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0 TROVADORISMO (1198-1418) PRELIMINARES ‘As primeiras décadas desta época transcorrem duranté a guerra de reconquista do solo portugués ainda em parte sob dominio mou- isco, cujo derradeiro ato se desenrola em 1249, quando Afonso IIT se apodera de Albufeira, Faro, Loulé, Aljezur e Porches, no extremo sul Portugal. E apesar de tio absorvente a prit ‘anos de consolidagdo politica ¢ territorial, sada_a contingéncia bélica, observa-se 0 recrudescimento das _manifes- tages soi ties dow periodos de pax ¢ trangildade ocios, ene alcanga, na segunda metade do século XI, seu ponto mais gem remota dessa poesia constitui ainda assunto controvertc femse quatro fundamentais teses para explicé-a: a tese ardbica, qu considera a cultura arabica como sua velha raiz; a tese folelrica, que a povo; a tese médiodatinista, segundo a qual essa poe- ado da literatura latina produzida durante a Idade sentada pela primeira floragdo da poesia medieval Todavia, é da Provenca que vem o influxo préximo. Aq ‘gif meridional da Franga tornarase no século XI um grande ividade lirica, meroé das condigdes de luxo e fausto oferecidas aos pelos senhores feudais. As Cruzadas, compelindo os figis a pro- isboa como porto mais proximo para embarcar com destino a 19 Jerusalém, propiciaram a movimentagZo duma fauna humana mais ou troduziram em Portugal a nova moda poética. Fécil foi sua adaptagfo A realidade portuguesa, gragas a ter encon- ‘rado um ambiente favoravelmente predisposto, formado por uma es pécie de poesia popular de velha tradiefo. A intima fusio de ambas as correntes (a provengal e a popular) explicaria o cariter proprio assumido pelo trovadorismo em terras portugues ‘A época iniciase em 1198 (ou 1189), com a “cantiga de garvain’ dedicada por Paio Soares de Taveités a Maria Pais Ribeiro, ¢ termina em 1418, quando Femio Lopes é nomeado Guarda-Mor da Torte do Tombo, ou sea, conservador do arquivo do Reino, por D. Duarte APOESIA TROVADORESCA Na Provenga, 0 posta era chamado de troubadour, cuja forma correspondente em Portugués & trovador, da qual deriva irovadorismo, trovadoresco, trovadorescamente. No norte da Franca, 0 poeta recebia © apelativo trouvére, cujo radical é igual ao anterior: trouver (zachar): (08 poetas deviam ser capazes de compor, achar sua cancfo, cantiga ou cantar, ¢ © poema assim se denominava por implicar 0 canto e 0 acom- panhamento musical Duas espécies principais apresentava a poesia rica. A primeira divide-se em cant segunda, em cantiga de escdrnio e cantiga de maldizer. ipregado era 0 galego-portugués, em virtude da entZo uni dade lingiistica entre Portugal a Galiza. CANTIGA DE AMOR — Ni ende a confissio, dolorosa e qui riéncia passional frente a uma dama inacessivel aos seus ‘outras razSes porque de superior estirpe social, enquanto ele e fdalgo decaido. Uma atmosfera plangente, suplicante, d varre a cantiga de ponta a ponta. Os apelos do trovador colocam-se alt ‘num plano de espiritualidade, de idealidade ou contemplagio pl pasa como se 0 trovador “fing itvalismo, obediente as regras de conve aria vinda da Provenga, 0 verdadeiro e oculto sentido das sol 0es dirgidas a dama. A custa de “fingidos” ou incorrespondidos, os 20 estimulos amorosos transcendentalizamse: repassa-os um torturante sofri- ‘mento interior que se segue a certeza da inutil suplica e da espera dum bem que nunca chega. £ a coita (= sofrimen confessa ‘As mais das vezes, quem usa da palavra € 0 proprio trovador, gindo-s com respeito e subserviéncia a dama de seus cuidados (mia se rnhor ow mia dona =minha senhora), rendendo-he culto