Está en la página 1de 43
GRACILI a 10 RA af TERRA pos MENINOS gc AW Le) (@ ALAGOANO Graciliano Ramosnasceu em 27 de outubro de 1892, na pequena cidade de Quebrangulo. fm Maceié, passou a frequentar 0 Colégio Quinze de Marco, e suas primeiras experiéncias como escritor apareceram no perié- dico Echo Vigosense ¢ no jornal carioca O Malho. © ano de 1925 marcou 0 infcio do ro- mance Caetés, concluido em 1928, mas -revisto varias vezes até 1930. © langamen- 10 do livro, de fato, sé aconteceu em 1933. Em 1934, na sactistia da Jgreja Matriz de peer ees fndios, escreveu os primet- 10s capitulos de Sao Bernardo, romance Em margo de 1936 foi preso, em Ma- ceid, sem culpa formada, sob a alega- ‘Gio de que seria comunista, Passou por varias prises, em Maceié Recife. Se- ‘quit no porio de um navio para o Rio de Janeiro, onde ficou quase um ano na cadeia. Em agosto, ainda na prisdo, pu- blicow o romance Angiistia. Ao sair, foi ‘morar no Rio de Janeiro com a familia. Em 1938 publicou seu maior classico, 0 romance Vidas secas. Ags 50 anos de idade, recebeu o Pré- ‘mio Felipe de Oliveira pelo conjunto de sua obra Graciliano Ramos morreu em 20 de margo de 1953 e no mesmo ano foi pu- a NO etl a a Profi «reprodug, fo todo ou ert parte attends de quatsquer meios Testo revised segunde.o navo Acorlo Ortogritice da Lingua Portuguesa Sefaum letor prefecencial Record. Cadastre-se erecebs snformagoes sobre nose Tancamienis ¢nosss promogde. vend Ruy Argentina 71 Riode faneicy 3 iupeatojar unde Ranca Aten @rel Xd exo Gali Clea Rood by hesdeines de Grciiane Ramos Copyright Copyright das lsstrsgdes © Jenn-Clade Ramos Alpen, 2014 Capa proto gratco: Angela Allewro Fomine Todos of avetoc reservados Ds dieits moras do autor foram acsegundes, Dinetos exclusives desta edie reservados pel Editora Record Ltda, Impresse no ral spn g78-85-01-02768-9 yentoe ends diets 20 eltor nilteto@record.con.br ou (a) 2385-2002, 2092-380 “Tel: 2585-2000, Dols QuaTRo seis o1ro, pez poze ovatorze DEZESSEIS INTE VINTE E ors 7 9 a 15 19 2 25 7 29 35 37 41 B a7 49 53 7 79 um tres cinco SeTE Nove onze TREZE oumzr DEZESSETE DEZENOVE VINTE E UM VINTE E TRES 4. bas HAVIA UM MENINO diferente dos outros meninos: tinha 0 olho direito preto, 0 es- querdo azul ea cabera pelada. Os vizinhos mangavam dele e gritavam: O pelado! Tanto gritaram que ele se acostumou, achou o apelido certo, deu para se assinar a carvio, nas paredes: Dr. Raimundo Pe- lado. Era de bom génio e nio se 2anga- va; mas os garotos dos arredores fugiam ao vé-lo, escondiam-se por detris das 4r- vores da rua, mudavam a voz e pergun- tavam que fim tinham levado os cabe- los dele. Raimundo entristecia e fechava o olho direito. Quando o aperreavam de- mais, aborrecia-se, fechava o olho esquer- do, Ea cara ficava toda escura. if | a se a Fs ee a ee Nao tendo com quem entender-se, Raimundo Pelado falava s6, e os outros pensavam que ele estava malucando. Estava nada! Conversava sozinho e desenhava na calgada coisas maravilho- sas do pafs de Tatipiran, onde nao hé ca- belos e as pessoas tém um olho preto outro azul, —eeee a UM DIA EM QUE ele preparava comareia molhada a serra de Taquaritu e 0 rio das Sete Cabecas, ouviu os gritos dos meni- nos escondidos por detrs das Arvores e sentiu um baque no coragio. — Quem raspou a cabeca dele? per- guntou o moleque do tabuleiro. — Como botaram os olhos de duas criaturas numa cara? berrou o italiani- nho da esquina. — Era melhor que me deixassem quie- to, disse Raimundo baixinho. Encolheu-see fechou oolho direito. Em seguida foi fechando o olho esquerdo, nao enxergou mais a rua. As vozes dos mole- ‘ques desapareceram, sé se ouvia a cantiga das cigarras, Afinal as cigarras se calaram. +2, | | + Raimundo levantou-se,entrou em casa, atravessou 0 quinial e ganhou o morro. Af comegaram a surgir as coisas estranhas que hé na terra de Tatipirun, coisas que ele tinha adivinhado, mas nunca tinha visto. Sentiu uma grande surpresa a0 notar que Tatipirun ficava ali perto de casa. Foi an- dando na ladeira, mas nio precisava subir: enquanto caminhava, 0 monte ia baixan- do, baixando, aplanava-se como uma folha de papel. E 0 caminho, cheio de curvas, es- tirava-se como uma linha. Depois que ele passava, a ladeira tornava a empinar-se ea estrada se enchia de voltas novamente. 