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Veredas Talo original LaPatiiehroniqued! Anna Mogdalea Bach Treducdo ania Cistina Cuperino Guimaes Augusto de Sout Revisao réenico Macsito Jorge Kaszis ‘Meymel Eh Falla Pequena Cronica de Anna Magéalena Baclt hig, Mata, Catia C, Guinardese to de Sea, Sip PankerSP as, 2005, Mi Editors 1 sis ISIN 5-88603-21-7 60 78 Dineitos destuedigad reservadosa G-ARANYILIVROS-PDITORAVEREDAS Als Bicudos, 360 CEP (7600-004 Alpes di Camtarelia- Maitipera-SP Fome/lax: H 4485-1764 e-mail-edioraveredas ahotmal.com 2005 Onde se verd 0 mestre de capele Johann Sebastien Bach, 20 dado, ser confundido com Séo Jorge, ¢ sua tintice ‘ouvinte fugir toda trémuia da igreja, © onde se conta como @ jovert Magedatena se torna nuuther do. grande mdsico, ‘Uma visita veio hoje alegrar a minha solidio. Caspar Burgholt, que foi outrora o aluno preferide de meu querido Sebastian, veto ver-me, s6 tendo encontrado a vetha senhora Bach, em seu abandono e sua pobreza, depois de muitas huscas. Come esqueceram depressa os gloriosos dias em que vivia Sebastian! ‘Tinhamos muita coisa a dizer um ao outro, Contou-me seus modestos triunfos, deu-me noticias da muther e dos filhinhos, mas nos ocupamos sobretudo daquele que 4 no est entre nés, ce seu mestre, de meu marido. Depols de ter evocado a recordacao desses maravilhoros anos, Caspar Perguntou-me se cu nao escreveria uma pequena crénica Sobre Sebastian, “A senhora conbecia-o como ninguém, € ‘estou certo de que seu coragao esqueceu muito pouca coisa. Escreva sobre suas palavras, seus gestos, sua vida e sua mafisica, Os homens de hoje pouco se lembram dele, mas nem Sempre ser assim; nao o deixarao muito tempo no esque- ‘eimento, ¢ algum dia Ihe agradecero tudo o que a senhora thes tiver revelado.” ‘Apés estas palavras, que me ficaram na imaginacio, Yetirou-se. E quer ele diga a yerdade, quer esteja enganado, Seguirei 0 seu consetho, porque preciso de um conforto na minha solidao, Por assim dizer, nada me ficou do que Sebastian pos- todas as coisas de valor tiveram de ser vendidas suiPestuidas, Comp lamento nao ter padido guardar 20 menos a caixa de rapé em ouro e Agata que ele tanto apre- lava, que tantas yezes vi em suas mfos e tantas veues ficii para ele! Rot considerada excessivamente preciosa para sta vida, por iés0 fol vendida, e 0 seu produto, divi- ido entre nos, Mas se quase nada me deixaram que me lombre Sebastian, é porque 0 bom Deus achou tudo isso desnecessiriv, O inestimavel tesouro de recordacdes que me enche o coragio me impedira, com efeito, de jamais o esque: eer, Pobre, ignorada, mantida pelas esmolas da cidade de Leipzig, veiha (fiz ontem cinquienta e sete anos, € sou apenas sete anos mais nova do que ele era quando morreu), se me oferceesgem a mais gloriosa e honorifica velhice com a con- ddigdo de nfo ter sido sua mulher, nao aceitaria ‘Em minha opinido, na Turingia 96 duas mulheres foram completamente felizes: sua prima Maria Barbara Bach, a primeira esposa, ¢ eu prépria, a segunda. Ble amou-nos & Ambas, mas creio que experiinentou um pouco mais de amor por mim do que por Marla Barbara. De qualquer modo, pela graca de Deus, foi-the dado amar-me por mais tempo, pois 55 esteve casado treze anos com ela. A pobreginha mor~ eu enquanto ele viajava com o prineipe Leopold de Anhalt Céthen, Emmanuel, ndo obstante ser entao muito erianga, nunea mais esqueceu a dor de seu pai, que ao regressar eneontron os filhos abandonados. A boa esposa, que, em sua partida, deinara feliz ¢ eom perfeita satide, estava J8 enterrada, Pobre Maria Barbara Bach, que morreu sem To uma filtima vez, sem um adeust Meu primeiro olhar para ele! Como ao pensar misso 0s anos se diluer, e como tudo se torna elaro e vivo! 6 ‘Meu pai fregiientemente me ievava consigo em sues pequenas viagens, sobretudo quando aparecia alguma opor- timidade para eu ouvir misica, pois bem conhecia minha paixio por essa arte, No inverno de 1720 acompanhei-o a Hamburgo, onde famos visitar meu tio-avé e minha tia-av6. A Igreja de Santa Catarina tinha um magnifico drgio de quatro teclados, sobre o qual muitas yezes jé ouvira os ami- gos de meu pai falarem. Ora, no dia seguinte 20 da nossa chegada minha tia-avé levou-me consigo is compras, e de volta & casa, quando eu passava pela igreja, velo-me a idéia de entrar para dar uma olhada, Logo go entreabir a porta pereebi que alguém tocava, © Sons {io maravilhosos sairam subitamente da obseuridade ‘que me pareceu que algum arcanjo estava sentado ao tecla- do, Penetrei vagarosamente no templo e ali fiquei, olhande © Orgtio instalado na galeria do oeste; os grossos tubos sublam em diregao & abobada e mais abaixo brilhavam formosas esculturas, douradas ¢ palidas, mas eu no podia avistar o organista, Ignoro quantos minutos assim fiquei na igreja vazla, toda ouvidos, como se tivesse eriado raizes has lajes de pedra. Embriagada pela misiea, perdera com- pletamente a nogao do tempo. E quando, apés uma gloriosa seqiiénela de acordes que reboaram no espago, a musica bruscamente cessou, eu ainda estava ali de pé, ausente, a eabera levantada, como se 0 trovio saido dos tubas fosse continuar a ressoar, Foi entdo que o organista, 0 proprio Sebastian, apareceu na tribuna e se aproximow da eecada Meus olhos ainda estavam Ievantados quando sua atencaa @ fixou sobre mim, Olhei-o por um instante, demasiado Astustada por sua brusce aparicao para poder fazer um movimento, Apés um tal concerto, esperava ver So Jorge, © nio um horem, Comecei'a tremer, apanhei a capa que i caira no chio, é, presa de inconeebivel pAnico, corri para fora da igreja. Quando me senti em seguranga, jé na rua, espantel-me com essa conduta tola, Nem mesmo @ minha austera tia-avo poderia encontrar alguma coisa contraria & honra de uma jovem no fato de eu ter entrado na igreja e ficar ouvindo © érgao, gnorava quem fosse 0 organista que estivera ouvindo, mas quando na refeigo da tarde contei a meu pai a peque- na aventura (ocultando-Ihe, todavia, a aparicio, meu terror ¢ minha fuga), ele exclamou: “Nao pode ser outro sendo fo mostre de capela do duque de Céthen, Johann Sebastian Bach! Ble deve tocar amanha diante do st. Reinken, ¢ eu frei ouvi-lo com alguns amigos. Vou dizer-lhe quanto a minha filha aprécia sua musica. Se ele a ouvir cantar uma vez, meu pequeno rouxinol, talvez escreva alguma coisa para voce”, ‘Pedi a meu pai, corando bastante — 0 que me eonfun- dia ainda mais —, que nada dissesse de mim a0 senhor Bach, Mas quanto mais enrubescia, mais meu pai se tor~ nava zombetelro. Imaginava que eu havia perdido a coracdo go avistar as abas do gibao do mestre de capela, pois nao supunha que eu tivesse visto seu rosto enquanto ele tocavaj de resto, senhor Bach no tinha fama de lancar olhares amdveis as mocas ‘Assim, meu pai foi, no dia seguinte, ao concerto da Igreja de Santa Catarina, e na volta eu 0 cobri de pergun- tas, Fle exuberava de admiragao; jamais onvira, € acreditava munea mais tornar a ouvir, tocar érgso de maneira seme- Thante, Sentadas & sua volta, nds 0 eseutavamos. Contou que o mestre de capela tocara duas horas seguidas, e que, principalmente, durante meia hora improvisara sobre o coral 8 A beira das dguas da Babiténia', pratic rad abitonia’, praticando o mais extraor- Gindrio jogo de pedal que se podia imaginar. “Ele utilizava 0 pedal ‘duplo com tanta facilidade”, dizia meu pai, “como se tocaase a escala com uma das macs.” Depois fizera-lhes ouvir uma fantasia e uma fuga em sol meno, que aeabara de compor, particularmente belas ¢ brilhantes. Ouvl Sebas- Vian executi-ias muitas weaes e sempre tive por elas uma cigao especial, jamais me cansando de ouvir o iniclo da fuga, tio cheio de vida. Quando men futuro marido termi- Hou sua expléndida audi¢do, 0 sr. Reinken, organista da ireja de Santa Catarina, aproximou-se dele. Com noventa sete anos de idade, tinhe a fama de ser muito ciumento © orgultoso de suas proprias eapaeidades, Bntretanto, para nupefacao de tadas, pegou x mao do mestre de eapela Bach ©. beijou, dizendo: “Satido as mios do génio; imaginel que ssa afte morveria eomigo, mas constata que ela vive ainda Uma das coisas que mais vivamente haviam impres- onado meu pal, na maneiza de toear do st Bach, era calma, 0 & yontade. Mesmo quando os pés voavam como we tiveesem asas, de cima para baixo nos pedais, seu corpo parecia néo fazer o menor movimento. Nao se incli- hava para todos os lados, como georre com muitos orga- hstas, e sua maneira de tocar era a a rec thet! ¢ néo tral nenhum eatorga. Puen? We Parsee % agora, imaginem o que aconteceu! Soubemos toda a Istria por me tlo-avd, que, misieo ele também, mutria jrande simpatia por Sebastian. O organisa da Tareja de io Jacé, onde havia um grande e belo érgdo, morrera, Sebastian, tentado pela idéia de ter a sua disposicao um ins- 1 An den Wassern Babylons:(N, oa trumento tao aperfeicoado e de poder compor masica sacra (a servico do duque de Cothen era obrigado a escrever espe- clalmente miisiea de edmara), apresentou-se como candi- dato. Em vex de aproveitarem a ocasiao Gnica de atrair 0 maior organista do pais, os respeitivels conselhieiros muni- cipais deram seus votos a um certo Joachim Heitmann, milsico dos mais vulgares, mas que trazia um presente de quatro mil marcos, “Ele preludia melhor com os tdleres do ‘que com os dedos!” bradou meu tio, encclerizado, O pastor Neumeister ficou to aborrecido com esse fato que se demi tiu do conselho municipal, e pronunciou num sermio estas palavras amargas: “Se um dos anjos que em Belém tocavam intisica divina para o menino Jesus pretendesse ser orga- mista em Sio Jacé sem trazer dinheiro, mandé-lo-iam outra vez para o céu!” Assim, o mestre de capela Bach néo ficou em Ham- burgo. ‘Vem agora o meu primeiro encontro com ele, que acon tecen um ano depois de eu a ter visto ¢ ouvido pela primeira ‘yeu. Meu pai, clarim da corte de Welssenfels, tinha a casa aberta a todos os misicos, Ta freqiientemente a Cothen, onde Sebastian era mesire de capela, © cu mesma {6 tivera algumas ocasioes de cantar 1a, No entanto, Sebastian, retido por uma enfermidade ou impedido por uma viagem, nunca me ouvira, Sua auséncia causava-me sempre uma amarga decepedo, pois desejava multe revé-lo © trocar com ele, se possivel, algumas palavras. - Contudo, um belo dia (era uma Tuminosa manha de primavera, bem me lembro), quando, ao regressar de um passeio, quis entrar diretamente no saldo para dispor alguns ramos verdes no jarrao que fieava na lareira, minha mie segurou-me o brago: “spere um momentinho, Magdalena; 10 seu pal precisa discutir uns assuntos com o mestre de eapela Bach; talvez vocé o incomode” ‘Meu aténito coragao pls-se a bater com violéncia. Se J4 ouvira falar dele muitas vezes ¢ desejara ansicsamente tornar a vé-lo, néo o avistara, no entanto, senao uma vo. Fiquei perplexa, receando que meu pai me chamasse, mas temendo ainda mais que ele nao me chamasse. J ia corer a meu quarto para por um novo Iago nos cabelos, um azul que, supunha, me ia muito bem, quando papai, entrea- brindo a porta ¢ mostrando a cabeca, perguntou, julgando tratar-se de minha mie: “Querida, Magdalena ja voltou?” B avistando-me, continuow: “Venha e4, minha fidha, o sr Bach