que 0 “ser- vigo amoroso” lhe impunha. E este orienta-se de acordo com um rigido eédigo de comportamento ético: as regras do “amor cortés”, recebidas da Provenga. Segundo elas, 0 trovador teria de mencionar ‘comedida- im de nfo incorrer no desagrado (Ganha) da bemamada; teria de ocultar 0 nome dela ou regorrer a um pseud6nimo (senha), ¢ prestarthe uma vassalagem que apresentava que ‘ro fases: a primeira correspondia & condigfo de fenhedor, de quem se consome em suspiros; a segunda € a de precador, rarse € pedir; entendedor € 0 namorado; drut, trovador mostrava conhecer e respeitar as dificuldades interpostas pelas convengdes ¢ pela dama no rumo que o levaria & consecugo dum bem impossivel. Mais ainda: dum bem (e “fazer bem’ significa correspon- der aos requestos do trovador) que ele nem sempre desejava alcangar, pois seria por fim 20 seu tormento masoquista, ou inicio dum outro maior. Em qualquer hipétese, 6 the restava softer, indefinidamente, E ao tentar exprimirse, a plangéncia da confiss4o do sentimento que 0 avassala, — apoiada numa melopéia propria de quem mais mur jente do que fala —, vai num crescendo até a ul estrofe (a estrofe era chamada na lirica trovadoresca. de :: podia ainda receber 0 nome de cobla ou de talho). Visto uma idéia obsessiva ‘estar empolgando 0 trovador, a confissfo gira em toro dum mesmo niicleo, para cuja expresso 0 enamorado no acha palavras muito va- io intenso e macigo € 0 sofrimento que 0 tortura. Ao contré- corrente emocional, movimentando-se num efrculo vicioso, acaba [por se repetir monotonamente, apenas mudado o grau do lamento, que aumenta em avalanche até 0 fim. O estribilho ou refrdo, com que 0 tro: vador pode rematar cada estrofe, diz bem dessa angustiante idéia fixa ‘para a qual ele nfo encontra expresso diversa Quando presente 0 estribilho, que é recurso tipico da poesia po- pular, a cantiga chamase de refréo. Quando ausente, a cantign recebe © nome de cantiga de maestria, por tratat-se dum esquema estréfico mais a complexo, intelectualizado, sem 0 suporte facilitador daquele expediente repetitivo, CANTIGA DE AMIGO — Escrita iualmente pelo trovador que compe cantigas de amor, © mesmo as de escémnio ¢ maldizer, ese ti po de cantiga focaliza o outro lado da relagfo zmoros: 0 fulero do poe ‘ma & agora representado pelo softimento.amoroso da mulher, via de regra periencente as camadas populares (pastoras, camponesss, © ‘trovador, amado incondicionalmente pela moga humilde ¢ do campo ou da zona ibeirinha, projetaethe no intimo e desvenda Ihe 0 desgosto de amar e ser abandonada, em razio da guerra ou de outra mulher. 0 drama é 0 da mulher, mas quem ainda compe a cantiga € © trovador: 1) pode ser ele precisamente o homem com quem a moea vive sua historia; 0 sofrimento dela, o trovador € que o conhece, me- Thor do que ninguém; 2) por set a jovem analfabeta, como acontecia mesmo as fidalgas. © trovador vive uma dualidade amorosa, de onde extrai as duas formas de lirismo amoroso proprias da época: em espirito, dirigese & dama aistocratica; com os sentdos, & camponesa ou 2 pas pode expressar autenticamente os dois tipos de experiencia pasional © sempre na primeira pessoa (do singular ou plural), 1) como agente amoroso que padece a incorrespondéncia, 2) como se falase pela mu- Iher que por ele desgraradamente se apaixona. E digno de nota que essa ambigtidade, ou essa capacidade de projetarse na interlocutora do epi- Sédio.