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Boaventura de Sousa Santos

Construindo as Epistemologias do Sul

Antologia esencial
volume i

ROSA
LUXEMBURG COLEÇÃO ANTOLOGIAS DO PENSAMENTO
STIFTUNG SOCIAL LATINO-AMERICANO E CARIBENHO
Construindo as
Epistemologias do Sul
De Sousa Santos, Boaventura
Construindo as Epistemologias do Sul: Antologia Esencial. Volume
I: Para um pensamento alternativo de alternativas / Boaventura de
Sousa Santos; compilado por Maria Paula Meneses... [et al.]. - 1a ed.
- Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO, 2018.
V. 1, 688 p.; 20 x 20 cm - (Antologías del Pensamiento Social
Latinoamericano y Caribeño / Gentili, Pablo)

ISBN 978-987-722-382-8

1. Análisis Sociológico. 2. Ensayo Sociológico. 3. Antología. I.


Meneses, Maria Paula, comp. II. Título.
CDD 301

Otros descriptores asignados por la Biblioteca virtual de CLACSO:


Sociología / Teoría Social / Periferia / Globalización / Colonialismo /
Movimientos Sociales / América Latina / Derechos humanos / Democracia /
Epistemología
Coleção
Antologias do Pensamento Social
Latino-americano e Caribenho

Boaventura de Sousa Santos

Construindo as
Epistemologias do Sul
Para um pensamento alternativo
de alternativas

Volume I
Organização e apresentação: Maria Paula Meneses, João Arriscado Nunes,
Carlos Lema Añón, Antoni Aguiló Bonet e Nilma Lino Gomes
Antologías del Pensamiento Social Latinoamericano y Caribeño
Director de la Colección Pablo Gentili

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CONOCIMIENTO ABIERTO, CONOCIMIENTO LIBRE.

Primera edición
Boaventura de Sousa Santos: Construindo as Epistemologias do Sul. Volume I (Buenos Aires: CLACSO, noviembre de 2018)

ISBN Obra completa: 978-987-722-376-7


ISBN Vol. 1: 978-987-722-382-8
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firmantes, y su publicación no necesariamente refleja los puntos de vista de la Secretaría Ejecutiva de CLACSO.
Sumário

Pablo Gentili
Prefácio: Inventar outras ciências sociais............................................................................... 13

Maria Paula Meneses, João Arriscado Nunes,


Carlos Lema Añón, Antoni Aguiló Bonet e Nilma Lino Gomes
Prólogo......................................................................................................................................... 17

VOLUME I

Parte I
Pensando desde o Sul e com o Sul

Maria Paula Meneses


Apresentação.............................................................................................................................. 23

Um discurso sobre as ciências.................................................................................................. 31


Não disparem sobre o utopista................................................................................................. 71
O Norte, o Sul e a utopia.......................................................................................................... 145
As ecologias dos saberes......................................................................................................... 223
Tradução intercultural: Diferir e partilhar con passionalità.............................................. 261
Introdução às epistemologias do Sul..................................................................................... 297
Parte II
Teoria social para outro mundo possível

João Arriscado Nunes


Apresentação: Reinventando a
imaginação sociológica para rebeldias competentes.......................................................... 339

O Estado e a sociedade na semiperiferia do sistema mundial:


O caso português...................................................................................................................... 347
Os processos da globalização................................................................................................. 397
A queda do Angelus Novus: Para além da equação
moderna entre raízes e opções............................................................................................... 485
Nuestra América: Reinventar um paradigma subalterno
de reconhecimento e redistribuição...................................................................................... 541
Entre Próspero e Caliban: Colonialismo,
pós-colonialismo e inter-identidade....................................................................................... 573
Para além do pensamento abissal: Das linhas globais
a uma ecologia de saberes....................................................................................................... 639
As identidades das crises......................................................................................................... 677

Sobre o autor.......................................................................................................................... 685

Sobre os organizadores....................................................................................................... 687


VOLUME II

Pablo Gentili
Prefácio: Inventar outras ciências sociais............................................................................... 13

Maria Paula Meneses, João Arriscado Nunes, Carlos Lema Añón,


Antoni Aguiló Bonet e Nilma Lino Gomes
Prólogo......................................................................................................................................... 17

Parte III
Direito para outro mundo possível

Carlos Lema Añón


Apresentação: Sociologia crítica para um outro direito possível ....................................... 23

O direito dos oprimidos: A construção e reprodução do direito em Pasárgada................ 33


Uma ilustração: O pluralismo jurídico na Colômbia.............................................................. 59
O Estado heterogéneo e o pluralismo jurídico em Moçambique......................................... 65
Para uma concepção intercultural dos direitos humanos................................................... 111
Sociologia crítica da justiça.................................................................................................... 139
O pluralismo jurídico e as escalas do direito: O local, o nacional e o global.................... 197
Os direitos humanos: Uma hegemonia frágil........................................................................ 211
O Estado, o direito costumeiro e a justiça popular.............................................................. 225
Quando os excluídos têm direito: Justiça indígena,
plurinacionalidade e interculturalidade................................................................................ 243
Para uma teoria sociojurídica da indignação: É possível ocupar o direito?..................... 277
A resiliência das exclusões abissais em nossas sociedades:
Em direção a uma legislação pós-abissal.............................................................................. 315

Parte IV
Democracia para outro mundo possível

Antoni Aguiló Bonet


Apresentação: Democracia para um outro mundo possível............................................... 343

A crise do contrato social da modernidade e a emergência do fascismo social.............. 351


O Estado e os modos de produção de poder social............................................................. 383
A refundação do Estado e os falsos positivos...................................................................... 405
Catorze cartas às esquerdas.................................................................................................... 455
As concepções hegemónicas e contra-hegemónicas de democracia................................ 501

Parte V
Educação para outro mundo possível

Nilma Lino Gomes


Apresentação: Educação para um outro mundo possível................................................... 515

Para uma pedagogia do conflito............................................................................................. 525


Da ideia de universidade à universidade de ideias............................................................... 547
A universidade no século XXI: Para uma reforma democrática
e emancipadora da universidade............................................................................................ 601
A encruzilhada da universidade europeia............................................................................. 667
Rumo a uma universidade polifônica comprometida:
Pluriversidade e subversidade................................................................................................ 681
O Fórum Social Mundial como epistemologia do Sul.......................................................... 715

Anexo: Lista dos livros e artigos publicados em português


por Boaventura de Sousa Santos...................................................................................... 733

Sobre o autor.......................................................................................................................... 743

Sobre os organizadores....................................................................................................... 745


Prefácio
Inventar outras ciências sociais
Pablo Gentili*

B oaventura de Sousa Santos é muito mais


do que um sociólogo português empenha-
do em interpretar —de um modo extraordiná-
contrahegemônica; a construção de um novo
tipo de pluralismo jurídico que contribua com
a democratização de nossas sociedades; a re-
rio e original— os assuntos mais urgentes do forma criativa, democrática e emancipadora
nosso tempo. Seu nome é a referência e a ins- do Estado e a defesa irredutível dos direitos
piração sempre fecunda de um amplo coletivo humanos; a criação de universidades popula-
de cientistas e ativistas espalhados por todo o res que promovam diálogos interculturais, en-
mundo, organizados em redes ou trabalhando tendidos como uma forma de combate contra
sozinhos, comprometidos com a construção a uniformidade e a favor de uma ecologia de
de umas ciências sociais a serviço das grandes saberes emancipatórios e libertários. Seus ar-
causas da humanidade, das lutas pela igualda- gumentos se aglutinam em torno a uma prer-
de e dos direitos dos oprimidos. rogativa fundamental: a melhor via para cons-
Os trabalhos de Boaventura enlaçam um truir estratégias de resistência locais e globais
conjunto de temas e preocupações que se ins- requer pôr em prática um exercício de justiça
crevem na melhor das tradições do pensamen- cognitiva em que todas as vozes possam se
to social e crítico: a emergência e as lutas dos expressar em um mesmo pé de igualdade, por
movimentos sociais; os olhares alternativos meio do interconhecimento, da mediação e da
que produzem os processos de globalização celebração de alianças coletivas.
Os cinco blocos que estruturam esta antolo-
gia, cuja confecção foi realizada coletivamen-
* Secretário Executivo de CLACSO. te por destacados/as colegas conhecedores e
14 Pablo Gentili

conhecedoras do trabalho do pensador portu- articula uma pedagogia do deslocamento e da


guês, reúnem os principais temas que atraves- escuta: aprender a viajar em direção ao Sul,
sam a sua obra. Recorrer estas páginas é ler o indo ao encontro dos numerosos e heterogê-
projeto político-intelectual de Boaventura de neos espaços analíticos e modos de construir
Sousa Santos em toda a sua amplidão. conhecimento, e deixar o Sul falar, à medida
Como bom artesão, Boaventura não só ex- em que o Sul foi submetido a um processo de
plora cada um dos tópicos abordados com ma- silenciamento exercido pelo conhecimento
estria. Também é o criador de potentes ferra- científico produzido no Norte.
mentas conceituais que permitem ser combina- Em sua bagagem não estão ausentes as lu-
das com liberdade, exercitando outros modos netas nem os microscópios. De fato, o desloca-
de explorar e interpretar as realidades que ha- mento é condição para se distanciar da tradição
bitamos (e queremos transformar). O repertó- eurocêntrica e para dar lugar a outros espaços
rio de ferramentas conceituais que Boaventura analíticos que tornem observáveis realidades
generosamente coloca à disposição pode ser novas ou que foram ignoradas e invisibilizadas
pensado sob a figura de uma teoria da retaguar- pela tradição epistêmica eurocêntrica.
da: recursos que se inscrevem mais na linhagem Diante das geografias do conhecimento, Bo-
do trabalho artesanal e singular do que em um aventura nos convoca a cruzar a linha abissal:
modelo sistêmico e abrangente de interpretar uma fronteira que divide tão profundamente a
o mundo. Instrumentos que foram desenhados realidade social que tudo o que fica do outro
para desfazer uma aproximação a conhecimen- lado dela permanece invisível ou é considerado
tos e experiências que podem representar uma irrelevante. Certamente cruzá-la sem renunciar
novidade para alguns e remeter a um ecossiste- em bloco ao conhecimento produzido a partir
ma de saberes ancestrais para outros. dos centros de poder, mas fazendo uma forte
Se todo saber é um saber situado, o gesto opção por recuperar, reivindicar e legitimar
epistemológico que distingue a obra deste outros modos de saber que permitam gestar
imenso intelectual português está marcado outras ciências sociais: “A finalidade do deslo-
pela viagem. Diante das políticas dominantes camento —sustenta— é permitir uma visão te-
do conhecimento, Boaventura propõe confec- lescópica do centro e uma visão microscópica
cionar outros inventários do saber. Para isso, de tudo o que foi recusado pelo centro”.
Prefácio: Inventar outras ciências sociais 15

O convite cursado não consiste em sair para extrativismo, o epistemicídio e a eliminação


buscar um Sul essencializado. O Sul que emer- física com a qual, muitas vezes, a racionalida-
ge da obra do autor está plurilocalizado nas de moderna contribuiu. Daí que a recupera-
expressões e formas de produção do conhe- ção das experiências seja um dos elementos
cimento que cifram as Epistemologias do Sul mais valorizados.
(entre as quais se destacam a realidade portu- Os dois volumes que formam esta iniciativa
guesa, os contextos latinoamericanos, africa- da CLACSO serão, sem lugar a dúvidas, um ma-
nos e asiáticos). São os saberes nascidos e for- terial de consulta indispensável para todas as
jados ao calor das lutas contra o capitalismo, leitoras e leitores comprometidos com pensar
o colonialismo e o patriarcado o que integra o o mundo por meio de uma perspectiva origi-
índice da sua obra e se coloca em destaque por nal construída durante 40 anos de trabalho. E
meio de seus textos (muitos deles traduzidos ainda que os materiais que conformam estes
pela primeira vez ao espanhol). dois grandes volumes estejam potencialmente
Se a grande escola de Boaventura é o Sul, dirigidos a todos e todas, nos veios do texto
sua caixa curricular está organizada sobre um emerge e se percebe uma preferência pelas es-
princípio de convivialidade irredutível: a ecolo- querdas, as quais Boaventura caracteriza como
gia dos saberes. Olhares que não impõem, mas “os partidos e movimentos que lutam contra o
que solicitam outras perspectivas para questio- capitalismo, o colonialismo, o racismo, o sexis-
nar e questionar-se; perspectivas que procuram mo e a homofobia, e toda a cidadania que, sem
credibilidade e reconhecimento para os conhe- estar organizada, compartilha os objetivos e as
cimentos elaborados, mais além dos espaços aspirações daqueles que se organizam para lu-
e das lógicas acadêmicas, sem que isso leve a tar contra estes fenômenos”.
desacreditar o conhecimento científico. O ter- Esta antologia é uma merecida homenagem
mo também remete, de um modo certeiro, ao do Conselho Latinoamericano de Ciências So-
indispensável diálogo que deve ser produzido ciais a quem, com suas ideias e compromisso,
entre as ciências da vida e as ciências sociais. contribuiu de maneira decisiva para o desen-
Nenhuma mudança social pode ser promo- volvimento das ciências sociais, um intelectual
vida a partir das ciência sociais sem levar em público que peregrinou pelo Sul global, acom-
conta a devastação ecológica, a predação, o panhando-nos em numerosos espaços e mo-
16 Pablo Gentili

mentos, ajudando-nos a pensar os problemas e


os desafios do nosso tempo. E, ainda que seja
verdade que o maior temor de um explorador
consiste em se deter, esse sociólogo andarilho
que é Boaventura de Sousa Santos nos deixa
nesta obra a grata sensação de que aqui falta
o que amanhã, em seu percurso criativo pela
vida, pelo pensamento e pela luta em defesa
da dignidade humana, continuará produzindo
para nos surpreender e nos ajudar a sonhar.
Prólogo
Maria Paula Meneses, João Arriscado Nunes,
Carlos Lema Añón, Antoni Aguiló Bonet e Nilma Lino Gomes

C onstruindo as Epistemologias do Sul:


Para um pensamento alternativo de alter-
nativas é o título que dá corpo a um estimulan-
Centro de Estudos Sociais, CES (Universidade
de Coimbra), para nos fazer uma apresentação
exclusiva sobre o seu percurso e discutir, em
te exercício — apresentar os principais traba- conjunto, as várias possibilidades de organiza-
lhos de um dos mais importantes intelectuais ção da Antologia.
do nosso tempo, Boaventura de Sousa Santos. A presente Antologia apoia-se nas opções e
Esta Antologia, organizada em dois volumes, debates que, como grupo, fomos mantendo ao
é fruto de um trabalho coletivo, realizado por longo de vários meses. Foi um processo estimu-
Maria Paula Meneses, João Arriscado Nunes, lante que nos revelou, paralelamente, as interli-
Antoni Aguiló Bonet, Carlos Lema Añón e Nil- gações entre os textos e nos obrigou a repensar
ma Lino Gomes. Contámos ainda com o apoio opções temáticas e os limites de páginas. Quer
imprescindível de Margarida Gomes e Lassale- pela inovação teórica, quer pelos desafios me-
te Paiva, colaboradoras próximas de Boaven- todológicos, a obra de Boaventura de Sousa
tura de Sousa Santos, e que o têm apoiado na Santos não deixa ninguém indiferente. Nestes
organização e publicação de manuscritos. dois volumes procuramos identificar textos que
Selecionar os textos a integrar esta antologia permitam aos leitores conhecer em maior deta-
não foi tarefa fácil. Para dar conta da diversi- lhe o percurso académico e político deste autor,
dade temática que tem tratado e que procurou cujos textos refletem a sua opção inequívoca
encontrar espelhada na antologia, Boaventura por uma análise das sociedades contemporâ-
de Sousa Santos, fazendo jus ao seu espírito neas a partir da perspectiva dos oprimidos. A
colegial, convidou-nos para um encontro no sua obra, extensa e publicada em várias línguas
18 M. P. Meneses, J. Arriscado Nunes, C. Lema Añón, A. Aguiló Bonet e N. Lino Gomes

(português, espanhol, francês, inglês, alemão, que, de facto, não têm direitos, dos que vivem
romeno, e mandarim, entre outras), cobre mais do “outro lado da linha abissal”.
de quatro décadas de análises e reflexões. Do ponto de vista metodológico, esta Anto-
No seu conjunto, o trabalho de Boaventu- logia reflete também uma mudança paradig-
ra de Sousa Santos aqui recolhido debruça-se mática, de escrever sobre para escrever com,
sobre alguns dos principais tópicos e proble- dando voz a sujeitos e lutas a partir do reco-
mas do mundo contemporâneo: movimentos nhecimento da validade desses saberes nasci-
sociais, globalização contra-hegemónica, de- dos nas lutas. Esta Antologia revela igualmente
mocratização, pluralismo jurídico, reforma do que desde cedo Boaventura de Sousa Santos
Estado, epistemologia, direitos humanos, in- manifestou o desconforto com a equivalência
terculturalidade e a universidade. O seu grande epistemológica entre objetividade e neutralida-
desafio tem sido, nos últimos anos, centrado na de, o que o leva a optar for um conhecimento
reconstrução sociológica a partir das epistemo- ancorado nas práticas e nas lutas sociais que
logias do Sul, concebida como um pensamento em algum momento designou como conheci-
alternativo de alternativas, de que resultam no- mento prudente para uma vida decente.
vas propostas conceituais como, por exemplo, Ir para Sul, aprender com o Sul e desde o
as articulações entre a dominação capitalista, Sul é o lema que estrutura esta antologia, com-
colonial e patriarcal, o pensamento abissal, a binando trabalho teórico com análises empíri-
sociologia das ausências e das emergências, a cas específicas. O Sul com que pretende par-
ecologia de saberes, a tradução intercultural e tilhar a voz não é o Sul geográfico. É antes o
a artesania das práticas. As sementes desta ino- Sul epistémico.
vação assentam em trabalhos anteriores, onde Em termos de organização, e porque os tex-
conceitos como a sociedade civil íntima, socie- tos que integram cada parte foram alvo de um
dade civil estranha, ou o fascismo social permi- escrutínio ponderado de cada um de nós, op-
tem dar conta de exclusões radicais nas socie- támos por apresentar, no início de cada parte,
dades supostamente democráticas, sociedades uma curta introdução escrita individualmente.
onde a violência, a apropriação, a persistência Este roteiro apresenta o tema, justifica a opção
do trabalho escravo, do colonialismo sob no- dos textos e procura dialogar com o pensamen-
vas formas que continuam a marcar a vida dos to de Boaventura de Sousa Santos.
prólogo19

Os dois volumes que compõem a antologia tem a educação e a possibilidade de um outro


do pensamento de Boaventura de Sousa Santos projeto universitário, distinto da moderna uni-
estão organizados de forma autónoma (incluin- versidade de matriz eurocêntrica.
do o prólogo, o índice geral e, no final de cada Esta divisão temática ampla serviu de refe-
volume, a lista de trabalhos publicados pelo au- rência para a organização geral dos textos, ape-
tor em espanhol). sar de vários deles serem, muitas vezes, signifi-
A antologia está estruturada em torno a cativos para diferentes partes da antologia. Do
cinco eixos, que refletem os temas a que Bo- ponto de vista geopolítico, os textos seleciona-
aventura de Sousa Santos tem dedicado mais dos para integrar esta antologia traduzem uma
importância, nomeadamente: os desafios epis- experiência rica e diversificada, que percorre a
temológicos que o Sul global coloca, agrupa- realidade portuguesa, contextos latino-ameri-
dos na primeira parte, intitulada “Pensando canos, experiências africanas e asiáticas, num
desde o Sul e com o Sul”. A segunda parte, com permanente exercício de pensar de que lado se
o título de “Teoria social para outro mundo está quando se analisam questões sociais fra-
possível” incide sobre a teorização sociológi- turantes. Este conhecimento informado leva
ca de Boaventura de Sousa Santos. Estas duas Boaventura de Sousa Santos a acreditar que
partes compõem o primeiro volume da Anto- um conhecimento do Sul e para o Sul, se de-
logia. O segundo volume, composto de três senvolve potenciando alternativas emergentes,
partes, integra os textos do autor que apontam já que as sociedades não podem prescindir da
para uma proposta alternativa, plural, de um capacidade de pensar em alternativas. É este
outro mundo possível a partir do Sul global. desafio que está presente no subtítulo desta
Os principais temas são “Direito para outro antologia, a construção de um conhecimento
mundo possível”, correspondendo aos textos que sustente “um pensamento alternativo de
mais representativos da sociologia do direito. alternativas”, um pensamento necessariamen-
Os escritos de teoria política estão agregados te pós-abissal.
na parte intitulada “Democracia para outro Pretendemos com este trabalho oferecer
mundo possível” e finalmente, a quinta e últi- ao/à leitor/a uma panorâmica geral da obra de
ma parte, sob o título “Educação para outro Boaventura de Sousa Santos. É com o desafio
mundo possível”, agrupa os textos que deba- de pensar o mundo de forma situada, reco-
20 M. P. Meneses, J. Arriscado Nunes, C. Lema Añón, A. Aguiló Bonet e N. Lino Gomes

nhecendo a diversidade potencialmente infini-


ta de saberes e experiências, que desejamos
que esta antologia seja lida e, acima de tudo,
vivida. Cabe agora ao leitor/a avaliar se tive-
mos êxito neste nosso propósito, o propósito
de dar a conhecer a riqueza e a amplitude do
horizonte analítico de um cientista social que
consideramos ser um dos mais importantes
do nosso tempo.
Parte I

Pensando desde o Sul e com o Sul


Apresentação
Maria Paula Meneses

“Uma Epistemologia do Sul se baseia sultante da heterogeneidade do mundo? Como


em três orientações: reconhecer outras epistemologias e gerar diá-
aprender que existe o Sul; logos entre elas? Como ré-significar o sentido
aprender a ir em direção ao Sul; da utopia?
aprender do Sul e com o Sul.”
Nesta parte da antologia, intento caracteri-
Boaventura de Sousa Santos (1995) zar em traços gerais o percurso de Boaventura
de Sousa Santos, identificando as principais in-
tervenções teóricas e políticas no campo dos

O desafio de Boaventura de Sousa Santos


de ir ao Sul para trabalhar com o Sul,
acompanha-o há muito tempo. Este desafio se
debates e das (ré)construções epistêmicas.
Sendo uma antologia uma seleção de textos de
referência do autor, qualquer seleção é neces-
desdobra em várias perguntas: Por que razão, sariamente parcial, e reflete, necessariamente,
nos últimos dois séculos, a epistemologia do- as opções de quem escolhe os textos.
minante tem eliminado da reflexão epistemoló- Esta apresentação está dividida em dois par-
gica o contexto cultural e político da produção tes. Na primeira parte, aponto as principais li-
e reprodução do conhecimento? Quais são as nhas da construção teórica das Epistemologias
raízes da crise do paradigma racional-científi- do Sul, uma alternativa proposta por Boaventu-
co? Será que a “desunião” e a diversidade da ra ao paradigma epistêmico da ciência moder-
ciência são o resultado dum pluralismo episte- na, procurando identificar os rasgos principais
mológico? O será que a razão desta diversidade de cada trabalho, e fundamentando as opções
tem origens ontológicos, uma diversidade re- da sua inclusão nesta antologia. Na segunda
24 Maria Paula Meneses

parte, procuro de forma sucinta chamar a aten- sentido da vida e das práticas sociais, a uma
ção sobre alguns dos conceitos chave para pen- visão eurocêntrica. Nas palavras do autor, o
sar o Sul e do Sul, a partir de uma leitura das aprofundamento do paradigma dominante —
propostas de Boaventura. da racionalidade científica — “permitiu ver a
Uma das características do pensamento de fragilidade dos pilares nos quais se funda”, ou
Boaventura reside na sua solidariedade com seja, um saber que não responde a muitos dos
as lutas por um mundo melhor, mais solidário, anelos científicos e sociais contemporâneos.
onde as mudanças sociais se beneficiam de A caraterização detalhada que Boaventura faz
um saber comprometido com a emancipação do paradigma dominante permite delinear o
social. Estes elementos, aliados a um sentido perfil do paradigma emergente. Este paradig-
profundo de humanidade, de pensar e de sentir, ma emergente que Boaventura ampliará pos-
“corazonando” com os que o rodeiam, marcam teriormente com as Epistemologias do Sul,
o caminho de Boaventura como pesquisador, propõe “um conhecimento prudente para uma
como ativista e como homem envolvido nas vida decente” que está estruturado em torno
causas sociais do seu tempo. a quatro princípios: 1) todo conhecimento
Em 1987, Boaventura publica Um discur- científico-natural é científico-social, 2) todo
so sobre as ciências, trabalho de referência conhecimento é local e total, 3) todo conhe-
que abre esta antologia (Santos, 1987). O texto cimento é autoconhecimento, 4) todo conhe-
está estruturado em torno a três pontos prin- cimento científico pretende se constituir em
cipais: a caraterização do paradigma domi- senso comum. A crescente transdisciplinarie-
nante da ciência moderna; a argumentação ao dade, condição ressaltada pelo autor, ao apro-
redor do que vivemos em um período de crise ximar a sugestão de ré-subjetivação do conhe-
do paradigma atual; e a indignação da transi- cimento científico, abre as portas à tradução
ção em direção a um paradigma emergente. O deste saber em um saber prático que ensina
modelo hegemônico da ciência moderna pro- a viver, promovendo a reabilitação do senso
vém da racionalidade imposta pela Ilustração. comum e das suas virtualidades. Em resumo,
Este modelo foi responsável por uma tradição o desafio é de transformar o conhecimento-
de dominação política e cultural que someteu -como-emancipação em um senso comum
a diversidade do conhecimento no mundo, do emancipatório, tema que também será reto-
Parte I: Apresentação 25

mado nas apresentações dos outros textos imaginar o novo está parcialmente constituída
que integram esta antologia. por novas combinações e por escalas do que
Em Não disparem sobre o utopista, amplia existe, e que são, na realidade, quase sempre
suas reflexões sobre a transição paradigmáti- meros detalhes, pequenos e obscuros, do que
ca que caracteriza ao mundo contemporâneo, realmente existe”. Neste sentido, conforme
destacando a existência de vestígios duma a proposta de Boaventura, a utopia requere,
modernidade inacabada que estão ligados à além de imaginação, um profundo conheci-
solidariedade e à participação em perspectiva mento da realidade. Em tempos de vertigem
utópica. Para pensar alternativas ao tempo de e de desassossego, fruto da desorientação dos
desencanto e à atual autonomia isolacionista e mapas na contemporaneidade, Boaventura su-
derrotista, urge recorrer a um modo de pensa- gere uma utopia que recuse o conformismo,
mento suprimido ou marginado pelas concep- construída a partir de outra leitura destes ma-
ções hegemônicas da modernidade, a saber, a pas, recorrendo a outras escalas e perspecti-
utopia, como ressalta Boaventura. Nas pala- vas, do centro à margem.
vras do autor, a utopia é imaginar futuros pos- Como explica, “a finalidade do deslocamen-
síveis, “a exploração por meio da imaginação to é permitir uma visão telescópica do centro
de novas possibilidades humanas e de novas e uma visão microscópica de todo o recusado
formas de vontade, e a oposição da imaginação pelo centro para reproduzir sua credibilidade
à necessidade do existente, só porque existe, como tal. O objetivo é experimentar a fronteira
em seu nome, uma coisa radicalmente melhor da sociabilidade como forma de sociabilida-
pela qual vale a pena lutar e à qual a humanida- de”, ou seja, viver “entre espaços”, o que é a
de tem direito”. fronteira, ou seja, viver fora de qualquer forta-
Para Boaventura, a utopia presenta dois ras- leza, aberto a aprender do mundo. Neste texto,
gos fundamentais: por um lado, chama a aten- é possível detectar já as sementes da ecologia
ção sobre o que pode ser criado, imaginado de saberes, quando apela a um engrandecimen-
como alternativa ao que a contemporaneidade to e a um amparo do emergente, e da utopia
oferece, propondo soluções aos problemas como projeto “ainda não”, mas possível. A uto-
contemporâneos; por outro lado, a utopia é pia realista que Boaventura propõe recusa “o
desigualmente utópica, já que “sua forma de fechamento do horizonte de expectativas e de
26 Maria Paula Meneses

possibilidades”. Esta perspectiva é um desafio ma baseado nos princípios da solidariedade e


epistemológico e ontológico fundamental para da comunidade, o horizonte utópico ao qual
lutar por novas formas de expectativas, possi- o autor aponta. A decisão de ir em direção
bilidades e alternativas, uma visão trágica, mas ao Sul implica um itinerário emancipatório e
mais otimista do que a realidade. uma utopia do aqui e do agora. Retomando a
Consciente da impossibilidade de responder discussão que abre esta antologia, Boaventu-
ao paradigma dominante com um outro, em ra aprofunda a análise da crise do paradigma
particular, Boaventura nos propõe em O Nor- moderno, cujo origem ele situa na ruptura
te, o Sul e a Utopia, destronar a centralidade entre os pilares fundamentais da normativa e
da racionalidade científica para, posteriormen- dos da emancipação. Sob o véu do progresso,
te, construir utopia(s). Seu objetivo concorda a experiência social dos grandes grupos so-
com a criação de um novo senso comum que ciais deixou de responder a suas expectativas
permita transformar a ordem ou a desordem futuras. Esta ruptura entre o presente (expe-
existente. Esta tarefa — que o autor adverte riência) e o futuro (expectativa) é geradora
que não é simples nem possível de ser realizada de desconforto e, também, Boaventura alerta,
individualmente — requere de perseverança, o pode levar ao desperdiço da experiência.
que não surpreende, já que como ele afirma, “a A constituição mutua do Norte e do Sul, e
paciência da utopia é infinita”. a natureza hierárquica das relações Norte-Sul
Aqui está o caminho do Sul, onde a dico- permanecem presas à persistência das rela-
tomia Norte-Sul expressa fronteiras que são ções capitalistas e coloniais. No Norte global,
uma das principais linhas abissais que legi- os “outros” saberes, além da ciência e da téc-
timam um pensamento político imperial, o nica, foram produzidos como não existentes
sustento das desigualdades em que se apoia ou reduzidos a dados locais, sendo deste modo
o sistema mundial. Aqui, a fronteira constitui radicalmente excluídos da racionalidade mo-
uma metáfora, uma figura que, se por um lado derna. Em um momento no qual a tecnocracia
pode legitimar a racionalidade dominante, procura substituir a produção de conhecimen-
por outro reconhece a existência de subjeti- to, quando a sociometria é apontada como um
vidades e de sociabilidades alternativas que dos principais indicadores da qualidade da
permitem a construção de um novo paradig- produção científica, o pensamento de Boaven-
Parte I: Apresentação 27

tura é inspirador por desafiar a centralidade tência. Somos muitos, e usamos nossas novas
do tecno-conhecimento científico moderno. aprendizagens de maneiras diferentes. Não
Nesse sentido, não há conhecimento abstrato, sempre concordamos entre nós, [mas] compar-
sem práticas e atores sociais. Em suas relações tilhamos os problemas que temos com nossos
mais extensas, as relações sociais são também inimigos” (Santos, 2014). E este retorno não é
culturais e políticas, o que significa que todo só epistêmico, é também ontológico.
conhecimento é sempre contextual. Boaven- Teorizar política e epistemicamente a hete-
tura defende que, para combater o desperdiço rogeneidade que compõe o Sul global está na
de experiência, não é suficiente propor outro base das Epistemologias do Sul. Em um dos
tipo de ciência. Pelo contrário, é urgente cons- seus trabalhos mais recentes, Boaventura ca-
truir uma nova postura epistemológica para racteriza as Epistemologias do Sul como um
recuperar as experiências e saberes relegados conjunto de indagações sobre a construção e
ou inclusive destruídos pela lógica colonial- validação do conhecimento nascido na luta,
-capitalista, pelo que ele designa como episte- de formas de saber desenvolvidas por grupos
micídio. Desafiando esta realidade, Boaventu- e movimentos sociais como parte da sua resis-
ra avança com a ideia de que, para defender a tência contra as injustiças e as opressões siste-
diversidade do mundo, para resgatar saberes máticas causadas pelo capitalismo, o colonia-
silenciados pelo capitalismo, pelo colonialis- lismo e o patriarcado.
mo e pelo patriarcado, é urgente construir uma Pensar do Sul passa pelo reconhecimento
teoria alternativa de alternativas que considere da dicotomia Norte-Sul, pela problematização
a diversidade e a complexidade das lutas dos desta dicotomia, e pelo retorno dos sujeitos
oprimidos e subalternizados, dos que não são que compõem a diversidade do Sul global. Nes-
considerados humanos pela força do pensa- ta análise crítica é iniludível o conceito do pen-
mento abissal. samento abissal, uma característica de nosso
Uma das pedras angulares deste pensamen- tempo, dum tempo refém de formas coloniais
to é o conceito de Sul global que Boaventura de interpretação do mundo. O pensamento
caracteriza como o momento do retorno dos abissal é constituído a partir dum sistema de
humilhados e subalternizados: “Não somos distinções visíveis e invisíveis, as invisíveis fun-
vítimas; fomos vitimados e oferecemos resis- damentando as visíveis. As distinções invisí-
28 Maria Paula Meneses

veis se estabelecem por meio de linhas radicais sobre as sociedades contemporâneas. O reco-
que dividem a realidade social em dois univer- nhecimento da persistência do pensamento
sos distintos: o universo “deste lado da linha”, abissal é a condição para pensar e para atuar
o da metrópole, e o universo “do outro lado da além do mesmo. Neste sentido, e aprofundan-
linha”, o do espaço colonizado. Esta divisão do a análise crítica da transição paradigmá-
abissal gerada pela epistemologia imperial faz tica, Boaventura defende uma transição que
o “outro lado da linha” insignificante, residual inclua novas relações entre epistemologia e
em quanto realidade, e é produzida como ine- política, e entre epistemologia e subjetivida-
xistente. Este pensamento abissal, fundacional de. Aprender através duma Epistemologia do
da modernidade, constrói os sujeitos do Sul Sul faz possível lutar por um cosmopolitismo
como objetos sobre os quais se fala (se os reco- insurgente subalterno, baseado em uma razão
nhece como humanos) ou, muitas vezes, nem cosmopolita subalterna, como o autor ressal-
sequer os reconhece como tais, como Boaven- ta. Ao dar igual peso aos princípios de igual-
tura refletiu ao questionar o “sentido de huma- dade e de reconhecimento da diferença, o cos-
nidade” nos discursos contemporâneos sobre mopolitismo insurgente corresponde a uma
os direitos humanos. emergência global, fruto da fusão de lutas pro-
A racionalidade científica eurocêntrica, ao gressistas em vários lugares, com o objetivo
se autoconsiderar mais desenvolvida, assume de maximizar seu potencial emancipatório in
que não precisa aprender nada do Sul global. loco (em função de definições locais) por meio
A característica fundamental do pensamento de conexões translocais/locais.
abissal é a impossibilidade da co-presença O resultado do pensamento abissal é a sepa-
dos dois lados da linha, a impossibilidade ração radical entre o mundo metropolitano e o
duma tradução entre realidades e saberes mundo colonizado; esta linha abissal continua
que as conformam. Esta posição de arrogân- sendo estruturante do pensamento moderno
cia ignorante impede que a epistemologia de eurocêntrico, estando na origem das relações
raiz eurocêntrica — a epistemologia do Norte políticas e culturais excludentes mantidas no
— aprenda do mundo, dum campo fascinante sistema mundial contemporâneo. A injustiça
de inovação, de alternativas e de criatividade social global está estreitamente associada à
que permitem produzir diagnósticos radicais injustiça cognitiva global, de modo que a luta
Parte I: Apresentação 29

pela justiça social global requere a construção entre os conhecimentos científicos produzidos
dum pensamento pós-abissal, a partir das pre- pela modernidade eurocêntrica e outros co-
missas programáticas da ecologia de saberes. nhecimentos não-científicos.
A ecologia de saberes é a proposta com a A tradução intercultural é a alternativa de
qual Boaventura avança para confrontar a ló- Boaventura ao universalismo abstrato no qual
gica da monocultura do conhecimento cientí- são assentadas as teorias gerais eurocêntricas
fico e do rigor do saber, identificando outros e a ideia de incomensurabilidade entre cultu-
conhecimentos e critérios de rigor e validez ras. Como o autor elabora, a tradução inter-
que operam de forma crível em práticas sociais cultural consiste em buscar preocupações e
pronunciadas inexistentes através da razão suposições isomórficas subjacentes a distintas
metonímica. Como o autor ressalta, a cada pas- culturas. Este processo de tradução inclui a
so da ecologia dos saberes, é fundamental se identificação de diferenças e similitudes, e o
perguntar se o que está se perdendo é válido, desenvolvimento, quando for apropriado, de
e se o que já se sabe tem de ser questionado e novas formas híbridas de compreensão e in-
inclusive olvidado, e por que. Na ecologia de tercomunicação cultural. Estas novas formas
saberes, a obtenção de credibilidade para os híbridas são importantes, como ressalta o au-
conhecimentos não-científicos não implica de- tor, para favorecer interações e para fortalecer
sacreditar o conhecimento científico. Implica, alianças entre os movimentos envolvidos nas
pelo contrário, utilizá-lo em um contexto mais lutas, em diferentes contextos culturais, contra
amplo de diálogo com outros conhecimen- o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado,
tos. Neste sentido, esse uso do conhecimento pela justiça social e pela dignidade.
científico é contra-hegemônico. O objetivo da Para Boaventura, a tradução é um processo
ecologia de saberes é, por um lado, explorar vivo, concretado com argumentos e com emo-
concepções alternativas internas ao conheci- ções derivadas de compartir e diferenciar sob
mento científico, situação que foi visibiliza- uma axiologia do cuidado. Por isso, o trabalho
da por meio de epistemologias pluralistas em de tradução está longe de ser um mero exer-
várias práticas científicas (em particular, por cício intelectual. É um instrumento pragmáti-
meio das epistemologias feministas), e por co de mediação e de negociação. Seu objetivo
outro lado, continuar com a interdependência é superar a fragmentação inerente à extrema
30 Maria Paula Meneses

diversidade de experiências sociais do mundo ção, apontam em direção a projetos utópicos


reveladas pelas diferentes ecologias saberes. emancipadores, desafiando o imobilismo su-
Não surpreende que Boaventura dedique seu postamente esclarecido que fomenta razões
tempo por igual à atividade de pesquisa e ao indolentes. Esperamos estes textos servirem
trabalho com grupos e movimentos sociais, de inspiração para ampliar e aprofundar o co-
aplicando a tradução na procura por uma nhecimento do Sul global a partir do Sul global.
maior solidariedade e um maior apoio entre lu-
tas. É assim que se autoconstrói como intelec- Bibliografia
tual da retaguarda, termo cunhado por ele. As Santos, B. de Sousa 1987 Um Discurso sobre
traduções interculturais devem ser convertidas as Ciências (Porto: Afrontamento).
em modelos de alianças para práticas coletivas Santos, B. de Sousa 1995 Towards a New
transformadoras, como respostas possíveis e Common Sense: Law, Science and Politics
adequadas às experiências de epistemicídio e in the Paradigmatic Transition (Nova
de pensamento pós-abissal. Iorque: Routledge).
Pensar do Sul e com o Sul se assenta em uma Santos, B. de Sousa 2014 Epistemologies of
capacidade para imaginar e para se indignar the South: Justice against Epistemicide
com os males do mundo, condição “capaz de (Boulder: Paradigm).
fundamentar uma nova teoria, inconformista, Santos, B. de Sousa 2017 “The Resilience
desestabilizadora e, de fato, rebelde e prática”. of Abyssal Exclusions in Our Societies:
Boaventura de Sousa Santos, em um texto re- Toward a Post-Abyssal Law” in Tilburg Law
cente, afirmou: “há mais de 40 anos que ensino Review (Países Baixos: Tilburg University)
nas universidades onde muitas vezes passamos Nº 22, pp. 237-258.
muito tempo treinando incompetentes confor-
mistas. Agora precisamos treinar os rebeldes
competentes” (Santos, 2017: 237-258).
Neste esboço dos principais rasgos das
obras desta primeira parte, não quedam dúvi-
das: Boaventura nos convida a lutas que, em
suas distintas genealogias, prometem libera-
Um discurso sobre as ciências*

Introdução qua. Mas se fecharmos os olhos e os voltarmos


a abrir, verificamos com surpresa que os gran-
V ivemos num tempo atónito que ao debru-
çar-se sobre si próprio descobre que os
seus pés são um cruzamento de sombras, som-
des cientistas que estabeleceram e mapearam
o campo teórico em que ainda hoje nos mo-
bras que vêm do passado que ora pensamos já vemos viveram ou trabalharam entre o século
não sermos, ora pensamos não termos ainda XVIII e os primeiros vinte anos do século XX,
deixado de ser, sombras que vêm do futuro que de Adam Smith e Ricardo a Lavoisier e Darwin,
ora pensamos já sermos, ora pensamos nunca de Marx e Durkheim a Max Weber e Pareto,
virmos a ser. Quando, ao procurarmos analisar de Humboldt e Planck a Poincaré e Einstein.
a situação presente das ciências no seu conjun- E de tal modo é assim que é possível dizer que
to, olhamos para o passado, a primeira imagem em termos científicos vivemos ainda no século
é talvez a de que os progressos científicos dos XIX e que o século XX ainda não começou, nem
últimos trinta anos são de tal ordem dramáti- talvez comece antes de terminar. E se, em vez
cos que os séculos que nos precederam — des- de no passado, centrarmos o nosso olhar no
de o século XVI, onde todos nós, cientistas mo- futuro, do mesmo modo duas imagens contra-
dernos, nascemos, até ao próprio século XIX ditórias nos ocorrem alternadamente. Por um
— não são mais que uma pré-história longín- lado, as potencialidades da tradução tecnológi-
ca dos conhecimentos acumulados fazem-nos
crer no limiar de uma sociedade de comunica-
ção e interactiva libertada das carências e inse-
* Extraído de Santos, B. de Sousa 1988 Um discurso
sobre as ciências (Porto: Afrontamento). guranças que ainda hoje compõem os dias de
32 Boaventura de Sousa Santos

muitos de nós: o século XXI a começar antes nho comigo uma criança que há precisamente
de começar. Por outro lado, uma reflexão cada duzentos e trinta e cinco anos fez algumas per-
vez mais aprofundada sobre os limites do rigor guntas simples sobre as ciências e os cientis-
científico combinada com os perigos cada vez tas. Fê-las no início de um ciclo de produção
mais verosímeis da catástrofe ecológica ou da científica que muitos de nós julgam estar agora
guerra nuclear fazem-nos temer que o século a chegar ao fim. Essa criança é Jean-Jacques
XXI termine antes de começar. Rousseau. No seu célebre Discours sur les
Recorrendo à teoria sinergética do físico te- Sciences et les Arts (1750) Rousseau formu-
órico Hermann Haken, podemos dizer que vive- la várias questões enquanto responde à que,
mos num sistema visual muito instável em que também razoavelmente infantil, lhe fora posta
a mínima flutuação da nossa percepção visual pela Academia de Dijon (Rousseau, 1971: 52).
provoca rupturas na simetria do que vemos. Esta última questão rezava assim: o progresso
Assim, olhando a mesma figura, ora vemos um das ciências e das artes contribuirá para puri-
vaso grego branco recortado sobre um fundo ficar ou para corromper os nossos costumes?
preto, ora vemos dois rostos gregos de perfil, Trata-se de uma pergunta elementar, ao mes-
frente a frente, recortados sobre um fundo mo tempo profunda e fácil de entender. Para
branco. Qual das imagens é verdadeira? Ambas lhe dar resposta — do modo eloquente que lhe
e nenhuma. É esta a ambiguidade e a comple- mereceu o primeiro prémio e algumas inimiza-
xidade da situação do tempo presente, um tem- des — Rousseau fez as seguintes perguntas não
po de transição, síncrono com muita coisa que menos elementares: há alguma relação entre a
está além ou aquém dele, mas descompassado ciência e a virtude? Há alguma razão de peso
em relação a tudo o que o habita. para substituirmos o conhecimento vulgar que
Tal como noutros períodos de transição, di- temos da natureza e da vida e que partilhamos
fíceis de entender e de percorrer, é necessário com os homens e mulheres da nossa socieda-
voltar às coisas simples, à capacidade de for- de pelo conhecimento científico produzido por
mular perguntas simples, perguntas que, como poucos e inacessível à maioria? Contribuirá a
Einstein costumava dizer, só uma criança pode ciência para diminuir o fosso crescente na nos-
fazer mas que, depois de feitas, são capazes de sa sociedade entre o que se é e o que se apa-
trazer uma luz nova à nossa perplexidade. Te- renta ser, o saber dizer e o saber fazer, entre
Um discurso sobre as ciências 33

a teoria e a prática? Perguntas simples a que se escondem as novas abundâncias da nossa


Rousseau responde, de modo igualmente sim- vida individual e colectiva. Mas mesmo aí volta
ples, com um redondo não. a perplexidade de não sabermos o que abunda-
Estávamos então em meados do século rá em nós nessa abundância.
XVIII, numa altura em que a ciência moderna, Daí a ambiguidade e complexidade do tem-
saída da revolução científica do século XVI po científico presente a que comecei por aludir.
pelas mãos de Copérnico, Galileu e Newton, Daí também a ideia, hoje partilhada por muitos,
começava a deixar os cálculos esotéricos dos de estarmos numa fase de transição. Daí final-
seus cultores para se transformar no fermen- mente a urgência de dar resposta a perguntas
to de uma transformação técnica e social sem simples, elementares, inteligíveis. Uma per-
precedentes na história da humanidade. Uma gunta elementar é uma pergunta que atinge o
fase de transição, pois, que deixava perplexos magma mais profundo da nossa perplexidade
os espíritos mais atentos e os fazia reflectir individual e colectiva com a transparência téc-
sobre os fundamentos da sociedade em que nica de uma fisga. Foram assim as perguntas de
viviam e sobre o impacto das vibrações a que Rousseau; terão de ser assim as nossas. Mais
eles iam ser sujeitos por via da ordem cientí- do que isso, duzentos e tal anos depois, as nos-
fica emergente. Hoje, duzentos anos volvidos, sas perguntas continuam a ser as de Rousseau.
somos todos protagonistas e produtos dessa Estamos de novo regressados à necessidade
nova ordem, testemunhos vivos das transfor- de perguntar pelas relações entre a ciência e
mações que ela produziu. Contudo, não o so- a virtude, pelo valor do conhecimento dito or-
mos, em 1985, do mesmo modo que o éramos dinário ou vulgar que nós, sujeitos individuais
há quinze ou vinte anos. Por razões que alinho ou colectivos, criamos e usamos para dar sen-
adiante, estamos de novo perplexos, perdemos tido às nossas práticas e que a ciência teima
a confiança epistemológica; instalou-se em nós em considerar irrelevante, ilusório e falso; e
uma sensação de perda irreparável tanto mais temos finalmente de perguntar pelo papel de
estranha quanto não sabemos ao certo o que todo o conhecimento científico acumulado no
estamos em vias de perder; admitimos mesmo, enriquecimento ou no empobrecimento práti-
noutros momentos, que essa sensação de per- co das nossas vidas, ou seja, pelo contributo
da seja apenas a cortina de medo atrás da qual positivo ou negativo da ciência para a nossa
34 Boaventura de Sousa Santos

felicidade. A nossa diferença existencial em re- sua emergência. Este percurso analítico será
lação a Rousseau é que, se as nossas perguntas balizado pelas seguintes hipóteses de trabalho:
são simples, as respostas sê-lo-ão muito me- primeiro, começa a deixar de fazer sentido a
nos. Estamos no fim de um ciclo de hegemonia distinção entre ciências naturais e ciências so-
de uma certa ordem científica. As condições ciais; segundo, a síntese que há que operar en-
epistémicas das nossas perguntas estão ins- tre elas tem como polo catalisador as ciências
critas no avesso dos conceitos que utilizamos sociais; terceiro, para isso, as ciências sociais
para lhes dar resposta. É necessário um esfor- terão de recusar todas as formas de positivis-
ço de desvendamento conduzido sobre um fio mo lógico ou empírico ou de mecanicismo
de navalha entre a lucidez e a ininteligibilidade materialista ou idealista com a consequente
da resposta. São igualmente diferentes e muito revalorização do que se convencionou chamar
mais complexas as condições sociológicas e humanidades ou estudos humanísticos; quarto,
psicológicas do nosso perguntar. É muito dife- esta síntese não visa uma ciência unificada nem
rente perguntar pela utilidade ou pela felicida- sequer uma teoria geral, mas tão-só um conjun-
de que o automóvel me pode proporcionar se to de galerias temáticas onde convergem li-
a pergunta é feita quando ninguém na minha nhas de água que até agora concebemos como
vizinhança tem automóvel, quando toda a gen- objectos teóricos estanques; quinto, à medida
te tem excepto eu ou quando eu próprio tenho que se der esta síntese, a distinção hierárquica
carro há mais de vinte anos. entre conhecimento científico e conhecimento
Teremos forçosamente de ser mais rousse- vulgar tenderá a desaparecer e a prática será o
aunianos no perguntar do que no responder. fazer e o dizer da filosofia da prática.
Começarei por caracterizar sucintamente a or-
dem científica hegemónica. Analisarei depois O paradigma dominante
os sinais da crise, dessa hegemonia, distinguin- O modelo de racionalidade que preside à ci-
do entre as condições teóricas e as condições ência moderna constituiu-se a partir da revolu-
sociológicas da crise. Finalmente especularei ção científica do século XVI e foi desenvolvido
sobre o perfil de uma nova ordem científica nos séculos seguintes basicamente no domínio
emergente, distinguindo de novo entre as con- das ciências naturais. Ainda que com alguns
dições teóricas e as condições sociológicas da prenúncios no século XVIII, é só no século XIX
Um discurso sobre as ciências 35

que este modelo de racionalidade se estende às Descartes. Esta preocupação em testemunhar


ciências sociais emergentes. A partir de então uma ruptura fundante que possibilita uma e só
pode falar-se de um modelo global de raciona- uma forma de conhecimento verdadeiro está
lidade científica que admite variedade interna bem patente na atitude mental dos protagonis-
mas que se distingue e defende, por via de fron- tas, no seu espanto perante as próprias desco-
teiras ostensivas e ostensivamente policiadas, bertas e a extrema e ao mesmo tempo serena
de duas formas de conhecimento não científico arrogância com que se medem com os seus
(e, portanto, irracional) potencialmente pertur- contemporâneos. Para citar apenas dois exem-
badoras e intrusas: o senso comum e as cha- plos, Kepler escreve no seu livro sobre a Har-
madas humanidades ou estudos humanísticos monia do Mundo publicado em 1619, a propó-
(em que se incluíram, entre outros, os estudos sito das harmonias naturais que descobrira nos
históricos, filológicos, jurídicos, literários, filo- movimentos celestiais: “Perdoai-me mas estou
sóficos e teológicos). feliz; se vos zangardes eu perseverarei; […] O
Sendo um modelo global, a nova racionali- meu livro pode esperar muitos séculos pelo seu
dade científica é também um modelo totalitá- leitor. Mas mesmo Deus teve de esperar seis
rio, na medida em que nega o carácter racional mil anos por aqueles que pudessem contemplar
a todas as formas de conhecimento que se não o seu trabalho”. Por outro lado, Descartes, nes-
pautarem pelos seus princípios epistemológi- sa maravilhosa autobiografia espiritual que é o
cos e pelas suas regras metodológicas. É esta a Discurso do Método e a que voltarei mais tarde,
sua característica fundamental e a que melhor diz, referindo-se ao método por si encontrado:
simboliza a ruptura do novo paradigma cien-
tífico com os que o precedem. Está consubs- Porque já colhi dele tais frutos que embora no
tanciada, com crescente definição, na teoria juízo que faço de mim próprio procure sempre
heliocêntrica do movimento dos planetas de inclinar-me mais para o lado da desconfiança
Copérnico, nas leis de Kepler sobre as órbitas do que para o da presunção, e embora, olhando
com olhar de filósofo as diversas acções e em-
dos planetas, nas leis de Galileu sobre a queda
preendimentos de todos os homens, não haja
dos corpos, na grande síntese da ordem cósmi-
quase nenhuma que não me pareça vã e inútil,
ca de Newton e finalmente na consciência fi- não deixo de receber uma extrema satisfação
losófica que lhe conferem Bacon e sobretudo
36 Boaventura de Sousa Santos

com o progresso que julgo ter feito em busca da desconfia sistematicamente das evidências da
verdade e de conceber tais esperanças para o nossa experiência imediata. Tais evidências,
futuro que, se entre as ocupações dos homens, que estão na base do conhecimento vulgar, são
puramente homens, alguma há que seja solida- ilusórias. Como bem salienta Einstein no pre-
mente boa e importante, ouso crer que é aquela
fácio ao Diálogo sobre os Grandes Sistemas
que escolhi (1984: 6).
do Mundo (1970: XVII), Galileu esforça-se de-
nodadamente por demonstrar que a hipótese
Para compreender esta confiança episte-
dos movimentos de rotação e de translação
mológica é necessário descrever, ainda que
da terra não é refutada pelo facto de não ob-
sucintamente, os principais traços do novo
servarmos quaisquer efeitos mecânicos desses
paradigma científico. Cientes de que o que os
movimentos, ou seja, pelo facto de a terra nos
separa do saber aristotélico e medieval ainda
parecer parada e quieta. Por outro lado, é total
dominante não é apenas nem tanto uma melhor
a separação entre a natureza e o ser humano.
observação dos factos como sobretudo uma
A natureza é tão-só extensão e movimento; é
nova visão do mundo e da vida, os protago-
passiva, eterna e reversível, mecanismo cujos
nistas do novo paradigma conduzem uma luta
elementos se podem desmontar e depois rela-
apaixonada contra todas as formas de dogma-
cionar sob a forma de leis; não tem qualquer
tismo e de autoridade. O caso de Galileu é par-
outra qualidade ou dignidade que nos impeça
ticularmente exemplar, e é ainda Descartes que
de desvendar os seus mistérios, desvendamen-
afirma: “Eu não podia escolher ninguém cujas
to que não é contemplativo, mas antes activo,
opiniões me parecessem dever ser preferidas
já que visa conhecer a natureza para a dominar
às dos outros, e encontrava-me como que obri-
e controlar. Como diz Bacon, a ciência fará da
gado a procurar conduzir-me a mim próprio”
pessoa humana “o senhor e o possuidor da na-
(1984: 16). Esta nova visão do mundo e da vida
tureza” (1933)1.
reconduz-se a duas distinções fundamentais,
entre conhecimento científico e conhecimento
do senso comum, por um lado, e entre natu- 1 Para Bacon “a senda que conduz o homem ao po-
reza e pessoa humana, por outro. Ao contrá- der e a que o conduz à ciência estão muito próximas,
rio da ciência aristotélica, a ciência moderna sendo quase a mesma” (1933: 110). Se o objectivo da
ciência é dominar a natureza não é menos verdade que
Um discurso sobre as ciências 37

Com base nestes pressupostos o conheci- As ideias que presidem à observação e à ex-
mento científico avança pela observação des- perimentação são as ideias claras e simples a
comprometida e livre, sistemática e tanto quan- partir das quais se pode ascender a um conhe-
to possível rigorosa dos fenómenos naturais. O cimento mais profundo e rigoroso da nature-
Novum Organum opõe a incerteza da razão za. Essas ideias são as ideias matemáticas. A
entregue a si mesma à certeza da experiência matemática fornece à ciência moderna, não só
ordenada (1981: 30). Ao contrário do que pen- o instrumento privilegiado de análise, como
sa Bacon, a experiência não dispensa a teoria também a lógica da investigação, como ainda
prévia, o pensamento dedutivo ou mesmo a o modelo de representação da própria estrutu-
especulação, mas força qualquer deles a não ra da matéria. Para Galileu, o livro da nature-
dispensarem, enquanto instância de confirma- za está inscrito em caracteres geométricos2 e
ção última, a observação dos factos. Galileu só Einstein não pensa de modo diferente3. Deste
refuta as deduções de Aristóteles na medida
em que as acha insustentáveis e é ainda Eins-
tein quem nos chama a atenção para o facto 2 Entre muitos outros passos do Diálogo sobre os
de os métodos experimentais de Galileu serem Grandes Sistemas, ver a seguinte fala de Salviati: “No
que respeita à compreensão intensiva e na medida em
tão imperfeitos que só por via de especulações que este termo denota a compreensão perfeita de al-
ousadas poderia preencher as lacunas entre os guma proposição, digo que a inteligência humana com-
dados empíricos (basta recordar que não ha- preende algumas delas perfeitamente, e que, portanto,
via medições de tempo inferiores ao segundo) a respeito delas tem uma certeza tão absoluta quanto
a própria natureza. Tais são as proposições das ciên-
(Enstein, 1970: XIX). Descartes, por seu turno,
cias matemáticas, isto é, da geometria e da aritmética
vai inequivocamente das ideias para as coisas nas quais a inteligência divina conhece infinitamente
e não das coisas para as ideias e estabelece a mais proposições porque as conhece todas. Mas no
prioridade da metafísica enquanto fundamento que respeita àquelas poucas que a inteligência humana
último da ciência. compreende, penso que o seu conhecimento é igual ao
Divino em certeza objectiva porque, nesses casos, con-
segue compreender a necessidade para além da qual
“só podemos vencer a natureza obedecendo-lhe” (1933: não há maior certeza”. Ver Galilei, 1970: 103.
6), o que nem sempre tem sido devidamente salientado 3 A admiração de Einstein por Galileu está bem ex-
nas interpretações da teoria de Bacon sobre a ciência. pressa no prefácio referido anteriormente, ver Einstein,
38 Boaventura de Sousa Santos

lugar central da matemática na ciência moder- as que estabelecem as condições relevantes


na derivam duas consequências principais. Em dos factos a observar; as leis da natureza são
primeiro lugar, conhecer significa quantificar. o reino da simplicidade e da regularidade onde
O rigor científico afere-se pelo rigor das me- é possível observar e medir com rigor. Esta dis-
dições. As qualidades intrínsecas do objecto tinção entre condições iniciais e leis da nature-
são, por assim dizer, desqualificadas e em seu za nada tem de “natural”. Como bem observa
lugar passam a imperar as quantidades em que Eugene Wigner, é mesmo completamente arbi-
eventualmente se podem traduzir. O que não é trária (1970: 3). No entanto, é nela que assenta
quantificável é cientificamente irrelevante. Em toda a ciência moderna.
segundo lugar, o método científico assenta na A natureza teórica do conhecimento cientí-
redução da complexidade. O mundo é compli- fico decorre dos pressupostos epistemológicos
cado e a mente humana não o pode compreen- e das regras metodológicas já referidas. É um
der completamente. Conhecer significa dividir conhecimento causal que aspira à formulação
e classificar para depois poder determinar rela- de leis, à luz de regularidades observadas, com
ções sistemáticas entre o que se separou. Já em vista a prever o comportamento futuro dos fe-
Descartes uma das regras do Método consiste nómenos. A descoberta das leis da natureza as-
precisamente em “dividir cada uma das dificul- senta, por um lado, e como já se referiu, no iso-
dades… em tantas parcelas quanto for possí- lamento das condições iniciais relevantes (por
vel e requerido para melhor as resolver” (1984: exemplo, no caso da queda dos corpos, a posi-
17). A divisão primordial é a que distingue en- ção inicial e a velocidade do corpo em queda) e,
tre “condições iniciais” e “leis da natureza”. As por outro lado, no pressuposto de que o resul-
condições iniciais são o reino da complicação, tado se produzirá independentemente do lugar
do acidente e onde é necessário seleccionar e do tempo em que se realizarem as condições
iniciais. Por outras palavras, a descoberta das
leis da natureza assenta no princípio de que a
1970. O modo radical (e instintivo) como Einstein “vê” posição absoluta e o tempo absoluto nunca são
a natureza matemática da estrutura da matéria explica condições iniciais relevantes. Este princípio é,
em parte a sua longa batalha sobre a interpretação da
segundo Wigner, o mais importante teorema da
mecânica quântica (especialmente contra a interpreta-
ção de Copenhague). Ver Hoffmann, 1973: 173 e ss. invariância na física clássica (1970: 226).
Um discurso sobre as ciências 39

As leis, enquanto categorias de inteligibili- determinar exactamente por meio de leis físi-
dade, repousam num conceito de causalidade cas e matemáticas, um mundo estático e eterno
escolhido, não arbitrariamente, entre os ofere- a flutuar num espaço vazio, um mundo que o
cidos pela física aristotélica. Aristóteles distin- racional ismo cartesiano torna cognoscível por
gue quatro tipos de causa: a causa material, a via da sua decomposição nos elementos que o
causa formal, a causa eficiente e a causa final. constituem. Esta ideia do mundo-máquina é de
As leis da ciência moderna são um tipo de cau- tal modo poderosa que se vai transformar na
sa formal que privilegia o como funciona das grande hipótese universal da época moderna,
coisas em detrimento de qual o agente ou qual o mecanicismo. Pode parecer surpreendente e
o fim das coisas. É por esta via que o conhe- até paradoxal que uma forma de conhecimen-
cimento científico rompe com o conhecimento to, assente numa tal visão do mundo, tenha
do senso comum. É que, enquanto no senso co- vindo a constituir um dos pilares da ideia de
mum, e portanto no conhecimento prático em progresso que ganha corpo no pensamento eu-
que ele se traduz, a causa e a intenção convi- ropeu a partir do século XVIII e que é o gran-
vem sem problemas, na ciência a determinação de sinal intelectual da ascensão da burguesia4.
da causa formal obtém-se com a expulsão da Mas a verdade é que a ordem e a estabilidade
intenção. É este tipo de causa formal que per- do mundo são a pré-condição da transforma-
mite prever e, portanto, intervir no real e que, ção tecnológica do real.
em última instância, permite à ciência moderna O determinismo mecanicista é o horizonte
responder à pergunta sobre os fundamentos do certo de uma forma de conhecimento que se
seu rigor e da sua verdade com o elenco dos pretende utilitário e funcional, reconhecido
seus êxitos na manipulação e na transforma- menos pela capacidade de compreender pro-
ção do real. fundamente o real do que pela capacidade de o
Um conhecimento baseado na formulação dominar e transformar. No plano social, é esse
de leis tem como pressuposto metateórico a também o horizonte cognitivo mais adequado
ideia de ordem e de estabilidade do mundo, a aos interesses da burguesia ascendente que
ideia de que o passado se repete no futuro. Se-
gundo a mecânica newtoniana, o mundo da ma-
téria é uma máquina cujas operações se podem 4 Ver, entre muitos, Pollard, 1971: 39.
40 Boaventura de Sousa Santos

via na sociedade em que começava a dominar pelo homem, e as leis inescapáveis da natureza
o estádio final da evolução da humanidade (o (1950). No século XVIII este espírito precursor
estado positivo de Comte; a sociedade indus- é ampliado e aprofundado e o fermento intelec-
trial de Spencer; a solidariedade orgânica de tual que daí resulta, as luzes, vai criar as condi-
Durkheim). Daí que o prestígio de Newton e ções para a emergência das ciências sociais no
das leis simples a que reduzia toda a comple- século XIX. A consciência filosófica da ciência
xidade da ordem cósmica tenham convertido moderna, que tivera no racionalismo cartesia-
a ciência moderna no modelo de racionalidade no e no empirismo baconiano as suas primeiras
hegemónica que a pouco e pouco transbordou formulações, veio a condensar-se no positivis-
do estudo da natureza para o estudo da socie- mo oitocentista. Dado que, segundo este, só há
dade. Tal como foi possível descobrir as leis duas formas de conhecimento científico — as
da natureza, seria igualmente possível desco- disciplinas formais da lógica e da matemática
brir as leis da sociedade. Bacon, Vico e Mon- e as ciências empíricas segundo o modelo me-
tesquieu são os grandes precursores. Bacon canicista das ciências naturais — as ciências
afirma a plasticidade da natureza humana e, sociais nasceram para ser empíricas. O modo
portanto, a sua perfectibilidade, dadas as con- como o modelo mecanicista foi assumido foi,
dições sociais, jurídicas e políticas adequadas, no entanto, diverso. Distingo duas vertentes
condições que é possível determinar com rigor principais: a primeira, sem dúvida dominante,
(1933). Vico sugere a existência de leis que go- consistiu em aplicar, na medida do possível, ao
vernam deterministicamente a evolução das estudo da sociedade todos os princípios epis-
sociedades e tornam possível prever os resul- temológicos e metodológicos que presidiam ao
tados das acções colectivas. Com extraordiná- estudo da natureza desde o século XVI; a se-
ria premonição Vico identifica e resolve a con- gunda, durante muito tempo marginal mas hoje
tradição entre a liberdade e a imprevisibilidade cada vez mais seguida, consistiu em reivindicar
da acção humana individual e a determinação para as ciências sociais um estatuto epistemo-
e previsibilidade da acção colectiva (1953). lógico e metodológico próprio, com base na
Montesquieu pode ser considerado um precur- especificidade do ser humano e sua distinção
sor da sociologia do direito ao estabelecer a polar em relação à natureza. Estas duas con-
relação entre as leis do sistema jurídico, feitas cepções têm sido consideradas antagónicas, a
Um discurso sobre as ciências 41

primeira sujeita ao jugo positivista, a segunda necessário reduzir os factos sociais às suas di-
liberta dele, e qualquer delas reivindicando o mensões externas, observáveis e mensuráveis.
monopólio do conhecimento científico-social. As causas do aumento da taxa de suicídio na
Apresentarei adiante uma interpretação dife- Europa do virar do século não são procuradas
rente, mas para já caracterizarei sucintamente nos motivos invocados pelos suicidas e deixa-
cada uma destas variantes. dos em cartas, como é costume, mas antes a
A primeira variante — cujo compromis- partir da verificação de regularidades em fun-
so epistemológico está bem simbolizado no ção de condições tais como o sexo, o estado
nome de “física social” com que inicialmente civil, a existência ou não de filhos, a religião
se designaram os estudos científicos da socie- dos suicidas (Durkheim, 1973).
dade — parte do pressuposto que as ciências Porque essa redução nem sempre é fácil e
naturais são uma aplicação ou concretização nem sempre se consegue sem distorcer gros-
de um modelo de conhecimento universalmen- seiramente os factos ou sem os reduzir à quase
te válido e, de resto, o único válido. Portanto, irrelevância, as ciências sociais têm um longo
por maiores que sejam as diferenças entre os caminho a percorrer no sentido de se compa-
fenómenos naturais e os fenómenos sociais é tibilizarem com os critérios de cientificidade
sempre possível estudar os últimos como se das ciências naturais. Os obstáculos são enor-
fossem os primeiros. Reconhece-se que essas mes, mas não são insuperáveis. Ernest Nagel,
diferenças actuam contra os fenómenos so- em The Structure of Science, simboliza bem o
ciais, ou seja, tornam mais difícil o cumprimen- esforço desenvolvido nesta variante para iden-
to do cânone metodológico e menos rigoroso tificar os obstáculos e apontar as vias da sua
o conhecimento a que se chega, mas não há superação. Eis alguns dos principais obstácu-
diferenças qualitativas entre o processo cien- los: as ciências sociais não dispõem de teorias
tífico neste domínio e o que preside ao estudo explicativas que lhes permitam abstrair do real
dos fenómenos naturais. Para estudar os fe- para depois buscar nele, de modo metodolo-
nómenos sociais como se fossem fenómenos gicamente controlado, a prova adequada; as
naturais, ou seja, para conceber os factos so- ciências sociais não podem estabelecer leis
ciais como coisas, como pretendia Durkheim universais porque os fenómenos sociais são
(1980), o fundador da sociologia académica, é historicamente condicionados e culturalmente
42 Boaventura de Sousa Santos

determinados; as ciências sociais não podem cias, ao contrário das ciências naturais, essas
produzir previsões fiáveis porque os seres hu- sim, paradigmáticas. Enquanto, nas ciências
manos modificam o seu comportamento em naturais, o desenvolvimento do conhecimento
função do conhecimento que sobre ele se ad- tornou possível a formulação de um conjun-
quire; os fenómenos sociais são de natureza to de princípios e de teorias sobre a estrutu-
subjectiva e como tal não se deixam captar pela ra da matéria que são aceites sem discussão
objectividade do comportamento; as ciências por toda a comunidade científica, conjunto
sociais não são objectivas porque o cientista esse que designa por paradigma, nas ciências
social não pode libertar-se, no acto de obser- sociais não há consenso paradigmático, pelo
vação, dos valores que informam a sua prática que o debate tende a atravessar verticalmente
em geral e, portanto, também a sua prática de toda a espessura do conhecimento adquirido.
cientista (Nagel, 1961: 447). O esforço e o desperdício que isso acarreta é
Em relação a cada um destes obstáculos, simultaneamente causa e efeito do atraso das
Nagel tenta demonstrar que a oposição entre ciências sociais.
as ciências sociais e as ciências naturais não A segunda vertente reivindica para as ciên-
é tão linear quanto se julga e que, na medida cias sociais um estatuto metodológico próprio.
em que há diferenças, elas são superáveis ou Os obstáculos que há pouco enunciei são, se-
negligenciáveis. Reconhece, no entanto, que a gundo esta vertente, intransponíveis. Para al-
superação dos obstáculos nem sempre é fácil guns, é a própria ideia de ciência da sociedade
e que essa é a razão principal do atraso das ci- que está em causa, para outros trata-se tão-só
ências sociais em relação às ciências naturais. de empreender uma ciência diferente. O ar-
A ideia do atraso das ciências sociais é a ideia gumento fundamental é que a acção humana
central da argumentação metodológica nesta é radicalmente subjectiva. O comportamento
variante, é, com ela, a ideia de que esse atraso, humano, ao contrário dos fenómenos naturais,
com tempo e dinheiro, poderá vir a ser reduzi- não pode ser descrito e muito menos explicado
do ou mesmo eliminado. com base nas suas características exteriores e
Na teoria das revoluções científicas de Tho- objectiváveis, uma vez que o mesmo acto ex-
mas Kuhn o atraso das ciências sociais é dado terno pode corresponder a sentidos de acção
pelo carácter pré-paradigmático destas ciên- muito diferentes. A ciência social será sempre
Um discurso sobre as ciências 43

uma ciência subjectiva e não objectiva como a distinção natureza/cultura e a distinção ser
as ciências naturais; tem de compreender os humano/animal, para no século XVIII se poder
fenómenos sociais a partir das atitudes men- celebrar o carácter único do ser humano. A
tais e do sentido que os agentes conferem às fronteira que então se estabelece entre o estu-
suas acções, para o que é necessário utilizar do do ser humano e o estudo da natureza não
métodos de investigação e mesmo critérios deixa de ser prisioneira do reconhecimento
epistemológicos diferentes dos correntes nas da prioridade cognitiva das ciências naturais,
ciências naturais, métodos qualitativos em pois, se, por um lado, se recusam os condicio-
vez de quantitativos, com vista à obtenção de nantes biológicos do comportamento humano,
um conhecimento intersubjectivo, descritivo pelo outro, usam-se argumentos biológicos
e compreensivo, em vez de um conhecimento para fixar a especificidade do ser humano.
objectivo, explicativo e nomotético. Pode, pois, concluir-se que ambas as concep-
Esta concepção de ciência social reconhe- ções de ciência social a que aludi pertencem
ce-se numa postura antipositivista e assenta ao paradigma da ciência moderna, ainda que a
na tradição filosófica da fenomenologia e nela concepção mencionada em segundo lugar re-
convergem diferentes variantes, desde as mais presente, dentro deste paradigma, um sinal de
moderadas (como a de Max Weber) (1968) até crise e contenha alguns dos componentes da
às mais extremistas (como a de Peter Winch) transição para um outro paradigma científico.
(1970). Contudo, numa reflexão mais aprofun-
dada, esta concepção, tal como tem vindo a ser A crise do paradigma dominante
elaborada, revela-se mais subsidiária do mo- São hoje muitos e fortes os sinais de que o
delo de racionalidade das ciências naturais do modelo de racionalidade científica que acabo
que parece. Partilha com este modelo a distin- de descrever em alguns dos seus traços princi-
ção natureza/ser humano e tal como ele tem da pais atravessa uma profunda crise. Defenderei
natureza uma visão mecanicista à qual contra- nesta secção: primeiro, que essa crise é não só
põe, com evidência esperada, a especificidade profunda como irreversível; segundo, que es-
do ser humano. A esta distinção, primordial na tamos a viver um período de revolução cientí-
revolução científica do século XVI, vão-se so- fica que se iniciou com Einstein e a mecânica
brepor nos séculos seguintes outras, tal como quântica e não se sabe ainda quando acabará;
44 Boaventura de Sousa Santos

terceiro, que os sinais nos permitem tão-só es- problema lógico a resolver é o seguinte: como
pecular acerca do paradigma que emergirá des- é que o observador estabelece a ordem tempo-
te período revolucionário mas que, desde já, se ral de acontecimentos no espaço? Certamente
pode afirmar com segurança que colapsarão as por medições da velocidade da luz, partindo
distinções básicas em que assenta o paradigma do pressuposto, que é fundamental à teoria de
dominante e a que aludi na secção precedente. Einstein, que não há na natureza velocidade su-
A crise do paradigma dominante é o resul- perior à da luz. No entanto, ao medir a veloci-
tado interactivo de uma pluralidade de condi- dade numa direcção única (de A a B), Einstein
ções. Distingo entre condições sociais e condi- defronta-se com um círculo vicioso: a fim de de-
ções teóricas. Darei mais atenção às condições terminar a simultaneidade dos acontecimentos
teóricas e por elas começo. A primeira obser- distantes é necessário conhecer a velocidade;
vação, que não é tão trivial quanto parece, é mas para medir a velocidade é necessário co-
que a identificação dos limites, das insuficiên- nhecer a simultaneidade dos acontecimentos.
cias estruturais do paradigma científico moder- Com um golpe de génio, Einstein rompe com
no é o resultado do grande avanço no conhe- este círculo, demonstrando que a simultaneida-
cimento que ele propiciou. O aprofundamento de de acontecimentos distantes não pode ser
do conhecimento permitiu ver a fragilidade dos verificada, pode tão-só ser definida. É, portan-
pilares em que se funda. to, arbitrária e daí que, como salienta Reichen-
Einstein constitui o primeiro rombo no pa- bach (1970: 60), quando fazemos medições não
radigma da ciência moderna, um rombo, aliás, pode haver contradições rios resultados uma
mais importante do que o que Einstein foi sub- vez que estes nos devolverão a simultaneidade
jectivamente capaz de admitir. Um dos pen- que nós introduzimos por definição no sistema
samentos mais profundos de Einstein é o da de medição. Esta teoria veio revolucionar as
relatividade da simultaneidade. Einstein distin- nossas concepções de espaço e de tempo. Não
gue entre a simultaneidade de acontecimentos havendo simultaneidade universal, o tempo e o
presentes no mesmo lugar e a simultaneidade espaço absolutos de Newton deixam de existir.
de acontecimentos distantes, em particular Dois acontecimentos simultâneos num sistema
de acontecimentos separados por distâncias de referência não são simultâneos noutro siste-
astronómicas. Em relação a estes últimos, o ma de referência. As leis da física e da geome-
Um discurso sobre as ciências 45

tria assentam em medições locais. “Os instru- ção das partículas; o que for feito para reduzir
mentos de medida, sejam relógios ou metros, o erro de uma das medições aumenta o erro da
não têm magnitudes independentes, ajustam- outra (Heisenberg, 1971 e s/d). Este princípio,
-se ao campo métrico do espaço, a estrutura do e, portanto, a demonstração da interferência
qual se manifesta mais claramente nos raios de estrutural do sujeito no objecto observado,
luz” (1970: 68). tem implicações de vulto. Por um lado, sendo
O carácter local das medições e, portanto, estruturalmente limitado o rigor do nosso co-
do rigor do conhecimento que com base nelas nhecimento, só podemos aspirar a resultados
se obtém vai inspirar o surgimento da segun- aproximados e por isso as leis da física são tão-
da condição teórica da crise do paradigma -só probabilísticas. Por outro lado, a hipótese
dominante, a mecânica quântica. Se Einstein do determinismo mecanicista é inviabilizada
relativizou o rigor das leis de Newton no do- uma vez que a totalidade do real não se reduz
mínio da astrofísica, a mecânica quântica fê-lo à soma das partes em que a dividimos para ob-
no domínio da microfísica. Heisenberg e Bohr servar e medir. Por último, a distinção sujeito/
demonstram que não é possível observar ou objecto é muito mais complexa do que à pri-
medir um objecto sem interferir nele, sem o meira vista pode parecer. A distinção perde os
alterar, e a tal ponto que o objecto que sai de seus contornos dicotómicos e assume a forma
um processo de medição não é o mesmo que de um continuum.
lá entrou. Como ilustra Wigner, “a medição da O rigor da medição posto em causa pela me-
curvatura do espaço causada por uma partícu- cânica quântica será ainda mais profundamen-
la não pode ser levada a cabo sem criar novos te abalado se se questionar o rigor do veículo
campos que são biliões de vezes maiores que o formal em que a medição é expressa, ou seja, o
campo sob investigação” (1970: 7). A ideia de rigor da matemática. É isso o que sucede com
que não conhecemos do real senão o que nele as investigações de Gödel e que por essa razão
introduzimos, ou seja, que não conhecemos do considero serem a terceira condição da crise
real senão a nossa intervenção nele, está bem do paradigma. O teorema da incompletude (ou
expressa no princípio da incerteza de Heisen- do não completamento) e os teoremas sobre a
berg: não se podem reduzir simultaneamente impossibilidade, em certas circunstâncias, de
os erros da medição da velocidade e da posi- encontrar dentro de um dado sistema formal a
46 Boaventura de Sousa Santos

prova da sua consistência vieram mostrar que, e que, como tal, tem um lado construtivo e um
mesmo seguindo à risca as regras da lógica lado destrutivo.
matemática, é possível formular proposições A quarta condição teórica da crise do pa-
indecidíveis, proposições que se não podem radigma newtoniano é constituída pelos avan-
demonstrar nem refutar, sendo que uma des- ços do conhecimento nos domínios da micro-
sas proposições é precisamente a que postula física, da química e da biologia nos últimos
o carácter não-contraditório do sistema5. Se vinte anos. A título de exemplo, menciono
as leis da natureza fundamentam o seu rigor as investigações do físico-químico Ilya Prigo-
no rigor das formalizações matemáticas em gine. A teoria das estruturas dissipativas e o
que se expressam, as investigações de Gödel princípio da “ordem através de flutuações” es-
vêm demonstrar que o rigor da matemática tabelecem que em sistemas abertos, ou seja,
carece ele próprio de fundamento. A partir em sistemas que funcionam nas margens da
daqui é possível não só questionar o rigor da estabilidade, a evolução explica-se por flutua-
matemática como também redefini-lo enquan- ções de energia que em determinados momen-
to forma de rigor que se opõe a outras formas tos, nunca inteiramente previsíveis, desenca-
de rigor alternativo, uma forma de rigor cujas deiam espontaneamente reacções que, por
condições de êxito na ciência moderna não via de mecanismos não lineares, pressionam
podem continuar a ser concebidas como natu- o sistema para além de um limite máximo de
rais e óbvias. A própria filosofia da matemáti- instabilidade e o conduzem a um novo estado
ca, sobretudo a que incide sobre a experiência macroscópico. Esta transformação irreversí-
matemática, tem vindo a problematizar criati- vel e termodinâmica é o resultado da interac-
vamente estes temas e reconhece hoje que o ção de processos microscópicos segundo uma
rigor matemático, como qualquer outra forma lógica de auto-organização numa situação de
de rigor, assenta num critério de selectividade não-equilíbrio. A situação de bifurcação, ou
seja, o ponto crítico em que a mínima flutu-
ação de energia pode conduzir a um novo es-
5 O impacto dos teoremas de Gödel na filosofia da ci- tado, representa a potencialidade do sistema
ência tem sido diversamente avaliado. Ver, por exemplo,
em ser atraído para um novo estado de menor
Ladrière, 1967: 312 e ss.; Jones, 1982: 158; Parain-Vial,
1983: 52 e ss.; Thom, 1985: 36; Briggs e Peat, 1985: 22. entropia. Deste modo a irreversibilidade nos
Um discurso sobre as ciências 47

sistemas abertos significa que estes são pro- ções, entre outras, na teoria de Prigogine, na
duto da sua história6. sinergética de Haken (1977 e 1985: 205), no
A importância desta teoria está na nova con- conceito de hiperciclo e na teoria da origem
cepção da matéria e da natureza que propõe, da vida de Eigen7, nó conceito de autopoiesis
uma concepção dificilmente compaginável de Maturana e Varela (1973 e 1975)8. na teoria
com a que herdámos da física clássica. Em vez das catástrofes de Thom (1985: 85), na teoria
da eternidade, a história; em vez do determi- da evolução de Jantsch9 na teoria da “ordem
nismo, a imprevisibilidade; em vez do meca- implicada” de David Bohm (1984) ou na teoria
nicismo, a interpenetração, a espontaneidade da matriz-S de Geoffrey Chew e na filosofia do
e a auto-organização; em vez da reversibilida- “bootstrap” que lhe subjaz10. Este movimento
de, a irreversibilidade e a evolução; em vez da científico e as demais inovações teóricas que
ordem, a desordem; em vez da necessidade, a atrás defini como outras tantas condições te-
criatividade e o acidente. A teoria de Prigogine óricas da crise do paradigma dominante têm
recupera inclusivamente conceitos aristotéli- vindo a propiciar uma profunda reflexão epis-
cos tais como os conceitos de potencialidade e temológica sobre o conhecimento científico,
virtualidade que a revolução científica do sécu- uma reflexão de tal modo rica e diversificada
lo XVI parecia ter atirado definitivamente para que, melhor do que qualquer outra circunstân-
o lixo da história. cia, caracteriza exemplarmente a situação inte-
Mas a importância maior desta teoria está lectual do tempo presente. Esta reflexão apre-
em que ela não é um fenómeno isolado. Faz senta duas facetas sociológicas importantes.
parte de um movimento convergente, pujante Em primeiro lugar, a reflexão é levada a cabo
sobretudo a partir da última década, que atra- predominantemente pelos próprios cientistas,
vessa as várias ciências da natureza e até as
ciências sociais, um movimento de vocação
transdisciplinar que Jantsch designa por pa- 7 Ver Eigen e Schuster, 1979.
radigma da auto-organização e que tem aflora- 8 Ver também, Benseler, Hejl e Koch (orgs.) 1980.
9 Ver Jantsch, 1980 e 1981: 83 e ss.
6 Ver Prigogine e Stengers, 1979; Prigogine, 1980; Pri- 10 Ver Chew, 1968: 762 e ss. e 1970: 23 e ss; Capra,
gogine, 1981: 73 e ss. 1979: 11 e ss.
48 Boaventura de Sousa Santos

por cientistas que adquiriram uma competên- razoavelmente pequeno de condições (as con-
cia e um interesse filosóficos para problemati- dições iniciais) cuja interferência é observada
zar a sua prática científica. Não é arriscado di- e medida. Esta ideia, reconhece-se hoje, obriga
zer que nunca houve tantos cientistas-filósofos a separações grosseiras entre os fenómenos,
como actualmente, e isso não se deve a uma separações que, aliás, são sempre provisórias
evolução arbitrária do interesse intelectual. e precárias uma vez que a verificação da não
Depois da euforia cientista do século XIX e interferência de certos factores é sempre pro-
da consequente aversão à reflexão filosófica, duto de um conhecimento imperfeito, por mais
bem simbolizada pelo positivismo, chegámos perfeito que seja. As leis têm assim um carácter
a finais do século XX possuídos pelo desejo probabilístico, aproximativo e provisório, bem
quase desesperado de complementarmos o expresso no princípio da falsificabilidade de
conhecimento das coisas com o conhecimento Popper. Mas acima de tudo, a simplicidade das
do conhecimento das coisas, isto é, com o co- leis constitui uma simplificação arbitrária da
nhecimento de nós próprios. A segunda faceta realidade que nos confina a um horizonte míni-
desta reflexão é que ela abrange questões que mo para além do qual outros conhecimentos da
antes eram deixadas aos sociólogos. A análise natureza, provavelmente mais ricos e com mais
das condições sociais, dos contextos culturais, interesse humano, ficam por conhecer. Na bio-
dos modelos organizacionais da investigação logia, onde as interacções entre fenómenos e
científica, antes acantonada no campo separa- formas de auto-organização em totalidades não
do e estanque da sociologia da ciência, passou mecânicas são mais visíveis, mas também nas
a ocupar papel de relevo na reflexão epistemo- demais ciências, a noção de lei tem vindo a ser
lógica. Do conteúdo desta reflexão respigarei, parcial e sucessivamente substituída pelas no-
a título ilustrativo, alguns dos temas principais. ções de sistema, de estrutura, de modelo e, por
Em primeiro lugar, são questionados o concei- último, pela noção de processo. O declínio da
to de lei e o conceito de causalidade que lhe hegemonia da legalidade é concomitante do de-
está associado. clínio da hegemonia da causalidade. O questio-
A formulação das leis da natureza funda- namento da causalidade nos tempos modernos
-se na ideia de que os fenómenos observados vem de longe, pelo menos desde David Hume
independem de tudo excepto de um conjunto e do positivismo lógico. A reflexão crítica tem
Um discurso sobre as ciências 49

incidido tanto no problema ontológico da cau- O segundo grande tema de reflexão epis-
salidade (quais as características do nexo cau- temológica versa mais sobre o conteúdo do
sal?; esse nexo existe na realidade?) como no conhecimento científico do que sobre a sua
problema metodológico da causalidade (quais forma. Sendo um conhecimento mínimo que
os critérios de causalidade?; como reconhecer fecha as portas a muitos outros saberes sobre
um nexo causal ou testar uma hipótese cau- o mundo, o conhecimento científico moder-
sal?). Hoje, a relativização do conceito de cau- no é um conhecimento desencantado e triste
sa parte sobretudo do reconhecimento de que que transforma a natureza num autómato, ou,
o lugar central que ele tem ocupado na ciência como diz Prigogine, num interlocutor terrivel-
moderna se explica menos por razões ontológi- mente estúpido12. Este aviltamento da natureza
cas ou metodológicas do que por razões prag- acaba por aviltar o próprio cientista na medida
máticas. O conceito de causalidade adequa-se em que reduz o suposto diálogo experimental
bem a uma ciência que visa intervir no real e ao exercício de uma prepotência sobre a na-
que mede o seu êxito pelo âmbito dessa inter- tureza. O rigor científico, porque fundado no
venção. Afinal, causa é tudo aquilo sobre que rigor matemático, é um rigor que quantifica e
se pode agir. Mesmo os defensores da causali- que, ao quantificar, desqualifica, um rigor que,
dade, como Mário Bunge, reconhecem que ela ao objectivar os fenómenos, os objectualiza e
é apenas uma das formas do determinismo e os degrada, que, ao caracterizar os fenómenos,
que por isso tem um lugar limitado, ainda que os caricaturiza. É, em suma e finalmente, uma
insubstituível, no conhecimento científico. A forma de rigor que, ao afirmar a personalidade
verdade é que, sob a égide da biologia e tam- do cientista, destrói a personalidade da nature-
bém da microfísica, o causalismo, enquanto ca- za. Nestes termos, o conhecimento ganha em
tegoria de inteligibilidade do real, tem vindo a rigor o que perde em riqueza e a retumbância
perder terreno em favor do finalismo11. dos êxitos da intervenção tecnológica esconde

11 Bunge, 1979: 353: “The causal principle is, in short, domain”. Em Portugal é justo salientar neste domínio
neither a panacea nor a myth: it is a general hypothe- a notável obra teórica de Armando Castro. Ver 1975,
sis subsumed under the universal principle of determi- 1978, 1980, 1982 e 1987.
nacy, and having an approximate validity in its proper 12 Ver Prigogine e Stengers, 1979: 13.
50 Boaventura de Sousa Santos

os limites da nossa compreensão do mundo e é limitada porque, se é verdade que o conheci-


reprime a pergunta pelo valor humano do afã mento só sabe avançar pela via da progressiva
científico assim concebido. Esta pergunta está, parcelização do objecto, bem representada nas
no entanto, inscrita na própria relação sujeito/ crescentes especializações da ciência, é exac-
objecto que preside à ciência moderna, uma re- tamente por essa via que melhor se confirma
lação que interioriza o sujeito à custa da exte- a irredutibilidade das totalidades orgânicas ou
riorização do objecto, tornando-os estanques e inorgânicas às partes que as constituem e, por-
incomunicáveis. Os limites deste tipo de conhe- tanto, o carácter distorcivo do conhecimento
cimento são, assim, qualitativos, não são supe- centrado na observação destas últimas. Os fac-
ráveis com maiores quantidades de investiga- tos observados têm vindo a escapar ao regime
ção ou maior precisão dos instrumentos. Aliás, de isolamento prisional a que a ciência os sujei-
a própria precisão quantitativa do conhecimen- ta. Os objectos têm fronteiras cada vez menos
to é estruturalmente limitada. Por exemplo, no definidas; são constituídos por anéis que se en-
domínio das teorias da informação o teorema trecruzam em teias complexas com os dos res-
de Brillouin demonstra que a informação não é tantes objectos, a tal ponto que os objectos em
gratuita (1959)13. Qualquer observação efectua- si são menos reais que as relações entre eles.
da sobre um sistema físico aumenta a entropia Ficou dito no início desta parte que a crise
do sistema no laboratório. O rendimento de do paradigma da ciência moderna se explica
uma dada experiência deve assim ser definido por condições teóricas, que acabei ilustrati-
pela relação entre a informação obtida e o au- vamente de apontar, e por condições sociais.
mento concomitante da entropia. Ora, segundo Estas últimas não podem ter aqui tratamento
Brillouin, esse rendimento é sempre inferior à detalhado14. Referirei tão-só que, quaisquer que
unidade e só em casos raros é próximo dela. sejam os limites estruturais de rigor científico,
Nestes termos, a experiência rigorosa é irrea- não restam dúvidas que o que a ciência ganhou
lizável pois que exigiria um dispêndio infinito em rigor nos últimos quarenta ou cinquenta
de actividades humanas. Por último, a precisão anos perdeu em capacidade de auto-regulação.

13 Ver também, Parain-Vial, 1983: 122 e ss. 14 Sobre este tema ver Santos, 1978: 11 e ss.
Um discurso sobre as ciências 51

As ideias da autonomia da ciência e do desinte- zação do trabalho científico, a industrialização


resse do conhecimento científico, que durante da ciência produziu dois efeitos principais. Por
muito tempo constituíram a ideologia espon- um lado, a comunidade científica estratificou-
tânea dos cientistas, colapsaram perante o fe- -se, as relações de poder entre cientistas torna-
nómeno global da industrialização da ciência a ram-se mais autoritárias e desiguais e a esma-
partir sobretudo das décadas de trinta e qua- gadora maioria dos cientistas foi submetida a
renta. Tanto nas sociedades capitalistas como um processo de proletarização no interior dos
nas sociedades socialistas de Estado do leste laboratórios e dos centros de investigação. Por
europeu, a industrialização da ciência acarre- outro lado, a investigação capital-intensiva (as-
tou o compromisso desta com os centros de sente em instrumentos caros e raros) tornou
poder económico, social e político, os quais impossível o livre acesso ao equipamento, o
passaram a ter um papel decisivo na definição que contribuiu para o aprofundamento do fos-
das prioridades científicas. so, em termos de desenvolvimento científico e
A industrialização da ciência manifestou-se tecnológico, entre os países centrais e os paí-
tanto ao nível das aplicações da ciência como ses periféricos.
ao nível da organização da investigação cien- Pautada pelas condições teóricas e sociais
tífica. Quanto às aplicações, as bombas de Hi- que acabei de referir, a crise do paradigma da
roshima e Nagasaki foram um sinal trágico, a ciência moderna não constitui um pântano cin-
princípio visto como acidental e fortuito, mas zento de cepticismo ou de irracional ismo. É
hoje, perante a catástrofe ecológica e o peri- antes o retrato de uma família intelectual nu-
go do holocausto nuclear, cada vez mais visto merosa e instável, mas também criativa e fas-
como manifestação de um modo de produção cinante, no momento de se despedir, com al-
da ciência inclinado a transformar acidentes guma dor, dos lugares conceituais, teóricos e
em ocorrências sistemáticas. epistemológicos, ancestrais e íntimos, mas não
“A ciência e a tecnologia têm vindo a revelar- mais convincentes e securizantes, uma despe-
-se as duas faces de um processo histórico em dida em busca de uma vida melhor a caminho
que os interesses militares e os interesses eco- doutras paragens onde o optimismo seja mais
nómicos vão convergindo até quase à indistin- fundado e a facionalidade mais plural e onde
ção” (Santos, 1978: 26). No domínio da organi- finalmente o conhecimento volte a ser uma
52 Boaventura de Sousa Santos

aventura encantada. A caracterização da crise segundo tipo”, Erich Jantsch do paradigma da


do paradigma dominante traz consigo o perfil auto-organização16, Daniel Bell da sociedade
do paradigma emergente. É esse o perfil que pós-industrial (1976), Habermas da sociedade
procurarei desenhar a seguir. comunicativa (1982). Eu falarei, por agora, do
paradigma de um conhecimento prudente para
O paradigma emergente uma vida decente. Com esta designação quero
A configuração do paradigma que se anuncia significar que a natureza da revolução científi-
no horizonte só pode obter-se por via especula- ca que atravessamos é estruturalmente diferen-
tiva. Uma especulação fundada nos sinais que a te da que ocorreu no século XVI. Sendo uma
crise do paradigma actual emite mas nunca por revolução científica que ocorre numa socieda-
eles determinada. Aliás, como diz René Poirier de ela própria revolucionada pela ciência, o
e antes dele disseram Hegel e Heidegger, “a coe- paradigma a emergir dela não pode ser apenas
rência global das nossas verdades físicas e me- um paradigma científico (o paradigma de um
tafísicas só se conhece retrospectivamente”15. conhecimento prudente), tem de ser também
Por isso, ao falarmos do futuro, mesmo que seja um paradigma social (o paradigma de uma vida
de um futuro que já nos sentimos a percorrer, decente). Apresentarei o paradigma emergente
o que dele dissermos é sempre o produto de através de um conjunto de teses seguidas de
uma síntese pessoal embebida na imaginação, justificação.
no meu caso na imaginação sociológica. Não
espanta, pois, que ainda que com alguns pontos Todo o conhecimento científico-
de convergência, sejam diferentes as sínteses natural é científico-social
até agora apresentadas. Ilya Prigogine (1970), A distinção dicotómica entre ciências na-
por exemplo, fala da “nova aliança” e da meta- turais e ciências sociais deixou de ter sentido
morfose da ciência. Fritjof Capra (1976 e 1983) e utilidade. Esta distinção assenta numa con-
fala da “nova física” e do Taoismo da física, Eu- cepção mecanicista da matéria e da natureza
gene Wigner (1970: 215 e ss.) de “mudanças do a que contrapõe, com pressuposta evidência,