10 t — QUEREM VER que isto por aqui jaéa serra de Taquaritu? pensou Raimundo. — Como é que vocd sabe? roncou um automével perto dele. O pequeno voltou-se assustado e quis desviar-se, masnao teve tempo, O automé- vel estava ali em cima, pega nio pega. Era um carro esquisito: em vez de fardis, tinha dois olhos grandes, um azul, outro preto. — Estou frito, suspirou o viajante esmorecendo, Maso automével piscou o olho pretoe animou-o com um riso grosso de buzina: — Deixe de besteira seu Raimundo. Em Tatipirun nés nao atropelamos ninguém. Levantou as rodas da frente, armou um salto, passou por cima da cabeca do tt ¢ t mening, foi cair cinquenta metros adian- tee continuou a rodar fonfonando. Uma laranjeira que estava no meio da estrada afastou-se para deixar a passagem livre e disse toda amével: — Faz favor. — Nio se incomode, agradeceu 0 pe- queno. A senhora é muito educada. — Tudo aqui é assim, respondeu a laranjeira. = — Estd se vendo. A propésito, por que é que a senhora no tem espinhos? — Em Tatipirun ninguém usa espi- nhos, bradoua laranjeira ofendida, Como se fax semelhante pergunta a uma plan- ta decente? — Egque sou de fora, gemeu Raimundo ‘envergonhado. Nunca andei por estas ban- das, A senhorame desculpe. Na minha terra os individuos de sua farnilia tém espinhos. — Aqui era assim antigamente, expli- cou a 4rvore. Agora os costumes s30 ou- tros. Hoje em dia, 0 tinico sujeito que ainda conserva esses instrumentos per- 12 furantes é 0 espinheiro-bravo, um tipo selvagem, de maus bofes. Conhece-o? — Bu nao senhora. Nao conhego nin- guém por esta zona. — E bom nio conhecer. Aceita uma laranja? — Sea senhora quiser dar, eu aceito. A Srvore baixou um ramo e entregou ao pirralhho uma laranja madura e grande. — Muito agradecido, d. Laranjeira. A se- nhora é uma pessoa direita, Adeus. Tem a bondade de me ensinar o caminho? — E esse mesmo. V4 seguindo sempre, Todos os caminhos sio certos. — Eu queria ver se encontrava os me- ninos pelados. — Encontra, VA seguindo, Andam por af. — Uns que tém um olho azul e outro preto? — Sem diivida. Toda gente tem um olho azul e outro preto. — Poisaté logo, d. Laranjeira. Passe bem. — Divirta-se. 13 ee RAIMUNDO CONTINUOU a caminha- da, chupando a laranjae escutando as ci- | garras, umas cigarras gratidas que pas- | seavam sobre discos de vitrola enormes. s discos giravam, soltos no ar, as cigar- > Tas no descansavam —e haviaem toda ~ a parte musicas estranhas, como nunca ninguém ouviu. Aranhas vermelhas ba- langavam-se em teias que se estendiam entre os galhos, teias brancas, azuis, ama- relas, verdes, roxas, cor das nuvens do céu e cor do fundo do mar, Aranhas em quan- tidade, Os discos moviam-se, sombras re-— dondas projetavam-se no chio, as teias agitavam-se como redes. t Raimundo deixou a serra de Taquari- tue chegow a beira do rio das Sete Cabecas, 15 ae onde se reuniam os meninos pelados, berm uns quinhentos, alvos e escuros, grantes € pequenos, muito diferentes uns dos ou- 10s, Mas todos eram absolutamente -al- vos, tinham um olho preto e outro azul 18 | | < © VIAJANTE RONDOU por ali uns mi- nutos, receoso de puxar conversa, pen- sando nos garotos que zombavam dele na rua. Foi-se chegando e sentou-se numa pedra, que se endireitow para re- cebé-lo. Um rapazinho aproximou-se, examinando-Ihe, admirado, a roupa e 0 sapatos. Todos ali estavam descalcos € cobertos de panos brancos, azuis, ama- Telos, verdes, roxos, cor das nuvens do céu e cor do fundo do mar, inteiramen- te iguais as teias que as aranhas verme- has fabricavam. — Eu queria saber se isto aqui é 0 pats de Tatipirun, comecou Raimundo, — Naturalmente, respondeu o outro. Donde vem vocé? 19s me te ++ Raimundo inventou um nome atra~ palhado para a cidade dele, que ficou importante: — Venho de Cambacari. Muito longe. — ]é ouvimos falar, declarou 0 rapaz. Fica além da serra, nao é isto? — £ isso mesmo. Uma terra de gente feia, cabeluda, com olhos de uma cor s6. Fiz boa viagem e tive algumas aventuras. — Encontrou a Caralampia? —Euma laranjeira? — Que laranjeira! £ menina. — Como ele ¢ bobo! gritaram todos rindo e dancando. Pensa que Caralampia élaranjeira. + ae a RAIMUNDO LEVANTOU-SE trombu- do e saiu a pressa, tao encabulado que no enxergou o rio, [a caindo dentro dele, mas as duas margens se aproximaram, a 4gua desapareceu, e 0 menino com um passo chegou a0 outro lado, onde se es- condeu por detrés dum tronco. A terra se abrit de novo, a correnteza tornou a apa- recer, fazendo um barulho grande. — Por que é que vocé se esconde? per- guntouo tronco baixinho. Esti com medo? — Nio senhor. £ que eles cagoaram de ‘mim porque eu nao conhecoa Caralimpia. Otronco soltouumarisadae pilheriou: — Deixe de tolice, criatura. Vocé se afogando em pouica Agua! As criancas es- tavam brincando. E uma gente boa == — Sempre ouvi dizer isso. Mas debi- caram comigo porque eu nao conheco a Caralampia. — Bobagem. Deixe de melindres, £ mesmo, concordou Raimundo. Eu pensava nos moleques que faziam tro- sade mim, em Cambacars. 