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Repensando Palmares: Resisténcia escrava na Colénia Os dois maiores quilombos de Minas Gerais, o de Ambrésio, destruido em 1746, e 0 Quilombo Grande, atacado e elimi- nado em 1759, abrigavam grande ntimero de fugitivos, este Ultimo contendo talvez mais de mil habitantes. Esses qui- lombos, porém, eram excepcionalmente grandes. Minas Gerais, portanto, apesar da diferenga em base econdmica e configuracao social e racial, reproduziu e in- tensificou muitas das condigdes que conduziram a formagao de mocambos nas zonas de agricultura de exportacdo. As condig6es primitivas, a consideravel liberdade de movimen- to permitida aos escravos no garimpo, a rede urbana e a composicao racial da regido contribufram para a formagao de comunidades de fugitivos na regido. As reagdes do gover- no colonial ao problema em Minas Gerais e as técnicas uti- lizadas para combaté-lo também foram semelhantes as apli- cadas em outros locais da colénia. £ surpreendente o fato de que o termo quilombo fosse muito mais usado em Minas do que na Bahia, onde o termo preferido era mocambo, embo- ra ambas as designagées estivessem em uso por volta de meados do século XVIII. A palavra quilombo, na verdade, passou a significar acampamento de qualquer grupo de foras-da-lei, tanto que um funcionario de Vila Rica relatou, em 1737, Ppreparativos para destruir “um quilombo de brancos omiziados Por cri- mes atroces”.' Contudo, o termo foi usado principalmente para designar comunidades de escravos fugidos, tornando- se simbolo da resisténcia escrava no Brasil e, em €pocas mais atuais, de um movimento pela igualdade para os ne- gros neste pais. A diferenga lingiiistica entre Bahia e Minas Gerais é até certo ponto cronolégica e relaciona-se a histéria da gran- de comunidade de fugitivos de Palmares, que resistiu quase um século, a todas as tentativas de destruf-la. Para os admi- nistradores régios, Palmares tornou-se 0 simbolo de como qualquer comunidade de fugitivos poderia torr’r-se uma 60. Almeida Barbosa, Negros e quilombos, p. 31-53. 61. Assumar 4 Coroa (20 abr. 1719) citado em Vallejos “Sla- ve Control”, p. 15. 249 Ip pPPnererenee asec bebaseesseSsSbt46 $8s 414 ceSs0414014 6 Sls Eseas0 00000156000 16ce2se 0s 401sScssscuresccgretia =o teeeetstePtrOMMOMMTSrS-o4rSSESESENT9E: ccescesrssess Escravos, roceiros ¢ rebeldes ameaga real a sociedade civil em uma sociedade tao depen- dente da escravidao. O Conde de Assumar, ao escrever em 1719 que “os negros (de Minas) podem ser tentados a repe- tir as acdes de Palmares em Pernambuco, incentivados por seu grande numero”, estava declarando um temor verdadei- 10." Embora Palmares fosse atipico em tamanho e duracao, nao se pode separar sua histéria da de outras comunidades de fugitivos, considerando, no minimo, sua influéncia sobre a forma pela qual os proprietdrios de escravos e as autorida- des da Coroa encaravam o problema. Além disso, devido a sua longevidade e magnitude e ao longo contato que a socie- dade colonial manteve com ele, Palmares oferece algumas oportunidades de penetrag3o na dinamica interna de uma comunidade de fugitivos. REPENSANDO PALMARES Ao tratar da questao das comunidades de fugitivos no Brasil é necessdrio ter-se em mente 0 quilombo dos Palma- res. Localizado no interior das Alagoas, Palmares foi a mais longeva e a maior das comunidades de fugitivos. Persistiu durante quase todo o século XVII (1605?-1694), apesar das tentativas enérgicas de elimind-lo, tanto dos governos locais holandés e portugués quanto dos residentes das capitanias vizinhas. Devido a seu suposto tamanho (mais de 20.000 habitantes), longevidade e contato continuo com a socieda- de colonial, conhece-se mais sobre sua estrutura interna que sobre a maioria dos mocambos. Ainda assim, a docu- mentacao sobre Palmares nao é extensa € se concentra, em geral, na ultima década de sua existéncia a na destruigao fi- nal."