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Paulo Freire No Pensamento Decolonial PDF
Paulo Freire No Pensamento Decolonial PDF
PALAVRAS CHAVE
um olhar pedagógico
Pós-colonialismo; pedagogia; Paulo Freire;
sobre a teoria pós- ciências sociais.
países3, toma como ponto de partida uma que convergem com a literatura decolonial,
realidade que ele identifica como comum a tais como o raciocínio dialético, a ideia de
toda a América Latina – a qual ele denomina “colonização cognitiva”, e o argumento de que a
“estrutura opressora”. Em alguns momentos dominação se fundamenta em um mito (mito da
a obra faz alusão à sobreposição entre essa estrutura opressora ou mito do eurocentrismo).
estrutura opressora e a realidade em países As quatro últimas sessões apresentam diferentes
colonizados, notadamente quando aponta estratégias para reverter a “colonização do ser”
para uma possível razão do fatalismo dos que aparecem tanto na obra de Freire quanto nas
oprimidos, “é fruto de uma situação histórica e obras dos autores pós-coloniais. Essas estratégias
sociológica e não um traço essencial da forma são: revolução; objetivação da mitologia
de ser do povo” (Freire, 2005, p.54), e quando opressora ou eurocêntrica; deslocamento do
faz referência às “sociedades invadidas”. Mais lugar de fala; e valorização do conhecimento
especificamente alguns pontos levantados fronteiriço. Ao final do artigo apresento algumas
por Freire (2005) sobre a estrutura opressora considerações sobre a dimensão pedagógica que
e sobre as características dos oprimidos se a literatura decolonial pode ter para o ensino e
aproximam do que Quijano (2005) e Mignolo produção no campo das ciências sociais.
(2007) chamam de “colonização do ser” ou
Dialética e colonialidade
“colonização cognitiva”.
O primeiro ponto de convergência entre a obra
Exploro a seguir alguns destes pontos observando
de Paulo Freire (2005) e a literatura pós-colonial
em que medida a proposta da “Pedagogia do
latino-americana – notadamente os trabalhos
Oprimido” – identificação e problematização
de Dussel (2005) e de Quijano (2005) – é a
de determinados temas da estrutura opressora
predominância do raciocínio dialético. Freire
antes não questionados – se aproxima do
retoma Hegel para explicar a relação entre o
conteúdo programático do pós-colonialismo
opressor e o oprimido. Usa a analogia do senhor
latino-americano. Argumento que a proposta da
e do escravo para demonstrar como a classe
perspectiva decolonial tem, assim com a obra
opressora e a classe oprimida se constituem
de Freire, um valor pedagógico na medida em
mutuamente e como a permanência de uma
que questiona os referenciais eurocêntricos a
depende da outra: “ao fazer-se opressora, a
partir dos quais o conhecimento no campo das
realidade implica a existência dos que oprimem
ciências sociais é produzido.
e dos que são oprimidos” (Freire, 2005, p.
As duas primeiras sessões apontam para 41-42). As duas classes são polos opostos e
pressupostos e argumentos da obra de Freire dependentes em uma relação de contradição.
Contradição na medida em que o oprimido
3 O livro foi escrito no final dos anos 1960, quando Freire
estava exilado no Chile, e publicado pela primeira vez em inglês, hospeda em si características do opressor que
no ano de 1968. Após já ter sido publicado em cinco línguas,
“Pedagogia do Oprimido” foi publicado em português em 1970, são internalizadas ao longo do processo de
pela editora Paz e Terra.
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Com o advento da colonização há a convergência Embora não possam ser utilizadas de forma
de dois processos. A codificação da diferença intercambiável, as categorias utilizadas por
entre dominantes e dominados em termos Paulo Freire (oprimidos) e pela literatura pós-
de raça e a articulação de todas as formas colonial (condenados da terra) apresentam
históricas de controle do trabalho em torno do alguns pontos de convergência4. Freire
mercado mundial (note-se que o capitalismo (2005) identifica algumas características dos
havia se tornado mundial com a descoberta oprimidos, como a dualidade existencial devido
das Américas). Esses dois processos não só à introjeção do opressor e a irresistível atração
foram convergentes como também estiveram por ele e por seu modo de vida, processo que
conectados e se reforçaram mutuamente. Com descrevemos acima. Outra característica é o
efeito, a partir da descoberta da América toma fatalismo alongado em docilidade, que longe
lugar uma identificação da distribuição do de ser um elemento do caráter nacional, como
trabalho com a raça. Em outras palavras as algumas análises superficiais parecem sugerir, é
“raças inferiores” não deveriam ser destinadas fruto de uma situação histórica e sociológica –
ao trabalho assalariado, mas sim ao trabalho marcadas pela dominação e escravidão de três
escravo. séculos.
