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Santa Maria, RS
2005
Marcelo Monti Bica
Santa Maria, RS
2005
Marcelo Monti Bica
BANCA EXAMINADORA
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Palavras-chave: .
SUMÁRIO
...................................................................................................................................................................................1
..................................................................................................................................................................................1
2005...........................................................................................................................................................................1
ZZZZZZZZZZZZ...................................................................................................................................................4
PALAVRAS-CHAVE: . .........................................................................................................................................4
SUMÁRIO................................................................................................................................................................5
1. INTRODUÇÃO...................................................................................................................................................6
..................................................................................................................................................................................6
2. COGITO..............................................................................................................................................................8
2.1 DIMENSÃO TEMPORAL DO COGITO..........................................................................................................................8
2.2 COGITO: CERTEZA E VERDADE...............................................................................................................................9
2.3 DA VERDADE DO COGITO À ELABORAÇÃO DO CRITÉRIO DE VERDADE..........................................................................10
3. PERCEPÇÕES CLARAS E DISTINTAS......................................................................................................14
3.1 INDUBITABILIDADE DAS EVIDÊNCIAS ATUAIS...........................................................................................................14
3.2 CONHECIMENTOS QUE NECESSITAM DA GARANTIA DIVINA.........................................................................................16
3.3 INTUIÇÃO E DEDUÇÃO:.......................................................................................................................................18
3.4 PERCEPÇÕES PASSADAS: NECESSIDADE DE JUSTIFICAÇÃO DIVINA................................................................................21
4. CONCLUSÃO...................................................................................................................................................23
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................................................25
1. INTRODUÇÃO
1
Além de indicar existência, pensar é também garantia de certeza sobre a existência: ao pensar, existo e tenho
consciência desse fato. Para Landim, o enunciado Penso, logo existo, “[...] descreve a consciência que o sujeito
tem de existir como sujeito de seu ato de pensamento [...]” (LANDIM, 1992, p.38).
Uma outra expressão de Descartes, que parece também indicar temporalidade ou
acontecer numa relação direta com o tempo é a seguinte: “Engana-me quem puder, ainda
assim jamais poderá fazer com que eu nada seja enquanto eu pensar que sou algo”
(DESCARTES, 1973, p. 108b). O termo “enquanto”, tomado em seu sentido gramatical, é
uma conjunção que expressa uma relação temporal, e mais precisamente falando uma
continuidade do presente, ou da ação presente. 2 A inserção dessa conjunção, na formulação
do cogito, é mais um indicativo, de que este último é verdadeiro somente enquanto se estiver
atento às razões que o fundamentam.
Descartes pergunta: “Mas o que sou eu portanto? Uma coisa que pensa. Que é uma
coisa que pensa? É uma coisa que duvida, que concebe, que afirma que nega, que quer, que
não quer, que imagina também e que sente” (DESCARTES, 1973, p.103b). Enquanto se está
afirmando, se está pensando; Enquanto se está duvidando, se está pensando. Penso agora, e
um agora que ainda que seja truncado e independente, é sucessivo. Supondo que a expressão
“eu penso” seja pronunciada, e logo em seguida pronunciada novamente, e assim
sucessivamente. Que seja sem interrupção. Uma expressão segue a outra, sem cortes, de
forma independente. Assim, conceber, afirmar, querer, duvidar... ocorre de forma sucessiva e
sem descontinuidade. Embora sendo distintos, em última análise, todos eles são atos de
pensar.
A noção de sucessão está diretamente ligada à compreensão que Descartes tem de
tempo. O tempo pode ser dividido em uma infinidade de partes, sem que uma parte tenha
relação com outra. (DESCARTES, 1973, p. 118b). O tempo, portanto, ocorre em partes, de
forma sucessiva, uma parte é seguida imediatamente por outra sem que haja descontinuidade,
pois admitir que haja espaços intermediários entre um tempo e outro abre possibilidades para
a existência do vazio. Pensamos e existimos somente no tempo. Do que fora dito, pode-se
afirmar que o cogito exprime a relação entre dimensão atual do pensamento e sua verdade.
