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DE TRANSFORMAÇÕES URBANAS:
A EXPERIÊNCIA DO TEATRO
POPULAR UNIÃO E OLHO VIVO
RESUMO
O presente artigo é fruto da pesquisa etnográfica realizada acerca das práticas de trabalho do grupo Teatro
Popular União e Olho Vivo (TUOV), atuante na cidade de São Paulo, no estado de São Paulo. Descendente
do movimento de teatro engajado dos anos sessenta, este grupo se insere na discussão crítica a respeito da
mercantilização da arte, e se posiciona de forma antagônica às relações capitalistas de trabalho. Pretende-se,
aqui, abarcar uma reflexão sobre as memórias de dois senhores – Idibal Pivetta e Neriney Moreira –, fundadores
deste grupo e ainda atuantes nele – referentes aos impactos que o crescimento da cidade de São Paulo trouxe
aos seus trabalhos no âmbito artístico e às estratégias por eles utilizadas para transformar as relações de
trabalho no interior desta trupe.
RÉSUMÉ RESUMEN
Cet article est le résultat de la recherche El presente artículo es fruto de la investigación
ethnographique sur les pratiques de travail du etnográfica sobre las prácticas de trabajo del grupo
groupe Teatro Popular União e Olho Vivo (TUOV), Teatro Popular União e Olho Vivo (TUOV), actuante
qui opère dans la ville de São Paulo, São Paulo. en la ciudad de São Paulo, São Paulo. Descendiente
Descendant du mouvement théâtral engagé del movimiento de teatro comprometido de los años
des années soixante, ce groupe s’insère dans la sesenta, este grupo se inserta en la discusión crítica
discussion critique sur la marchandisation de l’art et acerca de la mercantilización del arte, y se posiciona
se positionne de manière antagoniste aux relations de forma antagónica a las relaciones capitalistas de
de travail capitalistes. Il est destiné ici à inclure trabajo. La intención de esta propuesta es generar una
une réflexion sur la mémoire de deux seigneurs reflexión sobre las memorias de dos de los fundadores
- Idibal Pivetta et Neriney Moreira, fondateurs de de este grupo (Idibal Pivetta y Neriney Moreira, aún
ce groupe et toujours actifs - sur les impacts de la actuantes) sobre los impactos que el crecimiento de la
croissance de la ville de São Paulo sur leurs travaux ciudad de São Paulo trajo a sus trabajos en el ámbito
dans le domaine artistique et les stratégies de ils artístico, al igual, que las estrategias por ellos utilizadas
transformaient les relations de travail au sein de para transformar las relaciones de trabajo en el interior
cette troupe. de esta compañía.
Essas publicações referem-se ao volume intitulado linhagem de teatro político, com prática engajada
“Em busca de um teatro popular” (Vieira 2015) e na busca por uma linguagem popular. Ao longo
a textos de espetáculos de repertório de Vieira, de sua trajetória, desenvolveu metodologias de
com acréscimos de críticas de outros dramaturgos trabalho particulares, que o diferenciam dos demais
e pensadores do teatro paulista. grupos formados no mesmo cenário cultural.
Além desse material disponibilizado pelo Todos os trabalhos realizados por essa trupe
grupo, foi feito um levantamento acerca da têm cunho político-social, este é um aspecto
bibliografia que discute o tema da arte e suas peculiar do grupo, que se expressa no conteúdo
regras de legitimação, tais como “As regras da de suas tramas narrativas nos espetáculos, na
arte” e “O poder simbólico”, de Pierre Bourdieu divisão de papéis e em suas apresentações, voltadas
(1996, 1989), além de outros escritos que versam à população de baixa renda da cidade. Tal escolha
sobre a construção do campo teatral brasileiro faz com que a estética do grupo esteja atrelada a
e discutem a respeito da cultura popular (Ortiz uma ética específica, que pode ser definida como
2006; Hollanda 1980; Jacob 2008; Collaço 2009; militante e que privilegia a atuação em um circuito
Carone 1984). teatral não convencional, em oposição às grandes
Entre os trabalhos acadêmicos sobre o TUOV, casas de espetáculo.
