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HT IVIUOINUU POT ee Constituinte: a verdade e o sofisma Raymundo Faoro Possibilidades e limites da Assembléia Constituinte ‘Constitugdo dif DIO ABRAMO ll PAULO SERGIO PINHEIRO ===— | FOENOCRICIM Claudio Abramo EVARISTO, CARDEAL ARNS Mil SEVERO GOMES A cidadania das classes populares, seus instrumentos de OG GUN a NN Ain at rit : defesa e 0 processo constituinte Paulo Sérgio Pinheiro Contribuigdo da Igreja Paulo ‘Siasgio cansttaines Severo Gomes Por que nao a soberania des pobres? Miri Thomas Bastos Bi ig DER COMPARATO lll DALMO DE ABREU DAL ee a EMIR SADER (ORG) Mil MARCI, THOMAZ BAS: 0 verdadero caminto da democraca 1S TEOTHONIO DOS SANTOS ill HELIO BICUDOL Coxstinigdn, primus passos i BEFERNANDO GABEIRA MMI CLOVIS ROSSI 2, ammee Eie ot Oo , ; a Qo Fabio Konder Comparato Clévis Rossi ; » e° @ 029 : a. 5 } e ditora brasiliense Constituipao para o Brasil novo oy Dalmo de Abreu Dallari Constituinte, democracia e poder Emir Sader Constituinte: quando, como, por quem e para qué GONGTITUINTE £ GEMGGRAGIA NE BRASH HBS y * Claudio Abramo « Clovis Rossi « Dalmo de Abreu Dall Emir Sader (org.) © Fabio Konder Comparato « Fernando Gabeira Hélio Bicudo ¢ Marcio Thomaz Bastos « Paulo Evaristo, cardeal Arns ¢ Paulo Sérgio Pinheiro ¢ Raymundo Faoro ‘¢ Ruy Mauro Marini » Severo Gomes * Teothénio dos Santos Constituinte e Democracia no Brasil Hoje 1? edigdio 1985 28 edicdo 400040157 brasiliense 1985 Copyright © dos Autores Capa Joo Baptista da Costa Aguiar Revisao: Marcia R. Takeuchi 5 Editora Brasiliense S.A. R. General Jardim, 160 01223 — So Paulo — SP Fone (011) 231-1422 K [Indice Apresentagdo—EmirSader ....000.ccceccseeceeees 5 Constituinte: a verdadee osofisma — Raymundo Faoro 7 Possibilidades e limites da Assembléia Constituinte — Ruy Mauro Marini ........ a 7 Uma Constituigdo diferente — Claudio Abramo 4 ‘A cidadania das classes populares, seus instrumentos de defesa eoprocessoconstituinte— Paulo Sérgio Pinheiro ....... 54 Contribuigdo da Igreja — Paulo Evaristo, cardeal Arns . 69 Situagdo Constituinte—Severo Gomes .....-+ 81 Por que ndo a soberania dos pobres? — Fabio Konder Com- parato . - 85 Constituigao parao Brasilnovo—- Dalmode Abreu Dallari.... 110 Constituinte, democraciae poder — Emir Sader . 128 Constituinte: quando, como, por quem e para qué — Marcio Thomaz Bastos ... 147 Constituinte: uma agenda para o debate — Teothonio dos Santos. 187 O verdadeiro caminho da democracia — Hélio Bicudo 177 Constituigao, primeiros pasos — Fernando Gabeira... 192 Democracia, constituinte eimprensa — Clévis Rossi - 198 “ SITUAGAO CONSTITUINTE periéncia de conviver com principios gerais copiados que permaneceram como letra morta, como irdnicos epité, fios ou ormamentos retéricos. me Dai a necessidade de que se mantenha a “situaga. constituinte” durante a elaboragio da Constituicio ede que © povo, ao outorgar aos eleitos a delegacao de repre senté-lo, reserve-se o direito de participagao paralcla nesse processo fundamentalmente democratico e responsdvel de uma Nagéo fazer a lei que a constitui. Uma nova Const tuigdo € © acontecimento da maior violencia na histéria de uma Nagao. O Brasil esté despertando para a sua funda Go. Que as pupilas se concentrem. que as vozes se levan fem nos bairros, nos sindicatos, nas escolas, nas fabricas nas igrejas, nos partidos politicos e em todos os canios onde hajam formas espontineas de solidariedade social. Este pais tem tudo o que € preciso para resolver av questées fundamentais do povo: terras, fabricas, recursos naturais, universidades, cientistas, artistas, empresérios, sindicatos, e comega a ter o que The faltava: o proprio povo, despertando para mandar no seu destino, quer di- zer, com forga para construit um direito piblico que re- flita as vontades do Brasil contemporéneo ¢ que s¢ estru- ture com a necesséria flexibilidade para a constante ino- vacio € a permanéncia dessa “situagio constituinte”, que € 0 espago piiblico da manifestagéo de todas as novas vontades. Por que nao a soberania dos pobres? Fabio Konder Comparato Embora desvalorizado pelo uso promiscuo e inep- to, 0 conceito de soberania ainda ¢ importante na cons- trugao e compreensio de qualquer regime politico. E que toda a organizacao estatal reduz-se, afinal, a uma regula- gao hierérquica de poderes, formando um sistema, isto é, um conjunto ordenado estruturalmente, em vista de deter- minada finalidade. O funcionamento desse sistema obe- dece a uma ldgica interna, fundada na existéncia de um poder supremo. E possivel e mesmo freqiiente que 0 es- quema normativo do sistema, expresso no texto constitu: cional, nao corresponda 2 realidade efetiva do poder na sociedade. Quando isso acontece, a dissociacao entre a ordem oficial ea ordem real de poderes abre-se, justamen- te, na identificagao do titular da soberania ou poder supremo. ‘As indagacées definidoras de todo regime politico so, pois: 1) quem manda, efetivamente, em tiltima ins- tancia? 2) quem deve mandar? A primeira corresponde a ordem da efetividade; a segunda, & da legitimidade. Costuma-se identificar a democracia com o regime de soberania do povo. Essa equagio, aceita como dogma desde 0 inicio do século passado, parece no entanto singularmen- te imprecisa e obscura, por pouco que se procure analisé-la despida dos lugares-comuns que a envolyem. Uma anélise | 6 POR QUE NAO A SOHERANIA DOS PORRES? dessa ordem contribuiré, certamente, para revelar a causa mais profunda do mau funcionamento de varios sistemas constitucionais, notadamente do nosso. Trata-se, por con seguinte, de uma reflexdo preparatéria indispensavel em momentos de elaboracao constituinte, como o que parece prestes a se abrir entre nds. A CONCEPCAO ORIGINAL DA SOBERANIA A importancia do poder supremo (kurion) como elemento definidor dos regimes politicos j4 fora ressaltada por Aristételes. Mas a teoria moderna da soberania inau- gurou-se com os legistas reais do século XVI, ¢ representou © instrumento doutrinal de independéncia do monarca, tanto no plano interno — diante das prerrogativas feudais da nobreza —, quanto no plano externo, relativamente as Pretensdes hegeménicas do imperador e do Papa No conceito assim forjado ressaltaram-se dois elemen- tos. Em primeiro lugar, soberania significava poder ativo, de comando ou diregao, situado acima de todos os demais poderes. Nesse sentido, nao