade preparada para reconhecer de desenvolvimento. Quando o processo de
que a compreensão do mundo vai muito além Bolonha se iniciou havia mais certezas sobre
da compreensão ocidental do mundo? Será que o projeto de desenvolvimento europeu do que
a universidade está preparada para refundar a há atualmente. O efeito cumulativo de crises
ideia de universalismo numa nova base inter- múltiplas — a crise económica e financeira, a
cultural? Vivemos num mundo de normas em crise ambiental e energética, a crise do modelo
conflito e muitas delas têm conduzido à guerra social europeu, a crise das migrações, a crise
e à violência. As diferenças culturais, as identi- da segurança — aponta para uma crise civili-
dades coletivas novas e velhas, as conceções e zacional ou para uma mudança paradigmática.
convicções políticas, religiosas e morais anta- A pergunta é: num período tão tumultuoso,
gonísticas são hoje mais visíveis do que nun- será que é possível a universidade manter-se
ca, tanto fora como dentro da Europa. Não há serena? E, se for possível, será que é desejá-
nenhuma alternativa à violência que não passe vel? Será que o processo de Bolonha está a
pela disponibilidade para aceitar a incompletu- capacitar a universidade para entrar no debate
de de todas as culturas e identidades, incluindo sobre modelos de desenvolvimento e paradig-
a nossa, por negociações árduas, e por um diá- mas civilizacionais, ou, pelo contrário, estará a
logo intercultural credível. Se a Europa, contra moldá-la para servir de um modo tão acrítico e
o seu próprio passado, se quiser tornar um fa- eficiente quanto possível o modelo dominante
rol da paz, do respeito pela diversidade e pelo decidido pelos poderes instituídos e avaliado
diálogo intercultural, a universidade terá certa- pelos novos supervisores da produção univer-
mente um papel fundamental a desempenhar. sitária, a mando dos mesmos poderes?
Será que as universidades europeias submeti- A nível internacional, dado o conflito entre
das atualmente a processos de reforma têm em conceções locais de desenvolvimento autóno-
mente esse papel como um objetivo estratégi- mo e o modelo de desenvolvimento global im-
co do seu futuro? posto pelas regras da Organização Mundial do
A décima segunda pergunta, provavelmente Comércio, e tendo em conta o facto de os es-
a mais forte de todas, é a seguinte: as univer- tados europeus serem estados doadores, será
sidades modernas têm sido simultaneamente que a universidade poderá contribuir para um
A encruzilhada da universidade europeia 675

diálogo entre modelos diferentes de desenvol- agimos sobre o futuro; agimos sobre o presen-
vimento? Ou, pelo contrário, será que a univer- te à luz das nossas previsões ou visões do que
sidade fornecerá legitimidade intelectual a im- será o futuro. As perguntas fortes indicam que
posições unilaterais dos estados doadores, tal não há uma previsão única ou visão consensual
como acontecia no período colonial? que se possa considerar garantida, e é por isso
que estas questões nos convidam para uma re-
O presente como flexão profunda.
o passado do futuro Penso que nos encontramos perante duas
Na minha perspetiva, até agora, uma década visões alternativas e que a sua copresença é a
depois do início do processo de Bolonha, não fonte das tensões que atravessam o nosso siste-
conseguimos fazer mais do que dar respostas ma universitário atualmente. Suscitam duas vi-
fracas a estas perguntas fortes. As mais fracas sões imaginárias opostas de uma avaliação re-
de todas são as não-respostas, os silêncios, o trospetiva das reformas em curso. Isto é, olham
assumir do novo senso comum sobre a missão para o presente a partir do futuro.
da universidade como um pressuposto defini- Segundo uma delas, os nossos esforços de
tivo. Esta é uma situação que devemos ultra- reforma constituíram, de facto, uma verdadei-
passar o mais rapidamente possível. O perigo é ra reforma, na medida em que conseguiram
mascararmos conquistas realmente medíocres preparar a universidade para enfrentar com
para parecerem brilhantes saltos em frente, eficiência os desafios do século XXI — diver-
disfarçarmos a resignação sob a máscara do sificando a sua missão, sem prescindir da sua
consenso, orientarmos a universidade no sen- autenticidade, reforçando a autonomia institu-
tido de um futuro em que não há futuro para a cional, a liberdade académica e a responsabi-
universidade. Creio que nos encontramos numa lidade social no quadro das condições novas
encruzilhada que os nossos cientistas da com- e muito complexas da Europa e do mundo em
plexidade caracterizariam como uma situação geral. Assim, a universidade europeia foi capaz
de bifurcação. Movimentos mínimos numa di- de refundar o seu ideal humanista de um modo
reção ou noutra podem produzir alterações sig- internacionalista, solidário e intercultural.
nificativas e irreversíveis. Tal é a magnitude da Segundo a outra visão retrospetiva imaginá-
nossa responsabilidade. Sabemos que nunca ria, o processo de Bolonha foi, pelo contrário,
676 Boaventura de Sousa Santos

uma contrarreforma, na medida em que blo- institucional em nome da eficiência do mercado


queou as reformas que as universidades, em universitário europeu e da competitividade; as
diferentes países europeus, estavam a levar a universidades mais débeis (concentradas nos
cabo individualmente, e cada uma segundo as países mais débeis) são lançadas pelas agên-
respectivas condições específicas, no sentido cias de rating universitário no caixote do lixo
de enfrentarem os desafios acima menciona- do ranking, tão supostamente rigoroso quan-
dos. Mais: o processo de Bolonha forçou uma to realmente arbitrário e subjetivo, e sofrerão
convergência para lá de um nível razoável, com as consequências do desinvestimento público
o que retirou à universidade os mecanismos acelerado; muitas universidades encerrarão
que lhe permitiriam resistir aos imperativos e, tal como já está a acontecer a outros níveis
do mercado e dos negócios da mesma maneira de ensino, os estudantes ricos e seus pais va-
que, no passado, resistira aos imperativos da guearão pelos países em busca da melhor ratio
religião e, mais tarde, do Estado. qualidade/preço, tal como já fazem nos centros
De modo a não finalizar com uma nota comerciais em que as universidades entretanto
pessimista, vou começar por descrever deta- se terão transformado, enquanto os estudantes
lhadamente a segunda visão retrospetiva, e pobres e os seus pais se verão limitados às uni-
passar seguidamente à primeira. A segunda versidades pobres existentes nos respetivos pa-
visão, a visão da contrarreforma, coloca-nos íses ou bairros pobres. O impacto interno será
perante um cenário distópico com as caracte- avassalador: a relação investigação/docência,
rísticas seguintes. tão proclamada por Bolonha, será o paraíso
Agora que a crise financeira permitiu ver os para as universidades no topo do ranking (uma
perigos de criar uma moeda única sem unificar pequeníssima minoria) e o inferno para a esma-
as políticas públicas, a fiscalidade e os orça- gadora maioria das universidades e respetivos
mentos do Estado, pode suceder que, a prazo, académicos. Os critérios de mercantilização
o processo de Bolonha se transforme no euro reduzirão o valor das diferentes áreas de co-
das universidades europeias. As consequências nhecimento ao seu preço de mercado e o latim,
previsíveis serão estas: abandonam-se os prin- a poesia ou a filosofia só serão mantidos se al-
cípios do internacionalismo universitário soli- gum macdonald informático vir neles utilidade.
dário e do respeito pela diversidade cultural e Os gestores universitários serão os primeiros
A encruzilhada da universidade europeia 677

a interiorizar a orgia classificatória, objectivo- terciária estará finalmente liberalizado e con-


maníaca e indicemaníaca; tornar-se-ão exímios forme às regras da Organização Mundial do
em criar receitas próprias por expropriação Comércio. Como já disse, nada do que acabei
das famílias ou pilhagem do descanso e da vida de descrever tem de acontecer. Há uma outra
pessoal dos docentes, exercendo toda a sua visão retrospetiva que, nos nossos corações e
criatividade na destruição da criatividade e da nas nossas mentes, temos muita esperança que
diversidade universitárias, normalizando tudo venha a prevalecer. Porém, para que tal aconte-
o que é normalizável e destruindo tudo o que o ça, temos de começar por reconhecer e denun-
não é. Os professores serão proletarizados por ciar que a suposta nova normalidade do estado
aquilo de que supostamente são donos — o en- de coisas da descrição acima constitui, de fac-
sino, a avaliação e a investigação — zombies de to, uma aberração moral, e implicará o fim da
formulários, objetivos, avaliações impecáveis universidade, tal como a conhecemos.
no rigor formal e necessariamente fraudulen- Consideremos agora a outra visão retrospe-
tas na substância, workpackages, deliverables, tiva, aquela que, olhando para o nosso presente
milestones, negócios de citação recíproca para a partir do futuro, avalia o processo de Bolo-
melhorar os índices, comparações entre o pu- nha como uma verdadeira reforma que alterou
blicas-onde-não-me-interessa-o-quê, carreiras a universidade europeia profundamente e para
imaginadas como exaltantes e sempre paradas melhor. Esta visão enfatizará as seguintes ca-
nos andares de baixo. Para os docentes mais racterísticas dos nossos esforços atuais.
jovens, a liberdade académica não passará de Em primeiro lugar, o processo de Bolonha
uma piada cruel. Os estudantes serão donos foi capaz de identificar e resolver maioria dos
da sua aprendizagem e do seu endividamento problemas de que a universidade pré-Bolonha
para o resto da vida, em permanente deslize da sofria e que era incapaz de defrontar, tais
cultura estudantil para cultura do consumo es- como: inércias estabelecidas que paralisavam
tudantil, autónomos nas escolhas de que não todo e qualquer esforço reformista; preferên-
conhecem a lógica nem os limites, personali- cias endogâmicas que criavam aversão à ino-
zadamente orientados para as saídas de uma vação e ao desafio; autoritarismo institucional
alternativa massificada de emprego ou de de- disfarçado de autoridade académica; nepotis-
semprego profissional. O serviço da educação mo disfarçado de mérito; elitismo disfarçado
678 Boaventura de Sousa Santos

de excelência; controlo político disfarçado capacidade de transformar preferências subje-


de participação democrática; neofeudalismo tivas e arbitrárias em verdades autoevidentes
disfarçado de autonomia departamental ou de e políticas públicas inevitáveis. Nesta visão, o
faculdade; temor da avaliação disfarçado de processo de Bolonha manteve em vista duas
liberdade académica; baixa produção científi- perspetivas intelectuais poderosas da missão
ca disfarçada de resistência heróica a termos da universidade produzidas nos primeiros
de referência estúpidos ou a comentários ig- anos do século passado e, inequivocamente,
norantes de avaliadores; ineficiência adminis- tomou partido entre as duas. Uma foi formu-
trativa generalizada sob o disfarce de respeito lada por Ortega y Gasset e Bertrand Russel,
pela tradição. dois intelectuais com ideias políticas muito di-
Em segundo lugar, desta maneira, o proces- ferentes, mas que convergiram na denúncia da
so de Bolonha, em vez de ter desacreditado e instrumentalização política da universidade. A
atirado borda fora os esforços de autoavaliação outra, formulada por Martin Heidegger na sua
e de reforma que estavam a ser levados a cabo aula inaugural como reitor da Universidade
pelos professores e administradores mais de- de Freiburg im Breisgau em 1933, exortava a
dicados e inovadores, forneceu-lhes um novo universidade a contribuir para preservar a for-
quadro e um apoio institucional forte, na medi- ça alemã da terra e do sangue. O processo de
da em que o processo de Bolonha se converteu Bolonha adotou inequivocamente a primeira e
numa energia endógena, em vez de constituir recusou a segunda.
uma imposição externa. De modo a conseguir Em quarto lugar, os reformistas nunca con-
tudo isto, o processo de Bolonha foi capaz de fundiram o mercado com a sociedade civil ou
combinar convergência com diversidade e di- com a comunidade e lutaram para que a uni-
ferença, e desenvolveu mecanismos de discri- versidade mantivesse uma conceção alargada
minação positiva para permitir aos diferentes de responsabilidade social, encorajando a in-
sistemas universitários nacionais cooperar e vestigação-ação, bem como os projetos de ex-
competir entre si em termos justos. tensão com o objetivo de melhorar as vidas dos
Em terceiro lugar, o processo de Bolonha grupos sociais mais vulneráveis, presos nas ar-
nunca se deixou dominar pelos chamados pe- madilhas da desigualdade e da discriminação
ritos internacionais do ensino terciário com a social sistémicas, tais como as mulheres, os
A encruzilhada da universidade europeia 679

desempregados, os jovens e os idosos, os tra- cia, garantiu que a comunidade de professo-


balhadores migrantes, as minorias étnicas e res universitários não seria dividida entre dois
religiosas, etc. segmentos estratificados: um pequeno grupo
Quinto, o processo de reforma tornou mui- de cidadãos universitários de primeira classe,
to claro que as universidades são centros de com dinheiro em abundância, cargas de ser-
produção de conhecimento no sentido mais viço docente muito leves e outras boas condi-
alargado possível. Neste sentido, promoveu a ções para fazer investigação, por um lado, e,
interculturalidade, a heterodoxia e o empenha- por outro lado, um grande grupo de cidadãos
mento crítico da melhor tradição liberal que a universitários de segunda classe escravizados
universidade pré-Bolonha havia abandonado por longas horas de docência e tutoria, com es-
em nome do política ou economicamente cor- casso acesso a fundos de investigação, apenas
reto. Na mesma linha, encorajou o pluralismo porque foram contratados pelas universidades
científico interno e, o que é ainda mais impor- erradas ou se interessavam por assuntos su-
tante, garantiu dignidade e importância iguais postamente errados. Conseguiu combinar uma
ao conhecimento com valor de mercado e ao seletividade mais elevada no recrutamento e
conhecimento sem qualquer possível valor de uma prestação de contas rigorosa no uso do
mercado. Para além disso, os reformistas sa- tempo de docência e dos fundos de investiga-
biam claramente, durante todo o processo, que, ção com uma preocupação real pela igualdade
no domínio da investigação e desenvolvimen- de oportunidades. Compreendeu os rankings
to, a análise custo / benefício é um instrumento como o sal na comida: a menos, torna-a intra-
muito grosseiro que pode matar a inovação em gável; a mais, mata todos os sabores. Para além
vez de a promover. De facto, a história da tec- disso, num dado momento, decidiu que aquilo
nologia mostra amplamente que as inovações que acontecera nos rankings internacionais de
com maior valor instrumental se tornaram pos- outras áreas também podia ser aplicado ao sis-
síveis porque não houve preocupação com cál- tema universitário. Por isso, tal como o PIB co-
culos de custo / benefício. existe com o índice de desenvolvimento huma-
Sexto, o processo de Bolonha conseguiu re- no do PNUD, o processo de Bolonha foi capaz
forçar a relação entre docência e investigação de introduzir pluralidade interna nos sistemas
e, ao mesmo tempo que premiava a excelên- de ranking.
680 Boaventura de Sousa Santos

Sétimo, o processo de Bolonha acabou por Bibliografía


abandonar o conceito de capital humano, ou- Cabral, A. 1982 “The role of Culture in the
trora em voga, depois de ter concluído que as Struggle for Independence” in Bragança,
universidades deviam formar seres humanos A. de e Wallerstein, I. (eds.) The African
e cidadãos completos e não um mero capital Liberation Reader (Londres: Zed Press) pp.
humano sujeito às flutuações do mercado tal 197-203.
como qualquer outro tipo de capital. Isto teve Filho, N. de Almeida 2008 “Universidade Nova
um impacto decisivo nos curricula e na ava- no Brasil” in Santos, B. de Sousa e Filho,
liação das atividades. Finalmente, o processo N. de Almeida (eds.) A universidade no
de Bolonha expandiu exponencialmente a in- século XXI. Para uma universidade nova
ternacionalização da universidade europeia, (Coimbra: Almedina) pp. 74-184.
mas teve o cuidado de promover outras formas
de internacionalismo, em vez do internaciona-
lismo comercial. Desta maneira, o espaço eu-
ropeu do ensino superior deixou de ser uma
ameaça à liberdade académica e à autonomia
intelectual das universidades em todo o mundo
para se tornar um aliado leal e político na ma-
nutenção das ideias de liberdade académica,
autonomia institucional e diversidade de co-
nhecimento bem vivas e saudáveis num mundo
ameaçado pelo pensamento único dos impera-
tivos de mercado.
Rumo a uma universidade
polifônica comprometida
Pluriversidade e subversidade*

A universidade moderna está passando por


uma transformação profunda, a principal
dinâmica que se destina a reforçar ambos ca-
mais justa. No entanto, por outro lado, uma
pluriversidade é uma universidade que, lon-
ge de ser militante, clama para si mesma uma
pitalismo e colonialismo universitários. Em al- distância crítica e uma postura objetiva, uma
guns contextos, a dinâmica pode consistir não objetividade forte que não permite a si mesma
tanto em reforçar, mas em fazer mais visíveis ser equiparada à neutralidade. Em alguns con-
as condições preexistentes. O objetivo do con- textos políticos, a universidade tem sido fre-
tra movimento para tais desenvolvimentos é quentemente solicitada a ser uma universidade
tanto lidar de fato com um passado problemá- militante, no sentido de providenciar lealdade
tico, quanto garantir um futuro pós-capitalista, política acrítica para qualquer força política
pós-colonial e pós-patriarcal. Isto se soma à re- que se apresenta como defensora do interesse
estruturação da universidade como a conhece- nacional e que tenha o poder de demandar par-
mos. Pode ser designado como um movimento tidarismo na parte da universidade.
em direção a uma universidade comprometida Por universidade polifônica eu quero dizer
e polifônica — uma pluriversidade. Por uma uma universidade que exercita seu compro-
universidade comprometida eu quero dizer misso de forma plural, não só em termos de
uma universidade que, longe de ser neutra, é conteúdo substancial, mas também em termos
engajada em lutas sociais para uma sociedade institucionais e organizacionais. Uma univer-
sidade polifônica é uma universidade cuja voz
comprometida é composta não somente por
* Texto inédito em português. Tradução: Eduarda
Oliveira. muitas vozes, mas é, acima de tudo, composta
682 Boaventura de Sousa Santos

por vozes que são expressas por meio de duas O objetivo é construir a pluriversidade. A uni-
formas — convencional e não convencional —, versidade polifônica de tipo 2 toma lugar fora
em processos de aprendizado orientados por das instituições convencionais. É constituída
diploma ou não orientados por diploma. É uma pelo uso contra-hegemônico de uma ideia he-
universidade que reivindica sua especificidade gemônica — a ideia da universidade. O obje-
institucional ao operar dentro e fora de insti- tivo é construir a subversidade, um termo que
tuições que a caracterizavam até então, uma captura tanto o caráter subalterno dos grupos
universidade que justifica sua singularidade sociais geralmente envolvidos em suas iniciati-
institucional através do engajamento em criati- vas, quanto a maneira subversiva na qual ela in-
vidade institucional e até em subversão. tervém na ideia convencional de universidade.
A universidade polifônica comprometida
pode ser vista como uma estratégia tanto de- A Universidade Polifônica
fensiva quanto ofensiva. É defensiva no sen- de Tipo 1: a pluriversidade
tido de que a universidade, ao se tornar mais Tipo 1 é analisada na segunda parte do ca-
difusa e esquiva, resiste melhor às forças que pítulo 3. Vou mencionar aqui apenas os prin-
a querem capturar ou desmantelar. Todavia, cípios de atuação principais e tarefas que
eu a vejo principalmente como uma estratégia guiam o processo de reforma: confrontar o
ofensiva, como uma forma de reinventar seu novo com novo; lutar por uma definição da
lugar na sociedade, ao tomar partido daqueles crise; acesso democrático; extensão como
que estão lutando contra capitalismo, colonia- uma prestação de serviço de interesse públi-
lismo, e patriarcado, enquanto clamam pela au- co para públicos insolventes; pesquisa-atu-
tonomia de seu compromisso. ação e a ecologia dos saberes; interligação
Da maneira que imagino e desejo, a univer- entre a universidade e a escola pública; rede
sidade polifônica comprometida vai assumir de trabalho no eixo Sul-Sul; democratização
duas formas principais: tipo 1 e tipo 2. Tipo 1 interna; avaliação participativa.
toma lugar dentro dos limites de configurações As epistemologias do Sul estão no centro
institucionais existentes mesmo reformando- da pluriversidade. Nós estamos entrando em
-as profundamente de acordo com os princí- um período no qual formas moralmente repug-
pios irmanados de compromisso e polifonia. nantes de desigualdade social e discriminação
Rumo a uma universidade polifônica comprometida: Pluriversidade e subversidade 683