consente em ouvir a sua voz!” Entrei, entdo, e encontrei-me diante dele, tio pertur- bada que mal ousava erguer os olhos, Kstava certa de néo ser reconhecida (a Igreja de Santa Catarina era muito sombria, pensava eu), mas ele me disse depois que me iden- tificara imediatamente como a sua onvinte esquiva. Impressionou-me logo por sua estatura, se bem que na realidade esta nada tivesse de exagerado, nao indo muito além da de meu pai; mas ele dev sempre a impressio de ser alto, gordo, entroneado e forte, com alguma coisa de um penhasco. Ao lado de outros homens parecia tisica- mente maior, ¢ entretanto sé seu coragao e seu esp! eram maiores ¢ mais poderosos que os dos outros. Caspar dizia-me ontem que também tivera sempre a impressio de que o ser corporal de Sebastian, e nfo apenas o espiritual, ultrapassava o daqueles que 0 cereavam, Essa impressio, no entanto, nao nos vinha do que ele dizia, pois era ealmo © grave, falaya pouco ¢ 86 s¢ abria com os intimos. Instantaneamente tomet-me mais do que selvagemt, Fiz- the uma reveréneia mas nao abri a boca até o momento un em que, pousando um caderno sobre 0 cravo, ele mesmo se sentou ao instrumento ¢ pedi para me ouvir, Por felici- rainha perturbagée desapareceu no momento em que omece\ a cantar, e quando acabel, meu pai examen com satisfacao: “Muito bem, minha filha!” O sr. Bach olhou- me um instante, sem fazer um movimento, e disse: “Sua vor é afinada; yoo’ sabe cantar”. Ah, como eu desejaria responder-Ihe: “E vocé sabe toear!”, mas ndo 0 onsei, Os efeitos que ele conseguira tirar de um simples acompanha- mento eram ineoneebivels, A posigao das mos, o modo de utilizar 0 polegar e o dedilhado, tudo diteria da técnica habitual, Entretanto ew nio podia dizer nada, tao grande era a minha emocao. Desejaria fugir, como da primeira vez, na igreja, mas continuava de pé ao lado do cravo, desenxavida © muda como uma erianea, Na verdade eu me sentia uma crianga idiota, diante daquele homem, ¢, ni obstante, naquele curto espago de tempo passou-se em mim algo que nao pode suceder a uma orianea. Deus me concedera uma alma aberta para a miisica, e agora que eu ‘ouvira Johann Sebastian Bach toear, nenhum outro homem no mundo poderia, causar-me qualquer impressfio. Fle, por ‘saa vez, disse consigo (ah, se a0 menos eu 0 tivesse sabido! ) “Quero me casar com esta mora”. Meu consentimento pare- cia-the garantido, porque tudo 0 que ele realmente queria, ‘se realizava, Confesso que mais tarde me aconteceu aché-lo ve Nivissima limpressio que experimentel ao falar-The pela primeira vez permaneceu intacta, apesar das longos anos de intimidade, e néo se embagou sequer com a recor~ dagio do querido rosto de olhos para sempre fechados, como vi pela tltima yee neste mundo. B ‘Nao seria justo dizer que era belo — poucos dentre os Bach foram homens bonitos —, mas toda a forca do sei cespitito se refletia em seu rosto. A fronte impressionava pela majestade, ¢ espessas sobrancelhas cerradas por um cons- tante esforco de concentracao davam-Jhe aos olhos uma expresso de rara profundidade. Quando 0 conheci, seus olhos eram muito grandes, mas nos tltimos anos de vida, ‘embacados pelo sofrimento e pelo excesso de trabalho, dimi- nuiram, ceultos, de resto, pelas palpebras mais fléeidas. O olhar intenso parecia dirigir-se para o seu interior, coisa que muito impressionaya. Seus olhos ouviam, se assim pos- so dizer, @ por momentos tinham um fulgor mistico. Sua boca, grande e mareante, exprimta generosidade, ¢ as comis- suras dos labios sorriam, Queixo largo, quadrado, bem pro- Poreionado a fronte. Sem ter consciéncia disso, impressionava a todos quan- tos 0 viam, Um misto maravilhoso de grandeza e humildade irradiava dele. Demasiado inteligente para nao reconhecer 9 proprio genio, muito pouca importdnela the ligava; acre- ditava que estudes aprofundados, feitos com entustasmo, bastavam para transformar qualquer homem num miisico como ele. Quantas vezes, a0 entrar no quarto onde estava ‘40 cravo com um aluno, 0 ouvi dizer: “Se vocé se devotar 40 trabalho como eu me tenho devotado, em breve poderé tocar téo ber quanto eu”. % ‘Um de seus alunos de érgao, que muito 0 estimava ¢ abla quanto eu gostava de ser informada de tudo o que Ihe dizia o mestre, contou-me um dia que apés a ligdo Sebastian 8 pusera a tocar de maneira absolutamente maravilhasa; # como 0 ouyinte no pudesse conter o entusiasmo, meu Marido langara-the um olhar contrariado e exclamara com mau humor: “Nao ha nada para admirar! Basta tocar 3 a nota exata no momento preciso; o resta flea por conta do érgao!” Rimos muito com essa frase. Bu ja conhecia bastante as dificuldades do érgao para nao acreditar que sosse suficlente dar o toque justo no momento indicado. Pouco depois do nosso casamento pedi Sebastian que me desse ligoes, ao que ele de bom grado acedeu, apesar de estar conveneida de que 0 érgao nio era instrumento para mulheres. Eu desejava imensamente saber tocé-lo, a fim de compreender melhor as suas composigoes e de me- Thor poder apreciar sua interpretagdo, Pelos fins do verdo de 1721, mais ou menos um ano apés a morte de sua primeira mulher, Sebastian velo pedir minha mao a papai, Bu 0 encontrara apenas em raras oca- sides, mas pensava nele com muito mais freqiiéncia do que © teria desejado minha boa mae. Pensar nele era algo que eu nao podia evitar, mesmo antes de ter a esperanga de vir a ser sua mulher. A impressio que ficara do nosso primeiro encontro fora de tal natureza, que me teria sido impossivel pertencer a outro homem, Meus pais souberam avaliar & honra do pedido, mas julgeram ser seu dever chamar minha atencéo para o fato de que Sebastian, quinze anos mais ‘yelho do que eu, tinha } quatro filhos. Trés outros estavam mortos, Se eu me tornasse sua mulher, deveria ser uma yerdadeira mae para aqueles que restavam, E quando con- clufram, por meus balbucios, meu rubor e minhas lagrimas (nfo podia exprimir de outro modo a felicidade que me invadia), que eu aceitava o pedido de Sebastian, mandaram- me ir até ele, que esperava a resposta numa outra sala, Apesar de eu ter sido até entiio extremamente reservada e silenciosa em sua presenca, Sebastian néo tinha, suponho, fa menor diivida quanto ao resultado do pedido, pois seus ‘lhos panetrantes jA haviam percebido que meu coragdio bbatia descompassadamente cada vez que eu o via. Estava 4 Aiante da. janela, Quando entrel, voltou-se, dew dois passos ‘em minha direeao ¢ disse: — Querida Magdalena, vocé bem sabe 0 quedesejo, Seus pais deram-me o consentimento, Quer ser minha mulher? — Oh, sim, obrigadal — respondi, e me desfiz em 1é- grimas, atitude pouco indicada, apesar de serem lagrimas de pura felicidade, de reconhecimento para com Deus € para com Sebastian. Quando ele pousou o braco em meu ombro, vieram-me do fundo do coracdo estas palavra: Uma sdlida fortaleza’, ¢ detxet inconscientemente desenro- lar-se na minha mente a grande melodia desse coral, que muitas vezes cantavamos nas noites de inverno, em torno da lareira, Sim, uma sélida fortaleza, eis o que era Sebas- tian, @ 0 que fleew sendo para mim durante‘ resto de sua vida. Nosso noivado foi uma festa extremamente alegre, Eu ‘eonstatava com felicidade quanto meus pais estavam orgu- Thosos de que sua filha se easasse com wm miisico tio dis- tinto e tao apreciado pelo principe. © duque Leopold man- teve comigo uma conversa muito amavel. Disse-me que na pessoa de seu mestre de capela eu me casava com um homem eujo nome viria a ser honrado enquanto se fizesse miisica sobre a terra, e depois me cumprimentou pela feliz cinscunstaneia de eu poder interpretar as composigies de meu marido, Mantinha com Sebastian relagoes aféyeis, posso mesmo dizer amigaveis; e deu prova disso ao aceitar ser padinho do mais nova de seus filhos do primeiro easa- mento. Meu marido acompanhava-o em todas as suas via~ pens, @ fol no regresso de uma delas, como ja contei, que ele encohtrou morta a pobre Maria Barbara, Sebastian gostava da trangilila cidadezinha de Cé- "in fete Dave. (Ns da RY 15 then, € naquela época desejava que passdissemos toda & nossa vida a servigo do bom duque, tao grande amante da misica. ‘Antes do nosso casamento fomos padrinhos da filha do seeretétio do duque, Christian Halen, numa ceriménia ide que sempre me recordarei, pois era # primeira vez que aparecia oficialmente com meu noivo. Meu vestide azul, helo de enfeites, ia-me muito bem, ¢ soube encantada que ‘Sebastian tinha gostado dele; a partir desse momento, € até a sua morte, uma simples palavra dele teve mais valor para mim do que a opinido do mundo inteiro. Seus filhos tstavam om torno de nés, e eu senti nesse instante que for- mavamos uma familia, A familia — sua mulher, seus filhos, eu lar — era tudo o que ele amava, Além das viagens que realizara na juventude, para ouvir os organistas célebres ou para experimentar diferentes drgios, ¢ das auséncias com 0 principe — no decorrer das quais comps quase todos os pequenios prelidios ¢ fugas reunidos sob 0 titulo de Cravo bem temperado, que sempre me parecer tao belos, apesar de terem sido escritos apenas para servi de exercicio para seus alunos —, viveu trangillamente em sua casa, Durante todos os anos que passamos em Leipzig, ‘ausentou-se muito pouco, Seu trabalho cotidiano na Igreja, @ no Colégio de Sao Tomés, os concertos que tinha de reger, Gs composigoes ¢ a familia enchiam-lhe completamente & vida, Nunca viajou para se fazer admirar no estrangelro € buscar 0 sucesso, como é costume de tantos misicos que hao The chegam aos pés, Todavia, apesar de serem hoje faros os antiges alunos que se Tembram dele ¢ da sta mae sica, afirmo que se alguma vez Deus atributu génio a um hemem, esse homem foi Johann Sebastian Bach. Mas jé falei bastante a esse respeito. Volto 3 narrativa. ‘Ficamos noiyes em setembro de 1721, O casamento 16 ‘ocorreu no més de cezembro, em casa de Se Que a etriménia mupcial acontoseu na cuas qué ik eo meu lar, O amévol prineipe Leopold ofereceu-me a grinalda portieipou da nossa festa com um prazer ainda maior, pols otto dias depols fa se cagar com a bela princesa Je Anhalt-Bemburg mo naguele dia Sebastian me mas om que bendite sonto wt, 36 poderd compreendé-lo 6 fer que tenba recebido uma dédiva igual & minha, Diz-se que o dia do casamento é 9 mais belo da vida de uma mulher, ¢ certamente moga alguma, em nenhum momento, foi mais feliz que eu; de resto, como poderia eu bneontear um marido que valesse ¢ meu Johann Sehastian A partir desse dia minha existéncia fol a dele. Eu era como uM pequeno rio absorvido pelo Oceano, abareada, as- plrada por uma vida mais profunda e maior do que jamais poderia ter sido a minha, E quanto mais vivia com ele, ¢ ls 0s anos se passavam, mais eu tinha consciéncia da Jus grandeza, As vezes via-o tao poderoso ao meu lado que (nse leave assustads. Compreendia-a, porem, porque. 