* Por conseguinte, muito ainda permanece desconheci- SSS 62. Ver a discussdo em Higgins, “The Slave Society in Eigh- teenth Century Sabara”, p. 258-62 63. Os relatos classicos sobre Palmares sao: Edison Carnei- ro, O quilombo dos Palmares, 34 ed. (Rio de Janeiro, 1966), originalmente publicado em espanhol como Guerras de los Palmares (Cidade do México, 1946); Décio Freitas, Palmares: A guerra dos escravos (Porto Alegre, 1971), agora na 4. ed. 250 Repensando Palmares: Resistencia escrava na Colonia do, mas isso néo impede que procurem escrever sua hist6- ria ou romantizd-la como uma “Trdia Negra” ou uma “repu- blica”. Mais recentemente, Palmares assumiu importancia simb6lica para os negros brasileiros em sua luta por igual- dade racial e social. Hé4 muito se reconhece que Palmares tinha raizes em algumas formas tradicionais africanas de organizacao polfti- ca e social, embora, como a maioria das comunidades de fu- gitivos, combinasse tais formas com aspectos da cultura eu- ropéia e adaptagées especificamente locais.** Palmares nado era uma comunidade tnica, mas uma série de mocambos unidos em um tnico reino neoafricano.” Os relatos de varias testemunhas oculares revelam muito sobre a organizacao in- — de 1982 e originalmente publicado em espanhol como Pal- mares - la guerra negra (Montevidéu, 1971). Ha 0 trabalho de M. M. de Freitas, mais antigo porém ainda titil, O reino negro de Palmares 2 v. (Rio de Janeiro, 1954). 64. Hd indicagGes do significado simbdlico de Palmares em trabalhos como os de Clovis Moura, Brasil: as raizes do Protes- fo negro (Sao Paulo 1983); Abdias do Nascimento, O negro re- voltado (Rio de Janeiro, 1968), e seu mais recente Quilom- bismo (Petropolis, 1980). Dois filmes, “Ganga Zumba” (1963) € “Quilombo” (1984), ambos dirigidos por Carlos Diegues, trataram deste tema. Em 1984, houve um congres- so em Alagoas para comemorar a histéria e a importancia de Palmares. 65. Os aspectos africanos de Palmares fascinam os estudio- sos desde que Nina Rodrigues escreveu em 1906 sua ainda Util descrigdo daquela comunidade. Ver Os africanos no Brasil (Sao Paulo, 1933). A tentativa mais sdlida de identificar os aspectos africanos de Palmares foram as de Raymond Kent, “Palmare®: An African State in Brazil”, Journal of African His- tory 6 (1965), p. 161-75, mas, embora Kent trate de Muitos. temas importantes, nem sempre se pode confiar em suas tradugées e discussdes etnograficas. 66. O antropdlogo alemao Stephan Palmié assinalou que a estrutura do “reino” de Palmares se igualava 4 dos Estados bantu contemporaneos, como o reino do Congo. Stephan Palmié, “African States in the New World? ? Remarks on the Tradition of Transatlantic Resistance” (ms., 1988). 251 a Escravos, roceiros ¢ rebeldes terna de Palmares, embora devamos reconhecer que esse quilombo teve também uma historia e que a organizacéo e as instituigdes observadas no final do século XVII nao eram obrigatoriamente as mesmas do periodo inicial. Além disso, o tamanho de Palmares também mudou com o decorrer do tempo. Um relato de meados do século XVII descreve Palma- res dividida em dois agrupamentos principais e varios outros menores, estimando a populagao dos diversos agrupamentos em cerca de onze mil habitantes. Uma estimativa posterior e freqiientemente repetida aumentava para 30.000 esse nu- mero, que parece exagerado. Durante a maior parte do sécu- lo XVII, Pernambuco e as capitanias adjacentes possufam 200 engenhos, com uma média de 100 escravos em cada um. Em outras palavras, a estimativa de 20 a 30 mil habitan- tes em Palmares igualaria o numero total de escravos na eco- nomia acucareira da regido. Embora pareca um nimero improvavel, Palmares foi, indubitavelmente, a maior comu- nidade de fugitivos existente no Brasil. Durante sua longa histéria Palmares foi constante- mente atacado. Os holandeses organizaram trés