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Atlântico de Dor Faces Do Tráfico de Escravos
Atlântico de Dor Faces Do Tráfico de Escravos
REITOR
Paulo Gabriel Soledade Nacif
VICE-REITOR
Sílvio Luiz de Oliveira Soglia
PRÓ-REITORIA DE ADMINISTRAÇÃO
Rosilda Santana dos Santos
PRÓ-REITORIA DE GESTÃO DE PESSOAL
Neilton Paixão de Jesus
PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO
Luciana Alaíde Alves Santana
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, PÓS-GRADUAÇÃO, CRIAÇÃO E INOVAÇÕES
Ana Cristina Firmino Soares
PRÓ-REITORIA DE PLANEJAMENTO
Juvenal de Carvalho Conceição
PRÓ-REITORIA DE EXTENSÃO
Ana Rita Santiago da Silva
PRÓ-REITORIA DE POLÍTICAS AFIRMATIVAS E AÇÕES ESTUDANTIS
Ronaldo Crispin Serra Barros
Organizadores
João José Reis • Carlos Francisco da Silva Júnior
Volume 12
50 ANOS
Suplentes
Ana Cristina Vello Loyola Dantas
Geovana da Paz Monteiro
Jeane Saskya Campos Tavares
Editora da UFRB.
Rua Rui Barbosa, 710, Centro
Cruz das Almas. Bahia. Brasil. CEP 44.380-000
Fone: +55 75 3621 2350
www.ufrb org.br/editora
A881
Atlântico de dor : faces do tráfico de escravos / Organizado por João
José Reis, Carlos da Silva Júnior. - Cruz das Almas : EDUFRB; Belo
Horizonte : Fino Traço, 2016.
509p. : il. (Coleção UNIAFRO; 12)
ISBN 978-85-67589-12-1(Coleção)
ISBN 978-85-67589-23-7(vol. 12)
PREFÁC IO..............................................................................................................11
João José Reis • Carlos Silva Jr.
PA RTE I
Através do Atlântico
PA RTE I I
O Tráfico Proibido
P A RT E I II
Dilemas do Africano Livr e
PA RTE IV
Tráfico Interno
PA RTE V
África do Tráfico
P A RT E V I
Diásporas daqui e de lá
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA
***
deCoMpondo o trÁfiCo
João José Reis
Carlos Silva Jr.
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3 Sobre a formação anterior do Atlântico do açúcar, ver a coletânea de sugestivo título or-
ganizada por Stuart B. Schwartz (org.), Tropical Babylons: Sugar and the Making of the
Atlantic World, 1450-1680 (Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2004).
4 Todos os números do tráfico transatlântico de escravos aqui apresentados foram obtidos
do website slavevoyages.org, já traduzido para o português. Ver David Eltis, Stephen Beh-
rendt, David Richardson e Manolo Florentino, Voyages: The Transatlantic Slave Trade Da-
tabase (doravante TSTD), www.slavevoyages.org; David Eltis e David Richardson (orgs.), Ex-
tending the Frontiers: Essays on the New Transatlantic Slave Trade Database (New Haven:
Yale University Press, 2008); e David Eltis e David Richardson, Atlas of the Transatlantic
Slave Trade, New Haven: Yale University Press, 2010. Para uma reavaliação do tráfico com
a América hispânica, ver Alex Borucki, David Eltis e David Wheat, “Atlantic History and the
Slave Trade to Spanish America”, American Historical Review, vol. 120, no. 2 (2015), pp. 433-
461. Esses novos dados serão incorporados na próxima atualização do TSTD.
5 Stuart B. Schwartz, Sugar Plantations in the Formation of Brazilian Society: Bahia, 1550-
1835, Cambridge: Cambridge University Press, 1985 (publicado em português como Se-
gredos internos pela Companhia das Letras, 1988). Ver ainda Luiz Felipe de Alencastro,
O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII, São Paulo:
Companhia das Letras, 2000; e John M. Monteiro, Negros da terra: índios e bandeirantes
nas origens de São Paulo, São Paulo: Companhia das Letras, 1994. Sobre o papel central do
tráfico na empresa colonial portuguesa, além do livro de Alencastro, confira Fernando A.
Novais, Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial, São Paulo: Hucitec, 1979.
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6 Sobre o conceito de "segunda escravidão", ver o texto inaugural de Dale Tomich, Through
the Prism of Slavery: Labor, Capital, and World Economy, Laham: Rowman & Littlefield,
2004 (publicado em português como Pelo prisma da escravidão, EDUSP, 2011). Ver ain-
da a resenha deste livro por Ricardo Salles, “A segunda escravidão”, Tempo, vol. 19, no. 35
(2013), pp. 249-254; e Márcia Berbel, Rafael Marquese e Tâmis Parron, Escravidão e polí-
tica: Brasil e Cuba, 1790-1850, São Paulo: Hucitec/Edusp, 2010; Rafael de Bivar Marquese
e Tâmis Peixoto Parron, “Internacional escravista: a política da Segunda Escravidão”, To-
poi, vol. 12, no. 23 (2011), pp. 97-117; um dossiê sobre o tema na revista Almanack, no. 5
(2013), pp. 5-60; e Tâmis Peixoto Parron, “A política da escravidão na era da liberdade: Es-
tados Unidos, Brasil e Cuba, 1787-1846” (Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo,
2015). Fora do Brasil, confira Javier Laviña e Michael Zeuske (orgs.), The Second Slavery:
Mass Slaveries and Modernity in the Americas and the Atlantic Basin (Zurique e Berlim:
Lit Verlag, 2014).
7 David Eltis, Stephen D. Behrendt e David Richardson, “A participação dos países da Eu-
ropa e das Américas no tráfico transatlântico de escravos: novas evidências”, Afro-Á-
sia, no. 24 (2000), pp. 9-50. Para uma análise mais atual desses dados, consultar Eltis e
continuação 7
Richardson (orgs.), Extending the Frontiers e, dos mesmos autores, Atlas of the Transa-
tlantic Slave Trade.
8 Ver Robin Law, “Etnias de africanos na diáspora: novas considerações sobre os significa-
dos do termo ‘mina’”, Tempo, n° 20 (2005), pp. 109-131; Roquinaldo Amaral Ferreira, “A
arte de furtar: redes de comércio ilegal no Império Português (ca. 1680-1750)”, in João
Fragoso e Maria de Fátima Silva Gouvêa (orgs.), Na trama das redes: política e Negócios
no Império Português, séculos XVI-XVIII (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010), pp.
203-243; idem, “From Brazil to West Africa: Dutch-Portuguese Rivalry, Gold-Smuggling,
and African Politics in the Bight of Benin (ca. 1700-1730)”, in Michiel van Groesen (org.),
The Legacy of Dutch Brazil (Nova York: Cambridge University Press, 2014), pp. 59-77.
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9 Sobre essa primeira proibição e suas repercussões na Bahia, ver Paulo César Oliveira de
Jesus, “O fim do tráfico de escravos na imprensa baiana, 1811-1850” (Dissertação de Mes-
trado, Universidade Federal da Bahia, 2004).
10 Ver Alexandre Vieira Ribeiro, “The Transatlantic Slave Trade to Bahia, 1582-1851”, in El-
tis e Richardson (orgs.), Extending the Frontiers, pp. 130-54; idem, “Eram de Cabinda e
de Molembo? Uma análise sobre as viagens negreiras do norte de Angola para a Bahia
nas primeiras décadas do século XIX presentes no banco de dados The Transatlantic Sla-
ve Trade”, in Alexandre Ribeiro, Alexsander Gebara e Marcelo Bittencourt (orgs.), África
passado e presente: II Encontro de estudos africanos da UFF [recurso eletrônico] (Niterói:
PPGHISTÓRIA-UFF, 2010), pp. 65-73.
11 Ver, entre outros, João José Reis, Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos ma-
lês em 1835, São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
12 Ver também o recente livro do mesmo autor, Disease, Resistance, and Lies: The Demise of
the Transatlantic Slave Trade to Brazil and Cuba, Baton Rouge: Louisiana State Universi-
ty Press, 2014, cap. 1. Acrescente-se, sobre outros aspectos da participação norteamerica-
na no tráfico ilegal para o Brasil, Luís Henrique Dias Tavares, Comércio proibido de escra-
vos, São Paulo: Ática; Brasília: CNPq, 1988, esp. cap. 3; e Gerald Horne, The Deepest South:
The United States, Brazil, and the African Slave Trade: Nova York: New York University
Press, 2007 (edição brasileira sob título O sul mais distante, São Paulo: Companhia das Le-
tras, 2007); Leonardo Marques, “A participação norte-americana no tráfico transatlânti-
co de escravos para os Estados Unidos, Cuba e Brasil”, História: Questões & Debates, no.
52 (2010), pp. 87-113; e idem, “The United States and the Transatlantic Slave Trade to the
Americas, 1776-1867” (Tese de Doutorado, Emory University, 2013).
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13 O mais completo estudo sobre a lei de 1831 e seus desdobramentos ao longo do Oitocen-
tos é Beatriz Mamigonian, Africanos livres: uma história social da abolição do tráfico de
escravos para o Brasil, São Paulo: Companhia das Letras, 2016. Diversos outros autores
também estudaram o assunto, e seguem apenas alguns exemplos: Tâmis Parron, A políti-
ca da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2011; Tâmis Parron, Alain El Youssef e Bruno F. Estefanes, “Vale expandido: contrabando
negreiro e a construção de uma dinâmica política nacional no Império do Brasil”, Alma-
nack, no. 7 (2014), pp. 137-159; Sidney Chalhoub, A força da escravidão: ilegalidade e cos-
tume no Brasil oitocentista, São Paulo: Companhia das Letras, 2012; Beatriz Mamigonian,
“O Estado nacional e a instabilidade da propriedade escrava: a Lei de 1831 e a matrícula
dos escravos de 1872”, Almanack, no. 2 (2011), pp. 20-37; dossiê “‘Para inglês ver’? Revisi-
tando a Lei de 1831”, organizado por Beatriz Mamigonian e Keila Grinberg. Sobre os trata-
dos e leis que proibiam o tráfico, ver Jaime Rodrigues, O infame comércio: propostas e ex-
periências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850), Campinas: Editora
da UNICAMP/CECULT, 2000; Robert Conrad, Tumbeiros: o tráfico de escravos para o Bra-
sil, São Paulo: Brasiliense, 1985; Leslie Bethell, The Abolition of the Brazilian Slave Trade:
Britain, Brazil and the Slave Trade Question, 1807-1850, Cambridge: Cambridge Univer-
sity Press, 1970 (edição brasileira de 1976 pela editora Expressão Cultural).
14 O trabalho mais amplo sobre o assunto no Brasil é o livro de Mamigonian, Africanos livres.
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15 Ver, por exemplo, Elciene Azevedo, Orfeu de carapinha: a trajetória de Luiz Gama na im-
perial cidade de São Paulo, Campinas: Editora da UNICAMP/CECULT, 1999; e idem, O di-
reito dos escravos: lutas jurídicas e abolicionismo na província de São Paulo, Campinas:
Editora da UNICAMP/CECULT, 2010.
16 Robert Slenes, “A árvore de Nsanda transplantada: cultos kongos de aflição e identida-
de escrava no Sudeste brasileiro (século XIX)”, in Douglas Libby e Júnia F. Furtado (orgs.),
Trabalho livre, trabalho escravo (São Paulo: Annablume, 2006), pp. 273-314; e Graden, Di-
sease, Resistance, and Lies, cap. 5. Na contramão dessa perspectiva, ver Jeffrey D. Need-
el, The Party of Order: The Conservatives, the State, and Slavery in the Brazilian Monar-
chy, Stanford: Stanford University Press, 2006. Uma polêmica, sobre este e outros temas,
entre Jeffrey Needel e Sidney Chalhoub, chegou às páginas da Afro-Ásia. Ver resenha de
Sidney Chalhoub, “Os conservadores no Brasil império”, Afro-Ásia, no. 35 (2007), pp. 317-
326, e Jeffrey Needel, “Resposta a Sidney Chalhoub e à sua Resenha, ‘Os conservadores no
continuação 16
Brasil império’”, Afro-Ásia, no. 37 (2008), pp. 291-301. Um balanço anterior do debate foi
feito por Parron, A política da escravidão, pp. 230-252.
17 Sobre o tráfico interno, com ponto de partida na mesma região baiana, ver Maria de Fáti-
ma Novaes Pires, Fios da vida: tráfico interprovincial e alforrias nos sertoins de sima – BA
(1860-1920), São Paulo: Fapesp/Annablume, 2009, cap. 1.
18 Ver por exemplo José Flávio Motta, Escravos daqui, dali e de mais além: o tráfico interno
de cativos na expansão cafeeira paulista, São Paulo: Alameda, 2012, que mostra a força do
tráfico intraprovincial em São Paulo.
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19 Luiz Carlos Soares, O “Povo de Cam” na capital do Brasil: a escravidão urbana no Rio de Ja-
neiro do século XIX, Rio de Janeiro: FAPERJ/7letras, 2007, p. 368, 373.
20 Sobre as conexões profundas entre Angola e Brasil na formação de uma sociedade, uma
economia e uma cultura no Atlântico Sul, ver, entre outros, Joseph Miller, Way of Death:
Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade, 1730-1830, Madison: University of
Wiscounsin Press, 1988; Manolo Florentino, Em costas negras: uma história do tráfico de
escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX), São Paulo: Companhia das
Letras, 1997; Jaime Rodrigues, De costa a costa: escravos, marinheiros e intermediários
do trafico negreiro de Angola ao Rio de Janeiro (1780-1860), São Paulo: Companhia das
Letras, 2005; Alencastro, O trato dos viventes; idem, “Le versant brésilien de l’Atlantique-
Sud: 1550-1850”, Annales: Histoire, Sciences Sociales, vol. 61, no. 2 (2006), pp. 339-382; e
Roquinaldo Ferreira, Cross-Cultural Exchange in the Atlantic World: Angola and Brazil
during the Era of the Slave Trade, Cambridge: Cambridge University Press, 2012.
21 Sobre tráfico e sociedade no golfo de Biafra, Ebiegberi Joe Alagoa, “Long-Distance Trade
and States in the Niger Delta”, Journal of African History, no. 11 (1970), pp. 319-329; idem,
A History of the Niger Delta, Ibadan: Ibadan University Press, 1972; idem, “The Slave
Trade in Niger Delta Oral Tradition and History”, in Paul E. Lovejoy (org.), Africans in Bond-
age: Studies in Slavery and Slave Trade (Madison: African Studies Program, University of
continuação 21
Wisconsin, 1986), pp. 127-136; Adiele Afigbo, The Igbo and Its Neighbours, Ibadan: Ibadan
University Press, 1987; Paul E. Lovejoy e David Richardson, “Trust, Pawnship, and Atlan-
tic History: The Institutional Foundations of the Old Calabar Slave Trade, The American
Historical Review, vol. 104, no. 2 (abril de 1999), pp. 333-355; idem, “The Horrid Hole: Roy-
al Authority, Commerce and Credit at Bonny, 1690-1840”, Journal of African History, no.
45 (2004), pp. 363-92; Randy J. Sparks, The Two Princes of Calabar: An Eighteenth-Centu-
ry Atlantic Odyssey, Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2004; Ugo Nwokeji, The
Slave Trade and Culture in the Bight of Biafra: An African Society in the Atlantic Slave
Trade, Nova York: Cambridge University Press, 2010; e Carolyn A. Brown e Paul E. Lovejoy
(orgs.), Repercussions of the Atlantic Slave Trade: The Interior of the Bight of Biafra and
the African Diaspora (Trenton: Africa World Press, 2011).
22 Sobre a Costa do Ouro, ver Rae A. Kea, Settlements, Trade, and Politics in the Seven-
teenth-Century Gold Coast, Baltimore: The John Hopkins University Press, 1982; Ivor
Wilks, Asante in the Nineteenth Century: The Structure and Evolution of a Political Or-
der, Cambridge: Cambridge University Press, 1975; Rebecca Shumway, The Fante and
the Transatlantic Slave Trade, Rochester: University of Rochester Press, 2011; Randy J.
Sparks, Where the Negroes Are Masters: An African Port in the Era of the Slave Trade,
Cambridge: Mass: Harvard University Press, 2014.
23 José Capela, O tráfico de escravos nos portos de Moçambique, Lisboa: Edições Afronta-
mento, 2002.
24 Sobre o tráfico na Senegâmbia, ver Boubacar Barry, Senegambia and the Atlantic Slave
Trade, Nova York: Cambridge University Press, 1997.
25 Ver o resumo desses argumentos em Philip Morgan, “Africa and the Atlantic, c. 1450 to
c. 1820”, in Jack P. Green e Philip Morgan (orgs.), Atlantic History: A Critical Appraisal
(Oxford: Oxford University Press, 2009), pp. 230-231. Segundo Eltis e Richardson, Atlas
of the Transatlantic Slave Trade, p. 189, mapa 131, as revoltas na região da Senegâmbia
representam 22,6% do total de incidentes desse tipo. Se contabilizadas as de Serra Leoa
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continuação 25
(9,9%), esse número sobe para quase um terço do total de insurreições registradas a bor-
do. É digno de nota que o peso dessas revoltas é bastante superior ao impacto demográfico
do tráfico transatlântico sobre a Senegâmbia e Serra Leoa (6% e 3,1%, respectivamente).
26 Ivana Elbl argumenta que o contrabando tinha peso importante nos primeiros tempos do
tráfico. Para a autora, qualquer estimativa baseada nos dados quantitativos disponíveis “é
necessariamente minimalista”. Toby Green usa o mesmo argumento, considerando subes-
timados os números do TSTD: 1.592 escravos anualmente exportados da Alta Guiné entre
1501-1590. Para Green, por meio de intenso contrabando, no primeiro século do tráfico
exportava-se pelo menos quatro ou cinco vezes mais escravos do que o registrado pela do-
cumentação oficial alfandegária. Ver Ivana Elbl, “The Volume of the Early Atlantic Slave
Trade, 1450-1521”, Journal of African History, no. 38 (1997), pp. 31-75; e Toby Green, The
Rise of the Trans-Atlantic Slave Trade in Western Africa, 1300-1589, Cambridge: Cam-
bridge University Press, 2011, pp. 4-9. Para uma visão geral do tráfico ibérico nos primei-
ros dois séculos de sua existência, ver António de Almeida Mendes, “Esclavages et traites
ibériques entre la Méditerranée et l´Atlantique (XVe – XVIIe siècles): une histoire globa-
le” (Tese de Doutorado, École des Hautes Études en Sciences Sociales, 2007).
27 Ver, por exemplo, Francisco Aimara Carvalho Ribeiro, Terratenentes-mercadores: tráfico
e sociedade em Cabo Verde, séculos XV e XVI, Rio de Janeiro: Multifoco, 2012; Peter Mark
e José da Silva Horta, The Forgotten Diaspora: Jewish Communities in West Africa and
the Making of the Atlantic World, Cambridge: Cambridge University Press, 2011; e Green,
The Rise of the Trans-Atlantic Slave Trade.
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29 Para uma visão geral dessas companhias, ver António Carreira, As companhias pombali-
nas, Lisboa: Editorial Presença, 1983.
30 Reinaldo dos Santos Barroso Júnior, “Nas rotas do Atlântico equatorial: tráfico de escra-
vos rizicultores da Alta-Guiné para o Maranhão (1770-1800)” (Dissertação de Mestrado,
Universidade Federal da Bahia, 2009); Walter Hawthorne, From Africa to Brazil: Cultu-
re, Identity, and an Atlantic Slave Trade, Nova York: Cambridge University Press, 2010;
José Ribeiro Jr., Colonização e monopólio no nordeste brasileiro, 2a ed., São Paulo: Huci-
tec, 2004; e Leonor Freire Costa, “Pernambuco e a Companhia Geral de Comércio do Bra-
sil”, Penélope, nº 2 (2000), pp. 41-65.
31 Sobre a importância dos têxteis indianos, ver, por exemplo, Roquinaldo Ferreira, “Dinâmi-
cas do comércio intra-colonial: geribitas, panos asiáticos e guerra no tráfico angolano de es-
cravos (século XVIII)”, in João Fragoso, Maria Fernanda Bicalho e Maria de Fátima Gouvêa
(orgs.), O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII)
(Rio de Janeiro: Civilizacão Brasileira, 2001), pp. 341-378; e Telma Gonçalves Santos, “Co-
mércio de tecidos europeus e asiáticos na África centro-ocidental: fraudes e contrabando no
terceiro quartel do século XVIII” (Dissertação de Mestrado, Universidade de Lisboa, 2014).
32 Confira também o recente livro de Mariana P. Candido, An African Slaving Port and the
Atlantic World: Benguela and its Hinterland, Cambridge: Cambridge University Press,
2013, cap. 4, além de Ferreira, Cross-Cultural Exchange.
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33 Ainda sobre esses assuntos, ver Aida Freudenthal, “Os quilombos de Angola no século
XIX”, Estudos Afro-Asiáticos, no. 32 (1997), pp. 109-134.
34 Sobre o Chachá, ver também, do próprio Robin Law, “A carreira de Francisco Félix de Sou-
za na África Ocidental (1800-1849)”, Topoi, no. 2 (2001), pp. 9-40; e, mais detalhado, Alber-
to da Costa e Silva, Francisco Félix de Souza, mercador de escravos, Rio de Janeiro: Nova
Fronteira/EdUerj, 2004. Sobre Domingos José Martins, ver David Ross, “The Career of Do-
mingos Martinez in the Bight of Benin, 1833-64”, The Journal of African History, vol. 6,
no. 1 (1965), pp. 79-90.
35 Ver o recente artigo de Lisa Earl Castillo, “Mapping the Nineteenth-Century Brazilian Re-
turnees Movement: Demographics, Live Stories, and the Question of Slavery”, Atlantic
Studies: Global Currents, vol. 3, no. 1 (2016), pp. 25-52.
36 Para alguns títulos, ver J. Michael Turner, “Les Brésiliens: The Impact of Former Brazilian
Slaves upon Dahomey” (Tese de Doutorado, Boston University, 1974); Mariano Carneiro
da Cunha, Da senzala ao sobrado: arquitetura brasileira na Nigéria e na República Po-
pular do Benim, São Paulo: Nobel/EDUSP, 1985; Manuela Carneiro da Cunha, Negros, es-
trangeiros: os escravos libertos e sua volta à África, 2a. ed. revista, São Paulo: Companhia
das Letras, 2012 [1985]; Verger, Fluxo e refluxo, pp. 631-668; idem, Os libertos: sete ca-
minhos na liberdade de escravos da Bahia no século XIX, São Paulo: Corrupio, 1992; Mil-
ton Guran, Agudás: os “brasileiros” do Benim, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999; Alcio-
ne Meira Amos, Os que voltaram: a história dos retornados afro-brasileiros na África Oci-
dental no século XIX, Belo Horizonte: Tradição Planalto, 2007; Monica Lima e Souza, “En-
tre margens: o retorno à África de libertos no Brasil (1830-1870)” (tese de doutorado, Uni-
versidade Federal Fluminense, 2008); Silke Strickrodt, “‘Afro-Brazilians’ of the Western
Slave Coast in the Nineteenth Century” in Paul E. Lovejoy e José C. Curto (orgs.), Ensla-
ving Connections: Changing Cultures of Africa and Brazil during the Era of Slavery (Nova
York: Humanities Books, 2004), pp. 213-244; Luís Nicolau Parés e Lisa Earl Castillo, “José
Pedro Autran e o retorno de Xangô”, Religião e Sociedade, vol. 35, no. 1 (2015), pp. 13-43;
Kristin Mann, “A Tale of Slavery and Beyond in a British Colonial Court: West Africa and
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continuação 36
Brazil”, in Alice Bellagamba, Sandra E. Greene e Martin A. Klein (orgs.), African Voices on
Slavery and the Slave Trade (Nova York: Cambridge University Press, 2013), pp. 378-385;
Angela Fileno da Silva, “Amanhã é dia de santo”: circularidades atlânticas e a comunidade
brasileira na Costa da Mina, São Paulo: Alameda, 2014.
37 A bibliografia sobre as identidades étnicas nas Américas é extensa. Seguem alguns títulos:
Michael A. Gomez, Exchanging our Country Marks: The Transformation of African Identi-
ties in the Colonial and Antebellum South, Chapel Hill: The University of North Carolina
Press, 1998; Gwendolyn Midlo Hall, Slavery and African Ethnicities in the Americas: Re-
storing the Links, Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2005; e Paul Lovejoy
and David Trotman (orgs.), Trans-Atlantic Dimensions of Ethnicity in the African Diaspo-
ra (Londres: Continuum Press, 2003). No caso do Brasil, ver, entre outros títulos, Mary Ka-
rasch, Slave Life in Rio de Janeiro, 1808-1850, Princeton: Princeton University Press, 1988,
cap. 1 (edição brasileira pela Companhia das Letras, 2000); Robert Slenes, “‘Malungu, Ngo-
ma Vem!’: África encoberta e descoberta no Brasil”, Revista USP, 12 (1991-2), 48-67; João
José Reis e Beatriz Mamiginian, “Nagô and Mina: The Yoruba Diaspora in Brazil”, in Toyin
Falola e Matt Childs (orgs.), The Yoruba Diaspora in the Atlantic World (Bloomington: India-
na University Press, 2004), pp. 77-110; Mariza de Carvalho Soares, Devotos da cor: identi-
dade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII, Rio de Janeiro: Civi-
lização Brasileira, 2000; idem, “A ‘nação’ que se tem e a ‘terra’ de onde se vem: categorias de
inserção social de africanos no império português, século XVIII”, Estudos Afro-Asiáticos, no.
26 (2004), pp. 303-331; Luis Nicolau Parés, A formação do Candomblé: história e ritual da
nação jeje na Bahia, Campinas: Editora da UNICAMP, 2006; Juliana B. Farias, Carlos Eugênio
L. Soares e Flávio Gomes, No labirinto das nações: africanos e identidades no Rio de Janeiro,
século XIX, Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005.
38 Ver também, da mesma autora, “Viver e morrer no meio dos seus: nações e comunidades
africanas na Bahia do século XIX”, Revista USP, n° 28, (1995-96), pp. 175-93; e idem, “The
Reconstruction of Ethnicity in Bahia: The Case of the Nagô in the Nineteenth Century”, in
Lovejoy e Trotman (orgs.), Trans-Atlantic Dimensions of Ethnicity in the African Diaspo-
ra, pp.158-180.
39 Para citar apenas um exemplo, ver Robin Law, The Slave Coast of West Africa 1550 –
1750: The Impact of the Atlantic Slave Trade on an African Society, Oxford: Oxford Uni-
versity Press, 1991.
40 Camilla Agostini, “Africanos no cativeiro e a construção de identidades no além-mar. Vale
do Paraíba, século XIX” (Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas,
2002); Moacir Rodrigo de Castro Maia, “‘Quem tem padrinho não morre pagão’: as relações
de compadrio e apadrinhamento de escravos numa vila colonial (Mariana, 1715-1750)”
(Dissertação de Mestrado, Universidade Federal Fluminense, 2006); Fernanda Aparecida
Domingos Pinheiro, “Confrades do Rosário: sociabilidade e identidade étnica em Maria-
na – Minas Gerais (1745-1820)” (Dissertação de Mestrado, Universidade Federal Flumi-
nense, 2006); Rodrigo Castro Resende, “As ‘nossas Áfricas’: população escrava e identida-
des africanas nas Minas Setecentistas” (Dissertação de Mestrado, Universidade Federal
de Minas Gerais, 2006); Daniele Santos de Souza, “‘Entre o serviço da casa e o ganho’: escravi-
dão em Salvador na primeira metade do século XVIII” (Dissertação de Mestrado, Universidade
Federal da Bahia, 2010); Carlos da Silva Júnior, “Identidades Afro-Atlânticas: Salvador, sé-
culo XVIII (1700-1750)” (Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Bahia, 2011);
Moacir Rodrigo de Castro Maia, “De reino traficante a povo traficado: a diáspora dos Cou-
rás do Golfo do Benim para as minas de ouro da América Portuguesa (1715-1760)” (Tese de
Doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2013).
INTRODUÇÃO 33
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA
O significado das nações era mais profundo do que apenas seu aspecto
étnico. Através da organização de pessoas de diferentes etnias em torno
de uma identidade ladina, recriada na diáspora, era possível organizar-se
coletivamente para as políticas de negociação ou de confronto no seio
da sociedade escravista. Este é um dos argumentos chave de Renato
da Silveira em seu capítulo para este livro. O autor passa em revista os
debates sobre o conceito de nação africana nos últimos quarenta anos,
seus significados e abordagens. Ele discute o sentido atribuído ao vocá-
bulo nação por autores nacionais e estrangeiros, e os problemas teóricos
e metodológicos de cada abordagem. Para este fim, Silveira adota uma
perspectiva de longue durée, que abarca desde a Roma antiga até o Brasil
escravista. Por fim, ele apresenta sua própria abordagem do tema, ana-
lisando a formação das nações africanas enquanto “instituições cívicas”
constituídas, politicamente, em meio ao turbilhão de uma história plural,
profunda e complexa.
Uma das nações de maior expressão na Bahia foi a jeje. Estima-se que
o Brasil recebeu 47% dos 626 mil africanos exportados do golfo do Benim
entre 1701 e 1740, na sua maioria pertencentes a grupos de linguas gbe.
Se trata de nossos jejes. Parcela significativa destes foram capturados
em decorrência da expansão do reino do Daomé nas primeiras décadas
do século XVIII. Na era do rei Agajá (c. 1716-1740), o reino ampliou suas
fronteiras quando conquistou Weme (1716), Alada (1724), Uidá (1727) e
Jakin (1732). O Daomé também transformaria o território do Mahi num
“campo de caça a escravos”, segundo sentenciou o historiador I. A. Akinjo-
gbin.41 A interpretação canônica – entre os observadores contemporâneos
e os historiadores atuais – enfatiza a relação íntima entre a ascensão do
Daomé e a venda de cativos para os negociantes europeus.42
Tal aspecto, no entanto, não parecia tão óbvio para os historiadores
nos anos imediatamente posteriores à independência do Daomé em 1960,
***
Fica assim traçado o plano deste livro. Seus capítulos reforçam a ideia
de quão significativo foi o impacto do tráfico de escravos nas sociedades
localizadas nos dois lados do Atlântico. Da montagem do sistema econômico
que tinha no tráfico de africanos um de seus pilares, à recente política de
memória que busca acertar contas com o passado, os temas são variados,
densos, alguns inquietantes. Nem todos os tópicos relacionados com o
tráfico, aliás, estão aqui presentes, o que fica claro, em alguns casos, nos
comentários acima feitos pelos organizadores a respeito da historiografia
de um vasto campo de pesquisa que não para de crescer.
Atlântico da dor representa, assim, uma contribuição para os estudos
da história da África atlântica, do tráfico de escravos e da diáspora africana
nas Américas. Ao reunir artigos de diferentes períodos, o livro evidencia
os avanços historiográficos nos últimos cinquenta anos. Apesar do título,
a obra não fala apenas de sofrimento; fala também da resistência física
e cultural de milhões de homens e mulheres que atravessaram o oceano
nos porões de navios negreiros e refizeram no Novo Mundo suas vidas
nos planos material, institucional e simbólico a partir de uma mistura
do que trouxeram de experiências passadas e do que aqui encontraram
de experiências acumuladas por gerações anteriores de cativos e seus
descendentes. Uma história que, 166 anos depois do fim do tráfico e 128
anos após a abolição da escravidão, está longe de ter um ponto final.
43 Akinjogbin, Dahomey and its Neighbours, pp. 73-81. Esse argumento é contestado por vá-
rios autores, entre eles Law, The Slave Coast, pp. 300-308.
INTRODUÇÃO 35
PARTE I
Através do Atlântico
CAPÍTULO 1
1 Uma versão deste trabalho foi apresentada na II Reunião Internacional: História da Áfri-
ca (Rio de Janeiro 30 de outubro de 1996). Agradeço aos organizadores deste evento a
oportunidade de dele participar. Agradeço também ao Prof. João José Reis, a seus colegas
e alunos do Programa de Pós-Graduação em História da UFBa pela oportunidade de discu-
tir estes assuntos num seminário animado e estimulante.
2 Em graus diversos: Sidney Greenfield, "Plantations, Sugar Cane and Slavery", Histori-
cal Reflections/Réflections historiques, no. 6 (1979), pp. 85-119; também "Madeira and
the Beginning of New World Sugar Cane Cultivation and Plantation Slavery: A Study
in lnstitution Building", in Vera Rubin e Arthur Tuden, (orgs.), Comparative Perspec-
tives on Slavery in New World Plantation Societies (Annals of the Nova York Acade-
my of Sciences, vol. 292) (Nova York: New York Academy of Sciences, 1977). pp. 536-
52; Michael M. Craton, "The Historical Roots of the Plantation Model", Slavery and Ab-
olition, 5, 3 (1984), pp.189-221; William D. Phillips, Jr., ''The Old World Background of
Slavery in the Americas", in Barbara L. Solow (org.), Slavery and the Rise of the Atlan-
tic System (Cambridge MA: W.E.B. DuBois lnstitute for Afro-American Research; Nova
York: Cambridge University Press, 1991), pp.43-61. Também a introdução em Stuart B.
39
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA
continuação 2
3 Curiosamente, um geógrafo, antes que um historiador, embora com apetite pela história:
John H. Galloway. The Sugar Cane Industry: An Historical Geography from its Origins to
1914, Cambridge: Cambridge University Press. 1989; veja também o artigo anterior des-
te autor, "The Mediterranean Sugar Industry", Geographical Review, no. 67 (1977), pp.
177-94.
4 Barbara L. Solow, "Capitalism and Slavery in the Exceedingly Long Run", Journal of Ethnic
Studies, vol. 17, no. 4 (1987),pp. 711-37; Solow e Stanley L. Engerman, (orgs.), British Cap-
italism and Caribbean Slavery: The Legacy of Eric Williams, Nova York: Cambridge Uni-
versity Press. 1987; Solow (org.), Slavery and the Rise of the Atlantic System.
5 Schwartz, Sugar Plantations.
6 Philip D. Morgan, “Whither the Comparative History of New World Slavery”, Jour-
nal of Ethnic Studies, vol. 8, no. l (1980), pp. 94-109. Há sínteses que mostram cada
vez maior sensibilidade histórica, como Peter Kolchin, American Slavery, 1619-1877,
Nova York: Hill and Wang, 1993; e sempre o trabalho de Ira Berlin, "From Creole to
African: Atlantic Creoles and tthe Origins of African-American Society in Mainland
North America", William and Mary Quarterly, vol. 53, no. 2 (1996), pp. 251-88.
7 Os muitos trabalhos de John K. Thornton, esp. Africa and Africans in the Making of the At-
lantic World, 1400-1680, Nova York: Cambridge University Press, 1992. Também Douglas
B. Chambers, “‘My Own Nation’: Igbo Exiles in the Diaspora”, Slavery and Abolition, vol.
18, no. 1 (1997), pp. 72-97. O argumento contrário foi recentemente reafirmado em Sid-
ney Mintz e Richard Price, The Birth of African-American Culture: An Anthropological
Perspective, Boston: Beacon Press, 1992 (originalmente An Anthropological Approach to
the Afro-American Past [Philadelphia: lnstitute for the Study of Human Issues, 1976]).
algo assim) no século XVI, a mão de obra para apoiar qualquer iniciativa
nas Américas teve de ser importada de fora. Mesmo assim, por que os
africanos? Os imigrantes provenientes da Península Ibérica não exis-
tiam necessariamente, e os da Inglaterra surgiam só em momentos de
recessão econômica. 8 Se tivessem chegado em números elevados, teriam
diminuído na Europa os mercados domésticos de consumo dos produtos
provenientes do Novo Mundo. E o pagamento de salários, ou de outros
incentivos monetários com que os colonos livres do velho continente
contavam, teriam àquela altura distribuído demasiadamente o dinheiro
disponível dos dois lados do Atlântico, prejudicando o crescimento revo-
lucionário da empresa capitalista, crescimento obtido na Europa através
da concentração de rendas. Conforme ocorreu, a maioria dos imigrantes
partiu sob condições em que não havia nenhum dinheiro em jogo, como
servos temporários – indentured servants, em inglês – ou atraídos pelas
terras praticamente gratuitas da América do Norte.
Mas a África não estava incluída no padrão monetário de ouro e prata
da Europa e da Ásia, o que levou os africanos a trocar mercadorias, e even-
tualmente pessoas, por produtos que os europeus não consideravam como
dinheiro.9 Para os europeus, trocar mão de obra na África por mercadorias
permitia-lhes conservar o escasso dinheiro, vital à emergente reorganização
capitalista da produção na Europa. Além disto, nas Américas, os africanos
escravizados, como propriedade que eram, adquiriram um valor monetário
e, como tal, representavam garantia financeira adicional nas fronteiras da
economia atlântica, onde os espaços vastos e abertos deixaram a terra com
tão pouco valor que os bens imobiliários sozinhos não garantiam o crédito
nos montantes necessários para ocupar territórios afastados, fazer com
que estes se tomassem produtivos, cobrir os custos elevados da sua conso-
lidação política e seu controle econômico. No contexto desta intensificação
do ritmo de crescimento econômico na Europa, e da prolongada atração
pela Ásia como fonte de especiarias e outras oportunidades comerciais, as
regiões do Atlântico sem minas de ouro ou prata – tanto na África como nas
Américas –durante muito tempo permaneceram lugares demasiadamente
incertos para atrair os mercadores-investidores já estabelecidos, que des-
frutavam de melhores oportunidades nas menos arriscadas economias da
Europa e do Oriente. Assim, as regiões não produtoras de prata ou ouro do
Novo Mundo e de quase toda a África, após fins do século XVI, ficaram sem
10 Um tema estabelecido há anos para as Ilhas do Cabo Verde: Antônio Correia Silva, “Subsí-
dios para a história geral do Cabo Verde: as secas e fomes nos séculos XVII e XVIII”, Studia,
no. 54 (1994), pp. 365-82; e para a África Ocidental em geral, George E. Brooks, Jr. Land-
lords and Strangers: Ecology, Societv, and Trade in Western Africa, 1000-1630, Boulder
CO: Westview Press, 1993. Para Angola. Joseph C. Miller, “Drought, Disease, and Famine
in the Agriculturally Marginal Zones of West-Central Africa”, Journal of African History,
vol. 23, no. 1 (1982), pp.17-61.
11 Patrick Manning, “Contours of Slavery and Social Change in Africa”, American Histori-
cal Review, vol. 88, no. 4 (1983), pp. 835-57 (tradução: “Escravidão e mudança social na
África”, Novos Estudos CEBRAP, no. 21 [1988]. pp. 8-29). Para o tráfico angolano: Joseph C.
Miller, “Slave Prices in the Portuguese Southern Atlantic. c. 1600-1830”, in Paul E. Love-
joy (org.), Africans in Bondage: Studies in Slavery and the Slave Trade (Madison: Afri-
can Studies Program, University of Wisconsin – Madison; University of Wisconsin Press,
1986), pp. 43-77 (baseado emMiller, “Quantities and Currencies: Bargaining for Slaves on
the Fringes of the World Capitalist Economy” [Comunicação ao congresso “Escravidão –
Congresso Internacional” [São Paulo, Brasil, 7-11 de junho de 1988]). Indicações de cálcu-
los deste tipo em: David Richardson, “Prices of Slaves in West and West-Central Africa: To-
ward an Annual Series, 1698-1807”, Bulletin of Economic Research, vol. 43, no. 1 (1991),
pp. 21-56, e Paul E. Lovejoy e David Richardson, “British Abolition and Its Impact on Slave
Prices Along the Atlantic Coast of Africa, 1783-1850”, Journal of Economic History, vol.
55, no. 1 (1995), pp. 98-119.
12 Para o tráfico português do século XV: Ivana Elbl, “The Volume of the Early Atlantic Slave
Trade, 1450-1521”, Journal of African History, vol. 38, no. 1 (1997), pp. 31-75; Paul E. H.
Hair, The Founding: of the Castelo de São Jorge da Mina, Madison: African Studies Pro-
gram, University of Wisconsin, 1994; Hair, “The Early Sources on Guinea", History in Af-
rica, no. 21 (1994), pp. 87-126. Abastecimento suficiente era a condição mais importante
da viagem com escravos: Joseph C. Miller, “Overcrowded and Undernourished: The Tech-
niques and Consequences of Tight-Packing in the Portuguese Southern Atlantic Slave
Trade”, in Serge Daget (org.), De la traite à l'esclavage (Actes du Colloque international
sur la traite des Noirs, Nantes 1985) (Paris/Nantes: Société Française d'Histoire d'Outre-
Mer and Centre de Recherche sur l’Histoire du Monde Atlantique, 1988), vol. 2, pp. 395-
424; David Richardson, “The Costs of Survival: The Transport of Slaves in the Middle Pas-
sage and the Profitability of the 18th-Century British Slave Trade”, Explorations in Eco-
nomic History, vol. 24, no. 2 (1987), pp. 178-96 (reeditado em Daget (org.), De la traite à
l’esclavage, vol. 2, pp. 169 81).
Fonte: Philip D. Curtin, The Rise and Fall of the Plantation Complex: Essays on Atlantic History
(Nova York, Cambridge University Press, 1990), p. 19.
Fonte: Curtin, The Rise and Fall of the Plantation Complex, p. 20.
16 Tenda de índios norte-americanos, com paus fixados em ângulos precários como se es-
tivessem isolados, mas amarrados juntos para estabelecer uma estrutura triangular
muito estável; frase de Robin Winks, (org.), Slavery: A Comparative Perspective: Rea-
dings on Slavery from Ancient Times to the Present, Nova York: New York University
Press, 1972.
Fonte: Michael L. Conniff e Thomas J. Davis, Africans in the Americas: A History of the Black
Diaspora, Nova York: St. Martin’s Press, 1994, p. 18.
17 Robert A. Garfield. History of São Tomé Island 1470-1655: The Key to Guinea, San Fran-
cisco: Mellon, 1992.
18 Esta narrativa existe no texto erudito e agradável de Alberto da Costa e Silva, A enxada e
a lança: a África antes dos portugueses, 2ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, esp.
caps. 9, 11, 13, 16-18, 21-23.
19 Isabel de Castro Henriques, “Ser escravo em S. Tomé no século XVI: uma outra leitura
de um mesmo quotidiano”, Revista Internacional de Estudos Africanos, no. 6-7 (1987),
pp. 167-78.
20 Harold B. Johnson, “The Portuguese Settlement of Brazil”, in Leslie Bethell (org.), The
Cambridge History of Latin America (Nova York: Cambridge University Press, 1984), vol.
1, pp. 249-86.
21 Joseph C. Miller, “The Slave Trade”, in Jacob Ernest Cooke (org.), Encyclopedia of the North
American Colonies (Nova York: Charles Scribner’s Sons, 1993), vol. 2, pp. 45-66.
22 Jan Vansina, “Quilombos on São Tomé, or In Search of Original Sources”, History in Africa,
no. 23 (1996), pp. 453-59.
23 Miller, “Drought, Disease, and Famine”.
24 Beatrix Heintze, Studien zur Geschichte Angolas in 16, und 17. Jahrhundert: ein Lese-
buch (Köln: Rüdiger Köppe Verlag, 1996); incluindo “Das Ende des unabhängigen Staates
Ndongo (Angola)”, Paideuma, no. 27 (1981), pp. 197-273; “Der portugiesische Besiedlungs-
und Wirtschaftspolitik in Angola, 1570-1607”, Aufsätze zur portugiesischen Kulturges-
chichte, no. 17 (1981-82), pp. 200-219; “Waren die Tage des Königreichs Ndongo nach
Ankunft der Portugiesen gezählt? Zum Handlungsspielraum des ngola 1575-1671”, Sae-
culum, vol. 34, no. 3-4 (1986), pp. 270-90; também “Unbekanntes Angola: der Staat Ndon-
go im 16. Jahrhundert”, Anthropos, no. 72 (1977), pp. 749-805; e Ilídio do Amaral, O Reino
do Congo, os Mbundu (ou Ambundos), o Reino dos “Ngola”(ou de Angola) e a presença por-
tuguesa, de finais do século XV a meados do século XVI, Lisboa: Ministério de Ciência e da
Tecnologia, Instituto de Investigação Científica Tropical, 1996.
25 Schwartz, Sugar Plantations; José Gonçalves Salvador, Cristãos-novos e o comércio no
Atlântico meridional (com enfoque nas capitanias do Sul 1530-1680), São Paulo: Pionei-
ra/Brasília, Instituto do Livro, 1978.
26 Um projeto ainda para o futuro neste ramo de pesquisas. Ver Alejandro de la Fuente Gar-
cía, “El mercado esclavista habanero, 1580-1699: las armazones de esclavos”, Revista de
Índias, vol. 50, no. 189 (1990), pp. 371- 395; Lutgardo Garcia Fuentes, “La introducción de
esclavos en Índias desde Sevilla en el siglo XVI”, in Andalucía y América en el siglo XVI
(Actas de las II Jornadas de Andalucía y América - Universidad de Santa María de la Rá-
bida, Março 1982) (Sevilha: Escuela de Estudios Hispano-Americanos de Sevilla, 1993).
vol. 1, pp. 249-274; Lorenzo E. López y Sebastián e Justo L. del Rio Moreno, “Comercio y
transporte en la economia del azucar antillano durante el siglo XVI”, Anuario de estudios
americanos, no. 49 (1992), pp. 55-87; Esteban Mira Caballos, “Las licencias de esclavos ne-
gros a Hispanoamérica (1544-1550)”, Revista de Índias, no. 201 (1994), pp. 273-99. Entre
estudos mais antigos: Carlos Sempat Assadourian, El tráfico de esclavos en Córdoba de
Angola a Potosi. siglos XVI-XVII, Córdoba: Dirección General de Publicaciones, 1966; Vi-
centa Cortés Alonso, “La trata de esclavos durante los primeros descubrimientos (1489-
1516)”, Anuario de Estudios Atlánticos, no. 9 (1963), pp. 23-50; Rozendo Sampaio Garcia,
“Contribuição ao estudo do aprovisionamento de escravos negros na América Espanhola
(1580 - 1640)”, Anais do Museu Paulista, no. 16 (1962), pp. 1-195; Enriqueta Vila Vilar, “Los
asientos portugueses y el contrabando de negros”, Anuario de Estudios Americanos, no.
30 (1973). pp. 557-609; idem, Hispanoamérica y el comercio de esclavos: los asientos por-
tugueses, Sevilha: Escuela de Estudios Hispano-Americanos, 1977; e o clássico de Geor-
ges Scelle, La trarte négrière aux Indes de Castille, contrats et traités d’assiento: étude
de droit public et histoire diplomatique puisée aux sources originales et accompagnée de
plusíeurs documents inédits, Paris: L. Larose et L. Tenin, 1906.
27 Johannes Postma. The Dutch in the Atlantic Slave Trade 1600-1815, Nova York: Cam-
bridge University Press, 1990.
30 Entre os seus vários estudos: Hilary McD. Beckles, “’Black Men in White Skins’: The For-
mation of a White Proletariat in West Indian Slave Society”, Journal of Imperial and Com-
monwealth History, vol. 15, no. 1 (1986), pp. 5-21; “Black over White: The ‘Poor White’
Problem in Barbados Slave Society”, Immigrants and Minorities, vol. 7, no. 1 (1988), pp.
1-15; “The Economic Origins of Black Slavery in the West Indies, 1640-1680: A Tentative
Analysis of the Barbados Model”, Journal of Caribbean History, no. 16 (1982). pp 36-56;
White Servitude and Black Slavery in Barbados. 1627-1715, Knoxville: University of Ten-
nessee Press, 1989; em co-autoria com Andrew Downes, “An Econornic Fomalization of
the Origins of Black Slavery in the British West Indies, 1624-1645”, Social and Economic
Studies, vol. 34, no. 2 (1985). pp. 1-25.
Mudanças na continuidade
Todos os elementos de um sistema agrícola maduro estavam, fi-
nalmente, nos seus devidos lugares no início do século XVIII, apoiados
a partir daí por uma rede de comércio de escravos eficiente, liderada
pelos chamados “comerciantes livres” atraídos pelos ganhos financeiros
que, por essa época, já estavam à disposição de indivíduos habilidosos e
afortunados, integrados às extensas propriedades canavieiras da Jamaica
e Saint Domingue. Esta combinação, todavia, permaneceu tão dispendiosa
que somente se difundiu pelas ilhas inglesas do Caribe através de uma
política de subsídios adicionais indiretos, por exemplo, a grande ferti-
lidade de terras virgens e gratuitas, a lenha barata da Jamaica e outras
ilhas do Caribe, as oportunidades que os traficantes de escravos tinham
de compensar o risco de vender a colonos endividados com a vantagem
de vender aos espanhóis em troca de prata, durante os anos em que
a South Seas Company deteve o asiento espanhol (1713-39) 32 e, mais
tarde, o contrabando de mercadorias para o Brasil em troca do ouro lá
existente. Também podiam importar gêneros alimentícios a preços mais
acessíveis dos agricultores livres da América do Norte, que empregavam
mão de obra familiar. O crescente grau de sofisticação do capitalismo
mercantil inglês, em finais do século XVII, aumentou estes subsídios,
assim como o apoio dos fornecedores africanos que, a esta altura, tinham
31 David W. Galenson, Traders, Planters and Slaves: Market Behavior in Earlv English Amer-
ica, Nova York: Cambridge University Press. 1986.
32 Colin A. Palmer, Human Cargoes: The British Slave Trade to Spanish America, 1700-1739.
Urbana IL: University of Illinois Press, 1981.
33 Douglas B. Chambers, “‘He Gwine Sing He Country’: Africans and Afro-Virginians in the
Development of a Slave Culture in Virginia, 1680-1810” (Tese de Doutorado, University
of Virgínia, 1996), tese revista e publicada como Murder at Montpelier: Igbo Africans in
Virgia, Jacksom, Miss.: The University Press of Mississipi, 2005.
34 Veja, por exemplo, Michael M. Craton, Sinews of Empire: A Short History of British Slav-
ery, Garden City: Anchor Press, 1974.
35 Exatamente o contrário do que se encontra em obra recente: "Nem a escravidão, nem o sis-
tema da plantation eram novos quando emergiram nas Pequenas Antilhas e alhures nas
Américas. [...]. Os engenhos tinham se desenvolvido no Mediterrâneo e nas ilhas da costa
atlântica da África antes de ressurgirem com a redescoberta das Américas. Na verdade,
sua história anterior ajuda a explicar a rápida expansão da escravidão nas [...] colonias. [
...] [Mas] as condições de produção não eram baseadas num novo conjunto de inovações no
Novo Mundo [...]: Stanley L. Engerman, “Europe, the Lesser Antilles, and Economic Expan-
sion, 1600-1800”, in Robert L. Paquette e Stanley L. Engerman (orgs.), The Lesser Antilles
in the Age of European Expansion (Gainesville: University Press of Florida, 1996), p. 148.
Se nota que o sucesso do sistema é aqui atribuído a uma presumida estabilidade.
69
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA
Por sua vez, Caio Prado Jr., em sua obra clássica Formação do Brasil
contemporâneo, via o recurso ao trabalho africano como uma “exigência”
da colonização europeia nos trópicos, ao lado da grande propriedade
monocultora; o trabalho forçado e, por conseguinte, o tráfico enquadra-
vam-se no sentido da colonização. Aprofundando a análise de Caio Prado
Jr., Fernando Novais relacionou a escravidão e o tráfico de escravos ao
processo de acumulação primitiva de capitais na Europa. O tráfico de
africanos controlado pelo capital mercantil metropolitano era, ao lado
do exclusivo colonial, um dos elementos fundamentais da acumulação
exógena, já que garantia a transferência para a Metrópole do excedente
econômico produzido pelo braço cativo na América. Vale dizer ainda que
a obra de Fernando Novais era fortemente influenciada pelo livro de Eric
Williams, Capitalism and Slavery, que traçava uma linha genealógica
entre o desenvolvimento industrial inglês e o tráfico triangular entre
Grã-Bretanha, África e as Antilhas inglesas.
Esta historiografia apresentava dois problemas a respeito de sua
interpretação do tráfico de escravos: em primeiro lugar, era escasso o
interesse que tais historiadores demonstravam pelas particularidades
deste comércio, já que geralmente sua atenção se voltava para a ligação
econômica entre o Brasil e a Europa; a oferta de braços africanos era
pressuposta pela existência da demanda americana. Em segundo lugar,
era pequena a pesquisa original a respeito do tráfico, de maneira que estes
historiadores costumavam generalizar a partir das crônicas da época e
dos poucos relatos publicados a este respeito.
Trabalhos mais recentes têm lançado novas luzes sobre as parti-
cularidades do comércio de escravos e, ao mesmo tempo, têm tentado
reinterpretar a história do Brasil frente ao tráfico. Manolo Florentino,
por exemplo, vem afirmando que o tráfico de escravos era dominado pelo
“capital mercantil residente” no Brasil, de maneira que este comércio não
deveria ser entendido pela sua relação com o processo de industrialização
na Europa, mas sim pela função que exercia nas sociedades coloniais, pois
garantia a reprodução do escravismo e do capital mercantil no Brasil e
permitia a reposição das sociedades hierárquicas africanas vinculadas
a este tipo de comércio. A acumulação de riqueza no interior da colônia
(acumulação endógena), produzida pelo tráfico de escravos e pelo mercado
colonial, permitiria à economia colonial brasileira resistir às conjunturas
externas negativas.4
4 Manolo Florentino, Em costas negras, São Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp.
9-10, 210. Ver também João L. Fragoso e Manolo Florentino, O arcaísmo como negócio:
mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tar-
dia: Rio de Janeiro, c. 1790 – c. 1840, 4ª ed. revista, Rio de Janeiro: Civilização Brasilei-
ra, 2001.
5 “A chave do sucesso brasileiro estava nas mercadorias que financiavam seus investi-
mentos. Se no período formativo centraram suas estratégias em mercadorias com bai-
xo custo de produção, mais tarde financiaram suas atividades com as fazendas asiáti-
cas que tinham mais valor que o produto fundamental nos seus negócios nos sertões
angolanos, as cachaças brasileiras [...]”: Roquinaldo Ferreira, “Dinâmica do comércio in-
tra-colonial. Geribitas, panos asiáticos e guerra no tráfico angolano de escravos (século
XVIII)”, in João Fragoso et. al., O antigo regime nos trópicos (Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2001), p. 345.
6 Roquinaldo Ferreira, “Transforming Atlantic Slaving: Trade, Warfare and Territorial Con-
trol in Angola, 1650-1800” (Tese de Doutorado, University of California, 2003), p. 5 e passim.
7 Luiz Felipe de Alencastro, O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul, São
Paulo: Companhia das Letras, 2000, passim. Vale lembrar ainda que alguns trabalhos pio-
neiros, como os de Affonso de Taunay, Pierre Verger e Mauricio Goulart já haviam aponta-
do para o caráter bilateral do tráfico brasileiro, porém, como os seus livros não avançaram
muito na interpretação deste fenômeno, sua influência sobre a historiografia brasileira
foi relativamente pequena: Affonso Taunay, Subsídios para a história do tráfico africano
no Brasil, São Paulo: Imprensa Oficial, 1941; Pierre Verger, Fluxo e refluxo do tráfico de
escravos entre o Golfo de Benin e a Bahia de Todos os Santos: dos séculos XVII a XIX, Sal-
vador: Corrupio, 1987; Mauricio Goulart, A escravidão africana no Brasil, São Paulo: Alfa
Omega, 1975.
8 Joseph Miller, Way of Death: Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade, 1730-
1830, Madison, Wisc.: University of Wisconsin Press, 1988; José C. Curto, Álcool e escra-
vos: o comércio luso-brasileiro do álcool em Mpinda, Luanda e Benguela durante o tráfi-
co atlântico de escravos (c. 1480-1830) e o seu impacto nas sociedades da África central e
ocidental, Lisboa: Vulgata, 2002.
19 Beatrix Hentize, Angola nos séculos XVI e XVII: estudos sobre fontes, métodos e história,
Luanda: Kilombelombe, 2007), pp. 477-478.
20 Miller, Way of Death, pp. 66-67; Vitorino Magalhaes Godinho, Mito e mercadoria, utopia e
prática de navegar, séculos XIII-XVIII, Lisboa: Difel, 1990, p. 357.
21 18 Sobre a jeribita, ver Alencastro, O trato dos viventes, pp. 307-23. Sobre a Carreira da Ín-
dia, Godinho, “Os portugueses e a carreira da Índia”, p. 357.
22 19 Ver ainda: Ferreira, Transforming Atlantic Slaving, passim.
26 Miller, Way of Death, p. 253, 317 e passim; Joseph C. Miller, “Capitalism and Slaving: The
Financial and Commercial Organization of the Angolan Salve Trade, the Accounts of An-
tonio Coelho Guerreiro (1684-1692)”, International Journal of African Historical Studies,
vol. 17, no. 1 (1984), pp. 1-56.
27 Miller, Way of Death, pp. 296, 377, 457-58, 483-83. José Curto fala de uma primeira inves-
tida dos homens de negócio residentes em Pernambuco e na Bahia, através do regime de
correspondências, sobre o tráfico de Angola no final do século XVII. No entanto, a partici-
pação destas duas capitanias no tráfico angolano foi marginal durante o século XVIII, in-
dicando a retração destes elementos: Curto, Álcool e escravos, p. 148. Ver ainda Maximi-
liano Menz, “As geometrias do tráfico. O comércio metropolitano e o tráfico de escravos
em Angola”, Revista de História, no. 166 (2012), pp. 185-222.
28 As mercadorias estão divididas por quatro classes de origem, segundo reza o título do do-
cumento: Biblioteca Nacional (doravante BN), 15, 3, 33, Fazendas e gêneros da Cultura e
Indústria de Portugal que tiveram despacho na alfândega desta cidade, Fazendas e gêne-
ros da Cultura e Indústria da América Portuguesa, Fazendas e gêneros da cultura e indús-
tria da Ásia, Fazendas e gêneros da cultura e indústria das Nações da Europa que Sua Ma-
jestade Permite entrada nos seus domínios. Na Tabela 1, foram reunidos os produtos eu-
ropeus e portugueses no gênero “Europa”.
29 Curto, Álcool e escravos, p. 161, nota 30 e quadro XI; Alencastro, O trato dos viventes, p.
310. Ver o apêndice onde discutimos a estimativa de José Curto. Estes dados foram aborda-
dos de modo mais abrangente por Joseph Miller, “Imports at Luanda, Angola 1785-1823”,
Além disto, os registros não são uniformes, pois dois deles estão agru-
pados nos originais em duas sequências de anos (1785-1794 e 1795-1797),
com preços médios que muito provavelmente representam os valores do
último ano registrado (respectivamente, 1794 e 1797). Tivemos acesso
ainda a outros anos (1798, 1799, 1802, 1803, 1808 e 1809) que foram
agrupados aqui de dois em dois para formar a Tabela 1.
Constata-se aí que, apesar da penetração dos capitais “brasileiros”,
Luanda geralmente importava mais mercadorias de origem europeia e
asiática do que produtos do Brasil. Em relação à jeribita, sua participação
nas importações angolanas ficou, neste período, entre 11% e 26% (ver
apêndice 1).
Os dados mostram ainda que da Europa eram importados produtos
manufaturados dos tipos mais diversos, destacando-se os têxteis portu-
gueses e ingleses, as ferragens e os armamentos do noroeste europeu.
Da Ásia, e por intermédio principalmente de Lisboa, vinham quase que
exclusivamente têxteis. 30 Já a aguardente era o principal produto ameri-
cano importado, mas outras mercadorias, como açúcar, zimbos e tabaco,
compunham a pauta.
Além disto, os números da alfândega de Luanda, se cruzados com
a balança comercial portuguesa, revelam que a evolução do comércio
português em Angola era positiva no período anterior à invasão francesa.
continuação 29
in G. Liesegang, H. Pasch e A. Jones (org.), Figuring African Trade (Berlin: Reimer, 1986),
pp. 163-225; Daniel Domingues da Silva, “Crossroads: Slave Frontiers of Angola, c. 1780-
1867” (Tese de Doutorado, Emory University, 2011); e Mentz, “As geometrias do tráfico”.
30 A maior parte das mercadorias asiáticas era trazida por embarcações saídas de Lisboa.
No período de 1802-1803, por exemplo, o valor declarado das exportações portuguesas
de produtos asiáticos equivale a 65% das importações deste tipo de produtos registradas
em Luanda: Instituto Nacional de Estatística, Lisboa (doravante INEL), Balanças gerais do
comércio do reino de Portugal com os seus domínios e nações estrangeiras (1796-1807);
Arquivo Histórico Ultramarino (doravante AHU), Angola, Avulsos, caixa 106, doc. 5; caixa
105, doc. 54.
31 Cálculo baseado em cinco anos (1799, 1802-1805): INEL, Balanças gerais do comércio, op.
cit.; Curto, Álcool e escravos, quadro 27, p. 352. Ver Apêndice 2.
32 Johannes Postma, The Dutch in the Atlantic Slave Trade, 1600-1815, Cambridge: Cam-
bridge University Press, 1990, pp. 10-13, 17-18; Bogart e Emmer, “The Dutch Participa-
tion”, pp. 357-359, 374.
40 Curtin, The Atlantic Slave Trade, pp. 210-211; David Richardson, “Slave Exports from
West and West-Central Africa, 1700-1810: New Estimates of Volume and Distribution”,
Journal of African History, vol. 30, no. 1 (1989), pp. 9-11.
41 Joseph Inikori, Africans and the Industrial Revolution: A Study in the International Trade
and Economic Development, Cambridge: Cambridge University Press, 2002, pp. 58-60,
68-71, 758, 287-90, 407-11, 412-51 e 458-72. Sobre as exportações para a África atlânti-
ca pela carreira francesa: Robert L. Stein, The French Slave Trade in the Eighteenth Cen-
tury: An Old Regime Business, Madison, Wisc.: University of Wisconsin Press, 1979, pp.
71-2, 134-35; sobre a participação holandesa, ver Postma, The Dutch in the Atlantic Slave
Trade, pp. 103-105.
42 Sanjay Subrahmanian, O império asiático português, 1500-1700: uma história política e
econômica, Lisboa: DIFEL, 1995, pp. 207-224, 232-245.
43 Glenn J. Ames, “The Estado da Índia, 1663-1677: Priorities and Strategies in Europe and
the East”, Revista Portuguesa de História, no. 22 (1987), pp. 42-43.
44 A. Lopes, E. Frutuoso e P. Guinote, “O movimento da carreira da Índia nos séculos XVIX-
VIII: revisão e propostas”, Maré Liberum, no. 4 (1992), pp. 187-265. Por esta época, Portu-
gal despachava de duas a três naus por ano ao Oriente. Já em meados do século XVII, os ho-
landeses enviavam acima de 20 embarcações para o Índico, enquanto os ingleses, cerca de
10: Neels Steensgard, “The Growth and Composition of Long-Distance Trade of England
and the Dutch Republic Before 1750”, in James D. Tracy (org.), The Rise of Merchant Empi-
res (Cambridge: Cambridge University Press, 1993), p. 109. Lapa chamara a atenção para a
concentração das arribadas e das escalas das naus da Índia na Bahia no século XVIII: José
Roberto do Amaral Lapa, A Bahia e a carreira da Índia, São Paulo: Editora Nacional/Edusp,
1968, pp. 13, 229-30, 253, 268-69, 271 e ss. O autor (pp. 335-39, Quadro 2) contabilizou 84
escalas na Bahia por naus da Índia na primeira metade do século XVIII. Note-se, porém,
que 64 daquelas fizeram a escala na torna-viagem, ou seja, uma média pouco superior a
uma nau por ano entre 1700 e 1750.
45 Joseph C. Miller, “A Marginal Institution on the Margin of the Atlantic System: the Por-
tuguese Southern Atlantic Slave Trade in the Eighteenth Century”, in Barbara L. Solow
(org.), Slavery and the Rise of the Atlantic System (Cambridge: Cambridge University
Press, 1991), pp. 136-137.
46 J. H. Galloway, “Nordeste do Brasil, 1700-1750. Reexame de uma crise”, Revista Brasileira
de Geografia, vol. 36, no. 2 (1974), pp. 85-102; Luiz Felipe de Alencastro, “Engenho de Sem-
pre”, Novos Estudos Cebrap, no 24 (1989), p. 201.
47 Embora desde então se soubesse que tabaco de primeira qualidade era exportado ilegal-
mente para a Costa da Mina pelos negreiros.
48 “Informação Geral da Capitania de Pernambuco, 1749”, Annaes da Bibliotheca Nacional
do Rio de Janeiro, no. 28 (1908), pp. 482-483.
49 Sobre o papel das armas de fogo no tráfico da região da Mina, incluindo a dificuldade por-
tuguesa de supri-las, ver R. A. Kea, “Firearms and Warfare in the Gold Coast and Slave
Coast from the Sixteenth to the Nineteenth Centuries”, Journal of African History, vol.
12, no. 2 (1971) pp. 185-187.
50 A testemunha é João Batista Rolhano, apud Edmundo Correia Lopes, A escravatura. Sub-
sídios para sua história, Lisboa, Agência Geral das Colônias, 1944, p. 119.
51 AHU, Conselho Ultramarino, São Tomé, caixa 4, doc. 85, Consulta do Conselho Ultramari-
no sobre a representação de José de Torres, Lisboa, posterior a 2/11/1721; idem, caixa 4,
doc. 118, Representação de José de Torres sobre os descaminhos do ouro, diamantes e ta-
baco fino na Costa da Mina e projeto de uma Companhia para a Bahia, Lisboa, posterior
a 1724. Ver as conclusões neste mesmo sentido de Roquinaldo Ferreira, "A arte de furtar:
redes de comércio ilegal no mercado imperial ultramarino português,(c. 1690–c. 1750)”,
in João Luís R. Fragoso e Maria de Fátima Gouvêa (orgs.), Nas tramas da rede: política e
negócios no império português, séculos XVI-XVIII (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2010), pp. 203-241.
52 AHU, Conselho Ultramarino, São Tomé, caixa 5, doc. 88, Rellação das tiranias e sem re-
zõens que usão os Olandeses na Costa da Mina com as embarcaçõens da América que a
ella vão fazer negocio, in Carta do governador de S. Tomé Serafim Teixeira Sarmento ao
rei D. João V. S. Tomé, anterior a 13/11/1731.
53 Ibid. Pode-se subtender que, embora estes relatos se refiram às embarcações do Brasil de
forma geral, os negreiros da Bahia deveriam ser os mais envolvidos nestas transações,
dado o volume muito superior do tráfico direto da Bahia com a Costa da Mina.
54 AHU, Conselho Ultramarino, São Tomé, caixa 10, doc. 93, Relação de Gaspar Pinheiro da
Câmara Manoel sobre as Ilhas do Príncipe e São Tomé, Lisboa, 15/061766.
55 AHU, Conselho Ultramarino, caixa 43, doc. 3860, Carta do governador Duarte Sodré Perei-
ra Tibão, in Carta dos oficiais da Câmara de Recife ao rei [D. João V], pedindo deferimento
da conta que deu a dita Câmara e a proposta que fizeram os homens de negócio do Recife
sobre a proibição do comércio [de escravos] com a Costa da Mina, Recife, 23/04/1732.
56 A média foi calculada a partir de apenas três anos disponíveis: 1734, 1737 e 1739. Insti-
tuto dos Arquivos Nacionais Torre do Tombo (IANTT), Junta do Tabaco, maço 100, Supe-
rintendente do tabaco de Pernambuco, Recife, 13/09/1734; idem, maço 101, Superinten-
dente do tabaco de Pernambuco, 26/02/1738; Superintendente do tabaco, 12/03/1738;
e Superintendente do tabaco, Pernambuco [Antonio Rebello Leite], 10/12/1739.
57 Jean Baptiste Nardi, O fumo brasileiro no período colonial: lavoura, comércio e adminis-
tração, São Paulo:Brasiliense, 1996, pp. 113-114.
58 Veja-se o interesse da Royal African Company, que administrava as feitorias inglesas na
África por fazer negócios com os traficantes do Brasil após a descoberta do ouro; sua jun-
ta administrativa informava aos diretores de Cape Coast Castle e da feitoria em Uidá, em
1707: “Havíamos-lhes proibido [aos diretores] que comerciasse com os portugueses […].
Mas agora vemos que existem possibilidades de obter lucros consideráveis, se eles pude-
rem ser levados a trazer ouro para a costa em lugar de outras mercadorias. Desejamos que
[…] encoraje o mais possível os portugueses, mas com a condição de não trazerem merca-
dorias europeias e que possam dispor, em troca de ouro, de mercadorias e negros”: Verger,
Fluxo e refluxo, pp. 57-62. A citação é da p. 61 (grifo nosso).
terço dos escravos comprados. Os outros dois terços foram pagos com
têxteis, ferro e búzios, adquiridos de um negreiro holandês e de um
outro, inglês. Embora o documento não mencione o embarque de ouro,
é provável que o mesmo fosse embuçado sob o nome de “seda”, com a
qual se pagou boa parte das manufaturas e dos búzios utilizados no
tráfico. 59
A conta da carregação foi apresentada junto com outros documentos
produzidos em Pernambuco e enviados ao reino com vistas a subsidiar
a formação da Companhia de Comércio, o que reforça a desconfiança
de que se omitiu o ouro. No entanto, num dos documentos, menciona-se
expressamente a necessidade de 3.343 oitavas para compor a carga de
um negreiro de lotação média.60
Portanto, numa primeira aproximação, é possível estimar que o
tabaco foi responsável pela aquisição de um terço à metade dos escravos
comprados diretamente pelas praças do norte do Brasil. A participação
relativa do ouro (equivale a dizer, de manufaturados) e do tabaco neste
ramo do tráfico transatlântico de escravos pode ter sido diretamente
proporcional à abundância do metal precioso em terras da América
portuguesa ao longo do século XVIII. Isto, no entanto, é um aspecto que
requer futuras investigações.
Considerações finais
A análise comparada do tráfico de escravos luso-brasileiro em suas duas
principais vertentes permite-nos chegar às seguintes conclusões:
a) Do ponto de vista dos produtos utilizados no resgate de cativos, existe
uma diferença fundamental entre o tráfico de Angola e o tráfico da
Costa da Mina: no primeiro caso, os produtos americanos, com um
relevo especial para a jeribita, não eram tão significantes, ocupando
algo em torno dos 20% e 35% das importações angolanas no século
XVIII. No segundo caso, as mercadorias tropicais, especialmente
o tabaco, equivaleram de 35% a 50%, pelas nossas estimativas,
do valor dos escravos importados da Costa da Mina pelo Brasil.
O restante foi, em grande medida, pago, direta ou indiretamente,
em ouro produzido no Brasil e com as manufaturas. Atente-se que
sua função na economia atlântica e no tráfico era, porém, muito
59 AHU, Conselho Ultramarino, São Tomé, caixa 100, doc. 8, Entrada da carregaçam que no
Recife de Pernambuco o snr. Jozé de Freitas Sacotto na sua galera por invocação Aleluya
da Surreição e Almas, a mim Jozé Francisco Rocha, Recife, 1752. Este documento é ana-
lisado em Gustavo Acioli Lopes, “Negócio da Costa da Mina e comércio atlântico: tabaco,
açúcar, ouro e tráfico de escravos: capitania de Pernambuco (1654-1760) (Tese de Douto-
rado, Universidade de São Paulo, 2007), pp. 148-167.
60 AHU, Conselho Ultramarino, São Tomé, caixa 100, doc. 8, Relação no 5, s.d.
61 Em certa medida, o mesmo acontecia com o tabaco de primeira, que era ilegalmente
exportado para a Costa da Mina e trocado por manufaturas nas feitorias e negreiros
europeus.
62 A este respeito tendemos a concordar com Joseph Inikori que avalia a contribuição afri-
cana para a revolução industrial inglesa não apenas pelo tráfico de escravos, mas ainda
continuação 62
65 Inikori, Africans and the Industrial Revolution, pp. 382-83; Miller, Way of Death, pp. 100-
103; Wallerstein, El moderno sistema mundial, p. 137. Sobre os efeitos negativos do co-
mércio escravista sobre a produção têxtil africana, cf. J. Inikori, “English Versus Indian
Cotton Textiles: The Impact of Imports on Cotton Textile Production in West Africa”, in
Giorgio Riello e Roy Tirthankar (orgs.), How India clothed the world: the world of South
Asian Textiles, 1500-1850 (Boston, MA: Brill, 2009), pp. 85-114.
66 Wallerstein, El moderno sistema mundial, vol. I, p. 137.
Apêndice 1:
Nota sobre o cálculo da participação relativa da
jeribita no tráfico de escravos em Angola
Para o final do século XVIII existem os já analisados dados da al-
fândega de Luanda, que permitem estabelecer com alguma segurança
o peso relativo da jeribita nas importações angolana totais. José Curto
publicou uma série mais longa que reproduzimos aqui com a adição do
ano de 1808, segundo documento que consta no Arquivo Nacional. To-
mamos o cuidado ainda de checar os dados deste autor com os originais
a que tivemos acesso.
O problema maior são as estimativas de José Curto para o período
anterior, que se baseiam num testemunho segundo o qual Angola e
Benguela haviam importado diretamente do Brasil, durante a década
de 1760, um valor total de 1.600.000.000 réis. Deste total, a jeribita
equivaleria à metade 800.000.000 réis, ou a 3/4 deste valor sendo de
82% a participação de Luanda no mercado da cachaça suas importações
1.200.000.000 réis, deste produto ficariam entre um valor de 656.000.000
réis e 984.400.000 réis.
