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Forcado, pelos aquilo que ni © palco reis, mi wr tudo, se mostra com uma certa importincia, ele s6 admite sobre les acontecimentos que deve contar, a escu do exército e toda essa ros, gener famosos cujos talentos ou erros, empregos ou intrigas pro cidade ou a prosperidade do Estado. Mas 0 burgués em sua cic: Ponés em seu casebre, 0 fidalgo em seu castelo, o francés, enfim, em meio a suas ocupagdes, seus prazeres, no seio de sua familia ou junto a seus filhos, eis af o que ele nao pode nos dar como representagio. Nio é Lucien Febvre que se exprime assim sobre as insuficiéncias do his- toriados, mas, sim, Legrand dAussy, contemporineo quase obscuro do Ilu- minismo, na adverténcia a0 leitor de sua Histoire de la vie privée des Francais (trés volumes), publicada em 1782. Essas poucas linhas assinalam muito bem para o campo abandonado pela histéria acontecimental, do qual a pesqui: sa histérica retomou posse recentemente. Assistimos, de fato, desde que a Escola dos Annales se constituit, nao a0 nasci ‘mento da antropologia histérica. jento, mas antes ao renasci Essa preocupagao é tao antiga quanto o espirito histérico. Nés esquecemos completamente que Herédoto, o pai da Historia, na “investigagio” que ‘empreendia “com a fi idade de nao permitir que o tempo abolisse os traba- Thos dos homens’, experimentava a necessidade de descrever em detalhes os costumes dos lidios, dos persas, dos massagetas ou dos egipcios, para expli- car 0 conflito entre os gregos e os birbaros. O que o historiador retém do Passado corresponde de modo estreito aquilo que ele deseja compreender ou justificar na sociedade que o rodeia. O estudo das formas da vida cotidia- nna fez parte do pensamento histsrico por tanto tempo que este teve como Principal preocupagio retrasar o itinerario e os progressos da civilizagio, Tal Pensamento hist6rico se tornou supérfluo a partir do momento em que os Estados-nacio havia pouco constitufdos engajaram a meméria na {arefa de justificar pelo passado sua dominacio sobre este ou aquele territ6- lo e sua maneira de organizar a sociedade. © POSITIVISMO E UMA HISTORIA 00 ACONTECIMENTO Na verdade, duas escolas hist6ricas coexistem na Franga até o inicio da Ter- ceira Republica: uma mais narrativa, préxima das elites dirigentes, do debate politico, herdeira dos cronistas, atenta a reconstituigio da génese das ins- tituisdes ou dos conflitos; e outra mais analitica, herdeira da filosofia ilu- minista, atenta & descricio dos costumes e comportamentos sociais. Se, As vésperas de 1914, a primeira dessas escolas praticamente condenou a outra a seguir as sendas obscuras do ensaismo e do amadorismo, foi porque ela chegara, com muito mais sucesso do que sua concorrente, a conquistar um status cientifico. O florescimento das ciéncias sociais mais jovens, como a sociologia, incitava a historia a redefinir sua identidade a partir de um terri {6rio mais limitado: a se encerrar, portanto, na esfera do estatal e do politi €0 O ideal da ciéncia que dominava os meios intelectuais a encorajava a se dotar de uma metodologia rigorosa fundada no modelo das ciéncias expeti- ‘mentais; ora, o elemento de base da realidade observivel, o equivalente da célula para 0 bidlogo ou do tomo para o fisico, era para ela o fato histéti isto é, 0 acontecimento que irrompe na esfera publica. Mas essa inflexio positivista nao & completamente independente da pressio tica que se exerce, entao, sobre o saber hist6rico. O positivismo ambien- Wa 0 trabalho sobre as fontes, percebido como confrontagio neces- 200 4 anTROPOLOGIA HIsrORICA siria com os dados experimentais do saber hist6rico, ainda mais porque 0 Estado fazia grandes esfor piiblicos. Para obedecer 20s critérios de cientificidade que atribuiu a si 1s para coletar e organizar fundos de arquivos ‘ma, a pesquisa histérica tende a confundir a meméria social com a meméria nacional ‘que nio aparece na cena publica pode ser ignorado pelo b somente pelo fato de nao corresponder a uma agio consciente e voluntaria, ‘mas também porque, em principio, é considerado como algo que escapa a0 movimento histérico. a meméria nacional com a meméria do Estado. Todo fendm 0.CASO