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oe te PSICOLOGIA DO SAGRADO ELIANA BERTOLUCCI a AGORA Dados Internacionais de Catalogacao na Publicagéo (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Bertolucci, Eliana. Psicologia do sagrado / Eliana Bertolucci. — Sao Paulo : Agora, 1991. Bibliografia. ISBN 85-7183-380-X 1. Consciéncia 2. Psicandlise 3. Psicologia social 4. Psicoterapia transpessoal I. Titulo. CDD-616.8917 -153 -302 -616.8914 91-1286 NLM-WM 460 Indices para catdlogo sistematico: 1. Consciéncia : Processos mentais : Psicologia 153 2. Psicandlise : Medicina 616.8917 3. Psicologia social 302 4. Transpessoal: Psicoterapia : Medicina 616.8914 CAPITULO 1 O Método Fenomenolégico, a Busca do Sentido e a Hierarquizacao dos Niveis de Consciéncia “O tolo ndo vé a mesma drvore que o stbio.’’ WILLIAM BLAKE Pela experiéncia de vida, todos haveremos de concordar com essa frase facilmente. Contudo, isso nao é tao Sbvio dentro do panorama das cién- cias humanas. Se meditarmos sobre seu significado nesse contexto par- ticular, podemos ver claramente que a frase coloca em evidéncia nado somente o mito da objetividade cientifica (que acredita que os fatos sao independentes do sujeito que os observa) como também a ‘‘sapiéncia’’ do cientista como fundamento da visao dos fatos que deverd revelar em suas pesquisas. Como cientistas humanos, quantas vezes sacrificamos nossas intui- cdes e percepcdes do mundo e do ser humano, em busca de um método objetivo que muitas vezes faz com que nossas pesquisas se empobrecam ou percam — 4s vezes tragicamente — qualquer sentido humano? O palco da racionalidade cientifica esta repleto de estudos que apresentam do ser humano uma visdo estreita, reducionista, as vezes miseravel e sem saida: a experiéncia humana reduzida a condicionamentos; a psique re- duzida a seus contetidos reprimidos; as relagdes humanas reduzidas a luta e ao conflito; o prazer, o amor ¢ a sensualidade vinculados a situa- g6es onde apenas o sexo esta presente; experiéncias de religiosidade e transcendéncia mal compreendidas como niveis inferiores de consciéncia 13 ou cognicao, etc. Exemplos desse tipo, felizmente, nao dominam todo o saber cientifico, principalmente no atual momento histérico, onde um novo paradigma cientifico! comeca a despontar entre nés, embora pa- reca que os ambientes académicos apresentem, ao invés de uma atitude positiva frente a abertura de perspectivas que possam ajudar muitos cam- pos de estudo a sair da crise em que se encontram, preconceitos infun- dados, fruto do apego que nds, cientistas, desenvolvemos pelos nossos “objetos de estudo’’ ou do medo de perdermos nossa posi¢ao de cien- tistas, caso seja abalado o frdgil castelo de algumas creneas e pseudo- saber sobre a natureza da realidade. A racionalidade cientifica tem restringido muito a arvore da sabe- doria, 4 medida que desenraiza o ser humano de caracteristicas que lhe sao essenciais, criando mitos sobre a natureza humana, ao invés de estuda-la profundamente. E claro que a ciéncia nfo é apenas mito, crenc¢a ou preconceito, mas sabemos que, quanto mais materialista o enfoque cientifico, mais ele tem que lancar mao de pressupostos puramente idea- listas, transformando a natureza humana em “‘algo exterior’ a si pré- pria — uma “‘coisa’’ —, estranha a sua propria intencionalidade, forca e criatividade. Esse processo de reificagdo torna o ser humano um ser passivo, inerte, condicionado, inconsciente e impotente em relacdo as forcas que o dominam. Para combater o reducionismo, vamos fazer um levantamento, por alto, de algumas formas de conhecer possiveis de serem empreendidas pelo homem. Muitas sao as formas de conhecimento. Dispomos de uma vasta literatura, em psicologia e antropologia principalmente, sobre 0 pensamento magico, mitico, o desenvolvimento do saber sensério-motor, 0 raciocinio légico formal, a aprendizagem de conceitos, de relacdes, a construc&o de modelos, teorias, conhecimento por inducdo, por de- dugao, por descrigao; a arte nos fornece a possibilidade de conhecimen- to por analogia, reproduco da natureza, criatividade, imaginacdo; a fi- losofia volta-se ao conhecimento de varios aspectos da existéncia, pro- curando chegar a conhecer a natureza mais profunda do ser humano, dando énfase a consciéncia, seu universo de possibilidades sendo desve- lado de diversas formas. Existe também o lugar — ainda um tanto obs- curo ¢ marginalizado entre nds — do conhecimento como experiéncia direta da realidade, sem mediacao, terreno fertilizado pelo desenvolvi- mento da percepco em seus aspectos mais sutis, da intuicdo, da aten- cao. Os maiores problemas que temos enfrentado em termos das formas de conhecimento sao, em primeiro lugar, o isolamento a que confina- mos cada uma dessas formas: os campos cientificos estado separados uns dos outros; a ciéncia separada da religiao; a experiéncia direta de niveis de realidade mais sutis esta relegada ao ostracismo absoluto. Em segundo lugar, hierarquizamos as formas de conhecer de maneira arbitraria, sem Jevar em conta a consciéncia humana com todas as suas possibilidades, 14 EE privilegiando injustamente o conhecimento da racionalidade instrumen- tal: a razao aplicada 4 manipulagdo do ambiente e dos seres humanos, reinado das quantificagGes de toda espécie. As outras formas de conhe- cimento obtiveram status inferior, como se as realidades a que se vincu- lassem fossem ‘‘menos reais’’, gerando preconceitos e levando a uma reducao perigosa, onde ‘‘realidade’’ vira sindnimo de materialidade e onde o “‘teste de realidade’’ se torna sinénimo de manipulacao. E necessario uma revisdo séria e complexa do processo de conheci- mento para que possamos efetuar a transformacdo do paradigma que tem orientado nossa maneira de pensar, agir, perceber e sentir. Uma pri- meira questao se coloca: como unir a aparente ‘“‘torre de Babel’? em que nos encontramos, ou, antes disso, como criar uma linguagem comum ou um eixo em torno do qual a comunicaga&o possa ser possivel? Fala- mos no inicio que, pela nossa experiéncia de vida, haveriamos de con- cordar com a frase de W. Blake, de que “‘O folo ndo vé a mesma drvore que o sdbio’’. Pena que a ciéncia racionalista tenha esmagado como for- miga a validade de outros tipos de conhecimento que no o racional, a ponto de uma gama infinita de experiéncias de saber, experiéncias de vida, tenham que ser anuladas, ou, no desespero de conseguirentalgum status de saber, se submeterem as cadeias lineares de causa e efeito tao valorizadas pela ciéncia mecanicista; encontrarem ‘‘razOes’’ para exis- tir; localizar alguma ‘‘causa’’ ou ‘‘evento antecedente”’ para explicd-las; utilizar camisas-de-forga conceituais, etc. Para unir, é necessario, por- tanto, que, de inicio, possamos ressuscitar e validar as formas de co- nhecimento ‘‘reprimidas”’ pela ciéncia materialista. A pratica de muitas formas de conhecimento foi cortada ou deixou de ser estimulada, fazendo reinar dentro e também fora das academias o paradigma da racionalidade mecanicista, baseado na crenga de que as leis do mundo objetivo e ‘‘subjetivo’’ estado fora do alcance dos sujei- tos, tristes marionetes destituidas de subjetividade. Esse paradigma, que é também uma visaéo de mundo e de homem, domina ainda hoje a cién- cia e cultura ocidental.? Podemos dizer que um de seus maiores dese- quilibrios é 0 excesso de peso que coloca em atividades classificatérias, racionalizando em excesso, trazendo o vicio de querer produzir explica- c6es, ‘‘colocando nomes’’ e catalogando os eventos, procurando meca- nismos, apontando causas, esquecendo-se basicamente dos aspectos ‘nao racionais’’ de nossas experiéncias de vida: nao sabemos distinguir emo- cao de sentimento, nao desenvolvemos a intuig&o, encontramo-nos em- brutecidos praticando julgamento e criticas excessivas, com dificuldade em aceitar pontos de vista diferentes dos nossos, buscando constante- mente “‘ter razo’’ em nossas opinides e pontos de vista (apego a ra- zao). A crise que vivemos assenta-se em dois pilares: de um lado, a sub- missdo e a falta