9 {mava. “O amor 6 0 eumprimento da lei”; ele citava fre- iiientemente essa frase tirada da sua grossa Biblia lutera- ‘is, sentado numa larga poltrona de eouro, ao lado da jancla, ho yoriio, e junto A Jareira, nas noites de inverno. Na rea. lidade, mea marido podia dizer como Lutero: “Poucas so rvores deste jardim que eu nfo tenha sacudido para Wulher os frutos”. Ab, quando penso nisso, quantas recor: MagGou me vém ao coragio! i [ flebastian esereveu para mim, por oeasid fwainento, este canto que mals tarde reunlu a outres no Mw Pequeno album de misica: uv “Teu servidor, ob, preciosa esposa, 4 feliz em te ver feliz, neste dia B se se poe a olhar, maravilhado, a coroa que cinge a tua fronte mimosa © 0 teu belo vestido de noivado, sente sen coragao encher-se de alegria perante a tua clindida beleza, %, pois, de admirar que minha boca e meu peito manifestem jubilosa surpresa?” ‘Tal foi o meu presente de noivado, augario da minha felicidade. 18 IL Onde se fala da juventue de Sebastian em Kizenach, Lilneburg ¢ Amstadt, de sen primeiro casamento cm Mi hausen, ede sua vida em Weimar ¢ em Céthen. Wo} entdo que comeou a minha vida, Os aconteci- mentos anteriores nao haviam sido mais que preparagao e opera, ‘Mas antes de abordar a existéncia maravilhosa que Deus me dev enquanto fui a senhora Johann Sebastian Much, desejo, na medida das minhas possibilidades, contar fo que ele préprio e outras pessoas me disseram com relagao A sua infancia, sua juventude e os anos vividos sem mim. Porque, se estas memérias vierem um dia a ter alguma im- porlincia, é bom que eu escreva tudo o que sel de sua vida, Weide o nascimento até a morte. Sebastian naseeu em Eisenach, ¢ sempre me parecou Aignificativo ter ele vindo & luz em marco, duranie a qua- Festa, pois na quaresma e na Semana Santa foram escritas lis suas obras mais notdvels, a Pairdo segundo Sao Marews 6 Paixdo segundo Sao Joao. Lembro-me de ter entrado uma vez em seu quarto jus- tamente no momento em que ele se preparava para compor © solo de viola “Ak, Golgotha)", da Paixio segundo Sao Mateus. Que impressao experimentei ao ver-lhe o rosto, hormatmente téo calmo, da cor das cinzas ¢ inundado de lagrimas! Felizmente nao me viu, e pude sair em siléncio, Indo sentar-me chorando na eseada que dava para a sua porta, Ao ouvir essa misiea, ninguém imagina o que ela ‘custo, Tive vontade de me aproximar dele e passar os bra- i9 volta do seu pescoga, mas nfo ousel; alguma eoisa em sep sare Ne os © surpreendera nas angéstias da eriacdo, e ainda hoje me regozijo com isso, pois foi um minuto de que somente Deus devia ser testemunha. ‘Sua miisiea sacra dava acs textos dos evangelhos uma expresso tao sublime que sO me ocorria compard-1a aos sentimentos que devem experimentar os cristéos quando se perdem na contemplacéo da Cruz. Antes de poder esere~ ‘yer uma ‘mniea nota dessa miisiea Sebastian vivia em sua ‘alma toda a angustia da eriatura e toda a grandeza do moe a integra a Paixdo segundo Sar Ouvi pela primeira vez ni 0 segundo Sito Mateus nama Soxta-feira Santa, na Tgreja de Séo Tomas, em Leipzig, oito anos depois do nosso casamento, ¢ me foi penoso escutar essa musica, de tal modo me parece pun- gente ¢ magnifica, Entretanto poucas pessoas a apreciaram, fe como é de muito dificil execucao e exige dos cantores tum grande nimero de ensaios, nao a tocaram mais durante ‘onze anos, Essa obra poderosa e impressionante dorme ainda em siléneio, mas talvez no céu eu venha @ ouvi-la ainda uma Yez. ‘Quem teria podido prever que 0 pequeno Johann Se- bastion, naseido em 1686 na imensa casa branca de Bisen- ach, escreveria a Paixdo segundo Sao Mateus? Misica esse género nunca havia existido antes dele, # verdade {que desde sempre 08 Bach foram musicos. Sebastian reco- thhecia que o primeiro, em ordem cronoldgica, fora seu tata- rav6 Veit’ Bach, moleiro e padeiro de profissio, Sua maior ‘alegria consistia em trazer para o moinho uma pequena citara, que ia tangendo enquante a mé triturava 0 gro. “Devia ser um conjunto maravilhoso”, dizia Sebastian, indo; “desce modo pelo menos ele deve ter aprendido 0 20 compassot” A lembranga do velho moleiro, que obtinha sua farinha ao som da muisiea, sempre o divertia. A maioria dos Bach residia na Toringia, O tio de meu marido, Johann Michael, cuja filha mais nova veio a ser a primeira mulher de Sebastian, era organista e composi- tor em Gebren. Também construia cravos e violines, coisa que Sebastian teria feito, se tivesse tido tempo, pols se interessava por todos 0s instrumentas. De mios extrema- mente habilidosas, era ele proprio que sempre afinava o seu eravo, nunca levando mais de um quarto de hora para fazé-Io, Meu marido contou-me nfo haver meméria de que os Bach nao tivessem se reunido ao menos uma vez por ano para fazer miisica, Comegavam geralmente por executar Jum coral, © em seguida se divertiam com a improvisacéo de algum quodlibet, harmonizando varias melodias conhe- cidas e cantando-as simultaneamente. Mais que qualquer outra coisa, aquilo era uma distragao musical; contudo, se ‘omitissera, ninguém regressaria satisfeito dessas reunides. ‘Quando Sebastian estava alegre gostava de cantar um quodiibet com seus filnos, & noite, em volta da lareira, se, ocupada em fazer’ uma dessas diffeeis camisas franzidas para ele, Friedemann ou Emmanuel, acontecia- me nao os acompanhar, meu marido nunca deixava de me dizer: “Querida, empresta-nos 0 seu fiozinho de voz!”, insis- tindo até que eu acabasse por cantar. E ai no me deixava mais ir embora, Conservou sempre esse pendor da familia, Ji no fim da vida, na Aria com trite variacies, que escre- You para o conde de Kayserling, fez da iltima variacdo um quodlibes, combinando duas cangdes populares; uma cas Youes fala de mogas, a outra, de repolho e rébano, @ ambas ho trabalhadas em imitagao no baixo. E qualquer tema era suscetivel de inspiré-o. a jando seu pai e sta mie morreram (eve de abandonar a oun ‘Bisenach e seus lindos riachos pera fr morar com 0 irmao mais velho, organista em Ohrdruf, Dois habitantes de Hisenach, Santa Elizabete da Hungria ¢ Martinho Lutero (de quem era quase contemporaneo") haviam The deixado a mais profunda impressao. Guardava deste ultimo uma marea vivissima, ndo so porque muitas Yezes na infancia visitara Wartburg, mas especialmente porque o nosso grande Lutero era também excelente mis Co, Nos itltimos anos de sua vida inspirou-se muito nos ecdnticos de Lutero, ¢ aqui cabe notar uma singularidade que sempre me surpreendea em Sebastian: apesar de ser ima fonte inesgotavel ce mfisiea, tinha necessidade das obras de um outro para comegar a trabalhar. Antes de improvisar no 6rgi0 ou no cravo ¢ dar livre curso a seu genio, principiava sempre pela execucio de uma peauend composi¢ao de Buxtehude, de Pachelbel ou de seu to Chiris- toph Bach, eujas cbras multo admirava. Do mesmo modo, derramamos um pouco de agua na bomba para atrair a corrente generosa que sobe das profundezas. Gostava muito de comentar que, como ele, Lutero, quando rapaz, partieipara das proclss6es ¢ percorreri can- tando as ruas de Bisenach, Sebastian fasia parte do Schiilerchor, fundado mais ou menos cem anos antes do seu nascimento, e que era motivo de muito orgulho para ts burgueses de Eisenach, “Nossa eldade era célebre por sua misica”, dizia, e explicava-me gue 0 nome latino de Bisenach cra Isenacum, e 0 anagrama de [scnacu forma ‘en miisica (veja a misica) ou canimus (nés cantamos). TA palavracomtemporinco ¢ une ferpé de expresida, pois Lalero morren em 1346 1 pach naseeu ene 1685, 129 unos depots, portnta.(N. do T-) 2 Caro da escla. (N, da R) 22 Ainda posso ver a expresso radiosa com que me contaya isso. Espero ter transcrito corretamente esses nomes, uma vez que nao sei latim e que Sebastian detestava as inexati- «does, Ele desejaria ensinar-me um pouco dessa lingua, nem gue fosse, dizla, apenas para neutralizar a péssima im- pressfo que lhe ficava das aulas de latim que tinha de dar aos maus alunos da Escola de Sao Tomés; mas munca teve tempo, © por outro lado eu vivia muito ocupada com fas criangas e os servigos caseiros, para poder me dedicat f@ um estude desses, Além disso, 0 eérebro ferninino nao Ne presta muito a ceupacées tao abstratas. O tinico latim que aprendi foi o Gioria in excelsis ea Credo in unum Deum, quando ele esereveu. a Missa ent si menor, sua tonalidade preferida, Sebastian possufa, em erlanga, uma yor maravilhosa de soprano, e aqueles que o ouviram puardaram a lembran- a da extraordinaria sonoridade da sua yor, ¢ me falaram dela, Cantava na igreja de Ohrdruf todos os domingos dias santos, Nos casamentos e enterros executava motetes, om os meninos do coro, nas casas, na igreja, e ds vezes, quando ainda morava em Eisenach, nas russ. Quando sua voz comecou a mudar — 0 que infeliz~ mente aconteceu logo apos sua partida de Ohrdruf para Lineburg —, sueedeu uma coisa extraordingria, Um dia, No coro, percebeu subitamente que estava cantando uma oilaya abaixo, por assim dizer com uma dupla voz, sem poser se corrigir e nao tendo nenhuma influéncia ‘sobre ise curioso fenémeno, Durante toda uma semana conti- huou néo somente a cantar mas também a falar’ nessa Hitava — © nao sei de coisa semelhante que tenha aconte- pido a algum outro. Jamais tive ocasiio de ver o mais velho dos irmaos Mach, aquele que edueou em parte o meu Sebastian, que 23 falava dele com respeito © reconhecimento. Mais tarde neu marido pagou a seu sobrinho tudo, e muito mois ainda, que devia 2 seu pai. Nao suportava a menor erftica 2 um membro, mesmo afastado, de sua familia, ¢ nao era prudente encoleriz4lo. Por essa, razio nunea ousel expri- mir 0 rancor que guardava em relacdo a seu irméo; nao posso evitar pensar que a m4 vista de que Sebastian sofreu foda a vida re deveu em parte & inveja © a falta de eoragio dele, Esse irmio tinha uma célebre colecao de fragmentos de compositores corhecidos, mas a negava ao menino fa minto de mitsiea, que estuidava Ludo 0 que Ihe chegava as maos, Os cadernos ficavam numa caixa protegida por uma tela de arame, e durante meses, & noite, servindo-se apenas da luz da lua, pois nao tinha candeia, o pobre Sebastian ‘eopiou-os intelramenite. Assim, nao 6 de admirar que em tal tarefa seus olhos se gastassem, Enfim, terminado esse trabalho imenso, quando se pés a tocar a mistea obtida com tanto esforgo, seu irmao, deseobrindo aquilo @ que chamava “o crime”, tomou-lhe 0 manuserito e confiseou-o. Sebastian s6 0 recuperou no ano do nosso casamento, quando entio me contou 0 ocorrido, sem, de resto, deixar transpareeer 0 menor vestigio de ressentimento. Por esse fato se vé quanto o seu grande carter e sua forga de von- tade se desenvolveram cedo, bem como muito cedo igual- mente se manifestou seu senso de responsabilidade. Aos quinze anos ja ganhava a vida, tendo ido para Lineburg ingressar no coro da Bxedla de Sio Miguel, onde sua bela voz de soprano Ihe valeu casa, comida e um pequeno orde- nado, Certa vez dirigi-me a Liineburg ¢ visitei a Tgreja Ge Sao Miguel, tio linda com sua torre em tijolo verme- Tho coroada por um mirante € lanternas de cobre azinha- yrado. Ela me impressionou ainda mais porque suas pa- redes tinham ouvido outrora a vor angelical do pequeno 2 Sebastian, essa vor que eu néo pude conhecer, Tenho citime de tudo 0 que Sebastian viveu sem mim, apesar de saber que no devia tex, pois Deus, na Sua bondade, concedeu-me partiJhar corn ele metade da sua vida. Infelizmente, pouco depols da sua transferéneia para Liimeburg Sebastian perdeu a vor, sendo-Ihe preciso entao ganhar a vida tocando