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Editorial

Que o mundo atual apareça cada vez menos sob os trajes da positividade e do
otimismo satisfeitos, parece haver poucas dúvidas. Tornou-se um fato banal a grande
mídia relatar, em pânico aberto ou simulado, a explosão de crises sociais e ambientais de
grande magnitude. O espectro da catástrofe ronda o planeta, abafado cotidianamente pela
velha política de entretenimento de massas e administração das crises, em meio ao
fracasso e ao terror social generalizados. Quanto mais o capitalismo se afirma vencedor,
como a única alternativa de produção e vida, mais o desastre social e ambiental, a um certo
prazo difícil de julgar, parece-nos inevitável.
Se o travo amargo do negativo se projeta sobre o todo, para nós não se trata de
atenuá-lo, mas sim de aguçá-lo, com a maior contundência possível. Pois as crises que se
desencadeiam não são garantia alguma de superação social, tornando-se antes motivo para
reflexão sobre as formas de converter tal negatividade cega em algo realmente negativo e
superador. Uma revista que nasce sob o signo da recusa – da potência do não, em vistas à
criação social do novo – necessariamente se esforça por determinar e especificar aquilo
que pretende negar. Não se trata de forma alguma de niilismo, reação desparafusada,
desespero existencial, irracionalismo – formas abstratas de recusa pela recusa ou
voluntarismo cego, feitos de um ponto de vista meramente subjetivo, individual ou grupal.
Inserimo-nos, assim, no esforço coletivo de elaboração de uma crítica consequente das
mediações sociais que nos afetam e nos dominam, em seus vários níveis e escalas.
Alinhamo-nos à tradição de pensar e organizar uma formação cultural crítica, que
necessariamente passe pela autorreflexão individual, sem a qual, queremos crer, não há
nenhuma práxis realmente emancipatória.
Trata-se de mirar e atacar as estruturas fundamentais da sociedade capitalista, bem
como seus momentos constitutivos e reprodutivos em suas particularidades concretas.
Sinal de Menos pretende, pois, dar voz à perspectiva mediadora entre os problemas gerais
e particulares, movendo-se continuamente das questões econômico-sociais mais urgentes
aos movimentos de oposição, dos processos de urbanização capitalista às formas políticas e
estatais, da formação social e cultural às formas de sujeito e subjetivação, das elaborações
teóricas num plano mais geral à literatura e às artes. Se é correto afirmar que vemos o
mundo sempre de um certo ponto de vista – no caso, da periferia do capitalismo, como
seres sujeitos à loucura da valorização do capital –, talvez tenhamos, por assim dizer, ao
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menos alguma "vantagem" nesse ponto: pois não será aqui o lugar onde a crise mundial se
manifesta em toda sua força, como revelação cabal e mesmo adiantada da fratura exposta
da socialização capitalista global ?
Nessa linha há bons antecedentes. No Brasil, pode-se dizer que a grande descoberta
do país iniciou-se menos com as ciências sociais que com a literatura: depois de uma lenta
acumulação literária, Machado de Assis despontou, em plataforma periférica, como um
grande farol, ainda hoje fazendo-nos ver as faces tenebrosas de uma sociedade em que as
heranças coloniais da dominação direta – escravismo, patriarcalismo, clientelismo – se
entrelaçam às estruturas de dominação capitalista mais modernas. Aqui, as regulações
coisificadas do capital se combinam ao mandonismo e ao capricho de uma elite cínico-
esclarecida, fermentando uma cultura envenenada, de afirmação e sobrevivência
selvagens, que hoje trespassa todos os estratos sociais, reproduzindo uma sociedade
estilhaçada e só muito precariamente unificada – nem por isso menos moderna e
capitalista, muito pelo contrário. Nosso complexo particular de problemas dá sinais ao
mundo, na crise em que há muito estamos, de que o automatismo cego e destrutivo do
sistema tende a ser suportado – não sem contradições – por formas subjetivas distintas do
sujeito burguês europeu clássico, que hoje vão se generalizando pelo mundo todo. A
grande literatura, nesse caso, longe de ser mera ideologia, detinha chaves de alguns de
nossos enigmas sociais contemporâneos.
A Revista aposta então suas fichas no pensamento de que a totalidade deve se realizar
dialeticamente em cada problema particular enfocado, sem privilégio de algum campo de
análise. Da mesma maneira, se hoje vem se falando em "brasilianização do mundo", em
geral de forma apologética, provavelmente estaremos num posto relevante para a
observação crítica, adrede preparado por nossa tradição. Nesse sentido da formação, a
revista segue sua linha, traçando com rigor e também certo jogo e desvio para com as
regras oficiais do mundo universitário, degradado pelo mercado e pela cultura do favor, a
figura composta pelos enigmas sociais. Um outro mestre em tais enigmas, Drummond, em
seu "não-estar-estando" na vida danificada, concluía assim seu "Poema-orelha":

"e a poesia mais rica, é um sinal de menos."


**
Nosso primeiro número abre com uma ENTREVISTA de John Holloway, na ocasião
de sua vinda para o Brasil em novembro de 2007, convidado pelo grupo Fim da Linha.
Aqui, ele comenta vários problemas atuais e retoma várias reflexões e conceitos elaborados
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durante uma trajetória de quatro décadas de crítica social.
Em seguida, na seção de ARTIGOS, temos o texto de Raphael F. Alvarenga
sobre Jean Genet, escritor francês fora-de-esquadro e ainda muito pouco lido no Brasil. O
ensaio desenvolve algumas linhas de seu pensamento moral, político e estético, num
percurso que conecta os temas da marginalidade, da crítica e da (trans)formação.
O segundo texto, de Joelton Nascimento, desdobra as relações entre forma-jurídica
e forma-mercadoria, através do debate clássico desde Marx, Rubin, Pasukanis até quase
sua completa naturalização na consciência dos “bombeiros” da democracia liberal,
exatamente no momento em que o Capital, incendiado, torna-se cada vez mais sem
substância de valor e busca-se garantir por estruturas jurídicas de regulação.
O terceiro artigo, de Daniel Cunha, trata da questão da luta de classes na teoria dos
grupos alemães Krisis e Exit, tentando dissolver, através de uma análise imanente, a
cristalização teórica que impede uma apreensão crítica de conceitos originalmente
negativos como os de proletariado, classe e luta de classes, e que tende a um auto-
ofuscamento de suas próprias pressuposições e consequências práticas. Daí o diálogo de
seu título com os Últimos combates de Robert Kurz.
Em seguida, Cláudio R. Duarte reconstrói a passagem do realismo ao modernismo
na literatura, como um bom sismógrafo crítico das estruturas sociais e psíquicas impostas
no processo de modernização, num caminho que suspende os temas da alienação, morte e
espaço abstrato do plano do conteúdo ao da forma de exposição no modernismo.
Fechando a seção, Paulo V. Marques Dias lida com a questão da educação escolar
como forma de reprodução do trabalhador abstrato e das condições gerais do capital em
larga escala, a partir do ponta-pé do que o autor chama "surto avaliatório" e de uma análise
lógica e histórica de seus pressupostos.
A terceira seção abre para TRADUÇÕES: uma de Franz Schandl, um dos principais
colaboradores das revistas alemãs Streifzüge e Krisis, num excelente texto sobre a relação
entre economia, criminalidade e pilhagem como "nova normalidade" do capitalismo em
colapso. Em seguida, um pequeno Texto para nada (# 4) e uma micro-peça (Respiração)
de Samuel Beckett, traduzidos e comentados pelos tradutores.
A quarta seção, dedicada a RESENHAS, abre para uma reflexão sobre uma
coletânea recente dos escritos do arquiteto Sérgio Ferro, em seguida para a de um vídeo-
documentário de 2004 sobre o filósofo Slavoj Žižek e outra sobre o filme Crash.

Abril de 2009.
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Entrevista com John Holloway
A convite do Grupo Fim da Linha, John Holloway e Néstor López estiveram em Porto
Alegre em novembro de 2007. John Holloway é irlandês, professor da Universidade de
Puebla (México), autor do livro Mudar o mundo sem tomar o poder, entre outros. Néstor
López é argentino, editor da revista “Herramienta”. A entrevista a seguir foi realizada em
três momentos; um deles é reproduzido na íntegra, e dos demais foram selecionadas
algumas perguntas adicionais. Salvo quando indicado em contrário, as perguntas foram
elaboradas por integrantes do Fim da Linha. Buscamos tanto quanto possível deixar o
texto no ritmo e no tom próprio da conversa, para preservar sua naturalidade.

Você poderia falar um pouco sobre a sua história? Como você chegou a uma
concepção teórica que não é ortodoxa, distanciada em muitos pontos do
Marxismo ortodoxo? Você sempre teve este enfoque, ou em algum momento
você pertenceu a algum partido ou a alguma corrente ortodoxa?

Não, eu nunca me filiei a um partido. Para mim esse debate, essa reflexão teórica
começou nos anos setenta. E começou com a questão da adesão da Grã-Bretanha à União
Européia, à Comunidade Européia. Então nós organizamos um grupo de discussão em
nível nacional no marco da “Conference of Socialist Economists”, e começamos a falar
sobre o significado da União Européia. E chegamos à conclusão de que para falar da União
européia tínhamos de ter um conceito de Estado. E daí nós começamos a ler o debate
alemão sobre a derivação do Estado. Foi um debate nos anos setenta que tentou entender
os limites e as possibilidades e a natureza do Estado a partir da ideia de que era necessário
entender o Estado como uma forma do capital, como uma forma das relações capitalistas.
E isso implicava ver o Estado mais ou menos como o valor, o capital ou os juros, como uma
forma fetichizada das relações sociais. E esta foi então a conclusão principal, naquele
momento, e junto com Sol Piccioto editamos um livro chamado State and Capital, que saiu
em 78. Daí em diante o próximo passo foi pensar um pouco as implicações políticas desta
ideia de que o Estado é uma forma do capital. E eu cheguei à conclusão de que a forma tem
que ser entendida como um processo de formação, ou como uma forma de processamento,
uma forma-processo. Então era necessário entender o Estado não como algo estático, mas
como uma forma de processar das lutas sociais, como um processo de impor certa forma às
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relações sociais. E isto implicava em entender o Estado, em entender o fetichismo como
um processo de fetichização. E isto… bom, há um artigo publicado em espanhol, no
México, em 1980, chamado El Estado y la vida cotidiana, que expressa ou tenta explicar
esta ideia. E a partir daí… Bom, isso implicava por um lado que obviamente não se podia
pensar em uma transição a outro tipo de sociedade através do Estado, o Estado
especificamente é uma forma, uma forma especificamente capitalista de conter as lutas
sociais, então era necessário pensar em outras formas de organização. Então, implicava
entender a luta anticapitalista como luta antifetichizante, uma luta contra a fetichização. E
então no contexto do levante zapatista, quando eles saíram dizendo que “queremos fazer
um mundo novo, mas não queremos tomar o poder", então isso como que fez pensar um
pouco todo o debate teórico anterior em condições mais… mais… urgentes, ou mais… mais
políticas, eu suponho. E daí surgiu Mudar o mundo sem tomar o poder...

Fazendo uma relação com a questão zapatista, então, ao que nos parece na
verdade o zapatismo é posterior ao seu processo intelectual, que teve como
uma realização prática no zapatismo. Você vê as coisas assim? Esse
movimento é posterior ao teu pensamento?

Um pouco isso, mas não uma realização prática, mas sim… sim, na mesma linha, uma
manifestação prática que segue a mesma linha de pensamento… sim. E se nós estamos
falando da história… parte do processo também foi, depois do artigo O Estado e a vida
cotidiana, em Edimburgo começamos a publicar uma revista chamada Common Sense, e
também publicamos uma série de livros que foram chamados Open Marxism, Marxismo
Aberto, com a ideia de explorar um pouco toda esta linha de pensamento. E Marxismo
Aberto… eu creio que é porque se se entende o Estado como um processo, ou se entende o
capital como um processo, o dinheiro como um processo, isso implica que é necessário
abrir as categorias, e entender que o dinheiro é um processo, por exemplo, de monetização
de relações, e isto implica uma luta, e implica uma luta com dois lados, é uma luta
antagônica, de monetização e antimonetização. Então, esta é um pouco a ideia do
marxismo aberto, a ideia de que nós temos que abrir as categorias para entender, e é
necessário entender as categorias como categorias antagônicas e categorias abertas.

Neste sentido que você diz da abertura das categorias, o “trabalho” como
categoria… há muita coisa a dizer sobre isso…

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Sim. Nós não nos focamos naquele momento na categoria trabalho, embora obviamente
seja a categoria central. Então, pensando em como abri-la, o processo de abrir a categoria
“trabalho”, obviamente que chegamos à ideia de que o trabalho é uma categoria
antagônica, pois nos leva à ideia do duplo caráter do trabalho de que fala Marx em O
capital, de um lado como trabalho útil ou concreto e por outro lado trabalho abstrato.
Então, da mesma forma que é necessário entender o Estado como um processo de
estatização ou o dinheiro como um processo de monetização, é necessário entender o
trabalho abstrato como um processo de abstração. E não só um processo de abstração no
passado, não só em termos de uma acumulação primitiva nos primórdios do capitalismo,
mas como um processo constante de abstração.

E isso também tem a ver com a objetivação do tempo. Você foi inspirado
por Benjamin nesta concepção do tempo e da história?

Sim, um pouco… eu suponho que um passo importante no argumento é que se se está


falando de fetichização como um processo, como um processo atual de estatização, como
um processo atual de monetização, como processo atua. Então, nos debates que surgiram
sobre a ideia do Estado fordista nos anos 90. Isso implicava uma crítica do conceito
tradicional de acumulação originária. O conceito tradicional é que a acumulação originária
foi um período histórico com um fim, que terminou… que o processo da formação do
Estado, também foi um processo histórico, o estabelecimento do dinheiro foi um processo
histórico, e também a homogeneização do tempo também foi um processo histórico. Há…
por exemplo o artigo brilhante de Edward Thompson, um artigo clássico, precioso, Tempo,
disciplina de trabalho e capitalismo industrial (1967), no qual ele mostra como a
transformação do conceito do tempo foi parte do estabelecimento da disciplina de trabalho
dentro da fábrica. Mas… é um belo artigo… que fala de todo esse processo como um
processo de luta. Mas sim, ele fala do processo como um processo no passado, através do
qual basicamente até o século XIX já se estabelece outro conceito do tempo. Agora, se
alguém diz: não, é necessário entender o fetichismo como fetichização, isso implica uma
crítica desta separação entre o passado e o presente, implica que todo este processo de
monetização, de estatização, mas também de homogeneização do tempo é algo atual. E
também implica dizer que a análise que aceita esta separação entre o passado e o presente
é na realidade o resultado da homogeneização do tempo, algo que é parte de um processo
de fetichização, que é parte do processo de imposição do capitalismo. Então, uma crítica

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antifetichista também tem que ser uma crítica da homogeneização do tempo, tem que
questionar tal separação entre presente e passado. Bom, eu acho que não foi de Benjamin
que partimos, mas ela tem a ver com a crítica de Benjamin à linearidade do tempo. E
também com as ideias de Ernst Bloch, da importância de entender que o “ainda-não”, o
futuro possível é parte do presente.

Neste enfoque de ver as categorias aparentemente fechadas como processos


está incluído também o conceito de classe, como classificação?

Sim. Por muitos anos não se tocou muito na questão da classe. Mas sim, enfim, isso
implica em também ver a classe como um processo de classificação, que é necessário
entender... O capitalismo tradicionalmente divide a sociedade em classes, mas se se
questiona esta separação entre passado e presente, então se está falando da criação de
classes como processo de classificação. E classificação, e é na realidade o que Marx
também diz em O capital, o processo de acumulação é o processo da criação de classes.
Então isso implica entender a classificação como um aspecto de todo o processo de
fetichização, o que nos leva à ideia de que a luta, da mesma maneira em que a luta é luta
contra a fetichização, também é uma luta contra a classificação, e que nossa luta não é a
luta baseada na identidade de classe operária ou trabalhadora, mas é uma luta desses
classificados contra sua própria classificação, então é um luta anticlasse.

Alguns teóricos ortodoxos identificam sociologicamente a classe


trabalhadora com os operários de fábrica, e então dizem que a luta de classes
não existe mais... já que tal classe operária diminui, a luta de classes não teria
mais sentido. Mas em seu conceito a luta de classes ainda faz total sentido
hoje...

Sim. Sim, porque a existência do capital é uma luta antagônica, e uma luta binária, pois é
uma luta para impor um trabalho abstrato, o trabalho alienado na atividade cotidiana, no
fazer cotidiano das pessoas. E isso implica portanto numa luta do capital contra o fazer, do
trabalho contra o fazer. E isso me parece que pode ser entendido como luta de classes, é
uma luta para classificar e contra ser classificado.

Sua concepção de “mudar o mundo sem tomar o poder”, que implicações


têm ela para a forma de luta, ela é diferente da luta para tomar o poder, são
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organizações diferentes...? Você tem um conceito de brechas ou fissuras,
enfim, qual é a diferença entre a luta para mudar o mundo tomando o poder e
a luta para mudar o mundo sem tomar o poder?

Bem, a luta para mudar o mundo tomando o poder o poder obviamente implica uma luta
focada no Estado, que implica pensar em organizar um partido, um partido que será capaz
de tomar o poder estatal, seja via insurreição, militar ou da via eleitoral, é a ideia de criar
uma organização instrumental, que seja um instrumento efetivo para conquistar o poder
estatal. O problema com isso é que obviamente implica a reprodução das estruturas
estatais dentro do movimento contra o capital, e se se entende o Estado como uma forma
do capital, então isso implica reproduzir o capital dentro do movimento anticapitalista, e já
sabemos por muitas experiências que isso simplesmente não funciona. Temos como
resultado a hierarquização, e finalmente também o desmobilização das lutas
anticapitalistas. Pensar em termos de mudar o mundo sem tomar o poder implica colocar
outras formas de organização que não passam pelo Estado, que não assumem a forma
estatal. O que parece absurdo à primeira vista, mas na realidade é algo que está presente
desde os princípios da luta anticapitalista. E vê-se isso desde o princípio das lutas
anticapitalistas, que há outra tradição de organização, como na Comuna de Paris, depois
nos sovietes, nos conselhos operários de princípios do século XX, você vê isso também na
Guerra Civil na Espanha, nos Conselhos Comunais dos zapatistas, nas assembléias de
bairro na Argentina, e é a ideia de pensar a organização não como um instrumento para
chegar a um fim, mas como uma forma de articular a rebeldia ou as rebeldias das pessoas
em luta... é uma ideia de organização que não é concebida a partir de cima, em termos de
construir um instrumento eficaz, mas concebida a partir de baixo, como forma de articular,
de expressar estas rebeldias diferentes, como uma forma de pensar em comum, uma forma
de pensar coletivamente, e potencializando a rebeldia a partir de baixo. Então, sim, a ideia
de mudar o mundo sem tomar o poder implica outras formas de organização, mas não são
invenção de agora, mas é uma questão de resgatar, sublinhar a importância desta tradição
que existiu o tempo inteiro. E questão de também dizer que aqui nós temos duas tradições
incompatíveis, que a ideia da comuna, ou assembléia ou conselho é... bem, é uma forma de
organização assimétrica em relação à forma de organização estatal, e é importante dizer
isso simplesmente porque toda a tradição do chamado Estado soviético, ou do que está se
dizendo agora na Venezuela em termos da criação de um Estado tipo comuna, esta tradição
apaga a distinção, e me parece muito importante dizer: não, aqui nós temos duas formas
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de organização incompatíveis. Agora, a questão das rachaduras. A questão para mim agora
é como avançar, não é questão de ter respostas, mas como avançar pensando nas
possibilidades de mudar o mundo sem tomar o poder. E eu creio que o que nós estamos
vendo é um processo de criação de espaços e momentos de negação e criação, quer dizer,
espaços ou momentos nos quais as pessoas dizem “não, eu não vou aceitar”, “nós não
vamos aceitar o comando do capital, nós vamos fazer outra coisa de nossas vidas". E se
pensarmos o capitalismo como um sistema de dominação, como mando, então tais
negações e criações de alternativas podem ser entendidas como rachaduras, fissuras ou
brechas no tecido da dominação. E essas fissuras podem ser grandes, como o levante
zapatista, ou elas podem ser pequeninas, grandes mas ao mesmo tempo pequeninas, como
o Fim de Linha, elas podem ser de muitos tamanhos diferentes, mas basicamente é a
mesma ideia de que nós não subordinaremos nossa vida aos ditames do capital, nós não só
criaremos um espaço de insubordinação, mas não insubordinação em termos de
simplesmente dizer não, mas também em termos de dizer “e vamos fazer outra coisa",
então, a ideia do não como algo que abre, entender o “não” como um limiar que abre outro
espaço.

Foi descoberta uma estrela que não se comporta como as outras, ela nasce,
tem um tempo de existência, morre e dá origem a um buraco negro. Ela nasce
e morre muitas vezes ao longo da vida. Este tipo de imagem é usada para
justificar os atos zapatistas de não tomar o poder. Que importância têm os
zapatistas na luta simbólica e na luta real hoje para nós?

Eu creio que tem uma importância enorme, porque esboça... porque são uma renovação
da teoria revolucionária, que quando surgem, quando se insurgiram em 94, a coisa mais
importante não é só o próprio levante, mas é a apresentação de outro conceito de mudar o
mundo de um modo radical. Eles estão dizendo obviamente que querem fazer um mundo
novo, mas sem tomar o poder. E eles apresentam uma série de conceitos e uma série de
desafios práticos e teóricos. Por exemplo, a ideia central da dignidade, que implica que nós
não somos os... que não somos... eu entendo a dignidade como uma crítica à teoria
leninista, uma crítica à ideia de que os trabalhadores são sujeitos limitados. A dignidade, a
ideia da dignidade vai no sentido contrário, eles dizem: nós somos sujeitos humilhados,
neste sentido, nós vivemos a negação de nossa dignidade, mas ao mesmo tempo esta
negação nunca é uma negação completa, então a dignidade é a revolta contra sua própria

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negação. Então é um movimento sem limites, é um movimento para fora. Então não é um
sujeito definido do leninismo, mas ao contrário um sujeito “antidefinicional”, que vai
transbordando, que se rebela, e também há, como parte da dignidade, um questionamento
radical da linearidade do tempo, porque quando eles falaram pela primeira vez da
dignidade em suas primeiras declarações oficiais, eles falam da dignidade como algo que
estava presente nas lutas de seus antepassados, e que era uma grande vergonha ter
esquecido a dignidade, então se insurgir agora era como a luta para redimir as lutas do
passado, resgatar, fazer viver outra vez a dignidade de seus antepassados, quer dizer, fazer
viver outra vez a seus antepassados. Então, para regressar a Benjamim, aí está a ideia que
está presente nas Teses sobre o conceito de história, da luta como redenção do passado,
quase como uma grande dívida, algo que nós devemos aos antepassados, eles nos deixaram
uma pendência, e para ser dignos nós também temos que ser dignos da memória deles, isto
é, nós temos que redimir a dignidade das suas lutas. Então, isso é claro que implica cortar
a linha, a sequência linear entre o passado e o presente. E a ideia da dignidade também
claramente nos leva à ideia de outras formas de organização, porque então nós não
estamos falando de organização vertical, organizações verticais como forma de negação da
dignidade. O respeito à dignidade implica a crítica da verticalidade, implica partir da
dignidade das pessoas, implica romper com a tradição monológica dos grupos
revolucionários... Marcos diz que quando o grupo original foi para a Selva Lacandona, no
começo dos anos oitenta, eles tiveram que aprender algo muito fundamental, porque eles
tinham a ideia de explicar às pessoas o que elas tinham que fazer, explicar às pessoas como
é o capitalismo, o imperialismo, tinham a ideia tradicional da política revolucionária como
um monólogo, mas muito rapidamente eles aprenderam que não, que isso as pessoas já
sabiam. Então era questão não de falar, mas de escutar ou de romper com a tradição
monológica e pensar numa teoria revolucionária dialógica. Então, sim, é outro conceito. E
isso, então, também leva à ideia do “perguntando caminhamos”, perguntando caminhamos
porque nós temos que escutar, nós temos que aprender a perguntar às pessoas sobre suas
rebeldias, suas experiências e suas rebeldias. Então sim, são fundamentais.

Sobre a questão da crítica do poder, há pessoas que dizem que o problema


não é o poder, mas um traidor: Stalin, Lula, um partido, e que se um dia o
poder for tomado e não houver traição, a revolução será bem sucedida. O que
lhe parece este argumento?

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Não, a categoria da traição é um desastre. Porque tanta gente é explicada em termos de
traição, Stalin é explicado em termos de traição... Mas há como uma sequência quase
infinita de tantas e tantas e tantas e tantas e tantas traições na história da esquerda, então
finalmente... então, não, é absurdo pensar nestes termos. Então é necessário ver que há
algo na própria estrutura que está impondo esta traição. Há algo na forma de organização
que impõe a traição. E é óbvio, porque se nós pensarmos nos termos do Estado, o que
acontece é que para ganhar uma eleição, é preciso se organizar de certo modo, é preciso
aceitar certas hierarquias, uma separação entre os líderes e massas, e se um partido de
esquerda ganha a eleição, então os líderes estão inseridos em outro mundo, com outras
pessoas, com outras pressões, com outros contatos cotidianos, já não são parte do
movimento, então... pode ser que sejam pessoas muito bonitas, honestas, o que seja, mas
eles já estão operando em outro contexto. Então claro que vão responder algumas questões
a partir deste contexto, vão se comportar de outro modo... Então não é questão de
traição.

John e Néstor estiveram há alguns dias em um seminário que tinha como


tema “a crise do trabalho abstrato”, organizado pela revista Herramienta. O
que é a crise do trabalho abstrato?

Bom, a razão para enfatizar o trabalho abstrato é basicamente a ideia de ver que o
trabalho abstrato é o que cria o capital, o trabalho abstrato produz o capital. Mas também
há outra coisa dentro do trabalho abstrato que nós dissemos um momento atrás, é questão
de abrir a categoria do trabalho e ver que dentro da categoria está o duplo caráter do
trabalho. Então há um antagonismo entre o trabalho abstrato e alienado, por um lado, e
um fazer que impulsiona para a sua autodeterminação, por outro lado. E todos temos a
experiência deste duplo caráter antagônico do trabalho. Todos temos a experiência do
trabalho como algo imposto ou alheio, em condições nas quais temos que fazer o que não
queremos fazer, por um lado, e o fazer como uma atividade autodeterminada, até certo
ponto, por outro lado. Então a ideia é, se pensamos assim, é preciso colocar a questão da
crise do capitalismo, da crise do capital, é preciso vê-la mais como uma crise do trabalho
abstrato, como uma crise do trabalho que produz o capital. Ou seja, duas coisas: primeiro,
entender o fazer como crise permanente do trabalho abstrato, mas também colocar a ideia
de que neste momento o que nós estamos vivendo é uma crise agudizada do trabalho
abstrato que, se vemos ou pensamos na crise do fordismo dos anos 70, pode-se dizer que

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esta crise é uma manifestação clara da crise do trabalho abstrato, no sentido de que houve
uma recusa muito evidente, muito clara contra a alienação implícita na organização do
trabalho abstrato, uma recusa da organização fabril, das linhas de montagem, etc. Uma
recusa, uma crise que impôs ao capital a necessidade de reorganizar o processo de
produção, de reorganizar suas fábricas, de reorganizar, bom, todo o processo de trabalho.
Então falar da crise do trabalho abstrato agora é colocar que apesar desta reestruturação
do trabalho o capital ainda não pôde superar a crise do trabalho abstrato, que ainda esta
rebeldia que se manifestou nos anos setenta, que esta rebeldia continua viva, mas está
tomando outras formas talvez, não? A questão é como pensar a situação atual não a partir
da novas estruturas de dominação, como pós-fordismo, ou império, o que seja, mas, ao
contrário, pensar a situação atual a partir da crise da dominação, e deste ponto perguntar o
que é que está acontecendo.

Quando destaca a crise aguda do trabalho abstrato, você destaca a


reconfiguração do fordismo, o toytotismo e outras formas de organização
como uma fuga do capital em relação aos trabalhadores insubordinados, que
são substituídos por máquinas – para fugir de sua insubordinação. A
pergunta que fazemos é se não há uma influência da competição entre
capitalistas, para aumentar a produtividade com máquinas; isso não seria
também um elemento neste processo, ou você não concorda?

Mas não são elementos separados. Eu digo que a crise... a insubordinação, a crise é a
incapacidade do capital de subordinar o fazer suficientemente para convertê-lo em um
trabalho que produz mais-valia suficiente para manter a taxa de lucro. Então, a crise do
trabalho abstrato se manifesta como crise de rentabilidade do capital, e esta crise da
rentabilidade do capital implica uma intensificação da competição entre os capitais
individuais. Então é esta competição que impulsiona a introdução de novas tecnologias e a
expulsão do trabalho e desemprego, etc. Mas não podem ser vistas como duas coisas
separadas, mas como a intensificação da competição é sempre... é parte de um processo de
competir por uma porção da mais-valia social total.

Voltando um pouco ao começo, sobre a relação entre a luta do trabalho


versus luta contra o trabalho... há algumas cidades na Itália onde as pessoas
trabalham seis horas de segunda-feira a quinta-feira, por exemplo. Sabe-se

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que alguns sindicatos também lutam para a redução da jornada de trabalho.
Isto tem algum potencial de algum dia tornar-se uma luta contra o trabalho,
ou é apenas uma forma de amenização?

Não sei, creio que sim isso, que isso é importante. A luta para reduzir a jornada de
trabalho é uma luta... sim, é uma forma de luta contra o trabalho. É uma luta... sim, creio
que sim. Ter espaço para desenvolver outro tipo de fazer, outro tipo de atividade.

Por outro lado o tempo poderia ser usado somente para consumir mais, por
exemplo... este tempo liberado teria que ser...

O que acontece, obviamente não é... é uma luta para reduzir o tempo dedicado
abertamente ao trabalho abstrato, ao trabalho alienado, mas é uma luta que não coloca de
um modo radical a necessidade para abolir o trabalho, não se está colocando como luta
contra a abstração do trabalho. Mas sim, tem um potencial.

Você prefere o termo “fazer” em vez do termo " trabalho "... alguma razão
especial para isso?

Creio que há um problema de terminologia, sempre, que é bastante importante, ou seja,


se pensamos por exemplo na ideia da alienação, o trabalho alienado, não temos um termo
muito claro para o contrário do trabalho alienado. Se pensamos em trabalho abstrato, sim,
temos um termo contrário, trabalho útil ou concreto, mas há problemas com o termo,
simplesmente porque Marx diz que o trabalho útil existe em qualquer sociedade, mas a
distinção entre trabalho e outras formas de atividade não existe em qualquer sociedade. Se
pensamos no Estado como forma de organização, podemos falar do contrário como
conselho ou comuna ou assembléia. Mas para muitas coisas não temos termos claros,
temos dificuldades para expressar, expressar o que nós queremos dizer. E creio que isso
surge simplesmente do fato de que o antifetichizante, a luta contra o fetichização é como
uma luta debaixo da superfície, é uma luta da invisibilidade contra a visibilidade. É uma
luta a partir da penumbra. Então por isso eu acho que há problemas recorrentes de
terminologia. Por isso eu gosto muito da ideia de Raoul Vaneigem, quando ele fala da
revolução como “a revolução sem nome". Ou também muito explicitamente com os
zapatistas, que quando se insurgem vestem as balaclavas, para que as pessoas os vejam. E
dizem “nós somos os sem rosto, os sem voz”. Então não somente uma forma de protestar
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 14
contra a invisibilidade dos indígenas, mas acho que tem um simbolismo mais geral, que
estão dizendo que a revolução, a mudança radical do mundo, isso é a revolta da
invisibilidade, é a revolta do que não tem rosto, do invisível, do inaudível, do mundo sem
nome.

Você desenvolveu um conceito de dois níveis de luta de classes, gostaríamos


que falasse sobre isso.

Bom... para voltar um pouco ao que dizia antes, que a ideia de fetichização como
processo implica uma crítica à ideia de acumulação primitiva como uma etapa no passado.
Porque o conceito tradicional é que há duas formas... para o funcionamento do capitalismo
há dois tipos de conflito: primeiro, é o conflito necessário para criar o trabalhador, para
estabelecer o valor, para estabelecer o dinheiro, para estabelecer a propriedade privada dos
meios de produção, tudo aquilo que Marx escreve nos capítulos sobre a acumulação
primitiva, que normalmente é entendida como um processo passado, mas é um tipo de
luta. E então, uma vez estabelecido o capitalismo, nós temos a luta pela exploração. Se
dizemos que é necessário romper com esta linearidade da história, é necessário entender
que a luta para converter o fazedor em trabalhador é uma luta atual, não? Então, estamos
falando, estamos dizendo que estes dois tipos de luta devem ser entendidos como lutas
simultâneas. Quer dizer que aqui nós temos dois níveis de luta anticapitalista: por um lado,
é a luta para converter a... é a luta por parte do capital para converter o fazedor em
trabalhador, e por outro lado a luta para explorar o trabalhador. A partir da nossa
perspectiva, esta luta contra a conversão do fazedor em trabalhador, quer dizer, a luta
contra o trabalho [está] por um lado, e a luta contra a exploração do trabalhador por outro
lado... Agora, a tradição, a visão tradicional se concentra apenas na luta da exploração e
assume que a outra parte da luta já não existe. Mas na realidade esta luta da exploração, a
luta entre o capital e o trabalho tem como condição prévia a transformação do fazer em
trabalho, a transformação do fazedor em trabalhador. Por isso eu acho que se falamos das
duas lutas como lutas simultâneas, temos que dizer que o primeiro nível, a luta contra o
trabalho, é o nível mais básico. Então temos de um lado a luta do fazer contra o trabalho, e
por outro lado a luta do trabalho contra o capital. Mas a luta, para ir mais... finalmente, a
luta anticapitalista deve ser entendida como luta do fazer contra o trabalho, porque a luta
do trabalho contra o capital é real, mas está encerrada, é uma luta encerrada dentro da
lógica do capital.

[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 15


Sobre estes dois níveis, pensando um pouco nisso, nós vemos que há muitos
movimentos sociais que trabalham em tensão, como crise interna entre estes
dois níveis. Há alguma coisa que marque esta diferença, como momentos que
sejam mais de... um nível mais básico, este nível de antipoder, antitrabalho...
a busca da dignidade? Quer dizer, assumir a contradição e começar a
trabalhar pela dignidade, é este o fator...?

Na prática... bom, eu falei obviamente dos dois níveis como dois níveis diferentes. Na
prática a separação entre estes dois níveis não é necessariamente tão clara. Se pensamos na
luta contra o trabalho como a luta da dignidade, a política da dignidade, podemos pensar
no outro nível, da luta do trabalho contra o capital como, por um lado, a luta clássica dos
sindicatos, mas também como, talvez, uma política de pobreza, dos pobres, porque em
ambos casos a figura chave é entendida como uma vítima, como um objeto. Então,
pensando no que você diz, sobre as lutas dos movimentos sociais, de muitos movimentos
sociais, eu creio que há estes dois elementos presentes, o tempo todo, mas o tempo todo
então é questão de pensar como pensamos em nossas lutas, como uma política de
dignidade... como evitamos a conversão... como evitamos recair na política da pobreza. Isto
é questão de prática cotidiana, de reflexão constante.

E isto acontece nos exemplos de Venezuela e Bolívia? A “revolução


bolivariana”?

Sim, sim. Sim, Venezuela e Bolívia, Lula também, que é muito claramente, muito
explicitamente uma política para ajudar os pobres. É a ideia dos pobres como objetos, a
quem é preciso ajudar. Mas eu creio que toda a lógica por detrás das lutas estadocêntricas,
é uma lógica que assume os trabalhadores pobres como objetos. É outro conceito. E este é
o conceito que se recusa, de forma definitiva, no zapatismo. Eles de fato dizem: “não somos
poucos, somos dignos”...

Para Néstor López: por que um ex-militante da esquerda tradicional se


interessa por John Holloway?

Porque eu não sou um militante da esquerda tradicional...

Ex-...
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 16
Fundamentalmente por procurar uma teoria da práxis social revolucionária, porque a
ortodoxa para mim está perdida, mas... eu gostaria de fazer uma pergunta a Holloway...

[Néstor López]: Porque me parece muito... às vezes tenho medo quando


pensamos com modelos. Por exemplo... há uma greve. O próprio sindicato, os
burocratas lançam esta greve, mas as pessoas começam a se dar conta, e esta
é uma experiência vivida, durante a greve que... que vão para um mau
caminho com ele. Então eles formam um comitê de greve, e eles começam a...
o burocrata quer acabar a greve, mas não consegue, porque aparece um poder
ali, insubmisso. E eles fazem uma cozinha popular com fundo de greve,
buscam a solidariedade de outros setores de trabalhadores. Há um fazer, há
um fazer muito forte, o fazer a greve... não? Em última instância, este não é
um trabalho abstrato, mas você tem um trabalho muito útil para eles, porque
embora a greve... Eu creio que a greve sindicalista foi encerrada na lógica do
capital, mas mesmo assim, para essa comunidade, o que significará talvez
essa greve, lograr que não demitam muitos trabalhadores, ou que não tirem a
fábrica do lugar, ou enfim [...] é uma instância útil na qual estão trabalhando
e discutindo entre todos. Minha pergunta, e para pensar entre todos, é que aí
há um espaço muito importante, porque os trabalhadores se tornam
fazedores, fazedores de si mesmos, de seu próprio futuro, fazedores sociais.
Você também pensa assim?

Creio que o grande perigo desta distinção entre luta contra o trabalho por um lado e luta
do trabalho por outro é que isto pode ser entendido como uma forma de dizer que as lutas
importantes são as lutas fora do lugar de trabalho. Absolutamente não é isso. Não, a luta
do fazer contra o trabalho é também uma luta constante dentro dos locais de trabalho,
dentro das fábricas, que se expressa exatamente nas greves. Então, a ideia de enfatizar a
importância da luta do fazer contra o trabalho não vem para dividir as lutas
anticapitalistas, mas pelo contrário, para dizer que a luta de fábrica, a luta exatamente das
greves, transbordam o tempo todo, transbordam do trabalho, quer dizer, uma luta contra o
trabalho. Uma greve, normalmente, nos jornais, nas declarações dos sindicatos, muitas
vezes é apresentada simplesmente como uma ação para obter melhores condições de
trabalho. Mas na realidade não é assim. É assim, mas é muito mais, é também a criação de
outras relações sociais entre os trabalhadores, entre os trabalhadores e seus (suas)

[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 17


parceiros(as), e seus amigos... é a criação de companheirismos, de forma que para mim a
luta do fazer é a criação do companheirismo, e normalmente o companheirismo é
entendido como algo subsidiário que se produz na luta do trabalho contra o capital, mas
não é assim. O companheirismo é mais o transbordamento da luta do fazer contra o
trabalho em relação à luta do trabalho contra o capital. Sim, é muito importante dizer isso,
que simplesmente não é o caso de nos focarmos nas lutas fora dos locais de trabalho.

Isso que você fala sobre o companheirismo me faz lembrar um frase que me
parece brilhante de seu livro Mudar o mundo sem tomar o poder... onde você
diz que “o comunismo é o movimento da intensidade contra o embotamento
dos sentimentos que fazem com que os horrores do capitalismo sejam
possíveis". Essa frase me parece muito bonita... dentro deste contexto você
acha que o capitalismo nos torna pessoas insensíveis, como uma patologia
sócio-histórica... e dentro deste contexto, o que você acha das análises de
Marcuse, a análise filosófica da psicanálise que ele fez, do princípio de
realidade destrutivo... até mesmo na relação com a natureza... insensíveis
também na relação com a natureza.

Sim, creio que sim, que todo o processo de fetichização é um processo de coisificação,
como a criação de uma carapuça em nós mesmos. E isso só acontece, eu suponho, pelo... é
também um processo de autoproteção, porque senão, como viver com o que está
acontecendo no mundo... eu não sei, os horrores da AIDS na África, por exemplo, o
fazemos simplesmente através de um processo de alienação, um distanciamento, e isto é
parte do processo de fetichização. Então, creio que sim, que a fetichização implica um
processo de insensibilização. E sim, eu gosto muito do que Marcuse diz sobre tudo isso, é
questão de repensar e pensar politicamente... a psicanálise.

***

[Clarissa, jornalista, Revista dos Docentes da UFRGS (ADVERSO)] Existe um


termo que se usa hoje: “neomarxismo”. Queria entender isso: onde o seu
pensamento converge e onde ele diverge do marxismo?

Creio que... não vejo assim. Não vejo como questão de convergência ou divergência com o
marxismo. E não me interessa muito se sou marxista ou não sou marxista. Para mim sim.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 18
Mas não é questão de etiquetas, é antes questão de pensar... de pensar como mudar o
mundo, enfim. Venho de uma tradição marxista, obviamente, me movo dentro deste
ambiente, mas creio que para mim não é questão de convergência ou divergência.

[Daniel, jornalista] O movimento dos sem-terra no Brasil concorda que


assumir a administração do Estado não irá realizar nenhuma transformação.
Porém, creio eu que discorda desta visão de que não se pode tomar o poder.
Pelo contrário, o MST defende a construção de um poder popular para dar a
chamada “direção política” da sociedade. Em que medida, qual a sua opinião
sobre esta visão do MST, e esta visão do MST é convergente ou divergente em
relação aos zapatistas? Porque me parece que existe uma certa divergência de
projeto, digamos assim, entre o MST e os zapatistas...

Não conheço suficientemente o que está acontecendo no MST, mas um aspecto... me


parece que sim, estão tratando de construir um poder popular, como você diz, um poder-
fazer que comece desde baixo, através de suas ações estão construindo um poder-fazer
social. Agora, o problema é a relação entre esta construção, entre o poder-fazer, por um
lado, e o poder-sobre, por outro lado. Falei há alguns instantes sobre as duas tradições
dentro do movimento anticapitalista. Por um lado a tradição conselhista, por outro lado a
tradição estadocêntrica. É importante dizer que estas duas tradições são incompatíveis.
São diferentes. São tradições antagônicas. É importante dizer isso simplesmente porque
muitas vezes é dito que não há nenhuma contradição. A ideia, por exemplo, do Estado
soviético, foi como uma tentativa de dizer, “não, as duas coisas estão juntas, os sovietes, os
conselhos, e o Estado”. Na realidade esta combinação, esta expressão ocultou a repressão
violenta dos conselhos, dos sovietes. Então, a própria ideia de um Estado soviético é
absurda. É absurda. O mesmo se vermos o exemplo da Venezuela atualmente. Aí dizem
que estão tratando de construir um Estado tipo comuna. Que querem abolir o Estado
burguês e construir um Estado de tipo comuna ou conselhista. Parece-me que aí há uma
falta de clareza, ou é um Estado ou é uma comuna. E não há compatibilidade. Agora, se
vemos o caso do MST, eles estão em uma situação difícil, de querer desenvolver o poder-
fazer, por um lado, uma organização basicamente comunal, e, claro, têm o problema de
como relacionar-se com o Estado, por outro lado, o que implica outro tipo de organização,
outro tipo de política. E como eu o entendo... obviamente vocês sabem muito melhor do
que eu, há então uma contradição um pouco dentro do próprio movimento do MST. Uma

[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 19


contradição real, digo, que surge simplesmente da situação. Para mim, o desenvolvimento
desta construção do poder popular deveria implicar um distanciamento muito mais claro
em relação ao Estado. Mas aí, vocês... não conheço os detalhes.

[Renata, mestranda em geografia da UFRGS] O meu projeto de mestrado vai


em direção ao MST, porém com acampamentos, não com assentamentos. E no
MST existem, realmente, diferenças. Até por ser um movimento em grande
escala. E dentro dos acampamentos existem projetos, digamos, de autogestão,
que vai um pouco dentro do tema zapatista. Eu queria saber do senhor, a
relação da escala nesse poder-fazer. Por exemplo, se parte de um indivíduo,
se parte de um grupo, para poder expressar este poder-fazer contra o poder-
sobre. A intenção é perguntar sobre estas manifestações, mesmo que
temporárias, porque os acampamentos enquanto territórios são efêmeros,
eles estão ali e daqui a pouco não estão mais. Só que a proposta de resistência,
enquanto método de resistência dentro do movimento, é a autogestão. Eu
queria saber se essas zonas efêmeras... até me lembram pouco as zonas
autônomas temporárias, se elas são também uma manifestação de poder-
fazer.

Sim, isso me parece muito importante. Uma forma de ver este conflito entre poder-sobre e
poder-fazer é em termos de rachaduras, ou de fissuras. Há um conflito constante, há como
uma rebeldia constante do poder-fazer contra o poder-sobre. Mas esta rebeldia se
concentra em certos lugares e certos momentos. E uma forma de pensar isso é em termos
de fissuras. Quer dizer, se pensamos na dominação capitalista como um sistema de
comando, de mando, o dinheiro nos diz “faça isso”, “não faça aquilo”. E muitas vezes as
pessoas dizem “Não, não vamos fazer isso. Vamos fazer outra coisa”. Então, esta negação e
criação alternativa pode ser entendida como uma rachadura, uma fissura no tecido da
dominação. Se pensamos nos zapatistas, podemos dizer: aqui, em Chiapas, há uma fissura
enorme, onde as pessoas estão dizendo “não, já basta, vamos fazer outra coisa”, e estão
criando esta outra realidade. O mesmo na Bolívia nos anos 2002-2005. O mesmo com os
piketeros e as assembléias de bairro e as fábricas recuperadas na Argentina. As pessoas
estão dizendo, “aqui não, aqui não vamos obedecer ao capital, não vamos obedecer ao
dinheiro, vamos fazer outra coisa”. Estas são fissuras muito grandes. Mas exatamente
como você dizia, podemos pensar na fissura como uma fissura pequena, podemos dizer

[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 20


que no Grupo Fim da Linha, não vamos pensar em como reproduzir o capital, vamos tratar
de romper com o capitalismo, então aí temos uma fissura, bom, no momento ainda
bastante pequena, mas talvez em alguns anos seja enorme. Ou, podemos pensar em termos
pessoais, podemos dizer “não, não vou trabalhar hoje, não vou obedecer ao dinheiro hoje,
vou fazer o que eu quero fazer, o que me parece necessário ou desejável”, que seria uma
fissura pequeninha. E podemos pensar nestas fissuras... Então, pouco a pouco o que
acontece é que ao invés de ver o mundo como um sistema fechado de dominação,
começamos a ver, na verdade não, o mundo está cheio de fissuras, rachaduras, grandes e
médias, médias e pequenas. E estas fissuras podem ser fissuras espaciais. Como Chiapas.
Ou também podem ser fissuras no tempo. Podemos dizer: “este final de semana, neste
evento, este mês, aqui e agora, vamos romper com o capital, vamos fazer outra coisa”. E
isso, não sei se estamos nos referindo às TAZ, como se chamam em inglês, as “zonas
autônomas temporárias” de Hakim Bey... mas isso sim, seria para mim um tipo de fissura.
Como também se pode pensar em termos de certas atividades, como a educação, por
exemplo. Ou a água. Ou o software. Ou a música. Dizer que não, nossa luta é para que o
software não seja uma mercadoria, para que a música não seja uma mercadoria, para que
a educação não seja subordinada ao capital.

Quando você fala nas fissuras, creio que você está falando sobre o que disse
em seu livro: que a revolução consiste na intensificação da crise, da crise
subjetiva. Acredito que você também reconhece a crise objetiva do capital. A
crise da valorização, a substituição do trabalho vivo por trabalho morto.
Como você vê a relação entre essas duas coisas?

Para mim a única forma de pensar, ou a única forma que eu logro conceber uma mudança
radical é em termo da criação, multiplicação e expansão destas fissuras ou rachaduras. Não
me ocorre outra forma de pensar uma mudança radical. Estas rachaduras, ou a expansão
destas rachaduras obviamente implicariam uma crise da dominação capitalista. E a sua
pergunta é um pouco como pensar esta crise, pensar nela como crise subjetiva ou objetiva.
Creio que para mim não há uma distinção, simplesmente porque as contradições
aparentemente objetivas do capital na realidade são a reprodução da luta subjetiva. São
crises da separação entre sujeito e objeto. Se pensamos no valor, por exemplo, me parece
que o valor pode ser entendido como a reprodução do poder da resistência dentro da classe
dominante mesma. Bom, um exemplo talvez mais dominante e mais claro seria a questão

[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 21


do crédito. Temos visto, não li os últimos jornais, mas está claro que há uma crise do dólar.
E a crise do dólar, e toda a fragilidade que pode resultar para o mundo inteiro, tem muito a
ver com a expansão constante do crédito nos últimos 50 anos. Uma forma de entender esta
expansão constante do crédito não é simplesmente como uma contradição objetiva do
capital, mas como a expansão da força da resistência dentro do próprio capital. Há uma
expressão de um político estadunidense dos anos 30, quando começou o New Deal de
Roosevelt. Quando o padrão-ouro foi abandonado, esse político disse: “com este abandono
do padrão-ouro, a multidão se intrometeu no próprio dinheiro”. O poder das massas
conseguiu penetrar no próprio dinheiro. E minava a estabilidade do dinheiro. A lógica
obviamente é que o capital, para manter a estabilidade social, teve que debilitar o próprio
dinheiro, a estabilidade do dinheiro. Então a força das massas, a resistência, se intrometeu
no próprio dinheiro, e criou aí uma instabilidade crônica. E obviamente esta instabilidade
crônica foi justificada pela teoria de Keynes e dos keynesianos. Nos anos 70 houve um
contra-ataque, um contra-ataque monetarista e neoliberal, dizendo que “não, temos que
regressar ao dinheiro real, e deter esta expansão do crédito”. E na realidade não puderam
fazê-lo, houve uma expansão constante do crédito, que é como uma reprodução do poder
da insubordinação dentro do próprio capital. Então, o poder da insubordinação parece ser
uma contradição objetiva do capital. Mas não, não é isso. Então, é preciso entender a crise
como uma combinação das diversas manifestações da força da insubordinação, enfim.

[Daniel, jornalista] Existe um refluxo nos movimentos. Falando em termos


bem práticos, há muito pouca gente na rua, e os movimentos não estão
sabendo dialogar com a massa da população no trabalho informal, ou
desempregada, porque a esquerda é muito centrada na figura do operário, do
camponês. Onde buscar gente para fazer a luta?

Para mim a rebeldia está presente o tempo todo. Isso tem muito a ver com a sua pergunta,
que a rebeldia está presente o tempo todo. E muitas vezes não se expressa, ou se expressa
em queixas individuais, em ações individuais, e neuroses também. Somente em certos
momentos, como em 90 no México, 94 e depois na Argentina em 2001, 2002 na Bolívia,
2000 a 2005, em certos momentos há uma convergência das rebeldias, uma explosão das
rebeldias. ... no momento atual as coisas esfriaram um pouco... bom, por várias razões. Na
Argentina, em parte como resultado do governo de Kirchner e a canalização das rebeldias.
O mesmo na Bolívia. Então, parece que são poucos, agora, que é pouca gente, pouca gente

[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 22


que está envolvida. Mas me parece que não se deve definir, não se deve pensar a rebeldia
somente em termos de uma rebeldia viva e manifesta, mas também como algo latente na
sociedade. E é questão de pensar como provocar, como podemos chegar a esta rebeldia
latente. Os zapatistas conseguiram fazê-lo, nos primeiros anos, souberam através de suas
ações e seus comunicados. Conseguiram tocar a rebeldia de todos. Agora parece que é mais
difícil, neste momento, para eles.

[Rodrigo, estudante de direito] Os próprios sindicatos, na verdade,


anteriormente lutavam para que se mudassem as relações de trabalho, depois
passaram a lutar por melhorias salariais e hoje vemos vários sindicatos
lutando para que não se perca o trabalho, para poder trabalhar. Gostaria que
você comentasse como enxerga isso, dentro do contexto de refluxo que ele
colocou.

Tenho uma pergunta relacionada a essa. Pelo que entendi, você relaciona este
tipo de organização e de luta com a luta do trabalho, enquanto nós queremos
uma luta contra o trabalho. Você enxerga a possibilidade da luta do trabalho,
que existe nos sindicatos, nos movimentos sociais, transformar-se em luta
contra o trabalho, de se radicalizar essa luta para uma nova perspectiva?

Primeiro tenho que explicar... se falamos da luta do fazer contra o trabalho. Quer dizer que
há dois níveis de luta anticapitalista. Há a luta do trabalho contra o capital e há a luta do
fazer contra o trabalho que produz o capital. Então, o trabalho que produz o capital é o
trabalho abstrato ou alienado. Por um lado, está a luta do fazer contra o trabalho abstrato
ou alienado, de outro lado a luta do trabalho alienado ou abstrato contra o capital. Agora, a
luta do trabalho alienado contra o capital é a luta mais visível. A luta que se organiza em
sindicatos, a luta que se organiza em partidos. Esta luta, exatamente como você falou, é
uma luta baseada na aceitação da existência da força de trabalho como mercadoria. Então,
é uma luta por melhores condições, por melhores salários. Mas é uma luta que fica dentro
do marco do capitalismo. Ao mesmo tempo, dentro desta luta, há uma luta que
transborda... A luta sempre vai mais-além de suas formas de organização. Então, dentro da
luta sindical sempre há a luta por algo mais do que melhores condições de exploração.
Dentro dos sindicatos há sempre como um movimento que busca ir mais além do
sindicato. E se pensamos em uma greve, por exemplo: oficialmente, a greve é para obter

[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 23


melhores salários. Mas na verdade o que os trabalhadores querem é uma quebra de rotina.
Deixar de ir trabalhar por uma semana, ou duas semanas. Querem transformar suas
próprias relações. Na Grã-Bretanha houve uma greve muito, muito importante em 1985, a
grande greve dos mineiros contra o governo Thatcher, que durou um ano ou mais. E os
mineiros, os trabalhadores mineiros e suas esposas iam por todo o país organizando
encontros, falando. E em muitos casos eram as esposas que falavam. E elas diziam que a
experiência da greve transformou nossa comunidade, transformou nossa relação com
nossos pares. Também transformou nossa vida porque antes a ideia de falar em público, a
princípio nos dava muito, muito medo. Mas agora, é algo que fazemos a toda hora. Então,
por detrás da luta do trabalho contra o capital, muitas vezes dentro disso há uma luta que
vai muito mais além, que transborda as formas institucionais.

Sobre as dificuldades e os desafios da construção de um movimento de


massas... Sempre que você responde alguma pergunta do tipo, você acaba
utilizando o exemplo dos zapatistas. Mas não podemos negar que eles
possuem uma tradição cultural que é completamente diferente daquela vivida
nas cidades. Você vê alguma contribuição do movimento zapatista para um
movimento mais urbano? Existe a possibilidade de aprender alguma coisa
com isso e organizar algo nas cidades, a partir deste exemplo, ou teria de ser
algo completamente diferente?

Creio que este é um grande problema agora. Pois os zapatistas são quem exatamente? São
campesinos e são indígenas. Têm comunidades muito fortes, com tudo de bom e de ruim
que isso implica, comunidades bastante fechadas. Têm tradições de lutas muito antigas,
em Chiapas, têm seus próprios terrenos, terras, que eles podem cultivar. E na cidade...
bom, um pouco como o MST também tem suas terras... depois de ocupadas tem suas
terras. E na cidade é diferente, porque não temos este tipo de comunidade. Não temos
acesso à terra para sobreviver, a única forma pela qual podemos sobreviver é normalmente
vendendo nossa força de trabalho, dependendo do apoio de nossos... ou de alguma outra
forma. Então é uma situação muito diferente. E isso para nós é o problema do zapatismo
urbano. E com “a outra campanha” os zapatistas saíram de Chiapas e foram viajando por
todo o país com a ideia de estender... bom, com a ideia de escutar, de aprender com outras
lutas, mas também de estender o zapatismo a todo o país. E há problemas e dificuldades.
Nas cidades a situação é diferente. Então não podemos pensar... podemos aceitar e

[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 24


desenvolver muitos princípios do zapatismo. Claro, é uma questão de luta de dignidade,
que não queremos tomar o poder, que temos que caminhar perguntando, etc. Mas sim, a
situação não é a mesma. E aí está o problema. Para nós, no México, o grande exemplo é a
Argentina. Lá sim houve um movimento muito importante nas cidades. Então, realmente é
questão de ir pensando em tudo isso. Porque sim, porque está mais claro agora do que há
cinco anos, que estas tentativas de desenvolver autonomia nas cidades enfrentam
dificuldades, ou enfrentam contradições nas quais temos que pensar. As autonomias são
sempre contraditórias, especialmente nas cidades. E eu sinto que temos que falar sobre
estas contradições. E não somente celebrar os êxitos, mas também falar sobre as
contradições e as dificuldades.

***

Li um texto do Frei Beto, dentro de um espaço de discussão interno ao MST,


sobre como o neoliberalismo consegue nos fazer sentir culpados pelos
problemas do mundo. Se não tenho sucesso, a culpa é minha, não sou
competente o suficiente, ou não apresento os méritos que deveria apresentar.
(É uma ideia desenvolvida também no Manifesto contra o trabalho, do Grupo
Krisis: eles fazem essa denúncia, do sentimento de culpa individual em
relação aos problemas sociais). E então ele nos propõe uma discussão, que
também se volta ao indivíduo, mas enquanto potencial, impulso-contra, não
como culpa, mas como impulso de superação destas relações. Você concorda
com isso?