Com estes dois últimos valores, o autor conclui que, na década de
1760, as importações da cachaça teriam representado entre 21% e 32%
das exportações totais de Luanda e entre 27% e 40,5% dos 82.911 cativos
embarcados para o Brasil.
Ora, de onde o autor retirou a estimativa de que as importações de
jeribita seriam entre metade e 3/4 do total importado do Brasil? A única
fonte apresentada está na nota 30:
Durante o final da década de 1790 e o início do século
XIX, isto é, depois dos comerciantes coloniais no Brasil
começarem a reforçar o seu comércio de geribita [sic], tanto
em Luanda como em Benguela, com produtos comerciais
euroasiáticos, a cachaça ainda representava 45% do valor
de todas as importações da terra de Vera Cruz. Este número
é retirado dos valores combinados de Luanda-Benguela da
gerebita importada em 1798, 1802 e 1809.67
Pela fonte original, observa-se que, nos mapas de 1798, 1802 e 1809,
se repete a metodologia dos de 1785-1794 e 1795-1797, apresentando
os lugares de produção das diferentes mercadorias importadas e não o
porto onde elas foram embarcadas por último. 68 A distorção só não foi
Fonte: Curto, Álcool e escravos, quadro 27, p. 352; AN, Real Junta de Comércio, caixa 448, pacote
1. Os valores referentes a 1785-1794, 1795-1797 e 1830-1832 são médias anuais. O total de
1803 foi corrigido pelo original que consta no AHU.
continuação 68
Fontes: Para o número de pipas importadas, Curto, Álcool e escravos, quadros 3, 5, 6, 10.
Para o número de escravos exportados entre 1699-1703, utilizamos a média anual de
escravos oficialmente exportados por Luanda, entre 1710-1714, reproduzindo o método de
Eltis, Behrendt e Richardson para estimar as exportações entre 1701-1709. Cálculos sobre
outras fontes, como, por exemplo, as estimativas do The Trans-atlantic Slave Trade Database
sugerem uma média anual superior em mais de 1.000 cabeças. No entanto, optou-se pela
menor estimativa, porque ela vai contra o nosso argumento, sobrelevando o poder de compra
da cachaça no período: David Eltis, Stephen Behrendt e David Richardson, “A participação
dos países daEuropa e das Américas no tráfico transatlântico de escravos: novas evidências”,
Afro-Ásia, no. 24 (2000), p. 33; David Eltis et. al., “West Central Africa and St. Helena Estimates”,
http:// www.slavevoyages.org/tast/assessment/estimates.faces, acessado em 24/02/2008. Os
demais números foram retirados de Curto, Álcool e escravos, quadros 4 e 8. Os preços de uma
pipa de aguardente e de um escravo em 1797 foram retirados de BN, 15, 3, 33. Optou-se por este
ano porque ele registra preços relativamente médios, especialmente para a pipa de aguardente,
que deveria flutuar muito em relação à oferta, daí os extremos de 36.000 réis em 1799 e 90.000
réis em 1802: Curto, Álcool e escravos, quadro 20.
Apêndice 2:
Nota sobre a participação lisboeta nas importações
angolanas (17991805)
Simultaneamente à produção dos registros da alfândega de Luanda,
preparavam-se balanças de comércio de Portugal, utilizando-se os dados
das alfândegas dos portos do Reino. Estes dois tipos de registros não são
diretamente comparáveis em razão das diferenças de metodologia, da óbvia
assincronia entre as partidas do Reino e as chegadas em Luanda e da incerteza
entre a intenção do destino declarado no porto de origem e a efetivação do
negócio na África. Na média do período, porém, estas distorções devem-se
reduzir, como mostra a tabela 4:
Exportações de Importações de %
Ano
Portugal Luanda ExpPort
1799 427.829 581.280 74%
1802 531.446 998.802 53%
1803 480.789 996.372 48%
1804 586.978 998.522 59%
1805 548.620 1.063.413 52%
Total 2.575.662 4.638.389 56%
Fonte: INEL, Balanços gerais do comércio do reino de Portugal com os seus domínios e nações
estrangeiras (1796-1807); Curto, Álcool e escravos, quadro 27, p. 352. Optou-se por utilizar
os números de José Curto porque a sua série é mais completa do que a nossa; não foi possível
calcular o ano de 1798 porque a balança portuguesa do referido ano não se encontra na
coleção do INEL.
1 José Ribeiro Jr., Colonização e monopólio no Nordeste brasileiro, São Paulo: Oscite 2004; e
Antônio Carreira, As companhias pombalinas, Lisboa: Presença, 1983.
2 Por exemplo, Érika S. A. Carlos, “O fim do monopólio: a extinção da Companhia Geral de Per-
nambuco e Paraíba” (Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Pernambuco, 2001).
95
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA
3 Sigo a documentação da Companhia e boa parte dos registros alfandegários que desig-
nam por “Angola" o comércio feito através do porto de Luanda. Esta designação parece
ser comum no Império português durante o século XVIII, pois, de acordo com Miller, en-
quanto nas colônias das demais nações européias os escravos denominados Angola di-
ziam respeito a todos os indivíduos resgatados ao sul do Cabo Lopes, no Brasil eram de-
signados por “Angola” os escravos despachados por Luanda. Não pretendo generalizar
o “modelo” de funcionamento do tráfico discutido aqui para outras zonas como Loango,
Cabinda e Benguela. Joseph Miller, “África Central durante a era do comércio de escra-
vizados, de 1490 a 1850”, in Linda Heywood (org.), Diáspora negrano Brasil (São Paulo:
Contexto, 2010), pp. 38-42.
4 Joseph Miller, Way of Death: Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade, 1730-
1830, Winscosin: The Universisty of Winsconsin Press, 1988. A historiografia tem avan-
çado bastante no debate a respeito das relações entre o comércio de escravos e as comu-
nidades africanas do interior, o impacto do tráfico sobre a demografia e as guerras no
interior de Angola e demais regiões da África Centro-Ocidental. Ver, por exemplo, John
Thornton, “Early Kongo Portuguese Relations: A New Interpretation”, History in Africa,
no. 8 (1981), pp. 183-204; idem, “As guerras civis no Congo e o tráfico de escravos: a histó-
ria e a demografia de 1718 a 1844 revisitadas”, Estudos Afro-Asiáticos, no. 32 (1997), pp.
55-74; idem, “Cannibals, Witches, and Slave Traders in the Atlantic World”, The William
and Mary Quarterly, Third Series, vol. 60, no. 2 (2003), pp. 273- 294; Roquinaldo Fer-
reira, “Transforming Atlantic Slaving: Trade, Warfare and Territorial Control in Ango-
la,1650-1800” (Tese de Doutorado, Universidade da Califórnia, 2003); José Curto e Ray-
mond Gervais, “A dinâmica demográfica de Luanda no contexto do tráfico de escravos do
continuação 4
Atlântico Sul, 1781-1844”, Topoi, no. 4 (2002), pp. 85-138. Ver também os trabalhos mais
gerais de John Thornton, “The Portuguese in Africa”, in Francisco Bethencourt e Diogo
Ramada Curto (org.), Portuguese Oceanic Expansion, 1400-1800 (Cambridge: Cambrid-
ge University Press, 2007), pp. 138-159; Jan Vansina, “O Reino do Congo e seus vizinhos”;
e Marian Malowist, “A luta pelo comércio internacional e suas implicações para a Áfri-
ca”, ambos in Allan Bethwell (org.), História da África, v. V (Brasília: UNESCO, 2010), pp.
647-695 e pp.1-27, respectivamente; David Birmingham, Trade and Conflict in Angola:
The Mbundu and their Neighbours under the Influence of the Portuguese 1483-1790,
Oxford: Clarendon Press, 1966. Paradoxalmente são poucas as contribuições recentes
sobre a organização financeira do negócio durante o século XVIII, especialmente se con-
siderarmos que existem muitas fontes contábeis e alfandegárias nos arquivos portu-
gueses. Os trabalhos mais abrangentes a este respeito e sobre o século XVIII permane-
cem sendo os de Joseph Miller, “Imports at Luanda, Angola 1785-1823”, in G. Pasch e A.
Jones (orgs.), Figuring African Trade (Berlin: Reimer, 1986), pp. 163-225; Joseph Miller,
“Slave Prices in the Portuguese Southern Atlantic, 1600-1830”, in Paul Love joy (org.),
Africans in Bondage: Studies in Slavery and the Slave Trade (Madison: African Studies
Program, University of Winscousin, 1986), pp. 43-77; e Joseph Miller, “Capitalism and
Slaving: The Financial and Commercial Organization of the Angolan Slave Trade, Ac-
cording to the Accounts of Antonio Coelho Guerreiro (1684-1692)” The International
Journal of African Historical Studies, vol. 17, no.1 (1984), 1-56. Também José Curto tra-
balhou com o material alfandegário de Luanda em seu estudo sobre o papel das bebidas
alcoólicas no tráfico: José Curto, Álcool e escravos: o comércio luso-brasileiro do álcool
em Mpinda, Luanda e Benguela durante o tráfico atlântico de escravos (c.1480-1830) e
o seu impacto nas sociedades da África Central e Ocidental, Lisboa: Vulgata, 2002. Exis-
tem ainda algumas obras mais recentes que tratam do século XVII: Linda Newson e Su-
sie Minchin, From Capture to Sale: The Portuguese Slave Trade to Spanish America in
the early Seventeenth Century, Leiden/Boston: Brill, 2007; e Filipa R. Silva, “Crossing
Empires: Portuguese, Sephardic, and Dutch Business Networks in the Atlantic Slave
Trade, 1580-1640”, The Americas, vol. 68, no. 1 (2011), pp. 7-32.
5 Cf. Carreira, As companhias pombalinas, p. 236. Sobre as lacunas nos livros de demons-
tração ver infra o comentário a respeito dos cálculos de importação e de lucratividade do
negócio.
A B C
1761 1.765 2.308
1762 1.666 1.652 1.694
1763 2.698 2.685 3.349
1764 1.834 1.824 1.834
1765 3.217 3.151 3.217
1766 2.380 2.376 1.973
1767 2.649 2.636 2.445
1768 2.538
1769 758 754 788
1770 1.685 2.119
1771 1.704 1.704 1.227
1772 1.580 1.580 2.366
1773 1.266
6 David Eltis et. al. “Voyages: The Trans-Atlantic Slave Trade Database” (2008), www.sla-
vevoyages. Ressalte-se que o TSTD não é uma fonte totalmente independente e que uma
boa parte de seus dados referentes a Pernambuco no período baseia-se nas mesmas fon-
tes do artigo.
7 OTSTD não registra exportações no ano de 1760, pois o filtro utilizado foi o proprietário
das embarcações (a Companhia) e no ano de 1760 ela pode ter fretado embarcações para
carregar os escravos para Pernambuco. Em todo o caso, no livro de demonstrações cons-
ta uma carga enviada de Lisboa para Angola em 1759 que certamente deve ter produzi-
do uma exportação de escravos no ano seguinte: ANTT, CGPP, Livros de demonstrações,
L-394. Os números da alfândega de Pernambuco estão em certidões, inclusas em AHU, cx.
130, doc. 9823, 13/07/1778, José César de Meneses.
13 Kenneth Maxwell, Chocolate, piratas e outros malandros, São Paulo: Paz e Terra, 1999. Ver
também José A. França, “Burguesia pombalina, nobreza mariana, fidalguia liberal”, in Ma-
ria H. C. Santos (org.), Pombal revisitado, (Lisboa: Estampa, 1984), vol. I, pp. 19-33.
14 Estatuto da Companhia de Pernambuco e Paraíba, artigo 26, apud: Carreira, As compa-
nhias pombalinas, p. 223
15 Ribeiro Jr., Colonização e monopólio, p. 85.
16 Os portugueses possuíam feitorias em Jakin e Ouidah, mas comerciavam também com
as feitorias das outras nações europeias: cf. Robin Law e Kristin Mann, “West África in
the Atlantic Community: The Case of the Slave Coast”, The William and Mary Quarterly,
Third Series, vol. 56, no. 2 (1999), pp. 307-34; Robin Law, “The gold trade of Whydah in the
seventeen and eighteenth centuries”, in David Henige e D. McCaskie (orgs.), West African
Economic and Social History: Studies in Memory of Marion Johnson (Madison: Univer-
sity of Wisconsin, 1990), pp. 105-18. Sobre as diferenças do tráfico em Angola e na Costa
da Mina, cf. Gustavo Acioli Lopes e Maximiliano Menz nesta coletânea. Ver também Gus-
tavo Acioli Lopes, “Negócio da Costa da Mina e comércio atlântico-tabaco, açúcar, ouro
e tráfico de escravos: Pernambuco (1654-1760)” (Tese de Doutorado, USP, 2008); Miller,
Way of Death. Daniel Domingues da Silva afirma que as companhias pombalinas foram
parte de uma tentativa do governo português de “limitar o controle dos mercadores bra-
sileiros sobre o tráfico de Angola”, mas desconheço qualquer documento que comprove
esta ideia. Ver Daniel Domingues da Silva, “Crossroads: Slave Frontiers of Angola, c. 1780-
1867” (Tese de Doutorado Emory University, 2011), p. 53.
21 Curto, Álcool e escravos, quadros IV e VIII; e The Transatlantic Slave Trade Database
(http://www.slavevoyages.org/tast/database/search.faces, consulta do em 25/05/2011).
22 Outro grande operador no tráfico era o contrato Angola. Como, durante a década de 1760,
os contratadores estavam sediados sem Portugal (Estevam José de Almeida e Domingos
Dias da Silva), é muito provável que suas operações repetissem o padrão da CGPP, reme-
tendo grandes cargas de Lisboa. No momento preparo um estudo sobre os contratadores.
Ver ainda Miller, Way of Death, pp. 535-569.
23 Para se chegar a este valor presumiu-se que o número de operações de exportação te-
ria sido igual ao de importação (105), segundo a já referida interpolação dos dados dos
Livros de Demonstrações com outras fontes (ver a introdução do artigo). Daí multipli-
cou-se a diferença (34) entre este valor (105) e o número de operações de exportação
registradas nas demonstrações (71) pela carga média das embarcações que faziam a
rota Angola-Pernambuco (16.801.164 réis), para com isto completar o total exportado
pela administração de Angola entre 1759 e 1780.
que era através da Metrópole que era fornecida a maior parte das mer-
cadorias para o resgate angolano.26
Aliás, se fosse mais rentável enviar produtos preferencialmente
por Pernambuco ou comprá-los em Angola, a Companhia o faria. 27 Isto
fica bastante claro nas instruções da Junta de Lisboa sobre a compra de
fazendas das naus da Índia:
esta junta presume que a esse porto [Luanda] hão de ir
as Naus vindas de Goa, conforme as ordens de S. Maj.,
ordena a V. Mce. que das fazendas que elas trouxerem
podem comprar as que bem lhe bastam para o sortimento
anual do negócio que essa administração aí fizer e de sua
importância sacar letras sobre esta junta com a maior
extensão de tempo em que se puder em ajustar com os
vendedores delas.28
que a carga média do Brasil era de 2,7 contos. Estes valores, porém, não
representam a média das cargas por embarcação de modo exato, pois os
registros contábeis eram sobre as carregações e nem sempre constava
o nome do navio.
Este problema é mais grave para os seis primeiros anos de existência
da Companhia, quando não foram registrados os nomes das embarcações
e, ademais, o aluguel de espaços nas embarcações de outros proprietários
parece ter sido mais comum. Foi o caso de uma carga de 1.413.774 réis em
um navio da Companhia do Grão-Pará e do Maranhão em 1765.30 Por outro
lado, também a Companhia de Pernambuco deveria tomar fretes nas três
pontas do negócio; apesar de não ser possível verificar isto por causa do modo
como eram registrados os fretes na contabilidade da empresa, mas é certo
que depois de 1780 a Junta de Lisboa instruiu os administradores a tomar e
a oferecer fretes em Angola.31
Seja como for, os números da Companhia confirmam uma caracte-
rística geral do negócio de Angola: as naves reinóis carregavam valores
muito maiores que os barcos com origem no Brasil. Portanto, é ilusório
concluir pelo domínio “brasílico” sobre o tráfico baseado na frequência
de embarcações no porto de Luanda.32
As diferenças no valor das cargas e suas consequências sobre a periodici-
dade do negócio revelam-se de modo mais claro se analisarmos graficamente
a entrada de mercadorias ano a ano:
Fontes: ANTT, CGPP, Junta de Lisboa, Livros 394, 395, 470, 471, 290.
33 ANTT, CGPP, Junta de Lisboa, Copiador de Cartas, L-290, 21/05/1773. As palavras são de au-
toria da Junta de Lisboa que comentava uma resposta da administração de Angola. Sobre o
uso do crédito em Benguela, ver Mariana Candido, “Merchants and the Business”, pp. 13-17.
34 Cf. Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), Coleção Lamego, Códice 82, Francisco Inocencio
Coutinho, 03/02/1770; e Joseph Miller, Way of Death.
O tema certamente merece ser mais bem investigado, mas acredito que
uma das explicações para o uso generalizado de crédito é um reflexo do caráter
particular da presença lusitana em África, frente às nações européias. Sem
uma manufatura competitiva e com pequena penetração no mercado asiático,
Portugal conseguia controlar o tráfico em Angola graças a sua presença com
fortalezas no hinterland de Luanda e o exclusivo metropolitano. No entanto,
nas feiras do interior a concorrência com as outras nações, ainda que indireta,
fazia-se presente graças à ação dos pumbeiros que iam buscar mercadorias
nos portos do norte, frequentados por franceses e ingleses. Sendo assim, o
fornecimento de crédito seria um dos atrativos dos mercadores portugueses,
mas este mercado funcionava, ainda que imperfeitamente, com a presença
das instituições portuguesas (governador, ouvidor, juiz de fora) que garantiam,
mesmo que de modo precário, a arrecadação das dívidas.37
35 A outra razão era que a concorrência no fornecimento de produtos americanos era muito
maior, dada a maior frequência dos navios do Brasil.
36 ANTT, CGPP, Junta de Lisboa, Copiador de Cartas, L-290, 21/05/1773. Ver, por exemplo,
Manolo Florentino, Em costas negras. SãoPaulo: Companhia das Letras, 1997. Uma dis-
cussão mais ampla sobre parte da historiografia brasileira está em Menz, “As ‘geome-
trias’do tráfico”.
37 Miller tem uma opinião parecida sobre o crédito: Miller, “The Numbers, Origins”, pp.
85-86. Naturalmente, as outras nações também faziam uso do crédito, por exemplo, as
grandes firmas traficantes inglesas mantinham feitorias na costa da África que forne-
ciam, mas creio que a baixa frequência de embarcações metropolitanas no tráfico an-
golano tornava mais com um o uso do crédito em Angola. Sobre o uso do crédito pelos
ingleses, cf. Joseph Inikori, African and the Industrial Revolution in England: A study
Lucros e prejuízos
Um dos problemas fundamentais na análise das operações da
Companhia de Pernambuco é a estimativa dos lucros. Como já foi dito,
as demonstrações registram pouco mais da metade das operações no
tráfico e a estimativa aqui terá de se basear unicamente nas negociações
reunidas nestes livros.
Além disto, o modo como eram lançados os lucros refletia a morosidade
entre os envios das cargas e a chegada da notícia da realização. Assim, na
maioria das vezes, era lançada uma estimativa dos ganhos no ano em que
era registrada a carregação e apenas nos balanços seguintes era retificada a
estimativa sob o registro “diferença entre o que se orçou e o que realmente
rendeu” em uma carga.38 Deste modo, o cálculo ideal seria separar cada carga
e identificar os lucros reais por cada operação e, depois disto, fazer as somas
e as decorrentes análises. No entanto, há uma dificuldade incontornável, pois
nem sempre as retificações posteriores permitem uma identificação exata
da carga nos balanços anteriores. Para tanto, seria necessário retornar aos
livros originais e construir as fichas individualizadas sugeridas por Carreira,
o que atualmente é impossível.
Sendo assim, o modo para avaliar os lucros foi somar o conjunto de
estimativas de lucros e as retificações posteriores para, com isto, obter
os lucros globais no agregado e nas três rotas do tráfico: Lisboa-Angola, Per-
nambuco-Angola, Angola-Pernambuco. Este cálculo é imperfeito, pois nem
todas as estimativas foram depois corrigidas nos livros, de modo que para
148 cargas possuímos apenas 127 correções; a contabilidade é interrompida
continuação 37
Tabela 3: Lucro (réis) e taxas de lucro sobre a venda de mercadoria sem Angola e
escravos Pernambuco, 1759-1775 (pelos livros de demonstrações da CGPP)
Gráfico 3: Lucros brutos apurados com fretes de acordo com o trecho da viagem
entre 1761 e 1769 pela CGPP.
41 O fato é que os tumbeiros não eram contabilizados com os custos nos livros de demonstra-
ção e as suas avaliações mantiveram-se as mesmas entre 1763 e 1775.
42 Por outro lado, levantei apenas 16 embarcações e para duas delas não encontrei os seus
respectivos preços.
43 Também retirei desta conta uma operação que estava relacionada a Angola e Costa da
Mina e, portanto, poderia distorcer ainda mais as médias.
Lucros Custos
Investimentos
líquidos extraordinários
1) Mercadorias 1.892.910.334
2) Navios 93.931.409
4) Salários 1.846.348
6) Fretes 26.336.212
44 Cf. Acioli Lopes, “Negócio da Costa da Mina”, pp. 163-168. O autor sumaria as diversas es-
timativas da lucratividade do tráfico e apresenta os cálculos mais completos que conheço
para o tráfico do Brasil, ainda que baseados em apenas uma embarcação; esta, porém, tra-
tava-se de uma viagem “típica”, pois a documentação reunida sobre a embarcação visava
informar a Coroa sobre os gastos no tráfico da Costa da Mina. Além disso, o autor retifica
os números de Florentino, alcançando uma taxa de 10%.
45 Acioli Lopes, “Negócio da Costa da Mina”, p. 169
aos fretes. 46 Em segundo lugar, Acioli Lopes lança como custo as perdas
de vidas na viagem; como não existem registros destas perdas nos livros
de demonstrações, presumo que este valor era deduzido dos lucros com a
venda dos escravos em Pernambuco.47 Tampouco os gastos com impostos
eram registrados, mais um custo que seguramente era deduzido direta-
mente da realização final da mercadoria humana na América.
A taxa de lucro elevada da Companhia pode ser facilmente explicada
como uma renda de monopólio. Não obstante, como já foi dito, o monopólio
da empresa era sobre o fornecimento de escravos em Pernambuco, onde
os lucros foram estreitos, e não sobre a venda de mercadorias em Angola,
onde se concentrava a maior parte dos lucros. A explicação para este pro-
blema está na própria organização do negócio que refletia as condições
do transporte e a estrutura fiscal do tráfico. Perdas de vidas na viagem do
Atlântico e o pagamento de impostos eram um custo importante do negócio:
o TSTD registra uma mortalidade de 4,2% para os navios da Companhia
entre 1759 e 1775; mais importante era o peso dos impostos, o valor pago
em direitos sobre a exportação de escravos em Angola entre 1759 e 1775
foi de aproximadamente 11% do total do capital investido no tráfico.48 Vale
dizer, que o peso fiscal em Angola era bem maior do que na Costa da Mina
segundo os cálculos de Acioli Lopes (6%). 49 Como já foi dito, todos estes
custos eram lançados sobre o valor de venda do escravo em Pernambuco,
comprimindo a taxa de lucro sobre esta parte do negócio em particular.
Mais uma vez, a prática da Companhia reproduzia o modo de se
negociarem Angola: os capitães dos navios costumavam pagar os direitos
dos escravos com letras que eram descontadas sobre as vendas destes no
Brasil. Apesar de os administradores da Companhia desejarem pagar os
direitos de exportação com moedas de cobre, tiveram de se submeter à
46 Pela “Conta da despesa que se fez com o custeamento da Fragata de Sua Majesta de
Nossa Senhora da Graça”: AHU, Pernambuco, cx. 130, doc. 9.832 Joé Cesar de Menezes,
05/09/1778, constata-se que por “custeamento” entendia-se gastos com soldadas, ali-
mentação e hospedagem da tripulação no porto, carpintaria, calafete, mastrearia, repa-
ros em geral, curativos aos doentes e taxas portuárias.
47 É possível, porém, que as perdas de escravos em Angola tenham sido subestimadas na con-
tabilidade da empresa.
48 Valor obtido apartir de duas estimativas (259 contos e 242 contos), por não existirem re-
gistros sobre os gastos efetivamente feitos nesta operação; as duas estimativas multipli-
cam um número de escravos exportados pela Companhia pelo direito de 8.700 reis. Mas
como há divergência nas fontes sobre o número de escravos, procurei estabelecer um cál-
culo de controle. Assim, a primeira estimativa foi baseada nos registros dos administrado-
res do contrato de Angola, interpolando as lacunas com os números de Miller (1770) e do
TSTD (1768 e 1773) (cf. Tabela 1). A segunda operação foi baseada nos números do TSTD,
mas o número de escravos foi descontado em 14% levando em consideração que o Livro de
Demonstrações registra apenas 69 viagens entre Angola e Pernambuco, enquanto que no
TSTD constam 80 viagens.
49 Acioli Lopes, “Negócio da Costa da Mina”, p. 166.
50 Sobre as letras, cf. AHU, Angola, cx. 52, doc. 58 (consta como sendo posterior a 1768, mas
na verdade é do reinado de D.Maria I). Sobre a tentativa dos administradores da Compa-
nhia em pagar os direitos com moeda, ver AHU, Angola, cx. 48, doc. 31, Francisco Inocen-
cio Coutinho, 04/08/1764
51 Cf. Miller, Way of Death, passim.
52 ANTT, CGPP, Junta de Lisboa, Copiador de Cartas, L-290, 04/07/1768.
53 No borrador da Junta (ANTT, CGPP, Junta de Lisboa, Copiador de Cartas, L-290) encontra-
mos queixas sobre a qualidade dos escravos nas cartas de 06/11/1761 e 09/04/1783, mas
não é possível constatar se isto foi uma constante em todo o período.
54 São muitas as reclamações sobre as condições do negócio de escravos no Brasil durante
as décadas de 1760 e 1770, por exemplo, AHU, Angola, cx. 54, doc. 20, Francisco Inocencio
Coutinho, 15/03/1770 e, de fato, as exportações de escravos para o Brasil caíram bastan-
te durante a década de 1770. Ver Manolo Florentino, Alexandre Vieira Ribeiro e Daniel
Domingues da Silva. “Aspectos comparativos do tráfico de africanos para o Brasil (sécu-
los XVIII e XIX)”, Afro-Ásia, no. 31 (2004), pp. 83–126, Gráfico 1; e Curto, Álcool e escravos,
Quadros IV e VIII
55 Miller, Way of Death.
Considerações finais
Penso que este estudo de caso permite relativizar parte da pro-
dução historiográfica dos últimos 20 anos, particularmente no que diz
respeito à tese do domínio dos mercadores coloniais sobre o tráfico: a
56 ANTT, CGPP, Junta de Lisboa, Livros de demonstrações, L-395. O valor não foi lançado
como prejuízo no cálculo da lucratividade, pois envolve operações posteriores a 1775.
operações, por sua vez, Acioli Lopes encontrou taxas bem menos signi-
ficativas para o dízimo do açúcar na primeira metade do século XVIII,
entre 1 e 4,6% anual.60
As receitas obtidas pela Companhia com o tráfico são menores apenas
do que os lucros obtidos com os contratos do Rio Grande no final do século
XVIII, mas são conjunturas distintas, considerando que a Companhia
operou durante uma depressão comercial, sua taxa de lucro parece ser
ainda mais formidável. O tráfico em Angola era, no final das contas um
interessante vent for profit para o capital mercantil metropolitano.
60 Cf. Stwart Schwartz, Segredos internos, p. 204; e Helen Osório, “Estancieiros, lavradores e
comerciantes na constituição da extremadura portuguesa na América: Rio Grande de São
Pedro, 1737-1822” (Tese de Doutorado, Universidade Federal Fluminense, 1999), pp. 223-
6; e Acioli Lopes, “Negócio da Costa da Mina”, p. 26.
O réveillon do cônsul
É o primeiro dia do ano de 1486. O jovem élève consul Pierre Victor
Mauboussin, responsável pelo Consulado Francês na Bahia, assiste da
janela de um sobrado da Rua da Praia, que interliga os vários ancoradouros
do porto da Bahia, a procissão marítima do Senhor dos Navegantes, que
conduz a imagem do Cristo Crucificado da Igreja de Nossa Senhora da
Conceição até a Igreja da Boa Viagem, situada a quatro milhas, no interior
da Baía de Todos-os-Santos.
A cena da partida comove até um coração agnóstico como o do
jovem aprendiz de diplomata, conhecido por suas ideias republicanas. A
imagem da Virgem Mãe acompanha a imagem do Filho Crucificado até
o ancoradouro. O passo ritmado é a dor da separação; a ligeira oscilação
do andor sugere a benção de uma mãe saudosa. Carregado por brancos
senhores vestidos de festa, o Filho embarca em uma galeota1 enfeitada.
Sem os panos, a embarcação segue ao ritmo das vigorosas remadas de
negros escolhidos.
No ponto de chegada, uma grande festa aguarda o Divino Viajante.
Dentro da igreja, ouvem-se cânticos e músicas dos senhores da cidade; do
lado de fora, na praça e nas ruas adjacentes, a algazarra do povo. Uma mul-
tidão de negros, mulatos, mestiços, livres, libertos, escravos, marinheiros,
embarcadiços, estivadores, pescadores de baleia, todos, gente do mar que
dançam, batucam e pedem graças por mais um ano de navegação que se inicia.2
1 Pequena embarcação de passeio movida por vários pares de remos, muito usada no trans-
porte de autoridades e pessoas ricas no interior da Baía de Todos-os-Santos.
2 A tradição popular baiana associa esta procissão à iniciativa dos navegadores da costa
d’África: “...segundo o historiador Silva Campos esta manifestação religiosa teria sido ini-
ciativa dos capitães e pilotos que faziam o tráfego negro nas costas da África”. Salvador de
Ávila, Procissões de Salvador, Salvador: SMEC/Empresa Gráfica da Bahia, 1984.
125
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA
O jovem cônsul ainda não entende muito bem estas coisas da Bahia.
Sua cabeça está voltada para a oposição à Santa Aliança que humilha a sua
pátria, para a reforma eleitoral em França e para a abolição da escravidão
nas Antilhas. Pergunta-se em voz alta:
– Afinal, por que tanto fervor deste povo a pedir boa navegação, se
a Baía de Todos-os-Santos é tão segura, se a pesca é tão farta e as linhas
costeiras tão intensamente navegadas?
O movimento firme e lento da mão de um velho nagô, seu criado,
conduz a visão do francês para o outro lado do cortejo marítimo, para a
saída da baía. Uma outra embarcação, bem mais comprida, recolhia os
remos e levantava os seus panos.
– É a Amélia e vai para a Costa! Exclamou o africano.
Um outro presente, empregado na alfândega e amigo do jovem cônsul,
não somente confirmou como deu mais detalhes do navio negreiro. Era
a goeleta3 Amélia, de 169 toneladas, tripulada por 13 homens. O capitão
era o Freitas e viajava com um passaporte de passageiro. O “farol” ou falso
capitão era um embarcadiço de nome José de Sousa Pinto. A armadora era
a viúva Lopes e o grande financiador era o Tomás Pedreira Jeremoabo.
Como destino declarado figurava nos papéis oficiais o Ceará, no Norte
do Brasil, mas o seu destino verdadeiro era a Costa d’África, mais preci-
samente Lagos.
– Onim!4, resmungou o Tio da Costa.
O francês ficou de queixo caído. O Jeremoabo, quem diria! Era um dos
mais prestigiados nomes na praça de Salvador, proprietário de muitas
terras e homem de ideias progressistas... Havia mesmo se metido em uma
aventura de instalação de máquinas a vapor em seu engenho de açúcar.
Soube ainda pelo fu ncionário da alfândega que o Sr. Tomás Jeremoabo
havia comprado recentemente, na Costa d’África, a goeleta “Agajá Dossu”
aos italianos da Sardenha, bem como mantinha um porto clandestino
para o desembarque de escravos em s e u engenho situado na Ilha dos
Frades, no interior da Baía de Todos- os- Santos.
Diante de todas estas revelações, o jovem cônsul-aprendiz pergun-
tou ao funcionário por que ele e outras autoridades navais da capitania
dos portos não reprimiam aquela navegação tão ilícita e tão ostensiva.
Soube estarrecido que todos os responsáveis civis e militares pelo con-
trole da navegação recebiam uma '”taxa” pela importação de escravos.
3 Tradução do francês goelette, adotada por Pierre Verger para distinguir da pequena
galeota. Trata-se de uma embarcação à vela da família das galeras, muito usadas no
tráfico africano. Sua característica é a utilização de remos, o que permite a manobra
em águas rasas.
4 Denominação de Lagos, atual capital da Nigéria, muito corrente na documentação baiana
sobre o tráfico. Corresponde, de fato, ao núcleo inicial desta cidade, localizado na restinga
da grande laguna que lhe dá o nome.
Cada navio negreiro que partia para a Costa d’África pagava ao oficial
responsável pela visita do navio uma propina (para fechar os olhos)
tabelada em 500.000 réis por brigue e 250.000 réis por goeleta. Quando
um negreiro voltava, o oficial de polícia do porto ou o subdelegado do
local de desembarque recebiam entre 2 a 3 contos de réis, a depender
da quantidade de escravos desembarcados. Compreendeu, enfim, o ar
de satisfação com que o seu interlocutor assistia à partida de mais uma
goeleta negreira, pois
se as expedições à Costa d’África não tivessem mais
sucesso, os administradores de alfândega, o capitão do
porto, o chefe de polícia e seus delegados não poderiam
mais ser gratificados como atualmente pela sua
conivência culposa. Se não recebessem mais, em cada
chegada de um navio negreiro, negros ou seu valor em
dinheiro segundo a sua escolha, não poderiam mais com
os seus módicos proventos construir as casas mais belas e
levar eles mesmos o modo de vida de pródigos e opulentos
mercadores de escravos.5
A viagem
Decidido a obter o máximo de informações possíveis sobre as ativi-
dades dos negreiros, o cônsul francês mobilizou todos os seus amigos. No
dia 5 de janeiro deixou o porto de Salvador o brigue Três Amigos, de 406
toneladas. Era o maior transportador de escravos em operação, construído
na cidade portuguesa do Porto especialmente para este fim. Em algumas
viagens trazia mais de 1.300 homens da Costa d’África. O traficante era
também o maior de todos: Joaquim Pereira Marinho.8
5 Archives du Ministère des Afaires Étrangéres, Quai d’Orsay (doravante AMAE), Corres-
pondance Consulaire et Commerciale, Consulat Bahia, vol. 5, fol. 20.
6 Os resultados desta investigação estão contidos no relatório de 25 de março de 1847, en-
viado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros da França, intitulado “Rapport sur la traite
de noirs à Bahia en 1846”, AMAE, Correspondance Consulaire et Commerciale, Consulat
Bahia, vol. 5.
7 Desde 1839 se desenvolvia o debate parlamentar, a partir do projeto Tracy e a campanha
abolicionista liderada por Victor Schoelcher.
8 Trata-se do mais famoso traficante de escravos na Bahia, citado por toda a historiografia
baiana, inclusive por Pierre Verger, Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo de
Benin e a Bahia de Todos os Santos, dos séculos XVII a XIX, São Paulo: Corrupio, 1987.
9 Os búzios ou cauris, como eram chamados na Costa d’África, eram tradicionalmente uti-
lizados como moeda, tanto na África Ocidental como no Reino do Congo. George Dalton,
Primitive, archaic and modern economies. Essays of Karl Polanyi, Garden City/New York:
Anchor Books, 1968.
10 AMAE, Correspondance Consulaire et Commerciale, Consulat Bahia, vol. 5, fl. 28.
11 Expressão usada correntemente nas correspondências entre traficantes em lugar da
palavra escravo, para dissimular o tráfico.
12 Expressão corrente até hoje no Brasil para indicar uma ação simulada apenas para
cumprir uma formalidade. Ela vem do tempo do tráfico clandestino, quando o gover-
no brasileiro adotava atitudes formais apenas para burlar uma fiscalização inglesa
antitráfico.
13 Ubiratan Castro de Araújo, “Le politique et l’économique dans une societé esclavagiste,
Bahia, 1820-1889” (Tese de Doutorado, Universidade de Paris IV-Sorbonne, 1992).
14 Ver série de oito artigos publicados na Revista de História, entre 1966 e 1971, da autoria
de Marieta Alves, intitulados: “O comércio marítimo e alguns armadores do século XVIII,
na Bahia”.
Fonte: AMAE, Correspondance Consulaire et Commerciale, Consulat de Bahia, vol. 5, fl. 20.
Alberto dos Santos, Freitas (de prenome não identificado), José Rosello,
Pedro Francisco dos Santos.17 Segundo apurou Mauboussin, eram todos
muito experimentados no tráfico, com muitas passagens e inculpações
no tribunal inglês de Serra Leoa. O relato do cônsul enfatiza os elogios
que todos os capitães traficantes faziam aos bons tratos que receberam
a bordo dos navios de caça ingleses. Mesmo sendo o tráfico considerado
como crime de pirataria, jamais suas vidas ou suas liberdades estiveram
em risco. Para eles, a grande perda era o fracasso da expedição que os
privava da participação no butim.
Mauboussin registrou em seu dossiê o orgulho com que os traficantes
falavam da sua frota pirata. Ao tempo em que ridicularizavam a eficácia
dos cruzeiros ingleses, vangloriavam-se de seus navios negreiros, finos
veleiros que permitiam aos navegadores experientes escapar de toda
vigilância. Em caso de captura de um ou outro navio, diziam que nenhuma
perda séria seria infligida ao negócio do tráfico, porque, pelo novo modo
de armação adotado, compravam-se sempre navios velhos e baratos, para
os quais encontravam-se sempre capitães, aventureiros perseguidos na
Espanha e em Portugal (piratas), ou mesmo brasileiros muito corajosos
que sabiam muito bem que o passaporte de passageiro a bordo os tornava
invioláveis, e também tripulantes habituados, pela experiência, aos casos
de captura, quando eles eram desembarcados e perdiam apenas as suas
roupas. Ele nos relata que, nestes casos, o grumete, o capitão do navio
(geralmente o falso) e o cozinheiro eram levados perante o almirante
comandante do cruzeiro e o resto da equipagem desembarcada no ponto
mais próximo da costa. Os navios negreiros que ostentassem o pavilhão
espanhol tinham os mastros serrados. Os demais eram vendidos a preços
aviltados e comprados pelos comerciantes de Serra Leoa, reconduzidos
ao Brasil, onde eram vendidos com grande lucro e armados de novo para
o tráfico. Há casos de navios que foram aprisionados até três vezes,
revendidos e reutilizados no tráfico.
As perdas de 1846 confirmam esta tranquilidade dos traficantes.
Neste ano foram capturados pelos cruzadores ingleses seis negreiros:
os brigues Gabriel, Galgo e Isabelle; as goeletas Gaio, Maria e Amélia,
representando 24 % da frota em operação. Este resultado era bastante
animador em relação ao ano anterior, quando foram aprisionados 13
negreiros, dos quais dois já estavam em operação: o brigue Isabelle e a
goeleta Mariquinha. Além do mais, nenhum verdadeiro capitão negreiro
foi inculpado no tribunal do almirantado britânico em Santa Helena. Sabe-
se apenas que o falso capitão da Amélia, José de Sousa Pinto respondeu
a processo por tráfico ilegal.
17 Todos os nomes de navios e capitães citados no relatório do cônsul Pierre Victor Maubou-
ssin conferem com os citados por Verger, Fluxo e refluxo, pp. 645-647.
O negócio de escravos
Enquanto cada negreiro fazia a travessia do Atlântico, uma operação
muito complicada se desenrolava na Costa d’África: a compra do escravo.
Segundo apurou o cônsul francês, os termos de troca eram muito instáveis.
Habitualmente, a regra fundamental para os responsáveis pelas feitorias
era manter esse negócio sempre na base da troca de mercadorias por
escravos e, ao mesmo tempo, manter a oferta dessas mercadorias em
um nível mínimo. As mercadorias mais procuradas eram o fumo de
corda, para fumar e para mascar, e a cachaça. As outras mercadorias
correntes eram as espingardas, a pólvora e os tecidos. Quando essas
mercadorias escasseavam na Costa d’África, era possível comprar mais
escravos, posto que o preço deles baixava sensivelmente.
Mauboussin nos dá um exemplo dessa operação: quando faltava
fumo e cachaça, era possível comprar um escravo por apenas um rolo de
fumo, pesando duas arrobas e valendo 5 mil réis (15 francos aproxima-
damente). A arte do traficante era a de saber manejar com a raridade
relativa de cada mercadoria, propondo sempre na troca um “pacote”
equilibrado de mercadorias por um escravo.21 Em 1846, o pacote mais
correntemente utilizado era: um barril de pólvora, uma espingarda, um
rolo de fumo e uma ou duas peças de tecido, valendo aproximadamente
55,75 francos por cabeça de escravo. Se o agente da feitoria quisesse
operar em moeda, seriam necessárias 5 onças de ouro (aproximadamente
400 francos) por cabeça, pelos mesmos negros, ou seja, cerca de oito
vezes o preço obtido no escambo.
Para atribuir um valor nominal a cada mercadoria, era corrente na
Costa d’África a unidade “onça”, que, segundo Mauboussin, não correspon-
dia à “onça de ouro”, mas a um valor nominal inteiramente convencional.
Estes preços podiam variar ainda mais para cima, pois era hábito
de alguns traficantes fazerem um pequeno investimento ensinando
algumas palavras em português ao africano, tanto para enganar uma
fiscalização eventual contra o tráfico, quanto para aumentar o valor
de venda do escravo. 25
A grande diferença entre o preço de compra do escravo na Costa
d’África, 18 mil réis por cabeça, e o preço de venda no mercado de Salva-
dor, 480 mil réis, indicada por Mauboussin em seu relatório, é compatível
com a notícia encontrada em manuscrito atribuído ao Lord John Hay:
“Que o risco é válido torna-se evidente, quando se conhece a diferença
dos preços dos escravos na África e no Brasil: no primeiro país eles podem
ser comprados por 10 dólares a cabeça e vendidos no último por 500”.26
25 Anedota contada por Maximiliano de Habsburgo pela qual os traficantes ensinavam uma
só palavra ao africano – Minas –, para demonstrar aos juízes que este escravo era antigo
residente no país. ‘Como você se chama?’ Resposta: Minas, um nome muito comum entre
escravos. ‘Onde você nasceu?’ Resposta: Minas, uma das províncias do Brasil, mas também
uma tribo muito importante de negros africanos fornece aos brasileiros a melhor carne
humana. ‘Onde você trabalha?’ Resposta: Minas. Minas são as minas de ouro e diamante
que constituem uma importante riqueza do país. O juiz que naturalmente também possui
escravos, anota as três Minas, arquiva os autos e a questão está resolvida, para a satisfa-
ção das partes’. Maximiliano de Habsburgo, Bahia 1860. Esboços de viagem, Rio de Janei-
ro: Tempo Brasileiro, 1982, p. 154.
26 Rosemarie Erika Horch, “On the slave trade” (transcrição e tradução), Revista do Instituto
de Estudos Brasileiros, no. 28 (1988), p. 147.
Ganhos do tráfico
Neste ramo de comércio em que a regra fundamental era a esper-
teza aplicada em cada operação, foi muito difícil para o investigador
francês estabelecer claramente as margens de ganho. Admitindo como
preço médio final de importação 185$679 réis e os preços mínimos de
mercado na Bahia, na faixa de 450$000, obteremos uma margem de
ganho de 264$321 por escravo vendido, o que representa uma expec-
tativa de lucros na ordem de 142%, em um prazo de três meses, o que
perfaz 473% ao mês. Este simples exercício especulativo nos dá uma
medida de quão atraente era o investimento no tráfico de escravos em
uma praça comercial em que as oportunidades de investimento eram
ilimitadas aos negócios de exportação do açúcar, aliás um produto mal
colocado no mercado internacional, e em outras economias de exportação
alternativas, de maturação bem mais demorada.
Não é difícil, pois, compreender que a participação nas armações
negreiras fosse o investimento de curto prazo mais atraente, apesar
do alto risco, o que aliás tornava sua remuneração mais alta. Os efeitos
desta atração exercida pelo tráfico sobre os capitais disponíveis na pra-
ça se fazem logo sentir pela escassez e pelo consequente alto custo do
dinheiro em Salvador, expresso pelas altas taxas de juros ali praticadas.
Estas estimativas para o ano de 1846 revelam a gravidade e a extensão
da falta crônica de recursos financeiros na Bahia durante o período de
importação clandestina de escravos.
A sede de recursos financeiros justificou a criação, em 1845, do Banco
Comercial da Bahia, que se transformou, em 1846, no segundo banco
comercial brasileiro. Ele tinha sido criado como um banco de depósitos e
de descontos, com a faculdade de emissão de letras de câmbio e de bônus,
cujo valor não podia ser inferior a 100$000 réis, resgatáveis em dez dias.
Estimulados pela escassez de dinheiro, seus diretores tomaram a decisão
de exceder os limites previstos no estatuto da sociedade para lançar no
mercado bônus pagáveis à vista, ou seja, verdadeira moeda-papel. No
ano de 1846, foram lançados no mercado financeiro local 532 contos
de réis destes papéis. Neste mesmo ano o banco descontou um total de
2.673:800$000 réis em letras de câmbio, o que representava uma cifra
muito próxima de 2.467:421$522 réis, expectativa de ganhos totais com
a importação de 9.403 escravos neste ano de 1846. O sucesso deste em-
preendimento, legal e seguro, era medido pela distribuição de dividendos
aos acionistas na ordem de 12,22% ao fim do ano, percentual muito mais
modesto do que os ganhos no tráfico.27
Como alternativa incomparável de investimento a curto prazo, o
A conexão africana
Como olhar hoje esta máquina mercante negreira?
Grande é a tentação de integrar o tráfico negreiro como periferia de
um sistema capitalista mundializado tendo como metrópole a Europa e,
mais precisamente, a Inglaterra. Conectado com os mercados europeus
e americanos como circuito complementar, foi capaz de fazer chegar a
economias não monetizadas e não exportadoras de produtos agrícolas,
como era o caso da Costa d’África, as manufaturas europeias. Operacio-
nal no seu tempo, seus resultados projetados para o futuro na forma de
acumulação primitiva de capital completariam a sua integração perfeita
no processo de desenvolvimento do capitalismo.
Há também verdade em tudo isso. O que dizer da intensa circulação
de mercadorias que nos revela Mauboussin? São manufaturas alemãs e
inglesas que passam pela Bahia, que se juntam a mercadorias baianas
e vão para a Costa d’África. São escravos que vêm para os engenhos
produzir o açúcar que comprará manufaturados europeus, contribuindo,
pois, para o processo de reprodução ampliada do capital na metrópole.
No entanto, emerge do relatório a evidência de uma articulação bem
elas, com efeitos diferenciados em cada uma. Esse exercício simples pode
ajudar-nos a compreender melhor o testemunho do jovem cônsul francês.
A interseção negreira
Essa interseção entre a Bahia escravista e a Costa d’África exportadora
de escravos pode ser assim formalizada:
B Ca
Neste espaço de intersecção estão contidos alguns elementos que
dão ao tráfico negreiro uma grande capacidade de resistência diante
das ações hostis oriundas destas mesmas sociedades como também do
sistema mundializado de mercados tendo como metrópole a Inglaterra
antitraficante.
O primeiro elemento que salta aos olhos é a sobrevivência, pela
adoção de práticas e pelo aperfeiçoamento de tradições comerciais,
de uma economia do tráfico coordenada por convenções específicas, 35
construídas historicamente e reafirmadas quotidianamente por todos
os agentes do tráfico, do lado da Costa d’África e do lado da Bahia. O
relatório de Mauboussin ilustra muito bem as conclusões de historia-
dores africanistas que representam esse comércio de escravos como um
negócio organizado, baseado no reconhecimento de regras comerciais
consensuais e na confiança mútua entre parceiros, mesmo quando essas
regras contrariavam as normas do free trade inglês hegemônico. 36
O segundo elemento de reflexão é a constituição, nesta economia
do tráfico, de um espaço econômico não regulamentado por qualquer
autoridade estatal. Como bem mostra Mauboussin, o estado brasileiro,
tendo aceito a pressão inglesa de proscrição do tráfico, tornou-se incapaz
de cobrar taxas e impostos sobre essa atividade, resignando-se a aceitar
a propina como forma corrompida de remuneração de seus funcionários
civis e militares. Para tanto, dependia dos resultados das expedições
negreiras, dos costumes estabelecidos por este negócio, subordinando-
se, finalmente, à vontade dos traficantes. Esse império brasileiro não
dispunha de qualquer jurisdição na Costa d’África, nem dispunha de
qualquer possibilidade de intervenção política ou militar para dirimir
conflitos ou impor condições mais favoráveis aos seus súditos. Do lado
35 Usamos o conceito de “convenção” tal como é trabalhado pelos economistas que buscam
a análise da coordenação econômica não apenas através da auto-regulação de mercado,
mas também através de convenções sociais. André Orléan (org.), Analyse économique des
conventions, Paris: PUF, 1994.
36 Christopher Fyfe, “West african trade A. D. 1.000 – 1.800”, in J. F. Ade Ajayi e Ian Espie
(orgs.), A Thousand Years of West African History, Ibadan: Ibadan University and Nelson,
1977, pp. 237-252.
africano, o rei de Onim não tinha qualquer soberania para além da feitoria,
assegurando apenas as condições de segurança das operações na Costa
em troca igualmente de propinas e taxas disfarçadas em presentes. Para
completar o quadro de ausência de regulamentação estatal, a decretação
da ilegalidade deste comércio pela Inglaterra e sua imposição ao fraco
estado brasileiro, impediam o estabelecimento de qualquer acordo bi-
lateral entre o Império do Brasil e o Reino de Onim.37 Tudo realmente
dependia, inclusive a moeda de referência, dos consensos estabelecidos
entre os parceiros do negócio. Os conflitos entre eles certamente existiam,
mas não há notícias de afrontamentos ou rupturas graves. Predominava
principalmente o que registrou Pierre Pluchon: “Todos, que só pensam
em enganar-se mutuamente no acessório – tirar o máximo desvantagens
possíveis do interlocutor – manifestam uma estrita solidariedade sobre
o essencial: o comércio dos cativos.”38
Um terceiro elemento a ser considerado é a reprodução, nos dois
lados do Atlântico, de grupos sociais que viviam do tráfico e que se
constituíam em agentes do intercâmbio social, econômico e cultural
para além da compra e venda de escravos. Quando se extingue o tráfico
transatlântico e, portanto, os comerciantes brasileiros viram as costas
para a Costa d’África, esses grupos de “brasileiros” na África e “africanos”
na Bahia permanecem como elo de comunicação entre os povos da Costa
e da diáspora na Bahia.39
Um último elemento que uma leitura contemporânea desta interseção
negreira não pode desconsiderar, é a produção de uma territorialidade
do tráfico. Diferentemente da equação historicamente construída das
economias nacionais localizadas em territórios contínuos delimitados,
ocupados por populações vivendo em situação de contiguidade e submetidas
a um sistema de poder unificado nacionalmente, a interseção negreira
construiu um espaço em rede40 interligando, pela navegação aventureira
A diferença negreira
A interseção negreira provoca também a sua negação em ambas as
partes.
Ca – B
B – Ca
No lado africano, a revolta contra a deportação para uma escravidão
mercantil do outro lado do Atlântico constitui uma das mais emocionantes
sagas de luta pela liberdade escritas na história dos povos. As constan-
tes revoltas no interior africano, nos portos da Costa, nos navios e no
porto de desembarque. Essa reação africana ao tráfico deve ser também
considerada nos processos de desestabilização dos reinos soberanos
traficantes e de facilitação da ocupação colonial posterior à abolição do
tráfico atlântico, que trazia como bandeira o fim da escravidão, como,
por exemplo, a resistência do povo do reino de Ketu à escravidão que lhes
havia imposto o reino do Daomé.41
No lado baiano, a reação ao tráfico se dá tanto pela resistência
à escravidão, manifestada pelas revoltas africanas nas plantações de
açúcar e nas armações de peixe da Bahia, pela participação crioula em
revoltas populares, pelos quilombos e pelas fugas. Manifesta-se também
a oposição ao tráfico que resulta da rejeição à presença africana no Brasil
sustentada por liberais, alguns dos mais radicais, do fim do século XVIII
aos fins do século XIX, que defendiam a reexportação dos filhos do tráfico
para a África ou, no pior dos casos, uma “civilização” tão radical do negro
no Brasil que apagasse da memória dos restantes a “'barbaria” africana.
Um exemplo eloquente desse tipo de oposição ao tráfico é a defesa que
fez Miguel Calmon da colonização europeia, em 1835, ainda traumatizado
pela insurreição dos malês: a colonização tinha o objetivo
de prevenir, com efficácia e evidente utilidade, a funesta
necessidade de africanos, ou os efeitos ainda mais funestos
da existencia de tantos barbaros neste abençoado Paiz.
41 Elisée Soumonni, “From the Interior to the Coast: Bridging the Gap in the Study of the Sla-
ve Trade and Slavery in Dahomey”, Unesco/SSHRC Summer Institute: La route des escla-
ves – The slave route, Toronto: York University, 1997.
A reunião afro-baiana
A interseção negreira é também responsável pela reunião dos dois
lados do Atlântico, no que se poderia formalizar como:
B Ca
Expressão mesmo de uma cultura afro-brasileira resultante da vivência
dos filhos da diáspora africana no Brasil, civilizando africanamente uma
sociedade brasileira e estabelecendo as referências que tornam possíveis
as navegações contemporâneas que reatam contato com aqueles outros
que abrasileiraram a Costa d’África.
Dale T. Graden
1 Traduzido por Laura Guedes. Agradeço a leitura e os comentários de David Sheinin, Hen-
drik Kraay e Walter LaFaber.
149
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA
2 Louis A. Pérez, Jr., Winds of Change: Hurricanes and the Transformation of Nineteenth-
Century Cuba, Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2001; Robert L. Paquette,
Sugar is Made With Blood: The Conspiracy of La Escalera and the Conflict Between Empi-
res Over Slavery in Cuba, Middletown: Wesleyan University Press, 1990.
3 United States National Archives (doravante USNA), Record Group (doravante RG) 59,
Consular Dispatches from Rio de Janeiro, T172:11, U.S. Consul George W. Gordon to Se-
cretary of State James Buchanan, Rio de Janeiro, 18/09/1845.
4 Jay Coughtry, The Notorious Triangle: Rhode Island and the African Slave Trade, 1700-
1807, Filadelfia: Temple University Press, 1981.
5 USNA, RG 59, Diplomatic Dispatches from Brazil, M-121:27, Maxwell Wright to U.S. Con-
sul R.K. Meade, Rio de Janeiro, 19/01/1859; idem, Deposition of William Applegarth, mer-
chant of city of Baltimore, before Notary Public H. Ballard Johnson, Baltimore, Maryland,
25/04/1854.
6 An Exposition of the African Slave Trade, Published by the Direction of the Representa-
tives of the Religious Society of Friends in Pennsylvania, New Jersey, and Delaware, Fil-
adelfia: J. Rakestraw Printer, 1851, pp. 37-47.
7 Leslie Bethell, The Abolition of the Brazilian Slave Trade; Britain, Brazil, and the Slave
Trade Question, 1807-1869, Cambridge: Cambridge University Press, 1970; Jeffrey D.
Needell, “The Abolition of the Brazilian Slave Trade, in 1850: Historiography, Slave Agen-
cy, and Statesmanship”, Journal of Latin American Studies, no. 33 (2001), pp. 681-711;
Dale T. Graden, “Slave Resistance and the Abolition of the Tran-Atlantic Slave Trade to
Brazil in 1850,” História Unisinos, vol. 14, no. 3 (2010), pp. 283-294; idem, “A resistência
escrava e a abolição do tráfico transatlântico de escravos para o Brasil em 1850,” Revista
Internacional de Estudos Africanos no. 15 (2010), pp. 151-68; Seymour Drescher, Capital-
ism and Antislavery: British Mobilization in Comparative Perspective, Nova York: Oxford
University Press, 1987; David Eltis, Economic Growth and the Ending of the Transatlan-
tic Slave Trade, Nova York: Oxford University Press, 1987; David Brion Davis, Inhuman
Bondage: The Rise and Fall of Slavery in the New World, Nova York: Oxford University
Press, 2006; Dale Torston Graden, From Slavery to Freedom in Brazil: Bahia, 1835-1900,
Albuquerque: University of New Mexico Press, 2006.
8 Em inglês, “thatch and bamboo prison camps”: Eric Anderson, “Yankee Blackbirds: North-
ern Entrepreneurs and the Illegal International Slave Trade, 1815-1865” (Dissertação de
Mestrado, Universidade de Idaho, 1999), p. 176.
9 USNA, RG 59, Consular Dispatches from Rio de Janeiro, T-172:8, Deposition of Zebomar
H. Small, Jr. [from Harwich Mass] before U.S. consul George W. Gordon, Rio de Janeiro,
30/11/1844.
10 USNA, RG 59, Consular Dispatches from Rio de Janeiro, T-172:11, Deposition of Gilbert
Smith before U.S. Consul George William Gordon, Rio de Janeiro, 9/05/1845.
11 Ibid.
13 Ibid. Em inglês, “During the entire day of the fourth we decorated our ship in honor of the
day and fired a salute from a four pounder which we had on board. At four o’clock on this
day we again commenced taking on our cargo and within an hour we took on board 746
negros, when we slipped our anchor and put to sea”.
16 USNA, RG 59, Consular Dispatches from Rio de Janeiro, T-172:8, US consul George Slacum
to Secretary of State Daniel Webster, Rio de Janeiro, 1/07/1843.
17 Anderson, “Yankee Blackbirds”, pp. 49, 281.
18 Ibid., p. 34.
19 USNA, RG 59, Diplomatic Dispatches from Brazil, M-121:15, Henry Wise to Secretary of
State George Calhoun, Rio de Janeiro, 1/11/1844.
20 State Executive Committee of the National American Party, The Record of George W. M.
Gordon, Boston, J.E. Farwell and. Company, 1856, p. 5.
Tabela1: Lista das embarcações dos Estados Unidos despachadas do porto do Rio
de Janeiro para a costa da África, de 1/07/1844 a 30/09/1849
Datas Tipo Nome do navio Comandante Procedência
Beverly,
17/11/1844 Brigue Sterling Gallop
Massachusetts
21/11/1844 Brigue Susan & Mary B. Connor Baltimore
04/12/1844 Brigue Sea Eagle Smith Boston
24/01/1845 Brigue Arctic Pascal Baltimore
18/02/1845 Barca Herschell Adams Nova York
28/02/1845 Brigue Janet Burk N.R.
22/03/1845 Barca Pons Graham Filadélfia
19/04/1845 Barca Pilot Swift Boston
17/05/1845 Barca Madeline Shanklaw N.R.
19/07/1845 Barca Pons Graham Filadélfia
04/08/1845 Navio Panther Clapp Providence, R.I.
11/08/1845 Barca Pilot Swift Boston
11/10/1845 Escuna Enterprise Nicholson Boston
30/10/1845 Brigue Harriet Jarvis Baltimore
?/11/1845 Barca L.D. Bascett Boston
21 USNA, RG 59, Diplomatic Dispatches from Brazil, M-121:20, Former US consul Gorham
Parks to David Tod, Rio de Janeiro, 29/01/1850.
22 USNA, RG 59, Consular Dispatches from Rio de Janeiro, T-172:10, George Gordon to Sec-
retary of State John Calhoun [James Buchanan], Rio de Janeiro, 22/04/1845. Ver tam-
bém Dale T. Graden, Disease, Resistance, and Lies: The Demise of the Transatlantic Slave
Trade to Brazil and Cuba, Baton Rouge, Louisiana State University Press, 2014; Leonardo
Marques, The United States and the Transatlantic Slave Trade to the Americas, New Hav-
en: Yale University Press, 2015.
23 USNA, RG 59, Diplomatic Dispatches from Brazil, M-121:15, Henry Wise to John Calhoun,
Rio de Janeiro, 14/12/1844. Sublinhado no original. Ver também Craig M. Simpson, A
Good Southerner: The Life of Henry A. Wise of Virginia, Chapel Hill, University of North
Carolina Press, 1985, pp. 61-69.
24 William E. Cain (org.), William Lloyd Garrison and the Fight Against Slavery: Selections
from “The Liberator”, Boston, St. Martin’s Press, 1995.
de Salvador poucos dias antes de sua captura. Wise criticou Tyler por
desconhecer a venda do barco, os propósitos da viagem e o desembarque
dos africanos.27
Em resposta às críticas de Wise, Tyler investigou a procedência e a
viagem do Sooy. A casa mercantil de nome Ganthois e Pailhet, em Salva-
dor, comprou o barco de Nicholas Troy, de Burlington County, e de N. T.
Thompson, de Atlantic County, ambos em Nova Jérsei. Na avaliação de
Tyler, cerca de vinte a cinquenta pessoas teriam investido na viagem do
Sooy, inclusive mulheres. Ele apurou que o barco transportou 630 afri-
canos, dos quais vinte morreram durante a viagem. Diversos tripulantes
conseguiram escapar da prisão um pouco antes da captura do Sooy pelo
barco britânico Racer.28
Apesar de toda a evidência, Tyler duvidava que navios e tripulantes
norte-americanos em Salvador exercessem um papel importante no
comércio negreiro. Em resposta à acusação feita pelo cônsul norte-ameri-
cano no Rio de Janeiro, de que o cidadão norte-americano Mark H. Leeds,
da Bahia, era o comandante do Sooy, Tyler defendeu o acusado, dizendo
que Leeds era uma figura muito conhecida em Salvador como professor
de religião e membro devoto da igreja metodista. Tal pessoa, na opinião
de Tyler, “nunca em sã consciência participaria do comércio negreiro”. 29
Nos meses que se seguiram, Alexander Tyler acompanhou mais
de perto as atividades no porto de Salvador. Imediatamente percebeu
as ligações de comerciantes, navios e tripulação norte-americanos no
comércio de escravos africanos.
No dia 4 de maio de 1845, uma correspondência diplomática, en-
viada pelo cônsul norte-americano no Rio de Janeiro, chegou a Salvador
a bordo do vapor Imperatriz. O documento dirigido a Tyler acusava os
cidadãos norte-americanos Jacob Woodbury e Thomas Duling de serem
os comandantes dos navios Albert, de Boston, e Washington’s Barge, da
Filadélfia, em uma viagem à África para buscar escravos. O Washington’s
Barge teria sido vendido na costa africana, e Duling e a tripulação do
navio retornado a Salvador a bordo do Albert. O plano era que o Washin-
gton’s Barge transportasse centenas de escravos de volta à Bahia. Com
base nestas informações, Tyler pediu a prisão de Woodbury e Duling. 30
No dia seguinte, Duling embarcou no Imperatriz. Planejava viajar a
Recife, Pernambuco, onde tomaria outro navio que o levaria à Filadélfia.
31 USNA, RG 59, Consular Dispatches from São Salvador, T-432:4, John Gilmer to Secretary
of State James Buchanan, Salvador, 10/05/1845.
32 Ibid.
33 Ibid.
34 USNA, RG 59, Consular Dispatches from Bahia, T-331:2, Consul Thomas Wilson to Secre-
tary of State William Seward, Salvador, 14/07/1862.
35 USNA, RG 59, Consular Dispatches from Rio de Janeiro, T-172:15, Edward Kent to Sec-
retary of State Edward Everett, Rio de Janeiro, 22/01/1853. Ver também Ron Soodalter,
Hanging Captain Gordon: The Life and Trial of an American Slave Trader, Nova York,
Atria Publishers, 2006.
36 Warren S. Howard, American Slavers and the Federal Law, 1837-1862, Los Angeles,
University of California Press, 1963, pp. 124-26; USNA, RG 59, Consular Dispatches
from Bahia, T331:1, Gilmer to Secretary of State William Marcy, Salvador, 1/02/1856.
37 USNA, RG 59, Diplomatic Dispatches from Brazil, M-121:27, William Blake et. al. to U.S.
Consul R. K. Meade, Salvador, 27/05/1858. Ênfase do autor. Em inglês, “A queer way of do-
ing justice”.
38 USNA, RG 59, Diplomatic Dispatches from Brazil, M-121:27, Richard Meade to Minister
of Foreign Affairs Viscount de Maranguape, Rio de Janeiro, 14/06/1858; idem, Meade to
Maranguape, Rio de Janeiro, 30/09/1858.
39 Ver Walter LaFeber, The New Empire: An Interpretation of American Expansion, 1860-
1898, Ithaca: Cornell University Press, 1998.
173
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA
2 Para uma análise dos domínios dos irmãos Breves e do perfil de suas fortunas, ver Thiago
Campos Pessoa, “A indiscrição como ofício: o complexo cafeeiro revisitado” (Tese de Dou-
torado em História Social, Universidade Federal Fluminense, 2015).
3 Afonso de E. Taunay, “No Brasil imperial, 1872-1889”, in História do café no Brasil, Rio de
Janeiro: Editora do Departamento Nacional do Café, 1939, tomo VI, pp. 269-283.
4 Segundo João Fragoso e Ana Rios, “num ciclo que se iniciava com os lucros gerados do café,
investidos em empréstimos, que retornavam sob a forma de mais escravos e terras, ou
seja, mais café. Tanto é assim que os inventários característicos desse tipo de fazendeiro
[se refere aos fazendeiros-capitalistas] representavam invariavelmente cerca de 80 % do
valor total da riqueza deixada em escravos e terras”. João Fragoso e Ana Rios “Um empre-
sário brasileiro dos Oitocentos”, in Hebe Mattos e Eduardo Schnoor (orgs.), Resgate: uma
janela para os oitocentos (Rio de Janeiro: Top Books, 1995), p. 199.
5 Sobre os riscos e a lucratividade da travessia atlântica, ver Manolo Florentino, Em costas
negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro, São Paulo:
Companhia das Letras, 1997.
6 Roquinaldo Ferreira. “Dos sertões ao Atlântico: tráfico ilegal de escravos e comércio lícito em
Angola, 1830-1860” (Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1996).
7 Ver Robert Conrad, Tumbeiros: o tráfico de escravos para o Brasil, São Paulo: Brasiliense,
1985; Jaime Rodrigues, O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de
africanos para o Brasil (1800-1850), São Paulo: Editora da Unicamp / CECULT, 2000; Tâ-
mis Parron. A politica da escravidão no império do Brasil, 1826-1865, Rio de Janeiro: Civi-
lização Brasileira, 2011.
8 Para a listagem dos traficantes atuantes na praça carioca entre 1811 e 1830, ver o Apên-
dice 26 de Florentino, Em costas negras, pp. 254-256. Entretanto, é possível que os irmãos
Breves atuassem no fornecimento de cachaça para o comércio negreiro nas suas fazendas
do litoral, antes de investirem diretamente no empreendimento traficante, após a segun-
da metade da década de 1830.
9 Ferreira, “Dos sertões”. Ana Flávia Chicelli, “Tráfico ilegal de escravos: os caminhos que le-
vam a Cabinda” (Dissertação de Mestrado, Universidade Federal Fluminense, 2006).
10 Entrevista com Manoel Moraes, morador de Santa Rita do Bracuí, 27/10/2006, Acervo Pe-
trobrás Cultural Memória e Música Negra, Laboratório de História Oral e Imagem (LA-
BHOI), < www.historia.uff.br/jongos>, acessado em março de 2009. Sobre pesquisas ar-
queológicas recentes evidenciando o naufrágio de negreiros exatamente na região apon-
tada por Manoel Moraes ver o trabalho de Gilson Rambelli, “Arqueologia de naufrágios e a
proposta de estudo de um navio negreiro”, Revista de História da Arte e Arqueologia, no. 6
(2006), pp. 97-106.
11 O mais famoso dele foi objeto de estudo de Martha Abreu, “O caso do Bracuhy”, in Mattos e
Schnoor (orgs.), Resgate: uma janela para o Oitocentos, pp. 167-195.
12 José Curto. Álcool e escravos: o comércio luso-brasileiro do álcool em Mpinda, Luanda e
Benguela durante o tráfico atlântico de escravos (c. 1480-1830) e o seu impacto nas socie-
dades da África Central Ocidental, Lisboa: Vulgata, 2002.
13 Ferreira, “Dos Sertões”; Chichelli, “Tráfico ilegal de escravos”.
14 Biblioteca Nacional (BN), Projeto escravos no Brasil, Documentos Biográficos c. 1052, 44.
15 Segundo Luis Henrique Tavares, Breves estaria ao lado de grandes traficantes, como Manoel
Pinto da Fonseca e José Bernardino de Sá “grandes negreiros no Rio de Janeiro dessa época”.
Luis Henrique Dias Tavares, Comércio proibido de escravos, São Paulo: Ática, 1988, p. 29
20 João José dos Santos Breves era homônimo do pai, irmão dos comendadores. Atuava na po-
lítica e nos negócios do tráfico em Mangaratiba, através das casas comissárias João José
dos Santos Breves & C.; Santos Breves & C.; Breves & Irmão C. Emblematicamente, em fe-
vereiro de 1851, quando o delegado de polícia do Rio de Janeiro, Bernardo de Azambuja,
apreendeu 199 africanos novos na Marambaia, além de Joaquim encontrava-se na restin-
ga João dos Santos Breves. Segundo os depoimentos colhidos por Azambuja, João era ne-
gociante em Mangaratiba. Juízo de Auditoria de Marinha, 1856, Arquivo Nacional (AN),
nº 478, M: 2259, Gl. A. Armando de Moraes Breves, em suas memórias familiares recorda
que: “A ruga mais séria deu-se na ocasião em que alguns barcos ingleses entraram em An-
gra dos Reis, perseguindo dois navios negreiros [...] os tumbeiros chamavam-se Leopoldi-
na e Januária. O contrabando vinha despachado para João dos Santos Breves, irmão do tio
Joáca [Joaquim Breves]”. Equivoca-se Armando em relação às pessoas, uma vez que a essa
altura o João, irmão dos comendadores, já havia falecido. Armando de Moraes Breves, O
reino da Marambaia, Rio de Janeiro: Gráfica Olímpica Editora, 1966, p. 96
21 Ulrich recebeu carta de comendador e foro de fidalgo da Casa Real em Portugal no ano
de 1866. Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT). João Henrique Ulrich. Documen-
tos simples. Código: pt\tt\rgm\j\186664. Data de produção: 1866-9-13. Sobre traficantes
portugueses atuantes no Brasil durante a ilegalidade, ver José Capela, Conde de Ferreira
& Cia, traficante de escravos, Porto: Afrontamento, 2012.
27 É importante destacar que o tráfico ao norte da linha do equador era ilegal desde 1815, se-
gundo acordo traçado entre a Coroa Portuguesa e a Inglaterra.
28 “The Trans-Atlantic Slave Trade Database Voyages” Voyage 4640 <http:// www.slavevoya-
ges.org/tast/index.faces>, acessado em setembro de 2009.
29 Sobre essas apreensões, ver: Moraes, “A capital marítima do comendador”
30 A coincidência no nome do navio, assim como do seu capitão, Vicente de Freitas Serpa, que
comandou ambas as viagens, nos deu certeza de estarmos diante do mesmo brigue. Ver
“The Trans-Atlantic Slave Trade Database”, Voyages 1948 e 900153.
31 Entre os desembarques registrados no banco de dados do projeto Voyages, apenas o ber-
gantim Leão não foi apreendido.
32 Parron, A politica da escravidão no império do Brasil. Em relação à ascensão do gabinete
conservador e a reabertura do tráfico na Província do Rio de Janeiro, ver também Pessoa.
“A indiscrição como ofício”, pp. 90-140.
escravos a bordo. Embora essas taxas sejam bastante altas, elas não
correspondem à totalidade dos desembarques. Nos casos analisados, as
taxas oscilam bastante. Exemplo disso é que em 1839, nas duas viagens
do brigue D. João de Castro, a taxa de mortalidade girava em torno de
10%, praticamente a mesma do brigue americano Camargo, que registrou
mortalidade em torno 9,1% em 1852. Essas variáveis não eram fixas,
e se relacionavam tanto com o itinerário das viagens e seus portos de
origem, quanto com a finalização do empreendimento. A própria lógica
de maximização dos lucros de alguns traficantes, que abarrotavam os
tumbeiros com centenas de africanos, aumentava significativamente
esses índices. Emblemático, nesse sentido, é o caso do bergantim Leão
que embarcou 855 africanos em 1837 e, ao mesmo tempo, amargou a
maior taxa de mortalidade entre as embarcações registradas.
40 Não retomaremos os detalhes da incursão e apreensão realizada por Azambuja. Para uma
análise minuciosa sobre o desenrolar dos fatos, a origem dos africanos contrabandeados
e o processo instaurado na Auditoria da Marinha, ver Daniela Paiva de Moraes, “A capi-
tal marítima do comendador” e “Da comunidade remanescente de quilombo ao tráfico de
africanos livres: os processos da Auditoria Geral da Marinha sobre apreensões de recém-
desembarcados na ilha da Marambaia (RJ) – 1850-51”, in Hebe Mattos (org.), Diáspora ne-
gra e lugares de memória: a história oculta das propriedades voltadas para o tráfico clan-
destino de escravos no Brasil Imperial (Niterói: UFF, 2013), pp. 35-60.
