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Que o mundo atual apareça cada vez menos sob os trajes da positividade e do
otimismo satisfeitos, parece haver poucas dúvidas. Tornou-se um fato banal a grande
mídia relatar, em pânico aberto ou simulado, a explosão de crises sociais e ambientais de
grande magnitude. O espectro da catástrofe ronda o planeta, abafado cotidianamente pela
velha política de entretenimento de massas e administração das crises, em meio ao
fracasso e ao terror social generalizados. Quanto mais o capitalismo se afirma vencedor,
como a única alternativa de produção e vida, mais o desastre social e ambiental, a um certo
prazo difícil de julgar, parece-nos inevitável.
Se o travo amargo do negativo se projeta sobre o todo, para nós não se trata de
atenuá-lo, mas sim de aguçá-lo, com a maior contundência possível. Pois as crises que se
desencadeiam não são garantia alguma de superação social, tornando-se antes motivo para
reflexão sobre as formas de converter tal negatividade cega em algo realmente negativo e
superador. Uma revista que nasce sob o signo da recusa – da potência do não, em vistas à
criação social do novo – necessariamente se esforça por determinar e especificar aquilo
que pretende negar. Não se trata de forma alguma de niilismo, reação desparafusada,
desespero existencial, irracionalismo – formas abstratas de recusa pela recusa ou
voluntarismo cego, feitos de um ponto de vista meramente subjetivo, individual ou grupal.
Inserimo-nos, assim, no esforço coletivo de elaboração de uma crítica consequente das
mediações sociais que nos afetam e nos dominam, em seus vários níveis e escalas.
Alinhamo-nos à tradição de pensar e organizar uma formação cultural crítica, que
necessariamente passe pela autorreflexão individual, sem a qual, queremos crer, não há
nenhuma práxis realmente emancipatória.
Trata-se de mirar e atacar as estruturas fundamentais da sociedade capitalista, bem
como seus momentos constitutivos e reprodutivos em suas particularidades concretas.
Sinal de Menos pretende, pois, dar voz à perspectiva mediadora entre os problemas gerais
e particulares, movendo-se continuamente das questões econômico-sociais mais urgentes
aos movimentos de oposição, dos processos de urbanização capitalista às formas políticas e
estatais, da formação social e cultural às formas de sujeito e subjetivação, das elaborações
teóricas num plano mais geral à literatura e às artes. Se é correto afirmar que vemos o
mundo sempre de um certo ponto de vista – no caso, da periferia do capitalismo, como
seres sujeitos à loucura da valorização do capital –, talvez tenhamos, por assim dizer, ao
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menos alguma "vantagem" nesse ponto: pois não será aqui o lugar onde a crise mundial se
manifesta em toda sua força, como revelação cabal e mesmo adiantada da fratura exposta
da socialização capitalista global ?
Nessa linha há bons antecedentes. No Brasil, pode-se dizer que a grande descoberta
do país iniciou-se menos com as ciências sociais que com a literatura: depois de uma lenta
acumulação literária, Machado de Assis despontou, em plataforma periférica, como um
grande farol, ainda hoje fazendo-nos ver as faces tenebrosas de uma sociedade em que as
heranças coloniais da dominação direta – escravismo, patriarcalismo, clientelismo – se
entrelaçam às estruturas de dominação capitalista mais modernas. Aqui, as regulações
coisificadas do capital se combinam ao mandonismo e ao capricho de uma elite cínico-
esclarecida, fermentando uma cultura envenenada, de afirmação e sobrevivência
selvagens, que hoje trespassa todos os estratos sociais, reproduzindo uma sociedade
estilhaçada e só muito precariamente unificada – nem por isso menos moderna e
capitalista, muito pelo contrário. Nosso complexo particular de problemas dá sinais ao
mundo, na crise em que há muito estamos, de que o automatismo cego e destrutivo do
sistema tende a ser suportado – não sem contradições – por formas subjetivas distintas do
sujeito burguês europeu clássico, que hoje vão se generalizando pelo mundo todo. A
grande literatura, nesse caso, longe de ser mera ideologia, detinha chaves de alguns de
nossos enigmas sociais contemporâneos.
A Revista aposta então suas fichas no pensamento de que a totalidade deve se realizar
dialeticamente em cada problema particular enfocado, sem privilégio de algum campo de
análise. Da mesma maneira, se hoje vem se falando em "brasilianização do mundo", em
geral de forma apologética, provavelmente estaremos num posto relevante para a
observação crítica, adrede preparado por nossa tradição. Nesse sentido da formação, a
revista segue sua linha, traçando com rigor e também certo jogo e desvio para com as
regras oficiais do mundo universitário, degradado pelo mercado e pela cultura do favor, a
figura composta pelos enigmas sociais. Um outro mestre em tais enigmas, Drummond, em
seu "não-estar-estando" na vida danificada, concluía assim seu "Poema-orelha":
Abril de 2009.
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Entrevista com John Holloway
A convite do Grupo Fim da Linha, John Holloway e Néstor López estiveram em Porto
Alegre em novembro de 2007. John Holloway é irlandês, professor da Universidade de
Puebla (México), autor do livro Mudar o mundo sem tomar o poder, entre outros. Néstor
López é argentino, editor da revista “Herramienta”. A entrevista a seguir foi realizada em
três momentos; um deles é reproduzido na íntegra, e dos demais foram selecionadas
algumas perguntas adicionais. Salvo quando indicado em contrário, as perguntas foram
elaboradas por integrantes do Fim da Linha. Buscamos tanto quanto possível deixar o
texto no ritmo e no tom próprio da conversa, para preservar sua naturalidade.
Você poderia falar um pouco sobre a sua história? Como você chegou a uma
concepção teórica que não é ortodoxa, distanciada em muitos pontos do
Marxismo ortodoxo? Você sempre teve este enfoque, ou em algum momento
você pertenceu a algum partido ou a alguma corrente ortodoxa?
Não, eu nunca me filiei a um partido. Para mim esse debate, essa reflexão teórica
começou nos anos setenta. E começou com a questão da adesão da Grã-Bretanha à União
Européia, à Comunidade Européia. Então nós organizamos um grupo de discussão em
nível nacional no marco da “Conference of Socialist Economists”, e começamos a falar
sobre o significado da União Européia. E chegamos à conclusão de que para falar da União
européia tínhamos de ter um conceito de Estado. E daí nós começamos a ler o debate
alemão sobre a derivação do Estado. Foi um debate nos anos setenta que tentou entender
os limites e as possibilidades e a natureza do Estado a partir da ideia de que era necessário
entender o Estado como uma forma do capital, como uma forma das relações capitalistas.
E isso implicava ver o Estado mais ou menos como o valor, o capital ou os juros, como uma
forma fetichizada das relações sociais. E esta foi então a conclusão principal, naquele
momento, e junto com Sol Piccioto editamos um livro chamado State and Capital, que saiu
em 78. Daí em diante o próximo passo foi pensar um pouco as implicações políticas desta
ideia de que o Estado é uma forma do capital. E eu cheguei à conclusão de que a forma tem
que ser entendida como um processo de formação, ou como uma forma de processamento,
uma forma-processo. Então era necessário entender o Estado não como algo estático, mas
como uma forma de processar das lutas sociais, como um processo de impor certa forma às
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relações sociais. E isto implicava em entender o Estado, em entender o fetichismo como
um processo de fetichização. E isto… bom, há um artigo publicado em espanhol, no
México, em 1980, chamado El Estado y la vida cotidiana, que expressa ou tenta explicar
esta ideia. E a partir daí… Bom, isso implicava por um lado que obviamente não se podia
pensar em uma transição a outro tipo de sociedade através do Estado, o Estado
especificamente é uma forma, uma forma especificamente capitalista de conter as lutas
sociais, então era necessário pensar em outras formas de organização. Então, implicava
entender a luta anticapitalista como luta antifetichizante, uma luta contra a fetichização. E
então no contexto do levante zapatista, quando eles saíram dizendo que “queremos fazer
um mundo novo, mas não queremos tomar o poder", então isso como que fez pensar um
pouco todo o debate teórico anterior em condições mais… mais… urgentes, ou mais… mais
políticas, eu suponho. E daí surgiu Mudar o mundo sem tomar o poder...
Fazendo uma relação com a questão zapatista, então, ao que nos parece na
verdade o zapatismo é posterior ao seu processo intelectual, que teve como
uma realização prática no zapatismo. Você vê as coisas assim? Esse
movimento é posterior ao teu pensamento?
Um pouco isso, mas não uma realização prática, mas sim… sim, na mesma linha, uma
manifestação prática que segue a mesma linha de pensamento… sim. E se nós estamos
falando da história… parte do processo também foi, depois do artigo O Estado e a vida
cotidiana, em Edimburgo começamos a publicar uma revista chamada Common Sense, e
também publicamos uma série de livros que foram chamados Open Marxism, Marxismo
Aberto, com a ideia de explorar um pouco toda esta linha de pensamento. E Marxismo
Aberto… eu creio que é porque se se entende o Estado como um processo, ou se entende o
capital como um processo, o dinheiro como um processo, isso implica que é necessário
abrir as categorias, e entender que o dinheiro é um processo, por exemplo, de monetização
de relações, e isto implica uma luta, e implica uma luta com dois lados, é uma luta
antagônica, de monetização e antimonetização. Então, esta é um pouco a ideia do
marxismo aberto, a ideia de que nós temos que abrir as categorias para entender, e é
necessário entender as categorias como categorias antagônicas e categorias abertas.
Neste sentido que você diz da abertura das categorias, o “trabalho” como
categoria… há muita coisa a dizer sobre isso…
E isso também tem a ver com a objetivação do tempo. Você foi inspirado
por Benjamin nesta concepção do tempo e da história?
Sim. Por muitos anos não se tocou muito na questão da classe. Mas sim, enfim, isso
implica em também ver a classe como um processo de classificação, que é necessário
entender... O capitalismo tradicionalmente divide a sociedade em classes, mas se se
questiona esta separação entre passado e presente, então se está falando da criação de
classes como processo de classificação. E classificação, e é na realidade o que Marx
também diz em O capital, o processo de acumulação é o processo da criação de classes.
Então isso implica entender a classificação como um aspecto de todo o processo de
fetichização, o que nos leva à ideia de que a luta, da mesma maneira em que a luta é luta
contra a fetichização, também é uma luta contra a classificação, e que nossa luta não é a
luta baseada na identidade de classe operária ou trabalhadora, mas é uma luta desses
classificados contra sua própria classificação, então é um luta anticlasse.
Sim. Sim, porque a existência do capital é uma luta antagônica, e uma luta binária, pois é
uma luta para impor um trabalho abstrato, o trabalho alienado na atividade cotidiana, no
fazer cotidiano das pessoas. E isso implica portanto numa luta do capital contra o fazer, do
trabalho contra o fazer. E isso me parece que pode ser entendido como luta de classes, é
uma luta para classificar e contra ser classificado.
Bem, a luta para mudar o mundo tomando o poder o poder obviamente implica uma luta
focada no Estado, que implica pensar em organizar um partido, um partido que será capaz
de tomar o poder estatal, seja via insurreição, militar ou da via eleitoral, é a ideia de criar
uma organização instrumental, que seja um instrumento efetivo para conquistar o poder
estatal. O problema com isso é que obviamente implica a reprodução das estruturas
estatais dentro do movimento contra o capital, e se se entende o Estado como uma forma
do capital, então isso implica reproduzir o capital dentro do movimento anticapitalista, e já
sabemos por muitas experiências que isso simplesmente não funciona. Temos como
resultado a hierarquização, e finalmente também o desmobilização das lutas
anticapitalistas. Pensar em termos de mudar o mundo sem tomar o poder implica colocar
outras formas de organização que não passam pelo Estado, que não assumem a forma
estatal. O que parece absurdo à primeira vista, mas na realidade é algo que está presente
desde os princípios da luta anticapitalista. E vê-se isso desde o princípio das lutas
anticapitalistas, que há outra tradição de organização, como na Comuna de Paris, depois
nos sovietes, nos conselhos operários de princípios do século XX, você vê isso também na
Guerra Civil na Espanha, nos Conselhos Comunais dos zapatistas, nas assembléias de
bairro na Argentina, e é a ideia de pensar a organização não como um instrumento para
chegar a um fim, mas como uma forma de articular a rebeldia ou as rebeldias das pessoas
em luta... é uma ideia de organização que não é concebida a partir de cima, em termos de
construir um instrumento eficaz, mas concebida a partir de baixo, como forma de articular,
de expressar estas rebeldias diferentes, como uma forma de pensar em comum, uma forma
de pensar coletivamente, e potencializando a rebeldia a partir de baixo. Então, sim, a ideia
de mudar o mundo sem tomar o poder implica outras formas de organização, mas não são
invenção de agora, mas é uma questão de resgatar, sublinhar a importância desta tradição
que existiu o tempo inteiro. E questão de também dizer que aqui nós temos duas tradições
incompatíveis, que a ideia da comuna, ou assembléia ou conselho é... bem, é uma forma de
organização assimétrica em relação à forma de organização estatal, e é importante dizer
isso simplesmente porque toda a tradição do chamado Estado soviético, ou do que está se
dizendo agora na Venezuela em termos da criação de um Estado tipo comuna, esta tradição
apaga a distinção, e me parece muito importante dizer: não, aqui nós temos duas formas
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de organização incompatíveis. Agora, a questão das rachaduras. A questão para mim agora
é como avançar, não é questão de ter respostas, mas como avançar pensando nas
possibilidades de mudar o mundo sem tomar o poder. E eu creio que o que nós estamos
vendo é um processo de criação de espaços e momentos de negação e criação, quer dizer,
espaços ou momentos nos quais as pessoas dizem “não, eu não vou aceitar”, “nós não
vamos aceitar o comando do capital, nós vamos fazer outra coisa de nossas vidas". E se
pensarmos o capitalismo como um sistema de dominação, como mando, então tais
negações e criações de alternativas podem ser entendidas como rachaduras, fissuras ou
brechas no tecido da dominação. E essas fissuras podem ser grandes, como o levante
zapatista, ou elas podem ser pequeninas, grandes mas ao mesmo tempo pequeninas, como
o Fim de Linha, elas podem ser de muitos tamanhos diferentes, mas basicamente é a
mesma ideia de que nós não subordinaremos nossa vida aos ditames do capital, nós não só
criaremos um espaço de insubordinação, mas não insubordinação em termos de
simplesmente dizer não, mas também em termos de dizer “e vamos fazer outra coisa",
então, a ideia do não como algo que abre, entender o “não” como um limiar que abre outro
espaço.
Foi descoberta uma estrela que não se comporta como as outras, ela nasce,
tem um tempo de existência, morre e dá origem a um buraco negro. Ela nasce
e morre muitas vezes ao longo da vida. Este tipo de imagem é usada para
justificar os atos zapatistas de não tomar o poder. Que importância têm os
zapatistas na luta simbólica e na luta real hoje para nós?
Eu creio que tem uma importância enorme, porque esboça... porque são uma renovação
da teoria revolucionária, que quando surgem, quando se insurgiram em 94, a coisa mais
importante não é só o próprio levante, mas é a apresentação de outro conceito de mudar o
mundo de um modo radical. Eles estão dizendo obviamente que querem fazer um mundo
novo, mas sem tomar o poder. E eles apresentam uma série de conceitos e uma série de
desafios práticos e teóricos. Por exemplo, a ideia central da dignidade, que implica que nós
não somos os... que não somos... eu entendo a dignidade como uma crítica à teoria
leninista, uma crítica à ideia de que os trabalhadores são sujeitos limitados. A dignidade, a
ideia da dignidade vai no sentido contrário, eles dizem: nós somos sujeitos humilhados,
neste sentido, nós vivemos a negação de nossa dignidade, mas ao mesmo tempo esta
negação nunca é uma negação completa, então a dignidade é a revolta contra sua própria
Bom, a razão para enfatizar o trabalho abstrato é basicamente a ideia de ver que o
trabalho abstrato é o que cria o capital, o trabalho abstrato produz o capital. Mas também
há outra coisa dentro do trabalho abstrato que nós dissemos um momento atrás, é questão
de abrir a categoria do trabalho e ver que dentro da categoria está o duplo caráter do
trabalho. Então há um antagonismo entre o trabalho abstrato e alienado, por um lado, e
um fazer que impulsiona para a sua autodeterminação, por outro lado. E todos temos a
experiência deste duplo caráter antagônico do trabalho. Todos temos a experiência do
trabalho como algo imposto ou alheio, em condições nas quais temos que fazer o que não
queremos fazer, por um lado, e o fazer como uma atividade autodeterminada, até certo
ponto, por outro lado. Então a ideia é, se pensamos assim, é preciso colocar a questão da
crise do capitalismo, da crise do capital, é preciso vê-la mais como uma crise do trabalho
abstrato, como uma crise do trabalho que produz o capital. Ou seja, duas coisas: primeiro,
entender o fazer como crise permanente do trabalho abstrato, mas também colocar a ideia
de que neste momento o que nós estamos vivendo é uma crise agudizada do trabalho
abstrato que, se vemos ou pensamos na crise do fordismo dos anos 70, pode-se dizer que
Mas não são elementos separados. Eu digo que a crise... a insubordinação, a crise é a
incapacidade do capital de subordinar o fazer suficientemente para convertê-lo em um
trabalho que produz mais-valia suficiente para manter a taxa de lucro. Então, a crise do
trabalho abstrato se manifesta como crise de rentabilidade do capital, e esta crise da
rentabilidade do capital implica uma intensificação da competição entre os capitais
individuais. Então é esta competição que impulsiona a introdução de novas tecnologias e a
expulsão do trabalho e desemprego, etc. Mas não podem ser vistas como duas coisas
separadas, mas como a intensificação da competição é sempre... é parte de um processo de
competir por uma porção da mais-valia social total.
Não sei, creio que sim isso, que isso é importante. A luta para reduzir a jornada de
trabalho é uma luta... sim, é uma forma de luta contra o trabalho. É uma luta... sim, creio
que sim. Ter espaço para desenvolver outro tipo de fazer, outro tipo de atividade.
Por outro lado o tempo poderia ser usado somente para consumir mais, por
exemplo... este tempo liberado teria que ser...
O que acontece, obviamente não é... é uma luta para reduzir o tempo dedicado
abertamente ao trabalho abstrato, ao trabalho alienado, mas é uma luta que não coloca de
um modo radical a necessidade para abolir o trabalho, não se está colocando como luta
contra a abstração do trabalho. Mas sim, tem um potencial.
Você prefere o termo “fazer” em vez do termo " trabalho "... alguma razão
especial para isso?
Bom... para voltar um pouco ao que dizia antes, que a ideia de fetichização como
processo implica uma crítica à ideia de acumulação primitiva como uma etapa no passado.
Porque o conceito tradicional é que há duas formas... para o funcionamento do capitalismo
há dois tipos de conflito: primeiro, é o conflito necessário para criar o trabalhador, para
estabelecer o valor, para estabelecer o dinheiro, para estabelecer a propriedade privada dos
meios de produção, tudo aquilo que Marx escreve nos capítulos sobre a acumulação
primitiva, que normalmente é entendida como um processo passado, mas é um tipo de
luta. E então, uma vez estabelecido o capitalismo, nós temos a luta pela exploração. Se
dizemos que é necessário romper com esta linearidade da história, é necessário entender
que a luta para converter o fazedor em trabalhador é uma luta atual, não? Então, estamos
falando, estamos dizendo que estes dois tipos de luta devem ser entendidos como lutas
simultâneas. Quer dizer que aqui nós temos dois níveis de luta anticapitalista: por um lado,
é a luta para converter a... é a luta por parte do capital para converter o fazedor em
trabalhador, e por outro lado a luta para explorar o trabalhador. A partir da nossa
perspectiva, esta luta contra a conversão do fazedor em trabalhador, quer dizer, a luta
contra o trabalho [está] por um lado, e a luta contra a exploração do trabalhador por outro
lado... Agora, a tradição, a visão tradicional se concentra apenas na luta da exploração e
assume que a outra parte da luta já não existe. Mas na realidade esta luta da exploração, a
luta entre o capital e o trabalho tem como condição prévia a transformação do fazer em
trabalho, a transformação do fazedor em trabalhador. Por isso eu acho que se falamos das
duas lutas como lutas simultâneas, temos que dizer que o primeiro nível, a luta contra o
trabalho, é o nível mais básico. Então temos de um lado a luta do fazer contra o trabalho, e
por outro lado a luta do trabalho contra o capital. Mas a luta, para ir mais... finalmente, a
luta anticapitalista deve ser entendida como luta do fazer contra o trabalho, porque a luta
do trabalho contra o capital é real, mas está encerrada, é uma luta encerrada dentro da
lógica do capital.
Na prática... bom, eu falei obviamente dos dois níveis como dois níveis diferentes. Na
prática a separação entre estes dois níveis não é necessariamente tão clara. Se pensamos na
luta contra o trabalho como a luta da dignidade, a política da dignidade, podemos pensar
no outro nível, da luta do trabalho contra o capital como, por um lado, a luta clássica dos
sindicatos, mas também como, talvez, uma política de pobreza, dos pobres, porque em
ambos casos a figura chave é entendida como uma vítima, como um objeto. Então,
pensando no que você diz, sobre as lutas dos movimentos sociais, de muitos movimentos
sociais, eu creio que há estes dois elementos presentes, o tempo todo, mas o tempo todo
então é questão de pensar como pensamos em nossas lutas, como uma política de
dignidade... como evitamos a conversão... como evitamos recair na política da pobreza. Isto
é questão de prática cotidiana, de reflexão constante.
Sim, sim. Sim, Venezuela e Bolívia, Lula também, que é muito claramente, muito
explicitamente uma política para ajudar os pobres. É a ideia dos pobres como objetos, a
quem é preciso ajudar. Mas eu creio que toda a lógica por detrás das lutas estadocêntricas,
é uma lógica que assume os trabalhadores pobres como objetos. É outro conceito. E este é
o conceito que se recusa, de forma definitiva, no zapatismo. Eles de fato dizem: “não somos
poucos, somos dignos”...
Ex-...
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Fundamentalmente por procurar uma teoria da práxis social revolucionária, porque a
ortodoxa para mim está perdida, mas... eu gostaria de fazer uma pergunta a Holloway...
Creio que o grande perigo desta distinção entre luta contra o trabalho por um lado e luta
do trabalho por outro é que isto pode ser entendido como uma forma de dizer que as lutas
importantes são as lutas fora do lugar de trabalho. Absolutamente não é isso. Não, a luta
do fazer contra o trabalho é também uma luta constante dentro dos locais de trabalho,
dentro das fábricas, que se expressa exatamente nas greves. Então, a ideia de enfatizar a
importância da luta do fazer contra o trabalho não vem para dividir as lutas
anticapitalistas, mas pelo contrário, para dizer que a luta de fábrica, a luta exatamente das
greves, transbordam o tempo todo, transbordam do trabalho, quer dizer, uma luta contra o
trabalho. Uma greve, normalmente, nos jornais, nas declarações dos sindicatos, muitas
vezes é apresentada simplesmente como uma ação para obter melhores condições de
trabalho. Mas na realidade não é assim. É assim, mas é muito mais, é também a criação de
outras relações sociais entre os trabalhadores, entre os trabalhadores e seus (suas)
Isso que você fala sobre o companheirismo me faz lembrar um frase que me
parece brilhante de seu livro Mudar o mundo sem tomar o poder... onde você
diz que “o comunismo é o movimento da intensidade contra o embotamento
dos sentimentos que fazem com que os horrores do capitalismo sejam
possíveis". Essa frase me parece muito bonita... dentro deste contexto você
acha que o capitalismo nos torna pessoas insensíveis, como uma patologia
sócio-histórica... e dentro deste contexto, o que você acha das análises de
Marcuse, a análise filosófica da psicanálise que ele fez, do princípio de
realidade destrutivo... até mesmo na relação com a natureza... insensíveis
também na relação com a natureza.
Sim, creio que sim, que todo o processo de fetichização é um processo de coisificação,
como a criação de uma carapuça em nós mesmos. E isso só acontece, eu suponho, pelo... é
também um processo de autoproteção, porque senão, como viver com o que está
acontecendo no mundo... eu não sei, os horrores da AIDS na África, por exemplo, o
fazemos simplesmente através de um processo de alienação, um distanciamento, e isto é
parte do processo de fetichização. Então, creio que sim, que a fetichização implica um
processo de insensibilização. E sim, eu gosto muito do que Marcuse diz sobre tudo isso, é
questão de repensar e pensar politicamente... a psicanálise.
***
Creio que... não vejo assim. Não vejo como questão de convergência ou divergência com o
marxismo. E não me interessa muito se sou marxista ou não sou marxista. Para mim sim.
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Mas não é questão de etiquetas, é antes questão de pensar... de pensar como mudar o
mundo, enfim. Venho de uma tradição marxista, obviamente, me movo dentro deste
ambiente, mas creio que para mim não é questão de convergência ou divergência.
Sim, isso me parece muito importante. Uma forma de ver este conflito entre poder-sobre e
poder-fazer é em termos de rachaduras, ou de fissuras. Há um conflito constante, há como
uma rebeldia constante do poder-fazer contra o poder-sobre. Mas esta rebeldia se
concentra em certos lugares e certos momentos. E uma forma de pensar isso é em termos
de fissuras. Quer dizer, se pensamos na dominação capitalista como um sistema de
comando, de mando, o dinheiro nos diz “faça isso”, “não faça aquilo”. E muitas vezes as
pessoas dizem “Não, não vamos fazer isso. Vamos fazer outra coisa”. Então, esta negação e
criação alternativa pode ser entendida como uma rachadura, uma fissura no tecido da
dominação. Se pensamos nos zapatistas, podemos dizer: aqui, em Chiapas, há uma fissura
enorme, onde as pessoas estão dizendo “não, já basta, vamos fazer outra coisa”, e estão
criando esta outra realidade. O mesmo na Bolívia nos anos 2002-2005. O mesmo com os
piketeros e as assembléias de bairro e as fábricas recuperadas na Argentina. As pessoas
estão dizendo, “aqui não, aqui não vamos obedecer ao capital, não vamos obedecer ao
dinheiro, vamos fazer outra coisa”. Estas são fissuras muito grandes. Mas exatamente
como você dizia, podemos pensar na fissura como uma fissura pequena, podemos dizer
Quando você fala nas fissuras, creio que você está falando sobre o que disse
em seu livro: que a revolução consiste na intensificação da crise, da crise
subjetiva. Acredito que você também reconhece a crise objetiva do capital. A
crise da valorização, a substituição do trabalho vivo por trabalho morto.
Como você vê a relação entre essas duas coisas?
Para mim a única forma de pensar, ou a única forma que eu logro conceber uma mudança
radical é em termo da criação, multiplicação e expansão destas fissuras ou rachaduras. Não
me ocorre outra forma de pensar uma mudança radical. Estas rachaduras, ou a expansão
destas rachaduras obviamente implicariam uma crise da dominação capitalista. E a sua
pergunta é um pouco como pensar esta crise, pensar nela como crise subjetiva ou objetiva.
Creio que para mim não há uma distinção, simplesmente porque as contradições
aparentemente objetivas do capital na realidade são a reprodução da luta subjetiva. São
crises da separação entre sujeito e objeto. Se pensamos no valor, por exemplo, me parece
que o valor pode ser entendido como a reprodução do poder da resistência dentro da classe
dominante mesma. Bom, um exemplo talvez mais dominante e mais claro seria a questão
Para mim a rebeldia está presente o tempo todo. Isso tem muito a ver com a sua pergunta,
que a rebeldia está presente o tempo todo. E muitas vezes não se expressa, ou se expressa
em queixas individuais, em ações individuais, e neuroses também. Somente em certos
momentos, como em 90 no México, 94 e depois na Argentina em 2001, 2002 na Bolívia,
2000 a 2005, em certos momentos há uma convergência das rebeldias, uma explosão das
rebeldias. ... no momento atual as coisas esfriaram um pouco... bom, por várias razões. Na
Argentina, em parte como resultado do governo de Kirchner e a canalização das rebeldias.
O mesmo na Bolívia. Então, parece que são poucos, agora, que é pouca gente, pouca gente
Tenho uma pergunta relacionada a essa. Pelo que entendi, você relaciona este
tipo de organização e de luta com a luta do trabalho, enquanto nós queremos
uma luta contra o trabalho. Você enxerga a possibilidade da luta do trabalho,
que existe nos sindicatos, nos movimentos sociais, transformar-se em luta
contra o trabalho, de se radicalizar essa luta para uma nova perspectiva?
Primeiro tenho que explicar... se falamos da luta do fazer contra o trabalho. Quer dizer que
há dois níveis de luta anticapitalista. Há a luta do trabalho contra o capital e há a luta do
fazer contra o trabalho que produz o capital. Então, o trabalho que produz o capital é o
trabalho abstrato ou alienado. Por um lado, está a luta do fazer contra o trabalho abstrato
ou alienado, de outro lado a luta do trabalho alienado ou abstrato contra o capital. Agora, a
luta do trabalho alienado contra o capital é a luta mais visível. A luta que se organiza em
sindicatos, a luta que se organiza em partidos. Esta luta, exatamente como você falou, é
uma luta baseada na aceitação da existência da força de trabalho como mercadoria. Então,
é uma luta por melhores condições, por melhores salários. Mas é uma luta que fica dentro
do marco do capitalismo. Ao mesmo tempo, dentro desta luta, há uma luta que
transborda... A luta sempre vai mais-além de suas formas de organização. Então, dentro da
luta sindical sempre há a luta por algo mais do que melhores condições de exploração.
Dentro dos sindicatos há sempre como um movimento que busca ir mais além do
sindicato. E se pensamos em uma greve, por exemplo: oficialmente, a greve é para obter
Creio que este é um grande problema agora. Pois os zapatistas são quem exatamente? São
campesinos e são indígenas. Têm comunidades muito fortes, com tudo de bom e de ruim
que isso implica, comunidades bastante fechadas. Têm tradições de lutas muito antigas,
em Chiapas, têm seus próprios terrenos, terras, que eles podem cultivar. E na cidade...
bom, um pouco como o MST também tem suas terras... depois de ocupadas tem suas
terras. E na cidade é diferente, porque não temos este tipo de comunidade. Não temos
acesso à terra para sobreviver, a única forma pela qual podemos sobreviver é normalmente
vendendo nossa força de trabalho, dependendo do apoio de nossos... ou de alguma outra
forma. Então é uma situação muito diferente. E isso para nós é o problema do zapatismo
urbano. E com “a outra campanha” os zapatistas saíram de Chiapas e foram viajando por
todo o país com a ideia de estender... bom, com a ideia de escutar, de aprender com outras
lutas, mas também de estender o zapatismo a todo o país. E há problemas e dificuldades.