diferia, aparentemente, do conceito jé elaborado pelos juristas medievais, ao refleti- rem sobre a ordem feudal. Chacun baron, escreveu Beau- manoir no século XI (Les Coutumes du Beauvaisis) est souverain en sa baronie; le roi est souverain par dessus tout. A diferenga se estabelecia mais além dessa {6rmula, na prépria origem do poder supremo. A subordinacéo da ei natural e da lei positiva a lei divina era, de fato, rom pida (quando mais nao fosse, praticamente, para evitar a subordinagao do monarca a autoridade religiosa do Papa). direito tinha origem na vontade do soberano, livre de qualquer lei. E a lei deixava de ser obra da razdo, passan- do a ser um produto exclusive da vontade humana. Ope- rava-se, com isso, a identificacao prdtica entre a lei e 0 decreto do soberano. De resto, no pensamento de Jean Bodin, primeiro grande teérico moderno da soberania, @ nia ee CONSTITUINTE DEMOCRACIA NO BRASIL 87 lei tampouco devia se confundir com o direito. Este seria uma espécie de principio ético do bom e do equittivo {alusfo & definicao elegante de Celso, reportada Pett 7 iano: ius est ars boni et aequi: Digesto, 1, 1, 1 pr.) a pido de poder, enquanto que a lei reduzir-se-ia ao comando fa suprema autoridade (Plurimun distat lex a jure: ius enim sine iussu ad id quod aequum bonum est, lex aaa ad imperantis majestatem pertinet. Est enim lex nihil aliu quam summae potestatis iussum), Nesse contexto seman fico, torna-se mais clara a famosa definigo de soberania do mesmo Bodin: poder supremo sobre os cidadaos © ee stditos, desvinculado das leis, isto &,olivre dos comandos de qualquer outra pessoa (summa in cives ac subditos le- soluta potestas). aed Tugar, € como conseqiiéncia dessa mesma concepeao, a soberania nao era apenas um poder acima dos outros, mas também a fonte geradora de todos os de- mais poderes, Na ordem feudal, ao contrério, chacun baron est souverain en sa baronie por direito préprio, nao derivado da vontade do rei TRANSFERENCIA DA SOBERANIA PARA O POVO: PRIMEIRO DESVIO SEMANTICO Aplicado nao mais a um individuo, mas a0 povo como entidade coletiva, esse conceito de soberania sofreu, desde logo, um duplo desvio de significado: a vontade pela qual se manifesta 0 poder j4 nao € pessoal ¢ 0 poder su- premo deixa de ser ativo para se tornar to-s6 consen- fe. -_ aa passagem da vontade individual 2 coletiva nao sig: nificou apenas uma mudanga quantitativa — do simples 20 miltiplo —, mas também qualitativa. E, de fato, s6 mesmo por via retérica se poderia usar do mesmo termo para indicar tealidades tao diferentes. Quando os legistas do século XVI insistiam no cardter essencialmente indivi- 8s POR QUE NAO A SOBERANIA DOS PORES? sivel da soberania, tinham em mente a vontade do mo- narca, que, a ndo ser em caso de esquizofrenia aguda, nao podia, a0 mesmo tempo, querer e no querer. Mas em se tratando de um grupo humano, é dbvio que a unificacia de vontades, em substituigfo & vontade tnica, somente pode manifestar-se na hipétese de unanimidade de votos sem abstengdes; hipétese tanto mais rara, quanto mais numeroso 0 grupo. Percebeu-se, pois, desde logo, que a idéia de soberania popular era estreitamente ligada ao principio majoritario John Locke assim entendeu e proclamou, ao teorizar, pela vez primeira nos tempos modernos, sobre a soberania do povo. Em linguagem prolixa e metafdrica. observou: “Quando qualquer niimero de homens, pelo consentimen- to de cade individuo. constituiu uma comunidade, tornou Por isso mesmo, essa comunidade um corpo, como poder de agir como um corpo, 0 que se dé tao-s6 pela vontade resoluedo da maioria, pois 0 que leva qualquer comuni- dade a agir sendo somente 0 consentimento dos individuos que a formam, e sendo necessdrio ao que é€ um corpo para mover-se em um sentido, que se mova para o lado para © qual o leva @ forga maior, que é 0 consentimento da maioria, se assim nao fosse, seria impossivel que agisse ou continuasse a ser um corpo, uma comunidade, que a aquiescéncia de todos os individuos que se juntaram nela concodaram em que fosse; dessa sorte, todos ficam obriga- dos pelo aordo estabelecido pela maioria. E, de fato, ve- mos que, nas assembléias que tém poderes para agir me- diante leis positivas, 0 ato da maioria considera-se como sendo 0 ato de todos ¢, sem dtivida, decide, como tendo o poder de todos pela lei da natureza e da razao. E assim, todo homem, concordando com outros em formar um corpo politico sob um governo, assume a obrigagéo para com todos os membros dessa sociedade de submeter-se resolucdo da maioria, conforme se assentar.” Locke reco- nhece em seguida, sem disfarces, a razio de ordem priti- ' CONSTITUINTE & DEMOCRACIA NO BRASIL 8 ca: “Se 0 assentimento da maioria nao fosse recebido, razoavelmente, como ato de todos, obrigando a cada indi- viduo, nada senao o consentimento de cada um poderia fazer com que qualquer ato fosse o de todos; mas tal con- sentimento € quase impossivel de conseguir-se, se consi- derarmos as enfermidades e as ocupagdes de negécios que em um grupo qualquer, embora muito menos que em uma comunidade, afastardo necessariamente muitos membros da assembléia publica”. E conclui: “Assim sendo, o que dé inicio e constitui realmente qualquer sociedade politica nada mais € sendo o assentimento de qualquer ntimero de homens livres capazes de maioria para se unirem e incor- porarem tal sociedade. E isto e somente isto deu ou podia dar origem a qualquer governo legitimo no mundo” (‘‘Se- gundo tratado sobre 0 governo”, parégrafos 96 ss. Esse simbolismo da expresso da maioria, equiparado a vontade do corpo social, no agradou, como sabido, a Rousseau. Qualquer que seja o cémputo majoritério, basta uma s6 voz de discordancia para romper efetivamente essa unidade simbélica. Sem dtivida, como ele bem observou, mesmo em se admitindo a equiparacdo prética do voto majoritério com a vontade do corpo social, haverd sempre que reconhecer pelo menos uma deliberacdo undnime: a que fixou, inicialmente, o principio majoritério. A condi- Go de legitimidade da lei da maioria repousa no consen- timento original de todos os que formaram a sociedade. © contratualismo de Rousseau — fundado no modelo das sociedades do direito privado — é perfeitamente légico. Pois, “se néo houvesse uma convengao anterior, onde es- taria, a menos que a eleigao fosse undnime, a obrigagio para a minoria de se submeter & escolha da