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PRINCIPIOS, DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS Titulo I da Constituig&o brasileira de 1988, composto por quatro artigos, & dedicado aos denominados “principios fandamentais” do Estado brasileiro. O nosso constituinte utilizou essa expresso genérica para traduzir a ideia de que nesses primeiros quatro artigos jA se estabelecem a forma do nosso Estado e de seu govern, proclama-se o regime politico democratic fundado na soberania popular e institui-se a garantia da separagao de fungdes entre os poderes. Também neles encontram-se os valores e os fins mais gerais orientadores de nosso ordenamento constitucional, funcionando como dire- trizes para todos os érgdos mediante os quais atuam os poderes constituidos. O art. 1.° da Constituigao, em seu caput, resume a um sé tempo, em uma mica sentenga, as caracteristicas mais essenciais do Estado brasileiro: trata-se de uma federagao (forma de Estado), de uma epublica (forma de governo), que adota o regime politico democratico (traz insita a ideia de soberania as- sentada no povo); constitui, ademais, um Estado de Direito (implica a nogdo de limitagiio do poder e de garantia de direitos fundamentais aos particulares). Todas essas nogées nucleares acerca da estrutura do Estado e do fun- cionamento do poder politico encontram-se assim sintetizadas (grifamos): Art. 1.° A Republica Federativa do Brasil, formada pela unifio indissoltivel dos Estados e Municipios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democratico de Direito... 88 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO + Vicente Paulo & Marcelo Alexandrina Pardgrafo ‘nico. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituigao. ‘A forma de Estado adotada no Brasil é a de uma federagio, o que significa a coexisténcia, no mesmo territério, de unidades dotadas de autono- mia politica, que possuem competéncias proprias discriminadas diretamente no texto constitucional. A Federacao brasileira € composta pela Unitio, estados-membros, Dis- tito Federal e municipios (CF, art. 1° e art. 18). Todos eles sio pessoas juridicas de direito piblico auténomas e encontram-se sujeitos ao principio da indissolubilidade do vinculo federative (nao existe em nosso Pais o direito de secessio). Essas pessoas politicas descentralizadas possuem poder de auto-orga- nizago, competéncias legislativas e administrativas e autonomia financeira (tém competéncias tributérias prdprias), Além disso, os estados ¢ 0 Distrito Federal so representados no érgio formador da vontade politica geral do Estado (tém representago no Congresso Nacional — CF, art. 46) e podem propor emendas a Constituigdo (CF, art. 60, HI). Deve-se anotar, por fim, que a forma federativa de Estado é, no Brasil, cliusula pétrea, no podendo ser nem mesmo objeto de deliberagao qualquer proposta de emenda constitucional tendente a aboli-la (CF, art. 60, § 4.°, 1). © Brasil é uma repiiblica, Essa é a forma de governo adotada em nosso Pais desde 15 de novembro de 1889, consagrada na Constituigaio de 1891 e em todas as Constituigdes subsequentes. ‘A Constituigio de 1988 nfo erigiu a forma republicana de governo ao status de cléusula pétrea. Entretanto, 0 desrespeito ao principio republicano pelos estados-membros ou pelo Distrito Federal constitui motivo ensejador de medida drastica: a intervengao federal (art. 34, VII, “a”). O conceito de forma de governo relaciona-se 4 maneira como se dé a instituigo do poder na sociedade e como se dé a relagdo entre governantes governados. O intuito do conceito 6, portanto, estabelecer quem deve exercer 0 poder e como este se exerce. A mais notéria caracteristica formal das repiblicas é a necessidade de alternancia no poder. Entretanto, como assinala a mais abalizada doutrina, nfo suficiente essa formalidade para que tenhamos uma re- piblica em seu sentido mais nobre, de “coisa publica”. O conceito de reptiblica, hoje, encontra-se irremediavelmente imbricado com o principio democratico ¢ com o principio da igualdade (auséncia de privilégios em razio de estirpe). Cap. 3 + PRINCIPIOS, DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS 389 Em suma, a repiblica é a forma de governo fundada na igualdade ju- ridica das pessoas, em que os detentores do poder politico exercem-no em carater eletivo, representativo, transitério e com responsabilidade. Quanto ao regime politico, 0 caput do art. 1.° da Constituigao afirma que o Brasil constitui-se em Estado Democratico de Direito. Em suas ori- gens, 0 conceito de “Estado de Direito” estava ligado tio somente 4 ideia de limitag%io do poder e sujeicao do governo a leis gerais e abstratas. A nocdo de “Estado democratico” é posterior, e relaciona-se a necessidade de que seja assegurada a participagéio popular no exercicio do poder, que deve, ademais, ter por fim a obtengfio de uma igualdade material entre os individuos. Atualmente, a concepgdo de “Estado de Direito” é indissocidvel do conceito de “Estado Democratico”, 0 que faz com que a expresso “Estado Democratico de Direito” traduza a ideia de um Estado em que todas as pes- soas e todos os poderes esto sujeitos ao império da lei e do Direito e no qual os poderes publicos sejam exercidos por representantes do povo visando a assegurar a todos uma igualdade material (condigdes materiais minimas necessdrias a uma existéncia digna). Reforga o principio democratico o pardgrafo tnico do art. 1.° da CF/1988, ao declarar que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituigao”. Democracia, na célebre conceituagéio de Lincoln, é 0 governo do povo, pelo povo e para o povo. Tradicionalmente, identificam-se como elementos essenciais do regime democratico: o principio da maioria, o principio da liberdade e o principio da igualdade. O pardgrafo tnico do art. 1.° da Carta da Repiblica permite concluir que em nosso Estado vigora a denominada democracia semidireta, ou participa- tiva, na qual séo conjugados o principio representativo com os institutos da democracia direta (plebiscito, referendo, iniciativa popular). O art. 1.° da Constituigao de 1988, a par de estabelecer a forma do Es- tado brasileiro (federag&o), a forma de seu governo (repiiblica) e o regime de governo (democracia participativa fundada na soberania popular), enumera, em seus cinco incisos, os valores maiores que orientam nosso Estado. O constituinte denominou esses valores mais gerais de “fundamentos da Repiblica Federativa do Brasil”, exatamente para transmitir a nogaio de alicerces, de vigas mestras de nossa ordenagio politico-juridica. Os fundamentos da Repiblica Federativa do Brasil sao: (1) a soberania; (2) a cidadania; (3) a dignidade da pessoa humana; (4) os valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa; e (5) o pluralismo politico. A soberania significa que 0 poder do Estado brasileiro, na ordem in- tera, é superior a todas as demais manifestagdes de poder, nfo é superado 30 DIREITO CONSTITUGIONAL DESCOMPLICADO « Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino por nenhuma outra forma de poder, ao passo que, em Ambito internacional, encontra-se em igualdade com os demais Estados independentes. Ao algar a cidadania a fundamento de nosso Estado, o constituinte esta utilizando essa expressdo em sentido abrangente, e nao apenas técnico-juridico. Nio se satisfaz a cidadania aqui enunciada com a simples atribuigiio formal de direitos politicos ativos e passivos aos brasileiros que atendam aos requi- sitos legais. E necessdrio que o Poder Pitblico atue, concretamente, a fim de incentivar e oferecer condigdes propicias a efetiva participac&o politica dos individuos na condugiio dos negécios do Estado, fazendo valer seus direitos, controlando os atos dos érgios pliblicos, cobrando de seus representantes o cumprimento de compromissos assumidos em campanha eleitoral, enfim, assegurando e oferecendo condigées materiais para a integracao irrestrita do individuo na sociedade politica organizada. A dignidade da pessoa humana como fundamento da Republica Fede- rativa do Brasil consagra, desde logo, nosso Estado como uma organizagiio centrada no ser humano, e nao em qualquer outro referencial. A razao de ser do Estado brasileiro nao se funda na propriedade, em classes, em corpora- gdes, em organizagdes religiosas, tampouco no proprio Estado (como ocorre nos regimes totalitarios), mas sim na pessoa humana. Sao varios os valores constitucionais que decorrem diretamente da ideia de dignidade humana, tais como, dentre outros, o direito a vida, 4 intimidade, 4 honra e 4 imagem. A dignidade da pessoa humana assenta-se no reconhecimento de duas posigdes juridicas ao individuo. De um lado, apresenta-se como um direito de protegao individual, nao sé em relago ao Estado, mas, também, frente aos demais individuos. De outro, constitui dever fundamental de tratamento igualitaério dos préprios semelhantes. E fundamento do nosso Estado, ainda, o valor social do trabalho e da livre-iniciativa. Assim dispondo, nosso constituinte configura o Brasil como um Estado obrigatoriamente capitalista e, ao mesmo tempo, assegura que, nas relagdes entre capital e trabalho sera reconhecido o valor social deste iiltimo. No art. 170, a Constituigiio reforga esse fundamento, ao estatuir que “a ordem econémica, fundada na valorizagao do trabalho humano e na livre-iniciativa, tem por fim assegurar a todos existéncia digna, conforme os ditames da justiga social”. Por tiltimo, nossa Carta arvora o pluralismo politico em fundamento da Reptblica Federativa do Brasil, implicando que nossa sociedade deve reco- nhecer ¢ garantir a inclusdo, nos processos de formagao da vontade geral, das diversas correntes de pensamento e grupos representantes de interesses existentes no seio do corpo comunitério. O art. 2.