Nas cidades a situação é diferente. Então não podemos pensar... podemos aceitar e
***
Sim, creio que o neoliberalismo, como você disse, cria um sentimento de culpa, porque
tudo é visto em termo de nossas capacidades pessoais, individuais. Mas também creio que
a tradição da esquerda cria sentimentos de culpa, porque nos impõe como uma ideia do
que deveríamos ser. Por exemplo, para regressar com isto1, a ideia tradicional do sujeito
revolucionário como trabalhador, assalariado, é uma ideia defeituosa. É uma ideia
defeituosa, porque está baseada na repressão, está baseada na repressão da dançarina.
Está baseada na ideia da repressão do “frívolo”, do que não é “sério”. Está baseada na
repressão... bom, da mesma forma pela qual esta figura realmente é uma figura reprimida,
1
Holloway aponta para um desenho que utilizou em palestra anterior, aproximadamente reproduzido aqui.
A intenção foi apresentar didaticamente tanto a “acumulação primitiva do sujeito” (a transformação do
fazedor em trabalhador) quanto o não-idêntico.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 25
tomar esta figura como ponto de partida implica a repressão, não sei, do... do lado lúdico,
implica a repressão da sexualidade, implica a repressão do dançar... E portanto cria
sentimentos de culpa. Cria sentimentos de culpa com relação às atividades que não cabem
dentro desta imagem. E cria sentimentos de culpa para pessoas que não se identificam com
esta imagem. Então, tipicamente, os estudantes, os acadêmicos, se queremos ser parte do
movimento revolucionário, em algum sentido começamos a ter sentimentos de culpa,
porque não somos realmente trabalhadores. Ou no caso de alguns grupos... no caso de
Néstor [López], sua organização lhe mandou ir trabalhar na fábrica, para que coubesse
dentro desta identidade. E isso é terrível! Implica um grau de repressão, de auto-repressão
espantoso! (...) Por exemplo, há um livro de Nadine Gordimer onde ela fala de sua
experiência dentro do Partido Comunista, onde diz que não havia espaço para falar sobre
as coisas que eram importantes para ela, como a questão da sexualidade. E creio que esta
experiência foi muito comum nas organizações de esquerda, de tal forma que muita gente
simplesmente deixou as organizações e esqueceu toda ideia de revolução. (...) E hoje ainda
estamos criando e recriando uma imagem do revolucionário puro. Por exemplo, a imagem
do subcomandante Marcos. Por um lado sim, muito bem, uma fonte de inspiração ou de
admiração, mas ao mesmo tempo como que cria uma imagem do que deveríamos ser, mas
não o somos. É a reprodução da imagem do revolucionário ideal, e portanto a criação de
um sentimento de culpa. E por isso, em parte por isso, não queremos falar de forma
consciente de nossas contradições. Normalmente não queremos falar sobre isso. Porque
falar sobre isso implicaria aceitar que não nos conformamos exatamente como a imagem
(...).
A crise ecológica hoje não é mais novidade para ninguém. Todos já sabem. A
minha pergunta é se você vê uma relação entre o trabalho abstrato, ou a
transformação do fazer em trabalho, com a crise ecológica, a destruição da
natureza.
Seu último livro é sobre Adorno, livro que você organizou. Gostaria que
dissesse se em sua opinião o pensamento dialético segue sendo importante, e
por quê. E por que Adorno?
Tudo o que falei sobre a relação entre fazer e trabalho, suponho que é um conceito
dialético. Porque o que estamos fazendo é de dentro do trabalho. Porque dentro do
trabalho existe o fazer. Então é preciso abrir, é preciso abrir a categoria do trabalho, e ver
que dentro deste trabalho, desta categoria, há um antagonismo... É preciso não somente
pensar em trabalhar, em trabalho e trabalhadores... não. Mas é preciso abrir o conceito de
trabalho e ver que dentro do trabalho há um antagonismo. Há um fazer ou um trabalho útil
ou uma atividade vital consciente (o termo não importa muito) e existe contra-e-mais-além
do trabalho, então se parte de um argumento geral de que as categorias de Marx... quando
ele fala em formas de relações sociais... é preciso entender as relações de forma como uma
relação contra-e-mais-além, e não somente como uma relação de subordinação, de
contenção. E isto, este contra-e-mais-além me parece que tem implicações políticas.
Porque justamente se pensamos somente em termos de um mais-além... se pensamos, por
exemplo, que o movimento de desempregados existe mais-além da luta de classes,
digamos, então estamos dividindo, aceitando a divisão entre as lutas... se andamos em
termos de contra-e-mais-além, me parece que estamos pensando em outros termos,
estamos falando de uma unidade contraditória das lutas contra o capital. Então, sim a
dialética me parece que ainda segue sendo central para entender o que está acontecendo e
para pensar em como mudar o mundo. E por que Adorno? Não sei, porque, creio que são
duas razões contraditórias. Bom, primeiro porque começamos a ler Adorno nos
seminários, e nos parecia incompreensível, e ainda nos parece incompreensível. Mas
também muito emocionante. Porque politicamente não é tão atraente quanto Marcuse, por
exemplo. Em termos do que escreveu, mas também em termos do que fez. Porque Marcuse
se alinhou muito fortemente com os movimentos estudantis, e Adorno não o fez. Mas
Adorno nos parece muito importante porque leva esta ideia da contradição e da rebeldia à
sua fundação ou à sua categoria mais básica, que seria a identidade. E Adorno diz então,
Também implica o seu conceito de classe como classificação, que nós não
somos puramente trabalhadores, há algo em nós que escapa. Somos e não
somos trabalhadores...
Exatamente, que somos e não somos trabalhadores. Quer dizer, somos trabalhadores mas
estamos em revolta contra nossa condição de sermos trabalhadores... e transbordamos
nossas... [interrompido pelos sinos da igreja próxima]. E sim, há um transbordamento
constante, sim... transbordamos de nós mesmos.
Raphael F. Alvarenga
Embora traduzida em grande parte para o português, a obra de Jean Genet (1910-
1986) é infelizmente ainda pouco lida no Brasil, seu teatro relativamente pouco encenado,
sua vida pouco conhecida. Aliás também na França. Não sei bem a que se deve o
“esquecimento”. É verdade que seus livros são, se não desviadores, desconcertantes,
aventuras perigosas, principalmente para o leitor sensível à sua prosa, que mimetiza e
recria poeticamente um mundo cão, da vida no limite, da luta pela sobrevida nas margens
da sociedade. É fato que a leitura de seus romances, peças, textos militantes, por diferentes
razões, raramente deixa indiferente. Como escreve Juan Goytisolo, amigo do escritor:
“Conocer íntimamente a Genet es una aventura de la que nadie puede salir indemne.
Provoca, según los casos, la rebeldía, una toma de conciencia, afán irresistible de
sinceridad, la ruptura con viejos sentimientos y afectos, desarraigo, un vacío angustioso,
incluso la muerte.”1
A alta qualidade de sua poesia, seu grande talento literário, me parecem inegáveis.
Justamente o que é traiçoeiro. Não se deixar completamente enfeitiçar por sua bela prosa,
manter a distância necessária para que não haja uma identificação mimética ritual com o
regime do limite, no qual se desloca boa parte da obra genetiana, constitui assim uma real
dificuldade quando se aborda esta última. Não se trata, no entanto, de obra homogênea.
Genet soube transpor magistralmente suas errâncias e experiências das margens em
formas literárias capazes de expor com rigor o curso degradado da experiência dos
1 Juan GOYTISOLO, En los reinos de taifa (1986), Madrid, Alianza, 1999, p. 180.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 30
degenerados e renegados da sociedade, e com tal exposição procurou marcar sua oposição
a ele. Só que isso não se dá de igual maneira nos romances, nas peças, no último livro. Há
então que se distinguir até que ponto em seus escritos a oposição à sociedade burguesa e
ao imaginário capitalista é mais que oposição abstrata; até que ponto é superada a visão de
seus romances, que marcam a primeira fase do autor, nos quais as normas burguesas e as
condições sociais negativas na qual se encontram inseridas suas personagens parecem ser
como que “aceitas” enquanto pressupostos necessários à revolta e à subversão.
***
Num de seus inéditos ensaios “brasileiros” dos anos 60, Gérard Lebrun argumentava
– na linha do amigo Foucault, que então colocava no papel os textos que viriam a compor
Les mots et les choses – que o ponto nevrálgico dos romances de Genet, todos publicados
nos anos 40, não estaria no imaginário de uma mitologia privada, como defendia Sartre em
sua canonização de Saint Genet, mas ao contrário na abolição desse mesmo universo
representativo através da destruição deliberada da linguagem puramente denotativa, da
linguagem das pessoas “normais”2. O que explica, por assim dizer, que Genet reivindicasse
para si todos os atributos que lhe colava a sociedade – ladrão, vagabundo, pederasta,
prostituto, covarde e traidor – usando-se para tanto do mesmo idioma consagrado por
aqueles que desde sempre o condenaram, a saber, o francês mais clássico, cuja inspiração
maior, no seu caso, seria a poesia de Ronsard. Não obstante a justeza de tal argumento,
Sartre não deixava de ter certa razão quando afirmava que o ideal de uma arte gratuita
para Genet “ne vaudrait pas une heure de peine”3, ou seja, que cada um de seus livros seria
presidido por uma forte preocupação moral.
Filho bastardo, tendo o ingresso à sociedade burguesa lhe sido desde cedo negado,
não lhe restou outro desejo senão que o de negar em si próprio o homem da ordem
dominante. Por isso, em vez de aceitar passivamente, quieto e submisso, o que lhe fora
dado como destino, reivindicou-o conscientemente para si e fez de tudo para levá-lo às
últimas consequências. Por aí se entende o lugar central dado à “traição” em suas obras,
pela qual ele chega a se desgarrar de seu corpo, de sua vida e de sua própria sensibilidade.
É a traição que lhe torna possível arruinar seus amores, desconstruir em permanência sua
identidade e se conferir “uma nova dignidade na infâmia, que lhe permite se desprezar
2 Cf. Paulo Eduardo ARANTES, Um departamento francês de ultramar. Estudos sobre a formação
cultural filosófica uspiana, São Paulo, Paz e Terra, 1994, p. 192.
3 Jean-Paul SARTRE, Saint Genet, comédien et martyr, Paris, Gallimard, 1952, p. 514.
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mais diligentemente”4. Melhor dizendo: a traição é o meio pelo qual Genet se liberta da
máscara caracterial e destroi a personalidade socialmente aceitável, desprezando em sua
própria pessoa toda e qualquer remanescência de subjetividade burguesa.
Tal negação no entanto não se dirige às estruturas, ao prático-inerte, pois fica presa
ao nível empírico de personagens contingentes. Sem falar que, salvo engano, parece haver
algo de patologicamente autodestrutivo aí. Seja como for, essa compreensão primeira,
poder-se-ia dizer visceral, da brutalidade normalizada da sociedade burguesa,
compreensão sobre a qual se calca sua oposição a esta última, só será devidamente
politizada mais tarde, através do contato com Alberto Giacometti. Se nos romances que
marcam sua fase inicial o mundo vivido e recriado poeticamente pelo autor é um mundo
estático, marcado pela contradição de personagens a um tempo filhos de suas obras e
prisioneiros de um destino trágico, inevitável, e pelo fato mesmo devendo ser assumido
“livremente” como tal, sob a influência de Giacometti a visão de Genet evoluirá pouco a
pouco no sentido de uma remise en question radical da ordem “natural” das coisas. O que
num primeiro momento se dará nas peças teatrais, dos anos 50, e em seguida nos textos
militantes, dos 70, e no último livro, publicado logo após sua morte em 1986, cuja forma a
um tempo fragmentária e épica logra anular todo traço de positividade, segurança
ontológica, congelamento social e resolução forçada de contradições e antagonismos. O
que visa Genet a partir de certo momento em sua vida é espessar o fundo noturno sobre o
qual na modernidade tardia se desenrolaria o fio da história. Resta a saber se essa noite
espessa é prenhe de algo diferente ou se ao contrário turva toda e qualquer visão de
superação do status quo.
***
Faz-se necessário, quando se fala em identidade, questão ainda muito em voga, trazer
à tona algo que é geralmente escamoteado nas interpretações da obra de Genet. As leituras
culturalistas desta, nas quais a homossexualidade do autor aparece como ponto central na
compreensão da obra, erram completamente o alvo. Assim como o fato de escrever em
francês, no caso de Genet, não indica mais do que a pertença não necessariamente
identitária a uma comunidade linguística, de modo algum a uma suposta essência francesa
ou latina, também o homossexualismo (o termo de “homoerotismo” me parece no seu caso
mais adequado), presente em toda sua obra, não tendo sido vivido pelo autor como
identidade sexual, vale dizer, como “homossexualidade”, não deve ser tomado como chave
4 Ibidem, p. 208.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 32
explicativa de seus livros. Numa palavra: Genet não faz literatura gay. Se numa carta a
Sartre definiu o homossexualismo como o desejo de não ver o mundo se perpetuar tal qual
é, como prática contra o “mais do mesmo”, no mais das vezes preferia não se declarar a
respeito, chegando mesmo a dizer, talvez cansado de perguntas ligando sua obra à sua
escolha sexual, que toda cena erótica presente em seus livros poderia ser de igual maneira
cenas contendo, no lugar de homossexuais, jovens casais heterosexuais, sem que com isso
fosse alterada no que quer que seja a carga erótica das mesmas. Porque em Genet, que
nunca defendeu abstratamente o sadomasoquismo como o fizeram alguns autores pós-
estruturalistas, não há obscenidade – mesmo em Nossa Senhora das Flores – que não
venha acompanhada de ternura. Ele canta o amor livre, não o sexo selvagem e
desenfreado.
O que boa parte dos críticos, principalmente aqueles ligados aos cultural studies e às
gender issues, não consegue enxergar, é que em Genet a identificação – sexual ou outra – é
quase sempre negada ou subvertida no nível da forma. Genet explorou como poucos na
língua francesa as combinações rítmicas, a equivocidade sonora e semântica, os parônimos
e as polissemias. Sua escrita se engendra e progride através de tal exploração; as palavras,
os sons e os significados seguem provocando uns aos outros5. O que não impede que tal
“método” exigisse do artista que sua poesia em prosa fosse elaborada ao extremo, seu
lirismo extremamente consciente. Como diz o próprio num de seus romances: “A poesia é
uma visão do mundo obtida por um esforço, algumas vezes esgotante, da vontade tensa,
resistente. A poesia é voluntária. Ela não é um abandono, uma entrada livre e gratuita
pelos sentidos; ela não se confunde com a sensualidade.”6 Se o estilo a um tempo suave e
sofisticado era para ele o mais apropriado para exprimir emoções profundas e inomináveis,
a expressão destas tinha de ser altamente controlada para que se atingisse o resultado
desejado. E o resultado é um lirismo e um humor bastante sutis.
É jogando sutilmente com a sintaxe francesa que Genet procura feminizar coisas e
atividades tipicamente masculinas – como um fuzil, um canhão, as práticas militares – e
com isso desestruturá-las como que do interior, chacoalhando assim o prático-inerte da
segurança patriarcal estabelecida. Tome-se como exemplo o uso ambíguo da palavra
5 Cf. por ex. Jean GENET, Journal du Voleur, Paris, Gallimard, 1949, pp. 146-47: “Me regardant regarder, il
ne parlait pas du manège mais de son génie. [...] J’écoutais parler une ménagère marchandant un
géranium. [...] La nuit, enroulé dans une couverture, il couchait sous les bâches du manège.” Toda uma
cena construída em torno de palavras, sons e significados que se entrelaçam e se encadeiam: manège–
génie–menagère–géranium.
6 Jean GENET, Notre-Dame-des-Fleurs (1944), Paris, Gallimard, 1948, p. 260.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 33
“sentinela” no início de Um prisioneiro apaixonado7. Cito a passagem em questão no
original, pois traduzida, a ambiguidade desejada pelo autor se perde completamente: “En
se déplaçant la nuit, sur l’herbe et sur les feuilles, les sentinelles en armes ne faisaient
aucun bruit. Leurs silhouettes voulaient se confondre avec les troncs d’arbres. Elles
écoutaient. Ils, elles, les sentinelles.”8 O artigo plural “les” em francês designa “os” ou “as”.
Na primeira frase, Genet o emprega em contexto indeterminado, precedendo um
substantivo também ambíguo, “sentinelles”, que designa a um tempo o masculino e o
feminino, e em seguida evita habilmente a locução adjetiva – escreve “en armes” (com
armas) e não “armés” (armados) ou “armées” (armadas). Tais artifícios fazem com que o
leitor suponha, pela normalidade da coisa, se tratar de homens armados. A terceira
sentença porém – “Elas escutavam” – desfaz num só golpe a certeza inicial do leitor, e a
quarta – “Eles, elas, as sentinelas” – reintroduz a ambiguidade originária do substantivo.
Note-se também a presença repetitiva do morfema “elas”: “Elas escutavam. Eles, elas, as
sentinelas.”
Estes e outros arranjos formais, encontrados nas várias obras do autor, tornam
possível a revelação da feminidade intrínseca de um termo em geral usado para designar
objetos ou atitudes masculinas, de maneira que quebram por assim dizer o referente
masculino, no caso, a virilidade referencial do termo “sentinela”. Paradoxalmente, ao
sexualizá-las ao máximo, Genet liberta as palavras do vínculo sexual e identitário.
***
Embora não encarnasse uma qualquer identidade social fixa, ainda que reivindicativa
(homossexual, no caso), tampouco chegava a ser um camaleão filosófico à maneira dos
foucauldianos, correndo na esteira da contínua redescrição irônica de si mesmos. “Ne me
demandez pas qui je suis et ne me dites pas de rester le même”9, escrevia Foucault no fim
dos anos 60, marcando a recusa de se fixar numa identidade estável, monolítica, o horror
em suma de ser localizado e investido por instâncias do poder. Apesar de também recusar
a prisão da identidade, Genet pressentira já nos anos 70 a armadilha por trás da falsa
liberdade da troca de peles pós-moderna. Em La nuit venue (1976), cenário de filme
inédito, a vida do homem ocidental é retratada como uma busca incessante e angustiante
7 Cf. Patrice BOUGON, “Un captif amoureux”, L’Infini, n° 2, (été 1988), pp. 109-126.
8 Jean GENET, Un captif amoureux, Paris, Gallimard, 1986, p. 17.
9 Michel FOUCAULT, L’Archéologie du savoir, Paris, Gallimard, 1969, p. 28.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 34
de prazer. No entanto, ou por isso mesmo, os indivíduos que no filme não passariam de
organismos selvagens desenfreados não mais desejariam o que quer que seja10. Função do
imperativo superegóico ao gozo puro através do consumo ilimitado, a cultura do
divertimento dirigido, dita “do lazer”, acaba por matar o desejo, anulando-o ou
contornando-o todo o tempo, e com ele a capacidade de se imaginar algo melhor que o mar
de bugigangas desoladoras no qual se afogam justamente os sonhos e os potenciais
humanos rebeldes.
Nos anos 70, Genet disse de seus primeiros livros que o estilo era manifestamente
diferente do que viria a fazer mais tarde, mas que o indivíduo que os escrevera era o
mesmo. Como entender a coexistência da negação de uma identidade estável –
principalmente após o livro de Sartre – e a reivindicação de um certo continuum
ontológico que perpassaria toda a obra? Vejamos esta outra declaração: “A revolta de
minha infância, a revolta de meus quatorze anos não era uma revolta contra a fé, era uma
revolta contra minha situação social, contra minha condição de humilhado.”11 À primeira
vista, parece inegável que a vida toda Genet tenha se revoltaltado contra a sociedade
burguesa, não podendo se reconhecer no seio desta a não ser na injustiça absoluta de ter
desde criança sido jogado à margem da vida. Razão pela qual se sentia em casa na
companhia de marginalizados de toda ordem. O que não o impedia de frequentar também
o andar de cima: era visto nos bistrots de Montmartre e nos festivais de Cannes tanto
quanto nos guetos e bairros mais pobres das grandes cidades européias. Nunca foi
proprietário; quando não estava preso – em geral por roubo de livros – vivia em quartos
apertados de pequenos hotéis baratos nas proximidades de uma estação. Nunca teve bens
além de uma pequena mala com manuscritos e roupas velhas. Quase todo o dinheiro que
ganhava com suas obras vertia a seus amigos marginais: imigrantes, ex-carcerários,
artistas menores...
10 Cf. Jérôme NEUTRES, Genet sur les routes du Sud, Paris, Fayard, 2002, pp. 184-85.
11 Jean GENET, “Entretien avec Madeleine Gobeil” (1964), in:__. L’Ennemi déclaré: textes et entretiens,
Paris, Gallimard, 1991, p. 27.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 35
despeito de seus crimes, Genet jamais renegaria suas fidelidades, jamais abdicaria de sua
condição de “excluído” e marginal. Em toda sua obra aliás se pode notar de forma explícita
a recusa de reconhecer no leitor um semelhante. É fato também que seu último livro – Um
prisioneiro apaixonado – escandalizou a intelectualidade francesa e a opinião pública
tanto quanto seus primeiros romances, suas peças ou seus textos e entrevistas em apoio a
grupos e movimentos considerados terroristas pela doxa dominante. É preciso nesse
contexto ver se e como a maleabilidade de Genet, o uso (crítico? lúdico? cínico-
esclarecido?) dos disfarces e máscaras sociais impostas, se reflete mais tarde, em sua
dramaturgia. É preciso se perguntar ademais se a volubilidade do sujeito no regime do
limite, se virando como pode em sua fuga da identificação, não gira num mau infinito de
oportunismos e pequenos crimes cá e lá que evita no fim das contas ao sujeito o fardo da
necessidade de se decidir, de realmente tomar parte e enfrentar o mundo e suas
contradições.
Só que Sartre mostrou, para total desespero de Genet, que o “poeta maldito” se
integrou à ordem vigente malgrado sua recusa absoluta em se integrar. Um pouco à
maneira de um herói romântico, fortalecido “pelas privações do deserto dos homens”12,
transitando com desenvoltura entre bas-fonds e altas esferas da cultura, dividido entre
lenda e realidade, Genet viveria excentricamente da contradição do arrivista
unanimemente reconhecido nos meios artísticos mundo afora e que no entanto conserva
todo o atraso de sua condição de marginal e criminoso: se gabava de não tomar banho e de
ter chulé e de conhecer de cor poemas inteiros de Mallarmé; continuava a efetuar
pequenos furtos apesar de ter dinheiro; desacatava sempre que podia todo tipo de
autoridade e aceitava de bom grado a fama que lhe propiciava seus livros.
12 Antonio CANDIDO, “Da vingança” (1952/64), in:__. Tese e antítese, Rio de Janeiro, Ouro sobre Azul,
2006, p. 17.
13 Idem, ibidem.
14 Poder-se-ia objetar que, exceção feita a Nerval, os dois outros não foram propriamente poetas românticos.
Contudo, os temas encontrados e tratados em Baudelaire e Rimbaud são muito próximos daqueles do
romantismo alemão. Quanto a isso, tem razão Anatol ROSENFELD, “Aspectos do romantismo alemão”,
em Texto/Contexto I, São Paulo, Perspectiva, 1996, p. 150: “O romantismo alemão propriamente dito
assemelha-se em certos traços bem mais aos desenvolvimentos posteriores da literatura européia, ligados
a Baudelaire, ao simbolismo e à décadence literária do fin de siècle [do que ao romantismo francês].”
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 37
“Je est un autre” (Rimbaud). Para além da evidência, porém, um pouco como com Joyce15,
o emprego frequente de epifanias, por exemplo, típico daquela poesia de grande
intensidade traumática, teria servido a Genet não somente para confrontar os traumas
dolorosos de sua juventude, mas como meio adequado para uma revelação do mundo e de
seu estar-no-mundo que apontasse de certa maneira na direção de um amadurecimento
pessoal, que coincidiria com o reconhecimento literário.
***
Em seus primeiros escritos, nos cinco romances que marcaram sua fase inicial, Genet
narra como desde cedo havia exercido uma reabilitação do ignóbil, na qual as matérias
mais vis, como o uniforme sujo de prisioneiros ou o catarro de Stilitano no Diário do
Ladrão, eram transfiguradas em algo belo e desejável. Em suma, tudo o que repugnasse o
senso comum e a repressora moral burguesa, que desde sempre o havia rejeitado. A
atenção à natureza nos seus aspectos mais sórdidos, aos impulsos e ao corpo, sobretudo ao
corpo maltrapilho e fétido do sujeito marginalizado, dava vazão a uma compreensão do
mundo mais abrangente que a do senso comum, repleto de preconceitos e dissimulações
de toda ordem. Numa palavra: os personagens e grupos sociais retratados por Genet
representariam linhas de fuga ao ethos burguês ocidental. Linhas de fuga porém que se
entrelaçam a todo momento com o crime, a punição, a ruína, a luta de morte e o gozo da
transgressão pela transgressão. Por aí também se vê, diga-se de passagem, o interesse de
15 Cf. Franco MORETTI, The Way of the World. The Bildungsroman in European Culture (1985), trad. A.
Sbragia, London, Verso, 2000, p. 242.
16 Jean-Paul SARTRE, L’Idiot de la famille, op. cit., t. 3, p. 2038.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 38
Bataille pelo “caráter sagrado” dos criminosos genetianos.
***
17 Vladimir SAFATLE, Cinismo e falência da crítica, São Paulo, Boitempo, 2008, p. 51.
18 Antonin ARTAUD, “La Recherche de la fécalité” in:__. Pour en finir avec le jugement de dieu (1948),
Paris, Gallimard, 2003, p. 39.
19 Jean GENET, Pompes funèbres (1947), Paris, Gallimard, 1953, p. 190.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 39
passou boa parte da vida enclausurado, padecendo inúmeras sessões de eletrochoque, ou
delirando alucinado nas calçadas de St.-Germain-des-Prés, viria a ser quase idolatrado
pela Ideologia Francesa da mesma maneira com que o Genet da primeira fase seria
glorificado e posto num pedestal, de diferentes maneiras, por Sartre, Bataille e, mais tarde,
por Derrida e Sollers. Era preciso então encontrar, ou criar, uma nova linguagem. Como
com Artaud, também no caso de Genet a resposta teria sido o teatro, embora para ele a
resposta fosse temporária.
A explicação corrente não é de todo falsa, mas penso que a transição do romance para
o teatro se deve a uma mudança radical na maneira de encarar o mundo e o poder. É
verdade que já havia publicado duas peças antes do livro de Sartre sair e mergulhá-lo
numa “crise de identidade” profunda que duraria vários anos20. Para o filósofo, como visto,
os romances de Genet seriam exemplares daquela concepção da liberdade que se encontra
n’O ser e o nada, do sujeito que assume heroicamente o destino que lhe coube como sendo
seu e deixa, no fundo, tudo como está. O amigo Giacometti, como já dito, o tira da sombra
e o leva a ver diferentemente as coisas. A negação do sujeito burguês em sua própria
conduta e maneira de ser, que deixava o mundo correr seu curso “natural”, doravante se
torna indissociável da negação da ordem patriarcal burguesa que exclui de seu espaço, de
forma repressora ou tácita, todo aquele que foge à norma do homem-macho-branco-
trabalhador-consumidor21.
Genet afirmou no fim da vida, a propósito dos Black Panthers, que “uma revolução
tem sobretudo por fim a libertação do homem – aqui do negro americano – e não a
interpretação correta e a prática de uma ideologia que se dá quase como transcendência”22.
Quando, anos antes, se perguntava: “Qual é [...] a natureza deste espaço, vertiginoso, que
separa – na América e em todo o Ocidente cristão – o Homem (que permite o
20 Jean GENET, “Ma pauvreté est celle des anges” (entrevista de 1976), Magazine littéraire, n° 174 (Juin
1981), p. 21: “O livro de Sartre criou em mim um vazio que atuou como uma espécie de deteriorização
psicológica. [...] Vivi neste estado terrível durante seis anos. Seis anos daquela imbecilidade que nutre a
vida quotidiana: abre-se uma porta, acende-se um cigarro. [...] Entretanto, este período de deterioração
provocou uma reflexão que me levou finalmente ao teatro.”
21 De passagem: exclusão que paradoxalmente pode ser mantida através da inclusão, como aconteceria de
fato com mulheres, negros, gays... Em muitos países ocidentais, mulheres conseguiram o direito de
trabalhar e passaram a dispor de salários iguais para trabalhos iguais; recentemente, um negro chegou à
presidência da maior potência militar do mundo; gays podem se casar e em alguns casos adotar filhos.
Uma revolução, sem dúvida alguma, mas no fundo, no fundo, o que realmente mudou? A sociedade
deixou de ser machista, racista, homófoba? Pseudo-integração, ou “emancipação negativa” (Robert Kurz),
é como se poderia chamar às conquistas imanentes arrancadas dos de cima por minorias etnicas ou
culturais antes “excluídas” do processo produtivo capitalista – entre aspas, porque a rigor ninguém está
totalmente excluído do sistema; com ou sem dinheiro, somos todos “sujeitos monetários” (Kurz).
22 Jean GENET, Un captif amoureux, op. cit., p. 73.
Agora, ao contrário de Sartre, o teatro de Genet não tem nada de engajado, pois não
faz tão-somente mimetizar a ordem imaginária existente, como se esta fosse de alguma
forma já humana. Pondo em cena a revolta em suas múltiplas dimensões – revolta
individual (em Haute surveillance/Severa vigilância e Les Bonnes/As Criadas), coletiva
(em Les Nègres/Os Negros e Les Paravents/Os Biombos) e anárquica ou anarquista (em
Le Balcon/O Balcão) – o teatro de Genet é indubitavemente um teatro político, mas não do
mesmo modo que são políticos os dramas de Shakespeare, Corneille ou Brecht. É que boa
parte das normas dramatúrgicas é fundamentalmente transformada por Genet,
transformações estas que são indissociáveis de sua experiência pessoal, ao longo de sua
vida de errâncias, com diversas instituições sociais disciplinares: reformatório, exército,
repressão policial, prisão... Nesse ponto próximo de Foucault, para ele todos os
dispositivos modernos de governo dos corpos seriam surdamente teatrais, mas
surpreendentemente, no teatro a teatralidade não dissimularia nenhum poder. Donde o
interesse súbito pela cena teatral, que é um espaço onde o poder é ausente, mas por isso
mesmo um espaço através do qual se pode desvelar a estrutura e o funcionamento das
23 Jean GENET, “Pour George Jackson” (1971), in:__. L’Ennemi déclaré, op. cit., p. 83.
24 Jean-Paul SARTRE, Critique de la raison dialectique, t. 1: Théorie des ensembles pratiques, Paris,
Gallimard, 1960, p. 702.