0 senhor esta descansando, heim? — E. Estou aposentado, jé vivi demais. Raimundo levantou-se; Bem, seu ‘Tronco. Eu vou chegando, — Espera af. Um instante. Quero apresenté-lo 4 aranha vermelha, amiga velha que me visita sempre. Esta aqui, vi- zinha. Este rapaz é nosso héspede. 23 Sete A ARANHA VERMELHA balancou-se no fio, espiando o menino por todos os lados. © fio se estirou até que o bichi nho alcangou o chao. Raimundo fez um cumprimento. Boa tarde, d. Aranha. Como vai a senhora? Assim, assim, respondeu a visitante. Perdoe a curiosidade, Por que é que vocé pOe esses trocos em cima do corpo? — Que trogos? A roupa? Pois eu havia de andar nu, d. Aranha? A senhora nio estd vendo que é impossfvel? Nao isso, filho de Deus. Esses arreios que vocé usa sio medonhos. Tenho ali umas tinicas no galho onde moro, Mui to bonitas. Escolha uma. 25 | i) ses HE Raimundo chegou-se a drvore proxi- ma e exarsiinou desconfiado uns vestidos feitos daquele tecido que as aranhas ver- melhas preparavam. Apalpou a fazenda, tentou rasgé-la, chegou-a ao rosto para ver se era transparente. No era. — Eu nem sei se poderei vestir isto, co- megou hesitando. Nao acredito. — Que é que vocé nao acredita? per- guntou a proprietéria da alfaiataria. — A senhora me desculpe, cochichou Raimundo, Nio acredito que a gente pos- ‘a vestir roupa de teia de aranha — Que teia de aranhal rosnou o tron- co, Isso € seda e da boa. Aceite 0 presen- te da moga. — Entdo muito obrigado, gaguejou o pirralho, You experimentar. i 265 =< ESCOLHEU UMA TUNICA AZUL, escon- deu-se no mato ¢, passados minutos, tor- nou a mostrar-se, vestido como os habitan- tes de Tatipirun. Descalcou-se e sentiu nos pés a frescura e a maciez da relva. LA em cima os discos enormes das vitrolas gira- ‘yam; as cigarras chiavam muisicas em cima deles, miisicas como ninguém ouviu; som- bras redondas espalhavam-se no chao. — Este lugar ¢ étimo, suspirou Rai- mundo. Mas acho que preciso voltar. Pre- ciso estudar a minha liglo de geografia Nisto ouviu uma algazarra e viu atra- vés dos ramos a populacao de Tatipirun correndo para ele: — Cadé 0 menino que veio de Cam- bacard? Zt Pett Eram milhares de criaturas mitidas, de cinco a dez anos, todas cobertas de teias de aranha, descalgas, um olho preto e ou- | tro azul, as cabecas peladas nuas. Nao ha- via pessoas grandes, naturalmente. ~ Cadé o menino que veio de Cam- | bacard? — Que negécio tém comigo? resmun- gou o pequeno alarmado. Parece uma procissio. A — Parece um meeting, disse uma ri que pulow da beira do rio. — Parece um teatro, cantou um pardal. Raimundo pés-se air: — Que passarinho besta! Ele pensa que teatro é gente. Teatro é casa. — Estou falando nos sujeitos que estio dentro do teatro, pipilou o pardal. — Bem, isso é outra cantiga, concor- dou Raimundo. = 28 = z } { : H+ ba! — CADE 0 MENINO que veio de Cam- bacard? gritava o povaréu. — Essa tropa nio sabe geografia, disse Raimundo, Cambacar& nio existe. — E por que é que nao existe? pergun- tou ara. — Nao existe nao, sinha Ra. Foi um. nome que eu inventei, — Pois faz de conta que existe, ensinou abicha, Sempre existiu. —Asenhora tem certeza? — Naturalmente. — Entao existe. Ara fechou o olho preto, abriu o azul e foi descansar numa poga de Sgua. — Cadé o menino que veio de Cam- bacard? ag T i i { — Estou aqui, pessoal, bradou Rai- mundo. Que é que hi? rio se fechou de repente e a multi- dio passou por ele num instante. Depois a5 margens se afastaram, a 4gua tornon aaparecer, fp — Que rio interessante! exclamou Rai- mundo. Deve ter um maquinismo por dentro. Rap — Por que foi que yoce fagiu de nds? perguntou o rapazinho que tinha falado sobre a Caralampia. — Espere af. Eu j4 digo. Como € o seu nome? diel = baeeBcn — Que nome engracado! Pirenco! Nao hA ninguém com esse nome. — Eu sou Pirenco, replicou o outro, — Pois sim. Nao discutimos. Vamos a0 caso do rio, Tem algum maquinismo por dentro? — Nio tem maquinismo nenhum, © disse uma garota de tiinica amarela. To- dos 05 rios so assim, ; 32 tet ete eee EEE eT? — Claro! concordow Pirenco. Essa é a Talima. — Prazer em conhecé-Ia, Talima. Voce € bonita. —E boa, interrompeu um menino