de poder em transformar os aspectos irracionais da na- tureza humana e, de outro, a razdo reducionista... O que fazer? Nao podemos culpar a raz4o em ‘‘si mesma’’ por esse estado de coisas, as- 15 sim como nao podemos culpar um impulso agressivo pelo assassinato de alguém. O funcionamento da razao do ponto de vista da racionalida- de tal como a descrevemos faz parte do ser humano, bem como os im- pulsos agressivos, amorosos, o saber estético, intuitivo, etc. O que precisa haver é uma transformacdo da consciéncia no senti- do global e a pratica de um conhecimento onde se torne possivel uma avaliagao de todos os valores, atos, padrées de relacdo humana, manei- ras de sentir e perceber, em direcdo a constituic¢do de uma ciéncia que nos permita distinguir e hierarquizar as varias fases ou niveis de evolu- ¢ao da consciéncia humana. Enquanto isso nao for feito, continuare- mos cultural, social e historicamente num beco sem saida, criando for- mas e formulas nao articuladas entre si, cadticas, reproduzindo a ma- neira de pensar linear, desprezando a complexidade das situacées, ge- rando inevitavelmente a confusdo. O desequilibrio das formas de conhecer, a polarizacgao da forma ra- cional e manipulativa, gerou um ser humano também desequilibrado e um mundo perigoso e cruel. O homem se alienou? de sua propria evo- lucao, fantasiando ter conseguido chegar ao Apice de seu desenvolvimen- to... A razdo instrumental atribuimos erroneamente o mais alto grau de desenvolvimento que o homem pode atingir. Vivemos em um mundo dividido, onde, ou somos considerados racionais, normais, capazes, ra- zoaveis e ldgicos e constituimos 0 ‘‘sistema’’, ou vistos como irracio- nais, loucos, excéntricos, incapazes e, ent&o, somos jogados fora do “‘sistema’’. Esse mundo dividido em que vivemos é uma manifestacdo da men- talidade cartesiana que elegeu alguns pressupostos como base da vida, excluindo aqueles que contradizem sua “‘Idgica interna”’. Em “‘Medita- ¢0es cartesianas”’, podemos observar claramente como, por exemplo, a “‘loucura”’ ficou ‘fora do sistema’”’. Para mostrar isso, reproduzire- mos alguns trechos da conferéncia ‘‘Loucura e consciéncia, de Montaigne a Descartes’’, proferida pela dra. Salma Tannus Muchail, em novem- bro de 1987+: “Descartes busca fundar a certeza verdadeira que, para ele, significa a certeza que corresponda ao real, ou seja, ele busca saber em que medida a certeza da razdo, idéias claras ¢ distintas, corresponde & realidade dos objetos.”* (...) A primeira etapa da duivida da primeira meditagao é a colocacdo em diivida de tudo 0 que nos chega pelos sentidos. Se os sentidos nos enganam algumas vezes, eles podem nos enganar sempre (...) A segunda etapa da dtivida é a colocacao em diivida da minha existéncia no mundo (...): os sentidos geram indistingdes como a nao dis- tingdo segura entre o estar acordado e o estar dormindo, o estado de despertar e 0 estado de sonhar (...) As imagens dos sonhos sdo todas feitas de elementos empresta- dos aos sentidos, elementos de que jd duvidamos e que so os mesmos que consti- tuem os objetos das ciéncias da natureza que sao as ciéncias das coisas do mundo (...) Nessas duas etapas que Descartes coloca a ditvida (através do argu- mento do erro dos sentidos e do argumento dos sonhos), aparece uma 16 ee referéncia 4 loucura. Foucault, analisando essa passagem, mostra que ocorre ai 0 que ele chama de desequilibrio fundamental entre, por um lado, a loucura e, por outro, 0 sonho-erro: 0 sonho-erro faz parte do caminho da dtvida em diregao a certeza; a loucura, no entanto, é enun- ciada para ser totalmente excluida. Essa exclusao é evidenciada median- te seu cotejo com o pensamento de um autor do século anterior, Mon- taigne, representante do final do perfodo renascentista. Em Montaigne, encontramos no capitulo XVII do livro 1 de En- saios 0 seguinte titulo: ‘Da loucura de opinar acerca do verdadeiro e do falso unicamente de acordo com a raz4o’’. Nele vamos encontrar uma critica 4 presuncdo da razdo. Montaigne comeca fazendo uma distin¢ao entre um homem de razao, o pensador, e 0 homem comum, 0 povo, que é capaz, este, de deixar-se levar por sugestao. Incluindo a si mesmo entre os homens de razdo, os pensadores, ele diz textualmente que sen- tia pena desse pobre povo, para afirmar em seguida: ‘‘Agora acho que eu também merecia piedade’’. Isso porque ele constata que o julgamen- to dos homens de razao caem em contradicdo de tal modo que seria lou- cura confiar unicamente nas medidas e na suficiéncia da nossa igteli- géncia. Diz Montaigne: “E ousadia perigosa e de possiveis consequén- cias sérias, fora mesmo do que tem de temerdrio e absurdo desprezar © que nao compreendemos’’... Entende-se que nao compreendemos a luz da razao. Isso significa que jamais temos certeza dos nossos préprios julgamentos, que nao ha limite absoluto entre verdadeiro e falso, razio e desrazao. Portanto, como anuncia 0 titulo do capitulo, é loucura fiar- se apenas na razao, ja que razao e loucura nao se excluem de modo ab- soluto, ou, como escreve Foucault, ja que em Montaigne nao se esta ja- mais certo de nao se estar errado, a loucura nao fica excluida do cami- nho que busca distinc&o entre o verdadeiro e o falso. Retomando Descartes, nele a situacao é totalmente outra. O per- curso do caminho da duivida que conduz a distineao entre o verdadeiro 0 falso incorpora, como vimos, como passo desse caminho, o erro dos sentidos — primeira etapa da divida —, erros dos sentidos e ilusdes dos sonhos que nado chegam a atingir a verdade objetiva das coisas e pode- rao ser superadas. Com efeito, Descartes recuperard essas diividas de- pois que, na segunda meditacao, alcangar uma certeza fundamental, a saber: ‘‘Se eu duvido, nao posso ao menos duvidar de que duvido, dai a grande certeza: penso, logo existo”’. Portanto, diividas nascidas do erro e da iluséo acabam sendo incluidas no caminho do pensamento que conduz a certeza do proprio pensamento. Desse caminho, porém, a lou- cura esta ndo apenas omitida, mas explicitamente excluida. E que, para Descartes, a loucura atinge a verdade objetiva do préprio sujeito pen- sante; eis o que ele diz: ‘‘E como poderia eu negar que essas maos e esse corpo s40 meus, a no ser talvez que eu me compare a esses insensatos, cujo cérebro esta de tal modo perturbado, ofuscado pelos negro$ vapo- res de bilis, que constantemente asseguram que sao reis, quando sao 17 muito pobres, que estéo vestidos de ouro e purpura quando estao intei- ramente nus ou imaginam ser cantaros ou ter corpo de vidro, mas que sao loucos! E eu nao seria menos extravagante se me guiasse por seu exemplo. A loucura é justamente para Descartes condicdo de impossibilida- de de pensar. Portanto, se penso, nao posso ser louco. Estamos numa situagao oposta a de Montaigne, para quem, como vimos, a loucura é fiar-se unicamente na razdo. Agora, ao contrario, razao e loucura se ex- cluem, e esta é banida por aquela, se penso, existo. Se sou louco, nao penso; portanto, se sou louco nem penso, nem existo, néo sou homem porque ser homem é ser razdo’’.* Seguindo a orientac¢ao cartesiana, além da divisao raz4o e loucura, também outras polaridades irreconciliaveis tém se criado dentro da psi- cologia: normal e patolégico; social e individual; sujeito e objeto; mun- do externo e interno, etc. Felizmente, alguns autores e linhas de traba- lho resistiram a essas divis6es procurando tratar e estudar o ser humano de forma mais completa®, evitando fragmentar seu ‘‘objeto’’? de pesquisa. E necessdrio recuperar a perspectiva de totalidade sobre o fenéme- no psiquico e sobre o ser humano de modo geral e dar continuidade ao conhecimento da natureza da consciéncia humana para além do pensa- mento ldgico-formal. Para isso precisamos, a nosso ver, recuperar 0 sen- tido das experiéncias humanas em todas as suas manifestacGes. Os es- forcos da fenomenologia sio importantissimos nesse sentid 1) S6 podemos recuperar a perspectiva de totalidade sobre o fend- meno psiquico retornando a experiéncia humana em todas as suas ma- nifestagdes. E necessario retornar verdadeiramente ao sujeito das expe- riéncias. 