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17 O CUIDADO DE SI, A MEDITACAO ZAZEN E O ENSINO PRATICO DA FILOSOFIA Arlindo Rodrigues Picoli! Vitéria(ES), vol. 4, n. 1 SOFIA Taneiro/Junho 2015 Versio eletrénica ' Professor de Filosofia do Instituto Federal de Educagdo do Espirito Santo, E-mail: alindo.picoli@ifes.edu.br. 178, Resumo: Nesta pesquisa efetuamos uma investigagio especulativa baseada no estudo © em ‘experiéneias interpretativas de texto de Michel Foucault e Pierre Hadot, Partimos da hipétese de que 0 modo de vida praticado no Zen conseguiu preservar ténicas milenares, muito parecidas com os exercicios (askesis) praticadas na filosofia antiga e que sé conhecemos por referéncias parciais pouco detalhadas nos textos filoséficos. Nosso objetivo & investigar os conceitos de cuidado de si em Foucault e exercicios espirituais em Hadot, efetuar a comparagio com 0 zazen e pensar no ensino de filosofia enquanto disciplina pritica. Palavras chave: Cuidado de Si. Exercicios espirituais. Zen. Abstract: On this research we have conducted a speculative investigation based on the study and interpretative experiences of Foucault and Pierre Hadot’s text. We strated from the hypothesis that the lifestyle practiced in Zen was able to maintain millenial techiniques which look a lot alike exercises (askesisis) that were practiced by the ancient philosophy that we only know of because of partial and scarce references on philosophical texts, We aim at investigating the ‘care of the self concept in Foucault and the ‘spiritual exercises’ concept in Hadot by comparing to the zazen and thinking of the philosophy teaching as a practical discipline. Key words: Care of the Self. Spiritual exercises. Zen Por isso, deixe de lado a pratica intelectual de investigar palavras ¢ cagar frases, € aprenda a tomar 0 passo para tris que acende a luz e a faz brilhar para dentro. Seus corpos e mentes cairo, ¢ sua face original se manifestaré, Se quiser realizar tal coisa, comece a dedicar-se a isso agora mesmo, Para praticar Zen, um quarto silencioso & adequado. Coma e beba moderadamente. Abstenha-se de todos os envolvimentos e suspenda todos os negocios. Nao pense em "bom" ou "mau", Nao julgue verdadeiro ou falso, Pare com as operagées da mente, intelecto, e consciéncia; pare de avaliar com pensamentos, ideias, e visbes. Nao tenha planos em tornar-se um Buda, Como isso podria limitar-se a sentar ou deitar-se? No seu local de sentar-se, forre um tapete grosso € ponha um colchao sobre ele. Sente-se na posi¢ao do létus completo, primeiro ponha seu pé diteito sobre sua coxa esquerda, entdo seu pé esquerdo sobre sua coxa direita. Amarre suas roupas frouxamente ¢ as artanje organizadamente. Entéo ponha a sua mio direita sobre a sta perna esquerda e sta mao esquerda sobre sua palma direita, as pontas dos polegares tocando-se levemente. Endireite seu corpo € sente-se ereto, nio se curvando nem para a esquerda nem para a direita, nem para frente ou para tris. Alinhe suas orelhas com seus ombros e seu nariz. com seu umbigo. Coloque a ponta da sua lingua na frente do céu da boca, com os dentes juntos ¢ labios fechados. Mantenha sempre seus olhos abertos ¢ respire suavemente pelo nariz. ‘Uma vez ajustada a sua postura, dé uma respirada ¢ exale totalmente, balance seu corpo pata a direita ¢ esquerda, e fixe-se num sentar fixo ¢ imével. Pense em nao pensar, Nao pensar - que tipo de pensamento é este? Nao pensar. Esta 6 a arte essencial do zazen* Eihei Dogen Zenji > DOGEN, Fukan zazengi (Instrugdes