15 Ver Poirier, prefácio a Parain-Vial, 1983: 10. 16 Ver Jantsch, obs. cits.
Um discurso sobre as ciências 53

os conceitos de ser humano, cultura e socieda- tura de conhecer os objectos mais distantes e
de. Os avanços recentes da física e da biologia diferentes de si próprios, para, uma vez aí che-
põem em causa a distinção entre o orgânico e gados, se descobrirem reflectidos como num
o inorgânico, entre seres vivos e matéria iner- espelho. Já no princípio da década de sessenta
te e mesmo entre o humano e o não huma- e extrapolando a partir da mecânica quântica,
no. As características da auto-organização, Eugene Wigner (1970: 271) considerava que o
do metabolismo e da auto-reprodução, antes inanimado não era uma qualidade diferente
consideradas específicas dos seres vivos, são mas apenas um caso limite, que a distinção
hoje atribuídas aos sistemas pré-celulares de corpo/alma deixara de ter sentido e que a físi-
moléculas. E quer num quer noutros reconhe- ca e a psicologia acabariam por se fundir numa
cem-se propriedades e comportamentos antes única ciência. Hoje é possível ir muito além da
considerados específicos dos seres humanos mecânica quântica. Enquanto esta introduziu a
e das relações sociais. A teoria das estruturas consciência no acto do conhecimento, nós te-
dissipativas de Prigogine, ou a teoria sinergé- mos hoje de a introduzir no próprio objecto do
tica de Haken já citadas, mas também a teoria conhecimento, sabendo que, com isso, a distin-
da “ordem implicada” de David Bohm, a teoria ção sujeito/objecto sofrerá uma transformação
da matriz-S de Geoffrey Chew e a filosofia do radical. Num certo regresso ao pan-psiquismo
“bootstrap” que lhe subjaz e ainda a teoria do leibniziano, começa hoje a reconhecer-se uma
encontro entre a física contemporânea e o mis- dimensão psíquica na natureza, “a mente mais
ticismo oriental de Fritjof Capra, todas elas de ampla” de que fala Bateson, da qual a mente
vocação holística e algumas especificamente humana é apenas uma parte, uma mente ima-
orientadas para superar as inconsistências en- nente ao sistema social global e à ecologia pla-
tre a mecânica quântica e a teoria da relativida- netária que alguns chamam Deus (1985). Geo-
de de Einstein, todas estas teorias introduzem ffrey Chew postula a existência de consciência
na matéria os conceitos de historicidade e de na natureza como um elemento necessário à
processo, de liberdade, de autodeterminação e autoconsistência desta última e, se assim for,
até de consciência que antes o homem e a mu- as futuras teorias da matéria terão de incluir
lher tinham reservado para si. É como se o ho- o estudo da consciência humana. Convergen-
mem e a mulher se tivessem lançado na aven- temente, assiste-se a um renovado interesse
54 Boaventura de Sousa Santos

pelo “inconsciente colectivo”, imanente à hu- gadas por nexo de causalidade. São antes duas
manidade no seu todo, de Jung. Aliás, Capra projecções, mutuamente envolventes, de uma
pretende ver as ideias de Jung — sobretudo a realidade mais alta que não é nem matéria nem
ideia da sincronicidade para explicar a relação consciência. O conhecimento do paradigma
entre a realidade exterior e a realidade inte- emergente tende assinta ser um conhecimento
rior — confirmadas pelos recentes conceitos não dualista, um conhecimento que se funda na
de interacções locais e não locais na física das superação das distinções tão familiares e ób-
partículas17. Tal como na sincronia jungiana, as vias que até há pouco considerávamos insubs-
interacções não locais são instantâneas e não tituíveis, tais como natureza/cultura, natural/
podem ser previstas, em termos matemáticos artificial, vivo/inanimado, mente/matéria, ob-
precisos. Não são, pois, produzidas por causas servador/observado, subjectivo/objectivo;” co-
locais e, quando muito, poder-se-á falar da cau- lectivo/individual, animal/pessoa. Este relativo
salidade estatística. Capra vê em Jung uma das colapso das distinções dicotómicas repercute-
alternativas teóricas às concepções mecanicis- -se nas disciplinas científicas que sobre elas se
tas de Freud e Bateson afirma que enquanto fundaram. Aliás, sempre houve ciências que se
Freud ampliou o conceito de mente para den- reconheceram mal nestas distinções e tanto
tro (permitindo-nos abranger o subconsciente que se tiveram de fracturar internamente para
e o inconsciente) é necessário agora ampliá-lo se lhes adequarem minimamente. Refiro-me à
para fora (reconhecendo a existência de fenó- antropologia, à geografia e também à psicolo-
menos mentais para além dos individuais e hu- gia. Condensaram-se nelas privilegiadamente
manos). Semelhantemente, a teoria da “ordem as contradições da separação ciências natu-
implicada”, que, segundo o seu autor, David rais/ciências sociais. Daí que, num período de
Bohm, pode constituir uma base comum tanto transição entre paradigmas, seja particular-
à teoria quântica como à teoria da relativida- mente importante, do ponto de vista epistemo-
de, concebe a consciência e a matéria como lógico, observar o que se passa nessas ciências.
interdependentes sem, no entanto, estarem li- Não basta, porém, apontar a tendência para
a superação da distinção entre ciências natu-
rais e ciências sociais, é preciso conhecer o
17 Ver também Bowen, 1985: 213 e ss. sentido e conteúdo dessa superação. Recor-
Um discurso sobre as ciências 55

rendo de novo à física, trata-se de saber qual Prigogine quer a teoria sinergética de Haken
será o “parâmetro de ordem”, segundo Haken, explicam o comportamento das partículas
ou o “atractor”, segundo. Prigogine, dessa su- através dos conceitos de revolução social, vio-
peração, se as ciências naturais, se as ciências lência, escravatura, dominação, democracia
sociais. Precisamente porque vivemos um es- nuclear, todos eles originários das ciências so-
tado de turbulência, as vibrações do novo pa- ciais (da sociologia, da ciência política, da his-
radigma repercutem-se desigualmente nas — tória, etc.). O mesmo sucede, ainda no campo
várias regiões do paradigma vigente e por isso da física teórica, com as teorias de Capra sobre
os sinais do futuro são ambíguos. Alguns lêem a relação entre física e psicanálise, os padrões
neles a emergência de um novo naturalismo da matéria e os padrões da mente concebidos
centrado no privilegiamento dos pressupostos como reflexos uns dos outros. Apesar de estas
biológicos do comportamento humano. Assim teorias diluírem as fronteiras entre os objectos
Konrad Lorenz ou a sociobiologia. Para estes, da física e os objectos da biologia, foi sem dú-
a superação da dicotomia ciências naturais/ci- vida no domínio desta última que os modelos
ências sociais ocorre sob a égide das ciências explicativos das ciências sociais mais se enrai-
naturais. Contra esta posição pode objectar- zaram nas décadas recentes. Os conceitos de
-se que ela tem do futuro a mesma concepção teleomorfismo, autopoiesis, auto-organização,
com que as ciências naturais auto-justificam, potencialidade organizada, originalidade, indi-
no seio do paradigma dominante, o seu prestí- vidualidade, historicidade atribuem à natureza
gio científico, social e político e, por isso, só vê um comportamento humano. Lovelock (1987),
do futuro aquilo em que ele repete o presente. escrevendo sobre as ciências da vida, afirma
Se, pelo contrário, numa reflexão mais apro- que os nossos corpos são constituídos por co-
fundada, atentarmos no conteúdo teórico das operativas de células.
ciências que mais têm progredido no conhe- Que os modelos explicativos das ciências
cimento da matéria, verificamos que a emer- sociais vêm subjazendo ao desenvolvimento
gente inteligibilidade da natureza é presidida das ciências naturais nas últimas décadas pro-
por conceitos, teorias, metáforas e analogias va-se, além do mais, pela facilidade com que as
das ciências sociais. Para não irmos mais lon- teorias físico-naturais, uma vez formuladas no
ge, quer a teoria das estruturas dissipativas de seu domínio específico, se aplicam ou aspiram
56 Boaventura de Sousa Santos

aplicar-se no domínio social. Assim, por exem- fenomenológica, interaccionista, mito-simbóli-


plo, Peter Allen (1980: 25 e ss.), um dos mais ca, hermenêutica, existencialista, pragmática,
estreitos colaboradores de Prigogine, tem vin- reivindicando a especificidade do estudo da
do a aplicar a teoria das estruturas dissipativas sociedade mas tendo de, para isso, pressupor
aos processos económicos e à evolução das ci- uma concepção mecanicista da natureza. A pu-
dades e das regiões. E. Haken (1985: 205 e ss.) jança desta segunda vertente nas duas últimas
salienta as potencialidades da sinergética para décadas é indicativa de ser ela o modelo de ci-
explicar situações revolucionárias na socieda- ências sociais que, numa época de revolução
de. É como se o dito de Durkheim se tivesse científica, transporta a marca pós-moderna
invertido e em vez de serem os fenómenos do paradigma emergente. Trata-se, como refe-
sociais a ser estudados como se fossem fenó- ri também, de um modelo de transição, uma
menos naturais, serem os fenómenos naturais vez que define a especificidade do humano por
estudados como se fossem fenómenos sociais. contraposição a uma concepção da natureza
O facto de a superação da dicotomia ci- que as ciências naturais hoje consideram ul-
ências naturais/ciências sociais ocorrer sob trapassada, mas é um modelo em que aquilo
a égide das ciências sociais não é, contudo, que o prende ao passado é menos forte do que
suficiente para caracterizarão modelo de co- aquilo que o prende ao futuro. Em resumo, à
nhecimento no paradigma emergente. É que, medida que as ciências naturais se aproximam
como disse atrás, as próprias ciências sociais das ciências sociais estas aproximam-se das
constituíram-se no século XIX segundo os mo- humanidades. O sujeito, que a ciência moder-
delos de racionalidade das ciências naturais na lançara na diáspora do conhecimento irra-
clássicas e, assim, a égide das ciências sociais, cional, regressa investido da tarefa de fazer
afirmada sem mais, pode revelar-se ilusória. erguer sobre si uma nova ordem científica.
Referi contudo que a constituição das ciên- Que este é o sentido global da revolução cien-
cias sociais teve lugar segundo duas vertentes: tífica que vivemos, é também sugerido pela re-
uma mais directamente vinculada à epistemo- conceptualização em curso das condições epis-
logia e à metodologia positivistas das ciências temológicas e metodológicas do conhecimento
naturais, e outra, de vocação anti-positivista, científico social. Referi acima alguns dos obs-
caldeada numa tradição filosófica complexa, táculos à cientificidade das ciências sociais, os
Um discurso sobre as ciências 57

quais, segundo o paradigma ainda dominante, catórias (o esoterismo nefelibata e a erudição


seriam responsáveis pelo atraso das ciências balofa). O ghetto a que as humanidades se re-
sociais em relação às ciências naturais. Sucede meteram foi em parte uma estratégia defensiva
contudo que, também como referi, o avanço do contra o assédio das ciências sociais, armadas
conhecimento das ciências naturais e a refle- do viés cientista triunfalmente brandido. Mas
xão epistemológica que ele tem suscitado têm foi também o produto do esvaziamento que
vindo a mostrar que os obstáculos ao conheci- sofreram em face da ocupação do seu espaço
mento científico da sociedade e da cultura são pelo modelo cientista. Foi assim nos estudos
de facto condições do conhecimento em geral, históricos com a história quantitativa, nos es-
tanto científico-social como científico-natural. tudos jurídicos com a ciência pura do direito
Ou seja, o que antes era a causa do maior atra- e a dogmática jurídica, nos estudos filológicos,
so das ciências sociais é hoje o resultado do literários e linguísticos com o estruturalismo.
maior avanço das ciências naturais. Daí tam- Há que recuperar esse núcleo genuíno e pô-
bém que a concepção de Thomas Kuhn (1962) -lo ao serviço de uma reflexão global sobre o
sobre o carácter pré-paradigmático (isto é, me- mundo. O texto sobre que sempre se debruçou
nos desenvolvido) das ciências sociais, que eu, a filologia é uma das analogias matriciais com
aliás, subscrevi e reformulei noutros escritos que se construirá no paradigma emergente o
Santos, 1978: 29 e ss.) tenha de ser abandonada conhecimento sobre a sociedade e a natureza.
ou profundamente revista. A concepção humanística das ciências so-
A superação da dicotomia ciências naturais/ ciais enquanto agente catalisador da progres-
ciências sociais tende assim a revalorizar os siva fusão das ciências naturais e ciências so-
estudos humanísticos. Mas esta revalorização ciais coloca a pessoa, enquanto autor e sujeito
não ocorrerá sem que as humanidades sejam, do mundo, no centro do conhecimento, mas, ao
elas também, profundamente transformadas. contrário das humanidades tradicionais, colo-
O que há nelas de futuro é o terem resistido à ca o que hoje designamos por natureza no cen-
separação sujeito/objecto e o terem preferido- tro da pessoa. Não há natureza humana porque
-a compreensão do mundo à manipulação do toda a natureza é humana. É pois necessário
mundo. Este núcleo genuíno foi, no entanto, descobrir categorias de inteligibilidade globais,
envolvido num anel de preocupações mistifi- conceitos quentes que derretam as fronteiras
58 Boaventura de Sousa Santos

em que a ciência moderna dividiu e encerrou pós-moderna é promover a “situação comuni-


a realidade. A ciência pós-moderna é uma ci- cativa” tal como Habermas a concebe. Nessa
ência assumidamente analógica que conhece situação confluem sentidos e constelações de
o que conhece pior através do que conhece sentido vindos, tal qual rios, das nascentes das
melhor. Já mencionei a analogia textual e jul- nossas práticas locais e arrastando consigo as
go que tanto a analogia lúdica como a analogia areias dos nossos percursos moleculares, in-
dramática, como ainda a analogia biográfica, fi- dividuais, comunitários, sociais e planetários.
gurarão entre as categorias matriciais do para- Não se trata de uma amálgama de sentido (que
digma emergente: o mundo, que hoje é natural não seria sentido, mas ruído), mas antes de in-
ou social e amanhã será ambos, visto como um teracções e de intertextualidades organizadas
texto, como um jogo, como um palco ou ainda em torno de projectos locais de conhecimento
como uma autobiografia. Clifford Geertz (1983: indiviso. Daqui decorre a segunda característi-
19 e ss.) refere algumas destas analogias hu- ca do conhecimento científico pós-moderno.
manísticas e restringe o seu uso às ciências so-
ciais, enquanto eu as concebo como categorias Todo o conhecimento é local e total
de inteligibilidade universais. Não virá longe o
Na ciência moderna o conhecimento avança
dia em que a física das partículas nos fale do
pela especialização. O conhecimento é tanto
jogo entre as partículas, ou a biologia nos fale
mais rigoroso quanto mais restrito é o objecto
do teatro molecular ou a astrofísica do texto
sobre que incide. Nisso reside, aliás, o que hoje
celestial, ou ainda a química da biografia das
se reconhece ser o dilema básico da ciência
reacções químicas. Cada uma destas analogias
moderna: o seu rigor aumenta na proporção
desvela uma ponta do mundo. A nudez total,
directa da arbitrariedade com que espartilha o
que será sempre a de quem se vê no que vê,
real. Sendo um conhecimento disciplinar, ten-
resultará das configurações de analogias que
de a ser um conhecimento disciplinado, isto é,
soubermos imaginar: afinal, o jogo pressupõe
segrega uma organização do saber orientada
um palco, o palco exercita-se com um texto e
para policiar as fronteiras entre as disciplinas e
o texto é a autobiografia do seu autor. Jogo,
reprimir os que as quiserem transpor. É hoje re-
palco, texto ou biografia, o mundo é comuni-
conhecido que a excessiva parcelização e disci-
cação e por isso a lógica existencial da ciência
Um discurso sobre as ciências 59

plinarização do saber científico faz do cientista nuseáveis, como sejam os testes, que reduzi-
um ignorante especializado e que isso acarreta ram a riqueza da personalidade às exigências
efeitos negativos. Esses efeitos são sobretudo funcionais de instituições unidimensionais.
visíveis no domínio das ciências aplicadas. As Os males desta parcelização do conheci-
tecnologias preocupam-se hoje com o seu im- mento e do reducionismo arbitrário que trans-
pacto destrutivo nos ecossistemas; a medici- porta consigo são hoje reconhecidos, mas as
na verifica que a hiperespecialização do saber medidas propostas para os corrigir acabam
médico transformou o doente numa quadrícula em geral por os reproduzir sob outra forma.
sem sentido quando, de facto, nunca estamos Criam-se novas disciplinas para resolver os
doentes senão em geral; a farmácia descobre o problemas produzidos pelas antigas e por essa
lado destrutivo dos medicamentos, tanto mais via reproduz-se o mesmo modelo de cientifici-
destrutivos quanto mais específicos, e procura dade. Apenas para dar um exemplo, o médico
uma nova lógica de combinação química atenta generalista, cuja ressurreição visou compensar
aos equilíbrios orgânicos; o direito, que redu- a hiperespecialização médica, corre o risco de
ziu a complexidade da vida jurídica à secura ser convertido num especialista ao lado dos de-
da dogmática, redescobre o mundo filosófico e mais. Este efeito perverso revela que não há so-
sociológico em busca da prudência perdida; a lução para este problema no seio do paradigma
economia, que legitimara o reducionismo quan- dominante e precisamente porque este último
titativo e tecnocrático com o pretendido êxito é que constitui o verdadeiro problema de que
das previsões económicas, é forçada a reco- decorrem todos os outros.
nhecer, perante a pobreza dos resultados, que a No paradigma emergente o conhecimento
qualidade humana e sociológica dos agentes e é total, tem como horizonte a totalidade uni-
processos económicos entra pela janela depois versal de que fala Wigner ou a totalidade in-
de ter sido expulsa pela porta; para grangear o divisa de que fala Bohm. Mas sendo total, é
reconhecimento dos utentes (que, públicos ou também local. Constitui-se em redor de temas
privados, institucionais ou individuais, sempre que em dado momento são adoptados por gru-
estiveram numa posição de poder em relação pos sociais concretos como projectos de vida
aos analisados) a psicologia aplicada privile- locais, sejam eles reconstituir a história de um
giou instrumentos expeditos e facilmente ma- lugar, manter um espaço verde, construir um
60 Boaventura de Sousa Santos

computador adequado às necessidades locais, que concebe através da imaginação e genera-


fazer baixar a taxa de mortalidade infantil, liza através da qualidade e da exemplaridade.
inventar um novo instrumento musical, erra- O conhecimento pós-moderno, sendo to-
dicar uma doença, etc., etc. A fragmentação tal, não é determinístico, sendo local, não é
pós-moderna não é disciplinar e sim temática. descritivista. É um conhecimento sobre as
Os temas são galerias por onde os conheci- condições de possibilidade. As condições de
mentos progridem ao encontro uns dos ou- possibilidade da acção humana projectada no
tros. Ao contrário do que sucede no paradig- mundo a partir de um espaço-tempo local. Um
ma actual, o conhecimento avança à medida conhecimento deste tipo é relativamente ime-
que o seu objecto se amplia, ampliação que, tódico, constitui-se a partir de uma pluralidade
como a da árvore, procede pela diferenciação metodológica. Cada método é uma linguagem
e pelo alastramento das raízes em busca de e a realidade responde na língua em que é per-
novas e mais variadas interfaces. guntada. Só uma constelação de métodos pode
Mas sendo local, o conhecimento pós-mo- captar o silêncio que persiste entre cada língua
derno é também total porque reconstitui os que pergunta. Numa fase de revolução científi-
projectos cognitivos locais, salientando-lhes a ca como a que atravessamos, essa pluralidade
sua exemplaridade, e por essa via transforma- de métodos só é possível mediante transgres-
-os em pensamento total ilustrado. A ciência do são metodológica18. Sendo certo que cada mé-
paradigma emergente, sendo, como deixei dito todo só esclarece o que lhe convém e quando
acima, assumidamente analógica, é também esclarece fá-lo sem surpresas de maior, a ino-
assumidamente tradutora, ou seja, incentiva os vação científica consiste em inventar contex-
conceitos e as teorias desenvolvidos localmen- tos persuasivos que conduzam à aplicação dos
te a emigrarem para outros lugares cognitivos, métodos fora do seu habitat natural. Dado que
de modo a poderem ser utilizados fora do seu a aproximação entre ciências naturais e ciên-
contexto de origem. Este procedimento, que é cias sociais se fará no sentido destas últimas,
reprimido por uma forma de conhecimento que caberá especular se é possível, por exemplo,
concebe através da operacionalização e gene-
raliza através da quantidade e da uniformiza-
18 Sobre o conceito de transgressão metodológica ver
ção, será normal numa forma de conhecimento Santos, 1981: 275 e ss.
Um discurso sobre as ciências 61

fazer a análise filológica de um traçado urba- movimento no sentido da maior personaliza-


no, entrevistar um pássaro ou fazer observação ção do trabalho científico. Isto conduz à ter-
participante entre computadores. ceira característica do conhecimento científi-
A transgressão metodológica repercute-se co no paradigma emergente.
nos estilos e géneros literários que presidem
à escrita científica. A ciência pós-moderna não Todo o conhecimento é
segue um estilo unidimensional, facilmente autoconhecimento
identificável; o seu estilo é uma configuração
A ciência moderna consagrou o homem en-
de estilos construída segundo o critério e a
quanto sujeito epistémico mas expulsou-o, tal
imaginação pessoal do cientista. A tolerância
como a Deus, enquanto sujeito empírico. Um
discursiva é o outro lado da pluralidade me-
conhecimento objectivo, factual e rigoroso não
todológica. Na fase de transição em que nos
tolerava a interferência dos valores humanos
encontramos são já visíveis fortes sinais deste
ou religiosos. Foi nesta base que se construiu
processo de fusão de estilos, de interpenetra-
a distinção dicotómica sujeito/objecto. No en-
ções entre cânones de escrita. Clifford Geertz
tanto, a distinção sujeito/objecto nunca foi tão
(1983: 20) estuda o fenómeno nas ciências
pacífica nas ciências sociais quanto nas ciên-
sociais e apresenta alguns exemplos: investi-
cias naturais e a isso mesmo se atribuiu, como
gação filosófica parecendo crítica literária no
disse, o maior atraso das primeiras em rela-
estudo de Sartre sobre Flaubert; fantasias bar-
ção às segundas. Afinal, os objectos de estudo
rocas sob a forma de observações empíricas (a
eram homens e mulheres como aqueles que os
obra de Jorge Luís Borges); parábolas apresen-
estudavam. A distinção epistemológica entre
tadas como investigações etnográficas (Car-
sujeito e objecto teve de se articular metodo-
los Castaneda); estudos epistemológicos sob
logicamente com a distância empírica entre su-
a forma de textos políticos (a obra Against
jeito e objecto. Isto mesmo se torna evidente se
Method de Paul Feyerabend). E como Geertz,
compararmos as estratégias metodológicas da
podemos perguntar se Foucault é historiador,
antropologia cultural: e social, por um lado, e
filósofo, sociólogo ou cientista político. A
da sociologia, por outro. Na antropologia, a dis-
composição transdisciplinar e individualizada,
tância empírica entre o sujeito e o objecto era
para que estes exemplos apontam sugere um
62 Boaventura de Sousa Santos

enorme. O sujeito era o antropólogo; o europeu bros de pleno direito da Organização das Na-
civilizado, o objecto era o povo primitivo, ou ções Unidas, e tinham de ser estudados segun-
selvagem. Neste caso, a distinção sujeito/ob- do métodos-sociológicos. As vibrações destes
jecto aceitou ou mesmo exigiu, que a distância movimentos na distinção sujeito/objecto nas
fosse relativamente encurtada através do uso ciências sociais vieram a explodir no período
de metodologias que obrigavam a uma maior pós-estruturalista.
intimidade com o objecto, ou seja, o trabalho No domínio das ciências físico-naturais, o
de campo etnográfico, a observação partici- regresso do sujeito fora já anunciado pela me-
pante. Na sociologia, ao contrário, era peque- cânica-quântica ao demonstrar que o acto de
na ou mesmo nula a distância empírica entre conhecimento e o produto do conhecimento
o sujeito e objecto: eram cientistas europeus eram inseparáveis. Os avanços da microfísica,
â estudar os seus concidadãos. Neste caso, a da astrofísica e da biologia das últimas décadas
distinção epistemológica obrigou a que esta restituíram à natureza as propriedades de que
distancia fosse aumentada através do uso de a ciência moderna a expropriara. O aprofunda-
metodologias de distanciamento: por exemplo, mento do conhecimento conduzido segundo a
o inquérito sociológico, a análise documentar e matriz materialista veio a desembocar num co-
a entrevista estruturada. nhecimento idealista. A nova dignidade da na-
A antropologia, entre a descolonização e o tureza mais se consolidou quando se verificou
pós-guerra e a guerra do Vietname, e a socio- que o desenvolvimento tecnológico desordena-
logia, a partir do final dos anos sessenta, foram do nos tinha separado da natureza em vez de
levadas a questionar este status quo metodo- nos unir a ela e que a exploração da natureza
lógico e as noções de distância social em que tinha sido o veículo da exploração do homem.
ele assentava. De repente, os selvagens foram O desconforto que a distinção sujeito/objecto
vistos dentro de nós, nas nossas sociedades; e sempre tinha provocado nas ciências sociais
a sociologia passou a utilizar com mais inten- propagava-se assim às ciências naturais. O su-
sidade métodos anteriormente quase monopo- jeito regressava na veste do objecto. Aliás, os
lizados pela antropologia (a observação parti- conceitos de “mente imanente”, “mente mais
cipante), ao mesmo tempo que nesta última os ampla” e “mente colectiva” de Bateson e outros
objectos passavam a ser concidadãos, mem- constituem notícias dispersas de que o outro
Um discurso sobre as ciências 63

foragido da ciência moderna, Deus, pode estar nómeno central da nossa contemporaneidade.
em vias de regressar. Regressará transfigura- A ciência é, assim, autobiográfica.
do, sem nada de divino senão o nosso desejo A consagração da ciência moderna nestes
de harmonia e comunhão com tudo o que nos últimos quatrocentos anos naturalizou a ex-
rodeia e que, vemos agora, é o mais íntimo de plicação do real, a ponto de não o podermos
nós. Uma nova gnose está em gestação. conceber senão nos termos por ela propostos.
Parafraseando Clausewitz, podemos afirmar Sem as categorias de espaço, tempo, matéria
hoje que o objecto é a continuação do sujeito e número — as metáforas cardeais da física
por outros meios. Por isso, todo o conhecimen- moderna, segundo Roger Jones — sentimo-nos
to científico é autoconhecimento. A ciência incapazes de pensar, mesmo sendo já hoje ca-
não descobre, cria, e o acto criativo protago- pazes de as pensarmos como categorias con-
nizado por cada cientista e pela comunidade vencionais, arbitrárias, metafóricas. Este pro-
científica no seu conjunto tem de se conhecer cesso de naturalização foi lento e, no início, os
intimamente antes que conheça o que com ele protagonistas da revolução científica tiveram a
se conhece do real. Os pressupostos metafísi- noção clara que a prova íntima das suas con-
cos, os sistemas de crenças, os juízos de valor vicções pessoais precedia e dava coerência as
não estão antes nem depois da explicação cien- provas externas que desenvolviam. Descartes
tífica da natureza ou da sociedade. São parte mostra melhor que ninguém o carácter auto-
integrante dessa mesma explicação. A ciência biográfico da ciência. Diz, no Discurso do Mé-
moderna não é a única explicação possível da todo: “Gostaria de mostrar, neste Discurso, que
realidade e não há sequer qualquer razão cien- caminhos segui; e de nele representar a minha
tífica para a considerar melhor que as explica- vida como num quadro, para que cada qual a
ções alternativas da metafísica, da astrologia, possa julgar, e para que, sabedor das opiniões
da religião, da arte ou da poesia. A razão por que sobre ele foram expendidas, um novo meio
que privilegiamos hoje uma forma de conheci- de me instruir se venha juntar àqueles de que
mento assente na previsão e no controlo dos costumo servir-me” (1984: 6). Hoje sabemos ou
fenómenos nada tem de científico. É um juízo suspeitamos que as nossas trajectórias de vida
de valor. A explicação científica dos fenóme- pessoais e colectivas (enquanto comunidades
nos é a autojustificação da ciência enquanto fe- científicas) e os valores, as crenças e os pre-
64 Boaventura de Sousa Santos

juízos que transportam são a prova íntima do dia a precaridade do sentido da nossa vida
nosso conhecimento, sem o qual as nossas in- por mais segura que esteja ao nível da sobre-
vestigações laboratoriais ou de arquivo, os nos- vivência. A ciência do paradigma emergente é
sos cálculos ou, os nossos trabalhos de campo mais contemplativa do que activa. A qualidade
constituiriam um emaranhado de diligências do conhecimento afere-se menos pelo que ele
absurdas sem fio nem pavio. No entanto, este controla ou faz funcionar no mundo exterior
saber, suspeitado ou insuspeitado, corre hoje do que pela satisfação pessoal que dá a quem
subterraneamente, clandestinamente, nos não- a ele acede e o partilha. A dimensão estética
-ditos dos nossos trabalhos científicos. da ciência tem sido reconhecida por cientis-
No paradigma emergente, o carácter auto- tas e filósofos da ciência, de Poincaré a Kuhn,
biográfico e auto-referenciável da ciência é de Polanyi a Popper, Roger Jones (1982: 41)
plenamente assumido. A ciência moderna le- considera que o sistema de Newton-é tanto
gou-nos um conhecimento funcional do mun- uma obra de arte como uma obra de ciência.
do que alargou extraordinariamente as nossas A criação científica no paradigma emergente
perspectivas de sobrevivência. Hoje não se assume-se como próxima da criação literária
trata tanto de sobreviver como de saber viver. ou artística, porque à semelhança destas pre-
Para isso é necessária uma outra forma de co- tende que a dimensão activa da transformação
nhecimento, um conhecimento compreensivo do real (o escultor a trabalhar a pedra) seja
e íntimo que não nos separe e antes nos una subordinada a contemplação do resultado (a
pessoalmente ao que estudamos. A incerteza obra de arte). Por sua vez, o discurso científi-
do conhecimento, que a ciência moderna sem- co aproximar-se-á cada vez mais do discurso
pre viu como limitação técnica destinada a su- da crítica literária. De algum modo, a crítica
cessivas superações, transforma-se na chave literária anuncia a subversão da relação sujei-
do entendimento de um mundo que mais do to/objecto que o paradigma emergente — pre-
que controlado tem de ser contemplado. Não tende operar. Na crítica literária, o objecto do
se trata do espanto medieval perante uma rea- estudo, como se diria em termos científicos,
lidade hostil possuída do sopro da divindade, sempre foi, de facto, um super-sujeito (um po-
mas antes da prudência perante um mundo eta, um romancista, um dramaturgo) face ao
que, apesar de domesticado, nos mostra cada qual o crítico não passa de um sujeito ou autor
Um discurso sobre as ciências 65

secundário. É certo que, em tempos recentes, especializado faz do cidadão comum um igno-
o crítico tem tentado sobressair no confronto rante generalizado.
com o escritor estudado a ponto de se poder Ao contrário, a ciência pós-moderna sabe
falar de uma batalha pela supremacia trava- que nenhuma forma de conhecimento é, em
da entre ambos. Mas porque se trata de uma si mesma, racional; só a configuração de to-
batalha, a relação é entre dois sujeitos e não das elas é racional. Tenta, pois, dialogar com
entre um sujeito e um objecto. Cada um é a outras formas de conhecimento deixando-se
tradução do outro, ambos criadores de textos, penetrar por elas. A mais importante de todas
escritos em línguas distintas ambas conheci- é o conhecimento do senso comum, o conheci-
das e necessárias para aprender a gostar das mento vulgar e prático com que no quotidiano
palavras e do mundo. orientamos as nossas acções e damos sentido
Assim ressubjectivado, o conhecimento à nossa vida. A ciência moderna construiu-se
científico ensina a viver e traduz-se num saber contra o senso comum que considerou super-
prático. Daí a quarta e última característica da ficial, ilusório e falso. A ciência pós-moderna
ciência pós-moderna. procura reabilitar o senso comum por reconhe-
cer nesta forma de conhecimento algumas vir-
Todo o conhecimento científico visa tualidades para enriquecer a nossa relação com
constituir-se em senso comum o mundo. É certo que o conhecimento do senso
comum tende a ser um conhecimento mistifica-
Já tive ocasião de referir que o fundamento
do e mistificador mas, apesar disso e apesar de
do estatuto privilegiado da racionalidade cien-
ser conservador, tem uma dimensão utópica e
tífica não é em si mesmo científico. Sabemos
libertadora que pode ser ampliada através do
hoje que a ciência moderna nos ensina pouco
diálogo com o conhecimento científico. Essa
sobre a nossa maneira de estar no mundo e que
dimensão aflora em algumas das característi-
esse pouco, por mais que se amplie, será sem-
cas do conhecimento do senso comum.
pre exíguo porque a exiguidade está inscrita na
O senso comum faz coincidir causa e inten-
forma de conhecimento que ele constitui. A ci-
ção; subjaz-lhe uma visão do mundo assente
ência moderna produz conhecimentos e desco-
na acção e no princípio da criatividade e da
nhecimentos. Se faz do cientista um ignorante
responsabilidade individuais. O senso comum
66 Boaventura de Sousa Santos

é prático e pragmático; reproduz-se colado às racionalidade feita de racionalidades. Para que


trajectórias e às experiências de vida de um esta configuração de conhecimentos ocorra é
dado grupo social e nessa correspondência se necessário inverter a ruptura epistemológica.
afirma fiável e securizante. O senso comum é Na ciência moderna a ruptura epistemológica
transparente e evidente; desconfia da opacida- simboliza o salto qualitativo do conhecimento
de dos objectivos tecnológicos e do esoterismo do senso comum para o conhecimento cientí-
do conhecimento em nome do princípio da fico; na ciência pós-moderna o salto mais im-
igualdade do acesso ao discurso, à competên- portante é o que é dado do conhecimento cien-
cia cognitiva e à competência linguística. O sen- tífico para o conhecimento do senso comum.
so comum é superficial porque desdenha das O conhecimento científico pós-moderno só se
estruturas que estão para além da consciência, realiza enquanto tal na medida em que se con-
mas, por isso mesmo, é exímio em captar a pro- verte em senso comum. Só assim será uma ci-
fundidade horizontal das relações conscientes ência clara que cumpre a sentença de Wittgens-
entre pessoas e entre pessoas e coisas. O senso tein, “tudo o que se deixa dizer deixa-se dizer
comum é indisciplinar e imetódico; não resulta claramente” (1973: 4.116). Só assim será uma
de uma prática especificamente orientada para ciência transparente que faz justiça ao desejo
o produzir; reproduz-se espontaneamente no de Nietzsche ao dizer que “todo o comércio en-
suceder quotidiano da vida. O senso comum tre os homens visa que cada um possa ler na
aceita o que existe tal como existe; privilegia a alma do outro, e a língua comum é a expressão
acção que não produza rupturas significativas sonora dessa alma comum” (1971: 139).
no real. Por último, o senso comum é retórico A ciência pós-moderna, ao senso comuni-
e metafórico; não ensina, persuade. zar-se, não despreza o conhecimento que pro-
À luz do que ficou dito atrás sobre o paradig- duz tecnologia, mas entende que, tal como o
ma emergente, estas características do senso conhecimento se deve traduzir em autoconhe-
comum têm uma virtude antecipatória. Deixa- cimento, o desenvolvimento tecnológico deve
do a si mesmo, o senso comum é conservador traduzir-se em sabedoria de vida. É esta que
e pode legitimar prepotências, mas interpene- assinala os marcos da prudência à nossa aven-
trado pelo conhecimento científico pode estar tura científica. A prudência é a insegurança as-
na origem de uma nova racionalidade. Uma sumida e controlada. Tal como Descartes, no
Um discurso sobre as ciências 67

limiar da ciência moderna, exerceu a dúvida Bacon, F. 1933 Novum Organum (Madrid:
em vez de a sofrer, nós, no limiar da ciência Nueva Biblioteca Filosófica) Preparada e
pós-moderna, devemos exercer a insegurança traduzida por Gallach Palés.
em vez de a sofrer. Bateson, G. 1985 Mind and Nature (Londres:
Na fase de transição e de revolução cientí- Fontana).
fica, esta insegurança resulta ainda do facto Bell, D. 1976 The Coming Crisis of Post-
de a nossa reflexão epistemológica ser muito Industrial Society (Nova Iorque: Basic
mais avançada e sofisticada que a nossa prática Books).
científica. Nenhum de nós pode neste momento Benseler, F.; Hejl, P. e Koch, W. (orgs.) 1980
visualizar projectos concretos de investigação Autopoiesis. Communication and Society.
que correspondam inteiramente ao paradigma The Theory of Autopoietic Systems in the
emergente que aqui delineei. E isso é assim pre- Social Sciences (Frankfurt: Campus).
cisamente por estarmos numa fase de transição. Bohm, D. 1988 Wholeness and the Implicate
Duvidamos suficientemente do passado para Order (Londres: Ark Paperbacks).
imaginarmos o futuro, mas vivemos demasiada- Bowen, M. 1985 “The Ecology of Knowledge:
mente o presente para podermos realizar nele o Linking the Natural and Social Sciences” in
futuro. Estamos divididos, fragmentados. Sabe- Geoforum, V. 16, pp. 213 e ss.
mo-nos o caminho mas não exactamente onde Briggs, J. e Peat, F. D. 1985 Looking Glass
estamos na jornada. A condição epistemológica Universe. The Emerging Science of
da ciência repercute-se na condição existencial Wholeness (Londres: Fontana).
dos cientistas. Afinal, se todo o conhecimento é Brillouin, L. 1959 La Science et la Théorie de
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68 Boaventura de Sousa Santos

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70 Boaventura de Sousa Santos

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Não disparem sobre o utopista*

Introdução o direito modernos. Quer um, quer outro, re-


clamam-se de uma eficácia e de uma coerên-
N a transição paradigmática, a emancipação
social é uma aspiração tão óbvia quanto
inverossímil. Óbvia, porque a regulação social,
cia que, de facto, não têm nem nunca tiveram.
Contudo, a consagração política e cultural de
sendo exercida ineficaz e incoerentemente, pa- que beneficiaram nestes últimos duzentos anos
rece estar sempre à mercê de quem lhe resista. faz com que, na primeira fase de transição pa-
Inverossímil, porque, tendo absorvido em si a radigmática, a sua legitimidade se reproduza
emancipação social considerada possível no independentemente da qualidade dos seus de-
paradigma ainda dominante, a regulação social sempenhos práticos.
pode credivelmente ocultar a sua ineficácia e Em face disto, os grupos sociais interessa-
incoerência, atribuindo-as às alternativas e dos na emancipação não podem, hoje, começar
resistências por boas razões fracassadas. Isto por defender a coerência e a eficácia das alter-
é tanto mais assim quanto a regulação social nativas emancipatórias, sob pena de confirma-
continua neste período a dispor de dois for- rem e aprofundarem a sua inverosimilhança.
tíssimos factores de legitimação: a ciência e Nestas condições, não resta outra saída senão
a utopia. No trilho aberto por ela o conheci-
mento emancipatório irá consolidando a sua
trajectória epistemológica, do colonialismo
* Extraído de Santos, B. de Sousa 2000 “Não dispa-
rem sobre o utopista” in A crítica da razão indolente.
para a solidariedade. Assim se irá criando uma
Contra o desperdício da experiência (Porto: Afronta- nova bitola de coerência e eficácia que torne
mento) pp. 305-354. a emancipação menos óbvia e mais verosímil.
72 Boaventura de Sousa Santos

Neste trabalho, revisito e amplio muito as mesmo e de pensar, de forma credível, a tran-
propostas utópicas apresentadas em Pela Mão sição para um outro paradigma transforma-os
de Alice (1994: 243 e ss.). A pulsão utópica é num problema fundamental adicional.
a mesma que então me guiou, mas o aprofun- O segundo pressuposto é que, à medida que
damento da análise da regulação social entre- a canibalização da emancipação social pela
tanto conseguido torna hoje possível avançar regulação social se converteu no mega-senso
um pouco mais na identificação de novos cami- comum do fim do século XX, a regulação so-
nhos emancipatórios e, sobretudo, na constru- cial não tem de ser efectiva para florescer: ela
ção das subjectividades capazes e desejosas de floresce simplesmente porque a subjectividade
os percorrer. é incapaz de conhecer e de desejar saber como
Antes de apresentar as novas propostas, conhecer e desejar para além da regulação.
convirá recapitular os pressupostos que então Resulta daí que a nossa necessidade radi-
e hoje subjazem ao momento utópico da minha cal seja dupla: por um lado, a necessidade de
reflexão. O primeiro pressuposto é que, quase reinventar um mapa emancipatório que, con-
cento e sessenta anos depois de ter sido formu- trariamente aos desenhos de Escher, não se
lada, continua a ser válida a acusação feita aos converta gradual e insidiosamente em mais um
cientistas sociais por Fourier em 1841 de que mapa de regulação; por outro lado, a necessi-
estes tendem a descurar sistematicamente os dade de reinventar uma subjectividade indivi-
problemas fundamentais das ciências de que dual e colectiva capaz de usar e de querer usar
se ocupam (1967: 181). Em trabalhos anterio- esse mapa. Esta é a única maneira de delinear
res, atribuí esse facto ao modo como a ciência um trajecto progressista através da dupla tran-
e o direito modernos destruiram a tensão entre sição, epistemológica e societal, que começa
regulação e emancipação. O excesso de regula- agora a emergir.
ção daí decorrente transformou-se, ele próprio, Nos trabalhos anteriores, referi alguns dos
num problema fundamental. Hoje em dia, são princípios orientadores deste vasto proces-
problemas fundamentais os problemas para os so de reinvenção e reconstrução. Salientei a
quais não existe uma solução no paradigma da necessidade de criar novas formas de conhe-
modernidade. O facto de a ciência e o direito cimento baseadas numa novíssima retórica,
modernos serem incapazes de reconhecer isso uma retórica dialógica empenhada em cons-
Não disparem sobre o utopista 73

tituirse como tópica emancipatória, ou seja, Estes princípios orientadores permitiramme


como tópica de novos sensos comuns eman- interrogar as concepções hegemónicas de co-
cipatórios. Tenho em mente formas de conhe- nhecimento, de direito, de poder e de política, e,
cimento que progridam do colonialismo para assim, desenhar novos campos analíticos mais
a solidariedade e que sejam tolerantes relati- vastos e mais incompletos, e, simultaneamen-
vamente ao caos, por ele ter potencialidades te, menos ocidental-cêntricos e menos Norte-
para criar uma ordem emancipatória capaz de -cêntricos. Mostrei como os novos campos ana-
facilitar uma resolução progressista da transi- líticos realçam as várias formas de opressão
ção paradigmática. nas sociedades capitalistas, ao mesmo tempo
Sustentei ainda que deveríamos tomar como que abrem novos espaços para uma política
ponto de partida para essa tarefa algumas re- cosmopolita, para diálogos interculturais, para
presentações inacabadas da modernidade, su- a defesa da autodeterminação e da emancipa-
blinhando particularmente duas delas: o prin- ção, espaços possibilitados pela globalização
cípio da comunidade, assente nas ideias de das práticas sociais. Na análise destas últimas,
solidariedade, de participação, e o princípio é crucial distinguir entre as práticas sociais que
estéticoexpressivo, assente nas ideias de pra- resultam directa ou indirectamente da transna-
zer, de autoria e de artefactualidade. Considero cionalização do capital (localismos globaliza-
estes dois princípios cruciais para definir os dos e globalismos localizados) e aquelas que
parâmetros progressistas da transição paradig- representam novas oportunidades para lutas
mática, quer na vertente epistemológica, quer emancipatórias paradigmáticas (cosmopolitis-
na vertente societal. A respeito da transição pa- mo e património comum da humanidade).
radigmática societal, insisti, contudo, que a es- O objectivo deste percurso analítico foi
cavação de algumas das representações inaca- formular um conjunto de interrogações ra-
badas da modernidade deveria também incluir dicais sobre as sociedades capitalistas con-
a separação do direito moderno relativamente temporâneas e o sistema mundial que as in-
ao Estado e a sua rearticulação com a política tegra, de forma a abrir caminho para a dupla
e a revolução, ambas entendidas de forma bem reinvenção, exigida pela própria transição
diferente da que tem dominado na modernida- paradigmática, de um novo senso comum
de ocidental. emancipatório e de uma nova subjectividade
74 Boaventura de Sousa Santos

individual e colectiva com capacidade e von- A minha versão de utopia é, portanto, dupla-
tade de emancipação. O presente texto é de- mente relativa. Por um lado, chama a atenção
dicado a essa dupla reinvenção. para o que não existe enquanto (contra)parte
O terceiro pressuposto é que a definição do integrante, mesmo que silenciada, daquilo que
paradigma emergente é uma tarefa tão impor- existe, ou seja, para aquilo que pertence a uma
tante quanto difícil. É uma tarefa difícil porque determinada época pelo modo como está ex-
a modernidade tem uma maneira peculiar de cluído dela. Por outro lado, a utopia é sempre
combinar a grandeza do futuro com a sua mi- desigualmente utópica, dado que a sua forma
niaturização, isto é, de classificar e fragmentar de imaginar o novo é parcialmente constituída
os grandes objectivos do progresso infinito em por novas combinações e escalas daquilo que
soluções técnicas que se distinguem essencial- existe, e que são, na verdade, quase sempre me-
mente pelo facto de a sua credibilidade trans- ros pormenores, pequenos e obscuros, do que
cender aquilo que a técnica pode garantir. As realmente existe. A utopia requer, portanto, um
soluções técnicas, que são parte integrante da conhecimento da realidade profundo e abran-
cultura instrumental da modernidade, têm um gente como meio de evitar que o radicalismo
excesso de credibilidade que oculta e neutra- da imaginação colida com o seu realismo.
liza o seu défice de capacidade. Daí que tais O quarto pressuposto é que, apesar da ur-
soluções não nos incentivem a pensar o futu- gência com que é reclamado, o pensamento
ro, até porque elas próprias já deixaram de o utópico é hoje um pensamento desacreditado,
pensar há muito tempo. mesmo quando se vão multiplicando no mun-
Perante isto, o único caminho para pensar do experiências que, à luz das concepções do-
o futuro parece ser a utopia. E por utopia en- minantes, surgem como “utopias realistas”. O
tendo a exploração, através da imaginação, de desenvolvimento da racionalidade científica e
novas possibilidades humanas e novas formas da ideologia cientista a partir do século XIX
de vontade, e a oposição da imaginação à ne- e a sua expansão do estudo da natureza para
cessidade do que existe, só porque existe, em o estudo da sociedade foram criando um am-
nome de algo radicalmente melhor por que vale biente intelectual hostil ao pensamento utópi-
a pena lutar e a que a humanidade tem direito. co. Daí que o nosso século tenha sido relativa-
Não disparem sobre o utopista 75

mente pobre em pensamento utópico1, como actual perda de confiança epistemológica na


se a utopia se tivesse tornado obsoleta com o ciência moderna obriganos a questionar esta
progresso da ciência e a subsequente raciona- explicação. Não será que a morte do futuro,
lização global da vida social2. Contudo, a nossa que hoje receamos tão profundamente, foi há
muito anunciada pela morte da utopia? Com
esta pergunta em mente, Margaret Mead apela
1 Apesar disso, a utopia tem sido uma importante para “utopias fortes”:
corrente subterrânea do pensamento moderno no sécu-
lo XX. Na década de sessenta, dominaram as erotopias É, no entanto, através das visões de um mundo,
(Norman O. Brown; Marcuse), e, nos anos setenta, as de um lugar ou de um estado melhor que o ho-
ecotopias (Reich, Schumacher, Callenbach, LeGuin). mem faz esforços positivos […]. Como, aparente-
Os elementos utópicos nas recentes profecias de gran- mente, a imaginação humana é tão deficiente na
des investigadores no domínio da genética, da bioenge- criação dessas visões […], precisamos de utopias
nharia e da inteligência artificial foram eloquentemente
mais fortes (1971: 46).
analisados em Martins (1993). A propósito de concep-
ções alternativas da sociedade baseadas em culturas
não ocidentais, ver Masini (1983). A verdade é que, como tem sido frequente-
2 Em 1922, Hertzler concluiu a sua história do pen- mente sublinhado, o pensamento utópico prece-
samento utópico afirmando: “Nós hoje, milénios ou de, às vezes em séculos, a antiutopia (Hertzler,
séculos depois, com o nosso conhecimento mais com- 1965: 268-300). Como Mumford afirmou: “Ne-
pleto da sociedade e com a nossa filosofia social mais nhures pode ser um país imaginário, mas as no-
sólida, conseguimos discernir nos esquemas dos utó-
picos debilidades e limitações de que eles não tinham
tícias de nenhures são notícias reais” (1922: 24).
consciência” (1965: 301). Uma reconstrução criativa O quinto pressuposto é que a utopia assenta
do pensamento utópico énos dada por Mumford, numa em duas condições: uma nova epistemologia e
obra publicada no mesmo ano (Mumford, 1922). Este uma nova psicologia. Enquanto nova epistemo-
autor, embora crítico quanto às “falsas utopias e mitos logia, a utopia recusa o fechamento do horizon-
sociais que provaram ser ou estéreis ou desastrosos ao
longo dos últimos séculos” (p. 300), reconheceu que te de expectativas e de possibilidades, e cria
“no entanto, [se] o nosso conhecimento sobre o com- alternativas; enquanto nova psicologia, a uto-
portamento humano tem algum peso, não devemos pôr pia recusa a subjectividade do conformismo e
de lado mitos antigos sem criar mitos novos” (p. 301). cria a vontade de lutar por alternativas. A nova
76 Boaventura de Sousa Santos

epistemologia e a nova psicologia anunciadas capacidade e vontade de os usar. Nenhuma


pela utopia residem na arqueologia virtual do transformação paradigmática será possível
presente. Entendo esta arqueologia em sentido sem a transformação paradigmática da subjec-
literal, pois encara o presente como um campo tividade. Começarei pelos mapas de emancipa-
de escavações. Mas entendoa também em sen- ção, passando depois para as subjectividades.
tido virtual, pois o seu objectivo é escavar ape- Concentrar-me-ei nestas últimas, uma vez que,
nas onde nada foi realizado e descobrir porquê, quanto aos mapas de emancipação, há apenas
ou seja, por que razão as alternativas deixaram que complementar as propostas apresentadas
de o ser. Neste caso, a escavação interessase em Pela Mão de Alice.
pelos silêncios, pelos silenciamentos e pelas
questões que ficaram por perguntar. Mapas da transição
Finalmente, o sexto pressuposto é que não paradigmática: emancipações
pretendo propor uma utopia propriamente dita,
Nesta secção prossigo, amplio e comple-
mas antes uma heterotopia. Em vez da inven-
mento as propostas desse livro. A ampliação
ção de um lugar situado algures ou nenhures,
mais significativa é a que decorre de o mapa
proponho uma deslocação radical dentro do
de estrutura-acção comportar agora seis espa-
mesmo lugar: o nosso. Partir da ortotopia para
ços estruturais e não quatro, como acontecia
a heterotopia, do centro para a margem. A fina-
anteriormente. Serão inevitáveis algumas re-
lidade deste deslocamento é permitir uma visão
petições. Para as evitar tanto quanto possível,
telescópica do centro e uma visão microscópica
resumirei ao máximo o que nesta secção se re-
de tudo o que o centro é levado a rejeitar para
fere às articulações das novas propostas com
reproduzir a sua credibilidade como centro. O
as que são já conhecidas.
objectivo é experienciar a fronteira da sociabi-
À luz do que tenho vindo a defender, é ób-
lidade enquanto forma de sociabilidade.
vio que só por uma simplificação grosseira
Antes de passar à apresentação de algu-
poderemos falar de emancipação social. Na
mas propostas utópicas, volto a referir que, na
prática, a transição paradigmática irá tradu-
transição paradigmática, o pensamento utópi-
zirse em emancipações sociais. Distingo seis
co tem um duplo objectivo: reinventar mapas
formas particularmente importantes, porquan-
de emancipação social e subjectividades com
Não disparem sobre o utopista 77

to correspondem às seis formas de regulação cipação. A razão pela qual prefiro falar de
social identificadas em outro lugar3. Essas seis emancipações e não apenas de emancipação
formas de emancipação, e as correspondentes é que essa transformação assume caracterís-
lutas emancipatórias, em lugar de serem um ticas diferentes, requer diferentes coligações
ponto de chegada, constituem antes um ponto progressistas e está sujeita a diferentes ritmos
de partida para pensar a transição paradigmá- nos diferentes espaços estruturais. Em cada
tica. Dado que combatem a regulação social um deles, porém, a transformação resulta da
existente, as lutas emancipatórias devem ne- substituição gradual da dinâmica de desenvol-
cessariamente opor-se-lhe nos campos sociais vimento dominante pela dinâmica emergente
em que ela actualmente se reproduz. Seja como e, portanto, da contradição e da competição
for, à medida que a transição paradigmática paradigmáticas entre os paradigmas defendi-
progredir, as lutas emancipatórias deixarão dos pelas respectivas unidades de prática so-
de combater as formas de regulação social cial e pelas coligações transformativas em que
que agora existem para combaterem as novas elas se organizam. Na prática, a contradição e
formas de regulação entretanto surgidas das a competição paradigmáticas implicam a expe-
próprias lutas emancipatórias paradigmáticas. rimentação com formas alternativas de socia-
Esta permanente vigilância sobre si própria e bilidade. Daí que um dos principais objectivos
a sua auto-reflexividade distingue a emancipa- das coligações emancipatórias na transição
ção pós-moderna da emancipação moderna. paradigmática consista em garantir que a ex-
Em cada um dos espaços estruturais, o perimentação ocorra em condições tais que o
paradigma emergente constróise a si mesmo paradigma emergente não seja desvalorizado
através de uma tripla transformação: a trans- ou desacreditado logo à partida. Conseguir
formação do poder em autoridade partilhada; essa garantia é, em si, uma luta política que,
a transformação do direito despótico em di- embora travada em todos os espaços estrutu-
reito democrático; a transformação do conhe- rais, é sobretudo desenvolvida no espaço da
cimento-regulação em conhecimento-eman- cidadania e centrada em torno do Estado.
O Estado, graças à forma cósmica do seu po-
der (a dominação) e à forma cósmica do seu
3 Ver Santos, 2000: 257-284. direito (o direito territorial), tem uma grande
78 Boaventura de Sousa Santos

capacidade para condicionar as constelações las. Essa avaliação é uma atribuição exclusiva
de práticas sociais. Essa capacidade é o factor das forças sociais activas nos campos sociais.
principal por detrás das formas hegemónicas Esses campos são comunidades interpretati-
de sociabilidade nas sociedades capitalistas vas ou campos de argumentação cuja vontade
contemporâneas. Assim, um dos objectivos e capacidade emancipatórias aumentarão na
fundamentais das lutas conduzidas pelas for- medida em que a argumentação seja orientada
ças sociais emancipatórias na transição para- pela retórica dialógica: a novíssima retórica que
digmática consiste em transformar essa capa- descrevi noutro lugar4. Ao contrário do que su-
cidade cósmica do Estado numa capacidade cede actualmente, este Estado-Providência não
caósmica: em vez de impor uma forma de so- é uma forma política específica dos Estados dos
ciabilidade, o Estado deve ser constituído de países centrais. Pode ser constituído em todos
modo a criar as condições para a experimen- os Estados que integram o sistema mundial e é
tação social, isto é, as condições necessárias até crível que a sua constituição seja mais fácil
para que as sociabilidades alternativas possam nos países da periferia do sistema.
ser credivelmente experimentadas em cada um A contradição e a competição gerais entre o
dos seis espaços estruturais. Ora isto implica paradigma dominante e o paradigma emergente
uma profunda transformação, senão mesmo desdobram-se em contradições e competições
uma radical reinvenção, do Estado. específicas ao nível de cada um dos espaços es-
Na transição paradigmática, o EstadoPro- truturais. Tal como acontece com o paradigma
vidência é a forma estatal que garante a expe- dominante e com as formas de regulação em
rimentação social, sendo composto por seis que ele se traduz, as formas emancipatórias de
diferentes dimensões de providência social, sociabilidade emergentes nos diferentes espa-
correspondentes aos seis campos estruturais de ços estruturais consolidam-se e expandem-se
experimentação social. Um aspecto importante na medida em que se articulam umas com as
desta reconstrução do EstadoProvidência na outras em constelações de práticas e de conhe-
transição paradigmática é o facto de a função do cimentos emancipatórios.
Estado se centrar em garantir as condições de
experimentação de sociabilidades alternativas,
não lhe competindo avaliar o desempenho de- 4 Ver Santos, 2000: 53-111.
Não disparem sobre o utopista 79

Passarei agora a apresentar, sucintamente, mente como crítica das experiências de vida
os termos da contradição e da competição comunitária nos anos sessenta6. Quase pode
paradigmáticas em cada um dos seis espaços dizerse o mesmo sobre o espaço do merca-
estruturais. Concentrarme-ei no paradigma do. Quanto ao espaço mundial, o pensamento
societal emergente, no senso comum eman- utópico floresceu até à 1ª Grande Guerra, al-
cipatório a ser construído por uma tópica tura em que foi brutalmente esmagado para
retórica dialógica e no novo EstadoProvidên- nunca mais se recompor.
cia enquanto garante da experimentação so- À luz da tradição realista ainda predominan-
cial de sociabilidades alternativas. Nas notas te nas ciências sociais, o que a seguir vou ex-
de rodapé, indicarei algumas das propostas por parecerá pouco mais do que moralização
de sociabilidades alternativas para cada um bem-intencionada. Não importa. O realismo é
dos espaços estruturais formuladas nas três o filho epistemológico predilecto do paradig-
últimas décadas. Tornar-se-á então eviden- ma dominante e, como tal, particularmente
te uma curiosa e importante assimetria. A revelador da transformação perversa das ener-
maioria das visões ou utopias alternativas gias emancipatórias em instrumentos regula-
concentrouse nos espaços da produção e da tórios. Passo a passo, o realismo conduziu-nos
cidadania. O espaço doméstico e o espaço da a uma situação em que a emancipação só pode
comunidade que, no século XIX, inspiraram ser pensada de modo não-realista e moralista.
tanta modelização utópica, são hoje em dia
praticamente um deserto em matéria de alter- Comunidades domésticas cooperativas
nativas radicais5. Quando muito, a utopia está
No espaço doméstico, a contradição e a
presente como crítica da utopia, designada-
competição ocorrem entre o paradigma da
família patriarcal e o paradigma das comuni-
dades domésticas cooperativas. O paradigma
5 Para um fascinante relato dos projectos feminis- emergente inclui todas as formas alternativas
tas para o trabalho doméstico (espaço colectivizado de
trabalho doméstico, trabalho doméstico cooperativo,
casas sem cozinhas) no século XIX e início do século
XX, ver Hayden (1981). 6 Ver, entre outros, Tipton (1982).
80 Boaventura de Sousa Santos

de sociabilidade doméstica e de sexualidade, vas de domesticidade, tanto quanto possível


baseadas na eliminação dos estereótipos dos em igualdade de circunstâncias. Por exemplo,
papéis de cada sexo, na autoridade partilha- deve ser garantido, desde já, igual acesso ao
da (quer nas relações entre os sexos, quer en- direito social e, nomeadamente, à segurança
tre gerações) e na democratização do direito social, às famílias patriarcais e às comunida-
doméstico (conflitos cooperativos, prestação des domésticas cooperativas.
mútua de cuidados, vida partilhada)7. O novo
senso comum emancipatório do espaço do- Produção ecosocialista
méstico baseiase numa tópica retórica orien-
No espaço da produção, a contradição e a
tada pelos topoi da democracia, da coopera-
competição ocorrem entre o paradigma do ex-
ção e da comunidade afectivas8 e, ainda, pelo
pansionismo capitalista e o paradigma ecoso-
menos na fase preliminar da transição para-
cialista. Desenrolam-se através da contradição
digmática, pelo topos da libertação da mulher.
e competição entre unidades de produção capi-
No espaço doméstico, a dimensão de provi-
talista e unidades de produção ecosocialistas.
dência social do Estado consiste em garantir
Estas últimas abrangem organizações muito
que se possam experimentar formas alternati-
diferentes, de certo modo semelhantes a al-
gumas unidades produtivas actualmente exis-
7 Como atrás afirmei, a concepção de formas alter- tentes nas periferias da produção capitalista,
nativas de domesticidade, que não sejam sexualmente tais como unidades de produção cooperativa
estereotipadas, tem sido, em tempos recentes, um do- e autogerida, pequena agricultura, agricultura
mínio particularmente emprobrecido do pensamento orgânica, produção controlada pelos traba-
utópico. Mesmo assim, no nosso século existe uma
lhadores, unidades de produção de utilidade
corrente importante de utopismo feminista sob a for-
ma de ficção científica, cobrindo não apenas o espaço social, redes de produção comunitária9. Estas
doméstico, mas todos os outros espaços estruturais.
Ver Sargent (1974, 1976 e 1978). Ver também Piercy
(1976), e Moylan (1986). 9 Podemos encontrar em Dahl (1985) uma argumen-
8 Num sentido convergente, mas mais amplo, Wolff tação vigorosa a favor da democracia no espaço da
referese à comunidade afectiva como “a consciência produção. Ver, também, Bowles e Gintis (1986); Bow-
recíproca de uma cultura partilhada” (1968: 187). les, Gordon e Weisskopf (1983 e 1990). Roemer (1992)
Não disparem sobre o utopista 81

organizações têm em comum o facto de todas O novo senso comum emancipatório do es-
elas serem associações voluntárias de produ- paço da produção baseia-se numa tópica re-
tores direccionadas para a produção democrá- tórica orientada pelos topoi da democracia e
tica de valores de uso, sem degradarem a na- do socialismo e antiprodutivismo ecológicos.
tureza (substituindo a natureza capitalista pela No espaço da produção, a dimensão de provi-
natureza ecosocialista)10. dência social do Estado consiste em garantir
a coexistência dos dois modos de produção
alternativos, com o âmbito necessário para
apresentou um modelo de socialismo de mercado par- avaliar os resultados e as formas de sociabili-
tindo de uma reorganização radical dos direitos de pro- dade deles decorrentes. O fomento do sector
priedade das empresas e da igualização da distribuição privado não lucrativo, o chamado terceiro sec-
dos lucros. A ideia de democracia económica assente na
participação e na autogestão tem, como é sabido, uma
tor (os outros sectores são o sector estatal e o
longa tradição no pensamento socialista. Em finais dos sector privado lucrativo), na área da produção
anos vinte, Naphtali concebeu um modelo bastante sofis- de bens e serviços constitui uma das primei-
ticado de democracia económica para a Federação Geral ras formas de promoção da experimentação
dos Sindicatos Alemães (Naphtali, 1977). Dentro desta social a empreender pelo Estado-Providência.
tradição, Széll (1988 e 1990) é, actualmente, um dos mais
consistentes defensores da democracia económica. Ver,
também, Lamers e Széll (1989); Greenberg (1986), sobre
a produção cooperativa (o caso de Mondragon); e Linn
(1987), a propósito da “produção de utilidade social” (as 1980, 1987, 1990), O’Connor (1973, 1987, 1991a, 1991b) e
experiências feitas pelo Conselho da Grande Londres). do grupo da revista Capitalism Nature Socialism. Ver,
10 A literatura sobre democracia económica (ver Nota também, Daly e Cobb (1989). De formas muito diversas,
anterior) tem tradicionalmente ignorado a dimensão todas estas propostas ligam explicitamente o espaço da
ecológica e antiprodutivista do espaço da produção produção ao espaço do mercado e ao espaço da comu-
emergente. Isto devese, em parte, à orientação produ- nidade: as versões alternativas abrangem a produção, o
tivista do marxismo clássico. Recentemente, porém, consumo e, em geral, “le monde vécu”. De facto, “le front
o pensamento utópico ecosocialista tem florescido de est partout”. Em 1947, Goodman e Goodman apresen-
várias formas. As propostas mais sofisticadas derivam taram os seus “modelos para pensar” a eliminação da
dos trabalhos de Illich (1970; 1971; 1973; 1976; 1977; diferença entre produção e consumo na nova comunida-
1978; 1981), Bahro (1978) e movimento alemão dos de (Goodman e Goodman, 1960). Para uma panorâmica
Verdes, Gorz (1980, 1982, 1992), Bookchin (1970, 1974, global, ver Frankel (1987). Ver também Goodin (1992).
82 Boaventura de Sousa Santos

Necessidades humanas O novo senso comum emancipatório do es-


e consumo solidário paço do mercado baseia-se numa tópica retó-
No espaço do mercado, a contradição e a rica orientada pelos topoi da democracia, das
competição ocorrem entre o paradigma do necessidades radicais e dos meios de satisfa-
consumismo individualista e o paradigma das ção genuínos. No espaço do mercado, a dimen-
necessidades humanas, da satisfação decente são de providência social do Estado consiste
e do consumo solidário. No paradigma emer- em garantir a experimentação de formas alter-
gente, os meios de satisfação estão ao serviço nativas de consumo, tanto quanto possível em
das necessidades — sendo as necessidades si- igualdade de circunstâncias. Esta dimensão
multaneamente privação e potencialidade —, o de providência social é mais difícil de atingir,
mercado é apenas uma de entre muitas formas dado que contradiz, a um nível particularmen-
de organização do consumo, e as necessidades te profundo, a actual lógica global do Estado-
são concebidas como experiências subjectivas Providência que, tal como o conhecemos, foi
que podem ser expressas de variadíssimas for- criado para garantir a integração das classes
mas, de acordo com os contextos e as culturas, trabalhadoras no tipo de consumo organiza-
ora como objectos de desejo, ora como desejos do de acordo com o paradigma dominante do
de intersubjectividade. A noção de necessida- consumismo individualista. Uma das primeiras
des radicais é central no paradigma emergente. medidas de experimentação social consiste em
Segundo Heller, as necessidades radicais são criar condições para que grupos de consumi-
qualitativas e não quantificáveis; não podem dores se associem na produção de alguns bens
ser satisfeitas num mundo assente na subordi- de consumo (sobretudo alimentares). Esta me-
nação e na superordenação; impelem as pesso-
as para ideias e práticas que eliminam a subor-
dinação e a superordenação (Heller, 1976)11. narrativa” (1993: 33). Esta alteração torna a teoria de
Heller ainda mais concordante com a minha principal
tese neste livro. Tenho vindo a insistir na ideia de que
11 Recentemente, Heller (1993) revisitou a sua teoria o paradigma emergente é, na verdade, um conjunto de
das necessidades radicais. Embora ainda acredite que paradigmas que, muito provavelmente, carecem da co-
há necessidades radicais, rejeita a “temporalização erência e da ambição totalizante que caracteriza o para-
das necessidades radicais no projecto de uma grande digma da modernidade.
Não disparem sobre o utopista 83

dida implicará uma nova reforma agrária, a res- cludentes quer ao nível externo (intercomuni-
truturação do uso e posse da terra nas cinturas tário), quer ao nível interno (intracomunitário).
agrícolas das grandes cidades. No paradigma das comunidades-amiba,
pelo contrário, a identidade é sempre múltipla,
Comunidades-amiba inacabada, sempre em processo de reconstru-
ção e reinvenção: uma identificação em curso.
No espaço da comunidade, a contradição e a
A comunidade é, neste paradigma, vorazmen-
competição ocorrem entre o paradigma das co-
te inclusiva e permeável, alimentando-se das
munidades-fortaleza e o paradigma das comu-
pontes que lança para outras comunidades e
nidades-amiba. As comunidades-fortaleza são
procurando comparações interculturais que
comunidades exclusivas, isto é, comunidades
confiram o significado mais profundo à sua
que, agressiva ou defensivamente, baseiam a
concepção própria de dignidade humana,
sua identificação interna numa clausura em re-
sempre ávida de encontrar formas de estabe-
lação ao exterior. As comunidades agressivas-
lecer coligações de dignidade humana com
-exclusivas, cujo exemplo arquetípico é a “so-
outras comunidades. Os movimentos popu-
ciedade colonial”, são constituídas por grupos
lares latinoamericanos, as comunidades ecle-
sociais dominantes que se fecham numa preten-
siais de base, os movimentos de defesa dos
sa superioridade para não serem corrompidas
direitos humanos em todo o sistema mundial,
por comunidades supostamente inferiores. As
tendem a estar mais próximos do paradigma
comunidades defensivas-exclusivas são o re-
das comunidades-amiba do que, por exemplo,
verso das anteriores, mas seguemlhes o exem-
os sindicatos e os movimentos feministas dos
plo ao enclausurarem-se para defender os pou-
países do centro.
cos resquícios de dignidade que conseguiram
O paradigma das comunidades-amiba visa
escapar à pilhagem colonial. Aqui, o exemplo
construir um novo senso comum emancipa-
arquetípico encontrase nas comunidades indí-
tório orientado por uma hermenêutica demo-
genas. A consequência deste processo de auto-
crática, cosmopolita, multicultural e diató-
-enclausuramento recíproco é a tendência das
pica. No espaço da comunidade, a dimensão
comunidades-fortaleza para gerarem fortes hie-
de providência social do Estado consiste em
rarquizações internas. Com isto tornam-se ex-
garantir a proliferação de comunidades-amiba.
84 Boaventura de Sousa Santos

Uma das primeiras medidas de experimenta- de democracia correspondentes aos seis espa-
ção social neste domínio consiste em arvorar o ços estruturais13.
multiculturalismo em princípio informador de A democratização do espaço da cidadania é
toda a actividade estatal (sistema educativo, emancipatória apenas na medida em que esteja
saúde pública, segurança social, administra- articulada com a democratização de todos os
ção pública)12. restantes espaços estruturais, e a cidadania só
é sustentável na medida em que se dissemine
Socialismo como democracia sem fim para além do espaço da cidadania. Cada forma
democrática representa uma articulação es-
No espaço da cidadania, a contradição e a
pecífica entre a obrigação política vertical e a
competição ocorrem entre o paradigma da de-
obrigação política horizontal, e cada uma tem
mocracia autoritária e o paradigma da demo-
a sua própria concepção de direitos e de cida-
cracia radical. Ao longo deste volume, analisei,
dania, de representação e de participação. Em
com alguma demora, as principais característi-
todas elas, porém, o processo democrático é
cas do paradigma dominante numa perspectiva
aprofundado pela transformação das relações
crítica, salientando os limites da sociabilidade
de poder em relações de autoridade partilha-
democrática tornada possível por ele. O para-
digma emergente é o paradigma da democracia
radical, isto é, da democratização global das re- 13 O espaço da cidadania é, sem dúvida, o espaço es-
lações sociais assentes numa dupla obrigação trutural que inspirou o pensamento utópico mais rico
política: a obrigação política vertical entre o no nosso século. Partindo de uma tradição da moder-
nidade, excêntrica e não hegemónica, que remonta
cidadão e o Estado, e a obrigação política ho- a Rousseau, Wollstonecraft, Marx, Engels e J. Stuart
rizontal entre cidadãos e associações. Em ter- Mill, as ideias de democracia directa e de democracia
mos do paradigma emergente, a transição para- participativa foram reelaboradas numa miríade de pro-
digmática consiste nas lutas por seis formas de postas que incluem a democracia radical (Mouffe, 1992;
Laclau e Mouffe, 1985), a democracia unitária (Mans-
sociabilidade democrática, isto é, seis formas
bridge, 1983), a democracia forte (Barber, 1984), a auto-
nomia democrática e o socialismo liberal (Held, 1987),
a comunidade democrática (Berry, 1989), a democracia
12 Há que distinguir entre multiculturalismo progres- associativa (Cohen e Rogers, 1992) e o socialismo de-
sista e reaccionário. mocrático (Cunningham, 1988).
Não disparem sobre o utopista 85

da, do direito despótico em direito democrá- sociedade. A expansão da democracia a que o


tico, e do senso comum regulatório em senso paradigma emergente aspira deve, assim, ser
comum emancipatório. entendida em termos de estrutura, escala e
O paradigma emergente constitui, portanto, tempo: em termos de estrutura, porque abran-
uma ampla expansão e dispersão do direito ge todos os espaços estruturais e não apenas
democrático, dos direitos humanos14 e da ci- o da cidadania; em termos de escala, porque
dadania. Por exemplo, os direitos e os deveres abrange os espaçostempo local, nacional e
consagrados pelo direito do espaço doméstico transnacional e não apenas o espaçotempo
não se confundem com os direitos e os deve- nacional; e, por fim, em termos temporais,
res consagrados pelo direito estatal da família, porque a democracia do presente depende, em
mas o potencial democrático de cada um dos parte, da garantia de uma vida decente para as
tipos de direitos e deveres resulta da articula- gerações futuras. O senso comum emancipató-
ção entre eles15. Da mesma maneira, ser cida- rio da cidadania baseia-se no topos do socialis-
dão no espaço da produção não é a mesma coi- mo como democracia sem fim.
sa do que ser cidadão no espaço do mercado, A dimensão de providência social do Esta-
mas é da constelação de diferentes cidadanias do no espaço da cidadania é particularmente
que deriva o valor democrático de uma dada complexa, porque a contradição e a competi-
ção entre paradigmas se, por um lado, devem
ser asseguradas pelo Estado, por outro, reper-
14 Em matéria de direitos e de política de direitos, o cutem-se no interior deste, tornando-o contra-
paradigma emergente alarga e aprofunda as concep-
ditório. A experimentação paradigmática, que
ções contrahegemónicas que nesse domínio foram
propostas por A. Hunt (1993) e P. Williams (1991). Ver, o Estado deve promover na sociedade, trans-
também, Laclau e Mouffe (1985). forma o Estado num Estado experimental, um
15 Sen (1990) chama a nossa atenção para a especifi- Estado-piloto. No espaço da cidadania, a di-
cidade dos “conflitos cooperativos” no agregado fami- mensão de providência social reside no modo
liar, acrescentando que as dificuldades de eliminar as como o Estado redistribui os seus recursos
predisposições desfavoráveis às mulheres relacionam- materiais e simbólicos de modo a promover a
-se com as “evidentes dificuldades de alargar a análise
experimentação social com formas alternati-
dos direitos ao problema da distribuição no interior do
agregado familiar” (140). vas de democracia, de direito e de cidadania.
86 Boaventura de Sousa Santos

Por outras palavras, a dimensão de providência direitos humanos no mundo de hoje. A prin-
social realizase, em parte, pela transferência cipal função do sistema inter-estatal, na sua
das prerrogativas do Estado para associações presente forma, é fazer com que essa violação
e instituições nãoestatais sempre que estas, pe- seja, ao mesmo tempo, possível e politicamen-
las suas virtualidades democráticas e participa- te tolerável.
tivas, contribuam para a proliferação de espa- De acordo com o paradigma emergente, a
ços públicos não-estatais. Significa isto que, na hierarquia NorteSul só pode ser abolida na me-
transição paradigmática, o Estado é um Estado dida em que se for impondo um novo padrão
dual, ou seja, em cada domínio social há um de sociabilidade transnacional democrática e
conjunto de leis e de instituições que garantem ecosocialista, a qual, por sua vez, pressupõe
a reprodução das formas de sociabilidade do- um novo sistema de relações internacionais e
minante, e um outro conjunto de leis e institui- transnacionais orientado pelos princípios da
ções que garantem a experimentação com as globalização contra-hegemónica: o cosmopoli-
formas emergentes de sociabilidade. tismo e o património comum da humanidade.
No novo modelo, a soberania deixa de ser ex-
Sustentabilidade democrática e clusiva e absoluta, tornandose recíproca e de-
soberanias dispersas mocraticamente permeável16. Com base nesta
Finalmente, no espaço mundial, a contra-
dição e a competição paradigmáticas ocorrem
entre o paradigma do desenvolvimento desi- 16 As concepções alternativas do espaço mundial sur-
giram no contexto da análise da crise final do sistema
gual e da soberania exclusiva, por um lado, e mundial e do sistema inter-estatal. Wallerstein (1991a)
o paradigma das alternativas democráticas ao tem vindo a promover um debate sobre o novo paradig-
desenvolvimento e da soberania reciprocamen- ma. Centrado especificamente no sistema inter-estatal,
te permeável, por outro. Do ponto de vista do Falk (1975, 1987, 1992a, 1992b, 1992c), juntamente com
outros autores, tem vindo a propor novos modelos de
paradigma emergente, a hierarquia NorteSul e
governo mundial. Os novos movimentos sociais (eco-
o desenvolvimento capitalista, expansionista e lógicos, pacifistas, comunitários, de defesa de alterna-
desigual, em que essa hierarquia assenta, cons- tivas ao desenvolvimento) têm originado, nos últimos
tituem a maior e mais implacável violação dos anos, uma profusão de propostas utópicas, centradas
sobre a acção social à escala mundial. Ver, por exem-
Não disparem sobre o utopista 87

nova noção de soberania, tornase concebível adas em conceitos alternativos de soberania


que os Estados partilhem entre si a sua sobera- que visam a criação de instâncias parciais de
nia e o façam também com novas instituições governação transnacional (incluindo gover-
não-governamentais transnacionais, democrá- nos locais transnacionalmente articulados
ticas e participativas, embriões de um espaço em rede). Também neste caso, o Estado assu-
público global nem estatal nem inter-estatal. me na transição paradigmática uma natureza
No paradigma emergente, o princípio da au- dual: um número crescente de relações que o
todeterminação interna é tão importante quan- paradigma dominante concebe como relações
to o princípio da autodeterminação externa. externas será reconceptualizado como rela-
Tenderão a desaparecer as distinções entre ci- ções internas.
dadãos e não cidadãos, entre emigrantes e na-
cionais, e, com isto, as cidadanias, tal como as Lutas paradigmáticas e
nacionalidades, tenderão a ser plurais. A tópica subparadigmáticas
retórica do espaço mundial está orientada para
À luz da proposta utópica aqui apresentada,
a hermenêutica diatópica e para o diálogo in-
as contradições e as competições paradigmá-
tercultural, e assenta nos topoi da democracia,
ticas traduzemse, na transição paradigmática,
do cosmopolitismo e do património comum
por um extenso campo de experimentação so-
da humanidade. Durante as primeiras fases da
cial com formas alternativas de sociabilidade.
transição paradigmática, deverá também privi-
Em vez de serem eliminadas por um acto de
legiarse uma tópica do Sul nãoimperial17.
ruptura revolucionária, as formas dominantes
No espaço mundial, a dimensão de provi-
de sociabilidade podem continuar a reprodu-
dência social do Estado consiste em garantir
zirse, perdendo, no entanto, o monopólio so-
a experimentação com novas formas de socia-
bre as práticas epistemológicas e sociais. Isto
bilidade internacional e transnacional, base-
significa que têm de competir com formas de
sociabilidade alternativa às quais devem ga-
plo, Pieterse (1989); Walker (1988); Daly e Cobb (1989); rantir-se condições adequadas, não só para so-
Addo et al. (1985). Ver também Stauffer (1990). breviverem, mas também para florescerem. Ao
17 Sobre a noção do Sul nãoimperial, ver, mais adian- Estado compete assegurar a experimentação,
te, a discussão sobre a subjectividade do Sul.
88 Boaventura de Sousa Santos

residindo nessa função a sua natureza de pro- lado, se recusam a aceitar o que existe só por-
vidência social. que existe e, por outro, estão convictos que o
Na transição paradigmática, as lutas polí- que não existe contém um amplíssimo campo
ticas em que o alvo é o Estado tornamse ex- de possibilidades. Na transição paradigmática,
tremamente importantes. Enquanto as lutas o inconformismo é, em si mesmo, uma mera
políticas subparadigmáticas visam reproduzir semi-legitimidade que se vai completando com
uma forma dominante de sociabilidade, as a ampliação do círculo do inconformismo.
lutas políticas paradigmáticas anseiam pela A luta pela avaliação é tão crucial como a
experimentação social com formas de socia- luta pelas garantias de experimentação. Isto
bilidade alternativa. Na concepção aqui pro- significa que, ao contrário do que acontece
posta, a avaliação da experimentação social com a luta política subparadigmática, a luta
está confiada às diferentes forças sociais en- política paradigmática não pode escolher en-
volvidas em formas alternativas de sociabili- tre lutar dentro e lutar fora do Estado: tem de
dade. A luta pela avaliação é, em parte, uma ser travada dentro e fora do Estado. As garan-
luta pelos critérios de avaliação. Pelo menos, tias de experimentação são sempre resultado
nas primeiras fases da transição paradigmáti- de uma luta, pois são conquistadas dentro de
ca não pode deixar de ser incluído, entre os um Estado constituído pelo paradigma domi-
vários critérios, o critério quantitativo: a ava- nante, precisamente com o objectivo de evitar
liação só pode ser positiva na medida em que a a experimentação social. A luta é, por isso,
experiência com alternativas de sociabilidade, extremamente difícil, as garantias são sempre
uma vez concluída, se torna mais credível para precárias e têm de ser objecto de uma vigilân-
grupos sociais mais amplos, conquista mais cia política constante.
adeptos dispostos a renová-la e ampliá-la, em A avaliação da experimentação social será
suma, amplia o seu auditório relevante. Deve efectuada pelas forças sociais no interior das
ter-se sempre em mente que a experimentação comunidades interpretativas através da retóri-
social não é levada a cabo por vanguardas que ca dialógica. Cada um dos espaços estruturais
representem algo mais para além de si pró- desenvolve a sua própria tópica retórica. No
prias. É antes levada a cabo por grupos sociais entanto, o topos da democracia é comum a to-
inconformados e inconformistas que, por um dos eles. O facto de este topos se constelar em
Não disparem sobre o utopista 89

diferentes espaços estruturais com diferentes recusada pelos grupos sociais que, em teoria,
topoi revela a variedade de democracias que a mais beneficiariam dela. O direito de recusa é,
transição paradigmática irá gerar para corres- porém, um dos direitos incondicionais na tran-
ponder ao seu potencial emancipatório. Con- sição paradigmática.
tudo, como uma das características fundamen- Nos termos aqui apresentados, a contradição
tais do conhecimento argumentativo é a sua e a competição paradigmática significam uma
natureza não-fundacional, inacabada e reversí- confrontação no campo social entre regulação
vel, não há qualquer garantia de que os parâ- e emancipação. Mas enquanto, na luta política
metros da retórica dialógica sejam cumpridos, subparadigmática, a emancipação pela qual se
nem de que os resultados da argumentação e luta é a que é possível dentro do paradigma do-
da avaliação sejam duráveis. De facto, a expe- minante — e que, portanto, não questiona fun-
rimentação social é também uma autoexperi- damentalmente a regulação social instituída —,
mentação, residindo aí a sua autoreflexividade. na luta política paradigmática, a confrontação
A luta política paradigmática é, no seu con- ocorre entre a regulação socialmente construí-
junto, altamente arriscada. Embora assente da pelo paradigma dominante e a emancipação
na contradição e na competição entre o domi- imaginada pelo paradigma emergente. Entre as
nante e o emergente, o velho e o novo, tal não duas lutas, há uma total incomensurabilidade.
significa que os opressores estejam necessária Efectivamente, para a luta social paradigmáti-
e exclusivamente do lado do dominante e do ca, a experimentação social só existe enquanto
velho, nem que as vítimas se encontrem neces- tal na medida em que a emancipação resista
sária e exclusivamente do lado do emergente e a ser absorvida pela regulação. Contudo, por
do novo. Além disso, a maior parte dos opres- razões tácticas, as coligações transformativas
sores e das vítimas estará no lado do paradigma podem ser levadas a combinar lutas subpara-
dominante nas relações sociais concentradas à digmáticas nalguns campos sociais com lutas
volta de alguns espaços estruturais, e do lado paradigmáticas noutros.
do paradigma emergente nas relações sociais Concebida deste modo, a transição para-
concentradas à volta de outros espaços estru- digmática é, no seu conjunto, uma sociabi-
turais. Assim, a experimentação social com lidade altamente arriscada que só pode ser
formas alternativas de sociabilidade pode ser levada a cabo por uma subjectividade capaz
90 Boaventura de Sousa Santos

de correr riscos e disposta a corrêlos: a sub- despóticas em ordens jurídicas democráticas.


jectividade emergente. Em suma, há que inventar uma subjectividade
constituída pelo topos de um conhecimento
Viajantes paradigmáticos: prudente para uma vida decente.
subjectividades Disse atrás que cada grande período da his-
A transição paradigmática é dupla: epistemo- tória intelectual é caracterizado por uma rela-
lógica e societal. As duas transições são autó- ção íntima e específica entre subjectividade e
nomas, mas intimamente relacionadas. Formas conhecimento ou, se se preferir, entre psicolo-
alternativas de conhecimento geram práticas gia e epistemologia, uma relação já analisada
sociais alternativas e viceversa. A unir as duas por Cassirer (1960, 1963) e Toulmin (1990) a
transições, existe o conceito de subjectividade propósito do Renascimento e do Iluminismo18.
— simultaneamente individual e colectiva —, No tocante ao Iluminismo, o ensaio de Locke
o grande mediador entre conhecimentos e prá- (1956) sobre o “entendimento humano” viria a
ticas. Dado que, neste trabalho, adoptei a he- revestir-se de uma enorme influência, e ainda
terotopia como lugar de escrita, é-me legítimo hoje nos interessa aqui. São de Voltaire estas
centrar a análise no lado emergente e emanci- palavras admiráveis sobre Locke:
patório da competição paradigmática, isto é, na
construção paradigmática do tipo de subjecti- Depois de tantos e tão variados pensadores terem
formado o que poderíamos chamar o romance
vidade capaz de explorar, e de querer explorar,
da alma, surge um sábio que modestamente nos
as possibilidades emancipatórias da transição
apresentou a história dela. Locke revelou a ra-
paradigmática. Tal é a subjectividade emergen- zão humana ao homem, tal como um anatomista
te: por um lado, tem de se conhecer a si mesma competente explica as origens e a estrutura do
e ao mundo através do conhecimento-emanci- corpo humano (Voltaire, 1950: 177).
pação, recorrendo a uma retórica dialógica e a
uma lógica emancipatória; por outro lado, tem O motivo deste entusiasmo foi o facto de
de ser capaz de conceber e desejar alternativas Locke ter aberto uma nova perspectiva segun-
sociais assentes na transformação das relações
de poder em relações de autoridade partilha-
da e na transformação das ordens jurídicas 18 Ver também Lima (1988).
Não disparem sobre o utopista 91

do a qual a investigação da função da expe- pondência instável entre dois extremos: um


riência devia preceder qualquer determinação conhecimento que se posicionava nos alvores
do seu objecto, e o conhecimento exacto do de um futuro mais promissor que todos os fu-
carácter específico do entendimento humano turos passados só podia ser desejado por uma
não poderia ser atingido a não ser que se tra- subjectividade que representasse o culminar
çasse todo o percurso do seu desenvolvimen- de uma longa evolução ascendente.
to desde os primeiros elementos até às formas Hoje, tal como Locke, também nós devemos
mais elevadas. Para Locke, a origem do pro- suscitar a questão da subjectividade de forma
blema crítico era genética, sendo que a histó- radical, embora de uma forma radicalmente
ria da mente humana fornecia uma explicação diferente, já que duas diferenças marcantes
adequada do mesmo19. nos separam de Locke. Por um lado, estamos
Escrevendo num momento crucial da cons- a entrar numa fase de transição paradigmática
tituição do paradigma da modernidade, Locke em que o paradigma emergente é ainda pouco
fez perguntas e deu respostas que hoje são nítido e pouco motivador, visto que tem de en-
para nós de pouca utilidade, agora que chegá- frentar a oposição de um amplo leque de forças
mos à última fase do paradigma que ele ajudou sociais, políticas e culturais interessadas em
a consolidar. O que poderá ter utilidade para reproduzir o paradigma dominante muito para
nós, porém, é a arqueologia das suas pergun- além dos limites da sua própria criatividade re-
tas e das suas respostas. Locke foi capaz de generadora. Por outro lado, quanto ao futuro,
exigir radicalmente um tipo de subjectivida- sabemos muito melhor o que não queremos do
de capaz de criar e de querer criar um novo que o que queremos. Os mecanismos modernos
conhecimento científico cujas possibilidades de confiança, centrados no Estado, que, como
infinitas assomavam no horizonte, um tipo de hoje sabemos, significavam confiança no futu-
subjectividade que, de facto, desejava também ro, começaram a desvanecerse, deixando-nos
reconhecer-se nas suas próprias criações. Viu face a face com um futuro de que desconfia-
a resposta para a sua questão numa corres- mos. Por isso a nossa Sorge é hoje uma dupla
Sorge: o objecto dela é o futuro que desejamos
e, sobretudo, o futuro que não desejamos. As-
19 Ver também Cassirer (1960: 93133). sim, o paradigma emergente manifestase como
92 Boaventura de Sousa Santos

a “inquietude” de que falava Condillac, essa in- uma questão de vida ou de morte. Para a sub-
quietação que ele considerava ser o ponto de jectividade paradigmática, o passado é uma
partida, não apenas dos nossos desejos e an- metonímia de tudo o que fomos e não fomos.
seios, mas também do nosso pensar e julgar, do E o passado que nunca foi exige uma reflexão
nosso querer e agir (Condillac, 1984: 288). especial sobre as condições que o impediram
Neste contexto, o problema central é o de de alguma vez ser. Quanto mais suprimido,
como imaginar uma subjectividade suficien- mais presente. A subjectividade emergente é
temente apta para compreender e querer a tão radicalmente contemporânea de si própria
transição paradigmática, para transformar que, tratando o passado como se ele fosse pre-
a “inquietude” em energia emancipatória, sente, chega a parecer anacrónica. Podemos
ou seja, uma subjectividade que queira em- falar de anacronismo virtual: o passado que é
penharse nas competições paradigmáticas, transformado em presente é o passado que não
quer ao nível epistemológico, quer ao nível foi autorizado a existir. Contudo, o passado é
societal, que hão de conferir uma credibili- tornado presente, não como uma solução já
dade crescente ao novo paradigma, por mui- pronta, conforme acontece na subjectividade
to provisória e reversível que ela seja. Ao reaccionária, mas como um problema criativo
contrário de Locke, perguntamos por uma susceptível de abrir novas possibilidades. O im-
subjectividade que, em vez de culminar uma perativo é, pois, o de desfamiliarizar a tradição
evolução, tem a sua génese no futuro. Ela é, canónica sem ver nisso um fim em si mesmo,
pois, intrinsicamente problemática. A sua como se essa desfamiliarização fosse a única
autoreflexividade deve ser exercida ex ante, familiaridade possível ou legítima. Por outras
por assim dizer. Deve ser autoreflexiva parti- palavras, a subjectividade paradigmática não
cularmente a respeito daquilo que ainda não pode cair nos extremos de Nietzsche quando,
é, o que implica seguir muito de perto as con- na Genealogia da Moral, afirma: “Só o que não
sequências dos seus actos. Tal é a prudência tem história pode ser definido” (1973: 453). Só
subjacente ao novo conhecimento. através da arqueologia virtual poderá a subjec-
A subjectividade da transição paradigmáti- tividade da transição paradigmática empenhar-
ca é aquela para quem o futuro é uma questão -se numa crítica radical da política do possível
pessoal. De facto, num sentido muito literal, sem cair numa política impossível.
Não disparem sobre o utopista 93

A construção de uma subjectividade indivi- que entendo por viver na fronteira20. Utilizo os
dual e colectiva, suficientemente apta para en- seus conhecimentos à maneira da vida na fron-
frentar as futuras competições paradigmáticas teira, ou seja, de forma muito selectiva e instru-
e disposta a explorar as possibilidades emanci- mental. A exactidão ou inexactidão histórica
patórias por elas abertas, deve ser guiada, em das suas descrições concretas não é relevante
meu entender, por três grandes topoi: a frontei- para o meu argumento. Interessame apenas
ra, o barroco e o Sul. Analisarei, a seguir, cada construir o tipo-ideal da sociabilidade de fron-
um deles separadamente. teira. Passarei agora a analisar, com algum de-
talhe, cada uma das características da fronteira.
A fronteira O Uso Selectivo e Instrumental das Tradi-
ções — Viver na fronteira é viver em suspensão,
A subjectividade emergente compraz-se em
num espaço vazio, num tempo entre tempos. A
viver na fronteira. Num período de transição
novidade da situação subverte todos os planos
e de competição paradigmáticas, a fronteira
e previsões; induz à criação e ao oportunismo,
surge como uma forma privilegiada de sociabi-
como quando o desespero nos leva a recorrer
lidade. Quanto mais à vontade se sentir na fron-
ansiosamente a tudo o que nos pode salvar. A
teira, melhor a subjectividade poderá explorar
tradição deve, portanto, ser imaginada para se
o potencial emancipatório desta. De entre as
converter naquilo de que precisamos, ainda
principais características da vida na fronteira
que a definição daquilo de que precisamos seja,
que são pertinentes para a tese que aqui defen-
em parte, determinada por aquilo que temos à
do, distingo as seguintes: uso muito selectivo e
mão. Cronon, Miles e Gitlin, na sua recente re-
instrumental das tradições trazidas para a fron-
avaliação crítica das análises críticas de Turner
teira por pioneiros e emigrantes; invenção de
sobre a fronteira, sustentam que a colonização
novas formas de sociabilidade; hierarquias fra-
do oeste norte-americano foi semelhante a ou-
cas; pluralidade de poderes e de ordens jurídi-
tras formas de colonização geradas pela expan-
cas; fluidez das relações sociais; promiscuidade
são europeia. Como sucedeu noutras partes do
entre estranhos e íntimos; misturas de heranças
e invenções. Recorro aos historiadores da vida
e da sociabilidade fronteiriça para clarificar o 20 Inspireime sobretudo em Cronon, Miles e Gitlin
(1992), para o desenvolvimento do topos da fronteira.
94 Boaventura de Sousa Santos

mundo, os euro-americanos, quando chegavam uma inesperada sensação de poder (Cronon, Mi-
à fronteira, escolhiam do seu passado aquilo les e Gitlin, 1992: 910).
que desejavam reter e o que desejavam esque-
cer ou modificar, quer se tratasse do estilo das A Invenção de novas formas de sociabilida-
casas, da agricultura ou das formas de convi- de — Viver na fronteira significa ter de inventar
vialidade e de religião: tudo, ou quase tudo, incluindo o próprio acto
de inventar. Viver na fronteira significa conver-
Contar a história do Oeste sem procurar estes la- ter o mundo numa questão pessoal, assumir
ços com o Velho Mundo é esquecer uma verdade uma espécie de responsabilidade pessoal que
simples, mas poderosa: as ligações são impor- cria uma transparência total entre os actos e
tantes. Delas provém o grande dilema com que as suas consequências. Na fronteira, vivese da
se deparam todas as comunidades de fronteira: sensação de estar a participar na criação de
reproduzir os modos de vida do velho mundo um novo mundo. As reservas de experiência
ou substituílos por outros novos. As áreas onde
e de memória que cada pessoa ou grupo so-
os euro-americanos só recentemente tinham en-
trado possuíam uma fluidez peculiar que carac-
cial leva consigo para a situação da fronteira
terizava as comunidades de fronteira em todo o transformamse profundamente quando aplica-
mundo. Os recursos, a riqueza e o poder, embora das num contexto completamente novo, mas
dificilmente ao alcance de todos, eram, no en- a liberdade quase incondicional com que são
tanto, mais fáceis de obter aí do que nas socie- transformadas pela primeira vez condiciona a
dades mais rigidamente hierarquizadas que os liberdade de futuras transformações. Ao faze-
invasores tinham deixado para trás. Quando os rem escolhas sobre o tipo de comunidade em
emigrantes criavam lares em áreas de fronteira, que pretendem viver, os emigrantes estão, as-
tentavam agarrar-se ao mundo familiar que re- sim, a reduzir o âmbito da liberdade de escolha
cordavam do passado, mas também procuravam que será posteriormente possível: “O acto de
mudá-lo e melhorá-lo. O seu esforço por escolher
exercer a liberdade de transformar os velhos
entre o conhecido e o desconhecido, à medida
que moldavam os novos povoados, foi um dos
modos de vida estabeleceu as fundações para
traços mais comuns da vida na fronteira, e a ex- a criação de novos velhos modos de vida que
periência de ser capaz de escolher — para quem acabariam por limitar a própria liberdade que
tinha essa oportunidade — pôde trazer consigo os criou” (Cronon, Miles e Gitlin, 1992: 10).
Não disparem sobre o utopista 95

Hierarquias fracas — A construção das iden- lealdade por diferentes fontes de poder e apli-
tidades de fronteira é sempre lenta, precária e di- cam a sua energia em diferentes formas de luta
fícil; depende de recursos muito escassos, dada contra os poderes. Promovem assim a existên-
a grande distância entre a fronteira e o centro, cia de múltiplas fontes de autoridade:
seja o centro do poder, do direito ou do conheci-
mento. Volto aqui a citar Cronon, Miles e Gitlin: As fronteiras norte-americanas eram tradicio-
nalmente áreas onde a autoridade do Estado era
As áreas de fronteira eram locais remotos, muito fraca, onde o direito era o resultado de práticas
distantes dos centros de riqueza e de poder. Isto costumeiras ou de uma invenção expedita. As po-
sugere uma maneira importante de definir a co- líticas índias eram, geralmente, menos burocráti-
munidade de fronteira: periferias cuja dependên- cas e institucionalizadas do que as dos europeus,
cia da metrópole imperialista ajudou a definir a de modo que os encontros dos invasores com os
sociedade local […] Por mais abertos que os seus nativos eram também encontros com novas for-
sistemas sociais pudessem parecer, os seus habi- mas de governação política (Cronon, Miles e Gi-
tantes nunca podiam atingir um estatuto idêntico tlin, 1992: 16).
ao das elites na metrópole.
Fluidez das relações sociais — A fronteira,
Contudo, pela mesma razão, a grande dis- enquanto espaço, está mal delimitada, física
tância em relação ao centro contribuiu, por sua e mentalmente, e não está cartografada de
vez, para minar a hierarquia: modo adequado. Por esse motivo, a inovação
e a instabilidade são, nela, as duas faces das
Viver na margem do império significava, geral- relações sociais. É claro que esse é também
mente, viver onde o poder do Estado central era um espaço provisório e temporário, onde as
fraco, onde a actividade económica estava pouco raízes se deslocam tão naturalmente como o
regulamentada e onde a inovação cultural encon- solo que as sustenta:
trava poucos obstáculos (Cronon, Miles e Gitlin,
1992: 10). Nas áreas de fronteira, povos de culturas diferen-
tes defrontavamse como nações politicamente
Pluralidade de poderes e de ordens jurídi- independentes, mas só durante algum tempo.
cas — Os povos da fronteira repartem a sua Sempre que os povos nativos constatavam que
96 Boaventura de Sousa Santos

a sua liberdade de acção estava efectivamente europeus não foram, de modo algum, os únicos
constrangida pelas leis de outro Estado, a sua responsáveis pela mistura de culturas. Os povos
independência de fronteira dava lugar à depen- que iam encontrando ao longo das suas viagens,
dência política (Cronon, Miles e Gitlin, 1992: 17). e aqueles entre quem acabaram por se fixar, fo-
ram também responsáveis por terem alterado os
Promiscuidade de estranhos e íntimos, de seus próprios mundos de maneira a acomodar
herança e invenção — Viver na fronteira sig- os novos vizinhos. […] Tal como os colonialistas
nifica viver fora da fortaleza, numa disponibi- colhiam informações sobre os “novos” territórios
da fronteira e os seus habitantes, também os ín-
lidade total para esperar por quem quer que
dios depressa se aperceberam das oportunidades
seja, incluindo Godot. Significa prestar atenção
e dos perigos que os invasores representavam.
a todos os que chegam e aos seus hábitos di- […] Veio por fim uma altura em que a coerção
ferentes, e reconhecer na diferença as oportu- euroamericana lhes reduziu drasticamente as op-
nidades para o enriquecimento mútuo. Essas ções, mas mesmo aí os povos índios encontraram
oportunidades facilitam novos relacionamen- formas de afirmar a sua autonomia e o direito de
tos, novas invenções de sociabilidade que, de- escolher o tipo de mundo que queriam habitar
vido ao seu valor paradigmático, se convertem (Cronon, Miles e Gitlin, 1992: 10-11)21.
instantaneamente em herança. Dela se alimen-
tam sucessivas identificações que, agrupadas A sociabilidade mental que constitui a sub-
por uma memória mais ou menos traiçoeira, jectividade emergente possui as principais
constituem o que designamos por identidade. características da sociabilidade de fronteira.
Mais uma vez me remeto à opinião de Cronon, Como já afirmei, não interessa à minha argu-
Miles e Gitlin: mentação saber se Cronon, Miles e Gitlin des-
creveram com exactidão o oeste americano,
Longe de apresentarem a marca indelével do nomeadamente no que respeita às relações
império, muitas comunidades de fronteira fo- entre euroamericanos e nativos americanos. O
mentaram uma verdadeira mescla, ou, pelo me-
nos, uma coexistência de tradições europeias e
nativas (e, posteriormente, também africanas 21 Tenho seriíssimas reservas em relação a esta con-
e asiáticas) onde nenhum dos lados gozava de cepção do “direito de escolha” dos índios. Pressinto
uma clara superioridade cultural. Os emigrantes nela a arrogância Yankee.
Não disparem sobre o utopista 97

que importa é captar a fenomenologia geral da assente em limites, bem como na constante
vida de fronteira, a fluidez dos seus processos transgressão dos limites. Na fronteira, todos
sociais, a criação constante de mapas mentais somos, por assim dizer, migrantes indocumen-
semelhantes aos portulanos medievais, e, aci- tados ou refugiados em busca de asilo. O po-
ma de tudo, a instabilidade, a transitoriedade e der que cada um tem, ou a que está submetido,
a precaridade da vida social na fronteira. tende a ser exercido no modo abertura-de-
Segundo os autores cujas ideias tenho vindo -novos-caminhos, mais do que no modo fixa-
a usar para ilustrar o meu raciocínio, a frontei- ção-de-fronteiras. Nas constelações de poder,
ra foi um momento social relativamente breve os diferentes tipos de poder competem entre
que desapareceu assim que o espaço da fron- si para serem activados num modo de alta-
teira se transformou em diferentes regiões e -tensão, o que torna as constelações instáveis,
territórios incorporados nos Estados Unidos: imprevisíveis e atreitas a explosões, ora destru-
“A extensão do poder estatal era a indicação tivas, ora criativas. O carácter imediato das re-
mais clara possível de uma invasão bem suce- lações sociais, a vertigem da ahistoricidade e a
dida e de uma fronteira em retracção” (Cronon, superficialidade das raízes tornam preciosos os
Miles e Gitlin, 1992: 17). A partir daí, as hierar- laços que é possível estabelecer na fronteira,
quias fortaleceram-se, as diferenças tornaram- preciosos justamente pela sua raridade, preca-
se nítidas, a violência organizada aumentou. “A ridade e utilidade vital.
passagem de fronteira a região”, escrevem os A criação de obrigações horizontais sobre-
citados autores, “foi a mudança de uma relati- põe-se à criação de obrigações verticais, o que
va novidade para uma relativa antiguidade, do significa que a subjectividade é participativa e
fluxo para a fixidez”. E concluem: “[…] Talvez o que geralmente permite que a sua participação
sinal mais eloquente dessa transição tenha sido seja orientada pelo princípio da comunidade.
a sensação, entre os habitantes de um lugar, de O topos da fronteira é, na verdade, o metato-
que já não estavam a inventar um mundo, mas pos subjacente à criação de um novo senso co-
a herdar um mundo” (1992: 23). mum político, um senso comum participativo
A sociabilidade da fronteira é também, em concebido como parte da tópica para a eman-
certo sentido, a fronteira da sociabilidade. Daí cipação. Na fronteira, o valor de uso da parti-
a sua grande complexidade e precaridade. Está cipação raramente se traduz em valor de tro-
98 Boaventura de Sousa Santos

ca. A participação não é um capital simbólico pela indescritível destruição da Segunda Guer-
que, com facilidade, aumente ou seja investido ra Mundial, Adorno observou, na sua Minima
fora do campo social em que é gerado. Se me moralia, que “faz parte da moralidade que uma
é permitido utilizar uma expressão da agricul- pessoa não se sinta em casa na sua própria
tura ecológica, diria que, na fronteira, a partici- casa” (1985: 39). Seguir Adorno, escreve Said, é
pação cresce organicamente. Daí que seja, ao ficar longe de “casa” a fim de poder olhála com
mesmo tempo, mais honesta no seu processo o distanciamento do exílio:
de criação e mais perecível no seu consumo.
As identificações que tornam possível a partici- Tomamos a casa e a língua por garantidas. Elas
pação comunitária raramente conseguem cris- tornam-se natureza e os seus pressupostos subja-
talizarse em identidades. Por outras palavras, centes degeneram em dogma e ortodoxia. O exi-
a fronteira vive simultaneamente a prática da lado sabe que, num mundo secular e contingente,
as casas são sempre provisórias. As fronteiras e
utopia e a utopia da prática.
as barreiras, que nos fecham na segurança do ter-
Disse atrás que, na fronteira, todos somos,
ritório familiar, podem também transformarse em
simbolicamente e em certa medida, migrantes prisões e são muitas vezes defendidas para além
indocumentados, deslocados ou refugiados em do razoável e do necessário. Os exilados atraves-
busca de asilo. No entanto, embora apresente sam as fronteiras e derrubam as barreiras do pen-
algumas semelhanças com o exílio, a frontei- samento e da experiência (Said, 1990: 365).
ra não é exílio. Comentando as relações entre
exílio e literatura, Said define exílio como “o A vida na fronteira partilha com a vida no exí-
perigoso território da não-pertença […], uma lio algumas características importantes: tende a
solidão experienciada fora do grupo: as priva- ser uma vida instável e perigosa, na qual nada
ções sentidas ao não se estar com os outros na ou quase nada é certo ou garantido; existe fora
habitação comum” (Said, 1990: 359). E acres- dos esquemas convencionais dominantes de
centa: “O pathos do exílio reside na perda de sociabilidade, tornandose, por isso, particular-
contacto com a solidez e o conforto da terra: mente vulnerável; reproduzse, sempre de forma
voltar a casa está fora de questão” (361). Ator- provisória, atravessando fronteiras e ultrapas-
mentado pelo exílio, e particularmente pelo sando limites. Em todo o caso, a fronteira não
exílio interior a que se considerava condenado é, de forma alguma, exílio. No que diz respeito
Não disparem sobre o utopista 99

à fronteira, a presença do centro não é tão forte Para uma caracterização adicional da sub-
que permita distinguir clara e indiscutivelmente jectividade de fronteira, devemos distinguir,
entre “nós” e “eles”, como é típico das situações com maior precisão, entre centro e periferia,
de exílio. Pelo contrário, a fronteira é promís- centro e margem. A precisão aqui é importan-
cua e abrangente, e tende a incluir os estranhos te, porque a transição paradigmática poderia
como membros. De facto, a fronteira prospera ser entendida como uma competição entre
na ausência de uma demarcação nítida entre dois centros: o dominante e o emergente.
ser e não ser membro, e é na base dessa mes- Na verdade, a situação é muito mais comple-
ma ambiguidade que ela se esmera por ser uma xa. O reconhecimento da existência de uma
casa para os que nela vivem: um lar confortável, transição paradigmática implica um distan-
embora talvez não muito duradouro. ciamento em relação ao centro, ou seja, em
Ao contrário do exílio, na fronteira a “casa relação ao paradigma dominante. Ainda que
comum” não é um lugar de onde se tenha sido não se transforme em margem, o paradigma
expulso ou do qual se viva afastado. É antes dominante perde eficácia enquanto centro,
a tarefa de um constante fazer e desfazer que o que não significa, porém, que o paradigma
constitui a vida na fronteira. Assim, a vida na emergente ascenda, pelo mesmo processo, à
fronteira obedece ao preceito de Adorno, mas condição de centro. Se fosse esse o caso, en-
complementa-o com outro, que deve ser segui- tão ele não seria, talvez, um paradigma verda-
do de modo igualmente fiel: a outra parte da deiramente alternativo.
moralidade é uma pessoa sentirse em casa na- O paradigma emergente manifestase sobre-
quilo que não é a sua casa própria. A privação tudo na proliferação das margens, na multipli-
abissal de comunidade na transição paradig- cação das escalas que as definem e na varieda-
mática é a força impulsionadora que encoraja de de cartografias que guiam os nossos passos.
a subjectividade de fronteira a viver do desejo Em lugar de uma competição entre centros, a
de comunidade e a aproveitar avidamente cada transição paradigmática é, poderíamos dizê-lo,
fragmento de comunidade que conseguir. A uma competição entre margens. O centro que
subjectividade de fronteira é conduzida mais é possível na transição paradigmática resulta
pelo anseio do falanstério de Fourier do que de acoplamentos ou de constelações de mar-
pelo anseio do exílio de Adorno. gens. A cumplicidade simbiótica entre a fron-
100 Boaventura de Sousa Santos

teira e a transição paradigmática reside nesta Havia leis que asseguravam esse regresso. Não
escassez de centros e na abundância de mar- regressar significava correr o risco de ser punido.
gens. Viver na fronteira é viver nas margens Vivendo como vivíamos — na margem —, desen-
sem viver uma vida marginal. volvemos uma maneira particular de ver a reali-
dade. Olhávamos quer de fora para dentro, quer
Reflectindo sobre a sua experiência de afro-
de dentro para fora. Focávamos a nossa atenção
americana, residente numa pequena cidade de
no centro, bem como na margem. Comprendía-
Kentucky, bell hooks dános informações pre- mos ambos. Este modo de olhar recordavanos a
ciosas sobre a fenomenologia da vida na mar- existência de todo um universo, um corpo princi-
gem. O tipo de vida descrito por hooks, longe pal feito de margens e de centro. A nossa sobre-
de ser uma vida de fronteira, pois o centro não vivência dependia de uma constante consciência
se encontra aqui certamente num lugar remoto, pública da separação entre margem e centro e de
permite-nos, contudo, entender esse carácter um constante reconhecimento privado de sermos
capacitante, próprio da margem, que é tão cru- uma parte necessária e vital desse todo.
cial na vida da fronteira: Esta noção de totalidade, impressa nas nossas cons-
ciências pela estrutura das nossas vidas diárias,
Estar na margem é fazer parte de um todo, mas proporcionounos uma cosmovisão de oposição, um
fora do corpo principal. Para nós, americanos ne- modo de ver desconhecido da maioria dos nossos
gros vivendo numa pequena cidade do Kentucky, opressores, um modo que nos sustentou, que nos
a linha do caminho de ferro recordavanos todos ajudou na nossa luta para superar a pobreza e o de-
os dias a nossa marginalidade. Para lá da linha, sespero, que reforçou o sentido da nossa identidade
havia ruas pavimentadas, lojas onde não podía- e a nossa solidariedade (hooks, 1990: 341)22.
mos entrar, restaurantes onde não podíamos co-
mer e pessoas que não podíamos olhar directa-
mente na face. Para lá da linha, havia um mundo 22 Num sentido semelhante, Gilroy (1993) retirou de
onde podíamos trabalhar como criadas, como Du Bois o conceito de “dupla consciência” para expri-
porteiras, como prostitutas, desde que fosse mir a especificidade da moderna experiência cultural
numa função subordinada. Podíamos entrar nes- negra, a experiência de “estar simultaneamente dentro
se mundo, mas não podíamos lá viver. Tínhamos e fora do Ocidente”, o que conduz às “inevitáveis plu-
sempre de regressar à margem, de atravessar a ralidades envolvidas nos movimentos negros de África
linha e voltar às barracas ou às casas abandona- e do exílio”, em que as reivindicações de identidade
das nos limites da cidade. nacional são ponderadas em comparação com outras
variedades contrastantes de subjectividade (30).
Não disparem sobre o utopista 101

Ao deslocar o centro, a subjectividade de tras actividades ao longo do trajecto, como a


fronteira colocase em melhor posição para pesca ou o comércio. Quanto mais longe se es-
compreender a opressão que o centro repro- tiver e mais pequenos, porque vistos de longe,
duz e oculta através de estratégias hegemóni- forem os limites, maiores serão as oportunida-
cas. Sem dúvida que a margem é, muitas vezes, des de autonomia. Mas um passo a mais, que
um produto da marginalização operada pelo faça perder totalmente de vista esses limites,
centro, mas, paradoxalmente, ao enfraquecer pode transformar uma autonomia estimulante
o que o rodeia, o centro tornase, ele próprio, num caos destrutivo. A navegação de frontei-
mais fraco. Não menos do que hooks, também ra cabota entre dois limites: um de cada lado
não é minha intenção romantizar a margem. do barco. A trajectória raramente é guiada por
Trata-se tão-só de identificar nela a vontade de ambos ao mesmo tempo: se, num determinado
maximizar as oportunidades de liberdade e au- momento, um dos limites está mais próximo e
tonomia que se obtêm através de uma observa- serve de orientação, no momento seguinte é o
ção telescópica do centro e da sua consequente limite oposto que fica mais perto e que passa a
trivialização e descanonização. A subjectivida- princípio orientador.
de de fronteira floresce na base dessa vontade. Na transição paradigmática, a subjectivida-
O relativo acentrismo da vida de fronteira de de fronteira navega por cabotagem, guian-
resulta de uma constante definição e redefini- dose ora pelo paradigma dominante, ora pelo
ção dos limites: experienciar os limites sem os paradigma emergente. E se é verdade que o seu
sofrer. Embora os limites possam ser experien- objectivo último é aproximarse tanto quanto
ciados de muitas formas diferentes, duas delas possível do paradigma emergente, ela sabe que
parecem-me particularmente relevantes para a só ziguezagueando lá poderá chegar e que, mais
constituição da subjectividade de fronteira: a do que uma vez, será o paradigma dominante a
cabotagem e a hibridação. A cabotagem foi a continuar a guiála. Cabotando assim ao longo
forma de navegação dominante desde tempos da transição paradigmática, a subjectividade
imemoriais até à expansão europeia do sécu- de fronteira sabe que navega num vazio cujo
lo XV e ainda hoje é a forma usual de navega- significado é preenchido, pedaço a pedaço, pe-
ção de muitas populações costeiras em todo o los limites que ela vai vislumbrando, ora pró-
mundo. Implica navegar fora dos limites, mas ximos, ora longínquos. Avistados, desse modo,
em contacto físico com eles, e ir realizando ou- pela subjectividade de fronteira, os limites são,
102 Boaventura de Sousa Santos

eles mesmos, transformados de maneira sig- nasceu em Einsiedeln em 1493 e morreu em


nificativa, isto é, tal como a subjectividade de Salzburgo em 21 de setembro de 1541. O que
fronteira vive dos limites, os limites vivem da me parece notável em Paracelso é o facto de
subjectividade de fronteira. De facto, os limites ele ter reconhecido não uma, mas duas fontes
só existem na medida em que a subjectividade de autoridade — a Ecclesia e a Mater Natura
de fronteira se deixa guiar por eles. —, e ter podido cabotar com toda a seguran-
Na transição paradigmática, os paradigmas ça, ora guiado por uma, ora guiado por outra.
em competição perdem a fixidez sólida para Como não conseguia encontrar designações
se tornarem líquidos e navegáveis. Mais do adequadas para as tremendas descobertas que
que nunca, tornam-se o produto das acções fez, Paracelso foi um prolífico criador de neo-
individuais e colectivas que dependem deles. logismos. No entanto, para ele não havia con-
É este o grande privilégio dos limites e das flito entre, por um lado, a alquimia e a magia,
margens na transição paradigmática. Os cen- e por outro, a experiência da natureza. Jung,
tros ficam inteiramente dependentes do que também ele um hábil navegador costeiro, ob-
acontece nos limites exteriores da sua juris- servou uma vez que Paracelso não tinha escrú-
dição e, na verdade, tornamse eles próprios pulos em considerar que o conhecimento das
consideravelmente acêntricos. Esse acentris- doenças era pagão pelo facto de a sua origem
mo favorece a desierarquização e a horizonta- ser a natureza e não a revelação. A cabotagem
lização das práticas de conhecimento típicas está paradigmaticamente expressa numa con-
da transição paradigmática. fissão do próprio Paracelso: “Confesso que es-
Em períodos de transição paradigmática, crevo como um pagão e, no entanto, sou cris-
são muitos os exemplos de subjectividades de tão” (Jung, 1983: 113)23.
fronteira que navegam à vista. Foi o que acon- Outra forma de experienciar limites na tran-
teceu com Copérnico e Galileu, e também com sição paradigmática é a hibridação. Trata-se de
Montaigne e Paracelso. Umas breves palavras uma actuação sobre os próprios limites, quer
sobre Paracelso, um médico e mago do século os limites do paradigma dominante, quer os li-
XVI a quem ainda não me referi. De seu ver-
dadeiro nome Philippus Aureolus Theophras-
23 Ver o estudo de Jung (1983: 109 e ss.) sobre Para-
tus Bombastus von Hoehenheim, Paracelso celso enquanto fenómeno espiritual.
Não disparem sobre o utopista 103

mites do paradigma emergente, desestabilizan- existencial intensa. Na fronteira, essa experi-


do-os até ao ponto de poder ir para além deles ência, seja individual ou colectiva, é vivida de
sem ter de os superar. Consiste em atrair os um modo comunitário. Nem mesmo as grandes
limites para um campo argumentativo que ne- individualidades, como Paracelso ou Venturi,
nhum deles, em separado, possa definir exaus- experienciam os limites a não ser em relação
tivamente. Esta incompletude torna os limites a uma comunidade particular, real ou imagi-
vulneráveis à ideia dos seus próprios limites e nária (doentes, censores, clientes, público), e
abertos à possibilidade de interpenetração e no contexto dela. O que caracteriza a subjec-
combinação com outros limites. No campo da tividade de fronteira é conseguir combinar a
hibridação, quanto mais limites, menos limites. participação comunitária com a autoria, ul-
Na hibridação, contrariamente à cabota- trapassando assim a distinção entre sujeito e
gem, o percurso da subjectividade de fronteira objecto. Semelhante combinação é intrinseca-
orientase ao desorientar os limites, obrigan- mente problemática, pois vive dos êxitos difí-
doos a confrontaremse reciprocamente fora do ceis com que as identificações dinâmicas resis-
seu terreno próprio e, portanto, vulneráveis e tem à cristalização em identidades estáticas.
facilmente desfiguráveis. Na hibridação, os li- A cristalização, neste caso, implica o regresso
mites são transformados em retalhos avulsos da distinção entre sujeito e objecto, emergindo
de uma manta em que eles próprios já se não subreptícia e perversamente da distinção entre
reconhecem. Entre muitos exemplos de hibri- sujeito individual e colectivo. Na fronteira, esta
dação, escolho um cujo protagonista é uma combinação de comunidade e autoria, embora
notável subjectividade de fronteira, o arqui- sem dúvida problemática, é, apesar de tudo,
tecto americano Robert Venturi. Refirome ao possível, porque o outro elemento do princí-
“billdingboard”, o famoso projecto de Venturi pio estéticoexpressivo — a artefactualidade
— que nunca chegou a ser construído — desti- — também está presente. Construir um mundo
nado ao National Football Hall of Fame, parte novo, inventar novas formas de sociabilidade,
edifício (building ) e parte placard (billboard) atravessar terras-de-ninguém entre limites va-
para afixar cartazes (Merkel, 1987: 27). riáveis — tais são as experiências de artefactu-
Seja qual for a forma que possa assumir, a alidade mais fortes que podemos imaginar.
experiência dos limites é uma experiência
104 Boaventura de Sousa Santos