Sim, creio que o neoliberalismo, como você disse, cria um sentimento de culpa, porque
tudo é visto em termo de nossas capacidades pessoais, individuais. Mas também creio que
a tradição da esquerda cria sentimentos de culpa, porque nos impõe como uma ideia do
que deveríamos ser. Por exemplo, para regressar com isto1, a ideia tradicional do sujeito
revolucionário como trabalhador, assalariado, é uma ideia defeituosa. É uma ideia
defeituosa, porque está baseada na repressão, está baseada na repressão da dançarina.
Está baseada na ideia da repressão do “frívolo”, do que não é “sério”. Está baseada na
repressão... bom, da mesma forma pela qual esta figura realmente é uma figura reprimida,

1
Holloway aponta para um desenho que utilizou em palestra anterior, aproximadamente reproduzido aqui.
A intenção foi apresentar didaticamente tanto a “acumulação primitiva do sujeito” (a transformação do
fazedor em trabalhador) quanto o não-idêntico.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 25
tomar esta figura como ponto de partida implica a repressão, não sei, do... do lado lúdico,
implica a repressão da sexualidade, implica a repressão do dançar... E portanto cria
sentimentos de culpa. Cria sentimentos de culpa com relação às atividades que não cabem
dentro desta imagem. E cria sentimentos de culpa para pessoas que não se identificam com
esta imagem. Então, tipicamente, os estudantes, os acadêmicos, se queremos ser parte do
movimento revolucionário, em algum sentido começamos a ter sentimentos de culpa,
porque não somos realmente trabalhadores. Ou no caso de alguns grupos... no caso de
Néstor [López], sua organização lhe mandou ir trabalhar na fábrica, para que coubesse
dentro desta identidade. E isso é terrível! Implica um grau de repressão, de auto-repressão
espantoso! (...) Por exemplo, há um livro de Nadine Gordimer onde ela fala de sua
experiência dentro do Partido Comunista, onde diz que não havia espaço para falar sobre
as coisas que eram importantes para ela, como a questão da sexualidade. E creio que esta
experiência foi muito comum nas organizações de esquerda, de tal forma que muita gente
simplesmente deixou as organizações e esqueceu toda ideia de revolução. (...) E hoje ainda
estamos criando e recriando uma imagem do revolucionário puro. Por exemplo, a imagem
do subcomandante Marcos. Por um lado sim, muito bem, uma fonte de inspiração ou de
admiração, mas ao mesmo tempo como que cria uma imagem do que deveríamos ser, mas
não o somos. É a reprodução da imagem do revolucionário ideal, e portanto a criação de
um sentimento de culpa. E por isso, em parte por isso, não queremos falar de forma
consciente de nossas contradições. Normalmente não queremos falar sobre isso. Porque
falar sobre isso implicaria aceitar que não nos conformamos exatamente como a imagem
(...).

[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 26


[Artur Sinimbu, Rádio Laboratório de Comunicação Comunitária (Brasília)]
O mercado como regulador da vida humana, é apresentado com a ideia de
uma “mão invisível”. Por outro lado, historicamente se pensou na alternativa
da economia planificada. Do ponto de vista da contradição entre o fazer e o
trabalho, como pensaríamos a economia? Existe algum mecanismo de
autorregulação da economia para além do mercado? Como você vê a
economia planificada?

A abstração do trabalho, o trabalho abstrato é a criação de uma síntese social. A abstração


é um processo de juntar todas as atividades diferentes dentro de uma totalidade, uma
síntese social, ou de uma economia. E isto implica uma separação da economia em relação
à vida, uma separação entre economia e vida. Agora, se dizemos que queremos abolir o
trabalho abstrato, isto implica abolir a economia, ou abolir a separação entre economia e
vida. Implica também abolir a totalização das atividades concretas. Então para mim não
seria questão de uma planificação central, mas de um processo que vem de baixo, de ir
interrelacionando, estabelecendo relações entre diferentes atividades. Agora, isto pode ser
que não seja muito eficiente, mas na realidade a planificação central nos países do Leste
também foi muito ineficiente, e o mercado também é muito ineficiente. Porque o mercado
implica a destruição enorme, todo o tempo, de valor ou de forças produtivas. Mas também
implica que uma porcentagem considerável da população dedique a sua existência
simplesmente a assegurar o respeito à propriedade. Então o mercado não tem nada de
eficiente. Talvez seja melhor pensar em diferentes atividades, diferentes... não sei, que se
vão juntando, e juntado, vai haver alguns desperdícios, mas o modo [concreto]... Não sei,
não tenho a resposta.

A crise ecológica hoje não é mais novidade para ninguém. Todos já sabem. A
minha pergunta é se você vê uma relação entre o trabalho abstrato, ou a
transformação do fazer em trabalho, com a crise ecológica, a destruição da
natureza.

Sim. Porque esta transformação do fazedor em trabalhador é a separação entre sujeito e


objeto, é a separação também do sujeito em relação ao mundo que nos rodeia. Então esta
separação entre sujeito e objeto implica não somente a objetivação da pessoa, mas também
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 27
a objetivação de outras formas de vida, e da natureza. Então, parte do trabalho abstrato é
precisamente esta ideia, este distanciamento em relação à natureza. A única forma de
superá-lo, me parece, é superando o trabalho abstrato, e superando também ao mesmo
tempo as formas de pensamento que são parte do trabalho abstrato.

Seu último livro é sobre Adorno, livro que você organizou. Gostaria que
dissesse se em sua opinião o pensamento dialético segue sendo importante, e
por quê. E por que Adorno?

Tudo o que falei sobre a relação entre fazer e trabalho, suponho que é um conceito
dialético. Porque o que estamos fazendo é de dentro do trabalho. Porque dentro do
trabalho existe o fazer. Então é preciso abrir, é preciso abrir a categoria do trabalho, e ver
que dentro deste trabalho, desta categoria, há um antagonismo... É preciso não somente
pensar em trabalhar, em trabalho e trabalhadores... não. Mas é preciso abrir o conceito de
trabalho e ver que dentro do trabalho há um antagonismo. Há um fazer ou um trabalho útil
ou uma atividade vital consciente (o termo não importa muito) e existe contra-e-mais-além
do trabalho, então se parte de um argumento geral de que as categorias de Marx... quando
ele fala em formas de relações sociais... é preciso entender as relações de forma como uma
relação contra-e-mais-além, e não somente como uma relação de subordinação, de
contenção. E isto, este contra-e-mais-além me parece que tem implicações políticas.
Porque justamente se pensamos somente em termos de um mais-além... se pensamos, por
exemplo, que o movimento de desempregados existe mais-além da luta de classes,
digamos, então estamos dividindo, aceitando a divisão entre as lutas... se andamos em
termos de contra-e-mais-além, me parece que estamos pensando em outros termos,
estamos falando de uma unidade contraditória das lutas contra o capital. Então, sim a
dialética me parece que ainda segue sendo central para entender o que está acontecendo e
para pensar em como mudar o mundo. E por que Adorno? Não sei, porque, creio que são
duas razões contraditórias. Bom, primeiro porque começamos a ler Adorno nos
seminários, e nos parecia incompreensível, e ainda nos parece incompreensível. Mas
também muito emocionante. Porque politicamente não é tão atraente quanto Marcuse, por
exemplo. Em termos do que escreveu, mas também em termos do que fez. Porque Marcuse
se alinhou muito fortemente com os movimentos estudantis, e Adorno não o fez. Mas
Adorno nos parece muito importante porque leva esta ideia da contradição e da rebeldia à
sua fundação ou à sua categoria mais básica, que seria a identidade. E Adorno diz então,

[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 28


não podemos pensar na vida submetida à identidade, temos que entender que o idêntico
sempre contém o não-idêntico, o não-idêntico vai escapando do idêntico, vai
transbordando do idêntico. E isso me parece que talvez seja a expressão mais básica desta
ideia do fazer que vai transbordando do trabalho, ou do fazedor que vai transbordando do
trabalhador, ou dos indígenas em Chiapas que transbordaram da identidade indígena.
Então, se há implicações políticas, elas são muito, muito emocionantes. E por isso, por isso
Adorno.

Também implica o seu conceito de classe como classificação, que nós não
somos puramente trabalhadores, há algo em nós que escapa. Somos e não
somos trabalhadores...

Exatamente, que somos e não somos trabalhadores. Quer dizer, somos trabalhadores mas
estamos em revolta contra nossa condição de sermos trabalhadores... e transbordamos
nossas... [interrompido pelos sinos da igreja próxima]. E sim, há um transbordamento
constante, sim... transbordamos de nós mesmos.

(Transcrito por Daniel Cunha.


Traduzido por Daniel Cunha e Cláudio R. Duarte.
Ilustração de Felipe Drago, reproduzindo aproximadamente ilustração de John Holloway.)

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Sobre fundo de noite
Notas sobre Jean Genet

Raphael F. Alvarenga

LA REINE : “Messieurs, vous êtes libres...”


L’ÉVÊQUE : “Mais… en pleine nuit ?”
(Le Balcon, 1956)

“Tout aura lieu sur fond de nuit...”


(Un captif amoureux, 1986)

Embora traduzida em grande parte para o português, a obra de Jean Genet (1910-
1986) é infelizmente ainda pouco lida no Brasil, seu teatro relativamente pouco encenado,
sua vida pouco conhecida. Aliás também na França. Não sei bem a que se deve o
“esquecimento”. É verdade que seus livros são, se não desviadores, desconcertantes,
aventuras perigosas, principalmente para o leitor sensível à sua prosa, que mimetiza e
recria poeticamente um mundo cão, da vida no limite, da luta pela sobrevida nas margens
da sociedade. É fato que a leitura de seus romances, peças, textos militantes, por diferentes
razões, raramente deixa indiferente. Como escreve Juan Goytisolo, amigo do escritor:
“Conocer íntimamente a Genet es una aventura de la que nadie puede salir indemne.
Provoca, según los casos, la rebeldía, una toma de conciencia, afán irresistible de
sinceridad, la ruptura con viejos sentimientos y afectos, desarraigo, un vacío angustioso,
incluso la muerte.”1

A alta qualidade de sua poesia, seu grande talento literário, me parecem inegáveis.
Justamente o que é traiçoeiro. Não se deixar completamente enfeitiçar por sua bela prosa,
manter a distância necessária para que não haja uma identificação mimética ritual com o
regime do limite, no qual se desloca boa parte da obra genetiana, constitui assim uma real
dificuldade quando se aborda esta última. Não se trata, no entanto, de obra homogênea.
Genet soube transpor magistralmente suas errâncias e experiências das margens em
formas literárias capazes de expor com rigor o curso degradado da experiência dos

1 Juan GOYTISOLO, En los reinos de taifa (1986), Madrid, Alianza, 1999, p. 180.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 30
degenerados e renegados da sociedade, e com tal exposição procurou marcar sua oposição
a ele. Só que isso não se dá de igual maneira nos romances, nas peças, no último livro. Há
então que se distinguir até que ponto em seus escritos a oposição à sociedade burguesa e
ao imaginário capitalista é mais que oposição abstrata; até que ponto é superada a visão de
seus romances, que marcam a primeira fase do autor, nos quais as normas burguesas e as
condições sociais negativas na qual se encontram inseridas suas personagens parecem ser
como que “aceitas” enquanto pressupostos necessários à revolta e à subversão.

***

Num de seus inéditos ensaios “brasileiros” dos anos 60, Gérard Lebrun argumentava
– na linha do amigo Foucault, que então colocava no papel os textos que viriam a compor
Les mots et les choses – que o ponto nevrálgico dos romances de Genet, todos publicados
nos anos 40, não estaria no imaginário de uma mitologia privada, como defendia Sartre em
sua canonização de Saint Genet, mas ao contrário na abolição desse mesmo universo
representativo através da destruição deliberada da linguagem puramente denotativa, da
linguagem das pessoas “normais”2. O que explica, por assim dizer, que Genet reivindicasse
para si todos os atributos que lhe colava a sociedade – ladrão, vagabundo, pederasta,
prostituto, covarde e traidor – usando-se para tanto do mesmo idioma consagrado por
aqueles que desde sempre o condenaram, a saber, o francês mais clássico, cuja inspiração
maior, no seu caso, seria a poesia de Ronsard. Não obstante a justeza de tal argumento,
Sartre não deixava de ter certa razão quando afirmava que o ideal de uma arte gratuita
para Genet “ne vaudrait pas une heure de peine”3, ou seja, que cada um de seus livros seria
presidido por uma forte preocupação moral.

Filho bastardo, tendo o ingresso à sociedade burguesa lhe sido desde cedo negado,
não lhe restou outro desejo senão que o de negar em si próprio o homem da ordem
dominante. Por isso, em vez de aceitar passivamente, quieto e submisso, o que lhe fora
dado como destino, reivindicou-o conscientemente para si e fez de tudo para levá-lo às
últimas consequências. Por aí se entende o lugar central dado à “traição” em suas obras,
pela qual ele chega a se desgarrar de seu corpo, de sua vida e de sua própria sensibilidade.
É a traição que lhe torna possível arruinar seus amores, desconstruir em permanência sua
identidade e se conferir “uma nova dignidade na infâmia, que lhe permite se desprezar

2 Cf. Paulo Eduardo ARANTES, Um departamento francês de ultramar. Estudos sobre a formação
cultural filosófica uspiana, São Paulo, Paz e Terra, 1994, p. 192.
3 Jean-Paul SARTRE, Saint Genet, comédien et martyr, Paris, Gallimard, 1952, p. 514.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 31
mais diligentemente”4. Melhor dizendo: a traição é o meio pelo qual Genet se liberta da
máscara caracterial e destroi a personalidade socialmente aceitável, desprezando em sua
própria pessoa toda e qualquer remanescência de subjetividade burguesa.

Tal negação no entanto não se dirige às estruturas, ao prático-inerte, pois fica presa
ao nível empírico de personagens contingentes. Sem falar que, salvo engano, parece haver
algo de patologicamente autodestrutivo aí. Seja como for, essa compreensão primeira,
poder-se-ia dizer visceral, da brutalidade normalizada da sociedade burguesa,
compreensão sobre a qual se calca sua oposição a esta última, só será devidamente
politizada mais tarde, através do contato com Alberto Giacometti. Se nos romances que
marcam sua fase inicial o mundo vivido e recriado poeticamente pelo autor é um mundo
estático, marcado pela contradição de personagens a um tempo filhos de suas obras e
prisioneiros de um destino trágico, inevitável, e pelo fato mesmo devendo ser assumido
“livremente” como tal, sob a influência de Giacometti a visão de Genet evoluirá pouco a
pouco no sentido de uma remise en question radical da ordem “natural” das coisas. O que
num primeiro momento se dará nas peças teatrais, dos anos 50, e em seguida nos textos
militantes, dos 70, e no último livro, publicado logo após sua morte em 1986, cuja forma a
um tempo fragmentária e épica logra anular todo traço de positividade, segurança
ontológica, congelamento social e resolução forçada de contradições e antagonismos. O
que visa Genet a partir de certo momento em sua vida é espessar o fundo noturno sobre o
qual na modernidade tardia se desenrolaria o fio da história. Resta a saber se essa noite
espessa é prenhe de algo diferente ou se ao contrário turva toda e qualquer visão de
superação do status quo.

***

Faz-se necessário, quando se fala em identidade, questão ainda muito em voga, trazer
à tona algo que é geralmente escamoteado nas interpretações da obra de Genet. As leituras
culturalistas desta, nas quais a homossexualidade do autor aparece como ponto central na
compreensão da obra, erram completamente o alvo. Assim como o fato de escrever em
francês, no caso de Genet, não indica mais do que a pertença não necessariamente
identitária a uma comunidade linguística, de modo algum a uma suposta essência francesa
ou latina, também o homossexualismo (o termo de “homoerotismo” me parece no seu caso
mais adequado), presente em toda sua obra, não tendo sido vivido pelo autor como
identidade sexual, vale dizer, como “homossexualidade”, não deve ser tomado como chave

4 Ibidem, p. 208.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 32
explicativa de seus livros. Numa palavra: Genet não faz literatura gay. Se numa carta a
Sartre definiu o homossexualismo como o desejo de não ver o mundo se perpetuar tal qual
é, como prática contra o “mais do mesmo”, no mais das vezes preferia não se declarar a
respeito, chegando mesmo a dizer, talvez cansado de perguntas ligando sua obra à sua
escolha sexual, que toda cena erótica presente em seus livros poderia ser de igual maneira
cenas contendo, no lugar de homossexuais, jovens casais heterosexuais, sem que com isso
fosse alterada no que quer que seja a carga erótica das mesmas. Porque em Genet, que
nunca defendeu abstratamente o sadomasoquismo como o fizeram alguns autores pós-
estruturalistas, não há obscenidade – mesmo em Nossa Senhora das Flores – que não
venha acompanhada de ternura. Ele canta o amor livre, não o sexo selvagem e
desenfreado.

O que boa parte dos críticos, principalmente aqueles ligados aos cultural studies e às
gender issues, não consegue enxergar, é que em Genet a identificação – sexual ou outra – é
quase sempre negada ou subvertida no nível da forma. Genet explorou como poucos na
língua francesa as combinações rítmicas, a equivocidade sonora e semântica, os parônimos
e as polissemias. Sua escrita se engendra e progride através de tal exploração; as palavras,
os sons e os significados seguem provocando uns aos outros5. O que não impede que tal
“método” exigisse do artista que sua poesia em prosa fosse elaborada ao extremo, seu
lirismo extremamente consciente. Como diz o próprio num de seus romances: “A poesia é
uma visão do mundo obtida por um esforço, algumas vezes esgotante, da vontade tensa,
resistente. A poesia é voluntária. Ela não é um abandono, uma entrada livre e gratuita
pelos sentidos; ela não se confunde com a sensualidade.”6 Se o estilo a um tempo suave e
sofisticado era para ele o mais apropriado para exprimir emoções profundas e inomináveis,
a expressão destas tinha de ser altamente controlada para que se atingisse o resultado
desejado. E o resultado é um lirismo e um humor bastante sutis.

É jogando sutilmente com a sintaxe francesa que Genet procura feminizar coisas e
atividades tipicamente masculinas – como um fuzil, um canhão, as práticas militares – e
com isso desestruturá-las como que do interior, chacoalhando assim o prático-inerte da
segurança patriarcal estabelecida. Tome-se como exemplo o uso ambíguo da palavra

5 Cf. por ex. Jean GENET, Journal du Voleur, Paris, Gallimard, 1949, pp. 146-47: “Me regardant regarder, il
ne parlait pas du manège mais de son génie. [...] J’écoutais parler une ménagère marchandant un
géranium. [...] La nuit, enroulé dans une couverture, il couchait sous les bâches du manège.” Toda uma
cena construída em torno de palavras, sons e significados que se entrelaçam e se encadeiam: manège–
génie–menagère–géranium.
6 Jean GENET, Notre-Dame-des-Fleurs (1944), Paris, Gallimard, 1948, p. 260.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 33
“sentinela” no início de Um prisioneiro apaixonado7. Cito a passagem em questão no
original, pois traduzida, a ambiguidade desejada pelo autor se perde completamente: “En
se déplaçant la nuit, sur l’herbe et sur les feuilles, les sentinelles en armes ne faisaient
aucun bruit. Leurs silhouettes voulaient se confondre avec les troncs d’arbres. Elles
écoutaient. Ils, elles, les sentinelles.”8 O artigo plural “les” em francês designa “os” ou “as”.
Na primeira frase, Genet o emprega em contexto indeterminado, precedendo um
substantivo também ambíguo, “sentinelles”, que designa a um tempo o masculino e o
feminino, e em seguida evita habilmente a locução adjetiva – escreve “en armes” (com
armas) e não “armés” (armados) ou “armées” (armadas). Tais artifícios fazem com que o
leitor suponha, pela normalidade da coisa, se tratar de homens armados. A terceira
sentença porém – “Elas escutavam” – desfaz num só golpe a certeza inicial do leitor, e a
quarta – “Eles, elas, as sentinelas” – reintroduz a ambiguidade originária do substantivo.
Note-se também a presença repetitiva do morfema “elas”: “Elas escutavam. Eles, elas, as
sentinelas.”

Estes e outros arranjos formais, encontrados nas várias obras do autor, tornam
possível a revelação da feminidade intrínseca de um termo em geral usado para designar
objetos ou atitudes masculinas, de maneira que quebram por assim dizer o referente
masculino, no caso, a virilidade referencial do termo “sentinela”. Paradoxalmente, ao
sexualizá-las ao máximo, Genet liberta as palavras do vínculo sexual e identitário.

***

Embora não encarnasse uma qualquer identidade social fixa, ainda que reivindicativa
(homossexual, no caso), tampouco chegava a ser um camaleão filosófico à maneira dos
foucauldianos, correndo na esteira da contínua redescrição irônica de si mesmos. “Ne me
demandez pas qui je suis et ne me dites pas de rester le même”9, escrevia Foucault no fim
dos anos 60, marcando a recusa de se fixar numa identidade estável, monolítica, o horror
em suma de ser localizado e investido por instâncias do poder. Apesar de também recusar
a prisão da identidade, Genet pressentira já nos anos 70 a armadilha por trás da falsa
liberdade da troca de peles pós-moderna. Em La nuit venue (1976), cenário de filme
inédito, a vida do homem ocidental é retratada como uma busca incessante e angustiante

7 Cf. Patrice BOUGON, “Un captif amoureux”, L’Infini, n° 2, (été 1988), pp. 109-126.
8 Jean GENET, Un captif amoureux, Paris, Gallimard, 1986, p. 17.
9 Michel FOUCAULT, L’Archéologie du savoir, Paris, Gallimard, 1969, p. 28.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 34
de prazer. No entanto, ou por isso mesmo, os indivíduos que no filme não passariam de
organismos selvagens desenfreados não mais desejariam o que quer que seja10. Função do
imperativo superegóico ao gozo puro através do consumo ilimitado, a cultura do
divertimento dirigido, dita “do lazer”, acaba por matar o desejo, anulando-o ou
contornando-o todo o tempo, e com ele a capacidade de se imaginar algo melhor que o mar
de bugigangas desoladoras no qual se afogam justamente os sonhos e os potenciais
humanos rebeldes.

Nos anos 70, Genet disse de seus primeiros livros que o estilo era manifestamente
diferente do que viria a fazer mais tarde, mas que o indivíduo que os escrevera era o
mesmo. Como entender a coexistência da negação de uma identidade estável –
principalmente após o livro de Sartre – e a reivindicação de um certo continuum
ontológico que perpassaria toda a obra? Vejamos esta outra declaração: “A revolta de
minha infância, a revolta de meus quatorze anos não era uma revolta contra a fé, era uma
revolta contra minha situação social, contra minha condição de humilhado.”11 À primeira
vista, parece inegável que a vida toda Genet tenha se revoltaltado contra a sociedade
burguesa, não podendo se reconhecer no seio desta a não ser na injustiça absoluta de ter
desde criança sido jogado à margem da vida. Razão pela qual se sentia em casa na
companhia de marginalizados de toda ordem. O que não o impedia de frequentar também
o andar de cima: era visto nos bistrots de Montmartre e nos festivais de Cannes tanto
quanto nos guetos e bairros mais pobres das grandes cidades européias. Nunca foi
proprietário; quando não estava preso – em geral por roubo de livros – vivia em quartos
apertados de pequenos hotéis baratos nas proximidades de uma estação. Nunca teve bens
além de uma pequena mala com manuscritos e roupas velhas. Quase todo o dinheiro que
ganhava com suas obras vertia a seus amigos marginais: imigrantes, ex-carcerários,
artistas menores...

A duplicidade constitutiva do sujeito Genet, a um tempo poète et voyou, como


outrora Villon, “explica” por assim dizer sua ambiguidade (para não dizer volubilidade)
caracterial: podia ser, com uma mesma pessoa, afável e distante, amante e cruel, amigo fiel
e traidor. De certo modo, vem desse caráter constitutivamente dual, embora fosse por ele
vivido como uma espécie de jogo, a força, mas também a fraqueza, do personagem.
Segundo Sartre, apesar de ter sido aceito pela sociedade por seu talento literário e a

10 Cf. Jérôme NEUTRES, Genet sur les routes du Sud, Paris, Fayard, 2002, pp. 184-85.
11 Jean GENET, “Entretien avec Madeleine Gobeil” (1964), in:__. L’Ennemi déclaré: textes et entretiens,
Paris, Gallimard, 1991, p. 27.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 35
despeito de seus crimes, Genet jamais renegaria suas fidelidades, jamais abdicaria de sua
condição de “excluído” e marginal. Em toda sua obra aliás se pode notar de forma explícita
a recusa de reconhecer no leitor um semelhante. É fato também que seu último livro – Um
prisioneiro apaixonado – escandalizou a intelectualidade francesa e a opinião pública
tanto quanto seus primeiros romances, suas peças ou seus textos e entrevistas em apoio a
grupos e movimentos considerados terroristas pela doxa dominante. É preciso nesse
contexto ver se e como a maleabilidade de Genet, o uso (crítico? lúdico? cínico-
esclarecido?) dos disfarces e máscaras sociais impostas, se reflete mais tarde, em sua
dramaturgia. É preciso se perguntar ademais se a volubilidade do sujeito no regime do
limite, se virando como pode em sua fuga da identificação, não gira num mau infinito de
oportunismos e pequenos crimes cá e lá que evita no fim das contas ao sujeito o fardo da
necessidade de se decidir, de realmente tomar parte e enfrentar o mundo e suas
contradições.

Reformulando então: a vida inteira Genet se revoltaria contra a sociedade burguesa,


não podendo se reconhecer no seio desta a não ser como marginal. Sem dúvida. Acontece
que nos romances genetianos a revolta contra a ordem burguesa e suas normas não se
traduz em ação, pois para gozar plenamente da subversão das mesmas ele pressupõe não
somente a existência da ordem, da lei e da norma, mas igualmente, principalmente, sua
preservação e perpetuação. De certa maneira, o Genet da primeira fase, romanesca, é uma
encarnação da “bela alma” hegeliana, incapaz de traduzir prática e concretamente sua
revolta com a sociedade dominante. Zeloso na conservação de sua pureza abjeta,
desfrutando da imagem algo mítica que a duras penas criou de e para si mesmo – de ladrão
pederasta apátrida, ainda por cima “santificado” –, ele se permite assim julgar o Outro (o
burguês in abstracto) quase que candidamente do alto da visão moral da abjeção e do
crime que se contenta com seu ser-assim. Sartre de certa forma percebeu isso em seu
desnudamento do escritor.

Com efeito, em Genet os anos de aprendizagem e peregrinação coincidem, mas a


démarche de fundo é algo semelhante à de um romance de formação, no caso, de um
sujeito que reencontra no mundo das letras o sentido perdido na prosa do mundo.
Pequenos furtos já quando criança, descoberta precoce da atração homossexual, assunção
da condição de ladrão e pederasta, punições diversas por causa disso, engajamento na
Legião Estrangeira para evitar a punição, subsequente deserção da mesma, prostituição,
mendicância e errância através da Europa, revolta crescente contra a sociedade que o
condenou, descoberta do talento de escritor durante um dos longos períodos passados
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 36
encarcerado, enfim o reconhecimento da république des lettres, que o tira da prisão e lhe
permite viver e ser aceito na condição de “escritor marginal”... Tantas etapas da
“formação” do sujeito que inicialmente se opõe à sociedade, reflete sobre sua emergência
junto com a sociedade, em oposição a ela, e termina encontrar seu lugar ao sol no seio da
mesma.

Só que Sartre mostrou, para total desespero de Genet, que o “poeta maldito” se
integrou à ordem vigente malgrado sua recusa absoluta em se integrar. Um pouco à
maneira de um herói romântico, fortalecido “pelas privações do deserto dos homens”12,
transitando com desenvoltura entre bas-fonds e altas esferas da cultura, dividido entre
lenda e realidade, Genet viveria excentricamente da contradição do arrivista
unanimemente reconhecido nos meios artísticos mundo afora e que no entanto conserva
todo o atraso de sua condição de marginal e criminoso: se gabava de não tomar banho e de
ter chulé e de conhecer de cor poemas inteiros de Mallarmé; continuava a efetuar
pequenos furtos apesar de ter dinheiro; desacatava sempre que podia todo tipo de
autoridade e aceitava de bom grado a fama que lhe propiciava seus livros.

Claro, sua poesia só florescia na medida em que se nutria do esterco do submundo do


crime, o que não impedia Genet de se orgulhar das contradições de sua condição atípica.
Difícil não ver aí algo de profundamente romântico. Como lembra Antonio Candido: “a
força do Romantismo foi ter somado ao mundo visto de cima um mundo visto de baixo,
associando Mefistófeles a Fausto, a cozinha da feiticeira à transformação ideal, a noite de
Valpurgis ao amor de Margarida”13. O veio romântico de Genet mereceria um estudo a
parte, que levasse em consideração a influência sem tamanho que exerceu sobre o escritor
a poesia de Nerval, de Baudelaire e de Rimbaud, tanto no nível da forma como do
conteúdo14. Primeiramente num sentido evidente, de que exprimia melhor que qualquer
outra a complexidade contraditória de cada um, a divisão do ser, componente própria ao
homem moderno: “Je suis autre” (Rousseau apud Baudelaire), “Je suis l’autre” (Nerval),

12 Antonio CANDIDO, “Da vingança” (1952/64), in:__. Tese e antítese, Rio de Janeiro, Ouro sobre Azul,
2006, p. 17.
13 Idem, ibidem.

14 Poder-se-ia objetar que, exceção feita a Nerval, os dois outros não foram propriamente poetas românticos.

Contudo, os temas encontrados e tratados em Baudelaire e Rimbaud são muito próximos daqueles do
romantismo alemão. Quanto a isso, tem razão Anatol ROSENFELD, “Aspectos do romantismo alemão”,
em Texto/Contexto I, São Paulo, Perspectiva, 1996, p. 150: “O romantismo alemão propriamente dito
assemelha-se em certos traços bem mais aos desenvolvimentos posteriores da literatura européia, ligados
a Baudelaire, ao simbolismo e à décadence literária do fin de siècle [do que ao romantismo francês].”
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 37
“Je est un autre” (Rimbaud). Para além da evidência, porém, um pouco como com Joyce15,
o emprego frequente de epifanias, por exemplo, típico daquela poesia de grande
intensidade traumática, teria servido a Genet não somente para confrontar os traumas
dolorosos de sua juventude, mas como meio adequado para uma revelação do mundo e de
seu estar-no-mundo que apontasse de certa maneira na direção de um amadurecimento
pessoal, que coincidiria com o reconhecimento literário.

***

Numa passagem de seu monumental estudo sobre Flaubert, comentando a lucidez


ensandecida do Rei Lear, Sartre defende que a tentativa (logo abortada, mas pouco
importa) de abolição pelo personagem shakespeariano dos adereços da realeza coloca em
evidência o animal nu, a partir do qual seja quiçá possível a instituição de uma ordem à
altura do homem. Para o filósofo francês, “o humanismo verdadeiro, em vez de esconder
nossa animalidade, nossas necessidades exasperadas pela penúria, deveria ao contrário
delas partir e jamais se afastar”16. À vista disso, não é de se estranhar o interesse de Sartre
pela obra de Genet. Não é somente que este tivesse assumido livre e heroicamente as
condições sociais que eram as suas, o destino que lhe fora imposto, ilustrando de maneira
exemplar um dos temas maiores da filosofia existencialista. É isso também. Todavia, a
razão principal do interesse de Sartre me parece residir noutro lugar.

Em seus primeiros escritos, nos cinco romances que marcaram sua fase inicial, Genet
narra como desde cedo havia exercido uma reabilitação do ignóbil, na qual as matérias
mais vis, como o uniforme sujo de prisioneiros ou o catarro de Stilitano no Diário do
Ladrão, eram transfiguradas em algo belo e desejável. Em suma, tudo o que repugnasse o
senso comum e a repressora moral burguesa, que desde sempre o havia rejeitado. A
atenção à natureza nos seus aspectos mais sórdidos, aos impulsos e ao corpo, sobretudo ao
corpo maltrapilho e fétido do sujeito marginalizado, dava vazão a uma compreensão do
mundo mais abrangente que a do senso comum, repleto de preconceitos e dissimulações
de toda ordem. Numa palavra: os personagens e grupos sociais retratados por Genet
representariam linhas de fuga ao ethos burguês ocidental. Linhas de fuga porém que se
entrelaçam a todo momento com o crime, a punição, a ruína, a luta de morte e o gozo da
transgressão pela transgressão. Por aí também se vê, diga-se de passagem, o interesse de

15 Cf. Franco MORETTI, The Way of the World. The Bildungsroman in European Culture (1985), trad. A.
Sbragia, London, Verso, 2000, p. 242.
16 Jean-Paul SARTRE, L’Idiot de la famille, op. cit., t. 3, p. 2038.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 38
Bataille pelo “caráter sagrado” dos criminosos genetianos.

Apesar de dar vazão a um cogito “somático”, a um sujeito “noturno” e “fraturado”,


que foge ao sujeito solar e autoidêntico do iluminismo, não se pode menosprezar o risco,
que parece efetivamente grande, comportado tanto na reabilitação do ignóbil como na
sacralização do crime, que é o de se hipostasiar a catástrofe e as identidades negativas do
capital. O perigo é naturalizar o “animal nu” e as “necessidades exasperadas pela penúria”,
em vez de tomá-los como ponto de partida e etapa no processo de posição do homem como
ator de sua própria história, sujeito de seu movimento social. A atitude de Genet, pode-se
especular, sempre a contrapelo das pessoas normais, talvez não se distinguisse muito da
dos antigos cínicos, que se conciliavam com o curso do mundo estabelecido para além das
exigências da sociedade, isso justamente através de uma suposta autossuficiência
fundamentada num retorno à natureza sensível, à animalidade e às necessidades do corpo.
Lembro que Diógenes vivia como um cachorro e se masturbava em plena luz do dia, aos
olhos de todos os passantes. Nesse contexto, cabe chamar a atenção, com Vladimir Safatle,
para o fato de que “se a physis é apenas o Outro da vida social, então ela será apenas uma
abstração capaz de englobar disposições muitas vezes contraditórias entre si, pois variáveis
de acordo com a modificação subjetiva da perspectiva de avaliação do que pode se pôr
como negação simples do nomos”17. O que mutatis mutandis também parece se aplicar a
nosso autor.

***

Em geral se explica a transição do romance ao teatro em Genet da seguinte maneira.


O tipo de literatura praticado em seus romances, cantos da abjeção por assim dizer, estava
a se tornar moda, seus livros figurando nas vitrines dos melhores libraires parisienses, ao
lado de Laclos e Sade. Como sobreviver a tal rotulação? Como fazer uma literatura a um
tempo autônoma e comprometida com a vida, e que não fosse inofensiva? O choque pelo
choque, a mera reabilitação moral do ignóbil, já não fazia tremer o status quo como antes.
Declarações do tipo: “Là où ça sent la merde / ça sent l’être”18 ; ou: “La poésie est l’art
d’utiliser les restes. D’utiliser la merde et de vous la faire bouffer”19 – não surtiam mais
efeito. A partir de um momento, era exatamente esse tipo de atitude que se esperava do
artista. Artaud, poeta da crueldade, teórico da magia negra e dos “corpos-sem-órgãos”, que

17 Vladimir SAFATLE, Cinismo e falência da crítica, São Paulo, Boitempo, 2008, p. 51.
18 Antonin ARTAUD, “La Recherche de la fécalité” in:__. Pour en finir avec le jugement de dieu (1948),
Paris, Gallimard, 2003, p. 39.
19 Jean GENET, Pompes funèbres (1947), Paris, Gallimard, 1953, p. 190.
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passou boa parte da vida enclausurado, padecendo inúmeras sessões de eletrochoque, ou
delirando alucinado nas calçadas de St.-Germain-des-Prés, viria a ser quase idolatrado
pela Ideologia Francesa da mesma maneira com que o Genet da primeira fase seria
glorificado e posto num pedestal, de diferentes maneiras, por Sartre, Bataille e, mais tarde,
por Derrida e Sollers. Era preciso então encontrar, ou criar, uma nova linguagem. Como
com Artaud, também no caso de Genet a resposta teria sido o teatro, embora para ele a
resposta fosse temporária.

A explicação corrente não é de todo falsa, mas penso que a transição do romance para
o teatro se deve a uma mudança radical na maneira de encarar o mundo e o poder. É
verdade que já havia publicado duas peças antes do livro de Sartre sair e mergulhá-lo
numa “crise de identidade” profunda que duraria vários anos20. Para o filósofo, como visto,
os romances de Genet seriam exemplares daquela concepção da liberdade que se encontra
n’O ser e o nada, do sujeito que assume heroicamente o destino que lhe coube como sendo
seu e deixa, no fundo, tudo como está. O amigo Giacometti, como já dito, o tira da sombra
e o leva a ver diferentemente as coisas. A negação do sujeito burguês em sua própria
conduta e maneira de ser, que deixava o mundo correr seu curso “natural”, doravante se
torna indissociável da negação da ordem patriarcal burguesa que exclui de seu espaço, de
forma repressora ou tácita, todo aquele que foge à norma do homem-macho-branco-
trabalhador-consumidor21.

Genet afirmou no fim da vida, a propósito dos Black Panthers, que “uma revolução
tem sobretudo por fim a libertação do homem – aqui do negro americano – e não a
interpretação correta e a prática de uma ideologia que se dá quase como transcendência”22.
Quando, anos antes, se perguntava: “Qual é [...] a natureza deste espaço, vertiginoso, que
separa – na América e em todo o Ocidente cristão – o Homem (que permite o

20 Jean GENET, “Ma pauvreté est celle des anges” (entrevista de 1976), Magazine littéraire, n° 174 (Juin
1981), p. 21: “O livro de Sartre criou em mim um vazio que atuou como uma espécie de deteriorização
psicológica. [...] Vivi neste estado terrível durante seis anos. Seis anos daquela imbecilidade que nutre a
vida quotidiana: abre-se uma porta, acende-se um cigarro. [...] Entretanto, este período de deterioração
provocou uma reflexão que me levou finalmente ao teatro.”
21 De passagem: exclusão que paradoxalmente pode ser mantida através da inclusão, como aconteceria de
fato com mulheres, negros, gays... Em muitos países ocidentais, mulheres conseguiram o direito de
trabalhar e passaram a dispor de salários iguais para trabalhos iguais; recentemente, um negro chegou à
presidência da maior potência militar do mundo; gays podem se casar e em alguns casos adotar filhos.
Uma revolução, sem dúvida alguma, mas no fundo, no fundo, o que realmente mudou? A sociedade
deixou de ser machista, racista, homófoba? Pseudo-integração, ou “emancipação negativa” (Robert Kurz),
é como se poderia chamar às conquistas imanentes arrancadas dos de cima por minorias etnicas ou
culturais antes “excluídas” do processo produtivo capitalista – entre aspas, porque a rigor ninguém está
totalmente excluído do sistema; com ou sem dinheiro, somos todos “sujeitos monetários” (Kurz).
22 Jean GENET, Un captif amoureux, op. cit., p. 73.

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Humanismo!) e o negro?”23 – sua posição parece próxima à de Sartre. Lembre-se que para
o filósofo não é possível afirmar que o humanismo burguês exclua a priori o operário, visto
que integra este último, inclusive legalmente, ao defini-lo como semelhante pelo próprio
ato que o transforma em mercadoria. Contudo, por detrás do postulado de tal
solidariedade, fundada sobre a forma-trabalho, não é difícil enxergar que as verdadeiras
raízes do humanismo da classe dominante sejam a violência abstrata e a regra de opressão
ligadas à identificação da burguesia à humanidade em geral, por conseguinte contra a anti-
humanidade que é a classe operária. Por isso, escreve Sartre, o humanismo burguês “é o
pendant do racismo: é uma prática de exclusão”24. O que se tornaria claro na brutal
explosão repressiva de Junho de 1848, quando pela primeira vez a luta de classes se trava a
céu aberto e, por ter sido durante muito tempo dissimulada, “revela com toda a sua
brutalidade que é uma luta de morte”25. Para que não seja abstrata, então, a negação do
humanismo teria que se determinar no ato revolucionário pelo qual o proletariado
arrancaria da burguesia o privilégio de dizer em nome de toda humanidade a verdade do
homem, “c’est-à-dire la vérité tout court”26.

Agora, ao contrário de Sartre, o teatro de Genet não tem nada de engajado, pois não
faz tão-somente mimetizar a ordem imaginária existente, como se esta fosse de alguma
forma já humana. Pondo em cena a revolta em suas múltiplas dimensões – revolta
individual (em Haute surveillance/Severa vigilância e Les Bonnes/As Criadas), coletiva
(em Les Nègres/Os Negros e Les Paravents/Os Biombos) e anárquica ou anarquista (em
Le Balcon/O Balcão) – o teatro de Genet é indubitavemente um teatro político, mas não do
mesmo modo que são políticos os dramas de Shakespeare, Corneille ou Brecht. É que boa
parte das normas dramatúrgicas é fundamentalmente transformada por Genet,
transformações estas que são indissociáveis de sua experiência pessoal, ao longo de sua
vida de errâncias, com diversas instituições sociais disciplinares: reformatório, exército,
repressão policial, prisão... Nesse ponto próximo de Foucault, para ele todos os
dispositivos modernos de governo dos corpos seriam surdamente teatrais, mas
surpreendentemente, no teatro a teatralidade não dissimularia nenhum poder. Donde o
interesse súbito pela cena teatral, que é um espaço onde o poder é ausente, mas por isso
mesmo um espaço através do qual se pode desvelar a estrutura e o funcionamento das

23 Jean GENET, “Pour George Jackson” (1971), in:__. L’Ennemi déclaré, op. cit., p. 83.
24 Jean-Paul SARTRE, Critique de la raison dialectique, t. 1: Théorie des ensembles pratiques, Paris,
Gallimard, 1960, p. 702.
25 Ibidem, p. 705.

26 Ibidem, p. 741.

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relações de poder dominantes.

Como com os romances, o trabalho com a linguagem no teatro genetiano é de um


rigor absoluto: todo e qualquer substrato psicológico é cuidadosamente abolido; o
mimetismo primário é substituído pela dimensão coletiva da ação; não há em suas peças
personagens principais individualizados, tampouco personagens coadjuvantes. Pouco
importa aliás o número de personagens, se um duo ou um trio (como em As Criadas) ou
mais de vinte deles (como em Os Biombos); o importante é a função social exercida, a
máscara usada por cada personagem. Lacan percebeu muito bem isso: Genet visaria nada
mais nada menos que explodir em cena a teatralidade do poder, que julga falsa porque a
hierarquia é sempre a razão profunda da representatividade política.

Percebe-se logo, à vista disso, o quão precipitada parece ser a identificação pós-
moderna de representação política e midiática e teatralidade. Segundo Anne Vernet, é em
cima dessa falsa identificação que Genet concentrará sua crítica: ele inverterá “a dinâmica
da estética teatral [tradicional] a fim de fazer aparecer o procedimento em jogo por detrás
da teatralização do poder: o papel mimético das funções sociopolíticas. A principal
inversão que ele impõe ao jogo teatral consiste em limitar, como Beckett, a isonomia da
atuação dos atores [...] Em Genet, é no nível das funções que eles representam que a
encenação dos personagens deve fazer aparecer a igualdade que regula suas relações. E,
porque contrária ao vivido do real social, esta inversão desvela a coerção hierárquica
operando detrás de sua distribuição falsamente democrática.”27 A falsa teatralidade do
poder consiste para Genet em forçar ao máximo a identificação com o símbolo, através da
qual a face reprovada da sociedade é magnificada. Em Os Negros, todos os atores são
negros e quando interpretam um branco pintam o rosto; os personagens negros na peça
sonham com um mundo onde tudo fosse de cor negra: o leite, o açúcar, o arroz, o céu, a
esperança... Em As Criadas, duas empregadas domésticas encenam ritualisticamente o
assassinato da patroa, uma delas fingindo-se de madame; durante a encenação afloram
ressentimentos e desejos recalcados, que se conjugam com sentimentos contraditórios,
como o medo e a coragem para a passagem ao ato que poria fim à dominação e à opressão.

O teatro de Genet põe ademais em cena um questionamento profundo acerca da


natureza da castração. Pois o que é castrador afinal? A ordem social burguesa? A ordem
“natural” das coisas? Toda e qualquer ordem? O acesso ao simbólico em geral? Ou é antes

27 Anne VERNET, “Jean Genet par-delà le paravent”, Réfractions, recherches et expressions anarchistes, n°
11 (juin 2005): http://refractions.plusloin.org/spip.php?article34
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o próprio mimetismo que constitui a natureza castradora de toda ordem? Em O Balcão,
peça que retrata o funcionamento normal de um bordel de luxo durante um período de
turbulência revolucionária, Genet aborda de forma magistral os temas da castração e da
subversão da ordem. O bordel em questão é um palácio de ilusões, repleto de espelhos,
através dos quais Madame Irma, a dona do estabelecimento, observa severamente o
respeito de uma certa ordem, rígida e monótona, no interior da qual inocentes e medíocres
senhores do povo podem por algumas horas gozar das mais excêntricas e secretas fantasias
de sexo e poder. Para tanto se travestem com insígnias da ordem social real: a Ladra que
quebra a lei, um Juiz que condena, um General que comanda, um Carrasco que executa,
um Bispo que perdoa. A ordem mimetizada no interior do bordel deve ser mantida custe o
que custar, enquanto que nas ruas crepitam metralhadoras, dando início a uma Revolução
que visa subverter as instituições da sociedade real. Os fregueses narram para as
prostitutas os acontecimentos ocorridos do lado de fora, enquanto que Madame Irma
aguarda a chegada do Chefe de Polícia, seu amante, único com poder de defender as
meninas de um possível ataque dos rebeldes. O bordel serve à ordem vigente ao consolidar
as figuras dominantes no imaginário popular, fantasiadas lá dentro. O Chefe de Polícia
sabe que o bordel continuará o mesmo, antes como depois da Revolução. Sabe que no
fundo a Revolução é um jogo. Entretempo, uma das meninas, Chantal, se apaixona pelo
líder dos rebeldes, o bombeiro Roger, e se torna o símbolo da Revolução. Com o
assassinato das figuras pilares da sociedade – as autoridades jurídica, militar, eclesiástica
– seus falsos equivalentes do bordel, o Juiz, o General, o Bispo, são convocados a desfilar
para o povo, liderados por uma falsa Rainha, Madame Irma, realizando assim plenamente
suas funções sociais. O símbolo escolhido pelo Chefe de Polícia para representá-lo perante
o povo é um imenso pênis, que o Bispo propõe de transformar na pomba do Espírito Santo,
para que se torne mais aceitável, e o General de pintá-lo com as cores nacionais. Com a
rebelião momentaneamente subjugada, Chantal é assassinada e Roger se entrega às
fantasias do bordel e pede para representar o Chefe de Polícia, se vestindo de todos os
atributos deste último28. Uma das prostitutas faz o gesto de castrá-lo e, naquele exato
momento, o Chefe de Polícia verifica se o seu ainda está no lugar. Com este gesto “sua
passagem ao estado de símbolo sob a forma do uniforme fálico proposto é doravante
inútil”29. No final, Madame Irma diz ao público para voltar para casa, “onde tudo, não

28 Genet disse certa vez que originalmente o ponto de partida da peça era a Espanha de Franco e que o
revolucionário castrado representaria os Republicanos no momento em que admitiram sua derrota. Cf.
Edmund WHITE, Genet. A Biography, London, Picador, 1993, p. 476.
29 Jacques LACAN, “Sur Le Balcon de Genet” (1958), Magazine littéraire, n° 313 (sept. 1993), p. 57.

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duvidem, será ainda mais falso que aqui”. O bordel encerra assim suas atividades, até a
noite seguinte. Ouvem-se rajadas de metralhadoras do lado de fora. A Revolução
recomeça. A peça termina.

Na peça em questão todos os personagens que “representam funções em relação às


quais o sujeito se encontra como que alienado em relação a esta fala da qual ele se acha o
suporte, em uma função que ultrapassa de muito sua particularidade”, todos os
personagens serão de uma hora para outra “submetidos à lei da comédia”30. Por aí Genet
permite a representação do que significa gozar de tais funções. Agora, o sujeito que
representa o desejo puro e simples que tem o homem de assumir autenticamente sua
própria existência, seu próprio pensamento, o sujeito que representa o homem, o sujeito
que combateu para que aquilo que se chamou o bordel reencontre sua norma, sua redução
a algo que possa ser aceito plenamente como humano – este sujeito, que não é outro senão
que Roger, este sujeito então, conclui Lacan em seu comentário da peça, “só se integra,
uma vez passada a prova, à condição de se castrar. Isto é, de fazer com que o falo seja de
novo promovido ao estado de significante.”31

Tendo a concordar, aqui também, com Anne Vernet que essa leitura, embora tendo lá
sua pertinência, não esgota o sentido do teatro de Genet, que é antes de tudo obra de
combate contra os protocolos miméticos: “a problemática colocada é a de todo papel, de
toda função, da identificação e da coerção mimética bem para além da mera problemática
sexista”32. Ao mesmo tempo, caberia perguntar até onde Genet é consciente do fato de que
é somente mediante sua autoalienação através de protocolos miméticos que o sujeito se
torna suficientemente forte para vencer a prisão da imitação, isto é, para tomar distância
do objeto de modo a revocar sua autoposição33. Porque a autonomia do sujeito depende
desta experiência de descentramento, desta identificação por assim dizer não-narcísica
com aquilo que lhe é estranho. Só no nível do entendimento raciocinante aparecem como
antagônicos a ipseidade coisificada do eu e a submissão do sujeito a papéis socialmente
exigidos. No fundo, e alguém como Adorno percebeu bem isso, há uma cumplicidade entre
a rigidez identitária e a disponibilidade para os múltiplos papéis e funções sociais34.

Acho que não é totalmente despropositado afirmar que, como para o frankfurtiano,

30 Ibidem, p. 53.
31 Ibidem, p. 57.
32 Anne VERNET, “Jean Genet par-delà le paravent”, op. cit.
33 Cf. Theodor W. ADORNO, Ästhetische Theorie (1970), Frankfurt/M., Suhrkamp, 2003, pp. 397 e 424.
34 Cf. Theodor W. ADORNO, Negative Dialektik (1966), Frankfurt/M., Suhrkamp, 2003, pp. 274-75; trad.
fr. de G. Coffin, J. e O. Masson, A. Renaut e D. Trousson, Dialectique négative, Paris, Payot, 1978, p. 336.
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para Genet não se trata de negar abstratamente a identidade, mas num quadro de
resistência, conservá-la, utilizá-la de forma crítica para no momento oportuno subvertê-la
e superá-la. Nisso também estava próximo de Sartre: o descentramento que faz o sujeito
desaparecer por trás das estruturas prático-inertes implica uma negatividade; o sujeito
surge desta negação, por sua vez, condição de uma práxis superadora de tais estruturas.

***

Na esteira de Adorno, Marcuse disse em algum lugar que não há nem pode haver liberdade
sem beleza. Pergunto-me se o inverso também não é válido: a beleza num estado não-livre
não teria ela própria algo de falso? Narrando um episódio do verão de 1934, quando
percorria a mendigar, solitário, as estradas andalusas, Genet escreve: “Da beleza mesma
deste lugar do mundo não ousei me aperceber. A menos que fosse para procurar seu
segredo, por detrás dela a impostura da qual será vítima quem nela se fiar. Ao recusá-la eu
descobria a poesia.”35 Livro maior de Adorno, as Minima Moralia são atravessadas por
uma maneira semelhante de encarar o mundo, explicitada, em termos hegelianos, já nas
primeiras páginas do livro: “Até a árvore que floresce sem sombra de sobressalto; até o
inocente ‘que beleza!’ torna-se expressão para a ignomínia da existência que é diversa, e
não há mais beleza nem consolo algum fora do olhar que se volta para o horrível, a ele
resiste e diante dele sustenta, com implacável consciência da negatividade, a possibilidade
de algo melhor.”36

Com o humor habitual, Genet disse certa feita que nunca havia visto um banqueiro
bonito. A beleza tanto buscada seria encontrada anos depois do episódio espanhol, na luta
dos Black Panthers e na “Revolução palestina”, embora agora não mais aparecesse tão-
omente como promessa de felicidade, mas antes enquanto força da alegria de ser e tomar
parte em um movimento de libertação. Nunca em sua vida Genet se sentira tão livre, tão
plenamente vivo e em paz consigo mesmo como quando esteve em companhia dos
palestinos às margens do Jordão. O que maravilhava Genet nesses movimentos era a
existência de indivíduos ainda capazes de dar a vida por uma causa política, de pôr e expor
o próprio corpo na linha de fogo. Luminosos ou tenebrosos, é o fato de se levantarem
contra o establishment e os poderosos do mundo que os tornava esteticamente atraentes a
seus olhos: “Já muito belos, à medida que os feddayin se libertavam da tradição,

35 Jean GENET, Journal du Voleur, op. cit., p. 79.


36 Theodor W. ADORNO, Minima Moralia. Reflexionen aus dem beschädigten Leben (1944-47),
Frankfurt/M., Suhrkamp, 1969, § 5, p. 21, trad. bras. de Luiz E. Bicca: Minima Moralia. Reflexões a partir
da vida danificada, São Paulo, Ática, 1992, p. 19.
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embelezavam ao ponto de se tornarem luminosos entre os árabes que ficaram exteriores à
luta. [...] Os feddayin eram de uma beleza fresca, ingênua, oferecida à inteligência. [...] Esta
beleza nova, eles a tem da revolta.”37 Ou ainda: “Black is beautiful porque traz uma
liberdade. Mesmo tendo lugar de dia, a ação dos Panteras estabelecia em torno deles um
halo de tenebras, nos brancos.”38

***

Se originalmente a política designa “uma relação ao corpo público”, ao corpo da pólis,


Genet mobiliza a metáfora de modo a pensar “a política como um teatro dos corpos”,
lembrando-nos de sua “dimensão física e desejante”39. Armados e organizados, negros
americanos, palestinos e jovens militantes alemães encarnavam aos olhos de Genet uma
prática política, uma prática da política, que não se dissimulava na invisibilidade brutal do
poder, mas que se mostrava na exposição dos corpos e das armas. O ponto é que a
violência transparente destes grupos revolucionários iluminava a brutalidade política
operando tanto no seio das sociedades centrais como entre estas e a periferia. No que
concerne a esta última, escreve ele: “A colonização do terceiro-mundo não foi senão que
uma série de brutalidades, muito numerosas e muito longas, sem outro fim a não ser
aquele, antes atrofiado, de servir a estratégia dos países colonialistas e o enriquecimento
das sociedades de investimentos nas colônias.”40 O resultado foi uma miséria e um
desespero tão grandes e insuportáveis que só podiam nutrir uma violência libertadora.
Uma das teses de Genet, que causou polêmica na época, era que “a própria brutalidade da
sociedade alemã” teria tornado “necessária a violência da RAF [Rote Armee Fraktion /
Facção Exército Vermelho].”41

Sob a denominação de “brutalidade” Genet reunia não somente a dominação colonial


e a repressão policial ou militar, mas igualmente fenômenos não imediatamente
detectáveis ou sentidos como brutais, mas que de fato “embrutecem” as relações humanas
no quotidiano: a arquitetura das moradias de classe média e popular, a burocracia de
modo geral, a substituição do nome – próprio ou comum – pela cifra, a pseudocultura
ensinada nas escolas e universidades, o bloqueio do acesso livre a um conhecimento de
interesse universal, a prioridade dada a carros em vez de pedestres, o trabalho na fábrica, a

37 Jean GENET, “Près d’Ajloun” (1971-72/1977), in:__. L’Ennemi déclaré, op. cit., p. 182.
38 Jean GENET, Un captif amoureux, op. cit., p. 425.
39 Jérôme NEUTRES, Genet sur les routes du Sud, op. cit., p. 261.

40 Jean GENET, “Violence et brutalité” (1977), in:__. L’Ennemi déclaré, op. cit., p. 201.

41 Ibidem, p. 203.

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progressão numérica das penas, a inutilidade do tapa na cara em delegacias de polícia, o
bombardeio sistemático de um pequeno país de camponeses pela maior potência militar do
mundo, uma Ferrari de um milhão... “O que ainda se chama ordem, esgotamento físico e
espiritual, se estabelece de si mesmo, quando reina aquilo que etimologicamente deve se
nomear mediocridade.”42

Num texto sobre a RAF, Genet defende que a força de suas ações residiria em sua
função reveladora. Ao provocar de maneira violenta os governos das democracias liberais
do Norte em seu próprio solo político e jurídico, o grupo de Baader forçaria a brutalidade
constitutiva da sociedade burguesa a sair da penumbra dos subterrâneos da vida
quotidiana e a mostrar a cara feia a céu aberto. Não é só o fato que o assassinato, a tortura
física e psicológica de detratores da ordem nunca tenham realmente deixado de ser
praticados nessas sociedades. É a própria frieza burguesa, o enrijecimento das relações, a
insensibilidade, a apatia e a indiferença generalizadas que se tornam manifestos:
escandaliza-se quando um grupo de jovens manda pelos ares uma loja de departamento
sem nada dentro que não fosse roupas, ao mesmo tempo em que não se dá a mínima
quando uma população inteira de um país do terceiro mundo é queimada viva até os ossos
com napalm.

As ações espetaculares da RAF quebravam assim a fachada de normalidade civilizada


de sociedades que em sua estrutura não eram tão coesas, igualitárias e pacíficas quanto se
imaginava, mas essencialmente frias, divididas e repressoras. Tais ações expunham a um
tempo a identidade e a não-identidade de política e teatralidade, antes de tudo o fato da
política em questão ser a política de uma sociedade essencialmente assimétrica, política
dos (e para os) privilegiados que beneficiam de tal assimetria. O “terrorismo” da RAF
mostrava, enfim, que a luta de classes difusa e normalizada no fundo jamais deixara de ser
luta de morte. Como escreveram Deleuze e Guattari em outro contexto: “Qual
socialdemocracia nunca deu ordem de atirar quando a miséria sai de seu território ou
gueto?”43

Nesse sentido, Genet também desbancava o diletantismo moral dos brancos


escandalizados diante do fenômeno de negros americanos politizados, organizados e
armados: “Quando os brancos pregam a não-violência aos negros, estão conscientes que
uma situação de violência não cessa de se manifestar desde sempre, desde o tempo dos

42 Jean GENET, Un captif amoureux, op. cit., p. 49.


43 Gilles DELEUZE e Félix GUATTARI, Qu’est-ce que la philosophie?, Paris, Ed. de Minuit, 1991, p. 103.
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negreiros? Essa massa de desprezo acumulada há trezentos ou quatrocentos anos, não é
violência? [...] Pregar a não-violência nesse caso é recusar aos negros os meios de se
defender.”44

***

Entre 1942 e 1961, Genet publicou cinco romances45, cinco peças teatrais46, além de
poemas47, um cenário de filme48 e alguns ensaios49. Após este período, entretanto, seu veio
criador parecia ter chegado ao fim e com a morte do companheiro Abdallah em 1964 Genet
entrou em depressão profunda, destruiu seus manuscritos e renegou tudo o que escrevera
até então. Chegou a passar um tempo ao lado dos estudantes da Zengakuren no Japão50,
durante o inverno de 1966, mas no ano seguinte tentou o suicídio no norte da Itália. O que
então o teria trazido de volta à vida, à escrita?