sar- dento. Meio desparafusada, mas um co- ragdozinho de agiicar. Aquela éa Sira. — O tronco me falou em voces todos. Como vai, Sira? — Por que foi que vocé fugiu da gente? Raimundo ficou acanhado, as orelhas pegando fogo, - Sei la! Burrice. Julguei que estives- sem trocando de mim. Fu nio tinha obri- gagio de conhecer a Caralampia. Quem é a Caralimpia? — Onde andaré ela? inquiriu o sardento. — Sumiu-se, explicou Talima. Foi uma menina que virou princesa. — Caso triste, gemeu uma criatura mitida,de doispalmos. Quandopensoque pode ter acontecido alguma desgraca 33 Ht oe TALIMA BAIXOU-SE e consolou o anio: —Calea boca, nanico. Nao ha desgraca. — Imaginem que ela encontrou o es pinheiro-bravo e espetou os dedos. — Encontrou nada! — Pode ter crescido e ido morar em Cambacars. — Nio foi no, informou Raimundo, Nao vi lé ninguém destas bandas. Como éa figura dela? — £ uma menina pélida, alta e magra. — Princesa? — E. Sempre teve jeito de princesa, Agora virou princesa e levou sumico. — Que infelicidade! choramigou o ano. — Vamos procurar a Caralimpia, con- vidou Talima, Deixe de choradeira, nanico. 35 Bt tT } t — J deixei, murmurou 0 andozinho enxugando os olhos. Safram todos, gritando, pedindo in- formagées a pause bichos. O sardento ia devagar, distrafdo. Puxou Raimundo por sum braco — Eu tenho um projeto. — Estou receando que anoiteca, excla- mou Raimundo, Se a noite pegar a gen- te aqui no campo... Era melhor entrar em casa e deixar a Caralampia para amanha. — O meu projeto é curioso, insistiu 0 sardento, mas parece que este povo nao me compreende. — £ sempre assim, disse Raimundo. Faltard muito para o sol se por? 36 ores >< © ANAOZINHO BaTEU naperna dele: — Nés nos esquecemos de perguntar como € que vocé se chamaa. — Raimundo. Sou muito conhecido. Até 05 troncos, as laranjeiras e os autom- veis me conhecem, — Raimundo éum nome feio, atalhou Pirenco, — Muda-se, apinou o anio. — Em Cambacaré eu me chamava Rai- mundo. Era o meu nome. — Isso no tem importancia, decidiu Talima. Fica sendo Pirundo, irundo nao quero, —Entio é Mundéu. — Também nio presta. Mundéuéuma geringonca de pegar bicho. 3f La —Pois fica Raimundo mesmo. — Estd direito. Eu queria saber como a gente se arranja de noite, Que noite? — A noite, a escuridao, isso que ver quando o sol se deita. — Besteiral exclamou o anio. Uma pessoa taluda afirmando que o sol se dei- ta! Quem jé vit sol se deitar? — Essa coisa que chega quando a terra vira, emendou Raimundo, A noite, perce bem? Quandoa terra vira para o outro lado. — Ele vem cheio de fantasias, asseve rou Talima. Escute, Fringo. Ele cuida que a terra vira 39 = FRINGO, UM MENINO PRETO, estirou o beico e bocejou: — Ihusées. — Qual nada! Vira, Em Cambacaré ninguém ignora isto. V4 la e pergunte. ‘Vira para um lado — tudo fica no claro, a gente, as Arvores, as ras, 0s pardais, os rios eas aranhas. Vira para o outro lado — e nio se vé nada, é aquele pretume. Natu- ral. Todos os dias se d4. — E engano, interrompeu Fringo. — Nio hd noite? — HA 0 que vocé esta vendo. — Nao escurece,o sol no muda de lugar. — Nada disso. — Est bom. Preciso consertar 0 meu estudo de geografia. 41 I + i i i Continuaram a marcha, andaram mui- to,enenhumanoticiada Caralampia. O sol permanecia no mesmo ponto, no meio do céu, Nem manha nem tarde. Uma tempe- rarura amena, invariivel. — Deve haver um maquinismo de re~ Jégio 14 por cima, calculou Raimundo. ‘Vio ver que ele perdeu a corda e parou. — Quer ouvir o meu projeto? interro- gouo sardento. — Vamos li, acedeu Raimundo. Mas antes me tire uma diivida. Vocés nao des- cansam munca? — Descansamos, explicou o outro. Quan- do a gente esta fatigada, deita-se e fecha um olho. — 0 olho preto ou oazul? — Isso é conforme, Fecha-se um olho. © outro fica aberto, vendo tudo. 42 } bas — POIS EU ACHO que esta chegando a hora de voltar e descansar. — Voltar para onde? — Voltar para a beira do rio, entrar em casa, dormir. — Nao vale a pena. Se quer ver o rio, é tocar para a frente, O rio das Sete Ca- becas faz muitas curvas. Adiante apare- ce uma delas. Aqui nés nunca voltamos. Vou contar o meu projeto. —£ bom. Conte. Mas andando 3 toa, sem destino, como é que vocés entram emaasa? — Entrar em coisa nenhuma! A gente se deita no chao. —Macio, realmente, E as casas? — Nao entendo. 