25 Ibidem, p. 705.
26 Ibidem, p. 741.
Percebe-se logo, à vista disso, o quão precipitada parece ser a identificação pós-
moderna de representação política e midiática e teatralidade. Segundo Anne Vernet, é em
cima dessa falsa identificação que Genet concentrará sua crítica: ele inverterá “a dinâmica
da estética teatral [tradicional] a fim de fazer aparecer o procedimento em jogo por detrás
da teatralização do poder: o papel mimético das funções sociopolíticas. A principal
inversão que ele impõe ao jogo teatral consiste em limitar, como Beckett, a isonomia da
atuação dos atores [...] Em Genet, é no nível das funções que eles representam que a
encenação dos personagens deve fazer aparecer a igualdade que regula suas relações. E,
porque contrária ao vivido do real social, esta inversão desvela a coerção hierárquica
operando detrás de sua distribuição falsamente democrática.”27 A falsa teatralidade do
poder consiste para Genet em forçar ao máximo a identificação com o símbolo, através da
qual a face reprovada da sociedade é magnificada. Em Os Negros, todos os atores são
negros e quando interpretam um branco pintam o rosto; os personagens negros na peça
sonham com um mundo onde tudo fosse de cor negra: o leite, o açúcar, o arroz, o céu, a
esperança... Em As Criadas, duas empregadas domésticas encenam ritualisticamente o
assassinato da patroa, uma delas fingindo-se de madame; durante a encenação afloram
ressentimentos e desejos recalcados, que se conjugam com sentimentos contraditórios,
como o medo e a coragem para a passagem ao ato que poria fim à dominação e à opressão.
27 Anne VERNET, “Jean Genet par-delà le paravent”, Réfractions, recherches et expressions anarchistes, n°
11 (juin 2005): http://refractions.plusloin.org/spip.php?article34
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 42
o próprio mimetismo que constitui a natureza castradora de toda ordem? Em O Balcão,
peça que retrata o funcionamento normal de um bordel de luxo durante um período de
turbulência revolucionária, Genet aborda de forma magistral os temas da castração e da
subversão da ordem. O bordel em questão é um palácio de ilusões, repleto de espelhos,
através dos quais Madame Irma, a dona do estabelecimento, observa severamente o
respeito de uma certa ordem, rígida e monótona, no interior da qual inocentes e medíocres
senhores do povo podem por algumas horas gozar das mais excêntricas e secretas fantasias
de sexo e poder. Para tanto se travestem com insígnias da ordem social real: a Ladra que
quebra a lei, um Juiz que condena, um General que comanda, um Carrasco que executa,
um Bispo que perdoa. A ordem mimetizada no interior do bordel deve ser mantida custe o
que custar, enquanto que nas ruas crepitam metralhadoras, dando início a uma Revolução
que visa subverter as instituições da sociedade real. Os fregueses narram para as
prostitutas os acontecimentos ocorridos do lado de fora, enquanto que Madame Irma
aguarda a chegada do Chefe de Polícia, seu amante, único com poder de defender as
meninas de um possível ataque dos rebeldes. O bordel serve à ordem vigente ao consolidar
as figuras dominantes no imaginário popular, fantasiadas lá dentro. O Chefe de Polícia
sabe que o bordel continuará o mesmo, antes como depois da Revolução. Sabe que no
fundo a Revolução é um jogo. Entretempo, uma das meninas, Chantal, se apaixona pelo
líder dos rebeldes, o bombeiro Roger, e se torna o símbolo da Revolução. Com o
assassinato das figuras pilares da sociedade – as autoridades jurídica, militar, eclesiástica
– seus falsos equivalentes do bordel, o Juiz, o General, o Bispo, são convocados a desfilar
para o povo, liderados por uma falsa Rainha, Madame Irma, realizando assim plenamente
suas funções sociais. O símbolo escolhido pelo Chefe de Polícia para representá-lo perante
o povo é um imenso pênis, que o Bispo propõe de transformar na pomba do Espírito Santo,
para que se torne mais aceitável, e o General de pintá-lo com as cores nacionais. Com a
rebelião momentaneamente subjugada, Chantal é assassinada e Roger se entrega às
fantasias do bordel e pede para representar o Chefe de Polícia, se vestindo de todos os
atributos deste último28. Uma das prostitutas faz o gesto de castrá-lo e, naquele exato
momento, o Chefe de Polícia verifica se o seu ainda está no lugar. Com este gesto “sua
passagem ao estado de símbolo sob a forma do uniforme fálico proposto é doravante
inútil”29. No final, Madame Irma diz ao público para voltar para casa, “onde tudo, não
28 Genet disse certa vez que originalmente o ponto de partida da peça era a Espanha de Franco e que o
revolucionário castrado representaria os Republicanos no momento em que admitiram sua derrota. Cf.
Edmund WHITE, Genet. A Biography, London, Picador, 1993, p. 476.
29 Jacques LACAN, “Sur Le Balcon de Genet” (1958), Magazine littéraire, n° 313 (sept. 1993), p. 57.
Tendo a concordar, aqui também, com Anne Vernet que essa leitura, embora tendo lá
sua pertinência, não esgota o sentido do teatro de Genet, que é antes de tudo obra de
combate contra os protocolos miméticos: “a problemática colocada é a de todo papel, de
toda função, da identificação e da coerção mimética bem para além da mera problemática
sexista”32. Ao mesmo tempo, caberia perguntar até onde Genet é consciente do fato de que
é somente mediante sua autoalienação através de protocolos miméticos que o sujeito se
torna suficientemente forte para vencer a prisão da imitação, isto é, para tomar distância
do objeto de modo a revocar sua autoposição33. Porque a autonomia do sujeito depende
desta experiência de descentramento, desta identificação por assim dizer não-narcísica
com aquilo que lhe é estranho. Só no nível do entendimento raciocinante aparecem como
antagônicos a ipseidade coisificada do eu e a submissão do sujeito a papéis socialmente
exigidos. No fundo, e alguém como Adorno percebeu bem isso, há uma cumplicidade entre
a rigidez identitária e a disponibilidade para os múltiplos papéis e funções sociais34.
Acho que não é totalmente despropositado afirmar que, como para o frankfurtiano,
30 Ibidem, p. 53.
31 Ibidem, p. 57.
32 Anne VERNET, “Jean Genet par-delà le paravent”, op. cit.
33 Cf. Theodor W. ADORNO, Ästhetische Theorie (1970), Frankfurt/M., Suhrkamp, 2003, pp. 397 e 424.
34 Cf. Theodor W. ADORNO, Negative Dialektik (1966), Frankfurt/M., Suhrkamp, 2003, pp. 274-75; trad.
fr. de G. Coffin, J. e O. Masson, A. Renaut e D. Trousson, Dialectique négative, Paris, Payot, 1978, p. 336.
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para Genet não se trata de negar abstratamente a identidade, mas num quadro de
resistência, conservá-la, utilizá-la de forma crítica para no momento oportuno subvertê-la
e superá-la. Nisso também estava próximo de Sartre: o descentramento que faz o sujeito
desaparecer por trás das estruturas prático-inertes implica uma negatividade; o sujeito
surge desta negação, por sua vez, condição de uma práxis superadora de tais estruturas.
***
Na esteira de Adorno, Marcuse disse em algum lugar que não há nem pode haver liberdade
sem beleza. Pergunto-me se o inverso também não é válido: a beleza num estado não-livre
não teria ela própria algo de falso? Narrando um episódio do verão de 1934, quando
percorria a mendigar, solitário, as estradas andalusas, Genet escreve: “Da beleza mesma
deste lugar do mundo não ousei me aperceber. A menos que fosse para procurar seu
segredo, por detrás dela a impostura da qual será vítima quem nela se fiar. Ao recusá-la eu
descobria a poesia.”35 Livro maior de Adorno, as Minima Moralia são atravessadas por
uma maneira semelhante de encarar o mundo, explicitada, em termos hegelianos, já nas
primeiras páginas do livro: “Até a árvore que floresce sem sombra de sobressalto; até o
inocente ‘que beleza!’ torna-se expressão para a ignomínia da existência que é diversa, e
não há mais beleza nem consolo algum fora do olhar que se volta para o horrível, a ele
resiste e diante dele sustenta, com implacável consciência da negatividade, a possibilidade
de algo melhor.”36
Com o humor habitual, Genet disse certa feita que nunca havia visto um banqueiro
bonito. A beleza tanto buscada seria encontrada anos depois do episódio espanhol, na luta
dos Black Panthers e na “Revolução palestina”, embora agora não mais aparecesse tão-
omente como promessa de felicidade, mas antes enquanto força da alegria de ser e tomar
parte em um movimento de libertação. Nunca em sua vida Genet se sentira tão livre, tão
plenamente vivo e em paz consigo mesmo como quando esteve em companhia dos
palestinos às margens do Jordão. O que maravilhava Genet nesses movimentos era a
existência de indivíduos ainda capazes de dar a vida por uma causa política, de pôr e expor
o próprio corpo na linha de fogo. Luminosos ou tenebrosos, é o fato de se levantarem
contra o establishment e os poderosos do mundo que os tornava esteticamente atraentes a
seus olhos: “Já muito belos, à medida que os feddayin se libertavam da tradição,
***
37 Jean GENET, “Près d’Ajloun” (1971-72/1977), in:__. L’Ennemi déclaré, op. cit., p. 182.
38 Jean GENET, Un captif amoureux, op. cit., p. 425.
39 Jérôme NEUTRES, Genet sur les routes du Sud, op. cit., p. 261.
40 Jean GENET, “Violence et brutalité” (1977), in:__. L’Ennemi déclaré, op. cit., p. 201.
41 Ibidem, p. 203.
Num texto sobre a RAF, Genet defende que a força de suas ações residiria em sua
função reveladora. Ao provocar de maneira violenta os governos das democracias liberais
do Norte em seu próprio solo político e jurídico, o grupo de Baader forçaria a brutalidade
constitutiva da sociedade burguesa a sair da penumbra dos subterrâneos da vida
quotidiana e a mostrar a cara feia a céu aberto. Não é só o fato que o assassinato, a tortura
física e psicológica de detratores da ordem nunca tenham realmente deixado de ser
praticados nessas sociedades. É a própria frieza burguesa, o enrijecimento das relações, a
insensibilidade, a apatia e a indiferença generalizadas que se tornam manifestos:
escandaliza-se quando um grupo de jovens manda pelos ares uma loja de departamento
sem nada dentro que não fosse roupas, ao mesmo tempo em que não se dá a mínima
quando uma população inteira de um país do terceiro mundo é queimada viva até os ossos
com napalm.
***
Entre 1942 e 1961, Genet publicou cinco romances45, cinco peças teatrais46, além de
poemas47, um cenário de filme48 e alguns ensaios49. Após este período, entretanto, seu veio
criador parecia ter chegado ao fim e com a morte do companheiro Abdallah em 1964 Genet
entrou em depressão profunda, destruiu seus manuscritos e renegou tudo o que escrevera
até então. Chegou a passar um tempo ao lado dos estudantes da Zengakuren no Japão50,
durante o inverno de 1966, mas no ano seguinte tentou o suicídio no norte da Itália. O que
então o teria trazido de volta à vida, à escrita?
Há razões para se crer que as barricadas do Maio francês tenham tido um papel maior
do que se imagina na “volta” de Genet. Segundo o próprio, em Junho de 1968, sua tristeza
e sua raiva o fizeram compreender que daquele momento em diante não cessaria de
desejar que o “espírito de Maio” se achasse em todo lugar e como que prometera a si
mesmo que onde quer que se encontrasse se sentiria “sempre ligado ao movimento que
provocará a libertação dos homens”51. Assim, quando em 1970 fora convidado pelos Black
Panthers para que interviesse em favor de Bobby Seale, um dos chefes do grupo, entrou
ilegalmente nos EUA pela fronteira canadense. Em 1970 e 1971 passaria vários meses com
os feddayin, então acampados nas montanhas da Jordânia – aí também, na decisão de tal
engajamento, pesou o Maio de 68, momento em que veio à tona para o grande público a
“questão palestina”, ou melhor, a compreensão do povo palestino como povo oprimido e de
sua luta contra a opressão como luta revolucionária.
44 Jean GENET, “Entretien avec Michèle Manceaux” (1970), in:__. L’Ennemi déclaré, op. cit., p. 59.
45 Notre-Dame-des-Fleurs (1944), Miracle de la rose (1946), Pompes funèbres (1947), Querelle de Brest
(1947) e Journal du Voleur (1949).
46 Les Bonnes (1947), Haute surveillance (1949), Le Balcon (1956), Les Nègres (1959) e Les Paravents
(1961).
47 Le Condamné à mort (1942), Le Pêcheur du Suquet (1948)...
50 A Zengakuren (de Zen-nihon gakusei jichikai sorengô = Federação japonesa dos grêmios estudantis
autogeridos), além das atividades mais diretamente ligadas ao universo estudantil, combatia na época as
políticas do então primeiro ministro Eisaku Sato: a construção de um aeroporto em terras de camponeses
expropriados e a renovação do acordo que prolongaria a permanência de bases militares estadunidenses em
território japonês. A Zengakuren também se opôs ativamente às guerras da Korea e do Vietnam.
51 Jean GENET, “Il me paraît indécent de parler de moi…” (1970) in:__. L’Ennemi déclaré, op. cit., p. 42.
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Sempre suscitando controvérsias, os anos 70 seriam marcados por seu suporte –
através de artigos e entrevistas principalmente – a diversas “causas perdidas”, dos Black
Panthers e dos palestinos aos sans-papiers na França e ao grupo de Baader e Meinhoff na
Alemanha. O interesse de Genet por “causas perdidas” vinha de longe, já se encontrava nas
peças, e não é estranho que se engajasse de corpo e alma em favor delas a partir de um
certo momento. Numa entrevista com Juan Goytisolo, Genet afirma não ter sido um acaso
que tivesse escrito anos antes obras como Os Negros e Os Biombos, onde punha em cena
“a necessidade da luta revolucionária dos negros e argelinos”, e que em certo sentido seu
militantismo a partir de 1968 se inscreveria “na lógica das coisas”52.
No entanto, durante todo este período militante Genet não produziu sequer um texto
literário, convicto de que jamais a literatura deveria ser posta a serviço de ideias ou causas
políticas. A quebra do silêncio literário, silêncio de mais de vinte anos, se deu com um
texto-bomba, inclassificável, sobre os massacres perpetuados em 1982 por diferentes
milícias, sob o auspício de forças israelenses, nas proximidades de Beirute, nos campos
palestinos de Chatila e Sabra, Genet tendo sido um dos primeiros ocidentais a entrar em
Chatila após o crime hediondo. Misto de reportagem, ato de acusação indignado e texto
político-literário, “Quatre heures à Chatila” marca por assim dizer a criação de um estilo
novo, que se firmaria em seu testamento literário, que é Un captif amoureux. Publicado
postumamente em 1986, com este último livro Genet conseguiu o feito de chocar uma
última vez a boa consciência francesa. Mesmo em meio ao turbilhão social e à
efervescência erótico-revolucionária, representada no livro pelos Black Panthers e pela
resistência palestina, Genet procurava dissipar toda e qualquer imagem positiva, da vida
como da morte, tão meticulosa era sua recusa em conceder que algo de bom possa advir da
permanência ou da estabilidade burguesa e heterossexual53.
É notável que em quase todos os livros e escritos de Genet, a crítica dos valores e
ideais do Ocidente cristão seja feita a partir do ponto de vista dos de baixo (negros,
imigrantes, prisioneiros, homossexuais, empregadas domésticas, ladrões, mendigos,
prostitutas) ou a partir de uma ótica periférica (a partir do Oriente Médio e Norte da África
principalmente). Tendo dado o passo, cruzado as fronteiras legais que a maioria dos
brancos ocidentais nem em sonho dão ou cruzam, Genet foi capaz de criar personagens
que nos interessam menos por sua psicologia, que em geral é neutralizada, do que pelas
52 Jean GENET, “À propos de l’assassinat de Jackson” (1971), La Règle du Jeu, n° 18 (janvier 1996), p. 191.
53 Cf. Edward SAID, “On Jean Genet”, in:__. Late Style, Music and Literature Against the Grain, London,
Bloomsbury, 2006, p.89.
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maneiras quase obsessivas com que são a um tempo os portadores e atores de uma história
muito finamente imaginada e compreendida54. De costas para a França que desde sempre
o rejeitou, o olhar admirativo do poeta cedo se voltou para o grande Sul pobre (“as vestes
marroquinas dão a um simples mendigo uma dignidade que um europeu não possuirá
jamais”55) e a crítica do humanismo dos vencedores se dá em Genet mormente pela
transfiguração poética de forças não-idênticas, que aparecem em sua obra através do
tratamento de alguns temas recorrentes, como o desgarramento do sujeito, a língua, a
beleza e a traição, e que também perpassam as mais de 600 páginas de seu último livro.
Vale lembrar que nos primeiros romances os temas são principalmente a abjeção, a
ruína, o mal, a punição, a luta pela sobrevivência, a covardia e a traição, mas também a
santidade, o amor, a beleza e a ternura. Escritas em tempos obscuros e incertos, estas
primeiras “obras monstruosas e perfeitas”, como notou Sartre, “querem ser de parte a
parte consciência e que não haja nelas a mínima zona de obscuridade, de ignorância ou de
inércia: elas conterão a um tempo a narrativa e a narrativa da narrativa, os pensamentos e
a história dos pensamentos, o procedimento moral, seu método e o balanço dos progressos
alcançados, em suma, um poema e o diário de um poema que, à diferença daquele de Gide,
acompanhará a criação de comentários éticos”56. Acontece que de tão lúcidos e brilhantes,
tais romances acabam por ofuscar a postura fundamentalmente conservadora por trás da
“rage de nullité”57 do jovem Genet. Possível razão pela qual o autor procurará dissolver o
ideal iluminista da fase inicial na forma a um tempo fragmentária e épica de Um
prisioneiro apaixonado – muito embora a criação poética seja ali tão consciente quanto
antes.
O tom de incerteza, que é a incerteza do próprio autor à beira da morte (causada por
um câncer na garganta), habita a leitura do início ao fim. Por que no fim das contas,
pergunta-se ele, me deixei cativar apaixonadamente por estes grupos revolucionários,
talvez os últimos do século? A pergunta não é simples e fica como que sem resposta
57 Georges BATAILLE, “Genet” (1952) in:__. La littérature et le mal (1957), Paris, Gallimard, 1990, p. 288.
Num ensaio do mesmo livro, sobre Sade, publicado primeiramente em 1947, Bataille, noves fora o tom
apologético, mostrou como numa série desses “autores malditos” se reconciliam com frequência “a lucidez
da consciência” e “a violência que é cega” (p. 253). Mas a sacralização esclarecida da violência
transgressiva, em Sade como em Genet, como já vimos, pressupõe a existência da lei e a manutenção da
ordem simbólica. Por isso, diga-se de passagem, Genet aceitava de bom grado a punição por seus crimes,
ou melhor, a desejava e a buscava, porque o criminoso só pode ser soberano no mal, e o mal só é
claramente percebido como tal pela sociedade quando devidamente punido (cf. p. 292).
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definitiva, o que não impede que o poeta montasse uma estrutura literária complexa para
tratá-la. Sem falsa modéstia, Genet dizia querer ser o Homero daqueles grupos rebeldes,
principalmente dos palestinos, que segundo ele o ajudaram a viver; queria cantar as glórias
daqueles guerreiros, seus feitos memoráveis, suas penas. Grande “reportagem”, Um
prisioneiro apaixonado vai entrelaçando anedotas e lembranças de sonhos e vivências, às
quais se sobrepõem análises sociológicas, contextualização política, descrições
etnográficas, reflexões metalinguísticas, evocação poética dos atos heróicos dos feddayin e
considerações metafísicas sobre a vida e a morte. Pode ser lida, segundo o próprio Genet, à
maneira do “livro de areia” de Borges: “porque ni el libro ni la arena tienen principio ni
fin”58. Abre-se uma página ao acaso, e cada parágrafo se lê, cada linha se escoa, como a
vida do próprio autor, sobre fundo de noite, que o “condenado”, como se autodefinia,
intentara não iluminar mas espessar.
Não há dúvidas que Genet ficaria contente de saber que um ano após sua morte se
deflagraria a primeira intifada nos territórios palestinos ocupados e que menos de uma
década depois, noutras paragens do grande Sul pobre que tanto o atraía, outros hijos de la
noche se sublevariam contra as forças da ordem e os poderes vigentes. Resistências não só
contra a opressão, mas igualmente contra o deserto que nos invade por todos os lados e
não cessa de se aprofundar. Contra ele uma revolta ativa é necessária. É o que o velho
Genet procurou pôr em evidência num momento em que o regime de racionalidade cínica
já se tornava dominante nas sociedades do capitalismo avançado.
58 Joge Luis BORGES, “El libro de arena” (1975) in:__. El libro de arena, Madrid, Alianza, 1995, p. 133.
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O valor como fictio juris
1ª parte: Forma-jurídica e Forma-valor – apresentação de um problema
Joelton Nascimento
Slavoj Žižek
1. A mercadoria e o valor
1 MARX, Karl. O Capital. Livro 1. [1867]. Tradução: Regis Barbosa e Flavio R. Kothe. São Paulo: Abril
Cultural, 1988, p. 130. A partir daqui referido como “OC”, seguido do número da página.
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Comecemos pela mercadoria. Qualquer mercadoria, diz Marx no primeiro capítulo de
O Capital, tem duplo aspecto. Em primeiro lugar, toda mercadoria tem algum tipo de
qualidade útil ou desejável. Sendo esta qualidade útil ou o atendimento de uma
necessidade vital ou de um desejo qualquer, a mercadoria tem uma utilidade ou
característica desejável intrínseca.2 A isso Marx, acompanhando Aristóteles dá o nome de
valor de uso. O valor de uso de um objeto está fundado em sua qualidade, por isso é
essencialmente qualitativo, ou seja, é incomensurável. Pelas suas características
intrínsecas, não posso comparar um casaco com um cavalo. Para comparar de modo
resoluto dois elementos qualitativamente distintos seria preciso um terceiro elemento,
homogêneo e constante que sirva como referencial. É com um terceiro elemento que uma
comparação mensurável pode ter lugar. É preciso dizer que um casaco vale tanto de algo
homogêneo e constante e em seguida, dizer o quanto deste algo um cavalo, por sua vez,
“vale”. É aí que posso afirmar quantos casacos “valem” um cavalo.
Compreendemos assim como, na formação disto que chamamos mercadoria, estes
objetos qualitativamente distintos podem ser trocados em um mercado. Isto é possível em
face do segundo aspecto, ou o segundo fator da mercadoria: seu valor de troca. O valor de
troca de um casaco é o quanto do referencial homogêneo e exterior ele “vale”. Um valor de
troca, por conseguinte, é só a forma da aparência da forma fundamental do valor.
Podemos afirmar, então, que o valor é a abstração segundo a qual determinados objetos
detêm em si uma certa quantidade de um referencial homogêneo e exterior. O valor de
troca é a forma da aparência do valor. Quando dizemos que um cavalo vale dez casacos,
enunciamos uma grandeza qualquer para o cavalo, damos a ele um valor de troca, e
pressupomos aí que podemos saber o valor do cavalo, a quantidade que ele contém de um
referencial homogêneo e exterior. Até então, este conceito da Economia Política, muito
conhecido, tinha sido pensado de forma equivocada, como Marx o demonstra. O que dá
“valor” à mercadoria não são suas qualidades intrínsecas, como parece claro. O que faz
uma mercadoria poder ser trocada por outra, como se equivalentes fossem, é isto o que
chamamos aqui de um referencial homogêneo e exterior. “Deixando de lado o valor de uso
dos corpos das mercadorias, resta a elas apenas uma propriedade que é a de serem
produtos do trabalho.”3
2 “A natureza dessas necessidades, se elas se originam do estômago ou da fantasia, não altera nada na
coisa.” (OC:165.)
3 OC:167.
4 OC:168.
5 JAPPE, Anselm. As aventuras da mercadoria – Para uma nova crítica do valor. Tradução: José Miranda
Justo. Lisboa: Antígona, 2006, p. 36-37.
6 OC:176.
7 OC:188.
8 “O misterioso da forma mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos
homens as características sociais do seu próprio trabalho como características objetivas dos próprios
produtos de trabalho, como propriedades naturais sociais dessas coisas e, por isso, também reflete a
relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social existente fora deles, entre
objetos” conclui então Marx que: “...a forma mercadoria e a relação de valor dos produtos de trabalho, na
qual ele se representa, não têm que ver absolutamente nada com sua natureza física e com as relações
materiais que daí originam. Não é mais nada que determinada relação social entre os próprios homens
que para eles assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Por isso, para encontrar uma
analogia, temos de nos deslocar à região nebulosa do mundo da religião. Aqui os produtos do cérebro
humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas, que mantêm relações entre si e com os
homens. Assim, no mundo das mercadorias, acontece com os produtos da mão humana. Isso eu chamo
fetichismo que adere aos produtos de trabalho tão logo são produzidos como mercadoria, e que, por isso,
é inseparável da produção de mercadorias” (OC:198-199).
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objetos, projeção esta que “adere” (Anklebt) aos produtos do trabalho, e que é inseparável
da produção de mercadorias, só pode ser descrita se se recorre à “região nebulosa da
religião”. Trata-se de uma projeção social secularizada e, por isso, essencialmente
semelhante à projeção religiosa e sagrada. Parece incômodo encontrar nesta difícil
apresentação da forma valor o viés crítico que se quer destacar. O ponto de partida deste
viés, a contradição social elementar que ele apresente foi muito bem assinalado por
Jappe9:
Na inversão que caracteriza logo a mercadoria singular, o concreto
torna-se simples portador do abstrato. O concreto só tem existência
social na medida em que serve ao abstrato para que este dê a si
mesmo uma expressão sensível. E se a mercadoria é a 'célula
germinal' de todo o capitalismo, isso significa que a contradição entre
o abstrato e o concreto nela contida regressa em cada estádio da
análise, constituindo de algum modo a contradição fundamental da
formação social capitalista.10
No campo da política, conforme nos lembra ainda Jappe, a retomada desta crítica
categorial da forma valor como o cerne da crítica da sociedade capitalista encontra os seus
maiores obstáculos. É mais fácil entrar no onipresente coro atual e buscar mais “emprego e
renda” e muitíssimo mais difícil construir a crítica das formas de socialização engendradas
pela mercadoria, como o trabalho abstrato e a forma mercadoria. Além do que, “é
garantidamente mais fácil escrever sobre as multinacionais do que sobre o valor, e é mais
fácil sair à rua para protestar contra a Organização Mundial do Comércio ou contra o
desemprego do que fazê-lo para contestar o trabalho abstrato”11.
**
12 Nas palavras de Marx esse processo aparece do seguinte modo: “As mercadorias não podem por si
mesmas ir ao mercado e se trocar. Devemos, portanto, voltar a vista para seus guardiões, os possuidores
de mercadorias. As mercadorias são coisas e, conseqüentemente, não opõem resistência ao homem. Se
elas não se submetem a ele de boa vontade, ele pode usar de violência, em outras palavras, tomá-las. Para
que essas coisas se refiram umas às outras como mercadorias, é necessário que os seus guardiões se
relacionem entre si como pessoas, cuja vontade reside nessas coisas, de tal modo que um, somente de
acordo com a vontade do outro, portanto cada um apenas mediante um ato de vontade comum a ambos,
se aproprie da mercadoria alheia enquanto aliena a própria. Eles devem, portanto, reconhecer-se
reciprocamente como proprietários privados. Essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, desenvolvida
legalmente ou não, é uma relação de vontade, em que se reflete a relação econômica. O conteúdo dessa
relação jurídica ou de vontade é dado por meio da relação econômica mesma. As pessoas aqui só existem
reciprocamente, como representantes de mercadorias e, por isso, como possuidores de mercadorias.”
(OC:209-210)
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equivalentes. De modo especialmente claro, Michel Miaille assim expôs esta relação:
Dito de um outro modo ainda: as condições lógicas, sociais e históricas que viram
nascer o mercado como categoria socializadora central da sociedade capitalista são as
mesmas que viram nascer o sujeito de direito. Não é que a esfera econômica determinou e
determina a esfera jurídica – como pareceu a muitos autores marxistas e muitos críticos do
marxismo – mas ambas se ergueram como esferas separadas em face de uma mesma
totalidade histórica e social.
13 MIAILLE, Michel. Introdução Crítica ao Direito. 2. ed. Tradução: Lisboa: Estampa, 1994, p. 94-95.
(grifos do autor). Seria importante relembrar aqui o mecanismo de retroversão existente na “relação
cruzada” da forma valor e da forma jurídica também exposta por Miaille: se o fetichismo da mercadoria
faz-nos ver as relações sociais constantes no valor como atributos da coisa, portanto, “coisificando” as
relações sociais, as formas jurídicas fazem o exato oposto, fazendo-nos ver necessariamente as relações de
coisas, como a compra e venda, etc., como relações entre pessoas e suas vontades “livres”. Esta “relação
cruzada” seria, portanto, como em uma bateria, com pólos opostos mas em um campo de forças
inseparável, ou ainda, em uma relação entre partes constituintes de um mesmo campo social fetichista na
forma de uma “frente” e um “verso”.
14 LUKÁCS, Georg. História e Consciência de Classe. Tradução: Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins
Fontes, 2003, p. 105.
15 Esta cisão como ponto crítico e não como pressuposição da crítica é bem realizada na seguinte passagem
O que vamos investigar aqui é a relação de mútua dependência entre estas esferas
sociais tendo em vista as preocupações precedentes. Pretendemos, por conseguinte,
estudar a relação lógica e histórica, mas também antropológica e sociológica entre a
forma do valor, a base da economia moderna e a forma jurídica, a lógica normativa que
regula sujeitos abstratos de direito, base dos sistemas jurídicos modernos.
17 Em tempos recentes, André Gorz e Louis Dumont, dentre muitos outros, podem auxiliar-nos a aclarar
esta afirmação.
18 PASUKANIS, E. B. [1924] A Teoria Geral do Direito e o Marxismo. Tradução: Paulo Bessa. Rio de
Janeiro: Renovar, 1989. A seguir referido como “TGDM”, seguido do número da página.