Há razões para se crer que as barricadas do Maio francês tenham tido um papel maior
do que se imagina na “volta” de Genet. Segundo o próprio, em Junho de 1968, sua tristeza
e sua raiva o fizeram compreender que daquele momento em diante não cessaria de
desejar que o “espírito de Maio” se achasse em todo lugar e como que prometera a si
mesmo que onde quer que se encontrasse se sentiria “sempre ligado ao movimento que
provocará a libertação dos homens”51. Assim, quando em 1970 fora convidado pelos Black
Panthers para que interviesse em favor de Bobby Seale, um dos chefes do grupo, entrou
ilegalmente nos EUA pela fronteira canadense. Em 1970 e 1971 passaria vários meses com
os feddayin, então acampados nas montanhas da Jordânia – aí também, na decisão de tal
engajamento, pesou o Maio de 68, momento em que veio à tona para o grande público a
“questão palestina”, ou melhor, a compreensão do povo palestino como povo oprimido e de
sua luta contra a opressão como luta revolucionária.

44 Jean GENET, “Entretien avec Michèle Manceaux” (1970), in:__. L’Ennemi déclaré, op. cit., p. 59.
45 Notre-Dame-des-Fleurs (1944), Miracle de la rose (1946), Pompes funèbres (1947), Querelle de Brest
(1947) e Journal du Voleur (1949).
46 Les Bonnes (1947), Haute surveillance (1949), Le Balcon (1956), Les Nègres (1959) e Les Paravents

(1961).
47 Le Condamné à mort (1942), Le Pêcheur du Suquet (1948)...

48 Un chant d’amour (1948).

49 L’Atelier d’Alberto Giacometti (1957), Le Funambule (1958), Le Secret de Rembrandt (1958).

50 A Zengakuren (de Zen-nihon gakusei jichikai sorengô = Federação japonesa dos grêmios estudantis

autogeridos), além das atividades mais diretamente ligadas ao universo estudantil, combatia na época as
políticas do então primeiro ministro Eisaku Sato: a construção de um aeroporto em terras de camponeses
expropriados e a renovação do acordo que prolongaria a permanência de bases militares estadunidenses em
território japonês. A Zengakuren também se opôs ativamente às guerras da Korea e do Vietnam.
51 Jean GENET, “Il me paraît indécent de parler de moi…” (1970) in:__. L’Ennemi déclaré, op. cit., p. 42.
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Sempre suscitando controvérsias, os anos 70 seriam marcados por seu suporte –
através de artigos e entrevistas principalmente – a diversas “causas perdidas”, dos Black
Panthers e dos palestinos aos sans-papiers na França e ao grupo de Baader e Meinhoff na
Alemanha. O interesse de Genet por “causas perdidas” vinha de longe, já se encontrava nas
peças, e não é estranho que se engajasse de corpo e alma em favor delas a partir de um
certo momento. Numa entrevista com Juan Goytisolo, Genet afirma não ter sido um acaso
que tivesse escrito anos antes obras como Os Negros e Os Biombos, onde punha em cena
“a necessidade da luta revolucionária dos negros e argelinos”, e que em certo sentido seu
militantismo a partir de 1968 se inscreveria “na lógica das coisas”52.

No entanto, durante todo este período militante Genet não produziu sequer um texto
literário, convicto de que jamais a literatura deveria ser posta a serviço de ideias ou causas
políticas. A quebra do silêncio literário, silêncio de mais de vinte anos, se deu com um
texto-bomba, inclassificável, sobre os massacres perpetuados em 1982 por diferentes
milícias, sob o auspício de forças israelenses, nas proximidades de Beirute, nos campos
palestinos de Chatila e Sabra, Genet tendo sido um dos primeiros ocidentais a entrar em
Chatila após o crime hediondo. Misto de reportagem, ato de acusação indignado e texto
político-literário, “Quatre heures à Chatila” marca por assim dizer a criação de um estilo
novo, que se firmaria em seu testamento literário, que é Un captif amoureux. Publicado
postumamente em 1986, com este último livro Genet conseguiu o feito de chocar uma
última vez a boa consciência francesa. Mesmo em meio ao turbilhão social e à
efervescência erótico-revolucionária, representada no livro pelos Black Panthers e pela
resistência palestina, Genet procurava dissipar toda e qualquer imagem positiva, da vida
como da morte, tão meticulosa era sua recusa em conceder que algo de bom possa advir da
permanência ou da estabilidade burguesa e heterossexual53.

É notável que em quase todos os livros e escritos de Genet, a crítica dos valores e
ideais do Ocidente cristão seja feita a partir do ponto de vista dos de baixo (negros,
imigrantes, prisioneiros, homossexuais, empregadas domésticas, ladrões, mendigos,
prostitutas) ou a partir de uma ótica periférica (a partir do Oriente Médio e Norte da África
principalmente). Tendo dado o passo, cruzado as fronteiras legais que a maioria dos
brancos ocidentais nem em sonho dão ou cruzam, Genet foi capaz de criar personagens
que nos interessam menos por sua psicologia, que em geral é neutralizada, do que pelas

52 Jean GENET, “À propos de l’assassinat de Jackson” (1971), La Règle du Jeu, n° 18 (janvier 1996), p. 191.
53 Cf. Edward SAID, “On Jean Genet”, in:__. Late Style, Music and Literature Against the Grain, London,
Bloomsbury, 2006, p.89.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 49
maneiras quase obsessivas com que são a um tempo os portadores e atores de uma história
muito finamente imaginada e compreendida54. De costas para a França que desde sempre
o rejeitou, o olhar admirativo do poeta cedo se voltou para o grande Sul pobre (“as vestes
marroquinas dão a um simples mendigo uma dignidade que um europeu não possuirá
jamais”55) e a crítica do humanismo dos vencedores se dá em Genet mormente pela
transfiguração poética de forças não-idênticas, que aparecem em sua obra através do
tratamento de alguns temas recorrentes, como o desgarramento do sujeito, a língua, a
beleza e a traição, e que também perpassam as mais de 600 páginas de seu último livro.

Vale lembrar que nos primeiros romances os temas são principalmente a abjeção, a
ruína, o mal, a punição, a luta pela sobrevivência, a covardia e a traição, mas também a
santidade, o amor, a beleza e a ternura. Escritas em tempos obscuros e incertos, estas
primeiras “obras monstruosas e perfeitas”, como notou Sartre, “querem ser de parte a
parte consciência e que não haja nelas a mínima zona de obscuridade, de ignorância ou de
inércia: elas conterão a um tempo a narrativa e a narrativa da narrativa, os pensamentos e
a história dos pensamentos, o procedimento moral, seu método e o balanço dos progressos
alcançados, em suma, um poema e o diário de um poema que, à diferença daquele de Gide,
acompanhará a criação de comentários éticos”56. Acontece que de tão lúcidos e brilhantes,
tais romances acabam por ofuscar a postura fundamentalmente conservadora por trás da
“rage de nullité”57 do jovem Genet. Possível razão pela qual o autor procurará dissolver o
ideal iluminista da fase inicial na forma a um tempo fragmentária e épica de Um
prisioneiro apaixonado – muito embora a criação poética seja ali tão consciente quanto
antes.

O tom de incerteza, que é a incerteza do próprio autor à beira da morte (causada por
um câncer na garganta), habita a leitura do início ao fim. Por que no fim das contas,
pergunta-se ele, me deixei cativar apaixonadamente por estes grupos revolucionários,
talvez os últimos do século? A pergunta não é simples e fica como que sem resposta

54 Cf. Ibidem, p.87.


55 Jean GENET, Journal du Voleur, op. cit., p. 174.
56 Jean-Paul SARTRE, Saint Genet, op. cit., p. 514.

57 Georges BATAILLE, “Genet” (1952) in:__. La littérature et le mal (1957), Paris, Gallimard, 1990, p. 288.

Num ensaio do mesmo livro, sobre Sade, publicado primeiramente em 1947, Bataille, noves fora o tom
apologético, mostrou como numa série desses “autores malditos” se reconciliam com frequência “a lucidez
da consciência” e “a violência que é cega” (p. 253). Mas a sacralização esclarecida da violência
transgressiva, em Sade como em Genet, como já vimos, pressupõe a existência da lei e a manutenção da
ordem simbólica. Por isso, diga-se de passagem, Genet aceitava de bom grado a punição por seus crimes,
ou melhor, a desejava e a buscava, porque o criminoso só pode ser soberano no mal, e o mal só é
claramente percebido como tal pela sociedade quando devidamente punido (cf. p. 292).
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 50
definitiva, o que não impede que o poeta montasse uma estrutura literária complexa para
tratá-la. Sem falsa modéstia, Genet dizia querer ser o Homero daqueles grupos rebeldes,
principalmente dos palestinos, que segundo ele o ajudaram a viver; queria cantar as glórias
daqueles guerreiros, seus feitos memoráveis, suas penas. Grande “reportagem”, Um
prisioneiro apaixonado vai entrelaçando anedotas e lembranças de sonhos e vivências, às
quais se sobrepõem análises sociológicas, contextualização política, descrições
etnográficas, reflexões metalinguísticas, evocação poética dos atos heróicos dos feddayin e
considerações metafísicas sobre a vida e a morte. Pode ser lida, segundo o próprio Genet, à
maneira do “livro de areia” de Borges: “porque ni el libro ni la arena tienen principio ni
fin”58. Abre-se uma página ao acaso, e cada parágrafo se lê, cada linha se escoa, como a
vida do próprio autor, sobre fundo de noite, que o “condenado”, como se autodefinia,
intentara não iluminar mas espessar.

Não há dúvidas que Genet ficaria contente de saber que um ano após sua morte se
deflagraria a primeira intifada nos territórios palestinos ocupados e que menos de uma
década depois, noutras paragens do grande Sul pobre que tanto o atraía, outros hijos de la
noche se sublevariam contra as forças da ordem e os poderes vigentes. Resistências não só
contra a opressão, mas igualmente contra o deserto que nos invade por todos os lados e
não cessa de se aprofundar. Contra ele uma revolta ativa é necessária. É o que o velho
Genet procurou pôr em evidência num momento em que o regime de racionalidade cínica
já se tornava dominante nas sociedades do capitalismo avançado.

58 Joge Luis BORGES, “El libro de arena” (1975) in:__. El libro de arena, Madrid, Alianza, 1995, p. 133.
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O valor como fictio juris
1ª parte: Forma-jurídica e Forma-valor – apresentação de um problema

Joelton Nascimento

“Hoje, a verdadeira liberdade de pensamento significa liberdade


para questionar o consenso democrático-liberal 'pós-ideológico'
dominante – ou não significa nada.”

Slavoj Žižek

1. A mercadoria e o valor

No primeiro capítulo de sua magnum opus, o próprio Marx reconhece a dificuldade


paradoxal de seu empreendimento. Começar pela investigação da mercadoria em geral e
sua lógica, ou seja, o valor, não é começar com uma tarefa demasiado abstrata, senão vaga?
No prefácio à primeira edição de O Capital Marx faz uma metáfora biológica comparando a
análise da mercadoria à análise de uma célula. Assim como é mais fácil estudar as plantas e
os animais completos do que suas células, também é mais fácil estudar os dados
econômicos e sociais mais visíveis e amplos do que sua estrutura elementar. Não havendo
um “microscópio social” é preciso proceder a tais análises elementares pela abstração do
pensamento. Tentemos reduzir ao máximo possível os argumentos principais de Marx
sobre o que ele chamou de “forma valor”. Mais precisamente, segundo Marx, a forma
“celular” das sociedades capitalistas é a “forma-mercadoria”1. A mercadoria é um objeto,
simbólico ou material, que tem a enigmático característica de portar um valor. Portanto,
quando dizemos que uma certa mercadoria, um casaco, por exemplo, “vale 100 reais”
dificilmente percebemos as diversas implicações sociais que estão pressupostas nesta
simples frase. É de fato espantoso o quanto a mera enunciação de algo aparentemente tão
prosaico implica em termos sociais.

1 MARX, Karl. O Capital. Livro 1. [1867]. Tradução: Regis Barbosa e Flavio R. Kothe. São Paulo: Abril
Cultural, 1988, p. 130. A partir daqui referido como “OC”, seguido do número da página.
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Comecemos pela mercadoria. Qualquer mercadoria, diz Marx no primeiro capítulo de
O Capital, tem duplo aspecto. Em primeiro lugar, toda mercadoria tem algum tipo de
qualidade útil ou desejável. Sendo esta qualidade útil ou o atendimento de uma
necessidade vital ou de um desejo qualquer, a mercadoria tem uma utilidade ou
característica desejável intrínseca.2 A isso Marx, acompanhando Aristóteles dá o nome de
valor de uso. O valor de uso de um objeto está fundado em sua qualidade, por isso é
essencialmente qualitativo, ou seja, é incomensurável. Pelas suas características
intrínsecas, não posso comparar um casaco com um cavalo. Para comparar de modo
resoluto dois elementos qualitativamente distintos seria preciso um terceiro elemento,
homogêneo e constante que sirva como referencial. É com um terceiro elemento que uma
comparação mensurável pode ter lugar. É preciso dizer que um casaco vale tanto de algo
homogêneo e constante e em seguida, dizer o quanto deste algo um cavalo, por sua vez,
“vale”. É aí que posso afirmar quantos casacos “valem” um cavalo.
Compreendemos assim como, na formação disto que chamamos mercadoria, estes
objetos qualitativamente distintos podem ser trocados em um mercado. Isto é possível em
face do segundo aspecto, ou o segundo fator da mercadoria: seu valor de troca. O valor de
troca de um casaco é o quanto do referencial homogêneo e exterior ele “vale”. Um valor de
troca, por conseguinte, é só a forma da aparência da forma fundamental do valor.
Podemos afirmar, então, que o valor é a abstração segundo a qual determinados objetos
detêm em si uma certa quantidade de um referencial homogêneo e exterior. O valor de
troca é a forma da aparência do valor. Quando dizemos que um cavalo vale dez casacos,
enunciamos uma grandeza qualquer para o cavalo, damos a ele um valor de troca, e
pressupomos aí que podemos saber o valor do cavalo, a quantidade que ele contém de um
referencial homogêneo e exterior. Até então, este conceito da Economia Política, muito
conhecido, tinha sido pensado de forma equivocada, como Marx o demonstra. O que dá
“valor” à mercadoria não são suas qualidades intrínsecas, como parece claro. O que faz
uma mercadoria poder ser trocada por outra, como se equivalentes fossem, é isto o que
chamamos aqui de um referencial homogêneo e exterior. “Deixando de lado o valor de uso
dos corpos das mercadorias, resta a elas apenas uma propriedade que é a de serem
produtos do trabalho.”3

2 “A natureza dessas necessidades, se elas se originam do estômago ou da fantasia, não altera nada na
coisa.” (OC:165.)
3 OC:167.

[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 53


Pois então, voltemo-nos para o trabalho. Em primeiro lugar, o trabalho aplicado na
coisa, tanto quanto a coisa em sua característica de valor de uso, é algo qualitativo. Isto
significa o mesmo que vimos com os objetos: uma atividade humana em seu existir mais
essencial é incomensurável uma com a outra. A atividade do jardineiro tem peculiaridades
próprias que não podem fazê-las imediatamente identificáveis e, portanto, mensuráveis,
com a atividade de um adestrador de cavalos. Portanto, estas atividades são impossíveis de
serem comparadas sem um referencial externo que as meça. No processo de criação da
mercadoria temos de um lado a coisa útil/desejável e o trabalho útil/desejável, ambos
qualitativos, que sofrem um processo peculiar de abstração. No processo de formação da
mercadoria tanto a utilidade da coisa quanto o trabalho nela empregado são abstraídos
para e pelo processo de troca mercantil. A atividade humana, ao se converter em atividade
de “valorização” da coisa deve ser abstraída de sua peculiaridade qualitativa. Ela passa a
ser tomada apenas em face de todos os demais trabalhos e passa a ser um “trabalho
socialmente necessário”, ou um “dispêndio abstrato de energia humana”. A atividade
qualitativa realizada na coisa se converte em trabalho considerado pelo mercado, pelos
demais “trabalhos” nele oferecidos na forma de mercadorias. Os objetos materiais e
simbólicos são comprados e vendidos pela comensurabilidade geral ocasionada por este
trabalho "abstrato”. Nas palavras de Marx, no mercado vemos que: “Ao desaparecer o
caráter útil dos produtos do trabalho, desaparece o caráter útil dos trabalhos nele
representados, e desaparecem também, portanto, as diferentes formas concretas desses
trabalhos, que deixam de diferenciar-se um do outro para reduzir-se em sua totalidade a
igual trabalho humano, a trabalho humano abstrato”4.
A atividade útil e o seu objeto se transformam respectivamente e numa relação
mútua, em mercadoria e em trabalho abstrato (sendo, este a atividade, ela própria,
transformada em mercadoria e considerada como tal). De modo que a mercadoria adquire
o status fundamental e paradoxal de objeto sensível-supra-sensível. O que significa isso?
Significa que a mercadoria é sensível em seu caráter de bem útil/desejável e, ao mesmo
tempo, este caráter sensível é suporte de seu valor que só é acessível por intermédio desta
abstração que ocorre como que “automaticamente” em cada aparição da mercadoria como
tal, uma abstração supra-sensível. “Os sujeitos não executam conscientemente um tal
processo: é por trás das costas dos sujeitos que se passa a inversão na qual o objeto

4 OC:168.

[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 54


concreto e sensível não conta senão como encarnação do valor abstrato e supra-sensível.”5
O mais importante a ser pensado a partir disto é que esta célula da sociedade
capitalista, a mercadoria e sua lógica intrínseca, o valor, são a quintessência do modo de
socialização desta sociedade, e essa quintessência a faz ser uma socialização sempre
invertida. Essa inversão se constitui como uma projeção do concreto no abstrato, uma
projeção do sensível no supra-sensível. A mercadoria, essa forma molecular da sociedade
capitalista, aparece nesta duplicidade, como forma natural e como forma de valor6. Essa
forma dupla na qual se mostra a mercadoria, a rigor, diz-nos Marx, não é da mercadoria.
“Caráter duplo da mercadoria”, isso é uma forma abreviada de dizer que a mercadoria é
um “objeto de uso” e um “valor”. Este último, o valor, é algo jamais constante no objeto,
“porém sempre apenas na relação de valor ou de troca com uma segunda mercadoria de
tipo diferente. No entanto, uma vez conhecido isso, aquela maneira de falar não causa
prejuízo”7. Compreendida esta forma simples do valor, basta deduzir dela a forma-valor
desenvolvida, onde aparecem não só duas mercadorias mas uma cadeia indefinida delas e
a forma geral de valor: nesta é eleita uma mercadoria em especial que possa servir de
equivalente geral e medir o valor (o trabalho abstrato nelas “contido”, ou melhor dizendo,
o trabalho abstrato nelas socialmente “projetado”) de todas as outras. Se o único valor de
uso desta mercadoria é ser justamente este equivalente universal, temos a forma dinheiro
de onde voltamos ao ponto de partida: “um casaco vale 100 reais”. Portanto, o segredo da
forma dinheiro se encontra já expresso na forma elementar da mercadoria.
Mesmo a rigorosa apresentação de Marx precisa se remeter à “região nebulosa da
religião” para caracterizar o que ele chama de fetichismo da mercadoria8. A culpa não é de
Marx, mas de seu objeto: o fetichismo, a projeção social das faculdades humanas nos

5 JAPPE, Anselm. As aventuras da mercadoria – Para uma nova crítica do valor. Tradução: José Miranda
Justo. Lisboa: Antígona, 2006, p. 36-37.
6 OC:176.
7 OC:188.
8 “O misterioso da forma mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos
homens as características sociais do seu próprio trabalho como características objetivas dos próprios
produtos de trabalho, como propriedades naturais sociais dessas coisas e, por isso, também reflete a
relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social existente fora deles, entre
objetos” conclui então Marx que: “...a forma mercadoria e a relação de valor dos produtos de trabalho, na
qual ele se representa, não têm que ver absolutamente nada com sua natureza física e com as relações
materiais que daí originam. Não é mais nada que determinada relação social entre os próprios homens
que para eles assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Por isso, para encontrar uma
analogia, temos de nos deslocar à região nebulosa do mundo da religião. Aqui os produtos do cérebro
humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas, que mantêm relações entre si e com os
homens. Assim, no mundo das mercadorias, acontece com os produtos da mão humana. Isso eu chamo
fetichismo que adere aos produtos de trabalho tão logo são produzidos como mercadoria, e que, por isso,
é inseparável da produção de mercadorias” (OC:198-199).
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 55
objetos, projeção esta que “adere” (Anklebt) aos produtos do trabalho, e que é inseparável
da produção de mercadorias, só pode ser descrita se se recorre à “região nebulosa da
religião”. Trata-se de uma projeção social secularizada e, por isso, essencialmente
semelhante à projeção religiosa e sagrada. Parece incômodo encontrar nesta difícil
apresentação da forma valor o viés crítico que se quer destacar. O ponto de partida deste
viés, a contradição social elementar que ele apresente foi muito bem assinalado por
Jappe9:
Na inversão que caracteriza logo a mercadoria singular, o concreto
torna-se simples portador do abstrato. O concreto só tem existência
social na medida em que serve ao abstrato para que este dê a si
mesmo uma expressão sensível. E se a mercadoria é a 'célula
germinal' de todo o capitalismo, isso significa que a contradição entre
o abstrato e o concreto nela contida regressa em cada estádio da
análise, constituindo de algum modo a contradição fundamental da
formação social capitalista.10

No campo da política, conforme nos lembra ainda Jappe, a retomada desta crítica
categorial da forma valor como o cerne da crítica da sociedade capitalista encontra os seus
maiores obstáculos. É mais fácil entrar no onipresente coro atual e buscar mais “emprego e
renda” e muitíssimo mais difícil construir a crítica das formas de socialização engendradas
pela mercadoria, como o trabalho abstrato e a forma mercadoria. Além do que, “é
garantidamente mais fácil escrever sobre as multinacionais do que sobre o valor, e é mais
fácil sair à rua para protestar contra a Organização Mundial do Comércio ou contra o
desemprego do que fazê-lo para contestar o trabalho abstrato”11.

**

2. Da mercadoria ao sujeito de direito

Se for válido o quadro traçado e se pudemos compreender o movimento interno da

9 JAPPE, Anselm. As Aventuras da mercadoria, op.cit., p. 37.


10 Muitos pensadores se voltaram recentemente para este aspecto da teoria de Marx. Uma excelente
retomada crítica e didática da literatura da assim chamada “nova crítica do valor” iniciada sobretudo na
Alemanha foi realizada por Anselm Jappe na op. cit. Ele esboça as preocupações comuns de uma tradição
pouco reconhecida, que de Marx passou por Georg Lukács, Theodor Adorno, Herbert Marcuse, Alfred
Sohn-Rethel, Hans-Jürgen Krahl, chegando até recentemente, a partir dos anos 80 a Moishe Postone,
Robert Kurz e ele próprio, junto aos esforços dos coletivos Krisis e Exit, entre outros, por uma crítica das
sociedades produtoras de mercadorias com base nos textos do início do primeiro livro d'O Capital.
Partindo de um viés distinto da nova crítica do valor, também o trabalho de John Holloway, próximo ao
que ele chama de “open marxism”, parte da crítica do fetichismo para reconstruir um sentido
contemporâneo para a crítica radical do capitalismo. Cf. Em especial HOLLOWAY, John. Mudar o mundo
sem tomar o poder. Tradução: Emir Sader. São Paulo: Viramundo, 2002.
11 JAPPE, Anselm. As Aventuras da mercadoria, op.cit., p. 19.

[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 56


forma valor e sua função nas sociedades produtoras de mercadorias, o nosso problema em
particular pode começar a emergir. A primeira evidência que precisamos reconhecer para
nos colocarmos no campo de nosso problema é simples vista de sua base mais elementar:
as mercadorias não podem se trocar sozinhas, elas precisam ser portadas por compradores
e vendedores que entre si estabelecem a troca mercantil. Nesta forma de troca social, o
comprador e o devedor aparecem como sujeitos de equivalências, ou seja, aparecem
apenas e tão-somente como portadores abstratos de mercadorias/valor. Uma mercadoria,
como tal, não vale mais ou menos apenas por estar na propriedade deste ou daquele
proprietário, sendo assim, é apenas na relação com outras mercadorias que o valor das
mercadorias pode aparecer. Em suma: os sujeitos de equivalências, para serem
considerados como tais, precisam ser sujeitos equivalentes.12

Na constituição elementar da mercadoria e de sua lógica, a forma valor, a célula das


sociedade produtoras de mercadorias, como as denomina Marx, encontramos também dela
deduzida a forma elementar de relação subjetiva: a forma do contrato entre sujeitos
equivalentes. Portanto, tanto quanto a atividade humana útil/desejável e os objetos desta
atividade são abstraídos (realmente, socialmente, praticamente) em mercadoria e trabalho,
os próprios indivíduos, mas também os grupos sociais, aparecem como sujeitos abstratos,
portadores de mercadoria e, por conseguinte, de valor. É assim que vemos surgir o sujeito
de direito. O fetichismo da mercadoria é a ilusão socialmente necessária – e que adere às
relação sociais sob a égide da sociedade de produção de mercadorias – segundo a qual o
valor é constituinte do objeto e não fruto das relações sociais. Mas como já o demonstrava
Marx em O Capital, é conseqüência lógica e histórica da produção de mercadorias que o
fetichismo da mercadoria faça surgir também um fetichismo jurídico, ou seja, faça surgir
uma aparência socialmente necessária segundo a qual a normatividade social pode ser
derivada de vontades distintas, porém de iguais capacidades, ou melhor, de vontades

12 Nas palavras de Marx esse processo aparece do seguinte modo: “As mercadorias não podem por si
mesmas ir ao mercado e se trocar. Devemos, portanto, voltar a vista para seus guardiões, os possuidores
de mercadorias. As mercadorias são coisas e, conseqüentemente, não opõem resistência ao homem. Se
elas não se submetem a ele de boa vontade, ele pode usar de violência, em outras palavras, tomá-las. Para
que essas coisas se refiram umas às outras como mercadorias, é necessário que os seus guardiões se
relacionem entre si como pessoas, cuja vontade reside nessas coisas, de tal modo que um, somente de
acordo com a vontade do outro, portanto cada um apenas mediante um ato de vontade comum a ambos,
se aproprie da mercadoria alheia enquanto aliena a própria. Eles devem, portanto, reconhecer-se
reciprocamente como proprietários privados. Essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, desenvolvida
legalmente ou não, é uma relação de vontade, em que se reflete a relação econômica. O conteúdo dessa
relação jurídica ou de vontade é dado por meio da relação econômica mesma. As pessoas aqui só existem
reciprocamente, como representantes de mercadorias e, por isso, como possuidores de mercadorias.”
(OC:209-210)
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 57
equivalentes. De modo especialmente claro, Michel Miaille assim expôs esta relação:

O fetichismo da norma e da pessoa, unidos doravante sob o vocábulo


único de direito, faz esquecer que a circulação, a troca e as relações
entre as pessoas são na realidade relações entre coisas, entre objetos,
que são exatamente os mesmos da produção e da circulação
capitalistas. E, de fato, no mundo do direito tudo parece passar-se
entre pessoas: as que mandam e as que obedecem, as que possuem, as
que trocam, as que dão, etc. Tudo parece ser objeto de decisão, de
vontade, numa palavra de Razão. Jamais aparece a densidade de
relações que não são queridas, de coisas às quais os homens estariam
ligados, de estruturas constrangedoras mas invisíveis. Esta relação
cruzada entre a forma valor e a forma jurídica (tal como a noção de
norma e de pessoas exprimem) parece-me eminentemente
significativa. O sistema jurídico da sociedade capitalista caracteriza-
se por uma generalização da forma abstrata da norma e da pessoa
jurídicas. Essa generalização permite representar a unidade social de
maneira ao mesmo tempo real e imaginária.13

Em outras palavras, diríamos nós: se a dimensão humana surgida a partir da célula


da mercadoria cria pela primeira vez na história uma esfera separada de relações sociais a
que chamamos economia, a existência do sujeito de direito, o correlato pessoal e lógico da
mercadoria, seu portador, também dá início ao surgimento de uma esfera separada de
relações dentro da qual uma certa normatividade social, necessariamente abstrata, é
construída em vista de um sujeito abstrato de direito.

Dito de um outro modo ainda: as condições lógicas, sociais e históricas que viram
nascer o mercado como categoria socializadora central da sociedade capitalista são as
mesmas que viram nascer o sujeito de direito. Não é que a esfera econômica determinou e
determina a esfera jurídica – como pareceu a muitos autores marxistas e muitos críticos do
marxismo – mas ambas se ergueram como esferas separadas em face de uma mesma
totalidade histórica e social.

O constante rótulo de “economicismo” dado às abordagens marxistas sobre o direito,


normalmente pelos juristas e filósofos, se pode ser correto em relação a certos autores, de

13 MIAILLE, Michel. Introdução Crítica ao Direito. 2. ed. Tradução: Lisboa: Estampa, 1994, p. 94-95.
(grifos do autor). Seria importante relembrar aqui o mecanismo de retroversão existente na “relação
cruzada” da forma valor e da forma jurídica também exposta por Miaille: se o fetichismo da mercadoria
faz-nos ver as relações sociais constantes no valor como atributos da coisa, portanto, “coisificando” as
relações sociais, as formas jurídicas fazem o exato oposto, fazendo-nos ver necessariamente as relações de
coisas, como a compra e venda, etc., como relações entre pessoas e suas vontades “livres”. Esta “relação
cruzada” seria, portanto, como em uma bateria, com pólos opostos mas em um campo de forças
inseparável, ou ainda, em uma relação entre partes constituintes de um mesmo campo social fetichista na
forma de uma “frente” e um “verso”.

[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 58


modo algum é concebível para Marx e seus leitores atentos. “Não é o predomínio de
motivos econômicos que distingue de maneira decisiva o marxismo da ciência burguesa,
mas o ponto de vista da totalidade”, já havia escrito Georg Lukács14 em 1923. Se foi apenas
no sentido da determinação (ainda que recíproca) que as esferas econômica e jurídica
foram pensadas, mesmo pelas análises que se reputaram marxistas, a leitura a partir da
análise da forma valor e do fetichismo da mercadoria permite-nos compreender por um
ângulo mais profundo o problema. Não é como esferas exteriores entre si que a “economia”
e o “direito” devem ser pensadas, como se pudessem ser reunidas a posteriori e
exteriormente, antes, é a própria separação entre a atividade social convertida em
“economia” e a normatividade social convertida em “direito” que precisam ser,
simultaneamente, pensadas e criticadas. É preciso perguntar pela práxis social que
precisou se cindir nestas esferas e categorias sociais distintas.15

A maioria dos leitores e críticos de Marx atribuem a este a “descoberta” do


predomínio da economia sobre as outras categorias sociais, e portanto, de uma “base” sob
uma “superestrutura”. Em primeiro lugar, é preciso diferenciar o economicismo da
sociedade capitalista da crítica a este economicismo. A crítica do economicismo, como é
óbvio, necessita reconhecer o seu real funcionamento. Mostrar que na sociedade capitalista
várias esferas sociais são, em grande medida, “determinadas” pela esfera econômica indica
uma exposição de algumas características particulares desta sociedade mesma. Para
alguns marxistas, porém, isto significou demonstrar uma constante social ontológica, que
pode supostamente ser verificada em toda e qualquer sociedade, mesmo nas não-
capitalistas.16 Em suma, a sociedade capitalista é economicista, sendo precisamente isto o
que Marx critica nela. Mas ele nunca sugeriu que todas as outras sociedades não-
capitalistas também o fossem, nunca fez depender todos os aspectos da vida social da
“economia”, encontrando nisto uma característica comum a todas as sociedades humanas.

14 LUKÁCS, Georg. História e Consciência de Classe. Tradução: Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins
Fontes, 2003, p. 105.
15 Esta cisão como ponto crítico e não como pressuposição da crítica é bem realizada na seguinte passagem

de Holloway: “A separação entre o econômico e o político (e a constituição do “econômico” e do “político”


por essa separação) é, portanto, fundamental para o exercício da dominação sob o capitalismo. Se a
dominação é sempre um processo de roubo à mão armada, o peculiar do capitalismo é que a pessoa que
tem as armas está separada daquela que comete o roubo e apenas supervisiona para que o roubo se realize
conforme a lei. Sem essa separação, a propriedade do fato (oposta à posse meramente temporal) e,
portanto, o próprio capitalismo seriam impossíveis. Isso é importante para a discussão sobre o poder...”
HOLLOWAY, John. Mudar o mundo sem tomar o poder. São Paulo: Viramundo, 2002, p.54-55. É
interessante notar que, ao final deste parágrafo, o autor se remete à obra de Pasukanis de 1924.
16 A antropologia é riquíssima em refutações a este ponto de partida. Cf. por exemplo, de início, SAHLINS,

Marshall. Stone Age Economics. New York: Aldyne de Gruyter, 1972.


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Em segundo lugar, a partir de uma crítica do valor e do fetichismo carece de sentido
qualquer tópica “base-superestrutura”, pouquíssimo importante para o próprio Marx, vez
que esta tópica é incapaz de apreender precisamente a cisão entre atividade humana
material (economia) e as demais dimensões da vida social nas sociedades produtoras de
mercadorias, antes, pressupõe esta cisão. Quando pensamos nas sociedades não-
capitalistas percebemos o fato inegável de que em nenhuma outra sociedade houve tal
autonomização das atividades materiais suficiente para criar uma esfera própria e
autônoma de relações sociais que em nossa sociedade chamamos de “economia”.17

O que vamos investigar aqui é a relação de mútua dependência entre estas esferas
sociais tendo em vista as preocupações precedentes. Pretendemos, por conseguinte,
estudar a relação lógica e histórica, mas também antropológica e sociológica entre a
forma do valor, a base da economia moderna e a forma jurídica, a lógica normativa que
regula sujeitos abstratos de direito, base dos sistemas jurídicos modernos.

3. A revolução russa e o “campo jurídico”: reabrindo Pasukanis

O autor que primeiro avançou na compreensão do problema, tal como o expusemos


até aqui, foi sem dúvida o jurista russo Eugeny Pasukanis, mormente na obra A Teoria
Geral do Direito e o Marxismo, de 192418. Pasukanis também elabora nesta obra uma
análise de microscopia social tal com a de Marx em O Capital, isto é, também ele elaborou
uma análise da forma mais abstrata e simples a partir da qual as formas jurídicas
modernas desenvolvidas funcionam. Esta célula, ou átomo da teoria jurídica, e portanto,
seu ponto de partida, é o sujeito de direito19. É digno de nota a clareza com a qual
Pasukanis levanta este problema: “O homem torna-se sujeito de direito” diz-nos ele, “com
a mesma necessidade que transforma o produto natural em uma mercadoria dotada das
propriedades enigmáticas do valor”20.

O sujeito de direito é fundamentalmente o suporte necessário de toda troca de

17 Em tempos recentes, André Gorz e Louis Dumont, dentre muitos outros, podem auxiliar-nos a aclarar
esta afirmação.
18 PASUKANIS, E. B. [1924] A Teoria Geral do Direito e o Marxismo. Tradução: Paulo Bessa. Rio de

Janeiro: Renovar, 1989. A seguir referido como “TGDM”, seguido do número da página.
19 TGDM:81.
20 TGDM:35.

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mercadoria. Na medida em que a mercadoria se transmuta em portadora de valor, também
seu portador se transmuta em sujeito abstrato de direito. O que significa esta tese tão bem
exposta por Pasukanis? Significa o vínculo lógico e histórico entre a mercadoria e seu
portador, entre a forma de valor da mercadoria e a forma do sujeito de direito. A teoria
burguesa do direito, em suas diversas formas, novas e velhas, considera a categoria de
sujeito de direito como um objeto dedutível de um princípio especulativo ou empírico
qualquer21. É preciso, segundo Pasukanis, ao invés disso, “considerar historicamente toda
forma social”22, e a questão mais urgente, no que diz respeito à forma do sujeito de direito
é: como o indivíduo sai de sua existência “zoológica” (ou de um “mero vivente”, como diria
Walter Benjamin) para a existência como “sujeito de direito”? Para Pasukanis, o sujeito de
direito surge no interior do processo exposto por Marx.

Assim como a diversidade natural das propriedades úteis de um


produto só aparece na mercadoria sob a forma de simples invólucro
de seu valor [forma de valor da mercadoria] e como as variedades
concretas do trabalho humano se dissolvem no trabalho humano
abstrato, como criador de valor [forma trabalho] igualmente a
diversidade concreta da relação do homem com a coisa aparece como
vontade abstrata do proprietário e todas as particularidades
concretas, que distinguem um representante da espécie Homo
sapiens de outro, se dissolvem na abstração do homem em geral, do
homem como sujeito de direito.23

Neste fragmento lemos uma reprodução perfeita da ordem lógica da exposição de


Pasukanis (que marquei com os colchetes). Da forma fundamental de valor da mercadoria,
ao trabalho abstrato, chegando até o sujeito de direito. Enfim, “o fetichismo da mercadoria
é completado pelo fetichismo jurídico”24. Quais são as principais consequências da tese
pasukaniana do vínculo essencial entre as formas jurídicas e a forma valor? Enumeremos

21 Como bem lembrou Miaille, o tema do sujeito de direito é tomado de modo tão natural pela dogmática
jurídica que sua abordagem em geral é extremamente vaga e lacônica (em um campo, completaríamos
nós, tão afeito a questiúnculas e filigranas). Ao contrário, para ele, “... a teoria do sujeito de direito
permite precisamente ocultar o caráter artificial desta noção e, ao mesmo tempo, a sua função no seio da
sociedade burguesa”. Voltamos, portanto, uma vez mais à questão da naturalização de categorias sociais.
Cf. MIAILLE, Michel. Introdução crítica ao direito, op.cit., p.114 e ss. Outro pensador próximo ao
marxismo que se deparou em profundidade com o tema foi o jurista e pensador francês Bernard Edelman,
Cf. EDELMAN, Bernard. O direito captado pela fotografia - elementos para uma teoria marxista do
direito. Coimbra: Centelha, 1976. Para uma leitura contemporânea de Edelman Cf. SILVA, Alessandra
Devulsky da. Edelman: althusserianismo, direito e política. São Paulo, Universidade Presbiteriana
Mackenzie, Dissertação de Mestrado, 2008.
22 TGDM:83.
23 TGDM:86 (grifei).
24 TGDM:90.

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algumas:

1) Torna-se possível compreender a partir do caráter lógico dedutivo destas


categorias expostas a evolução das formas embrionárias do direito moderno nas
sociedades pré-capitalistas. Ou seja, torna-se compreensível a história de certas práticas
reputadas como as “origens” de institutos jurídicos modernos.25 Deste modo, deve ser
encontrado no trabalho de historiadores do direito ao menos uma relação de intensa
proximidade entre as formas jurídicas (como contrato, sujeito de direito, normas de
caráter abstrato, com generalidade de conteúdo e destinatário, etc.) e a existência de
espaços de ativa troca mercantil nas sociedades pré-capitalistas.26

2) O direito, ou a vigência de uma esfera jurídica de relações como centro da


normatividade social, está intrinsecamente ligada às sociedades produtoras de
mercadorias, onde a lei do valor ainda é o centro da socialização. Dito de outro modo:
somente se desenvolvem formas jurídicas onde a valor se encontra, de algum modo,
presente e também em desenvolvimento como forma social. Esta afirmação se desdobra
em outras duas na análise de Pasukanis:

2.1.) Como conseqüência do que precede, o jurista russo defenderá o


enfraquecimento e conseqüente perecimento das formas jurídicas burguesas,
acompanhando as teses já defendidas pelo Marx da Crítica do Programa de Gotha, e
mesmo pelo Lênin de Estado e Revolução. Para Pasukanis não era possível, como muitos
revolucionários queriam, iniciar a investigação por categorias jurídicas próprias do
proletariado, que juntas resultariam em uma Teoria Geral do Direito “marxista” e sua
justificativa é bastante emblemática. As categorias não são neutras, responde o jurista,
antes advêm de processos históricos e sociais concretos, de sorte que não há uma categoria
como o “valor proletário” ou o “lucro proletário” ou um “capital proletário”, pois as
categorias são formas intrinsecamente ligadas à existência e à dominação de classe. Assim,
de igual maneira, não há formas jurídicas que não contenham em si seus conteúdos
fetichistas instauradores do poder de classe. Resta a ele concluir que: “O desaparecimento
das categorias do direito burguês significará nestas condições o desaparecimento do direito

25 “Evidentemente que a evolução histórica da propriedade enquanto instituição jurídica, compreendendo


todos os diversos modos de aquisição e proteção da propriedade, todas as modificações relativas aos
diversos objetos, etc., não se consumou de maneira tão ordenada e coerente como a dedução lógica acima
mencionada. Mas somente a dedução desvenda-nos o sentido geral do processo histórico.” (TGDM:86)
26 Cf. a segunda parte deste estudo a ser publicada.

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em geral, isto é, o desaparecimento do momento jurídico das relações humanas”27.

2.2.) Portanto, não há que se falar em um “direito socialista” ainda presente após a
eventual superação da sociedade capitalista e de seu poder de classe. Após uma fase de
transição, com a superação da forma valor, e conseqüentemente, superação do momento
em que as relações sociais estariam sob a égide da existência do capital, também se
superaria o momento jurídico das relações, ou seja, o momento em que o centro da
normatividade social se encontra nos indivíduos representados como sujeitos de direito,
nos contratos, nas normas gerais abstratas etc., que seriam substituídas por formas
técnico-organizacionais de regulação social.

3) Para Pasukanis, o “Estado de direito” é uma ficção excelentemente funcional. O


Estado, um fator de força, é elevado à condição de fator jurídico nas teorias e nas prática
normais dos teóricos e dos sistemas jurídicos tradicionais. Nestas teorias do Estado de
direito, o fato de figurar comumente o próprio Estado como sujeito de direito torna-o um
ente sobretudo normativamente estatuído. Ideia também presente em quase todas as
teorias políticas modernas, implica dizer que a legitimidade das ações do Estado advém do
fato deste se submeter à forma jurídica e à legalidade. Kelsen é o ponto extremo dessa
posição, tendo identificado ao fim e ao cabo Estado e direito, ou mais precisamente, tendo
afirmado a forma do Estado como uma forma particular de forma jurídica28. Todavia, para
Pasukanis, são em estados excepcionais, onde o sistema produtor de mercadorias como um
todo se coloca em perigo que assistimos à emergência do Estado como fator de poder
despido de suas máscaras jurídicas formais. Para Pasukanis, parece não só haver uma
clivagem entre Estado e direito. Mas mais do que isso, é nesta clivagem que se pode
compreender a natureza mesma destas categorias sociais.29

Poder-se-ia continuar a exposição de outras teses pasukanianas e suas consequências


talvez não menos importantes. Por exemplo: a relação entre o sujeito de direito e o sujeito
ético, ou seja, entre o fetichismo jurídico e o fetichismo ético; da relação profunda entre o

27 TGDM:26. Não só isso: numa célebre passagem de um texto de 1929, Pasukanis escreveu que a o
“problema do desaparecimento do direito é a pedra de toque que mede o grau de proximidade do jurista
com o marxismo”. Cf. PASUKANIS, E. B. “Economics and Legal Regulation.” In: __. Selected writings on
Marxism and Law. Londres: Academic Press, 1980, p. 268.
28 Cf. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução: João Baptista. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.

310.
29 O estado de exceção não nos ensina na prática a natureza não-jurídica do Estado como fator de poder?

Não é isso que se expressa na fórmula de Giorgio Agamben do Estado de exceção como o exercício da
“força de lei (sem lei)”? Cf. AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução: Iraci D. Poletti. São Paulo:
Boitempo, 2004.
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poder de classe e a punição estatal, isto é, entre o poder de classe e o Direito Penal, e assim
por diante. Mas já aqui é possível intuir a distância que nos separa de Pasukanis. Essa
distância não é devido somente ao fato de que depois de A Teoria Geral do Direito e o
Marxismo assistiu-se à emergência do stalinismo, à ascensão do nazi-fascismo e da
Segunda Guerra Mundial, também a Guerra Fria e a construção do Welfare State, a
revolução chinesa, seguida tempos depois pelo colapso da União Soviética e dos regimes
autoritários do leste europeu, a ascensão e queda do neoliberalismo, etc. Mas também, e
principalmente talvez, pois o domínio das gigantescas redes de produção de mercadorias e,
portanto, da vigência do sistema capitalista global e o consequente domínio de uma rede
ininterrupta de direitos e deveres abstratos, ou seja, o domínio histórico da regulação
social pela forma valor e pela forma jurídica, nos tornaram insensíveis para o tema da
superação desta formas de regulação. Estas categorias sociais se tornaram nossa segunda
natureza, uma “segunda pele” social a partir da qual nós nos compreendemos no mundo, e,
desse modo, de tão atada a nossa própria percepção do mundo, não conseguimos ver delas
um começo ou um fim.

O destino de Pasukanis e das teses contidas em A Teoria Geral do Direito e o


Marxismo no interior do debate sobre o direito na União Soviética é também bastante
emblemático.30 Em face da obrigatoriedade em industrializar-se rapidamente devido ao
fracasso das revoluções da Europa ocidental, sendo que “rapidamente” aqui significa
sobretudo de modo altamente autoritário e violento, ou seja, na via que Robert Kurz
chamou de “modernização retardatária” (ou recuperadora), uma ordem jurídica, estatal e
policial altamente organizada e centralizada era necessária. De maneira que, para o regime
stalinista recém instalado, as teses de Pasukanis (que tão-somente acompanhavam o cerne
do pensamento de Marx) era tudo o que o regime buscava negar: a ideia que se deveria
caminhar para o enfraquecimento e o posterior perecimento do Estado e das formas
jurídicas. Obrigado a se retratar das teses desta obra tornada maldita pelo stalinismo,
Pasukanis resiste o quanto pode, mas se retrata nos principais pontos, por exemplo, ao
defender a possibilidade e a existência de um “direito socialista”31. Ainda assim, desaparece
em um dos muitos expurgos de Stalin, provavelmente em 1937.

30 Para situar esta obra no contexto do pensamento de Pasukanis, bem como para acompanhar as
transformações seguintes em suas teses, Cf. NAVES, Marcio Bilharinho. Marxismo e Direito – Um estudo
sobre Pashukanis. São Paulo: Boitempo, 2000, o mais importante estudo brasileiro sobre o jurista russo.
31 Para uma análise deste período de “autocrítica” de Pasukanis patrocinada pelo stalinismo, Cf. NAVES, op.

cit., p. 125 e ss.)


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As teses que prosperaram na União Soviética após Pasukanis não só são diferentes
das suas mas perfeitamente antípodas delas. Para um dos principais juristas soviéticos
stalinistas, Vychinski, não só o direito não contradiz o socialismo, mas, antes, é somente no
socialismo que a legalidade e o direito podem de fato se efetivar32. Como bem notou
Márcio Naves, o stalinismo tinha ele mesmo uma “sintomática linguagem jurídica”: com a
propriedade social detida pelo Estado, o Estado Soviético teria como que por “decreto”
abolido as classes sociais, de modo que tudo o que o Estado Soviético impunha
juridicamente era socialista, e a legitimidade e, portanto, a obediência, estaria mais do que
nunca, atrelada à legalidade formal. Ao contrário do que parece superficialmente, a
“tendência a identificar, senão a inverter, o econômico e o jurídico, marca profundamente
a teoria soviética nos diversos domínios. Pode-se notar, por exemplo, a utilização por
Stalin de um vocabulário jurídico a propósito das 'leis econômicas': as leis gerais 'são
aplicadas', as novas leis 'entram em vigor', no conjunto, as leis comportam 'exigências',
'disposições', etc.”33. Em suma, o “economicismo” do direito soviético não deixava de
também ser normativista.

Outro fato importante a ser constatado: a ideia de que a legalidade e as formas


jurídicas encontrariam na superação do capitalismo seu campo de possibilidade efetiva, ou
seja, que o capitalismo impede a plena vigência do princípio da legalidade, da “rule of
law”, também se encontra enunciada com todas as letras em autores de esquerda “anti-
autoritários” de modo algum alinhados com o stalinismo, como o jurista que circundou a
Escola de Frankfurt, Franz Neumann e dos inúmeros pensadores, centristas ou
esquerdistas, como Jürgen Habermas, John Rawls e tantos outros tão em voga no gosto
filosófico e jurídico de nosso tempo. Isto é, que todos devemos obedecer, e que obedecer à
lei é a invocação por excelência da democracia ou do socialismo, ou dos dois, eis a premissa
básica tanto do stalinismo quanto dos reformismos jurídicos que se reputam de esquerda e
das filosofias liberais de toda ordem. O biombo da forma jurídica desenvolvida já conteve
atrás de si as silhuetas das mais diversas do espectro político contemporâneo, de regimes
altamente autoritários a democracias liberais abertas ou fechadas. Poderíamos arriscar,
contra toda a correnteza contemporânea, a perguntar junto com Alysson Mascaro: é

32 Cf. NAVES, Marcio Bilharinho. op. cit., p. 162 e ss.


33 CHAVANCE, Bernard. Le capital socialiste Apud NAVES, Marcio Bilharinho. Marxismo e Direito, op.cit.,
p. 165-166.
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possível pensar em justiça para além da legalidade?34

4. Pasukanis como jurista “esotérico”

Robert Kurz elaborou uma distinção do interior da obra de Marx que já fez fortuna e
que se mostrou de grande proveito analítico. Retomemo-na aqui muito rapidamente, para
iniciar uma avaliação da importância do marco teórico pasukaniano para o problema que
nos ocupa. Para Kurz35, o presente histórico de colapso do processo de modernização
capitalista leva necessariamente a todos que queiram ler em Marx uma crítica
profundamente conectada às urgências contemporâneas, a distinguir um “duplo Marx”. Há
um primeiro Marx, um Marx “exotérico”, cuja principal característica é municiar os críticos
do capitalismo para uma luta no interior das relações fetichistas e, portanto, a partir das
categorias de base da própria socialização capitalista. Esta linha argumentativa do
marxismo, nas palavras de Kurz, “refere-se à forma interna do movimento e à história da
imposição do capital como juridificação e coisificação de todas as relações, cujo horizonte
de desenvolvimento ainda era preenchido positivamente. E este é, na verdade, o Marx
corrente e mundialmente conhecido: 'ponto de vista do trabalhador' e luta de classes são os
conceitos centrais desta linha que conduziram ao marxismo histórico”. É o Marx sobre o
qual quase todos ouvem falar, o pensador que parecia esconder o segredo misterioso do
verdadeiro crescimento modernizador que os próprios capitalistas não haviam logrado
alcançar. O segundo Marx, o “Marx esotérico” procede não a partir das categorias
imanentes da modernização capitalista, mas a partir da crítica radical (que desce às raízes
categoriais) deste caráter fetichista da forma valor da mercadoria. A linha argumentativa
do Marx esotérico “refere-se à real mistificação da forma como tal da mercadoria e do
dinheiro, 'na' qual a modernidade, a par de seus conflitos imanentes, se expõe, impõe e
desenvolve”36.

Para Kurz, em suma, assim como para boa parte da chamada “nova crítica do valor”, o
Marx exotérico, o Marx defensor intransigente do aprofundamento da modernização

34 “Nesta noite escura em que repousam os sonhos de transformação social, o cobertor da legalidade pode
até ser para todos, mas a cama ainda é só para alguns. Os perturbadores pensamentos de Schmitt e
Pachukanis, de certa maneira, ou puxam a coberta ou quebram a cama.” MASCARO, Alysson. Schmitt e
Pachukanis – A Política para além da legalidade. In: Filosofia do Direito e Filosofia Política – A justiça é
possível? São Paulo: Atlas, 2002, p. 135-136. Cf. também MASCARO, Alysson. Crítica da Legalidade e do
Direito Brasileiro. São Paulo: Quartier Latin, 2003.
35 KURZ, Robert.[1995] Pós-marxismo e fetiche do trabalho - Sobre a contradição histórica na teoria de

Marx. Disponível em http://www.geocities.com/grupokrisis2003/rkurz136.htm desde 2003. (Publicado


originalmente na Revista Krisis, n.15, 1995.)
36 Idem, ibidem, s.p.

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capitalista e sua linha argumentativa no interior do marxismo, encontrou um limite
histórico irrecorrível. O que resta à crítica que julga se basear no pensamento de Marx, ou
seja, à crítica radical do capitalismo, é encontrar em seus textos o viés que leve ao Marx
esotérico, crítico das categorias de base da sociedades produtoras de mercadorias. É
importante retomar aqui o texto de Kurz, mesmo que em uma passagem extensa:

Em princípio, o "duplo Marx" pode ser "destrinçado" e exposto em todos os


níveis de sua teoria. Como já sugeri, a argumentação "dupla" de Marx
remete em primeiro lugar ao problema da forma da relação fetichista
"valor" (este é o cerne da constituição do fetiche) em sua divisão social das
categorias capitalistas. O Marx "exotérico" critica de modo redutor a
subordinação da "classe operária" ao capital na forma fenomênica imediata
da mais valia como "trabalho não pago" (e já por isso compatibiliza-se com
a ideologia de legitimação do movimento operário, representada de
maneira tanto mais tosca e eficaz por teóricos ideológicos como os
ricardianos de esquerda ou Lassalle). O outro Marx, o "esotérico", critica
pelo contrário a categoria de fetiche básica valor como tal, e, a partir dessa
perspectiva, a mais-valia aparece então como a própria forma consumada
do valor num sistema dinâmico e autodestrutivo; isto é, não se pode
superar a mais-valia em nome da emancipação social do proletariado, de
sorte que o valor permaneça como base ontológica; antes, a superação da
emancipação negativa nas leis objetivadas da valorização do valor é idêntica
à superação da própria forma do valor como tal. A "simples" forma do valor
é de fato apenas um fantasma histórico da ideologia; ela estaria realmente
vinculada à mera existência em nichos de produção de mercadorias a baixos
níveis de força produtiva e necessidade, ao passo que uma libertação da lei
compulsória da valorização, que deve ocorrer ao nível elevado da
socialização alcançada, só é de algum modo possível através de um
rompimento da forma do valor fetichista (ou seja, por intermédio da
superação da mercadoria e do dinheiro).

Como lembra este autor, não se trata de erro ou de falsa interpretação a existência de
uma dupla tradição marxista que pode remontar a um “duplo Marx”, antes, deste “ponto
de vista, pode-se proceder a uma historização e diferenciação da teoria de Marx que
distingue duas vias teóricas em última instância incompatíveis, não como uma relação
entre "erro" e "verdade", mas como um problema da extemporaneidade histórica dentro da
própria teoria de Marx”. Ou seja, foi a própria modernização capitalista que levou os
movimentos operários ancorados no marxismo modernizante (exotérico) a construírem
categorias de luta no interior dos quadros categoriais da sociedade capitalista. Havia um
longo caminho de modernização, como sabemos, pronto a ser pavimentado no século XIX
e no século XX. O Marx “esotérico” permaneceu um bebê natimorto até há poucas décadas,
em face dos desafios colocados aos marxistas tradicionais na construção positiva da
modernização capitalista, quando não na construção autoritária, mas veloz, no modelo
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soviético, desta mesma modernização.

Na definição de Kurz da linha argumentativa do marxismo exotérico, do marxismo


imanente à modernização capitalista, aparece o termo “juridificação” (Verrechtlichung),
que grifei, em “juridificação e coisificação de todas as relações...”. Embora não volte ao
termo, ao menos neste texto, Kurz toca no íntimo de nosso problema: a juridificação, ou
seja, a espraiamento das formas jurídicas como categorias de normatização social e estatal
como o próprio horizonte da modernização capitalista é também, em grande medida, parte
do projeto “emancipador” do marxismo exotérico, imanente às formas categoriais da
modernização capitalista. E o Capital, neste sentido modernizador, procede à juridificação
(Verrechtlichung) e à coisificação (Versachlichung) de todas as relações, fazendo ressoar o
par marxiano-pasukaniano valor-sujeito de direito. Para Kurz, ademais, a construção tanto
teórica quanto prática de um marxismo superador do fetiche modernizador ainda está para
ser feita.

Se essa distinção é correta tal como achamos que é, ela poderá nos ajudar a
compreender o significado histórico de Pasukanis no interior do debate sobre o direito
soviético37. Tendo ido precisamente ao conceito central de forma do valor da mercadoria
do Marx d´O Capital afim de lá extrair a forma celular do legalidade burguesa ou
capitalista, ou seja, o sujeito de direito, o jurista russo acabou por construir uma crítica do
direito com um cerne “esotérico” no sentido kurziano do termo. Não que nesta construção
não haja uma diversidade de elementos do marxismo “exotérico”, longe disso: bastaria
lembrar que Pasukanis não faz nenhuma crítica da categoria trabalho, e amiúde em sua
obra sempre apresenta, como todos os seus contemporâneos, a planificação econômica
como alternativa quase que exclusiva à legalidade burguesa, etc. Entretanto, no essencial,
Pasukanis alcança o marxismo esotérico sobretudo quando defende, com Marx, a
fenecimento progressivo e o desaparecimento final do “momento jurídico” das relações
sociais com o fim da sociedade capitalista e sua formas categoriais de socialização
(mercadoria, valor, lucro, etc.). Mas a emergência do stalinismo e com ele o Estado
modernizador retardatário como que fez acontecer o marxismo “exotérico”,
autoritariamente imanente e modernizador, com um status de regime de Estado. É

37 A leitura de Pasukanis como um crítico do direito em uma chave “esotérica”, no sentido kurziano do
termo, e sua compreensão no interior do debate sobre o “socialismo jurídico” a partir daí, já foi feita
oportunamente por Adriano Assis Ferreira em um livro recente. Cf. FERREIRA, Adriano Assis. Questão
de Classes – Direito, Estado e Capitalismo em Menger, Stutchka e Pachukanis. São Paulo: Alfa-Ômega,
2009.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 68
emblemático que Kurz chame os limites teóricos demarcadores da fronteira entre o
marxismo “exotérico” e o marxismo “esotérico”, de limite de dor (Schmerzgrenze). Limite
de dor marxista, mas também limite de dor moderno e burguês em geral que tenta superar
as condições de crise do presente por intermédio de categorias imanentes a este próprio
presente sem concebê-los como passíveis de superação. No caso de Pasukanis, o “limite de
dor” foi ultrapassado literalmente e mesmo se vergando na direção do autoritarismo
modernizador do stalinismo, representou mais uma significativa baixa do marxismo
esotérico natimorto até em tempos recentes.