maioria, e de onde viria, para cem que querem um chefe, o direito de votar por dez que nao o desejam?” (“Do Contrato Social”, livro I, cap. 5..). De qualquer forma, como percebeu Rousseau aguda- mente, a unidade de vontade néo pode ser obtida pelo 90 POR QUE NAO A SOBERANIA DOS POBRES? cémputo numérico, mas pela homogeneidade de contetido ou objeto das diversas manifestagdes de vontade. Dai esta- belecer ele a sutilissima distingdo entre a vontade de todos e a vontade geral, a primeira como registro meramente quantitative de votos a segunda como expresséo verda- deira do querer coletivo. A vontade geral ‘sé diz respeito a0 interesse comum, a outra (a vontade de todos), ao in- teresse privado e nao passa de uma soma de vontades par- ticulares: mas retirai dessas mesmas vontades as que se entre-destréem mais ou menos, resta como soma das di- ferencas a vontade geral” (idem, livro II, cap. 3.) A expresso da soberania popular néo fica, assim, confinada ao ntimero dos votantes, mas & qualidade dos votos. No rigor légico desse raciocinio, a opinido da mi noria, ou mesmo de um s6, deveria ser tomada como ex- presséo da “‘vontade geral” e, portanto, da soberania, se todos os demais votantes defendessem, com seus votos, in- teresses particulares e nao o interesse geral. E 0 que sucede, aliés, nas sociedades do direito pri- vado. © voto dado em assembléias gerais de sociedade anénima nao deve, sob pena de anulacdo, visar ao inte- resse proprio do votante, em detrimento do interesse da companhia (Iei de sociedades por ages, art. 115). A regra no admite excegdes, nem mesmo para 0 acionista contro- lador, reconhecido legalmente como titular da soberania societéria. Provando-se que o controlador praticou abuso ou desvio de poder ao exercer 0 direito de voto, essa sua manifestagéo de vontade € anulada, prevalecendo, como elemento formador da deliberagao social, os votos da mi- noria, ainda que infima em relagao ao capital social. Qual a diferenga, entdo, entre essa concepgao da so- berania popular pela qualidade dos volos ¢ a teoria cand- nica da supremacia da sanior pars sobre a maior pars? Ou entre a idéia de uma vontade geral tendente ao bem comum e a concepcao aristocratica (no sentido etimolégi- co) da vocacao natural das elites a0 exercicio do poder? é: CONSTITUINTE E DEMOCRACIA NO BRASIL a E quem decidiria, em tiltima instancia, sobre a verdadeira qualidade dos interesses perseguidos com os votos em elei- g6es politicas, discernindo, em caso de controvérsia, os que votaram no sentido do bem comum e os que procura- ram defender interesses privados? © pensamento de Rousseau, como se vé, acaba esva- ziando o conceito de soberania popular de todo conteido realmente popular e, na verdade, preparou o advento da democracia burguesa muito mais do que geralmente se reconhece. Nao ha, no fundo, diferenga alguma entre essa concep¢ao que atribui a soberania & vontade geral e a idéia que acabou prevalecendo, durante a revolugdo francesa, da soberania da nagdo. Esta tiltima foi, desde logo, con- cebida como entidade antropomérfica, verdadeira hipés- tase do homem soberano, abafando, na unidade simbédlica, todas as distingdes sécio-econdmicas e todos os conflitos grupais. A formula lapidamente lancada no art. 3° da De- claragéo dos Direitos do Homem e do Cidadao, de 1789, remete todo poder politico a uma entidade impessoal, que somente por metdfora se pode considerar dotada da von- tade real de um ser humano: “O principio de toda sobe- rania reside essencialmente na nagdo. Nenhuma entidade, nenhum individuo pode exercer autoridade que dela nao emane, expressamente.”” ‘A Constituigdo imperial brasileira, de 1824, reprodu- ziria a seu modo a mesma idéia. “Os representantes da nagdo brasileira”, rezava 0 art. 11, “so o imperador e a assembléia geral.” E o artigo seguinte arrematava: “Todos estes poderes do Império do Brasil sao delegagdes da nagao.” Os atributos da soberania nacional, igualmente decla- rados em 1789, revelam o seu carter absoluto e idealista. A soberania da nagao é considerada indivisivel, nio ca- bendo parcela alguma dela aos cidadaos. Inaliendvel, porque nao se trata de um bem patrimonial in commercio, propriedade do soberano. Portanto, ainda que a nagdo ela 2 POR QUE NAO A SOBERANIA DOS POBRES? mesma, cs seus legitimos representantes, votassem o retor- no ao regime mondrquico, essa deliberacao seria nula e de nenhum efeito. Finalmente, a soberania nacional é impres. critivel, qualquer que seja a duragao dos governos legiti- mos ou usurpadores TRANSFERENCIA DA SOBERANIA PARA 0 POVO: SEGUNDO DESVIO SEMANTICO Abria-se, com isso, outro desvio semantico na idéia de soberania popular: 0 soberano, agora, j4 nao é 0 titular do mando, mas simplesmente, na melhor das hi- péteses, 0 que consente no exercicio do poder. Deparamo- nos, af, com um singular soberano, que aceita submeter- a0 governo de outrem. A expansdo populacional e geogréfica do Estado mo- derno acabou preponderando, nessa matéria, sobre os prin- cipios tedricos. A pélis sempre foi uma comunidade redu- zida, quer pelas suas dimensées territoriais, quer pela populagao. E 0 que se nao pode perder de vista, ao se con- siderarem as teorias politicas gregas, que tanta influéncia exerceram sobre os doutrinadores do constitucionalismo moderno. Fiel A sua concepgao da exceléncia do meio-termo, Aristételes entendia que a populagio de um Estado nao deveria ser nem excessivamente reduzida, nem demasiada- mente grande. A populacao infima tornaria o Estado de- pendente dos outros; o que contraria a sua natureza de existir com autonomia. E a populagéo muito extensa a retaria a impossibilidade de uma boa legislagao: pois se toda lei é uma certa ordem, o excesso populacional conduz necessariamente & desordem, a qual sé mesmo uma potén- cia divina seria capaz de regular. Um Estado muito popu- loso — acrescentava de modo muito elucidativo para a compreensao do problema moderno — acabard sendo re- gido nao como uma pélis, mas como uma nagdo: pois te CONSTITUINTE E DEMOCRACIA NO BRASIL % quem podera ser estratego de tio vasta multidio? Ou quem seré seu arauto, se nao tiver a voz de um estentor? O excessivo actimulo de cidadaos, mesmo expurgados dos escravos ¢ dos metecos, prestar-se-ia mal ao exercicio dos dois poderes que a constituicao da polis costumava atribuir a0 povo: a votacio das leis a administragao da justica. Em