43 ere = — Pois vou chamar o Pirenco. Venha c4, seu Pirenco, Onde estio as casas? Talima encolheu os ombros: — Fle veio de Cambacari cheio de ideias extravagantes. Perguntas insuportiveis, acrescen- ‘tou Sira. Raimundo obseryou os quatro cantos, no viu nenhuma construgio, — Est bem, no teimamos. Voces dor- mem no mato, como bichos. — Descansamos a sombra dessas rodas que giram, disse Fringo. ~ Debaixo dos discos de vitrolas. Sim senhor, bonitas casas. E quando chove? — Quando chove? — Sim. Quando vem a Agua lé de cima, voces nao se ensopam? — Nao acontece isso. Raimundo abriu a boca € deu uma pancada na testa: — Que lugar! Nao faz calor nem frio, nao hé noite, ndo chove, os paus conver- sam. Isto é um fim de mundo. 45 | >< — QUER OUVIR o meu projeto? segre- dou o menino sardento. — Ah! sim, Ia-me esquecendo. Acabe depressa. — Eu vou principiar. Olhe a minha cara. Esta cheia de manchas, nio est? — Para dizer a verdade, esté. —E feia demais assim? — Nio é muito bonita nio. — Também acho, Nem feianem bonita. — V4 la, Nem feia nem bonita. £ uma cara, — E. Uma cara assim assim. Tenho visto nas pocas de Agua. O meu projeto é este: podiamos obrigar toda a gente a ter manchas no rosto. Nao ficava bom? — Para qué? 47 — Ficava mais certo, ficava tudo igual. Raimundo parou sob um disco de vitro- Ia,recordowos garotos quemangavam dele. 48 a A CIGARRA LA DE CIMA interrompeu a cantiga, estirou a cabecinha. Era uma cigarta gorda e tinha um olho preto, outro azul. — Qual é a sua opinido? perguntou osardento, Raimundo hesitou um minuto: — Nao sei nao. Eles bolem com vocé or causa de sua cara pintada? — Nao bolem. Sao muito boas pessoas, Mas se tivessem manchas no rosto, se- riam melhores. A aranha vermelha deu um balanco no fio e chegou ao disco da vitrola: — Que histéria ¢ aquela? — Palavreado 8 toa, explicou a dona da casa. + 49 f Hee eee — A toa nada! bradou o sardento. Ci- garta e aranha no tém voto. Cada maca- co no seu galho. Isto ¢ assunto que inte- ressa exclusivamente 4os meninos. — Eu aqui represento a indiistria de tecidos, replicou a aranha arregalando 0 olho preto e cerrando 0 azul. eu sou artista, acrescentou a cigar- ra. Palavreado 3 toa. Raimundo esfregou as_mios, cons- trangido, olhou os discos e as teias colori- das que se agitavam. — Parece que elas tém direito de opi- nar, Sao importantes, s4o umas bichonas. — Direito de dizer besteiras! resmun- gouo sardento. — Nio senhor. A cigarra tern taro. Pa- lavreado 3 toa. — Entio vocé acha 0 meu projeto ruim? — Para falar com franqueza, eu acho. Nio presta no. Como € que voce vai pin- tar esses meninos todos? — Ficava mais certo. 50> ptt — Ficava nadal Eles nao deixam. — Era bom que fosse tudo igual. — Nio senhor, que a gente nao é rapa- dura. Eles n3o gostam de voc8? Gostam. ‘Nao gostam doanéo, de Fringo? Est af. Em Cambacaré nao ¢ assim: aborrecem-me por causa da rinha cabega pelada e dos meus olhos. Tinha graga que 0 ando qui- sesse reduzir os outros ao tamanho dele. Como haviade ser? . — Eu sei la! rosnou o sardento amua- do, © caso do ano é diferente, Parece que ninguém me entende. Vamos procurar os outros? 52 vee pee Het am DEIXARAM A ARTISTA e a represen- tante da indiistria dos tecidos, andaram cinquenta passos e foram encontrar os meninos brincando na grama verde, fa- zendo um barulha desesperado. — Isto é agradavel, murmurou Rai- mundo. Tudo alegre, cheio de satide... A propésito, ninguém adoece em Tatipi- run, no ¢ verdade? — Adoece como? — Julgo que voces nio vio ao den- tista, no sentem dor de barriga, no tém sarampo. — Nada disso. — Nio envelhecem. Sao sempre me- ninos. —Decerto, ~ 53 — Bu jé presumia. Pois 6, meu caro. Boa terra, Mas se todos fossem como o aniiozi- hoe tivessem sardas,a vida seria enjoada O sardento pigarreou: — E dificil a gente se entender. As criangas dancavam e cantavam, en- feitadas de flores, agitando palmas. — Viva a princesa Caralimpial grita- vam. Viva a princesa Caralimpia, que le- vou sumigoe apareceu de repente. Caralmpia estava no meio do bando, vestida numa tuinica azulada cor das nu- vvens do céu, coroada de rosas, um broche de vaga-lume no peito, pulseiras de co- bras de coral. — Credo em cruz! gemeu Raimundo assombrado. Tire essa bicharia de cima do corpo, menina. {sso morde. © vaga-lume tremelicou, brilhante de indignagio: —Ecomigo? —Nio senhor, é conosco, informaram as cobras. Aquilo é um selvagem. Na ter- ra dele as coisas vivas mordem. o4 : i —— et — Viva a Caralimpia! repetia a multi dio. Viva a princesa Caralimpia! — Ondeja se viucobraservirdeenfeite? suspirava Raimundo. Que despropésito! — Deixe disso, criatura, aconselhou Fringo, 0 menino preto. Vocé se espanta de tudo. Venha falar com a Caralampia. — Eu sei Id falar com princesa! excla- mou Raimundo encabulado. — Ela € princesa de mentira, expli- cou Talima. E princesa porque tem jeito de princesa, Veja, Caralimpia. Este € 0 Pi- rundo, que veio de Cambacard. —Pirundo nio. Ficouestabelecido que eu me chamo Raimundo mesmo. — F, ficou estabelecido que ele se cha~ ma Raimundo mesmo, — Aproxime-se, convidou Caralampia. 