5. Pasukanis diante de Rubin

Um outro caminho ainda pode nos levar a reavaliar o marco pasukaniano deste
problema que nos ocupa. Trata-se da surpreendente comparação “biobibliográfica” de
Pasukanis e outro importante pensador da revolução soviética nascente, Isaak Ilitch Rubin.
Ambos, Pasukanis e Rubin, eram intelectuais de grande nome e importância no início dos
anos 20, cada um em sua área de estudos, direito e economia respectivamente. Ambos
escreveram suas obras mais importantes no mesmo ano, 1924; Pasukanis, A Teoria Geral
do Direito e o Marxismo e Rubin A Teoria Marxista do Valor, obras que ainda hoje são
marcos teóricos expressivos em suas áreas; ambos foram, por razões semelhantes,
considerados malditos pelo stalinismo e ambos foram expurgados no mesmo ano: 1937.
Mais do que uma coincidência biobibliográfica este paralelo revela um caminho teórico
mais amplo, não por acaso tornado impossível e abafado pelo termidor stalinista. A
diferença no teor dos últimos escritos de ambos também não é casual: Rubin resistiu mais
às investidas da mudança de rumo do estado soviético do que Pasukanis, cuja tentativa de
permanecer no partido o levou a rever muitas de suas teses durante os anos 30.

Muita luz seria lançada sobre estas duas obras caso fossem lidas em conjunto, dado a
proximidade da leitura de Marx que ambas realizam. Para Pasukanis, a categoria do sujeito
de direito é enfim pensada como categoria lógica e histórica no interior do modo de
produção capitalista, para além de sua caracterização necessariamente idealista quando
não “metafísica” da jurisprudência e da doutrina liberal burguesa e da mera constatação
desta como “superestrutura” ideológica por parte do marxismo vulgarizado. Para Rubin,
igualmente, a categoria do valor, tomada necessariamente por natural na economia

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burguesa, é pensada como categoria lógica e histórica a partir da qual foi possível para
Marx construir não mais uma “economia” de tipo diferente, mas uma verdadeira crítica da
Economia Política, em cuja formulação se descobriu que a categoria do valor tem
necessariamente que aparecer como natural e pressuposta na forma econômica tradicional
de pensamento. Vejamos mais de perto esta esclarecedora proximidade de Rubin e
Pasukanis.

O primeiro ponto de intersecção a ser anotado é metodológico. Acompanhemos,


primeiramente, um trecho de A Teoria Marxista do Valor de Rubin:

À primeira vista, todos os conceitos básicos de Economia Política


(valor, dinheiro, capital, lucro, salários, etc.) possuem um caráter
material. Marx mostrou que, por trás de cada um deles, está oculta
uma relação social de produção específica, que na economia mercantil
só é realizada através de coisas, e confere às coisas um caráter
determinado, objetivamente social, uma “determinação da forma”
(mais precisamente: uma forma social) como diz Marx
frequentemente. Ao analisar qualquer categoria econômica,
devemos, de início, indicar a relação social que ela expressa. (...) A
teoria do valor, por exemplo, trata da troca entre produtores
autônomos de mercadorias, de sua interação no processo de trabalho
através dos produtos de seu trabalho. (...) A revolução que Marx
realizou na Economia Política consiste em ele ter considerado as
relações de produção sociais que estão por trás das categorias
materiais.38

Nesta passagem, Rubin reverbera e desenvolve a indicação marxiana de que “as


categorias da economia burguesa são formas do intelecto que possuem uma verdade
objetiva, uma vez que refletem relações sociais reais, mas estas relações pertencem apenas
àquela época histórica determinada, na qual a produção mercantil é o modo de produção
social”39. Estas categorias, entretanto, aparecem na percepção comum do cientista
econômico (sua “percepção espontânea”, nos termos de Rubin), passando-se por
categorias “naturais”, espontaneamente surgidas na realidade social. Esta naturalização do
que é histórico e que está na base do conceitos de “reificação” e “fetichismo”, o percebe
Rubin como uma apreensão da espontânea forma de aparência própria da economia
mercantil e que deve foi estilhaçada pela análise marxiana. Este estilhaçamento nada mais

38 RUBIN, Isaak I. A Teoria Marxista do Valor. Tradução: José B. de S. Amaral Filho. São Paulo:
Brasiliense, 1980, p. 58-61. (grifei)
39 Fragmento do Livro 1 de O Capital (OC:201) tal como, não casualmente, é citado por Pasukanis em

TGDM:42.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 70
é do que apreensão do “fetichismo da mercadoria” à qual Rubin foi um dos primeiros a
chamar a atenção no campo da economia nesta clássica obra.

Pasukanis, por seu turno, escreverá em A Teoria Geral do Direito e o Marxismo:

Se agora nos voltarmos para as ciências sociais, como por exemplo a


economia política, e se considerarmos um de seus conceitos
fundamentais, por exemplo o do valor, logo se evidencia que tal
conceito, enquanto elemento de nosso pensamento é um conceito não
apenas histórico, mas igualmente se evidencia que, como substrato
deste conceito, como parte da história da economia política, nós
temos uma história real do valor, isto é, uma evolução das relações
humanas que progressivamente fizeram deste conceito uma realidade
histórica. (...) O direito igualmente, em suas determinações gerais, o
direito enquanto forma, não existe apenas no cérebro e nas teorias
dos juristas especializados. Ele possui uma história real, paralela, que
não se desenvolve como um sistema de pensamento, mas como um
sistema particular que os homens realizam não como uma escolha
consciente, mas sob a pressão de relações de produção. (...) O que
Marx diz das categorias econômicas é, também, totalmente aplicável
às categorias jurídicas. Em sua universalidade aparente elas
exprimem um aspecto determinado da existência de um sujeito
histórico determinado: a produção mercantil da sociedade
burguesa.40

Tanto as categorias econômicas abstratas (como valor, capital, lucro, etc.) quanto as
categorias jurídicas também abstratas (como as de sujeito de direito, responsabilidade,
contrato e crime) somente podem ser compreendidas a partir das relações sociais
concretas que as tornaram possíveis, muito embora elas tenham nas sociedades produtoras
de mercadorias, uma aparência necessariamente natural e “dada”. A aparência de
naturalidade destas categorias socializadoras foi bem expressa por Alfred Sohn-Rethel
quando este estuda o fato de que nas sociedades produtoras de mercadorias as trocas são
cada vez mais organizadas sob a forma de pensamento sem ser de modo algum apenas um
produto do pensamento41. Por conseguinte, podemos aferir que dadas as premissas
fundamentais do valor na sua forma simples, é possível deduzir-se toda a cadeia produtiva
do capital que dela deriva, como se se tratasse do desenvolvimento lógico de uma equação.
Enfim, a forma do valor em desenvolvimento nas trocas humanas é uma “abstração real”42.

40 TGDM:33-35, 37-38 (grifei).


41 SOHN-RETHEL, Alfred. Intellectual and Manual Labour. Londres: Macmillan, 1978.
42 Alfred Sohn-Rethel foi o primeiro a trabalhar sistematicamente o conceito de “abstração real” Cf.

Também o ensaio do marxólogo brasileiro sobre o tema: FAUSTO, Ruy. Marx – Lógica e Política. Tomo 1.
São Paulo: Brasiliense, 1983.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 71
Evidentemente que estas categorias não dão conta de todo o movimento histórico que
passaria a ser, supostamente, apenas “deduzido” a partir das premissas iniciais dadas.
Apesar de possuir forma de pensamento (forma deduzida de premissas simples
inicialmente aceitas) a sociedade produtora de mercadorias não é pensamento, mas
história viva que sempre escapa ao poder identificador e totalizador do pensamento. Este é
o paradoxo da forma mercadoria como princípio socializador central que se encontra
plenamente exposto na paradoxal expressão “abstração real”.

É tendo isso em mente que devemos compreender a tentativa metodológica de Rubin


e Pasukanis de fugir desta força de atração exercida pelo poder “medusante” do fetichismo:
as categorias historicamente determinadas que se projetam (e são projetadas) como
categorias eternas. Rubin em relação ao valor e Pasukanis em relação ao sujeito de direito,
ambos buscarão romper com o caráter medusante do fetichismo da mercadoria e do
fetichismo jurídico.43

O segundo ponto a ser sublinhado nas obras mestras destes dois autores são as
interpenetrações de suas abordagens. Em Pasukanis, como nas passagens das obras já
citadas, o recurso às categorias econômicas é comum e serviu de apoio para sua análise das
categorias das formas jurídicas.44 Em Rubin, também a análise da forma valor não pôde
deixar de apresentar a centralidade de instâncias de igualdade jurídica como pressupostos
para a troca mercantil:

A ausência de coerção extra-econômica, a organização da atividade de

43 Para um estudo sobre a análise do fetichismo da mercadoria de Rubin, Cf. PERLMAN, Fredy. Lo
fetichismo de la mercancía. In: RUBIN, Isaak Ilitch. Ensaios sobre la teoria marxista del valor. 7. ed.
Tradução: Néstor Miguez. Mexico: Pasado y Presente, 1987. E para um estudo sobre o método em
Pasukanis Cf. NAVES, Márcio Bilharinho. op. cit., capítulo 1. A impressionante afinidade das análises de
Rubin e de Pasukanis em torno da problemática do fetichismo já havia sido percebida por John Holloway:
“Outros autores que sofreram ainda mais seriamente por sua tentativa de retornar à preocupação de Marx
pelo fetichismo e pela forma I. I. Rubin e Evgeny Pashukanis que estiveram trabalhando na Rússia depois
da Revolução. Rubin, em seu Essays on Marx's Theory of Value (Ensaios sobre a Teoria Marxista do
Valor) publicado pela primeira em 1924, insistiu na centralidade do fetichismo da mercadoria e do
conceito de forma para a crítica da economia política de Marx. Uma das consequências desta insistência
na pergunta pela forma foi sublinhar o caráter especificamente capitalista das relações de valor e, como
uma das consequências, Rubin desapareceu durante os expurgos da década de 30. Pashukanis teve um
destino similar. Em seu General Theory of law and marxism (Teoria Geral do direito e o marxismo)
afirmou que a crítica de Marx à economia deveria ser estendida à crítica da lei e do Estado, que a lei e o
Estado deveriam ser entendidos como formas fetichizadas de relações sociais da mesma forma que o
valor, o capital e as outras categorias da economia política. Isto significava que a lei e o Estado, assim
como o valor, eram formas de relações sociais especificamente capitalistas”. HOLLOWAY, John. Mudar o
mundo sem tomar o poder, op.cit., pp. 118-119.
44 Em suma, poderíamos resumir do seguinte modo o leitmotiv pasukaniano: “...ao mesmo tempo em que o

produto do trabalho reveste as propriedades da mercadoria e torna-se portador de valor, o homem torna-
se sujeito de direito e portador de direitos”. TGDM:85.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 72
trabalho dos indivíduos, não sobre os princípios de direito público,
mas com base no direito civil e no assim chamado livre-contrato, são
os traços mais característicos da estrutura econômica da sociedade
contemporânea. (...) na realidade esta sociedade de produtores
mercantis iguais nada mais é que uma generalização e uma abstração
das características básicas da economia mercantil em geral e da
economia capitalista em particular. (...) O capitalista e os operários
estão vinculados um ao outro por relações de produção. O capital é a
expressão material desta relação. Mas eles estão vinculados, e entram
em acordo mútuo, enquanto produtores mercantis formalmente
iguais. A categoria valor serve como expressão desta relação de
produção que os vincula.45

Por fim, o que se pode concluir do que expusemos até aqui é o fato de que o valor
mesmo, categoria central da análise de Marx, é uma fictio juris, como na expressão usada
pelos romanos para indicar uma forma abstrata de pensamento cuja finalidade é tornar
algo juridicamente operacional por meio de uma “controlada” ficção, como acontece
quando chamamos uma mega-corporação empresarial de “pessoa jurídica”.

O terceiro e historicamente problemático ponto em comum de ambas abordagens são


as consequências. Rubin e sua escola defenderam o progressivo fenecimento da atividade
humana reduzida a trabalho produtor de (mais) valor e, portanto, a trabalho abstrato
produtor de riqueza abstrata, regulada pela “lei do valor”.

O destino de Rubin remete para o fato de que o "socialismo", no


seguimento da revolução de Outubro russa, se viu compelido a
reprimir qualquer reflexão teórica que se aproximasse da aporia de
Marx, porque não precisava aqui de qualquer diferenciação. É que
definições teóricas como a de Rubin, que ainda se debatiam com o
problema de delimitar o conceito de trabalho abstrato, por Marx
claramente ligado à relação de capital, de uma "equiparação dos
trabalhos" já não pensada sob a égide da forma do valor numa
sociedade pós-capitalista, tinham de parecer perigosas e subversivas,
na medida em que nesse "socialismo" na prática se exibia
abertamente o caráter da síntese social baseada no trabalho abstrato,
no valor, na mercadoria e na forma do dinheiro46[E, completaríamos
nós: na forma jurídica!].

Em Pasukanis, como já vimos, a consequência era a descoberta teórica da finitude


histórica da forma jurídica, da relatividade da vigência de suas categorias centrais. Durante
e após o 16° Congresso do Partido Comunista e o segundo “plano de cinco anos” do

45 RUBIN, Isaak I. A Teoria Marxista do Valor, op.cit., pp. 102-105 (grifei).


46 KURZ, Robert. A Substância do Capital – Primeira Parte (Publicado originalmente na Revista Exit!, n. 1,
2004.)
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 73
governo soviético, Pasukanis e sua escola crítica das formas jurídicas foi gradativamente
mais hostilizada, ainda que tivesse retrocedido aos poucos em relação às teses presentes
em A Teoria Geral do Direito e o Marxismo. Como bem expuseram Sharlet e Bierne:

Stálin, como Secretário Geral, em seu endereço anterior ao Comitê


Central Pleno em abril de 1929, advertiu contra a promoção de
atitudes hostis e antagônicas em relação ao Estado e ao direito por
parte das massas. Ele argumentou, ao contrário, que a intensificação
da luta de classes pelos kulaks requereria o reforçamento, antes que o
enfraquecimento, da ditadura do proletariado. Esta tendência
culminou no 16° Congresso do Partido na rejeição do conceito de
gradual fenecimento do direito e do Estado.47

Em Estado e direito sob o socialismo, de 1936, a virada estalinista está completa e


Pasukanis vai na direção de uma defesa da obediência irrestrita ao “direito socialista”.
Muito significativo é perceber que se em 1924 Pasukanis constrói uma crítica das formas
jurídicas como pressuposto de uma transição revolucionária ao socialismo, em 1936 ele
elabora uma defesa do socialismo com base em uma caracterização jurídica deste, a
saber, a “propriedade proletária” dos meios de produção como fundamento do Estado e
mesmo do direito soviético. Não só a forma jurídica burguesa foi “reabilitada” como
neutra, como a forma jurídica da propriedade (a propriedade proletária dos meios de
produção, do Estado, etc.) se tornou a legitimação mais fundamental da sistema soviético.
Ou seja, o direito e o Estado soviéticos passaram a ser justificados “juridicamente”. Márcio
Bilharinho Naves percebeu bem esta tautologia no Pasukanis “stalinista”:

Pachukanis só pode dizer que tal separação [entre o trabalhador


direto e os meios de produção, JN] foi suprimida porque ele confunde
as relações de produção com as relações de propriedade, tomando
estas como idênticas àquelas. Como do ponto de vista jurídico os
meios de produção foram estatizados, e formalmente (juridicamente)
pertencem aos trabalhadores, Pachukanis pode concluir que a classe
operária já não está separada deles. Do mesmo modo, a divisão social
do trabalho também é declarada superada em virtude do estatuto
jurídico de que se revestem as empresas do Estado. A separação entre
os processos de trabalho, exercidos autônoma e independentemente
uns dos outros, teria sido anulada pela mera transferência da
titularidade jurídica, sem que a contradição entre o trabalho privado e
o trabalho social seja ultrapassada e a forma-valor extinta.48

47 SHARLET, Robert. BIERNE, Piers. Editor's Introduction. In: PACHUKANIS, E. I. Selected writings on
Marxism and Law. Tradução: Peter B. Maggs. Londres: Academic Press, 1980, p. 26.
48 NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e Direito, op.cit., p. 154.

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6. Emancipação e (ou da) forma jurídica

Em A Teoria Geral do Direito e o Marxismo Pasukanis contrapõe as formas jurídicas


e a emancipação socialista trazida pelo fim da socialização pelo valor, e consequentemente,
pelo capital. Se pelo centro e pela direita a resposta imediata a esta tentativa é desacreditar
a “emancipação socialista” como possível, defendendo com mais ou menos afinco o mundo
contemporâneo como o melhor (possível) dos mundos, pela esquerda o caminho foi outro.
Aos que defendem, de algum modo, um tipo qualquer de emancipação socialista
como possível, a saída contra Pasukanis é defender a possibilidade histórica de alcançar
vitórias nos conflitos sociais ocorridos no interior das sociedades capitalistas
transformando estas vitórias em direitos e garantias sustentados juridicamente e, por
conseguinte, postulando-se que a emancipação socialista pode advir do acúmulo de
vitórias no interior da formas jurídicas sendo, portanto, perfeitamente possível um
socialismo jurídico, ou uma realização jurídica do socialismo. José Rodrigo Rodriguez, da
“Escola do CEBRAP”49, é um defensor paradigmático desta posição. Esta defesa se
manifesta pelo intermédio de uma recepção afirmativa da obra do jurista alemão Franz
Neumann.

Nosso autor [Neumann] reconhece, com Marx, que as instituições


jurídicas devem sofrer alterações radicais numa ordem socialista, mas
não afirma em nenhum momento que a forma Direito liberal deverá
desaparecer quando da instituição da sociedade nova. Neumann
busca acrescentar novas determinações à crítica ao Direito feita por
Marx, mostrando como as instituições burguesas podem sofrer
modificações no interior de uma mesma ordem social, na medida em
que deixam de funcionar para manter e reproduzir a propriedade
privada dos meios de produção. (...) Esse será o espaço institucional
privilegiado para pensar a revolução na imanência da forma direito
(!), pois abre-se a possibilidade de submeter o mercado, portanto, a
propriedade privada, aos desígnios políticos da coletividade, via
Direito.50

Vê-se, pois, desde este fragmento, que a justificativa de um novo “socialismo


jurídico”, ao menos em sua argumentação teórica, se aproxima de Stálin, Vychinski (e do
Pasukanis stalinista) e da defesa de todos estes de um “direito socialista”: tanto o mercado
como a ordem social capitalista são definidos pela “propriedade privada ou coletiva dos

49 A “Escola de teoria crítica do CEBRAP” (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) organiza-se em


torno do Grupo de Estudos “Direito e Democracia”, coordenado e orientado pelo filósofo Marcos Nobre e
mantido por esta instituição.
50 RODRIGUEZ, José Rodrigo. “Franz Neumann, o Direito e a Teoria Crítica”. Revista Lua Nova, n° 61,

2004, p. 59-61. (grifos do autor).


[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 75
meios de produção” uma definição, todavia, ela mesma jurídica, como visto. O que não
fica visível em momento algum é a crítica categorial: para Rodriguez e Neumann todas as
categorias, num passe de mágica teórica, se tornam reversíveis e “bipolares”: a “forma
direito liberal”, instância imprescindível para o contrato de trabalho, base de uma
sociedade produtora de mercadorias, passa a ser a pedra de toque emancipatória, no
momento seguinte, o mercado deixa de ser a realização abstrata da valorização do valor
para ser submetido aos “desígnios políticos da coletividade”, bastando apenas mais “boa
vontade” teórica. Enfim, as categorias definidoras do modo de produção capitalista
simplesmente “mudam de sinal”.

Em suma, o direito liberal do começo do século passado ameaçava o


controle privado dos meios de produção. Essa ameaça se deveu à ação
do proletariado, que entrara no parlamento e dirigira ao sistema
político reivindicações por direitos que explicitavam a desigualdade
das trocas de trabalho por salário. O direito revelava, assim, potencial
para emancipar a humanidade (!) e transformar o regime capitalista
pela via institucional. Ao desenvolver a capacidade de expressar a
vontade social pela ação do proletariado no parlamento, o direito
pôde deixar de funcionar como instrumento de dominação da
burguesia e se tornou meio de expressão da classe trabalhadora.
Pode-se, portanto, pensar a emancipação por meio do direito e não
contra ele. Essa ideia de Franz Neumann não perdeu atualidade.51

O argumento, tão velho quanto o próprio liberalismo, é o seguinte: se alguém


aquiescer com as leis juridicamente válidas pela via da representação parlamentar, deve
agora estrita obediência a elas só valendo discuti-las pela via representativa e, portanto, no
parlamento. É um argumento tão velho e gasto que não foi exclusividade dos autores
marxistas colocá-lo em xeque: Hannah Arendt, (como dizia Leandro Konder, era uma
“adversária honesta do marxismo”), já escreveu, há mais de 30 anos que:

Do ponto de vista da ciência política moderna, o problema está na


origem fictícia do consentimento: 'Muitos... escrevem como se
existisse um contrato social ou alguma base parecida para o
compromisso político de obedecer à vontade da maioria', e para isso o
argumento normalmente preferido é: Nós numa democracia temos
que obedecer à lei, porque temos o direito de votar. Mas é exatamente
este direito ao voto, sufrágio universal em eleições livres, como
sendo uma base suficiente para a democracia e uma compreensão de
liberdade política, que está sob ataque.52

51 RODRIGUEZ, José Rodrigo. “Franz Neumann – O direito liberal para além de si mesmo”. In: NOBRE,
Marcos (org.) Curso Livre de Teoria Crítica. São Paulo: Papirus, 2008, p. 109.
52 ARENDT, Hannah. Crises da República. 2. ed. Tradução: José Volkman. São Paulo: Perspectiva, 1999, p.

76.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 76
Do mesmo modo, precisamos afirmar que esta expressão parlamentar da vontade e
sua capacidade de “emancipar a humanidade” é que está, desde há muito, sob ataque.
Assim, a ilusão de uma “revolução institucional-jurídica” pela via da participação no
parlamento não é “inusitada no campo crítico” como afirma Rodriguez53, antes, nunca se
precisou de verniz “crítico” para que esta posição fosse defendida.

O que explica essa retomada entusiasmada de Franz Neumann, falecido em 1954, é o


paradigma “pós-habermasiano” de onde parte este autor. A defesa filosófica da formas
jurídicas como esfera de mediação privilegiada para a emancipação social encontra em
Jürgen Habermas sua proposição mais notória e influente.54 Mas talvez o maior problema
evidenciado por esta vertente que se reputa “crítica”, além da assunção acrítica de
categorias jurídicas é a assunção acrítica de categorias econômicas. Percebendo isto, nos
colocamos novamente de frente com nosso problema principal. Segundo Rodriguez, “Os
empresários sabem que a regulação estatal pode prejudicar o andamento dos negócios ao
opor entraves que, em vez de criar mais justiça social ou promover a distribuição de renda,
simplesmente impedem que a economia funcione.”55 Ou seja, Rodriguez externa sua
preocupação de que os empresários, extremamente mobilizados com a “situação social”,
vejam a “economia” deixar de “funcionar”, pois deveríamos pressupor junto com os
empresários, que quando a “economia” funciona, todos ganham.

Continua então este autor: “Quanto a esse ponto, é certo que há discursos puramente
ideológicos em favor da liberdade econômica, mas não há como negar o problema, afinal,
mesmo numa sociedade organizada sob princípios socialistas, há que se pensar em formas
de produzir eficientemente bens acessíveis a todos.” E por fim, escreve ele: “Será sempre
preciso decidir como regular a atividade econômica para atingir os fins que a sociedade
fixar para si mesma”56. A economia, para Rodriguez, é a atividade de “produzir
eficientemente bens acessíveis a todos” e, portanto, toda e qualquer sociedade tem uma
“economia”. Este “teórico-crítico” passa ao largo, portanto, de qualquer especificidade
histórica da economia das sociedades produtoras de mercadorias as únicas que
produziram, de fato, uma esfera separada de relações sociais (onde no centro se encontra o

53 RODRIGUEZ, José Rodrigo, op. cit., p. 98.


54 Voltaremos a este trunfo do pensamento jurídico contemporâneo na terceira parte deste estudo.
55 RODRIGUEZ, José Rodrigo. “Franz Neumann – O direito liberal para além de si mesmo”, op.cit., p. 110.
56 Idem, ibidem, p. 110.

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trabalho)57, que poderíamos chamar, de fato, de “economia”! Este fato não é de modo
algum desligado de outro fato: de que também a especificidade histórica das formas
jurídicas se põe em questão em uma sociedade que não a sociedade produtora de
mercadorias. A tão buscada “relevância no debate” com a qual a “teoria crítica” da Escola
do CEBRAP chantageia seus leitores é alcançada ao preço da assunção da racionalidade
imanente das principais categorias de socialização da sociedade capitalista, como
economia, valor, capital, Estado, direito. Restaria perguntar o que esta “teoria crítica” tem
de realmente crítica.

Apesar desta vertente reformista-normativista alegar uma filiação marxista, vemos


que o problema do valor em todo seu caráter “esotérico” termina por se colocar junto ao
problema da forma jurídica e do sujeito de direito. Mas aqui é onde todos os problemas
começam e de modo algum onde estes terminam.

O que fazer com esta análise que postula a finitude e a limitação radical da forma
jurídica? Ou seja: qual é a natureza do vínculo entre as formas jurídicas e a ascensão das
economias nacionais reguladas pelo mercado, ou ainda, qual é a relação entre juridificação
e modernização capitalista? Uma questão que se desdobra em muitas outras, por exemplo:
qual é a natureza e o papel da ordem jurídica nas diferentes formas históricas de conjunção
de mercado e Estado (capitalismo liberal, capitalismo de Estado, neoliberalismo, etc.)? De
que modo e com que consequências a classe trabalhadora e os marginalizados sociais
puderam transformar suas conflitividades sociais em regras jurídicas postas? Como e
quando, em certas circunstâncias históricas, estes podem ver estes direitos depostos?
Questões que podem ser reduzidas a uma que as guia: qual é a radical limitação das
formas jurídicas para o cumprimentos dos propósitos da emancipação social? Estas
questões nos obrigam a pensar não apenas na emancipação no interior do círculo de giz
das formas jurídicas, mas antes a levar a sério a olvidada premissa pasukaniana da
superação do “momento jurídico” das relações humanas. A mera cogitação de uma
emancipação das formas jurídicas leva logo a um rígido ceticismo quando não a diversas e

57 Esta concessão às categorias sociais da sociedade produtora de mercadorias parece ser uma constante na
“teoria crítica” da Escola do CEBRAP: neste mesmo volume inaugural da Escola, um outro autor, na
esteira de Friedrich Pollock afirma sintomaticamente: “...Pollock, em uma nota de rodapé do artigo sobre
o capitalismo de Estado, questiona se ainda cabe a utilização da categoria valor quando já não há mais
uma economia de mercado (!). Negar a teoria do valor é negar a lei de movimento do capital como
determinação abstrata da dinâmica do modo de produção, formulada dessa maneira por Marx”.
RUGITSKY, Fernando. "Friedrich Pollock – Limites e possibilidades”. In: NOBRE, Marcos. op cit., p. 68.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 78
sempre hostis acusações: niilismo, utopismo, anarquismo etc. Mas esta reação não é nem
um pouco diferente da que se percebe naquele que acaba de saber que a forma valor se
desenvolve até ser o centro da socialização apenas de um tipo particular de sociedade e que
nem toda sociedade precisa necessariamente ter como seu centro a produção de
mercadorias e do valor nem a idolatria do trabalho abstrato. Os poucos que avançaram na
crítica radical do valor têm deixado de lado o tema do direito, mesmo que tenham
reconhecido, uma vez ou outra, sua importância. Mais do que um importante aspecto,
parece-nos que o direito e o valor estão um para o outro como em uma Banda de
Möbius58. Dito de outro modo: o valor é ele mesmo uma fictio juris, no sentido de que a
emulação do domínio do abstrato sobre o concreto, que caracteriza a contradição social
principal da sociedade produtora de mercadorias, só se realiza a partir de uma
ficcionalização jurídica, do soerguimento de uma esfera separada de relações, onde os
viventes concebem um “dublê” deles mesmos que estabelece diversas relações por eles: o
sujeito de direito, por quem criam e mantêm as relações ditas jurídicas. As empresas,
incluindo as gigantescas corporações monopolistas, como sujeitos de direitos que são,
podem ser consideradas ficções jurídicas evidentes, ninguém o nega. Mas o trabalhador, a
dona de casa, o médico, o banqueiro, etc., concebidos como sujeitos de direito parece ser a
coisa mais natural que existe e ninguém põe esta evidência em questão. Mas já neste
simples movimento, aparentemente inocente e racional em si, já está todo o segredo das
formas jurídicas mais desenvolvidas, assim como toda a complexidade das formas
econômicas capitalistas, das bolsas de valores às multinacionais multibilionárias está
contida potencialmente na forma simples do valor.

Se a crítica do valor desde Marx acentua o fato de que a crítica ao capitalismo não
pode se contentar apenas com mais e mais formas de distribuir as riquezas produzidas por
intermédio dos intocados mecanismos do mercado e do Estado, mas em colocar em
discussão o modo mesmo como essa riqueza é produzida, assim também a crítica do
direito precisa deixar seu eterno insistir em um direito melhor para ousar a pensar em algo
melhor que o direito.

58 Uma Banda de Möbius é um espaço topológico obtido pela colagem das duas extremidades de uma fita,
após se efetuar uma meia volta numa delas. Deve o seu nome a August Ferdinand Möbius, que a estudou
em 1858.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 79
Penúltimos combates
A luta de classes como desejo reprimido no Krisis/Exit 1

Daniel Cunha

“Marx diz que as revoluções são a locomotiva da


história. Talvez seja o contrário. Talvez as
revoluções sejam o ato pelo qual o gênero humano
que viaja nesse trem puxa o freio de emergência.”
(Walter Benjamin)

A reflexão coletiva do grupo Krisis, posteriormente cindido em Krisis e Exit, cujos


membros mais conhecidos são Robert Kurz, Anselm Jappe, Roswitha Scholz e Norbert
Trenkle, deu maior visibilidade a uma crítica radical e necessária do capitalismo: uma
crítica que não se reduz às meras queixas sobre a distribuição desigual da riqueza entre as
classes imanentes, mas que resgata a crítica do fetichismo da mercadoria analisado por
Marx, desenvolve a crítica do sujeito, do patriarcado e do Iluminismo, bem como uma
teoria da crise do trabalho, e portanto crise sistêmica do capitalismo, formando um
arcabouço teórico de grande coerência interna e poder explicativo da realidade. O
desvendamento teórico do capitalismo a partir de sua estrutura celular, a mercadoria,
revela o trabalho abstrato coisificado em valor, a substância comum de trabalho e capital.
Portanto, "trabalho e capital são os dois lados da mesma moeda"2, e a superação do
capitalismo implica a superação de ambos. Entretanto, com o desenvolvimento das forças
produtivas microeletrônicas, a produção de mercadorias se desvincula do trabalho
humano, o que acarreta a crise da valorização3: se o valor corresponde ao tempo de
trabalho socialmente necessário para a produção de uma mercadoria (Marx), quando o
trabalho se torna supérfluo o valor tende a tornar-se irrisório e pode cada vez menos
realizar-se no mercado, pois seus possíveis compradores não conseguem mais vender sua
força de trabalho. A partir deste quadro geral o Krisis/Exit lança duas de suas conclusões

1 Este texto é uma versão revisada do texto “A luta de classes no Krisis/Exit” (2006), publicado na página
da internet do Grupo Fim da Linha (atualmente fora do ar).
2 GRUPO KRISIS, Manifesto contra o trabalho. São Paulo: Conrad, 2003; também disponível em
http://planeta.clix.pt/obeco/mct.htm
3 Cf. KURZ, Robert, O colapso da modernização. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992; também disponível em
http://obeco.no.sapo.pt/livro_colapsom.htm
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 80
mais polêmicas, ou seja, a de que a luta de classes "pertencia à dinâmica interna de
valorização do capital", não possuindo nenhum momento emancipatório, e de que a crise
da valorização - a crise do trabalho, a crise do capitalismo - implica na crise da luta de
classes; ou seja, a luta emancipatória deve dar-se para além da luta de classes.

Para o Krisis, "a luta de classes era a forma de execução desses interesses antagônicos
[entre capital e trabalho] no seio do fundamento social comum do sistema produtor de
mercadorias"4. A luta de classes nunca teria (e nem poderia ter) posto em questão o
capitalismo, mas somente a distribuição de riquezas internamente a este. De outra parte, a
crise do trabalho inaugura o que é chamado de "dessolidarização radical", onde não se tem
mais uma luta do capital contra o trabalho, mas uma espécie de todos contra todos: "o
aposentado torna-se o adversário natural do contribuinte; o doente, o inimigo de todos os
assegurados; e o imigrante, objeto de ódio de todos os nativos enfurecidos"5. Para o Krisis,
então, "a pretensão de querer utilizar a luta de interesses imanentes ao sistema como
alavanca de emancipação social esgota-se irreversivelmente"6; "a 'luta de classes' está
dissolvida como parte integrante deste sistema de concorrência universal, e tem-se
revelado como mero caso especial desta, que de modo algum consegue transcender o
capital"7.
Porém, deve-se primeiramente destacar que o Krisis/Exit não nega o antagonismo
social imanente e nem prega o seu abandono, como eventualmente poderia sugerir uma
leitura apressada e superficial. Ele apenas situa "a oposição social entre capital e trabalho"
como sendo "uma oposição de interesses diferenciados [...] internamente ao
capitalismo"8. Para Kurz, a pressuposição de que "a luta imanente por salários, prestações
sociais, transferências, etc., é de qualquer modo inútil, devido à objetividade do limite
inerente à crise [...] é quase absolutamente igual ao argumento neoliberal da 'necessidade'
[...]. O limite objetivo do processo de valorização não significa que em cada situação
concreta da crise já não exista qualquer alternativa de decisão imanente. Para que apesar
da crise também ainda no interior da forma do valor possam ser afirmados interesse vitais,
no entanto, é necessária uma consciência de que, em primeiro lugar, o sistema de qualquer
forma está a esbarrar com limites absolutos e que, em segundo lugar, precisamente por
isso também as necessidades afirmadas de forma imanente têm de ser impostas, custe o

4 GRUPO KRISIS, Manifesto..., op. cit.


5 GRUPO KRISIS, Manifesto..., op. cit.
6 GRUPO KRISIS, Manifesto..., op. cit.
7 KURZ, Robert, Para lá da luta de classes, 2003, disponível em http://obeco.planetaclix.pt/rkurz139.htm
8 GRUPO KRISIS, Manifesto..., op. cit.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 81
que custar, contra as 'leis' pseudo-'naturais' da lógica da mercadoria, sendo que uma
pessoa não pode permitir que os administradores de crise lhe 'façam as contas' à
impossibilidade da própria existência"9.

Ainda, o antagonismo social é destacado no processo de superação do capitalismo.


Para Kurz, "o menor dos avanços rumo à desvinculação da forma mercadoria" já bastaria
para "desencadear um conflito com a estrutura burguesa de reprodução, o que encerraria
um momento de guerrilha"10. Ainda, diz que "o objetivo emancipatório não pode ser mais
conquistar o poder, mas somente desapoderar o poder, que coincide com a superação da
forma da mercadoria. Claro, seria ingênuo supor que o poder deixará desapoderar-se sem
conflitos. O capitalismo não sairá de cena sem chus nem bus, sem retrucar, tal como seu
derivado estatal-socialista. Por isso, uma relação negativa com o poder não significa uma
recusa a exercer pressão para se atingir os objetivos próprios. Um pacifismo abstrato é tão
descabido como uma ameaça de intervenção militar. A violência sempre está à espreita na
constituição fetichista, e, na crise, mais do que nunca [...] O embate de um movimento
social (e é justamente disso que se trata) com as instituições dominantes começa e
transcorre, em geral, sob o limiar da violência. Este embate começará logo num estágio
bastante precoce e numa dimensão local"11.

Caso se admita, pois, que Kurz não nega, mas pelo contrário, afirma o antagonismo
social, tanto na imanência quanto em um movimento de superação, cabe a pergunta: como
será este antagonismo? Quem estará de cada lado? O antagonismo será caracterizado por
um corte de que natureza? Num primeiro momento, Kurz assume um discurso altamente
logicista, fazendo um apelo à consciência:

"Todos os sujeitos sociais do sistema produtor de mercadorias são como tais


'máscaras de caracteres' da forma-fetiche. Um momento de superação não pode portanto
utilizar como rastilho um mau 'interesse' imanente e a priori constituído pela forma, mas
antes uma crítica da forma pressuposta de um interesse cego. Isso vale para 'todos', e
assim todos podem em princípio constituir e portar 'todo' este movimento de superação.
Um tal movimento não corre por pistas traçadas imanentemente, mas por brechas do
sistema produtor de mercadorias e na resistência contra o processo de barbarismo. Seus

9 KURZ, Robert, Dead men writing, 2004, disponível em http://obeco.planetaclix.pt/rkurz181.htm


10 KURZ, Robert, Os últimos combates. Petrópolis, Vozes, 1997, p.297; também disponível em
http://obeco.planetaclix.pt/rkurz59.htm
11 KURZ, Robert, Antieconomia e antipolítica (original: Krisis nº19, 1997), disponível em
http://obeco.planetaclix.pt/rkurz106.htm (tradução modificada).
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 82
portadores não podem remeter-se a um apriorismo ontológico (ao 'trabalho', por exemplo),
mas somente a percepções parciais embora inevitáveis, nas quais a consciência rompe seu
próprio cárcere formal. Desse modo, o conflito social não desaparece, mas é reformulado
num outro plano. De fato, não se trata agora de um antagonismo cegamente constituído,
no qual todo membro da sociedade já tem sua parcela designada pela constituição do
fetiche antes mesmo de poder tomar uma decisão. Trata-se antes de um antagonismo no
qual a crítica prática da forma-fetiche, de um lado, e o apego caturra à sua 'normatividade'
cada vez mais absurda, de outro (a consciência social superior, de um lado, e a consciência
codificada do lemingue, de outro) encontram-se frente a frente"12. O que se tem aqui é um
antagonismo idealista: consciências “superiores” de um lado, consciências de “lemingue”
de outro.

Porém, um movimento de superação do capitalismo não surgirá de uma dedução


lógica, ele deve ter uma gênese social e histórica. Inicialmente, Kurz aposta em "formas
embrionárias" originando-se do "terceiro setor" - organizações não-lucrativas (ONG's) que
atuariam "por fora" de Estado e mercado, arrancando progressivamente os seus recursos13.
Tal hipótese nos parece bastante equivocada, quando se vê que as tais ONG's hoje em dia
mais se parecem a multinacionais da caridade. Em verdade esta formulação apenas desloca
o problema, pois continuamos sem saber que forças sociais estarão atuando nessas formas
embrionárias. Em um escrito posterior, Kurz diz que "a luta de interesses imanente bem
pode, no seu desenvolvimento ulterior, ser enriquecida com abordagens, formas
embrionárias, momentos de uma reprodução que não obedeça à forma da mercadoria (por
exemplo, instituições cooperativas que, contrariamente às empresas cooperativas
tradicionais, não voltem a ir dar ao mercado, ou seja, se 'esgotem no uso', sem uma nova
mediação pelo dinheiro). Semelhantes enriquecimentos, que podem estar associados a
processos de apropriação naturais e correspondentes exigências ao estado, a ocupações
etc., não são, no entanto, possíveis nem no âmbito de projectos pequenos, nem num baixo
nível de desenvolvimento do movimento social, mas apenas quando esse movimento tiver
alcançado uma determinada abrangência e profundidade social. É também por isso que
estas abordagens não podem ser postas em oposição à luta de interesses imanente,

12 KURZ, Robert, Dominação sem sujeito (original: Krisis nº13, 1993), disponível em
http://obeco.planetaclix.pt/rkurz86.htm
13 KURZ, Robert, Antieconomia..., op. cit.; em reunião durante o Fórum Social Mundial de 2005, em Porto

Alegre, Kurz, fazendo uma autocrítica, afirmou ser necessária uma reformulação em seu texto
Antieconomia e antipolítica. Apesar de não ter explicitado os pontos a serem reformulados, acreditamos
que a questão das ONG's deve estar relacionada.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 83
podendo unicamente tornar-se eficazes juntamente com ela e através dela [...]. Para que a
luta de interesses imanente possa ser transformada, para já, ela tem de existir na realidade,
e não apenas em ações simbólicas e simulativas. Só a um nível elevado de desenvolvimento
do movimento social e da polarização social, a questão da apropriação dos recursos sociais
para lá da forma do valor pode ser mobilizada de um modo adequado (e evidentemente
associado a uma nova formulação emancipatória da questão do poder), ou seja, também no
que diz respeito às grandes agregações e infra-estruturas sociais"14.

Por sua vez, diz Anselm Jappe: "a implosão do capitalismo deixa um vazio que poderá
permitir também a emergência de uma outra forma de vida social. Face ao progresso da
barbárie, é hoje possível afirmar algo como um 'ponto de vista da humanidade', para lá da
divisão das classes sociais - mas sem esquecer que certas partes da humanidade mostram
muito mais interesse do que outras pela manutenção da lógica do valor"15.

Aqui não deve haver dúvidas quanto ao fato de que a "luta de interesses imanentes" e
a "polarização social" citadas por Kurz e as "partes da humanidade" que "mostram muito
mais interesse que outras pela manutenção da lógica do valor" citadas por Jappe têm um
corte classista. Da própria argumentação de Kurz salta aos olhos que o movimento de
superação do capital deverá ter um caráter classista, ou seja, de luta, desde o início, pois
surgirá da agudização da luta de interesses imanentes, "juntamente com ela e através
dela".

Junto ao conceito de "luta de classes" certamente também vem à baila o seu conceito
inseparável, o de "classe trabalhadora", ou "proletariado" (somente no nível da
argumentação lógica se pode separar os dois, não no movimento real). Diz Kurz: "A 'classe
revolucionária' de Marx foi inequivocamente o proletariado fabril do século XIX. Unida e
organizada através do próprio capital, tornar-se-ia o seu coveiro. Os grupos sociais,
dependentes de salário das áreas derivadas de serviços, infraestruturas etc. estatais e
comerciais, podiam ser juntos ao 'proletariado' apenas como uma espécie de grupos
auxiliares, e mesmo isto só enquanto este ainda dominava como núcleo de massas sociais
nas fábricas produtoras de capital. Com uma inversão das proporções numéricas, como se
tinha esboçado já desde o início do século XX (e fora refletido apenas de forma superficial

14 KURZ, Robert, Dead men writing, op. cit.


15 JAPPE, Anselm. As aventuras da mercadoria: por uma nova crítica do valor. Lisboa, Antígona, 2006, p.
265.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 84
pelo antigo marxismo, p. ex. no debate de Bernstein) o esquema tradicional de classes e de
revolução não podia continuar a passar"16.

Sem dúvida, na época de Marx o trabalhador industrial era ao mesmo tempo o mais
numeroso e o que ocupava o posto mais estratégico na reprodução do capital. No entanto,
o proletariado não se restringe aos trabalhadores industriais. A classe trabalhadora é
formada por aqueles que, desprovidos de meios de produção, são obrigados a vender sua
própria força de trabalho em troca de um salário. Se a composição sociológica da classe
mudou, se mais trabalhadores vestem macacão ou gravata, isso não retira o seu caráter de
classe, que consiste na condição qualitativa de ser obrigado a trabalhar em troca de um
salário - a relação salarial é uma relação de luta.

Aqui deve ser destacado que a crítica do Krisis/Exit à positivação do trabalhador e à


glorificação da classe trabalhadora promovidos pelo "marxismo" é absolutamente
pertinente. Diz o Krisis que "o clássico movimento dos trabalhadores, que viveu a sua
ascensão somente muito tempo depois do declínio das antigas revoltas sociais, não lutou
mais contra a impertinência do trabalho, mas desenvolveu uma verdadeira
hiperidentificação com o aparentemente inevitável. Ele só visava 'direitos' e
melhoramentos internos à sociedade do trabalho, cujas coerções já tinha amplamente
interiorizado. Em vez de criticar radicalmente a transformação de energia em dinheiro
como fim em si irracional, ele mesmo assumiu o 'ponto de vista do trabalho' e
compreendeu a valorização como um fato positivo e neutro"17.

No entanto, deve-se também lembrar que o sentido de "classe trabalhadora" e


"proletariado" é, para Marx e bons leitores de Marx, crítico e negativo - Marx vacila na
crítica do trabalho, por vezes ontologizando-o, principalmente nas obras da maturidade,
mas não na crítica da condição deplorável da classe trabalhadora. Ser trabalhador é um
destino trágico, e esta negatividade está presente ao longo de sua obra. Nos Manuscritos
Econômico-Filosóficos da juventude, Marx diz que "o trabalhador torna-se tanto mais
pobre quanto mais riqueza produz", que "o trabalhador torna-se uma mercadoria mais vil,
quanto mais mercadorias produz", que "o trabalho não produz só mercadorias; produz-se a
si mesmo e ao trabalhador enquanto mercadoria"18, e que o trabalhador não se afirma no

16 KURZ, Robert, Para lá... op. cit.


17 GRUPO KRISIS, Manifesto... op. cit.
18 MARX, Karl. Manuscrits de 1844. Paris: Editions Sociales, 1968, p.57.

[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 85


trabalho, mas nega e si mesmo, e foge do trabalho como quem “foge da peste”19. Na
Ideologia Alemã, lembra que os proletários não têm "nenhum controle" sobre as
"condições de existência" da sociedade e que "os proletários, se quiserem afirmar-se
enquanto pessoa, devem abolir sua própria condição de existência anterior", ou seja,
"abolir o trabalho"20. Em uma obra mais "política", o Manifesto Comunista, é destacado
que os proletários ("a classe dos trabalhadores modernos") "só sobrevivem se encontram
trabalho, e só encontram trabalho se este incrementa capital": "esses trabalhadores, que
são forçados a se vender diariamente, constituem uma mercadoria como outra qualquer,
por isso exposta a todas as vicissitudes da concorrência, a todas as turbulências do
mercado"21. Finalmente, na obra da maturidade - O Capital - Marx compara os
trabalhadores a "bestas de carga"22, desnudando a sua condição de "acessório do capital,
do mesmo modo que o instrumental inanimado do trabalho"23, destacando que a "venda
periódica de si mesmo" constitui uma "servidão"24, "num modo de produção em que o
trabalhador existe para as necessidades de expansão dos valores existentes, em vez de a
riqueza material existir para as necessidades de desenvolvimento do trabalhador"25.

Os bons leitores de Marx não esqueceram a negatividade do proletariado e da luta de


classes, nem que a sua condição social não se confunde com classificações sociológicas,
mas se dá pela luta26. Diz Guy Debord que o proletariado é o "negativo em marcha nesta
sociedade", que sofre do "dano absoluto de estar posto à margem da vida" e que, portanto,
"traz a revolução que não pode deixar nada no exterior de si própria". Para Debord, o
"proletariado é, objetivamente, reforçado pelo movimento do desaparecimento do
campesinato, como pela extensão da lógica do trabalho na fábrica, que se aplica a uma
grande parte dos 'serviços' e das profissões intelectuais"27. Jean Barrot e François Martin
asseveram que "o proletariado é a dissolução da sociedade atual, desta sociedade que o

19 Idem, ibidem, p. 60.


20 MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 96-97.
21 MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. In: O manifesto comunista 150
anos depois. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 14.
22 MARX, Karl. O Capital. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003, Livro I, Volume 2, p. 667.
23 Idem, ibidem, p. 668.
24 Idem, ibidem, p. 673.
25 Idem, ibidem, p. 724.
26 Neste ponto serão citados alguns autores para sustentar este argumento. Não se pretende analisá-los

profundamente aqui, nem se está afirmando que suas fundamentações são idênticas entre si; a intenção é
apenas mostrar que há um "marxismo crítico" que não positivou os conceitos negativos marxianos. Talvez
fosse possível também citar autores não-marxistas (anarquistas, anarco-comunistas, etc.).
27 DEBORD, Guy, A sociedade do espetáculo. São Paulo, Contraponto, 1997; também disponível em

http://www.geocities.com/Paris/Rue/5214/debord.htm
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 86
priva de quase todos os seus aspectos positivos". "Mas o proletariado é também a sua
autodestruição", não esquecendo de lembrar que "todas as teorias [...] que de algum modo
glorificam e exaltam o proletariado, reivindicando o papel positivo do proletariado na
defesa dos valores e regeneração da sociedade, são contra-revolucionárias", e que "o
proletariado não é a classe operária, mas a classe da crítica do trabalho"; "se identificarmos
o proletário com o operário de fábrica (ou pior: com o trabalhador manual) ou com os
pobres, não veremos o que é subversivo na condição proletária"28. John Holloway insiste
que "não há nada de positivo em ser membros desta classe [trabalhadora], em sermos
ordenados, comandados, separados de nosso produto e de nosso processo de produção", e
que "nós não lutamos como classe trabalhadora, lutamos contra ser classe trabalhadora,
contra sermos classificados"29; a luta de classes "é uma luta não para ser uma classe, mas
contra ser uma classe", pois "é o capital que nos classifica"30. Richard Gunn diz que "classe
é a própria relação", mais especificamente, "uma relação de luta"31. Werner Bonefeld
afirma que "o [conceito] de classe não é um conceito afirmativo, mas crítico. A liberação
social - ou melhor: a emancipação humana - implica o fim da 'classe', e não, como
sustentam as interpretações afirmativas a respeito, uma política em nome da classe
trabalhadora. A teoria da classe, então, não é uma reivindicação de identidade política. A
análise das classes não é uma análise em nome da classe trabalhadora. Avança como uma
crítica da classe, e, por conseguinte, como uma crítica da relação salarial através da qual
'existe' a classe trabalhadora"32.

O que se vê, pois, é que a extrema facilidade com que Kurz descarta o "proletariado" e
a "luta de classes" se deve ao fato de tomá-los na acepção mais tosca jamais atribuída pelo
"marxismo", como o "operariado industrial de macacão", sociologicamente reduzido, com
o seu ridículo "orgulho de classe". No entanto, se os tomasse em sua conceituação crítica,
qualitativa e negativa, a tarefa não seria tão simples. Isso é de se estranhar mais ainda
considerando que este enfoque não é desconhecido do Krisis: em um texto de 1989,
Robert Kurz e Ernst Lohoff defendem uma anticlasse que abole a si mesma: “agora se trata

28 BARROT, Jean & MARTIN, François. Eclipse e reemergência do movimento comunista, 1972, disponível
em http://www.geocities.com/autonomiabvr/eclieree.html
29 HOLLOWAY, John. Clase y clasificación. In.: HOLLOWAY, John (org.), Clase = lucha, Herramienta,

Buenos Aires, 2004, p. 79-80.


30 HOLLOWAY, John. Donde está la lucha de clases?, In: HOLLOWAY, John (org.), Clase = lucha, Buenos

Aires, Herramienta, 2004, p.96.


31 GUNN, Richard. Notas sobre clase. In: HOLLOWAY, John (org.), Clase = lucha, Buenos Aires,

Herramienta, 2004, p. 20.


32 BONEFELD, Werner. Clase y constitución. In: HOLLOWAY, John (org.), Clase = lucha, Herramienta,

Buenos Aires, 2004, p. 39.


[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 87
de advogar uma (auto)negação consciente da classe operária como classe; e de, em vez
dela, constituir-se uma ‘anticlasse’, como uma ‘consciência de classe negativa’, associada a
uma negação do trabalho (abstrato) até aqui ontologizado” 33. Quando se trata de criticar a
luta de classes, no entanto, eles preferem fazer a “crítica do espantalho”.

O abandono da luta de classes e do proletariado é justificado por aquilo que Kurz


chama de uma "dupla leitura" de Marx. De um lado tem-se o Marx "exotérico", o Marx de
seu tempo, envolvido nas lutas desse tempo; e de outro, o Marx "esotérico", crítico das
categorias fundamentais do capitalismo - o valor, a mercadoria - que só agora teria o seu
potencial emancipatório desenvolvido, frente à crise daquelas categorias fundamentais. O
Marx "exotérico", por sua vez, teria perdido a atualidade, uma vez que o capitalismo já
teria atingido o seu pleno desenvolvimento. Nas palavras do próprio Kurz, "pode-se
depreender a uma historicização e diferenciação da teoria de Marx que distingue duas vias
teóricas em última instância incompatíveis, não como uma relação entre 'erro' e 'verdade',
mas como um problema da extemporaneidade histórica dentro da própria teoria de Marx,
e assim reconhecer um 'duplo Marx'. A primeira linha argumentativa, 'exotérica', teórica
da modernização e imanente ao fetiche, refere-se à forma interna do movimento e à
história da imposição do capital como juridificação e reificação de todas as relações, cujo
horizonte de desenvolvimento ainda era preenchido positivamente. E este é, na verdade, o
Marx mundialmente conhecido: 'ponto de vista do trabalhador' e luta de classes são os
conceitos centrais desta linha que conduziram ao marxismo histórico".

Segue Kurz: "A segunda linha argumentativa de Marx, 'esotérica' e em sentido estrito
'radical' (isto é, que desce às raízes) refere-se à real mistificação da forma como tal da
mercadoria e do dinheiro,'na' qual toda a modernidade, a par de seus conflitos imanentes,
se expõe, impõe e desenvolve. Por um lado, portanto, uma mobilização e intervenção
teórica e ao mesmo tempo política no interior do movimento de modernização (em última
instância preenchido positivamente); por outro lado, uma metacrítica 'sombria' do sistema
de referências específico da própria modernidade produtora de mercadorias"34.

O que se nota é que Kurz condena a luta de classes à imanência eterna e


inexpugnável. Para Kurz, toda luta de classes é necessariamente reformista. Entretanto,

33 Citado em SCHOLZ, Roswitha. O ser-se supérfluo e a “angústia da classe média” (Original: Exit nº5,
2008), disponível em http://obeco.planetaclix.pt/roswitha-scholz8.htm
34 KURZ, Robert. Pós-marxismo e fetiche do trabalho, (original: Krisis nº15, 1995), disponível em

http://obeco.planetaclix.pt/rkurz136.htm
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 88
em suas diatribes contra os escombros do "marxismo", parece que Kurz "joga fora a
criança junto com a água suja". Poderia ser argumentado, entretanto, que a própria luta de
classes pode ser desdobrada em luta de classes exotérica e luta de classes esotérica; que a
agudização da luta de classes imanente poderia conduzir a uma luta de classes
radicalizada, que colocasse em questão a própria existência da classe trabalhadora como
classe condenada ao trabalho.

É nesse sentido que vai John Holloway quando diz: "O velho conceito de revolução
está em crise porque a sua base, o trabalho abstrato ou alienado, está em crise. O velho
conceito era a teoria revolucionária do movimento operário, da luta do trabalho
assalariado contra o capital. Sua luta era limitada porque o trabalho assalariado (ou
abstrato) é o complemento do capital, e não sua negação. A crise do movimento operário (e
do trabalho assalariado ou abstrato mesmo) abre um nível mais profundo da luta de
classes: a luta do fazer contra o trabalho abstrato (e, portanto, contra o capital). Trata-se de
uma nova e mais profunda luta de classes, que agora está procurando uma maneira de
avançar, prática e teoricamente. Nós somos a crise do trabalho abstrato, a crise do trabalho
assalariado, nós somos a revolta do fazer contra a determinação alheia, o impulso do fazer
para a autodeterminação. Nós somos, em outras palavras, o transbordamento da
criatividade em relação ao trabalho abstrato"35.

Finalmente, deve-se destacar que a pressão no sentido da "dessolidarização radical"


descrita por Kurz não é novidade no capitalismo. O capital sempre tratou de manter a
classe trabalhadora dispersa, seja através da concorrência, seja através de técnicas
gerenciais, seja através da polícia. Quando contrapõe à luta de classes essa
"dessolidarização" provocada pela crise do trabalho, Kurz recai no empirismo objetivista;
ora, é justamente a ação subjetiva daqueles que são obrigados a trabalhar que pode frear e
reverter esta tendência de dispersão, como sempre foi em todas as épocas desde que
existem trabalhadores. Mesmo que se reconheça que a crise do trabalho é uma pressão
adicional, esta é apenas um motivo a mais para a resistência. De resto, pode-se dizer que
toda a empreitada teórica de Kurz e do Krisis/Exit é um esforço contra a objetivação das
relações sociais pela lógica da mercadoria; portanto, o argumento da objetividade da crise
como causa mortis da luta de classes soa estranhamente paradoxal vindo de quem vem.

35 HOLLOWAY, John. Qué es la revolución? Un millón de picaduras de abeja, um millón de dignidades,


disponível em http://encontrarte.aporrea.org/teoria/sociedad/41/a12135.html
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 89
Em texto mais recente 36, Norbert Trenkle (Krisis, após a cisão do grupo) escreveu um
texto no qual buscou desenvolver o argumento contra a luta de classes. Após críticas
essencialmente corretas à metafísica de Lukács – o partido leninista como portador da
consciência de classe – e à positividade fantasiosa da multidão de Hardt/Negri, Trenkle
critica o “fluxo social do fazer” de Holloway, supostamente por ser uma essência
ontológica, transhistórica. Mas o “fluxo social do fazer” de Holloway não é nada mais do
que o concreto, o vivido, que inclui aquilo que escapa ao fetiche, o não-idêntico –
abarcando aquilo que fica de fora da esfera cindida do “trabalho”. A crítica do trabalho só
pode se desenvolver a partir do que está no mundo, não de abstrações. Mas se a aversão ao
trabalho não vem do vivido, de onde virá? A abstração da teoria de Trenkle chega a um
ponto tal que esta questão básica fica sem resposta. Se o fetichismo é absoluto, então não
há saída a não ser uma virada no velho estilo do partido bolchevique (mas essa saída,
felizmente, é rejeitada por Trenkle).