O cogito é o primeiro conhecimento certo e indubitável: “Eu estou certo de que sou”
(DESCARTES, 1973, p. 100b). Estas mesmas características também são atribuídas à
matemática e à geometria, ainda na primeira meditação. Descartes refere-se a estes
2
Enquanto indica conforme gramáticas contemporâneas, que dois eventos ocorrem ao mesmo tempo, que
existem ao mesmo tempo, há uma “coextensão temporal de dois estados de coisas”. ACRESCENTAR
REFERÊNCIA.
conhecimentos como ciências que “contém alguma coisa de certo e indubitável”
(DESCARTES, 1973, p. 95b). Constata-se que tanto o cogito como a Aritmética, são
percebidos como certezas. Resta averiguar a diferença entre um e outro.
As proposições da Aritmética apresentam-se como certas, possuem aparência de
certeza. Contudo, o argumento do deus enganador ou do gênio maligno compromete
justamente as verdades que possuem um caráter de certeza. O que permite concluir, que ter
uma certeza não implica necessariamente em ter uma verdade, ou seja, pode-se ter certeza de
que algo é falso. O cogito por sua vez, é certeza e verdade, ou melhor, é certeza que
corresponde a uma verdade. A certeza do próprio existir apresenta-se para Descartes como
uma verdade necessária. Esse estatuto de certeza e de verdade do cogito está claramente
evidenciado em Princípios:
[...] pois temos tanta repugnância em conceber que o que pensa não é
verdadeiramente ao mesmo tempo que pensa, que não obstante todas as suposições
mais extravagantes, não seríamos capazes de acreditar que esta conclusão: PENSO,
LOGO EXISTO, não é verdadeira; e, por conseguinte, a primeira e a mais certa que
se apresenta a todo aquele que conduz os seus pensamentos por ordem
(DESCARTES, 1995, p. 55).
Certeza, até o momento, com exceção do cogito, pode fazer referência a uma verdade
ou a uma falsidade. Conforme a citação acima, o cogito é um conhecimento refletido, ou seja,
há consciência de que ele é certo e concomitantemente, é para o sujeito cognoscente uma
verdade necessária.
A argumentação cartesiana propõe dois critérios de verdade. O primeiro, antes da
existência de Deus, possui um grau de certeza subjetivo e fundamenta-se na clareza e
distinção do cogito. O segundo possui um grau de certeza objetivo e é justamente a existência
de Deus que garante tal certeza. A seguir, pretende-se abordar a questão do primeiro critério
de verdade.
Na terceira Meditação Descartes irá perguntar: “[...] mas não saberei também portanto,
o que é requerido para me tornar certo de alguma coisa?” (DESCARTES, 1973, p. 107b). O
cogito é estabelecido na segunda meditação e somente na terceira que Descartes elabora (a
partir do próprio cogito) o critério de evidencia ou a regra geral da verdade. Conforme a
ordem das meditações, primeiro há um conhecimento verdadeiro e depois uma regra que
permite reconhecer um conhecimento verdadeiro. A questão que se impõe neste momento é a
seguinte: como aceitar que a certeza do cogito é uma certeza sobre um conhecimento
verdadeiro, sem antes ter estabelecido o critério de verdade?
Descartes irá dizer que sem saber que Deus existe e que não é enganador não é
possível ter certeza de nada. Esta afirmação, para alguns intérpretes, revela que o cogito é
apenas uma certeza subjetiva. A acusação de subjetivismo teve início com os
contemporâneos de Descartes: o fato de algo ser percebido como verdadeiro, não significa
que é realmente verdadeiro visto que o “pensamento não é regra de verdade das coisas”
(DESCARTES, 1973, p. 217c). Descartes concorda com essa última afirmação e responderá
que devemos nos guiar apenas pela “evidência de nossas razões”, ou seja, que somente
devemos tomar como verdade aquilo que for claro e distinto. Todavia, admite-se que essa
resposta não resolve o problema posto no parágrafo anterior.
Uma possível resposta estaria no fato do cogito ser necessariamente verdadeiro porque
resiste aos argumentos da dúvida. E resiste aos argumentos da dúvida porque se apresenta sem
nenhuma obscuridade e confusão, ou seja, de modo evidente, claro e distinto. Se há alguém
que duvida, há inevitavelmente alguém que existe.