expedicdes contra 0 quilombo e, depois que Portugal recuperou 0 con- trole do nordeste em 1654, a guerra prosseguiu. Entre 1672 e 1680 houve uma expedicgdo praticamente a cada ano. Os fugitivos resistiam bravamente, mas a pressdo constante os levou a pedir a paz a um governador de Pernambuco recém- chegado em 1678. O “rei” de Palmares, Ganga Zumba, ha- via, na verdade, tentado essa politica a cada novo governa- dor. A semelhanca dos marrons da Jamaica, havia prometi- do lealdade a coroa portuguesa e a devolugdo de novos fugi- vos em troca do reconhecimento da liberdade do quilom- bo. Os portugueses aceitaram tais condigées, mas logo as vio- laram, e dentro da propria Palmares deu-se uma revolta na qual Ganga Zumba, 0 chefe a favor da acomodagao, foi de- 67. Francisco de Brito Breyre, Nova Lusitdsia Hestoria dat get 1 bravilicd (Lisboa, 1675), pp, 280-82. (Used o tacsimile da se gunida edigio, Recite, 1977) Repensando Palmares: Resisténcia escrava na Coldnia posto e morto pelo sobrinho Zumbi.* A guerra continuava. Na década de 1680, quase todo ano, partiam expedicdes contra os fugitivos, mas com pouco éxito. Os defensores de Palmares tornaram-se senhores da arte da guerrilha, peritos no uso da camuflagem e em emboscadas. Frustrados, os ad- ministradores coloniais portugueses adotaram nova tatica. Implacaveis guerreiros indios e escravos de Sao Paulo, que tinham sido usados na Bahia para desbravar o sertao, foram contratados para eliminar Palmares. O ataque teve inicio em 1692 e, durante dois anos, com ajuda de tropas locais e dos indispensaveis aliados fndios, lentamente reduziu-se 0 peri- metro das defesas do mocambo principal. A batalha final deu-se em fevereiro de 1694. Morreram 200 fugitivos, 500 foram capturados e outros 200, segundo relatos, preferiram cometer suicidio a render-se. Zumbi, fugindo apés ter sido ferido, foi traido, capturado e decapitado. Palmares nao mais existia, mas até 1746 ainda fugiam escravos para o local onde se situara e novamente formavam grupos de fugitivos. Os observadores europeus nem sempre entendiam o que viam, mas de suas descrigées fica claro que Palmares era um estado organizado sob o controle de um rei, com chefes subordinados em povoados apartados. Embora existam al- guns relatos que mencionam um processo de eleigdo, a lide- ranca de um povoado pela mae de Ganga Zumba e a subida de Zumbi - sobrinho dele - ao trono, indicam a existéncia de uma linhagem real.” As posturas cerimoniais e demons- tragdes de obediéncia exigidas na presenga do rei indicam formas de monarquia africana. Os fugitivos de Palmares vi- fener eee eee ee 68. Décio Freitas, Palmares apresenta uma biografia fasci- nante de Zumbi, mostrando-o como homem notavel, captu- rado na infincia em um ataque a Palmares, criado e educa- do em latim e portugués por um padre em Porto Calvo, Em 1670, aos quinze anos de idade, o joven foge de volta para Palmares © posteriormente se tora seu lider, No trabalho de Freitas ndo estdo claray as fontes exatas dessa biogratia. 69, Tambein existens relatos de “eleigdes? em quilombos de Angola Ver Antonio de Oliveira Cadornega, Histdria das guerras angolanas, ¥v. (L isboa, 1940), IL 221. 253 Escravos, roceiros ¢ rebeldes yiam da agricultura, embora, como nos outros mocambos, também negociassem armas € outros produtos com os habi- tantes brancos das redondezas € assaltassem & procura de mulheres, gado e alimentos. Como em muitas sociedades africanas, existia escraviddo em Palmares. Os que para la iam por opcao eram considerados livres, mas 0s capturados nos assaltos eram escravizados. Os povoados de Palmares eram protegidos por palicadas, amuradas, ou por uma rede de ar- madilhas ocultas, muito semelhantes as descritas e mostradas acima na descrigao do mocambo baiano Buraco de Tatu. A religido nos acampamentos era uma fusdo de elementos cris- taos e africanos, embora também nesse aspecto € possivel que tenham existido muito mais caracteristicas africanas do que perceberam os observadores. Em varios aspectos, Palmares parece ter sido uma adaptacao de formas culturais africanas a situagdo do Bra: colénia, onde escravos de varias origens, africanos € crioulos, uniram-se em sua oposigao comum a escravidao. Em Palma- res as pessoas tratavam-se de malungo, ou compadre, termo de parentesco adotivo também usado entre os escravos que haviam chegado juntos no mesmo navio negreiro. Em Palmares podemos perceber a tentativa de for- mar uma comunidade com pessoas de origens dispares. Tal tentativa era necessaria em todas as comunidades de fugi- tivos, mas no caso de Palmares ha algumas caracteristicas especificas que ajudam a explicar sua historia, bem como a de toda a resisténcia escrava no Brasil colonial. A procura de elementos “africanos” em Palmares e nas “sobrevivén- cias” culturais dos escravos ou fugitivos tem-se concentra- do demais em identidades étnicas ou culturais especificas. De fato, grande parte do que se fazia passar por “etnia” africana no Brasil eram invengoes coloniais. As categorias ou agrupamentos como “Congo” ou “Angola” nao tinham teor étnico em si e quase sempre combinavam pessoas pro- venientes de amplas areas africanas, que pouco comparti- lhavam em identidade ou relacionamentos. O fato de se- rem essas categorias, as vezes adotadas pelos proprios es- cravos indica nao s6 a adaptabilidade dos escravos, mas também que as sociedades africanas tinham consideravel Repensando Palmares: Resistencia escrava na Colonia experiéncia com uma série de instituigdes para a integra- ¢ao de povos diferentes e a geracdo de solidariedades entre linhagens étnicas”. Existe, creio, uma hist6ria mais profunda em Palma- res, com significativas implicagées para a historia subse- qiiente da resisténcia escrava no Brasil. Fundamental nesse problema € a etimologia da palavra “quilombo”. Esse termo Passou a significar no Brasil qualquer comunidade de escra- vos fugidos, e tanto o significado usual quanto a origem séo dados pela palavra Mbundu, usada para designar acampa- mento de guerra. Por volta do século XVIII 0 termo era de uso geral no Brasil, mas sempre permaneceu secundario ao termo mocambo, mais antigo, ou seja, uma palavra Mbundu que significa esconderijo. Na verdade, a palavra quilombo s6 apareceu em documentos contemporaneos no final do s€culo XVII, a nao ser quando utilizada, em meados daque- le século, pelo poeta Gregério de Mattos, que a empregou com 0 significado de qualquer local onde os negros se con- gregavam. O primeiro documento que vi com o termo qui- lombo, sendo usado para designar uma comunidade de fugi- tivos é datado de 1691 e trata especificamente de Palma- res.” A cronologia e a conexdo com Palmares nao sao aci- dentais. No termo quilombo esta codificada uma _histéria nao escrita, que somente agora, devido a pesquisas recentes sobre a historia africana, pode ser, ao menos parcialmente, compreendida. ee 70. Palmié, “African States”; p. 10-11. Ver também “Ethno- genetic Processes and Cultural Transfer in Afro-American Slave Populations” (ms., 1989, Palmié inspirou-se bastante em Igor Kdpytoff, “The Internal African Frontier: The Ma- king of African Political Culture”, em The African Frontier, ed. Igor Kopytoff (Bloomington, Ind., 1987), p. 3-84. 71. A auséncia da palavra quilombo referindo-se a comuni- dades de fugitivos anteriores é observada em Kent, “Palma- res”, p. 162-63. Ver também Mario José Maestri Filho, “Em torno ao quilombo”, Histéria em Cadernos, (Mestrado de His- toria-Universidade Federal do Rio de Janeiro), v. 2, n. 2, p. 9-19, 1984. 