O Barroco transição paradigmática. Contudo, para descre-


A subjectividade da transição paradigmáti- ver este tipo de subjectividade e de sociabili-
ca é também uma subjectividade barroca. De- dade, recorro selectivamente aos três sentidos
vido aos vários contextos semânticos em que do conceito de barroco já mencionados. Quer
o termo barroco é utilizado no discurso con- como estilo artístico, quer como época históri-
temporâneo, devo precisar o sentido que aqui ca, quer ainda como ethos cultural, o barroco
lhe atribuo. Não uso o termo “barroco” para é, essencialmente, um fenómeno latino e me-
designar um estilo pósclássico na arte e na ar- diterrânico, uma forma excêntrica de moderni-
quitectura24, nem para identificar uma época dade, o Sul do Norte, por assim dizer27. A sua
histórica — o século XVII europeu25 —, nem excentricidade decorre, em grande parte, do
tãopouco para designar o ethos cultural que al- facto de ter ocorrido em países e em momen-
guns países latinoamericanos (México e Brasil) tos históricos em que o centro do poder estava
desenvolveram do século XVII em diante26. Tal enfraquecido e tentava esconder a sua fraqueza
como aconteceu com o conceito de fronteira, dramatizando a sociabilidade conformista.
utilizo o barroco enquanto metáfora cultural A relativa ausência de poder central confe-
para designar uma forma de subjectividade e re ao barroco um carácter aberto e inacabado
de sociabilidade, o tipo de subjectividade e de que permite a autonomia e a criatividade das
sociabilidade capaz de explorar e de querer margens e das periferias. Devido à sua excen-
explorar as potencialidades emancipatórias da tricidade e exagero, o próprio centro reprodu-
zse como se fosse margem. Trata-se uma ima-
ginação centrífuga, que confere centralidade
24 Ver, entre muitos outros, Wölfflin (1979); Manrique às margens e se torna mais forte à medida que
(1981); Tapié (1988). Para uma panorâmica mais vasta nos deslocamos das periferias internas do po-
da estética barroca, ver Buci-Glucksmann (1984); Ha-
therly et al. (1990); Roy e Tamen (1990).
25 Ver Maravall (1990); Roy e Tamen (1990); Sarduy 27 Curiosamente, segundo Tapié (1988, I: 19) a pala-
(1989); Mendes (1989). vra barroco tem origem no termo português utilizado
26 Ver Echeverria et al. (1991-1993); Pastor et al. para designar uma pérola imperfeita, por exemplo,
(1993); Barrios (1993); Coutinho (1968, 1990); Ribeiro nos Colóquios dos Simples e Drogas da Índia de Gar-
(1990); Kurnitzky e Echeverria (1993). cia da Orta.
Não disparem sobre o utopista 105

der europeu para as suas periferias externas na do Norte, é no Sul desse Sul que o barroco
América Latina. latinoamericano se desenvolve.
Tanto o Brasil como os outros países lati- Como época na história da Europa, o bar-
no-americanos foram colonizados por cen- roco é um período de crise e de transição.
tros fracos, respectivamente Portugal e Es- Refirome à crise económica, social e política,
panha. Portugal foi um centro hegemónico que é particularmente evidente no caso das
durante um breve período, entre os séculos potências que promoveram a primeira fase
XV e XVI, e a Espanha começou a declinar um da expansão europeia. No caso de Portugal, a
século mais tarde. A partir do século XVII, as crise chegou mesmo a implicar a perda da in-
colónias ficaram mais ou menos entregues a dependência, quando, por razões de sucessão
si próprias, uma marginalização que possibili- dinástica, Portugal foi anexado à Espanha em
tou uma criatividade cultural e social especí- 1580, para só reconquistar a independência em
fica, diversificadamente elaborada em múlti- 1640. A monarquia espanhola, sobretudo sob
plas combinações, ora altamente codificadas, o reinado de Filipe IV (16211665), atravessou
ora caóticas, ora eruditas, ora populares, ora uma grave crise financeira que, na realidade,
oficiais ora ilegais. Uma tal mestiçagem está era também uma crise política e cultural. Como
tão profundamente enraizada nas práticas so- diz Maravall, começa com uma certa consciên-
ciais desses países que acabou por ser con- cia de inquietação e desassossego, que “piora
siderada a base de um ethos cultural tipica- à medida que o tecido social vai ficando grave-
mente latinoamericano e que tem prevalecido mente afectado” (1990: 57)28. Por exemplo, os
desde o século XVII até hoje. Interesso-me valores e os comportamentos são postos em
por esta forma de barroco porque, enquan- causa, a estrutura de classes altera-se, o bandi-
to manifestação de um exemplo extremo da tismo aumenta, como aumentam, em geral, os
fraqueza do centro, constitui um campo privi- comportamentos desviantes e as revoltas e os
legiado para o desenvolvimento de uma ima- motins passam a ser ameaças permanentes. É,
ginação centrífuga, subversiva e blasfema. de facto, uma época de crise, mas é também
Por se formar nas margens mais extremas, o
barroco coadunase surpreendentemente bem
28 Ver também o notável ensaio de Fidelino Figueire-
com a fronteira. Se o barroco europeu é o Sul do sobre as duas Espanhas (1932).
106 Boaventura de Sousa Santos

uma época de transição para novos modos de dem e dos cânones. Enquanto subjectividade
sociabilidade, possibilitados pelo capitalismo de transição, depende, ao mesmo tempo, do
emergente e pelo novo paradigma científico, esgotamento dos cânones e do desejo deles. A
bem como para novos modos de dominação sua espacialidade privilegiada é o local, a sua
política, baseados não só na coerção, mas tam- temporalidade privilegiada, o imediato. A sua
bém na integração cultural e ideológica. experiência de vida implica, contudo, algum
A cultura barroca é, em grande medida, um desconforto, já que carece das certezas evi-
desses instrumentos de consolidação e legiti- dentes das leis universais — tal como o estilo
mação do poder. O que, apesar disso, me pare- barroco carecia do universalismo clássico do
ce inspirador na cultura barroca é o seu lado de Renascimento. Por ser incapaz de planear a
subversão e de excentricidade, a fraqueza dos sua própria repetição ad infinitum, a subjecti-
centros de poder que nela buscam legitimação, vidade barroca investe no local, no particular,
o espaço de criatividade e de imaginação que no momentâneo, no efémero e no transitório.
ela abre, a sociabilidade turbulenta que ela pro- Mas o local não é vivido de uma forma localis-
move num período que, por ser de transição, ta, ou seja, não é experienciado como ortoto-
tem alguma semelhança com o nosso próprio pia. O local aspira antes a inventar um outro
tempo. A configuração da sujectividade barro- lugar, uma heterotopia, se não mesmo uma
ca que aqui apresento é uma colagem de diver- utopia. Fruto de uma profunda sensação de
sos materiais históricos e culturais, alguns dos vazio e de desorientação, provocada pelo esgo-
quais não se podem considerar tecnicamente tamento dos cânones dominantes, o conforto
pertencentes ao período barroco, mas antes a que o local oferece não é o conforto do descan-
períodos que têm apenas algumas afinidades so, mas um sentido de direcção. Mais uma vez,
com ele, como o Romantismo. Proponho o podemos observar aqui um contraste com o
topos do barroco como um metatopos para a Renascimento, como Wölfflin nos ensinou: “Ao
construção de um novo senso comum estético, contrário do Renascimento, que procurava per-
o senso comum reencantado como parte inte- manência e repouso em tudo, o barroco teve,
grante da tópica para a emancipação. desde o início, um claro sentido de direcção”
A subjectividade do barroco vive conforta- (Wölfflin, 1979: 58). No que respeita à subjec-
velmente com a suspensão temporária da or- tividade barroca, o sentido de direcção desen-
Não disparem sobre o utopista 107

volve-se de dentro para fora e parte do que está deve ser dado com prudência. A surpresa, por
mais próximo para o mais longínquo, seja ele o seu lado, é realmente suspense: ela provém da
transcendente, o eterno, o inferno. suspensão que a interrupção produz. Suspen-
Por essa mesma razão, a subjectividade bar- dendo-se momentaneamente a si própria, a
roca é contemporânea de todos os elementos subjectividade barroca intensifica a vontade e
que a integram e, portanto, desdenhosa do desperta a paixão. Segundo Maravall, “a técni-
evolucionismo modernista. Longe de cair no ca barroca [consiste] em suspender a solução
imobilismo, a temporalidade horizontal da sub- de maneira a encorajá-la, após esse provisório
jectividade barroca é o seu modo próprio de e transitório momento de paragem, a ir mais
se ultrapassar, de viajar de um momento para longe e melhor com o auxílio dessas forças
o momento seguinte: cada momento é eterno, contidas e concentradas” (1990: 445).
enquanto dura, como diria o poeta Vinícius A interrupção provoca admiração e novida-
de Morais. Não sendo o gosto pelo provisório de, e impede o fechamento e o acabamento.
nada mais do que o gosto por uma sucessão de Daí o carácter inacabado e aberto da subjecti-
eternidades, as eternidades nunca duram tan- vidade e da sociabilidade barrocas, e daí tam-
to que não possam ser vividas intensamente. bém a sua disponibilidade para lutar por um
Assim, poderemos dizer que a temporalidade novo acabamento: o paradigma emergente
barroca é a temporalidade da interrupção. Sen- que, em todo o caso, só como aspiração pode
do ela própria o resultado de uma interrupção imaginar-se. O paradigma emergente é um
inter-paradigmática, a temporalidade barroca processo feito de continuidades e desconti-
interrompese a si própria frequentemente. nuidades. A capacidade de admiração, de sur-
A interrupção é importante em duas ins- presa e de novidade é a energia que promove
tâncias: permite a reflexividade e a surpresa. a luta por uma aspiração tanto mais convin-
A reflexividade é a autoreflexividade exigida cente quanto nunca pode ser completamente
pela falta de mapas (sem mapas que nos guiem, realizada. O objectivo do estilo barroco, diz
temos de caminhar com redobrado cuidado). Wölfflin, “não é representar um estado per-
Sem autoreflexividade, num vazio de cânones, feito, mas sugerir um processo inacabado e
é o próprio vazio que se torna canónico. O pa- um momento em direcção ao seu acabamen-
radigma emergente é uma vertigem, cada passo to” (1979: 67). Por se sentir confortavelmente
108 Boaventura de Sousa Santos

em casa na transição paradigmática, a sub- tética (das ästhetische Schein) nas suas cartas
jectividade barroca tira o máximo partido da sobre A Educação Estética do Ser Humano,
suspensão da ordem. No entanto, suspensão publicadas em 1795 (Schiller, 1983). Dado que
da ordem não significa mera suspensão dos ele representa (como a arte barroca, poderí-
cânones: implica também a suspensão das amos acrescentar) uma dimensão excêntrica
formas. A subjectividade barroca tem uma da modernidade, Schiller é bem compatível
relação muito especial com as formas. A ge- com a nova inteligibilidade a que a subjecti-
ometria da subjectividade barroca não é eu- vidade barroca aspira. A sua crítica radical
clideana: é fractal. A suspensão das formas da ciência moderna, e da especialização pro-
resulta das utilizações extremas que lhes são fissional e desumanização administrativa que
dadas: a extremosidad de que fala Maravall ela promove, é, de resto, muito semelhante à
(1990: 412). de Rousseau. Tal como Rousseau, Schiller não
A subjectividade barroca rejeita a distin- é movido por qualquer veleidade retrógrada,
ção entre aparência e realidade, sobre a qual mas por um desejo de reconstruir uma subjec-
assenta a ciência moderna, principalmente tividade completa (a totalidade da subjectivi-
porque essa distinção esconde uma hierar- dade) nas condições criadas pela modernida-
quização. Tendo em conta que, no paradigma de. Segundo Schiller, essa totalidade não pode
dominante, a aparência é o oposto da realida- ser atingida nem pelas forças da natureza, sob
de, a forma epistemológica dominante capaz a égide da ciência, nem pelas leis ou a moral
de reconhecer a realidade tem também poder que o Estado promulga, mas por uma terceira
para declarar como aparência tudo o que não entidade mediadora — a forma estética, o Es-
consegue ou não quer conhecer. Contra este tado estético:
autoritarismo, que tende a rotular como apa-
rência todas as práticas que não sejam fami- No meio do temível reino das forças e do reino
liares, a subjectividade barroca privilegia a sagrado das leis, o impulso estético para a forma
aparência enquanto medida transitória e com- está, imperceptivelmente, a trabalhar na constru-
pensatória. Neste aspecto, segue de perto a li- ção de um terceiro reino jubiloso do lúdico e da
aparência, onde o homem é solto dos grilhões das
ção de Friedrich Schiller, o poeta alemão que
circunstâncias e é libertado de tudo o que poderí-
tão eloquentemente nos fala da aparência es-
Não disparem sobre o utopista 109

amos chamar constrangimento, tanto no domínio de barroca é também uma subjectividade do


físico como no moral (Schiller, 1983: 215)29. Sul, a observação de Schiller é aqui particular-
mente importante para se compreender quão
Embora a subjectividade barroca descon- fundo deverá ir e em que direcção deverá ser
fie das totalidades, mesmo quando rebeldes e levada a escavação estética.
contrahegemónicas, a natureza utópica da pro- No que concerne à subjectividade barroca,
posta de Schiller é aliciante. O atractivo resi- as formas são, por excelência, o exercício da
de na sua tentativa de recuperar uma das mais liberdade. A grande importância do exercício
inacabadas representações da modernidade, a da liberdade justifica que as formas sejam tra-
representação estéticoexpressiva, de um modo tadas com uma seriedade extrema, embora o
simultaneamente utópico e pragmático. Segun- extremismo possa redundar na destruição das
do Schiller, o ästhetisches Schein só se tornará próprias formas. Segundo Wölfflin, a razão pela
universal quando a cultura impedir o seu abu- qual Miguel Ângelo é considerado, muito justa-
so. Por enquanto, afirma Schiller, “a maioria mente, um dos pais do barroco é “porque tra-
dos homens está demasiado cansada e exausta tou as formas com uma violência, uma terrível
com a luta pela vida para se lançar numa luta seriedade que só poderia encontrar expressão
nova e ainda mais dura contra o erro” (1983: na ausência de forma” (1979: 82). Foi a isso
51)30. Dado que, como veremos, a subjectivida- que os contemporâneos de Miguel Ângelo cha-
maram terribilità. Este extremismo, assente
numa vontade de grandeza e intenção de ma-
29 O Schein a que Schiller se refere, longe de ser
ravilhar, está bem expresso no dito de Bernini:
uma mera ilusão, constitui uma realidade mais elevada
(höhere Wirklichkeit) e, como tal, possui uma clara di- “Que ninguém me fale do que é pequeno” (Ta-
mensão utópica. Sobre o conceito de Schein em Schil- pié, 1988, II: 188)
ler, ver, por exemplo, Wilkinson (1955). O extremismo pode ser exercido de mui-
30 Começando pelo estudo de Schiller feito, em 1905, tas maneiras diferentes para fazer sobressair
por Franz Mehring — Schiller, ein Lebensbild für
deutsche Arbeiter —, as análises marxistas de Schiller
(Schiller como pequeno-burguês, como revolucionário Ver uma compilação dessas análises em Dahlke, 1959.
idealista) são sintomáticas do carácter subparadigmá- Para uma perspectiva crítica, ver Witte, 1955. Ver tam-
tico da crítica marxista da modernidade capitalista. bém Lukács, 1947.
110 Boaventura de Sousa Santos

a simplicidade, bem como a exuberância e a também as devora31. Essa voracidade assume


extravagância, conforme Maravall observou dois aspectos: o sfumato e a mestiçagem. Na
(1990: 426). O extremismo barroco é o dispo- pintura barroca, o sfumato é uma técnica que
sitivo que permite criar rupturas a partir de consiste em esbater os contornos e as cores
aparentes continuidades e manter o devir das entre os objectos, como, por exemplo, entre
formas em estado de permanente bifurcação as nuvens e as montanhas, ou entre o céu e
prigoginiana. Um dos exemplos mais eloquen- o mar. O sfumato permite à subjectividade
tes deste extremismo é o “Êxtase Místico de barroca criar o próximo e o familiar entre in-
Santa Teresa”. Nesta escultura de Bernini, a teligibilidades diferentes, tornando assim os
expressão de Teresa d’Ávila é de tal modo dra- diálogos interculturais possíveis e desejáveis.
matizada que a representação de uma Santa Por exemplo, só por recurso ao sfumato é
em transe místico se transmuta na represen- possível dar forma à dignidade da comunida-
tação de uma mulher gozando um orgasmo de humana, simultaneamente em termos de
fundo. A representação do sagrado desliza um conceito ocidental (direitos humanos), de
subrepticiamente para a representação do sa- um conceito hindu (dharma) e de um conceito
crílego. Esta mutação imprevista e imprevisí- islâmico (umma). Na transição paradigmática,
vel, ao mesmo tempo que retira o descanso às a coerência das construções monolíticas de-
formas, torna impensável a forma do descan- sintegrase, e os fragmentos que pairam livre-
so. Só o extremismo das formas permite que a mente mantêmse abertos a novas coerências
subjectividade barroca mantenha a turbulên- e a invenções de novas formas multiculturais.
cia e a excitação necessárias para continuar a O sfumato é como um íman que atrai as for-
luta pelas causas emancipatórias, num mundo mas fragmentárias para novas constelações e
onde a emancipação foi subjugada ou absorvi- direcções, apelando aos contornos mais vulne-
da pela regulação. Falar de extremismo é falar ráveis, inacabados e abertos que essas formas
de escavação arqueológica no magma regula- apresentam. O sfumato é, em suma, uma mili-
tório a fim de recuperar a chama emancipató- tância anti-fortaleza.
ria, por muito enfraquecida que esteja.
O mesmo extremismo que produz as formas, 31 Wölfflin (1979: 64) fala da ausência de forma.
Não disparem sobre o utopista 111

A mestiçagem, por sua vez, é uma maneira O extremismo com que as formas são vi-
de levar o sfumato ao extremo. Enquanto o vidas pela subjectividade barroca acentua a
sfumato opera através da desintegração das artefactualidade retórica das práticas, dos
formas e da recuperação dos fragmentos, a discursos e dos modos de inteligibilidade. O
mestiçagem opera através da criação de novas artifício (artificium) é a base de uma subjec-
formas de constelações de sentido que, à luz tividade suspensa entre fragmentos, ou seja,
dos seus fragmentos constitutivos, são ver- uma subjectividade em transição paradigmá-
dadeiramente irreconhecíveis e blasfemas. A tica. O artifício permite que a subjectividade
mestiçagem é uma das manifestações da hibri- barroca se reinvente a si própria sempre que
dação referida na secção anterior. Consiste na as sociabilidades a que conduz tendam a trans-
destruição da lógica que preside à formação de formarse em microortodoxias. Só o artifício
cada um dos seus fragmentos, e na construção nos permite imaginar a engenharia (um termo
de uma nova lógica. Este processo produtivo- curiosamente em voga desde o século XVII) da
destrutivo tende a reflectir as relações de poder emancipação, e só através dele podemos ava-
entre as formas culturais originais (ou seja, en- liar a consistência e a intensidade da vontade
tre os grupos sociais que as sustentam através emancipatória da subjectividade barroca. O ar-
de práticas sociais), e é por isso que a subjec- tifício é onde a subjectividade não se desenca-
tividade barroca favorece as mestiçagens em minha, mesmo quando se disfarça a si própria.
que as relações de poder são substituídas pela Através do artifício, a subjectividade barroca é,
autoridade partilhada (autoridade mestiça). A ao mesmo tempo, lúdica e subversiva, como a
América Latina tem sido um terreno particular- festa barroca tão bem o ilustra.
mente fértil para a mestiçagem, sendo por isso
um dos mais importantes locais de escavação
“Atlântico negro”, usado por Gilroy (1993) para expri-
para a construção da subjectividade barroca32. mir a mestiçagem característica da experiência cultural
negra, uma cultura que não é especificamente africa-
na, americana, caraíba ou britânica, mas tudo isto em
32 Ver, entre outros, Pastor et al. (1993); Leon (1993); conjunto. No espaço de língua portuguesa um dos mais
Alberro (1992). Coutinho (1990: 16) fala de “uma com- notáveis arautos da mestiçagem é o Manifesto Antro-
plexa mestiçagem barroca”. Ver, por fim, o conceito de pófago de Oswald de Andrade (1990 [1928]: 47-52).
112 Boaventura de Sousa Santos

A importância da festa na cultura barroca, são usados meios abundantes e dispendiosos, é


tanto na Europa como na América Latina, está empregue um esforço considerável, são realiza-
bem documentada (Maravall, 1990: 487)33. A dos amplos preparativos, é montada uma máqui-
festa converteu a cultura barroca no primeiro na complicada, tudo isso apenas para se obter
efeitos extremamente breves, seja na forma do
exemplo de cultura de massas da modernida-
prazer ou da surpresa (1990: 488)34.
de. O seu carácter ostentatório e celebratório
era utilizado pelos poderes político e eclesiá-
No entanto, a desproporção gera uma inten-
tico para dramatizar e espectacularizar a sua
sificação especial que, por sua vez, dá origem à
grandeza e para reforçar o seu controle sobre
vontade de movimento, à tolerância para com
as massas. É evidente que este uso manipula-
o caos e ao gosto pela turbulência, sem o que
dor da festa não tem qualquer interesse para
a luta pela transição paradigmática não pode
a subjectividade na transição paradigmática.
ter lugar.
O que importa é escavar a festa barroca para
A desproporção da festa é o reverso da ci-
redescobrir o seu potencial emancipatório, um
ência moderna. A ciência moderna depende da
potencial que reside na desproporção, no riso
crescente separação entre a acção e as suas
e na subversão.
consequências, o que equivale a uma crescente
A festa barroca é um exercício de despro-
discrepância entre a capacidade de agir e a ca-
porção: exige um investimento extremamente
pacidade de prever. Assim, a intensificação das
grande que, no entanto, é consumido num ins-
consequências tende a ficar relativamente des-
tante extremamente fugaz e num espaço extre-
ligada da intensificação da acção. Na festa bar-
mamente limitado. Como nos diz Maravall,
roca, pelo contrário, como a acção está muito

34 Sobre a festa barroca do Triunfo Eucarístico em


33 Sobre a festa barroca no México (Vera Cruz), ver Minas Gerais, diz Ávila: “a encenação impregnava-se de
Leon (1993); sobre a festa barroca no Brasil (Minas Ge- requinte, acrescido pela exuberância dos adornos de
rais), ver Ávila (1994). A relação entre a festa, e espe- ouro, prata, diamantes, pedraria, sedas, plumas, tanto
cialmente a festa barroca, com o pensamento utópico na indumentária dos figurantes quanto nas suas mon-
está ainda por explorar. Sobre a relação entre o fourie- tarias ou demais peças componentes do espectáculo”
rismo e a société festive, ver Desroche (1975). (1994: 55).
Não disparem sobre o utopista 113

próxima das suas consequências e como as nos modernos movimentos sociais anticapi-
consequências se desvanecem num instante, a talistas (partidos operários, sindicatos e até
intensificação das consequências é um produ- nos novos movimentos sociais), que baniram
to transparente da intensificação da acção. Daí o riso, o divertimento e a ludicidade com re-
que, ao contrário do que sucede com a ciência ceio de subverterem a seriedade da resistência.
moderna, a capacidade de agir e a capacidade Particularmente interessante é o caso dos sin-
de prever se mantenham em equilíbrio. dicatos, cujas actividades começaram por ter
A desproporção possibilita a admiração, a um cunho fortemente lúdico e festivo (a festa
surpresa, o artifício e a novidade35. Mas, acima operária), o qual foi sendo gradualmente sufo-
de tudo, permite a distância lúdica e o riso36. cado até o sindicalismo se tornar, por fim, mor-
Como o riso não é facilmente codificável, a talmente sério e profundamente antierótico.
modernidade capitalista declarou guerra à ale- A proscrição do riso, do divertimento e da
gria e o riso passou a ser considerado frívolo, ludicidade faz parte daquilo a que Max Weber
impróprio, excêntrico e até blasfemo. Passou chama a Entzäuberung, o desencantamento do
a ser apenas admitido nos contextos altamen- mundo moderno. Ora, como sabemos, um dos
te codificados da indústria do entretenimento. grandes pilares da tópica da emancipação é o
Este fenómeno pode igualmente observar-se senso comum encantado que não se dispensa da
carnavalização das práticas sociais emancipató-
rias e do erotismo do riso, do divertimento e da
35 Segundo Ávila, “depreende-se da coordenação das ludicidade. A carnavalização das práticas sociais
danças (de turcos e cristãos, de romeiros, de músicos),
emancipatórias tem uma importante dimensão
dos carros triunfais, das figuras alegóricas e das repre-
sentações mitológico-cristãs, a existência de uma direc- autoreflexiva: possibilita a descanonização e a
ção que sabia jogar com recursos e efeitos de ritmo e subversão dessas práticas. Uma prática descano-
contraste, inclusive elementos de surpresa” (1994: 54). nizadora (e assim deve ser a prática emancipa-
36 Leon (1993: 4) caracteriza a cultura popular de Vera tória na transição paradigmática) que não saiba
Cruz no século XVII como “o império do riso”. Na análi- como descanonizarse a si mesma, cai facilmente
se deste autor, sobressaem eloquentemente as ligações na ortodoxia. Do mesmo modo, uma actividade
locais-transnacionais da cultura popular deste porto
subversiva que não saiba como subverterse a si
negreiro plenamente integrado na economia mundial
do século XVII. mesma cai facilmente na rotina reguladora.
114 Boaventura de Sousa Santos

Por fim, a terceira característica da festa em gestos e atavios, provocando desse modo o
barroca: a subversão. Ao carnavalizar as práti- riso e a folia entre os espectadores39.
cas sociais, a festa barroca revela um potencial Esta inversão simétrica do princípio e do
subversivo que aumenta na medida em que a fim da procissão é uma metáfora cultural do
festa se distancia dos centros de poder, mas mundo às avessas — el mundo al revés — tí-
que está sempre presente, mesmo quando os pico da sociabilidade de Vera Cruz nessa épo-
promotores da festa são os próprios centros do ca: mulatas vestidas de rainhas, escravos com
poder. Não admira, portanto, que este carácter trajes de seda, prostitutas fingindo ser mulhe-
subversivo fosse mais visível nas colónias. Es- res honradas e mulheres honradas fingindo
crevendo sobre o carnaval nos anos 20, o gran- ser prostitutas, portugueses africanizados e
de intelectual peruano Mariátegui (1974: 127) espanhóis indianizados. Na festa, a subversão
afirmou que, apesar de ter sido apropriado pela está codificada, na medida em que transgride
burguesia, o carnaval era verdadeiramente re- a ordem conhecendo o lugar da ordem e não o
volucionário porque, ao transformar o burguês questionando radicalmente, mas o próprio có-
em guarda-roupa, constituía uma impiedosa pa- digo é subvertido pelos sfumatos entre a festa
ródia do poder e do passado37. Garcia de Leon e a sociabilidade diária. Nas periferias, a trans-
(1993) descreve a dimensão subversiva das gressão é quase uma necessidade. É transgres-
festas barrocas e das procissões religiosas do sora porque não sabe como ser ordem, ainda
porto mexicano de Vera Cruz no século XVII38. que saiba que a ordem existe. É por isso que a
Na frente seguiam os mais altos dignitários do subjectividade barroca privilegia as margens e
vicereinado com todas as insígnias — políticos, as periferias como campos para a reconstrução
clérigos e militares —, no fim da procissão se-
guia a populaça, imitando os seus superiores
39 No mesmo sentido, Ávila salienta a mistura de mo-
tivos religiosos e motivos pagãos: “Entre negros tocan-
37 Originalmente publicado no Mundial de 24 de feve- do charamelas, caixas de guerra, pífaros, trombetas,
reiro de 1925 e de 27 de fevereiro de 1928. aparecia, por exemplo, um exímio figurante alemão
38 As procissões eram, como Maravall sublinha devi- ‘rompendo com sonoras vozes de hum clarim o silêncio
damente, um instrumento privilegiado de massificação dos ares’ enquanto os fiéis piedosamente carregavam
da cultura barroca (1990: 507). estandartes ou imagens religiosos” (1994: 56).
Não disparem sobre o utopista 115

das energias emancipatórias. Mas, como vere- ses das pessoas e dos grupos começaram a con-
mos, esta preferência pelas margens e perife- vergir em torno das vantagens económicas, os
rias tem outras razões. interesses que antes haviam sido considerados
Todas estas características transformam a paixões tornaramse o oposto das paixões e até
sociabilidade gerada pela subjectividade bar- os domesticadores destas. A partir daí, afirma
roca numa sociabilidade subcodificada. De Hirschman, “esperouse ou assumiu-se que os
algum modo caótico, inspirado por uma ima- homens, na prossecução dos seus interesses,
ginação centrífuga, situado entre o desespero seriam firmes, decididos e metódicos, em con-
e a vertigem, este é um tipo de sociabilidade traste total com o comportamento estereotipa-
que celebra a revolta e revoluciona a celebra- do dos homens dominados e cegos pelas suas
ção. Uma tal sociabilidade não pode deixar de paixões” (1977: 54). O objectivo era, evidente-
ser emotiva e apaixonada, a característica que mente, criar uma personalidade humana “uni-
mais distingue a subjectividade barroca em re- dimensional”. E Hirschman conclui: “[…] Em
lação à hegemonia moderna. A racionalidade suma, supunhase que o capitalismo realizasse
moderna, sobretudo depois de Descartes, con- exactamente o que em breve seria denunciado
dena as emoções e as paixões por constituírem como a sua pior característica” (1977: 132).
obstáculos ao progresso do conhecimento e da As receitas cartesianas e capitalistas de pou-
verdade. A racionalidade cartesiana, escreve co servem para a reconstrução de uma perso-
Toulmin, pretende ser “intelectualmente per- nalidade humana com a capacidade e o desejo
feccionista, moralmente rigorosa e humana- que a transição paradigmática exige. O signi-
mente impiedosa” (1990: 199). ficado da luta pela transição paradigmática e
Pouco da vida humana e da prática social se das possibilidades emancipatórias que ela abre
ajusta a uma tal concepção de racionalidade, não pode ser deduzido nem do conhecimento
mas ela é, mesmo assim, bastante atraente para demonstrativo, nem de uma estimativa de in-
os que prezam a estabilidade e a hierarquia das teresses. Assim, a escavação efectuada pela
regras universais. Hirschman mostrou convin- subjectividade barroca neste domínio, mais do
centemente as afinidades electivas entre esta que em qualquer outro, deve concentrarse nas
forma de racionalidade e o capitalismo emer- tradições suprimidas ou excêntricas da moder-
gente (1977: 32). Na medida em que os interes- nidade, representações que ocorreram nas pe-
116 Boaventura de Sousa Santos

riferias físicas ou simbólicas onde o controle de realização, tanto a nível pessoal como colec-
das representações hegemónicas foi mais fraco tivo. Eis o que escreveu na Oitava Carta:
— as Vera Cruzes da modernidade —, ou nas
representações mais antigas e mais caóticas A razão realizou o que lhe cabe realizar quando
da modernidade, surgidas antes do fechamen- encontra e formula a lei; executá-la é obra da
to cartesiano. Por exemplo, a subjectividade vontade corajosa e do sentimento vivo. Se a ver-
barroca procura inspiração em Montaigne e na dade há-de atingir a vitória na luta com forças
antagónicas, terá ela própria de transformar-se
inteligibilidade concreta e erótica da sua vida.
primeiro em força e constituir um instinto como
No seu ensaio Sobre a Experiência, depois de
seu representante no mundo dos fenómenos;
declarar que detesta remédios que incomodem pois que os instintos são as únicas forças moto-
mais do que a doença, Montaigne prossegue: ras no mundo sensível. Se ela até agora provou
tão pouco a sua força vitoriosa, isso não está na
Ser vítima de uma cólica e sujeitarme a prescin- razão, que não foi capaz de a revelar, mas no co-
dir do prazer de comer ostras são dois males em ração, que se fechou a ela, no instinto, que não
vez de um. A doença apunhalanos de um lado e actuou em favor dela (1983: 49).
a dieta do outro. Já que corremos o risco de um
engano, mais vale arriscarmonos pelos caminhos E o grande poeta alemão conclui um pouco
do prazer. O mundo faz o contrário e só acha útil
mais adiante:
o que é penoso: a facilidade levanta suspeitas
(1958: 370).
Não basta assim que todo o esclarecimento da ra-
zão só mereça respeito na medida em que reflui
O exercício do gosto e do prazer é essencial no carácter; de certo modo, ele brota também do
para a subjectividade barroca, pois nele reside carácter, porque o caminho para a cabeça tem de
a paixão pela utopia. A incredibilidade das al- ser aberto através do coração. A exigência mais
ternativas é o reverso da indolência da vontade. premente da nossa época é a formação da capaci-
A este respeito, Schiller e Fourier fornecemnos dade de sentir, não só porque se transforma num
instrumentos retóricos inestimáveis. No final meio de tornar actuante um melhor conhecimen-
do século XVIII, o receio de Schiller era que o to da vida, mas também porque desperta para
ídolo da utilidade acabasse por matar a vontade uma melhoria desse conhecimento (1983: 53).
Não disparem sobre o utopista 117

O “impulso” de que fala Schiller é levado A transformação capitalista da modernidade


ao extremo por Fourier, quando identifica a ocorreu sob uma dupla dicotomia — NorteSul
atracção apaixonada (“l’attraction passion- e OcidenteOriente — que é também uma du-
née”) como o princípio fundador do “nouveau pla hierarquia: o Sul subordinado ao Norte, o
monde amoureux” (Fourier, 1967: 79 e 114). Oriente ao Ocidente. Devido ao modo como foi
Os fantásticos e complicados “cálculos geo- construído pelo orientalismo (Said, 1985; San-
métricos” de Fourier ao serviço da utopia são tos, 1999), o Oriente acabou por ficar ligado à
um brilhante exemplo da desproporção do ideia de subordinação sócio-cultural como sua
barroco. Na subjectividade barroca, a “atrac- conotação semântica dominante, enquanto o
ção apaixonada” adquire um novo sentido, o Sul tem sugerido predominantemente a ideia de
sentido de uma solidariedade que se entende subordinação sócio-económica. Mas, à medida
melhor à luz do terceiro aspecto deste tipo de que se foram transformando gradualmente em
subjectividade: o Sul. regiões periféricas do sistema mundial, tanto o
Oriente como o Sul passaram a ser vítimas tan-
O Sul to da dominação cultural como da dominação
económica. Assim, enquanto metáfora funda-
O Sul é o terceiro topos que proponho para
dora da subjectividade emergente, o Sul é aqui
a constituição da subjectividade da transição
concebido de modo a sugerir os dois tipos de
paradigmática. Vejo o Sul como o metatopos
dominação. Como símbolo de uma construção
que preside à constituição do novo senso co-
imperial, o Sul exprime todas as formas de su-
mum ético enquanto parte integrante da tópi-
bordinação a que o sistema capitalista mundial
ca para a emancipação. Tal como a fronteira
deu origem: expropriação, supressão, silencia-
e o barroco, o Sul também é aqui usado como
mento, diferenciação desigual, etc. O Sul está
uma metáfora cultural, isto é, como um lugar
espalhado, ainda que desigualmente distribuí-
privilegiado para a escavação arqueológica
do, pelo mundo inteiro, incluindo o Norte e o
da modernidade, necessária à reinvenção das
Ocidente. O conceito de “Terceiro Mundo inte-
energias emancipatórias e da subjectividade da
rior”, que designa as formas extremas de desi-
pósmodernidade. O Sul, tal como o Oriente, é
gualdade existentes nos países capitalistas do
um produto do império.
centro, designa também o Sul dentro do Norte.
118 Boaventura de Sousa Santos

O Sul significa a forma de sofrimento humano ças poderiam ser úteis às lutas pelo socialismo
causado pela modernidade capitalista. democrático nos países desenvolvidos, Haber-
A subjectividade emergente é uma subjecti- mas respondeu: “Estou tentado a responder que
vidade do Sul e floresce no Sul. Onde quer que não, em ambos os casos. Tenho consciência do
se constitua, constituise sempre como subjec- facto de que esta é uma visão limitada e euro-
tividade do Sul. Contudo, devido às assimetrias cêntrica. Preferia não ter de responder” (1985:
do sistema mundial, a constituição da subjecti- 104). O que esta resposta significa é que a racio-
vidade do Sul varia conforme as regiões do sis- nalidade comunicativa de Habermas, apesar da
tema mundial em que surge. Assim, nos países sua pretensa universalidade, começa logo por
do centro, a subjectividade do Sul constituise, excluir da participação no discurso cerca de
acima de tudo, através da desfamiliarização re- quatro quintos da população mundial. Ora, essa
lativamente ao Norte imperial. Este processo exclusão é declarada em nome de critérios de
de desfamiliarização é muito difícil, porque, inclusão/exclusão cuja legitimidade reside na
sendo uma constituição original e não tendo, universalidade que lhes é atribuída. Daí que a
portanto, outra memória de si mesmo que não declaração de exclusão possa ser feita simulta-
seja imperial, o Norte é experienciado simulta- neamente com a máxima honestidade (“Tenho
neamente como único e como universal. consciência do facto de que esta é uma visão li-
Ilustro esta dificuldade com o exemplo de mitada e eurocêntrica”) e com a máxima ceguei-
Jürgen Habermas. A sua teoria da acção comu- ra quanto à sua insustentabilidade (ou talvez a
nicativa como novo modelo universal de racio- cegueira não seja afinal extrema, se considerar-
nalidade discursiva é bem conhecida. Haber- mos a saída estratégica que é adoptada: “Prefe-
mas entende que essa teoria constitui um telos ria não ter de responder”). Portanto, vemos que
de desenvolvimento para toda a humanidade, o universalismo de Habermas acaba por ser um
na base do qual é possível rejeitar o relativis- universalismo imperial, controlando plenamen-
mo e o eclecticismo. No entanto, interrogado te a decisão sobre as suas próprias limitações,
sobre se a sua teoria, nomeadamente a sua teo- impondo-se, assim, de forma ilimitada, quer
ria crítica do capitalismo avançado, poderia ter àquilo que inclui, quer àquilo que exclui.
alguma utilidade para as forças socialistas do Nos países centrais, a desfamiliarização re-
Terceiro Mundo e se, por outro lado, essas for- lativamente ao Norte imperial implica todo
Não disparem sobre o utopista 119

um processo de desaprendizagem das ciências quer no agressor, o que significa que deixar de
sociais que constituíram o Sul como “o outro” ser o agressor é colocar-se do lado da vítima
(principalmente a antropologia e o orientalis- (aprender a ir para o Sul). Finalmente, é pre-
mo), bem como das restantes ciências sociais ciso pôr fim à relação imperial destruindo to-
que constituíram o Norte como “nós”. Dada a das as suas ligações, simultaneamente a nível
natureza originária desta distinção imperial mundial e a nível pessoal, o que significa dei-
feita pelas ciências sociais modernas entre xarmos de estar do lado da vítima para nos tor-
“nós” e “eles”, não é possível destruíla nos seus narmos na própria vítima em luta contra a sua
próprios termos, ou mesmo nos termos da sua vitimização (aprender a partir do Sul e com o
crítica, sem correr o risco de a reproduzir sob Sul). A desfamiliarização do Norte imperial é,
outras formas. Como não há memória de uma portanto, uma epistemologia complexa, feita
tradição nãoimperial representável em termos de sucessivos actos de desaprendizagem nos
modernos, não é possível invocála sem cair no termos do conhecimento-regulação (da ordem
reaccionarismo. De facto, a forma mais comum ao caos), e de reaprendizagem nos termos do
de reaccionarismo é criticar o império fora da conhecimento-emancipação (do colonialismo
relação imperial, como se o império fôssemos à solidariedade).
só “nós” e não “nós e eles”. Não é, pois, de ad- Se Habermas é um bom exemplo do fra-
mirar que, como Slater sublinhou, o Terceiro casso da construção, no Norte do sistema
Mundo esteja, em grande medida, ausente do mundial, de uma subjectividade do Sul, Noam
pensamento pósmoderno dominante, a come- Chomsky é um bom exemplo de como tal cons-
çar por Foucault (Slater, 1992). trução é possível, apesar das dificuldades. Com
Devido à sua dificuldade, a crítica da rela- Chomsky, damos os dois primeiros passos: não
ção imperial deve proceder por fases. Em pri- só aprendemos que o Sul existe, mas também
meiro lugar, é preciso compreendê-la como aprendemos a ir para o Sul. Só a nós cabe dar o
imperial, o que, nos países centrais, significa passo seguinte e aprender, de facto, a partir do
reconhecer que se é o agressor (aprender que Sul e com o Sul. Sendo indiscutivelmente um
existe um Sul). Depois, é preciso identificá- dos mais brilhantes críticos radicais do Norte
-la como profundamente injusta, e como ten- imperial, Chomsky é o que mais se aproxima,
do um efeito desumanizante, quer na vítima, nos países centrais, de representar a subjecti-
120 Boaventura de Sousa Santos

vidade do Sul. Desde que se tornou, nos anos a causa do silêncio ou do descrédito a que fo-
sessenta, um dos porta-vozes mais eloquentes ram votados nos círculos profissionais. Quan-
da oposição à guerra do Vietname, Chomsky do muito, esses textos apenas foram nomeados
nunca deixou de ser um dos mais coerentes para serem duramente criticados. “Os escritos
activistas antiimperialistas da segunda metade políticos de Chomsky”, observa Wolin,
do século. O seu activismo é acompanhado por
um grande número de publicações que denun- são curiosamente ateóricos, o que é surpreenden-
ciam vigorosamente as políticas imperiais dos te num autor conhecido pelos seus contributos
Estados Unidos e a cumplicidade dos intelectu- para a teoria da linguística. O seu pressuposto
ais e da comunicação social40. aparente é que a política não é um tema teórico.
[…] Ao ler Chomsky, ficase com a impressão de
No intuito de desmantelar o imperialismo,
que, se não fosse urgentemente necessário des-
Chomsky desenvolve uma crítica radical ao
mascarar as mentiras, a imoralidade e os abusos
papel desempenhado pelas ciências sociais na de poder, a política não exerceria um apelo sério
“naturalização” da relação imperial. Rejeitando sobre a sua mente teórica (19811994: 103).
o conhecimento-regulação construído pelas
ciências sociais modernas, os textos políticos Eu, pelo contrário, diria que é precisamente
de Chomsky assumem um carácter claramen- do carácter ateórico dos escritos políticos de
te ateórico que é tanto mais surpreendente Chomsky que a subjectividade do Sul retira
quanto estamos perante um dos teóricos da uma lição fundamental: a de que a regulação
linguística mais conhecidos mundialmente. Na social não pode ser superada se o conheci-
verdade, há quem considere a sua teoria da gra- mento-regulação não o for igualmente. Sobre
mática gerativa transformacional como uma o domínio profissional das ciências sociais,
revolução tão importante na linguística quanto Chomsky diz o seguinte:
a teoria de Einstein o foi na física. A natureza
ateórica dos seus escritos políticos é, em parte, A meu ver, a estrutura corporativa profissional
das ciências sociais tem servido, muitas vezes,
como um excelente instrumento para as proteger
40 Entre outros textos políticos de Chomsky, ver do discernimento e da compreensão, para excluir
1969, 1970, 1975, 1982, 1983, 1985, 1987, 1989. Chomsky
aqueles que levantem questões inaceitáveis, para
e Herman (1979, 1988), Chomsky e Zinn (1972).
Não disparem sobre o utopista 121

restringir a investigação — não pela força, mas específica, Chomsky prossegue o argumento,
por toda a espécie de meios mais subtis — a pro- afirmando que essa destreza intelectual e essa
blemas que não constituam uma ameaça. Dêem capacidade de compreensão podiam ser usadas
uma olhadela para qualquer sociedade e, assim o em áreas realmente importantes para a vida
creio, descobrirão que, onde haja uma corpora-
humana em sociedade. Sublinha mesmo que,
ção mais ou menos profissionalizada de pessoas
sob outros sistemas de governo que envolves-
que analisam os processos sociais, haverá cer-
tos tópicos que elas terão grande relutância em sem a participação popular em importantes
investigar. Haverá tabus surpreendentes naquilo áreas de decisão, as capacidades cognitivas dos
que elas estudam. Em particular, uma das coisas cidadãos comuns poderiam, sem dúvida, ser
que é muito improvável que estudem é a forma utilizadas de forma relevante. Regressando ao
como o poder é efectivamente exercido na sua seu metaexemplo — a guerra do Vietname —,
própria sociedade, ou a própria relação que elas Chomsky escreve:
têm com esse poder. São tópicos que não serão
entendidos e que não serão estudados (1987: 30). Quando falo, por exemplo, de senso comum car-
tesiano, o que quero dizer é que não são precisos
A conclusão é que as ciências sociais mo- conhecimentos muito complexos ou especializa-
dernas são de muito pouca utilidade para a dos para se perceber que os Estados Unidos esta-
construção do conhecimento-emancipação. vam a invadir o Vietname. E, de facto, desmontar
Chomsky propõe, portanto, a criação de um o sistema de ilusões e de logros que funciona para
novo senso comum a que chama “senso comum evitar que se compreenda a realidade contempo-
rânea não é uma tarefa que exija uma capacidade
cartesiano”. A ideia de Chomsky é que as pes-
ou um entendimento extraordinários. Exige o tipo
soas comuns têm uma enorme quantidade de de cepticismo normal e de disponibilidade para
conhecimentos em muitas áreas distintas. O aplicar as capacidades analíticas que quase todas
seu exemplo particular são as conversas e as as pessoas têm e que podem exercer (1987: 35).
discussões sobre desporto na nossa socieda-
de. Depois de observar que as pessoas comuns Na perspectiva da subjectividade do Sul,
aplicam a sua inteligência e as suas capacida- a proposta de desteorização avançada por
des analíticas para acumularem um conside- Chomsky é um contributo importante para a
rável conjunto de conhecimentos nesta área criação de uma tópica de emancipação, mas
122 Boaventura de Sousa Santos

apresenta algumas limitações. Em primeiro emancipatório. Se o não fizermos, corremos o


lugar, ao admitir a separação total entre a sua risco do pirronismo, isto é, submeter o conhe-
actividade académica e a sua actividade políti- cimento-regulação a uma crítica tão radical que
ca, Chomsky aceita acriticamente uma das di- acabemos por anular a vontade de construir o
cotomias básicas do paradigma da ciência mo- conhecimento-emancipação. Com excepção
derna: a dicotomia entre ciência e política. A do anarquismo, Chomsky dá pouca atenção às
crítica radical de Chomsky às ciências sociais tradições excêntricas e periféricas suprimidas
modernas não reconhece o facto de que elas pela modernidade ocidental, e nenhuma aten-
participam num paradigma epistemológico ção ao conhecimento produzido no Sul a par-
mais vasto que inclui toda a ciência moderna e, tir de uma perspectiva nãoimperial. Por outras
por conseguinte, também a linguística. Assim, palavras, com Chomsky não aprendemos como
não consegue ver que a dicotomia entre ciência aprender a partir do Sul e com o Sul.
e política não é uma questão académica, mas Para se aprender a partir do Sul, devemos,
política, e, por isso, constitutiva da política do antes de mais, deixar falar o Sul, pois o que me-
Norte imperial41. Além disso, Chomsky parece lhor identifica o Sul é o facto de ter sido silen-
não ter plena consciência da necessidade de ciado. Como o epistemicídio perpetrado pelo
uma dupla ruptura epistemológica, ou seja, a Norte foi quase sempre acompanhado pelo
necessidade de explorar até ao fim as contra- linguicídio, o Sul foi duplamente excluído do
dições internas da ciência moderna, tendo em discurso: porque se supunha que ele não tinha
mente a construção de um novo senso comum nada a dizer e nada (nenhuma língua) com que
o dissesse42. Perante as assimetrias do siste-
ma mundial, a construção da subjectividade
41 A aceitação acrítica, por parte de Chomsky, da dis-
tinção moderna entre ciência e política explica algumas
das eventuais contradições entre o seu activismo po-
lítico antiimperialista e a sua política científica e pro- 42 Sobre o epistemicídio, ver Nencel e Pels (1991), e
fissional. Uma posição progressista, no primeiro caso, sobre o linguicídio, ver Phillipson, 1993, e Skutnabb-
pode, assim, coexistir com uma posição conservadora -Kangas, 1993. Sobre línguas em vias de extinção, ver
no segundo. Sobre a política da linguística e, em par- Language 68(1) e, especialmente, Krauss (1992) e Craig
ticular, sobre a política da concepção de Chomsky de (1992). Ver também o debate entre Ladefoged (1992) e
“linguística autónoma”, ver Newmeyer (1986). Dorian (1993).
Não disparem sobre o utopista 123

do Sul, como já disse, deve desenvolver-se por centa: “O outro é reduzido a um objecto mudo”
processos parcialmente distintos no centro e (Tucker, 1992: 20)43.
na periferia do sistema mundial. O epistemicídio e o linguicídio cometidos
Detiveme atrás sobre as dificuldades que mais ou menos sistematicamente durante toda
esse processo de construção encontra no cen- a trajectória histórica da modernidade capi-
tro. Na tentativa de aprender a partir do Sul e talista rasuraram os conhecimentos e as lín-
com o Sul, importa também sublinhar as difi- guas locais e criaram, em seu lugar, um vasto
culdades que o processo da sua construção terreno de não-conhecimento onde a língua e
encontra na periferia. À primeira vista, não de- o conhecimento imperial se foram implantado
veria haver dificuldades, já que, neste caso, a progressivamente. Foi assim que o colonialis-
subjectividade do Sul habita um lugar que lhe é mo se converteu numa forma de conhecimen-
familiar: o próprio Sul. Nada poderia estar mais to, na forma do conhecimento-regulação. Co-
longe da verdade. Como produto do império, nhecendo apenas através das lentes do Norte
o Sul é a casa do Sul onde o Sul não se sente imperial, a periferia não podia senão reconhe-
em casa. Por outras palavras, a construção da cerse a si própria como o Sul imperial. É por
subjectividade do Sul tem de seguir um proces- isso que hoje é muito mais fácil para a periferia
so de desfamiliarização, tanto em relação ao reconhecer-se como vítima do Norte imperial
Norte imperial, como em relação ao Sul impe- do que como vítima do Sul imperial, ou seja,
rial. No que respeita ao segundo, a desfamilia- vítima do epistemicídio e do linguicídio que a
rização é, paradoxalmente, muito mais difícil, converteram na vítima que facilitou ou desejou
mesmo na periferia. A verdade é que, como a própria opressão44.
Said (1985) justamente sublinha, a epistemolo-
gia imperial representou o outro como incapaz
de se representar a si próprio. Tucker também 43 No mesmo sentido, Jameson (1986: 85) afirma que
frisou que “escolas de pensamento como o “a perspectiva do topo é epistemologicamente mutila-
dora e reduz os sujeitos à ilusão de uma miríade de sub-
orientalismo e disciplinas como a antropologia
jectividades fragmentadas”.
falam em nome do ‘outro’, afirmando muitas
44 Os romancistas e os poetas do Sul têm estado na
vezes conhecer melhor o ‘outro’ que estuda do
vanguarda da luta por um Sul nãoimperial. Jameson
que o ‘outro’ se conhece a si próprio”. E acres- afirma que, no romance do Terceiro Mundo, as alego-
124 Boaventura de Sousa Santos

Para ultrapassar esta dificuldade, há que ter e profeta visionário da não-violência45. Gan-
em conta uma outra diferença entre a consti- dhi simboliza a rejeição mais radical do Norte
tuição da subjectividade do Sul no centro e na imperial no nosso século. Quando, em 1909,
periferia do sistema mundial. Na periferia, é lhe perguntaram o que diria aos britânicos
possível reimaginar uma tradição préimperial a propósito da dominação colonial da Índia,
de resistência à dominação imperial, tradição
com base na qual se poderia reconstruir um Sul
nãoimperial ou antiimperial. Essa reconstru- 45 No que se segue, irei concentrarme em Gandhi,
sem esquecer, porém, que, à medida que a crise da
ção pode não ser necessariamente progressis- modernidade se aprofunda e que o seu carácter im-
ta, mas tãopouco tem de ser reaccionária. Para perialista se torna mais evidente, tem vindo a emergir
ser progressista, tem de assumir que a plena recentemente, no Sul, um novo fermento intelectual e
afirmação do nãoimperialismo ou do antiimpe- político, inspirado por uma concepção do Sul nãoimpe-
rialismo implica a própria eliminação do con- rial que tenta desenvolver uma política emancipatória
fora dos moldes ocidentais. Entre muitos exemplos, re-
ceito de Sul. Aprender plenamente a partir do firase Wamba dia Wamba, que apela para uma nova po-
Sul implica, pois, eliminar o Sul por completo. lítica emancipatória em África, informada por um novo
Na medida em que for possível ao Sul pensarse paradigma filosófico capaz de refutar e de desalojar a
noutros termos que não os do Sul, também será “epistemologia social da dominação” (1991a, 1991b).
possível ao Norte pensarse noutros termos que Sobre o debate a que deu origem, ver, por exemplo,
Ramose (1992). Relativamente à Ásia, partindo da ideia
não os do Norte. de que um aspecto significativo das estruturas pósco-
Um dos mais ilustres mestres deste pro- loniais de conhecimentos no Terceiro Mundo é uma
cesso de aprendizagem com o Sul foi Gandhi, forma peculiar de “imperialismo das categorias”, Nan-
eminente dirigente do nacionalismo indiano dy começa por estabelecer uma base para a tolerância
étnica e religiosa que seja independente da linguagem
hegemónica do secularismo popularizado por intelec-
tuais ocidentalizados e pelas classes médias expostas
à linguagem globalmente dominante do EstadoNação
rias são muito mais nacionais do que individuais (como no sul da Ásia (1988: 177). Ver, também, Nandy (1987a).
no romance do Primeiro Mundo): “a história do destino Por último, Gilroy (1993) defende vigorosamente uma
individual privado é sempre uma alegoria da situação “cultura negra atlântica” como contracultura da mo-
conflitual da cultura e da sociedade públicas do Tercei- dernidade, incitando-nos a aprender com o sul dentro
ro Mundo” (1986: 79). do Norte imperial.
Não disparem sobre o utopista 125

Gandhi respondeu que, entre outra coisas, di- um mundo alternativo onde seja possível recu-
ria o seguinte: perar a humanidade do humano. Diz Gandhi:

Tomamos a civilização que vós apoiais como sendo Na nossa situação actual, somos metade ho-
o oposto da civilização. Consideramos que a nossa mens, metade animais, e na nossa ignorância e
civilização é muito superior à vossa. […] Conside- até arrogância dizemos que cumprimos plena-
ramos que as vossas escolas e os vossos tribunais mente os desígnios da nossa espécie sempre que
são inúteis. Queremos recuperar as nossas antigas a um ataque respondemos com outro ataque e
escolas e os nossos tribunais. A língua comum da que, para tal, desenvolvemos o necessário grau
Índia não é o inglês mas o hindi. Por isso, deveríeis de agressividade (1951: 78).
aprendêlo. Podemos comunicar convosco apenas
na nossa língua nacional (1956: 118). Como se vê, para Gandhi a desfamiliarização
relativamente ao Norte imperial é, do mesmo
Como Nandy muito bem sublinha, modo, uma desfamiliarização relativamente ao
Sul imperial. Referindo-se, em 1938, à prática
a perspectiva de Gandhi desafia a tentação de da satyagraha, Gandhi advertiu: “A nãocoo-
igualar o opressor em violência e de recuperar a peração, sendo um movimento de purificação,
autoestima competindo dentro do mesmo siste-
está a trazer à superfície todas as nossas fra-
ma. A perspectiva assenta numa identificação com
quezas e também os excessos até dos nossos
o oprimido que exclui a fantasia da superioridade
do estilo de vida do opressor, tão profundamente pontos fortes” (1951: 80).
entranhada nas consciências dos que afirmam fa- Para Gandhi, o marxismo e o comunismo
lar em nome das vítimas da história (1987b: 35). europeus, embora representando indiscutivel-
mente uma crítica profunda do Norte imperial,
A ideia e a prática da nãoviolência e da não- estão ainda demasiado comprometidos com
cooperação, a que Gandhi dedicou toda a sua ele para funcionarem como modelos para a
vida, são as características mais notáveis da construção de um Sul nãoimperial:
desfamiliarização política e cultural relativa-
mente ao Norte imperial. O objectivo não é con- Não fiquemos obcecados com os lemas e as pala-
quistar poder num mundo corrupto, mas criar vras de ordem sedutoras importados do Ociden-
te. Não temos nós as nossas próprias tradições
126 Boaventura de Sousa Santos

orientais? Não seremos nós capazes de encon- 110). E, numa outra ocasião, declara: “A mi-
trar a nossa própria solução para o problema do nha nãoviolência exige amor universal” (1956:
capital e do trabalho? […] Estudemos as nossas 100). Por isso, Pantham tem razão quando afir-
instituições orientais com esse espírito de pesqui- ma que “a satyagraha de Gandhi é um modo
sa científica e desenvolveremos um socialismo e
integral de praxis política vedada ao raciocí-
um comunismo mais genuínos do que o mundo
nio crítico”. E acrescenta energicamente que
alguma vez sonhou. É sem dúvida errado presu-
mir que o socialismo ou o comunismo ocidentais “a satyagraha de Gandhi começa a partir do
são a última palavra sobre a questão da pobreza ponto onde a argumentação racional e o racio-
das massas. […] A luta de classes é estranha ao cínio crítico se detêm” (Pantham, 1988: 206)47.
espírito essencial da Índia, que é capaz de desen- Em segundo lugar, a “pesquisa científica” de
volver uma forma de comunismo amplamente ba- Gandhi não reivindica qualquer privilégio
seada nos direitos fundamentais de todos e numa epistemológico. O conhecimento já estava lá,
justiça igual para todos46. por assim dizer, e a única coisa que ele tinha
de fazer era “experiências”:
A desfamiliarização relativamente ao Norte
e ao Sul imperiais não é, para Gandhi, um fim Nada tenho a ensinar ao mundo. A verdade e a
em si mesmo, mas sim um meio de criar um nãoviolência são tão antigas como as montanhas.
mundo alternativo, uma forma nova de univer-
salidade capaz de libertar, ao mesmo tempo,
47 As ideias e a política de Gandhi continuam a ser
a vítima e o opressor. Neste aspecto, o con- objecto de grande debate. Nandy (1987) sublinha que,
traste flagrante entre Gandhi e Habermas é ni- por ter escapado à dominação cultural colonial, Gan-
tidamente favorável a Gandhi. Para começar, dhi formulou um autêntico e efectivo nacionalismo
o seu conceito de racionalidade é muito mais indiano. Partindo de um enquadramento gramsciano,
Chatterjee considera que a ideologia de Gandhi, sub-
abrangente do que o de Habermas. Gandhi re-
vertendo, no essencial, o pensamento nacionalista
cusase a distinguir entre verdade, amor e ale- de elite, propiciou, ao mesmo tempo, a oportunidade
gria: “A força do amor é igual à força da alma histórica para a apropriação política das classes popu-
ou da verdade”, escreve a dada altura (1956: lares dentro das formas em evolução do novo Estado
indiano (1984: 156). Fox (1987) acentua os dilemas da
resistência cultural de Gandhi num sistema mundial de
46 Citado por Pantham (1988: 207208). dominação cultural.
Não disparem sobre o utopista 127

Tudo o que fiz foi tentar realizar experiências em mente arriscada. Cada um, à sua maneira, tra-
ambas numa escala tão vasta quanto me foi pos- va um combate de vida ou de morte contra a
sível. Ao fazê-lo, errei por vezes e aprendi com arregimentação, empenhando-se numa crítica
os erros. A vida e os seus problemas tornaramse, radical do conhecimento profissional hegemó-
para mim, outras tantas experiências na prática
nico, uma crítica que exige a desteorização da
da verdade e da nãoviolência (1951: 240).
realidade como única forma de a reinventar.
Acresce ainda que cada um deles parte de uma
A proposta de Gandhi é uma contribuição
interpelação radical da sua própria cultura, a
decisiva para um novo senso comum emanci-
fim de compreender o que a poderá aproximar
patório. A nova universalidade da aspiração de
de outras culturas, e está disposto a envolver-
Gandhi baseia-se explicitamente numa herme-
-se (diatopicamente, por assim dizer) em diálo-
nêutica diatópica, isto é, num questionamento
gos interculturais. Chomsky desenterra as ra-
exigente da sua própria cultura hindu, de modo
ízes mais profundas do liberalismo europeu e
a aprender como entrar em diálogo com outras
descobre um novo comunitarismo e uma nova
culturas munido da máxima tolerância dis-
solidariedade na forma política do anarquismo.
cursiva, e a reconhecer que as outras culturas
Em sua opinião, a sociedade anarquista, assen-
também têm aspirações emancipatórias seme-
te na livre associação de todas as forças pro-
lhantes: “A nãoviolência, na sua forma activa,
dutivas e no trabalho cooperativo, satisfaria
é, portanto, boa vontade para com toda a vida.
as necessidades de todos os seus membros, de
É puro amor. Leioo nas escrituras hindus, na
uma forma adequada e justa:
Bíblia, no Corão” (1951: 77).
Se, por um lado, o contraste entre Gandhi Numa tal sociedade, não há motivo para que as
e Habermas é perfeitamente óbvio, por outro, recompensas dependam de um determinado con-
há uma convergência entre Gandhi e Chomsky junto de atributos pessoais, por mais selecciona-
que me parece importante salientar. Ainda que dos que sejam. Desigualdade de dons é simples-
Chomsky faça uma distinção entre ciência e mente a condição humana — facto que devemos
política que seria inaceitável para Gandhi, am- agradecer; uma visão do inferno é uma sociedade
bos tentam alicerçar um novo senso comum composta de elementos intermutáveis. Isto nada
emancipatório numa prática exigente e alta- implica no que respeita às recompensas sociais
128 Boaventura de Sousa Santos

[…]. Sem laços de solidariedade, de simpatia e seu único objectivo é o progresso material […].
de preocupação com os outros, uma sociedade Eu quero liberdade para exprimir totalmente a
socialista é impensável. Só nos resta esperar que minha personalidade. Devo ser livre de construir
a natureza humana seja constituída de tal forma uma escada até Sírius se me apetecer. Isto não
que esses elementos da nossa natureza essencial significa que queira fazer tal coisa. No outro so-
possam desenvolverse e enriquecer as nossas cialismo, não há liberdade individual. Não se é
vidas, uma vez que as condições sociais que os dono de nada, nem do próprio corpo (1956: 327).
suprimem tenham sido ultrapassadas. Os socia-
listas são fiéis à convicção de que não estamos O facto de a convergência entre Chomsky e
condenados a viver numa sociedade baseada na Gandhi partir de posições tão distantes é, em si
ganância, na inveja e no ódio. Não sei como pro- mesmo, um facto significativo. Ao escavarem
var que eles têm razão, mas também não há fun-
profundamente na sua própria cultura, cada
damentos para a convicção comum de que eles
um deles chega diatopicamente à cultura do
devem estar errados (1987: 192).
outro. Mas isso é ainda mais significativo se
considerarmos que o modelo político que pa-
O elogio da comunidade e da solidariedade
rece captar melhor as afinidades entre ambos
feito por Chomsky ajustase perfeitamente às
é o anarquismo. Na verdade, o que Gandhi tem
preocupações expressas por Gandhi na pers-
a dizer sobre o anarquismo não difere muito
pectiva da sua cultura. Mas, curiosamente, na
daquilo que há pouco vimos Chomsky afirmar:
sua interpelação radical do comunitarismo hin-
du, Gandhi descobre o valor da autonomia e da
Poder político significa governar a vida nacional
liberdade do indivíduo. Pouco tempo antes de através de representantes nacionais. Se a vida
morrer, quando alguém lhe perguntou o que ele nacional se tornar tão perfeita ao ponto de se
entendia por socialismo, dado que insistia em auto-governar, nenhuma representação será ne-
distinguir a sua noção de socialismo da varian- cessária. Haverá, então, um Estado de anarquia
te europeia, Gandhi respondeu: iluminada. Num tal Estado, cada um será o seu
próprio governante. E governarse-á a si mesmo
Não quero caminhar sobre as cinzas dos cegos, de uma maneira tal que nunca constituirá um
dos surdos e dos mudos. No socialismo deles [eu- obstáculo para o seu vizinho. No Estado ideal,
ropeu] é provável que estes não tenham lugar. O portanto, não haverá poder político porque não
Não disparem sobre o utopista 129

haverá Estado. Mas o ideal nunca é totalmente trar. A desteorização da realidade como con-
realizado na vida. Daí a afirmação clássica de dição prévia para a sua reinvenção, que tanto
Thoreau de que o melhor governo é o que menos Chomsky como Gandhi desejam, encontra no
governar (1951: 244). anarquismo um terreno apropriado.
A meu ver, porém, o que mais aproxima estes
Talvez não seja coincidência que a conver- dois pensadores e activistas é que, para além
gência entre Chomsky e Gandhi encontre no de contribuírem para a construção da subjecti-
anarquismo uma das suas formulações. Na vidade do Sul, ambos contribuem também para
verdade, de todas as tradições políticas eman- a construção das subjectividades de fronteira
cipatórias da modernidade ocidental, o anar- e do barroco. Ambos defendem a sociabilida-
quismo é, sem dúvida, uma das mais desacre- de de fronteira como um meio de criatividade
ditadas e marginalizadas pelo discurso político social capaz de resistir à arregimentação, à
hegemónico, seja ele convencional ou crítico. naturalização das rotinas e à homogeneização
Como representação relativamente inacabada, das diferenças. Por outro lado, o extremismo
o anarquismo mostrase, assim, mais disponível que ambos conferem às suas ideias e práticas
para a fertilização intercultural. Além disso, evidencia também a sua subjectividade bar-
enquanto prática política, o anarquismo só flo- roca. Relativamente a Gandhi, pode parecer
resceu no Sul do Norte, e teve a sua concreti- surpreendente considerar barroca uma subjec-
zação mais plena na Espanha republicana dos tividade que prega a simplicidade e a repressão
anos trinta. Por outras palavras, desenvolveuse das paixões. Recordemos, porém, que o extre-
nas margens do sistema de dominação, onde mismo barroco (la extremosidad de Maravall)
as hegemonias se afirmavam com maior fragili- afirma-se quer pela exaltação da exuberância,
dade. Por último, como Chomsky observa cor- quer pela exaltação da simplicidade. O extre-
rectamente, o anarquismo é o único projecto mismo da simplicidade e do autodespojamento
político emancipatório que não confere um pri- de Gandhi é barroco.
vilégio particular aos intelectuais e ao conheci- A subjectividade do Sul constitui o momento
mento profissional, representando, assim, um de solidariedade na construção de uma tópica
elo fraco no paradigma da modernidade por para a emancipação. O objectivo é construir
onde a hermenêutica diatópica se poderá infil- um círculo de reciprocidade muito mais vasto
130 Boaventura de Sousa Santos

do que aquele que a modernidade propõe, ou vencionais que se constituíram e prosperaram


seja, uma Sorge que não pode deixar de ser si- com base na relação imperial. Haverá que pro-
multaneamente local e transnacional, imediata curar uma análise convincente dos momentos
e inter-geracional. A subjectividade do Sul sig- de rebelião na investigação realizada como re-
nifica a capacidade e a vontade para um vasto sistência à relação imperial. Um bom exemplo,
exercício de solidariedade. O seu objectivo é a vindo também da Índia, é a gigantesca colectâ-
construção de um Sul não-imperial como uma nea de estudos sobre a sociedade indiana reu-
tarefa que precede a eliminação da dicotomia nidos por Ranajit Guha nos vários volumes de
imperial entre o Norte e o Sul e a sua substi- Subaltern Studies48. Comentando este formi-
tuição por outras formas, muitas e variadas dável empreendimento no âmbito dos estudos
como seria desejável, de diferenciação iguali- históricos, Veena Das afirma que os Subaltern
tária, isto é, de diferença sem subordinação. Na Studies “fundamentaram um ponto importan-
construção de um Sul nãoimperial, o momento te na determinação da centralidade do mo-
da solidariedade desdobrase em três grandes mento histórico da rebelião ao encararem os
momentos que são outras tantas perspectivas subalternos como sujeitos das suas próprias
privilegiadas para captar os elos fracos da do- histórias” (1989: 312).
minação imperial: o momento da rebelião, o O momento da rebelião é o momento de
momento do sofrimento humano e o momento desafio em que uma nova ordem emergente
da continuidade entre vítima e agressor. confronta a ordem da representação. A ques-
O momento da rebelião surge quando a or- tionação da ordem da representação produz o
dem imperial é destruída, pelo menos momen- caos epistemológico que permite às energias
taneamente, e dá lugar ao caos, de cujo ponto emancipatórias reconhecerem-se como tais. O
de vista o colonialismo pode ser concebido momento da rebelião é, portanto, um momento
como uma forma de ignorância e a solidarie-
dade como uma forma de conhecimento. Se
o momento de rebelião dos oprimidos corres- 48 Um conjunto de ensaios sobre a história e a socie-
ponde ao elo fraco da dominação imperial, não dade do sul da Ásia publicados, nos anos oitenta, numa
colectânea dirigida por Ranajit Guha. Dos vários estu-
surpreende que a análise desse momento seja
dos aí incluídos, ver um do próprio Guha sobre a histo-
também um elo fraco das ciências sociais con- riografia colonialista na Índia: Guha (1989).
Não disparem sobre o utopista 131

de suspensão que converte o Norte imperial em cação do sofrimento humano requer, por isso,
poder alienante e o Sul imperial em impotência um grande investimento na representação e na
alienante. No momento da rebelião, a força do imaginação oposicionistas. Como Nandy afir-
opressor só existe na medida em que a fraque- ma, “[…] a nossa sensibilidade ética limitada
za da vítima o permite: a capacidade do opres- não é uma prova da hipocrisia humana; é, so-
sor é uma função da incapacidade da vítima; a bretudo, um produto do conhecimento limita-
vontade de oprimir é uma função da vontade do que temos da situação humana” (1987b: 22).
de ser oprimido. Esta reciprocidade momen- No outro lugar49 foi minha intenção desenhar
tânea entre opressor e vítima torna possível a o mapa mental de um vasto campo social de
subjectividade rebelde. Esta subjectividade foi opressão nas sociedades capitalistas, produzi-
memoravelmente formulada por Gandhi, quan- da em seis grandes espaços estruturais: o espa-
do se imaginou a dirigirse aos Britânicos nestes ço doméstico, o espaço da produção, o espaço
termos: “Não somos nós que temos de fazer o do mercado, o espaço da comunidade, o espa-
que vocês querem, mas vocês que têm de fazer ço da cidadania e o espaço mundial. As seis for-
o que nós queremos” (1956: 118). mas de opressão geram seis formas principais
O momento do sofrimento humano é o de sofrimento humano. A fenomenologia do
momento de contradição entre a experiência sofrimento humano é um ingrediente essencial
de vida do Sul e a ideia de uma vida decente. da criação da vontade de transição paradigmá-
É o momento em que o sofrimento humano é tica. A subjectividade do Sul experiencia pes-
traduzido em sofrimento-feito-pelo-homem. É soalmente todo o sofrimento do mundo como
um momento crucial, porquanto a dominação um sofrimento feito pelo homem, e não, de
hegemónica reside, primordialmente, na ocul- modo algum, como necessário ou inevitável.
tação do sofrimento humano ou, sempre que Sendo constituído pelo sofrimento humano, o
isso não é possível, na sua naturalização como carácter radical da vontade emancipatória da
fatalidade ou necessidade ou na sua trivializa- subjectividade do Sul reside no facto de esta
ção como espectáculo mediático. É precisa- nada ter a perder, a não ser as suas cadeias.
mente através da ocultação, da naturalização
e da trivialização do sofrimento que a domina-
ção oculta e naturaliza a opressão. A identifi- 49 Ver Santos, 2000: 243-303.
132 Boaventura de Sousa Santos

Quanto ao momento de continuidade entre alternativo que não produza a brutalização re-
opressor e vítima, ninguém o exprimiu melhor cíproca. Por outras palavras, libertar o opres-
do que Gandhi, quando sublinhou claramente sor da desumanização só é concebível como
que qualquer sistema de dominação brutaliza resultado da luta emancipatória travada pela
simultaneamente a vítima e o opressor, e que vítima contra a opressão. Um proeminente teo-
também o opressor necessita de ser liberta- rizador da teologia da libertação, Gustavo Gu-
do. “Durante toda a sua vida”, escreve Nandy, tierrez, exprime eloquentemente esse aparente
“Gandhi procurou libertar os Britânicos, tan- paradoxo e assimetria:
to quanto os Indianos, das garras do imperia-
lismo; e procurou libertar as castas hindus, Amamos os opressores, libertandoos deles pró-
tanto quanto os intocáveis, da intocabilidade” prios. Mas isso só se pode conseguir optando de-
(1987b: 35). Gandhi acreditava que o sistema cididamente pelos oprimidos, ou seja, combaten-
de dominação compele a vítima a interiorizar do as classes opressoras. Tem de ser um combate
real e efectivo, não ódio (Gutierrez, 1991).
as regras do sistema de tal maneira que nada
garante que, uma vez derrotado o opressor, a
dominação não continue a ser exercida pela Constelações tópicas
antiga vítima, ainda que de formas diferentes. A Os topoi da fronteira, do barroco e do Sul
vítima é um ser profundamente dividido quanto presidem à reinvenção de uma subjectivida-
à identificação com o opressor ou à diferencia- de com capacidade e vontade de explorar as
ção relativamente a este. Volto a citar Nandy: potencialidades emancipatórias da transição
paradigmática. Nenhum destes três topoi ga-
O oprimido nunca é uma pura vítima: uma par- rante, por si só, a criação de uma tópica para a
te dele colabora, comprometese e adaptase, e a emancipação ou de uma subjectividade capaz
outra desafia, “não coopera”, subverte ou destrói, de a traduzir em formas concretas de socia-
muitas vezes em nome da colaboração e sob a
bilidade. Pelo contrário, cada topos separada-
roupagem da obsequiosidade (1987b: 43).
mente pode sancionar formas excêntricas de
regulação que, por seu turno, podem contribuir
Ao descobrir os segredos do desafio à opres-
para desacreditar os projectos emancipatórios
são, a subjectividade do Sul luta por um mundo
e liquidar a vontade de emancipação. Abando-
Não disparem sobre o utopista 133

nado a si próprio, o topos da fronteira pode dar pelo topos do Sul. O fundamental, contudo, é
azo a uma subjectividade e a uma sociabilidade que os três topoi estejam sempre presentes e
libertinas que sejam indulgentes para com cria- que nenhum deles tenha uma presença trivial
tividades destrutivas: daí pode resultar uma ou irrelevante. Constituídas desta forma, a sub-
turbulência que, em vez de possibilitar novas jectividade e a sociabilidade emergentes resul-
formas de solidariedade, abre novos espaços tam em práticas sociais e epistemológicas de
para o colonialismo. Do mesmo modo, deixa- contradição e competição paradigmáticas em
do a si próprio, o topos do barroco pode ser cada um dos seis espaços estruturais. É evi-
a fonte de formas manipulativas de subjectivi- dente que existem na sociedade muitos outros
dade e de sociabilidade propensas a recorrer campos sociais de contradição e competição
ao artifício e ao extremismo a fim de excitar as paradigmáticas, mas creio que os seis espaços
paixões e promover a adesão acrítica a formas estruturais que identifiquei são particularmen-
de caos disfarçadas de ordem e a formas de co- te relevantes: dado que se trata de campos so-
lonialismo disfarçadas de solidariedade. Final- ciais privilegiados de regulação social, é neles
mente, o topos do Sul, actuando isoladamente, que as emancipações mais importantes e dura-
pode resultar em subjectividades golpistas e douras devem ser conquistadas.
autoritárias que, nos seus esforços para abolir Em cada um dos seis espaços estruturais, a
o colonialismo, acabam por abolir também as subjectividade emergente provoca a contradi-
possibilidades de solidariedade. ção e a competição paradigmáticas dentro de
A subjectividade e a sociabilidade emergen- uma unidade específica de prática social: dife-
tes são, portanto, constelações destes três to- rença sexual e gerações no espaço doméstico;
poi, ainda que as constelações possam variar classes e natureza capitalista no espaço da pro-
de acordo com a intensidade variável dos três dução; consumo no espaço do mercado; etnici-
topoi intervenientes. Quer isto dizer que uma dade, raça e povo no espaço da comunidade; ci-
constelação dominada pelo topos da fronteira dadania no espaço da cidadania; EstadoNação
(com o topos da fronteira actuando em modo no espaço mundial. Isto significa que, no inte-
de alta-tensão e os restantes topoi em modo de rior de cada um dos seis espaços estruturais, a
baixa-tensão) difere de outra dominada pelo prática social emergente é constituída por uma
topos do barroco, ou de uma terceira dominada constelação específica dos topoi da fronteira,
134 Boaventura de Sousa Santos

do barroco e do Sul. Em termos de práticas so- cipatórias dependem da intensidade com que
ciais e epistemológicas concretas, a fronteira, interiorizam as constelações tópicas da fron-
o barroco e o Sul significam coisas diferentes teira, do barroco e do Sul: quanto mais intensa
em relação, por exemplo, às lutas de sexos, de for a interiorização, maior será a proximidade
classes ou de etnias. Mas, em qualquer prática entre as práticas sociais e epistemológicas e o
desse género, a marca e a força emancipatória paradigma emergente.
dos grupos sociais que lutam pelo paradigma Ao nível dessas práticas, as subjectivida-
emergente sãolhes conferidas pela constelação des individuais e colectivas nunca se esgotam
de topoi específica que alimenta a subjectivida- numa única unidade de prática ou de organiza-
de desses grupos. O potencial emancipatório e ção social. Somos sempre configurações de di-
a primazia das lutas sociais não são determina- ferentes práticas sociais e participamos em di-
dos pela sua posição estrutural — em termos ferentes tipos de organizações. De acordo com
estruturais, não é possível estabelecer qualquer o contexto, agimos predominantemente como
primazia entre sexo, classe, cidadania, etc. —, subjectividade de sexo, de classe, de consumi-
mas pela intensidade com que se deixam guiar dor, étnica, de cidadão ou nacional. Mas, em
pelas constelações tópicas da fronteira, do bar- qualquer contexto, somos constituídos por to-
roco e do Sul. das as restantes subjectividades parciais. Dado
De maneira idêntica, a questão das formas que, na transição paradigmática, a constelação
organizacionais da prática social emancipató- tópica da fronteira, do barroco e do Sul tende
ria é secundária, embora de modo algum irrele- a distribuirse desigualmente pelas diferentes
vante. Em termos abstractos, e no respeitante formas de prática social, resulta que as nossas
à eficácia emancipatória, não é possível esta- configurações de subjectividade são, elas pró-
belecer primazias ou hierarquias entre parti- prias, internamente contraditórias e rivais. Se,
dos políticos, sindicatos, novos movimentos nalgumas das subjectividades parciais, nos en-
sociais, movimentos populares, ONGs, etc. A contramos mais próximos do paradigma emer-
adequação de cada uma destas formas às as- gente, noutras, encontramonos mais próximos
pirações, capacidades e desejos dos grupos do paradigma dominante. As configurações de
sociais progressistas depende de condições subjectividade são tanto mais emancipatórias
concretas. Mas as suas potencialidades eman- quanto mais organizadas forem pelas subjecti-
Não disparem sobre o utopista 135

vidades parciais constituídas pela constelação to de uma nova ordem, mas tãosó mostar que o
tópica emergente. O mesmo pode dizer-se das colapso da ordem ou da desordem existente —
formas de organização social e política em que que Fourier designou, significativamente, por
essas subjectividades participam. Na transição “ordem subversiva” — não implica, de modo
paradigmática, é impossível erradicar a contra- nenhum, a barbárie. Significa, sim, a oportuni-
dição e a competição entre o paradigma domi- dade de reinventar um compromisso com uma
nante e o paradigma emergente, isto é, entre a emancipação autêntica, um compromisso que,
regulação e a emancipação. Ambas operam no além do mais, em vez de ser o produto de um
interior, quer das subjectividades individuais, pensamento vanguardista iluminado, se revela
quer das colectivas, bem como no interior dos como senso comum emancipatório.
campos sociais em que elas intervêm. Construir uma tal utopia — não num ne-
nhures imaginário, e menos ainda num irónico
Conclusão “seruhnen”50, mas simplesmente aqui, num aqui
Neste texto, o meu objectivo foi concentrar- heterotópico —, construir, na verdade, uma
-me no paradigma emergente. Daí que tenha utopia tão pragmática quanto o próprio senso
decidido combinar duas tradições marginaliza- comum, não é uma tarefa fácil, nem uma tare-
das da modernidade, nomeadamente a tópica fa que alguma vez possa concluir-se. É este re-
retórica e a utopia. Descrevi sumariamente as conhecimento, à partida, da infinitude que faz
tarefas emancipatórias envolvidas na transi- desta tarefa uma tarefa verdadeiramente digna
ção paradigmática e esbocei o perfil geral das dos humanos.
subjectividades individuais e colectivas com
capacidade e vontade de as realizar. A minha
intenção não foi, de modo algum, formular uma
nova teoria social das sociedades capitalistas
do sistema mundial neste final de século. Pelo
contrário, tentei desteorizar a realidade social
para a tornar mais flexível e receptiva ao pen- 50 Esta inversão entre “nenhures” e “serunhen” foi,
samento e ao desejo utópicos. O meu objectivo obviamente, inspirada por Samuel Butler: nowhere e
principal não foi, portanto, apresentar o projec- erehwon (Butler: 1998).
136 Boaventura de Sousa Santos

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O Norte, o Sul e a utopia*

Introdução prática, esquecem-se de investigar as medidas


opressivas da burla, do açambarcamento e da
E m 1841, Charles Fourier, o grande pensa-
dor da utopia, invectivava os cientistas so-
ciais — que ele designava como “os filósofos
agiotagem que são a espoliação dos proprietá-
rios e os entraves diretos à circulação; se tra-
das ciências incertas” — por sistematicamente tam da moral, esquecem-se de reconhecer e de
se esquecerem dos problemas fundamentais reclamar os direitos da mulher cuja opressão
das ciências de que se ocupam. Assim, dizia, destrói as bases da justiça; e, finalmente, se
se tratam da economia industrial, esquecem- tratam dos direitos do homem, esquecem-se de
-se de estudar a associação entre os homens reconhecer o direito ao trabalho que, em ver-
que é a base de toda a economia; se tratam dade, não é possível na sociedade atual, mas
da política, esquecem-se de tratar da taxa de sem o qual todos os outros direitos são inúteis
população cuja medida justa está na base do (Fourier, [1841], 1967: 181). Concluía assim que
bem-estar do mundo; se tratam da administra- os cientistas sociais tinham essa “propriedade
ção não especulam sobre os meios de operar bizarra”, essa “étourderie méthodique”, de se
a unidade administrativa do globo sem a qual esquecerem dos problemas fundamentais, das
não pode existir nem ordem fixa nem garantia questões primordiais.
do futuro dos impérios; se tratam da indústria Em retrospecto, as razões e os exemplos
invocados por Fourier são bastante convin-
* Extraído de Santos, B. de Sousa 2013 “O Norte, o Sul
centes, pelo que cabe perguntar se hoje, cen-
e a utopia” in Pela mão de Alice. O social e o político na to e cinquenta anos depois, a situação mudou
pós-modernidade (Coimbra: Almedina) pp. 235-305. significativamente ou não. Será que as ciências
146 Boaventura de Sousa Santos

sociais estão hoje mais bem equipadas para técnicos e matemáticos e muito menos quando
não se esquecerem dos problemas fundamen- estes se arrogaram, pela imaginação de Fourier,
tais ou, pelo contrário, continuam a esquecê- conferir precisão e rigor aos prodígios da uto-
-los sistematicamente? Será que são hoje me- pia e às extravagâncias do desejo e da paixão.
nos ou mais incertas que o eram há cento e Por outro lado, a incerteza decorreu da extrema
cinquenta anos? E verdade que alguns dos pro- diversidade e da conflitualidade internas das
blemas que Fourier considerava então funda- correntes científicas, que aumentaram expo-
mentais foram mais tarde reconhecidos e tra- nencialmente de Fourier até aos nossos dias. O
tados pelas ciências sociais, mas será que os segundo pressuposto é que, em resultado dessa
problemas fundamentais com que hoje nos de- diversidade e conflitualidade, se é verdade que
frontamos são diferentes desses e continuam a algumas correntes científicas continuam a es-
ser esquecidos por nós? Formulada assim, esta quecer-se dos problemas fundamentais, outras
pergunta contém uma dupla armadilha. Se os primam em tentar identificá-los. Os cientistas
problemas continuam a ser os mesmos, isso sociais que omitem tratar dos problemas funda-
significa que não têm provavelmente solução mentais fazem-no quase sempre com a justifica-
e nessa medida não há que culpar por isso as ção de que a ciência tem um campo cognitivo
ciências sociais; se, ao contrário, os proble- próprio e privilegiado e que tudo o que não cabe
mas fundamentais são hoje diferentes, o fato nele, longe de ser fundamental, não é sequer
de nos lembrarmos de os ter esquecido signifi- relevante. Pelo contrário, os cientistas sociais
ca que não estão de todo em todo esquecidos, que se afadigam na identificação dos problemas
pelo que algum progresso ocorreu neste do- fundamentais partem da ideia de que a dificul-
mínio. Em ambos os casos, as ciências sociais dade destes, longe de lhes ser imputada, deve
surgem a uma luz mais favorável do que aquela ser imputada à inadequação dos meios científi-
que Fourier lhes dirigiu. cos e políticos que têm sido adotados para a sua
Neste trabalho parto de três pressupostos. O identificação ou solução. Entre eles, é grande
primeiro pressuposto é que as ciências sociais a divisão quanto à identificação dos problemas
são hoje mais incertas que o eram ao tempo de julgados fundamentais e ainda maior quan-
Fourier. Por um lado, a certeza a que ele aspi- to às soluções para eles propostas. O terceiro
rava não foi obtível através de refinamentos pressuposto é que hoje, em final do século, os
O Norte, o Sul e a utopia 147

cientistas sociais não podem deixar de se posi- na sua versão hegemônica moderna, se terem
cionar num ou noutro campo. Pela minha parte, especializado na produção do conhecimento
coloco-me no campo daqueles que sentem uma adequado à engenharia de soluções de curto
dupla obrigação científica e política de não se prazo, estreitas no âmbito e superficiais na es-
furtarem ao tratamento dos problemas funda- pessura. Este tipo de conhecimento científico,
mentais, de o fazerem conhecendo os limites do e mais do que isso, uma cultura dominada por
conhecimento que mobilizam e aceitando a di- este tipo de cientismo deslegitimou, à partida,
versidade e a conflitualidade de opiniões como a ideia de alternativas globais e, sempre que o
sendo a um tempo reflexo desses limites e meio não conseguiu, deslegitimou a vontade coleti-
da sua sempre incompleta superação. va de lutar por elas. Talvez, por isso, o nosso
O que são problemas fundamentais? Como século tenha sido tão pobre em pensamento
se pode ver pelos exemplos dados por Fou- utópico. Mesmo o socialismo, sempre que se
rier, são problemas que estão na raiz das nos- pretendeu como uma alternativa global, apre-
sas instituições e das nossas práticas, modos sentou-se como científico.
profundamente arreigados de estruturação e É notório que a ciência moderna em geral
de ação sociais considerados por alguns como e as ciências sociais em particular atravessam
fontes de contradições, antinomias, incoerên- hoje uma profunda crise de confiança episte-
cias, injustiças que se repercutem com inten- mológica. Paradoxalmente, uma maior consci-
sidade variável nos mais diversos sectores ência dos limites do conhecimento científico
da vida social. Tais repercussões são cumu- veio criar uma maior disponibilidade para a
lativas, pelo que são vistas em processo de abordagem dos problemas fundamentais, das
agravamento contínuo e com a possibilidade questões primordiais. Os antolhos que antes
de desenlaces mais ou menos graves a médio orientavam o olhar científico têm vindo a per-
ou a longo prazo. A profundidade e a amplitu- der opacidade e progressivamente tudo o que
de deste tipo de problemas suscitam soluções dantes ficava na obscuridade ilumina-se agora
também profundas e amplas e aí reside a di- e revela-se afinal como possivelmente muito
ficuldade específica deste tipo de problemas. importante. Esta perda de confiança epistemo-
As aporias que eles levantam às ciências so- lógica está certamente relacionada com pro-
ciais resultam em boa medida do fato de estas, cessos de transformação social que não só ces-
148 Boaventura de Sousa Santos

saram de agravar os problemas fundamentais modernidade — sejam elas o direito estatal, o


identificados por Fourier, como deram origem fordismo, o Estado-Providência, a família he-
a muitos outros cuja turbulência nos processos terossexual excluída da produção, o sistema
societais é cada vez mais sentida e sofrida, se educativo oficial, a democracia representativa,
não por toda a humanidade, pelo menos pela o sistema crime-repressão, a religião institu-
esmagadora maioria dela. cional, o cânone literário, a dualidade entre a
Desta convergência entre dinâmicas episte- cultura oficial baixa e a cultura oficial alta, a
mológicas e societais resulta não só a maior vi- identidade nacional — parecem hoje cada vez
sibilidade dos problemas fundamentais, como mais precárias e questionáveis, não é menos
também a maior urgência no encontrar solu- verdade que estão igualmente fragilizadas e
ções para eles. É por esta razão que alguns, en- desacreditadas as formas de emancipação so-
tre os quais me incluo, entendem que estamos cial que lhes corresponderam até agora, sejam
a entrar num período de transição paradigmáti- elas o socialismo e o comunismo, os partidos
ca, tanto no plano epistemológico — da ciência operários e os sindicatos, os direitos cívicos,
moderna para um conhecimento pós-moderno políticos e sociais, a democracia participativa,
— como no plano societal — da sociedade ca- a cultura popular, a filosofia crítica, os modos
pitalista para outra forma societal que tanto de vida alternativos, a cultura de resistência e
pode ser melhor como pior. Para quem assim de protesto. Perante isto, perfila-se uma dupla
pense, a época em que entramos é uma época responsabilidade e uma dupla urgência. Por
de grande turbulência, de equilíbrios particu- um lado, ir às raízes da crise da regulação so-
larmente instáveis e regulações particular- cial e, por outro, inventar ou reinventar não só
mente precárias, uma época de bifurcações o pensamento emancipatório como também a
prigoginianas em que pequenas alterações de vontade de emancipação.
estado podem dar origem a convulsões incon- É nesta postura que me proponho analisar de
troláveis, em suma, uma época fractal com seguida alguns dos vectores dos problemas que,
mudanças de escala imprevisíveis e irregulari- em minha opinião, são já hoje fundamentais e
dades difíceis de conceber dentro dos nossos sê-lo-ão, e muito mais, nas próximas décadas
parâmetros ainda euclidianos. No entanto, se para, na última parte, traçar o mapa do terreno
é verdade que as formas de regulação social da onde podem ser queridas e buscadas algumas
O Norte, o Sul e a utopia 149

alternativas emancipatórias em nada envergo- antes de todos o problema de não ser possível
nhadas ou ofendidas por serem ditas utópicas. pensar os problemas fundamentais. A socieda-
de de consumo, a cultura de massas e a revolu-
Os problemas fundamentais nos ção da informação e da comunicação superfi-
diferentes espaços-tempo cializou tanto as condições de existência como
os modos de a pensar. Isto não é necessaria-
O espaço-tempo mundial
mente um mal. É um facto, e pode até ser mais
Entre os cientistas sociais que se não têm auspicioso que o contrário. Muitas das concep-
furtado à abordagem dos problemas fundamen- ções ditas pós-modernas, que eu designo por
tais da sociedade contemporânea são muitas as pós-modernismo reconfortante, perfilham esta
diferenças e, com algum risco de simplificação, posição, e nela cabem Baudrillard, Lyotard,
são discerníveis as seguintes posições prin- Vattimo, etc.
cipais, apresentadas sem qualquer ordem de Um terceiro grupo de cientistas sociais
hierarquia. A primeira é a dos que reconhecem tem vindo a privilegiar o questionamento dos
que a sociedade liberal moderna tem vindo a pressupostos epistemológicos da moderni-
defrontar-se com alguns problemas fundamen- dade, mantendo que foram eles, bem como o
tais, o mais fundamental dos quais tem sido a tipo de racionalidade cognitivo-instrumental
oposição radical que nos últimos cem anos lhe e de conhecimento técnico-científico em que
foi movida pelos movimentos socialista e comu- desembocaram, os grandes responsáveis pelo
nista. Concluem que, no entanto, a sociedade abandono da reflexão sobre os problemas
liberal moderna não só acabou por neutralizar fundamentais. A distinção sujeito-objecto, a
esta oposição como resolveu todos os grandes separação total entre meios e fins, a concep-
problemas que lhe foram postos. Por essa razão ção mecanicista da natureza e da sociedade,
é legítimo admitir que estamos perante o fim da o cisma entre fatos e valores e a objetividade
história, uma posição a que Fukuyama (1992) concebida como neutralidade, uma ideia do
deu recentemente grande notoriedade. rigor quantitativo e euclidiano inimiga da com-
Segundo outra posição, se a sociedade con- plexidade e insensível à fractalidade dos fe-
temporânea, sobretudo a capitalista avançada, nômenos, uma teorização pretensamente uni-
defronta algum problema fundamental, ele é versalista, mas na realidade androcêntrica e
150 Boaventura de Sousa Santos

etnocêntrica — tudo isto conspirou para criar centram-se em alternativas ecológicas (entre
um buraco negro epistemológico à volta dos muitos exemplos, as correntes de ecologia radi-
grandes problemas da vida coletiva e das rela- cal à volta da revista Capitalism, Nature, and
ções interculturais. Trata-se de um grupo mui- Socialism ou Lester Brown e o grupo do Sta-
to heterogéneo onde é possível incluir Haber- te of the World), outros em alternativas sócio-
mas, Toulmin, Hirschman, Murray, Bookchin, -políticas, corno Alain Touraine, André Gorz,
Wallerstein e Giddens, por um lado, Foucault e Ernest Laclau, (Chantal de Mouffe, Joshua
Derrida e a epistemologia feminista, por outro, Cohen, Joel Rogers, e outros ainda em alter-
e talvez um terceiro grupo, Fredric Jameson, nativas socioeconômicas, como Alain Lipietz,
Edward Said e G. Spivak. Michel Aglietta, John Roemer, e finalmente ou-
Por último, o grupo de longe mais heterogé- tros, em alternativas de governo transnacional,
neo é o dos cientistas para quem o problema como Richard Falk e Saul Mendlowitz.
fundamental da sociedade contemporânea, que Estas diferentes posições, diferem, entre
uns concebem como industrial e outros como outras coisas, quanto ao elenco dos problemas
capitalista, reside no esgotamento das virtuali- fundamentais que estabelecem, ainda que se-
dades de desenvolvimento societal. Assiste-se, jam muitas e, por vezes, fastidiosas as sobre-
por um lado, à erosão dramática dos mecanis- posições. Por outro lado, diferentes diagnós-
mos institucionais e culturais que até agora ticos suscitam diferentes ênfases analíticas e
corrigiam e compensavam os excessos e os interesses prospectivos. Como se tornará claro
déficits sociais do desenvolvimento capitalista adiante, a análise e a prospectiva que apresen-
— do que resulta uma sensação de desregula- tarei a seguir estão próximas das duas últimas
ção global — e, por outro lado, é visível um to- posições, ou seja, da posição dos que proce-
tal bloqueamento de soluções para o impasse, dem a uma crítica epistemológica da moderni-
não apenas de soluções mais radicais como de dade e dos que se centram no bloqueamento
soluções relativamente moderadas. Daí que os societal e na busca de alternativas.
cientistas sociais incluídos neste grupo tentem Parto de um modelo analítico que identifi-
combinar a análise do bloqueamento com o de- ca os principais processos de estruturação e
senho, a discussão ou a especulação de possí- da prática social, constelações de relações so-
veis alternativas. Alguns autores ou correntes ciais que asseguram no conjunto o sentido e o
O Norte, o Sul e a utopia 151

ritmo da transformação social ou o bloquea- blema fundamental do espaço-tempo mundial


mento desta. Ao contrário de outros modelos, é a crescente e presumivelmente irreversível
como, por exemplo, o que distingue entre o polarização entre o Norte e o Sul, entre países
Estado e a sociedade civil, este modelo pode centrais e países periféricos no sistema mun-
aplicar-se tanto a sociedades nacionais como dial. Este problema comporta uma grande plu-
a sociedades subnacionais e sociedades trans- ralidade de vectores. Salientarei apenas três
nacionais. Distingo quatro constelações de re- deles: a explosão demográfica, a globalização
lações sociais que designo por espaços-tempo da economia e a degradação ambiental.
estruturais: o espaço-tempo doméstico, o es-
paço-tempo da produção, o espaço-tempo da A explosão demográfica
cidadania e o espaço-tempo mundial. Em re-
Em primeiro lugar, o vetor da explosão
lação a cada um deles, passo a identificar os
demográfica. Entre 1825 e 1925 a população
problemas que se me afiguram fundamentais,
mundial duplicou de 1 bilhão de pessoas para
advertindo, no entanto, desde já, que a proble-
2 bilhões. Nos cinquenta anos seguintes voltou
maticidade do tempo presente e a das próxi-
a duplicar para 4 bilhões e entre 1975 e 1990
mas décadas (digamos até 2025) não advêm de
passou de para 5,3 bilhões de pessoas. As pro-
nenhum desses problemas em separado, mas
jeções para as próximas décadas variam, mas,
da conjunção entre eles.
a fazer jus a uma projeção moderada, em 2025
Começarei pelo espaço-tempo mundial, o
a população mundial será de 8,5 bilhões de
espaço-tempo das relações sociais entre so-
pessoas. O fato mais decisivo desta explosão
ciedades territoriais, nomeadamente entre
é que ela terá lugar em esmagadora medida
Estado-Nação no interior do sistema mundial
nos países periféricos. A média do crescimen-
e da economia-mundo. A intensificação da glo-
to populacional mundial esconde diferenças
balização da economia e das interações trans-
abissais e é por isso que a população de África,
nacionais em geral nas duas últimas décadas
que era em 1985 cerca de metade da população
tem vindo a conferir a este espaço-tempo uma
da Europa, será provavelmente em 2025 três
relevância crescente em virtude do poder con-
vezes maior que a população da Europa. Nou-
formador das suas vibrações no interior de
tras partes do Sul o crescimento populacional
cada um dos restantes espaços-tempo. O pro-
152 Boaventura de Sousa Santos

será do mesmo teor. A Índia poderá passar no população da Inglaterra, da França e da Amé-
mesmo período dos 853 milhões atuais para 1,5 rica seria cada vez maior que o poder da terra
bilhões, uma população semelhante à que terá para assegurar a sua subsistência e que, em
então a China; o México poderá passar de 88 consequênciadisso, a intervenção da natureza
milhões para 150 milhões; o Irão de 56 milhões para reduzir a população envolveria fatalmente
para 122 milhões; e o Brasil de 154 milhões a fome, a guerra e a doença.
para 245 milhões. Acresce que mais de 50% des- Provou-se que ele estava enganado; a popu-
ta população viverá em cidades congestiona- lação continuou a aumentar, mas os recursos
das, sem habitação nem saneamento adequa- para assegurar a sua subsistência aumentaram
dos, sem serviços sociais mínimos, a braços também. Não se poderá hoje voltar a repetir
com a fome e o desemprego de vastas massas a história? Tudo leva a crer que não. Segundo
de população, com o colapso ecológico e pro- Paul Kennedy, três fatores principais contri-
vavelmente a violência. Segundo as melhores buíram para infirmar a previsão pessimista de
projeções, no final do século, 11 das 20 maiores Malthus: a emigração maciça dos ingleses e dos
cidades do mundo (com 11 milhões ou mais de europeus em geral; o aumento da produtividade
pessoas) serão cidades dos países periféricos da terra com a revolução agrícola; e o aumento
ou semiperiféricos: Cidade do México com 24,4 da produtividade do trabalho com a revolução
milhões, São Paulo com 23,6 milhões, Calcutá industrial (1993: 6 e ss.). Ora, destes fatores, só
com 16 milhões, Xangai com 14,7 milhões. o primeiro parece estar hoje ao alcance dos paí-
A explosão demográfica torna-se um pro- ses periféricos. O aumento da produtividade da
blema quando produz um desequilíbrio entre a terra ou do trabalho parece estar-lhes em grande
população e os recursos naturais e sociais para medida vedado e em qualquer caso tudo indica
a sustentar adequadamente, e é um problema que não poderá acompanhar o aumento da po-
tanto mais sério quanto mais grave for esse de- pulação. A diferença entre o tempo de Malthus
sequilíbrio. Sendo assim, cabe perguntar se ao e o nosso reside em que no século XVIII e XIX a
fazer previsões tendencialmente desastrosas explosão demográfica e a explosão tecnológica
não estaremos no final do século XX a cometer tiveram lugar na mesma região do sistema mun-
o mesmo erro que Thomas Malthus cometeu no dial, enquanto hoje a primeira ocorre no Sul e a
final do século XVIII ao prever que o poder da segunda ocorre no Norte. Aliás, a disparidade
O Norte, o Sul e a utopia 153

entre o Norte e o Sul é tão grande que, enquanto mo, o racismo e a xenofobia serão obstáculos
o Sul se debate com o problema da explosão de- poderosos à busca de uma vida melhor. Tudo
mográfica, o Norte começa a preocupar-se com leva, pois, a crer que os elevados padrões de
o crescimento negativo da população e com o vida e de consumo vigentes no Norte não serão
envelhecimento desta. partilhados com o Sul.
Estas disparidades ilustram um fenômeno Por outro lado, é hoje generalizado o consen-
mais vasto, que consiste no fato de o âmbito so de que esses padrões não podem ser alarga-
transnacional de alguns problemas emergentes dos à população mundial no seu conjunto, sob
não eliminar, e antes pelo contrário agravar, a pena de os recursos naturais e os equilíbrios
polarização entre o Norte e o Sul. Disso acima ecológicos sofrerem a curto prazo desgastes
que das três vias históricas de solução positiva fatais para a sobrevivência da vida na terra tal
da explosão demográfica, os países do Sul têm como a conhecemos. Isto será assim, mesmo
à sua disposição apenas a emigração. A verdade que a população não aumente tanto quanto se
é que, na prática, essa via está quase totalmen- prevê. Apesar de uma desaceleração global no
te bloqueada. Entre 1820 e 1930, 50 milhões de crescimento anual da população desde 1970
Europeus emigraram para o Ultramar e quase — no período 1965-1970 o crescimento era de
sempre (com exceção dos EUA) para países 2,06, no período 1985-1990 era de 1,73 — as dis-
menos desenvolvidos e sujeitos ao domínio co- paridades entre o Norte e o Sul agravaram-se
lonial ou pós-colonial. Hoje nenhum movimen- (Derluguian, 1992a). Só um exemplo: no perí-
to de âmbito proporcional poderá ocorrer. Não odo de 1965-1970 o crescimento anual em Áfri-
esqueçamos que o movimento é agora do Sul ca era de 2,63 e na Europa de 0,67, enquanto
para o Norte, para a Europa, a América do Nor- no período 1985-1990 a cifra africana disparou
te e a Austrália, e os países centrais têm meios para 3,00 e a europeia baixou para 0,22. Com-
eficazes para se defender da emigração maciça. binadas com o aumento global da população,
É certo que há milhões de pessoas em processo o qual, apesar de desacelerado, continua ele-
de deslocação e cerca de 15 milhões aguardam vado, estas disparidades entre o Norte e o Sul
em campos de internamento a oportunidade de tornam ainda mais questionável a universaliza-
poderem vir a refazer noutro lugar a sua vida, ção, do modelo de desenvolvimento capitalis-
mas o controlo das fronteiras, o protecionis- ta. Este modelo parece de fato confrontar-se
154 Boaventura de Sousa Santos

com uma situação dilemática: por um lado, ele Kondratieff significou o início da fase B do
pretende-se hoje, sobretudo depois do colapso ciclo que se tinha iniciado em 1945. Mesmo
do regime comunista, universalmente válido; assim, a economia mundial cresceu mais do
por outro lado, é cada vez mais claro que ele pós-guerra até hoje do que em toda a história
não pode ser aplicado universalmente ou, o mundial anterior (Kennedy, 1993: 48).
que é ainda mais dilemático, quanto mais uni- Dos traços desta evolução sobretudo nas
versal for a sua aplicação, maior desigualdade duas últimas décadas seleciono os mais impor-
criará entre os poucos que ganham com isso e tantes para a minha tese. O primeiro traço é a
os muitos Perdem, isto é, entre o Norte e o Sul. deslocação da produção mundial para a Ásia
consolidando-se esta como uma das grandes
A globalização da economia regiões do sistema mundial, constituída, como
todas as outras regiões, por uni centro (o Ja-
Isto me conduz ao segundo vetor da desi-
pão), uma semiperiferia (os novos países in-
gualdade Norte/Sul no espaço técnico mundial:
dustriais: a Coreia do Sul, Taiwan, Hong Kong
a globalização da economia. Mesmo admitindo
e Singapura) e uma periferia (o resto da Ásia).
que existe uma economia-mundo desde o sé-
Esta deslocação é tanto maior quanto mais ele-
culo XVI, é inegável que os processos de glo-
vado é o teor tecnológico da produção medida
balização se intensificaram enormemente nas
pelo investimento em investigação e desenvol-
últimas décadas. Isto é reconhecido mesmo
vimento. Assim, no domínio da indústria de alta
por aqueles que pensam que a economia inter-
tecnologia, dois exemplos são particularmente
nacional não é ainda uma economia global, em
significativos: a produção de transistores e a
virtude da continuada importância dos meca-
produção de televisões (Irwan, 1992). No que
nismos nacionais de gestão macroeconômica e
respeita à produção de transistores, incluindo
da formação de blocos comerciais. Entre 1945
semicondutores, a distribuição regional da per-
e 1973 a economia mundial teve uma enorme
centagem da produção mundial teve uma alte-
expansão: uma taxa de crescimento anual do
ração dramática entre 1965 e 1989. A quota da
produto industrial de cerca de 6%. A partir de
Ásia, que era em 1965 de 28,8%, passou cm 1989
1973 esse crescimento abrandou significati-
para 95%; a quota da América do Norte, que era,
vamente, o que para os adeptos dos ciclos de
na mesma altura, de 64,3%, passou para 1,1%; e
O Norte, o Sul e a utopia 155

a quota da Europa, que era de 6%, passou para O segundo traço da globalização da econo-
3,9%. No que respeita à produção de televiso- mia é a primazia total das empresas multi-
res, a quota da Ásia era em 1965 de 14,2% (qua- nacionais, enquanto agentes do “mercado glo-
se só o Japão) e passou em 1989 para 58,2%, bal”. A própria evolução do nome por que são
enquanto a quota da América do Norte passou conhecidas assinala a constante expansão das
no mesmo período de 37,2% da produção mun- atividades destas empresas com actividades
dial para 16,4% e a quota da Europa passou de em mais que um Estado nacional: de empresas
34,5 para 16,1%. multinacionais para empresas transnacionais
No domínio da indústria de média tecnolo- e, mais recentemente, para empresas globais.
gia como, por exemplo, na indústria de auto- Quaisquer que sejam os indicadores utiliza-
móvel, a deslocação foi também significativa: dos — investimento destas empresas enquanto
a Ásia, que produzia 14,2% dos automóveis em percentagem do investimento total; percen-
1965 passou a produzir 28,6% em 1989, enquan- tagem da produção mundial; percentagem do
to a América do Norte que produzia 54,3% em comércio intra-empresas no total do comércio
1965 passou a produzir apenas 25,8% em 1989 mundial; número de filiais no estrangeiro — é
e a Europa manteve e mesmo melhorou ligei- evidente o aumento da importância das em-
ramente a sua quota (de 39,5% em 1965 para presas multinacionais. Entre as muitas causas
41,2% em 1989). A importância desta desloca- deste fato, duas são de salientar: a desregula-
ção não pode ser subestimada. Pela primeira ção dos mercados financeiros e a revolução
vez, depois de cinco séculos, o motor do capi- nas comunicações transcontinentais (Kenne-
talismo parece ter passado do Ocidente para dy, 1993: 50). Por vias diferentes, funcionaram
o Oriente. As condições únicas do Ocidente, ambas com um grande incentivo à internacio-
que segundo Weber explicaram a emergência nalização das empresas ao mesmo tempo que
do capitalismo, deixaram de ter grande sig- contribuíram para a separação entre fluxos
nificado, uma vez consolidado este modo de financeiros, por um lado, e comércio de mer-
produção e quando muito haveria agora de cadorias e serviços, pelo outro. Calcula-se, por
averiguar as condições únicas do Oriente para exemplo, que os fluxos mundiais de moeda
o desenvolvimento pujante do capitalismo no estrangeira — transações, de resto, exclusi-
final do século. vamente eletrônicas — rondam um trilhão de
156 Boaventura de Sousa Santos