° da Constituig&io de 1988 define como Poderes da Reptiblica Federativa do Brasil, independentes e harménicos entre si, 0 Legislativo, o Cap. 3+ PRINCIPIOS, DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS 91 Executivo e 0 Judicidrio. Esse artigo consagra o principio da separacao dos Poderes, ou principio da divisiéo funcional do poder do Estado. O critério de divisio funcional consiste em atribuir a érgaos indepen- dentes entre si o exercicio precipuo das fungées estatais essenciais. Assim, ao Poder Executivo incumbe, tipicamente, exercer as fungdes de Governo e Administragao (execugao nao contenciosa das leis); ao Poder Legislativo cabe precipuamente a élaborag&o das leis (atos normativos primérios); ao Poder Tudiciério atribui-se, como funcao tipica, o exercicio da jurisdicfio (dizer o direito aplicavel aos casos concretos, na hipétese de litigio). Além dos fundamentos da Republica Federativa do Brasil, o constituinte de 1988 explicitou, no art. 3.° de nossa Carta Politica, objetivos fundamen- tais a serem perseguidos pelo Estado Brasileiro. Os objetivos fundamentais do Estado brasileiro arrolados no art. 3.° da Constituigao sio: E ; I : E E F i I i 1 — construir uma sociedade livre, justa e solidéria; 11 — garantir 0 desenvolvimento nacional; III ~ erradicar a pobreza e a marginalizagio e reduzir as desi- gualdades sociais ¢ regionais; IV — promover 0 bem de todos, sem preconceitos de origem, Taga, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminacao. Constata-se que esses objetivos tm em comum assegurar a igualdade material entre os brasileiros, possibilitando a todos iguais oportunidades para alcancar o pleno desenvolvimento de sua personalidade, bem como para autodeterminar e lograr atingir suas aspiragdes materiais e espirituais, condizentes com a dignidade inerente a sua condigdo humana. O art. 4.°, que finaliza o Titulo I da Constituigio de 1988, enumera dez principios fundamentais orientadores das relagées do Brasil na ordem internacional. E esta a sua redaciio: Art. 4° A Repiblica Federativa do Brasil rege-se nas suas relagdes internacionais pelos seguintes princfpios: 1 — independéncia nacional; II — prevaléncia dos direitos humanos; III = autodeterminagao dos povos; IV — nfo intervengao; V — igualdade entre os Estados; ‘VI — defesa da paz; ‘VII — solugao pacifica dos conflitos; 92 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO = Vicente Paulo & Marcelo Alexandrina VIII — repidio ao terrorismo e ao racismo; TX — cooperagao entre os povos para o progresso da humanidade; X - concessao de asilo politico. Pardgrafo tmico. A Repiblica Federativa do Brasil buscaré a integrago econdmica, politica, social e cultural dos povos da América Latina, visando 4 formagao de uma comunidade latino- -americana de nagdes. De um modo geral, esses principios consubstanciam 0 reconhecimento da soberania, no plano internacional, como elemento igualador dos Estados, além de reconhecer, também nesse 4mbito, 0 ser humano como centro das preocupagées da nossa Repiblica. Assim, reforga-se a independéncia nacional como principio (art. 4.°, D, que nada mais é do que a manifestagiio da soberania na ordem internacional. Como corolério, tem-se a igualdade entre os Estados (art. 4.°, V), consa- gragao do principio da nao subordinagao no plano internacional. Trata-se, aqui, de uma igualdade formal, essencialmente juridica, uma vez que na esfera econémica sto absurdamente desiguais as condigdes existentes entre os Estados. De toda sorte, uma nog&o de busca de igualdade material se manifesta no principio da colaborag4o entre os Estados. A Constituigio de 1988 agrega ao principio da colaboragdo o fim a ser perseguido mediante essa cooperagiio mitua, qual seja, o progresso da humanidade (cooperagao entre os povos para 0 progresso da humanidade ~ art. 4.°, IX). O principio da no intervengao (art. 4.°, IV), e seu correlato, a auto- determinaciio dos povos (art. 4.°, IM), também tém origem no reconheci- mento da igualdade entre os Estados. Respeita-se a soberania de cada um, assegurando-se que, no ambito interno, os Estados nfio devem softer ingerén- cia na condugio de seus assuntos. Vale lembrar que no existem principios absolutos, devendo sua convivéncia seguir a légica da ponderaciio. Assim, © inciso II do art. 4.° enuncia como principio fundamental internacional a prevaléncia dos direitos humanos, o que, em casos extremos de afronta a esses direitos por um Estado, pode levar o Brasil a apoiar a interferéncia de outros Estados naquele, a fim de impedir a continuagiio de situagdes de profunda degradagao da dignidade humana. Nesses casos, de que so inime- ros os exemplos concretamente ocorridos, os direitos humanos prevalecem A propria soberania. Na esteira da prevaléncia dos direitos humanos, o constituinte consignou ainda como principios de nosso Estado na ordem internacional o repidio ao terrorismo e ao racismo (art. 4.°, VIII) e a concessao de asilo politico (art. 4.°, X) a quem esteja sendo perseguido, em outro Estado, por motivos politicos ou de opiniao. Cap. 3+ PRINCIPIOS, DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS 93 Sao, por ultimo, prinefpios internacionais, que se complementam, a de- fesa da paz (art. 4.°, VI) ¢ a solugio pacifica dos conflitos (art. 4.°, VII). Ao lado dos dez prineipios que regem as relagdes do Estado brasileiro na ordem internacional, o pardgrafo tmico do art, 4.° enuncia um objetivo a ser perseguido pelo Brasil no plano internacional: a integragdo econémica, politica, social e cultural dos povos da América Latina, visando formagao de uma comunidade latino-americana de nagdes. Be) Wel 57.1 8 O Titulo II da Constituigaio de 1988 trata, em cinco capitulos (arts. 5.° a 17), dos “Direitos e Garantias Fundamentais” assegurados em nossa Federagao pelo nosso ordenamento juridico. As diferentes categorias de direitos funda- mentais foram assim agrupadas: direitos individuais e coletivos (Capitulo 1), direitos sociais (Capitulo M1), direitos de nacionalidade (Capitulo Il), direitos politicos (Capitulo IV) e direitos relacionados A participagao em partidos politicos e a sua existéncia e organizag&o (Capitulo V). Antes de adentrarmos o estudo especifico dos direitos ¢ garantias fun- damentais discriminados no texto constitucional, € importante esbogarmos algumas nogGes gerais acerca da origem, evolucdo e regime juridico desses direitos e garantias. eek Origem Alguns autores apontam como marco inicial dos direitos fandamentais a Magna Carta inglesa (1215). Os direitos ali estabelecidos, entretanto, nfo visavam a garantir uma esfera irredutivel de liberdades aos individuos em geral, mas sim, essencialmente, a assegurar poder politico aos barées mediante a limitagdo dos poderes do rei. Constitucionalista J. J. Gomes Canotilho ensina que a positivacao dos direitos fundamentais deu-se a partir da Revolugaio Francesa, com a Decla- ragao dos Direitos do Homem (Déclaration dés Droits de I'Homme et du Citoyen, em 1789), e das declaragées de direitos formuladas pelos Estados Americanos, ao firmarem sua independéncia em relac&o a Inglaterra (Virginia Bill of Rights, em 1776), Originam-se, assim, as Constituigdes liberais dos Estados ocidentais dos séculos XVII ¢ XIX. Os primeiros direitos fundamentais tém 0 seu surgimento ligado 4 ne- cessidade de sé impor limites e controles aos atos praticados pelo Estado e suas autoridades constituidas. Nasceram, pois, como uma protegao a liberdade 94 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO « Vicente Paulo & Marcelo Alexandrina do individuo frente A ingeréncia abusiva do Estado. Por esse motivo — por exigirem uma absteng&io, um nao fazer do Estado em respeito a liberdade individual — sio denominados direitos negativos, liberdades negativas, ou direitos de defesa, Em suma, os direitos fundamentais surgiram como normas que visavam a restringir a atuacao do Estado, exigindo deste um comportamento omis- sivo (absteng&o) em favor da liberdade do individuo, ampliando o dominio da autonomia individual frente & ago estatal. Somente no século XX, com o reconhecimento dos direitos fandamentais de segunda dimens&o — direitos sociais, culturais e econémicos —, os direi- tos fundamentais passaram a ter feigio positiva, isto é, passaram a exigir, também, a atuago comissiva do Estado, prestagées estatais em favor do bem-estar do individuo. 2.2. Os quatro status de Jelinek Os direitos fundamentais desempenham as mais variadas fungGes na or- dem juridica, a depender do seu campo especifico de protegaio. Com efeito, os direitos fundamentais ora asseguram aos individuos 0 direito de defesa frente 4 ingeréncia abusiva do Estado, ora legitimam a exigéncia de atuagio positiva do Estado e, ainda, podem assegurar ao individuo o chamado direito de participagao. Com o fim de auxiliar na compreensio do contetido e alcance dos direi- tos fundamentais, tendo em conta o papel por eles desempenhado na ordem juridica, o Professor alemao Georg Jellinek desenvolveu, no final do século XIX, a doutrina dos quatro status em que o individuo pode encontrar-se diante do Estado. Sao eles: status passivo, status negativo, status positivo € status ativo. Temos 0 status passivo (ou status subjectionis), quando o individuo encontra-se em posicdo de subordinacao aos poderes publicos, caracterizando- -se como detentor de deveres para com o Estado; nessa situag%o, 0 Estado pode obrigar o individuo, mediante mandamentos e proibicées. Em outras situagdes, reconhece-se que o individuo, possuidor de perso- nalidade, tem o direito de desfrutar de um espago de liberdade com relagao a ingeréncias dos Poderes Piiblicos. Enfim, faz-se necessério que o Estado no tenha ingeréncia na autodeterminagao do individuo, que tem dircito a gozar de algum Ambito de agio desvencilhado da ingeréncia estatal. Temos, nessa situago, o status negativo, O status positivo (ou status civitatis) esta presente naquelas situagdes em que 0 individuo tem o direito de exigir do Estado que atue positivamente em seu favor, que realize prestagdes, ofertando servigos ou bens. | | : i | ' ' Cap. 3 + PRINCIPIOS, DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS 95 Por fim, Jellinek aponta o status ativo, em que o individuo desfruta de competéncias para influir sobre a formagao da vontade estatal, correspondendo essa posiciio ao exercicio dos direitos politicos, manifestados, especialmente, por meio do voto. Subordinagao aos poderes publicc PASSIVO a deveres fundamentai {~~ Necatvo | Autodeterminagao do individuo; nao ingerén- cia do Estado. STATUS DE JELLINEK POSITIVo Exigéncia de aluagao positiva do Estado. avs Exercicio dos direitos politicos; participagao na formagSio da vontade estatal. 