2) A experiéncia humana nao pode ser aprisionada a uma nocdo de realidade objetiva, fixa e imutavel para todos os sujeitos. Lembre- mos a frase de Blake: ‘‘O tolo nao vé a mesma arvore que 0 sabio’’. 3) A “‘realidade’’ é uma experiéncia do sujeito que é inevitavelmen- te ativo em sua percep¢ao, mesmo que inconsciente dessa atividade. A inconsciéncia ou ‘‘esquecimento”’ que aliena 0 sujeito como fonte de sua propria percep¢do, cria a ilusdo de que a realidade ‘‘vem de fora”’ e “‘en- tra’’ através dos drgaos dos sentidos.’ Assim se expressa M. Ponty so- bre essa ilusdo: “Nossa percepedo chega a objetos, ¢ o objeto, uma vez constituido, aparece como a razao de todas as experiéncias que tenhamos tido ou que possamos ter.””? Em uma sé operacao, tornamos ‘‘exterior’’ 0 objeto, colocando-o como fonte e razao das nossas experiéncias e alienamos a consciéncia como atividade fundadora de sentido, reduzindo-a a mais um objeto entre © mundo dos objetos, eliminando-a enquanto centro do significado do mundo: 18 a “‘Considero meu corpo, que é 0 ponto de vista sobre 0 mundo, como um objeto desse mundo. A consciéncia que tinha de meu olhar como meio de conhecer, eu a reprimo e trato meus olhos como fragmentos de matéria." Tomam lugar, desde en- tao, no mesmo espago abjetivo once procuro sitar 0 objeto exterior, e creio engen- drar a perspectiva percebida pela projecdo dos objetos sobre minha retina’?."! 4) Para a fenomenologia, portanto, a realidade percebida depende da atividade da consciéncia. A fenomenologia critica o naturalismo, ou seja, a atitude ingénua que acredita que as coisas externas existem tais co- mo se as vé e que 0 sujeito capta a realidade sensorialmente através dos estimulos que lhe chegam pelos sentidos. Sabemos, ao contrario, que o individuo tem, em cada momento vivido, uma “‘posicao” afetiva, ima- gindria, perceptiva ou cognitiva, que é a origem do sentido que ‘“‘capta’’ do mundo. Para que possamos determinar a ‘‘posicdo’’ da consciéncia em cada momento vivido, precisamos colocar entre parénteses a tese na- tural de que o mundo nos é dado independente de nds mesmos. So as- sim podemos indagar como a consciéncia funciona e como se estrutura. “Colocar entre parénteses’’ é 0 que Husserl chama de ‘‘redugao fe- nomenoldgica’’!?, que tem duas formas: a reduco eidética que apre- senta a esséncia do ato psiquico (de imaginar, perceber, pensar, etc.) e a redugdo transcendental que se ocupa da prépria consciéncia constitui- dora do mundo vivido. Assim: (...) “mediante sucessivas reducdes, manifestam-se a intencionalidade psicologica com seus objetos, a intencionalidade transcendental, que pensa o mundo € 0 sentido do mundo, e, por fim, a intencionalidade criadora (idéntica ao movimento da redu- go) que faz 0 mundo aparecer” 13 “Pode-se dizer, portanto, que o eu “natural” da psicologia se detém ante as coisas que ele julga reais ¢ transcendentes no mundo; essa atitude, uma vez suspensa, apa- rece como tema do eu “transcendental” que pensa 0 mundo como transcendente ao eu empirico; enfim, tiltima modificacto do “olhar”’, a reducdo transcendental completa-se a0 descobrir no eu puro a origem do sentido”. "4 Trés importantes momentos do pensamento acima exposto interes- sam diretamente a psicologia transpessoal: 1) O primeiro deles é a refe- réncia a consciéncia como principio fundamental que produz o signifi- cado do mundo, que 2) se apresenta de varias formas e que 3) aponta para existéncia de um eu transcendental e de um “‘eu puro’’ como ori- gem do sentido. Para a psicologia transpessoal é importantissimo, além de descre- vermos a esséncia dos atos da consciéncia (sentir, pensar, emocionar-se, etc.), discriminarmos que ha muitas formas de perceber, pensar, etc., e que a diferenga dessas formas constitui diferentes niveis de conscién- cia. E importante também que possamos hierarquizar, ordenar, estrati- ficar esses diferentes niveis. Se ficarmos apenas ‘‘no interior’ da vivén- cia subjetiva, cairemos em um excesso de relativismo e na‘tauséncia de um ponto de vista critico que permita uma correta avaliacdo das di- 19 versas formas de consciéncia.'* Complementando a contribuig&o que ex- traimos da fenomenologia, dizemos entao que: 5) Existe uma hierarquizacao de niveis de consciéncia. Os niveis su- periores suplantam os inferiores e os incluem, transformando-os. Essa idéia é desenvolvimentalista, esta presente em varias teorias psicoldgicas!® e complementa a descrig&o das experiéncias humanas com uma perspectiva critica para que nado haja confusao entre o que é infe- rior (mais simples, menos complexo, mais primario, etc.) e 0 que é su- perior (mais complexo, completo e final). Nao ha dtividas de que todas as vivéncias e todos os atos da cons- ciéncia sao ‘“‘verdadeiros”’ e correspondem a diversas realidades nos pla- nos espiritual, mental e material. Nao podemos, contudo, atribuir a to- dos os atos o mesmo valor. Estariamos incorrendo em erro, tanto do ponto de vista humano quanto do filosdfico e cientifico..A humanidade tem um caminho de aperfeigoamento a percorrer; uma avaliagao de va- lores feita pela filosofia, juntamente com a ciéncia, com a pratica de profissionais de diversas areas e com 0 conhecimento das tradig6es, po- dera ajudar a indicar o caminho que a humanidade deveré trilhar para superar-se. Determinadas percep¢oes, sentimentos, pensamentos e agdes sao extremamente limitantes, nocivas ou mesmo cruéis (para os sujeitos e para a coletividade humana de forma geral); precisamos detectar esses movimentos claramente e as possibilidades de transformé-los. Nosso pon- to de vista deve permitir, além da compreensdo da experiéncia dos su- jeitos, seu enquadramento dentro de um contexto mais amplo e suas ten- déncias de transformacao e superacao. “‘Contexto amplo”’ em psicologia transpessoal so as diferentes car- tografias da consciéncia humana que instauram duas importantes con- sideragGes: que as estruturas da consciéncia se desenvolvem de forma hierérquica (como .no.modelo de desenvolvimento de cognicao propos- to por J. Piaget, por exemplo) e que ha, portanto, ‘‘estados superiores”’ que constituem experiéncias humanas mais evoluidas, realizadoras, com- plexas ou “‘cdsmicas”’, de acordo com o aspecto que prevalece em nossa andlise (a evolugdo do ser humano de forma geral, do individuo em par- ticular, a relacdo interpessoal, a relacéio do individuo com 0 cosmos, ete.). A cada degrau que galgamos no desenvolvimento da consciéncia, maior 0 territdrio possivel dentro do qual o sujeito poderd escolher sua acao no mundo. Falaremos de alguns niveis humanos na escalada cés- mica da consciéncia no capitulo VII; preferimos usar 0 termo ‘‘cons- ciéncia transcendental” a ‘eu transcendental’’.!7 Em sua escalada as- cendente, a consciéncia volta-se paulatinamente para si mesma e vai abrindo um leque de possibilidades (que apontam para o infinito), e uma das principais marcas de sua transcendéncia é a auto-reflexao sobre esse universo de possibilidades que podem ou nao se realizar de acordo com sua intencionalidade. A ‘Testemunha’’ desse poder de direcionamento ou intencionalidade faz parte das experiéncias transpessoais quando, en- 20 ae t4o, 0 sujeito podera experienciar-se ao mesmo tempo como 1) cons- ciéncia transcendental, observador ou ‘‘Testemunha transpessoal”’ e 2) ato, acdo intencional, abertura consciente e constituidora do mundo. A cconsciéncia transcendental, como experiéncia, é inalterdvel, ‘‘es- ta sempre ali” no Eterno Agora com dimens6es infinitas... ocupa uma posic¢do superior entre todas as outras modalidades da consciéncia, pois trata-se da experiéncia de centro de si mesmo (Se/f), ao mesmo tempo que centro e fonte de toda a Vida. Nessa dimens4o, todas as divisdes so abolidas, nao ha mais separagao entre sujeito e objeto, eu e 0 outro, bem e mal, tudo se apresenta unido e a auséncia de conflito e divisio aumenta muito o potencial espiritual e material do individuo. A vivén- cia dessa posigado superior da Consciéncia, mesmo por breves