41 Arquivo Nacional. Recurso criminal. Fundo: Relação do Rio de Janeiro, no 1.744, maço 184,
galeria C. A análise que segue terá como referência os documentos arrolados nos autos
desse recurso impetrado por Breves em julho de 1851. Sobre os conflitos envolvendo os
africanos e a condenação de Breves, em primeira instância, por cumplicidade no tráfico,
ver Pessoa, “A indiscrição como ofício”, pp. 264-299.
42 Arquivo Nacional. Recurso criminal. Fundo: Relação do Rio de Janeiro, no 1.744, maço
184, galeria C.
43 Segundo Moraes, “João dos Santos Breves, junto com Antonio Dias Pavão, era proprietá-
rio do brigue Fluminense, comandado por Bento José de Almeida, apreendido pelo navio
francês Le Leger e levado para julgamento da comissão mista em 1841.” Daniela Paiva de
Moraes “A capital marítima do comendador”, p. 74. A expressão “empório da carne huma-
na” foi utilizada pela câmara de Mangaratiba, em denúncia ao governo provincial, ao rela-
tar os escusos negócios dos Breves na região do Saco no final da década de 1830.
44 Biblioteca Nacional, Jornal do Commercio, 14 de fevereiro de 1851.
45 Ao que tudo indica a tal “doenças dos olhos” relatada pelo administrador da Marambaia
correspondia à oftalmia, moléstia típica do tráfico negreiro. Segundo Clóvis Moura, era
“uma das mais temidas no tráfico de escravos, pois causava cegueira total ou parcial e po-
dia alastrar-se por toda a carga do navio negreiro.” Clóvis Moura, Dicionário da escravidão
negra no Brasil, São Paulo: Edusp, 2004. p. 137.
46 Arquivo Nacional. Recurso criminal. Fundo: Relação do Rio de Janeiro, no 1.744, maço 184,
galeria C.
47 Aperj. Fundo: Presidência da Província. Notação 0028.
52 Em seu artigo 3º a Lei estabelece que: “são autores do crime de importação, ou de tentativa
dessa importação, o dono, o capitão ou mestre, o piloto e o contramestre da embarcação, e
o sobrecarga. São cúmplices a equipagem, e os que coadjuvarem o desembarque de escra-
vos no território brasileiro de que concorrerem para ocultar ao conhecimento da autori-
dade, ou para os subtrair à apreensão no mar, ou em ato de desembarque sendo persegui-
da”. Colleção das Leis do Império do Brasil, Biblioteca Nacional (BN).
53 Assis Chateaubriand, Um viveiro morto de mão de obra negra para o cafezal, apud Padre
Reynato Breves, A saga dos Breves. Sua família, genealogia, história e tradições, Rio de Ja-
neiro: Editora Valença S.A, s/d., pp.749-50.
54 Ver: Alberto Lamego, O homem e a restinga, Rio de Janeiro: IBGE - Conselho Nacional de
Geografia, 1946. José Murilo de Carvalho, Teatro das sombras. A política imperial, São
Paulo: Vértice, 1988, p.16; e Richard Graham, Patronage and Politics in Nineteenth-cen-
tury Brazil, Stanford: Stanford University Press, 1889, pp.125-7.
55 Arquivo Nacional. Apelação crime, 1874. Fundo: Tribunal da Relação (84) no 3.368, maço.
97, galeria A.
58 Cabe ressaltar que para cerca de 7% dos óbitos arrolados não foi possível identificar o lo-
cal de nascimento dos cativos falecidos.
59 Para o século XVIII, Mariza Soares destaca que “na passagem de escravo a forro deve-se
não apenas conseguir a alforria, mas também passar de um livro a outro. A alforria na
pia batismal só é completa quando o assento é feito no livro dos brancos”. Mariza Soares,
Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro do século
XVIII, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 101. Embora os nossos dados não se
refiram a alforrias, tampouco à documentação eclesiástica, é importante destacar as per-
cepções sociais extraídas da documentação trabalhada.
Fonte: Livro de controle interno das fazendas de Joaquim Breves, 1865-1889. Arquivo Municipal
de Piraí (AMP). Os dados acima representam números absolutos na amostragem de 372 cativos
brasileiros falecidos nas fazendas de Joaquim Breves.
60 Para primeira metade do século XVIII, Mariza Soares destaca que o termo crioulo era usa-
do como sinônimo da primeira geração de filhos de mãe gentia. Soares, Devotos da cor, p.
97 e 100.
61 Soares, Devotos da cor”, p. 109.
Fonte: Livro de controle interno das fazendas de Joaquim Breves, 1865-1889. Arquivo Municipal
de Piraí (AMP). Os dados acima representam números absolutos na amostragem de 329 cativos
africanos falecidos nas fazendas de Joaquim Breves.
62 Sobre as nações africanas na cidade do Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX, e
a predominância dos grupos da região de Angola e do Congo Norte na demografia escrava
da cidade na mesma época, ver Mary Karasch, A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-
1850), São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
Fonte: Livro de controle interno das fazendas de Joaquim Breves, 1865-1889. Arquivo Municipal
de Piraí (AMP). Os dados acima representam números absolutos na amostragem de 49 africanos
falecidos nas fazendas de Joaquim Breves e reduzidos ilegalmente à escravidão.
Fonte: Livro de controle interno das fazendas de Joaquim Breves, 1865-1889. Arquivo Municipal
de Piraí (AMP). Obs.: A terceira coluna corresponde à média de idade entre os africanos livres
falecidos em determinado ano.
69 Vale enfatizar que as antigas fazendas litorâneas dos comendadores emergem no início
do século XXI como comunidades remanescentes de quilombo, nos termos do artigo 68 do
ADCT da Constituição Brasileira de 1988.
70 Arquivo Nacional (AN), Secretaria de Polícia da Corte, Reservado, fevereiro de 1854, Série
Justiça (IJ6 468). Grifos meus.
71 Sobre o vínculo dos Breves às redes internacionais de traficantes transatlânticos, ver Pes-
soa, “A indiscrição como ofício”, pp. 90-140.
72 Idem, pp. 264-299.
73 Sobre os números do tráfico e sua revisão em caráter crescente, ver Maurício Goulart, A
escravidão africana no Brasil (Das origens à extinção do tráfico), São Paulo: Livraria Mar-
tins Editora, 1949; Leslie Bethell, A abolição do tráfico de escravos no Brasil, Rio de Janei-
ro: Editora Expressão e Cultura, 1976; David Eltis, Economic Growth and the Ending of the
Transatlantic Slave Trade, Nova York: New York University Press, 1987; David Eltis e Da-
vid Richardson. Atlas of the transatlantic slave trade. New Haven: Yale University Press,
2010; e dados disponíveis online em www.slavevoyages.org.
74 Minuta de Resposta. 1853, Museu Histórico Nacional (MHN), Coleção Euzébio de Queiróz,
EQcr 79/1. Grifo do autor.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA
3 Sobre a Companhia de Menores, ver APEP, SPP, Ofícios do Arsenal de Guerra do Pará,
ano: 1852-1853, cx. 168, Relatório do Arsenal de Guerra ao Presidente da Província,
Conselheiro Sebastião do Rêgo Barros, assinado pelo bacharel Joaquim Jerônimo Bar-
rão, Capitão Director interino, de 15/11/1853. Sobre as propostas APEP, SPP, OTP, ano
1852, cx. 166, Ofício n. 9 do Inspetor Manoel Antonio D’Almeida Pinto ao Presidente da
Província.
4 APEP, SPP, OTP, ano 1852, cx. 166, Ofício n. 28 do Inspetor Manoel Antonio D’Almeida
Pinto ao Presidente da Província, Dr. Fausto Augusto de Aguiar, de 13/02/1852. Sobre
a criação da Thezouraria da Fazenda, ver Ofício do Inspetor Manoel Antonio D’Almei-
da Pinto ao Presidente da Província, Dr. Fausto Augusto de Aguiar, de 24/01/1852.
5 APEP, SPP, OTP, ano 1852, cx. 166, Ofício n. 87 do Inspetor Manoel Antonio D’Almeida
Pinto ao Presidente da Província, Dr. Fausto Augusto de Aguiar, de 17/04/1852; e Ofício
n. 110 do Inspetor Manoel Antonio D’Almeida Pinto ao Presidente da Província, Dr. Faus-
to Augusto de Aguiar, de 08/05/1852.
6 Sobre a opinião pública no Império, ver Ângela Alonso, Idéias em movimento: a geração de
1870 na crise do Brasil-Império, São Paulo: Paz e Terra, 2002. Segundo Alonso, a opinião
pública era a expressão dos anseios e os sentimentos, a voz das classes proprietárias, res-
trita ao universo social dos cidadãos portadores de direitos políticos como votantes e po-
tenciais candidatos.
7 Cf. Colin M. Maclachlan, “African Slave Trade and Economic Development in Amazônia,
1700-1800”, in Robert Brent Toplin (org.), Slavery and Race Relations in Latin America
(Westport, Conn.; Londres: Greenwood Press, 1974), pp. 112-145; Rafael Chambouleyron,
“Escravos do Atlântico equatorial: tráfico negreiro para o estado do Maranhão e Pará (sé-
culo XVII e início do século XVIII)”, Revista Brasileira de História, vol. 26, no. 52 (2006), pp.
79-114.
8 Cf. Flávio Gomes e Mariana Blanco Rincón, “Escravidão, Nação e Abolição no Brasil e Ve-
nezuela: notas sobre perspectivas comparadas”, Cadernos do CHDD, ano IV, no. especial
(2005), pp. 107-132, citação da p. 129. Ver também, Roquinaldo Ferreira, “Abolicionis-
mo e fim do tráfico de escravos em Angola, séc. XIX”, Cadernos CHDD, ano iv, no. especial
(2005), pp. 159-176, em especial a p. 159.
9 Cf. Tito Franco de Almeida, O Brazil e a Inglaterra ou tráfico de africanos, Rio de Janeiro:
Typographia Perseverança, 1868; Aureliano Candido Tavares Bastos, Cartas do solitário.
Rio de Janeiro: 1863, 2ª ed., pp. 108-109, 112, 126-129; Malheiro, A escravidão, pp. 41, 43-
44, 49, 51, 52-57. Sobre esse debate, ver Leslie Bethell, A abolição do comércio brasileiro
de escravos: a Grã-Bretanha, o Brasil e a questão do comércio de escravos 1807-1869, Bra-
sília: Senado Federal, 2002, pp. 383, 405, 408-409.
para outras possibilidades cognitivas, tal como o “papel dos escravos, como
força de ruptura – real ou imaginada – da ordem social escravista (que)
aparece como um elemento-chave do contexto que desencadeou o fim do
tráfico”.15 Diversos historiadores vêm chamando a atenção em seus estudos
sobre os mundos da escravidão, nos quais se inseria o tráfico, para a situação
de medo das elites diante da possibilidade de revoltas escravas sob o espec-
tro do haitianismo, bem como o temor de uma irreversível africanização
do Brasil, que comprometesse seu potencial como civilização, como razões
suficientemente fortes para se acabar com o tráfico de cativos africanos,
questões, aliás, já indicadas antes por Leslie Bethell.16 Além do mais, o
próprio estudo do tráfico no Brasil, já faz alguns anos, deixou de ser quase
sempre um capítulo dos trabalhos sobre a escravidão, à exceção de alguns
importantes estudos,17 tornando-se tema de investigações específicas de uma
historiografia econômica, social e política, renovada pelos avanços metodo-
lógicos e teóricos da pesquisa histórica desde ao menos a década de 1980. 18
continuação 18
viventes: a formação do Brasil no Atlântico Sul, São Paulo: Companhia das Letras, 2000;
e Alberto da Costa e Silva, “O Brasil, a África e o Atlântico no século XIX”, in Aguilar (org.),
Mostra do redescobrimento, pp. 74-96.
19 Vicente Salles, O negro no Pará, sob o regime da escravidão, Belém: Fundação Cultural
Tancredo Neves, 1988, traz a informação de que o último carregamento direto de afri-
canos escravizados para Belém foi em 1834, data considerada por muito tempo pela his-
toriografia da região como exata, mas, segundo dados do The Transatlantic Slave Trade
Database (www.slavevoyags.org), o último carregamento se deu em 1841. Ver a respeito
José Maia Bezerra Neto, Escravidão negra no Grão-Pará (séculos XVII-XIX), 2ª ed. revista
e ampliada. Belém: Editora Paka-Tatu, 2012, p. 67. Sobre o pequeno percentual de africa-
nos, na primeira metade da década de 1850, Luciana Batista demonstra que nos inventá-
rios da região de Belém analisados só 6% dos escravos eram africanos. Cf. Luciana Mari-
nho Batista, “Demografia, família e resistência escrava no Grão-Pará (1850-1855)”, in José
Maia Bezerra Neto e Décio Guzmán (orgs.), Terra matura. Historiografia e História Social
na Amazônia (Belém: Editora Paka-Tatu, 2002), pp. 201-230, particularmente a p. 215.
20 Ver Maclachlan, “African Slave Trade”. Ainda sobre o tráfico para a Amazônia até as primei-
ras décadas do século XIX, Anaíza Vergolino e Silva, “O negro no Pará – A notícia histórica”,
in Carlos Rocque (org.), Antologia da cultura Amazônica (Belém: Amazônia Edições Culturais
Ltda./AMADA, 1971), pp. 17-33. Ver também Bezerra Neto, Escravidão negra no Grão-Pará.
21 Cf. Maurílio de Gouveia, História da escravidão, Rio de Janeiro: Gráfica Tupy LTDA Edito-
ra, 1955, p. 126.
22 Apud Evaristo de Moraes, A escravidão africana no Brasil (Das origens á extincção), São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1933, p. 107. Ver também Francisco Luiz Teixeira Vi-
nhosa, “A emancipação dos escravos. A pedra que poderia esmagar D. Pedro II”, Revista do
IHGB, v. 149, n. 358 (1988), pp. 1-15.
23 Cf. Perdigão Malheiro, A escravidão, p. 45.
24 APEP, SPP, Ofícios do Ministério dos Negócios da Justiça (daqui adiante OMNJ), ano: 1850-
1859, cx. 146, Circular reservada do Ministério e Secretaria de Estado da Justiça ao Presi-
dente da Província do Pará, de 14/04/1852.
25 Cf. Discurso de Eusébio de Queiroz de 16/07/1852, apud Perdigão Malheiro, A escravidão,
p. 213.
26 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Circular reservada do Ministério e Secretaria
de Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de 14/04/1852.
27 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Circular reservada do Ministério e Secretaria
de Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de 19/04/1852.
28 Cf. Gouveia, História da escravidão, p. 129. Sobre o poder desses traficantes, ver Bethell,
A Abolição, p. 325, 328, 330, 387, 388 e 400.
29 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Circular reservada do Ministério e Secretaria
de Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de 9/11/1851; e Circular reser-
vada do Ministério e Secretaria de Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará,
de 12/12/1851.
mais terminantes”, para que se algum desses navios aí chegasse fosse com
rigor examinado “a respeito da sua viagem, carregamento, passageiros,
signaes que indicão o emprego no tráfico, devendo qualquer suspeita ser
motivo para sua aprehensão e processo”.32
Sobre o uso de bandeira sarda ou romana, em 15 de abril de 1853,
Sousa Ramos informou ao presidente do Pará o ofício reservado da Le-
gação Imperial em Montevideo ao ministro dos Negócios Estrangeiros
de 23 de março, sobre “suspeitas fundadas de ter sahido daquelle porto
[Montevideo] para o tráfico na Costa d’África, o Brigue Romano Maria,
antes Sardo, com o nome de Prudência”. O ministro da Justiça, então,
ordenou ao presidente que desse “as mais terminantes ordens para que
se não consinta o desembarque de Africanos nessa Província, se por ven-
tura o dito Brigue for ter a algum porto della, procedendo-se nesse caso
á minuciosas indagações para a sua aprehensão, e prisão dos indivíduos
que se tornarem suspeitos.” 33
No caso do uso do pavilhão norte-americano por navios que foram
ou fingiam ser daquele país e envolvidos no tráfico para o Brasil, esse
uso vinha principalmente desde 1838, mas aumentou consideravelmente
na segunda metade da década de 1840, sendo em 1848, 20%; e em 1850,
50% dos navios negreiros.34 Em 9 de fevereiro de 1856, Nabuco de Araújo,
ministro da Justiça, oficiou ao presidente do Pará, Rego Barros, que o
governo soubera que duas naves norte-americanas viajaram à costa afri-
cana, “entre o Cabo Lopes e o Congo para carregar escravos, com destino
à Costa do Brasil”; ordenando, então, o uso de todos os meios à disposição
para impedir “qualquer desembarque, que se tente n’essa Província”,
mandando ainda fazer as “mais rigorosas pesquisas para saber” se, no
Pará, se achava D. Francisco Rivarosa, que deveria ser preso e remetido
para a Corte “ à disposição do Chefe de Polícia”. Algum tempo depois, em
17 de outubro de 1857, o ministro da Justiça, Francisco Diogo Pereira de
Vasconcellos, disse que foi informado pelo vice-cônsul brasileiro na Ilha
da Madeira que, em 2 de setembro, se despachou para o Rio de Janeiro o
patacho americano W. H. Stuart, “de 26 tonelladas e 9 pessoas de tripola-
ção, do qual é mestre Dujant”. No entanto, dizia Pereira de Vasconcellos,
circulara o boato de que antes de ir para o Rio de Janeiro, o W. H. Stuart
32 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Ofício reservado do Ministério e Secretaria
de Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de 17/05/1856; e Ofício reserva-
do do Ministério e Secretaria de Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de
29/09/1852.
33 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Ofício reservado do Ministério e Secretaria de
Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de 15/04/1853. Destaques meus.
34 Cf. Bethell, A abolição p. 46, 47, 221 e 224. Ver também Dale T. Graden, “O envolvimento
dos Estados Unidos no comércio transatlântico de escravos para o Brasil, 1840-1858”, nes-
ta coletânea, bem como Gerald Horne, O Sul mais distante: os Estados Unidos, o Brasil e o
tráfico de escravos africanos, São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
35 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Ofício reservado do Ministério e Secretaria
de Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de 09/02/1856; e Ofício reserva-
do do Ministério e Secretaria de Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de
17/10/1857.
36 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Ofício reservado do Ministério e Secretaria
de Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de 19/09/1852. Sobre o tráfico
de escravos africanos para a região do Prata, notadamente o Uruguai, ver a respeito Greg
Grandin, O império da necessidade: escravatura, liberdade e ilusão no Novo Mundo, Rio de
Janeiro: Rocco, 2014.
37 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Ofício reservado do Ministério e Secretaria de
Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de 26/10/1857.
38 Sobre tentativa de desembarque em Alagoas e sua pronta repressão, ver APEP, SPP,
OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Ofício reservado do Ministério e Secretaria de Esta-
do da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de 02/07/1856. Sobre desembarque
em Serinhaém, ver: APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Ofício reservado do
Ministério e Secretaria de Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de
06/11/1855.
39 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Ofício reservado do Ministério e Secretaria de
Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de 06/11/1855. Destaques meus.
40 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Ofício reservado do Ministério e Secretaria
de Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de 04/02/1856; e Ofício reserva-
do do Ministério e Secretaria de Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de
09/06/ 1856.
41 Sobre o assunto, ver Graden, “O envolvimento dos Estados Unidos no comércio transatlân-
tico de escravos”; bem como Horne, O Sul mais distante.
42 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Circular reservada do Ministério dos Negócios
da Justiça ao Sr. Presidente da Província do Pará, de 17/05/1854.
43 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Circular reservada do Ministério dos Negócios
da Justiça ao Sr. Presidente da Província do Pará, de 30/04/1859.
44 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Ofício reservado do Ministério e Secretaria
de Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de 11/05/1859; e Ofício reserva-
do do Ministério e Secretaria de Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de
08/10/ 1856.
45 APEP, SPP, Ofícios dos Cônsules, ano: 1851-1859, cx. 162, Ofício particular do Consulado
Britânico no Pará ao Presidente da Província do Pará, de 1º/05/1857.
46 Sobre os conflitos com o cônsul Vines, em 17/04/1857, o ministro José Maria da Silva
Paranhos comunicou ao presidente provincial a expectativa de que o governo britânico
mandasse “retirar, como espero, esse seo agente”; concluindo que seria melhor assim “do
que despedido por nós”. APEP, SPP, Ofícios do Ministério dos Negócios Estrangeiros (da-
qui adiante OMNE), ano: 1850-1859, cx. 147, Ofício reservado do Ministério dos Negócios
Estrangeiros ao Presidente da Província do Pará, de 17/04/1857.
47 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Ofício reservado do Ministério e Secretaria de
Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de 30/08/185.
50 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Ofício do Ministério dos Negócios da Justiça
ao Snr. Presidente da Província do Pará, de 06/09/1859.
51 APEP, Segurança Pública/Secretaria de Polícia do Pará (daqui adiante SP/SPPA), Ofícios
das Delegacias e Subdelegacias, ano: 1850-51, 1855-57, 1859, Circular reservada do Che-
fe de Polícia do Pará, João Baptista Gonçalves Campos, ao Snr. Delegado de Polícia de Bra-
gança, de 18/07/1856.
52 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Correspondência reservada do Ministério dos
Negócios da Justiça ao Snr. Presidente da Província do Pará, de 25/06/1856.
53 APEP, SPP, OMNE, ano: 1850-1859, cx. 147, Ofício reservado do Ministério dos Negócios
Estrangeiros a S. Exa. o Sr. Presidente da Província do Pará, de 08/08/1856). Neste docu-
mento, a referência e o resumo dos ofícios da presidência do Pará.
54 Acerca dos navios norte-americanos e a caça de baleias ver Grandin, O império da
necessidade.
55 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Circular reservada do Ministério dos Negó-
cios da Justiça ao Snr. Presidente da Província do Pará, de 09/02/1856; e Ofício reser-
vado do Ministério dos Negócios da Justiça ao Snr. Presidente da Província do Pará, de
07/10/1857. Destaques meus.
56 APEP, SPP, Ofícios da Secretaria de Polícia da Província do Pará (daqui adiante SPPP), ano:
1852-1853, cx. 167, Ofício do Chefe de Polícia José Joaquim Pimenta de Magalhães ao Ill-
mo. Exmo. Snr. Conselheiro Sebastião do Rego Barros, Presidente da Província [do Pará],
de 23/12/1853. Em anexo, cópia do Aviso do Ministério da Justiça ao Chefe de Polícia da
Província do Pará, de 22/10/1853.
57 Sobre o assunto ver APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Circular reservada do Mi-
nistério dos Negócios da Justiça ao Snr. Presidente da Província do Pará, de 25/09/1858;
e Ofício reservado do Ministério dos Negócios da Justiça ao Snr. Presidente da Província
do Pará, de 1º/10/1859; e Circular reservada do Ministério dos Negócios da Justiça ao Sr.
Presidente da Província do Pará, de 12/05/1852.
58 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Circular reservada do Ministério dos Negócios
da Justiça ao Snr. Presidente da Província do Pará, de 26/10/1857.
59 Sobre a alta dos preços dos escravos, baseado na realidade da província do Rio de Janeiro,
Goldsmith diz: “Entre 1850 e 1858 os preços subiram em 260%, ou a uma taxa média anual
de mais de 17%. A partir daí e até o final dos anos 70, os preços flutuaram irregularmen-
te, dentro de uma faixa de 67 a 95% do pico de 1858, permanecendo a 90% do mesmo em
1879.” Cf. Raymond W. Goldsmith, Brasil 1850-1984. Desenvolvimento Financeiro sob um
Século de Inflação, São Paulo: Ed. Harper & Row do Brasil Ltda/Bamerindus, 1986, p. 34.
60 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Circular reservada do Ministério dos Negócios
da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de 14/04/1851.
61APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Circular reservada do Ministério dos Negócios
da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de 02/07/ 1852.
62 Só para o Rio de Janeiro, província e Corte, entre 1852-1859, vieram do Maranhão, Cea-
rá e Pernambuco, a “nova costa africana”, 26.622 escravos, embora o ministro britânico no
Brasil W. D. Christie informasse ao seu governo que só para a cidade do Rio de Janeiro, en-
tre 1852 e 1862, foram 34.688 escravos vindos das regiões do Norte do Brasil. Cf. Bethell,
A abolição, p. 423.
65 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Circular reservada do Ministério e Secretaria
de Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de 17/06/1852.
66 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Circular reservada do Ministério e Secretaria
de Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de 12/05/1852. Destaques meus.
1831, primeira antitráfico, como se ela fosse só para inglês ver. Lembremos,
nesse sentido, acerca do tráfico entre a África e o Rio de Janeiro, que houve
um aumento no volume de escravos importados no período imediatamente
anterior à aprovação da Lei de 7 de novembro de 1831, face à possibilidade
de término do tráfico, afinal não estava dado de antemão que ela não seria
executada;67 não esquecendo que, na década de 1830, o governo regencial
fez algumas tentativas para coibir o tráfico, inclusive com a captura de 6
navios no litoral fluminense, nos anos de 1834 e 1835. Mas, só com a Lei de
1850, que não suprimiu a de 1831,68 a perseguição e a extinção do tráfico
tornaram-se parte da agenda política do governo brasileiro, ainda que hou-
vesse mudanças ministeriais ou até substituições de gabinetes.
Na década de 1850, se o combate ao tráfico se fez imperioso por parte
da monarquia em face das ações de busca e apreensão de navios brasileiros,
até mesmo em portos do Império pelos cruzeiros ingleses, em virtude do
Bill Aberdeen de 1845, o foi também face à mudança da opinião pública
brasileira no momento em que “o tráfico era universalmente condenado”.69
Afinal, a ação militar britânica, além das dificuldades encontradas no litoral
brasileiro para cumprir o Bill Aberdeen, não foi por si só suficiente para
dar cabo do tráfico, segundo Bethell, quando diz que apesar do “número
recorde de navios capturados pela marinha britânica e subsequentemente
condenados em tribunais marítimos (...), o tráfico de escravos para o Brasil
não foi absolutamente esmagado. Ao contrário, durante a segunda metade
dos anos quarenta ele efetivamente excedeu todos os níveis anteriores.” 70
No ápice da repressão inglesa ao tráfico, entre 1845 e 1849, o comér-
cio de escravos tornou-se mais lucrativo em face do aumento da demanda
por cativos, com o maior volume das exportações de café e açúcar, tanto
que 50.000 a 60.000 escravos africanos foram importados, sendo a maior
parte (2/3) desembarcada no litoral, ao norte e ao sul do Rio de Janeiro, e
outra parte no próprio Rio de Janeiro; ao sul de Santos, em Paranaguá; e na
Bahia, “cujo comércio aumentou regularmente durante a segunda metade
dos anos quarenta”. Daí por que o ministro Sousa Ramos dissera que o fim
das “violências” dos cruzadores ingleses seria “um embaraço de menos”
aos traficantes, já que, segundo Bethell, “para eludir o sistema preventivo
britânico, o comércio [de escravos] tornou-se mais altamente organizado
do que nunca”.71 E para combater a capacidade organizativa desses nego-
ciantes que passavam a ser vistos como “contrabandistas”, “criminosos” e
72 Idem, p. 430, quando trata da ação do ministro da Justiça Nabuco de Araújo, em 1854,
junto a certo juiz para não cumprir ao pé da letra a Lei de 7/11/1831, visto que o gover-
no não estaria disposto a mexer com essa questão, ainda que decidido a fazer cumprir a
lei Eusébio de Queiroz de 4/09/1850.
73 Cf. Bethell, A abolição, pp. 386-387. Com a derrota do caudilho argentino Rosas, em feve-
reiro de 1852, navios de guerra brasileiros deixaram o Rio da Prata e somaram na patru-
lha do comércio atlântico de escravos africanos, sendo 16 navios, 8 a vapor, posicionados
entre Campos, Rio de Janeiro, e o Rio Grande do Sul; 3 na Bahia; 3 em Pernambuco e 5 no
Maranhão. Estes fariam parte da Estação Naval do Norte. Idem, p. 415.
74 Ver idem, p. 420 e 421; e Gouveia, História da escravidão, pp. 130-131, que trata do envol-
vimento de magistrados no caso de Serinhaém, das punições adotadas e do controle da
magistratura pelo governo imperial.
75 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Circular reservada do Ministério e Secretaria
de Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de 06/11/1855.
76 Bethell, A abolição, p. 419.
77 Apud Malheiro, A escravidão. As citações estão nas p. 201 e 216.
78 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Ofício reservado do Ministério dos Negócios
da Justiça ao [Presidente da Província do Pará], de 17/05/1852. Destaques meus; e Circu-
lar reservada do Ministério dos Negócios da Justiça ao Snr. Presidente da Província do
Pará, de 17/06/1852. Destaques meus.
79 Graden, “‘Uma lei... até de segurança pública’”, p. 114.
80 Bethell, A abolição, pp. 95, 329-330.
81 Malheiro, A escravidão, pp. 201-222, Anexo 7.
82 Cf. ofício da Câmara Municipal do Pará ao presidente da Província, Treze de Maio, 03/06/
1840, n. 7, p. 27.
85 Cf. declarações em APEP, SP/SPPA, Atestados, Ano: 1839, 1866-69, 1889 (destaques meus).
86 Raiol apud Vicente Salles, Memorial da Cabanagem: esboço do pensamento políticorevo-
lucionário no Grão-Pará, Belém: Cejup, 1992, p. 128. Citações de Salles na p. 132. Ver tam-
bém a p. 136. Ver ainda Salles, O negro no Pará; Vicente Salles, O negro na formação da so-
ciedade paraense, Belém: Editora Paka-Tatu, 2004; Luís Balkar Pinheiro, “De mocambeiro
a cabano: notas sobre a presença negra na Amazônia na primeira metade do século XIX”,
Terra das Águas: Revista de Estudos Amazônicos, vol. 1, no. 1 (1999), pp. 148-172.
87 Sobre o haitianismo no Pará no pós-Cabanagem, ver Bezerra Neto, “Ousados e
insubordinados”.
88 Ver José Maia Bezerra Neto, “Fugindo, sempre fugindo: escravidão, fugas escravas e
fugitivos no Grão-Pará (1840-1888)” (Dissertação de Mestrado, Universidade Esta-
dual de Campinas, 2000). Sobre os quilombos, entre outros, ver os trabalhos de Vicen-
te Salles já citado e Flávio dos Santos Gomes, A Hidra e os pântanos: mocambos, qui-
lombos e comunidades de fugitivos no Brasil escravista (séculos XVII-XIX), São Pau-
lo: Polis/Editora Unesp, 2005; e Eurípedes Funes, “Nasci nas matas, nunca tive senhor:
história e memória dos mocambos do Baixo Amazonas” (Tese de Doutorado, Universi-
dade de São Paulo, 1995).
89 APEP, SPP, OSPPP, ano: 1850-1853, cx. 139, Ofício do Subdelegado de Polícia da Freguesia
de Breves, Manoel Pereira Lima, ao Illmo. Snr. Dr. José Joaquim Pimenta de Magalhães,
Chefe de Polícia desta Província, de 02/01/1851, anexo ao Ofício do Chefe de Polícia, José
Joaquim Pimenta de Magalhães ao Illmo. Exmo. Senr. Dr. Fausto Augusto de Aguiar, Pre-
sidente da Província, de 14/01/1851; e Ofício do Subdelegado de Polícia de Itapicurú, José
Joaquim de Lima, ao Ilmo. Exmo. Snr. Vice-Presidente da Província, de 06/09/1853.
90 APEP, SPP, OSPPP, ano: 1850-1853, cx. 139, Ofício do Subdelegado de Polícia de Itapicurú,
José Joaquim de Lima, ao Ilmo. Exmo. Snr. Coronel Miguel Antonio Pinto Guimarães, Vice
-Presidente da Província [do Pará], de 20/09/1853.
91 Sobre a formação do Estado nacional sob a égide imperial, ver Maria Odila Leite Dias da
Silva, A interiorização da metrópole e outros estudos, São Paulo: Alameda Casa Editorial,
2005. Ver ainda Ilmar Rohloff de Mattos, O Tempo Saquarema, , 4ª ed., Rio de Janeiro: Ac-
cess, 1999.
92 APEP, SPP, OSPPP, ano: 1851, cx. 149, Ofício do Chefe de Polícia ao Illmo. Exmo. Snr. Dr.
Fausto Augusto de Aguiar, Presidente da Província [do Pará], de 16/05/1851. Destaques
meus.
93 Cf. Governo da Província do Pará, Falla com que o Exm. Snr. Conselheiro Sebastião do Rego
Barros, Presidente desta Província, dirigiu à Assemblea Legislativa Provincial, na aber-
tura da mesma Assemblea, no dia 15 de agosto de 1854, Belém: Typ. da Aurora Paraense,
1854, p. 4. Ver também: APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Ofício reservado do
Ministério dos Negócios da Justiça ao [Presidente da Província do Pará], de 05/08/1854.
94 APEP, SPP, Ofícios da Guarda Nacional, ano: 1851-1853, cx. 156, Ofício do Comandante
Superior da Guarda Nacional, Marcos Antonio Brício, ao Illmo. Exmo. Snr. Dr. Fausto Au-
gusto Aguiar, Presidente de Província, de 18/08/1852.
95 Sobre os casos citados ver: APEP, SPP, Ofícios das Autoridades Judiciárias (daqui adiante
OAJ), ano: 1851-1852, cx. 154, Ofício de Agostinho Pedro Aguiar, Juiz Municipal Supplen-
te de Santarém, ao Illmo. Exmo. Dr. Fausto Augusto Aguiar, D. Presidente d’esta Provín-
cia, de 09/06/1852; e Ofício de Agostinho Pedro Aguiar, Juiz Municipal Supplente de San-
tarém, ao Illmo. Exmo. Snr. José Joaquim da Cunha, digníssimo Presidente da Província do
Pará, de 19/09/1852. APEP, SPP, OAJ, ano: 1850, cx. 133, Ofício de João Baptista Gonçalves
Campos, Juiz de Direito da Comarca de Santarém, ao Illmo. Excmo. Snr. Conselheiro Jerô-
nimo Francisco Coelho, Digno Presidente desta Província do Pará, de 16/06/1850. APEP,
SPP, OAJ, ano: 1850, cx. 133, Ofício do Juiz Municipal Supplente em exercício da Fregue-
sia de Abaité ao Illmo. Exmo. Snr. Dr. Fausto Augusto Aguiar, de 02/11/1850; APEP, SPP,
OAJ, ano: 1851-1852, cx. 154, Ofício de José Raimundo Furtado, Juiz Municipal Supplente
da Comarca de Cametá ao Ilmo. Exmo. Snr. Dr. Fausto Augusto Aguiar, Digno Presidente
da Província do Pará, de 03/06/1852; APEP, SPP, Ofícios dos Comandantes Militares, ano:
1850-1852, cx. 137, Ofício de José Olimpio Pereira, Major Comandante Militar do Distric-
to de Chaves ao Ilmo. Excmo. Snr. Dr. Fausto Augusto Aguiar, de 02/07/1852; APEP, SPP,
OAJ, ano: 1851-1852, cx. 154, Ofício do Chefe de Polícia interino ao Illmo. Exmo. Snr. Dr.
Fausto Augusto Aguiar, Presidente da Província, de 22/07/1851.
policiais e militares. Sobre isto há, por exemplo, o ofício do major Diogo
Vaz de Moya, comandante geral e militar de Cametá, ao presidente do Pará,
Dr. José Joaquim da Cunha, em 16 de agosto de 1853. Tratava da insubordi-
nação e indisciplina da força policial e militar, cujos membros se evadiam
a pretexto de que a Guarda Nacional já estava estruturada, deixando
aos cidadãos zelar pela ordem pública. O major lembrava que a falta de
autoridade representada pela força pública podia causar desassossego. E
escreveu em tom de alerta: “Ainda temos em recordação as scenas horro-
rozas que tiveram lugar nesta cidade [Cametá] em Abril de 1836 e mesmo
ao de 1824, cujos dias forão de dor, consternação, que enlutarão todos os
pacíficos habitantes: esta Cidade não pode existir sem guarnição, por que
periga a segurança pública, e individual, e o socego que hora desfrutamos.”96
Não sendo de menos que o retorno do líder cabano Eduardo Angelim,
no início da década de 1850, após cumprimento de seu exílio em Fernando
de Noronha (Pernambuco), fosse motivo de preocupação por parte das
autoridades e daqueles que faziam oposição à sua volta, no caso seus
antigos inimigos partidários da legalidade, tais como os redatores do
jornal Correio dos Pobres, que, ao longo de 1851, fizeram beligerantes
ataques à pessoa de Angelim.
Em 23 de dezembro de 1851, o Subdelegado de Barcarena, em ofício
reservado ao chefe de Polícia, contou que, face aos boatos de que Angelim
estivesse preparando uma nova rebelião, “resolveu observar pessoalmente
o referido Angelim em seu engenho denominado – Madre de Deus –”; lá
chegando de súbito e sem aviso, porém, nada encontrou “que pudesse
cauzar suspeitas”, achando Angelim “solitário com sua família”, sendo
recebido, aliás, “com todo o afago”. Depois da visita, contou o subdele-
gado, chamou e inquiriu Estevão Alves, que lhe havia dado conta desses
boatos. Este testemunhou que Angelim “dissera que se quizesse fazer
revoluçoens não lhe faltaria gente, pois que, quando da primeira vez lhe
não faltou, mormente agora que não faltariam filhos que desejassem
vingar as mortes de seus pais”. Pelo que investigou nas terras de Angelim,
no entanto, o subdelegado concluiu que “claro está que elle disse que se
quizesse, mas não disse que hia fazela”, asseverando de qualquer forma
que não ia dormir “a sonno solto sobre a couza do que se trata”, já que
conhecia “perfeitamente que no cazo de elles fazerem motim eu serei a
primeira vítima, por que elles me não podem ser affectos pela prizão que
fiz a Geraldo Francisco Nogueira [irmão de Angelim]”. Geraldo Nogueira
foi preso pela referida autoridade policial em fevereiro de 1851 por ter
espancado outro homem e depois por ser constatado que não cumprira os
96 APEP, SPP, Ofícios dos Comandantes Militares, ano: 1853-1854, cx. 169, Ofício do Major
Diogo Vaz de Moya, Comandante Geral e Militar de Cametá, ao Presidente da Província do
Pará, Dr. José Joaquim da Cunha, de 16/08/1853.
97 APEP, SP/SPPA, Ofícios das Delegacias e Subdelegacias, ano: 1850-51, 1855-57, 1859,
Ofício reservado do Subdelegado de Polícia de Barcarena, Faustino Gomes Alves Cam-
pos, ao Imo. Snr. Dr. José Joaquim Pimenta de Magalhães, Chefe de Polícia da Provín-
cia, de 23/12/ 1851. Sobre a prisão e soltura de Geraldo Nogueira, ver diversos ofícios
constantes em APEP, SP/SPPA, Ofícios das Delegacias e Subdelegacias, ano: 1850-51,
1855-57, 1859.
98 Cf. Documentos de diversas autoridades policiais, judiciárias e militares ao Chefe de Po-
lícia ou ao Presidente da Província, sobre o estado de calamidade e insegurança públicas
ou de (in)tranquilidade em função ou não de epidemias, e os ofícios da Junta de Higiene
ao Presidente, no APEP, Secretaria da Presidência da Província e Segurança Pública/Se-
cretaria de Polícia da Província. Sobre as epidemias, segurança pública e o fim do tráfi-
co, ver Graden, “‘Uma lei ... até de segurança pública’”; e Sidney Chalhoub, A cidade febril:
cortiços e epidemias na Corte Imperial, São Paulo: Companhia das Letras, 1996; no Pará,
associando algumas delas como a varíola ao tráfico, ver Arhtur Vianna, As epidemias no
Pará, Belém: Edufpa, 1975, 1ª edição 1906. Sobre o Cólera na década de 1850, Jane Bel-
trão, Cólera, o flagelo da Belém do Grão-Pará, Belém: MPEG/Edufpa, 2004; sobre a febre
amarela, Iraci Riztman, “Cidade miasmática: experiências populares e epidemias” (Dis-
sertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1997).
99 Sobre as relações do governo provincial com os cônsules francês e inglês, ver APEP, SPP, Sé-
ries: Ofícios dos Cônsules; Ofícios do Ministério dos Negócios Estrangeiros e Ofícios da Se-
cretaria de Polícia da Província. Sobre as críticas aos ingleses pela imprensa paraense, ver
“Piratas Ingleses”, Voz de Guajará, Anno I, 5/12/1851, no. 4, p. 1; e 30/12/1851, no. 8, p. 1.
Senhor,
Felix Africano livre de nação mina, vem com todo devido
respeito e submissão prostrar-se aos pés do Augusto
Thronno de V.M.I. representar que tendo ele sido
apreendido na Província da Bahia em 1835, e prestado
serviços no Arsenal de Marinha da Bahia, e depois sendo
remetido para esta Corte foi mandado para fábrica de ferro
de epanema aonde esteve por algum tempo, e quando voltou
foi mandado para a Fortaleza da Lago [sic] aonde se acha até
hoje, e tendo prestado serviços por espaço de mais de vinte
anos em repartições públicas, que por isso mesmo deve ser
mais atendives [sic] os serviços por ele prestados, e não
devendo continuar a presta-los a vista do Alvará de 26 de
janeiro de 1818 §5º., e do Decreto de 28 de Dezembro de
1853, que marcou o prazo de 14 annos para obterem suas
cartas de emancipação, além disso obriga-se o suplicante a
fazer as despesas a sua custa com a reexportação para Costa
de África, circunstância esta que sempre foi atendida pelo
Governo de V.M.I. sem consideração ao tempo de serviço que
tivesse o Africano prestado, por isso implora o suplicante
a Alta Proteção de V.M.I. a fim de fazer valer as Leis a
favor da liberdade dos Africanos que são apreendidos por
contrabando, se Digne V.M.I. mandar expedir ordem para
que se entregue ao suplicante a sua carta de emancipação
Graça que submissamente implora. E R.M.
Rio de Janeiro, 20 de Março de 1857.
A rogo do Africano livre Felix, José Fernandes Monteiro2
1 Versão modificada do artigo publicado na Afro-Ásia 24 (2000), 71-95, por sua vez baseado
numa comunicação apresentado na conferência “Enslaving Connections: Africa and Bra-
zil during the era of the slave trade”, realizada em Toronto, em outubro de 2000.
2 Arquivo Nacional - Rio de Janeiro (AN), GIFI 60-136, Félix Mina, Petição de emancipação,
20/3/1857.
249
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA
3 Segundo David Eltis, foram resgatados e emancipados 177 mil africanos, 6% do total da-
queles traficados entre 1807 e 1867; ver David Eltis, “O significado da investigação sobre os
africanos escapados de navios negreiros no século XIX”, História: Questões e Debates (Curi-
tiba), n. 52 (Jan-Jun 2010), pp. 13-39. A literatura sobre os africanos resgatados do tráfico
cresceu bastante nas últimas duas décadas e as principais referências são: Robert E. Con-
rad, “Neither slave nor free: the emancipados of Brazil”, The Hispanic American Historical
Review, v. 53, n. 1 (1973), pp. 50-70, traduzido em “Os emancipados: nem escravos nem liber-
tos”, In: Tumbeiros: o tráfico escravista para o Brasil, São Paulo: Brasiliense, 1985, 171-186;
David R. Murray, “A New Class of Slaves,” in Odious Commerce: Britain, Spain and the abo-
lition of the Cuban slave trade, Cambridge: Cambridge University Press, 1980, 271-97; Inés
Roldan de Montaud, “En los borrosos confines de la libertad: el caso de los negros emanci-
pados en Cuba, 1817-1870”, Revista de Indias, v. 71, n. 251 (2011), 159-192; Rosanne Ad-
derley, ‘New Negroes from Africa’: Slave Trade Abolition and the Free African Settlement
continuação 5
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7 A petição dos africanos foi transcrita e esse episódio foi discutido por Jaime Rodrigues em
“Ferro, trabalho e conflito”.
8 AN. Diversos SDH-caixa 782 pc. 2. Félix Mina, Petição de emancipação, 2/6/1856; e AN,
Diversos SDH-caixa 782 pc. 2, Félix Africano Livre atualmente servindo na Fortaleza da
Lage, extrato de petição de emancipação, 18/10/1856.
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continuação 11
discussão preliminar do tema pode ser encontrada em Florence, “Nem escravos, nem
libertos”. Sobre o tráfico ilegal para a Bahia, ver Pierre Verger, Flux et refiux de la
traite des negres entre le golfe de Bénin et Bahia de Todos os Santos du XVIIe au XIXe
siecle, Paris the Hague, Mouton, 1968; Luís Henrique Dias Tavares, Comércio proibido
de escravos, São Paulo, Ática, 1988, Ubiratan Castro de Araújo, “Le Politique et l'Eco-
nomique dans uns Société Esclavagiste: Bahia, 1820 a 1889”, Tese de Doutorado em
História, Université de Paris IV (Sorbonne), 1992; e, mais recentemente, Reis, Gomes
e Carvalho, O alufá Rufino; Paulo C. Oliveira de Jesus, “O fim do tráfico de escravos
na imprensa baiana (1811-1850)”, Dissertação de Mestrado em História, Universidade
Federal da Bahia, 2004; e Paulo C. Oliveira de Jesus, "Notícias de um pequeno trafican-
te ilegal na Bahia (1837-1855)", trabalho apresentado no XXVI Simpósio Nacional de
História, São Paulo, 2011.
12 Florence, “Nem escravos, nem libertos”, p. 63; Adriana Santana, “Africanos livres na Bah-
ia, 1831-1864”, Dissertação de Mestrado em Estudos Étnicos e Africanos, CEAO/UFBA,
2007, 40.
13 Instruções anexas ao Aviso do ministério da Justiça de 29/10/1834, mais tarde modifi-
cadas pelo Decreto Imperial de 24/12/1835, ordenaram a entrega das latinhas de iden-
tificação. O uso das latinhas foi mencionado em Evaristo de Moraes, A escravidão afri-
cana no Brasil: das origens à extinção, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1933,
pp. 86-88; Mello Moraes Filho, Festas e tradições populares do Brasil, São Paulo, Editora
da USP/Itatiaia, l 979, p. 222 e somente encontrado uma vez na documentação relativa
ao Rio de Janeiro: AN, Diversos SDH – cx. 782 pc.2, Joana Maria das Candeias, Pedido de
exoneração de responsabilidade sobre o africano livre Leão Benguela, outubro de 1856.
14 Essa informação veio à tona na petição de emancipação do africano livre André Mina, que
usou o testemunho do ex-intendente para provar sua condição jurídica e data de captura.
AN, Diversos SDH – cx. 782 pc. 3, André Mina, Petição de emancipação, 17/03/1856.
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15 O registro do episódio está em Dale Graden, “An Act 'Even of Public Security': Slave Resis-
tance, Social Tensions, and the End of the lnternational Slave Trade to Brazil, 1835-1856”,
Hispanic American Historical Review, vol. 76, no. 2 (1996), p. 268.
16 João José Reis, Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835, São Pau-
lo: Companhia das Letras, 2003, Parte IV, e Manuela Carneiro da Cunha, Negros, estrangei-
ros: os escravos libertos e sua volta à África, São Paulo, Brasiliense, 1985, pp. 78-80.
17 A expressão, já discutida por Sidney Chalhoub, foi usada pelo diretor da Casa de Corre-
ção do Rio de Janeiro com relação conveniência de remover um grupo de africanos livres
“pouco morigerados” da cidade do Rio para a província do Espírito Santo: AN, IJ6, 468, ane-
xa a J. J. Siqueira (juiz de órfãos) para ministério da Justiça, 17/10/1857: Sidney Chalhoub,
Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte, São Paulo,
Companhia das Letras, 1990. p. 198
18 João José Reis, “‘The Revolution of the Ganhadores’: Urban Labour, Ethnicity and the Af-
rican Strike of 1857 in Bahia, Brazil”, Journal of Latin American Studies, vol. 29, no. 2
(1997), p. 359.
19 Maria Inês Cortês de Oliveira, “Retrouver une Identité: jeux sociaux des africans de Bah-
ia (v. 1750-v. 1890)” (Tese de Doutorado em História, Université de Paris IV – Sorbonne,
1992).
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24 Os escravos da fábrica tinham uma história de resistência que incluía, além de fugas indivi-
duais e coletivas, uma petição ao presidente da província de São Paulo em 1828 reclamando
das condições de trabalho e da falta de comida. Nos anos 1830 houve notícia da existência de
quilombos nas proximidades que atraíam escravos da fábrica e possivelmente também afri-
canos livres; Afonso Bandeira Florence, “Resistência escrava em São Paulo: A luta dos escra-
vos da Fábrica de Ferro São João de Ipanema, 1828-1842”, Afro-Ásia, 18 (1996), pp. 7-32.
25 AESP, lata 5216, Vicente Eufrásio da Silva e Abreu para Ricardo Gomes Jardim, 18/03/1849.
26 Um feitor, a quem o diretor havia recomendado toda vigilância sobre os africanos, reco-
mendou a remoção de nove dos africanos livres; AESP, lata 5216, João Pedro de Lima e
Fonseca Gutierrez para Vicente Pires da Motta, 9/5/1849; AESP, lata 5216, João Pedro
de Lima e Fonseca Gutierrez para Vicente Pires da Motta, 7/4/1849. Pelo menos mais um
africano livre mina foi removido da Fábrica de Ferro em agosto daquele ano. Em 1850,
ainda estavam lá 19 africanos do grupo das 28 minas que chegaram na Fábrica de Ferro
de Ipanema em janeiro de 1849. Sete deles foram transferidos para a província do Para-
ná no início dos anos 1850, a cargo do Barão de Antonina, que estava envolvido em pro-
jetos de colonização com índios; oito foram enviados para a Colônia Militar de Itapura,
no Mato Grosso, no início dos anos 1860 (a maioria deles já casados com filhos); dos qua-
tro restantes, um havia fugido e estava preso em São Paulo, e dois outros não têm destino
conhecido depois daquela data. AESP, lata 5216, “Relação nominal dos africanos livres”,
27/10/1851; AESP, lata 5216, Feliciano Nepomuceno Prates para Francisco Ignácio Mar-
condes Homem de Mello, 6/6/1864; AESP, lata 5216, “Relação dos escravos e africanos li-
vres escolhidos em Ipanema, os quais já se acham em Santos e que tem de seguirem para
Mato Grosso”, 24/7/1860; AN, IJ6 16, “Relação de Africanos livres a serem emancipados
em Itapura”, anexa a Zacharias Góes e Vasconcellos para juiz de órfãos, junho de 1864.
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27 A rota de comércio da Costa da Mina para Minas Gerais foi identificada como abastecendo
a região Sudeste de escravos da Costa Ocidental africana desde o início do século XVIII. A
presença de africanos minas no Rio de Janeiro provém desse tráfico, assim como do tráfico
interno proveniente da Bahia, que se acentuou depois de 1835, quando os senhores baianos
procuraram vender seus escravos africanos para fora da província com medo da articulação
de outra revolta. Ver Maria Inês Côrtes Oliveira, “Quem eram os 'negros da Guiné'? A origem
dos africanos na Bahia”, Afro-Ásia, no. 19/20 (1997), pp. 37-73; Mariza de Carvalho Soares,
“Mina, Angola e Guiné: nomes d'África no Rio de Janeiro setecentista”, Tempo. Revista do
Departamento de História da UFF, v. 6, p. 73-93, 1998; e Mary C. Karasch, A vida dos escra-
vos no Rio de Janeiro, 1808-1850, São Paulo, Companhia das Letras, 2000, 63-66.
28 Era esse o caso entre os mina-mahis da irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia que
expressaram sua identidade distinta no compromisso da irmandade, para se diferencia-
rem dos africanos de Angola. Ver Mariza de Carvalho Soares, Devotos da cor. Identida-
de étnica, religiosidade e escravidão, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2000; João José Reis, “Identidade e diversidade étnicas nas irmandades negras no tempo
da escravidão”, Tempo, 3 (1997), pp. 7-33. Ver ainda Mariza de Carvalho Soares, org. Rotas
Atlânticas da Diáspora Africana: da baía do Benim ao Rio de Janeiro. Niterói: Editora da
Universidade Federal Fluminense, 2007.
29 De acordo com Mary Karasch, os africanos da Costa Ocidental representavam menos de
7% da população de escravos africanos de diferentes amostras antes de 1850. Karasch, A
vida dos escravos no Rio de Janeiro, p. 63. Outros trabalhos sobre a presença de africanos
minas no Rio incluem Carlos Eugênio Líbano Soares, Zungu: rumor de muitas vozes, Rio
de Janeiro, Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1998; Roberto Moura, Tia Ciata e
a pequena África no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Secretaria Municipal da Cultura, 1995;
Juliana Barreto Farias, Flávio Gomes e Carlos Eugênio Líbano Soares, No labirinto das na-
ções: africanos e identidades no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005; Ju-
liana Barreto Farias, Mercados minas: Africanos ocidentais na Praça do Mercado do Rio
de Janeiro (1830-1890). Rio de Janeiro: Prefeitura do Rio de Janeiro/Arquivo Geral da Ci-
dade, 2015.
30 Holloway revelou que os minas representavam 17% dos escravos africanos e 8,9% do to-
tal dos escravos presos no distrito central do Rio de Janeiro pela polícia. Thomas H. Hollo-
way, Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX, Rio de
Janeiro, Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1997, p. 268. De acordo com Carlos Eugênio
Soares, os minas eram maioria entre os africanos (escravos ou libertos) presos em zungus
e levados para a Casa de Detenção do Rio de Janeiro entre 1868 e 1886. Ver Soares, Zungu:
rumor de muitas vozes, pp.77 e 98. Os minas representavam 12% dos escravos presos por
capoeira em 1863, segundo Carlos Eugênio Líbano Soares, A negregada instituição: os ca-
poeiras na Corte imperial, 1850-1890, Rio de Janeiro, Access, 1999, p.153.
31 Karasch, A vida dos escravos no Rio de Janeiro, p. 64. A autora também discute as taxas de
alfabetização em árabe e as evidências descobertas pela polícia da prática do islã no Rio de
Janeiro. (p. 298-299).
32 Sobre o regime de trabalho dos africanos livres em instituições públicas, além das referên-
cias já feitas à Fábrica de Ferro de Ipanema, ver a parte 2 da tese de Jorge Prata de Sousa,
“Africano livre ficando livre”, Moreira, “Liberdade tutelada”; Bertin, “Os meia-cara”; Carlos
Eduardo Moreira de Araújo, “Cárceres imperiais: a Casa de Correção do Rio de Janeiro. seus
detentos e o sistema prisional do Império, 1830-1861”, Tese de Doutorado em História So-
cial, Universidade Estadual de Campinas, 2009; Gustavo Pinto de Sousa, “Os africanos livres
na Casa de Correção: política e direito como disciplinarização, 1831-1850”, Dissertação de
Mestrado em História, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2011.
DO QUE “O PRETO MINA” É CAPAZ: ETNIA E RESISTÊNCIA ENTRE AFRICANOS LIVRES 261
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33 Sobre a distribuição dos africanos livres para o serviço compulsório e suas experiências
com concessionários particulares e em instituições públicas, ver “Revisitando o problema
da 'transição para o trabalho livre' no Brasil: a experiência dos africanos livres”, In: Tráfi-
co, cativeiro e liberdade (Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX), organizado por Manolo Flo-
rentino. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2005. 389-417.
34 Um “jornal” de 480 réis diários era um acerto comum entre africanos livres e seus conces-
sionários. Os africanos podiam acumular o excedente que viessem a obter. AN, Diversos
SDH – cx. 782 pc.3, Luiz Nagô, Petição de emancipação, setembro de 1856.
35 Na época do processo, em meados dos anos 1850, Peçanha disse ser oficial aposentado da
repartição da Marinha; seu nome estava listado entre os oficiais da secretaria da Mari-
nha no relatório anual do ministro. Ver Relatório do Ministro da Marinha, 1849. A trans-
ferência de africanos livres entre concessionários tinha que ser aprovada pelo ministé-
rio da Justiça e/ou pelo juiz de órfãos. Apesar da falta de provas atestando uma transação
continuação 35
DO QUE “O PRETO MINA” É CAPAZ: ETNIA E RESISTÊNCIA ENTRE AFRICANOS LIVRES 263
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demais uma justificativa para esperar que seus casos fossem regulados
pela legislação antiga.38
Dos testemunhos obtidos na ação de liberdade, eles extraíram a
informação necessária para entrar com uma petição junto ao ministério
da Justiça. Apesar do argumento baseado em um direito diferenciado, a
petição seguiu o mesmo caminho das outras na burocracia imperial: os
funcionários verificavam a cópia do registro de matrícula fornecida para
conferir a identidade e o cumprimento do tempo de serviço, e buscavam
elementos que comprovassem a habilidade da pessoa para sustentar-se
através de trabalho regular, assim como testemunhos idôneos de seu
“bom comportamento” e “obediência”.39 Foi assim que as expectativas de
Cyro foram inicialmente frustradas. O concessionário dos seus serviços,
Dionísio Peçanha, usou sua influência junto ao ministério para obstruir a
sua petição porque tinha outros africanos livres a seu serviço e não queria
que os outros seguissem o mau exemplo. Ele estava enfurecido com as
tentativas de emancipação de Cyro e queria do africano uma compensação
de 400$000 réis por não servir o tempo ao qual ele acreditava ter direito.
Esse pedido reforça a suposição de que Peçanha teria pago pela concessão
dos serviços de Cyro e esperava um retomo de seu investimento. Cyro
estava a par disso, assim como sabia que Peçanha iria negociá-lo com
outra pessoa quando ele entrou com o pedido de emancipação. Era essa
parte do tratamento conferido normalmente a escravos que os africanos
livres procuravam evitar ao reclamar seu status jurídico diferente.
O pedido tendo sido indeferido, João e Cyro entraram novamente com
uma petição de emancipação meses depois, refutando os argumentos que
levaram ao indeferimento. João insistiu no seu direito à emancipação,
mesmo tendo ele servido a uma instituição pública, e ofereceu-se a ir
para a África se fosse emancipado. Cyro explicou as razões de Peçanha
para interferir no seu caso e mentir sobre seu caráter. Na petição, os
africanos renovaram suas reclamações com relação ao tratamento bárbaro
conferido aos africanos livres no Rio, que na primeira petição eles haviam
associado ao cativeiro.40 Ambos tiveram avisos de emancipação emitidos
38 A petição deles era justificada da seguinte maneira: “(...) pelas leis antigas sendo eles da
Costa da Mina não deviam servir senão por quatorze anos, e pelos regulamentos e leis mo-
dernos a todos os Africanos foi tareado esse tempo de serviço”. AN, Diversos SDH – cx. 782
pc. 3, João Nagô e Cyro Mina, Petição de emancipação, 22/3/1855.
39 Sobre a tramitação das petições e as armadilhas do processo, ver Mamigonian, “Conflicts
Over the Meanings of Freedom”.
40 João e Cyro argumentavam que “muitos de seus companheiros já receberam, quer na pro-
víncia da Bahia, quer na de São Paulo suas competentes cartas de emancipação e gozam de
suas liberdades, enquanto os suplicantes [sofrem?] ainda no cativeiro; porque cativeiro “é
o que eles têm sofrido e estão sofrendo” (Grifo da autora). Sobre as condições dos africanos
livres a serviço de instituições públicas, ver Beatriz G. Mamigonian, “A Harsh and Gloomy
Fate : Liberated Africans in the Service of the Brazilian State, 1830s 1860s.” In: Dawne Y.
continuação 40
Curry; Eric D. Duke; Marshanda Smith. (eds). Extending the Diaspora: New Scholarship on
the History of Black Peoples. Champaign, IL: University of Illinois Press, 2009, 24-45.
41 Seu apelo em nome dos africanos livres que serviam em instituições era enfáti-
co: “se V. Exa. não se dignar intervir para que sejam fiel mente executados os tra-
tados e mais convenções e leis estabelecidas para a completa liberdade e emanci-
pação dos africanos livres em geral, de certo que, o suplicante e os mais africanos li-
vres que se acham ao serviço do Governo Imperial serão para sempre verdadeiros es-
cravos do mesmo governo a seu mero arbítrio; e assim exaustos de mais recurso al-
gum sucumbirão ao rigor de uma tão negra sorte”. AN, Diversos SDH – cx. 782 pc.3,
Desidério, Mina, Petição de emancipação, 4/6/1855. O encarregado de negócios da
legação britânica no Rio de Janeiro, William G. Jerningham, admitiu ter intercedi-
do em favor de Desidério junto ao governo brasileiro. A construção da petição e a fal-
ta de assinatura sugerem que ela pode ter sido escrita ou formulada por funcioná-
rios do Foreign Office britânico. Jerningham para Clarendon, 9/4/1856, publicada
em W. D. Christie, Notes on Brazilian Questions, London, Macmillan, 1865, pp. 223-4.
42 AN, Diversos SDH – cx. 782 pc.3, Desidério, Mina, Petição de emancipação, 8/2/1856.
DO QUE “O PRETO MINA” É CAPAZ: ETNIA E RESISTÊNCIA ENTRE AFRICANOS LIVRES 265
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43 A deportação para a África era uma forma de punição para os que cometiam crimes gra-
ves. Era também parte do tratamento a ser conferido aos africanos livres recém-importa-
dos de acordo com a lei de 7 de novembro de 1831. Ainda que não tenha sido aplicado cole-
tivamente, o retorno à África dos africanos livres era incentivado pelo governo imperial.
Os que decidiram voltar se juntaram ao fluxo discutido em Verger, Flux et Reflux, Carnei-
ro da Cunha, Negros, estrangeiros e Karasch, A vida dos escravos no Rio de Janeiro, p. 423-
424. Ver, mais recentemente, Mônica Lima e Souza, “Entre margens: o retorno à África de
libertos no Brasil, 1830-1870” Tese de Doutorado em História, Universidade Federal Flu-
minense, 2008.
44 O caso de Felipe Mina é emblemático: através de José Fernandes Monteiro, o mesmo pro-
curador que ajudou João e Cyro, ele obteve sua emancipação em dezembro de 1856 com-
prometendo-se a voltar à África. Um mês depois, outra petição baseada no argumento de
que era casado, tinha filhos e uma conduta regular pedia a remoção da cláusula com que
o aviso de emancipação tinha sido emitido. A petição foi deferida, e meses depois che-
gou a escrever novamente pedindo nova cópia da carta de emancipação porque havia per-
dido a primeira. AN, Diversos SDH – cx.782 pc.2, Felipe Mina, Petição de emancipação,
13/12/1856; AN, Diversos SDH – cx. 782 pc.2, Felipe Mina, Petição para remoção de cláu-
sula de reexportação, janeiro de 1857; AN, G1Fl 6D-136, Felipe Mina, Pedido de segunda
via de carta de emancipação, 9/5/1857.
A fórmula da ameaça – que exigia que os filhos fossem soltos até o dia
seguinte e que ele fosse solto em até três dias, do contrário armaria uma
armadilha para Peçanha digna de “preto mina” – usa de forma contundente
a reputação dos africanos minas. Peçanha tinha motivos para acreditar
no ultimato e sentiu-se realmente ameaçado. Ele anexou o bilhete a uma
carta para os funcionários do ministério da Justiça que tratavam do caso
de Cyro para mostrar que ele não merecia ser emancipado, explicando:
Este africano é rancoroso, e vingativo, como em geral os
de sua raça, e molestado por haver perdido o pleito, por
injusto que contra o suplicante intentou, nutre terríveis
pensamentos contra o suplicante, que não cessa de
manifestar em ameaças como o fez do lugar onde se achava
recluso, e se vê da carta inclusa, além de mais duas, que lhe
havia dirigido em tom arrogante e ameaçador, e assim o
suplicante antigo servidor do Estado, chefe de numerosa
família, com perto de 50 anos de bons serviços ao país, vê
sua existência ameaçada e exposta ao traiçoeiro estilete
de um bárbaro Africano, feroz e selvagem sem moral, nem
religião, analfabeto, que só respira vingança.
DO QUE “O PRETO MINA” É CAPAZ: ETNIA E RESISTÊNCIA ENTRE AFRICANOS LIVRES 267
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continuação 46
50 Essa articulação é ainda mais importante se comparada com o universo das petições de
africanos livres, onde raramente se percebe a ação coletiva na busca pela emancipação.
Há petições de casais, ou de africanos livres do mesmo concessionário, mas a maioria en-
frentou o processo de emancipação sozinho.
51 AN, Livros de Registros de Notas do Primeiro, Segundo, Terceiro e Quarto Ofícios do Rio de
Janeiro. De um total de 7 .028 registros relativos ao período 1850-1859, apenas dezessete
DO QUE “O PRETO MINA” É CAPAZ: ETNIA E RESISTÊNCIA ENTRE AFRICANOS LIVRES 269
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continuação 51
são com certeza de africanos livres, e cinco deles são de africanos minas desse grupo.
Agradeço a Manolo Florentino por ter cedido os registros de africanos livres.
52 AN, IJ6 15, João Lins Vieira Cansansão de Sinimbu para Agostinho Luiz da Gama, 9/6/1862.
DO QUE “O PRETO MINA” É CAPAZ: ETNIA E RESISTÊNCIA ENTRE AFRICANOS LIVRES 271
CAPÍTULO 9
Apresentação
Resultado da ação britânica contra o tráfico de escravos no século
XIX, os africanos livres viveram as contradições e as tensões daquele
momento. Embora resgatados do tráfico de escravos, tiveram em sua
experiência cotidiana estreita relação com a escravidão, não apenas
porque os lugares de trabalho e a sociabilidade nas cidades muitas vezes
eram comuns a escravos e libertos, mas também porque, frequentemente,
eram vistos como desprovidos sequer de uma porção de liberdade pelos
administradores públicos e pelas pessoas que arrematavam os seus ser-
viços. Entretanto, acreditando na singularidade de sua condição, esses
africanos colocaram-se diante das autoridades como indivíduos livres, o
que se chocava frontalmente com a prática dos seus tutores.
Cabe considerar que apenas estavam enquadrados no perfil de africanos
livres aqueles cuja embarcação houvesse sido apreendida e julgada ilegal
pela comissão mista instalada no Rio de Janeiro, além dos considerados
pelas autoridades judiciais ilegalmente introduzidos no país. A população
de africanos livres no Brasil foi estimada em cerca de 11 mil indivíduos,
o que representa ínfima porção quando considerados os cerca de 500 mil
escravos importados após a proibição do tráfico em 1831.2
Atendendo ao acordo luso-britânico de 1815 para o fim do tráfico,
cujos pontos foram ratificados na Convenção de 1817, o Alvará de 26 de
janeiro de 1818 estabelecia “penas para os que fizerem comércio proibido
de escravos” e encaminhamento dos africanos importados ilegalmente,
1 Esta é uma versão revista e atualizada do capítulo 4 do meu livro Os meias-caras. Afri-
canos livres em São Paulo no século XIX , Salto, SP: Editora Schoba, 2013, ainda inédito
quando este texto foi publicado pela revista Afro-Ásia.
2 Beatriz G. Mamigonian, “O direito de ser africano livre”, in Silvia H. Lara e Joseli M. N. Men-
donça (orgs.), Direitos e justiças no Brasil (Campinas: Editora da Unicamp, 2006), p. 131.
273
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“por não ser justo que fiquem abandonados”, ao Juízo da Ouvidoria, que os
repassaria para o serviço público ou para aluguel por particulares, servindo
como libertos por quatorze anos.3 Cumprido esse prazo, os africanos livres
podiam receber a ressalva de serviços, ficando, porém, em depósito, sob
os cuidados do Estado, até que fossem novamente arrematados, de acordo
com as novas determinações legais do Império (Lei de 1831, Avisos de
1834 e 1835). Portanto, desde 1818 os africanos livres passaram a ser
“protegidos” contra abusos através da tutela e, tal como para os menores
e órfãos, através da educação para e pelo trabalho.
Não obstante a intenção de amparo aos africanos livres, o que foi
verificado é que a proteção oferecida estava relacionada à perspectiva
de manutenção da escravidão e não o contrário. Porém, para uma parte
dos africanos tutelados, foi possível identificar a resistência cotidiana
ao domínio representado pela custódia, bem como a incessante busca
pela liberdade efetiva, ainda que fosse através da simples ênfase de que
não eram escravos, tampouco libertos. Na realização dessa tarefa de
recuperar uma luta insistente, foram desvendados os intensos laços de
solidariedade mantidos entre eles, bem como a preservação da memória
de uma experiência histórica comum, muitas vezes alinhavada desde a
travessia atlântica.
Portanto, a abordagem deste artigo está centrada no entendimento
dos africanos livres como sujeitos históricos, inseridos nas relações es-
cravistas e atuantes no sentido da resistência à escravização latente. O
conceito de resistência aqui utilizado considera as diferentes formas de
ação escrava, seja o enfrentamento direto, sejam as negociações, visando
não somente ao rompimento das relações de dominação, mas também a
espaços para melhor sobrevivência no interior mesmo da escravidão. Ou
seja, o entendimento da agência de escravos, nas diversas formas pelas
quais eles elaboraram e efetivaram suas ações na vida cotidiana, promo-
veu a ampliação na compreensão dessa resistência dos africanos livres. 4
3 Collecção das Leis do Brazil de 1818. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1889, pp. 7-10.
4 Silvia H. Lara, Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro (1750-
1808), Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; Maria Helena P. T. Machado, Crime e escravidão: tra-
balho, luta e resistência nas lavouras paulistas 1830-1888, São Paulo: Brasiliense, 1987; João
José Reis e Eduardo Silva, Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista, São
Paulo: Companhia das Letras, 1989; e Carlos Eugênio L. Soares, A capoeira escrava e outras
tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850), Campinas: Ed. Unicamp, 2004.
5 O caso da africana livre Maria também foi abordado no artigo “Uma ‘preta de caráter fe-
roz’ e a resistência ao projeto de emancipação”, in Maria Helena P. T. Machado e Celso T.
Castilho (orgs). Tornando-se livre: agentes históricos e lutas sociais no processo de aboli-
ção (São Paulo: Edusp, 2015), pp. 129-141.
6 Os africanos que serviram em estabelecimentos públicos tiveram o direito à emancipação
apenas em 1864, com o Decreto no. 3.310 de 24/09/1964.
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15 AESP, CO 879, p. 1, doc. 37A, Ofício do Diretor Candido Caetano Moreira ao Presidente
Manoel Machado Nunes, 04/04/1840.
16 AESP, CO 901, Ofício do Diretor Candido Caetano Moreira ao Presidente José Antonio Sa-
raiva, 04/04/1855. As citações seguintes são parte desse mesmo documento.
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continuação 20
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24 AESP, CO 894, Ofício de Candido Caetano Moreira ao Presidente José Thomaz Nabuco de
Araújo, 07/10/1851.
25 Reis e Silva, Negociação e conflito; Stuart B. Schwartz, Escravos, roceiros e rebeldes, Bau-
ru: Edusc, 2001.
26 AESP, CO 894, 25C, Ofício do Curador dos Africanos Livres, Manoel Eufrázio de Azevedo
Marques, ao Juiz de Órfãos da Capital, 10/10/1851.
27 AESP, CO 894, 25C.
28 AESP, CO 894 25B, Ofício do Juiz de Órfãos José Antonio Vaz de Carvalho ao Presidente
José Thomaz Nabuco de Araújo, 11/10/1851.
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29 AESP, CO 894 20G, Ofício de Candido Caetano Moreira ao Presidente José Thomaz Nabu-
co de Araújo, 14/10/1851.
30 AESP, CO 896, Ofício do Provedor Barão de Iguape ao Presidente José Thomaz Nabuco de
Araújo, 22/04/1851.
31 AESP, CO 903, Relato do Escrivão de Órfãos Joaquim Florindo de Castro ao Juiz de Órfãos,
14/08/1856.
32 AESP, CO 903, 03/10/1856.
33 AESP, CO 903, Ofício do Juiz de Órfãos, Francisco da Costa Carvalho, ao Presidente Fran-
cisco Pereira de Vasconcelos, 18/12/1856.
34 AESP, CO 5453, Juízo de Órfãos, Autos de Tutoria 1806-1866, José e Benedito; AESP, CO
5453, Juízo de Órfãos, Autos Cíveis de Curatela e Soldada, 1856, Benedito; AESP, CO 5443
Cx. 113, doc. 36, Autos Cíveis de Justificação, Benedito, 1860. Sobre a atuação dos juízes de
órfãos em relação ao trabalho compulsório infantil, ver Gislane Campos Azevedo, “A tute-
la e o contrato de soldada: a reinvenção do trabalho compulsório infantil”, História Social,
no. 3 (1996), pp. 11-36.
35 AESP, CO 5367, Autos cíveis de justificação para emancipação, Maria, 1857. O direito à
emancipação dos africanos livres estava previsto pelo decreto n. 1303, de 28/12/ 1853. Po-
rém, restringia-se àqueles que tivessem cumprido 14 anos de serviços exclusivamente para
particulares. Os africanos livres que haviam servido em estabelecimentos públicos apenas
obtiveram esse direito através do decreto no. 3310 de 24/09/1864. 36 AESP, CO 5367.
36 AESP, CO 907, Ofício do Juiz de Órfãos ao Presidente da Província, 05/03/1858.
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39 AESP, CO 882, Ofício do Juiz de Paz Manoel José Chaves ao Presidente Rafael Tobias de
Aguiar, 30/01/1841.
40 AESP, CO 882.
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41 AESP, CO 882, Depoimento de Candido, 30/01/1841; AESP, EO 1496, fls. 132-6, Corres-
pondência reservada do Chefe de Polícia, 1851. Sobre o tema do tráfico ilegal em São Pau-
lo, ver Priscila Alonso, “O Vale do nefando comércio: o tráfico de escravos no Vale do Paraí-
ba (1850-1860)” (Dissertação de Mestrado, FFLCH-USP, 2006); Jaime Rodrigues, O infame
comércio. Propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-
1850), Campinas: Editora Unicamp-Cecult, 2000.
