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O trabalho de leitura crítica...

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O TRABALHO DE LEITURA CRÍTICA:


RECOMPONDO REPRESENTAÇÕES, RELAÇÕES E
IDENTIDADES SOCIAIS

José Luiz Meurer

Introdução

A narrativa pessoal abaixo constitui-se da transcrição da parte


central de uma entrevista oral na qual uma senhora, em Florianópolis,
SC, responde à seguinte pergunta de um pesquisador em usos da
linguagem: “A senhora já sentiu alguma vez perigo de vida . . . a morte
por perto?”

Só uma vez. No carro. Né? No carro que eu fui em cima. Né?


Credo! Até dá pra rir. Não. Eu vinha passando lá na . . . Ai! O
nome daquela rua, meu Deus! pera aí. Aquela rua dos
servidores, aquela rua ali, agora, que eu não sei dizer . . . Pera
aí. Ai, aquela rua que sai dos servidores, que tem aquela
bomba de gasolina agora, que a gente entra ali. Aquela rua
ali. Vinha passando ali. Tinha dois carros. Aí uma senhora
veio no fuca. Aí mandou eu parar. Aí eu parei. Parei.
Atravessar a rua. Parei. Ela garrou, mandou eu passar. Quando

Ilha do Desterro Florianópolis nº 38 p.155-171 jan./jun. 2000


156 José luiz Meurer

eu passei, ela botou o carro em cima. Agora eu não sei, se foi


um milagre, ou foi devoção que eu tenho, a fé que eu tenho
em muitas coisas que quando ela veio com o carro, eu pulei e
fiquei sentada na frente do carro, ali. Quando eu dei conta de
mim, eu tava sentada em cima. Foi só. A única coisa, que
aconteceu na minha vida. Né? Nada mais.

Teorias cognitivas adotadas por lingüistas aplicados e psicólogos


da cognição explicam que conseguimos atribuir sentido a um texto como
este, bem como a outros textos em geral, escritos ou orais, através da
ativação de um conjunto complexo e variado de habilidades lingüísticas
e cognitivas. Somos capazes de atribuir sentido e coerência ao que lemos
porque nossa familiaridade com os elementos lingüísticos contidos no
texto e outros conhecimentos e habilidades armazenados em nossas
mentes nos permitem ativar significados específicos relevantes ao texto
lido. Através da interação de processos ascendentes (relativos ao
processamento de informação contida no texto) e descendentes
(relativos à informação disponível em nossa mente), os recursos mentais
e esquemas específicos de que dispomos interagem com os textos que
lemos, conduzindo-nos ao fenômeno da compreensão (ver, por exemplo,
Meurer, 1988; Heberle e Meurer, 1993).
Sob esta perspectiva teórica de ordem cognitiva, uma das
estratégias que utilizamos para atingir a compreensão de um texto é o
armazenamento da sua informação numa espécie de macroestrutura
que nos permite perceber a coerência do texto como um todo (van Dijk
e Kintsch, 1983). A macroestrutura é caracterizada pelo conteúdo dos
componentes semânticos típicos de cada gênero textual específico.
Assim, no caso da narrativa pessoal acima, a macroestrutura é
constituída pela condensação do incidente narrado em torno dos
componentes semânticos típicos deste gênero: resumo, avaliação,
orientação, ação complicadora, resolução e coda (Labov, 1972).
Especificamente, esses componentes estão distribuídos da seguinte
forma:
O trabalho de leitura crítica... 157