dólares por dia. É difícil determinar o número outro lado, as multinacionais, dotadas de um
exato de empresas multinacionais, mas apesar poder de intervenção global e se beneficiando
de serem certamente largos milhares, é notável da mobilidade crescente dos processos de pro-
o grau de concentração que faz com que o valor dução podem facilmente pôr em concorrência
anual das vendas de algumas destas empresas dois ou mais Estados ou duas ou mais regiões
seja superior ao produto doméstico bruto de dentro do mesmo Estado sobre as condições
muitos países periféricos. A título de exemplo, que decidirão da localização do investimento
as 10 maiores empresas do sector químico fo- por parte da empresa multinacional. Entre par-
ram responsáveis por 21% do total das vendas tes com poder tão desigual — atores globais,
de produtos químicos em 1990 e as 15 maiores por um lado, e atores nacionais ou subnacio-
empresas do sector farmacêutico concentra- nais por outro — a negociação não pode deixar
ram cerca de 30% do comércio mundial de pro- de ser desigual.
dutos farmacêuticos (Ikeda, 1992). O outro traço de globalização da economia
Concomitantemente com a primazia das fortemente vinculado à proeminência das mul-
multinacionais, dois outros traços de globa- tinacionais é o avanço tecnológico das últimas
lização da economia devem ser mencionados décadas quer na agricultura com a biotecno-
pela importância que têm para a polarização da logia, quer na indústria com a robótica, a
desigualdade entre o Norte e o Sul. O primei- automação e também a biotecnologia. Os au-
ro é a erosão da eficácia do Estado na gestão mentos de produtividade com que são propa-
macroeconômica. A transnacionalização da gandeadas estas novas tecnologias escondem
economia significa, entre outras coisas, pre- frequentemente o fato de que elas contribuem
cisamente tal erosão e não seria possível sem para a polarização entre o Norte e o Sul, dados
ela. A desregulação dos mercados financeiros os investimentos de capital, os recursos cien-
e a revolução das comunicações reduziram a tíficos, a mão-de-obra qualificada e a escassez
muito pouco o privilégio que até há pouco o Es- de mão-de-obra que pressupõem. Aliás, con-
tado detinha sobre quis aspectos da vida nacio- tribuem igualmente para o aprofundamento
nal — a moeda e a comunicação considerados das assimetrias dentro do Norte, entre as suas
atributos da soberania nacional e vistos como várias regiões. Em 1988, dos 280.000 robots
peças estratégicas da segurança nacional. Por industriais existentes no mundo, 257.000 es-
O Norte, o Sul e a utopia 157

tavam concentrados no Japão, na Europa oci- wn et al., 1990: 65). As explicações naturalistas
dental e nos EUA. Mas o mais notável é que, desta discrepância não são convincentes, pois,
desses, o Japão detinha 176.000, ou seja, mais doutro modo, mal se justificaria que o Norte
do dobro da soma dos robots da Europa e dos estivesse a braços com uma crise de sobrepro-
EUA, cerca de 70% da população mundial de dução e o Sul com uma crise de subprodução.
robots industriais (Kennedy, 1993: 88). As con- Que as razões devem ser outras ilustra-o a
dições que levaram o Japão a esta liderança biotecnologia agrícola que nos últimos anos tem
tornam difícil a competição dos outros países vindo a ser promovida como a grande solução
centrais e impossível a dos países periféricos e para o problema alimentar mundial. Enquanto
semiperiféricos do sistema mundial. anteriormente a melhoria da produção agrícola
No que respeita à biotecnologia, o quadro se baseou em boa medida na seleção de semen-
é semelhante, pelo menos quanto às relações tes e de castas, do que se trata agora, na era da
Norte/Sul. Entre 1950 e 1984, a produção agrí- biotecnologia, é de recorrer a técnicas que usam
cola mundial cresceu mais rapidamente que organismos e processos vivos com vista a fazer
em qualquer período anterior e a produção de ou modificar produtos ou a melhorar plantas
cereais cresceu mais que a população. Desde ou animais. Está ainda por avaliar cabalmente
1984, uma série de fatores, desde a degradação o impacto da biotecnologia agrícola na saúde
dos solos, ao abuso dos fertilizantes e à mer- ou no meio ambiente. Se a produção pode au-
cadorização crescente da alimentação, con- mentar exponencialmente, fa-lo-á à custa da
vergiram para que esse crescimento desacele- biodiversidade. Se plantas e animais podem ser
rasse. É difícil de prever se estamos perante sujeitos à engenharia genética para se tornarem
o início de uma tendência de longo prazo. É, mais resistentes às doenças, à seca, ou aos her-
de qualquer modo, significativo que, apesar de, bicidas, isso é no fundo um incentivo a tolerar e
segundo as previsões do Worldwatch Institu- até a promover a degradação ecológica. Mas o
te, ser necessário aumentar anualmente a pro- aspecto mais saliente da biotecnologia agrícola
dução de cereais de 28 milhões de toneladas do ponto de vista das relações Norte/Sul é que
para acompanhar o aumento da população, nos ela certamente agravará tanto a sobreprodução
anos mais recentes o crescimento não tenha do Norte como a subprodução do Sul. A grande
sido superior a 15 milhões de toneladas (Bro- novidade da biotecnologia é que ela é levada a
158 Boaventura de Sousa Santos

cabo por grandes empresas multinacionais que grandes empresas multinacionais, o que já se
sujeitam as patentes às descobertas biotécnicas designa por “imperialismo biológico” (Kloppen-
e que, por isso, privam dos seus benefícios to- burg, 1988).
dos os que não puderem pagar os direitos auto- Todos estes traços da globalização da econo-
rais (royalties). Como diz Paul Kennedy, o DNA mia ajudam a compreender as razões por que
é o novo recurso industrial das grandes empre- nas últimas décadas as desigualdades entre o
sas, que não só pode vir a substituir matérias- Norte e o Sul aumentaram significativamente.
-primas usualmente fornecidas pelos países É já um lugar-comum afirmar que a década de
periféricos, como pode conduzir à integração oitenta foi uma década negra para os países pe-
vertical da produção agrícola, colocando vastas riféricos. É menos comumente conhecido que
regiões do mundo sob a alçada de umas poucas as agências internacionais não esperam que a
empresas multinacionais do ramo agroquímico década de noventa seja melhor. Segundo a Sou-
e biotecnológico (Kennedy, 1993: 73). Tal como th Commission, “a década de noventa trará
sucede com a robótica e a automação, são tam- ainda mais privações para os povos do Sul, ain-
bém visíveis conflitos entre os países centrais da maior instabilidade para estes países” (Ihon-
neste domínio, dado o diferente peso que neles vbere, 1992: 999). Os dados são efetivamente
têm a agricultura e sobretudo os agricultores alarmantes. Enquanto a África esta a atingir um
(enquanto o Japão importa produtos alimenta- ponto de colapso, na América Latina o nível de
res, a Europa e os EUA têm grandes exceden- vida no início da década de noventa era mais
tes). Mas é no domínio das relações Norte/Sul baixo que o da década de setenta. Dos 84 pa-
que o impacto da biotecnologia mais se fará íses menos desenvolvidos, 54 tiveram quebras
sentir. É que se, por um lado, o uso de patentes no rendimento nacional per capita na década
visa criar rendas que funcionam como transfe- de oitenta. Em 14 países, o rendimento per ca-
rências líquidas do Sul para o Norte, por outro pita caiu cerca de 35% (Ihonvbere, 1992: 989).
lado, essas transferências ocorrem desde logo Em treze anos, a dívida externa dos países do
na própria engenharia dos produtos, pois, como Sul passou de 170 bilhões de dólares em 1975
bem salienta Kloppenburg, dado que a maioria para 1.200 bilhões em 1988.
dos recursos genéticos se encontram nos paí- Perante isto não admira que o cisma global
ses do Sul, estes estão já a ser espoliados pelas entre os ricos e os pobres se tenha aprofunda-
O Norte, o Sul e a utopia 159

do. Calcula-se que 1 bilhão de pessoas — mais e, por essa via, absorver a ameaça que inicial-
de 14 da população mundial — viva em pobre- mente lhes pôs a OPEP, e depois também que
za absoluta, ou seja, dispondo de um rendimen- os governos conservadores chegaram ao poder
to inferior a cerca de 365 dólares por ano. Do nos EUA, na Inglaterra e na Alemanha, inflama-
outro lado do abismo, 15% da população mun- dos do fogo neoliberal da desregulamentação,
dial produziu e consumiu 70% do rendimento do corte da ajuda externa e dos subsídios, da
mundial. Enquanto a ajuda externa dos países abertura das economias do Sul empurradas
centrais aos países periféricos caiu de 0,37% do para a exportação a fim de cumprir com os
PNB em 1980 para 0,33% em 1989, as taxas de encargos da dívida externa em que entretanto
juro da dívida externa dos países do Sul subi- foram armadilhados.
ram 172% entre 1970 (3,7%) e 1987 (10%), o que Para além dos poucos países do Sul que
leva alguns autores a calcular em 40 bilhões nesta década conseguiram beneficiar das
de dólares o montante anual de transferências transformações da economia mundial, a es-
líquidas do Sul para o Norte, sendo esse pois magadora maioria perdeu, e uma parte dela
literalmente o valor da contribuição de um Sul atingiu uma situação de colapso que se mani-
mirrado de fome para a abastança do Norte. O festa de múltiplas formas: na perda da pouca
aumento da dívida externa, combinado com a soberania efetiva dos Estados periféricos, que
queda do preço mundial de alguns dos produ- ficaram mais e mais sujeitos aos programas
tos exportáveis pelo Sul, levou alguns países ao de ajustamento estrutural do Banco Mundial
colapso. Devido à continuada quebra do preço e do FMI; na conturbação interna, na violên-
do cobre, o serviço da dívida externa da Zâm- cia urbana, nos motins dos esfomeados, na má
bia correspondia a 95% do total das exporta- nutrição; e finalmente na degradação do am-
ções (Ihonvbere, 1992: 994). biente que, se não foi originada pela dívida ex-
O programa da Nova Ordem Econômica In- terna, foi quase sempre agravada pela neces-
ternacional lançado pela ONU em 1975, com sidade de aumentar as exportações de modo
vista a criar uma maior solidariedade entre o a fazer face aos encargos da dívida. A fome e
Norte e o Sul, redundou num total fracasso, so- a má nutrição aumentaram significativamente
bretudo depois que os países do Norte conse- nas duas últimas décadas e a economia políti-
guiram reciclar os excedentes de petrodólares ca internacional da alimentação é talvez, mais
160 Boaventura de Sousa Santos

que nenhuma outra, reveladora das trocas de- los menos no longo prazo. Muitas das culturas
siguais entre o Norte e o Sul. tradicionais foram negligenciadas ou substitu-
Antes de 1945, o chamado terceiro mun- ídas e estes países passaram a depender cada
do exportava cereais e nos anos cinquenta vez mais da importação de cereais, para além
era auto-suficiente em produtos alimentares, de as suas populações se terem de reduzir a
apesar de a seca e outros fatores produzirem uma dieta menos variada e estranha em rela-
períodos de fome, como, por exemplo, na Ín- ção aos seus hábitos alimentares ancestrais.
dia, nos anos cinquenta e sessenta e em África Este processo foi particularmente notório em
(Pelizzon, 1992: 7). Em 1954 os EUA iniciaram África, mas ocorreu noutras regiões, como
o programa de vendas subsidiadas de produ- por exemplo na Coreia do Sul, que no final da
tos alimentares designado Alimentação para década de sessenta tinha passado de um país
a Paz. Sendo conhecido do público como um consumidor de arroz para um país consumidor
programa para combater a fome no mundo, a de trigo. O mesmo enviesamento de objetivos a
verdade é que, na lei que o estabeleceu, esse favor do aumento do comércio internacional e
objetivo é referido em quarto lugar, sendo os em detrimento do consumo real de alimentos
três outros vinculados aos interesses econômi- por parte dos pobres verificou-se igualmente
cos dos EUA: aliviar os excedentes agrícolas, na Índia com a revolução verde, ainda que esta
desenvolver mercados de exportação para as tenha permitido à Índia transformar-se num
mercadorias agrícolas americanas e expandir país exportador de cereais.
o mercado internacional. Não restam dúvidas Nas duas últimas décadas a condição ali-
que esse programa foi eficaz como mecanismo mentar das massas empobrecidas do Sul
de desemprego: entre 1954 e 1964 a ajuda ali- agravou-se significativamente. A dependência
mentar constituiu 34% do total das exportações alimentar que o Food for Peace tinha criado
de cereais dos EUA e 57% das importações to- nos países periféricos revelou toda a sua ne-
tais de cereais pelos países do Terceiro Mundo gatividade quando a partir de 1972 os EUA eli-
(Pelizzon, 1992: 8). É muito mais duvidoso que minaram quase totalmente esse programa e o
este programa tenha efetivamente beneficiado substituíram por vendas comerciais (Pelizzon,
os países do Sul e muitos dados convergem no 1992: 15). Esta mudança de política surgiu num
sentido de que, ao contrário, os prejudicou pe- momento particularmente difícil para o tercei-
O Norte, o Sul e a utopia 161

ro mundo. A Índia e os países do Norte de Áfri- de carne entre 1950 e 1970, o consumo de car-
ca viviam períodos de grande seca, a produção ne per capita baixou nesse período de 49 libras
mundial de cereais abrandou e os preços de para 33 libras (Pelizzon, 1992: 20). Num con-
fertilizantes subiu em resultado da crise do pe- texto internacional cada vez mais dominado
tróleo. Se, por um lado, o preço dos produtos pelas empresas agro-alimentares, a produção
alimentares subiu, por outro lado, os países do alimentar está cada vez mais vinculada à pro-
Sul viram-se forçados a prosseguir o abandono cura efectiva. A queda do rendimento dos pa-
das culturas de subsistência a fim de promover íses periféricos, sobretudo a partir da década
as culturas de exportação como solução par- de setenta, contribuiu fortemente para que na
cial para a crise produzida pela dívida externa. década seguinte a produção mundial de produ-
A subida dos preços dos produtos alimentares tos agrícolas começasse a desacelerar. É esta
foi ainda provocada pela expansão para o ter- a situação presente e por isso não surpreende
ceiro mundo do mercado de produtos alimen- que as estimativas da má nutrição no mundo
tares processados e enlatados controlado por estejam constantemente a ser corrigidas e sem-
grandes empresas multinacionais, uma subida pre para pior.
de preços articulada com a perda de valor nu- O que há de mais novo na situação presen-
tritivo dramaticamente ilustrada pela promo- te é que a má nutrição e a fome aumentaram
ção dos substitutos da amamentação materna nos próprios países centrais e muito particular-
por parte da Nestlé com as consequências que mente nos EUA. O que prova à sociedade que
são conhecidas. a fome e a má nutrição não dependem tanto
A exportação agrícola para fazer face à dí- do nível de produção agrícola ou do nível ge-
vida assumiu proporções dramáticas nalguns ral da prosperidade do país, como das assime-
países. No Brasil, por exemplo, a produção de trias sociais, do abismo crescente entre ricos
feijão preto, base da alimentação brasileira, foi e pobres. Estará certamente relacionada com
negligenciada em favor da produção de soja. O isto a ênfase recente por parte das instituições
aumento da produção de carne nos países da internacionais na recuperação, da agricultura
América Latina tão-pouco significou a melhoria tradicional. Reconhece-se que uma parte signi-
da alimentação dos seus habitantes. Apesar de ficativa da população mundial estará nas próxi-
a Costa Rica ter aumentado muito a produção mas gerações abaixo do nível de solvência que
162 Boaventura de Sousa Santos

lhes permita serem consumidores da agricul- é apenas o exemplo mais dramático. Em cada
tura comercial. Mas há também quem suspeite década, desde 1950, perderam-se 30 milhões
— com alguma razão, em vista do que mencio- de hectares de floresta na África tropical, 40
nei acima — que o interesse na recuperação milhões na América Latina e 25 milhões na
da agricultura tradicional pode estar também Ásia meridional (Pelizzon, 1992: 2). Em Áfri-
relacionado com a manutenção da biodiversi- ca é plantada apenas 1 árvore por cada 29 que
dade e do germ plasm de que os países do Sul são cortadas (Kennedy, 1993: 115). Mas a de-
são o grande depósito. Como já aconteceu no gradação ambiental provocada por esta via é
passado noutras circunstâncias, não é absurdo apenas um aspecto muito parcial de um fenó-
pensar que os agricultores do Terceiro Mundo meno muito mais amplo — a crise ecológica
venham a fornecer às empresas de biotecnolo- — tão amplo que, em meu entender, constitui
gia recursos genéticos a partir dos quais estas o terceiro vetor, juntamente com a explosão
produzam bio-produtos a que os agricultores demográfica e a globalização da economia, do
do Terceiro Mundo só terão acesso se tiverem espaço-tempo mundial. Far-lhe-ei de seguida
recursos para pagar os elevados preços que uma breve referência.
elas cobrarão por eles. De todos os problemas enfrentados pelo sis-
tema mundial, a degradação ambiental é talvez
A degradação ambiental o mais intrinsecamente transnacional e, por-
tanto, aquele que, consoante o modo como for
Disse acima que os fatores da transnaciona-
enfrentado, tanto pode redundar num conflito
lização do empobrecimento, da fome e da má
global entre o Norte e o Sul, como pode ser a
nutrição tiveram entre muitas consequências
plataforma para um exercício de solidariedade
adversas a da degradação ambiental. A pres-
transnacional e intergeracional. O futuro está,
são para intensificação das culturas de expor-
por assim dizer, aberto a ambas as possibilida-
tação combinada com técnicas deficientes de
des, embora só seja nosso na medida em que a
gestão de solos levaram à desertificação, à sa-
segunda prevalecer sobre a primeira. As pers-
linização e à erosão. A destruição das florestas
pectivas não são, no entanto, animadoras. Por
tropicais, sobretudo no Brasil e na América La-
um lado, o Norte não parece disposto a aban-
tina, mas também na Indonésia e nas Filipinas,
donar os seus hábitos poluidores e muito me-
O Norte, o Sul e a utopia 163

nos a contribuir, na medida dos seus recursos no final do século XIX, princípios do século
e responsabilidades, para uma mudança dos XX, com o corte de madeira para exportação
hábitos poluidores do Sul, que são mais uma e para construção dos caminhos de ferro (Rao,
questão de necessidade que uma questão de 1991: 14). Trata-se, pois, de uma agressão que,
opção. Por outro lado, os países do Sul tendem apoiada em vários cálculos econômicos, tem-
a não exercer a favor do equilíbrio ecológico o -se mantido décadas a fio. Em julho de 1991,
pouco espaço de manobra que neste domínio num apelo dirigido aos presidentes das repúbli-
lhes resta. Para além de muitas outras razões, e cas da América Latina, denunciava-se que, ao
por absurdo que pareça, depois do colapso do ritmo da destruição atual, no ano 2000 3/4 das
comunismo, a capacidade de poluição é talvez florestas tropicais da América Latina — que de-
a única ameaça credível com que os países do tém 60% do total mundial de florestas tropicais
Sul podem confrontar os países do Norte e ex- — terão sido destruídos e com eles 50% das
trair deles algumas concessões. espécies perdidas para sempre. Entre muitos
Cerca de um terço do solo do planeta é cons- outros efeitos, a desflorestação e a erosão do
tituído por desertos e cidades em que pouca solo traz consigo a rarificação da água potável,
atividade biológica é gerada, um terço é cons- o que sucede tanto nos países centrais como
tituído por florestas e savanas e um terço por nos periféricos. Calcula-se que 40 milhões de
terrenos de agricultura e pastorícia (Brown et camponeses chineses sofrem de escassez de
al., 1990: 5). Os dois últimos terços têm, por as- água potável devido à poluição agrícola e, por
sim dizer, vindo a diminuir e obviamente que outro lado, os resíduos de fertilizantes têm sido
não apenas por razões diretamente ligadas, no detectados nas reservas de água da França, da
caso dos países do Sul, à dívida externa. En- Alemanha, da Holanda, da Inglaterra e da Di-
tre 1950 e 1980 perderam-se 50% das reservas namarca (Pelizzon, 1992: 26). Em trinta anos,
florestais dos Himalaias devido à duplicação o mar Aral transformou-se num mar fantasma
da população e à procura que ela gerou, quer com menos 40% de área e com menos 60% de
de solo agrícola, quer de pastos, quer de lenha volume e, em menos de uma década, a Arábia
(Kennedy, 1993: 99). A verdade, porém, é que Saudita reduziu em 1/5 os lençóis aquáticos
a destruição maciça das florestas dos sopés acumulados em milhares de anos (World Re-
dos Himalaias começou com o colonialismo sources, 1990: 171-177).
164 Boaventura de Sousa Santos

Os países do Norte “especializaram-se” na do petróleo mundial —, o ecossistema mundial


poluição industrial e em tempos mais recentes dificilmente se poderá continuar a renovar na
têm conseguido exportar parte dessa poluição forma que nos é conhecida.
para os países do Sul, quer sob a forma de ven- Qual o impacto da degradação ambiental nas
da de lixo tóxico, quer por transferência de al- relações Norte/Sul? O fato de esse impacto ser
gumas das indústrias mais poluentes por ser aí crescentemente global parece indicar que não
menor a consciência ecológica e serem menos há face a ele a possibilidade de uns só retira-
eficazes (se de todo existentes) os controles rem vantagens e outros só desvantagens, pelo
antipoluição. De todos os efeitos da poluição que será “natural” a solidariedade internacio-
e da degradação ambiental em geral, os mais nal para o enfrentar. Na verdade, nada parece
ameaçadores são hoje em dia o efeito estufa e mais difícil que a construção da solidariedade
a degradação da camada de ozono, com conse- neste domínio. Em primeiro lugar, a gravidade
quências para o ecossistema da terra difíceis de do problema ambiental reside antes de mais no
prever em toda a sua extensão. As emissões de modo como afetará as próximas gerações, pelo
CO2, os clorofluorocarbonetos, a desfloresta- que a sua resolução assenta forçosamente num
ção e acidificação das florestas, a poluição dos princípio de responsabilidade intergeracional e
rios, tudo isso tem contribuído para o efeito numa temporalidade de médio e longo prazo.
estufa. Neste século a concentração atmosfé- Sucede, porém, que tanto os processos políti-
rica de CO2 aumentou de 70 partes por milhão cos nacionais, como os processos políticos in-
para cerca de 350 partes por milhão. Atualmen- ternacionais são hoje, talvez mais do que nunca
te são lançados na atmosfera 6 bilhões de to- neste século, dominados pelas exigências a cur-
neladas de carbono. Os Estados Unidos são o to prazo. Acresce que no Norte a proeminência
maior emissor mundial de gases que produzem dos mercados financeiros e de capitais atua no
o efeito estufa com 17,6% do total de emisso- mesmo sentido, penalizando qualquer estraté-
res, seguidos pela ex-União Soviética com 12% gia empresarial, assumida ou imposta, que di-
e o Brasil com 10,5%, a China com 6,6%, a Índia minua a lucratividade no presente, mesmo que
com 3,9% e o Japão com 3,9%. Se nenhuma cor- em nome de uma lucratividade maior, mas ne-
reção for introduzida — a começar nos EUA, cessariamente incerta, no futuro. Nos países do
onde 4% da população mundial consome 1/4 Sul os processos político-econômicos são ainda
O Norte, o Sul e a utopia 165

mais complexos. Por um lado, a industrializa- as próximas gerações. Mas os países periféri-
ção de muitos países periféricos e semiperiféri- cos argumentam por vezes ao contrário, isto
cos nas duas últimas décadas ocorreu na mira é, em nome do bem-estar das próximas gera-
de força de trabalho abundante e barata e de ções para justificar as políticas poluidoras do
uma maior tolerância social e política da polui- presente. A Índia e a China, por exemplo, não
ção. Nestas condições, qualquer medida pró- admitem ser privadas de tentar para as suas
-ambiente seria contra a lógica do investimento gerações futuras um nível de vida semelhante
efetuado com as consequências previsíveis. ao que hoje usufruem os habitantes dos países
O dilema do México face ao tratado de co- centrais, mesmo que para isso seja necessário
mércio livre com os EUA e o Canadá é bem agravar o efeito de estufa. Por sua vez, o Bra-
ilustrativo. A posição do México no tratado sil, apesar de estar a mudar de política no que
pressupôs sempre que a industrialização a sul respeita à Amazônia, ressente que lhe sejam
do Rio Grande estaria sujeita a muito pouco postas restrições à desflorestação por países
controlo ecológico. Era sabido que o México cujos habitantes gastam 15 vezes mais energia
tinha excelentes leis de proteção do meio am- que os brasileiros e sem que sejam evidentes
biente mas sabia-se igualmente que não havia as contrapartidas para compensar os custos de
nem condições técnicas nem vontade política tais restrições no caso de elas serem levadas
para as aplicar eficazmente. Antes pelo con- a cabo. Por seu lado, a Indonésia propõe-se
trário. Hoje, com uma nova administração na eliminar 20% das suas florestas para que, nos
Casa Branca, mais preocupada com as ques- termos dos anúncios governamentais, “os seus
tões ambientais mas acima de tudo preocu- 170 milhões de habitantes tenham as mesmas
pada com o aumento do desemprego no país, aspirações que os habitantes dos EUA” (World
o governo mexicano vê com preocupação a Resources, 1990: 106).
possibilidade de o tratado não trazer as “van- Perante isto, tornou-se difícil imaginar medi-
tagens” esperadas por falta de salvaguardas das preventivas globais, apesar de reconhecida
ambientais na indústria mexicana. De fato, a a sua urgência. Mas mesmo que algumas sejam
lógica desta e do investimento estrangeiro que adotadas, são muito desiguais os recursos dos
a criou assentou desde o início na transferên- diferentes países para que possam ser levadas
cia dos custos da degradação ambiental para a cabo coerentemente e de modo global. Acres-
166 Boaventura de Sousa Santos

ce que, perante a concretização de um desastre Em segundo lugar, e em aparente contra-


ambiental, as medidas de proteção ou de con- dição com isto, os problemas mais sérios
tenção adequadas envolverão eventualmente com que se confronta o sistema mundial são
custos que só alguns países podem assumir. Se, globais e como tal exigem soluções globais,
em consequência do efeito de estufa, aumen- marcadas não só pela solidariedade dos ri-
tar ligeiramente o nível das águas do mar, tanto cos para com os pobres do sistema mundial,
a Holanda como o Bangladesh deverão tomar como pela solidariedade das gerações pre-
medidas protectivas contra o avanço do mar, sentes para com as gerações futuras. No en-
mas obviamente o Estado de Bangladesh não tanto, os recursos económicos, sociais, políti-
disporá para isso de recursos comparáveis aos cos e culturais que tais medidas pressupõem
do Estado holandês. não parecem disponíveis no sistema mundial
Analisado à luz dos três sectores seleciona- e, em verdade, parecem hoje menos disponí-
dos — o aumento da população, a globalização veis que antes. Por um lado, a globalização da
da economia e a degradação ambiental — o es- economia deu uma proeminência sem prece-
paço-tempo mundial parece defrontar-se com dentes a sujeitos econômicos poderosíssimos
uma situação dilemática a vários níveis. Em que não se sentem devedores de lealdade ou
primeiro lugar, o modelo de desenvolvimen- de responsabilidade para com nenhum país,
to capitalista assume uma hegemonia global região ou localidade do sistema mundial. Le-
no momento em que se torna evidente que os aldade e responsabilidade, só as assumem pe-
benefícios que pode gerar continuarão confina- rante os acionistas e, mesmo assim, dentro de
dos a uma pequena minoria da população mun- alguns limites. Por outro lado, os processos
dial, enquanto os seus custos se distribuirão políticos dos Estados que compõem o sistema
por uma maioria sempre crescente. Se bem que interestatal estão cada vez mais dominados
a lógica e a ideologia do consumismo se glo- por lógicas, cálculos e compromissos de cur-
balizará, cada vez mais, a prática do consumo to prazo, avessos, por natureza, a objetivos
continuará inacessível a vastas massas popula- intergeracionais ou de longo prazo. Acresce
cionais. As desigualdades sociais entre o cen- que a própria globalização da economia e dos
tro e a periferia do sistema mundial tenderão, problemas que ela gerou minou a eficácia dos
pois, a agravar-se. dispositivos institucionais que lhe poderiam
O Norte, o Sul e a utopia 167

fazer face e nisto reside o terceiro dilema do cio de um novo ciclo de colonialismo ou, pelo
espaço-tempo mundial. menos, de neocolonialismo. Paradoxalmente,
A perda de centralidade institucional e de o colapso do “grande inimigo” da democra-
eficácia reguladora dos Estados nacionais, por cia ocidental, o comunismo, traduz-se não em
todos reconhecida, é hoje um dos obstáculos maior mas antes em menor poder democrático
mais resistentes à busca de soluções globais. internacional por parte dos países periféricos
É que a erosão do poder dos Estados nacionais e semiperiféricos. As próprias Nações Unidas,
não foi compensada pelo aumento de poder de que foram durante décadas uma das platafor-
qualquer instância transnacional com capaci- mas de concorrência entre as duas superpotên-
dade, vocação e cultura institucional viradas cias e com isso granjearam um certo poder de
para a resolução solidária dos problemas glo- arbitragem e uma cultura de imparcialidade,
bais. De fato, o caráter dilemático da situação estão hoje crescentemente prisioneiras dos in-
reside precisamente no fato de a perda de eficá- teresses geo-estratégicos dos Estados Unidos
cia dos Estados nacionais se manifestar antes da América (sem, no entanto, serem capazes
de mais na incapacidade destes para construí- de os servir de acordo com as “expectativas”
rem instituições internacionais que colmatem e norte-americanas).
compensem essa perda de eficácia. Perante uma situação multiplamente dile-
O quarto e último dilema do espaço-tempo mática, há quem não cruze os braços e procu-
mundial reside em que, no momento em que os re saídas. Não é fácil porque, como já referi, a
países centrais e as instituições internacionais erosão recente dos processos de regulação so-
sob seu controle impõem aos países periféri- cial, quer a nível nacional, quer a nível trans-
cos e semiperiféricos a adoção de regimes de nacional, acarretou consigo a erosão — e não
democracia representativa e de defesa dos di- o fortalecimento, como muitos esperavam —
reitos humanos, as relações entre Estados no dos projetos emancipatórios e da vontade po-
interior do sistema interestatal são cada vez lítica de transformação social. Mesmo assim,
menos democráticas, na medida em que os temos vindo a assistir à emergência de lutas
países do Sul têm cada vez menos autonomia que pretendem ser como que a negação dia-
interna e estão sujeitos a imposições externas lética dos dilemas acima referidos. Os seus
de toda a ordem, por vezes indiciadoras do iní- promotores são sociologicamente muito hete-
168 Boaventura de Sousa Santos

rogêneos, tanto quanto o são os seus modos da humanidade e tratados como a lei do mar
de organização e os seus objetivos. São os ou o tratado da Antártida.
movimentos ecológicos, os movimentos dos Disse acima que a prática social está estru-
direitos humanos, os movimentos dos povos turada em quatro espaços-tempo. Até agora
indígenas, os movimentos de mulheres, os debrucei-me exclusivamente sobre o espaço-
movimentos de operários de vários países a -tempo mundial, mas não porque ele detenha
trabalhar em diferentes filiais da mesma em- alguma primazia apriorística na explicação dos
presa multinacional, etc., etc. O que há de co- processos sociais da nossa contemporaneida-
mum entre estes grupos é a tentativa de dar de. É, sem dúvida, um espaço-tempo com cres-
espessura política transnacional a problemas cente poder conformador, mas a sua eficácia
transnacionais por natureza (como, por exem- depende em última instância das articulações
plo, o buraco de ozono) ou a problemas trans- que entretece com os restantes espaços-tempo.
nacionalizáveis por via das ligações entre as Por sua vez, estes têm uma autonomia própria
suas múltiplas manifestações locais em dife- que lhes advém das relações sociais de âmbito
rentes partes do globo (como, por exemplo, local ou nacional que os constituem. Referirei a
os movimentos de operários dos vários países seguir muito brevemente os problemas funda-
onde opera a mesma multinacional, ou os mo- mentais com que cada um destes espaços-tem-
vimentos dos povos indígenas pelo controlo po se debate no presente e provavelmente se
dos recursos naturais existentes nos seus ter- debaterá nas próximas décadas e o modo como
ritórios ancestrais de que foram espoliados no tais problemas se articulam com os problemas
período colonial). Muitos destes movimentos dilemáticos do espaço-tempo mundial que aca-
deram origem ou estão ligados a organizações bei de mencionar.
não-governamentais transnacionais. Tam-
bém não podem deixar de ser mencionados O espaço-tempo doméstico
os esforços da comunidade internacional no
O espaço-tempo doméstico é o espaço-tem-
sentido de dar uma resposta transnacional a
po das relações familiares, nomeadamente en-
alguns problemas do espaço-tempo mundial,
tre cônjuges e entre pais e filhos. As relações
procurando renovar o direito internacional
sociais familiares estão dominadas por urna for-
com doutrinas como a do patrimônio comum
O Norte, o Sul e a utopia 169

ma de poder, o patriarcado, que está na origem significativamente segundo a classe social


da discriminação sexual de que são vítimas as (Wright et al., 1992). Fourier estava provavel-
mulheres. Obviamente, tal discriminação não mente a ser bom sociólogo ao afirmar que a
existe apenas no espaço-tempo doméstico e é igualdade dos sexos só seria possível numa
aliás visível no espaço-tempo da produção ou sociedade que abolisse a família e permitisse
no espaço-tempo da cidadania, como terei oca- o amor livre. A ideologia patriarcal do espaço-
sião de referir. Mas o patriarcado familiar é em -tempo doméstico tende, de fato, a influenciar
meu entender a matriz das discriminações que a subordinação da mulher no mercado de tra-
as mulheres sofrem mesmo fora da família, ain- balho, sendo apropriada tanto pelo capital no
da que atue sempre em articulação com outros espaço-tempo da produção, como pelo Estado
fatores. Esse caráter matricial manifesta-se, no espaço-tempo da cidadania que a institucio-
por exemplo, no facto, frequentemente notado, naliza, nomeadamente no domínio do direito
de que a divisão sexual do trabalho no espaço- penal, direito de família e da segurança social.
-tempo doméstico tende a ser homogênea e re- Como de resto noutros domínios, a distinção
lativamente estável em formações sociais com entre o espaço-tempo doméstico e o espaço-
diferentes divisões sexuais do trabalho noutros -tempo da produção, por exemplo, é tão impor-
espaços-tempo. tante quanto as profundas articulações entre
Um pouco por toda a parte a mulher tem a eles. Por exemplo, I. Wallerstein e outros têm
seu cargo, para além da reprodução biológica, chamado a atenção para a importância crucial
a preparação dos alimentos, as compras para do trabalho não pago realizado pelas mulheres
consumo doméstico e o trabalho de organiza- no espaço-tempo doméstico, na determinação
ção e de execução que permite a reprodução capitalista dos custos do trabalho produtivo e,
funcional da unidade familiar. De uma outra portanto, na rentabilidade do capital (Wallers-
perspectiva, essa homogeneidade e estabili- tein, 1983; Chase-Dunn, 1991: 233). Trata-se
dade da divisão sexual do trabalho doméstico de uma forma não-salarial de exploração do
foi recentemente defendida por E. O. Wright trabalho feminino que indiretamente facilita
ao demonstrar que, entre as famílias norte- a exploração salarial do trabalho masculino.
-americanas e suecas, o montante de trabalho Este mecanismo funciona amplamente quando
doméstico realizado por homens não variava a mulher entra no mercado do trabalho, o que
170 Boaventura de Sousa Santos

vem a acontecer com cada vez mais intensida- é de mencionar o fato de o aumento do nível
de nas últimas décadas. educacional tornar mais amplas e exigentes as
A articulação das relações sociais do es- perspectivas de vida ativa, profissional ou não,
paço-tempo doméstico com o espaço-tempo das mulheres e de, portanto, seu comportamen-
mundial é complexa. Refiro alguns dos seus to reprodutivo tender a ser uma resposta à fal-
aspectos tendo em mente os três grandes sec- ta de condições sociais de apoio à maternidade
tores analisados: o aumento populacional, a que lhe permitam compatibilizar a maternida-
globalização da economia e a degradação do de com outros aspectos da vida ativa. A maior
meio ambiente. Dado o papel primacial das ou menor realização destas condições explica
mulheres na reprodução biológica da humani- diferenças de comportamento reprodutivo das
dade, a posição delas na família e na sociedade, mulheres em diferentes países centrais, por
a sua maior ou menor autonomia para tomar exemplo, na Suécia e no Japão.
decisões, a sua educação e os seus valores, as A globalização da economia tem vindo a ter
suas atitudes perante o controlo da natalidade um impacto significativo e multifacetado no es-
e a educação dos filhos são fatores cruciais em paço-tempo doméstico e, também neste caso, a
qualquer política coerente de controlo popula- posição das mulheres neste espaço é um ângu-
cional. Por exemplo, as estatísticas das Nações lo privilegiado de análise. O impacto tem a ver
Unidas mostram que, salvo algumas exceções, com o crescente emprego da mulher no sector
a taxa de fertilidade está intimamente relacio- industrial, com os efeitos do investimento mul-
nada com o nível educacional das mulheres, tinacional no trabalho das mulheres, com a for-
baixando à medida que este aumenta. Assim, te participação do trabalho feminino no sector
segundo o World Resources Institute, a ferti- desregulamentado ou informal da economia e,
lidade das mulheres analfabetas em Portugal finalmente, com a intensificação do trabalho
é de 3,5 enquanto a das mulheres com sete doméstico à medida que a dívida externa de
ou mais anos de escolaridade é de 1,8 (World muitos países do Sul provoca a queda dos salá-
Resources, 1990: 266). Em geral, a taxa total rios reais e do nível de vida da grande maioria
de fertilidade varia na razão direta da taxa de da população.
analfabetismo das mulheres. A explicação des- Sobretudo depois do trabalho de Esther Bo-
ta correlação é complexa. Entre outros fatores serup intitulado Women’s Role in Economic
O Norte, o Sul e a utopia 171

Development, publicado em 1970, tem prevale- tivos a situação das mulheres operárias do Nor-
cido a tendência para distinguir entre as posi- te e do Sul1. É certo que a grande maioria das
ções das mulheres — tanto no espaço-tempo mulheres ativas no Terceiro Mundo trabalham
doméstico, como no espaço-tempo da produ- na agricultura, uma percentagem que ronda os
ção — nos países do Norte e nos países do Sul. 70% na Ásia, na África e no Médio Oriente. Mas,
São três os argumentos principais apresenta- em geral, tem-se verificado unia feminização
dos por Boserup. Em primeiro lugar, a transi- da força de trabalho assalariado e a presença
ção da chamada sociedade tradicional para a das mulheres tende a ser particularmente forte
chamada sociedade moderna tem envolvido nas áreas e sectores de exportação onde o in-
sempre a queda do status social das mulheres. vestimento multinacional se tem concentrado,
Em segundo lugar, o aumento do nível tecno- ainda que, segundo Lourdes Benaria, tais áre-
lógico da produção agrícola e da produção in- as e sectores não representem mais que 3% do
dustrial afeta negativamente a taxa de empre- emprego multinacional global. No entanto, esta
go das mulheres relativamente à dos homens. percentagem oculta as extremas desigualdades
Em terceiro lugar, em toda a parte há certas de distribuição. Em certos países, as mulheres
tarefas, nomeadamente as relacionadas com chegam a atingir 80% a 90% da força de traba-
a subsistência, que são quase exclusivamente lho nas zonas e sectores de exportação. Por
desempenhadas por mulheres. outro lado, esta percentagem subestima o total
Apesar da validade geral destes argumen- do trabalho feminino para as empresas multi-
tos, eles correm o risco de criar uma imagem nacionais, uma vez que muito desse trabalho é
abstrata da “mulher do Terceiro Mundo”, per- indireto, realizado através das empresas locais
dendo de vista as diferenças da situação das por elas subcontratadas.
mulheres em diferentes países do Terceiro Mais importante ainda é o fato de as mulheres
Mundo e as diferenças de classe das mulheres serem sistematicamente vítimas de discrimina-
no interior de cada país. Para além disso, tais
argumentos podem estar parcialmente desa-
tualizados pelos processos de globalização da 1 Uma apreciação crítica do livro de Boserup em
face das transformações sociais ocorridas nos dez anos
economia nas duas últimas décadas, os quais
seguintes à sua publicação pode ler-se em Benaria e
fizeram convergir em alguns aspectos significa- Sen (1981).
172 Boaventura de Sousa Santos

ção salarial, sendo-lhes na prática negada a frui- dimentos reais da família e o impacto negati-
ção do princípio do salário igual para trabalho vo disso no espaço-tempo doméstico tende a
igual consagrado na legislação da maior parte ser suportado majoritariamente pelas mulhe-
dos países. A segmentação do mercado do tra- res. As múltiplas estratégias de sobrevivência
balho ocorre por outros fatores que não o sexo, exercitadas pelas mulheres têm uma aura de
por exemplo, pela raça e pela etnicidade. Mas a imaginação desesperada e muitas vezes trans-
segmentação pelo sexo é talvez um dos fatores bordam do espaço-tempo doméstico para a co-
mais universais e a globalização da economia munidade como, por exemplo, nos “comedores
em nada tem contribuído para o atenuar. Pelo populares” dos bairros de lata de Lima no Peru
contrário, a existência de um vasto potencial de ou nas “ollas comunes” da Bolívia (cozinhas
força de trabalho feminino a nível mundial tor- comunitárias sediadas na vizinhança).
na a prática da discriminação mais fácil. Aliás, a As transformações do espaço-tempo domés-
crescente internacionalização do capital contri- tico sob o impacto da internacionalização dos
bui por uma outra via para a transferência, para processos produtivos podem vir a ser no futu-
o espaço-tempo da produção, da dominação pa- ro ainda mais profundas, tanto no Norte, como
triarcal organizada no espaço-tempo doméstico. no Sul. Como se sabe, uma das transformações
Trata-se da prostituição e do chamado turismo históricas da família por parte do capitalis-
sexual, de que é principal cliente a classe execu- mo consistiu na conversão da família numa
tiva internacional. Nas Filipinas, as “hospedei- unidade de reprodução social (habitação, ali-
ras” (hospitality girls) registadas no Ministério mentação, socialização, reprodução biológica)
do Trabalho e do Emprego ascendem a 100.000, separada da unidade de produção que, com a
enquanto os cálculos para Banguecoque eram, primeira revolução industrial, passou a ser a fá-
em 1977, de 500.000 e para a Tailândia em ge- brica, um fenómeno analisado com particular
ral de 700.000. Estes números não cessaram de detalhe por Max Weber. Hoje em dia as novas
crescer na última década. tecnologias da informação, da comunicação,
Como em muitos países periféricos a globa- da automação estão a atuar no sentido de supe-
lização da economia e a crise da dívida externa rar esta distinção e fazer de novo convergir na
são dois fenômenos gêmeos, a proletarização família as funções de produção e de reprodu-
da família corre de par com a queda dos ren- ção. Sob diferentes formas, que, mais uma vez,
O Norte, o Sul e a utopia 173

tendem a reproduzir as hierarquias do sistema É sabido que a “modernização” e comercializa-


mundial, este fenómeno está a ocorrer tanto no ção da agricultura na periferia e semiperiferia
Norte como no Sul, e de tal modo que muitos do sistema mundial foi em geral feita em pre-
milhares de pessoas trabalham hoje em casa. juízo dos camponeses e em especial das mu-
No Norte, trata-se sobretudo de trabalhadores lheres camponesas. Para além da expulsão dos
altamente qualificados que, munidos do seu camponeses das terras mais férteis, selecio-
computador pessoal integrado em múltiplas nadas para culturas comerciais e de exporta-
redes, fazem em casa e com relativa autono- ção, os projetos de desenvolvimento agrícola
mia o trabalho que antes os fazia deslocar-se à (grandes barragens, projetos de irrigação)
empresa, perder horas nos congestionamentos têm vindo a produzir múltiplos desequilíbrios
de trânsito e trabalhar segundo horários mecâ- ecológicos, tais como desertificação e saliniza-
nicos e estandardizados. No Sul, o trabalho em ção, que tornam mais difíceis a sobrevivência
casa é quase sempre feito por mulheres e crian- diária e a vida doméstica dos camponeses. A
ças; é o trabalho realizado à peça, em geral nas desflorestação e a comercialização da flores-
indústrias trabalho-intensivas do sector têxtil ta, por exemplo, têm produzido a escassez de
e do calçado. Em conclusão, o problema fun- lenha para cozinhar os alimentos nos campos.
damental do espaço-tempo doméstico em con- Apanhar a lenha é em quase todas as partes
dições da crescente globalização da economia do sistema mundial uma tarefa feminina e os
reside em que, por um lado, a entrada no mer- dados revelam que o tempo despendido nessa
cado permite às mulheres transcender a domi- tarefa não tem parado de aumentar (Rao, 1991:
nação patriarcal do espaço-tempo doméstico, 13). Segundo Agarwal, na Gâmbia as mulheres
por outro lado, esta dominação transborda des- despendem mais de meio dia a apanhar lenha
te espaço para o espaço-tempo da produção e, (Agarwal, 1988). Por outro lado, a exploração
por essa via, reproduz, se não mesmo amplia, a desordenada dos lençóis aquáticos e a deserti-
discriminação sexual contra as mulheres. ficação tornam mais difícil a obtenção da água,
O impacto da degradação ambiental no es- outra tarefa que está em geral a cargo da mu-
paço-tempo doméstico faz-se sentir com mais lher no Terceiro Mundo.
intensidade no Sul, onde as tarefas domésticas Em conclusão, pode dizer-se que espaço-
são feitas em íntima relação com a natureza. -tempo doméstico está a passar por profundas
174 Boaventura de Sousa Santos

transformações sob o impacto do espaço-tem- Os movimentos de mulheres, quer autônomos,


po mundial. (como referi atrás, o problema fun- quer integrados noutros movimentos popula-
damental em verdade, dilemático — que tais res, como, por exemplo, o movimento operário
transformações suscitam é que se, por um lado, e o movimento ecológico, dão testemunho das
elas criam condições para unha maior emanci- possibilidades de reconstrução da subjetivida-
pação da mulher, por exemplo, através da en- de, tanto individual, corno coletiva.
trada desta no mercado de trabalho, o qual em
alguma medida a liberta da dominação patriar- O espaço-tempo da produção
cal doméstica, por outro lado, permitem que a
O espaço-tempo da produção é o espaço-
lógica desta dominação transborde do espaço-
-tempo das relações sociais através das quais
-tempo doméstico para o espaço-tempo da pro-
se produzem bens e serviços que satisfazem as
dução, por vias tão variadas quanto a discrimi-
necessidades tal como elas se manifestam no
nação sexual e o assédio sexual, reproduzindo
mercado enquanto procura efetiva. Caracte-
assim e até ampliando a discriminação contra
riza-se por uma dupla desigualdade de poder:
as mulheres. Acresce que, como ao entrar no
entre capitalistas e trabalhadores, por um lado,
espaço da produção não são aliviadas das ta-
e entre ambos e a natureza, por outro. Esta du-
refas no espaço-tempo doméstico, as mulheres
pla desigualdade assenta numa dupla relação
tendem a ser duplamente vitimizadas com os
de exploração: do homem pelo homem e da
efeitos negativos da globalização da economia.
natureza pelo homem. A importância do espa-
A consciência deste problema, apesar da sua
ço-tempo da produção reside em que nele se
natureza dilemática, não tem impedido e, pelo
gera a divisão de classes que juntamente com
contrário, tem motivado a emergência de im-
a divisão sexual e a divisão étnica constitui um
portantes movimentos de mulheres em luta por
dos grandes fatores de desigualdade social e
melhores condições de igualdade e de dignida-
de conflito social. É também nele que se cons-
de, tanto no espaço-tempo doméstico, como no
tituem as relações sociais básicas que geram,
espaço-tempo da produção. Nada mais errôneo
legitimam e tornam inevitável a degradação do
que transformar as mulheres em vítimas abstra-
meio ambiente. A conversão instrumentaliza-
tas e irrecuperáveis nas teias que a dominação
dora da força de trabalho em fator de produção
sexual e a dominação de classe entre si tecem.
O Norte, o Sul e a utopia 175

e a conversão da natureza em condição da pro- operária. São cada vez mais determinados por
dução são processos concomitantes que con- práticas sociais fora do espaço-tempo da pro-
juntamente tornaram possível uma exploração dução na esfera privada ou esfera pública e
sem precedentes na história da humanidade, com isto a categoria matricial da sociabilidade
tanto da energia humana, como dos recursos deixa de ser o trabalho para passar a ser a in-
naturais. Por último, a importância deste espa- teração. O terceiro argumento, formulado pela
ço-tempo advém-lhe por ter sido nele que se ge- primeira vez pelo movimento estudantil no fi-
raram as lutas sociais que durante décadas no nal da década de sessenta, é que a importância
nosso século ameaçaram por fim à (des)ordem do espaço-tempo da produção para a transfor-
social capitalista, o movimento operário comu- mação social decaiu a partir do momento em
nista e socialista. que o movimento operário, os sindicatos e os
A importância estrutural do espaço-tempo partidos operários se renderam à lógica capi-
da produção tem vindo a ser questionada nas talista a troco de aumentos salariais, seguran-
três últimas décadas. Três argumentos princi- ça no emprego e de outros benefícios sociais,
pais, de algum modo contraditórios, têm sido os quais se, por um lado, representaram con-
apresentados. O primeiro argumento é que a cessões importantes por parte do capital, por
sociedade capitalista evoluiu gradualmente outro lado, consolidaram a hegemonia deste,
para uma sociedade de lazer. O desenvolvi- transformando-o no único horizonte possível
mento tecnológico tem permitido ganhos tais de transformação social. Este argumento con-
de produtividade que o nível de vida e o tempo vergiu com outros nas décadas de setenta e de
livre podem aumentar conjuntamente. A ro- oitenta no sentido de relativizar o valor expli-
bótica e automação representam talvez a fase cativo das classes sociais e das lutas de classe
mais avançada deste desenvolvimento e even- nas práticas sociais e, em especial, nos proces-
tualmente libertarão o homem do trabalho pro- sos de transformação social.
dutivo. O segundo argumento, de algum modo Como facilmente se vê, estes argumentos ti-
ligado ao anterior, é que a pauta de valores e veram sempre em mente mais as realidades dos
os dispositivos culturais que orientam a ação países do Norte do que as realidades dos países
e constituem a subjetividade já não são, como do Sul, onde afinal vive 4/5 da população mun-
eram dantes, determinados pela experiência dial. Faz, pois, sentido, antes de avaliar estes
176 Boaventura de Sousa Santos

argumentos, passar em revista brevemente as de que o capital emigrou para o Sul, também é
transformações do espaço-tempo da produção verdade que, pelo menos na América, houve al-
nas duas últimas décadas em resultado da glo- guma emigração do trabalho do Sul para o Nor-
balização da economia. Aliás, algumas delas já te, onde se instalaram indústrias explorando
foram mencionadas acima ao analisar as articu- mão-de-obra barata e dócil, em modos muito
lações entre o espaço-tempo doméstico e o es- semelhantes aos que dominaram a industriali-
paço-tempo mundial. A perda da lucratividade zação do Sul. A emergência em Nova Iorque de
capital a partir da década de setenta foi um dos fábricas de vestuário empregando trabalhado-
fatores da transnacionalização da produção. A res imigrantes clandestinos levou a falar-se da
agudização da concorrência criou uma dupla “periferização do centro” (Chase-Dunn, 1991:
exigência com impacto direto na relação sala- 80). Por outro lado, tanto na periferia, como no
rial. Por um lado, a busca da redução dos custos centro, alastraram a subcontratação e a infor-
do trabalho e, por outro, o aumento da disciplina malização da relação salarial à margem da ne-
sobre o trabalho. Esta dupla exigência conduziu gociação coletiva e da legislação laboral (quan-
à maciça industrialização de alguns países peri- do existentes) com justificações semelhantes:
féricos e a uma certa desindustrialização, com a flexibilidade, adaptação ao mercado e redução
consequente perda postos de trabalho, nos paí- de custos. Por último, o crescimento acelerado
ses centrais onde, entretanto, o crescimento dos dos serviços nos países centrais esconde enor-
serviços aumentou significativamente. mes assimetrias internas: serviços altamente
O processo de globalização da economia remunerados ao lado de novos serviços muito
afetou assim tanto o centro como a periferia mal pagos, sem qualquer segurança nem pers-
do sistema mundial. Afetou-os de modo dife- pectiva de promoção.
rente, é certo, mas a hierarquia entre o centro e Sem dúvida que a globalização da economia
a periferia não se alterou muito. Mesmo assim, representou maior prosperidade para alguns
as transformações são importantes e legitimam países, mas não só manteve intactas, se não
que as “questões do desenvolvimento” tenham mesmo agravou, as assimetrias globais no sis-
deixado de ser um “privilégio” do Sul para se tema mundial, como agravou claramente as de-
aplicarem também, ainda que de forma modifi- sigualdades sociais, tanto nos países do centro,
cada, no Norte. Em primeiro lugar, se é verda- como nos países do Sul. O que este processo
O Norte, o Sul e a utopia 177

suscita do ponto de vista analítico é a necessi- escravos de um ciclo infernal do ganhar-gastar


dade de pensarmos globalmente as transforma- e os levou a aceitar como natural que os ga-
ções sociais sem contudo perdermos de vista nhos da produtividade se traduzissem sempre
as especificidades locais e nacionais com que em aumentos de rendimento, e não em meno-
se articulam. E é à luz desta exigência que deve- res horas de trabalho, como teria sido possível.
mos confrontar os argumentos acima referidos Assim, segundo os seus cálculos, os trabalha-
sob a perda de centralidade do espaço-tempo dores americanos trabalhavam cm 1987 mais
da produção. Ao fazê-lo, procurarei dar conta 163 horas por ano do que em 1969, ou seja, o
dos problemas fundamentais das relações so- equivalente a um mês adicional de trabalho
ciais deste espaço-tempo. (Schor, 1991: 79 e ss.). Este aumento não foi
Quanto ao argumento da produtividade en- distribuído igualmente pelos sexos: enquanto o
quanto geradora de lazer, os dados estão lon- aumento de horas de trabalho dos homens foi
ge de o confirmar. Pelo contrário, Juliet Schor, de 98 horas, o das mulheres foi de 305.
num livro recente e importante, significativa- A autora contrasta a situação dos trabalha-
mente intitulado The Overworked American: dores americanos com a dos trabalhadores de
The Unexpected Decline of Leisure, vem de- alguns países da Europa, onde os aumentos da
monstrar que, ao contrário do senso comum produtividade levaram de fato a uma diminui-
dos economistas e sociólogos, o lazer dos ção do tempo de trabalho, fato que ela atribui
trabalhadores americanos tem vindo a dimi- predominantemente à força do movimento
nuir consistentemente nos últimos trinta anos sindical. Julgo, contudo, que este contraste re-
(Schor, 1991). É evidente que neste período a sultará atenuado se analisarmos a evolução do
produtividade aumentou dramaticamente, mas tempo real de trabalho de 1987 para cá e, so-
o contexto social em que ela ocorreu fez com bretudo, se incluirmos nesse cálculo os países
que, em vez de reduzir as horas de trabalho, da semiperiferia europeia, como Portugal, Es-
as aumentasse. Esse contexto foi, segundo a panha, Grécia e Irlanda. Mas o mais importante
autora, caracterizado pela grande fraqueza do a reter é que as reduções do tempo de traba-
movimento sindical, incapaz de lutar pela redu- lho que foram sendo obtidas destes meados do
ção do tempo de trabalho, e pela compulsão do século XIX até à segunda guerra mundial são
consumo, que transformou os americanos em reduções de um longuíssimo tempo de traba-
178 Boaventura de Sousa Santos

lho, imposto, pela primeira vez, com a primei- a legítima — o consumismo. Através delas, o
ra revolução industrial, e que representa uma crescimento infinito da produção ocorre sime-
ruptura total com o tempo de trabalho e de la- tricamente com o crescimento infinito do con-
zer nas sociedades pré-capitalistas, onde, aliás, sumo e cada um deles alimenta-se do outro.
a distinção entre trabalho e lazer é bem mais Talvez, por isto, o segundo argumento sobre a
difícil de fazer. A investigação recente sobre perda da centralidade do espaço-tempo da pro-
o tempo medieval europeu ou sobre o tempo dução tenha uma ponta de verdade. A maior
nas sociedades ditas primitivas põe em causa a presença da prática do trabalho na vida das
ideologia da libertação do trabalho, propalada pessoas pode, em certas condições, ocorrer
pelo capitalismo. Em verdade, não só o ritmo, o de par com a inculcação de formas de sociali-
tempo e a monotonia do trabalho aumentaram, zação e de universos culturais e éticos em que
como aumentou a disciplina sobre o trabalho. o trabalho e a experiência operaria têm muito
Hoje em dia, se alargarmos o nosso ângulo de pouca importância ou são até substituídos pela
visão para além da comparação entre países do cultura do consumo e da cidadania.
Norte, e tivermos em conta a duração do traba- A dispersão social do trabalho obtida nas
lho nos países da periferia e da semiperiferia duas últimas décadas por processos tão dife-
do sistema mundial, onde a industrialização rentes como a transnacionalização dos siste-
das duas últimas décadas ocorreu, estou certo mas produtivos, a precarização e informaliza-
de que a conclusão será aí também de um sig- ção da relação salarial, o aumento do trabalho
nificativo aumento do trabalho e do controlo autônomo e ao domicílio, ao mesmo tempo
sobre o trabalho. E, à luz do que disse acima que dificulta a mobilização sindical, margina-
sobre o espaço-tempo doméstico, este aumen- liza a experiência do trabalho nos processos
to foi, por certo, particularmente pronunciado de construção da subjetividade, quer do não
no caso do trabalho feminino. trabalhador, quer do trabalhador. No que diz
Em vista disto, a centralidade do trabalho e respeito a este último, tal marginalização cor-
da produção, ao invés de diminuir, tem de fato responde a um processo de supressão e de
aumentado. E a razão para isto reside na cres- silenciamento ideológicos semelhante ao que
cente mercadorização da satisfação das neces- ocorre na experiência prisional. Especulo
sidades e na cultura que lhe está associada e mesmo se, para a esmagadora maioria dos tra-
O Norte, o Sul e a utopia 179

balhadores não qualificados do sistema mun- dominantes não se traduz em capacidade cole-
dial, o recente e crescente aumento do ritmo tiva para as transformar. Este é, para mim, um
e controlo sobre o trabalho não aproxima ar- dos problemas fundamentais com que se con-
quetipicamente, pela sua penosidade, o tempo fronta o espaço-tempo da produção.
produtivo do tempo prisional. Quando vistas de uma perspectiva do siste-
Estes processos de dispersão social e de ma mundial as concessões do capital perante
disjunção entre práticas e ideologias ajudam a força do movimento sindical — designadas
a situar o terceiro argumento sobre a perda da em geral por fordismo, compromisso histórico,
importância do espaço-tempo da produção, ou Estado-Providência, social-democracia, etc.
seja, a ideia de que o operariado deixou de ser — correspondem a um período relativamente
uma força privilegiada de transformação social. limitado do desenvolvimento do capitalismo e
Esta ideia parece hoje amplamente confirmada. abrangem um pequeno número de países e uma
O colapso do regime soviético e dos partidos pequena percentagem da força do trabalho glo-
comunistas, o abandono de alternativas socia- bal. Tais concessões foram muito importantes
listas por parte dos partidos socialistas, a inte- e, à luz delas, é compreensível, em retrospec-
gração dos sindicatos nos sistemas neocorpora- to, que elas tenham conduzido à cooptação e
tivos de concertação social, a queda dos níveis à desradicalização do movimento sindical. O
de sindicalização e o enfraquecimento global que é talvez menos compreensível é que a ero-
do movimento sindical no controlo efetivo das são atual dessas concepções decorrente da
condições de trabalho, tudo isto aponta no sen- crise do fordismo, do Estado-Providência e do
tido de retirar ao operariado qualquer privilégio enfraquecimento dos sindicatos não esteja a
nos processos de transformação social. No en- provocar nenhuma reanimação da capacidade
tanto, à luz do que disse atrás, não se pode de- emancipatória do operariado. De algum modo,
duzir daqui que o trabalho, a produção e as clas- a cooptação e a desradicalização prosseguem
ses sociais que neles se geram tenham deixado por inércia muito para além dos factores que as
de ser centrais para compreender e explicar a originaram. O dilema reside em que, mini con-
sociedade tal qual ela existe. Pelo contrário, o texto ideológico, saturado pelo consumismo, a
que é preciso é compreender ou explicar por erosão das concessões e o aumento da discipli-
que é que esta centralidade nas práticas sociais na e dos ritmos de trabalho que a acompanham
180 Boaventura de Sousa Santos

eliminam, em vez de promover, a vontade de lo é o ter invertido as expectativas de interna-


lutar por uma vida diferente e mesmo a capaci- cionalização formuladas no seu início: em vez
dade de a imaginar. da internacionalização do operariado, deu-se
Inconformados com este problema dilemá- a internacionalização do capital. Apesar de al-
tico, um pouco por toda a parte surgem movi- guma migração, o trabalho é hoje uma realida-
mentos, organizações, redes operárias muito de sitiada às ordens de um capital que circula
diferentes entre si, mas partilhando a caracte- global e incessantemente. A equação abstrata
rística de assumirem plenamente as condições entre trabalho e capital esconde uma profun-
pósfordistas. Por exemplo, emergem redes de da assimetria: é que enquanto o trabalho é uma
trabalhadores trabalhando para a mesma em- abstração tão-só de pessoas físicas, o capital é
presa multinacional em diferentes países com urna abstração de pessoas físicas e de títulos,
o objectivo de fazer frente comum a problemas decisões e documentos. Se os empresários e
comuns. Por outro lado, alguns sindicatos e seus representantes passaram a mobilizar-se
movimentos operários começam a expandir muito mais facilmente com o desenvolvimento
o horizonte das suas expectativas, das suas dos transportes aéreos, os títulos, as decisões e
exigências e também das suas solidariedades os documentos passaram a mobilizar-se instan-
para além do espaço-tempo da produção, para taneamente com a revolução eletrônica. Dada
o consumo e para a qualidade de vida, para a esta assimetria estrutural, quanto mais fácil é
habitação e para a degradação ambiental, para ao capital organizar transnacionalmente o tra-
a fome e para os desempregados, para os sem balho a seu favor, mais difícil é ao trabalho or-
abrigo, etc., etc. As dificuldades destas iniciati- ganizar-se transnacionalmente contra o capital.
vas que procuram romper o bloqueio são enor- O espaço-tempo da produção compreende
mes. Duas delas merecem especial referência. ainda, como uma dimensão relativamente au-
Em primeiro lugar, se são muito diferentes as tônoma, o núcleo das relações sociais de troca
condições de produção de país para país, são- mercantil2. Abrange, portanto, as relações so-
-no ainda mais as condições de vida, pelo que
uma ação concertada e transnacional é difícil
2 O mercado constitui um conjunto de relações so-
de organizar e muito mais de manter. Em se-
ciais cuja autonomia em relação ao espaço-tempo da
gundo lugar, uma das ironias deste fim de sécu- produção não cessa de crescer. É possível que, cm futu-
O Norte, o Sul e a utopia 181

ciais de consumo. Não todas, como está bem dentes que o espaço-tempo do mercado tem
de ver. Há, pelo menos, dois tipos de relações vindo a adquirir uma importância crescente. O
sociais de consumo que nau são feitas através problema da saturação do mercado com que o
do mercado. Por um lado, os bens e serviços capitalismo recorrentemente se confronta tem
fornecidos pelo Estado no âmbito das suas po- sido resolvido pelo desenvolvimento de novos
líticas redistribuitivas (o Estado-Providência); produtos, pela abertura de novos mercados,
por outro lado, os bens e serviços transaciona- pela promoção do consumo ligada à publicida-
dos nas redes de solidariedade, de ajuda mútua, de e ao crédito ao consumo.
de reciprocidade, o que em geral designamos É debatível a medida em que a globalização
por sociedade-providência. Em suma, cabem da economia das últimas décadas contribuiu
no nosso âmbito analítico tão-só as relações para a expansão do consumo na periferia do
sociais de consumo mercadorizado, isto é, as sistema mundial O aumento da pobreza e a
relações mediadas pelo mercado. permanência de formas de subsistência tradi-
Nas sociedades capitalistas este espaço- cional revelam que uma larga maioria da popu-
-tempo é habitado por uma forma de poder, lação mundial tem ainda muito pouco contacto
o feiticismo das mercadorias, que estabelece com o consumo mercadorizado e que, portan-
uma desigualdade estrutural entre produtores to, a maior parte da produção multinacional
e distribuidores, por um lado, e consumido- nos países periféricos não se destina obvia-
res, pelo outro. Esta forma de poder consis- mente ao mercado interno. É difícil generalizar
te no processo pelo qual a satisfação das ne- neste domínio, mas as disparidades de consu-
cessidades por via do mercado se transforma mo entre o centro e a periferia estão certamen-
numa dependência em relação a necessidades te relacionadas com o fato de a expansão do
que só existem como antecipação do consu- consumo dos trabalhadores do centro ter sido
mo mercantil e que, como tal, são a um tempo feita à custa da exploração e da contração do
plenamente satisfeitas por este e infinitamente consumo dos trabalhadores da periferia. Sid-
recriadas por ele. Resulta das análises prece- ney Mintz, no seu trabalho sobre o consumo do
açúcar no século XIX, mostra como o açúcar
produzido pelo trabalho escravo nas Caraíbas
ras revisões deste modelo analítico, o mercado passe a
constituir um espaço-tempo estrutural especifico. permitiu aos trabalhadores ingleses o acesso a
182 Boaventura de Sousa Santos

um produto alimentar e fonte de calorias que Por isso, a globalização da ideologia consumis-
antes era considerado de luxo e privilégio das ta oculta o fato de que o único consumo que
elites (Mintz, 1985). E de algum modo aconte- essa ideologia torna possível é o consumo de
ceu o mesmo com o consumo do chá e de ou- si própria. Por outro lado, esta ideologia é ver-
tros produtos, hoje de consumo corrente. No dadeiramente uma constelação de ideologias
domínio da produção de carnes, o aumento da onde se incluem a perda da auto-estima pela
produção na Costa Rica foi de par com a dimi- subjetividade não alienada pelas mercadorias,
nuição do consumo interno de carne. a deslegitimação dos produtos e dos processos
O que parece ser novo neste domínio é o au- tradicionais de satisfação das necessidades, o
mento exponencial da exportação da cultura privatismo e o desinteresse pelas formas de
de massas produzida no centro para a perife- solidariedade e de ajuda mútua ou o seu uso
ria e com ela das “estruturas de preferências” instrumentalista. Por esta via, a alienação capi-
pelos objetos de consumo ocidental. Está-se a talista pode chegar muito mais longe que o fei-
criar assim uma ideologia global consumista ticismo das mercadorias. Processos de incul-
que se propaga com relativa independência em cação ideológica, aparentemente os mesmos
relação às práticas concretas de consumo de e recorrendo a dispositivos semelhantes — os
que continuam arredadas as grandes massas mesmos anúncios da Coca Cola ou da Pepsi
populacionais da periferia. Estas são dupla- mostrados em todas as televisões do mundo,
mente vitimizadas por este dispositivo ideoló- 600 milhões segundo os cálculos —, podem es-
gico: pela privação do consumo efetivo e pelo tar, em contextos diferentes, ao serviço de prá-
aprisionamento no desejo de o ter. Pior que ticas de dominação também diferentes. Esta
reduzir o desejo ao consumo é reduzir o consu- dupla armadilha coloca uma grande parte da
mo ao desejo do consumo. população mundial numa situação dilemática:
Esta dupla vitimização é também uma dupla não está dentro da sociedade de consumo e
armadilha. Por um lado, nem o desenvolvimen- tão-pouco está fora dela.
to desigual do capitalismo, nem os limites do Algumas iniciativas e movimentos popula-
eco-sistema planetário permitem a generaliza- res nos países periféricos têm vindo a tentar
ção a toda a população mundial dos padrões de romper este dilema reinventando processos e
consumo que são típicos dos países centrais. conhecimentos locais para a satisfação de ne-
O Norte, o Sul e a utopia 183

cessidades, transformando-os e adaptando-os to-realização e as desvia das relações interpes-


a novas necessidades, relegitimando solidarie- soais para as relações entre pessoas e objetos.
dades e produtos tradicionais, tudo isto com
o objetivo de criarem espaços de autonomia O espaço-tempo da cidadania
prática ideológica onde seja possível pensar
Finalmente, o espaço-tempo da cidadania é
formas de transformação social alternativas
constituído pelas relações sociais entre o Esta-
à do consumismo capitalista, assente na desi-
do e os cidadãos, e nele se gera uma forma de
gualdade, no desperdício e na destruição do
poder, a dominação, que estabelece a desigual-
meio ambiente. No entanto, estas iniciativas e
dade entre cidadãos e Estado e entre grupos
movimentos, para serem verdadeiramente efi-
e interesses politicamente organizados. Muito
cazes, deveriam estabelecer uma ligação entre
do que ficou dito atrás tem implicações diretas
o seu âmbito local e o âmbito global em que
com as transformações por que tem passado
se desenrola a ideologia do consumismo. Essa
nas três últimas décadas este espaço-tempo
ligação exigiria, por um lado, a articulação com
que tão crucial foi para a implantação social e
outras iniciativas e movimentos locais noutras
política da modernidade.
partes da periferia do sistema mundial e, por
O Estado tem sido desde o século XVII e
outro lado, a articulação com as iniciativas e
sobretudo desde o século XIX a unidade polí-
movimentos de consumidores nos países cen-
tica fundamental do sistema mundial, e o seu
trais. No entanto, se a primeira articulação é
impacto nos demais espaços-tempo foi sempre
difícil, ainda o é mais a segunda. Esta última se-
decisivo. O espaço mundial, se é espaço da eco-
ria de importância particular porque, de todas
nomia mundial, é também o espaço do sistema
as disparidades entre o Norte e o Sul, as dispa-
interestatal, assente na soberania absoluta dos
ridades no consumo são, sem dúvida, as mais
Estados e nos consensos entre eles obtidos
evidentes e, como tal, potencialmente as mais
como meio de prevenir a guerra. O espaço-
adequadas a traduzirem-se em representações
-tempo doméstico começou a ser fortemente
sociais de injustiça e em energias solidaristas.
regulado pelo Estado a partir do século XIX
A verdade é que tal possibilidade se encontra
num crescendo que atingiu o seu clímax no Es-
em grande medida bloqueada pela própria lógi-
tado-Providência. Por sua vez, o espaço-tempo
ca consumista que privatiza as energias de au-
184 Boaventura de Sousa Santos

da produção viveu sempre dependente da “mão Entre eles, as Filipinas, o Camboja, o Myanniar,
visível” do Estado e a regulamentação cresceu a Tailândia, o Sri Lanka, a Índia, o Afeganistão,
com o crescimento das relações mercantis. o Líbano, o Chad, o Uganda, Moçambique, An-
Este estado de coisas tem, no entanto, vindo gola, a Somália, a Libéria, o Sudão, a Etiópia, a
a mudar desde a década de sessenta, e de al- Colômbia, El Salvador, a Guatemala, o México
gumas das mudanças já dei conta atrás. Tanto e agora, na Europa, os Estados que resultaram
no plano internacional como no plano interno, do colapso da União Soviética e da Jugoslávia.
muitas dessas mudanças são o reverso das que Mas se no plano interno o Estado está a ser
têm ocorrido nos outros espaços. No plano cada vez mais confrontado com forças subes-
interno, tanto as privatizações e a desregula- tatais, no plano internacional confronta-se com
mentação do mercado, como a reemergência as forças supra-estatais que já acima assinalei
das identidades étnicas e religiosas são, cada ao falar nas transformações do espaço-tempo
uma a seu modo, manifestações de uma certa mundial. A erosão da soberania de que tanto
retração do Estado. A mesma retração se ob- hoje se fala não é de fato um fenómeno novo.
serva com a crise da função providencial com Ao contrário, tem caracterizado desde sempre
a devolução aos espaços doméstico e da produ- a experiência dos Estados periféricos e semi-
ção dos serviços sociais, antes prestados pelo periféricos nas suas interações com Estados
Estado. Tal retração é ainda observável quando centrais. O que é novo é o fato de essa erosão e
o Estado perde o monopólio da violência legí- de essa permeabilidade da soberania estar hoje
tima que durante dois séculos foi considerada a ocorrer nos Estados centrais.
a sua característica mais distintiva. Calcula-se Este processo de erosão da soberania, que
que hoje, nos EUA, 1 em cada 3 polícias é priva- faz desta menos um valor absoluto do que um
do; no ano 2000 a proporção será de 1 em cada título negociável, apesar de ocorrer globalmen-
2 (Delurgian, 1992a: 18). Em geral os Estados te, não elimina, e, pelo contrário, agrava as dis-
periféricos nunca atingiram na prática o mo- paridades e as hierarquias no sistema mundial.
nopólio da violência, mas parecem estar hoje Como referi acima, este fato torna urgente uma
mais longe de o conseguirem do que nunca. São nova ordem trans-nacional adaptada a novas
muitos os países em que partes do território condições, a qual, no entanto, parece estar a ser
são controladas por forças paralelas ao Estado. bloqueada precisamente pelas condições que a
O Norte, o Sul e a utopia 185

tornam urgente: a erosão da soberania do Es- poder que designo por diferenciação desigual e
tado e a perda de centralidade do Estado em que produz desigualdades, tanto no interior do
face de forças subestatais e supra-estatais. E grupo ou comunidade, como nas relações in-
se a democratização das relações entre os Es- tergrupais ou intercomunitárias. Tais desigual-
tados parece estar longe, tão-pouco está perto dades podem ser abissais ou mínimas; corres-
da democratização interna dos Estados, apesar pondentemente, o espaço-tempo comunitário
das proclamações e injunções em sentido con- pode ser despótico ou convivencial. É enorme
trário. A perda de eficácia dos Estados, combi- a diversidade de relações sociais que compre-
nada com a erosão da soberania no interior de endem este espaço-tempo. Tendo em vista a
um sistema interestatal muito hierárquico, e a perspectiva analítica aqui adoptada de tentar
ausência de condições que tornem efetiva a de- identificar os problemas fundamentais deste
mocracia na grande maioria dos países do siste- espaço-tempo a partir das transformações por
ma mundial, não augura um futuro risonho para que passaram nas duas últimas décadas, em
o sistema interestatal tal como o conhecemos. articulação com as transformações do espaço-
O espaço-tempo da cidadania compreen- -tempo mundial e, em especial, com a globali-
de ainda, como uma dimensão relativamente zação da economia, farei uma menção breve
autônoma, a comunidade, ou seja, o conjunto a dois tipos de relações sociais — as relações
das relações sociais por via das quais se criam étnicas e as relações religiosas.
identidades coletivas de vizinhança, de região, Curiosamente, qualquer destas relações so-
de raça, de etnia, de religião, que vinculam os ciais e, em verdade, todas as que constituem o
indivíduos a territórios físicos ou simbólicos e espaço-tempo comunitário, foram declaradas
a temporalidades partilhadas passadas, presen- em declínio irreversível pela modernidade. O
tes ou futuras3. As relações sociais que consti- racionalismo iluminista, em conexão com o ca-
tuem este espaço-tempo geram uma forma de pitalismo liberal e individualista, por um lado,
e o Estado moderno, democrático, por outro,
pareceram capazes de destronar para sempre,
3 A comunidade tem vindo a conquistar uma autono- tanto na Europa, corno no mundo por ela co-
mia crescente cm relação ao espaço-tempo da cidadania.
lonizado, as identidades ditas tradicionais, re-
E possível que em futuros trabalhos a comunidade passe
a constituir um espaço-tempo estrutural autónomo. trógradas, primitivas que sustentavam tais re-
186 Boaventura de Sousa Santos

lações, e o Estado foi o dispositivo privilegiado Estados mais e mais se descumprem à medida
para levar a cabo essa tarefa. Enquanto Estado que a globalização da economia elimina todas
nacional, assente num princípio de cidadania, as veleidades de autonomia por parte dos paí-
criava uma nova comunidade, a comunidade ses periféricos, é talvez de esperar que as mas-
nacional, que substituiria a comunidade étnica; sas populares voltem a revalorizar e a recriar
enquanto Estado secular, assente num princí- identidades ancestrais que afinal asseguraram
pio de separação entre a igreja e o Estado, cria- a sobrevivência e a dignidade coletivas durante
va uma cultura pública específica, o secularis- séculos, as “comunidades humanas, naturais e
mo, que a prazo tornaria a identidade religiosa imediatas” de que fala Ernest Wamba Dia Wam-
obsoleta. A verdade é que nas últimas décadas ba (1991: 221).
este projeto modernista foi posto drasticamen- Se as fronteiras nacionais têm sempre algo
te em causa quando, para surpresa de muitos, de artificial, em alguns casos esse artificialis-
as identidades e as lealdades primordiais da et- mo é particularmente acentuado. Isto acontece
nia e da religião ganharam nova força, ao mes- mesmo na Europa, no caso da Europa do Leste,
mo tempo que o caráter nacional do Estado e o onde as fronteiras foram marcadas e desmarca-
secularismo entravam em crise. das recorrentemente ao longo de uma história
A reemergência das identidades étnicas está muito conturbada. Os acontecimentos recen-
a ocorrer um pouco por toda a parte e é certa- tes e aí em curso são indicativos de que só ago-
mente incorreto atribuí-la a uma só causa. No ra se está a pôr fim, e de maneira novamente
entanto, uma das mais importantes é certamen- dolorosa, aos três últimos impérios da Europa:
te o próprio processo histórico da constituição o Otomano, o dos Habsburgos e o Russo. Fora
de muitos dos Estados modernos, tanto na da Europa o problema acentua-se ainda mais
Europa, como no contexto pós-colonial. Ape- em virtude da imposição colonial que está na
sar de assentes na equação entre Estado e na- base de muitas fronteiras estatais. Aliás, alguns
ção, muitos desses Estados são multi-étnicos dos Estados da periferia mundial são quase
e assentam na imposição de uma dada etnia imperiais, na medida em que incluem grupos
sobre as restantes existentes no mesmo espa- populacionais importantes com identidades
ço geopolítico. Num momento em que as pro- diferentes da que é oficialmente reconhecida,
messas de progresso e bem-estar feitas pelos como, por exemplo, a Índia, o Paquistão, a Chi-
O Norte, o Sul e a utopia 187

na, a Nigéria ou a Etiópia. Mas para além deles identidades e lealdades étnicas e, em algumas
existem muitos outros e para tanto basta ver a situações, as duas sobrepõem-se. A partir da
lista de Estados com “minorias muito amplas” Revolução Francesa, o Estado moderno as-
organizada por Anthony Smith (1988). sumiu gradualmente muitas das tarefas e po-
A crise do Estado e das ideologias desen- sições sociais que eram antes ocupadas pela
volvimentistas abre neste domínio uma caixa Igreja, um processo que se designou em geral
de Pandora donde podem sair, lado a lado, e por secularização e que, pelo seu papel crucial,
às vezes misturados, o racismo, o chauvinismo passou a ser considerado como um dos traços
étnico e mesmo o etnocídio, por um lado, e a principais da modernidade. Se no espaço co-
criatividade cultural, a autodeterminação, a to- lonial a relação entre o Estado e a religião foi
lerância pela diferença e a solidariedade, por mais complexa devido à coexistência de reli-
outro. A dificuldade dilemática neste domínio giões europeias, não europeias e de novas re-
reside precisamente em que à partida é difícil ligiões sincréticas, e devido também à relação
prever qual destes processos prevalecerá ou se- de suporte mútuo entre o Estado colonial e a
quer se qualquer deles pode em dadas circuns- religião europeia, no período pós-colonial, os
tâncias transmutar-se no outro. Os termos em novos Estados assumiram o mesmo papel de
que se deu e continua a dar a globalização do modernizadores colocando, também eles, a re-
sistema mundial origina recorrentemente pro- ligião numa posição defensiva de resistência e
cessos de fragmentação e de localização. Nas de adaptação semelhante à que ela assumiu no
condições presentes, a articulação entre estes quadro europeu.
é fundamental para potenciar o que há de pro- A verdade é que, durante estes quase dois
gressivo e emancipatório neles e para neutrali- séculos, nenhuma das grandes religiões colap-
zar o que há neles de retrógrado e mesmo rea- sou e algumas delas expandiram-se enorme-
cionário. No entanto, dado que tal articulação mente, como é o caso do Islão, cuja expansão,
implica em si mesmo um processo de globaliza- depois ele correr a África e o Sudeste Asiático,
ção, como é que se podem globalizar as diferen- alastrou à Europa Ocidental e à América do
ças sem esmagar, no processo, algumas delas? Norte. Há hoje 1,5 milhão de muçulmanos na
As identidades e lealdades religiosas têm Inglaterra, mais que os metodistas e batistas
vindo a ter um ressurgimento paralelo ao das juntos, e na França esse número atinge cerca
188 Boaventura de Sousa Santos

de 7 milhões (Delurgian, 1992b: 7). Por outro social e da orientação política. De um lado, a
lado, as primeiras décadas do século XX pre- teologia da libertação dos bairros da lata e da
senciaram, tanto no centro, como na periferia selva indígena na América Latina, do outro, a
do sistema mundial, um surto de fundamenta- direita religiosa nos EUA. Em geral, este re-
lismo religioso. Movimentos evangélicos nos nascimento religioso tem provocado alguma
EUA, o integralismo e a Opus Dei na Europa, perturbação no interior das hierarquias das re-
o culto dos milagres em Fátima e mais tarde ligiões históricas, sobretudo quando se traduz
em Medjugorie, na Croácia, são manifestações em práticas e objetivos não sancionados pelas
de fundamentalismo no centro e na semiperi- instituições religiosas.
feria que ocorrem quase simultaneamente com Longe de significar um regresso ao passado,
movimentos paralelos e igualmente fundamen- o novo surto da religiosidade exprime, acima
talistas na periferia, como, por exemplo, a Ir- de tudo, um ressentimento perante as promes-
mandade islâmica fundada no Egito em 1988 sas modernizadoras e progressistas não cum-
(Delurgian, 1992b: 11). pridas e, portanto, uma grande desconfiança
Apesar disto, durante os anos cinquenta e face às instituições que se proclamaram arau-
sessenta, o secularismo parecia haver triunfa- tos dessas promessas, sobretudo o Estado e
do e o fundamentalismo parecia ter sido redu- o mercado. Na periferia do sistema mundial,
zido à ínfima expressão. A partir da década de o revivalismo fundamentalista, sobretudo do
setenta, no entanto, o secularismo começou a fundamentalismo islâmico, deve ser visto em
regredir ou, pelo menos, assim foi interpreta- geral como uma resposta ao fracasso do na-
do o revivalismo religioso que então emergiu cionalismo e do socialismo, e como uma alter-
e que em boa verdade tem vindo a crescer até nativa que, ao contrário do que sucedeu com
ao presente sob múltiplas formas: novas reli- estes dois últimos, não assenta na imitação do
giões, movimentos fundamentalistas dentro Ocidente e na rendição ao imperialismo cul-
das religiões históricas, aumento da prática tural deste, e antes se baseia na possibilidade
religiosa de camadas sociais anteriormente de um projeto social, político e cultural autô-
tidas por secularizadas (por exemplo, os jo- nomo. Nos países centrais, alguns movimentos
vens). Trata-se de um fenómeno internamente protagonizados por minorias étnicas partilham
muito diferenciado em termos de composição alguns dos traços desta postura cultural com o
O Norte, o Sul e a utopia 189

objetivo de denunciarem o colonialismo inter- pelo separatismo e pela incomunicação e, afi-


no de que são vítimas, enquanto outros, com nal, pela intolerância.
forte composição de classe média, assumem a
postura de autonomia e separação a partir do As dificuldades fundamentais
pólo oposto, traduzindo-a em retórica e práti- Os problemas com que as sociedades con-
cas racistas e xenofóbicas dirigidas sobretudo temporâneas e o sistema mundial se confron-
contra imigrantes do Terceiro Mundo. tam no fim do século são complexos e difíceis
Tal como sucede com as identidades e le- de resolver. São fundamentais, na designação
aldades étnicas e, como vimos, muitas vezes de Fourier, a exigir soluções fundamentais.
interpenetradas por elas, as identidades e leal- Eis um breve resumo dos problemas que iden-
dades religiosas constituem uma caixa de Pan- tifiquei na análise precedente. Emergiram ou
dora de que podem jorrar tanto energias des- agravaram-se nas duas últimas décadas uma sé-
trutivas, como energias construtivas. O dilema rie de problemas transnacionais, alguns trans-
reside em que a crítica radical que, sobretudo nacionais por natureza e outros transnacionais
os países periféricos dirigem às promessas da pela natureza do seu impacto. São os proble-
modernidade e do capitalismo eurocêntricos, mas da degradação ambiental, do aumento da
ocorre num momento de crise profunda do população e do agravamento das disparidades
paradigma da modernidade e, portanto, num de bem-estar entre o centro e a periferia, tan-
momento em que se começa a reconhecer que to ao nível do sistema mundial, como ao nível
essas promessas tão-pouco foram cumpridas de cada um dos Estados que o compõem. Há
nos países centrais e tão pouco podem vir a quem prefira, como Paul Kennedy, conceber es-
sê-lo dentro deste paradigma. Este reconhe- tes problemas como grandes desafios e especu-
cimento, na medida em que relativiza e ques- le sobre os países que, com base nas soluções
tiona as realizações do paradigma ocidental, técnicas disponíveis, mais ou menos bem pre-
cria condições para uma nova tolerância dis- parados para os defrontar (os vencedores e os
cursiva, para uma interação mais horizontal vencidos). A verdade é que em relação a mui-
entre alternativas epistemológicas, culturais e tos destes desafios temos razões de sobra para
sociais. No entanto, este potencial de tolerân- suspeitar que as chamadas soluções técnicas
cia manifesta-se paradoxalmente e, por agora, não produzirão senão vencidos; e em relação
190 Boaventura de Sousa Santos

a outros desafios, aceitar a ideia de que inevi- sobre parte do território nacional. Esta crise do
tavelmente uns países vencerão e outros serão sujeito significa que o sistema mundial capita-
vencidos equivale a subscrever uma solução lista, ao mesmo tempo que transnacionaliza os
malthusiana, o que, nas condições presentes e problemas, localiza as soluções e, efetivamen-
perante os riscos em jogo, pode significar abrir te, dada a crise do Estado, faz baixar o patamar
mão de preciosos recursos naturais, humanos de localização para o nível subnacional. Aliás,
e morais em todo o sistema mundial. é possível argumentar que, sobretudo nos pa-
Os desafios são, de fato, problemas funda- íses centrais, o horizonte social das soluções,
mentais a reclamar soluções fundamentais, no mais do que localizado, está privatizado. O ca-
fundo, uma nova ordem transnacional e uma pitalismo é hoje menos um modo de produção
nova ordem nacional com as linhas entre am- que um modo de vida. O individualismo e o con-
bas cada vez mais difíceis de estabelecer. Como sumismo transferiram para a esfera privada a
vimos, as dificuldades de uma tal nova ordem equação entre interesse e capacidade. É nessa
são enormes. Em resumo, são três as principais. esfera que hoje os indivíduos identificam me-
Em primeiro lugar, a dificuldade do sujeito. Nas lhor os seus interesses e as capacidades para
condições presentes, os Estados nacionais te- lhes dar satisfação. A redução à esfera privada
rão de ser forçosamente um sujeito privilegia- desta equação faz com que muitas das desigual-
do, ainda que complementado por movimentos dades e opressões que ocorrem em cada um
sociais e organizações não governamentais dos espaços-tempo estruturais sejam invisíveis
transnacionais e organizações internacionais, ou, se visíveis, trivializadas.
etc. Vimos, porém, que a crise de Estado, que A segunda dificuldade diz respeito à tempo-
potencia a urgência de uma nova ordem inter- ralidade própria de uma solução fundamental.
nacional, é afinal a crise do sujeito dessa or- Essa temporalidade é intergeracional, portan-
dem. No plano interno, parece que essa crise to, de médio e longo prazo. Mas, como vimos,
se vai traduzir nos próximos anos no aumento tudo parece conspirar contra tal temporalida-
das convulsões sociais, no fundamentalismo re- de. Durante décadas, o comunismo manteve
ligioso, na criminalidade, nos motins motivados viva essa temporalidade, ainda que a pratica
pelas iniquidades do consumo, na guerra civil dos regimes comunistas a negasse grosseira-
e, nalguns casos, na perda de controle político mente sobretudo no domínio ecológico. Hoje,
O Norte, o Sul e a utopia 191

a classe política vive atascada nos problemas e mente. Por isso, os problemas que elas criam
nas soluções de curto prazo, segundo a tempo- no presente cm nome do futuro tendem a ser
ralidade própria dos ciclos eleitorais, nos paí- mais visíveis e certos que os problemas futuros
ses centrais, ou dos golpes e contra-golpes, nos que elas pretendem resolver no presente. Isto
países periféricos. Por outro lado, uma parte me conduz à terceira e última dificuldade das
significativa da população nos países centrais soluções fundamentais: a questão do inimigo.
vive dominada pela temporalidade cada vez Ao contrário do que se poderia pensar, a globa-
mais curta e obsolescente do consumo, en- lização dos problemas não torna os seus cau-
quanto uma grande maioria da população dos sadores mais visíveis ou mais facilmente iden-
países periféricos vive dominada pelo prazo tificáveis. De algum modo, a globalização dos
imediato e pela urgência da sobrevivência diá- problemas globaliza o inimigo e se o inimigo
ria. As condições e os sujeitos do pensamento está em toda a parte, não está em parte nenhu-
estratégico, de longo prazo, parecem cada vez ma. Esta é uma dificuldade verdadeiramente
menos presentes no sistema mundial. De fato, dilemática, porque as coligações revolucioná-
hoje em dia apenas um sujeito tem condições rias ou reformistas foram sempre organizadas
para pensar estrategicamente: um grupo redu- contra um inimigo bem definido. Se, como dis-
zido de empresas multinacionais dominantes. se acima, há certos problemas em relação aos
Mais do que os Estados hegemônicos, é este quais ninguém poderá a prazo ganhar com a
grupo que amarra os países periféricos e semi- sua irresolução, parece ser impossível, nesses
periféricos à urgência dos ajustamentos estru- casos pelo menos, determinar o inimigo con-
turais (que têm, em verdade, muito pouco de tra o qual seja preciso organizar uma solução
estrutural) e as classes políticas, ao curto pra- do problema. É certo que mencionei acima o
zo político que em parte deles decorre. Mais do papel das empresas multinacionais na criação
que os Estados hegemônicos, é este grupo que dos nossos problemas pelo simples facto de se-
amarra uma parte do mundo à compulsão do rem elas hoje os únicos titulares de pensamen-
consumo imediatista e outra ao imediatismo da to estratégico no sistema mundial. Mas é evi-
luta pela sobrevivência. dente que não são o único inimigo identificável
O problema das soluções intergeracionais é nem tão-pouco me parece que o inimigo possa
que elas têm de ser executada. intrageracional- ser identificado apenas ou sobretudo ao nível
192 Boaventura de Sousa Santos

institucional. Os nossos problemas são mais tre Estados e a democracia interna, respecti-
fundos, e as instituições só podem resolvê-los vamente. O quarto e último axioma é a crença
depois de transformadas e reinventadas ao ní- no progresso entendido como um desenvolvi-
vel a que os problemas ocorrem. mento infinito alimentado pelo crescimento
Quatro axiomas fundamentais da moder- econômico, pela ampliação das relações e pelo
nidade estão, em meu entender, na base dos desenvolvimento tecnológico.
problemas com que nos confrontamos. O pri- Estes axiomas moldaram a sociedade e a
meiro, deriva da hegemonia que a raciona- subjetividade, criaram una epistemologia e
lidade científica veio a assumir e consiste na uma psicologia, desenvolveram uma ordem de
transformação dos problemas éticos e polí- regulação social e, à imagem desta, uma von-
ticos em problemas técnicos. Sempre que tal tade de desordem e de emancipação. Daí que
transformação não é possível, uma solução o inimigo das soluções fundamentais tenha
intermédia é buscada: a transformação dos de ser buscado em múltiplos lugares, inclusi-
problemas éticos e políticos em problemas ju- vamente em nós mesmos. Daí também que a
rídicos. O segundo axioma é o da legitimidade crise da ordem social torne mais difícil, e não
da propriedade privada independentemente da mais fácil, pensar a desordem verdadeiramente
legitimidade do uso da propriedade. Este axio- emancipadora.
ma gera ou promove uma postura psicológica Perante isto, que fazer?
e ética — o individualismo possessivo — que,
articulada com a cultura consumista, induz o A utopia e os conflitos
desvio das energias sociais da interação com paradigmáticos
pessoas humanas para a intração com objetos “O futuro já não é o que era”, diz um graffitti
porque mais facilmente apropriáveis que as numa rua de Buenos Aires. O futuro prometi-
pessoas humanas. O terceiro axioma é o axio- do pela modernidade não tem, de fato, futuro.
ma da soberania dos Estados e da obrigação Descrê dele, vencida pelos desafios, a maioria
política vertical dos cidadãos perante o Estado. dos povos da periferia do sistema mundial,
Por via deste axioma, tanto a segurança inter- porque em nome dele negligenciaram ou recu-
nacional, como a segurança nacional adquirem saram outros futuros, quiçá menos brilhantes
“natural” precedência sobre a democracia en- e mais próximos do seu passado, mas que ao
O Norte, o Sul e a utopia 193

menos asseguravam a subsistência comunitá- tarefa, que é de longe a mais importante, é


ria e uma relação equilibrada com a natureza, também de longe a mais difícil. É-o sobretudo
que agora se lhes deparam tão precárias. Des- porque o paradigma dominante, a modernida-
crêem dele largos sectores dos povos do centro de, tem um modo próprio, ainda hoje hegemô-
do sistema mundial, porque os riscos que ele nico, de combinar a grandeza do futuro com a
envolve — sobretudo os ecológicos — come- sua miniaturização. Consiste na classificação
çam a ser mais ilimitados que ele próprio. Não e fragmentação dos grandes objetivos em so-
admira que em face disto muitos tenham assu- luções técnicas que têm de característico o se-
mido uma atitude futuricida; assumir a morte rem credíveis para além do que é tecnicamen-
do futuro para finalmente celebrar o presente, te necessário. Este excesso de credibilidade
como sucede em certo pós-modernismo, ou das soluções técnicas, que é parte intrínseca
mesmo para celebrar o passado, como sucede da cultura instrumental da modernidade, ocul-
com o pensamento reacionário. A verdade é ta e neutraliza o déficit de futuro delas. Por
que, depois de séculos de modernidade, o vazio isso, tais soluções não deixam pensar o futu-
do futuro não pode ser preenchido nem pelo ro, mesmo quando elas próprias já deixaram
passado nem pelo presente. O vazio do futuro é de o pensar.
tão-só um futuro vazio. Perante isto, como proceder? Penso que só
Penso, pois, que, perante isto, só há uma saí- há uma solução: a utopia. A utopia é a explora-
da: reinventar o futuro, abrir um novo horizon- ção de novas possibilidades e vontades huma-
te de possibilidades, cartografado por alterna- nas, por via da oposição da imaginação à ne-
tivas radicais às que deixaram de o ser. cessidade do que existe, só porque existe, em
Com isto assume-se que estamos a entrar nome de algo radicalmente melhor que a huma-
numa fase de crise paradigmática, e portanto, nidade tem direito de desejar e por que merece
de transição entre paradigmas epistemológi- a pena lutar. A utopia é, assim, duplamente re-
cos, sociais, políticos e culturais. Assume-se lativa. Por um lado, é uma chamada de atenção
também que não basta continuar a criticar o para o que não existe como (contra)parte inte-
paradigma ainda dominante, o que, aliás, está grante, mas silenciada, do que existe. Pertence
feito já à saciedade. É necessário, além disso, à época pelo modo como se aparta dela. Por
definir o paradigma emergente. Esta última outro lado, a utopia é sempre desigualmente
194 Boaventura de Sousa Santos

utópica, na medida em que a imaginação do tífico, como se as leis da evolução da sociedade


novo é composta em parte por novas combina- pudessem prever um futuro radicalmente dife-
ções e novas escalas do que existe. Uma com- rente do presente. No caso de Fourier, o impac-
preensão profunda da realidade é assim essen- to do cientismo é mais complexo, pois em vez
cial ao exercício da utopia, condição para que de negar a utopia por via da ciência procura
a radicalidade da imaginação não colida com o criar uma utopia científica. Daí que, para ele,
seu realismo. Na fronteira entre dentro e fora, a as leis de Newton sejam apenas uma aplicação
utopia é tão possuída pelo Zeitgeist como pela local de um princípio muito vasto, o princípio
Weltschmerz. da atração passional, de que se pretende arau-
Não é fácil hoje defender ou propor a uto- to; daí também a sua compulsão pelos cálculos
pia, apesar de o pensamento utópico ser uma matemáticos, as simetrias e as analogias, pela
constante da cultura ocidental, se não mesmo determinação do número preciso de pessoas
de outras culturas. A dificuldade não deixa, no em cada falanstério ou do número preciso de
entanto, de ser, à primeira vista, surpreenden- anos de vida dos harmonianos.
te, pois a modernidade é uma época fértil em Por esta razão, o nosso século tem sido
utopias, a começar com a Utopia que criou a paupérrimo em pensamento utópico, o que
designação comum, a de Thomas More, escrita durante muito tempo foi pensado como sen-
em 1515 e 1516, e a culminar nas utopias socia- do um efeito normal do progresso da ciência
listas do século XIX. A verdade é que a expan- e do processo de racionalização global da vida
são da racionalidade científica e da ideologia social por ela tornada possível. No entanto, a
cientista a partir de meados do século XIX e a crise da ciência moderna, hoje bem evidente,
sua expansão do estudo da natureza para o es- obriga a questionar esta avaliação e esta expli-
tudo da sociedade foram criando um ambiente cação. Não será que a morte do futuro que hoje
intelectual cada vez mais hostil ao pensamento tememos foi anunciada há muito pela morte da
utópico, e isso é bem evidente, ainda que de utopia? Não será que a perda da inquietação
modo muito diferente, no pensamento de Fou- e busca de uma vida melhor contribui para a
rier e no pensamento de Marx. No caso deste emergência da subjetividade conformista que
último, a dimensão utópica da sociedade co- considera melhor, ou pelo menos inevitável,
munista é suprimida sob o determinismo cien- tudo o que for ocorrendo só porque ocorre e
O Norte, o Sul e a utopia 195

por pior que seja? Diz Sartre que “uma ideia de possibilidades e cria alternativas; enquanto
antes de ser realizada se parece estranhamen- nova psicologia, a utopia recusa a subjetivida-
te com a utopia”. Será que a recusa da utopia de do conformismo e cria a vontade de lutar
não acabou por redundar na recusa das ideias por alternativas. Como Ernst Cassirer mostrou
por realizar? A verdade é que, como tem sido magistralmente no caso da Renascença e do
frequentemente assinalado, as utopias anteci- Iluminismo, uma transição paradigmática im-
pam, por vezes em séculos, a anti-utopia. Num plica sempre uma nova psicologia e uma nova
período particularmente fértil em utopias, o sé- epistemologia (Cassirer, 1960; 1963). O conhe-
culo XVII, Fontenelle, depois de divagar sobre cimento sem reconhecimento nem a si mesmo
como das tábuas postas a flutuar num regato se se conhece.
chegou aos grandes navios que dão a volta ao A nova epistemologia e a nova psicologia
mundo, acrescenta num dos seus célebres En- anunciadas e testemunhadas pela utopia assen-
tretiens com a Marquise de G. publicados em tam na arqueologia virtual presente. Trata-se
1686, o da segunda noite, “e a arte de voar só de uma arqueologia virtual porque só interessa
agora está a nascer; aperfeiçoar-se-á e um dia o escavar sobre o que não foi feito e, porque não
homem irá à lua” (1955: 92). foi feito, ou seja, porque é que as alternativas
Apesar de algumas ideias utópicas serem deixaram de o ser. Neste sentido, a escavação
eventualmente realizadas, não é da natureza é orientada para os silêncios e para os silen-
da utopia ser realizada. Pelo contrário, a utopia ciamentos, para as tradições suprimidas, para
é a metáfora de uma hipercarência formulada as experiências subalternas, para a perspectiva
ao nível a que não pode ser satisfeita. O que é das vítimas, para os oprimidos, para as mar-
importante nela não é o que diz sobre futuro, gens, para a periferia, para as fronteiras, para
mas a arqueologia virtual do presente que a o Sul do Norte, para a fome da fartura, para a
torna possível. Paradoxalmente, o que é impor- miséria da opulência, para a tradição do que
tante nela é o que nela não é utópico. As duas não foi deixado existir, para os começos antes
condições de possibilidade de utopia são uma de serem fins, para a inteligibilidade que nun-
nova epistemologia e uma nova psicologia. ca foi compreendida, para as línguas e estilos
Enquanto nova epistemologia, a utopia recusa de vida proibidos, para o lixo intratável do
o fechamento do horizonte de expectativas e bem-estar mercantil, para o suor inscrito no
196 Boaventura de Sousa Santos

pronto-a-vestir lavado, para a natureza nas to- as consequências disso. Todas ou algumas,
neladas de CO2 imponderavelmente leves nos pois também se reconhece que este período
nossos ombros. Pela mudança de perspectiva de transição está ainda no começo e portanto
c de escala, a utopia subverte as combinações não apresenta ainda todos os seus traços. Em
hegemônicas do que existe, destotaliza os sen- Pasárgada 2 estuda-se com muita atenção o
tidos, desuniversaliza os universos, desorienta século XVII porque foi um século em que cir-
os mapas. Tudo isto com um único objetivo de cularam vários paradigmas científicos. Por
descompor a cama onde as subjetividades dor- exemplo, conviveram a par e par o paradigma
mem um sono injusto. ptolomaico e o paradigma copernicanogalilai-
O que proponho a seguir não é uma utopia. co. Talvez por isso se aceitou neste século a re-
É tão-só uma heterotopia. Em vez da inven- lativização do conhecimento, a distância lúdica
ção de um lugar totalmente outro, proponho em relação às verdades adquiridas e se viveu o
uma deslocação radical dentro de um mesmo fascínio por outros mundos, outras formas de
lugar, o nosso. Uma deslocação da ortotopia pensar e agir, enfim, outras formas de vida.
para a heterotopia, do centro para a margem. Fontenelle, já citado, é um bom exemplo dis-
O objetivo desta deslocação é tornar possível to mesmo. A sua obra mais conhecida intitula-
uma visão telescópica do centro e, do mesmo -se significativamente Entretiens sur la Plura-
passo, uma visão microscópica do que ele ex- lité des Mondes e nela disserta o autor sobre a
clui para poder ser centro. Trata-se, também, possibilidade de a lua e de outros planetas se-
de viver a fronteira da sociabilidade como for- rem habitados. Segundo ele, se a diferença de
ma de sociabilidade. costumes e de aparência física são tão grandes
A heterotopia que proponho chama-se Pa- entre a Europa e a China, não nos devemos sur-
sárgada 2. Não é um lugar inventado, é o nome preender que sejam ainda maiores entre os ha-
inventado de um lugar da nossa sociedade, de bitantes da terra e os habitantes da lua. Como
qualquer sociedade onde vivamos, a uma dis- exercício, convida-nos a entrar na pele dos Ín-
tância subjectivamente variável do lugar onde dios Americanos, os quais, ao verem Colombo,
vivemos. Em Pasárgada 2 vigora a ideia de que devem ter tido a mesma surpresa que nós terí-
estamos efectivamente num período de transi- amos se contactássemos os habitantes da lua.
ção paradigmática e que é preciso tirar todas E sobre o nosso conhecimento afirma que ele
O Norte, o Sul e a utopia 197

tem limites para além dos quais nunca pode- mente representados os diferentes paradig-
rá conhecer e que de outros planetas ou pers- mas em competição através dos seus adeptos
pectivas é possível ver coisas que não vemos eleitos pela comunidade educacional. Con-
do nosso planeta ou das nossas perspectivas. vém dizer uma palavra sobre a origem desta
Aliás, especula que as nossas peculiaridades Câmara. Convencida pelos argumentos de al-
não serão menores que as dos lunares e con- guns filósofos, cientistas e humanistas de que
clui, com a distância lúdica que nos recomen- o paradigma da modernidade estava a entrar
da, “estarmos reduzidos a dizer que os deuses numa crise final e que a competição com um
estavam bêbados quando fizeram os homens e paradigma emergente estava de facto aberta, a
que quando olharam a sua obra, já sóbrios, não comunidade educacional de Pasárgada 2 verifi-
puderam deixar de rir” (1955: 90). cou que as suas instituições educacionais não
É inspirado nesta atitude que Pasárgada 2 davam qualquer sinal de que essa crise existia
decidiu adotar o princípio da transição para- e suprimiam de vários modos, uns mais subtis
digmática. Pasárgada 2 é, para já, apenas uma que outros, a ideia de que um novo paradigma
comunidade educacional: os estudantes são to- poderia estar no horizonte e de que era do in-
dos os cidadãos enquanto trabalham, descan- teresse dos cidadãos-estudantes conhecê-lo.
sam e estudam. É pautada por um duplo objec- A simples hipótese de uma alternativa radical
tivo: ampliar o conhecimento dos paradigmas deixava-os nervosos e escondiam os nervos si-
em presença e promover a competição entre lenciando ou ridicularizando os que admitiam
eles de modo a expandir as alternativas de tal hipótese. Os nervos e a sua ocultação eram
prática social e pessoal e as possibilidades de tanto maiores quanto maiores eram as respon-
lutar por elas. Ao contrário das outras utopias, sabilidades profissionais das instituições. Por
Pasárgada 2 não está organizada em detalhe, exemplo, ao nível universitário, as Faculdades
pelo que não cabe aqui senão referir os seus de Economia, Direito, Medicina e Engenharia
princípios de organização e o perfil geral dos eram particularmente notadas por esta atitude.
paradigmas em competição. Perante isto, a comunidade de cidadãos-
Quanto à organização, o princípio institucio- -estudantes decidiu formar uma Câmara Para-
nal mais importante é a constituição de uma digmática com o objectivo de criar um fórum
Câmara Paradigmática em que estão igual- alternativo de discussão sobre os paradigmas.
198 Boaventura de Sousa Santos