violino e fazendo qualquer tipo de Acompanhamento, Tinha uma aptidgo natural para todos 5 instrumentos, ¢ tocava violino, viola, espineta, cravo, cimbalo, viola pomposa ¢ particularmenté o érgao, em que ninguém no mundo 0 podia igualar. Nao digo, é claro, que ele soubesse tocar todos esses instrumentos aos quin- ye anos, mas quando o conheci isso jé era fato, com ex- cecio da viola pomposa, por ele inventada mais tarde. Desejo eserever esta crénica com a maior exatidio. Lem- bro-me da maneira como sua mao cala sobre meu ombro quando eu fazia uma observagdo inexata ou crrava uma hota no cravo, dando-me uma pequena sacudidela, ao mes- mo tempo amistosa ¢ irritada, Ah, quantos erros desejaria ainda fazer, se pudesse tornar a senti-lal ‘Tinka umas mos notdveis, grandes, impressionante- mente vigorosas, e capazes de abarcar uma disténeia inu- nitada no teclado. Podia sustentar uma nota com o polegar OU 0 dedo minimo. e exeeutar outra coisa com us dedos restantes, como se a mao estivesse intelramente livre, ou {wer trinados com qualquer dedo das duas maoz ao mes- mo tempo que tocava 0 mais complicado dos contrapontos, fem com isso demonstrar 0 minimo esforco. Nada lhe era Impossivel nos teclados do cravo ou do érgao. A acredi- tarmos no que dizia, sua virtuosidade ndo era mais que 0 resultado da sua aplicacao, podendo ser atingida por qual- quer outro que trabalhasse séria e disciplinadamente, mas hem mesmo seus melhores alunos podiar Ihe dar razao, 25 Porque quanto mais iam se tornando bons miisicos mais reconheciam que Sebastian tinha um dom que ninguém podia alcangar, mesmo & custa do mals duro trabalho. Entretanto meu marido jamais se sentiu vaidoso de sua genialidade, que considerava como nao Ihe pertencendo. ‘Achava que 4 vide consagrada A misica era a tinica digna de ser yivida, mas que 0 miisico, nao passando de um instrumento, devia ser humilde e nfio se prevalecer de seus dons. Durante sua estadia em Lineburg dedicou-se, com 0 zelo extraordinario que Ihe era habitual, a aperfeigoar-se ainda mais. Desenvolven o dedilhado, que adquiriu uma rigueza jamais vista, inventou um método e estudou toda a literatura musical da grande biblioteca da escola, que {oi para ele um presente do eéu, Também consagrou muito tempo ao drgo, que the era ensinado pelo organista da Igreja de Sio Joao, igualmente oriundo da Turingia, mas nao tardou a ultrapassar o mestre. Mesmo em sua juven- tude creio que sempre foi muito dificil ensinar mésica a Sebastian Bach, Ele deve ter sido ensinado pelos anjos, antes de encontrar professor terrestre, e quase nada pre- clsou aprender, mesmo do notavel sr. Bohm. Ia vé-lo a pé, quando era jover e forte, assim eomo a alguns outros orga- nistas, e percorreu varias veces as numerosas milhas que © separavam de Hamburgo para ouvir o sr. Reinken, para quem tocou com tanto sueesso no ano anterior ao nosso casamento, quando 0 vi pela primeira vez. Como se sabe, meu marido ganhava entdo pouquissimo dinheiro. Suceden que no decorrer de uma dessas viagens, estando sentado sob a jancla de uma estalagem, faminto, com os pés feridos em conseqiiéneia da caminhada, sem um centavo no bolso para pagar o menor pedago de po, e interrogando-se sobre © que haveria de fazer para percorrer © caminho restante 26 ‘com 0 estémago vazio, a janela abriu-se e duas cabepas de arenque cairam a seus pés. Considerando que cabecas de arenque sempre valem mais do que nada, apanhou a pouco apetitosa comida, e qual nao foi sua surpresa ¢ alegria a0 encontrar em eada eabeca um dueado dinamarqués! Essa, historia sempre me fez lembrar aquelas que se contiam. as criancas no Natal, ¢ talvez houvesse alguma coisa de gratidao na preferéneia que Sebastian sempre manifestou pelos arenques, sobretudo quando preparados com. vinho branco, especiarias e pimenta. Era seu prato preferido durante 0 calor do verao. Com o dinheiro encontrado nas cabecas dos arenques ofereceu-se uma abundante refei¢do, mas importava-lhe antes de tudo poder continuar o caminho ainda conside- rével que o separava de Hamburgo. ‘Numa, outra ocasiso, muito mais tarde — mais preci- samente, em 1716 —, a miisica proporelonou-the um Jantar de que se reeordava com satisfaga0. Fora com os senhores Kuhnau e Rolle a Halle para ali experimentarem um novo 6rgio de trinta e seis registros, O conselho munteipal, come- morando a inauguragio do drgao, ofereceu aos trés mit icos um farto banguete, com que Sebastian, habituado a simplicidade, se impressionou bastante. Dizia freqiiente- mente que nunca havia comido téo bem, Esse banquecte compunha-se de Itieio, carne de vaca, presunto defumado, ervitha, batata, espinafre e salsichinhas, abdbora corida, salacla ‘de aspargo, vitela assada, rabanete, bolo, casea de limo e eareja em caida, Sebastian tinha dezoito anos quando obteve seu pri- meiro cargo de organista. J4 era miisico na eorte de Weimar, € foi de 14 que empreendeu a viagem a Arnstadt para expe- rimentar um belo érgio instalado havia poueo na nova igreja da cidade, 27 ‘Ouvido por varios miisicos eminentes, todos logo reco- nheceram nele, apesar da pouca idacte, dotes excepcio- nais; e como o organista em exercicio era bastante mediocre, transferiram-no para um local menos importante € Sebas- tian 0 substituiu, O drgio & sua disposicéo era um magnifico instru- mento ornado de palmas e folhagens eseulpidas e douradas; nas laterais, formosos querubins e eabecas de cupidos so pravam trombetas. Finalmente ele tinha dois teclados uum excelente pedal de cinco registros. Sebastian sempre falou desse rgao de Arnstadt com fa ternura da mae por seu primogénito, Era 0 primeiro ‘Sérgio do qual podia dizer “é meu”. A investidura foi solene. © arador exortou-o & relido © ao zelo, a agir como honesto servidor de Deus ¢ de seus superiores — @ esse discurso causou um grande efeito em seu espirito moco € ja sério. Teve a impressio — disse-me mais tarde — de que o proprio Deus abengoara a sua yoca- a0 para a musica, e, eterno objeto de suas aspiracies, para a misiea sacra, Ele prezava de tal modo esse érgéo que muitas vezes, com um amigo devotado que desejava se aprimorar no manejo dos foles, ia para a igreja altas horas da noite ali se fechava tocando até que a aurora tingisse de rosa a janela do leste. Dispunha de tempo para orgio © para os estudos porque suas obrigagées oficiais se limitavam a toear aos domingos e &s quintas-feiras pela manhé nos ser- vvigos religiosos, a acompanhar 0 servigo de segunda-feira ¢ a dirigir as ensaios do coro. Mas 0 tempo livre que Ihe res- tava ndo representava sendo uma possibilidade de trabalho. Nunca o vi desocupado, a nao ser quando saboreava um pe- queno eachimbo, e apesar de nao me ser agradavel 0 cheiro do tabaco, alegrava-me eada vez que o via entregar-se a esse 28 singular prazer. Sobre Isso Sebastian escreveu em meu equeno caderno uma eangao que comecava assim: “Cada vez que encho meu cachimbo de bom Knaster, por um simples prazer ¢ mero passatempo, ele evoca uma imagem triste me mostra que sou igual a ele...” Eu gostava tanto da melodia desse verso que a transpus para soprano em sol menor, ¢ sentada ao cravo a cantava nquanto as espirais de fumaca iam se desprendendo do cachimbo, Meu marico se divertia muito. “A melodia con- yém melhor & sua voz que o tabaco & sua boca, minha querida. Nunea me apareca com um eachimbo entre ox Iabios'", dizia com maliciosa gravidade, “pois eu nunca mais a beijaria.” Contudo, além dessas curtas horas de repouso, jamais o vi perder um instante durante toda a nossa vida em comum. “O tempo”, costumava dizer “é um dos dons mais preciosos de Deus’ um dia teremos de prestar contas dele diante do Seu trono.” Dia apés dia ensinava, eompunha, tocava érgao, cravo, viola ¢ outros instrumentos. Dedicava- se depois 2 educago da familia, e se the restava alguma hora de éeio, lia os livros que pouco a pouco fora reunindo, Os esctitos teoldgicos interessavam-no particularmente, mas eu no podia acompanha-lo nessas leituras dificets, na maioria dos casos em latim. Desde a sua juventude sem- pre se ocupara desse modo, Aqueles que, erguendo as maos num gesto de admiragio, o fe"ieitavam por seus dons, respondia com secura que tais dons provinham unicamente de um rude trabalho, Os aplausos dos ignorantes nao Ihe causavam a menor impresséo, nao sendo sensivel sendo & aprovagao dos miisicos, “Eu oro”, dizia-me “para o melhor misico do mundo, Pode ser que ele ndo esteja me ouyindo, 29, toco 2 ymigo sempre toto como se estivesso:” Ba pensava comige Te case muisio sempre estava presente quando Seale ticava, mas munca ousel diger iso a ele, com Tee of he desagradar, Com certera nfo me dirie; “MAges'ete, voce esta delirando”, mas eu nao debris de Tey Ueccontentamento por um abrir € fechar ybrancelhas, x, um tranit de setup a que me refiro no poderia agra dar-Ine cu desagradar-Ibe, pols néo ere mais que Str wren ensalando meus primeiros passos no mun eriame ens esses passes me levariamt a 16° Prev@jsando estudava cm Arnstadt Sebastian, pediy Wr : 20) i ir a Liibeck, a fim de assistir een, para. 4 Mennoy Bustebude, feemlentados pels seroee cr masieos De Atnstadt até la havia mais de diss. raings museca mas ee a mage ¢ naa tenis am enevoado di ; Partiu, assim, num ¢ io ‘outono, oregéo, para the fazer companhia ap longo do ‘alt eragetyara um moco expat de aubstitus-to no Orgho durart= Per gustnela, e obtivera perms para se demofat Sm win magingu a principio que tal prazo The sera, su Gente, mas, logo que chegou a Tiibeck, esse tempi © crtaiea, sentin que nao poderia se afastar ae i ao depres, vhsiog meaes decorreram antes de seu regresso a Arnsiadl (Os serdes musicais oreream sabre Sebastian um encanta, ‘avel aquele de qu contos 38 meant a gem ger entzoianto fnesio, Mullas Temes omsentou eomigo 2 fascinagéo deseas motes do, Keer agreja toda lumninada de eiios, repleta de una vouters na etl te ouvia oo caratas de Dusiebde, Guarda dma recordagio particularmente viva das Boda um 30 eda Celeste felicidade da alma sobre a Terra quando do nascimenio de nosso salvador Jesus Cristo, © canto, os instrumentos de corda e 0 grande érgio entusiasmavam-no. Como o rgio o atraia, e como esse lugar de organista Ihe conviria! Teria muito mais campo que em Arnstadt. Pouco faltou para que o drgao de Lilbeck me roubasse meu marido, pois 0 senhor Buxtehude foz saber a Sebastian que o faria seu sucessor, caso concor- dasse em se casar com sua filha. Gracas’ a Deus meu futuro marido nao aceitou, porque 2 Jovem era de natureza, muito rude ¢ néo tinha qualquer atrativo; e como essa recusa criou entre eles um certo constrangimento, Sebastian compreendeu que devia regressar a Amstadt. Quando 1d chegou seus superiores Ihe perguntaram as razbes de téo longa auséneia, tendo ele respondido que sé fora a Litbeck para se aperfeigoar na sua arte depois de ter pedido obtido a necessaria antorieagao. Os conselheiros replicaram que a licenca pedida havia side de quatro sema- nas, e ndo de quatro meses, mas, com a calma obstinacao peculiar a todos os Bach, Sebastian fingiu nao ter ouvido essa tiltima observagio, ¢ disse simplesmente esperar que durante sua auséncia seu substitute tivesse tocado de ma- neira satisiatéria, de modo a ndo