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ga) at de género UTI e RT| NZ y Co) da identidade a(t g COPYRIGHT © Routledge, Chapman & Hall, Inc., 1990 Edigdo em lingua portuguesa publicada mediante acordo com Routledge, Inc. TITULO ORIGINAL EM INGLES: Gender Trouble — Feminism and the Subversion of Identity CAPA: Evelyn Grumach PROJETO GRAFICO: Evelyn Grumach e Jodo de Souza Leite PREPARAGAO DE ORIGINAIS E REVISAO TECNICA: ki Vera Ribeiro EDITORACAO ELETRONICA: Imagem Virtual CIP-BRASIL. CATALOGACAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ. Butler, Judith B B992p _Problemasde género : feminismo e subversio da identidade {Judith Bunlr cae Renato Aguiar. — Rio de Janeiro: \cao Bra (Sujeitoe ae ISBN: 85-200-0611-6 1. Fen Sexo — Dera: (Psicol 1. Titulo. I. I Série cpp — 305.4 02-2104 CDU — 396 Todos os direitos reservados. Proibida a reprodugao, armazenamento ou transmissao de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorizagao por escrito. Direitos desta edigéo adquiridos pela EDITORA CIVILIZACAO BRASILEIRA Um selo da DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIGOS DE IMPRENSA S.A. Rua Argentina 171 - 20921-380 Rio de Janeiro, RJ Tel.: (21) 2585-2000 PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL: Caixa Postal 23.052, Rio de Janeiro, RJ, 20922-970 Impresso no Brasil 2003 Sumario PREFACIO 7 CAPITULO | Sujeitos do sexo/género/desejo 15 1, "MULHERES” COMO SUJEITO DO FEMINISMO. 17 2. AORDEM COMPULSORIA DO SEXO/GENERO/DESEIO 24 3. GENERO: AS RUINAS CIRCULARES DO DEBATE CONTEMPORANEO 26 4, TEORIZANDO O BINARIO, O UNITARIOE ALEM = 33 5. IDENTIDADE, SEXO E A METAFISICA DA SUBSTANCIA 37, 6. LINGUAGEM, PODER E ESTRATEGIAS DE DESLOCAMENTO 49 CAPITULO 2 Proibi¢ao, psicandlise e a produgao da matriz heterossexual 61 1. APERMUTA CRITICA DO ESTRUTURALISMO 68 2. LACAN, RIVIERE E AS ESTRATEGIAS DA MASCARADA 74 3. FREUD EA MELANCOLIA DO GENERO 91 4. ACOMPLEXIDADE DO GENERO E OS LIMITES DAIDENTIFICACAO = 102 5. REFORMULANDO A PROIBICAO COMO PODER 109 } CAPITULO 3 _ Atos corporais subversivos 119 1, ACORPO-POLITICA DE JULIA KRISTEVA 121 2. FOUCAULT, HERCULINE E A POLITICA DA DESCONTINUIDADE SEXUAL 140 3. MONIQUE WITTIG: DESINTEGRACAO CORPORAL E SEXO FICTICIO 162 4. INSCRIGOES CORPORAIS, SUBVERSOES PERFORMATIVAS 185 SUMARIO CONCLUSAO Da parédia a politica 203 Notas 215 inpice 233 Prefacio Os debates feministas contempor4neos sobre os significados do con- ceito de género levam repetidamente a uma certa sensagao de proble- ma, como se sua indeterminagao pudesse culminar finalmente num fracasso do feminismo. Mas “problema” talvez nao precise ter uma valéncia tao negativa. No discurso vigente em minha infancia, criar problema era precisamente 0 que nao se devia fazer, pois isso traria problemas para nés. A rebeldia e sua repressio pareciam ser apreen- didas nos mesmos termos, fendmeno que deu lugar a meu primeiro discernimento critico da manha sutil do poder: a lei dominante amea- cava com probleiias, ameacava até nos colocar em apuros, para evitar que tivéssemos problemas. Assim, concluf que problemas sao inevité- veis e nossa incumbéncia é descobrir a melhor maneira de cria-los, a melhor maneira de té-los. Com o passar do tempo, outras ambigitida- des alcangaram 0 cendrio critico. Observei que os problemas algumas vezes exprimiam, de maneira eufemistica, algum misterioso problema fundamental, geralmente relacionado ao pretenso mistério do femini- no. Li Beauvoir, que explicava que ser mulher nos termos de uma cultura masculinista € ser uma fonte de mistério e de incognoscibili- dade para os homens, o que pareceu confirmar-se de algum modo quando li Sartre, para quem todo desejo, problematicamente presu- mido como heterossexual e masculino, era definido como problema. _ Para esse sujeito masculino do desejo, o problema tornou-se escandalo "com a intrusao repentina, a intervengao nao antecipada, de um “ob- jeto” feminino que retornava inexplicavelmente o olhar, revertia a mirada, e contestava o lugar e a autoridade da posigéo masculina. A dependéncia radical do sujeito masculino diante do “Outro” feminino PREFACIO expés repentinamente o cariter ilusério de sua autonomia. Contudo, essa reviravolta dialética do poder nao péde reter minha atengao — embora outras o tenham feito, seguramente. O poder parecia ser mais do que uma permuta entre sujeitos ou uma relagdo de inversao cons- tante entre um sujeito e um Outro; na verdade, o poder parecia operar na propria produgao dessa estrutura bindria em que se pensa 0 con- ceito de género. Perguntei-me entao: que configuragao de poder cons- tr6i 0 sujeito e o Outro, essa relacao bindria entre “homens” e “mu- lheres”, e a estabilidade interna desses termos? Que restrigio estaria operando aqui? Seriam esses termos nao-probleméticos apenas na me- dida em que se conformam a uma matriz heterossexual para a concei- tuac4o do género e do deseyo? O que acontece ao sujeito e a estabili- dade das categorias de género quando o regime epistemoldgico da presungao da heterossexualidade € desmascarado, explicitando-se como produtor e reificador dessas categorias ostensivamente onto- légicas? Mas como questionar um sistema epistemolégico/ontolégico? Qual a melhor maneira de problematizar as categorias de género que sustentam a hierarquia dos géneros e a heterossexualidade compuls6- ria? Considere 0 fardo dos “problemas de mulher”, essa configuragio hist6rica de uma indisposigao feminina sem nome, que mal disfarca a nogao de que ser mulher é uma indisposigio natural. Por mais séria que seja a medicalizacao dos corpos das mulheres, o termo também é tisivel, e rir de categorias sérias é indispens4vel para o feminismo. Sem divida, o feminismo continua a exigir formas préprias de seriedade. Female Trouble € também 0 titulo do filme de John Waters estrelado por Divine, também heréi/heroina de Hairspray — Eramos todos jo- vens, cuja personificagao de mulheres sugere implicitamente que o género é uma espécie de imitacao persistente, que passa como real. A performance dela/dele desestabiliza as préprias distingdes entre natu- ral e artificial, profundidade e superficie, interno e externo — por meio das quais operam quase sempre os discursos sobre género. Seria o drag uma imitagao de género, ou dramatizaria os gestos significantes mediante os quais o género se estabelece? Ser mulher constituiria um PROBLEMAS DE GENERO “fato natural” ou uma performance cultural, ou seria a “naturalidade” constituida mediante atos performativos discurstvamente compelidos, que produzem o corpo no interior das categorias de sexo e por meio delas? Contudo, as prdticas de género de Divine nos limites das cul- turas gay e lésbica tematizam freqiientemente “o natural” em contex- tos de parédia que destacam a construgao performativa de um sexo original e verdadeiro. Que outras categorias fundacionais da identida- de — 1dentidade binaria de sexo, género e corpo — podem ser apre- sentadas como produgées a criar 0 efeito do natural, original e inevi- tavel? Explicar as categorias fundacionais de sexo, género e desejo como efeitos de uma formacao especifica de poder supde uma forma de inves- tgacdo critica, a qual Foucault, reformulando Nietzsche, chamou de “genealogia”. A critica genealdégica recusa-se a buscar as origens do gé- ‘ nero, a verdade intima do desejo feminino, uma identidade sexual ge- nuina ou auténtica que a repressao umpede de ver; em vez disso, ela investiga as apostas polfticas, designando como origem e causa catego- rias de identidade que, na verdade, sao efeitos de instituigdes, praticas € discursos cujos pontos de origem sao miltiplos e difusos. A tarefa dessa investigagdo é centrar-se — e descentrar-se — nessas instituigdes defin- doras: o falocentrismo e a heterossexualidade compulséria. A genealogia toma como foco o género e a andlise relacional por ele sugerida precisamente porque o “feminino” j4 nao parece mais uma nogio estavel, sendo seu significado tao problematico e erratico quanto o de “mulher”, e porque ambos os termos ganham seu significado pro- blematico apenas como termos relacionais. Além disso, j4 nao esta claro que a teoria feminista tenha que tentar resolver as questdes da identidade priméria para dar continuidade a tarefa politica. Em vez disso, devemos nos perguntar- que possibilidades politicas sao conseqiiéncia de uma critica radical das categorias de 1dentidade? Que formas novas de poli- tica surgem quando a nog&o de identidade como base comum ja nao restringe o discurso sobre politicas feministas? E até que ponto 0 esforgo para localizar uma identidade comum como fundamento para uma po- PREFACIO litica feminista impede uma investigacio radical sobre as construgées e as normas politicas da prépria 1dentidade? O presente texto se divide em trés capitulos, que empreendem uma genealogia critica das categorias de género em campos discursivos muito distintos. O capitulo 1, “Suyertos do sexo/género/desejo”, reconsidera 0 status da “mulher” como sujeito do feminismo e a distingao de se- xo/género. A heterossexualidade compulséria e 0 falocentrismo sao compreendidos como regimes de poder/discurso com maneiras freqiien- temente divergentes de responder As questées centrais do discurso do género: como a linguagem constré1 as categorias de sexo? “O feminino” resiste 4 representag4o no ambuito da linguagem? A linguagem é com- preendida como falocéntrica (a pergunta de Lucy Irigaray)? Seria “o feminino” o tinico sexo representado numa linguagem que funde o fe- minino € 0 sexual (a afirmagao de Monique Wittig)? Onde e como con- vergem heterossexualidade compulséria e falocentrismo? Onde esto os pontos de ruptura entre eles? Como a linguagem produz a construgio ficticia de “sexo” que sustenta esses varios regimes de poder? No ambito de uma lingua da heterossexualidade presumida, que tipos de continui- dades se presume que existam entre sexo, género e desejo? Seriam esses termos distintos e separados? Que tipos de praticas culturais produzem uma descontinuidade e uma dissonancia subversivas entre sexo, género e deseyo, e questionam suas supostas relagées? O capitulo 2, “Proibigao, psicandlise e a produgdo da matriz hete- rossexual”, oferece uma leitura seletiva do estruturalismo, relatos psica- naliticos e femimistas do tabu do incesto como mecanismo que tenta impor identidades de género distintas e internamente coerentes no am- bito de uma estrutura heterossexual. Em alguns discursos psicanaliticos, a questao da homossexualidade é invariavelmente associada a formas de ininteligibilidade cultural e, no caso do lesbiamismo, a dessexualizagéo do corpo feminino. Por outro lado, usa-se a teoria psicanalitica para explicar “identidades” de género complexas por meio de andlises da identidade, da identificagao e do disfarce ou mascarada, como em Joan Raviere € outros textos psicanaliticos. Uma vez submetido o tabu do PROBLEMAS DE GENERO incesto a critica de Foucault da hip6tese repressiva, em “A histéria da sexualidade”, revelou-se que essa estrutura proibitiva ou yurfdica tanto instala a heterossexualidade compulsoria no interior de uma economia sexual masculinista como possibilita um questionamento dessa econo- mua. Seria a psicandlise uma investigacio antifundamentalista a afirmar © tipo de complexidade sexual que desregula eficientemente cédigos sexuais rigidos e hierarquicos, ou preservaria ela um conjunto de supo- sigdes nao confessadas sobre os fundamentos da identidade, o qual fun- _ ciona em favor dessas hierarquias? O iltimo capitulo, “Atos corporais subversivos”, inicia-se com uma consideracao critica sobre a construgio do corpo materno em Julia Kris- __ teva, para mostrar as normas implicitas que governam a inteligibilidade cultural do sexo e da sexualidade em seu trabalho. Embora Foucault se empenhasse em apresentar uma critica de Kristeva, um exame mais de- tido de alguns dos préprios trabalhos de Foucault revela uma indiferenca problematica em relagao a diferenga sexual. Contudo, sua critica da categoria de sexo prové uma visao das praticas reguladoras de algumas _ ficgdes médicas contemporaneas, concebidas para designar um sexo uni- voco. Tanto a teoria como a ficcéo de Monique Wittig propdem uma “desintegraco” de corpos culturalmente constituidos, sugerindo que a propria morfologia seria conseqiiéncia de um sistema conceitual hege- ménico. A parte final do capitulo, “Inscrigées corporais, subversdes per- formativas”, considera que a fronteira e a superficie dos corpos sao po- _ liticamente construfdas, inspirando-se no trabalho de Mary Douglas e de Juha Kristeva. Como estratégia para descaracterzar e dar novo sig- nificado as categorias corporais, descrevo e proponho uma série de pra- ticas parodisticas baseadas numa teorta performativa de atos de género "que rompem as categorias de corpo, sexo, género e sexualidade, ocasio- nando sua re-significagao subversiva e sua proliferagao além da estrutura binania. Parece que cada texto possu1 mais fontes do que pode reconstruir em _ Seus préprios termos. Trata-se de fontes que definem e nformam a hn- PREFACIO guagem do texto, de modo a exigir uma exegese abrangente do proprio texto para ser compreendido —, é claro, nao haveria garantias de que tal exegese pudesse acabar um dia. Embora eu tenha iniciado este pre- facio com uma histéria de infancia, trata-se de uma fabula irredutfvel aos fatos. Certamente, a proposta aqui é, de maneira geral, observar 0 modo como as fabulas de género estabelecem e fazem circular sua de- nominagio errénea de fatos naturais. E claramente impossivel recuperar as origens destes ensaios, localizar os varios momentos que viabilizaram este texto. Os textos estdo reunidos para facilitar uma convergéncia politica das perspectivas feministas, gays e lésbicas sobre o género com a da teoria pés-estruturalista. A filosofia € 0 mecanismo disciplinar pre- dominante a mobilizar presentemente esta autora-sujeito, embora muito raramente aparega dissociada de outros discursos. Esta investigacio bus- ca afirmar essas posigées nos limites criticos da vida disciplinar. A ques- tao nao € permanecer marginal, mas participar de todasas redes de zonas marginais geradas a partir de outros centros disciplinares, as quais, jun- tas, constituam um deslocamento miltiplo dessas autoridades. A com- plexidade do conceito de género exige um conjunto interdisciplinar e p6s-disciplinar de discursos, com vistas a resistir a domesticagao acadé- mica dos estudos sobre 0 género ou dos estudos sobre as. mulheres, e de radicalizar a nogdo de critica feminista. Escrever estes textos foi possivel gracas a numerosas formas de apoio institucional e individual. O Americain Council of Learned Socie- ties forneceu uma bolsa para 0 outono de 1987 (Recent Recipient of the Ph.D. Fellowship) e a School of Social Science do Institute for Advanced Study, em Princeton, proporcionou bolsa, alojamento e discussées esti- mulantes ao longo do ano académico de 1987-1988. A George Washing- ton University Faculty Research Grant também apoiou minha pesquisa durante os verdes de 1987 1988. Joan W. Scott foi uma critica inesti- mivel ¢ incisiva ao longo das varias etapas deste trabalho. Seu compro- misso e sua disposigao de repensar criticamente os pressupostos da po- Iftica feminista me desafiaram e inspiraram. O “Gender Seminar”, rea- lizado no Institute for Advanced Study sob a diregdo de Joan ajudou-me 4 esclarecer e a elaborar meus pontos de vista, em virtude das divisées 12 PROBLEMAS DE GENERO Significativas e instigantes em nosso pensamento coletivo. Conseqiien- temente, agradeco a Lila Abu-Lughod, Yasmine Ergas, Donna Haraway, Evelyn Fox Keller, Dorinne Kondo, Rayna Rapp, Carroll Smith-Rosem- berg ¢ Louise Tilly. Meus alunos no semindrio “Género, identidade e desejo”, realizado na Wesleyan University e em Yale, em 1985 e 1986 respectivamente, foram indispensdveis por sua disposigéo de imaginar “mundos com géneros alternativos. Também apreciei muito a variedade _ de respostas criticas que recebi do Princeton Women’s Studies Collo- quium, do Humanities Center da Johns Hopkins University, da Univer- sity of Notre Dame, da University of Kansas, da Amherst College e da Yale University School of Medicine, quando da apresentac4o de partes do presente trabalho. Meus agradecimentos igualmente a Linda Singer, _ cujo radicalismo persistente foi inestimavel, a Sandra Bartky, por seu trabalho e suas oportunas palavras de estimulo, a Linda Nicholson, por seu conselho editorial e critico, e a Linda Anderson, por suas agudas in- tuigdes politicas. E também agradego as seguintes pessoas, amigos € co- _legas, que deram forma a meu pensamento e o apoiaram: Eloise Moore _ Agger, Inés Azar, Peter Caws, Nancy F. Cott, Kathy Natanson, Lois Na- _ tanson, Maurice Natanson, Stacy Pies, Josh Shapiro, Margaret Soltan, "Robert V. Stone, Richard Vann e Eszti Votaw. Agradeco a Sandra Schmidt \ por seu excelente trabalho de ajuda na preparagéo do manuscrito, e a _ Meg Gilbert por sua assisténcia. Também agradego a Maureen MacGro- gan, por encorajar este projeto e outros com humor, paciéncia e exce- lente orientagao editorial. Como sempre, agradego a Wendy Owen por sua imaginagio impla- @fivel, sua critica agugada e pela provocagao de seu trabalho. , 13 cari: — Sujeitos do sexo/género/desejo A gente nao nasce mulher, torna-se mulher. — Simone de Beauvoir Estritamente falando, nao se pode dizer que existam “mulheres”. — Julia Kristeva Mulher nao tem sexo. — Luce Irigaray A manifestagio da sexualidade... estabeleceu essa nogao de sexo. — Michel Foucault A categoria do sexo é a categoria politica que funda a sociedade heterossexual. — Monique Wittig 1. “MULHERES” COMO SUJEITO DO FEMINISMO Em sua esséncia, a teoria feminista tem presumido que existe uma iden- tidade definida, compreendida pela categoria de mulheres, que nao s6 deflagra os interesses e objetivos feministas no interior de seu proprio discurso, mas constitui o sujeito mesmo em nome de quem a repre- 7 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO sentagao politica é almejada. Mas politica e representagdo sao termos polémicos. Por um lado, a representagdo serve como termo operacional no seio de um processo politico que busca estender visibilidade e legiti- midade as mulheres como sujeitos politicos; por outro lado, a repre- sentacao € a funcio normativa de uma linguagem que revelaria ou dis- torceria 0 que é tido como verdadeiro sobre a categoria das mulheres. Para a teoria feminista, o desenvolvimento de uma linguagem capaz de representé-las completa ou adequadamente pareceu necessério, a fim de promover a visibilidade politica das mulheres. Isso parecia obviamente importante, considerando a condigao cultural difusa na qual a vida das mulheres era mal representada ou simplesmente nao representada. Recentemente, essa concepgio dominante da relagao entre teoria feminista e politica passou a ser questionada a partir do interior do discurso feminista. O préprio sujeito das mulheres nao é mais compreen- dido em termos estaveis ou permanentes. E significativa a quantidade de material ensafstico que nao sé questiona a viabilidade do “sujeito” como candidato tiltimo a representagdo, ou mesmo 4 libertagéo, como indica que € muito pequena, afinal, a concordancia quanto ao’ que cons- titui, ou deveria constituir, a categoria das mulheres. Os dominios da “representacao” politica e lingiifstica estabeleceram a priori o critério segundo o qual os préprios sujeitos sao formados, com o resultado de a representaco s6 se estender ao que pode ser reconhecido como sujeito. Em outras palavras, as qualificagGes do ser sujeito tém que ser atendidas para que a representagao possa ser expandida. Foucault observa que os sistemas juridicos de poder produzem os sujeitos que subseqiientemente passam a representar.! As nogGes juridi- cas de poder parecem regular a vida politica em termos puramente ne- gativos — isto é, por meio de limitacio, proibicao, regulamentagio, controle e mesmo “protegao” dos individuos relacionados aquela estru- tura politica, mediante uma ago contingente e retratavel de escolha. Porém, em virtude dea elas estarem condicionados, os sujeitos regulados por tais estruturas sio formados, definidos e reproduzidos de acordo com as exigéncias delas. Se esta andlise é correta, a formagao juridica da linguagem e da politica que representa as mulheres como “o sujeito” do 18 PROBLEMAS DE GENERO feminismo é em si mesma uma formagio discursiva e efeito de uma dada versdo da politica representacional. E assim, 0 sujeito feminista se revela discursivamente constitufdo —, e pelo préprio sistema politico que su- postamente deveria facilitar sua emancipac4o, 0 que se tornaria politi- camente problemitico, se fosse possfvel demonstrar que esse sistema produza sujeitos com tragos de género determinados em conformidade com um eixo diferencial de dominagio, ou os produza presumivelmente masculinos. Em tais casos, um apelo acritico a esse sistema em nome da emancipacio das “mulheres” estaria inelutavelmente fadado ao fracasso. “O sujeito” é uma questio crucial para a politica, e particularmente para a politica feminista, pois os sujeitos jurfdicos sao invariavelmente produzidos por via de praticas de exclusio que nao “aparecem”, uma vez estabelecida a estrutura jurfdica da politica. Em outras palavras, a construc’o politica do sujeito procede vinculada a certos objetivos de legitimacao e de exclusio, e essas operagées politicas sao efetivamente ocultas e naturalizadas por uma andlise politica que toma as estruturas juridicas como seu fundamento. O poder juridico “produz” inevitavel- mente o que alega meramente representar; conseqiientemente, a politica tem de se preocupar com essa fungao dual do poder: juridica e produtiva. Com efeito, a lei produz e depois oculta a nogio de “sujeito perante a lei”2, de modo a invocar essa formacio discursiva como premissa basica natural que legitima, subseqiientemente, a propria hegemonia regulado- ra da lei. Nao basta inquirir como as mulheres podem se fazer repre- sentar mais plenamente na linguagem e na politica. A critica feminista também deve compreender como a categoria das “mulheres”, o sujeito do feminismo, é produzida e reprimida pelas mesmas estruturas de po- der por intermédio das quais busca-se a emancipagao. Certamente, a questio das mulheres como sujeito do feminismo suscita a possibilidade de nao haver um sujeito que se situe “perante” a lei, A espera de representacio na lei ou pela lei. Talvez o sujeito, bem como a evocagio de um “antes” temporal, sejam constitufdos pela lei como fundamento fictfcio de sua propria reivindicagao de legitimidade. A hipotese prevalecente da integridade ontoldgica do sujeito perante a lei pode ser vista como 0 vestigio contemporaneo da hipotese do estado 19 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO natural, essa fabula fundanté que € constitutiva clas estruturas jurdicas do liberalismo classic. A invocacao performativa de vm “antes” nao hist6rico torna-se a premisst basica a garantir uma ontdlogia. pré-ocial de pessoas que consentem jivremente em ser governadss, constittindo assim a legitimidade do cortrato social. Contudo, além das ficg5es “fundacionistas” que sustentam a 10¢40 de sujeito, ha o problema politico que o feminismo encontra. na stposi- do de que o termo mulher’s denote uma identi dade comumn. Aocinvés de um significante estavel a2omandar 0 consentimento faquelas aquem pretende descrever e representar, mulheres — mesmo 10 plural — tor- nou-se um termo problemitico, um ponto de Contests40, umacausa de ansiedade. Como suger¢ © titulo de Denise Riley, At I That Name? [“Sou eu este nome?”], tra®-se de uma pergunta gera¢a pella posibili- dade mesma dos miiltiplos significados do nome.