42 AESP, CO 882, Depoimento de Candido, 30/01/1841.
43 AESP, CO 903, Ofício do Administrador Francisco Antonio de Oliveira ao Presidente Fran-
cisco Diogo Pereira de Vasconcelos, 17/05/1856. As citações sobre o caso de Felipe, a se-
guir, referem-se a este documento.
apenas que era muito pequeno, e “que em sua língua se chamava Paque,
que corresponde a quatro, fazendo numa ocasião (correspondente) a conta
pelos dedos da mão parando no quarto e principiando no mínimo.” Ao ser
perguntado sobre como se recordava tão bem de tudo, embora fosse muito
novo, respondeu que era muito vivo e que nunca se esquecera do ocorrido.
Relatou também que, durante a viagem para a província de São Paulo, o
grupo foi preso, inclusive o intermediário Janson, que, mediante “dádivas
e agrados”, conseguiu que todos declarassem terem sido comprados por
ele, resultando na liberação de todos. Em Estiva, Felipe permaneceu por
muito tempo, inicialmente com os companheiros e depois sozinho com o
proprietário, uma vez que os “outros eram grandes e como mais ladinos,
fugiram”.
Já crescido, Felipe foi vendido a um proprietário de Queluz, para quem
trabalhava como pajem, mas fugiu em seguida. Preso, fora reconduzido ao
proprietário, que o vendeu para Mariano de Quadros, sócio do barão de An-
tonina, em pagamento de algumas bestas que lhe foram compradas. Levado
até Curitiba, dali foi entregue a Luiz Vergueiro, genro do famoso barão,
para que o acompanhasse até o Rio Grande do Sul a fim de trabalhar em
fazenda de gado. Ao retornar a São Paulo, Vergueiro o levou para a fazenda
de Ibicaba, em Limeira, de onde fugira novamente. Declarou também que,
após ser preso, pediu para Laudemaus o comprar, uma vez que era muito
castigado por Vergueiro. Foi vendido ao alemão cerca de seis meses antes
da última fuga, quando se dirigira para São Paulo.
Ao responder ao auto de perguntas, apresentou detalhes da sua
trajetória, informando nomes das pessoas que o compraram, os lugares
pelos quais havia passado, bem como os acontecimentos a que assistira
ainda no Rio de Janeiro, como a renúncia do imperador, em 7 de abril
de 1831, e a reunião da multidão no Campo de Santana. O advogado do
proprietário, contudo, não se deixou impressionar pela boa memória
de Felipe e passou a apontar os erros cometidos pelo africano sem
negar, ironicamente, “alguma habilidade no arranjo do romance que
expôs”. O principal erro cometido havia sido com as datas, uma vez
que, tendo sido testemunha ocular da saída do imperador em abril,
provava que já se encontrava no Rio de Janeiro quando a lei antitráfico
de 7 de novembro de 1831 entrou em vigor. Sem compaixão, o advo-
gado utilizou os vários erros e contradições de Felipe “para destruir
a sonhada condição de africano livre”. Implacável, asseverava: “Mas
o certo é que ele é crioulo, pelo traquejo que tem tido com africanos
aprendeu algumas palavras; e por ser muito esperto quer aproveitar-se
dessa circunstância ilusória para armar um romance absurdo com o
fim impossível de ser declarado livre”. Diante desses argumentos, em
fevereiro, o juiz considerou improcedente a reclamação do curador
e Felipe permaneceu escravo, sendo devolvido ao seu proprietário,
Guilherme Laudemaus.
REIVINDICAÇÕES E RESISTÊNCIA: O NÃO DOS AFRICANOS LIVRES (SÃO PAULO, SÉCULO XIX) 289
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Felipe não teve sorte: fugira várias vezes, mas sempre fora recaptu-
rado; acreditando que poderia provar ser africano livre, veio a São Paulo
mas cometeu erros que o atento advogado adversário não deixou passar.
Recolhido à Casa de Correção durante a investigação, foi transferido
para o Calabouço após a decisão judicial, até ser entregue ao seu senhor.
Chamam a atenção no caso de Felipe o esforço para chegar à cidade, a
boa articulação verbal diante do juiz e a esperança de ter a liberdade
declarando-se africano livre.
Em 1860, a busca da proteção contra a escravização ilegal foi também
o que motivou Tibúrcio Manoel a fugir das mãos de um proprietário e
procurar as autoridades no intuito de se afirmar como livre. Natural
de Luanda, havia chegado ao Rio de Janeiro em 1831 e, logo depois,
recolhido à Casa de Correção, de onde saiu para servir a Pedro de Araújo
Lima. Depois do falecimento deste, passou para o domínio de outros, até
ser levado à província do Mato Grosso para servir ao capitão Garcia por
nove anos. Passados quatorze anos, decidiu requerer sua emancipação,
mas fugiu com outros companheiros depois que seus papéis foram pro-
positalmente queimados e ele se perdeu do grupo por cerca de um mês,
adoeceu, mas ainda assim conseguiu chegar ao acampamento militar
de Avanhandava, em dezembro de 1860, onde pediu proteção e contou
sua história. 44
A escravização de Tibúrcio aponta para um problema comum, agra-
vado após a definitiva proibição do tráfico em 1850. Por um lado, estavam
os contrabandistas alimentando o comércio de escravos e, por outro, os
africanos que conseguiram escapar tentando provar a ilegalidade de sua
condição. A posição do Estado diante disso era ambígua, uma vez que, no
combate ao tráfico, se mostrava ineficaz, ou mesmo ausente, principal-
mente até 1850, ao mesmo tempo em que se colocava como protetor dos
africanos que provassem na Justiça que haviam sido contrabandeados.
Sem que o uso dessa mão de obra contrabandeada fosse eficientemente
fiscalizado pelo Estado, o papel de defensor da liberdade dos africanos
apenas se fazia notar quando a Justiça era procurada pelo próprio africano
livre.45 Contudo, provar ter sido ilegalmente importado não era garantia
suficiente para a liberdade. Era preciso que o africano provasse ser boçal
e com vínculos recentes com a África. Nesse sentido, a ação protetora do
Estado era uma reação à atitude do africano, isto é, não era preventiva,
uma vez que se dava apenas após verificado o abuso.
44 AESP, CO 916, Ofício de Manoel do Carmo Barros, Diretor da Colônia Militar ao Presiden-
te da Província. 01/12/1860. Esse acampamento estava instalado próximo à colônia mili-
tar de Itapura, na divisa com a província de São Paulo, e tinha por objetivo a construção de
uma estrada ligando a colônia até o Mato Grosso.
45 Afonso B. Florence, “Entre o cativeiro e a emancipação: a liberdade dos africanos livres no
Brasil (1818-1864)” (Dissertação de Mestrado, UFBA, 2002).
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48 Walter Johnson, “Agency”, Journal of Social History, no. 37, (2003), pp. 113-124.
49 Mamigonian, “O direito de ser africano livre”, p. 141.
50 Beatriz G. Mamigonian, “A Grã-Bretanha, o Brasil e as ‘complicações no estado atual da
nossa população’: revisitando a abolição do tráfico atlântico de escravos (1848-1851)”.
Texto apresentado no IV Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Curiti-
ba, 2009, http://www.escravidaoeliberdade.com.br/site/images/Textos4/beatrizmami-
gonian.pdf , acesso em 12/10/2015.
51 Elciene Azevedo, O direito dos escravos: lutas jurídicas e abolicionismo na província de
São Paulo, Campinas: Editora Unicamp, 2010.
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56 A resistência e a negociação na escravidão são temas discutidos, por exemplo, nos seguin-
tes trabalhos: Reis e Silva, Negociação e conflito; Soares, A capoeira escrava; João José
Reis e Flávio dos S. Gomes (orgs.), Liberdade por um fio: histórias dos quilombos no Brasil,
São Paulo: Companhia das Letras, 2005; Sandra L. Graham, Caetana diz não: histórias de
mulheres da sociedade escravista brasileira, São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
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57 AESP, CO 1230, Ofício do Delegado Francisco Maria de Mendonça ao Curador dos Africa-
nos Livres, 03/04/1853.
58 Sobre o cotidiano de trabalho dos africanos livres na fábrica de ferro e nos demais es-
tabelecimentos públicos de São Paulo, ver Bertin, Os meias-caras; especificamente so-
bre a fábrica de ferro, Afonso B. Florence, “Resistência escrava em São Paulo: a luta dos
escravos da fábrica de ferro São João do Ipanema 1828-1842”, Afro-Ásia, no. 18 (1996),
pp.7-32; Jaime Rodrigues, “Ferro, trabalho e conflito: os africanos livres na fábrica de
Ipanema”, História Social, no. 4-5 (1997-1998), pp. 29-42; e Jorge Prata de Sousa, “Afri-
cano livre ficando livre: trabalho, cotidiano e luta” (Tese de Doutorado, Universidade de
São Paulo, 1999).
59 AESP, CO 1230, Ofício de José Joaquim de Lacerda, Administrador dos Africanos Livres, ao
Presidente Josino do Nascimento Silva, 11/04/1853.
60 No Rio de Janeiro, os quilombolas produziam tranças de palha para confecção de chapéus
para serem comercializados. Ver Flavio S. Gomes, “Quilombos no Rio de Janeiro no século
XIX”, in Reis e Gomes (orgs.), Liberdade por um fio, pp. 263-90.
61 Schwartz, Escravos, roceiros e rebeldes, pp. 89-123. O tema da brecha camponesa, nome
dado aos espaços agrícolas de autonomia dos escravos, foi também analisado em Ciro F.
Cardoso, Escravo ou camponês? O proto-campesinato negro nas Américas, São Paulo: Bra-
siliense, 1987; e Reis e Silva, Negociação e Conflito, pp. 22-31.
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62 AESP, CO 1230, Ofício de José Joaquim de Lacerda, Administrador dos Africanos Livres, ao
Presidente Josino do Nascimento Silva, 11/04/1853.
63 AESP, CO 1230.
64 Carlos Daniel Rath nasceu na Alemanha, em 1801. Formado engenharia, chegou ao Bra-
sil em 1830 contratado pela Inspetoria de Obras Públicas, órgão do governo provincial
de São Paulo. Silvia C. Siriani, Uma São Paulo alemã: vida quotidiana dos imigrantes
germânicos na região da Capital (1827-1889), São Paulo: Imprensa Oficial, 2003, pp.
133-135.
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68 Difícil não estabelecer paralelo entre as reivindicações dos africanos livres e aquelas
apresentadas pelos escravos fugidos do engenho Santana, em Ilhéus, no ano de 1789.
Depois de fugirem, eles redigiram um tratado de paz, submetido ao proprietário do en-
genho, estabelecendo as condições para o retorno ao trabalho. Entre as condições míni-
mas ali definidas estavam a redução das tarefas, o fornecimento de roupas e a conces-
são de dias livres para o trabalho em roça própria. Além disso, exigiam a mudança dos
feitores: “Os atuais feitores não os queremos, faça eleição de outros com a nossa apro-
vação”. Sobre esse engenho e a reprodução do documento, ver Stuart Schwartz, “Resis-
tance and Accommodation in Eighteenth-Century Brazil: the Slaves’ View of ”, The His-
panic American Historical Review, vol. 57, no. 1 (1977), pp. 69-79. Ou ainda, Reis e Silva,
Negociação e conflito, apêndice 1.
69 AESP, CO 1236, Diário da Administração. Além dos africanos livres e escravos, trabalha-
vam nas obras da estrada portugueses e alemães.
70 AESP, CO 1236, Diário da Administração da Estrada do Cubatão.
71 AESP, CO 5152, 1856; CO 5153, p. 1 docs. 53-5, 61-3, 1858; CO 5154, p. 1 docs. 14, 17, 20,
28-33, 1859; CO 5154, p. 2, docs. 4-7, 1860.
72 Maria A. Silva, “Itapura: estabelecimento naval e colônia militar (1858-1870)”, (Tese de
Doutorado, Universidade de São Paulo, 1972), p. 103.
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vendida nesta vila ao pai do suplicado.”5 Manoel Vieira disse ainda que
conhecia Bernardo desde pequeno e que julgava que sua mãe tinha “de 45
a 50 anos”, pois viera moça para o Brasil. Tio do curador do escravo, Vieira
esmerou-se em confirmar a versão de Bernardo, pois fez questão de afirmar
que “o suplicado ou mesmo seu pai não tinham ou não deviam ter título
algum de domínio [sobre Angélica], visto como não só chegaram como todos
os outros que vieram com ela na mesma ocasião, como foram vendidos
como contrabando, tanto assim que estiveram ocultos por algum tempo.”6
Já o cavaleiro da Ordem da Rosa, Nicolau de Vasconcelos, de 66 anos,
lavrador, afirmou ter
“certeza que no ano de 1835 veio Miguel Gahagem Champloni para o
Taipús, que é nas imediações da Barra Grande do Camamú, trazendo uma
galeria, onde fez sua residência, em 1836, recebeu o dito Champloni, uma
porção de africanos ocultos ou escondidos em uma mata que lá existe no
mesmo lugar Taipús, e que falecendo o mesmo Champloni no dito ano foram
transportados para esta vila esses africanos.” 7 Vasconcelos acrescentou que
não sabia se Angélica estava no meio destes africanos, “todavia lhe parece
ter sido importada nessa mesma ocasião, visto como depois desse desem-
barque nenhum mais houve”. Também reforçou a versão de que “o Capitão
Domingos Francisco ou seu pai não deviam ter tido título de domínio de
Angélica, visto como naquele tempo os africanos se vendiam ocultamente,
como um fato que era, e ainda mais porque o fato de vender-se africanos
depois de 1831 era considerado em contrabando por ter sido proibido por lei.” 8
O terceiro a testemunhar favoravelmente ao cativo foi o oficial de
justiça Ladislau Fortunato dos Santos. Casado, com 64 anos de idade, For-
tunato também confirmou que a africana Angélica foi vendida ao alferes
Manoel Antônio do Nascimento pelo Miguel Gahagem Champloni, que
residia nos Taipús e recebia africanos que eram importados, assim como
tem lembrança de que o desembarque deles a consignação de Champloni
foi no ano de 1835, sabendo mais que estes africanos estiveram ocultos por
algum tempo e depois partes deles foram vendidos nesta vila a diversos,
como fosse ao alferes Miguel do Nascimento.9
Suas afirmações foram reforçadas de forma ainda mais contundente
pelo sapateiro Florêncio dos Santos. Solteiro, com 68 anos de idade e vivendo
de suas agências, disse que “Angélica mãe do autor fora desembarcada
nos Taipús no tempo que o tráfico de africanos já era por lei proibido,
mas que não tem certeza do ano, porque não deitou sentido a esta data
MEMÓRIAS DO TRÁFICO ILEGAL DE ESCRAVOS NAS AÇÕES DE LIBERDADE: BAHIA, 1885-1888 307
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10 Ibid.
11 Ibid.
12 APEB, Ação de liberdade de Angélica.
13 Ibid.
MEMÓRIAS DO TRÁFICO ILEGAL DE ESCRAVOS NAS AÇÕES DE LIBERDADE: BAHIA, 1885-1888 309
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Na luta pela sorte dos escravos, o abolicionista Abdon Vieira fez uso
dos seguintes argumentos: a falta de matrícula, a filiação desconhecida, o
abandono por parte do senhor e, como já vimos, a importação ilegal para
o Brasil. O conhecimento destas possibilidades indica que Vieira estava a
par dos principais argumentos utilizados pelos abolicionistas brasileiros
naqueles anos finais da escravidão. Destes, alguns encontravam respaldo
na própria documentação oficial — como, por exemplo, nos registros
da matrícula geral de escravos — o que facilitava a reunião de provas
e, consequentemente, a libertação dos cativos. No caso específico da
utilização do argumento da importação ilegal de africanos, a reunião de
provas mais contundentes levou Abdon Ivo de Moraes Vieira a recorrer
aos próprios cativos e a suas redes de sociabilidade, na hora de comprovar
a ilegalidade do cativeiro. O resgate destas “memórias subterrâneas”, na
expressão de Michael Pollak, 19 suscitadas a partir das falas dos escravos
e de suas testemunhas, constitui, a meu ver, um importante elemento
para a compreensão das vicissitudes do tráfico de escravos para o Brasil,
mais especificamente na província da Bahia.
Nas histórias que se seguem, procurarei problematizar a construção
destas memórias em relação ao desembarque ilegal de africanos ocorrido
na baía de Camamu.
19 Michael Pollak, “Memória, esquecimento, silêncio”, Estudos Históricos, vol. 2, no. 3, (1989),
pp. 3-15
20 O termo “desova” era uma expressão comum àquela época e estava associado ao contra-
bando ilegal como atividade condenável, fortemente ligada à ideia de ocultação de corpos.
Por sua vez, na África, o cativo era visto como socialmente morto, de quem se tirou toda e
qualquer autonomia. Por isto, o tráfico e a escravidão eram tidos como o seu caminho na-
tural. Ver Orlando Patterson, Slavery and Social Death, Cambridge: Harvard University
Press, 1982; e Joseph C. Miller, Way of Death: Merchant Capitalism and the Angolan Slave
Trade (17301830), Madison: University of Wisconsin Press, 1988.
21 Durval Vieira de Aguiar, Descrições práticas da Província da Bahia, Rio de Janeiro/Brasí-
lia: Cátedra/INL, 1979, [1888], p. 260.
MEMÓRIAS DO TRÁFICO ILEGAL DE ESCRAVOS NAS AÇÕES DE LIBERDADE: BAHIA, 1885-1888 311
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22 Ibid.
23 Luís dos Santos Vilhena, A Bahia no século XVIII, Salvador: Ed. Itapuã, 1969, vol. 2, livro 2, p. 497.
24 Aguiar, Descrições práticas, p. 262.
25 Ver João José Reis, “Escravos e coiteiros no quilombo do Oitizeiro. Bahia-1806”, in João
José Reis e Flávio dos Santos Gomes (orgs.), Liberdade por um fio: história dos quilombos
no Brasil (São Paulo, Companhia das Letras, 1996), pp. 337-338. Reis (p. 339) ressalta ain-
da que “dentro da própria região, o transporte de gente e gêneros se fazia em canoas, que
subiam e desciam a costa e penetravam seus muitos rios, lição aprendida dos numerosos
grupos indígenas que ali ainda habitavam no alvorecer do século XIX.”
26 Reis, “Escravos e coiteiros”, pp. 332-372. Mesmo depois da destruição do Oitizeiro, em 1806,
foram frequentes as queixas das autoridades locais sobre os quilombos na região. Entretan-
to, na década de 1830, os quilombolas não mais pareciam viver “amistosamente”, como fa-
ziam os moradores do Oitizeiro, pois, segundo a correspondência dos juízes de paz de Cama-
mu, os agricultores da região estavam abandonando suas propriedades para viver na sede
.
Fonte: Mapa 1: SESI, Evolução territorial e do Estado da Bahia: um breve histórico, Salvador:
SESI 2003; Mapa 2: www. itacare.com, acessado em 12/10/2005.
continuação 26
da vila, por temer os “insultos, roubos e mortes” praticados pelos aquilombados. Em dezem-
bro de 1833, por exemplo, foi formada uma expedição com 69 homens para tentar debelar
um grande quilombo nas proximidades da Fazenda Limeira. Na ocasião, três cativos foram
capturados com vida e um, possivelmente o cabeça do grupo, morreu após resistir às investi-
das da tropa: APEB, Seção Colonial e Provincial, Presidência da Província, Juízes, Maço 2298
(as queixas concentram-se nos anos de 1830, 1833, 1835, 1836 e 1837).
27 Silva, “Os escravos vão à Justiça”, especialmente o cap. 3.
MEMÓRIAS DO TRÁFICO ILEGAL DE ESCRAVOS NAS AÇÕES DE LIBERDADE: BAHIA, 1885-1888 313
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As lembranças do desembarque
Foi apelando para as lembranças da travessia que a escrava Maria,
de 50 anos, e seus filhos Jerônimo, de 17, e Mônica, de 31, ousaram
questionar a legitimidade do cativeiro do fazendeiro Rogério Damasceno
D’Assumpção, residente em Maraú, no início do mês de outubro de 1887.
Na petição, em que expunha os motivos do injusto cativeiro, o curador
Abdon Ivo de Moraes Vieira alegava que Maria havia chegado à região
ainda no ventre de sua mãe, a africana Bernarda, tendo nascido nas
matas dos Taipus, local onde fora desembarcada juntamente com outros
africanos do navio negreiro do traficante Miguel Champloni e, depois,
adquirida pelo pai do réu. Em vista desta ilegalidade, o abolicionista
Abdon Vieira requeria que o pretenso senhor reconhecesse “os autores
como pessoas livres”, além de “indenizá-los das perdas e danos que lhes
tem causado e mais nas custas.” 28
Atendidos em suas reivindicações iniciais pelo juiz em exercício,
Dionísio Damasceno D’Asssumpção, os escravos foram depositados em
poder de Manoel José de Moraes Vieira. Observe-se a familiaridade dos
personagens envolvidos na disputa judicial. O juiz Dionísio Damasceno
era parente do réu, Rogério Damasceno, e o curador Abdon Ivo Moraes
Vieira era sobrinho do depositário dos escravos, Manoel Moraes Vieira,
que, na ação anterior, já havia atuado como testemunha da escrava
Angélica e de seu filho Bernardo. E as coincidências não param por aí.
Como veremos nos casos trabalhados mais adiante, outras testemunhas
estavam envolvidas nesta teia de relações — o que indica que em tais
disputas judiciais entrava em jogo uma gama de interesses pessoais,
tais como o sentimento de gratidão, a amizade e a lealdade, a expec-
tativa de receber algo em troca do depoimento, etc.; interesses que,
muitas vezes, ultrapassavam a ideia de ser simplesmente contra ou a
favor da escravidão.
Para comprovar sua versão dos fatos, Abdon Ivo de Moraes Vieira
e os escravos novamente apostaram na solidariedade das testemunhas
apresentadas, cujas trajetórias, aliás, em muitos casos também conhe-
ciam as marcas da escravidão. A primeira delas foi Jacinta Monteiro da
Conceição, de 60 anos, solteira, que vivia de suas agências. Contradizendo
a informação de que Bernarda dera à luz no Taipus, ela disse que “Maria
veio em um navio negreiro de Miguel Champloni ainda molezinha, ma-
mando em sua mãe Bernarda africana, e que desembarcou nos Taipús
onde esteve por algum tempo oculta, e daí vieram para os Algodões
trazidas pelo pai do réu, Plácido Damasceno.” 29
Já o escravo Aprígio Freire, de “sessenta e tantos anos de idade”,
solteiro, também atestou que Bernarda havia dado à luz a Maria quando
vinha no navio negreiro de Miguel Champloni para a Costa do Taipus.
Testemunha informante, dada a sua condição cativa, ele confirmou
que ambas haviam sido adquiridas pelo pai do réu e levadas para o
lugar chamado Algodões, “onde estiveram por algum tempo enquanto
Bernarda aprendia a falar a língua brasileira com o preto Agostinho, e
que aí já ela não esteve mais oculta”. 30 Aqui, as lembranças de Aprígio
nos revelam uma das primeiras dificuldades de adaptação dos africanos
recém-chegados ao Brasil, porquanto o conhecimento da língua era
essencial para a aquisição de novas sociabilidades, tais como as ordens
de serviço. Por isto, e também para recuperar a saúde das “peças” impor-
tadas para vendê-las por maiores preços, é que os traficantes montavam
entrepostos nas praias, como possivelmente fez Miguel Champloni na
Costa do Taipus. Disfarçar o contrabando fazia parte das estratégias do
tráfico, pois, quanto mais depressa os africanos fossem ladinizados, mais
rapidamente poderiam ser encaminhados ao trabalho, ou mesmo para a
venda, deixando para trás a impressão de que haviam sido ilegalmente
contrabandeados. 31
As alegações dos cativos foram confirmadas em mais dois depoi-
mentos. A testemunha Narcisa Pereira de Jesus, conhecida por Narcisa
Vieira, solteira, maior de sessenta anos, natural de Maraú, que vivia de
suas agências, também atestou que “Bernarda mãe da crioula Maria
veio no barco de Champloni trazendo pequenina essa sua filha Maria,
e desembarcando no lugar Taipús onde estiveram por algum tempo [...]
e que daí foram levadas por Placido Damasceno pai do réu para o lugar
conhecido como Quitengo.”32
Por sua vez, Benedito Caianna, crioulo, maior de 70 anos, sustentou
a versão de que Bernarda “veio da costa no barco de Champloni trazendo
sua filha pequenina Maria e que desembarcaram nos Taipús”. Questionado
pelo procurador do réu se sabia em que ano Bernarda desembarcara nos
Taipus, Benedito respondeu que não sabia ao certo, mas tinha certeza do
desembarque naquele local “porque nessa ocasião ele testemunha estava
pescando com outros”.33
29 APEB, Ação de liberdade da africana Maria. A localidade dos Algodões ficava nas proximi-
dades da Vila de Maraú. Ver mapa.
30 APEB, Ação de liberdade da africana Maria.
31 Robert E. Conrad, Tumbeiros, São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 111.
32 APEB, Ação de liberdade da africana Maria.
33 Ibid.
MEMÓRIAS DO TRÁFICO ILEGAL DE ESCRAVOS NAS AÇÕES DE LIBERDADE: BAHIA, 1885-1888 315
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34 Ibid.
35 Ibid.
36 Ibid.
37 Ibid.
38 Robert Conrad assinala que eram vários os riscos que os cativos enfrentavam desde a cap-
tura em solo africano até chegarem ao Brasil, sendo a pior provação a viagem por mar, vis-
to que o espaço e as provisões eram limitados e caros, e sempre havia traficantes que, es-
perando os lucros, levavam um excesso de pessoas a bordo e supriam essa multidão com
alimentação e água insuficientes. Conrad, Tumbeiros, p. 52. Por sua vez, Herbert S. Klein
apontou vários casos em que houve a importação de crianças, classificadas pelos trafican-
tes de “crias do peito”: Herbert S. Klein, “A demografia do tráfico atlântico de escravos para
o Brasil”, Estudos Econômicos, vol. 17, no. 2 (1987), pp. 137-139.
39 APEB, Seção Judiciária, Ação de Liberdade, 23/0808/01, Ação de liberdade da crioula
Faustina e seus filhos Benedito, Idelfonso e Sebastião contra o Tenente João Martins Fer-
reira, Maraú, 1887. Constância havia sido libertada em testamento de sua senhora, D. Ma-
ria Joaquina de Santa Ana.
MEMÓRIAS DO TRÁFICO ILEGAL DE ESCRAVOS NAS AÇÕES DE LIBERDADE: BAHIA, 1885-1888 317
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Aqui, Paulo Victoriano nos fornece uma ideia de como estas “me-
mórias subterrâneas” circulavam no interior da família escrava, fazendo
a recordar-se da difícil ruptura que o tráfico provocara em suas vidas.
Por sua vez, o africano Florêncio dos Santos, que já havia servido de
testemunha nos casos de Angélica e Bernardo e também no da africana
Maria e seus filhos, confirmou: “A mãe e avó dos autores foram importadas
depois da proibição do tráfico de africanos, porque veio em um barco de
Miguel Gahagem Champloni, do qual desembarcaram muitos africanos
na Costa dos Taipús, e daí foi conduzida ocultamente por um mascate
43 Ibid.
44 Ibid.
45 Ibid.
MEMÓRIAS DO TRÁFICO ILEGAL DE ESCRAVOS NAS AÇÕES DE LIBERDADE: BAHIA, 1885-1888 319
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46 Ibid.
47 APEB, Ação de liberdade da crioula Faustina. Vale lembrar que uma das estratégias utili-
zadas pelos mercadores e traficantes de escravos, ainda em solo africano, era o desmem-
bramento das etnias e das famílias dos cativos capturados. Sobre as peculiaridades da
captura de escravos na África e a logística do tráfico para o Brasil, ver Jaime Rodrigues, De
costa a costa: escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio
de Janeiro (1780-1860), São Paulo: Companhia das Letras, 2005, pp.75-127.
48 APEB, Ação de liberdade da crioula Faustina. Não encontrei informações sobre a vinda de
soldados com vistas a capturar os escravos desembarcados por Champloni, mas creio que
a ocorrência deste episódio pode estar diretamente relacionada à sua morte, conforme
discutirei mais adiante.
49 Ibid.
50 Ibid.
51 As designações dos grupos de africanos importados para o Brasil nem sempre correspon-
diam às suas identidades étnicas originais. Embora não fosse desconhecida dos portugue-
ses e brasileiros, a multiplicidade cultural dos povos africanos passou a ser ignorada à me-
dida que o tráfico de escravos adquiria foros de empresa mercantil, o que deu margem ao
advento de generalizações e imprecisões até hoje adotadas. Ver Maria Inês C. de Oliveira,
“Quem eram os ‘negros da Guiné’”? A origem dos africanos na Bahia”, nesta coletânea.
52 Ver Robert Slenes, “Malungu, ngoma vem!”: África coberta e descoberta do Brasil”, Revista
USP, no. 12, (1992), pp. 48-67. O autor acentua que a continuidade ou o rompimento deste
processo, contudo, teria dependido da experiência dos escravos no Novo Mundo e das suas
possibilidades de encontrar outras afinidades entre si, para além da comunidade da pala-
vra. Slenes, “Malungu”, p. 58. Vale lembrar ainda que a instituição do malungo não aconte-
cia apenas entre os escravos linguisticamente aparentados. Ela foi comum a todos os gru-
pos que, de alguma forma, foram transportados juntos como cativos no tráfico, pois era a
dura experiência da travessia que estava na base da construção deste parentesco simbó-
lico. Ver também, neste sentido, o ensaio de Sidney Mintz e Richard Price, O nascimento
da cultura afro-americana: uma perspectiva antropológica, Rio de Janeiro: Pallas, 2003.
Agradeço a Luis Nicolau Parés e João José Reis pelas informações acerca das etnias afri-
canas e suas variantes linguísticas.
53 Ver Conrad, Tumbeiros, pp. 130-131; Jaime Rodrigues, O infame comércio: propostas e ex-
periências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850), Campinas, Editora
da UNICAMP/Cecult, 2000, pp. 135-137.
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57 Ibid.
58 Silva, “Os escravos vão à Justiça”, pp. 115-148; Chalhoub, Visões da liberdade, pp. 161-174.
59 APEB, Ação de liberdade de Félix, Leonardo, Izabel e filhos.
60 Ibid.
MEMÓRIAS DO TRÁFICO ILEGAL DE ESCRAVOS NAS AÇÕES DE LIBERDADE: BAHIA, 1885-1888 323
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61 Ibid.
62 Campinho é uma praia localizada nas imediações da Barra Grande, na entrada da baía de
Camamu, região contígua aos Taipus. A menção a este local, em nenhum momento con-
testada pelo defensor do réu, indica a possibilidade da ocorrência de desembarques de
africanos ali, ainda mais porque “fica a barra Grande de Camamú na altura de 14 graus
com 18 braças de fundo, e tem toda a capacidade para nela ancorarem sem o menor ris-
co embarcações de alto bordo, a tempo que abrigada dos ventos Sul, e Leste. Da mencio-
nada ponta até o Campinho, que distará dela uma légua podem fundear muitas, e gran-
des embarcações, por ser limpa a costa até o quebrar das ondas na praia, havendo unica-
mente no meio da enseada, junto à terra um pequeno recife na boca do rio Carapitangui,
chamado Taipaba, o qual por estar quase seco não obsta à amarração”. Vilhena, A Bahia
no século XVIII, p. 500.
63 APEB, Ação de liberdade de Félix, Leonardo, Izabel e filhos.
defensor, que, como vimos, é o mesmo em todas as ações até aqui trabalhadas.
Neste sentido, a solidariedade prestada entre algumas testemunhas pode
ter motivações que não necessariamente indiquem ligações afetivas ou de
parentesco, mas sim, o interesse comum em libertar-se.
Voltemos ao caso. Indagada sobre o que sabia da vinda de Luzia para
o Brasil, Angélica afirmou
que a africana Luzia veio depois que já era proibido o
tráfico de africanos, pois que lembrou que veio no barco do
Champloni importador de africanos, que deixando parte
de africanos no engenho Santo Antônio na Bahia trouxe
parte para os Taipús, e que já estando ela testemunha uns
2 meses no termo desta vila em um sítio distante desta vila
soube que José Gonçalves havia trazido para sua fazenda
Noviciado duas africanas, as quais ela testemunha pôde
saber que eram Luzia mãe dos autores e Leocádia que mora
no Rio de Contas.64
A africana garantia que tais fatos haviam ocorrido porque “tendo ela
vindo por esta forma, Luzia também devia ter vindo” — o que também nos
permite pensar na ocorrência de outros desembarques naquela época. Ela
também certificou que esta “foi trazida para a fazenda Noviciado por José
Gonçalves ocultamente, tanto assim que tendo de batizar procurou um
padre de nome Manoel conhecido por Padre da Pancada, por a isto se ter
negado o vigário da Freguesia”.65
Ao que tudo indica, a força destes depoimentos e os possíveis gastos
com as custas processuais desmotivaram o senhor Manoel Rodrigues de
Oliveira de continuar brigando judicialmente pela posse dos escravos,
pois, no dia 27 de julho de 1887, passou carta de liberdade a Benta e seus
filhos Eleutério e Severiano, bem como a Félix, Leonardo e Isabel, filhos
e netos da africana Luzia.
De fato, as coisas pareciam estar bastante complicadas para os
proprietários de escravos da região. A ocorrência de tantas contestações
judiciais colocava os senhores na defensiva, ainda mais que a demanda
provocada pelas ações coletivas, como as aqui mencionadas, causava
enormes prejuízos financeiros.
Apostando cada vez mais na derrocada do poder senhorial, os crioulos
Felizardo, Elisiária e Cândida também foram à justiça contra seus senho-
res, tendo por base o fato de que sua mãe, a africana Angelina, havia sido
ilegalmente importada. Como nos casos anteriores, os autores da ação
apegaram-se ao fato de que sua mãe fora “desembarcada de um navio ne-
greiro em um dos portos da costa dos Taipús, de propriedade ou consignado
64 Ibid.
65 Ibid. Pancada é uma localidade da vila de Barra do Rio de Contas.
MEMÓRIAS DO TRÁFICO ILEGAL DE ESCRAVOS NAS AÇÕES DE LIBERDADE: BAHIA, 1885-1888 325
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66 APEB, Seção Judiciária, Ação de Liberdade, 23/0808/12, Ação de liberdade dos crioulos
Felizardo, Elisiária e Cândida, Maraú, 1887. Os cativos em questão pertenciam a diver-
sos senhores de uma mesma família, residente em Maraú. Felisardo era propriedade de D.
Maria Joana de Souza Coutinho; Elisiaria pertencia a D. Sophia Coutinho D’Eça; e Cândida
estava em poder de Antônio Augusto de Souza.
67 APEB, Ação de liberdade dos crioulos Felizardo, Elisiária e Cândida. De fato, o escravo
Aprígio havia impetrado a ação contra seu referido senhor no dia 27 de outubro de 1887,
tendo por curador o abolicionista Abdon Ivo de Moraes Vieira: APEB, Seção Judiciária,
Ação de Liberdade, 23/0808/02, Ação de liberdade de Aprígio contra Martinho Freire do
Espírito Santo, Maraú, 1887.
68 APEB, Ação de liberdade dos crioulos Felizardo, Elisiária e Cândida.
69 Ibid.
70 Ibid. A menção ao batismo em terras brasileiras mostra que nem todos os africanos rece-
biam este sacramento no porto de embarque, em solo africano. O fato de o padre ter-se re-
cusado a realizar o batismo também demonstra que a ilegalidade do tráfico era socialmen-
te reconhecida, ainda que a lei não fosse respeitada por todos.
71 APEB, Ação de liberdade dos crioulos Felizardo, Elisiária e Cândida.
72 Ibid.
73 Ibid.
MEMÓRIAS DO TRÁFICO ILEGAL DE ESCRAVOS NAS AÇÕES DE LIBERDADE: BAHIA, 1885-1888 327
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74 Assim como o escravo Aprígio, o sapateiro Florêncio dos Santos e o africano Bitu Andá, La-
dislau Fortunato dos Santos parecia ter assumido o compromisso de irem à justiça falar o
que sabiam dos fatos motivados por interesses que nem sempre coadunavam com a repul-
sa ou o apego à escravidão – o que evidencia a complexidade dessas relações.
75 Por mais que os escravos fossem beneficiados com a isenção de taxas processuais, dado
o favorecimento da lei nos casos envolvendo a liberdade, toda contenda judicial importa-
va em custos adicionais que, muitas vezes, eram assumidos por eles. Com base neste fato,
muitos senhores dirigiram recorrentes acusações aos abolicionistas, classificando-os de
usurpadores das economias dos escravos. Embora não possamos negar tal hipótese, dada a
ocorrência de oportunistas de plantão, também não podemos esquecer que as críticas se-
nhoriais eram feitas desconsiderando a capacidade dos escravos em avaliar os riscos que
corriam ao aceitar tal auxílio. Chalhoub, Visões da liberdade, p. 170.
76 APEB, Seção Judiciária, Ação de Liberdade, 12/426/07, Ação de liberdade da crioula Ro-
mana contra o alferes José Bonifácio de Magalhães, Barra do Rio de Contas, 1887; idem,
12/ 426/08, Ação de liberdade da crioula Úrsula contra Ursulina Gomes de Magalhães Se-
turval, Barra do Rio de Contas, 1887.
77 APEB, Ação de liberdade da crioula Romana.
78 Ibid.
MEMÓRIAS DO TRÁFICO ILEGAL DE ESCRAVOS NAS AÇÕES DE LIBERDADE: BAHIA, 1885-1888 329
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de Cristo”, como era conhecida, contou ter vindo para o Brasil na mesma
embarcação que trouxera a mãe de Romana, e que num dos trechos da
viagem “veio um navio inglês a apreendê-los e nessa ocasião fizeram içar
uma bandeira vermelha fazendo ser um carregamento de azeite de dendê”,
o que despistou o patrulhamento britânico e permitiu que a embarcação
negreira seguisse em frente.79
Segundo Pierre Verger, todo navio brasileiro que transportasse
escravos da África para o Brasil e tivesse iniciado sua viagem de volta
depois do dia 13 de março de 1830 podia ser apresado pelos ingleses, e
seu proprietário, o capitão e os membros da tripulação eram passíveis de
processos por atos de pirataria. Desta forma, a partir de então, a utiliza-
ção da bandeira brasileira tornava-se muito arriscada para aqueles que
iriam continuar a fazer o tráfico clandestino. Para reduzir a gravidade
da falta e fazê-la passar de crime para delito, era preciso navegar com
papéis e bandeira de outra nacionalidade, como a espanhola, a francesa,
a americana e a portuguesa. 80 Também por aquela época alguns países
incrementaram o comércio de azeite com a África, com vista a substituir
o tráfico, embora muitos se tenham aproveitado desta permissão para,
assim que pudessem, substituir as barricas de azeite por escravos. 81 Cabe
ressaltar ainda que o azeite de dendê ou “azeite de palmas”, palmácea
natural da região que vai da Gâmbia até Angola, era, desde longa data, um
produto muito apreciado pelos traficantes de escravos, sendo, juntamente
com os negros, comercializado em proporções consideráveis. Segundo
sugere Edison Carneiro, foram os próprios traficantes que trouxeram
a planta da África para o litoral brasileiro, onde se teria disseminado.
Coincidentemente, a região que se estende do Morro de São Paulo até a
Barra do Rio de Contas é, ainda hoje, denominada Costa do Dendê.82
Maria contou ainda que, tão logo o navio chegou à Bahia, os escravos
foram “desembarcados em um lugar oculto, onde estiveram por algum
tempo, e aí se separaram, vindo depois para esta vila onde se encontram”.83
Além de indicar uma possível estratégia utilizada pelos traficantes para
despistar o policiamento inglês, o depoimento de Maria de Cristo evi-
dencia a existência de uma conexão que ligava os magnatas do tráfico,
os detentores de grande capital, com outros traficantes de fortuna mais
79 Ibid.
80 Pierre Verger, Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de
Todos os Santos: dos séculos XVII a XIX, São Paulo: Corrupio, 1987, p. 420. Ver também
Conrad, Tumbeiros, pp. 139-170.
81 Verger, Fluxo e refluxo, pp. 560-564. Contudo, do processo não dá para saber se a bandei-
ra em questão era de algum dos países acima mencionados ou se havia uma identificação
típica que distinguisse os navios que faziam o transporte de azeite de dendê.
82 Edison Carneiro, “O azeite de dendê”, O jornal, Rio de Janeiro, 27/03/1955.
83 APEB, Ação de liberdade da crioula Romana.
modesta, sendo estes responsáveis pela distribuição das “peças” por outros
recantos da província.
As provas apresentadas pelas escravas eram realmente muito fortes.
Primeiro, porque Joaquina não havia sido matriculada nem averbada, pois
seu nome não constava em nenhum título de propriedade; segundo, porque
as testemunhas foram unânimes em comprovar e detalhar a importação
ilegal da cativa. Diante destas evidências e da “onda abolicionista”, o
senhor de Romana nem sequer compareceu aos tribunais para contestar
as alegações, e o processo só não foi julgado à sua revelia por causa da
abolição. Já dona Ursulina Seturval até que tentou evitar os prejuízos
com a perda de Úrsula e seus filhos. Desesperada, ela chegou mesmo a
mandar intimar o antigo dono da cativa para responder à ação em seu
lugar, o que protelou ainda mais o andamento da causa, mas, depois de
muitos protestos pelas perdas sofridas com o depósito da cativa e dos
filhos, restou-lhe apenas conformar-se com a liberdade destes e dos
demais cativos do Império.84
Como se pode notar nos processos até aqui discutidos, os relatos dos
escravos e suas testemunhas visam prioritariamente atender às suas
pretensões de liberdade. Produzidos a partir do apelo à memória, estes
depoimentos contêm muitos elementos verossímeis, mas também estão
permeados de imprecisões e até mesmo de algumas contradições, conforme
apontou em diversas ocasiões o defensor de alguns senhores, o professor
Thiago Escolástico. Não obstante, alguns fatos e informações em nenhum
momento são postos em dúvida por ele, nem pelos senhores, e até encontram
respaldo na literatura disponível sobre as localidades onde supostamente
ocorreram. São estes indícios que me levam a apostar na sua veracidade
— ainda que tenham sido manipulados ou colocados fora de contexto pelo
curador dos cativos, o abolicionista Abdon Ivo de Moraes Vieira.
A principal destas informações diz respeito à existência de Miguel
Champloni, suposto traficante e proprietário do navio negreiro que
desovou na praia do rio Taipus. A recorrência ao nome Miguel Gahagem
Champloni, comum à maioria das ações impetradas pelos escravos, levou-
me a pensar na possibilidade de seguir sua trajetória a partir de outras
fontes documentais. É o que tento fazer a seguir.85
MEMÓRIAS DO TRÁFICO ILEGAL DE ESCRAVOS NAS AÇÕES DE LIBERDADE: BAHIA, 1885-1888 331
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86 APEB, Seção Judiciária, Inventário, maço 2210, 5/1740/2, Inventário de Miguel Gahagem
Champloni falecido sem testamento, Salvador,1838.
87 Em correspondência expedida ao presidente da Província do Rio Grande do Sul, com data
de 26/ 05/1834, o Chefe de Polícia José Maria Peçanha anexou um relatório do Juiz de Paz
do 2° Distrito de Porto Alegre, no qual consta que Miguel Gahagem Champloni, casado,
brasileiro, se havia mudado para o 3° quarteirão. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul
(AHRGS), Polícia, maço 60, Secretaria da Polícia, Correspondência expedida, Chefe de Po-
lícia José Maria Peçanha ao presidente da Província do Rio Grande do Sul, 26/05/1834.
Agradeço esta e outras informações sobre a passagem de Miguel Champloni pelo Rio
Grande do Sul a João José Reis. Quem também viveu nesse período no Rio Grande do Sul,
tendo, inclusive, aí começado a fazer sua fortuna, foi o famoso traficante de escravos Joa-
quim Pereira Marinho. Ver, a este respeito, Cristiana Ferreira Lyrio, “Joaquim Pereira Ma-
rinho: perfil de um contrabandista de escravos na Bahia (1827-1887)” (Dissertação de
Mestrado, Universidade Federal da Bahia, 1998).
88 AHRGS, Livro de Registros diversos, 1° Tabelionato de Porto Alegre, 1830-1835.
89 Ver Paulo Roberto Staudt Moreira, “Escravidão, família e compadrio: a comunidade escra-
va no processo de ilegalidade do tráfico internacional de escravos (1831-1850)”, História
Unisinos, no. 18 (2014), pp. 322-324.
90 APEB, Seção Judiciária, Livro de Notas da Capital, n° 254, Tabelião Francisco Ribeiro Ne-
ves, fls. 6 e 7. Curiosamente, Champloni pagou um conto de réis no ato da escritura, fican-
do de acertar a soma restante no prazo de quatro meses.
91 Analisando as listas de navios negreiros citadas por Pierre Verger, encontrei somente
duas embarcações com tal denominação. A primeira é a goeleta Novo Destino, que seguiu
para a África em 5/05/1833, e a outra uma embarcação de André Pinto da Silveira, que
chegou à Bahia em 18/04/1846. Verger, Fluxo e refluxo, p. 459 e 479.
92 Ver Luiz Geraldo Silva, A faina, a festa e o rito: uma etnografia histórica sobre as gentes do
mar, Campinas: Papirus, 2001, p. 170; e também Rodrigues, De costa a costa, pp. 131-158.
93 APEB, Inventário de Miguel Gahagem Champloni.
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94 APEB, Seção Judiciária, Livro de notas dos municípios (Camamú), Livro n° 10, Tabelião
João Ferreira Borges, 1839-1842.
95 APEB, Seção Judiciária, Cível 2, 14/470/04, Sequestro de bens de José Pereira dos Santos
e Miguel Gahagem Champloni (falecido), Salvador, 1838.
96 APEB, Sequestro de bens de José Pereira dos Santos. De acordo com o que consta na escritu-
ra de compra e venda anexada ao processo, após ter sido sequestrado pela justiça, o lanchão
foi avaliado da seguinte maneira: “o casco, sua mastreação, dois camarotes volantes e hum
fogão [vale] a quantia de 400 mil réis, e quanto ao aparelho, o velame a de 50 mil réis”.
97 Ibid.
98 Ibid.
do presente ano, quando fez uma viagem a São Matheus”.99 Outra embar-
cação associada aos bens do casal de Miguel Gahagem Champloni era o
patacho Vigilante, que se achava perigosamente a pique na Baía de Todos
os Santos, “ameaçando de causar funestos estragos” a outras embarcações
ali ancoradas, conforme denunciou o Correio Mercantil.100
A posse das embarcações acima mencionadas acena para o seu uso
no transporte e na comercialização de mercadorias vindas da capital ou
para lá exportadas, como a farinha, naturalmente fazendo parte destas
transações também escravos, fossem africanos ilegalmente importados
ou não. Neste último caso, Miguel Champloni parecia atuar como uma
espécie de subsidiário do tráfico, visto que naquelas paragens veio a
fixar residência, justamente no local do desembarque, a costa do Taipus,
possivelmente no final do ano de 1835.101
Outro indício bastante forte de um possível engajamento de Miguel
Gahagem Champloni no comércio negreiro nos é fornecido pelos anúncios
por ele publicados no ano de 1836, no já mencionado Correio Mercantil,
na seção “Navios à Carga”, onde se lê: “O Brigue Barca Gentil Americana,
que deve sair até o dia 29 de fevereiro para Lisboa com escala pela Costa
d’África, recebe carga e passageiros para qualquer dos portos, Consigna-
tário Miguel Gahagem Champloni”.102
Os relatos contidos nas ações de liberdade sugerem que Champlo-
ni — assim como faziam outros traficantes — poderia ter adquirido tal
propriedade para montar um entreposto de cativos trazidos ilegalmente
para o Brasil. Os próprios africanos disseram ter ficado por algum tempo
no local do desembarque para daí serem vendidos a fazendeiros da região
e até mesmo da capital, como mencionou a africana Angélica (ver acima),
ao dizer que parte dos que tinham vindo com ela da África haviam ido de
Maraú para o Engenho Santo Antônio, no Recôncavo da Bahia.103
A documentação analisada até aqui ainda não nos permite afirmar
qual o grau de participação de Miguel Champloni no tráfico de africanos
99 Ibid.
100 Correio Mercantil, no. 74, Bahia, sábado, 6 de abril de 1839, e também o no. 98, terça-feira,
7 de maio de 1839.
101 Vale salientar que a essa época, especialmente nos anos de 1837, 1838 e 1839, o tráfico
africano para o Brasil alcançou seus maiores picos. Ver Bethell, A abolição, p. 368; e Luiz
Henrique Dias Tavares, Comércio proibido de escravos, São Paulo: Ática, 1988, p. 121.
102 Correio Mercantil, números 655 e 656, respectivamente terça e quarta-feira, dias 23 e 24
de fevereiro de 1836, p. 4.
103 De acordo com o estudo realizado por Barickman, existiam três engenhos com esta de-
nominação. São eles: o de Santo Antônio da Guaíba, o de Santo Antônio do Pastinho, na
Freguesia de Nossa Senhora da Purificação (Santo Amaro), matriculado em 1831, que, em
1852, empregava 95 escravos; e o de Santo Antônio da Patativa, de propriedade de Antô-
nio Calmon Du Pin e Almeida: Bert Barickman, Um contraponto baiano, Rio de Janeiro, Ci-
vilização Brasileira, 2003, p. 432.
MEMÓRIAS DO TRÁFICO ILEGAL DE ESCRAVOS NAS AÇÕES DE LIBERDADE: BAHIA, 1885-1888 335
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA
para a Bahia, mas certamente ele não estava incluído dentre os magnatas
do “comércio de almas”. 104 A julgar pelas informações fornecidas pelos
depoentes nas ações de liberdade, a atuação de Champloni restringiu-se a
um único desembarque, no qual os cativos teriam sido vendidos a diferentes
compradores da região. As circunstâncias trágicas de sua morte parecem
ter ficado na “memória coletiva” dos escravos residentes nas vilas de
Maraú e Barra do Rio de Contas, sendo posteriormente úteis ao curador
dos escravos, naquele contexto de efervescência abolicionista. Assim, ao
que tudo indica, Champloni pode ter sido um especulador, um daqueles
traficantes de ocasião, dado que “sendo o tráfico um negócio altamente
rendoso e especulativo, muitos foram os traficantes de última hora, homens
que, diante de uma conjuntura excepcionalmente favorável, canalizavam
boa parte de seus recursos para a aventura do comércio de homens.”105
A morte de Champloni deixou dona Leolinda em sérias dificuldades.
Além da perda do cônjuge e pai de seus filhos, ficaria responsável por hon-
rar os compromissos financeiros do marido, os quais, segundo sugerem os
autos, não eram poucos. Na verdade, as várias execuções sobre os bens e as
cobranças de muitas outras dívidas puseram-na em maus lençóis, sobretudo
porque não podia “continuar a defender-se e a seus filhos de tais coisas, já
porque levaram descaminhos os papéis comerciais e livros existentes no
escritório de seu dito marido, incendiado durante a passada rebelião dessa
Capital [Sabinada], já por lhe faltarem absolutamente os meios de poder fazer
face às graves despesas que demandam tantos são numerosos processos.” 106
Em face destas razões, e cansada de ser, a todo o instante, moles-
tada pelos credores, dona Leolinda abriu mão de todos os direitos sobre
a meação do casal. Contudo, esta estratégia não a livrou das cobranças,
pois vários estabelecimentos, como a casa de negócios Le Grusne e Cia., a
acionaram judicialmente.107 Com isto, o processo do inventário arrastou-se
104 Segundo Pierre Verger, entre os maiores comerciantes baianos envolvidos no tráfico clan-
destino estavam: Inocêncio Marques de Santa Anna, João Cardozo dos Santos, Manoel
Cardozo dos Santos, Vicente Paulo e Silva, José de Cerqueira Lima, Joaquim Pereira Mari-
nho, Manoel Joaquim D’Almeida, entre outros. Verger, Fluxo e refluxo, pp. 445-483.
105 Manolo Florentino, Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e
o Rio de Janeiro (Séculos XVIII e XIX), São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 149. O au-
tor salienta que “em termos gerais a participação destes comerciantes não especializados
e aventureiros se pautava pela intensificação dos investimentos em momentos de maior
demanda e, portanto, de maior cotação dos escravos no mercado brasileiro. Era quando
eles assumiam o papel estrutural antes mencionado, que os tornava imprescindíveis ao
bom funcionamento das importações de mão de obra e da própria economia escravista”:
Florentino, Em costas negras, p. 153.
106 APEB, Inventário de Miguel Gahagem Champloni.
107 Os credores do casal chegaram a publicar conjuntamente uma advertência ao público e,
sobretudo, à praça comercial, no sentido de não fazer qualquer espécie de transação fi-
nanceira com a viúva de Miguel Champloni. Ver, por exemplo, o Correio Mercantil, no.
585, de 22 de outubro de 1838, p. 4.
até 1846, sendo a viúva chamada por diversas vezes a nomear procura-
dores, bem como a oferecer tutor a seus filhos menores, tendo em vista
que ninguém aceitava tal encargo, como atestou o bacharel Fernando
Antônio Rodrigues Navarro de Siqueira, ao solicitar a destituição de tal
encargo, “não podendo cumprir os seus deveres a favor de seus tutelados
por falta absoluta de informações sobre o estado, em que se acha aquele
casal, demandando por mil credores, visto que a viúva mãe dos menores,
em cujo poder eles se acham a elas se nega, ocultando se e não querendo
falar com quem lhe procura.”108
A desistência do tutor acena novamente para o fato de dona Leolinda
querer preservar as posses da família. Infelizmente, a documentação até
aqui analisada não nos permitiu averiguar como se deram estas execuções
judiciais. Contudo, no ano de 1878 ela ainda respondia a um processo de
sequestro de bens, devido ao não-pagamento da quantia de 45$792 réis,
referentes ao imposto da décima do sobrado velho que estava em seu
nome, localizado em Salvador, na Rua de São Pedro n° 9.109
Dona Leolinda veio a falecer, viúva, em 21 de novembro de 1887,
em sua casa, na Rua dos Barris, na freguesia de São Pedro, em Salvador.
Contava então 70 anos de idade incompletos. Após a morte de Miguel
Champloni, havia-se casado novamente com o bacharel Francisco José
Pereira de Albuquerque e, além dos filhos que já possuía com o primeiro
marido, deu à luz a Lídia, Rozentina, Arnóbio e Euthymio. Dos filhos
que tivera com Champloni, somente Leolinda havia morrido, mas, assim
como seus irmãos Lupércio e Miguel, ela havia-se casado e tido filhos.110
Apesar da ruína do pai, Miguel teve uma vida módica e exerceu o cargo de
escrivão de polícia na capital baiana, tendo-se até associado ao adivinho
Domingos Sodré, africano liberto líder de junta de alforria.111
108 Ibid.
109 APEB, Seção Judiciária, Cível 2, 14/493/18, Sequestro de bens de Leolinda Rodrigues Gah-
agem, Salvador, 1875.
110 APEB, Seção Judiciária, Testamento, 07/3245/38, Testamento de Leolinda Rodrigues Pe-
reira de Albuquerque, Salvador, 1887.
111 Ver João José Reis. Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e can-
domblé na Bahia do século XIX, São Paulo: Companhia das Letras, 2008, pp. 286-287.
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112 Luiz Vianna Filho, O negro na Bahia, São Paulo/Brasília: Martins/INL, 1976, p. 72.
113 Florentino, Em costas negras, p. 140. Sobre as múltiplas facetas do tráfico de escra-
vos, desde sua armação e financiamento até os vínculos com a complexa rede de indiví-
duos nela envolvidos no Brasil, na Europa e na África, ver o fascinante artigo de Ubira-
tan Castro de Araújo, “1846: um ano na rota Bahia-Lagos: negócios, negociantes e outros
parceiros”, reproduzido nesta coletânea.
Considerações finais
Os depoimentos contidos nas ações de liberdade aqui discutidas
fizeram parte das estratégias empreendidas pelo curador Abdon Ivo de
Moraes Vieira, visando à libertação de seus curatelados. Entremeados de
verdades e contradições, estes depoimentos foram duramente criticados
pelos senhores e seus defensores legais, que afirmavam que estavam
assentados em acontecimentos inexistentes e falsamente articulados.
114 Paulo César Souza, A Sabinada. A revolta separatista da Bahia, São Paulo: Círculo do Li-
vro, 1987, p. 66.
115 APEB, Ação de liberdade dos crioulos Felizardo, Elisiária e Cândida.
116 Vale lembrar que Hygino Pires Gomes, um dos chefes militares da Sabinada, era homem
ligado ao comércio de escravos, porquanto “havia muitas vezes transportado pela Costa
escravos e dinheiro falso”. Souza, A Sabinada, p. 98.
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117 Expressão usada na petição inicial da ação de liberdade movida pela africana Angélica e
seu filho Bernardo. APEB, Ação de liberdade de Angélica.
118 Pollak, “Memória”, p. 5.
ApresentAção
Resultado da ação britânica contra o tráfico de escravos no século
XIX, os africanos livres viveram as contradições e as tensões daquele
momento. Embora resgatados do tráfico de escravos, tiveram em sua
experiência cotidiana estreita relação com a escravidão, não apenas
porque os lugares de trabalho e a sociabilidade nas cidades muitas vezes
eram comuns a escravos e libertos, mas também porque, frequentemente,
eram vistos como desprovidos sequer de uma porção de liberdade pelos
administradores públicos e pelas pessoas que arrematavam os seus ser-
viços. Entretanto, acreditando na singularidade de sua condição, esses
africanos colocaram-se diante das autoridades como indivíduos livres, o
que se chocava frontalmente com a prática dos seus tutores.
Cabe considerar que apenas estavam enquadrados no perfil de africanos
livres aqueles cuja embarcação houvesse sido apreendida e julgada ilegal
pela comissão mista instalada no Rio de Janeiro, além dos considerados
pelas autoridades judiciais ilegalmente introduzidos no país. A população
de africanos livres no Brasil foi estimada em cerca de 11 mil indivíduos,
o que representa ínfima porção quando considerados os cerca de 500 mil
escravos importados após a proibição do tráfico em 1831.2
Atendendo ao acordo luso-britânico de 1815 para o fim do tráfico,
cujos pontos foram ratificados na Convenção de 1817, o Alvará de 26 de
janeiro de 1818 estabelecia “penas para os que fizerem comércio proibido
1 Esta é uma versão revista e atualizada do capítulo 4 do meu livro Os meias-caras. Afri-
canos livres em São Paulo no século XIX , Salto, SP: Editora Schoba, 2013, ainda inédito
quando este texto foi publicado pela revista Afro-Ásia.
2 Beatriz G. Mamigonian, “O direito de ser africano livre”, in Silvia H. Lara e Joseli M. N. Men-
donça (orgs.), Direitos e justiças no Brasil (Campinas: Editora da Unicamp, 2006), p. 131. 3
343
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3 Collecção das Leis do Brazil de 1818. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1889, pp. 7-10.
4 Silvia H. Lara, Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro (1750-
1808), Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; Maria Helena P. T. Machado, Crime e escravidão: tra-
balho, luta e resistência nas lavouras paulistas 1830-1888, São Paulo: Brasiliense, 1987; João
José Reis e Eduardo Silva, Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista, São
Paulo: Companhia das Letras, 1989; e Carlos Eugênio L. Soares, A capoeira escrava e outras
tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850), Campinas: Ed. Unicamp, 2004.
5 O caso da africana livre Maria também foi abordado no artigo “Uma ‘preta de caráter fe-
roz’ e a resistência ao projeto de emancipação”, in Maria Helena P. T. Machado e Celso T.
Castilho (orgs). Tornando-se livre: agentes históricos e lutas sociais no processo de aboli-
ção (São Paulo: Edusp, 2015), pp. 129-141.
6 Os africanos que serviram em estabelecimentos públicos tiveram o direito à emancipação
apenas em 1864, com o Decreto no. 3.310 de 24/09/1964.
REIVINDICAÇÕES E RESISTÊNCIA: O NÃO DOS AFRICANOS LIVRES (SÃO PAULO, SÉCULO XIX) 345
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devia ser antes deixada para cuidar da criação de seus dois filhos [...]”.11
A arrematação de africanos livres por particulares era feita mediante
contrato, conforme as Instruções de 29 de outubro de 1834, que estabe-
leciam as obrigações de sustentar, cuidar e pagar um módico salário aos
arrematados. Este, contudo, não era pago diretamente ao africano livre,
mas ao seu curador, que deveria depositar as quantias no Juízo de Órfãos.
Porém, o não recolhimento dos salários foi irregularidade comum. Nas
obras públicas os africanos livres podiam receber pequenas gratificações,
embora os informes de despesas dos estabelecimentos não comprovem
que o dinheiro efetivamente chegasse às mãos dos serventes.12
Notamos na transcrição acima uma importante oposição: Maria,
sabendo-se africana livre, resiste à escravidão disfarçada e à possibi-
lidade de separação de seus filhos; 13 a arrematante, por sua vez, não
aceita a insubordinação e a altivez da africana, porque não a vê senão
como escrava. Na documentação analisada, em diferentes momentos, os
africanos livres foram chamados de escravos pelas autoridades, num ato
falho muito significativo.
Cumprindo ordem do governo, Maria passou a servir no Seminário
de Santa Ana a partir de março de 1840. Chegou com seus dois filhos
pequenos, mas, na semana seguinte, o mais novo faleceu. Duas semanas
depois de sua chegada, Maria empreendeu a primeira fuga do Seminário,
carregando o filho mais velho. Recapturada, foi reenviada ao seminário, de
onde voltou a fugir outras vezes.14 Contrariado com a ordem do presidente
para aceitar Maria no seminário, o diretor Candido Caetano Moreira não
poupou virulência nas palavras, quando se referia a ela, delineando as
agruras cotidianas enfrentadas pelas africanas livres. Observemos o que
o diretor oficiou ao presidente:
Esta negra, Exmo Sr, muito incômodo deu no tempo da
extinta Fazenda Normal ao administrador Vandelli,
segundo me informam dois negros que cá existem e [que]
foram desse tempo; estava quase a maior parte do tempo
fugida, tem já esse rico dote por hábito, é má negra na
extensão da palavra, atrevida, de má língua, possuída da
liberdade, um precipício, não tem por onde se lhe pegue, é
só para dar trabalho e inquietação de espírito para o que
serve, eu por ser súdito a mandei recolher. V.Exa querendo
11 AESP, CO 878.
12 Bertin, Os meias-caras, pp. 51-104.
13 A expressão “escravidão disfarçada” é de Suely Robles R. de Queiroz, Escravidão negra em
São Paulo. Um estudo das tensões provocadas pelo escravismo no século XIX, Rio de Ja-
neiro: Instituto Nacional do Livro, 1977, p. 63.
14 AESP, CO 879, 17/03/1840. Sobre o cotidiano de trabalho no interior dos estabelecimen-
tos públicos de São Paulo, ver Bertin, Os meias-caras, pp. 51-104.
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15 AESP, CO 879, p. 1, doc. 37A, Ofício do Diretor Candido Caetano Moreira ao Presidente
Manoel Machado Nunes, 04/04/1840.
filhos que gerou nos informam sobre a existência de uma relação afetiva
que, provavelmente, era mantida fora do seminário. Contudo, é intrigante
que, em nenhum momento, tenha sido feito qualquer referência ao pai
dos filhos da africana.
Na diversidade dos papéis avulsos analisados, um deles nos chamou
a atenção e pode iluminar um pouco os encontros mantidos por Maria. Na
lista de serventes do seminário, de março de 1855, constam os africanos
livres José, Sebastião, Antonio e Joaquina. Em abril desse mesmo ano, José
faleceu, sendo o fato informado ao presidente da província pelo diretor
Caetano Moreira. Em meio ao texto, o diretor reportava a descoberta de
uma “caixinha velha, que estava fechada debaixo da cama do falecido”. 16
Após convocar um vizinho para testemunha, empreendeu a abertura do
pequeno cofre, cuja chave era guardada pelo africano Sebastião, compa-
nheiro de José. Para surpresa dele,
achou-se 13$220 rs, 8$000 rs em moeda papel e 5$220 rs
em cobre, tudo em um embrulho, dizendo-nos o africano
Sebastião pertencer este dinheiro ao falecido, achando-se
mais 15$176 rs em cobre em dois embrulhos, esta soma
declarou o mesmo Sebastião que pertencia a uma africana
de nome Maria que se acha empregada na Casa de Correção
desta cidade.
16 AESP, CO 901, Ofício do Diretor Candido Caetano Moreira ao Presidente José Antonio Sa-
raiva, 04/04/1855. As citações seguintes são parte desse mesmo documento.
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20
Portanto, a sua preocupação com a desobediência de Maria possuía
uma explicação política, calcada no controle sobre os demais africanos.
“Este exemplo influi muito nos ânimos dos outros africanos e em virtude
dele é que a suplicante repentinamente evadiu-se deste Seminário e foi
procurar apoio do mesmo indivíduo, que favorecera aquele João, e que
parece disposto, perfaz e pernefaz a tirar dali todos os africanos e pô-los
isentos de qualquer ônus.” 21 O diretor desqualifica a capacidade de Maria
ao sugerir que havia sido o exemplo de outros africanos e a influência
do advogado que fizeram com que ela requeresse sua liberdade e não a
sua intenção e disposição. Naquele mesmo dia Maria foi recapturada e
devolvida ao seminário pela polícia.22
Alguns dias depois o curador dos africanos livres emitiu parecer ao
juiz de órfãos sobre o caso e negou que já houvesse queixa da africana
durante os anos em que estava à frente da curadoria. 23 A ausência de
ocorrências nos oito anos de sua administração coincide com a lacuna
encontrada nos ofícios, que compreendem os anos da década de 1840.
Poderíamos questionar se isso corresponderia a um período de acomoda-
ção de Maria, de falta de apoio de terceiros, ou, então, simplesmente ao
extravio dos registros de possíveis queixas envolvendo essa africana livre.
Em outubro de 1851, ofícios de diferentes autoridades citaram um
requerimento de Maria, mas, infelizmente, também esse pedido não foi
localizado, e nem foi possível confirmar se era o mesmo documento apre-
sentado no mês de setembro, comentado acima. Contudo, há indícios de
que se tratava de uma nova solicitação da africana, a considerar que, em
9 de outubro de 1851, depois de servir por onze anos no seminário, sob
as ordens do mesmo diretor, Maria foi transferida para a Santa Casa, em
cumprimento a ordem do presidente Nabuco de Araújo. 23 Tão marcante
quanto a disposição de enfrentamento de Maria era sua insistência em
agir pela via institucional, reclamando por direitos que julgava possuir
enquanto tutelada. Sem dúvida a participação do advogado, apontando
irregularidades, foi importante nessa empreitada de Maria, contudo, isso
não deve minimizar a condição da africana como sujeito de sua história
que quer mudanças e age para isso.
20 AESP, CO 894, Ofício do Diretor Candido Caetano Moreira ao Presidente José Thomaz Na-
buco de Araújo, 20/09/1851. A preocupação do administrador com a atuação do advogado
de Maria é uma importante pista a ser seguida por novos estudos sobre a ação desses “pro-
tetores” em São Paulo muito antes de Luiz Gama.
21 AESP, CO 894.
22 AESP, CO 894, doc. 20R, Ofício do Diretor Candido Caetano Moreira ao Presidente José
Thomaz Nabuco de Araújo, 22/09/1851.
23 AESP, CO 893, doc. 3E, Ofício do Curador dos Africanos Livres, Manoel Eufrázio de Azeve-
do Marques ao Juiz de Órfãos da Capital, 30/09/1851. 23 AESP, CO 904, Inventário do Semi-
nário, 24/07/1856.
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24 AESP, CO 894, Ofício de Candido Caetano Moreira ao Presidente José Thomaz Nabuco de
Araújo, 07/10/1851.
25 Reis e Silva, Negociação e conflito; Stuart B. Schwartz, Escravos, roceiros e rebeldes, Bau-
ru: Edusc, 2001.
26 AESP, CO 894, 25C, Ofício do Curador dos Africanos Livres, Manoel Eufrázio de Azevedo
Marques, ao Juiz de Órfãos da Capital, 10/10/1851.
27 AESP, CO 894, 25C.
28 AESP, CO 894 25B, Ofício do Juiz de Órfãos José Antonio Vaz de Carvalho ao Presidente
José Thomaz Nabuco de Araújo, 11/10/1851.
REIVINDICAÇÕES E RESISTÊNCIA: O NÃO DOS AFRICANOS LIVRES (SÃO PAULO, SÉCULO XIX) 353
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29 AESP, CO 894 20G, Ofício de Candido Caetano Moreira ao Presidente José Thomaz Nabuco
de Araújo, 14/10/1851.
30 AESP, CO 896, Ofício do Provedor Barão de Iguape ao Presidente José Thomaz Nabuco de
Araújo, 22/04/1851.
31 AESP, CO 903, Relato do Escrivão de Órfãos Joaquim Florindo de Castro ao Juiz de Órfãos,
14/08/1856.
32 AESP, CO 903, 03/10/1856.
33 AESP, CO 903, Ofício do Juiz de Órfãos, Francisco da Costa Carvalho, ao Presidente Fran-
cisco Pereira de Vasconcelos, 18/12/1856.
34 AESP, CO 5453, Juízo de Órfãos, Autos de Tutoria 1806-1866, José e Benedito; AESP,
CO 5453, Juízo de Órfãos, Autos Cíveis de Curatela e Soldada, 1856, Benedito; AESP, CO
5443 Cx. 113, doc. 36, Autos Cíveis de Justificação, Benedito, 1860. Sobre a atuação dos
juízes de órfãos em relação ao trabalho compulsório infantil, ver Gislane Campos Azeve-
do, “A tutela e o contrato de soldada: a reinvenção do trabalho compulsório infantil”, His-
tória Social, no. 3 (1996), pp. 11-36.
35 AESP, CO 5367, Autos cíveis de justificação para emancipação, Maria, 1857. O direi-
to à emancipação dos africanos livres estava previsto pelo decreto n. 1303, de 28/12/
1853. Porém, restringia-se àqueles que tivessem cumprido 14 anos de serviços ex-
clusivamente para particulares. Os africanos livres que haviam servido em estabe-
lecimentos públicos apenas obtiveram esse direito através do decreto no. 3310 de
24/09/1864. 36 AESP, CO 5367.
36 AESP, CO 907, Ofício do Juiz de Órfãos ao Presidente da Província, 05/03/1858.
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38 Sobre o período pós-emancipação dos africanos livres, ver Bertin, Os meias-caras, pp.
181-247.
39 AESP, CO 882, Ofício do Juiz de Paz Manoel José Chaves ao Presidente Rafael Tobias de
Aguiar, 30/01/1841.
40 AESP, CO 882.
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41 AESP, CO 882, Depoimento de Candido, 30/01/1841; AESP, EO 1496, fls. 132-6, Corres-
pondência reservada do Chefe de Polícia, 1851. Sobre o tema do tráfico ilegal em São Pau-
lo, ver Priscila Alonso, “O Vale do nefando comércio: o tráfico de escravos no Vale do Paraí-
ba (1850-1860)” (Dissertação de Mestrado, FFLCH-USP, 2006); Jaime Rodrigues, O infame
comércio. Propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-
1850), Campinas: Editora Unicamp-Cecult, 2000.
42 AESP, CO 882, Depoimento de Candido, 30/01/1841.
43 AESP, CO 903, Ofício do Administrador Francisco Antonio de Oliveira ao Presidente Fran-
cisco Diogo Pereira de Vasconcelos, 17/05/1856. As citações sobre o caso de Felipe, a se-
guir, referem-se a este documento.
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44 AESP, CO 916, Ofício de Manoel do Carmo Barros, Diretor da Colônia Militar ao Presiden-
te da Província. 01/12/1860. Esse acampamento estava instalado próximo à colônia mili-
tar de Itapura, na divisa com a província de São Paulo, e tinha por objetivo a construção de
uma estrada ligando a colônia até o Mato Grosso.
45 Afonso B. Florence, “Entre o cativeiro e a emancipação: a liberdade dos africanos livres no
Brasil (1818-1864)” (Dissertação de Mestrado, UFBA, 2002).
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48 Walter Johnson, “Agency”, Journal of Social History, no. 37, (2003), pp. 113-124.
49 Mamigonian, “O direito de ser africano livre”, p. 141.
50 Beatriz G. Mamigonian, “A Grã-Bretanha, o Brasil e as ‘complicações no estado atual da
nossa população’: revisitando a abolição do tráfico atlântico de escravos (1848-1851)”.
Texto apresentado no IV Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Curiti-
ba, 2009, http://www.escravidaoeliberdade.com.br/site/images/Textos4/beatrizmami-
gonian.pdf , acesso em 12/10/2015.
51 Elciene Azevedo, O direito dos escravos: lutas jurídicas e abolicionismo na província de
São Paulo, Campinas: Editora Unicamp, 2010.
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56 A resistência e a negociação na escravidão são temas discutidos, por exemplo, nos seguin-
tes trabalhos: Reis e Silva, Negociação e conflito; Soares, A capoeira escrava; João José
Reis e Flávio dos S. Gomes (orgs.), Liberdade por um fio: histórias dos quilombos no Brasil,
São Paulo: Companhia das Letras, 2005; Sandra L. Graham, Caetana diz não: histórias de
mulheres da sociedade escravista brasileira, São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
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57 AESP, CO 1230, Ofício do Delegado Francisco Maria de Mendonça ao Curador dos Africa-
nos Livres, 03/04/1853.
