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CAPA E PROJETO GRAFICO ARY ALMEIDA NORMANHA PRODUGAO GRAFICA E DIAGRAMAGAO ANTONIO DO AMARAL ROCHA ARTE-FINAL RENE ETIENE ARDANUY FOTOS E REPRODUGOES DELFIM FUJIWARA PREPARAGAO DE ORIGINAIS SUEL| CAMPOPIANO As ilustracdes de Portinari e Poti reproduzidas neste volume foram publicadas em edigées da Sociedade dos Com Bibli6filos do Brasil M192 CIP-Brasil. Catalogacdo-na-Publicacao Camara Brasileira do Livro, SP Machado de Assis / Alfredo Bosi ... let al.| ; participagao especial de Antonio Callado let al.|. — Sao Paulo : Atica, 1982. (Colegao escritores brasileiros : Antologia ¢ estudos ; 1) Textos de Machado de Assis e sobre ele por: Alfredo Bosi, José Carlos Garbuglio, Mario Curvello e Valentim Facioli Bibliografia 1. Assis, Machado de, 1839-1908 — Critica e interpretacio |. Assis, Machado de, 1839-1908. Il. Bosi, Alfredo, 1936- II. Calado, Anténio, 1917- CDD—869. 909 82-0147 869.98 indices para catdlogo sistematico: 1. Literatura brasileira : Histéria e critica 869.909 2. Miscelanea : Literatura brasileira 869.98 1982 todos os direitos reservados editora dtica s.a./rua baréo de iguape, 110 telefone: pbx 278-9322 (50 ramais)/caixa postal 8656 end. telegrdfico: “bomlivro”/séo paulo. 10 VARIAS HISTORIAS PARA UM HOMEM CELEBRE 1— Obito Quando morreu, em setembro de 1908, Machado de Assis “andava na boca de todos os jornais, em noticias, artigos, discursos, en- saios e paginas de comovida saudade. Andava em toda parte”. (...) “De 30 de setembro a 10 de outubro, publicaram-se quinze artigos, nao sei quantas noticias e tépicos, e a todo instante o seu nome é chamado a cena, como jamais certamente aconteceu a escritor brasi- leiro. Todas as folhas apresentam o enterro sob as cores da consagracéo. Sio dez dias bem contados de incenso que arde aos pés do mesmo fdolo.” 1 Segundo o Jornal do Comércio, de 29 de setembro, o ébito ocorreu as 3h 45 min da manha, tendo como causa arteriosclerose. O morto residia na rua Cosme Velho, n.° 18, onde era inquilino. Sua profissdo oficial: fun- ciondrio piblico. As 19h 30 min é transpor- tado para a sede da Academia Brasileira de Letras, da qual fora presidente desde sua fun- dacéo, em 1896. Na Camara dos Deputados, no Senado € no Conselho Municipal (hoje Camara dos Vereadores) sio aprovados votos de pesar ¢ ‘nomeadas comissdes para assistir aos fune- rais. O ministro da Viacdo, Miguel Calmon, suspende o expediente (apenas) na Diretoria de Contabilidade, de que Machado fora dire- tor. O Centro Académico (diretério estudantil que congregava todos os centros académicos do Rio) retine-se, resolve tomar luto por oito dias, inaugurar o retrato de Machado de Assis em sua galeria de honra e promover a abertura de subscricao popular para 0 monu- mento em sua memoria. Ao mesmo tempo, convida os centros académicos das faculdades a comparecerem ao enterro com seus estan- dartes, A Academia Brasileira de Letras, pelos jomais, em nome do ministro da Justiga (as despesas com o enterro ficaram por conta do governo), convida os representantes da nagio, magistratura, funcionalismo puiblico, comér- cio e povo. Nao ha convites especiais. 1M shado de Assis, Rio de Janeiro, Ore. even, Auausto, Mac isis, Rio de 0, Ore, ll — Do Silogeu a S&o Jodo Batista © cortejo fiinebre sai da Academia as 16 horas de 1.° de outubro. O corpo esté coberto de flores. Antes de ser retirado o caixao, Rui Barbosa faz o discurso de despe- dida, em nome da Academia: “Eu nao fui dos que o respiraram de perto”, mas pode atestar que “era sua alma um vaso de ameni-~ dade e melancolia; prosava como Luis de Sousa e cantava como Luis de Camées”. Membros da Academia transportam o féretro para a carreta do Arsenal de Guerra, destinada aos funerais de homens ilustres como Carlos Gomes e Floriano Peixoto. A banda de musica do Corpo de Bombeiros e a da Forga Policial de Sao Paulo, em frente ao Silogeu, entoam marchas fénebres. A fren- te do préstito vai a banda dos Bombeiros, seguindo-se as comissdes do Centro Acadé- mico (com a bandeira em crepe), Faculdade de Medicina, Escola Nacional de Belas-Artes, Escola Politécnica, Faculdade Livre de Direi- to externato do Gindsio Nacional (Colégio Pedro II) empunhando estandartes, enquanto outros estudantes puxam a carreta. O enorme acompanhamento segue pela avenida Beira-mar, rua do Catete, largo do Machado, rua Marqués de Abrantes, praia do Botafogo, rua Voluntérios da Pdtria, rua e cemitério de Sao Joao Batista. Em todo o percurso, moradores assomam as janelas. Do primeiro andar do Palacio do Catete, o pre- sidente Afonso Pena e sua familia, sua casa civil e militar, ministros, assistem 4 passagem do cortejo. Da estétua de José de Alencar, fala o académico Ari Filho. O cortejo chega ao cemitério as 18h 30min e o recebem ministros e outras “pessoas gradas”. O caixio € conduzido por Olavo Bilac, Alberto de Oliveira, conde de Selir (embaixador de Por- tugal), almirante Alexandrino de Alencar, Tavares de Lira, Miguel Calmon e Ariosto Braga, até o jazigo perpétuo n.° 1359, qua- dra 39, onde é inumado ao lado de Carolina. Antes do sepultamento, discurso do mi- nistro Lira, em nome do governo: “Resta, entretanto, a todos nés que admiramos sua obra fecunda, a todos nés que conhecemos a influéncia decisiva.que exerceu e exerceré ainda, por muito tempo, nas letras patrias, rpetuar em mont inesquecivel memérit mico de direito tante de O Farol, de Juiz de Fora. ! filtimo foi recitado um soneto- coftemninapes cousanke 2 Ze Ubaiesle Mee Aen nabrice, we ihuctbr doe Suasts wi bagnic , a bub. Miishan hes, PRs 1 D>. AS GEONGIEAS BE GRGILIS lll— Um dia depois do outro _ No dia seguinte o Jornal do Comércio diz que “o enterro foi a consagracdo defini- tiva de sua gi 2 doe: yumento: duradouro & sua ja”. Falam. ainda 0 acadé- Américo Baracho, 2 srta. Julia César, Joaquim Ribeiro de Paiva, represen- : loria”. Mas n’A Imprensa, 0 cronista Adoasto de Godéi comenta: “Como se sentiria amesquinhado com esse exibicio- nismo quem, mais que nenhum outro artista no Brasil, amou a simplicidade e o siléncio”*. tituicio baseada em artigo da antiga Publicado en 1958, por ccssilo Uo clnglestentrio’ da morte ‘A evcrita: producto © consum = fossem opinides divergentes, mas te possiveis para melhor cont juzir © a eae ‘osse do legado. A imat de Ma oe ‘Assis e o significado de sua produgao } fs motivos de disputa aces@ desde ere e Basta lembrar 0S ataques destecha rae Silvio Romero (4897) ea comes a Conselheiro Lafaiete | (sob o ps ee Labieno). Nessa polémica ficaria a da a dificuldade para encontrat-s cultural” adequado para (0 escritor. e consumo i de época, os livros de Machado Aen 3 mais editados e vendidos dentro 05 escritores brasileiros, NUM panorama airs torial assim descrito por Luis Edmundo: “paga-se a um bom autor, por um bom ro- mance ou um bom livro de contos, de qui- nhentos mil-réis a um conto de réis; por uma novela popular, de cingiienta a quinhentos muiLréis. Para os livros de versos, abundan- tissimos, nao ha tarifa. Em geral, sfo impres- sos por conta do préprio autor, ou entregues ao editor, sem compromisso de paga. As exceghes & regra so raras. Os grandes roman- cistas que vivem ¢ que entéo mais se editam so: Machado de Assis, em primeiro lugar, ‘Aluisio Azevedo, logo a seguir, e depois, en- tio, Valentim Magalhaes, Gonzaga Duque, Coclho Neto... Olavo Bilac, Luis Murat, Alberto de Oliveira, Raimundo Correia, B. Lopes ¢ Guimaries Passos sao os poetas mais lidds e festejados. Os livros que imprimem, porém, nao alcancam grandes tiragens: mil, dois mil, no maximo dois mil e quinhentos ou trés mil exemplares” *. “Machado de Assis, que de ha muito vinha tendo também como editor Gnico o Garnier, em janeiro de 1899 vende-lhe a pro- priedade ‘inteira e perfeita da obra literdria’, 3 Eomunvo, Luis. O Rio de Janeiro do meu tempo. Rio de Janeizo, 1938. 3 v. Apud Wennzck Sooné, Nelson. His- Fria da literatura brasileira, seus sntos econémicos. Rio de Janeiro, Civ. Brasileira, 1964. 12 varias. RIAS PARA UM HOMEM CELEBRE constando de quinze livros, pela irriséria quantia de oito contos de réis. Anteriormente, em 1896 a terceira edicio de MemGérias pds- tumas de Brés Cubas ea segunda de Quincas Borba jé tinham sido negociadas com o mes- mo Garnier a 250 mil-réis cada uma. Relati- vamente, Machado de Assis ganhava muito mais com a colaboracao literaria nos jornais da época, pois a Gazeta de Noticias costu- mava pagar-lhe pela publicacdo de um conto (a quantia de) cingiienta mil-réis.” * Fora do jornalismo, j4 estavel no pais, nao havia possibilidades de profissionalizagéo para o escritor. Joaquim Nabuco, em entre- vista para o jornal O Estado de S. Paulo (25 set. 1898), declarou: “A minha misséo em politica parece-me acabada com a VIDA de meu pai, que pude terminar e para a qual tive a fortuna de achar editor” (grifo nosso). Nabuco refere-se A biografia de seu pai: Um estadista do Império; dada sua condigao de homem rico, autor de varios livros, ex-sena- dor do Império, conhecido no pais ¢ no exte- rior pela campanha abolicionista, a afirmacio d4 uma dimensdo precisa do problema da industrializacao do livro no Brasil. As edigdes tinham venda precdria, de- morada ¢ irregular. 70 a 80% da populacdo do pais era analfabeta. Fora de restritos cir culos urbanos das principais cidades (que eram poucas) nao havia leitores, especial- mente de livros. Ainda menos os de literatura.* Mas, nos primeiros anos do século XX, continuando uma conquista das duas décadas finais do anterior, a dignidade do oficio de escrever estava razoavelmente reconhecida. “Em 1907, Olavo Bilac ¢ Medeiros e Albu- querque tinham ordenados mensais pelas cr6- nicas publicadas respectivamente na Gazeta de Noticias ¢ 1’O Pais; 0 mesmo acontecia com Coelho Neto no Correio da Manha.” A 4 Broca, Brito, A vida literdria no Brasil — 1900. Rio de Janeiro,” MEC| — Servigo de Documentacio, s. d. 3 'Gronica de 15 de agosto de 1876 waz a seguinte vacio de Mi ‘de Assis: ““A nado nfo sabe ler. Hé 36 20% dos individuos residentes neste pafs que podem ler: ‘em letra de mao. 70% jazem em ‘As instituigdes existem, mas obser iE os. Proponl . Nao se deve dizer: ‘consultar a nao, repre- Sentantes da nagio, os poderes da nagio’; mas — ‘consultar (0s 20%, representantes dos 30%, poderes dos 30%’. A opi- nigo piblica € uma metéfora sem base; hd 36 2 opinifio dos 30%. Um deputado que disser na Camara: ‘Sr. .Prosi- dente, faio deste modo porque os 30% nos ouvem...” uma ‘coisa extremamente sensata”. fundaco da Academia Brasileira de Letras pode ser entendida como um sintoma e um fator. O mercado literdrio havia ganho uma dimensio, tanto no livro, como nos jornais ¢ revistas, que indicava profundas alteracdes na vida econémica, social e cultural do pais. O trabalho livre, a diversificagiio econdmica, a diviséo das atividades, a urbanizacio, a am- pliago da rede escolar média e superior, o crescimento do aparelho birocratico estatal, © crescimento ‘de fragdes de classes médias, a consolidagao de alguns jornais e o aumento de sua tiragem e circulagao, enfim um sem- -mimero de fatores ¢ indfcios demonstrava, entre outros aspectos, que a divisdo de classes na sociedade brasileira entrava em processo de atualizacdo capitalista, e isso favorecia a circulagdo dos bens culturais, diversificando sua produco e apropriacio. No prefacio de Ironia e piedade, em 1916, escrevia Olavo Bilac: “Hoje nao ha jornal que nao esteja aberto a atividade dos mogos. O talento jé nfo fica porta de cha- péu na mio, triste e encolhido, vexado e em farrapos, como mendigo timido que nem sabe como havera de pedir a esmola. A minha geracio se nao teve outro mérito, teve este que nao foi pequeno: desbravou o caminho, fez da imprensa literdria uma