} Se ilgué:m “@ uma mulher, isso certamente n& € tudo 0 que esse alguémé; 0 termo nao logra ser exaustivo, nao prque Os tragos preclefinidis de génro da “pessoa” transcendam a pa'afernilia especifica ele seu ¢nero, mss por que o género nem sempre ‘© constituiu de maneira coente ou onsis- tente nos diferentes contestos histéricos, e porque o gnere estdelece intersegdes com modalidac’s raciais, classistas, étnicasSextaais eregio- nais de identidades discursvamente constituida:s. Resufa quae se ornou imposstvel separar a nocac de “género” das interseg6s polliticare cul- turais em que invariavelmate ela é produzida e mantia. A presuncao politica Je ter de haver uma base miveersal sara 0 feminismo, a ser encontrala numa identidade supostmen-te exstente em diferentes culturas, a@mpanha freqiientermente | idétia deque a opressao das mulheres posui uma forma singu lar, disernfwel n: estru- tura universal ou hegemdrica da dominagao pautriarcaou mnasclina. A nogao de um patriarcado iniversal tem sido aamplamate Criticda em anos recentes, por seu fra@sso em explicar os umecanimos : da orressao de género nos contextos ulturais concretos emm que a exxiste.Exata- mente onde esses varios cntextos foram const-iltadospor eessas eorias, eles o foram para encontrt “exemplos” ou “ilmustracés” dee umprinci- plo universal pressupostolesde o ponto de parrtida. Bra faormade teo- 20 PROBLEMAS DE GENERO rizacdo feminista foi criticada por seus esforgos de colonizar e se apro- priar de culturas nao ocidentais, instrumentalizando-as para confirmar nogdes marcadamente ocidentais de opressao, e também por tender a construir um “Terceiro Mundo” ou mesmo um “Oriente” em que a opressao de género é sutilmente explicada como sintomatica de um bar- barismo intrinseco e nao ocidental. A urgéncia do feminismo no sentido de conferir um status universal ao patriarcado, com vistas a fortalecer aparéncia de representatividade das reivindicagdes do feminismo, mo- tivou ocasionalmente um atalho na diregao de uma universalidade cate- gorica ou ficticia da estrutura de dominagio, tida como responsavel pela producao da experiéncia-comum de subjugacao das mulheres. Embora afirmar a existéncia de um patriarcado universal nao tenha mais a credibilidade ostentada no passado, a nogio de uma concepgio genericamente compartilhada das “mulheres”, corolario dessa perspec- tiva, tem se mostrado muito mais dificil de superar. E verdade, houve muitos debates: existiriam tragos comuns entre as “mulheres”, preexis- tentes A sua opressio, ou estariam as “mulheres” ligadas em virtude somente de sua opressio? HA uma especificidade das culturas das mu- Theres, independente de sua subordinacao pelas culturas masculinistas hegeménicas? Caracterizam-se sempre a especificidade e a integridade das prdticas culturais ou lingiifsticas das mulheres por oposigio e, por- tanto, nos termos de alguma outra formacio cultural dominante? Existe uma regido do “especificamente feminino”, diferenciada do masculino como tal e reconhecfvel em sua diferenga por uma universalidade indis- tinta e conseqiientemente presumida das “mulheres”? A nogao bindria de masculino/feminino constitui nao sé a estrutura exclusiva em que essa especificidade pode ser reconhecida, mas de todo modo a “especificida- de” do feminino é mais uma vez totalmente descontextualizada, analitica e politicamente separada da constituigao de classe, raga, etnia € outros eixos de relagdes de poder, os quais tanto constituem a “identidade” como tornam equivoca a nogio singular de identidade.* E minha sugestao que as supostas universalidade ¢ unidade do su- jeito do feminismo sio de fato minadas pelas restrig6es do discurso representacional em que funcionam. Com efeito, a insisténcia prematura 21 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO num sujeito estavel do feminismo, compreendido como uma categoria una das mulheres, gera, inevitavelmente, multiplas recusas a aceitar essa categoria. Esses dominios de exclusao revelam as conseqiténcias coerci- tivas e reguladoras dessa construga0, mesmo quando a construgao é elaborada com propésitos emancipatérios. Nao ha divida, a fragmen- tacdo no interior do feminismo € a oposigao paradoxal ao feminismo — por parte de “mulheres” que o feminismo afirma representar —sugerem os limites necessdrios da politica da identidade. A sugestao de que 0 feminismo pode buscar representagao mais ampla para um sujeito que ele proprio constréi gera a conseqiiéncia irénica de que os objetivos feministas correm o risco de fracassar, justamente em fungio de sua recusa a levar em conta os poderes constitutivos de suas préprias reivin- dicagdes representacionais. Fazer apelos a categoria das mulheres, em nome de propésitos meramente “estratégicos”, nao resolve nada, pois as estratégias sempre tém significados que extrapolam os propésitos a que se destinam. Nesse caso, a prdpria exclusio pode restringir como tal um significado inintencional, mas que tem conseqiiéncias. Por sua conformacio as exigéncias da politica representacional de que o femi- nismo articule um sujeito estavel, o feminismo abre assim a guarda a acusagées de deturpagio cabal da representacao. Obviamente, a tarefa politica nao € recusar a politica representa- cional — como se pudéssemos fazé-lo. As estruturas juridicas da lingua- gem e da politica constituem 0 campo contemporaneo do poder; con- seqiientemente, nao ha posigéo fora desse campo, mas somente uma genealogia critica de suas préprias praticas de legitimagao. Assim, 0 pon- to de partida critico € 0 presente histérico, como definiu Marx. Ea tarefa € justamente formular, no interior dessa estrutura constituida, uma cri- tica as categorias de identidade que as estruturas juridicas contempora- neas engendram, naturalizam e imobilizam. Talvez exista, na presente conjuntura politico-cultural, perfodo que alguns chamariam de “pés-feminista”, uma oportunidade de refletir a partir de uma perspectiva feminista sobre a exigéncia de se construir um sujeito do feminismo. Parece necessdrio repensar radicalmente as cons- trug6es ontoldgicas de identidade na pratica politica feminista, de modo 22 PROBLE MA: DE GENERO uma politica repre-sentzional capaz de renovar o feminismo termos. Por outro Jadoé tempo de empreender uma critica busque libertar a teoia feminista da necessidade de cons- base tinica e permanene, invariavelmente contestada pelas de identidade ou anti-idatidade que o feminismo invariavel- Jui. Seré que as prAticasexcludentes que baseiam a teoria fe- ima nogao das “mulhers” como sujeito solapam, paradoxal- 08 objetivos feministas le ampliar suas reivindicagdes de tagao”?> ser que o problema sejaainda mais sério. Seria a construgao ria das mulheres como steito coerente e estavel uma regulagao io inconsciente das relages de género? E nao seria essa reifi- isamente 0 contrario do objetivos feministas? Em que medida fia das mulheres s6 alcang estabilidade e coeréncia no contexto iz, heterossexual?° Se a ncao estavel de género d4 mostras de is servir como premissa bsica da politica feniinista, talvez um tipo de politica feminista sja agora desejavel para contestar as reificagdes do géneyo e a identidade — isto é, uma politica que tome a construcio aridvel da identidade como um pré- ito metodolégico € normatio, sendo como um objetivo politico. Determinar as operagdes policas que produzem e ocultam o que ifica como sujeito juridico|o feminismo é precisamente a tarefa logia feminista da catego:a das mulheres. Ao longo do esforgo iestionar a nogao de “mulhe2s” como sujeito do feminismo, a in- io nao problematizada dessicategoria pode obstar a possibilidade feminismo como politica repreentacional. Qual o sentido de esten- dera representa¢ao a sujeitos cuja onstituicao se da mediante a exclusio daqueles que nao se conformam s exigéncias normativas nao explici- tadas do sujeito? Que relagées ¢ dominagao e exclusdo se afirmam inintencionalmente quando a reresentagao se torna o tinico foco da politica? A identidade do sujeito eminista nao deve ser o fundamento da polftica feminista, pois a formgio do sujeito ocorre no interior de um campo de poder sistematicarente encoberto pela afirmagao desse fundamento. Talvez, paradoxalmate, a idéia de “representagao” s6 ve- es SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO nha realmente a fazer sentido para o feminismo quando 0 sujeito “mu- Theres” nao for presumido em parte alguma. 2. A ORDEM COMPULSORIA DO SEXO/GENERO/DESEJO Emboraa unidade indiscutida da nogio de “mulheres” seja freqiientemen- te invocada para construir uma solidariedade da identidade, uma diviséo se introduz no sujeito feminista por meio da disting’o entre sexo e género. Concebida originalmente para questionar a formulagio de que a biologia €0 destino, a distingao entre sexo e género atende a tese de que, por mais que o sexo pareca intratdvel em termos bioldgicos, o género é cultural- mente construido: conseqiientemente, nao € nem o resultado causal do sexo, nem tampouco tio aparentemente fixo quanto o sexo. Assim, a uni- dade do sujeito j4 € potencialmente contestada pela distingio que abre espago ao género como interpretacio miltipla do sexo.” Se o género sio os significados culturais assumidos pelo corpo se- xuado, nao se pode dizer que ele decorra, de um sexo desta ou daquela maneira. Levada a seu limite légico, a distingao sexo/género sugere uma descontinuidade radical entre corpos sexuados e géneros culturalmente construidos. Supondo por um momento a estabilidade do sexo bindrio, nao decorre daf que a construcio de “homens” aplique-se exclusivamen- te a corpos masculinos, ou que o termo “mulheres” interprete somente corpos femininos. Além disso, mesmo que os sexos parecam nao pro- blematicamente bindrios em sua morfologia e constituigéo (ao que sera questionado), nao ha raz4o para supor que os géneros também devam permanecer em numero de dois.8 A hipétese de um sistema bindrio dos géneros encerra implicitamente a crenca numa relagéo mimética entre género e sexo, na qual o género reflete 0 sexo ou € por ele restrito. Quando o status construfdo do género € teorizado como radicalmente independente do sexo, o proprio género se torna um artificio flutuante, com a conseqiiéncia de que homem e masculino podem, com igual fa- 24 PROBLEMAS DE GENERO cilidade, significar tanto um corpo feminino como um masculino, e mu- Iher e feminino, tanto um corpo masculino como um feminino. Essa cisio radical do sujeito tomado em seu género levanta outro conjunto de problemas. Podemos referir-nos a um “dado” sexo ou um “dado” género, sem primeiro investigar como sio dados 0 sexo e/ou género e por que meios? E o que 6, afinal? 0 “sexo”? E ele natural, anat6mico, cromoss6mico ou hormonal, e como deve a critica feminista avaliar os discursos cientificos que alegam estabelecer tais “fatos” para n6s?? Teria o sexo uma histéria?" Possuiria cada sexo uma histéria ou historias diferentes? Haveria uma histéria de como se estabeleceu a dua- lidade do sexo, uma genealogia capaz de expor as op¢6es bindrias como uma construgao varidvel? Seriam os fatos ostensivamente naturais do sexo produzidos discursivamente por varios discursos cientfficos a ser- vico de outros interesses politicos e sociais? Se o cardter imutavel do _ sexo € contestavel, talvez o proprio construto chamado “sexo” seja tio " culturalmente construfdo quanto o género; a rigor, talvez 0 sexo sempre _tenha sido o género, de tal forma que a distingao entre sexo € género -revela-se absolutamente nenhuma.'! Se o sexo €, ele proprio, uma categoria tomada em seu género, nao faz sentido definir 0 género como a interpretagao cultural do sexo. O género nio deve ser meramente concebido como a inscrigao cultural de significado num sexo previamente dado (uma concep¢ao juridica); tem de i designar também 0 aparato mesmo de produgao mediante o qual os pré- ptios sexos sio estabelecidos. Resulta daf que o género nao esta para a cultura como o sexo para a natureza; ele também é 0 meio discursivo/cul- tural pelo qual “a natureza sexuada” ou “um sexo natural” é produzido e - estabelecido como “pré-discursivo”, anterior a cultura, uma superficie po- ‘iticamente neutra sobre a qual age a cultura. Essa concepcio do “sexo” “como radicalmente nio-construido sera novamente objeto de nosso inte- resse na discussio sobre Lévi-Strauss e 0 estruturalismo, no capitulo 2. Na conjuntura atual, j4 esta claro que colocar a dualidade do sexo num do- minio pré-discursivo € uma das maneiras pelas quais a estabilidade interna e a estrutura bindria do sexo sao eficazmente asseguradas. Essa produgio ~ do sexo como pré-discursivo deve ser compreendida como efeito do apa- 25 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO rato de construgao cultural que designamos por género. Assim, como dever a nogio de género ser reformulada, para abranger as relag6es de poder que produzem 0 efeito de um sexo pré-discursivo e ocultam, desse modo, a propria operacio da produgio discursiva? 3. GENERO: AS RUINAS CIRCULARES DO DEBATE CONTEMPORANEO Havera “um” género que as pessoas possuem, conforme se diz, ou é 0 género um atributo essencial do que se diz que a pessoa é, como implica a pergunta “Qual é 0 seu género?” Quando teéricas feministas afirmam que o género é uma interpretagio cultural do sexo, ou que o género é construido culturalmente, qual € 0 modo ou mecanismo dessa constru- cio? Se o género € construfdo, poderia sé-lo diferentemente, ou sua caracteristica de construgao implica alguma forma de determinismo so- cial que exclui a possibilidade de agéncia ou transformagao? Porventura a nogio de “construgio” sugere que certas leis geram diferengas de gé- nero em conformidade com eixos universais da diferenga sexual? Como e onde ocorre a construgao do género? Que juizo podemos fazer de uma construgéo que nao pode presumir um construtor humano anterior a ela mesma? Em algumas explicagées, a idéia de que o género é construi- do sugere um certo determinismo de significados do género, inscritos em corpos anatomicamente diferenciados, sendo esses corpos com- preendidos como recipientes passivos de uma lei cultural inexordvel. Quando a “cultura” relevante que “constr6i” o género € compreendida nos termos dessa lei ou conjunto de leis, tem-se a impressio de que 0 género € tao determinado e tao fixo quanto na formulagio de que a biologia € o destino. Nesse caso, nao a biologia, mas a cultura se torna o destino. Por outro lado, Simone de Beauvoir sugere, em O segundo sexo, que “a gente nao nasce mulher, torna-se mulher”!. Para Beauvoir, 0 género € “construfdo”, mas ha um agente implicado em sua formulagio, um cogito que de algum modo assume ou se apropria desse género, poden- 26 PROBLEMAS DE GENERO , em princfpio, assumir algum outro. Eo género tio varidvel ¢ volitivo juanto parece sugerir a explicacéo de Beauvoir? Pode, nesse caso, a 40 de “construgao” reduzir-se a uma forma de escolha? Beauvoir diz ramente que a gente “se torna” mulher, mas sempre sob uma com- ilsdo cultural a fazé-lo. E tal compulsao claramente nao vem do “sexo”. Nio hd nada em sua explicagdo que garanta que o “ser” que se torna mulher seja necessariamente fémea. Se, como afirma ela, “o corpo é uma -situacio”', nao ha como recorrer a um corpo que ja nao tenha sido “sempre interpretado por meio de significados culturais; conseqiiente- __ mente, osexonao poderia qualificar-se como uma facticidade anatémica __ pré-discursiva. Sem davida, seré sempre apresentado, por definigdo, como tendo sido género desde 0 comego."* ‘A controvérsia sobre o significado de construgéo parece basear-se na polaridade filos6fica convencional entre livre-arbitrio e determinis- mo. Em conseqiiéncia, seria razodvel suspeitar que algumas restrig6es lingiifsticas comuns ao pensamento tanto formam como limitam os ter- mos do debate. Nos limites desses termos, “o corpo” aparece como um meio passivo sobre 0 qual se inscrevem significados culturais, ou entao ‘como 0 instrumento pelo qual uma vontade de apropriacao ou interpre- ‘tacdo determina o significado cultural por si mesma. Em ambos 0s casos, ocorpo é representado como um mero instrumento ou meio com o qual um conjunto de significados culturais € apenas externamente relaciona- do. Mas o “corpo” é em si mesmo uma construgao, assim como 0 éa mirfade de “corpos” que constitui 0 dominio dos sujeitos com marcas de género. Nao se pode dizer que os corpos tenham uma existéncia significavel anterior 4 marca do seu género; € emerge entdo a questao: em que medida pode o corpo vira existir na(s) marca(s) do género e por meio delas? Como conceber novamente 0 corpo, nado mais como um. meio ou instrumento passivo a espera da capacidade vivificadora de uma vontade caracteristicamente imaterial?'S Se 0 género ou 0 sexo sao fixos ou livres, € fungéio de um discurso que, como se ird sugerir, busca estabelecer certos limites 4 andlise ou sal- vaguardar certos dogmas do humanismo como um pressuposto de qual- quer anilise do género. O locus de intratabilidade, tanto na nogao de 27 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO “sexo” como na de “género”, bem como no préprio significado da nogio de “construgao”, fornece indicagées sobre as possibilidades culturais que podem e nao podem ser mobilizadas por meio de quaisquer andlises pos- teriores. Os limites da andlise discursiva do género pressupdem e definem por antecipacao as possibilidades das configurag6es imaginaveis e realizé- veis do género na cultura. Isso nao quer dizer que toda e qualquer possi- bilidade de género seja facultada, mas que as fronteiras analfticas sugerem os limites de uma experiéncia discursivamente condicionada. Tais limites se estabelecem sempre nos termos de um discurso cultural hegeménico, baseado em estruturas bindrias que se apresentam como a linguagem da racionalidade universal. Assim, a coergio é introduzida naquilo que a lin- guagem constitui como o dominio imagindvel do género. Embora os cientistas sociais se refiram ao género como um “fator” ou “dimensdo” da anilise, ele também é aplicado a pessoas reais como uma “marca” de diferenga bioldgica, lingiifstica e/ou cultural. Nestes tltimos casos, o género pode ser compreendido como um significado assumido por um corpo (ja) diferenciado sexualmente; contudo, mesmo assim esse significado s6 existe em relagéo a outro significado oposto. Algumas te6ricas feministas afirmam ser 0 género “uma relacao”, alias um con- junto de relagdes, e nao um atributo individual. Outras, na senda de Beauvoir, argumentam que somente o género feminino é marcado, que a pessoa universal e o género masculino se fundem em um s6 género, definindo com isso, as mulheres nos termos do sexo deles e enaltecendo os homens como portadores de uma pessoalidade universal que trans- cende 0 corpo. Num movimento que complica ainda mais a discussao, Luce Irigaray argumenta que as mulheres constituem um paradoxo, se nao uma con- tradig&o, no seio do préprio discurso da identidade. As mulheres sio 0 “sexo” que nao é “uno”. Numa linguagem difusamente masculinista, uma linguagem falocéntrica, as mulheres constituem o irrepresentdvel. Em outras palavras, as mulheres representam 0 sexo que nao pode ser pensado, uma auséncia e opacidade lingiifsticas. Numa linguagem que 28 PROBLEMAS DE GENERO _ repousa na significagao unfvoca, o sexo feminino constitui aquilo que _ nao se pode restringir nem designar. Nesse sentido, as mulheres sio 0 "sexo que nao é “uno”, mas miltiplo.!