suma, na concepgao aristotélica, “‘o limite ideal a ob- servar para um Estado, é a maior extensio possivel da populagao, compativel com uma vida que se baste a si mesma, € que possa ser abarcada facilmente de um s6 golpe de vista” (“Politica”, 1326 a e 6). Compativelmente com essa opiniao, o territério ideal da pélis s6 poderia ser aquele suscetivel de fécil apreen- 0 com um golpe de vista, quando mais nao fosse por raz6es estratégicas, levando-se em conta as condigées bé- licas da época (id., 1327 a) E perfeitamente compreensivel, portanto, que, obser- vadas esas exigéncias geo-demogréficas, 0 povo tenha tido, nas cidades-Estados da Grécia, uma participagao efetiva € constante nos processos de govern. Nao havia nisso ne- nhum “vicio”, como pareceu a Montesquieu (De l’Esprit des Lois, livro XI, cap. VI). Mas nos Estados modernos, populosos ¢ territorialmente extensos, tornou-se inevitével confinar 0 povo & funcao eleitoral, institucionalizando-se © sistema representativo. As caracteristicas da soberania popular reduziram-se, pois, ao fato de que a vontade do povo & considerada a fonte de todos os poderes politicos, desaparecendo a prer- rogativa de uma intervencdo direta nos processos de go- verno. A partit de 1934, todas as Constituigdes brasileiras se abrem com a proclamacao de que todo poder emana do povo e em seu nome ¢ exercido. A solenidade da [6r- mula encobre o efetivo recuo histérico da soberania po- pular, pela eliminacdo de todo poder ativo do “soberano”. on POR QUE NAO A SOBERANIA DOS POBRES? © CONCEITO DE POVO Mas quem é, concretamente, esse povo que doravante consente sem mandar? E dbvio que nos deparamos, ai, com um conceio ju ridico-politico ¢ n&o sociolégico. O povo é constituido pelo conjunto dos cidadaos, que so as tinicas pessoas dotadas de direitos politicos, ou seja, os nacionais eleitores. E a capacidade politica, vale dizer, a aptidao juridica para vo- tar ¢ ser yotado é uma das “‘regras do jogo”, definidas na Constituigo e nas leis complementares a esta Ora, é justamente pela delimitagio da cidadania que os regimes politicos ditos democraticos tém conseguido conter a soberania popular dentro de proporgdes adequa- das ao efetivo exercicio do governo, pelos delegados das minorias poderosas. Voto censitério — igualdade formal de circunscrigées eleitorais desiguais em mtimero e classe de eleitores, exclustio do voto das mulheres, dos indigenas e dos analfabetos — sao alguns dos processos mais usados para restringir, concretamente, a definigéo do povo so- berano. Compreende-se, por ai, a observagao aparentemente paradoxal de Aristételes de que, salvo a monarquia, todos os demais regimes politicos obedeceriam ao principio m joritdrio. Em todos eles, de fato, é a maioria da classe do- minante que detém o poder supremo (‘‘Politica”, 1290 a, 31-32; 1294 a, 10-15). Mas 0 fildsofo se referia, nessas passagens, & maioria como forma de expressdo deliberativa, nao @ maioria do povo como titular da soberania. Para a identificagao do detentor do poder supremo, sua concepgao era claramente qualilativa ¢ nao ntimérica. A democracia, para cle, nao € 0 regime da soberania popular, mas da soberania dos pobres, assim como a oligarquia se identifica pela. atribui a0 do poder supremo aos ricos. Sem diivida, segundo geralmente acontece, os pobres constituem a maioria da / « CONSTITUINTE E DEMOCRACIA NO BRASIL, 95 populacdo, mas esse fato é meramente acidental ¢ ndo substancial (idem, 1279 b, 11 ss.; 1290 a, 30 ss.; 1296 b, 12 ss., entre outras passagens). A democracia é 0 regime em que o poder supremo pertence @ maioria da populacio, na medida em que essa maioria é composta de pobres. Para estes, de fato, a tinica forga se encontra no numero. Na teoria democratica moderna, porém, néo hé ne- nhuma “‘opgao preferencial pelos pobres”. Soberano é 0 povo, entidade una, e nao complexa, composta de indivi- duos perfeitamente iguais entre si. Dentro dessa unidade coletiva, cuja delimitagéo concreta varia notavelmente se- gundo a definicao constitucional da cidadania, como aca- bei de lembrar, a vontade da maioria equivale & vontade do todo. E dogma politico que o povo quer, quando a maior parte dos que participaram, efetivamente, da eleigao popular pronunciou-se em determinado sentido; mesmo que essa maior parte seja uma minoria, em relagdo ao ati- mero de eleitores ou até em relagéo ao ntimero de votantes. ‘A nogio unitéria e totalizante de povo — importa sublinhar — é recente na histéria politica. Seu nascimento € coevo da elaboragao do constitucionalismo no século XIX. Os pensadores politicos do século anterior a desco- nheciam. Montesquieu ainda se refere a peuple como o conjunto dos que nao se distinguem “pelo nascimento, pela riqueza ou pela honorabilidade” (“De Esprit des Lois”, livro XI, cap. VI). Na tradigéo monérquica, 0 rei se con- siderava defensor dos povos do seu reino. Em nossa Cons- tituigéo Imperial ainda se encontra esse emprego plural da palavra: “Para julgar as causas em segunda e dltima instancia” — determinava o art. 138 — haver nas pro- vincias do Império as Relages que forem necessérias para comodidade dos povos”. De resto, nao é preciso grande esforgo de raciocinio nem excepcional acuidade de anélise para perceber o ir- realismo dessa nogao simples € unitéria de povo: ele nao % POR QUE NAO A SOBERANIA DOS POBRES? é, nunca, uma colecdo de individuos iguais entre si, mas um conjunto complexo de classes, racas, clas, estamentos, grupos religiosos, cujo poder e influéncia variam enorme. mente, de época a época e de pais a pais. O mecanismo de atribuigao do poder supremo a essa unidade global e abstrata, por meio da expresso do voto majoritario, mais esconde do que revela a realidade do poder efetivo na sociedade. COMPARACAO COM 0 DIREITO DAS SOCIEDADE POR ACOES Uma comparagao com a evolugao do direito das sociedades annimas € muito elucidativa, nesse particular At€ agora, tem-se interpretado o mecanismo de funciona- mento das companhias como uma adaptacao do constitu- cionalismo as sociedades mercantis. Convém, no entanto, proceder em sentido inverso e registrar a evidente influén- cia das regras societérias do direito privado sobre o pen- samento politico. A razio é simples: o génio organizador da burguesia manifestou-se no campo econémico, muito antes de penetrar no terreno politico. Procurou, na ver- dade, moldar a organizacao estatal, como ainda procura até hoje, segundo as férmulas e principios que se revela- ram eficazes em matéria empresarial. E de Sieyés, primeiro grande teérico moderno do po- der constituinte, a seguinte observacao sugestiva, em dis- curso na sessio da assembléia constituinte de 21 de julho de 1789: “Somente aqueles que contribuem para o esta- belecimento ptiblico (0 Estado) sio como os verdadeiros acionistas da grande empresa social. $6 eles sio os verda- deiros cidadaos ativos, os verdadeiros membros da asso- ciagdo.” Essa visio patrimonialista da sociedade politica foi claramente adotada na Constituigdo francesa de 1791. Para poder exercer 0 direito de voto, 0 cidadao deveria provar sua qualidade de contribuinte de impostos diretos CONSTITUINTE F DEMOCRACIA NO BRASIL ” le domesticidade” (segao ida do antigo estado de © sta nfo incluso no “estado d Il, art, 2.