2.3. Distingdo entre direitos humanos e direitos fundamentais Embora as expressdes direitos humanos e direitos fundamentais sejam comumente utilizadas com idéntico significado, ha um tra¢o distintivo entre elas. A expressio direitos humanos é reservada para aquelas reivindicagdes de perene respeito a certas posigdes essenciais a0 homem. Sao direitos postulados em bases jusnaturalistas, possuem indole filoséfica e nao tém como caracteristica basica a positivaciio numa ordem juridica particular. Essa expressfio 6 empregada, também, para designar pretenses de respeito A pessoa humana, inseridas em documentos de direito internacional. Jaa expresso direitos fundamentais é utilizada para designar os direitos relacionados as pessoas, inscritos em textos normativos de cada Estado. Sao direitos que vigoram numa determinada ordem juridica, sendo, por isso, garantidos e limitados no espago e no tempo, pois sto assegurados na medida em que cada Estado os estabelece. Enfim, a expresso “direitos humanos” ¢ utilizada para designar direi- tos pertencentes ao homem, universalmente considerado, sem referéncia a determinado ordenamento juridico ou limitagao geografica. J4 os direitos fundamentais so aqueles reconhecidos como tais em determinado orde- namento juridico, de certo Estado. 2.4, Distingao entre direitos e garantias A doutrina diferencia direitos fundamentais de garantias fundamentais. Os direitos fundamentais sao os bens em si mesmo considerados, de- clarados como tais nos textos constitucionais. 96 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO + Vicente Paulo & Marcelo Alexandrina As garantias fundamentais sdo estabelecidas pelo texto constitucional como instrumentos de proteciio dos direitos fundamentais. As garantias pos- sibilitam que os individuos fagam valer, frente ao Estado, os seus direitos fundamentais. Assim, ao direito 4 vida corresponde a garantia de vedagao & pena de morte; ao direito a liberdade de locomocio corresponde a garantia do habeas corpus; ao direito a liberdade de manifestago do pensamento, a garantia da proibig&o da censura etc. Enfim, os direitos fundamentais s4o bens juridicos em si mesmos considerados, conferidos 4s pessoas pelo texto constitucional, enquanto as garantias so os instrumentos por meio dos quais é assegurado o exercicio desses direitos, bem como a devida reparagdo, nos casos de violacao. En- quanto aqueles nos asseguram direitos, as garantias conferem protecéo a esses direitos nos casos de eventual violacio. 2.5. Caracteristicas O Professor Alexandre de Moraes sintetiza como principais caracteristicas dos direitos fundamentais as seguintes: a) imprescritibilidade (os direitos fundamentais nfio desaparecem pelo decurso do tempo); b) imalienabilidade (nao ha possibilidade de transferéncia dos direitos funda- mentais a outrem); ©) irrenunciabilidade (em regra, os direitos fundamentais nao podem ser objeto de rentincia); 4) inviolabilidade (impossibilidade de sua no observancia por disposigdes infraconstitucionais ou por atos das autoridades piiblicas); ©) universalidade (devem abranger todos os individuos, independentemente de sua nacionalidade, sexo, raga, credo ou convicco politico-filosétfica); f) efetividade (a atuagao do Poder Piiblico deve ter por escopo garantir a efetivagio dos direitos fundamentais); 2) interdependéncia (as varias previsdes constitucionais, apesar de auténomas, possuem diversas intersecgdes para atingirem suas finalidades; assim, a li- berdade de locomogiio est intimamente ligada a garantia do habeas corpus, bem como a previsio de prisfio somente por flagrante delito ou por ordem da autoridade judicial); Cap. 3 + PRINCIPIOS, DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS 97 h) complementaridade (os direitos fundamentais nio devem ser interpretados isoladamente, mas sim de forma conjunta com a finalidade de alcancar os objetivos previstos pelo legislador constituinte); i) relatividade ou limitabilidade (os direitos fundamentais nflo tém natureza absoluta). Para mais dessas caracteristicas, deve-se registrar que Canotilho enfatiza © fato de serem os direitos fundamentais normas abertas (principio da nao tipicidade dos direitos fundamentais), 0 que permite que se insiram novos direitos, nao previstos pelo constituinte por ocasiao da elaboracéo do Texto Maior, no Ambito de direitos ja existentes. Enfim, deve-se entender que nfo existe uma lista taxativa de direitos fundamentais, constituindo eles um conjunto aberto, dinamico, mutavel no tempo. Essa caracteristica dos direitos fundamentais encontra-se expressa no § 2.° do art. 5.° da CF/1988, nos termos seguintes: “os direitos e garan- tias expressos nesta Constituigéio nfo excluem outros decorrentes do regime e dos principios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a Republica Federativa do Brasil seja parte”. 2.6. Dimensées objetiva e subjetiva Os direitos fimdamentais podem ser enxergados a partir de duas pers- pectivas: subjetiva ¢ objetiva. A primeira dimensio é a subjetiva, relativa aos sujeitos da relagdo ju- ridica. Diz respeito aos direitos de proteciio (negativos) e de exigéncia de prestaco (positives) por parte do individuo em face do Poder Publico. A segunda dimensio é a objetiva, em que os direitos fundamentais ‘so compreendidos também como o conjunto de valores objetivos basicos de conformag&o do Estado Democritico de Direito. Nessa perspectiva (objetiva), eles estabelecem diretrizes para a atuagio dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciério e, ainda, para as relagdes entre particulares. Essa altima feigdo (objetiva) é também denominada eficdcia irradian- te dos direitos fundamentais, vale dizer, 0 efeito irradiante dos direitos fundamentais decorre da dimenso objetiva — capacidade que eles tém de alcangar os poderes piblicos e orientar o exercicio de suas atividades principais. 98 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO © Vicente Paulo & Marcelo Alexandrina Em outras palavras: como consequéncia de sua dimensio objetiva, os direitos fundamentais conformam o comportamento do Poder Publico, criando para o Estado um dever de protegdo desses direitos contra agressdes (advindas do proprio Estado ou de particulares); enfim, a feigo objetiva obriga o Estado a adotar medidas que, efetivamente, promovam e protejam os direitos fundamentais. Examinemos, com um exemplo, a presenca dessas duas dimensdes. Quando a Constituicaio Federal estabelece que o Estado prestara assisténcia juridica inte- gral e gratuita aos que comprovarem insuficiéncia de recursos (art. 5.°, LXXTV), identificamos, de pronto, um direito subjetive 4 exigéncia de tal prestago — 0 necessitado poderd exigir do Poder Publico tal assisténcia juridica integral e gratuita —, mas também uma vertente objetiva — que impde ao Estado o dever de implementar medidas que fagam valer esse direito fundamental, tais como a criag&o e a estruturagdo de uma Defensoria Piblica efetiva. Em suma, numa perspectiva subjetiva, os direitos fundamentais possi- bilitam ao individuo (sujeito) obter do Estado a satisfacao de seus interesses juridicamente protegidos; j4 na perspectiva objetiva, os direitos fundamentais sintetizam os valores basicos da sociedade e seus efeitos irradiam-se por todo o ordenamento juridico, alcangando e direcionando a atuacao dos érgiios estatais. 2.7. Classificagdo Os direitos fundamentais sfio tradicionalmente clasificados em geragdes (ou dimensées), levando-se em conta 0 momento de seu surgimento e reco- nhecimento pelos ordenamentos constitucionais. Os direitos de primeira geragao realgam o principio da liberdade. Sao os direitos civis e politicos, reconhecidos nas Revolugdes Francesa e Americana. Caracterizam-se por impor ao Estado um dever de abstengio, de nao fazer, de nao interferéncia, de nfo intromisso no espago de autodeterminagao de cada individuo. Sao as chamadas liberdades individuais, que tm como foco a liberdade do homem individualmente considerado, sem nenhuma preocupagaio com as desigualdades sociais. Surgiram no final do século XVIII, como uma resposta do Estado liberal ao Estado absoluto. Dominaram todo 0 século XIX, haja vista que os direitos de segunda dimensao s6 floresceram no século XX. Representa os meios de defesa das liberdades do individuo, a partir da exigéncia da nao ingeréncia abusiva dos Poderes Pablicos na esfera privada do individuo. Limitam-se a impor restrigées 4 atuag&o do Estado, em favor da esfera de liberdade do individuo. Por esse motivo so referidos como direitos negati- vos, liberdades negativas ou direitos de defesa do individuo frente ao Estado. Sto exemplos de direitos fundamentais de primeira dimensio o direito vida, a liberdade, & propriedade, a liberdade de expressfio, a participago politica e religiosa, & inviolabilidade de domicilio, a liberdade de reunido, entre outros. Gap. 3+ PRINCIPIOS, DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS 99 Os direitos de segunda geracio identificam-se com as liberdades po- sitivas, reais ou concretas, e acentuam o principio da igualdade entre os homens (igualdade material). Sao os direitos econémicos, sociais e culturais. Foram 0s movimentos sociais do século XIX que ocasionaram, no inicio do séoulo XX, o surgimento da segunda geragao de direitos findamentais, responsdvel pela gradual passagem do Estado liberal, de cunho individualista, para o Estado social, centrado na protego dos hipossuficientes e na busca da igualdade material entre os homens (no meramente formal, como se assegurava no Liberalismo). Os direitos fundamentais de segunda gerag4o correspondem aos direitos de participagao, sendo realizados por intermédio da implementagao de poli- ticas e servicos publicos, exigindo do Estado prestagGes sociais, tais como saiide, educagio, trabalho, habitagZo, previdéncia social, assisténcia social, entre outras. Sao, por isso, denominados direitos positivos, direitos do bem- -estar, liberdades positivas ou direitos dos desamparados. Ha que se destacar, porém, que nem todos os direitos fundamentais de se- gunda geracio consubstanciam direitos positivos, vale dizer, prestacdes positivas a serem adimplidas pelo Estado. Existem, também, direitos sociais negativos, como 0 de liberdade sindical (CE, art. 8.