A partir da clareza e distinção do cogito Descartes extrai a regra geral da verdade: tudo
o que for claro e distinto é verdadeiro. Na obra “Princípios da Filosofia” encontra-se a
definição destes termos:
Chamo claro ao que é presente e manifesto a um espírito atento: do mesmo modo que dizemos ver
claramente os objetos, quando estão presentes e agem intensamente..., e os nossos
olhos estão dispostos a olhá-los. É distinta aquela que... é tão precisa e diferente de
todas as outras, que só se compreende em si o que aparece manifestadamente a
quem a considera como deve ser3 (DESCARTES, 1995, p. 70).
3
Fica evidente nessa definição que nos atos de percepção é fundamental a disposição e intenção do sujeito. Não
basta que algo se apresente como claro e distinto, é preciso que se ponha atenção ao que se mostra claro e
distinto. Para Landim, a clareza de uma idéia indica que o sujeito está consciente da presença do conteúdo desta
mesma idéia. E completa que somente haverá clareza se houver atenção ao conteúdo da idéia. O que permite
concluir que “[...] a atenção é uma condição essencial da clareza [...]” (LANDIM, 1992, p. 102).
verdadeira se em algum momento pudesse acontecer que uma coisa que eu
concebesse tão clara e tão distintamente se verificasse falsa (DESCARTES, 1973,
p.107b).
do círculo cartesiano.
3. PERCEPÇÕES CLARAS E DISTINTAS
[...] todas as vezes que me volto para as coisas que penso conceber mui claramente
sou de tal maneira persuadido delas que sou levado, por mim mesmo, a estas
palavras: engana-me quem puder, ainda assim jamais poderá fazer com que eu nada
seja enquanto eu pensar que sou algo; ou que um dia seja verdade que eu não tenha
jamais existido, sendo verdade agora que eu existo; ou então que dois e três juntos
façam mais ou menos do que cinco, ou coisas semelhantes, que vejo claramente não
evidências passadas ou dos conhecimentos que necessitam da memória para que se possa ter presente às razões
que o fundamentam, será abordada na próxima seção.
poderem ser de outra maneira senão como as concebo (DESCARTES, 1973,
p.108b).
[...] se a atualidade da evidência permite explicar a sua “força” persuasiva, ela não
justifica nem a universalidade da regra geral de verdade nem a permanência ou
estabilidade da própria evidência; ela apenas explica por que, na presença de uma
determinada percepção clara e distinta, o sujeito cognoscente considera esta
percepção verdadeira. É possível então se perguntar se o que se manifestou como
evidente continua sendo evidente9 (LANDIM, 1992, p. 106).
8
A expressão “deixar de pensar” significa: deixar de considerar as razões, fundamentos e princípios de um
conhecimento.
9
Sobre esta questão ver a nota de Guéroult em: DESCARTES, 1973, p. 108b.
aos princípios que fundamentam a ciência (DESCARTES, 1973, p. 168c). Estes, como será
dito, possuem evidência imediata, não carecem de justificação divina. Contudo, como um
sistema de conhecimento não se constitui apenas por princípios, noções e axiomas, é preciso
buscar validação em Deus para os conhecimentos que requerem uso da memória. A resposta
de Descartes a objeção de círculo distingue apenas conhecimentos que necessitam de garantia
divina dos que não necessitam desta garantia. Eis o texto que trata desta questão:
[...] onde afirmei que nada podemos saber de certo, se não conhecermos
primeiramente que Deus existe, afirmei em termos expressos, que falava apenas das
ciências cuja lembrança nos pode retornar ao espírito, quando não mais pensamos
nas razões de onde as tiramos (DESCARTES, 1973, p. 168c).