No Exit, o último movimento da teoria com relação ao assunto corresponde à


teorização da “sociedade da classe média”, a sociedade onde se configura uma grossa
camada composta por engenheiros, cientistas, trabalhadores “criativos”, supervisores e
controladores em geral37. Mais especificamente, uma crítica da ideologia da classe média:
“Somos a classe média e não queremos ter nada a ver com os que estão lá embaixo, ou nós
queremos ter o benefício da distinção que passa por os que estão abaixo de nós de algum
modo aí deverem ficar”. A classe média funciona, então, como um verdadeiro “tampão” do
capitalismo, contribuindo decisivamente para manter a normalidade da máquina de moer
gente em meio aos escombros d colapso da modernização. Mas a pergunta óbvia é: se não
há mais classes, como falar em classe média? Trata-se de um passo atrás em relação à
abstração extremada anterior, uma volta à sociologia como ferramenta para compreender
o capitalismo. Mas Kurz segue negando a luta de classes: “No entendimento tradicional, a
‘classe operária’, que produz a mais-valia, era explorada pela ‘classe dos capitalistas’ por
meio da ‘propriedade privada dos meios de produção’. Nenhum desses conceitos pode
expor com exatidão os problemas atuais”38. Novamente, Kurz usa a estratégia de criticar
conceitos excessivamente simplificados. Se analisada em sua coerência interna, a asserção
é perfeita (se classe é isso, então não há mais luta de classes, ou há, mas ela não pode ser

36 TRENKLE, Norbert. The metaphysical subtleties of class struggle (original: Krisis 29, 2005), disponível
em: http://www.krisis.org/2005/the-metaphysical-subtleties-of-class-struggle
37 SCHOLZ, Roswitha, op.cit.
38 KURZ, Robert. O último estádio da classe média, setembro/2008, disponível em
http://obeco.planetaclix.pt/rkurz173.htm
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 90
transcendente); mas Kurz insiste em criticar uma classe sociologicamente reduzida e
positivada, conceito que fica aquém daquele que ele próprio desenvolveu alguns anos
antes.
O descarte da luta de classes por parte do Krisis/Exit já provocou toda sorte de mal
entendidos. Há tanto "kurzistas" quanto marxistas que interpretam que o Krisis/Exit
propõem uma superação do capitalismo sem antagonismos, sem conflitos, ou com
conflitos não-classistas (idealistas) - uns com aprovação, outros com reprovação. O que se
tentou mostrar aqui é que a luta de classes está implícita, pressuposta nas formulações do
Krisis/Exit, com terminologia diversa. A fetichização da teoria, o apego a terminologias
desligadas de seu conteúdo e sentido, pode fechar canais de diálogo. O abandono da
conceituação "luta de classes" por parte do Krisis/Exit parece que provocou este tipo de
bloqueio - de ambos os lados. No entanto, a "antieconomia e antipolítica" de Kurz implica
antagonismo social, luta de classes radicalizada, e aí se apresenta um campo teórico e
prático comum com marxistas críticos, que não tomam a luta de classes como fim em si,
que sabem que não basta o proletariado trocar de posição com a burguesia; que o
proletariado deve buscar a sua autoabolição.

O movimento emancipatório não pode desenvolver-se abstratamente. Ainda que a


teoria possa dedicar-se ao desvendamento teórico-abstrato do capitalismo, o movimento
real de superação deve ser empreendido no concreto, por pessoas de carne e osso, que
nessa luta enfrentarão outras pessoas de carne e osso - afinal, a abstração do capital é uma
abstração real. Os defensores do capital serão as "personificações do capital" (Marx), como
diz o próprio Kurz: “a possível violência resultaria unicamente do fato de que um sistema
louco e perigoso para a humanidade não será abandonado voluntariamente por seus
representantes (os executivos, a classe política, e o aparato de administração e de
emergência)”; “O que menos podemos esperar é que a lógica destrutiva imanente possa ser
rompida e superada pelas administrações estatistas de crise e emergência. A crise seria
apenas superável se um consciente movimento social de supressão acabasse com a mera
administração dessa crise, movimento que teria que derrubar, com violência maior ou
menor, também esses aparatos. Nesse sentido, não se tornou desnecessária, apesar de
todas as diferenças resultantes do nível mais elevado da socialização, a forma geral das
históricas revoluções burguesas, inclusive a Revolução de Outubro. Pois a crítica da
ideologia de decapitação jacobina não significa, de modo algum, que a humanidade tivesse
que se entregar ao automatismo de uma transformação pacífica do sistema produtor de
mercadorias. Essa ideia, em face dos acontecimentos catastróficos, seria desatrelada da
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 91
realidade. É óbvio que, matando pessoas que são meras máscaras de caráter de
determinadas relações, ninguém pode acabar com essas relações. Mas essa consideração
não anula a necessidade de romper também empiricamente o domínio, sem sujeito, do
valor econômico abstrato, o que exige o rompimento dos aparatos que com certeza
pretendem manter o valor como valor, mesmo que essa conservação absurda da forma
básica causasse a ruína (como já está acontecendo) de milhões de seres humanos”.39 Trata-
se de uma viva descrição da luta de classes anticapitalista.

A superação do capital não passa nem pela afirmação da classe, nem apenas por uma
consciência abstrata, mas pela consciência da classe que pode abolir a si mesma. O que
transparece em toda a teoria do Krisis/Exit é que no fundo o que eles querem é uma classe
que não seja como a classe média conservadora, uma classe que não tenha nada a perder,
uma classe com necessidades radicais: um proletariado. Alguém tem de acionar o freio de
emergência do trem que nos leva ao abismo. Como clama o próprio Krisis, na exortação
final do Manifesto contra o trabalho, aqui grifada:

Proletários de todo o mundo, acabem com isso!

39 KURZ, Robert. O colapso da modernização, op.cit., (cap.“Superação da crise e ´utopia´), disponível em


http://obeco.no.sapo.pt/livro_colapsom.html
[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 92
Mau tempo para a poesia
Espaço, alienação e morte na literatura moderna

Cláudio R. Duarte

“In meinem Lied ein Reim


Käme mir fast vor wie Übermut.”
(Brecht, Schlechte Zeit für Lyrik)

“Em minha canção uma rima


Me pareceria quase uma insolência.”
(Brecht, Mau tempo para a poesia)

1- Mimese, negatividade, construção

Num tempo em que a arte em si e para si mesma vem se tornando um ramo da


economia entre outros, feito para lucrar agradando a um público massificado sedento por
sua ração quotidiana de ideologia, sempre será necessário mostrar como ela pode ainda ter
parte com a crítica radical da mentira socialmente organizada. Só isso ainda garante seu
direito à existência. Um exame detido da melhor literatura ocidental moderna em
confronto com as ciências humanas, como campos culturais constituídos no seio da
modernização capitalista, permitiria um diagnóstico do seguinte tipo: enquanto as ciências
amiúde se restringiram ao saber positivista e funcionalista, que constata as coisas sob a
forma de mercadoria como norma imutável, a grande literatura moderna, de Baudelaire a
Beckett (ou, entre nós, digamos de Machado de Assis a Drummond, Cabral e Gullar), levou
água aos moinhos da crítica materialista da sociedade, disposta à apreensão do particular e
do qualitativo, aberta a um público leigo inesperado (pequeno, mas não irrisório),
resistente às normas rígidas e esterilizantes da burocracia acadêmica e do mundo
pragmático do mercado. Em face desta prosa do mundo deteriorada, sempre será mau o
tempo para a poesia.1

1 Se a arte emancipada ganha seu distanciamento crítico separando-se da práxis alienada, é bem verdade
que o paga bastante caro com sua incomunicação social e a virtual cegueira e neutralização de sua
negatividade – pois, de fato, o mercado e o consenso das massas reificadas nunca será sua finalidade;
quanto às ciências positivas, porém, há muito elas se integraram sans phrase ao sistema como tecnologias
do Capital e do Estado.
www.sinaldemenos.org v.1, nº1, 2009 93
O campo da literatura, especialmente a partir do Romantismo e do grande
Realismo, e a crítica literária de peso que lhe seguiu, impuseram o reconhecimento social
de sua importância na “representação da realidade”.2 “Representação”, aqui, no termo
traduzido de Auerbach, deve ser tomada como Darstellung: mais precisamente como
forma de exposição ou apresentação de um conteúdo imanente articulado em seu
movimento reflexivo próprio3, antes que simples representação (Vorstellung) ou cópia
descritiva de estados factuais isolados da realidade mais banal e cotidiana; o mesmo termo
aliás usado por Hegel para lançar o pensamento conceitual (da Razão) contra a lógica
formal da representação (do Entendimento).4 A forma-de-exposição alcança a essência
“racional” de um processo limando as meras contingências e dissolvendo toda
determinação fundamental isolada na unidade do movimento, que ganha a forma da
narrativa prosaica, apresentando-o em seu desenvolvimento temporal contraditório.
A Darstellung estética, não-conceitual por natureza, depende incisivamente do êxito
sintético da forma da obra. No sentido materialista, forma sempre é conteúdo
sedimentado, i.é, formalização de certa experiência histórica.5 Nas obras bem realizadas,
mimese e construção não se opõem nem se excluem, mas determinam-se reciprocamente.6
Nesse sentido, a Darstellung estética genuína sempre teria um momento realista, pois

2 AUERBACH, Erich. Mimesis: la representación de la realidad en la Literatura Occidental [1942]. México:


Fondo de Cultura Económica, 1996 (principalmente cap.18). Sobre a questão da literatura brasileira e de
seu papel “empenhado” na representação da nação, ver: CANDIDO, Antonio. Formação da literatura
brasileira. São Paulo: Martins, 1959, vol.1, Introdução.
3 BENJAMIN, Walter. O conceito de crítica de arte no Romantismo alemão [1919]. São Paulo: Iluminuras,
1999, pp.77, 81, 85, 103 etc.
4 “A beleza é só um modo determinado de exteriorização [Äußerung] e exposição [Darstellung] do
verdadeiro e, por isso, está aberta por todos os lados ao pensamento conceitual, quando esse está
realmente equipado do poder do conceito [Begriff]”. “A objetividade da representação [Darstellung]: (…)
“A finalidade da arte é, precisamente, desfazer tanto o conteúdo quanto a forma de aparecer da vida
cotidiana e elaborar através da atividade espiritual, a partir de dentro, o racional em si e para si até sua
verdadeira forma de exteriorização.” (HEGEL, Georg W. F. Vorlesungen über die Ästhetik I. [1835]
Berlin: Talpa Verlag, Cd-rom, pp.174 e 554. Enzyklopädie der Philosophischen Wissenschaften im
Grundrisse. I– Die Wissenschaft der Logik [1830], ibidem, §§ 20, 80-2 etc.)
5 “O específico das obras de arte, a sua forma, não pode, enquanto conteúdo sedimentado e modificado,
desmentir totalmente de onde vem. O êxito estético decorre essencialmente de se o formado (Geformte) é
capaz de despertar o conteúdo depositado na forma. Geralmente, a hermenêutica das obras de arte é,
pois, a tradução de seus elementos formais em conteúdos. No entanto, estes não pertencem diretamente
às obras de arte como se elas recebessem simplesmente o conteúdo da realidade. O conteúdo constitui-se
num movimento contrário. O conteúdo imprime-se nas obras que dele se afastam (entfernen). O
progresso artístico, tanto quanto acerca dele se pode falar de modo convincente, é o sumo conceitual
(Inbegriff) desse movimento. Recupera o conteúdo mediante a sua negação determinada.” (ADORNO,
Theodor W. Ästhetische Theorie [1969]. Gesammelte Schriften, Band 7. Frankfurt: Suhrkamp, 1970,
p.210. Trad.: Teoria Estética. Lisboa: Edições 70, 1993, p.161.)
6 “O primeiro passo é ter consciência da relação arbitrária e deformante que o trabalho artístico estabelece
com a realidade, mesmo quando pretende observá-la e transpô-la rigorosamente, pois a mimese é sempre
uma forma de poiese.” (CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade [1965]. São Paulo: Publifolha, 2000,
p.13.) E também: ADORNO, op.cit., pp.173-4; trad., p.134.

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sempre busca condensar o “típico” e o “essencial”.7 O elemento externo, porém, não se
inscreve meramente como assunto ou conteúdo imanente às obras (com o que bastaria
glosar descritivamente o que aparece e cotejar com sua “matriz” externa), mas na forma
que cria e compõe as partes da obra em sua integralidade; forma que objetiva uma lógica
frequentemente alheia à intenção e ao controle do autor, e com a qual a arte transcende a
consciência do sujeito historicamente limitado desta realidade social; forma, enfim, não
imediatamente transparente mas que vale na medida em que faz transparecer a essência e
as virtualidades do processo social, para além do reflexo da “realidade média” ou da cópia
da superfície reificada do mundo. Só como tal ela torna a arte uma espécie de sismógrafo
de tendências e sentidos das formações sociais.
O romance é a forma por excelência da Darstellung literária na era burguesa.8 No
romance francês, de Stendhal a Balzac, de Flaubert a Zola caminha-se a passos largos na
narrativa histórico-analítica (com o chamado roman fleuve ou romance cíclico), que, sob
certo aspecto, como que faz quase o papel da Sociologia, Geografia e Psicologia modernas
em termos de conhecimento da totalidade social, sem perder essencialmente seu traço de
ficção. Contudo, a reprodução “científica” da superfície bruta do mundo pelo Naturalismo,
armada dos preconceitos cientificistas da época, foi o beco sem saída desta démarche
realista. Difícil torna-se distinguir, por exemplo, se a mera representação (sobretudo
descritiva, espacializante, quase fotográfica) da miséria e degradação social, inclusive vista
como hereditariedade e instinto, ainda é progressista quando naturaliza-se também sua
forma de exposição, cujo selo é a identidade analítica, sob risco de identificação deleitosa
com a brutalidade; enfim, quando se representa a matéria explosiva como simples tema
codificado pelas normas convencionais de uma literatura amante da ciência reificada.9
Mais que isso, com o tempo, o jornalismo e o cinema se apropriaram dos esquemas
realistas e naturalistas, fazendo-os perder o corte, por banalização da norma. “A sociedade
baseada na troca”, diz Adorno, “impele suas crianças à perseguição incessante de fins, a
viver obstinadamente em função destes, de olho unicamente nas vantagens às quais
abocanhar, sem olhar para a direita e para a esquerda. Quem sai deste caminho corre o

7 Cf. LUKÁCS, Georg. “Balzac: ´Les Illusions Perdues´”[1935] in:__. Ensaios sobre literatura. 2.a ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
8 Cf. a definição lukácsiana: “o romance é a epopéia de uma era para a qual a totalidade extensiva da vida

não é mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do sentido à vida tornou-se problemática,
mas que ainda assim tem por intenção a totalidade.” LUKÁCS, Georg. A teoria do romance [1916]. São
Paulo: Ed.34/Duas Cidades, 2000, p.55. Ver também: BENJAMIN, op.cit., pp.105-6.
9 ADORNO, op.cit., pp.341-2; trad.: p.258. A respeito da descrição de “naturezas mortas” no Naturalismo,

ver LUKÁCS, Georg. “Narrar ou descrever. Contribuição para uma discussão sobre o naturalismo e o
formalismo” [1936] in:__. Ensaios sobre literatura, op.cit., pp.70-1, 79-80.
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risco de sucumbir. (...) O realista que literariamente se sabe comprometido com o palpável
escreve da perspectiva de um doente mental, cujos impulsos não vão além dos reflexos
perante os objetos de ação imediata. Ele tende ao repórter, à caça de eventos sensacionais,
tal como os concorrentes econômicos ao lucro”.10 No chamado “realismo socialista” tais
tendências terminam se fundindo: a arte é moralizada e submetida ao utilitarismo burguês
para converter-se em propaganda ideológica do sistema produtivista enlouquecido.
O programa da Darstellung realista não teve, assim, desenvolvimento histórico em
terreno liso, sem aporias objetivas: as crescentes dificuldades de expor o negativo numa
“sociedade unidimensional” que neutraliza metodicamente sua posição crítica e explosiva
no corpo social; sociedade em que ideologia e realidade convergem numa espécie de
convenção naturalizada do terrorismo do capital e das políticas burocráticas do Estado
moderno.11 Em meio a essa racionalização instrumental do mundo, o que continua a
decidir o valor crítico da literatura é a astúcia e a autonomia crítica da forma. Na verdade,
porém, a racionalização atinge em cheio a criação artística em geral, a ponto de esfacelar
seus moldes tradicionais; a tendência à especialização técnica a conduz, se não ao
“esteticismo”, à auto-reflexão cerrada (o texto rebuscado de Mallarmé, Proust, Valéry,
Musil ou Joyce) e à reclusão face aos ditames utilitários da mídia, da ciência e da práxis
capitalista. O solo da experiência artística é assim totalmente revolvido. O afastamento do
antigo programa realista e de sua perspectiva mais ou menos clara, imparcial e objetiva de
narrar, de sua “ingenuidade épica” (como diria Adorno12), é menos desvio formalista que
parte da própria lógica da Darstellung da grande arte: é a busca de expressar as conexões
negativas (reais, emergentes, virtuais, imaginárias) que aquele programa não dava mais
conta. Desde então, as formas “alegóricas”, hermeticamente cifradas e enigmáticas de
representação do social, ou as formas abstratas, não-figurativas e negativas de expressão
do não-sentido ganharão força.13
Agitação apaixonada pela vida, o ganho de experiência e educação, a luta pelo
reconhecimento e afirmação de si, a mobilidade social e o sentido histórico são os grandes
valores individualistas e otimistas do romance burguês de Fielding e Dickens, Goethe e
Keller, Hugo e Stendhal. No ponto alto da prosa de Diderot, a subversão cínica d´O

10 ADORNO, Theodor W. Prismen. Kulturkritik und Gesellschaft. [1955] Gesammelte Schriften, Band 10.1.
Frankfurt, Suhrkamp, 1977, pp.227-8. Trad.: Prismas. São Paulo: Ática, 1998, p.212.
11 Idem, ibidem, p.29; trad., pp.25; MARCUSE, Herbert. One-dimensional man. Boston: Beacon Press, 1964.
12 ADORNO, Theodor W. “Über epische Naivetät” [1943] in:__. Noten zur Literatur, Gesammelte Schriften,

Band 11. Frankfurt, Suhrkamp, 1974. Trad.: Notas de Literatura 1. São Paulo: Ed.34/Duas Cidades, 2003,
“Sobre a ingenuidade épica”).
13 Cf. BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. Lisboa: Vega, 1993, passim.

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Sobrinho de Rameau (1805) ficara como uma semente negativa em germinação, talvez até
Balzac. Como “poema tragicômico que trata da ´capitalização do espírito´”, As Ilusões
Perdidas (1843) são, na queixa de Lukács, “a última batalha em grande estilo contra a
degradação capitalista do homem, seus sucessores descrevem o mundo capitalista já
degradado.”14 “Os herois de Balzac”, diz Franco Moretti, “desejam só o que já existe no
mundo, e já não devem mais decidir se vão ou não aceitar as regras do jogo, mas apenas
aprendê-las melhor do que os outros.” No limite, sua imagem de Paris já é a duma
“´arena´ de lutas de morte” [´arena´ of struggles to the death].15 Almas Mortas (1842) de
Gógol também é o caso típico de romance “negativo” feito à revelia das intenções
edificantes de seu autor: Tchitchikov não é nenhum jovem napoleônico ou herói criminoso
redimível, suspeito ele mesmo de ser a principal alma morta do negócio comercial que
move a trama. Com Flaubert, Baudelaire ou Heine a literatura se atém essencialmente à
face sombria e mortífera da sociedade burguesa, numa estratégia de desilusão sistemática,
principalmente após os massacres de 1848, quebrando qualquer relação harmônica para
com o público burguês.16 Zola (Naná, Germinal, O dinheiro) e Maupassant (Bel-ami, A
pensão Tellier, Bola de sebo) refletem com força a economicização e degradação psíquica
e moral da vida social européia – e nesse aspecto histórico, no plano do conteúdo, teriam
talvez um fio de verdade mais cortante que a do realismo otimista anterior. Na virada do
século, Conrad irá transpor literariamente o “horror” da experiência de colonização nos
trópicos.17 Com Henry James e Machado de Assis, o narrador ganha uma forma ambígua e
parcial, seja através da máscara irônica ou da problematização de um foco já muito pouco
ou nada confiável, e que revela os andaimes de seu próprio artifício literário, na meta de
desvelar a disputa social ou, em Machado, o poder de classe na urdidura do texto.18 Algo
disso tudo, do estranhamento social da modernização, sempre histórica e geograficamente
desigual, à polifonia narrativa, vinha marcando o realismo russo de Gógol a Dostoievski.19

14 LUKÁCS, Georg. “Balzac: ´Les Illusions Perdues´”, op.cit., pp.103-4 e 121.


15 MORETTI, Franco. The way of the world. The Bildungsroman in the European culture. London: Verso,
1987, pp. 131 e 148. O tema da “luta da vida e morte”, de origem hegeliana e mais tarde lacaniana, foi
recuperado como estrutura fundamental da literatura brasileira, de Machado de Assis a Guimarães Rosa,
por PASTA JR., José Antônio. “Changement et idée fixe” (L´autre dans le roman brésilien), 1999”. Centre
de Recherche sur les pays Lusophones – Crepal, Cahier nº 10. Paris, Presses Sorbonne Nouvelle, 2003.
16 OEHLER, Dolf. Quadros Parisienses: estética antiburguesa em Baudelaire, Daumier e Heine (1830-1848)

[1979]. São Paulo, Cia. das Letras, 1997; O velho mundo desce aos infernos: auto-análise da
modernidade após o trauma de junho de 1848 em Paris [1988]. São Paulo, Cia. das Letras, 1999.
17 Cf. COSTA LIMA, Luiz. O Redemunho do Horror: as margens do Ocidente. São Paulo, Planeta, 2003.
18 SCHWARZ, Roberto. “A poesia envenenada de Dom Casmurro” in:__. Duas meninas. São Paulo: Cia. das

Letras, 1997, p.12.


19 FRANK, Joseph. Sob o prisma russo: ensaios sobre literatura e cultura [1990]. São Paulo: Edusp, 1992.

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Desde pelo menos Flaubert (A Educação Sentimental, 1869), coloca-se em dúvida a
possibilidade de continuar a tradição do “romance de formação” (Bildungsroman). Nessa
longa marcha de acumulação literária, Proust, Gide, Mann, Svevo ou Musil ainda
incorporam a precisão e o rigor do melhor realismo, mas já não podem se pôr no mesmo
trilho da construção linear e ascensional de enredos, de personagens mais ou menos
coerentes e inteiriças etc. O estranhamento social, a pulverização do foco narrativo ou a
representação pluripessoal da consciência, a reflexão discursiva infiltram-se na forma.
Como no teatro de Brecht, o romance desnaturaliza a representação, suprimindo a
distância estética que garantia a aparência de objetividade “normal” da prosa realista. Com
Kafka, Joyce, Woolf, Faulkner, Camus, Beckett o romance (se ainda o podemos chamar
assim) como que veta de uma vez as relações de clara verossimilhança com a área externa
imediata, erigindo-se um mundo resolutamente fictício e estranho, em que o leitor
raramente sabe onde pisa; um mundo de artifício, fortemente construído, que só por essa
via indireta, mediada pelo seu contrário, ainda poderia ser “mimético” e “realista”.

**

2- Ilusão perspectiva e ontológica, alienação fetichista, desintegração do


Bildungsroman

O modernismo tem necessariamente de lidar com a perda das condições de


experiência social formativa e a queda geral de referenciais (natureza, cultura, tempo,
espaço, subjetividade, valores morais) ocorrida no Ocidente numa complexa intermediação
de elementos, tais como a consolidação do capitalismo monopolista e do trabalho abstrato,
urbanização e industrialização em massa, com mercantilização e burocratização,
tecnificação e aceleração da vida cotidiana, mediadas por processos de crise, guerras etc.20
O abalo chega até a raiz do senso comum, da percepção e da memória coletiva. A totalidade
desaparece do horizonte e tateiam-se no escuro novos modos de exprimir o presente
vivido. Como assinala Adorno, contudo, torna-se cada vez mais vão procurar o elemento

20O tema pode ser conferido em: BENJAMIN, W. “Experiência e pobreza” [1933] e “O narrador:
considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”[1936] in:__.Obras escolhidas 1. São Paulo: Brasiliense,
1985. A questão da “queda dos referenciais”, “por volta de 1910”, é articulada com a destruição do espaço
perspectivístico e a instauração do espaço abstrato da cotidianidade moderna em LEFEBVRE, Henri. A
vida cotidiana no mundo moderno [1968]. São Paulo, Ática, 1991, cap.3. Um bom resumo “geográfico”
das condições materiais do processo: HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as
origens da mudança cultural [1989]. São Paulo, Loyola, 1992.
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social da arte emancipada na representação factual direta da realidade sob formas
tradicionais. “O romance precisaria se concentrar naquilo que não é possível dar conta por
meio do relato. (...) Joyce foi consequente ao atrelar a rebelião do romance contra o
realismo a uma revolta contra a linguagem discursiva.” 21
O referente passa agora, inexoravelmente, pelo prisma da linguagem elaborada. Mas
a crise objetiva dos referenciais leva, em reação, a literatura esclarecida a seu exato oposto:
à busca de sentido em essências “ontológicas” ou “míticas” do homem e do ser em geral –
ou pelo menos “assim é” nas interpretações formalistas e apologéticas. A literatura
moderna choca-se, então, contra o círculo de tentações gêmeas de magia e positivismo.
Porém, a reprodução ideológica da fachada normativa do existente e/ou a repetição
ingênua dos postulados humanistas do sujeito liberal, ou anterior a este (pré-burguês,
comunitário, pré-individual), apenas fazem cócegas no sistema, senão mesmo o tornam
mais forte, pois eludem a tarefa de formular as questões do presente.22 É essa vacilação que
explica algumas viragens esquisitas da arte modernista: de revolução formal ao
formalismo, de esclarecimento à mitificação, da exposição do sofrimento ao gozo perverso
com a barbárie; o formalismo pós-moderno, com sua mescla grotesca de esoterismo e
obscenidade, hermetismo e populismo, apenas condensou e acelerou para si tais processos
de interversão. A suspeita contra o realismo, entretanto, não se desfaz: sem poder
acompanhar a crise da sociedade e do sujeito burgueses, crise das próprias condições que
tornam possíveis a forma-romance tradicional, a literatura neorealista e neonaturalista
arrisca ser mero protesto moralizante: a busca de um sentido ilusório para o curso sem-
sentido do mundo.
Em parte, a literatura do alto modernismo recolhe alguns dos temas negativos da
visada realista que apareciam no limite de sua exposição: predomínio do espaço abstrato;
alienação – cujo fundamento é o trabalho abstrato generalizado – ; morte. Em muitas
dessas novas obras, o que era tema torna-se agora forma, ponto de vista, princípio
construtivo. O caráter social da arte emancipada em grande parte reside, enquanto força

21 ADORNO, Theodor W. “Standort des Erzählers im zeitgenössischen Roman”[1954] in:__. Noten zur
Literatur, op.cit., p.41-2; trad. p.56 (“Posição do narrador no romance contemporâneo”).
22 “O que se desintegrou foi a identidade da experiência, a vida articulada e em si mesma contínua, que só a

postura do narrador permite (...) justamente isso é impedido pelo mundo administrado, pela
estandardização e pela mesmice. Antes de qualquer mensagem de conteúdo ideológico já é ideológica a
própria pretensão do narrador, como se o curso do mundo ainda fosse essencialmente um processo de
individuação, como se o indivíduo, com suas emoções e sentimentos, ainda alcançasse o destino, como se
em seu íntimo ainda fosse capaz de algo imediato.” (Idem, ibidem, p.42; trad.: pp.56-7). Isso, segundo
ainda assinala Adorno, reverte-se formalmente: “Se o romance quiser permanecer fiel à sua herança
realista e dizer como realmente as coisas são, então ele precisa renunciar a um realismo que, na medida
em que reproduz a fachada, apenas a auxilia na produção do engodo.” (Ibid. p.43, trad.: p.57).
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produtiva (e é necessário frisar contra o esteticismo: anticapitalista!), no conteúdo
histórico desastroso concentrado e traduzido em forma – e isso levado ao ponto de
desintegrá-la enquanto totalidade simbólica perfeita, ou falsa unidade harmoniosa de
forma e conteúdo, significante e significado (e disto se nutre a alegoria), fazendo-a
penetrar no coração da dor e do antagonismo social, no enigma semântico, na resistência
ao sentido evidente, no mutismo. Não há arte moderna crítico-radical sem quebra da
percepção naturalizada da experiência cotidiana no auge da modernização da sociedade
burguesa.
Não se pode mais narrar um sentido, mas é preciso tentar continuar – “il faut
continuer, je ne peux pas continuer, je vais continuer”, conclui L´Innommable de Beckett
(1949). Sem abdicar do desejo, o espinho doloroso que se impõe enfrentar é narrar o
inenarrável, dizer o impossível, rescindir a verdade cegamente estabelecida. Feitas as
contas, a arte radical em geral descobre melhor que as ciências humanas (e o humanismo
político-ideológico) o caráter fetichista das relações sociais capitalistas: a coisificação não
como mera aparência da circulação ou da consciência ideológica, mas como determinação
fundamental da produção social de mercadorias e, como tal, alastrada pelo modo de vida
e pela subjetividade sem substância dos homens ganhadores de dinheiro. Segundo uma
interversão conceitual muito usada por Marx e Adorno, a essência (Wesen) do sistema
torna-se a “essência desnaturada e antitética”, ou melhor, a “essência monstruosa”
(Unwesen) de relações coisificadas e fetichizadas entre as pessoas (como meros “suportes”
do processo de capitalização do valor, a relação-capital como verdadeiro “sujeito
automático”), cuja aparência é a de serem relações sociais humanas e vivas, com sentido
voltado às necessidades, i.é, uma mera troca de equivalentes visando ao valor de uso. Do
fundamento desta aparência fantasmagórica constitutiva, porém, faz parte o próprio
trabalho abstrato moderno, como esfera separada do resto do social: pois a produção em si
mesma há muito saiu do controle e se degradou em processo desumano comandado
objetivamente pelo fetiche-Capital.23

23A meu ver, nessa questão teórica fundamental sobre o fetichismo e suas implicações estéticas jaz a grande
diferença de apreciação e compreensão da arte moderna entre Lukács e os frankfurtianos: os últimos já
não concebem nenhuma “substância humana” fundada no interior da “pré-história” do Homem (Marx),
i.é, no trabalho enquanto produção capitalista de mercadorias. A substância real é o valor, erigido em
sujeito como Capital. A arte liberal humanista, complacente diante do verniz civilizacional, inverte-se
contra o próprio Homem. Cf. ADORNO, “Erpreßte Versöhnung” [1958] in:__. Noten zur Literatur, op.cit.
Sobre esse debate, embora noutras chaves: JAPPE, Anselm. La critique du fétichisme de la marchandise
chez Marx et ses développements chez Adorno et Lukács. Paris, École des Hautes Études en Sciences
Sociales, 2000 (Thèse), Caps. IV (“Le fétichisme et la valeur chez Lukács et Adorno) e V (“Fin de l´art ou
fin de la société?”). E também: LUNN, Eugene. Marxismo y modernismo. Un estudio histórico de Lukács,
www.sinaldemenos.org v.1, nº1, 2009 100
Por isso, conforme o raciocínio dialético de Adorno, para apresentar o soterrado sob
a superfície lisa e totalizante da civilização burguesa, as obras fecham-se à comunicação
com esse mundo aparente, reificado e normalizado.24 Elas como que “fazem-se
semelhantes a si mesmas”, deixando de expressar “imediatamente o vivo” ou “impulsos de
indivíduos singulares” e dos “autores”, sendo, antes, afins mimeticamente a seu próprio
princípio construtivo enquanto “expressão da própria Coisa” (“Ausdruck der Sache
selbst”): erigem livremente, então, um mundo com leis autônomas para si, que, em seu
distanciamento crítico da mimese ingênua da normalidade, “quebram” e
“metamorfoseiam” o processo vivo, numa configuração que só o expressa – em toda a sua
Unwesen antagônica e letal – quando dialeticamente o decompõe e mata, reorganizando-o
formalmente em seus nexos reais essenciais, ou seja, duplicando e absorvendo em si,
assim, a alienação real do mundo das mercadorias. “As obras de arte são negativas a priori
em virtude da lei de sua objetivação: causam a morte do que objetivizam ao arrancá-lo à
imediatidade de sua vida. A sua própria vida alimenta-se da morte. (...) [a arte] abandona-
se mimeticamente à coisificação, ao seu princípio de morte”, porque “sua oposição [à
sociedade] só se realiza ao identificar-se com aquilo contra que se insurge.”25 Na forma
literária mais genuína resiste a capacidade de encarar essa dupla morte – a negatividade
imanente do Capital contra o Capital – enquanto meio de organizar e nomear criticamente
a Unwesen da moderna sociedade produtora de mercadorias. O entrelaçamento de história
e metafísica pertence ao cerne mesmo desta sociedade. Não será então de se surpreender
no Ulisses (1914-21) de Joyce, à primeira vista a obra mais “aberta” e “indeterminada”26, a
projeção delirante dos protagonistas (bêbados na zona do meretrício de Dublin) de uma
espécie de ritual do Fetiche-Mercadoria em ato (sintomaticamente, no capítulo 15, o da
magia de “Circe”), em relação alegórica com a crise do liberalismo na sociedade britânica
no início do século.27
O romance tradicional deve ser comparado, segundo Adorno, ao “palco italiano do

Brecht, Benjamin y Adorno [1982]. México, Fondo de Cultura Económica, 1986.


24 “A comunicação é a adaptação do espírito ao útil, pela qual ele se incorpora às mercadorias, e o que hoje se
chama sentido participa dessa essência monstruosa [partizipiert an diesem Unwesen”]. ADORNO,
Ästhetische Theorie, op.cit. p.115; trad.: p.91.
25 Idem, ibidem, pp.169 e 201; trad. pp.130-1 e 155.
26 ECO, Umberto. Obra aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas [1968]. São Paulo:

Perspectiva, 1976, pp.48, 56 etc.


27 “De repente, as mercadorias surgem como divindades modernas: os objetos fogem ao controle das pessoas

e começam a mover-se, cantar e falar. Do mesmo modo as pessoas caem presas de metamorfoses
contínuas que as dominam e sufocam a ponto de perderem toda identidade nessa ciranda alienante, o que
prova a precariedade dos papéis sociais e psíquicos”. (MORETTI, Franco. “O longo adeus: Ulisses e o fim
do capitalismo liberal” in:__. Signos e estilos da modernidade. (Ensaios sobre a sociologia das formas
literárias) [1988]. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p.356.
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teatro burguês”: uma “técnica da ilusão”28, a perspectiva que cria a distância contemplativa
do narrado para o leitor, a partir de um narrador onisciente, que dá a impressão de
orientação e sentido histórico. Sua intenção crítica era a totalidade. Difícil, entretanto,
manter seus pressupostos: por afinidade mimética às condições da experiência social mais
atual da coisificação, a posição do narrador do alto modernismo tende a “encolher a
distância”, baixando, como em Kafka ou Beckett, ao horizonte de visão restrita dos
protagonistas, invariavelmente anti-herois. Tal posição nos coloca em contato com um
mundo estranho e deformado, que é essencialmente o nosso, sem o amparo das
coordenadas simbólicas e imaginárias externas naturalizadas, a começar pelas categorias
do espaço e do tempo perspectivísticos.
“À eliminação do espaço, ou da ilusão do espaço [perspectivístico]”, comenta Anatol
Rosenfeld, “parece corresponder no romance a da sucessão temporal. (...) O romance
moderno nasceu no momento em que Proust, Joyce, Gide, Faulkner começam a desfazer a
ordem cronológica, fundindo passado, presente e futuro.”29 Além disso, prossegue ele, a
radicalização do monólogo interior esgarça também a categoria da causalidade. Eis, assim,
a liquefação do espaço-tempo perspectivístico ou referencial30 – que de modo algum impõe
sua eliminação, mas antes sua ressignificação segundo “a própria coisa”. Um passo a mais
e, junto a isso, evacua-se o psicologismo: a velha ilusão de unidade e transparência do eu
das personagens. Conteúdos inconscientes subitamente irrompem na fala das
personagens, ou a narrativa quebra de vez a imanência do narrador, focalizando o que
também lhe ficaria normalmente de fora, além do eu e da intersubjetividade, através da
opacidade do verbo ou da reflexão oblíqua.
O Bildungsroman clássico termina, nesse processo, mudando completamente de
sinal. Seu pressuposto ideológico tinha sido uma posição afirmativa em relação ao trabalho
moderno, tal como a filosofia hegeliana determinou: “o trabalho forma”. Já do primeiro ao
segundo Wilhelm Meister alguma coisa mudava31: Wilhelm positivamente se forma,

28 ADORNO, “Standort des Erzählers im zeitgenössischen Roman”, op.cit., p.45; trad.: p.60.
29 ROSENFELD, Anatol. “Reflexões sobre o romance moderno” in:__. Texto/Contexto. São Paulo:
Perspectiva, 1973, p.80.
30 Idem, ibidem, pp.84 e ss. “A arte pós-impressionista é a primeira a renunciar por princípio a toda ilusão de

realidade e a expressar sua visão da vida mediante a deformação deliberada dos objetos naturais”.
(...)“Cubismo e construtivismo, por um lado, e expressionismo e surrealismo, por outro, encarnam
tendências estritamente formais ou respectivamente destruidoras da forma.” (HAUSER, Arnold. Historia
social de la literatura y el arte [1954]. Madrid: Guadarrama, 1968, vol.3, pp.277 e 282).
31 No Goethe de Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister (1821-9) segundo Walter BENJAMIN

(“Goethe” in:__. Documentos de cultura, documentos de barbárie. São Paulo, Edusp, 1986, p.59), “o
ideal de formação classicista (...) recua totalmente. É óbvio que a agricultura pareça obrigatória, enquanto
nada se diz sobre o ensino de línguas mortas. Os 'humanistas' dos Anos de aprendizagem tornaram-se
todos artífices: Wilhelm tornou-se cirurgião; Jarno, mineiro; Philine, costureira. Goethe assimilou de
Pestalozzi a ideia da formação profissional.”
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passando da indeterminação do teatro à vida profissional bem definida (pela medicina) na
divisão capitalista do trabalho. “Poucas décadas depois”, escreve Moretti, “o
Bildungsroman move-se para o solo francês e muitas coisas mudam”, a saber, de Julien
Sorel (O vermelho e o negro) a Frédéric Moreau e Martinon (A Educação Sentimental),
todos “decidem não confiar suas identidades ao trabalho (...) quanto mais o capitalismo
cresce, mais a ética do trabalho é desvalorizada.”32 No fim dessa linha, na América de
Kafka (O desaparecido, 1912), Karl Rossmann some na massa proletária, arrebanhada pela
máquina empresarial fantasmagórica do Grande Theatro de Oklahoma; e no “Work in
Regress” de Beckett nenhuma das “personagens” – em geral marginais, vagabundos,
decrépitos e terminais – tem qualquer relação edificante para com o trabalho: a única
atividade útil que agrada o excluído da novela O fim (1946-50) é a carpintaria que faz
numa tampa sobre um bote, achado em propriedade aparentemente abandonada, que lhe
servirá como um misto de domicílio e caixão.
“Le mort saisit le vif !” (Marx): há muito a práxis vital tornou-se uma práxis letal -
práxis do e para o trabalho morto. A grande literatura descortina o verdadeiro papel do
trabalho na transformação do homem em macaco do capital. “A arte”, arremata Adorno,
“não é somente o representante de uma práxis melhor do que a até hoje dominante, mas
também crítica da práxis enquanto dominação da autoconservação brutal em meio ao
existente e por causa dele. Recrimina as mentiras da produção com fim em si mesma, opta
por um estado da práxis situado para além do feitiço do trabalho [des Banns von Arbeit].
Promesse de bonheur significa mais do que o fato de que a práxis prevalecente distorce a
felicidade: a felicidade estaria além da práxis [ware über Praxis]”.33
Como vamos vendo, isso tudo tende a tornar a arte moderna irremediavelmente
cada vez mais angulosa, abstrata e difícil para si mesma. Desse processo saem
transtornados os padrões burgueses estipulados de “objetividade” e “subjetividade”. Além
da literatura, a pintura e a arte abstratas, a música atonal, o assim chamado “teatro do
absurdo” rompem com a bela harmonia da expressão sentimental ou simbólica, separando
alegoricamente o expressivo e o significativo, para reengatá-los noutro nível. As obras se
vestem de negro, incorporam o feio e o disforme, o fragmentário e o dissonante,
contornando o abismo do informe e do arbitrário. Num primeiro passo, há a fratura
relativa do tempo-espaço e da causalidade realistas (já que nem mesmo no “realismo
mágico” de Borges, Rulfo ou Cortázar ela é absoluta). Ocorrerá o que Hugo Friedrich

32MORETTI, The way of the world, op.cit., pp.164-5.


33ADORNO, Theodor W. Ästhetische Theorie, op.cit., p.26; Trad.: pp.23-4.
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denominou “desrealização do real”34 (na lírica moderna pós-Baudelaire) e aquilo que
Anatol Rosenfeld chamou “desfabulação do romance”35 (na prosa de Kafka e consortes).
No segundo passo, é questionada a identidade caracterial rígida das personagens, abrindo
vaga para o “homem sem qualidades” que Musil foi mestre em tratar, nos labirintos de seu
grande romance-ensaio.
“Tudo que é sólido desmancha no ar”: em certo sentido, tal arte – quando se
defronta com o caráter crítico-negativo da subjetividade moderna (um “núcleo” não-
identitário pesquisado desde o Romantismo) e da falsa objetividade produzida pelo capital
(um núcleo identitário coisificado e fetichizado) –, esta arte, dizíamos, aproxima-se muito
mais radicalmente em relação à expropriação e proletarização geral da vida social, e
também às possibilidades e ao desejo de sua supressão, do que o realismo burguês ingênuo
e convencional.36
Nesse sentido, a experiência fundamental da arte moderna radical é a de uma
enorme temporalização crítica em meio a um espaço social abstratificado e enrijecido,
estatalmente reproduzido, que prevalece sobre a História.37 Isso introduz nas obras uma
dialética vertiginosa entre abstrato e concreto, estática e dinâmica, espaço e tempo, mito e
história, opacidade e luz, rigidez e dissolução, ritmo circular e espiral, vida danificada e
linguagem artística, morte e autoconservação. Essa dialética cristaliza-se em imagens de
tensão no espaço, captadas em “estado de suspensão”, como acúmulo do tempo em cada
“gesto” efêmero ou “episódio” singular – i.é, em “imagens dialéticas”, como teorizou-as
Benjamin.38 Claro, porém, que tais profundas antinomias, que penetram-lhe
mimeticamente e estruturam-lhe radicalmente a forma, não se resolvem por um ato de
vontade. A técnica do “efeito de estranhamento” brechtiano tentou aguçar o assombro com

34 FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna (da metade do século XIX a meados do século XX).
[1956]. São Paulo: Duas Cidades, 1991, p.53
35 ROSENFELD, Anatol. “Kafka e o romance moderno” [1966] in:__. Letras e leituras. São Paulo:

Perspectiva, 1994, p.47).


36 “Certamente, Kafka não desperta a capacidade de desejar. Mas, a angústia do real, que corresponde à

prosa de A metamorfose ou Na colônia penal, o choque de aversão, náusea que sacode a physis, tem mais
a ver, como defesa, com o Desejo do que com o velho desinteresse que a ele e aos seus sucessores se
cobrava.” (ADORNO, Ästhetische Theorie, op.cit., p.26; Trad.: p.24).
37 Em Woolf, Proust, Joyce, comenta AUERBACH, trata-se de “abrir-se em profundidade temporal (...). O

essencial é que um episódio exterior insignificante desencadeie um fluxo de ideias que abandonam a sua
atualidade e se movem livremente nas profundidades do tempo.” (op.cit., p.509).
38 Vide, além de seus estudos sobre Baudelaire (BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire, um lírico no auge

do capitalismo in:__.Obras escolhidas 3. São Paulo: Brasiliense, 1991 e Passagens. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 2007), o ensaio sobre Brecht e as Teses sobre o conceito de história (“O que é teatro épico?” e
“Sobre o conceito de história” in:__.Obras escolhidas 1, op.cit. O estudo de LUNN (op.cit., pp.247-320)
salienta essa “orientação espacial” da arte barroca, simbolista e moderna refletido pela teoria
benjaminiana, contrapondo-o, um pouco abstratamente, à temporalização adorniana. Como veremos,
tempo e espaço entram aqui numa dialética característica.
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as interrupções do continuum do tempo, até ser colonizada e simulada pela própria
indústria cultural. Daí o movimento quase irresistível da arte emancipada em direção à
desintegração e opacidade, enquanto gesto último de prolongamento da vida e fluidificação
temporal das rígidas determinações psicossociais e espaciais do mundo administrado, algo
levado até a ofuscação em escritores como Proust, Eliot, Joyce ou Beckett. Temporalização
sem objeto, sem fundamento, sem chão social para se fincar, a não ser a linguagem
efêmera que nomeia um ritmo, um movimento, uma possibilidade. “Alguma coisa segue
seu curso”, diz Clov em Fim de Partida, pressentindo uma crise, uma decisão inevitável –
sempre adiada. Dentre nós, a metáfora drummondiana para tal processo de crise e
desterritorialização corresponde a alguns versos de poemas de Fazendeiro do Ar:

“...................................................................................................
em solitude os ecos refluíam / e cada exílio em muitos se tornava / e outra cidade fora da cidade //
na garra de um anzol ia subindo, / adunca pescaria, mal difuso, /problema de existir, amor sem
uso.” (“Domicílio”).

“.....................................................................................................
E que eu desapareça mas fique este chão varrido onde pousou uma sombra/ e que não fique o chão
nem fique a sombra/mas que a precisão urgente de ser eterno bóie como uma esponja no caos / e
entre oceanos de nada / gere um ritmo.” (“Eterno”).

Ora, a construção de um universo simbólico assim rarefeito, desolado e em tudo


alheio parece conduzir decididamente a Darstellung realista às portas da metafísica.

**
3- Mercadoria, morte, metafísica social

Em Balzac o “demonismo” e a monomania de certos caracteres, as comparações


da sociedade burguesa à “zoologia” e ao “reino animal”, com todas as ressonâncias de
fundo com a luta mortífera pela sobrevivência do social-darwinismo, enfim, o modelo
intrusivo da peripécia romântica fantástica em certos trechos, apesar de todo esforço de
singularização dos tipos sociais e de verossimilhança realista do enredo, não deixam de
imprimir um “ar fantasmagórico” à sua prosa.39 Uma “dimensão metafísica” é coisa
evidente em Gógol (mais obviamente em O nariz), em que o realismo vinha de mistura a
um espírito satírico e grotesco, fazendo saltar à vista os “despropósitos e absurdos” da vida
social russa em sua ficção.40 Dentre nós, algo parecido também se dá com o realismo sui

39AUERBACH, op.cit., pp.446 e ss.


40FRANK, op.cit., p.101.
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generis de Machado de Assis: assim, por exemplo, com seu “defunto autor” em Memórias
Póstumas de Brás Cubas (1880) ou com a doutrina metafísica do Humanitismo, posta no
coração de Quincas Borba: dois romances realistas construídos com meios universalistas,
alegóricos e em parte antirrealistas.41 Tais semelhanças estruturais do realismo em nível
mundial poderiam talvez ser explicadas pelo grau de penetração geral, embora desigual, da
objetividade fantasmagórica das relações capitalistas na esfera do cotidiano e da arte
burguesa. Mais à frente, André Gide e Thomas Mann são quase o paradigma da transição
do realismo aos temas caros do modernismo: sob um estilo clássico e objetivo sucede-se a
crise de individuação do sujeito burguês, sob formas de experiência-limite, perspectiva
“metafísica” da doença e da morte e história que desmancha-se no mítico, não sem revelar
algo de sua essência.42
Agora bem, quem perguntar pelo referente imediato do universo deslocado de
Kafka ficará de mãos vazias: O Processo (1914-25) ou O Castelo (1922-6) transcorrem num
contexto espaciotemporal difícil de precisar, tal como O Desaparecido (ou Amerika, 1912)
não representa os Estados Unidos senão por deformações e estereótipos de percepção;
todos os três desfiguram a mola da trama realista, naquela técnica que Anatol Rosenfeld
denominou “sintaxe da frustração”.43 O significante cobra independência da realidade
prévia e assim aufere seu efeito de estranhamento e não-lugar. O mundo dos K. – Karl
Rossmann, Joseph K. ou simplesmente K. – é o de seres quase anônimos, pouco
individualizados, aparentemente o de “arquétipos míticos” do homem. Tal universo teria,
então, segundo outro bom crítico, como único referente “o ser humano mesmo”: a
“manifestação da estrutura essencial do espírito do homem”.44 A “natureza das criaturas”
de Faulkner, segundo Sartre, “tem a obstinação da pedra e da rocha, é coisa. (...) As
criaturas de Faulkner estão enfeitiçadas, envolve-as uma asfixiante atmosfera de
bruxaria”.45 De modo análogo, “Beckett, Ionesco ou Adamov”, diz um analista, “trocam a
contingência pelo geral, e se colocam resolutamente ao nível do universal. Não há, assim,
nada de espantoso em que a condição humana constitua o arqui-tema subentendido de seu
teatro.”46 Dentre nós, o modernismo classicizado da fase intermédia de Carlos Drummond

41 SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas
Cidades, 1990, pp.49-50.
42 ROSENFELD, Anatol. “Kafka e kafkianos” in:__. Texto/Contexto, op.cit., pp.201 e ss.
43 Idem, ibidem, p.236.
44 EMRICH, Wilhem. “Sobre la estética de la literatura moderna” in:__. Protesta y promesa [1960].

Barcelona/Caracas: Editorial Alfa, 1985, p.37.


45 SARTRE, Jean-Paul. “´Sartoris´ de W. Faulkner” [1938] in:__. Situações 1. Lisboa: Publicações Europa-

América, 1967, pp.11-2.


46 JACQUART, Emmanuel. Le théâtre de dérision: Beckett, Ionesco, Adamov. Paris: Gallimard, 1974, p.86.

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de Andrade (de Novos Poemas, 1948; Claro enigma, 1951; Fazendeiro do Ar, 1954, A vida
passada à limpo, 1959), montada sobre as tópicas negativas da morte e da melancolia, da
culpa e da tragédia, geralmente é lida também como “lírica metafísica”.47
Essa recorrência universal de imagens negativas e imediatamente sem lastro
não parece casual. Seu referente se revela só na leitura “a contrapelo”: conforme vimos em
Benjamin, o tempo histórico sedimenta-se no espaço tenso de “imagens dialéticas”,
enquanto cifra de uma história coagulada em segunda natureza. Adorno interpretou-as
como a “supremacia do mundo das coisas” enquanto eterno retorno de “proto-imagens
históricas” no interior da linguagem artística, supostamente livre e fechada em si, o que
faria dos romances contemporâneos “epopéias negativas”.48 Noutros termos, a extrema
diferenciação estilística entre, digamos, Baudelaire, Kafka, Joyce e Beckett deitaria raízes
em experiências sociopsíquicas inconscientes comuns de um imaginário ou de uma
fantasia social renitente (ou daquilo talvez que Raymond Williams designa “emergente” e
“estruturas de sentimento”.49)
Assim caberia talvez entender como a extrema negatividade do mundo
beckettiano já se anuncia no séc. XIX nos signos de “desolação”, “fragilidade” e “atonia” da
“poesia de Baudelaire, como uma espécie de mimese da morte”.50 Conforme Benjamin, a
modernidade para Baudelaire se dava como correspondência alegórica à antiguidade: o
mais novo como o sempre-igual. O corpo vivo é anexado pela mercadoria e pela moda, ao
“mundo inorgânico”, “ao cadáver”. O ambiente burguês pós-junho de 1848, constituído
pelo intérieur confortável do homem privado, recalca o passado, o tempo, a morte. “O que
é único na poesia de Baudelaire é o fato de que a imagem da mulher e da morte se
interpenetram com uma terceira imagem, a de Paris. A Paris de seus poemas é uma cidade
submersa (...) [cujo] substrato social, moderno, [é o] do ´idílio fúnebre´ da cidade.”51
Nessa linha de raciocínio, se em Machado o “ponto de vista da morte” (o do

47 MERQUIOR, José Guilherme. Verso universo em Drummond. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975.
48 “É comum nos grandes romancistas dessa época que a velha exigência romanesca do ´assim é isso´,
pensada até o limite, desencadeie proto-imagens históricas, tanto na memória involuntária de Proust,
quanto nas parábolas de Kafka e nos criptogramas de Joyce. O sujeito literário, quando se declara livre
das convenções da exposição do objeto, reconhece ao mesmo tempo a própria impotência, a supremacia
do mundo das coisas, que retorna em meio ao monólogo. É assim que se prepara uma segunda linguagem,
destilada de várias maneiras do refugo da primeira, uma linguagem de coisa, desintegradamente
associativa, como a que entremeia o monólogo não apenas do romancista, mas também dos inúmeros
alienados da linguagem primeira, que constituem a massa. (...) De fato, os romances que hoje contam,
aqueles em que a subjetividade liberada é levada por sua própria força de gravidade a converter-se no seu
contrário, assemelham-se a epopéias negativas.” (ADORNO, “Standort des Erzählers im zeitgenössischen
Roman”, op.cit., pp.46-7; Trad.: p.62.)
49 WILLIAMS, Raymond. Marxism and literature. London: Oxford, 1971, cap.II, 8 e 9.
50 BENJAMIN, W. Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo, op.cit., pp.81-2, g.n.
51 Idem, Passagens, op.cit., pp.45-47.

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“defunto autor”) é a cifra estética para a “formação supressiva” ou “negativa” do sujeito
num país patriarcal-escravista que se moderniza pela via conservadora52, em Kafka, a
animalização de Gregor Samsa (em A metamorfose, 1912), que o leva à morte simbólica e
imaginária em vida, é a versão kafkiana para o problema da experiência danificada, que
desvela os sujeitos como monstros ou restos excrementícios da ordem, na sociedade que se
modernizou por completo; Rubião e Joseph K., aliás, morrem como cães. Em Beckett, a
variante dessa supressão da formação do sujeito inclui toda sua imensa galeria de
personagens despedaçadas, como Malone, que fala desde o princípio, à beira da morte
(Malone morre, 1948); ou como o narrador-personagem da novela O calmante (1946-50),
literalmente um morto. É claro que as obras de Baudelaire, Machado, Joyce, Kafka ou
Beckett são específicas, deitando raízes em solos históricos particulares, mas deve haver
algo subjacente nesse solo que as conecta.53
O escritor que lida com a catástrofe social mais recente, então, parece trabalhar
esteticamente sobre as potencialidades de um material pré-formado, constituído por certas
relações sociais hegemônicas ou emergentes, sentimentos, além do métier artístico,
suprimindo-os e elevando-os a conteúdo efetivamente configurado, criando suas soluções
estéticas para exprimir o que resiste à Darstellung realista tradicional. A “metafísica” dessa
arte radical é momento da sociedade fetichista: “O momento anti-realista do romance
moderno”, diz Adorno, “sua dimensão metafísica, amadurece em si mesmo pelo seu objeto
real, uma sociedade em que os homens estão apartados uns dos outros e de si mesmos.”54
A perda da concreção histórica realista, nesse sentido, torna-se ganho de concreção.55

52 PASTA JR., José Antonio. “Changement et idée fixe”, op.cit. E também: Id., “La point de vue de la mort
(une structure récurrente de la culture brésilienne), 2005”. Centre de Recherche sur les pays
Lusophones–Crepal, Cahier nº14, Paris: Presses Sorbonne Nouvelle, 2007.
53 Para medir o avanço do ponto de vista machadiano na literatura mundial, veja-se um comentário

adorniano a partir de Beckett: “Se a arte quisesse elevar protestos diretos contra a rede sem falhas, então
ela certamente se aprisionaria nela: eis porque – tal como acontece exemplarmente em Fim de Partida de
Beckett – ela deve eliminar de si a natureza, que lhe diz respeito, ou atacá-la. Seu único parti pris ainda
possível é o da morte; que é ao mesmo tempo crítico e metafísico. As obras de arte provêm do mundo das
coisas através de seu material pré-formado tanto quanto de seus procedimentos técnicos; não há nada
nelas que também não lhes pertença, nada que não seja extraído do mundo das coisas ao preço da sua
morte. Só em virtude de seu elemento mortal (ihres Tödlichen) é que participam na reconciliação. Ao
mesmo tempo, porém, permanecem sujeitas ao mito. Eis o caráter egípcio de cada uma. Quando a arte
quer fazer durar o transitório – a vida – e salvá-lo da morte, de fato ela o mata.” (ADORNO, Ästhetische
Theorie, op.cit, pp.201-2, trad.: p.155).
54 ADORNO, “Standort des Erzählers im zeitgenössischen Roman”, op.cit., p.43; trad.: p.58.
55 “A arte nova é tão abstrata como as relações dos homens na verdade se tornaram. As categorias realistas e

simbolistas encontram-se igualmente fora de curso. (...) O caráter mesquinho e danificado desse mundo
de imagens [de Beckett] é a impressão [Abdruck], o negativo do mundo administrado. Nesta medida,
Beckett é realista. (...) A arte executa o declínio da concreção, em que a realidade não quer ter palavra, e
na qual o concreto é apenas a máscara do abstrato, o singular determinado meramente o exemplar
representativo e enganador da universalidade, idêntico com a ubiquidade dos monopólios.”, ADORNO,
Ästhetische Theorie, op.cit., pp.53-4; trad., p.44.
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Tais afinidades eletivas entre formações e tradições literárias tão diferentes
podem assustar os intérpretes mais cautelosos, mesmo quando se aponta sua raiz material
na totalização do mundo fetichista do capital e na lógica da má infinitude histórica do
antagonismo social. A meu ver, o erro consiste em tomar tais traços “metafísicos” crônicos
como algo incondicionado, sem relação com o processo mundial de modernização
capitalista, inclusive com aqueles processos modernizadores em contextos histórico-
geográficos bem particularizados.56 A questão materialista da interpretação, aqui, envolve
o problema da escala de análise do fenômeno: o universal visado não é simplesmente um
delírio metafísico e inefetivo em termos de determinação histórica do objeto, como
também o particular local torna-se uma abstração sem sua mediação universal no processo
totalizante do Capital. Noutras palavras, a crítica exercida pela arte moderna radical dirige-
se não só a particularidades localizadas, mas ao sistema universal alienado, isto é,
realizado em particularidades cada vez mais homogêneas.