¢ exprimirthe o sentimento; extremamente cutiosa como psico- logia literdria ou das relagdes humanas, nfo existia antes do trovadoris- ‘mo nem jamais se repetiu depots. No gera, quem ergue a voz é a propria mulher, drigindose em confisso i mie, 4s amigas, aos péssaros, aos arvoredos, as fontes, 20s Fiachos. © conteido da confissfo € sempre formado duma paixio in transitiva ou incompreendida, mas a que ela se entrega de corpo e alma. ‘Ao passo que a cantiga de amor ¢ idealsta, a de amigo 6 realist, tr duzindo um sentimento espontineo, natural e primitivo por parte da mulher, e um sentimento donjuaneseo e egofsta por parte do homem Uma tal paixio haveria de ter sua histéria a8 cantigas surpreen- dem “momentos” do namoro, desde as primeiras horas da corte até as dores do abandono, ou da auséncia, pelo fato de o bemamado estar no fossado ou no bafordo, isto &, no servigo militar ou no exercicio das armas. Por isso, a palavra amigo pode significar namorado e amante ‘A cantga de amigo possu cariter mais narrativo e descrtivo que 1 de amor, de feigdo analitica e discursiva. E casificese de acordo com © lugar geogrdfico e as circunstancias em que decorrem o$ acontecimen- tos, em serranitha, pastorela, bacarola, bailada, romaria, alba ou ao. 2 vada (surpreende 0s amantes no despertar dum novo dia, depois de uma noite de amor). CANTIGA DE ESCARNIO E CANTIGA DE MALDIZER — A cantiga de escimio ¢ aquela em que a sitira se constr6i indiretamen- te, por meio da ironia e do sarcasmo, usando “palavras cobertas, que hajam dois entendimentos para the lo nfo entenderem’”, como reza a Postica Fragmentiria que precede o Cancioneiro da Biblioteca Nacio nal (antigo Colocci-Brancuti). Na de maldizer, a sitira € feita direta mente, com agresividade, “mais descobertamente™, com “palavras que querem dizer mal e ndo haverdo outro entendimento seno aquele que querem dizer chimente”, como ensina a mesma Poérica Fragmentiria. Essas duas formas de cantiga satitica, nfo raro escritas pelos mes ‘mos trovadores que compunham poesia “lirico-amorosa, expressavam, como ¢ facil depreender, o modo de sentir e de viver proprio de ambien. tes dissolutos, © acabaram por ser canoes de vida boémia e escorrs. gada, que encontrava nos meios frascirios e tabemnérios seu lugar ideal, AA linguagem em que eram vazadas admitia, por isso, expressdes licen. ciosas_ou de baixo-alio: poesia “‘maldita”, descambando para @ por- nografia ow 0 mau gosto, possui escasso valor estéico, mas em contra. Partida documenta os mefos populares do tempo, na’sua linguagem ¢ ‘nos seus costumes, com uma flagrincia de reportagem viva Visto constituir um tipo de poesia cultivado notadamente por jograis de mé vida, era natural propiciasse e estimulaste o acompanhe mento de soldadeiras (= mulheres soldo), cantadeiras ¢ bailadeias, caja vida sirada © dissoluta fazia coro com as chulices que iam nas le. tras das canges. ACOMPANHAMENTO MUSICAL — Como jé sabemos, as can tigas implicavam estreita alianga entre a poesia, a miisica, 0 canto e a danga. Para tanto, faziam-se acompanhar de instrumentos de sopro, corda e percussio (a flauta, a guitarra, 0 alaiide, o saltério, a viola, a harpa, o arrabil, a gigt, a bandurra, a dogaina, a exabeba, o anafil, a trom- gaita, 0 tambor, 0 adufe, 0 pandeiro). O proprio trovador tangia © instrumento, especialmente quando de corda, enquanto cantava, ou Feservava-se para a interpretagfo da cantiga, deixando a parte instru- ‘mental a um acompanhante, jogral ou menestrel. A parte musical da- ‘va-se o nome de son (=som). CANCIONEIROS — Sendo transmitida oralmente, ¢ natural que muito da poesia trovadoresca acabasse desaparecendo, sobretudo an- tes de 1198. Com o tempo, a fim de avivar a meméria incapaz de re- ter diferentes composigdes, as letras passaram a ser transcritas em pe- B le