10
"Conocimiento discursivo" está referindo-se a conhecimentos dedutivos, ou mais precisamente a conclusões
que derivam de longas cadeias de deduções, e que por esta razão fazem uso da memória.
se pensar em um teorema geométrico. No desenvolvimento de um complexo teorema, está
uma longa série de inferências. Na hipótese do entendimento humano ser falho, torna-se
difícil sustentar a evidência da conclusão e do desenvolvimento deste teorema11. O fim do
parágrafo 13 de Princípios ilustra esta questão. Descartes irá expor a tensão existente entre a
certeza de uma conclusão clara e distinta atual e a dúvida universal engendrada pelo gênio
maligno:
Enquanto apreende estas noções e a ordem pela qual deduziu esta e outras
conclusões semelhantes, ele12 está seguro de sua verdade; mas, como não consegue
pensar nisso sempre com a mesma atenção, quando se lembra de alguma conclusão
sem ter em conta a ordem pela qual pode ser demonstrada, e que apesar disso pense
que o autor de seu ser poderia tê-lo criado com tal natureza que se engane... em
tudo o que lhe parecer muito evidente, vê bem que tem razão para desconfiar da
verdade de tudo o que não apreenda distintamente, e que não poderá ter nenhuma
ciência certa enquanto não conheça aquele que o criou. (DESCARTES, 1995,
p.58).
Nas “Regras para a Orientação do Espírito”, Descartes, afirmar que somente há duas
formas para se obter conhecimentos seguros: pela intuição,intuição, e pela dedução. Por
11
A hipótese de o entendimento humano ser falho e limitado é representada na teoria do conhecimento cartesiana
pela figura do gênio maligno.
12
Referência ao entendimento.
dedução Descartes entende: “toda conclusão necessária tirada de outras coisas conhecidas
com certeza” (DESCARTES, 1999, p.15). E intuição é:
[...] não a confiança instável dada pelos sentidos ou o juízo enganador de uma
imaginação com más construções, mas o conceito que a inteligência pura forma
com tanta facilidade e clareza que não fica absolutamente nenhuma dúvida sobre o
que compreendemos; ou então, o que é a mesma coisa, o conceito que a inteligência
pura e atenta forma, sem dúvida possível, conceito que nasce apenas da luz da
razão e cuja certeza é maior13 [...] (DESCARTES, 1999, p. 14).
Na continuação do texto acima citado, Descartes afirma que é por meio da intuição
que se chega à verdade do “penso, logo existo”, de que os três ângulos de um triangulo são
iguais a duas retas e também de que dois mais três é igual a cinco. Uma intuição é atual,
voltada para o presente, ou melhor, requer uma evidência atual (DESCARTES, 1999, p.16),
por esta razão, pode-se afirmar que um conhecimento que se dá por meio da intuição é um
conhecimento que possui validade momentânea, ou seja, somente é verdadeiro durante o
tempo em que é pensado. De forma sistemática Landim enumera todos os conhecimentos que
gozam da evidência da intuição, entre eles estão: os de natureza simples, as noções comuns e
as “conclusões (de certas demonstrações) acompanhadas de suas premissas evidentes, durante
o tempo (quamdium) em que são pensadas (as premissas e suas respectivas conclusões) [...]”
(LANDIM, 1992, p.110).
As proposições de natureza simples são imediatamente evidentes ao pensamento e
por isso, durante o tempo em que são pensados “não contém nada de falso” (DESCARTES,
1999, p.85); as noções comuns (regras de pensamento),), não são coisas ou propriedades de
coisas existentes, mas verdades eternas que nada são fora do pensamento (DESCARTES,
1995, p. 71-72). Se as noções comuns, os primeiros princípios, e os axiomas principais do
conhecimento possuem uma evidência instantânea, uma certeza atual, isso indica que não é
necessário o uso da memória a fim de trazer presente às razões que fundamentam esses
elementos, pois eles por si próprios se fundamentam, se manifestam de forma clara e distinta a
um “espírito atento”. Contudo, há verdades, conforme indica Descartes, deduzidas a partir
desses princípios que por sua vez, não podem se auto-validar, ou seja, as conclusões
estabelecidas a partir de uma série de deduções necessitam da justificação divina. Enquanto o
pensamento está atento às razões que fundamentam esta conclusão clara e distinta, a evidência
13
Ainda que Descartes nas Regras XII admita intuições sensíveis, nota-se que a intuição que proporciona uma
certeza imediatamente evidente, está totalmente desvinculada dos sentidos, ou seja, é uma intuição pura,
fundamentada apenas na razão. Sabendo-se, que o conceito elaborado pela inteligência pura não oferece margens
a nenhum tipo de engano, pode-se concluir, que o que está posto em dúuvida pelo argumento do gênio maligno é
o conhecimento que deriva dos sentidos.
desse conhecimento está assegurada, mas como não consegue pensar nisso sempre com a
mesma atenção que exige um conhecimento intuitivo, necessita fazer uso da memória. E ao
adotar esse recurso, antes de ser provado que Deus existe, não é possível garantir que esta
conclusão possui caráter de certeza.