destaca-se o estudo de Cruz (2012), que, pelo A prática desse teatro não visa à
viés historiográfico, analisa e compara o Olho profissionalização, portanto, todos os integrantes
Vivo com a Cia do Latão, ambos identificados têm seus trabalhos remunerados fora da atividade
como formas contra-hegemônicas de produção teatral, dedicando-se às práticas artísticas apenas
teatral. Para a interpretação das entrevistas, foram aos finais de semana. Esta característica de se tratar
utilizadas as obras de Paul Ricoeur (1994, 1997) e de um grupo de trabalhadores com orgulho de se
de Eckert & Rocha (2005, 2013) como embasamento declararem como artistas amadores foi bastante
teórico, no intuito de perceber as narrativas das frisada pelos interlocutores da pesquisa.
memórias dos integrantes como conformação de Em decorrência de tal posicionamento, o
uma identidade, através da análise do relato de si e grupo sobrevive com trabalho voluntário de seus
da remontagem dos instantes vividos por meio das integrantes, algumas vezes contanto com verbas
narrativas biográficas, bem como da construção de editais públicos, buscando como primordial a
de trajetórias sociais. horizontalidade das relações entre seus membros e
a divisão de tarefas de forma igualitária: premissas
3. SOBRE O TUOV herdadas do movimento comunista das décadas de
O grupo Teatro Popular União e Olho Vivo 1960 e 1970 e que marcam a trajetória do grupo.
originou-se em 1966 na cidade de São Paulo e, No campo teatral, há a prática do que
desde 1985, tem sua sede no Bairro Bom Retiro. se denomina como “teatro de grupo”, uma
Sendo criado em meio à ditadura civil-militar, contraposição ao chamado “teatro de elenco”.
manteve suas atividades artísticas atreladas à Nele, verifica-se a permanência de integrantes,
2 Entre os anos de 1872 a 1910, a população de São Paulo aumentou em 764%. Para mais informações a esse respeito,
ver Carone (1984).
Ele conta que seus avós vieram de navio da Itália realizada por imigrantes, em sua maioria italianos,
e se conheceram ao desembarcar em São Paulo. que se fixaram na cidade entre o final do século
Seu pai parece ilustrar este emergente italiano, XIX e o início do século XX. Além da produção
imerso em uma sociabilidade comunitária: deste teatro amador, eram veiculados filmes e
distribuídos folhetins e jornais feitos por esse
Ele foi fundador do... do PC. Só que operariado, que noticiavam e comentavam eventos
não é Partido Comunista, é Partido
das fábricas e dos bairros: uma comunidade em
Constitucionalista. Que foi... começou
ali na década de trinta, que foi fundado formação, que não tinha acesso aos bens artísticos
e começou a estabelecer discussões da elite paulista. Nesse ínterim, o governo da
pra classe operária. Também não seria República brasileira institui dois decretos: em
um partido de esquerda, mas seria um
1900, cujo objetivo era “inspecionar as associações
partido politizado burguesmente...
Ele foi eleito e depois foi cassado. [...]
públicas de divertimento e recreio, os teatros e
Daí, lá em Jundiaí a gente comeu o espetáculos públicos de qualquer espécie”, e em
pão que o diabo amassou... a casa era 1920, instaurando a censura prévia aos espetáculos
de piso de... de barro... no bairro do teatrais e às películas cinematográficas (Jacob
parque São Jorge, que é onde tem o
2008:37). Por vezes, essas atividades foram
estádio do Corinthians até hoje, né?
E tinha esse time Guarani que era dispersadas por forças policiais, que já vinham
verde, chamado Guarani e também se colocando contra as atividades operárias desses
era do mesmo bairro, eles tinham setores. O circuito de teatro amador criado por
toda aquela rivalidade. Hoje não
este movimento terá uma importante contribuição
dá pra mensurar esse tipo de coisa,
mas... era a comunidade funcionando, para a modernização e o aparecimento de uma
através do seus... se não tivesse verba, vanguarda teatral nos anos 1950 e 1960.
e não tinha, [...] se virava, fazia jogos, Neriney Moreira, também fundador do TUOV,
cobrava. [...] Saía uma discussão sobre
difere 13 anos da idade de Idibal, mas nos relata
uma comunidade em andamento. Seria
um clube de futebol que joga futebol,
experiências similares de uma infância simples, no
mas daí ele chega, vindo da origem dos interior do município de Ubá, em Minas Gerais,
italianos que vieram pra cá, vieram muito próxima deste ideal de vida comunitária,
milhares, né? E que aqui... começaram não pela política, mas pela vivência do campo e
a trazer todas as... as...atividades deles,
também pelo amor ao futebol:
comunitárias, dentro do seu setor.