**

4- Forma-mercadoria, forma do espaço social abstrato, forma literária

Esse longo caminho de desenvolvimentos da literatura moderna, que de modo


algum é uma evolução linear e homogênea, um trajeto de superações sem resíduos, desvios
ou retrocessos57, parece ter relação intrínseca com o processo desigual de modernização
capitalista, em especial com a produção daquilo que Henri Lefebvre denominou a
produção de um “espaço abstrato”: seja através da grande industrialização e urbanização
do século XX, mediante as estratégias de reprodução estatal da economia do lucro, seja por
formas de colonialismo ou de dominação de vastos territórios econômicos periféricos.58

56 Sobre Beckett, p. ex.: “Se as paisagens famintas e estagnadas de sua obra são pós-Auschwitz, elas são
também uma memória subliminar da Irlanda famélica, com sua cultura colonial puída e monótona, e de
suas massas passivas, esperando indiferentemente uma libertação messiânica que nunca realmente vem.”
(EAGLETON, Terry. “Political Beckett?” New Left Review 40, 2006, pp.70-1.) Nesse sentido, também,
vimos anteriormente o caso de Ulisses de James Joyce.
57 Cf. MORETTI, “Da evolução literária” in:__. Signos e estilos da modernidade, op.cit., pp.307-26.
58 LEFEBVRE, Henri. La production de l´espace. Paris: Anthropos, 1974, pp.402-3. O autor compreende o

espaço territorial e social em geral como mediação, isto é, como uma espécie de “fenômeno social total”:
tanto como produto material da atividade social, como meio de produção e força produtiva (natureza,
casas, ruas, instrumentos, redes de cidades etc.), como instrumento de organização e controle social e
político, como também uma forma de mediação subjetiva do viver/vivido (“espaços de representação”) e
do projetado/concebido (“representações do espaço”). Mais que uma condição a priori do entendimento
(Kant), o espaço é mediação natural, social e mental. É mais que um invólucro neutro e vazio em que
alocamos e vemos as coisas, antes uma mediação ativa que fundamenta a prática social, que dá forma à
realidade social, ao vivido, ao percebido e ao concebido, partes estas de uma unidade dialética.
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O espaço abstrato instaura-se, segundo Lefebvre, precisamente através do
desmantelamento do antigo espaço perspectivo, cujo paradigma foi a cidade européia
moderna: cidade ainda regulada pela política local, de nobreza, igreja, burguesia,
corporações de ofício etc., ordenada por um código de composição e estilo, pelo
alinhamento de fachadas e perspectivas etc., moldando-a como obra de arte; por isso,
segundo o autor, tal espaço social concreto se concebia com certa “autonomia” e
“organicidade”, i.é, “como unidade: como sujeito.”59 Aqui a economia mercantil ainda não
se destacara completamente do político e do social; com o que o espaço social ainda “rege o
tempo”.60 Em seu seio desenvolve-se, porém, através da força destruidora das guerras
militares, comerciais e coloniais, o espaço mundial da acumulação capitalista.
Trabalho e espaço abstratos tornam-se as duas mediações concretas fundamentais
da sociedade moderna. Tal como o trabalho abstrato determina cada trabalho concreto
adequando suas qualidades sensíveis à lei da produtividade média, subsumindo assim,
formal e realmente, toda atividade produtiva ao Capital, o espaço social abstrato é imposto
como o espaço (a matéria) adequado à produção capitalista de mercadorias (forma).61 Com
o predomínio total da industrialização sobre o corpo social, segue-se uma gigantesca
produção de espaços abstratos: equipamentos urbanos, fábricas, estradas, aeroportos,
represas, pontes, campos cultivados etc. A cidade entra num processo de “explosão-
implosão”: o estilhaçamento de sua antiga forma compacta e unitária, com produção de
centros de decisão segregados das periferias proletarizadas, em lotes mínimos, social e
ambientalmente degradadas etc. O valor de troca desde então predomina sobre o uso (e o
“valor de uso”). Agora é o tempo abstrato da valorização capitalista quem rege o espaço
social concreto em todos os âmbitos – e seu corolário dialético: o predomínio do espaço
abstrato da produção mercantil sobre o tempo social concreto da história.62
O enredo do Bildungsroman do séc. XVIII exigia a grande cidade como campo
formativo do jovem personagem. A partir de um certo ponto, no séc. XIX, é como se os
grandes espaços sociais e a vida cotidiana das massas urbanas invadissem as obras com
toda a energia, dominando seu conteúdo.63 Isso incide nos afrescos urbanos de Hugo, mas

59 Idem, ibidem, p.313.


60 Idem, ibidem, p.320.
61 Cf. MARX, Karl. Un Chapitre Inédit du Capital. Paris: Union Générale d'Éditions, 1971.
62 Cf. LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe [1923]. Porto, Escorpião/Elfos, 1989, p. 104.
63 “Cada espaço determina, ou pelo menos encoraja sua própria espécie de história. (...) O espaço não é o

´fora´ da narrativa, portanto, mas uma força interna, que o configura a partir de dentro. (...) Nos
romances europeus modernos, o que ocorre depende muito de onde ocorre.” (MORETTI, Franco. Atlas do
romance europeu (1800-1900) [1997]. São Paulo: Boitempo, 2003, p.81.). Ou seja, o romance realista,
forma burguesa por excelência, exige a cidade burguesa, até o ponto em que sua transformação também
transformará a forma-romance.
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é Balzac quem “transforma em romance uma cidade (...) o monstro-Paris”.64 Como
assinala Auerbach, há em Balzac um “realismo atmosférico” ou “ambiental”, um “estilo
mesclado” de tons elevados e populares, altamente carregado de historicismo, fisiologismo
e moral classicista francesa.65 Nele, os lugares começam a caracterizar em grande medida a
identidade das personagens – “sa personne explique la pension, comme la pension
implique sa personne”, diz sobre Mme. Vauquer e sua pensão – e suas longas descrições do
ambiente, longe da mera decoração cenográfica, começam a impulsionar a ação
narrativa.66 Sua Paris – pré-Haussmanniana – funciona ainda como um condensador
social da ação: lugar de encontros, de mobilidade social, mental e espacial, logo, do
acontecimento “inaudito”, do tempo irrequieto da história.67
Mais adiante, Baudelaire “não descreve nem a população, nem a cidade”, mas as
toma implicitamente como matéria social fundamental de sua alegorese poética, encravada
nos processos contra-revolucionários franceses do XIX.68 “Dostoievski”, escreve Lukács,
“surge como o primeiro e o maior escritor da moderna metrópole capitalista”. Isso já se
impunha, diz ele, em Defoe e Dickens, ou, mais claramente ainda, em Balzac, que, “no
quadro que pinta de Paris, projeta os círculos dantescos do novo inferno contemporâneo”.
Mas para Lukács foi o autor de Crime e Castigo (1866) quem “fixou os sintomas da
deformação psíquica que necessariamente surge no campo social da vida da grande cidade
moderna”, pois “a humilhação e a ofensa saídas da miséria nas grandes cidades são as
bases daquele individualismo mórbido, daquele desejo macabro de conquistar o poder no
ambiente em que vive.”69 Em Balzac, os homens ainda possuem rostos singulares; a
multidão anônima ainda não os engoliu.70 Flaubert figura a dessubjetivação e
desdramatização da vida cotidiana burguesa (sobretudo em Bouvard e Pécuchet): “sua

64 CALVINO, Italo. “A cidade-romance em Balzac”[1973] in:__. Por que ler os clássicos [1991]. São Paulo:
Cia. das Letras, 1993, p.147.
65 “Balzac sentiu em toda sua obra os ambientes mais diversos como unidades orgânicas e até demoníacas

(...) todo espaço vital figura-se para ele como uma atmosfera sensível e moral que impregna a paisagem, a
habitação, os móveis, acessórios, vestuário, figuras, caracteres, maneiras, ideias, ações e destinos dos
homens, com o que a situação histórica geral da época aparece como uma atmosfera total que abrange
todos os espaços vitais particulares.” (AUERBACH, op.cit., p.445.)
66 “Em Pére Goriot, toda a intensa vida da Maison Vauquer é deliberadamente coligida e armazenada até

adquirir força suficiente, quando desatada de suas amarras, para impulsionar a história com um robusto
movimento” (...) ‘Quanto à feição e ao movimento da vida... Balzac parecerá procurá-la desde logo não na
natureza dos homens e mulheres cuja ação compõe a história, ao menos não inicialmente, mas nas ruas,
nas casas e nas salas.” (LUBBOCK, Percy. A técnica da ficção [1921]. São Paulo: Cultrix, 1976, pp.128 e
137.)
67 Cf. MORETTI, “Os romances de Balzac e a personalidade urbana” in:__. Signos e estilos da modernidade,

op.cit., pp.133 e ss. / Id. Atlas do romance europeu, op.cit., p.99.


68 BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo, op.cit., p.116. Cf. também

OEHLER, op.cit., passim.


69 LUKÁCS, Georg. “Dostoievski” [1943] in:__. Ensaios sobre literatura, op.cit., pp.165-6.
70 Cf. CALVINO, op.cit., p.151.

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frase”, lamenta Sartre, “cerca o objeto, agarra-o, imobiliza-o e quebra-lhe a espinha, fecha-
se sobre ele, transforma-se em pedra e petrifica-o com ela (...) um silêncio profundo
separa-a da seguinte.” E isso repetindo-se no simbolismo, cujo tempo primordial é o
“instante”, “a imagem da eternidade”, “a negação do tempo humano, o tempo a três
dimensões do trabalho e da história”.71
A cidade moderna de Flaubert a Maupassant, nesse sentido, parece mais próxima à
de Dostoievski. Uma crise fundamental da experiência e do sujeito, e de seu suporte
territorial, anuncia-se claramente. Em Zola, isso aparece como imobilização relativa das
classes subalternas nos bairros pobres72, mas também na descrição do cotidiano burguês
“cinzento” e “inorgânico” no pós-1848, em que o ambiente ganha autonomia frente aos
homens, como apontou Lukács. Em Machado de Assis (Quincas Borba, 1886-91), a
experiência urbana carioca, incipientemente burguesa mas já contendo em si muitas
determinações fragmentadoras e imobilizadoras do espaço abstrato, é a da
desterritorialização, da captura mimética do sujeito (Rubião) na superfície
imagética/imaginária imperial e da perda de Si na loucura. Num país com fortes heranças
coloniais, patriarcais e escravistas, vastos fundos territoriais intocados e em processo lento
de modernização conservadora, a literatura ganha forte conotação espacial e territorial
(uma “arena de lutas de morte”: a busca de uma “supremacia qualquer”, como Brás
caracteriza o maníaco Quincas Borba); de nascença, aliás, desde o romantismo, nas
palavras de Candido, ela “tem fome de espaço e uma ânsia topográfica de apalpar todo o
país.”73 Em certo sentido, a literatura da periferia do sistema mundial, a russa de Gógol e
Dostoievski e a brasileira de Machado (a Drummond, Cabral, Gullar...), representando
uma estrutura social e política de capitalismo mais abertamente espoliadora e dominadora,
composta por um regime heterogêneo de relações sociais, burguesas e não estritamente
burguesas (escravidão, dependência, servidão), isto é, em que a forma-mercadoria compõe
sua linha de força superpondo-se à propriedade e ao poder patriarcal e estatal diretos, num
processo quase que de permanente acumulação primitiva de capital, essa literatura
periférica, dizíamos, prenuncia em muitos pontos o predomínio do Espaço abstrato da

71 SARTRE, Jean-Paul. Qu´est-ce que la littérature ? [1948] Paris: Gallimard, 1995, pp.136-7.
72 Cf. MORETTI, Atlas do romance europeu, op.cit., p.100.
73 Cf. CANDIDO, Formação da literatura brasileira, op.cit., vol.2, p.114. Isso atinge grandes veios da
formação literária brasileira. Osman LINS (Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976,
pp.55-61) observa, na trama de Vida e morte de M.J.Gonzaga de Sá de Lima Barreto, o insulamento das
personagens e a esterilidade dos conflitos: “Prevalece um tom sem brilho, um andamento pausado, nessa
composição horizontal e onde as linhas mestras não se tocam, não se reforçam entre si, não apontam para
nada, não formam um nó, laço algum. (...)Não são os eventos, em Lima Barreto, geradores de eventos,
não formam aquela cadeia firme, coerente, inexorável (...) aí reina, solerte, o demônio da separação (...)
romances invadidos por aspectos do espaço.” Algo disso é visível em obras tão diferentes como Memórias
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modernidade sobre a História. As relações não estritamente burguesas – e suas
implicações materiais em termos de subjetividade e cultura –, porém, aqui eram
reproduzidas pelo capital, e mesmo introduzidas por ele (no caso brasileiro), como sua
forma de acumulação. O dinamismo modernizador do centro capitalista tinha sua
verdade revelada na coagulação espacial do tempo histórico-social da periferia, menos
como resto pré-moderno a ser dissolvido que produto direto da modernização a se
generalizar no próprio centro. Uma tal literatura já expõe o primado da separação, ou o da
reunião enquanto separado.74 O turbocapitalismo atual lança pontes em seu passado
barbárico. Uma tal predominância do espaço abstrato poderá ser notada em toda arte
modernista, como a seguir veremos.
As determinações plenas do espaço abstrato são as da divisão territorial do trabalho
capitalista: a projeção material da divisão social do trabalho e das demandas políticas do
Estado sobre os lugares; assim ele se impõe como espaço fragmentado (dividido em
parcelas desiguais, rigidamente funcionalizado e produzido de maneira parcelar etc.),
homogêneo (intercambiável no mercado, fortemente controlado em seu uso) e
hierarquizado (econômica e politicamente: cidade-campo, centro-periferia, países
desenvolvidos e subdesenvolvidos etc.). Ou ainda, superpondo-se a essa tríade: visual,
geométrico, fálico.75 Enquanto tal, ele torna-se o suporte de um modo de vida cotidiano
que modela materialmente um modo de viver “espetaculista”.76 Vida rotinizada e
objetivada à força em atividades, locais e percursos programados: lar, trabalho, transporte,
lazer. O que esse espaço tende a abstrair são as diferenças: as da natureza, do corpo, da
cultura, da história...77 Esquartejado, ele torna-se uma nova fonte de penúria social, que
filtra as possibilidades de encontro, interação e experiência com a riqueza material e
simbólica. Por sua homogeneização e hierarquização (político-normativa e mercantil)
torna-se um espaço que dissimula o terrorismo político e econômico do Capital; um meio
de instaurar a “paz burguesa” do mercado, que controla o devir histórico e inibe a contra-
violência insurgente; no limite, enquanto urbanismo capitalista, congela o devir

Póstumas, Quincas Borba, Esaú e Jacó, Angústia, 1º de Maio (conto de Mario de Andrade) etc.
74 DEBORD, Guy. La société du spectacle. Paris: Gallimard, 1967, § 29.
75 LEFEBVRE, La production de l´espace, op.cit., pp.325 e ss; 392 e ss.
76 Idem, ibidem, p.332. O termo spectacliste é de DEBORD, op.cit., § 14.
77 “Espaço mortal, ele mata suas condições (históricas), suas próprias diferenças (internas), as diferenças

(eventuais), para impor a homogeneidade abstrata. Essa negatividade que o hegelianismo não atribui
senão à temporalidade histórica, o espaço abstrato a detém, dupla ou principalmente reduplicada: contra
toda diferença, atual ou possível.” (LEFEBVRE, ibidem, p.427).
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histórico.78 De modo que às contradições históricas juntam-se, segundo Lefebvre, “novas
contradições deste espaço”, que já apontariam possivelmente para um “espaço diferencial”.
É em tal espaço social, em vias de se tornar mundial, que a experiência da arte
moderna parece ter seu medium-de-reflexão mais geral.79 Lefebvre, p.ex., mostra como ele
foi anunciado na pintura moderna: o cubismo analítico de Picasso não só recusa a
perspectiva e a figuração mimética, mas “quebra” e “desloca os objetos do quadro”, reduz a
terceira dimensão à “superfície” e “restitui os aspectos múltiplos das coisas” pela
simultaneidade do primeiro plano, um espaço “visualizado sem reservas”.80 De modo
semelhante, Adorno percebeu no Surrealismo o aspecto espacializante da “supremacia das
coisas”. Suas montagens chocantes de imagens são “as verdadeiras naturezas mortas”, não
imagens de uma interioridade subjetiva intacta, mas “desfigurações” de objetos-fetiche, em
ruínas, “fetiches da mercadoria”: “imagens históricas” que testemunham coerções sociais
do desejo.81
O modernismo tem uma clara pronúncia sincrônica e espacial.82 “Multidão, solidão:
termos iguais e conversíveis para o poeta ativo e fecundo”, escreve Baudelaire, “o poeta
goza deste incomparável privilégio de poder ser a seu modo ele mesmo e outrem” e
entregar-se a “essa inefável orgia, essa santa prostituição da alma que se dá por inteiro,
poesia e caridade, ao imprevisto que se mostra, ao desconhecido que passa” (O Spleen de
Paris. Pequenos poemas em prosa). Parte da prosa modernista é a tentativa de suportar
esse “choque” para entrar em “comunhão” mimética com o Outro, o descontínuo, para
torná-lo evento narrável: na massificação da mercadoria, destilar o novo e o irrepetível (e
vice-versa). Daí também o peso do conto como forma, desde Kafka, Musil, Beckett, Woolf,
Hemingway, Borges, Cortázar, Bioy Casares, Rosa, Lispector.
Sintomaticamente, essa tendência social de espacialização, de corte do
desenvolvimento, justaposição de cores e superfícies, entrega hedonista ao imediato,
aparece historicamente até no coração da música, a mais temporal das artes: em Wagner e

78 “A necessidade capitalista satisfeita no urbanismo”, diz DEBORD, “enquanto glaciação visível da vida,
pode exprimir-se – empregando termos hegelianos – como a predominância absoluta da ´plácida
coexistência do espaço´ sobre ´o inquieto devir na sucessão do tempo.´” (op.cit., § 170).
79 Cf. BRADBURY, M. “The cities of modernism” in: BRADURY, Malcom & MACFARLANE, James
Modernism. A guide to European literature 1890-1930. [1976]. London: Penguin Books, 1991, pp.96-103.
80 LEFEBVRE, La production de l´espace, op.cit., pp.346-9.
81 ADORNO, “Rückblickend auf den Surrealismus” [1956] in:__. Noten zur Literatur, op.cit., pp.104-5;

trad., p.139-40 (“Revendo o Surrealismo”). Ver tb.: BENJAMIN, Passagens, op.cit., pp.51 e 986.
82
“As obras modernistas frequentemente tendem a ser ordenadas não na sequência do tempo histórico ou
sequência evolutiva do caractere, provenientes da história ou da trama (story), como no realismo e no
naturalismo; elas tendem a operar espacialmente ou em camadas de consciência, funcionando no sentido
de uma lógica da metáfora e da forma.” (BRADBURY, M. & MCFARLANE, J. “The name and nature of
modernism” in:__. Modernism, op.cit., p.50.) Ver tb. LUNN, op.cit., pp.48-58.
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Debussy – mas sobretudo em Stravinski, numa espécie de “pseudomorfose da música em
pintura” – o sinal agudo da “liquidação do indivíduo”83; e até mesmo na escola de
Schönberg, o “registro sismográfico de choques traumáticos”, como “lei técnica da forma
musical”, sobretudo no serialismo integral, “interdita a continuidade e o
desenvolvimento”.84 Nesse movimento, a literatura moderna radical também faz a
experiência – a “vivência de choque”, como denominou Benjamin – duma paisagem
petrificada e fraturada, para revelar em suas profundezas um território de tensões e
possibilidades. Num nível elevado de mediação da experiência social, o espaço abstrato
predomina na constituição das próprias formas das obras; forma aqui entendida como
lógica imanente das obras, i.é, integralizando um princípio construtivo que cria e articula
os próprios elementos da composição (fábula, personagens, estrutura, ritmo, ambientação,
etc.). Seu ponto de vista, como vimos, não é mais o do narrador objetivo e onisciente do
espaço perspectivo, mas o narrador descentrado e fragmentado no novo espaço social
abstrato – que perscruta os possíveis lampejos de um espaço diferencial em meio ao
espaço da alienação e da morte.
Em ensaio seminal, Joseph Frank apontou na literatura moderna (Pound, Eliot,
Proust, Joyce) o predomínio da “forma espacial” (spatial form). Segundo o Autor, os
modernos tendem a “desfazer ou circundar a natureza temporal linear da linguagem”, o
que seria expressão de uma “negação da história e um retorno à imaginação mítica.”85 Nos
Cantos (1915-62) de Pound e A Terra Desolada (1922) de Eliot, a sequência temporal dos
significantes é quase abandonada por uma estrutura que exige a inter-relação de grupos de

83 Os “dramas musicais” de Wagner, diz Adorno, “mostram, como cartazes gigantes, os princípios dessa
espacialização do decurso temporal, de elementos temporais disparatados lado a lado, que, em seguida,
predomina com os impressionistas e Stravinski e se torna o fantasma da forma. (...)Essa suspensão da
consciência do tempo musical corresponde à consciência totalizada da burguesia que, não vendo mais
nada diante de si, recusa o próprio processo e se satisfaz com a utopia de uma reversão do tempo no
espaço. A tristesse sensível do impressionismo é a herdeira do pessimismo filosófico wagneriano. Em
nenhuma parte o som vai temporalmente além de si mesmo, mas dissipa-se no espaço.” (ADORNO,
Philosophie der neuen Musik [1948] in:__. Gesammelte Schriften. Band 12. Frankfurt: Suhrkamp, 1975,
pp.173-4. Trad.: Philosophie de la nouvelle musique. Paris: Gallimard, 1979, p.195.
84 Idem, ibidem, p.47; trad.: p.53. Na última fase, Schönberg só escapa do fetiche da técnica reintroduzindo a

espontaneidade, e assim o dinamismo, na composição: o compositor dialético, violentando a série,


paralisa a dialética fatal a que conduzia sua técnica (Ibidem, pp.106, 118 etc.; trad.: p.119, 133 etc.).
Diferente ainda, p.ex., de Mahler, um compositor pós-romântico que lidou com a fragmentação e a
heterogeneidade de materiais reificados para deles extrair dinamismo: “Como baladas, os lieder
mahlerianos se organizam segundo a lei formal da narrativa, um continuum temporal de eventos que se
sucedem, interrelacionados essencialmente uns aos outros e não menos distintamente postos.”
(ADORNO, Theodor W. Mahler: eine musikalische Physiognomik [1963]. Gesammelte Schriften, Band 13.
Frankfurt: Suhrkamp, 1971, p.226; Trad.: Mahler: une phsysionomie musicale. Paris: Minuit, 1996,
p.118.)
85 FRANK, op.cit., p.28. O texto em questão é de 1945: “A forma espacial na Literatura Moderna”. Revista

Intertexto, v.1, n.2. Uberaba, UFTM, 2008, pp.167-98. O original inglês é: “Spatial form in Modern
Literature” in:__. The idea of spatial form: Essays on Twentieth-Century Culture. New Brunswick:
Rutgers Univ.Press, 1991.
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palavras espalhados por todo o poema.86 Algo da antiga Darstellung totalizante da
experiência só pode ser a muito custo recomposta quando se conecta o disperso no espaço
do texto. Depois de analisar uma cena de Madame Bovary em que Flaubert impõe à
narrativa a simultaneidade de planos, Frank descobre em Joyce uma lógica parecida, só
que agora moldando o todo da composição: ele nota a miscelânea de fragmentos com
referências (factuais e simbólicas) dispersas e justapostas, exigindo um leitor capaz de
fazer as conexões de oposições.87 Também em Proust, só se compreende a passagem do
tempo quando se quebra o progresso linear do relato, quando se justapõe fragmentos
descontínuos da vida passada e presente num “tempo puro”, arrancando-a do fluxo
temporal, um tempo montado em choque de dois espaços: “Proust força o leitor a justapor
imagens díspares de seus personagens espacialmente, em um momento do tempo, para
que a experiência da passagem do tempo seja completamente comunicada a sua
sensibilidade.”88 Em Pound ou Eliot, de modo claro, a síntese é afirmativamente mítico-
religiosa, a de uma “história cíclica”, dominada pela plasmação do símbolo arcaico sobre as
individualidades, pela idéia de “metempsicose” (de poetas mortos89) ou determinada antes
pela “simultaneidade do espaço”, numa sintaxe paratática, que pela rígida “sucessão” no
tempo e o “acontecimento”.90
Em todos esses casos, porém, a literatura moderna parece buscar, como dissemos,

86 “Para serem bem compreendidos”, diz FRANK, “esses grupos de palavras devem estar justapostos uns aos
outros e serem percebidos simultaneamente; somente quando isso se dá é que podem ser adequadamente
entendidos; pois embora eles sigam um ao outro no tempo, seu significado não depende dessa relação
temporal. A dificuldade desses poemas, os quais nenhuma quantidade de exegese textual consegue vencer
inteiramente, é o conflito interno entre a lógica temporal da linguagem e a lógica espacial implícita na
concepção moderna da natureza da poesia.” Idem, ibidem, p.176. A espacialização do texto poundiano foi
cedo notada: “seus poemas mais curtos, heterogêneos, e as passagens heterogêneas que entram na
composição de seus poemas mais longos, nunca parecem ajustar-se num todo.”(WILSON, Edmund. O
castelo de Axel: estudo sobre a literatura imaginativa de 1870-1930 [1931]. São Paulo: Cultrix, 1967, p.86.)
87 FRANK, ibid., p.179. Também Arnold HAUSER nota tal pendor bricoleur no Ulisses: “Nela, deparamo-nos

com uma enciclopédia da civilização moderna segundo se reflete no tecido dos motivos que formam o
conteúdo de um dia na vida de uma grande cidade (...) As imagens, ideias, rompantes cerebrais e
memórias se mantêm umas ao lado das outras de uma maneira absolutamente súbita e abrupta; não se
concede atenção a suas origens, e todo interesse se põe em sua contiguidade e sua simultaneidade. A
espacialização do tempo em Joyce vai tão longe que alguém pode começar a leitura de Ulisses por onde
quiser, com um conhecimento superficial do contexto, e não necessariamente depois de uma primeira
leitura, como se diz comumente, e quase em qualquer seqüência que se escolher.” (op.cit., vol.3, pp.288 e
296).
88 FRANK, ibid., p.186. Já em 29, Benjamin descreveu o procedimento de Proust como o do “tempo

entrecruzado” de “reminiscências” e “envelhecimento”: “deixar no instante o mundo inteiro envelhecer”,


captando-o em “imagens visuais”, em grande parte isoladas de seu contexto, a fim de expor, pelo “riso”, a
“crise” das altas rodas sociais: a da unidade da família, do eu, da ética sexual, dos valores estamentais.
(BENJAMIN, “Imagem de Proust” [1929] in: __. Obras escolhidas 1, op.cit., pp. 41, 45 e 48).
89 TOMLINSON, Charles. “Erza Pound: entre el mito y la vida.” Cuadernos Hispanoamericanos, n. 653-654.

Madrid, Nov./Dec., 2004.


90 Cf. MORETTI, “De A terra desolada ao paraíso artificial” in:__. Signos e estilos da modernidade, op.cit.,

pp.262-5.
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uma temporalização do espaço social abstratificado e enrijecido (homogêneo, fraturado,
hierarquizado), como forma de desfazer, pela imersão radical no material (objetivo e
subjetivo), algo da discrepância entre poesia e vida prosaica – temporalização cuja
dialética exasperada, sem solução à vista, pode levar a uma falsa reconciliação ao nível do
mito (como em Pound e Eliot), mas também à sua consciência crítica (Joyce e Proust). Em
Joyce, nesse aspecto como em Musil, a cidade é ainda vivida, pelo indivíduo isolado, como
riqueza possível, como fluxo de tempo coagulado no prático-inerte.91 Na rede sem falhas
do capital, o essencial agarra e inclui o contingente, como se já não houvesse mais nenhum
momento não-mediado pelo sentido tautológico da reprodução social. Uma página de
Ulisses aberta ao acaso, o capítulo que imita um “catecismo impessoal” científico: “O que
fez Bloom no fogão? Ele removeu a caçarola da placa da esquerda, ergueu e levou a
chaleira de ferro para a pia a fim de abrir a bica girando a torneira para deixar a água
correr. / Ela correu? Sim. Do reservatório Roundwood no condado de Wicklow com uma
capacidade cúbica de 2400 milhões de galões, percolando através de um aqueduto
subterrâneo de condutos de filtro de canalizações isoladas e duplas construído a um custo
inicial de planta de £ 5 por jarda linear, passando por Dargle, Rathdown(...)” (Cap.17).
Burgess comenta: “Bloom deve não apenas comer mas defecar; Molly Bloom deve meditar
não apenas sobre os amantes mas também sobre como são os amantes na cama. Com
painel tão amplo, nenhum detalhe humano pode ficar de fora”.92 Seguindo seu próprio
impulso formal, o romance transborda os limites da Darstellung temporal tradicional,
invertendo-se quase em antiromance, para captar aquilo que comumente excede a lógica
da forma realista – daí seu inevitável aspecto fragmentário e dissonante – reunido agora só
através da figura compósita do sincrônico e do espacial: para além da superfície, a Dublin
de Joyce, vista ao microscópio de um só dia, só pode apresentar-se como a conexão de
milhares de eventos simultâneos no espaço-tempo. Por isso, no modernismo,
“desintegração” e “superintegração”93 compõem uma unidade dialética.

91 “O cotidiano entra em cena revestido pelo épico, por máscaras, por vestimentas e por cenários. É
exatamente a vida universal e o espírito do tempo que se apoderam dele porque se investem nele,
conferindo-lhe uma amplitude teatral. Todos os recursos da linguagem vão ser empregados para que se
exprima a cotidianidade, com sua miséria e sua riqueza. (...) O objeto estático, simples, posto diante de
nós (...) se dissolve com a evocação de atos e de acontecimentos de uma outra ordem. O objeto é um
superobjeto: Dublin, a Cidade, encerra todas as cidades; o Rio encerra as águas e os fluidos da
feminilidade. Quanto ao Sujeito, este já é Proteu, um conjunto de metamorfoses (um grupo de
substituições) (...) ele se desdobra no monólogo interior (...) portanto (n)o tempo. A história de um dia
engloba a do mundo e a da sociedade. (...) Essa cidade é apropriada para os que a habitam; as pessoas de
Dublin modelaram o seu espaço e são talhadas por ele. O homem inseguro que parece vagar pela Cidade
recolhe os fragmentos e aspectos dispersos dessa dupla adequação.” (LEFEBVRE, A vida cotidiana no
mundo moderno, op.cit., pp.7-9.)
92 BURGUESS, Anthony. Homem comum enfim. São Paulo: Cia. das Letras, 1994, p.88.
93 MACFARLANE, James. “The mind of modernism” in:__. BRADBURY, M. & MCFARLANE, op.cit., p.92.

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Na esteira de Joyce, a metrópole capitalista coloniza a forma, quebrando sua
estrutura monádica. John Dos Passos, na trilogia USA (1930-6), aproveitando técnicas do
cinema, executa tramas paralelas, de grandes espaços e coletivos representados em
simultaneidade turbilhonar, com a “montagem caótica de monólogos interiores”, diz
Rosenfeld94, “notícias de jornal, estatísticas, cartazes de propaganda, informações políticas
e meteorológicas, itinerários de bonde – montagem que reproduz, à maneira de
rapidíssimos cortes cinematográficos, o redemoinho da vida metropolitana. O indivíduo
dissolve-se na polifonia de vastos afrescos que tendem a abandonar por inteiro a ilusão
óptica da perspectiva, já em si destruída pela simultaneidade dos acontecimentos, a qual
substitui a cronologia.” Nesse sentido também, algo de uma reconstrução “épica” de uma
coletividade urbana – que rompe o individualismo do romance – aparece, segundo
Benjamin, em Berlin Alexandersplatz (1929) de Döblin.95
O modernismo latino-americano, mergulhado no ritmo da história lenta e mítica de
suas modernizações conservadoras, não cansa de dar notícia desse predomínio do espaço
sobre o tempo, e da tentativa de sua relativização. Em Borges (Ficções e O Aleph), Bioy
Casares (A invenção de Morel) e Cortázar (Casa tomada, Autoestrada para o Sul,
Rayuela) pululam espaços que tomam a dianteira na intriga e no ponto de vista, dando
sinal indireto do processo social.96 Aqui entrariam também o Grande Sertão: veredas, de
Rosa ou São Bernardo de Graciliano, como territórios de luta de morte sem fim.
Um passo além e teremos, no final do modernismo (com um pé já no pós-
modernismo), o nouveau roman francês97 dos anos 50 e 60, principalmente o de Robbe-
Grillet, tomado pelo coisismo espacializante do voyer: “um museu de estátuas
abandonadas ou de seres petrificados sem passado e sem futuro”, segundo Carpeaux98; o

94 ROSENFELD, “Reflexões sobre o romance moderno”, op.cit., p.95-6.


95 “O princípio estilístico do livro é a montagem (...) [que] faz explodir o ´romance´, estrutural e
estilisticamente, e abre novas possibilidades, de caráter épico (...)Ele fala a partir da cidade. Berlim é seu
megafone. Seu dialeto é uma das forças que se voltam contra o caráter fechado do velho romance”.
BENJAMIN, Walter. “A crise do romance. Sobre Alexandersplatz, de Döblin [1930]” in:__. Obras
escolhidas 1, op.cit., p.56.
96 “Digo que Borges transformou o tempo e o espaço [espelho, labirinto, jardim, livro] em protagonistas de

suas histórias. Mas, ao fazê-lo, ensinou-nos a compreender, em primeiro lugar, a realidade relativista
ainda inclusiva do tempo e do espaço.” (FUENTES, Carlos. Geografia do romance [1993]. Rio de Janeiro:
Rocco, 2007, p.51). A prosa de Bioy Casares é caracterizada por “(...) repetições cíclicas de conduta, o
eterno retorno, a relatividade, os universos paralelos, numa espacialização do continuum temporal (...)”
(JOZEF, Bella. Romance hipano-americano. São Paulo: Ática, 1986, p.155).
97
O nouveau roman parece a realização cabal dessa lógica, até o autocegamento; ver: LEFEBVRE, A vida
cotidiana no mundo moderno, op.cit., pp.12-7 e GOLDMANN, Lucien. “O novo romance e a realidade”
[1964] in:__. Sociologia do romance. Rio, Paz e Terra, 1967. Fredric JAMESON (Pós-modernismo, a
lógica cultural do capitalismo tardio [1991]. São Paulo: Ática, 1996, caps. 1, 6 e 7), recuperando Lefebvre,
tenta mostrar como a cultura atual é “cada vez mais dominada pelo espaço e pela lógica espacial” (p.52).
98 CARPEAUX, Otto Maria. Tendências contemporâneas da literatura. São Paulo: Ediouro, 1968, p.312.

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romance da pura superfície objetal, “sem espessura e sem profundidade”, como celebra
Barthes, em que o tempo foi reduzido ao deslocamento quase “imperceptível” das coisas no
espaço, agora dotado de uma “magreza essencial”. Eis o mundo do consumidor de
espetáculo. O “ato central das experiências” do romancista de Les Gommes (1953), é,
segundo ele, “retirar o homem da fabricação ou do devir dos objetos e finalmente
desterrar (dépayser) o mundo em sua superfície (...) A interioridade é posta em
parênteses, os objetos, os espaços e a circulação do homem de uns aos outros são
promovidos à categoria de assuntos (sujets). O romance se torna a experiência direta do
entorno do homem, sem que esse homem possa prevalecer-se de uma psicologia, de uma
metafísica ou de uma psicanálise para abordar o meio objetivo que ele descobre.”99 O
limite explosivo desse espaço geométrico, fálico, visualizado e achatado ao extremo é a
simbiose de homem e espaço inorgânico, com a completa dissolução do sujeito
contemplativo, na linha que leva de Sade a Klossowski e Bataille.100
É em Kafka e Beckett, porém, que o território abstrato do Capital tem suas relações
mais criticamente desenvolvidas. Como em Machado, o espaço ganha o caráter de
mediação social da dominação – materialização concreta de forças objetivas e impessoais,
que se transfundem em poderes pessoais sobre os sujeitos-corpos alienados. A tensão
nunca abandona esse universo. “Tudo pertence ao Tribunal”, diz o pintor Titorelli n´O
Processo, e mais nenhum espaço vital está livre de seu domínio. Tal como em Amerika e O
Castelo os grandes espaços esmagam suas vítimas. Em Beckett o apogeu dessa contração
da vida é a sala/quarto de Fim de Partida ou o palco repleto de lixo de Respiração (1969).
“Da história só aparece seu resultado, como resto decaído.”(Adorno, Versuch, das Endspiel
zu verstehen). Num texto distópico como O despovoador (1968-1970) tal espaço se amplia
num monstruoso cilindro superlotado (“um corpo por metro quadrado ou seja um total de
duzentos corpos número redondo”), em que a vida se resume a subir escadas e adentrar
túneis que levam a lugar nenhum – mais ou menos como na prosa real do trabalho em
cada fábrica e escritório contemporâneo.

(São Paulo, Fevereiro/Março de 2009)

99BARTHES, Roland. “Littérature objective” [1954] in:__. Essais critiques. Paris: Gallimard, 1981, p.37 ss.
100“A chuva quente caía torrencialmente e encharcava nossos corpos. A violência dos trovões nos assustava e
aumentava nossa fúria (...) Simone havia encontrado uma poça de lama e chafurdava nela: masturbava-se
com a terra e gozava, açoitada pelo aguaceiro, minha cabeça espremida entre suas pernas enlameadas, o
rosto mergulhado na poça (...)” (BATAILLE, Georges. História do Olho, 1928).
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Educação e a fábrica social

Paulo V. Marques Dias1

“Quem teve a idéia de cortar o tempo em fatias,


a que se deu o nome de ano, foi um indivíduo genial.
Industrializou a esperança, fazendo-a funcionar no limite da exaustão.”
(Carlos Drummond de Andrade)

Este texto se propõe a sintetizar algumas reflexões levantadas durante todo um


processo de investigação teórica, que já leva vários anos, especificamente no tocante às
novas transformações na gestão educacional e na organização da educação escolar
brasileira e paulista, especialmente no ensino fundamental e médio.

I - Surto avaliatório

Atualmente, a educação brasileira, em seus diversos níveis, vive um “surto


avaliatório” – através de reformas sucessivas, legitimadas por todo um discurso da mídia,
que afirmam a necessidade de se avaliar o desempenho e da implantação da meritocracia
como instrumento para se obter melhoras no rendimento escolar2.

1 Mestrando em Estado, Sociedade e Educação, pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.
2 Vide os diversos artigos de Gilberto Dimenstein, Gustavo Ioschpe e Eric Nadelstern, onde a reforma da
gestão escolar se transformou em um campo de batalha na imprensa - Na Revista Veja de número 2035,
de 21 de Novembro de 2007, Eric Nadelstern defende a implantação de métodos extremamente
competitivos, e a meritocracia, na gestão e organização escolar, como saída para a crise escolar – tratando
da questão de Nova York. Bem ao espírito do tempo, reformas de cunho meritocrático e sistemas de
gestão toyotista estão sendo amplamente defendidos e implementados no Brasil. Vide as reformas
educacionais do Governo do Estado de São Paulo. Gilberto Dimenstein, no artigo “Escola de Medíocres”,
na Folha de São Paulo do dia 21/08/2007, defendeu também a implementação da flexibilização
trabalhista nas escolas públicas na forma da meritocracia. Vide também artigo “Serra terá coragem?”, na
Folha de São Paulo de 31/07/2007. Gustavo Ioschpe, na Revista Veja de 27 de Setembro de 2008,
publicou o artigo: “Dinheiro não compra educação de qualidade”, onde defendeu que aumentos salariais
do corpo docente não melhoram a educação, mas sim a capacitação e reforma de gestão. Ver também
Revista Veja de 25 de Fevereiro de 2008, e de 12 de Janeiro de 2008, onde Ioschpe publicou outros
www.sinaldemenos.org v.1, nº1, 2009 120
As formas até então vigentes de gestão são criticadas como burocráticas e
ineficazes, e há um ataque generalizado aos direitos trabalhistas dos docentes,
acompanhado pela intensificação do trabalho escolar, um processo de “taylorização” – a
multiplicação dos instrumentos avaliatórios, o estabelecimento de metas ou critérios de
desempenho e a estruturação dos programas e da gestão segundo uma lógica
quantificadora abstrata, baseada em modelos de gestão empresarial. A crítica à
“burocracia” do processo educacional nada tem fato de anti-burocrática – passa, na
verdade, por uma crítica à ineficácia da forma tradicional de burocracia, onde se propõe
como solução justamente o reforço do poder dos gestores, ou seja, o (re)fortalecimento do
controle burocrático através de medidas modernizantes da gestão. Por exemplo, temos a
informatização do processo, que permite ao corpo de gestores um controle muito maior
sobre o processo de trabalho, através da microeletrônica como elemento centralizador de
controle; bem como a delegação de tarefas de gestão ao corpo de trabalhadores (no caso
escolar, a delegação cada vez maior de tarefas burocráticas aos professores).
O surto avaliatório, a vinculação dos rendimentos docentes ao cumprimento de
metas, tem como consequência a intensificação do trabalho docente, que descarrega sobre
o processo educacional uma série de consequências que iremos discutir adiante.
Igualmente, a generalização da lógica de empresa na gestão e organização do trabalho
educacional torna cada vez mais evidente a vinculação estreita entre os aparatos
educacionais de nossa sociedade e os mecanismos da “universalidade abstrata”3 do Capital,
demonstrando que as estruturas educacionais não são externas ao processo de produção
capitalista, mas cada vez mais se apresentam dentro do circuito de produção do valor, o
que iremos discutir no presente texto.

artigos defendendo tais posições. Também a entrevista “A educação no Brasil aumenta a desigualdade”,
publicada na Revista Isto é em 5/10/2005. No artigo de 10 de fevereiro de 2008, chamado “Contra o
obscurantismo”, no Jornal Zero Hora, ele polemiza inclusive defendendo que existem ligações entre
criminosos e pré-disposições biológicas, o que esclarece estruturalmente sua maneira de pensar, tanto
quanto à sua defesa da neutralidade da ciência como da biologização do social
(http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a1761360.xml&template=3
898.dwt&edition=9267&section=101). Para mencionar também a educação superior pública e as atuais
reformas, vale analisar a entrevista na Revista Veja de 26 de Novembro de 2008, onde Eunice Durham
afirma que “Para agravar a situação, os maus profissionais não podem ser demitidos. Defino a
universidade pública como a antítese de uma empresa bem montada.”
3 Robert KURZ. O Colapso da Modernização. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. Ver também, Robert KURZ.
“A Substância do Capital.”in Revista Exit n.1, 2004< http://obeco.planetaclix.pt/rkurz203.htm> e Robert
KURZ. “Dominação sem sujeito.” (original: Krisis nº13, 1993) in <http://obeco.planetaclix.pt>.

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II- Condições gerais de produção

Ao contrário de muitas representações comuns constituídas que


tradicionalmente enfatizam que a produção capitalista se daria apenas através da
concorrência de unidades produtivas autônomas (a famosa “anarquia” do mercado), cada
vez mais o desenvolvimento da produção capitalista, na medida em que leva à
concentração do capital e à difusão tecnológica, cria uma cadeia de produção altamente
articulada e interdependente em rede, na qual as empresas competem diretamente na
esfera da produção, pela redução dos preços de produção (contrariando a visão
predominante que reduz a competição ao mercado ou à circulação). As “unidades
particulares de produção”4 dependem de uma série de infraestruturas materiais para
funcionar – relativas ao capital constante e variável5. No âmbito do capital constante, elas
dependem de fontes de energia, água, comunicação, sistemas de transporte para
escoamento de produtos, segurança, etc. No âmbito do capital variável, são necessárias
infra-estruturas sociais mínimas que garantam a reprodução da força de trabalho e a
produção de futura força de trabalho. Por exemplo, sistemas de saúde, lazer, educação,
segurança (o aspecto repressivo para manter o ordenamento social), meios de
comunicação, etc. Em nossa análise, os sistemas de educação entram nestas
infraestruturas como estruturas de disciplinamento e qualificação de indivíduos para o
processo produtivo.
O processo capitalista de mercantilização das relações sociais, através da conversão
dos diferentes trabalhos úteis em trabalho abstrato, tem como condição necessária que
existam estruturas sociais de poder que viabilizem essa conversão. A análise feita por Marx
das formas do valor (como o valor, como entidade abstrata, se “manifesta” nas relações de

4 João BERNARDO. Estado, A silenciosa multiplicação do poder. São Paulo: Escrituras, 1998.
5 Entende-se como capital constante o trabalho morto, ou objetivado, na forma de meios de produção -
máquinas, instalações, matérias primas, materiais auxiliares, energia e etc. O capital variável seria o
trabalho vivo, ou seja, o capital investido em trabalhadores assalariados, direitos trabalhistas, etc, e diz
respeito à força de trabalho humana. Entende-se por composição técnica de capital a proporção entre
trabalhadores e máquinas (em termos de valor de uso e trabalho útil, concreto), e esta se reflete, em
termos de valor, na composição orgânica de capital, que é a proporção de capital constante e variável
investidos, como um índice de desenvolvimento tecnológico e de poder político das classes. A tendência
geral do processo de produção capitalista é o aumento da composição orgânica do capital, ou seja, da
proporção de trabalho morto empregado em relação ao trabalho vivo. Como o único elemento do processo
que cria valor novo é o trabalho vivo, sua redução proporcional no capital total leva a uma redução da taxa
de lucro e da produção de valor, o que desencadeia contra-tendências do capital para reequilibrar as
proporções e assim reerguer a taxa de lucro (seja pela intensificação da exploração, ou barateamento dos
elementos do capital constante, etc.). Esse movimento contraditório se resolve em crises cíclicas, mas que
não excluem o agravamento da contradição no longo período histórico, indicando que o capital possui em
si uma finitude histórica e cria barreiras ao seu próprio desenvolvimento. Ver Karl MARX. O Capital.
Crítica da Economia Política. São Paulo: Abril Cultural, 1982, 3 livros.
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troca) demonstra uma série de patamares ou níveis diferentes de abstração do trabalho –
onde a forma monetária final (forma mais desenvolvida da troca simples) seria também o
monopólio social da representação do trabalho humano acumulado na forma de dinheiro,
ou em outras palavras, o monopólio dessa “mercadoria-rei” ou “equivalente geral”, o que
pressupõe o Estado nacional, e a concentração do poder6. Igualmente, o Estado nacional
tem de garantir o processo de abstração do “fazer” útil7 em trabalho humano abstrato,
através da redução dos diversos trabalhos úteis a trabalho humano indiferenciado e
homogêneo, ou seja, a conversão dos diversos indivíduos e suas aptidões em mera força de
trabalho (mercadoria força de trabalho). Esse processo constitui a formação e reprodução
de um proletariado nacional.
De início, é um processo disciplinar e coercitivo – que ia da expulsão dos
camponeses da terra, o trabalho forçado, as workhouses (casas de trabalho forçado,
fábricas), as legislações violentas contra a vadiagem nos séculos XVII-XVIII; até o
recrutamento militar obrigatório e o exército como disciplinamento. A escola foi
apropriada8 pelo Capital neste processo na tentativa de formar o proletariado nacional –
através primeiramente da disciplina militar, respeito aos símbolos pátrios e autoridade,
etc. Depois, com o estabelecimento em larga escala do predomínio da mais-valia relativa9,
a exigência de trabalho cada vez mais qualificado, e com a disciplina já socialmente
interiorizada, a escola cada vez mais assumiu caráter qualificacional.
Ou seja, os sistemas de ensino tornaram-se parte das condições gerais de
produção10 do Capital, que é a série das infraestruturas e instituições que garantem a
interligação entre as unidades particulares de produção, garantindo a reprodução do
Capital. Trata-se de uma malha ou rede de estruturas, nas quais predomina a classe dos

6 Karl MARX. O Capital. Crítica da Economia Política. São Paulo: Abril Cultural, 1982. 3 v.
7 John HOLLOWAY. “A crise do trabalho abstrato.” Trad. Daniel Cunha, arq. digital. Holloway faz uma
mudança terminológica. Para não falar em “trabalho útil” e “trabalho abstrato”, ele se refere a “fazer útil”
ou “criatividade” (para trabalho útil) e “trabalho” (para trabalho abstrato).
8 Usamos o termo “apropriada”, porque já haviam formas de escola e educação em sociedades pré-
capitalistas (embora em círculos sociais restritos), bem como a ideia moderna de educação teve forte
influência iluminista e propunha uma instrução universal que ajudaria a difundir o “esclarecimento”.
Igualmente, houveram escolas religiosas e internatos, bem como o movimento operário constituiu escolas
auto-organizadas como elemento de resistência social. A reivindicação dos trabalhadores, de uma
educação para todos, foi apropriada e “recuperada” pelo Capital, que constituiu instituições escolares,
mas atreladas à sua lógica de expansão. O investimento em educação passou a ser investimento na
formação de força de trabalho.
9 Mais adiante será esclarecido o significado das duas formas de mais-valia, a absoluta e relativa.
10 Ver João BERNARDO, Estado: A silenciosa multiplicação do poder. São Paulo: Escrituras, 1998.

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gestores (tecnocracia). As unidades particulares de produção, ou empresas isoladamente
consideradas, eram inicialmente campo de predomínio da burguesia (proprietários
privados do capital), e as condições gerais de produção o campo de predomínio e
desenvolvimento dos gestores (proprietários coletivos e informais do capital).
Posteriormente (no século XX) o domínio dos gestores veio a crescer dentro das empresas,
solapando o poder das burguesias tradicionais.11
Cabe ressaltar que a princípio, havia o predomínio da concentração das condições
gerais de produção nas mãos do Estado nacional (embora nem tudo estivesse a cargo do
Estado).
Os sistemas de ensino foram uma das estruturas que se constituíram em larga escala
de início predominantemente a partir dos Estados nacionais, como parte dessas condições
gerais de produção.

III- Mercadoria força de trabalho e sua produção

Poder-se-ia supor que no processo capitalista de produção, a força de trabalho ou


proletariado se forme externamente ao processo de produção (em processos extra-
capitalistas ou de mera circulação)12. Mas com o desenvolvimento do capitalismo, a
própria produção e formação da força de trabalho passou a se dar dentro do processo de
produção – a esfera da produção se expandiu de tal forma, que foi abarcando toda a
sociedade. Marx mencionava na sua famosa Introdução ao livro Para a Crítica da

11Consideramos aqui a teoria da existência de duas classes capitalistas, burguesia e gestores. Rejeitamos
nesta análise, as definições de classe por nível de renda ou de consumo, tão a gosto da sociologia e do
jornalismo. Também é limitada a definição das classes meramente por títulos jurídicos de propriedade
(visão do marxismo mais tradicional). Definimos as classes a partir da posição que ocupam no processo
de produção do capital. Assim, temos o proletariado (força de trabalho, incluindo trabalhadores
assalariados e também não-assalariados); e como classes capitalistas a burguesia (proprietários privados
jurídicos do capital) e os gestores (a tecnocracia, proprietários coletivos do capital). Nesta análise,
consideramos possível a existência do capitalismo em formas estatais, com a supressão da burguesia
como proprietários jurídicos, e a constituição de uma burocracia proprietária coletiva através do Estado,
ou seja, um capitalismo estatal (como os diversos regimes socialistas, que mantiveram a estrutura basilar
do capitalismo – a utilização de força de trabalho para produção de valor. A atual existência, a nível
mundial, das imensas corporações de sociedades anônimas, das quais não se consegue nem mais
identificar um proprietário, demonstram a realidade desta tese. Ver João BERNARDO. “O proletariado
como produtor e como produto”, Revista de Economia Política, vol. 5, n.º 3, julho/setembro 1985; e
também Amadeo BORDIGA, “O Marxismo dos gagos”, texto publicado em < http://kritica-
social.blogspot.com >; Maurício TRAGTENBERG. Reflexões sobre o socialismo. São Paulo: Moderna,
1986; Maurício TRAGTENBERG. Burocracia e Ideologia. São Paulo: Ática, 1974. Robert KURZ. O
Colapso da Modernização. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992; e João BERNARDO. Democracia
totalitária. Teoria e prática da empresa soberana. São Paulo: Cortez, 2004.
12 Cf. João BERNARDO. “O proletariado como produtor e como produto”, op.cit.; Idem, Economia dos

Conflitos Sociais. São Paulo, SP: Cortez Editora, 1991; Idem, Estado, A silenciosa multiplicação do poder.
São Paulo: Escrituras, 1998 e Harry CLEAVER. Leitura Política de O Capital. São Paulo: Zahar, 1981.
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Economia Política, que o consumo pode se tornar “consumo produtivo”, e que a produção
capitalista tende a se portar como um campo expandido, dominando as demais esferas13.
A partir do momento em que a luta operária forçou o Capital à jornada de 8 horas,
internacionalmente, precipitando-o em crise, este se recuperou através da estratégia da
mais-valia relativa, criando sistemas de organização de trabalho, introduzindo a tecnologia
(aumento do capital constante), complexificando o processo de trabalho, e aumentando a
produtividade dos bens de consumo, barateando-os (e assim barateando os custos da força
de trabalho e aumentando o excedente em valor). Este processo não atingiu apenas a
esfera das empresas e trabalho, mas se expandiu para o tempo livre, colonizando-o e
criando a “fábrica social”14, ou seja, estruturando toda a sociedade como uma imensa
fábrica. A família, o lazer e a escola foram campos que se estruturaram como verdadeiras
unidades de (re-)produção de força de trabalho, através de trabalho útil não-remunerado
(trabalho doméstico, atividade escolar dos estudantes, lazeres, etc.)15.
A força de trabalho, anteriormente, vender-se-ia em troca de receita em dinheiro,
que seria trocada por mercadorias (meios de subsistência), garantindo assim a reprodução
da mesma força de trabalho. Com o processo de formação da fábrica social, o processo se
modificou. A força de trabalho igualmente se vende em troca de salário, que é trocado
pelas mercadorias (meios de subsistência), que se processariam em atividade não-
remunerada (trabalho doméstico, atividade escolar, lazer, esporte, mutirões etc.), cujo
produto final seria uma força de trabalho de potencial menor valor do que a inicial (uma
vez que toda esta atividade não-remunerada qualifica e produz a força de trabalho, de
forma a reduzir os custos que a empresa desembolsaria na forma de salários ou
remuneração, ou seja, gera um impacto positivo no excedente)16. Assim o Capital colonizou
o tempo livre “à sua imagem e semelhança” estruturando uma fábrica social e uma
sociedade disciplinar17, onde as hierarquias familiares e escolares se colocariam como
instrumentos de produção da força de trabalho. Estas atividades foram organizadas e
encadeadas como atividades de produção. Um exemplo útil disso foi a forma como a
introdução do gás de cozinha e do fogão a gás reestruturou toda a economia doméstica,
bem como outros recursos como geladeira, máquinas, carros, televisão, etc. A atividade

13 Karl MARX. Para a Crítica da Economia Política. (Os Economistas). São Paulo: Abril, 1985.
14 Ver CLEAVER, op.cit., e John HOLLOWAY. “Nós somos a crise do trabalho abstrato.” Palestra proferida
em Roma. Trad. Daniel Cunha, arq.dig., e John HOLLOWAY. “A crise do trabalho abstrato.” Trad. Daniel
Cunha, arq.dig.
15 Ver CLEAVER, op. cit.
16 Idem, ibidem.
17 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. São Paulo: Vozes, 1991.

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doméstica foi estruturada como produção de força de trabalho, e igualmente a atividade
escolar.
Na medida em que o desenvolvimento capitalista se processa, ele exige perfis
qualificacionais diferentes da força de trabalho segundo as necessidades da produção e da
tecnologia18. Ou seja, a mercadoria força de trabalho deve ser disponibilizada segundo as
necessidades do Capital, e é produzida dentro de seu processo.

IV- Aspectos disciplinares: trabalho abstrato, trabalho simples

O primeiro processo da produção da força de trabalho é a produção da própria força


de trabalho em si mesma, ou seja, a redução das diversas subjetividades e
individualidades, com todas suas particularidades, à homogeneidade como força de
trabalho para o Capital.
Assim como o processo de conversão de camponeses e grupos sociais em proletários
foi extremamente violento (expulsão das terras, extermínios, coerção ao trabalho
assalariado)19, a formação de um indivíduo como força de trabalho - a redução dos sujeitos
à condição negativa de força de trabalho, de proletariado, é um processo que exige como
base inicial a interiorização da disciplina de trabalho20. A estruturação das formas de
poder disciplinar é fundamental para essa redução, e para a consequente abstração dos
diversos trabalhos úteis na forma de trabalho abstrato, manifestando-se como trabalho
simples médio21.
Essa abstração (negação) pressupõe a repressão, o controle, a disciplina. Este
controle requer que o mesmo trabalho que deve ser homogêneo como trabalho abstrato,
seja extremamente heterogêneo enquanto trabalho útil ou concreto22. Um dos princípios
do poder do Estado moderno, o famoso “dividir para governar” (citado em Maquiavel23), é
fundamentalmente um princípio do poder gestorial na produção capitalista. Para o Capital
se compor, ele deve decompor politicamente24 a classe trabalhadora, fragmentando-a,

18 BRUNO, Lúcia. “Educação, qualificação e desenvolvimento econômico” In: BRUNO, Lúcia (org.).
Educação e trabalho no capitalismo contemporâneo: leituras selecionadas. São Paulo: Atlas, 1996.
19 MARX, Karl. O Capital. Crítica da Economia Política, op.cit., vol. I.
20 Istvan MESZÁROS. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2005.
21 Ver CLEAVER, op. cit., e MARX, op. cit.
22 Idem, ibid.
23 Nicoló Di Bernardo Dei MACHIAVELLI. O Príncipe. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.
24 KOLINKO. Notas sobre composição de classe. Ruhrgebiet/Alemanha, setembro 2001 in
<http://www.geocities.com/autonomiabvr/comclas.html> e CLEAVER (op. cit). Ver também Alberto
TOSCANO. Antagonism and Insurrection in Italian Operaismo, disponível em:
http://www.goldsmiths.ac.uk/csisp/papers/toscano_antagonism.pdf
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produzindo ou reproduzindo suas diversas divisões – que podem ser horizontais
(geográfico-espaciais) ou verticais (as diversas hierarquias entre trabalho remunerado e
não-remunerado, divisões de gênero, étnicas, culturais, entre imigrantes e trabalhadores
nacionais, hierarquias salariais etc.) O êxito da “imposição de trabalho”25 depende
justamente da força do poder de classe dos gestores em manipular dinamicamente essas
divisões, sempre decompondo os laços de identidade coletiva e solidariedade e gerando a
sujeição como classe26.
Ou seja, o trabalho abstrato tem um de seus elementos constituintes na extrema
heterogeneidade do trabalho concreto e suas divisões (inclusa a divisão social do trabalho,
que Marx analisa referindo-se ao trabalho útil). O processo de abstração se completa
quando a força de trabalho se torna flexível e pode se deslocar facilmente de um trabalho a
outro27.
Todo o processo de abstração do trabalho, depende, portanto, do trabalho útil e sua
estruturação, campo onde entra a ciência da administração, a lógica de empresa e suas
hierarquias. O trabalho útil é o suporte material do trabalho abstrato.
A escola entra aqui, ao lado da família, como instituição de poder disciplinar28 para
esse processo repressivo de negação da auto-organização e interiorização (naturalização,
fetichização) das hierarquias, processo este fundamental para o desenrolar dos demais
processos qualificativos. Assim sendo, o disciplinamento é um patamar de base necessário
para a posterior inclusão de qualificações. O aspecto disciplinar serve de base para o
processo qualificacional posterior, pois ele contribui para estruturar o trabalho simples
médio.
Este processo se insere dentro da mais-valia absoluta (porção excedente de valor
obtida pela extensão da jornada, redução direta de salário ou intensificação do trabalho),
um processo essencialmente repressivo e que serve de base para o desenvolvimento da
mais-valia relativa. Ambas as formas de mais-valia se combinam. Temos hoje um forte
exemplo disso na estruturação do mercado de trabalho brasileiro, com sua divisão entre
trabalhadores estáveis mais qualificados com direitos trabalhistas e trabalhadores de

25 Ver CLEAVER, op.cit.


26 Cabe deixar claro que ao longo deste texto, quando falo da atuação política dos gestores e classes dentro do
processo econômico, trata-se de processos objetivos de grupos sociais, dentro da lógica objetiva do
capital, que se personifica nestes grupos, e não de teorias de conspiração ou arbítrios subjetivos ou
morais dos indivíduos. O movimento da economia se apresenta nestas formas de conflitos sociais e ao
mesmo tempo se compõe deles como seu material, em processos sociais cegos.
27 Ver CLEAVER, op. cit. e MARX op.cit.
28 Ver FOUCAULT, op. cit. e CLEAVER, op.cit.