Conforme “Princípios” e Regras III e VII (Regras para a Orientação do Espírito), a
conclusão da qual não se pode ter certeza, sem que se considere a ordem pelo qual foi
demonstrada (DESCARTES, 1995, p. 58) refere-se a conclusões que foram extraídas de uma
longa cadeia de deduções. Afirmou-se a pouco, que para Descartes há duas formas de se obter
conhecimento seguro, e que a dedução é uma delas. Sendo assim, porque razão, não é possível
ter certeza de um conhecimento dedutivo que implica em uma cadeia extensa de razões? Na
tentativa de oferecer uma resposta a esta questão, a reflexão que segue, irá se ater as
características do conhecimento dedutivo.
Descartes compara o raciocínio dedutivo a uma corrente de diversos elos. A imagem
de uma corrente remete a idéia de sucessão, de movimento, onde um elo sucede outro. E basta
que um único elo intermediário se rompa para que toda a corrente fique comprometida. O
mesmo pode ser dito de uma conclusão extraída de uma cadeia de deduções. O que permite
que se pergunte: É possível ter certeza desta conclusão? E se entre todas essas deduções que
permitiram a conclusão, alguma tiver partido de um princípio inválido ou desconhecido? Por
intuição não é possível, visto que esta, não consegue aprender uma série de deduções, limita-
se apenas a noções e princípios atualmente evidentes (DESCARTES, 1999, p. 16).
Na Regra III, Descartes sustenta que não há possibilidade de haver erro em uma
dedução se forem seguidas as seguintes orientações: que a dedução seja feita por meio de um
movimento contínuo do pensamento e sem interrupções, possibilitando que cada coisa seja
aprendida por intuição; que parta de princípios verdadeiros e conhecidos; sabendo-se que uma
dedução está ligada a sua antecedente tal como o elo de uma corrente. Portanto, “basta que
tenhamos percorrido sucessivamente e que guardemos a lembrança de que cada um deles,
desde o primeiro até o derradeiro está preso aos que estão mais próximos dele”
(DESCARTES, 1999, p. 16).
Todavia, é patente que a memória não é de todo confiável, e que também não aprende
longas informações com precisão e clareza. Descartes admite na Regra VII, que nem sempre
o sujeito cognoscente consegue recordar todas as operações que foram utilizadas na cadeia
dedutiva, mas que pode reforçar e exercitar o poder de memória repassando de forma
sucessiva e por diversas vezes todos os passos, argumentos, premissas etc. que nos
conduziram à uma conclusão. Isso permitirá que:
[...] se tenha aprendido a passar da primeira relação para a última com bastante
rapidez para que, sem deixar quase nenhuma função à memória,memória, pareça-
me ver o todo ao mesmo tempo por intuição (DESCARTES, 1999, p. 40) .).
Não atribuir quase nenhuma função a memória não se justifica simplesmente porque
esta é limitada, ou porque uma recordação não tem a mesma clareza que o fato ou idéia que
está expressando, mas porque é precisamente por meio desta faculdade que atua o gênio
maligno. Considerando, pois, que um conhecimento claro e distinto atual é indubitavelmente
verdadeiro, a tarefa do gênio não é senão a de interferir nas percepções passadas, ou melhor,
nas conclusões que precisam da memória para trazer presente os princípios que
fundamentaram esta mesma conclusão. A seguir, pretende-se demonstrar que a atuação do
gênio incide diretamente em conhecimentos não atuais. Para este contexto, as provas de que
Deus existe e de que não é enganador são fonte de validação do critério de verdade e de
permanência de um conhecimento verdadeiro.
Tendo presente que o conhecimento que se dá por meio da intuição pura, não necessita
da garantia divina, Hamelin afirma: “[...] lo que necesita y en efecto recibe una justificación
es el conocimiento sensible en general: el conocimiento por los sentidos y el conocimiento
por la memoria” (HAMELIN, 1949, p. 153). O fato destas faculdades careceremdestas
faculdades carecerem da garantia divina indica justamente que estão expostas à ação do gênio
maligno.