Isso é muito importante e são sede do
Eu nasci em 1944 e até os 15 anos de
teatro anarquista de São Paulo, o que
idade eu vivi lá no mato. O pai era
as origens mesmo nossas seriam isso.
roceiro mesmo e cultivava o fumo,
(Idibal Pivetta, comunicação pessoal,
[...] ele comercializava o dele que ele
30 nov. 2016).
plantava e comprava dos vizinhos. Ia
com caminhão lotado: quatro, cinco
A referência que Idibal traz ao teatro anarquista mil quilos e voltava com o caminhão
de São Paulo provém da organização sindical lotado. Vendia. O cara não tinha
dinheiro pra pagar e “me dá arroz, país que alterou significativamente a forma de
me dá vinho”. [...] Eles pagavam em vida dos habitantes das cidades.
mercadoria. E aliado a isso aí toda a
Conforme Vera Collaço (2009), no governo de
minha, a minha, como se diz... o meu
crescimento infantil: descalço, pé Getúlio Vargas foi instituído o Serviço Nacional
descalço no chão. Então eu fui criado de Teatro (SNT), o primeiro organismo estatal
desse jeito. Pro mato, solto pro mato. criado para atender às demandas do teatro, sua
No meio dos cachorro, dos cabrito, dos
regulamentação e a formação de profissionais
cavalos, sabe...
Meu pai era analfabeto, tanto meu técnicos para exercê-la. Essa invenção veio
pai quanto a minha mãe, mas tinha para adequar uma nova arte à efervescência de
essa sabedoria que vem de dentro consolidação do Estado Novo, trazendo novos
pra fora do coração... Isso só quem
paradigmas que auxiliassem a superar o “atraso”
tem e pratica que sabe, isso a gente
não aprende em escola não, nem em
brasileiro:
faculdade, faculdade não ensina isso...
[...] Futebol, eu sabia, e jogava. Eu [...] O Brasil ainda não conseguiu
provavelmente seguiria a vida como educar o seu povo ao ponto de se
atleta... tornar o teatro uma verdadeira
Eu comecei a vir pros bairros em São exigência de sua civilização. [...] Não
Paulo, pro futebol, tá me entendendo? basta proteger e amparar o teatro
Eu jogava no time do IPC, Instituto do para que ele exista, se antes não são
Presidente do Café, aqui no centro da solucionados os problemas de ordem
cidade. Eu arrumei um emprego no econômica, da difusão do ensino e até
banco e no mesmo prédio funcionava o da própria saúde pública. Um povo
o IPC, e quando chegava todo o sábado inculto não é um povo civilizado e o
e domingo eles iam pro bairro, pra jogar Teatro é um produto espontâneo da
no bairro, e eu ia com eles. Jogava no civilização (Collaço 2009:6).
primeiro e no segundo quadro, ficava
sempre no futebol. Só que nessa época,
62, 63, não tinha nem o União e Olho A ideia era alavancar a qualidade dos espetáculos
Vivo ainda... Eu comecei a ir pra periferia
encenados, que eram rotulados como de mau gosto,
com o futebol. (Neriney Moreira,
comunicação pessoal, 17 fev. 2017). distanciando-se do tradicionalismo popular e mais
condizentes ao momento progressista que o país
estava vivendo.
A infância e a adolescência destes senhores são
marcadas por um processo de modernização do país Joracy aponta para estatísticas ao
e de surgimento das grandes cidades industriais. afirmar que 80% da população brasileira
Suas trajetórias são permeadas por um movimento era de analfabetos, e que “apenas 2%
de crescimento urbano e de início de uma da população do Rio de Janeiro podem
frequentar teatros” (CAMARGO,
sociabilidade urbana. Com a instauração do Estado
1937:22). Esta população vive em
Novo, abriu-se um processo de modernização do precárias condições econômicas, e,
4 Dentro do processo desenvolvimentista do país, Getúlio Vargas também é responsável pela alavancada da produção
nacional cinematográfica, ocorrida em meados dos anos 1930, com a primeira Lei de Incentivo à Produção Nacional.
