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Revista da Foculdade de Lee sLINGUAS E LITERATURASs Port XVI, 2000. pp. 439-465 O CANTAR DE AMIGO GALEGO-PORTUGUES Notas sobre um estudo recente A poesia galego-portuguesa tem inicio, no contexto da Historia recente, com a descoberta e publicagaio do cancioneiro da Ajuda, por Charles Stuart, em 1823, , alguns anos depois, com a identificagdo dos apégrafos itilianos que actualmente se enconiram na Biblioteca Nacional de Lisboa e na Biblioteca Vaticana. Esta contido nestes dois ultimos tes- temunhos 0 espélio que mais interesse vird a suscitar — as “cantigas de amigo” —, prontamente dado a conhecer pelos pioneios dos estudos galego-portugueses !, Século ¢ meio é, assim, o lapso de tempo de que dispds a comuni- dade académica e cientifica para fixar e editar textos, conhecer-lhes 0s pro- cessos versificatérios e retéricos, apurar metodologias e terminologias de abordagem e interpretar os resultados. Feito um breve balango da ultima vertente dessa tarefa, algo se nos afigura prurbador e até dificilmente explicavel: 0 discurso que foi possivel elaborar sobre a “cantiga de amigo” galego-portuguesa nao variou muito ao longo dos tempos, sendo sistemati- camente minorita rias as vozes que quebraram 0 tom prevalecente, por sis- tema feito de nacionalismo exacerbado, de folclorismo acritico ¢ de con- servadorismo ético. “Lirismo burgués ¢ conservador”, chegou mesmo, algures a meio deste percurso, a classificar Rodrigues Lapa? as “cantigas de amigo”, num extremismo pouco prudente que, nem por ser demasiado contraditério com o que se conhecpia sobre os textos, deixou de permane- | Sobre este assunto, consultar D'HEUR, Jean-Marie — Troubadours d'Oc et Troubadours Galiciens-Portugais, Patis, 1973, pp. 7 seg. 2 Lara, Manuel Rodrigues — Das origens da poesia lirica em Portugal na Idade Média, Lisboa, 1929, p. 245. 459 JOSE CARLOS RIBEIRO MIRANDA cer como um eco que reaparece um pouco por tudo quanto se foi escre- vendo sobre o assunto. De facto, nfo ha manual de historia da literatura, ow até obra com Pretensdes cientificas mais profundas, que nao repita as estafadas ideias segundo as quais as personagens, jovens e femininas, que povoam as “can- tigas de amigo” so as ingénuas rapariguinhas do povo cujas venturas desventuras amorosas, ocorridas nas recénditas paisagens do noroeste peninsular, sobretudo da Galiza, os trovadores e jograis entenderam narrar, sem outro intuito que no fosse dar arte a vida, num pressuposto de since- ridade ¢ autenticidade que esteticamente se situara entre 0 neo-realismo italiano © 0 Pétio das Cantigas — se nos & permitida a generalizagao cari- catural Na realidade, entre as “teses” foleloricas dos que fazem de alguns trovadores ¢ jograis porta-vozes directos do povo ¢ as mais matizadas, que postulam a permanéncia de uma poesia tradicional, cujas raizes podem mergulhar no mundo mogérabe ou entio tomar outras direcgées, tendo depois servido de suporte subliminar aos mesmos trovadores ¢ jograis, ha apenas diferengas de tom e de énfase em torno de uma mesma atitude que consiste em nada querer inguirir e, logo, nada querer entender sobre a insergio, no seio da cultura trovadoresca onde se situam, das imagens femininas que ocorrem nas “cantigas de amigo”. Todavia, é também verdade que, mesmo sem pér em causa frontal- mente 0 ponto de vista folclorista/tradicionalista, foram surgindo, sobretudo em tempos mais recentes, alguns estudos que, estribados na vontade de ir 0 fundo das coisas, ajudaram a esclarecer aspectos que andavam escondi- dos debaixo desse mais do que centendrio “discurso académico oficial sobre as cantigas de amigo”. Referimo-nos essencialmente ao estudo introdutério de Poética y rea- lidad en el cancionero peninsular de la Edad Media, de Eugénio Asensio>, escrito nos anos cinquenta, € a colecténea comentada, com 0 titulo Do Cancioneiro de Amigo, dada a estampa nos anos setenta por Hélder Macedo © Stephen Reckert. Se o primeiro tentava relacionar alguns dos mais conhecidos temas ¢ motivos das “‘cantigas de amigo” com mitos ¢ rituais de profunda ressonancia antropolégica, tendo implicito que o subs- trato simbélico associado a essa dimensio facilmente poria em causa leitue ras de