2 Escravos, roceiros e rebeldes Embora Palmares combinasse intimeras tradi¢des cul- turais africanas e incluisse entre seus habitantes crioulos, mulatos, {ndios e mesmo alguns brancos marginais e mesti- cos, além de africanos, as tradicdes de Angola eram clara- mente predominantes. Os habitantes referiam-se a Pal res como angola janga (pequena Angola), em reconh ma- eci- mento a tal fato e, numa queixa de 1672, a camara de Sal- vador se referiu a “opressdo que todos sofremos dos barba- ros de Angola que vivem em Palmares da historia angolana, qual € a importancia des: para a historia de Palmares? "72 Mas, no contexto sa ligagéo O reino de Ndongo, que os portugueses passaram a chamar de Angola no final do século XV! turbuléncia, invadida pelo litoral por portugue: terior por bandos de guerreiros sa tral.”* A dissolucao do antigo reino Luanda em Kitanga resultou num perio perturbacoes que destrufram p Poderosos grupos de guerreiro: navam Imbangala 0 portugueses, invadir. existentes e, por fim, As origens e as tradi mo a relacdo entre tém sido assunto de galas, e mes} gala e yaka, 72. Livro das tado em Pedro Tom e o senado da cama! 1.3, p. 14-7, 1980. 73. David Birmingham, 1966), apresenta mentos. Ver tam (cambridge. 19 vansina, King p. 124-38. 74, Joseph C. Mi in Angola, (Oxfor dos Imbangala ¢ 4 Atas da Camara d 4s Pedreira, ra da cidade do Salvador”, Trade and Conflict uma descricao detalha bém sua sintese em he Zambezi", my), D. Fage ¢ Roland Oliver fa i 75-), 4, (1975), P. 325-83- Ver t doms of the Savanna. ( Her, Kings ant d, 1976), con! je suas institut I, era uma terra em ses e pelo in- Iteadores da Africa Cen- do Congo e do estado de do de luta militar e ovoados e desterraram povos. desterrados que se denomi- u Yaka, e eram chamados de Jaga pelos am a atual Angola destruindo os estados criando uma série de novos regimes.” igdes culturais precisas dos imban- as designagoes jaga, imban- debate entre africanistas ha o Salvador (1669-84), 3, ci “Os quilombos dos Palmares + MLA.N., vo LL, 1 in Angola (Oxford, da desses aconteci- “Central Africa from em Cambridge History of Africa, ente data 5 v. até a pres ambém Jan Madison, 1968, P- 64-70. y Mbundu States d Kinsmen: Earl tal Jente descrigao rém uma excel goes. ee Repensando Palmares Resisténcia escrava na Coldnia algum tempo, mas alguns aspectos da sociedade imbanga- la/Jaga, de interesse direto para historiadores da resisténcia escrava no Brasil e especialmente para os interessados em Palmares, foram mencionados por observadores contempo- raneos.” Em primeiro lugar, os invasores imbangalas viviam em permanente estado de guerra. Dizia-se que matavam os bebés gerados por suas mulheres, mas incorporavam criangas adotadas as suas fileiras, de modo que, com o passar do tem- po, eles se tornaram uma forga composta com um grande numero de pessoas de varias origens étnicas unidas por uma estrutura militar organizada. Essa organizac¢do e sua feroci- dade militar tornavam-nos 0 flagelo da regiao, eficientissi- mos e extremamente temidos. As relagdes entre imbangalas € portugueses se alternavam entre hostis e amistosas. Entre 1611 a 1619 senhores imbangalas serviram de mercenarios para os governadores portugueses, fornecendo multidées de cativos aos traficantes de escravos em Luanda.” Os novos es- tados eram formados por fusado dos imbangalas com linha- gens nativas, 4 medida que os imbangalas conquistavam ou criavam varios reinos entre os povos Mbundu da regiao con- go-angolana. Dois desses estados eram o reino de Kasanje e o reino de Matamba, governado pela rainha Nzinga, com o qual os portugueses lutaram até meados do século XVII, fa- zendo entao uma alianga. Esses estados lutaram entre si pelo controle da bacia do rio Kwango, o que deu margem a escra- vizagdo cada vez maior na regiao.” Ss 75. Sobre o debate, ver Joseph C. Miller, “The Imbangala and the Chronology of Early Central African History”, Jour- nal of African History, v. 13, n. 4, p. 549-74, 1972; “Requiem for the Jaga”; Cahiers d'etudes africaines, v. 13, n. 1, p. 121+ 49, 1973; John Thornton, “A Resurrection for the Jaga”, Cahiers d'etudes africaines, 18, p. 223-8, 1978. 