MICHELET, NO SECULO XIX Contudo, nao se deve simplificar excessivamente o itinersrio historiografico do século x1x, muito menos negligenciara in: ef romanticn jase as grandes empreitadas historias, cujo pice é 2 obra de Michelet. Seu pro- de “essure das formas e peripécias do exercicio do poder, as condigdes de existéncia dos obscuros. Quando mostra os efeitos de um modo alimentar, como o con- sumo do café, sobre o comportamento das elites na sociedade francesa do século xvi1t ou quando descreve a atmosfera tragica do século de Luts x1v, dominado pelas crises alimentares e pela miséria popular, ele o faz por um viés essencialmente etaolégico na abordagem e no tratamento da jiragao romantis jeto de “ressurreicao integral do pasado” o leva a descrever, para realidade histérica. Seria de espantar que ele tenha sido re reivindicado, de outro lado, por Lucien Febvre como um mestre da histéria das sensibilidades e das mentalidades? A importancia que Michelet atribui a sua intuigao (as fontes seriam meras fornecedoras dos sintomas de uma rea- itado pela histdria pos lidade a ser reconstruida) e a seu poder de empatia para penetrar as manei- ras de ver e sentir de uma época ~ postura que seria do etnélogo ~ nio pode desagradar a uma corrente que intenciona fundamentar o saber histérico ‘num tratamento objetivo e cientifico da realidade. Mas antes de tudo por seu populismo quate mistico pelo papel essen cial que atribui na historia aos grandes movimentos coletivos parcialmente inconscientes por suatendinel a subestimar ato dos grandes «dain tituigdes, que Michelet se tornou inaceitavel para a escola positivista e, 20 contririo, seduziu os fundadores dos Annales tituigio do movimento demogréfico. Mas, visto que tais fontes registram dades brutos que nao implicam nenhum ponto de vista, nenhuma repre- Sentacio construida da realidade, elas convidam o historiador a reconstituir conjuntos ~ por exemplo, mediante um tratamento estatistico ~ que revel io a tendéncia e a lbgica de uma evolucio, Procedimento pode levar a uma reflexio antropolégica. Como 0 "go que w a distancia que pevcebe entre sua prépria cul de seu terreno de observagao — © reconstituir 0 rar de suas proprias categorias iedade estudada ~, também o histo- ‘iter parcelar, nio construido, dessas fontes brutas, ¢ isso para reencontrat, para além da realidade manifesta, os meca- inismos ea l6gica que explicam uma dada conjuntura — aquilo que se deno- ema ldgico riador pode tirar proveito do mina uma época ~ ou uma dada evolugdo. O mesmo procedimento pode se aplicar as fontes qualitativas ou literérias, na medida em que elas levam ao interesse sistemitico por aquilo que os discursos dominantes de uma socie- dade dissimulam ou negligenciam. Mare Bloch escreveu na introdugao de Os reis taumaturgos: “Temo que as pessoas 4s quais confiei minhas intengoes tenham me considerade vez, vitima de uma curiosidade bizarra e, sobretudo, bast sse curioso desvio seu, Foi assim que um amigo slés qualificou sua empreitada, Se Os reis taumaturgos continua a ser um ‘© exemplar para a antropologia histdrica,* isso se deve, mais do que a0 problema estudado, ira pela qual Mare Bloch o abordou, & sua arte do desvio para atingir diretamente um sistema de representacio sepultado. © PODER JAWAIS SE ENCONTRA EXATAMENTE ONDE ELE SE ANUNCIA ‘Nada de mais clissico e repetido do que o estudo das instituicoes mondrqui- as, francesa e inglesa. Mas os especialistas, inclusive os que se interessaram do absolutismo, pela realeza de direito divino, deixaram de lado em ger no término da sagragao ~ durante a qual © soberano exercia um poder curandeiro: vestigios rituais aos quais os pré- Prios testemunhos mais tard tribuem apenas um valor anedético mais 8 Mare Bloch, Let Rois th turgos: 0 cardter sobre poder régio, Franca e Inglaterra trad, Jl Paulo: Companhia das Letras, 1993] 304 A anTRoPOLOGIA WisrORICA ‘ou menos folelorico, Ora, essa bizarria, que permanece pratic: era industrial no cerimonial das monarquias francesa e ingle te as distingue da maioria das outras monarquias euro migica como sobrevive tag6es coletivas. tos aspectos’, observa Mare Bloch, “todo esse fo. lore nos diz mais sobre as monarquias do que qualquer