Universalmente Recomendadas para Ze 179) Em Exercicios espirituais e filosofia antiga, Pierre Hadot desenvolveu a hipétese da filosofia como modo de vida. Essa redescoberta de uma dimensio pratica da filosofia antiga teve forte impacto na pesquisa de Michel Foucault, que mesmo assumindo que correria certos riscos em seu projeto inicial, efetuou um deslocamento de seus estudos sobre a Historia da Sexualidade: perigo era também o de abordar documentos por mim mal conhecidos. Corria o risco de submeté-los, sem me dar conta, a formas de anilise ou a modos de questionamento que, vindos de outros lugares, nio Ihes convinham; 0s livros de P. Brown, os de P. Hadot, e, em varias ocasides, seus pareceres & as conversagdes que mantivemos, me foram de grande valia. Apesar da morte prematura de Foucault ter impedido um disilogo mais aprofundado entre eles, no capitulo Reflexdes sobre a nogdo de “Cultura de si” Pierre Hadot aponta diferengas explicitas para distinguir suas visdes das de Michel Foucault. Ele vé com reservas os conceitos foucaultianos de estética da existéncia e ética do prazer. Na Histéria da Sexualidade: 0 cuidado de si, Foucault concebe a ética greco-romana como uma ética do prazer que se obtém em si mesmo. Hadot, apoiado em Séneca, demonstra que, dada a imperfeigao da razdo humana, o que o estoicismo buscava era a Razo perfeita, universal ou divina* Por ora, digamos entdio que parece dificil, de um ponto de vista histérico, admitir que a pritica filoséfica dos estoicos e dos platénicos tenha sido apenas uma relagio consigo, uma cultura de si, um prazer obtido em si mesmo. O contetido psiquico desses exercicios me parece totalmente diferente. O sentimento de pertencimento a um Todo me parece ser um elemento essencial pertencimento ao Todo da comunidade humana, pertencimento 20 Todo cdsmico.” Apesar do distanciamento que Hadot estabelece ao conceber a interiorizago como inseparavel da busca de um nivel psicolégico superior, capaz de produzir uma relagio nova com © exterior, uma consciéneia de si como parte da Natureza ou da Razio universal; ele concorda com a concepgao de Foucault das “praticas de si enquanto um deslocamento em diregao para si mesmo e no afastamento ao que é exterior por meio dos exercicios que possibilitam encontrar um estado de felicidade e liberdade. * FOUCAULT, Historia da sexualidade 2; 0 uso dos prazeres, p. 12. *HADOT, O que é a filosofia antiga? p. 292-293. * Thid., p. 293-294, 180 Portanto, feitas essas ressalvas veremos que os conceitos de cuidado de si ou tecnologias de si a definigiio de Hadot dos exercfcios espirituais enquanto “prditicas que podem ser de ordem fisica, como regime alimentar; discursiva, como 0 diélogo e a meditagdo; ou intuitiva, como inadas a operar modificagao e transformagao no 4 contemplacdo, mas que sto todas des sujeito que as pratica™, sio mais convergentes que distantes. Caracterist as do cuidado de si Na obra A Hermenéutica do Sujeito, Foucault nos convida a pensar na nogo do ‘cuidado de si”, a qual, para os gregos, designava-se por epiméleia heautoti e, para os latinos, a cura sui’. Apesar dos miiltiplos sentidos que marcaram a epiéleia heautoa, tres pontos caracteristicos ¢ gerais devem ser lembrados acerca do cuidado de si: atitude geral, atengao interior e ago transformadora. Como atitude geral é uma forma de se rela nar consigo mesmo, com os outros ¢ com 0 mundo, um comportamento orientado por uma disposic’o interior, Como atengo é um deslocamento do olhar, do foco, do interesse para o si mesmo, um estado