A esse tipo de divisão do trabalho corresponde Esse fatalismo, que está muitas vezes ligado
uma divisão geográfica, criando o que o à percepção do “poder do destino”, da “sina”
autor chama de identidades “geo-culturais”. ou do “fado”, é consequência da imersão das
A identidade geo-cultural nas Américas teria consciências naquilo que Freire (2005) chama
sido a primeira a se formar, constituindo a base de mitologia da estrutura opressora. Essa mesma
para a formação da identidade geo-cultural na mitologia é responsável por outra característica
Europa – a partir da qual se constrói a ideia dos oprimidos, a “autodesvalia” – que é a
de modernidade, em alteridade com o mundo 4 Cabe aqui uma ressalva no tocante à categoria “oprimido”,
colonial “não moderno”. Nesse contexto que por vezes na obra de Paulo Freire se sobrepõe à categoria de
Fanon “condenados da terra” (utilizada no marco da literatura
surge também a noção de eurocentrismo que colonial), e que tampouco pode ser confundida com a categoria
“raça”. Quando utiliza o termo oprimido Freire está se referindo
representa, como assinala Quijano, a dimensão àquele indivíduo que foi privado de “ser mais”, de forma geral.
Nesse sentido o testemunho da opressão passa mais pela
cognitiva da colonização. Ao lado da colonização impossibilidade de se libertar para poder “ser mais”, do que por
características como etnia ou origem, que são pontos relevantes
material estaria a colonização cognitiva, tendo na categoria de “condenados da terra”. Pode-se dizer então que o
o eurocentrismo como perspectiva hegemônica que Paulo Freire chama de “classe oprimida” está mais próximo
da experiência da pobreza do que propriamente da discriminação
e fundamentada na idéia de história como por etnia, origem, língua, etc. Haja vista a referência geral que o
autor faz a operários urbanos e a camponeses – única diferenciação
trajetória evolutiva e na diferença entre Europa da classe oprimida que aparece demarcada com clareza na obra.
Portanto, não é possível utilizar de forma intercambiável os termos
e não Europa codificada em termos de raça. “oprimido” e “condenados da terra”, na acepção que Fanon (1962)
e Mignolo (2007) dão ao último. Tampouco se pode dizer que
haja uma sobreposição entre a categoria “oprimido” e a categoria
“raça” descrita por Quijano (2005).
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introjeção pelos oprimidos da visão negativa ritual de sacrifício; o herói civilizador reveste
que deles tem o opressor: a de seres ignorantes, a suas próprias vítimas da condição de serem
inferiores, incapazes, etc. holocaustos de um sacrifício salvador (o índio
colonizado, o escravo africano, a mulher, a
Nesse ponto há um paralelo interessante entre
destruição ecológica, etcetera).
a mitologia opressiva fomentada pela invasão
cultural e o que os autores pós-coloniais chamam 6. Para o moderno, o bárbaro tem uma “culpa”
de “mitologia do eurocentrismo”. A mitologia (por opor-se ao processo civilizador) que permite
do eurocentrismo é desconstruída por Dussel à “Modernidade” apresentar-se não apenas
(2005) no texto crítico “Europa, modernidade como inocente mas como “emancipadora” dessa
e eurocentrismo”, no qual o autor apresenta os “culpa” de suas próprias vítimas.