Na Regra XII Descartes afirma que a memória, os sentidos e a imaginação, não são
faculdades cognitivas, mas se bem orientadas pelo entendimento, podem auxiliar no processo
de cognição. Considerando a hipótese de o entendimento humano ser falho, se poderia
afirmar que à memória e aos sentidos não se pode tributar confiança alguma. O argumento do
gênio maligno, empregado nas Meditações questiona justamente a natureza do entendimento,
ou seja, personifica a hipótese da razão sistematicamente equivocar-se. O que
conseqüentemente compromete a memória e os sentidos.
Estando a memória afetada pelo gênio maligno, está também todo o conhecimento
passado. Com base em uma primeira leitura de alguns escritos cartesianos, sobretudo das
Meditações, poder-se-ia afirmar que Descartes desconfia de todo o conhecimento passado,
que pretende eliminar todo o conhecimento elaborado pela tradição. Contudo, não é
propriamente o conhecimento passado que Descartes rejeita, mas as percepções obscuras e
confusas que aparentemente são claras e distintas. E que por sua vez foram gradativamente
infiltrando-se no entendimento desde a infância (DESCARTES, 1995, p. 53).
Segundo Landim, o argumento do gênio maligno evoca a hipótese, do entendimento
não distinguir o que tem apenas aparência de claro e distinto (mas que é efetivamente obscuro
e confuso), do que realmente é claro e distinto (LANDIN, 1992, p. 109). O papel do gênio
maligno consiste, pois, em dar as percepções obscuras e confusas, a aparência de certeza.
Em Princípios, Descartes explica que um engano eventual acontece porque “[...]
pressupomos ter outrora conhecido muitas coisas, e logo que disso nos lembramos, damos-lhe
o nosso assentimento, como se tivéssemos examinado suficientemente [...]” (DESCARTES,
1995, p. 70), como se tivéssemos destas coisas um conhecimento claro e distinto. Os enganos
eventuais, devido à ação do gênio maligno tornam-se constante. Do que fora exposto pode-se
concluir, que é função do gênio maligno dar as percepções passadas, independentemente de
serem verdadeiras, uma aparência de certeza.
Ainda que o gênio maligno expresse a possibilidade de um ceticismo absoluto, o poder
de tal entidade é limitado. E isto se justifica por duas razões: o predomínio da liberdade
humana e a indubitabilidade das evidências atuais. Com base na primeira o autor afirma:
“prepararei tão bem meu espírito a todos os ardis desse grande enganador que, por poderoso e
ardiloso que seja, nunca poderá impor-me algo” (DESCARTES, 1973, p. 97b).
O poder do deus enganador ou gênio maligno é limitado, todavia, o argumento,
mantém sua força. A conclusão que deriva de longas cadeias dedutivas, quando não
atualizada, está como já foi dito, sujeita a ação do gênio. É, portanto, imprescindível que um
conhecimento claro e distinto atual, mantenha-se atemporalmente evidente, que “seja firme e
constante”. Provar que Deus existe e que não é enganador, constitui-se para a teoria do
conhecimento cartesiana a única forma de anular o argumento do gênio maligno e de
consequentemente validar o critério de verdade. O que possibilita a permanência de um
conhecimento verdadeiro.
4. Conclusão
Tinha-se como objetivo primeiro investigar uma possível relação entre a dimensão
temporal e o conhecimento no pensamento de Descartes. Entretanto, a reflexão em torno deste
tema, não visava uma análise isolada da noção de tempo e da noção de conhecimento, para
posteriormente detectar elementos comuns. Se assim fosse, seria preciso para clarificar o
conceito de tempo, estudar, sobretudo, a física cartesiana. E quanto ao conhecimento, o
objetivo do próprio Descartes não era definir um conceito, mas estabelecer os fundamentos do
conhecimento.
A idéia de que o conhecimento possui uma relação com a dimensão temporal foi
suscitada pela leitura desta passagem: “[...] engana-me quem puder, ainda assim jamais
poderá fazer com que eu nada seja enquanto eu pensar que sou algo;” (DESCARTES 1973, p.