Esta Câmara não tem qualquer poder delibera- tica, corresponderia a falar como ignorante
tivo sobre os processos e conteúdos de ensino diplomado. Falo como sociólogo membro da
nas instituições, mas está em permanente diá- Câmara que nela defende o paradigma emer-
logo com eles. A única deliberação que tomou gente tal qual ele, e outros, o concebem. Daí
foi suspender temporariamente a concessão de que, no que se segue, eu analise os termos da
diplomas. Como as instituições continuam, por transição e da competição paradigmática tal
agora, a ensinar apenas o paradigma até agora qual eu a vejo e, portanto, sem que isso vincule
vigente, a Câmara entendeu que, como os diplo- a Câmara. Apenas espero que as análises e os
mas certificam conhecimento apenas desse pa- argumentos que apresento sejam persuasivos e
radigma, do ponto de vista do paradigma emer- nessa medida conquistem adeptos.
gente os diplomas correspondem a diplomas de O diagnóstico da condição presente que
ignorância. Como seria embaraçoso que no futu- apresentei na primeira parte deste trabalho dá
ro os cidadãos-estudantes tivessem um diploma indicações bastantes sobre o modo como vejo
de ignorância, e como de pouco lhes servia um a transição paradigmática e sobre a concepção
diploma que tanto podia ser considerado de co- que tenho e a avaliação que faço do paradigma
nhecimento como de ignorância, a Câmara de- ainda dominante, embora decadente — o para-
cidiu suspendê-los temporariamente, admitindo digma da modernidade. Concentrar-me-ei agora
mesmo poder aboli-los mais tarde e para sem- no paradigma emergente. Em boa verdade não
pre. A suspensão dos diplomas deu muito mais há um paradigma emergente. Há antes um con-
liberdade aos cidadãos-estudantes e criou um junto de “vibrações ascendentes”, como diria
incentivo para as instituições se abrirem discus- Fourier, de fragmentos pré-paradigmáticos que
são paradigmática. Desprovidas do privilégio de têm em comum a ideia de que o paradigma da
certificação, se não se abrirem à discussão, cor- modernidade exauriu a sua capacidade de rege-
rem o risco de perder os estudantes. neração e desenvolvimento e que, ao contrário
Procurarei agora analisar, em traços largos, do que ele proclama — modernidade ou barbá-
o conteúdo das discussões paradigmáticas que rie —, é possível (e urgente) imaginar alterna-
a Câmara Paradigmática está a promover. Não tivas progressivas. Têm também em comum o
falo com sociólogo independente, pois que saberem que só é possível pensar para além da
isso, do ponto de vista da Câmara Paradigmá- modernidade a partir dela, ainda que na forma
O Norte, o Sul e a utopia 199

das suas vítimas ou das tradições que ela pró- ca, cartesiana, newtoniana, durkheimiana,
pria gerou e depois suprimiu ou marginalizou. weberiana, marxista — e o que tenho vindo a
Neste sentido, pode dizer-se que a modernidade designar por ciência pós-moderna e que outros
fornece muitos dos materiais para a construção designam por “nova ciência”. E porque todo o
do novo paradigma. Só não fornece o plano de conhecimento é autoconhecimento, o confli-
arquitetura nem a energia necessária para o con- to epistemológico desdobra-se num conflito
cretizar; se, por hipótese, visitasse o edifício, psicológico entre a subjetividade moderna e a
não saberia como entrar e, se entrasse, morreria subjetividade pós-moderna.
instantaneamente com as correntes de ar. Analisei noutro lugar as diferentes dimen-
Os fragmentos pré-paradigmáticos são por sões do conflito epistemológico, pelo que me
enquanto um paradigma virtual e nem sequer limitarei a breves referências, detendo-me um
é seguro que à modernidade se seguirá um ou- pouco mais nas que representam desenvolvi-
tro paradigma com a mesma coerência global mentos posteriores ao que já está publicado
e pretensão totalizadora que ela teve. Pode ser (Santos, 1990; 1991a; 1991b). Para o velho pa-
que os paradigmas emergentes sejam vários e radigma, a ciência é uma prática social mui-
permaneçam vários e conflituem tanto entre si to específica e privilegiada porque produz a
corno, cm conjunto, conflituam com a moder- única forma de conhecimento válido. Essa
nidade. Considero que são hoje identificáveis validade pode ser demonstrada e a verdade a
três grandes áreas de conflitualidade paradig- que aspira é intemporal, o que permite fixar
mática: conhecimento e subjetividade, padrões determinismos e formular previsões. Este co-
de transformação social, poder e política. Em nhecimento é cumulativo e o progresso cien-
relação a cada unia destas áreas identifico a tífico assegura, por via do desenvolvimento
seguir os traços em meu entender mais carac- tecnológico que torna possível, o progresso
terísticos do paradigma emergente. da sociedade. A racionalidade cognitiva e ins-
trumental e a busca permanente da realidade
Conhecimento e subjetividade para além das aparências fazem da ciência
uma entidade única, totalmente distinta de ou-
Nesta área o conflito é já bem evidente e
tras práticas intelectuais, tais como as artes
tem lugar entre a ciência moderna — galilai-
ou as humanidades.
200 Boaventura de Sousa Santos

O novo paradigma constitui uma alternativa quanto a capitalista); e também porque ocorreu
a cada um destes traços. Em primeiro lugar, tanto no espaço periférico, extra-europeu e ex-
nos seus termos não há uma única forma de tra-norte-americano do sistema mundial, como
conhecimento válido. Há muitas formas de co- no espaço central europeu e norte-americano,
nhecimento, tantas quantas as práticas sociais contra os trabalhadores, os índios, os negros,
que as geram e as sustentam. A ciência moder- as mulheres e as minorias em geral (étnicas,
na é sustentada por uma prática de divisão téc- religiosas, sexuais).
nica profissional e social do trabalho e pelo de- O novo paradigma considera o epistemi-
senvolvimento tecnológico infinito das forças cídio como um dos grandes crimes contra a
produtivas de que o capitalismo é hoje único humanidade. Para além do sofrimento e da
exemplar. Práticas sociais alternativas gerarão devastação indizíveis que produziu nos povos,
formas de conhecimento alternativas. Não re- nos grupos e nas práticas sociais que foram
conhecer estas formas de conhecimento impli- por ele alvejados, significou um empobreci-
ca deslegitimar as práticas sociais que as sus- mento irreversível do horizonte e das possibili-
tentam e, nesse sentido, promover a exclusão dades de conhecimento. Se hoje se instala um
social dos que as promovam. O genocídio que sentimento de bloqueamento pela ausência de
pontuou tantas vezes a expansão europeia foi alternativas globais ao modo como a socieda-
também um epistemicídio: eliminaram-se po- de está organizada, é porque durante séculos,
vos estranhos porque tinham formas de conhe- sobretudo depois que a modernidade se redu-
cimento estranho e eliminaram-se formas de ziu à modernidade capitalista, se procedeu à li-
conhecimento estranho porque eram sustenta- quidação sistemática das alternativas, quando
das por práticas sociais e povos estranhos. Mas elas, tanto no plano epistemológico, como no
o epistemicídio foi muito mais vasto que o ge- plano prático, não se compatibilizaram com as
nocídio porque ocorreu sempre que se preten- práticas hegemônicas.
deu subalternizar, subordinar, marginalizar, ou Contra o epistemicídio, o novo paradigma
ilegalizar práticas e grupos sociais que podiam propõe-se revalorizar os conhecimentos e as
constituir uma ameaça à expansão capitalista práticas não hegemônicas que são afinal a es-
ou, durante boa parte do nosso século, à ex- magadora maioria das práticas de vida e de
pansão comunista (neste domínio tão moderna conhecimento no interior do sistema mundial.
O Norte, o Sul e a utopia 201

Como medida transitória propõe que apren- lidade como ponto de partida, e não necessa-
damos com o Sul, sendo neste caso o Sul uma riamente como ponto de chegada. Entendida
metáfora para designar os oprimidos pelas di- assim, a horizontalidade é a condição sine qua
ferentes formas de poder, sobretudo pelas que non da concorrência entre conhecimentos. Só
constituem os espaços-tempo estruturais aci- haveria relativismo se o resultado da concor-
ma descritos, tanto nas sociedades periféricas, rência fosse indiferente para a comparação dos
como nas sociedades semiperiféricas, como conhecimentos, o que não é o caso, dado haver
ainda nas sociedades centrais. Esta opção pe- um ponto de chegada que não é totalmente de-
los conhecimentos e práticas oprimidas, mar- terminado pelas condições do ponto de partida.
ginalizadas, subordinadas, não tem qualquer Esse ponto de chegada depende do proces-
objetivo museológico. Pelo contrário, é crucial so argumentativo no interior das comunidades
conhecer o Sul para conhecer o Sul nos seus interpretativas. O conhecimento do novo para-
próprios termos, mas também para conhecer o digma não é validável por princípios demons-
Norte. É nas margens que se faz o centro e é no trativos de verdades intemporais. E, pelo con-
escravo que se faz o senhor. trário, um conhecimento retórico cuja validade
O que se pretende é, pois, uma concorrên- depende do poder de convicção dos argumen-
cia epistemológica leal entre conhecimentos tos em que é traduzido. Daí que o novo para-
como processo de reinventar as alternativas digma preste particular atenção à constituição
de prática social de que carecemos ou que afi- das comunidades interpretativas e considere
nal apenas ignoramos ou não ousamos desejar. seu objetivo) principal garantir e expandir a
Esta concorrência não significa relativismo no democraticidade interna dessas comunidades,
sentido que a epistemologia moderna tem dele. isto é, a igualdade do acesso ao discurso argu-
Segundo ela, é relativismo e portanto fonte de mentativo. Daí também a preferência pelo Sul
obscurantismo — toda a atitude epistemológi- como uma espécie de discriminação positiva
ca que recuse reconhecer o acesso privilegiado que aumenta o âmbito da diversidade e dá al-
à verdade que ela julga possuir por direito pró- guma garantia de que o silenciamento, ou seja,
prio. A possibilidade de uma relação horizontal a expulsão das comunidades argumentativas,
entre conhecimentos é-lhe totalmente absurda. que foi o timbre da ciência moderna, não ocor-
Ora o novo paradigma propõe tal horizonta- ra ou ocorra o menos possível. Por isso o novo
202 Boaventura de Sousa Santos

conhecimento, sendo argumentativo, tem um Sendo um conhecimento argumentativo, o


interesse especial pelo silêncio para averiguar novo paradigma recusa totalmente duas outras
até que ponto ele é um silêncio genuíno, ou características da ciência moderna — a intem-
seja, o resultado de uma opção argumentati- poralidade das verdades científicas e a distin-
va e até que ponto ele é um silenciamento, ou ção absoluta entre aparência e realidade — por
seja, o resultado de uma imposição não argu- achar que cada uma delas, a seu modo, tem
mentativa. Porque o Sul é o campo privilegiado uma vocação totalitária. O conhecimento no
do silêncio e do silenciamento, é esta outra das novo paradigma é tão temporal como as prá-
razões por que o novo paradigma lhe confere ticas e a cultura a que se vincula. Assume ple-
uma atenção particular. namente a sua incompletude, pois que sendo
Um dos princípios reguladores da validação um conhecimento presente só permite a inte-
é, pois, a democraticidade interna da comu- ligibilidade do presente. O futuro só existe en-
nidade-interpretativa. O outro princípio é um quanto presente, enquanto argumento a favor
valor ético intercultural, o valor da dignidade ou contra conhecimentos e práticas presentes.
humana. O novo paradigma não distingue entre Esta radical contemporaneidade dos conheci-
meios e fins, entre cognição e edificação. O co- mentos tem consequências fundamentais para
nhecimento, estando vinculado a uma prática e o diálogo e a concorrência entre eles. É que se
a uma cultura, tem um conteúdo ético próprio. todos os conhecimentos são contemporâneos,
Esse conteúdo assume diferentes formas em são igualmente contemporâneas as práticas so-
diferentes tipos de conhecimento, mas entre ciais e os sujeitos ou grupos sociais que nelas
elas é possível a comunicabilidade e a perme- intervêm. Não há primitivos nem subdesenvol-
abilidade, na medida em que todas as culturas vidos, há, sim, opressores e oprimidos. E por-
aceitam um princípio de dignidade humana. que o exercício do poder é sempre relacional,
Por exemplo, na cultura ocidental tal princípio todos somos contemporâneos. Para dar um
é hoje expresso através do princípio de direitos exemplo caseiro, o conhecimento dos campo-
humanos. Outras culturas exprimem-se nou- neses portugueses não é menos desenvolvido
tros termos, mas a tradução recíproca é possí- que o dos engenheiros agrônomos do Ministé-
vel a partir da inteligibilidade intercultural as- rio da Agricultura; é lhe contemporâneo, ainda
segurada pelo princípio da dignidade humana. que subordinado. Do mesmo modo que a agri-
O Norte, o Sul e a utopia 203

cultura familiar portuguesa não é mais primiti- processos de conhecimento tornaram possível
va que a agroindústria. É-lhe contemporânea, o epistemicídio, a desclassificação de todas as
mas subordinada. formas de conhecimento estranhas ao para-
A intemporalidade da verdade científica per- digma da ciência moderna sob o pretexto de
mitiu à ciência moderna autoproclamar-se con- serem conhecimento tão-só de aparências. A
temporânea de si mesma e, do mesmo passo, distribuição da aparência aos conhecimentos
descontemporaneizar todos os outros conheci- do Sul e da realidade ao conhecimento cientí-
mentos, nomeadamente os que dominaram na fico do Norte está na base do eurocentrismo.
periferia do sistema mundial no momento do E dada a vinculação mútua de conhecimentos
contacto com a expansão europeia. Assim nas- e práticas, esta mesma distribuição permitiu
ceram os selvagens, pelo mesmo processo por eliminar ou marginalizar, por ilusórias e misti-
que hoje se continuam a reproduzir compor- ficatórias, as práticas do Sul que discrepavam
tamentos racistas e xenófobos. A ideia da su- com as práticas do Norte, ditas reais por coin-
perioridade biológica da raça ariana não teria cidirem, aos olhos de quem as olhava, com as
sido possível sem a ideia da superioridade tem- aparências familiares.
poral da atitude e do comportamento racistas. Para o novo paradigma, a distribuição entre
Com a mesma prevenção antitotalitária, o aparência e realidade nem sempre faz sentido
novo paradigma suspeita da distinção entre e quando faz é sempre relativa e a aparência
aparência e realidade. Nos termos em que ela não é necessariamente o lado inferior do par.
foi feita pela ciência moderna, trata-se muito O novo paradigma prevalece-se neste domínio
mais de uma hierarquização do que de uma dis- de Schiller e da sua defesa da aparência estéti-
tinção. A aparência é a não-realidade, a ilusão ca (das aesthetische Schein) nas Cartas sobre
que cria obstáculos à inteligibilidade do real a Educação Estética do Homem, publicadas
existente. Daí que a ciência tenha por objetivo em 1795 (Schiller, 1967). Alias, Schiller repre-
identificar-denunciar a aparência, e ultrapassá- senta, para o novo paradigma, uma das tradi-
-la para atingir a realidade, a verdade sobre a ções suprimidas da modernidade e, como tal,
realidade. Esta pretensão de saber distinguir susceptível de contribuir para a configuração
e hierarquizar entre aparência e realidade e o da nova intelegibilidade. Schiller faz uma críti-
fato de a distinção ser necessária em todos os ca radical da ciência e da desumanizarão admi-
204 Boaventura de Sousa Santos

nistrativa e especialização profissional que ela centralidade da forma estética enquanto trans-
promove, uma crítica, de resto, bastante seme- formação radical da matéria que, no entanto,
lhante à feita por Rousseau. E tal como aconte- tem uma dimensão lúdica e não está sujeita ao
ce cone Rousseau, não anima Schiller nenhu- ídolo da utilidade, Schiller propõe uma nova re-
ma veleidade passadista, mas antes o desejo lação entre a ciência e a arte, uma combinação
de reconstruir a totalidade da personalidade dinâmica de gêneros, em que a realização plena
nas novas condições criadas pela modernida- da ciência é também a sua dissolução no reino
de. Tal totalidade não é obtível, nem pelo do- mais vasto da arte, do sentimento estético e da
mínio das forças da natureza que a ciência pos- vivência lúdica. Semelhantemente, segundo o
sibilita, nem pelas leis ou a moral que o Estado novo paradigma, a ciência é um conhecimento
promulga, mas por uma mediação entre eles, discursivo, cúmplice de outros conhecimen-
por urna terceira entidade, a forma estética, o tos discursivos, literários nomeadamente. A
Estado estético: “no meio do terrível reino das ciência faz parte das humanidades. Enquanto
forças da natureza e do reino sagrado das leis, narrativa não ficcional, tem um grau de cria-
o impulso estético da forma trabalha para criar tividade menor, mas, precisamente, é apenas
o reino do lúdico e da aparência” (Carta 27 §8). uma questão de grau o que a distingue da fic-
Mas Schiller está consciente que a aparência ção criativa. Nestas condições, está preludida
estética só será universal quando a cultura tor- qualquer possibilidade de demarcações rígidas
nar o seu abuso impossível. Por enquanto, diz entre disciplinas ou entre gêneros, entre ciên-
Schiller, “a maioria das pessoas humanas está cias naturais, sociais e humanidades, entre arte
demasiado cansada e exausta pela luta pela e literatura, entre ciência e ficção.
existência para poder envolver-se numa luta Mas Schiller tem importância para o novo
nova e mais dura contra o erro” (Carta 8 §6). paradigma por uma outra razão. Pelo modo
E por isso que, com tantas razões, que ele enu- como reabilita os sentimentos e as paixões en-
mera, para a sociedade se considerar ilumina- quanto forças mobilizadoras da transformação
da, faz sentido perguntar: “porquê então ainda social. Como vimos, uma das preocupações
permanecemos bárbaros?”. centrais do novo paradigma é criar alternativas
A importância de Schiller para o novo para- e a concorrência entre elas. A outra preocupa-
digma é dupla. Em primeiro lugar, ao afirmar a ção é a de criar uma subjectividade que queira
O Norte, o Sul e a utopia 205

lutar por elas. Efetivamente, a síndrome de blo- capacidade de revolta e de surpresa, a vontade
queamento global que hoje se vive talvez não se de transformação pessoal e coletiva e que, por
deva tanto à falta de alternativas (porque elas isso, a tarefa de reconstrução dessa capacidade
existem) como à falta de vontade individual e e dessa vontade é, em finais do século XX, mui-
coletiva para lutar por elas. to mais urgente do que era em finais do século
A incredibilidade das alternativas é o rever- XVIII. De resto, para além de Schiller, outros
so da indolência da vontade. Escrevendo no criadores culturais, cujas ideias e utopias fo-
final do século XVIII, Schiller teme que o ídolo ram ainda mais suprimidas ou marginalizadas
da utilidade venha a matar a vontade de reali- que as de Schiller, podem ser convocados para
zação pessoal e coletiva. Por isso afirma no § 3 levar a cabo tal tarefa. Refiro-me muito parti-
da Carta 8: cularmente a Fourier, ao lugar central que as
paixões ocupam no seu pensamento — ele que
[A] razão realizou tudo o que pode realizar ao na vida prática foi, tal como Fernando Pessoa,
descobrir e ao apresentar a lei. A sua execução um fiel servidor da monótona vida comercial —
pressupõe uma vontade resoluta e o ardor do e ao princípio da atração apaixonada por ele
sentimento. Para a verdade vencer as forças que concebido como o grande motor do movimen-
conflituam com ela, tem ela própria de tornar-se
to universal.
uma força […] pois os instintos são a única força
Como referi acima, o novo paradigma epis-
motivadora no mundo sensível.
temológico aspira igualmente a uma nova psi-
cologia, à construção de uma nova subjetivi-
E conclui no §7 da mesma carta: “o desen-
dade. Não basta criar um novo conhecimento,
volvimento da capacidade do homem para sen-
é preciso que alguém se reconheça nele. De
tir é, portanto, a necessidade mais urgente da
nada valerá inventar alternativas de realiza-
nossa época”.
ção pessoal e coletiva, se elas não são apro-
O novo paradigma entende que o racionalis-
priáveis por aqueles a quem se destinam. Se o
mo estreito, mecanicista, utilitarista e instru-
novo paradigma epistemológico aspira a um
mental da ciência moderna, combinado com a
conhecimento complexo, permeável a outros
expansão da sociedade de consumo, obnubi-
conhecimentos, local e articulável em rede
lou, muito para além do que previra Schiller, a
com outros conhecimentos locais, a subjetivi-
206 Boaventura de Sousa Santos

dade que lhe faz jus deve ter características é igualmente multidimensional: os obstáculos
similares ou compatíveis. à construção de uma tal subjetividade não es-
A subjetividade engendrada pelo velho para- tão localizados num dado espaço-tempo, mas
digma é o indivíduo unidimensional, maximi- estão antes disseminados por todos eles. Tais
zador da utilidade que escolhe racionalmente obstáculos constituem quatro habituses de
segundo o modelo arquetípico do homo econo- regulação, subordinação, e conformismo, aos
micus. As alternativas credíveis perante uma quais é necessário opor quatro habituses de
tal subjetividade têm de se medir por ela e por emancipação, insubordinação e revolta.
isso não surpreende que a equação entre inte- Esta multidimensionalidade exige que as
resse e capacidade tenha sido completamente energias emancipatórias sejam simultanea-
privatizada à medida que se aprofundou o en- mente muito amplas e muito concretas. No
laço entre modernidade e capitalismo. Ao con- paradigma da modernidade, foi, ao contrário,
trário, o novo paradigma aspira a uma resso- a unidimensionalidade que tornou possível to-
cialização da equação interesse-capacidade e, mar amplitude por abstração: o indivíduo abs-
portanto, a uma subjetividade que seja capaz trato pode aspirar a uma amplitude universal,
dela. A multidimensionalidade da subjetividade mas obtida à custa do esvaziamento total de
no novo paradigma está já indicada no modelo atributos contextuais. A amplitude no novo
dos espaços tempo estruturais. Efetivamente, paradigma significa, antes de mais, o alarga-
cada espaço tempo cria uma forma ou dimen- mento das razões com que se podem justificar
são de subjetividade, pelo que os indivíduos as condutas, um alargamento da racionalidade
e os grupos sociais são, de fato, constelações cognitivo-instrumental para uma racionalidade
de subjetividades, articulações particulares, mais ampla onde caiba, além dela, a racionali-
variáveis de contexto para contexto, entre as dade moral-prática e a racionalidade estético-
diferentes formas ou dimensões. Isto significa -expressiva, um alargamento da demonstração
que a construção da vontade das alternativas e racional para a argumentação racional, em
da concorrência entre elas tem de ser feita em suma, um alargamento da racionalidade para a
relação a cada uma das dimensões e, portan- razoabilidade, do conhecimento epidítico para
to, em cada um dos espaços-tempo estruturais. a phronesis. Paradoxalmente, quanto mais am-
Não é, pois, tarefa fácil, uma vez que a fricção pla é, melhor a racionalidade conhece os seus
O Norte, o Sul e a utopia 207

limites. Neste domínio, as paixões de Schiller e quanto ser humano — com a problematização
dos românticos e a atração apaixonada de Fou- mais ampla do sentido da vida e da sociedade.
rier são dois campos privilegiados de escava- Montaigne escreveu sobre si próprio porque,
ção arqueológica da modernidade. como costumava dizer, esse era o tema de que
Mas esta ampliação das energias emanci- tinha algum conhecimento seguro e concreto.
patórias só faz sentido se a sua extensão for Mas não o fez de modo narcisista, fechado so-
igualada pela sua intensidade, se a energia bre si próprio; pelo contrário, soube, a partir
emancipatória se souber condensar nos atos do mais profundo de si, buscar a intelegibilida-
concretos de emancipação protagonizados por de do mais amplo e também mais profundo da
indivíduos ou grupos sociais. A desconfiança vida coletiva. Para isso, rompeu radicalmente
das abstrações é fundamental no novo paradig- com a distinção sujeito/objecto em que assen-
ma. Não que elas não possam ser aceites, mas ta a ciência moderna, antecipando assim de
que só o sejam quando os contextos da sua re- muitos séculos o que hoje é pretendido pelo
alização lhes fazem jus. Por exemplo, o concei- novo paradigma. Como Montaigne viu muito
to abstrato de direitos humanos começa hoje, bem, o problema da distinção sujeito/objeto é
dois séculos depois da sua formulação, a fazer que induz a abstração não só do objeto como
verdadeiro sentido na medida em que por todo também do próprio sujeito. A arrogância epis-
o sistema mundial grupos sociais estão a orga- temológica deste último é o resultado de um
nizar lutas de emancipação guiadas por ele. auto-esquecimento. Esse auto-esquecimento,
Para a construção da amplitude concreta da oculto no esquecimento do outro, foi eloquen-
subjetividade, dois outros campos de escava- temente denunciado por Frantz Fanon quando,
ção arqueológica se me afiguram fundamen- num dos seus desabafos irônicos, se pergun-
tais: Montaigne e Kropotkin, outros dois cria- tava porque é que os europeus falavam tanto
dores culturais cujas ideias foram suprimidas do indivíduo em geral e não eram capazes de o
ou marginalizadas pela concepção hegemôni- reconhecer quando o encontravam (1974: 230).
ca da modernidade capitalista. A importância Se Montaigne insistiu na necessidade de não
de Montaigne reside em ter desenvolvido um perder de vista o indivíduo concreto, Kropotkin
dispositivo intelectual que combinava a inteli- insistiu na solidariedade concreta, nos laços de
gibilidade mais concreta — a dele próprio en- ajuda mútua que ligam os indivíduos uns aos
208 Boaventura de Sousa Santos

outros e sem os quais a vida individual, e não de cada uni deles se aproximam de tal modo
apenas a coletiva, não seria possível. Contra o que parecem constituir uma zona cinzenta,
individualismo possessivo e o darwinismo so- imitei surdia, mista. No entanto, defendo que
cial da época, Kropotkin procurou reivindicar esta zona, longe de negar a existência do con-
a evidência que as pessoas são capazes de soli- flito paradigmático, é pressuposta por ele e é
dariedade e, na prática, têm-na vindo a exercer por isso que põe limites à própria possibilidade
através da história (1955 [1902]). Não procurou de combinação e intermediação entre os para-
sequer abstratizar essa capacidade como de digmas. São as diferenças inegociáveis que tor-
algum modo o fez Marx ao centrá-la na classe nam o conflito paradigmático.
operária. Procurou antes dar-lhe voz onde quer A segunda nota e alue o conflito paradigmá-
que a viu e a viu violentada pelo paradigma psi- tico não é apenas terçado a nível intelectual,
cológico dominante. como tini acontecido, pelo menos até agora,
com o conflito epistemológico; é, além disso, e
Padrões de transformação social cada vez mais, um conflito social e político sus-
tentado por grupos e interesses organizados,
A conflitualidade paradigmática no domínio
ainda que com poder e organização muito de-
dos padrões de transformação social é talvez
siguais. De algum modo, este conflito paradig-
mais recente que a que ocorre na epistemolo-
mático funciona como charneira entre os dois
gia e na subjetividade, mas adquiriu nas duas
outros conflitos: porque se traduz em práticas
ultimas décadas uma enorme acuidade. Neste
sociais alternativas, aspira também a práticas
domínio, a conflitualidade tem lugar entre dois
epistemológicas alternativas e está por isso
grandes paradigmas de desenvolvimento so-
profundamente interlaçado com o paradigma
cial, que designo simplesmente por paradigma
epistemológico; porque essas práticas sociais
capital-expansionista e paradigma eco-socialis-
têm lugar num campo político e, de fato, aspi-
ta. Duas notas preliminares sobre este conflito.
ram a uma redefinição global desse campo, o
A primeira é que, tal como sucede no caso da
conflito entre o paradigma capital-expansionis-
conflitualidade epistemológica, cada um dos
ta e o paradigma eco-socialista tem profundas
paradigmas cm conflito e internamente muito
vinculações ao conflito paradigmático sobre o
diferenciado, e tanto que algumas das versões
poder e a política, descrito brevemente a seguir.
O Norte, o Sul e a utopia 209

O paradigma capital-expansionista é o para- deve haver um estrito equilíbrio entre três for-
digma dominante e tem as seguintes caracterís- mas principais de propriedade: a individual, a
ticas gerais: o desenvolvimento social é medido comunitária, e a estatal; cada uma delas deve
essencialmente pelo crescimento econômico; operar de modo a atingir os seus objetivos com
o crescimento econômico é contínuo e assen- o mínimo de controlo do trabalho de outrem.
ta na industrialização e no desenvolvimento O paradigma eco-socialista enquanto cons-
tecnológico virtualmente infinitos; é total a trução intelectual decorre de um diálogo inter-
descontinuidade entre a natureza e a socieda- cultural muito amplo e, tanto quanto possível,
de: a natureza é matéria, valorizável apenas horizontal. A base desse diálogo é dupla. Por
enquanto condição de produção; a produção um lado, as necessidades humanas fundamen-
que garante a continuidade da transformação tais não variam muito no sistema mundial, o
social assenta na propriedade privada e especi- que varia são os meios para as satisfazer (os
ficamente na propriedade privada dos bens de satisfactores). Daí que se deva partir de uma
produção, a qual justifica que o controlo sobre inteligibilidade intercultural das necessidades
a força de trabalho não tenha de estar sujeito para, através dela, se atingir a inteligibilidade
a regras democráticas. O modelo de transfor- intercultural dos satisfactores. Por outro lado,
mação social proposto por Marx partilha as todas as culturas têm um valor de dignidade
três primeiras características, pelo que se pode humana, o qual, sendo único, permite uma her-
considerar um modelo subparadigmático, situ- menêutica transvalorativa e multicultural. Tal
ado na zona cinzenta, intermédia. hermenêutica constitui o desafio central do pa-
O paradigma eco-socialista é o paradigma radigma emergente.
emergente e, tal como eu o concebo, tem as O paradigma eco-socialista assenta em tra-
seguintes características: o desenvolvimento dições muito variadas. No que respeita às tra-
social afere-se pelo modo como são satisfei- dições europeias, são de mencionar a tradição
tas as necessidades humanas fundamentais e é comunitarista, o organicismo leibniziano, o
tanto maior, a nível global, quanto mais diverso movimento romântico, o socialismo utópico,
e menos desigual; a natureza é a segunda na- marxismo, e, no que respeita às tradições não-
tureza da sociedade e, como tal, sem se con- -europeias, as culturas Indos, chinesas e africa-
fundir com ela, tão-pouco lhe é descontínua; nas, a cultura islâmica e as culturas dos povos
210 Boaventura de Sousa Santos

nativos americanos. O paradigma eco-socialista base sólida, mas em permanente retificação, à


alimenta-se das margens e do Sul e, como se medida que vai sendo credível para grupos so-
calcula, elas são muitas, muito plurais e mesmo ciais cada vez mais amplos. Pela mesma razão,
babélicas. São como que o outro do centro, eu- o paradigma emergente busca a competição e
rocêntrico, moderno, capitalista, o qual faz pro- a concorrência com o paradigma capital-expan-
liferar as margens e o Sul na exata medida do sionista. O objetivo fundamental é, de fato, de-
seu autoritarismo e do seu caráter excludente. senhar várias formas de sociabilidade em que a
Esta babel de raízes é convocada e ativada por concorrência entre os paradigmas seja prática,
uma enorme diversidade, igualmente babélica controlável e avaliável.
de movimentos sociais e organizações não go- Na transição paradigmática, o Estado será
vernamentais locais e transnacionais, ecológi- dito Estado-Providência quando assegurar a
cos, feministas, operários, pacifistas, de defesa concorrência em igualdade de circunstâncias
dos direitos humanos, dos direitos dos consu- entre os paradigmas rivais. A concorrência
midores, e dos direitos históricos dos povos in- entre os paradigmas tem uma dimensão de
dígenas, de luta contra o ajustamento estrutural contradição e uma dimensão de competição.
ou a violência urbana, de luta pelos direitos dos A primeira visa esclarecer analítica e normati-
imigrantes ilegais, dos refugiados, das minorias, vamente o que separa os paradigmas; a segun-
das sexualidades alternativas, etc., etc. Muitos da dirige-se à articulação dos paradigmas com
destes movimentos têm muito pouco ou mes- a experiência subjetiva dos indivíduos e dos
mo nada a ver com as características que aci- grupos e visa, por isso, criar a subjetividade
ma atribuí ao paradigma eco-socialista. Têm de adequada a cada um deles, a energia e a pai-
comum serem um campo de experimentação xão necessárias para lutar por eles. A concor-
social vastísssimo onde se vão temperando as rência entre os paradigmas terá de ter lugar no
energias e a subjetividade necessária para uma interior de cada um dos quatro espaços-tempo
luta civilizacional como aquela que o paradig- estruturais e em cada um deles assume uma
ma emergente propõe. A experimentação tem forma particular. No espaço-tempo domésti-
de ser a mais vasta, tão vasta quanto a tradição co, o conflito é entre a divisão sexual patriar-
em que assenta, para que o paradigma, que é cal do trabalho e a comunidade eco-feminista
apenas emergente, se vá construindo numa doméstica, entre a família reprodutiva da força
O Norte, o Sul e a utopia 211

do trabalho e a família produtora de satisfac- rista. É neste espaço-tempo que verdadeira-


tores de necessidades, organizadora do lazer e mente se moldam os estilos e os modos de
do convívio com a natureza. A segurança social vida porque é nele que a equação entre neces-
prestada pelo Estado às famílias deve ser pres- sidades e satisfactores é decidida. Enquanto
tada, em igualdade de circunstâncias, às duas no primeiro paradigma as necessidades es-
organizações da domesticidade. tão ao serviço dos satisfactores, no segundo
No espaço-tempo da produção, o conflito e paradigma os satisfactores estão ao serviço
a concorrência será entre unidades capitalis- das necessidades. Enquanto para o primeiro
tas de produção e unidades eco-socialistas de paradigma o mercado é a única instituição
produção. Nestas últimas cabem organizações organizadora do consumo e as necessidades
de muito diferente tipo, mas que partilham o são convertidas em preferências objetivadas
fato de não serem orientadas, nem exclusiva- em objetos, para o segundo, o mercado é uma
mente, nem primordialmente, para a obtenção instituição entre outras e as necessidades são
de lucros: unidades de produção cooperativa, experiências subjetivas que podem expressar-
pequena agricultura familiar, serviços comu- -se de muitos modos diferentes, consoante os
nitários, instituições particulares de solidarie- contextos e as culturas, umas vezes através de
dade social, organizações não governamentais, objetos desejados, outras vezes através de de-
produção autogestionária, etc., etc. A segunda sejos de intersubjetividade.
dimensão providencial do Estado reside em Finalmente, para o primeiro paradigma as
apoiar em igualdade de circunstâncias unida- necessidades são uma privação, enquanto para
des produtivas de ambos os tipos para que pos- o segundo são simultaneamente uma privação
sam em igualdade de circunstâncias mostrar o e um potencial. A terceira dimensão providen-
que valem, quer pelo resultado da produção, cial do Estado consiste em promover e assegu-
quer pelos valores da subjetividade que susci- rar a conflitualidade intelectual e social destes
tam e promovem. dois paradigmas dando a ambos iguais condi-
Neste espaço-tempo promove-se ainda um ções para testarem as suas virtualidades e con-
outro conflito: o conflito entre o paradigma quistarem adeptos.
consumista, individualista e o paradigma das Ao nível do espaço-tempo da cidadania, a
necessidades humanas e do consumo solida- confrontação entre os paradigmas é particu-
212 Boaventura de Sousa Santos

larmente crucial e difícil de manter, uma vez como a obrigação horizontal e por essa razão a
que, sendo o Estado a forma institucional des- cidadania não tem de ser nem individual, nem
te espaço-tempo, tem de promover o conflito nacional; pode ser individual ou coletiva, na-
paradigmático no interior de si mesmo e é por cional, local ou transnacional. A eficácia inter-
isso que a quarta dimensão providencial do na do Estado reside no modo como negoceia
Estado em Pasárgada 2 é a autoprovidência e perde o poder de império interno a favor de
do Estado para consigo mesmo. Neste espaço- outras organizações sociais. Para essa negocia-
-tempo, o conflito paradigmático ocorre entre ção e essa partilha é funcional a larga escala e
o paradigma da obrigação política vertical e o o centralismo organizativos do Estado, mas a
paradigma da obrigação política horizontal. O função que desempenham consiste na criação,
primeiro preside à constituição do Estado libe- na promoção de estruturas organizativas de
ral, e tem as seguintes características: o Esta- menor escala, descentralizadas, locais. O cará-
do tem o monopólio da violência legítima e do ter providencial e redistributivo do Estado re-
direito, para o que dispõe de uma organização side antes de mais no modo como redistribui as
burocrática de larga escala, centralizada e cen- suas próprias prerrogativas, e um dos veículos
tralizadora; a cidadania é atribuída a indivíduos privilegiados é, como tenho vindo a defender, a
pelo Estado de que são nacionais, pelo que em promoção da competição entre os paradigmas
princípio não há cidadania sem nacionalidade e em cada um dos espaços-tempo estruturais. É
vice-versa; os cidadãos são formalmente iguais esta a quarta dimensão providencial do Estado
e estão todos igualmente sujeitos ao podre de na transição paradigmática.
império do Estado. No espaço-tempo da cidadania, a contradi-
O paradigma da obrigação horizontal confe- ção e a concorrência paradigmáticas ocorrem
re ao Estado o monopólio da violência legíti- ainda a um outro nível, ao nível da dimensão
ma, mas não o monopólio da produção do di- comunitária do espaço público. Aqui a concor-
reito. Pelo contrário, existe na sociedade uma rência é entre o paradigma das comunidades-
pluralidade de ordens jurídicas, com diferentes -fortaleza e o paradigma das comunidades de
centros de poder a sustentá-los, e diferentes fronteira. O paradigma capital expansionista
lógicas normativas. Na constituição da cida- sempre que não destruiu os espaços identitá-
dania, é tão importante a obrigação vertical rios colectivos privilegiou a constituição de
O Norte, o Sul e a utopia 213

comunidades identitários excludentes, quer lecer coligações de dignidade humana com ou-
excludentes-agressivas, quer excludentes- tras comunidades identitárias. Os movimentos
-defensivas. As primeiras, as excludentes- populares da América Latina, as comunidades
-agressivas, de que o exemplo arquetípico é a eclesiais de base, os movimentos dos direitos
“sociedade colonial”, são constituídas por gru- humanos em todo o sistema mundial, alguns
pos sociais dominantes que se fecharam na sua movimentos ecológicos e feministas, tendem
superioridade para não serem conspurcados a estar habitados pelo paradigma das comuni-
pelas comunidades inferiores. As segundas, ex- dades de fronteira. Ao contrário, o movimento
cludentes defensivas, são o reverso das primei- sindical tradicional no Norte, algumas correntes
ras. Historicamente, emergiram do contacto do movimento feminista e muitos movimentos
com as comunidades excludentes-agressivas, de homossexuais e lésbicas tendem a prefigurar
fechando-se para defender o pouco de digni- o paradigma das comunidades-fortaleza. Sobre-
dade que pôde escapar à pilhagem colonial. tudo estes últimos tendem a constituir comuni-
O exemplo arquetípico destas últimas são as dades excludentes-defensivas.
comunidades indígenas. A consequência deste Para o paradigma emergente, o objetivo
processo de fechamento recíproco é que as co- central é lutar contra o apartheid identitário e
munidades-fortaleza tendem a ser internamen- cultural que o paradigma dominante pressupõe
te muito hierárquicas, ou seja, são excludentes e tem vindo a desenvolver constantemente. A
para o exterior, mas também no interior. quinta dimensão providencial do Estado em
Para o paradigma das comunidades de frontei- Pasárgada 2 consiste em promover a plurali-
ra, a identidade é sempre multímoda, inacabada, dade e a permeabilidade das identidades pelo
em processo de reconstrução e de reinvenção, incentivo à confrontação entre os dois para-
é, cm verdade, um processo de identificação em digmas, com base na ideia de que o apartheid
curso. Por isso, a comunidade para que aponta é se reproduz incessantemente na sociedade, e a
vorazmente inclusiva, permeável, alimentando- muitos mais níveis do que vulgarmente se jul-
-se das fontes que lança para outras comunida- ga, sendo, de resto, um dos recursos estratégi-
des, buscando na comparação e na tradução cos do paradigma capital-expansionista.
intercultural o sentido mais profundo da digni- Por último, no espaço-tempo mundial o
dade humana que a habita e os modos de estabe- conflito paradigmático é entre o paradigma do
214 Boaventura de Sousa Santos

desenvolvimento desigual e da soberania ex- democraticamente permeáveis. O princípio da


cludente e o paradigma do desenvolvimento soberania exclusiva, tal como foi desenvolvido
democraticamente sustentável e da soberania pelo paradigma dominante, torna na prática
reciprocamente permeável. O primeiro para- possível que os Estados mais fortes, invocando
digma, dominante, foi acima descrito com al- interesses nacionais, nomeadamente de segu-
gum detalhe, pelo que me dispenso de o carac- rança nacional, possam exercer as suas prerro-
terizar aqui. O segundo paradigma, emergente, gativas de soberania à custa da soberania dos
convoca um novo sistema mundial organizado Estados mais fracos. Efetivamente, a soberania
segundo princípios eco-socialistas. É, de algum dos Estados periféricos e semiperiféricos tem
modo, um sistema mais globalizador que o atu- sido tradicionalmente muito permeável às pre-
al, porque a globalização ocorre sob o signo da tensões dos Estados hegemônicos. O que é ne-
identificação transnacional das necessidades cessário é assumir a permeabilidade como um
humanas fundamentais e do princípio da dig- processo recíproco e democrático por via do
nidade humana. Depois de séculos de moderni- qual os Estados negoceiam a perda da sua so-
dade capitalista, a hierarquia Norte/Sul tornou- berania a favor de organizações internacionais
-se uma mega-fricção, uma marca profunda e de organizações não governamentais trans-
das experiências sociais no interior do sistema nacionais mais bem equipadas que o Estado
mundial, e como tal não pode ser erradicada de para realizar as tarefas eco-socialistas trans-
um momento para o outro. Mas deve, a partir nacionais. Tal como no espaço-tempo da cida-
de agora, ser posta sob suspeita sistemática. dania o Estado negoceia democraticamente a
O princípio da acção social neste espaço- perda de soberania interna a favor de grupos
-tempo passa a ser que tudo o que contribui e organizações que passam, por transferência,
para aumentar a hierarquia Norte/Sul é uma a exercer algumas prerrogativas de autogover-
prática de lesa-humanidade, como tal devendo no, no espaço-tempo mundial os Estados nego-
ser avaliada. O sistema interestatal tem um pa- ceiam entre si e organizações internacionais e
pel importante na promoção dessa suspeita sis- transnacionais a perda de soberania externa de
temática, mas para o exercer cabalmente tem modo a que estas disponham de um conjunto
ele próprio que se transformar profundamen- de prerrogativas de soberania que lhes permi-
te. Daí, o princípio das soberanias recíproca e ta criar formas de governação transnacional
O Norte, o Sul e a utopia 215

para os temas e problemas que não podem ser plo, civilizacional, em que efetivamente esti-
adequadamente resolvidos, nem a nível estatal, veram integrados na sua origem, mas que, a
nem sequer a nível interestatal. pouco e pouco, foi perdido. Se analisarmos o
movimento operário revolucionário desde o
Poder e política início do século XIX até à Comuna de Paris, ve-
rificamos que os seus objetivos, mais que uma
A terceira grande área de contradição e com-
luta de classes, implicavam uma luta civiliza-
petição paradigmática é o poder e a política.
cional. Assim, as suas lutas não tinham por ob-
Esta área é talvez mais importante que as de-
jetivo uma mera mudança das relações de pro-
mais na medida em que nela se concebem e for-
dução. Aspiravam a uma nova sociabilidade, à
jam as coligações capazes de conduzir a transi-
transformação radical da educação e do consu-
ção paradigmática. A dificuldade de tal tarefa
mo, à eliminação da família, à emancipação da
está em que a transição paradigmática reclama,
mulher e ao amor livre. É só no último quartel
muito mais que uma luta de classes, uma luta
do século XIX, e em boa medida devido à as-
de civilizações, e reclama-o num momento em
cendência do marxismo no movimento operá-
que nem sequer a luta de classes parece estar
rio, que os objetivos civilizacionais vão ceder
na agenda política. No entanto, do ponto de vis-
o passo aos meros objetivos de classe. É nesse
ta do paradigma emergente, tal situação longe
processo que o movimento operário passa a ser
de ser paradoxal ou dilemática, exprime a um
integrado na modernidade capitalista, no mes-
nível muito profundo as potencialidades para-
mo processo em que Marx desenha a estratégia
digmáticas que o tempo presente encerra e que
para a superar. Uma estratégia que, à partida,
é preciso fazer desabrochar.
estava votada ao fracasso, uma vez que, nesse
Na verdade, o definhamento da luta de clas-
momento, a modernidade estava já reduzida,
ses ou, para sermos mais exatos, a derrota
enquanto projecto social, à modernidade capi-
global do movimento operário organizado sig-
talista e não era por isso, possível eliminar a
nifica, não que os objetivos desta luta estejam
última salvaguardando a primeira.
cumpridos — provavelmente nunca estiveram
O objetivo de um pensamento heterotópico
tão longe de o estar — mas antes que eles só
é exatamente o de repor, no final do século XX
são obtíveis dentro de um contexto mais am-
e em moldes radicalmente diferentes, a luta
216 Boaventura de Sousa Santos

civilizacional por que mereceu a pena lutar no nizativa ou recursos embora estes também es-
princípio do século XIX. Esta luta civilizacional casseiem — mas antes a legitimidade e muitas
é sem dúvida uma luta epistemológica e psico- vezes a autolegitimidade para a partir de espa-
lógica e uma luta por padrões alternativos de ços sociais tão circunscritos propor transfor-
sociabilidade e de transformação social, mas é mações que só são eficazes se forem globais.
acima de tudo uma luta entre paradigmas de O objetivo central da Câmara Paradigmática
poder e de política. As lutas estão obviamente de Pasárgada 2 na área do poder e da política
interligadas porque, em cada uma delas, tanto consiste precisamente em elevar o nível crítico
o paradigma dominante, como o paradigma de legitimidade dos grupos em luta pelo para-
emergente recebem o apoio cúmplice dos pa- digma emergente, através da explicitação das
radigmas correspondentes em competição nas mediações entre o local e o global.
outras lutas. É esta sobreposição de lutas que O conflito paradigmático nesta área é entre
confere o âmbito e a intensidade específicos de o paradigma da democracia autoritária e o pa-
uma luta civilizacional. E se esta sobreposição radigma da democracia eco-socialista. O para-
cria o potencial de uma transformação radical, digma da democracia autoritária está inscrito
torna também particularmente difícil, sobretu- na matriz do Estado moderno liberal e já referi
do numa fase inicial de transição paradigmáti- algumas das suas características. Acrescenta-
ca, a criação e a consolidação das coligações rei agora apenas as que têm diretamente a ver
e das organizações portadoras de uma nova com o seu caráter autoritário. Tal caráter con-
equação entre interesses e capacidades. siste, em primeiro lugar, em conceber como
Contra tais coligações e organizações mili- política apenas uma das formas de poder que
ta a eficácia multiplicadora da sobreposição circulam na sociedade e limitar a ela o disposi-
dos paradigmas dominantes em cada uma das tivo democrático. Consiste, em segundo lugar,
áreas de sociabilidade. Isto explica que, como em limitar este dispositivo democrático a um
notei acima, sejam fracos, fragmentados e lo- princípio mono-organizativo, a democracia re-
calizados os grupos e as lutas que um pouco presentativa, supostamente o único isomórfico
por toda a parte tentam romper com os dilemas com a forma de poder que pretende democrati-
que descrevi e propor uma saída civilizacional. zar. Consiste, em terceiro lugar, em conferir ao
O que lhes falta não é tanto a capacidade orga- Estado o monopólio de poder político através
O Norte, o Sul e a utopia 217

do princípio da obrigação política vertical en- tal (a relação cidadão-cidadãos) nos termos do
tre Estado e cidadão. Consiste, finalmente, em qual a fraqueza deste segundo eixo potencia
esse monopólio estatal ser exercido na depen- em geral o autoritarismo do eixo vertical, ao
dência financeira e ideológica dos interesses mesmo tempo que permite que ele se exerça
econômicos hegemônicos que, na sociedade desigualmente em relação a diferentes gru-
capitalista, são os que se afirmam como tal a pos de cidadãos, tanto mais autoritariamente
luz do princípio do mercado. quanto socialmente mais vulneráveis forem
Do ponto de vista do paradigma da democra- tais grupos. Por último, e ligado ao que acabei
cia eco-socialista, estas características são au- de dizer, o autoritarismo deste paradigma resi-
toritárias porque a sua eficácia social confere de em que o Estado moderno, sendo o Estado
aos poderosos, aos grupos e classes dominan- que historicamente maior exterioridade em re-
tes, uma enorme legitimidade, que não só re- lação ao poder econômico revela, é, de fato,
produz, como aprofunda a hierarquia e a injus- muito mais dependente dele, quer porque os
tiça social. Assim, ao considerar como apenas governantes deixaram de ter fortuna pessoal,
política uma das formas de poder, a do espaço- quer porque o Estado assumiu novas funções
-tempo da cidadania, o paradigma dominante que exigem a mobilização de vastos recursos.
demite-se da exigência de democratização das Daí a necessidade de o Estado ter de manter
restantes formas do poder. Em segundo lugar, uma relação de diálogo cúmplice com o poder
esta demissão acarreta o fechamento do po- econômico ou, em casos extremos, ter de rom-
tencial democrático num modelo institucional per o diálogo para garantir a sua sobrevivência
e organizativo (a democracia representativa) (as nacionalizações).
especificamente vocacionado para funcionar O potencial autoritário do paradigma do-
setorial e profissionalmente sem perturbar o minante é enorme e os regimes distinguem-se
despotismo com que outras formas de poder pelo maior ou menor grau com que o realizam.
são socialmente exercidas e sem também se Daí que os regimes ditos autoritários ou mes-
deixar perturbar por elas. Em terceiro lugar, a mo totalitários não sejam uma aberração total,
democracia representativa assenta num dese- estranha ao paradigma. Pelo contrário, perten-
quilíbrio estrutural entre o seu eixo vertical (a cem-lhe genuinamente e apenas representam
relação Estado-cidadãos) e o seu eixo horizon- as formas extremas que ele pode assumir. O
218 Boaventura de Sousa Santos

fascismo, por um lado, e o comunismo, por ou- de poder em causa. Ou seja, para o paradigma
tro, são, cada um a seu modo formas extremas emergente, não há uma, mas quatro formas es-
do Estado liberal moderno e da democracia au- truturais de democracia e cada uma permite
toritária que lhe é constitutiva. Este autoritaris- variação interna.
mo reproduz-se hoje sob novas formas, menos A concentração exclusiva do paradigma
visíveis e por isso talvez unais perigosas e difí- dominante apenas numa forma, a democracia
ceis de erradicar, sob a forma da destruição do representativa, adequada ao espaço-tempo
meio ambiente, do consumismo compulsivo, da cidadania, significou um empobrecimen-
da dívida externa e da hierarquia do sistema to dramático do potencial democrático que a
mundial, do ajustamento estrutural e das leis modernidade trazia no seu projecto inicial. É,
de imigração e do imperialismo cultural. pois, necessário reinventar esse potencial, o
O paradigma emergente, o paradigma da que pressupõe inaugurar dispositivos institu-
democracia eco-socialista, é radicalmente de- cionais adequados a transformar as relações
mocrático, no sentido em que visa instaurar a de poder em relações de autoridade partilhada.
democracia a partir das diferentes raízes do Nisso consiste o processo global de democra-
autoritarismo e sob as múltiplas formas por tização. Este paradigma envolve uma enorme
que ele se manifesta. Para este paradigma são expansão do conceito da democracia e em vá-
quatro as fontes principais de autoritarismo na rias direções, uma delas está já explicitada no
nossa sociedade, correspondendo aos quatro que acabei de descrever. Como vimos, a demo-
espaços-tempo estruturais que tenho vindo a cracia deve ser expandida do espaço-tempo da
referir. Como notei a seu tempo, as relações cidadania — onde aliás vigora com fortes limi-
sociais destes espaços-tempo são relações de tações, como vimos — aos restantes espaços-
poder e de desigualdade e como tal fontes de -tempo estruturais. Isto significa que a demo-
autoritarismo. O projeto democrático tem, cracia não é uma especificidade normativa da
pois, para ser consequente, de alvejar cada instituição do Estado nacional. Pelo contrário,
uma destas formas de poder no sentido de o a democracia é, por assim dizer, específica de
democratizar. E deve fazê-lo de modo a maxi- todos os espaços estruturais e de todos os ní-
mizar o uso eficaz de processos de democra- veis de sociabilidade. A especificidade reside
tização especificamente adequados à forma no modo variado como ela é institucionalizada.
O Norte, o Sul e a utopia 219

Em cada um dos espaços-tempo, o paradigma que as gerações presentes. Aliás, a democracia


emergente está vinculado à transformação das das relações interestatais visa sobretudo a de-
relações sociais, de relações de poder em rela- mocracia das relações intergeracionais e é em
ções de partilha da autoridade, mas tal trans- nome desta que a cooperação entre os Estados
formação assume necessariamente formas é mais imprescindível e urgente.
diferentes nas unidades eco-socialistas de con- Esta tripla expansão da democracia — es-
sumo e nas unidades eco-socialistas de produ- trutural, escalar e intergeracional — pressupõe
ção, por exemplo. um enorme investimento de inovação institu-
A expansão estrutural da democracia en- cional. Como todas as formas estruturais de
volve também uma diversificação da escala. poder são políticas e como em todas elas a
O pensamento democrático da modernidade transformação paradigmática visa constituir,
concebeu a escala nacional como a “escala a partir delas, formas de partilha de autorida-
natural” de institucionalização da democracia. de, a democracia eco-socialista é internamente
Trata-se efetivamente de uma redução arbitrá- muito diversa. Na sua definição mais simples, o
ria porque, por um lado, existiu sempre uma eco-socialismo é democracia sem fim. Tal obje-
tradição de democracia local que a modernida- tivo utópico pode funcionar eficazmente como
de teve de suprimir para poder instaurar a sua critério dos limites da democracia na moderni-
originalidade. E porque, por outro lado, com o dade capitalista. Não se trata de obter a trans-
conceito de soberania impermeável, suprimiu parência total nas relações sociais, mas antes
preventivamente um futuro de relações demo- de lutar sem limites contra a opacidade que as
cráticas internacionais que ela tornava contra- despolitiza e desingulariza.
ditoriamente urgente e impossível. Uma luta democrática com esta amplitude
O paradigma da democracia eco-socialista não pode confiar num sujeito privilegiado nem
expande a democracia ainda numa terceira contentar-se com um conceito unívoco de direi-
direcção: a duração intertemporal e interge- tos. São quatro as posições subjetivas estrutu-
racional. Segundo este paradigma, a proximi- rais que se combinam e articulam de diferente
dade do futuro é hoje tão grande que nenhum forma na prática social dos sujeitos, tanto in-
presente é democrático sem ele. Por assim di- dividuais, como coletivos. A família, a classe,
zer, as gerações futuras votam com igual peso a cidadania e a nacionalidade são dimensões
220 Boaventura de Sousa Santos

ou posições de subjetividade que se combinam diferentes dimensões da subjetividade dos indi-


nos indivíduos e nos grupos sociais de modos víduos e dos grupos sociais.
diferentes segundo os contextos e as culturas, Concluo assim um percurso telescópico
segundo as práticas e as tradições, segundo os sobre as formas que assume a confrontação
objetivos e os obstáculos. Dada esta multiplici- entre o paradigma dominante e o paradigma
dade de posições subjetivas e das combinações emergente nos domínios do conhecimento e
a que dão azo, são recorrentes as constelações subjetividade, dos padrões de transformação
contraditórias de subjetividades parciais, ou social e do poder e política. A imaginação de
seja, a articulação no mesmo indivíduo ou gru- tal debate na Câmara Paradigmática de Pasár-
po social de posições de subjetividade incon- gada 2 destina-se a desenvolver o campo das
gruentes, do que resultam padrões de acção que alternativas sociais práticas e a convocar as
a racionalidade moderna considera tortuosos, instituições educacionais a participar ativa-
ineficazes, contraditórios ou mesmo absurdos. mente nessa tarefa ensinando e investigando
São precisos critérios de racionalidade mais por igual os paradigmas em confronto. O reco-
amplos para compreender a complexidade de nhecimento do conflito paradigmático tem por
tais constelações de subjetividades e os obstá- objetivo precisamente reconstituir o nível de
culos à sua mobilização no sentido da transição complexidade a partir do qual é possível pen-
paradigmática. A luta pelo paradigma emergen- sar e operacionalizar alternativas de desenvol-
te avança tanto mais quanto mais dimensões vimento societal. Era já contra o reducionismo
da subjetividade o adotam como princípio de que Fourier se revoltava no princípio do século
razão prática. Trata-se de um objetivo difícil, XIX ao referir-se aos economistas como “essa
pois o mais normal é que, numa situação de seita de repente saída da obscuridade” (1967).
transição paradigmática, o indivíduo, tal como Na ciência moderna em geral, a perfetibilida-
a sociedade, esteja dividido, com algumas das de das palavras e dos cálculos tem coexistido
suas dimensões de subjetividade próximas do com o absurdo das ações e das consequências.
paradigma dominante e outras, próximas do Daí que na transição paradigmática se tolere a
paradigma emergente. As coligações a favor imperfetibilidade das palavras e dos cálculos
do paradigma emergente são possíveis na exa- se ela se traduzir numa maior razoabilidade e
ta medida em que a ele aderem, uma a unta, as equidade das ações e das consequências.
O Norte, o Sul e a utopia 221

Não me propus neste trabalho formular uma Cassirer, E. 1960 The Philosophy of the
nova teorização da realidade no final do século. Enlightenment (Boston: Beacon Press).
Procurei, pelo contrário, desteorizá-la para a Cassirer, E. 1963 The Individual and the
poder depois utopizar com o objetivo de contri- Cosmos in Renaissance Philosophy
buir para a criação de um novo senso comum (Oxford: Blackwell).
que nos permita transformar a ordem ou desor- Chase-Dunn, C. 1991 Global Formation.
dem existente que Fourier significativamente Structures of the World-Economy
designava por “ordem subversiva”. (Cambridge: Blackwell).
Não é tarefa fácil nem é uma tarefa individu- Derluguian, G. 1992a “State Cohesion” in
al. Mas se é verdade que a paciência dos concei- Trajectory of the World-System 1945-1990
tos é grande, a paciência da utopia é infinita. (s/d: Working Papers, Nº 35).
Derluguian, G. 1992b “Religion” in Trajectory
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222 Boaventura de Sousa Santos

Ikeda, S. 1992 “TNC’S” in Trajectory of the Santos, B. de Sousa 1991a Um Discurso sobre
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Uma Ciência Pós-Moderna (Porto:
Afrontamento).
As ecologias dos saberes*

A partir de diferentes posições, o pensamen-


to abissal e o conhecimento como eman-
cipação (que vai de um ponto de ignorância
ra não existentes. Neste sentido, a ideia central
da sociologia das ausências é que não existem
a ignorância nem o conhecimento em geral.
chamado colonialismo a um ponto de conhe- Toda ignorância é de um determinado tipo de
cimento chamado solidariedade) e também a conhecimento, e todo conhecimento é a supe-
razão cosmopolita subalterna, convergem na ração de uma ignorância particular. Aprender
busca de epistemologias do Sul baseadas em um determinado conhecimento pode implicar
aprender do Sul anti-imperial. As epistemo- esquecer outros tipos de saberes ou, na reali-
logias do Sul se constroem com dois procedi- dade, ignorá-los. Em outras palavras, do ponto
mentos principais: as ecologias dos saberes e a de vista da ecologia dos saberes, a ignorância
tradução intercultural. Neste texto, ocupo-me não é necessariamente nem uma fase anterior
das ecologias dos saberes. nem um ponto de partida. Pode ser perfeita-
A ecologia dos saberes se opõe à lógica da mente um ponto de chegada, resultado do es-
monocultura do conhecimento e do rigor cien- quecimento ou do desaprender que o processo
tíficos, e identifica outros saberes e critérios de de aprender implica. Assim, em cada passo da
rigor e validez que operam de forma crível em ecologia dos saberes é fundamental perguntar-
práticas sociais que a razão metonímica decla- -se se o que aprendemos é válido e se o que sa-
bemos se deve esquecer ou desaprender e por
* Tradução portuguesa de Santos, B. de Sousa 2017
quê. A ignorância é desqualificada quando o
“La ecología de los saberes” in Justicia entre saberes que aprendemos tem maior valor do que o que
(Madrid: Morata) pp. 237-263. se esquece. Ou, se não, a ignorância equivale à
224 Boaventura de Sousa Santos

docta ignorância de Nicolas de Cusa. A utopia ça cognitiva nunca terá sucesso se só se baseia
do interconhecimento consiste em aprender na ideia de uma distribuição mais equitativa do
conhecimentos novos e menos familiares sem conhecimento científico. Mais além do fato de
ter que esquecer necessariamente dos antigos que tal distribuição é impossível nas condições
nem dos próprios. Tal é a ideia de prudência do capitalismo global, o conhecimento científi-
que subjaz na ecologia dos saberes. Esta con- co tem uns limites intrínsecos no que se refere
sidera óbvio que todas as práticas racionais às intervenções que promove na prática1.
em que intervêm os seres humanos, e seres Na ecologia dos saberes, buscar credibilida-
humanos e natureza, têm mais de um tipo de de para os conhecimentos não científicos não
saber e, por conseguinte, também mais de um leva a desacreditar o conhecimento científico.
tipo de ignorância. Do ponto de vista epistemo- Implica, pelo contrário, utilizá-lo em um con-
lógico, as sociedades capitalistas modernas se texto mais amplo de diálogo com outros co-
caracterizam por favorecer as práticas em que nhecimentos. Nas condições atuais, tal uso do
prevalecem as formas de conhecimento cientí- conhecimento científico é contrahegemônico.
fico. Isto significa que só se considera desqua- Trata-se, por um lado, de explorar concepções
lificadora a ignorância destas formas. Como alternativas que estejam no interior do conhe-
consequência deste status privilegiado que se cimento científico e que tenham se tornado vi-
outorga às práticas científicas, a intervenção síveis por meio de epistemologias pluralistas
destas na realidade humana e social é favore- de diversas práticas científicas (em particular,
cida. Qualquer erro ou desastre que possam as epistemologias feministas) e, por outro lado,
provocar são aceitos socialmente e considera- de promover a interdependência entre os sabe-
dos um custo inevitável que se deve superar ou res científicos produzidos pela modernidade
compensar com novas práticas científicas. ocidental e saberes diferentes não científicos.
O conhecimento científico não está distribu- Este princípio de incompletude de todos os
ído de forma equitativa, motivo pelo qual suas saberes é a condição prévia dos diálogos e de-
intervenções na prática tendem a servir os gru- bates epistemológicos entre diferentes conhe-
pos sociais que têm maior acesso a ele. Em úl-
tima instância, a injustiça social se baseia na
injustiça cognitiva. No entanto, a luta pela justi- 1 Véase Harding, 1996.
As ecologias dos saberes 225

cimentos. O que cada conhecimento traz a esse assentar a ideia de que os saberes não cientí-
diálogo é como consegue que certa prática aca- ficos são alternativas ao conhecimento cientí-
be com uma determinada ignorância. Confron- fico. A ideia de alternativas pressupõe a ideia
tação e diálogo entre saberes é confrontação e de normalidade, e esta, a ideia de norma, de
diálogo entre os diferentes processos por meio modo que, se não se especifica nada mais, a
dos quais as práticas que forem diversamente designação de algo como alternativo tem uma
ignorantes se transformam em práticas que conotação latente de condição subalterna. Se
sejam também diversamente conhecedoras. tomamos como exemplo a biomedicina e a
Todos os conhecimentos têm limites internos medicina tradicional africana, não tem sentido
e externos. Os internos se referem às restri- considerar que a segunda, que predomina com
ções que são consequência do que ainda não muita diferença na África, seja alternativa à pri-
se sabe, mas no final, por um determinado tipo meira. O que importa é identificar os contextos
de conhecimento, pode-se saber. Os limites ex- e as práticas em que ambas operam, como con-
ternos se referem ao que não se sabe nem se cebem a saúde e a doença, e como superam a
pode saber mediante um determinado tipo de ignorância (como doença não diagnosticada)
conhecimento. Do ponto de vista da ecologia mediante o conhecimento aplicado (como cura
dos saberes, os limites externos implicam re- ou como sanação)2.
conhecer intervenções alternativas que só são A ecologia dos saberes não implica aceitar
possíveis com outros tipos de conhecimento. o relativismo. Pelo contrário, do ponto de vista
Uma das características específicas do conhe- de uma pragmática da emancipação social, o
cimento hegemônico é que só reconhece os relativismo, entendido como ausência de cri-
limites internos. O uso contra hegemônico da térios de hierarquia entre os conhecimentos,
ciência moderna constitui uma exploração pa- é uma posição insustentável, porque torna im-
ralela e simultânea de seus limites internos e possível qualquer relação entre o conhecimen-
externos. Por esta razão, o uso contrahegemô- to e o significado da transformação social. Se
nico da ciência não pode se limitar só à ciência.
Só tem sentido dentro da ecologia dos saberes.
2 Ainda existem contextos e práticas que expressam
Tal ecologia dos saberes permite superar
“terceiros” conhecimentos médicos gerados pela com-
a monocultura do conhecimento científico e plementariedade entre os dois tipos de medicina.
226 Boaventura de Sousa Santos

todos os diferentes tipos de conhecimento são nidade, como disse John Dewey, colabore com
igualmente válidos como conhecimento, todo a ideia que tenha de “outro mundo possível”; o
projeto de transformação social é igualmente debate assim concebido tem pouco a ver com
válido, ou igualmente não válido. O objetivo os meios alternativos para alcançar os mesmos
da ecologia dos saberes é criar um novo tipo fins; trata-se de falar de fins alternativos.
de relação, uma relação pragmática, entre o A ecologia dos saberes se centra nas relações
conhecimento científico e outros tipos de co- concretas entre os saberes e nas hierarquias e
nhecimento. Consiste em assegurar a “igual- forças que se geram entre eles. Na realidade,
dade de oportunidades” aos distintos tipos de nenhuma prática concreta seria possível sem
conhecimento que intervêm nas cada vez mais tais hierarquias. O que a ecologia dos saberes
amplas epistemologias, com a ideia de maximi- questiona são as hierarquias e forças abstratas
zar suas respectivas contribuições com a cons- que a história, por meio deles, naturalizou.
trução de “outro mundo possível”, ou seja, uma As hierarquias concretas devem emergir da
sociedade mais justa e democrática, e também validação de uma determinada intervenção
uma sociedade mais equilibrada em suas rela- na prática com respeito a outras intervenções
ções com a natureza. Não se trata de outorgar alternativas. Entre os diferentes tipos de inter-
a mesma validez a todos os tipos de conheci- venção pode haver complementaridades ou
mento, mas de fazer possível um debate prag- contradições; em todo caso, o debate entre eles
mático entre critérios alternativos válidos sem deve estar presidido tanto por juízos cognitivos
desqualificar de forma imediata tudo o que não quanto por juízos éticos e políticos. A objetivi-
encaixe no cânon epistemológico da ciência dade que preside o juízo cognitivo de uma de-
moderna. A igualdade de oportunidades que terminada prática não choca necessariamente
se deve garantir aos diferentes tipos de conhe- com a avaliação ético-política de dita prática.
cimento não se deve tomar em sentido literal, O impulso que move a ecologia dos saberes
ou seja, como uma igualdade de oportunidades está no fato de que as lutas sociais, particular-
para conseguir uns objetivos predeterminados. mente no Sul global, tornam visíveis realida-
Tal como aqui se entende, a igualdade de opor- des sociais e culturais em que a fé na ciência
tunidades implica que cada tipo de conheci- moderna é frágil, e são mais visíveis os laços
mento que participe da conversação da huma- entre a ciência moderna e os objetivos da do-
As ecologias dos saberes 227

minação colonial e imperial, ao mesmo tempo ser membro da humanidade histórica —ou
em que nas práticas sociais de grandes setores seja, ser grego e não bárbaro no século V a.C.,
da população persistem outros tipos de conhe- cidadão romano e não grego nos primeiros sé-
cimento não científico e não ocidental. Estas culos de nossa era, cristão e não judeu na Ida-
lutas não descartam necessariamente o co- de Média, europeu e não “selvagem” do Novo
nhecimento científico nem a cultura ocidental Mundo no século XVI e, no século XIX, euro-
hegemônica, mas que os interrogam, gerando peu (incluído o europeu deslocado da América
assim interpretações possivelmente mais ricas do Norte) e não asiático, que está congelado
do que as que oferecem as epistemologias do na história, nem africano, que nem sequer for-
Norte. A isto se refere Roberto Retamar quan- ma parte da história—. O contexto cultural em
do diz: “Não há mais que um tipo de pessoa que que emerge a ecologia dos saberes é ambíguo.
conheça de verdade, em seu conjunto, a litera- Por um lado, a ideia da diversidade sociocul-
tura europeia: o colonial” (1989: 28). tural do mundo foi ganhando aceitação nos
No que se segue, analiso com maior detalhe movimentos sociais nas três últimas décadas,
algumas das considerações anteriores. o qual deveria favorecer o reconhecimento da
diversidade e da pluralidade epistemológicas
A ecologia dos saberes e a como uma das dimensões dessa pluralidade.
inesgotável diversidade da Por outro lado, se todas as epistemologias
experiência do mundo compartilham as premissas culturais de seu
A ecologia dos saberes se baseia na ideia da tempo, é possível que uma das premissas mais
copresença radical. Copresença radical signifi- assentadas do pensamento abissal seja hoje a
ca que as práticas e os agentes de ambos lados crença na ciência como a única forma válida e
da linha abissal são contemporâneos sempre e exata de conhecimento. Ortega y Gasset (1942)
quando houver mais de um tipo de contempo- propõe uma distinção radical entre crenças e
raneidade. Copresença radical significa equipa- ideias, e as segundas significam ciência ou fi-
rar simultaneidade com contemporaneidade, o losofia. A distinção se baseia no fato de que as
qual só se pode conseguir caso se abandone a crenças formam parte integral da nossa iden-
concepção linear do tempo. Só assim será pos- tidade e subjetividade, enquanto as ideias são
sível ir mais além de Hegel (1970), para quem externas a nós. A origem de nossas ideias está
228 Boaventura de Sousa Santos

nas incertezas e permanecem associadas a dem utilizar para validá-lo. Neste sentido, o que
elas, ao mesmo tempo em que, a das crenças é válido para a teoria é válido também para a
está na ausência da dúvida. Em essência, é uma epistemologia. No período transicional em que
distinção entre ser e ter: somos o que cremos, estamos entrando, onde ainda prevalecem as
mas temos ideias. Uma característica típica do versões de totalidade e da unidade do conheci-
nosso tempo é o fato de que a ciência moderna mento, provavelmente precisamos de uma pos-
pertence tanto ao reino das ideias como ao das tura epistemológica geral residual ou negativa
crenças. A crença na ciência está muito acima para avançar: uma epistemologia geral da im-
de qualquer coisa que possamos conseguir com possibilidade de uma epistemologia geral.
as ideias científicas. Portanto, a relativa perda Dois fatores principais explicam a emergên-
de confiança epistemológica na ciência que im- cia da ecologia dos saberes. O primeiro é a forte
pregnou toda a segunda metade do século XX, presença política de povos e de visões do mun-
esteve acompanhada do auge da crença popu- do do outro lado da linha que juntos participam
lar na ciência. A relação entre crenças e ideias da resistência global ao capitalismo, ou seja,
no que se refere à ciência deixou de ser uma re- como importantes agentes da globalização con-
lação entre duas entidades diferentes, para se trahegemônica. O segundo fator é a confron-
tornar uma relação entre duas formas de expe- tação inédita entre concepções radicalmente
rimentar a ciência. Esta dualidade significa que diferentes de sociedade alternativa, tão diferen-
o reconhecimento da diversidade cultural do tes que não se podem juntar no âmbito de uma
mundo não significa necessariamente reconhe- única Alternativa totalizadora. Basta mencionar
cer a diversidade epistemológica do mundo. a luta dos camponeses pobres de todo o mundo
Neste contexto, a ecologia dos saberes é contra o monopólio de terras e os monocultivos
basicamente uma contraepistemologia. Isto agroindustriais; ou as lutas dos povos indígenas
implica renunciar a qualquer epistemologia ge- de toda a América Latina contra os megaproje-
ral. Em todo o mundo, não só há formas mui- tos como represas e estradas que cruzam os par-
to diferentes de conhecimento da matéria, da ques nacionais e os territórios em que vivem, ou
sociedade, da vida e do espírito, mas também contra a exploração mineradora a céu aberto a
muitos e muito diversos conceitos do que conta uma escala sem precedentes. Frequentemente
como conhecimento e dos critérios que se po- eles enfrentam governos progressistas ou or-
As ecologias dos saberes 229

ganizações de operários e mineiros para quem nem poderia estar, porque em suas origens o
os benefícios que trazem tal “desenvolvimento sujeito do conhecimento foi desenhado para
das forças produtivas” podem possibilitar uma tornar deste lado da linha, e do outro lado da
riqueza compartilhada e melhores serviços so- linha está o objeto do conhecimento. As in-
ciais. Ou as novas presenças coletivas na esfera tervenções práticas que favorecem costumam
pública como a dos indignados da Europa ou ser aquelas que servem aos grupos sociais que
as pessoas do movimento okupa dos Estados têm maior acesso ao conhecimento científico.
Unidos, que em suas lutas (muito diferentes) Enquanto continuarem sendo traçadas linhas
enfrentam não só os governos conservado- abissais, a luta pela justiça cognitiva não triun-
res que estão a serviço do grande capital, mas fará caso se baseie exclusivamente na ideia de
também a partidos de esquerda e organizações uma distribuição mais equitativa do conheci-
sociais progressistas para quem essas lutas são mento científico. Além do fato de que a distri-
utópicas, contraproducentes e terminam por buição equitativa é impossível nas condições
ser um instrumento das estruturas de poder do capitalismo e do colonialismo, o conheci-
dominantes. A globalização contrahegemônica mento científico tem umas limitações intrínse-
destaca pela ausência de uma única alternativa cas no que se refere aos tipos de intervenção
globalmente válida. A ecologia dos saberes pre- prática que possibilita.
tende dar consistência epistemológica ao pen-
sar e agir plural e proposicionalmente. A pluralidade interna das
Tudo isto convida a uma reflexão mais pro- práticas científicas3
funda sobre a diferença entre a ciência como
A questão da pluralidade interna colocou,
conhecimento monopolista e a ciência como
no Ocidente, sobretudo as epistemologias fe-
parte da ecologia dos saberes.
ministas4, os estudos sociais e culturais da
A ciência moderna como parte da
ecologia dos saberes 3 Nesta sessão me baseio em Santos, Meneses e Nu-
Como dizia antes, o conhecimento científico nes (2007).
como produto do pensamento abissal não está 4 As epistemologias feministas — o plural tem a in-
distribuído socialmente de forma equitativa, e tenção de abordar a diversidade de posições sobre esta
230 Boaventura de Sousa Santos

ciência, e as correntes da história e da filoso- dos interesses dominantes, e o agudo contras-


fia que estes últimos incluem5. Em geral, cha- te entre avanço tecnológico e estancamento,
mamos estes processos de epistemologias da quando não retrocesso, no relativo ao desen-
pluralidade das práticas científicas. Buscam volvimento ético da humanidade. A terceira via
uma terceira via entre a epistemologia con- dá por contado que estas duas posturas, ainda
vencional da ciência moderna e outras formas que suponham uma polarização, em última
alternativas de saber. Da sua perspectiva, com instância compartilham a mesma concepção
independência das novas ciências emergentes da ciência: o essencialismo científico, o excep-
(as ciências da complexidade), a epistemolo- cionalismo científico, a autorreferencialidade e
gia dominante continua dependendo muito do o representacionalismo. A terceira via emerge
positivismo e de sua crença na neutralidade da oposição a tal concepção e da tentativa de
da ciência moderna, sua indiferença diante da salvaguardar as coisas positivas que a ciência
cultural, seu monopólio do conhecimento váli- moderna criou (Harding, 1998: 92).
do, sua suposta excepcional capacidade para As epistemologias da terceira via mostrou
gerar o progresso da humanidade. No extremo que a pesquisa depende de uma complexa mis-
oposto estão os críticos radicais da ciência mo- tura de construtos da ciência e da não ciência:
derna, de que têm uma visão distópica, e subli- a seleção de temas, problemas, modelos teóri-
nham a sua natureza destrutiva e antidemocrá- cos, metodologias, linguagens, imagens e for-
tica, sua pseudoneutralidade posta a serviço mas de debate; através da pesquisa histórica e
etnográfica, estudam as culturas materiais das
ciências (Galison, 1997; Kohler, 2002; Keating e
matéria dentro do feminismo — foram centrais na crí-
tica dos dualismos “clássicos” da modernidade, como a Cambrosio; 2003), as diferentes formas em que
natureza/cultura, o sujeito/objeto e o humano/não hu- os cientistas se relacionam com os contextos,
mano, assim como a naturalização das hierarquias de instituições, com seus iguais, com o Estado,
classe, sexo/gênero e raça (Soper, 1995). com as agências e entidades que os financiam,
5 Veja-se, por exemplo, a prolífica literatura de San- e com os interesses econômicos ou o interes-
tos (1995, 2000, 2007b, 2009); Pickering (1992); Lynch se público destacam a importância capital da
(1993); Jasanoff e cols. (1995); Galison e Stump (1996);
ideia de conhecimento como uma construção,
Latour (1999); Kleinman (2000); Nunes e Gonçalves
(2001); Stengers (2007). como a interação, mediante práticas social-
As ecologias dos saberes 231

mente organizadas, de atores humanos, mate- diversas formas de indagação que se identifica-
riais, instrumentos, formas de fazer as coisas e riam com a ciência moderna não só tratavam
habilidades, para criar algo que antes não exis- de uma ampla diversidade de temas e objetos
tia, com novos atributos, não reduzíveis à soma ainda não vinculados a disciplinas ou especia-
dos heterogêneos elementos mobilizados para lidades diferentes, mas que também permitiam
a sua criação; e, por último, escudrinharam as diferentes procedimentos: a observação natu-
condições e os limites da autonomia das ativi- ralista, a descrição e classificação de animais e
dades científicas, e com isso revelaram suas minerais, a experimentação controlada, os re-
conexões com os contextos sociais e culturais cursos matemáticos, a especulação filosófica.
em que se realizam. Com suas análises da hete- A diferença e a especialização dentro das ci-
rogeneidade das práticas e dos relatos científi- ências é, portanto, o resultado de um processo
cos, estas colocações arrebentaram a suposta histórico que se deve entender no contexto da
unidade epistemológica e praxiológica da ciên- distinção entre ciência e tecnologia, uma dis-
cia, e transformaram a oposição das “duas cul- tinção que se continua utilizando com frequên-
turas” (ciências e humanidades) como elemen- cia para defender a neutralidade intrínseca da
to estruturador do campo do conhecimento em ciência e situar as consequências da pesquisa
uma pluralidade mais bem instável de culturas científica —desejáveis ou indesejáveis— com
científicas e epistêmicas, e de configurações suas aplicações. Estas mudanças que, nas úl-
dos conhecimentos6. timas décadas, experimentaram a organização
Nos séculos XVI e XVII, já havia posturas de- do conhecimento científico e de suas relações
ferentes sobre o que se entendia por ciência e
fatos científicos7. No entanto, curiosamente, as
historiadores feministas da ciência como Londa Schie-
binger (1989) ou Paula Findlen (1995) demonstraram
que a diversidade de temas, métodos e concepções do
6 Para diferentes enfoques sobre este tema, veja Ga- conhecimento nos séculos XVI e XVII incluía o prota-
lison e Stump (1996); Nunes (1998/1999, 2001); Wallers- gonismo das mulheres. À medida em que as ciências se
tein (2007); Wagner (2007); Stengers (2007). institucionalizaram, muitos dos conhecimentos criados
7 Este tema atraiu a atenção de autores particu- pelas mulheres deviam ser apropriados por uma comu-
larmente interessados na historiografia da revolução nidade científica abrumadoramente masculina ou sim-
científica (por exemplo, Shapin, 1996, Osler, 2000). Tais plesmente descartados como formas de conhecimento.
232 Boaventura de Sousa Santos

com a inovação e o desenvolvimento tecnológi- 1996/97), que albergava um modelo episte-


cos em campos como a física de altas energias mológico distintivo, mas vinculado também a
e a biologia molecular, conduziram a impor- espaços e tempos específicos. Durante mais
tantes reavaliações do registro histórico desta de três décadas, os estudos sociais da ciência
divisão, que trouxeram provas da existência produziram um amplo conjunto de estudos
de muitas situações no passado em que a ino- empíricos e reflexões teóricas e epistemo-
vação e o desenvolvimento tecnológicos eram lógicas sobre as características situadas da
inseparáveis da atividade da própria pesquisa produção do trabalho científico. O reconheci-
científica. O tão utilizado termo “tecnociência” mento dos princípios que davam legitimidade
foi proposto como uma forma de descrever a às diferentes práticas constituídas como ciên-
impossibilidade de uma diferenciação radical cias se traduziu não só na afirmação de uma
da ciência e da tecnologia8. diversidade de modelos de cientificidade,
A tentativa de reduzir a ciência a um único mas também em tensões entre estes modelos
modelo epistemológico inspirado na mecâni- dentro das próprias ciências.
ca de Newton e baseado na matematização Insistir nas fronteiras frequentemente
como ideal de cientificidade9, foi recebido supôs impedir a consolidação de novas dis-
por uma diversificação de práticas situadas ciplinas ou campos científicos. No entanto,
que coexistiam ou estavam interrelacionadas a realidade é que alguns dos novos avanços
com uma “ecologia das práticas” (Stengers, mais inovadores no conhecimento científico
nas últimas décadas foram produzidos pre-
cisamente “entre fronteiras”. Não me refiro
8 Sobre a relação entre ciência e tecnologia, veja La-
tour (1987) e Stengers (1996/1997, 1997), assim como o à “interdisciplinaridade”, uma espécie de co-
trabalho citado na nota 5 sobre ciência e cultura mate- laboração entre as disciplinas que pressupõe
rial. Os ensaios em Santos (2007a) mostram como a im- respeitar as fronteiras. A diferença da vigi-
possibilidade de distinguir a ciência da tecnologia é um lância típica da interdisciplinaridade, o “tra-
fator crucial para a compreensão da dinâmica global do
balho de fronteira” a qual me refiro pode, no
conhecimento e de suas concomitantes desigualdades,
tensões e conflitos. melhor dos casos, gerar novos objetos, novas
perguntas e novos problemas e, no pior caso,
9 O modelo foi sacudido pela física quântica e outros
desenvolvimentos convergentes. conduzir à “colonização” de novos espaços,
As ecologias dos saberes 233

presas do conhecimento submetido aos “ve- nos lembram os filósofos pragmáticos, é uma
lhos” modelos10. intervenção no mundo, uma intervenção que
É possível que esta “desunidade” e diversi- nos situa dentro dele como participantes ativos
dade da ciência seja simplesmente consequên- em sua produção. Diferentes modos de conhe-
cia de um pluralismo epistemológico, ou seja, cimento, por ser irremediavelmente parciais e
de várias formas de ver e de manipular o mun- situados, terão diferentes consequências para
do, ainda que este seja em si mesmo único e o mundo e o afetarão de diferente modo. A pró-
homogêneo (a hipótese do universo)? Ou tal- pria capacidade das ciências modernas de criar
vez existam causas de tal diversidade, uma di- novas entidades e, deste modo, sancionar uma
versidade que deriva da própria heterogeneida- política ontológica (Mol, 2002) —cujo efeito,
de do mundo (a hipótese do pluriverso)? Seja intencionado ou não, é aumentar a heteroge-
como for, a diversidade epistemológica não é neidade do mundo— parece que reforça esta
o simples reflexo ou epifenômeno da diversi- ideia. Configura um realismo robusto e uma
dade ou da heterogeneidade ontológica. Não sólida objetividade, uma clara consciência da
existe uma forma essencial nem definitiva de necessidade de identificar de forma exata e
descobrir, ordenar e classificar os processos, precisa as condições em que se produz o co-
as entidades e as relações do mundo. A pró- nhecimento e como se avalia sobre a base de
pria ação de conhecer, como repetidamente suas consequências observadas ou previstas.
Deste modo, pode-se dar uma explicação rigo-
rosa do caráter situado, parcial e construído de
10 Um exemplo particularmente interessante deste todos os conhecimentos, ao mesmo tempo em
processo se refere à história da biologia durante o sé- que se recusa o relativismo como postura epis-
culo passado, sobretudo no que se refere à genética, à
temológica e moral11.
biologia molecular e ao desenvolvimento e biologia da
evolução. Sobre as implicações epistemológicas e teóri-
cas desta história, veja, por exemplo, Lewontin (2000);
Keller (1995, 2000); Oyama (2000); Oyama, Griffiths e 11 Veja, a este respeito, a proposta de Dupré de um
Gray (2001); Nunes (2001); Singh e col. (2001); Robert “realismo promíscuo” (1993, 2003), que tem fortes
(2004). Sobre os desafios teóricos e as práticas cientí- afinidades com enfoques pragmatistas (o de John
ficas em biologia, veja J. Ramalho-Santos (2007) e M. Dewey em particular) explorado anteriormente por
Ramalho-Santos (2003). Santos (1989).
234 Boaventura de Sousa Santos

Neste sentido, o conceito de construção é fun- Desta perspectiva, as práticas de produção


damental como recurso para caracterizar o pro- de conhecimento implicam trabalhar nos ob-
cesso de formação tanto do conhecimento quan- jetos, seja para transformá-los em objetos do
to dos objetos tecnológicos. Desta perspectiva, conhecimento reconhecíveis no âmbito do
construir significa colocar em relação e intera- que já existe, ou para redefini-los como parte
ção, no âmbito de práticas organizadas social- de uma redefinição mais ampla do próprio co-
mente, materiais, ferramentas, formas de fazer nhecimento. Alguns objetos se transformam
e competências para criar algo que não existia ao colocá-los em situações novas, seja porque
antes, algo que tenha propriedades novas e que adquirem novas propriedades sem perder as
não se possa reduzir à soma total dos heterogê- próprias, ou porque assumem novas identida-
neos elementos mobilizados para conseguir sua des, que tornam possível sua reapropriação
criação. Assim, pois, a oposição entre o real e o em novas condições. Outros objetos mantêm
construído, tão frequentemente invocada para sua própria identidade e estabilidade, mas são
arremeter contra os estudos sociais e culturais apropriados de forma diferente em situações
da ciência e da tecnologia, não tem nenhum sen- porque assumem novas identidades, que tor-
tido. O que existe —o conhecimento, os objetos nam possível a sua reapropriação em novas
tecnológicos, os edifícios, as estradas, os obje- condições. Outros objetos mantêm sua própria
tos culturais— existe porque está construído identidade e estabilidade, mas são apropriados
mediante práticas situadas. Como nos lembra de forma diferente em situações e contextos di-
Latour, a diferença relevante não é entre o real e ferentes —como é o caso, por exemplo, de de-
o construído, mas entre o que está bem construí- terminados objetos que a pesquisa biomédica e
do, que resiste bem às situações em que se colo- a prática clínica “compartilham”—. No entanto,
cam à prova sua consistência, solidez e robustez, ao tratar do desconhecido e com ignorância a
e o que está mal construído e, por conseguinte, é respeito das propriedades e do comportamen-
vulnerável à crítica ou à erosão. Esta é a diferen- to futuro dos novos objetos —por exemplo,
ça que permite distinguir entre fatos (bem cons- os organismos modificados geneticamente, os
truídos) e artefatos (mal construídos)12.

se utiliza nos estudos sociais e culturais da ciência, há


12 Sobre este tema, ver as contribuições incluídas em abundante bibliografia. Para duas discussões esclarece-
Santos ed. (2007a). No conceito de construção como doras, veja P. Taylor (1995) e Latour (1999).
As ecologias dos saberes 235

príons ou as mudanças climáticas— a relação cartar a relação intersubjetiva e o uso “comum”


com o desconhecido e com a ignorância implí- da linguagem, nem as competências interacio-
cita no que se sabe e se pode contar contrasta nais que cientistas e leigos compartilham como
com o cauteloso respeito devido ao que não se membros de coletivos ou sociedades. As ten-
sabe (Santos, 1989). Invocar a precaução (da ções internas características da história das
qual falo mais adiante) ao ocupar-se de fenô- ciências humanas —incluídas a medicina e a
menos apenas conhecidos não supõe recusar o psicanálise— também têm a ver com a defi-
conhecimento nem a intervenção, mas assumir nição da fronteira entre os sujeitos e os obje-
um determinado risco: questionar as nossas tos. Outras oposições, como as de explicação/
próprias convicções e a nossa ignorância sem compreensão, tentam cimentar uma dualidade
reduzir o que se sabe ao que já se sabe, e sem epistemológica que, como hoje sabemos, não
proclamar a irrelevância do que não se pode concorda bem com os sujeitos/objetos híbridos
descrever porque não o conhecemos. das ciências humanas.
A definição do que é um objeto e a distin- Por último, e seguindo a Sandra Ardem
ção entre o sujeito e o objeto aparecem como (1998, 2006), dentro da terceira via entre a epis-
um fator mais da diferenciação interna entre temologia convencional da ciência moderna e
as ciências. Algumas práticas científicas estão outros sistemas alternativos de conhecimento,
obrigadas a tratar diretamente das dificuldades são possíveis dois enfoques do estudo da ciên-
relacionadas com a distinção entre sujeitos e cia e da tecnologia: o enfoque pós-kuhniano,
objetos. Da biomedicina às ciências sociais, desenvolvido no Norte, e os estudos pós-colo-
e incluída a psicanálise, a definição dos obje- niais, realizados sobretudo no Sul. Os primei-
tos do conhecimento não se distingue de uma ros podem ser caracterizados de acordo com
relação com os sujeitos constituídos como os seguintes temas: os postulados históricos
os objetos daquele. De modo que traçar uma e culturais configuraram a história da ciência
fronteira entre o sujeito e o objeto se torna um ocidental moderna; a ciência avança através de
passo que nos leva a trabalhar simultaneamen- descontinuidades conceituais; o núcleo cogni-
te sobre as diversas fronteiras que delimitam tivo e técnico da ciência moderna não pode se
os territórios e a história do conhecimento. Se isolar da cultura nem da política; as ciências
devemos constituir a “matéria prima” para a estão desunificadas, como deve ser; conceber
produção de conhecimento, não podemos des- a ciência como uma série de representações
236 Boaventura de Sousa Santos

oculta a dinâmica da intervenção e da intera- Estes enfoques, que designei como episte-
ção; todo momento da história da ciência mo- mologias plurais das práticas científicas, estão
derna compartilha os postulados da diferença imersos na Weltanschauung da diversidade
sexual de seu tempo. O enfoque pós-colonial, e da pluralidade que caracteriza a transição
por sua vez, compartilha as características paradigmática. No entanto, acho que não são
pós-kuhnianas, mas acrescenta outras duas: no suficientes no reconhecimento da diversidade
Norte, considera-se que a ciência produzida no e da pluralidade. Exceção feita, em parte, dos
Norte é toda a que se produz no mundo; existe enfoques pós-coloniais, estas epistemologias
uma relação causal entre a expansão europeia, confinaram-se nas ciências; quando se referem
o colonialismo e o desenvolvimento da ciên- a outros sistemas de conhecimento, sempre
cia moderna. A ciência moderna, apoiada pelo fazem isso do ponto de vista da ciência moder-
direito moderno, foi a grande desenhadora da na, porque não se leva devidamente em conta
linha abissal e da conseguinte invisibilidade de o outro componente sociocultural da transição
tudo o que estava do outro lado da linha. paradigmática: a globalização hegemônica.
Estes dois enfoques concebem a ciência de Agora, do mesmo modo que na ciência clássica
forma não essencialista e reconhecem que as a unidade da realidade e do conhecimento ca-
fronteiras que os separam de outros sistemas de minhava junto do universalismo, hoje a diversi-
conhecimento são ambíguas; consideram que to- dade e a pluralidade estão acompanhadas pela
dos os sistemas de conhecimento são sistemas globalização hegemônica.
de conhecimento local; valorizam a diversidade Diferentemente do universalismo, que era a
cognitiva da ciência entendida mais em termos força de uma ideia que se representa a si mes-
de virtualidade tecnológica do que em termos ma como imposta sem a ideia de força, a glo-
representacionais; por último, acreditam que o balização hegemônica é a força de uma ideia
sujeito do conhecimento científico, longe de ser que se reivindica a si mesma pela própria ideia
abstrato, homogêneo e culturalmente indiferen- de força, ou seja, por imperativos de livre mer-
te, é um conjunto muito diversificado de sujeitos, cado, tais como as agências de classificação,
com diferentes histórias, trajetórias e culturas, e as condicionalidades impostas por agências
produz conhecimento científico tendo objetivos financeiras multilaterais como o Banco Mun-
igualmente diversificados (Harding, 1998: 104). dial ou o FMI, a deslocalização das empresas,
As ecologias dos saberes 237

o monopólio de terras, as oficinas clandestinas práticas científicas à diferenciação entre co-


repartidas por todo o Sul global, etc. Em outras nhecimentos científicos e não científicos.
palavras, as relações de poder, a resistência,
a dominação e as alternativas de hegemonia A pluralidade externa:
e contrahegemonia, são elementos constitu- a ecologia dos saberes
tivos da globalização. E é assim porque hoje
Os enfoques intercultural e pós-colonial tor-
a globalização é o marcador hegemônico dos
naram possível o reconhecimento da existência
termos do conflito histórico-social criado pelo
de sistemas plurais de conhecimento que são
capitalismo. A globalização é simultaneamente
alternativos à ciência moderna ou que com ela
conflito (a ideia de força) e os termos do con-
se dedicam a novas configurações do conheci-
flito (a força da ideia). No final do século XIX e
mento. A acessibilidade a diversas formas de
começos do século XX, a luta contra o capita-
saber e novos tipos de relações entre elas está
lismo no Norte se dava aceitando acriticamen-
aberta há certo tempo com férteis resultados,
te a unidade de conhecimento e universalismo
sobretudo no Sul global, onde o encontro entre
—como testemunham Marx e Einstein— ao
os conhecimentos hegemônicos e não hegemô-
contrário, hoje as lutas contra o capitalismo e o
nicos é mais desigual, e são mais evidentes os
colonialismo colocam em primeiro plano o de-
limites entre ambos. É nestas regiões onde os
bate sobre o significado da diversidade e sobre
conhecimentos não hegemônicos, concebidos
as contradições internas da globalização. Atu-
como formas de autoconhecimento, mobili-
almente as lutas contra o capitalismo e o colo-
zam-se para organizar a resistência contra as
nialismo avançam à medida em que mudam os
relações desiguais provocadas pelo capitalis-
termos do conflito. Há, pois, uma diversidade
mo, pelo colonialismo e pelo patriarcado13.
capitalista e colonialista, e uma diversidade
anticapitalista e descolonial, uma globalização
hegemônica e uma contrahegemonia. A marca 13 Os debates epistêmicos ao redor da produção de
dos conflitos entre elas percorre todos os de- conhecimentos são extremamente diversos e férteis.
bates epistemológicos do nosso tempo. Daí a Veja as análises de Mudimbe (1988); Alvares (1992);
Hountondji (1983, 2002); Dussel (2000, 2001); Vishva-
importância de ir da pluralidade interna à plu-
nathan (1997, 2007); Mignolo (2000, 2003); Chakrabarty
ralidade externa, da diferenciação interna das (2000); Lacey (2002); Meneses (2007); Xaba 2007.
238 Boaventura de Sousa Santos

Esta auto-reflexividade subalterna sugere priada para o desenvolvimento de aplicações


uma dupla pergunta: por que todos os conhe- construtoras de conhecimento, também de co-
cimentos não científicos se consideram locais, nhecimento científico14.
tradicionais, alternativos ou periféricos?; por A diferença epistemológica que não reco-
que continua existindo a relação de domina- nhece a existência de outros tipos de conheci-
ção, ainda que mudem as ideologias em que se mento, além do científico, contém e oculta ou-
baseia (o progresso, a civilização, a moderniza- tras diferenças, umas diferenças capitalistas,
ção, a globalização, as governanças)? Assim, as coloniais e sexistas. O pensamento pós-abissal
metamorfoses da hierarquia relativa ao que é e e a razão cosmopolita subalterna recusam a
não é científico variaram, e incluem as seguin- mímese —entendida como a imitação servil
tes dicotomias: monocultural/multicultural, da cultura metropolitana— como mecanismo
moderno/tradicional, global/local, desenvolvi- fundamental da construção da cultura (SAID,
do/subdesenvolvido, avançado/atrasado, etc. 1978, 1980), ao mesmo tempo em que promove
Cada dicotomia revela certa dominação. Como formas inovadoras e subversivas de saber, ba-
disse antes, a dicotomia entre o conhecimento seadas na reconstrução permanente tanto dos
moderno e o conhecimento tradicional se ba- discursos da identidade como dos repertórios
seia na ideia de que o conhecimento tradicional da emancipação social. A interculturalidade
é prático e coletivo, está profundamente enrai- emancipadora pressupõe o reconhecimento de
zado no local e reflete experiências exóticas. uma pluralidade de conhecimentos e diferen-
Mas caso se considere óbvio que todo conhe-
cimento é parcial e situado, é mais adequado
comparar todo tipo de conhecimento (incluído 14 Sobre isto, veja Santos (2009). Neste ensaio, inspi-
rado no pragmatismo de William James e John Dewey,
ou científico) em termos de sua capacidade
defendo uma espécie de ciência orientada às aplica-
para cumprir determinadas tarefas em contex- ções edificantes, em oposição a técnicas (veja também
tos sociais configurados por lógicas particula- Toulmin, 2001, 2007). Pratt (2002) argumentou a origem
res (incluídas as que presidem o conhecimento multicultural e a capacidade de incorporação de dife-
científico). Esta é a perspectiva que, desde o rentes contribuições culturais e cognitivas como carac-
terísticas da filosofia pragmática. Este tipo de filosofia
final do século XIX, informou a filosofia prag-
poderia gerar uma gama mais ampla de reciprocidade
mática, e que hoje parece especialmente apro- no pensamento filosófico e epistemológico ocidental.
As ecologias dos saberes 239

tes concepções de mundo e de dignidade hu- na realidade, não o conhecimento como repre-
mana. Evidentemente deve-se avaliar a validez sentação da realidade. A credibilidade da cons-
dos diferentes conhecimentos e concepções, trução cognitiva se mede pelo tipo de interven-
mas não sobre a base da desqualificação abs- ção no mundo que permite ou impede. Toda
trata de alguns. avaliação desta intervenção combina sempre
Durante os séculos, conhecimentos muito o cognitivo com o ético-político, pelo que a
diferentes desenvolveram formas de articula- ecologia dos saberes estabelece uma distinção
ção mútua. Hoje é mais importante que nunca entre a objetividade analítica e a neutralidade
construir uma autêntica articulação dialógica ético-política. Hoje em dia, ninguém questiona
entre os conhecimentos considerados ociden- o valor geral das intervenções práticas que a
tais, científicos e modernos, e os conhecimen- produtividade tecnológica da ciência moderna
tos considerados tradicionais, nativos e locais. fez possíveis. Mas isto não deve impedir que
Não se trata de voltar a velhas tradições, por- reconheçamos o valor de outras intervenções
que o que está em jogo é o fato de que cada práticas que outras formas de conhecimento
tecnologia leva consigo o peso de um modo de permitem. Em muitas áreas da vida social, a
ver e de ser na natureza e com outros seres hu- ciência moderna demonstrou uma superiorida-
manos (Nandy, 1987). Portanto, o futuro pode de inquestionável em relação com outras for-
ser encontrado no cruzamento de diferentes mas de conhecimento. No entanto, há outras
conhecimentos e diferentes tecnologias. intervenções no mundo real que hoje nos são
A diversidade epistêmica do mundo é aberta, muito valiosas em que a ciência moderna to-
porque todos os conhecimentos são situados. mou parte. Está, por exemplo, a preservação
A afirmação do caráter universal da ciência da biodiversidade que as formas rurais e indí-
moderna se mostra cada vez mais como tão só genas de conhecimento tornam possível, umas
uma forma de particularismo, cuja especificida- formas de conhecimento que paradoxalmente
de consiste em ter o poder de definir todos os estão ameaçadas pelas crescentes interven-
conhecimentos que são seus rivais como parti- ções impulsionadas pela ciência (Santos, Nu-
cularistas, locais, contextuais e situacionais. nes e Meneses, 2007). E não é surpreendente a
Para uma ecologia dos saberes, a medida do quantidade de conhecimentos, formas de vida,
realismo é o conhecimento como intervenção universos simbólicos e saberes para sobreviver
240 Boaventura de Sousa Santos

em condições hostis que se conservaram gra- rentes escalas (interescala) e a submissão à


ças exclusivamente à tradição oral? Nada nos articulação de tempos e durações diferentes
diz sobre a ciência o fato de que nada de tudo (intertemporalidade). A maioria das experiên-
isso teria sido possível por meio dela? cias subalternas de resistência são locais e o
Aqui radica o impulso da copresença e da conhecimento abissal moderno as transformou
incompletude. Não existe um único tipo de co- em locais e, portanto, em irrelevantes ou inexis-
nhecimento que possa explicar todas as inter- tentes. No entanto, dado que a resistência con-
venções possíveis no mundo, motivo pelo qual tra as linhas abissais deve ter lugar em escala
todos os tipos de conhecimento são incomple- global, é imperativo desenvolver algum tipo de
tos em diferentes formas. A incompletude não articulação das experiências subalternas me-
se pode erradicar porque qualquer descrição diante vínculos local-globais. Para ter sucesso,
completa das variedades de conhecimento ne- a ecologia dos saberes deve ser transescalar.
cessariamente não incluiria o tipo de conheci- Além do mais, a coexistência de diferentes
mento responsável pela descrição. Não existe temporalidades ou durações das diferentes
conhecimento que não seja conhecido por al- práticas do conhecimento exige uma amplia-
guém com algum fim. Todas as formas de co- ção do âmbito temporal. As tecnologias mo-
nhecimento sustentam práticas e constituem dernas tenderam a favorecer o âmbito tempo-
sujeitos. Todos os conhecimentos são teste- ral e a duração da ação do Estado, entendido
munhais porque o que sabem da realidade (sua como a administração pública e como a vida
dimensão ativa) sempre passa a se refletir no política (por exemplo, o ciclo eleitoral); ao
que revelam sobre o sujeito deste conhecimen- contrário, as experiências subalternas do Sul
to (sua dimensão subjetiva). global estiveram obrigadas a responder tanto
No âmbito da ecologia dos saberes, a busca à duração mais curta das necessidades imedia-
da intersubjetividade é tão importante quanto tas de sobrevivência, quanto à longa duração
complexa. As diferentes práticas do conheci- do capitalismo e do colonialismo. Mas inclusi-
mento dão lugar a diferentes escalas espaciais ve nas lutas subalternas pode haver durações
e de acordo com durações e ritmos diferentes, muito diferentes. Um exemplo: a mesma luta
motivo pelo qual a intersubjetividade implica pela terra que travam os camponeses empobre-
também a disposição a saber e a agir em dife- cidos da América Latina pode incluir a duração
As ecologias dos saberes 241

do Estado moderno quando, por exemplo, no observamos com maior detenimento a reali-
Brasil, o Movimento dos Trabalhadores Rurais dade, percebemos que estas epistemologias,
Sem Terra (MST) por uma reforma agrária, ou por mais diversas que sejam, estão confinadas
a duração do comércio de escravos, quando os nas práticas científicas modernas e contempo-
povos afrodescendentes lutam por recuperar râneas. Quando as comparamos com a ciência
os quilombos, a terra dos escravos fugitivos, chinesa estudada por Joseph Needham (1954)
seus antepassados; ou uma duração ainda mais ou com a ciência árabe ou islâmica da idade de
longa, quando os povos indígenas lutam por re- ouro do Islã (ca. 750 e.c.-ca. 1258 e.c.) estuda-
cuperar seus territórios históricos, que os con- das por Seyyed Hossein Nasr (1976) e tantos
quistadores lhes arrebataram. outros, ou inclusive com a ciência ghandiana
ou kahdi, nós nos ocupamos da pluralidade in-
Relativizar a distinção entre terna ou da externa?
a pluralidade interna e a Um exemplo tomado de um campo diferen-
pluralidade externa dos saberes: o te de conhecimento nos ajuda a ver que, para
caso da filosofia africana captar a diversidade epistemológica do mundo,
A distinção anterior entre a pluralidade in- não devemos atribuir um valor absoluto à dis-
terna e a pluralidade externa dos saberes, ape- tinção entre pluralidade interna e externa dos
sar de seu valor heurístico, propõe alguns pro- conhecimentos. Comecemos com uma pergun-
blemas. A distinção se baseia na ideia de que ta: um diálogo entre a filosofia ocidental e a
podem ser definidos, inequivocadamente, os filosofia africana é um caso de pluralidade in-
limites de cada tipo de conhecimento. Esta se- terna ou externa?15 Dado que estão em questão
ria a única forma de saber se estamos diante de as duas filosofias, pareceria que estamos diante
uma pluralidade entre saberes distintos (plu- de um caso de pluralidade interna. No entan-
ralidade externa) ou diante variações dentro to, muitos filósofos ocidentais e africanos por
do mesmo tipo de conhecimento (pluralidade igual, acham que não se pode falar de uma filo-
interna). Como vimos antes, as epistemologias sofia africana porque só há uma filosofia, cuja
das práticas científicas ampliaram muitíssimo
o campo da pluralidade interna. A pluralidade 15 O mesmo argumento pode ser utilizado em relação
interna alcançou o seu máximo possível? Se com o diálogo entre religiões.
242 Boaventura de Sousa Santos

universalidade não fica deslustrada pelo fato de problemas da incomensurabilidade, a incom-


que até hoje tenha se desenvolvido principal- patibilidade ou a ininteligibilidade recíproca.
mente no Ocidente. Portanto, qualquer coisa No entanto, acham que a incomensurabilidade
que se possa designar como filosofia africana não impede necessariamente a comunicação, e
não é, de fato, filosofia, e só se poderia compa- que inclusive pode conduzir a formas insuspei-
rar com a filosofia sobre a base da pluralidade tadas de complementariedade. Tudo depende
externa. Na África, é a postura que assumem do uso de adequados procedimentos de tradu-
os denominados filósofos modernistas. Para ção intercultural. Mediante a tradução é possí-
outros filósofos africanos, os tradicionalistas, vel identificar preocupações comuns, enfoques
existe uma filosofia africana que, ao estar inte- complementários e também, claro está, contra-
grada na cultura africana, é incompatível com dições inextricáveis17. Segundo esta terceira
a filosofia ocidental e, portanto, deve seguir sua posição, é possível reconhecer a pluralidade
particular linha de desenvolvimento16. Segundo interna entre saberes que se distinguem por
os autores, a comparação ou o diálogo, à medi- profundas diferenças, o tipo de diferenças que
da que forem possíveis, implicam uma plurali- normalmente exigem reconhecer a pluralidade
dade externa, porque com eles estamos diante externa. Quanto mais amplo for o exercício de
dos corpos de conhecimento completamente tradução intercultural, mais provável é que a
diferentes. No entanto, o que resta por explicar comparação se torne interna.
é por quê, apesar de todas as diferenças feitas, Dois exemplos servem de ilustração. O filó-
ambos são chamados de filosofia. sofo ganês Kwasi Wiredu (1990, 1996) susten-
Uma explicação é a que dão aqueles que de-
fendem uma terceira postura. Dizem que não
17 Nesta área, os problemas costumam estar asso-
há uma filosofia, mas muitas, e acham que são
ciados com a linguagem, e a linguagem é, de fato, um
possíveis o diálogo e o enriquecimento mútu- instrumento chave para conseguir uma ecologia dos
os. São os que frequentemente enfrentam os saberes. Como resultado, a tradução deve operar em
dois níveis, o linguístico e o cultural. A tradução cultu-
ral será uma das tarefas mais difíceis que os filósofos,
16 Sobre este tema, veja Eze (1997); Karp e Masolo os cientistas sociais e os ativistas sociais enfrentam no
(2000); Hountondji (2002); Coetzee e Roux (2003) e século XXI. Trato este tema com mais detalhe em San-
Brown (2004). tos (2000, 2006).
As ecologias dos saberes 243

ta que a filosofia e a língua dos Akan, o grupo na proposta por Odera Oruka (1990, 1998) e
étnico ao que pertence, não pode traduzir a outros19. Reside em uma reflexão crítica sobre
ideia cartesiana de cogito ergo sum. A razão é o mundo cujos protagonistas são os que Odera
que não existem palavras para expressar esta Oruka denomina sábios, sejam poetas, curan-
ideia. “Pensar”, em akan, significa “medir algo”, deiros tradicionais, contadores de histórias,
o qual não tem sentido caso se una à ideia de músicos ou autoridades tradicionais. Segun-
ser. Além do mais, também é muito difícil expli- do Odera Oruka, a filosofia sagaz consiste nos
car o “ser” de sum, porque o equivalente mais pensamentos expressos de homens e mulheres
próximo é algo assim como “estou aí”. Segundo sábios de uma determinada comunidade, e é
Wiredo, o locativo “aí” “seria suicida do ponto uma forma de pensar e explicar o mundo que
de vista tanto da epistemologia quanto da me- flutua entre a sabedoria popular (máximas co-
tafísica do cogito”. Em outras palavras, a língua munais bem conhecidas, aforismos e verdades
permite que se expliquem certas palavras, mas gerais de sentido comum) e a sabedoria didá-
não outras. No entanto, isto não significa que a tica, uma sabedoria exposta e um pensamento
relação entre a filosofia africana e a ocidental racional de uns determinados indivíduos de
deve terminar aqui. Como tentou demonstrar uma comunidade. A sabedoria popular costu-
Wiredo, é possível desenvolver argumentos au- ma ser conformista, ao mesmo tempo em que,
tônomos assentados na filosofia africana, não a sabedoria didática às vezes é crítica sobre a
só referentes à razão de que não se pode ex- disposição comunal e a sabedoria popular. Os
pressar o cogito ergo sum, mas também refe- pensamentos podem ser expressos por escrito
rentes a muitas ideias alternativas que a filoso- ou como ditos e argumentações não escritos
fia africana pode expressar e a ocidental não18. relacionados com um(uns) determinado(s)
O segundo exemplo é o de H. Odera Oruka. indivíduo(s). Na África tradicional, a maior
Situa-se entre a filosofia ocidental e o conceito parte do que se consideraria filosofia sagaz
africano de sagacidade filosófica. A segunda é continua sem estar escrita por razões que hoje
uma colaboração inovadora da filosofia africa- devem ser evidentes para todos. É possível que

