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Capitulo 9 Variadveis de género que terapeutas devem estar atentas no atendimento a mulheres Renata da Conceicao da Silva Pinheiro Cléudia Kami Bastos Oshiro “Eu fui l4 toda semana, por meses, Em uma semana, contava como me sentia culpada, o quanto eu era uma mé namorada e o quanto que- ria mudar, e comecdvamos a falar sobre o que eu devia fazer para mu- dar. Na outra semana, estava furiosa com meu namorado, odiava tudo o que ele fazia, e comecdvamos a discutir como manejar os comporta- mentos dele que me irritavam. E assim sucessivamente. Mas eu nunca parei para pensar por que eu sentia tanta raiva, ou que eu tinha razao em ter tanta raiva, ou por que me sentia culpada, e assim permitia que ele abusasse cada vez mais de mim” [Tulipa*] Clientes com descrigées de experiéncias psicoterapicas insatisfato- rias aparecem com alguma frequéncia na clinica (apesar de supormos que uma boa parte desiste de procurar terapia nesses casos, 0 que é um problema). No entanto, este ndo € 0 caso acima. A cliente referia- (© presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenacao de Aperfeicoamento de Pessoal de Nivel Superior - Brasil (CAPES) - Cédigo de Financiamento 001. Agradecemos & Psic. Ma. Priscila Rolim pelas contribulgées durante a construcéo deste capitulo. Por ser uma profisso majoritariamente feminina, os termos psicéloga e terapeut sero usados no feminino, conforme orlentacdo do Conselho Federal de Psicolog!2- Nomes fict(cios. 220 sprawl geo ae rapes ever et terns no etndmento 2 muheres se muito bem a0 seu terapeuta anterior, com uma Unica ressalva: ele nao conseguia entender. Mulheres e homens respondem a uma série de contingéncias social- mente arranjadas pelo Unico fato de serem daquele género?, e muitas vezes pode ser diffcil entender como as coisas funcionam para o gé- nero oposto. Ainda que terapeuta e cliente compartilhem do mesmo género, isto nao é garantia de que essas contingéncias e tudo o que delas implicam sejam discriminadas, por dois motivos principais. Pri- meiro, como aponta Ruiz (1998), essas contingéncias discriminatérias sao imbricadas em praticas culturais amplamente aceitas, tornando-as invisiveis para alguns grupos ou individuos - especialmente para aque- les que se beneficiam de tais praticas, mas também para aquelas que so negativamente afetadas por elas - promovendo uma espécie de “cegueira social” (Ruiz, 1998, p. 184). Segundo, temos uma formacao como cidadaos e como profissio- nais psicélogas que ndo favorece uma compreensao clara desses pro- cessos, No campo da andlise do comportamento e terapia analitico- comportamental no é diferente, uma vez que sao escassos os estudos que discutem feminismo na area (Couto & Dittrich, 2017) e muitas das anélises de casos clinicos focam o nivel ontogenético de selecdo por consequéncias, se atendo pouco as varidveis culturais, especialmente aS que envolvem desigualdades de género. Apesar de pouco discutidas, é provavel que estas desigualdades repercutam em uma grande variedade de problemas apresentados pe- las Clientes, como depressao, ansiedade, estresse, fobias, dificuldades interpessoais, etc. (Favero, 2010), e que podem muitas vezes ser ig- ees como varidveis de analise e intervencao. Nesse contexto, a Mom estd preparada para enxergar essas varidveis muitas vezes © explicitadas em seu processo de formacao? Ela ou ele vai “conse- Suir entender”? cong capt se propée a apresentar e discutir, em termos ao cias que comumente aparecem, implicita ou explicitamente, na ; Ss demandas de clientes mulheres em processo psicoterapico que niza as rela~ e orga social que org aaa 7 Sénero pod: rm ru Pode ser e1 struco St ntendido aqui como uma construcao soca AH A aca, ° Peay ite homens e mulheres em determinado contexto, desiguais (Santos, 2013), 221 Invalidacso Possuem um claro viés de género, agrupadas em trés secées: invali dacdo, exigéncias desiguais e abuso e violéncia. Essa diviséo tem fins didaticos, uma vez que, como ficaré claro no decorrer do capitulo, elas se relacionam e se sobrepdem em muitos momentos. As discussées serdo ilustradas por trechos referentes a casos reais? atendidos em terapia analftico-comportamental. Ao final, algumas sugestdes serao fornecidas com 0 objetivo ultimo de oferecer subsidios Para que te. rapeutas observem e respondam diferencialmente a essas demandas, aumentando a probabilidade de um bom manejo clinico delas. Invalidacgao “Ele tinha uma série de exigéncias que me incomodavam, tipo querer que a gente sé saisse juntos ou sempre perguntar onde estava e 0 que estava fazendo pelo Whatsapp. Eu nao gostava disso, mas ele dizia que isso era companheirismo, ter uma vida a dois. Ele dizia que namorar era assim e que eu nao sabia namorar, e eu lembrava que minha mae sempre reclamava que eu era ‘independente demais’ e acreditava.” [ulipa] “O modo como ele se relaciona com as amigas dele, ou mesmo com minhas amigas, beijando e abracando, carinhoso demais, princi- palmente na minha frente, me incomoda. Quando digo isso para ele, ele diz que nao tem por que me sentir assim, que s&o s6 amigas, que eU posso sair com quem eu quiser que ele nao vai nem ligar. E afeume sinto horrivel por estar reclamando de algo que eu deveria agradecer, que é ter um relacionamento tao maduro assim, mas acho que nao sou madura o suficiente. Meus ciimes e minha baixa autoestima acabam comigo” [Jasmim] O primeiro processo a ser discutido Provavelmente é o mais sutil. Apesar dos casos acima parecerem opostos — de um lado, um namo- rado controlador restringindo a liberdade da mulher, de outro, um na- morado mais “liberal” que deseja e incentiva mais liberdade no relacio- namento - existe um ponto fundamental em comum: a invalidagao dos sentimentos e percepcées da mulher. 