teor “realista” dessas composigdes, os segundos de tal modo esten- 3 Madrid, 1970 (2? ed,) 460 0 CANTAR DE AMIGO GALEGO-PORTUGLES deram os paralelos entre “cantigas de amigo” e textos da mais diversa pro- venincia que langaram as bases para uma abordagem sistemitica de teor antropologico, que reduzia significativamente 0 espago quer de especifici- dades nacionalistas ou regionalistas, quer de qualquer ética necessaria- mente anacrénica. Por ultimo, € de realgar a extrema importincia dos trabalhos de Anténio Resende de Oliveira, que culminaram com 0 livro Depois do Especticulo Trovadoresco, Lisboa, 1996, estudo que veio permitir avangos significativos na defini¢ao social, profissional e geogrifica dos autores respectivos textos, permitindo, nuns casos, apurar a respectiva contextuali- zagdo histérica e, noutros, pura e simplesmente fazer alguma luz onde s6 havia escuridao. E neste contexto que surge 0 ensaio de Maria do Rosério Ferreira, intitulado Aguas Doces, Aguas Salgadas. Da funcionalidade dos motivos agudticos na Cantiga de Amigo, Porto, 1999. Tendo como base uma tese de mestrado, compreende-se que tenha restringido o seu tema de um modo preciso: tratou-se de equacionar ¢ interpretar as “cantigas de amigo” em que esta presente 0 motivo aquitico, 0 que, de alguma forma, desfocou — como € reconhecido pela autora — um dos conjuntos mais vastos onde estas © outras composigies do espélio lirico galego-portugués se integram, ou seja, aquele onde avultam motivos naturalistas. Mas se esta restrigio do objecto de estudo é evidente, ndo cremos que seja motivadora de prejuizos significativos do ponto de vista da interpretago. Com efeito, esse grupo mais vasto poderia, por sua vez, ser facilmente entendido como uma parte de um outro conjunto, que & aquele cujas composigdes ostentam referén- cias ao exterior, qualquer que ele seja, 0 que nos transportaria obrigatoria- mente ainda para outra ordem de consideragdes, motivadas por uma severa, mas pertinente, alteragio do ponto de vista da abordagem, tomando © trabalho pesado ¢ quase enciclopédic A restrigdo temética acaba por se traduzir, assim, num processo de inegavel economia interpretativa. E que, como € bem sabido, o fundamen- tal da argumentagdo folclorista e tradicionalista aduzida em tomo da “can- tiga de amigo” fundamenta-se no limitado grupo de textos nos quais recorrente a referéncia a elementos da natureza, sendo que, no seio destes, ‘© motivo aquatico possui uma presenga esmagadora. Interpretar a funcio- nalidade dos elementos aquiticos ¢, assim, ir ao coragao das compos de tema naturalista, percebendo-Ihes a verdadeira especificidade, que se situa, em grande medida, no tratamento complexo do motivo central do encontro amoroso. 461 JOSE CARLOS RIBEIRO MIRANDA A primeira grande indicagdo sobre a pertinéncia deste tipo de abor- dagem resultou, desde logo, da “separagaio das Aguas” entre as que perten- em ao mar e as aguas de rio ou lago ou fonte, que revelou a existéncia de fronteiras insuspeitadas num universo aquatico que consensualmente se tinha por uno. De facto, os autores que fazem proliferar cendrios maritimos so essencialmente jograis, ou seja, profissionais do canto sem linhagem aristocritica, maioritariamente galegos e, pese embora a dificuldade em colocé-los cronologicamente com seguranga, pertencentes a gerago de meados do século XIII ¢ a geragdo seguinte, sendo poucos os que possui- Ho uma cronologia mais adiantada. Fica em suspenso a averiguagdo do Fespectivo trajecto, ou seja, em que meios exerceram 0 mester poético- musical, Por outro lado, os autores que dedicaram atengfo as aguas de fontes, lagos € rios, ou seja a égua doce, tm uma especial incidéncia trovado- resca — isto é, pertencem a linhagens conhecidas —, sendo possivel ras- trear, entre os que ndo so trovadores, uma cultura de raiz clerical, aspecto que, como veremos, se poderd prestar a mais desenvolvimentos interpreta- tivos do que os que sto sugeridos. © que se tora muito relevante no trabalho de Maria do Rosério Ferreira nio é, todavia, este rastreio objectivo, que se traduz para a autora num dado mais no conjunto daqueles que maneja, mas sim a capacidade de mostrar a coeréncia significativa, a partir da combinatoria de