18 Veja Wiredu (1997) e uma discussão de seu traba- 19 Sobre a filosofia da sabedoria, veja também Ose-
lho em Osha (1997). ghare (1992); Presbey (1997).
244 Boaventura de Sousa Santos

algumas destas pessoas tenham estado par- reza que os diferentes saberes podem oferecer.
cialmente influenciadas pela inevitável cultura Centra-se nas relações entre os saberes e nas
moral e tecnológica do Ocidente. No entanto, hierarquias que se geram entre eles, já que ne-
sua atitude e seu bem estar cultural continuam nhuma prática concreta seria possível sem es-
sendo basicamente os da África rural tradicio- tas hierarquias. No entanto, mais do que convir
nal. Salvo um punhado delas, a maioria destas com uma hierarquia universal e abstrata entre
pessoas são “analfabetas” ou “semianalfabe- os conhecimentos, a ecologia dos saberes pre-
tas” (Odera Oruka, 1990: 28). fere hierarquias dependentes do contexto, le-
Em outras palavras, a ideia de sagacidade fi- vando em conta os resultados concretos que as
losófica africana é uma forma de conhecimen- diferentes práticas do conhecimento se propu-
to tão diferente da filosofia convencional, que serem ou conseguirem. As hierarquias concre-
não podemos senão estar diante de um caso de tas emergem do valor relativo das intervenções
pluralidade externa. No entanto, ao reclamar práticas alternativas. Entre os diferentes tipos
uma redefinição do que entendemos por filo- de intervenção podem existir complementa-
sofia, também se pode entender que aponta a riedade ou contradições. Sempre que houver
uma pluralidade interna dentro do campo hoje intervenções práticas que, em teoria, possam
extremamente ampliado da filosofia. ser implementadas por diferentes sistemas de
conhecimento, a escolha concreta da forma de
A ecologia dos saberes, a conhecimento deve estar informada pelo prin-
hierarquia e a pragmática cípio de precaução que, no contexto da ecolo-
Uma epistemologia pragmática se justifica gia dos saberes, deve ser formulada como se
sobretudo porque as experiências vitais dos segue: deve-se dar preferência à forma de co-
oprimidos se tornam inteligíveis principalmen- nhecimento a garantir o maior nível de parti-
te como uma epistemologia das consequências. cipação dos grupos sociais implicados no seu
Em seu mundo vital, primeiro são as consequ- desenho, sua execução e seu controle, e nos
ências e, depois, as causas. benefícios da intervenção.
A ecologia dos saberes se baseia na ideia Neste sentido, convém distinguir duas situa-
pragmática de que é necessário reavaliar as in- ções diferentes. A primeira se refere à escolha
tervenções concretas na sociedade e na natu- entre intervenções alternativas no mesmo âm-
As ecologias dos saberes 245

bito social quando chocam diferentes saberes. cisamente pelos juízos abstratos (baseados na
Neste caso, o princípio de precaução não deve validez universal da ciência moderna) sobre
levar a juízos baseados em hierarquias abstra- o valor relativo dos diferentes saberes. Anos
tas entre os saberes, mas devem ser produtos mais tarde, os modelos computacionais —um
de deliberações democráticas sobre os custos dos campos das ciências da complexidade—
e os benefícios. O seguinte exemplo demons- demonstraram que as sequências de água ges-
tra a importância deste princípio. Nos passa- tionadas pelos sacerdotes de Dewi-Danu eram
dos anos sessenta, os sistemas milenares de muitíssimo mais eficazes que os sistemas cien-
regado dos campos de arroz de diversos paí- tíficos de regado (Callicott, 2001: 94).
ses asiáticos foram substituídos por sistemas O outro caso de intervenções alternativas
científicos, tal como defendiam os profetas baseadas em corpos diferentes de conhecimen-
da Revolução Verde. Em Bali, Indonésia, os to é o das que não têm lugar no mesmo âmbito
sistemas de regado tradicionais se baseavam social. Neste caso, a decisão entre saberes di-
em ancestrais saberes religiosos, agrários e ferentes e que estejam em conflito não obriga
hidrológicos que eram supervisionados pelos necessariamente a substituir um tipo de inter-
sacerdotes de DewiDanu, a deusa hindu da venção por outra. Só requer decidir o âmbito
água (Callicott, 2001: 89-90). Foram substitu- social sobre o qual se deve intervir e o tipo de
ídos porque se considerava que eram supers- prioridade que se deve estabelecer. Como di-
ticiosos, produto do que os antropólogos cha- zia anteriormente, não é razoável questionar
maram de “culto ao arroz”. A realidade é que hoje o valor geral das intervenções no mundo
a substituição teve consequências nefastas que foram possíveis graças à produtividade
para o cultivo do arroz, tão desastrosas que foi tecnológica da ciência. Poderiam ser questio-
necessário abandonar os sistemas científicos nadas muitas de suas opções concretas, como
e recuperar os tradicionais. Mas a autêntica as bombas lançadas sobre Hiroshima e Naga-
tragédia foi que a suposta incompatibilidade saki, ou a exploração destrutiva dos recursos
entre os dois sistemas de conhecimento dese- naturais. Por exemplo, ninguém questiona a ca-
nhados para realizar a mesma intervenção — pacidade da ciência moderna de levar homens
regar os arrozais— era consequência de uma e mulheres à Lua, ainda que se possa colocar
avaliação incorreta da situação provocada pre- em dúvida o valor social de tal empresa. Nes-
246 Boaventura de Sousa Santos

te âmbito, a ciência moderna demonstra uma em prática estas relações? Como devemos dis-
superioridade inapelável a respeito de outros tinguir, nas lutas sociais concretas e práticas,
tipos de conhecimento. No entanto, há outras a perspectiva e o conhecimento dos oprimidos
formas de intervir na realidade que para nós da perspectiva e o conhecimento dos opresso-
são hoje de sumo valor com as quais a ciên- res? Não existem respostas inequívocas para
cia não contribuiu de modo algum, e que são, nenhuma destas perguntas. Uma característica
melhor dizendo, resultado de outros tipos de da ecologia dos saberes é que se constitui a si
conhecimento. É o caso, como dizia antes, da mesma mediante perguntas constantes e res-
preservação da biodiversidade que os saberes postas incompletas. Daí que seja um conheci-
de camponeses e indígenas tornam possível. mento prudente. A seguir, resumo algumas das
conclusões a que até hoje se chegou. Podem
Orientações para o saber prudente ser entendidas como possíveis orientações so-
A construção epistemológica de uma ecolo- bre como proceder com um conhecimento pru-
gia dos saberes não é tarefa fácil. Basta pensar dente e como avançar nessa direção.
nas muitas perguntas que se colocam. Como se 1. Não existe justiça social global sem justi-
deve distinguir o conhecimento científico do ça cognitiva. Não haverá sucesso se tudo
conhecimento não científico? Como se cons- depender exclusivamente de uma distri-
trói o interconhecimento? Como distinguir buição mais equitativa do conhecimento
entre muitos saberes não científicos? Qual é científico. O conhecimento científico tem
a diferença entre o conhecimento ocidental e uns limites intrínsecos no que se refere à
não ocidental? Se há vários saberes ocidentais, intervenção social que possibilita. Dada a
como distinguir entre eles? hegemonia da epistemologia convencional
De que perspectivas se deve identificar os di- e a conseguinte monocultura do conheci-
ferentes saberes? Quais são as possibilidades e mento científico, da presença e do possível
os limites de reconhecer um determinado tipo valor de saberes diferentes só se podem
de conhecimento do ponto de vista de outro? recuperar mediante uma sociologia das au-
Que tipos de relações ou articulações são pos- sências e uma sociologia das emergências.
síveis entre os diferentes saberes? Com que 2. As crises e os desastres provocados pelo
tipos de procedimentos poderiam se colocar uso imprudente e exclusivo da ciência
As ecologias dos saberes 247

são muito mais graves do que a episte- que um conhecimento dado não sabe ain-
mologia científica dominante reconhece. da da realidade social nem de sua possí-
As crises e os desastres poderiam ser evi- vel intervenção nela. Os limites externos
tados, caso se valorizem os saberes cien- afetam as intervenções na realidade social
tíficos que, de forma subordinada, entram que só são possíveis sobre a base de ou-
e saem das práticas científicas, e que va- tros tipos de conhecimento. Os saberes
lorizam também as práticas que estes sa- hegemônicos se caracterizam por conhe-
beres sustentam. Na ecologia dos saberes, cer só os seus limites internos. O uso con-
reconhecer os saberes não científicos não trahegemônico da ciência moderna con-
implica desacreditar o conhecimento cien- siste na exploração paralela dos limites
tífico. Simplesmente leva consigo o uso internos e externos.
contrahegemônico do segundo. Trata-se, 5. A ecologia dos saberes é construtivista
por um lado, de explorar as práticas cien- no que se refere à representação, e rea-
tíficas alternativas e, por outro lado, de lista no que se refere à intervenção. Não
valorizar a interdependência dos saberes temos acesso direto à realidade porque
científicos e não científicos. realmente não a conhecemos mais do que
3. Não existe nenhum conhecimento social através de conceitos, de teorias, de valores
que não seja conhecido por algum grupo e da linguagem que empregamos. Mas, por
social com um determinado objetivo so- outro lado, o conhecimento que construí-
cial. Todos os saberes sustentam práticas mos sobre a realidade intervém nela e tem
e constituem sujeitos. Todos os saberes suas consequências. O conhecimento não
são testemunhais porque o que sabem da é representação, é intervenção. O realismo
realidade social (a dimensão ativa dos sa- pragmático se centra na intervenção mais
beres) também revela o tipo de sujeitos do do que na representação. A credibilidade
conhecimento que agem sobre a realidade da construção cognitiva se mede pelo tipo
social (sua dimensão subjetiva). de intervenção no mundo que contribui,
4. Todos os saberes têm limites internos e favorece ou dificulta. A avaliação desta in-
externos. Os limites internos afetam ao tervenção sempre combina o cognitivo e o
ético-político, motivo pelo qual a ecologia
248 Boaventura de Sousa Santos

dos saberes parte da compatibilidade en- pelo princípio da precaução. Dentro da


tre os valores cognitivos e os éticos-políti- ecologia dos saberes, a formulação deste
cos. Aí reside a distinção entre a objetivi- princípio deve ser assim: em igualdade de
dade e a neutralidade. circunstâncias, deve-se privilegiar o tipo
6. A ecologia dos saberes se centra nas rela- de conhecimento que garanta mais parti-
ções entre os saberes, nas hierarquias e cipação aos grupos sociais implicados na
nas forças que emergem entre eles. Iniciar concepção, na execução, no controle e no
a conversação entre os saberes sobre a desfrutar da intervenção.
premissa de garantir a igualdade de opor- 8. A diversidade do conhecimento não se
tunidades a todos eles, não é incompatível limita ao conteúdo nem ao tipo de sua
com hierarquias concretas no contexto intervenção privilegiada na realidade
de práticas concretas de conhecimento. social. Também inclui as formas em que
A ecologia dos saberes só combate a hie- se formula, em que se expressa e se co-
rarquia estabelecida pelo poder cognitivo munica. A ecologia dos saberes convida a
universal e abstrato, naturalizado pela epistemologias polifônicas e prismáticas.
história e justificado por epistemologias Polifônicas porque os diferentes conhe-
reducionistas. As hierarquias concretas cimentos têm desenvolvimentos autôno-
surgem da avaliação de intervenções al- mos, diferentes formas de produzir e de
ternativas na realidade social. Entre os di- comunicar conhecimento. Isto explica por
ferentes tipos de intervenção pode existir que determinar a relação entre eles costu-
complementaridade ou contradição. ma ser uma tarefa muito complexa. Pris-
7. A ecologia dos saberes se rege pelo prin- máticas porque a relação entre os conhe-
cípio de precaução. Sempre que houver cimentos muda segundo o tipo de práticas
intervenções na realidade que, em teoria, sociais em que intervém.
possam ser realizadas por diferentes sis- 9. O problema da incomensurabilidade
temas de conhecimento, as decisões con- não só é relevante quando os saberes em
cretas sobre os tipos de conhecimento que questão procedem de diferentes culturas;
se deve favorecer devem estar informadas também é um problema dentro da mes-
As ecologias dos saberes 249

ma cultura. No que se refere às culturas que intervenham a poesia e a ciência. Da


ocidentais, um dos temas mais polêmicos mesma forma, o conhecimento religioso
foi como a ciência se autodelimita com tem a sua própria epistemologia que, em
respeito a outras formas de se relacionar geral, considera-se incomensurável a res-
com o mundo, umas formas consideradas peito do conhecimento científico. O tema
não científicas e até irracionais, como da relação entre os saberes religiosos e os
as artes, as humanidades, a religião, etc. de outro tipo adquire relevância quando
Inclusive aqueles que criticam a ideia de muitos movimentos sociais que hoje lutam
que o conhecimento científico vai se libe- contra a opressão baseiam a sua militância
rando progressivamente dos elementos no conhecimento religioso e na espirituali-
“irracionais” —como Thomas Kuhn (1970, dade (Santos, 2014).
1977), Gaston Bachelard (1971, 1972, 10. A ecologia dos saberes pretende ser uma
1975, 1981), Georges Canguilhem (1988) luta docta contra a ignorância ignorante.
ou, em certa medida, Michel Foucault Uma característica distintiva do conheci-
(1980— sempre baseiam seus paradigmas mento hegemônico é a sua capacidade de
ou epistemes em descontinuidades entre impor seus critérios de conhecimento e
a ciência ou outros saberes. A afirmação ignorância ao resto dos saberes. A ecolo-
de tais descontinuidades exige, como de- gia dos saberes nos permite ter uma visão
monstra Thomas Gieryn (1999), um cons- mais ampla tanto do que sabemos quanto
tante trabalho de fronteira que implica um do que não sabemos. O que não sabemos é
permanente controle das mesmas e uma produto de nossa ignorância, não da igno-
persistente vigilância epistemológica, rância em geral.
para conter e repelir os iminentes e insis-
11. A história da relação entre diferentes
tentes “ataques de irracionalidade”.
saberes é fundamental na ecologia dos
Podemos perguntar, por exemplo, pelas saberes. A longa duração histórica do
possíveis relações entre a poesia e a ciên- capitalismo, o colonialismo e o patriarca-
cia. Não me refiro à ciência como poesia, do explica um passado de relações desi-
mas ao valor epistemológico da poesia e guais entre os saberes. Em muitos casos,
uma possível epistemologia polifônica em
250 Boaventura de Sousa Santos

essas relações conduziram ao epistemi- safio construtivo, e consiste em dar nova


cídio. O não exercício da ecologia dos vida às possibilidades culturais e históri-
saberes, por vasto e profundo que este cas do legado africano interrompido pelo
fosse, pôde apagar o passado. Em com- colonialismo e pelo neocolonialismo. O
pensação, na ecologia dos saberes, a his- trabalho de tradução tenta englobar es-
tória é uma sólida parte constituinte do tes dois movimentos: as relações hege-
presente. Como afirma T. Banuri (1990), mônicas entre as experiências e o que há
o que mais negativamente afetou o Sul mais além dessas relações. Neste duplo
desde o começo do colonialismo é ter movimento, reconstroem-se as experiên-
que concentrar as suas energias em adap- cias sociais reveladas pela sociologia das
tar-se e opor-se às imposições do Norte20. ausências, para entregar-se a relações de
Na mesma linha, Tsenay Serequeberhan inteligibilidade mútua sem cair na cani-
(1991: 22) identifica os dois desafios a balização recíproca.
que hoje se enfrenta a filosofia africana. 12. A ecologia dos saberes pretende facilitar
O primeiro é um desafio desconstrutivo, a constituição de sujeitos individuais e
e consiste em identificar os resíduos eu- coletivos, combinando a sobriedade na
rocêntricos herdados do colonialismo e análise dos fatos com a intensificação da
que estão presentes em diversos setores vontade contra a opressão. Reinvidica-se a
da vida coletiva, da educação à política, sobriedade pela multiplicidade de perspec-
do direito à cultura. O segundo é um de- tivas cognitivas sobre a realidade da opres-
são. Esta é sempre produto de uma mul-
20 Banuri sustenta que o desenvolvimento do “Sul” foi
tidão de saberes e forças. As hierarquias
desvantajoso “não devido a maus conselhos de política também atuam de acordo com as redes. A
ou intenção maliciosa dos assessores, nem pelo des- intensificação da vontade, por sua vez, é re-
conhecimento da sabedoria neoclássica, mas porque o sultado de um conhecimento mais profun-
projeto obrigou os indígenas constantemente a desviar do das possibilidades humanas. A ecologia
suas energias da busca positiva da mudança social defi-
nida pelo povo até o objetivo negativo de resistir à do-
dos saberes permite combinar saberes que
minação cultural, política e econômica pelo Ocidente” privilegiam a força interior e a natura na-
(Banuri, 1990: 66, ênfase no original).
As ecologias dos saberes 251

turata21. A ecologia dos saberes permite, poucas palavras, de recuperar a harmonia que
pois, assentar uma imaginação da vontade Paracelso, no Renascimento, destacou entre
que é incompreensível para o entendimen- Arqueo, o elemento da vontade da semente e
to convencional da ciência moderna22. do corpo, e Vulcano, a força natural da matéria.
A intensificação da vontade deriva de uma
A ecologia dos saberes não se produz só no potencialidade que só se pode conhecer me-
âmbito do logos. Também se dá no âmbito do diante a sociologia das emergências. Na eco-
mythos, o das pressuposições tácitas que tor- logia dos saberes, a vontade se orienta com
nam possível o horizonte de possibilidades de diversas bússolas. Não existem critérios abso-
cada conhecimento e os diálogos entre elas. lutos nem monopólios da verdade. Em termos
Neste sentido, é fundamental a ideia de fer- de Nicolás DE CUSA, orientar-se com uma só
mento —vinculado ao de “ímpeto vital”, o cam- bússola seria uma manifestação de ignorância
po de forças da energia humana que William ignorante. É necessário avaliar de forma regu-
James e Henri Bergson chamam de espontanei- lar a contribuição de cada bússola. A distância
dade tecnológica (Bloch, 1995, vol. 2, pág, 683), relativa a respeito das orientações e vanguar-
ou de espiritualidade, como simplesmente cha- das exclusivistas é um fator da consolidação da
mam os povos originários—. Com a natureza vontade. A existência de muitas bússolas torna
polifônica da ecologia dos saberes se pretende a vigilância epistemológica um profundo ato de
fomentar subjetividades rebeldes competen- auto-reflexividade.
tes. O que está em jogo é a formação de uma es- A ecologia do saber destaca o passar de
pontaneidade que cimente uma vontade consti- uma política de movimentos a uma política
tuinte sobre uma atitude de suspeita a respeito de intermovimentos. Os interesses que moti-
da realidade social já constituída. Trata-se, em vam o exercício da ecologia dos saberes devem
ser compartilhados pelos diversos grupos que,
em um determinado contexto, convergem na
ideia de que só podem lutar com sucesso por
21 Sobre a tecnologia da vontade, veja Bloch (1995:
2-675). suas aspirações e interesses se colaborarem
com outros grupos, integrando formas de co-
22 Sobre a imaginação e a encruzilhada dos saberes,
veja Visvanathan (1997, 2007). nhecer de outros grupos sociais. Os tempos e
252 Boaventura de Sousa Santos

lugares desta integração devem ser adequados parecido a um cavalo atado ao presépio com
para os diferentes grupos ou movimentos. o cabresto e comendo só o que lhes derem. O
Neste sentido, surge à mente outro dos fru- seu conhecimento se alimenta da autoridade
tíferos ensinamentos de Nicolás de Cusa. Em daqueles que escrevem, está limitado a um pas-
1450, De Cusa escreveu três diálogos —De Sa- to alheio, não natural” (2002: 79). E acrescen-
pientia, De Mente e De Staticis Experimen- ta: “Mas digo a vocês que a sabedoria grita nos
tis— cujo protagonista é o Idiota, um homem mercados e o seu clamor ressoa nas praças”
simples e iletrado, um pobre artesão que faz (2002: 79). A sabedoria se manifesta no mundo
colheres de madeira. Em seus diálogos com e nas tarefas mundanas, especialmente naque-
o acreditado filósofo (o humanista, o orador), las que são o mundo da razão e implicam ope-
o Idiota se torna o sábio capaz de resolver os rações de cálculo, medida e peso (2002: 81).
mais complexos problemas da existência a par- Nestes diálogos sumamente irônicos, o Idiota
tir da experiência de sua vida ativa, a qual se dá não é mais do que o postulante da docta ignorân-
prioridade sobre a via contemplativa. Como diz cia de Nicolás de Cusa. Os diálogos demonstram
Leonel Santos (2002: 73): “Contrapõe-se o Idio- que os grandes argumentos das escolas de co-
ta ao homem lido e erudito, que possui conhe- nhecimento erudito perdem importância se não
cimentos baseados em autores e autoridades, demonstram plenamente sua relevância para a
dos que obtém sua competência, mas que per- vida e a experiência práticas. Esta descentraliza-
deu o sentido do uso e do cultivo autônomo de ção das formas de saber tem outra dimensão. O
suas próprias faculdades”. O Orador provoca campo das interações práticas (ou seja, as inte-
o Idiota: “Que presunçoso você, pobre Idiota, rações que têm uns objetivos práticos) em que
para dispensar assim o estudo das letras, sem tem lugar a ecologia dos saberes exige que o lu-
as quais ninguém progride!” (2002: 78). O Idio- gar em que se interroga as formas de saber e se
ta responde: “Não é presunção, grande Orador, intercambiam não seja um lugar exclusivo para
o que me impede permanecer calado, mas sim o conhecimento, por exemplo, as universidades
a caridade. Na realidade, vejo vocês entregues ou os centros de pesquisa. O lugar da articulação
à busca da sabedoria com grande e vão dese- da ecologia dos conhecimentos é todo aquele
jo... A opinião da autoridade os tornou, a você em que o objetivo do conhecimento for tornar-se
que é um homem livre por natureza, algo mais uma experiência transformadora. Ou seja, é todo
As ecologias dos saberes 253

lugar situado mais além do conhecimento como in the Development of the Third World”
atividade separada. É significativo que os diálo- in Apfel Marglin, F. e Marglin, S. A. (eds.)
gos de Nicolás de Cusa tenham lugar na barbe- Dominating Knowledge: Development,
aria ou na humilde oficina do artesão. Assim se Culture and Resistance (Oxford:
obriga o filósofo a argumentar em um território Clarendon Press) pp. 29-72.
que não lhe é familiar para o qual não se formou: Bloch, E. 1995 The Principle of Hope
o território da vida prática. Este é o território (Cambridge: MIT Press).
onde se planejam todas as relações práticas, Brown, M. 2005 “‘Setting the Conditions’ for
onde se avaliam as oportunidades, onde se me- Abu Ghraib: The Prison Nation Abroad”
dem os riscos, onde se pesam os prós e os con- in American Quarterly, V. 57, Nº 3, pp.
tras. É o território do artesanato das práticas, o 973-997.
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Tradução intercultural:
Diferir e partilhar con passionalità*

A s ecologias de saberes são um dos pro-


cedimentos centrais que estruturam as
epistemologias do Sul. No centro das ecolo-
de ocidental com culturas não ocidentais: a
destruição e a assimilação forçada1. Trata-se
de “não relacionamentos” na medida em que
gias de saberes está a ideia de que os diferen- ambas se recusam a considerar as culturas
tes tipos de saberes são incompletos de dife- não ocidentais como alternativas culturais
rentes formas e que a criação da consciência relevantes em qualquer sentido concebível.
desta incompletude recíproca (em vez de Estas são localizadas do outro lado da linha
procurar a completude) constitui a condição abissal podendo assim ser descartadas como
prévia para alcançar a justiça cognitiva. A tra- incompreensíveis ou transformadas em ob-
dução intercultural é uma alternativa tanto ao jectos de apropriação e violência (Santos,
universalismo abstracto no qual se baseiam 2009). Como a entendo aqui, a tradução inter-
as teorias gerais ocidentalocêntricas como à cultural consiste na busca de preocupações
ideia da incomensurabilidade entre culturas. isomórficas e de premissas subjacentes entre
As duas estão ligadas e são responsáveis por as diferentes culturas, identificando diferen-
dois “não-relacionamentos” da modernida-

1 Conquista militar, conversão forçada, endoutrina-


* Tradução portuguesa de Santos, B. de Sousa ção ideológica, repressão linguística, e profanação de
2016 “Intercultural translation: Differing and sharing espaços sagrados são algumas das muitas versões da
con passionalità” in Epistemologies of the South. negação do outro são algumas das muitas versões de
Justice against Epistemicide (Londres / Nova Iorque: negação do outro através do unilateralismo imperial.
Routledge) pp. 212-235. Ver Dallmayr (2006: 76).
262 Boaventura de Sousa Santos

ças e similitudes, e desenvolvendo, sempre tradução intercultural2. A emergência da globa-


que apropriado, novas formas de entendimen- lização contra-hegemónica e dos movimentos
to cultural e intercomunicação que pode ser sociais ancorados em premissas culturais do
útil no favorecimento de interacções e forta- Sul global, o consequente distanciamento em
lecimento das alianças entre os movimentos relação à tradição crítica e imaginação política
sociais, organizações, grupos de resistência ocidental, o colapso do internacionalismo que
que, em diferentes contextos culturais lutam ao longo do século XX privilegiou a classe ope-
contra o capitalismo, colonialismo e patriar- rária como sujeito histórico, a diversidade das
cado e pela justiça social, dignidade humana, lutas nacionalistas no Sul global e a crise as-
ou decência humana. A tradução intercultural sociada do universalismo abstracto e das teo-
questiona tanto as dicotomias reificadas en- rias gerais — todos estes factores convergiram
tre saberes alternativos (por exemplo, saber num apelo à tradução intercultural. A tradução
indígena versus saber científico) como as hie- intercultural levanta uma série de questões.
rarquias abstractas entre diferentes saberes Que tipos de relacionamento são possíveis en-
(por exemplo, o saber indígena como uma rei- tre os diferentes saberes? Como distinguir in-
vindicação válida de identidade versus saber comensurabilidade, incompatibilidade, contra-
científico como uma reivindicação válida de dição e complementaridade? De onde provém
verdade). Em suma, o trabalho de tradução o impulso para traduzir? Quem são os tradu-
capacita-nos para lidar com a diversidade e tores? Como escolher parceiros e assuntos de
o conflito na ausência de uma teoria geral e tradução? Como formar decisões partilhadas e
de uma política de comando. Como veremos como distingui-las das que são impostas? Qual
adiante, trata-se de um processo vivo que a diferença entre tradução intercultural e tra-
deve ser levado a cabo tanto com os argu- dução entre-línguas, e como se relacionam?
mentos como com as emoções derivadas de Como garantir que a tradução intercultural não
partilhar e diferir segundo uma axiologia de se torna na mais nova versão do pensamento
cuidado. Numa expressão de Antonio Grams-
ci, con passionalità (ver abaixo).
Em trabalhos anteriores descrevi o clima po-
lítico e intelectual que justifica a necessidade da 2 Ver Santos, 2006a e 2014.
Tradução intercultural: Diferir e partilhar com Passionalità263

abissal3 ou da razão metonímica e proléptica, da emancipação social e para a imaginação


ou seja, numa nova versão do imperialismo e política insurgente. Vista da perspectiva das
do colonialismo?4 Como podemos identificar epistemologias do Sul, a tradução intercultu-
a perspectiva do oprimido em termos cogniti- ral é também uma tradução inter-política, um
vos? Como podemos traduzir esta perspectiva procedimento que promove a política inter-
para outros saberes e línguas? Na busca de al- -movimentos sociais na origem da globalização
ternativas à dominação e à opressão, como po- contra-hegemónica. Como parte integrante de
demos distinguir entre alternativas ao sistema um projecto político, deve ser conduzido de
de opressão e dominação e alternativas den- modo a maximizar o sucesso deste último. A
tro do sistema? Mais especificamente, como tradução intercultural é uma ferramenta para
distinguir entre alternativas ao colonialismo e minimizar os obstáculos à articulação política
neocolonialismo e alternativas que mascaram entre os diferentes grupos sociais e os movi-
a perpetuação do capitalismo? Em suma, como mentos que lutam em todo o mundo pela jus-
podemos lutar contra as linhas abissais usando tiça social e a dignidade humana quando estes
instrumentos políticos e conceptuais que não obstáculos são devidos à diferença cultural e à
as reproduzam? Qual será o impacto de uma ininteligibilidade recíproca. Além de frequente-
concepção pós-abissal de saber ou de uma ra- mente falarem diferentes línguas e provirem de
zão cosmopolita subalterna tanto nas lutas so- diferentes trajectórias históricas, estes grupos
ciais como nas instituições educacionais? e movimentos formulam os seus repertórios de
Não pretendo responder a todas estas ques- luta baseados não apenas em contextos sociais
tões neste texto. Limito-me a tecer algumas e políticos específicos nos quais operam, mas
considerações que as podem esclarecer. Mas também em diferentes premissas culturais e
antes disso, começo por referir brevemente universos simbólicos. Nesta última instância,
o que entendo por tradução intercultural e o apenas os significados culturais partilhados
porquê da sua importância para a reinvenção transformam demandas em objectivos dignos
de luta. Como parte de um projecto inter-polí-
tico, a tradução intercultural interessa-se tan-
3 Sobre o pensamento abissal, ver Santos, 2009: 23-71. to com o porquê da importância da tradução
4 Ver Santos, 2014. como com as relações de poder envolvidas no
264 Boaventura de Sousa Santos

trabalho de tradução. A tradução intercultural, normativo à luz do qual as práticas concretas


tal como a concebo neste texto, não é um ges- da tradução devem ser avaliadas. Como um
to de curiosidade intelectual ou diletantismo processo vivo, a tradução intercultural aspira
cultural. É antes um imperativo ditado pela à reciprocidade em vez de se preocupar com
necessidade de ampliar a articulação política as culturas de partida e as culturas de chegada.
para além dos limites daquilo que é muitas ve- Quando me refiro a um entendimento mais am-
zes percebido como um dado local ou cultura5.
Esta necessidade pode ser inicialmente sentida
nho em mente. Todorov afirma que um tal diálogo de-
e vocalizada por um dado grupo ou movimen- pende de uma relação “em que ninguém tem a última
to, mas de modo a conduzir a um trabalho con- palavra” e em que “nenhuma voz é reduzida ao estatuto
creto de tradução, terá de ser partilhado por de um simples objecto ou de uma mera vítima” (1984:
um outro grupo ou movimento. Idealmente, 247-251). Dallmayr (2006: 79) distingue três modalida-
apenas relações de poder igualitárias, ou seja, des básicas de diálogo transcultural: (1) comunicação
pragmtico-estratégica, (2) discurso moral-universal, e
relações de autoridade partilhada, se encaixam (3) discurso ético-hermenêutico; e como subcategoria:
nos propósitos da tradução intercultural, uma diálogo agonal ou contestação. O diálogo ético-her-
vez que apenas nestas condições poderá haver menêutico é o mais próximo da minha concepção de
reciprocidade entre grupos sociais ou movi- tradução intercultural. Neste tipo de diálogo, “os par-
mentos6. Estas funções ideais como padrão ceiros procuram compreender e apreciar as histórias
de vida e os antecedentes culturais mútuos, incluindo
tradições culturais e religiosas (ou espirituais), reposi-
tórios de expressões literárias e artísticas, e angústias
5 Como projecto político, o trabalho da tradução e aspirações existenciais” (Dallmayr, 2006: 79). No en-
deve confrontar o tipo de questões políticas que, de tanto, existe uma grande diferença entre a abordagem
acordo com Lydia Liu, constitui o âmago da tradução de Dallmayr e a minha. O meu interesse não tem a ver
intercultural: “Nos termos de quem, para que circulo com a ética ou a hermenêutica per se mas antes com
linguístico, e em nome de que tipos de saber ou auto- as políticas inter-movimentos, isto é, com a criação
ridade intelectual realizamos actos de tradução entre de condições para alianças concretas e agregações de
culturas?” (1995: 1). interesses políticos. Também assim se explica porque
6 A concepção de diálogo transcultural de Tzvetan prefiro o conceito de tradução ao conceito de diálogo.
Todorov, embora não esteja preocupado com o tipo Na tradução recíproca o objectivo é trabalhar as dife-
de política inter-movimentos em que me centro aqui, renças de modo a identificar o propósito e as limita-
aproxima-se do tipo de tradução intercultural que te- ções na construção de alianças.
Tradução intercultural: Diferir e partilhar com Passionalità265

plo da tradução intercultural, pretendo ilustrar temporaneidade, uma metáfora central do nosso
as condições para uma tradução inter-política e tempo. (2004)
sublinhar os obstáculos à sua realização7.
Do mesmo modo, Michaela Wolf escreve que
Tradução intercultural como “há muito que a tradução abandonou o casulo
tradução viva protector da cultura filológica da tradução, e
Não é meu propósito envolver-me nos nu- está a tornar-se numa categoria cada vez mais
merosos debates que rodeiam a tradução, a tra- central da teoria cultural e das políticas da cul-
dução cultural, a traduzibilidade, e a tradução tura” (2008).
como cultura que explodiu nas humanidades e Partindo do conceito de “filologia viva” de
nas ciências sociais desde os anos 80 do século Gramsci8, concebo a tradução intercultural
passado, dando origem a programas de inves- como um processo vivo de interacções com-
tigação completamente novos e a disciplinas plexas entre artefactos heterogéneos, tanto
como os estudos de tradução. Nas palavras de linguísticos como não linguísticos, combina-
António Sousa Ribeiro, dos com intercâmbios que excedem em muito
os enquadramentos logocêntricos ou discurso-
Na verdade, se em todas as épocas há conceitos -cêntricos. Segundo Giorgio Baratta, a filolo-
que, em determinado momento, atingem uma gia viva de Gramsci vai para além dos textos
circulação tão ampla que parecem, por si só, ser e centra-se nas condições sociais e políticas
capazes de nomear tudo o que constitui as de- concretas com as quais os textos supostamen-
terminantes dessa época, um desses conceitos, te se relacionam e sobre as quais terão im-
nos nossos dias, é, sem dúvida, o de tradução. pacto9. Refiro a riqueza dos debates recentes
Pode dizer-se sem qualquer reserva que a tradu- sobre a tradução apenas pela sua relevância
ção se tornou uma palavra-chave da nossa con-

7 No meu livro The End of the Cognitive Empire: The 8 Ver Gramsci (1975: 857 e 1430).
Coming of Age of Epistemologies of the South (Durham: 9 “Um movimento circular do empírico e do indivi-
Duke University Press, 2018) apresento alguns exercí- dual para o universal e para o total, e vice-versa, sem
cios de tradução intercultural que podem facilitar e for- nunca fechar o círculo ou alcançar uma conclusão defi-
talecer as políticas inter-movimentos no futuro. nitiva ou peremptória” (Baratta 2004: 18).
266 Boaventura de Sousa Santos

para o desenvolvimento do meu argumento dução intercultural é muito mais abrangente


neste texto. Algumas clarificações: falo de tra- porque abrange fenómenos linguísticos e ex-
dução intercultural e não de tradução cultural tralinguísticos. De seguida enumero os tópicos
porque as diferenças culturais encontradas dos debates da tradução cultural que são mais
na globalização contra-hegemónica são mais relevantes para o tipo de zona de contacto
interculturais do que intraculturais. Mas es- translacional a que me refiro aqui.
tou plenamente consciente de que em muitas A língua constitui, obviamente, um tópico
instâncias pode não ser fácil distinguir entre central. Para os meus propósitos analíticos,
as duas situações. Além disso, as diferenças refiro-me sobretudo a dois tópicos principais.
intraculturais podem por vezes levar a confli- O primeiro diz respeito às diferenças de lin-
tos mais complexos que as interculturais. A guagem, competências linguísticas desiguais,
tradução é normalmente concebida como uma e os seus impactos sobre o trabalho de tra-
metáfora10, enquanto que a tradução linguísti- dução. O segundo tem a ver com o lugar da
ca se refere ao sentido tradicional e literal de linguagem na tradução intercultural, uma vez
tradução de uma língua para outra. Sabemos, que o trabalho de tradução depende também
contudo, que com o uso extensivo e repetido, de formas de comunicação não-linguísticas e
as metáforas se tornam literais. Por outro lado, para linguísticas, linguagem corporal, gestos,
a tradução entre-línguas não pode deixar de riso, expressões faciais, silêncios, a organi-
implicar tradução cultural. No entanto, a tra- zação e arquitectura do espaço, a gestão do
tempo e do ritmo, etc. O segundo tópico tem
a ver com a traduzibilidade, que Walter Benja-
10 Ver Birgit Wagner (2011). Ver o capítulo de Fabrice min (2002: 254) considerava “a lei que governa
Schurmans neste volume. O texto deste meu capítulo
a tradução” e Gramsci via como a diferença
foi escrito antes de ter lido o de Fabrice, não podendo,
por isso tomar em conta os muito pertinentes comen- que poderia esbater ou meramente interferir
tários que me faz e a que espero poder responder em na suposta contradição universal da dialéctica
textos futuros. Fabrice, concordando em geral com o marxista. Traduzibilidade é o reconhecimento
meu argumento, lamenta que eu não tenha fortalecido da diferença e a motivação para lidar com ela.
com o diálogo com os teóricos da tradução linguística.
Ignorar a traduzibilidade equivale a impossibi-
A verdade é que não considerei importante fazê-lo em
face dos meus propósitos analíticos. litar a hegemonia. A hegemonia baseia-se no
Tradução intercultural: Diferir e partilhar com Passionalità267

consentimento de ideias que vão para além do como estas podem ser reduzidas ou mesmo
limite imediato da experiência de vida de cada eliminadas à medida que o trabalho de tradu-
um (e podem mesmo contradizê-la). Contudo, ção progride. Como criar uma comunicação
este consentimento, só é possível através de não hierárquica e alcançar significados parti-
um acto de apropriação cultural e existencial lhados? Este tópico é especialmente relevan-
que aproxima ideias e experiências de vida ou te para os tipos de tradução a que me dedico
torna a ilusão desta proximidade mais credí- aqui, por exemplo, traduções de projectos po-
vel. A apropriação é a activação da diferença líticos destinadas a criar capacitação recípro-
num movimento da estranheza para a familia- ca. A policentralidade raramente constitui um
ridade. Esta activação é traduzibilidade em ponto de partida. Na melhor das hipóteses,
acção. Nascido no sul de Itália, na Sardenha, será um ponto de chegada. O quarto tópico,
Gramsci tinha plena consciência da diferen- igualmente relevante, diz respeito às mudan-
ça linguística e cultural no seu próprio país ças que o trabalho de tradução provoca na
e estava preocupado com o facto de o pen- identidade dos participantes à medida que o
samento e o discurso político, muitas vezes trabalho avança. Partilhar significados impli-
dependentes do saber académico e de teorias ca também partilhar ideias, posicionamentos,
universais como o marxismo, correrem o ris- paixões, sentimentos e emoções. Do mesmo
co de não serem inteiramente compreendidos modo, as diferenças na comunicação ou mes-
pelos seus destinatários. mo “a encenação da diferença” como diria
Ao longo dos seus Quaderni del carcere, faz Homi Bhabha (1994: 227), possuem dimen-
várias críticas severas aos discursos isotéricos sões de comunicação e performatividade que
da academia, que Gramsci (1975: 353) denomi- afectam a subjectividade do tradutor como
nou de “esperanto científico e filosófico”. Se- um todo. A marcação como a desmarcação
gundo ele, tudo o que não fosse passível de ser de diferenças, inscrevem-se num processo de
expresso neste esperanto, era considerado um intersubjectivação e interidentificação. À me-
mero preconceito ou superstição, senão mes- dida que os sujeitos da tradução mudam, mu-
mo um puro delírio. dam também as polaridades que os separam.
O terceiro tópico diz respeito às assime- Reformulação e interpenetração são tradução
trias envolvidas no trabalho de tradução e em acção. Um quinto tópico, menos debatido
268 Boaventura de Sousa Santos

pelos estudos de tradução, mas crucial aqui, é sublinha a ideia de relacionamento cultural.
a motivação por detrás da tradução. De onde Conceitos como equivocação, ambivalência,
provém o pathos que gera o impulso para mestiçagem ou hibridismo, e mimetismo são
iniciar a tradução? Quão quente é a corren- centrais para a tradução intercultural. Sendo
te quente da razão que junta estranhos sem que este último é aqui analisado e valorizado
qualquer certeza de que, no final do trabalho pela sua possível contribuição para as políti-
de tradução, serão menos estranhos uns para cas inter-movimentos, é imperativo elucidar
os outros e a possibilidade de poderem ser as relações históricas entre as diferentes cul-
mais estranhos ainda? A filologia viva de Gra- turas envolvidas, assim como as desigualda-
msci implica um esforço colectivo para tra- des políticas e culturais por elas criadas, e
duzir com “uma partilha activa e consciente” ter presente que estas desigualdades fazem
isto é con passionalità11. Este conceito é da parte do presente, mesmo quando a neces-
maior importância por sublinhar as emoções sidade de tradução é recíproca e igualmente
que encarnam o envolvimento e a partilha de sentida por ambas as partes. Em trabalhos
sentidos e afectos à medida que o trabalho de anteriores abordo as relações de poder in-
tradução progride. tervenientes na mestiçagem, distinguindo
A tradução é o procedimento que permite entre mestiçagem colonial e descolonizado-
criar inteligibilidade recíproca entre as expe- ra12. A ambivalência do mimetismo reside na
riências do mundo, tanto as disponíveis como sua afirmação da diferença no próprio pro-
as possíveis, tal como são reveladas pela so- cesso de identificação do outro. Na maioria
ciologia das ausências e pela sociologia das dos contextos coloniais modernos, a raça é
emergências. Sublinhado a possibilidade de um símbolo desta diferença e é, de facto, a
comunicação cultural, a tradução enfraque- causa do fracasso do mimetismo, uma vez
ce a ideia de culturas originais ou puras e que não possibilita mais que uma presença
incompleta. Bhabha tendo em mente a Índia
escreve “ser anglicizado é empaticamente
11 Gramsci (1975). Segundo Birgit Wagner (2011),
Joseph Buttigieg, editor dos primeiros dois volumes
da edição americana de The Prison Notebooks, planeia
usar “empatia” para traduzir con passionalità. 12 Ver Santos, 2006a: 179-211.
Tradução intercultural: Diferir e partilhar com Passionalità269

não ser inglês” (1994: 87). E o mesmo argu- Traduzir é situar-se num espaço de equivocação14
mento pode encontrar-se em outros textos e permanecer aí, ao invés de desfazê-lo ou supor
coloniais13. Ao contrário de Bhabha, não que ele nunca existiu. Traduzir é enfatizar e po-
penso que desacreditar as representações tencializar a equivocação, abrindo e alargando o
espaço que era imaginado como inexistente entre
hegemónicas e deslocar o antagonismo seja
as duas linguagens conceptuais em contato, pre-
inerente à mestiçagem ou que o “terceiro es-
cisamente o espaço que a equivocação esconde.
paço” aberto por ela seja automaticamente A equivocação não é um impedimento para a re-
emancipador. Este “terceiro espaço” pode de lação, mas antes aquilo que a funda e impulsiona:
facto ser muito (des)emancipador, como as uma diferença na perspectiva. Traduzir, portanto,
frustrações dos movimentos indígenas latino seria presumir que a equivocação sempre existe,
americanos demonstraram eloquentemente ou seja, comunicar-se pelas diferenças ao invés
nas últimas décadas. Em trabalho anterior de silenciá-las presumindo uma univocalidade ou
(2006a: 179-211) ao analisar a subjectividade uma similaridade essencial entre o que nós e o
barroca, chamo a atenção para os limites da
subversão da dominação que representa. As
“virtudes” do terceiro espaço dependem das 14 “A equivocação, não é apenas uma ‘falha no enten-
relações sociais concretas que o constituem. dimento’, mas uma falha em entender que os entendi-
O terceiro espaço é o domínio da mediação e mentos não são necessariamente os mesmos e que não
estão relacionados com formas imaginárias de ‘ver o
da negociação que são constitutivos da tra- mundo’, mas com mundos reais que estão a ser vistos…
dução intercultural. O seu potencial político O Outro e os Outros são sempre o outro. Dessa forma,
depende de condições específicas de media- uma equivocação não é um erro, um engano ou uma
ção e negociação. O terceiro espaço é aquilo fraude, pois estes pressupõem premissas homogêneas,
enquanto ela suporia a heterogeneidade das premissas.
a que Viveiros de Castro chama o espaço de
E se a equivocação não é um erro, uma ilusão ou uma
equivocação. Segundo ele, mentira, mas a própria forma da positividade relacio-
nal da diferença, seu oposto não é a verdade, mas sim
o unívocal como pretensão à existência de um signifi-
cado único e transcendente. O erro ou ilusão persiste,
precisamente, em imaginar que o unívocal existe sob
o equívocal, e que o antropólogo é o seu ventríloquo
13 Para o contexto português, ver Santos, 2011. (Viveiros de Castro, 2004: 12).
270 Boaventura de Sousa Santos

Outro dizemos. Assim, “a incomensurabilidade sos simbólicos e agências normativas e rivais


entre as “noções” conflituantes, longe de ser um se encontram em condições desiguais e resis-
impedimento à sua comparabilidade, é precisa- tem, rejeitam, assimilam, imitam, traduzem e
mente o que a permite e justifica. (2004: 10) se subvertem umas às outras de modo a dar
origem a constelações culturais híbridas onde
Prefiro conceber o espaço intermédio que a desigualdade das trocas pode ser reforçada
torna a tradução possível como zona de con- ou reduzida. A complexidade é intrínseca à
tacto, uma zona traduzível. Em geral, as zo- própria definição de zona de contacto. Quem
nas de contacto são campos sociais em que define quem ou o quê pertence à zona de con-
diferentes mundos da vida cultural se encon- tacto e quem ou o quê não? Como definir a li-
tram, medeiam, negoceiam e confrontam15. nha que delimita a zona de contacto? Será a
Zonas de contacto são, portanto, zonas em diferença entre culturas ou mundos da vida
que ideias, saberes, formas de poder, univer- normativos tão profunda que os torna inco-
mensuráveis? Como aproximar os universos
culturais e normativos de modo a trazê-los a
15 Pratt, define as zonas de contacto como “espaços uma distância “de contacto visual”, por assim
sociais em que culturas distintas se encontram, chocam dizer? Paradoxalmente, devido à multiplici-
entre si e se envolvem umas com as outras muitas vezes dade de códigos culturais presente, a zona de
em relações de dominação e subordinação altamente
assimétricas — como o colonialismo, a escravatura e contacto descodificada e desclassificada, uma
as suas sequelas que sobrevivem hoje pelo mundo fora” zona de experimentação e inovação normati-
(1994: 4). Nesta formulação as zonas de contacto pa- va e cultural. Além disso, a determinação da
recem implicar encontros entre totalidades culturais. igualdade de desigualdade de trocas na zona
Não tem de ser este o caso. A zona de contacto pode
de contacto nunca é uma tarefa simples, uma
envolver diferenças culturais seleccionadas e parciais,
as diferenças que, num espaço-tempo determinado se vez que estamos em presença de conceitos
encontram em concorrência para dar sentido a uma alternativos e muitas vezes conflituantes de
determinada linha de acção. Além disso, hoje em dia, igualdade. Nas zonas de contacto, o ideal da
as trocas desiguais vão muito além do colonialismo e igualdade é o ideal da igualdade de diferenças.
das suas sequelas, embora o colonialismo continue a
No meu entendimento, as zonas de contacto
desempenhar um papel muito importante do que esta-
mos dispostos a admitir. produzidas pela tradução intercultural são
Tradução intercultural: Diferir e partilhar com Passionalità271

tempos-espaço de mediação e negociação nos ferentes culturas. A hermenêutica diatópica ou


quais a desigualdade das relações de tradução pluritópica é baseada na ideia de que os topoi16
constitui o principal factor condicionante do de uma dada cultura individual, por mais for-
trabalho de tradução. O trabalho de tradução tes que pareçam, são tão incompletos como a
actua reduzindo esta desigualdade quando própria cultura a que pertencem. Tal incomple-
tem êxito e aumenta-a quando fracassa. As tude não é visível do interior da própria cultura
constelações culturais emergentes do traba- uma vez que a aspiração à totalidade induz a
lho de tradução podem ser mais ou menos ins- que se tome a parte pelo todo. O objectivo da
táveis, provisórias e reversíveis hermenêutica diatópica não é, porém, atingir
Como parte da política inter-movimentos, a completude — um objectivo intangível — e
o trabalho de tradução diz respeito tanto aos sim ampliar ao máximo a consciência de in-
saberes como às práticas, e também aos seus completude mútua através de um diálogo que
agentes. Existem diferentes tipos de trabalho se desenrola, por assim dizer, com um pé numa
de tradução. Alguns centram-se especificamen- cultura e outro, noutra. Aqui reside o seu carac-
te em conceitos ou mundovisões, outros em ter diatópico.
modos alternativos de construir práticas ou Procurando, entre outras coisas, quebrar o
agentes colectivos. Mas em cada instância, os círculo hermenêutico criado pelos limites de
saberes, as práticas, e os agentes, trabalham uma cultura única, a hermenêutica diatópica
conjuntamente. Quando o foco incide especi- ou pluritópica tenta “colocar em contacto hori-
ficamente sobre conceitos e mundovisões, de- zontes humanos radicalmente distintos, tradi-
nomino o trabalho de tradução, seguindo uma ções ou localizações culturais (topoi) de modo
expressão de Raymond Panikkar (1979: 9), her- a alcançar um diálogo verdadeiramente dialó-
menêutica diatópica. Consiste no trabalho de gico que tem em conta as diferenças culturais.
interpretação entre duas ou mais culturas com É a arte de alcançar o entendimento “atraves-
vista a identificar preocupações isomórficas
entre elas e as diferentes respostas que forne-
cem para elas. Por exemplo, a preocupação e a 16 O Topos é um conceito chave da retórica aristotéli-
ca. Significa “lugar comum”, a noção ou a ideia daquilo
aspiração à dignidade humana parecem estar
que — dada a sua evidência — não é discutível. Ao con-
presentes, embora de formas distintas, em di- trário, funcionam como premissas de argumentação.
272 Boaventura de Sousa Santos

sando diferentes localizações” (dia-topos) (Pa- completude cultural. No período de transição


nikkar, 1979: 9). que atravessamos, ainda dominado pela razão
Admitir a relatividade das culturas não im- metonímica e pela razão proléptica, a melhor
plica adoptar sem mais o relativismo como ati- formulação para o universalismo negativo tal-
tude filosófica. Implica, sim, conceber o univer- vez seja designá-lo como uma teoria geral resi-
salismo como uma particularidade ocidental dual: uma teoria geral sobre a impossibilidade
cuja supremacia como ideia não reside em si de uma teoria geral. A ideia e a sensação da
mesma, mas antes na supremacia dos interes- carência e da incompletude criam a motivação
ses que a sustentam. A crítica do universalismo para o trabalho de tradução. Ocorre-me neste
decorre da crítica da possibilidade da teoria ponto a descrição de Mikhail Bakhtin do diálo-
geral17. A hermenêutica diatópica pressupõe, go transcultural:
pelo contrário, o que designo por universa-
lismo negativo, a ideia da impossibilidade da Um significado apenas revela a sua profundidade
quando encontra e contacta um outro significado,
estrangeiro: encetam uma espécie de diálogo…
17 Uma variação do universalismo tem sido recente-
Procuramos respostas para as nossas perguntas
mente apresentada na forma de transversalismo. Pa- na [cultura estrangeira]; e [esta] responde reve-
lencia-Roth (2006) afirma que os valores universais são lando-nos novos aspectos e uma nova profundida-
antitéticos dos valores transversais. Em termos axioló- de semântica… Este encontro dialógico de duas
gicos, os valores transversais são valores transversais a culturas não resulta em fusão ou mistura. Cada
uma ou mais culturas e lhes são comuns sem se torna- uma retém a sua unidade e totalidade aberta, mas
ram valores universais. Se uma cultura transversal qui- ambas se enriquecem mutuamente. (1986: 7)
ser permanecer transversal, deverá conservar a sua es-
pecificidade. Do meu ponto de vista, é apenas um modo
mais elegante (e também mais insidioso) de difundir a Para frutificar, a tradução tem de ser o cru-
velha pretensão do universalismo. Não existem valores zamento de motivações convergentes origina-
que, por si mesmos, sejam comuns a diferentes cultu- das em diferentes culturas. De onde provém
ras. Isso só poderá acontecer através da tradução inter- esta motivação? É imperativo distinguir entre
cultural cosmopolita, isto é, através de procedimentos
as motivações políticas e intelectuais. Ao longo
que, pelo seu caracter recíproco e horizontal, oferecem
garantias contra as imposições de cima para baixo e, do período moderno existem numerosos exem-
afinal, contra o epistemicídio. plos de intelectuais, sábios, filósofos, e cientis-
Tradução intercultural: Diferir e partilhar com Passionalità273

tas, tanto no Norte global como no Sul global, (2000: 12). Se, imaginariamente, um exercício
que tentam alcançar outras culturas em busca de hermenêutica diatópica fosse conduzido
de respostas que a sua cultura não fornece. entre Vishvanathan e um cientista europeu ou
Por vezes trata-se de um exercício intelectual norte-americano é possível imaginar que a mo-
destinado a contestar verdades estabelecidas tivação para o diálogo, por parte deste último,
em relação à singularidade ou precedência de fosse formulada assim: “como posso manter
uma dada cultura. O exemplo mais brilhante do vivo em mim o melhor da cultura ocidental
século XX é seguramente o gigantesco esforço moderna e democrática e, ao mesmo tempo,
de tradução intercultural de Joseph Needham reconhecer o valor da diversidade do mundo
(1954) destinado a provar o atraso e a deriva- que ela designou autoritariamente como não
ção da ciência moderna e da civilização ociden- civilizado, ignorante, residual, inferior ou im-
tal vis-à-vis a ciência e à civilização chinesa. produtivo?” (2000: 12).
Com maior frequência, esta busca é um acto O segundo tipo de anseio e motivação é po-
de introspecção, um exercício de autoreflexi- lítico, e é este que me ocupa aqui. A sua irre-
vidade profunda plena de ansiedade na medida dutível componente intelectual está ao serviço
em que tudo o que pode ser aprendido com as de um intento ou projecto político. Que tipo de
outras culturas tem de ser digerido18, desfigu- intento ou projecto produz uma vontade que
rado, e transfigurado de modo a encaixar em por si gera a motivação para se aproximar de
novas constelações de significado. O sociólogo outra cultura? A um nível pragmático, ao lon-
indiano Shiv Vishvanathan formulou de uma go da década passada o Fórum Social Mundial
maneira incisiva a noção de carência e a mo- (FSM) forneceu provas inequívocas do carac-
tivação que eu aqui designo como motivação ter parcial, local ou provincial de projectos po-
para o trabalho de tradução: “o meu problema líticos anteriormente considerados universais
é como ir buscar o melhor que tem a civiliza- e suscetíveis de inteligibilidade universal e de
ção indiana e, ao mesmo tempo, manter viva formulações aceites e validadas19. Ao mesmo
a minha imaginação moderna e democrática” tempo que revelou a extrema diversidade (po-

18 Recordo aqui o movimento antropofágico dos inte-


lectuais de Nuestra America. Ver Santos, 2006a: 179-211. 19 Sobre o Fórum Social Mundial, ver Santos, 2006b.
274 Boaventura de Sousa Santos

litica, cultural, semântica, linguística) dos mo- ção envolvem práticas, bem como agentes20.
vimentos sociais que combatem a globalização O trabalho de tradução visa clarificar o que
neoliberal em todo o mundo, o FSM apela à une e o que separa os diferentes movimentos
necessidade de articulação e agregação entre e práticas, de modo a determinar as possibili-
todos estes movimentos e organizações. Na au- dades e os limites de articulação e agregação
sência de uma agregação imposta de cima para entre eles. Dado que não há uma única prática
baixo por uma grande teoria ou um actor social social universal ou sujeito coletivo para con-
privilegiado, isto implica um gigantesco traba- ferir sentido e direção à história, o trabalho
lho de tradução. O que há de comum entre o or- de tradução torna-se decisivo para definir, em
çamento participativo, hoje praticado em mui- cada momento ou contexto histórico concreto,
tas cidades latino-americanas, e o planeamento quais as constelações de práticas subalternas
democrático participativo dos panchayats em com maior potencial contra-hegemónico. En-
Kerala e Bengala Ocidental na Índia? O que po- quanto o Fórum Social Mundial gerou o poten-
dem aprender um com o outro? Em que tipos cial para a tradução intercultural, no México, o
de atividades globais contra-hegemónicas po- movimento indígena zapatista agiu sob a forma
dem cooperar? As mesmas perguntas podem de um exemplo muito concreto do trabalho de
fazer-se a respeito do movimento pacifista e do tradução. Tratou-se de um exemplo efémero,
movimento anarquista, ou do movimento indí- mas revelador da capacidade ir para além das
gena e dos movimentos dos indignados ou Oc- diferenças culturais e traduzir entre elas. Em
cupy, ou mesmo do Movimento dos Sem Terra março de 2001, na sua marcha para a capital
no Brasil e do movimento contra as barragens do país, o Movimento Zapatista transformou-se
no rio Narmada, na Índia, e assim por diante. momentaneamente numa prática contra-hege-
Ao lidar mais especificamente com práticas mónica privilegiada e foi-o tanto mais quanto
e agentes, o trabalho de tradução visa criar in- soube realizar o trabalho de tradução entre os
teligibilidade recíproca entre formas de orga- seus objetivos e práticas e os objetivos e práti-
nização e entre objetivos de ação. Mas, como
já referi, todos os tipos de trabalho de tradu-
20 O trabalho de tradução entre a biomedicina moder-
na e a medicina tradicional constitui um bom exemplo
disto. Ver Meneses (2004 e 2009).
Tradução intercultural: Diferir e partilhar com Passionalità275

cas de outros movimentos sociais mexicanos, de tradução, distingo dois tipos principais de
do movimento cívico e do movimento operário tradução intercultural. O primeiro é a tradução
autónomo ao movimento feminista. Desse tra- entre concepções ou práticas ocidentais e não
balho de tradução resultou, por exemplo, que o ocidentais; o segundo é a tradução entre dife-
dirigente zapatista escolhido para se dirigir ao rentes concepções e práticas não-ocidentais23.
Congresso Mexicano tenha sido uma mulher, a A meu ver, ambos almejam a aprendizagem
comandante Esther. Com essa escolha, os za- com o Sul anti-imperial, entendido como uma
patistas quiseram significar a articulação entre metáfora do sofrimento humano global, sisté-
o movimento indígena e o movimento de liber- mico e injusto causado pelo capitalismo, colo-
tação das mulheres e, por essa via, aprofundar nialismo e patriarcado e pela resistência contra
o potencial contra-hegemónico de ambos. as causas desse sofrimento. Como mencionei
anteriormente, o Sul anti-imperial existe tanto
Aprender com o Sul com a no Sul global como no Norte global. O forta-
tradução intercultural lecimento do Sul anti-imperial fundamenta o
Em trabalhos anteriores explico as razões impulso para aprender através da tradução in-
que justificam o meu empenho em conseguir tercultural, tanto de saberes e práticas distin-
distanciamento em relação à teoria crítica eu- tas em todo o Sul global, como com saberes e
rocêntrica Ocidental. Estabelecer um tal dis- práticas das zonas de contacto entre o Norte
tanciamento implica démarches desconstru- global e o Sul global. Trata-se de dois tipos mui-
tivas21 e reconstrutivas22. Neste texto procedo to diferentes de aprendizagem porque tanto a
à reconstrução a um nível mais profundo, o sociologia das ausências como a sociologia das
nível da tradução intercultural. Dependendo emergências actuam de modo muito distinto
do tipo de parceiros intervenientes no trabalho sobre cada uma delas. A história moderna de

23 Existe também a possibilidade de tradução entre


21 Para as démarches desconstrutivas ver Santos, diferentes concepções e práticas ocidentais. Em que
2014: 48-163. medida esta tradução é inter ou intracultural poderá
22 Para as démarches reconstrutivas ver Santos, 2014: constituir um tópico para um debate a que não preten-
164-235. do dedicar-me aqui.
276 Boaventura de Sousa Santos

relações desiguais entre o Norte global e o Sul correctamente, a epistemologia imperial re-
global tem um peso tal que questionar e desa- presentou o outro como incapaz de auto-repre-
fiar a zona de contacto tal como esta se apre- sentação. Vincent Tucker assinala também que
senta terá de ser a primeira tarefa do trabalho “escolas de pensamento como o Orientalismo e
de tradução. Aqui reside a natureza descoloni- disciplinas como a antropologia falam do ‘ou-
zadora dos encontros a promover. tro’ referindo muitas vezes conhecerem os seus
Por se tratar de um trabalho de mediação e objectos de estudo melhor que eles próprios”;
negociação, o trabalho de tradução requer que e acrescenta, “O outro é reduzido a um objecto
os participantes no processo de tradução se sem voz” (1992: 20). Vendo apenas através das
desfamiliarizem até certo ponto dos seus res- lentes do Norte imperial, o Sul não pode deixar
pectivos antecedentes culturais. No caso das de se reconhecer como Sul imperial. É por isso
traduções Norte/Sul, que tendem a ser também que hoje o Sul global é capaz de se reconhecer
traduções ocidente/não-ocidente, a tarefa de como uma vítima do Norte imperial muito mais
desfamiliarização é especialmente difícil por- facilmente que do Sul imperial24. Existe contu-
que o Norte imperial não tem de si outra me- do, uma diferença, que importa mencionar. No
mória que não a imperial e, portanto, tão única Norte global, a aspiração a um posicionamento
quanto universal. À primeira vista poderia pa- anti-imperial só pode ser imaginada como um
recer que as traduções Sul/Sul não teriam estas posicionamento pós-imperial, uma vez que no
dificuldades. Nada poderia estar mais longe da período moderno o imperialismo constituiu
verdade. Como produto do império, o Sul é a uma condição original para o Norte global.
casa do Sul onde o Sul não está em casa. Isto Ao contrário, no caso do Sul global, é possí-
é, a construção das epistemologias do Sul pela vel construir um posicionamento anti-imperial
tradução intercultural deve submeter-se a um imaginando uma condição pré-colonial, pré-
processo de desfamiliarização em relação quer
ao Norte imperial, quer ao Sul imperial. O Sul
imperial é a forma como o Sul abdica da possi- 24 Os romancistas e poetas do Sul têm estado na pri-
bilidade de auto-representação a não ser como meira linha da luta por um Sul não imperial produzindo
aquilo que Fanon (1963: 173) descreveu como uma lite-
facilitadora e desejosa da opressão do Norte
ratura de combate: o corpus oral e escrito forjado nas
imperial. Como Edward Said (1978) sublinha lutas nacionalistas anti-imperiais.
Tradução intercultural: Diferir e partilhar com Passionalità277

-imperial real ou inventada. Em diferentes con- ciais do mundo reveladas pelas ecologias dos
textos — África, Ásia e América Latina —, as di- saberes. O objectivo global das epistemologias
ferentes lutas ilustram o potencial anti-colonial, do Sul é a construção de um Sul anti-imperial
anti-imperial da reivindicação da memória pré- sólido, consistente e competente. Neste pro-
-colonial25. Uma tal reconstrução não tem de ser cesso, é possível distinguir três momentos:
necessariamente progressiva, nem necessaria- rebelião, sofrimento humano, e continuidade
mente reaccionária. Para ser progressiva deve vítima-agressor26. Em cada um deles, a tradu-
considerar-se provisória no sentido em que a ção intercultural intervém de modo específico.
afirmação plena do anti-imperialismo implica a O momento da rebelião sucede quando a
própria eliminação quer do Norte imperial, quer ordem imperial é abalada, pelo menos mo-
do Sul imperial. Na medida em que é possível mentaneamente. O momento da rebelião dos
para o Sul pensar-se em termos outros que não oprimidos constitui o elo mais fraco da domi-
os do Sul, também é possível para o Norte pen- nação imperial. À luz disto, não é surpresa que
sar-se em termos outros que não os do Norte. a sua análise constitua também um elo fraco
Aprender com o Sul é um processo de tradu- das ciências sociais colonizadoras convencio-
ção intercultural através do qual o Sul anti-im- nais que se constituíram e prosperaram na re-
perial é construído tanto no Norte global como lação imperial. Para uma análise convincente
no Sul global. Como tenho vindo a sublinhar, a dos momentos de rebelião, devemos recorrer,
construção de um Sul anti-imperial é parte in- por exemplo, à colecção gigantesca de estudos
tegrante da globalização contra-hegemónica; e sobre a sociedade indiana reunida por Ranajit
por isso, o trabalho de tradução, longe de ser Guha nos diversos volumes dos Subaltern Stu-
um exercício intelectual, é um instrumento dies27. Comentando este feito formidável de
pragmático de mediação e negociação. O seu
propósito é ultrapassar a fragmentação ineren-
te à extrema diversidade das experiências so- 26 Não são fases, estágios, ou passos, uma vez que
podem existir simultaneamente. Representam dife-
rentes perspectivas de resistência contra a opressão
25 Ver, entre outros, Galeano, 1971; Dioup, 1976; Wa e a dominação.
Thiong’o, 1986; Mudimbe, 1988; Bonfil Batalla, 1996; 27 Uma colecção de recolhas de ensaios sobre a histó-
Martí, 2002. ria e a sociedade do Sul da Ásia publicados durante os
278 Boaventura de Sousa Santos

erudição histórica, Veena Das afirma precisa- e a vítima possibilita a subjectividade rebelde,
mente que os Subaltern Studies “marcam um por esta última estar, pelo menos momentane-
ponto importante ao estabelecer a centralidade amente, no controlo da sua própria represen-
do momento histórico da rebelião na compre- tação. Esta subjectividade foi formulada de
ensão dos subalternos como sujeitos das suas modo memorável por Gandhi quando este se
próprias histórias” (1989: 312)28. Refiro-me aos imaginou a dirigir-se aos britânicos nos seguin-
momentos de desafio em que a ordem repre- tes termos: “Não somos nós que temos de fazer
sentacional dominante se confronta com uma como vocês querem, mas são vocês que devem
nova ordem emergente. O questionamento da fazer como nós queremos” (1956: 118)29.
ordem constituída é o primeiro impulso para as O momento do sofrimento humano é o mo-
epistemologias do Sul, permitindo às energias mento da contradição entre as experiências de
emancipadoras reconhecerem-se como tal. vida do oprimido e a ideia de uma vida decen-
Assim, o momento da rebelião é um momento te. É também o momento em que o sofrimento
de suspensão que transforma o Norte imperial humano se traduz no sofrimento provocado
num poder alienatório e o Sul imperial numa pelo homem. É um momento crucial, porque
(im)potência alienatória. Nesse momento, a adominação capitalista, colonialista e patriar-
força do opressor começa a existir apenas na cal assenta na naturalização do sofrimento
medida em que a fraqueza da vítima o permi- humano como uma fatalidade ou necessidade.
ta: a capacidade do opressor é uma função da A transformação do sofrimento humano em
incapacidade da vítima; a vontade de oprimir é sofrimento injusto provocado pela dominação
uma função da vontade de ser oprimido. Esta requer, portanto, um grande investimento na
reciprocidade momentânea entre o opressor representação e imaginação oposicional. Nas
palavras de Ashis Nandy, “a nossa sensibilida-
de ética limitada não é uma prova da hipocri-
anos 80 do século passado, editados por Ranajit Guha. sia humana; é sobretudo um produto da nossa
Entre muitos outros estudos, ver o ensaio do próprio
percepção limitada da situação humana” (1987:
Guha (1989) sobre a historiografia colonialista na Índia.
28 Para uma perpectiva diferente dos Subaltern Stu-
dies como um todo por alguém que a eles pertencia, ver 29 Publicado originalmente em 1909 sob o título “In-
Chakrabarty (1992). dian Home Rule”.
Tradução intercultural: Diferir e partilhar com Passionalità279

22). A perspectiva fundadora das epistemolo- oprimido nunca é uma vítima pura. Uma par-
gias do Sul tem a ver com o sofrimento humano te dele colabora, compromete-se e ajusta-se,
injusto conjugado com o pathos da vontade de outra parte desafia, não-coopera, subverte ou
lhe resistir. destrói, muitas vezes em nome da colaboração
Em relação ao momento da continuidade e sob as vestes do servilismo” (1987: 43)30.
vítima-agressor, o discurso colonial foi certa- Mais recentemente, Frantz Fanon e Albert
mente baseado na polaridade entre o coloniza- Memmi apresentam as formulações mais elo-
dor e o colonizado, mas é importante sublinhar quentes e poderosas a este respeito. De acordo
a continuidade e a ambivalência entre os dois, com Fanon e Memmi, a ligação entre o coloni-
uma vez que não são independentes um do ou- zador e o colonizado é dialeticamente destruti-
tro; nem são pensáveis individualmente. Gan- va e criativa. Destrói e recria os dois parceiros
dhi foi provavelmente o primeiro a formular da colonização. O elo que liga o colonizador e o
o momento de continuidade quando afirmou colonizado é o racismo; o elo, contudo, é uma
claramente que qualquer sistema de domina- forma de agressão para o colonizador e uma
ção brutaliza tanto a vítima como o opressor e forma de defesa para o colonizado31 (Memmi,
que o opressor também precisa de ser liberta- 1965: 131). A ambivalência mais notória do es-
do. “Toda a sua vida,” escreve Nandy, “Gandhi
procurou libertar os britânicos tanto como os
indianos das garras do imperialismo; a casta 30 Referindo-se a Gandhi, Rudolph (1996: 42) mostra
hindu tanto como os intocáveis da intocabilida- que o efeito des emancipador do encontro colonial para
o colonizado, pode no entanto, ser subvertido por este.
de” (1987: 35). Gandhi acreditava que o sistema
Segundo ele, o sujeito colonial, demonstra com frequên-
de dominação compelia a vítima a interiorizar cia ser mais do que massa sob a qual a faca do bolo im-
as regras do sistema de tal modo que não existe perial opera para criar mentalidades recheadas de cate-
garantia de que, uma vez derrotado o opressor, gorias imperiais. Quando o encontro estimula o sujeito
o domínio não continuasse a ser exercido pela colonial as possibilidades culturais do contexto dele ou
dela, pode actuar como um estímulo, mesmo como uma
antiga vítima, ainda que sob diferentes formas.
ferroada, para a criatividade cultural e inovação.
A vítima é um ser muito dividido no que toca à
31 Sobre esta questão, ver a interessante colecção de
identificação com ou diferenciação de em re-
ensaios de Fanon (1967). Ver, também Maldonado-Tor-
lação ao seu opressor. Volto a citar Nandy: “O res (2010); Lewis Gordon (1995 e 2015).
280 Boaventura de Sousa Santos

tereótipo do colonizado como selvagem é o fac- visibilidade e credibilidade aos saberes e prá-
to de ser também constituído pelo oposto dos ticas não ocidentais colocadas do outro lado
seus elementos negativos: o negro é simultane- da linha pelo pensamento abissal. Deste modo,
amente o selvagem e o servo mais obediente e o Sul anti-imperial pode emergir. Como men-
dignificado; a incarnação da sexualidade des- cionei acima, distingo entre traduções Norte/
controlada, mas inocente como uma criança; Sul e Sul/Sul e analisarei algumas instâncias
místico, primitivo, rústico e ao mesmo tempo de possível tradução para cada caso. Nenhu-
engenhoso, mentiroso, e um manipulador das ma destas instâncias descarta simplesmen-
forças sociais (Bhabha 1994: 82). te as concepções ocidentais, mesmo quando
Descobrir os segredos do desafio contra questiona a sua universalidade, abrindo assim
a opressão, torna possível luta por um mun- espaço para outras concepções existentes nas
do alternativo que não produz a brutalização culturas não ocidentais. Antes, as coloca numa
recíproca. Por outras palavras, a libertação zona de contacto onde a mediação, confronta-
do opressor da desumanização só é possível ção, e negociação se tornam possíveis e são le-
como resultado da luta emancipadora da ví- vadas a cabo. O objectivo é o desenvolvimento
tima contra a opressão. Gustavo Gutierrez, o de constelações mais ricas de significado em
proeminente teórico da teologia da libertação, que o Sul anti-imperial se capacita na sua luta
expressa esta aparente simetria e paradoxo contra o capitalismo global, o colonialismo e o
com grande eloquência: “Amamos os nossos patriarcado.
opressores libertando-os de si mesmos. Mas Antes de iniciar o trabalho de tradução,
não podemos conseguir isto sem uma opção abordo, ainda que brevemente a questão das
resoluta dos oprimidos, id est combatendo as condições e procedimentos da tradução inter-
classes opressoras. Deve ser um combate real cultural.
e efectivo, e não de ódio” (1991: 276).
Em The End of the Cognitive Empire: The Condições e procedimentos
Coming of Age of Epistemologies of the South da tradução
(Duke University Press, 2018), exploro o po- A tradução é, simultaneamente, um trabalho
tencial da tradução intercultural para aprender intelectual e um trabalho político. E é também
com o Sul de modo capacitador, isto é, dando um pathos, um trabalho emocional porque pres-
Tradução intercultural: Diferir e partilhar com Passionalità281

supõe o inconformismo perante uma carência -colonial que se afirme. Uma vez garantido esse
decorrente do carácter incompleto ou deficien- pressuposto, as condições e procedimentos do
te de um dado saber ou de uma dada prática e a trabalho de tradução podem ser elucidados a
disposição para a surpresa e para a aprendiza- partir das respostas às seguintes questões: o
gem mútua de modo a construir acções colabo- que traduzir? Entre quê e o quê? Quem traduz?
rativas mutuamente vantajosas. As ecologias de Quando traduzir? Traduzir com que objectivos?
saberes e a tradução intercultural são dois pro-
cedimentos centrais do pensamento pós-abissal O que traduzir?
(Santos: 2014: 188-235). Juntos procuram criar
A zona de contacto cosmopolita parte do
co-presença ao longo das linhas abissais. Não
principio de que cabe a cada sujeito (individual
podem por isso depender das zonas de contac-
ou coletivo) de saber ou prática decidir o que
to produzidas pelo pensamento abissal uma vez
pôr em contacto com quem. As zonas de con-
que estas partem da premissa de uma lógica de
tacto são sempre selectivas porque os saberes
apropriação/violência. As ecologias de saberes
e práticas dos movimentos excedem sempre o
e a tradução intercultural podem apenas ocor-
que uns e outras estão dispostos a pôr em con-
rer e florescer nas zonas de contacto cosmopo-
tacto. Na verdade, o que é posto em contacto
litas subalternas, isto é, nas zonas de contacto
não é necessariamente o mais relevante ou cen-
descolonizadoras. O impulso para a criação
tral. Ao contrário, as zonas de contacto consti-
destas zonas provém dos movimentos sociais
tuem zonas de fronteira, raianas, ou terras de
e das organizações que, no contexto da globa-
ninguém, onde as periferias e as margens dos
lização contra-hegemónica, se empenham em
saberes e práticas são os primeiros a emergir. À
políticas inter-movimentos, isto é, numa articu-
medida que avançar o trabalho de tradução e a
lação política entre saberes, práticas, e agentes
competência intercultural se aprofundar, será
com o propósito de fortalecer as lutas contra o
possível ir trazendo para a zona de contacto os
capitalismo, o colonialismo e o patriarcado.
aspectos de saber ou de prática considerados
Já referi que o trabalho de tradução assen-
mais centrais e relevantes.
ta na ideia da impossibilidade de uma teoria
Nas zonas de contacto interculturais, cabe
geral. Sem este universalismo negativo, a tra-
a cada prática cultural decidir que aspectos
dução é um trabalho colonial, por mais pós-
282 Boaventura de Sousa Santos

devem ser seleccionados para o confronto in- A questão da traduzibilidade é simultanea-


tercultural. Em todas as culturas há aspectos mente menos e mais complexa do que assumem
considerados demasiado fundamentais ou os estudos de tradução. É menos complexa no
essenciais para poderem ser expostos e tor- sentido em que a traduzibilidade não constitui
nados vulneráveis pelo confronto na zona de uma característica intrínseca do que está dispo-
contacto, e há, por outro lado, aspectos que se nível para tradução. É antes de mais, um acto
considera serem intrinsecamente intraduzíveis de vontade, um impulso que traça a linha entre
noutra cultura. Estas decisões fazem parte do aquilo que está ou não disponível para tradução.
próprio trabalho de tradução e são susceptíveis Pelo contrário, é mais complexa porque, mudan-
de revisão à medida que o trabalho progride. Se do a vontade de tradução de acordo com razões
o trabalho de tradução avançar, é de esperar políticas, por exemplo, o ponto de encontro é
que mais e mais aspectos sejam trazidos à zona inerentemente instável, precário e reversível.
de contacto, o que, por sua vez, contribuirá A questão do que é traduzível não se limita
para novos progressos na tradução. Em muitos ao critério de selecção adoptado por cada gru-
países da América Latina, sobretudo naqueles po na zona de contacto. Para além da selecti-
em que está consagrado o constitucionalismo vidade activa, há o que poderíamos designar
intercultural ou plurinacional32, os povos indí- como selectividade passiva. Consiste naquilo
genas têm vindo a travar uma luta pelo direi- que numa dada cultura se tornou impronun-
to de controlarem a decisão sobre o quais dos ciável devido à opressão extrema de que foi
seus saberes e práticas devem ser objecto do vítima durante longos períodos. Trata-se de
trabalho de tradução na zona de contacto com ausências profundas, feitas de um vazio que
os saberes e práticas da “sociedad mayor”33.

(s). A este respeito é prudente seguir a recomendação


32 Sobre esta questão, ver Santos e Exeni (2012); San- de Theo Hermans: “Recomendo um reconhecimento
tos e Grijalva (2012). pragmático da impossibilidade de uma descrição total,
33 Seria errado assumir que, uma vez acordado o âm- e a substituição da quimera do entendimento comple-
bito do reportório das questões traduzíveis, o impulso to pela inspecção crítica dos vocabulários empregues
para a tradução cruzada conduziria a interacções trans- para conduzir o exercício hermenêutico transcultural”
parentes e a representações exactas de outras cultura (2003: 385).
Tradução intercultural: Diferir e partilhar com Passionalità283

não é possível preencher. No caso de ausên- construção do Estado islâmico em Medina. O


cias de longa duração, é provável que nem a mesmo sucede com as muitas concepções de
sociologia das ausências as possa tornar pre- dharma no hinduísmo34. Variam, nomeadamen-
sentes. Os silêncios que produzem são dema- te, de casta para casta. As versões mais inclusi-
siado insondáveis para virem a ser objecto do vas, as que contêm um círculo mais amplo de
trabalho de tradução. reciprocidade, são as que geram as zonas de
A questão sobre o que traduzir suscita ain- contacto mais promissoras. São elas as mais
da um outro problema, que é particularmente adequadas para aprofundar o trabalho de tradu-
importante em zonas de contacto entre grupos ção e a hermenêutica diatópica.
oriundos de universos culturais diferentes. As
culturas só são monolíticas quando vistas de Entre quê e o que traduzir?
fora ou de longe. Quando vistas de dentro ou de
A selecção dos saberes e práticas entre os
perto, é fácil ver que são constituídas por várias
quais se realiza o trabalho de tradução é sempre
versões, algumas vezes conflituais, da mesma
resultado de uma convergência ou conjugação
cultura. Por exemplo, quando falo de um pos-
de sensações, de experiências de carência, de
sível diálogo intercultural sobre concepções de
inconformismo, e da motivação para as superar
dignidade humana, facilmente verificamos que,
de uma forma específica. Pode surgir como reac-
na cultura ocidental, não existe apenas uma
ção a uma zona de contacto colonial ou imperial.
concepção de direitos humanos. Podemos dis-
Por exemplo, a biodiversidade e a etnobotânica
tinguir pelo menos duas: uma concepção liberal
constituem hoje uma zona de contacto imperial
que privilegia os direitos cívicos e políticos em
entre o saber biotecnológico e o saber dos xa-
detrimento dos direitos sociais e económicos, e
mãs, médicos tradicionais, ou curandeiros nas
uma concepção marxista ou socialista que pri-
comunidades indígenas e rurais da América Lati-
vilegia os direitos sociais e económicos como
na, África e Ásia. Os movimentos indígenas e os
condição de todos os demais. Do mesmo modo,
no Islão é possível identificar várias concepções
de umma, umas mais inclusivas, reconduzíveis
34 Sobre o conceito de umma, ver, Faruki (1979); An-
ao período em que o profeta viveu em Meca, e
-Na’im (1995, 2000); Hassan (1996); sobre o conceito de
outras, menos inclusivas, desenvolvidas após a dharma, ver Gandhi (1929/1932); Zaehner (1982).
284 Boaventura de Sousa Santos

grupos jurídicos internacionais que os apoiam, tivos. Embora o trabalho de tradução aqui pro-
contestam esta zona de contacto e os poderes posto seja um trabalho descolonizador, carrega
que a constituem e a lutam pela construção de sobre os ombros um longo passado de relações
outras zonas de contacto não imperiais onde as desiguais entre as culturas metropolitanas e co-
relações entre os diferentes saberes e práticas loniais. Nas palavras de Michael Palencia-Roth
seja mais horizontal. Esta luta deu à tradução (2006: 38), a história comparativa das civilizações
entre saberes biomédicos e saberes médicos é quase sempre pouco mais que uma história de
tradicionais uma acuidade que não tinha antes. exploração, conquista, colonização, e exercício
Para dar outro exemplo, num campo totalmen- de poder, onde a possibilidade de um diálogo
te distinto, o movimento operário, confrontado transcultural que não aponte para ou termine na
com uma crise sem precedentes, tem vindo a hegemonia monológica de uma única voz (dialó-
abrir-se a zonas de contacto com outros movi- gico), é relativamente rara. Anular este passado é
mentos sociais, nomeadamente com movimen- uma tarefa de gerações, e o melhor que podemos
tos cívicos, feministas, ecologistas e de trabalha- fazer num dado momento é estar plenamente
dores imigrantes. Nessa zona de contacto, está conscientes deste passado e vigilantes em rela-
a ser efectuado um trabalho de tradução entre ção aos seus labores insidiosos para neutralizar o
as práticas, reivindicações e aspirações operá- impulso descolonizador e boicotar projectos de
rias e os objectivos de cidadania, de protecção emancipação. Sob este prima, é útil termos em
do meio ambiente e de anti-discriminação contra mente as quatro hipóteses de Richard Jacque-
mulheres, minorias étnicas ou imigrantes. Tais mond sobre “os problemas de traduzir em pre-
traduções têm vindo a transformar lentamente o sença de diferenciais de poder” (2004: 125): uma
movimento operário e os outros movimentos so- cultura dominada traduz invariavelmente muito
ciais, tornando assim possíveis constelações de mais da cultura hegemónica do que o inverso;
luta que há uns anos seriam impensáveis. quando a cultura hegemónica traduz obras pro-
Seria imprudente assumir que este impulso re- duzidas pela cultura dominada, estas são perce-
cíproco para a criação de uma zona de contacto bidas e apresentadas como difíceis, misteriosas,
de tradução conduziria “naturalmente” à hori- inescrutáveis, exotéricas, e pendentes da inter-
zontalidade e reciprocidade na maneira como as pretação de um pequeno grupo de intelectuais,
culturas se comportam enquanto fontes e objec- enquanto a cultura dominada traduz as obras da
Tradução intercultural: Diferir e partilhar com Passionalità285

cultura hegemónica tentando torná-las acessíveis Quando traduzir?


às massas; a cultura hegemónica traduz apenas Também aqui a zona de contacto cosmopo-
obras de autores da cultura dominada que encai- lita tem de ser o resultado de uma conjugação
xem nas suas noções preconcebidas sobre esta; de tempos, de ritmos, desejos, carências e de
os autores de uma cultura dominada que sonhem oportunidades37. Sem essa conjugação, a zona
alcançar uma audiência mais vasta tenderão a es- de contacto torna-se imperial e o trabalho de
crever tendo em mente a sua tradução para uma tradução torna-se uma forma de canibaliza-
língua hegemónica, e esta aspiração requer sem- ção. Nas três últimas décadas, a modernidade
pre algum grau de adequação aos estereótipos35. ocidental descobriu as possibilidades e as vir-
Embora Jacquemond se centre nos textos es- tudes do multiculturalismo. Habituada à rotina
critos, as suas hipóteses podem ser vistas como da sua própria hegemonia, a modernidade oci-
marcadores da vigilância epistemológica para dental pressupôs que, estando disposta a dia-
relações de tradução de outros tipos36. logar com as culturas que antes oprimira, estas
últimas estariam naturalmente prontas e dis-
poníveis para esse diálogo e, de facto, ansiosas
por ele. Este pressuposto tem redundado em
35 Ver também Aveling (2006). novas formas de imperialismo cultural, mes-
36 Jacquemond refere-se à cultura dominante como mo quando assumem a forma de multicultura-
uma cultura estável que “tende a integrar textos impor- lismo ou tolerância. É o que designo por mul-
tados impondo sobre eles as suas convenções” (2004:
118). Uma tal cultura conduz àquilo que Berman cha-
ma tradução etnocêntrica, baseada em dois axiomas:
“Devemos traduzir os trabalhos estrangeiros de modo 37 Como refiro em trabalhos anteriores (Santos,
a não “sentir” a tradução, devemos traduzir de modo a 2007), para a ecologia de saberes é central a distinção
dar a impressão de que seria aquilo que o autor escre- entre a acção conformista e aquilo que propus chamar-
veria se escrevesse na língua da tradução” (1985: 53). -se acção-com-clinamen. Ao contrário do que acontece
Trata-se de outro modo de tornar uma cultura invisível, na acção revolucionária, a criatividade da acção-com-
ou estática, privada da sua capacidade para se transfor- -clinamen não se baseia numa ruptura dramática mas
mar activamente. Nestes casos, a tradução intercultural antes num ligeiro desvio cujos efeitos cumulativos tor-
é um monólogo em vez de um diálogo, uma conquista nam possível as combinações complexas e criativas en-
em vez de uma tradução. tre seres vivos e grupos sociais.
286 Boaventura de Sousa Santos

ticulturalismo reaccionário. Contrariamente as relações de poder, por serem extremamente


a isto, a emergência no seio dos movimentos desiguais, conduziram à produção maciça de
sociais de uma consciência, difundida e ex- ausências. É que, nestas situações, uma vez tor-
perienciada reciprocamente, de que o avanço nados presentes um dado saber ou uma dada
das lutas contra-hegemónicas assenta na pos- prática, antes ausentes, há o perigo de se pen-
sibilidade de partilhar as práticas e os saberes sar que a história desse saber ou dessa prática
de maneira global e intercultural. Com base começa com a sua presença na zona de contac-
nesta experiência partilhada, torna-se possível to. Este perigo tem estado presente em muitos
construir a conjugação horizontal de tempos a diálogos multiculturais, sobretudo naqueles
partir da qual pode emergir uma zona de con- em que têm intervindo os povos colonizados
tacto cosmopolita e o trabalho emancipatório depois das políticas de reconhecimento que se
da tradução. desenvolveram a partir da década de 1950. A
No domínio das zonas de contacto intercul- zona de contacto tem de ser vigiada para que
turais, há ainda a considerar as diferentes tem- a simultaneidade do contacto não signifique o
poralidades que nelas intervêm. Como afirmei colapso da história.
acima, um dos procedimentos da sociologia
das ausências consiste em contrapor à lógica Quem traduz?
da monocultura do tempo linear uma constela-
Os saberes e as práticas só existem na medi-
ção pluralista de tempos e durações de modo
da em que são usados ou exercidos por grupos
a libertar as práticas e os saberes que nunca
sociais. Por isso, o trabalho de tradução é sem-
se pautaram pelo tempo linear do seu estatuto
pre realizado entre representantes desses gru-
residual. O objectivo é, tanto quanto possível,
pos sociais e os intelectuais de retaguarda que
converter em contemporaneidade a simulta-
com eles trabalham. Os intelectuais cosmopo-
neidade que a zona de contacto proporciona.
litas terão de ter um perfil semelhante ao do
Isto não significa que a contemporaneidade
sábio filosófico identificado por Odera Oruka
anule a história, mas antes que a história é feita
(1990) na busca da sageza africana. Trata-se de
de diferentes contemporaneidades. Esta con-
intelectuais fortemente enraizados nas práti-
sideração é importante, sobretudo nas zonas
cas e saberes que representam, tendo de uns e
de contacto entre saberes e práticas em que
Tradução intercultural: Diferir e partilhar com Passionalità287

de outras uma compreensão profunda e crítica. Como traduzir?