(a) Só uma vez. No carro. Né? | Resumo


Aquele carro que eu fui em cima. |_
(b) Né credo! Até dá pra rir. |_ Avaliação
(c) Não. Eu vinha passando lá na . . . |
(d) Ai! O nome daquela rua, meu Deus! Pera aí. |
Orientação
Aquela rua dos servidores, aquela rua ali, agora, |
que eu não sei dizer . . . Pera aí! |
(e) Ai, aquela rua que sai dos servidores, que tem |
aquela bomba de gasolina agora, que a |
gente entra ali. |
Aquela rua ali. |
(f) Vinha passando ali. |
(g) Tinha dois carros.
|_
(h) Aí uma senhora veio no fuca. |Ação complicadora
(i) Aí mandou eu parar. |
(j) Aí eu parei. |
(k) Parei. |
(l) Atravessar a rua. |
(m) Parei. |
(n) Ela garrou, |
(o) mandou eu passar. |
(p) Quando eu passei, ela botou o carro |
em cima. |_
(q) Agora eu não sei, se foi milagre, ou foi devoção |Avaliação
que eu tenho, a fé que eu tenho em muitas |

coisas
|_
158 José luiz Meurer

(r) que quando ela veio com o carro, eu pulei. |


Resolução (s) e fiquei sentada na frente do carro, ali.
|
(t) Quando eu dei conta de mim, eu tava sentada |
em cima.
|_

(u) Foi só. A única coisa, que aconteceu na minha vida.| Coda
Né? Mais nada. |_

A encapsulação da história em uma macroestrutura na mente do


leitor o auxilia a suplantar limitações naturais da mente humana que
não permitem processar e armazenar, simultaneamente, todos os itens
de informação contidos no texto (Tomitch, 1996). Assim, na
macroestrutura específica da narrativa acima, o resumo ajuda o leitor a
visualizar o tema geral da história relatada; a avaliação, que pode ocorrer
repetidamente em qualquer ponto do texto, revela ao leitor
considerações de caráter emocional e atitudinal do narrador sobre os
“fatos” narrados; a orientação apresenta informação essencial relativa
ao contexto e aos participantes da história; a ação complicadora contém
a seqüência de orações que narram os fatos em si; a resolução especifica
o desfecho da história; e, finalmente, o componente chamado de coda
assinala o fim da narrativa e o retorno à conversa comum.
Nesse tipo de perspectiva cognitiva do processo de compreensão
de textos, a preocupação tanto do lingüista aplicado como do psicólogo
da cognição se concentra no processamento da informação, em como o
leitor consegue atribuir sentido ao texto, em como, a partir de uma
determinada estruturação de uma passagem lida, o leitor ativa esquemas
mentais relevantes para a sua compreensão. Trata-se de uma
preocupação intra-organísmica (Halliday, 1978), isto é, com o que
acontece no interior da mente do indivíduo em termos de processos
cognitivos que permitem ou bloqueiam a criação de sentido.
No presente trabalho, quero focalizar uma perspectiva distinta,
caracterizada por preocupações de ordem social e, portanto, diferentes
O trabalho de leitura crítica... 159

do ponto de vista cognitivo que acabo de apresentar. Essa perspectiva


da explicação de compreensão da linguagem humana se desenvolve a
partir de um número de diferentes tradições de análise de texto e do
discurso, destacando-se dentre essas a análise crítica do discurso
(Fairclough, 1989, 1992a, 1992b, 1993, 1995a, 1995b, 1996; Caldas-
Couthard e Coulthard, 1996; Faircough e Wodak, 1997; Heberle, 1997;
Heberle, neste volume; van Dijk, 1998). No caso da narrativa pessoal
apresentada, por exemplo, a análise crítica do discurso focaliza não os
aspectos cognitivos relativos a esquemas mentais, estruturas textuais
típicas e seu processamento e sim o tipo de ação social representada no
texto, as posições, relações sociais e os tipos de conhecimento ou crenças
que o texto veicula (noções explicadas nas próximas seções).
A abordagem social típica da análise crítica do discurso não deve
ser vista como substituindo a abordagem cognitiva ou diminuindo sua
importância. Trata-se, de fato, de perspectivas complementares. Tanto
a produção como a compreensão de textos contêm sempre uma dimensão
cognitiva e uma dimensão social, sendo que uma não pode prescindir
da outra (ver, por exemplo, Meurer, 1997; Hodge e Kress, 1993; e Heberle,
neste volume). No presente trabalho, entretanto, com base
especialmente em princípios da análise crítica do discurso, focalizo
questões de ordem social e sua implicação para o que se pode chamar
de leitura crítica.