social estão se tornando politicamente aceitá- produzidos para serem usados como ferramen-
veis, enquanto as forças políticas e sociais que tas contra a dominação — são parte de certa
costumavam desafiar essa situação em nome transformação epistemológica. A meu ver, uma
de alternativas políticas e sociais estão per- nova universidade polifônica deve emergir en-
dendo vigor e, em geral, aparentam estar numa quanto essa transformação epistemológica se
defensiva global. As ideologias modernas de revela. Não há certeza alguma de que isso irá
contestação política têm sido largamente coop- ocorrer. Porém se ocorrer, eu suspeito que as
tadas pelo neoliberalismo. Há resistência, sen- epistemologias do Sul terão um papel crucial.
do que ocorre mais e mais fora de instituições, Eu não posso deixar de me engajar em algum
e não através de modos de mobilização com tipo de consciência antecipatória ao colocar o
os quais nós somos familiares desde períodos futuro antes de nós como se ele estivesse aqui
anteriores: partidos políticos e movimentos e agora. Tal consciência é fundada em ideias
sociais. Políticas dominantes se tornam epis- que resultam imediatamente1.
temológicas quando são capazes de fazer uma Até um certo limiar, a tensão entre conheci-
reivindicação verossímil de que o único conhe- mento com valor de mercado e conhecimento
cimento válido disponível é aquele que ratifica sem valor de mercado vai levar a uma separa-
sua própria dominância. Em certo Geist histó- ção política e institucional dentro da universi-
rico, parece claro que a saída para este impasse dade como a conhecemos. A partir daí, e por
tem como premissa a emergência de uma nova um período indeterminado, universidades
epistemologia que é politicamente explícita. vão ser entidades mistas, experiências educa-
Isso significa que a reconstrução ou reinvenção cionais que uma gestão comum dificilmente
de políticas de confronto requerem uma trans- suportará. Assumindo que o neoliberalismo
formação epistemológica. falha em colocar preços em cada possibilida-
Como eu tenho argumentado, nós não pre- de de conhecimento, a separação educacional
cisamos de alternativas; nós precisamos de vai colocar fim na ideia de conhecimento pelo
um pensamento alternativo de alternativas. As bem do conhecimento, e na união da objetivi-
epistemologias do Sul — por privilegiar conhe-
cimentos (sejam eles científicos ou artesanal/
prático/popular/empírico) nascidos na luta ou 1 Para uma análise extensa, ver: Santos, 2014.
684 Boaventura de Sousa Santos

dade científica com a neutralidade científica. ao menos que se mantenha dentro dos muros,
Ao contrário, vai se tornar mais evidente que como um assunto da universidade a ser ana-
a produção de conhecimento e a formação uni- lisado exclusivamente por acadêmicos. Sem
versitária ou é a favor ou é contra a mercan- aliados externos, acadêmicos não orientados
tilização do conhecimento, e pesquisadores e pelo mercado vão ser facilmente dominados
professores vão vivenciar “na própria pele” as por acadêmicos orientados pelo mercado.
consequências dessa bifurcação. A universidade como a conhecemos pode
A partir de então, a pergunta sobre qual lado acabar neste momento, ao menos que acadê-
se está vai ser inevitável. Mais provavelmente, micos não orientados pelo mercado consigam
os campos do conhecimento sem valor de mer- levar sua luta para o mundo fora dos muros da
cado vão concluir que eles não vão sobreviver universidade e encontrar ou construir aliados
se continuarem a definir-se a si mesmos negati- na sociedade de maneira geral. Isso pode de
vamente, isto é, em termos de o que eles não são fato ser possível por causa da falência da ideia
(conhecimentos não-comercializáveis), e vão de neutralidade na busca por conhecimento não
olhar para definições positivas de suas identi- comercializável. Tais grupos são aqueles que lu-
dades, valores e objetivos, como conhecimento tam contra as mesmas estruturas de poder que
livre de mercado contra conhecimento de livre defenderam a mercantilização do conhecimen-
mercado. Esta autorreflexão vai ajudar mos- to universitário e da formação universitária,
trar que a sobrevivência de esforços acadêmi- isto é, capitalismo cognitivo. Eles são grupos
cos depende do questionamento bem-sucedido sociais subalternos, grupos que sofreram em
do aparentemente todo-poderoso percurso em suas experiências de vida as consequências do
direção à mercantilização do conhecimento e capitalismo cognitivo e do colonialismo, contra
a industrialização capitalista da universidade. os quais estão, portanto, vitalmente interessa-
A fim de ser significativa, tal questionamento dos em lutar. Tais grupos são socialmente e cul-
vai envolver a contestação das forças sociais e turalmente muito diversos e suas experiências
dos poderes políticos que alimentam, e são ali- de exclusão, injustiça e discriminação são evi-
mentados por este percurso. No entanto, dado dentemente bem diferentes.
o isolamento social da universidade, a autorre- Uma pergunta surge então: sob quais ter-
flexão dos acadêmicos nunca vai ter sucesso mos será possível uma aliança ou coligação
Rumo a uma universidade polifônica comprometida: Pluriversidade e subversidade 685

entre os pesquisadores e professores do co- do conhecimento emergido de suas práticas


nhecimento pós-colonial pós-patriarcal e não sociais seja completamente reconhecida.
comercializável e os grupos sociais que lutam Isso significa que as alianças políticas do fu-
contra os poderes sociais que têm defendido turo terão dimensões epistemológicas. Tal di-
o conhecimento capitalista, colonialista e pa- mensão será caracterizada por uma articulação
triarcal? Se ocorrer, tal aliança não é um es- ou combinação de diferentes tipos de conhe-
forço sem precedentes. Teorias críticas mo- cimento, e de tipos diferencialmente relevan-
dernas, mais notadamente o marxismo, têm tes. As tarefas complexas que tal articulação/
tentado tal aliança ou coligação. Podemos combinação vai implicar são a raison d’être
questionar os resultados, mas inegavelmente das epistemologias do Sul. As últimas cinco
a aliança tomou lugar. Verdadeiramente novo, principais orientações são especificamente
no entanto, será os termos de tal aliança. En- transmitidas para conduzir essas tarefas: a so-
quanto a aliança cognitiva anterior aconteceu ciologia das ausências, a sociologia das emer-
nos termos ditados pela ciência eurocêntrica gências, a ecologia dos saberes, interpretação
moderna, as ciências sociais e humanas sob intercultural e o artesanato de práticas2. Con-
viés crítico, a nova aliança deverá ser negocia- juntamente, essas orientações tornam possível
da em novos termos, como uma conversa so- uma nova conversa para a humanidade, como
bre as vantagens relativas dos diferentes tipos John Dewey (1960) diria, uma conversa que,
de conhecimentos (no plural), a saber, conhe- com esperança, será mais bem-sucedida que a
cimentos eruditos e científicos, bem como co- conversa atual no intuito de unir os diferentes
nhecimentos dos cidadãos, conhecimento po- grupos subalternos oprimidos na sua luta con-
pular, empírico, artesanal e não-científico. Tal tra a opressão e a dominação.
conversa vai ser facilitada porque, nesse meio As epistemologias do Sul não vão por si só
tempo, dado o colapso da equação entre ob- construir essas alianças profundamente neces-
jetividade e neutralidade, a ciência pode estar sárias; aquelas proverão credibilidade a estas e
perdendo sua aura de ser o único conhecimen- vão fortalecê-las uma vez que estejam introdu-
to válido e rigoroso; a crise epistemológica
produzida, portanto, abre espaço para grupos
não acadêmicos demandarem que a relevância 2 Ver Santos, 2014.
686 Boaventura de Sousa Santos

zidas. Duas perguntas surgem nesse momento. tor que demonstra os riscos envolvidos em
Primeiramente, quais grupos de acadêmicos transgênicos e fertilizantes agrotóxicos (ris-
provavelmente estão interessados nessas alian- cos da saúde, ambientais, da biodiversidade e
ças políticas e epistemológicas? Em segundo sociais), enquanto defendem agricultura cam-
lugar, qual forma institucional vai tomar? ponesa, familiar, de minifúndio em oposição
à apropriação de terras e ao agronegócio. O
Novas alianças políticas e segundo setor é o mais provável de estar in-
epistemológicas teressado nas novas alianças políticas e epis-
temológicas. Esses acadêmicos vão se tornar
A respeito da primeira pergunta, acadêmi-
novos tipos de intelectuais: tradutores dos
cos nas ciências humanas e nas ciências so-
diferentes conhecimentos? Especialistas em
ciais críticas são mais prováveis de melhorar
mestizaje cognitiva decolonial? Com trânsi-
ou juntar essas alianças. Mas aqueles acadê-
to fácil em contextos universitários e popu-
micos que nas ciências da vida e da natureza
lares? Intelectuais de retaguarda em vez de
têm resistido ao capitalismo cognitivo, serão
intelectuais de vanguarda?
igualmente interessados. No caso deles, a op-
ção será mais complexa porque vai aconte-
cer num terreno altamente disputado, onde o Novas instituições
pluralismo interno da ciência está assumindo A respeito da segunda pergunta, é impossí-
um caráter violentamente conflituoso, muitas vel prever a forma institucional de tais alian-
vezes envolvendo táticas altamente proble- ças, elas precisam acontecer; é mais provável
máticas e totalmente não-científicas. Para dar que haja uma pluralidade de contextos insti-
apenas um exemplo: hoje as ciências agro- tucionais. Estamos caminhando em direção
nômicas são profundamente divididas entre, a um período de contingência educacional
por um lado, o setor (de longe dominante) no qual novos problemas não serão resolvi-
que fornece conhecimento e tecnologias para dos com receitas antigas. Experimentação
a industrialização da agricultura (com pesqui- educacional já começou apesar do percurso
sas constantemente pagas pela Monsanto e de mercantilização. Algumas universidades
empresas similares) e, por outro lado, o se- convencionais estão levando a ecologia dos
Rumo a uma universidade polifônica comprometida: Pluriversidade e subversidade 687

saberes muito a sério em campos como o da tes socialmente, politicamente e culturalmen-


saúde e do direito. Historicamente excluídos, te para comunidades de cidadãos e grupos
grupo sociais estão entrando no sistema uni- sociais. Será que o lado não comercializável
versitário em números significativos em paí- da universidade vai se tornar um novo tipo de
ses como Brasil, Índia e África do Sul. Ainda universidade popular? Será que irá produzir
assim, se mudanças são confinadas ao acesso um novo tipo de conhecimento pluriversal em
do ingresso, a inclusão formal se torna em si que o conhecimento artesanal vai ser levado
mesma uma nova e traiçoeira forma de exclu- mais em conta, do qual conhecimentos mesti-
são, uma vez que o currículo, a sociabilidade zos e decoloniais vão surgir?
de sala de aula e a gestão da escola não irão É difícil detalhar os tipos de mudanças es-
mudar de forma que os recém-chegados se truturais que irão ocorrer, mas algumas per-
sintam em casa, e assim permanecerá um ter- guntas vão dar uma sensação das mudanças
ritório hostil. Por um longo período, a univer- a serem feitas. O conhecimento oral pode ser
sidade convencional vai certamente ser uma ensinado como “oratura” (em uma base iguali-
mistura tensa do velho com o novo. Projetos tária com a literatura) em vez de tradição oral?
mais avançados de interculturalidade e ecolo- Os titulares não-doutores, conhecidos por seu
gia dos saberes vão dar origem a instituições conhecimento prático, podem fazer parte de
paralelas, como já vem acontecendo. comitês de doutorado e inclusive emitir juízo
Eu venho sugerindo que a nova universida- em pesquisas realizadas por doutorandos? A
de polifônica será um terreno no qual a ecolo- linha abissal que dividia, e continua a dividir,
gia dos saberes vai encontrar um lar, no qual o mundo em sociabilidade metropolitana e
acadêmicos e cidadãos interessados em lutar sociabilidade colonial pode ser abordada e in-
contra o colonialismo, o capitalismo e o pa- vestigada? Tal pesquisa será capaz de guiar mu-
triarcado cognitivos vão colaborar em reunir danças estruturais dentro de instituições onde
diferentes conhecimentos com total respeito é realizada? A sala de aula pode ser polifônica,
às suas diferenças, enquanto também olham envolvendo dois professores — um científico
para as convergências e articulações. O pro- e outro artesanal? Os livros ou outras ferra-
pósito deles é endereçar assuntos que, apesar mentas de ensino podem ser coescritas por
de não terem valor de mercado, são relevan- professores de ambos os tipos? Quanto tempo
688 Boaventura de Sousa Santos

professores e estudantes vão gastar dentro da A Universidade Polifônica


universidade e fora dela3? de Tipo 2: a subversidade
A curto prazo, a universidade polifônica vai A universidade polifônica de tipo 2 (a partir de
equivaler a construir a contra-universidade agora UP-2) parte do pressuposto que, mesmo se
dentro da universidade, aproveitando todas a universidade polifônica de tipo 1 conseguir su-
as oportunidades de inovar nas margens. Isso perar os múltiplos obstáculos que irá encontrar,
vai requerer que a gestão inovadora e inteligen- ela não irá sozinha ocasionar a ecologia dos sa-
te de contradições institucionais se desdobre beres solicitadas pelas novas e mais urgentes de-
numa universidade cada vez mais heterogênea. mandas por justiça cognitiva, social e histórica.
Uma universidade dividida entre duas áreas: a As monoculturas e exclusões que têm até então
área de mercado como paraíso e cooperação caracterizado a universidade convencional estão
como inferno, e a área de cooperação como pa- cristalizadas em massa institucional tão vasta e
raíso e mercado como inferno. estão tão profundamente enraizadas em hábitos
e subjetividades que as estruturas institucionais
3 Recentemente, no Brasil, durante o governo do Par- atuais, mesmo quando estendidas de acordo
tido dos Trabalhadores (2003-2016), algumas universi- com os princípios da polifonia comprometida de
dades públicas foram criadas e se colocavam como uni- tipo 1, não vão garantir a implantação bem su-
versidades populares ou comunitárias. Elas ofereciam
cedida de dimensões mais avançadas do projeto
certas inovações institucionais preocupadas em trazer a
universidade para mais perto de comunidades do entor- de restabelecimento da universidade. O projeto
no, e em comprometer fortemente a universidade com educacional da UP-2 é baseado na pedagogia dos
as políticas públicas tais como integração regional ou conflitos, um projeto emancipatório que busca
ações afirmativas contra discriminação racial. Entre ou- compreender conhecimentos conflituosos que,
tras, considere as seguintes: Universidade Comunitária
por sua vez, estão destinados a produzir imagens
Regional de Chapecó; Universidade Federal da Integra-
ção Latino-Americana; Universidade da Integração In- desestabilizadoras e radicais de conflitos sociais,
ternacional da Lusofonia Afro-Brasileira. Ver: Santos et imagens que são, em síntese, capazes de poten-
al. (2013); Benicá e Santos (2013: 51-80); Romão e Loss cializar rebelião e indignação. Portanto, educa-
(2013: 81-124); Morris (2015). O problema em questão é ção para não conformidade, educação para um
descobrir até que ponto a universidade pública, organi-
zada burocraticamente, focada no conhecimento cientí-
tipo de subjetividade que submeta a repetição do
fico e orientada para conceder diplomas pode, de fato, presente a uma desconfiança hermenêutica, uma
ser considerada comunitária ou popular. educação que rejeita a trivialização do sofrimen-
Rumo a uma universidade polifônica comprometida: Pluriversidade e subversidade 689

to e da opressão, ao enxergar neles os resultados realidade, uma das primeiras universidades


de opções imperdoáveis. populares foi criada em Alexandria, Egito, em
A UP-2 “ocupa” o nome de “universidade” 1901, no âmbito da iniciativa dos trabalhado-
com o objetivo de cumprir processos de apren- res anarquistas italianos e gregos6. A ideia de
dizagem em contextos sociais e institucionais uma universidade popular surge num tempo
que revelam pouca semelhança com aqueles em que problemas sociais provocados pelo rá-
associados à universidade convencional. Ela pido desenvolvimento do capitalismo (“a ques-
avança com uma longa tradição em educação tão social”) pioram e o movimento operário se
popular, a mesma que, desde o final dos anos expande e diversifica. Nesse momento emer-
sessenta em diante, foi dominada por obras ge uma grande curiosidade sobre problemas
pioneiras tais como a Pedagogia do Oprimido sociais e uma inclinação para estudá-los, ten-
e a Pedagogia da Libertação4 de Paulo Freire5. do sua melhor expressão nas ciências sociais
Ao final do século XIX, a busca por educação constantemente evoluindo na França entre os
popular levou à criação de “universidades po- anos 1890 e 1900. O trajeto original para a cria-
pulares” em toda Europa e América Latina. Na ção de universidades populares veio de corren-
tes anarquistas que consideravam a educação
da classe trabalhadora como meios preeminen-
4 Na América Latina, educação popular também foi tes de aumentar a consciência revolucionária7.
associada à Teologia da Libertação, à Revolução Cuba-
na (1959) e à experiência socialista de Salvador Allen- A principal preocupação era como democrati-
de no Chile (1970-1973). Sobre educação popular na zar o conhecimento em um novo tempo, tido
América Latina, ver: Puiggrós, 1984; Torres, 1990, 1995, como um período de mudanças importantes e
2001. A partir dos anos 1970 em diante, na América La- conflitos, quando o controle do conhecimen-
tina e em outros lugares, educação popular passou a
to seria crucial. Em 1896, Georges Deherme8,
ser associada a Antonio Gramsci, à luz de seus escritos
sobre educação de adultos e seu envolvimento ativo um dos primeiros apoiadores da universidade
nos círculos de educação de trabalhadores, incluindo o popular, fundou o jornal significativamente in-
Club Vita Morale, e a criação de um Instituto de Cultura
Proletária, a escola por correspondência do Partido Co-
munista Italiano e a scuola dei confinati (escola para
prisioneiros) em Ustica. Ver: Mayo, 1995: 2-9. 6 Ver: Gorman, 2005: 303-20.