°), sobrevivéncia atenua servidao - Ja tive ocasido de observar, em trabalho académico (O Poder de Controle na Sociedade Anénima”, 3. ed., Rio de Janeiro, n.° 4), que a Fedlidade de um poder supre- mo, encarnado em alguns acinistas nomeadamente indi- tados @ nao em todo o quadto aciondrio, esteve sempre presente As primeiras regulagOes legais das a Por ages. Na comandita por age, por exemplo, que foi ate fins do século passado, em cettos paises, 0 tipo Eaeeail qiiente de sociedade aciondria. © poder de comani buido aos gerentes ou diretores nomeados nos estatutos e demissiveis em condigdes excepcionais. fa consentien- to € indispensdvel para a altefagdo dos elementos basicos da organizagao social, notadamente ro que tange 90, £3 pital. Em contrapartida, eles respondem sempre, sul riamente, pelas dividas da s ociedade. ‘A mesma concepgao anti-anénima do poder inspirou ivas ou pri- a constituigdo das primitivas Companhias repalstas aes vilegiadas de comércio. A Companhia das Indias Ori me or exemplo, modelo de todas as que a sucederam, nac previa ma assembléia gera! de acionistas, mas conselhos Pred ne eum dos aises Baixos. Esses conselhos de- Sgnavam os 60 membros d0 ditetério, eleitos proporcio- 2 Oe c: ‘ial. nalmente & sua participagio "° capital social ‘ad ‘A Companhia Geral do Comércio do Brasil, criada alvaré ragio de 1649, era administrada por uma Junta cana dee 9 deputados OU diretores, sendo 8 eleitos pelos acionistas de mais de 3-000 cruzados e um designa- do pela municipalidade de Lisboa, mais 8 conselheiros eleitos pelos comerciantes fisboetas. Por sua vez, a Com- panhia Geral do Grao-Paré € Maranhao, criada em 1755. era governada por uma Junta de Administrago composta de um provedor, 7 deputados ¢ 3 conselheiros, eleitos por le edor, votos dos acionistas possul ores de titulos de capital no 98 POR QUE NAO A SOBERANIA DOS PORRES? valor de pelo menos 5.000 cruzados, mais um secretario e um artifice da Casa dos Vinte e Quatro. Nos estatutos do primeiro Banco do Brasil, de 1808, dispunha-se que apenas os 40 maiores acionistas consti tufam a assembléia geral. Cada grupo de 5 agdes dava di- reito a um voto, mas os votos se limitavam a 4 por pessoa. Até fins do sécuo XIX, prevaleceu, sem disfarces, a estrutura oligérquica da sociedade anénima. Nessa época, a oligarquia declarada foi substituida, em todas as legis- lages, pela soberania anénima e coletiva da assembléia geral de acionistas, semelhante ao povo da sociedade po- litica. E tal como 0 povo, o corpo acionério compreendia s6cios ativos e sécios passivos. Os primeiros so os acio- nistas ordindrios ou de mando; os outros, ilusoriamente chamados preferenciais, podiam ver suprimido o seu dirci- to de voto, o que quase todos os estatutos de companhias fizeram, pelo menos no Brasil Foi s6 nesta segunda metade do século XX que essa estrutura andnima comeca a ser rompida. Até entdo, as decisoes do acionista controlador, desde que tomadas por intermédio dos “6rgaos” societdrios — assembléia geral, conselho de administragéo ou diretoria — eram tidas como “atos de vontade” da propria companhia. A tal ponto que a minoria lesada por praticas de abuso de poder do controlador sé podia agir contra a prépria sociedade: ‘ou seja, em parte, contra ela prépria, minoria, que também participa do capital social. A grande reforma do direito das sociedades anénimas consistiu em eliminar esse anonimato formal. Doravante, em varias legislagdes, notadamente a brasileira, passou-se a reconhecer que © poder de mando compete ao acionista controlador, deixando de haver governo de assembléia. Em contrapartida desse reconhecimento do seu direito ao poder, 0 controlador assume deveres e responsabilidades para com os demais acionistas, os outros participantes da empresa e a comunidade em geral. Além disso, as minorias CONSTITUINTE DEMOCRACIA NO BRASIL ey comegam a ter uma representagao especifica, nfo s6 no conselho fiscal, mas também no conselho de administragao. Sao claras as vinculagdes da teoria moderna da so- berania popular com a ideologia do liberalismo econémico. Em ambas, reconhece-se 0 mesmo horror & realidade do poder, como fenémeno pudendo da vida social; a mesma ojeriza a submisséo de um homem & vontade de outro homem. E assim como, no terreno econémico, a vida seria regulada pela organizacao espontanea e impessoal do mer- cado, da mesma forma, no campo politico, a lei, expressio da “vontade geral”, racional e abstrata, ficaria sempre acima da vontade concreta dos homens (problema cuja so- lug&o Rousseau comparava, honestamente, & quadratura do circulo em geometria). Ou seja, um poder politico sem titular, Ainda ai, Sieyés concretizou e corrigiu 0 pensamento de Rousseau, como Lenin faria mais tarde em relagao a Marx. J4 em setembro de 1789, discursando na assembléia nacional, advertia que “a decisio pertence unicamente e s6 pode pertencer & Nacdo reunida em assembléia. O povo ‘ou a Nagao s6 pode ter uma voz, a da legislagao nacional”. Vencida essa idéia na elaboragao da Constituic¢ao de 1791, que procurou conciliar a soberania nacional com o prin- cipio monérquico, Sieyés acabou vendo, finalmente, triun- far na Constituigéo de 1793 seu pensamento e suas férmu- las: soberania parlamentar e governo de assembléia. A DISSOCIACAO ENTRE A ORIG E A FINALIDADE DO PODER POL! Fundada como esta nessa concepgao da soberania popular, a democracia moderna nav pode, obviamente, ser definida como 0 governo do povo pelo povo. Mas serd ela, a0 menos, 0 regime politico em que 0 govern é exercido para 0 povo, ou seja, em beneficio deste? 