principais mitos da modernidade eurocêntrica:
7. Por último, e pelo caráter “civilizatório” da
1. A civilização moderna autodescreve-se como “Modernidade”, interpretam-se como inevitáveis
mais desenvolvida e superior (o que significa os sofrimentos ou sacrifícios (os custos) da
sustentar inconscientemente uma posição “modernização” dos outros povos “atrasados”
eurocêntrica). (imaturos), das outras raças escravizáveis, do
outro sexo por ser frágil, etc. (Dussel, 2005, p. 60)
2. A superioridade obriga a desenvolver os mais
primitivos, bárbaros, rudes, como exigência Outro elemento fundamental da mitologia
moral. eurocêntrica assinalado por Quijano (2005) é
a ideia do estado de natureza como ponto de
3. O caminho de tal processo educativo de
partida do curso civilizatório cujo cume é a
desenvolvimento deve ser aquele seguido
civilização europeia e ocidental:
pela Europa (é, de fato, um desenvolvimento
unilinear e à européia o que determina, Desse mito se origina a especificamente
novamente de modo inconsciente, a “falácia eurocêntrica perspectiva evolucionista, de
desenvolvimentista”). movimento e de mudança unilinear e unidirecional
da história humana. Tal mito foi associado com
4. Como o bárbaro se opõe ao processo
a classificação racial da população do mundo.
civilizador, a práxis moderna deve exercer em
Essa associação produziu uma visão na qual se
último caso a violência, se necessário for, para
amalgamam, paradoxalmente, evolucionismo e
destruir os obstáculos dessa modernização (a
dualismo (Quijano, 2005, p.236)
guerra justa colonial).
O mito, por exemplo, de que a ordem opressora Assim como a existência da mitologia do
é uma ordem de liberdade. De que todos são eurocentrismo, que possibilita a “colonização
livres para trabalhar onde queiram. Se não lhes do ser”, é indispensável a invasão da colônia,
agrada o patrão, podem deixá-lo e procurar outro à mitologia opressiva é necessária a “invasão
emprego. O mito de que todos, bastando não ser cultural”. E o processo de invasão cultural
preguiçosos, podem chegar a ser empresários descrito por Freire (2005) se aproxima muito
– mais ainda, o mito de que o homem que do processo de “colonização do ser” a que a
vende, pelas ruas, gritando: “doce de banana literatura pós-colonial se dedica:
e goiaba” é um empresário tal qual o dono de
Como manifestação da conquista a invasão
uma grande fábrica. O mito do direito de todos
cultural conduz à inautenticidade do ser dos
à educação, quando o número de brasileiros que
invadidos. O seu programa responde ao quadro
chegam às escolas primárias do país e o dos que
valorativo de seus atores, a seus padrões, a suas
conseguem nela permanecer é irrisório. O mito
finalidades (...). Uma condição básica ao êxito
da igualdade de classe, quando o “sabe com
da invasão cultural é o conhecimento por parte
quem está falando?” ainda é uma pergunta dos
dos invadidos de sua inferioridade intrínseca.
nossos dias. O mito do heroísmo das classes
(...) Quanto mais se acentua a invasão, alienando
opressoras, como mantenedoras da ordem
o ser da cultura e o ser dos invadidos, mais estes
que encarna a “civilização ocidental e cristã”,
quererão parecer com aqueles: andar como
que elas defendem a “barbárie materialista”.
aqueles, vestir à sua maneira, falar a seu modo
O mito de sua caridade, de sua generosidade,
(Freire, 2005, p. 174-175)
quando o que fazem, enquanto classe, é
assistencialismo, que se desdobra no mito da Foram apresentados até aqui alguns dos pontos
falsa ajuda que, no plano das nações, mereceu de convergência entre os pressupostos e
segura advertência de João XXIII. O mito de argumentos presentes na literatura pós-colonial
que as elites dominadoras, “no reconhecimento latino-americana e na obra de Freire. Ambas
de seus deveres”, são as promotoras do povo, utilizam o raciocínio dialético para construir
devendo este, num gesto de gratidão, aceitar o argumento de que oprimidos e opressores se
a sua palavra e conformar-se com ela. O mito encontram em uma relação de contradição, e
da propriedade privada, como fundamento do para apresentar a colonialidade como a outra
desenvolvimento da pessoa humana, desde, face da modernidade, sem a qual esta não seria
porém, que pessoas humanas sejam apenas possível. Ambas trabalham o tema da dominação
os opressores. O mito da operosidade dos
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pode ainda incorrer na falácia de buscar uma controle sobre o trabalho, sexo, autoridade
reconstrução da cultura originária a partir das e conhecimento às pessoas. Tal distribuição,
categorias definidas pelo próprio colonizador. todavia, não poderia ser feita através da
Em outras palavras: ao tentar-se reconstruir concentração de poder nas mãos do Estado sob
uma identidade antagonista à identidade a pena de um total despotismo. Se bem não fala
negada pelo colonizador – como, por exemplo, em revolução como o fazem Freire e Fanon,
uma identidade da “raça negra” – colocando- esse caminho apontado por Quijano tampouco
se os matizes em um mesmo todo, como o está claro.