momen- tos, é altamente curativa e amplia a capacidade de realizacdo do sujeito em todos os sentidos. Em psicologia transpessoal, nao nos interessa apenas analisar a po- sigao da consciéncia e descrevé-la enquanto constituidora dos fenéme- nos psicoldgicos, nos quais, sem ela, nos encontramos ‘‘imersos’’ (in- conscientes ou alienados); a descrigdo é importante somente na medida em que é necessario desenvolver um trabalho dentro do coriexto da co- munidade cientifica, aprimorando o estudo dos niveis de manifestacao da consciéncia para fortalecer a constitui¢éo de uma ciéncia da cons- ciéncia. O principal objetivo da psicologia transpessoal, no entanto, é atuar na transformacao dos individuos, possibilitando que o maior nu- mero de pessoas faga contato e tenha a experiéncia da Consciéncia co- mo fonte de si mesma e do mundo, ampliando seu potencial transfor- mador e criador da realidade. A psicologia transpessoal, dentro de uma metodologia fenomeno- légica e através da hierarquizacao de niveis de consciéncia, procura tra- balhar incentivando o desenvolvimento da consciéncia em suas formas superiores. Resumindo, a perspectiva transpessoal visa 1) discriminar os esta- dos superiores dos estados inferiores da consciéncia, através das carto- grafias da consciéncia humana que variam de autor para autor, apre- sentando importantes tendéncias comuns, 2) observar os movimentos progressivos da consciéncia, 3) e as tendéncias de cada nivel, para que, 4) na pratica, possamos incentivar e catalisar, favorecer esse movimen- to progressivo em direco a consciéncia em seus estados superiores. Nesse movimento progressivo, o sujeito amplia a sua identidade a ponto de fundi-la com o outro, transcedendo completamente a separacdo entre sujeito e objeto. Concluindo, temos dois sentidos para a palavra ‘‘consciéncia’’: um deles esta contido na idéia de niveis de consciéncia, onde cada nivel € descrito como um conjunto de experiéncias que apontam para um senti- do semelhante.'® Existem varias cartografias da consciéngia, todas elas procurando ser o mais fiel possivel 4 totalidade dos fendmenos a que 21 se refere e aos dados de que dispde. Nao devemos pressupor, contudo, que algum corpo tedrico se aproxime 100% da realidade estudada e muito menos que a esgote. Como dissemos, as cartografias da consciéncia nos ensinam que existem varias ‘‘posicdes existenciais” para a consciéncia e que ha entre elas uma gradacdo hierarquica: existem niveis superiores e inferiores. . O segundo e superior sentido do termo ‘‘consciéncia’’, que para bem diferenciar e caracterizar deve ser escrito com C maitisculo — Consciéncia —, corresponde a uma série de experiéncias que sAo uma das matérias mais importantes (embora nao a unica) da psicologia transpessoal. 6) Existe no ser humano a possibilidade de viver um estado supe- rior (ou estados superiores) de consciéncia onde ela se encontra em esta- do original, puro, e onde o vazio é ao mesmo tempo a origem e criacao de todas as existéncias possiveis. Vivéncias nesse nivel diferem muito de um individuo para o outro, pois, embora a capacidade da consciéncia seja ilimitada, a consciéncia da infinitude nao nos abre diretamente pa- ra o infinito, mas abre possibilidades e revela uma amplitude inédita, outras faces, prismas da realidade, e valoriza diferentemente nossas vi- véncias cotidianas. O que as permite caracterizar sAo os depoimentos dos sujeitos acerca do desvelamento de aspectos inéditos e maravilho- sos da realidade, dificeis de serem expressos em palavras e que, para os sujeitos, situam-se além de toda e qualquer experiéncia vivida até en- tao. A partir dessas vivéncias, as pessoas mudam muitas vezes radical- mente a visao de mundo e passam por importantes modificagdes em suas formas de viver a vida. 22 CAPITULO II Processos de Transformacao, Resisténcia e Apego (...) “(o) homem, no Nivel do Ego, tenta evitar a morte do momento atemporal, vivendo o passado que nao existe e pro- curando um futuro que nio chega jamais.” KEN WILBER Existe um Centro psiquico ou espiritual no qual nossa identidade parti- cipa unitariamente da organizacdo e complexidade de todo o universo, podendo contatar-se em harmonia com varios elementos presentes em determinado momento ou situac&o, estejam eles proximos ou distantes. E um estado sem conflito onde os pensamentos podem suspender a ‘‘or ganizacdo”’ do mundo, sem que venhamos a sentir confusao, angustia, medo ou sensacées estranhas. Os pensamentos, as avaliacGes criticas, as infinitas tentativas de explicacfio racional do mundo nao sao mais ne- cessarias, pois néo dependemos mais psicologicamente de um controle externo a esse Centro, um controle que, dentro de nds mesmos, nos di- vide em ‘‘eu’’ e ‘‘outro’’. Esse Centro ou Consciéncia em seu mais ele- yado sentido é 0 estado por exceléncia onde podemos estar em paz. To- da e qualquer divisao interna leva a conflito, luta, projegao de figuras internas no meio externo e criagéo de toda a sorte de dificuldades em nossa relacéo com 0 mundo. O equilibrio psiquico verdadeiro sé pode se obter nessa posicdo ‘‘extrema’’, ‘“‘radical’’, nessa relagao direta com arealidade, onde as fantasias e defesas psiquicas nao estao mais presen- tes. Sentimos entao a liberacao de grande quantidade de energia, dispo- sicao, disponibilidade para a vida. 23 _— Quando nos sentimos unidos ‘‘com tudo o que acontece’’, expan- dimos nossa identidade e passamos a fazer parte constituida e constitui- dora de realidades que nao est4o diretamente vinculadas com a identi- dade pessoal. Comec¢amos a perceber que nossa atuacfo e responsabili- dade excede esse limite. O nosso bem-estar e o de nossa familia passa a nao ser tao forte ou exclusivamente o centro de nossas preocupacoes. Tampouco nos identificaremos obsessivamente com nosso trabalho, po- sigdo social, podendo até esquecer definitivamente nossa ‘timagem’’ pes- soal. O mais importante para nds passa a ser a descoberta daquilo que a vida, a cada momento, nos propée, inspirado no amor ao universo, a vida, a ordem superior da Criacdo, a existéncia de todas as criaturas. So através dessa abertura radical porque requer, no momento em que se manifesta, a nao-interferéncia de desejos pessoais e de sentimentos como a inveja, cobica, citime, etc, que podemos conhecer e expandir nossa natureza e integra-la na totalidade da existéncia. Essa natureza, nossa verdadeira Natureza, nao deve ser compreen- dida como um centro que esta ‘‘dentro’’. Ao contrario, nesse nivel de consciéncia podemos finalmente eliminar as contradigées e oposicdes que sao as raizes de todos os nossos sofrimentos, principalmente a contradi- cao “dentro e fora’, ‘‘eu e o mundo’’, que, via de regra, sdo vividas como oposi¢ao: “eu contra o mundo”’, ‘‘dentro e fora em desarmonia’’, etc. A harmonia e a integracao sao impossiveis de serem vividas enquanto nos sentirmos divididos, enquanto formos ‘‘um’’ e todo 0 resto ‘‘ou- tro”’: advém dessa condi¢ao dividida a criacdo de obstaculos que depois precisamos ultrapassar, “‘vencer’’, problemas que devemos ‘‘resolver’’ N&o percebemos que os obstaculos e problemas sdo criados pelo nosso ponto de vista sobre a realidade e é essa ilus&o um dos fatores que nado permite a realizacdo do sentimento de que ‘‘todos fazemos parte de uma 6 realidade’’, E muito dificil nomearmos, descrevermos e compreen- dermos esse tibo de experiéncia quando estamos situados no mundo do ponto de vista da separatividade.! Contudo, qualquer um de nds, se nao possui uma vivéncia direta de insergdo em uma Realidade Unica e Supe- rior — onde tudo é regido pelo Principio da Harmonia e da Criaciio —, a intuimos e por ela ansiamos. Possuimos também uma intuicdo acerca de formas elevadas de relacéo humana e da relagdo homem-natureza. Tomemos por exemplo 0 preceito universal de que “Todos os ho- mens s4o iguais’’. Essa frase permeia a Declaracdo Universal dos Direi- tos do Homem, esta presente nos Evangelhos e nos manifestos politi- cos, embora nao seja o principio de igualdade aquilo que predomina nas relagdes entre os homens. Todos nés intuimos, contudo, essa verdade. Qual 0 motivo dela nao se realizar ou que condic6es se fariam necessa- rias para que ela se realizasse? Tomamos a liberdade de apressar a res- posta: ela nao se realiza porque nao esta presente no corac4o da maio- tia dos seres humanos. 