¢ Em oposigio a Beauvoir, para quem as mulheres sao designadas como o Outro, Irigaray argumenta que tanto 0 sujeito como o Outro sao os esteios de uma economia sig- _ nificante falocéntrica e fechada, que atinge seu objetivo totalizante por _ Via da completa exclusao do feminino. Para Beauvoir, as mulheres sio ' 0 negativo dos homens, a falta em confronto com a qual a identidade _ masculina se diferencia; para Irigaray, essa dialética particular constitui um sistema que exclui uma economia significante inteiramente diferen- te. Nao sé as mulheres sao falsamente representadas na perspectiva sar- triana do sujeito-significador e do Outro-significado, como a falsidade da significagao salienta a inadequagdo de toda a estrutura da repre- senta¢ao. Assim, 0 sexo que nao é uno propicia um ponto de partida para a critica das representagdes ocidentais hegeménicas e da metafisica da substancia que estrutura a prépria nogao de sujeito. O que éa metafisica da substancia, e como ela informa o pensamen- to sobre as categorias de sexo? Em primeiro lugar, as concepgées huma- nistas do sujeito tendem a presumir uma pessoa substantiva, portadora de varios atributos essenciais e nao essenciais. A posi¢ao feminista hu- manista compreenderia o género como um atributo da pessoa, caracte- rizada essencialmente como uma substancia ou um “nticleo” de género preestabelecido, denominado pessoa, denotar uma capacidade universal de raz4o, moral, deliberagao moral ou linguagem. Como ponto de par- tida de uma teoria social do género, entretanto, a concep¢4o universal da pessoa é deslocada pelas posigdes histéricas ou antropolégicas que compreendem o género como uma relagdo entre sujeitos socialmente constituidos, em contextos especificdveis. Este ponto de vista relacional Ou contextual sugere que 0 que a pessoa “é” — ea rigor, 0 que 0 género “6” — refere-se sempre As relagdes construidas em que ela é determi- _nada.'” Como fendémeno inconstante e contextual, o género nao denota __ um ser substantivo, mas um ponto relativo de convergéncia entre con- juntos especificos de relagées, cultural e historicamente convergentes. a i Irigaray afirmaria, no entanto, que o “sexo” feminino é um ponto 29 SUJEITOS Do! SEXO/GENERO/DESEJO de auséncia lingiiistica, a impossibilidade de uma substancia gramatical- mente denotada e, conseqiientemente, 0 ponto de vista que expe essa substancia como uma ilusio permanente e fundante de um discurso mas- culinista. Essa auséncia nao é marcada como tal na economia significante masculinista — afirmagio que se contrapée ao argumento de Beauvoir (e de Wittig) de que 0 sexo feminino é marcado, ao passo que o mascu- lino nao o é. Para Irigaray, @ sexo feminino nao é uma “falta” ou um “Outro” que define o sujeito negativa e imanentemente em sua mascu- linidade. Ao contrario, 0 sexo feminino se furta as proprias exigéncias da representaco, poisela nao € nemo “Outro” nema “falta”, categorias que permanecem relativas no sujeito sartriano, imanentes a esse esque- ma falocéntrico. Assim, para Irigaray, o feminino jamais poderia ser a marca de um sujeito, como sugeriria Beauvoir. Além disso, o feminino nao poderia ser teorizado em termos de uma relagdo determinada entre o masculino e o feminino em qualquer discurso dado, pois a nogao de discurso nao é relevante aqui. Mesmo tomados em sua variedade, os discursos constituem modalidades da linguagem falocéntrica. O sexo feminino é, portanto, também 0 sujeito que nao é uno. A relacao entre masculino e feminino nao pade ser representada numa economia signi- ficante em que o masculino constitua o circulo fechado do significante e do significado. Paradoxalntente, Beauvoir prefigurou essa impossibi- lidade em O segundo sexo, a0 argumentar que os homens nao podiam resolver a questéo das mulheres porque, nesse caso, estariam agindo como jufzes e como partes interessadas.18 As distingGes existentes entre as posigdes acima mencionadas esto longe de ser nitidas, podendo cada uma delas ser compreendida como a problematizacio da localizacao e do significado do “sujeito” e do “gé- nero” no contexto de uma ajsimetria de género socialmente institufda. As possibilidades interpretativas do conceito de género nao se exaurem absolutamente nas alternatiyis acima sugeridas. A circularidade proble- mitica da investigagao femirista sobre o género é sublinhada pela pre- senga, por um lado, de posi@es que pressupdem ser o género uma ca- racteristica secundaria das pessoas, e por outro, de posigées que argumentam ser a prépria nd¢ao de pessoa, posicionada na linguagem 30 (PROBLEMAS DE GENERO “sujeito”, uma construgaéo masculinista e uma prerrogativa que efetivamente a possibilidade semAntica e estrutural de um género. inino. Essas discordancias tao agudas sobre o significado do género ero é de fato o termo a ser discutido, ou se a construgao discursiva sexo € mais fundamental, ou talvez a nogio de mulheres ou mulher mi de homens ou homem) estabelecem a necessidade de repensar ra- mente as categorias da identidade no contexto das relagées de uma imetria radical do género. Para Beauvoir, o “sujeito”, na analitica existencial da misoginia, é npre j4 masculino, fundido com o universal, diferenciando-se de um jutro” feminino que esta fora das normas universalizantes que cons- uem a condicao de pessoa, inexoravelmente “particular”, corporifica- e condenado a imanéncia. Embora veja-se freqiientemente em Beau- uma defensora do direito de as mulheres se tornarem de fato sujeitos jtenciais, e portanto, de serem inclufdas nos termos de uma univer- ilidade abstrata, sua posigo também implica uma critica fundamental opria descorporificacio do sujeito epistemoldgico masculino abstra- to. 19 Esse sujeito é abstrato na medida em que repudia sua corporificagao socialmente marcada e em que, além disso, projeta essa corporificagao renegada e desacreditada na esfera feminina, renomeando efetivamente ‘corpo como feminino. Essa associagéo do corpo com o feminino fun- iona por relag6es magicas de reciprocidade, mediante as quais 0 sexo minino torna-se restrito a seu corpo, e o corpo masculino, plenamente ‘renegado, torna-se, paradoxalmente, o instrumento incorpéreo de uma - liberdade ostensivamente radical. A andlise de Beauvoir levanta impli- citamente a questao: mediante que ato de negac4o e renegagao posa 0 _ masculino como uma universalidade descorporificada e é 0 feminino _ construido como uma corporalidade renegada? A dialética do senhor e _ do escravo, aqui plenamente reformulada nos termos nao recfprocos da assimetria do género, prefigura o que Irigaray descrevia mais tarde como ‘a economia significante masculina, a qual inclui tanto o sujeito exis- ‘tencial como o seu Outro. Beauvoir propde que o corpo feminino deve ser a situagao e o ins- trumento da liberdade da mulher, e nao uma esséncia definidora e limi- 31 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO tadora.”° A teoria da corporificaco que impregna a andlise de Beauvoir é claramente limitada pela reprodugio acritica da distingio cartesiana entre liberdade e corpo. Apesar de meus proprios esforcos anteriores de argumentar 0 contrario, fica claro que Beauvoir mantém o dualismo mente/corpo, mesmo quando propde uma sintese desses termos.2! A preservagao dessa distingio pode ser lida como sintomiatica do préprio falocentrismo que Beauvoir sub estima. Na tradigao filosdfica que se ini- cia em Platao e continua em Descartes, Husserl e Sartre, a distingio ontoldgica entre corpo e alma (consciéncia, mente) sustenta, invariavel- mente, relag6es de subordinacao e hierarquia politicas e psiquicas. A mente nao sé subjuga 0 corpo, mas nutre ocasionalmente a fantasia de fugir completamente & corporificacio. As associagées culturais entre mente e masculinidade, por um lado, e corpo e feminilidade, por outro, sao bem documentadas nos carnpos da filosofia e do feminismo.?? Re- sulta que qualquer reprodugio acritica da distingao corpo/mente deve ser repensada em termos da hierarquia de género que essa distingaio tem convencionalmente produzido, mantido e racionalizado. A construgao discursiva “do corpo”, e sua separagio do estado de “liberdade”, em Beauvoir, nao Consegue marcar no eixo do género a pré- pria distingdo corpo/mente que deveria esclarecer a persisténcia da assi- metria dos géneros. Oficialmente, Beauvoir assevera que 0 corpo feminino if marcado no interior do discurso masculinista, pelo qual 0 corpo mascu- lino, em sua fuséo com © universal, permanece nado marcado. Irigaray eS claramente que tanto o marcador como o marcado sio mantidos no interior dé um modo masculinista de significacio, no qual 0 corpo feminino é como que “separado” do dominio do significavel. Em termos pés-hegelianos, ela seria “anulada”, mas nao preservada. Na leitura de _ Irigaray, a afirmagao de Beauvoir de que mulher “é sexo” inverte-se para significar que ela nao € 0 sexo que € designada a ser, mas, antes, é ainda — encore (e en corps)* — 0 sexo masculino, paradeado & maneira da alteridade. Para Irigaray, esse modo falocéntrico de significar 0 sexo femi- * i c ‘it Ressalta-se 0 jogo de palavras, citadas ¢m francés no original, entre encore (ainda) ¢ en corps (no corpo), homéfonas em francés. (N. da Rev. Téc.) 32 PROBLEMAS DE GENERO no reproduz perpetuamente as fantasias de seu proprio desejo auto-en- ndecedor. Ao invés de um gesto lingiifstico autolimitativo que garanta Iteridade ou a diferenca das mulheres, o falocentrismo oferece um nome ra eclipsar o feminino e tomar seu lugar. TEORIZANDO O BINARIO, O UNITARIO E ALEM auvoir ¢ Irigaray diferem claramente sobre as estruturas fundamentais reproduzem a assimetria do género; Beauvoir volta-se para a reci- idade malograda de uma dialética assimétrica, ao passo que Irigaray yere ser a propria dialética a elaboragao monolégica de uma economia nificante masculinista. Embora Irigaray amplie claramente 0 espectro critica feminista pela exposicao das estruturas légicas, ontolégicas & jistemol6gicas de uma economia significante masculinista, 0 poder de andlise € minado precisamente por seu alcance globalizante. Sera sivel identificar a economia masculinista monolitica e também mo- olégica que atravessa toda a colegio de contextos culturais e histéricos que ocorre a diferenga sexual? Sera o fracasso em reconhecer as rac6es culturais especificas da propria opressao do género uma es- nécie de imperialismo epistemoldgico, imperialismo esse que nao se ate- a pela elaboracio pura e simples das diferencas culturais como “exem- los” do mesmissimo falocentrismo? O esforgo de incluir “Outras” gulturas como ampliacées diversificadas de um falocentrismo global “constitui um ato de apropriagao que corre o risco de repetir 0 gesto to-engrandecedor do falocentrismo, colonizando sob o signo do mes- _mo diferencas que, de outro modo, poderiam questionar esse conceito _totalizante.” . A critica feminista tem de explorar as afirmagoes totalizantes da economia sig) ificante masculinista, mas também deve permanecer au- ~ toctitica em relacdo aos gestos totalizantes do feminismo. O esforgo q de identificar o inimigo como singular em sua forma é um discurso invertido que mimetiza acriticamente a estratégia do opressor, em vez 33 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO de oferecer um conjunto diferente de termos. O fato de a tatica poder funcionar igualmente em contextos feministas e antifeministas sugere que o gesto colonizador nao é priméria ou irredutivelmente masculi- nista. Ele pode operar para levar a cabo outras relag6es de subordina- Gao hetero-sexista, racial e de classe, para citar apenas algumas. Claro que arrolar as variedades de opressio, como comecei a fazer, supde sua coexisténcia descontinua e seqiiencial ao longo de um eixo hori- zontal que nao descreve suas convergéncias no campo social. Um mo- delo vertical seria igualmente insuficiente; as opressdes nao podem ser sumariamente, classificadas, relacionadas causalmente, e distribufdas entre planos pretensamente correspondentes ao que é “original” e ao que é “derivado”.?4 Certamente, o campo de poder em parte estrutu- rado pelo gesto imperializante de apropriacéo dialética excede e abrange o eixo da diferenga sexual, oferecendo um mapa de interse- des diferenciais que nao podem ser sumariamente hierarquizadas, nem nos termos do falocentrismo, nem nos de qualquer outro candi- dato a posicao de “condic¢do primaria da opressao”. Em vez de tatica exclusiva das economias significantes masculinistas, a apropriagao e a supressio dialéticas do Outro sao uma tatica entre muitas, centralmen- te empregada, é fato, mas nao exclusivamente a servigo da expansio e da racionalizagio do dominio masculinista. Os debates feministas contemporaneos sobre 0 essencialismo colo- cam de outra maneira a questao da universalidade da identidade femi- nina e da opressao masculina. As alegag6es universalistas sio baseadas em um ponto de vista epistemolégico comum ou compartilhado, com- preendido como consciéncia articulada, ou como estruturas comparti- Ihadas de opressio, ou como estruturas ostensivamente transculturais da feminilidade, maternidade, sexualidade e/ou da écriture feminine. A discussao que abre este capitulo argumenta que esse gesto globalizante gerou um certo numero de criticas da parte das mulheres que afirmam ser a categoria das “mulheres” normativa e excludente, invocada en- quanto as dimensdes nao marcadas do privilégio de classe ¢ de raca permanecem intactas. Em outras palavras, a insisténcia sobre a coeréncia unidade da categoria das mulheres rejeitou efetivamente a multiplici- 34 PROBLEMAS DE GENERO das interseg6es culturais, sociais e politicas em que € construfdo o concreto das “mulheres”. Alguns esforgos foram realizados para formular politicas de coalizao nao pressuponham qual seria 0 contetido da nogao de “mulheres”. propdem, em vez disso, um conjunto de encontros dialégicos me- o qual mulheres diferentemente posicionadas articulem identida- separadas na estrutura de uma coalizio emergente. E claro, nao mos subestimar ovalor de uma politica de coalizaos porém, a forma da coalizao, de uma montagem emergente € imprevisfvel de po- es, ndo pode ser antecipada. Apesar do impulso claramente demo- tizante que motiva a construgao de coalizées, a tedrica aliancista pode dyertidamente reinserir-se como soberana do processo, a0 buscar an- ipar uma forma ideal para as estruturas da coalizao, vale dizer, aquela garanta efetivamente a unidade do resultado. Esforgos correlatos a determinar qual é e qual nao é a verdadeira forma do didlogo, aquilo que constitui a posi¢ao do sujeito —e, o mais. importante, quando “ynidade” foi ou nao alcangada —, podem impedir a dindmica de “autoformacio e autolimitagao da coalizao. Insistir a priori no objetivo de “anidade” da coalizao sup6e que a solidariedade, qualquer que seja seu prego, € um pré-requisito da agio politica. Mas que espécie de politica exige esse tipo de busca prévia da unidade? Talvez as coalizGes devam reconhecer suas contradigées e agir deixando essas contradigées intactas. Talvez 0 entendimento dialégico também encerre em parte a aceitagao de divergéncias, rupturas, dissen- sdes e fragmentagées, como parcela do processo freqiientemente tortuo- so de democratizagao. A propria nocao de “didlogo” € culturalmente especifica e historicamente delimitada, e mesmo que uma das partes esteja certa de que a conversacao esta ocorrendo, a outra pode estar certa de que nao. Em primeiro lugar, devemos questionar as relages de poder que condicionam e limitam as possibilidades dialégicas. De outro modo, omodelo dialégico corre 0 risco de degenerar num liberalismo que pres- supde que os diversos agentes do discurso ocupam posicoes de poder iguais de poder e falam apoiados nas mesmas pressuposicoes sobre oque constitui “acordo” e “unidade”, que seriam certamente os objetivos a 35 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO serem perseguidos. Seria errado supor de antemio a existéncia de uma categoria de “mulheres” que apenas necessitasse ser preenchida com os varios componentes de raca, classe, idade, etnia e sexualidade para tor- nar-se completa. A hipétese de sua incompletude essencial permite & categoria servir permanentemente como espago disponivel para os sig- nificados contestados. A incompletude por definigao dessa categoria po- der, assim, vir a servir como um ideal normativo, livre de qualquer forga coercitiva. Ea “unidade” necessaria para a agio politica efetiva? Nao sera preci- samente a insisténcia prematura no objetivo de unidade a causa da frag- mentacio cada vez maior e mais acirrada das fileiras? Certas formas aceitas de fragmentagao podem facilitar a agio, € isso exatamente porque a “uni- dade” da categoria das mulheres nao é nem pressuposta nem desejada. Nao implica a “unidade” uma morma excludente de solidariedade no ém- bito da identidade, excluindo a possibilidade de um conjunto de agdes que rompam as préprias fronteiras; dos conceitos de identidade, ou que bus- quem precisamente efetuar essa ruptura como um objetivo politico expli- cito? Sem a pressuposicio ou © objetivo da “unidade”, sempre instituido no nivel conceitual, unidades provisorias podem emergir no contexto de acées concretas que tenham outras propostas que no a articulagio da identidade. Sem a expectativa compulséria de que as agées feministas de- vam instituir-se a partir de um acordo estavel e unitario sobre a identidade, essas aces bem poderao desemcadear-se mais rapidamente e parecer mais adequadas ao grande nimero de “mulheres” para as quais o significado da categoria esta em permanemte debate. Essa abordagem antifundlacionista da politica de coalizées nao su- poe que a “identidade” seja uma premissa, nem que a forma ou signifi- cado da assembléia coalizada jpossa ser conhecida antes de realizar-se na pratica. Considerando que a articulagao de uma identidade nos termos culturais disponiveis instaura. uma definig&éo que exclui previamente 0 surgimento de novos conceit:os de identidade nas agées politicamente engajadas e por meio delas, a tatica fundacionista nao é capaz de tomar como objetivo normativo a transformacdo ou expansio dos conceitos de identidade existentes. Além disso, quando as identidades ou as estru- 36 PROBLEMAS DE GENERO dialégicas consensuais pelas quais as identidades ja estabelecidas municadas nao constituem o tema ou 0 objeto da politica, isso ica que as identidades podem ganhar vida e se dissolver, depen- das praticas concretas que as constituam. Certas praticas politicas em identidades em bases contingentes, de modo a atingir os ob- s em vista. A politica de coalizées nao exige uma categoria amplia- “mulheres” nem um ew internamente miltiplo a desvelar de chofre ‘complexidade. O género é uma complexidade cuja totalidade € permanentemente otelada, jamais plenamente exibida em qualquer conjuntura conside- Uma coalizio aberta, portanto, afirmaria identidades alternativa- institufdas e abandonadas, segundo as