Leitura crítica

Da perspectiva da análise crítica do discurso e da análise de


gêneros textuais, os significados derivam, consciente e
inconscientemente, de nossas experiências e do nosso reconhecimento
de práticas discursivas e práticas sociais específicas. Desse ponto de
vista, ler criticamente implica estabelecer conexões de forma a perceber
que os textos constituem, reconstituem e/ou alteram práticas
discursivas e práticas sociais. Significa perceber que os textos refletem,
promovem, recriam ou desafiam estruturas sociais muitas vezes de
desigualdade, discriminação e até abuso (van Dijk, 1998). Ler
160 José luiz Meurer

criticamente significa estabelecer, a partir de um determinado texto,


associações mentais que possibilitem compreender que em diferentes
práticas discursivas os indivíduos criam, recriam e/ou transformam
estruturas sociais de dominação, desigualdade e discriminação.
Em suas práticas do dia-a-dia os indivíduos geralmente não se
dão conta de que nas ações mais triviais estão constantemente
reconstituindo o mundo em que vivem, reforçando formas de perceber
e conceituar a “realidade”, de construir relações e identidades sociais.
Ler criticamente implica aprender a buscar nos textos pistas que
conduzam à percepção da relação dialética existente entre linguagem
e práticas sociais (Meurer, 1999).
Discutirei abaixo como se pode compreender a leitura crítica através
da reconstituição da representação da realidade e das relações sociais e
identidades “embutidas” no texto da narrativa pessoal apresentada na
introdução do presente trabalho. Em termos práticos, procuro subsídios
para responder perguntas como: o que significa e como se chega a uma
leitura crítica? O que significa dizer que reconhecemos práticas
discursivas e determinadas práticas sociais em um determinado texto?
O que são, afinal, tais práticas e como especificamente o seu
reconhecimento nos permite ler criticamente?

Leitura crítica e leitura não crítica

O mundo se apresenta da maneira como os indivíduos o vêem em


grande parte porque a linguagem molda a “realidade”.
Simultaneamente, a linguagem se manifesta na forma dos textos que
os indivíduos produzem e utilizam porque existe um mundo
caracterizado por determinados tipos de realidade. Há, portanto, uma
relação dialética entre o mundo em si, a realidade, e a linguagem.
Conseqüentemente, o conhecimento e a visão que as pessoas têm do
mundo, bem como os relacionamentos existentes entre as pessoas e
suas identidades moldam e são simultaneamente moldados pelos usos
que fazem da linguagem (ver Fairclough, 1992a). Essa relação dialética
se manifesta, embora muitas vezes de maneira extremamente opaca,
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mesmo em textos tão simples e aparentemente despretensiosos como a


narrativa pessoal apresentada acima.
Uma leitura não-crítica dessa narrativa oral se limitaria à
apreensão do seu conteúdo mais literal. Este pode ser parafraseado a
partir da macroestrutura, já apresentada anteriormente. Assim, o resumo
sintetiza que se trata de uma situação de perigo de vida (relatada em
resposta à pergunta do pesquisador) em que a narradora acabou se
encontrando um dia sobre a capota de um automóvel (um fusca). A
avaliação que ocorre em seguida indica que a narradora considera a
situação surpreendente (Né, Credo) e ao mesmo tempo cômica (Até dá
pra rir.). A orientação expressa dados sobre o local onde ocorreu o quase
acidente e os participantes: a narradora pessoalmente e dois carros que
trafegavam por uma rua (em Florianópolis) pela qual a narradora vinha
passando. A ação complicadora narra os fatos principais relativos ao
enredo da história propriamente dita: uma senhora que dirigia um dos
carros, o fusca, mandou que a narradora atravessasse a rua. Houve um
momento de indecisão e, quando a pedestre foi atravessar, a motorista
conduziu o veículo em sua direção (botou o carro em cima). Nesse ponto,
a narradora interrompe a narração dos fatos e faz uma nova avaliação
afirmando que não foi atropelada talvez por milagre, devoção ou em
conseqüência de sua fé. A resolução mostra o desfecho da história: a
pedestre deu um salto e, ao tomar conta de si, percebeu que estava
sentada sobre o carro, como sumariado no resumo, no início da história.
Por fim, a última parte, a coda, indica que esta foi a única situação de
perigo de vida pela qual a narradora passou, assinalando a conclusão
da história.
Uma leitura crítica depende igualmente da apreensão do conteúdo
semântico do texto, nos moldes que acabamos de ver. Entretanto, ao
invés de se deter sobre o sentido literal do evento narrado, tomando-o
apenas como a representação de um fato engraçado ou uma situação
perigosa, a leitura crítica expande o raio de ação do leitor para considerar
outras perspectivas e possíveis “agendas implícitas” na história. Dentre
tais perspectivas o leitor pode focalizar (embora possa ir além, é claro)
os aspectos que discutirei a seguir: as crenças e conhecimentos do
162 José luiz Meurer