tratado doutrinal” Assim se encontra tambi imagem da realeza, indicada a via que conduz do estudo do folclore a.uma verdadeira antropologia histdrica, Por muito tempo abandonado aos amantes do pitoresco ¢ do esoterismo, o folelore ¢ portador de sentido para o historiador, precisamente em razio de sua marginalidade. Sua insignificincia aparente no seio do jogo soci se investiu e ¢ preservado. E préprio do poder que ele jamais se encontre exatamente onde ele se anuncia: € por isso que a histéria das instituigaes di, frequentemente, a impressio de acumular desencontros. Seria absurdo, claro, querer demonstrar que a funcao essencial dos reis da Franga ou da | €2deum bruxo curandeiro. Mas o lembrete obstinado dessa funsio original ‘ou mitica no cerimonial prova que tal funsio continua a ter um sentido na €poca moderna: ela funda simbolicamente, e a0 mesmo tempo corporalmen- te, 0 cariter sagrado (portanto legitimo) do poder real que as in (0s juristas se contentamn em afirmar. ‘Tudo se passa como se cada sociedade tivesse necessidade de anu transparéncia para existir, de confundir as pistas tanto para si mesma como Para o mundo exterior. O antropélogo esté familiarizado, hi muito tempo, com esse prinefpio de opacidade que caracteriza toda realidade social. Ele sabe que € preciso sempre contornar o que uma sociedade declara sobre si ‘mesma a fim de compreendé-la, Os historiadores, ao contratio, sentem ain- dda mais dificuldade para se distanciar da mitologia oficial, pelo fato de terem, com frequéncia, contribuido para sua construcio e transmissio, Estudar a historia de um ritual técnica agricola como a charrua ow a pritica do alqueive, seguir a evolucao do consumo de carne ou do uso deste ou daquele conjunto de fortes (por exemplo, culinarias), esforgat-se por datar ou explicar a aparigio das priticas contraceptivas na Franga do Antigo Regime: nenhum desses assuntos que io pudessem ser da competéncia de outro setor da historia, quer a histéria das instituigdes, quer a histéria das técnicas, a hist6ria econdmica ou a his- térla demogréfica, A antropologia histérica, portanto, nao tem um dominio € indice de que um sentido importante nele ‘nculado 2 instituigg0 monarquica, a hist sursuieRe 305 demogrifica ¢ a inelasticidade da produgao agricola acarretam 0 cultivo generalizado das terras, o que aumenta, de modo extremo, os terrenos ut lizados para a semeadura e reduz os rebanhos. Queda brutal dos salirios e dos rendimentos dos pequenos agricultores, empobrecimento do regime alimentar da maioria, vio pari passu ‘A ALIMENTAGAO: FENOMENO CULTURAL E ECONOMICO ‘Um mecanismo simples — quase simples demais ~ submete o regime alimen- tar As “tesouras malthusianas’, isto é, as variagdes inversas do peso demogri- fico e dos recursos disponiveis. Mas, por meio de uma evolugio diretamente comandada pela flutuacao dos equilibrios econémicos e sociais, aparecem resistencias ou itinerdrios aberrantes: assim é 0 curioso itinerério do inilho trazido das Américas desde as primeiras viagens, acolhido com reticéncia pelo consumidor espanhol. Ele faz uma breve aparicio localizada na Franca, 0 passo que se difunde amplamente nos Béleis. E com o nome de “trigo turco” que ele reapareceri na Franca um século depois, para se inserir ne sistema agricola empobrecido do sudoeste e salvar a populacio de repetit vos perfodos de fome extrema. Assim, igualmente, é 0 trajeto da oliveira do sul para 0 norte no século xvi, implantando-se no Languedoc e na Proven- 5) proporcionando a alimentagio popular um substituto aprecisvel para as gorduras animais que desapareciam da mesa do pobre. Paradoxo da crono- loge e das trocas culturais: & no momento em que expulsam os marranos e os m os conversos, que os espanhéis adotam amplamente, como base da cozinha, 0 azeite de oliva, que foi, durante muito tempo, um signo da cultura dos infigis. "No todo’, escreve Mare Bloch num artigo da Encyclopédic Francaise, “a historia da alimentacio é como um apare- Iho de gravagio em que se inscrevem, com os atrasos devidos as resisténcias sicolégicas, todas as vicissitudes da economia” ‘Mesmo quando sofre a pressio da pentiria ou da fome, uma inovagio ali ‘mentar nao pode criar raizes caso