°) e o de liberdade de greve (CF, art. 9.°). Em face dessa realidade, o critério para distinguir direitos fundamentais de segunda dimensao de direitos fundamentais de primeira dimensio nao pode ser, unicamente, a natureza do dever do Estado, positivo (atuagao) ou negativo (abstengao). A identificagdo da finalidade dos institutos parece constituir 0 melhor critério para a distingo. Assim, os direitos sociais sio aqueles que tém por objeto a necessidade da promogio da igualdade substan- tiva, por meio do intervencionismo estatal em defesa do mais fraco, enquanto os direitos individuais sdéo os que visam a proteger as liberdades piblicas, a impedir a ingeréncia abusiva do Estado na esfera da autonomia privada. Os direitos de terceira geragio consagram os principios da solidariedade ¢ da fraternidade. Sao atribuidos genericamente a todas as formagées sociais, protegendo interesses de titularidade coletiva ou difusa. Sao exemplos de direitos fundamentais de terceira dimensfo, que assistem a todo o género humano, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, 4 defesa do consumidor, 4 paz, & autodeterminagao dos povos, ao patriménio comum da humanidade, 20 progresso ¢ desenvolvimento, entre outros. O Estado e a propria coletividade tm a especial incumbéncia de defender e preservar, em beneficio das presentes faturas geragGes, esses direitos de titularidade coletiva e de cardter transindividual. Ei interessante constatar que o micleo da esfera de protegio dos direitos fundamentais de primeira, segunda e terceira geragdes corresponde ao lema da Revolugio Francesa ~ liberdade, igualdade e fraternidade. Modernamente, muito se discute sobre o reconhecimento de uma quarta geracao de direitos fundamentais, em complementagao as trés dimensdes 100 __DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO « Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino ja consagradas, Hé autores que se referem, até mesmo, ao surgimento da quinta geracao de direitos fundamentais. Entretanto, nfio h4 consenso entre s constitucionalistas quanto aos bens protegidos exatamente por essas novas geragdes de direitos fundamentais. No tocante aos direitos fiundamentais de quarta dimensao, por exemplo, o Prof. Paulo Bonavides entende que constituem o direito 4 democracia, 0 direito a informagio e o direito ao pluralismo juridico, dos quais depende a concretiza- ¢&o da sociedade aberta ao futuro, em sua dimensao da maxima universalidade. Ja para o Prof. Norberto Bobbio, a quarta dimensao decorre dos avangos da engenharia genética, que colocam em risco a propria existéncia humana, pela manipulacao do patriménio genético. Finalmente, vale ressaltar que uma nova dimensio de direitos funda- mentais nao implica substituigao ou caducidade dos direitos das geragdes antecedentes, Ao revés, os direitos das geragdes antecedentes permanecem plenamente eficazes, e atuam como infraestruturais das geracées seguintes. O que acontece, na maioria das vezes, € que os direitos integrantes de uma gerago antecedente ganham outra dimenséo, novo conteido e alcance, com © surgimento de uma geraco sucessiva. Os direitos da geragdo posterior se transformam em pressupostos para a compreensio e realizagao dos direitos da geragao anterior. Por exemplo: o direito individual de propriedade, de primeira dimensao, nasceu no Estado liberal, com feigiio tipicamente privada, portanto; com o surgimento da segunda dimensio de direitos fundamentais, adquirin feigao tipicamente social, a partir da exigéncia dos textos consti- tucionais de que a propriedade atenda a sua fungdo social; modernamente, com o reconhecimento dos direitos fundamentais de terceira dimensdo, a propriedade deverd respeitar, também, as leis ambientais. + Final do Século XVIll Pamara |_| * Estado Liberal Direltos “Negativos" Geragéo + Liberdade * Direitos Civis e Politicos + Inicio do Século XX + Estado Social Segunda |_| « Direitos Positives Geragao + Igualdade + Direitos Sociais, Econdmicos e Gulturais itos Fundamental * Século XX Terceira + Fratemidade Geragao Direito ao Meio Ambiente, ‘& Paz, ao Progresso, & Defesa do Consumidor Cap. 3+ PRINCIPIOS, DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS 401 2.8. Destinatérios Os direitos fundamentais surgiram tendo como titulares as pessoas na- turais, haja vista que, na sua origem, representam limitagdes impostas ao Estado em favor do individuo. Com o passar dos tempos, os ordenamentos constitucionais passaram a reconhecer direitos fundamentais, também, as pessoas juridicas. Modernamente, as Constituigdes asseguram, ainda, direitos fundamentais 4s pessoas estatais, isto é, o proprio Estado passou a ser considerado titular de direitos fundamentais. Nao significa afirmar, porém, que todos os direitos fundamentais tém como titulares as pessoas naturais, as pessoas juridicas e as pessoas estatais. Hi direitos fundamentais que podem ser usufruidos por todos, mas hA direitos testritos a determinadas classes. Na Constituigio Federal de 1988, quanto aos destinatérios de direitos fundamentais, mencionamos, em carter meramente exemplificativo: a) direitos fandamentais destinados as pessoas naturais, as pessoas juridicas ¢ ao Estado — direito da legalidade e de propriedade (art. 5°, II ¢ XI); direitos fundamentais extensiveis as pessoas naturais e as pessoas juridi- cas ~ inviolabilidade do domicilio e assisténcia juridica gratuita e integral (art. 5°, XI e LXXIV); direitos fundamentais exclusivamente voltados para a pessoa natural ~ direito de locomogo e inviolabilidade da intimidade (art. 5.°, XV e X); 4) direitos fundamentais restritos aos cidadios — ago popular e iniciativa popular (arts. 5.°, LXXII, e 14, II); €) direitos fundamentais voltados exclusivamente para a pessoa juridica — direito de existéncia das associagées, direitos fundamentais dos partidos politicos (arts. 5°, XIX, e 17); 1) direitos fandamentais voltados exclusivamente para o Estado ~ direito de requisigaio administrativa no caso de iminente perigo ptblico e autonomia politica das entidades estatais (arts. 5.°, XXV, e 18). b) © 2.9. Relagées privadas Os direitos fundamentais regulam, precipuamente, as relagdes entre o Estado ¢ o particular. Como regra, representam direitos — de indole positiva ou negativa - conferidos ao particular frente ao Estado. Regulam, dessarte, as chamadas relagées verticais. Questo epfrentada pela doutrina e jurisprudéncia patrias diz respeito 4 incidéncia, ou nfo, dos direitos fundamentais nos negécios celebrados en- tre particulares, haja vista que nestes, em regra, prepondera o principio da 102 _DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO « Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino autonomia da vontade. Trata-se do exame da chamada eficdcia horizontal (privada ou externa) dos direitos fundamentais. A Constituigaio Federal de 1988 nao foi expressa no tocante a incidéncia dos direitos fundamentais nas relagdes horizontais, isto é, nos negécios pri- vados.' Limitou-se, 0 atual texto constitucional, a estabelecer que os direitos e garantias fundamentais tém aplicagdo imediata (art. 5.°, § 1.°). Ha hipoteses, porém, em que resta clara a incidéncia dos direitos fun- damentais nas relagdes privadas no vigente texto constitucional, como no caso dos direitos dos trabalhadores, arrolados no art. 7.° da Constituigao da Republica. Com efeito, como os destinatarios dos direitos constitucionais trabalhistas so, por exceléncia, os empregados e empregadores privados, resulta indiscutivel, nesse caso, a vinculagao deles aos direitos fundamentais. Diga-se de passagem, ¢ de suma importancia essa vinculagao, tendo em conta 0 histérico de medidas discriminatérias e de condutas violadoras de direitos constitucionais fundamentais dos trabalhadores, adotadas por empresas pri- vadas em relacio a seus empregados. Assim, na celebracfio de um contrato de trabalho entre empresa privada e empregado, os sujeitos atuam sob o principio da autonomia da vontade, no ajuste das respectivas cléusulas. Entretanto, nao poderao afastar os di- reitos fundamentais incidentes sobre 0 negécio, por exemplo, estabelecendo clausula em que © obreiro renuncie ao exercicio do seu direito fundamental & liberdade de greve (CF, art. 9.°). Caso ocorresse tal ajuste, 0 contrato de trabalho seria valido, mas a clausula obstativa do direito de greve nao teria nenhuma validade frente ao ordenamento juridico. Além dos direitos fundamentais dos trabalhadores, ha, ainda, outras situagdes em que a propria Constituigéio expressamente impde aos indivi- duos, nas relagdes entre eles (privadas), o respeito a direitos fundamentais. E 0 que se observa, por exemplo, no inciso V do art. 5.