propostas em curso; tra- 4 de uma assembléia que permita miltiplas convergéncias e di- ncias, sem obediéncia a um telos normativo e definidor. IDENTIDADE, SEXO E A METAFISICA DA SUBSTANCIA ° que pode entio significar “Gdentidade”, e o que alicerga a pressupo- sigio de que as identidades sao idénticas a si mesmas, persistentes a0 longo do tempo, unificadas e internamente coerentes? Mais importante, como essas suposigées impregnam 0 discurso sobre as “identidades de | género”? Seria errado supor que a discussao sobre a “identidade” deva ger anterior A discussio sobre a identidade de género, pela simples razio de que as “pessoas” s6 se tornam inteligiveis ao adquirir seu género em conformidade com padrées reconheciveis de inteligibilidade do género. Convencionalmente, a discussio sociolégica tem buscado compreender ‘a nogio de pessoa como uma agéncia que reivindica prioridade ontolé- gica aos varios papéis e fungées pelos quais assume viabilidade e signi- ficado sociais. No proprio discurso filoséfico, a nogao de “pessoa” tem sido analiticamente elaborada com base na suposigao de que, qualquer que seja 0 contexto social em que “esta”, a pessoa permanece de algum modo externamente relacionada a estrutura definidora da condigao de 37 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO pessoa, seja esta a consciéncia, a capacidade de linguagem ou a delibe- racio moral. Embora no esteja aqui em exame essa literatura, uma das premissas dessas indagag6es € 0 foco de exploragao e inversao criticas. Enquanto a indagagao filosdfica quase sempre centra a questo do que constitui a “identidade pessoal” nas caracteristicas internas da pessoa, naquilo que estabeleceria sua continuidade ou auto-identidade no de- correr do tempo, a questo aqui seria: em que medida as prdticas regu- ladoras de formagio e divisio do género constituem a identidade, a coeréncia interna do sujeito, e, a rigor, o status auto-idéntico da pessoa? Em que medida € a “identidade” um ideal normativo, ao invés de uma caracteristica descritiva da experiéncia? E como as praticas reguladoras que governam o género também governam as nogées culturalmente in- teligiveis de identidade? Em outras palavras, a “coeréncia” e a “conti- nuidade” da “pessoa” no sao caracteristicas légicas ou analiticas da condigio de pessoa, mas, ao contrario, normas de inteligibilidade social- mente institufdas e mantidas. Em sendo a “identidade” assegurada por conceitos estabilizadores de sexo, género e sexualidade, a prépria nogéo de “pessoa” se veria questionada pela emergéncia cultural daqueles seres cujo género é “incoerente” ou “descontinuo”, os quais parecem ser pes- soas, mas nao se conformam as normas de género da inteligibilidade __ cultural pelas quais as pessoas sao definidas. Géneros “inteligiveis” sao aqueles que, em certo sentido, instituem ¢ mantém relagoes de coeréncia e continuidade entre sexo, género, pra- tica sexual e desejo. Em outras palavras, os espectros de descontinuidade € incoeréncia, eles préprios s6 concebiveis em relagao a normas existen- tes de continuidade e coeréncia, sio constantemente proibidos e produ- zidos pelas préprias leis que buscam estabelecer linhas causais ou ex- »pressivas de ligaco entre o sexo biolégico, o género culturalmente constituido e a “expressao” ou “efeito” de ambos na manifestagéo do desejo sexual por meio da pratica sexual. Anogio de que pode haver uma “verdade” do sexo, como Foucault a denomina ironicamente, € produzida precisamente pelas praticas re- guladoras que geram identidades coerentes por via de uma matriz de normas de género coerentes. A heterossexualizagao do desejo requer e 38 PROBLEMAS DE GENERO itui a produgao de oposigdes discriminadas e assimétricas entre “fe ino” e “masculino”, em que estes s0 compreendidos como atributos ressivos de “macho” e de “fémea”. A matriz cultural por intermédio qual a identidade de género se torna inteligivel exige que certos tipos identidade” nao possam “existir” —isto é, aquelas em que 0 género decorre do sexo e aquelas em que as praticas do desejo nao “decor- ” nem do “sexo” nem do “género”. Nesse contexto, “decorrer” seria relacao politica de direito institufdo pelas leis culturais que estabe- m e regulam a forma € 0 significado da sexualidade. Ora, do ponto yista desse campo, certos tipos de “identidade de género” parecem ser meras falhas do desenvolvimento ou impossibilidades l6gicas, preci- ‘samente porque nao se conformarem as normas da inteligibilidade cul- tural. Entretanto, sua persisténcia e proliferacao criam oportunidades " ¢riticas de expor os limites € 0s objetivos reguladores desse campo de inteligibilidade e, conseqiientemente, de disseminar, nos proprios ter- mos dessa matriz de inteligibilidade, matrizes rivais e subversivas de desordem do género. Contudo, antes de considerar essas praticas perturbadoras, parece cru- cial compreender a “matriz de inteligibilidade”. E ela singular? De que se compée? Que alianga peculiar existe, presumivelmente, entre um sistema de heterossexualidade compulséria e as categorias discursivas que estabe- lecem os conceitos de identidade do sexo? Se a ““dentidade” é um efeito de praticas discursivas, em que medida a identidade de género —enten- dida como uma relagao entre sexo, género, pratica sexual e desejo —seria 0 efeito de uma pratica reguladora que se pode identificar como heteros- sexualidade compulséria? Tal explicacio nao nos faria retornar a mais uma estrutura totalizante em que a heterossexualidade compulséria tomaria meramente o lugar do falocentrismo como causa monolitica da opressio de género? No espectro da teoria feminista p6s-estruturalista francesas, com- preende-se que regiines muitos diferentes de poder produzem os con- ceitos de identidade sexual. Consideremos a divergéncia que existe entre posigdes como a de Irigaray, que afirma s6 haver um sexo, 0 masculino, que elabora a si mesmo na € através da producio do “Outro”, e posigdes 39 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO como a de Foucault, por exemplo, que presumem que a categoria do sexo, tanto masculino como feminino, € produto de uma economia re- guladora difusa da sexualidade. Consideremos igualmente o argumento de Wittig de que a categoria do sexo é, sob as condigées de heterosse- xualidade compulséria, sempre feminina (mantendo-se o masculino nao marcado e, conseqiientemente, sinénimo do universal). Ainda que pa- radoxalmente, Wittig concorda com Foucault ao afirmar que a propria categoria do sexo desapareceria e a rigor se dissiparia no caso de uma ruptura e deslocamento da hegemonia heterossexual. Os varios modelos explicativos oferecidos aqui sugerem os caminhos muitos diferentes pelos quais a categoria do sexo € compreendida, depen- dendo de como se articula o campo do poder. E possivel preservar a com- plexidade desses campos de poder e pensar suas capacidades produtivas ao mesmo tempo? Por um lado, a teoria da diferenga sexual de Irigaray sugere que as mulheres jamais poderao ser compreendidas segundo o mo- delo do “sujeito” nos sistemas representacionais convencionais da cultura ocidental, exatamente porque constituem o fetiche da representagio e, por conseguinte, o irrepresentavel como tal. Segundo essa ontologia das substancias, as mulheres nunca podem “ser”, precisamente porque cons- tituem a relagao da diferenca, excluido pelo qual esse dominio se distingue. As mulheres também sao uma “diferenga” que nao pode ser compreendida como simples negacio ou como o “Outro” do sujeito desde sempre mas- culino. Como discutido anteriormente, elas nao s4o nem 0 sujeito nem o seu Outro, mas uma diferenga da economia da oposi¢io bindria, um ardil, ela mesma, para a elaboragéo monolégica do masculino. Anog&o de que o sexo aparece na linguagem hegem6nica como subs- tancia, ou, falando metafisicamente, como ser idéntico a si mesmo, é cen- tral para cada uma dessas concepg6es. Essa aparéncia se realiza mediante um truque perfomativo da linguagem e/ou do discurso, que oculta o fato de que “ser” um sexo ou um género € fundamentalmente impossfvel. Para Irigaray, a gramatica jamais poder ser um indice seguro das relagdes de género, ptecisamente porque sustenta o modelo substancial do género como sendo uma relacao bindria entre dois termos positivos e repre- sentdveis.25 Na opiniao de Irigaray, a gramatica substantiva do género, que 40 PROBLEMAS DE GENERO poe homens e mulheres assim como seus atributos de masculino e femi- 0, € um exemplo de sistema bindrio a mascarar de fato o discurso univoco e hegem6nico do masculino, o falocentrismo, silenciando o femi- ‘nino como lugar de uma multiplicidade subversiva. Para Foucault, a gra- matica substantiva do sexo impée uma relagéo bindria artificial entre os sexos, bem como uma coeréncia interna artificial em cada termo desse sistema bindrio. A regulacio bindria da sexualidade suprime a multiplici- - dade subversiva de uma sexualidade que rompe as hegemonias heterosse- ~ xual, reprodutiva e médico-juridica. Para Wittig, a restrico bindria que pesa sobre 0 sexo atende aos ob- jetivos reprodutivos de um sistema de heterossexualidade compulséria; ela afirma, ocasionalmente, que a derrubada da heterossexualidade com- _ puls6ria ira inaugurar um verdadeiro humanismo da “pessoa”, livre dos grilhes do sexo. Em outros contextos, ela sugere que a profusiio ¢ difusio de uma economia erética nao falocéntrica ira banir as ilusées do sexo, do género e da identidade. Em mais outras passagens de seu texto, parece que “g lésbica” emerge como um terceiro género, prometendo transcender a restricfo bindria ao sexo, imposta pelo sistema da heterossexualidade com- pulsoria. Em sua defesa do “sujeito cognitivo”, Wittig parece nio entrar em disputas metafisicas com os modos hegeménicos de significagio ou representacio; de fato, o sujeito, com seu atributo de autodeterminagio, parece ser a reabilitac4o do agente da escolha existencial, sob o nome de lésbica: “o advento de sujeitos individuais exige, em primeiro lugar, que se destruam as categorias de sexo (...) a lésbica é 0 tinico conceito que conhego que esté além das categorias de sexo.””6 Ela nao critica 0 “sujeito” como invariavelmente masculino, segundo as regras de um Simbdlico ine- vitavelmente patriarcal, mas propée em seu lugar o equivalente de um sujeito lésbico como usuério da linguagem.?” Para Beauvoir — como para Wittig —a identificagio das mulheres com 0 “sexo” é uma fusao da categoria das mulheres com as caracteris- ticas ostensivamente sexualizadas dos seus corpos e, portanto, uma re- cusa a conceder liberdade e autonomia as mulheres, tal como as preten- samente desfrutadas pelos homens. Assim, a destruigio da categoria do sexo representaria a destruicao de um atributo, o sexo, 0 qual, por meio ay SUJEITOS CO SEXO/GENERO/DESEJO de um gesto miségino de sinédoque, tomou 0 lugar da pessoa, do cogito autodeterminador. Em outras palavras, s6 os homens sao “pessoas” € nao existe outro género senio o feminino: O género é 0 indice lingiiistico da oposigao politica entre os sexos. E género € usado aqui no singular porque sem diivida nao ha dois géneros. Ha so- mente um: o feminino, 6 “masculino” nao sendo um género. Pois o mas- culino nio é o masculino, mas o geral.?8 Conseqiientemente, Wittig clama pela destruigéo do “sexo”, para que as mulheres possam assumir 0 status de sujeito universal. Em busca dessa destruigao, as “mulheres” devem assumir um ponto de vista tanto particular quanto universal.2? Como sujeito que pode realizar a univer- salidade concreta por meio da liberdade, a lésbica de Wittig confirma, ao invés de contestar, as promessas normativas dos ideais humanistas cuja premissa é a metafisica da substancia. Nesse aspecto, Wittig se di- ferencia de Irigaray, nao s6 nos termos das oposigdes hoje conhecidas entre essencialismo e materialismo,3° mas naqueles da adesio a uma metafisica da substancia que confirma 0 modelo normativo do huma- nismo como 0 arcabougo do feminismo. Onde Wittig parece subscrever um projeto radical de emancipagao lésbica e impor uma distingao entre “lésbica” e “mulher”, ela 0 faz por via da defesa de uma “pessoa” cujo género é€ preestabelecido, caracterizada como liberdade. Esse seu movi- mento nao sé confirma o status pré-social da liberdade humana, mas subscreve a metafisica da substancia, responsvel pela produgao e natu- ralizagao da prépria categoria de sexo. A metafisica da substéncia € uma expressio associada a Nietzsche na critica contemporanea do discurso filos6fico. Num comentario sobre Nietzsche, Michel Haar argumenta que diversas ontologias filos6ficas cafram na armadilha das ilusdes do “Ser” e da “Substancia” que sao pro- movidas pela crenga em que a formulacao gramatical de sujeito e pre- dicado reflete uma realidade ontoldgica anterior, de substancia e atribu- to. Esses construtos, argumenta Haar, constituem os meios filoséficos artificiais pelos quais a simplicidade, a ordem e a identidade sao eficaz- 42 PROBLEMAS DE GENERO institufdas. Em nenhum sentido, todavia, eles revelam ou repre- uma ordem verdadeira das coisas. Para nossos propésitos, essa nietzschiana torna-se instrutiva quando aplicada as categorias fi- icas que governam uma parte aprecidvel do pensamento tedrico € sobre a identidade de género. Segundo Haar, a critica a meta- da substancia implica uma critica da propria nog4o de pessoa psi- ca como coisa substantiva: ‘Adestruigao da légica por intermédio de sua genealogia traz consigo a rufna das categorias psicolégicas fundamentadas nessa légica. ilies as categorias psicoldgicas (ego, individuo, pessoa) derivam da ilusdo daidentidade eal cial. Mas essa ilusio remonta basicamente a uma superstig&o que engana nao ‘860 senso comum mas também os filésofos —a saber, mcreciga sa linguagem e, mais precisamente, na verdade das categorias gramaticais. Foi a gramatica (aestrutura de sujeito e predicado) que inspirou a certeza de Descartes de que “eu” é 0 sujeito de “penso”, enquanto, na verdade, so os pensamentos que yém a “mim”: no fundo, a fé na gramética simplesmente radia a cna de ser a “causa” dos pensamentos de alguém. O sujeito, 0 ou, a pealisiOns aie apenas conceitos falsos, visto que transformam ioe ences ficticias uni- dades que inicialmente s6 tém realidade lingiifstica. ¥ Wittig fornece uma critica alternativa ao mostrar que nao é possivel _ significar as pessoas na linguagem sem a marca do género. Ela apresenta uma anilise politica da gramatica do género em francés. Segundo oe bo género nao somente designa as pessoas, as “qualifica”, por eee ize, _ mas constitui uma episteme conceitual mediante a qual o género binario € universalizado. Embora a lingua francesa atribua um género a todos 0s tipos de substantivos além das pessoas, ‘Wittig argumenta 5 — andlise tem conseqiiéncias igualmente para o inglés. No principio de The Mark of Gender [“A marca do género”] (1984), ela escreve: Segundo os gramiticos, a marca do género afeta os substantivos. Eem termos de fungo que eles falam sobre isso. Se questionam seu significado, As vezes brincam, chamando 0 género de “sexo ficticio”... no que concerne 43 SUJEIT OS DO SEXO/GENERO/DESEJO as categorias de pessoa, ambas as linguas [inglés e francés] so igualmente portadoras do género. Ambas abrem caminho a um conceito ontolégico primitivo que imp6e, na linguagem, uma divisio dos seres em sexos... Como conceito ontoldgico que lida com a natureza do Ser, juntamente com toda uma névoa de Outros conceitos primitivos pertencentes 4 mesma linha de pensamento, o género parece pertencer primariamente a filosofia.32 Wittig nos diz que “pertencer a filosofia” significa, para o género, pertencer “Aquele corpo de conceitos evidentes sem os quais os filésofos acham que nao podem desenvolver uma linha sequer de raciocinio, e que sao ébvios para eles, pois existem na natureza antes de todo pensa- mento, de toda ordem social”. A opiniao de Wittig é corroborada pelo discurso popular sobre a identidade de género, que emprega acritica- mente a atribuigao inflexional de “ser” para géneros e “sexualidades”. Quando nio problematizadas, as afirmagGes “ser” mulher e “ser” hete- rossexual seriam sintomaticas dessa metafisica das substancias do géne- ro. Tanto no caso de “homens” como no de “mulheres”, tal afirmacgao tende a subordinar a nogao de género aquela de identidade, e a levar A conclusio de que uma pessoa é um género e 0 é em virtude do seu sexo, de seu sentimento psiquico do eu, e das diferentes expressdes desse eu psiquico, a mais notavel delas sendo a do desejo sexual. Em tal contexto pré-feminista, o génerO, ingenuamente (ao invés de criticamente) con- fundido com o sexo, serve como principio unificador do eu corporifi- cado e mantém essa unidade por sobre e contra um “sexo oposto”, cuja _ estrutura mantém, presumivelmente, uma coeréncia interna paralela mas oposta entre sexo, género e desejo. O enunciado “sinto-me uma mulher”, proferido por uma mulher, ou “sinto-me um homem”, dito por um homem, supde que em nenhum dos casos essa afirmacio é ab- surdamente redundante. Embora possa parecer nao problemitico ser de uma dada anatomia (apesar de termos de considerar adiante as muitas dificuldades dessa proposta), considera-se a experiéncia de uma dispo- sigdo psiquica ou identidade cultural de género como uma realizagao ou conquista. Assim, “sinto-me uma mulher” é verdade na mesma medida em que é presumida a evocagao de Aretha Franklin do Outro definidor: 44 PROBLEMAS DE GENERO ‘océ me faz sentir uma mulher natural”.34 Essa conquista exige wii srenciagao em relacdo ao género oposto. Conseqiientemente, UN oa é o seu género na medida em que nao € 0 outro género, formu io que pressupde e impée a restrigao do género dentro desse par rio. O género s6 pode denotar uma unidade de experiéncia, de sexo, nero e desejo, quando se entende que o sexo, em algum sentido, exige género — sendo o género uma designacao psfquica e/ou cultural do —e um desejo — sendo 0 desejo heterosexual e, portanto, diferen- ciando-se mediante uma relagao de oposicio ao outro género que ele " deseja. A coeréncia ou a unidade internas de qualquer dos géneros, ho- mem ou mulher, exigem assim uma heterossexualidade estavel e oposi- cional. Essa heterossexualidade, institucional exige e produz, a um s6 tempo, a univocidade de cada um dos termos marcados pelo género que _ constituem o limite das possibilidades de género no interior do sistema de género bindrio oposicional. Essa concep¢ao do género nao sé pres- supoe uma relacao causal entre sexo, género e desejo, mas sugere igual- mente que o desejo reflete ou exprime o género, € que o género reflete ou exprime o desejo. Supde-se que a unidade metafisica dos trés seja verdadeiramente conhecida e expressa num desejo diferenciador pelo género oposto — isto é, numa forma de heterossexualidade oposicional. O “velho sonho da simetria”, como chamov-o Irigaray, é aqui pressu- posto, reificado e racionalizado, seja como paradigma naturalista que estabelece uma continuidade causal entre sexo, género e desejo, seja como um paradigma expressivo auténtico, no qual se diz que um eu verdadeiro é simultanea ou sucessivamente revelado no sexo, no género e no desejo. Esse esbogo um tanto tosco nos da uma indicagéo para compreen- dermos as razées politicas da visio do género como substancia. A insti- tuigdo de uma heterossexualidade compulséria e naturalizada exige e regula o género como uma relacdo bindria em que 0 termo masculino diferencia-se do termo feminino, realizando-se essa diferenciagéo por meio das praticas do desejo heterossexual. O ato de diferenciar os dois momentos oposicionais da estrutura bindria resulta numa consolidagio 45 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO de cada um de seus termos, da coeréncia interna respectiva do sexo, do género e do desejo. , Oo deslocamento estratégico dessa relacao bindria e da metafisica da substancia em que ela se baseia pressupée que a produgio das categorias de feminino e masculino, mulher e homem, ocorra igualmente no inte- rior da estrutura bindria. Foucault abraca implicitamente essa explica- gao. No capitulo final do primeiro volume de A historia da sual e em sua breve mas significativa introdugao a Herculine Barbin, Bein; ; the Recently Discovered Journals of a Nineteenth-Century Henna dite [“Herculine Barbin, ou os recém-descobertos didrios de um herma- frodita do século XIX”}5, Foucault sugere que a categoria de sexo, anterior a qualquer caracterizagio da diferenca sexual, é ela pro) cfs construida por via de um modo de sexualidade historicamente es eae co. Ao postular 0 “sexo” como “causa” da expel i portamento e do desejo a produgao titica da categorizacao descontinua e bindria do sexo oculta os objetivos