5 Mais sobre isso abaixo. Ver também: Freire, 1970 e 7 Ver: Mercier, 1986 e Hirsch e Walt, 2010.
Esteva, Stuchul e Prakash, 2005: 82-98. 8 Mais sobre isso em: Deherme, 1901.
690 Boaventura de Sousa Santos

titulado La Coopération des Idées e formulou dada sua ênfase na educação do proletariado10.
cinco perguntas sobre “o ideal de futuro”: Os comunistas estavam mais céticos nesse
sentido, porque eles acreditavam que a educa-
1. Um novo ideal está a caminho? 2. Ele terá o ção dos operários poderia acabar sendo uma
mesmo princípio guia de um ideal religioso? 3.
Qual será sua forma? 4. Ele irá mudar a ordem
social? Se sim, em qual sentido? 5. Até que ponto 10 Nem sempre foi assim. Por exemplo, a Universida-
o Estado, as massas, as elites intelectuais e os re- de Popular de Turim, criada em 1900, teve em seu iní-
volucionários vão contribuir para a formação de cio um estímulo filantrópico e se beneficiou do apoio
uma nova sociedade9? da Universidade de Turim. Em 1916, Gramsci publicou
uma crítica radical sobre universidade no jornal italia-
no comunista Avanti: “Às vezes eu me pergunto por que
Em 1898, a primeira universidade popular
em Turim não tem sido possível desenvolver uma insti-
foi criada. Seu maior objetivo era divulgar as tuição sólida para a popularização da cultura, porque a
ciências sociais entre as elites do movimento Universidade Pública permaneceu sendo a coisa pobre
operário. Tais elites, e a classe operária como e tem sido incapacitada de ganhar atenção pública, res-
um todo, foram excluídas da aprendizagem peito e amor, porque ela não teve sucesso em formar um
público próprio. A resposta não é fácil, ou é fácil demais.
universitária, bem como de todas as possibili-
Claramente existem problemas com organização e com
dades de “ensino universitário popular” (consi- os critérios que informam a universidade. A melhor res-
derado um verdadeiro contradictio in adjec- posta deveria ser fazer melhor, mostrar concretamente
to). Entretanto, durante os 15 anos seguintes, que é possível fazer melhor e reunir um público em volta
230 universidades populares foram criadas, o de uma fonte de calor cultural, desde que esteja viva e
realmente desprenda calor. Em Turim a Universidade
que significa que a ideia de universidade popu- Pública é uma chama fria. Não é nem uma universidade
lar encontrou uma necessidade emergencial nem popular. Seus diretores são amadores em termos de
sentida entre classes populares excluídas da organização cultural. O que incita eles a agir é um leve
escolaridade formal. Como eu havia menciona- e insípido espírito de caridade, não um desejo vivo e
do, a iniciativa foi relacionada ao anarquismo, fecundo de contribuir para o crescimento espiritual da
multitude através do ensino. Como em institutos bene-
que teve raízes profundas na Europa na época, ficentes vulgares, eles distribuem parcelas de comida
que enchem o estômago, talvez cause alguma indigestão,
mas depois não deixa rastro, não ocasiona mudança na
9 Sobre isso, ver: Mercier, 1986: 19. vida das pessoas”. Ver: Forgacs (ed.) 2000: 65.
Rumo a uma universidade polifônica comprometida: Pluriversidade e subversidade 691

distração da tarefa mais urgente — a luta de e Canadá. Hoje existem muitas universidades
classes. No entanto, a partir dos anos 1920, os populares, mas a maioria delas estão longes de
partidos comunistas começaram a se envolver encontrar os objetivos da universidade polifô-
ativamente na criação das universidades popu- nica de tipo 2. Este não é o lugar para analisar
lares e na verdade eles se tornaram seus maio- ou avaliar o mundo das universidades popula-
res entusiastas e contundentes incentivadores. res; meu propósito aqui é meramente enfatizar
Na América Latina, a primeira universidade como UP-2 é parte de uma longa tradição. O
popular foi criada em Lima, Peru, em 1921 — objetivo das universidades populares era prin-
Universidad Popular Gonzáles Prada (UPGP). cipalmente espalhar conhecimento científico
Um de seus maiores apoiadores foi o grande sobre a sociedade (sobre a natureza também,
pensador marxista José Carlos Mariátegui, subsequentemente) que estava sendo produzi-
logo depois de seu retorno da Itália onde se fa- do na época. Tal conhecimento era inacessível
miliarizou com as ideias revolucionárias de An- para as classes populares, especialmente para
tonio Gramsci. Foi dessa forma que Mariátegui as classes operárias, tanto porque estas eram
identificou as funções da universidade popular: excluídas da escolaridade formal, quanto por-
que a natureza e a complexidade do conheci-
A única disciplina de educação popular com um mento científico o tornaram incompreensível
espírito revolucionário é a disciplina sendo cria- para aqueles desprovidos de algum tipo formal
da na Universidade Popular. Sua função é, por- de educação. Dado o papel atribuído às ciên-
tanto, depois de seu plano original e modesto, ex- cias sociais numa sociedade dinâmica, quem
por a realidade contemporânea para as pessoas,
têm maior interesse em acessar seu próprio
explicar para as pessoas que elas têm vivido um
conhecimento eram os mais excluídos dele.
dos melhores e mais transcendentais tempos na
história, e contaminar as pessoas com a ansieda- Desse modo, universidades populares permiti-
de fértil atualmente movendo todos os povos civi- ram que trabalhadores fossem estudantes em
lizados restantes do mundo. (Alcade, 2012) seu escasso tempo livre; algumas vezes eles
eram ensinados por professores universitários
Nas décadas seguintes, as universidades que, fora de comprometimento político, dedi-
populares apareceram por toda América La- cavam parte de seu tempo livre a ensinar em
tina e, um pouco depois, nos Estados Unidos universidades populares. A universidade teria
692 Boaventura de Sousa Santos

reuniões em espaços familiares e populares fere uma pedagogia focada na ecologia dos sa-
para que os trabalhadores pudessem ser pou- beres e na tradução intercultural ao privilegiar
pados de ambientes hostis e solenes evocados o diálogo entre os conhecimentos científico,
pelos espaços da universidade convencional. popular e artesanal. Uma vez que seu público é
Particularmente durante seus primeiros anos, com frequência composto por pessoas que são
universidades populares tinham uma missão muito bem informadas sobre o conhecimento
pedagógica que hoje em dia é difícil de imagi- popular e artesanal, a UP-2 tenta criar contex-
nar em prática na Europa daquela época. A de- tos pedagógicos capazes de valorizá-la em seus
gradação do corpo dos trabalhadores alcançou próprios termos, isto é, contextos que enfati-
tamanhas proporções que na época as univer- zam a reciprocidade entre conhecimentos, de
sidades gastavam muito tempo ensinando hábi- tal forma que a distinção instrutor/estudan-
tos de higiene corporal e sexual e aconselhan- te pode acabar entrando em colapso. Não há
do sobre o alcoolismo. estudantes no sentido convencional, mas sim
UP-2 se distingue da primeira geração de uma comunidade de pessoas no processo de
universidades populares em pelo menos qua- construir a si mesmas como uma comunidade
tro contagens. Primeiro, UP-2 tem uma con- de aprendizagem.
cepção ampla de seus públicos subalternos. Terceiro, UP-2 não concebe o contexto pe-
Ela não somente atinge as classes operárias dagógico como algo separado ou autônomo;
(no sentido comum do termo); melhor, atinge em vez disso o vê como parte de um contex-
todos os grupos sociais vitimados pela exclu- to mais amplo de luta social. Esse contexto
são social e discriminação em função de clas- então contempla uma pedagogia pragmática
se, gênero, cor da pele, casta, religião, e por apontada para o fortalecimento de lutas so-
aí em diante. Em suma, UP-2 atinge todos os ciais contra a exclusão e a discriminação.
grupos sociais que sofrem com injustiças sis- Participação pode ser orientada para reco-
têmicas causadas pelo capitalismo, colonialis- mendar a favor ou contra uma solução dada
mo, e patriarcado. ou um plano de ação, para trazer outras expe-
Segundo, UP-2 não tem em mente a trans- riências, tanto do passado quanto de outros
missão unilateral de um conhecimento dado, lugares, que podem contribuir para o entendi-
privilegiado, aprendido ou científico. Ela pre- mento da situação (a tarefa ou o conflito em
Rumo a uma universidade polifônica comprometida: Pluriversidade e subversidade 693

questão), promover diálogo, ou facilitar a co- saprendizagem pedagógica11. Devem livrar-se de


municação através de tradução intercultural posturas convencionais a fim de estarem aber-
dentre grupos vindos de diferentes culturas tos a ver outros corpos de conhecimento numa
e que têm universos simbólicos e visões de base horizontal. Devem se esforçar para pensar
mundo diferentes. em si mesmos sem títulos, certificados ou di-
Quarto, UP-2 muitas vezes se traduz, hoje em plomas que os decoram, sentir a aura universi-
dia, em iniciativas originadas nos movimentos tária como um fardo ao invés de um recurso,
sociais. Nesses casos, o protagonismo de pesso- e reaprender como distinguir a autoridade do
as com credencial acadêmico ou científico mais conhecimento da autoridade da instituição que
elevado é menos relevante. Como uma consequ- o carrega. Finalmente, eles precisam aprender
ência, os lugares onde ela oferece a si mesmo uma nova relação entre conhecimento logocên-
hoje são mais variados. De fato, UP-2 aconte- trico e outros tipos de conhecimento, incluindo
ce em lugares que são distantes dos principais conhecimento visual e silencioso. O objetivo é,
centros ou cidades, em vales remotos ou altas em suma, alcançar a ignorância adquirida12. A
montanhas, em favelas, prisões etc. Professo- participação mais engajada envolve presença fí-
res universitários ou pesquisadores participam sica, compartilhar práticas diárias, consciência
por iniciativa própria, nunca seguindo instru- corporal recíproca, envolvimento emocional, e
ções institucionais, nunca esperando promoção a tomada de risco em decisão coletiva e ação
como resultado de seu desempenho no projeto (ver abaixo sobre a experiência da Universida-
escolhido, mas sim prontos para lutar contra de Popular dos Movimentos Sociais — UPMS).
eventuais malogros causados por sua participa- A UP-2 pode assumir duas formas principais;
ção. A participação deve ser baseada em com- ambas se referem a experiências reais. A pri-
petência ou conhecimento específico, ou em
habilidades gerais desenvolvidas durante a rea-
lização de pesquisa ou ensino de diferentes tó- 11 Tal desaprendizagem pedagógica é tão exigente
quanto a desaprendizagem metodológica enquanto se
picos, ou em diferentes ambientes temporais ou
conduz pesquisa em consonância com as epistemolo-
geográficos. Na realidade, professores universi- gias do Sul. Mais sobre isso em Santos, 2018.
tários ou pesquisadores participando na UP-2
12 Sobre a concepção de ignorância adquirida, ver:
devem passar por um processo complexo de de- Santos, 2014: 99-117.
694 Boaventura de Sousa Santos

meira consiste em iniciativas que respondem a educacional como um todo. O objetivo delas é
necessidades a longo prazo, com foco em ob- permitir que a juventude indígena aprofunde
jetivos específicos e públicos-alvo específicos, seu conhecimento indígena ao estudar siste-
e requer alguma espécie de performance sus- maticamente sua cultura, filosofia e visão de
tentável geralmente assumindo a forma de uma mundo; sua música e sua dança; seu artesanato
nova instituição, quase sempre com a presença no que diz respeito à produção de ferramentas,
física numa determinada localização. A segun- cultivo da terra, cuidado com a natureza, e as-
da forma consiste em iniciativas que, embora sim por diante13. Nesta categoria estão incluí-
sempre respondendo a necessidades de longo das a Universidad Intercultural de las Naciona-
prazo, são mais livremente focadas numa vida lidades y Pueblos Indígenas “Amauta Wasy” do
institucional bastante vaga que pode dispensar Equador14; a Universidad Autónoma Indígena
uma localização física específica, ou ser multi- Intercultural, da Colômbia; a Universidad de
localizada. Na sequência, menciono brevemen- las Regiones Autónomas de la Costa Caribe
te alguns exemplos das duas formas de UP-2. Nicaraguense, da Nicarágua. Este último caso

UP-2 com uma localização física


Existe hoje uma diversidade enorme de uni- 13 Sob a presidência de Evo Morales, o governo boli-
versidades populares que se encaixam nas ideias variano criou três universidades indígenas, correspon-
dendo às três línguas indígenas mais faladas no país:
implícitas da UP-2. Menciono apenas algumas aymara, quechua e guarani.
com as quais tive algum contato, ou aquelas em
14 Esta universidade teve agora suas atividades
que eu tenha participado ocasionalmente. suspensas por decisão do governo equatoriano. Em
As universidades interculturais indígenas flagrante contradição com a Constituição de 2008, o
nas Américas. As universidades indígenas, governo equatoriano decidiu submeter a universida-
algumas vezes chamadas de universidades in- de indígena sob os mesmos critérios de avaliação do
desempenho universitário aplicados às universidades
dígenas interculturais, cresceram por meio de
convencionais. Não surpreendentemente, a Amauta
iniciativas de movimentos indígenas em dife- Wasy não obedeceu aos requisitos mínimos. Por exem-
rentes países com o propósito de combater o plo, muitos dos instrutores eram sábios anciãos do
colonialismo cognitivo que permeia o sistema conhecimento indígena, mas careciam de doutorado,
e foram então desqualificados.
Rumo a uma universidade polifônica comprometida: Pluriversidade e subversidade 695

é iniciativa conjunta dos povos indígenas e conflito com o governo cresceu, UNITIERRA
afrodescendentes. Mesmo quando buscam re- declarou sua autonomia em relação ao Estado
conhecimento oficial, essas universidades de- em 1989 com o forte apoio do D. Samuel Ruiz,
finem seu currículo e estudam programas de o grande bispo e teólogo da libertação que co-
forma autônoma, assim como acontece com mandou a diocese de 1960 até 2000 (ano em
os diplomas, se houver, que são oferecidos. que foi forçado pelo Vaticano a renunciar)16.
Mesmo que tenham um escritório central, elas UNITIERRA agora está presente em outras
funcionam em redes, constantemente redes cidades, por exemplo Oaxaca, onde é liderada
internacionais, como é o caso da Red de Uni- pelo grande teórico e ativista de alternativas
versidades Indigenas, Interculturales y Comu- ao desenvolvimento, Gustavo Esteva. Ela está
nitarias de Abya Yala (RUIICAY)15. A mais co- envolvida ativamente em todas as iniciativas
nhecida talvez seja UNITIERRA, da qual tive o políticas dos neozapatistas e é orientada para
prazer de participar. Por causa de suas carac- fornecer educação e formação profissional para
terísticas distintas, ela merece uma descrição a juventude indígena que nunca teve acesso à
mais detalhada. escola ou abandonou a escola, muitos deles vin-
Universidad de la Tierra, UNITIERRA, está dos de comunidades neozapatistas. Ela também
localizada em Chiapas, no sudeste do México, fornece apoio técnico e político para as formas
e foi criada no início dos anos oitenta. É mais autônomas de autogoverno instituídas pelos
conhecida na região como o Centro Indígena
de Capacitación Integral Fray Bartolomé de las
Casas e hoje se define como “Sistema Indígena 16 Durante sua visita recente ao México, o Papa
Intercultural de Aprendizajes e Estudos: Abya Francisco visitou a tumba do bispo. Eis as palavras
de Leonardo Boff sobre este fato: Eu acredito que um
Yala”. É profundamente ligado às lutas indí-
momento crucial da visita do Papa ao México será sua
genas em Chiapas e especificamente ao movi- visita à tumba do Bispo Samuel Ruiz García (Bispo de
mento neozapatista. A universidade começou San Cristóbal de las Casas e conhecido defensor dos
em 1983 com o apoio do Estado, mas como o povos indígenas) em Chiapas: isso é uma reparação e
uma lição para a Cúria Romana, que está consciente de
ter perseguido e impedido o avanço de um ministério
15 Daniel Mato (2014: 17-45) produziu alguns trabalhos pastoral verdadeiramente indígena do próprio povo in-
notáveis estudando e promovendo estas universidades. dígena e de sua cultura” (2016).
696 Boaventura de Sousa Santos

neozapatistas (as juntas de buen gobierno e os UNITIERRA é conscientemente uma sub-


caracoles). Democracia radical, interculturali- versidade: ela começa com a ideia de que o
dade, e o diálogo entre os conhecimentos (eco- termo universidade deve ser ressignificado e
logia dos saberes, em meus próprios termos) liberado de toda apropriação ilegítima pelas
são os princípios básicos para as atividades da universidades convencionais. Ela oferece uma
UNITIERRA, os quais incluem ensino, pesquisa alternativa para formação e aprendizagem que
e extensão, este último guiado por metodolo- estimula respeito pela terra e seu povo, e pro-
gias de pesquisa de ação participativa. move a busca por tecnologias que são adequa-
Gustavo Esteva, uma das figuras mais ins- das para servir ao interesse das comunidades
piradoras por trás da UNITIERRA, expressa locais. Os estudantes devem se engajar em
bastante eloquentemente o que quero dizer projetos de pesquisa que incluem uma longa
por universidade polifônica de tipo 2 como estadia em alguma comunidade onde se en-
uma intervenção subversiva no campo da edu- volvem em trabalhos requisitados pela própria
cação universitária: comunidade anfitriã. Como bem explica o co-
ordenador ao explicar o nome da universidade
Nós convocamos a universidade a rir do sistema de la tierra: “quando nós falamos da terra nós
oficial. Nós estamos jogando com símbolos. De- não pretendemos competir com a globaliza-
pois de um ou dois anos de aprendizagem, assim ção. Nós apenas queremos ter nossos pés no
que os pares pensam que eles têm competência chão, quero dizer, em nossa terra, para respei-
suficiente em uma transação específica, nós da-
tar a terra e realizar um projeto educacional
mos aos “estudantes” o magnífico diploma uni-
que sendo um projeto descalço não é menos
versitário. Nós estamos assim oferecendo a eles
um “reconhecimento social” negado a eles pelo relevante, pelo contrário.”
sistema educacional. Ao invés de certificar o A Escola Nacional Florestan Fernandes.
número de horas sentado, como o diploma con- Esta é outra universidade popular muito co-
vencional faz, nós certificamos uma competência nhecida. Foi criada pelo Movimento dos Sem
específica, imediatamente apreciada pelas comu- Terra no Brasil (MST) com o objetivo de for-
nidades, e protege nossos “estudantes” contra a mar os líderes e militantes do movimento. O
discriminação habitual. (2004: 12) MST preferiu o nome “escola” ao de “universi-
dade”, alegando que o termo universidade soa
Rumo a uma universidade polifônica comprometida: Pluriversidade e subversidade 697

elitista, e que tal elitismo pode acabar sendo de formação que há muito foram abandona-
embutido nos formandos. A escola começou das pelas universidades, tais como cooperati-
em 2005 e teve um campus espaçoso no estado vismo e agroecologia. Milhares de estudantes
de São Paulo. Ela começou com cursos básicos vêm sendo formados nessa escola. A escola
para formação de militantes residentes, com se orgulha do fato de que, depois de terminar
duração de três meses, e hoje inclui um vasto o curso, os formandos vão retornar para suas
número de cursos para militantes e líderes do comunidades, portanto trazendo a elas novo
MST e outros movimentos sociais, alguns dos conhecimento e competência. Hoje, a ENFF
cursos ensinados em todo o país numa base forma líderes de diferentes movimentos sociais
itinerante. A escola entrou em acordos de co- de toda América Latina e do Caribe.
operação com escolas convencionais, e alguns A ENFF é em seu núcleo uma subversidade
professores universitários ensinam na escola. voltada para formar quadros de camponeses
Entrando em tais acordos, as universidades e de outros movimentos sociais de acordo
convencionais assumem a forma de UP-1, en- com um quadro teórico e político inspirado
quanto ao mesmo tempo fortalecendo o tipo pelo marxismo17. Um dos membros da equi-
de universidade popular UP-2. Isto é, a meu pe pedagógica define as sete tarefas a serem
ver, um dos caminhos mais fecundos na re-
fundação da universidade ao longo das linhas
neste capítulo. 17 O processo de construção da ENFF é altamente
A escola do MST é completamente autôno- revelador em relação à articulação da escola com o mo-
ma em relação a recrutamento, políticas de vimento dos trabalhadores sem terra. De acordo com
acesso, definição de currículo e planos de es- um professor universitário que tem colaborado com a
escola desde o princípio, “O processo de construção
tudo, e escolha de professores e pedagogos. A
da ENFF inclui o período entre 22 de março de 2000
formação inclui todos os tópicos considerados e 23 de janeiro de 2005, configurando mil pessoas (927
relevantes, desde economia política, gestão homens e 63 mulheres), trabalhando por 12 mil horas,
empresarial e teoria organizacional, até histó- representando 112 assentamentos e 230 acampamen-
ria, ética e filosofia. Toda a formação é focada tos. As pessoas foram organizadas em 25 Brigadas de
Trabalhadores Voluntários Masculinos e Femininos,
nas necessidades do movimento camponês, o
representando 20 dos 23 estados onde o MST existe”
qual regularmente exige a inclusão de áreas (Pizetta, 2007: 24-47)
698 Boaventura de Sousa Santos

executadas pelo processo de formação, da se- 7. formar revolucionários, enraizados no ma-


guinte maneira: terialismo histórico, bem como especialis-
1. Aprender a formação, crescimento e con- tas e líderes18.
tradições do capitalismo e imperialismo
em sua fase moderna; Universidad Popular Madres de Plaza de
2. assumir uma análise cuidadosa da realida- Mayo (UPMPM). Esta universidade foi criada
de brasileira em sua dinâmica política, so- em 1999 pela Asociación Madres de Plaza de
cial e cultural; Mayo, um movimento de resistência contra a
ditadura militar que vigorou na Argentina entre
3. produzir uma ferramenta política e revolu-
1976 e 1983. O movimento é composto por mães
cionária dos trabalhadores para conduzir a
de jovens assassinados ou “desaparecidos” pela
revolução popular e democrática brasileira;
ditadura; desde 1976 tem lutado com tenacida-
4. avaliar as várias possibilidades para alian- de marcante pelo direito à memória e à justiça
ça entre os vários setores da classe traba- retributiva. O reitor da universidade escreve
lhadora; como as Madres decidiram criar a universidade
5. prosseguir com pedagogia de massa (espe- como um novo espaço de resistência:
cialmente a respeito da juventude); méto-
dos de base, organização e liderança; for- Nossa Universidade Popular pretende estimular
mação contínua de militantes e líderes de pensamento crítico e organizar grupos para refle-
diferentes movimentos sociais, bem como xão criativa. Propõe-se a articular teoria e práti-
comunicação com as bases e as massas;
6. produzir uma nova cultura capaz de ela-
borar outras relações sociais e outras re- 18 Ver: Pizetta, 2007: 241-250. Pouco tempo depois o
lações com a natureza; bem como novos golpe constitucional que derrubou o governo legítimo
da Presidente Dilma Rousseff, várias forças policiais in-
valores apontados para novos horizontes vadiram o campus da ENFF em uma ação de intimida-
conformes com a perspectiva socialista; ção. Este ataque foi um dos primeiros sinais da virada
política para a direita após o golpe.
Rumo a uma universidade polifônica comprometida: Pluriversidade e subversidade 699