100 POR QUE NAO A SOBERANIA DOS POBRES? Para os antigos, a dissociagao entre a origem e a fi- nalidade do poder politico, praticamente, no se punha. O detentor da soberania, segundo se entendia, exercia-a sempre em proveito proprio, estivesse 0 poder supremo nas maos de um s6 individuo, na massa dos pobres, na classe dos ricos, ou na nata dos virtuosos. No caso dos ricos e pobres, a parada em jogo seria, obviarr-nte, a fortuna a ser partilhada pelos homens no poder: os pobres expropriariam os ricos, ou estes explo- rariam aqueles. No caso do governo aristocratico, os que se considerassem mais virtuosos reservariam para si os car- gos piiblicos importantes, pretextando a incapacidade dos outros cidadaos (Aristételes, “Politica”, 1281 a, 11 ss.). Idéntico raciocinio fez Montesquieu, ao afirmar que nem a democracia nem a aristocracia (no sentido, agora, de go- verno da nobreza) so Estados livres pela sua natureza, ¢ que a liberdade politica s6 se encontra nos governos mo- derados, vale dizer temperados com elementos de um ¢ outro regime (‘De l’Esprit des Lois’, livro X1, cap. IV). Foi a ideologia mondrquica medieval e moderna que generalizou a possibilidade de uma dissociagao entre o ti- tular e 0 beneficiério da soberania, entre a vontade de mando ¢ a finalidade de governo. Presumia-se € ensinava- se que o rei exercia o poder majestético em beneficio de seus stiditos ou “povos”, ¢ no em proveito préprio, como os tiranos. Na verdade, a mesma concepgdo foi mantida. com outro estilo e novas justificativas, nos regimes de so- berania popular, a partir da revolugdo americana. Ja foi dito, com justeza, que os “pais fundadores" da unidio ame- ricana sempre desejaram. sinceramente, fazer a felicidade do povo; apenas nao concebiam que ela fosse realizada por pessoas diversas deles préprios. A prosperidade dos Estados Unidos, segundo acreditavam piamente, s6 pode- ria advir do enriquecimento de sua prépria classe; mais ou menos como os empresdrios brasileiros de hoje, ao su: CONSTITUINTE E DEMOCRACIA NO BRASIL 101 tentarem que o desenvolvimento nacional decorre simples mente do crescimento econdmico. © leninismo, alids, em todas as suas ramificagées atuais, nunca pregou outra coisa. A ditadura do partido comunista, tinico representante legitimo da classe operéria, far-se-ia em beneficio desta e nao em proveito dos quadros partiddrios E perfeitamente escusdvel lembrar como a experién- cia historica destruiu, cruelmente, essa ilusdo. Se algum proveito pode ser extraido de licdes que custaram tantas vidas e sofrimentos, é que o problema politico nao se es- gota na questdo da designagao do titular da soberania, mas se estende, por igual, & questo do controle ou limitagao do poder, questdo essa que, por sua vez, implica a inda- gagao classica sobre a finalidade do poder. © PROBLEMA DA ATRIBUICAG DA SOBERANIA A atribuigéo da soberania tem sido, ao longo da historia, a consagragdo juridica de uma supremacia de poder jé atuante na realidade social. Mas essa legalizacao a posteriori nfo significa que o Direito seja mero epifend- meno das forgas econdmicas ¢ sociais. A realidade é bem mais complexa e comporta, numa estrutura concatenada, os fatos econdmicos-sociais, os dados normativos ¢ 0 con- junto de idéias, representagdes e aspiragdes vigentes na sociedade. E claro que os constituintes no sao demiurgos, crian- do, fora e contra as forgas sociais ¢ os valores prevale- centes, uma ordem politica inteiramente nova. Mas nfo existe tampouco uma relagdo de necessidade ou de con tenagdo mecanica entre a regulago constitucional ¢ os fatos econémico-sociais. Sempre, em todo momento hist6- ico, sob a influéncia do idedrio dominante, hé uma certa margem de liberdade para dirigir a vida social. 102 POR QUE NAO A SOBERANIA DOS POBRES? No Brasil de hoje, é evidente que certas opgdes quan- to & atribuigéo da soberania sio totalmente exclufdas. Sao incogitaveis as autocracias, do tipo militar ou burocratico, eas aristocracias. A propria idéia de oligarquia é andtema, pela sua falta de contetido ético no meio social. As classes proprietérias so as primeiras a se darem conta disto, ¢ nao € por outra razio que o principio da soberania popu- lar vem sendo venerado e difundido ultimamente, apés o fracasso da aventura empresarial-militar de 1964. Gracas & imprecisdo da idéia de soberania do povo e & larga expe- riéncia histérica j4 adquirida em fazer funcionar um re- gime oligérquico com fundamento te6rico no principio de que todo poder emana do povo, a tendéncia das forcas conservadoras € no sentido da adogéo dogmética desse principio, ou seja, como auténtica verdade de fé, que nao pode sofrer andlises ou indagagdes criticas. Seria preciso partir, claramente, da alternativa demo: cracia-oligarquia, no sentido aristotélico de governo dos pobres, contraposto ao governo dos ricos. E € necessdrio optar, nao menos claramente, pela soberania dos pobres. Duas raz6es fundamentais fortalecem essa opcao. Em pri- meiro lugar, 0 fato de que os grupos destituidos de pro- priedade e poder econdmico sio os maiores interessados no estabelecimento de um regime de igualdade, em todos os niveis: igualdade de acesso ao poder, & cultura, &s artes, a produgo, ao consumo, ao lazer. A idéia de igualdade sempre esteve na base da justica e exerce, nos tempos mo- dernos, um papel preponderante na transformagao das so- ciedades. Em segundo lugar, milita a favor da soberania dos pobres 0 fato dbvio de que eles formam a maioria esmagadora de nossa populagao, e que um regime politico nfio € justo quando desatende ao interesse da maioria. Tecnicamente, pode-se, portanto, traduzir o principio da soberania dos pobres, em nosso pais, com a atribuigéo do poder supremo & maioria; desde que, porém, essa maio- ria corresponda, efetivamente, maior parte da populagio CONSTITUINTE E DEMOCRACIA NO BRASIL 103 adulta, o que implica a inclusio na cidadania da massa dos analfabetos. © PROBLEMA DA REPRESENTACAO POLITICA Todavia, 0 critério quantitativo, embora precisa- do como se acaba de sugerir, nao € o bastante para dar a soberania um conteddo de poder efetivo. E inegével que 6 sistema representativo, ainda que inevitével para o fun- cionamento do Estado moderno, tem sido um dos muitos mecanismos utilizados para esvaziar o regime politico de todo sentido democratico. O