Esta dimensão crítica, que Oruka designa O trabalho de tradução é, basicamente, um
por “sabedoria didáctica” (1990: 28), funda a ca- trabalho argumentativo, assente na emoção
rência, o sentimento de incompletude e a moti- cosmopolita de partilhar o mundo com quem
vação para buscar noutros saberes ou noutras não partilha o nosso saber ou a nossa experi-
práticas as respostas que não se encontram ência. As dificuldades do trabalho de tradução
dentro dos limites de um dado saber ou de uma são múltiplas. A primeira dificuldade diz res-
dada prática. Os tradutores de culturas devem peito às premissas da argumentação. Toda a ar-
ser intelectuais cosmopolitas subalternos38. gumentação assenta em postulados, axiomas,
Podem encontrar-se tanto entre os dirigentes regras, ideias que não são objecto de argumen-
de movimentos sociais ou grupos organizados tação porque são aceites como evidentes por
como entre os activistas das bases. No que toca todos os que participam no círculo argumen-
aos intelectuais de retaguarda, treinados no tativo. Designam-se, em geral, por topoi ou lu-
conhecimento académico, mas solidariamente gares comuns e constituem o consenso básico
envolvidos com os actores sociais, a sua tarefa que torna possível o dissenso argumentativo39.
consiste em re-treinar-se de tal modo que seja O trabalho de tradução não dispõe à partida de
capazes de traduzir constantemente conheci- topoi, porque os topoi que estão disponíveis
mento académico em conhecimento não aca- são os que são próprios de um dado saber ou
démico e vice-versa, e fazê-lo, como diria Gra- de uma dada cultura e, como tal, não são acei-
msci, con passionalità, No futuro próximo, a tes como evidentes por outro saber ou outra
decisão sobre quem traduz irá, provavelmente, cultura. Por outras palavras, os topoi que cada
tornar-se uma das mais decisivas deliberações saber ou prática traz para a zona de contacto
democráticas na construção da globalização deixam de ser premissas da argumentação e
contra hegemónica. transformam-se em argumentos. À medida que
o trabalho de tradução avança, vai construindo

38 Sobre o conceito de cosmopolitismo subalterno 39 Sobre os topoi e a retórica em geral, veja-se Santos,
ver Santos, 2002: 458-466. 1995: 7-55.
288 Boaventura de Sousa Santos

os topoi que são adequados à zona de contacto substituição desta por uma zona de contacto
e à situação de tradução. É um trabalho exigen- cosmopolita pode, assim, ser boicotada pelo
te, sem seguros contra riscos e sempre à beira uso da língua anteriormente dominante. Não
de colapsar. A capacidade de construir topoi é se trata apenas de os diferentes participantes
uma das marcas mais distintivas da qualidade no discurso argumentativo poderem ter um do-
do intelectual ou sage cosmopolita subalterno. mínio desigual dessa língua. Trata-se outrossim
A segunda dificuldade diz respeito à língua do facto de a língua em questão ser responsá-
em que a argumentação é conduzida. É pouco vel pela própria impronunciabilidade de algu-
vulgar que os saberes e as práticas em presen- mas aspirações centrais dos saberes e práticas
ça nas zonas de contacto tenham uma língua que foram oprimidos na zona colonial. Se não
comum ou dominem do mesmo modo a língua for explicitamente questionada, a supremacia
comum. Acresce que, quando a zona de contac- linguística pode implicar a prevalência concep-
to cosmopolita é multicultural, uma das línguas tual e normativa, boicotando assim o trabalho
em presença é frequentemente a que dominou de tradução41.
a zona de contacto imperial ou colonial40. A A terceira dificuldade reside nos silêncios.
Não se trata do impronunciável, mas dos dife-
rentes ritmos com que os diferentes saberes e
40 “O uso do inglês como língua franca pode, é cer- práticas sociais articulam as palavras com os
to, significar, como acontece, por exemplo, em tantas
reuniões internacionais, a criação de um espaço “neu-
tro” de comunicação, na linha daquela lógica instru-
mental que ecoa no lugar-comum do inglês como espe- o inglês temos hoje o espanhol e o mandarim, línguas
ranto do nosso tempo. Mas o inglês é a língua franca que atingiram de facto o estatuto de “línguas glocais”,
da globalização por ser uma língua imperial, a língua, trazendo de volta a importância da tradução (ver <ht-
presentemente, do único império que subsiste na cena tps://en.wikipedia.org/wiki/List_of_languages_by_to-
mundial. E a lógica do império, que é a de um centro tal_number_of_speakers>).
universalmente englobante, conduzido pelo objectivo 41 D. A. Masolo (2003) sugere que o intelectual cujas
da assimilação integral, é essencialmente monológi- raízes estão em línguas e culturas subalternas pode ser
ca e monolingue. De uma tal perspectiva unificadora, forçado a recorrer ao que designa de “poliracionalida-
para a qual a diferença não tem que ser tida em conta e, des,” que consiste na capacidade de formular os mesmos
portanto, no fundo, não existe, a tradução, de facto, é conceitos básicos de diferentes modos e em diferentes
irrelevante.” (Ribeiro, 2004). Contudo, competindo com línguas, bem como em diferentes contextos culturais.
Tradução intercultural: Diferir e partilhar com Passionalità289

silêncios e da diferente eloquência (ou signifi- fase de transição em que nos encontramos, e
cado) que é atribuída ao silêncio por parte das como tenho vindo a insistir, confrontamo-nos
diferentes culturas. A gestão do silêncio, a tra- com problemas modernos para os quais não te-
dução do silêncio, e as emoções físicas a elas mos soluções modernas.
associadas, são das tarefas mais exigentes do O trabalho de tradução feito com base na
trabalho de tradução. sociologia das ausências e na sociologia das
emergências é um trabalho de imaginação
Para quê traduzir? epistemológica e de imaginação política com
o objectivo de construir novas e plurais con-
Esta última pergunta compreende todas as
cepções de emancipação social sobre as ruínas
outras. Tanto as ecologias de saberes como a
da emancipação social automática do projecto
tradução intercultural são procedimentos adap-
moderno. Não há nenhuma garantia de que um
tados ao cumprimento da ideia central das epis-
mundo melhor seja possível e muito menos de
temologias do Sul: não é possível uma justiça
que todos os que não desistiram de lutar por
social global sem uma justiça cognitiva global.
ele o concebam do mesmo modo. A oscilação
O trabalho de tradução é o procedimento que
entre a banalidade e o horror, que tanto angus-
nos resta para dar sentido ao mundo depois de
tiou Horkheimer e Adorno (1969) transformou-
ele ter perdido o sentido e a direcção automá-
-se hoje na banalidade do horror, como nos
ticos que a modernidade ocidental pretendeu
lembra Chinua Achebe (2012). A possibilidade
conferir lhes ao planificar a história, a socieda-
do desastre começa hoje a ser óbvia.
de e a natureza. Se não sabemos se um mundo
A situação de bifurcação de que falam Pri-
melhor é possível, o que nos legitima ou motiva
gogine (1997) e Wallerstein (1999) é a situação
a agir como se soubéssemos? A necessidade
estrutural em que ocorre o trabalho de tradu-
da tradução reside em que os problemas que o
ção. O objectivo do trabalho de tradução é criar
paradigma da modernidade ocidental procurou
constelações de saberes e de práticas suficien-
solucionar (liberdade, igualdade, fraternidade)
temente fortes para fornecer alternativas credí-
continuam por resolver e não tem resolução
veis à fase presente do capitalismo global, que
dentro dos limites políticos e culturais da mo-
se caracteriza tanto por ameaçar a uma esca-
dernidade ocidental. Por outras palavras, na
la sem precedentes os ciclos de renovação da
290 Boaventura de Sousa Santos

natureza, como por sujeitar domínios cada vez catárticas de uma sociedade melhor. A episte-
mais amplos da interação social à lógica mer- mologia abissal e o direito abissal policiam as
cantil. O trabalho de tradução opera sobre um mentes e as instituições de modo a empurrar o
presente expandido pela sociologia das ausên- futuro para fora do presente. O absurdo deste
cias e sobre um futuro contraído pela sociologia artefacto moderno emerge claramente no traba-
das emergências. Pelo reforço do interconheci- lho de tradução. Os intervenientes no trabalho
mento, mediação, e negociação, o campo das de tradução, perguntam-se, tal como Ernst Blo-
experiências políticas e sociais com que contar ch (1995), porque é que o presente é tão fugaz se
e agir é alargado, oferecendo assim uma visão vivemos sempre nele. Nas zonas interculturais,
mais ampla e realista das alternativas que hoje é possível entrar em contacto visual e existen-
estão disponíveis e são possíveis. A possibilida- cial com as diferentes categorias de presente,
de de um futuro melhor não está, assim, num experienciadas por diferentes actores sociais.
futuro distante, mas na reinvenção do presen- Para alguns, o passado é o mesmo que o futu-
te, ampliado pela sociologia das ausências (que ro dos outros, e vice-versa. E todos se encon-
traz o passado para o presente) e pela sociolo- tram no presente trabalhando na construção de
gia das emergências (que traz o futuro para o um novo presente capacitante e intercultural.
presente) e tornado coerente pelo trabalho de As mudanças urgentes chamadas a intervir no
tradução. Através da tradução, a tensão entre presente são também mudanças civilizacionais.
experiências e expectativas é recreada de uma Operando através do pensamento pós-abissal, o
forma não modernista, sendo que a expansão do trabalho de tradução treina e capacita aqueles
presente já tem em si a contração do futuro. Em que se encontram na zona de contacto para se
lugar de um presente orientado para o futuro, tornarem actores pós-institucionais e subjecti-
um futuro orientado para o presente. O novo in- vidades desestabilizadoras competentes.
conformismo resulta da verificação de que hoje O trabalho de tradução permite criar sentidos
seria possível viver num mundo muito melhor. e direcções precários, mas concretos, de curto
O presente capitalista e colonialista é feito de alcance, mas radicais nos seus objectivos, incer-
emergências suprimidas e da invisibilização de tos, mas partilhados. O objectivo da tradução
ausências activamente produzidas. Deste modo entre saberes é criar justiça cognitiva a partir
o futuro fica livre e disponível para imaginações da imaginação epistemológica. O objectivo da
Tradução intercultural: Diferir e partilhar com Passionalità291

tradução entre práticas e seus agentes é criar as Bibliografia


condições para uma justiça social global a par- Achebe, C. 2012 There Was a Country: A
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expande, a vastidão deste desperdício torna-se Islamic Identity in France and Uzbekistan:
mais visível, mais absurda, e mais revoltante. Mediation of the Local and Global” in
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292 Boaventura de Sousa Santos

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Introdução às
epistemologias do Sul*

Introdução cendo comparações sincrônicas e diacrônicas,


ampliando simbolicamente tais práticas me-
T enho argumentado profusamente, em outra
parte, que nos albores do novo milênio pre-
cisamos nos distanciar do pensamento crítico
diante articulações, traduções e alianças possí-
veis com outros movimentos, proporcionando
eurocêntrico (Santos, 2015: 19-46). Reproduzo contextos, esclarecendo e desmantelando os
aqui a conclusão do argumento. Criar dita dis- preceitos normativos, facilitando a interação
tância é condição prévia para poder realizar a com aqueles que caminham mais lento e tra-
tarefa teórica mais importante do nosso tempo: zendo complexidade quando as ações parecem
que o impensável seja pensado, que o inespera- apressadas e pouco reflexivas, ou simplicidade
do seja assumido como parte integral do traba- quando a ação parece paralisada pela reflexão.
lho teórico. Já que as teorias de vanguarda, por As ideias que cimentam a teoria da retaguarda,
definição, não se deixam pegar de surpresa, mais do que uma arquitetura, são um artesa-
acredito que, no atual contexto de transforma- nato; são mais um testemunho participante, e
ção social e política, não precisamos de teorias menos a liderança clarividente; a aproximação
de vanguarda, senão de teorias de retaguarda. intercultural ao que é novo para uns e muito
Penso no trabalho teórico que continua e com- velho para outros.
partilha bem de perto as práticas dos movi- O objetivo de criar distância a respeito da
mentos sociais, propondo perguntas, estabele- tradição eurocêntrica é abrir espaços analíti-
cos para as realidades que são “surpreenden-
tes” porque são novas ou porque têm sido igno-
* Texto inédito em português. radas ou invisibilizadas, ou seja, consideradas
298 Boaventura de Sousa Santos

não existentes pela tradição crítica eurocêntri- lha o campo das relações internacionais com
ca. Só podem ser recuperadas pelo que deno- atores não estatais cada vez mais poderosos.
mino a “sociologia das ausências”. A soberania está sendo erodida enquanto os
Tomar distância não significa descartar a Estados poderosos e os atores não estatais se
rica tradição crítica eurocêntrica e jogá-la na unem para se apoderar do controle dos recur-
lixeira da história, ignorando desse modo as sos naturais e da vida das pessoas nos Estados
possibilidades históricas da emancipação so- menos poderosos. O contratualismo social é
cial na modernidade eurocêntrica. Pelo contrá- suplantado pelo contratualismo individual en-
rio, significa incluí-la em um panorama muito tre partes cada vez mais desiguais, enquanto
mais amplo de possibilidades epistemológicas os direitos estão sendo violados “legalmente”
e políticas. Significa o exercício de uma her- em nome dos imperativos gêmeos da austeri-
menêutica da suspeita a respeito de suas “ver- dade econômica e da segurança nacional, ao
dades fundamentais” ao revelar o que há em- mesmo tempo em que é instrumentado um
baixo do seu “sentido literal”. Significa prestar ataque global contra os direitos sociais e eco-
especial atenção às tradições mais pequenas nômicos. O capitalismo experimenta hoje um
suprimidas ou marginalizadas dentro da gran- dos momentos mais destrutivos da sua história
de tradição ocidental. Significa, acima de tudo, recente, como testemunham as novas formas
assumir que o nosso tempo é um período de de acumulação primitiva por despossessão, a
transição sem precedentes, no qual enfrenta- reedição da rapina colonial, que agora se es-
mos problemas modernos para os quais não tende por todo o Sul global, da apropriação de
existem soluções modernas. terras ao roubo de salários e os resgates ban-
Os problemas modernos são aqueles que cários, sujeitando-se à lei capitalista do valor
apareceram durante as revoluções burguesas de recursos e bens comuns, provocando o des-
europeias do século XVIII: o problema da li- locamento de milhões de camponeses pobres
berdade, o problema da igualdade, o problema e povos indígenas, a devastação ambiental e
da fraternidade. As “soluções” burguesas para os desastres ecológicos; e a eterna renovação
tais problemas estão definitivamente desacre- do colonialismo, que revela, em velhos e no-
ditadas. Vivemos em um mundo “pós” ou “neo” vos aspectos, o mesmo impulso genocida, a
westfaliano, no qual o Estado Nação comparti- sociabilidade racista, a sede de apropriação e
Introdução às epistemologias do Sul 299

a violência exercida sobre os recursos conside- meço, questionou tanto os problemas quanto
rados infinitos e sobre as pessoas consideradas as soluções propostas pela política burguesa e
inferiores e inclusive não humanas. liberal. O marxismo é o exemplo mais desta-
Entre as ruínas da ideia de nação cívica, a cado dessa tradição. O problema é que o mar-
supressão das nações étnico culturais e a di- xismo compartilhou muito com a modernidade
versidade cultural tem se tornado mais visível eurocêntrica burguesa. Além disso, o marxis-
e, junto com ela, o sofrimento humano inco- mo compartilhou não só os fundamentos fi-
mensurável e a destruição social produzida. A losóficos e epistemológicos da modernidade
autonomia individual se torna um slogan cruel, eurocêntrica burguesa, mas também algumas
dado que as condições para garantir o exercí- das suas soluções propostas, como a crença no
cio efetivo da autonomia estão sendo destruí- progresso linear ou o uso ilimitado dos recur-
das. As diferenças ideológicas subjacentes da sos naturais como parte do desenvolvimento
democracia foram substituídas pelo centrismo infinito das forças de produção, ou inclusive a
amorfo e a corrupção institucionalizada. Já que ideia do que o colonialismo poderia ser parte
os políticos se tornam lavadores de dinheiro, da narrativa progressista do Norte global, ain-
sequestram a democracia e permitem que seja da que com algumas reservas. Isto explica por-
ocupada pela cobiça das empresas, e o povo que a bancarrota do liberalismo, mesmo que
se vê obrigado a ocupar a democracia por fora confirme a precisão analítica do marxismo, não
das instituições democráticas. o torna mais persuasivo, como era de se espe-
A criminalização do protesto social, o para- rar. Pelo contrário, à medida que se torna mais
militarismo e as execuções extrajudiciais com- evidente que as “soluções” foram uma fraude
plementam a cena. Os conflitos sociais dentro e que ostensivamente estão esgotadas, outra
e entre os Estados são cada vez menos institu- dimensão transitória de nosso tempo se reve-
cionalizados, os direitos humanos são violados la: enfrentamos problemas marxistas para os
em nome dos direitos humanos e as vidas civis quais não existem soluções marxistas.
são destruídas sob pretexto da defensa das vi- À luz disto, a necessidade de criar distância
das civis. vis-à-vis da tradição eurocêntrica parece cada
Claro, a modernidade eurocêntrica também vez mais urgente. Esta necessidade, no entan-
produziu uma tradição crítica que, desde o co- to, não está determinada por uma consciência
300 Boaventura de Sousa Santos

intelectual ou política repentina. Sua formula- ainda não foi plenamente reconhecida, teori-
ção é, em si, um processo histórico que deriva zada ou levada em conta. Sendo este o caso,
das formas em que a modernidade ocidental, deduz-se que o repertório dos modos, modelos,
em suas versões marxistas e burguesas, con- meios e fins da transformação social é poten-
seguiu ser incorporada aos processos políti- cialmente muito mais vasto do que o formulado
cos de todo o mundo nos últimos 200 anos. À e reconhecido pela modernidade eurocêntrica,
medida que o capitalismo global e suas formas inclusive por suas versões marxistas. Em defi-
satélite de opressão e dominação se expandi- nitiva, manter a distância vis-à-vis da tradição
ram, mais e mais panoramas diversos de povos, eurocêntrica equivale a ser consciente do fato
culturas, repertórios da memória e das aspira- de que a diversidade da experiência mundial é
ções, universos simbólicos, formas de vida inesgotável e, portanto, não pode ser explica-
e estilos de vida, concepções do tempo e do da por uma única teoria geral. Manter distân-
espaço, e assim sucessivamente, foram inclu- cia permite o que denomino como a “sociolo-
ídos dialeticamente na conversação da huma- gia das ausências e emergências duplamente
nidade por meio do sofrimento e da exclusão transgressora”. Esta sociologia transgressora
inenarrável. Sua resistência, frequentemente é, de fato, um movimento epistemológico que
por meio de redes cosmopolitas insurgentes, consiste em contrastar as Epistemologias do
subalternas e clandestinas soube enfrentar a Sul com as epistemologias dominantes do Nor-
supressão pública implementada por diversas te global.
formas capitalistas e colonialistas de violência As Epistemologias do Sul se referem à pro-
física, simbólica, epistemológica e, inclusive, dução e validação dos conhecimentos ancora-
ontológica. O resultado final desta inclusão dos nas experiências de resistência de todos
excludente foi uma tremenda expansão das co- os grupos sociais que sistematicamente têm
munidades hermenêuticas, algumas públicas, sofrido a injustiça, a opressão e a destruição
outras clandestinas, algumas mundiais, outras causada pelo capitalismo, o colonialismo e o
locais, algumas com base no Norte global e ou- patriarcado. Designei como “Sul anti-imperial”
tras no Sul global. ao vasto, e imensamente diversificado, campo
Na minha opinião, esta é a característica de tais experiências. É um Sul epistemológi-
principal de nosso tempo: uma condição que co, não geográfico, composto por muitos suis
Introdução às epistemologias do Sul 301

epistemológicos que têm em comum o fato ciais e políticas e não podem ser separados
de serem saberes nascidos nas lutas contra o dessas lutas. Portanto, não são epistemolo-
capitalismo, o colonialismo e o patriarcado. gias no sentido convencional da palavra. Seu
Produzem-se onde quer que essas lutas acon- objetivo não é estudar o conhecimento ou a
teçam, tanto no Norte quanto no Sul geográ- crença justificada como tal, sem mencionar
ficos. O objetivo das Epistemologias do Sul é o contexto histórico e social no qual ambos
possibilitar que os grupos sociais oprimidos emergem (a epistemologia social também é
representem o mundo como próprio e em seus um conceito controvertido). Seu objetivo, ali-
próprios termos, porque só assim poderão ás, é identificar e valorizar o que com frequên-
transformá-lo segundo as suas próprias aspi- cia nem sequer aparece como conhecimento
rações. Dado o desenvolvimento desigual do à luz das epistemologias dominantes, no que
capitalismo e a persistência do colonialismo em seu lugar surge como parte das lutas de
cêntrico ocidental, o Sul epistemológico e o resistência contra a opressão e contra o co-
Sul geográfico se solapam parcialmente, em nhecimento que legitima essa opressão. Mui-
particular com respeito àqueles países que es- tas dessas formas de conhecimento não são
tiveram submetidos ao colonialismo histórico. saberes abstratos, senão empíricos. As Episte-
Mas a imbricação é unicamente parcial, não só mologias do Sul “ocupam” o conceito de epis-
porque as Epistemologias do Norte também temologia, com o fim de resignificá-lo como
prosperam no Sul geográfico (refiro-me ao Sul um instrumento para interromper as políticas
imperial, às “pequenas Europas” epistemológi- dominantes do conhecimento. São epistemo-
cas que se encontram e que, muitas vezes, do- logias experienciais1. Existem Epistemologias
minam, a América Latina, o Caribe, a África, a do Sul só porque e à medida que existem Epis-
Ásia e a Oceania), mas, além disso, porque o temologias do Norte. As Epistemologias do
Sul epistemológico também se acha no Norte Sul existem na atualidade ergo no futuro não
geográfico (Europa e América do Norte) em serão necessárias.
muitas das lutas que ali se livram contra o ca-
pitalismo, o colonialismo e o patriarcado.
As Epistemologias do Sul se relacionam
1 Devem se distinguir das epistemologias experimen-
com os saberes que emergem das lutas so- tais introduzidas pelas neurociências e pela cibernética.
302 Boaventura de Sousa Santos

Ocupar a epistemologia ção de conhecimentos que pode reinventar


O termo epistemologia corresponde apro- a emancipação social e a liberação (Santos,
ximadamente ao que em alemão se designa 2014). Como se indica a seguir, as Epistemo-
como Erkenntnistheorie ou Erkenntnislehre. logias do Sul necessariamente invocam outras
Centrando-se inicialmente na crítica do conhe- ontologias (reveladas por outros modos de ser,
cimento científico, a epistemologia hoje tem aqueles dos povos oprimidos e silenciados, po-
a ver com a análise das condições de identifi- vos que formam radicalmente excluídos dos
cação e validação do conhecimento em geral, modos dominantes de saber e conhecer). Já
e também como crença justificada. Portanto, que tais sujeitos são produzidos como ausentes
tem uma dimensão normativa. Neste sentido, por meio de relações de poder muito desiguais,
as Epistemologias do Sul desafiam as episte- redimi-los é um gesto eminentemente político.
mologias dominantes em dois níveis. Por um As Epistemologias do Sul se centram nos pro-
lado, consideram que é uma tarefa crucial iden- cessos cognitivos sobre o significado, a justifi-
tificar e discutir a validez dos conhecimentos cação e a orientação na luta livrada por aqueles
e dos saberes que não são reconhecidos como que resistem e se rebelam contra a opressão.
tais pelas epistemologias dominantes. Seu en- A questão da validez surge desta forte presen-
foque reside, portanto, em saberes “não exis- ça. O reconhecimento da luta e dos seus pro-
tentes”, considerados assim seja porque não tagonistas é um ato de pré-conhecimento, um
são produzidos conforme as metodologias impulso intelectual e político pragmático que
aceitas ou inclusive inteligíveis, ou porque são implica a necessidade de examinar a validez do
produzidos por sujeitos “ausentes”, sujeitos conhecimento que circula na luta e que é ge-
considerados incapazes de produzir conheci- rado pela própria luta. Paradoxalmente, neste
mento válido devido à sua condição ou nature- sentido, o reconhecimento precede à cognição.
za subumana. As Epistemologias do Sul devem Por outro lado, os sujeitos que são redi-
proceder conforme o que denomino sociologia midos, ou revelados, ou trazidos à presença,
das ausências, ou seja, tornando os sujeitos frequentemente são sujeitos coletivos, o que
ausentes sujeitos presentes, como a condição muda completamente a questão da autoria do
mais importante para a identificação e valida- conhecimento e, portanto, a questão da rela-
ção entre o sujeito que conhece e o objeto de
Introdução às epistemologias do Sul 303

conhecimento. Estamos frente a processos de (1969), mas aqui se entende de maneira dife-
luta social e política em que um tipo de conhe- rente. Segundo Foucault, o saber implica um
cimento, que não costuma ter um sujeito indivi- processo anônimo, coletivo, algo não dito, um
dualizável, é vivido performativamente. Os co- a priori histórico e cultural só acessível por
nhecimentos redimidos pelas Epistemologias meio da arqueologia do saber. No entanto, o
do Sul são técnica e culturalmente intrínsecos saber que concerne às Epistemologias do Sul
a certas práticas – as práticas de resistência não é o a priori cultural, isto é, o não dito
contra a opressão –. Mais do que conhecimen- de Foucault. No máximo, é o não dito desses
tos, são saberes2. Existem imersos nas práticas não ditos, ou seja, os não ditos que surgem da
sociais. Na maioria dos casos, surgem e circu- linha abissal que divide as sociedades e socia-
lam de maneira personalizada, apesar de cer- bilidades metropolitana e colonial na moder-
tos indivíduos no grupo ter acesso privilegiado nidade cêntrica ocidental. Tal linha abissal,
a estes ou a formulá-los com mais autoridade o fiat epistemológico fundamental da moder-
(isto voltará a ser tratado mais adiante). En- nidade cêntrica ocidental, foi ignorada por
quanto os conhecimentos se apropriam da rea- Foucault. As disciplinas são falsamente uni-
lidade, os saberes encarnam a realidade. É por versais não só porque “esquecem” ativamente
isso que o know-how inglês se traduz para as dos seus não ditos culturais, mas também por-
línguas romances como “saber fazer” (em fran- que, assim como os seus não ditos culturais,
cês, por exemplo, savoir-faire). não consideram as formas de sociabilidade
Esta distinção entre formas de saber e existentes no outro lado, colonial, da linha.
conhecimento foi assinalada por Foucault Assim, o não dito foucaultiano é tão falsamen-
te comum à modernidade e tão eurocêntrico
quanto a ideia de Kant da racionalidade como
2 A distinção entre conhecimento e saber (em inglês: emancipação vis-à-vis da natureza. Esta mes-
knowledge and ways-of-knowing; em português: co- ma forma de racionalidade vinculava a nature-
nhecimento e saber; em francês connaissance) é, em za, os povos e sociabilidades no outro lado da
si mesma, prova fidedigna dos desafios que enfrenta a linha, na zona colonial. Claro, as filosofias de
tradução intercultural, sobre a qual voltaremos depois.
Kant e de Foucault são avanços importantes
A questão é que esta distinção não existe em inglês e,
por acaso, também não em outras línguas. em relação à tabula rasa de Locke, segundo
304 Boaventura de Sousa Santos

a qual o conhecimento se inscreve a partir do pela implicância recíproca entre o sujeito e o


nada. Mas, no lugar da tabula rasa, ambos objeto de conhecimento. No entanto, dita ocu-
apresentaram os a priori ou pressupostos pação foi só parcial, já que não questionaram a
que, segundo eles, condicionavam toda ex- primazia do conhecimento como uma prática
periência humana contemporânea. Não eram separada. As epistemologias feministas pres-
conscientes de que “toda essa experiência” sionaram as Epistemologias do Norte até seus
era uma experiência intrinsecamente trunca- últimos limites, apesar de elas terem ficado
da, já que tinha sido construída para ignorar dentro desses limites.
a experiência daqueles que estavam do outro
lado da linha abissal: o povo colonial. Se qui- O perigo das imagens espelhadas
séssemos formular as Epistemologias do Sul Ao contrastar as Epistemologias do Sul com
em termos foucaultianos, que não é o meu as do Norte, podemos cair facilmente em uma
propósito aqui, diríamos que seu objetivo é a imagem refletida, espelhada, uma tentação
arqueologia da arqueologia do saber. muito similar à estrutura binária, dualista, da
Durante o século passado, as epistemolo- imaginação ocidental. As correntes dominan-
gias feministas conseguiram uma primeira tes nas Epistemologias do Norte têm se centra-
ocupação das Epistemologias do Norte. De- do na validez privilegiada da ciência moderna,
monstraram que a ideia do conhecimento con- desenvolvida principalmente no Norte global
cebido como independente da experiência do desde o século XVII. Estas correntes se ba-
sujeito de conhecimento, sobre cuja base, es- seiam em duas premissas fundamentais. A pri-
pecialmente depois de Kant, estabeleceu-se a meira é que a ciência baseada na observação
distinção entre epistemologia, ética e política, sistemática e na experimentação controlada é
era a tradução epistemológica e a consequente uma criação específica da modernidade cêntri-
naturalização do poder social e político mas- ca ocidental, radicalmente diferente das outras
culino. O ponto de vista de Deus era o outro “ciências” originadas em outras regiões e cul-
lado da visão a partir do nada. Devendo muito turas do mundo. A segunda premissa é que o
a Foucault, as epistemologias feministas, pelo conhecimento científico, haja vista seu rigor e
contrário, argumentaram a favor do conheci- potencial instrumental, é radicalmente diferen-
mento situado e contextualizado, assim como te aos outros saberes, sejam laicos, populares,
Introdução às epistemologias do Sul 305

práticos, de senso comum, intuitivos ou reli- ferentes correntes da epistemologia crítica, a


giosos. Ambas premissas contribuíram para re- sociologia da ciência e os estudos das ciências
forçar a excepcionalidade do mundo ocidental sociais realizaram (Santos, 2007b). As Episte-
vis-à-vis o resto do mundo e, pela mesma ra- mologias do Sul movem-se além da crítica in-
zão, para desenhar a linha abissal que separou terna. Não estão tão interessadas em formular
e ainda separa as sociedades e sociabilidades alternativas epistemológicas capazes de forta-
metropolitana e colonial. lecer as lutas contra o capitalismo, o colonia-
Ambas premissas têm sido examinadas cri- lismo e o patriarcado. Neste sentido, à ideia de
ticamente e essa crítica interna é realizada no que não existe justiça social sem justiça cog-
mundo cultural ocidental a seus pressupostos. nitiva, como já se mencionou, segue a ideia de
Um caso clássico e notável é, sem dúvidas, o de que não precisamos de alternativas.
Goethe e suas teorias sobre a natureza e a cor. Como no caso das Epistemologias do Sul,
Goethe estava tão interessado no desenvolvi- não há só uma Epistemologia do Norte, exis-
mento científico quanto seus contemporâne- tem várias. Todas elas tendem a compartilhar
os, mas pensava que as correntes dominantes, alguns supostos4 básicos: a prioridade absoluta
com origem em Newton, estavam totalmente
erradas. Goethe contrastou o empirismo arti-
ficial dos experimentos controlados com o que 4 Estas suposições se baseiam em um conjunto de
crenças e valores que definem o que poderia se denomi-
ele denominou “delicado empirismo” (zarte nar o cânon da filosofia ocidental. Seguindo a Warren
Empirie): “o esforço para entender o significa- (2012), este cânon compreende o seguinte: a) um com-
do de uma coisa por meio do olhar e da visão promisso com o racionalismo, a perspectiva de que
empáticas prolongadas, baseadas na experiên- a razão (ou a racionalidade) não é só uma qualidade
distintiva do ser humano, é o que faz os seres huma-
cia direta (Seamon e Zajonc, 1998: 2)3.
nos superiores à natureza e aos animais não humanos;
Em um outro lugar, analisei as diferentes di- b) uma concepção dos humanos como seres racionais
mensões da crítica interna da ciência ocidental que são capazes de raciocínio abstrato, de considerar
moderna que, durante o século passado, as di- princípios objetivos e de compreender ou calcular as
consequências de suas ações; c) concepções do agen-
te moral ideal e de quem conhece como imparciais,
3 Sobre Goethe e a ciência moderna, ver, em particu- objetivos e desinteressados; d) crença em dualismos
lar, Uberoi (1984). fundamentais, tais como razão versus emoção, mente
306 Boaventura de Sousa Santos

dada à ciência como conhecimento rigoroso; o binado com um poder econômico e militar
rigor concebido como determinação; o univer- superior, tem garantido para o Norte global a
salismo concebido como uma especificidade da dominação imperial do mundo na era moderna
modernidade ocidental, em referência a qual- até o dia de hoje.
quer entidade ou condição, cuja validez não As Epistemologias do Norte se baseiam em
depende de nenhum contexto social, cultural uma linha abissal que separa as sociedades e
ou político específico; a verdade concebida da formas de sociabilidade metropolitanas das co-
representação da realidade; a distinção entre loniais em termos de que o que é válido, normal
sujeito e objeto, quem conhece e o conhecido; ou ético do lado metropolitano da linha não se
a natureza como res extensa; o tempo linear; o aplica ao seu lado colonial5. Já que a linha abis-
progresso da ciência por meio das disciplinas sal é tão básica quanto invisível, permite falsos
e da especialização; a neutralidade social e a universalismos que se baseiam na experiência
política como condição de objetividade. social das sociedades metropolitanas e apon-
Do ponto de vista das Epistemologias do tam para a reprodução e para a justificação do
Sul, as Epistemologias do Norte contribuíram dualismo normativo metrópole/colônia. Estar
de forma decisiva ao transformar o conheci- no outro lado da linha abissal, o colonial, im-
mento científico desenvolvido no Norte glo- plica estar impossibilitados pelo conhecimento
bal na maneira hegemônica de representar o dominante a representar o mundo como pró-
mundo como próprio e ao modificá-lo confor- prio e em nossos próprios termos. Aqui radica
me suas próprias necessidades e aspirações. o papel crucial das Epistemologias do Norte,
Deste modo, o conhecimento científico, com- em que contribuem para reproduzir o capitalis-
mo, o colonialismo e o patriarcado. Concebem
o Norte epistemológico eurocêntrico como a
versus corpo, cultura versus natureza, absolutismo ver- única fonte de conhecimento válido, não im-
sus relativismo e objetividade versus subjetividade; e) porta onde, em termos geográficos, este último
a suposição de que existe uma divisão ontológica entre se reproduz. Pela mesma razão, o sul, ou seja,
os seres humanos e a natureza e os animais não huma-
nos; e f) a universabilidade (universalisability) como
critério para avaliar a verdade dos princípios éticos e
epistemológicos. Ver também Warren (2009). 5 Para ler mais sobre isto, veja Santos (2014: 118-135).
Introdução às epistemologias do Sul 307

o que se encontra do “outro” lado da linha, é melhor dos casos, e falsas superstições e tosca
o reino da ignorância6. O Sul é o problema; o ignorância no pior. A lógica implacável desta
Norte é a solução. Nestes termos, a única com- situação geral de tribulação espiritual, que tem
preensão válida do mundo é a compreensão prevalecido de maneira constante no mundo
ocidental do mundo. não ocidental desde 1550 ou 1650, ou alguma
A alienação, o auto-estranhamento e a su- data histórica similar, inevitavelmente me afeta
bordinação da mente que este estado da ques- por um complexo de inferioridade vergonhoso
tão causa em quem não é ocidental, incluindo que nunca poderei superar sozinho ou com boa
os cientistas sociais, foi eloquentemente for- companhia. É uma situação falsa totalmen-
mulada por J. P. S. Uberoi, sociólogo hindu. te destrutiva de toda originalidade científica.
Suas palavras merecem uma citação extensa, Com um só golpe, liquida toda íntima alegria
ainda que, dado que foram escritas em 1978, eu de compreensão individual e coletiva, que é o
me pergunte o quão dramaticamente a situação único sustento verídico do trabalho intelectual
tem mudado desde então. local. Sem dúvidas, não existe nenhuma razão
A aplicação de tais meios faz parecer que só na natureza das coisas de por que uma relação
existe um tipo de ciência, a ciência ocidental tão subordinada e colonial, mais ou menos des-
moderna que atualmente rege o mundo. Este truída na política desde 1950, ou quase, ainda
conhecimento científico e racional moderno persiste na ciência. A situação não tem melho-
é o depósito auto-existente da verdade e ele é rado de modo algum, estou seguro, quando se
sui generis o único de seu tipo. O resto é de- supõe que existem dois tipos de teorias, as im-
nominado, sugestivamente, “etnociência” no portadas e as herdadas, unidas de alguma ma-
neira, uma para a ciência e outra para fins não
científicos. Parece-me que isto é meramente
6 O conhecimento colonial não ocidental deve ser substituir o problema do auto-estranhamento
reconhecido e recuperado só à medida que for útil intelectual pelo da mente subordinada, e não
para a dominação cêntrica ocidental, como foi notá- sei qual é o pior. A meu modo de ver, este é
vel no caso da regulação indireta, por meio da qual o o problema principal de toda a vida intelectu-
Estado colonial recorria à lei e ao governo tradicio-
al na Índia moderna e no mundo não ocidental
nal, nativo ou indígena para garantir o regime colonial
em nível local. (Uberoi, 1978: 14-15).
308 Boaventura de Sousa Santos

No entanto, o Sul anti-imperial, o Sul das variedade imensa de saberes que prevaleciam
Epistemologias do Sul, não é a imagem inver- principalmente do outro lado da linha abissal,
tida do Norte das Epistemologias do Norte. nas sociedades e sociabilidades coloniais. Dita
As Epistemologias do Sul não procuram subs- destruição desempoderou estas sociedades,
tituir as Epistemologias do Norte e colocar o deixando-as incapazes de representar o mun-
Sul no lugar do Norte. Seu objetivo é superar do como próprio e em seus próprios termos e,
a dicotomia hierárquica entre o Norte e o Sul. desse modo, considerar o mundo como susce-
O Sul que se opõe ao Norte não é o Sul que o tível de ser mudado pelos seus próprios meios
Norte constituiu como vítima, mas um Sul que e em virtude de seus próprios objetivos. Nesta
se rebela para superar o dualismo normativo situação, não é possível promover a justiça so-
existente. A questão não é apagar as diferen- cial sem promover a justiça entre as diversas
ças entre o Norte e o Sul, mas apagar as hierar- formas de conhecimento. Em outras palavras,
quias de poder que os habitam. As Epistemo- não existe justiça social sem justiça cognitiva
logias do Sul, portanto, afirmam e valorizam global. Esta tarefa é tão importante hoje quan-
as diferenças que ficam depois de que as hie- to foi no tempo do colonialismo histórico, ain-
rarquias são eliminadas. Seu objetivo é o cos- da que a desaparição deste último não tenha
mopolitismo subalterno vindo debaixo. Mais implicado o fim do colonialismo como forma
do que a universalidade abstrata, promovem a de sociabilidade baseada na inferioridade etno-
pluriversalidade: um tipo de pensamento que cultural e inclusive ontológica do Outro, o que
fomenta a descolonização, a crioulização (cre- Aníbal Quijano chama de colonialidade (Qui-
olisation) ou mestiçagem por meio da tradu- jano, 2005). A colonialidade do conhecimento
ção intercultural. (como a do poder) continua sendo fundamen-
As Epistemologias do Sul pretendem mos- talmente instrumental para expandir e reforçar
trar que os critérios dominantes do conheci- as opressões causadas pelo capitalismo, pelo
mento válido na modernidade ocidental, ao colonialismo e pelo patriarcado.
não reconhecer como válidos outros tipos de Recuperar os conhecimentos suprimidos,
conhecimento que não sejam os produzidos silenciados e marginalizados requer se com-
pela ciência moderna, provocaram um episte- prometer com o que denominei de “sociologia
micídio massivo, ou seja, a destruição de uma das ausências”, um procedimento que pretende
Introdução às epistemologias do Sul 309

mostrar que, dada a resiliência da linha abissal, de longe, a compreensão ocidental do mundo;
muitas práticas, conhecimentos e agentes que 2) a experiência cognitiva do mundo é extre-
existem do outro lado da linha abissal, de fato, mamente diversa e a prioridade absoluta dada
são produzidos ativamente como não existen- à ciência moderna provocou um epistemicídio
tes pelos saberes dominantes “neste” lado da massivo (a destruição de saberes rivais consi-
linha abissal, e muito mais quando estão com- derados como não científicos), que agora exige
prometidos com a resistência contra as ex- ser reparado. Como resultado, não existe justiça
clusões abissais causadas pelo capitalismo, o social global sem justiça cognitiva global7.
colonialismo e o patriarcado. Identificar a exis- As seguintes pesquisas e as orientações polí-
tência da linha abissal é o impulso fundante ticas emergem destas duas ideias:
das Epistemologias do Sul e da descolonização 1. Não teríamos de esperar que o Sul epistêmi-
do conhecimento ao qual aspiram. Identificar co anti-imperial dê lições ao Norte global.
a linha abissal é o primeiro passo para superá- Depois de cinco séculos de contatos assi-
-la, tanto em nível epistemológico quanto po- métricos e mestiçagens, é mais correto pen-
lítico. Identificar e evidenciar a linha abissal sar em maneiras e lugares policêntricos de
possibilita a abertura de novos horizontes com aprendizagem e desaprendizagem, de modo
respeito à diversidade cultural e epistemológi- que a resistência contra a injustiça, a exclu-
ca do mundo. Em nível epistemológico, essa di- são e a discriminação forçadas ao Sul global
versidade se traduz no que designo como uma pelo Norte global capitalista, colonialista e
“ecologia de saberes”, isto é, o reconhecimento patriarcal, possa ser concebida como uma
da copresença de diferentes saberes e a neces- aula global. A confiabilidade de cada saber
sidade de estudar as afinidades, divergências,
complementariedades e contradições entre
7 Conduzi um grande projeto de pesquisa baseado
eles para maximizar a efetividade das lutas de nestas ideias. O projeto se titula “ALICE – Espelhos
resistência contra a opressão. estranhos, lições inesperadas: levando a Europa em
direção a uma nova maneira de compartilhar experiên-
Pontos de partida cias mundiais” (ALICE – Strange Mirrors, Unsuspec-
ted Lessons: Leading Europe to a new way of sharing
Duas ideias que não são tão óbvias como te- the world experiences). Ver: <http://alice.ces.uc.pt/
riam de ser: 1) A compreensão do mundo supera, en/?lang=en>.
310 Boaventura de Sousa Santos

será medida por sua contribuição para for- 3. A ideia dos modos e lugares policêntricos
talecer a resistência e impedir a demissão. de desaprender e aprender não significa
Desta maneira, as experiências sociais se- que a profunda auto-reflexividade a se re-
rão recuperadas e valorizadas de modo tal alizar no Norte global e no Sul global será
que lhes permita fortalecer as lutas contra a mesma. À luz do epistemicídio histórico,
as formas modernas de dominação. a auto-reflexividade no Norte global deve
2. Situar a resistência e a luta no centro das estar centrada na ideia e no valor da diver-
comunidades epistemológicas emergentes sidade, no reconhecimento das maneiras
de modo nenhum implica que os grupos diferentes de saber e de ser. Deve incluir a
sociais oprimidos sejam considerados ape- reflexão sobre a experiência não ocidental
nas e quando lutarem e resistirem. Isto sig- da espiritualidade. Espiritualidade, não reli-
nificaria um reducionismo modernista ina- gião, mas sim o transcendente no imanente.
ceitável. As pessoas fazem muitas outras No Sul global, a auto-reflexividade deve se
coisas além de resistir e lutar. Deleitam-se centrar na forma de representar o mundo
com a vida, por mais precárias que sejam como próprio, e como transformá-lo con-
as condições, celebram e valorizam a ami- forme as suas próprias prioridades depois
zade e a cooperação; e, às vezes, também de tanta expropriação e violência. Deve in-
decidem não resistir e amolecer ou aban- cluir a autoestima, diante de tanta resistên-
donar as lutas. Além disso, as relações de cia frente à adversidade.
dominação sempre implicam outras rela- 4. A linha abissal que divide o mundo em so-
ções além daquelas de dominação. As li- ciedades/sociabilidades metropolitanas e
ções que devem aprender das suas vidas le- sociedades/sociabilidades coloniais é tão
vam tudo isso em consideração. Centrar-se frequente hoje quanto durante o tempo do
na resistência e na luta tem como objetivo colonialismo histórico. Guerras civis, ra-
ampliar as possibilidades para esse novo e cismo desenfreado, violência contra as mu-
tão necessário conhecimento de confronta- lheres, vigilância massiva, brutalidade poli-
ção. A experiência das lutas pela liberdade cial e refugiados entre a Europa e a África;
enriquecerá a perspectiva global sobre lu- todos são testemunhos da presença multi-
tas atuais e futuras. forme da linha abissal. Aqueles que estão
Introdução às epistemologias do Sul 311

no outro lado da linha não são considera- está sendo desqualificada ou simplesmen-
dos verdadeira ou plenamente humanos e, te deixada de lado quando os imperativos
portanto, não terão de ser tratados como se da acumulação capitalista o requerem. Em
o fossem. Enquanto não se confrontar com todo o mundo, estão se realizando diversas
a linha abissal, a verdadeira liberação não formas de democracia que devem ser valo-
será possível. rizadas adequadamente. Não há democra-
5. A maioria do conhecimento que circula no cia, há demodiversidade. Dada a prevalên-
mundo e que é relevante para a vida dos cia da linha abissal que separa as formas de
povos é oral. Mesmo assim, nossas univer- sociabilidade metropolitanas das coloniais,
sidades valorizam quase exclusivamente os teríamos de ensinar democracia da pers-
conhecimentos escritos. Os conhecimen- pectiva dos escravos e dos trabalhadores
tos escritos (de ciências e humanidades) precários; teríamos de ensinar cidadania
podem ser preciosos, uma vez integrados da perspectiva dos não cidadãos.
às ecologias dos saberes. No entanto, de- 7. A centralidade da resistência e a luta urgem
vem ser oralizados, desmonumentalizados, por concepções novas do político. As disci-
por assim dizer, sempre que for possível8. plinas e as categorias analíticas desenvolvi-
6. Sob as condições do capitalismo, o colonia- das pelas ciências modernas e as humani-
lismo e o patriarcado não é possível nenhu- dades nos impedem detectar e valorizar o
ma democracia de alta intensidade. Demo- artesanato das práticas de resistência. Em
cracia é todo processo social, econômico, tais artesanatos reside o que chamamos de
político ou cultural por meio do qual as re- sociologia das emergências, um dos con-
lações desiguais de poder se transformam ceitos chave das Epistemologias do Sul.
em relações de autoridade compartilhada. Como aprender e ensinar a sociologia das
Inclusive uma forma da democracia de bai- ausências (produzida pela linha abissal) e
xa intensidade como a democracia liberal a sociologia das emergências (o porvir, o
futuro sob a forma do presente)? Como
reconhecer e valorizar a narrativa dos es-
8 Veja “Conversações do Mundo” com ativistas, aca- quecidos, a voz dos silenciados, a língua
dêmicos e bolsistas. intraduzível, impronunciável?
312 Boaventura de Sousa Santos

8. As economias sociais solidárias que prolife- ca reconheceram a existência da linha abis-


raram por todo o Sul global anti-imperial na sal (Santos, 2007a: 45-89; 2014). As ciências
maioria dos casos dirigidas por mulheres, sociais modernas conceberam a humanidade
são os faróis do futuro mais do que resídu- como um todo homogêneo que habita este lado
os do passado como são vistas pelas ideolo- da linha e, portanto, completamente sometida
gias desenvolvimentistas. Proclamam, aqui à tensão entre regulação e emancipação. Na-
e agora, possibilidades humanas além do turalmente, a ciência moderna reconheceu a
capitalismo, o colonialismo e o patriarcado. existência do colonialismo histórico baseado
São utopias concretas que exemplificam o na ocupação territorial estrangeira, mas não
artesanato das práticas de resistência. reconheceu o colonialismo como uma forma
9. Além de certo umbral, diferentes maneiras de sociabilidade que é parte integral da domi-
de saber requerem diferentes maneiras de nação capitalista e patriarcal, e o qual, portan-
ser. As Epistemologias do Sul reclamam to, não terminou quando o colonialismo histó-
novas ontologias. rico chegou a seu fim. A teoria crítica moderna
(que expressa o máximo grau de consciência
possível da modernidade ocidental) imagi-
Os caminhos em direção às
nou a humanidade como algo dado, mais do
epistemologias do sul
que como uma aspiração. Acreditou que toda
As principais ferramentas das Epistemolo- a humanidade poderia se emancipar por meio
gias do Sul são as seguintes: a linha abissal e dos mesmos mecanismos e de acordo com os
os diferentes tipos de exclusão social que cria; mesmos princípios, ao reclamar direitos ante
a sociologia das ausências e a sociologia das instituições críveis se baseando na ideia da
emergências; a ecologia de saberes e a tradu- igualdade formal ante a lei. No centro desta
ção intercultural; e o artesanato das práticas. imaginação modernista está a ideia da huma-
nidade como uma totalidade construída em
Exclusões abissais e não abissais torno a um projeto comum: os direitos huma-
Tenho argumentado que as ciências mo- nos universais. Semelhante imaginação huma-
dernas, particularmente as ciências sociais nística, herdada do humanismo renascentista,
modernas, incluindo as teorias críticas, nun- foi incapaz de compreender que o capitalismo,
Introdução às epistemologias do Sul 313

depois de se combinar com o colonialismo, também na compreensão geral do ser” (Maldona-


seria inerentemente incapaz de renunciar ao do-Torres, 2007: 242)
conceito de subumano como parte integral da
humanidade, ou seja, a ideia de que existem al- A invisibilidade e a desumanização são as prin-
cipais expressões da colonialidade do ser […] se
guns grupos sociais cuja existência social não
concretiza na aparição de sujeitos limiares, que
pode ser governada pela tensão entre regula-
marcam, por assim dizer, o limite do ser, isto é,
ção e emancipação, simplesmente porque não o ponto de desumanização. A colonialidade do
são plenamente humanos. Na modernidade ser produz a diferença colonial ontológica, ao
ocidental não existe humanidade sem subuma- aplicar uma série de características existenciais
nidades. Na raiz da diferença epistemológica fundamentais e de realidades simbólicas (Maldo-
há uma diferença ontológica. nado-Torres, 2007: 257)
Sobre este particular, Franz Fanon é uma
presença inevitável. Denunciou eloquentemen- A linha abissal é a ideia principal subja-
te a linha abissal entre metrópole e colônia, as- cente às Epistemologias do Sul. Marca a divi-
sim como as classes de exclusões que a linha são radical entre as formas de sociabilidade
abissal cria. Também formulou, melhor do que metropolitanas e as formas de sociabilidade
ninguém, a dimensão ontológica da linha abis- coloniais que caracterizou o mundo moderno
sal, a zona do não ser que cria, a “coisa” na qual ocidental desde o século XV. Esta divisão cria
o colonizado é transformado, uma coisa que dois mundos de dominação, o metropolitano
só “devém homem durante o mesmo processo e o colonial. Dois mundos que, apesar das vi-
no qual se sente livre” (Fanon, 1968: 37). Ins- tórias, apresentam-se como incomensuráveis.
pirado em Fanon, Maldonado-Torres propõe o O mundo metropolitano é o mundo da equiva-
conceito de colonialidade conjuntamente com lência e a reciprocidade entre “nós”, aqueles
os conceitos de colonialidade do poder e colo- que são, como “nós”, plenamente humanos.
nialidade do saber. Segundo ele, Existem diferenças sociais e desigualdades de
poder entre “nós” que tendem a criar tensões
as relações coloniais de poder deixam marcas e exclusões, mas mesmo assim, de nenhuma
profundas não só nas áreas da autoridade, da se- maneira se questiona a equivalência básica e
xualidade, do conhecimento e da economia, mas a reciprocidade entre “nós”. Por esta razão, as
314 Boaventura de Sousa Santos

exclusões são não abissais. Estão reguladas cabo por meio da dinâmica de apropriação e
pela tensão entre regulação social e emancipa- violência; a apropriação de vidas e de recursos
ção social, assim como pelos mecanismos de- quase sempre é violenta e a violência aponta di-
senvolvidos pela modernidade ocidental para retamente ou indiretamente à apropriação. Os
administrá-las, como o Estado liberal, o estado mecanismos utilizados têm evoluído no tempo,
de direito, os direitos humanos e a democracia. mas continuam sendo estruturalmente simila-
A luta pela emancipação social é sempre uma res aos do colonialismo histórico, ou seja, me-
luta contra as exclusões sociais geradas pelas canismos que implicam uma regulação violenta
formas de regulação social atual com o objeti- sem o contraponto da emancipação. Refiro-me
vo de substituí-la por uma forma de regulação ao Estado colonial e neocolonial, ao apartheid,
social nova e menos excludente. ao trabalho forçado e ao trabalho escravo, às
Pela mesma razão, o mundo colonial, o mun- execuções extrajudiciais, à tortura, à guerra
do da sociabilidade colonial, é o mundo “deles”, permanente, à acumulação primitiva de capital,
aqueles com quem não é imaginável equivalên- aos campos de internamento para refugiados,
cia ou reciprocidade alguma, então são plena- à “droneficação” do combate militar, à vigilân-
mente humanos. Paradoxalmente, sua exclu- cia massiva, ao racismo, à violência familiar e
são é tanto abissal quanto não existente, já que ao feminicídio. A luta contra a apropriação e
é inimaginável que alguma vez cheguem a ser a violência é a luta pela liberação total da re-
incluídos. Estão do outro lado da linha abissal. gulação social colonial. Contrariamente à luta
As relações entre “nós” e “eles” não podem ser pela emancipação social do lado metropolita-
conduzidas pela tensão entre regulação social no da linha abissal, a luta pela liberação não
e emancipação social como acontece deste tem como objetivo uma forma de regulação co-
lado da linha, no mundo metropolitano, nem lonial melhor e mais inclusiva. Propõe-se sua
pelos mecanismos que pertencem a ele. Estes eliminação. A prioridade epistemológica, da-
mecanismos, como o Estado liberal, o estado das as exclusões abissais e as lutas contrárias
de direito, os direitos humanos e a democracia pelas Epistemologias do Sul, deve-se ao fato de
podem ser invocados, mas somente como uma o epistemicídio causado pelas ciências moder-
forma de embuste. No outro lado da linha, as nas eurocêntricas ter sido muito mais devasta-
exclusões são abissais e sua gestão é levada a dor do outro lado da linha abissal, enquanto a
Introdução às epistemologias do Sul 315

apropriação e a violência coloniais se tornaram Uma incursão na vivência das exclusões


a forma de regulação social. As teorias críticas abissais e não abissais podem ajudar a esclare-
modernas reconheceram os diferentes graus cer o que foi enunciado. Depois do fim do co-
de exclusão, mas se negaram a considerar os lonialismo histórico9, a linha abissal persistiu
tipos de exclusão qualitativamente diferentes como colonialismo de poder, de conhecimento,
e, portanto, ignoraram totalmente a linha abis- de ser, e continua distinguindo a sociabilidade
sal. Isto não quer dizer que as exclusões não metropolitana da sociabilidade colonial10. Es-
abissais e as lutas contrárias não sejam igual- tes dois mundos, mesmo que sejam radical-
mente importantes. Claro que são, e só pela mente diferentes, convivem em nossas socie-
razão de que o sucesso da luta global contra dades “pós-coloniais”, tanto no Norte global
a dominação não pode ser alcançado sem in- geográfico quanto no Sul global geográfico. Al-
cluir a luta contra as exclusões abissais. Se as guns dos grupos sociais experimentam a linha
Epistemologias do Sul não concedem nenhum abissal quando atravessam os dois mundos em
tipo de privilégio epistemológico às exclusões sua vida quotidiana. Nos parágrafos seguintes,
não abissais é só porque elas se beneficiaram apresento três exemplos hipotéticos que são
muito da inversão cognitiva e porque as lutas
contrárias durante os últimos quinhentos anos
têm sido muito mais visíveis politicamente. Da 9 Apesar do fato de que algumas colônias ainda
perspectiva das Epistemologias do Sul, quan- existem.
do a existência da linha abissal é reconhecida, 10 Aníbal Quijano cunhou o termo “colonialidade” para
as exclusões não abissais e as lutas contrárias designar as formas de colonialismo que sobreviveram
cobram uma nova centralidade. A agenda polí- ao fim do colonialismo histórico. Utilizei também este
termo em certas ocasiões. No entanto, prefiro o termo
tica dos grupos que lutam contra a combinação
“colonialismo” já que não há razão para reduzir o colo-
capitalista, colonial e patriarcal, então, devem nialismo a um tipo específico de colonialismo, ou seja, o
aceitar como princípio vetor a ideia de que as colonialismo histórico baseado na ocupação territorial
exclusões abissais e não abissais estão articu- por parte de potências estrangeiras. Inclusive, mesmo
ladas e que a luta pela liberação terá sucesso só que o capitalismo tenha mudado dramaticamente desde
o século XVI ou XVII, ainda continuamos designando o
se as diferentes lutas contra os diferentes tipos
capitalismo como o modo de dominação baseado na ex-
de exclusão forem devidamente articuladas. ploração da força de trabalho e da natureza.
316 Boaventura de Sousa Santos

reais demais para serem considerados como metropolitana. Pode se sentir discriminado por-
um mero produto da imaginação sociológica. que o trabalhador junto a ele ganha um salario
Primeiro exemplo. Em uma sociedade pre- maior, mesmo quando ambos desempenham as
dominantemente branca, um jovem negro no mesmas tarefas. Como no caso anterior, e por
ensino secundário está vivendo em um mundo razões similares, essa discriminação prefigura
de sociabilidade metropolitana. Pode-se con- uma exclusão não abissal. No entanto, quando
siderar realmente excluído, seja porque com ele é atacado na rua só porque é muçulmano
frequência é evitado por seus companheiros e, portanto, imediatamente considerado amigo
de estudos ou porque o programa educativo de terroristas, nesse momento particular o tra-
trata com materiais que são insultantes para balhador atravessa a linha abissal e se desloca
a cultura ou a história das pessoas de ascen- do mundo da sociabilidade metropolitano ao
dência africana. Mas, essas exclusões não são mundo da sociabilidade colonial. Deste modo,
abissais; ele forma parte da mesma comunida- a exclusão se torna radical porque se centra em
de estudantil e, pelo menos na teoria, ele tem quem é em vez do que no que diz ou faz.
acesso aos mecanismos que lhe permitiriam Terceiro exemplo. Em uma sociedade pro-
argumentar contra a discriminação. Por outro fundamente sexista, uma mulher com um tra-
lado, se o mesmo jovem ao regressar a sua casa balho na economia formal habita o mundo
for abordado pela polícia, evidentemente devi- da sociabilidade metropolitana. É vítima de
do a seu perfil étnico, e for agredido apreensi- exclusão não abissal porque, em violação das
vamente, nesse momento o jovem atravessa a leis do trabalho, seus companheiros de tra-
linha abissal e se desloca do mundo da sociabi- balho homens recebem um salário maior por
lidade metropolitano ao mundo da sociabilida- realizar as mesmas tarefas. Por outro lado, se
de colonial. Daí em diante, a exclusão se torna quando está regressando à sua casa é vítima
abissal e qualquer apelação aos direitos não é de estupro por uma quadrilha ou de agressões
mais que uma fachada cruel. mortais só por ser mulher (feminicídio), nes-
Segundo exemplo. Em uma sociedade suma- se momento particular ela está atravessando a
mente cristã com fortes preconceitos islamofó- linha abissal e se desloca do mundo da socia-
bicos, um trabalhador migrante com permissão bilidade metropolitana ao mundo da sociabili-
de trabalho habita o mundo da sociabilidade dade colonial.
Introdução às epistemologias do Sul 317

A diferença crucial entre a exclusão abissal ta, recorrer o mundo da sociabilidade colonial
e não abissal é que só a primeira tem como pre- como o fantasma de um paraíso prometido e
missa a ideia de que a vítima ou o objetivo ado- não perdido ainda. O fim do colonialismo histó-
ece de um capitis diminutio ontológico por rico produziu a ilusão de que a independência
não ser plenamente humano, mais do que um política das antigas colônias europeias impli-
tipo de ser humano degradado fatalmente. Des- cou uma forte autodeterminação. Desde então,
se modo, é considerado inaceitável ou inclusi- todas as exclusões foram consideradas como
ve inimaginável que dita vítima ou objetivo fora não abissais; consequentemente, as únicas lu-
tratado como um ser humano como “nós”. Em tas consideradas legítimas foram aquelas que
consequência, a resistência contra a exclusão apontavam a eliminar ou reduzir as exclusões
abissal compreende uma dimensão ontológica. não abissais. Esta poderosa ilusão contribuiu a
Está vinculada a uma forma de re-existência. legitimar lutas que, enquanto atenuavam as ex-
Já que os três modos de dominação moderna clusões não abissais, agravavam as exclusões
(capitalismo, colonialismo e patriarcado) estão abissais. Durante o século XX, as lutas dos tra-
vigentes e atuam em conjunto, os grandes gru- balhadores europeus alcançaram vitórias signi-
pos sociais experimentarão em suas vidas, e ficativas, que redundaram em um compromis-
de maneira sistemática – mesmo que de modo so entre democracia e capitalismo, conhecidos
diferente nas distintas sociedades e contextos como o Estado de bem-estar e a socialdemo-
– este cruzamento fatal da linha abissal. A do- cracia europeia. No entanto, tais vitórias foram
minação moderna é um modo de articulação ganhas, ao menos em parte, intensificando a
global entre exclusões abissais e não abissais, apropriação violenta de recursos humanos e
uma articulação que é desigual, já que varia naturais nas colônias e neocolônias, ou seja, à
conforme as sociedades e os contextos, e com- custa de agravar as exclusões abissais11.
binada em nível global. Depois do colonialismo
histórico, o caráter esquivo da linha abissal e
a conseguinte dificuldade para reconhecer es- 11 Isto foi percebido desde o primeiro momento pe-
tes dois tipos de exclusão devem-se ao fato da los críticos do colonialismo europeu. Fanon é particu-
larmente consciente disto, e cita a Marcel Péju (1960)
ideologia da metrópole, assim como todos os
com aprovação: “para fazer uma diferença radical entre
aparatos jurídicos e políticos que ela acarre- a construção do socialismo na Europa e em nossas re-
318 Boaventura de Sousa Santos

Como consequência da invisibilidade e da dos para a luta contra a exclusão não abissal.
confusão a respeito dos diferentes tipos de O modelo atual de “ajuda ao desenvolvimen-
exclusão, os grupos sociais que são vítimas da to” é um bom exemplo de como uma exclusão
exclusão abissal são tentados a recorrer em abissal pode ser mascarada (e agravada) por
suas lutas aos meios e mecanismos adequa- tratá-la como se fosse não abissal. A persis-
tência da linha abissal invisível, e a dificuldade
para desenredar as exclusões abissais das não
lações com o Terceiro Mundo (como se nossas únicas abissais, ocasiona que as lutas contra a domi-
relações com ele fossem externas) é, saibamos ou não,
para estabelecer o ritmo da distribuição da herança
nação sejam ainda mais difíceis. No entanto,
colonial sobre e por cima da liberação dos países sub- da perspectiva das epistemologias do Sul, a
desenvolvidos. É o desejo de construir um socialismo liberação se baseia na construção de alianças
suntuário sobre os frutos do roubo imperialista – como entre os grupos excluídos de maneira abissal e
se, dentro da quadrilha, a pilhagem fosse mais ou me- os excluídos de maneira não abissal que, desta
nos repartida por igual, e inclusive um pouco desta é
dada aos pobres em forma de caridade, já que se esque-
forma, articulam as lutas contra as exclusões
ceram de que eram as pessoas que foram roubadas –“ abissais e não abissais. Sem essa articulação,
(Fanon, 1968: 103). Alguns anos antes, em 1958, Fanon as exclusões não abissais, quando são vistas do
já tinha denunciado a ambivalência da classe operária outro lado da linha abissal (do lado colonial)
metropolitana e de seus dirigentes para a luta anticolo- parecem incríveis, como formas privilegiadas
nialista, nacionalista: “durante as diversas guerras de
liberação nacional que sucederam nos últimos vinte de exclusão social. Pelo contrário, quando as
anos, não é raro perceber um indício de hostilidade, exclusões abissais são vistas desde este lado
ou inclusive de ódio, na atitude dos colonialistas para da linha abissal (o lado metropolitano), são
os colonizados. Isto pode ser explicado pelo fato de a consideradas alternativamente como o pro-
retirada do imperialismo e a conversão das estruturas
duto do destino, do dano auto-infligido ou da
subdesenvolvidas do Estado colonial, imediatamente,
terem sido acompanhadas por uma crise econômica ordem natural das coisas. Pela mesma razão,
que teria sido sentida primeiro pelos trabalhadores na as exclusões abissais nunca são vistas deste
metrópole colonial” (Fanon, 1967: 144-5). Em um escri- lado da linha (o lado metropolitano) como ex-
to que data de 1965, Kwane Nkrumah oferece a análise clusões, senão como uma fatalidade ou como
mais lúcida de como o acordo entre capital e trabalho
no mundo desenvolvido foi possível pela exploração
a ordem natural das coisas. Historicamente os
despiedada das colônias. grupos sociais excluídos pelas formas abissais
Introdução às epistemologias do Sul 319

de exclusão têm se adequado só para lutar con- sociais, nem às diferentes histórias e contex-
tra as exclusões não abissais. Não surpreende tos de luta. Entre as exclusões abissais e não
que houvesse uma grande frustração. abissais existe uma diferença estrutural que
As alianças e as articulações são uma árdua afeta contrariamente as lutas. A diferença das
tarefa histórica, não só porque as diferentes lutas contra as exclusões não abissais (que lu-
lutas mobilizam grupos sociais diferentes e re- tam pela transformação em termos da lógica
querem distintos meios de luta, senão também da regulação/emancipação), as lutas contra as
devido a que a separação entre as lutas contra exclusões abissais implicam uma interrupção
as exclusões abissais e não abissais se super- radical da lógica apropriação/violência. Esta
põe com a separação entre as lutas que se con- interrupção implica uma ruptura, uma descon-
sidera que estão, primordialmente, contra o ca- tinuidade. A insistência de Fanon com que a
pitalismo, ou contra o colonialismo ou contra violência é necessária no processo de desco-
o patriarcado. Esta separação dá lugar a tipos lonização tem que ser interpretada como uma
contraditórios de hierarquias entre as lutas e expressão da interrupção sem a qual a linha
entre as subjetividades coletivas que as reali- abissal, inclusive se fosse mudar, continuaria
zam. Deste modo, uma luta que se considera dividindo as sociedades em dois mundos de so-
que está contra o capitalismo pode ser conside- ciabilidade: o mundo metropolitano e o mundo
rada bem sucedida à medida que debilite uma da colonialidade. A interrupção pode se mani-
luta que se considera que está contra o colo- festar, por um lado, na violência física ou na
nialismo ou contra o patriarcado. O contrário é luta armada e, por outro lado, no boicote ou na
igualmente possível. Claro, existem diferenças falta de cooperação (depois voltaremos sobre
entre classes de lutas, mas tais diferenças te- este tema). Reconhecer a linha abissal implica
riam de ser mobilizadas para potenciar o efeito admitir que as alianças entre as lutas contra
acumulativo das lutas e não para justificar os os diferentes tipos de exclusão não podem se
boicotes recíprocos. Lamentavelmente o boi- construir como se todas as exclusões fossem
cote recíproco é o que tem acontecido com da mesma classe.
maior frequência. O pensamento crítico eurocêntrico esteve
As dificuldades em estabelecer alianças não construído em torno a uma miragem: pontual-
podem ser adscritas só à miopia dos líderes mente, que todas as exclusões eram não abis-
320 Boaventura de Sousa Santos

sais. Independentemente das declarações vee- mo, na forma de colonialismo do poder, saber
mentes contra a teoria política liberal, pensar e ser, opera junto com o capitalismo e o patriar-
que as lutas contra a dominação podem se re- cado para produzir exclusões abissais, isto é,
alizar como se todas as exclusões fossem não para produzir certos grupos de pessoas e for-
abissais é um preconceito liberal. mas de vida social como não existentes, invisí-
veis, radicalmente inferiores ou perigosos, em
Sociologia das ausências suma, como descartáveis ou ameaçantes. Esta
e sociologia das emergências12 pesquisa se centra nas cinco monoculturas que
têm caracterizado o conhecimento eurocêntri-
Estas duas ferramentas se baseiam na distin-
co moderno: a monocultura do conhecimento
ção entre as exclusões abissais e não abissais,
válido, a monocultura do tempo linear, a mono-
assim como nas maneiras diferentes nas quais
cultura da classificação social, a monocultura
o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado
da superioridade do universal e do global, e a
se combinam para gerar grupos específicos de
monocultura da produtividade (Santos, 2014:
dominação. A sociologia das ausências é a car-
172-5). Tais monoculturas têm sido responsá-
tografia da linha abissal. Identifica as maneiras
veis pela produção massiva de ausências nas
e os meios pelos quais a linha abissal produz
sociedades modernas, a ausência (invisibilida-
a não existência, a invisibilidade radical e a
de, irrelevância) de grupos sociais e de formas
irrelevância. O colonialismo histórico foi o ta-
de vida social, respectivamente classificadas
buleiro de desenho da linha abissal, onde as
como ignorantes, primitivas, inferiores, locais
exclusões não abissais (aquelas que ocorriam
ou improdutivas. Tais etiquetas são atribuídas
do lado metropolitano da linha) eram visibili-
com diferentes graus de intensidade. O grau
zadas enquanto as abissais (aquelas que ocor-
mais alto de intensidade gera exclusões abis-
riam do lado colonial da linha) eram ocultadas.
sais e, portanto, ausências.
Na atualidade, a sociologia das ausências é a
Esta pesquisa não pode ser realizada com
pesquisa das maneiras nas quais o colonialis-
sucesso até que o sociólogo das ausências não
se torne um sociólogo ausente e, por certo, au-
sente em um duplo sentido. Por um lado, de
12 Em Santos (2014: 164-87) explico o uso metafórico
do termo “sociologia” neste contexto. um ponto de vista acadêmico, sociológico, o
Introdução às epistemologias do Sul 321

que não está ali (porque está ausente) só pode do Norte. Por isso, o segundo momento consta
ser recuperado como uma realidade passada de reconhecer e de se comprometer com outras
ou como um artefato de imaginação distópica maneiras de saber que oferecem compreensões
ou utópica. Por outro lado, a pesquisa tem de alternativas da vida social e da transformação
ser conduzida contra a disciplina da sociologia, social, distintas do conhecimento válido, o tem-
isto é, tem de ser conduzida de maneira tal que po linear, a classificação social, a superioridade
contradiga a formação, as teorias e as metodo- do universal e do global e a produtividade das
logias que compõem a disciplina da sociologia monoculturas eurocêntricas ocidentais. Mais
acadêmica, seja convencional ou crítica. A so- do que uma crítica interna à modernidade oci-
ciologia das ausências é uma sociologia trans- dental, oferecem uma crítica externa. A produ-
gressiva em um sentido muito radical. Para ção de ausências se torna muito mais evidente
realizá-la, devem-se considerar três momentos. quando as fundamentações epistemológicas
O primeiro é uma crítica trabalhosa e precisa das monoculturas se contextualizam e provin-
do conhecimento científico social que foi pro- cializam além dos limites da crítica interna. O
duzido para estabelecer a hegemonia das cinco terceiro momento é o momento do contexto
monoculturas mencionadas, durante o período pragmático, no qual se desenvolvem os outros
moderno e, particularmente, desde o fim do dois momentos. A sociologia das ausências é,
século XIX. Dita crítica é importante já que, ao mais do que um esforço intelectual estimula-
mostrar o pluralismo interno da ciência social do pela curiosidade cognitiva, principalmente,
moderna, contribui a desmonumentalizar as um recurso para as lutas contra o capitalismo,
monoculturas eurocêntricas. Além disso, ques- o colonialismo e o patriarcado. E tem de ser
tiona as concepções simplificadoras e reducio- implementado em virtude de lutas específicas.
nistas da modernidade ocidental que proliferam O contexto da luta –os objetivos concretos e
em muitas correntes entre os estudos descolo- os grupos sociais implicados– proporcionam
niais que, na minha opinião, paradoxalmente dimensões não cognitivas que condicionam as
confirmam a superioridade das Epistemologias maneiras em que os saberes e os grupos sociais
do Norte. Mesmo assim, a sociologia das ausên- ausentes se tornam presentes.
cias tem que ir além do pensamento crítico eu- Consideradas do ponto de vista das Episte-
rocêntrico e não ficar presa às Epistemologias mologias do Norte, tanto a sociologia das au-
322 Boaventura de Sousa Santos

sências quanto a sociologia das emergências Bourdieu ilustra brilhantemente as possibili-


(baixo) parecem implicar um suicídio sacrifi- dades, mas além disso, vai contra seu próprio
cial enquanto as pesquisas que impulsionam pensamento, as limitações da classe de so-
têm de se alcançar contra a formação, as teo- ciologia das ausências que pode ser realizada
rias e as metodologias estabelecidas pela ciên- no âmbito das Epistemologias do Norte. Para
cia social acadêmica. A natureza de tal suicídio começar, supõe que as limitações do conheci-
é mais evidente caso se contraste com a auto- mento prévio sobre a sociedade podem ser su-
-reflexividade proposta por Pierre Bourdieu. peradas por um conhecimento científico novo
Sem dúvida, Bourdieu é o sociólogo do século e melhor. Isto explica porque, na sua opinião,
XX que argumentou com maior ênfase contra só quem domina a ciência estabelecida pode
o cientificismo ingênuo dos cientistas sociais. ser um verdadeiro inovador. Na colocação de
Sustentou que a sociologia e a história do co- Bourdieu não há lugar para as limitações epis-
nhecimento sociológico eram ferramentas cha- temológicas do conhecimento científico mo-
ve para compreender tanto a sociedade como derno, aquelas limitações que, por ser intrín-
os limites do conhecimento científico sobre secas às Epistemologias do Norte, não podem
esta. Por um lado, o conhecimento científico ser superadas por novas indagações baseadas
social inventou muito do que descreve como no mesmo tipo de conhecimento. Seguindo a
existente; tal invenção se fez parte da realida- Bourdieu, um exercício exigente de auto-refle-
de social quando se incorporou às maneiras xividade não pode mais que fortalecer a cren-
em que as pessoas se comportam e percebem ça na monocultura de conhecimento válido
a vida social. Por outro lado, a ciência social colocado pelas Epistemologias do Norte. Não
estabelecida cria uma falsa transparência que existe nenhuma possibilidade de dar conta de
impede uma pesquisa inovadora. A ciência es- outras maneiras de saber que poderiam corri-
tabelecida sempre está no caminho da ciência gir ou superar os fracassos anteriores do co-
emergente. Deste modo, Bourdieu concluiu nhecimento científico prévio ou que poderiam
que “tem de se praticar uma ciência –e, espe- tratar com outros grupos temáticos. Por esta
cialmente, a sociologia– contra a própria for- razão, o sociólogo auto-reflexivo, mais do que
mação científica quanto como com a própria
formação científica” (Bourdieu, 1990: 1978).
Introdução às epistemologias do Sul 323

ser um docto ignorante13, é um soberbo conhe- mas de ser e de saber que se apresentam no
cedor seguro. Ele e/ela sabem que a pesquisa outro lado da linha abissal pela sociologia das
sobre os limites não é uma pesquisa sem limi- ausências. O enfoque principal da sociologia
tes, mas creem que toda coisa que não pode ser das ausências e da sociologia das emergências
abordada pela ciência moderna não é digna de está nas exclusões abissais e na resistência e
consideração. Por outro lado, a autorreflexão as lutas que estas produzem. Mas enquanto a
é um exercício intelectual que, para ser reali- sociologia das ausências aborda o aspecto ne-
zado de maneira eficiente, deve reforçar a se- gativo destas exclusões14, no sentido que desta-
paração do cientista vis-à-vis do seu objeto de ca e denuncia a supressão da realidade social
pesquisa, incluindo seu próprio conhecimento provocada pelo tipo de conhecimento validado
sociológico prévio. Nas antípodas disto, que pelas Epistemologias do Norte, a sociologia
pratica uma sociologia das ausências propos- das emergências se centra no aspecto positivo
ta pelas Epistemologias do Sul, seja um sujeito destas exclusões já que percebe as vítimas da
individual ou um coletivo, além de se dedicar exclusão no processo de deixar de lado a viti-
a outras formas de saber, fazem isso enquanto mização e de se tornarem pessoas que resistem
participam em uma luta política e social que, e que levam à prática maneiras de ser e de sa-
precisamente, tenta não ser uma mera concor- ber em sua luta contra a dominação. Esta pas-
rência intelectual consigo mesmo (autorrefle- sagem da vitimização à resistência é, depois de
xão) ou com outros (a rivalidade acadêmica tudo, a tarefa política principal da sociologia
entre as escolas de pensamento). das ausências: desnaturalizar e deslegitimar os
A advertência epistemológica das notas mecanismos específicos da opressão. A socio-
mencionadas antes, em relação à sociologia
das ausências, aplica integramente à sociolo-
gia das emergências e pelas mesmas razões. A 14 Em termos hegelianos, poderíamos dizer que esta
sociologia das emergências se ocupa da valo- é uma negatividade dialética, a negação de uma ne-
rização simbólica, analítica e política das for- gação, a identificação das realidades que se tornaram
ausentes, invisíveis ou totalmente irrelevantes para o
capitalismo, o colonialismo e o patriarcado podem ser
13 Sobre o conceito de docta ignorância, ver Santos legitimados como as únicas realidades válidas pela úni-
(2014: 99-115). ca forma válida de conhecimento.
324 Boaventura de Sousa Santos

logia das emergências se inicia a partir daí e se ções sociais capitalistas, coloniais e patriarcais,
centra nas novas potencialidades e possibilida- a sociologia das emergências tem como objeti-
des para a transformação social anticapitalis- vo tornar o panorama da supressão que emerge
ta, anticolonialista e antipatriarcal que emerge a partir desse diagnóstico um vasto campo de
no vasto campo das experiências sociais que experiência social rica, animada e inovadora.
foram descartadas previamente e agora recu- Neste sentido, as Epistemologias do Sul estão
peradas. Com a resistência e a luta, emergem duplamente presentes. Por um lado, exercem a
novas avaliações das condições vividas e a ex- atenção epistemológica vis-à-vis das experiên-
periência que resignificam as subjetividades cias embrionárias, os “não ainda”, ao convidar
coletivas e individuais. Estas novas caracte- a inversão social, política e analítica a nutri-las
rísticas que aparecem como práticas materiais da maneira mais empoderada. Por outro lado,
e simbólicas sempre se afirmam a si mesmas proporcionam uma defesa epistemológica con-
com uma tônica holística, artesanal e híbrida, tra os falsos aliados das lutas que com frequ-
reconhecendo, deste modo, a presença multi- ência forçam estas emergências a se acomodar
dimensional da exclusão e da opressão. A so- em caixas que separam as diferentes dimensões
ciologia das emergências as avalia conforme as de dominação moderna existentes: As caixas
premissas que amplificam seu potencial simbó- do capitalismo, anticolonialismo e antipatriar-
lico e material. Aqui radica sua definição como cado. A ONGanização internacional da supos-
emergências, como realidades embrionárias, ta solidariedade com as lutas é a versão mais
como movimentos incipientes, tendências que simples deste processo de neutralização por
guiam uma luta bem sucedida contra a domi- classificação ou etiquetado (trataremos disto
nação. Constituem o que Ernst Bloch designou mais adiante). Assim é como, por exemplo, as
como o “não ainda”15. São os pilares da política mulheres camponesas que lutam por sua digni-
da esperança. dade e a dignidade de suas famílias, por suas
Enquanto a tarefa da sociologia das ausên- economias locais e a terra comunal, e contra
cias é produzir um diagnóstico radical das rela- os sesgos patriarcais de suas culturas ou reli-
giões, foram induzidas a assumir uma identi-
dade específica –mulheres feministas– mesmo
15 Sobre isto, ver Santos (2014: 182-3). que também sejam camponesas, lutadoras pela
Introdução às epistemologias do Sul 325

propriedade comunal da terra e empresárias suas alienadas vidas quotidianas. Estas são as
não capitalistas. Elas são, claro, mulheres, e a fontes de sua dignidade e a esperança de um
maioria delas se considera feminista, mas além futuro pós-capitalista e pós-colonial. Como
de tudo isso, elas são as protagonistas (ou ví- acontece com as ruínas, em geral, também aqui
timas) de muitas outras agendas –econômicas, há uma certa nostalgia por um passado ante-
políticas, religiosas– locais, nacionais e trans- rior ao sofrimento injusto e à destruição cau-
nacionais que permanecem fora do sistema de sada pelo capitalismo e o colonialismo, assim
classificação de identidades e, por essa razão, como pelo patriarcado como reconfiguração
são subestimadas ou invisibilizadas. Do mes- dos outros dois. Mesmo assim, esta nostalgia
mo modo, as comunidades negras da América é experimentada de um modo anti-nostálgico,
Latina presenciam que as suas danças e jogos como mera orientação para um futuro que es-
centenários são protegidos como patrimônio capa do colapso das alternativas eurocêntri-
mundial imaterial, enquanto suas comunidades cas, precisamente porque sempre esteve fora
seguem abandonadas, infestadas de racismo, de tais alternativas. De fato, poderia consistir
presas na materialidade da exclusão social, na invocação de um mundo pré-moderno, mas
na vida precária, na falta de acesso a serviços tal invocação é moderna porque significa que
de saúde e educação, e correm o risco de ser aspiram a uma outra modernidade, distinta.
expulsas de suas terras pela falta de escrituras Estamos, então, ante umas ruínas que estão vi-
legais “apropriadas”. vas, não porque são “visitadas” por pessoas vi-
Distingo três tipos de emergências: ruínas ventes, senão porque são “vividas” por pessoas
sementes, apropriações contrahegemônicas e que estão muito vivas em suas práticas de re-
zonas liberadas. As ruínas sementes são um sistência e luta por um futuro alternativo. São,
presente ausente, são memória e futuro alter- portanto, ruínas e sementes ao mesmo tempo.
nativo ao mesmo tempo. Representam tudo Representam o paradoxo existencial de todos
o que os grupos sociais e práticas originais e aqueles grupos sociais que foram vítimas da
autênticas que, apesar de terem sido histori- cartografia do pensamento abissal moderno ao
camente derrotadas pelo colonialismo e pelo serem “localizados” do outro lado da linha abis-
capitalismo modernos, continuam vivas na sua sal, do lado da sociabilidade colonial. Para res-
memória e nos mais recônditos recantos de ponder à pergunta: Podemos construir espaços
326 Boaventura de Sousa Santos

comuns ampliados sobre a base de outros? Diderot descreveu como as inevitáveis ‘devas-
Precisamos conceitos não eurocêntricos como tações do tempo’ visíveis nas ruinas” (Huys-
aqueles mencionados na introdução: ubuntu, sen, 2006: 13)16.
sumak kawsay, pachamama. Enquanto no mundo do colonizador a nos-
Tal como o concebem as Epistemologias do talgia pelas ruinas é, no melhor dos casos, uma
Sul, as ruínas sementes estão nas antípodas de lembrança inquietante do “lado escuro da mo-
uma atração nostálgica às ruinas que foram tí- dernidade”, no mundo dos colonizados, além
picas da modernidade ocidental desde o século de ser a inquietante lembrança de uma destrui-
XVIII, e que ainda nos rodeiam. Em um escrito ção, a nostalgia pelas ruínas também é um sinal
de 2006, Andreas Huyssen chama à atenção so- auspicioso de que a destruição não foi total, e
bre o fato de que que aquilo que pode ser redimido como energia
de resistência aqui e agora é uma vocação úni-
durante a última década e meia, uma estranha ca e original para um futuro alternativo.
obsessão com as ruínas tenha se desenvolvido As apropriações contrahegemônicas cons-
nos países do Norte transatlântico como parte tituem outra classe de emergência. Por apro-
de um discurso mais amplo sobre a memória e priações contrahegemônicas me refiro às
o trauma, o genocídio e a guerra. Esta obsessão
filosofias, aos conceitos e às práticas desen-
contemporânea com as ruínas esconde uma nos-
volvidas pelos grupos sociais dominantes para
talgia por uma época anterior que ainda não per-
deu seu poder para imaginar outros futuros. O reproduzir a dominação, mas que são apropria-
que está em jogo é uma nostalgia pela moderni- das pelos grupos sociais oprimidos e, ato segui-
dade, que não se atreve a dizer seu nome depois do, resignificadas, reconfiguradas, refundadas,
de reconhecer as catástrofes do século XX e as subvertidas e transformadas seletiva e criativa-
persistentes lesões da colonização interna e ex- mente para depois torná-las ferramentas para
terna (Huyssen, 2006: 7) as lutas contra a dominação. Exemplos de tais
apropriações incluem: a lei, os direitos huma-
Mais adiante, Huyssen especifica que tal
imaginação de ruínas, por contradizer o oti-
mismo da Ilustração, “continua sendo cons- 16 Sobre o tema das ruínas ver, entre outros, Apel
(2015); Dawdy (2010: 761-93); Hui (2016) e Zucker
ciente do lado escuro da modernidade, o qual (1961: 119-30).
Introdução às epistemologias do Sul 327

nos, a democracia, a Constituição. Em minha Seu propósito é conseguir, aqui e agora, um tipo
pesquisa anterior sobre a sociologia crítica do diferente sociedade, uma sociedade liberada
direito tratei destas apropriações em grande das formas de dominação que hoje prevalecem.
detalhe17. Mais especificamente, abordei duas As zonas liberadas podem emergir no contex-
questões: pode a lei ser emancipatória18? E, to dos processos de luta mais amplos ou como
existe um constitucionalismo transforma- resultado de iniciativas isoladas desenhadas
dor19? Voltarei sobre este tema20. para experimentar com formas alternativas de
A terceira classe de emergência consiste nas construção de coletividades. Tais alternativas
zonas liberadas. Estas são espaços auto-orga- podem ser experimentadas segundo uma lógi-
nizados conforme os princípios e regulações ca de confrontação ou uma lógica de existência
radicalmente opostos aos que prevalecem nas paralela. Vistas do exterior, as zonas liberadas
sociedades capitalistas, colonialistas e patriar- parecem combinar a experiência social com a
cais. As zonas liberadas são comunidades con- experimentação social. Por isso, caracterizam-
sensuais, baseadas na participação de todos os -se pela dimensão educativa: são concebidas
seus membros. São de natureza performativa, como processos de autoeducação. Hoje, tanto
prefigurativa e educativa. Consideram-se uto- nas áreas rurais quanto nas urbanas, existem
pias realistas, ou melhor ainda, heterotopias21. muitas zonas liberadas, a maioria são de di-
mensões pequenas, algumas são de longa du-
ração, outras são relativamente efêmeras. As
17 Para uma síntese do meu enfoque e uma refle-
comunidades neozapatistas da Sierra Lacando-
xão sobre isto, ver Twining (2000: 194-243) e Santos
(2015a: 115-42). na no Sul do México, que se fizeram famosas
internacionalmente depois de 1994, podem ser
18 Este é o título do último capítulo do meu livro To-
wars a New Legal Common Sense (2002: 439-96). consideradas zonas liberadas e, portanto, ofe-
recem um campo vasto para a sociologia das
19 Ver Santos (2010).
20 No meu trabalho anterior, ofereço uma análise de-
talhada das concepções contrahegemônicas dos direi-
tos humanos. Ver Santos (2005: 1-26; 2007b: 3-40).
21 Inspirado em Foucault, trato com heterotopias em
Santos (1995: 479-482).
328 Boaventura de Sousa Santos

emergências22. O movimento de indignados23 de mais justa, pequenos grupos se organizam


que aconteceu depois de 2011, por momentos para viver experimentalmente, ou seja, para
deu lugar à constituição de zonas liberadas, al- viver hoje como se hoje for o futuro ao qual
gumas das quais subsistiram como formas de aspiram e porque já não querem esperar mais.
vida associativa e cooperativa muito depois de Aqui radica seu caráter prefigurativo. Quando
ter finalizado o movimento. Rojava, as comuni- não são meros atos de diletantismo social, ou
dades autônomas no Curdistão sírio, também seja, quando são genuínas e implicam riscos e
pode ser considerada como uma zona liberada custos, as zonas liberadas são particularmente
organizada conforme os princípios anarquistas, prefigurativas e promovem a cultura autodi-
autonomistas, antiautoritários e feministas24. A data. Em um momento em qual a ideologia do
grande maioria das zonas liberadas, em particu- neoliberalismo proclama que o capitalismo, o
lar as compostas por população urbana jovem, colonialismo e o patriarcado são a maneira na-
derivam de um sentimento de impaciência his- tural da vida, as zonas liberadas o refutam, mes-
tórica25. Cansados de esperar por uma socieda- mo desde as áreas restringidas nas quais acon-
tecem. A emergência se encontra na natureza
performativa e prefigurativa da rebelião.
22 A especificidade notável da experiência neozapa-
tista é que constitui uma zona liberada também no nível
epistemológico. Ver Santos, 2018. A ecologia dos saberes
23 Analizei este movimento em Santos (2015) e a tradução intercultural
24 Ver Dirk et al. (2016). A ecologia de saberes e a tradução intercul-
25 Muitas iniciativas de vida social autônoma, supos- tural são as ferramentas que convertem à di-
tamente livres de dominação capitalista, colonialista e versidade de conhecimentos visibilizados pela
patriarcal aconteceram na Europa desde os anos ses- sociologia das ausências e a sociologia das
senta, a partir dos movimentos autonomistas na Itália, emergências em um recurso poderoso que, ao
os movimentos de ocupação ou tomada na Alemanha,
fazer possível a inteligibilidade ampliada dos
na Espanha, nos Países Baixoe e na Polônia, e o movi-
mento de centros sociais no Reino Unido. Ver Martínez
(2006: 379-98); Hodkinson e Chatterton (2006: 305-15);
Polanska e Piotrowski (2015: 274-96). Estas iniciativas ca da suspeita, já que frequentemente há uma discre-
devem ser analisadas de acordo com uma hermenêuti- pância entre os que os promotores dizem e o que fazem.
Introdução às epistemologias do Sul 329

contextos de opressão e resistência, permite comum e visões alternativas. Tais esclareci-


articulações mais amplas e profundas entre mentos são importantes para as decisões sobre
as lutas que combinam as diversas dimensões alianças entre grupos sociais e as articulações
ou tipos de dominação de diferentes maneiras. das lutas terem uma base sólida e para definir
A ecologia de saberes compreende dois mo- iniciativas concretas a respeito de suas possibi-
mentos. O primeiro consiste em identificar os lidades e seus limites.
principais corpus de conhecimento que, se são
debatidos em uma luta social dada, poderiam Dois tipos de tradução intercultural
destacar dimensões importante de uma luta
À medida que permite a articulação entre
ou resistência concreta: contexto, reclamos,
diferentes movimentos sociais e lutas, a tradu-
riscos e oportunidades, etc. Tal diversidade é
ção intercultural contribui para tornar a diver-
muito menos glamorosa no terreno da luta que
sidade epistemológica e cultural do mundo um
na teoria. De fato, pode ser paralisadora. Pode
fator de capacitação favorável que fomenta a
provocar uma cacofonia de ideias e perspecti-
articulação entre as lutas contra o capitalismo,
vas que são absolutamente incompreensíveis
o colonialismo e o patriarcado. A tradução in-
para alguns dos grupos implicados, realçando
tercultural não é um exercício intelectual in-
deste modo a opacidade de: “o que está em
dependente da luta social, nem é ativada por
jogo” e “o que tem de fazer”. Também pode
alguma direção cosmopolita diletante. Antes é
levar a uma análise teórica, política e cultural
uma ferramenta que, sob a premissa de reco-
recargada que fica encurralado entre uma ex-
nhecer as diferenças, enfoca-se em promover
cessiva lucidez intelectual e uma extremada
o suficiente consenso básico para permitir que
precaução e ineficiência. Considerando isto, a
tanto lutas quanto riscos sejam compartilha-
ecologia de saberes tem de ser complementa-
dos. Dado que não é um exercício intelectual,
da com a tradução intercultural e interpolítica.
não precisa ser realizado por militantes com
Esta última especificamente pretende realçar
“perfil intelectual” ou por “intelectuais orgâni-
a inteligibilidade recíproca sem dissolver a
cos”, como Antonio Gramsci denominou aos
identidade, portanto, ajuda a identificar com-
membros conscientes ou politizados da classe
plementariedades e contradições, pontos em
trabalhadora durante os anos vinte europeus.
330 Boaventura de Sousa Santos

Muito do trabalho de tradução intercultural cultural pode ser difusa ou didática. A tradu-
acontece nas reuniões ou ateliês militantes ção intercultural difusa é a mais frequente.
dedicados à formação, à educação popular e Acontece, como mencionei, de modo bastante
ao empoderamento, e realiza-se com interven- informal e como uma dimensão do trabalho
ções dos diferentes participantes, mas sem cognitivo coletivo. Caracteriza-se por sua flui-
nenhum protagonismo especial. Por esta ra- dez, anonimato e oralidade. Esta é a classe de
zão, a respeito do construir resistência e lutas tradução intercultural que acontece nos ateliês
sociais, a tradução intercultural também não da Universidade Popular dos Movimentos So-
é uma atividade particularmente individuali- ciais (UPMS). A segunda classe é a tradução in-
zada. É uma dimensão de trabalho cognitivo tercultural didática. Tem lugar quando se com-
sempre que estiverem presentes as ecologias binam, por um lado, o individual e o coletivo, e
dos saberes, os intercâmbios de experiências, por outro, a oralidade e a escritura. Trata-se de
a valorização das lutas (próprias e alheias) e situações nas quais os líderes de movimentos
um exame prudente do conhecimento que os ou organizações se destacam por seu trabalho
grupos sociais dominantes mobilizam para iso- de tradução para fortalecer as lutas sociais em
lar ou desarticular os oprimidos. O trabalho de que estão comprometidos. Sua individualidade
tradução intercultural tem uma dimensão de não é individualista; expressa uma vontade co-
curiosidade, ou seja, fomenta a abertura a no- letiva e está dirigida a fortalecer a luta contra
vas experiências. No entanto, essa curiosidade a dominação econômica, social, cultural e po-
não nasce de uma curiosidade diletante, senão lítica. Pelo mesmo motivo, a oralidade, ainda
da necessidade. Na grande maioria dos casos, que prevaleça na prática da luta e organização
o trabalho de tradução intercultural é levado a políticas, é complementada pela reflexão escri-
cabo anonimamente por grupos, e em intera- ta e publicada.
ções orais informais. Segundo o critério de conhecimentos ou cul-
É possível distinguir várias classes de tradu- turas partícipes na tradução, é particularmente
ção intercultural, tanto a respeito dos proces- relevante distinguir duas classes de tradução:
sos de tradução quanto aos tipos de saberes ou traduções Sul-Norte ou Norte-Sul e traduções
culturas que compõem os objetos de tradução. Sul-Sul. As primeiras acontecem entre os sabe-
Segundo o critério anterior, a tradução inter- res ou culturas do Norte global (eurocêntrico,
Introdução às epistemologias do Sul 331

ocidental) e o Sul global, incluído o Leste; as mologias do Sul. Devido às formas desiguais e
segundas acontecem entre as diferentes cultu- interrelacionadas em que os três modos de do-
ras e saberes do Sul global. Situar os saberes minação modernos se articulam, nenhuma luta
e as culturas conforme às diferentes regiões social, por muito forte que seja, pode ter suces-
epistêmicas do mundo não significa em abso- so caso se concentrasse só em um dos modos
luto nos enfrentarmos a mônadas leibnizianas, de dominação. Não importa quão forte seja a
ou seja, estruturas completamente autônomas luta das mulheres contra o patriarcado, nunca
e dissímiles que, portanto, estão dotadas de conseguirá um sucesso significativo se for uni-
“razão suficiente”. Depois de tantos séculos camente lutar contra este, sem levar em conta
de intercâmbios e movimentos transnacionais que o patriarcado, assim como o colonialismo,
de povos e ideias, exponencialmente amplia- é hoje um componente intrínseco da dominação
das nas últimas décadas pelas tecnologias da capitalista. Por outra parte, assim concebida, tal
informação e da comunicação, já não existem luta pode eventualmente reclamar o sucesso ou
entidades sem levar em conta influências, mes- a vitória por um resultado que, de fato, implique
tiçagens e hibridações. Falamos de regiões cul- maior opressão de outros grupos sociais, em
turais ou epistêmicas como conjuntos de esti- particular daqueles que são vítimas da domina-
los, problemáticas, prioridades de pensamento ção capitalista ou colonialista. Isto vale também
e de ação, regiões que possuem alguma identi- para a luta levada a cabo pelos trabalhadores
dade em comparação com outras. que se centram só na luta contra o capitalismo,
A ecologia dos saberes e a tradução inter- ou a lutas das vítimas de racismo que se centram
cultural foram objeto de análise detalhada nas exclusivamente no colonialismo.
Epistemologias do Sul I (Santos, 2014: 188-235). Daí a necessidade de construir articulações
entre os diferentes tipos de lutas e resistên-
O artesanato das práticas cias. Existem muitas classes de articulações
possíveis, mas as três principais que devem
O artesanato das práticas é o auge do tra-
ser consideradas se distinguem segundo a na-
balho das Epistemologias do Sul. Consiste em
tureza abissal ou não abissal da exclusão: 1)
desenhar e validar as práticas de luta e resistên-
a articulação entre as diferentes lutas, em que
cia realizadas segundo as premissas das Episte-
todas lutem contra as exclusões abissais; 2) a
332 Boaventura de Sousa Santos

articulação entre as diferentes lutas, em que cativa de liberdade e criatividade. A verdade é


todas lutem contra as exclusões não abissais; que o trabalho político subjacente às articula-
3) a articulação entre as lutas contra as exclu- ções entre as lutas, quando se realizar sob as
sões abissais e as lutas contra as exclusões não Epistemologias do Sul, tem muitas afinidades
abissais. A construção de alianças é sempre com o trabalho artesanal. Também é verdade,
complexa e depende de muitos fatores, alguns a respeito do trabalho cognitivo (científico e
dos quais podem não ter nenhuma conexão di- não científico), que se realiza para fortalecer e
reta com a natureza abissal ou não abissal da expandir tal trabalho político26. As regras po-
exclusão social presente. Estes incluem fato- dem ser ou não respeitadas, sempre que tiver
res como a possível escala da aliança (local, liberdade quanto a como respeitar as regras, se
nacional, transnacional), a diferença cultural, tal for a decisão; não são considerados confli-
a intensidade específica do sofrimento injusto tos, compromissos ou resoluções, nem sequer
causado por uma exclusão social particular, o planos transcendentais importantes ou opções
tipo e grau de violência com o qual a luta pode de mudança social, que tenham privilégios le-
chegar a ser reprimida. gislativos; são consideradas as determinações,
Os instrumentos ou recursos das Epistemo- mas não o determinismo. Com frequência o
logias do Sul, analisados com antecedência, caos é o contexto operativo. Aborrecem-se os
criam as condições para que ditas articulações partidos e outras formas de burocracia por atar
sejam possíveis. No entanto, a maneira parti- as mentes e as mãos (pensamento e discurso) e
cular na qual realmente acontecem no cam-
po requer um tipo de trabalho político que é
similar ao artesanato e ao trabalho artesanal. 26 Em Santos, 2018, concebo as metodologias como
artesanatos e trabalho artesanal. Sustento que o cien-
O artesão não trabalha com modelos estanda-
tista social formado pelas Epistemologias do Sul é um
rizados; o artesão nunca produz duas peças artesão. As Epistemologias do Norte, em particular
exatamente iguais: a lógica da elaboração ar- quanto a seu impacto na teoria crítica, especialmente o
tesanal não é mecânica; antes é a repetição- marxismo, sempre estiveram a favor dos grandes planos
-como-criação. Os processos, as ferramentas e modelos, e da mecanização, da uniformização, da es-
tandarização; em última instância, estão a favor de subs-
e os materiais impõem algumas condições,
tituir as mãos por máquinas, sem importar se as “mãos”
mas deixam espaço para uma margem signifi- são partidos, programas, regulamentos ou estatísticas.
Introdução às epistemologias do Sul 333

por dificultar a improvisação e a inovação. Nos Hodkinson, S.; Chatterton, P. 2006 “Autonomy
referimos a um trabalho extremamente especí- in the city? Reflections on the social centres
fico que mantém o universalismo na linha. Seu movement in the UK” in City: Analysis of
objetivo principal é a luta pela liberação contra Urban Trends, Culture, Theory, Policy,
o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado, Action (Londres: Routledge) V. 10, Nº 3, pp.
enquanto se assegura de que inclusive a luta 305-315.
política opere como testemunho de dito objeti- Hui, A. 2016 The Poetics of Ruins in
vo e se torne, assim, uma zona liberada. Renaissance Literature (Nova Iorque:
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334 Boaventura de Sousa Santos

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Introdução às epistemologias do Sul 335

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Parte II

Teoria social para


outro mundo possível
Apresentação
Reinventando a imaginação sociológica
para rebeldias competentes
João Arriscado Nunes

N o conjunto da vasta, original e diversifica-


da obra de Boaventura de Sousa Santos,
não é fácil escolher entre as suas contribuições
práticas através dos quais os oprimidos e opri-
midas do mundo enfrentam as diferentes for-
mas de opressão e de exclusão de que a ciência
que constituem marcos para a sociologia e a hegemónica — incluindo as ciências sociais —
reinvenção da imaginação sociológica. A origi- tem sido historicamente cúmplice, pelos seus
nalidade e relevância de uma obra caracteriza- silêncios, exclusões e desqualificações, mas
da pela contínua (re)criação torna-se presente também pela sua participação, por ação ou
no modo como diferentes temas, conceitos e omissão, na longa história da dominação capi-
contribuições que, ao mesmo tempo, interpe- talista, colonialista e patriarcal.
lam, desconstroem e reconstroem o espaço A sociologia de Boaventura, nos diferentes
disciplinar da sociologia (e das ciências sociais momentos de uma elaboração continuada,
em geral) e rompem as suas fronteiras, abrem aponta para o que o autor designa de prática
um imenso e inesgotável espaço de encontros, de intelectual de retaguarda, recusando o van-
confrontos e diálogos, para além do mundo guardismo intelectual e a afirmação da supre-
dos saberes canónicos da ciência. Essa obra macia epistémica dos saberes legitimados pela
não representa, pois, apenas uma contribuição ciência. Podemos ver como essa prática se foi
marcante para o corpus das ciências sociais; definindo em cada um dos conjuntos de tex-
ela propõe e pratica, de maneira exemplar, um tos que compõem as secções desta antologia.
outro modo de fazer ciência, um modo edifi- A sua divisão temática não consegue resistir,
cante e solidário, que respeita e diálogo com a contudo, à permanente transgressão de frontei-
imensa riqueza que representam os saberes e ras que faz de cada um dos temas um território
340 João Arriscado Nunes

diverso, aberto, que interroga as manifestações direito (espaços doméstico, da produção,


do cânone monocultural do saber ocidental e do mercado, da comunidade, da cidadania
das suas implicações políticas, sociais, cultu- e mundial), descentrando a análise destes
rais e epistemológicas. da ênfase no poder e no direito no espaço
Sem a preocupação de uma impossível nacional e explorando as formas interesca-
exaustividade, é pertinente a identificação de lares das relações de poder e do direito.
alguns dos temas que dão corpo às principais –– A distinção entre formas de globalização
inovações teóricas e desafios que a obra de hegemónica (localismo globalizado, glo-
Boaventura lança à imaginação sociológica, balismo localizado) e contra-hegemónica
e que vamos encontrar em diferentes secções (cosmopolitismo, património comum da
desta antologia. humanidade) e a sua centralidade para a
compreensão da transformação social no
1. Os processos, espaços e escalas mundo contemporâneo, numa perspectiva
da transformação social interescalar.
–– A reformulação, a partir do caso de Portu-
gal e do colonialismo português, da teoria 2. Formas de dominação e opressão
do sistema mundial, e especialmente do
–– O reconhecimento do capitalismo, do colo-
conceito de semiperiferia, conferindo a este
nialismo e do patriarcado como formas prin-
uma densidade e sensibilidade à especifici-
cipais de dominação e opressão no mundo
dade das suas articulações históricas, em
moderno, contra a redução tendencial da
particular no respeitante às formas de rela-
origem da opressão ao capitalismo, presente
cionamento entre Estado e sociedade, assim
em certas visões ortodoxas do marxismo.
como a singularidade histórica e sociológica
do colonialismo português, como colonialis- –– A crise do contrato social e a emergência
mo dependente e de intermediação, associa- de novas formas de fascismo social (territo-
do à condição semiperiférica de Portugal. rial, do apartheid social, contratual, da inse-
gurança, financeiro), distintas do fascismo
–– A identificação dos diferentes modos de pro-
político e podendo coexistir com formas de
dução e espaços estruturais do poder e do
democracia de baixa-intensidade.
Parte II: Apresentação 341

–– A tensão regulação-emancipação e a tensão


3. Processos de identificação, apropriação-violência — o seu duplo invisi-
subjetividades e memória bilizado — como centrais aos processos de
–– A concepção não essencialista das identi- constituição histórica e de transformação
dades como processos de identificação em dos dois lados de uma divisão abissal entre
curso, a partir dos conceitos de raízes e de zonas de sociabilidade metropolitana e zo-
opções e das suas tensões. nas de sociabilidade colonial.
–– A emergência de novas formas de subjetivi-
dade baseadas nas metáforas do Barroco, do Os textos
Sul e da Fronteira. Os textos desta secção foram escolhidos
–– O resgate das memórias de lutas passadas, a como exemplares de algumas das direções
ampliação do presente e a heterotopia. que marcam e deixam reconhecer as perspe-
tivas que Boaventura propõe, abrindo novos
territórios de produção conjunta de saberes e
4. Do pós-moderno ao pós-colonial
práticas, nas lutas pela emancipação e por um
e ao pensamento alternativo de
cosmopolitismo insurgente.
alternativas
Produzidos em diferentes momentos, reto-
–– A tentativa (sem sucesso) de distinção entre mados, revistos e republicados ao longo dos
o pós-moderno afirmativo (já não há proble- anos, mas conservando o seu poder desafian-
mas modernos) e o pós-modernismo de opo- te e a sua originalidade, estes textos aparecem
sição (há problemas modernos, mas não há como exemplares de trajetórias de interro-
soluções modernas para eles). gação e exploração do mundo que coexistem
–– A crítica do viés eurocêntrico do debate so- temporalmente e interferem mutuamente, con-
bre o pós-moderno, a reflexão crítica sobre fluindo para uma reinvenção rebelde — e não
o pós-colonial e a construção de um pensa- conformista — da imaginação sociológica e da
mento alternativo de alternativas baseado no prática da sociologia.
reconhecimento da diversidade do mundo, Os textos aqui incluídos são exemplares das
das suas experiências e dos seus saberes. ideias matriciais e linhas de força do pensa-
342 João Arriscado Nunes

mento sociológico de Boaventura, expressas das ciências sociais, rompendo com os limites
em diálogos com as situações, as lutas e as de disciplinas centradas nas concepções epis-
experiências que as alimentam, sempre reno- temológicas, políticas e normativas ocidentais
vadas por um compromisso continuado e so- e eurocêntricas, e convertendo-as em contri-
lidário com aqueles e aquelas que sofrem, os buições para um saber a reinventar através dos
habitantes desse Sul que, como nos diz o autor, seus encontros com a diversidade dos saberes,
para além da sua expressão geográfica, é uma práticas sociais e concepções de justiça exis-
metáfora para o sofrimento global, desneces- tentes no mundo diversificado e desigual de
sário e injusto, mas também uma fonte inesgo- hoje, mas também da experiência dos passados
tável de experiências, saberes e práticas que de sofrimento e de luta a resgatar.
procuram resistir, enfrentar e vencer as opres- Os conceitos inovadores que Boaventura
sões impostas pelo capitalismo, o colonialismo propõe emergem de um diálogo permanente
e o patriarcado, nas diferentes manifestações com as diferentes manifestações do que desig-
e formas que têm assumido ao longo da sua na de problemas fundamentais, e de uma conti-
história. A invocação da neutralidade como nuada explicitação dessas manifestações. Esse
condição de um conhecimento objetivo é uma diálogo continuado alimenta perguntas incó-
justificação para a cumplicidade com a violên- modas às ciências sociais: estarão estas prepa-
cia e a opressão. Por isso, a ciência social que radas para lidar com esses problemas, ou terão
defende e pratica Boaventura é um exercício elas perdido o rumo? Poderão elas reconhecer
solidário, de compromisso com a produção de que não há respostas modernas para proble-
saberes que resgatem as experiências de quem mas modernos? Por outras palavras, poderão
é oprimido, daqueles e daquelas a quem é ne- as ciências sociais contribuir para a procura de
gado o reconhecimento da sua humanidade e soluções aos problemas de hoje, ou serão elas
da sua dignidade, e que tome como critério de parte desses problemas?
validação e de objetividade as suas consequên- Estado e Sociedade na Semiperiferia do
cias para as populações, comunidades, grupos Sistema Mundial (1985)1, Entre Próspero e
sociais e pessoas que sofrem.
A resposta a este desafio passa pelo proces-
1 As datas entre parênteses são as da publicação da
so de descanonização e desmonumentalização versão original de cada texto.
Parte II: Apresentação 343

Caliban (2001) e As identidades das crises e das suas ferramentas metodológicas, a ca-
(2011) mostram exemplarmente o modo de racterização de Portugal procurou elucidar as
reconstrução de categorias, conceitos e qua- alegadas carências ou desvios em relação aos
dros teóricos canónicos a partir da densidade e modelos canónicos, seja das sociedades ditas
exemplaridade de casos como o de Portugal e desenvolvidas, seja das sociedades ditas sub-
da especificidade da sua posição e trajetória na desenvolvidas ou em vias de desenvolvimento.
semiperiferia do sistema mundial moderno, en- Caracterizar uma sociedade, uma comunidade
tre a condição de sede de um império colonial ou um povo através daquilo que não é ou das
— que aparece como uma anomalia perante suas carências em relação às sociedades con-
as experiências de outros colonialismos, hoje sideradas desenvolvidas ou centrais nega a im-
parte das histórias dominantes dos colonialis- portância da história e das experiências e lutas
mos europeus — até à de membro de um bloco que atravessam e marcam essa sociedade, essa
regional central do sistema, a União Europeia. comunidade, esse povo. O reconhecimento e o
Estes exercícios de uma sociologia atenta à respeito por essas experiências e lutas é cen-
história e às experiências de Portugal e do co- tral na reconstrução do pensar e agir sociológi-
lonialismo português como da experiência da co de Boaventura.
crise financeira, econômica, social e política da O resgate e reinvenção do conceito de glo-
última década, demonstram como as unidades balização (Os processos de globalização, 1995),
de análise canónicas consagradas pela disci- que nas últimas décadas se tornou, nas ciên-
plina sociológica — como o Estado-nação — cias sociais, uma espécie de chave-mestra para
e os quadros teóricos e conceptuais que esta a compreensão da transformação social na vi-
privilegia, mais do que inadequados, silenciam ragem para o século XXI, aparece como outro
e invisibilizam a especificidade de experiências importante exemplo do modo como Boaven-
históricas que divergem das dominantes — por tura repensa e põe à prova as ferramentas da
exemplo, o fenómeno da sociedade-providên- sociologia canónica.
cia como modo de responder às insuficiências A exploração de experiências de enfrenta-
da provisão de serviços pelo Estado e a impor- mento dos processos de globalização pelas so-
tância que nesta assume a pequena agricultura. ciedades locais permitiu problematizar a ideia
A partir desses quadros teóricos e analíticos de um processo linear, abrangente e irresistí-
344 João Arriscado Nunes

vel, caracterizado pela expansão e dominação niais (Para além do pensamento abissal, 2007).
planetária do capitalismo neoliberal e do mo- Esse silenciamento tem levado à persistência
delo de ordem global plasmado no chamado de uma deriva eurocêntrica nas ciências so-
Consenso de Washington. A distinção entre as ciais, confortada por um universalismo pronto
várias dinâmicas de globalização — económica a vestir — que esquece ou invisibiliza os modos
e financeira, política, social, cultural — e entre e condições de vida, os saberes, a opressão e os
diferentes formas de globalização — globalis- sofrimentos da maioria da população mundial
mo localizado, localismo globalizado, cosmo- —, pela subordinação da emancipação social à
politismo e património comum da humanidade regulação social e por uma problemática con-
— permite identificar diferenças entre proces- ceção da relação entre raízes e opções, ou seja
sos de globalização hegemónica e de globaliza- das condições de uma mudança social que não
ção contra-hegemónica, estes configurando a seja caracterizada pela devastação ecológica,
emergência de um cosmopolitismo subalterno, pela predação, pelo extrativismo, pelo episte-
de resistência à globalização hegemónica e ao micídio e pela eliminação física dos menos-do-
neoliberalismo, e criando um novo espaço de -que-humanos que habitam as zonas coloniais,
lutas e de emergência de alternativas eman- marcadas, não pelas dinâmicas da regulação e
cipatórias, que só podem ser entendidas nas emancipação — como as zonas metropolitanas
interferências e relações entre escalas. Esta —, mas pelas da apropriação e da violência. Daí
reconstrução do tema da globalização, por sua o desafio — e o imperativo — de reinventar a
vez, conduz a uma proposta de redefinição do emancipação como o outro da regulação, atra-
sistema mundial moderno, com as suas hierar- vés de um diálogo permanente entre uma nova
quias de centros, semiperiferias e periferias, forma de teorizar e as experiências emancipa-
como sistema mundial em transição. tórias, dos dois lados da linha abissal, que ali-
Um problema silenciado, invisibilizado ou mentam essa teorização, uma teorização sem
suprimido pelas ciências sociais eurocêntricas pretensão de generalização ou universalização,
é o da existência histórica e que persiste no para além da dupla reforma-revolução, uma
presente, para além do final do colonialismo transformação simultaneamente epistemoló-
histórico, de uma linha abissal que divide socia- gica e societal, de construção de novos mapas
bilidades metropolitanas e sociabilidades colo- emancipatórios e de novas subjetividades.
Parte II: Apresentação 345

O saber pós-abissal que está no horizonte da para o resgate do passado e para manter aberto
obra de Boaventura interroga e problematiza o futuro, contra o conformismo das proclama-
as diferentes manifestações, nas ciências so- ções do fim da história e da ordem neoliberal.
ciais modernas, da equação raízes-opções, do Aqui se encontra uma importante pista para en-
seu jogo e de como elas se distribuem de ma- tender desenvolvimentos posteriores sobre a
neira distinta nos dois lados da linha abissal, globalização e sobre a diversidade de experiên-
enquanto “grande narrativa da inteligibilidade cias e seu desperdício. Portugal ocupa, assim,
social”, manifesta tanto nos seus conceitos (as um lugar singular na reinvenção da imaginação
dualidades estrutura-ação, consciente-incons- sociológica que virá a ter em A queda do An-
ciente, significante-significado, etc.), como nos gelus Novus (1996) uma das suas formulações
seus objetos (Estado-nação, direito positivo, mais poderosas.
por exemplo). A esta grande narrativa se con- A contraposição com o ethos barroco que
trapõe, hoje, num período de bifurcação que permeia a globalização contra-hegemónica,
se afasta da linearidade da ideia de progresso, pensada a partir da “outra” América, a Nues-
uma dinâmica marcada pela turbulência de es- tra América de José Martí — contraposta à
calas, a explosão de raízes e opções e a triviali- hegemonia da América como expressão última
zação da equação entre raízes e opções. da Europa, como afirmava Hegel —, confere
O processo de descanonização das ciências à América Latina um lugar central, e simulta-
sociais (incluindo a sociologia), das concep- neamente em permanente descentramento e
ções epistemológicas, políticas e normativas proliferação. Mas a Nuestra América é parte
ocidentais e eurocêntricas, conduz à proposta de um mundo da contra-hegemonia, que pen-
da sua transformação em parte de um saber a sa e age a partir de outras histórias, espaços
reinventar através dos seus encontros com es- e experiências. A ideia de uma emancipação
ses problemas fundamentais, e com a diversida- social baseada no meta-direito de ter direitos
de dos saberes, práticas sociais e conceções de e no equilíbrio dinâmico entre o reconheci-
justiça existentes no mundo que procura, com mento e a redistribuição, condições mútuas
ele lidar, no mundo diversificado e desigual de do sucesso de uma estratégia de emancipação,
hoje e no de passados a resgatar. Ele contribui nasce do encontro com essas experiências. A
para a amplificação e densificação do presente, subjetividade e as formas de sociabilidade as-
346 João Arriscado Nunes

sociadas ao ethos barroco da Nuestra América vas relações de sociabilidade e de dominação


aparecem como exemplos do que podem ser coexistem com a democracia política de baixa
as formas de subjetivação e sociabilidade que ou baixíssima intensidade, e que se caracteriza,
recriam a utopia como heterotopia (Nuestra sobretudo, pela exclusão de qualquer forma de
América, 2001). contrato social, pela dominação generalizada
A reinvenção da imaginação sociológica que do mercado e pela desestabilização das expec-
percorre todos os textos propõe e pratica um tativas. Entre o fascismo do apartheid social,
outro modo de pensar a história, a relação en- o fascismo territorial, o fascismo contratual,
tre as experiências do presente, as expectativas o fascismo da insegurança e o fascismo finan-
do futuro e o resgate de passados que foram si- ceiro, o estado de emergência tornou-se uma
lenciados ou ativamente produzidos como não- experiência permanente para grande parte da
-existentes, mas que podem ressurgir em fulgu- população mundial, no Norte e no Sul, associa-
rações, em momentos de grande perigo, como já do a uma crise que, na versão neoliberal, não
defendia Benjamin; uma reinvenção do passado, tem fim. Contra estas ameaças, é na ação-com-
“converter o passado em razão antecipada da -clínamen, oposta à ação conformista, que se
nossa raiva e do nosso conformismo”, através de manifestam as forças capazes de transformar
imagens desestabilizadoras, procurando com- a crise em momento de transformação. Mas,
preender as condições da união na diversidade, como nota Boaventura, sendo a “ocorrência da
e assim promovendo o equilíbrio entre união e ação-com-clínamen em si mesma inexplicável”,
separação. Entre a sociologia das ausências e a caberá às ciências sociais o papel modesto de
sociologia das emergências abre-se assim um es- “identificar as condições que maximizam a pro-
paço para uma outra prática da sociologia. babilidade de tal ocorrência, e, ao mesmo tem-
O tema omnipresente da crise e da sua nor- po, definir o horizonte de possibilidades den-
malização, passando da condição de algo a ex- tro do qual o desvio ‘operará’”. Haverá melhor
plicar à de explicação de tudo assume, nesta descrição do papel do/a sociólogo/a enquanto
perspectiva, contornos que recordam o alerta praticante da artesania, ao mesmo tempo res-
de Benjamin em 1940, perante a emergência peitosa, ousada e comprometida, do intelectual
do fascismo. Hoje, o fascismo assume novas de retaguarda?
formas, as de um fascismo social em que no-
O Estado e a sociedade na
semiperiferia do sistema mundial:
O caso português*

Introdução ficados. Embora, para os defensores da teoria


do sistema mundial, essas entidades intermé-
O período do pós-guerra deu origem a um
mundo que, durante três décadas, parecia
indiscutivelmente dividido em países desen-
dias que constituem a semiperiferia sempre
tenham existido, é actualmente reconhecido
volvidos e subdesenvolvidos. Com perspec- que, para além de uma maior variedade, elas
tivas diferentes e até antagónicas, as várias assumem uma importância crescente. A te-
teorias sociais que então surgiram — moder- oria social tem tentado caracterizá-las apli-
nização, desenvolvimento, imperialismo e de- cando uma variada série de conceitos: países
pendência — tentaram explicar essa divisão sem-industrializados, países recém-industria-
e determinar os contactos, os obstáculos, as lizados, centros atrasados, desenvolvimen-
relações complementares ou contraditórias to dependente e semiperiferia. Em segundo
existentes entre os dois polos. Essa situação lugar, as transformações internas dos países
parece ter-se alterado drasticamente. Em pri- desenvolvidos criaram neles condições so-
meiro lugar, surgiram em cena países com ciais semelhantes às que caracterizavam os
desenvolvimentos intermédios muito diversi- países menos desenvolvidos como, por exem-
plo, economias paralelas, sectores informais,
ineficácia dos mecanismos democráticos, cor-
rupção política, segmentação dos mercados
* Extraído de Santos, B. de Sousa 1993 “O Estado e a de trabalho, degradação da qualidade de vida,
sociedade na semiperiferia do sistema mundial: O caso
violência urbana, acentuação de desigualda-
português” in Santos, B. de Sousa (org.) Portugal: um
retrato singular (Porto: Afrontamento) pp. 15-56. des e novas e mais vastas formas de exclusão
348 Boaventura de Sousa Santos

e destituição social. Por outras palavras, o pão, o mundo tornou-se mais policêntrico, com
chamado terceiro mundo interno1. várias regiões a gravitar à volta de diversos cen-
Essas transformações são tão flagrantes que tros. Por outro lado, a periferia mundial frag-
alguns falam mesmo do aparecimento de uma mentou-se ainda mais, dando origem a formas
nova economia política internacional de inter- de exclusão social mais cruéis e a um crescente
dependência global, uma rede desorganizada e número de países semiperiféricos intermédios
quase caótica de fluxos desterritorializados de muito diferenciados em termos de padrões na-
capitais, serviços e pessoas num mundo sem cionais de desenvolvimento, de acordo com a
centro, que se reproduz numa miríade de rela- região do globo em que se localizam.
ções verticais e horizontais, instáveis e indeter- Convém ter ainda em conta a profunda inten-
minadas2. Como se verá a seguir, não partilho sidade que as interacções globais recentemen-
esta ideia, mas a verdade é que estas tendên- te adquiriram e que vai da transnacionalização
cias, que a sociologia comparada terá ainda dos sistemas de produção à difusão mundial
de captar, assinalam algumas transformações de informação e imagens através dos meios de
importantes no sistema mundial. Por um lado, comunicação social e às deslocações maciças
com os Estados Unidos da América obrigados de pessoas como turistas, trabalhadores emi-
a partilhar a hegemonia com a Europa e o Ja- grantes ou refugiados. Daí que a realidade so-
cial pareça transformar-se tão ou mais rapida-
mente do que os fundamentos epistemológicos
1 Dudley Seers e Albert Hirschman foram provavel- do conhecimento ou conhecimentos que sobre
mente os primeiros a afirmar que a economia do desen-
ela desenvolvemos. Com a intensificação da
volvimento e a sociologia do desenvolvimento só eram
defensáveis como disciplinas científicas se fossem apli- interdependência e da interacção globais, as
cadas quer aos países desenvolvidos, quer aos países relações sociais parecem, de modo geral, cada
menos desenvolvidos. Cfr. Mateus, 1987: 45. vez mais desterritorializadas, ultrapassando as
2 Esta ideia tem vindo também a ser defendida no fronteiras até agora policiadas pelos costumes,
campo cultural. Recentemente, Arjun Appadurai afir- o nacionalismo, a língua, a ideologia e, muitas
mou que “a nova economia cultural global tem de ser vezes, por tudo isto. Neste processo, o Estado-
encarada como uma ordem complexa, com justaposi-
-nação, cuja principal característica é, prova-
ções e disjunções, que já não pode ser explicada pelos
modelos tradicionais de centro e periferia” (1990: 6). velmente, a territorialidade, converte-se numa
O Estado e a sociedade na semiperiferia do sistema mundial: O caso português 349

unidade de interacção relativamente obsoleta parecem ser especialmente evidentes nos paí-
ou, pelo menos, relativamente descentrada. ses de desenvolvimento intermédio. Aí — quer
Por outro lado, porém, e aparentemente em se trate de Portugal, da Irlanda, da Espanha e da
contradição com esta tendência, assiste-se a Grécia, ou do México e do Brasil—, a excessiva
um desabrochar de novas identidades regio- tensão a que a dialéctica entre territorialização
nais e locais alicerçadas numa revalorização e desterritorialização está sujeita confere um
do direito às raízes (em contraposição com o cunho particularmente instável à combinação
direito à escolha). Este localismo, simultanea- das características paradigmáticas. É isso, mui-
mente novo e antigo, outrora considerado pré- to particularmente, o que acontece nos países
-moderno e hoje em dia reclassificado como intermédios da Europa, visto que a sua compo-
pós-moderno, é com frequência adoptado por sição social está a ser duplamente reconstru-
grupos de indivíduos “translocalizados”, não ída: como países periféricos de uma das mais
podendo por isso ser explicado por um genius importantes regiões do sistema mundial (a
loci ou um sentido de lugar único. Contudo, periferia europeia) e como membros de ple-
assenta sempre na ideia de território, seja ele no direito do centro dessa região (a CEE, hoje
imaginário ou simbólico, real ou hiper-real3. A UE). Entre todos esses países, Portugal é talvez
dialéctica estabelece-se, portanto, entre terri- o exemplo mais elucidativo de uma complexa
torialização e desterritorialização. combinação de características sociais paradig-
As novas condições para uma investigação maticamente opostas, uma configuração feita e
sociológica comparada que acabo de enunciar refeita no curto-circuito histórico dos últimos
quinze anos, em que convergiram e se fundiram
temporalidades sociais muito distintas: cinco
3 Esta reterritorialização ocorre, geralmente, num
séculos de expansão europeia, dois séculos de
plano infra-estatal, mas pode também ocorrer num pla-
no supra-estatal. Exemplo deste último caso é a Comu- revoluções democráticas, um século de movi-
nidade Económica Europeia, que está a desterritoria- mento socialista e quarenta anos de Estado-
lizar as relações sociais no plano do Estado nacional -providência. No início de 1974, Portugal era
para as reterritorializar num plano supra-estatal (pelo um dos países menos desenvolvidos da Euro-
modo como afirma a identidade europeia e a defende
pa e o mais antigo império colonial europeu.
em relação a terceiros, sejam eles outros blocos regio-
nais ou simplesmente os refugiados). O regime autoritário de mais longa duração da
350 Boaventura de Sousa Santos