55 Ee + t Dezessete © HOSPEDE CHEGOU-sE a ela, des- confiado, espiando as cobrinhas com 0 tabo do olho. Curvou-se num salamale- que exagerado: — Como vai vossa princeséncia? — Princeséncia é tolice, declarou Pi- renco, — Tolice ¢ amarrar cobras nos bragos, replicou Raimundo. Onde jé se viu seme- Ihante disparate? — Acabem com isso, ordenou Cara- lampia. Vamos deixar de encrenca. Por que é que n3o pode haver princeséncia? Isso é uma arenga besta, Pirenco. Raimundo bateu palmas: — Apoiado. Se ha exceléncia, ha princeséncia também. Esta certo. Sr | tt EEE — Claro! concordou Talima. Se h4 Rai- mundo e Pirenco, ha Pirundo também, Pirundo esta certo, — Nao senhora. Pirundo esté errado. — Pois esta, concedeu Talima. — Est mesmo, Para que dizer que no est4? triunfou Raimundo, Entdo voc’ é princesa, heim? Como foi que voc® virou princesa? — Virando, respondeu Caralampia. A gente vira e desvira, — Logo vi, murmurou Raimundo. Pois é. Uma terra muito bonita a sua, princesa Ca- ralimpia Estou com vontade de me mudar para aqui. Se eu vier, trago o meu gato. Eum gato engragado, diferente de vocés, com dois olhos verdes. £ medroso, tem medo de rato. — Como ¢ que ele se chama? pergun- towa princesa, — Nido tem nome nio. Mas eu vou bo- tar um nome nele. — Bote Pirundo, sugeriu Talima. — Boto nada! Vou procurar um nome bonito na geografia. A propésito, aque- | 60 = le rio que fecha ¢ mesmo o rio das Sete Cabecas? — Sem ditvida, informou Sira, — Por que é que ele se chama rio das Sete Cabecas? — Porque se chama. Sempre se cha- mou assim. — Muito obrigado. Eu podia botar esse nome no meu gato. Mas ele 6 tem uma cabeca. — Bobagem! exclamou Pirenco. Gato das Sete Cabecas! Quem jd viu isso? Bote Tatipirun. — Tatipiran é bonito, murmurou a princesa. — Pois fica sendo Tatipirun. Quando eu vier, trago Tatipirun. Ele vai estranhar e miar no principio, depois se acostuma. Vamos brincar de bandido? — Aqui ninguém conhece esse brin- quedo nio, respondeu Sira. Vamos corer, saltar, danear. — Isso € cacete. —Pois vamos fazer o anao virar principe. 61 — Nao dou para isso nio, protestou o aniozinho. E melhor conversar com 0s bichos. Vamos procurar um bicho que saiba hist6rias compridas e bonitas. 62 Derive PARTIRAM. CAMINHARAM BEM meia légua e encontraram uma guariba cabe- Tuda que andava com as juntas perras, es- corada num cajado, éculos no focinho, a cabeca pesada balangando. Raimundo avizinhou-se dela, curioso: — Como é, sinha Guariba? A senhora, com essa cara, deve conhecer historia an- tiga. Espiche uns casos da sua mocidade. — Eu nao tive isso nao, meu filho. ‘Sempre fui assim. — Assim coroca e reumitica? estra- nhou Raimundo. — Assim como vocés esto vendo. — Foi nada! A senhora antigamente era aprumada e vistosa, Sapeque ai umas guerras do Carlos Magno. 63 = — Eu sei la! Estou esquecida. Sou uma guariba paleolitica. — Paleo qué? — Litica. A princesa Caralimpia arrepiou-se: — Que barbaridade! Ela est maluca. — Nio esté no, atalhou Raimundo. Meu tio diz essas trapalhadas. £ um ho- mem que estudou muito, andou na arca de Noée tem éculos. Dirgitinho a guariba. E do tempo dela e usa palavrdes dificeis. — Traga também esse quando se mu- dar para aqui, lembrou Talima — Ele nao vem nio. E nao vale a pena. E-um sujeito ranzinza e paleo como? — Litico, respondeu a guariba. — Isso mesmo. Nao vem nao. Ele se ‘enjoa de meninos, s6 gosta de livros. Um tipo sabido como nunca se viu. — Nao serve, decidiu Talima. Tem a pa- lavra, sinha Guariba. Conte uma hist6ria. 64 a as a — BU CONTO, balbuciou o bicho acoco- rando-se. Foiumdiaum meninoqueficou pequeno, pequeno, até virar passarinho, Ficou mais pequeno e virou aranha. De- pois virou mosquito e saiu voando, voan- do, voando, voando... — E depois? perguntou Sira. A guariba velha balangava a cabeca tremendo e repetia: —Voando, voando, voando... Fringo impacientou-se: — Que amolaco! Ela pegou no sono. Tinha pegado mesmo. E falava dor- mindo, numa gemedeira: —Voando, voando, voando... — Vamos embora, pessoal, convidou Sira. Ela no acaba hoje. >65: O bicho comesou a chorar: — Sou uma guariba paleo... — JA sabemos, interrompeu Caralim- pia, Toca para frente, povo. Que significa- r&aquele nome encrencado? — Vou perguntar a meu tio, prometeu Raimundo. Quando eu voltar aqui, expli- coa vocés. 