19 TGDM:81.
20 TGDM:35.
21 Como bem lembrou Miaille, o tema do sujeito de direito é tomado de modo tão natural pela dogmática
jurídica que sua abordagem em geral é extremamente vaga e lacônica (em um campo, completaríamos
nós, tão afeito a questiúnculas e filigranas). Ao contrário, para ele, “... a teoria do sujeito de direito
permite precisamente ocultar o caráter artificial desta noção e, ao mesmo tempo, a sua função no seio da
sociedade burguesa”. Voltamos, portanto, uma vez mais à questão da naturalização de categorias sociais.
Cf. MIAILLE, Michel. Introdução crítica ao direito, op.cit., p.114 e ss. Outro pensador próximo ao
marxismo que se deparou em profundidade com o tema foi o jurista e pensador francês Bernard Edelman,
Cf. EDELMAN, Bernard. O direito captado pela fotografia - elementos para uma teoria marxista do
direito. Coimbra: Centelha, 1976. Para uma leitura contemporânea de Edelman Cf. SILVA, Alessandra
Devulsky da. Edelman: althusserianismo, direito e política. São Paulo, Universidade Presbiteriana
Mackenzie, Dissertação de Mestrado, 2008.
22 TGDM:83.
23 TGDM:86 (grifei).
24 TGDM:90.
2.2.) Portanto, não há que se falar em um “direito socialista” ainda presente após a
eventual superação da sociedade capitalista e de seu poder de classe. Após uma fase de
transição, com a superação da forma valor, e conseqüentemente, superação do momento
em que as relações sociais estariam sob a égide da existência do capital, também se
superaria o momento jurídico das relações, ou seja, o momento em que o centro da
normatividade social se encontra nos indivíduos representados como sujeitos de direito,
nos contratos, nas normas gerais abstratas etc., que seriam substituídas por formas
técnico-organizacionais de regulação social.
27 TGDM:26. Não só isso: numa célebre passagem de um texto de 1929, Pasukanis escreveu que a o
“problema do desaparecimento do direito é a pedra de toque que mede o grau de proximidade do jurista
com o marxismo”. Cf. PASUKANIS, E. B. “Economics and Legal Regulation.” In: __. Selected writings on
Marxism and Law. Londres: Academic Press, 1980, p. 268.
28 Cf. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução: João Baptista. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.
310.
29 O estado de exceção não nos ensina na prática a natureza não-jurídica do Estado como fator de poder?
Não é isso que se expressa na fórmula de Giorgio Agamben do Estado de exceção como o exercício da
“força de lei (sem lei)”? Cf. AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução: Iraci D. Poletti. São Paulo:
Boitempo, 2004.
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poder de classe e a punição estatal, isto é, entre o poder de classe e o Direito Penal, e assim
por diante. Mas já aqui é possível intuir a distância que nos separa de Pasukanis. Essa
distância não é devido somente ao fato de que depois de A Teoria Geral do Direito e o
Marxismo assistiu-se à emergência do stalinismo, à ascensão do nazi-fascismo e da
Segunda Guerra Mundial, também a Guerra Fria e a construção do Welfare State, a
revolução chinesa, seguida tempos depois pelo colapso da União Soviética e dos regimes
autoritários do leste europeu, a ascensão e queda do neoliberalismo, etc. Mas também, e
principalmente talvez, pois o domínio das gigantescas redes de produção de mercadorias e,
portanto, da vigência do sistema capitalista global e o consequente domínio de uma rede
ininterrupta de direitos e deveres abstratos, ou seja, o domínio histórico da regulação
social pela forma valor e pela forma jurídica, nos tornaram insensíveis para o tema da
superação desta formas de regulação. Estas categorias sociais se tornaram nossa segunda
natureza, uma “segunda pele” social a partir da qual nós nos compreendemos no mundo, e,
desse modo, de tão atada a nossa própria percepção do mundo, não conseguimos ver delas
um começo ou um fim.
30 Para situar esta obra no contexto do pensamento de Pasukanis, bem como para acompanhar as
transformações seguintes em suas teses, Cf. NAVES, Marcio Bilharinho. Marxismo e Direito – Um estudo
sobre Pashukanis. São Paulo: Boitempo, 2000, o mais importante estudo brasileiro sobre o jurista russo.
31 Para uma análise deste período de “autocrítica” de Pasukanis patrocinada pelo stalinismo, Cf. NAVES, op.
Robert Kurz elaborou uma distinção do interior da obra de Marx que já fez fortuna e
que se mostrou de grande proveito analítico. Retomemo-na aqui muito rapidamente, para
iniciar uma avaliação da importância do marco teórico pasukaniano para o problema que
nos ocupa. Para Kurz35, o presente histórico de colapso do processo de modernização
capitalista leva necessariamente a todos que queiram ler em Marx uma crítica
profundamente conectada às urgências contemporâneas, a distinguir um “duplo Marx”. Há
um primeiro Marx, um Marx “exotérico”, cuja principal característica é municiar os críticos
do capitalismo para uma luta no interior das relações fetichistas e, portanto, a partir das
categorias de base da própria socialização capitalista. Esta linha argumentativa do
marxismo, nas palavras de Kurz, “refere-se à forma interna do movimento e à história da
imposição do capital como juridificação e coisificação de todas as relações, cujo horizonte
de desenvolvimento ainda era preenchido positivamente. E este é, na verdade, o Marx
corrente e mundialmente conhecido: 'ponto de vista do trabalhador' e luta de classes são os
conceitos centrais desta linha que conduziram ao marxismo histórico”. É o Marx sobre o
qual quase todos ouvem falar, o pensador que parecia esconder o segredo misterioso do
verdadeiro crescimento modernizador que os próprios capitalistas não haviam logrado
alcançar. O segundo Marx, o “Marx esotérico” procede não a partir das categorias
imanentes da modernização capitalista, mas a partir da crítica radical (que desce às raízes
categoriais) deste caráter fetichista da forma valor da mercadoria. A linha argumentativa
do Marx esotérico “refere-se à real mistificação da forma como tal da mercadoria e do
dinheiro, 'na' qual a modernidade, a par de seus conflitos imanentes, se expõe, impõe e
desenvolve”36.
Para Kurz, em suma, assim como para boa parte da chamada “nova crítica do valor”, o
Marx exotérico, o Marx defensor intransigente do aprofundamento da modernização
34 “Nesta noite escura em que repousam os sonhos de transformação social, o cobertor da legalidade pode
até ser para todos, mas a cama ainda é só para alguns. Os perturbadores pensamentos de Schmitt e
Pachukanis, de certa maneira, ou puxam a coberta ou quebram a cama.” MASCARO, Alysson. Schmitt e
Pachukanis – A Política para além da legalidade. In: Filosofia do Direito e Filosofia Política – A justiça é
possível? São Paulo: Atlas, 2002, p. 135-136. Cf. também MASCARO, Alysson. Crítica da Legalidade e do
Direito Brasileiro. São Paulo: Quartier Latin, 2003.
35 KURZ, Robert.[1995] Pós-marxismo e fetiche do trabalho - Sobre a contradição histórica na teoria de
Como lembra este autor, não se trata de erro ou de falsa interpretação a existência de
uma dupla tradição marxista que pode remontar a um “duplo Marx”, antes, deste “ponto
de vista, pode-se proceder a uma historização e diferenciação da teoria de Marx que
distingue duas vias teóricas em última instância incompatíveis, não como uma relação
entre "erro" e "verdade", mas como um problema da extemporaneidade histórica dentro da
própria teoria de Marx”. Ou seja, foi a própria modernização capitalista que levou os
movimentos operários ancorados no marxismo modernizante (exotérico) a construírem
categorias de luta no interior dos quadros categoriais da sociedade capitalista. Havia um
longo caminho de modernização, como sabemos, pronto a ser pavimentado no século XIX
e no século XX. O Marx “esotérico” permaneceu um bebê natimorto até há poucas décadas,
em face dos desafios colocados aos marxistas tradicionais na construção positiva da
modernização capitalista, quando não na construção autoritária, mas veloz, no modelo
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soviético, desta mesma modernização.
Se essa distinção é correta tal como achamos que é, ela poderá nos ajudar a
compreender o significado histórico de Pasukanis no interior do debate sobre o direito
soviético37. Tendo ido precisamente ao conceito central de forma do valor da mercadoria
do Marx d´O Capital afim de lá extrair a forma celular do legalidade burguesa ou
capitalista, ou seja, o sujeito de direito, o jurista russo acabou por construir uma crítica do
direito com um cerne “esotérico” no sentido kurziano do termo. Não que nesta construção
não haja uma diversidade de elementos do marxismo “exotérico”, longe disso: bastaria
lembrar que Pasukanis não faz nenhuma crítica da categoria trabalho, e amiúde em sua
obra sempre apresenta, como todos os seus contemporâneos, a planificação econômica
como alternativa quase que exclusiva à legalidade burguesa, etc. Entretanto, no essencial,
Pasukanis alcança o marxismo esotérico sobretudo quando defende, com Marx, a
fenecimento progressivo e o desaparecimento final do “momento jurídico” das relações
sociais com o fim da sociedade capitalista e sua formas categoriais de socialização
(mercadoria, valor, lucro, etc.). Mas a emergência do stalinismo e com ele o Estado
modernizador retardatário como que fez acontecer o marxismo “exotérico”,
autoritariamente imanente e modernizador, com um status de regime de Estado. É
37 A leitura de Pasukanis como um crítico do direito em uma chave “esotérica”, no sentido kurziano do
termo, e sua compreensão no interior do debate sobre o “socialismo jurídico” a partir daí, já foi feita
oportunamente por Adriano Assis Ferreira em um livro recente. Cf. FERREIRA, Adriano Assis. Questão
de Classes – Direito, Estado e Capitalismo em Menger, Stutchka e Pachukanis. São Paulo: Alfa-Ômega,
2009.
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emblemático que Kurz chame os limites teóricos demarcadores da fronteira entre o
marxismo “exotérico” e o marxismo “esotérico”, de limite de dor (Schmerzgrenze). Limite
de dor marxista, mas também limite de dor moderno e burguês em geral que tenta superar
as condições de crise do presente por intermédio de categorias imanentes a este próprio
presente sem concebê-los como passíveis de superação. No caso de Pasukanis, o “limite de
dor” foi ultrapassado literalmente e mesmo se vergando na direção do autoritarismo
modernizador do stalinismo, representou mais uma significativa baixa do marxismo
esotérico natimorto até em tempos recentes.
Um outro caminho ainda pode nos levar a reavaliar o marco pasukaniano deste
problema que nos ocupa. Trata-se da surpreendente comparação “biobibliográfica” de
Pasukanis e outro importante pensador da revolução soviética nascente, Isaak Ilitch Rubin.
Ambos, Pasukanis e Rubin, eram intelectuais de grande nome e importância no início dos
anos 20, cada um em sua área de estudos, direito e economia respectivamente. Ambos
escreveram suas obras mais importantes no mesmo ano, 1924; Pasukanis, A Teoria Geral
do Direito e o Marxismo e Rubin A Teoria Marxista do Valor, obras que ainda hoje são
marcos teóricos expressivos em suas áreas; ambos foram, por razões semelhantes,
considerados malditos pelo stalinismo e ambos foram expurgados no mesmo ano: 1937.
Mais do que uma coincidência biobibliográfica este paralelo revela um caminho teórico
mais amplo, não por acaso tornado impossível e abafado pelo termidor stalinista. A
diferença no teor dos últimos escritos de ambos também não é casual: Rubin resistiu mais
às investidas da mudança de rumo do estado soviético do que Pasukanis, cuja tentativa de
permanecer no partido o levou a rever muitas de suas teses durante os anos 30.
Muita luz seria lançada sobre estas duas obras caso fossem lidas em conjunto, dado a
proximidade da leitura de Marx que ambas realizam. Para Pasukanis, a categoria do sujeito
de direito é enfim pensada como categoria lógica e histórica no interior do modo de
produção capitalista, para além de sua caracterização necessariamente idealista quando
não “metafísica” da jurisprudência e da doutrina liberal burguesa e da mera constatação
desta como “superestrutura” ideológica por parte do marxismo vulgarizado. Para Rubin,
igualmente, a categoria do valor, tomada necessariamente por natural na economia
38 RUBIN, Isaak I. A Teoria Marxista do Valor. Tradução: José B. de S. Amaral Filho. São Paulo:
Brasiliense, 1980, p. 58-61. (grifei)
39 Fragmento do Livro 1 de O Capital (OC:201) tal como, não casualmente, é citado por Pasukanis em
TGDM:42.
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é do que apreensão do “fetichismo da mercadoria” à qual Rubin foi um dos primeiros a
chamar a atenção no campo da economia nesta clássica obra.
Tanto as categorias econômicas abstratas (como valor, capital, lucro, etc.) quanto as
categorias jurídicas também abstratas (como as de sujeito de direito, responsabilidade,
contrato e crime) somente podem ser compreendidas a partir das relações sociais
concretas que as tornaram possíveis, muito embora elas tenham nas sociedades produtoras
de mercadorias, uma aparência necessariamente natural e “dada”. A aparência de
naturalidade destas categorias socializadoras foi bem expressa por Alfred Sohn-Rethel
quando este estuda o fato de que nas sociedades produtoras de mercadorias as trocas são
cada vez mais organizadas sob a forma de pensamento sem ser de modo algum apenas um
produto do pensamento41. Por conseguinte, podemos aferir que dadas as premissas
fundamentais do valor na sua forma simples, é possível deduzir-se toda a cadeia produtiva
do capital que dela deriva, como se se tratasse do desenvolvimento lógico de uma equação.
Enfim, a forma do valor em desenvolvimento nas trocas humanas é uma “abstração real”42.
Também o ensaio do marxólogo brasileiro sobre o tema: FAUSTO, Ruy. Marx – Lógica e Política. Tomo 1.
São Paulo: Brasiliense, 1983.
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Evidentemente que estas categorias não dão conta de todo o movimento histórico que
passaria a ser, supostamente, apenas “deduzido” a partir das premissas iniciais dadas.
Apesar de possuir forma de pensamento (forma deduzida de premissas simples
inicialmente aceitas) a sociedade produtora de mercadorias não é pensamento, mas
história viva que sempre escapa ao poder identificador e totalizador do pensamento. Este é
o paradoxo da forma mercadoria como princípio socializador central que se encontra
plenamente exposto na paradoxal expressão “abstração real”.
O segundo ponto a ser sublinhado nas obras mestras destes dois autores são as
interpenetrações de suas abordagens. Em Pasukanis, como nas passagens das obras já
citadas, o recurso às categorias econômicas é comum e serviu de apoio para sua análise das
categorias das formas jurídicas.44 Em Rubin, também a análise da forma valor não pôde
deixar de apresentar a centralidade de instâncias de igualdade jurídica como pressupostos
para a troca mercantil:
43 Para um estudo sobre a análise do fetichismo da mercadoria de Rubin, Cf. PERLMAN, Fredy. Lo
fetichismo de la mercancía. In: RUBIN, Isaak Ilitch. Ensaios sobre la teoria marxista del valor. 7. ed.
Tradução: Néstor Miguez. Mexico: Pasado y Presente, 1987. E para um estudo sobre o método em
Pasukanis Cf. NAVES, Márcio Bilharinho. op. cit., capítulo 1. A impressionante afinidade das análises de
Rubin e de Pasukanis em torno da problemática do fetichismo já havia sido percebida por John Holloway:
“Outros autores que sofreram ainda mais seriamente por sua tentativa de retornar à preocupação de Marx
pelo fetichismo e pela forma I. I. Rubin e Evgeny Pashukanis que estiveram trabalhando na Rússia depois
da Revolução. Rubin, em seu Essays on Marx's Theory of Value (Ensaios sobre a Teoria Marxista do
Valor) publicado pela primeira em 1924, insistiu na centralidade do fetichismo da mercadoria e do
conceito de forma para a crítica da economia política de Marx. Uma das consequências desta insistência
na pergunta pela forma foi sublinhar o caráter especificamente capitalista das relações de valor e, como
uma das consequências, Rubin desapareceu durante os expurgos da década de 30. Pashukanis teve um
destino similar. Em seu General Theory of law and marxism (Teoria Geral do direito e o marxismo)
afirmou que a crítica de Marx à economia deveria ser estendida à crítica da lei e do Estado, que a lei e o
Estado deveriam ser entendidos como formas fetichizadas de relações sociais da mesma forma que o
valor, o capital e as outras categorias da economia política. Isto significava que a lei e o Estado, assim
como o valor, eram formas de relações sociais especificamente capitalistas”. HOLLOWAY, John. Mudar o
mundo sem tomar o poder, op.cit., pp. 118-119.
44 Em suma, poderíamos resumir do seguinte modo o leitmotiv pasukaniano: “...ao mesmo tempo em que o
produto do trabalho reveste as propriedades da mercadoria e torna-se portador de valor, o homem torna-
se sujeito de direito e portador de direitos”. TGDM:85.
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trabalho dos indivíduos, não sobre os princípios de direito público,
mas com base no direito civil e no assim chamado livre-contrato, são
os traços mais característicos da estrutura econômica da sociedade
contemporânea. (...) na realidade esta sociedade de produtores
mercantis iguais nada mais é que uma generalização e uma abstração
das características básicas da economia mercantil em geral e da
economia capitalista em particular. (...) O capitalista e os operários
estão vinculados um ao outro por relações de produção. O capital é a
expressão material desta relação. Mas eles estão vinculados, e entram
em acordo mútuo, enquanto produtores mercantis formalmente
iguais. A categoria valor serve como expressão desta relação de
produção que os vincula.45
Por fim, o que se pode concluir do que expusemos até aqui é o fato de que o valor
mesmo, categoria central da análise de Marx, é uma fictio juris, como na expressão usada
pelos romanos para indicar uma forma abstrata de pensamento cuja finalidade é tornar
algo juridicamente operacional por meio de uma “controlada” ficção, como acontece
quando chamamos uma mega-corporação empresarial de “pessoa jurídica”.
47 SHARLET, Robert. BIERNE, Piers. Editor's Introduction. In: PACHUKANIS, E. I. Selected writings on
Marxism and Law. Tradução: Peter B. Maggs. Londres: Academic Press, 1980, p. 26.
48 NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e Direito, op.cit., p. 154.
51 RODRIGUEZ, José Rodrigo. “Franz Neumann – O direito liberal para além de si mesmo”. In: NOBRE,
Marcos (org.) Curso Livre de Teoria Crítica. São Paulo: Papirus, 2008, p. 109.
52 ARENDT, Hannah. Crises da República. 2. ed. Tradução: José Volkman. São Paulo: Perspectiva, 1999, p.
76.
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Do mesmo modo, precisamos afirmar que esta expressão parlamentar da vontade e
sua capacidade de “emancipar a humanidade” é que está, desde há muito, sob ataque.
Assim, a ilusão de uma “revolução institucional-jurídica” pela via da participação no
parlamento não é “inusitada no campo crítico” como afirma Rodriguez53, antes, nunca se
precisou de verniz “crítico” para que esta posição fosse defendida.
Continua então este autor: “Quanto a esse ponto, é certo que há discursos puramente
ideológicos em favor da liberdade econômica, mas não há como negar o problema, afinal,
mesmo numa sociedade organizada sob princípios socialistas, há que se pensar em formas
de produzir eficientemente bens acessíveis a todos.” E por fim, escreve ele: “Será sempre
preciso decidir como regular a atividade econômica para atingir os fins que a sociedade
fixar para si mesma”56. A economia, para Rodriguez, é a atividade de “produzir
eficientemente bens acessíveis a todos” e, portanto, toda e qualquer sociedade tem uma
“economia”. Este “teórico-crítico” passa ao largo, portanto, de qualquer especificidade
histórica da economia das sociedades produtoras de mercadorias as únicas que
produziram, de fato, uma esfera separada de relações sociais (onde no centro se encontra o
O que fazer com esta análise que postula a finitude e a limitação radical da forma
jurídica? Ou seja: qual é a natureza do vínculo entre as formas jurídicas e a ascensão das
economias nacionais reguladas pelo mercado, ou ainda, qual é a relação entre juridificação
e modernização capitalista? Uma questão que se desdobra em muitas outras, por exemplo:
qual é a natureza e o papel da ordem jurídica nas diferentes formas históricas de conjunção
de mercado e Estado (capitalismo liberal, capitalismo de Estado, neoliberalismo, etc.)? De
que modo e com que consequências a classe trabalhadora e os marginalizados sociais
puderam transformar suas conflitividades sociais em regras jurídicas postas? Como e
quando, em certas circunstâncias históricas, estes podem ver estes direitos depostos?
Questões que podem ser reduzidas a uma que as guia: qual é a radical limitação das
formas jurídicas para o cumprimentos dos propósitos da emancipação social? Estas
questões nos obrigam a pensar não apenas na emancipação no interior do círculo de giz
das formas jurídicas, mas antes a levar a sério a olvidada premissa pasukaniana da
superação do “momento jurídico” das relações humanas. A mera cogitação de uma
emancipação das formas jurídicas leva logo a um rígido ceticismo quando não a diversas e
57 Esta concessão às categorias sociais da sociedade produtora de mercadorias parece ser uma constante na
“teoria crítica” da Escola do CEBRAP: neste mesmo volume inaugural da Escola, um outro autor, na
esteira de Friedrich Pollock afirma sintomaticamente: “...Pollock, em uma nota de rodapé do artigo sobre
o capitalismo de Estado, questiona se ainda cabe a utilização da categoria valor quando já não há mais
uma economia de mercado (!). Negar a teoria do valor é negar a lei de movimento do capital como
determinação abstrata da dinâmica do modo de produção, formulada dessa maneira por Marx”.
RUGITSKY, Fernando. "Friedrich Pollock – Limites e possibilidades”. In: NOBRE, Marcos. op cit., p. 68.
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sempre hostis acusações: niilismo, utopismo, anarquismo etc. Mas esta reação não é nem
um pouco diferente da que se percebe naquele que acaba de saber que a forma valor se
desenvolve até ser o centro da socialização apenas de um tipo particular de sociedade e que
nem toda sociedade precisa necessariamente ter como seu centro a produção de
mercadorias e do valor nem a idolatria do trabalho abstrato. Os poucos que avançaram na
crítica radical do valor têm deixado de lado o tema do direito, mesmo que tenham
reconhecido, uma vez ou outra, sua importância. Mais do que um importante aspecto,
parece-nos que o direito e o valor estão um para o outro como em uma Banda de
Möbius58. Dito de outro modo: o valor é ele mesmo uma fictio juris, no sentido de que a
emulação do domínio do abstrato sobre o concreto, que caracteriza a contradição social
principal da sociedade produtora de mercadorias, só se realiza a partir de uma
ficcionalização jurídica, do soerguimento de uma esfera separada de relações, onde os
viventes concebem um “dublê” deles mesmos que estabelece diversas relações por eles: o
sujeito de direito, por quem criam e mantêm as relações ditas jurídicas. As empresas,
incluindo as gigantescas corporações monopolistas, como sujeitos de direitos que são,
podem ser consideradas ficções jurídicas evidentes, ninguém o nega. Mas o trabalhador, a
dona de casa, o médico, o banqueiro, etc., concebidos como sujeitos de direito parece ser a
coisa mais natural que existe e ninguém põe esta evidência em questão. Mas já neste
simples movimento, aparentemente inocente e racional em si, já está todo o segredo das
formas jurídicas mais desenvolvidas, assim como toda a complexidade das formas
econômicas capitalistas, das bolsas de valores às multinacionais multibilionárias está
contida potencialmente na forma simples do valor.
Se a crítica do valor desde Marx acentua o fato de que a crítica ao capitalismo não
pode se contentar apenas com mais e mais formas de distribuir as riquezas produzidas por
intermédio dos intocados mecanismos do mercado e do Estado, mas em colocar em
discussão o modo mesmo como essa riqueza é produzida, assim também a crítica do
direito precisa deixar seu eterno insistir em um direito melhor para ousar a pensar em algo
melhor que o direito.
58 Uma Banda de Möbius é um espaço topológico obtido pela colagem das duas extremidades de uma fita,
após se efetuar uma meia volta numa delas. Deve o seu nome a August Ferdinand Möbius, que a estudou
em 1858.
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Penúltimos combates
A luta de classes como desejo reprimido no Krisis/Exit 1
Daniel Cunha
1 Este texto é uma versão revisada do texto “A luta de classes no Krisis/Exit” (2006), publicado na página
da internet do Grupo Fim da Linha (atualmente fora do ar).
2 GRUPO KRISIS, Manifesto contra o trabalho. São Paulo: Conrad, 2003; também disponível em
http://planeta.clix.pt/obeco/mct.htm
3 Cf. KURZ, Robert, O colapso da modernização. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992; também disponível em
http://obeco.no.sapo.pt/livro_colapsom.htm
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mais polêmicas, ou seja, a de que a luta de classes "pertencia à dinâmica interna de
valorização do capital", não possuindo nenhum momento emancipatório, e de que a crise
da valorização - a crise do trabalho, a crise do capitalismo - implica na crise da luta de
classes; ou seja, a luta emancipatória deve dar-se para além da luta de classes.
Para o Krisis, "a luta de classes era a forma de execução desses interesses antagônicos
[entre capital e trabalho] no seio do fundamento social comum do sistema produtor de
mercadorias"4. A luta de classes nunca teria (e nem poderia ter) posto em questão o
capitalismo, mas somente a distribuição de riquezas internamente a este. De outra parte, a
crise do trabalho inaugura o que é chamado de "dessolidarização radical", onde não se tem
mais uma luta do capital contra o trabalho, mas uma espécie de todos contra todos: "o
aposentado torna-se o adversário natural do contribuinte; o doente, o inimigo de todos os
assegurados; e o imigrante, objeto de ódio de todos os nativos enfurecidos"5. Para o Krisis,
então, "a pretensão de querer utilizar a luta de interesses imanentes ao sistema como
alavanca de emancipação social esgota-se irreversivelmente"6; "a 'luta de classes' está
dissolvida como parte integrante deste sistema de concorrência universal, e tem-se
revelado como mero caso especial desta, que de modo algum consegue transcender o
capital"7.
Porém, deve-se primeiramente destacar que o Krisis/Exit não nega o antagonismo
social imanente e nem prega o seu abandono, como eventualmente poderia sugerir uma
leitura apressada e superficial. Ele apenas situa "a oposição social entre capital e trabalho"
como sendo "uma oposição de interesses diferenciados [...] internamente ao
capitalismo"8. Para Kurz, a pressuposição de que "a luta imanente por salários, prestações
sociais, transferências, etc., é de qualquer modo inútil, devido à objetividade do limite
inerente à crise [...] é quase absolutamente igual ao argumento neoliberal da 'necessidade'
[...]. O limite objetivo do processo de valorização não significa que em cada situação
concreta da crise já não exista qualquer alternativa de decisão imanente. Para que apesar
da crise também ainda no interior da forma do valor possam ser afirmados interesse vitais,
no entanto, é necessária uma consciência de que, em primeiro lugar, o sistema de qualquer
forma está a esbarrar com limites absolutos e que, em segundo lugar, precisamente por
isso também as necessidades afirmadas de forma imanente têm de ser impostas, custe o
Caso se admita, pois, que Kurz não nega, mas pelo contrário, afirma o antagonismo
social, tanto na imanência quanto em um movimento de superação, cabe a pergunta: como
será este antagonismo? Quem estará de cada lado? O antagonismo será caracterizado por
um corte de que natureza? Num primeiro momento, Kurz assume um discurso altamente
logicista, fazendo um apelo à consciência:
12 KURZ, Robert, Dominação sem sujeito (original: Krisis nº13, 1993), disponível em
http://obeco.planetaclix.pt/rkurz86.htm
13 KURZ, Robert, Antieconomia..., op. cit.; em reunião durante o Fórum Social Mundial de 2005, em Porto
Alegre, Kurz, fazendo uma autocrítica, afirmou ser necessária uma reformulação em seu texto
Antieconomia e antipolítica. Apesar de não ter explicitado os pontos a serem reformulados, acreditamos
que a questão das ONG's deve estar relacionada.
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podendo unicamente tornar-se eficazes juntamente com ela e através dela [...]. Para que a
luta de interesses imanente possa ser transformada, para já, ela tem de existir na realidade,
e não apenas em ações simbólicas e simulativas. Só a um nível elevado de desenvolvimento
do movimento social e da polarização social, a questão da apropriação dos recursos sociais
para lá da forma do valor pode ser mobilizada de um modo adequado (e evidentemente
associado a uma nova formulação emancipatória da questão do poder), ou seja, também no
que diz respeito às grandes agregações e infra-estruturas sociais"14.
Por sua vez, diz Anselm Jappe: "a implosão do capitalismo deixa um vazio que poderá
permitir também a emergência de uma outra forma de vida social. Face ao progresso da
barbárie, é hoje possível afirmar algo como um 'ponto de vista da humanidade', para lá da
divisão das classes sociais - mas sem esquecer que certas partes da humanidade mostram
muito mais interesse do que outras pela manutenção da lógica do valor"15.
Aqui não deve haver dúvidas quanto ao fato de que a "luta de interesses imanentes" e
a "polarização social" citadas por Kurz e as "partes da humanidade" que "mostram muito
mais interesse que outras pela manutenção da lógica do valor" citadas por Jappe têm um
corte classista. Da própria argumentação de Kurz salta aos olhos que o movimento de
superação do capital deverá ter um caráter classista, ou seja, de luta, desde o início, pois
surgirá da agudização da luta de interesses imanentes, "juntamente com ela e através
dela".
Junto ao conceito de "luta de classes" certamente também vem à baila o seu conceito
inseparável, o de "classe trabalhadora", ou "proletariado" (somente no nível da
argumentação lógica se pode separar os dois, não no movimento real). Diz Kurz: "A 'classe
revolucionária' de Marx foi inequivocamente o proletariado fabril do século XIX. Unida e
organizada através do próprio capital, tornar-se-ia o seu coveiro. Os grupos sociais,
dependentes de salário das áreas derivadas de serviços, infraestruturas etc. estatais e
comerciais, podiam ser juntos ao 'proletariado' apenas como uma espécie de grupos
auxiliares, e mesmo isto só enquanto este ainda dominava como núcleo de massas sociais
nas fábricas produtoras de capital. Com uma inversão das proporções numéricas, como se
tinha esboçado já desde o início do século XX (e fora refletido apenas de forma superficial
Sem dúvida, na época de Marx o trabalhador industrial era ao mesmo tempo o mais
numeroso e o que ocupava o posto mais estratégico na reprodução do capital. No entanto,
o proletariado não se restringe aos trabalhadores industriais. A classe trabalhadora é
formada por aqueles que, desprovidos de meios de produção, são obrigados a vender sua
própria força de trabalho em troca de um salário. Se a composição sociológica da classe
mudou, se mais trabalhadores vestem macacão ou gravata, isso não retira o seu caráter de
classe, que consiste na condição qualitativa de ser obrigado a trabalhar em troca de um
salário - a relação salarial é uma relação de luta.
profundamente aqui, nem se está afirmando que suas fundamentações são idênticas entre si; a intenção é
apenas mostrar que há um "marxismo crítico" que não positivou os conceitos negativos marxianos. Talvez
fosse possível também citar autores não-marxistas (anarquistas, anarco-comunistas, etc.).