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menor qualificação precarizados.29 O capital depende de ambas as formas para estruturar
o trabalho abstrato como um todo.

V- Aspectos qualificativos: trabalho complexo, mais-valia relativa

Uma vez internalizada a disciplina, a força de trabalho apresenta-se constituída


como tal e apta a desempenhar trabalho simples. Mas o Capital não utiliza apenas a mais-
valia absoluta. Ele tem de passar à mais-valia relativa, como seu processo mais
característico.
Como resposta mesmo ao crescente poder dos trabalhadores30, o capital se viu
forçado, uma vez impedido do uso da mais-valia absoluta por conquistas da luta de classes
como a jornada de 8 horas, aumentos salariais e direitos trabalhistas, a introduzir o
elemento tecnológico (aumento do capital constante em relação ao variável, até como
forma de decomposição da classe trabalhadora) e aumentar a produtividade do trabalho.
Assim, passou a haver o predomínio da mais-valia relativa, que exige a passagem do
trabalho simples a patamares de trabalho mais complexo31.
Esta passagem se dá através da necessidade de qualificações maiores para operar a
tecnologia e níveis de atividade mais complexa. Neste ponto, a escolarização, já tendo
como patamar de base anterior o elemento disciplinar (básico) que ajudava a constituir o
trabalho simples32, passa agora a introduzir o elemento qualificativo para capacitar a
exercer o trabalho complexo.
A nova configuração do mundo do trabalho, na medida em que exige novos perfis
qualificativos, pressiona à transformação da estrutura educacional, segundo esses perfis.
Conteúdos e forma da educação passam a ser estruturados levando em conta as
capacidades cognitivas e habilidades exigidas. Tal é o fundamento do discurso das
“competências” da atual proposta curricular do governo do Estado de São Paulo33.
A própria estruturação da fragmentação do trabalho, descrita acima, se apresenta

29 Ver Ricardo ANTUNES. O caracol e sua concha: ensaios sobre a nova morfologia do trabalho. São Paulo:
Boitempo, 2005. E Ricardo ANTUNES. Adeus ao trabalho?: ensaio sobre as metamorfoses e a
centralidade do mundo do trabalho. 3.ª ed., São Paulo/Campinas: Cortez/Ed. da Universidade Estadual
de Campinas, 1995.
30 Ver CLEAVER, op.cit.
31 GENNARI, Emilio. “A educação em tempos de qualidade total”. E João BERNARDO. Estado, A silenciosa

multiplicação do poder. São Paulo: Escrituras, 1998.


32 Entendemos o trabalho simples ou não-qualificado não no sentido de trabalho manual ou braçal, mas sim

como trabalho simples médio, que é condicionado historicamente e cuja média tende a se transformar
com o aumento da produtividade social.
33 Documento disponível em: http://www.rededosaber.sp.gov.br/contents/SIGS-
CURSO/sigscFront/default.aspx?SITE_ID=25&SECAO_ID=595
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aqui dentro das estruturas educacionais, que se hierarquizam em níveis distintos,
correspondentes aos níveis educacionais que compõem o espectro qualificacional entre
mais-valia absoluta e relativa34. A promessa iluminista da instrução universal, de forma
nenhuma se concretiza como uma instrução igual para todos. A universalidade abstrata do
Capital sustenta sua força na desigualdade e divisão hierárquica da sociedade, e tal
raciocínio é válido para a análise do sistema de ensino.

VI- Do Estado restrito ao Estado Amplo: mundialização das estruturas


educacionais

O Estado nacional, com suas instituições, como parlamento, tribunais, cargos


públicos, polícia, exército etc., sempre configurou o chamado Estado Restrito, pois tende a
ser ultrapassado pelas instituições do chamado Estado Amplo35. O Estado Amplo se
estrutura como uma malha de poder dos gestores, ou seja, a soberania das empresas. A
própria acumulação do capital gera progressivamente este entrelaçamento das estruturas
inter-empresas, fortalecendo a classe dos gestores36. A partir do final da segunda guerra
mundial, esse processo se fortaleceu imensamente, configurando o desenvolvimento do
capital a nível mundial e das empresas a nível transnacional, por sobre os estados
nacionais. Com a reestruturação produtiva levada a cabo a partir dos anos 70, a exigência
de uma força de trabalho flexível e uma produção flexível desencadeou uma onda de
desregulamentação, que foi chamada por muitos de neoliberalismo, numa compreensão
mais restrita do processo.
Neste momento, as empresas cada vez mais se apossaram diretamente, através de
privatizações e parcerias, das infraestruturas (condições gerais de produção), que se
encontravam antes predominantemente a cargo dos estados nacionais. Cada vez mais a
ordenação social se transformou no sentido da desvinculação da economia
(autonomização) em relação à esfera da Política institucional (que perdeu sua primazia)37.

34 Ver meu texto: Paulo V. M. DIAS. “Algumas reflexões sobre o processo de desenvolvimento capitalista e a
educação” (2008) in: http://kritica-social.blogspot.com/2008/10/algumas-reflexes-sobre-o-processo-
de.html
35 Ver João BERNARDO. Economia dos Conflitos Sociais, op.cit.; Idem, Estado: A silenciosa multiplicação

do poder, op.cit.
36 Ver Lúcia BRUNO. O que é Autonomia Operária. São Paulo: Brasiliense, 1990.
37 Robert KURZ. “O Fim da Política.” (original: in Krisis n.º 14, 1994) <
http://obeco.planetaclix.pt/rkurz105.htm> e “A falta de autonomia do Estado e os limites da política”, in
Antivalor <http://antivalor.vilabol.uol.com.br/textos/krisis/rkurz/tx_rkurz_007.htm >
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Ou seja, na hierarquia social, o eixo de poder se deslocou. Os Estados nacionais, que
antes se encontravam no cume da pirâmide de poder, cederam lugar às empresas e sua
soberania (o Estado Amplo)38.
Os sistemas educacionais sofreram impacto desse deslocamento do eixo do poder.
Se antes eram estruturados pelos Estados nacionais, como formação de um proletariado
nacional e dentro dos modelos de disciplina tradicionais (militares, patrióticos, etc),
passaram a ser estruturados em nível internacional, segundo as necessidades de perfis de
força de trabalho das empresas transnacionais. Assim sendo, as reformas educacionais
passaram a ser ditadas por organismos internacionais do Capital, prevendo estruturação
de perfis educacionais segundo as divisões internacionais da força de trabalho39.
No caso brasileiro, a análise da LDB (Lei de Diretrizes e Bases), dos PCNs
(Parâmetros Curriculares Nacionais), das DCNs (Diretrizes Curriculares Nacionais), e da
atual proposta curricular da Secretaria da Educação do Governo do Estado de São Paulo,
nos levam a vislumbrar de forma mais nítida como a escola pública é reestruturada
segundo a exigência de um perfil de força de trabalho flexível, adaptada à alta rotatividade,
com uma formação básica e generalista para tal processo, bem como o desenvolvimento de
capacidades de gestão e resolução de problemas, característicos da crescente exploração do
componente intelectual da força de trabalho40.
Assim sendo, fica evidente que o Estado Amplo, as empresas, ditam as prioridades
educacionais e estruturam as políticas educacionais atuais, em níveis sistêmicos universais,
mundializados. Uma lógica produtiva sistêmica se constitui perpassando os sistemas
educacionais locais.

VII- Lógica produtiva sistêmica

O processo de modernização capitalista foi o processo de colonização das relações


sociais pela forma-mercadoria, ou seja, a batalha da forma abstrata do capital (como se
fosse algo semelhante ao Espírito hegeliano41, mas uma abstração real, concreta) contra a

38 Lúcia BRUNO. "Reestruturação capitalista e Estado Nacional", in: OLIVEIRA, Dalila e DUARTE, Marisa,
(orgs.), Política e trabalho na escola: administração dos sistemas públicos de educação básica. Belo
Horizonte: Autêntica, 1999.
39 Para constatar isso, vale analisar os diversos documentos do PREAL – Programa de Promoção da Reforma

Educativa da América Latina e Caribe (organização apoiada pelo Banco Mundial e outros organismos
internacionais), disponíveis em <http://www.preal.org/> , bem como proceder a análises comparativas
entre estes documentos e a LDB, PCNs, DCNs, e a Proposta Curricular acima aludida.
40 Ver Paulo V. M. DIAS (op. cit)
41 Ver Georg W. F. HEGEL. A Razão na História. Introdução à Filosofia da História Universal. Lisboa:

edições 70, 1995 - onde é sinteticamente exposto o movimento do Espírito na história.


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realidade sensível (os homens e suas condições de vida), que encontrava contra-si, para
sujeitá-la para-si. Cada vez mais, o “conceito” (Capital) se realiza, e a realidade com ele se
identifica. Foi um processo de luta de classes: de sujeição, de “classificação”42, um processo
de antagonismo e que porta em si a negatividade e a resistência social que se reconstrói
sempre em patamares superiores.
A luta do Capital (através da classe dos capitalistas, seus portadores empíricos) foi
para sujeitar a sociedade à sua forma abstrata, a imposição de uma lógica produtiva
sistêmica, que é a lógica de empresa – a lei do valor, com o fim-em-si mesmo da produção
de mais-valor (mais-valia), ou seja a “valorização do valor”. Esta lógica, em sua compulsão
interna expansiva, colonizou a totalidade das relações sociais (“à sua imagem e
semelhança”, “para-si”), impondo a lógica empresarial à educação, com sua organização do
trabalho e suas hierarquias.
O surto avaliatório atual é nada mais que uma evidência de quanto o Estado
Amplo predomina e estrutura os sistemas de ensino segundo suas necessidades,
convertendo as unidades educacionais em unidades de produção de força de trabalho, com
a mesma lógica de empresa.

VIII- Produção de trabalhadores através de trabalhadores

A produção do Capital é ao mesmo tempo produção do trabalho. A produção de


valor implica a produção de força de trabalho, de proletariado. A reprodução do capital é
também a reprodução da força de trabalho. Desta forma, a produção e a reprodução da
força de trabalho se dá através de um circuito integrado, uma “produção de trabalhadores
através de trabalhadores”43, através do trabalho doméstico, lazer, e atividade escolar,
conforme acima analisado.
Esses campos sociais (família, escola, lazer, cultura, atividades de desempregados,
etc.) se estruturaram dentro do circuito de produção do valor, constituindo a fábrica social,
onde a atividade não-remunerada44 se estrutura junto com a atividade assalariada em um
imenso processo de trabalho combinado e cooperado.
Como a mercadoria fundamental do processo capitalista, a única cujo valor é
determinado pelo equilíbrio de forças antagônicas numa luta social, e a única capaz, por

42 Ver John HOLLOWAY, Luta de classes (excerto do livroClasse = Lucha), disponível em < http://kritica-
social.blogspot.com/2007/10/luta-de-classes.html >
43 Ver João BERNARDO. “O proletariado como produtor e como produto”, op.cit.
44 Ver CLEAVER, op.cit.

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isso, de produzir mais valor do que ela tem, é a força de trabalho; a produção de
mercadorias tem por condição básica para sua expansão (valorização) a produção de força
de trabalho. Assim, a produção de proletariado passou a se dar como um processo de
produção capitalista, no interior do processo de produção capitalista – este domina todos
os momentos da vida social. Mas de forma nenhuma é um processo unilateral de
dominação. Como a força de trabalho (capital variável) é constituída por pessoas, é um
elemento imprevisível ao planejamento social dos gestores. O quanto ela pode gerar de
valor depende do grau de êxito da imposição de trabalho. Ou seja, a mais-valia porta em si
esta instabilidade crônica, que é a de ser a resultante de vetores de forças de grupos sociais
em conflito (lembrando um modelo da física, poderíamos pensar em uma linha de
resistência entre forças). Os capitalistas tentam, através da organização do trabalho e
outros meios, impor o aumento do tempo de trabalho excedente. Os trabalhadores, através
da resistência (individual ou coletiva, indo desde preguiça, absenteísmo, sabotagens, até
greves) tentam aumentar o tempo de trabalho necessário e reduzir o tempo de trabalho
excedente. Ou seja, aumentar o valor da força de trabalho que os gestores tentam reduzir.
Como a escola de massas se tornou predominantemente unidade de produção de
força de trabalho, o mesmo conflito se processa em seu interior.

IX- Burocracia e revolta disciplinar

“As mercadorias não vão sozinhas ao mercado”45. A produção da mais-valia, por


mais que se configure como um fim em si mesmo, e o Capital em última instância se
converta no “sujeito automático”46, certamente não se dá por si mesma. É justamente esse
fetichismo, ou seja, a reificação das relações entre pessoas na forma objetivada de uma
relação entre coisas, que vela (mas também mais que isso: determina, molda
objetivamente, sem a necessidade da consciência) as relações sociais entre homens, pela
qual a universalidade abstrata do capital se realiza.47
A produção da mais-valia, como é um processo aberto e que oscila segundo o nível
dos conflitos sociais e antagonismos de classe, depende de relações de poder para se
concretizar – a exploração depende de relações de opressão (e estas nunca existem por si,
mas em função da exploração). A realização da mais-valia e o nível de valor produzido são

45 Karl MARX. O Capital, op.cit., Liv. I.


46 Karl MARX. Grundrisse der Kritik der Politschen Ökonomie. Berlin: Dietz, 1953.
47 Karl MARX. O Capital, op.cit.

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um índice de sucesso (ou não) da imposição de trabalho, ou seja, de controle social48. Seria
um erro metodológico separarmos conteúdo (substância) e formas do processo. Ambas
estão inter-relacionadas, uma não se concretiza sem a outra. O valor só se manifesta e
realiza como valor de troca (relação de troca), ou seja, a força de trabalho (capacidade de
trabalho), tornando-se trabalho efetivo, no padrão médio de produtividade social, cria
valor, mas não é valor. O valor só se realiza, enquanto substância, na relação de troca
(forma do valor). Ou seja, o conteúdo (substância) das relações sociais (trabalho abstrato,
imposição do tempo de trabalho como média social) realiza-se nas formas, que não são
neutras, mas determinadas socialmente49. Ou seja, são aspectos indissociáveis. O objeto é
perpassado pelo sujeito50, mesmo que a cisão entre sujeito e objeto faça o sujeito sofrer um
eclipse por detrás do objeto51.
As formas de realização da relação social (troca e suas consequências – relações de
poder) se desdobram em diversas estruturas sociais funcionais à realização da produção da
mais-valia. A lógica empresarial, com sua racionalidade abstrata, tem como necessidade
intrínseca para efetivação a existência de uma burocracia como aparelho de poder.
Não trabalhamos com a definição de burocracia no sentido vulgar – como
amontoado de papéis ou inépcia. Pelo contrário, a burocracia é uma classe social (os
gestores, a tecnocracia) constituída pelo processo de produção capitalista e apropriadora
de mais-valia (como proprietários coletivos do capital, ao lado dos proprietários privados,
a burguesia), e cujo poder se constitui sobre a separação entre decisão (pensamento,
planejamento) e execução (atividade, trabalhar) – o que Holloway chama de domínio do
“poder-sobre” sobre o “poder fazer”52, produto da ruptura do fazer social. É o domínio das
gerências sobre o processo de trabalho, a relação de poder para realização do aumento da
produtividade e da mais-valia. A forma de exploração estrutura sua relação de opressão
específica. Na sociedade capitalista, dominada pela racionalidade abstrata da produção de
valor, a burocracia é esse aparelho de poder específico.
Sendo o espaço escolar convertido em unidade de produção de força de trabalho,
certamente ele precisa de uma burocracia para realizar seu intento53. A interiorização da
disciplina de empresa depende da imposição da mesma – através do respeito a hierarquias,

48 Ver CLEAVER, op.cit.


49 MARX, op.cit.
50 Ver o impressionante capítulo final, “Elementos para uma teoria do objeto”, do livro de Henri LEFEBVRE,
De lo rural a lo urbano. Barcelona: Península, 1978.
51 Idem, ibidem.
52 John HOLLOWAY, Mudar o mundo sem tomar o poder. São Paulo: Viramundo, 2003.
53Maurício TRAGTENBERG. Sobre educação, política e sindicalismo. São Paulo: Editora Autores
Associados, Cortez Editora, 1982.
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a contabilização da frequência, o cumprimento de horários típicos de produção (e até
mesmo acordar muito cedo e viajar longas distâncias!), a quantificação dos resultados, a
busca de metas de desempenho; a medição, fiscalização e controle constante do
desempenho (onde entram os instrumentos avaliatórios), o registro e contabilização; o
estímulo à competição entre colegas, a atomização, a repressão de comportamentos ou
atitudes não pré-determinadas ou hetero-organizadas pela burocracia (que emana seu
controle como de um ponto de irradiação). Ou seja, a imposição da heterogestão (que se
fundamenta na repressão da auto-organização, do fazer criativo) e do produtivismo são
elementos primordiais para se reduzir subjetividade à forma de mercadoria força de
trabalho, privando-a de auto-organização (e autonomia no uso do tempo) e, assim, reduzir
os diversos trabalhos úteis, a “criatividade” ou o “fazer útil”54 ao trabalho abstrato,
configurando o trabalho simples médio e o tempo de trabalho socialmente necessário
como média social. Ou seja, a formação de uma subjetividade que internaliza os
comportamentos, a disciplina, a racionalidade abstrata e as capacidades cognitivas
exigidas para a força de trabalho necessária. É certo que a família (e a polícia, repressão
religiosa e demais instituições disciplinares) inicia o processo disciplinar, e este se dá em
toda parte, até através dos lazeres (a própria música incorpora o caráter rítmico em
detrimento do melódico55), mas na escola este processo se apresenta de forma mais
sistemática.
É fundamental lembrar que a introdução dos elementos qualificativos depende da
prévia assimilação da disciplina, que serve de patamar de base para a edificação das
demais qualificações. Ou seja, uma certa escolarização básica, que inclui a socialização,
noções de cidadania, alfabetização, aprendizado de comportamentos, constitui o ponto de
partida para a introdução posterior de qualificações mais complexas na força de trabalho
(onde entra o ensino médio, técnico, universidades etc.).
Mas este processo, conforme acima analisado, não é unilateral, sendo muito mais
um processo de antagonismo e conflito, entre a forma abstrata do processo do capital (a
lógica do capital) e as resistências concretas dos indivíduos a essa sujeição56.
Assim sendo, colocamos em aberto a hipótese de que a crescente indisciplina nas
escolas seja um fenômeno, entre outros fatores, desencadeado como uma resistência social

54 Ver HOLLOWAY, op. cit.


55 Cf. Theodor W. ADORNO. “O fetichismo na música e a regressão da audição” [1938] in: BENJAMIN, W.
et alli. (Os pensadores – Textos escolhidos). São Paulo: Abril, 1983, pp.165-191.
56 Ver CLEAVER, op.cit.

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a esse processo de sujeição – embora uma resistência passiva, individual57, não coesa,
inconsciente e que assuma mesmo formas mais ou menos violentas ou de barbárie.
O capital tenta reduzir o valor da força de trabalho. Os trabalhadores resistem
tentando aumentá-la (o aspecto quantitativo da luta ainda opera dentro do invólucro
fetichista, enquanto o qualitativo pode apontar para outra coisa). Segundo Harry Cleaver58,
a intensificação do trabalho escolar ou doméstico leva a uma redução do valor da força de
trabalho, gerando impacto positivo no excedente de mais-valia (dentro da totalidade da
fábrica social, mas só caso essa força de trabalho, potencial, historicamente, no tempo, vire
realmente força de trabalho produtiva, isto é, trabalho produtivo na média social de
produtividade média etc. Ou seja, se a venda dessa força de trabalho se realizar.). Assim ele
interpreta que a revolta estudantil, a desagregação da família e a indisciplina da juventude
que se alastrou para dentro das empresas e filas de desempregados nos anos 60-70 seria na
verdade uma resistência social generalizada que teria frustrado os investimentos dos
capitalistas em “capital humano”, e que teria ajudado a desequilibrar e colocar em crise a
fábrica social, condicionando a crise mundial entre 1974 e 1977, o que pressionou e
desencadeou a reestruturação produtiva e a terceira revolução industrial como resposta do
capital, para decompor politicamente a classe trabalhadora e assim recompor sua taxa de
lucro. O aumento da composição orgânica do capital, com a substituição do trabalho vivo
pelo trabalho morto, foi acelerada por esse processo, e estaria na raiz da atual crise59.
A resistência dos estudantes, dentro da análise de Cleaver, funcionaria como um
meio inconsciente de se contrapor à redução do valor da força de trabalho. Igualmente, nos
tempos atuais, quando a redução do valor da força de trabalho e a intensificação da
exploração se tornam saídas necessárias para as crises de valorização do capital, a
intensificação do trabalho escolar (dos alunos e docente) e a tentativa de recuperar a
disciplina dentro das escolas, bem como o surto avaliatório e taylorizante, poderiam ser
entendidos como tentativas do capital de produzir uma força de trabalho mais flexível e de
menor valor para recompor sua taxa de lucro e aumentar a produção de mais-valia.
A recente revolta dos alunos de uma escola pública de São Paulo e sua repressão são
emblemáticos sinais de um processo de desestruturação e crise escolar generalizada nas
escolas públicas dos grandes centros urbanos, no caso, das escolas paulistas. Igualmente, é
significativo o atual pagamento de salários para que os estudantes “se comportem” em

57 Consultar João BERNARDO. Estado: A silenciosa multiplicação do poder, op.cit. ; e o esclarecedor livro
de Jean BARROT e François MARTIN, Eclipse e Reemergência do Movimento Comunista (1972). In <
http://www.geocities.com/autonomiabvr/eclieree.html >
58 CLEAVER, op.cit.
59 Robert KURZ. O Colapso da Modernização, op.cit.

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Nova York60. A escola se apresenta como mais um campo de conflito social e expressa as
contradições da sociedade.

X- Surto avaliatório, enquadramento do pensamento e pragmatismo na


universidade

“A obrigação de produzir é antagonista do desejo de criar”61. Não se poderia expor


melhor o antagonismo entre o trabalho abstrato e o fazer útil ou simplesmente criativo e
prazeroso. Conforme já demonstrado, o surto avaliatório é um instrumento de
enquadramento da atividade concreta a critérios produtivistas abstratos.
O ressalto da quantidade não se dá sem prejuízo da qualidade. Certamente, a
quantificação abstrata implica, segundo Guy Debord62, numa “baixa tendencial do valor de
uso”. A produção de conhecimento e sua transmissão se vêem cada vez mais prejudicados
pela lógica de produtividade, que exige a quantidade em detrimento da qualidade (assim
como o valor se coloca como negação e abstração do valor de uso). O que ocorre é uma
instrumentalização do saber pela lógica da economia. Quanto mais o processo capitalista
se impõe, mais acrítica e irreflexiva fica a sociedade63. O sujeito desaparece por detrás do
objeto64, numa imagem que poderia antes lembrar o quadro de Goya “O sono da razão
produz monstros” (1796-97), ou talvez a obsessão dos escritores do terror romântico com
os autômatos (como nos contos de Hoffmann, em cuja versão na opereta de Offenbach, até
o cantar da boneca-autômato reflete a lógica métrica abstrata). Outra metáfora talvez seja
o Fausto, de Goethe, imerso na obsessão com a ação. A sociedade moderna, em sua lógica
da racionalidade abstrata, do fim em si mesmo da valorização do valor, que se constituiu
numa tautologia ou finalidade autotélica, tem uma tendência a ser dominada pelo ritmo de
produção. O pensamento crítico, a reflexão livre e a produção de conhecimento crítico se
vêem seriamente prejudicados por esta lógica, que conduz antes a um atrelamento do
conhecimento às demandas do mercado e a um pragmatismo que exige resultados
imediatos. A cisão entre sujeito e objeto atinge seu nível máximo neste processo, quando o

60 Ver o artigo de Gilberto Dimenstein, “As filhas de Obama e o professor de rua”, Folha de São Paulo de
16/11/2008, e o texto “Secretaria elabora plano antiviolência nas escolas”, Folha de São Paulo de
04/12/2008.
61 Capítulo “A decadência do trabalho”, do livro de Raoul VANEIGEM. A arte de viver para as futuras

gerações. São Paulo: Conrad, 2004.


62 Guy DEBORD. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
63 Robert KURZ. “O Fim da teoria. Rumo à perda de reflexão sobre a sociedade”, 2000, in <

http://obeco.planetaclix.pt/rkurz53.htm >
64 LEFEBVRE, op.cit.

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sujeito queda diante do objeto. O domínio da economia é tão poderoso que afasta a
reflexão crítica.
Se na ditadura militar, a repressão ao pensamento necessitava de cassações e
perseguições políticas, atualmente o maior instrumento de enquadramento é a própria
lógica do mercado, com seu surto de avaliações e suas exigências de produção
quantitativistas, que tolhem o pensamento reflexivo de forma muito eficaz.
Igualmente, a figura da fábrica social e do processo de produção de trabalhadores
através do processo educacional ganha realidade através da figura do currículo de
quantidade, onde certificados de participação em congressos e números de publicação são
depositados como cheques em uma conta bancária cujo objetivo é se valorizar. Mas na
verdade, o alastramento da competição e do produtivismo é acompanhado da
proletarização da profissão docente em todos os níveis, um processo que está em aberto,
mas já tem despertado várias formas de resistência.

APÊNDICE

Algumas reflexões sobre o processo de desenvolvimento


capitalista e a educação

I
Dentro do processo de valorização do Capital, o Estado sempre cumpriu um papel
dentro do circuito de produção do valor – seja como Estado Restrito ou como Estado
Amplo. O processo imediato de produção capitalista não possui condições de, por si só,
garantir a reprodução a longo prazo do Capital sem criar infraestruturas com base num
planejamento de médio a longo prazo. Ou seja, entre as empresas e sua fragmentaridade
produtiva, há a necessidade de uma malha de infraestruturas comuns geradas pelo
capitalista coletivo (Estado) que as interligue, as Condições Gerais de Produção do Capital,
campo de atuação onde se destaca a classe dos gestores.
II
Como o Capital se reproduz de forma ampliada, em suas rotações e ciclos, de forma
análoga ele produz um proletariado ampliado. Tomamos como base a teoria do valor-
trabalho, o fato de que o capital variável (trabalho vivo) é a única fonte de novo valor.
Assim, numa unidade indissociável entre capital e trabalho, toda expansão da produção de
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mercadorias é também uma expansão da “imposição do trabalho” (CLEAVER, 1981).
Toda reprodução ampliada do capital é a reprodução ampliada da força de trabalho,
bem como da superpopulação relativa.

III
O salário oculta muito da produção e repartição do valor. Exatamente porque há a
diferença entre trabalho pago e não pago, entre valor e preço, entre valor da força de
trabalho e salário, é que se torna possível que o trabalho não remunerado participe do
processo de produção capitalista e do circuito de produção do valor, sem se exprimir em
dinheiro - por exemplo, trabalho de camponeses que se transforma em aumento da renda
da terra (MARX, 1975).
Os diversos trabalhos não remunerados entram em todo o processo, interligando-se.
No caso, cabe ressaltar os trabalhos que mantém e reproduzem a força de trabalho – por
exemplo, trabalho doméstico, trabalho do estudante etc. O processo de produção de forma
nenhuma se restringe às empresas, mas antes se apresenta como uma imensa “fábrica
social” (CLEAVER, 1981).

IV
Igualmente, as fronteiras jurídicas e limites jurídicos de propriedade não nos dizem
muito sobre o processo e sua interligação. É preciso analisar a cadeia de produção e
circulação do valor, nas relações sociais.
O Estado, longe de ser apenas uma superestrutura ideológica, é parte das Condições
Gerais de Produção do capital, e está inserido dentro do circuito de produção do valor, na
medida em que participa materialmente do processo de produção.
A estrutura escolar entra plenamente dentro deste processo, dentro da cadeia de
reprodução da força de trabalho.

V
Uma vez que a produção social é dominada pela forma-mercadoria (característica
basilar do capitalismo), todos os diversos trabalhos úteis tem de ser reduzidos
constantemente a trabalho humano abstrato, homogêneo. E, igualmente, todas as diversas
individualidades precisam, neste processo, ser reduzidas a mera força de trabalho humana,
indiferenciada, apta a executar trabalho simples. Este processo é puramente repressivo, em
seu princípio, e se estabelece com a Acumulação Primitiva de Capital (MARX, 1982), para

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depois se reproduzir em patamares cíclicos de forma ampliada. Assim como no processo de
transformação das formas do valor (da forma simples à ampliada, e da ampliada à forma
geral do valor, e desta à forma-dinheiro), surge uma mercadoria como equivalente-geral
das demais, como encarnação de todo o trabalho abstrato (o dinheiro), tal processo de
redução é também um processo de monopólio, que envolve a coerção e sujeição, e
implica um Estado nacional. Superando a aparência reificada de relação entre coisas, não
se trata apenas duma simples redução de mercadorias e valores a uma forma comum de
valor, mas essencialmente a uma redução de todos os trabalhos úteis e individualidades a
mero trabalho abstrato e mera força de trabalho homogênea, nacional. A ação do Estado,
através do exército e da escola, foi fundamental nesse processo. Daí o caráter
fundamentalmente disciplinar e repressivo da escola moderna.

VI
Uma vez que a abstração (negação) dos trabalhos particulares a trabalho abstrato e
das individualidades a mera força de trabalho (homem como mercadoria, ou proletário,
uma condição negativa) se torna um fato, as diversas forças de trabalho se mostram aptas a
executar trabalho simples (MARX, 1982).
Neste ponto, entra o segundo aspecto da escola, no momento em que a repressão já
foi internalizada: o aspecto qualificacional. Passamos assim da mais-valia absoluta à mais-
valia relativa, do caráter disciplinar e repressivo daquela, ao caráter internalizado desta). O
ensino de qualificações e habilidades permite que se execute trabalho mais complexo,
gerando maior valor e trabalhando com os componentes tecnológicos – processo que se
agrava exponencialmente com o aumento da composição orgânica do Capital, o aumento
do capital constante sobre o variável. A mesma força de trabalho movimenta uma massa
muito maior de meios de produção, o mesmo trabalho vivo uma massa muito maior de
trabalho morto. A taxa de mais-valia cresce exponencialmente neste processo (embora esse
mesmo processo aumente de forma sempre decrescente a valorização, a cada duplicação do
desenvolvimento das forças produtivas, estreitando a base de valorização e reduzindo a
taxa de lucro, demonstrando um limite lógico do processo). Assim, torna-se fundamental
ensinar qualificações, para se operar novas tecnologias. O papel da escola neste processo é
crucial.

VII
Mais-valia absoluta e relativa estão imbricadas e combinadas, não se excluindo, mas

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se completando. Como o processo de valorização do capital se dá assentado na
decomposição e fragmentação da força de trabalho, o capital como relação social domina
pelas divisões que gera. Seja nas divisões horizontais (categoriais, setoriais, geográfico-
espaciais), seja nas divisões verticais (entre trabalhadores qualificados, trabalhadores de
baixa qualificação e não-assalariados, entre homem e mulher, divisões étnicas, etc). Essas
divisões, que são intrínsecas à lógica da acumulação, se reproduzem de forma sempre
ampliada com a acumulação do Capital – a alienação original que estava no núcleo do
processo precisa sempre se ampliar (embora num processo de conflitos sociais, onde a
classe trabalhadora se decompõe e recompõe sucessivamente assim como o capital se
valoriza e desvaloriza em ciclos).
A tendência geral do processo, com a acumulação do capital e o desenvolvimento do
capital constante, é a de agravar tais divisões. Assim sendo, cresce a separação entre
setores de trabalhadores qualificados e precarizados, bem como cresce a superpopulação
relativa.
O toyotismo, como “administração de crise” (KURZ, 1992), desde a revolução da
microeletrônica, atrelou a produção ao mercado, eliminando estoques e desperdícios
(lógica da empresa enxuta), o que demonstra um sintoma do estreitamento da valorização
do capital (mas ao mesmo tempo o aumento exponencial da exploração). Assim, dentro da
empresa capitalista e sua cadeia de produção, a lógica da acumulação flexível exige uma
produção flexível e uma força de trabalho flexível, mesmo como forma de compensar a
queda da taxa de lucro.
Uma parte desta força de trabalho é altamente qualificada e estável (predominando
a produção de mais-valia relativa e uso do componente intelectual do trabalho), e outra
parte é pouco qualificada, precarizada, e de alta rotatividade (ela corresponde a essa
flutuação das vendas e da produção, a essa instabilidade do processo). Essa divisão e
hierarquização da força de trabalho é também a divisão e hierarquização da educação.

VIII
Assim, a educação acompanha este processo de hierarquização, onde as escolas
técnicas, particulares e universidades formam a mão de obra do setor qualificado, ficando
à escola pública de massas a função de formação do imenso setor precarizado (onde
impera o trabalho simples e a mais-valia absoluta). Daí justamente podemos entender,
dado o caráter fundamentalmente disciplinar e repressivo da mais-valia absoluta (extensão
de jornada, redução de salários, intensificação do trabalho), uma das razões pelas quais a

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escola que forma esse setor se torna cada vez mais repressiva e disciplinar, mais do que
qualificativa. E como os setores de trabalho que absorvem esses alunos trabalham em peso
com uma força de trabalho analfabeta funcional, não é de se espantar o crescimento do
analfabetismo funcional na escola pública, bem como a precarização do trabalho docente
da escola pública (mais uma comprovação da vinculação deste processo à lei do valor).

IX
A educação vai se hierarquizando, neste processo, estabelecendo-se assim o setor de
formação do trabalhador qualificado, o setor de formação dos precarizados, e mesmo um
setor (junto ao dos precarizados) de administração social sobre a superpopulação relativa.
Junto às parcelas marginalizadas, desempregadas e na informalidade, nas periferias, onde
muitos dos quais não terão sequer acesso ao mercado de trabalho, já não se aplica uma
educação “para o trabalho”, mas impera o discurso de uma “educação para a cidadania”, ou
seja, uma administração social repressiva sobre a própria exclusão social que o sistema
gera como parte da Lei Geral da Acumulação Capitalista.

X
Definimos, até agora, a escola em seus dois aspectos – o disciplinar (redução dos
trabalhos e das individualidades a trabalho abstrato e força de trabalho simples e
homogênea – pré-condição para o segundo processo), e o qualificativo (depois da
internalização do primeiro processo e sua racionalidade abstrata, entra o ensino de
trabalho complexo e qualificações). O processo de disciplinamento e de qualificação, em
todos os casos, é hetero-organizado (alienado) em relação aos indivíduos, que perdem sua
autonomia.
O aluno, na “educação bancária”, é uma força de trabalho aberta e reduzida à
condição passiva de “recebedor” de trabalho docente, que se incorpora na sua força de
trabalho, capacitando-a a produzir mais valor do que ela tem no processo de trabalho, uma
produção de trabalhadores por trabalhadores.
Entretanto, uma “leitura política” do processo permite perceber que o processo do
Capital não é unilateral – uma vez que é um processo de sujeição, toda ciência
administrativa se baseia nessa sujeição dos indivíduos à hetero-organização, que tem como
base a destruição da coletividade e a dissociação do coletivo dos indivíduos sujeitados ao
processo, fragmentando-os. Esse processo é um processo de conflito social.
O motor básico da economia não é a concorrência na esfera externa e fetichista do

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mercado. As empresas concorrem na esfera da produção, pela redução dos custos e
otimização da produção, ou seja, pela redução do valor da força de trabalho e pelo aumento
da extração de valor. Competem entre si, e vence na competição a empresa que utiliza
melhor seu “material humano”. Ou seja, a concorrência no mercado é um aspecto externo e
secundário do processo, e a base do processo que estabelece a lei do valor é o processo de
valorização como relação de classe, como sujeição social. É esta relação entre pessoas que é
oculta sob um invólucro de uma relação entre coisas, de aparência objetiva.
O aluno, dentro do processo, não é, portanto, uma força passiva, um mero
“recebedor” de trabalho docente, mas ele resiste a essa sujeição (embora o caráter dessa
resistência possa variar de formas inconscientes, individuais e passivas, niilistas, até as
formas mais conscientes, coletivas e ativas). Essa resistência precisa existir, pois é um
processo de conflito entre hetero-organização e auto-organização (o próprio Estado é a
dissolução da comunidade humana em indivíduos e sua hetero-organização por um
aparelho político, que administra pessoas na medida em que o fetichismo da forma-
mercadoria atua como esse elemento de dissolução). Ela é intrínseca ao processo.
Daí se pode entender a resistência dos estudantes ao processo educacional, que atua
primeiro de forma disciplinar e repressiva e depois de forma qualificadora. O estudante,
percebendo (na maioria das vezes inconscientemente) a desvalorização da força de
trabalho das gerações mais velhas, tende a se auto-sabotar enquanto mercadoria em
produção. E nos setores sociais de trabalhadores precarizados, ou mesmo desempregados e
marginalizados, nem mesmo a ideologia da inserção social no mercado de trabalho através
do estudo pode ser um remédio duradouro para legitimar esse processo e fazer os
indivíduos se conformarem passivamente a ele. O crescimento da indisciplina e resistência
dos estudantes é uma consequência lógica desse processo, que se agrava com a acumulação
capitalista, uma vez que esta agrava estas contradições.
De uma maneira geral, os docentes que lecionam para estes setores, na escola
pública, não compreendendo a esse processo, reagem com o reforço da disciplina e do
discurso repressor. A sociedade busca explicações moralistas para o processo, que sempre
desencadeiam saídas fascistizantes – as escolas públicas, especialmente nas periferias,
cada vez se assemelham mais a verdadeiros presídios (ou pequenos campos de
concentração) de estudantes, um verdadeiro aparato de controle social, onde se
multiplicam as grades, câmeras e a presença de policiais. Esse endurecimento disciplinar,
ao contrário do que pensa o senso comum, só escancara mais o caráter do processo e faz
com que a reação dos estudantes seja mais violenta e destrutiva. O extremo da repressão só

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pode conduzir à explosão social e até mesmo a formas de barbárie como reação: em que
medida a própria repressão não é a barbárie ?

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Pilhagem Social*
Mosaico de uma desintegração feito com pedras desordenadas

Franz Schandl

O que faz uma sociedade quando se choca com os limites de seu


desenvolvimento? Nossa tese é a seguinte: longe de atingir a satisfação plena, ela uma
vez mais colocará em ação todas as suas forças destrutivas. Toda decadência libera uma
energia destrutiva que realiza qualquer coisa menos converter-se automaticamente em
emancipação.
Arruinado (Marod), nesse caso, significa simplesmente que algo ainda pode ter
capacidade de existir, mas nenhuma capacidade de desenvolver-se, que algo tomado como
um todo não consegue mais pensar e agir, sem no entanto ter se esgotado. Onde há muita
coisa arruinada (marod), surgem em cena, nos mais diferentes ambientes, saqueadores
(Marodeure). Eles estão interessados em se apropriar, com o mínimo esforço, dos bens
ainda subsistentes (valores, votos, serviços etc.). Observa-se um alto grau de brutalidade
na realização de seus objetivos. A marca distintiva do saquear é que essa atividade, antes
de tudo, não quer destruir as forças destrutivas da sociedade, e nem se limita a adaptar-se
a essas forças, mas faz uso delas contrariando as regras. Essa atividade as aceita, as
organiza e as utiliza. Seu ideal pode ser tipificado como uma conduta absolutamente
construtiva em relação à destrutividade.
Uma aliança de saqueadores com o objetivo de pilhar chama-se bando (gangue,
quadrilha). O bando é a inversão prática da emancipação. Um bando pode corresponder
assim a um agrupamento pós-político, a um bando juvenil, ao crime organizado, mas
também a uma imprensa marrom futriqueira. Suas formas de manifestação são as mais
variadas; o que o caracteriza é a manifestação imediata de sua natureza de clique informal,
a qual o bando, ao contrário do Estado, não mais pretende esconder, mas exibir
abertamente. Reunir um bando é algo que se esgota na satisfação imediata de seu objetivo,
ainda que ele tenha de reunir-se repetidas vezes. O bando não é seletivo em relação aos

*
SCHANDL, Franz. “Gesellschaftliches marodieren” [1999], Krisis nº 24, 2001.
http://www.krisis.org/1999/gesellschaftliches-marodieren(Tradução: Rodrigo Campos Castro e
Cláudio R. Duarte.)
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meios dos quais lança mão. Sua meta não se diferencia da etapa. Ele se dá conta das
conseqüências, mas não das perspectivas. O bando não deseja poder, ele faz pilhagens.
Os saqueadores são os últimos e mais recentes aproveitadores da aceleração do
ímpeto capitalista, que não consegue mais, porém, funcionar convencionalmente. Auto-
impelidos, eles são o mais puro modelo da flexibilização de direitos e da
desregulamentação. Se o mais enxuto dos Estados é uma quadrilha de criminosos, como
defende Gerhard Scheit, o respectivo “criminoso” é então o indivíduo completamente
atomizado e flexibilizado que mesmo em sua impotência caminha rumo ao bando a fim de
escapar de seu abandono pelo Estado – seja este o Estado Nacional, o Estado de Direito, o
Estado de Bem-Estar Social.
Mas a quadrilha, embora expressão da desintegração nacional, não é per se
nacionalista, ainda que os motivos para integrar suas fileiras sejam pintados com essas
cores. Junto ao bando e junto ao Estado, trata-se de pertencer a uma forma seletiva de
aliança. Uma carga nacional-popular para o bando é algo possível, mas não necessário. A
intensidade com que o bando afirma-se em termos racistas ou nacionalistas não é
dedutível de sua forma, mas resulta de suas relações específicas com a totalidade. Em
certas situações, podem acontecer de fato alianças entre o Estado e o bando, e bandos
podem ser incorporados à comunidade como componente essencial dela. Protótipos disso
seriam figuras como Arkan e seu grupo paramilitar Tigres na Sérvia ou o Capitão Dragan
na Croácia. Estes bandos comportam-se então como pontas-de-lança da autodeterminação
nacional, sistematicamente até o horror. Primordialmente, o pano de fundo formado por
crimes comuns transforma seus líderes em herois nacionais.

Crime clássico

Certa vez Karl Marx descreveu as relações palpáveis entre a socialização


burguesa e a criminalidade assim:

"Um filósofo produz idéias, um poeta, versos, um pastor, sermões, um professor,


compêndios. Um criminoso produz crimes. Se olharmos mais de perto para a relação que
existe entre este último ramo da produção e a sociedade como um todo, então corrigiremos
muitos preconceitos. O criminoso não só produz crimes, mas também o direito criminal, e
com este o professor que dá os cursos sobre direito criminal, e além disso o indefectível
compêndio no qual este mesmo professor lança suas lições como "mercadoria" no mercado

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geral. Assim, isto leva a um aumento da riqueza nacional.
O criminoso produz além do mais toda a polícia e a justiça criminal, juízes, carrascos, jurados
etc.; e as diversas profissões que constituem as tantas categorias da divisão social do
trabalho, que desenvolvem as diversas faculdades do espírito humano, criam novas
necessidades e novos modos de satisfazê-las. Mesmo a tortura deu ocasião a invenções
mecânicas as mais engenhosas e empregou uma massa de honestos artesãos na produção
desses instrumentos.
O criminoso produz uma impressão, em parte moral, em parte trágica, e assim presta um
“serviço” ao despertar os sentimentos morais e estéticos do público. Ele produz não só
compêndios de direito criminal, não só códigos penais, mas também arte, literatura,
romances e até mesmo tragédias, como Die Schuld [A Culpa] de Müllner e Die Räuber [Os
Salteadores] de Schiller, mas até mesmo o Oedipus [de Sófocles] e Richard the Third [de
Shakespeare].
O criminoso quebra a monotonia e a segurança cotidiana da vida burguesa. Assim, preserva-
a da estagnação e provoca aquela tensão e mobilidade inquietantes, sem o que até mesmo o
aguilhão da concorrência ficaria embotado. Estimula assim as forças produtivas. Enquanto o
crime retira uma parte da população supérflua do mercado de trabalho e assim reduz a
concorrência entre os trabalhadores, até um certo ponto prevenindo que os salários caiam
abaixo do mínimo, absorve também uma outra parte dessa população na luta contra o crime.
O criminoso surge como uma daquelas “compensações” naturais que restabelece um nível
adequado e abre toda uma perspectiva de ocupações “úteis”.
Até em detalhes podem ser comprovados os efeitos do criminoso na produtividade. Teriam
as fechaduras atingido sua excelente qualidade atual se não houvesse ladrões? A fabricação
de notas de banco teria chegado à perfeição atual se não houvesse falsificadores? O
microscópio teria penetrado na esfera comercial ordinária sem a fraude no comércio? Não
deve a química prática à falsificação de mercadorias e ao empenho de descobri-la tanto
quanto ao zelo honesto de produzir? O crime, com os meios sempre novos de ataque à
propriedade, gera meios sempre novos de defesa, atuando assim, tal como as greves, de
modo bastante produtivo na invenção de máquinas.
E se deixarmos a esfera do crime privado: sem crimes nacionais, teria surgido o mercado
mundial? Sim, até mesmo as nações?”1

New criminal

Para Marx, o crime era um suplemento civilizatório, um propulsor da


modernização, não um empecilho. Atualmente, questiona-se se o crime não ingressou em

1Karl MARX, Theorien über den Mehrwert, MEW, Bd.26.1, pp.365-366. [Trad.: Karl Marx, Teorias da Mais-
Valia, Vol. I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980, pp. 382-3.]
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uma nova dimensão, se, ao invés de uma mera função, não se tornou uma superfunção, ao
invés de um complemento, não se tornou, com uma frequência cada vez maior, um
substituto das formas de funcionamento da sociedade.
Nossa tese agora é que a criminalidade adquire novas qualidades. Até agora, a
criminalidade sempre equilibrou um déficit estrutural, sem se tornar ela própria
estruturalmente determinante: ela é a anomalia que foge à norma, mas que ainda assim
pertence à norma. Em geral, a criminalidade manteve-se à margem da existência social,
mesmo quando afetou mais do que se quis acreditar. O aspecto que Marx ainda podia
chamar de um espinho da sociedade acabou agora por expandir-se, tornou-se mais
decisivo, atingiu novas dimensões. A criminalidade, assim, cresceu para além de sua
moldura social. O que leva à pergunta: para onde a criminalidade escapa quando, em
verdade, não consegue escapar para lugar nenhum?
Ainda não há análises embasadas a respeito desse desenvolvimento. Uma teoria
sócio-crítica da desintegração da sociedade burguesa existe apenas em seus primeiros
esboços. A maior parte das publicações, que não ultrapassa o puro empiricismo, denuncia
exclusivamente os perigos para a democracia, a qual, por sua vez, considera ilimitada (ver
p.ex. Jean Ziegler2), ou, adotando a postura contrária, celebra a necessidade da máfia para
a expansão da economia. Edward Luttwak, que trabalha no Centro para Estudos
Estratégicos e Internacionais em Nova York, escreve, de forma admiravelmente ingênua,
em um artigo intitulado reveladoramente "Hat die russische Mafia den Nobelpreis für
Ökonomie verdient?"3: "A ameaça política é de fato real; no entanto, do ponto de vista
econômico, esse truísmo revela-se um grande erro. Primeiramente, a tese ignora a
evolução natural do animal capitalista. As vacas gordas, que povoam o sistema econômico
desenvolvido – empresas estáveis e altamente capitalizadas que oferecem postos de
trabalho seguros, pagam toda a sua miríade de impostos, investem em novos negócios,
desenvolvem novas tecnologias e contribuem para entidades de assistência social e para
empreendimentos culturais –, essas vacas não nasceram assim. Elas eram lobos magros e
famintos quando inicialmente acumularam capital, e na verdade assim o fizeram por meio
da conquista de oportunidades rentáveis de mercado, não raramente eliminando os
concorrentes com instrumentos que as atuais comissões de combate aos monopólios não

2 Jean ZIEGLER, Die Barbaren kommen. Kapitalismus und organisiertes Verbrechen. [Os bárbaros estão
chegando: capitalismo e crime organizado]. München, 1998.
3 "A máfia russa mereceria ganhar o Nobel de economia?", Freibeuter 67, março de 1996, pp.47-54.
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mais tolerariam; e por meio do corte de custos dos modos os mais variados, incluindo
inúmeros ardis de sonegação fiscal, por meio dos quais se sobrevivia a todo preço ".4 "Caso
as forças policiais de então tivessem sido eficazes o suficiente para reunir em um local e
prender as hienas, então a recuperação econômica da Alemanha Ocidental, da Itália e do
Japão teria ocorrido de forma muito mais lenta, e muitas das empresas bem-sucedidas dos
anos 50 e 60 nunca haveriam tido condições de se estabelecerem. Tudo isso vale também
para a economia russa"5.
Luttwak vê a criminalidade unicamente do ponto de vista da teoria da
modernização, ou seja, como desenvolvimento recuperador retardatário;
consequentemente não como um aspecto da desintegração, e sim como um aspecto de
avanço. Opinião semelhante é defendida por Viktor Timtschenko, que escreveu um livro
interessante sobre a máfia russa e suas maquinações: "O que é bom objetivamente pode ser
ruim para o indivíduo. Objetivamente, é bom para o futuro da Rússia que os bens
concentrem-se rapidamente e em grande quantidade nas mãos de poucos"6. O que significa
dizer também: "A privatização, um processo marcadamente precipitado, representa
francamente uma mina de ouro para o crime organizado e significa uma renovada
criminalização do setor privado de negócios na Rússia, já em grande medida criminoso".7

Showdown social

O Estado não é um abrigo quentinho para os sem-teto, argumentam os que


elevaram o frio social ao status de programa. Os que não conseguem vestir-se com roupas
quentes vão passar frio. Quando as pessoas encasquetam como intransigente palavra de
ordem a frase: "Cada um forja a sua sorte", quais planos alguém conseguiria forjar que não
fossem propícios ao mercado? A psique burguesa, expurgada de todas as ilusões social-
estatistas ou socialistas, só consegue reconhecer sua lei na arbitrariedade. O que também
significa: cada um é sua melhor arma! Cada um é seu próprio juiz! Cada um pode ser chefe!
Pensamento positivo! A liberdade burguesa, em seu estágio final, não passa da lei do mais
forte a favorecer os mais fortes. Essa liberdade é o despotismo coercitivo do mercado.
A disposição para agir de forma "associal" aumenta com a decadência social,

4 Ibidem, p.48.
5 Ibidem, p.49.
6 Viktor TIMTSCHENKO, Russland nach Jelzin. Die Entwicklung einer kriminellen Supermacht. [A Rússia
pós-Iéltsin. O desenvolvimento de um superpoder criminoso.] Hamburg, 1990, p.80.
7 Ibidem, p. 88.
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que, de resto, não deve ser vista como posicionamento social das classes. Não se trata do
ordenamento das classes, mas da desclassificação, o que significa que as pessoas caem
para fora de suas estruturas, quando, p. ex., não conseguem trabalho, mas continuam a ser
mônadas de trabalho, quando não têm dinheiro, mas precisam ser sujeitos monetários.
Basta pensar nisso para que surjam sentimentos de medo e terror, que então, por sua vez,
se deseja superar. A desclassificação não diz respeito somente ao chamado proletariado,
ela é geral, mesmo que grupos específicos (por exemplo os servidores públicos do
Ocidente) possam estar, por enquanto, mais bem protegidos do que outros. O que medra
agora, nos tempos da globalização galopante, é o canibalismo da economia de mercado:
todos contra todos!
Acima de tudo, o showdown social [a luta social final] revela-se –
principalmente no Oriente, mas talvez em breve também no Ocidente – como
intensificador da energia criminosa. A disposição generalizada para a violência amplia-se
onde fazem água os mecanismos políticos, sociais e jurídico-estatais. Essa disposição para
a violência não é subversiva; ela contém um caráter usurpatório. Ela não quer mais
meramente ganhar dinheiro e valor somente por meio de negócios e de contratos, mas
também, e muitas vezes primariamente, por meio da pilhagem. A usurpação não carece de
nenhuma legitimação especial. Trata-se de um simples self-service.
A respeito da desintegração do poder estatal no ex-bloco do Leste, Ernst Lohoff,
em seu estudo novamente tornado extremamente atual sobre a Iugoslávia, escreve:
"Quando os funcionários públicos não podem mais contar com um salário considerável
tirado da arrecadação fiscal vêem-se obrigados a garantir sua renda por meio de outras
fontes. Deparam-se então com a escolha entre realizar obedientemente seu trabalho atual
como ocupação secundária, afastar-se desse serviço que não oferece mais nenhuma
remuneração ou lançar mão da posição ocupada para enriquecer-se de forma irregular.
Liberado da relação idealmente simbiótica com a sociedade, mas como antes dotado de
direitos soberanos e dos correspondentes instrumentos para fazê-los implementar, fica
fácil para parte do aparato estatal converter-se à pilhagem da sociedade. Tal rapinagem
assume, de um lado, a conhecida forma de corrupção individual ou frouxamente
organizada. Nos países do Terceiro Mundo, onde a instalação do aparato estatal deu-se na
maior parte dos casos de forma não muito mais que incipiente, esses fenômenos
desempenham um papel cada vez maior. Com a crise estrutural da valorização do valor e

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do aparato estado, esse papel generaliza-se mundialmente"8.

Fair is foul, and foul is fair

Uma intensificação do logro da economia de mercado encontra-se na


falsificação. Com razão, fala-se hoje sobre uma conjuntura regular dela. Nós distinguimos
neste ponto a falsificação de mercadorias, a falsificação de dinheiro e a falsificação de
opções de investimento (p. ex. no caso dos esquemas de pirâmide). A respeito da primeira
e da última modalidade, gostaríamos de acrescentar algo rapidamente.
O objetivo da falsificação de mercadorias não é outro que a simulação dupla. Se
a marca simula um produto melhor, então a falsificação simula o nome da marca. O
objetivo é o lucro rápido. Trata-se de faturar. A falsificação representa unicamente a
consequência lógica da troca e da propaganda. Ela realiza em uma camada ilegal o que a
troca e a propaganda realizam legalmente. Se o valor de uso do produto concreto não
precisa ser de todo pior do que o de seu modelo, então a falsificação da marca, na maior
parte dos casos, também pode equivaler à falsificação do valor de uso. A imitação
compensa então por sua desvantagem publicitária ao assumir insolentemente uma marca
falsa (p. ex. a vodca russa que, em diversas lojas da fronteira tcheca, é vendida aos turistas
como original e pelo preço de originais).
Especialmente pérfidos são os esquemas de pirâmide, o negócio especulativo
para o "homens de poucas posses". Timtschenko descreve desta maneira o negócio das
pirâmides na Rússia: "Os primeiros e poucos investidores surgidos na Rússia conseguiram
ver o pagamento dos juros sobre seu dinheiro, e isso com o capital levado pela segunda
onda de investidores. Os primeiros investidores então falaram sobre aquela maravilha com
seus colegas de trabalho, os quais por sua vez regressaram a seus lares e surpreenderam
suas famílias: 'No capitalismo o dinheiro está nas ruas. A gente só precisa ser corajoso e
estar pronto para correr riscos. [...] Amanhã eu também vou investir'. Na manhã seguinte,
na frente da casa de câmbio, havia filas de pessoas que trocaram o velho e bom dinheiro
russo por títulos de investimento. Decorreu um outro mês. A segunda onda de investidores
também recebeu seu dinheiro. Os enormes fundos pagavam e pagavam, juros e juros sobre

8 Ernst LOHOFF, Der Dritte Weg in den Bürgerkrieg. Jugoslawien und das Ende der nachholenden
Modernisierung. [A Terceira Via na Guerra Civil. A Iugoslávia e o fim da modernização retardatária.]
Unkel/Rhein, Bad Honnef, 1996, p. 163.
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juros, de 20, 30, 40 por cento ao mês! Deus do céu, os senhores conseguem imaginar um
retorno de 500 por cento ao ano? Os senhores conseguiriam se conter quando os senhores
recebessem com 1 dólar, ao final do ano, 5? A corrida às casas de câmbio foi tão grande que
as pessoas passavam a noite toda às portas delas a fim de entregar-lhes seu dinheiro"9. A
terceira onda (que não dirá das subsequentes) não viu as coisas de forma menos brilhante.
O esquema de pirâmide precisa sem dúvida de ignorantes adultos como clientes
e vítimas. De fato, quando o homem de pequenas posses sonha com um grande negócio já
não se pode garantir a racionalidade de suas decisões. "Nesse ínterim, ficou claro para todo
mundo que aquilo não poderia continuar mais. Todos tinham percebido havia tempos que,
no final, ocorreria um despertar doloroso. Todos sabiam que não seria possível obter
retornos assim tão vultosos, que o negócio funcionaria de alguma maneira escusa, não
totalmente legal, não totalmente segundo os princípios da economia mas segundo outros
princípios... Ninguém, porém, quer acreditar que a coisa diz-lhe respeito."10
Mas os esquemas de pirâmide tampouco são tão contrários à economia de
mercado como parece a Timtschenko: o que os diferencia substancialmente da especulação
inevitável além do fato de que ocorrem em pseudofirmas de má reputação e não em bolsas
respeitáveis? E não há também por estes lados tantos esquemas de pirâmide legais, por
exemplo na distribuição e venda de certos produtos com os quais, em um sistema do tipo
bola de neve, principalmente empresas norte-americanas atraem pessoas (ignorando todos
os padrões sociais legais) na qualidade de pequenos agentes de distribuição cujo sucesso
depende da quantidade de indivíduos ainda mais ignorantes que conseguirão arrebanhar
atrás de si ?
A perversão da empresa capitalista pode surgir nas pirâmides como algo óbvio
demais, mas estejamos certos: também essa perversão é uma versão! As pirâmides, de toda
forma, adaptam-se bastante bem à simulação generalizada de dinheiro. O fato de essa
simulação ter celebrado suas mais selvagens orgias exatamente na Albânia e na Rússia não
permite concluir que os albaneses e os russos são mais estúpidos do que outros povos, mas
que o sistema capitalista ali, na qualidade de forma não-funcional, precisou encenar suas
mais loucas loucuras. No caso concreto, isso permite retirar das ruas os simuladores de
dinheiro, suas vítimas. Essa arapuca é uma pilhagem por excelência. Na verdade, é a
superstição em relação às grandes forças do mercado que conduz tais pessoas diretamente
ao obscurantismo. Os que se deixam enredar por isso não estão, certamente, imunes a

9 Viktor TIMTSCHENKO, Russland nach Jelzin, op.cit., p. 90.


10 Ibidem, p. 91.
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mais nada.
O obscurantismo colocado em prática floresce em todos os cantos; em momento
nenhum, depois de seu fracasso, se estará imune a ele. Mesmo algumas das empresas
moscovitas de auxílio para a recuperação do dinheiro perdido acabaram por ser
organizadas pela própria máfia11. Sim, os prejudicados realizaram protestos até mesmo
contra Iéltsin, exigindo dele seu dinheiro. Movimentos obscurantistas semelhantes
surgiram igualmente na Áustria, por exemplo quando bancos duvidosos (?) quebraram e
grandes investidores passaram a temer por seu dinheiro. Então, esses "inimigos do Estado"
tarados pelo mercado dirigiram-se ao Estado e exigiram em alto e bom som a cobertura de
seus salários perdidos.