profisséo remu- nerada, impés o trabalho. Antes de nés, Alen- car, Macedo ¢ todos 08 que traziam a litera- tura para o jornalismo eram apenas tolerados: s6 0 comércio e a politica tinham consideracéo e virtude”. Em 1908, 0 mundo que Machado de Assis deixou era muito diferente daquele do morro do Livramento de suas origens. Sua produc&o intelectual tem uma contribuicao importante para a mudanga, articula-se com ela, dé-Ihe um tom ¢ ao mesmo tempo ques- tiona-a. E o signo dessa mudanga em dimen- so estética e a forma de uma intervencao na linguagem que constitui um marco na pro- dugio cultural do pais. EE V — Nascimento e origens “Em pleno inverno brasileiro, numa sex- ta-feira, 21 de junho de 1839, nasceu no Rio de Janeiro Joaquim Maria Machado de Assis, na chécara do Livramento, onde viviam seus pais, Francisco José de Assis ¢ Maria Leopol- dima Machado, que s¢ haviam casado onze meses antes, na capela da propriedade.” - ‘A crianga, aparentemente saudavel © TO- busta. so 6 batizada alguns meses depois, sonforme reza a certidao: “Aos treze dias do mms de novembro de mil, citocentos ¢ trinta e nove anos, na Capela da Senhora do Livra- mento, filial a esta Matriz, com provisao do Tiustrissimo ¢ Reverendissimo or & ‘Vigério Capitular Narciso da Silva Nepomu- ceno e minha licenga, 0 Reverendo Narciso José de Morais Marques patizou e pos OS santos Oleos a Joaquim, inocente, filho legi- timo de Francisco José de Assis ¢ Maria Leo- poldina Machado de Assis, ele natural desta Corte ¢ ela da ilha do Faial, digo ela da Shs de S40 Miguel. Foram padrinhos o Exce- jentissimo Veador Joaquim Alberto de Sousa da Silveira e D. Maria José de Mendonca Barroso. Nasceu aos vinte ¢ um de junho do ‘te ano, do que fiz este assento. O Vigé- ‘Ho José Francisco da Silva Cardoso” *. 13 Nascimento e origens Os pais de Joaquim Maria viviam 0s limites da chdcara do Livramento, no morro do mesmo nome, possivelmente como agre- gados, numa casa de construcao recente arma Nova do Livramento, no 131, 4 fora aberta havia poucos anos. ‘As ligagoes com essa grande masceram escravos, avos, declarados pardos forros casaram-se em agosto de 1805. Machado, batizado no ano seguinte, em outu- pro, ao que tudo indica viveu boa parte de sua vida na chécara, mas dali afastou-se em certa época. OS padrinhos de batizado e casa mento desses antepassados do escritor cram membros da familia proprietaria da chacara. Sabe-se que scus avos eram ‘agregados ali, ¢ hd indicios de que pelo menos hm deles era filho ilegitimo, provavelmente de um padre. Pelo lado materno, conhece-se hoje mais ou menos bem a arvore genealdgica do ro- F Massa, Jean-Michel A fuventude de a" juventude de Machado de Ass Bio do Jam, Civ inal On rind. Mateo. Aurelio de, Moura ‘Matos, rignal tancs, Sepuines pero, es locas Sti ae eae is 5 eto cae 16 Te eke oh cents eaed $o dems ‘endosar intricate © conclisdes do autor. 5 eno pubieado, por: Fowsscs, Gondin, da. Machado de dais oa fgrafia eandlise. So Paulo, mancista até a quarta geracdo. Sao originéris da ilha de Sdo Miguel, nos Acores, ae iba de Santa Maria, no mesmo arquipélago. Os avés maternos, Estévio José e Ana Rosa, le com dezoito anos e ela vitva de vinte ¢ trés (0 marido mortera no mar), casaram-se em junho de 1809. Dessa unifio nasceu Maria 14 VARIAS HISTORIAS PARA UM HOMEM CELEBRE Leopoldina Machado da Camara, em 7 de marco de 1812, que ja tinha um irmao nas- cido dois anos antes. *. . . por sua ascendéncia brasileira tanto quanto pela acoriana, Ma- chado de Assis descende de pessoas de con- digao humilde, bastante humilde, que se re- monta a duas ou trés geracdes. Do lado Paterno, é ele bisneto de escravos, mas bisneto de escravo liberto e neto de filho de homens livres. Do lado materno, é bisneto e neto e filho de homens livres.” 8 Nao se sabe ao certo as circunstncias, nem a data, nem as condigdes de viagem de Maria Leopoldina para o Brasil, como tam- bém se ignora por que teria ido para a chacara do Livramento e ali permanecido. Como foi relativamente numeroso o contingente de imigrantes agorianos nas primeiras décadas do século XIX, e praticamente todos analfabetos, supGe-se que a mae de Machado de Assis tenha vindo ainda crianca e aprendido a ler ¢ escrever no Livramento. E certo, entretanto, que se alfabetizou; e foi talvez quem ensinou as primeiras letras ao filho, pois, quando morreu, em 1849, ele contava dez anos. ed VI — Duvidas da infancia O pai de Machado era assinante do cé- lebre Almanaque Laemmert. De profissao, pintor decorador. Talvez Francisco José fosse “um artesio ligado ao Livramento, pelo me- nos a partir do momento em que 14 passou a residir, isto é, apés o casamento”. A mae do escritor nao era lavadeira, como tantos bid- grafos afirmaram; provavelmente executava fungdes “compativeis com sua formacao, cultu- Ta € sexo: costura, bordado, trabalhos de agulha; talvez até um pouco de atividades de ensino”. O menino Joaquim Maria deve ter pas- sado os primeiros anos freqiientando a ché- cara do Livramento, onde teria gozado da aten¢ao da proprietaria, sua madrinha, nao Porque fosse génio ou menino-prodigio, mas Porque suas relacdes com a chdcara e aquela familia eram apenas uma extensio das tela- G6es ja vividas por seus antepassados. “Foi entre essa familia Patriarcal, um pouco voltada sobre si mesma, que Machado de Assis passou os seus primeiros anos, Cres- ceu no meio de um grupo social particular, que € uma espécie de gens unida por uma sOlida argamassa. O chefe era uma velha dama, no creptisculo de sua vida, que conhe ceu uma existéncia bastante agitada, Maria José de Mendonga, filha natural, casada em Segundas nipcias, rica, muito rica mesmo. Ali existia uma hierarquia implicita, que todos aceitavam. Ela se exercia sem violéncia, até mesmo com uma certa benevoléncia, por- que, se excetuarmos a idade da proprietaria, nada ameacava as bases do edificio. A ordem devia ser, freqiientemente, benfazeja e bené- fica. Os anos 1840-1850 assistiram ao apogeu do sistema patriarcal; para alguns, foram os Seus Ultimos clardes. As classes existiam nesta sociedade como em todas as épocas e em todos os lugares, mas ndo se tinha ainda niti- damente consciéncia das diferengas. O sistema era equilibrado e compensado por um certo tipo de vida afetiva, muito brasileiro, de respeito e submissio.” Descontado o tom idilico, velho mito sobrevivente na interpretagéio da ordem pa- triarcal-escravocrata, devia ser aproximada- mente esse o ambiente da chdcara. Ali, a familia de Francisco José de Assis, como agre- gada, tinha sua posigao no Ambito do patriar- calismo, dependente, portanto, do circuito das relagdes de favor e marcada pela condicao subalterna de classe. Em 1845, quando Joaquim Maria tinha seis anos, morreu sua irma mais nova, vitima de sarampo, que também mataria sua madri- nha trés meses depois. A mae morreu em 1849, de tuberculose. Mas o menino tinha boa satide, apesar da aparéncia delicada: re- sistiu 4 doenga da irma e A da mae; resistiu a epidemia de febre-amarela (1851-53) e a da célera, mais tarde, todas doengas conta- giosas, e, apesar do trabalho intenso, viveu quase setenta anos. A atmosfera vivida pelo menino foi in- tensamente religiosa. As igrejas constitufam centros de convergéncia, e comumente a vida social era marcada pelas festas e ceriménias Promovidas pela Igreja catdlica, E possivel que ele tenha mesmo ajudado missas, porém improvavel que chegasse a sacristéo, pois % Massa, J-M. Op. cit. muitos documentos j4 pesquisados nas igrejas nao fazem qualquer alusdo a isso. Intimeros textos de Machado de Assis falam da infancia, mas nao é Possivel com- Provar que sejam referéncias diretas A sua propria. Nada é declaradamente autobiogr4- fico. Contos como “Umas férias”, “Conto de escola”, novelas como “Casa velha” e diver- sas cronicas, j4 usados por bidgrafos, sem maior seguranca documental, so textos sobre situagGes mais ou menos gerais ou comuns da infancia e da familia da época, em certos meios, que coincidem ou nao com 0 que viveu. O periodo de 1850 a 1854 apresenta uma lacuna quase total na biografia de Ma- chado de Assis. Nao poucas vezes essa lacuna foi preenchida com suposicées _provenientes de matéria ficcional. Sabe-se que seu pai se casou de novo com Maria Inés, uma mulata, em junho de 1854, na igreja do Engenho Novo, préxima de Sao Crist6vao, o que leva a crer que ele havia deixado a chécara do Livramento. Para alguns bidgrafos, Francisco José teria vivido em concubinato com Maria Inés durante algum tempo antes do casamen- to. Disso nfo hd provas. Mas ha evidéncias de que entre 1854 © 1855 Machado de Assis deixou o arrabalde ¢ passou a viver na cidade, no centro da cidade, o que pde em divida a tese da forte influéncia que Maria Inés teria exercido sobre o escritor. E muito duvidosa também a reclamada divida de gratidéo dele para com a madrasta, segundo alguns, nunca Paga, porque Machado teria tido vergonha das proprias origens, Como é insustentével a afirmagao que o dé como um moleque gago, sifilitico, epilético, sem rumo, vagabundeando pelas ruas, mas finalmente salvo pelos cuida- dos maternais de Maria Inés, Também 6 inconsistente a tese de que teria aprendido a lingua francesa com o for- neiro da padaria de Madame Gallot, pois na- quele perfodo ainda no existia a rua em que se localizaria 0 estabelecimento, nem este nunca existiu, ¢ até mesmo nao houve nenhu- ma proprietéria de padaria no Rio de Janeiro com aquele nome. ?° 10 Bsclarccimentos minuciosos enconttamse em Jean-Michel ‘Massa. Parece que fol um Prof. Hemetério dos Santos, tee S"publcada. np Almanague’ Gamnity Se 1G wr eaeonceet pa aque’ Game so. es Pot iniimeras fantasias que alguns bidgrafos acctsraes comes verdade. Sobre essa carta, divulgada ‘por ‘Gondia da Ros, Rotagéo e transiagso §= 15 Lida a histéria noutro sentido, deve so- bressair 0 esforgo do Machado adolescente, sua Iuta para transpor os limites que. sua condicao Ihe impunha. Deve sobressair o combate que travou para superar o destino que era comum aos individuos de origem ¢ meio semelhantes. E esse esforco que nio pode ser atenuado para nfo ficar suposto que a migracao de classe é um processo natural e que bastaria o estimulo de umas poucas circunstancias gratuitas para que a igualdade de oportunidades fosse real. O caminho do arrabalde para a cidade foi uma conquista de Machado de Assis, que precisou vencer os obstaculos implicados nesse processo. —— ee Vil— Rotagdo e translagao Nao esté comprovado que o menino Joaquim Maria tenha freqiientado escolas. E Possivel que sim, irregularmente, sem que disso ficasse documento. Alfredo Pujol", um de seus primeiros bidgrafos, com base no “Conto de escola”, dé o fato como seguro, enquanto Lucia Miguel Pereira mostra-se re- ticente. Aos quinze anos comegava a deixar a vida do subtrbio @ trabalhava pela cidade, talvez no comércio, j4 dominava a lingua escrita e sabia francés. Nas composicées que escreveu e publi- cou por essa época prevalece a atitude ro- méntica. O primeiro poema, “A palmeira” (6 de janeiro de 1855), descende da “atmosfera” de Goncalves Dias e Garrett. Tem estrofes assim: © palmeira, eu te satido, O tronco valente e mudo, Da natureza expressio! Aqui te venho ofertar Triste canto, que soltar Vai meu triste coracdo. Sim, bem triste, que pendida Tenho a fronte amortecida, Do pesar acabrunhada! Sofro os rigores da sorte, Das desgracas a mais forte Nesta vida amargurada! seea_na obra citada, diz 9 jornalista © critico, nfo sem alguma razio, que 6 um “amontoado de S. 4! PusoL, Alfredo. Machado de Assis, Rio de Janeito, J. Olympic,” 1934. CeLEBRE Nao é autobiografico. Os sofrimentos ai revelados sao de amor, do fingimento roman- fico, do mesmo modo que’no segundo poema conhecido, “Ela”: Seus olhos que brilham tanto, Que prendem tao doce encanto, Que prendem um casto amor Onde com rara beleza, Se esmerou a natureza Com meiguice e com primor. Vem, 6 anjo de candura, Fazer a dita, a ventura De minh’alma, sem vigor; Donzela, vem dar-lhe alento, Faz-lhe gozar teu portento, “Da-Ihe um suspiro de amor!” Esses poemas foram publicados na Mar- mota Fluminense, jornal de noticias, de va- riedades e de literatura, editado por Francisco de Paula Brito. “Ignora-se como Machado de Assis co- nheceu Paula Brito. Eram poucas as pessoas que compunham o mundo intelectual do Rio de Janeiro. Paula Brito acolhia espontanea- mente os jovens e lhes abria as colunas de sua Marmota Fluminense.” §, possivel que o adolescente Machado de Assis trabalhasse na editora e livraria de Paula Brito como caixei- ro € tipégrafo e morasse ainda com os pais, em Sao Cristévao. Teria mesmo sido visto ainda “adolescente, que parecia ter treze ou catorze anos, ‘magrinho, mas modesta e lim- pamente vestido’, (fazendo) todos os dias o percurso, de barca, entre aquele bairro e o cais Pharoux. Mergulhado na leitura, partia de manha e retornava a tarde, sem levantar os olhos, indiferente as pessoas, aos incidentes da viagem, & beleza da baia” '. Esse teste- munho, se verdadeiro, parece também mar- cado pela visio de um Machado de Assis livresco, distante do mundo, — Vill — Transig&o Desconhece-se quando morreu o pai de Machado. A confusao dos bidgrafos é grande. Ha os que aceitam a data de 1851, talvez 12 (Aud Massa, J.