3 Agradecemos a todas que dividiram um pouco da sua histéria para a construcéo deste capitulo. 222 les ica reconhecer as express6es emocionais do outro e fe nelas (Leahy, Tirch & Napolitano, 2013). Emocées entos, como Skinner (1974) aponta, sao subprodutos das con- esenti ‘em vigor. Por exemplo, quando alguém se sente triste, a nao tng um problema biolégico subjacente, ha algo no ambiente ate es tristeza, ainda que n&o seja facilmente identificdvel. No mutes vezes nao somos treinadas a identificar e estabelecer eT funcional entre eventos privados e eventos ambientais, a é retroalimentado por uma cultura que atribui emocées e senti- mentos a caracteristicas pessoais. E através da validacéo que uma crianca aprende a discriminar e mo- dular emocées. Em um ambiente invalidante, ou seja, aquele em que acomunicagéo de experiéncias privadas costuma ser ignorada, banali- zada ou punida, as experiéncias e expresses emocionais privadas do individuo ndo so consideradas respostas validas para os acontecimen- tos (Linehan, 1993), Por mais que esse processo seja possivel para ambos os géneros, deve ficar claro como essas contingéncias estéo particularmente pre- sentes no universo das mulheres, com raizes na estrutura patriarcal*, Unehan (1993), quando discute sobre invalidacéo como uma das pos- siveis varidveis relacionadas ao desenvolvimento do Transtorno de Per- Sonalidade Borderline, transtorno trés vezes mais prevalente em mu- ‘heres que homens (APA, 2013), aponta a desigualdade de género como essencial nesse processo. Por exemplo, maes e pais tendem a acredi- tar muito mais nos relatos de abuso sexual infantil em meninos queem oe tormando 0 género da vitima um forte preditor da qualidade ees e do prognéstico da vitima (Elliott & Carnes, 2001; ‘uravin, 2001). one vida, essa contingéncia no muda muito. A literatura mnacional lescreve como gaslighting> um fendmeno de manipulacéo €m que uma pessoa tenta, conscientemente ou nao, indu- Patria theres 20 Pode ser entendido aqui como uma estrutura de poder que situa as mu- 01 eres, 7 mn Multo abaixo dos homens em todas as éreas de convivencia humana (Saffioti, validar signifi yncontrar verdad er © nom Ahigigg GaotOht (uzes ou lAmpadas a gs) refere-se a um filme de mesmo nome George Cukor em 1944, em que um marido tenta fazer com que sua nsiderada louca para receber sua fortuna (Jiménez & Varela, 2017). *$0sa Sela co 223 Invalidagéo zir outra a duvidar de suas reacées, emocées, percepcées, memérias ‘ou crencas, como se fossem nao apenas equivocadas ou infundadas como praticamente insanas (Abramson, 2014; Jiménez & Varela, 2017). Assim, nao seria s6é uma tentativa de desconsiderar 0 outro, mas tam- bém uma tentativa de que o outro também se desconsidere (Abramson, 2014). Essa situacdo fica bem ilustrada no trecho abaixo: “Quando eu finalmente resolvi terminar, eu terminei. No outro dia, ele apareceu la em casa com uma pizza e agiu como se nada tivesse acontecido. Eu perguntei ‘vocé lembra do que eu te disse ontem?’ e ele disse ‘eu pensei a respeito e cheguei a conclusdo de que vocé nao sabe o que é 0 amor, vocé me ama e nao sabe’.” [Tulipa] Vale ressaltar que nado sé a comunicacdo de sentimentos e Percep- Ges é invalidada, mas sua interpretacao é distorcida, sendo atribuida muitas vezes a caracteristicas pessoais (carente, ciumenta, dramatica, etc.), instabilidade emocional (louca, descompensada, histérica, etc.), estados fisiolégicos (tenséo pré-menstrual, “falta de sexo”, etc.), ou ainda pelo préprio fato de ser mulher. Isto remete a uma cliente que trouxe para a terapia uma reportagem®que dizia que mulheres eram mais inseguras que homens em funcdo de diferencas no cérebro e nos hormé6nios, atribuindo a isto a razao da sua prépria inseguranca. Essas contingéncias tem uma série de consequéncias para a forma- ao do self. Moreira et al. (2017), a partir de uma revisdo de literatura, descrevem self como uma resposta verbal (ou discriminacao do pré- prio comportamento) sob controle de eventos privados relativamente estdveis ao longo do tempo e de contextos ambientais. Se o ambiente nao valida minhas experiéncias privadas e ainda as julga como desa- daptadas, eu nao aprendo a confiar nelas como sinalizadores validos (Linehan, 1993), pelo contrario, posso me tornar altamente reativa a elas em funcao de uma histéria de punic&o para expressé-las. Assim, eu posso ter mais dificuldade em identificar quem eu sou, o que eu gosto, minhas preferéncias pessoais, e responder mais em funcado de contingéncias sociais, provocando sensacdo de inseguranca, como no © Diferenca no cérebro pode influenciar habilidades de homens e mulheres: Mulheres tém mais facilidade com a linguagem; homens com os célculos. Horménio também Pode interferir no comportamento feminino e masculino. (2012, 26 outubro) Gl. Recuperado a partir de https: //tinyurl. com/feminismo90. 