24 A realidade nao pode ser constituida de teorias, idéias ou boas in- tengdes no sentido moral. Nao é possivel tomarmos emprestado da Ver- dade seus principios, sem executa-los radicalmente. A ‘‘igualdade entre os homens”’ s6 poderd devir realidade humana se fizer parte da maneira comg as pessoas so capazes de sentir ¢ de se perceberem mutuamente. Percéberem que a condic¢ao humana de ‘‘participantes de uma Realida- de Superior’’ iguala os seres humanos; que a condic¢ao diante do nasci- mento e da morte também nos iguala; que o sentido de nossa vida cole- tiva e individual somente pode ser realizado se a inserirmos em uma di- mensao nobre, preexistente e hierarquicamente superior, da qual todos nds fazemos parte. Sobre esse processo de transcendéncia da consciéncia, gostarfamos de citar um pequeno trecho da obra de Ken Wilber, Les trois yeux de Ja connaissance: ‘‘O que importa ¢ notar que a consciéncia se diferencia inteiramente, a favor de uma ascensao rapida, do mental e do ‘eu’ ordi- narios, e pode, entao, ser assimilada a um ‘supra-eu’ ou ‘supramental’ — quase como se nds qualificdssemos 0 ‘eu’ de ‘supracorpo’ ou de ‘supra- instintos’, uma vez que o eu-mental transcende os sentimentos e percep- ¢Go elementares (...) O supramental realiza uma transcendéneia de to- das as formas mentais inferiores e revela, em seu apogeu, uma intuic¢do d’Aquilo que é superior e anterior ao mental, ao eu, ao corpo e ao mun- do — uma ‘coisa qualquer’ que todos, homens e mulheres, nomearia- mos Deus, como teria dito Sao Tomas de Aquino. Mas nao se trata de Deus como um outro ontoldgico, distinto do cosmos, dos humanos e da criago em sua totalidade. E antes de tudo Deus enquanto apogeu arquetipico de nossa prépria consciéncia. (...)’’? Todos os outros niveis de consciéncia que esto fora do Centro (Self, Consciéncia Suprema ou Ultima) implicam divisdo, perda de energia, falta de integracio e algu- ma espécie de sofrimento. Todo trabalho que se proponha a integrar o ser humano em relacdo a si mesmo e ao mundo deve propiciar a reali- zac&o do individuo em direcdo a formas cada vez mais elevadas de cons- ciéncia. Existe uma relacdo direta entre os conflitos que 0 individuo tem dentro dele mesmo (através da colisao entre algumas de suas ‘“‘partes’’, que entao se tornam fragmentos apartados da tendéncia totalizadora da psique) e os conflitos que mantém em suas relagdes com o mundo, O caminho inverso a integracao total do individuo com tudo aquilo que Ihe acontece a cada momento ¢ a diviséo do Eu em relagdo a si mesmo e em relacdo ao mundo, o que constitui a posicao defensiva do Ego (ou individuo) que se sente apartado do mundo, lutando para sobreviver. O psicdlogo (ou terapeuta) deve se colocar a favor da transforma- ¢ao da consciéncia e para isso precisa, entre outras coisas, possuir uma ou mais leituras das(s) maneira(s) pela(s) qual(is) ¢ssa transformacao pode se realizar. Como ja dissemos, essas leituras sao fornecidas por alguns autores que utilizam a perspectiva transpessoal e também pelo conheci- 25 — mento produzido por alguns sistemas religiosos ou filoséficos tanto no Oriente quanto no Ocidente. O terapeuta deve, como aspecto ainda mais importante, dedicar-se a sua propria transformagao e evolucao, pois so- mente através dessa perspectiva poderd compreender e sensibilizar seu cliente em direcéo ao Caminho.* A palavra trans-formar indica de maneira direta a raiz do processo de desenvolvimento ou evolucdo que estamos comecando a descrever: transcender a forma. Somente na transcendéncia da forma podemos rea- lizar o ‘‘apogeu arquetipico de nossa prépria consciéncia’’, como diz Ken Wilber, O oposto de ‘‘transcender a forma’ sao os processos de identifica- ¢do: ou estamos identificados a uma forma, procurando preserva-la ou atingi-la, enfim, girando em torno dela, ou bem conseguimos viver sem 0 apego as formas, através da transcendéncia e da conquista de espacos psicoldgicos ‘‘vazios’’ que sao livres e, portanto, contém possibilidades inéditas de vida. A adesdo a uma forma gera tudo aquilo que em psico- logia chamamos “‘psicodindmica’”’: os conflitos, as defesas psicolégicas, a repeticao de cadeias de causa e efeito, o vaivém condicionado de to- dos os tipos de reacdo psiquica. A radicalidade da perspectiva transpessoal se deve, como ja fize- mos mencao a ela, a uma busca das raizes da vida psiquica para além das cadeias da “‘psicodinamica’’, em dire¢ao as realizacdes maximas do ser humano de um lado e, de outro, em direcdo aos seus maiores temo- res e impedimentos ao crescimento. Para que uma ampliacao da identi- dade seja possivel, é necessdrio irmos também de encontro as raizes dos fenédmenos que a impedem ou dificultam, minando a integracdo supe- rior do ser humano em relacdo a si mesmo e ao mundo. A individualidade pode se realizar de maneiras muito diferentes, de acordo com aquilo que a pessoa pode experienciar: ela pode se contrair dentro dos limites estreitos do automatismo ou se expandir criativamente, a ponto de o individuo encontrar-se em condicdes de compreender to- dos os aspectos presentes em uma situagdo dada, ao mesmo tempo em que pode transcendé-los através da vivéncia da Consciéncia pura, ori- gem de todos os fendmenos, doadora de sentido e Criadora suprema da existéncia. Caracteristicas que consideramos ‘“‘normais”’ para o ser hamano sao, para a transpessoal, aspectos resultantes da contra¢do da individualida- de em limites estreitos: todos os interesses e lutas voltadas exclusivamente para a obtengao de vantagens pessoais, sentimentos como o desejo de “tirar vantagem’’ dos outros, a cobica, a inveja, etc... sdo aspectos ne- gativos que desaparecem se 0 individuo dilui, ao menos parcialmente, 0s limites afetivos que constituem as barreiras (necessariamente bélicas) contra © mundo. A cada momento que vivemos nossa individualidade, ela se consti- tui como determinada realizacdo das ‘“‘areas”’ do sentir, pensar, perce- 26 nn ber, intuir, criar. Sabemos que 0 objetivo mais importante da orienta- cao transpessoal é levar em conta e incentivar as possibilidades de am- pliagéo da consciéncia humana, que, na pratica, ¢ a concretizacdo de transformagoes nos sentimentos, pensamentos, percepciio, intuigdo e cria- tividade, e, naturalmente, na relagdo do individuo com 0 mundo.4 Pa- ra isso, todo trabalho psicoterapico deve ir além do conflito psiquico, além das divisGes e das barreiras afetivas, em direcdo ao que estamos chamando de Centro psiquico ou espiritual, que implica a mudan¢a de nossa consciéncia para a posigao de Consciénca tal como descrevemos no capitulo 1. Esse é 0 objetivo de todas as tradigées orientais e esta presente, mesmo que de formas diferentes, nos ensinamentos de mes- tres como Desjardins, Krishnamurti, Gurdjieff e muitos outros. Essa é também a maior contribuigdo que a Transpessoal tem a dar para o uni- verso da ciéncia psicolégica: precisamos acelerar um trabalho de apro- fundamento e expansao da psique, com a teoria, conceitos, idéias e prin- cipios correspondentes que, necessariamente, ultrapassam toda e qual- quer formulagado mecanicista, linear, associacionista, de forma a reve- lar a complexidade da psicodindmica humana; se a psicodinamica ora revela questdes provenientes de algum conflito psiquico, ofa evidencia composigGes de forga que no estdo necessariamente ligadas ao conteui- do de algum conflito, mas que sao fatores relativos 4 forma pela qual os diferentes niveis de consciéncia se entrelagam, interpenetram e evo- luem: processos morte/renascimento, aumento da tensdo psiquica em determinadas fases de transformacdo, esgotamento e esvaziamento de formas psiquicas, resolugdo ¢ relaxamento apés processos de desidenti- ficacéo e desapego, diminuicdo do esforco psiquico, cessacdo da luta interna, etc. Designaremos esses