ca, gerar ferramentas para contestar a hegemonia sermos suas mães orgulhosas. Esta universidade
intelectual, abrir espaço para setores populares está destinada a acabar em algum ponto, mas
e novos movimentos sociais a fim de tê-los parti- hoje nós começamos com crianças abandonadas,
cipando e criando suas próprias formas de cons- prostituindo-se nas ruas. Elas não são crianças de
trução política. Tal aventura cultural destina-se rua, elas são nossas crianças. (2007: 69)
a superar práticas educacionais do sistema, que
vem legitimando a opressão. Desejamos recupe- Desde sua origem, UPMPM se esforçou em
rar as tradições de resistência popular e mudar a diversificar seus métodos de educação popular
sociedade e a nós mesmos, no que diz respeito a ao oferecer cursos, oficinas, seminários e pa-
conhecer e lutar. Todo espaço de discussão polí-
lestras públicas. Ao longo dos anos continuou
tica e acadêmica rumo à construção da Universi-
a estabelecer relações de cooperação com vá-
dade Popular encontra sua validade com as Mães
da Plaza de Mayo. (UPMPM, 2017) rias universidades convencionais na América
Latina. Em 2010 a UPMPM foi reconhecida pro-
A primeira matéria do jornal da UPMPM, visoriamente como uma universidade pública
30.000 Revoluciones, publicado em novembro com um estatuto especial. Foi-lhe atribuída a
de 2007, incluiu o discurso inaugural do primei- capacidade de conceder diplomas certificados
ro Reitor, Hebe de Bonafini, por muitos anos pelo estado argentino nos campos do serviço
a figura mais visível na Madres de la Plaza de social, direito e história. Lamentavelmente, de-
Mayo. Usando metáforas relacionadas ao nas- mandas rigorosas para seu reconhecimento ofi-
cimento e à maternidade, como é típico do mo- cial definitivo e dificuldades financeiras levan-
vimento, Bonafini declarou: taram alguns problemas relativos à realização
final deste projeto de educação popular.
Esta universidade é sem dúvida a coisa mais bo-
nita, o maior sonho; ela aponta o caminho para a A UP-2 errante
revolução sonhada por nossas crianças; elas pa-
Um UP-2 errante ou itinerante não tem es-
garam com suas vidas, mas elas não desperdiça-
critório físico, e se tiver, não é usado como
ram seus sonhos, e nós não perdemos a esperan-
ça, e nós não fomos roubados da possibilidade de
um lugar de aprendizagem. Processos peda-
gógicos ocorrem numa ampla variedade de
700 Boaventura de Sousa Santos

espaços e atraem diferentes públicos. A itine- exuberantes, uma prática que existe até hoje.
rância pode ocorrer dentro do mesmo país, A página online da universidade afirma: “Para
ou pode ser transnacional. Trago dois exem- nós, o conceito trashumante significa procurar
plos, um de itinerância nacional e outro de o melhor húmus, as melhores pessoas, a me-
itinerância transnacional. lhor terra. Trashumancia implica um caminho
La Universidad Trashumante de San Luis, duplo e constante: um deles indo para fora em
Argentina (UT). Universidad Trashumante direção aos outros; o outro, dentro de cada um,
consiste em um projeto de educação popular em busca de seus sentimentos, esperanças,
que emergiu em 1998 a partir de um grupo de sonhos, e paixões definindo e guiando nossas
pessoas ligadas à Escola de Educação da Uni- práticas” (UT, 2008). Como parte de sua defini-
versidad Nacional de San Luis, Argentina. Face ção política, UT declara que “(…) construções
à incapacidade da universidade convencional devem ser horizontais, sem líderes ditando or-
de se abrir para a pluriversidade (UP-1), pro- dens; ao viver e decidir enquanto vamos, nós
fessores universitários comprometidos com aprendemos como ser distintos. Devemos man-
movimentos sociais tomaram a iniciativa de ter nossa autonomia cara a cara com os pode-
criar uma instituição paralela em colaboração rosos, aqueles que dão ordens sem dar atenção
com movimentos sociais locais e organiza- aos que estão embaixo. Nós precisamos ser au-
ções. A palavra espanhola trashumante signi- tônomos cara a cara com os partidos políticos,
fica errante, itinerante, migratório. Refere-se o Estado, a Igreja, e os sindicatos ao serviço
às viagens da universidade através de regiões das corporações e fundações.” (Universidad
pobres e oprimidas no interior da Argentina, Trashumante, 2013: 1)
conhecidas como “outro país”. Para o grupo Como aprendemos com Erick Morris
dinamizador da UT, que define a si mesmo (2015), num estudo baseado nos princípios
como um coletivo de educação, comunicação políticos e educacionais inspirados por Paulo
e artes populares, o modificador trashumante Freire e pelo zapatismo, a UT já viajou mais de
tem um significado mais profundo que simples- 50 mil quilômetros por todo o país e trabalhou
mente itinerância; evoca um mundo bucólico com comunidades locais usando linguagens
ancestral onde, em certos momentos do ano, múltiplas. A UT é formada por uma rede de
pastores levavam seus rebanhos a pastos mais coletivos autônomos espalhados em diversas
Rumo a uma universidade polifônica comprometida: Pluriversidade e subversidade 701

províncias, embora firmemente articulada em globalização alternativa para a globalização ne-


torno dos mesmos objetivos relativos a uma oliberal dominante, uma globalização contra-
educação emancipatória. -hegemônica de ensino superior e educação
Universidade Popular dos Movimentos tomaria a forma de uma universidade popular.
Sociais (UPMS). UPMS é uma universidade Depois de 2003, a proposta foi discutida em vá-
popular de tipo UP-2, com a qual eu estou rias ocasiões com diferentes grupos e pessoas
mais familiarizado e, portanto, dedico mais envolvidas no FSM e além, com suas oficinas
espaço a ela. iniciadas em 2007.
Durante a edição de 2003 do Fórum Social
Mundial em Porto Alegre, no Brasil, propus a Por que a UPMS?
criação de uma universidade popular dos movi-
UPMS não é uma escola para formação de
mentos sociais (UPMS) para o propósito de au-
quadros ou líderes de ONGs e movimentos
toeducar ativistas e líderes de movimentos so-
sociais. Embora UPMS seja claramente orien-
ciais, bem como cientistas sociais, estudiosos,
tada no sentido da ação para transformação
e artistas comprometidos com a transformação
social, sua finalidade não é oferecer os tipos
social progressiva19. A designação de “universi-
de habilidades e formação que geralmente são
dade popular” não foi tanto usada para evocar
oferecidas por tais escolas. A UPMS não é um
as universidades da classe trabalhadora que
laboratório de ideias para ONGs e movimentos
proliferaram na Europa e na América Latina
sociais. A UPMS tenta abordar problemas que
no início do século XX, como transmite a ideia
o FSM deu nova visibilidade e urgência. A meta
de que, tal como o FSM visou a construir uma
do FSM era a divulgação da articulação entre
movimentos sociais agindo em distintas regi-
ões do mundo e dedicados a diversos temas de
19 Esta proposta foi o desfecho de longas discussões resistência, como forma de reforçar as lutas so-
entre ativistas e intelectuais envolvidos com o projeto
ciais opostas às diferentes facetas de domina-
do Fórum Social Mundial, um ponto de encontro para
movimentos sociais do mundo todo, e que começou em ção, todas com o objetivo de construir “outro
Porto Alegre, Brasil, em 2001. Eu analisei o processo do mundo possível” — o lema do FSM. Entre ou-
FSM e as primeiras formulações da proposta da UPMS tros, dois importantes problemas foram identi-
em: Santos, 2006: 148-59.
702 Boaventura de Sousa Santos

ficados, os quais, se não forem discutidos, po- dessas novas práticas e agentes, não podem
dem impedir as articulações que o grupo estava contribuir para esta reflexão e esclarecimento.
pedindo, e que pretendia realizar, tanto a nível Eles podem até impedir resoluções, insistindo
nacional quanto transnacional. Os dois proble- em conceitos e teorias que não são adequadas
mas eram: a lacuna entre teoria e prática e a para essas novas realidades.
falta de interconhecimento entre movimentos A UPMS destina-se a auxiliar a preencher
sociais, uma falta que gerou desconfiança e fa- essa lacuna e corrigir as deficiências que pro-
cilitou a disseminação de preconceitos recipro- duz. Ultimamente, seu objetivo é superar a dis-
camente degradantes. paridade entre teoria e prática, promovendo en-
Como eu argumento em meu trabalho ante- contros entre aqueles que, sobretudo, devotam
rior20, teorias atuais de transformação social a si mesmos para a prática de mudança social
não conseguem lidar adequadamente com as e aqueles que se dedicam principalmente à pro-
novas perspectivas políticas e culturais das dução teórica. O tipo de formação prevista pela
lutas sociais que ocorrem no decorrer dos úl- UPMS é, portanto, dupla. Por um lado, visa a
timos 40 anos. Essa lacuna entre teoria e prá- autoeducar ativistas e líderes comunitários de
tica tem consequências negativas tanto para movimentos sociais e ONGs ao fornecer-lhes
movimentos sociais genuinamente progressis- estruturas analíticas e teóricas adequadas. Es-
tas quanto para ONGs, e também para as uni- tas irão permitir que aprofundem a compreen-
versidades e centros de pesquisa onde teorias são reflexiva de suas práticas — seus métodos
sociais científicas têm sido tradicionalmente e objetivos — e assim melhorar a sua eficácia e
produzidas. Líderes e ativistas de movimentos consistência. Por outro lado, visa a autoeducar
sociais e ONGs sentem falta da teoria que lhes cientistas/estudiosos/artistas socialmente pro-
ajudaria a refletir analiticamente sobre suas gressistas interessados em estudar e participar
práticas e a esclarecer seus métodos e obje- dos novos processos de transformação social
tivos. Por outro lado, cientistas/estudiosos/ ao oferecer-lhes a oportunidade de um diálogo
artistas socialmente progressistas, isolados direto com seus protagonistas.
O segundo problema, a falta de interconhe-
cimento entre os diferentes protagonistas do
20 Ver: Santos, 2014: 19-46. ativismo social transformador, pode ser iden-
Rumo a uma universidade polifônica comprometida: Pluriversidade e subversidade 703

tificado em dois níveis. Por um lado, há uma envolvidos em movimentos e associações; um


falta de conhecimento recíproco entre movi- compromisso em promover ações coletivas,
mentos/organizações que, enquanto operam nas quais movimentos com agendas relativa-
em diferentes partes do globo, são ativos nas mente diferentes podem participar (uma polí-
mesmas áreas temáticas, sejam elas questões tica inter-movimento).
camponesas, trabalhistas, indígenas, das mu-
lheres ou ecológicas. Por outro lado, há uma Como a UPMS opera?
falta ainda maior de conhecimento comparti-
A UPMS é guiada por dois documentos, a
lhado entre movimentos/organizações ativas
Carta de Princípios e as Diretrizes Metodo-
em diferentes áreas temáticas e lutas. Enquan-
lógicas, ambos podem ser acessados em sua
to as reuniões do FSM visavam precisamente
página online21. Consiste em oficinas que du-
mostrar a importância do conhecimento re-
ram ao menos dois dias e acontecem numa
cíproco, sua natureza esporádica e sua curta
base residencial, o que significa que todos os
duração dificultaram a resolução dessa neces-
participantes hospedam-se no mesmo lugar,
sidade. Sem esse conhecimento recíproco, é
comem as refeições juntos e compartilham
impossível aumentar a densidade e a comple-
momentos de lazer e convívio. Em cada ofi-
xidade das redes de movimento.
cina participa, em média, 40 pessoas: dois
Quando comparamos a UPMS com univer-
terços de ativistas ou líderes de movimentos/
sidades populares anteriores, algumas de suas
organizações sociais, e um terço intelectuais/
características se destacam: um esforço maior
acadêmicos/estudiosos/artistas comprometi-
em remover a distinção entre professores e
dos com a luta social. Os movimentos/organi-
estudantes, dado que todos os participantes
zações presentes devem incluir ao menos três
são iguais portadores de conhecimento váli-
áreas temáticas de luta ligadas ao tema cen-
do; uma forte determinação em co-produzir
tral. Por exemplo, se o tema central é terra, os
conhecimento interessante e relevante para
participantes convocados devem ser ativistas/
apoiar lutas concretas de movimentos sociais
e organizações ativistas; um compromisso po-
lítico obrigatório, dado que opera entre parti-
21 Ver <www.universidadepopular.org/site/pages/pt/
cipantes politicamente organizados que estão em-destaque.php?lang=PT>.
704 Boaventura de Sousa Santos

líderes do movimento dos camponeses, indí- da UPMS com movimentos camponeses do


gena, das mulheres ou urbano, ou qualquer Zimbábue, Moçambique, e o movimento cam-
outra combinação considerada relevante no ponês sem terra da África do Sul22.
contexto particular. Algumas vezes os orga- As dinâmicas pedagógicas das oficinas da
nizadores também convidam a participação UPMS favorecem relações horizontais entre to-
de ativistas/líderes de movimentos cujas lu- dos os participantes, incluindo os facilitadores.
tas não tenham, em sua superfície, nenhuma As Diretrizes Metodológicas oferecem orienta-
relação com o tema escolhido. Para ilustrar: ção sobre procedimentos organizacionais e fa-
numa oficina realizada em Córdoba, Argenti- cilitação de oficina. O documento detalha cada
na, em 2016, o movimento LGBT e o movimen- passo, enquanto explica que deve ser usado
to das prostitutas desempenharam um papel como um manual, e não como um livro de recei-
bastante ativo numa atividade focada no im- tas, e pode ser apropriado de diferentes maneiras
pacto ecológico da mineração e da agricultura e colocado em prática, tendo em conta as especi-
industrial. A extensão geográfica da oficina ficidades da oficina. Um conjunto de orientações
varia de uma única cidade ou área rural para metodológicas é, não obstante, crucial para cum-
um país, um subcontinente, ou um transcon- prir os objetivos das oficinas, e deve ser seguido
tinente. Em Maputo, Moçambique, em 2013, o mais fielmente possível23. Os participantes da
a oficina foi organizada conjuntamente pelos
camponeses e o pelo movimento das mulhe-
res, tendo reunido movimentos camponeses 22 Ver <http://www.universidadepopular.org/site/me-
dia/Booklet-total.pdf>.
de Moçambique e do Brasil também. No últi-
mo caso, os movimentos não sabiam da exis- 23 Normalmente a sequência de discussões é assim:
a introdução dos participantes e uma breve descrição
tência uns dos outros, muito menos que eles
dos objetivos dos movimentos; as contas e trajetórias
estavam sendo despejados de suas terras pela de organização e ação; reflexão sobre as práticas bem-
mesma empresa, a multinacional brasileira -sucedidas e malsucedidas; discussão dos assuntos mais
de carvão, Vale do Rio Doce. Para seu grande complexos, os desejos sentidos mais profundamente, os
prazer, eles podiam se comunicar facilmente principais adversários, os principais aliados; discussão
dos objetivos, estratégias e metodologias. Sessões de
na mesma língua, português. Em 2016, em Ha-
entretenimento são cruciais para desenvolver sentimen-
rare, a Via Campesina organizou uma oficina tos de parceria e solidariedade. Enquanto ativistas/líde-
Rumo a uma universidade polifônica comprometida: Pluriversidade e subversidade 705

oficina geram um relatório que é disseminado personalidade jurídica nem estrutura admi-
na página web da UPMS. A maioria das oficinas nistrativa. As oficinas são financiadas pelas
terminam com um evento público (uma confe- organizações/movimentos que as promovem.
rência de imprensa, seminário, auditoria pública, Durante as discussões que levaram ao forma-
carta aberta, manifestação, pontapé inicial de to atual da UPMS, alguns movimentos sociais
campanha etc.) no qual os principais resultados expressaram seu desejo de manter a UPMS sob
das discussões são tornados públicos. controle direto dos movimentos sociais, a fim
Cada oficina proporciona uma oportunidade de assegurar que a universidade popular seja
para testar novos métodos ou formatos a serem realmente uma escola de, e não para, movi-
compartilhados. Eles geralmente tendem a exer- mentos sociais. Uma preocupação um pouco
cer alguma influência nas oficinas que seguem. conflitante foi o medo de que a UPMS pudesse
Assim aconteceu que, seguindo a experiência acabar sendo controlada por um movimento
de uma determinada oficina, UPMS passou a in- poderoso ou por uma ONG, esta última sempre
cluir um momento político público e mais forte. suspeita de ter mais recursos financeiros e de
ser politicamente menos radical. A resistência
Como é organizada? mais forte veio de organizações já envolvidas
com iniciativas educacionais similares, tais
A UPMS não tem escritório físico. Ela man-
como escolas de quadros políticos, cursos de
tém um arquivo virtual em seu site. Não tem
verão para ativistas e escolas de cidadania.
As discussões realizadas deixaram claro que a
inovação da UPMS residia em sua caracterís-
res vão discutir em particular e refletir sobre a base de tica intertemática (a maioria das iniciativas já
suas práticas, cientistas sociais/estudiosos/artistas vão
existentes são organizadas por movimentos
ter a tarefa específica de transmitir as experiências com-
parativas de movimentos e organizações. Às vezes, eles temáticos, como foi até recentemente o caso
são chamados para analisar algum tópico importante com a ENFF) e que tivesse um escopo global
que surge das discussões. Por exemplo, em uma oficina (iniciativas existentes tem um escopo nacional
recente em Harare, os cientistas sociais presentes foram ou regional). Longe de visar a competição com
solicitados a explicar por que a apropriação de terras se
essas outras iniciativas, a UPMS destina-se a
tornou uma questão tão global e uma ameaça comum
aos camponeses em todo o mundo. complementar os esforços já feitos, preocu-
706 Boaventura de Sousa Santos

pando-se principalmente em promover diálogo do. A proposta será avaliada e respondida


a nível global entre diferentes culturas políti- pela equipe da página e pelos coordenadores
cas e tradições do ativismo. regionais. Na prática, a maioria das oficinas
Atualmente, a UPMS é gerida por alguns tem sido organizada pela iniciativa conjunta
de seus jovens ativistas, em geral pessoas que de acadêmicos comprometidos trabalhando
participaram de uma ou mais oficinas e senti- numa universidade ou centro de pesquisa,
ram que tal participação foi uma experiência além de um ou mais movimentos/organiza-
transformadora. Existem três coordenações ções sociais. Nos últimos anos, vários proto-
continentais (América Latina, África, Europa), colos de cooperação foram assinados entre
que atuam como facilitadores. Há também uma a UPMS e os departamentos de extensão de
equipe que gere o instrumento mais importante algumas universidades, sobretudo no Brasil e
da UPMS: a página online. Dada a dimensão in- no México. Espera-se que essas colaborações
ternacional da UPMS, sua página é crucial para permitam uma organização mais sustentada
manter o arquivo acessível em qualquer lugar, e frequente de oficinas. Tal cooperação tam-
permitindo que fotos, vídeos e documentos se- bém pode ocorrer com projetos de pesquisa
jam compartilhados por quem estiver interessa- específicos. Por exemplo, entre 2011 e 2016 a
do; para atribuir coerência global; para difundir UPMS se tornou associada ao grande projeto
o projeto da maneira mais ampla; para receber de pesquisa financiado pela Agência Executiva
e responder a novas propostas de workshop. do Conselho Europeu de Investigação, intitu-
Quanto mais a UPMS cresce, maior a relevância lado ALICE — Espelhos Estranhos e Lições
e as dimensões do conteúdo do site. Imprevistas: Levando a Europa a uma nova
Qualquer um com um interesse pode tomar maneira de compartilhar as experiências do
a iniciativa de organizar oficinas, desde que mundo24, do qual eu era investigador principal.
eles sigam os dois documentos fundamentais A metodologia das oficinas parecia mais ade-
da UPMS. Aqueles que estão interessados em quada para desenvolver as epistemologias do
propor uma oficina da UPMS podem simples- Sul que fundamentaram o projeto. No âmbito
mente enviar um e-mail para o endereço do
site. Os organizadores também são aqueles
24 Ver <http://alice.ces.uc.pt/en/index.php/ about/?
que decidem o principal tema a ser discuti- lang=pt>.
Rumo a uma universidade polifônica comprometida: Pluriversidade e subversidade 707