no corresponda aos critérios de gosto da regido. Nao foram as regides da Franga nas quais 0 solo era mais adaptado jouriscos, em que persegu 14M. Bloch, “L'Alimentation de in Encyclopédie Frangatse. para isso que acolheram em primeiro lugar a cultura da batata, ‘mas, sim, as regides (Limousin e Auvergne) em que esse tubérc servir como substituto para 0 alimento bésico tradicional, isto é, a castanha. Dai a estranha permanéncia das preferéncias de gosto e das regionalizagces os habitos alimentares da Franga contemporinea, 0 que é revelado pelo mapa da utilizagio de gorduras e dos alimentos bisicos preparado a partir da pesquisa de Lucien Febvre: preferéncias em que se encontra o vestigio de migragoes vegetais, como a subida da oliveira rumo ao norte, de sistemas ageicolas antigos, como a manatengao do uso da banha de porco em certas regides do este que se transformaram em pastos e em produtoras de leite, ‘ou de fronteiras culturais, como a linha de demareagio entre o sul da regiso do Jura, consumidor de dleo, e 0 norte, consumidor de manteiga. exemplo, poderia A segregacio e a permanéncia dos hébitos alimentares, sua relativa insensi- bilidade as mutagbes do meio econdmico, seriam expliciveis apenas por um mecanismo de fidelidade is normas aprendidas? As preferéncias alimenta- res sio um dos mais importantes suportes da identidade cultural. Mas elas sio também produto da segregagio social. O interesse dos trabalhos recen- tes sobre a histéria da alimentagao langada pelos Annales, sobretuco aqueles ‘que se vinculam a uma pesquisa sobre a vida material, est em ter utilizado apenas fontes cujo contorno social estava claramente marcado: a introdu- so do café, do tabaco e das bebidas alcodlicas destiladas nao tem quase nenhum significado para o historiador caso ele nao disponha dos meios para determinar o impacto ou o périplo social desses novos produtos. ‘A ALIMENTACAO € UM INDICE DOMINANTE 00 NIVEL DE VIDA Nio somente os recursos slimentares disponiveis em tal estado da produgio agricola ¢ das trocas se repartem de maneita tio desigual quanto os outros recursos, de acordo com as clivagens sociais;além disso, pode-se afirmar que, até a primeira era industrial, com a alimentaglo constituindo um indice domi. nante do nivel de vids o gosto devia designar de modo ostentatrio a desigual- dade social, fosse pelo abuso (sinal de dominagio), fosse pela abstengio em relagio a certos produtos (sinal de dependéncia). Assim, o gosto pelos molhos € pelos pratos muito picantes ¢tipico da gastronomia aristocritica até 0 século suncuiere 309 ‘iimero de pessoas de baixa estatura, parece ligada ao progresso econdmico ¢ as melhorias das condiges de vida: o tamanho médio dos homens é niti- damente maior, desde o século x1x, na Franga do norte e do leste, isto é, na Franca mais desenvolvida. E ele também aumenta proporcionalmente 40s niveis soci ede instrusio. O regime alimentar da primeira infancia e da adolescéncia, bem como todos os elementos do modo de vida que um individuo conhece durante os anos de crescimento ~ inclusive sua educacio -, pode inibir ou estimu- lar seu desenvolvimento fisico. As correlagdes estatisticas confirmam facil mente uma evolugio conjunta da altura e do bem-estar,talvez, até mesmo, facilmente demais. A orientagio atual da biologia, que nega a influéncia do meio na transmissio dos caracteres hereditirios, é compativel com as expli- cagdes do historiador que responsabiliza 0 meio socioecondmico por todas. as mudangas no aspecto fisico das populagdes? UM ELO ENTRE A HISTORIA DAS ENFERMIDADES EAS CRISES SOCIOECONOMICAS? Os trabalhos recentes sobre a historia das enfermidades e das epidemias con- vidam a suspeitar das interpretagdes puramente biolégicas como interpre- tages estritamente socioecondmicas. Assim, a propésito dos fortes perio- dos de mortalidade na Europa pré-industrial, os historiadores-demografos (especialmente Meuvret,” Goubert* e Bachrel,” esse iltimo, aliés, prop6s tum ponto de vista bastante diferente) tornaram evidente uma relacio estrei- ta, nessas crises, entre a disparada dos pregos dos gros e a alta brutal da mortalidade. O préprio calendario dessa mortalidade, que conhece seus pri- ‘meiros impulsos durante os trés meses que precedem a nova colheita, subli- nha a relagdo de causa ¢ efeito entre o aumento dos pregos consecutivo a uma mi colheita, o esgotamento répido dos estoques que condena os mais 47, Jean Meuvret, “Récoltes et populations”, Population, Pati, WED, 1946. 