apontamentos. Mais adiante, com o objetivo de res- contra qualquer extravio, foram postas em cancion, ineas de cangSes, sempre por ordem e graca Dos vi (0S que nos ficaram (na biblioteca de D. Duar- te havia o Livro de Trovas de D. Afonso ou de ELRei e 0 Livro de Tro- vas de D. Dinis, mas perderamse), trés merecem especial relevo, por sua importincia numérica e qualitativa: Cancioneiro da Ajuda, composto no reinado de Afonso I (fins do século XIII), © que exclui a contribuigso de D. Dinis (reinou entre 1268 ¢ 1325 e foi chamado Rei Trovador); contém 310 cantigas, qua- se todas de amor; chamado Colocei- Brancuti, homenagem a seus dois possuidores italianos, dos quais Bran: © timo), & uma 6 XVI, possivelmente ‘pos, ¢ engloba trovadores dos reinados de Afonso Qancioneiro da Vaticana (0 nome the vei to na Biblioteca do Vaticano, em Roma), também c6pi culo x" original da centiria ant ceémio e de maldizer, de amor e de amigo. PRINCIPAIS TROVADORES ~ Dos trovadores enfeixados nes ses cancioneiros, o mais antigo é Joo Soares de Paiva, nascido em ‘mas 0 primeiro’ de importincia 6 Paio Soares de Taveités, pela can ga de amor de 1198, Os principais trovadores foram: D. Dit te pela extensio e qualidade de sua obra (escreveu cerca de 140 cant sas liricas € satiricas), Jofo Garcia de Guilhade (deixou 54 compo: ‘ges liricas e satir e foi dos mais originais tre Martim Codax (trovador da época de Afonso amigo, as quais tém 0 mérito de constituir vadoresca cuja pauta musical se preservou (Filho de D. Dinis), Joo Zorro, Aires Nunes, Aires Corpancho, Nuno Fernandes Torneol, Bernardo Bonaval, Paio Gomes TERMINOLOGIA POETICA — Apesar da aparénciaprimitiva ¢ espontinea, © de sr composta com os olhos voltados para a mista, 4 poesia medieval utiliza requintados recursos formals, sobretudo na antiga de amor, of quals, na maior parte, acabaram desaparecendo com 2 moda do trovadoriemo. Nao sendo, obviamente, ocaito para tratar de todo, trazemse para aqui os mais freqientes: O verso era chamado palavra, e quando fosse branco, isto é, sem rima, denominavn-se paler perdu. “ Cobras. singulares exam estrofes com timas propria. Quando as rimas eram comuns, as estrofes recebiam o nome de cobras unissonas ‘A finda era uma estrofe de estrutura propria, mas ligada pela i ma ao resto da cantigae servindosthe de remate. ‘A atafinda era © que modernamente recebe o nome de encadea- ‘mento (ou “enjambement”): 0 final de um verso, ou de uma estrofe, ligase diretamente 20 seguinte, sem interrupgdo de sentido ou de ritmo. (© dobre e 0 mordobre designavam a repetigio duma palavra ou rais dentro da mesma estrofe, exatamente como tal ou em uma de suas formas derivadas. nominavase leixapren (= deixa-prende) 0 recurso formal que consistia em gpanhar o ltimo uma estrofe (que no 0 reftdo) © comeele inicar a estrofe segunte, inteiro ou com lgsra variagao. Quando © sentimento poético se mantinha inalterado em todas a8 estrofes, e para exprimilo 0 trovador recorria as.mesmas expresses, ‘apenas utilizando sindnimos nas rimas, tinhamos 0 paraielismo, e a can- tiga recebia o nome de paralelistica. Tengdo era a cantiga dilogada: as tengSes “se podem fazer de amor, ou de amigo, ou de escémio, ou de maldizer, pero que devem de ser de maestra”. (Poética Fragmentira). Cantiga de atafinda era a que utllizava 0 processo da atafinda, {sto 6, cujas estrofes estavam ligadas sintaticamente Por fim, vejamos o sentido hierirquico atribuido as palavras sro Simplficando @ questo, terfam to: compunha, cantava 'e podia veues, era fidalgo decaido. Jogral era podia referir 0 saltimbanco, o trufo, 0 ‘mo aquele que compunha