224 pxigénclas desiguals. so da cliente acima. Este contexto se torna es o frente ao grande numero de exigéncias qu como seré melhor discutido a seguir, Pecialmente Problema- le se aplicam a mulher, Exigéncias desiguais “Ele dizia que eu tinha relaxado sabe, que nao me cuidava, nao me arrumava mais, e por isso nao tinha mais interesse em mim, que eu acabei com o nosso relacionamento. Realmente isso aconteceu, eu re- laxei, parei de me cuidar, mas eu lembro que ele sempre foi Mmuquirana sabe, quando eu fazia alguma coisa ele resmungava que eu estava gastando dinheiro com besteira, mesmo © dinheiro sendo meu. Lem- bro de uma vez que saf de casa Para fazer uma limpeza de pele e menti dizendo que tinha ido Para outro lugar”. [Rosa] Rosa era uma cliente que tinha acabado de sair de um relaciona- mento abusivo. Ela relatava que ainda ouvia as falas depreciativas dele na cabeca e, Por mais que soubesse que néo era bem assim, nao Conseguia se olhar no espelho e nao achar que ele tinha razo. A res- SSO acontecia pode ser bem mais abrangente: Porque luem disse isso. Desde criancas, homens e mulheres tém exigéncias muito diferentes de como devem ser ese comportar, e 'sto aparece de diferentes formas no contetido clinico. Nao toa, uma das demandas clinicas mais frequentes envolve, em maior ou menor grau, questdes de autoimagem, como a insatisfagdo OM © préprio Corpo, o desejo de ir regularmente a academia, a difi- ae €M seguir uma dieta, © medo de envelhecer, até transtornos demanda cc como bulimia e anorexia nervosa. Apesar deste tipo de afetadac ee crescendo para homens, ainda sdo as mulheres as mais nos Mette ee ° Manual de Diagnéstico e Estatistica dos Transtor- fe bulimis 5 (DSM-V), mais de 90% dos casos de anorexia nervosa e uma cutis correm, em mulheres e apontam Para sua associacaéo com que valoriza a Magreza (APA, 2013), The © entanto, ao discutir esta abordagem cultural de transtornos ali- Reetes Holmes, p, ator, a rake, Odgers e Wilson (2017) apontam como este defnide de abarcado pelo modelo biopsicossocial, 6 vagamente endo inclufdo efetivamente enquanto foco de tratamento. Se- Nao foi s6 ele q 225 Exigéncias desiquais gundo eles, a alimentacao desordenada pode no ser necessariamente motivada pela busca do ideal de magreza, mas também por experi- @ncias mais amplas que envolvem as expectativas sociais acerca da feminilidade, o que explicaria a grande lacuna existente entre a preva- léncia em mulheres e homens. Por exemplo, espera-se que a mulher tenha menos apetite que os homens, n&o sé em termos alimentares, mas sexuais ou mesmo econémicos, sentindo-se compelidas a refrear seus desejos ou terem seus comportamentos punidos caso nao o fa- cam (Holmes et al., 2017). A isto, Favero (2010) nomeia de curriculo da incorporac&o da feminilidade, referindo-se aos varios aspectos pe- los quais as mulheres sao cobradas, que incluem como se portar, como se vestir, como falar, como se relacionar com homens, como lidar com a sexualidade, que podem tanto produzir sofrimento e problemas psi- colégicos como os ja citados, quanto contribuir para a manutencao da desigualdade entre os géneros, como na alocacdo de recursos. Outro aspecto, discutido por Holmes et al. (2017), envolve como o reducionismo dos aspectos culturais ao papel da midia pode ser com- preendido como banalizador e estigmatizante para muitas pacientes com anorexia nervosa, como se s6 a exposicao continuada as propa- gandas fosse a causa do transtorno. A simplificagéo dessas explica- des leva & importancia de se compreender praticas culturais, espe- cialmente as de género, de uma maneira mais ampla, para além do papel da midia ou de regras sociais, mas sim como uma série de con- tingéncias, presentes no dia a dia, que modelam classes de respostas especificas consistentes com essas praticas. Ruiz (2003), ao analisar como essas contingéncias séo arranjadas, aponta o papel do sexo biolégico como fonte de controle discriminativo sobre 0 comportamento de membros da comunidade. Por exemplo, frente aos mesmos estimulos “pessoa” e “louca suja”, minha resposta pode ser A (lavar) ou B (solicitar que a pessoa lave) de acordo com © estimulo condicional sexo da pessoa presente. Ou, frente a@ mesma qualidade de caligrafia, um professor pode responder diferencialmente de acordo com o sexo da crianca. Mudando 0 foco, a comunidade libera consequéncias diferenciais para respostas equivalentes de acordo com © sexo de quem se comporta, modelando os padrées de feminino masculino naquela cultura. Ruiz (2003) aponta como, isoladamente, 226 gic desis ingéncias podem parecer insignificantes, mas que cumulati- esas or ribuern para uma desigualdade de poder entre mulheres ment anomens. oo. “Evil Contingéncias desiguais referentes ao desempenho de atividades domésticas e cuidado com os filhos, por exemplo, tem reflexos signifi- cativos na aloca¢ao de recursos e na qualidade de vida da mulher. Uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econémica Aplicada (IPEA) apontou que 90% das mulheres e 53% dos homens entrevistados declararam realizar essas atividades (IPEA, 2016), mostrando como a responsabili- za¢éo de mulheres pelo trabalho doméstico na Exigéncias desiguais til, que diz respeito as caracteristicas socioemocionais e de relaciona- mento do curriculo da feminilidade, que enfatizam aspectos emocio- nais, como ser compreensiva, amorosa, cuidadosa, geralmente aloca- dos como caracteristicas “femininas”. Para discorrer sobre como essas caracterfsticas séo favorecidas, Févero (2010) utiliza o termo pedago- gia do medo, como um modo de criacgéo de meninas cercado de cui- dados e precaucées, a atribuicdo e aceitacéo dos seus medos (e nao o incentivo para enfrentd-los), a sensacao de alivio e seguranca que se