desse projeto, diversas oficinas foram organi- barreira da linguagem é mais negligenciável em
zadas no mundo todo (ver Tabela 1)25. termos de afinidade das línguas oficiais dos di-
A parceria com universidades, e até com ferentes países: português e espanhol. Oficinas
governos locais, tem sido fundamental no fi- realizadas na Europa, Ásia ou África sempre
nanciamento de oficinas, mas sempre sob a encaram o problema de tradução linguística, o
condição de que a autonomia da UPMS seja que adiciona nova dificuldade à tradução inter-
preservada; o financiamento deve vir sem res- cultural. Se em espaços acadêmicos a barreira
trições, e a Carta de Princípios e Orientação da linguagem é muitas vezes superada pela im-
Metodológica devem ser respeitadas. Nenhu- posição do inglês como língua de trabalho, as
ma oficina da UPMS pode cobrar taxas aos epistemologias do Sul e a ecologia dos saberes
seus participantes. que a UPMS promove são incompatíveis com
as exclusões produzidas pelo recurso de uma
A UPMS em ação linguagem hegemônica. Recorrer a tradutores
profissionais quase sempre traz um custo exor-
Desde 2007, 29 oficinas foram organizadas.
bitante. Frequentemente, a solução está em re-
A UPMS nasceu na América Latina e a maioria
correr a traduções solidárias de participantes
das oficinas aconteceram no subcontinente. No
com experiência em mais de uma das línguas
entanto, nos últimos anos, a UPMS expandiu
de trabalho.
para outros continentes, como a tabela abaixo
Os tópicos tratados nas oficinas têm sido
mostra. Maior internacionalização da UPMS é
muito variados, abrangendo uma ampla gama
certamente um de seus desafios mais significa-
de questões, desafios e propostas: tradução in-
tivos. América Latina não é o único lugar onde
tercultural, o papel do Estado, o papel da uni-
o projeto foi inicialmente elaborado e estrutu-
versidade, soberania alimentar e territorial, di-
rado, ou onde a tradição da educação popular
reitos humanos, economias solidária/popular,
é profundamente enraizada. É o lugar onde a
plurinacionalidade, direitos dos afrodescen-
dentes, direitos dos povos indígenas, ecologia,
direito da Mãe Terra, recursos naturais, extra-
25 Para uma síntese das oficinas organizada e co-orga-
tivismo, saúde, sustentabilidade e qualidade de
nizadas pelo projeto ALICE, ver: <http://alice.ces.uc.pt/
en/index.php/upms/?lang=pt>. vida, desafios europeus, dignidade e democra-
708 Boaventura de Sousa Santos

cia, apropriação/privatização da terra, desloca- de vizinhos, grupos lutando pela recuperação


mento de terra, autodeterminação e desenvol- da memória, associações de moradores de rua
vimento, alternativas para o desenvolvimento, e coletores de lixo, associações de pescadores,
buen vivir/viver bem, a crise capitalista, edu- centros de pesquisa, universidades populares e
cação, cultura, conflitos territoriais, desafios convencionais, observatórios e fundações.
da esquerda, precariedade da vida, território O panorama de pluriversidades e subversi-
(ver Tabela 1). dades surgindo no mundo todo é mais rica e
A rede de trabalho da UPMS é feita de todos mais variada do que se pode imaginar. Muitos
os movimentos sociais, organizações, comuni- dos que trabalham em universidades ou estão
dades, entidades, universidades, e qualquer ou- empenhados em seus estudos são vítimas da
tra instituição que tenha participado das ofici- imagem de rigidez institucional e resistência
nas. Atualmente, contabiliza-se 500, incluindo à reforma que a universidade tende projetar
diversas entidades tais como diferentes orga- de si mesma. E pur si muove. A ideia de uma
nizações camponesas, coletivos de artistas fi- universidade polifônica comprometida conti-
liados a diferentes movimentos, comunidades nua ganhando espaço de múltiplas maneiras,
quilombolas, grupos indígenas, grupos LGBT, principalmente por causa da tenacidade e ima-
vários sindicatos, estações de rádios alterna- ginação de todos aqueles que se recusam a se
tivas, grupos de economia solidária e outras reconciliar com a ideia de que a universidade
economias alternativas, coletivos de mulhe- popular é um paradoxo.
res camponesas, feministas, mulheres negras,
mulheres indígenas, movimentos dos traba-
lhadores (masculinos e femininos), grupos de
direitos humanos, grupos de ecologia e agroe-
cologia, grupos preocupados com a saúde ou in-
teressados em medicina tradicional e popular,
associações antirracistas, coletivos Islâmicos,
grupos de juventude precária, associações de
pessoas deficientes, indignados, coletivos para
a descolonização do conhecimento, associação
Rumo a uma universidade polifônica comprometida: Pluriversidade e subversidade 709

Tabela 1. Oficinas da UPMS (2007-2016)

Organizadores/
Ano Nº Local Tema Escala
Financiadores
Universidade Nacional de Córdoba,
Córdoba,
1 Tradução Intercultural Nacional CLACSO e Centro de Estudos Sociais
Argentina
da Universidade de Coimbra, Portugal
2007
Viva la Ciudadanía e Centro de Estu-
Medellín,
2 Tradução Cultural Nacional dos Sociais da Universidade de Coim-
Colômbia
bra, Portugal
O relacionamento entre
Belo Horizon- Centro de Estudos Sociais — América
2009 3 movimentos sociais e o Nacional
te, Brasil Latina
Estado
Porto Alegre, Construção de diálogos
Internacional (Uruguai, Brasil Universidade Federal do Rio Grande
2010 4 Rio Grande do entre movimentos sociais
e Portugal) do Sul
Sul, Brasil e universidade
Soberania alimentar e Internacional (Brasil, Co-
São Leopoldo, Governo do Estado do Rio Grande
territorial, direitos huma- lômbia, Chile, Peru, Bolívia,
5 Rio Grande do do Sul / Universidade Federal do Rio
nos, economias solidária/ Guatemala, México, Nicará-
Sul, Brasil Grande do Sul / Projeto ALICE
popular gua, Equador e Argentina)
Interculturalidade, Plurina- Internacional (Brasil, Uru-
Canoas, Rio Governo do Estado do Rio Grande
cionalidade, Povos Afro- guai, Argentina, Peru, Equa-
6 Grande do do Sul / Universidade Federal do Rio
descendentes/Indígenas e dor, Chile, Portugal, México e
Sul, Brasil Grande do Sul / Projeto Alice
Dissidência Sexual Espanha)

2012 Internacional (Brasil, Costa


Porto Alegre, Ecologia, Mãe Terra, Rica, Colômbia, Guatemala, Governo do Estado do Rio Grande
7 Rio Grande do Recursos Naturais, Extra- Chile, Argentina, Portugal, do Sul / Universidade Federal do Rio
Sul, Brasil tivismo Bolívia, Espanha, Peru, Grande do Sul / Projeto Alice
México, Reino Unido)
ABRASCO / Projeto ALICE / Univer-
Aldeia Velha, sidade Nacional de Brasília / SINPAF
Saúde, Sustentabilidade e Internacional (Brasil, Por-
8 Rio de Janeiro, — Sindicato Nacional dos Trabalha-
Qualidade de Vida tugal)
Brasil dores de Pesquisa e Desenvolvimento
Agropecuário
710 Boaventura de Sousa Santos

Internacional (Espanha, Portugal,


Centro de Estudos Sociais,
Brasil, Inglaterra, França, Alema-
9 Leiria, Portugal Cartas aos Europeus Universidade de Coimbra (Projeto
nha, Dinamarca, Holanda, Moçam-
Alice)
bique e EUA)
Internacional (Tunísia, Brasil,
Portugal, Angola, Croácia, Moçam-
Juntando vozes do Sul bique, Espanha, Índia, Chile, Itália, Centro de Estudos Sociais, Univer-
10 Tunes, Tunísia global: Dignidade e EUA, Peru, África do Sul, Malásia, sidade de Coimbra (Projeto Alice)
democracia Inglaterra, Canadá, Uruguai, Chi- / El Taller
pre, Alemanha, Argentina, Româ-
nia, Nepal, Equador, México)
Fortaleza, Rede de Ecologia dos
11 Nacional ABRASCO
Ceará, Brasil Saberes
A reconstrução do pen- Centro de Estudos Sociais, Univer-
Madrid, Espa- Internacional (Espanha, Portugal,
12 samento democrático: sidade de Coimbra (Projeto Alice)
nha Itália e Brasil)
democracia na Europa / IEPALA
2013 Centro de Estudos Sociais, Univer-
Mumemo,
Apropriação/privatiza- Internacional (Moçambique, Ango- sidade de Coimbra (Projeto Alice)
13 Maputo, Mo-
ção da terra la, Portugal e Brasil) / Fórum Mulher / UNAC / Justiça
çambique
Ambiental
Centro de Estudos Sociais, Univer-
Autodeterminação ou
14 La Paz, Bolívia Internacional (Bolívia, Portugal) sidade de Coimbra (Projeto Alice) /
desenvolvimento
Coordinadora Mujer
Os Direitos Humanos Centro de Estudos Sociais, Univer-
em movimento: orga- Internacional (Brasil, Portugal sidade de Coimbra (Projeto Alice)
15 Brasília, Brasil
nizações, instituições, Angola e Moçambique) / Conselho Nacional do Ministério
e a rua Público
Centro de Estudos Sociais, Univer-
sidade de Coimbra (Projeto Alice) /
Tete, A quem pertencem os Internacional (Moçambique, Por- UNAC — União Nacional dos Cam-
16
Moçambique recursos naturais? tugal) poneses / Justiça Ambiental / AAA-
JC — Associação de Apoio e Assis-
tência Jurídica às Comunidades
Rumo a uma universidade polifônica comprometida: Pluriversidade e subversidade 711

Centro de Estudos Sociais, Univer-


Deslocamento de terra Internacional (Moçambique, Índia,
17 Mumbai, Índia sidade de Coimbra (Projeto Alice) /
na Índia Portugal)
Instituto Tata de Ciências Sociais
Desaprender o capi-
talismo: construindo Centro de Estudos Sociais, Univer-
18 Quito, Equador Internacional (Equador, Portugal)
alternativas do buen sidade de Coimbra (Projeto Alice)
vivir/viver bem
Centro de Estudos Sociais, Univer-
sidade de Coimbra (Projeto Alice) /
Interculturalidade:
Cuiabá, Mato Secretaria de Educação do Estado
19 diversidade, espaços e Internacional (Brasil, Portugal)
Grosso, Brasil do Mato Grosso (SEDUC) / Uni-
conhecimento
2014 versidade Federal do Mato Grosso
(UFMT)
Diálogos de conheci-
mentos e movimentos) Internacional (Equador, Brasil, Bo- Centro de Estudos Sociais, Univer-
Crise capitalista e alter- lívia, Peru, Moçambique, Portugal, sidade de Coimbra (Projeto Alice) /
20 Lima, Peru
nativas emancipatórias: México, Espanha, Uruguai entre Programa Democracia y Transforma-
Semeando buenos vivi- outros) ción Global (PDTG)
res dos movimentos
Centro de Estudos Sociais, Univer-
Saúde e Cidadania:
sidade de Coimbra (Projeto Alice) /
21 Brasília, Brasil considerações popula- Nacional
Departamento de Ouvidoria-Geral
res sobre participação
do SUS
Centro de Estudos Sociais, Univer-
Educação, Movimentos sidade de Coimbra (Projeto Alice) /
Espinho Bran- Sociais e Dignidade Universidade da Integração Interna-
co, Ilha de Humana: 40 anos de Internacional (Cabo Verde, Brasil, cional da Lusofonia Afro-Brasileira
22
Santiago, Cabo educação em Cabo Portugal, Moçambique) (UNILAB) / Faculdade Latino-Ame-
Verde Verde e desafios pós- ricana de Ciências Sociais (Flacso)
2015
2015 / Instituto Universitário de Educação
(IUE)
Cultura, Direitos Cultu- Centro de Estudos Sociais, Univer-
Rio de Janeiro, rais e Cultura de Direi- sidade de Coimbra (Projeto Alice) /
23 Internacional (Portugal, Brasil)
Brasil tos — Política Cultural Ministério da Cultura (MinC) / Insti-
e Política de Cultura tuto Trocando Ideia
712 Boaventura de Sousa Santos

Centro de Estudos Sociais, Universidade


Los Aromos, Cór- Conflitos territoriais rurais e Internacional (Ar-
24 de Coimbra (Projeto Alice) / Universidad
doba, Argentina urbanos gentina, Portugal)
Nacional de Córdoba (UNC)
Desafios para a esquerda
Centro de Estudos Sociais, Universidade
Buenos Aires, face ao novo cenário político:
25 Nacional de Coimbra (Projeto Alice) / Universidad de
Argentina criminalização, extrativismo e
Buenos Aires
precariedade de vida
Barreiro, São
João das Mis-
26
sões, Minas
Gerais, Brasil

2016 Brejo, São João Centro de Estudos Sociais, Universidade


Território, Cultura, Direitos:
das Missões, Internacional (Bra- de Coimbra (Projeto Alice) / Observatório
27 Educação Intercultural em
Minas Gerais, sil, Portugal) da Educação Escolar Indígena da Universi-
Minas Gerais
Brasil dade Federal de Belo Horizonte
Sumaré, São
João das Mis-
28
sões, Minas
Gerais, Brasil
Internacional Centro de Estudos Sociais, Universidade
Pessoas, terra, sementes e (Zimbábue, Mo- de Coimbra (Projeto Alice) / Fórum dos
29 Harare, Zimbábue alimentos: 15 anos depois da çambique, Portugal, pequenos agricultores orgânicos do Zimba-
reforma agrária no Zimbábue Espanha e África bwe (ZIMSOFF) / Assembleia de Mulheres
do Sul) Rurais (RWA)
Rumo a uma universidade polifônica comprometida: Pluriversidade e subversidade 713

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Santos, B. de Sousa 2018 The End of the acesso 11 de janeiro de 2017.
Cognitive Empire: The Coming of Age
O Fórum Social Mundial como
epistemologia do Sul*

O conhecimento técnico-científico preside à


globalização neoliberal e baseia a sua he-
gemonia na forma credível com que desacredi-
também dentro de cada um deles. As diferen-
ças no interior do movimento feminista, operá-
rio ou ecológico, por exemplo, não são mera-
ta todos os saberes rivais, sugerindo que não mente políticas. São, muitas vezes, diferenças
são comparáveis, em termos de eficácia e de relativas ao que conta como conhecimento
coerência, à cientificidade das leis do mercado. relevante, diferenças sobre a identificação, va-
Dado que a globalização neoliberal é hegemó- lidação ou hierarquização das relações entre
nica, não surpreende que ela esteja enraizada o conhecimento científico de base ocidental e
no saber, não menos hegemónico, da ciência outros saberes derivados de outras práticas, de
moderna de base ocidental. É por isso que as outras racionalidades ou de outros universos
práticas e os saberes que circulam no FSM têm culturais. São, em última instância, diferenças
a sua origem em pressupostos epistemológicos sobre o que significa ser um ser humano, ho-
(o que conta como conhecimento) e em pres- mem ou mulher. A prática do FSM revela que a
supostos ontológicos (o que conta como hu- diversidade epistemológica do mundo é virtu-
mano) muito distintos. Essa diversidade existe almente infinita.
não só entre os diferentes movimentos, mas Assim, a globalização contra-hegemónica
desejada pelo FSM enfrenta, de imediato, o
problema epistemológico da validade e utilida-
* Extraído de Santos, B. de Sousa 2005 “O Fórum de desse mesmo conhecimento científico para
Social Mundial como epistemologia do Sul” in Fórum
as lutas contra-hegemónicas. Sem dúvida que
Social Mundial: manual de uso (Porto: Afrontamento)
pp. 17-32. muitas práticas contra-hegemónicas recorrem
716 Boaventura de Sousa Santos

ao conhecimento científico e tecnológico he- vializa a globalização contra-hegemónica. A


gemónico, e muitas delas não seriam sequer hegemonia pressupõe um policiamento e uma
concebíveis sem ele. Isto aplica-se ao próprio repressão constantes das práticas e dos agen-
FSM, que não existiria sem as novas tecnolo- tes contra-hegemónicos. Desacreditar, ocultar
gias de informação e de comunicação. A ques- e trivializar a globalização contra-hegemónica
tão é de saber até que ponto esse conhecimen- dá-se, em grande parte, conjuntamente com
to é útil e válido, e que outros saberes estão o desacreditar, ocultar e trivializar os saberes
disponíveis e podem ser úteis para além dos que informam as práticas e os agentes contra-
limites de utilidade e de validade do conhe- -hegemónicos. Perante saberes rivais, o conhe-
cimento científico. A abordagem destes pro- cimento científico hegemónico ou os converte
blemas levanta um problema epistemológico em matéria-prima (como é o caso do conheci-
adicional, na verdade um meta-problema: com mento indígena e camponês sobre biodiversi-
que conhecimento ou epistemologia poderão dade) ou os rejeita na base da sua falsidade ou
ser estes problemas formulados? ineficácia à luz do critério hegemónico da ver-
A ideia central que preside à questionação dade e da eficácia (Santos, 1995, 2000, 2003a).
epistemológica provocada pelo FSM é que o Confrontada com esta situação, a alternativa
conhecimento que temos da globalização, tan- epistemológica proposta pelo FSM é a de que
to hegemónica como contra-hegemónica, é não há justiça social global sem justiça cogni-
menos global do que a própria globalização. O tiva global. Esta alternativa assenta em duas
conhecimento científico, por muito universal ideias básicas. Em primeiro lugar, se a objec-
que se imagine, é quase inteiramente produ- tividade da ciência não implica neutralidade,
zido nos países do Norte desenvolvido e, por então a ciência e a tecnologia também podem
muito neutral que se suponha, promove os ser colocadas ao serviço de práticas contra-
interesses desses países e constitui uma das -hegemónicas. A extensão em que a ciência é
forças produtivas da globalização neoliberal. usada constitui, em geral, objecto de debate no
A tecno-ciência encontra-se duplamente ao seio dos movimentos, e pode variar consoante
serviço da globalização hegemónica, quer pela as circunstâncias e as práticas. Em segundo lu-
maneira como a promove e a legitima, quer gar, seja qual for a extensão com que se recor-
pela maneira como desacredita, oculta ou tri- re à ciência, as práticas contra-hegemónicas
O Fórum Social Mundial como epistemologia do Sul 717

são, sobretudo, práticas de conhecimentos não signo como sociologia das ausências e sociolo-
científicos, saberes de teor prático, muitas ve- gia das emergências (Santos, 2002a). Refiro-me
zes tácitos, populares ou leigos, que é necessá- a sociologias construídas contra as ciências
rio tornar credíveis a fim de dar credibilidade a sociais hegemónicas e na base de pressupostos
essas práticas. epistemológicos alternativos. Falo de sociolo-
O segundo ponto é mais polémico uma vez gias, pois o meu propósito é identificar critica-
que confronta directamente os conceitos he- mente as condições que destroem a experiên-
gemónicos de verdade e de eficácia. A denún- cia social não-hegemónica e potencialmente
cia epistemológica em que o FSM se empenha contra-hegemónica. Através da sociologia das
consiste em mostrar que os conceitos de racio- ausências e da sociologia das emergências, a
nalidade e de eficácia, subjacentes ao conhe- experiência social que resiste à destruição é
cimento técnico-científico hegemónico, são desocultada, e abre-se o espaço-tempo capaz
demasiado restritivos para captar a riqueza e a de identificar e de tornar credíveis as experiên-
diversidade da experiência social do mundo, e, cias sociais contra-hegemónicas.
sobretudo, que eles discriminam as práticas de A descrição que se segue da sociologia das
resistência e de produção de alternativas con- ausências e da sociologia das emergências
tra-hegemónicas. Deste modo, a racionalidade representa o tipo-ideal de operação epistemo-
e a eficácia hegemónicas acarretam uma con- lógica característica do FSM. Na vida real, as
tracção do mundo ao ocultarem e desacredita- práticas e os saberes dos diferentes movimen-
rem todas as práticas, todos os agentes e sabe- tos e organizações, bem como as interacções
res que não são racionais ou eficazes segundo globais entre eles, estão mais ou menos próxi-
os seus critérios. A ocultação e o descrédito mos deste tipo-ideal.
destas práticas constituem um desperdício de
experiência social, quer da experiência social O Fórum Social Mundial e a
que já se encontra disponível, quer da experi- sociologia das ausências
ência social que, não estando ainda disponível, A sociologia das ausências é uma investiga-
é, contudo, realisticamente possível. ção que visa demonstrar que o que não existe é,
A operação epistemológica levada a cabo na verdade, activamente produzido como não-
pelo FSM consiste em dois processos que de- -existente, isto é, como uma alternativa não-
718 Boaventura de Sousa Santos