informa- Ges diversas, decorrentes de metodologias, de areas do saber e de pontos de vista auténomos, dos objectos literérios com que lida.. Vejamos: € visivel desde as primeiras linhas que a autora sente parti- culares afinidades com a tradigio hermenéutica que de Jung se estende a Bachelard ¢ a Durand, cruzando-se inevitavelmente com a historia compa- rada das religdes em nomes como Eliade ¢ Dumézil, entre outros, 0 que levaria a supor que entrariamos num percurso discursive em que os textos facilmente se torariam em motivos de evocagao dos arcanos do incons- ciente, Pura ilusio! De facto, aquilo que de mais notével, neste dominio, a autora enten- deu ser possivel tornar operative no quadro da interpretagao do imaginério trovadoresco galego-portugués foi, sem divida, a imagem complexa da Jada na fonte, recentemente estudada por alguns autores, entre os quais se conta Pierre Gallais*, Tal imagem, fecundadora dos encontros amorosos 4 Ver Gattats, Pierre — La Fée d.la Fontaine et @ l’Arbre, Amsterdam-AVtalanta, 1992, 462 0 CANTAR DE AMIGO GALEGO-PORTUGUES em local ermo, cujo caricter actuante facilmente se reconhece no género pan-europeu da pastorela, é, todavia, identificada na tensio resultante do seu caracter matricial ¢ intrinseco — uma solicitagdo pulsional langada ao homem, neste caso ao cavaleiro, para 0 exterior nfo-social — em con- fronto directo com 0 sentido socialmente integrador, caracteristico da cul- tura trovadoresca, que leva o elemento masculino a situar-se prudente- mente numa posig&o de contengio € de reserva face as investidas da fada, Este conflito constitui também a explicagdo diltima para a to escassa pre: senga, afinal, na poesia trovadoresea galego-portuguesa desta figura femi- nina e dos cendrios aquéticos e primaveris que normalmente a rodeiam. Esta problematica €, alids, parte imprescindivel da abordagem do cancioneiro de Pero Meogo, verdadeiro xadrés de imagens-argumento em tomo da relagdo entre o amigo-cavaleiro e a amiga-fada, no qual a compa- réncia da figura do cervo purificador dos Bestidrios — ¢ do Salmo 42... — acaba por ser 0 elemento que confere viabilidade ao encontro amoroso, compatibilizando-o com as exigéncias mais profundas da ordem cortés. E aliés, em torno da extrema complexidade destes textos ¢ do tipo de cultura revelada no apenas pelo jogral Pero Meogo, mas também pelo circulo ao qual os dirigiu, que a autora é levada a tentar perceber de quem se trata afinal, investindo sem reservas pelos dominios da Histéria pura e dura, como noutros pontos o faz relativamente 4 disciplina filologica, sugerindo alguma e valiosas leituras para os textos que vai frequentando. A possibilidade que enuncia — estariamos perante alguém (um monge?) ligado 4 Ordem que tinha como emblema exactamente um cervo bebendo numa fonte, ou seja, os Trinitérios —, constitui uma proposta que, se no foi ainda possivel confirmar, dada a escassez de documentos que se conservam para essa Ordem durante 0 Séc. XIII, parece ser contudo a mais bem construida hipétese identificativa que foi até agora adiantada para este jogral Mas seria mesmo um “Jogral"? Do ponto de vista social, nao parece haver dividas, até pela colocagdo que possui' nos cancioneiros. Mas reve- lard uma cultura tipicamente jogralesca, partindo do principio que tal exis- tiu no contexto galego-portugués? Talvez um breve olhar sobre 0 outro sector, © dos cantores do mar, nos possa ministrar alguns dados mais que permitam melhor compreender esta questio. Na auséncia manifesta de densidade simbélica profunda associada ao mar no mundo cultural conhecido, M. R. Ferreira teve de proceder de outro modo perante 0 pequeno niicleo de poetas — estamos perante os Cangas, Treez, Meedinho, Codax, Zorro e poucos mais — que nele cen- 463 JOSE CARLOS RIBEIRO MIRANDA {raram aspectos significativos dos respectivos textos. A opgdo foi por um procedimento légico que consistiu em avaliar como teria sido possivel transitar de formas menos elaboradas para formas mais complexas da im: gética maritima, postulando em seguida que o mais provavel era que as rimeiras tivessem correspondido aos textos mais antigos as tltimas, aos de cronologia mais recente, Em todos, porém, se tornava perceptivel um processo