58 Sobre o cotidiano de trabalho dos africanos livres na fábrica de ferro e nos demais estabe-
lecimentos públicos de São Paulo, ver Bertin, Os meias-caras; especificamente sobre a fá-
brica de ferro, Afonso B. Florence, “Resistência escrava em São Paulo: a luta dos escravos
da fábrica de ferro São João do Ipanema 1828-1842”, Afro-Ásia, no. 18 (1996), pp.7-32; Jai-
me Rodrigues, “Ferro, trabalho e conflito: os africanos livres na fábrica de Ipanema”, His-
tória Social, no. 4-5 (1997-1998), pp. 29-42; e Jorge Prata de Sousa, “Africano livre ficando
livre: trabalho, cotidiano e luta” (Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, 1999).
59 AESP, CO 1230, Ofício de José Joaquim de Lacerda, Administrador dos Africanos Livres, ao
Presidente Josino do Nascimento Silva, 11/04/1853.
60 No Rio de Janeiro, os quilombolas produziam tranças de palha para confecção de chapéus
para serem comercializados. Ver Flavio S. Gomes, “Quilombos no Rio de Janeiro no século
XIX”, in Reis e Gomes (orgs.), Liberdade por um fio, pp. 263-90.
61 Schwartz, Escravos, roceiros e rebeldes, pp. 89-123. O tema da brecha camponesa, nome
dado aos espaços agrícolas de autonomia dos escravos, foi também analisado em Ciro F.
Cardoso, Escravo ou camponês? O proto-campesinato negro nas Américas, São Paulo: Bra-
siliense, 1987; e Reis e Silva, Negociação e Conflito, pp. 22-31.
REIVINDICAÇÕES E RESISTÊNCIA: O NÃO DOS AFRICANOS LIVRES (SÃO PAULO, SÉCULO XIX) 367
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA
62 AESP, CO 1230, Ofício de José Joaquim de Lacerda, Administrador dos Africanos Livres, ao
Presidente Josino do Nascimento Silva, 11/04/1853.
63 AESP, CO 1230.
64 Carlos Daniel Rath nasceu na Alemanha, em 1801. Formado engenharia, chegou ao Brasil
em 1830 contratado pela Inspetoria de Obras Públicas, órgão do governo provincial de São
Paulo. Silvia C. Siriani, Uma São Paulo alemã: vida quotidiana dos imigrantes germânicos
na região da Capital (1827-1889), São Paulo: Imprensa Oficial, 2003, pp. 133-135.
REIVINDICAÇÕES E RESISTÊNCIA: O NÃO DOS AFRICANOS LIVRES (SÃO PAULO, SÉCULO XIX) 369
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA
68 Difícil não estabelecer paralelo entre as reivindicações dos africanos livres e aquelas
apresentadas pelos escravos fugidos do engenho Santana, em Ilhéus, no ano de 1789.
Depois de fugirem, eles redigiram um tratado de paz, submetido ao proprietário do en-
genho, estabelecendo as condições para o retorno ao trabalho. Entre as condições míni-
mas ali definidas estavam a redução das tarefas, o fornecimento de roupas e a conces-
são de dias livres para o trabalho em roça própria. Além disso, exigiam a mudança dos
feitores: “Os atuais feitores não os queremos, faça eleição de outros com a nossa apro-
vação”. Sobre esse engenho e a reprodução do documento, ver Stuart Schwartz, “Resis-
tance and Accommodation in Eighteenth-Century Brazil: the Slaves’ View of ”, The His-
panic American Historical Review, vol. 57, no. 1 (1977), pp. 69-79. Ou ainda, Reis e Silva,
Negociação e conflito, apêndice 1.
69 AESP, CO 1236, Diário da Administração. Além dos africanos livres e escravos, trabalha-
vam nas obras da estrada portugueses e alemães.
70 AESP, CO 1236, Diário da Administração da Estrada do Cubatão.
71 AESP, CO 5152, 1856; CO 5153, p. 1 docs. 53-5, 61-3, 1858; CO 5154, p. 1 docs. 14, 17, 20,
28-33, 1859; CO 5154, p. 2, docs. 4-7, 1860.
72 Maria A. Silva, “Itapura: estabelecimento naval e colônia militar (1858-1870)”, (Tese de
Doutorado, Universidade de São Paulo, 1972), p. 103.
REIVINDICAÇÕES E RESISTÊNCIA: O NÃO DOS AFRICANOS LIVRES (SÃO PAULO, SÉCULO XIX) 371
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA
REIVINDICAÇÕES E RESISTÊNCIA: O NÃO DOS AFRICANOS LIVRES (SÃO PAULO, SÉCULO XIX) 373
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA
80 Beatriz G. Mamigonian, “Do que o ‘preto mina’ é capaz: etnia e resistência entre os africa-
nos livres”, Afro-Ásia, no. 24 (2000), pp.71-95.
81 Por exemplo, AESP, CO 1231, Ofício do Administrador Lacerda ao Presidente Joaquim
Otávio Nébias, 29/11/1852.
sAMpAUleiros trAfiCAntes:
CoMérCio de esCrAvos do Alto sertão dA bAhiA
pArA o oeste CAfeeiro pAUlistA
Erivaldo Fagundes Neves1
375
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA
continuação 3
memórias históricas e romances, entre os quais um que aborda o intenso fenômeno socio-
lógico regional do fluxo e refluxo dessa migração. Ver João [Antônio dos Santos] Gumes, O
sampauleiro: romance de costumes sertanejos, Caetité: Typ. d’A Penna, 1927, 2v.
4 Por exemplo, Maria de Fátima Novais Pires, Fios da vida: tráfico interprovincial e alfor-
rias nos Seretoins de Sima - BA (1880-1920), São Paulo: Annablume, 2009.
5 Cunha Bessa fazia constar nas escrituras o seu título e cargo de "cavaleiro da antigamente
nobre Ordem da Torre, Espada de Valor, Lealdade e Mérito, e vice-cônsul da nação da na-
ção portuguesa.
6 Os livros de 1880 a 1888 registram apenas 46 procurações para comercializar escra-
vos, e escrituras de compra e venda, que indicam a quase convicção social da exaustão
do trabalho escravo. Não foi consultado o livro nº 31, com 292 folhas, do escrivão Ma-
riano Severino César, período 1877-1891, em restauração na época da pesquisa. Ao se
considerar a abrangência de 14 anos, que extrapola os limites da escravidão e, mais
ainda, o auge do tráfico regional para o Oeste Cafeeiro Paulista, seus eventuais dados
não modificariam estes resultados. Entre as escrituras foram excluídas as de doação,
permuta ou venda de apenas parte do escravo por um herdeiro.
Mata mineira, constatou que, nessa época, na maioria dos negócios haveria
a figura do intermediário – pessoa física ou jurídica – que representaria
legalmente o proprietário, como seu procurador, do mesmo que ocorrera
com outro estudo sobre o Vale do Paraíba, no Rio de Janeiro.9
Este subterfúgio, generalizado em todo o Império pelos comercian-
tes interprovinciais, foi também usado nas transações intrarregionais
de pessoas escravizadas. Entre 1874 e 1884, intercambiaram-se com
procurações 346 escravos, dos quais 37,4% em 1875 e 29,1% em 1876.
Contudo, esse montante não corresponde à quantidade de escravos
traficados nesse período, que foi muito superior. Paralelamente, muitos
compradores, talvez por exigência dos vendedores, emitiam escrituras de
compra e venda dos escravos que adquiriam. E como antes, nesses casos,
raramente deixavam indícios dessa emigração involuntária. Nesse lapso
de 11 anos comercializaram-se em Caetité 499 escravos, dos quais 30,1%
em 1875 e 26,9% em 1876, 66,9% deles situados na faixa etária de 11 a
30 anos, com maior concentração entre 21 e 30 anos de idade.10
sem o cônjuge, por 800 mil-réis, para João de Almeida Queirós, residente
na província do Paraná.11 Havia ainda intercâmbio de cativos com Goiás
e Minas Gerais, constatado nas indicações de escravos comercializados
em Caetité. A Tabela III indica intenso comércio de escravos entre 1874
e 1877, período que mais se traficou, como se vê na Tabela II.
Os municípios mineiros de Juiz de Fora e Muriaé, importadores
de escravos, tinham como maiores fornecedores a província do Rio de
Janeiro, seguida pela da Bahia. 12 A proximidade geográfica sugere que
os procedentes da Bahia chegassem ao sul de Minas pelo porto do Rio de
Janeiro. Um estudo dos negócios da escravidão na Província do Rio de
Janeiro descreve uma sublevação numa casa de comissões em 1872, onde
escravos aguardavam, sob tensão, o momento de serem revendidos para
o Vale do Paraíba ou interior de Minas Gerais. Um total de 24 escravos
prestaram depoimento no subsequente inquérito policial. Destes, 21
originavam-se de províncias do Norte, inclusive das que constituíram
depois o Nordeste, dos quais 14 eram baianos e os demais do Maranhão,
Ceará e Piauí. Apenas dois eram naturais do Rio de Janeiro e um de
Minas Gerais. 13
IDADE TOTAL 1874 1875 1876 1877 1878 1879 1880 1881 1882 1883 1884
Menos
de 1
ano
01 – 02 1
03 – 05 15 7 3 2 3
06 – 10 75 7 26 21 9 8 2 2
11 – 15 113 10 36 28 23 8 4 4
16 – 20 92 12 24 28 3 6 8 9 1 1
21 – 30 129 14 45 36 14 8 8 2 2
31 – 40 52 12 12 12 5 6 1 1 3
41 – 50 18 3 3 4 3 2 1 1 1
51 – 60 5 1 1 3
61 – 70
TOTAL 499 66 150 134 61 38 24 18 3 1 3 1
11 APEB, Seção Judiciário, Livros de Notas de Caetité, SRJ/25/23, f. 169, Escritura de compra
e venda, 28 nov., 1869.
12 Andrade, “Havia um mercado”, p. 95.
13 Chalhoub, Visões da liberdade, p. 43.
O tráfico
Com o fim do tráfico atlântico de africanos em 1850, desenvolveu-
se no Brasil o comércio interprovincial de escravos, que os transferia de
áreas com economias débeis ou decadentes para as mais promissoras e
resolvia a carência de mão-de-obra do Sudeste cafeeiro, com o seu agrava-
mento no Nordeste açucareiro, principalmente nos sertões. Nessa região
a escravidão, submetida às especificidades da pecuária e da policultura
agrícola, era menos expressiva devido também ao amplo emprego da
meação e do trabalho familiar autônomo (campesinato), que coexistia
com o trabalho assalariado diarista.
O comércio inter-regional de cativos não se constituiu uma exclusividade
da escravidão brasileira. Entre 1830 e 1850, em circunstâncias semelhantes,
14 Roberto Borges Martins,“Minas Gerais no século XIX: tráfico e apego à escravidão numa
economia não-exportadora”, Estudos Econômicos, nº 13 (1), jan./abr. (1983), pp. 181-209.
15 Evaldo Cabral de Mello, O Norte agrário e o Império:1871-1889, Rio de Janeiro: Nova
Fronteira; Brasília: INL, 1984, p. 39.
16 Robert E. Conrad, Os últimos anos da escravatura no Brasil: 1850-1888, Rio de Janeiro: Ci-
vilização Brasileira, 1978, p. 63.
17 Robert E. Conrad, Tumbeiros: o tráfico de escravos para o Brasil, São Paulo: Brasi-
liense, 1985, p. 205.
18 APEB, Seção Judiciário, Livros de Notas de Caetité, SRJ/25.11, f. 35, Registro, 6 nov., 1845,
do primeiro traslado da Carta de Liberdade, 24 jul.,1835, do Livro 3º de Notas, fls. 96v. a
97, da Vila Franca do Imperador, 3ª Comarca da Província de São Paulo.
Tabela IV: Escravos comercializados por anos e faixas etárias – Caetité, 1874-1884
População
Freguesias e distritos
Total Livre Escrava
Caetité 17.836 16.778 1.058
Bom Jesus dos Meiras 9.080 7.935 1.145
Rosário do Gentio 7.722 6.633 1.089
Boa Viagem e Almas 19.984 18.870 1.114
TOTAL 54.622 50.2 16 4.406
Fonte: Manoel Jesuíno Ferreira, A Província da Bahia: apontamentos, Rio de Janeiro: Typ.
Nacional, 1875, p.36.
19 Nessa época o termo de Caetité compunha-se de três freguesias: Santa Anna de Caeti-
té, Nossa Senhora do Rosário do Gentio (Ceraíma, distrito de Guanambi) e Santíssimo Sa-
cramento de Santo Antônio da Barra (Condeúba). Esta última emancipou-se em 1860. A
freguesia de Santa Anna subdividia-se em três distritos de paz: Vila de Caetité (distri-
to-sede), Canabrava e Bonito (Caldeiras e lgaporã) e Bom Jesus (Brumado),cf. Erivaldo Fa-
gundes Neves, Uma comunidade sertaneja: da sesmaria ao minifúndio (um estudo de his-
tória regional e local), Salvador: EDUFBA; Feira de Santana: UEFS, 1998, p. 35. Sobre os
dados populacionais: APEB, Seção Colonial e Provincial. Presidência da Província, Maço
5.219, Correspondência do Vigário Polycarpo de Brito Gondim e do Subdelegado e Juiz de
Paz Cândido Pereira Guedes ao Presidente da Província, 31 dez., 1862, que apresentava o
“Censo do 1º Distrito desta Vila”.
20 Censo Demográfico de 1872 in: Manoel Jesuíno Ferreira, A Província da Bahia: apon-
tamentos. Rio de Janeiro: Typ. Nacional, 1875, p. 36.
21 “Herança Cabocla I”. Diário da Bahia. Salvador, 5 mar., 1874. Seção Correspondência, f. 1.
Por ser uma informação de período muito próximo do fato noticiado, talvez o jornal tenha
computado somente os escravos exportados pelo porto de Salvador, e omitido os trafica-
dos pelos caminhos do sertão.
de outras províncias, dessa vez para dois contos de réis.22 Nove anos depois,
a Assembleia Legislativa Provincial de Minas Gerais também aprovou uma
lei – de nº 2.716 – restritiva das importações de cativos, que determinava
a cobrança de uma taxa de dois contos de réis – valor muito superior ao
de um jovem, sadio e forte – sobre cada escravo masculino traficado de
outra província.23 Finalmente, em 1885, a Lei SaraivaCotegipe, conhecida
também como Lei dos Sexagenários, definiu o domicílio do escravo como
intransferível para província diversa da que fosse matriculado, com exceção
dos casos em que cativos acompanhassem os seus senhores.24
Fontes: APEB, Judiciária, Livros de Notas de Caetité; e Warren Dean, Rio Claro, um sistema
brasileiro de grande lavoura, 1820-1920, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 66.
27 Stanley Julian Stein, Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900, trad. Vera
Bloch Wrobel, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p. 95.
28 Stein, Vassouras,p. 270.
29 Conrad, Os últimos anos, p. 356.
entre 1823 e 1882, enquanto em São Paulo expandira 464,5%. Nas quatro
províncias cafeeiras – Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e Espírito
Santo – a população escravizada crescera 49,3% e, inversamente, nas seis
açucareiras –Bahia, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Paraíba e Rio Grande
do Norte – reduzira 44,2%.
Fontes: F. J. Oliveira Vianna, "Resumo histórico dos inquéritos censitários realizados no Brasil";
e Ciro T. de Pádua,"Um capítulo da história econômica do Brasil", citados em Stanley Stein,
Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900, trad. Vera Bloch Wrobel, Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1990, p. 341.
Os Traficados
A amostra de 287 escravos apresenta apenas dois identificados como
africanos: Pedro, de 43 e Benedito, de 50 anos de idade, ambos solteiros
e sem informações sobre suas etnias; dos brasileiros declarados, apenas
139 – 48,4% do total – trazem referências raciais, dos quais, 16,7% crioulos
e 31,7% mestiços (25 cabras, dois mulatos e 64 pardos, designações indi-
cativas apenas de gradação da pigmentação da pele). Encontram-se ainda
127 escravos simplesmente identificados como pretos, presumivelmente
brasileiros, porque assim o Censo Demográfico de 1872 denominou os
negros nascidos no Brasil, antes identificados como crioulos.
Apenas nove escravos aparecem na condição de casados e um
viúvo. Os traficantes internos mantiveram a integridade de algumas
famílias no ato da compra, embora não se saiba como se comportaram
na consumação do negócio no destino final. Em 1875 a senhora Joana
Tereza de Jesus constituiu, no arraial de Bonito -(Igaporã), ainda inte-
grante do distrito de Canabrava e Bonito, em Caetité - os procuradores
Clemente de Quadros Bittencourt, José Ferreira de Figueiredo, Leolino
Xavier Cotrim, Leolino Rodrigues de Figueiredo, Dr. João José de Faria
e Joaquim Manoel de Brito Gondim para venderem, onde e a quem lhes
conviessem, os escravos Bruno e Rita, pretos, casados, de idades de
30 e 29 anos respectivamente, com um ingênuo masculino ainda por
batizar. 30 Os ingênuos, filhos de escrava nascidos sob a vigência da Lei
Imperial nº 2.040, de 28 de setembro de 1871 – Lei Rio Branco ou Lei
do Ventre Livre – ficariam em poderes e sob as autoridades dos senho-
res de suas mães. No caso de alienação da mulher escrava, seus filhos
livres, menores de 12 anos lhe acompanhariam e ficaria o novo senhor
sub-rogado nos direitos e obrigações do antecessor. 31 A lei omitiu a
condição de menores escravos, elevado número na amostra estudada
(Tabela VI), mas, por analogia, deveriam manter-se na companhia ma-
terna. Domingos Gonçalves Fraga, de família com tradição no comércio
regional de escravos, concedeu todos os seus poderes ao Dr. João José de
Faria, Joaquim José de Faria, Lauro Gonçalves Fraga, Joaquim Manoel de
Brito Gondim e Filipe Garcia Leal, ou aos por eles substabelecidos, para
venderem onde e a quem lhes conviesse, 14 pretos, mulatos e cabras,
entre os quais o casal Manoel, de 48 anos e Florinda, de 40, sem filhos
declarados e a solteira Antônia, 45 anos, com as filhas Clara e Rita, de
10 e 15 anos. Quanto às filhas de Antônia, prováveis companheiras de
infortúnio na longa marcha por Minas Gerais até São Paulo, talvez não
tenham permanecido unidas depois da migração compulsória. 32
Antônio Francisco de Brito, da fazenda Umbaúba, distrito de São
Sebastião (Ibiassucê) designou, em 1876, José Ferreira de Figueiredo,
Clemente Quadros Bittencourt, Leolino Rodrigues de Figueiredo, coro-
nel José Justino Gomes de Azevedo, João Manoel Joaquim Guimarães
Louzada, procuradores para venderem o casal João, preto e Escolástica,
parda, ambos de 33 anos, com o filho Josafá, de sete anos. 33 Também
José Antônio Rodrigues constituiu, em 1877, na cidade de Caetité, o
alferes Manoel Rodrigues Ladeia Lobo, Pedro Teixeira de Lacerda e
o tenente-coronel João Antero Ladeia Lima como seus procuradores
para venderem, em qualquer lugar da Província ou de outra, a família
composta por Antônio e Isabel, pardos e os filhos Pedro, de 14 e Maria,
de 13 anos. Dificilmente esses jovens e crianças permaneceriam unidos
aos pais. Os cafeicultores procuravam trabalhadores fortes e sadios para
trabalharem, não famílias e casais unidos pelo casamento. 34 Também no
sertão encontram-se indícios dessa conduta: o senhor Bento Marques
das Neves nomeou, no distrito de Canabrava (Caldeiras), em Caetité,
seu procurador, o Dr. João José de Faria, para vender ao alferes Joaquim
José de Faria, irmão do mediador e seu sócio no tráfico de escravos,
talvez já residente em São Paulo, Umbelina, preta, 25 anos, casada. 35
A procuração nada informa sobre o cônjuge nem há nos livros de notas
qualquer escritura de escravo que indique alguém nessa condição. Por-
tanto, comercializaram Umbelina sem o marido. Seria ele livre? Nessa
hipótese, acompanhara a esposa? O casal tinha filhos? Se os tinha,
ficaram com o pai ou integraram outra caravana de acorrentados para
o Sudeste cafeeiro? Pode-se ainda supor que o traficante procurador
não a traficara para os cafezais paulistas. Comprara-a para trabalhar em
fazenda que talvez ainda possuísse em Caetité e, nessas circunstâncias,
seu destino seria menos cruel, por permanecer no convívio familiar,
embora no cativeiro. O único viúvo da amostra, Simão, preto, 45 anos,
do distrito de Canabrava, foi objeto de procuração, em 1877, do senhor
Ambrósio Batista de Souza para Licínio Turus Magalhães, Francisco
Antônio da Silva, Francisco de Paula Batista e Augusto Joaquim de Ma-
galhães, para venda em qualquer parte do Império. Nada mais acrescenta
a procuração sobre ele nem eventuais filhos.
TOTAL GÊNERO
IDADE
Nº % M % F %
03 - 07 7 2,4 3 1,1 4 1,3
08 - 12 57 19,9 35 12,2 22 7,7
13 - 17 60 20,9 33 11,5 27 9,4
18 - 22 46 16,0 25 8,7 21 7,3
23 - 27 39 13,6 15 5,2 24 8,4
28 - 32 24 8,4 11 3,9 13 4,5
33 - 37 15 5,2 8 2,8 7 2,4
38 - 42 4 1,4 3 1,1 1 0,3
43 - 47 3 1,0 2 0,7 1 0,3
48 - 50 4 1,4 3 1,1 1 0,3
SEM INF. 28 9,8 16 5,6 12 4,2
TOTAL 287 100,0 154 53,9 133 46,1
Os Traficantes
Os traficantes internos se revelaram astuciosos na burla das leis,
particularmente do fisco. Negociavam menores de 12 anos sem a compa-
nhia materna, como determinava a Lei do Ventre Livre, de 1871. Alega-
vam orfandade ou filiação desconhecida; informavam preços inferiores,
sob o argumento dos escravos serem doentes; comercializavam cativos
matriculados em outras províncias após a Lei dos Sexagenários, com a
justificativa de adquiri-los para venda antes desse dispositivo legal. 37 Os
negociantes de escravos de Caetité para outra província, quase sempre
naturais do próprio município, pertenciam à mesma rede familiar, por
consanguinidade ou casamentos. Aparecem relacionados nas procura-
ções, individualmente ou em grupos de até nove procuradores, entre os
quais algumas empresas: Alexandre Alves Bello & Cia.; Antônio Gomes
dos Santos & Cia.; Brandão & Irmãos (de Salvador); e Campos & Castro
(de Minas Gerais).
Não se pode identificar todos os 94 procuradores constituídos nos
229 documentos selecionados em Caetité para negociarem escravos fora
da província da Bahia. 38 Alguns dos seus sobrenomes são de famílias do
município ou nele residentes na segunda metade do século XIX: Costa
Negrais, Oliveira Guimarães, Teixeira Lacerda, Vasconcelos Bittencourt. 39
36 Warren Dean, Rio Claro, um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-1920, trad. Waldí-
via Portinho, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 69.
37 Andrade, “Havia um mercado”, p. 95
38 Ver lista de nomes anexa.
39 Ver listagem de inventários de Caetité no Arquivo Púbico do Estado da Bahia.
40 APEB, Seção Judiciário, Autos de Inventário, Maço 02/589/1041/14; Neves, Uma comuni-
dade. p. l90
41 APEB, Seção Judiciário, Livros de Notas de Caetité, SRJ/25/23, f. 138, Escritura públicade-
24dejulho de 1869.
42 APEB, Seção Judiciário, Autos de Inventário, Maço. 02/865/1334/05.
43 Idem, ibidem.
Considerações últimas
A falta de estudos da emigração compulsória da Bahia ou qualquer de
suas regiões nesse período não permite estimativas seguras do comércio
inter-provincial de escravos. Contudo, pode-se afirmar que, relativamente
à população regional, foi grande o fluxo de mão-de-obra escravizada do
sertão baiano para São Paulo. Somente do município de Caetité saíram
algumas centenas, que causaram impacto socioeconômico. Considerada
regionalmente essa proporção multiplica-se, especialmente se levar-se
em conta os efeitos da seca de 1857-1862, que despovoou o Alto Sertão
da Bahia, com milhares de mortes por inanição e de fuga coletivas da
população.59 Ao senhoriato, sem condições de plantar roças ou desenvolver
qualquer outra atividade econômica, vender parte de seus escravos foi a
alternativa mais conveniente para se desonerar da manutenção de cativos
ociosos ou pouco produtivos.
O fato de cada procuração delegar poderes para vender escravos fora
da Bahia, onde e a quem conviesse a vários procuradores e, principalmente,
a faculdade de substabelecerem os seus mandatos, suscita a hipótese de
rede de interesses comerciais com ramificações ao longo do trajeto dos
60 David Eltis, Stephen Behrendt, David Richardson e Manolo Florentino, Voyages: The
Transatlantic Slave Trade Database. Disponível em: < http://www.slavevoyages.org/
assessment/estimates>.
61 Citado por Chalhoub, Visões da liberdade, p. 43; Katia M. De Queirós Mattoso, Ser escravo
no Brasil, São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 63.
62 Neves, Uma comunidade, p. 286.
Anexo
Francisco Teixeira 5
Francisco Xavier de Almeida 1
Gorgônio Ferreira de Souza Barros 2
Hilário Gonçalves Pinheiro 2
Inácio Antônio da Silva 1
Januário Lamay 1
Jerônimo Pereira da Costa Neto 10
João Antero Ladeia Lima 27
João Francisco de Morais Otávio 3
João Manoel 24
Joaquim Alves de Almeida Sales Júnior 12
Joaquim Guimarães Louzada 25
Joaquim José de Faria 115
Joaquim José Machado 3
Joaquim Manoel de Azevedo Antunes 7
Joaquim Manoel de Brito Gondim 71
Joaquim Pereira Coutinho 12
José Antônio Ladeia Lima 1
José Antônio Rodrigues Lima 8
José Campos Negrais 2
José de Vasconcelos Bittencourt Júnior 9
José Ferreira de Figueiredo 129
José Joaquim da Silva 1
José Justino Gomes de Azevedo (SP) 60
José Pires de Carvalho Albuquerque 5
José Rodrigues Ladeia 4
Justino Gomes de Azevedo 25
Lauro Gonçalves Fraga 47
Leolino Rodrigues de Figueiredo 42
Leolino Xavier Cotrim 66
Licínio Tums Magalhães 1
Luís Diogo Leite 2
Manoel Alves de Carvalho 5
Manoel Cândido de Oliveira Guimarães 68
Manoel José da Costa Negrais 6
Manoel José de Faria 11
Manoel Rodrigues Ladeia Lobo 15
Martiniano de Santana 1
Martiniano Saturnino Meira 1
Miguel Francisco de Souza 1
Olímpio Barros Silva 6
Otaviano Xavier Cotrim 1
Pedro de Andrada e Silva 8
Pedro José Ribeiro 1
introdUção
A historiografia e a antropologia da Costa da Guiné, também conhe-
cido como ‘Os Rios da Guiné de Cabo Verde’ ou Upper Guinea Coast (Costa
da Alta Guiné), conheceu desde os anos setenta do século passado um
notável crescimento, afirmando-se como um “nicho” de especialização
na área geográfica da África Ocidental. Guiando-se por uma análise das
relações entre africanos e europeus no quadro geopolítico da região,
pesquisadores africanos, europeus e americanos (no sentido amplo do
termo) contribuíram para este efeito com o estudo de redes comerciais
e de parentesco num contexto mais alargado do espaço atlântico. Regra
geral, com algumas exceções, os estudos sobre a região atribuíram pouca
relevância à questão de gênero, apesar da região, inserido na África Oci-
dental, se caracterizar pelo papel notável das mulheres nas comunidades,
tanto nas zonas rurais como urbanas. O tema da influência delas na
sociedade em geral, e particularmente no que diz respeito ao comércio,
já foi largamente difundido, merecendo uma atenção crescente desde a
década de 1970. Em termos geográficos, o golfo e a costa da Guiné cons-
tituem as áreas mais destacadas na historiografia da África subsaariana
quanto ao estudo dos entrepostos comerciais costeiros e a sua posição de
intermediário nas rotas entre o interior e o mar. Dado que as mudanças
de paradigma nas ciências sociais enfatizam cada vez mais a importância
das conexões interculturais numa óptica transdisciplinar, as relações de
1 Esta é uma versão consideravelmente revista e atualizada, pelo autor, daquela publicada
na revista Afro-Ásia e traduzida por Valdemir Zamparoni. O texto final foi também revi-
sado pelos organizadores desta coletânea.
2 Philip J. Havik, Female Entrepreneurship in West Africa: Trends and Trajectories”, Early
Modern Women: an Interdisciplinary Journal, vol. 10, no. 1 (2015), pp. 164-177.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA
3 Ayesha Imam, “The Presentation of African Women in Historical Writing,” in S. Jay Klein-
berg (org.), Retrieving Women’s History (Oxford: Berg Publishers, 1988), pp. 30–40; Hen-
rietta Moore, Feminism and Anthropology, Londres: Polity Press, 1988.
4 Sobre o conceito de agency e estruturas sociais, ver Pierre Bourdieu, Outline of a Theory
of Practice, Cambridge e Nova York: Cambridge University Press, 1977, e também Sherry
B. Ortner, Anthropology and Social Theory: Culture, Power, and the Acting Subject, Dur-
ham: Duke University Press, 2006.
5 Sobre o conceito de cultural brokerage, ver Eric Wolf, “Aspects of Group Relations in a
Complex Society: Mexico”, American Anthropologist, 5no. 8 (1956), pp. 1065-1678; e Clif-
ford Geertz, “The Javanese Kijaji: The Changing Role of a Cultural Broker”, Comparative
Studies in Societies and History, vol. 2, no. 2 (1960), pp. 228-249. Sobre a mediação cultur-
al no contexto afro-atlântico, ver Philip J. Havik e Toby Green, “Brokerage and the Role
of Western Africa in the Atlantic World”, in Toby Green (org.) Brokers of Change: Atlantic
Commerce and Cultures in Pre-Colonial Western Africa (Londres/Oxford: British Acad-
emy/Oxford University Press, 2012), pp. 1-26; e Philip J. Havik, “The Colonial Encounter
Revisited: Anthropological and Historical Perspectives on Brokerage”, in Maria Cardeira
da Silva (org.), The Jill Dias Lessons (Lisboa: CRIA, 2013), pp. 97-111.
6 Sobre este conceito, ver Mary Louise Pratt, Imperial Eyes: Travel Writing and Transcul-
turation (Londres: Routledge, 1992), pp. 6-7.
7 Jane F. Collier e Sylvia J. Yanaganisako, “Toward a unified analysis of gender and kinship”,
in Collier e Yanaganisako (orgs), Gender and Kinship: Essays toward a Unified Analysis
(Stanford: Stanford University Press, 1987), pp. 14-50.
disso, uma vez confrontado com uma realidade muitas vezes contrária aos
princípios evocados, optou-se geralmente por camuflar ou omitir aspec-
tos menos congruentes e sublinhar outros mais vantajosos. As “zonas de
contato”23 que constituem o foco deste capítulo, revelam um dualismo no
que diz respeito às representações acerca das comunidades afro-atlân-
ticas e alguns dos seus protagonistas em épocas distintas, tendo como
pano de fundo a expansão política e econômica europeia, de um lado, e
processos de imersão social e cultural, do outro. Mas no caso da área em
estudo, a “Costa da Alta Guiné”, que se estendia do Senegal ao rio Sherbro
(atualmente em Serra Leoa), se incluía também as ilhas de Cabo Verde. A
circunstância de ao longo dos séculos ter ocorrido um intenso processo
de crioulização nestas ilhas, fez com que os atores estrangeiros que se
dirigiram a Costa, tanto comerciantes como funcionários, muitas vezes
não fossem Europeus. Além disso, houve um processo de entrelaçamento
entre pessoas livres e escravisadas vindas de diferentes grupos étnicos
nos entrepostos costeiros e fluviais, um intercâmbio que o presente en-
saio pretende resgatar. Numerosos exemplos de parcerias entre mulheres
“locais” e homens “atlânticos” citados na literatura ilustram a necessida-
de de se olhar de forma crítica para a dualidade implícita das zonas de
contacto como palcos de interação ‘afro-europeus’. No caso da região da
Guiné-Bissau (vide mapa)24, muitos dos empreendedores locais tinham
antepassados guineenses e cabo-verdianos, mas foram todos agrupados
como “portugueses”, “moradores” ou “cristãos”. Estabelecidos em entrepostos
comerciais, mas demonstrando uma notável mobilidade espacial e social
num ambiente extremamente competitivo, as competências e eficácia de
mulheres comerciantes nos portos costeiros impressionaram fortemente
visitantes europeus e anfitriões africanos. Os estudos de caso apresentados
a seguir, que examinam algumas das parcerias entre mulheres e homens,
ilustram a osmose entre contexto e representação e a continuidade do es-
pectro do intercâmbio transcultural no contexto afro-atlântico. O primeiro
exemplo é do século XVII, quando um grupo de poderosos comerciantes
locais desafiou, com sucesso, a política da Coroa portuguesa numa área
em que o tráfico de escravos constituía uma importante fonte de renda.
O segundo situa-se no século XIX, quando o tráfico de escravos foi dando
lugar às exportações de produtos agrícolas, levando clãs mercantis locais
a transformar o usufruto da terra em agriculturas comerciais. Em ambos
os casos, os dois parceiros masculinos são africanos. Os referidos períodos
têm sido objeto de vários estudos de historiadores desde os anos setenta
25 Walter Rodney, A History of the Upper Guinea Coast, 1545 to 1800, Oxford: The Claren-
don Press, 1970; Avelino Teixeira da Mota, “Contactos culturais luso-africanos na Guiné
do Cabo Verde”, Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, no. 11-12 (1951), pp. 5-13;
Mamadou Mané, “Contribution à l’histoire du Kaabu, des origines au XIXe siècle”, Bulle-
tin de l’Institut Fondamentale de l’Afrique Noire (BIFAN), vol. 40, B, no. 1 (1978), pp. 87–
159; António Carreira, Os portugueses nos rios de Guiné (1500-1900), Lisboa: ed. do au-
tor, 1984; Djibril Tamsir Niané, Histoire des Mandingues de l’Ouest, Paris: Karthala/AR-
SAN, 1989; Jean Boulègue, Les Luso-Africains de Sénégambie, XVIe XIXe siècles, Lisboa:
Instituto de Investigação Científica Tropical, 1989; George E. Brooks, Landlords and
Strangers: Ecology, Society, and Trade in Western Africa, Athens: Ohio University Press,
1993; e do mesmo autor Eurafricans in Western Africa: Commerce, Social Status, Gen-
der, and Religious Observance from the Sixteenth to the Eighteenth Century, Athens:
Ohio University Press, 2003; e também Western Africa and Cabo Verde, 1790s-1830s:
Symbiosis of Slave and Legitimate Trades, Bloomington: Author House 2010; Boubacar
Barry, Senegambia and the Atlantic Slave Trade, Cambridge: Cambridge University
Press, 1998; Carlos Lopes, Kaabunké: espaço, território e poder na Guiné-Bissau, Gâm-
bia e Casamance pré-coloniais, Lisboa: CNCDP, 1999; Peter Mark, “The Evolution of
'Portuguese' Identity: Luso-Africans on the Upper Guinea Coast from the Sixteenth to
the Early Nineteenth Century”, Journal of African History, vol. 40, no. 2 (1999), pp. 173-
191; José da Silva Horta, “Evidence for a Luso-African identity in ‘Portuguese’ Accounts
on ‘Guinea of Cape Verde’ (Sixteenth to Seventeenth Centuries)”, History in Africa, no.
27 (2000), pp. 99-130; Filipa Ribeiro da Silva, Dutch and Portuguese in Western Africa:
Empires, Merchants and the Atlantic System, 1580-1674, Leiden/Boston: Brill, 2011;
Toby Green, The Rise of the Trans-Atlantic Slave Trade in Western Africa, 1300-1589,
Cambridge: Cambridge University Press, 2011.
26 Este autor discutiu estas e outras parcerias em várias publicações, por exemplo: Philip J.
Havik, “Comerciantes e concubinas: sócios estratégicos no comércio Atlântico na Costa da
Guiné”, in Fernando Albuquerque Mourão (org.) A dimensão atlântica de África (Actas da
II Reunião Internacional de História de África, São Paulo, CEA-USP/ SDG-Marinha/CAPES,
1997), pp. 161-179; “Matronas e mandonas: parentesco e poder no feminino nos Rios de Gui-
né (século XVII)”, in Selma Pantoja (org.), Entre Áfricas e Brasis (Brasília: Paralelo 15, 2001),
pp. 13-34; e também Silences and Soundbites: the Gendered Dynamics of Trade and Broke-
rage in the Guinea Bissau Region, Muenster/New Brunswick: LIT, 2004; “From Pariahs to
Patriots: Women Slavers in Nineteenth Century ‘Portuguese’ Guinea”, in Gwyn Campbell,
Susan Myers e Joseph C. Miller (orgs.), Women and Slavery. Vol. I: Africa, the Indian Ocean
World and the Medieval North Atlantic (Athens: Ohio University Press, 2007), pp. 309-334.
29 Havik, Silences and Soundbites, pp. 135-136. Nos documentos do século XVI a XIX, os
kriston foram também chamados grumetes.
30 Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Conselho Ultramarino, Guiné, Cx. 2, 26-9-1670. O
termo “vizinhos”, mais do que simplesmente designar aqueles que vivem próximos uns
dos outros, traz o significado de fogos ou unidades familiares. Nos estudos demográficos
estes dados geralmente têm sido multiplicados por quatro, quando se trata de Portugal;
tomando em conta padrões africanos, isto podia resultar numa população entre 2000 e
3000 habitantes.
31 AHU, Conselho Ultramarino, Guiné, Cx. 2, 30-6-1671; 24-4-1673; 18-6-1674.
32 AHU, Conselho Ultramarino, Guiné, Cx. 5, 10-6-1728.
33 AHU, Conselho Ultramarino, Guiné, Cx. 5, 10-5-1727.
34 Estas questões, geralmente ainda pouco referidas na correspondência oficial no século
XVII, começaram a ser abordadas de forma mais consistente nos fins do século XVIII e
início XIX, com os avanços da medicina; ver Curtin The Image of Africa, pp. 58-87. Sobre a
questão da prática médica no Atlântico, ver Maria Cristina C. Wissenbach, “Ares e azares
da aventura ultramarina: matéria médica, saberes endógenos e transmissão nos circui-
tos luso-afro-brasileiros”, in Leila M. Algranti e Ana Paula Torres Megiani (orgs.), O Impé-
rio por escrito. Formas de transmissão da cultura letrada no mundo ibérico (séculos XVI
-XVIII) (São Paulo: Editora Alameda, 2009), vol. 1, pp. 389-406. Sobre as práticas médicas
na Costa da Guiné, ver Philip J. Havik, “Hybridising Medicine: Illness, Healing and the Dy-
namics of Reciprocal Exchange on the Upper Guinea Coast (West Africa)”, Medical Histo-
ry (no prelo).
39 Idem.
40 AHU, Conselho Ultramarino, Guiné, Cx. 1, Doc. 71, 19-5-1655. Por falta de capital, a Com-
panhia de Cacheu foi absorvida pela Companhia Geral do Comércio do Brasil em 1680;
Brooks, Eurafricans, p. 147.
41 Pereira, “A fundação da Companhia de Cacheu”, p. 246.
42 Veja Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Lisboa, processo contra
Crispina Peres, de Cacheu, no. 2079 (1668). O pai de Ambrozio pode ter sido Manuel Go-
mes da Costa, natural de Lisboa, que tinha 36 anos em 1622, e comerciava escravos nas
Ilhas Bijagó, enquanto “Teodosia Gomes que nunca casou, hé mãe do capitão Ambrozio Go-
mes [...] e hé negra Bujagó, bautizada e moradora na povoação de Cacheu.”
43 Nize Isabel de Moraes, “La Campagne de Sto. António das Almas (1670)”, Bulletin de L’Ins-
titut Fondamentale de l’Afrique Noire, vol. 40, no. 4 (1978), pp. 708-717.
44 Veja, por exemplo, a menção a Francisco Vaz, um alfaiate, que tinha um escravo chamado
Gaspar Vaz no porto de Cassão (Kassan) no rio Gambia, em André Donelha, Descrição da
Serra Leoa e dos Rios de Guiné do Cabo Verde (1625), (coord. de A. Teixeira da Mota e P. E.
continuação 44
H. Hair), Lisboa: Junta de Investigações Científicas de Ultramar, 1977, p. 148. Veja ainda
AHU, Conselho Ultramarino, Guiné, Cx. 1, Doc. 52, Carta de Gonçalo Gamboa de Ayala ao
Rei, Cacheu, 25 de fevereiro de 1647. Mas existem referências anteriores em documen-
tos da Inquisição de Lisboa, o primeiro sendo a Balthasar Vaz, em 1548. ver Havik, Silen-
ces and Soundbites, p. 162.
45 Veja ANTT, Inquisição de Lisboa, Processo contra Crispina Peres de Cacheu, no. 2079
(1668). O réu se refere a “Ambrózio Gomes, capitão da terra cazada com Bibiana Vaz.” Ver
sobre este processo, Philip J. Havik, “Walking the Tightrope: Female Agency, Religious Prac-
tice and the Portuguese Inquisition on the Upper Guinea Coast”, in Caroline Williams (org.),
Bridging the Early Modern Atlantic World: People, Products and Practices on the Move, Lon-
dres: Ashgate 2009, pp. 173-202.
46 AHU, Conselho Ultramarino , Guiné, Cx. 3, Doc. 53, 20-3-1684. Sobre a revolta de Bibiana,
ver também Brooks, Eurafricans, p. 148-50.
48 Ver, por exemplo, a petição dos moradores de Cacheu à Coroa, Cacheu, 9-12-1641; a pe-
tição do capitaõ-mor Fernão Lopes de Mesquita, Cacheu, 27-9-1644, e também o Alvará
Real que concede o direito dos moradores na Costa de negociar diretamente com o Brasil,
Lisboa, 22-11-1644; AHU, Conselho Ultramarino, Guiné, Cx. 1.
51 AHU, Conselho Ultramarino, Cabo Verde, Cx. 7-A, Doc. 133, 18-8-1791.
52 AHU, Conselho Ultramarino , Cabo Verde, Cx. 7A, Doc. 85, 17-6-1687.
53 Idem.
54 Idem.
55 AHU, Conselho Ultramarino, Cabo Verde, Cx. 7-A, Doc. 75, 12-6-1687.
meio tempo, ela obteve o apoio dos mais ricos e influentes comerciantes
cabo-verdianos, que garantiram sua segurança e sustento enquanto es-
teve no arquipélago. Isto demonstra a dimensão atlântica de seu status
africano no contexto regional, sua influência e autoridade. Quando a Ña
Bibiana foi, finalmente, concedido o perdão real, após ter pagado uma
soma simbólica como indenização pelas perdas sofridas pela Coroa, ela
retornou à Guiné e moveu uma vigorosa campanha para libertar seu
irmão que, afinal de contas, fora o seu principal parceiro nos eventos.
No final, tanto seu irmão quanto seu primo foram perdoados. A lógica
por trás desta mudança de procedimento é significativa. Nem o fato de o
pagamento de indenização por parte do primo ter se mostrado impossível
de ser efetuado, nem o perdão ao primo e irmão, por cuja soltura ela tinha
insistentemente lutado, aconselhavam as autoridades portuguesas a
cometer imprudências: “se quizer apertar e constranger a Bibiana Vaz e
aos mais outros maiores subsidios, creio que tudo se perderá.”56
O mesmo sindicante admitiu que “todo aquelle povo está reduzido a
excessiva pobreza, assim por occazião do comércio com os extrangeiros,
que lhe esgotarão o mais preciozo, como pela esterilidade do negócio com
os Portuguezes, e remeças destas Ilhas [de Cabo Verde].” 57 Esta sua crítica
estava claramente dirigida aos comerciantes portugueses em geral, às
autoridades em Cabo Verde e, sobretudo, ao governador que, obsessiva-
mente, tinha perseguido Ña Bibiana.58 A fim de resolver este impasse sem
perder completamente a influência na região, os sindicantes decidiram
obter uma declaração escrita, uma “promessa e obrigação”, mas que não
foi assinada diretamente por ela, já que se declarara “analfabeta”.59 Este
documento formalizou o acordo entre a coroa portuguesa e Ña Bibiana,
que prometeu construir uma fortaleza de pedra em Bolor, defronte a
Cacheu, na barra do mesmo rio, numa posição estratégica que controlava
o acesso ao rio. Mas ela somente o faria em troca da soltura e do perdão
a seu irmão e primo. Entretanto, afirmou, com certa ironia, habilmente
jogando a cartada do “sexo frágil”, que, por ser mulher, não poderia levar
a cabo a construção do forte. Além disto, na região não havia pedra con-
siderada boa para construção, a qual teria de ser trazida de Cabo Verde.
Todavia, ela se declarou pronta para, “voluntária e livremente”, pagar
pela construção. Levando-se em conta a perda de bens sofrida durante e
devido à sua ausência – ela disse que tinha sido deixada somente com a
posse de alguns escravos –, e como seu primo estivesse na posse de todos
56 AHU, Conselho Ultramarino, Cabo Verde, Cx. 7-A, Doc. 133, 18-8-1691.
57 Idem.
58 “Como pelo falecimento do governador Diogo Ramires Esquivel se dilatava o ajuste com
Bebianna Vaz.” Idem.
59 Idem, 20-4-1691.
60 Idem.
61 AHU, Conselho Ultramarino, Guiné, Cx. 3, Doc. 22-6-1694.
62 AHU, Conselho Ultramarino , Guiné, Cx. 3, Doc. 97, 30-10-1694.
66 AHU, Conselho Ultramarino, Guiné, Cx. 22, Doc. 55, ant. a 31-10-1823.
67 José Conrad Carlos de Chelmicki e Francisco Adolfo de Varnhagen, Corografia cabo ver-
diana ou descripção geographica histórica da provincia das Ilhas de Cabo e Verde e Gui-
né, Lisboa: Typografia de L.C. da Cunha, 1841, vol I, p. 184, pp. 175-196.
68 José Joaquim Lopes de Lima, Ensaios sobre a Estatística das Ilhas de Cabo Verde no
Mar Atlântico e suas dependências na Guiné Portuguesa, Lisboa: Imprensa Nacional,
1844, p. 95.
72 Idem, p.107
73 Jaime Walter, Honório Pereira Barreto, Bissau: Centro de Estudos da Guiné Portuguesa,
1947, p. 12.
74 Cristiano José de Senna Barcellos, Subsídios para a história de Cabo Verde e Guiné, 5 vols.,
Lisboa: Typ. da Academia Real das Sciencias, 1899-1913, II, Parte 3, p. 159.
81 É relevante referir, nesse contexto, que o mesmo governador Marinho teve uma postura
muito dura acerca do casamento misto e da miscigenação entre “pretos e mulatos”, subli-
nhando a necessidade de “branquear” a população de Cabo Verde a fim de evitar que “as fa-
mílias desta Província retrogradem para a raça Africana”. AHU, CV, Pasta 3, 11-12-1838.
82 Januário Correia de Almeida, Um Mez na Guiné, Lisboa: Typ. Universal, 1859, p. 23
83 As suas críticas faziam eco àquelas feitas pelo então deputado Alexandre Herculano nas
Cortes poucos anos antes; vide Luciano Cordeiro, “A questão da Guiné num discurso de
Alexandre Herculano”, in Obras de Luciano Cordeiro (Coimbra: Imprensa da Universida-
de, 1934), vol. I, pp. 633-662.
84 AHU, Secretária da Marinha e Ultramar, Cabo Verde, Pasta 3, 5-4-1837.
85 Barreto, Memória, p. 9
86 A despeito de sua origem, ele sempre aconselhou Lisboa a nunca indicar um residente lo-
cal, pois isto poderia facilitar abusos: “todos, sem excepcçao, são negociantes; e de tal lu-
gar só servirá para o exercerem em seu proveito”. Idem, pp. 47-48.
87 Idem, pp. 37-38 e 41-42.
88 AHU, Secretária da Marinha e Ultramar, Cabo Verde, Pasta 3, 11-3-1838.
89 AHU, Secretária da Marinha e Ultramar, Cabo Verde, Pasta 21, 11-5-1856.
90 Almeida, Um mez na Guiné, p. 24.
o comandante do navio sobre o que fazer com sua carga. Uma vez que
os escravos foram embarcados na calada da noite, e consignados a um
traficante norte-americano operando na costa, a tentativa de enganar os
oficiais britânicos tornou-se clara. Por isso, a correspondência britânica
sobre o assunto afirma que a sede da empresa comercial da família em
Cacheu “tem sido frequentemente indicada [...] como um bem notório
mercado de escravos.” 98
A despeito do declínio de Cacheu como entreposto do tráfico durante
a primeira metade do século XIX, a casa comercial Alvarenga-Barreto era,
de longe, a maior proprietária de escravos da área na década de 1850. Na
ocasião do primeiro censo de escravos, realizado em 1857, a casa comercial
possuía 147, sendo 77 mulheres e 70 homens. O clã Alvarenga tinha 290
escravos em Cacheu e Ziguinchor, o que representava mais de um quarto
de todos os registrados (1.085) nestas localidades. 99 Honório Pereira
Barreto possuía 61 escravos (47 mulheres e 14 homens), enquanto seus
parentes pela linha paterna (os Barreto) tinham 19. Assim, juntos, eles
detinham 14% da população cativa. Os dois clãs controlavam mais de um
terço de todos os escravos de Ziguinchor e Cacheu. 100 Enquanto isso, a
criação de um conselho municipal em Cacheu. em 1850, tinha finalmente
implementado um decreto real de 1605 que lhe conferia os direitos de
“cidade” e, portanto, uma aura de “respeitabilidade” após ter servido por
mais de três séculos como porto negreiro.
Em contraste com sua mãe, não há evidências de que Honório
Pereira Barreto tivesse se casado, 101 uma circunstância interessante,
convenientemente ignorada por seus biógrafos, que se abstêm de qual-
quer referência à sua vida privada. 102 Uma fonte chega a admitir que “ele
98 Idem.
99 AHU, Fundo do Governo da Guiné, Livro 35.
100 Os Alvarengas estabelecidos na ilha de Santiago, em Cabo Verde, também possuíam escra-
vos, embora em número muito menor; ver os dados do censo de escravos de 1856 em An-
tónio Carreira, Cabo Verde; formação e extinção de uma sociedade escravocrata (1460-
1878), Bissau: Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, 1972, pp. 512-520. Honório Perei-
ra Barreto também possuía dois escravos na ilha de Santiago (Carreira, Cabo Verde, p. 519)
e parentes dos dois clãs possuíam cerca de trinta escravos. Na época, o maior proprietá-
rio de escravos do arquipélago tinha pouco mais de 50, enquanto os ricos comerciantes da
Guiné podiam possuir centenas. O número total de escravos registrados no arquipélago
era de 5.182, três quartos dos quais em Santiago e Fogo.
101 Sobre a origem dos clãs guineenses, veja George E. Brooks, “Notas genealógicas de proemi-
nentes famílias luso-africanas no século XIX na Guiné”, Soronda, no. 9 (1990), pp. 53-71.
102 Só os filhos de sua irmã, Maria Pereira Barreto, casada com o funcionário e comercian-
te guineense Cleto José da Costa, foram considerados seus únicos sucessores legais; AHN,
Praia, Secretaria Geral do Governo, A6/9, Guiné: 21-8-1878. Honório Pereira Barreto dei-
xou 17 filhos, herdeiros órfãos, de quatro mulheres; vide Inventário Orfanológico por óbi-
to de Honório Pereira Barreto, Cacheu, 26 de Abril 1860, maço 2, doc. No. 6, Arquivo da Co-
marca da Guiné, Bissau. Agradecemos ao Pe. Henrique Pinto Rema e George E. Brooks a
disponibilização de uma cópia do documento original.
Considerações finais
Uma das mais complexas tarefas com que se defronta o pesquisador
que tenta reconstruir o papel de mulheres africanas nas povoações e
portos costeiros, e nas redes comerciais afro-atlânticas, é precisamente
a desconstrução de discursos e categorias. Apesar de serem de autoria
quase exclusivamente masculina e europeia, premiando a hierarquização
de categorias como gênero, parentesco, classe e cor, fica patente que as
fontes escritas, tanto arquivísticas como as publicadas, permitem fazê-lo.
Além disso, estas mesmas fontes demonstram claramente as mudanças
marcantes de perspectiva das representações ao longo dos três séculos
do contato afro-atlântico aqui focado. Se bem que a interpretação das
categorias socioculturais mudasse em função de alterações políticas e
103 Barreto, História da Guiné, p. 241. Seus descendentes diretos, embora “ilegítimos” (todos
homens), foram Rufino António Barreto, Pedro Pereira Barreto, Ludgero Pereira Barreto,
Ernesto Pereira Barreto e Heitor Pereira Barreto; eram caixeiros e “nenhum deles possuía
qualquer meio de riqueza.” AHU, Secretaria da Marinha e Ultramar, Cabo Verde, pasta 51,
30-9-1871.
104 Marcelino Marques de Barros, “Honório Barreto: traços da sua phisionomia phisica e mo-
ral”, in As Colónias Portuguezas, no. 13-14 (1887) , pp. 78-79.
105 Senna Barcellos, Subsídios para a história, vol. II, 3ª parte, p. 159.
106 Inventário Orfanológico por óbito de Honório Pereira Barreto, op. cit., Cacheu, 26-4-1860.
107 Inventário Orfanológico por óbito de Honório Pereira Barreto, op. cit. Cacheu, 18-3-1861.
108 Philip J. Havik, “Misogyny Revisited: Gendering the Afro-Atlantic Connection”, in Philip
J. Havik e Malyn Newitt (orgs.), Creole Societies in the Portuguese Colonial Empire (New-
castle upon Tyne: Cambridge Scholars Publishing, 2015), pp. 30-48.
109 Aliás, é relevante notar aqui que o termo tangoma ou tungumá, associado a tangomão, se
perpetuou no crioulo da Guiné, exclusivamente no género feminino, para designar mu-
lheres livres pertencentes ao estrato kriston ou grumete; ver Marcelino Marques de Bar-
ros, “O guineense: vocabulário português-guineense”, in Revista Lusitana, no. 7 (1902), p.
278. Contudo, outras interpretações, dando um significado nitidamente patriarcal, man-
tinham que se tratava da “mulher nativa que vivia em mancebia com o branco transgres-
sor ou aquela que se dispunha a acompanhar livremente os negociantes e viajantes, ou a
servi-los nos trabalho domésticos.” Carreira, Cabo Verde, p. 61.
110 Peter Mark, “Constructing Identity: Sixteenth and Seventeenth Century Architecture in
the Gambia-Geba Region and the Articulation of Luso-African identity”, History in Africa,
no. 22 (1995), pp. 307-327; e do mesmo autor, “The Evolution of Portuguese Identity”.
111 José da Silva Horta, “Evidence for a Luso-African Identity”, p. 673; e Green, The Rise of the
Trans-Atlantic Slave Trade, p. 283.
112 Carlos Alberto Zerón, “Pombeiros e tangomãos: intermediários de escravos na África”, in
Rui Manuel Loureiro e Serge Gruzinski (orgs.), Passar as fronteiras (Lagos: Centro de Es-
tudo Gil Eanes, 1999), pp. 15-38.
113 Ver Boulègue, Les luso-africains de Sénégambie, pp. 61-70; e Brooks, Eurafricans, pp.
68-101.
114 Brooks, Eurafricans, p. 125.
115 Mark, “The evolution of ‘Portuguese’ cultural identity”, p. 191.
são também resgatados por alguns autores nos anos 50 do Novecentos para
destacar sua proeza a serviço de interesses portugueses no continente
africano. A ideia de estas figuras pertencerem a “uma pequena comunidade
que não quer abandonar as suas raízes luso-tropicais”, fez com que fossem
identificados como defensores da “lusitanidade” em terras africanas.116
Nessas diferentes abordagens e representações em mudança é
importante acentuar o papel das mulheres nas comunidades africanas
nas quais emergiam e em cujo tchon (chão, território) coabitavam com
aqueles homens. O fato de serem estes comerciantes, e não agricultores,
é fundamental. Tal como qualquer outro comerciante local, eles tinham
de pagar um tributo, ou daxa, aos seus anfitriões e parentes por cada
transação e travessia em território indígena. Eram obrigados a receber
e a servir aos seus anfitriões e parentela, caso os primeiros assim o
quisessem. Embora se beneficiassem da proteção (também ao nível
espiritual) fornecida pelas linhagens dirigentes, estavam sujeitos às
mesmas leis aplicadas a outros hóspedes e camadas profissionais. Laços
entre eles e seus vizinhos e clientes eram reforçados pela kriason, ou
seja, a adoção temporária para criar e educar filhos alheios, e a kuña-
dundadi, ou relações entre parentes colaterais. Menos do que integrar
uma categoria “luso-africana” abstrata, eles pertenciam às comunidades
kriston, que constituíam o verdadeiro núcleo dos estabelecimentos
afro-atlânticos 117 . Diferentemente do principal escol dos gan, que
falava crioulo cabo-verdiano, a sua língua nativa era o kriol, ou crioulo
guineense. Era usada como a língua franca das transações comerciais,
tal como o mandé, embora eles também falassem línguas “étnicas”; sendo
poliglotas, tinham raízes sociais e culturais profundamente ligadas
aos povoados comerciais e às sociedades africanas ao seu redor. Um
membro da comunidade kriston de Cacheu podia ter ancestrais papeis,
e um seu equivalente de Ziguinchor podia, invariavelmente, reclamar
seu parentesco com os bañuns ou felupes (djolas). Dependendo das rela-
ções com as linhagens que detinham direitos ancestrais sobre a área do
assentamento, eles podiam reivindicar privilégios e posições, consoante
a sua pertença a uma linhagem fundadora e/ou governante. O fato de
serem predominantemente matrilineares os padrões de descendência
nas comunidades africanas com as quais estavam relacionados, e de que
eles próprios aderiram a práticas linhageiras bilaterais, implicou em
contradições com as tradições patrilineares comuns no Atlântico Norte.
Um dos principais obstáculos à interação afro-atlântica foi, precisamente,
116 Avelino Teixeira da Mota, Um Luso-Africano: Honório Pereira Barreto, separata do Bole-
tim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 1959, p. 415.
117 Sobre os kriston, ver Philip J. Havik, “Traders, Planters and Go-betweens: The Kriston in
Portuguese Guinea”, Portuguese Studies Review, vol. 19, no. 1-2 (2011), pp. 197-226.
118 Um autor situa esta mudança nos anos sessenta do século XIX; vide Wilson Trajano Filho,
“Polymorphic Creoledom: the Creole Society of Guinea Bissau” (Tese de Doutorado, Uni-
versity of Pennsylvania, 1998).
119 As subscrições para o auxílio aos habitantes de Cabo Verde, em que Trajano Filho se apoia
como indicadores para o crescente entrelaçamento e homogeneidade dos gan, ilustram
claramente esta kambansa (kriol: viragem) e reorientação para o exterior. Só um século
mais tarde, os gan se viram obrigados a reatar os laços com as sociedades guineenses no
litoral, durante a campanha de mobilização e a luta pela libertação liderada pelo PAIGC
(Partido para a Independência da Guiné e Cabo Verde).
120 Sobre a crise e seu impacto no comércio da região, vide Joye Bowman, Ominous Transition:
Commerce and Colonial Expansion in the Senegambia and Guinea, 1857-1919, Alderhsot:
Avebury, 1997, pp. 102-40; e Havik, Silences and Soundbites, pp. 311-344.
121 No caso dos fulas, eram os fula-djiábes, cativos originários dos soninkés e biafadas, que,
progressivamente islamizados pelos futa-fulas ou fula-ribes, vindos de Futa Djallon, ado-
taram tradições partilineares; ver Bowman, Ominous Transition.
122 Para uma análise destas mudanças, vide Philip J. Havik, “Dinâmicas e assimetrias afro
-atlânticas: a agência feminina e representações em mudança na Guiné (séculos XIX e
XX)”, in Selma Pantoja (org.) Identidades, memórias e histórias em terras africanas (Bra-
sília/Luanda: LGE/Nzila, 2006, pp. 59-78; e também do mesmo autor, “Gender, Land and
Trade: Women’s Agency and Colonial Change in Portuguese Guinea (West Africa)”, African
Economic History, no. 43 (no prelo).
123 Sobre a viuvez na África sub-Saaraiana, ver Betty Potash (org.) Widows in African Socie-
ties: Choices and Constraints, Stanford: Stanford University Press, 1986; sobre o papel
das viúvas nos entrepostos comerciais na Costa da Guiné, ver Havik, Silences and Sound-
bites, 230-237.
124 Fausto Duarte, “Os caboverdianos na colonização da Guiné”, Boletim Geral das Colônias,
no. 295 (1950), pp. 209-211; ver também António Carreira, “A Guiné e as Ilhas de Cabo Ver-
de: a sua unidade histórica e populacional”, Ultramar, vol. XIII, no. 4 (1968), pp. 70-98.
125 Mota, Um Luso-africano, p. 394.
126 Ver Selma Pantoja, “O Atlântico no feminino”, in Cléria Botêlho da Costa (org.), Um passeio
com Clio (Brasília: Paralelo 15, 2002), pp. 163-176.
127 Sobre o tema personhood e gênero, ver Signe Howell e Marit Melhuus, “The Study of Kin-
ship; the Study of Person; a Study of Gender?”, in Teresa del Valle (org.) Gendered Anthro-
pology (Londres: Routledge, 1993), pp. 38-53.
1 A pesquisa para esse artigo foi financiada pelo Research Grant University Committee e o
Program of Latin American Studies da Universidade de Princeton, e por bolsas de pesqui-
sa da Fundação Luso-Americana e da John Carter Brown Library. Agradeço a Mariza de
Carvalho Soares, Carlos da Silva Jr, Vanessa de Oliveira, Nielson Bezerra e aos dois pare-
ceristas anônimos da Afro-Ásia pela leitura e sugestões. Esta é uma versão revista e atua-
lizada do artigo originalmente publicado nessa revista.
2 A base de dados está disponível no site http://www.slavevoyages.org/tast/database/
search.faces; e David Eltis e David Richardson, Atlas of the Transatlantic Slave Trade,
New Haven: Yale University Press, 2010.
3 Para autores que privilegiam o papel das guerras nos processos de escravização, ver
Jean Bazin, “War and Servitude in Segou”, Economy and Society, no. 3 (1974), pp. 107-
144; Philip Curtin, Economic Change in Precolonial Africa: Senegambia in the Era of
the Slave Trade, Madison: University of Wisconsin Press, 1975; Joseph Miller, “The Par-
adoxes of Impoverishment in the Atlantic Zone”, in David Birmingham e Phyllis Martin
(orgs.), History of Central Africa (Londres: Longman, 1983), pp. 118-159; John Thorn-
ton, Warfare in Atlantic Africa, 1500-1800, Londres: UCL Press, 1999; Robin Law,
“Slave-raiders and Middlemen, Monopolist and Free Traders: The Supply of Slaves for
the Atlantic Trade in Dahomey, c.1715-1850”, Journal of African History, no. 30 (1989),
pp. 45-68; e Boubacar Barry, Senegambia and the Atlantic Slave Trade, Cambridge:
Cambridge University Press, 1998.
445
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA
4 O uso do termo colônia não é gratuito. Ver Mariana Candido, An African Slaving Port
on the Atlantic World: Benguela and its Hinterland, Nova York: Cambridge Universi-
ty Press, 2013, pp. 30-87; John Comaroff, “Images of Empire, Contests of Conscience:
Models of Colonial Domination in South Africa”, in Frederick Cooper e Ann Laura Stol-
er (orgs.), Tensions of Empire: Colonial Cultures in a Bourgeois World (Berkeley: Uni-
versity of California Press, 1997), pp. 1-56; Frederick Cooper, Colonialism in Question:
Theory, Knowledge, History, Berkeley: University of California Press, 2005; e Immanu-
el Wallerstein, World-Systems Analysis: An Introduction, Durham, NC: Duke University
Press, 2004. Para outras colônias portuguesas ver Eugénia Rodrigues, “Cipaios da Índia
ou soldados da terra? Dilemas da naturalização do exército português em Moçambique
no século XVIII”, História: Questões & Debates, no. 45 (2006), pp. 57-95.
5 Para a importância de estudos biográficos de africanos escravizados ver Paul Lovejoy,
“Identifying Enslaved Africans in the African Diaspora”, in Paul E. Lovejoy (org.), Identity
in the Shadow of Slavery, Londres: Cassell Academic, 2000), pp. 3-5; Luiz Mott, Rosa egip-
cíaca, uma santa africana no Brasil, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993; Randy Sparks,
The Two Princes of Calabar: An Eighteenth-Century Atlantic Odyssey, Cambridge: Har-
vard University Press, 2004; Flávio dos Santos Gomes, Marcus Joaquim de Carvalho e João
José Reis, O Alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico Negro (c. 1822- c.
1853), São Paulo: Companhia das Letras, 2010; Karen Racine e Beatriz G. Mamigonian
(orgs.), The Human Tradition in the Atlantic World, 1500-1850, Lanham: Rowman & Lit-
tlefield, 2010; James Sweet, Domingos Álvares, African Healing, and the Intellectual His-
tory of the Atlantic World, Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2011; Roqui-
naldo Ferreira, Cross-Cultural Exchange in the Atlantic World: Angola and Brazil during
the Era of the Slave Trade, Nova York: Cambridge University Press, 2012. Estudos sobre
a vida de europeus na África são muitos. Ver, por exemplo, Maria Emília Madeira Santos
(org.), Viagens e apontamentos de um portuense em África. O Diário de Silva Porto, Coim-
bra: Biblioteca Geral, 1986; Zsófia Vajkai Gulyas, “Um húngaro em Angola: viagens de La-
dislau Magyar: 1818-1864: através do AHU”, in Actas do Seminário: Encontro de Povos e
Culturas em Angola, Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimen-
tos Portugueses, 1997, 361–374; Ilídio do Amaral, O consulado de Paulo Dias de Novais:
Angola no último quartel do século XVI e primeiro do século XVII, Lisboa: Ministério da
Ciências e da Tecnologia, Instituto de Investigação Científica Tropical, 2000; Éve Sebest-
yeìn, Magyar László, Budapeste: Balassi Kiadoì, 2008; e Andrew C. Ross, David Livingsto-
ne: Mission and Empire, Londres: Continuum, 2006. Para biografias de africanos livres
ver, entre outros, Carlos Pacheco, Arsénio Pompílio Pompeu de Carpo: uma vida de luta
contra as prepotências do poder colonial em Angola, Lisboa : Instituto de Investigação
Científica Tropical, 1992; John K. Thornton, The Kongolese Saint Anthony: Dona Beatriz
Kimpa Vita and the Antonian Movement, 1684-1706, Cambridge: Cambridge University
continuação 5
Press, 1998; Carlos Alberto Lopes Cardoso, “Ana Joaquina dos Santos Silva, industrial
angolana da segunda metade do século XIX”, Boletim Cultural da Câmara Municipal de
Luanda, no. 3 (1972), pp. 5-14; Douglas Wheeler, “Angolan Woman of Means: D. Ana Joa-
quina dos Santos e Silva, Mid-Nineteenth-Century Luso-African Merchant-Capitalist of
Luanda”, Santa Barbara Portuguese Studies Review, no. 3 (1996), pp. 284–297.
6 Ver Joseph C. Miller, Way of Death: Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade,
1730–1830, Madison: University of Wisconsin Press, 1988, pp. 140–169; David Birming-
ham, Trade and Conflict in Angola: The Mbundu and Their Neighbours under the Influence
of the Portuguese, 1483–1790, Oxford: Clarendon Press, 1966; Dennis Cordell, “The Myth of
Inevitability and Invincibility: Resistance to Slavery and the Slave Trade in Central Africa,
1850–1910”, in Sylviane A. Diouf (org.), Fighting the Slave Trade: West African Strategies
(Athens: Ohio University Press, 2003), pp. 31–34; Paul Lovejoy e David Richardson, “‘Pawns
Will Live When Slaves Is Apt to Dye’: Credit, Slaving and Pawnship at Old Calabar in the Era
of the Slave Trade”, Working Papers in Economic History, vol. 38 (1997), pp. 1–34; e Jan Van-
sina, Kingdoms of the Savanna, Madison: University of Wisconsin Press, 1966. Para uma ex-
tensa crítica ao modelo organizado e progressivo do movimento da fronteira da escraviza-
ção, ver Mariana P. Candido, Fronteras de esclavización. Esclavitud, comercio e identidad
em Benguela, 1780-1850, México, DF: El Colegio de México, 2011.
7 Para maior discussão sobre como teoricamente a vassalagem deveria proteger os súditos
da Coroa portuguesa, ver Ferreira, Cross-Cultural Exchanges in the Atlantic World, pp.
52-87; José C. Curto, “The Story of Nbena, 1817-1820: Unlawful Enslavement and the Con-
cept of ‘Original Freedom’ in Angola”, in Paul E. Lovejoy e David V. Trotman (orgs.), Trans
-Atlantic Dimensions of Ethnicity in the African Diaspora (Londres: Continuum, 2003),
pp. 44–64; Candido, Fronteras de Esclavización, pp. 155-190. Para os direitos dos vassalos,
ver Beatriz Heintze, “Luso-African Feudalism in Angola? The Vassal Treaties of the 16th
to the 18th Century”, Revista Portuguesa de História, no. 18 (1980), pp. 111–131; e Ana
Paula Tavares e Catarina Madeira Santos, “Uma leitura africana das estratégias políticas
e jurídicas. Textos dos e para os Dembos”, in Africae Monumenta. A apropriação da escrita
pelos africanos, Lisboa: IICT, 2002.
8 Para uma posição contrária, ver Stephanie E. Smallwood, Saltwater Slavery: A Middle
Passage from Africa to American Diaspora, Cambridge: Harvard University Press, 2007.
9 Para estudos que minimizam os efeitos do tráfico transatlântico na África Centro-Oci-
dental, ver John Thornton, “The Slave Trade in Eighteenth Century Angola: Effects on
Demographic Structure”, Canadian Journal of African Studies, vol. 14, no. 3 (1980), pp.
417–427; e Joseph C. Miller, “The Significance of Drought, Disease and Famine in the
Agriculturally Marginal Zones of West-Central Africa”, Journal of African History, vol.
23, no. 1 (1982), pp. 17–61.
10 Somente os portos de Luanda e Uidá viram um número maior de pessoas serem vendi-
das e embarcadas como escravos. Ver Eltis e Richardson, Atlas of the Transatlantic Slave
Trade; e Paul E. Lovejoy, Transformations in Slavery, 3a ed, Nova York: Cambridge Univer-
sity Press, 2012, p. 19.
11 Adriano Parreira, “A primeira ‘conquista’ de Benguela (Século XVII)”, História, no. 28
(1990), p. 67. Para maiores detalhes sobre a autonomia de Benguela, ver Candido, Fronte-
ras de esclavización, pp. 44-57.
16 Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Conde de Linhares, mç. 42, doc. 2, 3 de feve-
reiro de 1775. Ver também Ralph Delgado, Reino de Benguela. Do descobrimento à cria-
ção do governo subalterno, Lisboa: Imprensa Beleza, 1945, p. 383; e Miller, Way of Death,
pp. 264-268.
17 A área da Quissama era uma região de constantes conflitos entre tropas portugueses e
autoridades africanas. Ver Beatrix Heintze, “Historical Notes on the Kisama of Angola”,
Journal of African History, vol. 13, no. 3 (1972), pp. 407-418.
18 Roquinaldo Ferreira, “‘Ilhas Crioulas’: o significado plural da mestiçagem cultural na Áfri-
ca Atlântica”, História, vol. 155, no. 2 (2006), pp. 17-41; Mariana P. Candido, “Benguela et
l’espace atlantique sud au XVIIIe siècle”, Cahiers des Anneux de la Mémoire, no. 14 (2011),
pp. 223-243; José Curto, “‘As If From a Free Womb’: Baptismal Manumissions in the Con-
ceição Parish, Luanda, 1778-1807", Portuguese Studies Review, vol.10, no. 1 (2002), pp.
26-57; e Selma Pantoja, “Inquisição, degredo e mestiçagem em Angola no século XVII”, Re-
vista Lusófona de Ciência das Religiões, vol. 3, no. 5/6 (2004), pp. 117-136.
23 José C. Curto, “The Legal Portuguese Slave Trade from Benguela, Angola, 1730-1828: A
Quantative Re-appraisal”, África, vol. 17, no. 1 (1993/1994), pp. 101-116; Joseph C. Mil-
ler, “Some Aspects of the Commercial Organization of Slaving at Luanda, Angola – 1760-
1830”, in Henry Gemery e Jan Hogendorn (orgs.), The Uncommon Market: Essays in the
Economic History of the Atlantic Slave Trade (Nova York: Academic Press, 1979), pp. 77-
106; Roquinaldo Ferreira, “Dinâmica do comércio intra-colonial: geribitas, panos asiáti-
cos e guerra no tráfico angolano de escravos (século XVIII)” in João Fragoso, Maria de Fáti-
ma Silva Gouvêa e Maria Fernanda Baptista Bicalho (orgs.), O antigo regime nos trópicos:
a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII) (Rio de Janeiro: Civilização Brasilei-
ra, 2001), pp. 339-378; e Daniel B. Domingues da Silva, “The Supply of Slaves from Luanda,
1768-1806: Records of Anselmo da Fonseca Coutinho”, African Economic History, no. 38
(2010), pp. 53-76.