-M. Op. cit. Esse testemunho, alids, nfo disfarca também 0 preconceito de classe quando. estranhe gu ssilienta o fato de que o, adolescente pobre “andava “modesta ¢ limpamente yestido”. Para justificar a hipétese da influéncia da madrasta sobre o futuro escritor, Mas, em 1855, apés 0 novo casamento do pai, Ma- chado ainda vivia com ele, em Sao Cristévao. Possivelmente nesse ano tenha se mudado para a cidade. A colaboragio na Marmota Fluminense, embora irregular, vai aparecendo. Toma con. tato com um grupo de jovens poetas e escri- tores, todos principiantes, alguns com mais nome, ¢ freqiienta a Sociedade Petalégica, que relembra em crénica de 3 de janeiro de 1865: “...€ @ recordagéo da Petaldgica dos pri- meiros tempos, a Petalégica de Paula Brito, — 0 café Procépio de certa época, — onde ia toda a gente, os politicos, os poetas, os dramaturgos, os artistas, os viajantes, os sim- ples amadores, amigos e curiosos — onde se conversava de tudo, desde a retirada de um ministro até a pirueta da dancarina da moda; onde se discutia tudo, desde 0 dé de peito de Tamberlick até os discursos do mar- qués de Parand, verdadeiro campo neutro onde o estreante das letras se encontrava com © conselheiro, onde o cantor italiano dialo- gava com 0 ex-ministro. Cada qual tinha a sua familia em casa; aquela era a familia da rua... Querieis sa- ber do iiltimo acontecimento parlamentar? Era ir @ Petalégica. Da nova Opera italiana? Do novo livro publicado? Do Ultimo baile de E...? Da tiltima peca de Macedo ou Alencar? Do estado da Praca? Dos boatos de qualquer espécie? Nao se precisava ir mais longe, era ir & Petaldgica. Os petaldgicos, espalhados por toda a superficie da cidade, ld iam, de ld saiam, ape- nas de passagem, colhendo e levando noticias, examinando boatos, farejando acontecimen. tos, tudo isso sem desfalcar os préprios nego- cios de um minuto sequer. Assim como tinham entrada os conser- vadores e os liberais, tinham igualmente en- trada os lagruistas e os chartonistas: no mes- mo banco, as vezes, se discutia a superioridade das divas do tempo e as vantagens do ato adicional; (...) era um verdadeiro péle-méle de todas as coisas e de todos os homens”. “Para o rapazinho que era Machado de Assis, esses contatos com um mundo novo, com um universo variado, foram decisivos. Ai viveu e aprendeu muita coisa. Que tenha sido ou nao timido, sua experiéncia se enri- queceu nesse meio. Um grande passo fora dado. Ja nao se tratava mais da chdcara, do Livramento ou do Engenho Novo, onde vivia seu pai. La, o ritmo de vida era diferente, raras as visitas, inexistente a vida intelectual ou quase inexistente. Machado de Assis nao descobria a cidade do alto ou de longe, mas la passava as horas mais ativas do seu tempo, sua jornada de trabalho. Ainda que se ignore a exata natureza de sua atividade, parece verossimil que a publicacdo dos seus primei- Tos poemas (no comego de 1855) correspon- de justamente a sua vinda para a cidade, para exercer uma ocupacéo remunerada.” 1° Parece, portanto, que o adolescente Joa- quim Maria havia encontrado ambiente e suficientes estimulos para o desenvolvimento de uma atividade literaria paralela A outra com que sobrevivia. Ao que se sabe, freqiien- tava assiduamente o Gabinete Portugués de Leitura, cuja biblioteca possuia, em 1850, cerca de 16 mil volumes. Convivia com ind- meros amigos portugueses, especialmente com um deles, poeta também — embora mediocre —, Francisco Goncalves Braga. Influenciado por este, parece ter lido os roménticos por- tugueses — Garrett e Castilho, entre outros — ¢, entre si, poetaram com miituos elogios. O circulo de amigos ampliava-se e inclufa boa parte dos colaboradores da Marmota Fluminense. Machado de Assis comegou apenas ver- sejando. Mas em seguida passou a prosa, ora a escrever artigos sobre arte, poesia, literatura, ora crénicas de assunto cotidiano. Rapida~ mente, deixava para tras o recente passado suburbano para integrar-se nos circulos literé- rios da Corte, divulgando seu nome e reali- zando um extraordinario esforco de formacao intelectual por meio de leitura persistente e atenta, do estudo da lingua portuguesa lite- raria e do francés. Dos autores que teriam tido maior peso na formagio inicial do escritor, ele préprio escreveu que foram: Goncalves de Magalhaes, Alexandre Herculano, Garrett, Castilho, Gon- calves Dias, Victor Hugo, Joao Francisco Lisboa, Alvares de Azevedo, Alencar, Musset 13 Massa, -M. Op. cit. Paisagem urbana 17, e Byron, Ha bidgrafos que encaram com re- servas esse clenco, dizendo que Machado “era sensivel aos discipulos e aos epigonos dos grandes astros”, pois se “inseria numa tra- dicdo poética” (...) “j4 que seu gosto ainda nao se formara, ele aceitava os temas que uma tradi¢o ‘oral’ e uma atmosfera suge- riam” "4, Entretanto, comecar pelas “fontes secun- darias” ou pela leitura intensa dos contempo- raneos foi para Machado um passo necessario a fim de atualizar-se com a época e o meio, dado que provinha do arrabalde, onde a cir culacéo dos bens culturais escritos era pre- cdria. Alids, ele sera sempre um homem atualizado com o que se escrevia e publicava no Brasil. Sua atividade critica, jornalistica e literéria impord a atualizacao. Estar sempre atento, em acordo com seu “projeto cons- ciente”: “O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento intimo, que © torne homem do seu tempo e do seu pais” 15, Naquele momento particular é provavel que “sofresse influéncias” dos amigos proxi- mos, figuras inexpressivas na historia da lite- ratura, mas no conjunto de sua producdo Machado aproveitara as fontes secunddrias, os epigonos, pela via da parédia e como re- curso para a caracterizacio de personagens ou do meio social e intelectual. Faré mesmo a sdtira do conhecimento de “orelhada”, como nas Memérias pdéstumas de Brés Cubas. IX — Paisagem urbana O Rio de Janeiro nao passava de uma cidade “bastante portuguesa, pela sua arqui- tetura”, e “um agregado de casas irregulares © pouco elegantes, assentadas a beira do rio”, sem higiene, exalando odores fétidos, com aguas estagnadas e “magotes de escravos que iam, ao creptisculo, esvaziar caixdes malchei- rosos na praia”. O centro da cidade possuia iluminacio a gas desde 1854. No ano seguin- te, quatro teatros achavam-se em funciona- 14 Essa a opinido de Jean-Michel Massa. Mas 0 texto critico de Machado “O passado, o presente e o futuro da litera tura”, publicado em abril de 1858 (0 escritor tinha dezoito anos), revela leitura ampla e variada, ‘inclusive wma reava- liagao\ de Basilio da Gama, 0 que parece dar razio a Machado, que desde bem cedo foi um leitor intenso. 45 Norfeta da atual literatura brasileira: instinto de naciona- lidade. In: Novo Munoo. Nova York, mar. 1873, 18 VARIAS HISTORIAS PARA UM HOMEM CELEBRE, mento. O transporte era precdrio e demorado. O contato com a Europa fazia-se esparsa- mente por via maritima, através de trés linhas transatlanticas, duas de companhias inglesas e uma portuguesa, inaugurando-se outras no correr da década de 1850. Por esse tempo, calcula-se, sem maior seguranga, que a popu- Jaco da cidade e arredores orcava em 300 mil habitantes, dos quais cerca de metade, escravos. a Dentre os jornais existentes, destacavam- se: o Jornal do Comércio, diario, com 7 mil assinantes, téo poderoso que esmagava os demais; a Marmota Fluminense, bissemanal; 0 Correio Mercantil (onde Machado deve ter trabalhado como revisor de provas e onde publicou textos em 1858); 0 Didrio do Rio de Janeiro (onde Alencar foi redator-chefe, e Machado veio mais tarde a trabalhar como redator e repérter). Ja as revistas tinham vida curta, podendo destacar-se A Guanabara, que durou de 1850 a 1856. Diversos jornais e revistas europeus chegavam pelos navios, especialmente da Franca. Largo do Rocio, visto de Santo Anténio (gravura de X — Suburbano urbanizado No ano de 1858, Machado de Assis passa a escrever em prosa, cultivando géne- ros em que depois se consagraria: 0 conto, o jornalismo e a critica. Na Marmota publica o conto “Trés tesouros perdidos”, participa de- pois com artigos da polémica sobre o tema da cegueira (Polémica dos cegos)'*, e da a ptiblico seu primeiro texto de critica literaria ¥ 2 om Desmons, 1845). em reflexéo cuidadosa sobre o assunto: “O passado, o presente e o futuro da literatura”. Se o primeiro conto e a polémica tém hoje interesse muito secunddrio, o texto critico guarda atualidade, porque passa em revista temas importantes, como a relagao entre poli- tica e literatura; as condigdes da literatura brasileira na fase colonial e inicio da inde- 16 Essa polémica girou em torno de um mote proposto por Paula Brito: Qual dos dous cegos mais sente © penoso estado seu: © que cegou por desgraca, © que cego ja nasceu? Os polemistas escreveram defendendo uma ou outra das Posigdes implicitas no mote. pendéncia, a questao da influéncia estran- geira no teatro, no romance e na poesia que se produziam no pats, a qualidade do que era traduzido, etc. A certa altura diz o critico estreante, falando do tema principal do artig “No estado atual das coisas, a literatura nao pode ser perfeitamente um culto, um dogma intelectual, e 0 literato nao pode aspirar a uma existéncia independente, mas sim tornar- -se um homem social, participando dos movi- mentos da sociedade em que vive e de que depende”. Nos artigos com que participa na polé- mica da cegueira, Machado de Assis propoe um sistema que “nao era pessoal nem origi- nal, mas a filosofia tradicional do tempo, a que o ecletismo de Victor Cousin, passavel- mente idealizado e espiritualizado ao sabor das idéias da época, acrescentou alguma con- tribui¢éo” 17. Do mérito de tal polémica, em si mesmo, nada a dizer. Porém, a participacéo do escritor, em formagdo (vitorioso nos de- bates por desisténcia do adversdrio), revela que, ‘aos dezenove anos, j4 manipulava idéias € conceitos. Depois de aprender 0 jogo da ret6rica poética, assimilava agora o da reté- rica raciocinante” 18. Nesta altura a producgio poética de Ma- chado de Assis era bastante intensa, deixando entrever a presenca da veia graciosa de Alva- res de Azevedo, em poemas como “O sofa”, “Cognac”, e sua veia “byroniana” em outros. A poesia religiosa esta presente, especialmen- te, num poema “A morte no Calvario”, dedi- cado: “Ao meu amigo o padre Silveira Sarmento”, que teria sido, para ele, segundo alguns bidgrafos, uma espécie de professor gratuito de latim e outros assuntos. Talvez mais decisivo em sua formagio tenha sido 0 encontro com novos amigos, entre eles 0 exilado francés, republicano ar- dente, que combatera na Revolucdo de 1848 em seu pais, Charles Ribeyrolles. Como Ma- chado sabia bem a lingua francesa e Ribey- rolles estivesse interessado em divulgar suas idéias, deve ter sido facil 0 contato e a ami- zade. O exilado francés elabora 0 texto de um livro denominado Brésil pittorésque, de que o futuro romancista participa posterior 47 Massa, J.