suas melo. méritos podia subir socialmente e ser signava um artista de controvertida condigio: colocado entre 0 jogral © 0 trovador, era trovador profissional, que ia de Corte a Corte inter- pretando cantigas proprias ou nio, a troco de soldo. Menesirel era 0 isico da Corte VALOR DA POESIA TROVADORESCA — Incontestavelmente, grande parte do vasto filo postico trovadoresco encontra-se hoje ul trapassada, envelhecida para o gosto do leitor modemo. Todavia, hé que usar de cautela a fim de nfo supor que tudo quanto caracterizou a lirica trovadoresca esti fadado ao esquecimento: seu primitivismo, a naturalidade dum lirismo que parece brotar exclusivamente da sen- 2s sibilidade, constitui nota viva € permanente; ¢ a agudeza analitica da can- tiga de amor, com o seu platonismo a encobrir calorosos apelos sensuais, ainda hoje encontra eco entre o$ leitores dessa espécie de poesia. Os “in- ‘génuos” expedientes de linguagem (que servem de campo fecundo pa- 12 fildlogos e graméticos) colaboram na formagio de uma peculiar at- mosfera de espontaneidade, quase tot perdida com @ Renascen- ga. Por isso, 0 trovadorismo exige do leitor de nossos dias um esforeo de adaptagio © um conhecimento adequado das condigSes histérico-so- ciais em que 0 mesmo se desenvolveu, sob pena de tomar-se impermed- vel beleza e& pureza natural que evolam dessa poesia. Aceito nesse mundo postico de estranha sedugfo, descobrrd algo mais: localizaré a fonte prime ra de onde promana muito daquilo que consttui o pat [Lingua Portuguesa. Acabaré compreendendo nfo ser para menos que cer- tos poetas, brasileios ¢ portugueses (como, por exemplo, Manuel Ban- deira e Afonso Duarte), li se abeberaram: estes poetas, para exprimir de- terminada ¢ involuntiria consanglinidade lirica, subjacente em certos estados de alma comuns mas provocados por motivos diversos, nfo ti veram senfo que voltar a origem, no encalgo das formas adequadas de expressio. E que, para algumas situagBes ¢ sentimentos amorosos, 0s tro- vadores encontraram palavras que ainda continuam a vibrar, por sua fla srante limpidez. e precisfo, compondo imagens duma beleza achada es ppontaneamente, quase sem’ dar por isso, antes fruto do instinto, ov da intuigdo, que da artesania. AY 0 seu valor, ainda hoje. NOVELAS DE CAVALARIA ‘Além dessa magnifica floragdo lirica, a 6poca do Trovadorismo ain- da se caracteriza pelo aparecimento e cultivo das novelas de cavalaria. Origindrias da Inglaterra ou/e da Franga, e de cardter tipicamente me- dieval, nasceram da prosificagdo e metamorfose das cancdes de gesta (poe- sia de temas guerreiros): estas, alargadas e desdobradas a um grau que transcendia qualquer meméria individual, deixaram de ser expressas por meio de versos para 0 ser em prosa, ¢ deixaram de ser cantadas para ser lidas. Dessa mudanga em Portugal no século dade hist6rico-cultural portuguesa. Nessa época, nfo ha noticia de no- vvelas de cavalaria autenticamente portuguesas: eram todas vertidas do Francés. Convencionou-se dividir a matéria cavaleiresca em trés ciclos: ci- clo bretdo ov arturiano, tendo 0 Rei Artur e seus cavaleiros como pro- 26 tagonistas; ciclo carotingio, em tomo de Carlos Magno e 0s doze pares de Franca; ciclo clissico, referente a novelas de temas greco-atinos. Tra- tandose’da Literatura Portuguesa, essa divisfo nfo tem cabimento, pois 56 0 ciclo arturiano deixow marcas vivas de sua passagem em Portug Sabe-se que os demais ciclos foram conhecidos ¢ exerceram influéncia, mas apenas na poesia do tempo, visto que ndo se conhece em vernéculo nenhuma novela de tema carolingio ou cléssico. Sabe-se, ainda, que na biblioteca de D. Duarte (1391-1438) exis tiam exemplares de novelas como Tristdo, 0 Livro de Galaaz, o Mago Mer- lim, 0 que tevela 0 alto aprego em que eram tidas ¢ 0 impacto que exer: ceram sobre os hébitos ¢ costumes palacianos da Idade Média portuguesa. Excetuando 0 Amadis de Gaula, que seré tratado no capitulo do Humanismo, das novelas que entéo circularam, somente permaneceram a8 seguintes: HistOria de Merlim, José de Arimatéia e A Demanda do San- 10 Graal. 