Franco Zampari, empresário italiano, também criador do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), teve um papel fundamental
na distribuição de salas de cinema por São Paulo, sendo fundador da companhia cinematográfica Vera Cruz.
A memória das camadas de tempo da vida Eu vim pra cá em 61. [...] O proprietário
queria vender, porque descobriram
social se entrelaçam, e é pela narrativa da história
que tinha um projeto pra passar uma
de vida, como “vida examinada” (Ricoeur 1997) avenida lá [Avenida Faria Lima]. Aí o
destes atores sociais, que podemos seguir a meada pai disse “vai lá”. Vendeu a fazenda e
transformada em fio condutor da significação de comprou o apartamento. O meu pai
não queria de jeito nenhum, meu pai
si, ordenação de lembranças e esquecimentos, que
queria voltar... A gente morava em
fazem com que os jogos da memória (Eckert & uma fazenda enorme e morar aqui
Rocha 2005) deem uma possibilidade de duração em um apartamento de x metros
no tempo e no espaço. A paixão pelo futebol, em quadrados? Pra ele era piada...
especial pelo Corinthians, e o trabalho comunitário Cê” trocar uma fazenda, sabe? Aquelas
casas velhas, sabe? Janelona de uma
vão permear a trajetória de Idibal e darão o tom
porta só. Era tramela, não era fechadura,
da atuação do TUOV, que teve muitas de suas era tramelada, a gente morava nesse...
peças apresentadas em estádios e/ou com a Tinha cinco quartos, três cozinhas, o
participação das torcidas organizadas, buscando terreno tinha 700 metros quadrados,
tinha mais de 500 metros quadrados de
o popular através do contato com essas camadas
terreno construído, tinha nossa casa
da população. e tinha a casa do nosso empregado
Através da remontagem desses instantes da que morava junto e ainda sobrava
vida cotidiana no interior da narrativa biográfica, mato pra lá, e ainda tinha a empresa
de negócio deles ali... Pra morar aqui
articula-se o tempo vivido e o tempo pensado
em São Paulo em uma avenida, dentro
(Bachelard 1988), em uma intriga que temporaliza de um apartamento! Tava doidinho pra
ir embora e voltar. “Ah, vamos voltar!”, as coisas, sabe? Técnico... Tinha essa
“E você vai fazer o que em Ubá? [Aqui] problemática: o que você vai querer
a gente vai estudar” (Neriney Moreira, ser? Estudar, estudei. Não tinha este
comunicação pessoal, 17 fev. 2017). problema.
[...] Quando eu fiz a opção por fazer
a faculdade era porque não pagava
Nessa mudança de estilo de vida, a família de nada... Aí eu escolhi a São Francisco.
Neriney mudou-se toda para São Paulo (seus sete Ah, e não pagava nada!
irmãos e seus pais). Os pais dele não realizaram Aí eu comecei a estudar. A concorrência
a formação escolar e viam a necessidade de os era terrível!
Estudar, eu estudei pra caramba. Na
filhos virem para a capital paulista para estudar
verdade, eu estudei pra passar.
em “escolas boas”. Segundo ele, todos fizeram Eu já trabalhava fora e então eu não
“alguma coisa da vida”, referindo-se às graduações tinha muito tempo pra estudar, e então
dele e de seus irmãos na universidade, os quais como eu queria entrar sem pagar nada
eu... Acho que naquela época era dez
adquiriram uma profissão. Neriney conta que, de
por um. Eram dez candidatos por uma
“tão contrariado” pela mudança de vida, seu pai vaga... O bicho pegava feio! Tanto que
“não ficou: foi pro outro lado”, segundo ele, por não quando eu fiz eu pensei, vou fazer por
se adaptar à cidade. A narrativa da trajetória de fazer (Neriney Moreira, comunicação
pessoal, 17 fev. 2017).