38 Pierre Goubert, Beauvais ef le Beauvaise, Paris: SEVPRN, 1960, reditado com 0 tito Cont mille Provinciaux au xv sce. Pats: Flammarion, 1968, a9 _Ren¢ Bachrel, Une croissance: la Basse-Provence rurale, Pats: SEVPEN, 196%, 312 AantROPOLOGia misToRICA pobres i fome nos ultimos meses anteriores & safra eo aumento da mortal dade. Fstimulada pela fome, a mortalidade prossegue depois por c epidemias que se abatem sobre uma populasio enfraquecida, como teste- munham intimeros documentos e, a0 mesmo tempo, a curva des Sbites que sobe frequentemente, ngindo novos épices durante os meses do vero, Os fendmenos epidimicos que parecem ~ pelo menos, no que div es- peito a0 século xvit ~ integrar-se muito bem ao ritmo cielico das crises na Produsio de trigo s6 fariam, portanto, amplificar as catdstrofes socioscono- micas, O meio microbiano s6 se tornaria agressivo e mortifero a partis do momento em que a populacio, enfraquecida pela subalimentagso, perdes- fe toda a capacidade de resistencia, Claro, 0 primum movens desses erisee continua a ser os acasos do clima, mas a responsabilidad histéries cabe Sociedade que, por meio das contradigées e dos impasses de seu sistema econdmico, tece seu préprio destino biologico. Esse esquema pareceu tio seguro para o antropocentrismo do historiador que muitos desejaram estende-1o a todos os tipos de epidemias. Or, ds, por exemplo, que a peste de 1348 ~ semelhante a uma explos ocorreu numa Europa em plena sobrecarga demogrifica ¢, portanto, em site asio de grande vulnerabilidade biolégica;¢ igualmente verdade quc a peste 6 deixou definitivamente a Franca (a dima epidemia foi a trigica peste de Marselha, no ano de 1720) depois que o pais ficou livre dos episddios cilicos ste fome extrema (o iltimo deles veio apés o terrivel inverno de 1709). Mes uantas epidemias teriam se espalhado sem o auxilio de uma mi colheita? A Propésito da Franca, pode-se observar que, no momento em que parece ter vencido a peste, ela continua a softer os assaltos periédlicos da variola « da sama, no decorrer de todo o século xvin,e do célera, em pleno século v2, UMA HISTORIA NATURAL OAS ENFERMIDADES Mirko D. Grmek prop6s, hé pouco tempo, a hipétese de uma histSria auto- noma, puramente biolégica, das enfermidades infecciosas.” ‘Tal enfer dade que fora virulenta durante certo periodo da histéria teri ‘da, se retraido, nao porque os homens teriam chegado a vencé em segui- 30 Mirko D. Grmek, “Pre! 5c, 1969, naires d'une étude historique des maladies", Annales surGinene 313 de civilizagao teria imposto, de inicio, as classes dirigentes e, em seguida, Progressivamente, ao conjunto da sociedade, pelo canal dos modelos edu. cativos (em particular, os numerosos "tratados de civilidade pueril"), uma atitude de pudor e de autodisciplina relativos as fungdes fisiologicas, e de desconfianca em relagio aos contatos fisicos. A ocultacZo eo distanciamen- {0 entre os corpos seriam a tradugio, nos comportamentos individuais, da ‘© pressio organizadora, portanto modernizadora, que os Estados burocré- | tleos, recentemente constituidos, exercem sobre a sociedade; a separagio segundo as faixas etirias, 0 afastamento do convivio dos individuos com desvios, o enclausuramento dos pobres e dos loucos, 0 declinio das solida- riedades locais pertencem ac mesmo movimento global, difuso e ampla- ‘mente inconsciente, de remodelagemn do corpo social. Hoje algumas pesquisas remontam a um passado mais distante (isto é 20 periodo medieval) essa histéria complexa da socializagio do corpo: veja-se © exemplo de uma forma de contato fisico familiar como o despiolhamento, Fito de sociabilidade disseminado em todas as camadas sociais no sécilo x11 (como se pode ver em Montailiou), tornada estritamente popular no inicio do século xv1, sobrevivéncia inoportuna e desprezada em meios campone- ses durante o século xvtn; ou, 20 contritio, tal gesto feito com o braco para exprimir a resignacio ou o