fizeram os europeus ao categorizar os “povos
Embora não desconsidere em momento algum
negros”, desconsidera-se o estado atual de
os aspectos objetivos e materiais da revolução
heterogeneidade e os diferentes problemas e
como fim último, em “Pedagogia do Oprimido”
particularidades surgidos em cada contexto a
Freire se detém sobre o processo pedagógico
partir das diferentes formas de colonização e
de objetivação de determinados temas pelos
dos diferentes colonizadores.
oprimidos como forma de libertação. O enfoque
Finalmente, ao identificar a dominação e central da obra é nos aspectos cognitivos de
a dependência como obstáculos centrais à transformação da realidade, que como lembra
formação de uma cultura e uma consciência Freire, não podem ser separados dos aspectos
nacionais, a obra de Fanon (1979) faz uma objetivos, correndo-se o risco de se cair em um
defesa do combate ao colonizador e da luta objetivismo ou em um subjetivismo ingênuos.
material pela liberdade como alternativa única
Objetivação da mitologia eurocêntrica
à situação de dominado. Importa observar que
a situação de dominado aqui se sobrepõe à O projeto pedagógico de Freire visa à formação
situação de colonizado. de uma percepção crítica da realidade opressora
pelos educandos e a problematização de
O desafio de formação de uma nação face ao
temas antes não questionados e de situações e
problema da “colonização do ser” também
condições antes assimiladas como naturais: “a
é assinalado por Quijano (2005). Para ele
análise crítica de uma dimensão significativa
a permanência da colonialidade do poder
existencial possibilita aos indivíduos uma nova
em alguns países da América Latina5 é fator
postura, também crítica, em face das situações-
impeditivo da construção de um Estado-nação,
limites” (Freire, 2005, p. 112). Em outras
que tem como pressuposto participação política
palavras o propósito da educação libertadora é
e civil democráticas, o que por sua vez requer a
o de superar a visão fatalista da realidade como
democratização das relações sociais. A solução
eterna e imutável, passando-se à percepção de
seria, para o autor, uma radical devolução do
5 Como intelectual peruano, Quijano reflete principalmente que ela é construída pelos homens e passível de
sobre a realidade dos países andinos, nos quais a colonialidade do
poder ainda vigente mitiga a participação democrática na vida
ser transformada.
política e civil.
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Para que seja superada a visão fatalista sentido, adotar como conteúdo programático
da realidade é necessário que a mitologia a apresentação de alguns discursos coloniais
opressiva seja desconstruída – processo em que como mitos forjados com vistas a justificar a
a educação libertadora tem papel fundamental. dominação tem, assim como o projeto de Freire,
Ao problematizar aspectos da realidade dos um caráter pedagógico.