'A versio portuguesa da Historia de Merlim desapareceu: da nove- la s6 temos a tradupdo espanhola, calcada sobre a portuguesa. O José de Arimatéia (ms. n9 643 da Torre do Tombo, Lisboa) foi publicado final mente em 1967, em edigdo paleogréfica: teria sido traduzido no século XIV, mas a cépia existente foi executads no séeulo XVI, pelo Dr. Ma- ‘uel’ Alvares; pertence a outra trilogia, no inicio posta em verso e depois fem prosa, formada com a Historia de Merlim e A Demanda do Santo Graal, precisamente as novelas que nos restaram. Um resumo dela pode ser en- contrado no Livro de Vespasiano (1496). Novela mistica, tem comego ‘numa visto celestial de José de Arimatéia e no recebimento dum peque- no livro (A Demanda do Santo Graal). José parte para Jerusalém; convi- ve com Cristo, acompanhathe o martirio da Cruz, ¢ recolhe-lhe 0 san- {gue no Santo Vaso. Deus ordenathe que 0 esconda. Tendo-o feito, mor- re em Sarras, O relato termina com a morte de Lancelote: seu filho, Ga- Jaaz,iré em busca do Santo Graal. ‘A Demanda do Santo Graal corresponde, assim, terceira parte da trilogia, A lenda, de remotas origens célticas, fot inictalmente canta da em verso, tendo Perceval como her6i. A volta de 1220, em Franca, por influxo clerical, operase a prosificagio da lenda, da autoria presun- tiva de Gautier Map, ¢ entio Galaaz substitui Perceval. A lenda, até en- ‘Go de cunho nitidamente pagio, cristianiza-se, passando seus principals simbolos (0 Vaso, a Espada, 0 Escudo, etc.) a assumir valor mistico. Com isso, em vez de aventuras marcadas por um realismo profano, tem-e a presenca da ascese, traduzida no desprezo do corpo ¢ no culto da vida ‘spiritual, e exercida como processo de experimentacio das forgas fisi- cas e morais de cada cavaleiro no sentido da Eucaristia, fim éltimo ane- lado por todos. A Demanda do Santo Graal constitui, por i880, uma no- vela de cavalaria mistica ¢ simbélica. Os cavaleiros lutam por chegar & Pu Comunhio sobrenatural, mas s6 um, Galaaz, a alcanga. “Bscolhido”, do- Cofegum nome de ascendéncia bfblica (Galaad significa o “puro dos pur as), simboliza um novo Cristo, ou um Cristo sem- Yio mistica pelo mundo. Préximos dele em gran- a a sica e moral, situamse Boorz e Perceval, ¢ mais dstantes, embo- solo seu quinhgo de gloria, Lancelote, Tristfo, Palamades, Erec, Gal ‘io, Ivam, Estor, Morderet, Meraugis e outros. ‘rm sintese, A Demanda do Santo Graal contém o seguinte: em tor- no da “tévola redonda”, em Camaalot, reino do Rei Artur, retinem-se ezenas de cavaleiros. & véspera de Pentecostes. Chega uma donzela & Corte e procura por Lancelote do Lago. Saem ambos ¢ vlo a uma igre: ja, onde Lancelote arma Galaaz cavaleiro e regressa com Boorz ¢ Camaalot Hie eseudeiro anuncia o encontro de maravilhosa espada fincada numa pedra de mérmore bolando n’égua. Lanoelote © os outros tentam arran- eee debalde. Nisto Galaaz chega sem se fazer anunciar © ocupa a seeda perigose (= cadeira perigosa) que estava reservada para o cavaleito, Yes, Petao”: das 150 cadeiras, apenas faltava preencher uma, destinada ‘Tuistlo. Galaaz vai ao rio e arranca a espada do pednfo. A seguir, entre amee a0 tomeio. Surge