estratégicos do préprio aparato de produgao. A pesquisa genealdgica de Foucault expoe essa “causa” os- tensiva como um “efeito”, como a produgao de um dado regime de se- xualidade que busca regular a experiéncia sexual ins tias distintas do sexo como funcgées fundacionais e qualquer tratamento discursivo da sexualidade, A introdugao de Foucault aos didrios do hermafrodita Herculine Barbin sugere que a critica genealdgica das Categorias reificadas do sexo € uma conseqiiéncia inopinada de praticas sexuais que nao podem ser explicadas pelo discurso médico-legal da heterossexualidade naturaliza- da. Herculine nao é uma “identidade”, mas a impossibilidade sexual de uma identidade. Embora elementos anat6micos masculinos e femininos se distribuam conjuntamente Por seu corpo, e dentro dele, nao est4 aia verdadeira origem do escAndalo. As convengées lingiifsticas que produ- zem eus com caracteristicas de género inteligiveis encontram seu limite em Herculine, precisamente porque ela/ele Ocasiona uma convergéncia e desorganizagao das Tegras que governam sexo/género/desejo. Hercu- line desdobra e redistribui os termos do sistema bindrio, mas essa mesma redistribuicao os rompe e os faz proliferar fora desse sistema. ‘Segundo riéncia sexuais, do com- stituindo as. catego- causais, em todo e 46 PROBLEMAS DE GENERO It, Herculine nao é categoriz4vel no género bindrio como tal; a certante convergéncia de heterossexualidade e homossexualida- sua pessoa sé é ocasionada, mas nunca causada, por sua descon- de anat6mica. A apropriacéo de Herculine por Foucault é duvi- , mas sua andlise implica a interessante crenga em que a neidade sexual (paradoxalmente exclufda por uma “hetero”-se- de naturalizada) implica uma critica da metafisica da substancia, 0 esta informa as caracterfsticas identitdrias do sexo. Foucault a a experiéncia de Herculine como “um mundo de prazeres em ha sorrisos pairando & toa”.37 Sorrisos, felicidade, prazeres e desejos ‘aqui representados como qualidades, sem a substancia permanente ial supostamente estdo ligados. Como atributos flutuantes, eles su- m a possibilidade de uma experiéncia de género que nao pode ser endida pela gramatica substancializante e hierarquizante dos subs- ivos (res extensa) e adjetivos (atributos, essenciais e acidentais). Pela ra cursiva de Herculine, Foucault propde uma ontologia dos atri- s acidentais que expe a postulagio da identidade como um prin- io culturalmente restrito de ordem e hierarquia, uma ficgao regula- Se € possivel falar de um “homem” com um atributo masculino e preender esse atributo como um trago feliz mas acidental desse ho- 4m, também é possivel falar de um “homem” com um atributo femi- ‘nino, qualquer que seja, mas continuar a preservar a integridade do gé- ‘nero. Porém, se dispensarmos a prioridade de “homem” e “mulher” como substancias permanentes, nao sera mais possivel subordinar tragos dissonantes do género como caracteristicas secundarias ou acidentais de uma ontologia do género que permanece fundamentalmente intata. Se _ a nogao de uma substancia permanente é uma construgio ficticia, pro- duzida pela ordenagao compulséria de atributos em seqiiéncias de gé- nero coerentes, entdo 0 género como substancia, a viabilidade de homem e mulher como substantivos, se vé questionado pelo jogo dissonante de atributos que nao se conformam aos modelos seqiienciais ou causais de inteligibilidade. Desse modo, a aparéncia de uma substancia permanente ou de um 47 SUJEITOS DO SEX!O/GENERO/DESEJO eu com tragos de género, ao qual 0 psiquiatra Robert Stoller se refere como 0 “nticleo do género”38, é prioduzida pela regulacao dos atributos segundo linhas de coeréncia culturtalmente estabelecidas. E resulta que a dentincia dessa produgao ficticia € condicionada pela interagdo desre- gulada de atributos que resistem a sua assimilagao numa estrutura pronta de substantivos primarios e adjetivs subordinados. Claro que é sempre possivel argumentar que os adjetives dissonantes agem retroativamente, redefinindo as identidades substanttivas que supostamente modificam, e expandindo conseqiientemente as} Categorias substantivas do género, para incluir possibilidades que ela:s antes exclufam. Mas se essas subs- tancias nada mais sao do que coeréncias contingentemente criadas pela regulacio de atributos, a propria ontologia das substancias afigura-se nao s6 um efeito artificial, mas essencialmente supérflua. Nesse sentido, o género nao é um substantivo, mas tampouco é um conjunto de atributos flutuantes, pois vimos que seu efeito substantivo é performativamente produzido e innposto pelas praticas reguladoras da coeréncia do género. Conseqiienternente, o género mostra ser performa- tivo no interior do discurso herdado da metafisica da substncia — isto é, constituinte da identidade que supo'stamente €. Nesse sentido, o género é sempre um feito, ainda que nao seja obra de um sujeito tido como pree- xistente A obra. No desafio de repensar as categorias do género fora da metafisica da substancia, é mister considerar a relevancia da afirmagao de Nietzsche, em A genealogia da moral, de que “nao ha ‘ser’ por tras do fazer, do realizar e do tornar-se; 0 ‘fazedor’ é uma mera ficgdo acrescentada & obra —a obra é tudo”.2? Numa aplicagao que o préprio Nietzsche nao teria antecipado ou aprovado, nés afirmarfamos como corolario: nao ha identidade de género por tras das expressdes do género; essa identidade € performativamente constituida, pelas proprias “expressdes” tidas como seus resultados. PROBLEMAS DE GENERO . LINGUAGEM, PODER E ESTRATEGIAS DE DESLOCAMENTO “i rande parte da teoria e da literatura feministas supde, todavia, a exis: téncia de um “fazedor” por tras da obra. Argumenta-se que sem Wm “agente nao pode haver acao e, portanto, potencial para iniciar qualquer “transformacao das relagées de dominagao no seio da sociedade. A teoria "feminista radical de Wittig ocupa uma posigao ambigua no continuum das teorias sobre a questio do sujeito. Por um lado, Wittig parece con- testar a'metafisica da substancia, mas por outro, ela mantém 0 sujeito humano, o individuo, como locus metafisico da agao. Embora o huma- nismo de Wittig pressuponha claramente a existéncia de um agente por tras da obra, sua teoria delineia a construgao performativa do género nas prdticas materiais da cultura, contestando a temporalidade das ex- plicacdes que confundem “causa” e “resultado”. Numa frase que sugere 0 espaco intertextual que liga Wittig a Foucault (e revela tracos da idéia marxista de reificacao nas teorias de ambos os pensadores), ela escreve: Uma abordagem feminista materialista mostra que aquilo que tomamos por causa ou origem da opressao é na verdade a marca imposta pelo opressor; © “mito da mulher”, somado a seus efeitos e manifestagées materiais na consciéncia e nos corpos apropriados das mulheres. Assim, essa marca nao preexiste 4 opressao... 0 sexo € tomado como um “dado imediato”, um “dado sensivel”, como “caracteristicas fisicas” pertencentes a uma ordem natural. Mas o que acreditamos ser uma percepgio fisica e direta é somente uma construgio sofisticada e mitica, uma “formagao imagindria”.*° Por essa produgio de “natureza” operar de acordo com os ditames da heterossexualidade compulséria, 0 surgimento do desejo homosse- xual transcende, na opiniao dela, as categorias do sexo: “se o desejo pudesse libertar a si mesmo, nada teria a ver com a marcagio preliminar pelos sexos.”#1 Wittig refere-se ao “sexo” como uma marca que de algum modo é aplicada pela heterossexualidade institucionalizada, marca esta que pode ser apagada ou obscurecida por meio de praticas que efetivamente 49 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO contestem essa instituigao. Sua opinido, é claro, difere radicalmente da- quela de Irigaray. Esta tiltima compreenderia a “marca” de género como parte da economia significante hegeménica do masculino, que opera mediante a auto-elaboragio dos mecanismos especulares que virtual- mente determinaram o campo da ontologia na tradigao filos6fica oci- dental. Para Wittig, a linguagem é um instrumento ou utensilio que ab- solutamente nao é miségino em suas estruturas, mas somente em suas aplicacGes.*? Para Irigaray, a possibilidade de outra linguagem ou eco- nomia significante é a tinica chance de fugir da “marca” do género, que, para 0 feminino, nada mais é do que a obliteraco misdgina do sexo feminino. Enquanto Irigaray busca expor a relacdo ostensivamente “bi- néria” entre os sexos como um ardil masculinista que exclui por com- pleto o feminino, Wittig argumenta que posigdes como a de Irigaray reconsolidam a légica binaria existente entre o masculino e o feminino, e reatualizam uma idéia mitica do feminino. Inspirando-se claramente na critica de Beauvoir em O segundo sexo, Wittig afirma que “nao ha ‘escrita feminina’””.%3 Wittig acata claramente a idéia de um poder da linguagem de subor- dinar e excluir as mulheres. Como “materialista”, contudo, ela considera a linguagem como uma “outra ordem de materialidade”*#, uma institui- ¢40 que pode ser radicalmente transformada. A linguagem figuraria en- tre as praticas e instituigdes concretas e contingentes mantidas pelas escolhas individuais, e conseqiientemente, enfraquecidas pelas ages co- letivas de selecionar individuos. A ficgdo lingiiistica do “sexo”, argumen- ta ela, € uma categoria produzida e disseminada pelo sistema da hete- rossexualidade compulséria, num esforgo para restringir a produgao de identidades em conformidade com o eixo do desejo heterossexual. Em alguns de seus trabalhos, tanto a homossexualidade masculina como a feminina, assim como outras posigdes independentes do contrato hete- rossexual, facultam tanto a subversao como a proliferagao da categoria do sexo. Em The Lesbian Body [“O corpo lésbico”], como em outros escritos, Wittig parece discordar contudo de uma sexualidade genital- mente organizada per se e evocar uma economia alternativa dos praze- res, a qual contestaria a construgao da subjetividade feminina, marcada 50 PROBLEMAS DE GENERO ela funcao reprodutiva que supostamente distingue as mulheres,"¥ Aqui proliferagao de prazeres fora da economia reprodutiva sugere uma forma especificamente feminina de difusao erética, compreendida como contra-estratégia em relagdo a construgdo reprodutiva da genitalidade. lum certo sentido, para Wittig, O corpo lésbico pode ser entendido “como uma leitura “invertida” dos Trés ensaios sobre a teoria da sexuali- le, de Freud, em que ele defende a superioridade da sexualidade ge- ital em termos do desenvolvimento, sobre a sexualidade infantil, mais restrita e difusa. Somente 0 “invertido”, classificagao médica invocados por Freud para “o homossexual”, deixa de “atingir” a norma genital. Ao empreender uma critica politica da genitalidade, Wittig parece desdo- brar a “inversio” como pratica de leitura critica, valorizando precisa- “mente os aspectos da sexualidade nao desenvolvida designada por “Freud, € inaugurando efetivamente uma “politica pés-genital”.° Alids, a nogio de desenvolvimento sé pode ser lida como uma normalizagao "dentro da matriz heterosexual. Todavia, sera essa a Gnica leitura possi-| “yel de Freud? Eem que medida a pratica de “inversao” de Wittig estard | “comprometida com 0 modelo de normalizacao que ela mesma busca | desmantelar? Em outras palavras, se o modelo de uma sexualidade an- | estrutura hegem@nica da sexualidade, em que medida nao estara essa - lidades existem de ruptura do préprio binario oposicional? A oposi¢ao de Wittig 4 psicandlise produz uma conseqiiéncia ines- perada. Sua teoria presume justamente a teoria psicanalitica do desen- volvimento, nela plenamente “invertida”, que ela busca subverter. A perversao polimérfica, que supostamente existiria antes da marca do sexo, é valorizada como um telos da sexualidade humana.*” Uma res- posta psicanalitica feminista possivel as colocagées de Wittig seria argu- mentar que ela tanto subteoriza como subestima o significado e a fungio da linguagem em que ocorre “a marca do género”. Ela compreende essa pratica de marcagio como contingente, radicalmente varidvel e mesmo dispensavel. O satus de proibigéo primiria, na teoria lacaniana, opera mais eficazmente e menos contingentemente do que a nogio de prdtica tigenital e mais difusa serve como alternativa singular e de oposi¢ao a | relagao bindria fadada a reproduzir-se interminavelmente? Que possibi- | SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO reguladora em Foucault, ou e do que a descricéo materialista de um sistema de opressao heterossexista em Wittig. Em Lacan, como na reformulagao pés-lacaniana de Freud por Iri- garay, a diferenca sexual nao € um bindrio simples que retém a metafisica da substincia como sua fundagao. O “sujeito” masculino € uma cons- trugio ficticia, produzida pela lei que protbe o incesto e impde um des- locamento infinito do desejo heterossexualizante. O feminino nunca é uma marca do sujeito; 0 feminino nao pode ser o “atributo” de um género. Ao invés disso, 0 feminino é a significagio da falta, significada pelo Simbélico, um conjunto de regras lingiiisticas diferenciais que efe- tivamente cria a diferenca sexual. A posicao lingiifstica masculina passa pela individuagao e heterossexualizacao exigidas pelas proibicgées fun- dadoras da lei Simbélica, a lei do Pai. O incesto, que separa o filho da mie e portanto instala a relagao de parentesco entre eles, € uma lei decretada “em nome do Pai”. Semelhantemente, a lei que profbe o desejo da menina tanto por sua mae como por seu pai exige que ela assuma 0 emblema da maternidade e perpetue as regras de parentesco. Ambas as posigdes, masculina e feminina, sao assim instituidas por meio de leis proibitivas que produzem géneros culturalmente inteligiveis, mas so- mente mediante a producao de uma sexualidade inconsciente, que res- surge no dominio do imaginario.*8 A apropriagao feminista da diferenga sexual, escrita em oposic4o ao falocentrismo de Lacan (Irigaray) ou como sua reelaboragao critica, ten- ta teorizar o feminino, ndo como uma expressao da metafisica da subs- tancia, mas como uma auséncia nao representavel, produzida pela ne- gacao (masculina) que estabelece a economia significante por via da exclusao. Como repudiado/excluido dentro do sistema, o feminino constitui uma possibilidade de critica e de ruptura com esse esquema conceitual hegemdnico. Os trabalhos de Jacqueline Rose*? e Jane Gal- lop? sublinham de diferentes maneiras 0 status construfdo da diferenca sexual, a instabilidade inerente dessa construgao, ¢ alinha de conseqiién- cias duais de uma proibicéo que a um s6 tempo institui a identidade sexual e possibilita a deniincia das ténues bases de sua construgéo. Em- bora Wittig e outras feministas materialistas do contexto francés argu- 52 PROBLEMAS DE GENERO mentem que a diferenga sexual é uma replicacio irrefletida de um cone junto reificado de polaridades sexuadas, suas reflexdes negligenciam & dimensao critica do inconsciente, 0 qual, como sede da sexualidade rex calcada, ressurge no discurso do sujeito como a propria impossibilidade de sua coeréncia. Como destaca Rose muito claramente, a construgdo de uma identidade sexual coerente, em conformidade com o eixo dis- juntivo do feminismo/masculino, esta fadada ao fracasso*!; as rupturas dessa coer€ncia por meio do ressurgimento inopinado do recalcado re- velam ndo s6 que a “identidade” é construida, mas que a proibi¢ao que constréi a identidade é ineficaz (a lei paterna nao deve ser entendida como uma vontade divina determinista, mas como um passo em falso perpétuo a preparar 0 terreno para insurreigGes contra ela). As diferengas entre as posigdes materialista e lacaniana (e pés-laca- niana) emergem na disputa normativa sobre se hd uma sexualidade res- gatavel “antes” ou “fora” da lei, na modalidade do inconsciente, ou “depois” da lei, como sexualidade pés-genital. Paradoxalmente, o tropo normativo da perversao polimérfica € compreendido como caracteriza- dor de ambas as vis6es de sexualidade alternativa. Contudo, nao ha acordo sobre a maneira de delimitar essa “lei” ou conjunto de “leis”. A critica psicanalitica da conta da construgao do “sujeito” — e talvez tam- bém da ilusao da substancia — na matriz das relagdes normativas de género. Em seu modo existencial-materialista, Wittig presume que 0 sujeito, a pessoa, tem uma integridade pré-social e anterior a seus tragos de género. Por outro lado, “a lei paterna”, em Lacan, assim como a primazia monolégica do falocentrismo em Irigaray, levam a marca de uma singularidade monoteistica talvez menos unitdria e culturalmente universal do que presumem as suposi¢ées estruturalistas.°? A disputa, porém, também parece girar em torno da articulacao de um tropo temporal de uma sexualidade subversiva, que floresce antes da imposigao da lei, apds sua derrubada ou durante sua vigéncia, como desafio constante a sua autoridade. Aqui parece sensato evocar nova- mente Foucault, que, ao afirmar que sexualidade e poder sio coexten- sivos, refuta implicitamente a postulagao de uma sexualidade subversiva ou emancipatéria que possa ser livre da lei. Podemos insistir nesse argu- 53 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO mento, salientando que “o antes” e “o depois” da lei sio modos de temporalidade discursiva e performativamente instituidos, invocados nos termos de uma estrutura normativa que afirma que a subversao, a desestabilizagao ou o deslocamento exigem uma sexualidade que de al- gum modo escape das proibigdes hegem6nicas a pesarem sobre 0 sexo. Para Foucault, essas proibig6es sao invaridvel e inopinadamente produ- tivas, no sentido de que “o sujeito” que supostamente é fundado e pro- | duzido nelas e por meio delas nao tem acesso a uma sexualidade que 39 «, esteja, em algum sentido, “fora”, “antes” ou “depois” do préprio poder. O poder, ao invés da lei, abrange tanto as fungGes ou relagées diferen- ciais jurfdicas (proibitivas e reguladoras) como as produtivas (ininten- cionalmente generativas). Conseqiientemente, a sexualidade que emer- ge na matriz das relagGes de poder nao é uma simples duplicagio ou c6pia da lei ela mesma, uma repeticao uniforme de uma economia mas- culinista da identidade. As produgées se desviam de seus prop6sitos ori- ginais e mobilizam inadvertidamente possibilidades de “sujeitos” que ndo apenas ultrapassam os limites da inteligibilidade cultural como efe- tivamente expandem as fronteiras do que é de fato culturalmente inte- ligivel. A norma feminista da séxualidade pés-genital tornou-se objeto de uma critica significativa da parte das tericas feministas da sexualidade, algumas das quais buscaram uma apropriacio especificamente feminista e/ou lésbica de Foucault. Contudo, a nogao utépica de uma sexualidade livre dos construtos heterossexuais, uma sexualidade além do “sexo”, nao conseguiu reconhecer as maneiras como as relagées de poder con- tinuam construindo a sexualidade das mulheres, mesmo nos termos de uma homossexualidade ou lesbianismo “liberados”.53 A mesma critica € feita contra a nogio de um prazer sexual especificamente feminino, radicalmente diferenciado da sexualidade falica. Os esforgos ocasionais de Irigaray para deduzir uma sexualidade feminina especifica de uma anatomia feminina especifica foram, por algum tempo, o centro dos argumentos antiessencialistas.5* O retorno a biologia como base de uma sexualidade ou significagado especfficas femininas parece desbancar a premissa feminista de que a biologia nao € 0 destino. Porém, quer a se- 54 PROBLEMAS DE GENERO ‘xualidade feminina se articule aqui num discurso da biologia por raziey puramente estratégicas,** quer seja de fato um retorno feminista a0 ys ‘sencialismo bioldgico, a caracterizagio da sexualidade feminina como radicalmente distinta da organizaco falica da sexualidade continua firo- blematica. As mulheres que nao reconhecem essa sexualidade como gua, 0u nao compreendem sua sexualidade como parcialmente construjda _ Nos termos da economia falica sao potencialmente descartadas por ésga teoria, acusadas de “identificagdo com 0 masculino” ou de “obscuran- tismo”. Na verdade, o texto de Irigaray € freqiientemente obscuro sobre a questo de saber se a sexualidade é culturalmente construfda, ou se 56 € culturalmente construfda nos termos do falo. Em outras palavras, es- taria o prazer especificamente feminino “fora” da cultura, como sua pré-histéria ou seu futuro utépico? Se assim for, de que serve essa nog§g nas negociagoes das disputas contempor4neas sobre a sexualidade em termos de sua construgao? ‘ O movimento pr6-sexualidade no ambito da teoria e da pratica fe- ministas tem efetivamente argumentado que a sexualidade sempre é construfda nos termos do discurso e do