haver nenhuma razao de queixa, Caleulo que o ilustre consistério tenha fieado um tanto desconcertado, mas logo se fizeram outras censuras a Se- bastian. Acusaram-no de induzir a congregagio ao erro, or suas inovagées na maneira de tocar Srgao e por suas variagdes nos corais, “Fle tocava como bem entendia”, dizia- Se; “levava o dobro do tempo ordinario ou, se achava melhor 56 a metade,” Os que ndo apreciavam seu modo de tocar mereciam ser privades dele, ¢ eu nao os quero iastimar; mas sou forcada a reconhecer que Sebastian era As veres 31 uum tanto obstinado, para nao dizer teimoso. Quantos aborrecimentos © cuidados Ihe dava 0 coro! ‘Um dia, num momento de célera, chamou um dos alunos de animal de chifres, © mogo esperou-o na ua com uma bengala; Sebastian puxou sua espada ¢ alguma coisa deplo- ravel teria certamente acontecido se néo os tivessem separado a tempo. Esse incidente tornou-Ihe diffeil a per- manéncia em Armstadt, pois bem conhego a sensibilidade que se escondia sob sua rigidez © obstinagéo, Meu marido disse-me uma vez que aqueles que tém a musica na alma dispiem de uma pele a menos que os outros homens. ‘Todavia nunca falava de scus sentimentos intimos, como faziam os mistcos que vinham & nossa casa, sobretudo o: franceses e italianos. F por isso que muito poueas pessoas, além daquelas que chegavam a compreendé-lo através dé sua masica, conheeiam-no intimamente, Seus sentimentos eram to fortes e seu temperamento, tao impulsivo, que eu me admirava de ver como ele se controlava. Nem eu nem ninguém conseguin jamais fazé-lo retroceder, depois de tomada uma decisdo. Impermedvel a qualquer influéncia, recusava-se com brandura, mas de modo inabalavel. Feliz~ mente, para trangiiilidade de sua familia, era bastante prudente, e muito raro 62 enganava em seus julgamentos, Apenas uma vez, como se ver, fui bastante tola para aereditar que ele se enganara, Nio obstante sua forga de carater, era humilde em muitos ¢2sos, mas nfo suportava a menor desconsideragao para com a dignidade de seu cargo, Aliés, nao exigia dos ou- tros seno 0 que Thes dava, isto ¢, 0 respeito & sua posicao Ambos haviamos passado uma parte de nossa juyen- tude na corte, cu pela profissio de meu pat e cle pela sua. Sabendo que Sebastian era muito mais sensato que 32 ‘ou, sentia que sua atitude de profundo respeito para com js rels © agueles que Deus colocara acima de nés devia gor justificada. Todavia, tinha 9 impressio de que ele era maior que todos, rei ndo apenas dos miisicos como tam- bem dos homens. Na realidade, os principes ¢ que deve- ram eurvar-se diante dele e beijar-Ihe as maos, essas méos {ao formosas as quais deviamos a mistea que mais convinha ‘a corte do céu que a dos duques da Saxdnia. Um dia, irritada por ver que © prineipe o fizera esperar longamente por uma audigneia, comuniquei-Ihe o que sentia, Essa foi uma das poucas vezes om que minhas palavras o contrariaram, Ble achava que © grio-duque herdeiro tinha o direito de fazé-lo esperar; e contudo, apesar de eu reconhecer a sua razio, quando ele me explicou que a base da ordem na sociedade e na civilizagdo era o direjto de reinar que Deus conferira aos reis, meu maride nao péde modifiear @ minha pinto. ‘Acreditava na necessidade de ordem em todas as coisas: em sua casa, na sua arte © no seu pais. Sempre s¢ elegrava quando tinha de musicar palavras que falavam de ordem e cever, Lembro-me de uma senhora francesa, excessivamente entusiasmada, que nos visitou em Leipzig. la eserevia poesias e alardeava uma viva admiraeao pelas ‘obras de meu marido, Elogiou-o'com uma superabundancia, Gesagradavel, pois era evidente que pouco 0 compreendia, fe 08 cumprimentos exagerados nao deixavam de irritar Se- bastian, No entanto ela o censurou por ter musicado certos hhinos religiasas e mesmo certas pastagens dos evangelhos, citando notadamente a cantata que fala de dizimo ¢ impos- to. “Um motivo tio banal para o seu talento, sr. Bach!” exelamava, agitando todas as plumas que trazia A cabeca "Jmposto e dizimo, lei ¢ ordem! Ora! Se quisesse musicar minha poosia sobre 0 atnor e a beleza...” “Minha senhora” 33 atalhou 0 meu querido Sebastian, j4 impaciente, “nao existem amor e beleza dignos desse nome sem lei ¢ ordem, sem 0 cumprimento do dever @ a obediéneia A legitima autoridade.” ‘Mas eis que mais uma ver me desviel do relato da sua juventude. Sinto constantemente difieuldade em no me afastar da linha da minha hist6ria, tio numerosos séo os pensamentos que surgem diante de mim... Os membros do consistério da nova igreja de Arnstadt, que ndo estavam satisfeitos com ele, talvez com razio, por causa da sua longa demora em Liibeck, nao tardaram a manifestar-Ihe certo descontentamento quanto as aulas dadas aos meninos da escola de musica. Devo reconhecer que Sebastian era o methor dos professores para aqueles que de fato queriam aprender, trabalhavam seriamente e gostavam de miisica; mas quando se tratava de alunos igno~ Tantes e indisciplinacios como os de Arnstadt, ou mais tarde 08 da Escola de Sao Tomas, em Leipzig, ficava demasiado acima do aleance deles ¢ nao tinha paciéncia. Por outro lado, censuravam-no “vivamente por ter ele Jevado até a galeria do érgio uma jovem estranha e ter tocada para ela. Tratava-se de sua prima Maria Barbara Bach, com quem ja estava decidido a se casar. Todas essas criticas o agastavam ¢ Ihe tornavam penosa @ permanéneia em Arnstadt. J& era entdo compositor, € experimentava a necessidade de uma existéncia placida e de uma mulher que se ocupasse dos detalhes materials do dia-a-dia, a fim de poder consagrar seu tempo e suas forgas ao ginio com que Deus tao largamente o presenteara. Por essa época vagara o lugar de organista da Igreja de Sao Bras, em Mithlhausen. Sebastian apresentou-se com muitos outros concorrentes, mas quando foi ouvido, indica~ ram-no por unanimidade, ‘Tinha entéo vinte e dois anos, 34 ‘A Gpoca de estudos ¢ viagens terminara, e ele se tornara um mestre, Segundo os vethos e bons costumes alemies wm mestre devia casar-se e ter alunos a quem transmi- tiria a sua ciéneia, do mesmo modo que daria seu nome ‘0s filhos que nascessem de seu casamento. A citosa joven sobre a qual recaiu a escolhia de Sebas- tian foi sua prima Maria Barbara Bach. Bla havia estado em Arnstadt ao mesmo tempo que ele, hospedada pela tia, ¢ naturalmente eles tiveram multas ocasides de se encon- (rar, pois os Bach reuniam-se com freqiiéneia, E foi sobre ela que recaiu a béncdo do amor de Sebastian. pastor Stauber, de Dornheim, que mais tarde se casou com a tia de Barbara Bach, foi que celebrou seu casamento. Entre os papéis de Sebastian encontrei a seguinte cdpia do registro da igreja: “A117 de outubro de 1707 0 honrado sr. Johann Sebas- tian Bach, solteiro ¢ organista da Igreja de Sdo Bras, em Mithlhausen, filho legitimo do falecido muito honrado sr. Ambrosius Bach, célebre organista e miisieo de Risenach, desposou a virtuosa Marien Barbaren Bachin, filha mais nova do muito honrado e reputado artista e organista de Gehren, 0 st. Johann Michael Bach. Estando todos aqui presentes na nossa casa de Deus, casaram-se gracas & gen- til permissio de Sua Senhoria, apés a publicagéo dos proclamas em Arnstadi”, Apesar das recentes desavencas, Sebastian partiu dt Arnstadt em boas relacées com os superiores, que fizeram 2 gentileza de emprestar um carro para o transporte cos moveis pela planicie de Arnstadt até Milhlhausen, Fixcu se entéo nesta pequena cidade, e seu primeiro alune {01 0 bom Johann Martin Schubart, que viveu dee anos sok 0 35 mesmo teto do mestre & Iuctou enormemente com esse coniate diario; ele era o devotamento ¢ a lealdade em pes- soa, Lamento sempre que Schubart tenhs morrido antes de cu 0 conhecers pois Sebastian falava dele com inalterdvel amizade. Quando de sua ltima doenca — ocasiao em que nos vém & meméria as primeiras recordagaes da vida — meu marido julgou mesmo, uma ou duas vezes, ver Martin em seu quarto, Este partilhava de todos os interesses de seu mestre ¢ 0 ajudava na grande obra que iniciara. Sebas- tian procurava, com efeito, renovar a miisiea sacra de Miihi- hhausen e torna-la, tanto quanto possivel, digna de Deus, Como a biblioteca, além de nao lhe agradar, era insu- ficiente, comprou com seu proprio salério uma grande quantidade de boas partituras, © drgio também. precisava muito de melhoramentos, pois varios registros estavam deteriorados ¢ o fole, absolutamente inutilizavel. Fes entao uma proposta para a restauracao do instrumento, que foi aeceita, sendo-Ihe confiada a supervisao do conserto. A seu pedido adaptou-se ao drgéo um conjunto de sininhos acio- nados pelo pedal, e essa era uma de suas invengdes que muito Ihe agradava, naguela época, se bem que mais tarde achasse graca dela e se referisse ao carrilhao como sendo uma loucura da juventude. “A caracteristica fundamental da sonoridade do orga”, dizia ele, “é a gravidade, a sole- nidade.” Contudo nio devia ficar muito tempo em Mithlhausen, onde nao encontrava o estimulo necessério para dar a musica sacra a perfeipao que desejava, Reinava entre os sdbios tedlogos um perpétua desentendimento, @ © meu guerido Sebastian, euja crenga era tao profunda e tao ouco suscetivel de ser toldada pelas disputas de palavras, achou que sua obra nao poderia desabrochar numa tal atmosfera. Desst modo, esereven ao conselho da cidade de 36 Mohthausen: “Apesar de ter aplieado toda a minha boa Yontude em alcangar um fim, o de dirigir uma misica gore bern organizada para a Gloria de Deus e 0 cumpri- mento dos vossos desejos, apesar de com 9s meus proprios Inelos ter feito todos os esforgos para manter a miisica religiosa em quase todas as povoagdes, tenho encontrado muitas dificuldades, e atualmente ndo me resta qualquer ‘speranga de que as coisas venham a correr melhor no futuro”. B era tao pequeno o set: subsidio que teve ainda de acreseentar: “Por outro lado, devo humildemente fazer- Vos saber que os meus meios so téo restritos que depois de ter pago o aluguel da casa e outras despesas indispen- ssivels, 0 resto mal dé para eu viver”, Quando © duque da Saxinia-Weimar Ihe mandow oferecer 0 posto de organista da corte e mestre de capela da Cémara de Musica, Sebastian ficou radiante por poder se refugiar nessa pequena cidade tio alegre, cercada de florestas, aguas @ colinas. Em Weimar nascen, durante as festas de Natal do ano de 1768, seu primeiro bebé, a menina Katharina Dorothea; com treze anos por ocasiao do nosso casamento, muito me ‘ajudou a euidar dos menores e a dirigir a casa, Os gémeos ¢ Leopold repousavam j4 nessa terra, onde também eu pre- cisel enterrar muitas das minhas criangas, As quatro que encontrei em sua casa foram para mim filha e filhos afei- coados ¢ obedientes, que logo considerei como se fossem meus. Nao poderia amar Sebastian sem os amar, e sem tornar meus aqueles que eram de sua came e de seu sangue. © mais velho, Friedemann, to prendado e inteligente, compreendia muito bem o pai. Devia, eontudo, causar-Ihe muitas decepgdes, pois, embora tivesse herdario os dons das Bach, nada tinha da sua consténcia e prudéncia; mas quase sempre preferimos os filhos que mais nos fazem 31 sofrer, ¢ esse foi o caso de Sebastian, embora seu coragdo