°, que assegura o direito de resposta, proporcional ao agravo (0 sujeito passivo seré o érgio de imprensa, privado). Ademais, mesmo naquelas situagdes em que nao hé uma expressa im- posigao constitucional, o entendimento doutrindrio dominante, no constitu- cionalismo patrio, é de que os direitos fundamentais aplicam-se, também, 4s relagdes privadas. Segundo essa orientagdo, néo podem os particulares, com amparo no principio da autonomia da vontade, afastar livremente os direitos fundamentais. rentemente, a Constituigéo Portuguesa, de 1976, dispée expressamente, em seu art. “Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias sao di- rectamente aplicdveis e vinculam as entidades publicas e privadas.” Enfim, o entendimento dominante em nosso pais é de que nao s6 0 Estado deve respeitar os direitos fundamentais, mas também os particulares, nas relagdes entre si. Desse modo, os direitos fundamentais vinculam o Estado — incluindo o legislador, os érgios administrativos ¢ 0 Poder Judiciério ~, Cap. 3 + PRINCIPIOS, DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS bem como os particulares. Por fim, é oportuno destacar que, embora modernamente os direitos fundamentais possam ter como sujeito passivo n&o sé o Estado, mas também os particulares, certo é que ha direitos e garantias fundamentais que, pela sua natureza, ttm como obrigado somente o Estado, a exemplo do direito de petig&io aos Poderes Pitblicos (CF, art. 5.°, XXXIV, “a”) e do direito A assisténcia juridica integral e gratuita (CF, art. 5.°, LXXIV). 2.10. Os direitos fundamentais nfio dispdem de carater absoluto, visto que encontram limites nos demais direitos igualmente consagrados pelo texto Relagées entre Estado x Particular (relagdes verticals) VINCULAGAO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS RelagGes entre Particular x Particular (relagdes horizontais, privadas ou externas) Natureza relativa constitucional. B essa a orientago adotada pelo Supremo Tribunal Federal, didaticamente sintetizada pelo Ministro Celso de Mello nestes termos:? Nao ha, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de carter absoluto, mesmo porque razdes de relevante interesse piiblico ou exigéncias derivadas do principio de convivéncia das liberdades legitimam, ainda que excepcio- nalmente, a adogao, por parte dos érgfios estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela propria Constituigao. O estatuto constitucional das liberdades ptblicas, ao delinear © regime juridico a que estas esto sujeitas — e considerado o substrato ético que as informa — permite que sobre elas incidam limitagdes de ordem juridica, destinadas, de um lado, a prote- ger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexisténcia harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem publica ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros. 2 MS 23.452/RJ, rel. Min. Celso de Mello, DJ 12.05.2000. 404 _DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO « Vicente Paulo & Marcelo Alexandrina Enfim, nio podem os direitos fundamentais ser utilizados como escudo protetivo da pritica de atividades ilfcitas, tampouco para afastamento ou diminuigo da responsabilidade civil ou penal por atos criminosos, sob pena da consagragio do desrespeito a um verdadeiro Estado de Direito. Assim, a liberdade de pensamento nao serd oponivel ante a pratica do crime de racismo; a garantia da inviolabilidade das corespondéncias néo poderd ser invocada para acobertar determinada prética criminosa, e assim por diante. 2.11. Restrigdes legais Conforme exposto no item precedente, a Constituicao Federal nao possui direitos ou garantias que se revistam de cardter absoluto, uma vez que razbes de interesse piblico legitimam a adog&o, por parte dos érgios esta- tais, de medidas restritivas a essas liberdades, na protegaio de outros valores constitucionalmente protegidos. ‘Nesse sentido, a doutrina e a jurisprudéncia tém enfatizado que os di- Teitos e garantias fundamentais expdem-se a restri¢des autorizadas, expressa ou implicitamente, pelo texto da propria Constituigao, j4 que nao podem servir como manto para acobertar abusos do individuo em prejuizo 4 ordem piblica. Assim, normas infraconstitucionais — lei, medida proviséria e outras ~ podem impor restrigbes ao exercicio de direito fundamental consagrado na Constituigaio. As restrigdes impostas ao exercicio de direitos constitucionais sio dou- trinariamente classificadas em reservas legais simples ¢ reservas legais qualificadas. A reserva legal simples ocorre quando a Constituigao limita-se a esta- belecer que eventual restricio do legislador ordinério seja prevista em lei. Sto exemplos os incisos VI (“na forma da lei”), VII (“nos termos da lei”) e XV (“nos termos da lei”) do art. 5.° da Carta Politica. Anote-se que, nesses casos, a tinica exigéncia imposta pelo texto constitucional para que ocorra a restrigdio é que esta seja veiculada em lei. A reserva legal qualificada ocorre quando a Constituigao, além de exigir que seja a restrigaio prevista em lei, estabelece as condiges ou os fins que devem ser perseguidos pela norma restritiva. E 0 caso do inciso XII do art. 5° da Constituigéio Federal, que, além de exigir lei para a autorizagao da interceptagio telefonica, s6 permite esta para fins de investigagdo criminal ou instrugdo processual penal. Entretanto, cabe enfatizar que os direitos e garantias constitucionais nao sio passiveis de ilimitada restricfo. Quer seja hipdtese de restrigao legal simples, quer seja caso de restrig&io legal qualificada, as restrigdes impostas pelo legislador ordinério encontram limites, especialmente no principio da Cap. 3 « PRINCIPIOS, DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS 105 razoabilidade, da proporcionalidade ou da proibigfio de excesso, que impéem ao legislador o dever de nao estabelecer limitagdes inadequadas, desnecessdrias ou desproporcionais aos direitos fundamentais. Essa limitagaio & atuagio do legislador ordindrio no tocante A imposigao de restrigdes a direito constitucional é denominada teoria dos limites dos limites (refere-se aos limites ao estabelecimento de limitagdes legais aos direitos constitucionais). Assim, se por um lado é inaceitavel a ideia de um direito constitucional absoluto, intocével mesmo diante de situagdes de interesse ptiblico, por outro, seria absurdo admitir-se que a lei pudesse restringir ilimitadamente os direitos fundamentais, afetando o seu miicleo essencial, extirpando o contetido essen- cial da norma constitucional, suprimindo o cerne da garantia originariamente outorgada pela Constituigao. 2.12. Conflite (ou colisao) Ocorre conflito (ou colis&o) entre direitos fundamentais quando, em um caso concreto, uma das partes invoca um direito fundamental em sua protegao, enquanto a outra se vé amparada por outro direito fundamental. Por exemplo, em determinada relag&o juridica, pode haver conflito entre a liberdade de comunicagao (CF, art. 5.°, IX) e a inviolabilidade da intimi- dade do individuo (CF, art. 5.°, X). Outra relagdo juridica pode contrapor liberdade de manifestagdo de pensamento (CE, art. 5.°, IV) e vedaco ao racismo (art. 5.°, XLII), e assim por diante. Em situagdes como essas temos a chamada colisao entre direitos fundamentais. Desde logo, deve-se anotar que nao existe hierarquia entre direitos fundamentais, 0 que impossibilita cogitar-se de invaridvel aplicago integral de um deles (0 direito suposto “hierarquicamente superior”), resultando na aniquilagao total do outro (0 direito suposto “hierarquicamente inferior”). Segundo a ligdo da doutrina, na hipdtese de conflito entre direitos fun- damentais, 0 intérprete deveré realizar um juizo de ponderacdio, consideradas as caracteristicas do caso concreto. Conforme as peculiaridades da situactio conereta com que se depara o aplicador do Direito, um ou outro direito fundamental prevaleceré. possivel que, em um caso em que haja conflito entre os direitos “X” e “Y”, prevaleca a aplicagao do direito “X” e, em outra ocasiaio, presentes outras caracteristicas, a colisio dos mesmos direitos “X” e “Y” resolva-se pela prevaléncia do direito “Y”. No caso de conflito entre dois ou mais direitos fundamentais, o intérprete deyerd langar mao do principio da concordaneia pritica ou da harmoniza- ¢4o, de forma a coordenar e combinar os bens juridicos em conflito, evitando o sacrificio total de uns em relagdo aos outros, realizando uma redugo proporcional 106 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO « Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino do ambito de alcance de cada qual, sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com suas finalidades precipuas. Em sintese: na solugdo de conflito entre direitos fundamentais, deverd o intérprete buscar a conciliagao entre eles (adogao do principio da harmoniza- 40), considerando as circunstdncias do caso concreto, pesando os interesses em jogo, com o objetivo de firmar qual dos valores conflitantes prevalecer. Nao existe um critério para solugdo de colisao entre valores constitucionais que seja valido em termos abstratos; o conflito sé pode resolvido a partir da andlise das peculiaridades do caso concreto, que permitirio decidir qual direito devera sobrepujar os demais, sem, contudo, anular por completo o contetido destes. 2.13. Rendncia Os direitos fundamentais sao irrenuncidveis. Significa dizer que o titular de um direito fundamental nao tem poder de disposi¢ao sobre ele, no pode abrir mio de sua titularidade. Entretanto, o constitucionalismo moderno admite, diante de um caso concreto, a renincia temporaria e excepcional a direito fundamental. Assim, a remincia voluntéria ao exercicio de um direito fundamental é admitida, desde que em um caso conereto (a remincia geral de exercicio é inadmissivel). Um exemplo de rentincia tempordria a direito fundamental individual é 0 que ocorre nos programas de televisio conhecidos como reality shows (Big Brother Brasil, por exemplo), em que as pessoas participantes, por desejarem receber 0 prémio oferecido, renunciam, durante a exibigdio do programa, a inviolabilidade da imagem, da privacidade e da intimidade (CF, art. 5.