poder, sendo o poder em parte entendido em termos das convengées culturais heterossexuais e falicas, A emergéncia de uma sexualidade construfda (nao determinada) nesses termos, nos contextos lésbico, bisexual e heterosexual, nao constitui, portanto, um sinal de identificagio masculina num sentido reducionigta, Nio se trata de nenhum projeto fracassado de criticar o falocentrismo ou a hegemonia heterossexual, como se criticas politicas tivessem 0 po- der de desfazer efetivamente a construgao cultural da sexualidade das criticas feministas. Se a sexualidade é construfda culturalmente no inte- rior das relagdes de poder existentes, ent4o a postulagao de uma sexya- lidade normativa que esteja “antes”, “fora” ou “além” do poder constjtuj uma impossibilidade cultural e um sonho politicamente impraticdyel, que adia a tarefa concreta e contemporanea de repensar as possibilidades subversivas da sexualidade e da identidade nos préprios termos do po- der. Claro que essa tarefa critica supde que operar no interior da matriz de poder nao € o mesmo que reproduzir acriticamente as relag6es de dominagio. Ela oferece a possibilidade de uma repetigao da lei que x49 55 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO fepresenta sua consolidagao, mas seu deslocamento. No lugar de uma sexualidade com “identidade masculina”, em que o masculino atua como causa e significado irredutivel dessa sexualidade, nés podemos desenvolver uma nogao de sexualidade construida em termos das rela- g6es falicas de poder, as quais Teestruturariam ¢ redistribuiriam as pos- sibilidades desse falicismo Por meio, precisamente, da operacao subver- siva das “identificagées” que sao inevitaveis no campo de poder da sexualidade. Se, como diz Jacqueline Rose, as “identificacdes” podem ser denunciadas como fantasias, entao deve ser possivel representar uma identificagao que exiba sua estrutura fantdstica, Em nao havendo um reptidio radical de uma sexualidade culturalmente construida, 0 que Testa € saber como reconhecer e “fazer” a construgao em que invaria- velmente estamos. Haver formas de repeticao que nao constituam sim- ples imitagao, reproducao e, conseqiientemente, consolidacao da lei (a nogao anacr6nica de “identificacio masculina” que deve ser descartada do vocabuldrio feminista)? Que possibilidades existem de configuracoes de género entre as varias matrizes emergentes — e as vezes convergentes — da inteligibilidade cultural que rege a vida marcada pelo género? Nos termos da teoria sexual feminista, é claro que a presenga da dinamica do poder na sexualidade nao é, em nenhum sentido, a mesma coisa que a consolidagio ou o aumento puro ¢ simples de um regime de poder heterossexista ou falocéntrico. A “presenca” das assim cha- madas convencées heterossexuais nos contextos homossexuais, bem como a proliferacao de discursos especificamente gays da diferenga sexual, como no caso de “butch” e “femme”* como identidades histé- ricas de estilo sexual, nao pode ser explicada como a representagao quimérica de identidades originalmente heterossexuais. E tampouco elas podem ser compreendidas como a insisténcia Perniciosa de cons- trutos heterossexistas na sexualidade e na identidade gays. A repeticao de construtos heterossexuais nas culturas sexuais gay e hetero bem pode representar o lugar inevitavel da desnaturalizagao e mobilizagao * Os termos “butch” e “femme” designam os papéis masculino e feminino eventualmente assumidos nos relacionamentos lésbicos, (N. do.) 56 PROBLEMAS DE GENERO is Categorias de género. A replicacao de construtos he mM estruturas nao heterossexuais salienta o status cabalment ttruido do assim chamado heterossexual original. Assim, o gay é 0 hetero nao o que uma cépia é para 0 original, mas, em vez di 0 que uma cépia é para uma cépia. A repetigao imitativa do “original -discutida nas partes finais do capitulo 3 deste livro, revela que o orl ginal nada mais é do que uma parédia da idéia do natural ¢ do origi nal.5* Mesmo que construtos heterossexistas circulem como lugares _ praticaveis de poder/discurso a partir dos quais faz-se © género, pers siste a pergunta: que possibilidades existem de recirculacao? Que pos sibilidades de fazer o género repetem e deslocam, por meio da hipér- bole da dissonancia, da confusao interna e da proliferagdo, os préprios construtos pelos quais os géneros sao mobilizados? : a Observe-se nao s6 que as ambigiiidades e incoeréncias nas Praticas heterossexual, homossexual e bissexual —e entre elas —sa0 suprimidas € redescritas no interior da estrutura reificada do bindrio disjuntivo e assimétrico do masculino/feminino, mas que essas configuragées cultu- rais de confuséo do género operam como lugares de intervengao, de- niincia ¢ deslocamento dessas reificagées. Em outras palavras, a “unida- de” do género € 0 efeito de uma pratica reguladora que busca unifor- mizar a identidade do género por via da heterossexualidade compuls6- ria. A forca dessa pratica é, mediante um aparelho de producio beer dente, restringir os significados relativos de “heterossexualidade”, “ho- “mossexualidade” e “bissexualidade”, bem como os lugares subversivos de sua convergéncia e re-significagao. O fato de os regimes de poder do heterossexismo e do falocentrismo buscarem anicremenitat-se pela repe- tigdo constante de sua légica, sua metafisica e suas ontologias naturali- zadas nao implica que a propria repeticao deva ser interrompida al como se isso fosse possivel. E se a repetigao esta fadada a persistir como mecanismo da reprodugao cultural das identidades, dai emerge a ques- tao crucial: que tipo de repetigao subversiva poderia questionar a pré- pria pratica reguladora da identidade? : : Se nao pode haver recurso a uma “pessoa”, um “sexo” ouumai"se- xualidade” que escape 4 matriz de poder e as relagées discursivas que 57 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO efetivamente produzem e regulam a inteligibilidade desses conceitos para nés, o que constituiria a possibilidade de inversao, subversio ou deslocamento efetivos nos termos de uma identidade construfda? Que possibilidades existem em virtude do carater construido do sexo e do género? Embora Foucault seja ambiguo sobre o caréter preciso das “pra- ticas reguladoras” que produzem a categoria do sexo e Wittig pareca investir toda a responsabilidade da construgao na reproducdo sexual e seu instrumento, a heterossexualidade compulséria, outros discursos convergem no sentido de produzir essa ficgao categérica, por razées nem sempre claras ou coerentes entre si. As relagdes de poder que permeiam as ciéncias bioldgicas nao sao facilmente redutiveis, ¢ a alianca médico- legal que emergiu na Europa do século XIX gerou ficgdes categéricas que nao poderiam ser antecipadas. A propria complexidade do mapa discursivo que constréi o género parece sustentar a promessa de uma convergéncia inopinada e generativa dessas estruturas discursivas e re- guladoras, Se as ficgdes reguladoras do sexo e do género sao, elas pr6- prias, lugares de significado multiplamente contestado, entio a propria multiplicidade de sua construgao oferece a possibilidade de uma ruptura de sua postulacao univoca. Claramente, esse projeto nao propée desenhar uma ontologia do género em termos filoséficos tradicionais, pela qual o significado de ser mulher ou homem seja elucidado em termos fenomenolégicos. A pre- sungao aqui € que o “ser” de um género é um efeito, objeto de uma in- vestigacao genealdégica que mapeia os parametros politicos de sua cons- trugao no modo da ontologia. Declarar que o género € construido nao € afirmar sua ilusao ou artificialidade, em que se compreende que esses termos residam no interior de um bindrio que contrapde como opostos 0 “real” e o “auténtico”. Como genealogia da ontologia do género, a presente investigacao busca compreender a produgao discursiva da plau- sibilidade dessa relagao binaria, e sugerir que certas configuracées cul- turais do género assumem o lugar do “real” e consolidam e incrementam sua hegemonia por meio de uma autonaturalizagio apta e bem-sucedida. Se hd algo de certo na afirmacao de Beauvoir de que ninguém nasce ¢ sim torna-se mulher decorre que mulher é um termo em processo, um 58 PROBLEMAS DE GENERO vir, um construir de que nao se pode dizer com acerto que te) igem ou um fim. Como uma pratica discursiva continua, 0 terme enti erto a intervencGes e re-significacdes. Mesmo quando o género pareee tistalizar-se em suas formas mais reificadas, a propria “cristalizagho" é a pratica insistent e insidiosa, sustentada e regulada por varios melon ciais, Para Beauvoir, nunca se pode tornar-se mulher em definitivo, mo se houvesse um telos a governar o processo de aculturagio ¢ cons truco. O género € a estilizacao repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rigida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparéncia de uma substancia, de uma classe natural de ser. A genealogia politica das ontologias do género, em sendo bem-sucedida, desconstruiria a aparéncia substantiva do género, desmembrando-a em seus atos constitutivos, e explicaria e localizaria esses atos no interior das estruturas compulsérias criadas pe- las varias forcas que policiam a aparéncia social do género. Expor os atos contingentes que criam a aparéncia de uma necessidade natural, tentativa que tem feito parte da critica cultural pelo menos desde Marx, € tarefa que assume agora a responsabilidade acrescida de mostrar como _ a propria nogao de sujeito, sé inteligivel por meio de sua aparéncia de género, admite possibilidades excluidas a forca pelas varias reificagées do género constitutivas de suas ontologias contingentes. ; O capitulo seguinte investiga alguns aspectos da abordagem psica- nalitica estruturalista da diferenca sexual e da construgao da sexualidade relativamente a seu poder de contestar os regimes reguladores aqui es- bocados, e também a seu papel na reprodugio acritica desses regimes. A univocidade do sexo, a coeréncia interna do género e a estrutura bi- naria para 0 sexo e o género sao sempre consideradas como ficgdes re- guladoras que consolidam e naturalizam regimes de poder convergentes de opress4o masculina e heterossexista. O capitulo final considera a pr6- pria nogao de “corpo”, nao como uma superficie pronta a espera de significag4o, mas como um conjunto de fronteiras, individuais e sociais, politicamente significadas e mantidas. Mostraremos que 0 sexo, ia m0 mais visto como uma “verdade” interior das predisposigGes e da identi- dade, é uma significagao performativamente ordenada (e portanto nao 59 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO “6” pura e simplesmente), uma significagao que, liberta da interioridade e da superficie naturalizadas, pode ocasionar a proliferagio parodistica € 0 jogo subversivo dos significados do género. O texto continuar4, entdo, como um esforgo de refletir a possibilidade de subverter e deslo- car as nocées naturalizadas e reificadas do género que dao suporte a hegemonia masculina e ao poder heterossexista, para criar problemas de género nao por meio de estratégias que representem um além utépi- co, mas da mobilizag4o, da confusao subversiva e da proliferagao preci- samente daquelas categorias constitutivas que buscam manter o género em seu lugar, a posar como ilusées fundadoras da identidade. 60 Proibigao, psicandlise e a producio da matriz heterossexual A mentalidade hetero continua a afirmar que 0 incesto, € nao a homosse- xualidade, representa sua maior interdigio. Assim, quando pensada pela mente hetero, a homossexualidade nao passa de heterossexualidade. Monique Wittig, The Straight Mind [“A mentalidade hetero” Houve ocasiées em que a teoria feminista sentiu-se atrafda pelo pensa- mento de uma origem, de um tempo anterior ao que alguns chamariam de “patriarcado”, capaz de oferecer uma perspectiva imaginéria a partir da qual estabelecer a contingéncia da histéria da opressao das mulheres. Surgiram debates para saber se existiram culturas pré-patriarcais; se eram matriarcais ou matrilineares em sua estrutura; e se 0 patriarcado teve um comego ¢ est, conseqiientemente, sujeito a um fim. Compreen- sivelmente, 0 {mpeto critico por tras desse tipo de pesquisa buscava mos- trar que o argumento antifeminista da inevitabilidade do patriarcado constitufa uma reificac4o e uma naturalizagao de um fendmeno hist6rico e contingente. Embora se pretendesse que o retorno ao estado cultural pré-patriarcal expusesse a auto-reificacao do patriarcado, esse esquema pré-patriar- cal acabou mostrando ser outro tipo de reificagao. Mais recentemente, 63 PROIBIGAO, PSICANALISE E A PRODUGAO DA MATRIZ HETEROSSEXUAL contudo, algumas feministas desenvolveram uma critica reflexiva de al- guns construtos reificados no interior do préprio feminismo. A propria nogao de “patriarcado” andou ameagando tornar-se um conceito univer- salizante, capaz de anular ou reduzir expressdes diversas da assimetria do género em diferentes contextos culturais. Quando o feminismo buscou estabelecer uma relagio integral com as lutas contra a opressdo racial e colonialista, tornou-se cada vez mais importante resistir 4 estratégia epis- temol6gica colonizadora que subordinava diferentes configuragées de do- minagio a rubrica de uma nogio transcultural de patriarcado. Enunciar a lei do patriarcado como uma estrutura repressiva e reguladora também exige uma reconsideracao a partir dessa perspectiva critica. O recurso feminista a um passado imagindrio tem de ser cauteloso, pois, ao desmas- carar as afirmagGes auto-reificadoras do poder masculinista, deve evitar promover uma reificagdo politicamente problematica da experiéncia das mulheres. A autojustificagao de uma lei repressiva ou subordinadora quase sempre baseia-se no histérico de como eram as coisas antes do advento da lei, e de como se deu seu surgimento em sua forma presente e neces- sria.' A fabricag4o dessas origens tende a descrever um estado de coisas anterior a lei, seguindo uma narragio necesséria e unilinear que culmina na constituicao da lei e desse modo a justifica. A hist6ria das origens é, assim, uma tdtica astuciosa no interior de uma narrativa que, por apre- sentar um relato Gnico e autorizado sobre um passado irrecuperavel, faz a construgao da lei parecer uma inevitabilidade histérica. Algumas feministas encontraram tracos de um futuro utépico no passado pré-juridico, fonte potencial de subversdo ou insurreigao que encerraria a promessa de conduzir A destruigao da lei e 4 afirmagao de uma nova ordem. Mas, se o “antes” imagindrio é inevitavelmente vis- lumbrado nos termos de uma narrativa pré-historica — que serve para legitimar o estado atual da lei ou, alternativamente, o futuro imagindrio além da lei —, entdo esse “antes” esteve desde sempre imbufdo das fabricagées autojustificadoras dos interesses presentes e futuros, fossem eles feministas ou antifeministas. A postulagéo desse “antes” na teoria feminista torna-se politicamente problematica quando obriga o futuro 64 PROBLEMAS DE GENERO aterializar uma nogio idealizada do passado, ou quando apdia, mes- jnadvertidamente, a reificagio de uma esfera pré-cultural do autén- feminino. Esse recurso a uma feminidade original ou genuina é um al nostdlgico e provinciano que rejeita a demanda contemporinea de ular uma abordagem do género como uma construgio cultural plexa. Esse ideal tende nao s6.a servir a objetivos culturalmente con- adores, mas a constituir uma pratica excludente no seio do feminis- precipitando precisamente 0 tipo de fragmentagao que 0 ideal pre- ir. en on a especulagao de Engels, do feminismo socialista ¢ das po- sigdes feministas enraizadas na antropologia estruturalista, sio muitos ‘0s esforcos para localizar na histéria ou na cultura momentos ou estrus “turas que estabelecam hierarquias de género. Busca-se isolar essas este ‘turas ou perfodos-chave de maneira a repudiar as teorias reaciondrias “que naturalizam ou universalizam a subordinagao das pele Como _ esforcos significativos para produzir um deslocamento critico dos gestos universalizantes de opressdo, essas teorias constituem parte do campo tedrico contemporaneo onde amadurecem novas contestacoes da opres- ‘sio. Contudo, é preciso esclarecer se essas importantes crit cas da hie- rarquia do género fazem ou nao uso, de pressuposig6es ficticias que im- plicam ideais normativos problematicos. , : — A antropologia estruturalista de Lévi-Strauss, inclusive a peal = tica distingio natureza/cultura, foi apropriada por algumas tedricas fe ministas para dar suporte € elucidar a distingao sexo/género: a oe de haver um feminino natural ou biol6gico, subseqtientemente trans for- mado numa “mulher” socialmente subordinada, coma eee tee de que o “sexo” est4 para a natureza ou a “matéria-prima” assim como 0 género esta para a cultura ou o “fabricado”. Se a perspectiva de Lévi- Strauss fosse verdadeira, seria possivel mapear a ranstarmacss do a sem género, localizando 0 mecanismo cultural estavel — = regras - intercimbio do parentesco — que efetua essa transformagao de mot i regular. Nessa visao, 0 “sexo” ver antes da lei, no sentido de - aay e politicamente indeterminado, constituindo-se, por assim izer, né 65 PROIBIGAO, PSICANALISE E A PRODUGAO DA MATRIZ HETEROSEXUAL “matéria-prisma” cultural que s6 comega a gerar significagao por meio de @ apés sua sujeicao as regras de parentesco. Contudo, © Proprio conceito do sexo-como-matéria, do sexo- ¢omo-instrurnento-de-significagao-cultural, é uma forntacsay discursiv: que atua coro fundagao naturalizada da distingéo natureza/cultura : das estratégias de dominacao porela sustentadas. A relagdo bindria a oo e natuireza Promove uma telagao de hierarquia em que a cultura impde” significado livremente 3 natureza, transformando-a, conse- qiientemente, num Outro a ser apropriado para seu uso ilinitado, sal- vaguardando a idealidade do significante e a estrutura de signifi ad conforme o modelo de dominacao, aakak As antrop Slogas Marilyn Strathern e Carol MacCormack argumen- taram que o aad natureza/cultura normalmente concebe que a na- tureza é “fersinina € precisa ser subordinada pela cultura, invariavel- mente concebida como masculina, ativa e abstrata.2 Conia, dialéti existencial da misoginia, trata-se de mais um exemplo em que a Seal amente sao associadas com a masculinidade e a aco, ao passo que corpo € natureza si0 considerados como a facticidade muda do Seaton, espera de signiificacao a partir de um sujeito masculino oposto. Co: : na dialética mis6gina, materialidade e significado so termos faa te excludentes- A politica sexual que constréi e mantém essa distin " oculta-se por tras da producio discursiva de uma natureza e, a rij at um sexo natural que figuram como a base inquestionavel da ia Criticos do estruturalismo, como Clifford Geertz, argumentaram “a seu arcabougo universalizante no considera a multiplicidade das on figuracdes culturais da “natureza”. A andlise que sup6e ser a natur Singular e pré-discursiva nao pode se perguntar: 0 que se eae, como “natureza” num dado contexto cultural, e com que propésito? E © dualismo realmente necess4rio? Como sio construfdos e aie dos, um no outro € por meio um do outro, os dualismos sexo/género e natureza/cultura? A que hierarquias de género servem eles, e que rela- Soes de subordinacao reificam? Se a prépria designagao do ees € polf- tica, entdo 0 “sexo”, essa que se supde designagao ser a mais tosca aoe 66 PROBLEMAS DE GENERO se desde sempre “fabricado”, e as distingdes centrais da antropologia turalista perecem desmoronar.> Compreensivelmente, 0 esforco para localizar uma natureza sexua- antes da lei parece enraizar-se no projeto mais fundamental de se ler pensar que a lei patriarcal nao € universalmente valida e determi- ite de tudo. Pois se o género construfdo € tudo que existe, parece nao aver nada “fora” dele, nenhuma Ancora epistemolégica plantada em “antes” pré-cultural, podendo servir como ponto de partida episte- 16gico alternativo para uma avaliagao critica das relagGes de género istentes. Localizar o mecanismo mediante 0 qual o sexo transforma-se género é pretender estabelecer, em termos nao biolégicos, nao s6 0 Ater de construcdo do género, seu status nao natural e nao necessirio, as também a universalidade cultural da opressio. Como esse mecanis- 10 é formulado? Pode ele ser encontrado, ou s6 meramente imaginado? designacao de sua universalidade ostensiva é menos reificadora do que posicao que explica a opressao universal pela biologia? A nogio per se de construto s6 se mostra Util ao projeto politico de ampliar 0 espectro das possiveis configuracdes do género quando o me- canismo de construgao do género implica a contingéncia dessa constru- _ ga. Contudo, se ha uma vida do corpo além da lei, ou uma recuperagao do corpo antes da lei, que assim emerge como objetivo normativo da teoria feminista, tal norma afasta o foco da teoria feminista dos termos concretos da luta cultural contemporanea. Os subcapitulos a seguir, so- bre psicanilise, estruturalismo e o status e poder de suas proibig6es ins- tituidoras do género, se concentrarao precisamente nessa nogao da lei: qual seu status ontoldgico — é ele juridico, opressivo e reducionista em seu funcionamento, ou cria inadvertidamente a possibilidade de sua propria substituicao cultural? Em que medida a enunciagao de um corpo anterior ao proprio enunciado contradiz performativamente a simesma e gera alternativas em seu lugar? 