-credível ao que existe. O seu objecto empírico nes exclusivos de produção de conhecimento
é considerado impossível à luz das ciências ou de criação artística. Tudo o que o cânone
sociais convencionais, pelo que a sua simples não legitima ou reconhece é declarado inexis-
formulação representa já uma ruptura com tente. A não-existência assume aqui a forma de
elas. O objectivo da sociologia das ausências ignorância ou de incultura.
é transformar objectos impossíveis em possí- A segunda lógica assenta na monocultura
veis, objectos ausentes em presentes. do tempo linear, a ideia de que a história tem
Não há uma maneira única ou unívoca de sentido e direcção únicos e conhecidos. Esse
não existir. São vários as lógicas e os proces- sentido e essa direcção têm sido formulados
sos através dos quais os critérios hegemóni- de diversas maneiras nos últimos duzentos
cos de racionalidade e de eficácia produzem anos: progresso, modernização, desenvolvi-
a não-existência do que não cabe neles. Há mento e globalização. Comum a todas estas
produção de não-existência sempre que uma formulações é a ideia de que o tempo é line-
dada entidade é desqualificada e tornada invi- ar e que na frente do tempo seguem os países
sível, ininteligível ou descartável de um modo centrais do sistema mundial e, com eles, os
irreversível. O que une as diferentes lógicas de conhecimentos, as instituições e as formas de
produção de não-existência é serem todas elas sociabilidade que neles dominam. Esta lógi-
manifestações da mesma monocultura racio- ca produz não-existência ao descrever como
nal. Distingo cinco lógicas ou modos de produ- atrasado (pré-moderno, subdesenvolvido,
ção da não-existência. etc.) tudo o que é assimétrico em relação ao
A primeira lógica deriva da monocultura do que é declarado avançado. É nos termos desta
saber e do rigor do saber. É o modo de produ- lógica que a modernidade ocidental produz a
ção de não-existência mais poderoso. Consis- não-contemporaneidade do contemporâneo,
te em transformar a ciência moderna e a alta e que a ideia de simultaneidade esconde as
cultura nos únicos critérios de verdade e de assimetrias dos tempos históricos que nela
qualidade estética, respectivamente. A cumpli- convergem. O encontro entre o camponês afri-
cidade que une as “duas culturas” (a científica cano e o funcionário do Banco Mundial em
e a humanística) reside no facto de ambas se “viagem de campo” ilustra esta condição. A
arrogarem ser, cada uma no seu campo, câno- contemporaneidade do camponês é avaliada
O Fórum Social Mundial como epistemologia do Sul 719

segundo os critérios de contemporaneidade reconstruída pelo capitalismo1. De acordo com


do Banco Mundial e, à luz destes, é convertida esta lógica, a não-existência é produzida como
numa simples expressão de atraso económico. uma forma de inferioridade, inferioridade insu-
Neste caso, a não-existência assume a forma perável porque natural. Quem é inferior, por-
da residualização que, por sua vez, tem adopta- que insuperavelmente inferior, não pode ser
do, ao longo dos últimos duzentos anos, várias uma alternativa credível a quem é superior.
designações, a primeira das quais foi o primi- A quarta lógica da produção de não-existên-
tivo ou selvagem, seguida de perto por outras cia é a lógica da escala dominante: a mono-
como o tradicional, o pré-moderno, o simples, cultura do universal e do global. Nos termos
o obsoleto, o subdesenvolvido. desta lógica, a escala adoptada como primor-
A terceira lógica é a lógica da classificação dial determina a irrelevância de todas as outras
social, que assenta na monocultura da natura- possíveis escalas. Na modernidade ocidental,
lização das diferenças. Consiste em distribuir a escala dominante aparece sob duas formas
as populações segundo categorias que naturali- diferentes: o universal e o global. O universa-
zam hierarquias. As classificações racial e sexu- lismo é a escala das entidades ou realidades
al são as mais salientes manifestações desta ló- que vigoram independentemente de contextos
gica. Ao contrário do que sucede com a relação específicos. Têm, por isso, precedência sobre
capital/trabalho, a classificação social assenta todas as outras realidades que dependem de
em atributos que negam a intencionalidade da contextos e que, por essa razão, são considera-
hierarquia social. A relação de dominação é a das particulares ou vernáculas. A globalização
consequência, e não a causa, dessa hierarquia, é a escala que, durante os últimos vinte anos,
e pode ser mesmo considerada como uma obri- adquiriu uma importância sem precedentes
gação de quem é classificado como superior nos mais diversos campos sociais. Trata-se da
(por exemplo, o “fardo do homem branco” na
missão civilizadora do colonialismo). Embora
as duas formas de classificação (raça e sexo) 1 Ver Wallerstein e Balibar (1991), Quijano (2000) e
sejam decisivas para que a relação capital/tra- Mignolo (2000). Quijano considera que a racialização
das relações de poder é uma característica intrínseca
balho se estabilize e se difunda globalmente, a
do capitalismo, característica por ele designada como
classificação racial foi a mais profundamente “colonialidade do poder” (2000: 374).
720 Boaventura de Sousa Santos

escala que privilegia entidades ou realidades de imigração, a violação dos padrões laborais,
que alargam o seu âmbito a todo o globo e que, o controlo ou destruição dos sindicatos, etc.).
ao fazê-lo, adquirem a prerrogativa de designar Segundo a lógica da produtividade capitalista,
entidades ou realidades rivais como locais. Se- a não-existência é produzida sob a forma de
gundo esta lógica, a não-existência é produzida improdutividade. Aplicada à natureza, a impro-
sob a forma do particular e do local. As entida- dutividade significa esterilidade; aplicada ao
des ou realidades definidas como particulares trabalho, significa “populações descartáveis”,
ou locais estão aprisionadas em escalas que as preguiçosas, desqualificadas profissionalmen-
incapacitam de serem alternativas credíveis ao te, ou sem habilitações adequadas.
que existe de modo universal ou global. São, assim, cinco as principais formas so-
Finalmente, a quinta lógica de não-existência ciais de não-existência produzidas pela epis-
é a lógica da produtividade. Assenta na mono- temologia e pela racionalidade hegemónicas:
cultura dos critérios de produtividade e de efi- o ignorante, o residual, o inferior, o local e o
cácia capitalista, que privilegiam o crescimen- improdutivo. Trata-se de formas sociais de
to através das forças do mercado. Este critério inexistência porque as realidades que elas con-
aplica-se tanto à natureza como ao trabalho formam estão presentes apenas como obstá-
humano. A natureza produtiva é a natureza ma- culos em relação às realidades consideradas
ximamente fértil num dado ciclo de produção, relevantes, sejam elas realidades científicas,
enquanto o trabalho produtivo é o trabalho que avançadas, superiores, globais ou produtivas.
maximiza a geração de lucros igualmente num São, pois, partes desqualificadas de totalidades
dado ciclo de produção. Na sua versão extre- homogéneas que, como tal, confirmam mera-
ma de utopia conservadora, o neoliberalismo mente o que existe e tal como existe. São o que
visa converter o trabalho numa força produ- existe sob formas irreversivelmente desqualifi-
tiva entre as demais, sujeita às leis do merca- cadas de existir.
do como qualquer outra força produtiva. Tem A produção social destas ausências resulta
conseguido isto através da transformação do no desperdício da experiência social. A socio-
trabalho num recurso global, ao mesmo tempo logia das ausências visa identificar o âmbito
que impede a todo o custo a emergência de um deste desperdício de modo a que as experi-
mercado de trabalho global (mediante as leis ências produzidas como ausentes possam ser
O Fórum Social Mundial como epistemologia do Sul 721

libertadas dessas relações de produção e, por transgressiva — que são, ao mesmo tempo,
essa via, se tornem presentes. Tornar-se pre- práticas de acção transformadora e práticas
sentes significa serem consideradas alternati- de conhecimento transformador — adopta-
vas à experiência hegemónica, a sua credibili- das pelas organizações e pelos movimentos
dade poder ser discutida e argumentada e as sociais envolvidos no FSM. A sociologia das
suas relações com essa experiência poderem ausências funciona mediante a substituição
ser objecto de disputa política. A sociologia das monoculturas por ecologias2. Identifico,
das ausências visa, assim, criar uma carência portanto, cinco ecologias.
e transformar a suposta falta de experiência
social em desperdício de experiência social. A ecologia dos saberes
Com isso, cria as condições para ampliar o
A primeira lógica, a lógica da monocultura
campo das experiências credíveis neste mun-
do saber e do rigor científicos, tem de ser con-
do e neste tempo. A ampliação do mundo
frontada pela identificação de outros saberes e
ocorre não só porque o campo das experiên-
de outros critérios de rigor que operam credi-
cias credíveis é alargado, mas também porque
velmente em práticas sociais. Essa credibilida-
aumentam as possibilidades de experimenta-
de contextual deve ser considerada uma con-
ção social no futuro.
dição suficiente para que o conhecimento em
A sociologia das ausências é exercida atra-
questão tenha legitimidade para participar em
vés do confronto com cada um dos modos de
debates epistemológicos com outros saberes,
produção de ausência mencionados atrás. Por-
nomeadamente com o conhecimento científi-
que estes são moldados pela ciência social con-
co. A ideia central da sociologia das ausências
vencional, a sociologia das ausências só pode
a este respeito é que não há ignorância em geral
ser transgressiva e, enquanto tal, arrisca-se a
nem conhecimento em geral. Toda a ignorância
ser desacreditada. No entanto, o inconformis-
é ignorante de um certo conhecimento, e todo
mo com esse descrédito e a luta pela credibili-
dade permitem que a sociologia das ausências
não permaneça uma sociologia ausente. De
2 Por ecologia entendo a prática de articular a diversi-
facto, o inconformismo e a luta pela credibi-
dade através da identificação e da promoção de interac-
lidade inscrevem-se nas práticas da liberdade ções sustentáveis entre entidades parciais heterogéneas.
722 Boaventura de Sousa Santos

o conhecimento é a superação de uma ignorân- contextos e as práticas em que cada uma ope-
cia particular (Santos, 1995: 25; 2000: 74). Este ra e o modo como concebem saúde e doença,
princípio de incompletude de todos os saberes e como superam a ignorância (sob a forma de
é a condição da possibilidade de diálogo e de doença não diagnosticada) em saber aplicado
debate epistemológicos entre os diferentes co- (sob a forma de cura).
nhecimentos. O que cada conhecimento contri- A ecologia dos saberes não implica a aceita-
bui para esse diálogo é o modo como orienta ção do relativismo. Pelo contrário, na perspec-
uma certa prática na superação de uma certa tiva de uma pragmática da emancipação social,
ignorância. O confronto e o diálogo entre os sa- o relativismo, enquanto ausência de critérios
beres é um confronto e diálogo entre diferentes de hierarquia de valores entre saberes, é uma
processos através dos quais práticas diferente- posição insustentável, pois torna impossível
mente ignorantes se transformam em práticas qualquer relação entre o conhecimento e o sen-
diferentemente sábias. tido da transformação social. Se tudo tem igual
Neste domínio, a sociologia das ausências valor como conhecimento, todos os projectos
visa substituir a monocultura do conhecimen- de transformação social são igualmente válidos
to científico por uma ecologia de saberes. Esta ou, o que significa o mesmo, igualmente inváli-
ecologia de saberes permite não só superar a dos. A ecologia dos saberes visa criar um novo
monocultura do conhecimento científico, como tipo de relacionamento entre o saber científico
também a ideia de que os saberes não científi- e outras formas de conhecimento. Consiste em
cos são alternativas ao saber científico. A ideia conceder “igualdade de oportunidades” às dife-
de alternativa pressupõe a ideia de normalida- rentes formas de saber envolvidas em disputas
de, e esta a ideia de norma, pelo que, sem mais epistemológicas cada vez mais amplas, visando
especificações, a designação de algo como uma a maximização dos seus respectivos contribu-
alternativa tem uma conotação latente de su- tos para a construção de “outro mundo possí-
balternidade. Se tomarmos como exemplo a vel”, isto é, de uma sociedade mais justa e mais
biomedicina e a medicina tradicional de África, democrática, bem como de uma sociedade
não faz sentido considerar esta última, a que mais equilibrada em relação à natureza. A ques-
prevalece no continente africano, como alter- tão não está em atribuir igual validade a todos
nativa à primeira. O importante é identificar os os tipos de saber, mas antes em permitir uma
O Fórum Social Mundial como epistemologia do Sul 723

discussão pragmática de critérios de validade alguns antigos e outros recentes, que são dife-
alternativos, que não desqualifique à partida rentemente activados em diferentes contextos
tudo o que não se ajusta ao cânone epistemoló- ou situações. Mais do que quaisquer outros,
gico da ciência moderna. os movimentos dos povos indígenas testemu-
nham essas constelações de tempos.
A ecologia das temporalidades A necessidade de tomar em conta estas di-
ferentes concepções de tempo deriva do facto,
A segunda lógica, a lógica da monocultura
salientado por Koselleck (1985) e por Marra-
do tempo linear, deve ser confrontada com a
mao (1995), de que as sociedades entendem o
ideia de que o tempo linear é uma entre muitas
poder a partir das concepções de temporalida-
concepções do tempo e de que, se tomarmos
de que nelas circulam. As relações de domina-
o mundo como nossa unidade de análise, não
ção mais resistentes são as que assentam nas
é sequer a concepção mais adoptada. A predo-
hierarquias entre temporalidades. A domina-
minância do tempo linear não resulta da sua
ção tem lugar graças à redução da experiência
primazia enquanto concepção temporal, mas
social dominada, hostil ou indesejável à condi-
da primazia da modernidade ocidental que o
ção de resíduo. As experiências são considera-
adoptou como seu. Foi a concepção adopta-
das residuais porque são contemporâneas de
da pela modernidade ocidental a partir da se-
maneiras que a temporalidade dominante não
cularização da escatologia judaico-cristã, mas
é capaz de reconhecer. São desqualificadas,
ela nunca eliminou, nem mesmo no Ocidente,
suprimidas ou tornadas ininteligíveis porque
outras concepções como a do tempo circular,
são regidas por temporalidades que não estão
sazonal, vivido, ou a doutrina do eterno retor-
contidas no cânone temporal da modernidade
no e outras que não se deixam captar adequa-
ocidental capitalista.
damente pela imagem da flecha do tempo. É
Neste domínio, a sociologia das ausências
o caso do palimpsesto temporal do presente,
parte da ideia de que as sociedades são consti-
a ideia de que a subjectividade ou identidade
tuídas por várias temporalidades. Visa libertar
de uma pessoa ou de um grupo social é uma
as práticas sociais do seu estatuto de resíduos,
constelação de tempos e temporalidades diver-
devolvendo-lhes a sua própria temporalidade
sos, alguns modernos e outros não-modernos,
e, portanto, a possibilidade de desenvolvimen-
724 Boaventura de Sousa Santos

to autónomo. Uma vez que essas temporalida- nada por Quijano (2000), consiste em identificar
des sejam recuperadas e dadas a conhecer, as diferença com desigualdade, ao mesmo tempo
práticas e as sociabilidades que se pautam por que se arroga o privilégio de determinar quem é
elas tornam-se inteligíveis e objectos credíveis igual e quem é diferente. O mesmo pode dizer-se
de argumentação e de disputa política. Por da sexualidade desigual do poder capitalista mo-
exemplo, uma vez libertada do tempo linear e derno. A sociologia das ausências confronta-se
devolvida à sua própria temporalidade, a acti- com a colonialidade e com a sexualidade desi-
vidade dos camponeses africanos ou asiáticos gual, procurando uma nova articulação entre o
deixa de ser residual e torna-se contemporânea princípio da igualdade e o princípio da diferença,
da actividade do agricultor hi-tech dos Esta- permitindo assim a possibilidade de diferenças
dos Unidos ou da actividade do executivo do iguais — uma ecologia de diferenças feita de re-
Banco Mundial. Pela mesma ordem de ideias, a conhecimentos recíprocos. Fá-lo submetendo a
presença ou relevância dos ancestrais na vida hierarquia à etnografia crítica (Santos, 2001a).
de cada um em diferentes culturas deixa de Isso consiste na desconstrução tanto da diferen-
ser uma manifestação anacrónica de religião ça (em que medida a diferença é um produto da
primitiva ou de magia para passar a ser outra hierarquia?) como da hierarquia (em que medi-
forma de experienciar a contemporaneidade. da a hierarquia é um produto da diferença?). As
diferenças que subsistem quando desaparece a
A ecologia dos reconhecimentos hierarquia tornam-se uma denúncia poderosa
das diferenças que a hierarquia exige para não
A terceira lógica da produção de ausências é a
desaparecer. Os movimentos feministas e indíge-
lógica da classificação social. Embora em todas
nas têm estado na frente da luta por uma ecolo-
as lógicas de produção de ausência a desqualifi-
gia dos reconhecimentos.
cação das práticas vá de par com a desqualifica-
ção dos agentes, é nesta lógica que a desqualifi-
cação incide prioritariamente sobre os agentes, A ecologia das trans-escalas
e só secundariamente sobre a experiência social A sociologia das ausências confronta-se com
de que eles são protagonistas. A colonialidade do a quarta lógica, a lógica da escala global, atra-
poder capitalista moderno e ocidental, mencio- vés da recuperação do que no local não é efei-
O Fórum Social Mundial como epistemologia do Sul 725

to da globalização hegemónica. O local que foi A ecologia das produtividades


integrado na globalização hegemónica é o que Finalmente, no domínio da quinta lógica, a
designo por globalismo localizado, ou seja, o monocultura da produtividade capitalista, a
impacto específico da globalização hegemónica sociologia das ausências consiste na recupe-
no local (Santos, 1998; 2000). Ao desglobalizar o ração e valorização dos sistemas alternativos
local relativamente à globalização hegemónica, de produção, das organizações económicas
a sociologia das ausências explora também a populares, das cooperativas operárias, das
possibilidade de uma globalização contra-hege- empresas autogeridas, da economia solidária,
mónica. Em suma, a desglobalização do local e etc., que a ortodoxia produtivista ocultou ou
sua eventual reglobalização contra-hegemónica descredibilizou. Este é talvez o domínio mais
ampliam a diversidade das práticas sociais ao controverso da sociologia das ausências, uma
oferecer alternativas aos globalismos localiza- vez que põe directamente em causa o para-
dos. A sociologia das ausências exige neste do- digma do desenvolvimento e do crescimento
mínio o exercício da imaginação cartográfica, económico infinito e a lógica da primazia dos
quer para ver em cada escala de representação objectivos de acumulação sobre os objectivos
não só o que ela mostra mas também o que ela de distribuição que sustentam o capitalismo
oculta, quer para lidar com mapas cognitivos global. Os movimentos de camponeses pelo
que operam simultaneamente com diferentes acesso à terra e à propriedade da terra, pela
escalas, nomeadamente para detectar as arti- reforma agrária ou contra projectos de me-
culações locais/globais (Santos, 1995: 456-473; gadesenvolvimento, os movimentos urbanos
Santos, 2001b). Muitos dos movimentos envol- pelo direito à habitação, a economia informal
vidos no FSM começaram por ser lutas locais e os movimentos de economia popular, os
travadas contra a exclusão social imposta ou movimentos indígenas para defender ou recu-
intensificada pela globalização neoliberal. Só perar os seus territórios históricos e os recur-
mais recentemente, muitas vezes através do sos naturais que neles foram descobertos, os
FSM, esses movimentos desenvolveram articu- movimentos de castas inferiores na Índia que
lações locais/globais mediante as quais se glo- visam proteger as suas terras e as suas flores-
balizaram de forma contra-hegemónica. tas locais, todos estes movimentos baseiam as
726 Boaventura de Sousa Santos