estabelece quando ela sai acompanhada do irmao ou com um “homem no grupo”, dentre outras pequenas praticas que estabelecem funcdo reforcadora condicionada a presenca do homem e aversiva a auséncia, como no trecho abaixo: “Eu nunca gostei de dar satisfacao para ninguém. Brigava com mi- nha mae porque ela queria saber meus passos, e meu irm4o podia sair e dizer ‘vou ali’, chegar a hora que quiser, e tudo bem. Ela dizia que fazia isso porque o mundo era perigoso para as mulheres.” [Tulipa] De fato, o mundo realmente é perigoso para as mulheres, como dis- cutiremos na préxima secao. No entanto, como contrabalancear esse tipo de perspectiva com ensinamentos e praticas que tentem nao retro- alimentar essa situacao, uma vez que perpetuam as diferencas entre mulheres e homens e atribuem & mulher o dever de abdicar de sua liberdade e desocupar 0 espaco publico. Existem, ainda, outras implicagées desta pedagogia do medo, como descreve Favero (2010): [...] um meio que prima pela pedagogia do medo, certa- mente também estaré pronto para reforcd-lo com apoio e, ao mesmo tempo, cobrar esse apoio com “juros e corre- des” e essa cobranca certamente vird em forma de exigén- cias ao cumprimento de papéis femininos, cujo fundamento principal é ser boazinha, o que significa obedecer, compac- tuar, atender, apoiar, ajudar, respeitar, ou traduzindo numa palavra: agradar (p. 145). Corroborando a discuss&o sobre invalidacdo da secao anterior, e do curriculo da feminilidade, discutido acima, percebe-se uma série de contingéncias que modelam e mantém um padrdo de tolerancia a va- 228 anosoevioencle tingéncias aversivas, que vao desde a vestir roupas e sapatos oe Bick e arrancar os pelos do corpo a ignorar sentimentos e ior em funcao da manutencéo do relacionamento e da familia. Cen termos, “tornar-se mulher numa sociedade patriarcal seni incorporar a feminilidade, isto 6, se dissociar das prdprias fo- mes fisicas - comida e sexo, por exemplo ~ e treinar 0 corpo a mover-se ou ndo se mover, de modo apropriado as normas” (F4vero, 2010, p. oe que muito do que seja aqui discutido possa levar a ideia er- rénea de que, nesse contexto, ent&o todas as mulheres apresentariam um padréo semelhante de comportamento, o que desconsideraria to- talmente os demais niveis de selecdo pelas consequéncias, 0 objetivo aqui € apresentar praticas gerais de funcionamento social, muito co- muns a grande parte da populacao, para padrées de comportamento e re! vas, podem ser pouco percebidas e, frente a essas exigéncias, com suas possiveis implicacées lacdes de poder. De tao Pervasi- mesmo para mulheres que fazem nao deixam de estar presentes, causar al- Abuso e Violéncia “Eu ir sap dessa festa e peguei um taxi. Ele pediu para Parar sé Peg café, j que tinha trabalhado a noite toda. Eu disse ‘tudo eu Wher eu numa banquinha Na calcada, desceu e perguntou se Bo quis ee eu aceitel. E s6 me lembro de Ja estar em casa. tive ao a a ainda Nao quero, mas eu sei, pela sensacao que tinha acontecido alguma coisa [chora]” Jasmim] € eu nao queria, entéo ele comecava entéo eu transava, mas bem’ '™ Crise, ch nal me sentia péssima, chorava no banheiro e en- lee de eve Stitava, me cortav: Sendo de mms le mim, M ‘a... Eu sentia cada vez mais Madrugads. '8S 0 pior, o pior era dormir e sentir ele me ata- ’ Me segurando e me forgando. Também quando 229 Abuso e Violéncia eu estava bébada, eu acordava e sentia o sémen dele dentro de mim. Os flashes vinham, e eu sé queria morrer. [chora]” [Orquidea] Provavelmente este consiste no tépico mais dificil a ser discutido: as diversas situacées de abuso e violéncia pelas quais mulheres pas- sam ao longo da vida. Segundo a 11? edicdo do Anuério Brasileiro de Seguranca Publica (FBSP, 2017), sé em 2016 houve 1 estupro a cada 11 segundos no Brasil. O préprio anuério aponta como 0 alvo desse crime é geralmente a mulher (85% a 88% dos casos), sendo os agressores geralmente homens (mais de 90%) (FBSP, 2017). Apesar da énfase dada ao crime de estupro a partir dos trechos ci- tados, existem diversas situacées, das menos as mais invasivas, agres- sivas, visfveis, que configuram situacées de abuso e violéncia. Abuso pode ser entendido aqui como o uso excessivo ou imoderado de po- der em uma relacdo. Foi reconhecendo a desigualdade de poderes, ou seja, de acesso e manejo de reforcadores entre homens e mulheres e a suscetibilidade destas a uma série de violéncias, que foi promul- gada a Lei n? 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha. Nela, violéncia contra a mulher é configurada como “qualquer a¢ao ou omis- s&o baseada no género que Ihe cause morte, lesdo, sofrimento fisico, sexual ou psicol6gico e dando moral ou patrimonial & mulher” (Lei n? 11.340, 2006, p. 2). Suas diversas formas (fisica, psicolégica, sexual, patrimonial e moral), definicées e exemplos podem ser consultados em anexo. Apesar de uteis, muitas dessas formas levam em consideracao a topografia da resposta violenta, em detrimento da sua f uncdo. Nesse sentido, Guerin e Ortolan (2017), buscando realizar uma analise con- textual dessas respostas, fornecem uma lista com 14 contextos de controle comportamental em casos de violéncia doméstica, que in- cluem obter controle sobre recursos, agir de modo a produzir compor- tamentos de fuga ou esquiva, remover fontes alternativas de recursos e/ou controle, estabelecer contextos de monitoramento, criar um con- texto de sigilo, construir uma conformidade pela persuasao, bullying ou mesmo