de alerta aos proprios pensamentos. Finalmente como ago, a epiméleia heautoa se refere as priticas, exercicios ou téenicas pelas quais nos modificamos, portanto 6 nesse ponto que encontramos uma aproximagio maior com o que Hadot preferiu chamar de exercicios espirituais. Se nos detivermos no cuidado de si como técnica que possibilitava o acesso a verdade, cle ja estava disseminado por toda a Grécia arcaica ¢ também em outras culturas, nos ritos de purificacio, imprescindiveis para 0 contato com 0 que os Deuses tinham a dizer; nas técnicas de concentrago da alma, que dada a sua grande mobilidade, evitavam sua dispersio, fixando- a num modo de exi {éncia; no retiro em si mesmo on anakhdresis, forma de desligar-se das sensagdes do mundo exterior; e nas praticas de resisténeia, que eram um desdobramento da anakhéresis que possibilitava suportar provagdes dolorosas ¢ tentacdes dificeis. 0 pitagorismo, muito antes de Sécrates, trabalhou com muitas dessas priticas, como nna purificagdo para o sonho, no qual encontramos priticas preparatorias para o contato com o mundo divino, mundo da verdade, como se entendia, entrementes, o sonho. Essa purificagao poderia ocorrer mediante méisicas, perfumes ou, ainda, pelo exame de consciéneia. Ao td, 1999, p.21 Literalmente, cuidado de si Em latim, cura refere-se a uma série de coisas distintas, mas que mantém 0 sentide de cuidar: cuidado e diligéncia, mas também, direcio, encargo, administrgao, cuidados de um doente, tratamento, trabalho, obra de espirito, obra literiria, livro, causa de cuidado, inquictagio, cuidados de amor, tormentos de amor, amor, guarda, guardador, vigia, Cf. FERREIRA, Dieiondrio de latim-portugués, p. 315. 181 Jembrarmos nossas faltas cometidas durante o dia, delas nos livramos. Outro exemplo sio as técnicas de provagao, como aquelas em que, apis praticar uma série extenuante de exercicios, recusa-se uma refeigao farta colocada 4 nossa frente, e se medita sobre ela ‘0 momento socratico Socrates ¢ 0 encarregado pelos Deuses de lembrar e incentivar os homens a ocuparem © cuidarem de si mesmos. Na Apologia de Sécrates, sabemos por meio de Plato, que a0 proclamar 0 cuidado de si em Atenas, ele abre mao de uma série de situagdes consideradas vantajosas, como fortuna e cargos de poder e que agindo assim, conseguiu despertar, pela primeira vez, os cidadios de Atenas de um profundo sono. Portanto o cuidado de si ¢ a realidade mais admiravel, pois proporciona algo equivalente a uma vida consciente, ativa ¢ desperta. Como relatado em O Banquete, Sécrates dominaya a anakhéresis, pratica do retiro em si mesmo, bem como a técnica de resisténcia. Andava descalgo sobre 0 gelo com mais facilidade do que faziam seus companheiros calgados, ¢ podia manter-se imével durante todo um dia € uma noite, Tudo isso parece indicar a sua maestria nas técnicas do cuidado de si. No Primeiro Alcibiades, vemos, entdo, surgi, a partir do cuidado de si duas questdes A primeira diz respeito ao sujeito: o que & o si mesmo? E a segunda: qual é a rék/me para um bom goveno? “Qual o cu de que devo ocupar-me a fim de poder, como convém, ocupar-me com os outros a quem devo governar?” Resumindo as duas perguntas: que € 0 si mesmo, ¢ 0 que & 0 cuidado necessirio para governar os outros? Para responder a essas questdes, seguiremos as analogias de Sécrates, nas quai diferenciamos os sujeitos aquilo do qual se servem. Podemos distinguir, na arte da sapataria, 6 instrumentos, como 0 cutelo, € © sapateiro. © mesmo verifica-se na musica, na qual distinguimos a