-M. Op. cit. 18 Id., ibid. Suburbano urbanizedo 19) mente, auxiliando em parte da tradugdo, Ao mesmo tempo, é provdvel que ja tivesse amainado nele o encanto dos poetas do Ro- mantismo francés, em especial Chateaubriand e Lamartine, pois sua poesia passa a ter um tom mais fortemente liberal e participante, distanciando-se do que escrevera até entao. Registra-se ainda a presenca de idéias de Eugene Pelletan, publicista francés que Ma- chado leu e cuja pregacao supunha a “exis- téncia de um Deus do Progresso, em harmo- nia com o século”, portanto, “um Deus vivo que sucedia ao Deus crucificado do passado”. Victor Hugo era outra leitura constante, especialmente pelas idéias comuns com Pelletan. Em 1858 dois jornais publicam textos de Machado, além da Marmota Fluminense: O Paraiba, editado em Petrépolis, ¢ 0 Correio Mercantil. No ano seguinte escreve critica teatral para a revista O Espelho. O circulo de amigos aumenta, incluindo agora Manuel Anténio de Almeida, Quintino Bocaitiva, Augusto Emilio Zaluar, Faustino Xavier de Novais (irmao de Carolina), os dois tltimos portugueses e escritores de algum nome. Ini- cialmente, neste grupo, Ribeyrolles era o cen- tro e animador. E, até hoje, impossivel saber com segu- ranga 0 que Machado recebia como paga- mento pela intensa colaboracdo jornalistica, se € que recebia alguma coisa. Também nao se sabe ao certo em que mais trabalhava, possivelmente fosse revisor no Correio Mer- cantil e continuasse como revisor e caixciro na empresa de Paula Brito. Sua atividade era intensa na poesia como na prosa. Escreveu no correr de 1859 trés textos que merecem destaque: “O jornal e o livro”, “Aquarelas” e “A reforma pelo jornal” ", © primeiro re- vela, inclusive referindo-se a um livro de Pelletan como “livro de ouro”, a forca que © escritor francés teve sobre o jovem jo lista. Aceita a tese da continua perfectil dade do espirito humano e confessa-se 0 mais novo adepto desse evangelho, afirmando que vai tragar algumas idéias sobre “um sintoma do adiantamento moral da humanidade”. Analisa longamente o progresso que o livro representou para a humanidade e agora esse 19 Ver esse Gitimo texto, neste volume, & pagina 87. 20 —VARIAS HISTORIAS PARA UM HOMEM CELEBRE progresso contraposto a outro: o jornal. Discute a relacao livro jornal e admite o aniquilamento do livro, porque o jornal “é a verdadeira forma da repiblica do pensa- mento. E a locomotiva intelectual em viagem para mundos desconhecidos, é a literatura comum, universal, altamente democratica, reproduzida todos os dias, levando em si a frescura das idéias e 0 fogo das convicgées. O jornal apareceu, trazendo em si o gérmen de uma revolugao. Essa revolugio nao é sé literaria, é também social, é econémica, por- que é um movimento da humanidade abalan- do todas as suas eminéncias, a reacio do espi- rito humano sobre as f6rmulas existentes do mundo literério, do mundo econdmico e do mundo social”. E completa: “Quem enxer- gasse na minha idéia uma idolatria pelo jor- nal teria concebido uma convicgao parva. Se argumento assim, se procuro demonstrar a possibilidade do aniquilamento do livro diante do jornal, € porque o jornal é uma expressdo, um sintoma de democracia; e a democracia € © povo, é a humanidade. Desaparecendo as fronteiras sociais, a humanidade realiza 0 der- radeiro passo, para entrar 0 portico da felici- dade, essa terra de promissao”. Ao lado dessa inflamada retérica libe- ral, bebida principalmente em Pelletan e em Victor Hugo, produz alguns artiguetes deno- minados “Aquarelas”, tendo cada um seu titu- lo: “Os fanqueiros literdrios”, “O parasita” (I e Il — o parasita comum e o literrio), “O empregado ptiblico aposentado”, “O folheti- nista”. O novel jornalista denega o que faz, talvez para nao ferir suscetibilidades, ou te- mendo acertar no que nao viu: “Nao é€ isto uma sdtira em prosa. Esboco literario apanha- do nas projegdes sutis dos caracteres, dou aqui apenas uma reproducdo do tipo a que chamo em meu falar seco de prosador novato — fanqueiro literario”. Esses textos sao sati- ticos, embora ingénuos, com certo tom de pregacdo moralista, e buscando a caracteri- zacao, ainda que superficial, dos “tipos” que os titulos enunciam. Para o “folhetinista”, faz as seguintes observacées finais: “Forca é di- zé-lo: a cor nacional, em rarissimas excegdes, tem tomado o folhetinista entre nés. Escrever folhetim e ficar brasileiro é na verdade dificil. Entretanto, como todas as dificuldades se aplanam, ele podia bem tomar mais cor local, mais feicéo americana. Faria assim me- nos mal a independéncia do espirito nacional, tdo preso a essas imitagdes, a esses arreme- dos, a esse suicidio de originalidade e ini ciativa’”. O terceiro dos textos dessa época, na mesma linha retérica do primeiro, é na ver- dade uma seqiiéncia das idéias deste. “A reforma pelo jornal” é também “filho de Pelletan e V. Hugo” °°. XI — Teatro e censura A colaboragéo que Machado envia a revista O Espelho reveste-se de particular significado, pois é dedicada 4 critica teatral, abrindo outra frente, em que acabar4 por consolidar algumas concepg6es, que perma- necerio com ele. Pouco depois, fara tentati- vas como dramaturgo, embora sem maiores conquistas ou méritos. Mas na sua produgao posterior hd repercussées constantes de uma concepco teatral, uma espécie de teatro im- plicito que articula a organizagéo da narra- tiva e das personagens nos contos, romances mesmo nas crénicas e poemas. Jé foi notado que no texto machadiano ha forte presenga das imagens visuais; certamente a intensi- dade dessas imagens estd relacionada com esse teatro implicito, como projegdo de um jogo integrativo do estético e do social. As idéias iniciais foram enriquecidas ¢ nao apenas tornaram-se mais complexas como ganharam outro estatuto na sua praxis textual. Em 1859, ele diz: “E claro ou é simples que a arte nao pode aberrar das condigées atuais da sociedade para perder-se no mundo labi- rintico das abstragdes. O teatro € para 0 povo © que o Coro era para o antigo teatro grego; uma iniciativa de moral e civilizagao. Ora, nao se pode moralizar fatos de pura abstra- co em proveito das sociedades; a arte nfo deve desvairar-se no doido. infinito das con- cepc6es ideais, mas identificar-se com o fun- do das massas; copiar, acompanhar o povo em seus diversos momentos, nos varios mo- dos da sua atividade”. 20 Jean-Michel Massa reconstr6i um quadro interessante do influxo dessas idéias no escritor e no pais. Massa, J.-M. Op. cit. A mira do critico é 0 teatro meramente comercial, de origem estrangeira, massificador e mistificador, entaéo apresentado no Rio de Janeiro. A critica é severa nesse ponto, e 0 pressuposto da funcdo teatral € o seu cardter moralizante e edificante: “Nao s6 o teatro é um meio de propaganda, como também é o meio mais eficaz, mais firme, mais insinuan- te. E justamente 0 que nao temos. As massas que necessitam de verdades, nao as encontrarao no teatro destinado a re- producao material e improdutiva de concep- gGes deslocadas da nossa civilizagio, — ¢ que trazem em si o cunho de sociedades afastadas. E uma grande perda; o sangue da civi- lizagdo, que se inocula também nas veias do povo pelo teatro, nao desce a animar o corpo social: ele se levantara dificilmente embora a geracdo presente enxergue o contrario com seus olhos de esperanca”. Noutro texto, defende a fungio do Con- servatério Dramatico, érgdo oficial encarre- gado da censura das pegas teatrais propostas para encenacao. Ali, Machado exerceria o papel de censor entre 1862 e 1864, cumprin- do, dentro dos padrées morais, estéticos e religiosos do tempo, essa funcdo embaracosa, que ele assim encara: “A literatura dramé- tica tem, como todo o povo constituido, um corpo policial, que Ihe serve de censura e pena: é 0 conservatério. Dois sao, ou devem ser, os fins desta instituigdéo: 0 moral € 0 intelectual”. Mais A frente, discute a complexidade da funcdo e 0 perigo de se confundirem as coisas: “Julgar de uma composigao pelo que toca as ofensas feitas 4 moral, as leis e a religiao, nao é discutir-lhe o mérito pura- mente literério, no pensamento criador, na construgdo cénica, no desenho dos caracte- res, na disposicéo das figuras, no jogo da lingua. Na segunda hipdtese ha mister de co- nhecimentos mais amplos, e conhecimentos tais que possam legitimar uma magistratura intelectual. Na primeira, como disse, basta apenas meia diizia de vestais e duas ou trés daquelas fidalgas devotas do rei de Mafra. Estava preenchido o fim. Julgar do valor literario de uma composigao, € exercer uma Jornalista engajado e candidato 21 fungao civilizadora, ao mesmo tempo que pra- ticar um direito do espfrito: € tomar um ca- rater menos vassalo, e de mais iniciativa e deliberagao”. Xi! — Jornalista engajado e candidato Em 1860, para o Carnaval, Machado assinou um texto na Marmota que anunciou sua colaboracao, no seguinte aviso: “Declaragéo: Temos o prazer de anunciar aos nossos leitores que 0 Sr. Machado de Assis faz hoje parte da colaboragéo da Marmota”. Possivelmente passara a efetivo da re- dacdo desse jornal. Porém, em marco, come- gou a trabalhar no Didrio do Rio de Janeiro, convidado por Quintino Bocaitiva, que tam- bém fora redator de O Paratba. Entre as figuras principais do Diério, estavam ainda Saldanha Marinho e Henrique César Mizzio, médico e combativo liberal, Teéfilo Otoni, Ribeyrolles, Zaluar ¢ Salvador de Mendonca. Uma equipe cujos membros ou ja tinham ou viriam a ter notoriedade. Nesse jornal, Machado ocupava, de inicio, a posicao de menor destaque no grupo, embora, “nessa época, todos (fizessem) tudo, desde 0 edito- rial até 0 arranjo da algaravia dos anincios levados ao balcdo”, conforme testemunhou Salvador de Mendonca. No Didrio do Rio de Janeiro foram pu- blicados artigos politicos, comentando os fatos principais do momento, sob a assinatura: “Os humoristas”. E provavel que alguns sejam de Machado, que também escreveu crénicas em verso, diversas notas no noticidrio, transcri- cées de matérias da imprensa estrangeira. “Pode ser que até tenha dado a sua ajuda nos folhetins do ano: ‘Os cabelos da rainha’, pela condessa Dash, ‘Os dramas do mar’, do inesgotdvel Dumas”. Escreve também na “Revista dramatica” alguns artigos sobre teatro, de tom doutri- nario. A “Revista dramatica”, segio do Did- rio do Rio de Janeiro, é a grande oportuni- dade de expor para um ptiblico mais amplo suas idéias: “As minhas opinides sobre o teatro sdo ecléticas em absoluto. Nao subs- crevo, em sua totalidade, as mximas da es- 22 _VARIAS HISTORIAS PARA UM HOMEM CELEBRE cola realista, nem aceito, em toda a sua ple- nitude, a escola das abstragdes romanticas; admito ¢ aplaudo 0 drama como forma abso- luta do teatro, mas nem por isso condeno as cenas admirdveis de Corneille e de Racine”. Escreve também um artigo onde analisa a peca Mée, apresentada anonimamente, mas de autoria de José de Alencar. Essa aprecia- sao € retomada, em parte, num ensaio pos- terior, “O teatro de Alencar” 21, Noutro texto, elogiando uma peca de Quintino Bocaitiva, seu camarada de jornal ¢ protetor, define: “O poeta dramatico tem o dever de copiar a parte da sociedade que escolhe, e ao lado dessa pintura pér os tracos com que julga se deve corrigir 0 original. O corretivo existe no drama; o autor nada tem que ver com as conseqiiéncias desse corretivo, Sao eles verossimeis? Dao-se na vida real? Sem diivida que sim. E quanto basta”. Esta definigéo antecipa em alguns anos a “teoria” da fungao moralizante para a arte, adotada por alguns escritores franceses liderados por Alexandre Dumas Filho. Em seguida, Machado de Assis passa a escrever uma outra seco do Diério, denomi- nada “Comentérios da semana”, que, “como © titulo mostra, eram uma revista geral de atualidades em que o redator escolhia livre- mente os seus temas. Como por diversas ve- zes os ‘Comentérios’ de Machado de Assis — que assinou Gil, depois M. A. — substi- tuiram o editorial, parece claramente que estas crénicas davam a tendéncia do jornal. Nestas crénicas, as novidades teatrais ou literérias Ocupavam um espaco reduzido, por haver outras rubricas consagradas a esses assuntos. Pela primeira vez a politica absorveu 0 essen- cial da atividade do jornalista em que se trans- formou 0 jovem escritor Machado de Assis. Entre 1861 e 1862, nao se pode de maneira alguma falar de absenteismo. Era exatamente © contrario” 22. Machado de Assis, absorvido pela poli- tica, e mais, pela politica partidéria, traba- thando e batalhando diariamente num jornal de posicdes liberais, esteve engajado também nas disputas eleitorais de fins de 1860, em 21 Ver neste volume, a pagina 71. 