27 DEBORD, Guy, A sociedade do espetáculo. São Paulo, Contraponto, 1997; também disponível em
http://www.geocities.com/Paris/Rue/5214/debord.htm
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priva de quase todos os seus aspectos positivos". "Mas o proletariado é também a sua
autodestruição", não esquecendo de lembrar que "todas as teorias [...] que de algum modo
glorificam e exaltam o proletariado, reivindicando o papel positivo do proletariado na
defesa dos valores e regeneração da sociedade, são contra-revolucionárias", e que "o
proletariado não é a classe operária, mas a classe da crítica do trabalho"; "se identificarmos
o proletário com o operário de fábrica (ou pior: com o trabalhador manual) ou com os
pobres, não veremos o que é subversivo na condição proletária"28. John Holloway insiste
que "não há nada de positivo em ser membros desta classe [trabalhadora], em sermos
ordenados, comandados, separados de nosso produto e de nosso processo de produção", e
que "nós não lutamos como classe trabalhadora, lutamos contra ser classe trabalhadora,
contra sermos classificados"29; a luta de classes "é uma luta não para ser uma classe, mas
contra ser uma classe", pois "é o capital que nos classifica"30. Richard Gunn diz que "classe
é a própria relação", mais especificamente, "uma relação de luta"31. Werner Bonefeld
afirma que "o [conceito] de classe não é um conceito afirmativo, mas crítico. A liberação
social - ou melhor: a emancipação humana - implica o fim da 'classe', e não, como
sustentam as interpretações afirmativas a respeito, uma política em nome da classe
trabalhadora. A teoria da classe, então, não é uma reivindicação de identidade política. A
análise das classes não é uma análise em nome da classe trabalhadora. Avança como uma
crítica da classe, e, por conseguinte, como uma crítica da relação salarial através da qual
'existe' a classe trabalhadora"32.
O que se vê, pois, é que a extrema facilidade com que Kurz descarta o "proletariado" e
a "luta de classes" se deve ao fato de tomá-los na acepção mais tosca jamais atribuída pelo
"marxismo", como o "operariado industrial de macacão", sociologicamente reduzido, com
o seu ridículo "orgulho de classe". No entanto, se os tomasse em sua conceituação crítica,
qualitativa e negativa, a tarefa não seria tão simples. Isso é de se estranhar mais ainda
considerando que este enfoque não é desconhecido do Krisis: em um texto de 1989,
Robert Kurz e Ernst Lohoff defendem uma anticlasse que abole a si mesma: “agora se trata
28 BARROT, Jean & MARTIN, François. Eclipse e reemergência do movimento comunista, 1972, disponível
em http://www.geocities.com/autonomiabvr/eclieree.html
29 HOLLOWAY, John. Clase y clasificación. In.: HOLLOWAY, John (org.), Clase = lucha, Herramienta,
Segue Kurz: "A segunda linha argumentativa de Marx, 'esotérica' e em sentido estrito
'radical' (isto é, que desce às raízes) refere-se à real mistificação da forma como tal da
mercadoria e do dinheiro,'na' qual toda a modernidade, a par de seus conflitos imanentes,
se expõe, impõe e desenvolve. Por um lado, portanto, uma mobilização e intervenção
teórica e ao mesmo tempo política no interior do movimento de modernização (em última
instância preenchido positivamente); por outro lado, uma metacrítica 'sombria' do sistema
de referências específico da própria modernidade produtora de mercadorias"34.
33 Citado em SCHOLZ, Roswitha. O ser-se supérfluo e a “angústia da classe média” (Original: Exit nº5,
2008), disponível em http://obeco.planetaclix.pt/roswitha-scholz8.htm
34 KURZ, Robert. Pós-marxismo e fetiche do trabalho, (original: Krisis nº15, 1995), disponível em
http://obeco.planetaclix.pt/rkurz136.htm
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em suas diatribes contra os escombros do "marxismo", parece que Kurz "joga fora a
criança junto com a água suja". Poderia ser argumentado, entretanto, que a própria luta de
classes pode ser desdobrada em luta de classes exotérica e luta de classes esotérica; que a
agudização da luta de classes imanente poderia conduzir a uma luta de classes
radicalizada, que colocasse em questão a própria existência da classe trabalhadora como
classe condenada ao trabalho.
É nesse sentido que vai John Holloway quando diz: "O velho conceito de revolução
está em crise porque a sua base, o trabalho abstrato ou alienado, está em crise. O velho
conceito era a teoria revolucionária do movimento operário, da luta do trabalho
assalariado contra o capital. Sua luta era limitada porque o trabalho assalariado (ou
abstrato) é o complemento do capital, e não sua negação. A crise do movimento operário (e
do trabalho assalariado ou abstrato mesmo) abre um nível mais profundo da luta de
classes: a luta do fazer contra o trabalho abstrato (e, portanto, contra o capital). Trata-se de
uma nova e mais profunda luta de classes, que agora está procurando uma maneira de
avançar, prática e teoricamente. Nós somos a crise do trabalho abstrato, a crise do trabalho
assalariado, nós somos a revolta do fazer contra a determinação alheia, o impulso do fazer
para a autodeterminação. Nós somos, em outras palavras, o transbordamento da
criatividade em relação ao trabalho abstrato"35.
36 TRENKLE, Norbert. The metaphysical subtleties of class struggle (original: Krisis 29, 2005), disponível
em: http://www.krisis.org/2005/the-metaphysical-subtleties-of-class-struggle
37 SCHOLZ, Roswitha, op.cit.
38 KURZ, Robert. O último estádio da classe média, setembro/2008, disponível em
http://obeco.planetaclix.pt/rkurz173.htm
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transcendente); mas Kurz insiste em criticar uma classe sociologicamente reduzida e
positivada, conceito que fica aquém daquele que ele próprio desenvolveu alguns anos
antes.
O descarte da luta de classes por parte do Krisis/Exit já provocou toda sorte de mal
entendidos. Há tanto "kurzistas" quanto marxistas que interpretam que o Krisis/Exit
propõem uma superação do capitalismo sem antagonismos, sem conflitos, ou com
conflitos não-classistas (idealistas) - uns com aprovação, outros com reprovação. O que se
tentou mostrar aqui é que a luta de classes está implícita, pressuposta nas formulações do
Krisis/Exit, com terminologia diversa. A fetichização da teoria, o apego a terminologias
desligadas de seu conteúdo e sentido, pode fechar canais de diálogo. O abandono da
conceituação "luta de classes" por parte do Krisis/Exit parece que provocou este tipo de
bloqueio - de ambos os lados. No entanto, a "antieconomia e antipolítica" de Kurz implica
antagonismo social, luta de classes radicalizada, e aí se apresenta um campo teórico e
prático comum com marxistas críticos, que não tomam a luta de classes como fim em si,
que sabem que não basta o proletariado trocar de posição com a burguesia; que o
proletariado deve buscar a sua autoabolição.
A superação do capital não passa nem pela afirmação da classe, nem apenas por uma
consciência abstrata, mas pela consciência da classe que pode abolir a si mesma. O que
transparece em toda a teoria do Krisis/Exit é que no fundo o que eles querem é uma classe
que não seja como a classe média conservadora, uma classe que não tenha nada a perder,
uma classe com necessidades radicais: um proletariado. Alguém tem de acionar o freio de
emergência do trem que nos leva ao abismo. Como clama o próprio Krisis, na exortação
final do Manifesto contra o trabalho, aqui grifada:
Cláudio R. Duarte
1 Se a arte emancipada ganha seu distanciamento crítico separando-se da práxis alienada, é bem verdade
que o paga bastante caro com sua incomunicação social e a virtual cegueira e neutralização de sua
negatividade – pois, de fato, o mercado e o consenso das massas reificadas nunca será sua finalidade;
quanto às ciências positivas, porém, há muito elas se integraram sans phrase ao sistema como tecnologias
do Capital e do Estado.
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O campo da literatura, especialmente a partir do Romantismo e do grande
Realismo, e a crítica literária de peso que lhe seguiu, impuseram o reconhecimento social
de sua importância na “representação da realidade”.2 “Representação”, aqui, no termo
traduzido de Auerbach, deve ser tomada como Darstellung: mais precisamente como
forma de exposição ou apresentação de um conteúdo imanente articulado em seu
movimento reflexivo próprio3, antes que simples representação (Vorstellung) ou cópia
descritiva de estados factuais isolados da realidade mais banal e cotidiana; o mesmo termo
aliás usado por Hegel para lançar o pensamento conceitual (da Razão) contra a lógica
formal da representação (do Entendimento).4 A forma-de-exposição alcança a essência
“racional” de um processo limando as meras contingências e dissolvendo toda
determinação fundamental isolada na unidade do movimento, que ganha a forma da
narrativa prosaica, apresentando-o em seu desenvolvimento temporal contraditório.
A Darstellung estética, não-conceitual por natureza, depende incisivamente do êxito
sintético da forma da obra. No sentido materialista, forma sempre é conteúdo
sedimentado, i.é, formalização de certa experiência histórica.5 Nas obras bem realizadas,
mimese e construção não se opõem nem se excluem, mas determinam-se reciprocamente.6
Nesse sentido, a Darstellung estética genuína sempre teria um momento realista, pois
7 Cf. LUKÁCS, Georg. “Balzac: ´Les Illusions Perdues´”[1935] in:__. Ensaios sobre literatura. 2.a ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
8 Cf. a definição lukácsiana: “o romance é a epopéia de uma era para a qual a totalidade extensiva da vida
não é mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do sentido à vida tornou-se problemática,
mas que ainda assim tem por intenção a totalidade.” LUKÁCS, Georg. A teoria do romance [1916]. São
Paulo: Ed.34/Duas Cidades, 2000, p.55. Ver também: BENJAMIN, op.cit., pp.105-6.
9 ADORNO, op.cit., pp.341-2; trad.: p.258. A respeito da descrição de “naturezas mortas” no Naturalismo,
ver LUKÁCS, Georg. “Narrar ou descrever. Contribuição para uma discussão sobre o naturalismo e o
formalismo” [1936] in:__. Ensaios sobre literatura, op.cit., pp.70-1, 79-80.
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risco de sucumbir. (...) O realista que literariamente se sabe comprometido com o palpável
escreve da perspectiva de um doente mental, cujos impulsos não vão além dos reflexos
perante os objetos de ação imediata. Ele tende ao repórter, à caça de eventos sensacionais,
tal como os concorrentes econômicos ao lucro”.10 No chamado “realismo socialista” tais
tendências terminam se fundindo: a arte é moralizada e submetida ao utilitarismo burguês
para converter-se em propaganda ideológica do sistema produtivista enlouquecido.
O programa da Darstellung realista não teve, assim, desenvolvimento histórico em
terreno liso, sem aporias objetivas: as crescentes dificuldades de expor o negativo numa
“sociedade unidimensional” que neutraliza metodicamente sua posição crítica e explosiva
no corpo social; sociedade em que ideologia e realidade convergem numa espécie de
convenção naturalizada do terrorismo do capital e das políticas burocráticas do Estado
moderno.11 Em meio a essa racionalização instrumental do mundo, o que continua a
decidir o valor crítico da literatura é a astúcia e a autonomia crítica da forma. Na verdade,
porém, a racionalização atinge em cheio a criação artística em geral, a ponto de esfacelar
seus moldes tradicionais; a tendência à especialização técnica a conduz, se não ao
“esteticismo”, à auto-reflexão cerrada (o texto rebuscado de Mallarmé, Proust, Valéry,
Musil ou Joyce) e à reclusão face aos ditames utilitários da mídia, da ciência e da práxis
capitalista. O solo da experiência artística é assim totalmente revolvido. O afastamento do
antigo programa realista e de sua perspectiva mais ou menos clara, imparcial e objetiva de
narrar, de sua “ingenuidade épica” (como diria Adorno12), é menos desvio formalista que
parte da própria lógica da Darstellung da grande arte: é a busca de expressar as conexões
negativas (reais, emergentes, virtuais, imaginárias) que aquele programa não dava mais
conta. Desde então, as formas “alegóricas”, hermeticamente cifradas e enigmáticas de
representação do social, ou as formas abstratas, não-figurativas e negativas de expressão
do não-sentido ganharão força.13
Agitação apaixonada pela vida, o ganho de experiência e educação, a luta pelo
reconhecimento e afirmação de si, a mobilidade social e o sentido histórico são os grandes
valores individualistas e otimistas do romance burguês de Fielding e Dickens, Goethe e
Keller, Hugo e Stendhal. No ponto alto da prosa de Diderot, a subversão cínica d´O
10 ADORNO, Theodor W. Prismen. Kulturkritik und Gesellschaft. [1955] Gesammelte Schriften, Band 10.1.
Frankfurt, Suhrkamp, 1977, pp.227-8. Trad.: Prismas. São Paulo: Ática, 1998, p.212.
11 Idem, ibidem, p.29; trad., pp.25; MARCUSE, Herbert. One-dimensional man. Boston: Beacon Press, 1964.
12 ADORNO, Theodor W. “Über epische Naivetät” [1943] in:__. Noten zur Literatur, Gesammelte Schriften,
Band 11. Frankfurt, Suhrkamp, 1974. Trad.: Notas de Literatura 1. São Paulo: Ed.34/Duas Cidades, 2003,
“Sobre a ingenuidade épica”).
13 Cf. BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. Lisboa: Vega, 1993, passim.
[1979]. São Paulo, Cia. das Letras, 1997; O velho mundo desce aos infernos: auto-análise da
modernidade após o trauma de junho de 1848 em Paris [1988]. São Paulo, Cia. das Letras, 1999.
17 Cf. COSTA LIMA, Luiz. O Redemunho do Horror: as margens do Ocidente. São Paulo, Planeta, 2003.
18 SCHWARZ, Roberto. “A poesia envenenada de Dom Casmurro” in:__. Duas meninas. São Paulo: Cia. das
**
20O tema pode ser conferido em: BENJAMIN, W. “Experiência e pobreza” [1933] e “O narrador:
considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”[1936] in:__.Obras escolhidas 1. São Paulo: Brasiliense,
1985. A questão da “queda dos referenciais”, “por volta de 1910”, é articulada com a destruição do espaço
perspectivístico e a instauração do espaço abstrato da cotidianidade moderna em LEFEBVRE, Henri. A
vida cotidiana no mundo moderno [1968]. São Paulo, Ática, 1991, cap.3. Um bom resumo “geográfico”
das condições materiais do processo: HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as
origens da mudança cultural [1989]. São Paulo, Loyola, 1992.
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social da arte emancipada na representação factual direta da realidade sob formas
tradicionais. “O romance precisaria se concentrar naquilo que não é possível dar conta por
meio do relato. (...) Joyce foi consequente ao atrelar a rebelião do romance contra o
realismo a uma revolta contra a linguagem discursiva.” 21
O referente passa agora, inexoravelmente, pelo prisma da linguagem elaborada. Mas
a crise objetiva dos referenciais leva, em reação, a literatura esclarecida a seu exato oposto:
à busca de sentido em essências “ontológicas” ou “míticas” do homem e do ser em geral –
ou pelo menos “assim é” nas interpretações formalistas e apologéticas. A literatura
moderna choca-se, então, contra o círculo de tentações gêmeas de magia e positivismo.
Porém, a reprodução ideológica da fachada normativa do existente e/ou a repetição
ingênua dos postulados humanistas do sujeito liberal, ou anterior a este (pré-burguês,
comunitário, pré-individual), apenas fazem cócegas no sistema, senão mesmo o tornam
mais forte, pois eludem a tarefa de formular as questões do presente.22 É essa vacilação que
explica algumas viragens esquisitas da arte modernista: de revolução formal ao
formalismo, de esclarecimento à mitificação, da exposição do sofrimento ao gozo perverso
com a barbárie; o formalismo pós-moderno, com sua mescla grotesca de esoterismo e
obscenidade, hermetismo e populismo, apenas condensou e acelerou para si tais processos
de interversão. A suspeita contra o realismo, entretanto, não se desfaz: sem poder
acompanhar a crise da sociedade e do sujeito burgueses, crise das próprias condições que
tornam possíveis a forma-romance tradicional, a literatura neorealista e neonaturalista
arrisca ser mero protesto moralizante: a busca de um sentido ilusório para o curso sem-
sentido do mundo.
Em parte, a literatura do alto modernismo recolhe alguns dos temas negativos da
visada realista que apareciam no limite de sua exposição: predomínio do espaço abstrato;
alienação – cujo fundamento é o trabalho abstrato generalizado – ; morte. Em muitas
dessas novas obras, o que era tema torna-se agora forma, ponto de vista, princípio
construtivo. O caráter social da arte emancipada em grande parte reside, enquanto força
21 ADORNO, Theodor W. “Standort des Erzählers im zeitgenössischen Roman”[1954] in:__. Noten zur
Literatur, op.cit., p.41-2; trad. p.56 (“Posição do narrador no romance contemporâneo”).
22 “O que se desintegrou foi a identidade da experiência, a vida articulada e em si mesma contínua, que só a
postura do narrador permite (...) justamente isso é impedido pelo mundo administrado, pela
estandardização e pela mesmice. Antes de qualquer mensagem de conteúdo ideológico já é ideológica a
própria pretensão do narrador, como se o curso do mundo ainda fosse essencialmente um processo de
individuação, como se o indivíduo, com suas emoções e sentimentos, ainda alcançasse o destino, como se
em seu íntimo ainda fosse capaz de algo imediato.” (Idem, ibidem, p.42; trad.: pp.56-7). Isso, segundo
ainda assinala Adorno, reverte-se formalmente: “Se o romance quiser permanecer fiel à sua herança
realista e dizer como realmente as coisas são, então ele precisa renunciar a um realismo que, na medida
em que reproduz a fachada, apenas a auxilia na produção do engodo.” (Ibid. p.43, trad.: p.57).
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produtiva (e é necessário frisar contra o esteticismo: anticapitalista!), no conteúdo
histórico desastroso concentrado e traduzido em forma – e isso levado ao ponto de
desintegrá-la enquanto totalidade simbólica perfeita, ou falsa unidade harmoniosa de
forma e conteúdo, significante e significado (e disto se nutre a alegoria), fazendo-a
penetrar no coração da dor e do antagonismo social, no enigma semântico, na resistência
ao sentido evidente, no mutismo. Não há arte moderna crítico-radical sem quebra da
percepção naturalizada da experiência cotidiana no auge da modernização da sociedade
burguesa.
Não se pode mais narrar um sentido, mas é preciso tentar continuar – “il faut
continuer, je ne peux pas continuer, je vais continuer”, conclui L´Innommable de Beckett
(1949). Sem abdicar do desejo, o espinho doloroso que se impõe enfrentar é narrar o
inenarrável, dizer o impossível, rescindir a verdade cegamente estabelecida. Feitas as
contas, a arte radical em geral descobre melhor que as ciências humanas (e o humanismo
político-ideológico) o caráter fetichista das relações sociais capitalistas: a coisificação não
como mera aparência da circulação ou da consciência ideológica, mas como determinação
fundamental da produção social de mercadorias e, como tal, alastrada pelo modo de vida
e pela subjetividade sem substância dos homens ganhadores de dinheiro. Segundo uma
interversão conceitual muito usada por Marx e Adorno, a essência (Wesen) do sistema
torna-se a “essência desnaturada e antitética”, ou melhor, a “essência monstruosa”
(Unwesen) de relações coisificadas e fetichizadas entre as pessoas (como meros “suportes”
do processo de capitalização do valor, a relação-capital como verdadeiro “sujeito
automático”), cuja aparência é a de serem relações sociais humanas e vivas, com sentido
voltado às necessidades, i.é, uma mera troca de equivalentes visando ao valor de uso. Do
fundamento desta aparência fantasmagórica constitutiva, porém, faz parte o próprio
trabalho abstrato moderno, como esfera separada do resto do social: pois a produção em si
mesma há muito saiu do controle e se degradou em processo desumano comandado
objetivamente pelo fetiche-Capital.23
23A meu ver, nessa questão teórica fundamental sobre o fetichismo e suas implicações estéticas jaz a grande
diferença de apreciação e compreensão da arte moderna entre Lukács e os frankfurtianos: os últimos já
não concebem nenhuma “substância humana” fundada no interior da “pré-história” do Homem (Marx),
i.é, no trabalho enquanto produção capitalista de mercadorias. A substância real é o valor, erigido em
sujeito como Capital. A arte liberal humanista, complacente diante do verniz civilizacional, inverte-se
contra o próprio Homem. Cf. ADORNO, “Erpreßte Versöhnung” [1958] in:__. Noten zur Literatur, op.cit.
Sobre esse debate, embora noutras chaves: JAPPE, Anselm. La critique du fétichisme de la marchandise
chez Marx et ses développements chez Adorno et Lukács. Paris, École des Hautes Études en Sciences
Sociales, 2000 (Thèse), Caps. IV (“Le fétichisme et la valeur chez Lukács et Adorno) e V (“Fin de l´art ou
fin de la société?”). E também: LUNN, Eugene. Marxismo y modernismo. Un estudio histórico de Lukács,
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Por isso, conforme o raciocínio dialético de Adorno, para apresentar o soterrado sob
a superfície lisa e totalizante da civilização burguesa, as obras fecham-se à comunicação
com esse mundo aparente, reificado e normalizado.24 Elas como que “fazem-se
semelhantes a si mesmas”, deixando de expressar “imediatamente o vivo” ou “impulsos de
indivíduos singulares” e dos “autores”, sendo, antes, afins mimeticamente a seu próprio
princípio construtivo enquanto “expressão da própria Coisa” (“Ausdruck der Sache
selbst”): erigem livremente, então, um mundo com leis autônomas para si, que, em seu
distanciamento crítico da mimese ingênua da normalidade, “quebram” e
“metamorfoseiam” o processo vivo, numa configuração que só o expressa – em toda a sua
Unwesen antagônica e letal – quando dialeticamente o decompõe e mata, reorganizando-o
formalmente em seus nexos reais essenciais, ou seja, duplicando e absorvendo em si,
assim, a alienação real do mundo das mercadorias. “As obras de arte são negativas a priori
em virtude da lei de sua objetivação: causam a morte do que objetivizam ao arrancá-lo à
imediatidade de sua vida. A sua própria vida alimenta-se da morte. (...) [a arte] abandona-
se mimeticamente à coisificação, ao seu princípio de morte”, porque “sua oposição [à
sociedade] só se realiza ao identificar-se com aquilo contra que se insurge.”25 Na forma
literária mais genuína resiste a capacidade de encarar essa dupla morte – a negatividade
imanente do Capital contra o Capital – enquanto meio de organizar e nomear criticamente
a Unwesen da moderna sociedade produtora de mercadorias. O entrelaçamento de história
e metafísica pertence ao cerne mesmo desta sociedade. Não será então de se surpreender
no Ulisses (1914-21) de Joyce, à primeira vista a obra mais “aberta” e “indeterminada”26, a
projeção delirante dos protagonistas (bêbados na zona do meretrício de Dublin) de uma
espécie de ritual do Fetiche-Mercadoria em ato (sintomaticamente, no capítulo 15, o da
magia de “Circe”), em relação alegórica com a crise do liberalismo na sociedade britânica
no início do século.27
O romance tradicional deve ser comparado, segundo Adorno, ao “palco italiano do
e começam a mover-se, cantar e falar. Do mesmo modo as pessoas caem presas de metamorfoses
contínuas que as dominam e sufocam a ponto de perderem toda identidade nessa ciranda alienante, o que
prova a precariedade dos papéis sociais e psíquicos”. (MORETTI, Franco. “O longo adeus: Ulisses e o fim
do capitalismo liberal” in:__. Signos e estilos da modernidade. (Ensaios sobre a sociologia das formas
literárias) [1988]. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p.356.
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teatro burguês”: uma “técnica da ilusão”28, a perspectiva que cria a distância contemplativa
do narrado para o leitor, a partir de um narrador onisciente, que dá a impressão de
orientação e sentido histórico. Sua intenção crítica era a totalidade. Difícil, entretanto,
manter seus pressupostos: por afinidade mimética às condições da experiência social mais
atual da coisificação, a posição do narrador do alto modernismo tende a “encolher a
distância”, baixando, como em Kafka ou Beckett, ao horizonte de visão restrita dos
protagonistas, invariavelmente anti-herois. Tal posição nos coloca em contato com um
mundo estranho e deformado, que é essencialmente o nosso, sem o amparo das
coordenadas simbólicas e imaginárias externas naturalizadas, a começar pelas categorias
do espaço e do tempo perspectivísticos.
“À eliminação do espaço, ou da ilusão do espaço [perspectivístico]”, comenta Anatol
Rosenfeld, “parece corresponder no romance a da sucessão temporal. (...) O romance
moderno nasceu no momento em que Proust, Joyce, Gide, Faulkner começam a desfazer a
ordem cronológica, fundindo passado, presente e futuro.”29 Além disso, prossegue ele, a
radicalização do monólogo interior esgarça também a categoria da causalidade. Eis, assim,
a liquefação do espaço-tempo perspectivístico ou referencial30 – que de modo algum impõe
sua eliminação, mas antes sua ressignificação segundo “a própria coisa”. Um passo a mais
e, junto a isso, evacua-se o psicologismo: a velha ilusão de unidade e transparência do eu
das personagens. Conteúdos inconscientes subitamente irrompem na fala das
personagens, ou a narrativa quebra de vez a imanência do narrador, focalizando o que
também lhe ficaria normalmente de fora, além do eu e da intersubjetividade, através da
opacidade do verbo ou da reflexão oblíqua.
O Bildungsroman clássico termina, nesse processo, mudando completamente de
sinal. Seu pressuposto ideológico tinha sido uma posição afirmativa em relação ao trabalho
moderno, tal como a filosofia hegeliana determinou: “o trabalho forma”. Já do primeiro ao
segundo Wilhelm Meister alguma coisa mudava31: Wilhelm positivamente se forma,
28 ADORNO, “Standort des Erzählers im zeitgenössischen Roman”, op.cit., p.45; trad.: p.60.
29 ROSENFELD, Anatol. “Reflexões sobre o romance moderno” in:__. Texto/Contexto. São Paulo:
Perspectiva, 1973, p.80.
30 Idem, ibidem, pp.84 e ss. “A arte pós-impressionista é a primeira a renunciar por princípio a toda ilusão de
realidade e a expressar sua visão da vida mediante a deformação deliberada dos objetos naturais”.
(...)“Cubismo e construtivismo, por um lado, e expressionismo e surrealismo, por outro, encarnam
tendências estritamente formais ou respectivamente destruidoras da forma.” (HAUSER, Arnold. Historia
social de la literatura y el arte [1954]. Madrid: Guadarrama, 1968, vol.3, pp.277 e 282).
31 No Goethe de Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister (1821-9) segundo Walter BENJAMIN
(“Goethe” in:__. Documentos de cultura, documentos de barbárie. São Paulo, Edusp, 1986, p.59), “o
ideal de formação classicista (...) recua totalmente. É óbvio que a agricultura pareça obrigatória, enquanto
nada se diz sobre o ensino de línguas mortas. Os 'humanistas' dos Anos de aprendizagem tornaram-se
todos artífices: Wilhelm tornou-se cirurgião; Jarno, mineiro; Philine, costureira. Goethe assimilou de
Pestalozzi a ideia da formação profissional.”
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passando da indeterminação do teatro à vida profissional bem definida (pela medicina) na
divisão capitalista do trabalho. “Poucas décadas depois”, escreve Moretti, “o
Bildungsroman move-se para o solo francês e muitas coisas mudam”, a saber, de Julien
Sorel (O vermelho e o negro) a Frédéric Moreau e Martinon (A Educação Sentimental),
todos “decidem não confiar suas identidades ao trabalho (...) quanto mais o capitalismo
cresce, mais a ética do trabalho é desvalorizada.”32 No fim dessa linha, na América de
Kafka (O desaparecido, 1912), Karl Rossmann some na massa proletária, arrebanhada pela
máquina empresarial fantasmagórica do Grande Theatro de Oklahoma; e no “Work in
Regress” de Beckett nenhuma das “personagens” – em geral marginais, vagabundos,
decrépitos e terminais – tem qualquer relação edificante para com o trabalho: a única
atividade útil que agrada o excluído da novela O fim (1946-50) é a carpintaria que faz
numa tampa sobre um bote, achado em propriedade aparentemente abandonada, que lhe
servirá como um misto de domicílio e caixão.
“Le mort saisit le vif !” (Marx): há muito a práxis vital tornou-se uma práxis letal -
práxis do e para o trabalho morto. A grande literatura descortina o verdadeiro papel do
trabalho na transformação do homem em macaco do capital. “A arte”, arremata Adorno,
“não é somente o representante de uma práxis melhor do que a até hoje dominante, mas
também crítica da práxis enquanto dominação da autoconservação brutal em meio ao
existente e por causa dele. Recrimina as mentiras da produção com fim em si mesma, opta
por um estado da práxis situado para além do feitiço do trabalho [des Banns von Arbeit].
Promesse de bonheur significa mais do que o fato de que a práxis prevalecente distorce a
felicidade: a felicidade estaria além da práxis [ware über Praxis]”.33
Como vamos vendo, isso tudo tende a tornar a arte moderna irremediavelmente
cada vez mais angulosa, abstrata e difícil para si mesma. Desse processo saem
transtornados os padrões burgueses estipulados de “objetividade” e “subjetividade”. Além
da literatura, a pintura e a arte abstratas, a música atonal, o assim chamado “teatro do
absurdo” rompem com a bela harmonia da expressão sentimental ou simbólica, separando
alegoricamente o expressivo e o significativo, para reengatá-los noutro nível. As obras se
vestem de negro, incorporam o feio e o disforme, o fragmentário e o dissonante,
contornando o abismo do informe e do arbitrário. Num primeiro passo, há a fratura
relativa do tempo-espaço e da causalidade realistas (já que nem mesmo no “realismo
mágico” de Borges, Rulfo ou Cortázar ela é absoluta). Ocorrerá o que Hugo Friedrich
34 FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna (da metade do século XIX a meados do século XX).
[1956]. São Paulo: Duas Cidades, 1991, p.53
35 ROSENFELD, Anatol. “Kafka e o romance moderno” [1966] in:__. Letras e leituras. São Paulo:
prosa de A metamorfose ou Na colônia penal, o choque de aversão, náusea que sacode a physis, tem mais
a ver, como defesa, com o Desejo do que com o velho desinteresse que a ele e aos seus sucessores se
cobrava.” (ADORNO, Ästhetische Theorie, op.cit., p.26; Trad.: p.24).