266: ye A GUARIBA PALEOLITICA ficou tiritan- do, acocorada, a gemer. — Dorminhocal rosnou Sira, Que te- tia acontecido ao menino que virou mosquito? — Parece que tornou a virar menino, disse Fringo. — Nio dé certo, gritou o aniozinho. E melhor continuar mosquito. — Vamos consnltar a guariba? — Nao convém, interveio a princesa Caralimpia. Ela perdeu a bola. Voando, voando.,. Nunca vi animal t3o idiota. — Nio senhora, protestou Raimundo, E.um bicho sabido. Meu tio é aquilo mes- mo, sabido que faz medo. Mas nio fala direito. Resmunga. & engancha-se nas 67 — perguntas mais fceis. A gente quer saber uma coisa, e ele se sai com umas compri- dezas, que dio sono. Vai resmungando, resmungando, e muda no fim, acaba di- zendo exatamente 0 contrario do que dis se no principio. — Isso ¢ insuportavel, bradou Pirenco. Nao tolero conversa fiada, panos mornos. — Nem eu, concordou Talima. Pio pio, queijo queijo. i — Preciso voltar e estudar a minha li- cao de geografia, suspirou Raimundo. — Demore um pouco, pediu Talima. Va- ‘mos ouvir a Caralimpia, Por onde andou voc’ quando esteve perdida, Caralampia? ‘A Caralmpia comecou uma histéria sem pé nem cabeca: — Andei numa terra diferente das ou tras, uma terra onde as drvores crescem com as folhas para baixo e as raizes para ‘cima, As aranhas sio do tamanho de gen- te, eas pessoas do tamanho das aranhas. — Quem manda Id? Sao as aranhas ou a gente? perguntou Raimundo. 68 ee — Nao me interrompa, respondeu a Caralampia. Os guris que eu vi tém duas cabegas, cada uma com quatro olhos, dois. na frente e dois atras. — Que feiura! exclamou Pirenco. —Nio senhor, sio muito bonitos. Tém uma boca no peito, cinco bracos e uma perna sé. — Eimpossivel, atalhou Fringo. Assim eles ndo caminham. Sé se for com muleta. — Que ignorancia! tornou Caralim- pia. Caminham perfeitamente sem mu- leta, caminham assim, olhe, assim. Pés-se a saltar num pé. — Para que duas pernas? A gente po- dia viver muito bem com uma perna s6. ‘Tentaram andar com um pé, mas can- saram logo e sentaram-se na grama, LO vininc | — PRECISO VOLTAR, murmurou Rai- mundo. ‘Oandozinho chegou-sea lee soprou-lhe a0 ouvido: — Tudo aquilo é mentira. Esta Cara~ lampia mentel... Sira agastou-se: — Mente nada! Por que ¢ que nio existem pessoas diferentes de nds? Se ha criaturas com duas pernas e uma cabe- @@, pode haver outras com duas cabecas e uma perna. Este anio é burro, — Esto bulindo comigo, choramigou © andorinho. Bolem comigo porque eu sou mitido. A princesa Caralampia puxou-o por um brago, deitou-o ao colo e embalou-o: i? — Nao chore, nanico. Na terra que eu { visitei ninguém chora, apesar de todos te- rem oito olhos, quatro azuis e quatro pre- tos. As drvores tém as rafzes para cima, as folhas para baixo e do frutos no chao. Os frutos sio enormes, as pessoas so como asaranhas. } — Onde fica essa terra, Caralimpia? perguntou o sardento. =" Matto lenge, no Fido! mundo, respondeu a princesa. A gente chega 14 voando. — Como o mosquito da guariba, inter~ rompeu o anao. Desconfio disso. Gente ‘nado voa. — Ora nio voa! exclamou Raimundo. Em Cambacard os homens voam. — Voam de verdade ou de mentira? t+ inquiriu Talima. — Voam de verdade, Antigamente nao ‘voavam, mas hoje andam pelas nuvens em aeroplanos, uns trocos de metal que fazem zum... Certamente a Caraldmpia viajou num deles. ie, — Nio foi nao, disse Caralampia. En- trei num automével. — Os automéveis aqui andam pelos ares, eu sei, confirmou Raimundo, — Pois é, Entrei, mexi numa alavanca, © automével subiu, subiu, passou a lua, 0 sole as estrelas. — Echegowa terra dos meninos duma pernas6, grunhiu o andozinho. Nao creio. — Coitado, murmurou Talima. Esse ano é um infeliz. Nao faga caso, Pirundo, — A senhora me troca sempre o nome. Bu jé the disse um milho de vezes que ‘me chamo Raimundo. 13 Bes Vintee Dois — 1880 MESMo. Fique com a gente. Aqui é tao born... — Nao posso, gemeu Raimundo. Eu queria ficar com vocés, mas preciso estu- dara minha ligio de geografia. —E necessério? — Sei ld! Dizem que é necessdrio. Pa- rece que € necessério, Enfim... Nao sei. Ai Raimundo entristeceu e enxugou 0s olhos: — E uma obrigagdo. Vou-me embora. Vou com muita saudade, mas vou. Te- nho saudade de vocés todos, as pessoas melhores que j4 encontrei. Vou-me embora. — Volte para viver conosco, pediu Caralimpia. 