poder supremo nao pode ser confinado a eleigao de legisladores e governantes, mesmo quando essa eleigao se faz de modo livre ¢ a representagio popular nao é falseda com o estabelecimento de circuns- crigdes desiguais A soberania deve implicar, também, a possibilidade de intervengao dos governados nos mecanismos de funcio- namento do poder estatal: na legislagao, no estabelecimen- to de politicas de governo, no julgamento dos atos ptibli- cos. O direito piblico j4 conhece institutos reguladores dessa atuagao popular na vida publica, fora das eleigdes, alguns deles ainda desconhecidos em nosso pais: a inicia- tiva de leis, de revisio ou emenda constitucional, ¢ o refe- rendo; a agao popular ¢ a agdo direta de inconstitucio- nalidade. Importa aperfeigod-los ¢ criar novos. Importa, sobretudo, dar & representacao politica um sentido menos deformante da vida social. A idéia de que a sociedade é composta de individuos abstratos e iguais entre si contribuiu notavelmente para organizar o Estado segundo a vontade ¢ os interesses de minorias dominan- tes. O sistema do voto individual e do oligopélio partidé- rio nas eleigdes foi co-responsdvel pelo florescimento do populismo e do clientelismo, bases de sustentagdo da oligarquia. tos POR QUE NAO A SOBERANIA DOS PORES? O regime politico brasileiro funda-se na existéncia de interesses individuais, de interesses de unidades politicas (Estados, municipios) e de interesses gerais de toda a co- letividade, A existéncia e a importancia dos interesses grupais — salvo o das minorias indigenas — sio total- mente desconhecidas. A Constituigéo de 1934 ensaiou um comego de reforma, nesse particular, criando a representa- G40 profissional na Camara dos Deputados, equivalente a um quinto da representagao popular. Mas a inovagdo era criticdvel por varias razdes. Em primeiro lugar, porque somente reconhecia a existéncia politica dos grupos sociais, quando representados e dilufdos num érgio estatal: a C: mara dos Deputados. Em segundo lugar, porque os tinicos grupos sociais reconhecidos eram os profissionais, cuja reuniao em sindicatos, ademais, fazia-se (e ainda se faz até hoje) segundo imposigées estatais. Finalmente, essa repre- sentagao profissional se neutralizava em virtude do prin- cipio paritério, que contrapunha sempre o voto patronal ao dos empregados, em cada categoria. ‘A verdadeira representagdo grupal deve ser estabele- cida em bases totalmente diversas. As organizagdes de grupo ngo devem ser impostas pelo Estado, mas criadas pelos proprios interessados, livremente, sem estarem limi- tadas aos setores profissionais. Essas organizagées podem e devem exercer uma atuacio politica, na defesa de seus interesses, desde a apresentacao de candidatos a postos ele- tivos, com mandato obrigatério e sem vinculagao partidé- ria, até a participacao institucional na elaboragao legisla- tiva, na regulagdo administrativa, nos planos governamen- tais € nos processos judiciais. OS DIREITOS ESSENCIAIS DO HOMEM E A SOBERANIA Propugnar a efetiva atribuigdo da soberania a fra- 40 majoritéria do povo, composta dos economicamen te fracos, significa alterar fundamentalmente o esquema de CONSTITUINTE E DEMOCRACIA NO BRASIL 105 poder. Basta pensar no fato de que os mecanismos de con- irole ou limitagao devem ser aplicados nao ao soberano, mas aos detentores do poder ativo, tanto dentro do Estado, como fora dele, a comegar pela empresa. E mister, pois, repensar os dois institutos classicos de limitagao do poder ativo: a separagdo de poderes no ambi to estatal e os direitos essenciais da pessoa humana. ‘A separacao de poderes foi apresentada por Montes: quieu, na linha direta do pensamento de Aristételes, como um antidoto natural ao despotismo, numa época em que 0 soberano, exercia, efetivamente, poderes ativos no Esta- do, ¢ num momento histérico em que a fungdo estatal por exceléncia consistia na produg&o e aplicagao do Direito: legislar, aplicar as leis por decreto e julgar os litigios se~ gundo as normas legais. Hoje, o soberano supostamente consente, nao comanda, ¢ a estrutura e as fungdes do Es- tado alteraram-se notavelmente. A fungdo estatal preemi- nente jé nfo € a produgao do Direito e, sim, a realizagao de politicas ou programas de ago; dentro dos quadros juridicos — bem entendido — mas objetivando a con- secugao de resultados pré-determinados, seja no aperfei- goamento das estruturas s6cio-econdmicas existentes (“Es- tado do bem-estar social”, por exemplo), seja pela trans- formagao completa dessas estruturas, eliminando os dese- quilibrios (desenvolvimento). Com isto, a atividade admi. nistrativa pablica ganhou um contetido técnico, inteira- mente desconhecido no passado. A separagao de poderes, no atual contexto politico, embora continue a exercer 0 importante papel de preser- vagdo das liberdades, apresenta-se também como o remé- dio mais eficaz contra os erros ou desvios técnicos na con- dugao das polfticas ptiblicas, propiciando o estabelecimen- to de controles miiltiplos e reciprocos entre os érgios estatais. ‘Andloga mudanga de enfoque deve ser dada aos di- reitos essenciais da pessoa humana. Em sociedades desen- 10 POR QUE NAO A SOBERANIA DOS POBRES? volvidas, eles representam, de fato, uma correcdo & onipo- téncia majoritéria, protegendo os individuos e os grupos minoritérios. Em nosso pais, ao contrério, os direitos fun- damentais do homem so tao largamente desprezados, que © seu reforco e efetivo respeito correspondem ao préprio reconhecimento pratico da soberania dos pobres. Nos pai- ses politicamente desenvolvidos, democracia significa lei da maioria, mais 0 respeito aos direitos fundamentais do homem, No Brasil, a auténtica democracia realizar-se-4 com a atribuigdo do poder soberano & maioria, por meio do respeito aos direitos essenciais da pessoa humana. Ora, esses direitos essenciais da pessoa humana (es- senciais, porque correspondem a propria dignidade do ser humano) nao sdo apenas individuais, mas também sociais. Sao também direitos dos grupos humanos fundamentaii familiar, racial, lingiistico, religioso, cultural, profissional E nesse sentido, igualmente, que 0 homem deve ser enten- dido como um ser social. As prerrogativas consideradas essenciais para que esses grupos humanos subsistam e pros- perem néo sao outorgados pelo Estado, mas devem ser escrupulosamente respeitadas por ele e pelos grupos domi- nantes na