76. Beatrix Hintze, “Angola nas garras do trafico de escra- vos", Revista International de Estudos Africanos, v1, 0.1, p. L- 60, 1984 77. Ver Roy Glasgow, Nzinga (Sao Paulo, 1982); Joseph C, Miller, “Kings, Lists, and History in Kisanje”, History in Afri- ca, 6, p. 51-94, 1979 257 Escravos, roceiros ¢ rebeldes ‘Ao deslocarem-se para 0 sul, entrando em Angola, no inicio do século XVII, os imbangalas encontraram entre 0 povo Mbundu uma instituigdo que adotaram para seus pro- positos.” Tratava-se do ki-lombo, uma sociedade de iniciacao ou campo de circuncisdo, onde os jovens do sexo masculino eram preparados para o status de adultos e guerreiros. Os imbangalas adaptaram essa instituigdo a seus proprios desig- nios. Arrancados das terras € dos deuses ancestrais, sem compartilhar linhagem comum, vivendo de conquistas e, se- gundo observadores europeus, rejeitando a agricultura, a base tradicional das sociedades da regido, os imbangalas ne- cessitavam de uma instituigdo que desse coesdo aos elemen- 5 que compunham seus bandos. O ki-lom- bo, uma sociedade militar 3 qual qualquer homem podia per- tencer por meio de treinamento e€ iniciagao. servia aquele proposito Criada para a guerra, essa instituigao gerou um poderoso culto guerreiro ao receber grandes numeros de es- trangeiros sem ancestrais comuns. O ki-lombo imbangala se distinguia devido a suas leis rituais. A linhagem e o paren- tdo importantes para Os outros povos essencialmente ido, eram negados dentro do ki-lombo e, embora os observadores europeus mencionassem infantici- dio, as mulheres, estritamente falando, podiam deixar os li- mites do ki-lombo para dar a luz. O que se proibia era um lago matrilinear legal dentro do ki-lombo que pudesse prejudicar o conceito de uma sociedade estruturada por iniciagdo em vez de parentesco. O historiador Joseph Miller acredita que eeassassinato” imbangala dos préprios filhos era uma meté- fora da eliminagao cerimonial dos lacos de parentesco e sua substituicdo pelas leis e prescrigdes do ki-lombo. A criacao de uma organizacao social baseada em asso- ciagao gerava riscos. Os habitantes do ki-lombo incorriam em especial perigo espiritual, uma vez que Ihes faltava a linha- gem normal de ancestrais que pudessem interceder por eles junto aos deuses. Assim, uma figura fundamental no ki-lom- tos étnicos dispar tesco, matrilineares da re 78. Miller, Kings and Kinsmen, 151-75, 224-64, oferece uma anillise intensa. As fontes classicas sobre 0 Jaga ki-lombo so Cadornega e Cavaz7i de Montecuccolo. . 258 Repensando Palmares: Resisténcia escrava na Colénia bo era o nganga a zumba, um sacerdote cuja responsabilidade era lidar com 0 espirito dos mortos. O Ganga Zumba de Pal- mares era provavelmente o detentor desse cargo, que nado era de fato um nome préprio, mas um titulo. Ha outros ecos das descrigdes de Angola que parecem sugestivos. No qui- lombo imbangala a lideranca dependia de algum tipo de aclamacao ou eleicdo popular, exatamente como afirmam alguns dos relatos brasileiros.” E bastante curiosa a observa- cao de Andrew Batell, que viveu entre os imbangalas e rela- tou que seu maior luxo era o vinho de palma e que suas ro- tas a acampamentos eram influenciados pela disponibilidade de palmeiras. Seus comentarios fazem com que a associagao entre a comunidade dos marrons e a regido dos Palmares pa- reca mais do que coincidéncia.”” Se os fundadores de Palmares inspiraram-se no ki- lombo Imbangala para a formagdo de sua sociedade, sua ver- sao dele era incompleta ou, pelo menos, uma variante do modelo original. Intimeras caracteristicas associadas aos ki- lombos imbangala nao tinham paralelo no Brasil. Em primei- ro lugar, os imbangalas eram sempre mencionados como ca- nibais que praticavam a antropofagia e sacrificios humanos para aterrorizar os inimigos. Esses costumes eram rigida- mente controlados, bem como a preparacao