oprimidos ela permite aos educandos apreender
Para Dussel (2005) a saída da “colonização
o processo de construção da estrutura opressora,
do ser” passa pela superação da mitologia
e as categorias e mitos que fundamentam tal
da modernidade eurocêntrica. Mas para que
estrutura. E os permite também localizar-se
a superação da modernidade seja possível é
no escopo dessa estrutura, deixando de ser
necessário que a “outra-face” da modernidade,
aderentes passivos a ela:
negada e inferiorizada, se veja como inocente e
A percepção ingênua ou mágica da realidade da como vítima do processo de dominação6, e ao
qual resultava a postura fatalista cede seu lugar fazê-lo, possa identificar o mito da modernidade
a uma percepção que é capaz de perceber-se. E como culpado da violência originária e
porque é capaz de perceber-se enquanto percebe conquistadora:
a realidade que lhe parecia em si inexorável, é
Apenas quando se nega o mito civilizatório e da
capaz de objetivá-la. (...) O fatalismo cede,
inocência da violência moderna se reconhece
então, seu lugar ao ímpeto de transformação e
a injustiça da práxis sacrificial fora da Europa
busca, de que os homens se sentem sujeitos”
(e mesmo na própria Europa) e, então, pode-
(Freire, 2005, p.85)
se igualmente superar a limitação essencial
Para Freire (2005) uma das formas pelas quais o da “razão emancipadora”. Supera-se a razão
educador poderia ajudar no sentido de superação emancipadora como “razão libertadora” quando
da mitologia opressiva – e, por conseguinte, na se descobre o “eurocentrismo” da razão
superação da “colonização do ser” – é por meio ilustrada,
da explicitação de alguns dos mitos sobre os
quando se define a “falácia desenvolvimentista”
quais a dominação se fundamenta: “o que há
do processo de modernização hegemônico. Isto
de fazer é propor aos oprimidos os slogans dos
é possível, mesmo para a razão da Ilustração,
opressores, como problema, proporcionando-se,
quando eticamente se descobre a dignidade do
assim, a sua expulsão de dentro dos oprimidos”
Outro (da outra cultura, do outro sexo e gênero,
(Freire, 2005, p. 99).
etc.); quando se declara inocente a vítima pela
A problematização das categorias e esquemas afirmação de sua Alteridade como Identidade na
de interpretação subjacentes ao eurocentrismo, Exterioridade como pessoas que foram negadas
6 Note-se que a noção de inocente aqui diz respeito ao auto-
notadamente através da explicitação dos mitos reconhecimento da inocência da acusação de atraso. Assumir a
que o constroem, é justamente a proposta do posição de vítima seria então uma estratégia de “descolonização
do ser”, reconhecendo-se não como atrasado – o que justificaria a
pos-colonialismo latino-americano. E, nesse colonização como evolução em direção à modernidade – mas sim
como inocente deste estigma.
192
pela Modernidade (Dussel, 2005, p. 60) exemplo, a preocupação de Freire em apontar que
a pronúncia da palavra não deve ser prerrogativa
Note-se que o que Dussel chama de superação do
apenas de alguns. E seu objetivo de libertação
mito da modernidade eurocêntrica se aproxima
das classes oprimidas está diretamente ligado
do propósito da educação libertadora de Freire:
à conquista da capacidade destas de também
o de superar a contradição opressor-oprimido
dizer a palavra, dize-la conforme sua forma de
por meio da objetivação do opressor como causa
perceber a realidade ou, se poderia dizer, emiti-
da situação atual e por meio da problematização
la a partir de seu lugar de fala:
e questionamento da mitologia da opressão.
Se dizer a palavra verdadeira, que é trabalho,
A “Pedagogia do Oprimido” propõe a
que é práxis, é transformar o mundo, dizer a
objetivação e a desconstrução do mito da
palavra não é privilégio de alguns homens, mas
estrutura opressora como estratégia para
direito de todos os homens. Precisamente por
que o educando possa questionar temas e
isto, ninguém pode dizer a palavra verdadeira
aspectos da realidade antes tidos como dados,
sozinho, ou dizê-la para os outros, num ato
superando assim sua visão fatalista do mundo.