24 Robin Law e Paul E. Lovejoy (orgs.), The Biography of Mahommah Gardo Baquaqua: His
Passage from Slavery to Freedom in Africa and America (Princeton: Markus Wiener Pub-
lishers, 2001), pp. 136-138; Olaudah Equiano, The Interesting Narrative of the Life of
Olaudah Equiano or Gustavus Vassa, the African, Londres: Edição do autor, 1794; e Quob-
na Ottobah Cugoano, Thoughts and Sentiments on the Evil of Slavery, Nova York: Pen-
guin, 1999. Sobre o debate a respeito do uso do nome Olaudah Equiano ou Gustavus Vassa,
como o próprio autor preferia, ver Vincent Carretta, Equiano, the African: Biography of
a Self-Made Man, Athens: University of Georgia Press, 2005; e Paul E. Lovejoy, “Issues of
Motivation—Vassa/Equiano and Carretta’s Critique of the Evidence”, Slavery & Abolition,
vol. 28, no. 1 (2007), pp. 121-125.
não são a única forma de analisar como as pessoas foram escravizadas. Randy
Sparks recriou a saga de Little Ephraim Robin John e Ancona Robin Robin
John, ambos parte da elite comercial e política de Velho Calabar que foram
ilegalmente transportados para a ilha de Dominica, no Caribe, e vendidos
como escravos depois de empenhados a comerciantes atlânticos como fiança
para o pagamento de créditos. Recentemente, usando fontes inquisitoriais e
registros policiais, James Sweet publicou a biografia de Domingos Álvares,
um escravo africano capturado no Daomé e vendido em Jakin a comerciantes
negreiros que cruzaram o Atlântico passando por Pernambuco, Rio de Janeiro,
Lisboa e por fim Castro Marim, no Algarve.25 Ou ainda, João José Reis e a
saga de outro Domingos, este Sodré, de Onim, um reino de língua iorubá, que
atuava como adivinho na Bahia no século XIX.26 Mariza de Carvalho Soares
investiga a importância do passado africano do casal Victória Coura e Ignácio
Mina na organização de irmandades católicas no Rio de Janeiro durante o
século XVIII, cujas fontes não permitem reconstituir processos de captura
no continente africano.27
As poucas autobiografias existentes – a maior parte disponível somente
em inglês – tem representado o relato modelo dos processos de captura.
Em sua totalidade se referem a indivíduos oriundos da região entre o rio
Senegal e a baía de Biafra, conhecida como a África Ocidental, e não da região
centro-ocidental de onde veio a maioria dos escravizados desembarcados
nas Américas, oriundos em especial do antigo reino do Congo e das colônias
portuguesas de Angola e Benguela. Apesar de a historiografia não mostrar
ainda nenhuma documentação que forneça autobiografias de escravos cen-
tro-africanos, alguns estudos começam a ser publicados, explorando esse
segmento dos mais de cinco milhões de africanos capturados e deportados
dessa região.28
Este capítulo dialoga com os estudos disponíveis, buscando encon-
trar padrões de violência e analisar como, quando e onde pessoas livres
tiveram sua liberdade usurpada e se, na sequência, foram escravizadas.
25 James H. Sweet, Domingos Álvares, African Healing, and the Intellectual History of the
Atlantic World, Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2011.
26 João José Reis, Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candom-
blé na Bahia do século XIX, São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
27 Mariza de Carvalho Soares, “Can Women Guide and Govern Men? Gendering Politcs
among African Catholics in Colonial Brazil”, in Gwyn Campbell, Suzanne Miers, e Joseph
Miller (orgs.), Women and Slavery, The Modern Atlantic (Athens: Ohio University Press,
2008), pp. 79-99; e idem, “Africain, esclave et roi: Ignacio Monte et sa cour à Rio de Janeiro
au XVIIIe siècle”, Brésil(s:) Sciences Humaines et Sociales, no. 1 (2012), pp. 13-32.
28 Curto, “The Story of Nbena”; Candido, Fronteras de esclavización, pp. 155-203; Ferreira,
“Slaving and Resistance to Slaving”; e Mariana Candido, “The Transatlantic Slave Trade
and the Vulnerability of Free Blacks in Benguela, Angola, 1780-1830,” in Jeffrey A. For-
tin e Mark Meuwese (orgs.), Atlantic Biographies: Individuals and Peoples in the Atlantic
World (Leiden: Brill, 2014), pp. 193- 209.
29 Para um estudo clássico que defende a escravidão africana como distinta e mais cordial
que em outros lugares, ver Suzanne Miers e Igor Kopytoff, “African ‘Slavery’ as an Institu-
tion of Marginality”, in Miers e Kopytoff (orgs), Slavery in Africa: Historical and Anthro-
pological Perspectives (Madison: University of Wisconsin Press, 1975), pp. 3-81.
30 Para mais detalhes, ver Candido, Fronteras de esclavización, pp. 161-162.
31 Os pombeiros eram agentes comerciais que atuavam no interior como comerciantes vo-
lantes. Geralmente escravos, alguns eram livres. Ver Willy Bal, “Portugais Pombeiro:
‘Commerçant Ambulant du ‘Sertão”, Annali: Istituto Universitario Orientale, vol. 7, no. 2
(1965), pp. 123-161; Isabel Castro Henriques, Percursos da modernidade em Angola. Di-
nâmicas comercias e transformações sociais no século XIX, Lisboa: Instituto de Investi-
gação Científica Tropical, 1997, p. 765; e Mariana Candido, “Merchants and the Business
of the Slave Trade at Benguela, 1750-1850”, African Economic History, no. 35 (2007), pp.
1-30 , pp. 3-4.
A legalidade da escravidão
A legitimidade de submeter povos considerados gentios à escravidão
ganhou destaque com a expansão portuguesa. Estimulada pela expulsão
dos muçulmanos e judeus, e autorizada pela aprovação do resgate, ou
sequestro, dos povos da Guiné, a Coroa portuguesa estava comprometida
com a captura e escravização dos povos não cristãos, justificando assim
a expansão portuguesa, com o apoio da Igreja católica. Influenciada pela
tradição das cruzadas dos séculos anteriores, a bula papal Dum Diversas
de 1452, por exemplo, autorizava o rei de Portugal a atacar, conquistar
e submeter povos pagãos, sarracenos e supostos inimigos de Cristo.33 A
disposição papal também reconhecia o direito da Coroa portuguesa de
apreender bens materiais e ocupar territórios habitados por esses povos e
escravizá-los permanentemente. Assim, a expansão portuguesa pela costa
da África deve ser entendida no contexto do conflito religioso na Penín-
sula Ibérica e no Mediterrâneo, principalmente quando os portugueses
encontraram muçulmanos na costa da Senegâmbia e utilizaram a lógica
dos conflitos entre cristãos e muçulmanos para legitimar a sua captura e
escravização.34
Com o estabelecimento da feitoria de Arguim na costa da Mauritânia
em meados do século XV, as razias e conflitos bélicos deram lugar ao
comércio, o que exigia uma nova bula papal determinando como as trocas
comerciais entre povos africanos gentios e portugueses católicos deveriam
ser justificadas nessa lógica de expansão comercial e religiosa. Aliada ao
plano de conversão das populações locais, ao reconhecer o direito portu-
guês sobre o monopólio do comércio com o Marrocos e as Índias, a bula
35 A. J. R. Russell-Wood, “Iberian Expansion and the Issue of Black Slavery: Changing Portu-
guese Attitudes, 1440-1770”, American Historical Review, vol. 83, no. 1 (1978), pp.16-42;
Ângela Domingues, Quando os índios eram vassalos: a colonização e relações de poder no
norte do Brasil na segunda metade do século XVIII, Lisboa: Comissão Nacional para as Co-
memorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000; e Alida Metcalf, Go-Betweens and
the Colonization of Brazil, 1500-1600, Austin: University of Texas Press, 2005, p. 168.
36 Charles R. Boxer, O Império marítimo português (1415-1825), São Paulo: Companhia das
Letras, 2002; Luiz Felipe de Alencastro, O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlân-
tico Sul, séculos XVI e XVII, São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
37 Gomes Eanes de Zurara, Chronicas do descobrimento da Guiné, Paris: J.P. Aillaud, 1841,
pp. 70-76; 93-97; 120-122; 157-160; 200-201; 212-5, entre outras passagens.
38 A. C. Saunders, História social dos escravos e libertos negros em Portugal (1441-1555),
Lisboa: Imprensa Nacional, 1994, pp. 38-39; e António Manuel Hespanha e Catarina Ma-
deira Santos, “Os poderes num império oceânico”, in António Manuel Hespanha (org.), His-
tória de Portugal - O Antigo Regime (1620-1807) (Lisboa: Estampa, 1993), vol. 4, p. 396.
Sobre canibalismo e escravidão, ver Beatrix Heintze, “Contra as teorias simplificadoras.
O ‘canibalismo’ na Antropologia e História da Angola”, in Manuela Ribeiro Sanches (org.),
Portugal não é um país pequeno. Contar o “Império” na pós-colonialidade (Lisboa: Coto-
via, 2006), pp. 215-228. Sobre a ideia de liberdade original, ver Curto, “The Story of Nbe-
na, pp. 43-64. Para o uso da legislação portuguesa em Angola, ver Catarina Madeira San-
tos, “Entre deux droits: les lumières en Angola (1750–v. 1800)”, Annales – Histoire, Scien-
ces Sociales, vol. 60, no. 4 (2005), pp. 817–848. Sobre como a escravidão era definida em
alguns sobados no interior de Benguela, ver Candido, Fronteras de esclavización, pp. 163-
178. Para semelhanças com a legislação referente à população indígena nas Américas, ver
continuação 38
John Manuel Monteiro, Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo,
São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
39 Saunders, História social, pp. 43-44; Linda M. Heywood e John K. Thornton, Central Afri-
cans, Atlantic Creoles, and the Foundation of the Americas, 1585-1660, Nova York: Cam-
bridge University Press, 2007, pp. 70–72; José C. Curto, “Experiences of Enslavement in
West Central Africa”, Histoire Sociale/Social History, vol. 41, no. 82 (2008), pp. 381–415.
40 Elizabeth Donnan (org.), Documents Illustrative of the History of the Slave Trade, Wash-
ington, D.C.: Carnegie Institute, 1930, vol. 1, pp. 123-124. Para mais sobre o assunto, ver
Alencastro, O trato dos viventes.
44 AHU, Angola, cx. 9, doc. 25, 10 de abril de 1666. Sobre classificação e a linguagem de direi-
tos, ver Pamela Scully, Liberating the Family? Gender and British Slave Emancipation in
the Rural Western Cape, South Africa, 1823-1853, Portsmouth: Heineman, 1997, pp. 34-
46; e Karen B. Graubart, “Indecent Living: Indigenous Women and the Politics of Repre-
sentation in Early Colonial Peru”, Colonial Latin American Review, vol. 9, no. 2 (2000), pp.
223-224.
45 Sobre a vassalagem, ver Heintze, “Luso-African Feudalism in Angola?”; e Santos, “Escrever
o poder”, pp. 81-95.
46 Para casos semelhantes ao norte do rio Cuanza, ver Joseph C. Miller, Kings and Kinsmen:
Early Mbundu States in Angola, Oxford: Clarendon Press, 1976, pp.177-179. Sobre o direi-
to das autoridades de oferecer acesso à terra e o processo de interação com estrangeiros
e comerciantes, ver Mahmood Mamdani, Citizen and Subject, Princeton: Princeton Uni-
versity Press, 1996, pp. 44–47; e Jeff Guy, “Analyzing Pre-Capitalist Societies in Southern
Africa”, Journal of Southern African Studies, vol. 14, no. 1 (1987), pp. 18–37.
a serem vendidos e embarcados para o Brasil”, para que “não suceda que
entre os escravos se meta um livre.” 47 O pároco Manoel Gonçalves, o
primeiro inquisidor das liberdades em Benguela, estava encarregado de
inquirir todos os escravos e marcá-los com a marca do rei na
minha presença, não antes do batizado, mas sim depois de o
serem, e que a Igreja os mostre capaz de embarcarem para
esta [Luanda] lhe ficar servindo como último despacho,
servindo igualmente de inquiridor de todas as causas
das liberdade que se moverem nesse juízo, assinando as
perguntas e respostas que se fizerem aos ditos pretos e
procurando por eles todos os termos da sua liberdade.48
47 ANTT, Conde de Linhares, maço 52, doc. 14, 24 de outubro 1769, “Provisão a Manoel
Gonçalves para servir como inquiridor e catequizador em Benguela”. Em Luanda esse
posto foi criado anteriormente. Ver Ferreira, Cross-Cultural Exchanges, p. 54.
48 ANTT, Conde de Linhares, maço 52, doc. 14, 24 de outubro 1769, fl. 1.
49 Arquivo Nacional de Angola (ANA), Cod. 443, fl. 117, 17 de fevereiro de 1803. Ver tam-
bém Carlos Couto, “Regimento de Governo Subalterno de Benguela”, Studia, no. 45
(1981), pp. 288-289; idem, Os Capitães-Mores em Angola, Lisboa: Instituto de Investiga-
ção Científica e Tropical, 1972, pp. 323-333; Rosa da Cruz Silva, “Saga of Kakonda and
Kilengues: Relations between Benguela and Its Interior, 1791-1796”, in José C. Curto e
Paul E. Lovejoy (orgs.), Enslaving Connections: Changing Cultures of Africa and Brazil
During the Era of Slavery (Amherst, N.Y.: Humanity Books, 2003), pp. 245-246; e José
C. Curto, Enslaving Spirits: The Portuguese-Brazilian Alcohol Trade at Luanda and Its
Hinterland, c. 1550-1830, Leiden: Brill, 2004, p. 94.
50 ANA, Cod. 80, fl. 1-1v, 12 de novembro de 1771; Candido, Fronteras de esclavización,
pp.163-164. Escravidão por dívida era comum em outras partes do continente africa-
no. Ver, por exemplo, Jan Vansina, “Ambaca Society and the Slave Trade C. 1760-1845”,
The Journal of African History, vol. 46, no. 1 (2005), pp. 1–27; Olatunji Ojo, “‘Èmú’
(Àmúyá): The Yoruba Institution of Panyarring or Seizure for Debt”, African Economic
History, no. 35 (2007), pp. 31–58; Jennifer Lofkrantz e Olatunji Ojo, “Slavery, Freedom,
and Failed Ransom Negotiations in West Africa, 1730–1900”, The Journal of African
History, vol. 53, no. 1 (2012): 25–44; Paul E. Lovejoy e Toyin Falola (orgs.), Pawnship in
Africa: Debt Bondage in Historical Perspective, Boulder: Westview Press, 1994; e Paul
E. Lovejoy e David Richardson, “Trust, Pawnship, and Atlantic History: The Institution-
al Foundations of the Old Calabar Slave Trade”, The American Historical Review, vol.
104, no. 2 (1999), pp. 333–355.
51 Ver os vários casos listados por Candido, Fronteras de esclavización, pp. 155-203.
52 Thornton, Warfare in Atlantic Africa; Walter Rodney, “Jihad and Social Revolution
in Futa Djalon in the Eighteenth Century”, Historical Society of Nigeria, no. 4 (1968),
pp. 269–284; Lovejoy, Transformations in Slavery, pp. 68–90; Patrick Manning, Slav-
ery and African Life: Occidental, Oriental, and African Slave Trades, Cambridge: Cam-
bridge University Press, 1990; Robin Law, The Oyo Empire, c.1600-c.1836: A West Af-
rican Imperialism in the Era of the Atlantic Slave Trade, Oxford: Clarendon Press,
1977; Barry, Senegambia and the Atlantic Slave Trade; e Martin A. Klein, “Social and
Economic Factors in the Muslim Revolution in Senegambia”, The Journal of African
History, vol. 13, no. 3 (1972), pp. 419–441.
53 Vansina, “Ambaca Society”, pp.1-27; Heintze, “Ngingi a Mwiza”; “Miller, Way of Death; John
K. Thornton, “African Political Ethics and the Slave Trade”, in Derek R. Peterson (org.), Ab-
olitionism and Imperialism in Britain, Africa, and the Atlantic (Athens: Ohio University
Press, 2010), pp. 38-62; Curto, Enslaving Spirits; Linda Heywood, “Slavery and its Trans-
formation in the Kingdom of Kongo: 1491-1800”, Journal of African History, vol. 50 , no.
1 (2009), pp. 1-22; Santos, “Administrative Knowledge in a Colonial Context”; e Ferreira,
“Slaving and Resistance”, pp. 111-130.
54 José C. Curto, “Struggling Against Enslavement: The Case of José Manuel in Benguela,
1816-20”, Canadian Journal of African Studies, vol. 39, no. 1 (2005), pp. 96–122; Curto,
“The Story of Nbena”, pp. 44–64; Roquinaldo Ferreira, “O Brasil e a arte da guerra em An-
gola (sécs. XVII e XVIII)”, Estudos Históricos, vol. 1, no. 39 (2007), pp. 3–23; Candido, Fron-
teras de esclavización, pp.178-190.
55 Ferreira, “Slaving and Resistance”, pp. 96-122; e Candido, “African Freedom Suits”, pp.
447-459.
56 ANTT, Conde de Linhares, Livro 50, v. 1, fl. 142 v-144, São Paulo de Assunção de Luanda,
21 de junho de 1765.
59 Sobre o funcionamento das caravanas no interior de Benguela ver Maria Emília Madei-
ra Santos, Nos caminhos de África: serventia e posse, Angola século XIX, Lisboa: Institu-
to de Investigação Científica Tropical, 1998; Linda M. Heywood, “Production, Trade and
Power: The Political Economy of Central Angola, 1850-1930” (Tese de Doutorado, Co-
lumbia University, 1984), pp. 190-208; Candido, “Merchants and the Business of the Sla-
ve Trade”, pp. 1-30.
65 Mais sobre o assunto em Candido, Fronteras de esclavización, pp. 190-202; Selma Panto-
ja, “Gênero e comércio: as traficantes de escravos na região de Angola”, Travessias, no. 4/5
(2004), pp. 79-97; José C. Curto, “Struggling Against Enslavement, pp. 96–122; Ferreira, “O
Brasil e a arte da guerra em Angola”, pp. 3–23.
66 Candido, Fronteras de esclavización, pp. 175-77; e Lovejoy, Transformations in Slavery,
pp. 66-85.
67 Ver Keila Grinberg, Liberata: a lei da ambiguidade: as ações de liberdade da Corte de
Conclusão
A ausência de relatos autobiográficos de escravos oriundos da África
centro-ocidental não significa a impossibilidade de saber como as pessoas
eram escravizadas nessa região. A documentação colonial portuguesa
revela casos de centro-africanos que foram enganados e capturados, às
vezes em localidades próximas a Benguela. Além dos cativos de guerra,
há casos de pessoas sequestradas na cidade de Benguela, como os car-
regadores; em sobados no interior, como dona Leonor e os pombeiros; e
nos presídios portugueses, como Juliana. Em todos eles, a participação
de funcionários coloniais determinou a captura e perda da liberdade.
Esses casos tratam a escravidão como uma experiência individual e
não anônima, como tende a ser o caso dos estudos demográficos. Ainda
que os cativos não tivessem registrado suas memórias, a documentação
colonial revela a vulnerabilidade da população local que, embora livre,
era constantemente ameaçada pela violência do tráfico de escravos.
O tráfico afetou não só aqueles que foram enviados às Américas, mas
também os que ficaram no continente africano sob ameaça do cativeiro.
Guerras, razias e sequestros levaram à instabilidade política, ao colapso,
à emergência de estados e à legitimação da instituição da escravidão.
Já temos estimativas do número de escravos embarcados nos portos
de Loango, Luanda e Benguela, mas ainda não entendemos a complexidade
dos processos pelos quais as pessoas foram escravizadas. Outros estudos
precisam ser feitos para melhor entendermos a dimensão do impacto
social do tráfico de escravos nas sociedades da África centro-ocidental.
Ao generalizar as experiências da captura como “cativos de guerra”,
invisibilizamos todas as demais formas de escravização, negando-lhes
um lugar na história. Para evitar generalizações sobre as populações que
continuação 66
apelação do Rio de Janeiro no século XIX, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994; Sid-
ney Chalhoub, A força da escravidão, São Paulo: Companhia das Letras, 2012; e Rebecca
J Scott, “Paper Thin”: Freedom and Re-Enslavement in the Diaspora of the Haitian Revo-
lution”, Law and History Review, vol. 29, no. 4 (2011), pp. 1061–1087; e Rebecca J. Scott e
Jean M. Hébrard, Freedom Papers: An Atlantic Odyssey in the Age of Emancipation, Cam-
bridge: Harvard University Press, 2012.
1 Estudo realizado com apoio da Fundação Biblioteca Nacional, PNP – Programa Nacional
de Apoio à Pesquisa, da FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
e bolsa produtividade em pesquisa do CNPq.
2 Georg Tams, Visita às possessões portuguezas na costa occidental d´Africa, por George
Tams, doutor em medicina, com uma introducção e annotações, em dous volumes. Ver-
tida do inglês por M. G. C. L. Porto: Typographia da Revista, 1850. Esta a edição utilizada
no presente capítulo, a partir do exemplar localizado na Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro.
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AS FEITORIAS DE URZELA E O TRÁFICO DE ESCRAVOS: GEORG TAMS, JOSÉ RIBEIRO DOS SANTOS E OS 473
NEGÓCIOS DA ÁFRICA CENTRO-OCIDENTAL NA DÉCADA DE 1840
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11 Situam-se aqui os trabalhos de Mary Karash, “The Brazilian Slavers and the Illegal Sla-
ve Trade, 1836-1851” (Tese de Doutorado, Wisconsin University, 1976); Leslie Bethell, A
abolição do tráfico de escravos no Brasil: a Grã-Bretanha, o Brasil e a questão do tráfi-
co de escravos 1807-1869, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura/São Paulo: Edusp, 1976;
Luís Henrique Dias Tavares, Comércio proibido de escravos, São Paulo: Ática, 1988.
12 Roquinaldo Amaral Ferreira, “O significado e os métodos do tráfico ilegal de africanos na
Costa Ocidental da África, 1830-1860”, Cadernos do Laboratório Interdisciplinar de Pes-
quisa em História Social, no. 2 (1995); idem, “Dos sertões ao Atlântico: tráfico ilegal de
escravos e comércio lícito em Angola, 1830-1860” (Dissertação de Mestrado, Universida-
de Federal do Rio de Janeiro, 1996); idem, “Transforming Atlantic Slaving: Trade, Warfare
and Territorial Control in Angola, 1650-1800” (Tese de Doutorado, University of Califór-
nia, 2003); Mariana P. Candido, Fronteras de esclavización. Esclavitud, comercio e iden-
tidade en Benguela 1780-1850, México (DF): Centro de Estudios de Asia y Africa, El Cole-
gio de México, 2011; idem, An African Slaving Port and the Atlantic World: Benguela and
its Hinterland, Nova York: Cambridge University Press, 2013; Ana Flávia Cicchelli Pires,
“Tráfico ilegal de escravos: os caminhos que levam a Cabinda” (Dissertação de Mestrado,
Universidade Federal Fluminense, 2006). Por fim, as descrições de Tams serviram de guia
para a reconstituição de parte da trajetória atlântica de Rufino José Maria, o alufá estuda-
do na obra de João José Reis, Flávio dos Santos Gomes e Marcus J. M. Carvalho, O alufá Ru-
fino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico negro (c. 1822- c.1853), São Paulo: Com-
panhia das Letras, 2010.
13 Pierre Verger, Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo do Benin e a Bahia de
Todos os Santos, dos séculos XVII a XIX, Salvador: Corrupio, 2002, particularmente o cap.
XI. Sobre o assunto, ver também Jaime Rodrigues, O infame comércio: propostas e expe-
riências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850), Campinas: Editora da
Unicamp/CECULT, 2000; idem, De costa a costa: escravos, marinheiros e intermediários
do tráfico negreiros de Angola ao Rio de Janeiro (1780-1860), São Paulo: Companhia das
Letras, 2005. Segundo Roquinaldo Ferreira, a razão da permanência do tráfico a partir
de 1830 até 1860 deve-se em grande parte às estratégias dos rápidos deslocamentos e
das mudanças constantes. Ferreira, “Brasil e Angola no tráfico ilegal de escravos”, in Sel-
ma Pantoja e José Flávio Sobra Saraiva (orgs.), Angola e Brasil nas rotas do Atlântico sul
(Rio de Janeiro: Berthand Brasil, 1999), pp. 143-194. No mesmo sentido, Tavares, Comér-
cio proibido de escravos, p. 64.
AS FEITORIAS DE URZELA E O TRÁFICO DE ESCRAVOS: GEORG TAMS, JOSÉ RIBEIRO DOS SANTOS E OS 475
NEGÓCIOS DA ÁFRICA CENTRO-OCIDENTAL NA DÉCADA DE 1840
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17 Tams, Visita às possessões portuguezas, “Preâmbulo do Professor Ritter”, vol. I, pp. 29-31.
Ritter manteve uma relação muito próxima das viagens empreendidas nos anos de 1850
por Heinrich Barth, financiadas pelo governo britânico. Sobre o tema, ver Cornélia Essner,
“Some Aspects of German Travellers’Accounts from the Second Half of the 19th Century”,
in Beatrix Heintze e A. Jones (orgs.), “European Sources for Sub-Saharan Africa before
1900: Use and Abuse”, Paideuma – Mitteilungen zur Kulturkunde, no. 33 (1987), p. 197. O
mesmo aspecto é salientado na coletânea sobre o viajante: Mamadou Diawara, P. F. de Mo-
raes Farias e Gerd Spittler (orgs.), Heinrich Barth et l’Afrique (Köln: Rüdiger Köppe Verlag
Köln, 2006).
18 Georg Tams, Visit to the Portuguese Possessions in South-Western Africa, by [...]. Tr. from
the German, with an introduction and annotations by Hannibal Evans Lloyd and Carl Rit-
ter, 2 vols, London: T. C. Newby, 1845. Ao final de cada um dos volumes, na versão ingle-
sa, seguem-se anexos ou apêndices que chamam a atenção sobre a riqueza das possessões
portuguesas na África (a exploração do vinho de palma e do anil), a importância de se re-
cuperar parte de sua história (Apêndices A e B, informações sobre Benguela e os Jagas), de
fornecer dados sobre o tráfico de escravos (Apêndice D, “Mortandade occasionada pela de-
tensão [sic] dos negros na costa do mar”); de combater a missionação católica (Apêndice G,
a ineficácia da ação missionária de jesuítas). Ao final do segundo volume, foi acrescentada
ainda uma descrição da Ilha do Príncipe, feita por um capitão da esquadra britânica, numa
viagem de 1834.
19 Tams, Visita às possessões portuguezas. A obra traduzida, tal como a edição inglesa, passa
a ser composta por dois volumes: o primeiro, com 251 páginas, e o segundo, 210, totalizan-
do dez capítulos.
20 Carl Ritter, Geographie Génerale Comparée ou Étude de la Terre dans les rapports avec la
nature et avec l’Histoire de l’Homme, Bruxelas: Société Typographique Belge, 1838 (obra
em 19 volumes, iniciada em 1817). “Nous avons commencé cette publication par l’Afri-
que” – segundo ele a escolha da África deu-se por várias razões: lá, onde é mais translúcida
a verificação das relações homem-meio; “terra ardente”, onde são menos perceptíveis os
continuação 20
movimentos das diferentes estações e, por fim, “sem o contraste desta marcha ascenden-
te e descendente do passado e do futuro”. Na obra de Ritter, enquanto para a África oci-
dental as referências foram abundantes (informações providas pelas narrativas dos via-
jantes Labat, Dalzel, Mungo Park, Winterbotton, Beaver, Clarkson, Wilberforce, Isert, Bo-
wdich etc.), para a África centro-ocidental, de presença portuguesa, o autor usa de fontes
mais antigas: crônicas do XVI e do XVII, João de Barros, Cavazzi da Montecuccolo, Andrew
Battel, João dos Santos; para o XIX, contava tão somente com a carta geográfica de D’An-
ville e os relatos da viagem do Capitão Tuckey à bacia do Zaire, financiada pelos britâni-
cos: J. K. Tuckey, Narration of an Expedition to Explore the River Zaire,1818. Portanto, é
de se supor que seriam bem vindas as informações em detalhes de Tams sobre a Angola
portuguesa e sobre o reino de Ambriz.
21 Tams, Visita às possessões portuguezas, vol. I, p. 30.
22 Idem, pp. 13- 28.
23 Ao longo do texto, Tams cita com desenvoltura obras mais antigas, como as do missioná-
rio Cannecattim, Cavazzi da Montecuccolo, Andrew Battel, bem como dos viajantes dos
séculos XVIII e XIX, Cook, Forbes, Buxton, Owen, Tuckey, entre outros. Além disso, tem
em mãos as memórias de João da Silva Feijó, feitas para a Academia de Ciências de Lis-
boa, sobre o cultivo de anil e a recolha da urzela no arquipélago do Cabo Verde, do século
XVIII.
24 Tams, Visita às possessões portuguezas, vol. I, p. 27.
AS FEITORIAS DE URZELA E O TRÁFICO DE ESCRAVOS: GEORG TAMS, JOSÉ RIBEIRO DOS SANTOS E OS 477
NEGÓCIOS DA ÁFRICA CENTRO-OCIDENTAL NA DÉCADA DE 1840
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25 Essas rivalidades já existiam no continente africano, sendo o ano de 1838 o início da ques-
tão Bolama, em que ambas as nações discutiam os direitos à posse da ilha, localizada na
costa de Serra Leoa. Sobre o assunto, ver René Pélissier, História da Guiné – portugueses
e africanos na Senegâmbia (1841-1936), Lisboa: Ed. Estampa, 1989, p. 81.
26 No anexo final, “Descripção da Ilha do Príncipe, pelo Capitão ‘Alexander’ do exercito inglez,
continuação das suas viagens em 1834" (vol. II, pp. 183-208), encontram-se, nesse sentido,
trechos significativos: “Eu invejei aos portuguezes a posse d’uma ilha tão fértil, onde era evi-
dente, que no meio de tão pitoresco exterior produziram os ricos thesouros da terra tais
como – grãos, legumes e fructas” (p. 193); mais adiante, a referência ao desejo expresso de
seus habitantes de “ver o dia em que nos achemos dominados pela bandeira ingleza” (p. 201);
e sobre as circunstâncias da dívida e da venda: “Ella [a Grã-Bretanha] mesma reconhece lhe
será difícil paga-la actualmente. Depois da contenda entre os irmãos (o senhor) d. Pedro, e (o
senhor) d. Miguel, concordou-se que Portugal poderia offerecer aos inglezes em pagamento
della esta ilha do príncipe, a de S. Thomé e a d’Anno Bom” (p. 202).
27 Tams, Visita às possessões portuguezas, vol. I, prefácio do tradutor, p. 7.
AS FEITORIAS DE URZELA E O TRÁFICO DE ESCRAVOS: GEORG TAMS, JOSÉ RIBEIRO DOS SANTOS E OS 479
NEGÓCIOS DA ÁFRICA CENTRO-OCIDENTAL NA DÉCADA DE 1840
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30 AHD-MNE, Consulado em Hamburgo, Caixa 487, 1833-1859, Pasta 1841, Ofício no. 10,
de agosto de 1841, parágrafo 4º, do cônsul interino André van Randvyk Schut. O artigo
transcrito em sua correspondência foi publicado no The London Journal of Commerce, 7
de agosto de 1841, e contém trechos significativos sobre a percepção que os ingleses ti-
nham do cônsul e de seus negócios, considerados altamente escusos.
31 Referências biográficas em Inocêncio Francisco da Silva, Diccionário bibliográphico por-
tuguez julgado pela imprensa contemporânea e estrangeira, Lisboa: Imprensa Nacional,
1860, Tomo V, p. 110, e no obituário publicado em Lisboa de José Feliciano de Castilho,
“Notícia necrológica”, Diário de Governo, no. 128, 2 de junho de 1842, p. 591. Com as indi-
cações de ambos, fases da vida do biografado puderam ser acompanhadas vis-à-vis a con-
sulta da documentação manuscrita, localizada em diferentes arquivos de Lisboa.
32 Castilho, “Notícia necrológica”, p. 591: “Mas deveras se applicou então ao commercio, e
este homem, que havia começado sem fundos, sem proteções, sem credito, sem corres-
pondentes, viu a poder de honra, intelligencia e actividade, prosperar a sua casa a ponto
que, em despeito das mil difficuldades locaes veio a ser a segunda ou terceira em respeito
e vulto, e talvez a primeira em tráfego, na commercialissima cidade de Altona, cujas por-
tas tocam com as de Hamburgo”.
33 Arquivo Histórico Ultramarino (doravante AHU), ACL, CU, 015, Caixa 279, Documento
18860, “Requerimento de José Ribeiro dos Santos ao rei (d. João VI), pedindo passaporte
para fazer viagem a Pernambuco, datado de 18 de janeiro de 1818.
34 Entre dezembro de 1823 e agosto de 1826, são numerosos os requerimentos dirigidos às
autoridades metropolitanas por José Ribeiro dos Santos, Tenente da Cavalaria e Ajudan-
te do Escrivão da Intendência da Marinha; com o ordenado de duzentos mil réis mês. Nes-
ses ofícios, ora justificava seu afastamento do Brasil, ora solicitava licença médica (com
remuneração) nos Açores, em São Miguel e na ilha de Fayal, para onde se dirigiu, em exí-
lio, com a família. AHU, ACL, CU, cxs. 288, 278, 46 (entre outras). Os requerimentos param
em 1826, quando Ribeiro dos Santos aparece já como cônsul do Brasil na Dinamarca, pos-
to que ocuparia até 1828.
35 Instituto dos Arquivos Nacionais, Torre do Tombo, doravante IAN-TT, Livro Geral das
Mercês, VI, p. 214; Decreto de 30 de novembro de 1836, de nomeação “em razão dos socor-
ros pecuniários que prestou por ocasião do cerco da cidade do Porto”.
36 IAN-TT, Livro Geral das Mercês, VIII, p. 64: nomeado cavaleiro desta ordem em razão “do
desinteresse com que presta a servir gratuitamente o lugar de Cônsul Geral”.
37 IAN-TT, Livro Geral das Mercês, XIII, 2 junho de 1841, Alvará como Fidalgo Cavaleiro da
Casa Real.
38 IAN-TT, Livro Índice das Mercês, D. Maria II, v. A-J, nomeações sucessivas.
39 José Ribeiro dos Santos e José Feliciano de Castilho Barreto, Traité du Consulat, par le
commandeur J. R. S., Consul-Générale et docteur J. F. C. B. Vice-Consul, Hamburgo:
AS FEITORIAS DE URZELA E O TRÁFICO DE ESCRAVOS: GEORG TAMS, JOSÉ RIBEIRO DOS SANTOS E OS 481
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continuação 39
Imprimerie de Langhoff, 1839, 2 vols. Obra dedicada por Ribeiro dos Santos “a mon ami le
Vicomte Sá da Bandeira”. Entre as atribuições estipuladas aos cônsules, em suas funções
administrativas e judiciárias, colocava-se a oposição (“com todas as suas forças”) ao tráfi-
co de negros sob bandeira portuguesa. Função explicitada na nota 47, vol. II, pp. 328-329.
40 João Pedro Marques assinala a importância da casa mercantil de Ribeiro dos Santos na len-
ta retomada dos negócios africanos dirigidos a Lisboa; assinala igualmente, as ambições
“de índole agrícola” da casa e, nesse sentido, a concessão de terrenos baldios em Cabo Ver-
de para a criação de estabelecimentos rurais que, segundo Tams, estariam em abandono na
ocasião da viagem. João Pedro Marques, Os sons do silêncio: o Portugal de Oitocentos e a
abolição do tráfico de escravos, Lisboa: ICS, Universidade de Lisboa, 1999, p.416-417.
41 Tams, Visita às possessões portuguezas, vol. I, p. 41.
42 Idem, p. 41.
AS FEITORIAS DE URZELA E O TRÁFICO DE ESCRAVOS: GEORG TAMS, JOSÉ RIBEIRO DOS SANTOS E OS 483
NEGÓCIOS DA ÁFRICA CENTRO-OCIDENTAL NA DÉCADA DE 1840
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47 Para a história dos portos livres do norte europeu: Marcos Viera da Silva, Portos fran-
cos (contendo os planos dos portos-francos de Hamburgo, Bremem, Copenhagem, Geno-
va e Trieste), Lisboa: Livraria Ferin, 1906; J. P. T. Bury (org.), The Zenith of European Po-
wer, 1830-1870, Cambridge: Cambridge University Press, 1960. Sobre as relações entre
a cidade livre de Hamburgo e o império luso-brasileiro: Adelir Weber, “Relações comer-
ciais e acumulação mercantil: Portugal, Hamburgo e Brasil entre a colônia e a nação” (Tese
de Doutorado, Universidade Estadual de São Paulo, 2008). A importância do comércio de
Hamburgo com Portugal aparece expressa na correspondência diplomática gerada tam-
bém em Portugal: AHD-MNE, Lisboa, caixa Consulado das Cidades Hanseáticas em Portu-
gal, ofício do Vice-Cônsul C. D. Lindenberg, 14 de janeiro de 1835, p. 4, entre outros.
48 Robin Law, “The Transition from the Slave Trade to the Legitimate Commerce”, Studies
in the World History of Slavery, Abolition and Emancipation, vol. 1, no. 1 (1996), pp. 1-12,
disponível em http:www2.h-net.msu.edu/~slavery/essays/esy9601law.html, último aces-
so em maio de 2010; Paul Lovejoy, A escravidão na África: uma história de suas transfor-
mações, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002; David Northrup, “The Compatibility
of the Slave Trade and Palm Oil Trade in the Bight of Biafra”, Journal of African History,
vol. 17, no. 3 (1976), pp. 353-364; Elisée Soumonni, “A compatibilidade entre o tráfico de
escravos e o comércio de dendê no Daomé, 1818-1858”, Daomé e o mundo atlântico, Rio de
Janeiro/Amsterdã: CEAA; SEPHIS, 2001, pp. 61-79. Entre os estudiosos angolistas, apon-
taram para a questão, além de Margarido e Vellut, abaixo citados, Isabel de Castro Henri-
ques e Jill Dias, nos trabalhos referidos, bem como Maria Emília Madeira Santos, “Abolição
do tráfico de escravos e reconversão da economia de Angola – um confronto participado
por brasileiros”, Studia, no. 52 (1994), pp. 221-224.
49 Alfredo Margarido, “Les porteurs: forme de domination et agents de changement en An-
gola (XVII-XIXe siècles)”, Revue Française de Histoire d´Outre-mer, vol. LXV, no. 240
(1978), p. 377.
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Mas, entre todos, seria sobre Arsênio Pompílio Pompeu de Carpo que
recaíam as observações mais expressivas de Tams, escolhendo-o para ilus-
trar tanto a arrogância dos mercadores de escravos, como as estratégias que
usavam. Além de se referir ao escravo branco que o acompanhava ostensiva-
mente em suas caminhadas pelas ruas da cidade53 ou sua rica morada urbana,
54 Idem, p. 194.
55 Idem, p. 212.
56 IAN-TT, MNE, Consulado de Portugal em Pernambuco, Cx. 2, 1839-1841, “Mapa das em-
barcações nacionais e estrangeiras entradas no porto de Pernambuco vindas das costas da
África, no mês de dezembro de 1838”: na listagem aparece o bergantim Governador Vidal,
de 187 toneladas, vindo de Loanda, “sob as ordens do capitão Nicolau Mario Passalaqua,
sendo o proprietário Arcenio Pompilio Pompeu de Carpo e o consignatário, [João] Joze Ri-
beiro dos Santos”. Indicação retirada do artigo de Carlos Pacheco, “Arsenio Pompílio Pom-
peu de Carpo – uma vida de luta contra as prepotências do poder colonial em Angola”, Re-
vista Internacional de Estudos Africanos, no. 16-17 (1992-1994), p. 154. Apesar de o pre-
nome não coincidir exatamente, é possível tratar-se do cônsul. Nota-se que o navio rece-
bera de Carpo o mesmo nome do governador de Angola na época – Manoel Bernardo Vi-
dal – que, apesar das ordens expressas sobre a supressão do tráfico vindas de Lisboa, fora
convencido pelos negreiros (entre eles, Arsênio) a fechar os olhos e converter-se ele pró-
prio aos negócios da escravatura. Sobre as posições do governador e suas relações com Ar-
sênio de Carpo, bem como sobre a projeção social deste último: Valentim Alexandre, “Por-
tugal e a abolição do tráfico de escravos (1834-51)”, Análise Social, vol. XXVI, no. 3 (1991),
pp. 309-310; sobre o comprometimento dos governadores e outras autoridades: Joaquim
de Carvalho, “L’interdiction de la traite en Angola”, Lusíada, no. 1 (1989), pp. 169-217.
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57 Arsênio de Carpo tinha plena consciência dos enormes lucros trazidos pelo comércio da
escravatura; num texto escrito em Londres, em 1848, apresentando um projeto de sua au-
toria, que veremos a seguir, sustentava a opinião sobre a inoperância das leis antitráfico
a partir da experiência própria de um grande investidor: “Depois que as mais fortes me-
didas [de controle do tráfico] que como acabamos de mostrar se tem tomado, chegaram os
pretos no Brasil a valerem cada um 700 mil réis, sendo o custo destes na África de 15 a 20
mil réis: com o fundo de 12 a 14 contos de réis se habilita qualquer especulador a passar
para o Brazil 600 escravos, onde vão achar por elles (se é que podem escapar) tanto quanto
é preciso para tentarem novas especulações da mesma naturesa”: Carpo, Projecto d´uma
companhia para o melhoramento do commercio, agricultura e indústria na Província de
Angola que se deve estabelecer na cidade de S. Paulo d´Assumpção de LOANDA, e da qual
são fundadores Silvano F. L. Pereira, de Londres, Arcenio P. P. de Carpo, de Loanda; A. V.
R. Schut, d’Hamburgo; e Eduardo Possolo, Lisboa: Typographia da Revolução de Setembro,
1848, p. 5. Entre seus sócios, no projeto de 1848, mencionaremos mais adiante a figura de
A. V. R. Schut, de Hamburgo.
58 Castilho, “Notícia Necrológica”, p. 591.
59 Sobre o médico Carlos Ubertaly e o embarque de seus navios de Luanda em direção a Cuba,
nitidamente num percurso negreiro,ver IANTT, MNE, Ordem 968, Consulado de Portugal
nos portos da ilha de Cuba. Matrícula de navios, “Matricula da Bª Triunfo da Liberdade, de
que é mestre Manoel Francisco Cardoso e proprietário Carlos Ubertaly, que segue viagem
para Havana com escala em Ambriz, Zaire e Cabinda. Secretario de o Governo Militar, e Ci-
vil do Reino de Angola, em 21 de janeiro de 1837”. A informação de sua função como almo-
fariz vem de Dias, “Angola”, p. 350; moreu nos finais do ano de 1839, segundo ofício solici-
tado pelo Cônsul Geral da Sardenha, em Lisboa, AHU, SEMU, DG, Correspondência, Ango-
la, Ordem 595.
interior da África e havia sido trazida como escrava para Loanda, onde
vivia então com pompa, manejando um prospero negócio d’escravatura;
mas eu farei justiça ao seu procedimento, pois que ella nunca praticava
crueldades, antes tratava seus subordinados com grande humanidade.” 60
Descrevia Tams também a aparição da dama africana numa festa da
sociedade luandense, da qual participava, destacando-a em meio a uma
multidão de pretos, brancos e mulatos: “Por entre os caracteres deste
matizado grupo, divisava-se uma mulher ricamente adornada d’ouro e
jóias, que tendo vindo para este paiz, havia poucos annos, d’uma província
do interior como miserável escrava, por sua belleza e astucia tinha obtido
a liberdade e riquezas.”61 E ilustrava, por meio de sua viva inteligência, a
“propensão intelectual dos africanos”:
Freqüentes vezes encontrei negros, que havendo apenas
quatro semanas que existiam na costa, podiam neste
incrível pequeno espaço de tempo, não só entender o
portuguez, como fazerem-se entender neste idioma. Uma
das pessoas que maior negocio tinha d’escravatura em
Loanda, era uma mulher que primeiro havia sido escrava
igualmente; a qual depois de ter obtido a liberdade, havia
estudado a língua portugueza de per si mesmo com tal
energia, que não só a fallava correctamente, mas até por
sua propria mão fazia a correspondência commercial neste
dialecto.62
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70 Eltis, David et alii., Voyages. The Trans-Atlantic Slave Trade DataBase, disponível em:
http://www.slavevoyages.org/tast/database/search.faces, acessado em agosto de 2009,
viagem n. 46260, de 26-09-1837, segundo dados recolhidos no Archivo General de la Na-
tion, Montevidéo, Uruguai. Trata-se da primeira viagem de “Fonseca” identificada pela
amostra. Computando-se o total de viagens realizadas sob esse sobrenome, entre os anos
de 1837 e 1851, foram identificadas 43, provenientes da costa norte de Angola (sobretu-
do Ambriz e Cabinda) e também da África oriental, do Golfo de Biafra e da Alta Guiné, com
destino ao Brasil, em navios de bandeira portuguesa, mas também norte-americana; no
período de 1837 a 1851. No total, os irmãos Fonseca desembarcaram nas praias brasilei-
ras quase 18.000 escravos, dos 20.000 obtidos na África. Assim, mesmo no terreno das su-
posições, não se pode deixar de lado qualquer tipo de informação sobre eles.
71 Conrad, Os tumbeiros, p. 121. “Manoel Pinto da Fonseca iniciou sua carreira como ‘um
criado subalterno em um estabelecimento mercantil, dispondo de recursos muito limita-
dos’; ‘em 1837, contudo, junto com seus irmãos e um grupo de seguidores, ele entrou para o
tráfico crescente, e em sete ou oito anos era um dos homens mais ricos do Brasil’”. O nome
de Manuel Fonseca aparece mencionado no ofício de Joaquim de Paula Guedes Alcoforado
(1854) e em obras sobre o tráfico no século XIX, atuando em diversos portos da costa an-
golana e em Moçambique; Roquinaldo Amaral Ferreira, “O relatório Alcoforado”, Estudos
Afro-Asiáticos, no. 28 (1995), pp. 219-229; José Capela, O tráfico de escravos nos portos de
Moçambique, Porto: Edições Afrontamento, 2002, pp. 160-161; e agindo em Angola e nas
regiões próximas a Cabinda, em longos trechos da obra de Pires, “Tráfico ilegal de escra-
vos”, pp. 109-112.
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75 Dias, “Angola”, p. 372. Um dos sócios ou agentes de dona Ana Francisca em Moçamedes
era Bernardino José Brochado, autor de uma memória sobre a região: Brochado, “Notícia
de alguns territórios e dos povos que os habitam, situados na parte meridional da provín-
cia de Angola”, Annaes do Conselho Ultramarino, parte não oficial, Lisboa, 1ª série, no. 1
(1855), pp. 203-208. 75 Tams, Visita às possessões portuguezas, vol. I, p. 178.
76 Tams, Visita às possessões portuguezas, vol. I, p. 178.
77 Idem, p. 182.
78 David Birmingham, “The Coffee Barons of Cazengo”, Journal of African History, vol. 19,
no. 4 (1978), pp. 523-538.
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79 A proeminência das mulheres no comércio de escravos foi notada também por José Cape-
la, entre os armadores da década de 1840, que agiam em Moçambique, sendo elas igual-
mente donas de prazos na região. Capela, O tráfico de escravos nos portos de Moçambique,
p. 152.
80 Francisco Valdez, em visita à região do rio Bengo, em 1858, onde, além das propriedades
em Golungo Alto e Guifandonfo, Ana Joaquina possuía uma plantação de açúcar, com cer-
ca de 1.400 escravos, notou: “a grande atração, no entanto, era na querida dama que pre-
sidia esta casa e à qual os galantes oficiais franceses haviam dado o nome de A Rainha
do Bengo [...] um titulo que ela merecia em consequência de suas maneiras amáveis, e sua
grande hospitalidade que ela dava a todos os que eram afortunados em ser seus convida-
dos. Todos os arranjos domésticos eram de uma grande elegância, tudo sendo ordenado da
mesma forma que nos estratos mais superiores de Portugal, país do qual ela era nativa.
Ela também caiu vitima daquela tirânica e implacável e fatal febre, que não olhava nem
para idade, riqueza, beleza nem sexo.” Apud Douglas Wheeler, “Angolan Woman of Means:
Dona Ana Joaquina dos Santos e Silva, mid-19th Century Luso-African Merchant Capita-
list of Luanda”, Santa Barbara Portuguese Studies, no. 3 (1996), p. 287.
81 Freudenthal, Arimos e fazendas, pp. 154-155.
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84 Henrique de Carvalho, apud Lopo, “Uma rica dona de Luanda”, p. 136; Henrique de Carva-
lho, apud Beatrix Heintze, Pioneiros africanos: caravanas de carregadores na África cen-
tro-ocidental (entre 1850 e 1890), Lisboa: Caminho, 2004, pp. 138-139. Sobre a importân-
cia dos relatos desse expedicionário português, sobretudo no que concerne a história dos
povos da região e dos trabalhadores africanos, ver Elaine Ribeiro, Barganhando sobrevi-
vências: os trabalhadores da expedição de Henrique de Carvalho à Lunda, 1884-1888, São
Paulo: Alameda, 2013.
85 Antonio Gil, Considerações sobre alguns pontos mais importantes da moral religiosa e
systema de jurisprudência dos pretos do continente da África Occidental Portugueza
alem do Equador [...], Lisboa: Typographia da Academia, 1854, p. 14.
86 J. L. Vellut, “Le royaume de Cassange et les réseaux luso-africaines (ca. 1750-1810)”, Ca-
hiers d´Études Africaines,vol. 15, no. 57 (1975), pp. 117-136.
87 Idem, p. 133.
88 É também extensa a bibliografia sobre Arsênio; entre outros: Pacheco, “Arsênio Pompílio
Pompeu de Carpo”; Henriques, Percursos da modernidade, pp. 526-32; João Pedro Mar-
ques, “Arsênio Pompílio Pompeu de Carpo: um percurso negreiro no século XIX”, Análise
Social, no. 160 (2001), pp. 609-38; Oliveira, Alguns aspectos da administração de Angola,
pp. 167-196. Sobre as relações dos mercadores de Angola, particularmente Arsênio, com
os negociantes de Pernambuco, ver Reis, Gomes e Carvalho, O alufá Rufino, pp. 146-178.
89 IAN-TT, Livro das Mercês D. Maria II, v. XIII, p. 178, “Carta Patente de 18 de novembro de
1840”.
90 IAN-TT, Livro das Mercês D. Maria II, v. XVII, pp. 203-4, “Carta Patente de 10 de dezembro
de 1842”.
91 IAN-TT, Livro das Mercês D. Maria II, v. XIX, pp. 108-9, “Título outorgado em 16 de março
de 1843”.
92 Indicado pelo governador Lourenço Possolo, cf. Alexandre, “Portugal e a abolição do tráfi-
co”, p. 329.
93 AHU, Sá da Bandeira, Documentos, Ordem 825; entre eles, cartas de Arsênio de Carpo ao
ministro português, advertindo-o sobre várias questões: o contrabando de escravos e o
de urzela, os territórios do norte de Angola, fora de controle e, finalmente, em 1851, o
oferecimento de sua ajuda para o combate ao tráfico. Na fórmula de despedida, “Loan-
da 20-5-51. Amigo muito obrigado e criado fiel Arcenio P. P. de Carpo”, a palavra “amigo”
encontra-se riscada, possivelmente pelo ministro.
94 Alexandre, “Portugal e a abolição do tráfico”, p. 330.
95 Carpo, Projecto d’uma companhia; observe-se que são fundadores e sócios da companhia
Silvano F. L. Pereira, de Londres, Arcenio de Carpo, de Loanda, A. V. R. Schut, de Hambur-
go e Eduardo Possolo. Segundo ainda a documentação consular, quando das discussões em
torno do reconhecimento de Schut como cônsul português em Hamburgo, no ofício de 17
de janeiro de 1843, ao ministro dos Negócios Estrangeiros, constava que “o Chevalier A.
van Randvyk Schut que depois do falecimento do Me. dos Santos se apresenta como o úni-
co chefe da casa de comercio deste nome, mas foi obrigado a ceder a administração aos co-
missários e a lhes confiar um acordo com os credores”; com cópia de um ofício da mesma
legação, ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, de dezembro de 1842, AHD-MNE, Lisboa,
Legação de Portugal em Copenhagem, pasta 1843.
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estreita relação entre Schut e Ribeiro dos Santos, sendo ele um dos sócios da
casa comercial Santos & Monteiro, de Altona, aparecendo, em 1842, como o
responsável pelo processo de acertos da firma com os credores antes de ser
oficializado como Cônsul português no reino da Dinamarca junto ao cargo
que já ocupava, em Hamburgo, desde a morte de Ribeiro dos Santos.96
É de supor que o poder de Arsênio se estendesse em direção ao interior.
Embora no relato de Tams não fiquem evidenciadas as redes mercantis e
sociais articuladas por ele com as populações africanas, depois de sua ex-
pulsão de Luanda, em 1851, transferiu a base de seus negócios para as feiras
existentes na hinterlândia de Luanda ou um pouco além dela. Isabel de Castro
Henriques, seguindo as indicações feitas nas obras de Henrique de Carvalho,
localiza-o ali, aguardando as caravanas imbangalas de marfim, cera e bor-
racha, em Cassange, e também em Malange, um dos principais centros de
trocas do interior angolano, a partir da metade do século.97 Em outro trecho,
a mesma historiadora utiliza-se de um oficio do chefe da feira de Cassange
ao Governador Geral, citado também por Henrique de Carvalho, em que se
noticia a passagem de uma caravana conduzida pelo “senhor comendador
Arsênio Pompílio Pompeu”, composta por cerca de 800 serviçais, carregados
de mercadorias – fazendas, pólvora e miçangas, estimadas em 86 contos de
réis.98 Por fim, no mesmo período, é destacada a participação de Arsênio na
recuperação da feira de Cassange e na pacificação do comércio do interior,
aparecendo ora como emissário do poder português em embaixadas, ora con-
duzindo presentes e realizando acordos com os jagas e os imbangalas da região.
O estado do commercio aqui é o mais lisonjeiro possível em
todo o sentido, porque os pretos estão muito submissos,
não usando já das impertinências que d’antes esgotavam
a paciência ao comprador: de maneira que o negociante
Carvalho, que em menos de dois dias depois da sua
chegada comprou sem grandes esforços para mais de mil e
quinhentas libras de cêra e algum marfim, ficou admirado
de assim o ter conseguido, pela experiência que tinha do
modo extremamente moroso como antigamente se fazia
aqui o negocio.99
Por fim, e ainda no que diz respeito à história social vinculada às ambiên-
cias urbanas da Angola portuguesa, tanto em Luanda como principalmente
em Benguela, Tams testemunha a chegada das caravanas vindas do interior,
com os libambos de cativos e estes com suas marcas identitárias, penteados
característicos e alguns com vestes e adereços. Além disso, com sensibilidade,
é capaz de perceber e fazer longas digressões sobre os pequenos habitantes
das cidades: canoeiros, empacaceiros, prostitutas, quitandeiras e quitandei-
ros. Nas movimentações dos portos, observa ainda os canoeiros cabindas ou
“cabindanos”, como os denominou, considerados, segundo ele, os melhores
de todos os que eram recrutados. Flagrou assim aspectos da comunidade
cabinda de Luanda, que se tornou historicamente significativa em razão de
sua competência no transporte marítimo, sua errância e em decorrência uma
100 Jill Dias, “Relações econômicas e de poder no interior de Luanda, c. 1850-1875”, in Ma-
ria Emília Madeira Santos, Atas da I Reunião Internacional de História de África (Lisboa:
IICT, 1989), p. 70.
101 Sobre os sertanejos do Bihé e a mais importante figura dessa época, Silva Porto, ver os vá-
rios ensaios reunidos por Maria Emília Madeira Santos, Nos caminhos de África. Serven-
tia e posse, Angola, século XIX, Lisboa: IITT, 1998. Sobre as caravanas do Bihé, Heintze,
Pioneiros africanos, pp. 299-350.
102 Tams, Visita às possessões portuguezas, vol. I, pp. 121-122.
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103 Sobre os canoeiros cabindas, o processo de sua diáspora mercantil, suas grandes embar-
cações e participação no comércio de escravos, ver Phyllis M. Martin, “Cabinda e os seus
naturais: alguns aspectos de uma sociedade marítima africana”, Revista Internacional de
Estudos Africanos, no. 3 (1985), pp. 41-61; Phyllis M. Martin, “The Cabinda Connection: An
Historical Perspective”, African Affairs, vol. 76, no. 302 (1977), pp. 47-59. Sobre os rótulos
dados a eles como cabindas nas fontes portuguesas, Jill Dias, “Novas identidades africanas
em Angola no contexto do comércio atlântico” in Cristiana Bastos, Miguel Vale de Almei-
da e Bela Feldman-Bianco (orgs.), Trânsitos coloniais. Diálogos críticos luso-brasileiros
(Campinas: Editora da Unicamp, 2007), pp. 315-43. Também as referências João de Mat-
tos E. Silva, Contribuição para o estudo da região de Cabinda, Lisboa: Typographia Univer-
sal1904; sobre a tradição que permanece no século XIX, “entre as fontes do século XIX é
difícil encontrar um homem [de Cabinda] de idade de 20 anos que não tenha estado no ex-
terior (fora de casa)”, p. 14. Sobre os canoeiros krus e sua diáspora, Elaine Ribeiro da Sil-
va dos Santos, “Nas engrenagens do tráfico: grupos africanos e sua atuação nos portos do
Golfo do Benin”, Anais do XIX Encontro Regional de História, ANPUH (2008). Vale ressal-
tar a presença de tripulantes cabindas e muxiloandas nas viagens negreiras entre Angola
e Cabo Frio, RJ, conforme inquérito que investigou a remessa de cativos em 1847, em “pal-
botes de Luanda”, embarcados em Cabo Lombo. Boletim do Governo Geral da Provincia de
Angola, vol. 85, 24 de abril de 1847, pp. 3-5.
104 Tams, Visita às possessões portuguezas, vol. I, p. 201.
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107 Entre outros autores, posição manifesta por Catherine Coquery-Vidrovitch, “L’esclava-
ge en Afrique et l´Atlantique au XIXème siècle”, texto apresentado para discussão no Se-
minário Internacional O século 19 e as novas fronteiras da escravidão e da liberdade,
Unirio, UFRJ, USP e Universidade Severino Sombra, Rio de Janeiro, agosto de 2009, p. 8.
108 Broadhead, Trade and Politics, p. 52; Phyllis Martin, “The Trade of Loango in the 17th and
18th Centuries”, in David Birmingham e Richard Gray (orgs), Pre-colonial Trade: Essays
on Trade on Central and Eastern Africa before 1900 (Oxford: Oxford University Press,
1970), pp. 139-161. A historiadora destaca ser esta uma região de intensas rivalidades
entre portugueses, franceses, ingleses e norte-americanos, o que ocorria também mais ao
norte nos reinos de Loango, Kakongo e Ngoyo.
109 Douglas Wheeler, “The Portuguese in Angola, 1836-1891: a Study in Expansion and Ad-
ministration” (Tese de Doutorado, Boston University, 1963), pp. 79-82. Utilizando-se do
testemunho de William Owen, em Narrative of voyages, de 1832, nota que os brasileiros,
após a independência, não estando mais sujeitos às leis de navegação de Portugal, fre-
quentavam com assiduidade os portos do norte.
110 Heintze, Pioneiros africanos, p. 308; Jelmer Vos, “The Economics of the Kwango Rub-
ber Trade, c. 1900”, in Beatrix Heintze e Achim von Oppen (orgs.), Angola on the Move:
Transport Routes, Communications and History (Frankfurt am Main: Otto Lembeck
Verlag, 2008), pp. 85-98. Sobre as dinâmicas e as rotas comerciais que confluíam
para Ambriz, ver Wissenbach, “Dinâmicas históricas de um porto centro-africano’, já
mencionado.
111 Sobre a ocupação de Ambriz, René Pélissier, História das campanhas de Angola: resistên-
cia e revolta (1845-1914), Porto: Editora Estampa, 1986, pp. 126-128.
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115 Broadhead, Trade and Politics on the Congo Coast, p. 144. Também num ofício datado de
1840, feito a mando do governador geral de Angola, encontram-se listadas algumas des-
sas “barracas”: de Luís Antônio de Carvalho Castro, Francisco Teixeira de Miranda, José
Francisco Roxa (todos eles portugueses) e dois norte-americanos, Charles Chuttz (ou
Schutz?, como cita Tams) e Francisco Sexton. A maioria deles condicionava em seus depó-
sitos mercadorias como pólvora, armas, pontas de marfim, vinho, aguardente e uma gran-
de diversidade de fazendas. AHU, Correspondência dos governadores de Angola, Inventá-
rio das barracas do Ambriz em 1841, pasta 4, ofício 165, doc. 4, “Exame que se procedeo
nas fazendas, e mais gêneros, existentes nas barracas do Ambriz”, Ambriz, 6 de novembro
de 1840. Agradeço a Aldair Carlos Rodrigues a ajuda na localização deste documento. So-
bre os barracões africanos, ver Rodrigues, De costa a costa, particularmente pp. 67-73;
Marques, “Tráfico e supressão no século XIX”, p. 157: “traço típico destes estabelecimen-
tos permanentes criados pelos agentes das casas brasileiras e cubanas espalhados pelos
portos e rios africanos”.
116 Tams, Visita às possessões portuguezas, vol. II, p. 111.
117 Idem, p. 113.
118 Heintze, Exploradores alemães em Angola, p. 391.
119 Tams, Visita às possessões portuguezas, vol. II, p. 130.
ele, uma prova dessa superioridade era o fato de não serem observadas
nos seus corpos as incisões características dos demais africanos que
encontrara em sua viagem.
Na oportunidade da visita, Tams observou a corte de d. André, o dig-
nitário do reino, não economizando ironias e desqualificações; descreveu
atentamente suas vestimentas, algumas delas de origem nitidamente
europeia, e suas insígnias: “um bastão de cana cravejado de reluzentes
cabecinhas de pregos de cobre” e um barrete, segundo o médico, a parte
mais jocosa de seu equipamento de poder: feito de esteira, cheio de pregas
e que se acomodava mal à sua cabeça. Em torno do rei, encontravam-se
seus principais colaboradores, chamados de mafooks, intermediários nas
negociações com os mercadores no porto, uma vez que ao rei era interdi-
tada a visão do mar. 120 Enumerou ainda alguns dos presentes que haviam
sido trazidos de Hamburgo, entre eles “botas russianas pomposamente
bordadas” que, calçadas e combinadas com certa nudez, davam-lhe uma
fisionomia ridícula. No entanto, em que pesem tais observações, tudo
indica que as relações eram amistosas e prevalecia o reconhecimento
mútuo de autoridades. Em determinado momento do encontro, o rei
indagou sobre a doença que havia tirado a vida de Ribeiro dos Santos e
lamentou sua morte.
Subjacente a todo o cerimonial de recepção na corte de d. André,
descrito por Tams, fica clara a intenção dos visitantes em estabelecer um
acordo político que reconhecesse o direito da casa de Santos & Monteiro
em comercializar no porto de Ambriz. Nas conversações, os agentes da
firma hamburguesa prometiam observar restritamente as leis e os cos-
tumes do país, em troca de proteção, comprometendo-se a pagar multas
no caso de infrações, dando, portanto, continuidade aos negócios da firma
na África centro-ocidental.
120 Tal como ocorria em outros reinos, sobretudo quando as capitais se localizavam no inte-
rior; a interdição foi verificada no Congo e entre os costumes do reino de Abomey, cf. Co-
query-Vidrovitch, “L’esclavage en Afrique et l’Atlantique”, p. 5. Antonio Gil refere-se tam-
bém a isso: “É uma coisa notável que quanto maior é o poder destes régulos, que se cha-
mam Sobas, Dembos, Jagas etc. mais coartada tem a liberdade. O Rei do Congo, como é sa-
bido, não pode chegar às suas praias nem vêr o mar. E o Matianvo não pode sair de casa. É
uma espécie de veto à moda deles, tendente ao que parece, a limitar-lhes o poder. Mas a
base ou a sanção de tudo são os agoiro.” Gil, Considerações sobre alguns pontos mais im-
portantes da moral religiosa, p. 14.
AS FEITORIAS DE URZELA E O TRÁFICO DE ESCRAVOS: GEORG TAMS, JOSÉ RIBEIRO DOS SANTOS E OS 505
NEGÓCIOS DA ÁFRICA CENTRO-OCIDENTAL NA DÉCADA DE 1840
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA
121 AHD-MNE, Lisboa, Consulado em Hamburgo, Caixa 487, 1833-1859, onde se concentra a
documentação referente a seu consulado.
122 Harral Laudry, “Slavery and the Slave Trade in Atlantic Diplomacy, 1850-1861”, The Jour-
nal of Southern History, vol. 27, no. 2 (1961), pp. 184-207; Lawrence Hill, “The Abolition of
the African Slave Trade to Brazil”, The Hispanic American Historical Review, vol. 11, no. 2
(1931), p. 165.
AS FEITORIAS DE URZELA E O TRÁFICO DE ESCRAVOS: GEORG TAMS, JOSÉ RIBEIRO DOS SANTOS E OS 507
NEGÓCIOS DA ÁFRICA CENTRO-OCIDENTAL NA DÉCADA DE 1840
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA
131 AHU, SEMU, DG, Correspondência de Angola, “Oficio do comendador José Ribeiro dos San-
tos, em 2 de novembro de 1841”; e cópia da “Acta da Sessão do Conselho de Governo, de 8
de novembro de 1841 e 15 de novembro de 1841”.
132 AHU, SEMU, DG, Correspondência de Angola, Ordem 597, “Ofício de S. M. ao Conselho, em
12 de julho de 1842, reprovando o desrespeito ao Decreto de 17 de janeiro de 1837”, que
permitia somente aos navios portugueses a exportação da urzela a portos portugueses.
133 Requerimento dirigido pelos negociantes de Loanda, “pedindo a Exportação da Urzella
para portos estrangeiros, em navios estrangeiros e nacionaes”, Luanda 1 de outubro de
1848, apud José de Almeida Santos, “Reflexos do decreto de Sá da Bandeira proibitivo do
tráfico da escravatura”, Trabalho – Boletim do Instituto do Trabalho, Previdência e Acção
Social, no. 38, (1972), 105-107.
134 Ferreira, “O significado e os métodos do tráfico ilegal”, pp. 138-139. O autor discute e
transcreve trechos da petição de 13 de abril de 1861 dos produtores de urzela na região
de Moçamedes, entre eles Ladislau Américo Magyar, contra comerciantes que ainda rea-
lizavam o tráfico de escravos.
AS FEITORIAS DE URZELA E O TRÁFICO DE ESCRAVOS: GEORG TAMS, JOSÉ RIBEIRO DOS SANTOS E OS 509
NEGÓCIOS DA ÁFRICA CENTRO-OCIDENTAL NA DÉCADA DE 1840
CAPÍTULO 16
511
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA
3 Philip D. Curtin, The Atlantic Slave Trade: A Census, Madison: University of Wisconsin
Press, 1969.
4 A literatura é vasta demais para ser citada aqui. Entretanto, ver a bibliografia das fontes
secundárias em Paul E. Lovejoy, Transformations in Slavery: A History of Slavery in Afri-
ca, 2a ed., Cambridge: Cambridge University Press, 2000. Desde então, essa bibliografia
cresceu ainda mais, naturalmente.
5 Sylviane A. Diouf (org.), Fighting the Slave Trade: West African Strategies, Athens, OH:
Ohio University Press, 2003.
6 Ver as notas 18 até 21.
7 Robert Ross, Cape of Torments: Slavery and Resistance in South Africa, Londres: Routledge
& Kegan Paul, 1983; Nigel Worden, Slavery in Dutch South Africa, Cambridge: Cambridge
University Press, 1985; Fred Morton, Children of Ham: Freed Slaves and Fugitive Slaves on
the Kenya Coast, 1873-1907, Boulder: Westview Press, 1990; Paul E. Lovejoy e Jan S. Ho-
gendorn, Slow Death for Slavery: The Course of Abolition in Northern Nigeria, 1897-1936,
Cambridge: Cambridge University Press, 1993; Robert C. Shell, Children of Bondage: A So-
cial History of the Slave Society at the Cape of Good Hope 1652-1838, Hanover, NH: Univer-
sity Press of New England, 1994; John Edwin Mason, Social Death and Resurrection: Slav-
ery and Emancipation in South Africa, Charlottesville: University of Virginia Press, 2003.
8 Richard Roberts, Warriors, Merchants and Slaves: the State and the Economy in the Mid-
dle Niger Valley, 1700-1914, Stanford: Stanford University Press, 1987; Ann OʼHear, Pow-
er Relations in Nigeria: Ilorin Slaves and their Successors, Rochester: University of Roch-
ester Press, 1997; Martin Klein, Slavery and Colonial Rule in French West Africa, Cam-
bridge: Cambridge University Press, 1998; Peter Haenger (editado por J. J. Shaffer e Paul
E. Lovejoy), Slaves and Slave Holders on the Gold Coast: Towards an Understanding of So-
cial Bondage in West Africa, Basel: P. Schlettwein Publishing, 2000. Segue no final deste
capítulo uma amostra da produção sobre o tema da resistência escrava na África desde a
publicação deste capítulo na Afro-Ásia.
9 Particularmente, nos Estados Unidos. Joseph C. Carroll, Slave Insurrections in the United
States, 1800-1865, Boston: Chapman & Grimes, 1938, e Herbert Aptheker, American Ne-
gro Slave Revolts, Nova York: International Publishers, 1943, são reconhecidos como os
pioneiros neste campo de estudos. Todavia, historioradores norte-americanos não “inven-
taram” os estudos sobre a resistência à escravidão. Ver, por exemplo: C. L. R. James, The
Black Jacobins: Toussaint L’Ouverture and the San Domingo Revolution, Nova York: Dial
Press, 1938; Raimundo Nina Rodrigues, Os africanos no Brasil, São Paulo: Companhia Edi-
tora Nacional, 1932 [1906], capítulos sobre o quilombo de Palmares e as revoltas baianas
do século XIX.
10 Aida Freudenthal, “Os quilombos de Angola no século XIX: A recusa da escravidão”, Estu-
dos Afro-Asiáticos, no. 32 (1997), pp. 109-134.
11 Uma historiadora norte-americana, especialista em história da África, admitiu com gran-
de franqueza que a “historiografia sobre a África ainda não capturou o horror e o terror
que acompanharam a dimensão africana do tráfico de escravos. Dentro da história mun-
dial é à narrativa daqueles que vieram a ser escravos nos Estados Unidos que foi dado lu-
gar de honra e que representou uma crônica universal de sofrimento, angústia e triunfo
eventual. Mas a agenda política contemporânea dos descendentes de africanos tem pro-
vocado o desvio da atenção dos historiadores das abordagens complexas e das narrati-
vas contraditórias das circunstâncias sob as quais estas pessoas foram escravizadas, as-
sim como da história dos africanos escravizados que não foram enviados às Américas, ao
além-Saara e oceano Indico, mas que permaneceram no continente africano. Em outras
palavras, este silêncio assustador cria um vazio onde as vozes e experiências dos africa-
nos no continente deveriam ser articuladas”. Ver Carolyn A. Brown, “Epilogue: Memory
as Resistance: Identity and the Contested History of Slavery in Southeastern Nigeria, an
Oral History Project”, in Diouf (org.), Fighting the Slave Trade, p. 219.
12 Um apelo potente para a reintegração do passado africano em correntes mais amplas
da história mundial encontra-se em Joseph C. Miller, “Presidential Address: History and
Africa/Africa and History”, American Historical Review, vol. 104, no. 1 (1999), pp. 1-32.
17 Femi J. Kolapo, “Documentary ‘Silences’ and Slave Resistance in West Africa during the
Era of the Atlantic Slave Trade”, texto apresentado ao Tubman Seminar, York University,
Toronto, 09/10/2002, e à conferência da African Studies Association (UEA) e da Canadian
Association of African Studies, Nova Orleans, 11-14/11/2004.
18 Paul E. Lovejoy, “Fugitive Slaves: Resistance to Slavery in the Sokoto Caliphate,” in Gary
Y. Okohiro (org.), In Resistance: Studies in African, Caribbean, and Afro-American Histo-
ry, Amherst, MA: University of Massachusetts Press, 1986, p. 73.
19 Darold D. Wax, “Negro Resistance to the Early American Slave Trade”, Journal of Negro
History, no. 51 (1966), pp. 1-15; E. A. Oroge, “The Fugitive Slave Crisis of 1859: A Factor
in the Growth of Anti-British Feelings among the Yoruba”, Odu, no. 12 (1975), pp. 40-53;
Idem, “The Fugitive Slave Question in Anglo-Egba Relations, 1861-1886”, Journal of the
Historical Society of Nigeria, no. 8 (1975), pp. 61-80; P. A. Igbafe, “Slavery and Emanci-
pation in Benin, 1897-1945,” Journal of African History, no. 16 (1975), pp. 417-424; Oru-
no D. Lara, “Traite négrière et résistance africaine”, Présence africaine, no. 94 (1975), pp.