67 pROIBICAO, PSICANALISE EA PRODUGAO DA MATRIZ HETEROSSEXUAL 1, A PERMUTA CRITICA DO ESTRUTURALISMO © discurso estruturalista tende a se referir 4 Lei, no singular, seguindo © argumento de Lévi-Strauss de que existe uma estrutura universal da troca reguladora que caracteriza todos os sistemas de parentesco. Segun- do As estruturas elementares de parentesco, as mulheres sio 0 objeto da troca que consolida e diferencia as relagdes de parentesco, sendo ofer- tadlas como dote de um cla patrilinear para outro, por meio da instituigao do casamento.* A ponte, o dote, o objeto de troca constitui “um signo e um valor”, o qual abre um canal de intercambio que atende nao sé ao objetivo funcional de facilitar 0 comércio, mas realiza 0 propésito sim- bélico ou ritualistico de consolidar os lagos internos, a identidade cole- tiva de cada cla diferenciado por esse ato.5 Em outras palavras, a noiva funciona como termo relacional entre grupos de homens; ela nao tem uma identidade, e tampouco permuta uma identidade por outra. Ela reflete a identidade masculina, precisamente por ser o lugar de sua au- séncia. Os membros do cla, invariavelmente masculino, evocam a prer- rogativa da identidade por via do casamento, um ato repetido de dife- reniciagao simbdlica. A exogamia distingue e vincula patronimicamente tipos especificos de homens. A patrilinearidade é garantida pela expul- sao ritualistica das mulheres e, reciprocamente, pela importagao ritua- listica de mulheres. Como esposas, as mulheres nao s6 asseguram a re- produgio do nome (objetivo funcional), mas viabilizam o intercurso simbélico entre clas de homens. Como lugar da permuta patronimica, as mulheres sao e nao sao o signo patronimico, pois sio excluidas do significante, do préprio sobrenome que portam. No matriménio, a mu- Iher ndo se qualifica como uma identidade, mas somente como um termo relacional que distingue e vincula os varios clas a uma identidade patri- jinear comum mas internamente diferenciada. A sistematicidade estrutural da explicagao de Lévi-Strauss das rela- Ges de parentesco faz apelo a uma légica universal que parece estruturar as relagdes humanas. Ainda que Lévi-Strauss nos revele, em Tristes tr6- picos, ter abandonado a filosofia porque a antropologia fornecia uma textura cultural mais concreta para a andlise da vida humana, ele todavia 68 PROBLEMAS DE GENERO imila essa textura cultural a uma estrutura légica totalizante, & 7 suas andlises retornarem de fato As estruturas filosdficas descontex= falizadas que ele teria pretensamente abandonado. Embora seja possi: levantar diversas quest6es sobre as presungoes de universalidade da a de Lévi-Strauss (assim como em Local Knowledge [“Conhecimento al”], do antrop6logo Clifford Geertz), as quest6es aqui dizem respei- ao lugar das hipdteses identitarias nessa l6gica universal, e 4 relagio sa légica identitaria com o status subalterno das mulheres na reali- ide cultural que essa mesma légica busca descrever. Se a natureza sim- ica da troca é também seu cardter universalmente humano, e se essa trutura universal distribui “identidades” as pessoas do sexo masculino uma “negac’o” ou “falta” relacional e subalterna as mulheres, ent4o a ica em questao pode ser contestada por uma posigao (ou conjunto de si¢des) exclufda de seus préprios termos. Como seria uma légica al- ‘nativa do parentesco? Até que ponto os sistemas légicos identitarios pre exigem que a construgao de identidades socialmente impossiveis pe o lugar de uma relag4o nao nomeada, excluida, mas pressuposta subseqiientemente ocultada pela propria légica? Explicita-se aqui o peto demarcador de Irigaray em relacdo a economia falocéntrica, bem 0 o grande impulso pés-estruturalista no seio do feminismo que lestiona se uma critica efetiva do falocentrismo exige a eliminagao do bdlico, como definido por Lévi-Strauss. O caréter totale fechado da linguagem é presumido e contestado ‘estruturalismo. Embora Saussure entenda como arbitraria a relacio ‘entre significante e significado, ele situa essa relagao arbitraria no inte- ‘rior de um sistema lingiifstico necessariamente completo. Todos os ter- ‘mos lingiifsticos pressupdem uma totalidade lingiifstica de estruturas, cuja integridade é pressuposta e implicitamente evocada para conferir sentido a qualquer termo. Essa opiniao quase leibniziana, em que a lin- guagem figura como uma totalidade sistematica, suprime efetivamente © momento da diferenga entre o significante e o significado, relacionan- do e unificando esse momento de arbitrariedade dentro de um campo totalizante. A ruptura pés-estruturalista com Saussure e com as estrutu- “ras identitarias de troca encontradas em Lévi-Strauss refuta as afirma- 69 PROIBICAO, PSICANALISE E A PRODUGAO DA MATRIZ HETEROSSEXUAL des de totalidade ¢ universalidade, bem como a presungao de oposicdes estruturais bindrias a operarem implicitamente no sentido de subjugar a ambigitidade e abertura insistentes da significagio lingiifstica e cultural.® Como resultado, a discrepancia entre significante e significado torna-se a différance operativa e ilimitada de linguagem, transformando toda re- feréncia em deslocamento potencialmente ilimitado. Para Lévi-Strauss, a identidade cultural masculina é estabelecida por meio de um ato aberto de diferenciagao entre clas patrilineares, em que a “diferenga” nessa relagao € hegeliana — isto é, distingue e vincula ao mes- mo tempo. Mas a “diferenga” estabelecida entre os homens e as mulheres que efetivam a diferenciagao entre os homens escapa completamente a essa dialética. Em outras palavras, o momento diferenciador da troca social parece ser um laco social entre os homens, uma unido hegeliana entre ter- mos masculinos, simultaneamente especificados € individualizados.? Num nivel abstrato, trata-se de uma identidade-na-diferenga, visto que ambos os clas retém uma identidade semelhante: masculinos, patriarcais e patri- lineares. Ostentando nomes diferentes, eles particularizam a simesmos no seio de uma identidade cultural masculina que tudo abrange. Mas que re- lacdo institui as mulheres como de objeto de troca, inicialmente portadoras de um sobrenome e depois de outro? Que tipo de mecanismo diferencia- dor distribui as fungées do género desse modo? Que espécie de différance diferenciadora é pressuposta e excluida que h4 na economia hegeliana de Lévi-Strauss pela negacdo explicita e mediadora do masculino? Como ar- gumenta Irigaray, essa economia falocéntrica depende essencialmente de uma economia da différance nunca manifesta, mas sempre pressuposta € renegada. Com efeito, as relag6es entre clas patrilineares sao baseadas em um desejo homossocial (0 que Irigaray chama de “homo-sexualidade”)8, numa sexualidade recalcada e conseqiientemente desacreditada, numa re- lagdo entre homens que, em tiltima instancia, concerne aos lagos entre os homens, mas se dé por intermédio da troca e da distribuic4o heterossexual das mulheres.? Numa passagem que revela 0 inconsciente homoerético da econo- mia falocéntrica, Lévi-Strauss apresenta a ligagao entre 0 tabu do incesto a consolidagio dos lagos homoeréticos: 70 PROBLEMAS DE GENERO A troca—e, conseqiientemente, a regra da exogamia —nio ésimplesmente ada permuta de bens. A troca —e, conseqiientemente, a regra da exogamia que a expressa — tem em si mesma um valor social. Propicia os meios de manter os homens vinculados. O tabu produz a heterossexualidade exogamica, a qual Lévi-Strauss compreende como obra ou realizacio artificial de uma heterossexuali- dade nao incestuosa, obtida mediante a proibigéo de uma sexualidade mais natural e irrestrita (hip6tese partilhada por Freud em Tyés ensaios sobre a teoria da sexualidade). Contudo, a relacao de reciprocidade estabelecida entre os homens €a condigao de uma relagao radical de nao reciprocidade entre homens e mulheres e, também, por assim dizer, de uma nao relacao entre as mulheres. A famosa afirmagao de Lévi-Strauss de que “o surgimento do pensamento simbélico deve ter exigido que as mulheres, como as pala- vras, fossem coisas a serem trocadas” sugere uma necessidade que 0° proprio Lévi-Strauss induz, a partir da posigao retrospectiva de um ob- servador transparente, das pretensas estruturas universais da cultura. Mas a expressao “deve ter exigido” s6 aparece como inferéncia perfor- mativa; considerando que 0 momento em que o simbélico surgiu nao poderia ter sido testemunhado por Lévi-Strauss, ele conjetura uma his- toria necesséria: 0 relato torna-se assim injungao. Sua andlise induziu Irigaray a refletir sobre 0 que aconteceria se “os deuses se juntassem” e revelassem a imprevista atuagéo de uma economia sexual alternativa. Seu trabalho recente, Sexes e parentés', oferece uma exegese critica de como essa constru¢ao da troca recfproca entre homens pressup6e uma nio reciprocidade entre os sexos que nio se pode articular dentro dessa economia, assim como a impossibilidade de nomear a fémea, o feminino ¢ a sexualidade lésbica. Se existe um dominio sexual que € exclufdo do Simbélico e pode potencialmente reveld-lo como hegeménico, ao invés de totalizante em seu alcance, entdo tem de ser possivel situar esse dominio exclufdo den- tro ou fora dessa economia, e pensar sua intervengio estrategicamente, nos termos dessa localizacio. A releitura, a seguir, da lei estruturalista . 71 PROIBIGAO, PSICANALISE E A PRODUGAO DA MATRIZ HETEROSSEXUAL da narrativa que explica a produgéo da diferenga sexual em seus termos centra-se na fixidez e universalidade presumidas dessa lei, e, através de uma critica genealégica, busca expor seu poder de generatividade inad- vertida e auto-anuladora. Produziria “a Let” essas posigées, unilateral- mente ou invariavelmente? Pode ela gerar configurages de sexualidade que a contestem efetivamente, ou sao essas contestagoes inevitavelmente fantasmaticas? E possivel especificar a generatividade dessa lei como va- ridvel ou até subversiva? Alei que profbe o incesto € 0 locus da economia de parentesco que proibe a endogamia. Lévi-Strauss afirma que a centralidade do tabu do incesto estabelece o nexo significante entre a antropologia estrutural € a psicanilise. Embora Lévi-Strauss reconhega o descrédito de Totem e tabu, de Freud, no terreno empirico, ele considera esse gesto de reptidio como uma prova paradoxal de apoio a tese de Freud. Para Lévi-Strauss, © incesto nao é um fato social, mas uma fantasia cultural muito difun- dida. Presumindo a masculinidade heterossexual do sujeito do desejo, , Lévi-Strauss sustenta que “o desejo pela mae ou irmA, 0 assassinato do _ pai e o arrependimento dos filhos indubitavelmente nao correspondem a nenhum fato ou grupo de fatos a ocupar um dado lugar na histéria. Mas talvez expressem simbolicamente um sonho antigo e vivedouro”."! Num esforgo para afirmar a percepcao psicanalitica da fantasia incestuosa inconsciente, Lévi-Strauss refere-se a “magia desse sonho, ao seu poder de moldar idéias que sao desconhecidas dos homens. 0s atos evocados [pelo sonho] nunca foram cometidos, porque a cul- tura se opée a eles em todos os tempos ¢ em todos os lugares”.!? Esta afirmagao deveras surpreendente nos dé uma percepcao nao s6 da visivel capacidade de negagao de Lévi-Strauss (atos de incesto “nunca foram cometidos”!), mas também da dificuldade central decorrente da suposigao da eficdcia dessa proibigao. O fato dea proibigdo existir nao significa absolutamente que funcione. Ao invés disso, sua existéncia parece sugerir que desejos, acdes e, a rigor, praticas sociais difundidas de incesto sao produzidos precisamente em virtude da erotizagao desse tabu. O fato de que os desejos incestuosos sejam fantasisticos nao im- plica de modo algum que deixem de ser “fatos sociais”. A questio € 72 PROBLEMAS DE GENERO antes saber como tais fantasias sao produzidas e efetivamente institui- das, em conseqiiéncia de sua proibigio. Além disso, de que modo a conviegao social de que a proibigao é eficaz, aqui sintomaticamente aaa por LeveStransiy renega e, portanto, cria um espaco social a re ot a incestuosas ficam livres para se reproduzir sem Para Lévi-Strauss, tanto 0 tabu contra 0 ato do incesto heterossexual entre filho € mae como a fantasia incestuosa instalam-se como verdades culturais universais. Mas como se constitui a heterossexualidade inces- tuosa como matriz ostensivamente natural e pré-artificial do desejo, e de que modo se estabelece o desejo como prerrogativa nterassescal masculina? Nessa perspectiva fundadora do estruturalismo, a naturali- zagio tanto da heterossexualidade como da agéncia scan masculina sio construgées discursivas em parte alguma explicadas, mas em toda parte presumidas. ; A apropriacao lacaniana de Lévi-Strauss est4 centrada na proibicao” do incesto e na regra da exogamia na reproduc¢ao da cultura, sendo a cultura primordialmente entendida como um conjunto de pacibicin e significagoes lingitfsticas. Para Lacan, a Lei que probe a uniao incestuosa entre 0 menino e a mae inaugura as estruturas de parentesco, uma série altamente regulamtentada de deslocamentos libidinais que ppotien or intermédio da linguagem. Embora as estruturas da linguagem raletive mente entendidas como o Simbélico, mantenham uma inieaatate on- toldgica separada dos varios agentes falantes pelos quais atuam, a Lei reafirma e individualiza a si mesma nos termos de toda entrada infantil na cultura. A fala s6 emerge em condiges de insatisfagao, sendo a insa- tisfagdo instituida por via da proibigao inceStuosa; pentese a jouissance {o gozo] original pelo recalcamento primario que funda o sujeito. Em seu lugar emerge o signo que é analogamente barrado do significatte e que busca naquilo que significa a recuperagdo daquele prazer ictelanpie nivel. Lastreado nessa proibicao, 0 sujeito sé fala para deslocar 0 desejo pelas substituigdes metonimicas desse prazer irrecuperavel. A vise € 0 resfduo e a realizag4o alternativa do desejo insatisfeito, a produgio cultural diversificada de uma sublimagao que nunca satiate realmente, 73 PROIBIGAO, PSICANALISE E A PRODUGAO DA MATRIZ HETEROSSEXUAL O fato de a linguagem, inevitavelmente, nao conseguir significar éa conseqiiéncia necessaria da proibigao que alicerga a possibilidade da linguagem e marca a futilidade de seus gestos referenciais. 2. LACAN, RIVIERE E AS ESTRATEGIAS DA MASCARADA : Em termos lacanianos, perguntar sobre o “ser” do género e/ou do sexo éconfundir 0 préprio objetivo da teoria da linguagem de Lacan. ° autor contesta a primazia dada & ontologia na metafisica ocidental cinsiste na subordinagao da pergunta “o que €?” a pergunta “como se institui e a caliza 0 ‘ser’ por meio das praticas significantes da economia paterna?’ ”. A especificagao ontolégica do ser, a negacao eas relagGes sao determi; nadas por uma linguagem estruturada pela lei paterna e seus mecanismos de diferenciacdo. Uma coisa s6 entre elas assume a caracterizagao do | “ser” e passa a ser mobilizada por esse gesto ontolégico dentro de uma estrutura de significagao que, como o Simbdlico, é em si mesma pré-on- toldgica. Nao ha portanto inquirigao da ontologia per ses nenhum acesso a0 ser, sem uma inquirigao prévia do “ser” do Falo, a significagao autoriza- dora da Lei que toma a diferenca sexual como pressuposiga0 de sua pro- pria inteligibilidade. “Ser” o Falo e “ter” o Falo denotam posicors sexuais divergentes, ou nao-posigdes (na verdade, posig6es impossiveis), no inte- rior da linguagem. “Ser” o Falo € ser 0 “significante” do desejo do Onto, € apresentar-se como esse significante. Em outras palavras, ésero objeto, © Outro de um desejo masculino (heterossexualizado), mas também € representar ou refletir esse desejo. Trata-se de um Outro que constitu nao © limite da masculinidade numa alteridade feminina, mas ° lugar de uma auto-elaboracao masculina. Para as mulheres, “ser” o Falo significa refletir © poder do Falo, significar esse poder, “incorporar” o Fal; oven 2 lugar em que ele penetra, e significar 0 Falo mediante a condigao de’ ser” oseu Outro, sua auséncia, sua falta, a confirmagao dialética de eta identidade. Ao afirmar que 0 Outro a quem falta o Falo é aquele que é 0 Falo, Lacan 74 PROBLEMAS DE GENERO sugere claramente que o poder é exercido por essa posigéo feminina de nao ter, e que o sujeito masculino que “tem” o Falo precisa que esse Outro confirme e, conseqiientemente, seja o Falo em seu sentido “ampliado”.'3 Essa caracterizagao ontoldégica pressupde que a aparéncia ou efeito do ser € sempre produzido pelas estruturas de significagio. A ordem simbélica cria a inteligibilidade cultural por meio das posigdes mutuamente exclu- dentes de “ter” o Falo (a posigao dos homens) e “ser” o Falo (a posigao paradoxal das mulheres). A interdependéncia dessas posigdes evoca as estruturas hegelianas da reciprocidade falha entre o senhor e 0 escravo, ticularmente a inesperada dependéncia do senhor em relagao ao escra- vo para estabelecer sua prépria identidade, mediante reflexao.'4 Lacan, entretanto, monta este drama num dominio fantasfstico. Todo esforgo para estabelecer a identidade nos termos dessa disjungao entre 0 “ser” € 0 “ter” retorna as inevitaveis “falta” e “perda” que alicergam sua construgio fan- tasistica e marcam a incomensurabilidade do Simbdlico e do real. Se o Simbdlico € compreendido como uma estrutura de significagao” cultural universal, em parte alguma plenamente exemplificada no real, faz sentido perguntar: 0 que ou quem significa 0 que ou quem nessa historia ostensivamente transcultural? Essa pergunta, contudo, insere-se num con- texto que pressupGe um sujeito como significante e um objeto como sig- nificado, a dicotomia epistemol6gica tradicional da filosofia antes do des- locamento estruturalista do sujeito. Lacan questiona esse ésquema de significacao. Ele apresenta a relagao entre os sexos em térmos que revelam “eu” falante como um efeito masculinizado do recalcamento, que figura ¢omo um sujeito auténomo e auto-referido, mas cuja propria coeréncia é posta em questo pelas posig6es sexuais que exclui no processo de forma- wilo da identidade. Para Lacan, 0 sujeito s6 passa a existir — isto é, s6 “omega a colocar-se como um significante auto-referido no corpo da lin- uagem — sob a condicao de um recalcamento primdrio dos prazeres incestuosos pré-individuados associados com o corpo materno (entao re- ‘walcado). O sujeito masculino s6 se manifesta para originar significados e, por Meio disso, significar. Sua autonomia aparentemente auto-referida tenta ‘peultar o recalcamento que, ao mesmo tempo, é sua base ¢ a possibilix 75 PROIBICAO, PSICANALISE E A PRODUGAO DA MATRIZ HETEROSSEXUAL dade perpétua de seu deslastreamento. Mas esse processo de constitui- gio do sentido exige que as mulheres reflitam esse poder masculino e confirmem por toda a parte a esse poder a realidade de sua autonomia ilus6ria. Essa tarefa se confunde, para dizer o minimo, quando a deman- da de que as mulheres reflitam 0 poder auténomo do sujeito/significante masculino torna-se essencial para a construgio dessa autonomia, tornan- do-se, assim, a base de uma dependéncia radical que na verdade solapa a fung’o a que serve. Além disso, porém, essa dependéncia, ainda que negada, também é buscada pelo sujeito masculino, pois a mulher como signo garante é 0 corpo materno deslocado, a promessa va mas persis- tente de recuperar 0 gozo pré-individuado. Assim, o conflito da mas- culinidade parece ser precisamente a demanda de um reconhecimento pleno da autonomia, o qual encerrara — também e todavia — a pro- messa de um retorno aos prazeres plenos anteriores ao recalcamento e a individuagao. 