suas reivindicações e as suas lutas na ecologia escalas de identificação, de diferentes análises


das produtividades. e avaliações de práticas. A imaginação demo-
Em cada um dos cinco domínios, o objectivo crática permite o reconhecimento de diferentes
da sociologia das ausências é revelar e credibi- práticas e actores sociais. Tanto a imaginação
lizar a diversidade e a multiplicidade das prá- epistemológica como a imaginação democrá-
ticas sociais, e dar-lhes crédito por contrapo- tica têm uma dimensão desconstrutiva e uma
sição à credibilidade exclusivista das práticas dimensão reconstrutiva. A desconstrução as-
hegemónicas. A ideia de multiplicidade e de sume cinco formas, correspondentes à crítica
relações não destrutivas entre os agentes que das cinco lógicas da racionalidade hegemónica:
as compõem é sugerida pelo conceito de ecolo- despensar, desresidualizar, desracializar, deslo-
gia: ecologia de saberes, ecologia de temporali- calizar e desproduzir. A reconstrução é consti-
dades, ecologia de reconhecimentos, ecologia tuída pelas cinco ecologias acima referidas.
de trans-escalas e ecologia de produtividades. O FSM é um amplo exercício da sociologia
Comum a todas estas ecologias é a ideia de que das ausências. Como indiquei, é internamente
a realidade não pode ser reduzida ao que existe desigual no que concerne à sua proximidade
de modo hegemónico. Isto equivale a uma ver- ao tipo-ideal. Se, em geral, é inequivocamente
são ampla de realismo, que inclui as realidades visível uma recusa das monoculturas e uma
tornadas ausentes por via do silenciamento, da adopção de ecologias, este processo não se
supressão e da marginalização, isto é, as rea- apresenta, porém, com a mesma intensida-
lidades que são activamente produzidas como de em todos os movimentos, organizações e
não existentes. articulações. Se, para alguns movimentos, a
Em conclusão, o exercício da sociologia opção pelas ecologias é incondicional, outros
das ausências é contrafactual e tem lugar atra- permitem uma hibridez entre monoculturas e
vés de uma confrontação com o senso comum ecologias. Também acontece frequentemente
científico convencional. Para ser levado a cabo, que alguns movimentos ou organizações ac-
exige, ao mesmo tempo, imaginação epistemo- tuem, em certos domínios, de acordo com uma
lógica e imaginação democrática. A imaginação lógica monocultural e, noutros, segundo uma
epistemológica permite o reconhecimento de lógica ecológica. É igualmente possível que a
diferentes saberes, de diferentes perspectivas e adopção de uma lógica ecológica seja desca-
O Fórum Social Mundial como epistemologia do Sul 727

racterizada pelo facciosismo e pela luta de po- facto de a filosofia ocidental ter sido dominada
der no seio do movimento ou da organização, e pelos conceitos de Tudo e Nada, nos quais tudo
se transforme numa nova lógica monocultural. parece estar contido em latência, mas donde
Finalmente, sugiro a hipótese de que mesmo os nada novo pode surgir. Daí que a filosofia oci-
movimentos que reivindicam diferentes eco- dental seja um pensamento estático. Para Blo-
logias são vulneráveis à tentação de se auto- ch, o possível é o mais incerto, o mais ignorado
-avaliarem de acordo com uma lógica ecológi- conceito da filosofia ocidental (1995: 241). E,
ca, enquanto avaliam os outros movimentos de no entanto, só o possível permite revelar a ri-
acordo com uma lógica monocultural. queza inesgotável do mundo. Para lá do Tudo
ou Nada, Bloch introduz dois novos conceitos:
O Fórum Social Mundial e a o Não e o Ainda-Não. O Não é a falta de e a
sociologia das emergências expressão da vontade de superar essa falta. É
A sociologia das emergências é a segunda por isso que o Não se distingue do Nada (1995:
operação epistemológica efectuada pelo FSM. 306). Dizer não é dizer sim a algo diferente. Em
Enquanto que a finalidade da sociologia das au- meu entender, o conceito que dirige a sociolo-
sências é identificar e valorizar as experiências gia das emergências é o conceito do Ainda-Não.
sociais disponíveis no mundo, embora declara- O Ainda-Não é a categoria mais complexa, por-
das não-existentes pela racionalidade e pelo sa- que exprime o que existe apenas como simples
ber hegemónicos, a sociologia das emergências tendência, um movimento que é latente no pró-
visa identificar e ampliar os sinais de possíveis prio processo de se manifestar. O Ainda-Não é
experiências futuras, sinais inscritos em ten- o modo como o futuro se inscreve no presente.
dências e latências que são activamente igno- Não é um futuro indeterminado nem infinito. É
radas por essa racionalidade e por esse saber. uma possibilidade e uma capacidade concretas
Atrair a atenção para as emergências é algo que nem existem no vácuo, nem estão comple-
que se pode observar nas mais diferentes tradi- tamente pré-determinadas. De facto, elas re-
ções culturais e filosóficas. Mas, no que toca à -determinam activamente tudo aquilo em que
modernidade ocidental, isso acontece apenas tocam, questionando assim as determinações
nas suas margens, como, por exemplo, na filo- que existem num dado momento. Subjectiva-
sofia de Ernst Bloch. Bloch insurge-se contra o mente, o Ainda-Não é a consciência antecipa-
728 Boaventura de Sousa Santos

tória, uma forma de consciência que, apesar mento, há um horizonte limitado de possibili-
de ser tão importante na vida das pessoas, foi, dades e por isso é importante não desperdiçar
totalmente negligenciada pela filosofia e pela a única oportunidade de uma transformação
psicologia convencionais (por exemplo, por específica que o presente oferece: carpe diem
Freud [Bloch, 1995: 286-315]). Objectivamente, (agarra o dia). Das três categorias modais da
o Ainda-Não é, por um lado, capacidade (po- existência — a realidade, a necessidade, a pos-
tência) e, por outro, possibilidade (potenciali- sibilidade — a racionalidade e o conhecimento
dade). A possibilidade tem uma componente hegemónicos centram-se nas duas primeiras e
de escuridão na medida em que a sua origem descuram totalmente a terceira. A sociologia
reside no momento vivido, o qual nunca é in- das emergências, em contrapartida, centra-se
teiramente visível para si próprio, e tem tam- na possibilidade. Como Bloch afirmou, “ser
bém uma componente de incerteza que deriva humano é ter muito diante de si” (1995: 246).
de uma dupla carência: o facto de as condições A possibilidade é o motor do mundo. Os seus
que podem concretizar a possibilidade serem momentos são a carência (manifestação de
apenas parcialmente conhecidas; e o facto de algo que falta), a tendência (processo e sen-
essas condições só existirem parcialmente. tido) e a latência (o que está na frente desse
Para Bloch, é fundamental distinguir entre es- processo). A carência é o domínio do Não, a
tas duas carências: é possível conhecer relati- tendência é o domínio do Ainda-Não e a latên-
vamente bem condições que só existem muito cia é o domínio do Nada e do Tudo, dado que
parcialmente e, vice-versa, é possível que tais esta latência tanto pode redundar em frustra-
condições estejam amplamente presentes, mas ção como em esperança.
não sejam reconhecidas como tal pelo conheci- A sociologia das emergências é a investiga-
mento disponível. ção das alternativas que cabem no horizonte
O Ainda-Não inscreve no presente uma pos- das possibilidades concretas. Consiste em pro-
sibilidade incerta, mas nunca neutra; pode ser ceder a uma ampliação simbólica dos saberes,
a possibilidade da utopia ou da salvação ou a práticas e agentes de modo a identificar neles
possibilidade da catástrofe ou perdição. Esta as tendências do futuro (o Ainda-Não) sobre
incerteza faz com que toda a mudança tenha as quais é possível intervir para maximizar a
um elemento de acaso, de perigo. Em cada mo- probabilidade de esperança em relação à pro-
O Fórum Social Mundial como epistemologia do Sul 729

babilidade da frustração. Tal ampliação sim- das ausências é a consciência cosmopolita e o


bólica é, no fundo, uma forma de imaginação inconformismo ante o desperdício da experi-
sociológica que visa um duplo objectivo: por ência. O elemento subjectivo da sociologia das
um lado, conhecer melhor as condições de emergências é a consciência antecipatória e o
possibilidade da esperança; por outro, definir inconformismo ante uma carência cuja satisfa-
princípios de acção que promovam a realiza- ção está no horizonte de possibilidades. Como
ção dessas condições. diz Bloch, os conceitos fundamentais não são
A sociologia das emergências actua, quer acessíveis sem uma teoria das emoções (1995:
sobre as possibilidades (potencialidade), quer 306). O Não, o Nada e o Tudo iluminam emo-
sobre as capacidades (potência). O Ainda-Não ções básicas como fome ou carência, desespe-
tem sentido (enquanto possibilidade), mas ro ou aniquilação, confiança ou redenção. De
não tem direcção pré-determinada, já que tan- uma forma ou de outra, estas emoções estão
to pode terminar em esperança como em de- presentes no inconformismo que move tanto
sastre. Por isso, a sociologia das emergências a sociologia das ausências como a sociologia
substitui a ideia de determinação pela ideia do das emergências.
cuidado. A axiologia do progresso, que justi- Enquanto a sociologia das ausências se
ficou imensa destruição, é assim substituída move no campo das experiências sociais, a so-
pela axiologia do cuidado. Enquanto que na ciologia das emergências move-se no campo
sociologia das ausências a axiologia do cui- das expectativas sociais. A discrepância en-
dado é exercida em relação às alternativas tre experiências e expectativas é constitutiva
disponíveis, na sociologia das emergências a da modernidade ocidental e tem sido imposta
axiologia do cuidado é exercida em relação às a outras culturas. Através do conceito de pro-
alternativas possíveis. Esta dimensão ética faz gresso, a discrepância tem sido polarizada de
com que nem a sociologia das ausências nem a tal modo que desapareceu toda a articulação
sociologia das emergências sejam sociologias efectiva entre experiências e expectativas: por
convencionais. Mas elas não são convencio- mais miseráveis que possam ser as experiên-
nais por uma outra razão: a sua objectividade cias presentes, elas não impedem a ilusão de
depende da qualidade da sua dimensão sub- expectativas radiosas. A sociologia das emer-
jectiva. O elemento subjectivo da sociologia gências concebe a discrepância entre expe-
730 Boaventura de Sousa Santos

riências e expectativas sem recorrer à ideia que as protege, embora nunca totalmente, da
de progresso, vendo-a antes como concreta e frustração. Nessas expectativas radica a rein-
moderada. Não se trata, pois, de minimizar as venção da emancipação social, ou melhor, das
expectativas, mas de radicalizar as expectati- emancipações sociais.
vas assentes em possibilidades e capacidades A ampliação simbólica operada pela sociolo-
reais, aqui e agora. gia das emergências consiste em identificar si-
As expectativas modernistas eram grandio- nais, pistas ou traços de possibilidades futuras
sas em abstracto, falsamente infinitas e univer- em tudo o que existe. A ciência e a racionalida-
sais. Desse modo, justificaram a morte, a des- de hegemónicas descartaram totalmente este
truição e o desastre em nome de uma redenção tipo de investigação, ou por considerarem que
sempre adiada. Com a crise do conceito de o futuro está predeterminado, ou por entende-
progresso, o futuro deixou de ser automatica- rem que ele só pode ser identificado através
mente prospectivo e axiológico. Os conceitos de indicadores precisos. Para elas, pistas são
de modernização e de desenvolvimento dilu- algo demasiado vago, subjectivo e caótico para
íram estas características quase totalmente. constituir um indicador credível. Ao centrar-se
O que hoje é conhecido como globalização intensamente na componente de pista que a
consuma a substituição do prospectivo e do realidade possui, a sociologia das emergências
axiológico pelo acelerado e entrópico. Assim, visa ampliar simbolicamente as possibilidades
a direcção torna-se ritmo sem sentido e, se al- de futuro que residem, em forma latente, nas
gum estádio final existe, não poderá ser senão experiências sociais concretas.
desastre. Contra este niilismo, que é tão vazio A noção de pista, entendida como algo que
como o triunfalismo das forças hegemónicas, a anuncia o que está para vir, é essencial em
sociologia das emergências propõe uma nova várias práticas, tanto humanas como animais.
semântica das expectativas. As expectativas Para dar um exemplo, sabe-se como os ani-
legitimadas pela sociologia das emergências mais recorrem a pistas visuais, auditivas e ol-
são contextuais, porque medidas por possibi- factivas para anunciar quando estão prontos
lidades e capacidades concretas, e radicais, para a actividade reprodutora. A precisão e o
porque, no âmbito dessas possibilidades e ca- detalhe dessas pistas são notáveis. Na medi-
pacidades, reivindicam uma realização forte cina, na investigação criminal e na narrativa
O Fórum Social Mundial como epistemologia do Sul 731

dramática, as pistas são fundamentais para se prática da sociologia das emergências é desi-
decidir sobre a acção futura, seja ela diagnós- gual, e as desigualdades devem ser objecto de
tico ou prescrição, identificação de suspeitos análise e de avaliação.
ou desenvolvimento do enredo. Nas ciências
sociais, contudo, as pistas não têm credibili- Bibliografia
dade. A sociologia das emergências, pelo con- Bloch, E. 1995 The Principle of Hope
trário, valoriza as pistas enquanto vias para (Cambridge, MA: MIT Press).
a discussão e defesa de futuros alternativos Koselleck, R. 1985 Futures Past: On the
concretos. Enquanto que, nos animais, as pis- Semantics of Historical Time (Cambridge,
tas veiculam informação altamente codifica- MA: MIT Press).
da, na sociedade as pistas são mais abertas e Marramao, G. 1995 Poder e secularização: as
podem, por isso, ser campos de argumenta- categorias do tempo (São Paulo: Editora da
ção e de negociação sobre o futuro. O cuida- Universidade Estadual Paulista).
do do futuro manifesta-se nessa argumenta- Mignolo, W. 2000 Local Histories/Global
ção e negociação. Designs: Coloniality, Subaltern
Tal como na sociologia das ausências, as Knowledges, and Border Thinking
práticas do FSM também estão mais ou me- (Princeton: Princeton University Press).
nos próximas do tipo-ideal da sociologia das Quijano, A. 2000 “Colonialidad del poder
emergências. Sugiro, como hipótese de tra- y classificacion social” in Journal of
balho, que os movimentos e organizações WorldSystems Research, V. 6, Nº 2, pp. 342-
mais fortes e mais consolidados tendem a um 386.
menor envolvimento na sociologia das emer- Santos, B. de Sousa 1995 Toward a New
gências do que os menos fortes e menos con- Common Sense: Law, Science and Politics
solidados. No que respeita às relações entre in the Paradigmatic Transition (Nova
movimentos ou organizações, os sinais e as Iorque: Routledge).
pistas transmitidos pelos movimentos menos Santos, B. de Sousa 2000 A Crítica da
consolidados podem ser desvalorizados como razão indolente: contra o desperdício da
subjectivos e inconsistentes por parte dos mo- experiência (Porto: Afrontamento / São
vimentos mais consolidados. Também aqui a Paulo: Cortez).
732 Boaventura de Sousa Santos

Santos, B. de Sousa 2001a “Nuestra América:


Reinventing a Subaltern Paradigm of
Recognition and Redistribution” in Theory
Culture and Society, V. 18, Nº 23, pp. 185-
217.
Santos, B. de Sousa 2001b “Toward an
Epistemology of Blindness: Why the new
forms of ‘Ceremonial Adequacy’ neither
Regulate nor Emancipate” in The European
Journal of Social Theory, V. 4, Nº 3, pp.
251-279.
Santos, B. de Sousa 2002 “Para uma
sociologia das ausências e uma sociologia
das emergências” in Revista Crítica de
Ciências Sociais, Nº 63, pp. 237-280.
Santos, B. de Sousa (Org.) 2003 Conhecimento
Prudente para uma Vida Decente: “Um
Discurso sobre as Ciências” Revisitado
(Porto: Afrontamento / São Paulo: Cortez).
Wallerstein, I. e Balibar, Étienne 1991 Race,
Nation, Class: Ambiguous Identities (Nova
Iorque: Verso).
Anexo
Lista dos livros e artigos
publicados em português por
Boaventura de Sousa Santos

Libros: Autor 2000 A crítica da razão indolente: Contra


1988 Um Discurso sobre as Ciências (Porto: o desperdício da experiência (Porto:
Afrontamento) 15ª edição. Afrontamento) 2ª edição.
1989 Introdução a uma Ciência Pós- 2001 A cor do tempo quando foge (Porto:
Moderna (Porto: Afrontamento) 6ª Afrontamento).
edição. 2002 Democracia e Participação: O Caso
1989 Introdução a uma Ciência Pós- do Orçamento Participativo de Porto
Moderna (São Paulo: Graal) 3ª edição. Alegre (Porto: Afrontamento).
1990 Estado e Sociedade em Portugal (1974- 2003 Um Discurso sobre as Ciências (São
1988) (Porto: Afrontamento) 3ª edição. Paulo: Cortez) 7ª edição em 2010.
1994 Pela Mão de Alice: O Social e o 2004 A Universidade no Séc. XXI: para
Político na Pós-Modernidade (Porto: uma Reforma Democrática e
Afrontamento) 8ª edição, Prémio Pen Emancipatória da Universidade (São
Club Português (ensaio). Paulo: Cortez) 3ª edição.
1995 Pela Mão de Alice: O Social e o Político 2005 Fórum Social Mundial: Manual de Uso
na Pós-Modernidade (São Paulo: (Porto: Afrontamento).
Cortez) 12ª edição. 2005 Fórum Social Mundial: Manual de Uso
1998 Reinventar a democracia (Lisboa: (São Paulo: Cortez).
Gradiva) 2ª edição. 2006 A gramática do tempo. Para uma nova
2000 A crítica da razão indolente: Contra o cultura política (Porto: Afrontamento).
desperdício da experiência (São Paulo: 2006 A gramática do tempo. Para uma nova
Cortez) 8ª edição. cultura política (São Paulo: Cortez) 2ª
edição.
734 Boaventura de Sousa Santos

2007 Para uma revolução democrática da 2014 A revolução democrática da justiça


justiça (São Paulo: Cortez). (Coimbra: Almedina).
2007 Renovar a teoria crítica e reinventar 2014 O direito dos oprimidos (Coimbra:
a emancipação social (São Paulo: Almedina).
Boitempo) Editorial). 2014 O direito dos oprimidos (São Paulo:
2011 Portugal. Ensaio contra a Cortez).
autoflagelação (Coimbra: Almedina). 2015 A justiça popular em Cabo Verde (São
Segunda edição, revista e aumentada, Paulo: Cortez).
em 2012. 2016 A difícil democracia. Reinventar as
2011 Portugal. Ensaio contra a esquerdas (São Paulo: Boitempo).
autoflagelação (São Paulo: Cortez). 2016 As bifurcações da ordem. Revolução,
2012 A cor do tempo quando foge — V. 2 cidade, campo e indignação (São
(Coimbra: Almedina). Paulo: Cortez).
2013 Pela Mão de Alice: O Social e o Político 2017 As bifurcações da ordem. Revolução,
na Pós-Modernidade (Coimbra: cidade, campo e indignação (Coimbra:
Almedina) 9ª edição, revista e Almedina).
aumentada. 2018 Esquerdas do mundo, uni-vos! São
2013 Pela Mão de Alice: O Social e o Político Paulo: Boitempo).
na Pós-Modernidade (São Paulo: 2018 Pneumatóforo. Escritos políticos 1981-
Cortez) 14ª edição, revista e aumentada. 2018 (Coimbra: Almedina).
2013 Se Deus fosse um ativista dos direitos
humanos (Coimbra: Almedina). Libros: Organizador ou
2013 Se Deus fosse um ativista dos direitos Co-Organizador
humanos (São Paulo: Cortez). 1993 (Org.) Portugal — Um Retrato
2014 A cor do tempo quando foge. Uma Singular (Porto: Afrontamento) 2ª
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2013 (São Paulo: Cortez). 1996 (Org. com Leitão Marques, M. M.;
2014 A justiça popular em Cabo Verde Pedroso, J. e Lopes Ferreira, P.)
(Coimbra: Almedina). Os Tribunais nas Sociedades
Lista dos livros e artigos publicados em português 735