fatores como fazendo parte da psicodi- ndmica da transformagao. A questdo da psicodinamica é uma das mais complexas que se apre- sentam a nos. Falaremos mais adiante dos processos de morte/renasci- mento, desidentificagao, e faremos outras referéncias rélativas ao tema, mas sabemos que nado poderemos abarcar sendo um pequena parcela do universo de possibilidades que constituem os processos de transforma- ¢4o psiquica no sentido transpessoal. Observamos e sabemos que exis- tem muitas formas pelas quais a transformacdo pode operar. Prova dis- so € que para diferentes pessoas as experiéncias de transformagao se re- velam também diferentes. Igualmente diferentes sdo as descricdes de ted- ricos e mestres a respeito do assunto. Necessitamos de pesquisas tedri- cas e empiricas que detalhem e fagam comparacées entre as diferentes formas e processos de transformacao. Ressaltamos, contudo, que, daquilo que conhecemos tanto tedrica quanto praticamente em nossa experiéncia clinica e pessoal, muitas sao as ‘‘constantes’’ que aparecem fazendo parte do que estamos batizando como ‘‘psicodinamica da transformagao’’. Procuraremgs apontar algu- mas delas em nosso trabalho, particularmente no capitulo III. 27 : , O mais importante neste momento é compreendermos que, dentro da perspectiva transpessoal, o que estamos chamando de ‘‘psicodinami- ca da transformacao’’ adquire um destaque fundamental. Estamos vi- vendo um momento histérico em que tanto do ponto de vista individual como coletivo, os seres humanos necessitam transformar-se, iniciar uma nova era onde possamos viver mais dignamente. O psicdlogo, em qual- quer area que trabalhe, tem uma grande responsabilidade nesse sentido, ja que, profissionalmente, se propdem a ser um modificador. E claro que precisamos tornar consciente, para os sujeitos com quem trabalha- mos, os mecanismos do conflito e todo cortejo de divisées internas e repressdes que Os sustentam, mas precisamos, principalmente, ter uma intervengao que auxilie as pessoas a se comprometerem com a sua pré- pria transformacao, enxergarem essa possibilidade e poderem optar por ela. Como fazer isso? Como incentivar as possibilidades de ampliacado da consciéncia humana? Como comecar a trabalhar com a elevacdo espiritual? O primeiro aspecto que queremos sublinhar e que faz parte da ‘‘psi- codinamica da transformacao”’ é a necessidade de incentivarmos a desi- dentificacdo do individuo em relagao a suas ‘‘amarras’* psiquicas. Na perspectiva Transpessoal, o processo psicoterapico, bem como todo e qualquer processo que envolva crescimento psicoldgico, deve ser con- duzido através da clara visdo de que o individuo deve ir se desidenti cando de todos os papéis a que ele tem se apegado durante a vida — conscientes ou inconscientes — que constituem o que ele vive por “‘iden- tidade’’. O senso de identidade depende diretamente das identificagées que estado operando no individuo. A maioria das pessoas tem um senso muito restrito de identidade. Entendemos por identidade o(s) elemento(s) de uma representacao, toda e qualquer forma psiquica, emo¢do, sentimento, papel (social e psi- coldgico), impulso psiquico, habilidade, fluxo energético, poder psiqui- co, arquétipo, desejo, etc. que esta sendo vivenciado pelo individuo em determinado momento e que, para ele, constitui o seu “‘eu’’, mesmo que nao tenha consciéncia dessa identificac&o. Nesse sentido, a identidade nao é homogénea, pois traz em si mesma a diversidade dos planos mate- tial, psiquico e espiritual que sao vividos simultaneamente, embora a cada momento um aspecto prevaleca na consciéncia. No sentido etimo- ldgico, 0 termo “‘identidade”’ esta ligado a ‘‘ser o mesmo, a mesma coi- sa’’, cujo prefixo “‘idem’’ é 0 mesmo para identificacdo (tornar-se o mes- mo, ser © mesmo). A partir dessa definicao, duas questées sao instantaneamente colo- cadas: 1) Se a identidade esta ligada a ser o mesmo, a “‘mesma coisa’’, como € que ela se move, modifica e transforma? 2) Se ¢, ao mesmo tem- po, algo varidvel, que inclui os planos material, psiquico e espiritual, quais os processos que levam a um restrito “sentido do Eu’ e quais 0 ampliam? 28 Através da hierarquizacao dos niveis de consciéncia, podemos re- solver a aparente contradicao entre ‘‘ser idéntico’’ e “‘ser varidvel, mul- tiplo’’. Quando o “‘sentido do Eu”’ atinge o mais alto plano da conscién- cia, todas as dualidades s4o dissolvidas e a identidade é a propria uniao com 0 Todo. Embora a maioria das pessoas nao seja consciente dessa capacidade e, ao contrario, viva se espremendo em estreitos conceitos sobre si mesmo, todos temos potencialidade para vivé-la. Lembrando o primeiro principio expresso pela Association for Transpersonal Psycho- logy: ‘‘Impulses toward an ultimate state are continuous in every per- son although full awareness of these is not necessarily presetit at any gi- ven time’’.$ No “estado Ultimo’”’ de consciéncia, o Eu se dissolve no nao-Eu e tudo faz parte de uma so Realidade. Essa ¢ uma das raz6es pelas quais trabalhar com o termo ‘‘consciéncia’’ (e Consciéncia) ¢ mais util e ade- quado as numerosas faces que a vida humana apresenta do que usar- mos 0 termo “‘Eu”’, ‘‘Sujeito’’ ou mesmo ‘“‘Identidade’’, pois é através da consciéncia que o Eu, 0 sujeito e a identidade se transforma. A cons- ciéncia funda e fundamenta o sentido da individualidade, e ndo o con- trario. E do nivel de consciéncia que surgem os varios ‘‘eus’’, ‘‘sujei- tos” e “‘identidades”’ possiveis. E também somente através de sucessi- vos movimentos da consciéncia que o sujeito pode unir-se ao objeto e a identidade ultrapassar o congelamento e a identificacdo a uma ou mais formas e dar lugar a possibilidade de ser todas as formas, mudando de acordo com a situacdo vivida.® Se ha um nivel de consciéncia em que podemos ser todas as for- mas, nao ha mais sentido falarmos de algo que é ‘‘id@ntico a si mes- mo’’, jd que a Consciéncia abre-se para a criatividade, Criacao, eterna mobilidade... No entanto, hd um sentido muito verdadeiro (alias, o tinico sentido verdadeiro) em que podemos falar de identidade como algo ‘‘idén- tico a si mesmo’’: é quando atingimos o Brahman, Atman ou Identida- de Suprema, onde os opostos ‘‘ser o mesmo”’ e ‘‘ser a multiplicidade’’ so a mesma Realidade. Para designar esse estado, preferimos usar 0 termo ‘‘Consciéncia’’, pois néo temos o risco de confundi-la com algo circunscrito a uma individualidade ou que comporta em si alguma iden- tificagdo psicolégica, um ‘‘eu’”’ enquanto forma. Somente a visao da hie- rarquia de niveis de consciéncia permite compreender como 0 individuo pode dar um salto e encontrar o lugar onde todos os opostos se unem e onde ‘‘Ser Idéntico a Si Mesmo”’ é, ao mesme tempo, ‘‘Ser a Multipli- cidade de todos os fenémenos”’. Metodologicamente, 0 ponto-chave que devemos compreender aqui é que nossos esforcos tedricos estao ligados a descrigéo dos processos de transformacao (da consciéncia) possiveis ao homem? O que caracte- rizamos como os principios basicos da perspectiva transpessoal, bem 29 — como os conceitos ¢ idéias em que nos baseamos, possuem base empiri- ca: sao frutos de nossa experiéncia e daquilo que observamos empirica- mente em nossas pesquisas. Utilizamos também dados procedentes de descri¢des fenomenoldgicas de experiéncias humanas contidas em diversas fontes fidedignas, as quais estaremos fazendo referéncia no decorrer de nossa exposi¢ao. Nosso objetivo nao é ficarmos fixados ou ‘‘identifica- dos” aos termos “‘niveis de consciéncia’”’ e ‘“‘Consciéncia Suprema ou Ultima’”’. Em outras fontes podemos encontrar as mesmas idéias nas quais nosso trabalho se fundamenta sob designacao diferente: niveis da men- te, mentation, Mente, Eu Absoluto ou Puro, etc. O importante é cap- tarmos a esséncia do conhecimento que estamos expondo, mas que sé pode se encontrar na experiéncia dos sujeitos e ndo na teoria. Através de nossa exposicdo estamos apenas indicando um caminho; 0 leitor de- ve fazer a ponte com sua pratica profissional e experiéncia pessoal, bem como abrir os “‘ouvidos’’ de sua intuig&o com