37 Em Woolf, Proust, Joyce, comenta AUERBACH, trata-se de “abrir-se em profundidade temporal (...). O
essencial é que um episódio exterior insignificante desencadeie um fluxo de ideias que abandonam a sua
atualidade e se movem livremente nas profundidades do tempo.” (op.cit., p.509).
38 Vide, além de seus estudos sobre Baudelaire (BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire, um lírico no auge
do capitalismo in:__.Obras escolhidas 3. São Paulo: Brasiliense, 1991 e Passagens. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 2007), o ensaio sobre Brecht e as Teses sobre o conceito de história (“O que é teatro épico?” e
“Sobre o conceito de história” in:__.Obras escolhidas 1, op.cit. O estudo de LUNN (op.cit., pp.247-320)
salienta essa “orientação espacial” da arte barroca, simbolista e moderna refletido pela teoria
benjaminiana, contrapondo-o, um pouco abstratamente, à temporalização adorniana. Como veremos,
tempo e espaço entram aqui numa dialética característica.
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as interrupções do continuum do tempo, até ser colonizada e simulada pela própria
indústria cultural. Daí o movimento quase irresistível da arte emancipada em direção à
desintegração e opacidade, enquanto gesto último de prolongamento da vida e fluidificação
temporal das rígidas determinações psicossociais e espaciais do mundo administrado, algo
levado até a ofuscação em escritores como Proust, Eliot, Joyce ou Beckett. Temporalização
sem objeto, sem fundamento, sem chão social para se fincar, a não ser a linguagem
efêmera que nomeia um ritmo, um movimento, uma possibilidade. “Alguma coisa segue
seu curso”, diz Clov em Fim de Partida, pressentindo uma crise, uma decisão inevitável –
sempre adiada. Dentre nós, a metáfora drummondiana para tal processo de crise e
desterritorialização corresponde a alguns versos de poemas de Fazendeiro do Ar:
“...................................................................................................
em solitude os ecos refluíam / e cada exílio em muitos se tornava / e outra cidade fora da cidade //
na garra de um anzol ia subindo, / adunca pescaria, mal difuso, /problema de existir, amor sem
uso.” (“Domicílio”).
“.....................................................................................................
E que eu desapareça mas fique este chão varrido onde pousou uma sombra/ e que não fique o chão
nem fique a sombra/mas que a precisão urgente de ser eterno bóie como uma esponja no caos / e
entre oceanos de nada / gere um ritmo.” (“Eterno”).
**
3- Mercadoria, morte, metafísica social
41 SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas
Cidades, 1990, pp.49-50.
42 ROSENFELD, Anatol. “Kafka e kafkianos” in:__. Texto/Contexto, op.cit., pp.201 e ss.
43 Idem, ibidem, p.236.
44 EMRICH, Wilhem. “Sobre la estética de la literatura moderna” in:__. Protesta y promesa [1960].
47 MERQUIOR, José Guilherme. Verso universo em Drummond. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975.
48 “É comum nos grandes romancistas dessa época que a velha exigência romanesca do ´assim é isso´,
pensada até o limite, desencadeie proto-imagens históricas, tanto na memória involuntária de Proust,
quanto nas parábolas de Kafka e nos criptogramas de Joyce. O sujeito literário, quando se declara livre
das convenções da exposição do objeto, reconhece ao mesmo tempo a própria impotência, a supremacia
do mundo das coisas, que retorna em meio ao monólogo. É assim que se prepara uma segunda linguagem,
destilada de várias maneiras do refugo da primeira, uma linguagem de coisa, desintegradamente
associativa, como a que entremeia o monólogo não apenas do romancista, mas também dos inúmeros
alienados da linguagem primeira, que constituem a massa. (...) De fato, os romances que hoje contam,
aqueles em que a subjetividade liberada é levada por sua própria força de gravidade a converter-se no seu
contrário, assemelham-se a epopéias negativas.” (ADORNO, “Standort des Erzählers im zeitgenössischen
Roman”, op.cit., pp.46-7; Trad.: p.62.)
49 WILLIAMS, Raymond. Marxism and literature. London: Oxford, 1971, cap.II, 8 e 9.
50 BENJAMIN, W. Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo, op.cit., pp.81-2, g.n.
51 Idem, Passagens, op.cit., pp.45-47.
52 PASTA JR., José Antonio. “Changement et idée fixe”, op.cit. E também: Id., “La point de vue de la mort
(une structure récurrente de la culture brésilienne), 2005”. Centre de Recherche sur les pays
Lusophones–Crepal, Cahier nº14, Paris: Presses Sorbonne Nouvelle, 2007.
53 Para medir o avanço do ponto de vista machadiano na literatura mundial, veja-se um comentário
adorniano a partir de Beckett: “Se a arte quisesse elevar protestos diretos contra a rede sem falhas, então
ela certamente se aprisionaria nela: eis porque – tal como acontece exemplarmente em Fim de Partida de
Beckett – ela deve eliminar de si a natureza, que lhe diz respeito, ou atacá-la. Seu único parti pris ainda
possível é o da morte; que é ao mesmo tempo crítico e metafísico. As obras de arte provêm do mundo das
coisas através de seu material pré-formado tanto quanto de seus procedimentos técnicos; não há nada
nelas que também não lhes pertença, nada que não seja extraído do mundo das coisas ao preço da sua
morte. Só em virtude de seu elemento mortal (ihres Tödlichen) é que participam na reconciliação. Ao
mesmo tempo, porém, permanecem sujeitas ao mito. Eis o caráter egípcio de cada uma. Quando a arte
quer fazer durar o transitório – a vida – e salvá-lo da morte, de fato ela o mata.” (ADORNO, Ästhetische
Theorie, op.cit, pp.201-2, trad.: p.155).
54 ADORNO, “Standort des Erzählers im zeitgenössischen Roman”, op.cit., p.43; trad.: p.58.
55 “A arte nova é tão abstrata como as relações dos homens na verdade se tornaram. As categorias realistas e
simbolistas encontram-se igualmente fora de curso. (...) O caráter mesquinho e danificado desse mundo
de imagens [de Beckett] é a impressão [Abdruck], o negativo do mundo administrado. Nesta medida,
Beckett é realista. (...) A arte executa o declínio da concreção, em que a realidade não quer ter palavra, e
na qual o concreto é apenas a máscara do abstrato, o singular determinado meramente o exemplar
representativo e enganador da universalidade, idêntico com a ubiquidade dos monopólios.”, ADORNO,
Ästhetische Theorie, op.cit., pp.53-4; trad., p.44.
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Tais afinidades eletivas entre formações e tradições literárias tão diferentes
podem assustar os intérpretes mais cautelosos, mesmo quando se aponta sua raiz material
na totalização do mundo fetichista do capital e na lógica da má infinitude histórica do
antagonismo social. A meu ver, o erro consiste em tomar tais traços “metafísicos” crônicos
como algo incondicionado, sem relação com o processo mundial de modernização
capitalista, inclusive com aqueles processos modernizadores em contextos histórico-
geográficos bem particularizados.56 A questão materialista da interpretação, aqui, envolve
o problema da escala de análise do fenômeno: o universal visado não é simplesmente um
delírio metafísico e inefetivo em termos de determinação histórica do objeto, como
também o particular local torna-se uma abstração sem sua mediação universal no processo
totalizante do Capital. Noutras palavras, a crítica exercida pela arte moderna radical dirige-
se não só a particularidades localizadas, mas ao sistema universal alienado, isto é,
realizado em particularidades cada vez mais homogêneas.
**
56 Sobre Beckett, p. ex.: “Se as paisagens famintas e estagnadas de sua obra são pós-Auschwitz, elas são
também uma memória subliminar da Irlanda famélica, com sua cultura colonial puída e monótona, e de
suas massas passivas, esperando indiferentemente uma libertação messiânica que nunca realmente vem.”
(EAGLETON, Terry. “Political Beckett?” New Left Review 40, 2006, pp.70-1.) Nesse sentido, também,
vimos anteriormente o caso de Ulisses de James Joyce.
57 Cf. MORETTI, “Da evolução literária” in:__. Signos e estilos da modernidade, op.cit., pp.307-26.
58 LEFEBVRE, Henri. La production de l´espace. Paris: Anthropos, 1974, pp.402-3. O autor compreende o
espaço territorial e social em geral como mediação, isto é, como uma espécie de “fenômeno social total”:
tanto como produto material da atividade social, como meio de produção e força produtiva (natureza,
casas, ruas, instrumentos, redes de cidades etc.), como instrumento de organização e controle social e
político, como também uma forma de mediação subjetiva do viver/vivido (“espaços de representação”) e
do projetado/concebido (“representações do espaço”). Mais que uma condição a priori do entendimento
(Kant), o espaço é mediação natural, social e mental. É mais que um invólucro neutro e vazio em que
alocamos e vemos as coisas, antes uma mediação ativa que fundamenta a prática social, que dá forma à
realidade social, ao vivido, ao percebido e ao concebido, partes estas de uma unidade dialética.
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O espaço abstrato instaura-se, segundo Lefebvre, precisamente através do
desmantelamento do antigo espaço perspectivo, cujo paradigma foi a cidade européia
moderna: cidade ainda regulada pela política local, de nobreza, igreja, burguesia,
corporações de ofício etc., ordenada por um código de composição e estilo, pelo
alinhamento de fachadas e perspectivas etc., moldando-a como obra de arte; por isso,
segundo o autor, tal espaço social concreto se concebia com certa “autonomia” e
“organicidade”, i.é, “como unidade: como sujeito.”59 Aqui a economia mercantil ainda não
se destacara completamente do político e do social; com o que o espaço social ainda “rege o
tempo”.60 Em seu seio desenvolve-se, porém, através da força destruidora das guerras
militares, comerciais e coloniais, o espaço mundial da acumulação capitalista.
Trabalho e espaço abstratos tornam-se as duas mediações concretas fundamentais
da sociedade moderna. Tal como o trabalho abstrato determina cada trabalho concreto
adequando suas qualidades sensíveis à lei da produtividade média, subsumindo assim,
formal e realmente, toda atividade produtiva ao Capital, o espaço social abstrato é imposto
como o espaço (a matéria) adequado à produção capitalista de mercadorias (forma).61 Com
o predomínio total da industrialização sobre o corpo social, segue-se uma gigantesca
produção de espaços abstratos: equipamentos urbanos, fábricas, estradas, aeroportos,
represas, pontes, campos cultivados etc. A cidade entra num processo de “explosão-
implosão”: o estilhaçamento de sua antiga forma compacta e unitária, com produção de
centros de decisão segregados das periferias proletarizadas, em lotes mínimos, social e
ambientalmente degradadas etc. O valor de troca desde então predomina sobre o uso (e o
“valor de uso”). Agora é o tempo abstrato da valorização capitalista quem rege o espaço
social concreto em todos os âmbitos – e seu corolário dialético: o predomínio do espaço
abstrato da produção mercantil sobre o tempo social concreto da história.62
O enredo do Bildungsroman do séc. XVIII exigia a grande cidade como campo
formativo do jovem personagem. A partir de um certo ponto, no séc. XIX, é como se os
grandes espaços sociais e a vida cotidiana das massas urbanas invadissem as obras com
toda a energia, dominando seu conteúdo.63 Isso incide nos afrescos urbanos de Hugo, mas
´fora´ da narrativa, portanto, mas uma força interna, que o configura a partir de dentro. (...) Nos
romances europeus modernos, o que ocorre depende muito de onde ocorre.” (MORETTI, Franco. Atlas do
romance europeu (1800-1900) [1997]. São Paulo: Boitempo, 2003, p.81.). Ou seja, o romance realista,
forma burguesa por excelência, exige a cidade burguesa, até o ponto em que sua transformação também
transformará a forma-romance.
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é Balzac quem “transforma em romance uma cidade (...) o monstro-Paris”.64 Como
assinala Auerbach, há em Balzac um “realismo atmosférico” ou “ambiental”, um “estilo
mesclado” de tons elevados e populares, altamente carregado de historicismo, fisiologismo
e moral classicista francesa.65 Nele, os lugares começam a caracterizar em grande medida a
identidade das personagens – “sa personne explique la pension, comme la pension
implique sa personne”, diz sobre Mme. Vauquer e sua pensão – e suas longas descrições do
ambiente, longe da mera decoração cenográfica, começam a impulsionar a ação
narrativa.66 Sua Paris – pré-Haussmanniana – funciona ainda como um condensador
social da ação: lugar de encontros, de mobilidade social, mental e espacial, logo, do
acontecimento “inaudito”, do tempo irrequieto da história.67
Mais adiante, Baudelaire “não descreve nem a população, nem a cidade”, mas as
toma implicitamente como matéria social fundamental de sua alegorese poética, encravada
nos processos contra-revolucionários franceses do XIX.68 “Dostoievski”, escreve Lukács,
“surge como o primeiro e o maior escritor da moderna metrópole capitalista”. Isso já se
impunha, diz ele, em Defoe e Dickens, ou, mais claramente ainda, em Balzac, que, “no
quadro que pinta de Paris, projeta os círculos dantescos do novo inferno contemporâneo”.
Mas para Lukács foi o autor de Crime e Castigo (1866) quem “fixou os sintomas da
deformação psíquica que necessariamente surge no campo social da vida da grande cidade
moderna”, pois “a humilhação e a ofensa saídas da miséria nas grandes cidades são as
bases daquele individualismo mórbido, daquele desejo macabro de conquistar o poder no
ambiente em que vive.”69 Em Balzac, os homens ainda possuem rostos singulares; a
multidão anônima ainda não os engoliu.70 Flaubert figura a dessubjetivação e
desdramatização da vida cotidiana burguesa (sobretudo em Bouvard e Pécuchet): “sua
64 CALVINO, Italo. “A cidade-romance em Balzac”[1973] in:__. Por que ler os clássicos [1991]. São Paulo:
Cia. das Letras, 1993, p.147.
65 “Balzac sentiu em toda sua obra os ambientes mais diversos como unidades orgânicas e até demoníacas
(...) todo espaço vital figura-se para ele como uma atmosfera sensível e moral que impregna a paisagem, a
habitação, os móveis, acessórios, vestuário, figuras, caracteres, maneiras, ideias, ações e destinos dos
homens, com o que a situação histórica geral da época aparece como uma atmosfera total que abrange
todos os espaços vitais particulares.” (AUERBACH, op.cit., p.445.)
66 “Em Pére Goriot, toda a intensa vida da Maison Vauquer é deliberadamente coligida e armazenada até
adquirir força suficiente, quando desatada de suas amarras, para impulsionar a história com um robusto
movimento” (...) ‘Quanto à feição e ao movimento da vida... Balzac parecerá procurá-la desde logo não na
natureza dos homens e mulheres cuja ação compõe a história, ao menos não inicialmente, mas nas ruas,
nas casas e nas salas.” (LUBBOCK, Percy. A técnica da ficção [1921]. São Paulo: Cultrix, 1976, pp.128 e
137.)
67 Cf. MORETTI, “Os romances de Balzac e a personalidade urbana” in:__. Signos e estilos da modernidade,
71 SARTRE, Jean-Paul. Qu´est-ce que la littérature ? [1948] Paris: Gallimard, 1995, pp.136-7.
72 Cf. MORETTI, Atlas do romance europeu, op.cit., p.100.
73 Cf. CANDIDO, Formação da literatura brasileira, op.cit., vol.2, p.114. Isso atinge grandes veios da
formação literária brasileira. Osman LINS (Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976,
pp.55-61) observa, na trama de Vida e morte de M.J.Gonzaga de Sá de Lima Barreto, o insulamento das
personagens e a esterilidade dos conflitos: “Prevalece um tom sem brilho, um andamento pausado, nessa
composição horizontal e onde as linhas mestras não se tocam, não se reforçam entre si, não apontam para
nada, não formam um nó, laço algum. (...)Não são os eventos, em Lima Barreto, geradores de eventos,
não formam aquela cadeia firme, coerente, inexorável (...) aí reina, solerte, o demônio da separação (...)
romances invadidos por aspectos do espaço.” Algo disso é visível em obras tão diferentes como Memórias
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modernidade sobre a História. As relações não estritamente burguesas – e suas
implicações materiais em termos de subjetividade e cultura –, porém, aqui eram
reproduzidas pelo capital, e mesmo introduzidas por ele (no caso brasileiro), como sua
forma de acumulação. O dinamismo modernizador do centro capitalista tinha sua
verdade revelada na coagulação espacial do tempo histórico-social da periferia, menos
como resto pré-moderno a ser dissolvido que produto direto da modernização a se
generalizar no próprio centro. Uma tal literatura já expõe o primado da separação, ou o da
reunião enquanto separado.74 O turbocapitalismo atual lança pontes em seu passado
barbárico. Uma tal predominância do espaço abstrato poderá ser notada em toda arte
modernista, como a seguir veremos.
As determinações plenas do espaço abstrato são as da divisão territorial do trabalho
capitalista: a projeção material da divisão social do trabalho e das demandas políticas do
Estado sobre os lugares; assim ele se impõe como espaço fragmentado (dividido em
parcelas desiguais, rigidamente funcionalizado e produzido de maneira parcelar etc.),
homogêneo (intercambiável no mercado, fortemente controlado em seu uso) e
hierarquizado (econômica e politicamente: cidade-campo, centro-periferia, países
desenvolvidos e subdesenvolvidos etc.). Ou ainda, superpondo-se a essa tríade: visual,
geométrico, fálico.75 Enquanto tal, ele torna-se o suporte de um modo de vida cotidiano
que modela materialmente um modo de viver “espetaculista”.76 Vida rotinizada e
objetivada à força em atividades, locais e percursos programados: lar, trabalho, transporte,
lazer. O que esse espaço tende a abstrair são as diferenças: as da natureza, do corpo, da
cultura, da história...77 Esquartejado, ele torna-se uma nova fonte de penúria social, que
filtra as possibilidades de encontro, interação e experiência com a riqueza material e
simbólica. Por sua homogeneização e hierarquização (político-normativa e mercantil)
torna-se um espaço que dissimula o terrorismo político e econômico do Capital; um meio
de instaurar a “paz burguesa” do mercado, que controla o devir histórico e inibe a contra-
violência insurgente; no limite, enquanto urbanismo capitalista, congela o devir
Póstumas, Quincas Borba, Esaú e Jacó, Angústia, 1º de Maio (conto de Mario de Andrade) etc.
74 DEBORD, Guy. La société du spectacle. Paris: Gallimard, 1967, § 29.
75 LEFEBVRE, La production de l´espace, op.cit., pp.325 e ss; 392 e ss.
76 Idem, ibidem, p.332. O termo spectacliste é de DEBORD, op.cit., § 14.
77 “Espaço mortal, ele mata suas condições (históricas), suas próprias diferenças (internas), as diferenças
(eventuais), para impor a homogeneidade abstrata. Essa negatividade que o hegelianismo não atribui
senão à temporalidade histórica, o espaço abstrato a detém, dupla ou principalmente reduplicada: contra
toda diferença, atual ou possível.” (LEFEBVRE, ibidem, p.427).
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histórico.78 De modo que às contradições históricas juntam-se, segundo Lefebvre, “novas
contradições deste espaço”, que já apontariam possivelmente para um “espaço diferencial”.
É em tal espaço social, em vias de se tornar mundial, que a experiência da arte
moderna parece ter seu medium-de-reflexão mais geral.79 Lefebvre, p.ex., mostra como ele
foi anunciado na pintura moderna: o cubismo analítico de Picasso não só recusa a
perspectiva e a figuração mimética, mas “quebra” e “desloca os objetos do quadro”, reduz a
terceira dimensão à “superfície” e “restitui os aspectos múltiplos das coisas” pela
simultaneidade do primeiro plano, um espaço “visualizado sem reservas”.80 De modo
semelhante, Adorno percebeu no Surrealismo o aspecto espacializante da “supremacia das
coisas”. Suas montagens chocantes de imagens são “as verdadeiras naturezas mortas”, não
imagens de uma interioridade subjetiva intacta, mas “desfigurações” de objetos-fetiche, em
ruínas, “fetiches da mercadoria”: “imagens históricas” que testemunham coerções sociais
do desejo.81
O modernismo tem uma clara pronúncia sincrônica e espacial.82 “Multidão, solidão:
termos iguais e conversíveis para o poeta ativo e fecundo”, escreve Baudelaire, “o poeta
goza deste incomparável privilégio de poder ser a seu modo ele mesmo e outrem” e
entregar-se a “essa inefável orgia, essa santa prostituição da alma que se dá por inteiro,
poesia e caridade, ao imprevisto que se mostra, ao desconhecido que passa” (O Spleen de
Paris. Pequenos poemas em prosa). Parte da prosa modernista é a tentativa de suportar
esse “choque” para entrar em “comunhão” mimética com o Outro, o descontínuo, para
torná-lo evento narrável: na massificação da mercadoria, destilar o novo e o irrepetível (e
vice-versa). Daí também o peso do conto como forma, desde Kafka, Musil, Beckett, Woolf,
Hemingway, Borges, Cortázar, Bioy Casares, Rosa, Lispector.
Sintomaticamente, essa tendência social de espacialização, de corte do
desenvolvimento, justaposição de cores e superfícies, entrega hedonista ao imediato,
aparece historicamente até no coração da música, a mais temporal das artes: em Wagner e
78 “A necessidade capitalista satisfeita no urbanismo”, diz DEBORD, “enquanto glaciação visível da vida,
pode exprimir-se – empregando termos hegelianos – como a predominância absoluta da ´plácida
coexistência do espaço´ sobre ´o inquieto devir na sucessão do tempo.´” (op.cit., § 170).
79 Cf. BRADBURY, M. “The cities of modernism” in: BRADURY, Malcom & MACFARLANE, James
Modernism. A guide to European literature 1890-1930. [1976]. London: Penguin Books, 1991, pp.96-103.
80 LEFEBVRE, La production de l´espace, op.cit., pp.346-9.
81 ADORNO, “Rückblickend auf den Surrealismus” [1956] in:__. Noten zur Literatur, op.cit., pp.104-5;
trad., p.139-40 (“Revendo o Surrealismo”). Ver tb.: BENJAMIN, Passagens, op.cit., pp.51 e 986.
82
“As obras modernistas frequentemente tendem a ser ordenadas não na sequência do tempo histórico ou
sequência evolutiva do caractere, provenientes da história ou da trama (story), como no realismo e no
naturalismo; elas tendem a operar espacialmente ou em camadas de consciência, funcionando no sentido
de uma lógica da metáfora e da forma.” (BRADBURY, M. & MCFARLANE, J. “The name and nature of
modernism” in:__. Modernism, op.cit., p.50.) Ver tb. LUNN, op.cit., pp.48-58.
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Debussy – mas sobretudo em Stravinski, numa espécie de “pseudomorfose da música em
pintura” – o sinal agudo da “liquidação do indivíduo”83; e até mesmo na escola de
Schönberg, o “registro sismográfico de choques traumáticos”, como “lei técnica da forma
musical”, sobretudo no serialismo integral, “interdita a continuidade e o
desenvolvimento”.84 Nesse movimento, a literatura moderna radical também faz a
experiência – a “vivência de choque”, como denominou Benjamin – duma paisagem
petrificada e fraturada, para revelar em suas profundezas um território de tensões e
possibilidades. Num nível elevado de mediação da experiência social, o espaço abstrato
predomina na constituição das próprias formas das obras; forma aqui entendida como
lógica imanente das obras, i.é, integralizando um princípio construtivo que cria e articula
os próprios elementos da composição (fábula, personagens, estrutura, ritmo, ambientação,
etc.). Seu ponto de vista, como vimos, não é mais o do narrador objetivo e onisciente do
espaço perspectivo, mas o narrador descentrado e fragmentado no novo espaço social
abstrato – que perscruta os possíveis lampejos de um espaço diferencial em meio ao
espaço da alienação e da morte.
Em ensaio seminal, Joseph Frank apontou na literatura moderna (Pound, Eliot,
Proust, Joyce) o predomínio da “forma espacial” (spatial form). Segundo o Autor, os
modernos tendem a “desfazer ou circundar a natureza temporal linear da linguagem”, o
que seria expressão de uma “negação da história e um retorno à imaginação mítica.”85 Nos
Cantos (1915-62) de Pound e A Terra Desolada (1922) de Eliot, a sequência temporal dos
significantes é quase abandonada por uma estrutura que exige a inter-relação de grupos de
83 Os “dramas musicais” de Wagner, diz Adorno, “mostram, como cartazes gigantes, os princípios dessa
espacialização do decurso temporal, de elementos temporais disparatados lado a lado, que, em seguida,
predomina com os impressionistas e Stravinski e se torna o fantasma da forma. (...)Essa suspensão da
consciência do tempo musical corresponde à consciência totalizada da burguesia que, não vendo mais
nada diante de si, recusa o próprio processo e se satisfaz com a utopia de uma reversão do tempo no
espaço. A tristesse sensível do impressionismo é a herdeira do pessimismo filosófico wagneriano. Em
nenhuma parte o som vai temporalmente além de si mesmo, mas dissipa-se no espaço.” (ADORNO,
Philosophie der neuen Musik [1948] in:__. Gesammelte Schriften. Band 12. Frankfurt: Suhrkamp, 1975,
pp.173-4. Trad.: Philosophie de la nouvelle musique. Paris: Gallimard, 1979, p.195.
84 Idem, ibidem, p.47; trad.: p.53. Na última fase, Schönberg só escapa do fetiche da técnica reintroduzindo a
Intertexto, v.1, n.2. Uberaba, UFTM, 2008, pp.167-98. O original inglês é: “Spatial form in Modern
Literature” in:__. The idea of spatial form: Essays on Twentieth-Century Culture. New Brunswick:
Rutgers Univ.Press, 1991.
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palavras espalhados por todo o poema.86 Algo da antiga Darstellung totalizante da
experiência só pode ser a muito custo recomposta quando se conecta o disperso no espaço
do texto. Depois de analisar uma cena de Madame Bovary em que Flaubert impõe à
narrativa a simultaneidade de planos, Frank descobre em Joyce uma lógica parecida, só
que agora moldando o todo da composição: ele nota a miscelânea de fragmentos com
referências (factuais e simbólicas) dispersas e justapostas, exigindo um leitor capaz de
fazer as conexões de oposições.87 Também em Proust, só se compreende a passagem do
tempo quando se quebra o progresso linear do relato, quando se justapõe fragmentos
descontínuos da vida passada e presente num “tempo puro”, arrancando-a do fluxo
temporal, um tempo montado em choque de dois espaços: “Proust força o leitor a justapor
imagens díspares de seus personagens espacialmente, em um momento do tempo, para
que a experiência da passagem do tempo seja completamente comunicada a sua
sensibilidade.”88 Em Pound ou Eliot, de modo claro, a síntese é afirmativamente mítico-
religiosa, a de uma “história cíclica”, dominada pela plasmação do símbolo arcaico sobre as
individualidades, pela idéia de “metempsicose” (de poetas mortos89) ou determinada antes
pela “simultaneidade do espaço”, numa sintaxe paratática, que pela rígida “sucessão” no
tempo e o “acontecimento”.90
Em todos esses casos, porém, a literatura moderna parece buscar, como dissemos,
86 “Para serem bem compreendidos”, diz FRANK, “esses grupos de palavras devem estar justapostos uns aos
outros e serem percebidos simultaneamente; somente quando isso se dá é que podem ser adequadamente
entendidos; pois embora eles sigam um ao outro no tempo, seu significado não depende dessa relação
temporal. A dificuldade desses poemas, os quais nenhuma quantidade de exegese textual consegue vencer
inteiramente, é o conflito interno entre a lógica temporal da linguagem e a lógica espacial implícita na
concepção moderna da natureza da poesia.” Idem, ibidem, p.176. A espacialização do texto poundiano foi
cedo notada: “seus poemas mais curtos, heterogêneos, e as passagens heterogêneas que entram na
composição de seus poemas mais longos, nunca parecem ajustar-se num todo.”(WILSON, Edmund. O
castelo de Axel: estudo sobre a literatura imaginativa de 1870-1930 [1931]. São Paulo: Cultrix, 1967, p.86.)
87 FRANK, ibid., p.179. Também Arnold HAUSER nota tal pendor bricoleur no Ulisses: “Nela, deparamo-nos
com uma enciclopédia da civilização moderna segundo se reflete no tecido dos motivos que formam o
conteúdo de um dia na vida de uma grande cidade (...) As imagens, ideias, rompantes cerebrais e
memórias se mantêm umas ao lado das outras de uma maneira absolutamente súbita e abrupta; não se
concede atenção a suas origens, e todo interesse se põe em sua contiguidade e sua simultaneidade. A
espacialização do tempo em Joyce vai tão longe que alguém pode começar a leitura de Ulisses por onde
quiser, com um conhecimento superficial do contexto, e não necessariamente depois de uma primeira
leitura, como se diz comumente, e quase em qualquer seqüência que se escolher.” (op.cit., vol.3, pp.288 e
296).
88 FRANK, ibid., p.186. Já em 29, Benjamin descreveu o procedimento de Proust como o do “tempo
pp.262-5.
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uma temporalização do espaço social abstratificado e enrijecido (homogêneo, fraturado,
hierarquizado), como forma de desfazer, pela imersão radical no material (objetivo e
subjetivo), algo da discrepância entre poesia e vida prosaica – temporalização cuja
dialética exasperada, sem solução à vista, pode levar a uma falsa reconciliação ao nível do
mito (como em Pound e Eliot), mas também à sua consciência crítica (Joyce e Proust). Em
Joyce, nesse aspecto como em Musil, a cidade é ainda vivida, pelo indivíduo isolado, como
riqueza possível, como fluxo de tempo coagulado no prático-inerte.91 Na rede sem falhas
do capital, o essencial agarra e inclui o contingente, como se já não houvesse mais nenhum
momento não-mediado pelo sentido tautológico da reprodução social. Uma página de
Ulisses aberta ao acaso, o capítulo que imita um “catecismo impessoal” científico: “O que
fez Bloom no fogão? Ele removeu a caçarola da placa da esquerda, ergueu e levou a
chaleira de ferro para a pia a fim de abrir a bica girando a torneira para deixar a água
correr. / Ela correu? Sim. Do reservatório Roundwood no condado de Wicklow com uma
capacidade cúbica de 2400 milhões de galões, percolando através de um aqueduto
subterrâneo de condutos de filtro de canalizações isoladas e duplas construído a um custo
inicial de planta de £ 5 por jarda linear, passando por Dargle, Rathdown(...)” (Cap.17).