fosse bastante grande para envolver todos os seus numa termura paternal, Creio que meu marido sentia por Frie- demann aquilo que eu sempre senti por meu pobre Gottfried; ‘mas, enquanto Friedemann era brilhante e inteligente, meu Gottfried era daqueles que costumamos chamar de “filhos de Deus”. Tenho pensado muitas vezes que 0 Tedo-Poderoso nos @4 as Suas mais profundas ligdes através de nossos filhos. A alegria de pé-los no mundo e a dor de perdé-los nios ligam ao Eterno. Pelo que me contou, sei que Sebastian foi muito feliz em Weimar, onde pela primeira vez pode chamar de sua uma casa —e muitas vezes me repetiu que precisava de uma mulher e uma familia para se sentir em sua casa. Perdera a mae quando crianca, ¢ desde entdo até 0 momen- to de se casar ndo passara de um viajante e pensionista Mas, além da casa e da familia, felicidades que, pela graga do ‘Todo-Poderoso, desfrutara em Weimar, teve a ventura de encontrar um principe profundamente piedoso, grande amante da miisiea, e, na pessoa do sobrinho do principe, que infelizmente morreu cedo, una alma de artista por exceléncia, ( organista e bom compositor Johann Walther deu-The igualmente provas de bondade e amizade, Para ser feliz, sempre bastou a Sebastian que a familia e alguns amigos ‘compreendessern suas obras, néo se preocupando em fazer relagées nem em solicitar aprovagao. Quando tocava érgao em outras eidades (os concertos eram a Ynica reso de suas viagens, geralmente empreendidas no outono) certa~ mente ganhava aplausos, mas aceitava o entusiasmo dos onvintes como um tributo devido & sua profissao de misieo. Nunca o vi orgulhoso com o sucesso ou perturbado com 38 © inaueesso, e sempre compreendi ser cutro 0 ideal que wealentava, No quero dizer que fosse insensivel A admiragio, ¢ We resto o vi recordar algumas vezes com evidente prazer 0 gesto do principe herdeiro por ocasiao de um concerto ide Grgao em Kassel. Maravilhado com 0 extraordindrio vir- {uosismo de Sebastian, ¢ particularmente com o manejo dos pedais, o principe tirara espontaneamente o anel que saya, para colocé-lo no dedo de mew marido. E ja que falei de seu extraordinario virtuosismo, ndo quero omitir uma anedota que mostra como um dia ele {eve ocasido de Ihe medir og limites. Sebastian sustentara freqiientemente que todo misico senhor de sua arte devia poder decifrar & primeira vista fosse 0 que fosse. Ora, seu colega de Weimar, o senhor Walther, que havia muito tem- po procurava pregar-Ihe uma peca, armou-the uma cilada, Sebastian ia de vez em quando almogar com o senhor Walther. Um dia, enquanto esperava a refeigao que o amigo estava preparando, aproximou-se do cravo para olhar um trecho de misica, ¢, naturalmente, pés-se a Ié-lo, Mas logo na primeira pagina alguns compassos o fizeram tropegar; muito surpreso, pois raro Ihe acontecia encontrar musica mais ecomplicada que a sua, recomegou o trecho € foi forcada fa deter-se novamente naqueles compassos. Nessa altura senhor Walther, que estava escutando do outro lado da porta, ndo péde mais conter o riso, Sebastian ergueu-se vivamente €, um tanto vexado, exclamou: “Com efeito! Ainda nfo nasceu o homer capa. de ler seja o que for! Esta passagem € impossivel”. E freqiientemiente contava esse episidio para encorajar os alunos a quem faltava audacia. © senhot Walther tinha uma razo especial para se ligar a Sebastian: as maes de ambos pertenciam & familia 39 Lammerhirt; ele eonhecia a Casa das Trés Rosas, em Erfurt, ‘onde nasceu minha sogra, falecida muito cedo para des- frutar a celebridade de seu filho, e de quem este s6 guardava uma recordagao muito confusa, Estou, no entanto, certa de que 0 bom Deus Ihe tera concedido a graa de ouvir, 1a no céu, as obras de Sebastian, pois, embora eu receie ‘que meu pastor néo esteja inteiramente de acorde comigo este ponto, na minha opiniao o céu nao sera céu se 1d nao se ouvir a musica do meu marido. © povo chama a igreja do castelo de Weimar de “o caminho da cidade celeste”, « quando meu marido tocava redo ld ela devia ser, com efeito, uma cidade celeste. Con- tou-me um de seus amigos que durante 0 culto, tio célebre nessa igreja, a musica profundamente religiosa de Sebas- tian dava aos fiéis 0 antegozo do parafso, e merecia na realidade uma glorificagao eterna. Jamais esqueci essas pa- lavras, ‘Em Weimar Sebastian podia usar 0 pequeno xgao do eastelo, que tanto gostava de sentir sob suas mis, ¢ tam bém — por que ndo dizer? — sob os pés, pois a maneira ‘como usava os pedais era um milagre de seu tempo. Atin- gira nessa época o apogeu de seu genio de organista € de ‘compositor. Gostava particularmente dos pedais, com os sete jogos, um de trinta e dois pés e trés outros de dezes- seis pés, 0 que produzia esse incomparayel efeito de baixo que ele tanto prezava. Compés muitas obras para esse ins- trumento, entre outras, O pequeno livro de drgao, exnjos trechos, executados por ele, me deliciavam. Estudei sob sua orientagao alguns preliidios de coral, mas de modo geral les eram muito dificeis para minha ténica fraca, O titulo completo desse livro, eujos eantos ¢ Jombada de couro me ‘eram to familiares, € 0 seguinte: “Pequeno livro de érgdo, ‘para dar diretrizes aos principiantes e para os levar, por 40 diferentes métodos, a execucao de um coral. Para thes dar também a possibilidade de se espoctalizarem no estudo do pedal, porque os pedais sao tratados de maneira inteira- mente especial nos corais. Ao Tode-Poderoso, para hon- ré-Lo, ao proximo, para ensiné-lo". Infelizmente sempre fui demasiado “principiante” para poder executar essa coleeao. Sebastian podia zombar das Gifieuldades porque nao as imaginava, e, sem mesmo ter consciéncia delas, triunfara sobre todas desde os primeiros anos Era positivamente uma delicia ouvi-lo executar os preliidios de coral do Pequeno livro de orgao, Basta-me abrir o livro para ficar de novo impregnada deles. Nao me lembro dos que preferia quando moga, mas sei qual deles agora me consola mais do que qualquer outro: é a propria vor de Sebastian que me fala e me exorta & paciéncia e a esperanga, Esta quase no fim do livro e se intitula Para os agonizantes — Todos os homens 1m de morrer'. Como 2 melodia cantava quando ele a executava no positiv’, e de ‘que paz os imponentes grupos de colcheias ¢ semicolcheias me enchiam 0 eoragiio! ‘Sua mais clevada miisica sempre se inspirou no pen- samento da morte; outrora iss me assustava um pouco, mas agora compreendo o sentimento que cle experimen: tava. Os dois outros preliidios que me eram particutar- mente caros haviam sido compostos para a Quaresma; sa0 O inocenie cordeiro de Deus! ¢ Oh, homem, chora os teus pecados!* Ao ouvir os ‘ltimes compassos do segundo, a0 fF die Slerhenden: Alle Menschen misten sterten (N. dx R.) 20 pesitiv 4-0 tea iter. que ovina 08 ubor laalzedos ands do en Peas ica ds do ortnista, 50 Lamm Govter Unehilsie, (We) 40 Mensch, Bewein doin Sinde arose (N, de R,) a mesmo tempo tio belos e tao tristes, eu estremecia e sentia © eoraggo parar de bater. Se comeco a pensar na sua miisica ¢ a felar dela reeeio no acabar a historia da sua vida; esse querido livro de érgio esta por si 30 tao cheio de recordagdes que me € bem dificil afastar os pensamentos que ele suger ‘km Weimar Sebastian tcrnou-se um mestre absoluto € insuperavel do érgio © dos outros instrumentos de te- claco, pois realmente inventara e pusera em uso um imé- todo de dedilhado inteiramente original ‘Um dia veio a Dresden, onde ele j4 era renomado, um célobre misicu franeés, Jean Louis Marchand, homem vai doso mas dos mais talentosos, que desafiou todo o mundo musical a competir com ele, esperando demonstrar desse modo a sua superioridade, Tal maneira de agir nao causou ‘a menor impreasio em meu marido, gue nao teria dado um passo para entrar na disputa. Alguns muisicos, porém, fe- ridos pelo presungoso desafio do francés, vieram pedir @ Sebastian que defendesse a reputagdo da musica alema. ‘A principio meu marido hesitou, mas depols se deixou pe suadir e aceitou 0 desafio de Marchand. Os detalhes do encontro foram combinados, e ele deveria ocorrer no pala- cio do conde Flemming, Muitas damas ¢ cavalheiros da corte estavam presentes e esperavam com impaciéncia 0 comeeo do torneio musical. E quando na magnifies sala, toda iumiada por candelabros, Sebastian avangou, tran- qililo, impassivel e digno como sempre, estava pronto a resolver todos 08 problemas que o francés quisesse Ihe apre- sentar, Como 0 estrangeiro néo chegava, mandou-se um criado procuré-lo, e pouico depois ele voltou com a noticia de que 0 tal senhor partira de Dresden naquela mesma qranha, pela posta, Tivera certamente oportunidade de ouvir Sebastian, e reconkecera o homem contra cujo talento 42 € poder nao podia utar, B como néo Ihe teria sido posstvel artebatar a coroa de mestre, arriseando-sa mesmo a se ‘mostrar inferior, 0 Gnico meio de salvar a reputagao era, portanta, nao coneorrer. Devo declarar, a bem da verdade, que nao foi Sebastian que me contou esse episédio, mas sim uma testemunha ocular. Sebastian nunca experimentau 0 menor prazer em desmerecer um rival, endo gostava nada de ouvir repetirem essa histéria em sua presenca; asse- gurava que o senhor Marchand era um eacelente tasico, © que se fizera excessive barulho em torno dese caso. km Erfurt, onde Marchand era vivamente criticado, ele resolveu um dia ealar seus detratores, e, sentando-se ao crayo, disse-lhes: “Vou provar como as suas suites, que tanto vooés desdenham, sao belas”. Tio bem as escolheu, tocou-as tio delicadamente, que elas pareceram bem su- periores ao que na realidade eram. Isso prova a generosi- dade que mostrava para com todos os misicos, ¢ como sabia faz8-los areitar a grandeza do sau génio pela bondade que transbordava do seu coragao. Sempre manifestou grande curiosidade de ouvir outros compositores de sua cidade ou de fora, e nunca se con- solou por nao ter podido, malgrado suas repetidas tenta- tivas, conhecer 0 senhor Handel, Admirava as obras desse mestre, eneantando-se com elas ¢ pasando mesmo horas € horas a copié-las. Eu gostava muito de ajudé-lo nesse tra- batho. Em Leipzig chegou a fazer uma bela execti¢ao de ‘uma das cantatas de Handel, A Paixdo de Nosso Senhor Handel e Sebastian haviam nascido ambos na Saxdnia no mesmo ano, circunstancia que ainda mais os aproxi mava, Meu marido escreveu muitas vezes a0 grande mt- 2 Leiden Unveres Merrm, (Ns 43 sico a fim de combinar um eneontro, e por ocasido de uma curta estadia de Hindel em Halle, sua cidade natal, Se- ‘bastian velo de Coethen especialmente para cumprimenté-lo, mas 36 conseguiu chegar na noite do dia em que ele par~ tira. Dez anos depois Hiindel veio novamente a Halle, mas como Sebastian estivesse indisposto ¢ incapan dean jer a viagem, convidou-o, por intermédio de seu filho, epee to ene Leipalgy paren, por seu lado Hindel também tstava impedido, de modo que Sebastian ficou outra vez muito desapontado, tendo de renunciar alegria de ver ouvir o eélebre compositor, que, por sua vez, certamente gostaria de encontrar seu ilustre compatriota. Handel era grande o suficiente para reconhecer 0 valor da obra de Se- bastian, por muito ignorada que ela fosse na Alemanha, num tempo em que a