°, X). Cabe ressaltar, ainda, que ¢ assegurada a faculdade de nao fruir a posigao juridica decorrente de uma norma constitucional que estabelega uma liberdade fundamental. Assim, por exemplo, o direito A liberdade de crenga religiosa (art. 5.°, VIII) implica o direito de nfo possuir religi&o; o direito de reunifio (art. 5°, XVI) assegura, também, o direito de nfo se reunir; o direito de associagio (art. 5.°, XVII) implica, igualmente, o direito de no se associar. A Constituigéio Federal de 1988, ao arrolar os direitos fundamentais no seu Titulo II (arts. 5.° a 17), classificou-os em cinco grupos distintos: direitos individuais e coletivos, direitos sociais, direitos de nacionalidade, direitos politicos ¢ direitos relacionados a existéncia, organizagfio e participagaio em partidos politicos. Cap. 3 « PRINCIPIOS, DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS 107 Os direitos individuais correspondem aos direitos diretamente ligados ao conceito de pessoa humana e de sua propria personalidade, como, por exemplo, o direito a vida, 4 dignidade, a liberdade. Esto previstos no art. 5° da Constituig&io, que alberga, especialmente, os direitos fimdamentais de primeira geragao, as chamadas liberdades negativas. Nesse mesmo art. 5.°, temos direitos fundamentais coletivos, como so exemplos os previstos nos incisos XVI (direito de reuni&o); XVII, XVII, XIX e XXI (direito 4 asso- ciagéio); LXX (mandado de seguranga coletivo). Os direitos sociais constituem as liberdades positivas, de observancia obrigatéria em um Estado Social de Direito, tendo por objetivo a melhoria das condigdes de vida aos hipossuficientes, visando 4 concretizagao da igual- dade material ou substancial. Estado arrolados no art. 6.° e seguintes da Carta Politica, e so disciplinados em diversos outros dispositivos constitucionais (por exemplo, direito 4 saiide — art. 196; direito 4 previdéncia — art. 201; direito 4 educagao — art. 206). Os direitos de nacionalidade cuidam do vinculo juridico-politico que liga um individuo a um determinado Estado, capacitando-o a exigir sua protecZo e sujeitando-o ao cumprimento de determinados deveres. Estiio enumerados no art. 12 da Constituicao. Os direitos politicos cuidam do conjunto de regras que disciplinam as formas de atuagao da soberania popular, com o fim de permitir ao individuo © exercicio concreto da liberdade de participactio nos negécios politicos do Estado, conferindo-lhe os atributos da cidadania. Estéo enumerados no art. 14 da Constituigao. Os direitos 2 exist8ncia, organizacao e participacdo em partidos politicos regulamentam os partidos politicos como instrumentos necessdrios 4 preserva- go do Estado Democratico de Direito, assegurando-lhes autonomia e plena liberdade de atuag&o, para concretizar o sistema representativo (CF, art. 17). Direltos e deveres individuais e coletivos (ert. 52). Direitos sociais (arts. 6° a 11). DIREITOS 5 Direitos de FUNDAMENTAIS: aaa cath Classes nacionalidade NA CF/1988 (grupos) (arts. 12¢ 13). Direitos politicos (arts. 14a 16). Direitos de existéncia dos partidos politicos (art. 17). 408 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO « Vicente Paulo & Marcelo Alexandrina 3.1. Aplicabilidade imediata Determina a Constituig&o que as normas definidoras dos direitos e ga- rantias fundamentais tém aplicagao imediata (art. 5.°, § 1.°). Esse comando tem por fim explicitar que as normas que estabelecem direitos e garantias fundamentais so de carter preceptivo, e no meramente programatico. Significa dizer que os aplicadores do direito deverao conferir aplicabilidade imediata aos direitos e garantias fundamentais, conferindo- “hes a maior eficdcia possivel, independentemente de regulamentactio pelo legislador ordinario. HA, entretanto, normas constitucionais relativas a direitos e garantias fundamentais que n&o sao autoaplicdveis, isto é, que carecem de regula- mentag&io para a produg&o de seus integrais efeitos (eficdcia limitada). Os direitos sociais, em grande parte, tém a sua plena eficdcia condicionada a uma regulamentagio mediante lei, como, por exemplo, os incisos X, XI, XU, XX, XXI, XXIII, XXVII do art. 7.° da Constituigéo Federal. Mesmo no art. 5.° da Constitui¢éo temos normas que exigem a complementacdo legislativa para a produgo de seus efeitos integrais, como, por exemplo, os incisos VI, XXXII e XXXVIII. Enfim, embora a regra seja a aplicabilidade imediata dos direitos e garantias fundamentais, alguns deles encontram-se previstos em normas constitucionais de eficdcia limitada, dependentes de regulamentagao para a produgdo de seus efeitos essenciais. Importante destacar, também, que o comando constitucional em exame ~ § 1° do art. 5° — nfo tem sua aplicagao restrita aos direitos e garantias fundamentais individuais e coletivos arrolados no art. 5.° da Constituigao da Republica. Sua incidéncia alcanca as diferentes classes de direitos e garantias fundamentais de nossa Carta Magna, ainda que indicados fora do cataélogo proprio a eles destinado (arts. 5° a 17). Em regra, t8m aplicacao [| imediata (art. 6.9, § 1.2). Entretanto, ha direitos fundamentals BILIDADE previstos em normas de eficacia RO RETOS LJ] limitada, dependentes de FUNDAMENTAIS regulamentagao ordinaria. Esse entendimento aplica-se a ito fundamental previsto, ou do, no art. 6.° da CF/1988, Cap. 3 « PRINCIPIOS, DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS 109 aa Enumeracao aberta e interpretacgaéo Os direitos fundamentais nfo sto estanques, no podem ser reunidos em um elenco fixo, mas sim constituem uma categoria juridica aberta. Além disso, a compreensdo de seu contetido é varidvel, conforme os diferentes periodos histéricos nos quais se estabeleceram e desenvolveram. O surgimento dos diversos direitos fundamentais ao longo da histéria com- prova serem eles uma categoria aberta e potencialmente ilimitada, que pode ser permanentemente ampliada pelo reconhecimento de novos direitos, 4 medida que se constate sua importéncia para o desenvolvimento pleno da sociedade. Ademais, ao lado das transformagées quantitativas, pela insergio de no- vos direitos dentro dessa categoria juridica, os direitos fundamentais sofrem também alteragdes qualitativas, em fungtio da diversidade de significado e alcance que passam a apresentar no decorrer da evolugao histérica. Um caso ilustrativo de modificagio qualitativa, ou seja, concemente a interpretagéo do significado de um direito fundamental, temos no direito de propriedade. Conforme foi originalmente estabelecido, no Estado liberal, for- temente individualista, 0 direito de propriedade nao possuia indole social, nao ensejava quaisquer consideragdes de ordem coletiva; com o surgimento do Es- tado social, passou o direito de propriedade a ter cardter marcadamente social, como realca nossa Carta Politica, ao exigir da propriedade o atendimento de sua fungfo social (CF, art. 5.°, XXIM), prevendo até mesmo a sua perda, quando essa fungiio social nao estiver sendo observada (CF, arts. 5.°, XXIV, e 243). Do exposto, fica patente serem os direitos fundamentais uma categoria aberta, pois incessantemente completada por novos direitos; e mutavel, pois os direitos que a constituem tém alcance e sentido distintos conforme a época que se leve em consideracao. Com isso, a enumeracao dos direitos fundamentais na Constituic¢io da Reptblica de 1988 nao é exaustiva, fechada, podendo ser estabelecidos outros direitos fundamentais no prdprio texto constitucional ou em outras normas. O art. 5.°, § 2.°, da CF/1988 € expresso a respeito, prescrevendo que “os direitos e garantias expressos nesta Constituigéio nao excluem outros decorrentes do regime e dos princfpios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a Repiblica Federativa do Brasil seja parte”. 3.3. Restrigdes e suspensées admitidas constitucionalmente A Constituigo Federal reconhece, nas situagdes excepcionais e gravis- simas de estado de defesa e estado de sitio, a possibilidade de restrigdes ou suspensdes tempordrias de direitos fundamentais, sem necessidade de autorizago prévia do Poder Judicidrio. 10 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO « Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino No caso de estado de defesa, poderao ser impostas restri¢ées ao direito de reunifio, ainda que exercida no seio das associagées, ao sigilo de corres- pondéncia, ao sigilo de comunicacio telegrafica e telefénica, entre outros (CF, art. 136, § 1.°, 1. Mitigagdes ainda maiores so admitidas na vigéncia do estado de sitio, conforme disp6e o art. 139 da Constituigao Federal. Esse dispositivo cons- titucional estabelece uma importante distingfo entre as medidas que poderao ser adotadas, levando-se em conta o fundamento autorizador da decretacao do estado de sitio, conforme se passa a expor. Se o estado de sitio for decretado com fundamento no inciso I do art. 137 da Constituigao (comogio grave de repercussio nacional ou ocor- réncia de fatos que comprovem a ineficacia de medida tomada durante o estado de defesa), s6 poderso ser tomadas contra as pessoas as seguintes medidas (art. 139): a) obrigagdo de permanéncia em localidade determinada; b) detengio em edificio nfo destinado a acusados ou condenados por crimes comuns; ©) restrigdes relativas @ inviolabilidade da correspondéncia, ao sigilo das comu- nicagdes, & prestaco de informagtes ¢ a liberdade de imprensa, radiodifustio ¢ televisio, na forma da lei; d) suspensfo da liberdade de reunidio; e) busca e apreensio em domicilio; f) intervengao nas empresas de servigos piblicos; 2) tequisigaio de bens. Se o estado de sitio for decretado com fundamento no inciso II do art. 137 (declaragao de estado de guerra ou resposta a agresso armada es- trangeira), a conclusio a que se chega — pela interpretag&io contrario sensu do art. 139 ~ é que poderao ser impostas restrigdes e suspensdes tempord- rias a quaisquer direitos ou garantias fundamentais. Com efeito, o texto constitucional n&o explicitou qualquer limite 4 autoridade administrativa nessa hipétese de decretag&o de estado de sitio (afinal, estaremos em situagtio de guerra, circunstancia em que o texto constitucional admite, até mesmo, a pena de morte — art. 5.