Burgess comenta: “Bloom deve não apenas comer mas defecar; Molly Bloom deve meditar
não apenas sobre os amantes mas também sobre como são os amantes na cama. Com
painel tão amplo, nenhum detalhe humano pode ficar de fora”.92 Seguindo seu próprio
impulso formal, o romance transborda os limites da Darstellung temporal tradicional,
invertendo-se quase em antiromance, para captar aquilo que comumente excede a lógica
da forma realista – daí seu inevitável aspecto fragmentário e dissonante – reunido agora só
através da figura compósita do sincrônico e do espacial: para além da superfície, a Dublin
de Joyce, vista ao microscópio de um só dia, só pode apresentar-se como a conexão de
milhares de eventos simultâneos no espaço-tempo. Por isso, no modernismo,
“desintegração” e “superintegração”93 compõem uma unidade dialética.
91 “O cotidiano entra em cena revestido pelo épico, por máscaras, por vestimentas e por cenários. É
exatamente a vida universal e o espírito do tempo que se apoderam dele porque se investem nele,
conferindo-lhe uma amplitude teatral. Todos os recursos da linguagem vão ser empregados para que se
exprima a cotidianidade, com sua miséria e sua riqueza. (...) O objeto estático, simples, posto diante de
nós (...) se dissolve com a evocação de atos e de acontecimentos de uma outra ordem. O objeto é um
superobjeto: Dublin, a Cidade, encerra todas as cidades; o Rio encerra as águas e os fluidos da
feminilidade. Quanto ao Sujeito, este já é Proteu, um conjunto de metamorfoses (um grupo de
substituições) (...) ele se desdobra no monólogo interior (...) portanto (n)o tempo. A história de um dia
engloba a do mundo e a da sociedade. (...) Essa cidade é apropriada para os que a habitam; as pessoas de
Dublin modelaram o seu espaço e são talhadas por ele. O homem inseguro que parece vagar pela Cidade
recolhe os fragmentos e aspectos dispersos dessa dupla adequação.” (LEFEBVRE, A vida cotidiana no
mundo moderno, op.cit., pp.7-9.)
92 BURGUESS, Anthony. Homem comum enfim. São Paulo: Cia. das Letras, 1994, p.88.
93 MACFARLANE, James. “The mind of modernism” in:__. BRADBURY, M. & MCFARLANE, op.cit., p.92.
suas histórias. Mas, ao fazê-lo, ensinou-nos a compreender, em primeiro lugar, a realidade relativista
ainda inclusiva do tempo e do espaço.” (FUENTES, Carlos. Geografia do romance [1993]. Rio de Janeiro:
Rocco, 2007, p.51). A prosa de Bioy Casares é caracterizada por “(...) repetições cíclicas de conduta, o
eterno retorno, a relatividade, os universos paralelos, numa espacialização do continuum temporal (...)”
(JOZEF, Bella. Romance hipano-americano. São Paulo: Ática, 1986, p.155).
97
O nouveau roman parece a realização cabal dessa lógica, até o autocegamento; ver: LEFEBVRE, A vida
cotidiana no mundo moderno, op.cit., pp.12-7 e GOLDMANN, Lucien. “O novo romance e a realidade”
[1964] in:__. Sociologia do romance. Rio, Paz e Terra, 1967. Fredric JAMESON (Pós-modernismo, a
lógica cultural do capitalismo tardio [1991]. São Paulo: Ática, 1996, caps. 1, 6 e 7), recuperando Lefebvre,
tenta mostrar como a cultura atual é “cada vez mais dominada pelo espaço e pela lógica espacial” (p.52).
98 CARPEAUX, Otto Maria. Tendências contemporâneas da literatura. São Paulo: Ediouro, 1968, p.312.
99BARTHES, Roland. “Littérature objective” [1954] in:__. Essais critiques. Paris: Gallimard, 1981, p.37 ss.
100“A chuva quente caía torrencialmente e encharcava nossos corpos. A violência dos trovões nos assustava e
aumentava nossa fúria (...) Simone havia encontrado uma poça de lama e chafurdava nela: masturbava-se
com a terra e gozava, açoitada pelo aguaceiro, minha cabeça espremida entre suas pernas enlameadas, o
rosto mergulhado na poça (...)” (BATAILLE, Georges. História do Olho, 1928).
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Educação e a fábrica social
I - Surto avaliatório
1 Mestrando em Estado, Sociedade e Educação, pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.
2 Vide os diversos artigos de Gilberto Dimenstein, Gustavo Ioschpe e Eric Nadelstern, onde a reforma da
gestão escolar se transformou em um campo de batalha na imprensa - Na Revista Veja de número 2035,
de 21 de Novembro de 2007, Eric Nadelstern defende a implantação de métodos extremamente
competitivos, e a meritocracia, na gestão e organização escolar, como saída para a crise escolar – tratando
da questão de Nova York. Bem ao espírito do tempo, reformas de cunho meritocrático e sistemas de
gestão toyotista estão sendo amplamente defendidos e implementados no Brasil. Vide as reformas
educacionais do Governo do Estado de São Paulo. Gilberto Dimenstein, no artigo “Escola de Medíocres”,
na Folha de São Paulo do dia 21/08/2007, defendeu também a implementação da flexibilização
trabalhista nas escolas públicas na forma da meritocracia. Vide também artigo “Serra terá coragem?”, na
Folha de São Paulo de 31/07/2007. Gustavo Ioschpe, na Revista Veja de 27 de Setembro de 2008,
publicou o artigo: “Dinheiro não compra educação de qualidade”, onde defendeu que aumentos salariais
do corpo docente não melhoram a educação, mas sim a capacitação e reforma de gestão. Ver também
Revista Veja de 25 de Fevereiro de 2008, e de 12 de Janeiro de 2008, onde Ioschpe publicou outros
www.sinaldemenos.org v.1, nº1, 2009 120
As formas até então vigentes de gestão são criticadas como burocráticas e
ineficazes, e há um ataque generalizado aos direitos trabalhistas dos docentes,
acompanhado pela intensificação do trabalho escolar, um processo de “taylorização” – a
multiplicação dos instrumentos avaliatórios, o estabelecimento de metas ou critérios de
desempenho e a estruturação dos programas e da gestão segundo uma lógica
quantificadora abstrata, baseada em modelos de gestão empresarial. A crítica à
“burocracia” do processo educacional nada tem fato de anti-burocrática – passa, na
verdade, por uma crítica à ineficácia da forma tradicional de burocracia, onde se propõe
como solução justamente o reforço do poder dos gestores, ou seja, o (re)fortalecimento do
controle burocrático através de medidas modernizantes da gestão. Por exemplo, temos a
informatização do processo, que permite ao corpo de gestores um controle muito maior
sobre o processo de trabalho, através da microeletrônica como elemento centralizador de
controle; bem como a delegação de tarefas de gestão ao corpo de trabalhadores (no caso
escolar, a delegação cada vez maior de tarefas burocráticas aos professores).
O surto avaliatório, a vinculação dos rendimentos docentes ao cumprimento de
metas, tem como consequência a intensificação do trabalho docente, que descarrega sobre
o processo educacional uma série de consequências que iremos discutir adiante.
Igualmente, a generalização da lógica de empresa na gestão e organização do trabalho
educacional torna cada vez mais evidente a vinculação estreita entre os aparatos
educacionais de nossa sociedade e os mecanismos da “universalidade abstrata”3 do Capital,
demonstrando que as estruturas educacionais não são externas ao processo de produção
capitalista, mas cada vez mais se apresentam dentro do circuito de produção do valor, o
que iremos discutir no presente texto.
artigos defendendo tais posições. Também a entrevista “A educação no Brasil aumenta a desigualdade”,
publicada na Revista Isto é em 5/10/2005. No artigo de 10 de fevereiro de 2008, chamado “Contra o
obscurantismo”, no Jornal Zero Hora, ele polemiza inclusive defendendo que existem ligações entre
criminosos e pré-disposições biológicas, o que esclarece estruturalmente sua maneira de pensar, tanto
quanto à sua defesa da neutralidade da ciência como da biologização do social
(http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a1761360.xml&template=3
898.dwt&edition=9267§ion=101). Para mencionar também a educação superior pública e as atuais
reformas, vale analisar a entrevista na Revista Veja de 26 de Novembro de 2008, onde Eunice Durham
afirma que “Para agravar a situação, os maus profissionais não podem ser demitidos. Defino a
universidade pública como a antítese de uma empresa bem montada.”
3 Robert KURZ. O Colapso da Modernização. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. Ver também, Robert KURZ.
“A Substância do Capital.”in Revista Exit n.1, 2004< http://obeco.planetaclix.pt/rkurz203.htm> e Robert
KURZ. “Dominação sem sujeito.” (original: Krisis nº13, 1993) in <http://obeco.planetaclix.pt>.
4 João BERNARDO. Estado, A silenciosa multiplicação do poder. São Paulo: Escrituras, 1998.
5 Entende-se como capital constante o trabalho morto, ou objetivado, na forma de meios de produção -
máquinas, instalações, matérias primas, materiais auxiliares, energia e etc. O capital variável seria o
trabalho vivo, ou seja, o capital investido em trabalhadores assalariados, direitos trabalhistas, etc, e diz
respeito à força de trabalho humana. Entende-se por composição técnica de capital a proporção entre
trabalhadores e máquinas (em termos de valor de uso e trabalho útil, concreto), e esta se reflete, em
termos de valor, na composição orgânica de capital, que é a proporção de capital constante e variável
investidos, como um índice de desenvolvimento tecnológico e de poder político das classes. A tendência
geral do processo de produção capitalista é o aumento da composição orgânica do capital, ou seja, da
proporção de trabalho morto empregado em relação ao trabalho vivo. Como o único elemento do processo
que cria valor novo é o trabalho vivo, sua redução proporcional no capital total leva a uma redução da taxa
de lucro e da produção de valor, o que desencadeia contra-tendências do capital para reequilibrar as
proporções e assim reerguer a taxa de lucro (seja pela intensificação da exploração, ou barateamento dos
elementos do capital constante, etc.). Esse movimento contraditório se resolve em crises cíclicas, mas que
não excluem o agravamento da contradição no longo período histórico, indicando que o capital possui em
si uma finitude histórica e cria barreiras ao seu próprio desenvolvimento. Ver Karl MARX. O Capital.
Crítica da Economia Política. São Paulo: Abril Cultural, 1982, 3 livros.
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troca) demonstra uma série de patamares ou níveis diferentes de abstração do trabalho –
onde a forma monetária final (forma mais desenvolvida da troca simples) seria também o
monopólio social da representação do trabalho humano acumulado na forma de dinheiro,
ou em outras palavras, o monopólio dessa “mercadoria-rei” ou “equivalente geral”, o que
pressupõe o Estado nacional, e a concentração do poder6. Igualmente, o Estado nacional
tem de garantir o processo de abstração do “fazer” útil7 em trabalho humano abstrato,
através da redução dos diversos trabalhos úteis a trabalho humano indiferenciado e
homogêneo, ou seja, a conversão dos diversos indivíduos e suas aptidões em mera força de
trabalho (mercadoria força de trabalho). Esse processo constitui a formação e reprodução
de um proletariado nacional.
De início, é um processo disciplinar e coercitivo – que ia da expulsão dos
camponeses da terra, o trabalho forçado, as workhouses (casas de trabalho forçado,
fábricas), as legislações violentas contra a vadiagem nos séculos XVII-XVIII; até o
recrutamento militar obrigatório e o exército como disciplinamento. A escola foi
apropriada8 pelo Capital neste processo na tentativa de formar o proletariado nacional –
através primeiramente da disciplina militar, respeito aos símbolos pátrios e autoridade,
etc. Depois, com o estabelecimento em larga escala do predomínio da mais-valia relativa9,
a exigência de trabalho cada vez mais qualificado, e com a disciplina já socialmente
interiorizada, a escola cada vez mais assumiu caráter qualificacional.
Ou seja, os sistemas de ensino tornaram-se parte das condições gerais de
produção10 do Capital, que é a série das infraestruturas e instituições que garantem a
interligação entre as unidades particulares de produção, garantindo a reprodução do
Capital. Trata-se de uma malha ou rede de estruturas, nas quais predomina a classe dos
6 Karl MARX. O Capital. Crítica da Economia Política. São Paulo: Abril Cultural, 1982. 3 v.
7 John HOLLOWAY. “A crise do trabalho abstrato.” Trad. Daniel Cunha, arq. digital. Holloway faz uma
mudança terminológica. Para não falar em “trabalho útil” e “trabalho abstrato”, ele se refere a “fazer útil”
ou “criatividade” (para trabalho útil) e “trabalho” (para trabalho abstrato).
8 Usamos o termo “apropriada”, porque já haviam formas de escola e educação em sociedades pré-
capitalistas (embora em círculos sociais restritos), bem como a ideia moderna de educação teve forte
influência iluminista e propunha uma instrução universal que ajudaria a difundir o “esclarecimento”.
Igualmente, houveram escolas religiosas e internatos, bem como o movimento operário constituiu escolas
auto-organizadas como elemento de resistência social. A reivindicação dos trabalhadores, de uma
educação para todos, foi apropriada e “recuperada” pelo Capital, que constituiu instituições escolares,
mas atreladas à sua lógica de expansão. O investimento em educação passou a ser investimento na
formação de força de trabalho.
9 Mais adiante será esclarecido o significado das duas formas de mais-valia, a absoluta e relativa.
10 Ver João BERNARDO, Estado: A silenciosa multiplicação do poder. São Paulo: Escrituras, 1998.
11Consideramos aqui a teoria da existência de duas classes capitalistas, burguesia e gestores. Rejeitamos
nesta análise, as definições de classe por nível de renda ou de consumo, tão a gosto da sociologia e do
jornalismo. Também é limitada a definição das classes meramente por títulos jurídicos de propriedade
(visão do marxismo mais tradicional). Definimos as classes a partir da posição que ocupam no processo
de produção do capital. Assim, temos o proletariado (força de trabalho, incluindo trabalhadores
assalariados e também não-assalariados); e como classes capitalistas a burguesia (proprietários privados
jurídicos do capital) e os gestores (a tecnocracia, proprietários coletivos do capital). Nesta análise,
consideramos possível a existência do capitalismo em formas estatais, com a supressão da burguesia
como proprietários jurídicos, e a constituição de uma burocracia proprietária coletiva através do Estado,
ou seja, um capitalismo estatal (como os diversos regimes socialistas, que mantiveram a estrutura basilar
do capitalismo – a utilização de força de trabalho para produção de valor. A atual existência, a nível
mundial, das imensas corporações de sociedades anônimas, das quais não se consegue nem mais
identificar um proprietário, demonstram a realidade desta tese. Ver João BERNARDO. “O proletariado
como produtor e como produto”, Revista de Economia Política, vol. 5, n.º 3, julho/setembro 1985; e
também Amadeo BORDIGA, “O Marxismo dos gagos”, texto publicado em < http://kritica-
social.blogspot.com >; Maurício TRAGTENBERG. Reflexões sobre o socialismo. São Paulo: Moderna,
1986; Maurício TRAGTENBERG. Burocracia e Ideologia. São Paulo: Ática, 1974. Robert KURZ. O
Colapso da Modernização. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992; e João BERNARDO. Democracia
totalitária. Teoria e prática da empresa soberana. São Paulo: Cortez, 2004.
12 Cf. João BERNARDO. “O proletariado como produtor e como produto”, op.cit.; Idem, Economia dos
Conflitos Sociais. São Paulo, SP: Cortez Editora, 1991; Idem, Estado, A silenciosa multiplicação do poder.
São Paulo: Escrituras, 1998 e Harry CLEAVER. Leitura Política de O Capital. São Paulo: Zahar, 1981.
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Economia Política, que o consumo pode se tornar “consumo produtivo”, e que a produção
capitalista tende a se portar como um campo expandido, dominando as demais esferas13.
A partir do momento em que a luta operária forçou o Capital à jornada de 8 horas,
internacionalmente, precipitando-o em crise, este se recuperou através da estratégia da
mais-valia relativa, criando sistemas de organização de trabalho, introduzindo a tecnologia
(aumento do capital constante), complexificando o processo de trabalho, e aumentando a
produtividade dos bens de consumo, barateando-os (e assim barateando os custos da força
de trabalho e aumentando o excedente em valor). Este processo não atingiu apenas a
esfera das empresas e trabalho, mas se expandiu para o tempo livre, colonizando-o e
criando a “fábrica social”14, ou seja, estruturando toda a sociedade como uma imensa
fábrica. A família, o lazer e a escola foram campos que se estruturaram como verdadeiras
unidades de (re-)produção de força de trabalho, através de trabalho útil não-remunerado
(trabalho doméstico, atividade escolar dos estudantes, lazeres, etc.)15.
A força de trabalho, anteriormente, vender-se-ia em troca de receita em dinheiro,
que seria trocada por mercadorias (meios de subsistência), garantindo assim a reprodução
da mesma força de trabalho. Com o processo de formação da fábrica social, o processo se
modificou. A força de trabalho igualmente se vende em troca de salário, que é trocado
pelas mercadorias (meios de subsistência), que se processariam em atividade não-
remunerada (trabalho doméstico, atividade escolar, lazer, esporte, mutirões etc.), cujo
produto final seria uma força de trabalho de potencial menor valor do que a inicial (uma
vez que toda esta atividade não-remunerada qualifica e produz a força de trabalho, de
forma a reduzir os custos que a empresa desembolsaria na forma de salários ou
remuneração, ou seja, gera um impacto positivo no excedente)16. Assim o Capital colonizou
o tempo livre “à sua imagem e semelhança” estruturando uma fábrica social e uma
sociedade disciplinar17, onde as hierarquias familiares e escolares se colocariam como
instrumentos de produção da força de trabalho. Estas atividades foram organizadas e
encadeadas como atividades de produção. Um exemplo útil disso foi a forma como a
introdução do gás de cozinha e do fogão a gás reestruturou toda a economia doméstica,
bem como outros recursos como geladeira, máquinas, carros, televisão, etc. A atividade
13 Karl MARX. Para a Crítica da Economia Política. (Os Economistas). São Paulo: Abril, 1985.
14 Ver CLEAVER, op.cit., e John HOLLOWAY. “Nós somos a crise do trabalho abstrato.” Palestra proferida
em Roma. Trad. Daniel Cunha, arq.dig., e John HOLLOWAY. “A crise do trabalho abstrato.” Trad. Daniel
Cunha, arq.dig.
15 Ver CLEAVER, op. cit.
16 Idem, ibidem.
17 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. São Paulo: Vozes, 1991.
18 BRUNO, Lúcia. “Educação, qualificação e desenvolvimento econômico” In: BRUNO, Lúcia (org.).
Educação e trabalho no capitalismo contemporâneo: leituras selecionadas. São Paulo: Atlas, 1996.
19 MARX, Karl. O Capital. Crítica da Economia Política, op.cit., vol. I.
20 Istvan MESZÁROS. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2005.
21 Ver CLEAVER, op. cit., e MARX, op. cit.
22 Idem, ibid.
23 Nicoló Di Bernardo Dei MACHIAVELLI. O Príncipe. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.
24 KOLINKO. Notas sobre composição de classe. Ruhrgebiet/Alemanha, setembro 2001 in
<http://www.geocities.com/autonomiabvr/comclas.html> e CLEAVER (op. cit). Ver também Alberto
TOSCANO. Antagonism and Insurrection in Italian Operaismo, disponível em:
http://www.goldsmiths.ac.uk/csisp/papers/toscano_antagonism.pdf
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produzindo ou reproduzindo suas diversas divisões – que podem ser horizontais
(geográfico-espaciais) ou verticais (as diversas hierarquias entre trabalho remunerado e
não-remunerado, divisões de gênero, étnicas, culturais, entre imigrantes e trabalhadores
nacionais, hierarquias salariais etc.) O êxito da “imposição de trabalho”25 depende
justamente da força do poder de classe dos gestores em manipular dinamicamente essas
divisões, sempre decompondo os laços de identidade coletiva e solidariedade e gerando a
sujeição como classe26.
Ou seja, o trabalho abstrato tem um de seus elementos constituintes na extrema
heterogeneidade do trabalho concreto e suas divisões (inclusa a divisão social do trabalho,
que Marx analisa referindo-se ao trabalho útil). O processo de abstração se completa
quando a força de trabalho se torna flexível e pode se deslocar facilmente de um trabalho a
outro27.
Todo o processo de abstração do trabalho, depende, portanto, do trabalho útil e sua
estruturação, campo onde entra a ciência da administração, a lógica de empresa e suas
hierarquias. O trabalho útil é o suporte material do trabalho abstrato.
A escola entra aqui, ao lado da família, como instituição de poder disciplinar28 para
esse processo repressivo de negação da auto-organização e interiorização (naturalização,
fetichização) das hierarquias, processo este fundamental para o desenrolar dos demais
processos qualificativos. Assim sendo, o disciplinamento é um patamar de base necessário
para a posterior inclusão de qualificações. O aspecto disciplinar serve de base para o
processo qualificacional posterior, pois ele contribui para estruturar o trabalho simples
médio.
Este processo se insere dentro da mais-valia absoluta (porção excedente de valor
obtida pela extensão da jornada, redução direta de salário ou intensificação do trabalho),
um processo essencialmente repressivo e que serve de base para o desenvolvimento da
mais-valia relativa. Ambas as formas de mais-valia se combinam. Temos hoje um forte
exemplo disso na estruturação do mercado de trabalho brasileiro, com sua divisão entre
trabalhadores estáveis mais qualificados com direitos trabalhistas e trabalhadores de
29 Ver Ricardo ANTUNES. O caracol e sua concha: ensaios sobre a nova morfologia do trabalho. São Paulo:
Boitempo, 2005. E Ricardo ANTUNES. Adeus ao trabalho?: ensaio sobre as metamorfoses e a
centralidade do mundo do trabalho. 3.ª ed., São Paulo/Campinas: Cortez/Ed. da Universidade Estadual
de Campinas, 1995.
30 Ver CLEAVER, op.cit.
31 GENNARI, Emilio. “A educação em tempos de qualidade total”. E João BERNARDO. Estado, A silenciosa
como trabalho simples médio, que é condicionado historicamente e cuja média tende a se transformar
com o aumento da produtividade social.
33 Documento disponível em: http://www.rededosaber.sp.gov.br/contents/SIGS-
CURSO/sigscFront/default.aspx?SITE_ID=25&SECAO_ID=595
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aqui dentro das estruturas educacionais, que se hierarquizam em níveis distintos,
correspondentes aos níveis educacionais que compõem o espectro qualificacional entre
mais-valia absoluta e relativa34. A promessa iluminista da instrução universal, de forma
nenhuma se concretiza como uma instrução igual para todos. A universalidade abstrata do
Capital sustenta sua força na desigualdade e divisão hierárquica da sociedade, e tal
raciocínio é válido para a análise do sistema de ensino.
34 Ver meu texto: Paulo V. M. DIAS. “Algumas reflexões sobre o processo de desenvolvimento capitalista e a
educação” (2008) in: http://kritica-social.blogspot.com/2008/10/algumas-reflexes-sobre-o-processo-
de.html
35 Ver João BERNARDO. Economia dos Conflitos Sociais, op.cit.; Idem, Estado: A silenciosa multiplicação
do poder, op.cit.
36 Ver Lúcia BRUNO. O que é Autonomia Operária. São Paulo: Brasiliense, 1990.
37 Robert KURZ. “O Fim da Política.” (original: in Krisis n.º 14, 1994) <
http://obeco.planetaclix.pt/rkurz105.htm> e “A falta de autonomia do Estado e os limites da política”, in
Antivalor <http://antivalor.vilabol.uol.com.br/textos/krisis/rkurz/tx_rkurz_007.htm >
www.sinaldemenos.org v.1, nº1, 2009 129
Ou seja, na hierarquia social, o eixo de poder se deslocou. Os Estados nacionais, que
antes se encontravam no cume da pirâmide de poder, cederam lugar às empresas e sua
soberania (o Estado Amplo)38.
Os sistemas educacionais sofreram impacto desse deslocamento do eixo do poder.
Se antes eram estruturados pelos Estados nacionais, como formação de um proletariado
nacional e dentro dos modelos de disciplina tradicionais (militares, patrióticos, etc),
passaram a ser estruturados em nível internacional, segundo as necessidades de perfis de
força de trabalho das empresas transnacionais. Assim sendo, as reformas educacionais
passaram a ser ditadas por organismos internacionais do Capital, prevendo estruturação
de perfis educacionais segundo as divisões internacionais da força de trabalho39.
No caso brasileiro, a análise da LDB (Lei de Diretrizes e Bases), dos PCNs
(Parâmetros Curriculares Nacionais), das DCNs (Diretrizes Curriculares Nacionais), e da
atual proposta curricular da Secretaria da Educação do Governo do Estado de São Paulo,
nos levam a vislumbrar de forma mais nítida como a escola pública é reestruturada
segundo a exigência de um perfil de força de trabalho flexível, adaptada à alta rotatividade,
com uma formação básica e generalista para tal processo, bem como o desenvolvimento de
capacidades de gestão e resolução de problemas, característicos da crescente exploração do
componente intelectual da força de trabalho40.
Assim sendo, fica evidente que o Estado Amplo, as empresas, ditam as prioridades
educacionais e estruturam as políticas educacionais atuais, em níveis sistêmicos universais,
mundializados. Uma lógica produtiva sistêmica se constitui perpassando os sistemas
educacionais locais.
38 Lúcia BRUNO. "Reestruturação capitalista e Estado Nacional", in: OLIVEIRA, Dalila e DUARTE, Marisa,
(orgs.), Política e trabalho na escola: administração dos sistemas públicos de educação básica. Belo
Horizonte: Autêntica, 1999.
39 Para constatar isso, vale analisar os diversos documentos do PREAL – Programa de Promoção da Reforma
Educativa da América Latina e Caribe (organização apoiada pelo Banco Mundial e outros organismos
internacionais), disponíveis em <http://www.preal.org/> , bem como proceder a análises comparativas
entre estes documentos e a LDB, PCNs, DCNs, e a Proposta Curricular acima aludida.
40 Ver Paulo V. M. DIAS (op. cit)
41 Ver Georg W. F. HEGEL. A Razão na História. Introdução à Filosofia da História Universal. Lisboa:
42 Ver John HOLLOWAY, Luta de classes (excerto do livroClasse = Lucha), disponível em < http://kritica-
social.blogspot.com/2007/10/luta-de-classes.html >
43 Ver João BERNARDO. “O proletariado como produtor e como produto”, op.cit.
44 Ver CLEAVER, op.cit.
57 Consultar João BERNARDO. Estado: A silenciosa multiplicação do poder, op.cit. ; e o esclarecedor livro
de Jean BARROT e François MARTIN, Eclipse e Reemergência do Movimento Comunista (1972). In <
http://www.geocities.com/autonomiabvr/eclieree.html >
58 CLEAVER, op.cit.
59 Robert KURZ. O Colapso da Modernização, op.cit.
60 Ver o artigo de Gilberto Dimenstein, “As filhas de Obama e o professor de rua”, Folha de São Paulo de
16/11/2008, e o texto “Secretaria elabora plano antiviolência nas escolas”, Folha de São Paulo de
04/12/2008.
61 Capítulo “A decadência do trabalho”, do livro de Raoul VANEIGEM. A arte de viver para as futuras
http://obeco.planetaclix.pt/rkurz53.htm >
64 LEFEBVRE, op.cit.
APÊNDICE
I
Dentro do processo de valorização do Capital, o Estado sempre cumpriu um papel
dentro do circuito de produção do valor – seja como Estado Restrito ou como Estado
Amplo. O processo imediato de produção capitalista não possui condições de, por si só,
garantir a reprodução a longo prazo do Capital sem criar infraestruturas com base num
planejamento de médio a longo prazo. Ou seja, entre as empresas e sua fragmentaridade
produtiva, há a necessidade de uma malha de infraestruturas comuns geradas pelo
capitalista coletivo (Estado) que as interligue, as Condições Gerais de Produção do Capital,
campo de atuação onde se destaca a classe dos gestores.
II
Como o Capital se reproduz de forma ampliada, em suas rotações e ciclos, de forma
análoga ele produz um proletariado ampliado. Tomamos como base a teoria do valor-
trabalho, o fato de que o capital variável (trabalho vivo) é a única fonte de novo valor.
Assim, numa unidade indissociável entre capital e trabalho, toda expansão da produção de
www.sinaldemenos.org v.1, nº1, 2009 137
mercadorias é também uma expansão da “imposição do trabalho” (CLEAVER, 1981).
Toda reprodução ampliada do capital é a reprodução ampliada da força de trabalho,
bem como da superpopulação relativa.
III
O salário oculta muito da produção e repartição do valor. Exatamente porque há a
diferença entre trabalho pago e não pago, entre valor e preço, entre valor da força de
trabalho e salário, é que se torna possível que o trabalho não remunerado participe do
processo de produção capitalista e do circuito de produção do valor, sem se exprimir em
dinheiro - por exemplo, trabalho de camponeses que se transforma em aumento da renda
da terra (MARX, 1975).
Os diversos trabalhos não remunerados entram em todo o processo, interligando-se.
No caso, cabe ressaltar os trabalhos que mantém e reproduzem a força de trabalho – por
exemplo, trabalho doméstico, trabalho do estudante etc. O processo de produção de forma
nenhuma se restringe às empresas, mas antes se apresenta como uma imensa “fábrica
social” (CLEAVER, 1981).
IV
Igualmente, as fronteiras jurídicas e limites jurídicos de propriedade não nos dizem
muito sobre o processo e sua interligação. É preciso analisar a cadeia de produção e
circulação do valor, nas relações sociais.
O Estado, longe de ser apenas uma superestrutura ideológica, é parte das Condições
Gerais de Produção do capital, e está inserido dentro do circuito de produção do valor, na
medida em que participa materialmente do processo de produção.
A estrutura escolar entra plenamente dentro deste processo, dentro da cadeia de
reprodução da força de trabalho.
V
Uma vez que a produção social é dominada pela forma-mercadoria (característica
basilar do capitalismo), todos os diversos trabalhos úteis tem de ser reduzidos
constantemente a trabalho humano abstrato, homogêneo. E, igualmente, todas as diversas
individualidades precisam, neste processo, ser reduzidas a mera força de trabalho humana,
indiferenciada, apta a executar trabalho simples. Este processo é puramente repressivo, em
seu princípio, e se estabelece com a Acumulação Primitiva de Capital (MARX, 1982), para
VI
Uma vez que a abstração (negação) dos trabalhos particulares a trabalho abstrato e
das individualidades a mera força de trabalho (homem como mercadoria, ou proletário,
uma condição negativa) se torna um fato, as diversas forças de trabalho se mostram aptas a
executar trabalho simples (MARX, 1982).