insulto, que figura com surpreendente constincia do século xist 20 século xx no repertério semioldgico do corpo. A pesquisa npreendida por Jacques Le Goff sobre a histéria dos gestos permitiria des- dat, por meio do exan tecnicas de usos e d flexio, de concomitancia, de resisténcia ou de imitagao que caracterizam a historia social do corpo. lo corpo, os mecanismos de persisténcia e de HISTORIA DOS COMPORTAMENTOS SociAIS Nenhum problema ilustra melhor a dificuldade para designar 4 antropolo- gia histérica um dominio e objetos especificos do que a histéria dos com- Portamentos sexuais. Nenhuma outra pesquisa tem tanto a esperar desse tipo de abordagem. Como inscrever a sexualidade no campo do historia 2 As fontes dlemogréticas e judiciérias nos fornecem um certo ntimero de referenciais a partir dos quais podemos reconstituir a dor? Como uma pri 316 A antROPoLoSIA HistORICA frolusio das priticassexuais: os registro sitematicos dos nascimentos, na Franga, nos registros parogu artir de meados do século xv1, permi- fom constrain) na escala de uma pardquia, de uma microrregiao ou cle uma Cidade, a curva dos nascimentosilegitimos e das concepoes pre nupciais ake ¢ final do Antigo Regime, e de acompanhar as flutuagSes desta pres as {ha sexualidade extraconjugal, Precisto, porém, muito relativa: Jean Les Flandrin* formulou ahipétese, na verdade dificilmente verificisel Portes. temunhos mais diretos do que os sutis distinguos" dos easuistas do scene vit, segundo a qual dois tipos de comportamentos sexuais teriam couxise tido nos tempos mais rigorosos do Antigo Regime: um comportamente conlugsl marcado pela proibisio das priticas contraceptivas e um compor- famento extraconjugal (antes ou fora do casamento) que lancava mao de contracepsio. As distingdes de casuistas eomo Sanchez, que atribuis maior Bravidade ao pecado de Onan ({sto 6, as priticas contraceptivas) quando cometido no casamento, teriam, implicitamente, incentivado esse dimor- fismo. Mesmo que admitamos entre parénteses a possibilidace de om ann, Portamento proprio & sexualidade extraconjugal, é claro que os registros de Rascimentos ilegitimos jamais foram tio fidveis quanto os dos nascimen- {os legitimos: abortos,infanticidios e, sobretudo, partos clandestines o ao focante 20s adilteros,falsas paternidades dissimulam, em cada Spoca, » Brande parte desses nascimentos, qualquer que fosse ograu de vigilincis a justisa ou da comunidade, Pesquisas como a de Jacques Depauw," feita sobre a cidade de Nantes com base no fundo das declaragdes de gravidez, permitem uma abordagem inais Precis do fenémeno ¢ autorizam uma andlise mais refinada éfto que Se assiste, na segunda metade do século xvi, a um impulso da sexuslidede SRtzconjugal, visivel nos cegistros paroquiais gracas a uma nitida elevagio ds taxa dos nascimentos ilegitimos; € preciso salientar as novas tendeénciee de tal ilegitimidade, que raduzem um novo clima afetivo e moral eases nace cimentos slo, cada vez menos, resultantes de casos amorosos ancilares ou de traception, mariage et relations amoureuses dans /Occident 0 numa argumentagso. [3-7.] ime et société & Nantes", Annales BSc, 1972, 28 Jacques Depauw, “Amour: surcuiens 317 ACONTRACEPCAO E UMA PRATICA ANTIGA Seria ilus6rio querer explicar toda mudansa nos comportamentos sexua Por uma modifieasao das mentalidades rligiosas. Tomemos, por exemp rentos malthusianos: Pi pe Ariés, em seu livro p 10 0s primeiros estudos minuciosos \didade legitima indicaram uma ruptura por vol iso Francesa, alguns historiadores nao hi fazer do birth control francés um produto da revolugdo. A diminuigao geral do sentimento religioso no final do século xvtt teria levado os casais « se lberarem das interdig6es impostas pela Igraja contra as priticas contracep. tvas. A Revolugio Francesa e, mais especialmente, a conscri¢fo para o set vvigo militar, a0 arrancar os jovens de sexo masculino do horizonte limitado de suas aldeias ou cidades, teriam contribuido amplamente para a difusio migicas, como o coitus interruptus, a mais desenvolvimento das pesquisas r campo da demografia historica nos a adimitir a difusio de praticas contraceptivas muito mais an 2s. Elas apareceram na bacia parisiense nas duas iltimas