citara de seu miisico. Mas, e quando agitamos a mos? Temos ai as mos € aquele que se serve delas, 0 sujeito. O corpo ndo pode servit do corpo, 0 elemento 0 qual se serve das maos, dos othos, da linguagem e de todo 0 corpo 86 pode ser a alma, Servir-se este que, em grego kirésthai/khré: is, indica um comportamento, uma atitude, relagdes com os. ‘outros ¢ consigo mesmo, mas que nao é instrumental, nem substancial, mas sim transcendente ce subjetiva. ‘Ao concebermos a alma enquanto sujeito, © cuidado de si passa a distinguir-se em tu@s outros tipos de atividades. Primeiro, Foucault enuneia 0 exemplo do médico: quando 0 médico adoece ¢ aplica sobre si sua arte médica, podemos dizer que ele se ocupa consigo 182 mesmo? A resposta é nao, pois cle esta se ocupando com o corpo, ¢ no com o si mesmo da alma, A segunda atividade é a economia: quando um proprietério ocupa-se com suas posses, seus bens ¢ sua familia, ele esta se ocupando consigo mesmo? Nao, ele esta se ocupando com (© que & dele, € nao consigo mesmo. Os pretendentes de Aleibiades ocupavam-se com o proprio Alcibiades? Da mesma forma que nos exemplos anteriores, a resposta é negativa, haja vista que eles estavam ocupados com a beleza de seu corpo, Na verdade, quem cuida de Alcibiades & Sécrates, pois apenas ele cuida de sua alma. Sécrates € muito mais que um professor sofista, & mais que um pedagogo, & o mestre da epiméleia heuatoit, pois: Diferente do professor, ele nao cuida de ensinar aptidées € capacidades a quem cle guia, néo procura ensiné-lo a falar nem a prevalecer sobre os outros, ete, O mestre € aquele que cuida do cuidado que 0 sujeito tem de si mesmo ¢ que, no amor que tem pelo seu discipulo, encontra a possibilidade de cuidar do cuidado que o discipulo tem de si priprio.® Sendo ai im: 0 que é 0 ‘eu’ com o qual é preciso ocupar-se? A alma. O que é ocupar- se consigo mesmo, 0 que é o cuidado de si? E conhecer a si mesmo, gndthi seautén, Foucault nos diz que o aparecimento dessa referéncia ao “conhega a si mesmo”, no Primeiro Alcibiades, & totalmente diferente de outras duas anteriores. Enquanto a primeira surge como prudéncia, para que Alcibiades relacione suas ambigdes com suas capacidades, isto é, para que ele perceba suas limitagdes e a importincia em ocupar-se consigo mesmo; a segunda ressurge para responder quem é o si mesmo com que se deve ocupar. E, finalmente, agora 0 gndthi seautén emerge de maneira direta ¢ decisiva, para dizer que o cuidado de si é 0 conhecimento de si mesmo. E este momento afetara toda a cultura greco-romana. A partir dai, surge a justificativa para que o cuidado de si, ou seja, para que todas as priticas espirituais, ‘conhega a ti_mesmo” sejam organizadas em torno do Apesar disso, em Platio, 0 conhecimento de si é apenas um aspecto extremamente importante do cuidado de si, relagdio cesta que sera revertida alguns séculos depois pelo neoplatonismo. E como devemos nos conhecer? Para chegar a esta resposta, Sécrates parte do exemplo do olho e do espelho. Quando nos vemos no olho de alguém, semelhante a nds, vemo-nos @ nos mesmos. Mas este si mesmo que se vé no & gragas ao olho, mas a visio, a qual & também no olho do outro, Para a alma ver-se, é preciso que se volte para um elemento de sua propria natureza. E qual é a natureza da alma? O pensamento ¢ o saber. Sendo divinos © pensamento ¢ o saber, a alma deve voltar-se para o divino, com o fim de conhecer-se a si S FOUCAULT, 4 hermenéutica do sujeito, p. 73. 