108). Interpretou-se esta passagem da seguinte maneira: uma proposição que se verifique
clara e distinta, é verdadeira apenas durante o tempo em que se estiver pensando nas razões
que a fundamentam, ou seja, enquanto o pensamento estiver considerando esta proposição. No
desenvolvimento desta pesquisa, foi possível compreender que a dimensão temporal não
estava relacionada diretamente a toda teoria do conhecimento de Descartes, mas estritamente
ás percepções claras e distintas. Isto, no entanto, de forma alguma diminui a relevância e o
interesse pelo tema, visto que as percepções claras e distintas exercem influência capital na
teoria epistemológica traçada por Descartes.
Considera-se estes enunciados: “toda percepção clara e distinta é verdadeira”; “não se
pode ter certeza de nada sem que antes se tenha certeza de que Deus existe e que não é
enganador”. Aparentemente, o segundo enunciado invalida o primeiro. No entanto, à medida
que se tem presente à conotação que Descartes confere a intuição, a dedução, persuasão e
ciência, entende-se que estes dois enunciados não se contradizem, pelo contrário, são chaves
de leitura que permitem uma maior compreensão da teoria do conhecimento cartesiana.
Uma primeira leitura das Meditações é suficiente para que se possa constatar que o
cogito é uma verdade que resiste a toda dúvida. Outra constatação bastante comum é que
enquanto o argumento do gênio maligno não for anulado pelas provas de um Deus veraz, a
única verdade que permanece é a do cogito. O contato com as Meditações e com as principais
obras de Descartes que abordam questões referentes ao conhecimento, permitiu que se
pudesse ratificar a primeira constatação e acrescentar outras informações a segunda
constatação.
O cogito é verdadeiro por ser claro e distinto, o que equivale a dizer que é evidente.
Notou-se que esta evidência é confirmada cada vez que atualizada pelo pensamento. E que
uma evidência atual, provoca no sujeito percepiente uma persuasão tão irresistível, que lhe é
impossível não crê-la verdadeira. A partir do parágrafo 13 de “Princípios”, pode-se concluir
que não somente o cogito é verdadeiro, enquanto ainda está em vigor o argumento do gênio
maligno, como também toda percepção clara e distinta atual, inclusive as proposições
matemáticas. A indubitabilidade das evidências atuais revela que mesmo antes das provas da
veracidade divina, o sistema cartesiano dispõe de verdades.
Considerando a diferenciação entre persuasão e ciência estabelecida por Descartes, foi
possível perceber, que uma evidência, à medida que não é atualizada torna-se dubitável, ou
seja, não passa de mera persuasão. Procurou-se demonstrar que a uma evidência passada
somente pode atingir um caráter cientifico após ser provado que Deus existe.
Fora fundamental para o desenvolvimento deste trabalho, a compreensão do conceito
de intuição empregado por Descartes. Porque é justamente o conhecimento intuitivo que
garante a indubitabilidade das percepções claras e distintas atuais. Com foi visto, o
conhecimento intuitivo não sofre interferência alguma dos sentidos (recorda-se que este
último estava condicionado pela dúvida), sendo exatamente por esta razão que os princípios e
os axiomas elementares ao conhecimento não podem ser postos em dúvida durante o tempo
em que se está pensando nas razões que os justificam.
Um conhecimento dedutivo é basicamente formado por princípios que derivam da
intuição pura, por esta razão afirma Descartes que é a dedução juntamente com a intuição as
duas formas que o entendimento dispõe para obter um conhecimento seguro. No entanto,
impõe-se a necessidade da garantia divina para as conclusões deduzidas de longas cadeias de
razões, visto que não podem ser aprendidas por intuição, o que significa que deixam de ser
atuais, estando assim, a mercê do gênio maligno.
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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São Paulo: Martins Fontes, 1972.
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______. Princípios da Filosofia. Porto: Porto Editora, 1995.
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HAMELIN, Octave. El sistema de Descartes. Buenos Aires: Editorial Losada, 1949.
LANDIM, Raul. Evidência e verdade no sistema cartesiano. São Paulo: Loyola, 1992.