Tristo para ocupar o ditimo assento vazio. Em ito ao repasto, 08 cavaleiros sf0 alvorogados e extasiados com a aérea pared do. Graal (= efice), cuja luminosidade sobrenatural os trans fara e alimenta, posto que s6 por um breve momento. Galvio sugere que Bijoe saiam a demanda (= 2 procura) do Santo Graal. No dia seguinte, pos ouvirem missa, partem todos, cada qual por seu lado. Dai para, a Frente, a narragio se entrelaga, se emaranha, a fim de acompanhar as de Givontradas aventuras dos cavaleitos do Rei Artur, até que, a0, cabo, for perecimento. ou exalstfo, fam reduzidos a um pequeno nimero, BP"chuaz, em Sarras, na plenitude do offcio religioso, tem © privilégio © ©, portanto, da consagracio de Sietides moras, esprituais ¢ fiscas. A novela ainda continua por algu- Thus péginas, com a narrativa do adulterino caso amoroso de Lancelot, pal de Galauz, e de D. Ginebra, esposa do Rei Artur. Tudo termina com oc deste ultimo. Tal excrescéncia contém o resumo de outra no- Tt Marte do Rei Artur, ou La Mort le Roi Artu, novela francesa 40 senga como apéndice’ da Demanda 0 se- da matéria cavaleiresca, havia-se forma: titulada Lancelote em Prosz, que continha 0 Lance- ote. s Demanda A Morte do Rei Artur, Parece evidente que © tradu tor portugués, a0 executar sua tarefa, teve diante dos olhos a segunda ih parte do triptico,e resolveu resumir altima, certamente por i Yesnecesséria a compreensfo do nicleo episbdico ¢ dramé 'A Demanda corresponde presisamente & reagGo da Igreja Catélica contra o desvirtuamento da Cavaaria. Os cavaleiros andantes feudais nfo Garo acabaram por se transformar em individuos desocupados, quando ‘Mo. auténticos andoleitos, vivendo ao sabor do acaso, amedrontando, pilhando, astaltando. A fim de trazéos & civilizaedo, reconvertendo-os et bons costumes, 0 Concfio de Clermont, em 1095, decidiu a orgs Mpagdo da primeita Cruzada © a correspondente formaglo duma cava Teds cust, Iniciase uma vasta pregegdo de ‘desis de altruismo e respel do a lenda pag do Santo Graal, SSlabora intimamente com 0 processo restaurador da Cavalaria andan- fer earacteriza-se por ser uma novela mistica, em que se contém uma es pecialnogio. de her6i antifeudal, qualificado por seu estoiismo inque Brantével sua total dnsia de perfeicto. Novela a servigo do movimento Fenovador do esptito cavaleresco, em que o heréi também esté a servi: fo, nfo mais do senhor feudal mas de sua salvagdo sobrenatural, uma bri Se ge teologismo varrea de ponta a ponta, 0 que nio impede, porém, 2 existencia de circunstanciais jactos liricos € {as de fantistico ou magico, em que o real ¢ tnodo surpreendente. Cenas de grande tensfo mistica contracenam com Sutras dum realismo vivo e ardente, em que 2 fortaleza de animo dos ca- Galenos & posta A prova, como, por exemplo, 0 episédio no castelo do Rel Brutos, em que a filha deste, enfebrecida de paixio, penetra de not te nos aposentos de Galaaz (captulos 106-116). ‘Novela de alto vigor narrativo e de elevada intencio, acabou ser 0 retrato definido da Idade Média mistica, e © maior monument teririo que a época nos legou no campo da fics#o: exprime um ut6 {deal de vida nume forma artsticamente superior, a ponto de alcangar tim grau de perfeigdo estética rara na prosa do tempo. "A Demanda so foi publicada inteiramente (embora com trunca- rmentos propositados, tendo em vista convicgGes moras do seu editor, ‘Augusto Magne) em 1944, no Rio de Janeiro. Em 1955 ¢ 1970, o enw dite sacerdote reedita o texto, em 2 volumes, restituindo & integrida- dee fazendo-o acompanhar de reprodugdo facsimilar. 