décadas do século Xvitt entre os camponeses, mas, sem diivida, desde meados do mesmo sécu- lo jf eram atestadas nas cidades. Louis Henry acreditou ter demonstrado ue alguns setores das classes dirigentes desempenharam, nesse dominio, um papel pioneiro: assim, a aristocracia™ (e algumas cartas de Madame de Sévigné a sua filha confirmam isso) ou a burguesia de Genebra passam a controlar os nascimentos desde a segunda metade do século xv1t.” Mas um estudo recente de Alfred Perrenoud™ acaba de demonstrat; no que diz es- Peito a Genebra, que o fendmeno, jé naquela época, se estendia A sociedade 31 Philippe Ariés, Histoire des populations franca 34 Lots Henry e Claude Lévy, "Dueset pairs de rs 1960. 33 L, Henry, Anclennes familles genevotses, Pas 34 Alfted Perrenoud, “Malthuslanisme et protest isme", Annales RSC, 1974. 320 AanTROPOLOGIA MISTORICA como um todo. Enfim, a evolugio da taxa de fecundidade legitima que se cobtém em algumas paréquias rurais do sudoeste da Franga parece indicar que uma contracepsio difusa j era ali praticada desde o século xvi ippe Aris sugeriu a ideia de que as interdicdes da Igreja teriam, por muito tempo, transformado a contracepgao em algo “impensivel rizando tai terdigdes, a populacao teria esquecido as técnicas ru fares que eram conhecidas e praticadas na Antiguidade. O reaparecimento das priticas representaria, portanto, uma mutagio cultural irreversivel. Ac que parece, até mesmo essa hip6tese deve ser questionada, Do final Média ao inicio do século xvt1, um certo nimero de obras 4 existéncia ¢ a grande difuusio de tais priticas, condenando-as. Por conse- guinte, nio é mais absurdo pensar — como algumas curvas demogrificas nos Incitam a fazer, notadamente no que diz respeito a Itilia, A Inglaterra ete. ~ gue a limitagio dos nascimentos teria podido desaparecer provisoriamente 20 final do século xvi, em algumas regides, ob o efeito da propaganda e da repressio religiosas, para ressurgir na segunda metade do século xv" momento em que a Igreja perdi Mas teria de fato a propria Igreja desempenhado um papel decisivo na mutagio dos comportamentos? Um documento interessante, ainda que tar dio, é a carta que Monsenhor Bouvier, bispo da cidade de Le Mans, em a0 Sagrado Tribunal Penitencisrio de Roma solicitando esclatecimentos sobre a posicdo da Igreja quanto ao controle da natalidade; tal missiva nos informa que, na diocese em que a maioria da populag3o havia se tornado malthusiana, 06 figis se declaravam chocados e surpreendidos por serem questionados, durante a confissio, sobre suas praticas contraceptivas. Nao fol a descristianizacio que favoreceu a difusio da contracep¢io, mas, sim, bem ao contrério, a adocio de um comportamento malthusiano que, em Inuitos casos, criow um problema de consciéncia e distanciou da Igreja algu- ‘mas camadas da populacio. ITERDITOS RELIGIOSOS PESAM POUCD SOBRE A OIFUSAO DA CONTRACEPCAO ‘As numerosas pesquisas feitas pelos demégrafos e pelos socidlogos sobre a introdugio do birth control em algumas populagées do Terceito Mundo demonstraram que as interdicoes religiosas contavam, nessa questo, muito ‘menos do que. estrutura familiar ou que as relagées afetivas ea comunicagio surcuitne 321 sem Estado’: No que diz respeito aos matriménios, as tinicas regras manife. tas sio as interdic6es canénicas: 0 estudo d cas da Igreja a partir dos fundos de arquivos das oficialidades (0 que jean Marie Gouesse,* para a Normandie, e eu, para o centro da Bacia Parisiense, ¢ igualmente outros realizaram desde alguns anos) revela um modo de classificagio que ndo esté sem relagio com aqueles que Claude Lévi-Strauss identificou em certas sociedades primitivas. A anilise das formas de alian 52, tal como eu mesmo realizei, por exemplo, no caso de uma paréquia da regio parisiense do século xviit na qual se mantinha uma taxa de consan- guinidade especialmente elevada, eviden: da mesma forma, para além das estratégias visando a preservar o patrimOnio, a manter a posicio social e até la, procedimentos de “reencadeamentos de aliangas” ~ os mesmos que foram descritos por Martine Segalen* e Francoise Zonabend® no estudo de comunidades rurais da Franga contemporinea. Depois de termos acreditado por muito