Neri com a morte de seu pai está em consonância
com a ruptura com o estilo de vida simples, do
campo, para a adesão a um novo projeto de vida: A chegada à cidade grande foi o período
os estudos e a formação de uma carreira. Nesse em que esses jovens começaram a ter contato
processo de metamorfose (Velho 1994), Neri ainda com a produção cultural artística, fruto do
não sabia muito bem como se inserir no novo desenvolvimentismo nacional. Ambas as
mundo: lembranças remontam à chegada à capital paulista,
como demonstra o relato de Idibal:
Quando eu vim pra São Paulo eu vim
no segundo, segunda série ginasial. Eu Eu tinha uma tia que... até faleceu há
tive que ficar mais dois anos em São pouco tempo, com cem anos. E eu era o
Paulo pra tirar o ginásio, pra saber o sobrinho querido dela. Ela morava com
que eu queria ser: advogado, médico, a minha mãe, com minhas irmãs e tal...
dentista, professor... Qualquer coisa E ela era louca por teatro e me levava
eu escolhia... pra assistir todas as peças: Paulo Autran,
Aí na época, eu não sei o que eu queria Tônia Carreiro. Esse pessoal, eu fui quase
ser... Quando eu comecei a estudar pra que engatinhando levado por essa minha
escolher uma profissão... tia que chamava Antonieta. [Ela] é que
Aí, “vamos fazer o seguinte? Vou ser é responsável pela guarda deste acervo
advogado”. Administrador não sabia [de material gráfico do TUOV]. Quando
o que era... Não sabia o que era nada, a gente fala acervo não é o acervo do
sabe? Tinha falta de saber o que era Olho Vivo, mas o acervo do teatro na
Albert Camus, e foi todo mundo preso. ritmo da vida cotidiana que trouxeram consequências
Aí foi quando chamaram o César, que importantes para suas vidas e para o país. Além do
já era um pouco mais velho que eu e
trabalho junto ao teatro, Idibal atuou como advogado
já era advogado... Aí o César trouxe o
texto do Zebedeu. (Neriney Moreira, de presos políticos durante a ditadura militar, momento
comunicação pessoal, 17 fev. 2017). em que adotou o pseudônimo de César Vieira, para
burlar a censura a seus textos.
Os ideais de transformação social se alastravam O crescimento de São Paulo como uma
pelo mundo e Neri, agora por meio do teatro e grande metrópole estabeleceu novas formas de
da universidade, via mais longe do que o cinema sociabilidade e de subjetivações de si. Podemos
mostrava. O movimento de contracultura ganhava perceber este movimento à luz dos escritos de
força e seus rumores já podiam ser sentidos como Simmel (2005), a respeito da relação entre a
promessa de uma nova “queda da bastilha”. Nesse metrópole e a vida mental de seus habitantes.
contexto, ele conhece Idibal: Simmel (2005) discute a ideia de que os diversos
estímulos de uma cidade grande nos trazem uma
Tinha um cartaz “precisa-se de 40 atitude de indiferença e reserva, tornando-nos
trabalhadores”. Eu me lembro muito bem.
menos sensíveis aos acontecimentos da vida
Escrito que era pra fazer o teatro. E foi na
época em que eu entrei. Não sabia o que cotidiana, em razão de objetivarmos mais as
era ator. Via nas novelas, o Paulo Autran, relações interpessoais subjetivas. Segundo ele, isso
que também era advogado mas ganhava se dá pelo processo de individualização crescente
a vida como ator (formado também pela
que a monetarização propiciou ao indivíduo
São Francisco), a Fernanda Montenegro,
tudo novinho. Aí eu comecei a conhecer
moderno da metrópole. Seguindo neste raciocínio,
este pessoal nessa época. Aí o Zebedeu temos a dinâmica da cidade como construtora
foi minha primeira experiência. Aí com dessas relações, a partir de uma lógica de mercado
o Zebedeu a gente começou a fazer as e de produção, onde as trocas exercidas estão
primeiras transformações. Vamos fazer
calcadas na objetividade das trocas monetárias,
teatro. Mas que teatro? A única coisa
que o pessoal via é que tinha muita que trazem impessoalidade para as relações e
peça estrangeira. E não tinha brasileira exprimem, com rigor qualitativo, o valor das trocas:
nenhuma; aí a gente começou a pegar
e, “vamos fazer peça brasileira”. Aí o Na medida em que o dinheiro, com
César como autor (Neriney Moreira, sua ausência de cor e indiferença, se
comunicação pessoal, 17 fev. 2017). alça a denominador comum de todos
os valores, ele se torna o mais terrível
nivelador, ele corrói irremediavelmente o
Acompanhando as transformações urbanas que
núcleo das coisas, sua peculiaridade, seu
ocorriam à sua volta, bem como os reflexos de uma valor específico, sua incomparabilidade.