2 Massa, JM. Op. cit. que amigos ¢ colegas de jornal foram eleitos, Esta a figura do escritor quando jovem, que as pesquisas minuciosas de Jean-Michel Massa, e anteriormente as de Brito Broca e Raimundo Magalhaes Jr. °°, vieram compor, desfazendo inteiramente a velha versio de um Machado de Assis “alienado”, “traidor de sua raga e classe”... Essas “pesquisas revelam mais: um Machado de pena azeitada. “Nao nos enganemos. Os golpes desferidos eram duros e muitas vezes dolorosos, Macha- do de Assis cativou os gozadores descobrindo a incoeréncia, a inconseqiiéncia, a asnice dos membros do governo.” 24 Sobre o ministério chefiado pelo duque de Caxias, extremamente conservador, Machado atirou a violéncia da firia militante. O retrato consistia em: “o imobilismo, a incapacidade, a venalidade, a mediocridade, o fatalismo, a ambi; jidade, a duplicidade, a ilegalidade, a hipocrisia, o fayo- ritismo”, Alguns anos depois, j4 conhecido como jornalista, homem de teatro (critico e autor de pecas), critico literdrio, cronista e poeta (publicara durante anos poemas pelos jornais € revistas, e em 1864 0 livro Crisdlidas), em 1866, seu nome aparece num jornal, parte de uma lista de candidatos a “Futura Camara dos Deputados”, pelo 2.° distrito de Minas Gerais. Como nao foi eleito, supds-se que teria sido derrotado, o que nao ocorreu; resi Tara a candidatura antes das eleicdes, ee XIII — Opgao interpretada Nessa época o escritor diminuiu sua mi- litancia liberal. Teria passado por decepe € resistiu a ingressar na vida politica. Pref riu, ao que parece — se é que teve realmen outras oportunidades —, a militincia jorna- listica, como opeao provis6ria, assegurando- ~se mesmo relativa independéncia e divers: ficando suas atividades, até decidir-se, aind= na década de 1860, pela literatura. Sua col boracao como cronista e contista em diversos 23 BROcA, Brito. Machado de Assis e a politica estudos. Rio de Janeiro, Org. Simées, 1957, V volume, & pagina 363, 0’ ensaio “Jornalista politic. QAtHiES Jk, Raimundo. Machado de Assis desconkec Rio de Janeiro, Civ. Brasileira, 1955, Essas duas o> também resenhadas e comentadas neste volume, mente, as paginas $03 e509. 24 Massa, J-M. Op. cit. jornais e revistas trazia-lhe maiores compen- sagdes, porque obtinha um reconhecimento publico e um prestigio que 0 colocavam ao abrigo das incertezas da politica cotidiana. Machado de Assis padeceu de uma ins- tabilidade na adesao A ideologia liberal, onde seu papel era 0 do Machadinho *, tomando apenas o “seu célice de poder relativo”, en- quanto os amigos e parceiros, de outra classe social ou de outro nivel de adeséo ao poder, podiam usufruir dos favores que seus respec- tivos papéis propiciavam, Se num momento esteve “a esquerda” da redagao do Didrio do Rio de Janeiro, isto talvez se deva A sinceri- dade dos seus propésitos, enquanto os reda- tores, diretores e proprietarios, integrados na politica oligarquica, usavam 0 jornal como veiculo de luta partidéria, buscando o poder independentemente da coeréncia das posigdes. © jornal era, pois, veiculo de interesses de grupos ou fracdes de classe, a quem a ideo- logia liberal servia, como poderia servir a conservadora, se isso permitisse mais facil- mente a chegada aos cargos de governo e aos favores. Na obra madura de Machado ha inime- ros exemplos desse jogo oportunista, nas cré- nicas, nos contos ¢ romances. Basta lembrar o jornal fundado por Bras Cubas, a “teoria” do medalhao e a dupla Batista/D. Claudia no Esai e Jaco. A ordem escravocrata, assentada no do- minio de uma minoria infima — a oligarquia rural e seus representantes urbanos —, nao oferecia a menor seguranca a um mestico de origem proletaria entusiasmado com a ret6- rica liberal. O paternalismo era cruel para com seus dissidentes. O clientelismo, com 0 favor como base de sua relacao, tornava ins- tAvel (se nao insustentavel) a posigao do jor- nalista que ferisse os interesses do poder. A politiquice partidaria — a par de seu estatuto de irremediavel provincianismo —, sendo ex- pressio de interesses de pessoas e grupos, constituia a legitimacéo ostensiva do poder a que a condicao peculiar de Machado de Assis nao podia aspirar. 25 Assim ele era chamado no meio jornalistico pelos amigos © colegas, embora mesmo nas cartas intimas jamais tenha, a0. que se saiba, assinado o apelido familiar. Depois de 1880, tendo mudado de classe e gozando de grande presti- gio Como escritor, 0 apelido parece ter desaparecido. Opsio interpretada 23 Mas, ao Machadinho liberal parece nao ter interessado pér a pena simplesmente a servico de grupos. Sua decepcio politica, em principio, pode estar ligada a essa recusa. Era impossivel manter a independéncia tra- balhando em jornais cuja coeréncia estava ao sabor dos ventos da luta partiddria, ou do jogo do poder momentneo. Nao havia alter- nativa alguma: os liberais, como os conser- vadores e mesmo os republicanos mais tarde, constituiam correntes dentro do mesmo sis- tema de poder, cujo exercicio politico era mais formal que real. A experiéncia jorna- listica liberal foi importante para que Ma- chado compreendesse os mecanismos do po- der oligarquico. Machado aos 25 anos. 24 = VARIAS HISTORIAS PARA UM HOMEM CELEBRE O resultado é que, de repente, 0 texto machadiano “baixa de tom”. A inflamada ret6rica liberal comegou a ser substituida pela ironia e pelo humor. Configurou-se com isso a opgao do jornalista pela literatura enquan- to espacgo de linguagem mais protegido das press6es imediatas. Essa opgio devia estar relacionada com vagos premincios de uma consciéncia de classe. Na literatura, Machado de Assis podia, naquelas circunstancias, ins- taurar uma praxis contundente, como estra- tégia que Ihe permitiria completar a migracao de classe e precaver-se das surpresas da re- pressio da ordem escravocrata. De inicio foi uma estratégia defensiva, mas as fissuras do sistema permitiam-lhe conquistar e ocupar um espaco de prestigio e gloria. Machado de Assis soube avaliar esse espaco para passar a ofensiva. Seu texto, na ofensiva, depois de 1880, ter mesmo o estatuto de uma sibilina vinganga. No 4mbito das contradigdes da so- ciedade de classes, a vinganga contra as clas- ses que o acolheram trard ainda mais pres- tigio e mais gloria. Mas af também entra em cena a disputa pela posse dos bens culturais. Os cooptadores, aparentemente, nao se in- comodam de engolir sapos, desde que pos- sam usurpar 0 espélio. XIV — Perseguindo fantasmas Machado de Assis pode sair do subtr- bio, provindo de uma familia proletdria, mes- tigo descendente de escravos, pardos forros, e mais proximamente de homens livres mes- tigos, ou homens livres brancos acorianos, cuja condigéo social era também proletéria. Essa origem de Machado de Assis na socie- dade brasileira da época tem um peso maior do que se tal fato ocorresse mais recente- mente, porque se tratava de uma sociedade rigidamente estratificada e de minima permea- bilidade. O individuo tinha o destino social marcado em fung&o de sua origem (de classe e taca), € s6 aleatoriamente ocorriam opor- tunidades de mudanca de classe ou mesmo de estrato social. As pesquisas tém indicado que certo ntimero de individuos conseguiu a passagem, embora quase sempre A custa da adesio ao poder dominante. Para a maioria, \\ foi menos conquista que cooptagio. Para -\quase todos, a passagem também se fez pelo >} acesso que tiveram 4 escolaridade e 4 edu- cacéo formal de uma sociedade imobilista, que assim garantia a estabilidade de seus qua- dros dirigentes e a subserviéncia dos que pu- deram aproveitar as oportunidades de serem cooptados. O que deve ficar claro é que numa sociedade de classes tio demarcadas como o Brasil de meados do século passado, cuja base da mao-de-obra estava no trabalho es- cravo, e cujas formas de dominagao de classe eram estruturadas pelas relag6es paternalis- tas, de favor e clientelas, foi impossivel o aparecimento de qualquer modelo social alter- nativo, ou a manifestagéo de uma consciéncia de classe fora das ideologias que sustentavam © poder oligarquico. A producio intelectual determinada por essas condig6es esteve quase sempre, indepen- dente do grau de consciéncia do produtor, a servigo dos interesses estabelecidos e das for- mas de dominacao consolidadas. Machado de Assis desde cedo deve ter compreendido a forca dessas determinagées e para ultrapas- sd-las teve que travar um duro combate. A superacdo, entretanto, nao se processou senéo pela incorporagao ao texto das condi¢des de sua produco, circulacdo e consumo, ao mes- mo tempo que conseguia “transbordar” para a linhagem de uma producao artistica fora da heranca que alimentava as ideologias do poder oligarquico. Diante disso, a biografia intelectual de Machado de Assis enfrenta necessariamente os percalgos e limites desse tipo de trabalho, e algo mais. $6 pode reconstruir um fantasma persistente nos textos, movendo-se no espago do risco e da aventura, Movimentos que vao da obra para o autor e deste para aquela, de ambos para o social, e para a sociedade, e nesta para os mecanismos do mercado, do prestigio e da gloria. O homem empirico Ma- chado de Assis se perdeu, como se perdeu a limpidez do texto. Para essa dupla perda, o bidgrafo constréi suas formas de compensa- cao, que também padecem de determinagées incontornaveis. Mas esse limite nao impede que a biografia intelectual reconhega nos tex- tos do escritor 0 estatuto de sua represen- tacdo estética, de sua especificidade de textos insertos na continuidade de uma heranca de- terminada e das rupturas que operaram. A biografia intelectual persegue um jantasma, que é 0 do biografado e, no limite, © fantasma de si propria. Na penumbra de suas sombras, um texto da natureza deste deve, contudo, iluminar a arena da disputa pela posse ideolégica (mas real) dos textos artisticos transformados em bens culturais. Deve iluminar os momentos e movimentos principais da luta pela apropriagaéo e do pa- pel desempenhado pelo produtor e os pro- dutos, conforme se prestem a uma direcdo © a um sentido nessa batalha. A biografia intelectual nao reconstitui um homem, nem sua obra, nem sua época. Antes, deve buscar