140-170; Richard Roberts e Martin Klein, “The Banamba Slave Exodus of 1905 and the
Decline of Slavery in the Western Sudan”, Journal of African History, vol. 21, no. 3 (1980),
pp. 375-394; José Maianga, “A luta dos escravos em S. Tomé no século XVI”, África: litera-
tura, arte, cultura, no. 2 (1980), pp. 437-443; G. M. McSheffrey, “Slavery, indentured servi-
tude, legitimate trade and the impact of abolition in the Gold Coast, 1874-1901”, Journal
of African History, vol. 24, no. 3 (1983), pp. 375-394; Paul E. Lovejoy, “Problems in Slave
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Slavery and the Slave Trade, Madison: University of Wisconsin Press, 1986, pp. 235-272;
Idem, “Fugitive Slaves”; Martin Klein, “Slave Resistance and Slave Emancipation in Coast-
al Guinea”, in Suzanne Miers e Richard Roberts (orgs.), The End of Slavery in Africa (Mad-
ison: University of Wisconsin Press, 1988), pp. 203-219; Bronislaw Nowak, “The Mandin-
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la traite dans les comptoirs d'Afrique,” in Marcel Dorigny (org.), Les Abolitions de l’Escla-
vage de L. F. Sonthonax à V. Schoelcher 1793, 1794, 1848, Paris: Presses Universitaires
de Vincennes/Éditions UNESCO, 1995, pp. 73-76; Jan Vansina, “Quilombos on S. Tomé, or
in Search of Original Sources”, History in Africa, no. 23 (1996), pp. 453-59; Ismail Rashid,
“Escape, Revolt and Marronage in 18th and 19th Century Sierra Leone Hinterland”, Cana-
dian Journal of African Studies, no. 34 (2000), pp. 656-683.
20 William G. Clarence-Smith, “Runaway Slaves and Social Bandits in Southern Angola,
1875-1913”, in Heuman (org), Out of the House of Bondage, pp. 23-33; Freudenthal, “Os
quilombos de Angola no século XIX”; Beatrix Heintze, “Asiles toujours menacés: fuites
d'esclaves en Angola au XVIIe siècle”, in Katia de Queiros Mattoso (org), Esclavages: His-
toire d'une diversité de l'océan Indien à l'Atlantique sud, Paris: L'Harmattan, 1997, pp.
101-122; José C. Curto, “Struggling Against Enslavement: José Manuel in Benguela, 1816-
1820”, Canadian Journal of African Studies, vol. 39, no. 1 (2005), 96-122; Idem, “The Sto-
ry of Nbena, 1817-1820: Unlawful Enslavement and the Concept of 'Original Freedom' in
Angola”, in Paul E. Lovejoy e David V. Trotman (orgs.), Trans-Atlantic Dimensions of Eth-
nicity in the African Diaspora, Londres: Continuum, 2003, pp. 44-64; Idem, “A restituição
de 10.000 súbditos ndongo ‘roubados’ na Angola de meados do século XVII: uma análise
preliminar”, in Isabel C. Henriques (org.), Escravatura e Transformações Culturais: Áfri-
ca-Brasil-Caraíbas, Lisboa: Editora Vulgata, 2002, pp. 185-208; Idem, “Un Butin Ilégi-
time: Razzias d'esclaves et relations luso-africaines dans la région des fleuves Kwanza et
Kwango en 1805”, in Isabel C. Henriques e Louis Sala-Molins (orgs.), Déraison, Esclavage
et Droit: Les fondements idéologiques et juridiques de la traite négrière et de l'esclavage,
Paris: Éditions UNESCO, 2002, pp. 315-327. Ver também capítulo de Roquinaldo Ferreira
neste livro.
21 G. A. Akinola, “Slavery and Slave Revolts in the Sultanate of Zanzibar in the Nineteenth
Century”, Journal of the Historical Society of Nigeria, no. 6 (1972), pp. 215-228; Jean Bar-
assin, “La révolte des esclaves à l’Île Bourbon (Réunion) au XVIIIe siècle”, in Mouvement
de Populations dans l’Océan Indien, Paris: Librarie Honoré Champion, 1979, pp. 357-391;
Dennis. D. Cordell, “The Delicate Balance of Force and Flight: The End of Slavery in East-
ern Ubangi-Shari”, in Miers e Roberts, (orgs.), End of Slavery in Africa, pp. 150-171; Lee
Cassanelli, “Social Construction of the Somali Frontier: Bantu Former Slave Communi-
ties in the Nineteenth Century”, in Igor Kopytoff (org.), The African Frontier: The Repro-
duction of Traditional African Societies, Bloomington: Indiana University Press, 1987,
pp. 216-238; Jonathan Glassman, “The Bondman's New Clothes: The Contradictory Con-
sciousness of Slave Resistance on the Swahili Coast”, Journal of African History, no. 32
(1991), pp. 277-312; Prosper Ève, “Les formes de résistance à Bourbon de 1750 à 1789”, in
Dorigny (org.), Les Abolitions de l’Esclavage, pp. 49-72; Richard B. Allen, “Marronage and
the Maintenance of Public Order in Mauritius, 1721-1835”, Slavery and Abolition, vol. 4,
no. 3 (1983), pp. 214-232; L. Sylvio Michel, Esclaves Résistants, Mauritius: Quad Printers,
1998; Edward A. Alpers, “Flight to Freedom: Escape from Slavery among Bonded African
in the Indian Ocean World, c. 1750-1962”, Slavery and Abolition, vol. 24 (2003), pp. 51-68;
Idem, “The Idea of Marronage: Reflections on Literature and Politics in Réunion”, Slavery
and Abolition, vol. 25, no. 2 (2004), pp. 18-29.
22 Karen Harris, “The Slave Rebellion’ of 1808”, Kleio, vol. 20 (1988), pp. 54-65; Patricia Van
der Spuy, “Making Himself Master’: Galant’s Rebellion Revisited”, South African Histori-
cal Journal, vol. 34 (1996), pp. 1-28. Ver também os trabalhos de Ross, Worden, Shell e Ma-
son citados na nota 6.
23 Heintze, “Asiles toujours menacés”.
pode ser agora abordada a partir das fontes. 38 Os mesmos dados também
podem ser utilizados para melhor perceber o deslocamento, tanto físico
como cultural, destas pessoas para trabalharem para seus donos: de qual
maneira teria a experiência de Julio Nhuanhanha, um homem de 30 anos
da nação ngola e propriedade de Dom João Cacullo Cavuinge, um soba
dos dembos, 39 sido diferente ou similar à de André Francisco Luiz, 40 um
homem cuja proprietária era Dona Ana Joaquina dos Santos e Silva, a
mais importante mercadora comerciante e proprietária de escravos em
Luanda em meados do século XIX?41
Outros dados relativos aos fugitivos recapturados não são menos
significativos. Um destes é o lugar da recaptura, quase sempre listado. Este
se nos apresenta como um indicador geral de para onde estes fugitivos
em particular tentavam refugiar-se: famílias em aldeias que tentavam
reintegrar-se, o que por vezes pode ser correlacionado com dados sobre o
lugar de nascimento; espaços ocupados por suas formações sociopolíticas,
que também pode ser correlacionado com dados sobre etnicidade; ou até o
santuário relativo oferecido pelos quilombos então estabelecidos no inte-
rior de Luanda e conhecidos de todos. Outra informação potencialmente
importante é o lugar em que os fugitivos recapturados esperavam para
serem reivindicados por seus donos. Isto pode dar-nos preciosas pistas
sobre os espaços geográficos, culturais e econômicos do destino para o
qual os fugitivos tentavam escapar, visto que não deveriam ficar muito
longe dos locais de sua escravidão ou de seus donos.
Não menos importante é o tipo de fuga através da qual os recapturados
tentavam escapar de seus amos. Na maioria dos casos, os fugitivos eram
continuação 37
trabalhos do autor listados na bibliografia desta obra principal; Achim von Oppen, Terms
of Trade and Terms of Trust: The History and Contexts of Pre-colonial Market Production
around the Upper Zambezi and Kasai, Hamburg: Lit Verlag, 1994.
38 Comparar os trabalhos de Joseph C. Miller e de von Oppen citados na nota anterior com:
Luciano Raposo, Marcas de escravos: listas de escravos emancipados vindos a bordo de
navios negreiros (1839-1841), Rio de Janeiro: Arquivo Nacional/CNPq, 1990; Roquinaldo
A. Ferreira, “Fontes para o estudo da escravidão em Angola: Luanda e Icolo e Bengo no pós-
tráfico de escravos”, in Construindo o passado Angolano: As fontes e a sua interpretação.
Actas do II Seminário internacional sobre a história de Angola, Luanda, 4 a 9 de Agosto de
1997, Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugue-
ses, 2000, pp. 667-680.
39 BOA, no 4, 23/01/1875, p. 50.
40 ____, no 632, 07/11/1857, p. 5.
41 Sobre Dona Ana, ver: Julio de Castro Lopo, “Uma Rica Dona de Luanda”, Portucale, no. 3
(1948), pp. 129-138; Carlos Alberto Lopes Cardoso, “Dona Ana Joaquina dos Santos Silva
Industrial Angolana da Segunda metade do Século XIX. Luanda”, Boletim Cultural da Câ-
mara Municipal de Luanda, vol. 37 (1972), pp. 5-14; Mário A. Fernandes de Oliveira, Al-
guns Aspectos da Administração de Angola em Época de Reformas (1834-1851), Lisboa:
Universidade Nova de Lisboa, 1981, pp. 36-64; Douglas L. Wheeler, “Angolan Woman of
Means: D. Ana Joaquina dos Santos e Silva, Mid-Nineteenth Century Luso-African Mer-
chant Capital of Luanda”, Santa Barbara Portuguese Studies, vol. 3 (1996), pp. 284-297.
42 BOA, no 749, 24/09/1859, p. 3. Dos fugitivos pertencentes a Victoriano, pelos menos 32 fo-
ram recapturados entre 1852 e 1872.
43 ____, no 18, 05/05/1866, p. 118.
44 Lovejoy, “Problems in Slave Control in the Sokoto Caliphate”; Idem, “Fugitive Slaves”.
45 Para os litigíos sobre a herança de Dona Ana Joaquina, ver Cardoso, “Dona Ana Joaquina
dos Santos Silva”. Sobre as fugas ocorridas quando seus escravos souberam da sua mor-
te, ver Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Angola, Correspondência dos Governadores,
Pasta 26, Oficio de José Rodrigues Coelho do Amaral, Governador Geral de Angola, para
Secretario e Ministro d’Estado dos Negocios da Marinha e do Ultramar, 04/06/1860.
49 João de Andrade Corvo, Relatorios do Ministro e Secretario d’Estado dos Negocios da Ma-
rinha e Ultramar apresentados A Camara dos Senhores Deputados na Sessão Legislativa
de 1875, Lisboa: Imprensa Nacional, 1875, pp. 58-59; Gerardo A. Pery, Geografia e Estatis-
tica Geral de Portugal e Colonias, Lisboa: Imprensa Nacional, 1875, p. 357. Sobre os liber-
tos, ver nota 53.
50 José C. Curto e Raymond R. Gervais, “A História da População de Luanda Durante a Últi-
ma Etapa do Tráfico Atlântico de Escravos, 1781-1844”, Africana Studia, no. 5 (2002), pp.
75-130.
51 Curto, “The Anatomy of a Demographic Explosion”.
52 “Mappa Estatistico da População de Angola, 1861,” BOA, no 27, 04/07/1863, entre as pp.
212-213.
53 “Mappa Estatistico da População da Provincia d'Angola Referido ao Dia 30 de Junho de
1866,” AHU, Sala dos Códices, Conselho Ultramarino, Pasta 2 (1855-1866 Angola, Moçam-
bique, India).
54 Museu Nacional da Escravatura, A abolição do tráfico e da escravatura em Angola: docu-
mentos, Luanda: Ministério da Cultura, 1997, pp. 9-45.
55 Ibid, p. 7.
Angola entre 1846 e 1876 está no fato de que se torna agora possível
individualizar casos e ir além das estruturas abstratas e despersonalizadas
que têm caracterizado a historiografia sobre a resistência à escravidão
na África, tarefa ainda por concluir em qualquer parte do continente.
Ao mesmo tempo, quando, em 22 de julho de 1854, Lourença Bernarda,
escrava de Dona Anna Ferreira dos Santos e bem aculturada à sociedade
escravocrata de Luanda, foi anunciada como recapturada em Massangano
com suas três crias, o que nos diz este acontecimento sobre a natureza da
escravidão, assim como sobre a resistência a esta instituição em Angola?56
O fato de que a resistência tenha aumentado dentro do contexto de uma
“morte lenta para a escravidão”57 é importante efetivamente.
Os dados encontrados no Boletim Oficial de Angola sobre esta pro-
blemática, obviamente, não são perfeitos. Serão eles representativos
de todos os fugitivos que permaneceram em liberdade ou até de toda
a população escrava? Os arquivos cartoriais em Angola, recentemente
localizados, podem oferecer mais informação para que possamos com-
preender melhor a relação entre o número total de escravos e aqueles em
fuga; estes, porém, permanecem por inventariar, o que torna a pesquisa
bastante difícil e laboriosa.58 Visto que muitos dos fugitivos recapturados
nasceram em Luanda ou estavam bem aculturados neste espaço urbano,
os preciosos registros de batismos, casamentos e óbitos existentes no
Arquivo do Bispado de Luanda poderiam ajudar na reconstrução de
biografias históricas de alguns destes indivíduos: todavia, por motivo de
reformas, esta instituição continua fechada por período indeterminado.59
Consequentemente, estamos diante de uma situação que não é inusitada
para os historiadores: trabalhar com fontes incompletas.
Mesmo assim, a falta de acervos documentais como estes não significa
que os anúncios dos fugitivos recapturados sejam a única fonte de que
dispomos. Efetivamente, existem outras fontes para melhor compreen-
der o problema da resistência à escravidão através da fuga de escravos.
Temos, por exemplo, um número razoável de anúncios particulares sobre
escravos em fuga publicados por seus proprietários no Boletim Oficial
63 Sobre o AHU, onde está depositada uma coleção importantissíma de documentos sobre
Angola, ver José C. Curto, “A colecção de manuscritos angolanos do Arquivo Histórico Ul-
tramarino de Lisboa: para um guia de trabalho”, Revista Internacional de Estudos Africa-
nos, no. 6-7 (1987), pp. 275-306. Para os arquivos em Angola, ver: Joseph C. Miller, “The Ar-
chives of Luanda, Angola”, International Journal of African Historical Studies, vol. 7, no. 4
(1974), pp. 551-590; David Birmingham, “Themes and Resources of Angolan History”, Af-
rican Affairs, vol. 73 (1974), pp. 188-203.
64 Paul E. Lovejoy, “Biography as Source Material: Towards a Biographical Archive of En-
slaved Africans”, in Robin Law (org.), Source Material for Studying the Slave Trade and
the African Diaspora, Stirling: Centre of Commonwealth Studies, University of Stirling,
1997, pp. 119-140; Idem, “Identifying Enslaved Africans in the African Diaspora”, in Paul
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Mapa de Angola
1 Foram várias investidas para aumentar a presença portuguesa em Angola entre 1836 e
1860. Três destas iniciativas tiveram grande visibilidade. O Ambriz, uma região sem so-
berania definida, foi ocupado em 1855. Fundou-se, em 1848, uma colônia, Mossamedes,
com portugueses que saíram de Pernambuco fugindo do clima de antilusitanismo durante
a Revolução Praieira. Além destas iniciativas, a partir de 1836, desencadeou-se um ciclo
de investidas militares para submeter as regiões a leste do Rio Kwango. Não se trata aqui
de aferir o quanto tais iniciativas tiveram êxito. Mossamedes, por exemplo, não teve êxi-
to imediato. Apesar disto, é claro o esforço reordenador português em Angola a partir de
1836. E o fim do tráfico ilegal, é preciso dizer, ao afastar os riscos à soberania portuguesa,
também fez parte desta reordenação.
1 Este texto foi originalmente o terceiro capítulo da dissertação de Mestrado "Dos sertões
ao Atlântico: tráfico ilegal de escravos e comércio lícito em Angola (l830-1860)", defen-
dida na Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1996. Algumas mudanças foram fei-
tas por acréscimo de dados coletados durante pesquisa em Luanda e Lisboa entre julho e
setembro de 1998. Agradeço às seguintes instituições pela série de pequenos financia-
mentos que tornaram possível esta pesquisa: Centro de Estudos Latino-Americanos e
Centro de Estudos Africanos, Programa de Estudos Internacionais e do Ultramar e o De-
partamento de História, todos da Universidade da Califórnia, Centro de Estudos Afro-A-
siáticos da Universidade Cândido Mendes, Fundação Tinker. Agradeço a João Reis pelo
minucioso trabalho de revisão.
2 Os dados populacionais de Luanda para l845 estão em José Joaquim Lopes de Lima. En-
saios sobre a statistica das possessões portuguezas na África Occidental e Oriental;
na Asia Occidental; na China e na Oceania, Parte 1. pág. 4-A, citado por René Pélissier,
Les guerres grises: résistances et revoltes em Angola (1845-1941), Paris: Montamets,
1977, p. 32
533
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA
3 George Tams, Visita as possessões portuguesas na Costa Ocidental da África, Porto: Typo-
graphia da Revista, 1861. pp. 218-219. Na transcrição de fontes impressas e manuscritas
da época, mantive a grafia original, mas em alguns casos interferi na pontuação para me-
lhor compreensão do texto.
bem que pareçam estreitamente unidas pelo muito que se tem lidado
em as baralhar.” 88
Até mesmo argumentos de higiene pública foram usados contra o
tráfico ilegal. Alguns administradores viam nele a causa principal das
doenças que se alastravam por Luanda. Milhares de escravos reunidos
em Luanda não tinham condições adequadas de acomodação. Assim, ao
tráfico ilegal de escravos eram dirigidos vários ataques, como o de deixar
de atrair capitais que poderiam se destinar à agricultura, à indústria e
às "artes". Além disto, o tráfico de escravos ofendia a religião cristã e
diminuía a população indígena ao levar os "braços para fora da província"
para o Brasil e, já então, para Cuba. Na visão de alguns administradores,
higienizar Luanda, algo vital do ponto de vista da saúde pública, significava
limpá-la dos quintais de escravos, onde, imaginava-se, se originavam as
doenças que afligiam a cidade.
O tráfico que atraía os capitais, que impedia o
desenvolvimento da agricultura, da indústria e das
artes, que desprezava a cidade que não era sua, que
ofendia pela base a existência sincera da religião
cristã, que diminuía a população indígena levando
os braços para fora da província, que amontoava o
ouro como um depósito para o levar a outras terras
sem deixar vestígios, e que estabelecia a moralidade
do acampamento militar como fundamento da vida
social de Luanda, era fatal para a saúde pública.
Aglomeravam-se nos quintais dos moradores grandes
porções de escravos duzentos, às vezes trezentos e
quatrocentos em cada quintal ali estavam, comiam,
dormiam e satisfaziam todas as necessidades
humanas, e dali infectavam as casas e a cidade com
os mais pútridos miasmas; e porque o peixe seco é
comida estimada e usual deles, era sobre o muro
destes quintais, e sobre os tetos das casas de palha,
vulgarmente chamadas cubatas, que tais preparações
se faziam, com manifesto dano para a saúde pública. 9
8 Sebastião Xavier Botelho, Escravatura: beneficios que podem provir as nossas posses-
sões d'África da proibição daquele tráfico, Lisboa: Typographia de José B. Morando,
1840. p. 1.
9 Antonio Augusto Teixeira de Vasconcellos (presidente da Câmara Municipal da Ci-
dade de São Paulo de Assunção de Luanda), Carta acerca do tráfico de escravos na
província de Angola, Lisboa: Imprensa de J. J. A. Silva, 1853. É claro que não foi pos-
ta de lado a estratégia de abolir o tráfico para que os escravos fossem empregados
na própria Angola: "A nosso ver a única tábua de salvação é a abertura de estradas
da cidade para as diferentes direções do interior, aproveitando os braços disponíveis
que o tratado de supressão nos deixou no país, com os quais bastante recursos pode-
remos tirar das muitas produções quase espontâneas deste vastíssimo solo." Ver o
Almanak statistico da provincia d'Angola e suas dependencias para o ano de 1852,
Luanda: Imprensa do Governo, 1851, p. 22. A partir de Carlos José Caldeira, que este-
ve em Luanda em 1852, tem-se mais um exemplo do argumento antitráfico baseado
na higienização de Luanda: "Assegurava-se que era mui sensível o melhoramento do
clima nestes últimos dias, devido em parte a reforma de maus habitos, de comesanas,
de ceias lautas e a cessação do comércio da escravatura que obrigava a ter amontoa-
das porções de negros nos pátios das casas, como nos currais de brutos sem asseio al-
gum, e donde se axalavam pestilentos miasmas." Carlos José Caldeira, Apontamen-
tos d'uma viagem de Lisboa à China, Lisboa: Typographia de Castro & Irmão, 1853, p.
200. O argumento científico também esteve presente na abolição do tráfico ilegal no
Brasil. Ver Sidney Chalhoub, Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial,
São Paulo: Companhia das Letras, 1996. pp. 72-76
10 John Monteiro, Angola and the River Congo, Londres: Mac Millan & Co., 1875, pp. 75-76.
11 Pimentel analisa desta forma o contexto que cercou o decreto português de 1836: "Es-
tas exceções [que permitiam que os portugueses transportassem escravos de uma colônia
para outra de Portugal mesmo depois do decreto antitráfico de 1836] vinham ao encon-
tro das pretensões da política de Sá da Bandeira de desenvolver as possessões portugue-
sas em África e de criar alternativas econômicas ao tráfico negreiro, o que pressupunha
a existência de uma mão-de-obra abundante, a sua concentração em território nacional
e a proibição da exportação de não-de-obra para o estrangeiro." Ver Pimentel, Viagem ao
fundo das consciências, p. 341 . Adelino Torres, O Império Português: entre o real e o ima-
ginario, Lisboa: Escher, 1994. Ver também Richard Roberts e Suzanne Miers, "The end of
slavery in Africa", in Suzanne Miers e Richard Roberts (orgs.), The end of slavery in Africa
(Madison: University of Wisconsin Press, 1988), p. 15.
12 Ao mencionar a cultura do algodão e do açúcar, John Monteiro se refere mais propriamen-
te aos anos 1860. Ver Monteiro, Angola and River Congo, pp. 75-76.
13 Para os embarques de escravos ver David Eltis, Economic Growth and the Ending of the
Transatlantic Slave trade, Nova York: Oxford University Press, 1987, p. 256, e o banco de
dados www.slavevoyages.org. A queda no preço dos escravos em Luanda pode ser vista em
Robert Harms, River of Wealth, River of Sorrow: The Central Zaire Bassin in the Era of
the Slave and Ivory Trade, 1500-1891, Londres: Yale University Press, 1981, p. 29. Ladis-
lau Magyar, Viagens no interior da Africa Austral nos anos de 1849 a 1857, edição ainda
em preparação em Luanda, cap. 7, pp. 14-17.
Gráfico 1: Preços de escravos no lcollo e Bengo entre 1858 e 1859 (em réis)
14 A população total do lcollo e Bengo está num relatório da administração portuguesa para
o ano de 1859. Ver AHU, Correspondência dos Governadores de Angola, 2ª Seção. Pasta
25.1 (1859). Para os registros sobre os 269 escravos que foram vendidos no lcollo e Bengo
em 1859, ver Arquivo Histórico de Angola (daqui para frente AHA), códice no. 2782, cota
9/c-2-2. Para o número de fogos no lcollo e Bengo, ver AHU. “Resumo e comparação no pa-
gamento do dizimo, em 23 de fevereiro de 1860”, na Pasta 26.1 (1860).
15 AHU, Correspondência dos Governadores, Angola, Pasta 26, "Relação dos libertos registra-
dos na Provincia d'Angola desde que existem indivíduos (1854) com tal condição até o fim
do ano de 1859"; e pasta 34, "Nota do numero de libertos que têm sido registrados na Pro-
vincia de Angola depois do decreto de 14 de dezembro de 1854 até 31 de dezembro de 1863".
Os dados para a montagem desta tabela me foram gentilmente cedidos por José C. Curto.
16 Na linguagem da época, "portos do norte" era uma designação genérica aplicada ao Rio
Zaire, a Ambriz, Cabinda e outros pontos ao norte de Luanda.
17 Para o movimento do porto de Luanda, ver Boletim Oficial do Governo-Geral da Provincia
de Angola (BOGGPA) entre 1845 e 1860.
A rebeldia escrava
Mas, se garantiu uma força de trabalho gratuita, o fim do tráfico ilegal
produziu também efeitos menos elogiados entre produtores e negociantes
luandenses. Luanda sofreu cada vez mais com as fugas e revoltas dos es-
cravos concentrados na cidade. Valores próprios da escravidão praticada no
interior, muitas vezes uma escravidão de tipo doméstica, influenciavam os
escravos das áreas dominadas pelos portugueses. Tudo indica que costumes
e práticas tradicionais nas sociedades do interior incentivavam a fuga dos
africanos escravizados na costa. Uma faixa de terra pequena e cercada por
povos independentes, que mantinham com os portugueses relações instáveis,
constituía a área sob domínio português em Angola. Por si só, isto criou um
quadro bastante favorável à rebeldia escrava. 19
Nas sociedades africanas a instituição da escravidão guardava grandes
diferenças em relação à escravidão mercantil praticada no espaço controlado
pelos portugueses em Angola. Ladislau Magyar esteve nos sertões de Angola
e identificou uma escravidão doméstica no "país de fala quimbundo". Segundo
Magyar, existiam os fuká e os dongo, duas classes diferentes de escravos. Os
fuká eram mantidos sob a posse de alguém como um "penhor", segundo diz
18 Idem. Para o boom algodoeiro, ver W. G. Clarence-Smith, Slaves, Peasants and Capitalists
in Southern Angola, 1840-1926, Londres: Cambridge University Press, 1979, p. 15.
19 Manning menciona a eclosão de várias revoltas escravas em vários pontos da África em
meados do século XIX. Ver Patrick Manning, Slavery and African life: Occidental, Orien-
tal and African Slave trades, Nova York: Cambridge University Press, 1990, p. 144.
20 Magyar, Viagens no interior da África Austral, cap. 7, p. 11. Sobre as peculiaridades da es-
cravidão africana, ver Manning, Slavery and African Life, p. 113.
21 Magyar, Viagens no interior da África Austral, p. 11.
22 Idem, p. 12.
23 As informações de Magyar foram confirmadas pelo depoimento de Henrique de Carvalho,
de 1890, conforme aponta Isabel Castro Henriques, Commerce et changement en Ango-
la: Imbagala et Tshokwe face à la modernité, Paris: L'Harmattan, 1995, p. 211. Há edição
em portugues sob o titulo Percursos da modernidade em Angola: dinâmicas comerciais e
transformações sociais no século XIX, Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropi-
cal e Instituto da Cooperação Portuguesa, 1997.
24 "Este tipo de fuga é, na maior parte das vezes, levado a cabo somente pelas escravas; num
homem seria considerado um sinal de especial covardia". Cf. Magyar, Viagens no interior
da África Austral, p. 13.
25 Idem, p. 13.
26 Idem, p. 13.
27 Isabel Castro Henriques mostra que um prestígio diretamente proporcional à quantidade
de escravos fazia os proprietários temerem pelas fugas de escravos: "il faut bien que les
propriétaires ne malménent pas les dépendants, sous peine de les voir déguerpir pour
continuação 27
aller s'installer chez le voisin, risque qu'aucun propriétaire ne peut courir, sous peine de
voir partir les hommes qui assurent son prestige". Henriques, Commerce et changement
en Angola, p. 205.
28 O abate de um boi que pertence a outra pessoa é considerado, nas crenças religiosas, como
crime grave; além disso, o preço de um boi é quase equivalente ao de um escravo, por isso
não é de admirar que não seja fácil resgatar um escravo fugido desta maneira. Aconte-
ceu uma vez que um dos meus escravos, depois de me ter causado graves danos por sede
de vingança, fugiu da maneira descrita, refugiando-se junto de um outro dono. Falei com
o soberano sobre o resgate deste escravo, não propriamente por vingança, mas para esta-
belecer um exemplo para os outros escravos. O soberano mandou então amarrar o escra-
vo fugitivo e também o seu novo dono, entregando-os a mim com as palavras: 'Este bran-
co aqui não goza das vantagens ligadas aos nossos hábitos rapaces, pois seria para ele uma
vergonha: por isso deve estar também livre das desvantagens dos mesmos'. Eu libertei
logo o dono amarrado, mandando-o em liberdade; com isso, o soberano ficou muito irrita-
do e pela minha desobediência tive que lhe pagar uma multa considerável, pois ele queria
a todo transe que aquele que acolhera o fugitivo ficasse também como escravo." Cf. Mag-
yar, Viagens no interior da África Austral, pp. 11-13.
33 AHU, Pasta l6A, 1850: Relatório do Governador-Geral referente ao período entre 17-08-
1848 e 31-12-1849. Aída Freudenthal encontrou registros que mostram que o quilombo
do lcollo já estava ativo em 1831. Aída Freudenthal, "Os quilombos de Angola no século
XIX: a recusa da escravidão”, Estudos Afro-Asiáticos, no. 32, (1997), pp. 109-134.
34 AHU, Pasta 17, 1850: Relatório da administração da Província de Angola para o ano de 1850.
35 Idem.
36 Idem.
37 AHU. Pasta 16A. 1850. Correspondência do Governador-Geral Adrião Accacio da Silveira
Pinto, em 15 de outubro de 1850.
38 Os casos de escravos que assassinavam seus donos se tornaram mais frequentes em fins
dos anos cinquenta e inícios dos sessenta. Ver as cartas de 1º e 20 de outubro de 1861 do
procurador régio Carlos Botelho de Vasconcellos para Lisboa. Um foi o assassinato do ne-
gociante holandês Ernesto Lipelt: "Ferrabraz e Manoel Carvalho apertaram e oprimiam-
lhe o pescoço e o peito, e a preta Eugênia calou-lhe o ventre e torceu-lhe os genitais [...]".
AHU, Correspondências dos Governadores de Angola, Pasta 16 (A). Ao mencionar apenas
30 empacasseiros em Luanda, Anne Stamm deve se remeter ao inicio dos anos quarenta.
Ver Anne Stamm, "La societé créole à Saint-Paul de Loanda dans les années 1838-1848",
Revue Française d'Histoire d'Outre Mer, no. 217 (1972), p. 581. Em 1851,eram 80 empa-
casseiros no policiamento de Luanda. Ver Almanak statistico da Provincia de Angola e
suas dependencias para o ano de 1852, p. 5. Tams, Visitas as possessões portuguesas, p.
207. Os empacasseiros são ainda mencionados por Carlos José Caldeira, Apontamentos
d'uma viagem de Lisboa à China, pp. 208-209.
39 AHU, Correspondências dos governadores, Pasta 19-1, 1853. Correspondência do Gover-
nador-Geral de Angola, Visconde do Pinheiro, para Lisboa, 12 de outubro de 1853.
fiscais." ''Fechar" a cidade, diga-se, era uma medida que se voltava não só
contra a fuga de escravos. Luanda era "aberta para os sertões por todos os
lados", facilidade aproveitada por alguns para contrabandear produtos sem
pagar os devidos impostos. Quanto aos escravos, só poderiam passar pelas
barreiras se tivessem todos os documentos expedidos pelo proprietário,
em conformidade com os regulamentos do governo provincial.
Tendo-me merecido a mais séria atenção os gravíssimos
desfalques que sofriam os cofres públicos com a introdução
clandestina e escandalosa de mantimentos, assim
como as perdas diárias que os habitantes desta cidade
experimentam com a fuga dos escravos; sendo insuficiente
para evitar tais danos a constante vigilância da polícia
por não ser possível, numa capital por esta aberta para o
sertão por todos os lados, prevenir completamente, nem
a entrada de uns, nem a entrada de outros, verificando-
se aquela, um manifesto prejuizo dos bons e verdadeiros
negociantes, que pagando exatamente os direitos devidos,
não podem concorrer no mercado com os contrabandistas
[...] entendi dever apresentar em sessão da Junta de
Fazenda o projeto de fechar a cidade por uma linha de
circunvalação, que tivesse, em certas e determinadas
distancias, as competentes casas fiscais e sendo este meu
pensamento aprovado achei por conveniente determinar
que do primeiro de janeiro de 1855 em diante, não possam
entrar pelas barreiras que se estabeleceram generos
de qualidade alguma para consumo, sem que venham
legalizados na conformidade da portaria deste governo nº
173 de 2-05-1850 [...] e mais disposições fiscais em vigor,
nem pelas mesmas barreiras possam sair escravos que se
não achem munidos dos competentes passaportes, guias,
ou bilhetes de seus senhores pela maneira determinada
nas circulares de (5-03-1853 e 6-09-1853 ... publicadas nos
boletins oficiais).41
41 AHU, Pasta 20, 1854, Governador-Geral Visconde do Pinheiro para Portugal, 24 de janeiro
de 1854.
43 AHU, Angola, Pasta 26, 1860, Comunicado do Governador-Geral de Angola, José Rodrigues
Coelho do Amaral, em 4 de junho de 1860, sobre os distúrbios ocorridos quando os escra-
vos de Ana Joaquina dos Santos Silva souberam da morte dela e tentaram fugir. Antes
disto, o mesmo governador, em 15 de janeiro 1859, mencionou que era comum que os es-
cravos se revoltassem quando morriam seus donos: "em Ambaca, havendo falecido o mo-
rador abastardo, Victoriano de Faria, parece que os seus numerosos escravos fizeram al-
guma desordem, querendo ausentar-se em massa. Isto é coisa ordinária em semelhantes
circunstancias pela repugnancia dos pretos a passarem para novos senhores" (AHU, Pas-
ta 25-3. Correspondencia dos Governadores de Angola). O episódio foi registrado desta
forma no relatório mensal do conselho de Ambaca de dezembro de 1858: "Tendo falecido
o abastado morador Victoriano de Faria, no 1º de janeiro, seus numerosos escravos se ar-
maram, tomando as armas e munições nos armazéns do finado, e acataram a pequena es-
colta que fora mandada para guardar a casa. A escolta cedeu ao número, sendo no conflito
ferido um oficial da companhia móvel. Em seguida, os escravos se ausentaram, tomando
a direção do sertão de Ginga. Fora do roubo de armas e pólvora, nenhum outro [crime] co-
meteram os mesmos escravos. Ficavam tomadas as providencias para impedir a repetição
de tais desordens se os escravos voltassem, e para estes serem capturados" (ver relatório
mensal do conselho de Ambaca de dezembro de 1858 no BOGGPA, nº 696, de 29 de janeiro
de 1859. Documento transcrito por José de Almeida Santos, Apenas um punhado de bra-
vos, 1845-1864, Luanda: Camara Municipal de Luanda, 1970, p. 272). Mais um ano se pas-
sou e os escravos de Victoriano de Faria continuavam fugidos. Aqui se confirma por que
os escravos fugiram quando Victoriano de Faria faleceu. Na verdade ele lhes havia pro-
metido cartas de alforria e os escravos sabiam que, a partir de sua morte, não teriam ga-
rantias do cumprimento da promessa, razão pela qual preferiram a fuga: "No dia 4 do mês
apareceram 25 escravos do falecido Victoriano de Faria, vindo do mato armados, diziam
que queriam suas cartas de alforria, pois que seu senhor lhes havia prometido em vida.
Foi contra eles a força, que eles não esperaram, mas na retirada roubaram nove barris de
pólvora de 10 Libras pertencentes ao feirante Motta, que iam para Cassange. A força pode
aprender outros 15 escravos do dito falecido que andavam foragidos" (BOGGPA, nº 704, 26
de março de 1859). Documento transcrito também por José de Almeida Santos, A Alma de
uma Cidade, Luanda: Camara Municipal de Luanda, 1973, p. 460. Victoriano de Faria atua-
va em Luanda, em 1846. Neste ano o investidor recebeu autorização da Junta de Fazenda e
se tornou um dos negociantes a emitir letras que circularam como numerário na praça de
Luanda. Pelo menos desde 1854, Victoriano de Faria atuava em Ambaca. Sua pujança mer-
cantil ficou patente quando se deu a arrecadação de "ofertas" para a construção da igreja
do distrito de Ambaca. Ele contribuiu com 40.000 réis, mais que os 30.000 réis oferecidos
pelo chefe do distrito. Ver BOGGPA, nº 466, 2 de setembro de 1854, p. 2.
45 Idem.
46 Idem.
47 Idem.
48 Idem.
49 Para as teses segundo as quais a procedência de escravos angolanos no século XIX era so-
bretudo do centro e do sul de Angola, ver Joseph Miller, Way of Death: Merchant Capi-
talism and the Angolan Slave Trade, 1730-1830, Madison: University of Wisconsin Press,
1988, p. 148 e 233; Achim von Oppen, Terms of Trade and Terms of Trust: The History and
Contexts of Pre-Colonial Market Production around the Upper Zambezi and Kasai, Ham-
burg: Lit Verlag, 1993, p. 59. Quanto ao registro de escravos e de enterramento de indiví-
duos no cemitério de Luanda, ver Roquinaldo Ferreira, "Fontes para o estudo da escravi-
dão em Angola: Luanda e Icollo e Bengo no pós-tráfico de escravos", Construindo o passa-
do angolano: as fontes e a sua interpretação. Atas do 2o Seminário Internacional sobre a
História de Angola, Luanda, 4 a 9 de agosto de 1997, Lisboa: Comissão Nacional para as Co-
memorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000, pp. 667-680.
1 Para o período que vai de meados do século XVIII a 1890, analisamos os “nomes de na-
ção” a partir de 27 séries documentais, englobando 8.155 escravos, 2.128 africanos li-
bertos e 358 africanos livres, num total de 10.641 registros. O resultado deste trabalho
compõe a minha tese de Nouveau Doctorat, apresentada à Université de Paris Sorbonne
(Paris IV), intitulada “Retrouver une identité: Jeux sociaux des Africans de Bahia: vers
1750 - vers 1890.”
2 Gentio (s.m. ou adj.) é termo utilizado na língua portuguesa do período com o significa-
do de bárbaro, idólatra, pagão que não é civilizado, selvagem. Da acepção latina (genti-
vos por genitivus), manteve o significado de natural, nativo; da acepção bíblica, o signi-
ficado de pagão, idólatra, “não circunciso”. Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasilei-
ra, Lisboa/Rio de Janeiro: Editorial Enciclopédia Limitada, s.d., vol. XII, p. 298.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA
3 Sobre estes primeiros relatos, ver entre outros: Gomes Eanes de Zurara, Crônica da Gui-
né, Barcelos: Livraria Civilização, 1973; Alvisi da Cadamosto, 1455-1457: Relations des
Voyages à la côte occidentale d’Afrique (1455-1457), trad. fr. de Ch. Schefer, Paris: Erne-
se Leroux Éditeur, 1895; Diogo Gomes, De Prima Inventione Guynee, Bissau: Centro de
Estudos da Guiné Portuguesa, nº 21, 1959; Valentim Fernandes, Description de la côte
occidentale d’Afrique (1506-1507), Bissau: Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, Pu-
blicação nº 11, 1951; Duarte Pacheco Pereira, Esmeraldo de Situ Orbis, Lisboa: Socieda-
de de Geografia de Lisboa, 1975; João de Barros, 1552: Ásia... I Década. Lisboa: Editorial
Ática; Agência Geral das Colónias, 1945; Filipo Pigafetta e Duarte Lopes, Relação do Rei-
no do Congo, região de África (1578), trad. de Rosa Capeans, Lisboa: Agência Geral do Ul-
tramar, 1951.
4 Cadamosto, 1455-1457: Relation de voyages, pp. 49-51.
10 Ambos os mapas fazem parte de “A Facsimile Collection of Early African Maps”, pertencen-
te à Fundação Calouste Gulbenkian de Paris. Esta coleção não está registrada sob nenhum
códice. Consta apenas seu nome na relação dos mapas da referida fundação
11 Reclus, Tratado de Geografia, v. XIII, p. 306. ed. 1887, apud Viana Filho, O negro na Bahia, pp.
32-33.
12 Pudemos constatar, nas fontes primárias que analisamos para o período de 1750-1890, que
as expressões “negro da Guiné” e “gentio da Guiné” continuavam a ser empregadas na Bahia
até o início do século XIX.
13 Viana Filho, O negro na Bahia, p. 38; Verger, Flux et reflux, p. 7.
14 A rede do tráfico na África e nas colônias, desde a época em que predominaram os arrenda-
mentos, era formada por uma alta administração que gozava de certas prerrogativas: pelos
feitores, escrivães, guardas e servidores das feitorias; pelos armadores, que punham seus
navios a serviço do tráfico; pelos avençadores, que recebiam licenças especiais (avenças)
para “resgatarem” cativos: e pelos olheiros, que exerciam as funções de vigias e espiões. Ha-
via ainda os “caçadores de escravos”, que tanto podiam ser originários de populações nati-
vas, quanto mestiços a serviço dos traficantes; os tangomaos da Guiné e os pumbeiros da re-
gião do Congo e de Angola. José Gonçalves Salvador, Os magnatas do tráfico, São Paulo: Pio-
neira/EDUSP, 1981, pp. 69-82.
15 Intérpretes existentes em cada feitoria europeia na África.
16 Uma prova de que esta rede de informantes funcionava encontra-se no fato de que, em ou-
tras regiões da América ou mesmo no Brasil, existiam registros de procedência muito mais
detalhados.
que seriam destinados.17 O que vale dizer que este dado não era compu-
tado no valor da “peça de Guiné”, medida de trabalho potencial, que era
calculada com base na idade, no sexo e na força física.
17 Esta sofisticação os traficantes só iriam adquirir algum tempo mais tarde, quando já se ge-
neralizara na sociedade brasileira algumas preferências sobre qual tipo de escravo para o
exercício de certas tarefas. Percebe-se então, através dos registros, uma preocupação de de-
talhar melhor a origem dos cativos.
18 Em 1575, os portugueses criaram a primeira feitoria em Angola e no ano seguinte construí-
ram a fortaleza de Luanda; em 1560 entregaram a conquista do território ao donatário Pau-
lo Dias de Novais e, finalmente, em 1592, criavam na região um Governo Geral.
19 Mais adiante discutiremos sobre a abrangência do termo Costa da Mina em relação ao trá-
fico baiano. O certo é que, a partir de 1780, a proporção de escravos da Costa da Mina e do
Golfo do Benim importados pela Bahia suplantou a dos escravos subequatoriais na razão de
3 para 1. Esta foi a proporção encontrada por Stuart B. Schwartz, Segredos internos: enge-
nhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835, São Paulo: Companhia das Letras, 1988,
p. 282, tendência que se confirmou, em linhas gerais, também nas séries documentais que
analisamos para o período.
20 Desde o final do século XVI eram frequentes as denúncias do desvio de cativos para os ter-
ritórios das Índias Ocidentais. No relatório de Abreu e Brito ao rei Felipe II, publicado por
Felner, encontra-se um relato pormenorizado dos expedientes de que se valiam os trafican-
tes para burlar o fisco, fazendo passar para as colônias espanholas os escravos que eram
destinados ao Brasil. Também o Conselho Ultramarino denunciava ao rei que “a escravaria
dos rios ia para as Índias e nenhuma para o Brasil”. Em 1613, segundo informação recolhida
por Scelle, Duarte Dias, contratador de Angola, despachava navios para Buenos Aires, regis-
trando-lhes a carga de negros como destinadas ao Brasil. Goulart, A escravidão africana, p.
104, 114 e 119.
21 A este respeito, e também sobre o papel representado neste comércio pelos “cristãos novos”,
ver Salvador, Os magnatas, pp. 38-41 e pp.128-141.
22 Os asientos eram contratos que autorizavam o tráfico de negros nas colônias espanholas. O
sistema dos asientos já havia sido inaugurado, em 1532, sob Carlos V, mas foi anulado logo a
seguir, voltando-se ao regime das “licenças”.
23 De acordo com Goulart, a maior parte dos escravos registrada no fisco como destinados à co-
lônia portuguesa era em realidade desviada para as Antilhas. Goulart, A escravidão africa-
na, pp. 104-106.
24 Exatamente à mesma época em que se iniciava o domínio espanhol sobre Portugal, a agroin-
dústria do açúcar começava a adquirir fôlego na região nordestina, especialmente em Per-
nambuco e no Recôncavo da Bahia.
25 O uso da expressão “negros da terra”, em oposição a “negros de Guiné”, é um exemplo eviden-
te de como o termo “negro” tornara-se equivalente a “escravo”. Para Schwartz, desde a Idade
Média, “em Portugal, a palavra ‘negro’ tornara-se quase sinônimo de escravo, e, com certe-
za no século XVI, ainda tinha implicações de servilismo.” Schwartz, Segredos Internos, p. 58.
Uma lei de Pombal, em 1775, abolia oficialmente a aplicação do termo aos indígenas, “pela
infâmia e vileza que isto lhes trazia por equipará-los aos da Costa d’África como destinados
para escravos de branco”. Cf. Thales de Azevedo, “O ‘crioulo’ entre os escravos e o cidadão”,
Cadernos Brasileiros - 80 Anos de Abolição, n. 47 (1968), vol. 10, p.27. Ainda sobre o assunto
ver John Manuel Monteiro, Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo,
São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
26 Sobre o impacto do contato entre o europeu e as culturas indígenas e a consequente dizima-
ção destas últimas, ver Schwartz, Segredos Internos, pp. 40-56.
27 O tabaco de terceira categoria exportado pela Bahia tinha a preferência dos africanos,
pela maneira especial como era preparado. As folhas rejeitadas na primeira e segunda es-
colhas eram molhadas em melado de cana enquanto torcidas. Esta técnica tornava o taba-
co baiano insubstituível na preferência dos africanos, na região do Golfo de Benim. Na fal-
ta de sucedâneos, holandeses, franceses e ingleses procuravam consegui-lo através dos
navios portugueses e, posteriormente, brasileiros que iam a região em busca de escravos.
Sobre o assunto, ver Verger, Flux et reflux, pp. 27-46.
28 Qualquer outra mercadoria proveniente da Europa, transportada pelos navios portugue-
ses para aquela área seria considerada contrabando. Verger, Flux et reflux, pp. 42-44.
29 Este conflito, que consumiu o restante das energias daquele reino só terminou em 1668
com a assinatura do tratado em que a Espanha reconhecia a independência de Portugal.
30 Mesmo após a trégua assinada com Portugal, os holandeses não sustaram sua política de
ocupação dos territórios daquele reino em África. Por sugestão de Maurício de Nassau, en-
tão governador do Estado Holandês do Brasil, foi dada a ordem aos navios da Companhia das
Índias para ocuparem Luanda e a seguir a faixa litorânea de Angola, onde os holandeses per-
maneceriam de 1641 a 1648. Um dos objetivos daquele governador era assegurar o forneci-
mento de escravos para Pernambuco. Herman Wätijen, O domínio colonial holandês no Bra-
sil, Rio de Janeiro: Cia. Editora Nacional, 1938, apud Goulart, A escravidão africana, p. 109.
31 Quando Portugal concluiu a paz com a Espanha (1668), este comércio era ainda relativa-
mente reduzido. A Metrópole procurou então, através da criação de Companhias de Comér-
cio, recuperar o terreno perdido aos brasileiros, submetendo o tráfico na Costa da Mina ao
controle da 1ª Companhia de Comércio de Cachéu e Cabo Verde (1676-1680) e posterior-
mente à Companhia Geral do Comércio do Brasil. Esta, apesar de não haver recebido, à época
de sua criação, o privilégio sobre o comércio de escravos, passou, em 1680, a poder cobrar di-
reitos sobre aquele comércio e a conceder os alvarás aos navios destinados à Costa da Mina.
Sobre o assunto, ver Verger, Flux et reflux, pp. 65-67.
32 Já em 1718 o então Vice-rei do Brasil, D. Sancho Faro, Conde de Vimieyro, fazia saber à
Lisboa que “os negros da costa da Mina são mais procurados para as minas e os engenhos
que os de Angola, pela facilidade com que estes morrem e se suicidam”. Verger, Flux et
reflux, p. 71.
33 Em 1725, o Conselho Ultramarino, valendo-se de uma tentativa de revolta dos escravos pro-
venientes da Costa da Mina na região das Gerais, instruía ao Vice-Rei do Brasil para que to-
masse as providências necessárias a evitar as sublevações de escravos contra os brancos e
constatava que o levante só tinha sido evitado pelo conflito existente entre os angolas e os
minas, a respeito do chefe que deveria guiá-los. Concluía que devessem ser enviados para as
Gerais, preferencialmente os negros de Angola, pois “se tem visto que estes são mais confi-
dentes, mais sujeitos e obedientes do que os Minas, a quem o seu furor e valentia pode ani-
mar a entrarem em alguma deliberação de se oporem contra os brancos [...]”. Verger, Flux et
reflux, p. 325.
34 Costa do Leste é uma das denominações utilizadas àquela época para a Costa a Sotavento
da Mina, à leste do Castelo de São Jorge. Este termo seria também utilizado como etnônimo
para alguns africanos.
35 A análise detalhada de todo este conflito encontra-se em Verger. Flux et reflux, pp. 61-126.
36 Em 30 de março de 1756, uma lei do futuro Marquês de Pombal concedia liberdade de co-
mércio a todos os negociantes na Costa da Mina, estabelecendo que a feitoria de Ajudá cui-
daria para que não houvesse mais de um navio por vez naquele porto. Esta decisão desagra-
dou em cheio aos comerciantes que atuavam na área e acabou por levá-los a procurar escra-
vos em outros portos à leste, fora do controle das determinações daquela lei.
37 Cf. Schwartz: “A despeito do louvável trabalho de muitos estudiosos, a história do tráfico ne-
greiro baiano ainda está por ser escrita, carecendo de documentação especialmente para o
período anterior a 1700”. Schwartz, Segredos Internos, p. 280. Por outro lado, grande parte
dos registros disponíveis sobre o tráfico para este período não é confiável por se tratar de
documentação fiscal. Todo especialista que tenha percorrido tal documentação sabe os ris-
cos que a mesma contém, tantos eram os artifícios empregados para fugir ao controle do Es-
tado. Segundo Fréderic Mauro, “Para estimar o volume do tráfico é muito importante consi-
derar o papel da fraude, que falseia todas as cifras oficiais”. Fréderic Mauro, Le Portugal et
l'Atlantique au XVIIe siècle, Paris: S.E.V.P.E.N., 1960, p. 179.
38 “Desapercebida de muitos, contestada por alguns, a superioridade da importação de negros
bantos, na Bahia, no século XVII, é incontestável. A sua importância foi extraordinária e os
seus marcos conservam-se ainda hoje. Representando a primeira entrada, em massa, de es-
cravos africanos para a Bahia, a sua cultura disseminou-se em todos os sentidos (...). Trazida
por negros mais dóceis, loquazes, preferidos para os serviços domésticos, dominou imper-
ceptivelmente, como veremos.” Viana Filho, O negro na Bahia, p. 81.
39 Trata-se de uma citação extraída da obra de Joanes de Laet, “História ou Anais da Compa-
nhia das Índias Ocidentais”, onde encontram-se inventariados: “Huma barca com 250 ne-
gros de Angola, hum navio de Angola com negros; hum navio de Angola com 200 negros;
hum navio de Angola com 280 negros; hum navio de Angola com 450 negros; hum navio de
Angola com 230 negros [...] e um patacho da Guiné, com 28 negros”. Viana Filho, O negro na
Bahia, p. 85.
40 Viana Filho, O negro na Bahia, p. 86.
41 Guio-me neste relato pelo texto de Schwartz, Segredos Internos, pp. 153-158.
42 Estes ataques vinham acontecendo desde a década de 1620-1630. Em 1649, Portugal deci-
diu-se finalmente pela criação da Companhia Geral do Comércio do Brasil, formada com ca-
pitais dos “cristãos-novos”, destinada a proteger os navios mercantes portugueses em troca
do monopólio sobre alguns produtos da Colônia.
43 Tal desorganização é constatada pelo próprio Viana Filho que transcreve uma representa-
ção dos oficiais da Câmara de Angola ao rei de Portugal, datada de 1650, onde queixam-se
das “guerras dos Sobas e Reis rebeldes [que] despovoaram as províncias de Glamba, Lurubo,
zaire, dongo, zenga, lubolo e as jagas e Rainha ginga desbaratarão os Reinos da umba gangel-
la matumba”, que tiveram como efeito reduzir o número das “peças” e impedir o acesso aos
“pumbos”. Viana Filho, O negro na Bahia, pp. 86-87.
44 O comércio entre a Bahia e a Costa da Mina conheceu uma progressão contínua. No quin-
quênio 1681-1685, 32 navios partiram de Salvador para aquele território. Este número já
atingia 114 navios no quinquênio 1706-1710. Cf. Verger, Flux et reflux, p. 11. Sobre a epi-
demia, é o próprio Viana Filho quem transcreve a Provisão de 22/06/1685, do Marquês das
Minas a Antonio de Andrade, para que fosse buscar escravos na Costa da Mina, pagando
continuação 44
direitos na Bahia, “pela notícia que veio dos Reinos de Angola de haver conhecido nele o mal
de bexigas de tal maneira que se pode temer que em muitos anos se não refaça a perda de
muitos negros que morreram dele [...]”. Viana Filho, O negro na Bahia, p. 100.
45 Viana Filho baseia-se nas notícias repertoriadas nos escritos de Gaspar Barleus (1660), An-
tonil (1711), Luis dos Santos Vilhena (1798), Henry Koster (1816), Louis-François de Tollena-
re (1816-18), James Gardner (1836-41), Luís Agassiz e Elizabeth Cary Agassiz (1865-1866).
46 Gaspar Barleus, autor da História dos feitos praticados no Brasil, afirma que os escravos na-
turais de Angola, sendo os mais trabalhadores de todos, gozavam de particular preferência
dos holandeses, motivo pelo qual, estes últimos, ao tempo de Nassau, conquistaram aque-
le reino. A. J. Antonil, Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas, considerando
as virtudes de cada nação africana para os trabalhos nos engenhos, anotou o seguinte: “Os
que vêm para o Brasil são ardas, minas, congos, de São Tomé, de Angola, de Cabo Verde e al-
guns de Moçambique [...] Os ardas e os minas são robustos. Os de Cabo Verde e de São Tomé
são mais fracos. Os de Angola, criados em Loanda, são mais capazes de aprender ofícios me-
cânicos que os das outras partes já nomeadas. Entre os congos, há também alguns, bastante
industriosos e bons não somente para o serviço da cana, mas para as oficinas e o meneio da
casa”. Como se pode perceber pelo texto, o jesuíta observa certas facilidades para o exercí-
cio de algumas tarefas, que atribui às nações de origem, mas leva também em conta algumas
diferenças individuais, tais como a força física, o grau de adaptação à nova sociedade (boçais
ou ladinos), o fato de serem originários de áreas já ocupadas há muito pelos europeus (re-
ferindo-se aos que vinham de Luanda). A. J. Antonil, Cultura e opulência do Brasil por suas
drogas e minas apud Viana Filho, O negro na Bahia, pp. 87-88.
47 Na Bahia algumas revoltas escravas antecederam ao relato de Koster (1816), o primeiro dos
informantes de Viana Filho a escrever sobre o século XIX: foram as revoltas de 1807, 1809,
1814 e 1816, envolvendo especialmente os haussás, nagôs e jejes.
Este dado é relevante, pois, como já vimos, existiam certas ideias que
haviam sido produzidas entre os setores que competiam no tráfico e que,
ao se generalizarem, foram também colocadas a serviço dos que temiam
a concentração de africanos de uma mesma região, como era o caso do
Conde da Ponte, Governador da Bahia.48
Atente-se ainda para fato de que Viana Filho, ao exigir que se desse aos
“bantos” o lugar que mereciam na formação da cultura de origem africana
na Bahia, acentuou naqueles povos exatamente a dominância dos traços que
eram mais apreciados pela sociedade escravista, tais como a docilidade, a
obediência aos senhores e a aptidão para o trabalho.49 Estas ideias o autor
vai buscar principalmente nos mesmos cronistas e viajantes do século XIX.
Vilhena, que escreveu em 1798, desfez-se primeiramente da reputação de
bons trabalhadores, que começavam a gozar, já à sua época, na Bahia, os
africanos provenientes da Costa da Mina, os quais considerava ‘ásperos e
traidores”. Quanto aos escravos de Benguela, considerava-os “mais amoráveis
e dóceis e percebem e falam a nossa língua melhor, e com mais facilidade
[...].”50 Koster, que passou por Salvador em 1816, época em que uma das
preocupações locais eram as revoltas de escravos, procurava explicar a
intranquilidade da Bahia pelo fato de receber muitos negros da Costa do
Ouro (sic). Sobre os angolas diria serem os melhores escravos, dedicados,
fiéis e honrados. Os congos, próprios para o campo, eram também dóceis,
embora não tão inteligentes ou corajosos.51 Tollenare, que permaneceu
no Brasil de 1816 a 1818, observaria, por seu turno, que entre os escravos
“os mais hábeis e convenientes para o serviço nas cidades são os negros
d’Angola; os Cabindas e Benguelas são dóceis e excelentes para o trabalho
55 João Pandiá Calógeras, baseando seus cálculos na taxa negativa de sobrevivência, aplicada
sobre a população negra existente no país às vésperas da Independência, chegou ao resulta-
do de uma importação de 5 a 6 milhões de escravos por século, totalizando 15.000.000 para
todo o período do tráfico. Rocha Pombo seguiu-lhe as pegadas, alcançando cifras mais ou
menos idênticas. Goulart, A escravidão africana, pp. 96-108.
56 Os critérios que nortearam seus cálculos basearam-se nas seguintes variáveis: o número de
engenhos em funcionamento em cada região, a proporção de africanos sobre o total da es-
cravaria, a média anual de produção de açúcar por engenho, a produção anual média dos es-
cravos nesta atividade, o número de escravos empregados em outras tarefas, a taxa de so-
brevivência sob regime de cativeiro e o número de cativos exportados pelo continente afri-
cano. Goulart, A escravidão africana, pp. 122-123
57 Enquanto na Bahia esses quatro etnônimos davam conta da classificação de origem dos es-
cravos da região subequatorial africana, em outras cidades brasileiras a situação era diver-
sa. No Rio de Janeiro, Mary Karasch encontrou, para o século XIX, 116 etnônimos utilizados
continuação 57
para classificar os africanos provenientes daquela região, enquanto que para os da África
Ocidental não foram encontradas senão as apelações Mina, Calabar e Cabo Verde. Mary C.
Karasch, “Slave Life in Rio de Janeiro, 1808-1850” (tese de doutorado, University of Wiscon-
sin, 1972), pp. 72-97.
58 Este era o papel dos pumbeiros, que se embrenhavam no território africano, trocando as
mercadorias europeias por escravos. Este sistema já era utilizado desde os primeiros tem-
pos do tráfico na região, quando o centro das operações ainda se concentrava no Reino
do Congo, transferindo-se para Angola quando o tráfico, após a conquista portuguesa, em
1575, para lá se deslocou.
59 Esta confusão é visível, ao menos na documentação referente ao século XIX que manusea-
mos. Um mesmo escravo aparecia ora sob a denominação de congo, ora sob a de angola.
60 O termo “banto” já esteve associado à noção de raça e de etnia, além de grupo linguístico. Se
bem que tais equívocos tenham ocorrido em diversos países, no Brasil encontramos tam-
bém alguns exemplos: Carlos Ott, considera banto “a raça negra propriamente dita”. Carlos
Ott, Formação e evolução étnica da cidade do Salvador, Salvador: Prefeitura de Salvador,
1955, vol. I, p. 56.
61 A visão deste processo reflete, em parte, o caráter sincrônico e a-histórico dos estudos an-
tropológicos, onde os grupos linguísticos se espalham pelo espaço físico através da segmen-
tação de linhagens, base mesma da concepção de etnia como foi concebida pela antropolo-
gia de origem colonial. Uma nova concepção sobre os “bantos” no Brasil encontra-se em Ro-
bert W. Slenes, “Malungu, ngoma vem’: África coberta e descoberta no Brasil”, Revista USP,
no 12 (1991-92), pp. 48-67
62 Optamos pela tradução da obra de Nina Rodrigues porque foi a partir dela que este autor re-
gistrou alguns dos equívocos sobre “sudaneses” e “bantos”.
Fonte: João José Reis, Rebelião escrava no Brasil, São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
71 Esta afirmação de Verger, tem validade inclusive para o período posterior ao Ciclo da Mina.
Pudemos constatar, em documentos baianos do final do século XVIII e século XIX que a de-
nominação Costa da Mina continuava a ser aplicada extensivamente aos jejes, nagôs, haus-
sás e mesmo a alguns africanos referidos como “da Guiné”.
72 Rodrigues, Os africanos no Brasil. p. 107.
73 Idem, p. 147. O próprio autor, em outra parte da obra, narrando uma visita que realizou ao
Maranhão, em 1896, onde foi visitar os últimos negros africanos conhecidos por “negros mi-
nas” na cidade de São Luís, diz haver encontrado duas velhas “uma jeje hemiplégica [...] e a
outra, uma nagô de Abeokutá [...]". Idem, p. 107.
74 Idem, p. 108.
75 Jean B. Debret, Voyage Pittoresque et Historique au Brésil..., Paris: Ed. Firmin-Didot Frères,
1834, vol. 2, p. 76. Sobre Abomé-Calavi, ver: Christian Merlo e Pierre Vidaud, “Dangbé et le
peuplement Houéda”, in François Medeiros (org.), Peuples du Golfe du Bénin (Aja-Ewé) (Pa-
ris: Karthala/Centre de Recherches Africaines, 1984), pp. 271-272
80 “A cultura Fanti-Ashanti quase não deixou vestígios no Brasil. Apenas algumas sobrevivên-
cias linguísticas na Bahia, absorvidas, porém, logo completamente pelo nagô. Foram os es-
cravos que falavam as línguas Tshi e Ga, da Costa do Ouro. Seriam os negros a que comumen-
te se dava a denominação de Minas.” Ramos, As culturas negras, p. 207.
81 Idem, p. 208, nota 15.
82 Idem, p. 208.
83 Se bem que a obra de Nina Rodrigues só tenha conhecido sua primeira edição em 1933, sua
elaboração situa-se entre a última década do século XIX e os primeiros anos do século XX.
Isto permite melhor situar a datação pretendida pelo autor quando se referia aos dois sécu-
los anteriores.
84 Henrique Dias, “Um cartel de desafio (Resposta às propostas de rendição dos holandeses”, in
Edison Carneiro (org.), Antologia do Negro Brasileiro (Rio de Janeiro: Ediouro, 1967), p. 82.
85 “[Q]ue nenhum negro, numa distância de dez léguas para o interior e ao longo da costa, se-
ria capturado ou vendido”. Mauro, Le Portugal, p. 166.
88 O termo foi utilizado por Dapper, apud Verger, Flux et reflux, p. 128. Encontra-se também
na mesma obra, no Mapa da Guiné de Sanson d’Abbeville, de 1656; na Carte de la Barbarie,
de la Negritie et de la Guinée, de 1707, feita por Guillaume de l’Isle; no mapa da Guiné, feito
por Bonne, em Paris (1730), nas ilustrações de nº 6, 8 e 10.
89 Vivaldo da Costa Lima, “Conceito de Nação nos candomblés da Bahia”, Afro-Ásia, no 12
(1976), pp. 73-74.
90 Costa Lima, “Conceito de Nação”, p. 74. Com o mesmo significado, mas reportando-o a ou-
tra origem, Robert Cornevin remete a origem do termo ao reinado de Agaja, rei de Agbomé,
obrigado ao pagamento de um tributo anual ao Alafin de Oyó. Para se vingarem de seus ini-
migos, os daomeanos os apelidaram inagonu, quer dizer “piolhentos”, que se transformou
em anagonu e depois em nagô. Robert Cornevin, Histoire du Dahomey, Paris: Berger-La-
vrault, 1962, p. 104.
91 Costa Lima, “O conceito de Nação”, p. 74.
é quanto ao fato da palavra nagô ter chegado no Brasil com os jejes. Tudo
leva a crer que o termo se generalizou, no século XVIII, quando o tráfico,
fazendo-se na região sob o controle do Daomé, adotou a designação local,
aplicada pelos daomeanos na identificação dos iorubás das regiões fron-
teiriças, estendo-a todos os demais grupos da área que possuíam traços
culturais comuns e consideravam-se originários de Ifé. Como, a princípio,
as guerras daomeanas fizeram a maior parte de seus cativos entre povos
anagôs, vizinhos do Daomé, é possível que tal fato tenha contribuído para
a aceitação do nome nagô entre os iorubás da Bahia, considerando-se que
aquele termo correspondia, de alguma forma, a uma das maneiras pela
qual eram identificados na África. A aceitação do apelido pelos demais
grupos iorubás pode ter-se operado a partir do contato entre os nagôs
“ladinos” e os recém-chegados, no momento em que as guerras entre o
Daomé e Oyó geraram a captura de prisioneiros provenientes das cidades
iorubás situadas mais a leste, onde o termo nagô não era usual.
Elbein dos Santos não aceita a origem fon para o termo nagô. Basean-
do-se em Abraham, considera anagonu ou nagô um ramo dos descendentes
iorubás de Ifé que teriam fundado diversos povoados na província de
Abeokutá, e também em Ofónyin e Ilaré. Portanto, o termo nagô seria
de origem iorubá e teria sido simplesmente incorporado pelos fons. O
termo, em seguida, seria aplicado de maneira extensiva a todos os povos
considerados como sendo da mesma origem. A autora leva em conta a
anterioridade do povoamento iorubá no centro do Daomé, especialmente
em Ketu, onde a lista tradicional dos Alaketu (reis de Ketu) permitiria
situar a implantação da realeza de origem nagô no século XII, dado que
estaria respaldado no informe de Dalzel que estimou em 1780 o reino do
quadragésimo Alaketu.
Interpretações deste tipo correm o risco de se deixarem envolver
pelas disputas de primazia cultural e de anterioridade sobre o território
tão frequentes nas tradições orais africanas quanto o são na historiografia
ocidental. 92 Este não nos parece o critério mais adequado para procurar
compreender o processo que teria presidido a algumas interpenetrações
culturais, constatadas na região onde o contato entre os nagôs e os fons
foi particularmente intenso. A presença dos nagôs em Ketu, desde o século
XII, poderia simplesmente procurar assegurar, a partir da tradição deste
93 Elbein dos Santos, referindo-se à extensão do termo anagonu, no Daomé, aos iniciados e sa-
cerdotes dos cultos de origem nagô, diz textualmente: “Esta designação é muito útil para
ajudar na determinação, no Daomé, da origem de alguns panteões e de suas entidades divi-
nas. Assim, por exemplo, os daomeanos, que adoram Mawu, Lisa, Sapata, Gu, revelam as ori-
gens estrangeiras desses, por chamar suas sacerdotisas Nagonu, gente nagô, independen-
temente, é claro, da origem étnica da própria sacerdotisa”. Santos, Os nagô e a morte, p. 30,
nota 8. Uma visão diferente sobre as similitudes religiosas entre nagôs e daomeanos encon-
tra-se em Honorat Aguessy, “Convergences religieuses dans les sociétés aja, éwé et yoruba
sur la côte du Bénin”, in Medeiros (org.), Peuples du Golfe du Bénin, pp. 235-240.
94 Santos, Os nagô e a morte, pp. 31 e 32.
95 Sobre a forma de adscrição étnica na África e a construção da identidade iorubá no século
XIX, ver Michel R. Doortmont, “The invention of the Yorubas: Regional and Pan-African Na-
tionalism Versus Ethnic Provincialism”, in Paulo F. de Moraes Farias e Karin Barber (orgs.),
Self-Assertion and Brokerage (Birmingham: University of Birmingham Centre of West
African Studies, 1990), pp. 101-108.
96 Esta atitude é particularmente evidenciada nos “testamentos dos libertos” e nos “autos pro-
cessuais” das revoltas africanas na Bahia, nos quais os africanos davam alguns detalhes so-
bre sua autoadscrição, dados que não constavam dos demais registros oficiais tais como
as “cartas de alforria”, os “inventários post-mortem” dos proprietários ou as “escrituras de
compra e venda de escravos”.
97 Respostas do negro Antonio, nagô, escravo do Brigadeiro Manoel Gonçalves da Cunha, in: A
Justiça de Joaquim, nagô, escravo do Brigadeiro Manoel Gonçalves da Cunha e Roque, nagô,
escravo de Francisco Lopes, Maço 50, “Devassa do levante de escravos ocorrido em Salvador
em 1835”, Anais do Arquivo do Estado da Bahia, vol. 38, p. 7. Citado por João José Reis, Rebe-
lião escrava no Brasil, São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 169. O grifo é meu.
98 Encontramos uma referência da aplicação deste termo na África, sob a forma Gège, na obra
de R. Verneau, Les races humaines, Paris: Librairie J.B. Baillière et Fils, 1891, p. 251. O autor,
cujas opiniões sobre as culturas negro-africanas não serão objeto de nossa consideração, in-
sere no Grupo Foy (Fon) os Daomeanos, Gèges e Nagos, de Porto Novo e os “negros do Bénin”.
Sobre os Gèges, informa terem vindo do Daomé no final do século XVIII, conquistado o terri-
tório de Porto Novo, então ocupado pelos nagôs, e reduzido a maior parte de seus habitantes
à escravidão. Yves Person, “Chronologie du royaume gun de Hogbonu (Porto Novo)”, Cahiers
d'études africaines, no 58 (1975), p. 233, nota 55; refere-se também aos Agège, presentes na
região, mas não dá maiores detalhes.
99 J. Geay fala apenas dos reinos de raça Djebou-Aja, termo que Cornevin grafa como Dje-
gou, ao se referir às chefias de origem ioruba das cercanias de Porto Novo. J. Geay, “Origi-
ne, formation e histoire du royayme de Porto-Novo d'après une légende orale des Porto-
Noviens”, Bulletin du Comité d’Etudes Historiques et Scientifiques de l'Afrique Occiden-
tale Française, vol. VII, no 4, (1924), p. 619; e Cornevin, Histoire du Dahømey, p. 48. A obra
de Akindélé e Aguessy, que contém uma ampla resenha das tradições regionais, não faz
nenhuma referência aos Djedj ou Gège. A. Akindé]é e C. Aguessy, “Contribuition à l’étude
de l’histoire de l’ancien royaume de Porto Novo”, IFAN, Mémoires, no 25, (Dakar: IFAN,
1953). As tradições recolhidas entre os Tofinnu da região lacustre do sul do Daomé, con-
siderados como os aliados dos Guns na conquista do território de Hogbonu (Porto Novo),
também não contém nenhuma menção aos Djedj. Bourgoignie, Les hommes de l’eau, pp.
45-63.
100 Sobre o tema, ver Person, “Chronologie du royaune gun”, pp. 217-238 e os artigos Roberto
Pazzi, Nicoué Lojou Gayibor, François de Medeiros e Honorat Aguessy, in Medeiros (org.),
Peuples du Golfe du Bénin.
101 Uma das versões da tradição Aja remete suas origens à leste, em Ayo (território do rei-
no Bariba, posteriormente a Oyo dos iorubás), ou do rio Kwara (Níger). Teriam chegado a
Tado, vila habitada pelos Azanus, após uma estadia na vila de Ké, que viria a ser o futuro
reino anagô de Ketu. Os Azanus, por sua vez, consideram-se parentes do fundador do an-
tigo reino de Kumasi, anterior aquele fundado pelos achantis, o que leva alguns a associa-
rem suas origens à área cultural Sonraï. Deste modo, o reino de Tado, considerado por al-
gumas tradições como cidade de origem dos povos aja-ewe-fon, teria se formado a partir
do contato da cultura aja com culturas sudanesas mais antigas ali estabelecidas. Roberto
Pazzi, “Aperçu sur l’implantation actuelle et les migrations anciennes des peuples de l'ai-
re culturelle Aja-Tado”, in Medeiros (org.), Peuples du Golfe du Bénin, p. 18.
102 Uma das tradições mais difundidas na área afirma que a partir da conquista, os anagô te-
riam passado a chamar a cidade de Hogbonu (que mais tarde viria a ser Porto Novo), de
Ajâcé, que significa “os Aja estabeleceram-se aqui”.
103 H. Baumann e Diedrich Westermann, Les peuples et les civilisations de l’Afrique, Paris:
Payot, 1957, pp. 346-347.
104 A este respeito, ver François de Medeiros, “Le couple Aja-Ewé en question”, in Medeiros
(org.), Peuples du Golfe du Bénin, pp. 35-46.
105 Joseph Ki-Zerbo, História da África Negra, Viseu: Publicações Europa-América, 1972, pp.
352-353.
106 Entre alguns dos autores mais importantes que relacionaram os jejes aos ewés, nos estu-
dos do negro no Brasil, encontram-se: Rodrigues, Os africanos no Brasil, p. 105; Ramos, As
culturas negras no Novo Mundo, p. 202; Edison Carneiro, Ladinos e Crioulos, p. 43; Basti-
de, As Américas negras, p. 124.
107 Era este o nome de um dos batalhões formados por escravos, na época da guerra contra os
holandeses em Pernambuco, que compunham o Regimento dos Homens Pretos de Henri-
que Dias. Cf. nota 84. Ainda no início do século XVIII, Antonil cita os Ardras entre as na-
ções africanas que vinham para o Brasil. Antonil, Cultura e opulência, p. 123.