poético que consistia naquilo que designou como animismo projective ¢ que se opunha de forma declarada ao modo como se construiam e funcionavam significa- tivamente as imagens do locus amoenus ¢ da agua doce. Ou seja, enquanto estas iiltimas o cendrio, com o seu simbolismo imanente, condicionava as Personagens, torando-as parte de um todo e diluindo a sua individuali- dade, as imagens maritimas agiam como um poderoso amplificador do sujeito, ambiguamente feminino ou masculino, conforme 0 texto conside- Fado, no possuindo valor nem densidade fora dessa relagdo projectiva. Por que terdo sido essencialmente os jograis galegos a usar este fildo poético, {Go insdlito € modemo para a época, é algo que mantém em suspenso para futuros inquéritos, embora va deixando algumas pistas que permite for- mular j4 algumas hipoteses. Para nés torna-se particularmente importante verificar que esta cons- ‘rugdo imagética, a0 mesmo tempo que contribui para emancipar a relagdo amorosa do mundo social — a autora coloca as imagens maritimas como uma extenso do tema da romaria que, por sua vez, & um primeiro passo dessa deslocagio da relagdo amorosa para os limites do circulo da sociabi lidade —, sobrevaloriza a subjectividade a ponto de nela fazer participar a Unica natureza visivel — 0 mar. Logo, deve ser entendida como continua- € aprofundamento dos files trovadorescos que propuseram uma menor adesio, ou mesmo formas de subversio, dos cédigos da cortesia e da vas- salagem amorosa, esses sim, limitadores dos impulsos ¢ do raio de acgao \dividuais, quer dos elementos masculinos quer dos femininos.. © que dizemos poe uma vez mais em questio a dimensio jogralesca destas imagens e deste fazet postico, Nao é por estarmos perante jograis que revelaram formas menos canénicas de interiorizagao da normatividade trovadoresca que, ainda aqui, toparemos com uma cultura que especifica- mente Ihes pertencia. A constestagdo da ortodoxia cortés nem por isso deixa de ser igualmente cortés. Por outro lado, as marcas de uma cultura prestigiada, obrigatoria- mente identificadora de meios de elite, ndo deixam igualmente de estar 464 0 CANTAR DE AMIGO GALEGO-PORTUGUES presentes nos textos destes jograis. E que 0 mar de Meendinho, com o seu quadro de naufrigio iminente, com as suas ondas ¢ os pedidos de auxilio entre 0 patético e 0 resignado, esté todo ele — como apontou ha anos Deyermond 5 para, inexplicavelmente, desaproveitar, logo de seguida, a sua extraordinaria intuigao — no Salmo 68 que, ainda por cima, andava na hagiografia associado a figura de S. Simao, o Apéstolo, protector seguro dos néufragos mbora nao pretendendo estender aqui mais 0 comentirio do texto de Meendinho, tarefa que a autora promete voltar em breve, sempre adian- taremos que, tal como sucedia em Meogo, também por tris das imagens maritimas presentes no Sedia-m'eu na ermida de S. Simion surpreendemos, para além da inegavel presenga da figura opaca e imprecisa do jogral, as contradigées internas da aristocritica cultura trovadoresca ¢, bem mais a0 fundo, a cultura latina nas suas vertentes bibli € hagiografica, universo prestigiado de quem quer que, nesta época, se abalangasse ao cultivo da palavra e da misica “Ver melhor” constitui um dos mais permanentes motivos da litera- tura medieval. Foi mediante a expresso desse desejo que Galvdo iniciou a busca do Santo Graal, E em quantos dos cantares trovadorescos galego- portugueses nao se esgota a acgGo enunciada no simples desejo de “ver mais perto”, de “ver melhor” o objecto apetecido? Na nossa opinidio, nfio deve ser outra a atitude do estudioso actual perante to longinquos textos, € por vezes to impenetraveis, como sto 0s dos nossos trovadores € jograis, num permanente trabalho de clarificagdo que nao se compadece com apriorismos marcadamente ideoligicos. E com abordagens serenas, mas criticas e informadas, como a que se nos apresenta nestas Aguas Doces, Aguas Salgadas, que sera possivel abrir caminho nesse sentido. José Carlos Ribeiro Miranda 5 DevERMOND, Alan — “Old Testament Elements in two Cantigas de Amigo”, in Studies in Portuguese Literature and History in Honor of Luis de Sousa Rebelo, Londres, 1992, pp. 21/28, 465

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