os pontos de articulagéo entre eles e, portan- to, procurar captar 0 movimento especifico das contradig6es vividas e incorporadas pelos bens culturais no cendrio dos antagonismos da sociedade de classes. Para tanto, ela nao pode perder de vista sua condicao intrinseca de intervencdo nessa batalha e seu estatuto de um lance a mais no movimento das contradicées. XV — Cooptagao e favor Tendo publicado dois livros com pegas de teatro e uma satira em prosa e um de poemas, traduzido Os trabalhadores do mar, de Victor Hugo, e diversas pecas de teatro, com intensa colaboracdo cotidiana como jor- nalista politico, repérter, cronista, contista, poeta e critico literario e teatral, polémicas e cartas, Machado aceita, em fins da década de 1860, com quase trinta anos de idade, a funcdo burocrdtica, para conseguir uma si- tuacdo econémica menos instdvel. O emprego publico constituiré seu suporte até o fim. Escritor consagrado, presidente da Academia Brasileira de Letras, autor de quase vinte li- vros, stia profissao oficial era funciondrio pii- blico. A fraqueza e 0 limite de sua condic&o de escritor estavam dados pelo modo como se realizava a producio, a circulagao e o con- sumo dos bens culturais. Isto nado parece ter sofrido alterag6es qualitativas radicais duran- te os cingiienta anos de intensa produgao intelectual, apesar das transformag6es por que © pais passou. Sobre as condigdes gerais de produgdo intelectual no Brasil do inicio deste século, Medeiros e Albuquerque escreveu em 1905: Gooptacao e favor 25 “E certo que a necessidade de ganhar a vida em misteres subalternos da imprensa (sobre- tudo o que se chama a ‘cozinha’ dos jornais; a fabricacdo r4pida de noticias vulgares), misteres que tomam muito tempo, pode im- pedir que os homens de certo valor deixem obras de mérito. Mas isso lhes sucederia se adotassem qualquer outro emprego na admi- nistragéio, no comércio, na industria... O mal nao é do jornalismo: é do tempo que Ihes toma um officio qualquer, que nao os deixa livres para a meditacdo e a producao” 2%, O problema é ainda muito mal estudado na sociologia da literatura e de dificil inter- pretacdo, uma vez que a relagio nao se faz sentir diretamente entre produgdo e consumo, e nem sao possiveis generalizagGes apressadas, pois as circunsténcias determinantes variam de pais, de época, de cidade e mesmo de escritor para escritor. Nao obstante, em Ma- chado de Assis, afora outros aspectos, as condigdes de producdo imediatamente dadas devem ter um peso especifico na situagao de produtor “excéntrico”, de uma literatura “ex- céntrica” — tomado o termo, aqui, literal- mente, no sentido de “fora do centro”. No ano de 1867, em plena Guerra do Paraguai (diante da qual Machado se man- teve ambiguo e sem maior entusiasmo guer- reiro e nacionalista), o Estado imperial deu dois passos importantes para a “integragao” do homem inquieto e combativo: condeco- rou-o com a Ordem da Rosa, no grau de cavaleiro, por “relevantes servigos prestados as letras patrias”, e abriu-Ihe as portas da burocracia estatal nomeando-o “ajudante do diretor do Diério Oficial”, porta-voz do apa- relho do Estado. E claro que tudo pareceu um misto de reconhecimento e favor, que implicava uma troca de reconhecimento ¢ favores. Em 1873 é nomeado “primeiro-oficial da Secretaria da Agricultura, Comércio e Obras Publicas”, abrindo-se outra perspectiva em sua carreira de funciondrio piblico esta- vel. Em 1888 sera elevado ao grau de Oficial da Ordem da Rosa. Esse era o caminho e 0 destino seguros para um homem cujo passado recente, cujas origens raciais e de classe ins- piravam uma confianca apenas relativa. O processo seletivo seria demorado até o alto 2% Apud Broca, Brito. A vida literdria 26 —VARIAS HISTORIAS PARA UM HOMEM CELEBRE da carreira burocratica, e as provas de dedi- cacio e adesdo precisariam estar completas. E nisto que se instaurard o aspecto visivel de uma contradicao existente nas relagdes de classe e que muitos bidgrafos nao puderam ver, 27 Compelido 4 maquina burocrdtica esta- tal, como forma de sobrevivéncia e estabili- dade econémica, Machado seguiu o destino da maioria dos de semelhante origem, alfa- betizada e livre. Mas ele soube como ninguém levar até o fim 0 carater contraditério de sua posigdo, fingindo aceitar a divisdo impositiva que o poder criara e referendava: o literato é livre para produzir, mas 0 homem é depen- dente para sobreviver. Foi quando assumiu sem subterftigios o carater contraditério de sua situagao de classe e das condigées de producdo que péde des- vendar as contradicées sociais. Foi assim que sua praxis textual engendrou-se no fluxo de uma tradigao da satira, do humor e da ironia que, desde o mundo antigo, mas especialmen- te na Idade Média e Renascimento, rompera a unidade tragica e épica do homem. Tradi- cao que assumira e indicava agora para ele uma praxis textual colada 4 contemporanei- dade, numa zona de contato imediato e de familiaridade com os homens vivos e proxi- mos. Quando Machado assumiu sua origem e fung&o de classe como contraditérias por exceléncia, fundou seu texto na contradicao e no paradoxo para desvendar o carater arbi- trario da ordem e dos valores, Nisso parece consistir basicamente sua consciéncia de classe, que nao pode ser bus- cada na “coeréncia exterior” do homem para 27 Seguindo de perto a opinido praticamente unanime da critica e dos bidgrafos que costumam interpretar esse pro- blema com um ponto de vista de cima, 0 mesmo do Estado cooptador, Antonio Candido escreveu: “Mas na verdade 0s seus [de Machado] sofrimentos no parecem ter excedido aos de toda gente, nem a sua vida foi particularmente frdua, Mesticos de’ origem humilde foram alguns homens representativos do nosso Império liberal. Homens que, sendo da sua cor ¢ tendo comecado pobres, “acabaram recebendo titulos de nobreza e carregando pastas ministeriais. Nao exageremos, portanto, 0 tema do génio versus destino. ‘Antes, pelo contrario, conviria assinalar a nprmalidade exterior ea relativa facilidade da sua vida piblica. Tip6- grafo, repdrter, funciondrio modesto, finalmente alto. fu i a sua carreira foi plécida”. CaNDIpo, Antonio. de Machado de Assis. In: Varios escritos. So Paulo, Liv. Duas Cidades, 1970. Com proveito podem ser consultadas, entre muitas outras, as producdes de: FREYAE, Gilberto. Sobrados e mocambos. de Janeiro, J. Olympio, 1968. 2 t.; Viorti pa Costa, Emilia, Da Monarquia a Repiiblica: Momentos decisivos. Sio Paulo, Editorial Grijalbo, 1977; © PuIOL, Alfredo. p. cit. com os movimentos sociais ostensivos de seu tempo e sim na dialética que articulou a pro- ducao artistica de que foi capaz. Um pedido de emprego piblico implica- va sobretudo uma relagao de favor reciproco, de conciliago com o poder e de aceitacao das regras do jogo. Em carta a Quintino Bocaitiva, datada de 1866, quando Bocaitiva era secre- tario de Saldanha Marinho, presidente da Provincia de Minas Gerais, Machado diz: “Agradeco-te outra vez a recomendagdo que de mim fizeste ao Afonso [Celso]. Achei-o nas melhores disposigdes a meu respeito, e segundo me aprovou ainda ontem, estarei empregado até janeiro, e com bom emprego. Disse-me que devia haver brevemente uma vaga de 2.° oficial na Secretaria do Império, e eu pela minha parte falei-lhe na de 1.° oficial na de Agricultura. Qualquer desses ou outro, disse-me ele, ser-me-4 dado. Nunca houve emprego que viesse mais a propésito do que esse que me derem”. Supor que o jornalismo the permitisse sobreviver melhor e menos comprometido, fora do aparelho burocratico, choca-se com as condi¢des em que 0 jornalista Machadinho trabalhava. Alfredo Pujol, talvez com uma ponta de exagero, informa a respeito: “Ma- chado de Assis ficava (por volta de 1866) isolado na diregéo da folha (Didrio do Rio de Janeiro), com todo o peso do trabalho sobre os seus ombros. Teve de escrever arti- gos politicos, vencendo a sua natural aversao a esse género de literatura... Nao deviam ser maus aqueles artigos, porque o proprie- tério do jornal, Sebastidéo Gomes da Silva Belfort, sempre que os publicgva Machado de Assis, costumava visitar ds ministros e deputados, inculcando-se autor dos editoriais e recebendo por toda a parte felicitacdes e cumprimentos. .. Apesar das gl6rias literarias que Ihe assegurava a pena de Machado de Assis, Sebastiaéo Gomes da Silva Belfort retri- buia miseravelmente 0 esforgo do jornalista, que muitas vezes teve por tinico alimento do dia o almocinho classico de café com leite e pao torrado no Carceler ou no Café Bra- guinha, Era grande gala, quando o vago orde- nado de Machado de Assis Ihe permitia uma ceia no Hotel da Europa, cuja fama culinaria igualava a da célebre Saleta de Pasto de Per- pétua Mineira, que floresceu no tempo do primeiro imperador” °°, O emprego publico, entretanto, nao esta- va isento de contradigdes agudas. “A buro- cracia do Império foi cabide de empregos, os burocratas sujeitos aos caprichos da polf- tica e ao revezamento dos partidos no poder. As lutas politicas se definiram em termos de lutas de familia e suas clientelas. A ética de favores prevalecia sobre a ética competitiva, e o bem ptiblico confundia-se com os bens pessoais.” (...) “O sistema de clientela que sobreviveria ao Império mascarava as tenses de classe e os antagonismos raciais. As novas classes médias urbanas que se constitufram no decorrer do Segundo Reinado nos princi- pais nticleos urbanos seriam atreladas as oli- garquias, de cuja patronagem dependiam — © que impés limites a sua critica.” (...) “Segura de suas posicdes, controlando a mo- bilidade social e imbuida de uma concepcio hierérquica do mundo, que ratificava as de- sigualdades sociais e postulava obrigacées re- ciprocas, a elite brasileira no precisou recor- rer a formas explicitas de discriminagao racial. Mulatos e negros foram na sua maioria ‘na- turalmente’ segregados por um sistema sécio- econémico de dinamismo moderado e de limitadas possibilidades. Os (mestigos) que foram incorporados 4 elite, pela via do siste- ma de clientela, adquiriram automaticamente 0 status de branco, identificando-se nao obstante a ambigiiidade de sua situagaéo — com a comunidade dos brancos.” 2° Em todo caso, nomeado adjunto de di- retor do Didrio Oficial, em 8 de abril de 1867, prontamente abandonou suas funcdes no Didrio do Rio de Janeiro, que exprimiu publicamente o pesar de vé-lo partir (talvez através do proprio proprietario) : “Lamenta-se que 0 Didrio do Rio, no momento em que vestira a casaca nova, fosse forcado a despedir-se do seu antigo colabo- rador J. M. Machado de Assis. Eu julgo 0 Machado de Assis uma das melhores cabecas do Brasil, e tao convencido estou disto que ouso declara-lo em letra redonda. Se erro, tenho felizmente um sem-nimero de compa- nheiros. Admirdvel como poeta em mais de 2% Pusot, Alfredo. Op. cit. 2% Viortt pa Costa, Emilia. Op. cit. Uma porgéo de talento 27 um género; distinto como jornalista, 0 Ma- chado de Assis tem a bossa da critica desen- volvida, mais do que se poderia esperar de sua curta idade” *°. Pode-se concluir disso que as condig6es de produgao intelectual Ihe seriam mais favo- raveis se deixasse os azares e acasos do jorna- lismo profissional de entao e estabilizasse a vida econémica na burocracia estatal, acei- tando a divisio que lhe era imposta entre o burocrata e o escritor, apesar da contradi¢ao insuperavel da situacao. Foi o que fez, e conseguiu, apesar de tudo, uma autonomia, inclusive politica, que € evidente em sua producao. Péde mesmo escapar de julgamentos _preconceituosos, “uma das melhores cabecas do Brasil”, “a bossa da critica desenvolvida, mais do que se poderia esperar de sua curta idade”, que, sob 0 disfarce do elogio e da admiracao, escon- diam 0 espanto do “superior” que se obriga a reconhecer que o “subalterno”, mestico e de origem humilde, tem méritos e qualidades ineg4veis. Equilibrado na burocracia, Macha- do pode assumir plenamente as contradicées de sua posicdo e condicéo na prdxis textual de modo que essa situagdo particular se tor- nasse “modelo”-da propria estrutura de clas- ses e do exercicio do poder. XVI— Uma porgao de talento Machado de Assis, cooptado pelo apa- relho de Estado, viu o trabalho burocratico como a alternativa vidvel de sobrevivéncia naquele momento. Sua cooptagao foi do in- teresse do Estado imperial e também de seu proprio. O jornal em que trabalhava expés isso de piblico: “O Didrio anunciava que um colaborador, ‘merecendo a justa conside- racdo do governo’, deixava 0 jornal para ‘auxi- liar a redagao do Diario Oficial’, e que se respeitavam as ‘razdes decorosas e leais’ que decidiram Machado de Assis a aceitar aquela funcao” #1, Em 1868, José de Alencar envia uma carta aberta a Machado de Assis, solicitando- -Ihe a atengdo para um jovem poeta e dra- 30 Apud Massa, J.