183 mesma ¢ receber a sabedoria, sophrosjne, De maneira que, a alma conheceré a diferenga entre ‘o-bem € 0 mal, entre o verdadeito eo falso, ¢ saberd, enfim, governar a cidade. No final do didlogo, Alcibiades compromete-se a ocupar-se com a justiga, pois ‘ocupar-se consigo mesmo ou com a justiga, sio equivalentes, jé que tudo surgiu a partir da preocupagio em se tornar um bom governante, Infelizmente isto nao se deu, ¢ é 0 mesmo Alcibiades que, j4 mais velho, no O Banguete, lamenta ao dizer que acabou envolvendo-se ‘com 0 assuntos politicos de Atenas em vez de cuidar de si mesmo. Muito embora seja comum atribuirmos ao pensamento platdnico a divisao entre alma ¢ corpo, subordinando © segundo 4 primeira, é importante lembrar que a concepgdo antiga de alma no é dada desde sempre por jé acabada, pelo contrario, como vemos em O Banguete de Platao: Ainda que dissermos que as pessoas so as mesmas desde que nascem até morrerem, na verdade [néos aei gignémenos], uma nova crianga renasce em nés a cada momento.” A questio do cuidado de si implica uma atitude ou um conjunto de atitudes, mediante as quais o sujeito transforma-se a si mesmo ¢ que estio relacionadas a uma conversio do olhar, ou seja, uma mudanga no foco da atengdo, que se desloca daqueles valores considerados importantes pela maioria (67 pollo’) em diego aqueles que so cuidados por poucos (6i prétoi), tais como a alma, o pensamento e a verdade. Tal busca, empreendida por Foucault em vista de um principio tio antigo, como o cuidado de si, suas técnicas ¢ suas transformagées, pode gerar uma grande contribuigao para entender 0 sujeito moderno, a historia da subjetividade e suas priticas e mesmo a educagao enquanto construtora de determinado tipo de sujeito. 0 Zen ea niio dualidade © termo zen € 0 equivalente ao chinés cha na ou channa, que por sua vez vem do sanscrito Dhyana ou jhana e indica um estado gradual de contemplagao ou absorgao meditativa tal como revelado por Sidarta Gautama em Os fruios da vida ascética \°. De todas as religides, talvez o Zen seja a mais filoséfica, assim como a histéria mostra que 0 nascimento da filosofia se deu por meio de um afastamento gradativo das explicagdes sobrenaturais do mito, para Sidarta Gautama, 0 Buda (despestto, iluminado), a ideia de Deus no constituia parte importante de sua doutrina. O conceito de Dharma, entendido como 0 ° Plato, O Banguete, 2074-<. °° Os frutos da vida ascética, p. 33-38. 184 ensinamento ou método de liberagdo conforme as leis da natureza, ocupa © ponto central. O Zen manteve a mesma postura. O cariter filos6fico do Zen também pode ser observado na importincia dos questionamentos, e é justamente isso que leva seu fundador, Bihei Dogen, a iniciar uma peregrinagao pelo Tapio ¢ China em busca de respostas junto a outros mestres para uma pergunta que vai acompanha-lo por anos: “se todos os seres humanos s4o dotados da natureza de Buda desde 0 nascimento, por que os budistas de todos os tempos buseam incessantemente a iluminagao, empenhando-se na pratica espiritual?”!! A resposta, Dogen s6 vai encontrar em 1225 na presenga de Ju-Ching, abade no mosteiro de Ching-te-ssu, no monte T“ien-t“ung, ao perceber por meio uma sesso de zazen, a capacidade intrinseca do ser humano para a iluminago, pois apesar de ja nascermos com ela, era preciso “deixar cair corpo e mente” para ter uma perspectiva nao dualistica. Isso nlio implica em anular a existéncia historica ¢ social, mas sim perceber tudo de uma perspectiva nova, transformada que permita, como descreve Jin Kim (Apud Teixeira), a “encarnacdo autocriativa e autoexpressiva da natureza