°, XLVII, a). Importante ressaltar que essas medidas — restri¢des ou suspensdes a direitos fundamentais — poderao ser adotadas pela autoridade administrativa competente (executora da medida), sem necessidade de autorizagao pré- via do Poder Judiciario. Entretanto, nada impede que tais medidas sejam submetidas, posteriormente, ao controle do Poder Judicidrio, com o fim de reparar eventuais abusos ou excessos cometidos na sua execucao. Enfim, r FEL SER NENTS MS STAT TE Cap. 3+ PRINCIPIOS, DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS m1 na adogio de tais medidas pela autoridade administrativa competente nao ha controle judicial preventive; porém, por forga do principio da inafas- tabilidade de jurisdig&o (art. 5.°, XXXV), 0 Poder Judiciério sempre pode ser ulteriormente provocado para fiscalizar a validade delas, com o fim de coibir eventuais abusos cometidos pela autoridade administrativa (controle reptessivo, a posteriori). 3.4. Tratados e convencgées internacionais com forca de emenda constitucional Estabelece a Constituig’o Federal que os tratados e convengées inter- nacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por trés quintos dos votos dos respec- tivos membros, serio equivalentes 4s emendas constitucionais (CF, art. 5°, § 3.°, introduzido pela Emenda Constitucional 45/2004). Portanto, os tratados e convencées internacionais sobre direitos hu- manos que forem aprovados de acordo com o rito estabelecido para a aprovagao das emendas a Constituigao (trés quintos dos membros das Casas do Congresso Nacional, em dois turnos de votagio) passarfio a gozar de status constitucional, situando-se no mesmo plano hierarquico das de- mais normas constitucionais. Significa dizer que seus termos deverao ser respeitados por toda a legislac&o infraconstitucional superveniente, sob pena de inconstitucionalidade; além disso, somente poderio ser modificados se- gundo o procedimento legislativo rigido antes mencionado, observada, ainda, a limitago estabelecida pelo art. 60, § 4.°, da Lei Maior (clausulas pétreas). No segundo semestre de 2008 tivemos a incorporagaio ao ordenamento juridico brasileiro da primeira norma internacional sobre direitos huma- nos com forca de emenda constitucional. Trata-se da Convengiio sobre os Direitos das Pessoas com Deficiéneia, assinada em 30 de margo de 2007, em Nova Iorque, aprovada, nos termos do § 3.° do art. 5.° da Constituigao Federal, pelo Decreto Legislative 186/2008 (DOU de 10.07.2008) ¢ promul- gada pelo Decreto 6.949/2009 (DOU de 26.08.2009). A tramitagdo do referido decreto legislativo seguiu o rito prescrito pelo § 3.° do art. 5.° da Constituigo Federal — aprovacao, em cada Casa do Con- gresso Nacional, em dois turnos, por trés quintos dos votos dos respectivos membros — ¢, por essa raz%io, foi outorgado status de emenda constitucional A mencionada Convencio sobre os Direitos das Pessoas com Deficiéncia, incorporada por aquele decreto legislativo ao nosso ordenamento juridico. E muito relevante destacar, ainda, que, em razio do seu status de emenda constitucional, ,essa convengao internacional representa uma ampliagio do parametro para controle de constitucionalidade das leis em nosso Pais (bloco 412 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO « Vicente Paulo & Marcelo Alexandrina de constitucionalidade). Significa dizer que, atualmente, além do texto da Constituigao Federal, também o texto dessa conven¢4o internacional constitui pardmetro para a afericdo da validade das leis pelo Poder Judiciario brasileiro. Cabe ressaltar, porém, que, mesmo quando incorporados ao ordenamento patrio com forga de emenda constitucional — na forma do art. 5.°, § 3.°, da Constituigéo -, os tratados e convencdes internacionais sobre direitos humanos poderao ser ulteriormente objeto de controle de constitucio- nalidade, por alegada ofensa aos valores constitucionais gravados como clausulas pétreas, previstos no art. 60, § 4.°, da Constituig&o da Reptblica. 3.5. Tribunal Penal Internacional Estabelece a Constituigo que o Brasil se submete a jurisdigtio de Tribu- nal Penal Internacional a cuja criag&o tenha manifestado adestio (CF, art. 5.°, § 4°, introduzido pela Emenda Constitucional 45/2004). Em regra, o principio da soberania nao permite que um Estado se obrigue a acatar decisio judicial proferida por érgaio integrante de outro Estado. Para que uma decisao judicial estrangeira tenha validade no Brasil é necessério que ela seja homologada pelo nosso Poder Judicidrio. A competéncia para a homologagfo de sentengas estrangeiras é do Superior Tribunal de Justica — STJ (CF, art. 105, I, “i”). O acatamento de decisio judicial proferida por um Tribunal Penal In- ternacional representa, portanto, um abrandamento da no¢do de soberania do Estado, em respeito aos direitos humanos, protecio da humanidade (vale lembrar, ademais, que no se trata, propriamente, de decistio proferida por “outro Estado”, porque o Tribunal Internacional constitui um organismo internacional, nao subordinado a nenhum Estado e, em tese, independente). © texto originério da Constituigio Federal de 1988 j4 consagrava dis- posig&io a-respeito da jurisdig&o internacional, em que se afirmava que “o Brasil propugnaré pela formagdo de um tribunal internacional de direitos humanos” (ADCT, art. 7.°). No ano de 2002, surgiu a primeira corte internacional permanente com jurisdigfio sobre pessoas acusadas de cometerem graves violagdes aos direi- tos humanos: o Tribunal Penal Internacional, criado pelo Estatuto de Roma. O Tribunal Penal Internacional é competente para julgar os crimes de genocidio, os crimes contra a humanidade, os crimes de guerra e o crime de agressio de um pais a outro. A jurisdig&io do Tribunal Penal Internacional submete-se ao chamado principio da complementaridade, segundo o qual a competéncia da corte internacional n&io se sobrepée A jurisdic&o penal dos Estados soberanos. Signi- fica dizer que o Tribunal Penal Internacional destina-se a intervir somente nas : Cap. 3 + PRINCIPIOS, DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS 113 situagdes gravissimas, em que o Estado soberano se mostre incapaz ou sem disposi¢ao politica para processar os crimes apontados no Estatuto de Roma. O Estatuto de Roma foi assinado pelo Brasil em 07.02.2000, e aprovado pelo Congresso Nacional mediante o Decreto Legislativo n. 112, de 06.06.2002. Depois disso, o Presidente da Republica efetuou sua promulgagao por meio do Decreto 4.388, de 25.09.2002, publicado no Diério Oficial da Unifio em 26.09.2002, data em que iniciou sua vigéncia interna. Portanto, o Brasil se submete ao Tribunal Penal Internacional, criado pelo Estatuto de Roma, haja vista sua adestio expressa a esse ato internacional. Alguns constitucionalistas propugnam pela inconstitucionalidade do Esta- tuto de Roma, entre outros motivos, em face da previsao, nesse ato interna- cional, da prisio perpétua (art. 77), em contradic&o com o que estabelece a Carta Politica de 1988 (art. 5.°, XLVII, “b”). Apontam, também, a auséncia de tipificagio dos crimes e de prévio estabelecimento das penalidades no Estatuto. Ainda, enxergam incompatibilidade entre a previsdo de entrega de brasileiros para julgamento pelo Tribunal Penal Internacional e a vedagaio constitucional extradigao de brasileiros natos (art. 5.°, LI). © Prof. André Ramos Tavares registra que a EC 45/2004 introduziu o § 4° no art. 5.° da Constitui¢io exatamente com a intengSo de contornar a inconstitucionalidade, ou reforcar a validade da adesao do Brasil ao Estatuto de Roma (note-se que a vigéncia interna desse tratado iniciou antes da EC 45/2004). Entende ele, entretanto, que nem mesmo uma emenda constitu- cional tem possibilidade de afastar as inconstitucionalidades apontadas, caso elas venham a ser reconhecidas pelo Judicidrio, uma vez que todas dizem respeito a matérias protegidas por cléusulas pétreas. Segundo suas palavras, “este é 0 risco que se core ao se adotar uma Constituicio com cldusulas mais do que rigidas”. Sobre os problemas do Estatuto de Roma, merecem transcrigdo estas palavras do autor: E que todos os pontos de inconstitucionalidade que afrontavam cldusulas pétreas continuam passiveis de infirmar a novel previ- so constitucional especificamente quanto ao Estatuto de Roma. Assim ocorre com: (i) a “entrega” ou extradi¢io de nacionais; Gi) a “entrega” ou extradigao de estrangeiros por crimes politicos ou de opiniao; (iii) a falta de tipificagao dos crimes no Estatuto; (iv) a falta de prévia previsio das punigdes cabiveis; (v) a im- prescritibilidade dos crimes; e (vi) as penas perpétuas admitidas. Especificamente acerca do problema da harmonizagiio entre a previsio de “entrega” de brasileiros ao Tribunal Penal Internacional e a vedacdo a extra- digo de brasileiros natos constante do inciso LI do art. 5.° da Constituigao, os autores tém defendido que a entrega seria algo diferente da “extradicio”. 14 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO « Vicente Paulo & Marcelo Alexandrina A “entrega” seria o envio de um individuo para um organismo internacional, no vinculado a nenhum Estado especifico, ao passo que a “extradi¢o” seria sempre para um determinado Estado estrangeito soberano. Para esses autores, a Constituicao vedaria somente a extradicfo, nao a entrega.? Seja como for, a interpretago acima no resolverd as outras alegadas inconstitucionalidades, caso elas venham a ser reconhecidas pelo Poder Judi- cidrio. O certo é que foram essas dtividas sobre a legitimidade da adestio do Brasil ao Estatuto de Roma que ensejaram o acréscimo do § 4.° ao art. 5.