nova organização social, pautada pelo ritmo do trabalho Eis porque as cidades grandes, centros,
na consolidação do sistema capitalista industrial, esses a circulação de dinheiro e nas quais a
venalidade das coisas se impõem em uma
jovens foram testemunhas de alterações drásticas no
estrutura das apresentações e na relação com o de que, neste caso, o autor não deve ser apenas
público. O palco elevado, que distancia os atores um intelectual apartado dos demais setores da
do público, e a cotação do preço do ingresso, que sociedade, mas sim um produtor, estreitando
varia de acordo com a possibilidade de assistir mais os laços de solidariedade com as demais classes
ou menos plenamente a um espetáculo, reforçam trabalhadoras.
essa desigualdade econômica e a manutenção dos A eficácia desta arte revolucionária deve colocar
privilégios de quem pode pagar para ver arte. em cheque a própria estrutura dominante política
César aponta o longo processo de enfrentamento e econômica, não buscando apenas uma alteração
da censura ocorrido durante a ditadura, e afirma na forma de seu produto final, mas ampliando tal
que, hoje em dia, a censura está ainda presente, atitude reflexiva para a práxis de transformação
mas agora ela se traveste de censura econômica. em seu meio de produção, buscando uma função
As formas de financiamento para um espetáculo, organizativa do trabalho. Caso contrário, o trabalho
no geral, passam pela escrita de um projeto a pode ser identificado como contrarrevolucionário,
um edital, seja público ou privado, cerceando a sendo assimilado pela estrutura de dominação
liberdade artística e criativa. Isso também ocorre hegemônica, transformando-se em mais um artigo
pelo fato de a temática do edital ser escolhida pelo de consumo.
promotor do certame para nortear o espetáculo, Sobre esse movimento de arte engajada neste
ou pelo fato de o cumprimento dos prazos ser período no país, temos o importante relato de
restrito, reduzindo, assim, o tempo de pesquisa de Heloísa Buarque de Hollanda, que faz uma crítica
linguagem a se enquadrar na previsão de prazo a esse respeito:
dada pelo edital, sem a possibilidade de grandes
alterações neste processo. Fracassada em suas pretensões
revolucionárias e impedida de chegar
A ideia de não profissionalização de seu ofício
às classes populares, a produção
esta imbricada com a proposta de se distanciar cultural engajada passa a realizar-se
deste controle e cerceamento da indústria de num circuito nitidamente integrado
mercado, opondo-se à noção de teatro como ao sistema – teatro, cinema, disco –
e a ser consumido por um público
mercadoria e reafirmando-o enquanto ferramenta
já “convertido” de intelectuais e
de “emancipação do homem”. Isso está em
estudantes da classe média (Hollanda
consonância com os escritos de Walter Benjamin 1980:30).
(1985), em seu texto “O autor como produtor”, no
qual ele reflete que a arte que visa alcançar uma A discussão sobre a prática artística popular, e
transformação social, na busca por uma sociedade o próprio conceito do que é considerado popular
mais igualitária e justa, tem o dever de repensar e ou não, é um fator decisivo na mudança das
reestruturar seu trabalho de forma revolucionária, práticas do TUOV. Em 1978, a atividade artística
discutindo seu papel e sua relação enquanto meio foi regulamentada como profissional no país,
de produção. Benjamin (1985) alerta para o fato trazendo consigo uma série de normatizações.
um campo de possibilidades estava em plena dia profissional fora do TUOV traz uma relação de
atuação, trazendo para a experiência individual obrigação, pela necessidade da geração de renda
a necessidade de construir um projeto de vida pessoal, por outro, o ofício dentro dele traz uma
que se ajustasse a uma nova lógica. Buscando possibilidade de conjugar o lazer e a autonomia.