mundo relacionados à representação dos fatos narrados, a relação que


se estabelece no texto entre os participantes da história e as identidades
que se criam ou se reconstituem através da narração dos fatos e das
avaliações apresentadas.
Enquanto a leitura não-crítica procura recuperar o conteúdo ou
atribuir um sentido a um texto, a leitura crítica procura compreender o
texto como constituído a partir de práticas sociais específicas e, ao mesmo
tempo, como constitutivo de tais práticas. Conseqüentemente, a leitura
crítica constitui uma via para a emancipação do leitor. Ler desta forma
deveria ser parte central dos objetivos da educação do estudante desde
seus anos iniciais do estudo da linguagem. Sob este ângulo, a escola
não apenas passaria conhecimentos de forma mais ou menos mecânica,
como tende a fazer, mas procuraria desenvolver nos indivíduos uma
consciência crítica do seu ambiente social e uma capacidade de perceber
diferentes funções da linguagem, aumentando sua potencialidade de
participar da construção de seu mundo de forma mais ativa.

Lendo criticamente: Recompondo representações da


realidade

Lembremos a afirmação apresentada acima de que ler criticamente


significa perceber que os textos refletem, promovem, recriam ou
desafiam estruturas sociais muitas vezes de desigualdade,
discriminação e até abuso. Vejamos, pois, o que acontece nesse sentido
relativamente aos conhecimentos e/ou às crenças que subjazem à nossa
singela história do fusca e, portanto, à representação da “realidade”
construída nessa narrativa. Veremos que, implicitamente, esse texto
reflete aspectos da realidade social brasileira ao mesmo tempo que
recria e reforça formas de ver o mundo.
Na parte central da história, textualizada nas sentenças que
constituem a ação complicadora:
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(h) Aí uma senhora veio no fuca. |Ação complicadora


(i) Aí mandou eu parar. |
(j) Aí eu parei. |
(k) Parei. |
(l) Atravessar a rua. |
(m) Parei. |
(n) Ela garrou, |
(o) mandou eu passar. |
(p) Quando eu passei, ela botou |
o carro em cima. |_

a motorista é representada pela narradora como a participante do evento


que toma iniciativas e exige da pedestre (a própria narradora) diferentes
procedimentos: Aí mandou eu parar; mandou eu passar . . . Além disso,
a pedestre concorda em seguir os comandos expressos: mandou eu
parar. Eu parei. . . . mandou eu passar . . . eu passei. Essa representação
não problematizada (explico essa noção mais abaixo) por parte da
narradora reconstitui crenças e esquemas de conhecimento brasileiro
(pelo menos até recentemente, antes da mudança nas leis de trânsito),
relativo a situações de trânsito de carros e pedestres. Uma dessas crenças
é que a motorista é consensualmente vista por si própria e pela pedestre
como possuindo as credenciais e a autoridade para controlar as ações
imediatas da pedestre. Implicitamente, portanto, o texto deixa
transparecer que, com o consenso da pedestre, a motorista arroga-se a
prerrogativa de resolver o que deve ou não deve ser feito no desenrolar
dos fatos narrados.
Uma outra forma de crença que o texto implicitamente reconstitui
é que a pedestre reconhece que deve dar a preferência de passagem à
motorista. A motorista, entretanto, cede-lhe este direito, mandando que
a pedestre atravesse a rua. Perigosamente, a pedestre acaba sendo
testemunha de uma contradição: apesar de ceder-lhe o direito de
passagem, a motorista avança e atropela a pedestre: mandou eu passar.
Quando passei, ela botou o carro em cima. Apesar da surpresa implícita
164 José luiz Meurer