° da Constituigao pela EC 45/2004, muito embora, por dbvio, 0 novo disposi- tivo constitucional no se refira especificamente ao Estatuto de Roma, nem tenha sua aplicagiio teérica a ele restrita. E interessante observar que parece niio ter sido considerada suficiente a existéncia do art. 7.° do ADCT, desde a promulgacao do texto origindrio da Constituico de 1988, determinando que o Brasil propugne pela formagio de um tribunal internacional dos di- reitos humanos, talvez porque este nfo tivesse que ser obrigatoriamente um tribunal penal. De toda forma, em nenhum dos dois dispositivos est dito, nem poderia estar, que os estatutos desse tribunal possam contrariar direitos € garantias individuais consagrados no texto constitucional. O art. 5.° da Constituigao de 1988 enuncia a maior parte dos direitos fundamentais de primeira geragdo albergados em nosso ordenamento cons- titucional (embora nele n&o haja apenas direitos individuais, mas também alguns direitos de exercicio coletivo). O caput desse artigo enumera cinco direitos fundamentais basicos, dos quais os demais direitos enunciados nos seus incisos constituem desdobra- mentos: (1) direito 4 vida; (2) direito 4 liberdade; (3) direito 4 igualdade; (4) direito 4 seguranga; ¢ (5) direito 4 propriedade. O texto do caput do art. 5.° somente assegura esses direitos, de forma expressa, aos “brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pais”. Ha consenso, entretanto, pela propria natureza de tais direitos, que eles valem igualmente para os estrangeiros que se encontrem em territério nacional, submetidos as leis brasileiras, sejam eles residentes ou nao no Brasil. Estudaremos, a seguir, discriminadamente, os direitos fundamentais constantes do art. 5.° da Carta de 1988. 3 André Ramos Tavares discorda dessa construgao, propugnando que “entrega’ e “extra 0" sao, substanciaimente, a mesma coisa, especialmente para efeito de interpretaao da vedagao constante do art. 5.°, inciso LI, de nossa Carta Politica, o qual veicula verdadeira gerantia fundamental insuprimivel. Cap. 3 + PRINCIPIOS, DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS 415 4.1. Direlto a vida Expresso no caput do art. 5.°, 0 direito & vida é o mais elementar dos direitos fundamentais; sem vida, nenhum outro direito pode ser fruido, ou sequer cogitado. A Constituigéo protege a vida de forma geral, nio s6 a extrauterina como também a: intrauterina. Coroldrio da proteg%io que o ordenamento juridico brasileiro concede a vida intrauterina é a proibigao da pratica do aborto, somente permitindo o aborto terapéutico como meio de salvar a vida da gestante, ou 0 aborto humanitdrio, no caso de gravidez resultante de es- tupro (Cédigo Penal, art, 128). Nao se resume o direito a vida, entretanto, ao mero direito & sobrevi- véncia fisica. Lembrando que o Brasil tem como fundamento a dignidade da pessoa humana, resulta claro que o direito fundamental em apreco abrange © direito a uma existéncia digna, tanto sob o aspecto espiritual quanto material (garantia do minimo necessério a uma existéncia digna, corolério do Estado Social Democratico). Portanto, o direito individual fundamental A vida possui duplo aspecto: sob o prisma biolégico traduz o direito a integridade fisica e psiquica (desdobrando-se no direito 4 satide, na vedagdo a pena de morte, na proibi- 40 do aborto etc.); em sentido mais amplo, significa o direito a condigdes materiais e espirituais minimas necessdrias a uma existéncia condigna a natureza humana. E importante registrar que 0 Supremo Tribunal Federal, em julgamento de grande repercusstio na sociedade, decidiu que nao constitui crime a in- terrup¢ao da gravidez (“antecipacao terapéutica do parto”) na hipétese de gravidez de feto anencéfalo.* Ocorre anencefalia quando um defeito no fechamento do tubo neural durante o desenvolvimento embriondrio resulta na auséncia parcial do en- céfalo e do cranio; trata-se de doenga congénita sempre letal, porquanto nao ha possibilidade de desenvolvimento de massa encefalica em momento posterior, ¢ aquela que o nascido anencéfalo apresenta no é capaz de sus- tentar as suas fungGes vitais. Prevaleceu entre os ministros de nossa Corte Excelsa (a deciséo foi por maioria) 0 entendimento de que, na ponderagio entre os direitos da mulher gestante — sobretudo o direito A dignidade e A satide (inclufda a integridade psiquica) — e a protecao a vida intranterina, aqueles, nesse caso, deveriam prevalecer. Embora ressaltando a indefini- 40 existente acerca dos conceitos, médico e juridico, de vida e de morte, levou-se em conta, entre outros aspectos, o fato de a anencefalia mostrar-se * ADPF S4/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 12.04.2012 (Informativo 661 do STF). 16 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO : Vicente Paulo & Marcelo Alexandrina sempre incompativel com a vida extrauterina, nfo se equiparando, portanto, a nenhuma outra espécie de deficiéncia. Vale frisar este ponto: a decisdo de nosso Tribunal Maior aplica-se exclusivamente a interrupgdo da gestacao de feto portador de anencefalia, nfo se estendendo a nenhuma outra deficiéncia ou maé-formacao. Por fim, é oportuno destacar que o Supremo Tribunal Federal decidiu pela legitimidade da realizagio de pesquisas com a utilizacao de células-tronco embriondrias obtidas de embrides humanos produzidos por fertilizacao in vitro e no utilizados no respectivo procedimento, atendidas as condigdes estipuladas no art. 5.° da Lei 11.105/2005. Entendeu a Corte Suprema que essas pesquisas nfio ofendem o direito 4 vida, tampouco violam a dignidade humana constitucionalmente assegurada.* 4.2. Direito & liberdade O direito a liberdade, de forma ampla e genérica, é afirmado no caput do art. 5.° da CF de 1988. Trata-se da prépria esséncia dos direitos fundamentais de primeira geragiio (por isso mesmo também denominados liberdades piblicas). A ideia de liberdade de atuag%o do individuo perante o Estado traduz o cerne da ideologia liberal, de que resultaram as revolugdes do final do século XVIII e inicio do XIX. A doutrina essencial do Jaissez faire exigia a redugio da esfera de atuagio do Estado e de sua ingeréncia nos negécios privados a um minimo absolutamente necessirio. A liberdade assegurada no caput do art. 5.° deve ser tomada em sua mais ampla acep¢ao. Compreende no s6 a liberdade fisica, de locomogaio, mas também a liberdade de crenga, de conviccdes, de expresso de pensamento, de reunifio, de associagio etc. Sendo os direitos de primeira geragao direitos de liberdade, resulta que grande parte dos incisos do art. 5.° da Constituigaio de 1988 refletem desdo- bramentos desse principio, como veremos passos a frente. 4.3. Principio da igualdade (art. 5.°, caput, e inciso 1) ‘A igualdade é a base fundamental do principio republicano e da demo- cracia. Tio abrangente é esse principio que dele intmeros outros decorrem diretamente, como a proibig&io ao racismo (art. 5.°, XLID, a proibicao de diferenga de salérios, de exercicio de fungées e de critério de admissio por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil (art. 7.°, XXX), a proibigo de qualquer discriminagio no tocante a salério e critérios de admissio do tra- 5 ADI 3.510/DF, rel. Min. Carlos Britto, 29.05.2008. Cap. 3+ PRINCIPIOS, DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS 117 palhador portador de deficiéncia (art. 7.°, XXX), a exigéncia de aprovacdo prévia em concurso piblico para investidura em cargo ou emprego ptiblico (art. 37, ID, 0 principio da isonomia tributéria (art. 150, ID) etc. ~ O principio da igualdade determina que seja dado tratamento igual aos que se encontram em situagao equivalente e que sejam tratados de maneira desigual os desiguais, na medida de suas desigualdades. Ele obriga tanto 0 legislador quanto ‘o aplicador da lei (igualdade na lei e igualdade perante a lei). A igualdade na lei tem por destinatario precipno o legislador, a quem é vedado valer-se da lei para estabelecer tratamento discriminatério entre pessoas que merecam idéntico tratamento, enquanto a igualdade perante a lei dirige-se principalmente aos intérpretes e aplicadores da lei, impedindo que, ao concretizar um comando juridico, eles dispensem tratamento distinto a quem a lei considerou iguais. Ademais, conforme j4 exposto anteriormente, os direitos fundamentais obrigam, também, as relagées privadas. Com isso, podemos concluir que o principio da igualdade impde limitacao numa tri- plice dimensio: limitagSo ao legislador, ao intérprete/autoridade publica e ao particular. Entretanto, o principio constitucional da igualdade no veda que a lei estabelega tratamento diferenciado entre pessoas que guardem distingdes de grupo social, de sexo, de profissio, de condig&o econédmica ou de idade, entre outras; 0 que no se admite é que o parametro diferenciador seja arbi- trario, desprovido de razoabilidade, ou deixe de atender a alguma relevante razio de interesse publico. Em suma, o principio da igualdade nao veda o tratamento discriminatério entre individuos, quando ha razoabilidade para a discriminagdo. Exemplo de tratamento discriminatério entre homens e mulheres, criado por lei, temos nas disposigdes da denominada Lei Maria da Penha, que estabelece mecanismos para coibir e prevenir a violéncia doméstica e fami- liar contra a mulher, j4 reconhecida como constitucional pelo STF, por se coadunar com o principio da igualdade.$ O principio da igualdade nao impede, ainda, tratamento discriminatério em concurso piblico, desde que haja razoabilidade para a discriminagao, em taziio das exigéncias do cargo. Restrigdes como a fixag&o de idade minima e maxima e de altura minima (concurso para agente de policia, por exemplo), previsto de vagas exclusivamente para determinado sexo (concurso para o cargo de agente penitenciério restrito 4s mulheres, numa pris&o feminina, por exemplo) e outras podem ser previstas em concursos piiblicos, desde que as 5 ADC 19/DF, rel. Min. Marco Aurétio, 09.02.2012.

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