tempo que, em nossas sociedades complex historicas, a organizagao social determinava as aliangas, descobrimos hoje, com base em monografias precisas, que alguns conceitos da antropologia estrutural sobre o parentesco podem ser aplicados em seu estudo, PERSPECTIVAS DA ANTROPOLOGIA HISTORICA Enno estudo do universo ment que a antropologia histérica prossegue hoje em suas pesquisas mais férteis. O conceito de mentalidade introduzide por Lucien Febvre* na bagagem dos historiadores era suficientemente incerto € suficientemente aberto para digerir a contribuicio de outras disciplinas. © Perigo teria sido encerré-1o num ambito puramente psicol6gico, que logo 42 Jean-Marie Gouesse, “Parent, famille et mariage en Normandie aux xvut* et xv" sitcles". Annales use, 1972. 43. A. Burguiére, “Endogamie et communauté villageoise; Ia pratique matrimoniale: Re- 326 A anTROPoLOGIa HistORICA se teria tornado anacrOnico, ou, ento, numa histéria das ideias sempre pres- tesa deduuzir os mecanismos mentais de uma época a partir das doutrinas das grandes construgées intelectuais por ela produzidas., «=~ > 8 ‘Também aqui a antropologia con Thistoria por baixo, isto é a partir dos expresses mais andinasmenos form eave ct» crengas populares, os ritos que impregnam a vida cotidiana ou se apegamm & vida religiosa, as culturas minoritérias ou clandestinas, em suma, o folclo- re. Ao corentar uma obra de André Varagnac que define o folclore como.o conjunto das crengas coletivas sem doutrina, das priticas coletivas sem teo- tia, Lucien Febvre se perguntava: “Seria tio ficil definir a fronteira entre o ‘deduzide' eo ‘aceito enquanto tal’ sem fazer dedugées?”: E prosseguia: “Tal fronteira nio questionatia a propria génese de nossas concepdes cientificas, as relacdes histéricas do magico e do matemético, a substituigio proge das relagdes Iogicas € quantitativas pelas influéncias qualitativas nais?": Os comportamentos menos argumentados de uma sociedade, como 98 cuidados com 0 corpo, as maneiras de se vestir, a organizagio do trabalho 0 calendario das atividades cotidianas, refletem um sistema de representa «0 do mundo que os liga todos, profundamente, is formulagdes intelectuais mais elaboradas, como o direito, as concepcdes religiosas, o pensamento filoséfico ou cientifico, ~~ Reencontrar esse elo por meio de um inventério de significagdes ¢ pela descrigao das categorias que organizam um discurso mitico, determinar a simbélica dos gestos, eisai as tarefas a que se consagraram as pesquisas pio- neiras de Jacques Le Goff sobre as representacoes do tempo,” do trabalho ¢ sobre o folclore religioso* na sociedade medieval ou, ainda, as andlises de Georges Duby sobre o sentido do dom e dos gastos ostentatérios na socie- dade da Alta Idade Média. O livro de Yves Castan Honntteté et relations socia- 47 Jacques Le Goff, “Temps de 'fgise t temps du marchand”. Annales #3¢, 1960; tado em Pour ut autre Mayen Age. Pais: Gallimard, 1978. 448 Id, "Temps du travall dans la crise du xv sicle", in Le Moyen Age, 11%, 1963; reed tado em Pour un autre Moyen Age, op. ” aurauiene 328 ahist6ria, talvex mais do que outras ciéncias sociais, esti condenada a sofrera mudanga, Se a antropologia exerce hoje tamanha influéncia sobre os historia- dores das sociedades europeias, se eles tendem tanto a recusar toda e qualquer concep¢io linear do desenvol io, € porque os bloqueios, as é mesmo de regressio que identificaram na sociedade imento hist fases de equilibrio e do Antigo Regime questionavam a nogio de progresso; mas é também por desenvolvimento sio questionadas a que a nogio de progresso nosso redor pela sociedade para a qual nés interrogamos o passado. Portan- to, talvez a antropologia seja, para o historiador, um mal passageiro, Pensa mos que ela corresponde 4 necessidade de reencontrar as diferentes vias da mudanga, de fazer 0 inventario delas, de compreender seus mecanismos, de afirmar sua pluralidade. Publicado originalmente como "Anthropologie historique’ inJacques Le Gott (org), Lo Nouvelle Histoire [1ed,, 1978; 2+0d., 1984], Paris: Editions Complexe, 2006. Tra- ductode ia Nascimento. 226 4 anTROROLO: Bera Stan ag eCosIL (eee RL

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