no texto por parte da pedestre, que aceitou o comando da motorista e,


portanto, não esperava que esta avançasse, nenhum protesto é emitido
criticando a imprudência ou a falta de atenção da motorista.
Obviamente, essa não era a única opção que restava à pedestre.
Ao invés de, por exemplo, avaliar a falha da motorista, a pedestre
preferiu considerar sua própria sorte de não ter se envolvido em um
acidente de proporções mais graves como sendo possivelmente um
milagre, conseqüência de sua devoção e de sua fé:
(q) Agora eu não sei, se foi milagre, ou foi devoção |Avaliação
que eu tenho, a fé que eu tenho em muitas coisas |_

Em outros contextos socioculturais, por exemplo em países onde


claramente o pedestre teria preferência de passagem, histórias bem
diferentes poderiam ter resultado a partir de um incidente semelhante.
Ao invés da condescendência demonstrada no caso em questão, um
pedestre envolvido em uma situação semelhante poderia, por exemplo,
processar judicialmente a/o motorista por infringir leis do código de
trânsito e pôr em risco a vida de uma pessoa. Nesse sentido, crenças e
esquemas de conhecimento podem conduzir a percepções do mundo e
ações sociais completamente diferentes. Ao invés de considerar seus
possíveis direitos, a pedestre em questão avaliou o ocorrido
parcialmente a partir de um ângulo religioso, como conteúdo transcrito
no item (q) sugere.
As considerações que acabo de apresentar dão testemunho de
que a simples e cômica narrativa que estamos examinando constitui e
reconstitui práticas discursivas e práticas sociais encontradas no
contexto brasileiro. A narrativa sugere que nem a pedestre nem a
motorista problematizam a situação ocorrida. Isso fica subentendido já
no resumo da história:

(a) Só uma vez. No carro. Né? | Resumo


Aquele carro que eu fui em cima. |_
O trabalho de leitura crítica... 165

No texto, tanto para a narradora como para a motorista, o incidente


parece ser representado como uma espécie de fato, ou fatalidade, como
algo que acontece, natural, e sobre o qual nada pode ser decidido ou
feito. É nesse sentido que o incidente não é problematizado. Como
conseqüência, vendo o incidente como um acontecimento
inquestionável, algo que simplesmente acontece, as participantes não
questionam direitos, nem deveres, nem responsabilidades. Na
representação apresentada, o fato em si é naturalizado, percebido como
sendo assim mesmo, independe do envolvimento de indivíduos que
agem e provocam conseqüências.
A leitura crítica levanta questões como essas e mostra que os
acontecimentos sociais não são fatos em si, com vida própria. São, ao
invés, resultado de ações humanas e, como tal, nada existe de intrínseco
que lhes atribua as características com que se apresentam. Ações
humanas podem ser questionadas, desafiadas e, eventualmente,
mudadas. Muito do que é visto como uma realidade, fatos, práticas
sociais estabelecidas são em grande parte criações discursivas. A leitura
crítica representa um potencial para início de mudanças quando essas
forem necessárias.