de magi a samba, uma pasta feita de gordura humana e outras substancias que supostamente tornava invenciveis os guerreiros do ki-lombo. Havia no ki-lombo um rigido conjunto de leis rituais (kijila). As mulheres eram proibidas de entrar no terreiro interno do ki-lombo e havia prescrig6es rituais rigorosas contra mulheres menstruadas. Nenhum desses costumes € mencionado na documentagao remanescente de Palmares. O uso do termo “quilombo” com referéncia a Palma- res nao significa que todos os aspectos rituais daquela insti- tuigdo, tal como eram praticados em Angola, estavam pre- sentes no Brasil nem que os fundadores e lideres subseqiien- a 79, Cadorne} U, p. 231. 80. E. G. Ravenstein, The Strange Adventures of Andrew Battel of Leigh in Angola and Adjoining Regions (London, 1901). 259 yj pao! Escrawes, roceiros e rebeldes tes de Palmares fossem, obrigatoriamente, imbangalas." Ha- via muitos aspectos do ki-lombo imbangala em outras insti- tuigdes da Africa central, como por exemplo, os acampa- mentos de iniciagao secreta kimpasi, do Congo, que também criavam novos lacos sociais por associacdo.* Quem nao era imbangala entenderia muito do que era inerente ao ki-lom- bo. Conforme observado, as dinastias € instituigdes imbanga- las eram incorporadas em uma série de estados Mbundu e 0 quilombo passou a simbolizar a soberania desses estados. Nossa melhor fonte a esse respeito é Antonio de Oliveira Ca- dornega, o principal cronista de Angola no século XVII. Ca- dornega usou 0 termo quilombo para descrever bandos jagas (“quilombos de jagas” ou gente € quilombos de jagas”), mas também como termo descritivo dos reinos de Matamba e Kasanje."* O emprego da expressao “reino € quilombo” de Matamba era um uso descritivo geral de quilombo, que se referia aquelas formas politicas de influéncia imbangala, mas nao chegava a afirmar a existéncia plena da instituigado ori- ginal nem de suas praticas rituais. “Quilombo” estava se tor- nando sinénimo de determinado tipo de reino em Angola. Dada a escassez de documentacio sobre Palmares, ad- mite-se que muitas das hipoteses acima mencionadas sao frageis, mas acredito que haja indicios suficientes para se afirmar que a introdugdo do termo “quilombo” no Brasil em fins do século XVII nao foi acidental e representa mais do que um simples empréstimo lingiifstico. Caso isso seja verda- de, devemos entao considerar os aspectos africanos de Pal- 81. As origens Jaga de Palmares tém sido de interesse para os estudiosos hé muitos anos. Nina Rodrigues contentou-se cra mostrar a origem Bantu dos titulos, nomes préprios e to- ponomia de Palmares. M. M. de Freitas deduziu que os Pal- marinos eram guerreiros tao inveterados que devem, por- tanto, ter sido jagas. Argumenta Freitas: “o primeiro fugiti- vo era da casta sagrada dos jagas ¢ o fundador da dinastia palmarina”, (1,278). Kent, “Palmares”, afirma que os jagas ham sido os criadores de Palmares. talvez no ten! e Kingdom of Kongo (Madison, 82. John K. Thornton, Th 1983), p. 61, p. 107 83. Cadornega, Historia, 1, 89; 2, 222. 260 Resisténcia escrava na Colonia mares nao como “sobreviventes” afastados de seu meio cul- tural original, mas como um uso muito mais dinamico a tal- vez intencional de uma instituicdo africana que fora especi- ficamente criada para gerar uma comunhdo entre povos de origens dispares e ser uma organizacdo militar eficiente. Cer- tamente os escravos fugitivos do Brasil adequavam-se a essa descricéo e os ataques que sofriam dos governos coloniais tornavam a organizacao militar do quilombo essencial para a sobrevivéncia. O éxito dos quilombos variava tanto quan- to diferiam entre si em tamanho, governo, longevidade e or- ganizagao interna. Considerados como um todo, Palmares e as comunidades menores de fugitivos constitufam um conti- nuo comentario sobre o regime escravista brasileiro.

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