sociedade. Assim deve ser entendido, por exemplo, em relagao a0 direito de livre associagao (na empresa ¢ na categoria) € a0 direito de greve, para a classe trabalhadora. Nem a Constituigdo nem, muito menos, as leis podem “regular” a livre associagao sindical ou o direito de greve, pois isto significaria uma auténtica invaso de competéncia ¢ inver- séo de valores: a dignidade da pessoa humana, expressa nos grupos sociais basicos, é anterior ¢ superior a organi- zagao estatal. O que deve ser objeto de regulacdo sio os meios de defesa desses direitos essenciais contra os titula- res do peder de comando, dentro e fora do aparelho estatal. Por cutro lado, a defeituosa compreensio técnica do contetido dos direitos essenciais do homem pode torné-los CONSTITUINTE E DEMOCRACIA NO BRASIL 107 institutos anti-democraticos, tendentes ao reforgo do poder das minorias dominantes. E 0 caso classico do direito de propriedade. Tecnicamente, € um direito exclusivo refe- rente a coisas, no um poder sobre outros homens. Sua fungao legitima, a ser preservada pela ordenagio juridica, é a protegao da liberdade econdmica e da identidade cul- tural ¢ afetiva de individuos ¢ familias. Fora disso, nao existe outra “funcio social” da propriedade. E por essa razo I6gica, a propriedade privada néo pode ser confun- dida com o poder de controle empresarial nem deve Ihe servir de fundamento. O mesmo se diga da propriedade rural, que ultrapas- saa esfera de subsisténcia econémica do lavrador ¢ sua familia A ROTA Finalmente, cabe perguntar: — Soberania para qué? Com que objetivo? Em época de pensamento mais lipido e menos cinico, entendia-se que a qualidade dos regimes politicos era me- dida, justamente, pelo critério da finalidade do exercicio do poder supremo. “Quando o detentor nico do poder, ou a minoria, ou a massa dos cidaddos governam em vista do interesse comum”, declarou Aristételes, “essas consti tuigdes sio necessariamente corretas, enquanto que 0s go- vernos que tém em vista o interesse particular quer de um 86, quer da minoria, quer da massa, so desvios dos tipos precedentes. Com efeito, ou os que fazem parte do Estado nao devem ser chamados cidadaos, ou eles devem partici- par das vantagens da comunidade” (op. cit., 1279 a, 25 ss.). Mais adiante, criticando a nogao de justiga dos defen- sores de regimes oligérquicos, o filésofo identifica esse “interesse comum” com a felicidade, que é a vida virtuo- sa: “Se os homens se associassem e€ se reunissem em vista tos POR QUE NAO A SOBERANIA DOS POBRES? tio-s6 da prosperidade material, sua participagéo no go- verno da cidade deveria ser exatamente proporcional 2 sua fortuna propria, de sorte que o argumento dos campedes da oligarquia aparentaria grande forca (...). Mas os ho- mens no se associam apenas em razao da vida material, mas, antes, em vis ida feliz. (pois, de outro modo, uma coletividade de escravos ou de animais seria um Estado, quando, na realidade, isto é impossivel, dado que tais seres icipagao alguma na felicidade nem na vida fundada na vontade livre)" (idem, 1280 a, 25-35). Thomas Jefferson retomou essa velha idéia, no admi- ravel texto da Declarago de Independéncia dos Estados Unidos, ao dizer que a finalidade de toda associagao poli- tica € a pursuit of happiness. Aplicada a coletividades humanas € nao a individuos, a nogdo de felicidade deixa de apresentar um contetido puramente subjetivo e de simples sentimento, varidvel ao infinito, segundo a multiplicidade infindavel de cada si- tuagdo individual, para se concretizar, objetivamente, nas condigdes gerais de realizago de projetos de vida, com- pativeis com a existéncia em sociedade. Essas condigées gerais de possibilidade nao dizem respeito apenas, como € dbvio, & vida material, mas 4 vida humana na plenitude de todas as suas dimensdes. E escusado lembrar que esse ideal da felicidade co- letiva nao se realiza nem nas sociedades globalmente atra- sadas nem nas subdesenvolvidas. Nas primeiras — cada vez menos numerosas no mundo atual — ha igualdade da miséria. J4 as segundas s&o sociedades investidas, em de- terminado momento histérico, pelo mundo industrial e que engendraram um processo de evolucdo profundamente de- sigual, promotor de desequilibrios acentuados entre clas- ses, regides e setores econémicos. Paradigma das nagdes subdesenvolvidas é, sem dtivida, 0 nosso pais, oitava po- téncia industrial do mundo, mas que se situa em 84.° lugar quanto & repartigéo do produto nacional pelo ntimero de CONSTITUINTE E DEMOCRACIA NO BRASIL 109 habitantes. E que nas sociedades subdesenvolvidas — nunca é demais repisar — 0 simples crescimento da rique- za global, do produto nacional, nao elimina, antes acen- tua os desequilibrios internos. © desenvolvimento nacional, entendido como pro- cesso de progressiva eliminagdc das desigualdades sécio- econdmicas, constitui, por conseguinte, 0 objetivo funda- mental dos paises do chamado Terceiro Mundo, onde ocupamos lugar de relevo. A organizacdo constitucional nao pode ignorar essa realidade, sob pena de girar em falso. ‘A resposta & indagagao formulada hé pouco é, pois, evidente: a soberania dos economicamente fracos ha de exercer-se, em nosso pais, no sentido do desenvolvimento nacional. Nao basta, porém, a declaragao solene de objetivos no texto constitucional. Importa, sobretudo, organizar a sociedade para a consecugao desse resultado, com 0 apa- relhamento de poderes adequados e controlados. ‘A esse respeito, tenho proposto a criaco de uma Su- perintendéncia Nacional de Planejamento, como érgio in- dependente do Poder Executivo federal, flanqueada de um Conselho Nacional de Planejamento, onde estariam repre- sentados os principais grupos econdmicos e sociais do pais. O plano nacional de desenvolvimento, de caréter norma- tivo e ndo meramente indicativo, seria elaborado por esses. Grgios, aprovado pelo Congresso Nacional e executado pela administrago ptiblica e as grandes empresas, pibli: cas e privadas. A fiscalizago do seu cumprimeito incumbi- ria 4 Superintendéncia Nacional de Planejamento. E uma proposta de democratizagao e nao de demo- cracia, Esta, com efcito, nao se instala de golpe, no fervor da confraternizacdo revolucionéria. E fruto de um proces- so longo e fatigante, mas ordenado e direcionado. O decisivo, afinal, é por a nave, permanentemente, na boa rota.

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