15 — E, pode ser. Se acertar o caminho, eu volto. E tragoo meu gato para vocés verem. Nao deixe de ser princesa nao, Caralam- pia. Vocé fica bonita vestida de princesa. ‘Quando eu estiver na minha terra, hei de me lembrar da princesa Caralampia, que tem um broche de vaga-lume e pulseiras de cobras de coral. E direi aos outros meni- nos que em Tatipirun as cobras nao mor- dem e servem para enfeitar os bragos das princesas, Vao pensar que é mentira, zom- bardio dos meus olhos e da minha cabeca pelada. Eu entio ensinarei a todos o cami nho de Tatipirun, direi que aqui as ladei- ras se abaixam e os rios se fecham para a gente passar. Raimundo afastou-se lento ¢ procu- rou orientar-se, Os outros 0 seguiram de Tonge, calados. Andaram até o rio. Lé es- tavam 3 margem, perto do tronco, os sa- patos e a roupa. O garoto escondeu-se no mato, vestiu-se de novo, tornou a pendu- rar no ramo a tiinica azul que a aranha Ihe tinha dado. (6 — Devolugio? perguntou o bichinho. — £,d. Aranha. Muito obrigado, nio preciso mais dela. — Quer dizer que volta para Camba- card, nio é coaxou a ri na beira da poca. — Volto, sim senhora. Volto com pena, mas volto. — Faz tolice, exclamou o tronco, Onde vai achar companheiros como esses que hi por af? — Nio acho nio, seu Tronco. Sei per~ feitamente que no acho. Mas tenho obri- gages, entende? Preciso estudaraminha ligdo de geografia. Adeus. fl s ATRAVESSOU © RIO com um passo. As ctiangas peladas foram encontré-lo. Cami- nharam algum tempo e chegaram 3 serra de Taquaritu. Af Raimundo se despediu. — Adeus, meus amigos. Lembrem-se de mim uma ou outra vez, quando no tiverem brinquedos, quando ouvirem as conversas das cigarras com as aranhas. Fiquei gostando muito delas, fiquei gos- tando de voces todos. Talvez eu nio volte. Vou ensinar o caminho aos outros, falarei em tudo isto, na serra de Taquaritu, no tio das Sete Cabegas, nas laranjeiras, nos ‘troncos, nas ras, nos pardais e na guari- ba velha, pobrezinha, que nao se lembra das coisas e fica repetindo um pedaco de histéria. Quero bem a voces. Vou ensinar 279+ © caminho de Tatipirun aos meninos da minha terra, mas talvez eu mesmo me perca e n3o acerte mais o caminho. Nio tornarei a ver a serra que se baixa, 0 rio. que se fecha para a gente passar, as arvo- res que oferecem frutos aos meninos, as aranhas vermelhas que tecem essas tt nicas bonitas. N3o voltarei. Mas pensa- rei em voc8s todos, no Pirenco e no Frin- go, no andozinho e no sardento, na Sira, na Talima, na Caralampia. Vocé me tro- ca sempre o nome, Talima. E eu quero bem a vocé, ando até com vontade de vi rar Pirundo, para no teimarmos se ainda nos virmos. Lembre-se do Pirundo, Tali- ma. Longe daqui, fecharei os olhos e ve- rei a coroa de rosas na cabeca de Caralim- pia, o broche de vaga-lume, as pulseiras de cobras de coral. Adeus, meus amigos. ‘Que fim teré levado 0 menino da guari- ba? Quando um mosquito zumbir per- to de mim, pensarei nele. Pode ser que esteja zumbindo o menino que a guari- ba deixou voando. Pobre da guariba. Est 82 + : balangando a cabeca, falando 36, ¢ nao acorda. Eu volto um dia, venho conver- sar com ola, ouvir o resto da histéria do menino que virou mosquito. E hei de en- contrar a Caralémpia com as mesmas ro- sasna cabeca,o vaga-lume aceso no peito, as cobras de coral nos bracos. Vou prestar atengao ao caminho para nao me perder quando voltar. E trago uns meninos co- migo. Os meninos melhores que eu co- nhecer virio comigo. Se eles n3o quise- rem vir, trago 0 meu gato, que € manso e ha de gostar de vocés. Adeus, seu Fri go. Adeus, seu Pirenco, Sira, Caralim- pia, todos, adeus. Nao é preciso que me acompanhem. Muito obrigado, nao se incomodem, Eu acerto 0 caminho. Adeus, lembre-se do Pirundo, Talima. Raimundo comecou a descer a ser- ra de Taquaritu. A ladeira se aplanava. E quando ele passava, tornava a inclinar-se. Caminhou muito, olhou para tris e nado enxergou os meninos que tinham fica- do li em cima, 1a tio distrafdo, com tan- 83 ta pena, que nao viu a laranjeira no meio da estrada. A laranjeira se afastou, deixou a passagem livre e guardou siléncio para no interromper os pensamentos dele. ‘Agora Raimundo estava no morro co- nhecido, perto da casa. Foi-se chegan- do, muito devagar. Atravessou o quintal, atravessou o jardim e pisou na calcada. AAs cigarras chiavam entre as folhas das drvores. E as criancas que embirra- vam com ele brineavam na rua. = FILM: =

También podría gustarte