os quais podera sentir ou nao a ressonancia de uossas idéias. Uma coisa é certa: nada do que estamos descrevendo tem o menor valor se for abracado apenas do pon- to de vista racional e intelectual. Nosso critério de validade é a propria experiéncia humana com todos os seus matizes e caracteristicas, das mais simples as mais complexas e grandiosas. A racionalidade humana nao ais compreender todo esse espectro. Reiteramos ao leitor o jue tenha uma postura aberta e que possa, ele proprio, colocar- ‘o de vista da transformacao. Voltando ao assunto que estamos discutindo: a identidade, sabe- mos que nada é idéntico a si mesmo a nao ser no que se refere 4 Cons- ciéncia Ultima da Existéncia. Observamos, contudo, que quanto mais restrito o senso de identidade do sujeito, maior a ilusdo que ele constréi sobre a permanéncia de sua identidade no espaco e no tempo. Se imagi- narmos um continuum onde podem ocorrer todas as experiéncias de um individuo em relag&o & sua identidade, ele ira do mais restrito ao mais amplo senso de identidade: mais mais f — a = restrito amplo : Neste capitulo j4 falamos um pouco sobre esse senso mais amplo de identidade que corresponde 4 Consciéncia Suprema ou Ultima. Va- mos agora comecar a descrever as experiéncias que constituem o seu ex- tremo oposto: a restricdo do senso de identidade. Dissemos que quanto mais restrito o senso de identidade maior a ilusdo de permanéncia. Com- pletando, podemos dizer que quanto mais restrito 0 senso de identidade: - maior a ilusdo de permanéncia maior resisténcia 4 mudanca mais fixas e rigidas as identificacdes maior apego as identificacdes e a prépria identidade maior apego aos desejos pessoais 30 - maior o sentimento de incompletude - maior o sentimento de falta ou caréncia. Quando 0 nivel de consciéncia da pessoa atinge a Consciéncia Ulti- ma, sabemos que existem a permanéncia e a completude. Enquanto ela nao se realiza, nds somos vitimas de nossa propria ignorancia em rela- cao Aquilo que Somos e nos tornamos assim, carentes; sentimos falta, mas nao sabemos bem do qué, e projetamos essa caréncia e essa falta nas pessoas, no trabalho, nos ideais e no mundo de forma geral, que se torna, entdo, sob nosso olhar fragmentado e fragmentador, a fonte dessa falta primordial ou a grande esperanca de completude. Guerreamos, desejamos, queremos possuir o mundo todo e,na ver- dade 0 que-estamos buscando ¢ a profundidade de nds mesmos, apenas que muito mal encaminhados, iludidos, inconscientes ou alienados. Tornamo-nos dependentes do Outro: esperamos que alguém nos “‘sal- ve’’, esperamos encontrar algo que alivie esse horrivel sentimento de vazio existencial: entregamo-nos ao trabalho, ao prazer, ao lazer, ao nosso mais nobre ideal ou aquilo que for, na esperanga de que nos comple- tem... Mas isso jamais ocorre. Somado a esse estado de caréncia ‘‘primordial’”’, ainda passuimos outras caréncias que vivenciamos em varias fases de nossas vidas e que também nos colocam em situacdes de procura intensa ou provocam muito medo de perder 0 que venhamos a possuir. As salas da psicoterapia sao palco dessas histérias pessoais infelizes e fracassadas. Sustentamos, con- tudo, que, quando 0 individuo eleva seu nivel de consciéncia, todas as suas caréncias diminuem ou atingem o ponto zero. Sustentamos ainda que sé é posstvel realmente a diminuigdo das caréncias humanas se 0 homem elevar seu nivel de consciéncia ¢ completar-se com sua propria Natureza Divina. Do contrario, sera eternamente perseguido pelo medo da perda, mesmo que tenha sido bem sucedido em obter posigdes e ob- jetos do mundo material e esteja cercado de relacionamentos afetuosos. A satide psicoldgica sé pode ocorrer plenamente se 0 individuo € capaz de discriminar entre o que possui e 0 que é conjunturalmente dAquilo que E e que transcende qualquer tipo de posse. A verdadeira cura para a falta e a incompletude que sentimos nos niveis restritos de Identidade s6 é possivel quando o individuo ‘‘percebe- intui-sente-pensa-cria” sua propria identidade a partir da experiéncia de unidade Eu-Cosmos, Eu-Outro através da Consciéncia Ultima. Essa ex- periéncia de unidade pode ser sentida como a presenca do Absoluto, a integracdo no Cosmos, a diluicdo dos limites da identidade pessoal, sen- sacdes de morte/renascimento, etc. Falaremos mais dessas experiéncias nos capitulos III e IV. Enquanto nao nos sentirmos completos, tentaremos completar-nos através da dependéncia, estabelecendo relagdes simbidticas onde nos “ali- mentamos”’ do Outro, de idéias, ideais, imagens, etc., necegsidades que se tornam compulsivas, pois nao conseguimos jamais, através da depen- 31 déncia psicoldgica, nos saciar. A satisfacao psiquica e espiritual s6 pode ocorrer quando nds proprios formos fontes dessa satisfacdo, contatan- do e vivendo, ao menos parcialmente, nossa verdadeira Natureza. Desse ponto de vista, ou somos (em maior ou menor grau) dependentes do mun- do exterior, projetando nele nossa satisfacdo, agindo através de impul- sos que tém um cardter compulsivo (quando estamos sempre “‘em dire- cao a algum objeto’, jamais plenamente satisfeitos), ou somos livres, podendo dirigir nossa Consciéncia para onde quisermos, para onde a si- tuaco vivida indicar como necessdrio (nossas necessidades pessoais se relativizam ou se fundem com as necessidades e possibilidades da situa- ¢ao vivida). No primeiro caso, somos prisioneiros de nossa propria ca- réncia, gerada principalmente pela ignorancia em relac&o as nossas pos- sibilidades e a nossa prépria Natureza, e, no segundo, somos Conscien- tes e agimos como participantes de um Todo, em harmonia com nossa Natureza que nao é sé ‘‘nossa’’ mas que esta presente em tudo, e que é,em Si Mesma, Criadora e Auto-Suficiente, Doadora do Amor e da Vida. O caminho da dependéncia (que em seu extremo é de indiferencia- ¢4o e simbiose) em diregao a liberdade é 0 caminho natural de desenvol- vimento psiquico e espiritual. Todos os homens tém a capacidade de se libertarem, ampliando a consciéncia sobre si proprios e sua participa- cao na Totalidade da Vida, bem como sobre a Natureza de todas as coi- sas. Lembremos 0 ja citado principio da psicologia transpessoal: ‘‘Jm- pulses toward an ultimate state are continuous in every person although full awarenses of these is not necessarily present at any given time.” Mesmo com toda a capacidade que o homem possui, ha, contudo, muitos empecilhos para a realizacao do Caminho. A prova disso é que, mesmo com toda a capacidade de consciéncia e transformacdo que o ser humano traz em si mesmo, poucos sAo aqueles que ao menos com- preendem a necessidade de Realizacao. A psicoterapia transpessoal ¢ a perspectiva transpessoal de manei- ra geral vao procurar incentivar que 0 individuo possa sair dos grilhdes de suas identificac6es rigidas e de seu estado de dependéncia em relacdo ao mundo para expandir sua identidade e poder realmente chegar a sa- tisfacao, felicidade e auto-realizagao. Fora do que estamos expondo, nao ha Realizacdo Plena. Nao hé realizac4o no actimulo de bens materiais, prestigio social, relacionamentos pessoais, identificagao excessiva e ri- gida com a carreira profissional, etc. Essas conquistas podem levar-nos apenas a um equilibrio provisério, que, embora ‘‘funcione’’ bem do pon- to de vista social e/ou produtivo, ainda necessita da acao das defesas para se manter, pois se baseia na diviséo do individuo em relagaéo ao mundo e comporta também muitos conflitos internos. 