uma não ruptura drástica de suas trajetórias, até
então construídas, eles encontraram no fazer 7. REFERÊNCIAS
artístico de caráter engajado e político uma forma Bachelard, G. 1988. A dialética da duração. São
de duração de si. Mas, mesmo o campo artístico, Paulo: Editora Ática.
que parecia propício para a continuidade de um
projeto pessoal, tornou-se hostil, no sentido da Benjamin, W. 1985. O autor como produtor, in
irrupção de um contexto ditatorial, que marcou Walter Benjamin: magia e técnica, arte e política.
deserções forçadas e voluntárias, e onde uma pp. 120-136. São Paulo: Brasiliense.
nova possibilidade se abriu: a indústria cultural,
que absorveu muitos de seus contemporâneos. Bourdieu, P. 1989. O poder simbólico. Rio de Janeiro:
A continuidade de seus pressupostos frente a Bertrand Brasil S.A.
isso tornou-se uma resistência, que, longe de
ser ingênua, foi “maliciosa”, pelo potencial de Bourdieu, P. 1996. As regras da arte: gênese e
metamorfose que continha e que desenvolveu. estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia
Agindo a partir do ideal de transformação da das Letras.
sociedade, o Olho Vivo busca que seus trabalhos –
externo (o espetáculo) e interno (sua organização) Carone, E. 1984. Movimento operário no Brasil
– sejam parte desse processo de emancipação. (1877-1944). 2. ed. São Paulo: Difel.
Se, como afirma Cruz (2012), a atuação do grupo
pode ser encarada como contra-hegemônica, por Collaço, V. R. M. 2009. Três projetos de
se colocar à margem do sistema capitalista da modernização para o teatro brasileiro e suas
indústria cultural, em sua prática cotidiana interna relações com as políticas culturais do Estado Novo.
também percebo este mesmo movimento de se Anais do Simpósio Nacional de História 25:1-12.
contrapor à lógica social mais ampla, em razão de
estes indivíduos estabelecerem uma proposição Cruz, P. P. 2012. A relação/tensão entre arte e
organizativa que difere das relações concorrentes, capital no Brasil: a atuação de grupos teatrais
anônimas e blasés da grande cidade. contra hegemônicos (1990-2010). Dissertação de
Por se manter como um grupo de teatro amador, Mestrado, Departamento de História, Universidade
o TUOV consegue não se submeter à lógica Federal Fluminense, Niterói.
mercantil da arte profissional, e esta prerrogativa
acarreta uma experiência peculiar, no que se refere Eberhardt, A. P. P. 2018. “União olho vivo e
à relação com o trabalho. Se, por um lado, o dia a pé ligeiro”: estudo etnográfico das memórias e
duração das práticas do teatro popular União e Ciências Sociais 17(49):11-29. DOI: http://dx.doi.
Olho Vivo na cidade de São Paulo/SP. Dissertação org/10.1590/S0102-69092002000200002.
de mestrado, Departamento de Antropologia
Social, Universidade Federal do Rio Grande do Ortiz, R. 2006. Cultura brasileira e identidade
Sul, Porto Alegre. nacional. 5. ed. 9ª reimpressão. São Paulo:
Brasiliense.
Eckert C., e A. L. C. Rocha. 2005. O tempo e a
cidade. Porto Alegre: Editora UFRGS. Ricoeur, P. 1994. Tempo e narrativa. Campinas:
Papirus.
Eckert, C., e A. L. C. Rocha. 2013. Etnografia da
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coleções etnográficas. Porto Alegre: Marcavisual. de Roberto Leal Ferreira. Campinas: Papirus.
Hollanda, H. B. 1980. Impressões de viagens: CPC, Simmel, G. 2005. As grandes cidades e a vida do
vanguardas e desbunde, 1960-1970. São Paulo: espírito. Mana 11(2):577-591. DOI: http://dx.doi.
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Jacob, M. M. 2008. Na cena paulista, o teatro Velho, G. 1994. Projeto e metamorfose: antropologia
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(1927-1945). São Paulo: Ícone. Zahar.
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