Lendo criticamente: Recompondo relações sociais

Além de criar e recriar representações e formas de conhecimentos


e crenças, os textos também refletem, constituem e/ou desafiam e
modificam relações entre indivíduos. Na história que estamos
examinado criticamente, pelo menos dois tipos de relações se
evidenciam entre a narradora e a motorista. A mais evidente é a relação
de poder. A outra é a relação de condescendência.
A relação de poder reflete o controle de uma personagem sobre a
outra. Na história do fusca, a relação de poder se consubstancia
principalmente através dos comandos expressos pela motorista e
acatados pela narradora. O controle que a motorista exerce sobre a
pedestre e a autoridade que esta lhe confere indicam que nesse evento
discursivo se estabelece uma assimetria de poder no confronto entre as
166 José luiz Meurer

duas personagens: a pedestre se comporta como tendo menos poder


que a motorista. Através do seu texto, a narradora projeta a identidade
da motorista como autoridade até pelo simples fato de que esta tem
carro e, conseqüentemente, mais posses. Através desse relacionamento,
naturaliza a prerrogativa da motorista, no sentido de não problematizá-
la como visto acima, em detrimento do seu próprio direito de pedestre.
Em termos ainda do relacionamento de poder, embora produzida
pela pedestre, a parte central da narrativa, a da ação complicadora, é
constituída por extratos do texto originalmente produzido pela motorista,
narrados em discurso indireto: Mandou eu parar. Mandou eu passar.
Temos aqui um exemplo de intertextualidade, isto é, um texto
dependendo de textos já produzidos anteriormente. A naturalização do
discurso da motorista, ou seja, a não problematização de sua autoridade,
sugere que tanto para a pedestre como para a motorista existe uma
crença de que nesse tipo de relacionamento ou situação de confronto
outorga-se privilégio à motorista. Apesar de ser uma distribuição de
poder assimétrica e injusta, apresenta-se como consensual através dessa
narrativa. Na representação manifesta no texto, fica claro que se trata
de uma construção conjunta de uma forma discriminatória de poder.
Tanto a motorista como a pedestre desempenham papéis nesse
relacionamento.
Além da relação assimétrica de poder entre as personagens da
narrativa, nota-se uma relação de condescendência a respeito do que
poderia ter sido um acidente de maior gravidade. A relação de
condescendência implica deixar que as coisas aconteçam sem nada
fazer, um certo laissez-faire, quando na verdade sabe-se que algo
deveria ser feito. É provável que tanto a pedestre como a motorista
“saibam”, de alguma forma, que algo está errado relativamente ao
acidente. Alguém é responsável pelo que ocorreu. Todavia, pelo que é
narrado na história, nenhuma das duas toma qualquer medida. Além
disso, enquanto a narradora nada revela sobre a atitude da motorista a
respeito do atropelamento, pouco revela igualmente sobre sua atitude
como pedestre a respeito da motorista. Condescendentes, pedestre e
O trabalho de leitura crítica... 167

motorista deixam os fatos seguirem seu curso. Por parte da narradora,


parece haver aqui um exemplo do discurso da resignação, do aceite aos
“fatos” como se apresentam. Esse tipo de discurso não é incomum em
circunstâncias de infortúnio entre classes menos privilegiadas no Brasil
(da qual a pedestre parece fazer parte).
O relacionamento entre as personagens da narrativa evidenciado
no texto indica que, através de crenças e atitudes, a narradora recria, de
forma talvez inconsciente, formas de discriminação e assimetria social.
Indiretamente esses relacionamentos refletem, reconstituem e reforçam
práticas sociais típicas de situações de trânsito no Brasil (até
recentemente, pelo menos). A conscientização através da leitura crítica
de textos pode auxiliar na mudança de atitudes e de tais
relacionamentos.

Lendo criticamente: Recompondo identidades sociais

As principais identidades representadas no texto são a de


motorista e de pedestre. Além disso, existe também uma invocação
explícita a Deus. Ao recompor identidades na leitura crítica, estamos
interessados em saber como são apresentados os caracteres pessoais e
exclusivos dos indivíduos participantes da história, incluindo sua
consciência de si próprios, e como esses indivíduos são posicionados
no texto. Na leitura crítica que segue, vou concentrar-me em
características identitárias da narradora.
Referi-me anteriormente à narradora como pertencendo
provavelmente a uma classe social menos privilegiada. Essa perspectiva
de sua identidade é sugerida pela sintaxe e vocabulário simples
utilizados na narrativa. A maneira como a história é iniciada e concluída
e especialmente o uso da expressão Ela garrou, no item (n) da transcrição,
parecem confirmar essa face da identidade da narradora. No português
açoriano de Florianópolis o verbo garrar é tipicamente utilizado por
pessoas locais de baixa escolaridade e nível socioeconômico limitado.
Significa algo como “então”, o que faz sentido na história: Então ela
168 José luiz Meurer