de prescrição, com o qual rouba a palavra dos
No mesmo sentido a literatura pós-colonial
demais. (Freire, 2005, p. 91)
advoga pela objetivação e desconstrução do
mito do eurocentrismo, através do paradigma Note-se que a necessidade de mudança do lugar
da colonialidade/modernidade, como forma de de fala ressaltada pelos autores pós-coloniais
produzir um conhecimento menos colonizado e segue esta mesma lógica de impedir que a palavra
excludente; daí seu caráter pedagógico para o seja prescrita a ou roubada de determinados
campo das ciências sociais. povos. A mesma lógica de denunciar a
permanência histórica de um privilégio da
Deslocamento do lugar de fala
pronúncia da palavra, quando na verdade essa
No processo de desconstrução da mitologia pronúncia deveria ser direito de todos. Ao
da estrutura opressora a palavra tem um papel argumento de Dussel em “O encobrimento do
fundamental. Não a palavra como um meio outro” (1993) está subjacente uma denúncia
para o diálogo, mas sim como práxis, ou seja, do roubo do direito de pronunciar a palavra, da
como fruto da ação e da reflexão humana. A detenção de um privilégio da “Europa moderna”
palavra tem o papel de pronunciar o mundo, de para classificar e enquadrar o resto do mundo
problematizá-lo, de modificá-lo (Freire, 2005). a partir da falácia da “civilização”. É exemplo
a explicitação da legitimidade e autoridade de
O papel da palavra como ação, destacado por Hegel como pensador moderno para enunciar a
Freire, se aproxima do argumento da perspectiva forma pela qual deveria ser apreendia a América
pós-colonial – para a qual a linguagem e o Latina e a África:
discurso têm lugar central. Cabe destacar, por
193
e da própria história colonial. Mignolo (2007) A segunda parte do texto identifica as estratégias
argumenta que a ruptura epistêmica produzida apontadas por Freire e pela literatura pós-colonial
a partir deste tipo de saber poderia levar a um para lidar com o problema da “colonização do
processo de descolonização do ser. ser”. É na convergência entre essas estratégias
que a dimensão pedagógica da contribuição
Daí a necessidade de investigar esses tipos
decolonial se torna visível. Se no contexto dos
de saberes de fronteira, e identificar em que
movimentos de descolonização da África nos
medida eles oferecem resistência à colonização
anos 1960 a estratégia central era a revolução,
do ser. Para Freire (2005) a investigação do
notadamente em regiões onde opressão e
saber regional do povo a partir de uma postura
colonização ainda se sobrepunham, como no
de respeito é um dos pontos fundamentais no
caso da Argélia tratado por Fanon (1979), outras
processo pedagógico, “a metodologia que
estratégias também foram propostas no marco
defendemos exige, por isto mesmo, que no
da literatura decolonial.
fluxo da investigação, se façam ambos sujeitos
da mesma – os investigadores e os homens do Uma das mais importantes propostas, ressaltada
povo que, aparentemente seriam seu objeto” por Freire e pelos autores pós-coloniais, é a
(Freire, 2005, p. 135). objetivação e problematização da mitologia
que sustenta a dominação. No caso da
Considerações Finais
“Pedagogia do Oprimido” isso é feito através do
O trabalho teve como objetivo apontar alguns questionamento de alguns elementos da estrutura
pontos de convergência entre a obra de Freire opressora. Já na perspectiva pós-colonial trata-
“Pedagogia do Oprimido” e a perspectiva se de descontruir o mito do eurocentrismo. É
decolonial com o propósito de discutir em importante lembrar que a desconstrução desses
que medida esta literatura tem algum valor mitos que sustentam a dominação cognitiva (na
pedagógico comparável àquela. qual o próprio oprimido se vê como inferior) é
uma forma de reverter a “colonização do ser”.
Assinalei primeiramente alguns paralelos
no tocante a pressupostos e argumentos Outra proposta da perspectiva decolonial é
centrais: a compreensão dialética da relação o deslocamento do lugar de fala, o que se
oprimido/opressor e da relação colonialidade/ aproxima da estratégia da pedagogia de Freire
modernidade; o destaque da dimensão subjetiva de devolver a palavra ao oprimido. Falar a partir
de dominação expressa nas ideias de “invasão do paradigma colonialidade/modernidade,
cultural” e “colonização do ser”; e o argumento ressaltando a colonialidade como a outra face a
de que são os mitos da estrutura opressora e do modernidade, é uma forma de desafiar o discurso
eurocentrismo que sustentam essa dominação moderno hegemônico. Por fim, a perspectiva
cognitiva, que por sua vez é essencial à pós-colonial assinala para a necessidade de dar
dominação material. relevância ao discurso produzido nas “zonas de
197
fronteiras”, pelos grupos excluídos e oprimidos, o ensino e produção no campo das ciências
como forma de resistir à “colonização do ser”, sociais é justamente a explicitação da geopolítica
o que encontra um paralelo na proposta de do conhecimento: a problematização do
“educação libertadora” de Freire. processo internacional assimétrico de produção
de conhecimento e do lugar que ocupam os
Cabe ressalvar que à diferença da “Pedagogia do
países de “terceiro mundo” e o conhecimento
Oprimido” o conteúdo programático proposto
neles produzido.