sua era famosa 20 mesmo tempo na Ylalia e na Inglaterra. Mas ele buseava 0 piblico, viajava, ‘e ganhava muito dinkeiro, ao passo que meu marido fugia do mundo é vivia trangiilamente com sua fomilia, ‘Sebastian quase so viajava no outono, na maioria dos casos para experimentar novos Orgaos ¢ fazer um relatério sobre eles, Era solicitado de todos os lados para esse tipo de tarefa, pois julgava um érgao com pericia igual Aquela ‘com que 0 tocava. Suas opiniGes eram irrevogaveis e sempre Impareiais. Entretanto seus amigos consuravam sua grande prebidade, que Ihe gerava inimigos. Na realidade ele a nada fechava os olhos, nem deixava em siléneio 0 menor defelto, Nada que diga respeito ao drgao pode ser insignificante”, iia, Gia ssnegava, por pixar todas os registros, para fazer soar plenamente o instrumento, 9 gue Ihe permitia veriticar fe “os pulmées eram sos”, ¢ 0 depois se ocupava dos de- talhes. Um construtor de drgios pouco cuidadoso nao po- dia deixar de temer seu julgamento. “4 No outono de 1717 o jovem principe Leopold de Anhalt Céthen chamou-o para sero seu mestre de capela, Sebas- tian aceitou com prazer, tanto mais que esse mesmo posto acabara de vagar em Weimar sem que o tivessem oferecido a ple, que por isso se sentia um pouco humilhado. Por oca- sido da morte do velho mestre de capela imaginara que The ofereceriam 0 lugar, mas haviam dado preferéncia.a um miisiea pouco competente, filho do recém-falecido mestre. Sebastian melindrou-se, e ndo 0 ocultou; reclamou sen des- ligamento, a fim de poder ir para Cothen, de um modo tao decidido © peremptério que o duque se ofendeu eo man- teve detido um més inteiro. A falta de independéncia sem. pre me pareceu particularmente dura na profissio de ma- sico de corte Contudo, por volta do Natal, Sebastian péde ir se fixar em Céthen com a mulher e os fillios, esperando levar uma vida mais calma e retirada do que em Weimar. Durante 0 tempo que ali passou néo dispts senfio da pequeno drgao do castelo, e pelo menos oficialmente nao tinha de se ocupar da mtisica sacra. Dedicou-se, pois, inteiramente, e com 0 maior prazer, & musica de cdmara. © jovem prineipe, que The manifestava muita benevoléncia e simpatia, gostava apalxonadamente de musica e tinha na devida conta seu mestre de capela, Cada vez que ia a Karlsbad, para as dguas, levava-o consigo, © foi bastante amAvel ao consentir em sor padrinho do filho que Sebastian e Barbara tiveram em C5- then, Este, contudo, devia morrer pouco tempo depois de ter sido batizado na eapela do castelo, Sebastian gostava de Cithen, da sua trangiiilidade da sua paz, mas nao creio que tivesse ficado 14 para sempre, mesmo que as cireunsténcias nao 0 houvessem feito partir. Sentia-se privado do essencial, a miisica sacra, que de- via ser a expresso do seu cardter profundamente religioso. 45 Bm Céthen Maria Barbara Bach morrev, apés treze anos de casada. Dos sete fillos que tivera, com Sebastian apenas restavam quatro, Foi nessa mesma cidade que me tornet sua mulher. 'B agora que jé contei, de melhor modo que pude, @ historia de sua vida até a época em que o conheci € amei you falar dos anos que vivi com ele, I Onde se ata to earéter religioo de Sebastien, dé mest ‘caramento, de met Pequeno Albom, da prfeicao de teu ded Thode, de Sebastian pai e professor, do Ceavo bem tempe- rado, #do que mi ecomteceu por ter amado muito as fuse, Meu marido era um homem dificil de conhecer. Se desde o primetro instante eu no o tivesse amado, certa- mente nunca o teria compreendido. Muito reservado, nao se revelava através de palavras, mas por sua atitude e, naturalmente, por sua miisica, Eu nunca havia visto um hhomem tao religioso. Isso pode parecer estranho, se se pen- sar em todos os bons pastores Tuteranos que tenho enean- trado, cujo amico fim na vida é fazer sermées ¢ dar bons exemplos. Mas Sebastian nfo se comparava a eles; nio obstante parecer oculto, 0 sentimento religioso estava sem- pre nele, e nunea descuidado. Houve um tempo, especial- mente no comeco do nosso casamento, em que eu tive medo da austeridade de pedra que dissimulava sua bondade, € mais ainda ca estranha nostalgia da morte que 0 acom- panhou por toda a vida, apesar de tin laboriosa. Bu. niio fazia outra coisa sendo pressentir tal nostalgia, apesar de ele nunca me ter falado nisso, com medo de me assustar, pois eu era mais nova e muito menos corajosa. Enquanto Sebastian viveu eu nunca tive, alids, 0 menor desejo de delxar este mundo, que me parecia tio hom; mas agora que ja partiu, velha e sozinha compreendo melhor seu an- seio de ir 14 pare onde todas as coisas so perfeitas, con- templar 0 seu Mestre, Jesus Cristo, 41 No fundo de seu grande corago trazia sempre 2 ima- gem do Crucificado, e sua miisiea mais elevada é o grito desse desejo de morte que Ihe dava a visio do seu Senher ressuscitado, Meus pais eduearam-me piedosamente na 16 Tuterana, mas a religifo de Sebastian era. algo maior ainda. Senti-o desde 0 dia do nosso casamento, quando, depois de todos se haverem retirado, ele yeio a0 meu eneontro, to- mou-me o rosto entre as indos e, depois de me olhar longa- ment, disse estas palavras: “Agradeco a Deus ter Ele me dado vor’, Magdalena”, Eu nada pude responder, mas en- feolhi-me contra seu peito ¢ murmurei apaixonadamente esta prece: “Meus Deus, tornai-me digna dele, tomnai-me digna dete!” Logo tomei consciéneia da minha juventude fe da torrivel responsabilidade que assumira ao consentir ‘em ser esposa dé Johann Sebastian Bach. Se o fizesse in- feliz, ainda, que fosse 86 um pouco, me arriscaria a preju- dicar sua mtisica, “As dissondneias sto tanto mais terr! Yeis quanto mais se aproximnam do unissono”, dizia ele, “e por isso 08 mal-entendidos entre marido e mulher sao. os snais insuportiveis.” Ambos, Sebastian e eu, tivemos dift- culdades, como as tém todos os habitantes desta terra, mas que permaneceram exteriores e jamais atingiram nosso amor. © fato de ele ter quinze anos mais que eu e de j& ter sido casado expliea talvez a sua indulgéncia. Decerto feu sabia tratar da covinha e manejar a agwha, mas nunca estivera a testa de uma casa com criangas; ¢ minha mae era to boa dona de casa que jamais eu atentara para todas fas ocupagoes de uma mulher casada. Bem percebia que Se- bastian detestava a desordem; seus papéis ¢ objetos pes- soais deviam ser arrumadas de uma cerla mancira, ¢ nado ‘de outra, Tinha horror.a0 desperdicio e sobretudo & im- pontualidade, porque ser impontual é desperdigar 0 que 48 ele sempre considerou inestimavel: o tempo, a tini dina, que no se pode possuir dias vezes. A priniplo ed era um pouco descuidada e estouvada, mas meu marido deu provas de grande paciéncia © néio tarde) a me corrigin, pore meu finico desejo, meu tinico fim era agradar-tIhe fazer da sua casa o Iu an dase Seog igar do mundo onde ele encontrasse ‘Apenas uma semana depois do nosso casa - eipe de AnbaltCocnen, Que trike Sebarion em fo grade estima e fora tao amével comigo, casou-se também, e nada indicava que esse acontecimento viesse a ter uma notével Snftudnein sabre 0 nosso humid desing; ele fl, conto, a causa direta da nossa parti - a causa direta da nossa partiéa para Leipsg, onde passa- “Até seu casamento, a maior alegria do principe era ouvir boa miisica, ou seja, a que the fazia o seu mestre de capela, Os concertos, modestos, porque o principe nao era rico o suficiente para manter uma grande orquestra, assu- miam, no entanto, um brilho especial sob a direcao de Sebastian; neles suas obras eram freqiientemente executa- das, Acharia a nova princesa que seu esposo dedicava de- masiado tempo & miisiea e a seu mestre de capala? Seria um tanto ciumenta, ow os concertos de c&mara a aborre- ciam? Set bem que certas pessoas, mesmo entre as da melhor sociedade, sio pouco sensiveis, apesar de nao ter tido a Infelicidade de viver entre elas. O fato é que, alguns meses apés seu casamento, comegamos @ notar uma mu- danca de atitude em nosso principe. Ble mesmo jé quase nao tocava mais, e nfo favorecia os concertos com sua presenga e seus estimulos; a eorie de Cithen tornou-se in- diferente. Sebastian, que nao podia viver em semelhante atmosfera, afligia-se com isso. Regressou um dia A casa desgostoso com uma resposta pouco amavel, que Ihe fez 49 compreender a que ponto o principe se havia afastado da misica para se aproximar da delicada e exigente princess. “Magdalena”, disse-me com ar magoado, “vai ser preciso ceixarmos Céthen, Aqui jé nao é lugar para um misico. Yoo’ concorda em que mudemos o nosso lar?” Respon- di-lne o que era verdade, que meu lar nao podia ser senfo nno lugar onde ele vivesse e se sentisse bem, © animel-o © tnelhor que pude, No entanto a perspectiva de abandonar Céthen nao era fécil para nds. Ble gostava da cidade, que para mim representava meu primeiro lar — e todas as mulheres compreenderao o que significa deixar um lugar fa que estéo presas tais recordagdes. Estévamos em Co- then havia pouco mais de um ano, mas que ano mara- vilhoso e cheio! O fato de viver com ele, de vé-lo todos os dias, parecia-me uma felicidade imerecida. Por longo tempo vivi num estado de admiragdo e de sorho, um so- nho de que, quando Schastian néo estava em casa, temia facordar para encontrar outra vez a pobre pequena Anna Magdalena Wilken, em vez da Frau Kapelimeisier Bach, ‘Mas em breve ouvia Tessoar seus passos, corria ao eneontro dele, ele me acolhia com uma caricla ou ume palavra cheia de ternura, ¢ eu tina em seus bragos a impressio de estar protegida; sentia que nao era um sonho, mas uma esplén- ida realidade. Pouco tempo depois do nosso casamento ele me deu Poqueno dibum de miisica, que havia composto para mim. ‘nda o tenho, e, por muito pobre que seja, no me sepa- rarei dele enquanto viver. Uma noite, depois de ter deitado seus quatro filhinhos, desci e instalei-me mesa para co- piar uma partitura & luz da eandeia, quando ele se apro- Ximou docemente ¢ pousou diante de mim um pequeno livro de forma alongada, encadernado em verde, com @ lombada @ 0s cantos em couro, ¢ que tinha a seguinte inscrigao: 50 Clavierbiichlein vor Anna Magdalena Bachin Anno 1722 Voltando as pfginas com os dedos impacientes, en- quanto Sebastian se mantinha de pé atras de mim e me olhava sorrindo, vi que ele escrevera nesse pequeno com- péndio alguns trechos féceis para cravo. Comerara a me dar ligdes havia pouco tempo, ¢ eu nao estava ainda mi adiantada, apesar de ter me dedicado ao instrumento desde antes do nosso easamento. Esses trechos melodiosos tinham sido compostos para me distrair, me encorajar e me levar, de maneira agradivel, a um grau de téenica superior. Ha- via uma grave e bela sarabanda (eu gostava muito das sarabandas de suas suites ¢ partitas para cravo, porque elas me pareciam particulanmente representativas do seu espirito), e 0 mais alegre minueto que conheco, Todas as composigées tinham um eneanto bem proprio para es muler uma principiante no estudo, Sebastian estava sem- pre pronto a descer de suas alturas para conduzir pela mao ‘uma erianga ou um prineipiante, e nada num aluno o im- Pacientava, a nao ser a indiferenga © 2 negligéncia Bem desejaria poder explicar a sua maneira de ensi- nar, Creio gue nunca houve um professor como