-M. Op. cit. 31 Apud Massa, JM. Op. cit. 28 —VARIAS HISTORIAS PARA UM HOMEM CELEBRE maturgo, vindo recentemente da provincia — Castro Alves: “Lembrei-me do senhor. Em nenhum concorrem os mesmos titulos. Para apresen- tar ao ptiblico fluminense 0 poeta baiano, € necessario nao sé ter foro de cidade na im- prensa da Corte, como haver nascido neste belo vale do Guanabara, que ainda espera um cantor”, comeca gentilmente Alencar. E prossegue: “Seu melhor titulo, porém, é outro. O senhor foi o tnico de nossos modernos escritores, que se dedicou sinceramente a cul- tura dessa dificil ciéncia que se chama cri- tica. Uma porcéo de talento que recebeu da natureza, em vez de aproveita-lo em criacdes proprias, teve a abnegagdo de aplicd-lo a formar o gosto e desenvolver a literatura patria. Do senhor, pois, do primeiro critico brasileiro, confio a brilhante vocacao literd- ria, que se revelou com tanto vigor”. SN oF ce ah Lu Ta wa emer vin; Uti feveeiist |, a Mio de Janeiro, 3810 Machado, de Asi Jost de Alencar Se ha elogio a Castro Alves, ha maior a Machado. E parece também que Machado de Assis ainda nao havia conquistado aten¢gao como poeta e contista, embora sua produgao ja fosse abundante. A referéncia de Alencar sobre 0 talento do critico (“em vez de apro- veité-lo em criacdes préprias”) demonstra que “o foro de cidade na imprensa da Corte”, Machado s6 0 tinha como critico ¢ jornalista. Isso é demonstrado também pelo fato de nessa época muitos solicitarem dele o julga- mento e a critica das respectivas obras. Com isso, parece possivel também de- duzir que a partir de certo momento ha uma reorientagéo na producdo machadiana. Na década de 1870 vamos encontra-lo em outro projeto, que vinha de antes, pois em 1869 assinou com o editor Garnier um contrato em que se comprometia a enviar-lhe trés obras, em novembro de 69, marco de 70 e fins de 70. Tudo leva a crer que esse contrato fora assinado para que Machado conseguisse um adiantamento em dinheiro as vésperas do casamento. “Alguns meses antes, Machado de Assis vendera a Garnier seus Contos fluminenses € Falenas.”” Vé-se, ai, no s6 um homem ambicioso enquanto escritor, como consciente de seu oficio, agindo profissionalmente e, dentro das peculiares condicdes de mercado que o obri gavam a alienar os direitos autorais, definiti- vamente, por uma quantia fixa (note-se o ape- lido de “bom ladrao” que tinha o editor Gar- nier), com possibilidades de ser remunerado por seu trabalho intelectual. O desenvolvi- mento de uma consciéncia profissional em Machado de Assis, como escritor, estaré sem- pre imbricado com sua preocupagdo cons- ciente do papel de integracéo e progresso que as artes poderiam e deveriam ter no Brasil. XVII — Casamento como o do pai Machado de Assis casou-se com Caro- lina Xavier de Novais, em 1869. Carolina era portuguesa, nascida no Porto, em 1835, filha de um relojociro ¢ joalheiro (portanto, artesio e comerciante), ¢ veio para o Brasil no ano anterior ao casamento. No Rio de Janciro vivia ha varios anos seu irmao Faus- a tino Xavier de Novais, poeta, escritor sati- rico, editor de uma revista (O Futuro), jor- nalista, amigo de Machado, e sofrendo, na epoca, de periédicas crises de loucura. Nao se sabe por que Carolina viajou ao Rio de Janeiro, se para cuidar do irmao, se por outro motivo. Também é dificil crer que tenha ha- vido “acirrada oposigao” ao casamento, por parte da familia de Carolina. Mesmo seu ir- mao mais velho, Miguel, que seria 0 maior opositor, deixou cartas cordiais e afetuosas, enviadas a Machado anos depois do casa- mento. Machado, alids, serviu-lhe de padri- nho no casamento com a vitiva do conde de Sao Mamede, familia que teria protegido os Novais aqui no Brasil, 5? Carolina. O noivado e o amor de Machado e Caro- lina estéo hoje suficientemente elucidados pelo livro de Jean-Michel Massa, que aqui vimos citando e cujo capitulo XIV, da quinta parte, esclarece minuciosamente 0 que se tor- nou publico ¢ possivel de saber. Resta assinalar que nem a venda dos direitos autorais, nem o emprego piiblico eram suficientes para cobrir as despesas do %2 Ver Massa, JM. Op. cit.; e Fonseca, Gondin da, Op. cit. Casamento como o do pai = 29 novo casal. Dias apés 0 casamento, Machado pede auxilio a Francisco Ramos Paz, e, ainda em maio de 1870, escreve ao mesmo Ramos Paz: “Ajuda-me, Paz; eu nao tenho ninguém que o faca. Conselhos, sim; servicos, nada” ®*, A vida conjugal de Machado e Carolina jA foi vista como perfeita por muitos bidgra- fos, que ao mesmo tempo assinalaram uma “contradicéo” entre uma obra irrequieta e um casamento pacifico. Parece que, de fato, nao h contradicio alguma. A uniao do es- critor com Carolina teve os problemas resol- vidos no Ambito do que dizia respeito aos dois, e isso basta. Nao tiveram filhos e nunca veio a ptiblico, ao que se saiba, qualquer problema doméstico. Carolina nfo teve ape- nas o mérito da fungao doméstica. A convi- véncia com Machado parece ter tido grandes afinidades intelectuais, salientadas pelo escri- tor desde o noivado, em duas cartas da época que foram preservadas. Numa delas diz Ma- chado: ...“tu nao te pareces nada com as mulheres vulgares que tenho conhecido. Espi- tito e coragéo como os teus sao prendas raras; alma téo boa e tao elevada, sensibili- dade tao melindrosa, razio tao reta nao sio bens que a natureza espalhasse as maos-cheias pelo teu sexo. Tu pertences ao pequeno nime- ro de mulheres que ainda sabem amar, sentir e pensar. Como te nao amaria eu? Além disso tens para mim um dote que realca os mais: sofreste”. Sobre a suposta oposicaio da familia de Carolina ao casamento, a outra carta diz: “Para imaginares a minha aflicdo, basta ver que cheguei a suspeitar oposicao do F. [Faus- tino] como te referi numa das minhas ultimas cartas. Era mais do que uma injustica, era uma tolice. Vé 14: justamente quando eu estava a criar estes castelos no ar, 0 bom F. conversava a meu respeito com a A. e pare- cia aprovar as minhas intengdes (perdao, as nossas intengdes). Nao era de esperar outra cousa do F.; foi sempre amigo meu, amigo verdadeiro, dos poucos que, no meu cora- cao, tém sobrevivido as circunstancias e ao tempo. Deus Ihe conserve os dias e Ihe res- titua a satide para assistir A minha e A tua felicidade”. 88 Consultar Epistolério. In: CouTINHO, Afrinio, org. Machado de Assis — Obra completa. Rio de Janeiro, Agui- jar, 1962. v. “3. 30 VARIAS HISTORIAS PARA UM HOMEM CELEBRE Alguns bidgrafos, em especial Lucia Miguel Pereira, afirmam que Carolina teria levado o escritor 4 leitura de autores ingleses e classicos portugueses, e até corrigiria seus textos... Mas, parece que, antes de conhecer Carolina, Machado ja lia os ingleses e man- tivera contato com os classicos portugueses desde muito antes, através do Gabinete Portu- gués de Leitura. Em abril de 1870, poucos meses apés 0 casamento, Machado comeca a publicacgdo de uma traducdo do romance Oliver Twist, de Charles Dickens, que afinal nao se completaria; ja citava Shakespeare antes de conhecer Carolina e escrevera cen- tenas de paginas sem precisar de corregdes da mulher. Pesquisa de Jean-Michel Massa leva-o a afirmar que em 1870 Machado nao lia inglés correntemente, e a tradugéo de Dickens teria sido feita através da versio francesa. Tanto Lucia Miguel Pereira quanto Eugénio Gomes consideram que em 1870 Machado ja teria familiaridade com autores ingleses. No romance Iaid Garcia (1878) a personagem principal esta sempre as voltas com ligdes de lingua inglesa. ** Da unido de ambos, o escritor da teste- munhos claros na velhice, suficientes para encerrar a discussio aqui. Quando Carolina morre, em 1904, ao agradecer as condolén- cias de Joaquim Nabuco, o escritor envia-lhe uma carta, que diz muito, e quase tudo: “Meu caro Nabuco. Tao longe, em outro meio °°, chegou-lhe a noticia da minha grande des- graca ¢ V. expressou logo a sua simpatia por um telegrama. A tinica palavra com que The agradeci (Obrigado) é a mesma que ora Ihe mando, nao sabendo outra que possa dizer tudo o que sinto e me acabrunha. Foi-se a melhor parte da minha vida, e aqui estou s6 no mundo. Note que a solidio nao me é enfadonha, antes me é grata, porque é um modo de viver com ela, ouvi-la, assistir aos mil cuidados que essa companheira de 35 anos de casados tinha comigo; mas nao ha imaginacaio que nao acorde, e a vigilia aumen- ta a falta da pessoa amada. Eramos velhos, 34 Masse, Jean-Michel, org. Dispersos de Machado de Assis. Rio de Janeiro, MEC/INL, 1963; Gomes, Eugenio. Machado de Assis — Influéncias inglesas. Rio de Janeiro, Pallas/MEC, 1976; Micvet PeReita, Lucia. Machado de Assis (Estudo critico e biografico). $20 Paulo, Ed. Brasileira, 1949. 35 Joaquim Nabuco era entio ministro plenipotenciério do Brasil em Londres, onde estava a fim de negociar a questio de limites com 2 Guiana Inglesa. e eu contava morrer antes dela, 0 que seria um grande favor, primeiro, porque nao acha- ria ninguém que melhor me ajudasse a mor- rer; segundo, porque ela deixa alguns paren- tes que a consolariam das saudades, ¢ eu nfo tenho nenhum. Os meus séo os amigos, e verdadeiramente sdo os. melhores; mas a vida os dispersa, no espaco, nas preocupagées do espirito e na propria carreira que a cada um cabe. Aqui me fico, por ora na mesma casa, no mesmo aposento, com os mesmos adornos seus. Tudo me lembra a minha meiga Caro- lina. Como estou a beira do eterno aposento, nao gastarei muito tempo em recorda-la. Irei vé-la, ela me esperara”. XVIII— O sapo e a bufoneria A década de 1870 abre-se para Ma- chado de Assis como um momento decisivo, pois sua vida pessoal se estabiliza com 0 casa- mento, a casa (de aluguel) para morar com certo sossego e 0 emprego piiblico respal- dando as necessidades mais imediatas. Ma- chado de Assis estava com sua passagem qua- se completada, desde as origens humildes e suburbanas até a posicgéo de escritor que passa a gozar de prestigio social, que “tem foro de cidade” na Corte do Segundo Império. O modelo estabilizado do funciondrio subal. terno naquela estrutura de produgao consti tufa um patamar relativamente seguro. Mais ainda: praticava um modelo comportamental cuja dignidade podia ser representada com 0s signos positivos da classe superior: a gra- vidade, a compostura, 0 alinho e apuro das roupas € gestos e a “participagdo” nas deci- sdes de um Estado cuja marca visivel de estabilidade estava na burocracia. Machado de Assis ser4 funciondrio de- dicado, graduando-se sucessivamente e bran- queando-se, segundo querem alguns estudio- 0s, como forma de assegurar bem: visivel a passagem de classe. Pela pompa de seu en- terro podemos concluir que no homem Joaquim Maria Machado de Assis a transfor- mac&o foi