Neste ponto, entra o segundo aspecto da escola, no momento em que a repressão já
foi internalizada: o aspecto qualificacional. Passamos assim da mais-valia absoluta à mais-
valia relativa, do caráter disciplinar e repressivo daquela, ao caráter internalizado desta). O
ensino de qualificações e habilidades permite que se execute trabalho mais complexo,
gerando maior valor e trabalhando com os componentes tecnológicos – processo que se
agrava exponencialmente com o aumento da composição orgânica do Capital, o aumento
do capital constante sobre o variável. A mesma força de trabalho movimenta uma massa
muito maior de meios de produção, o mesmo trabalho vivo uma massa muito maior de
trabalho morto. A taxa de mais-valia cresce exponencialmente neste processo (embora esse
mesmo processo aumente de forma sempre decrescente a valorização, a cada duplicação do
desenvolvimento das forças produtivas, estreitando a base de valorização e reduzindo a
taxa de lucro, demonstrando um limite lógico do processo). Assim, torna-se fundamental
ensinar qualificações, para se operar novas tecnologias. O papel da escola neste processo é
crucial.
VII
Mais-valia absoluta e relativa estão imbricadas e combinadas, não se excluindo, mas
VIII
Assim, a educação acompanha este processo de hierarquização, onde as escolas
técnicas, particulares e universidades formam a mão de obra do setor qualificado, ficando
à escola pública de massas a função de formação do imenso setor precarizado (onde
impera o trabalho simples e a mais-valia absoluta). Daí justamente podemos entender,
dado o caráter fundamentalmente disciplinar e repressivo da mais-valia absoluta (extensão
de jornada, redução de salários, intensificação do trabalho), uma das razões pelas quais a
IX
A educação vai se hierarquizando, neste processo, estabelecendo-se assim o setor de
formação do trabalhador qualificado, o setor de formação dos precarizados, e mesmo um
setor (junto ao dos precarizados) de administração social sobre a superpopulação relativa.
Junto às parcelas marginalizadas, desempregadas e na informalidade, nas periferias, onde
muitos dos quais não terão sequer acesso ao mercado de trabalho, já não se aplica uma
educação “para o trabalho”, mas impera o discurso de uma “educação para a cidadania”, ou
seja, uma administração social repressiva sobre a própria exclusão social que o sistema
gera como parte da Lei Geral da Acumulação Capitalista.
X
Definimos, até agora, a escola em seus dois aspectos – o disciplinar (redução dos
trabalhos e das individualidades a trabalho abstrato e força de trabalho simples e
homogênea – pré-condição para o segundo processo), e o qualificativo (depois da
internalização do primeiro processo e sua racionalidade abstrata, entra o ensino de
trabalho complexo e qualificações). O processo de disciplinamento e de qualificação, em
todos os casos, é hetero-organizado (alienado) em relação aos indivíduos, que perdem sua
autonomia.
O aluno, na “educação bancária”, é uma força de trabalho aberta e reduzida à
condição passiva de “recebedor” de trabalho docente, que se incorpora na sua força de
trabalho, capacitando-a a produzir mais valor do que ela tem no processo de trabalho, uma
produção de trabalhadores por trabalhadores.
Entretanto, uma “leitura política” do processo permite perceber que o processo do
Capital não é unilateral – uma vez que é um processo de sujeição, toda ciência
administrativa se baseia nessa sujeição dos indivíduos à hetero-organização, que tem como
base a destruição da coletividade e a dissociação do coletivo dos indivíduos sujeitados ao
processo, fragmentando-os. Esse processo é um processo de conflito social.
O motor básico da economia não é a concorrência na esfera externa e fetichista do
Franz Schandl
*
SCHANDL, Franz. “Gesellschaftliches marodieren” [1999], Krisis nº 24, 2001.
http://www.krisis.org/1999/gesellschaftliches-marodieren(Tradução: Rodrigo Campos Castro e
Cláudio R. Duarte.)
www.sinaldemenos.org v.1, nº1, 2009 144
meios dos quais lança mão. Sua meta não se diferencia da etapa. Ele se dá conta das
conseqüências, mas não das perspectivas. O bando não deseja poder, ele faz pilhagens.
Os saqueadores são os últimos e mais recentes aproveitadores da aceleração do
ímpeto capitalista, que não consegue mais, porém, funcionar convencionalmente. Auto-
impelidos, eles são o mais puro modelo da flexibilização de direitos e da
desregulamentação. Se o mais enxuto dos Estados é uma quadrilha de criminosos, como
defende Gerhard Scheit, o respectivo “criminoso” é então o indivíduo completamente
atomizado e flexibilizado que mesmo em sua impotência caminha rumo ao bando a fim de
escapar de seu abandono pelo Estado – seja este o Estado Nacional, o Estado de Direito, o
Estado de Bem-Estar Social.
Mas a quadrilha, embora expressão da desintegração nacional, não é per se
nacionalista, ainda que os motivos para integrar suas fileiras sejam pintados com essas
cores. Junto ao bando e junto ao Estado, trata-se de pertencer a uma forma seletiva de
aliança. Uma carga nacional-popular para o bando é algo possível, mas não necessário. A
intensidade com que o bando afirma-se em termos racistas ou nacionalistas não é
dedutível de sua forma, mas resulta de suas relações específicas com a totalidade. Em
certas situações, podem acontecer de fato alianças entre o Estado e o bando, e bandos
podem ser incorporados à comunidade como componente essencial dela. Protótipos disso
seriam figuras como Arkan e seu grupo paramilitar Tigres na Sérvia ou o Capitão Dragan
na Croácia. Estes bandos comportam-se então como pontas-de-lança da autodeterminação
nacional, sistematicamente até o horror. Primordialmente, o pano de fundo formado por
crimes comuns transforma seus líderes em herois nacionais.
Crime clássico
New criminal
1Karl MARX, Theorien über den Mehrwert, MEW, Bd.26.1, pp.365-366. [Trad.: Karl Marx, Teorias da Mais-
Valia, Vol. I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980, pp. 382-3.]
www.sinaldemenos.org v.1, nº1, 2009 146
uma nova dimensão, se, ao invés de uma mera função, não se tornou uma superfunção, ao
invés de um complemento, não se tornou, com uma frequência cada vez maior, um
substituto das formas de funcionamento da sociedade.
Nossa tese agora é que a criminalidade adquire novas qualidades. Até agora, a
criminalidade sempre equilibrou um déficit estrutural, sem se tornar ela própria
estruturalmente determinante: ela é a anomalia que foge à norma, mas que ainda assim
pertence à norma. Em geral, a criminalidade manteve-se à margem da existência social,
mesmo quando afetou mais do que se quis acreditar. O aspecto que Marx ainda podia
chamar de um espinho da sociedade acabou agora por expandir-se, tornou-se mais
decisivo, atingiu novas dimensões. A criminalidade, assim, cresceu para além de sua
moldura social. O que leva à pergunta: para onde a criminalidade escapa quando, em
verdade, não consegue escapar para lugar nenhum?
Ainda não há análises embasadas a respeito desse desenvolvimento. Uma teoria
sócio-crítica da desintegração da sociedade burguesa existe apenas em seus primeiros
esboços. A maior parte das publicações, que não ultrapassa o puro empiricismo, denuncia
exclusivamente os perigos para a democracia, a qual, por sua vez, considera ilimitada (ver
p.ex. Jean Ziegler2), ou, adotando a postura contrária, celebra a necessidade da máfia para
a expansão da economia. Edward Luttwak, que trabalha no Centro para Estudos
Estratégicos e Internacionais em Nova York, escreve, de forma admiravelmente ingênua,
em um artigo intitulado reveladoramente "Hat die russische Mafia den Nobelpreis für
Ökonomie verdient?"3: "A ameaça política é de fato real; no entanto, do ponto de vista
econômico, esse truísmo revela-se um grande erro. Primeiramente, a tese ignora a
evolução natural do animal capitalista. As vacas gordas, que povoam o sistema econômico
desenvolvido – empresas estáveis e altamente capitalizadas que oferecem postos de
trabalho seguros, pagam toda a sua miríade de impostos, investem em novos negócios,
desenvolvem novas tecnologias e contribuem para entidades de assistência social e para
empreendimentos culturais –, essas vacas não nasceram assim. Elas eram lobos magros e
famintos quando inicialmente acumularam capital, e na verdade assim o fizeram por meio
da conquista de oportunidades rentáveis de mercado, não raramente eliminando os
concorrentes com instrumentos que as atuais comissões de combate aos monopólios não
2 Jean ZIEGLER, Die Barbaren kommen. Kapitalismus und organisiertes Verbrechen. [Os bárbaros estão
chegando: capitalismo e crime organizado]. München, 1998.
3 "A máfia russa mereceria ganhar o Nobel de economia?", Freibeuter 67, março de 1996, pp.47-54.
www.sinaldemenos.org v.1, nº1, 2009 147
mais tolerariam; e por meio do corte de custos dos modos os mais variados, incluindo
inúmeros ardis de sonegação fiscal, por meio dos quais se sobrevivia a todo preço ".4 "Caso
as forças policiais de então tivessem sido eficazes o suficiente para reunir em um local e
prender as hienas, então a recuperação econômica da Alemanha Ocidental, da Itália e do
Japão teria ocorrido de forma muito mais lenta, e muitas das empresas bem-sucedidas dos
anos 50 e 60 nunca haveriam tido condições de se estabelecerem. Tudo isso vale também
para a economia russa"5.
Luttwak vê a criminalidade unicamente do ponto de vista da teoria da
modernização, ou seja, como desenvolvimento recuperador retardatário;
consequentemente não como um aspecto da desintegração, e sim como um aspecto de
avanço. Opinião semelhante é defendida por Viktor Timtschenko, que escreveu um livro
interessante sobre a máfia russa e suas maquinações: "O que é bom objetivamente pode ser
ruim para o indivíduo. Objetivamente, é bom para o futuro da Rússia que os bens
concentrem-se rapidamente e em grande quantidade nas mãos de poucos"6. O que significa
dizer também: "A privatização, um processo marcadamente precipitado, representa
francamente uma mina de ouro para o crime organizado e significa uma renovada
criminalização do setor privado de negócios na Rússia, já em grande medida criminoso".7
Showdown social
4 Ibidem, p.48.
5 Ibidem, p.49.
6 Viktor TIMTSCHENKO, Russland nach Jelzin. Die Entwicklung einer kriminellen Supermacht. [A Rússia
pós-Iéltsin. O desenvolvimento de um superpoder criminoso.] Hamburg, 1990, p.80.
7 Ibidem, p. 88.
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que, de resto, não deve ser vista como posicionamento social das classes. Não se trata do
ordenamento das classes, mas da desclassificação, o que significa que as pessoas caem
para fora de suas estruturas, quando, p. ex., não conseguem trabalho, mas continuam a ser
mônadas de trabalho, quando não têm dinheiro, mas precisam ser sujeitos monetários.
Basta pensar nisso para que surjam sentimentos de medo e terror, que então, por sua vez,
se deseja superar. A desclassificação não diz respeito somente ao chamado proletariado,
ela é geral, mesmo que grupos específicos (por exemplo os servidores públicos do
Ocidente) possam estar, por enquanto, mais bem protegidos do que outros. O que medra
agora, nos tempos da globalização galopante, é o canibalismo da economia de mercado:
todos contra todos!
Acima de tudo, o showdown social [a luta social final] revela-se –
principalmente no Oriente, mas talvez em breve também no Ocidente – como
intensificador da energia criminosa. A disposição generalizada para a violência amplia-se
onde fazem água os mecanismos políticos, sociais e jurídico-estatais. Essa disposição para
a violência não é subversiva; ela contém um caráter usurpatório. Ela não quer mais
meramente ganhar dinheiro e valor somente por meio de negócios e de contratos, mas
também, e muitas vezes primariamente, por meio da pilhagem. A usurpação não carece de
nenhuma legitimação especial. Trata-se de um simples self-service.
A respeito da desintegração do poder estatal no ex-bloco do Leste, Ernst Lohoff,
em seu estudo novamente tornado extremamente atual sobre a Iugoslávia, escreve:
"Quando os funcionários públicos não podem mais contar com um salário considerável
tirado da arrecadação fiscal vêem-se obrigados a garantir sua renda por meio de outras
fontes. Deparam-se então com a escolha entre realizar obedientemente seu trabalho atual
como ocupação secundária, afastar-se desse serviço que não oferece mais nenhuma
remuneração ou lançar mão da posição ocupada para enriquecer-se de forma irregular.
Liberado da relação idealmente simbiótica com a sociedade, mas como antes dotado de
direitos soberanos e dos correspondentes instrumentos para fazê-los implementar, fica
fácil para parte do aparato estatal converter-se à pilhagem da sociedade. Tal rapinagem
assume, de um lado, a conhecida forma de corrupção individual ou frouxamente
organizada. Nos países do Terceiro Mundo, onde a instalação do aparato estatal deu-se na
maior parte dos casos de forma não muito mais que incipiente, esses fenômenos
desempenham um papel cada vez maior. Com a crise estrutural da valorização do valor e
8 Ernst LOHOFF, Der Dritte Weg in den Bürgerkrieg. Jugoslawien und das Ende der nachholenden
Modernisierung. [A Terceira Via na Guerra Civil. A Iugoslávia e o fim da modernização retardatária.]
Unkel/Rhein, Bad Honnef, 1996, p. 163.
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juros, de 20, 30, 40 por cento ao mês! Deus do céu, os senhores conseguem imaginar um
retorno de 500 por cento ao ano? Os senhores conseguiriam se conter quando os senhores
recebessem com 1 dólar, ao final do ano, 5? A corrida às casas de câmbio foi tão grande que
as pessoas passavam a noite toda às portas delas a fim de entregar-lhes seu dinheiro"9. A
terceira onda (que não dirá das subsequentes) não viu as coisas de forma menos brilhante.
O esquema de pirâmide precisa sem dúvida de ignorantes adultos como clientes
e vítimas. De fato, quando o homem de pequenas posses sonha com um grande negócio já
não se pode garantir a racionalidade de suas decisões. "Nesse ínterim, ficou claro para todo
mundo que aquilo não poderia continuar mais. Todos tinham percebido havia tempos que,
no final, ocorreria um despertar doloroso. Todos sabiam que não seria possível obter
retornos assim tão vultosos, que o negócio funcionaria de alguma maneira escusa, não
totalmente legal, não totalmente segundo os princípios da economia mas segundo outros
princípios... Ninguém, porém, quer acreditar que a coisa diz-lhe respeito."10
Mas os esquemas de pirâmide tampouco são tão contrários à economia de
mercado como parece a Timtschenko: o que os diferencia substancialmente da especulação
inevitável além do fato de que ocorrem em pseudofirmas de má reputação e não em bolsas
respeitáveis? E não há também por estes lados tantos esquemas de pirâmide legais, por
exemplo na distribuição e venda de certos produtos com os quais, em um sistema do tipo
bola de neve, principalmente empresas norte-americanas atraem pessoas (ignorando todos
os padrões sociais legais) na qualidade de pequenos agentes de distribuição cujo sucesso
depende da quantidade de indivíduos ainda mais ignorantes que conseguirão arrebanhar
atrás de si ?
A perversão da empresa capitalista pode surgir nas pirâmides como algo óbvio
demais, mas estejamos certos: também essa perversão é uma versão! As pirâmides, de toda
forma, adaptam-se bastante bem à simulação generalizada de dinheiro. O fato de essa
simulação ter celebrado suas mais selvagens orgias exatamente na Albânia e na Rússia não
permite concluir que os albaneses e os russos são mais estúpidos do que outros povos, mas
que o sistema capitalista ali, na qualidade de forma não-funcional, precisou encenar suas
mais loucas loucuras. No caso concreto, isso permite retirar das ruas os simuladores de
dinheiro, suas vítimas. Essa arapuca é uma pilhagem por excelência. Na verdade, é a
superstição em relação às grandes forças do mercado que conduz tais pessoas diretamente
ao obscurantismo. Os que se deixam enredar por isso não estão, certamente, imunes a
11 Ibidem, p.103
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espoliador; há pouco espaço para os investidores honestos em um mundo de
ficcionalização constante. Empresas sérias são cada vez menos frequentes. Mesmo os
grandes lucros são obtidos cada vez mais no mercado financeiro e não no mercado de
produtos materiais.
A ameaça não é voltarmos para aquém do Estado de direito, mas cairmos além
dele, e isso porque uma superação sintética desse Estado, por um lado, não se encontra no
terreno das possibilidades e, por outro, porque sua manutenção depara-se com
dificuldades cada vez maiores.
12 Ibidem, p.118.
www.sinaldemenos.org v.1, nº1, 2009 153
"O ladrão precisa ser honesto em relação aos outros ladrões e tem permissão para fazer
tudo o que for necessário a fim de garantir a autoridade da sociedade de ladrões. Nos
estabelecimentos prisionais, os ladrões pertencentes ao grupo precisam seguir a disciplina
na versão dos ladrões."13 O bando ou o clã não é somente o núcleo do Estado, mas também
seu arremate franzino e emaciado. Como no caso de outras atividades estatais, momentos
específicos de violência podem se manifestar. A violência do Estado, porém, não
desaparece por completo, concentrando-se simplesmente em recursos repressivos
específicos, cuja regulamentação real quase não pode constar dos interesses do setor
privado (proteção das fronteiras, serviço de imigração, combate a extremistas etc.). O que
resta do Estado torna-se, ele próprio, um pólo segmentado da violência em meio a vários
outros, um pólo que assume determinadas funções específicas.
De outro lado, não nos esqueçamos do seguinte: a prontidão para contribuir
com um monopólio da violência convencional, prontidão essa não apenas ditada
repressivamente como também imposta ideologicamente, pode ser comprada também em
qualquer esquina. Os serviços sociais são pagamentos para a proteção estatal não só para a
proteção dos cidadãos, mas também para a proteção contra os cidadãos.
O fator da criminalidade econômica, que vai da contumaz evasão fiscal ao
disseminado complô econômico, irá então aumentar se o desempenho das empresas cada
vez menos conseguir garantir o necessário acúmulo de capital de investimentos individuais
por meio da acumulação regida pela lei do valor. Com o declínio de sua capacidade de
valorização, essas empresas não conseguem sobreviver no mercado se não tiverem acesso a
fundos que não venham da acumulação imediata.
A forma civilizada foi o apelo do mercado ao Estado, sempre sob a condição de
que o dinheiro público ajudasse as forças de mercado a avançar. Os argumentos a esse
respeito (posição da empresa, postos de trabalho) podem ser encontrados, de fato, com
mais frequência do que os fundos necessários para tal. A forma barbarizada é o salvamento
dos negócios sem condições de sobrevivência por meio do afastamento em relação às
práticas empresariais sérias, o que significa: acordos ilegais, apropriação indébita e, até
mesmo, crimes elementares. A lei da força dessa barbarização secundária poderia ser esta
(e o mesmo vale também para o direito, a política, a democracia, a liberdade etc.): se o
valor perde poder (Gewalt), a violência (Gewalt) ganha valor.
[Dica de leitura: Viktor Timtschenko, Rußland nach Jelzin. Die Entwicklung einer
13 Ibidem, p.72.
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kriminellen Supermacht. Hamburg, Rasch und Röhring, 1998. Útil como primeiro contato
com o assunto, ainda que, de um ponto de vista analítico, deixe a desejar e seja, em sua
linha crítica, obviamente questionável.]
Onde iria eu, se pudesse ir, o que seria, se pudesse ser, que diria, se tivesse uma
voz, quem fala assim, dizendo-se eu? Responda simplesmente, alguém responda
simplesmente. É o mesmo desconhecido de sempre, o único para quem eu existo, na cova
de minha inexistência, da sua, da nossa, eis uma resposta simples. Não é pensando que ele
me encontrará, mas que pode ele fazer, vivo e perplexo, sim, vivo, diga o que disser.
Esquecer-me, ignorar-me, sim, seria o mais sensato, ninguém melhor do que ele o sabe.
Por que esta súbita amabilidade após tanto abandono, é fácil de compreender, é o que ele
se diz, mas não compreende. Não estou na cabeça dele, em lugar algum de seu velho corpo,
e no entanto estou ali, para ele estou ali, com ele, donde toda a confusão. Isso deveria lhe
bastar, ter-me encontrado ausente, mas não, ele me quer ali, com uma forma e um mundo,
como ele, apesar dele, eu que sou tudo, como ele que não é nada. E quando ele me sente
sem existência é da sua que ele me quer privado, e vice-versa, louco, louco, ele está louco.
Na verdade, ele me procura para me matar, para que esteja morto como ele, morto como
os vivos. Tudo isso ele sabe, mas não adianta nada, sabê-lo, eu não o sei, não sei nada. Ele
se proíbe de raciocinar, mas não faz senão raciocinar, falso, como se isso pudesse ajudar.
Ele crê balbuciar, crê balbuciando apreender meu silêncio, calar-se de meu silêncio,
gostaria que fosse eu quem o fizesse balbuciar, é claro que ele balbucia. Ele conta sua
história a cada cinco minutos, dizendo não ser sua, admitam que é malicioso. Ele gostaria
que fosse eu que o impedisse de ter uma história, claro que ele não tem história, isso é
razão de tentar impingir-me uma? Eis como ele raciocina, à margem, tudo bem, mas à
margem de quê, é isso que é preciso ver. Ele me faz falar dizendo que não sou eu, admitam
que é excessivo, ele me faz dizer que não sou eu, eu que não digo nada. Tudo isso é
realmente grosseiro. Se ao menos me concedesse a terceira pessoa, como a suas outras
quimeras, mas não, ele não quer senão a mim, para seu eu. Quando me tinha, quando me
era, ele se apressou em me abandonar, eu não existia, ele não gostava daquilo, aquilo não
era vida, claro que eu não existia, ele tampouco, claro que não era vida, agora ele a tem sua
vida, que a perca, se quer paz, ainda assim... Sua vida, falemos dela, ele não gosta disso, ele
* BECKETT, Samuel. Nouvelles et Textes pour rien. Paris: Minuit, 1958, pp.153-158. (Tradução: Raphael F.
Alvarenga e Cláudio R. Duarte.)
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compreendeu, de modo que não é a dele, não é ele, vocês pensam, fazer isso com ele, é bom
para Molloy, para Malone, eis os mortais, os felizes mortais, mas ele, vocês nem imaginam,
passar por aquilo, ele que nunca se mexeu, ele que é eu, considerando bem as coisas, e que
coisas, e como consideradas, só tinha que não ter ido. É assim que ele fala, esta noite, que
me faz falar, que ele se fala, que eu falo, só tem eu, com minhas quimeras, esta noite, aqui,
na terra, e uma voz que não emite som, porque não vai na direção de ninguém, e uma
cabeça repleta de guerras cansadas e de mortos logo de pé, e um corpo, já o ia esquecendo.
Esta noite, digo esta noite, é talvez de manhã. E todas essas coisas, que coisas, à minha
volta, não mais as quero negar, não vale mais a pena. Se é a natureza é talvez árvores e
pássaros, eles vão juntos, água e ar, para que tudo possa continuar, não preciso saber os
detalhes. Estou talvez sentado sob uma palmeira. Ou é um quarto, mobiliado, tudo o que é
preciso para tornar a vida cômoda, mal iluminado, por causa do muro na frente da janela.
O que faço, falo, faço falar minhas quimeras, só pode ser eu. Tenho que me calar também,
e escutar, e ouvir então os ruídos do lugar, os ruídos do mundo, vejam que esforço faço,
para ser razoável. Eis minha vida, por que não, é uma, se quiserem, se insistem
absolutamente, não digo não, esta noite. Tem de haver uma, ao que parece, a partir do
momento em que há fala, não é preciso história, uma história não é obrigatório, somente
uma vida, eis o engano que tive, um dos enganos, ter-me desejado uma história, enquanto
que a vida por si só basta. Estou progredindo, já era tempo, acabarei por conseguir calar
minha boca suja, salvo previsto. Mas aquele que vai e vem, que dá um jeito para mudar de
lugar, sozinho, embora nada lhe aconteça, evidentemente, aquele ali. De minha parte fico
aqui, sentado, se estou sentado, frequentemente me sinto sentado, às vezes de pé, é um ou
outro, ou deitado, eis outra possibilidade, frequentemente me sinto deitado, é um dos três,
ou ajoelhado. O que conta é estar no mundo, pouco importa a postura, desde que se esteja
na terra. Respirar, é tudo o que se pede, perambular não é uma obrigação, receber
tampouco, pode-se até crer-se morto à condição de pô-lo em evidência, que regime mais
tolerante pode ser imaginado, não sei, não imagino. Inútil nestas condições me dizer
noutro lugar, um outro, tal qual sou tenho tudo o que necessito à mão, para fazer o que,
não sei, o que tenho que fazer, eis-me novamente enfim só, que alívio deve ser isso. Sim,
existem momentos como este momento, como esta noite, onde quase pareço restituído ao
factível. Depois passa, tudo passa, estou de novo longe, tenho ainda uma longínqua
história, espero por mim ao longe para que minha história comece, para que ela se acabe, e
de novo esta voz não pode ser a minha. É onde eu iria, se pudesse ir, aquele que seria, se
pudesse ser.
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CORTINA
1. Luz fraca sobre palco coberto de lixo de vários tipos misturados. Mantê-la
aproximadamente cinco segundos.
2. Choro fraco curto e, imediatamente, inspiração junto a um lento aumento de luz
alcançando o ponto máximo de ambos em aproximadamente dez segundos. Silêncio -
mantê-lo por aproximadamente cinco segundos.
3. Expiração junto a uma lenta diminuição de luz, ambos alcançando o ponto
mínimo juntos (luz como em 1), em aproximadamente dez segundos e, imediatamente,
choro como anteriormente. Silêncio – mantê-lo por aproximadamente cinco segundos.
CORTINA
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LIXO
Nada colocado verticalmente, tudo espalhado jazendo no chão.
CHORO
Instante do vagido de um recém-nascido gravado. Importante que os dois vagidos sejam
idênticos; som ligado e desligado em perfeita sincronia com a luz e a respiração.
RESPIRAÇÃO
Gravação amplificada.
GRAU MÁXIMO DE LUZ
Não totalmente iluminado. Se 0 = escuridão e 10 = total luminosidade, a luz deve mudar
de 3 a 6 e vice-versa.)
(Peça escrita em inglês algum tempo antes que fosse enviada a Nova Iorque, em 1969, em resposta ao pedido
de Kenneth Tynan para uma contribuição a sua revista Oh! Calcuttá! O texto original foi publicado
primeiramente em Gambit, vol.4, nº16 (1970). Primeira produção no Eden Theater, Nova Iorque, em 16 de
junho de 1969. Primeira atuação na Grã-Bretanha no Close Theatre Club, Glasgow, em outubro de 1969.)
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BECKETT, Samuel. “Breathe” in:__. The complete dramatic works. London: Faber and Faber, 1990,
pp.369-371. (Tradução: Cláudio R. Duarte.)
www.sinaldemenos.org v.1, nº1, 2009 158
Beckett, “cada vez menos sim”
Cláudio R. Duarte e Raphael F. Alvarenga
Felipe Drago
Sérgio Ferro, como ele próprio se definiu, é um suicida do métier, ou, como
costumamos chamá-lo, um carrasco do fetichismo da Arquitetura. Crítico da profissão
fetichista do Arquiteto e Urbanista e seu instrumento, o desenho separado aliado ao
canteiro de obras heterônomo, tentou expor os limites entre a profissão existente e uma
comunidade de produtores livres, fundamentando assim sua obra no que ele denomina
“trabalho livre”. Formado na época da construção de Brasília, arquiteto promissor, pintor,
discípulo de Vilanova Artigas e Flávio Motta, é da geração marxista de Roberto Schwarz,
Ruy Fausto, Emir Sader, entre outros. Foi, por décadas, acusado de traição pelos próprios
arquitetos por negar o desenho arquitetônico em prol do “trabalho livre” no canteiro. Esta
traição realmente aconteceu, como veremos.
Nenhum arquiteto antes de Sérgio Ferro havia levado a cabo a tarefa já há muito
realizada em outras áreas de conhecimento, inclusive no próprio urbanismo: fazer a
arquitetura entender a si mesma como esfera separada, comandada pela dinâmica de
produção de mercadorias. Em suas palavras em entrevista à revista Crítica Marxista, em
2002: “É bastante simples: como tudo sob o Capital. Arquitetura é mercadoria que o
serve – e isto fornece o essencial do seu contorno entre nós. Se é mercadoria, procura,
sobretudo, a mais-valia, que alimenta o lucro. Para que haja mais-valia há,
forçosamente, exploração do trabalho, sua mutilação e submissão às autoridades
representantes do capital.” E completa: “Pouco importa a ideologia do arquiteto: nas
condições normais de produção, ele serve ao capital (ou aos estados ditos socialistas –
que o Robert Kurz já demonstrou serem variantes do capital).”
Sérgio foi talvez o primeiro arquiteto a vincular a arquitetura a tal patamar de crítica
e por isso permaneceu isolado por muito tempo no campo da arquitetura. Ele começa por
um deslocamento progressivo de sua perspectiva crítica, mudando a centralidade de seu
objeto da moradia, preocupação original de seus primeiros escritos, para a economia
política da construção. Acaba por se mover no sentido de fazer explodir as diversas “forças
Cláudio R. Duarte
Daniel Cunha
A crítica de Robert Kurz1 diz que o filme é um simulacro e não aponta nenhuma
transcendência. Kurz tem razão, mas há mais o que dizer sobre ele. O filme apresenta o
automóvel como um fetiche e mediador de relações sociais. Exagera? “Mas só o exagero é
verdadeiro” (Adorno e Horkheimer2). Afinal, o limite do capital é o campo de
concentração, a dominação sem limites, e esse exagero foi bem real. Assim como Sade, ao
mostrar o corpo humano como máquina de eficiência (nenhum órgão ou orifício pode ficar
ocioso), desnudou a lógica do ritmo frenético do trabalho abstrato, assim como Nietzsche,
ao identificar razão e dominação lançou luz sobre o lado escuro do Iluminismo, assim
talvez Cronenberg e Ballard, ao escancarar o fetichismo do automóvel, tenham acessado
sua verdade mais íntima. Tudo isso, talvez, contra-e-mais-além de sua própria intenção.