do Buda” Esse ensinamento, entendido como dharma, esta no intimo de cada um de nés, mas precisa de um exercicio para vir & tona, dai a importancia do zazen € o sentido da iluminagao no budismo Zen. Enquanto pritica ou técnica, salta aos olhos as semethangas entre o que Foucault chama de cuidado de si, Hadot de exercicios espirituais ¢ a pritica do zazen. O fato ¢ que, apesar de nao ter se dedicado fundo no estudo do Zen, em viagem ao Japdo, Foucault foi convidado para passar algum tempo no templo Seionji em Uenohara, na provincia de Yamanashi, onde o mestre Omori Sogen o levou a sala de meditagdo. Alguns relatos dessa experiéneia foram publicados na revista japonesa Shunji, e posteriormente traduzida por Cristian Polac na Umi, n° 197, agosto-setembro 1978, p. 1-6, como “Michel Foucault et le zen un séjour dans un temple zen” (Michel Foucault eo Zen: uma Estada em um Templo Zen). Omori Sogen, foi um mestre zen da escola Rinzai, famoso por criar uma abordagem integrando métodos tradicionais Zen, artes marciais ¢ a arte da caligrafia, Apesar da pouca experiéneia com o zazen, a percepgdo de Foucault é de uma rara clareza, e assim ele a desereve em uma conversa com Omori: “ [...] se eu pude sentir algo por meio da postura corporal na meditagio zen, isto &, a posi¢do correta do corpo, & uma nova relagdo que pode “CE TEIXEIRA, A espiritualidade zen budista, p. 711 JIN KIM, L essenza del buddhismo zen. Dogen, realista mistico. p. 59, Apud TEIXEIRA, A espiritualidade zen budista, p. 715 185 existir entre a mente © o corpo ¢, além disso, novas relagdes entre 0 corpo e 0 mundo exterior." Em seguida Foucault pergunta sobre a universalidade do Zen ¢ a possibilidade de separi-lo da pritica do budismo ¢ recebe uma resposta que pode nos ajudar a entender a questo de distanciamento entre os abordagens de Foucault e Hadot: O zen budismo nasceu. Portanto, ha uma relagio estreita entre Zen € 0 budismo, No entanto, 0 Zen nio exige necessariamente a forma de zen. Podemos até mesmo abandonar o nome de "zen". © Zen & muito mais livre. Voeé acabou de dizer que vocé sentiu uma nova relago entre mente & corpo e entre o corpo € 0 mundo exterior. Eu achei admirivel vocé sentir isto com tio pouca experiéncia do Zen. Vocé nao concorda & que estas sio experiéncias universais de sentir que a mente © 0 corpo se unem € que 0 si mesmo ¢ 0 mundo exterior se unem? Isso mostra que 0 Zen tem uma caracteristica internacional ¢ universal. O Zen & pequeno se pensarmos que & apenas uma parte do budismo, mas nés nao o consideramos como uma parte do budismo. Se vocé pudesse compreender o Zen no sentido da. sua experiéncia, eu acho que vocé seria convencido da universalidade do Zen. * A resposta do monge revela de forma sutil, algo essencial do budismo, que parece ultrapassar o principio formal da nio-contradigdo estabelecido pela filosofia classiea, ou seja uma coisa ndo pode ser € no ser ao mesmo tempo. Segundo Shunryu Suzuki, a postura do zazen ao cruzarmos por exemplo as pernas, est nos dizendo que elas so uma s6. “A postura expressa a unidade da dualidade: nem dois, nem um. Este & © ensinamento mais importante: nem dois, nem um. Nosso corpo e mente no dois, nem um. Se vocé pensa que seu corpo € mente so dois, esta errado, Se pensa que so um, também esta errado, Nosso corpo e mente so dois ¢ um a0 mesmo tempo. Habitualmente, pensamos que se algo nao & um, € mais do que um; que se algo nfo é singular, é plural. Mas, na pritica, nossa vida niio & s6 plural, é também singular, Cada um de nds € duas coisas ao mesmo tempo: dependente ¢ independente."