pela literatura pós-colonial está mais próximo
a um debate acadêmico, e não representa Esta explicitação, por sua vez, é relevante
propriamente um conteúdo acessível a um para a construção de um olhar crítico sobre as
público mais amplo. Portanto, quando falo em categorias de pensamento a partir das quais
proposta pedagógica do pós-colonialismo latino- construímos nosso raciocínio acadêmico; para
americano não estou sugerindo um programa do o questionamento dos sistemas de classificação
mesmo alcance do de Freire. Estou me referindo construídos nas academias dos países “do
à importância pedagógica do debate pós-colonial ocidente” que muitas vezes excluem ou
no ensino e produção no campo das ciências minimizam a importância dos nossos objetos
sociais. Como proposta questionadora das de pesquisa – porque não foram considerados
categorias teóricas e das formas de raciocínio na construção destes sistemas de classificação
já naturalizadas como legítimas, essa literatura ditos “universais”; e para a problematização
tem um valor pedagógico que não pode ser do próprio objetivo de “universalização” da
desconsiderado. pesquisa nas ciências sociais, ao qual subjaz
a noção de que existe apenas uma única
O projeto pedagógico do pós-colonialismo
episteme ou forma aceitável de conhecimento e
tem função paralela à pedagogia de Freire: a
compreensão do mundo.
de ajudar-nos a perceber quão “permeados”
podem estar nosso processo intelectual e nossos Cabe citar um último aspecto da dimensão
critérios de julgamento. Permeados por um pedagógica da literatura pós-colonial no campo
processo de invasão cultural que acaba levando das ciências sociais: a compreensão da nossa
à imersão de nossa consciência crítica em realidade (latino-americana) como marcada por
uma mitologia das formas de conhecimento um processo histórico e sociológico de opressão
legítimas, dos temas premiáveis, das categorias e colonização. O que em si pressupõe um ponto
teóricas adequadas, das metodologias aceitáveis de partida, ou um lugar de fala, distinto do lugar
– no mais das vezes construídos a partir de casos a partir do qual o conhecimento hegemônico
particulares tomados como universais na lógica é enunciado. E isto marca nossa produção,
da geopolítica do conhecimento. nossos quadros interpretativos, nossas formas
de compreender e classificar o mundo.
Um das contribuições do pós-colonialismo para
198
Nesse sentido, para que possamos conceber A. Clasen. Petrópolis: Vozes, 1993.
nossos próprios objetos de investigação
FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. 2ª
tomando uma distância crítica das
Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979
categorias, formas de classificação e
métodos construídos a priori e em outros FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 47ª
contextos, é fundamental que possamos Ed. Petrópolis: Vozes, 2005 (1970)
tomar uma postura de sujeitos e deixar
de adequar-nos passivamente à realidade FREIRE, Paulo; GUIMARÃES, “Sérgio.
imutável e canônica das ciências sociais – Diálogos sobre o vivido: diálogos entre
tal como nos é passada ou depositada em Sérgio Guimarães e Paulo Freire”. Educação,
nós, e tal como depositamos em nossos Sociedade e Culturas, n. 23, 2005.
alunos. Se não formos capazes de trabalhar
MIGNOLO, Walter. La Idea de América Latina:
com essas categorias de forma crítica – não
la herida colonial y la opción decolonial.
nos dando conta de que nossa produção está
Barcelona: Gedisa Editorial, 2007.
situada no entre-lugar de Silviano Santiago
(1978) – incorremos no risco de ofuscarmos MIGNOLO, Walter. “Colonial and Postcolonial
a visão da nossa própria realidade e Discourse: Cultural Critique or Academic
problematizarmos de forma ingênua ou Colonialism?”. Latin American Research
equivocada nossos temas de pesquisa. Review, Vol. 28, No. 3 (1993), pp. 120-134