através de comportamentos considerados “positivos”, den- tre outros. Assim, segundo eles, uma prevencao e/ou intervengao que vise treinar mulheres a reconhecerem a funcdo do comportamento, no lugar de topografias especificas, podem ser mais eficazes, uma vez 230 éncla pousoe vi esses comportamentos podem se apresentar de div ue in & Ortolan, 2017). ot ponto chamado atencao pelos autores refe wh até socialmente aceitaveis muitas dessas e: ened especialmente em seus estdgios iniciais, como o homem se reponsabllizar por sempre dirigir ou cuidar das financas da casa (Gue- rin & Ortolan, 2017), mas que podem servir de base para o desen- volvimento de maior poder e controle do homem na relagéo, como no exemplo abaixo: “Eu acho que o artesanato era uma coisa de fazer. Mas droga, o A. [esposo] jo ersas formas Te-se a quao indé- stratégias podem que eu gostava muito gou todas as minhas coisas fora, acredita? Na mudanga, eu disse Para ele pegar meus artesanatos e jogar as borrachas fora, ele fez justamente o contrario, jogou todos os meus artesanatos fora, e trouxe as borrachas. [...] Eu Néo falei nada, porque ele j4 esté muito estressado, j4 pagou toda a mudanca, entdo nao quis incomodar com mais isso”. [Girassol] la esposa de ficar em casa, sob o rétulo episédio pode ter a funcao de restringir o acesso da mulher a atividades reforcadoras. Muitos dos exemplos dados aqui envolvem telacionamentos entre Namorados oy Cénjuges’, porém, essas situagdes podem se aplicar a ualquer relacdo em que hé abuso ou violéncia sob controle de género. meno, No caso da cliente Tulipa, descrito na se¢do anterior, havia tema lherdaue’s de género no Comportamento dos pais de restringi- 05, coma fade da filha, e muitas vezes esses e outros comportamen- Como invasao de Privacidade, excesso de Monitoramento, etc., sao Minimi ‘ i2ados e até valorizados como “excesso de cuidado”, ensinandoe Orecendo Padrées de Outras desi relacionamento Pouco saudaveis. Decerto, h4 sigualge et aades due controlam comportamentos abusivos, como Sade racial, econémica, de idade e/ou parentesco, que mui- 05 ca fetvos 9 mm Mormacées aqui apresentados focaram em relacionamentos heteroa- SYfettas, come, 88° 485 indmeras varidvels as quais pessoas LGBT também estdo Mento in MO experiénci pe: las de discriminacao ou violéncia, desvalorizacao, afasta- Gamento, *°S502l, ocultaco por amigos ¢ familiares, o que exigiria maior aprofun- 231 Abuso e Violéncia tas vezes se sobrepdem, tornando dificil isolar a variavel relevante ali, como em casos de comportamento homofébico entre pais e filhos, em que a repressdo a comportamentos ditos “afeminados” em meninos e “masculinizados” em meninas pode estar sob controle, dentre outras varidveis, de esteredétipos de género. Outra violéncia que possui um claro viés de género é 0 abuso sexual infantil, cuja proporcao é de trés vezes mais meninas abusadas que me- ninos (Stoltenborgh, Van |jzendoorn, Euser & Bajermans-Kranenburg, 2011). Vale salientar 0 quanto a divis&o aqui é didatica, uma vez que os trés itens discutidos s4o interligados e se retroalimentam, como, por exemplo, abuso sexual infantil e a invalidacao: O abuso sexual, na forma como ocorre em nossa cultura, talvez seja um dos exemplos mais claros de invalidacao ex- trema durante a infancia. No caso tipico do abuso sexual, © agressor diz para a vitima que o abuso ou a relacao se- xual é “normal”, mas que ela nao deve contar a ninguém. O abuso raramente é reconhecido por outros familiares e, se a crianca relatar o fato, corre o risco de que nao acredi- tem nela ou a culpem (Tsai e Wagner, 1978). E dificil ima- ginar uma experiéncia mais invalidante para uma crianca (Linehan, 1993, p.62). De uma maneira macro, a comunidade também perpetua essa inva- lidac&o, minimizando ou ignorando essas contingéncias (Salter, 2012). Existe um grau de tolerancia social, como discutido por Silva, Gregoli Ribeiro (2017), manifestada principalmente pela culpabilizacéo da vi- tima e eufemizacao e naturalizagao do comportamento do agressor, que permite que os altos indices de violéncia contra a mulher se perpe- tuem. Em uma pesquisa realizada pelo Férum Brasileiro de Seguranca Publica e pelo Instituto Datafolha (FBSP, 2017), por exemplo, apontou que dois tercos dos brasileiros que responderam a pesquisa (n=2.073) afirmaram ja ter presenciado uma mulher sofrendo algum tipo de vio- léncia fisica ou verbal em 2016. 7 Isto se relaciona diretamente a chamada cultura do estupro, que diz respeito a uma série de praticas sutis ou explicitas que silenciam ou relativizam a violéncia sexual contra a mulher (Rosa, 2017). Por exem- 232 ta pode ajudar? cpg ee uma pesquisa do IPEA (2014) encontrou que 58,5% dos entrevis. n=3.810) concordam total ou parcialmente com a frase “Se = ulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros” ° Me indica que grande parte da populacéo ainda defende préticas que culpabilizam a vitima, 0 que pode incluir profissionais de agéncias de satide seguranca. Como resultado, ha também o grande numero de subnotificac6es por medo de represélias ou constrangimento, além da sensacao de impunidade (Santos & Grelin, 2017), com uma estimativa de que apenas 10% dos crimes de estupro sejam notificados (FBSP, 2017). Assim, no é dificil que terapeutas se deparem com clientes que sofreram abuso e violéncia das quais nao fizeram nada para produzir. ‘Além de ser um assunto sobre o qual possa ser muito aversivo se expor, ainda pode haver uma longa