* O Zen € pequeno se pensarmos que é parte do budismo, ou de qualquer outra coisa, ‘mas é universal se a experiéneia do zazen proporciona uma unidade, como a que Foucault pode ter vislumbrado na relagao entre corpo, mente ¢ o mundo exterior Aplicando 0 mesmo principio, as priticas filos6ficas, so a um s6 tempo referentes a si mesmo, na medida que tratam de um trabalho individual que cada um realiza sobre si mesmo; " POLAC, Michel Foucault et le zen : un séjour dans un temple zen (tradugao nossa). Ibid. 'S SUZUKI, A pritica correra 186 ¢ integradas a um universal, quando proporcionam uma uniao entre corpo, mente ¢ o exterior, © Todo cosmico de Hadot, a Razao dos estéicos ou mesmo 0 Uno de Plotino. ‘A importancia do pertencimento ao Todo da comunidade, conforme relembrado por Hadot aponta para a necessidade da formagdo das escolas filosdficas, Enquanto escola, a existéncia da comunidade jé era parte fundamental para o exercicio, pois a ideia de pertencimento a um grupo reforga, potencializa e relembra constantemente a importancia dos objetivos e meios para atingi-los. Encontramos aqui um principio interdependente, cuidado de si e cuidado dos outros, que nfo se excluem, a0 contrario possibilitam a superagdo dessa dualidade por meio da unidade. Mesmo na politica é platénica é possivel fazer essa relagdo. Conforme Foucault, em Platao, uma determinada agio era ao mesmo tempo catirtica e politica. Isto ocorre por trés vinculos: finalidade, reciprocidade e implicagdo. No vinculo da implicagao, ao praticar a catarse de si, a alma descobre o que & € que sempre soube, sob forma de reminiscéncia, 0 que Ihe permite fundar a ordem da cidade. No vineulo da reciprocidade, salvando-se a si mesmo, salva-se a cidade e salvando a cidade, salva-se a si mesmo. Enfim no vinculo da finalidade, medida que se ocupar consigo mesmo para conhecer, permitira ocupar-se com os ‘outros que sero governados politicamente.'* Repensando o ensino de filosofia As contribuigdes de Foucault e Hadot sobre a importincia da dimensao pritica da filosofia, colocam em xeque os métodos de ensino de filosofia utilizados em sala de aula, seja ita ao discurso na educago basica ou no ensino superior ¢ que, na maioria das vezes, se li filoséfico. Apesar do discurso ser parte da pritica de si mesmo, poderiamos pensar se no seria possivel, de alguma forma, em alguns momentos, reinventar a filosofia a partir de certos exercicios relacionados com esses di sursos. No ensino médio a presenga de questées de filosofia no ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) demanda um direcionamento no intuito de preparar os alunos para um coneurso decisivo para os sonhos de ingresso em um curso superior, mas a filosofia, frente a esse risco de instrumentalizagdo, ndo deveria se restringir jamais a isso. Enquanto cuidado de si, a filosofia pode ajudar na criagdo de uma ética autorreferente, mas ndo nunca narcisista, na ‘medida em que também cuida do outro, Basta lembrarmos que ela esta desde jé alicergada na "FOUCAULT, A hermenéutiea do sujetto, p. 217, 187 comunidade escolar ¢ principalmente nas relagées de amizade que se formam em uma sala de aula A pritica de exerci ios nas escolas de cariter filoséfico-pr: icos, simples, despojados de intengdes religiosos, como a técnica do zazen, pode representar uma oportunidade nova de autoconhecimento, além de desenvolver a atengdo, © o controle da ansiedade e a transformagao da maneira de perceber a si mesmo ¢ a realidade exterior. Sua utilizagZo