mandou eu passar. Em outros contextos, garrar pode significar ainda


“começar a”.
À perspectiva identitária de classe social brasileira menos
privilegiada associa-se, também, embora não necessariamente, a noção
de “pessoa menos esclarecida”. Talvez essa face da identidade da
narradora ajude a esclarecer por que, no episódio narrado, ela não
questiona o ocorrido ou a atitude e os procedimentos da motorista. Ajuda
também a esclarecer por que, ao invés de problematizar a situação,
opta por considerar a resolução da história, o fato de ter acabado em
cima da capota do automóvel, como uma espécie de milagre.
Coerentemente com sua identidade de brasileira menos privilegiada e
menos esclarecida, ela revela pouca preocupação em se posicionar mais
ativa e assertivamente a respeito de direitos e responsabilidades, seus
e da motorista. Um dos resultados é o estabelecimento da assimetria de
poder e condescendência apontados na seção anterior. Aqueles
relacionamentos se ligam diretamente à identidade da narradora e à
posição assumida no evento. Uma participante da história com uma
identidade diferente, digamos simplesmente mais esclarecida, mesmo
que de classe menos privilegiada, teria um potencial maior de condições
de assumir uma posição menos passiva e de estabelecer um
relacionamento diferente com a motorista, levando-a possivelmente a
responder de maneira diferente por seu ato, equilibrando ou mudando
a relação de poder.

Observações finais

Os textos orais ou escritos não apenas criam representações que


refletem, constróem e/ou desafiam conhecimentos e crenças, mas
também cooperam para estabelecermos relações sociais e a nossa
própria identidade. Dentro dessa perspectiva, a construção diária da
nossa própria narrativa pessoal como ser humano é em grande parte
construída e determinada pelos textos que produzimos e a que estamos
expostos. Semelhantemente ao que vimos ocorrer na narrativa pessoal
que examinamos neste trabalho, as representações que construímos do
O trabalho de leitura crítica... 169

mundo e da “realidade” que nos cerca muitas vezes refletem e


reconstróem uma visão naturalizada, não problematizada dessa
realidade.
Ler criticamente significa procurar entender que representar o
mundo de uma determinada maneira, construir e interpretar textos
evidenciando determinadas relações e identidades constituem formas
de ideologia. E, como observa Fairclough (1989, p.85), “a ideologia é
mais efetiva quando sua ação é menos visível”, quando as coisas são
vistas como senso comum, naturais, não problemáticas. A ideologia
perpassa nossas práticas discursivas e sociais e está implícita nas formas
de ver, pensar, compreender, recriar ou desafiar e mudar maneiras de
falar e agir. Assim, como também afirma Fairclough (p. 85), se alguém
se torna consciente de que um determinado aspecto do senso comum,
daquilo que parece natural, sustenta desigualdades de poder em
detrimento de si próprio ou de si própria, “aquele aspecto deixa de ser
senso comum e pode perder a potencialidade de sustentar
desigualdades de poder, isto é, de funcionar ideologicamente.” A leitura
tem o potencial de ser um excelente caminho nessa direção.
Uma necessidade e um desafio que permanecem para lingüistas
aplicados, psicólogos da cognição e todos os interessados na importância
da linguagem para as práticas sociais humanas é a busca de formas de
desenvolver a leitura crítica. É preciso ver o processo de leitura não
apenas em sua dimensão cognitiva, mas também em sua abrangência
social. Nesse contexto, permanece e é premente a necessidade de
desenvolver e testar formas de incentivar alunos e professores, e
indivíduos em geral, a se interessarem em quebrar o círculo do senso
comum, daquilo que parece natural, não problemático, mas que recria
e reforça formas de desigualdade e discriminação.

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