7 Diz-se que as mulheres “so” o Falo no sentido de manterem o poder de refletir ou representar a “realidade” das posturas auto-referidas do su- jeito masculino, um poder que, se retirado, romperiaas ilus6es fundadoras da posigao desse sujeito. Para “ser” o Falo, refletoras ou garantes da posi- 40 aparente do sujeito masculino, as mulherés tém de se tornar, tem de “ser” (no sentido de “posarem como se fossem”) precisamente 0 que os homens nao so e, por sua prépria falta, estabelecer a funcdo essencial dos homens. Assim, “ser” o Falo é sempre “ser para” um sujeito masculino que busca recpnfirmar e aumentar sua identidade pelo reconhecimento dessa que “é para”. Num sentido vigoroso, Lacan contesta a nogao de que os homens signifiquem o significado das mulheres, ou de que as mulheres signifiquem 0 significado dos homens. A divisio e a troca entre “ser” e “ter” o Falo é estabelecida pelo Simbélico, a lei paterna. Claro, parte da dimensao cémica desse modelo falho de reciprocidade € que tanto a po- sigdo masculina como a feminina sao significadas, pertencendo o signifi- cante ao Simbélico, o qual nunca pode ser mais do que nominalmente assumido por ambas as posigdes. Ser o Falo é ser significado pela lei paterna, é tanto ser seu objeto e instrumento como, em termos estruturalistas, o “signo” e a promessa de 76 PROBLEMAS DE GENERO seu poder. Conseqiientemente, como objeto constitufdo ou significado de troca pelo qual a lei paterna estende seu poder e 0 modo como se apresenta, diz-se que as mulheres sao 0 Falo, isto é, o emblema de sua circulagao continua. Mas esse “ser” o Falo é necessariamente insatisfa- torio, na medida em que as mulheres jamais poderao refletir plenamente essa lei; algumas feministas argumentam que isso exigiria uma rentincia ao préprio desejo das mulheres (uma dupla rentincia, de fato, corres- pondente & “onda dupla” de recalcamento que Freud afirmou fundar a feminilidade)'S, o que representaria a expropriagio desse desejo como um desejo de nao ser nada além do reflexo, do garante da necessidade difundida do Falo. Por outro lado, diz-se que os homens “tém” o Falo mas nunca o “So”, no sentido de que o pénis nao é equivalente 4 Lei, e nunca poder simbo- liza-la plenamente. Assim, verifica-se a impossibilidade necess4ria ou pres- suposta de todo esforgo para ocupar a posicao de “ter” o Falo, com a conseqiiéncia de que ambas as posigées, a de “ter” ou a de “ser”, devem ser entendidas nos termos de Lacan, como fracassos cOmicos, todavia obri- gados a articular e encenar essas impossibilidades repetidas, Mas, como as mulheres “parecem” ser o Falo, a falta que encarna e afirma o Falo? Segundo Lacan, isso se faz através da mascarada, efeito de uma melancolia que é essencial 4 posicao feminina como tal. No en- saio “A significacao do Falo”, ele escreve sobre “as relagdes entre os sexos”: Digamos que essas relag6es girardo em torno de um ser e de um ter que, Por se reportarem a um significante, o falo, tém o efeito contrario de, por um lago, dar realidade ao sujeito nesse significante, e, por outro, irrealizar as relages a serem significadas.'¢ Nas linhas imediatamente subseqiientes, Lacan parece referir-se a aparéncia de “realidade” do sujeito masculino, assim como A “irrealida- de” da heterossexualidade. Ele também parece referir-se A posigao das mulheres (minha intervencao esta entre colchetes): “E isso pela inter- vengao de um parcer que substitui o ter [exige-se uma substituigao, sem We PROIBICAO, PSICANALISE E A PRODUGAO DA MATRIZ HETEROSSEXUAL diivida, pois diz-se que as mulheres n4o ‘tém”], para, de um lado, pro- tegé-lo e, do outro, mascarar sua falta no outro.” Embora nao se expli- cite aqui propriamente o género gramatical, parece que Lacan esta des- crevendo a posigao das mulheres para quem a “falta” é caracteristica, precisando portanto ser mascarada, e que, num sentido inespecifico, carecem de proteg’o. Lacan afirma entao que essa situagao produz “o efeito [de] projetar inteiramente as manifestag6es ideais ou tipicas do comportamento de cada um dos sexos, até 0 limite do ato da copulagao, na comédia”. (701) Lacan continua sua exposigio sobre a comédia heterossexual, ex- plicando que esse “parecer” o Falo que as mulheres sao compelidas a representar € inevitavelmente uma mascarada. O termo € significativo porque sugere sentidos contraditérios: por um lado, se o “ser”, a espe- cificagio ontolégica do Falo, € uma mascarada, entao isso pareceria re- duzir todo ser a uma forma de aparéncia, a aparéncia de ser, coma _ conseqiiéncia de que toda a ontologia do género é redutivel a um jogo de aparéncias. Por outro lado, mascarada sugere que existe um “ser” ou uma especificacio ontolégica da feminilidade anterior 4 mascarada, um desejo ou demanda feminina que € mascarado e capaz de revelagao, € que, na verdade, pode pressagiar uma ruptura e deslocamento eventuais da economia significante falocéntrica. Podem-se discernir pelo menos duas tarefas muito diferentes a partir da estrutura ambjgua da andlise de Lacan. Por um lado, pode-se com- preender a mascarada como a produgio performativa de uma ontologia sexual, uma aparéncia que se faz convincente como “ser”; por outro lado, pode-se ler a mascarada como a negagao de um desejo feminino, a qual pressupde uma feminilidade ontoldgica anterior, regularmente nao representada pela economia filica. Irigaray observa nesse sentido que “a mascarada... € 0 que as mulheres fazem... para participar do de- sejo masculino, mas ao custo de abrir mio do delas mesmas”.'7 A pri- meira tarefa envolveria uma reflexao critica sobre a ontologia do género como (des)construgio imitativa e, talvez, buscar as possibilidades méveis da distingao escorregadia entre “parecer” e “ser”, uma radicalizagao da dimensao “cémica” da ontologia sexual, s6 parcialmente empreendida 78 PROBLEMAS DE GENERO por Lacan. A segunda iniciaria estratégias feministas de desmascaramen- to para recuperar ou libertar qualquer desejo feminino que tenha per- manecido recalcado nos termos da economia félica.18 Talvez essas direg6es alternativas nao sejam tio mutuamente exclu- dentes quanto parecem, pois as aparéncias sio cada vez mais duvidosas. As reflexGes sobre 0 significado da mascarada em Lacan e em Womanliness as a Masquerade (“A feminilidade como disfarce”], de Joan Riviere, so muito diferentes, em sua interpretacao, precisamente daquilo que é mas- carado pelo disfarce. Ea mascarada a conseqiiéncia de um desejo feminino que tem de ser negado e, assim, transformado numa falta que tem todavia de se manifestar de algum modo? E a mascarada a conseqiténcia de uma nega¢ao dessa falta, no intuito de parecer o Falo? Constréi a mascarada a feminilidade como reflexo do Falo, para disfargar possibilidades bissexuais que, de outro modo, poderiam romper a construgao sem suturas da femi- nilidade heterossexualizada? Transforma a mascarada a agressio e o medo de represdlias em seducio e flerte, como sugere Joan Riviere? Serve ela primariamente para ocultar ou recalcar uma feminilidade j4 dada, um desejo feminino que pode,estabelecer uma alteridade insubordinada ao sujeito masculino e expor o necessdrio fracasso da masculinidade? Ou sera a mascarada o meio pelo qual a prépria feminilidade é inicialmente esta- belecida, a pratica excludente da formacio da identidade, em que o mas- culino € efetivamente excluido e instalado como externo as fronteiras de uma posi¢éo com a marca feminina do género? Lacan continua a citagao mencionada acima: Por mais paradoxal que possa parecer essa formulagao, dizemos que € para ser 0 falo, isto é, o significante do desejo do Outro, que a mulher vai rejeitar uma parcela essencial da feminilidade, nomeadamente todos os seus atributos na mascarada. E pelo que ela nao é que ela pretende ser desejada, ao mesmo tempo que amada. Mas ela encontra o significante de seu proprio desejo no corpo daquele a quem sua demanda de amor é enderegada. Nao convém esquecer que, sem dtivida, o 6rgao que se reveste dessa funcdo significante adquire um valor de fetiche. (701) 79 PROIBIGAO, PSICANALISE E A PRODUGAO DA MATRIZ HETEROSSEXUAL Se esse “6rgao” inominado, presumivelmente o pénis (tratado como 0 Yahweh hebraico, que nunca € mencionado), é um fetiche, como € possivel que o esquecamos tio facilmente, como presume O proprio Lacan? E que “parcela essencial de sua feminilidade” deve ser rejeitada? ‘Tratar-se-ia, uma vez mais, da parte inominada que, uma vez rejeitada, aparece como falta? Ou sera a propria falta que deve ser rejeitada, para que a mulher possa parecer 0 proprio Falo? Eocardter inomindvel dessa “parcela essencial” 0 mesmo carater inominvel pertinente ao “érgao” masculino, o qual nés corremos 0 risco permanente de esquecer? Nao ser4 precisamente esse esquecimento que constitui o recalcamento situa- do no cerne da mascarada feminina? Tratar-se-ia de uma masculinidade presumida que tem de ser abandonada, para que pareca ser a falta que confirma e, conseqiientemente, € 0 Falo, ou de uma possibilidade falica que tem de ser negada, para se transformar na falta que confirma? Lacan esclarece sua posicao ao observar que “a funcdo da mascara... domina as identificagdes em que se resolvem as recusas da demanda [de amor]”. (702) Em outras palavras, a mascara é parte da estratégia incor- poradora da melancolia, assungao de atributos do objeto/Outro per- dido, na qual a perda € a conseqiiéncia de uma recusa amorosa.!? O fato de que a mascara “dominar” e “resolver” essas recusas sugere que a apropriacao € a estratégia mediante a qual essas recusas so elas mesmas recusadas, numa dupla negagao que reproduz a estrutura da identidade através da absorgao melancélica daquele que é, com efeito, duas vezes perdido. Significativamente, Lacan situa a discusso sobre a mascara em con- junto com a explicacao da homossexualidade feminina. Ele afirma que “a homossexualidade feminina (...), como mostra a observagio, orien- ta-se por uma decepgao que reforca a vertente da demanda de amor”. (702) Quem estd observando e 0 que esta sendo observado sao conve- nientemente suprimidos aqui, mas Lacan acha que seu comentario é ébvio para todos os que quiserem observar. O que se vé por meio da “observacio” é o desapontamento fundante do homossexualismo femi- nino, em que esse desapontamento evoca as recusas dominadas/resolvi- das pela mascarada. “Observa-se” também que a homossexualidade fe- 80 PROBLEMAS DE GENERO pantie ae modo sujeita a uma idealizagao reforcada, uma C persia as expensas do desejo. pak ae continua seu Pardgrafo sobre a “homossexualidade feminina” eae eee parcialmente citada acima: “Esses comentérios mere- é res nuances mediante um retorno a fungao da mascar: na medida em que ela domina as identificagées em : recusas da demanda”, e, se a onisisesndlidade eed. dida Seed a conseqiiéncia de um desapontamento, “como be a a ee 4 ae ane desapontamento tem de aparecer, e aparecer ak '» Para poder ser observado. Se homossexualidade feminina advém de uma Ptr ont A oe Bushs se a mostrar a observago, nao poderia ser idaciacnte observador que a heterossexualid: é ne) desapontada? E a mascara Jee es a" ie Tuts : anu for, qe expressao claramente legivel for- ae pontamento” € dessa “orientagao”, bem como 2 ee locamento do desejo pela demanda (idealizada) de amor? Talvez fee beeen © que é elaro para a observacao € 0 status como auséncia de ean on Madetpelerie z nae Mibestirniar € 0 resultado necessdrio de uma base areas Bes aes teh we vista masculino e eee steals ° pa eae > lésbica como recusa da sexualidade per se. xualidade é presumida heterosexual, e Gummi ae pom) heterossexual masculino, esta claramente Sah recusado. 5 s agai se ee a conseqiiéncia de uma recusa que Ae A rvador, cujo desapontamento, rejeitado j é mado no traco essencial das miullies ts ae eres F Num deslizamento caracteristico nas posig6es pronominais, la nao consegue deixar claro quem recusa quem. Como leitores, an nés devemos compreender que essa “recusa” flutuante esta vinkakid : de modo significativo, 4 mascara. Se toda recusa € finalmente uma a dade para com outro lago no presente ou no passado, a recusa é ao mesmo tempo preservacao. A mascara oculta assim essa perda, mas a 81 PROIBIGAO, PSICANALISE E A PRODUGAO DA MATRIZ HETEROSSEXUAL preserva (e nega) por meio de sua ocultagao. A mascara tem uma dupla fungdo, que é a dupla fungao da melancolia. Ela € assumida pelo pro- cesso de incorporagao, que € uma maneira de inscrever e depois usar uma identificacdo melancélica dentro e sobre 0 corpo; com efeito, é a significagao do corpo no molde do Outro que foi recusado. Dominada mediante apropriagao, toda recusa fracassa, e 0 recusador se torna parte da propria identidade do recusado, torna-se, na verdade, a recusa psi- quica do recusado. A perda do objezo nunca é absoluta, porque é redis- tribufda numa fronteira psiquica/corporal que se expande para incorpo- rar essa perda. Isto situa o processo da incorporagao do género na Orbita mais ampla da melancolia. Publicado em 1929, o ensaio de Joan Riviere. Womanliness as a Masquerade?! introduz a nocio da feminilidade como mascarada, nos termos de uma teoria da agress4o € da resolugao de conflitos. Aprimeira vista, essa teoria parece muito distante da andlise lacaniana da mascara- da, em termos de comédia das poiigdes sexuais. Ela comeca com um respeitoso exame da tipologia de Ernest Jones do desenvolvimento da sexualidade feminina nas formas heterosexual e homossexual. Contu- do, concentra sua atengio nos “tifos intermediarios” que obscurecem as fronteiras entre o heterossexuale o homossexual, questionando im- plicitamente a capacidade descritiva do sistema classificatério de Jones. Num comentario que tem ressonatcia com a facil referéncia de Lacan a “observacao”, Riviere busca recorer percepgao ou experiéncia mun- dana para validar seu foco nesses ‘tipos intermediarios”: “Na vida co- tidiana, encontram-se constantemante tipos de homens e mulheres que, embora principalmente heterossexiais em seu desenvolvimento, exibem claramente caracteristicas marcants do outro sexo.” (35) O que aqui € ~ mais Obvio é a classificacao que cordiciona e estrutura a percep¢ao dessa mistura de atributos. Claramente, Riviere parte de nogées estabelecidas sobre o que é exibir caracteristica:sexuais, e como essas caracteristicas ébvias sio compreendidas como «pressando ou refletindo uma orien- taco sexual ostensiva.?? Essa petepcao ou observagao nao s6 supée uma correlacio entre caracteristicis, desejos e “orientagdes”, mas cria_ essa unidade por meio do prépricato perceptivo. A unidade postulada 32 PROBLEMAS DE GENERO por Riviere entre os atributos do género e uma “orientagio” naturalizada aparece como um exemplo daquilo a que Wittig se refere como a “for- magao imaginaria” do sexo. Todavia, Riviere questiona essas tipologias naturalizadas ao fazer um apelo a uma explicagao psicanalitica que situa o significado dos atri- butos confusos do género na “Gnteragio dos conflitos”. (35) Significati- vamente, ela contrasta esse tipo de teoria psicanalitica com outro que reduz a presenga de atributos ostensivamente masculinos numa mulher auma “tendéncia radical ou fundamental”. Em outras palavras, a aqui- sicdo de tais atributos e a consumagao de uma orientagio heterossexual of homossexual séo produzidas mediante a resolugao de conflitos que tém por objetivo a eliminagao da angiistia. Citando Ferenczi para esta- belecer uma analogia com sua propria explicacao, Riviere escreve: Ferenczi ressaltou... que os homens homossexuais exageram sua heteros- sexualidade como “defesa” contra sua homossexualidade. Tentarei mos- trar que as mulheres que desejam a masculinidade podem colocar uma mascara de feminilidade para evitar a angiistia, e a temida represélia dos homens. (35) Nio fica claro qual é a forma “exagerada” de heterossexualidade que o homem homossexual pretensamente exibiria, mas o fendmeno sob escrutinio aqui pode apenas ser que os homens gays simplesmente podem nao parecer muito diferentes de seus equivalentes heterosse- xuais. Essa falta de um estilo ou aparéncia abertamente diferenciadores 86 pode ser diagnosticada como “defesa” sintomatica porque o homem gay em questo nao corresponde A idéia de homossexual que o analista formou e nutriu a partir de esteredtipos culturais. Uma anilise lacaniana argumentaria que © suposto “exagero” do homem homossexual de quaisquer atributos que figurem como uma heterossexualidade aparente representaria uma tentativa de “ter” o Falo, uma posi¢ao de sujeito que encerra um desejo ativo e heterossexualizado. De maneira semelhante, a “mascara” das “mulheres que desejam a masculinidade” pode ser in- terpretada como um esforgo para renunciar a “ter” o Falo, de modo a 83 PROIBICAO, PSICANALISE E A PRODUCAO DA MATRIZ HETEROSSEXUAL evitar a retaliagao daqueles de quem o Falo ter4 sido obtido mediante castragio. Riviere explica o medo da retaliagéo como conseqiiéncia da fantasia da mulher de tomar o lugar do homem, mais precisamente, do pai. No caso que ela propria examina, e que alguns consideram ser au- tobiografico, a rivalidade com 0 pai nao se da em torno do desejo da mie, como se poderia esperar, mas do lugar do pai no discurso piiblico, como orador, conferencista ou escritor —isto é, como usuario de signos ao invés de um signo-objeto ou elemento de troca. Esse desejo castrador pode ser compreendido como o desejo de abandonar o status de mu- Iher-como-signo, para aparecer como sujeito no interior da linguagem. Ora, a analogia que Riviere traga entre o homem homossexual e a mulher mascarada nao é, na opinido dela, uma analogia entre a homos- | {sexualidade masculina e feminina. A feminilidade é assumida pela mu- Ther que “deseja a masculinidade”, mas que teme as conseqiiéncias reta- “| liadoras de assumir publicamente a aparéncia de masculinidade. A - masculinidade € assumida pelo homossexual masculino que, presumi- velmente, busca esconder — nao dos outros, mas de si mesmo — uma feminilidade ostensiva. A mulher assume a mascara deliberadamente, para ocultar sua masculinidade da platéia masculina que ela quer castrar. Mas diz-se que o homem homossexual exagera sua “heterossexualida- de” (significando aqui uma masculinidade que lhe permite passar por heterosexual?) como “defesa”, inconsciente, porque nao pode reconhe- cer sua prépria homossexualidade (ou sera 0 analista que nado a reco- — nheceria, caso fosse sua?). Em outras palavras, 0 homossexual masculino chamaa sia retaliacao inconsciente, desejando e temendo as conseqiién- cias da castragao. O homossexual masculino nao “conhece” sua homos- sexualidade, ainda que Ferenczi e Riviere aparentemente a conhegam. — Porém, conhece Riviere a homossexualidade da mulher na mas- j carada que ela descreve? Quando se trata da contrapartida da analogia que ela mesma estabelece, a mulher que “deseja a masculinidade” s6_ € homossexual por sustentar uma identificagéo masculina, mas nao nos termos de uma orientagdo ou desejo sexual. Invocando mais uma vez a tipologia de Jones, como se fosse um escudo falico, ela formula. uma “defesa” que designa como assexual uma classe de homossexuais 84 PROBLEMAS DE GENERO ea ate como do tipo mascarado: “Seu primeiro gru- ¢ mulheres homossexuais que, emb: ai i outras mulheres, desejam o eee fee ‘nadhitieds pelos homens e afirmam ser iguais aos homens ou, em outras aie : homens elas Proprias.” (37) Como em Lacan, a lésbica é ese tae aqui como uma posicao assexual, uma posi¢ao que, a rigor, recusa sexualidade. Para completar a analogia anterior com Férencsi, dir- f oe eel descrigio Sra a “defesa” contra a evince aaa Na como sexualidade, todavia compreendi reflexa do “homem homossexual”, Connie ra hein cae ani ler essa descrigéo de uma homossexualidade feminina que nao nave ne ao desejo sexual por mulheres. Riviere queria que acreditassemos que essa curiosa anomalia tipolégica nao pode ser reduzida a homossexualidade ou heterossexualidade feminina recalcad: ovate se oculta nao € a sexualidade, mas 0 édio. sae siete aes possivel é que a mulher na mascarada deseja a nidade para entrar no discurso ptblico com homem, como parte de uma troca abe bent Wah ee, Porque essa troca masculina homoerética significaria a castracao, ela teme a mesma retaliagao que motiva as “defesas” do homem hie ; xual. Ora, talvez a feminilidade como mascarada deva desviar-se fe: Paige masculina — sendo esta a Pressuposi¢4o erética re die curso hegeménico, a “homo-sexualidade” que nos sugere Irigaray. E: qualquer caso, Riviere nos faria considerar que tais mulheres m: raid uma identificagao masculina nao para ocupar uma posigao na tines 6 sexual, mas, ao invés disso, para dar continuidade a uma rivalidade ates nao tem objeto sexual ou, pelo menos, que nao tem n um que el js pelo menos, qu hi que nao tem nenhum que ela c O texto de Riviere oferece uma maneira de reconsiderar a ques- tao: o que é mascarado pela mascarada? Numa fear chine marca seu. afastamento da anilise restrita demarcada pelo sistema fi a sificat6rio de Jones, ela sugere que a “mascarada” é mais do que a caracteristica do “tipo intermediério’ ue € central para toda “fe- 3 q ntral para toda “fe 85

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