ele, t20 animador, tao paciente (salvo com os preguigasos) € tao infatigével. Seus olhos ¢ ouvidos pereebiam os menores ertos, ¢ jamais tolerava a falta de culdado, Vi mogos, seus alunos, tremer de apreensao quando iam se encontrar com ele, e voltar com lagrimas nos olhos, de tal modo nham se comovido com sua bondade. Vi-os também empa- Tidecer quando meu marido se zangava, o que raramente aeontacia, Por vezes, contudo, seu temperamento apaixo- ot nado explodia, Nao tinha indulgéneia com uma certa for- ma de vaidade. Vi-o uma vez arancar a peruea e atird-la na cabega de um aluno a quem pomposamente chamava “um cavaleiro do teclado”, expressdo com que designava aqueles que tentavam obter efeitos brilhantes sem ter ums base sélida, ‘quando me dava ligées, porém, era de uma paciénela, angelieal; jamais esquecerel essas horas maravilhosas em que, sentada a seus pés, eu aprendia musica. Decerto ele do me submetia ap severo exercicio que impunha a seus alunos, Eu nao iria fazer uma carreira musical, ¢, de resto, desde os primeirus anos tive tantos filhos para cuidar que para mim a mnisica ficou sendo apenas uma distragao. Contudo, no primeiro ano da nossa vida em comum ele me den ligGes de cravo, ensinow-me a tocar por baixo cifrado ce até mesmo, durante alyum tempo, a tocar érgao, Quando The confessei meu desojo de aprender érgio ele brineou um pouco comigo, dizendo que este era um instrumento muito grande para uma mulher. “Se eu puxasse a0 mesmo tempo todos 0s registros" dizia ele “vor’ taparia os ouvidos com as mios e correria para casa.” Mas como eu nao me eixasse desanimar por suas gentis zombarias, dea-me, logo que pode, uma ligso, € éreio que teve nisso tanto prazer como eu, o que nao era pouco. Ha qualquer coisa de estra- nhamente fascinante no simples fato de tocar o teclado de um drgao. Ja tive ocasiao de dizer que desde antes do meu casamento sabia tocar um pouco de cravo, mas tocar érglio € coisa muito diferente, Os trés teclados nao me embaragavam muito, mas me senti perdida quando tive de empregar os pés para usar 3 pedais. Mal conseguira executar apenas com as maos ‘canticos © cangoes a quatro vores, ele entendeu de me fazer Locar 0 baixo com o pé. Nessa altura confundi tudo 52 € toquei. tudo ao contrério. Com as duas mos no teclado © 0 pé num pedal, detive-me bruscamente e ergui os olhos para Sebastian, que se mantinha a meu lado. “Nao posso continuar; néo’ sel por qué, mas nao posso”. “Vocé é uma patinha”, ele me respondeu; “se nao estivéssemos na igreja eu a beljaria.” _. Contudo, apasar de zombar de mim, era de uma pa- ciéncia infinita, e depois de varios exercicios trabalhosos consegui enfim tocar as notas do pedal sem tatear com © pé por minutos inteiros, Desde 0 comeco ele me proibira de thar os pés. Dizia: “Seria engracado s2 voce nao fosse capaz de tocar uma note sem antes verificar se é a certa! 86 os maus organistas olham os pedais, © eu nao con- sinto que vot faca como eles. E possivel que voce nao va muito longe na arte de tocar érgao, mas pelo menos hé de ir como se deve”. ‘Nao fui realmente muito longe, mas o bastai valine quanto a arte de Sebestian tra racer lligais oie rando todas as dificuldades do 6rggo 6 que eu nao poderia apreciar 9 modo como ele executava as fugas ¢ os prelidios de coral; seria como se tocasse para um peixe do mar, € eu, sua mulher, nfo queria permanecoer como um peixe, surda e estipida. Aliés, fui bem recompensada pelos ¢s- forgos que dispendi ¢ pelas horas consagradas a aprender © poteo que sei, pois assim me foi dato saborear uma, ale- fia muito especial ao ouvir es obras sublimes ¢ nume- ue Sebastia seu instramei - Tosa a mn cumpunha para seu instramento pre. Comecou a escrever no meu Album uma fantaria paca 6rgo, mas nunca The sobrou tempo para acabé-la. Eu pre- feria esse instrumento aos outros porque ele 0 apreciava profundamente, e porque tenho a impressio de que suas ‘mais nobres eomposigoes, as mais emocionantes ¢ que mais 53 completamente exprimem sita alma, sfo as compostas para Srgao. Sei que juizes competentes preferem suas cantatas, fe que ainda outros preferem as pecas que esereveu para cravo; na yerdade, refletindo bem, & muito dificil esco- Iher ¢ manifestar Uma preferéncia, e 56 nos resta repetir as palavras da Biblia: “... como uma estrela se distingue da outra pelo brilho ...” Mas jé me afastei de novo do que queria descrever: a sug maneira de ensinar, Sebastian havia aperfeigoado seu método com 0 maior cuidado, ¢ achava que nenhum esfergo era demasiado para “o jovem que deseja aprender”, Quando se ineumbia da orientagio a um prineipiante de eravo, exa~ tamente como procedeu com os proprios filhos, dava-lhe a principio exereielos para o toque ¢ 0 dedilhado, Fol ele 0 primeiro a preconizar aquilo a que chamava o-método na- tural de cruzar © polegar sob 03 dedos, Até entao os raros executantes que sé serviam do polegar cruzavam-no por elma dos dedos, numa mancbra muito desajeitada. Foi igualmente Sebastian quem. primeiro recomendou 0 ¢m- prego de cada dedo para os trinados e ornamentos, En- quanto nao se adquiria a necesséria destreza para esses exer- cicios, nao tolerava que se fosse além deles, mas escrevia para seus alunos trechos encantadores que thes permltiam Veneer certas dificuldades ao mesmo tempo que se entre- linham, amenizando-lhes 0 trabalho com agradaveis me- Jodias. Vi-o afastar-se do cravo, onde algum deles se es- forgava em vio para dominar uma passagem complieada, pegar uma folha de papel e escrever com a mao répida, gue entretanto nfo rivalizava com a rapidez de seu pensa- shento, alguma pequena invencao 0 que apresentava a difi- cnidade em questao de forma clara ¢ atraente, de tal modo que, apenas por ter se sensibilizado com aquela atitude & gostado da muisica, 0 aluno yoltava ao trabalho com reno- 5 ‘vada coragem. Muitas vezes o ouvi exclamar: “Em cada ma yocé tem cinco dedos tao bons quanto os meus! Sunples: mente dedique-se a exercitd-tos, e acabara por tocar tao bem quanto eu; é mera questao de aplicacdo”. Para Friedemann, o filho mais velho, que fol sempre seu aluno preferido, meu marido compés um Pequeno di- bum por ocasido dos seus dez anos, isto é, um ano antes do nosso casamento. Depois que Friedemann o estudou criteriosamente, e que outros meninos, cada um por seu turno, gravas a ele realizaram progressos, salvel esse dlbum da destruicéio, porque 0 préprio Sebastian quase nao cui- dava de conservar suas composigdes de menor importancia, Quando alguma delas se perdia on era extraviada por uma Ed pan beset ei “Bem, escreverei outra”, ito era tao fecundo jardim de minha tia-avé. Somme eb ease 6 No Pequeno dlbum de Friedemann, cle se de - batho de expllcar, na primeira pagina, as Gloves, 08 Orne mentos e os floréios principsis, Marcara cuidadosamente 08 dedilhados na primeira pera, chamada “Applicatic" em eujo inicio eserevera as palavras In noimine Jesu, em. nome de quem compunha toda a sua misiea, as grandes as pequenas obras, Recordo-me da alegria que Ihe causei uma vez; en estava tocando, para dois de nossos filhos que dancavam graciosamente, uma giga de sua autoria conti abriu a porta. Eu entéo Ihe disse: ~~ Creio que o Menino Jesus gostaria de dangar wiéledia, B Getastian, encaninhando-se para suin beijow- me a, nuea, acreseentando: — Que lindo pensamento o seu, minha querida! Eu me sentia tao feliz, cada vez que um pensamento meu The agradava! Além do mais aquele correspondia & realidade, Meu marido podia escrever misica bastante de- 86 licada para o Menino dé Belém, como, por exemplo, a “Ber- ceuse” do Oratdrio de Natal, que a Sua Mae bem-aven- turada seguramente teria gostado de cantar para ele, bastante nobre para 0 Salvador no Calvario, como “Cru- cifixus” da grande Missa, No final das suas primetras par- tituras, Sebastian eserevia sempre S.D.G., que quer dizer Soli Deo gloriae,ow seja, “Gloria s6 2 Deus". Comps para Friedemann muitas InvengGes, a duas e a trés vozes, mais tarde reunidas em um volume a que deu o nome de Guia sincero que ensinard aqueles que gostam do cravo, ¢ parti- cularmente aos que tencionam dedicar-se ao seu ensino, um méiodo claro para conseguir tocar corretamenie duas vores, e-em seguida, depois de ter progredido, a executar corretamente irés vores ligadas; ao mesmo tempo, este guia thes fornecerd ndo apenas boas invengoes, mas a inaneira de executdélas bem, possibilitando a eles sobre- tudo alcangar uma exécugdo harmoniosa, e enfim thes dard um antegosto sério da arte da composi¢do. Dados os esforgos e eutdados prodigalizados por Se bastian, nao é de admirar que seus dois filhos mais velhos se tenham tornado miisicas to notaveis: Friedemann, 0 methor organista depois de seu pai, e Emmanuel, o maior cravista do seu tempo, e compositor extraordinariamente dotado, Quando nes easamos, em 1721, Friedemann tinha onze anos, Emmanuel, sete, 0 pequeno Johann Gottfried, seis ¢ a querida Katharina, dois mais do que Friedemann. Desse modo, tive, desde logo, toda uma pequena familia de que devia me ocupar maternalmente, Seguindo o born exomplo de Sebastian, as erlancas logo gostaram de mim fe comecaram a confiar-me suas pequenas alegrias e des- igostos, se bem que Friedemann, o mais velho Gos rapazes, ‘que 32 considerava 0 companheiro responsdyel de seu pai, fosse @ principio um tanto reservado. Hramos muitos fe- 56 lizes todos juntos, mas nossa felicidade atingia o auge quando conaeguiamos roubar Sebastian a seus deveres da corte, as suas composigoes & ensaios, para convencé-lo a fazer um passeio conosco. Entao colocavamos comida num cesto © famos nos instalar & sombra, fora da cidade, Ble se divertia com os filhos, libertava-se do gibio e com- Portava-se também como uma erianga; todos nés riamos muito e comiamos ainda mais, o que fazia com que eu néio concebesse semethantes excursdes sem provisoes espe- cialmente nutritivas. Sentia-me to moca como as criancas, © esquecia muitas vezes, creio eu, a atitude que deve con- servar uma mulher asada, porque quando Sebastian estava de bom humor, gracejador brincalhao, fazia-nos rir até fas légrimas. Depois, quando os meninos comecavam a fiear um pouco fatigados ¢ o pequeno Johann vinha se encostar em meu joelho, Sebastian contava-nos histérias, lendas que aprendera na infaineia, em Bisenach, ou, 0 que me era ainda mais agradavel, fatos verdadeiros sobre Santa Bligabete ou Martinho Lutero, A hora do crepitsculo voltava- mos para casa, € depois de ter deitado as criancas cansadas, eu me sentava, fatigada também e muito quieta, ao lado de Sebastian, com minha méo nas suas ¢ a cabeca em seu ombro, Deus nos oferecen: em Céthen dias de grande feli- cidade, Nao tardei, porém, a conhecer uma felicitade ainda maior, Fol-me dado um filho, 0 primogénito, de que uma mulher jamais esquece 0 vinda. As flanclas j4 estavam sendo aquecidas diante do fogo quando minha boa velha enfermaira deixou entrar Sebastian. Parecia um pouco agitado, entretanto disse-me com alegria: “Minha querida Magdalena, todas as senhoras Bach sio mies felizes! ...” E de stbito, envolvendo-me ternamente em seus bracos, acresventou num tom diferente: “Men pobre cordeirinho, i)

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