108 Conforme a descrição de Garcia Mendes Castello Branco (1574 e 1565), citada por Luciano
Cordeiro, apud Verger, Flux et reflux, nota l, p. 159.
109 Person, “Chronologie du royaume gun”, pp. 227 e 232-233.
110 Compromisso da Irmandade do Senhor Bom Jesus com o soberano título de Senhor dos
Martírios, erecta pelos homens pretos de nasção Gege, neste Convento da Villa de Nossa
Senhora do Monte do Carmo da Villa de Nossa Senhora do Rozario da Cachoeira, este anno
de 1765”, AHU, Códice 1666. Agradecemos ao Prof. Júlio Braga, da UFBA, pela indicação
deste documento.
111 Capítulo II, do Compromisso da irmandade – “Da entrada dos Irmãos”.
112 Esta avaliação coincide com a constatada por Schwartz para a documentação que anali-
sou referente ao século XVIII: “As “nações” jeje e nagô começaram a chegar à Bahia em cer-
tas quantidades por volta de meados do século XVIII, e em grande número após 1790”. Sch-
wartz, Segredos internos, , p. 441, nota 41.
119 Conforme Nina Rodrigues, os Efon tinham “por tatuagem característica uma queimadura
na fronte”, donde o apelido. Rodrigues, Os africanos no Brasil, p. 106. Também Verneau, na
descrição que fez dos habitantes de Porto Novo, registrou que “les Gèges et les Nagos ne con-
tractent jamais d’alliances. Pour se distinguer les uns des autres, les premiers. c'est-à-dire
les conquerants, les Dahomiens, portent sur le front une cicatrice en forme de 7, tandis que
les seconds portent sur les joues trois cicatrices transversales (“os Geges e os Nagôs não ce-
lebram nunca alianças. Para distinguirem-se uns dos outros, os primeiros, isto é, os conquis-
tadores, os Daomeanos, têm sobre a testa uma cicatriz em forma de 7, enquanto os segun-
dos têm nas faces três cicatrizes transversais”). Verneau, Les races humaines, p. 253. A par-
tir destas duas citações, podemos supor que os “cara queimadas” procurassem se distinguir
dos daomeanos por pertencerem a outro setor dos fons, rival ou inimigo do Daomé, ou por
ser tal grupo equivalente aos Gège de Porto Novo a que se refere Verneau, também de ori-
gem fon, mas classificados simplesmente como daomeanos pelo referido autor. Pelo menos
a mesma cicatriz na fronte permite que aventemos esta hipótese.
120 Rodrigues, Os africanos no Brasil, p. 138.
Conclusão
É hora de darmos um balanço das principais constatações que
pretendíamos fazer quanto as denominações aplicadas à origem dos
africanos na Bahia, no período que antecedeu à época em que se situa
nosso estudo.
Desde o início da implantação do comércio de escravos no Brasil,
os registros sobre a procedência dos africanos estiveram sujeitos à
terminologia utilizada na rede do tráfico português, constituída não
apenas pelos administradores e escrivães das feitorias, encarregados
desta função, mas também por populações africanas e mestiças que se
dedicavam às diferentes tarefas de captura, manutenção, vigilância e
transporte dos cativos. Deste modo, os termos que foram utilizados para
designar as origens dos escravos provinham tanto do repertório das
denominações empregadas pelos europeus, quanto dos termos utilizados
pelas populações locais para classificar os indivíduos que pertenciam
a grupos que lhes eram conhecidos. Daí encontrarmos nos registros
designações de conteúdo extremamente generalizante, como “negro
da Guiné” e “Costa da Mina”, ou apenas simples referências aos portos
de embarque, como “Luanda” e “Cabinda”, todos estes evidentemente
extraídos do repertório europeu, ao lado de etnônimos locais, utilizados
pelas populações, direta ou indiretamente ligadas aos traficantes, para
nominar os cativos aprisionados nas vizinhanças, como vimos no exemplo
dos nagôs capturados pelos fons.
Por outro lado, é preciso não esquecer do que foi acumulado como
conhecimento “científico”, construído a partir destes “nomes de nação”
impostos de maneira tão aleatória. A literatura histórica e sociológica sobre
o negro no Brasil elaborou alguns conceitos acerca das características
culturais e da índole de alguns povos africanos que, malgrado carecerem
de fundamentos, encontram-se hoje amplamente disseminados. Falamos
1 Este ensaio é um capítulo do livro, ainda inédito, Irmandade negra e poder político no Bra-
sil escravista: história e teoria, adaptado para esta publicação. Agradeço calorosamente
aos colegas da linha de pesquisa Escravidão e invenção da liberdade, do Programa de Pós-
Graduação em História, os quais fizeram várias observações críticas úteis e indicaram bi-
bliografias pertinentes que foram incorporadas à presente versão.
2 Roger Bastide, Les Amériques noires: les civilisations africaines dans le nouveau mon-
de, Paris: Petite Bibliothèque Payot, 1973 (edição brasileira: As Américas negras: as civi-
lizações africanas no Novo Mundo, São Paulo: Difel/Edusp, 1974); e John Thornton, edi-
ção brasileira A África e os africanos na formação do mundo atlântico, 1400-1800, Rio de
Janeiro: Campus/ Elsevier, [1992] 2004. Ah! já ia me esquecendo: a epígrafe de Guimarães
Rosa é endereçada a mim próprio.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA
4 Bastide, Les Amériques noires, p. 15. A edição brasileira só chegou às minhas mãos quando
este artigo já estava em fase de revisão, por isso mantive minha própria tradução.
continuação 4
9 Idem, p. 177.
10 Ver também a respeito do caráter ativo dos africanos na reconstituição da família escrava,
entre outros: Stuart B. Schwartz, Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade co-
lonial, São Paulo: Companhia das Letras, 1988, particularmente o cap. 14; Katia de Queirós
Mattoso, Família e sociedade na Bahia do século XIX, São Paulo: Corrupio, 1988, pp. 111-
117; e Robert W. Slenes, Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da
família escrava – Brasil sudeste, século XIX, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
11 Para maiores detalhes, cf. Renato da Silveira, O candomblé da Barroquinha: processo de
constituição do primeiro terreiro baiano de keto, Salvador: Maianga, 2006, particular-
mente o cap. 3, pp. 241-252, e o cap. 10. Ver também “Sobre a fundação do Terreiro do Ala-
keto”, Afro-Ásia, no. 29-30 (2003), pp. 345-379.
12 Maria Inês Côrtes Oliveira, “Viver e morrer no meio dos seus: nações e comunidades afri-
canas na Bahia do século XIX”, Revista USP, no. 28 (1995-1996), pp. 174-193, cit. p. 176.
continuação 14
17 Vários autores já citaram esta carta do Conde dos Arcos, a começar por Nina Rodrigues.
Ver, a respeito, Silveira, O candomblé da Barroquinha, pp. 256-257.
19 Matory está polemizando com Benedict Anderson, para quem os Estados-nações moder-
nos é que seriam “comunidades imaginadas”. Fiquei com a sensação de que Matory não en-
tendeu Anderson muito bem porque, para este, a nação enquanto comunidade política é
imaginada, pois “mesmo os membros da mais minúscula das nações jamais conhecerão,
encontrarão ou sequer ouvirão falar da maioria dos seus companheiros, embora todos te-
nham em mente a imagem viva da comunhão entre eles”. Anderson, Comunidades imagi-
nadas, São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 32. Matory não distingue o caráter glo-
bal do Estado-nação do caráter local da nação colonial, erro de apreciação cometido por
outros autores, como veremos quando voltarmos a Anderson mais adiante.
22 É, a meu ver, a correta interpretação de João José Reis em Rebelião escrava no Brasil: a
história do levante dos malês em 1835, São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 415-
417. Para a formação de um sentimento nacional iorubano simultaneamente na África e
na Bahia, cf. Silveira, O candomblé da Barroquinha, particularmente o capítulo 14, “A que-
da do Império de Oyó e o novo pacto nagô-iorubá”. A primeira gramática e o primeiro di-
cionário iorubás foram publicados em 1858 pelo pastor batista T. J. Bowen, porém o iorubá
como língua escrita só foi sistematizado durante a Yoruba Orthography Conference, rea-
lizada em Lagos, em 1875. Cf. a este respeito Samuel Johnson, The History of the Yorubas,
from the Earliest Times to the Beginning of the British Protectorate, Lagos: Bookshop,
1921, p. xxx; e Kathleen Marie Stasik, “A Decisive Acquisition: The Development of Is-
lam in Nineteenth Century Iwo, Southeast Ìwí” (Dissertação de Mestrado, Universidade
de Minnesota, 1975), p. 206.
continuação 24
Bahia” (Tese de Doutorado, Universidade Paris IV, 1992), e “Quem eram os ‘negros da Gui-
né’? A origem dos africanos na Bahia” (1997), reproduzido nesta coletânea. Porém estes
dois trabalhos tratam apenas de aperfeiçoar as denominações de nação, procurando cor-
respondências no território africano, não se preocupando com a definição de nação en-
quanto instituição da sociedade colonial brasileira. A abordagem de Marina de Mello e
Souza sobre os reis africanos no Brasil escravista é detidamente analisada em outro capí-
tulo do livro do qual este artigo foi extraído.
25 Maria Inês Oliveira, baseada na Grande enciclopédia portuguesa e brasileira, usa o ter-
mo latino que deu origem a gentio como sendo gentivus ou genitivus (cf. Oliveira, “Quem
eram os ‘negros da Guiné’?”, nota 2). Antônio Geraldo da Cunha (org.), Dicionário etimoló-
gico Nova Fronteira da língua portuguesa, Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1996),
p. 384, prefere genetivus. Em todo caso, de um ou do outro decorreu “genitivo” no portu-
guês, ou seja, complemento possessivo, pertinência de geração. Também consultados Er-
nest Gellner, Nações e nacionalismo, Lisboa: Gradiva, 1993; Guy Hermet, História das na-
ções e do nacionalismo na Europa, Lisboa: Editorial Estampa, 1996; e Anderson, Comuni-
dades imaginadas. Ver também Dante Moreira Leite, O caráter nacional brasileiro, São
Paulo: Editora Ática, 1992, especialmente pp. 23-29.
29 John Illife, apud Terence Ranger, “A invenção da tradição na África colonial”, p. 257. Ver
também Philippe Poutignat e Joceline Streiff-Fenart, Teorias da etnicidade, São Paulo:
Unesp, 1997, p. 81 e 114, e Renato da Silveira, “Sobre o exclusivismo e outros ismos das
irmandades negras na Bahia colonial”, in Ligia Bellini, Evergton Sales Souza e Gabriela
dos Reis Sampaio (orgs.), Formas de crer: ensaios de história religiosa do mundo luso-afro
-brasileiro, séculos XIV-XXI (Salvador: Corrupio/Edufba, 2006), p. 169.
continuação 31
História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa (São
Paulo: Companhia das Letras, 1997), vol. 1, pp. 331-385, especialmente pp. 332-341.
32 Charles R. Boxer, O império marítimo português, Lisboa: Edições 70, 1992, pp. 132-133; e
Milton Guran, Agudás, os “brasileiros” do Benim, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, pp.
1-17.
33 Sobre o sranam, cf. Jan Voorhoeve, apud Mintz e Price, O nascimento da cultura afro-ame-
ricana, pp. 72-73.
34 Villalta, “O que se fala e o que se lê”, pp. 341-342.
35 Crítica também feita por Soares, Devotos da cor, p. 257, nota 53. Os estereótipos da his-
tória oficial são abordados criticamente em várias passagens do livro do qual este arti-
go foi extraído. Para uma primeira aproximação, ver Silveira, “Sobre o exclusivismo”, pp.
161-196.
38 Karasch, A vida dos escravos, p. 294; e Robert Slenes, “‘Malungu, ngoma vem!’, pp. 51-60.
39 Cf. também Yeda Pessoa de Castro, Falares africanos na Bahia (um vocabulário afro-bra-
sileiro), Rio de Janeiro: Topbooks, 2001, p. 75. Sobre a milonga angolana, ver Esmeraldo
Emetério de Santana, “Nação-Angola”, in Encontro de nações-de-candomblé (Salvador, Ia-
namá/Centro de Estudos Afro-Orientais, 1984), pp. 35-47.
40 Karasch, A vida dos escravos, p. 293; e Vilhena, A Bahia no século XVIII, Salvador: Editora
Itapuã, 1969, vol. 1, p. 134.
41 Rodrigues, Os africanos no Brasil, p. 109; e J. H. Greenberg, “Classification des langues
d’Afrique”, in J. Ki-Zerbo (org.), Histoire Générale de l’Afrique I – Métodologie et préhis-
toire africaine (Paris: Unesco, 1980-1984), pp. 321-338; referência ao groupe noupé: p.
334. Sobre os tapás na Bahia oitocentista, ver Silveira, O Candomblé da Barroquinha, pp.
491-494.
42 Este fato, por desconhecimento etnográfico, já foi entendido como uma prova da inexis-
tência de divindades nas tradições angolanas e a consequente apropriação das divindades
iorubanas para preencher uma suposta pobreza mítica. Cf., por exemplo, Edison Carneiro,
Negros bantus, notas de ethnographia religiosa e de folk-lore, Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1937, pp. 28-30; e Roger Bastide, As religiões africanas no Brasil: contribui-
ção a uma sociologia das interpenetrações de civilizações, São Paulo: Livraria Pioneira/
Edusp, 1971, vol. 1, p. 88, vol. 2, pp. 271-272.
43 Ordep Serra, Águas do rei, Petrópolis: Vozes, 1995, p. 80.
44 Soares, Devotos da cor, pp. 224-230. Estou usando a grafia “maki” para acompanhar a
transcrição mais comum na documentação utilizada por Soares. Na verdade, essas trans-
crições, marri, maki ou mahi, tentam suprir uma dificuldade fonêmica, que é a transcrição
de uma consoante da língua fon semelhante a um H fortemente aspirado. Sobre a história
da federação mahi, cf. Félix Iroko, Mosaïques d’histoire béninoise, Tulle: Éditions Corrèze
Buissonnière, 1998, pp. 97-107 Antonia Aparecida Quintão também analisou a irmandade
dos “mina-makii” do Rio de Janeiro, apresentando inclusive, na íntegra, seu compromisso
de 1767. Cf. Quintão, Lá vem o meu parente: as irmandades de pretos e pardos no Rio de
Janeiro e em Pernambuco (século XVIII), São Paulo: Annablume/Fapesp, 2002, pp. 39-48.
48 Karasch, “Minha nação”, pp. 127-141; cit. em destaque na p. 139. Ao aproximar-se do final
o artigo de Mary Karasch vai-se tornando mais confuso, com um entrecruzamento atrapa-
lhado de dados empíricos que não condizem com sua reconhecida competência. Por exem-
plo, os haussás, os fulanis e os iorubás muçulmanos falariam uma língua “arábica”, e os io-
rubás, juntamente com os de nação congo, falariam o kikongo. No entanto, como o texto
citado foi originalmente redigido em inglês e traduzido de uma maneira desleixada (na ci-
tação acima deixei o erro de revisão de propósito), o crítico, em função do largo crédito de
que ela dispõe, não pode ser muito severo.
49 Edição brasileira, já citada: Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difu-
são do nacionalismo.
51 Idem, p. 25.
52 Idem, p. 26. Katia Mattoso já havia anteriormente feito algumas observações neste senti-
do. Cf. Mattoso, “Os escravos na Bahia no alvorecer do século XIX: estudo de um grupo so-
cial”, publicado inicialmente em 1973 e republicado no livro Da revolução dos alfaiates
à riqueza dos baianos no século XIX: itinerário de uma historiadora, Salvador: Corrupio,
2004, particularmente as pp. 142-143.
53 Parés, A formação do candomblé, pp. 23-29 e 76-95. A confraria maki carioca é um bom
exemplo desses “ambientes mais restritos da comunidade negra”.
54 Vivaldo da Costa Lima, “O conceito de ‘nação’ nos candomblés da Bahia”, Afro-Ásia, no. 12
(1976), pp. 65-90, cit. p. 77, reproduzida integralmente em A família-de-santo nos can-
domblés jeje-nagôs da Bahia: um estudo de relações intragrupais, Salvador: Pós-Gradua-
ção em Ciências Humanas da UFBA, 1977, p. 21.
55 Cf. Farias, Soares e Gomes, No labirinto das nações, pp. 50-53.
59 Cf. Léo Moulin, A vida quotidiana dos estudantes na Idade Média, Lisboa: Editora Livros
do Brasil, 1994, cap. 4; e Franco Cambi, História da pedagogia, São Paulo: Editora Unesp,
1999, especialmente pp. 182-186.
61 Cf. Wayne A. Meeks, Os primeiros cristãos urbanos: o mundo social do apóstolo Paulo,
São Paulo: Edições Paulinas, 1992, caps. 1 e 3. Sobre a fundação das primeiras irmanda-
des cristãs, cf. Wayne A. Meeks, O mundo moral dos primeiros cristãos, São Paulo: Paulus,
1996, pp. 99-100; Lewis Mumford, A cidade na história, suas origens, transformações e
perspectivas, São Paulo: Martins Fontes, 1991, cap. VII; Robin Lane Fox, Pagans and Chris-
tians in the Mediterranean world from the second century AD to the conversion of Cons-
tantine, Londres: Penguin Books, 1986, cap. 6, particularmente as pp. 318-335; e Paul Pe-
tit, A paz romana, São Paulo: Livraria Pioneira, 1989, pp. 165-173. Também consultado
Moses I. Finley, Política no mundo antigo, Lisboa: Edições 70, 1997.
62 Souza, Reis negros, p. 171.
64 Panorama traçado com a ajuda de alguns textos indispensáveis: Rodolfo Garcia, Ensaio
sobre a história política e administrativa do Brasil, 1500-1810, Rio de Janeiro: Livraria
José Olympio Editora, 1975, cap. XVII; João Alfredo Libânio Guedes, História administra-
tiva do Brasil/4: da restauração a D. João V, Brasília: Fundação Centro de Formação do
Servidor Público, 1984; Marcos Carneiro de Mendonça, Raízes da formação administra-
tiva do Brasil/2, Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro/Conselho Fe-
deral de Cultura, 1972; Luiz Geraldo Silva, “Da festa à sedição: sociabilidades, etnia e con-
trole social na América portuguesa (17761814)”, in István Jancsó e Iris Kantor (orgs.), Fes-
ta: cultura e sociabilidade na América portuguesa (São Paulo: Hucitec/Edusp/Fapesp/Im-
prensa Oficial do Estado, 2001), vol. I, pp. 313-335; Marcelo Mac Cord O Rosário de D. An-
tônio: irmandades negras, alianças e conflitos na história social do Recife, 1848-1872,
Recife: Editora Universitária da UFPE, 2005; Maria de Fátima Silva Gouvêa, “Poder políti-
co e administração na formação do complexo atlântico português (16451808)”, e António
Manuel Hespanha, “A constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamen-
tos correntes”, ambos in João Fragoso, Maria Fernanda Bicalho e Maria de Fátima Gouvêa
(orgs.), O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVIXVIII)
(Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001), respectivamente pp. 163-188 e 285-315. E,
com algumas restrições: Eduardo d’Oliveira França, Portugal na época da Restauração,
São Paulo: Editora Hucitec, 1997, particularmente a terceira parte, cap. 2.
65 Todos esses temas receberão tratamento mais detalhado ao longo do livro inédito de onde
o presente artigo foi extraído.
651
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA
4 VAN DER BERGHE, Pierre L. Race and Racism a Comparative Perspective. New York,
1967, p. 65.
5 VERGER, Pierre. Flua et reflux de Za traite des nègres entre te Golfe de Bénin et Bahia de
Todos os Santos, du XVII au XIX siècle. Paris, Mouton, 1968, p. 488.
6 RIDDER, D. P., FLETCHER, J. C. BraziZ and the BraziZians. Philadeiphia, 1857, p. 135.
7 VERGER, Pierre. op. cit., p. 488; MARTIN, A. Slavery and Abolition in Brazil. Hispanic
American Historical Review. North Caroline, 13 (2): 165, May, 1933.
8 VERGER, Pierre. op. cit., pp. 497-498.
9 PIERSON, Donald. Negroes in Brazil. Chicago, 1942, p. 40.
86 VERGER, Pierre. Retour des Brasiliens au Golfe du Bénin au XIX siècle. Etudes Da-
homéennes. Dahomey, Nouvelle Série, (8): 12-3, octobre, 1966.
87 VERGER, Pierre. op. cit., p. 20; CHAUDOIN, E. Trois Mois de Captivité au Dahomey. Paris,
1891, p. 71.
88 VERGER, Pierre. Flux et reflux de la traite des nègres entre de golfe de Bénin et Bahia de
Todos os Santos; du XVII au XIX siècle. Paris, Mouton, 1968, P. 605.
89 DUNCAN, J. op. cit., p. 228.
90 MARTY, Paul. op. cit., p. 22.
91 FORBES, F. E. p. 214. V. 11.
global. Nomes tais como: da Silva, que tinham uma relação direta com a
instituição da escravatura foram supressos pelos afro-brasileiros111 e não
mais são usados. A seleção dos afro-brasileiros em reter certos aspectos
de sua cultura é importante. A imagem que desejavam e o símbolo global
que conseguiram apresentar, visaram completar os papéis que represen-
taram na sociedade.
Nesse ponto da investigação apenas pareceria possível uma tentativa
de avaliação dos afro-brasileiros. A reação dos daomeanos aos emigrantes
só pode ser obtida por meio de fontes secundárias. Os missionários eu-
ropeus e os funcionários franceses com exceções tais como a de Fourn),
aparentemente se impressionavam com os afro-brasileiros. Notava-os
como aplicados, inteligentes, trabalhadores — quase europeus, justificando
assim a imagem favorável. O fato de muitos dos afro-brasileiros terem
sido escravizados, enviados para o Brasil, sobrevivido à escravidão no
Brasil, e terem economizado dinheiro para voltar para a África Ocidental
demonstra serem eles um grupo de indivíduos de notável força pessoal e
psicológica. Os seus empreendimentos políticos e econômicos nos séculos
dezenove e vinte no Daomé revelam a conclusão bem-sucedida da odisseia
que teve início na Bahia durante o século dezoito.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
The return of ex-slaves from Brazil influenced Dahomevan religion as well. One
of those men, named José Paraíso, had a mosque built in Porto Novo, donating
money but leaving the work to local Moslems. In politics the Afro-Brazilians
contributed to the hegemony of the French in that part 01 Africa, by giving
them their support.
However, when European rule was consolidated, the former slaves were regarded
with suspicion, due to the possibility of becoming an opposition group.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA
3 Ver especialmente David Ross, “The First Chachá of Whydah: Francisco Félix de Souza”,
Odu, new series, no. 2 (1969), pp. 19-28; vide também tradições familiares, em Simone de
Souza, La Famille de Souza du Bénin-Togo, Cotonou: Éditions du Bénin, 1992. Para algu-
mas revisões, cf. Robin Law, “Francisco Félix de Souza in West Africa, 1800-1849”, in José
C. Curto e Paul Lovejoy (orgs.), Enslaving Connections: Changing Cultures of Africa and
Brazil during the Era of Slavery (Nova York: Humanity Books, 2004), pp. 187-211.
4 Sobre tradições das famílias do bairro Maro, ver “Ouidah: organisation du commande-
ment [memorandum do administrador colonial francês Reynier, 1917]”, Mémoire du Bé-
nin, no. 2 (1993), pp. 44-45. Sobre o estabelecimento dos ex-escravos brasileiros na re-
gião, ver especialmente Jerry Michael Turner, “Les Brésiliens: The Impact of Former Bra-
zilian Slaves upon Dahomey” (Tese de Doutorado, Boston University, 1975); e Milton Gu-
ran, Agudás: os “brasileiros” do Benim, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
5 Como observou Richard Burton, A Mission to Gelele, King of Dahomé, Londres: Tinsley
Brothers, 1864, vol. i, p. 65 n.
6 Como o missionário católico francês observou nos anos 1860: Francesco Borghero, “Rela-
tion sur l’établissement des missions dans le Vicariat Apostolique de Dahomé” (3 de de-
zembro de 1863), in Journal de Francesco Borghero, premier missionnaire du Dahomey,
1861-1865, ed. Renzo Mandirola eYves Morel, Paris: Karthala, 1997, p. 285.
7 UK Parliamentary Papers [doravante PP], Correspondence relating to the Slave Trade,
1849-50, Class B, aenxo no 9, Lieutenant Forbes, 5 de novembro de 1849.
com Francisca, a filha mais velha dele. 11 Isto, entretanto, deve ter ocor-
rido num período anterior a 1844, uma vez que sua correspondência não
contém nenhum indicativo de qualquer relacionamento próximo com a
família Souza, e sugere que seus negócios eram, essencialmente, tocados
de maneira independente. Em suas operações ao longo da laguna, para
oeste, ele cooperou, ao menos ocasionalmente, com Isidoro de Souza em
Pequeno Popó; e na própria Uidá, comprou escravos de Antonio “Kokou”
de Souza, mas também diretamente do rei.
Duas outras pessoas indicadas em 1849 entre “os muitos negociantes
brasileiros e portugueses” em Uidá, estavam Jacinto e Jozé Joaquim, o
primeiro descrito como nativo da Ilha da Madeira, e o último como um
antigo soldado no Brasil. 12 O primeiro pode ser identificado como sendo
Jacinto Joaquim Rodrigues (†1882). 13 O próprio Rodrigues afirmou, mais
tarde, que tinha vindo para a África em 1844. 14
De acordo com a tradição, ele também se estabelecera, originalmen-
te, em Uidá “com o apoio” do primeiro Souza,15 mas também se tornaria,
claramente, um operador independente. Como Santos, Rodrigues tinha
conexões para além de Uidá, ao longo da laguna, mas, no seu caso, para
leste e não para oeste de Uidá: de seus dois filhos, um nasceu em Lagos
(Américo, 1847) e outro em Porto Novo (Cândido, 1850).16 A segunda pessoa
indicada é menos facilmente identificável, mas um candidato provável é
José Joaquim das Neves, um dos ex-escravos do Brasil nascidos na África
que se estabeleceram no bairro Maro de Uidá.17
Mais importante do que qualquer um desses, todavia, foi Joaquim
d’Almeida (†1857), que também havia sido escravo liberto da Bahia e
retornara à África como traficante de escravos.18 A tradição local associa a
quebra do “monopólio” de Souza em Uidá à entrada no negócio de Almeida,
para o qual o rei Guezo fornecia escravos através do comerciante nativo
Azanmado Houénou (Quénum), e não através de Souza. 19 A principal
residência de Almeida, no fim da vida, era na realidade em Agoué e não
em Uidá. A tradição em Agoué afirma que lá se estabeleceu em 1835,
20 Ele fez seu testamento na Bahia, antes de embarcar para se estabelecer na África, em de-
zembro de 1844: publicado em Verger, Os libertos, pp. 116-121.
21 Santos correspondence, no 52 [19 de fev. de 1847].
22 PP, Slave Trade 1849-50, Class B,anexo 10 do doc. no 9, Forbes, 5 de nov. de 1849.
23 Ver especialmente David Ross, “The Career of Domingo Martinez in the Bight of Benin,
1833-64”, Journal of African History, no. 6 (1965), pp. 79-90.
24 National Archives of Great Britain (doravante NAGB), Londres, CO 96/12, Thomas Hutton,
Cape Coast, 17 de março de 1847.
25 PP, Slave Trade 1849-50, Class B,anexo10 do doc. no 9, Forbes, 5 de nov. de 1849.
26 PP, Slave Trade 1840-50, Class B, doc. no 7, vice-cônsul Duncan, Ouidah, 22 de set. de 1849.
27 PP, Slave Trade 1849-50, Class B, doc. no 6, Duncan, 22 de set. de 1849 (referindo-se ao “se-
gundo filho”, não identificado).
28 PP, Slave Trade 1840-50, Class B, doc. no. 7, vice-cônsul Duncan, Uidá, 22 de setembro
de 1849.
29 Registrado no Grand Livre Lolamè (em posse da família Lawson de Aného), Lawson a Mar-
mon, 10 de maio de 1849. Este incêndio é também relembrado na tradição da família Sou-
za: Foà, Le Dahomey, p. 27; Simone de Souza, La Famille de Souza, p. 43.
30 F.E. Forbes, Dahomey & the Dahomans, Londres: Longman, Brown, Green, and Longmans,
1851, vol. i, p. 52 [11 de out. de 1849]; PP, Slave Trade 1849-50, Class B, anexo. 10 ao doc. no
9, Forbes, 5 de nov. de 1849.
31 Cf. Forbes, Dahomey, i, p. 106 [8 de março de 1850], referindo-se a ele como “o novo Cha-
chá”. Forbes, Dahomey, vol. i, p. 125; vol. ii, p. 3.
32 Forbes, Dahomey, vol. i, p. 125; vol. ii, p. 3.
33 Foà, Le Dahomey, pp. 26-27; “Note historique sur Ouidah par l’Administrateur Gavoy
(1913)”, Études Dahoméennes, no. 13 (1955), pp. 68-69.
34 Forbes, Dahomey, i, p. 111.
Popó, a oeste.35 Uma ausência notável nesta lista dos agentes de Guezo
é a de Joaquim d’Almeida. Isto provavelmente reflete o fato de que ele,
recentemente, tinha se mudado de Uidá. Em abril de 1850 foi relatado
que d’Almeida estava “agora” residindo em Agoué.36 Ele permaneceu em
Agoué, desde então, até sua morte em 1857. A razão para este deslocamento
não foi registrada, mas parece provável que estivesse ligada à mudança
de Isidoro para Uidá.
Embora a mudança de d’Almeida para Agoué tendesse a fortalecer
a posição de Isidoro de Souza em Uidá, ela foi, por outro lado, minada
quando Domingos Martins, logo a seguir, transferiu o foco principal de
suas atividades de Porto Novo para Uidá. Em agosto de 1851, foi relatado
que a hostilidade do rei de Porto Novo tinha obrigado Martins a aban-
donar seu estabelecimento e que ele, logo depois, “foi feito cabeceira, de
seu próprio lugar, em Uidá.” 37 Esta expulsão de Martins de Porto-Novo
foi, aparentemente, apenas temporária, uma vez que ele é novamente
mencionado negociando por lá no final da década 1850. Todavia, o centro
de gravidade de suas operações parece então ter-se deslocado definiti-
vamente para Uidá.
A composição da comunidade mercantil em Uidá foi também indire-
tamente afetada pela intervenção britânica em Lagos no final de 1851,
que pôs fim ao tráfico de escravos naquele porto e o transformou quase
em um protetorado da Grã-Bretanha. Isto forçou a transferência de vários
traficantes de escravos brasileiros anteriormente ali residentes, alguns
dos quais acabaram em Uidá. O mais importante destes foi Carlos José de
Souza Nobre, um dos principais traficantes de Lagos, que se antecipou
ao ataque britânico na cidade, retirando-se para Uidá, inicialmente na
esperança de assegurar uma contra intervenção da França ou dos Estados
Unidos.38 Ele permaneceu em Uidá daí em diante, até a sua morte em 1858.39
Nestas circunstâncias, a relativa riqueza e a posição dos Souza
continuaram a declinar durante a década de 1850. Em 1852, ainda era
mencionado que, embora o comércio em Uidá estivesse aberto para todos,
em Godomé e Cotonou, a leste, ele era monopolizado por dois dos irmãos
Souza, na primeira por Isidoro e na segunda por Antônio. 40 Por volta de
1856, no entanto, as feitorias em Godomé e Cotonou tinham passado para
35 PP, Slave Trade 1850-1, Class A,anexo 2ao doc. no 220, Journal of Forbes, 4 de julho de
1850.
36 PP, Slave Trade 1850-1, Class A,anexo 3 ao doc. no 198, Forbes, 6 de abril de 1850.
37 PRO, FO 84/886, Louis Frazer, cópia das notas de rascunho do Journal, 2 & 14 de agosto
de 1851.
38 Pierre Verger, Flux et reflux de la traite des nègres entre le Golfe de Bénin et Bahia de To-
dos os Santos du XVII e au XIXe siècle, Paris: Mouton, 1968, p. 578.
39 Burton, Mission to Gelele, vol. i, p. 111.
40 NAGB, FO2/27, Louis Frazer, Commercial Report,anexo a Frazer, 15 de maio de 1852.
parte permanecia nas mãos dos brasileiros: em 1854 foi estimado que
pelo menos 80% do tabaco e da aguardente embarcados na Bahia eram
consignados a ou comprados por Martins.51
Naturalmente, essa importação de mercadorias brasileiras já não
podia mais ser paga diretamente com o suprimento de escravos. Havia
também, entretanto, alguma oportunidade de fornecer mercadorias afri-
canas para o mercado brasileiro. A longa história do tráfico de escravos,
e o consequente crescimento, no Brasil, de uma população de origem ou
ascendência africana, tinha criado uma demanda por produtos da África
Ocidental, principalmente iorubás, incluindo panos da costa, azeite de dendê
e nozes de cola. Alguns dos brasileiros na África Ocidental puderam, assim,
continuar comerciando com o Brasil, ainda que não mais com escravos. A
correspondência de José Francisco dos Santos que se conservou, relativa
ao segundo período 1862-1871, mostra-o ainda comerciando com a Bahia,
mas agora a embarcar azeite de dendê e nozes de cola em vez de escravos.
Mais tarde, outro dos proeminentes membros da segunda geração da
família Souza, Julião Félix de Souza, antes de assumir o título de Chachá
em 1883, é lembrado como tendo vendido azeite de dendê para o Brasil
e mesmo feito várias viagens para lá relacionadas com seus negócios.52
Todavia, o tamanho do mercado brasileiro para produtos africanos
era, evidentemente, limitado e insuficiente para cobrir o custo da contínua
importação de mercadorias brasileiras para a África Ocidental. Na verdade,
as importações brasileiras eram provavelmente pagas principalmente
em espécie (dólares de prata e dobrões de ouro), e este numerário tinha
de ser obtido no comércio com outras regiões, tanto com escravos para
Cuba como com produtos “legítimos” para a Europa.
51 PP, Slave Trade 1856-7, Class B,anexo ao doc. no 43, Lagos, Consul Campbell, “Report on
the Trade of the Bight of Benin for the year 1856.”
52 Souza, La Famille de Souza, p. 55.
53 PP, Slave Trade 1853-4, Class B, doc, no 47, Campbell, 31 de outubro de 1853.
54 PP, Slave Trade 1854-5, Class B, doc, no 6, Campbell, 30 de maio de 1854; Class A, doc. no
109, Commander Miller, 3 de junho de 1854.
55 PP, Slave Trade 1854-5, Class B, docs. nos 17, 26, Campbell, 12 de agosto e 1º de dezembro
de 1854.
56 PP, Slave Trade 1855-6, Class B, doc. no 25, Campbell, 2 de junho de 1855.
57 PP, Slave Trade 1855-6, Class B, docs. nos 9, 28, Campbell, 28 de agosto de 1855, e 6 de ja-
neiro de 1856.
65 PP, Slave Trade 1857-8, Class B, doc. no 26, Campbell, 31 de agosto de 1857.
66 PP, Slave Trade 1857-8, Class B, docs. nos 25, 35, Campbell, 10 de agosto, e 12 de outubro de
1857; Class B, 1858-9,, doc. no 5, id., 8 de março de 1858.
67 PP Slave Trade 1858-9, Class A, doc. no 142, Rear-Admiral Sir F. Grey, 11 de fevereiro de
1858.
68 PP, Slave Trade 1857-8, Class B, doc. no 8, Campbell, 11 de maio de 1857; Class A,anexo 2
ao doc.no 166, Commander Burgess, 12 de agosto de 1857.
69 PP, Slave Trade 1857-8, Class B, doc. no 9, Campbell, 11 de maio de 1857.
70 PP, Slave Trade 1857-8, Class A, incl. 1 no no 159, Lieutenant Pike, 2 de julho de 1857; incl.
2 no no 166, Burgess, 12 ago. de 1857; Class B, no 22, Campbell, 5 de agosto de 1857.
71 PP, Slave Trade 1857-8, Class B no 44, Campbell, 3 de novembro de 1857.
72 PP, Slave Trade 1858-9, Class A. no 133, Wise, 6 de agosto de 1858.
73 PP, Slave Trade 1859-60, Class A, anexos no 4(recorte do West African Herald de 10 de fe-
vereiro de 1859) ; no 95 e 110, Wise, 15 de março e 16 de maio de 1859.
74 PP, Slave Trade 1859-60, Class A, doc. no 150, Wise, 23 de novembro de 1859. Os navios
eram o Cygnet (USA), setembro, com 400 escravos, de Agoué e mais a leste (capturado);
o Glória (português), setembro, 400 cativos, de Agoué; navio não identificado, setembro,
400-500 cativos, de Porto Seguro.
75 PP, Slave Trade 1860, Class A, doc. no 23, Acting Consul Hand, Lagos, 10 de setembro de
1853; doc. no 57, Commodore Edmonstone, 2 de outubro de 1860; Class B, doc. no 24, Hand,
9 de outubro de 1860. Os navios eram: um barco espanhol (mas com bandeira francesa), 9
ou 10 de abril (com 570 escravos); uma escuna com bandeira norteamericana, 11 de maio
(101 escravos); um “grande vapor”, agosto (1.300 escravos); a barca norteamericano Buck
Eye, setembro (450 escravos). O comandante do esquadrão naval britânico afirmou mais
tarde que “nada menos que 2.500 escravos tinham sido embarcados somente em Uidá num
curto período de seis semanas [talvez um erro para 6 meses]”: PP, Slave Trade 1861, Class
A, doc. no 62, Edmonstone, 4 de janeiro de 1861.
76 PP, Slave Trade, 1862, Class A,anexo 1 ao doc. no 82, Edmonstone, 7 de novembro de 1861:
o navio African.
77 PP, Slave Trade 1862, Class A, doc. no 93, e anexo, Commander Bedingfield, 12 de março de
1862: os navios Thomas Acorn e Seaview.
78 PP, Slave Trade 1862, Class B, no 7, Acting Consul McCoskry, Lagos, 7 de janeiro de 1862.
79 PP, Slave Trade 1857-8, Class B, doc. no 25, Campbell, 10 de agosto de 1857.
80 PP, Slave Trade 1864, Class B, doc. no 19, Consul Burton, Bonny River, 23 de março de 1864.
81 PP, Slave Trade 1863, Class A, doc. no 91, Commodore Wilmot, novembro de 1862.
parecem ter sido, mais uma vez, aquelas recém-chegadas à costa, ou que,
pelo menos, não haviam se destacado anteriormente no tráfico em Uidá.
Em 1857, a principal figura, descrita como “agente geral para o tráfico
de escravos em Uidá e portos de embarque adjacentes”, era Samuel da
Costa Soares, que, embora descrito como “um dos [...] antigos traficantes
de escravos”, até então não tivera importância suficiente para ser mencio-
nado nos documentos. Ele era oriundo de Portugal, e não do Brasil, tinha
vínculos com comerciantes portugueses residentes em Nova York, e era,
ele próprio, naturalizado cidadão norte-americano; sua base principal era
Agoué e não Uidá.82 Em 1859, navios negreiros enviados para Uidá foram
considerados como sendo consignados a J. M. Carvalho e “Mr. Baeta”.83 O
primeiro deles é, presumivelmente, M. D. Joaquim Carvalho, chamado de
“Breca”, cuja morte na costa foi relatada por volta do começo de 1864,84
e que tivera sua base em Grande-Popó anteriormente, nos anos 1850. 85 O
segundo era João Gonçalves Baeta, de comprovado envolvimento no tráfico
ilegal de escravos em Agoué já no início da mesma década. Ele parece ter
se retirado do negócio depois e retornado para a Bahia, onde foi um dos
correspondentes de José Francisco dos Santos a partir de 1862.86
No final de 1859, Agoué foi apontada como a base de dois trafican-
tes de escravos chamados “Maderes” e “Swarey”. 87 O primeiro deles era
Francisco José de Medeiros, que também tinha nacionalidade portuguesa,
sendo originário da Ilha da Madeira, mas tendo residido por vários anos
em Cuba. Nos anos 1840 tinha comandado o comércio ilegal com navios
negreiros em Uidá, mas sua presença não é confirmada em Agoué antes
de 1859. 88 O segundo, aparentemente, não é o Samuel da Costa Soares
de 1857, mas uma outra pessoa, João Pereira Soares. Este Soares tinha
bases em Uidá assim como em Agoué; foi descrito, em 1864, como “o prin-
cipal fornecedor [de escravos] de Uidá”.89 Em 1867, depois que o tráfico
82 PP, Slave Trade 1857-8, Class B, doc. no 19, Campbell, 27 de julho de 1857; cf. também Tur-
ner, “Les Brésiliens”, pp. 125-126.
83 PP, Slave Trade 1859-60, Class B, anexo ao doc. no 4, (recorte do West African Herald), 10
de fevereiro de 1859; Class A, docs. nos 95, 115, Wise, 15 de março e 9 de junho de 1859.
84 PP, Slave Trade 1864, Class B, doc. no 19, Burton, 23 de março de 1864.
85 Strickrodt, “Afro-Brazilians”, pp. 222-223. Mas havia um outro Carvalho ativo neste pe-
ríodo, Manoel Joaquim de Carvalho, cujas atividade estavam principalmente centradas
em Porto Novo.
86 Strickrodt, “Afro-Brazilians”, p. 223.
87 PP, Slave Trade 1859-60, Class A, doc. no 158, Elphinstone, 21 de janeiro 1860, e anexo,
Commander Bowen, 21 de novembro de 1859.
88 Sobre Medeiros, ver Turner, “Les Brésiliens”, pp. 126-127; Reynier, “Ouidah”, p. 67. Ele co-
mandou o navio Fortuna de Havana, chegando à Baía de Benin em março de 1842: PP, Sla-
ve Trade 1842, Class A, doc. no 54, caso do Fortuna.
89 Cf. Burton, Mission, vol. i, pp. 74-75 n.; PP, Slave Trade 1864; PP, 1864, Class A, doc. no 151,
Wilmot, 1º de dezembro de 1864.
90 PP, Slave Trade 1867, Class A, doc. no 65, Commodore Hornby, 7 de junho de 1867.
91 A importância do tratado de 1862 é questionada por David Eltis, Economic Growth and
the Ending of the Transatlantic Slave Trade, Nova York: Oxford University Press, 1987, p.
210, que afirma que, na verdade, nenhum navio foi condenado com base neste acordo; to-
davia, ele presumivelmente funcionou como um fator desencorajador.
92 PP, Slave Trade 1864, Class A, doc. no 119, Wilmot, 31 de dezembro de 1863.
93 Sobre o argumento de que o comércio cubano “foi vitimado por uma morte mercadológi-
ca”, e que a legislação de 1867 teve importância somente como “símbolo”, ver Eltis, Econo-
mic Growth, pp. 218-219.
94 PP, Slave Trade 1862, Class B, doc. no 14, Consul Freeman, Lagos, 9 de maio de 1862;
WMMS, Henry Wharton, Cape Coast, 14 de abril de 1862.
95 PP, Slave Trade 1862, Class B, doc. no 25, Freeman, 29 de outubro de 1862; também apon-
tado por Borghero, Journal, pp. 116-117 [20-21 de outubro de 1862].
96 PP, Slave Trade 1864, Class A, doc. no 119, Wilmot, 31 de dezembro de 1863.
97 Idem.
98 Borghero, Journal, p. 139 [9 de outubro de 1863].
99 Burton, Mission, vol. i, p. 115.
100 PP, Slave Trade 1864, Class A, doc. no 151, Wilmot, 1º de dezembro de 1864.
101 PP, Slave Trade 1865, Class A, doc. no 83, Wilmot, 19 de dezembro de 1865; African Times,
23 de setembro de 1865, carta datada de Grande Popó, 29 de julho de 1865.
se não obtivesse sucesso lá, tencionava prosseguir até Nova York com o
mesmo propósito. Os britânicos souberam (ou supuseram) que esses navios
teriam como destino o seu emprego no tráfico de escravos. 102 Presumivel-
mente como resultado desta missão, no ano seguinte, um navio chamado
Dahomey, de propriedade de Pereira e Medeiros, navegou de Nova York,
via Lisboa, para a África Ocidental, chegando em Uidá em dezembro de
1865. Após alguns meses negociando entre Uidá e localidades a oeste, foi
capturado pela marinha britânica em Agoué, em março de 1866. Embora
os britânicos alegassem que mais de 600 escravos haviam sido reunidos
em Agoué para embarque no Dahomey, não havia evidências conclusivas
desta intenção e o navio foi, afinal, liberado.103
Depois disso, as esperanças locais de um renascimento do tráfico
evidentemente se evaporaram. No ano seguinte, 1867, o comandante naval
britânico do lugar informou que a “demanda por escravos por parte de
Cuba aparentemente cessou”; desde a dispersão dos cativos supostamente
reunidos para embarque no Dahomey no ano anterior, “nenhuma carga,
até onde sabemos, foi preparada para embarque naquela parte da costa”.
Soares Pereira e Medeiros começaram a desmontar seu estabelecimento
em Agoué e transferiram seus negócios para leste da costa. Como Medeiros
explicou para um capitão naval britânico, “agora, o tráfico de escravos
está encerrado, então eu estou indo para o comércio legal; seus cruzadores
não o impediram, mas não há demanda por parte de Cuba.” 104 Medeiros
mudou-se para Uidá, onde morreria em 1875.105
102 PP, Slave Trade 1864, Class A, doc. no 151, Wilmot, 1º de dezembro de 1864.
103 PP, Slave Trade 1866, Class A, docs. nos 37, 39, 43, o caso d Dahomey; ver também doc. nº
60, Hornby, 11 de março de 1866; Class A, 1867, doc. nº 48, id., 12 de fevereiro de 1867.
104 PP, Slave Trade 1867, Class A, doc. no 65, Hornby, 7 de junho de 1867.
105 Reynier, “Ouidah”, p. 67. Este relato afirma que Medeiros se mudou para Uidá em 1863,
mas segundo as fontes contemporâneas isto deve se ter dado alguns anos mais tarde. Um
relatório de 1871 apontou sua presença em Uidá, onde estava construindo uma casa: J. A.
Skertchly, Dahomey as It Is, Londres: Chapman and Hall, 1874, p. 67.
110 A. Vallon, “Le royaume de Dahomey”, Revue Maritime et Coloniale, no. 1 (1860), p. 357;
WMMS, T.B. Freeman, Porto Novo, 2 de abril de 1856.
111 WMMS, Freeman, 2 de abril de 1856.
112 PP, Select Committee on the State of the British Settlements on the Western Coast of Af-
rica (1865), Minutes of Evidence, pp. 5449-5450 (Captain James Croft).
113 Martin Lynn, Commerce & Economic Change: The Palm Oil Trade in the Nineteenth Cen-
tury, Cambridge: Cambridge University Press, 1997, p. 29, 112 (Tabelas 1.9 e 5.2).
114 PP, Slave Trade 1850-1, Class A, anexo 3 ao doc. no 198, Forbes, 6 de abril de 1850; NAGB,
FO2/7, Frazer, Commercial Report, 1852; FO 84/886, Louis Frazer, Occurrences, gossip
&c. at Whydah, 20 de janeiro de 1852.
1854 o preço tinha caído de volta para $6 por medida ($100 por tonela-
da).115 Deve se presumir que esta queda de preços minou a lucratividade
dos negociantes de Uidá e da monarquia daomeana; além disso, os ganhos
dos primeiros foram ainda mais reduzidos pelo acréscimo na taxação
do comércio de azeite que a monarquia instituiu nos anos 1850 para
compensar a perda da renda oriunda do tráfico de escravos. A redução
na lucratividade do comércio do azeite talvez explique as informações
de que, por volta de 1859, o principal comerciante de Uidá, Domingos
Martins, estava “à beira da bancarrota.”116
No longo prazo, na verdade, os comerciantes brasileiros não foram
capazes de competir efetivamente com as firmas europeias e francesas,
que dispunham de maiores recursos de capital, e sobreviveram somente
tornando-se agentes destas. Um dos primeiros exemplos foi Manoel
Joaquim de Carvalho, que estava servindo como agente da firma francesa
Régis, em Porto Novo em 1862-1863, quando desempenhou importante
papel na negociação do primeiro protetorado francês sobre Porto Novo,
que teria vida curta. 117 Na própria Uidá, o brasileiro J. C. Muniz formou,
claramente, uma parceria similar com o agente local da M. Régis, Jules
Lartigue; quando este retornou para a França, deixou Muniz para tocar
seus negócios ainda assim, quando Muniz morreu, em fevereiro de 1863,
deixando seus negócios numa confusão, José Francisco dos Santos, que
era um de seus credores, teve de escrever para Lartigue, na França, para
garantir o recebimento do que lhe era devido.118 Na geração seguinte, os
filhos dos principais comerciantes brasileiros serão encontrados, não
mais como negociantes independentes, mas como agentes subordinados
de firmas europeias. n Na década de 1870, por exemplo, o filho de Santos,
Jacinto da Costa Santos, estava atuando como agente da firma inglesa
Swanzy.119 Mais tarde, nos anos 1880, após esta firma ter se retirado do
comércio de Uidá e vendido suas propriedades ali para a firma alemã
Goedelt, de Hamburgo, um filho de Medeiros, Julio Medeiros, serviu
igualmente como agente desta última.120
Estes processos de ajuste comercial também interagiram com o
contexto político em transformação, tanto em termos da política africana
115 Em 1854 Martins prometeu fornecer azeite aos britânicos ao preço de 4½ galões por dó-
lar (i.e. $4 por medida de 18 galões), mas então subiu o preço para 3 galões por dólar ($6
por medida): PP, Slave Trade 1854-5, Class B, doc. no 32, Campbell, 7 de dezembro de 1854.
116 PP, Slave Trade 1858-9, Class B, doc. no 17, Campbell, 7 de fevereiro de 1859.
117 C.W. Newbury, The Western Slave Coast & its Rulers, Oxford: Clarendon Press, 1961, p. 64.
118 Correspondência de Santos, no 88 [31 de jan. 1863]; também nos 97, 103 [26 de julho de
1863, 3 de maio de 1864, endereçada a Lartigue].
119 Foà, Le Dahomey , p. 33.
120 Turner, “Les Brésiliens”, p. 303.
121 Robin Law, “The Politics of Commercial Transition: Factional Conflict in Dahomey in the
Context of the Ending of the Atlantic Slave Trade”, Journal of African History, no. 38
(1997), pp. 213-233.
122 Edna G. Bay, Wives of the Leopard: Gender, Politics and Culture in the Kingdom of Dahom-
ey, Charlottesville: University Press of Virginia, 1998, pp. 263-273. Bay rejeita as infor-
mações contemporâneas de uma ruptura entre Guezo e Badahun, e argumenta que a opo-
sição à ascensão deste último refletiu a luta pelo controle da sucessão real no seio da fa-
mília real e principalmente da organização feminina palaciana.
123 PP, Slave Trade 1860, Class B, doc. no 8, Consul Brand, Lagos, 18 de abril de 1860; WMMS,
Henry Wharton, Cape Coast, 13 de agosto de 1861; PP, Slave Trade 1864, Class B, doc. no
19: Burton, 23 de março de 1864; Burton, Mission, vol. ii, p. 85, n.
124 Burton, Mission, vol. i pp. 105-156; evidência oral, Balbina de Souza, vila residencial Antô-
nio Kokou de Souza, Ouidah, 12 de dezembro de 2001.
125 Souza, La Famille de Souza, p. 60, sugere que Antônio Kokou viveu até cerca de 1883; mas
não há referências claras a ele nas fontes da época, após os anos 1850.
126 Burton, Mission, vol. i, pp. 91-2 (datando de “quatro anos atrás”). A tradição familiar
informa a data da morte de Ignácio como sendo 1860: Souza, La Famille de Souza, p. 150.
127 Foà, Le Dahomey, p. 30-1.
128 Ele morreu, segundo se afirmou, envenenado, logo depois da prisão e assassinato de seu ir-
mão, o Chachá Julião de Souza, em 1887: Foà, Le Dahomey, p. 44.
129 Foà, Le Dahomey p. 31.
130 Larry Yarak, “New Sources for the Study of Akan Slavery and Slave Trade: Dutch Military
Recruitment in the Gold Coast and Asante, 1831-72”, in Robin Law (org.), Source Material
for Studying the Slave Trade and the African Diaspora, Stirling: Centre of Commonwealth
Studies, University of Stirling, 1997, p. 59, doc. no 70.
que um nome”, e em 1864 que o Chachá tinha “pouco poder.” 131 Por esta
mesma época, de fato, o posto de Chachá fora efetivamente suplantado
como cabeça da hierarquia comercial em Uidá, com a indicação de um
comerciante nativo, Azanmado Houénou, um inimigo figadal dos Souza,
como “chefe dos comerciantes.”132
Outros importantes comerciantes brasileiros de Uidá abandonaram
a cidade nesse período. O mais proeminente deles foi Jacinto José Rodri-
gues, que deixou Uidá nos anos 1860 e foi para Porto Novo, a leste, onde
veio a falecer em 1882. 133 Um outro, Pedro Félix d’Almeida, fugiu para
Pequeno Popó, a oeste, depois de disputa sobre o pagamento de taxas.134
Provavelmente, a principal razão para o descontentamento em Uidá
na década de 1860, como sugere o caso de Pedro Félix d’Almeida, foi a
indignação com os impostos, que aumentara sensivelmente nesta época. A
comunidade mercantil de Uidá também sofreu com a rigorosa aplicação do
imposto real sobre a herança. Entre os principais comerciantes brasileiros,
por exemplo, a propriedade de Martins foi confiscada para o rei quando
da sua morte em janeiro de 1864, sendo a chave de sua casa apropriada
pelas autoridades locais.135 Quando Francisco José de Medeiros morreu, em
1875, a tradição da família relembra, igualmente, que sua propriedade foi
“saqueada pelos daomeano.”136 O incremento na taxação, na década de 1860,
foi, provavelmente, em parte uma consequência do custo das cerimônias
fúnebres para o rei Guezo, e das expedições militares de Glele. Mas elas
também refletiam as dificuldades financeiras causadas à monarquia pela
transição do tráfico de escravos para o comércio de azeite de dendê. Em
1866 um observador francês tornou a conexão explícita: “O rei está se
tornando cada dia mais pobre desde o término do tráfico de escravos; ele
considera aceitáveis quaisquer métodos para obter dinheiro.”137
Além dos aspectos fiscais, também há evidências de que o revigora-
mento do tráfico de escravos e do militarismo daomeano, a partir de 1857,
131 PP, Slave Trade 1860, Class B, doc. no 8, Brand, 18 de abril de 1860; Burton, Mission, vol. i,
p. 106.
132 Para maiores detalhes e contexto, ver Robin Law, “The Origins and Evolution of the Mer-
chant Communiy in Ouidah”, em Robin Law e Silke Strickrodt (orgs.), Ports of the Slave
Trade (Bights of Benin and Biafra) (Centre of Commonwealth Studies, University of Stir-
ling, 1999), pp. 55-70.
133 Reynier, “Ouidah”, p. 45: este informa como data de sua mudança para Porto Novo 1862,
mas Burton, em 1864, ainda o considerava como residente em Uidá e Porto Novo.
134 Turner, “Les Brésiliens”, pp. 109-110. Este D’Almeida não era “brasileiro” de nascimento,
mas um africano nativo (de Pequeno Popó), trazido para a casa dos Souza.
135 Burton, Mission, vol. i, p. 73.
136 Idem.
137 Fleuriot de Langle, 7 de outubro de 1866, citado em Bernard Schnapper, La politique et le
commerce français dans le Golfe de Guinée de 1838 à 1871, Paris: Mouton, 1961, p. 192, n.1.
138 PP, Slave Trade 1862, Class B, doc. no 21, Freeman, 1 de julho de 1862; M. Béraud, “Note sur
le Dahomé”, Bulletin de la Sociéte de la Géographie, 5th series, no. 12 (1866), pp. 375-376.
139 Correspondência de Santos, no 105 [19 de jan. 1865].
140 Cf. Bay, Wives of the Leopard, pp. 280-281.
141 Para um relato completo, ver Robin Law, “An African Response to Abolition: Anglo-Da-
homian Negotiations on Ending the Slave Trade, 1838-77”, Slavery & Abolition, no. 16
(1995), pp. 281-310.
142 NAGB, FO 84/886, Frazer, Occurrences, 27 de dezembro de 1851.
143 Carlos Eugenio Corrêa da Silva, Uma viagem ao estabelecimento portuguez S. João Bap-
tista de Ajudá da Costa da Mina em 1865, Lisboa: Imprensa Nacional, 1865, p. 81, 130.
144 Silva, Viagem.
145 NAGB, FO 84/886, Isidoro de Souza to Frazer, 22 de dezembro de 1851; também Frazer,
Occurrences, 15, 25 & 27 de dezembro de 1851.
introdUção
Evocar a historiografia africana da “era independente” implica trazer
à baila a emergência dos passados gloriosos, as “histórias monumentais”
da nação que subsumiram num metarrelato único os movimentos de
“resistência” dos anos 1950 e seus reclamos, bastante divergentes na sua
natureza discursiva. Por sua vez, pensar no reino pré-colonial do Daomé —
cujo território ocupa hoje a maior parte da República do Benim – implica
quase automaticamente “imaginar” um episódio do tráfico escravista. Com
poucas exceções, o seu estudo está centrado na importância do comércio
atlântico de escravos, no excesso da sua magnitude, nos mecanismos
705
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA
continuação 6
14 Neste sentido, os autores coincidem em afirmar que Tado cumpriu para o Daomé o papel
que Ifé teve entre os iorubás. R. Pietek, “The Development and the Structure of the State
of Dahomey until 1724”, Africana Bulletin, 38 (1991), pp. 26-27.
15 Anthony I. Asiwaju e Robin Law, “From the Volta to Niger”, in J. F. Ajayi e Michael Crowder
(orgs.), History of West Africa (Londres: Longman, 1985 [2 vols., 1971, 1974]), p. 432.
16 Ibid.
17 Edna Bay, Wives of the Leopard: Gender, Politics and Culture in the Kingdom of Dahomey,
Charlotesville: Virginia University Press, 1998, p. 312.
18 David Ross, “Mid-XIX Century Dahomey: Recent Views vs. Contemporary Evidence”, His-
tory in Africa, 12 (1985), pp. 311-313.
19 A bibliografia neste sentido é amplíssima. Para citar um trabalho relativamente recente
e com uma visão esclarecedora do estado da questão, ver Robin Law, The Slave Coast.
20 Esta carta foi trabalhada em diferentes oportunidades por historiadores africanistas e
ainda não há consenso acerca de sua autenticidade, veracidade nem ainda sobre o sig-
nificado real de suas palavras. Robin Law, por exemplo, afirma que é muito improvável
que Agaja tenha querido suprimir o tráfico, por suas ações contínuas até sua morte em
1740. De fato, para Law, ainda se a carta não fora um plágio de Bulfinch Lambe (o inter-
mediário enviado à Inglaterra), provavelmente se tratou de uma proposição de Agaja de
substituir o tráfico de escravos por mão-de-obra daomeana. Isto é, que os ingleses não
desarticularam a economia doméstica do reino, mas que só comerciaram com cativos
continuação 20
24 Akinjogbin, Dahomey, p. 23. As narrativas orais consultadas por outros historiadores são
unânimes em argumentar uma disputa sucessória como motivo direto do exílio de Tado:
Robert Cornevin, Histoire du Dahomey, Paris, Berger-Levrault, 1962; Robin Law, “History
and Legitimacy: Aspects of the Use of the Past in Precolonial Dahomey”, History in Africa,
15 (1988), pp. 321-28; Bay, Wives, p. 55 e ss.
25 Bay, Wives, p. 312. Akinjogbin argumenta, ao contrário, que a chegada deste subgrupo
fundador foi um processo revolucionário de mudança estrutural em relação às formações
políticas anteriores dos povos adjas, fundamentalmente pela ruptura política total que
implicou pôr fim ao princípio soberano de Alada, com base na “família estendida” e na li-
nhagem patriarcal, para um modelo de integração com outras linhagens e outros povos, já
não com base na legitimidade dinástica, mas na força: Akinjogbin, Dahomey, pp. 25 e ss.
26 Podemos citar entre esses trabalhos John Fage, “Slavery and the Slave Trade in the Con-
text of West African History”, Journal of African History, 10 (1969), pp. 393-404; Philip
Curtin, The Atlantic Slave Trade. A Census, Madison: University of Wisconsin Press, 1969.
48 Robin Law, “The Politics of Commercial Transition: Factional Conflict in Dahomey in the
Context of the End of the Atlantic Slave Trade”, Journal of African History, vol. 38, no 2
(1997), pp. 214-216.
49 Aqui, Law contradiz o argumento de Coquery-Vidrovitch, similar ao de Yoder, de que de
Souza e os interesses lusitanos e brasileiros impulsionavam Guezo a rejeitar a imposição
de uma economia agrícola devido às pressões inglesas: Law, “The Politics”, pp. 214-216;
Catherine Coquery-Vidrovitch, “De la traite des esclaves à l’exportation d’huile de palme
et des palmistesau Dahomey: XIX èmesiècle”, in Claude Meillassoux (org.), The Develop-
ment of Indigenous Trade and Markets in West Africa (Oxford/Londres: Oxford Univer-
sity Press/International African Institute, 1971), pp. 107-123. Também foi importante a
participação dos retornados brasileiros na “revitalização” agrícola nessa época: Frederick
E. Forbes, Dahomey and the Dahomans, Londres: Longman, Brown, Green, and Longmans,
2 vols., 1851, pp. 78 e ss.
50 Law, “The Politics”, pp. 214-216, insiste em ler os conflitos deste momento como dinâmi-
cas de transição e controvérsias que não necessariamente estavam representadas por
grupos coesos identificados. O problema estaria delineado em termos das implicações
ideológicas que teve esta transição para o reino, posto que diferentemente da centrali-
zação relativa que implicava a economia escravista; no caso da economia agrícola havia a
possibilidade de que grupos próximos aos portos ou às rotas do comercio se beneficiassem
da descentralização econômica ao escapar do controle real. Por outro lado, o ethos políti-
co daomeano estava profundamente ligado à militarização, segundo Law, com um desdém
particular para com a agricultura, o que, inclusive, tornou necessária uma formação alter-
nativa da identidade do rei. Neste ponto, é preciso compreender vários aspectos. Em pri-
meiro lugar, a estas alturas do debate historiográfico, dificilmente se pode concordar com
Law quanto a esse “desdém” para com a agricultura. O que existia era a concepção de que
a monarquia devia permanecer afastada das atividades comerciais mais diretas, e parti-
cularmente das que tivessem a ver com a terra, recebendo apenas os tributos que os cam-
poneses deveriam oferecer nos Costumes anuais (cerimônias em honra dos reis mortos).
Edna Bay propõe que estes argumentos surgem de uma leitura demasiado literal de al-
guns relatos da época. Por exemplo, quando uma missão inglesa foi a Abomé para ordenar
o fim do comércio escravista em 1851 e o rei Guezo, provavelmente consciente da visão
europeia do reino, lhe respondeu com uma ironia em sintonia com o imaginário “moderno”
europeu: “meu povo é um povo militar, homens e mulheres [...] Não posso mandar minhas
mulheres a cultivar a terra, as mataria”. Ironia que, evidentemente, não foi compreendida
como tal pelo esquadrão inglês, sobressaltado ante a ideia de uma comunidade cujas mu-
lheres não sabiam cultivar: Bay, Wives, p. 204.
51 Para um estudo detalhado deste ponto, com fragmentos de documentos transcritos de
primeira mão, ver Dov Ronen, “The Colonial Elite in Dahomey”, African Studies Review,
vol. 17, no 1 (1974), pp. 61-76.
52 Este é um ponto importante, porque o “silêncio” da historiografia independente se trans-
fere ao âmbito das políticas de gênero. Em um texto não tão recente, Catherine Coquery-
Vidrovitch falava não só da força e do dinamismo dos mercados internos e dos circuitos re-
gionais que permitiram a transição para a exportação de azeite-de-dendê, mas que foram
as mulheres o ponto-chave desta transformação econômica, já que eram as encarregadas
continuação 52
reformas, que merece atenção. Nesta época, uma das cerimônias que
mais se populariza é a dedicada a Gakpe. Este era o nome de nascimento
de Guezo, antes de ser nomeado vidaho, ou sucessor real com um nome
propício, de acordo com o costume local.
Gakpe é tomado nos relatos do século XIX, às vezes, como mais um
“fetiche”, outras vezes, como um símbolo que aglutinava a população.
No entanto, podemos tentar decifrar a importância desta identidade
alternativa do rei lendo as palavras de Thomas Birch Freeman, um inglês
que visitou Daomé em 1856:
Garuapay [Gakpe] [...] é uma espécie de ideal representativo
do gênio da nação. Ele leva os créditos de todas as obras
que não podem ser atribuídas com propriedade à pessoa
do rei. [...] durante uma larga entrevista com o rei, este
me mostrou um mosquete fabricado com muita destreza,
que declarou ser manufatura local, e estava tão bem feito
que eu mesmo mostrei grande surpresa e curiosidade. [...]
lhe perguntei quem tinha a habilidade para produzir esse
tipo de artigo, e a resposta do rei foi “Gakpe o fez”. Pela
forma que a resposta me foi dada, soube que havia algo
de mistério ao redor de Gakpe [...] indaguei mais e soube
que [...] o rei não podia dizer, sem perder sua dignidade,
“eu o fiz”.54
54 Londres, Methodist Missionary Society (MMS), Biog. West Africa 5, maço QI, Thomas Bir-
ch Freeman, mimeografia de livro sem título, s.d., p. 306, apud Bay, Wives, pp. 217-18.
55 Bay, Wives, pp. 218-20. Este tipo de argumentos a autora extrai dos relatórios do oficial de
ultramar Auguste Bouët e de Richard Burton.
56 Ibidem.
57 Idem, p. 222. O “personagem” de Gakpe nos remete a Komfo Anokyo do vizinho reino
ashante, o símbolo personificado, transtemporal, dono das leis ancestrais do estado. A fi-
gura de Anokyo está documentada desde o final do século XIX e aparece nos momentos
de conflito político e enfrentamento entre o Ashantehene e os europeus. Da mesma ma-
neira, Gakpe aparece como símbolo ritual em um momento de transição, é o médium em
um “ritual de passagem” para novas formas de produção e de vida material e política: T. C.
McCaskie, “Komfo Anokye of Asante: Meaning, History and Philosophy in an African So-
ciety”, Journal of African History, vol. 27, no 2 (1986), pp. 315-339.
58 Bay, Wives, p. 201.
59 Idem, pp. 198-213.
60 Idem, p. 312.
61 Alguns autores, como Felix Iroko, e tradições orais recolhidas na região afirmam que os
fons eram um dos grupos originais do planalto antes que chegassem os agassuvis ao lu-
gar. Esta tese propõe que teria sido depois de sua usurpação do poder local autóctone
que o etnônimo fon adquiriu um caráter mais genérico e inclusivo: Felix Iroko, Mosai-
ques d’Histoire Beninoise, Benim: Éditions Corrèze Buissonnière, 1998, p. 59. Sobre os
mitos fundacionais de Daomé, ver Robin Law, The Kingdom of Allada, Leiden: Research
School CNWS-CNWS publications, 1997; Suzanne Preston Blier, “The Path of the Leop-
ard: Motherhood and Majesty in Early Danhomé”, Journal of African History, vol. 36, nº
3 (1995), pp. 391-417.
65 Ibidem.
66 Cornevin, Histoire, pp. 63 e ss.
67 Djivo, Guezo, p. 41.
68 Akinjogbin, Dahomey, p. 14.
69 De fato, Akinjogbin não proporciona outros elementos que permitam compreender por
que localiza “aproximadamente” no século XV a conformação desta “unidade cultural”.
70 Ibidem, p. 14.
71 Apesar da descrição em termos teóricos que faz Akinjogbin desta teoria social, ebi, com-
partilhada entre os numerosos povos iorubás e os povos adjas, vários historiadores – e
nem todos de forma recente – especificaram as diferentes tradições originárias egba
-iorubá, iguede, ewe-fon e adja-fon. Inclusive, uma análise “genealógica” e diacrônica
das tradições orais permitiu visualizar a invenção relativamente recente – incentiva-
da pela administração colonial e depois pelo estado independente – de concepções de
“homogeneidade” cultural que se apresentam, no entanto, como “tradicionais”, “originá-
rias”. O caso adja-iorubá é um deles. Para as divergentes mitologias fundadoras iorubás
e adja/fon em uma análise diacrônica, ver Cornevin, Histoire, pp. 148 e ss. Para os pro-
cessos de apropriação e redesenho colonial e póscolonial destas tradições, ver Law, “His-
tory and legitimacy”; Sandra E. Greene, “Notsie Narratives. History, Memory and Mean-
ing in West Africa”, in Dube (org.), Enduring Enchantments, South Atlantic Quartely,
vol. 101, no. 4 (2002), pp. 1015-1041. Ver também Roberto Pazzi, “Aperçu sur l’implan-
tation actuelle et les migration sanciennes des peuples de l’aire culturelle Aja-Tado”, in
François de Medeiros (org.), Peuples du Golfe du Bénin (Aja-Ewé) (Paris: Éditions Kar-
thala, 1984), pp. 11-20.
72 Ronen, “On the African Role”; Augustus Adeyinka, “King Ghezo of Dahomey (1818-1858).
A Reassessment of a West African Monarch in the XIX Century”, African Studies Review,
vol. 17, no 3 (1974), pp. 543-548.
78 Forbes, Dahomey; Richard Burton, A Mission to Gelélé King of Dahomey, Londres: Rout-
ledge & Kegan Paul, 1966 [1864].
79 Soumonni, Daomé, p. 20.
80 Ibidem.
81 Djivo, Guezo, pp. 56-57.
87 Valentin Mudimbe, The Idea of Africa, Bloomington: Indiana University Press, 1994, pp.
72-78.
88 Glelé, Le Danxomé, p. 180.
89 Glelé é o único historiador que faz esta afirmação como uma separação entre o sentido
“linguístico” fon e sua configuração mais tardia como um produto de fusão cultural.
90 O conceito “pluriétnico” é utilizado por Glelé: Le Danxomé, p. 168.
91 Soumonni, Daomé, pp. 53-54. É interessante a cena reproduzida no romance histórico Do-
guicimi, do etnólogo e político beninense Paul Hazoumé, na qual um escravo mahi vai ser
sacrificado. Antes de ser decapitado, consegue pronunciar um discurso “que mal se ouve
entre a multidão”, no qual declara que os daomeanos são cruéis e que seu argumento re-
ligioso acerca dos motivos dos sacrifícios como oferenda aos antepassados era uma falá-
cia conhecida por todos. O discurso que “mal se ouve” é o do escravo, mas simbolicamente
é também o de Hazoumé; originariamente um gunde Porto Novo: Paul Hazoumé, Doguici-
mi, Washington: Three Continent Press, 1990 [1938], pp. 111-112. Para uma análise teóri-
ca, ver: Eleni Coundouriotis, Claiming History. Colonialism, Ethnography, and the Novel,
Nova York: Columbia University Press, 1999, p. 100.
Conclusões
“Cronófagos”, denomina o cineasta senegalês Ousmane Sembène os
historiadores, particularmente da África: deglutem o tempo disciplinando-o,
ocultam a multiplicidade dos discursos e matizam o metarrelato em um
ziguezigue de feitos reduzidos à sua mínima importância.92 Talvez seja
mais acertado pensar estes historiadores analisados como “ruminantes”.
Não que devorem as temporalidades múltiplas em um ato repressor, e sim
devolvem ao discurso uma imagem complexa e produtiva, poliforme, sobre
os sentidos da temporalidade da experiência, a conformação histórica da
identidade e a polissemia do acontecimento. Ao fazê-lo, propõem uma
“ontologia política do passado”,93 que requer um esforço de desconstrução:
o reconhecimento permanente da supressão, o esquecimento e o exage-
ro, como partes integrantes – e não simplesmente como patologia – da
operação historiográfica; e também como fazedores de sentidos diversos
de modernidade local.
Tem-se escrito muito, muitíssimo, sobre o Daomé, a Costa dos
Escravos e a “sangria demográfica” que o tráfico escravista produziu
na África. Porém, pouco se refletiu sobre que elementos situacionais
Enidelce Bertiné professora da Universidade Nove de Julho (Uninove), São Paulo Capital,
e autora dos livros Os meias-caras. Africanos livres em São Paulo no século XIX (Ed.
Schoba, São Paulo, 2013); e Alforrias em São Paulo do século XIX: liberdade e dominação
(Ed.Humanitas, São Paulo, 2004).
João José Reis é professor da Universidade Federal da Bahia e autor, entre outros livros,
de A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX (São
Paulo: Companhia das Letras, 1991); Rebelião escrava no Brasil: a história do levante
dos malês em 1835 (São Paulo: Companhia das Letras, 2003); e Domingos Sodré, um
sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX (São
Paulo: Companhia das letras, 2008).
João José Reis é professor da Universidade Federal da Bahia e autor, entre outros livros,
de A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX (São
Paulo: Companhia das Letras, 1991); Rebelião escrava no Brasil: a história do levante
dos malês em 1835 (São Paulo: Companhia das Letras, 2003); e Domingos Sodré, um
sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX (São
Paulo: Companhia das letras, 2008).
Normalização Bibliográfica
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Editoração Eletrônica
Glaucio Coelho - MC&G Design Editorial
Formato 16 x 23cm
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Cartão Supremo 250g/m2 capa • Pólen soft 80g/m2 miolo
744 p.
Tiragem: 500 exemplares
Ano: 2016