32 NIVEL DE CONSCIENCIA EGOICO: O APRISIONAMENTO DA EXPERIENCIA HUMANA NO CONFLITO E NA CONSTRUCAO DE DEFESAS Dissemos que a identidade pode ser imaginada dentro de um conti- nuum “mais restrito’”’ e ‘mais amplo’’ senso de identidade e que no ex- tremo ‘‘mais restrito’’ existe uma concentracao de experiéncias de de- pendéncia psicoldgica. A partir disso, podemos fazer uma nova repre- sentagao: dependéncia independéncia nivel magico? nivel psiquico nivel causal mitico sutil egdico Dindmica: O Ego 1) desaparece paulatinamente, pressionando ca- da vez menos e 2) atravessa momentos de ruptura, pas- sando por processos de morte/renascimento. y A, Desjardins® utiliza o termo ‘‘contraignant’’ quando se refere ao Ego e diz que a prisdio em que o Ego se encontra nao € sendo a identifi- cacao do ‘‘eu’’ ‘‘avec la pensée ou la sensation ou l’emotion de l’ins- tant’’. (...) On devient ce qu’on croit, on devient ce qu’on pense” ° Esse ponto de vista coincide com o nosso quando falamos em identidade e identificagao. . A dependéncia se fundamenta em necessidades psiquicas que geram “‘projecdes”’ (conscientes ou inconscientes para 0 sujeito) que, por sua vez, constituem a realidade restrita na qual o ego se instala. As necessi- dades psiquicas geradas pela dependéncia criam um campo mental ex- tremamente confuso, um excesso de pensamentos que “transbordam’? da mente e eliminam toda a possibilidade de experienciar 0 vazio e, con- seqtientemente de criar algo verdadeiramente novo. O individuo sente- se repleto, impaciente, nao consegue deixar de julgar as situagdes de vi- da, as pessoas, a si mesmo. Cria-se constantemente uma contradi¢ao den- iro dele ou entre ele e o mundo, ¢ a mente nao consegue jamais sentit-se relaxada.!° S. Grof descreve, em sua teoria das Matrizes perinatais!', as expe- riéncias da Matriz II, cujo “‘correlativo simbdlico é a impressdéo de se estar sem safda ou no inferno” e que o individuo torna-se vitima de si- tuagdes de tal esmagadora forca destrutiva que nao oferecem oportuni- dade de salvacio’’.!? _ Relacionando alguns aspectos da Matriz II com a identidade egdi- ca, nela o individuo cria limites 4 sua propria existéncia através das de- fesas (projecdes e todas as outras defesas egdicas), limites esses que 0 aprisionam, levando a sensac6es freqiientes de estar sendo sufocado, vi- vendo situacdes sem safda onde pressiona a si mesmo e tambem projeta 33 seu poder confuso e destrutivo para ‘“‘fora’’, que constituem as expe- riéncias parandides. As experiéncias de aprisionamento podem vir asso- ciadas a varios aspectos da psicodinamica (sentimentos de culpa, depres- sao, parandia, etc) e ocasionar varios sintomas. Observamos em nossa experiéncia clinica que as experiéncias de ‘‘se sentir aprisionado’’, “sem safda’’, ‘‘sufocado”’, sao bastante corriquei- ras no ser humano independentemente de seu ‘‘quadro psicopatoldgi- co”’. A mente da maioria das pessoas cria prisdes que, principalmente através do mecanismo de projecdo, deformam o mundo transformando-o em uma vasta prisao, o que faz com que a pessoa viva um stress cons- tante, sentindo medo, injustica, limite, frustracao, raiva, ddio do mun- do e das pessoas a sua volta, 0 que, de forma superficial, sintomatica, se traduz em excesso de agitacao, impaciéncia, inseguranga, producdo de tens6es, necessidade de alivia-las, etc. O ego comporta, como vemos, uma grande sensacdo de confusio, minimizada pelas defesas que, quando se rompem, revelam essa mistu- ra entre a realidade e as fantasias que originam distorgées na percep- ¢4o, como também levam o individuo a comportamentos automaticos ou ‘“‘impulsivos’’. Oego apresenta, portanto, as defesas, aprisiona a experiéncia huma- na e manifesta varias formas de conflitos conscientes ou inconscientes, sendo regido pelos impulsos (pulsées), seu automatismo e compulsividade, Comparando a visao que a perspectiva transpessoal tem do ego com a visdo da psicandlise, encontramos varios pontos comuns. A psicandli- se freudiana tem um importante papel na descrigao dos conflitos que constituem a experiéncia egdica, embora tenha ca{do no erro de subme- ter toda e qualquer experiéncia humana sob 0 dominio do conflito psi- coldgico: ‘‘A psicandlise considera 0 conflito como constitutivo do ser Aumano} ¢ isso em diversas perspectivas: conflito entre o desejo ea de- fesa, conflito entre os diferentes sistemas ou instancias, conflitos entre as puls6es, e, por fim, o conflito edipiano, onde nao apenas se defron- tam desejos contrarios, mas onde estes enfrentam a interdigao”’.!4 Nas varias fases de desenvolvimento do pensamento freudiano, ele trabalha com forcas ou instancias contrarias, que lutam entre si pela primazia na regulacdo do organismo. Encontramos assim a oposico entre a se- xualidade e uma instancia recalcadora; 0 dualismo das pulsées sexuais e das pulsdes de autoconservagao; as pulsdes de vida e as pulsdes de morte e muitas outras formas de conflito psiquico. O problema mais dificil de ser resolvido s&o as formas possiveis des- ses conflitos serem vividos, ou seja, sua dindmica (a interagdo das va- rias forgas mentais presentes na realidade psiquica e, particularmente, das forgas que compoem o conflito psiquico). Na sua tltima teoria das puls6es construida em torno das relacdes entre pulsdes de vida e pulsdes de morte —, Freud fala em fusdo e desfusdo das pulsées: ‘‘A fusdo das pulsdes é uma verdadeira mistura em que cada um dos dois componen- tes pode entrar em proporcoes variaveis; a desfusao designa um pro- 34 cesso cujo limite redundaria num funcionamento separado das duas es- pécies de pulsdes, em que cada uma procuraria atingir seu proprio alvo, de forma independente’’.!* Essa referéncia a psicandlise nos é util na medida em que 1) salienta a importancia da dindmica do conflito para a vida psicolégica e 2) indi- ca formas através das quais essa dindmica ocorre. Notamos que, do ponto de vista psicanalitico, os pélos do conflito ov se misturam ou caminham separadamente. A nosso ver, essas duas possibilidades existem pratica- mente e sao vividas: a primeira, em um nivel anterior 4 diferenciacao completa dos dois elementos do conflito que podem, somente a partir de uma diferenciaco, transcender e/ou possibilitar a transcendéncia psi- coldgica.do individuo ou grupo onde protagoniza determinado momen- to da vida psicolégica. A segunda possibilidade — 0 caminho separado dos pdlos do conflito, leva a divisdo da personalidade e corresponde ao funcionamento psicoldgico da neurose onde 0 individuo jamais esta in teiramente consigo mesmo (nesse sentido, toda a experiéncia egdica é neur6tica). Tanto um tipo de interagdo (a mistura dos elementos, a fu- sao) quanto 0 outro (a divisao, a desfusao) sao incompativeis com a trans- cendéncia ou superacao do conflito. Mesmo uma diferenciagao de cada um dos pélos, trabalho que fazemos constantemente em psicoterapia, nao leva, por si s6, a resolvermos 0 conflito. Esse trabalho é importante na medida em que leva a maior autoconhecimento e torna os contetidos que estao sob o dominio do conflito conscientes. Contudo, apesar da emergéncia do conflito para o plano consciente, nao ha concilia¢do pos- sivel e nem escolha (na linguagem freudiana, compromisso). Mesmo que um dos pélos do conflito ‘‘ceda’’ ao outro sob alguma ‘‘condi¢ao’’, es- se tipo de ‘‘barganha”’ sé redunda na manutengao do conflito. Tal es- pécie de “‘manobra’’ faz parte das defesas do ego e nao pode ser consi- derada uma maneira de superar e transcender a situagao conflituosa. E apenas uma maneira de manté-la. A transcendéncia sé € possivel atra- vés da dissolucdo do conflito, das defesas e da transformagao radical dos aspectos irreconcilidveis. Nao é possivel, por exemplo, ‘‘escolher’’ u “‘chegar a estabelecer um compromisso”’ entre as emocGes de amor e 6dio que sentimos em relacdo a algo ou alguém. E preciso transfor- mar essas polaridades que séo mantidas através da forma pela qual 0 ego lida com os desejos e pulses e conquistar uma transformagao radi- cal das emoc6es em direg&o a sua transcendéncia. O caminho da supe- rac&o de uma situacao conflitiva é o mesmo que o da ampliagao da cons- ciéncia. Em outras palavras, nao é possivel superar os conflitos psiqui- cos se a consciéncia nao se transformar radicalmente. As tentativas de harmonizacao do ego sao fadadas ao fracasso, pois sup6e que o conflito, por exemplo, entre uma pulsdo e uma exigéncia do superego possa ser ‘‘resolvido’”’. Exemplificando com uma situagao- limite, no caso de um desejo de matar alguém, esse desejo sé podera “resolver-se’’ transformando-se. As pulsdes, sob dominio da conscién- 35

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