nas aulas de filosofia, se empregada para potencializar a compreensio dos alunos de temas tratados apenas teoricamente teri um impacto positive no interesse daqueles que ainda tem dificuldade com conteiidos abstratos. As disciplinas escolares so uma forma produtiva e eficiente de lidar com 0 espago ¢ 0 tempo, vigilincia e registro de informagdes, conforme 0 anseio por determinado tipo de sujeito, de mao-de-obra ou de cidadio almejado, pela sociedade, familia, governo e mercado de trabalho. Assim, as disciplinas sio um impedimento para nossa liberdade ¢ pre amos pensar alternativas que criem outros mecanismos a servico da produgao de si mesmo. Trata-se de, na medida do possivel, inventar novas técnicas eficazes, que organizando 0 espago, 0 tempo e as informagées, possibilitem as transformagées de si mesmo!’ . Outro caminho seria pesquisar em que medida poderiamos estudar, testar e adaptar as disciplinas, regras e austeridades proprias do cuidado de si da antiguidade para os dias de hoje. Se as priticas pedagégicas ajudam o estudante a desenvolver, maximizar ¢ motivar o seu contato com diversas areas de saber, além do desenvolvimento de diversas capacidades, também podem ser um meio para a experiéneia de si mesmo. O discurso de que a escola esti em crise, em ruinas, niio tem novidade alguma, aconteceu antes ¢ seguiré acontecendo sempre. Acreditamos que a educagio mude com pequenas agdes e grandes ousadias, ¢ neste caso esperamos ter contribuido nesse artigo, nao ‘com respostas, mas com a necessaria atitude inicial de mudanga e deslocamento que caracteriza a filosofia do cuidado de si *” Como exemplo de iniciativas desse tipo, podemos citar as experiéacias de formagio de professores ¢ cexperigneias de pensamento com criangas, desenvolvides pelo professor Walter Omar Kohan (UERJ), 0 philodrama do professor Ricardo Sassone (UBA), que utiliza técnicas teatrais relacionadas a textos filosbticos para produzir uma transformagio nos estudantes; e as propostas de ensino de filosofia envolvendo a sensibilizagdo, problematizaglio, investigagio © conceituagdo defendidas pelo professor Silvio Gallo (UNICAMP), e que possibilitam téenicas e priticas de liberdade visado transformagoes subjetivas por si mesmo, 188, Referéncias DOGEN. Fukan zazengi (Instrugdes Universalmente Recomendadas para Zazen). Disponivel em: < ttp://global.sotozen-net.or.jp/por’practice/zazen/advice/fukanzanzeng html >. Acesso em 08 maio 2015. FERREIRA, Antonio Gomes. Diciondrio de latim-portugués. Porto: Porto, s.4. FOUCAULT, Michel. 4 hermenéutica do sujeito. Sao Paulo: Martins Fontes. 2004. . Ditos e Escritos - Vol. IX - Genealogia da Etica Subjetividade e Sexualidade. So Paulo: Forense universitiria. 2013. POLAC, Cristian. Michel Foucault et le zen : un séjour dans un temple zen. Disponivel em: < http://libertaire.free.ft/MFoucault331.html >. Acesso em 8 maio 2015. HADOT, Pierre. O que é a filosofia antiga? Sao Paulo, Edigdes Loyola. 1999, Exercicios Espirituais e Filosofia Antiga. Sao Paulo: E Realizagdes. 2014. SUZUKI Shunryu. 4 pritica correta. < itp://www.daissen.org.br/hp/index php?id=&s=ct&menu_id=2>. Acesso: 8 maio 2015. PLATAO. Fedro, Cartas ¢ O primeiro Alcibiades. (Tradugao Carlos Alberto Nunes] Belém: EDUFPA. 2007, Os frutos da vida ascética. Trad de Nissin Coen, Jacarei: Centro de Estudos Biidicos, 2002. TEIXEIRA, Faustino. 4 espiritualidade zen budista. Horizonte, Belo Horizonte, v. 10, n. 27, p. 704-727, jul /set. 2012 — ISSN 2175-5841

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