histéria de minimizacao e culpabilizacéo para isto, o que vai exigir uma boa percepcéo e manejo da terapeuta em sesso, como no caso citado do inicio da secdo: “Eu nunca falei isso em voz alta, eu sempre contei outra versao. Ninguém pode saber que fui eu que entrei naquele taxi, ninguém pode saber que fui eu que aceitei aquele café. [chora]” Uasmim] Como a terapeuta pode ajudar? Primeiro e principal ponto defendido neste capitulo: nao negligencie es- S85 varidveis, Elas existem, exercem controle sobre o comportamento dos individuos - inclusive das terapeutas - e precisam ser incluidas nas anélises funcionais, nas conceituacées de caso, nas intervencées e nas Filly As andlises precisam incluir a dimensao cultural, de modo mpg au uma fonte de controle importante do comportamento hu- cien E9 ponto envolve validar as percepcdes € sentiments Is Ndam, Expressées de empatia e validacao pela terapeuta séo ee fe terapautie de todo o processo, especialmente para a Pree ee as Stapas Ase. cuja construg&o e manuteng&o deve perpassar 10 Teste gq yee ala, devendo subsidiar todas as intervencoes sugeridas &M sof, Pitulo, Em geral, as pessoas procuram terapia por e5 ‘m "mento, com eventos privados experimentados como desag) 233 Como a terapeuta pode ajudar? daveis, e geralmente costumam pensar que esses eventos sao desa- justados e nao tém qualquer relacéo com a leitura que fazem do am- biente, aparentemente perfeito. Ao investigar um pouco, o terapeuta pode perceber que esse ambiente nao é inécuo, e expor isto a cliente é essencial. Outra fungao da validacdo é favorecer que a cliente confie em seus sentimentos e percepcées como sinalizadores validos do ambiente (Li- nehan, 1993). Assim, se estabelece o contexto para que se ensine © papel dos sentimentos enquanto produtos de contingéncias, e nao como causas de muitos dos seus problemas, 0 que serve também para ensinar uma perspectiva externalista a cliente, a “olhar para fora” e ver que contingéncias est&o produzindo essas percepcées e sentimentos. Resgatando o trecho da cliente Jasmim, referente a relacao com o namorado “liberal”, que atribufa aos seus citimes e sua baixa autoes- tima a razdo dos seus problemas “Por mais que nao briguemos, eu me sinto muito mal, eles acabam tirando o que pior h4 de mim. Tenho pensado se eu sou 0 problema, se eu sou a pessoa téxica, com base nos outros relacionamentos téxicos que ja vivi Jasmim jé esteve em um relacionamento violento]” Vale ressaltar que validar nao é corroborar que a pessoa se sinta as- sim, como corroborar que a cliente se sinta uma “pessoa t6xica” ou, ci- tando outro caso, uma “ma mae”, por exemplo, mas sim discutir como pensamentos e sentimentos sao produtos da histéria de aprendizagem da pessoa e reflexos das condicées atuais de sua vida, portanto, como faz sentido que ela se sinta assim em um ambiente, pessoal e social, que promove isso. Dessa maneira, se estabelece 0 contexto para mu- dar o foco para a analise das relacées interpessoais e variaveis cultu- rais que podem estar produzindo esse sentimento. Falas de culpa e minimizacéo também devem ser recebidas com atencdo pela terapeuta, uma vez que, como muito do comportamento verbal da cliente envolve também o que ela aprendeu do ambiente, costumam ser reflexos das relacées discutidas no tépico de invalida- G0. Quando questionada sobre de onde pode vir ela achar que nao deveria se sentir assim, Jasmim respondeu: “Eu sei de onde vem. De A. (nome do namorado). Ele diz que ele n&o se importa, ou nao se importaria se fosse comigo, e que nao tem 234 peuta pode ajudar?, coma. eu me importar. Quando eu disse que nao me sentia confortavel rele ficar amigo da minha amiga, ele disse que eu estou erradae que go pararia. [...] Porque ele coloca sempre como se a culpa fosse minha : me importar. “Pra mim nao importa, entéo vocé que té errada de se fnportar Mas ele nao lembra que eu néo faco nada disso, nada que possa fazer ele se sentir mal.” Jasmim] Geralmente, essas variaveis nao sdo descritas tao facilmente em te- rapia, por serem sequer discriminadas pela cliente. Muitos dos trechos aqui apresentados s&o produtos de um continuum de relatos, ques- tionamentos, analises, etc. Cabe a terapeuta a habilidade de fazer perguntas que coloquem em evidéncia as propriedades relevantes da- quela situagéo que podem estar evocando estes sentimentos, e que também favoreca a discriminac&o dessas relacées pela cliente, ou seja, favoreca o autoconhecimento. Por exemplo, no caso acima, nao sé a situacéo de estreita amizade entre namorado e amiga evocava senti- mentos aversivos, mas a invalidacdo do namorado frente a exposicao dela. Um ponto que chama atencao nesse caso é o quanto topografica- mente o relacionamento parecia “maduro”, segundo relato da cliente, algo especialmente valorizado pelo namorado, que era envolvido em projetos sociais, defesa de direitos humanos e feminismo, e o quanto ainda existia uma desigualdade que fazia com que, na pratica, a opi- nido de Jasmim fosse desconsiderada em func&o da dele. Uma pergunta que pode surgir € o quanto o género pode ser uma variével relevante para cada caso. Uma ferramenta Util nessa tarefa de “garimpar” quais as propriedades relevantes de uma situacao é a toca de papeis. Por exemplo, no trecho da cliente Girassol, na seco oe que nado reclamou com 0 esposo sobre ele ter jogado os ar- eae wes dela no lixo, quando convidada pela terapeuta a mudar os i 1 sentido de descobrir as variaveis relevantes, respondeu: one wees estivesse Contribuindo igualmente com as despesas oan a 1 Ainda nao falaria. [T: Ese vocé estivesse pagando tudo?) a shuseheiee eu falaria. (7: Engracado como se vocés ainda estao Vocé aings eB ecanolente, contribuindo igualmente com as ha Ae sol] 0 falaria.] Eu néo me sentiria no direito de falar.” [Giras- jorque Um: 5 * das contingéncias discutidas ao longo do capitulo e que se re- 235 Como a terapeuta pode ajudar? lacionam aos dois trechos apresentados acima envolve como, em ge- ral, homens tem comportamento de expressar e manter opiniao refor- cados, enquanto mulheres tem esse mesmo comportamento punido. Por isso, a terapeuta pode se valer dessas informacgées como relevante para andlise e intervencdo, como no trecho abaixo: “Gostaria de colocar mais uma varidvel na sua analise. Uma ideia que tenho observado refere-se ao quanto a opiniao feminina tende a perder quando relacionada a uma opiniao masculina. Parece que a gente aprende a questionar constantemente nossa ideia, e ela cede muito facilmente frente aos empecilhos, ou nés mesmos a colocamos em xeque, realidade diferente para os meninos, como se a opiniao de- les tivesse muito mais peso. Por exemplo, no seu caso, ele nem con- sidera em mudar sua opinido ou sua postura, enquanto vocé se acha culpada por tudo o que esta acontecendo de ruim. Eu acho que isso tem a ver com uma sociedade que pensa e ensina dessa maneira, e trata diferente as opinides de acordo com o género. O que vocé acha?” m Apontar essas variaveis e evocar uma discuss4o clara sobre as desi- gualdades de género em sessdo tem uma série de beneficios. Primeiro, tem funcdo evocativa, fazendo com que a cliente descreva outras si- tuacées semelhantes e estabeleca novas relagées que possam estar controlando seu comportamento. Segundo, tem funcao de validacao, uma vez que a cliente percebe que nao se tratava de uma incapacidade pessoal ou algo errado com ela, que faz sentido se sentir assim em um contexto aversivo e de exigéncias contraditérias. Terceiro, favorece a discriminacdo de situacées funcionalmente semelhantes e, consequen- temente, a generalizagéo dos comportamentos aprendidos para novos contextos. Por exemplo, frente & discuss&o, Girassol também trouxe outras situagées que a tinham “afetado”, mas que até entaéo nao per- cebia que estavam sob controle do seu género, como no trecho abaixo: “Todo mundo dizia que eu era ambiciosa demais, sé porque eu tra- balhava muito. Mas eu amo trabalhar, nem era sé pelo dinheiro. E mesmo que fosse, meu marido trabalha o mesmo tanto que eu e éelo- giado. Mas parece que eu trabalhar incomoda, sabe? Quando eu che- gava nos lugares, as pessoas faziam “plim-plim-plim”, como se fosse um saco de moedas batendo.” [Girassol] 236 eressante dessas discuss6es refere-se ao fato da cliente torico de leituras feministas, sugerindo que foi um pro- ° inacéo favorecido em terapia. Frente a descricdes ces dejasmim e de Girassol, ficar restrita auma analise molecular, como ara as respostas de assertividade uma contingéncia de identificando venciad na vida daquela cliente, por exemplo, faz perder punigao exper ortante do padrao de funcionamento social implicado uma ont Ruiz (1998), 0 desenvolvimento de uma resisténcia 4 a desigualdades envolve o desenvolvimento de dois repert6rios ditintos: 0 “saber como”, que é desenvolvido através do treino direto, mas também o “saber o que”, que envolve o saber explicar a resposta deresisténcia e sua relacao funcional com as varidveis ambientais (p. 189), 0 que exige uma discussao clara desses processos. Quando dis- cutimos com a cliente que isto é cultural, e nao restrito 4 relagdo com os pais, com o namorado, marido ou com o chefe, favorecemos um pro- cesso de abstracéo e ensinamos comportamentos de protecdo, como identificar quando elas esto presentes, treinar respostas assertivas, buscar fontes alternativas de apoio, ou mesmo ignorar, especialmente Se tratando de um fendmeno pervasivo e de dificil mudanga. Assim, aclente estaré muito mais preparada para identificar e responder a ee diffceis que ira enfrentar, como no trecho abaixo, estupro a Processo psicoterapico que havia sido vitima de um hica eae hospital e foi horrivel. O médico, a enfermeira, cada téc- S255@ cine ee ou me dava remédio, cada faxineira ‘que conte, aa a ad mesma sala que eu perguntava como tinha io, porque ey fates ‘ava, Que horas eram... Aquilo foi me dando um ™e Cupar, ents a que eles néo queriam me ajudar, eles queriam ‘0 eu simplesmente parei de responder.” [Orquidea] Cabe sali er 2ada por ld 9S efeitos iatrogénicos desse tipo de pergunta reali- a 8S. Em team alias, por qualquer pessoa -, inclusive as psi- nceitua Ode pal © terapeuta deve estar sempre sob controle da ue Clara para ees Perguntas e intervengées devem ter uma Pode; SSO, € que n&o envol Vande ra Se revelar a olve curiosidades pessoais, ‘a-terapéuticas, além de poder trazer um %0 8 Telacdo terapeuta-cliente, mais int ago ter um histor so ae aiscriml 237 Como a terapeuta pode ajudar? lo o trecho de Orquidea, foi interessante observar como, ituacao de vulnerabilidade, de ter passado por cia e de prever 0 contexto aversivo que encon- traria, a cliente manteve-se NO propésito de realizar os exames e tomar as precaucées necessarias. Outro trecho pode ser visto abaixo: "A gente estava escolhendo um filme para assistir, € passamos por um canal que estava passando meu filme favorito, entao eu disse ‘olha, esse é meu filme f avorito!’ € ele disse ‘ Esse? N ossa...’ [cliente des- creve sinais de desprezo] e mudou de canal. Eu senti na hora um soco no estémago. Entao pensei no que tinha acontecido, demorei alguns minutos me acalmando, e af perguntei com voz calma ‘Por que vocé faz isso?’, ele ‘O qué?’, ‘Fica menosprezando o que eu gosto, dé a entender que é ridfculo eu gostar desse filme, eu nao ia pedir pra gente assistir, s6 estava comentando”’. [Jasmim] Esse trecho sintetiza 0 resultado de muitas das estratégias discu- tidas ao longo dessa secéo, como a identificacdo e validacao dos pré- prios sentimentos, a busca por varidveis externas que os evocam, € a resposta assertiva. Vale ressaltar que essas sugestées nem esgotam a infinidade de possibilidades, nem devem ser utilizadas indiscriminada- mente, pois as intervencdes devem sempre responder a conceituacao de caso. Por exemplo, ainda que o termo “pedir” ainda represente essa desigualdade, direcionar a discussdo para esse aspecto provavelmente teria funcdo punitiva. Especificamente para este caso, a postura da te- rapeuta foi elucidar as possiveis consequéncias reforgadoras naturais da resposta assertiva, perguntando como a cliente se sentiu ao fazer isso ou enfatizando o quanto isso se aproxima do que ela havia des- crito como a namorada que gostaria de ser - menos explosiva e mais assertiva. A elucidacao de valores pessoais é essencial para direcionar muitos dos comportamentos da cliente e da terapeuta em sesso, mas devem ser conduzidas com cuidado nesse contexto onde as demandas soci- ais sao muito fortes e se misturam com os interesses pessoais. Uma observacao importante envolve a discriminacao, pela terapeuta, dos eo em distingdo aos valores da cliente. A terapeuta porém deve tomar ee valores pessoais, sejam eles quais forem, lo com como eles podem estar controlando Retomand apesar de estar em sit uma situacdo de violén 238 jar? com sso. Por exemplo, uma cliente que deseja se sposta em" fs m detrimento da profissional pode evocar na 3 fe ner ainda que sutil, para uma opcao valori- rerapeuta - So aue é um problema, uma vez que os comporta- sata pela ee $580 devem estar sob controle primordialmente da me eS Ee vaso Mesmo um posicionamento feminista deve ser cxncetvacéo o& © ado. uma vez que a busca pela igualdade de direi- Ae éneros? tem 0 objetivo ultimo do bem-estar dos Enea que todos gozem de plenos direitos e tenham igual Se eee para desenvolver as habilidades e ter acesso aos re- forgadores que se alinham aos seus valores pessoais. Como aponta Adichie®: sua re gesicar 8 vid A segunda ferramenta 6 uma Pergunta: a gente pode in- verter X e ter os mesmos resultados? Por exemplo: muita gente acredita que, diante da infidelidade do marido, a rea- $0 feminista de uma mulher deveria ser deixd-lo. Mas acho Sua deciséo de p escolha feminista, Porque no é mol de género (p. 12). Pivot: importante Notar como discutir ne ini i eclentes TO e feminismo ainda pode ser Imente em funcdo da sua questdes sobre desigual- um tabu para terapeutas ssociacéo com ideias de Holmes et al., 2017), ape- * Especial ae © &Xistirem % + omume NatI05 tipos de fe Lites da ceMVOIVe a bused Por | eau Imamanda Ngee (9ualdade de q © gene, Ver capitulo 03), existe uma definicao lIreitos entre os géy 7 Ozi Adichie (2024; 20: tes porn rt i 117) S80 muito Gteis par ir de- Pols S80 curtos @ de facil leitura, ee 239 Consideracées finais terapia pessoal, de modo a ter clareza de quais variéveis influenciam no seu comportamento, e definir um melhor caminho, levando em con- sideracao 0 caso clinico e suas limitacgées pessoais. Consideracées finais Ao discutir a abordagem cultural aos transtornos alimentares, Holmes et al. (2017) observou que muitas pacientes jé traziam questées de género para as(os) profissionais e eram ignoradas, seja por falta de Preparo destas(es), seja por diferentes concepcées culturais. Foi iden- tificando esta problematica, associada a escassez de literatura sobre o assunto, especialmente na andlise do comportamento, que este capfi- tulo se propés a discutir varidveis de género que podem estar envolvi- das nas demandas clinicas de clientes em terapia. A ideia é que nado s6 terapeutas estejam mais aptas a reconhecer as influéncias dessas varidveis, como possam responder diferencialmente a elas. Isto nao s6 amplia as possibilidades de anélises e intervencées e sua eficdcia, como evita uma série de problemas oriundos da negligéncia e/ou inva- lidacao pela terapeuta. Vivemos em uma sociedade desigual em varios aspectos: social, racial, econémica, de género, orientacdo sexual, religido, e terapeutas tanto fazem parte desse ambiente quanto podem perpetud-lo inadver- tidamente, contribuindo para o sofrimento da cliente e, de uma ma- neira mais ampla, para a perpetuacdo dessas desigualdades. Perceber que essas desigualdades est&o imbrincadas em nossas agées, concep- 6es e valores, e lutar por uma sociedade mais justa e igualitdria é também nosso papel, dentro e fora de terapia. 240 etnclts ibliogrSficas. re Referéncias Bibliograficas K. (2014). Turning up the lights on gaslighting. Philosophical amson, ape perspectives: 28, 1-30. adichie, C- N. (2014). Sejamos todos feministas. S40 Paulo: Companhia das Letras. adichie, C: N- (201 sao Paulo: Companhia das Letras. American Psychiatry Association (2013). Diagnostic and Statistical Ma- nual of Mental disorders, 52 ed. Washington: American Psychiatric Association. Brasil. 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