Decadência de valores como decadência do valor

Com a decadência do valor decaem também os negócios e os compromissos. É


exatamente isso o que hoje se descreve como falta de qualidade na tomada de
compromissos (e não somente na economia). A moral, no entanto, terá de simplesmente se
esmigalhar já que, em muitos casos, ela simplesmente não é mais factível. Um
empreendimento necessário que simplesmente asse pães, costure roupas e fabrique tijolos
– coisas para serem vendidas na sequência – não é capaz de estar no mercado por sua
mera existência e utilidade, mas deverá cumprir determinadas condições adicionais.
Somente o marketing apropriado garante a penetração no mercado. O (de toda forma
falso) idílio dos pequenos e pacíficos capitais passou definitivamente para a história e não
há mais como regressar a esses tempos. Deve-se inventar alguma coisa especial a fim de
obter-se sucesso. Marcas, nichos, propaganda tornam-se cada vez mais indispensáveis.
Todavia, algumas vezes, nem mesmo essas estratégias são suficientes para
garantir a sobrevivência de uma empresa. O que significa dizer, então, que aqueles esforços
devem ser muitas vezes complementados por uma energia criminosa (e isso inicia-se com a
evasão fiscal tolerada oficialmente) ou até mesmo substituídos por ela. No entanto, o que
se manifesta superficialmente como uma avidez excepcional é a expressão da
atormentação fundamental experimentada pelos sujeitos empresariais. A eficiência nos
negócios precisa sempre e de forma cada vez mais marcada tender à mentalidade do

11 Ibidem, p.103
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espoliador; há pouco espaço para os investidores honestos em um mundo de
ficcionalização constante. Empresas sérias são cada vez menos frequentes. Mesmo os
grandes lucros são obtidos cada vez mais no mercado financeiro e não no mercado de
produtos materiais.
A ameaça não é voltarmos para aquém do Estado de direito, mas cairmos além
dele, e isso porque uma superação sintética desse Estado, por um lado, não se encontra no
terreno das possibilidades e, por outro, porque sua manutenção depara-se com
dificuldades cada vez maiores.

Do monopólio da violência aos pólos de violência

Se o pagamento de propina ainda evoca um certo ar de arbítrio e liberalidade, o


pagamento de proteção está sempre vinculado a uma coerção factual. Se no caso das
propinas a situação ainda é dominada pelos compradores (de serviços, mercadorias,
opções de investimento), isso não é mais o que se verifica no caso do pagamento de
proteção. Aqui cabe ao vendedor, que pode ser também um chantagista como outro
qualquer, estipular os termos. Se o pagamento de propina pode ser pensado inicialmente
como uma melhora convencional das condições, como algo que não pode ser extorquido, o
pagamento de proteção é uma condição de funcionamento das transações. O pagamento de
propina significa, portanto, adição ou suplemento; o de proteção, por sua vez, substituição.
Porém, o pagamento de proteção significa igualmente a privatização dos
impostos e dos serviços públicos. No lugar do monopólio fiscal temos pólos fiscais, no
lugar do monopólio da violência, pólos de violência. Diferentemente do que ocorre com o
Estado, ao qual se pertence por meio da simples cidadania, pode-se, nesse pluralismo de
pólos, tomar decisões bastante "livres" sobre a afiliação. A oferta e a procura não serão
mais regidos somente pelo dinheiro, mas igualmente pela força bruta. "Na Rússia, entre os
empresários, é comum surgir a gramaticalmente meio duvidosa pergunta: 'Sob quem você
está?' ou 'Quem é o seu teto?'"12 Onde o teto do Estado apresenta goteiras, é preciso buscar
abrigo sob outros tetos.
Na qualidade de pólo de violência, o bando pode funcionar internamente
segundo regras que de fato lembram as de seu irmão mais velho, o monopólio da violência.

12 Ibidem, p.118.
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"O ladrão precisa ser honesto em relação aos outros ladrões e tem permissão para fazer
tudo o que for necessário a fim de garantir a autoridade da sociedade de ladrões. Nos
estabelecimentos prisionais, os ladrões pertencentes ao grupo precisam seguir a disciplina
na versão dos ladrões."13 O bando ou o clã não é somente o núcleo do Estado, mas também
seu arremate franzino e emaciado. Como no caso de outras atividades estatais, momentos
específicos de violência podem se manifestar. A violência do Estado, porém, não
desaparece por completo, concentrando-se simplesmente em recursos repressivos
específicos, cuja regulamentação real quase não pode constar dos interesses do setor
privado (proteção das fronteiras, serviço de imigração, combate a extremistas etc.). O que
resta do Estado torna-se, ele próprio, um pólo segmentado da violência em meio a vários
outros, um pólo que assume determinadas funções específicas.
De outro lado, não nos esqueçamos do seguinte: a prontidão para contribuir
com um monopólio da violência convencional, prontidão essa não apenas ditada
repressivamente como também imposta ideologicamente, pode ser comprada também em
qualquer esquina. Os serviços sociais são pagamentos para a proteção estatal não só para a
proteção dos cidadãos, mas também para a proteção contra os cidadãos.
O fator da criminalidade econômica, que vai da contumaz evasão fiscal ao
disseminado complô econômico, irá então aumentar se o desempenho das empresas cada
vez menos conseguir garantir o necessário acúmulo de capital de investimentos individuais
por meio da acumulação regida pela lei do valor. Com o declínio de sua capacidade de
valorização, essas empresas não conseguem sobreviver no mercado se não tiverem acesso a
fundos que não venham da acumulação imediata.
A forma civilizada foi o apelo do mercado ao Estado, sempre sob a condição de
que o dinheiro público ajudasse as forças de mercado a avançar. Os argumentos a esse
respeito (posição da empresa, postos de trabalho) podem ser encontrados, de fato, com
mais frequência do que os fundos necessários para tal. A forma barbarizada é o salvamento
dos negócios sem condições de sobrevivência por meio do afastamento em relação às
práticas empresariais sérias, o que significa: acordos ilegais, apropriação indébita e, até
mesmo, crimes elementares. A lei da força dessa barbarização secundária poderia ser esta
(e o mesmo vale também para o direito, a política, a democracia, a liberdade etc.): se o
valor perde poder (Gewalt), a violência (Gewalt) ganha valor.

[Dica de leitura: Viktor Timtschenko, Rußland nach Jelzin. Die Entwicklung einer

13 Ibidem, p.72.
www.sinaldemenos.org v.1, nº1, 2009 154
kriminellen Supermacht. Hamburg, Rasch und Röhring, 1998. Útil como primeiro contato
com o assunto, ainda que, de um ponto de vista analítico, deixe a desejar e seja, em sua
linha crítica, obviamente questionável.]

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Textos para nada #4*
Samuel Beckett

Onde iria eu, se pudesse ir, o que seria, se pudesse ser, que diria, se tivesse uma
voz, quem fala assim, dizendo-se eu? Responda simplesmente, alguém responda
simplesmente. É o mesmo desconhecido de sempre, o único para quem eu existo, na cova
de minha inexistência, da sua, da nossa, eis uma resposta simples. Não é pensando que ele
me encontrará, mas que pode ele fazer, vivo e perplexo, sim, vivo, diga o que disser.
Esquecer-me, ignorar-me, sim, seria o mais sensato, ninguém melhor do que ele o sabe.
Por que esta súbita amabilidade após tanto abandono, é fácil de compreender, é o que ele
se diz, mas não compreende. Não estou na cabeça dele, em lugar algum de seu velho corpo,
e no entanto estou ali, para ele estou ali, com ele, donde toda a confusão. Isso deveria lhe
bastar, ter-me encontrado ausente, mas não, ele me quer ali, com uma forma e um mundo,
como ele, apesar dele, eu que sou tudo, como ele que não é nada. E quando ele me sente
sem existência é da sua que ele me quer privado, e vice-versa, louco, louco, ele está louco.
Na verdade, ele me procura para me matar, para que esteja morto como ele, morto como
os vivos. Tudo isso ele sabe, mas não adianta nada, sabê-lo, eu não o sei, não sei nada. Ele
se proíbe de raciocinar, mas não faz senão raciocinar, falso, como se isso pudesse ajudar.
Ele crê balbuciar, crê balbuciando apreender meu silêncio, calar-se de meu silêncio,
gostaria que fosse eu quem o fizesse balbuciar, é claro que ele balbucia. Ele conta sua
história a cada cinco minutos, dizendo não ser sua, admitam que é malicioso. Ele gostaria
que fosse eu que o impedisse de ter uma história, claro que ele não tem história, isso é
razão de tentar impingir-me uma? Eis como ele raciocina, à margem, tudo bem, mas à
margem de quê, é isso que é preciso ver. Ele me faz falar dizendo que não sou eu, admitam
que é excessivo, ele me faz dizer que não sou eu, eu que não digo nada. Tudo isso é
realmente grosseiro. Se ao menos me concedesse a terceira pessoa, como a suas outras
quimeras, mas não, ele não quer senão a mim, para seu eu. Quando me tinha, quando me
era, ele se apressou em me abandonar, eu não existia, ele não gostava daquilo, aquilo não
era vida, claro que eu não existia, ele tampouco, claro que não era vida, agora ele a tem sua
vida, que a perca, se quer paz, ainda assim... Sua vida, falemos dela, ele não gosta disso, ele

* BECKETT, Samuel. Nouvelles et Textes pour rien. Paris: Minuit, 1958, pp.153-158. (Tradução: Raphael F.
Alvarenga e Cláudio R. Duarte.)
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compreendeu, de modo que não é a dele, não é ele, vocês pensam, fazer isso com ele, é bom
para Molloy, para Malone, eis os mortais, os felizes mortais, mas ele, vocês nem imaginam,
passar por aquilo, ele que nunca se mexeu, ele que é eu, considerando bem as coisas, e que
coisas, e como consideradas, só tinha que não ter ido. É assim que ele fala, esta noite, que
me faz falar, que ele se fala, que eu falo, só tem eu, com minhas quimeras, esta noite, aqui,
na terra, e uma voz que não emite som, porque não vai na direção de ninguém, e uma
cabeça repleta de guerras cansadas e de mortos logo de pé, e um corpo, já o ia esquecendo.
Esta noite, digo esta noite, é talvez de manhã. E todas essas coisas, que coisas, à minha
volta, não mais as quero negar, não vale mais a pena. Se é a natureza é talvez árvores e
pássaros, eles vão juntos, água e ar, para que tudo possa continuar, não preciso saber os
detalhes. Estou talvez sentado sob uma palmeira. Ou é um quarto, mobiliado, tudo o que é
preciso para tornar a vida cômoda, mal iluminado, por causa do muro na frente da janela.
O que faço, falo, faço falar minhas quimeras, só pode ser eu. Tenho que me calar também,
e escutar, e ouvir então os ruídos do lugar, os ruídos do mundo, vejam que esforço faço,
para ser razoável. Eis minha vida, por que não, é uma, se quiserem, se insistem
absolutamente, não digo não, esta noite. Tem de haver uma, ao que parece, a partir do
momento em que há fala, não é preciso história, uma história não é obrigatório, somente
uma vida, eis o engano que tive, um dos enganos, ter-me desejado uma história, enquanto
que a vida por si só basta. Estou progredindo, já era tempo, acabarei por conseguir calar
minha boca suja, salvo previsto. Mas aquele que vai e vem, que dá um jeito para mudar de
lugar, sozinho, embora nada lhe aconteça, evidentemente, aquele ali. De minha parte fico
aqui, sentado, se estou sentado, frequentemente me sinto sentado, às vezes de pé, é um ou
outro, ou deitado, eis outra possibilidade, frequentemente me sinto deitado, é um dos três,
ou ajoelhado. O que conta é estar no mundo, pouco importa a postura, desde que se esteja
na terra. Respirar, é tudo o que se pede, perambular não é uma obrigação, receber
tampouco, pode-se até crer-se morto à condição de pô-lo em evidência, que regime mais
tolerante pode ser imaginado, não sei, não imagino. Inútil nestas condições me dizer
noutro lugar, um outro, tal qual sou tenho tudo o que necessito à mão, para fazer o que,
não sei, o que tenho que fazer, eis-me novamente enfim só, que alívio deve ser isso. Sim,
existem momentos como este momento, como esta noite, onde quase pareço restituído ao
factível. Depois passa, tudo passa, estou de novo longe, tenho ainda uma longínqua
história, espero por mim ao longe para que minha história comece, para que ela se acabe, e
de novo esta voz não pode ser a minha. É onde eu iria, se pudesse ir, aquele que seria, se
pudesse ser.

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RESPIRAÇÃO*
Samuel Beckett

________
CORTINA
1. Luz fraca sobre palco coberto de lixo de vários tipos misturados. Mantê-la
aproximadamente cinco segundos.
2. Choro fraco curto e, imediatamente, inspiração junto a um lento aumento de luz
alcançando o ponto máximo de ambos em aproximadamente dez segundos. Silêncio -
mantê-lo por aproximadamente cinco segundos.
3. Expiração junto a uma lenta diminuição de luz, ambos alcançando o ponto
mínimo juntos (luz como em 1), em aproximadamente dez segundos e, imediatamente,
choro como anteriormente. Silêncio – mantê-lo por aproximadamente cinco segundos.
CORTINA
________

LIXO
Nada colocado verticalmente, tudo espalhado jazendo no chão.
CHORO
Instante do vagido de um recém-nascido gravado. Importante que os dois vagidos sejam
idênticos; som ligado e desligado em perfeita sincronia com a luz e a respiração.
RESPIRAÇÃO
Gravação amplificada.
GRAU MÁXIMO DE LUZ
Não totalmente iluminado. Se 0 = escuridão e 10 = total luminosidade, a luz deve mudar
de 3 a 6 e vice-versa.)

(Peça escrita em inglês algum tempo antes que fosse enviada a Nova Iorque, em 1969, em resposta ao pedido
de Kenneth Tynan para uma contribuição a sua revista Oh! Calcuttá! O texto original foi publicado
primeiramente em Gambit, vol.4, nº16 (1970). Primeira produção no Eden Theater, Nova Iorque, em 16 de
junho de 1969. Primeira atuação na Grã-Bretanha no Close Theatre Club, Glasgow, em outubro de 1969.)

*
BECKETT, Samuel. “Breathe” in:__. The complete dramatic works. London: Faber and Faber, 1990,
pp.369-371. (Tradução: Cláudio R. Duarte.)
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Beckett, “cada vez menos sim”
Cláudio R. Duarte e Raphael F. Alvarenga

A obra de Samuel Beckett foi inúmeras vezes comparada à de Franz Kafka. No


entanto, o próprio Beckett, numa famosa entrevista de 1956, reparava as diferenças. Em
primeiro lugar, os anti-herois kafkaianos seriam coerentes em seus objetivos, razão pela
qual, embora em geral se encontrem perdidos, não são em geral espiritualmente precários,
o que contrasta com as personagens beckettianas – um "povo" caindo aos pedaços e quase
sem nada, encarnando cruamente, em forma não imediatamente realista, o que a
sociedade da mercadoria efetivamente faz dos indivíduos. Semi-sujeitos inaptos a uma
qualquer experiência enriquecedora do mundo, vale dizer, a uma experiência digna de ser
contada, suas ações não são norteadas por nenhuma finalidade consistente e de longa
dura. Donde a impressão geral de ausência de sentido, que levou alguns críticos a verem
em sua obra uma estilização do Absurdo existencialista, quase degradado em nonsense –
juízo que se mostraria um tanto precipitado: o estilo de Beckett é muito mais sensível que
metafísico; menos voltado à especulação abstrata sobre alguma "condição humana" ou
essência do “ser-aí", que sobre o nível imediato do corpo, suas urgências, sua sobrevivência
difícil em meio às injunções sociais, da família ao trabalho, das instituições à própria
linguagem discursiva –, fazendo cair em irrisão os temas imponentes do existencialismo.
Por isso, nenhuma estética normativa, seja "clássica", "realista" ou "existencialista", pode
dar conta da validade do experimentalismo formal beckettiano. Como salienta Adorno em
ensaio fundamental sobre o autor de Fin de partie, sua perspectiva histórica é a da
catástrofe social do pós-guerra, a incerteza do que se poderia chamar "vida" depois do fim
do mundo. Se depois de Auschwitz e Hiroshima a falta de sentido tornou-se
esmagadoramente real, o sentido de sua obra será determinar, com máxima precisão, o
que resta e ainda se suporta nesse limiar entre vida e morte, saúde e doença, consciência e
inconsciência, sanidade e loucura. É isso que abala e transtorna a forma em Beckett.
Assim, em Kafka, ainda segundo Beckett, nota-se uma forma de escrita serena ameaçando
implodir o tempo todo, mas que flui naturalmente aparando os choques, como um “rolo
compressor”. Em Beckett, ao contrário, a desintegração é desde o início completa, e o
terror da existência histórica se instala radicalmente agora na própria forma.

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No texto que traduzimos, o quarto dos treze que compõem os Textes pour rien,
datados de 1950, o autor restringe deliberadamente vocabulário e sintaxe. A opção
beckettiana pelo francês já é por si mesma a escolha pelo empobrecimento, como meio de
dar forma exata à vivência de penúria, ignorância e impotência dos sujeitos desse tempo de
guerra e estranhamento social. Os mecanismos tradicionais da narrativa, que foram
pulverizados ao longo de sua trilogia de romances (Molloy, Malone meurt,
L´Innommable), chegam, aqui, a um limite: ausência de título, personagens anônimos e
móveis, enredo incerto, descontinuidade e embaralhamento das partes, linguagem
desmoronada, em que soçobra uma fala compulsiva, penetrada pelo silêncio, em trabalho
de tentar denominar um inominável, sem saída à vista. Uma escrita áspera, elíptica,
invariavelmente torta, e com um vocabulário escasso. Não obstante, condensa em poucas
linhas um quadro de "luta de morte" entre um senhor e um escravo, embora esta, ao
contrário daquela de Hegel na Fenomenologia, não seja travada mais em vista de
reconhecimento, mas antes pela pura supressão do outro, por um lado; por outro lado,
uma luta por uma espécie de "desreconhecimento" – separação de um outro, do qual
nunca se consegue desvencilhar. Mais que a imagem do mestre e do escravo, talvez trate-se
de um sujeito em unidade cindida, com uma face diurna e uma outra inconsciente noturna.
Ou ainda um eu e seu duplo, uma figura bifronte, viva e morta, ambas mortas-vivas,
presentes-ausentes, uma na guerra e na errância, outra em "vida" estacionária em terra,
mas difusa, sem lastro de atividade autônoma, afastada da faina, mas em liberdade que
não existe senão em palavras tênues e opacas, pois sempre alienada na vida e no discurso
de seu outro. A história contada é insuportável ao narrador, que a recusa e não se
reconhece na própria voz, que é igualmente a voz do outro que o aliena uma vez mais, e por
isso se reconhece apenas na solidão e no silêncio, na ausência de práxis, que por isso
mesmo é o retorno da desgraça do sempre-igual. A poesia de Beckett, sem desviar, olha-a
nos olhos.

“Respiração” (Breathe), na sequência, é de 1969. Nesta micro-peça, que tem


duração de apenas 35 segundos, os atores são literalmente um monte de lixo, totalmente
esparramado no chão, de modo horizontal. Predomínio absoluto do espaço inorgânico e
penumbroso sobre o tempo e a subjetividade – possível representação do ciclo moderno da
vida e da morte, num tempo e num espaço propositalmente abreviados.

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No rastro de Sérgio Ferro
(FERRO, Sérgio. Arquitetura e trabalho livre. São Paulo: Cosac & Naify,
2006.)

Felipe Drago

Sérgio Ferro, como ele próprio se definiu, é um suicida do métier, ou, como
costumamos chamá-lo, um carrasco do fetichismo da Arquitetura. Crítico da profissão
fetichista do Arquiteto e Urbanista e seu instrumento, o desenho separado aliado ao
canteiro de obras heterônomo, tentou expor os limites entre a profissão existente e uma
comunidade de produtores livres, fundamentando assim sua obra no que ele denomina
“trabalho livre”. Formado na época da construção de Brasília, arquiteto promissor, pintor,
discípulo de Vilanova Artigas e Flávio Motta, é da geração marxista de Roberto Schwarz,
Ruy Fausto, Emir Sader, entre outros. Foi, por décadas, acusado de traição pelos próprios
arquitetos por negar o desenho arquitetônico em prol do “trabalho livre” no canteiro. Esta
traição realmente aconteceu, como veremos.
Nenhum arquiteto antes de Sérgio Ferro havia levado a cabo a tarefa já há muito
realizada em outras áreas de conhecimento, inclusive no próprio urbanismo: fazer a
arquitetura entender a si mesma como esfera separada, comandada pela dinâmica de
produção de mercadorias. Em suas palavras em entrevista à revista Crítica Marxista, em
2002: “É bastante simples: como tudo sob o Capital. Arquitetura é mercadoria que o
serve – e isto fornece o essencial do seu contorno entre nós. Se é mercadoria, procura,
sobretudo, a mais-valia, que alimenta o lucro. Para que haja mais-valia há,
forçosamente, exploração do trabalho, sua mutilação e submissão às autoridades
representantes do capital.” E completa: “Pouco importa a ideologia do arquiteto: nas
condições normais de produção, ele serve ao capital (ou aos estados ditos socialistas –
que o Robert Kurz já demonstrou serem variantes do capital).”
Sérgio foi talvez o primeiro arquiteto a vincular a arquitetura a tal patamar de crítica
e por isso permaneceu isolado por muito tempo no campo da arquitetura. Ele começa por
um deslocamento progressivo de sua perspectiva crítica, mudando a centralidade de seu
objeto da moradia, preocupação original de seus primeiros escritos, para a economia
política da construção. Acaba por se mover no sentido de fazer explodir as diversas “forças

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atmosféricas” ocultas na constituição da arquitetura como trabalho capitalista. “O que hoje
concentra todas as desgraças do mundo operário (canteiro heterônomo da construção -
os mais baixos salários, a mais longa jornada de trabalho, as mais altas taxas de
acidentes e de doenças de trabalho, etc.) pode tornar-se já o lugar de uma das mais belas
expressões do espírito, da comunidade livre”. (Sobre o canteiro e o desenho). Vê na
arquitetura a possibilidade de realizar o “trabalho livre” – trabalho aqui como atividade
qualitativa e autoderminada, que, segundo ele: “é quando (se) realiza o melhor possível
em cada situação, o melhor do ofício, o melhor objetivamente inscrito no material, o
melhor projeto social. A liberdade, ensina Hegel, não se opõe à necessidade: ambas
consistem em ter todas as razões para serem o que são em si mesmas. A verdadeira
autonomia é intrinsecamente racional”. Vejamos como o autor descreve, por exemplo, a
“poética da economia” na residência Bernardo Issler (Granja Viana, Cotia, 1961), que
parece tratar do “trabalho livre” como realização desta crítica:

“Sua racionalização, despreocupada com sutilezas formais e requintes de


acabamento, associada a uma interpretação correta de nossas necessidades, não só
favorece o surgimento de uma arquitetura sóbria e rude, mas também estimula a
atividade criadora viva e contemporânea, que substitui, muitas vezes com base no
improviso, o rebuscado desenho de prancheta.”

Sérgio inverte o ângulo de visão: da frieza da macroescala às micrologias sensíveis


do fenômeno, descendo, então, das nuvens ideológicas do projeto ao chão material da
produção, no limite, ao corpo e ao gesto do trabalhador. Quando fala dos trabalhadores da
construção civil capitalista, o autor aproxima-se de Adorno: “a tecnificação torna precisos
e rudes os gestos e com isso os homens expulsando das maneiras toda hesitação, toda
ponderação, toda civilidade.” (Minima moralia, § 19). Segundo Sérgio, “mestres, planos,
memoriais, cronogramas, a hierarquia estrangeira, tais como os conhecemos, formam o
contrapeso de uma ação dependente porque feita acéfala.” E completa: “a eficácia
engorda com a separação que domina, como categoria, todas as perspectivas: temporais,
espaciais, qualitativas, etc. Separar para reinar faz da separação a essência do reino.” (O
canteiro e o desenho, 1976). O autor mostra que, para além da forma geral, a arquitetura
tem sua forma particular de manifestar o fetichismo da mercadoria. Walter Benjamin,
comentando Breton (O Surrealismo: o último instantâneo da inteligência européia), dizia
que “ninguém havia percebido de que modo a miséria, não somente a social como a
arquitetônica, a miséria dos interiores, as coisas escravizadas e escravizantes,
transformavam-se em niilismo revolucionário.” Sérgio parece ter levado a outro nível tal
percepção quando fala do adorno como trabalho autodeterminado em arquitetura (como o
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trabalho na construção de uma catedral gótica, por exemplo), mas preso nas garras do
capital: o adorno é um crime, mas um crime contra a consciência burguesa, pois nele está
impresso o “trabalho” como obra, o gesto do trabalhador, traços que não podem ser
apagados com qualquer tipo de revestimento, o que vem a mostrar por contraste que, na
arquitetura sob o sistema capitalista, por trás dos objetos, existe uma força alienada do
poder de decidir sobre si própria. Para tratar deste tema, Sérgio busca o conceito
benjaminiano de trace (rastro), em três planos, para a leitura da trama de significações: o
primeiro plano “indica o modo de construção ‘real’, (...), (que) denota para nós (...) a
eficácia da prática e as competências reunidas no saber fazer operário. O segundo plano
é negativo: seu apagamento pelo revestimento”. O terceiro é o saber que comanda e torna
o canteiro de obras heterônomo.
Quando os homens trabalham uns para os outros, seu trabalho adquire caráter
social. Numa época em que a coisificação define o ser humano e sua atividade, revelar que
as mercadorias possuem caráter social antagônico, isto é, mostrar que as coisas produzidas
pelos homens encobrem relações sociais de dominação é subverter a ordem. “Há que
apagar o trabalho revelador e, para isto, nada melhor que o trabalho inútil, o
revestimento.” Ladrilhos, azulejos, pastilhas, reboco, massa corrida, gesso, etc., na maioria
das vezes não são necessários, porém “negam a produção assentada na separação - que
assim pode ‘tranquilamente’ continuar a dominar.” Em última análise, seria para proteger
a construção civil atual que estes cuidados são tomados: “se a aparência nega o ser é para
preservá-lo.” Assim se mantém o trabalhador suficientemente afastado do que fez
apagando seu rastro. O fetichismo na arquitetura trata de apagar as contradições das
relações de produção inscritas na espacialidade imóvel das formas plásticas.
Nesta linha, Sérgio expõe o trabalho de arquitetura como “manufatura serializada”,
como “técnica residente no passado neolítico” sob o falso signo da industrialização. Isto é,
“a produção não se destacou, ainda, de seus fatores humanos, não adquiriu a
independência da linha de montagem automática e mecânica”(...).“Se na manufatura o
isolamento dos processos particulares é um princípio dado pela própria divisão do
trabalho, na fábrica desenvolvida domina, pelo contrário, a continuidade dos processos
particulares”. A construção, porém, é complexa: combina “manufatura serial” e
“manufatura heterogênea” (sucessão dos trabalhadores especializados - as equipes - no
canteiro ou montagem de peças prontas como caixilharia e armários, p. ex.) com
“indústria” (ferro, cimento, louças de banheiro, etc.). Na produção do conjunto predomina
a “manufatura serial”, por isso pode ser assim caracterizada, pois o que caracteriza a forma

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de produção da construção civil é sua forma dominante (e não o componente mais
avançado técnica e historicamente.) Esse raciocínio conduz o autor à questão da produção
e distribuição da mais-valia, rebatendo na reprodução social como um todo:

“A automação só funciona sob o capital transvazando valor produzido em


outros setores para o automatizado. (...). Se a automação se generalizar por toda
a produção, adeus capital. Se alguns ramos da produção (geralmente
oligopolizados) se automatizam, outros, como nossa construção civil, são
cuidadosamente mantidos em ‘atraso’. Sobretudo, os que têm capital variável
(mão-de-obra) importante. São nossos candangos a desabar dos andaimes que
sustentam as montadoras abarrotadas de robots. (...). E não há dúvida possível:
nosso desenho de arquitetura (que não é o único possível) continua a ser
instrumento da extração da mais-valia nos canteiros – mais-valia que emigra,
sob várias formas, para alimentar os lucros dos setores ‘avançados’.”
(Sérgio Ferro em entrevista à Rev. Crítica Marxista, 2002.)

A quantidade de empregos que gera, movimentando aproximadamente 70% da


formação bruta de capital fixo da economia brasileira, não pode ser remediada por
qualquer outro setor. Tragamos alguns dados atualizados: em 1998, a construção
empregou 3,6 milhões de trabalhadores e gerou 13,5 milhões de empregos diretos,
indiretos e induzidos no Brasil. Na própria construção trabalham aproximadamente um
milhão e cem mil pessoas com uma taxa de desemprego de 10% em média, somando-se os
trabalhadores de Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre, entre 2000 e
2002 (dados Pesquisa Mensal de Emprego PME - IBGE). Se somarmos a isto a
autoconstrução nas favelas (irregulares, ilegais, em áreas de risco) e as construções rurais,
veríamos números assustadores. Nesse sentido, o setor de construção seria estratégico
para manter a sociedade do capital. Podemos, então, nos perguntar: este setor é mantido
“cuidadosamente em atraso” ou simplesmente é uma atividade que necessita de mais
trabalhadores para ser realizada? Podemos imaginar que um pouco das duas coisas. Se o
setor não é mantido uma manufatura serial conscientemente, existem fortes motivos para
crer que esta determinação brota naturalmente, no jogo de forças e interesses de
reprodução social do Estado e do grande capital, no medo do caos social, fazendo tal setor
da economia manter-se “tranquilamente” girando sobre si mesmo sem grandes mudanças.
A máquina desta indústria, no caso, é o próprio conjunto de trabalhadores: “é o
trabalhador coletivo - conjunto de trabalhadores individuais coordenados - que constitui
o mecanismo específico da manufatura”. E a mediação mecanizada – pequenas máquinas
hoje utilizadas na construção – relaxa os laços fomentados pela prática cotidiana, que são
características da manufatura. Não só as pequenas máquinas, como as relações mecânicas
subjetivas, pressionam os operários para que a taxa de mais-valia sempre seja mais alta
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através do work simplification da sucessão de equipes. Se os laços sociais são estreitados
pela natureza da manufatura, isto é motivo de alarme para o sistema, este fato é constatado
com aversão por não ser “eficiente”. E isto ocorre em espiral ascendente: “por isso o medo,
associado aos requisitos de dominação, provoca reação - constituída fundamentalmente
por uma série de medidas desconexas, focalizadas no aprofundamento da divisão”. E a
melhor das boas vontades dos técnicos não pode resolver esta situação. Os arquitetos
precisam descer do alto de sua euforia para um triste balanço. Sérgio acaba por
compreender que, mesmo num desenho sóbrio e fácil de ser ensinado e produzido, talvez
até nas obras que caracterizam a “poética da economia”, a somatória das solicitações
adversas (a obra em si e a necessidade ou vontade projetual) produz construções híbridas e
desconexas, sinais de contradição. “O outro já germina no seu contrário e pode ser
prefigurado sob forma de sua negação determinada”. O que existe reificado já guarda em
si a sua forma oposta. Nisto a obra toma caráter de denúncia, mesmo sem estar preparada
para tal; porém o arquiteto acaba por agir estritamente na faixa em que o sistema lhe
atribui: o desenho arquitetônico e o ato de planejar o “espicaçamento” do trabalho no
canteiro em nome da “eficiência”. O conteúdo da arquitetura não resiste a qualquer
variação de definição, principalmente quando comprometida (conscientemente ou não)
com uma realidade dúbia. “Dentro da arquitetura, este é o limite da atitude crítica: a
radicalização da contradição até o absurdo. Esta situação, obviamente, é insuperável por
caminhos arquitetônicos.” Com o que é necessário reinventar o papel do arquiteto neste
processo.
Este modo teórico de tratar a arquitetura aponta a falta de autonomia do operário
em termos de trabalho, trata o desenho, até certo ponto, como atividade não-tecnocrática e
tenta revelar o rastro da luta de classes no canteiro de obras como forma de tomada de
consciência. Porém, necessariamente, não retira o trabalho (tanto de desenho quanto de
construção) do interior da categoria de trabalho capitalista de duplo caráter
(abstrato/concreto). No interior do capitalismo, todo o trabalho qualitativo ou concreto,
como produção de valor de uso, tem que assumir a forma da mercadoria, tendendo a
ganhar as marcas do trabalho abstrato capitalista, visando ao lucro. O que Sérgio busca
trazer à baila é justamente como isso não se dá pacificamente, mas é um processo de
imposição e de luta e, a partir de seus escritos, pode-se entender perfeitamente que a
desalienação do canteiro e do desenho só poderia acontecer num contexto de
transformação social prática. É neste sentido que o autor afirma: “a critica radical ficará
sempre aquém de si mesma se não for acompanhada de uma prática transformadora”.

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Como podemos constatar, ao se comprometer com a prática, a crítica sempre recua para se
tornar materialmente viável no interior do modo de produção capitalista, sempre tentando
questioná-lo através de “aproximações sucessivas” num ziguezague de crítica e prática,
aproveitando as fendas deste modo de produzir. Isto parece explicar muitas supostas
falhas do autor. Por certo, muitas vezes nos pegamos olhando, na obra de Sérgio Ferro, um
desenho das relações de produção do objeto (da construção) descrito em minúcias,
enquanto que todo entorno físico resultante destas relações (o lote, a quadra, a cidade, o
meio rural do qual depende) foi “esquecido” de ser delineado. Mas, realmente, o mérito do
autor é ter descrito e testado com grande fôlego as relações de produção do objeto
arquitetônico sob a produção capitalista, como ainda não havia sido feito. Realmente
sente-se falta de questões como o acesso à terra, o direito mais amplo à cidade, que já
estaria satisfatoriamente discutido para ser lançado em alguns momentos de sua teoria:
uma questão de se ter onde assentar este “canteiro livre”.
Por fim, se o reificado contém em si o seu oposto, podemos negar racionalmente e
na prática sua reificação através da potencialização da forma oposta. Eis a “negação
determinada”. E isto significa a invenção de novas formas de organização social e de seu
espaço, pois é nelas que o autor vislumbra o melhor campo estético e técnico para a
experimentação da autonomia construtiva. Em outras palavras, a arquitetura é o campo no
qual ainda pode dar-se um pacto entre técnicos e trabalhadores na liberação do potencial
revolucionário do fazer, do “trabalho livre”. Isto acontece porque, simplesmente, tal
produção depende muito das pessoas que são exploradas pelo sistema de produção que
ajudam a manter. Estamos falando de operários, técnicos, arquitetos, engenheiros, etc. Se
existe maneira de criarmos uma sociedade livre da mercadoria, ela se apresenta como
potencial neste próprio meio. O canteiro e o trabalho “livres” já introduziriam, enquanto
forças produtivas, lampejos de consciência crítica ou mesmo fendas práticas nas relações
de produção capitalistas. Porém, nada indica que isto possa ou deva ocorrer num futuro
próximo, tampouco que qualquer transformação que venha a ocorrer nos leve para uma
situação pós-capitalista. O autor, quando interrogado sobre esta questão responde que a
deixa como tarefa para as próximas gerações. As portas foram abertas, iluminou-se
parcialmente a sala antes totalmente escura. Se Sérgio vislumbra saídas? Em entrevista à
revista Projeto, declarou ainda acreditar na existência de uma saída: “transformar essa
joça”. Talvez por atitudes como esta tenha sido “acusado” em 1968 por um estudante
situacionista em uma palestra: O senhor é um traidor! O Senhor nos dá esperanças!

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Organizado por Pedro Fiori Arantes, o experimentação da construção (1994)
livro divide-se em: Questões de método (1996)
O material em Le Corbusier (1997)
APRESENTAÇÃO
Pedro Fiori Arantes 6 RECAPITULAÇÕES BRASILEIRAS
Reflexões sobre o brutalismo caboclo
1 PROPOSTA (1986)
Proposta inicial para um debate (1963) FAU, travessa da Maria Antônia (1988)
Arquitetura experimental (1965) Flávio arquiteto (1995)
Sobre a “Arquitetura Nova” (1997)
2 CORTE Depoimento a um pesquisador (2000)
Arquitetura nova (1967) O fetichismo na arquitetura (2002)
Brasília, Lúcio Costa e Oscar Niemeyer
3 ESBOÇO (2003)
A produção da casa no Brasil (1969)
7 COMENTÁRIOS FINAIS
4 TESE Sobre “O canteiro e o desenho” (2003)
O canteiro e o desenho O desenho hoje e seu contradesenho
(2005)
5 GRENOBLE
Reflexões para uma política na POSFÁCIO
Arquitetura (1972) Roberto Schwarz
Desenho e canteiro na concepção do
convento de La Tourette (1988)
Programa para pólo de ensino, pesquisa e

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Žižek e a paixão do impossível
ou, Elvis com Lacan
(Žižek! - “The Elvis of cultural theory!”, Zeitgeist video, 2005, direção: Astra
Taylor.)

Cláudio R. Duarte

Eis um bom documentário sobre a ascensão intelectual de Slavoj Žižek em meio


ao “deserto do real” – embora não tão deserto assim. Sem dúvida, na última década foi ele
o intelectual de esquerda mais comentado internacionalmente, quase a ponto de se tornar,
como o filme mesmo faz entrever, um “pop-star” da filosofia. Reúnem-se aqui takes
diversos de palestras na Argentina e nos EUA, flashes da vida do escritor e dos arranjos de
sua vida privada, de seus antecedentes na Eslovênia até o triunfo internacional, com a
seção fanática de autógrafos (que aliás horrorizam o pensador), tudo misturado às
questões filosóficas. A forma algo caótica do documentário casa bem com o modo žižekiano
de pensar/viver, variando entre a alta esfera da filosofia e as trivialidades da vida
cotidiana. Tal síntese formal, pois, não é acaso, quando lembramos que isso comparece em
seu próprio método fundamental: a utilização dos materiais mais heteróclitos e
inesperados da cultura do dia-a-dia.
Sua movimentação teórica é vertiginosa e vai do cinema hollywoodiano à
science fiction, da piada popular ao discurso liberal ou cristão, da filosofia clássica à última
moda intelectual, introduzidos em frases cortantes, às vezes bombásticas, tudo plasmado
num discurso-ricochete, cheio de guinadas dialéticas, distanciamentos irônicos, inversões
abruptas de questionamentos e muito curto-circuito entre o teórico e o empírico – tal como
em seu famoso exemplo que salta do “café descafeinado” à indecisão da esquerda que quer
a “revolução sem revolução”. Com o que adentramos de chofre no núcleo inconsciente que,
segundo o autor, sustenta e reproduz, senão estrutura mesmo, os laços sociais
contraditórios em épocas como esta, de hegemonia neoliberal e “sociedade permissiva”,
pautada por imperativos superegóicos de gozo – mais ou menos aquilo que Marcuse, nos
anos 60, já denominara “dessublimação repressiva” e “tolerância repressiva”. O

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diagnóstico de fundo parece claro: tal forma de capitalismo, com seu regime democrático
liberal, cinicamente pragmático, é hoje pura mediação de antagonismos, uma máquina de
pôr, operar e fazer conviver paradoxalmente com contradições agudas, um sistema que,
por assim dizer, fagocita e sobrevive de suas próprias contradições.
Desta ótica, põe-se fatalmente abaixo as esperanças imediatistas de “colapso
objetivo” do sistema capitalista. Se o segredo de Žižek é o estilo pessoal de relacionar
questões de foro íntimo à esfera pública mercantilizada, desfazendo as velhas
compartimentações entre subjetividade e sociedade, também este é o cerne de sua
“ontologia”: não há social atual sem estruturação inconsciente e fetichista do sujeito, sem
um núcleo de fantasia ideológica, ideologia aqui relida pela trama conceitual lacaniana – o
que se liga bem, evidentemente, ao pano de fundo econômico atual de “superacumulação
especulativa”. O que poria, segundo ele, a questão do primado da política nesse momento,
seja como forma reprodutora, seja como política de suspensão revolucionária das regras do
jogo sistêmico. Mais que os fatos puros, a vivência e a interpretação dos fatos, para Žižek,
seria o decisivo, no sentido lacaniano preciso de que o real, sempre traumático, estrutura-
se em nó com o simbólico e o imaginário – com o que a revolução será traduzida em
termos de “ato analítico”: a desestruturação das coordenadas simbólicas e imaginárias
anacrônicas que sustentam a ordem de coisas existente. Se a crítica da economia política
faz falta evidente em todas essas reflexões (embora Žižek não seja exatamente um
politicista ou subjetivista), reflexões efetuadas nos ares rarefeitos e às vezes duvidosos da
razão especulativa hegeliana, não é menos verdade que a discussão cifrada em termos
psicanalíticos também leva a caminhos interessantes, pela pesquisa de mediações
subjetivas fundamentais, que o marxismo costuma deixar de fora.
A película ressalta nalguns pontos o risco do filósofo se tornar agente passivo do
espetáculo. Em certo sentido, isso é algo inevitável. Žižek parece saber que virou uma
“mercadoria intelectual”: o best seller de livros, palestras, entrevistas etc. Assim, a
expectativa do enorme público que corre em direção a ele quase como um novo guru da
esquerda (um “sujeito suposto saber”) é criticamente comentada. Num trecho de
entrevista, ele responde bem que, nesse caso, seu dever é tentar “ocupar a posição do
analista, que é fundamentalmente jogar, ao modo da transferência, com tais expectativas e
miná-las, frustrá-las”. Aí outro método fundamental do filósofo esloveno: a provocação, a
condução do raciocínio às extremidades do impensado, ao excesso e ao obsceno, ou seja, o
distúrbio do pensamento linear e bem-comportado da esquerda “democrática”. De certa
forma, o que se dramatiza aqui é a dificuldade da reinvenção da crítica política: como fazer

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aflorar o real traumático, “impossível”, no sentido lacaniano, num mundo que internalizou
a reflexão esclarecida até o auto-ofuscamento, e que assim o oblitera sob a aparência
liberal do mundo das mercadorias como algo normal e imutável, no gozo cotidianamente
administrado?
A estratégia geral de Žižek será, então, uma grande abertura à totalidade: como
bom hegeliano, é preciso se dirigir, sem prevenções, aos materiais mais heterogêneos,
como massa-combustível para o procedimento dialético da negação determinada – a
negação que suprime o negado, erguendo-o a um novo patamar. Desse modo, Žižek
incorpora a melhor tradição intelectual do ocidente, aliando como nunca dantes talvez,
Hegel, Marx e a psicanálise. Porém, parece-me que teremos dois obstáculos a isso: o
primeiro é a dificuldade objetiva para uma tal operação, num mundo que reabsorve
incessantemente a negação no mesmo de sempre; o “real” parece sempre poder ser
subsumido violentamente ao racional, tudo conduzindo, como em Hegel, ao Estado.
É isso que faz-nos perceber o desconforto de Žižek, no vídeo, frente àqueles que
não podem entender certas conseqüências práticas de seu pensamento – as do “ato”
revolucionário –, tendo de rebaixá-lo a um mero piadista, como se o “distanciamento
irônico” generalizado, inclusive o incorporado à sua filosofia, não mais permitisse levar
nada a sério, a não ser é claro a ordem existente, que resta intacta por cima disso tudo. E
justamente por causa disso, talvez, em vez da aparência harmoniosa das resoluções
dialéticas, Žižek tem de fazer seu um estilo necessariamente híbrido de pensamento, em
que a seriedade se entrelaça quase inexoravelmente ao frívolo, o alto ao baixo, em
contradição permanente, com efeito de desmentido recíproco de ambos os momentos.
Porém, de certo modo, os vaivens žižekianos entre alta e baixa cultura, o identificam
impiedosamente ao próprio impulso negativo totalizador da forma-valor, como espírito
sem rédeas no mundo. Direitos humanos, ilusão de totalidade, conforto de poltrona,
bibelôs – nada disso: “sou um monstro”, diz ele a certa altura.
Mas parece-me que o sujeito “dessubstancializado” que Žižek defende de modo
negativo e autorrefletido, como uma espécie analógica de “proletário” do desejo, corre o
risco de se identificar a esse próprio movimento frenético de negação como sendo o seu
próprio: ao invés de almejar a destruição de uma tal condição social de sujeito, como mero
objeto do capital, querer subscrever-se ao gozo de fundo sadomasoquista, de restar no
interior do sistema de coerções, simulando uma espécie de transgressão meramente
performática, com a mudança vertiginosa e carnavalesca de figurino a cada instante. É o
risco do movimento perpétuo vicioso, sem sair do lugar, preso na indefinição – o que Žižek

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percebe bem na moda desconstrucionista -, quase uma macaqueação da força de trabalho
em abstrato.
Com isso, a meu ver adentramos no segundo obstáculo à negação determinada,
que me parece menos uma condição objetiva que uma limitação da própria reflexão
žižekiana. Uma de suas máximas hegelianas é assumir, com negação determinada, “todo o
passado da esquerda”. O comunismo, dizia Marx, não tem nada a esconder – ao menos no
momento em que se põe abertamente como movimento real de superação do sistema,
tendo seu alvo negativo definido. Ora, como se sabe, estamos num refluxo social de
qualquer perspectiva desse tipo. Nesse sentido, se não se tem uma situação prática e muito
concreta à vista - em que a teoria faça sentido e possa refletir a verdadeira profundidade da
necessidade da contra-violência – teremos realmente um perigo da teoria virar ideologia,
no sentido da generalidade de idéias sem raiz prática... a crítica tende a perder o foco,
rodar descontextualizada, podendo virar, em seu impulso negativo abstrato, uma apologia
da violência anti-humanista tout court: daí o embaralhamento entre violência popular
legítima contra o Estado e violência estatal antipopular (do Partido), a seleção de um
“bom” e um “mau” terrorismo, de um bom e mau estalinismo etc., ou a suposição
legitimatória da necessidade de um “momento Lênin”, quase alçado a receita
revolucionária (“formalização de Marx”), e assim por diante. Hegel problematizava na
Revolução Francesa o voluntarismo desse sujeito totalmente dessubstancializado, que não
produzia nenhum ser, e se invertia em niilismo... Žižek é inteligente o bastante para
desmentir todas essas derivações, mas continua ambiguamente saltitando na linha tênue
da “paixão pelo real”, do decisionismo schmittiano ao desespero ativista, do ascetismo
paulino à hybris do sujeito metafísico chegado ao seu próprio conceito. Assumir todo o
passado (de Paulo a Mao-Tsé-Tung, de Elvis a Matrix) só com toneladas e mais toneladas
de negação determinada.

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CRASH!
(Crash. UK/Canadá, 1996, 100 min., cor, Direção: David Cronenberg)

Daniel Cunha

Blazer 2009: livre de verdade.


S10, a nova geração: sua história começa aqui
Um carro tão legal, tão legal, que a gente tá desconfiando que ele não é só um carro.
Anúncios publicitários (2009)

David Cronenberg – o diretor de filmes como A mosca e Scanners, dirigiu em 1996 o


filme Crash, baseado em um conto de J. G. Ballard. O filme conta a bizarra história de um
grupo de fetichistas do automóvel. O clube se dedica a reconstituir acidentes famosos
(James Dean e outros), com todo o realismo possível, e seus membros sentem atração
sexual por cicatrizes adquiridas em colisões. Alguns dos quais mal podem parar em pé, de
tantas sequelas.

A crítica de Robert Kurz1 diz que o filme é um simulacro e não aponta nenhuma
transcendência. Kurz tem razão, mas há mais o que dizer sobre ele. O filme apresenta o
automóvel como um fetiche e mediador de relações sociais. Exagera? “Mas só o exagero é
verdadeiro” (Adorno e Horkheimer2). Afinal, o limite do capital é o campo de
concentração, a dominação sem limites, e esse exagero foi bem real. Assim como Sade, ao
mostrar o corpo humano como máquina de eficiência (nenhum órgão ou orifício pode ficar
ocioso), desnudou a lógica do ritmo frenético do trabalho abstrato, assim como Nietzsche,
ao identificar razão e dominação lançou luz sobre o lado escuro do Iluminismo, assim
talvez Cronenberg e Ballard, ao escancarar o fetichismo do automóvel, tenham acessado
sua verdade mais íntima. Tudo isso, talvez, contra-e-mais-além de sua própria intenção.

A íntima relação de automóvel e capital já foi mostrada por vários pensadores e


grupos de esquerda, como Robert Kurz3, André Gorz4, Henri Lefebvre5 ou os PROVOS

1 O oco do fetichismo, 1997, disponível em http://obeco.planetaclix.pt/rkurz50.htm


2 Dialética do esclarecimento (original, 1947), Rio de Janeiro, Zahar, 1985, Excurso II, disponível em
http://adorno.planetaclix.pt/d_e_excurso2.htm
3 Sinal verde para o caos da crise, 1996, http://obeco.planetaclix.pt/rkurz57.htm
4 A ideologia social do carro a motor, [orig. 1973], disponível em:
http://www.oestrangeiro.net/index.php?option=com_content&task=view&id=126&Itemid=1
5
La vie quotidienne dans le monde moderne. Paris, Gallimard, 1968, p. 191-198
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holandeses. Não por acaso, o esplendor do capitalismo ganhou o nome de “fordismo”, e a
sua decadência coincide com a bancarrota de Ford, GM, etc. Foi no ritmo do automóvel
que o capital consolidou sua dominação no século XX, e é o automóvel que domina o
imaginário dos sujeitos-sujeitados do capital. É o automóvel que determina a forma e o
conteúdo das cidades, destruindo o que ainda resta de espaço público de uso comum. O
motorista é o protótipo do sujeito burguês: em sua lata-mônoda individual, ele alimenta
sua ilusão de “status” e “liberdade”, enquanto não é capaz de ir senão aonde lhe dita o
trabalho alienado e a indústria cultural. A pressa com que se desloca - quando não está
preso em um engarrafamento - é proporcional à sua falta de liberdade real, à sua falta de
autonomia sobre o uso de seu próprio tempo.

Mas pode-se ir mais além na metáfora de Ballard-Cronenberg (agora definitivamente


à revelia deles): se aceitarmos, com Marx, que na socialização baseada na produção de
mercadorias temos “relações sociais entre coisas e relações coisificadas entre pessoas”
(fetichismo da mercadoria), então precisamos considerar a psique dos trabalhadores
abstratos. São esses os proletarizados que, vendendo sua força de trabalho, trabalham
para produzir valor, mercadorias (ou em seus apêndices improdutivos para o capital:
serviços, etc.), pouco importando a qualidade, o valor de uso, as consequências sociais e
ecológicas do que produzem: o que importa é o ritmo da produção. Quem trabalha em
abstrato faz abstração de si mesmo e de seu meio, é apático: auto-destruição e destruição
da natureza em nome da acumulação sem fim de capital.

O psiquiatra Christophe Dejours6 aponta, então, uma dessensibilização radical no


século XXI: já que os movimentos contestatórios são cada vez mais desarticulados e não se
vê mais perspectivas de enfrentamento da opressão, como autodefesa, não mais
percebemos o nosso próprio sofrimento, e portanto, muito menos o dos outros. Como,
então, sentir alguma coisa? Talvez com um acidente automobilístico. O automóvel de
Ballard-Cronenberg pode ser entendido como a mercadoria de forma geral, e as cicatrizes
como o sofrimento resultante do domínio do trabalho abstrato. Os homens sem qualidades
e insensíveis do século XXI se relacionam através de suas cicatrizes: as cicatrizes
resultantes da transformação de sua criatividade em trabalho abstrato, da vida em
sobrevivência, da sociabilidade direta em sociabilidade coisificada, da vontade de viver em
pulsão de morte; as cicatrizes da dominação.

6 Ver, por exemplo, a entrevista (julho, 2000) disponível em http://www.lcr-


lagauche.be/cm/index.php?view=article&id=678%3Ala-souffrance-au-travail-entretien-avec-christophe-
dejours&Itemid=53&option=com_content (em francês)
www.sinaldemenos.org v.1, nº1, 2009 173
“Transformação dos corpos pela tecnologia moderna”, é o que prega o líder dos
fetichistas do filme. Transformação dos corpos: Foucault7 mostrou o adestramento dos
“corpos dóceis” pelos sistemas de vigilância e punição utilizados em fábricas, escritórios,
presídios, escolas, casernas; Marcuse8 mostrou o confinamento de Eros à região genital
para realizar o predomínio do princípio de desempenho sobre o princípio de prazer – a
acumulação primitiva do sujeito tem indubitavelmente um momento somático. Isso
remete à relação entre capital, técnica e dominação, conforme conceitualizada por Adorno
e Horkheimer:

O casamento feliz entre o entendimento humano e a natureza das


coisas que ele tem em mente é patriarcal: o entendimento que vence a
superstição deve imperar sobre a natureza desencantada. O saber que
é poder não conhece nenhuma barreira, nem na escravização da
criatura, nem na complacência em face dos senhores do mundo. (...) A
técnica é a essência desse saber, que não visa conceitos e imagens,
nem o prazer do discernimento, mas o método, a utilização do
trabalho de outros, o capital. (...) O esclarecimento comporta-se com
as coisas como o ditador se comporta com os homens. Este conhece-
os na medida em que pode manipulá-los. O homem de ciência
conhece as coisas na medida em que pode fazê-las. É assim que seu
em-si torna para-ele. Nessa metamorfose, a essência das coisas revela-
se como sempre a mesma, como substrato da dominação9.

O “substrato de dominação” (a natureza) inclui o corpo humano, os “corpos dóceis”.


Descendo a um nível mais empírico, Ivan Illich – pioneiro do pensamento ecológico radical
– observa:
Não pode existir uma sociedade que mereça a qualificação de
‘socialista’ quando a energia mecânica que ela utiliza esmaga o ser
humano. Passado um certo ponto, inevitavelmente esta energia tem
um tal efeito. Existe uma constante K. Essa constante indica a
quantidade pela qual se deve multiplicar a energia mecânica utilizada
para todos os fins na sociedade. Não pode existir essa combinação de
sociedade ‘socialista’ se K não permanece dentro de limites. A
sociedade deve ser considerado subequipada para uma forma de
produção participativa e eficaz quando K não alcança o limite inferior.
Quando K passa a ser maior que o valor do limite superior, termina a
possibilidade de manter uma distribuição eqüitativa do controle sobre
o poder mecânico da sociedade.”10

A conclusão de Illich é que uma sociedade socialista anda na velocidade da bicicleta,

7 Vigiar e punir. [orig. 1975] Petrópolis: Vozes, 1987.


8 Eros e civilização. [orig. 1955] Rio de Janeiro, Zahar, 1981, disponível em:
http://antivalor2.vilabol.uol.com.br/textos/frankfurt/erosindex.html
9 Dialética do Esclarecimento, “Conceito...”, http://adorno.planetaclix.pt/d_e_conceito.htm
10 Energia y equidad, disponível em: http://www.nodo50.org/dado/textosteoria/illich4.rtf

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que, com sua tecnologia simples, ecológica e energeticamente eficiente, oferece um
contraponto à breguice suja do automóvel. “Mas a bicicleta não é rápida o suficiente!”,
reclamarão os fetichistas do motor a gasolina. Mas quem precisaria chegar rápido quando
não houvesse mais trabalho abstrato e dominação, quando a técnica avançada, liberada da
camisa de força do capital, fosse colocada para trabalhar para nós, liberando-nos da labuta,
do esforço e da pressa, quando o homo luddens conquistasse o reino da liberdade,
aposentando o homo faber? E para longas distâncias, existem o bonde e o trem, que
harmonizam-se muito melhor com a paisagem humana e natural, e o avião, de uso
excepcional. Até poderiam existir alguns automóveis de uso comum para deslocamentos a
locais de difícil acesso, aí sim, utilizados segundo seu valor de uso. Mas há um longo
caminho até lá: o automóvel já moldou as cidades à sua imagem e semelhança,
principalmente no Novo Mundo – sem automóvel muitos lugares são inacessíveis, andar
de bicicleta é perigoso, não existem trens, o transporte coletivo é “para pobres”. Nas velhas
cidades européias, ainda há um alento.

O filme de Cronenberg, se visto com aquele distanciamento que potencializa a crítica,


pode ser uma alavanca para pensarmos contra-e-mais-além do automóvel, do capital - a
contrapelo do autor. Em tempos de crashes financeiros que espalham o horror social e
pacotes anti-crise que reforçam o masoquismo histórico do trabalho abstrato, o exagero de
Cronenberg nunca foi tão verdadeiro.

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