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(Porto: Afrontamento) 2ª edição; transformação social: uma paisagem
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1997 (Org. com Cruzeiro, M. M. e Coimbra, Afrontamento).
M. N.) O Pulsar da Revolução: 2003 (Org.) Conhecimento prudente para
Cronologia da Revolução de 25 de Abril uma vida decente: Um discurso
(1973-1976) (Porto: Afrontamento/ sobre as ciências revisitado (Porto:
Centro de Documentação 25 de Abril da Afrontamento).
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1998 (Org. com Bento, M.; Gonelha, M. caminhos da democracia participativa
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Portuguesas, Centro de Estudos (Porto: Afrontamento).
Sociais). 2003 (Org.) Reconhecer para libertar:
1998 (Org. com Gomes, C.) Macau: O os caminhos do cosmopolitismo
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2001 (Org.) Globalização: Fatalidade ou 2004 (Org. com Cruz e Silva, T.) Moçambique
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2002 (Org.) A Globalização e as Ciências e Judiciária).
Sociais (São Paulo: Cortez) 4ª edição 2004 (Org.) Conhecimento prudente para
em 2011. uma vida decente: Um discurso sobre
2002 (Org.) Democratizar a democracia: os as ciências revisitado (São Paulo:
caminhos da democracia participativa Cortez) 2ª edição em 2006.
(Rio de Janeiro: Civilização Brasileira). 2004 (Org.) Reconhecer para libertar:
2002 (Org.) Produzir para viver: os os caminhos do cosmopolitismo
caminhos da produção não capitalista multicultural (Porto: Afrontamento).
(Rio de Janeiro: Civilização Brasileira).
736 Boaventura de Sousa Santos

2005 (Org.) Semear outras soluções: 2009 (Org.) As vozes do mundo (Rio de
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2005 (Org.) Semear outras soluções: os Cortez).
caminhos da biodiversidade e dos 2010 (Org. com Santos, A. C.; Duarte, M.;
conhecimentos rivais (Rio de Janeiro: Barradas, C. e Alves, M.) Cometi
Civilização Brasileira). um crime? Representações sobre
2005 (Org.) Trabalhar o mundo: os a (i)legalidade do aborto (Porto:
caminhos do novo internacionalismo Afrontamento).
operário (Porto: Afrontamento). 2012 (Org. com Van-Dúnem, J. O. Serra)
2005 (Org.) Trabalhar o mundo: os Sociedade e Estado em construção:
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operário (Rio de Janeiro: Civilização Angola (Coimbra: Almedina).
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2009 (Org. com Meneses, M. P.) 2018 (Org. com Mendes, J. M.)
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Almedina). Possibilidades Democráticas (Belo
2009 (Org. com Gomes, C.; Duarte, M. e Horizonte: Autêntica Editora).
Baganha, M. I.) Tráfico de Mulheres
em Portugal para fins de exploração Artigos em revistas científicas
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Lista dos livros e artigos publicados em português 737

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1980 “O discurso e o Poder” in Revista Administração da Justiça” in Revista de
Forense, Nº 272. Processo, Nº 37, pp. 121-139.
1981 “A pequena agricultura e as Ciências 1985 “Os Três Tempos Simbólicos da Relação
Sociais” in Revista Crítica de Ciências entre as Forças Armadas e a Sociedade
Sociais, Nº 7/8, pp. 559-563. em Portugal” in Revista Crítica de
1981 “A questão do Socialismo” in Revista Ciências Sociais, Nº 15/16/17, pp. 11-45.
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1982 “O direito e a comunidade: as Portuguesa de Clínica Geral, Nº 9,
transformações recentes da natureza do pp. 18-21.
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avançados” in Revista Crítica de Solidária, Nº 1.
Ciências Sociais, Nº 10, pp. 9-40. 1987 “Estado, sociedade, políticas sociais:
1982 “O Estado, o Direito e a Questão o caso da política de saúde” in Revista
Urbana” in Revista Crítica de Ciências Crítica de Ciências Sociais, Nº 23,
Sociais, Nº 9, pp. 9-86. pp. 13-74.
1983 “Os Conflitos Urbanos no Recife: o 1987 “Introdução à Sociologia da
caso do ‘Skylab’” in Revista Crítica de Administração da Justiça” in Revista
Ciências Sociais, Nº 11, pp. 9-59. Crítica de Ciências Sociais, Nº 21, pp.
1984 “A Crise e a Reconstituição do Estado 11-37.
em Portugal (1974-1984)” in Revista 1988 “O social e o político na transição pós-
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738 Boaventura de Sousa Santos

1988 “Uma cartografia simbólica das 1991 “Justiça e Comunidade em Macau no


representações sociais: o caso do Contexto da Transição” in Revista da
Direito” in Revista Crítica de Ciências Administração, Nº 13.
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1989 “Da Ideia da Universidade à Emancipação” in Revista Crítica de
Universidade de Ideias” in Revista Ciências Sociais, Nº 32, pp. 135-191.
Crítica de Ciências Sociais, Nº 27/28, 1992 (Com Hespanha, P. e Reis, J.) “O
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1989 “O Estado e os modos de produção de de Actores Sociais num Período de
poder social” in Oficina do CES, Nº 7. Reconstituição do Estado” in Oficina do
1989 “Os direitos humanos na pós- CES, Nº 33.
modernidade” in Oficina do CES, Nº 10. 1992 (Com Reis, J.) “Pela reinvenção da
1990 “O Estado e o Direito na Transição pequena agricultura: a necessidade de
Pós-Moderna” in Revista Crítica de um novo pensamento técnico” in 20
Ciências Sociais, Nº 30, pp. 13-44. Valores do Mundo Rural, Nº 18-20.
1990 “Onze Teses por Ocasião de Mais uma 1992 “O Estado, as Relações Salariais e o
Descoberta de Portugal” in Oficina do Bem-Estar Social na Semiperiferia: O
CES, Nº 21. Caso Português” in Oficina do CES, Nº
1991 “A Justiça e a Comunidade em Macau: 32.
Problemas Sociais, a Administração 1992 “Onze Teses por Ocasião de Mais uma
Pública e a Organização Comunitária no Descoberta de Portugal” in Luso-
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in Revista de Cultura, Nº 15, julho/ 181-208.
setembro, pp. 125-143. 1994 “Modernidade, Identidade e a Cultura
1991 “A Transição Paradigmática: da de Fronteira” in Tempo Social, V. 5, Nº
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Lista dos livros e artigos publicados em português 739

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1995 “Sociedade-Providência ou Autoritarismo 1996 “Os tribunais nas sociedades
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Sociais, Nº 42, pp. 1-4. de Ciências Sociais, V. 11, Nº 30.
1995 “Teses para a renovação do 1996 “Uma Cartografia Simbólica das
sindicalismo em Portugal, seguidas de Representações Sociais: Prolegómenos
um apelo” in Vértice, Nº 68, pp. 132-139. a uma concepção Pós-Moderna do
1996 (Com Marques, M. M. Leitão e Pedroso, Direito” in Revista Brasileira de
J.) “Da Microeconomia à Micro- Ciências Criminais, Nº 13, pp. 253-277.
Sociologia da Tutela Judicial, Justiça e 1997 (Com Ferreira, S.) “Para uma Reforma
Democracia, Nº 1, pp. 65-92. Solidária da Segurança Social” in
1996 (Com Marques, M. M. Leitão e Pedroso, Processo Zero (Lisboa: Centro Nacional
J.) “O que se pune em Portugal” in Sub- de Pensões) Nº Especial 20 Anos,
Júdice, Nº 11, pp. 87-107. dezembro.
1996 (Com Marques, M. M. Leitão e Pedroso, 1997 “A queda do Angelus Novus: fragmentos
J.) “O sistema penal em Portugal: um de uma nova teoria da história” in
mapa de bloqueios” in Revista do Novos Estudos CEBRAP, Nº 47, pp. 103-
Ministério Público, Nº 66, pp. 39-60. 124.
1996 “A queda do Angelus Novus: para além 1997 “O sistema penal em Portugal: um mapa
da equação moderna entre raízes e de bloqueios” in Revista Ciências
opções” in Revista Crítica de Ciências Sociais, V. 3, Nº 1, junho, pp. 298-321.
Sociais, Nº 45, pp. 5-34. 1997 “Por uma concepção multicultural de
1996 “As Ruínas Emergentes da Modernidade direitos humanos” in Revista Crítica de
e a Pós-Modernidade” in Revista Plural, Ciências Sociais, Nº 48, pp. 11-32.
Nº 3, pp. 135-152.
740 Boaventura de Sousa Santos

1997 “Uma concepção multicultural de 1999 “Porque é tão difícil construir uma
direitos humanos” in Lua Nova, Nº 39, teoria crítica?” in Revista Crítica de
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1998 (Com Ferreira, S.) “Para uma reforma 2000 “Macau: Estado e Sociedade no Período
solidária da Segurança Social” in de Transição” in Encontros, pp. 161-169.
Sociedade e Trabalho, Nº Especial 2001 “Seis razões para pensar” in Lua Nova,
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1998 (Com Ferreira, S.) “Uma reforma 2002 “Os tribunais e as novas tecnologias
realista da Segurança Social” in de comunicação e de informação” in
Communio, Revista Internacional Estudos de Direito da Comunicação
Católica, Nº 4, pp. 373-377. (Coimbra: Instituto Jurídico da
1998 “Moeda Única: Europeização ou Comunicação, Faculdade de Direito da
Crioulização Monetária?” in Notas Universidade de Coimbra) pp. 137-160.
Económicas, Nº 10, pp. 101-107. 2002 “Para uma nova teoria da democracia”
1998 “Reinventar a democracia: entre o pré- in O Direito Achado na Rua, V. 3, pp.
contratualismo e o pós-contratualismo” 77-86.
in Oficina do CES, Nº 107. 2002 “Para uma sociologia das ausências e
1998 “Tempo, códigos barrocos e uma sociologia das emergências” in
canonização” in Revista Crítica de Revista Crítica de Ciências Sociais, Nº
Ciências Sociais, Nº 51, pp. 3-20. 63, pp. 237-280.
1999 “O rendimento familiar gera justiça 2003 “Entre Próspero e Caliban:
social” in Seara Nova, Nº 63. colonialismo, pós-colonialismo e inter-
1999 “O todo é igual a cada uma das partes” identidade” in Novos Estudos Cebrap,
in Revista Crítica de Ciências Sociais, Nº 66.
Nº 52/53, pp. 5-14. 2003 “Poderá o direito ser emancipatório?” in
1999 “Oriente: Entre diferenças e Revista Crítica de Ciências Sociais, Nº
desencontros” in Notícias do Milénio 65, pp. 3-76.
— Edição especial do Diário de 2005 “A crítica da governação neoliberal: O
Notícias, julho. Fórum Social Mundial como política e
Lista dos livros e artigos publicados em português 741

legalidade cosmopolita subalterna” in — Revista de Direito Ambiental da


Revista Crítica de Ciências Sociais, Nº Amazónia, Nº 6, pp. 11-103.
72, pp. 7-44. 2006/7 “A descoberta imperial do selvagem”
2005 “A justiça em Portugal: diagnósticos e in Revista Atlântica de Cultura Ibero-
terapêuticas” in Revista Manifesto, Nº Americana, Nº 5, outono/inverno, pp.
7, pp. 76-87. 54-57.
2005 “A questão do acesso na universidade 2007 (Com Gomes, C.) “Geografia e
do século XXI” in Revista ADVIR, Nº 19, democracia para uma nova justiça” in
setembro, pp. 7-9. Julgar, Nº 2, maio-agosto, pp. 109-128.
2005 “A Universidade no Séc. XXI: Para uma 2007 “Os direitos humanos na zona de
Reforma Democrática e Emancipatória contacto entre globalizações rivais” in
da Universidade” in Educação, Cronos, V. 8, Nº 1, pp. 23-40.
Sociedade e Culturas, Nº 23, pp. 137- 2007 “Para além do pensamento abissal:
202. das linhas globais a uma ecologia de
2005 “Ciências Sociais num Mundo saberes” in Revista Crítica de Ciências
Globalizado” in e.Ciência, Nº 50. Sociais, Nº 78, pp. 3-46.
2005 “Os tribunais e as novas tecnologias 2008 “A filosofia à venda, a douta ignorância
de comunicação e de informação” in e a aposta de Pascal” in Revista Crítica
Sociologias, Nº 13, janeiro-junho. de Ciências Sociais, Nº 80, pp. 11-43.
2005 “Os tribunais e as novas tecnologias 2008 “As nossas caricaturas” in Revista da
de comunicação e de informação” in Faculdade de Direito da Fundação
Direito e Democracia, Nº 10. Escola Superior do Ministério Público,
2005 “Porquê pensar?” in Revista da Nº 2, pp. 216-217.
Associação de Advogados de 2009 (Com Gomes, C. e Duarte, M.) “Tráfico
Trabalhadores Rurais no Estado da sexual de mulheres: representações
Bahia, Ano III, Nº 3, dezembro. sobre ilegalidade e vitimação” in
2006 (Com Nunes, J. A. e Meneses, M. P.) Revista Crítica de Ciências Sociais, Nº
“Conhecimento e transformação social: 87, dezembro, pp. 69-94.
por uma ecologia de saberes” in Hiléia
742 Boaventura de Sousa Santos

2009 “Direitos humanos: o desafio da


interculturalidade” in Revista Direitos
Humanos, Nº 2, pp. 10-18.
2009 “Por que é que Cuba se transformou
num problema difícil para a Esquerda?”
in Oficina do CES, Nº 322.
2011 “A Encruzilhada da Universidade
Europeia” in Revista do SNESup, Nº 41.
2016 “Para uma nova visão da Europa:
aprender com o Sul” in Sociologias,
Ano 18, Nº 43, setembro/dezembro, pp.
24-56.
Sobre o autor

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS é pro- Entre suas últimas publicações, vale a pena no-
fessor catedrático aposentado de Sociologia tar: Portugal. Ensaio contra a autoflagelação
na Faculdade de Economia da Universidade (Coimbra, 2011), Se Deus fosse um ativista
de Coimbra (Portugal) e Distinguished Legal dos direitos humanos (São Paulo / Coimbra,
Scholar na Faculdade de Direito da Universida- 2013), A difícil democracia. Reinventar as es-
de de Wisconsin-Madison (EUA). querdas (São Paulo, 2016), As bifurcações da
Além disso, ele é diretor do Centro de Es- ordem. Revolução, cidade, campo e indigna-
tudos Sociais da Universidade de Coimbra e ção (São Paulo, 2017) e Justicia entre Saberes:
coordenador do Observatório Permanente da Epistemologías del Sur contra el Epistemici-
Justiça Portuguesa, na mesma universidade. dio (Madrid, 2017).
Sobre os organizadores

MARIA PAULA MENESES, investigadora co- JOÃO ARRISCADO NUNES é sociólogo, In-
ordenadora do Centro de Estudos Sociais da Uni- vestigador do Centro de Estudos Sociais e Pro-
versidade de Coimbra, licenciou-se em história na fessor Catedrático da Faculdade de Economia
Universidade de S. Petersburgo (Rússia), tendo- da Universidade de Coimbra. Membro do Con-
-se doutorado em antropologia pela Universidade selho Consultivo da Associação Portuguesa de
de Rutgers (EUA). Anteriormente foi professora Sociologia. Foi membro da coordenação do
da Universidade Eduardo Mondlane, tendo sido projeto “ALICE - Espelhos estranhos e lições
também investigadora do projeto “ALICE - Espe- imprevistas”, dirigido por Boaventura de Sou-
lhos estranhos e lições imprevistas”, coordenado sa Santos e financiado pelo European Resear-
por Boaventura de Sousa Santos. De entre as ch Council (2011-2016), e Pesquisador Visitan-
suas áreas de interesse incluem-se os debates so- te na Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), no
bre as transições políticas e epistemológicas em Rio de Janeiro (2011-2012). Os seus interesses
contextos (pós)coloniais a partir do desafio das de investigação atuais centram-se nas áreas
Epistemologias do Sul. A partir do seu trabalho dos estudos de ciência, tecnologia e conheci-
em Moçambique, Angola, Quénia e Timor-Leste mento, saúde global, práticas artísticas e saú-
procura documentar as narrativas silenciadas de de e direitos humanos, a partir da perspectiva
mulheres, com o objetivo de compreender a sua das Epistemologias do Sul.
participação na política local e a sua presença
nas representações nacionalistas.
746 Sobre os organizadores

CARLOS LEMA AÑÓN trabalha como pro- Sociais da Universidade de Coimbra, onde faz
fessor de Filosofia do Direito na Universidade parte do núcleo de estudos sobre Democracia,
Carlos III de Madrid. Licenciou-se e doutorou- Cidadania e Direito (DECIDe). Suas obras pro-
-se em Direito na Universidade da Coruña. É curam a renovação da filosofia política ociden-
membro do Instituto de Direitos Humanos tal a partir da perspectiva das lutas e alternati-
“Bartolomé de las Casas” e diretor do Doutora- vas forjadas na resistência popular.
do em Estudos Avançados em Direitos Huma-
nos da Universidade Carlos III. Suas publica- NILMA LINO GOMES é professora da Facul-
ções incluem Apogeo y crisis de la ciudadanía dade de Educação da UFMG. É pedagoga, mes-
de la salud (2012), Salud, Justicia, Derecho tra em Educação pela FAE/UFMG, doutora em
(2009); Antes de Beatriz. Cuestiones de legiti- Antropologia Social pela USP, pós doutora em
midad y regulación jurídica en la selección de Sociologia pela Universidade de Coimbra e em
sexo (2003) e Reproducción, Poder y Derecho Educação pela UFSCAR. É investigadora asso-
(1999). Atualmente, ele está trabalhando em ciada do Centro de Estudos Sociais da Univer-
uma reconsideração sócio-legal da noção de sidade de Coimbra. Foi reitora pró-tempore da
direito à saúde a partir de uma perspectiva que Universidade da Integração Internacional da
leve em consideração os determinantes sociais Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), ministra
da saúde e as desigualdades socioeconômicas. da Igualdade Racial e das Mulheres, da Igualda-
de Racial, da Juventude e dos Direitos Huma-
ANTONI AGUILÓ BONET é filósofo político. nos do governo da presidenta legitimamente
Licenciou-se em Filosofia, obteve o Diploma eleita Dilma Rousseff. Tem trabalhos realiza-
de Estudos Avançados em Filosofia do Direito, dos nas áreas da formação de professores para
Moral e Política e obteve o doutorado cum lau- a diversidade étnico-racial, relações raciais,
de em Ciências Sociais e Humanas na Univer- de gênero e diversidade cultural, movimentos
sidad de las Islas Baleares com uma tese sobre sociais e educação, com ênfase na atuação do
os processos de globalização, a democracia Movimento Negro.
radical e a ideia de emancipação humana na
teoria social e política de Boaventura de Sousa
Santos. É investigador do Centro de Estudos
O s trabalhos de Boaventura, reunidos pela primeira vez
nesta antologia, enlaçam um conjunto de temas e preocu-
cipatórios e libertários. Seus argumentos se aglutinam em
torno a uma prerrogativa fundamental: a melhor via para
pações que se inscrevem na melhor das tradições do construir estratégias de resistência locais e globais requer
pensamento social e crítico: a emergência e as lutas dos pôr em prática um exercício de justiça cognitiva em que
movimentos sociais; os olhares alternativos que produzem todas as vozes possam se expressar em um mesmo pé de
os processos de globalização contrahegemônica; a igualdade, por meio do interconhecimento, da mediação e
construção de um novo tipo de pluralismo jurídico que da celebração de alianças coletivas.
contribua com a democratização de nossas sociedades; a
reforma criativa, democrática e emancipadora do Estado
e a defesa irredutível dos direitos humanos; a criação de DO PREFÁCIO DE PABLO GENTILI
universidades populares que promovam diálogos intercul-
turais, entendidos como uma forma de combate contra a
uniformidade e a favor de uma ecologia de saberes eman-

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