completa, da origem ao ponto de chegada. Ele triunfou em todas as provas a que as classes dominantes o submeteram. Nao tivesse escrito 0 que escreveu e como escre- veu e hoje repousaria no ossudrio do com- pleto esquecimento, 0 mesmo em que esto os que s6 serviram. Ha, porém, a outra face do seu traba- Tho. A transicao das origens para a presi- déncia perpétua da Academia Brasileira de Letras e para diretor da Secretaria da In- dastria, no Ministério da Viacdo, nao foi um proceso harménico. As tensdes e contradi- gdes vividas pelo homem que transpés as fronteiras estao em seus textos, e, como estes tém miiltiplos caminhos de realizacéo formal, a vida intelectual de Machado de Assis tam- bém tera de ser vista com diferentes alterna- tivas. Nisso vamos encontrar o cardter da produtividade do trabalho artistico desse ho- mem de origem proletaria, obrigado a adap- tar-se as condigdes peculiares de uma socie- dade que possufa apenas uma incipiente massa de trabalhadores livres, ainda nao constitufda como classe social propriamente, e sem cons- ciéncia de si como classe. Machado de Assis, ao integrar-se no mo- delo das classes que detinham o poder e o dominio ideolégico, carregou consigo alguns caracteres que o distinguiam e incorporou na composicao formal do texto os signos da dis- tingdo. Tornou de tal forma ostensivos em si os signos do poder e da adesao, e os corrocu por dentro em sua pratica textual, que as condigées de producéo e as evidéncias da distingéo de classe crescem como emblema revelador. As contradigdes ficam expostas em carne viva, dando direcao a leitura e os- tentando aqueles signos no centro do texto. Lucia Miguel Pereira também analisou © problema: “‘O desajustamento entre Macha- do de Assis e os escritores do seu tempo pro- vém, afinal, tanto da sua intrinseca superio- tidade como do fato de haver ele seguido o ritmo da vida politica e social das classes dominantes, enquanto os outros se atrasavam, perdidos na busca do elemento tipico. O seu comedimento, o seu urbanismo, a sua urba- nidade, 0 seu gosto pelos meios-tons, o seu estilo e as suas atitudes sempre compostos — no bom e no mau sentido, de compostura ¢ de composicdo —, as suas reservas, a sua falta de frescura, o seu ceticismo (aparente, ou de superficie, porque essencialmente era sobretudo pessimista) e até o seu anglicismo © sapo ea bufoneria © 31 eram qualidades que teve ou quis ter a gente mais representativa do Brasil de Pedro IT” 3°, A familia imperial no Pago de Sao Cristévao. © texto machadiano postulou-se como “desajustado” e realizou-se como “excéntri- co” porque, na relacao com 0 que eram os modelos e as convengées, engendrou-se como parédia, sdtira, humor e ironia. Submeteu o aparato politico e ideolégico das formas de 36 Micust Pereia, Lucia. Hist6ria da literatura brasileira: Prosa de fiecdo (1870-1920). Rio de Janeiro, J. Olympio/ MEC, 1973. 32. VARIAS HISTORIAS PARA UM HOMEM CELEBRE dominacao ao crivo de uma analise e produ- cdo subversivas que as puseram a nu e reve- laram seu carater arbitrario e fraudulento. A literatura grave das convengdes reprodutoras das formas sociais de producao e dominacao, preferiu 0 texto que “foi um tablado em que se deram pecas de todo género, o drama sa- cro, 0 austero, 0 piegas, a comédia louca, a desgrenhada farsa, os autos, as bufonerias, um pandeménio, alma sensivel, uma barafun- da de coisas e pessoas, em que podias ver tudo, desde a rosa de Esmirna até a arruda do teu quintal, desde o magnifico leito de Cleé- patra até o recanto da praia em que o men- digo tirita o seu sono. Cruzavam-se nele pen- samentos de varia casta e feigao. Nao havia ali a atmosfera somente da 4guia e do beija- -flor; havia também a da lesma e do sapo” *7. Esse estranho espetéculo com que Bras Cubas explica o que foi sua vida é a meta- fora perfeita da propria produciio machadiana, que vé o espetdculo da organizacao social como a representacio de uma 6pera-bufa, néo porque a histéria fosse apenas isso e sim por- que a classe a que pertencia Bras Cubas (e a maioria das personagens machadianas) ha- via transformado o palco num espaco de do- minacao e fraude. XIX — A luva e a mao A produgao machadiana do que a cri- tica considera sua primeira fase (ou fase ro- méantica), nos romances, contos, crénicas ¢ poemas, esta impregnada de uma ideologia “Gncoerente”, que vai do liberal ao reaciona- tio. Foi o preco pago pelo escritor pelas con- tradigdes de sua migracio de classe. A maio- tia dos biégrafos de Machado de Assis viu nesses textos — especialmente nos romances — uma recriagdo de material autobiogrdfico, pelo percurso de migracio e readaptacdo de classe vivido por diversas personagens que coincidiria com o do préprio escritor. Sobre 0s romances e uma novela, diz Lucia Miguel Pereira que: “Uma depois da outra, a Guio- mar de 4 mdo ea luva, Helena, a Estela de [aid Garcia e a Lalau de Casa velha vao encarnar o autor, discutir os direitos da am- bic&o, lutar contra a hierarquia social”. E 37 MacHapo pe Assis, A uma alma sensivel. In: —. Memérlas péstumas de Brés Cubas. cap, 34. acrescenta, em nota de rodapé, com toda a convicgio: “E interessante notar a sutileza de reserva que levou Machado de Assis a se encamar de preferéncia nos tipos femininos, quando queria explicar fatos da sua vida. O Bras Cubas e 0 Conselheiro Aires, nos quais pds tanto de si, representam tendéncias do seu espirito, mas nada tém de comum com a sua existéncia” $8, Para Lucia M. Pereira a coeréncia entre homem e texto pareceria isenta de fissuras, contradicdes ou paradoxos. Por isso, ela tera razio apenas parcial, na medida em que a experiéncia do homem Machado de Assis esta presente nessas personagens, mas nao s6; tam- bém estao presentes a ideologia e a anilise de situagdes caracteristicas a determinada fai- xa social, na época e naquele meio. A expe- riéncia particular do escritor pode estar ali, mas seus textos tém principalmente o esta- tuto de mapeamento de relagdes sociais reve- lador das condigées gerais da sociedade em que ele produzia literatura. Mais recentemente, Roberto Schwarz, quanto aos romances, considera a primeira fase de Machado antiliberal: “Onde Alencar alinhara pelo Realismo, pelas questdes do individualismo e do dinheiro, vivas e criticas ainda em nossos dias, Machado se filiava & estreiteza apologética da Reacdo européia, de fundo catélico, e insistia na santidade das familias e na dignidade da pessoa (por opo- sigéo ao seu direito)”. E, a frente, reafirma: “Mais tarde, quando vem a escrever os seus primeiros romances, estes se alimentam da ideologia antiliberal”. Nao obstante, 0 mes- mo critico observa que nem tudo é compacta- mente reaciondrio nesses romances: “Embora afirmem a santidade da ordem e da familia, nao esta af a sua maior, nem sobretudo a sua melhor parte. E como se 0 conformismo nas coisas essenciais autorizasse, para pro- veito e edificacdo gerais, a investigacdo das raz6es as vezes insdlitas que ocorria serem as verdadeiras da vida familiar. Daf a liber- dade na ‘transcrigdo dos costumes’, a dispo- sigio de ver muito e complexamente, de que vao resultar os assuntos propriamente novos e notaveis” 99, 38 MioueL Peneima, Lucia, Prosa de’ficedo... 39 Scuwanz, Roberto. Ao vencedor as batatas. So Paulo, Liv, Duas Cidades, 1977. O ponto principal de contradigéo esta em que é possivel ler o importante especial- mente no método que Machado adota e, por- nto, na realizagdo formal, e menos no que a ideologia liberal ou antiliberal tinha de ex- plicito. Machado de Assis realiza um romance pseudo-roméntico, onde a-idealizagao alenca- riana, por exemplo, que cumpre um papel monoliticamente conservador, é substituida pela observagao de costumes que eram os da sociedade brasileira e os mais arraigados, de sorte que essa produgao abria uma frente de pesquisa da ideologia. Essa frente de hd muito havia sido aberta na poesia brasileira — e na de Machado —, onde o exercicio formal conseguira, seguramente por sua intensidade © variedade, avangos a que a prosa, no ro- mance como no conto — por seu processo ainda incipiente de transplantagao da Europa e aclimatacio aqui —, nao havia chegado. Se lembrarmos dois poemas, um do livro Falenas — “Uma ode de Anacreonte” — e outro de Americanas — “Sabina” —, vere- mos que Machado de Assis carregava a con- tradigao assinalada. No primeiro ha o triunfo do comerciante, do dinheiro; e, para as quei- xas do poeta sensivel e derrotado (metdfora dos valores ideais), h4 a seguinte resposta: “Pressinto/ Uma lamentagao initil. ‘A Co- rinto/ Nao vai quem quer”... etc. Jé no poema “Sabina” encontramos o tema da pas- sagem frustrada de classe, ou melhor, da ilu- so e engano de ser aceito pelo patriarcalismo mandante: a mucama mestiga Sabina é sedu- zida pelo moco rico e académico, que, depois de engravidé-la, casa-se com outra de sua classe. Sabina pensa em matar-se: Ia a cair nas dguas, Quando stibito horror Ihe toma o [corpo; Gelado o sangue e trémula recua, Vacila e tomba sobre a relva. A [morte Em a chama e lhe fascina a [vista; Vence o instinto de mae. Erma e [calada Ali ficou. Viu-a jazer a lua Largo espago da noite ao pé das [aguas, E ouviu-lhe o vento os trémulos [suspiros; Alwaeamio 33 Nenhum deles, contudo, o disse 4 [aurora. 4° O triunfo do dinheiro, embora numa si- tuagdo deslocada para a Grécia antiga, e a crueldade indiferente do patriarcalismo, como a diferenga de classes, estéo inteiros a arbi- trarizar a ordem que em outros textos aparece como “natural”. Na realizacéo formal desses poemas ja se notam rupturas de convengdes e quebra da énfase de padrao romantico, es- pecialmente pela linguagem repassada de tom coloquial e desinibida na métrica e no ritmo. Também em muitas crénicas da década de 1870, Machado esta liberto de conserva- dorismo, solto a rir, ironizar, distanciado dos “compromissos ideolégicos”, submetendo os valores sociais & corrosio, semelhante aquela que ser sua marca depois da década seguin- te. Por exemplo, em 1.° de outubro de 1876, escreve: “A opinido publica detesta o boi. sem batatas fritas; e nisto, como em outras coisas, parece-se a opinido piblica com o estémago. Vendo o boi a fita-la, a opiniio estremeceu; estremeceu e perguntou o que queria. Nao tendo o boi o uso da palavra, olhou melancolicamente para a vaca; a vaca olhou para Minas; Minas olhou para o Para- nd; 0 Parana olhou para a sua questo de limites; a questao de limites olhou para o alvaré de 1749; 0 alvaré olhou para a opinido publica; a opinido olhou para o boi. O qual olhou para a vaca; a vaca olhou para Minas; e assim irfamos até 4 consumagao dos séculos, se nao interviesse a vitela, em nome de seu pai e de sua mae. A verdade fala pela boca dos pequeni- nos. Verificou-se ainda uma vez esta obser- vacdo, espeitorando a vitela estas reflexdes, tao sensatas quanto bovinas: — Género humano! Eu li hd dias no Jornal do Comércio um artigo em que se fala dos interesses do produtor, do consumidor e do intermedirio; falta falar do interesse do 4 © ensaio de Alfredo Bosi, “A miscara e a fenda”, publi- cado neste volume & pagina’ 437, estuda os contos de. Ma- chado desde a. producfo.inicial © demonstra a presenca de Pontos de ruptura nas Histdrias da meia-noite, pot exemplo. Assinala que “o jovem Machado introjeta a nova economia das relagdes humanas que comeca a regular, cada vez mais conscientemente, os moveis da vida privada. Assim, € no {rato das personagens que a novidade se toma ostensiva”. E, comparado a Macedo, Manuel Ant6nio ou Alencar, “Machado. seré, talvez, mais neutro, mais seco, mais. esque- mitico em todo esse trabalho. de composigio narrativa, que ele aprendeu, quando no imitou, de outros contextos”,

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