0 manuscrito que the serviu de base € 0 de n? 2594, existente na Biblioteca Nacional de Viena da Austria, e corresponde a uma das obpias da tradugfo e adap- tagio. do orginal francés, levada a efeito no século XIII, certamente re- fundida em fins do XIV e principios do XV. CRONICOES E LIVROS DE LINHAGENS Na época do Trovadorismo, avultam com importincia estética ¢ hhistérica a poesia e a8 novelas de cavalaria, Outras formas, literirias ou 29 fragmentos publicados mumenta Historica. E in pelo fato de haverem dado nascis historiografia portuguesa; todavia, no encerram mérito literdrio sufi- ciente para justficar que sobre elas detenhamos por mais a aten- ‘elo. Em idénticas condig6es se coloca a Crénica geral de Espana (1344), provavelmente elaborada por D. Pedro, Conde de Barcelos (m. em 1354), filho bastardo de D. Dinis. ‘As hagiografias (= vidas de santos), escritas em Latim, ainda me- ‘nos significado literdrio ostentam. (0s libros de linhagens eram relagbes de nomes, especialmente de com 0 fito de estabelecer graus de parentesco que serviam para resolver dividas em caso de heranca, filiaglo ou de casamento em pecado (& casamento entre parentes até 0 sétimo grau). Houve quatro livros de Tinhagens: 0s dois primeiros, dos comecos do século contém meras listas de nomes formando drvores genealogicas. O tereeiro © 0 quarto fo- izar pelo mesmo D. Pedro, Conde de Barcelos, ¢ re- dria: nas referncias as ligagSes geneal6gicas se inter- calam, com 10, colorido ¢ naturalidade, narrativas breves mas de especial interesse, como 2 da Batalha do Salado, no Livro Ill. No Livro 1Y, acentuamse as preocupagbes novelescas, com a inclusfo duma tenta- tiva (a primeira) de erguer uma historia completa de Portugal, iniciada fe terminada nos reis portugueses da Reconquista. Apre- sentando mais interesse histéricoditerdrio que estético, aqui a Historia fa Cavalaria se mesclam, preparando o advento de Femnfo Lopes, com ‘quem se abre a época seguinte. ri HUMANISMO (1418-1527) PRELIMINARES ~ ‘A época do Humanismo principia quando Ferno Lopes é nomea- do Guarda-Mor da Torre do Tombo por D. Duarte, em 1418. Fato rele- vante por si proprio, denuncia a mudanga de mentalidade processada em desde a ascensfo de D. Jofo T ao trono em 1385, inaugurando rolongar-se até 1580. nna revolugdo popular de 1383, deflagrada em conseqiéncia da morte de D. Fernando e do governo dibio de sua mulher, D. Leonor Teles, espa hola de nascimento. Esta, mancomunada com seu patricio, o Conde de Descoberta a patranha, o povo rebelase, liderado pelo Mestre de Avis, filho bastardo de D. Pedro 1. A revolugZ0 dura dois anos, findos os quais (© Conde de Andeiro & assassinad trono e lege herdeiro 0 seu Mder: Soto L ‘A etapa, que com ele se inaugura, ¢ das mais importantes da hst6- ria de Portugal, entre outras coisas porque veio a constituir uma f profunda renovagfo da cultura portuguesa. Rei culto, determinad preendedor, entendeu logo o significado do apoio régio a0 desenvol to das Letras. Tanto é assim que, além de ele proprio dar o exemplo escre- vendo 0 Livro da Montara, p 1 formagdo dum clima mental que, continuado por seu filho, D. Duarte (que subiu a0 trono em 1433), con- dicionou o aparecimento duma figura como Femo Lopes, que dé inicio ¢ dimensdo & nova época da Literatura Portuguesa. Esta época se caracteriza fundamentalmente por um processo de hhumanizagfo da cultura. Na verdade, o século XV portugués corresponde, em consonincia com o resto da Europa, 20 nascimento do mundo moder- no, na medida em que inaugura um tipo de cultura preocupado com 0 ‘massa popular de apodera do de Avis tomase entio D. 31

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