Europa foi derrubado por uma revolução sem em 1974, Portugal tem vindo a renegociar
sangue, em 25 de abril desse mesmo ano, e, a sua posição no sistema mundial. Tudo
pouco depois, a maior mobilização popular de indica que essa posição semiperiférica vai
sempre na Europa do pós-guerra fazia incluir manter-se, desta vez devido à integração
o socialismo, como meta a atingir, nos progra- na CEE e às relações económicas e sociais
mas dos principais partidos políticos. Alguns privilegiadas com a África lusófona.
meses mais tarde, uma solução ambígua da 2. Depois de eliminado o regime de acumula-
crise revolucionária abriu um longo e tortuoso ção e de regulação social do Estado corpo-
caminho para um Estado-providência social- rativo, nenhum outro regime de acumulação
-democrático, justamente na altura em que, nos ou de regulação social se estabilizou nem
países centrais da Europa Ocidental e de todo criou rotinas de produção e de reprodução.
o mundo, o Estado-providência entrava numa Portugal tem vindo, assim, a passar por um
fase de grande perturbação. processo de transição com ritmos diferen-
Todas estas razões fazem de Portugal um tes conforme as áreas de prática social.
laboratório fascinante, embora muito comple-
3. Essa transição é patente em importantes
xo e com grandes dificuldades em termos de
contradições, disjunções e discrepâncias.
análise sociológica. Tendo presente a dialéc-
Duas merecem especial atenção: a) a dis-
tica entre territorialização e desterritorializa-
crepância entre produção capitalista e re-
ção, a estrutura analítica que aqui desenvolve-
produção social ou, por outras palavras,
rei conjuga a teoria do sistema mundial (que
entre o padrão de produção e o padrão de
capta a dinâmica da desterritorialização) e a
consumo; b) a discrepância entre as for-
perspectiva da regulação (que capta a dinâ-
mas institucionais do modo de regulação
mica da reterritorialização). Tentarei, assim,
fordista e a regulação fáctica, competitiva,
mostrar o seguinte:
predominantemente não fordista, da rela-
1. Portugal é uma sociedade semiperiférica
ção salarial.
da região europeia do sistema mundial. Du-
rante vários séculos essa posição semipe- 4. A diferenciação e a heterogeneidade so-
riférica assentou no império colonial por- cial e cultural decorrentes das condições
tuguês. A partir do seu desmantelamento, referidas têm sido reguladas pelo Estado.
O Estado e a sociedade na semiperiferia do sistema mundial: O caso português 351

A posição central do Estado na regulação 6. Os antigos e os recentes equilíbrios duma


social durante os últimos quinze anos jus- estrutura social e política tão complexa
tifica que se dê alguma prioridade analítica como esta estão a ser abalados, recombi-
aos aspectos sócio-políticos. Pela regula- nados, reinventados através do processo
ção estatal a que têm estado sujeitas, essas de integração na CEE. Nesta fase, a centra-
heterogeneidades e discrepâncias têm vin- lidade da actuação do Estado na regulação
do a inscrever-se na matriz institucional do social ficou a dever-se, em grande medida,
Estado, dando origem a um fenómeno que ao papel que ele protagonizou nas negocia-
traduzirei pelos conceitos de Estado para- ções que conduziram à adesão. O Estado
lelo e Estado heterogéneo. regula a dialéctica da identidade e da dife-
5. Como não foi possível institucionalizar rença entre Portugal e os países centrais
uma regulação fordista da relação sa- europeus, assumindo uma forma política
larial, tão-pouco foi possível institucio- a que chamo Estado-como-imaginação-do-
nalizar um Estado-providência. Neste -centro. A autonomia interna do Estado
aspecto, o Estado português é um semi- que, durante grande parte do período auto-
-Estado-providência ou quasi-Estado- ritário, assentou num modo de desenvolvi-
-providência. No entanto, o défice da pro- mento (ou antes, de sub-desenvolvimento)
vidência estatal é parcialmente coberto autárquico, hipernacionalista e isolacionis-
por uma sociedade-providência forte. ta, assenta agora no processo de integra-
Esta sociedade-providência, embora com ção na CEE e, por isso, num contexto de
origem em relações sociais e universos constante redução da soberania nacional.
simbólicos vulgarmente chamados pré- 7. O futuro da Comunidade Económica Euro-
-modernos, tem semelhanças com aquela peia é uma questão por resolver. No plano
sociedade-providência que Rosanvallon político, é ainda muito cedo para tentar
(1981; 1988), Lipietz (1989), Aglietta e sequer esboçar a configuração política do
Brender (1984), entre outros, têm tenta- futuro euro-Estado. No plano económico,
do ressuscitar e a que alguns chamariam a actual prioridade concedida à criação do
sociedade-providência pós-moderna. mercado interno não garante que ele venha
a ser também um mercado unificado. No
352 Boaventura de Sousa Santos

plano social, a pouca importância atribu- xima das características geralmente atribuídas
ída, presentemente, à chamada dimensão aos países centrais, noutros parece mais próxi-
social leva a supor que a Europa irá desen- ma das características do terceiro mundo.
volver-se, por muito tempo, a duas veloci- Em termos de indicadores sócio-económi-
dades. O período de transição da sociedade cos, Portugal ocupa uma posição intermédia
portuguesa justapõe-se, assim, ao período no sistema mundial. Embora pouco preciso, o
de transição da própria Europa. Qualquer PNB per capita é um desses indicadores. Num
previsão é, portanto, duplamente arrisca- estudo efectuado por Arrighi e Drangel (1986)
da. Contudo, sem esquecer esta precaução, sobre a evolução mundial do PNB per capita
ousaria talvez afirmar que, no caso de Por- nos últimos cinquenta anos, Portugal ocupa
tugal, é provável que um novo modo de re- uma sólida posição intermédia. Um outro indi-
gulação semiperiférico se venha a pouco e cador mais elucidativo é o grau de homogenei-
pouco a configurar e a estabilizar. dade entre a estrutura sectorial da produção
(agricultura, indústria e serviços) e a estrutura
do emprego. Com base neste indicador, a com-
A semiperiferia na intersecção do
paração entre vários países, no período de 1960
hiperlocal e do transnacional: a
a 1983, feita por Augusto Mateus (1987: 54) é
conjugação da teoria do sistema
reveladora da situação intermédia da socieda-
mundial com a perspectiva da
de portuguesa4.
regulação
Segundo a teoria do sistema mundial, a exis-
Se passarmos em revista o conhecimento tência de sociedades com graus intermédios de
que, nos últimos quarenta anos, as ciências so-
ciais acumularam sobre os países centrais, de-
senvolvidos, ou do primeiro mundo, e os países
4 Os números indicam também a longevidade dessa
periféricos, menos desenvolvidos, ou do tercei- situação em países como Portugal, Espanha e Irlanda.
ro mundo, verificamos que esse conhecimento Assim, os valores obtidos em 1983 para os países recen-
não consegue fornecer um quadro analítico temente industrializados, como o Brasil (38) e a Coreia
adequado à sociedade portuguesa. Se, em cer- do Sul (40), correspondem grosso modo aos valores
tos aspectos, a sociedade portuguesa se apro- obtidos em 1960 para os países europeus: Irlanda (28),
Portugal (38) e Espanha (42) (Mateus, 1987: 54).
O Estado e a sociedade na semiperiferia do sistema mundial: O caso português 353

desenvolvimento é uma característica relacio- os Estados semiperiféricos se caracterizam por


nal, estrutural e permanente do sistema mun- uma rede de actividades produtivas com um re-
dial5. A primeira formulação do conceito de lativo equilíbrio entre as produções do centro e
semiperiferia na obra de Wallerstein intitulada as da periferia, que lhes confere uma especial
O sistema mundial moderno (1974) é bastante capacidade de manobra institucional e políti-
esclarecedora a este respeito. Mais tarde, este ca dentro do sistema interestatal (1987: 180).
autor viria a sublinhar o conteúdo político da Mas, como sublinha W. Martin, “reconhecer a
semiperiferia. Os países semiperiféricos, de- persistência da semiperiferia levanta muitos
vido exactamente ao seu carácter intermédio, mais problemas do que aqueles que resolve”;
desempenham uma função de intermediação e a seguir Martin aponta as dúvidas que con-
entre o centro e a periferia do sistema mundial sidera mais importantes: “Se os Estados semi-
e, um pouco como as classes médias o fazem periféricos estão “a meio caminho entre as re-
nas sociedades nacionais, contribuem para ate- des centrais e as redes periféricas, como é que
nuar os conflitos e as tensões entre o centro e a se atinge e se mantém essa posição, perante
periferia. Nas próprias palavras de Wallerstein: forças tão fortemente polarizadas como as da
“Em momentos de expansão da economia- economia-mundo? Se a semiperiferia é mais do
-mundo, os Estados [semiperiféricos] ligam-se, que um simples problema estatístico de índices
como satélites, a uma determinada potência de desenvolvimento, como é que essa zona fun-
central e servem, até certo ponto, de correias cionou, ao longo dos anos, como parte de um
de transmissão e de agentes políticos de um mundo capitalista em desenvolvimento? Como
poder imperial” (1984: 7). e por que razão é que a semiperiferia, pelo me-
Nos últimos anos, o intenso estudo a que os nos no século XX, funcionou como terreno
países semiperiféricos foram submetidos levou preferencial de movimentos sociais, sindicais,
ao apuramento do conceito de semiperiferia. nacionalistas e anti-sistémicos?” (1990: 4).
Com base na investigação efectuada no Centro Não cabe aqui examinar em pormenor o
Fernand Braudel, Carlos Fortuna conclui que conceito de semiperiferia, e menos ainda o de
sistema mundial, do qual ele é parte integran-
te. Limitar-me-ei a salientar dois aspectos. O
5 Cfr. Fortuna, 1993. primeiro refere-se à regionalização da situa-
354 Boaventura de Sousa Santos

ção semiperiférica. De acordo com a teoria inequívoco da função periférica deste país re-
do sistema mundial, uma das características lativamente aos padrões de produção e de con-
estruturais da economia-mundo capitalista é sumo dos países centrais europeus (Mateus,
a concorrência entre os países do centro. Daí 1987: 55). Por outro lado, com a integração na
resulta uma divisão do sistema mundial em CEE, Portugal poderá acabar por desempenhar
regiões, em zonas de influência, formadas por uma nova função central relativamente às suas
um conjunto de países com fortes laços eco- ex-colónias africanas. Em ambos os casos,
nómicos, sociais, políticos e culturais, no cen- porém, as funções de intermediação são espe-
tro das quais está um ou mais do que um deles cíficas da história da Europa e são parte inte-
(actualmente Estados Unidos, Japão, Europa grante do desenvolvimento social de Portugal
Ocidental). Em meu entender, embora o tipo enquanto país europeu.
de intermediação geralmente desempenhado O outro aspecto que pretendo salientar
pelas sociedades intermédias seja definido glo- refere-se à caracterização das sociedades se-
balmente no próprio sistema mundial, as inter- miperiféricas simultaneamente intermédias,
mediações específicas são determinadas pela em termos de graus de desenvolvimento, e
região do sistema mundial a que essa socieda- intermediárias, em termos das funções que
de pertence e dependem, em grande parte, da desempenham no sistema mundial. Estas duas
trajectória histórica dessa região e da de cada características estão, evidentemente, inter-re-
uma das sociedades nacionais que a compõem. lacionadas, já que a função de intermediação
A função de intermediação implica que um pressupõe um nível intermédio de desenvol-
determinado país actue como país periférico vimento que, por sua vez, se reproduz, pelo
em relação a um país central e como país cen- menos em parte, através da função de inter-
tral em relação à periferia. Por exemplo, a par- mediação. Mas não só ambas são conceptual-
tir do século XVIII, Portugal funcionou como mente autónomas, como seria errado aceitar
correia de transmissão no sistema mundial, que existe entre elas uma relação linear e au-
actuando como centro para as suas colónias e tomática. A natureza intermédia de uma deter-
como periferia para a Inglaterra. Hoje, e para minada sociedade traduz-se em características
dar só um exemplo, a hipertrofia do turismo e sociais que são específicas dessa sociedade e,
da emigração em Portugal constitui um sinal em certo sentido, únicas. Essa natureza resul-
O Estado e a sociedade na semiperiferia do sistema mundial: O caso português 355

ta do desenvolvimento histórico nacional e da modos de reprodução social ultrapassavam a


multiplicidade de formas que os seus contactos posse das colónias.
com processos sócio-económicos de dimensão Essas estruturas e processos, autonoma-
mundial assumiram e faz com que ela esteja mente activos, apropriam, reconstroem e tam-
profundamente inscrita nas estruturas e prá- bém limitam eventuais oportunidades de novas
ticas sociais e culturais. Por outras palavras, funções de intermediação. Justamente porque
o carácter intermédio é uma qualidade e não Portugal atravessa uma fase de renegociação
apenas uma quantidade, representa a dimen- da sua posição no sistema mundial, penso que
são territorializada das interacções globais em é analiticamente mais fecundo centrar a nossa
que um determinado país está envolvido. A fun- atenção na natureza específica do seu carácter
ção de intermediação pode também constituir de sociedade intermédia.
um fenómeno de longa duração, mas tem uma Para isso, teremos de recorrer a um enqua-
lógica de desenvolvimento diferente. dramento teórico centrado na especificidade
O facto de a economia mundial capitalista dos fenómenos e acontecimentos nacionais,
estar politicamente organizada num sistema que os analise numa perspectiva global que
interestatal submete a função de intermedia- abarque o económico e o social, o político e o
ção a descontinuidades políticas que podem cultural, e o faça, tanto de um ponto de vista
resultar em períodos mais ou menos longos histórico, como de um ponto de vista sincró-
de disjunções, discrepâncias e hiatos entre nico. A complementaridade pretendida entre
as estruturas intermédias e as funções de in- uma teoria desse tipo e a teoria do sistema
termediação. Quando, em 1974-75, o império mundial só será possível se ambas partilharem
português chegou praticamente ao fim, a fun- determinadas preocupações teóricas e até me-
ção de intermediação que Portugal desempe- ta-teóricas. Creio que é esse o caso da teoria da
nhava, com base nas suas colónias, também regulação, ainda que, em rigor, não se trate ver-
acabou. Contudo, as estruturas e os processos dadeiramente de uma teoria, mas antes de uma
intermédios não desapareceram. A materiali- orientação analítica de carácter geral que tem
dade e a qualidade dessas estruturas e desses dado origem a várias teorias. Genericamente,
processos estavam profundamente inscritas quer a teoria do sistema mundial, quer a teo-
na sociedade portuguesa e os seus complexos ria da regulação partilham, não só um passado
356 Boaventura de Sousa Santos

marxista, mas também a necessidade de elimi- questão, analisando a centralidade específi-


nar as características economicistas e mecani- ca da regulação do Estado, num período de
cistas que dele herdaram. Ambas se centram transição entre modos de regulação social,
nas relações sociais do desenvolvimento capi- numa formação social semiperiférica da re-
talista, especialmente nas relações de troca e gião europeia do sistema mundial. Além disso,
nas relações salariais. Ambas são, por nature- analisarei ainda os moldes em que o processo
za, globalizantes e ambas privilegiam a análise de regulação social transitória se inscreve na
da consolidação e da transformação da coesão matriz institucional do Estado, identificando
social ao longo da história: a perspectiva da re- as diferentes formas políticas parcelares que,
gulação privilegia a coesão social dos diferen- em conjunto, constituem a totalidade fragmen-
tes Estados-nação; o sistema mundial, a coesão tada do Estado na transição de um modo de
social da economia mundial capitalista. regulação social para outro.
Pode dizer-se que, em termos teóricos, a
perspectiva da regulação é muito vaga. A ver- A crise do modo de regulação
são que aqui se adoptou é, a meu ver, a mais social: padrões de produção e
adequada para captar a dinâmica do desenvol- padrões de consumo num período
vimento social português nos últimos quinze de transição
anos. É opinião quase unânime que uma das Pode ter sido coincidência, mas é interes-
fraquezas da perspectiva da regulação é a au- sante notar que a queda do regime fascista em
sência de uma teoria do Estado que explique Portugal ocorreu numa altura em que os pa-
as suas múltiplas e decisivas funções no pro- íses centrais entravam num período de crise
cesso de criação e desenvolvimento dos mo- do modo de regulação que, segundo Aglietta
dos de regulação social (Boyer, 1986: 52; Jes- (1976), Boyer (1986) e outros, fora o modo
sop, 1990: 196). Do lado da teoria do sistema de regulação dominante sobretudo depois da
mundial e na linha das primeiras afirmações de Segunda Guerra Mundial. Este modo de re-
I. Wallerstein, tem sido acentuado nos últimos gulação social caracterizava-se, muito gene-
tempos que essas funções são particularmen- ricamente, por uma acumulação intensiva de
te decisivas nas sociedades semiperiféricas capital, uma indexação dos salários à produti-
(Martin, 1990: 7). Neste texto, abordarei esta vidade e por um acesso generalizado das clas-
O Estado e a sociedade na semiperiferia do sistema mundial: O caso português 357

ses trabalhadoras ao consumo: era o modo de tecimentos. Limitar-me-ei a respigar os traços


regulação fordista. Não seria, portanto, de ad- desse período que se me afiguram imprescin-
mirar que a crise se repercutisse numa socie- díveis para compreender a primeira das quatro
dade dependente que mantinha fortes relações formas de Estado que analisarei neste texto: o
económicas com os países mais fortemente Estado paralelo.
afectados, os países centrais da Europa Oci- A revolução portuguesa começou por um
dental. Acresce que a revolução de 25 de abril golpe militar conduzido por um grupo de jo-
de 1974 criou factores autónomos de crise na vens oficiais, democratas e antifascistas, dese-
sociedade portuguesa, provocando uma crise josos de pôr fim à guerra colonial. O projecto
geral que tocou todos os sectores da activida- político que o programa do Movimento das
de social e abalou estruturas e práticas bem Forças Armadas (MFA) propunha ao país era
enraizadas na história recente do país. Houve, claro, apesar do seu carácter genérico: elimi-
portanto, uma crise interna que ocorreu no nação imediata das características fascistas
seio de uma crise internacional, o que é, sem do aparelho de Estado; eleições para uma as-
dúvida, um factor fundamental para compre- sembleia constituinte que reimplantaria a de-
ender algumas características da sociedade mocracia parlamentar, o pluralismo político e
portuguesa dos últimos quinze anos. a autonomia das organizações sindicais; uma
política económica antimonopolista tendo em
A crise revolucionária (1974-1975) vista uma mais justa distribuição da riqueza.
Relativamente à questão colonial, o programa
Nesta secção apresento algumas hipóteses de
era bastante ambíguo: reclamava estabilidade
trabalho com o objectivo de contextualizar as
política para um amplo espaço português. Essa
análises que se seguem nas secções seguintes.
ambiguidade era a consequência inevitável do
É muito provável que os historiadores do
facto de os jovens oficiais se terem visto força-
futuro neguem o carácter de verdadeira revo-
dos a pactuar com o general Spínola que, para
lução aos acontecimentos que tiveram lugar
além de Costa Gomes, fora o único general a
em 1974-75, tal como se passou com a revolu-
desentender-se com os governantes da última
ção alemã de novembro de 1918 (Broué, 1971).
fase do regime, o período de Marcelo Caetano.
Não cabe aqui fazer uma análise desses acon-
Nessa altura era vital estabelecer compromis-
358 Boaventura de Sousa Santos

sos, não só para reduzir ao mínimo as possibili- ção total dos bancos e das seguradoras, ocu-
dades de resistência de alguma unidade militar pação, seguida de expropriação, de terras no
leal ao antigo regime, mas também para evitar Alentejo, ocupação de casas nas grandes cida-
qualquer tentativa de declaração unilateral de des, comissões de trabalhadores, autogestão
independência por parte das populações bran- de fábricas e empresas comerciais abandona-
cas das colónias, particularmente de Angola. das pelos proprietários, criação de cooperati-
Os interesses do capital monopolista en- vas nos sectores comercial, industrial e agríco-
contraram indiscutivelmente em Spínola o seu la, comissões de moradores, clínicas do povo,
representante, enquanto os jovens oficiais do dinamização cultural nas regiões mais atrasa-
MFA tiveram, desde o início, um espantoso das do país. Nenhuma destas medidas, por si
apoio popular dos trabalhadores e da pequena só, constituía ameaça para a sociedade capita-
burguesia. Foi esta mobilização popular (por lista ou para a natureza classista do poder de
todo o país surgiram greves políticas e eco- Estado. Em conjunto, porém — e contando
nómicas) que levou à derrota de Spínola, bem ainda com a dinâmica interna da mobilização
como à neutralização dos membros do MFA dos trabalhadores e da iniciativa popular, a pa-
mais à direita e à radicalização dos seus mem- ralisação geral do aparelho de Estado e os cres-
bros mais à esquerda. Este facto, e a inabalável centes conflitos no seio das forças armadas —,
recusa, por parte dos principais movimentos essas medidas originaram, em meu entender,
africanos de libertação, de qualquer solução uma crise revolucionária. Mas nunca, em mo-
semelhante à proposta por Spínola para o mento algum, se esteve perante uma situação
problema colonial, estiveram na base daquele de dualidade de poder susceptível de ser con-
que podia ter sido o mais notável processo de siderada uma “confrontação total” de “duas di-
descolonização dos tempos modernos — uma taduras” (Lenine, 1960, vol. 2: 50; Trotsky, 1963:
descolonização praticamente sem característi- 101). Embora a análise deste facto esteja ainda
cas neocolonialistas. por fazer, parece-me que uma das explicações
As transformações qualitativas do processo mais plausíveis reside na própria natureza dos
político surgiram a seguir a março de 1975, o acontecimentos que estiveram na origem da
verdadeiro início da crise revolucionária: na- crise revolucionária. Tudo começou por uma
cionalização maciça da indústria, nacionaliza- revolta militar, ou seja, uma revolta vinda do
O Estado e a sociedade na semiperiferia do sistema mundial: O caso português 359

topo, vinda do próprio aparelho de Estado. O ve sob a alçada militar, as forças armadas sen-
objectivo era destruir o Estado fascista, mas, tiram-se globalmente relegitimadas e adiaram
no fundo, só foram destruídas as suas caracte- uma reestruturação interna profunda.
rísticas mais explicitamente fascistas: a polícia Em suma, o aparelho de Estado, depois de
política, os tribunais políticos, as prisões polí- expurgado das suas características marcada-
ticas, o sistema de partido único e as milícias mente fascistas, não sucumbiu, apenas sofreu
paramilitares fascistas. Fora isto, o aparelho de uma paralisia geral. Dado que os acontecimen-
Estado, com os seus cinquenta anos de ideolo- tos políticos tiveram início no próprio aparelho
gia, recrutamento, formação e comportamento de Estado, no seu seio, foi “relativamente fácil”
autoritários, manteve-se quase intacto. Apesar paralisar o poder de Estado. No âmbito da te-
de a pressão política mais radical ter exigido oria do poder dual pode, portanto, dizer-se que
algumas purgas na administração pública, elas não houve uma “dominação burguesa”, mas
foram escassas, por vezes oportunistas e, em pelas mesmas razões tão-pouco pode falar-se
alguns sectores fundamentais do aparelho de de “dominação proletária”. Neste contexto,
Estado, como a administração da justiça, pra- cabe talvez fazer uma breve referência ao pa-
ticamente inexistentes. De qualquer forma, es- pel desempenhado pelos partidos socialista e
sas purgas — os saneamentos — tiveram sem- comunista. Depois de ter granjeado uma influ-
pre um carácter individual, nunca atingindo as ência assinalável no aparelho de Estado e nas
estruturas do poder de Estado. Relativamente forças armadas, a seguir a 1975, o Partido Co-
aos dois sectores repressivos do aparelho de munista (PCP), a única organização política da
Estado — a polícia (PSP e GNR) e as forças altura a merecer essa designação, olhava com
armadas —, a situação foi ainda mais significa- desconfiança a mobilização espontânea e as or-
tiva. Como a polícia não ofereceu resistência ganizações criativas da classe operária, tanto
aos jovens oficiais do MFA, não foi necessário na produção como no consumo. Com o argu-
desmantelá-la nem sequer reestruturá-la, ten- mento falacioso de que o inimigo tinha já sido
do-se substituído apenas as chefias. As forças destruído com a nacionalização do capital mo-
armadas, porém, foram violentamente abala- nopolista, e de que o sector do MFA então no
das. Mas justamente porque a revolta nasceu poder, desde que apoiado, protegeria os inte-
nas suas fileiras e o processo político se mante- resses do proletariado, o PCP sempre defendeu
360 Boaventura de Sousa Santos

que as estratégias políticas deviam ser ditadas mantém-se intacto como um Estado de reser-
pelo aparelho de Estado e rejeitou, como aven- va, pronto a ser reactivado se e logo que a rela-
tureirista, a ideia da legalidade revolucionária ção de forças se alterar a seu favor.
e do poder popular. O Partido Socialista (PS), O fim da crise revolucionária e a instauração
de criação recente e composição heterogénea, do primeiro governo constitucional democráti-
procurou contrariar a influência dos comunis- co depois de quase cinquenta anos não puse-
tas no aparelho de Estado e recusou, por a con- ram termo à crise social, embora tenham alte-
siderar autoritária, qualquer forma política que rado a sua essência. Em termos de regulação
não fosse a democracia parlamentar. Apoiado social, pode dizer-se que a crise começou antes
pela burguesia, a pequena-burguesia e os traba- de 1974 (em 1969, se não mesmo antes) e que
lhadores descontentes com a política de poder continuou de 1976 até hoje. A análise da crise
e a arrogância dos comunistas, o PS em breve que a seguir apresento incide sobretudo em
viria a ser o partido da oposição, por excelên- três factores estratégicos: a acumulação de ca-
cia. Tal como na Alemanha em 1918, os socia- pital, a relação salarial e a actuação do Estado.
listas tornaram-se no principal partido de uma
ampla coligação de forças políticas. Da crise revolucionária
Pode dizer-se que o mesmo processo que à emergência do Estado paralelo
rapidamente conseguira a suspensão ou neu-
A regulação social das relações de troca e
tralização da “ordem burguesa” tinha também
das relações salariais é um processo complexo
simultaneamente impedido que a “ordem prole-
constituído, essencialmente, por três elemen-
tária” emergisse em seu próprio nome. Tratou-
tos estruturais: o direito (normalização esta-
-se mais de uma dualidade de impotências do
tal), o contrato (normalização contratual) e
que de dualidade de poder, uma situação que
os valores partilhados (normalização cultural)
viria a resolver-se a favor da “ordem burguesa”
(Boyer, 1986: 55; Aglietta e Brender, 1984: 77).
em novembro de 1975. Uma das principais ca-
Aquilo que caracteriza um regime autoritário é
racterísticas da revolução portuguesa é provar
a hipertrofia da normalização estatal e a ambi-
que o Estado capitalista pode ser afectado por
ção desta de tutelar as outras formas de norma-
uma paralisia geral durante um longo período,
lização. Em Portugal, o facto de o capital mo-
sem, no entanto, desaparecer. Pelo contrário,
O Estado e a sociedade na semiperiferia do sistema mundial: O caso português 361

nopolista, sobretudo depois de 1969, pretender a construção de uma nova formação política,
negociar directamente com os representantes de um moderno Estado democrático. Foi por
dos trabalhadores demonstra o crescente con- isso que, desde o início, se travou uma luta pelo
flito entre a normalização estatal e a normaliza- controlo do Estado e, nessas circunstâncias,
ção contratual na última fase do Estado Novo. pouca atenção se podia dispensar à normaliza-
Relativamente à normalização cultural, os mo- ção contratual. Além do mais, depois de quase
vimentos estudantis de 1962 e 1969, a emigra- cinquenta anos de autoritarismo, nem o capital
ção, a guerra colonial e as greves nos últimos nem o trabalho tinham qualquer experiência
anos do regime vieram provar que a apologia de organização autónoma e de negociação. À
fascista da família pobre mas feliz, unida e tra- semelhança do que acontecera nos países cen-
balhadora, com gostos simples e sem ambições trais, seria preciso um Estado democrático
de ascensão social, uma ideologia imbuída de forte, socialmente empenhado e eficiente, para
mitologia rural e de misticismo religioso, já não promover, apoiar e até criar organizações de
tinha qualquer poder normalizador. interesses e estabelecer as regras de negocia-
Quando a revolução de 1974 derrubou o ção entre elas. Mas porque em Portugal, naque-
Estado Novo e a sua estrutura institucional, le momento, o Estado era, ele próprio, objecto
criaram-se condições para o aparecimento de da luta política mais encaniçada, não tinha con-
novas instituições e de novas práticas sociais dições para desempenhar essa função.
compatíveis com as transformações previsí- Assim, paralelamente à intensificação dos
veis do regime de acumulação. A queda do conflitos sociais, assistiu-se ao enfraquecimen-
Estado Novo trouxe consigo, de facto, a luta to, fragmentação e paralisia crescente do Esta-
pela escolha de novas instituições de regulação do. Tudo isto, porém, em vez de impedir, veio
social, mas, contrariamente ao que acontecera favorecer a promulgação de importante legis-
nos países centrais, essa luta, típica de uma cri- lação no domínio laboral e social sob a forte
se de regulação social, surgiu num contexto de pressão dos movimentos operários, cada vez
lutas políticas e sociais muito mais amplas. A mais radicalizados, e das múltiplas formas de
questão não era apenas a institucionalização mobilização popular. Essa legislação seguiu o
de uma nova relação salarial ou de novas rela- modelo utilizado nas sociais-democracias oci-
ções de troca; o que importava sobretudo era dentais, chegando às vezes a ultrapassá-lo. A
362 Boaventura de Sousa Santos

defesa dos interesses dos trabalhadores assu- agrícolas e os rendeiros. Houve nesse momen-
miu variadíssimas formas: reconhecimento da to uma transformação qualitativa da crise. Em
autonomia das organizações sindicais, direito termos de regulação social, passou-se de uma
à greve, proibição do lock-out, benefícios so- mera crise do modo de regulação para uma cri-
ciais ou salários indirectos, estabilidade de se do regime de acumulação.
emprego, salário mínimo, contratação colec- As nacionalizações fizeram sobressair o
tiva, restrições aos despedimentos. O efeito facto de que as leis e as instituições criadas
desta legislação iria rapidamente reflectir-se durante a crise revolucionária, embora em
no peso relativo do rendimento salarial no ren- termos formais fossem muito semelhantes às
dimento nacional: enquanto, em 1973, os salá- do modo de regulação fordista dos países cen-
rios e os vencimentos representavam 43,7% do trais, tinham uma base material muito diferen-
PNB, em 1974 passaram a representar 48,9% e, te e até contraditória com a destas últimas. Em
em 1975, 57,6%. vez de garantir e estabilizar uma acumulação
A radicalização do movimento sindical re- intensiva do capital monopolista, essas leis e
meteu para a defensiva o capital no sentido essas instituições eram parte integrante dum
mais amplo, e não apenas os seus sectores movimento social e político que desmantelara
mais antiquados. O principal objectivo da luta o capital monopolista, provocara fugas maci-
política era o controlo do Estado, e as forças ças de capitais para o Brasil, África do Sul, ou
sociais e políticas interessadas no relançamen- outros locais, e desorganizara a produção, quer
to do capital tentaram várias vezes obter esse nas indústrias nacionalizadas, quer nas que se
controlo, para assim suster a radicalização tinham convertido em cooperativas ou em em-
crescente do movimento popular. Essas tenta- presas em autogestão depois de abandonadas
tivas, consecutivamente falhadas, foram geran- pelos antigos proprietários. O capital privado
do novas ofensivas populares que, por sua vez, que se manteve a produzir viu os seus lucros
foram alimentando os sectores mais radicais diminuírem drasticamente em consequência
do MFA. A fase mais espectacular deste pro- do aumento dos salários. De modo geral pouco
cesso foi a nacionalização do capital monopo- propenso a investir na inovação tecnológica e
lista (indústria, banca e seguros) e a ocupação assustado com a instabilidade social genera-
dos grandes latifúndios pelos trabalhadores lizada, esse sector do capital não conseguiu
O Estado e a sociedade na semiperiferia do sistema mundial: O caso português 363

compensar a subida dos custos de mão-de- Em abril de 1976, a Assembleia Constituin-


-obra com aumentos de produtividade e, pelo te aprovou a nova Constituição da República.
contrário, a taxa de produtividade diminuiu Com um estilo muito programático, a Cons-
drasticamente durante a crise revolucionária. tituição, para além de confirmar todos os di-
O desajustamento entre, por um lado, o enqua- reitos políticos, cívicos, sociais e culturais de
dramento jurídico e institucional e, por outro, qualquer democracia avançada, determinava
a prática social não podia ser mais flagrante, que a forma política do Estado fosse uma de-
um desajustamento tão amplo e profundo que, mocracia representativa, conjugada com algu-
embora em graus e formas diferentes, continua mas características de democracia directa ou
a ser ainda hoje, em meu entender, um factor participativa, sob a fiscalização constitucional
estrutural do desenvolvimento social e político do Conselho da Revolução. Prescrevia ainda a
da sociedade portuguesa. irreversibilidade das nacionalizações e da re-
Com o fim da crise revolucionária, em 25 de forma agrária, para além de estabelecer, como
novembro de 1975 — afastamento das facções objectivo final do desenvolvimento político
de extrema-esquerda do MFA, refreamento da nacional, a construção do socialismo, entendi-
vertigem insurreccional do PCP e crescente des- do, não numa versão moderada, social-demo-
mobilização popular —, tomou-se evidente que crática, mas antes numa versão maximalista:
o objectivo político da construção de um Estado a construção de uma sociedade sem classes e
socialista fora substituído pelo da criação de um sem exploração do homem pelo homem.
Estado democrático segundo o modelo europeu Com uma Constituição desse tipo, a distân-
ocidental e, em última análise, pelo da restaura- cia entre o quadro institucional e as práticas
ção da ordem capitalista. Mas a solução da crise sociais e políticas tinha de ser forçosamen-
representou um compromisso complexo entre te enorme. De facto, à Constituição faltava o
as diferentes facções militares e entre elas e os Estado que quisesse e pudesse cumprir o seu
partidos políticos. A ambiguidade dessa solução programa. Tornou-se evidente, logo com o pri-
política iria reproduzir, embora noutros moldes, meiro governo constitucional, que, em termos
a discrepância, iniciada durante a crise revolu- políticos concretos, o objectivo do Estado era
cionária, entre o enquadramento jurídico-insti- restabelecer a acumulação de capital e cons-
tucional e a prática social. truir uma social-democracia de tipo europeu.
364 Boaventura de Sousa Santos

Nisto reside a primeira característica, de carác- estabilização com o FMI, que impunha a habi-
ter constitucional, daquilo a que chamo Estado tual receita: restrições ao consumo interno e
paralelo: um Estado constitucional preocupa- promoção das exportações.
do com a construção de uma democracia ca- Esta política acarretava a desvalorização da
pitalista moderna quando a sua Constituição mão-de-obra portuguesa, já de si depauperada
previa uma sociedade socialista sem classes. pela inflação e pela desvalorização do escudo,
Esta característica do Estado paralelo durou a degradação e a flexibilização da relação sa-
até 1989, altura em que a segunda revisão cons- larial. A legislação e as instituições laborais,
titucional eliminou os últimos vestígios do pro- produto do período de 1974-77, constituíam,
grama socialista. porém, um forte obstáculo. Ao contrário de ou-
Mas as características mais importantes do tras leis e instituições dessa altura, que, pela
Estado paralelo surgiram, e continuam a surgir, sua natureza, se relacionavam especificamen-
num outro plano, não constitucional. A restau- te com o carácter de excepção das condições
ração do regime de acumulação e a sua consoli- sociais da crise revolucionária (por exemplo,
dação num novo modo de regulação social não a lei da ocupação de casas desabitadas), a le-
eram tarefas fáceis. O aumento espetacular dos gislação e as instituições que regulavam a re-
rendimentos salariais teve um efeito fatal na lação salarial eram semelhantes às dos países
balança comercial. O consumo de bens durá- centrais da Europa Ocidental que passaram a
veis, sobretudo equipamento doméstico, pelas constituir o modelo a seguir, e, por vezes, até
classes trabalhadoras — uma característica da mais avançadas. Rejeitar essas leis implicava
relação salarial fordista nos países centrais do desacreditar o discurso político dominante e
pós-guerra — só foi acessível à classe operária o próprio Estado. Além disso, qualquer tenta-
portuguesa com a revolução de 1974. Nos anos tiva de rejeição teria de confrontar-se com a
seguintes, o consumo de aparelhos de televi- reacção imediata dos sindicatos, para os quais
são e de máquinas de lavar roupa, em Portugal, essas leis e instituições representavam uma
apresentou a taxa de crescimento mais rápida importante conquista de que dificilmente abri-
de toda a Europa. As importações multiplica- riam mão. Embora na defensiva, o movimento
ram-se e, com elas, aumentou a dívida externa. sindical, sob a direcção agressiva do PCP, tinha
Em 1978, assinou-se o primeiro programa de ainda muita força.
O Estado e a sociedade na semiperiferia do sistema mundial: O caso português 365

Apesar de as leis e as instituições fordistas que existe paralelamente a um Estado infor-


se manterem em vigor, faltava-lhes, porém, a mal; um Estado centralizado que endossa as
necessária base material económica. Perante o atitudes contraditórias dos múltiplos micro-Es-
fosso entre a regulação institucional e a acu- tados existentes no seu seio; um Estado oficial
mulação, e na impossibilidade de alterar a lei, maximalista que coexiste, lado a lado, com um
o Estado começou por adoptar, informalmente, Estado não oficial minimalista6.
uma política de distanciamento em relação às Em consequência do Estado paralelo, o ca-
suas próprias leis e instituições, não aplicando pital privado, relativamente liberto da rígida
as leis, ou fazendo-o apenas de modo extre- regulação institucional da relação salarial, foi
mamente selectivo, não punindo as violações gradualmente restabelecendo as condições de
da lei e chegando até a fomentá-las, adiando acumulação. Se, em 1976, o rendimento sala-
a entrada em vigor de medidas já criadas por rial representava 56,6% do rendimento nacio-
lei, cortando os orçamentos de instituições em nal, em 1978 essa percentagem baixara para
funcionamento e permitindo que outras fossem 44% e, em 1983, para 42,3%. O Estado paralelo
cooptadas pelos grupos sociais cujas activida- tornou possíveis formas de exploração típicas
des deviam controlar, etc., etc. da fase de acumulação primitiva, num país
Uma certa discrepância entre a lei escrita e com leis e instituições fordistas. Em janeiro
a sua aplicação, entre a law in books e a law de 1986, cerca de 120.000 operários de 874
in action, é uma característica do Estado mo- empresas e fábricas com salários em atraso
derno, abundantemente demonstrada pela so- — nalguns casos havia meses — continuavam
ciologia do direito. O que é específico do caso a trabalhar com receio do desemprego. De
português é o alto grau, a natureza e a difusão acordo com os sindicatos, os patrões deviam
dessa discrepância nos organismos do Estado, aos trabalhadores mais de 2 milhões e meio
os quais passaram a actuar, a partir de então, de contos. No Norte do país, onde se concen-
autonomamente como micro-Estados dotados trara a maior parte do sector de exportação,
de uma concepção própria do grau de aplica- a utilização ilegal de mão-de-obra infantil e a
ção da lei recomendável na sua esfera de ac-
ção. Este fenómeno é, precisamente, aquilo a
que chamo Estado paralelo: um Estado formal 6 Cfr. Ruivo (1993) e Namorado (1993).
366 Boaventura de Sousa Santos

contratação de mão-de-obra (sobretudo femi- fordista não corresponde, na prática, uma re-
nina) com salários abaixo do salário mínimo lação salarial fordista. É também uma forma
eram (e são ainda) práticas frequentes. Passou política muito instável porque depende de cir-
também a ser vulgar que os empresários, para cunstâncias que não podem reproduzir-se de
além de não pagarem as suas prestações à Se- maneira estável. Ela resulta de uma situação
gurança Social, retivessem os descontos feitos política em que, por um lado, o capital é dema-
pelos trabalhadores7. siado fraco para impor a recusa de uma legis-
O Estado paralelo é uma forma de Estado lação fordista, mas suficientemente forte para
muito ambígua, pois um dos seus modos de evitar que ela seja efectivamente posta em prá-
intervenção mais activos é justamente o ab- tica, e em que, por outro, os trabalhadores são
sentismo do Estado. Um dos nossos entrevis- suficientemente fortes para impedir a rejeição
tados afirmou, por exemplo, que se, no Nor- dessas leis, mas demasiado fracos para impor
te do país, os tribunais do trabalho tivessem a sua aplicação.
funcionado eficazmente no fim dos anos 70 e Além disso, há também razões de Estado,
princípios dos anos 80, no sentido de repor a propriamente ditas, contra o Estado paralelo.
legalidade contra as violações das leis labo- Com um padrão de actuação semelhante ao de
rais, muitas das empresas que alimentaram o um Estado periférico, ou do terceiro mundo, o
espectacular crescimento das exportações te- Estado paralelo viu aumentar os riscos da sua
riam falido, com consequências drásticas em deslegitimação com a entrada de Portugal na
termos de emprego e de balança comercial. CEE. De facto, 1986 marca o início do declínio
O Estado paralelo é, portanto, a configuração do Estado paralelo, um declínio que, embora
política de uma disjunção ou discrepância no lento, se tem acelerado nos últimos anos de-
modo de regulação social, nos termos da qual vido à estabilidade do governo, aos primeiros
às leis e às instituições do modo de regulação efeitos significativos da integração na Comuni-
dade, à segunda revisão constitucional em 1989
e, finalmente, ao tipo de relações de troca e de
7 Mais inacreditável ainda foi o hábito então criado relações salariais que acabaram por se impor e
de não entregar aos sindicatos as quotas que os traba-
que a seguir analisaremos.
lhadores sindicalizados pagam através de desconto au-
tomático nos seus salários.
O Estado e a sociedade na semiperiferia do sistema mundial: O caso português 367

A transição difícil para um novo o trabalho que não teve autonomia para se or-
modo de regulação social: o ganizar e negociar, no segundo, foi o capital.
Estado heterogéneo Pretendo agora mostrar que as duas últimas
O declínio do Estado paralelo enquanto décadas foram dominadas por uma profunda
orientação estratégica de longo alcance veio evolução social e política, ainda hoje em curso,
proporcionar o aparecimento de uma outra tendente a criar, ou a incentivar, a criação de
orientação estratégica a que chamarei Estado actores sociais capazes de aceitar e de repro-
heterogéneo. Esta estratégia inclui um conjun- duzir um modo de regulação social semiperifé-
to de medidas tendentes a reduzir a distância e rico, em cujos termos a regulação institucional
a discrepância entre o quadro institucional e as e a prática sócio-económica se conjuguem num
relações sócio-económicas, actuando a partir plano mais realista, embora menos brilhante
destas últimas, através de iniciativas do Estado que o anunciado pela legislação fordista. Este
que pressupõem uma participação activa das processo, que envolve as principais forças e
organizações e das forças sociais. O objectivo actores sociais, tem sido regulado pelo Estado,
é desenvolver uma certa conexão, uma regula- que nele tem alimentado a sua centralidade ao
ção social estável, entre relações de produção e longo de todo este período.
relações de troca extremamente heterogéneas
e entre mercados de trabalho profundamente O Estado heterogéneo e
segmentados e descontínuos. A identificação a construção dos actores sociais
do Estado heterogéneo exige uma análise mais A primeira estratégia do Estado heterogéneo
atenta da estrutura social e dos actores sociais diz respeito à normalização contratual. A nor-
nos últimos vinte anos. malização contratual pressupõe a existência de
Como já afirmei, tanto o Estado Novo auto- actores sociais organizados, dispostos a dialo-
ritário como a crise revolucionária de 1974-75, gar e a aceitar um pacto social. Acontece que a
embora por razões muito diferentes, caracte- história portuguesa moderna, quer em termos
rizaram-se pela hipertrofia da normalização de desenvolvimento político, quer de estrutura
do Estado em detrimento da normalização social, não tem estimulado o aparecimento de
contratual. Enquanto no primeiro período, foi actores sociais com esse perfil. Nem o trabalho
368 Boaventura de Sousa Santos

nem o capital têm uma tradição de organização organizações do capital — com escasso número
autónoma e de negociação. Daí que o projecto de associados e dominadas por sectores habitu-
de normalização contratual no período pós- ados ao proteccionismo do Estado e à repressão
-revolucionário tenha começado quase a partir autoritária dos interesses dos trabalhadores —
do zero. Esta deficiência ainda hoje continua a adoptaram uma atitude de revanchismo contra
registar-se, mas tem evoluído muito dinamica- a revolução, contra o “caos” que ela criara e con-
mente na última década. tra a nova legislação laboral e social, exigindo
No que diz respeito ao capital, a burguesia o pagamento de indemnizações aos antigos pro-
portuguesa sempre foi muito heterogénea. De prietários das indústrias nacionalizadas.
um lado, um pequeno grupo de empresários No que diz respeito aos trabalhadores, a es-
modernos com uma estrutura de lucros assente trutura social portuguesa é ainda mais hetero-
na inovação tecnológica, em ganhos de produ- génea. De um lado, um sector de proletariado
tividade, salários elevados e ligações ao capital urbano, com um certo grau de sindicalização
transnacional, um sector que foi dramaticamen- e universos culturais proletários, a trabalhar
te afectado pelas nacionalizações de 1975. Do nos serviços e nas indústrias nacionalizadas ou
outro lado, uma miríade de pequenos empre- de capital estrangeiro. Do outro lado, a gran-
sários com uma estrutura de lucros assente em de maioria da classe operária, a trabalhar em
salários baixos, investindo em sectores tradicio- pequenas empresas privadas fora dos grandes
nais cada vez menos competitivos, dependentes centros urbanos ou em zonas rurais, pluriactiva,
do proteccionismo do Estado, com uma men- detentora de pequenas explorações agrícolas,
talidade rentista e um comportamento típico com universos culturais pequeno-burgueses
de uma posição de classe contraditória entre a ou camponeses e com um rendimento fami-
burguesia e a pequena burguesia. Devido a esta liar proveniente de várias fontes. Nas zonas de
polarização e ainda à composição interna alta- crescimento industrial mais rápido, quase 40%
mente diversificada destes dois sectores, a con- dos operários vivem em famílias que têm uma
jugação de interesses teria de ser sobremaneira actividade agrícola, sendo, por isso, semipro-
difícil e a realização de acordos centralizados letários ou agricultores a tempo parcial. Logo
entre o capital e o trabalho muitíssimo impro- depois da revolução, as organizações sindicais
vável. Depois da crise revolucionária, as novas herdaram a adesão maciça da época da revo-
O Estado e a sociedade na semiperiferia do sistema mundial: O caso português 369

lução, mas, na prática, continuaram a ser do- Relativamente às organizações do capital,


minadas pelo sector urbano e controladas pelo o Estado foi fundamental na regulação social
PCP. A Confederação Geral dos Trabalhadores das suas exigências. Por um lado, legitimou,
(CGTP), embora já na defensiva, continuou a e até subscreveu e amplificou, as que tinham
manter um discurso muito agressivo dominado viabilidade política, estavam viradas para o fu-
pelo ressentimento nascido do fracasso da re- turo e assentavam em imperativos económicos
volução e da “traição” do PS. Com este estado e tecnológicos simultaneamente aceites pelos
de espírito, a inclinação para negociar com o empresários e pela burocracia do Estado. Por
capital era quase nula. outro lado, contornou, banalizou ou neutrali-
Nestas circunstâncias, os obstáculos à nor- zou as reivindicações politicamente inviáveis e
malização contratual eram enormes. O défice retrógradas, ditadas pelo despeito e pelo revan-
social não era apenas de associações de classe, chismo contra a revolução ou que pretendiam
mas sobretudo de práticas de contratualização. ignorar que ela tivesse existido (por exemplo,
A minha hipótese de trabalho é que o Estado as reivindicações respeitantes às indemniza-
desempenhou um papel fundamental na redu- ções pelas nacionalizações). A intervenção es-
ção desse défice, um papel tão fundamental tatal neste domínio consistiu, por exemplo, em
que, paradoxalmente, um dos principais as- incentivar a criação de organizações ou desen-
pectos da normalização estatal foi, de facto, o volver as já existentes, conceder auxílio finan-
desenvolvimento da normalização contratual. ceiro e institucional às suas iniciativas, utilizar
O intuito foi promover o aparecimento de no- os meios de comunicação social para difundir
vos parceiros sociais (mesmo que através da mensagens do capital, criar organismos oficiais
reconversão dos antigos) interessados no diá- com forte peso das organizações do capital, re-
logo e na concertação social, cuja representati- crutar membros do governo na classe empresa-
vidade e legitimidade fossem produto do êxito rial e seus representantes.
obtido no diálogo e na concertação. Esse diá- No que diz respeito ao trabalho, a estraté-
logo e essa concertação deviam processar-se gia foi sobretudo a de tentar isolar a confede-
nos termos estabelecidos pelo Estado e sob a ração sindical comunista, a CGTP, recusando
sua supervisão, uma condição que os parceiros dialogar com ela, utilizando continuamente um
sociais tinham também de aceitar. discurso hostil contra o discurso e a prática da
370 Boaventura de Sousa Santos

confederação, minimizando as suas vitórias e contrastar a ideologia e a prática das duas cen-
empolando as suas derrotas, incentivando os trais sindicais.
sindicatos a abandonar a confederação e, so- Não bastava, porém, criar actores sociais in-
bretudo, encorajando a criação de uma outra teressados no diálogo social; era ainda neces-
confederação, com um novo estilo e uma nova sário criar as instituições em que esse diálogo
prática sindical democrática assente no diá- pudesse ser levado a cabo de modo recorrente
logo, na negociação e na concertação. Neste e com visibilidade política. Seguindo o exem-
aspecto, o PS, que esteve no governo logo no plo europeu, criou-se, em 1984, o Conselho
período pós-revolucionário, teve um papel fun- Permanente da Concertação Social. Com am-
damental. Considerando-se um partido da clas- plas funções consultivas nos domínios econó-
se operária e tendo liderado, durante a revo- mico, financeiro e monetário, esse Conselho
lução, a luta contra a posição defendida pelos era composto por seis representantes do go-
comunistas sobre a unicidade sindical (ilega- verno, seis representantes dos sindicatos (três
lidade da existência de mais do que uma cen- de cada confederação) e seis representantes
tral sindical), o PS decidiu que uma outra con- do capital industrial, comercial e agrícola. No
federação controlada por ele, ou pelo menos início, a CGTP recusou-se a integrá-lo, e só de-
sintonizada com o seu programa político, era pois de 1987 aceitou fazer parte.
uma exigência da reconstrução democrática da A criação social dos actores sociais e da
economia e da sociedade, tal como, de resto, normalização contratual foi um processo mui-
acontecera noutros países europeus (França, to ambíguo. Ao mesmo tempo que eram reco-
Itália e Espanha). Em 1978, foi criada a União nhecidas como actores sociais nacionais, as
Geral dos Trabalhadores (UGT). Constituída, organizações sindicais foram perdendo força
na maioria, por sindicatos do sector dos servi- e influência na acção quotidiana de defesa dos
ços, tinha uma liderança muito decidida, com interesses dos trabalhadores nos locais de tra-
um agressivo discurso anticomunista, que pro- balho. Formas várias de arrogância patronal,
metia um novo activismo sindical autónomo e muitas vezes devedoras da cultura empresa-
democrático. Desde a sua criação, o governo rial do pré-25 de abril, foram-se insinuando
não escondeu a preferência em negociar com de novo, à medida que o Estado paralelo foi
a UGT, tentando sempre, a propósito ou não, permitindo a precarização informal da relação
O Estado e a sociedade na semiperiferia do sistema mundial: O caso português 371

salarial. Por exemplo, muitos empresários sen- concluída e a esmagadora maioria das terras
tiram-se suficientemente fortes para proibir a foi devolvida aos anteriores proprietários ou
entrada de delegados sindicais nas fábricas. E, aos seus descendentes. A reconstituição da
apesar do aumento de produtividade, os salá- burguesia agrária foi muito mais simples, em
rios reais diminuíam. Se tomarmos 1972 como termos sociais e políticos, do que a do capital
base (100), em 1982 a produtividade média su- monopolista industrial e financeiro. Entre mui-
bira para 145,8, enquanto os custos dos salários tas razões, destaco as seguintes. Em primeiro
reais tinham descido para 75,2. O alarmante de- lugar, a reforma agrária ocupou uma relativa-
créscimo de sindicalizados, sobretudo a partir mente pequena percentagem (segundo alguns,
de meados da década de oitenta, reflecte, entre 18%) da área de cultivo do país. Em segundo lu-
outras coisas, a fraca actuação dos sindicatos gar, as cooperativas e as unidades colectivas de
no período anterior. produção criadas no rescaldo da ocupação dos
Este fenómeno exige uma análise mais pro- latifúndios foram, na grande maioria dos casos,
funda do processo de acumulação e das relações dominadas pelo PCP e sofreram, por arrasta-
salariais e, por conseguinte, do papel do Estado mento, o isolamento social e político a que este
na criação das condições estruturais da acumu- partido foi progressivamente sujeito. Em ter-
lação e no padrão de especialização produtiva. ceiro lugar, o próprio PCP admitiu a certa al-
tura — na prática política, que não no discurso
O Estado heterogéneo e a emergência político — “deixar cair” a reforma agrária para
de um novo regime de acumulação consolidar posições no sector industrial, o que
se compreende sociologicamente se se tiver
Um aspecto importante da intervenção do
em mente que o proletariado rural sempre fora
Estado neste domínio foi a criação e consoli-
um reduzido sector da força de trabalho, muito
dação de um novo sector de capital monopo-
pouco organizado e também muito pouco in-
lista destinado a substituir o sector monopo-
fluente na CGTP, onde o operariado industrial
lista destruído pela revolução. Convém aqui
sempre dominou.
distinguir entre o capital agrário, industrial e
Inversamente, a reconstituição do capital
financeiro. A extinção da reforma agrária, que
industrial e financeiro foi, de longe, um pro-
começara em 1977, está agora praticamente
cesso económico e político muito mais com-
372 Boaventura de Sousa Santos

plexo que a reconstituição do capital agrário. quarto lugar, o sector empresarial do Estado
Entre muitas razões, destaco as seguintes: em incorporou alguns sectores produtivos já des-
primeiro lugar, ao contrário do que se passou valorizados internacionalmente ou a entrar em
com a reforma agrária, as indústrias, os bancos crise com o então recente primeiro choque do
e as seguradoras passaram a constituir parte petróleo (a construção naval) e tornou possível
do chamado sector empresarial do Estado e, transferir para o Orçamento Geral do Estado as
com isto, tornaram-se uma fonte de reprodu- perdas de produtividade e de rentabilidade e os
ção do próprio Estado, criando fundos e novas custos da reconversão. Finalmente, em quinto
oportunidades para o exercício do clientelismo lugar, as privatizações teriam de ser planeadas
e populismo do Estado. Em segundo lugar, as e preparadas de modo a aliviar as finanças do
nacionalizações foram defendidas pelas duas Estado. A partir de 1986, altura em que o Par-
centrais sindicais e, durante muito tempo, pelo tido Social-Democrata (PSD) formou governo,
próprio PS. Em terceiro lugar, perante as no- as privatizações passaram a ser um dos objec-
vas condições da economia-mundo e perante tivos centrais do programa do governo. Depois
os novos moldes de acumulação capitalista de complexas negociações com o PS, em 1989
internacional, o sector monopolista a recons- foram finalmente eliminados os obstáculos
truir teria de integrar grupos com uma cultura constitucionais às privatizações, estando estas
empresarial virada para o futuro, sem atitudes ainda a decorrer.
revanchistas e com ligações mais profundas A consolidação por parte do Estado portu-
ao capital transnacional. O sector empresarial guês do novo sector monopolista industrial e fi-
do Estado, ao mesmo tempo que absorveu os nanceiro, paralelo ao sector empresarial do Es-
quadros técnicos vindos das grandes empresas tado e com capacidade para mais tarde o poder
— ilibando-os de imediato do labéu do envolvi- absorver, pode ser considerada, à primeira vis-
mento com o grande capital do antigo regime ta, uma estratégia típica de países centrais, ou
— funcionou como “centro de formação pro- seja, uma estratégia para promover um sector
fissional” de novos quadros preparados para moderno de acumulação intensiva interessado
mais tarde servir indistintamente o sector pú- em melhorar o padrão nacional de especializa-
blico ou o sector privado e passar de um para o ção produtiva e de integração internacional,
outro sem qualquer sobressalto funcional. Em um sector para o qual a relação salarial seja um
O Estado e a sociedade na semiperiferia do sistema mundial: O caso português 373

factor de realização do capital (consumo gene- entre elas e procurando que os conflitos delas
ralizado) e não apenas um factor de valoriza- resultantes se mantenham em níveis social e
ção do capital (custos de produção). Em suma, politicamente toleráveis e manejáveis.
um sector que, no caso português, promova Depois de 1978, ano do primeiro programa
uma conjugação mais perfeita entre a relação de estabilização imposto pelo FMI, a política
salarial real e a regulação fordista formalmente económica pôs de lado todos os objectivos es-
em prática. truturais e concentrou-se na conjuntura. A par-
Na realidade, porém, durante os últimos tir daí, as políticas nacionais preocuparam-se
quinze anos, o sector nacionalizado foi o único sobretudo com o controlo da dívida externa e
em que essa conjugação teve realização signifi- da dívida pública, com o controlo da inflação
cativa, já que, por razões óbvias, o Estado-Ad- e a promoção das exportações. Nessa época,
ministração tendeu a negar ao Estado-Empre- a taxa média de crescimento das exportações
sa as facilidades ilegais que o Estado paralelo foi superior à taxa de crescimento anual do
concedeu ao capital privado. Fora dele, o pa- PNB e muito superior à taxa média de cresci-
drão de acumulação e regulação característico mento das importações. Devido à importância
dos países centrais foi postergado em favor de que os baixos custos salariais representavam,
padrões de acumulação e regulação caracterís- o sector de exportação que mais beneficiou
ticos da periferia, novos ou já conhecidos. A com estas políticas foi o sector tradicional
coexistência de padrões contraditórios, apoia- dos têxteis, confecções e calçado, um sector
dos em antigos e em novos factores estruturais, trabalho-intensivo. O seu crescimento foi mais
tornou a estrutura económica portuguesa mui- rápido do que o de qualquer outro sector, mas
to heterogénea e descontínua em termos de ló- o baixo suporte tecnológico e a sua desvalo-
gica e de organizações de produção, em termos rização em termos de mercado internacional
de relações salariais e mercados de trabalho, conduziram a uma degradação da posição do
e em termos de relações de troca. Esta é tal- sistema produtivo nacional no contexto inter-
vez a característica fundamental da economia nacional. Entre 1973-1980, esse valor diminuiu
portuguesa, e a principal função do Estado tem 3,4%. Em Espanha aumentou 2,3% e, como ter-
sido a de disciplinar essas heterogeneidades e mo de comparação, na Coreia do Sul aumen-
descontinuidades, promovendo a articulação tou 10% (Reis, 1992: 155).
374 Boaventura de Sousa Santos

Em termos de qualidade da relação salarial, formas e de diversas maneiras. Referirei ape-


este sector, juntamente com o da construção nas algumas que, aliás, também surgiram nou-
civil, ocupa a base da pirâmide. Os dois consti- tros países, sobretudo nos do Sul da Europa.
tuem a maioria do emprego e neles vigoram as Em primeiro lugar, o trabalho clandestino.
piores relações salariais: salários baixos e su- Em nítido crescimento e assumindo diversas
jeitos a ciclos de salários em atraso, elevadas feições, umas mais manifestamente ilegais do
taxas de contratos a prazo, trabalho clandes- que outras, o seu papel na consolidação de um
tino, semi-proletariado profundamente ligado novo modo de regulação social é objecto de de-
à pequena agricultura e à vida rural, elevadas bate. Embora seja difícil avaliar o seu peso no
taxas de mão-de-obra infantil e feminina geral- sistema de emprego, foi contudo possível cal-
mente com salários inferiores aos da mão-de- cular a percentagem de trabalhadores não re-
-obra masculina, baixa formação profissional e gistados em diversos sectores: 51% na constru-
limitadas possibilidades de promoção. ção civil, 20% na confecção e 59% nas pescas.
Numa análise pormenorizada dos mercados Em segundo lugar, a subcontratação. Trata-
de trabalho, Maria João Rodrigues identificou -se de um tipo de relações entre empresas tam-
onze subsistemas de emprego e classificou-os bém muito generalizado e em crescimento,
segundo a qualidade relativa da relação salarial cujos diferentes aspectos convém distinguir, a
(1988: 248). No topo da lista está a produção bem de uma correcta análise comparativa. Ma-
de bens intermédios e de equipamento, que é ria Manuel Leitão Marques estudou em grande
dominada pelas empresas públicas (as que es- pormenor os padrões da subcontratação na-
tão agora a ser privatizadas ou o foram já), e na cional e internacional, comparando-os depois
base está o já referido sector de bens de expor- com os de outros países europeus. Concluiu
tação e de bens de grande consumo. Em cada que os padrões portugueses têm um carácter
categoria há uma enorme diferenciação não só híbrido, com nítida predominância de traços
intersectorial, mas intra-sectorial. Isso provo- periféricos (Marques, 1992: 175 e ss.).
ca, para além de uma segmentação do mercado Em terceiro lugar, a crescente feminização
de trabalho, uma acentuada descontinuidade da mão-de-obra. Neste aspecto, as transfor-
(Rodrigues, 1988: 259). Essas descontinuida- mações das duas últimas décadas foram enor-
des reproduziram-se recentemente em várias mes. Em 1960, os homens representavam 81%
O Estado e a sociedade na semiperiferia do sistema mundial: O caso português 375

da força de trabalho, em 1981, 65% e em 1991, entre 1974 e 1981, aumentou 36%, enquanto o
56%. Entre 1970 e 1981 a categoria estatística trabalho assalariado aumentou apenas 12%. Na
de doméstica diminuiu de 74,4% para 41,3%. grande maioria dos casos, o trabalho por conta
Esta transformação foi concomitante com ou- própria é falsamente independente, sendo ape-
tras igualmente espectaculares: a súbita queda nas legalmente definido como tal para escapar
da taxa de fecundidade — uma das transições à legislação laboral e, sobretudo, aos pagamen-
demográficas mais rápidas de todos os tempos tos à segurança social.
na Europa — e uma acelerada taxa de cresci- Todas estas características levam a concluir
mento de equipamento doméstico. Contudo, que o regime de acumulação que tem vindo a
as mulheres foram as maiores vítimas da hete- impor-se nos últimos vinte anos privilegia a
rogeneização dos mercados de trabalho, visto quantidade de trabalho (relativamente baixa
que geralmente estão empregadas nos sectores taxa de desemprego) em detrimento da quali-
onde as relações salariais são mais degradadas. dade (persistentemente muito distante da mé-
Em quarto lugar, o crescente número de dia europeia). Em consequência disso, as leis
empresas de recursos humanos, ou seja, de e as instituições fordistas só muito selectiva-
agências que fornecem trabalhadores com as mente vigoram e coexistem com a regulação
características pretendidas pelos clientes para neoliberal da relação salarial, predominante-
desempenhar temporariamente determinadas mente competitiva. Aos progressos espectacu-
tarefas. Os contratos de trabalho a que dão azo lares que a relação salarial logrou no período
são, muitas vezes, uma nova forma de escapar revolucionário e nos dois anos subsequentes,
à rigidez das leis e das instituições fordistas. seguiram-se recuos igualmente espectaculares
Finalmente, o aumento do trabalho por con- do valor social real do trabalho.
ta própria. Portugal tem a taxa de proletariza- De acordo com a teoria da regulação, as
ção mais baixa da Europa. Em 1984, essa taxa transformações do modo de regulação podem
atingia 82% na CEE e 67% em Portugal. Dois começar por qualquer dos seus elementos
fenómenos convergentes explicam este facto: constitutivos. Admite-se ainda que a regula-
um é a forte presença da pequena agricultura, a ção da relação salarial seja relativamente in-
que adiante me referirei, e o outro é o aumento dependente das transformações do regime de
do trabalho por conta própria. Este, no período acumulação. O caso português demonstra que
376 Boaventura de Sousa Santos

essa autonomia pode, por vezes, ser mesmo heterogeneidade e as descontinuidades das re-
muito relativa. Perante o peso dos factores po- lações salariais e do próprio processo de acu-
líticos na configuração da relação salarial, as mulação. Embora, em teoria, os períodos de
condições gerais da sua autonomia num certo transição exijam que as políticas estruturais se
momento podem muito bem transformar-se, no sobreponham às políticas conjunturais, não é
momento seguinte, em condições gerais da sua menos verdade que, em certas circunstâncias,
dependência. De facto, em Portugal, o Estado uma intervenção estrutural do Estado pode ser
criou num determinado momento a autonomia feita através de uma intervenção conjuntural.
da relação salarial e, no momento seguinte, a A conjugação de intervenções conjunturais
sua dependência. Fê-lo por meio do Estado aparentemente contraditórias, muito fragmen-
paralelo e do Estado heterogéneo. O Estado tadas e descontínuas, acaba por criar uma es-
heterogéneo, ao contrário do Estado paralelo, trutura nova. Em Portugal, este processo está
não assenta nem no direito nem na violação longe de ter chegado ao fim, mas as tendências
do direito e é mais positivo do que negativo — estão à vista.
actua através de decisões administrativas, ob- O centralismo da regulação social pode, as-
jectivos económicos, mecanismos monetários sim, conjugar-se com incapacidade que, por
e financeiros, incentivos fiscais, taxas de câm- sua vez, pode ser uma pura e simples incapa-
bio, subsídios, formação profissional, ameaças cidade real ou uma incapacidade intencional-
públicas contra os actores sociais mais agres- mente criada. Uma das características mais
sivos, controlo das greves do sector público, flagrantes do discurso oficial do Estado por-
criação de mitos de desenvolvimento através tuguês é ser anti-estatal. Durante todo o perío-
dos meios de comunicação social, etc., etc. Uti- do, o Estado tem sido considerado pelos seus
lizando todos estes instrumentos, o Estado as- próprios agentes um mau gestor e um produtor
sumiu um papel primordial na regulação social, ainda pior, residindo aí a principal razão para
mesmo que aparentemente não tivesse uma reforçar a sociedade civil e a privatização da
política económica ou, tendo-a, fosse incapaz economia. Este discurso masoquista não é,
de a aplicar. Em minha opinião, a fragmenta- porém, auto-inculpador porque o Estado con-
ção e a aparente incongruência das medidas creto, que assim discorre, sabe distanciar-se
económicas foram fundamentais para regular a do Estado abstracto, a verdadeira (e, portanto,
O Estado e a sociedade na semiperiferia do sistema mundial: O caso português 377

irreal) bête noire. Dado que o Estado se vê tam- oliberal. Visto que as diferentes tentativas de
bém obrigado a intervir para não ter de intervir regulação se traduziram em leis, instituições,
(por exemplo, a desregulamentação é sempre, serviços administrativos e ideologias (ainda
em si mesma, uma forma de regulamentação), que umas mais do que outras) e porque estes
o discurso anti-Estado acaba por ter o efeito criam a sua própria fricção e têm a sua própria
contrário e, assim, a centralidade do Estado inércia, a estrutura do Estado apresenta, em
reproduz-se através do discurso da marginali- determinado momento, uma composição geo-
dade do Estado8. lógica com diversas camadas, diferentemente
A regulação social da heterogeneidade e da sedimentadas, umas antigas, outras recentes,
descontinuidade não determina só por si um cada qual com a sua lógica própria e respectiva
Estado heterogéneo. O carácter heterogéneo orientação estratégica. É nisto que consiste o
do Estado português reside no facto de a hete- Estado heterogéneo.
rogeneidade e a descontinuidade da estrutura
social se terem reproduzido na matriz política
e administrativa do Estado através dos dife- O desfasamento entre a produção
rentes modos de regulação social que foram capitalista e a reprodução social:
ensaiados e da rapidez com que se sucederam o papel da pequena agricultura
uns aos outros nos últimos quinze anos. Du- O quadro da sociedade portuguesa até aqui
rante este curto período, o Estado português apresentado contempla principalmente as re-
corporativo passou por uma transição para o lações salariais e as relações de troca e a re-
socialismo, uma regulação fordista e um Esta- gulação de umas e outras protagonizadas pelo
do-providência, e ainda por uma regulação ne- Estado. Como quadro parcial que é, não capta
outros aspectos igualmente relevantes para a
compreensão da sociedade. Apesar de hetero-
8 Este fenómeno não é, obviamente, específico do génea, em termos de acumulação e de relações
Estado português. Um pouco por toda a parte, o discur- salariais, a sociedade portuguesa apresenta
so estatal anti-estatal e anti-regulamentador vai coexis-
tindo com o aumento constante do número de páginas
traços que apontam para uma significativa
dos diários oficiais. Cfr., por último, Galanter, 1993. coesão social quando avaliada, por exemplo,
à luz da taxa de criminalidade ou da taxa de
378 Boaventura de Sousa Santos

conflitualidade social. Embora periférica, se tra-se menos desenvolvido do que o padrão de


considerarmos os principais índices do recente consumo, estando, por isso, este último mais
desenvolvimento económico, a sociedade por- próximo dos padrões dos países centrais do
tuguesa apresenta outras características em que o primeiro. Isto resulta de uma relação sa-
que predomina o modelo dos países centrais, lário/rendimento muito particular, na qual os
por exemplo, nas práticas familiares e nos pa- rendimentos não salariais desempenham um
drões de consumo. Ainda distante dos níveis importante papel na composição do rendimen-
europeus em termos quantitativos, o consumo to do agregado familiar dos trabalhadores, um
em Portugal está cada vez mais próximo deles fenómeno que directa ou indirectamente se
em termos qualitativos. Os dois bens estrutu- relaciona com a presença da pequena agricul-
rantes e de grande consumo da classe operária tura. Esta característica parece ser comum aos
no modo de regulação fordista, a casa e o au- países semiperiféricos da região europeia, mas
tomóvel, têm vindo a constituir, cada vez mais, em Portugal assume um aspecto muito espe-
as prioridades dos projectos e planos de des- cial (Reis, 1992; Hespanha, 1994).
pesas das famílias dos trabalhadores. O consu- Se compararmos Portugal e a RFA em ter-
mo de equipamento doméstico, como já referi, mos de produto e de consumo, em paridades
aumentou também espectacularmente nos últi- de poder de compra, os números são elucida-
mos vinte anos. tivos: relativamente ao produto, a diferença é
Estas características ilustram o facto intri- entre 2.480 (Portugal) e 13.240 (RFA), mas re-
gante de, em Portugal, a crise social ter sido lativamente ao consumo privado é entre 2.846
sempre menos grave do que a crise económi- (Portugal) e 6.175 (RFA). Por outras palavras,
ca. Passarei a analisar a questão do consumo. o PNB per capita subestima em 2,4 vezes o
Como tenho vindo a defender há já alguns nível de vida médio (Mateus, 1987: 57). Para
anos, uma das características centrais da so- explicar esta distorção é necessário analisar o
ciedade portuguesa é a discrepância, ou des- rendimento do agregado familiar e a sua com-
coincidência, entre a produção capitalista e a posição. Entre 1973 e 1983 o montante global
reprodução social ou entre o padrão dominan- dos rendimentos salariais, dos rendimentos
te de produção e o padrão dominante de con- das empresas — ou seja, as principais fontes
sumo: o padrão de produção capitalista encon- de rendimento numa sociedade capitalista —
O Estado e a sociedade na semiperiferia do sistema mundial: O caso português 379

teve um decréscimo de 20,1% (de 85,1% para de dupla pertença de classe e de situações con-
65%). Por outro lado, o peso dos juros de de- traditórias de classe. É curioso notar que, nas
pósitos a prazo aumentou de 3,1% para 19,4%, o regiões com um crescimento industrial muito
que demonstra que o rentismo é uma dimensão dinâmico, essa ligação com a agricultura atinge
importante da reprodução das famílias portu- valores entre 18% e 69%9.
guesas. Os pagamentos da segurança social e A pequena agricultura, sem dúvida uma com-
as transferências correntes aumentaram de ponente estruturante do processo de industria-
4,1% para 12,1%. As transferências particulares lização, é, porém, bastante ambígua em termos
do estrangeiro, essencialmente constituídas sociais. Por um lado, tem funcionado como um
por remessas de emigrantes, mantiveram, com importante mecanismo de compensação em pe-
leves oscilações, a taxa de 11%. Se não incluir- ríodos de crise, mas, por outro, tem aliviado a
mos os lucros das empresas na composição do pressão sobre os salários, contribuindo, assim,
rendimento autónomo (propriedade e activida-
de empresarial), este passa a ser constituído
sobretudo por rendimentos provenientes da 9 É, assim, evidente que o modelo português de agri-
pequena agricultura: durante todo o período cultura difere muito do da Europa do pós-guerra. Como
em análise, a média nacional rondou os 25% do observou José Reis, este caracterizou-se por um súbito
rendimento do agregado familiar. Neste aspec- e constante êxodo dos campos para os diferentes ramos
da indústria que ofereciam salários elevados, o qual teve
to, as diferenças regionais são impressionan- como consequências a diminuição da população rural
tes, mas mais impressionante ainda é o facto activa e do número de explorações agrícolas, um au-
de a região que na última década apresentou o mento da dimensão média das explorações agrícolas, a
crescimento industrial mais elevado se aproxi- mecanização da agricultura familiar através de crédito
e a intensificação da produção e do comércio. O mo-
mar da média nacional. Isto demonstra o peso
delo português, pelo contrário, caracterizou-se por um
dos rendimentos não capitalistas na reprodu- menor abandono da agricultura e, em todo o caso, sem
ção social dos trabalhadores portugueses e a êxodo rural, migrações pendulares, semiproletarização,
complementaridade específica entre agricultu- ruralização da indústria, persistência do auto-consumo
ra e indústria. Mais de 1/3 das famílias portu- ou produção mercantil simples, um constante número
elevado de explorações agrícolas de pequena dimensão
guesas têm uma ligação económica à agricultu-
ao longo dos últimos trinta anos e baixos salários indus-
ra, o que demonstra a incidência de situações triais (Reis, 1985). Ver também Hespanha (1994).
380 Boaventura de Sousa Santos

para a degradação da especialização industrial. próprio do termo, embora em certos aspectos


Mas a força da pequena agricultura estende-se se aproxime dessa forma política, e que o défi-
muito para além das actividades produtivas, e ce da actuação do Estado português enquanto
influencia, por exemplo, os universos simbóli- Estado-providência é parcialmente compensa-
cos, os padrões de voto, a actividade sindical, do pela actuação de uma sociedade suficien-
as formas de sociabilidade. Este último aspec- temente rica em relações de comunidade, in-
to será analisado resumidamente a seguir, na terconhecimento e entreajuda, um fenómeno a
secção sobre o bem-estar social. que chamo sociedade-providência.
A descoincidência entre o padrão de produ- O Estado-providência é a forma política
ção e o padrão de consumo significa, portanto, dominante nos países centrais na fase de “ca-
que a heterogeneidade da sociedade portuguesa pitalismo organizado”, constituindo, por isso,
não se limita às descontinuidades do mercado parte integrante do modo de regulação fordis-
de trabalho. Decorre também da coexistência ta. Baseia-se em quatro elementos estruturais:
e articulação de diferentes modos de produção: um pacto entre o capital e o trabalho sob a égi-
produção capitalista privada, produção empre- de do Estado, com o objectivo fundamental de
sarial do Estado, produção cooperativa, produ- compatibilizar capitalismo e democracia; uma
ção para autoconsumo e produção mercantil relação constante, mesmo que tensa, entre
simples. A heterogeneidade do Estado é o modo acumulação e legitimação; um elevado nível
estatal de gerir estas formas de heterogeneidade. de despesas em investimentos e consumos so-
ciais; e uma estrutura administrativa conscien-
Um Estado-providência fraco te de que os direitos sociais são direitos dos ci-
numa sociedade-providência forte dadãos e não produtos de benevolência estatal.
Como atrás referi, a complexa combinação À luz destes atributos, o Estado português
de heterogeneidade social e de coesão social fica muito aquém de um Estado-providência,
da sociedade portuguesa é também muito im- é um semi-Estado-providência e, em algumas
portante para entender os padrões de bem- das suas dimensões mais deficientes ou degra-
-estar social. dadas, pode mesmo considerar-se um lumpen-
Tenho vindo a defender que o Estado portu- -Estado-providência. Pelos motivos que já re-
guês não é um Estado-providência no sentido feri, não chegou a estabelecer-se nenhum pacto
O Estado e a sociedade na semiperiferia do sistema mundial: O caso português 381

social e a hipertrofia da normalização estatal continental e o modelo escandinavo e anglo-sa-


em detrimento da normalização contratual xónico (Alber, 1988: 452). O Estado português
e cultural é tão evidente nas políticas sociais parece assemelhar-se mais ao segundo. Em
como nas relações salariais. Durante a crise termos gerais, está formalmente mais próximo
revolucionária e nos dois anos subsequentes, dele relativamente à variedade de serviços, às
houve uma tentativa de criação de um Estado- formas de os fornecer e aos mecanismos que
-providência avançado, não só em termos da os financiam, mas substantivamente muito dis-
extensão da cobertura de riscos e da qualidade tante, quer quanto à extensão, quer quanto à
dos serviços, mas também em termos de parti- qualidade dos serviços, ou seja, relativamente
cipação democrática de grupos de cidadãos na aos dois aspectos que, juntamente com a varie-
organização desses serviços. Nesse período, as dade, determinam directamente a qualidade do
despesas sociais tiveram um aumento especta- consumo de bem-estar.
cular. Por exemplo, no domínio da saúde, pas- Contudo, talvez o que mais inequivocamen-
saram de 1,9% do PNB em 1971-73, para 2,9% te distinga o Estado português de um Estado-
em 1973-76. Como é sabido, este período, que -providência seja o facto de a administração
se caracterizou por um excesso de tarefas de pública ainda não ter interiorizado inteiramen-
legitimação relativamente às de acumulação, te a segurança social como um direito, continu-
foi seguido por um outro em que estas priori- ando em alguns aspectos a considerar que se
dades se inverteram. Consequentemente, nos trata de um favor concedido pelo Estado, tal e
anos seguintes, as despesas sociais cresceram qual como se pensava durante o regime autori-
a uma taxa muito mais lenta, tendo até estagna- tário do Estado Novo. É que a revolução do 25
do em alguns casos. Actualmente, encontram- de abril, apesar de ter inflacionado a adminis-
-se muito aquém dos valores médios europeus. tração pública, em termos de pessoal, em mais
Como seria de esperar de uma sociedade in- de 100%, deixou intacta a lógica administrati-
termédia, o Estado português aproxima-se do va, pelo que a ideologia autoritária da admi-
Estado-providência dos países europeus mais nistração do Estado Novo se pôde reproduzir
nuns aspectos do que noutros. Os Estados- como peixe na água na nova administração do
-providência europeus são muito diferentes Estado democrático. No campo dos serviços
entre si, sendo habitual distinguir o modelo sociais, esse autoritarismo traduz-se num com-
382 Boaventura de Sousa Santos

portamento discricionário e clientelista. Os ci- do pela Ordem dos Médicos. Em parte devido
dadãos são atendidos conforme consigam ou a esta oposição, e também em parte devido às
não mover em seu proveito influências, conhe- mudanças de governo no início dos anos 80, o
cimentos e favores recíprocos. De certo modo, SNS nunca foi totalmente posto em prática, e
são duplamente clientes do Estado: do Estado o que dele chegou a funcionar não tardou a ser
que fornece os serviços e dos funcionários do alvo de severas críticas. As medidas restritivas
Estado que os prestam. ganharam nova força e maior eficácia nos últi-
A degradação da providência estatal é pa- mos seis anos com o governo do PSD.
ralela à degradação da relação salarial atrás Essas medidas, para além dos cortes orça-
analisada. No campo do bem-estar social, as mentais que levaram à degradação dos ser-
medidas adoptadas para diminuir o conteúdo viços — a qual, por sua vez, levou as famílias
do papel social do Estado foram muito seme- com mais rendimentos a recorrer ao sector
lhantes às adoptadas nos países centrais a se- privado e a absorver os custos de saúde no or-
guir à crise do Estado-providência. Foi como çamento familiar — incluíram outras medidas
se Portugal estivesse a passar por uma crise como, por exemplo, novas orientações admi-
do Estado-providência, sem nunca o ter tido. nistrativas que limitaram o acesso, aumentan-
O trabalho de investigação que realizei com a do assim a selectividade de um serviço outrora
colaboração de Pedro Hespanha sobre os ser- universal, e várias formas de comparticipação
viços de saúde permite-nos observar o verda- nas despesas (taxas moderadoras), transferin-
deiro alcance dessas medidas, aliás também do desse modo para as famílias parte dos cus-
adoptadas noutros domínios sociais (Santos, tos. Mas, para além de tudo isto, sobressaiu
1990: 193). O Serviço Nacional de Saúde (SNS), uma estratégia de privatização gradual do SNS
criado nos finais dos anos 70, assentava num em que o Estado passou a ser menos um pro-
conceito de saúde avançado — saúde enquan- dutor de bem-estar e de protecção social para
to saúde da comunidade — e seguia de perto se transformar numa entidade financiadora do
o modelo inglês. Como serviço praticamente bem-estar produzido pela iniciativa privada,
universal que pretendia ser, dava total priorida- quer no âmbito do mercado, quer no âmbito
de à medicina pública e aos serviços de saúde da solidariedade social (Campos et al., 1986;
públicos, sendo por isso violentamente ataca- Carapinheiro e Pinto, 1987). Em 1975, o sector
O Estado e a sociedade na semiperiferia do sistema mundial: O caso português 383

privado representava apenas 2,8% do total do tradições em Portugal, que fornecem serviços
investimento na saúde, mas, em 1980, repre- sob a supervisão do Estado, funcionam pra-
sentava já 17,2%, percentagem que tem vindo ticamente como instituições semi-públicas.
a aumentar nos últimos dez anos. A produção Apesar de serem instituições privadas, a pre-
dos cuidados de saúde foi parcialmente trans- sença do Estado, quer na sua regulação, quer
ferida do Estado para o sector privado. Hoje, no seu financiamento, é tão forte que lhes te-
mais de 30% das despesas de saúde são paga- nho chamado sociedade civil secundária para
mentos ao sector privado. Esta transferência frisar que através delas o Estado se reproduz
segue um padrão característico: transferem-se a si próprio em instituições não estatais. Este
para o sector privado os serviços lucrativos, os processo tem, de certo modo, semelhanças
de grande intensidade de capital com elevado com o papel desempenhado pelo Estado na
conteúdo tecnológico e curto tempo de hospi- promoção de actores sociais no domínio das
talização — por exemplo, meios de diagnóstico relações salariais, embora no caso da socie-
de alta tecnologia, diálise e cirurgia facultativa dade civil secundária as instituições depen-
—, enquanto o Estado reserva para si os servi- dam muito mais do Estado e devam funcionar
ços menos produtivos, com grande intensidade como instituições semipúblicas.
de mão-de-obra e com longo tempo de hospita- Ao diminuir a qualidade e ao aumentar a
lização. Este modelo levou àquilo a que chama- selectividade, o Estado limitou o alcance da
rei, parafraseando O’Connor (1973), o comple- providência estatal. Através do sistema de
xo sócio industrial. comparticipações, os serviços prestados foram
A transferência de serviços públicos para o remercadorizados. Através da privatização, o
sector privado assumiu ainda outra forma. Na Estado criou novas áreas de acumulação de
última década, o Estado tem apoiado, financia- capital, mercados cativos ou protegidos dos
do, promovido e até criado instituições sem quais ele é, às vezes, o único consumidor. À
fins lucrativos que, através de contratos com semelhança do que aconteceu com as naciona-
o Estado, fornecem serviços sociais anterior- lizações, no domínio da acumulação, também
mente a cargo deste, sobretudo no campo da a degradação do sector social do Estado tem
assistência aos deficientes e à terceira idade. sido campo de lutas sociais e políticas. Pelo
Essas instituições filantrópicas, com grandes facto de os beneficiários da providência estatal
384 Boaventura de Sousa Santos

constituírem um vasto segmento da população lógica de reciprocidade semelhante à da rela-


socialmente identificável, é provável que os de- ção de dom estudada por Marcel Mauss (1950).
fensores do sector providencial do Estado te- Essas redes variam quanto ao formalismo, ex-
nham mais êxito político do que os defensores tensão, alcance, duração e estabilidade. Em
das nacionalizações. Portugal, devido ao peso da pequena agricul-
A degradação da qualidade da providência tura e ao facto de as famílias de trabalhadores
estatal tem algumas semelhanças com a que residirem muitas vezes em meios rurais e em
tem vindo a acontecer nos Estados-providência pequenos centros urbanos, as formas da socie-
europeus nos últimos dez anos. Mas a sua im- dade-providência são dominadas por padrões
portância social e política é, contudo, diferen- de sociabilidade, hábitos de classe, mapas cog-
te, já que o limiar ou ponto de partida do pro- nitivos e universos simbólicos que geralmente
cesso de degradação é mais baixo em Portugal constituem atributos da vida rural. Contudo, ao
do que na Europa desenvolvida. Contudo, em contrário do que normalmente se supõe, essas
Portugal, o défice da providência estatal não se redes não são exclusivas das zonas rurais, pois
manifesta em formas de ruptura social ou polí- existem também nos meios urbanos. Aliás, en-
tica tão graves quanto seria de esperar, tendo volvem muitas vezes laços complexos entre fa-
em conta as proporções que atinge. Em minha mílias e comunidades por um lado, e famílias e
opinião, isto deve-se ao facto de parte desse comunidades urbanas, por outro.
défice providencial do Estado ser compensa- A sociedade-providência é uma forma de
do, pelo menos em parte, pela providência so- capital social. A sua realização e valorização
cialmente produzida. Por outras palavras, em tem maior importância estratégica para os gru-
Portugal um Estado-providência fraco coexiste pos sociais e famílias cujos percursos de vida
com uma sociedade-providência forte. são mais directamente afectados pela falta de
Entendo por sociedade-providência as redes providência do Estado. A título de exemplo,
de relações de interconhecimento, de reconhe- refira-se que, em 1981, 71% dos desemprega-
cimento mútuo e de entreajuda baseadas em la- dos declararam que a família era sua principal
ços de parentesco e de vizinhança, através das fonte de rendimento e de subsistência, o que in-
quais pequenos grupos sociais trocam bens e discutivelmente demonstra não só o défice de
serviços numa base não mercantil e com uma providência estatal (baixos subsídios de desem-
O Estado e a sociedade na semiperiferia do sistema mundial: O caso português 385

prego), como também a importância da provi- chás, troca de produtos farmacêuticos, peregri-
dência societal, no caso, de âmbito familiar. nações a Fátima ou outros santuários em agra-
A sociedade-providência engloba um vasto decimento de curas miraculosas, trocas monetá-
leque de actividades, nem sempre fáceis de rias como esmolas e ofertas votivas, preparação
identificar. Socorrendo-me da investigação so- e comercialização de determinados bens e servi-
bre os serviços de saúde acima referidos dou ços como ervas e unguentos, serviços pagos de
dois exemplos elucidativos. parteiras, curandeiros, videntes e bruxas. Estes
Nos dois hospitais centrais de Lisboa, mais bens e serviços são fornecidos quer por espe-
de 10 mil pessoas visitam amigos ou familiares, cialistas, por exemplo, santos ou parteiras, quer
aos fins de semana, e estes números não dimi- pelos próprios vizinhos e parentes.
nuem significativamente nos hospitais centrais A medicina popular ou tradicional tem uma
de outras grandes cidades. Durante a sema- concepção da saúde do corpo e do espírito
na, embora os valores sejam mais baixos, são muito diversa da que a medicina alopática per-
mesmo assim elevados e inéditos em qualquer filha (M. J. Hespanha, 1987) e oferece os seus
parte da Europa. O isolamento social dos do- produtos e serviços através de relações sociais
entes hospitalizados é um grave problema dos também diferentes. Em suma, a medicina po-
Estados-providência e, na Europa, o papel do pular constitui um modo específico de produ-
serviço social profissional nos hospitais é um ção de saúde. A meu ver, os serviços de saúde,
assunto controverso. Em Portugal, a socieda- em Portugal, resultam de uma combinação de
de-providência proporciona aos hospitais um três modos distintos de produção de serviços
serviço social-voluntário e informal e, acres- médicos e de saúde: medicina pública, medici-
centaria eu, com uma qualidade muito superior. na privada capitalista e medicina popular. As
Outro exemplo é o da medicina popular ou relações entre Estado-providência e socieda-
tradicional praticada na sociedade-providência de-providência articulam-se na dinâmica des-
e que inclui um vasto conjunto de bens e ser- sa conjugação. A heterogeneidade decorrente
viços: autoterapia tradicional, troca, gratuita de do funcionamento de um conjunto de lógicas
bens e serviços naturais e sobrenaturais, tais de bem-estar diferentes, e às vezes contraditó-
como assistência domiciliária aos doentes, for- rias, é regulada pelo Estado, tanto pelas suas
necimento de ervas medicinais e preparação de acções regulamentadoras, como pelas suas
386 Boaventura de Sousa Santos

omissões regulamentadoras. No domínio so- um vestígio ou um resíduo pré-moderno. No en-


cial, o Estado heterogéneo apresenta-se como tanto, à luz da discussão sobre novas combina-
um semi-Estado-providência que conta com a ções do Estado-providência e da sociedade-pro-
sociedade-providência para compensar as suas vidência, o que até agora podia ser considerado
deficiências, reduzindo assim a crise de legi- resíduo pré-moderno tem sido gradualmente
timação que estas poderiam desencadear. Al- recodificado como característica pós-moderna.
guns sociólogos dos países centrais da Europa A sociedade-providência portuguesa é prova-
Comunitária têm vindo a propor o conceito de velmente pré-pós-moderna. Há, evidentemen-
sociedade-providência no âmbito da discussão te, diferenças entre a sociedade-providência
sobre a crise do Estado-providência e as possí- portuguesa e a que agora é proposta nos países
veis soluções. É nesse sentido que Rosanvallon centrais, mas há também semelhanças flagran-
fala da necessidade de “uma forma mais des- tes. O mais importante é que o caso português,
centralizada e mais diversificada de produção como se de um laboratório social se tratasse,
de bem-estar social que, em vários aspectos, ilustra e, de certo modo, antecipa algumas das
se assemelhe à flexibilidade que caracterizava possibilidades e das deficiências, dos efeitos se-
a família” e sugere a re-expansão da política cundários ou dos efeitos perversos que podem
social, assente, quer em “grupos incentivados resultar dessa nova tendência para a conjuga-
pelos poderes públicos, mas de organização ção da sociedade-providência com o Estado-
privada (como as instituições de beneficência), -providência. A propósito do Estado-providên-
quer na própria família tradicional” (1988: 539). cia, tem-se afirmado que ele acentua demasiado
Na mesma linha, Lipietz desenvolve a ideia de a igualdade em detrimento da segurança, que
um terceiro sector, um sector de utilidade pú- desenvolve a cidadania, mas aumenta a buro-
blica independente do Estado e do sector capi- cracia, que transforma os cidadãos em clientes
talista privado (1989: 108). e reforça a dependência e o controlo social, e
O debate sobre este tema abre novas perspec- ainda que, se no sector do bem-estar eliminou
tivas e confere renovado interesse à investiga- o feiticismo da mercadoria, foi apenas para o
ção sobre a sociedade-providência portuguesa. substituir pelo feiticismo do Estado.
Até aqui, a investigação realizada tinha-se incli- A investigação sobre a sociedade-providên-
nado para considerar a sociedade-providência cia portuguesa permite tecer alguns comentá-
O Estado e a sociedade na semiperiferia do sistema mundial: O caso português 387

rios sobre estas questões. Em primeiro lugar, Em termos analíticos e políticos é fundamen-
há que ter em conta que os serviços oferecidos tal distinguir entre combinações regressivas e
pela sociedade-providência não são os mesmos combinações progressivas. Entre combinações
que o Estado fornece. Isto é patente no trabalho que captam a solidariedade para a mercantili-
social das visitas hospitalares ou na concepção zar ou mesmo para maximizar o seu potencial
do corpo e da saúde da medicina popular. Em conservador paternalista e até autoritário e as
segundo lugar, a sociedade-providência é aves- combinações que expandem a solidariedade a
sa à igualdade ou, pelo menos, não distingue comunidades mais vastas e democratizam os
tão bem quanto o Estado-providência entre de- seus pressupostos.
sigualdades legítimas e ilegítimas. Em terceiro
lugar, a sociedade-providência é hostil à cida- O Estado-como-imaginação-do-
dania e aos direitos porque as relações sociais centro e a integração na CEE
de bem-estar são concretas, multiformes e as- A dialéctica da territorialização e desterrito-
sentes na reciprocidade complexa de sequên- rialização do sistema mundial está patente na
cias de actos unilaterais de boa vontade. Em análise da sociedade portuguesa enquanto so-
quarto lugar, a sociedade-providência também ciedade-providência forte, coexistente e com-
cria dependências e formas de controlo social plementar de um Estado-providência fraco, e
que, podendo ser mais flexíveis e negociáveis, nas perspectivas de análise agora abertas pelas
são, porém, mais flagrantes. Em quinto lugar, novas alternativas de solução para a crise do
a sociedade-providência tem tendência a criar Estado-providência. Por outras palavras, o que
rigidez espacial. E, last but not least, os cus- está em causa são os desafios que as experiên-
tos mais pesados do bem-estar social propor- cias nacionais, cada vez mais penetradas por
cionado pela sociedade-providência recaem, experiências transnacionais, têm de enfrentar.
inevitavelmente, nas mulheres enquanto os há- Tenho vindo a afirmar que a sociedade portu-
bitos familiares dominantes não se alterarem. guesa é uma formação social muito complexa,
Tendo em vista estas características, o âmbito com um padrão de coesão social e de desen-
da discussão sobre as possíveis combinações volvimento que pressupõe uma reprodução de
do Estado-providência com a sociedade-pro- equilíbrios instáveis entre processos sociais,
vidência deve ser substancialmente alargado. económicos, políticos e culturais altamente he-
388 Boaventura de Sousa Santos

terogéneos, muitos dos quais estão presentes efeitos sociais de muitas das medidas acorda-
em toda a história do país. Nestas circunstân- das só agora se estão a fazer sentir. O Estado
cias, é lícito perguntar que efeitos a integração conduziu as conversações quase sem consul-
na CEE irá provocar nesses equilíbrios, sem tar as organizações dos diferentes grupos de
esquecer que, de acordo com os objectivos ofi- interesses sociais. Várias sondagens, não só à
cialmente proclamados, se trata de uma inte- generalidade da população, mas aos próprios
gração económica, política e social. empresários, revelaram um desconhecimento
Uma das características mais relevantes do quase total das consequências económicas, po-
processo de integração de Portugal na CEE líticas e sociais da adesão à CEE.
foi a prioridade inicial concedida aos aspectos A autonomia do Estado tem uma dimensão
políticos. Quando, nos finais da década de 70, política, uma dimensão económica e uma di-
o PS adoptou a frase “A Europa connosco”, mensão simbólica. Relativamente à dimensão
o objectivo era que a entrada na CEE levasse política, essa autonomia foi justificada em
Portugal a construir e consolidar uma socieda- nome do interesse nacional que compete ao
de democrática estável, uma sociedade como Estado defender. Contraditoriamente, porém, a
as da Europa Ocidental. Os “excessos” da crise autonomia do Estado na defesa dos interesses
revolucionária estavam ainda vivos e a posição nacionais ocorre durante um processo que vai
leninista, ou até estalinista, do PCP era ainda levar a uma considerável redução da capacida-
tida como um potencial perigo. A integração na de de autonomia do Estado para controlar os
CEE contribuiria decisivamente para eliminar mecanismos do desenvolvimento nacional. O
esses elementos anti-democráticos e para con- aumento da autonomia interna do Estado cor-
solidar a jovem democracia. re, assim, paralelo à diminuição da sua autono-
A prioridade do aspecto político, que, como mia externa. No plano institucional, a dimen-
frisei acima, foi uma constante geral desse pe- são política da autonomia do Estado reside, em
ríodo, juntamente com o défice corporativo grande medida, na harmonização institucional
também já mencionado, reforçaram a centra- e legislativa exigida pela integração. Nos últi-
lidade e a autonomia do Estado nas negocia- mos anos, a produção institucional e legislativa
ções para a integração de Portugal na CEE. A do Estado tem sido dominada pela preocupa-
negociação foi um processo complicado e os ção da harmonização, um objectivo que tam-
O Estado e a sociedade na semiperiferia do sistema mundial: O caso português 389

bém serviu para justificar a revogação de algu- quando a corrupção não impediu a sua correc-
mas inovações legislativas e institucionais do ta aplicação, contribuíram para melhorar as
período de 1974 a 1977, ou para deslegitimar as condições gerais de acumulação por exemplo,
reivindicações sociais e políticas alegadamen- através da construção de infra-estruturas e da
te contrárias ao objectivo da harmonização. O formação profissional e criaram emprego. Até
reverso da autonomia política do Estado é o agora, portanto, o Estado pôde converter em
fosso criado entre os actores sociais nacionais legitimação política a autonomia de que dis-
e locais e os desafios da integração na CEE. frutou no processo de adesão. Tudo leva a crer
A dimensão económica da autonomia do que este ciclo virtuoso não possa reproduzir-se
Estado assenta essencialmente na gestão dos por muito mais tempo.
avultados fundos estruturais que a CEE injec- A dimensão política e a dimensão económica
tou na economia portuguesa como parte do da autonomia do Estado no contexto da integra-
programa de transição para adaptações estru- ção europeia alimentaram a dimensão simbó-
turais e para a harmonização. O Estado, que lica dessa autonomia. É, porém, através desta
assumiu o controlo total da atribuição desses dimensão muito complexa que o Estado regula,
fundos estruturais, tem tido uma actuação mui- sobretudo com discursos e actos simbólicos, a
to peculiar, completamente divorciada de qual- dialéctica da distância e da proximidade, da di-
quer estratégia de desenvolvimento económico ferença e da identidade, entre Portugal e a Euro-
estrutural e à mercê de pressões de grupos de pa. A regulação consiste em criar um universo
interesses e de clientelismos partidários. Isto imaginário onde Portugal se transforma num
tem dado origem a um certo populismo de Es- país europeu igual aos outros, sendo o seu me-
tado, o qual não envolve o cidadão comum, nor grau de desenvolvimento considerado sim-
mas antes empresas, grupos económicos e ples característica transitória que cabe ao Esta-
autarquias que procuram uma ligação directa do gerir e atenuar gradual e irreversivelmente
com a burocracia estatal em vez de recorrerem na qualidade de guardião dos interesses nacio-
à intermediação política institucionalizada. nais. Esta construção simbólica é um recurso
Durante o período de transição, os benefí- estratégico na sequência plausível das outras
cios decorrentes da integração têm sido mais dimensões da autonomia do Estado. E tanto as-
visíveis do que os custos. Os fundos estruturais, sim é que, a meu ver, determina a forma política
390 Boaventura de Sousa Santos

dominante do Estado no contexto da integração africanas. À luz destas relações, Portugal sur-
europeia, uma forma política a que chamarei o ge como um país central, um membro da CEE
Estado-como-imaginação-do-centro. que, efectivamente, está em concorrência com
O Estado-como-imaginação-do-centro é uma outros Estados-membros, nomeadamente com
forma política com uma produtividade variada. a França, a Espanha e a Itália. No plano simbó-
Em primeiro lugar, produz sinais inteligíveis e lico, estas relações “deslocam” Portugal para o
credíveis de uma melhor vida futura, tornando centro e, a partir dele, organizam as trocas polí-
transitórias e, consequentemente, suportáveis ticas e económicas. No entanto, num plano mais
as dificuldades e as carências actuais. Em se- profundo, é possível adivinhar aqui a reconsti-
gundo lugar, permite que o Estado tire partido tuição, em novos moldes, do papel colonial de
de todos os benefícios decorrentes da integra- intermediação ou de correia de transmissão:
ção, relegando eventuais custos para um futuro Portugal como mediador entre o centro e a peri-
indeterminado. Em terceiro lugar, deslegitima feria. Esta reconstituição, que liga o período co-
qualquer especificidade do desenvolvimento lonial ao período pós-colonial, é, em minha opi-
nacional que não se enquadre nos actuais ob- nião, um ingrediente importante da autonomia
jectivos do Estado (por exemplo, o sector em- do Estado no contexto da integração na CEE.
presarial do Estado ou a pequena agricultura Diria até que para a autonomia do Estado — que
familiar), alegando que contrariam os padrões durante o período do fascismo assentou, em boa
de desenvolvimento europeu, não sendo, por medida, no império colonial e que agora assen-
isso, politicamente defensáveis. Em quarto ta na integração europeia — às relações com a
lugar, despolitiza o processo político interno, África lusófona podem vir a ser no futuro um
invocando a inevitabilidade técnica de deter- elemento importante. O período pós-colonial
minadas medidas em nome das exigências da está apenas no começo e não esqueçamos que
integração europeia. um dos seus momentos decisivos pode ainda es-
Apesar desta produtividade variada, o Esta- tar para ocorrer: as rupturas políticas na África
do-como-imaginação-do-centro tem um suporte do Sul e o eventual retorno de centenas de mi-
material bem específico, designadamente as re- lhar de emigrantes portugueses.
lações políticas e económicas que Portugal tem Tal como as outras formas políticas do Es-
vindo a desenvolver com as antigas colónias tado português, o Estado-como-imaginação-
O Estado e a sociedade na semiperiferia do sistema mundial: O caso português 391

-do-centro é uma entidade transitória que, de de igualdade de oportunidades, pouco mais


acordo com o desenvolvimento futuro da Eu- se fez. Os encontros de Val Duchesse sobre o
ropa, ou deixará de ser “centro” ou deixará de diálogo social foram um fracasso. Nos termos
ser “imaginação”. É difícil prever o perfil desse do Acto Único, todas as questões relacionadas
desenvolvimento, pelo que me limitarei, a se- com o mercado interno podem ser decididas
guir, a referir alguns dados e tendências que me por maioria de votos, mas as que se relacionem
parecem particularmente sugestivos. com a política social exigem unanimidade, ex-
O futuro da CEE, sobretudo no aspecto cepto no que respeite a normas de segurança e
político-social, continua a ser uma incógnita. higiene no trabalho. As transformações decor-
Desde 1985, assistiu-se a uma nítida e decisiva rentes dos acordos de Maastricht (1991) não
revitalização da Comunidade Europeia, subor- são ainda avaliáveis.
dinada ao princípio de um desenvolvimento A Comissão tem vindo a reclamar uma polí-
harmónico da Comunidade em todos os seus tica social mais dirigista, mas sem êxito. Aliás,
aspectos: económico, político e social. Na prá- a história da CEE leva-nos a ser pessimistas
tica, porém, as políticas e as medidas concre- quanto à possibilidade de concretização desse
tamente aplicadas revelam uma nítida priori- objectivo. Se observarmos a evolução do ren-
dade da dimensão económica: a realização do dimento real (PNB per capita em paridades de
mercado único. Além disso, embora o discurso poder de compra), entre 1960 e 1987 nos doze
político acentue o empenhamento na coesão países actualmente membros da CEE, tiram-se
económica e social e, por conseguinte, na cres- três conclusões (Mateus, 1987; 1989). A pri-
cente homogeneização do espaço europeu, as meira é que o grupo formado pela maioria dos
políticas económicas praticadas têm um forte países centrais apresenta um nível próximo da
cariz neo-liberal e revelam-se pouco sensíveis, média comunitária, apenas com leves oscila-
se não mesmo hostis, ao objectivo da coesão ções: um aumento no caso da Alemanha e um
social e da homogeneização social. decréscimo no caso do Reino Unido e da Ho-
A prová-lo estão as intermináveis discus- landa. A segunda é que o grupo constituído por
sões e os sucessivos impasses no domínio da Portugal, Grécia, Espanha e Irlanda apresenta
política social europeia (Streeck, 1989; Tea- um nível de rendimento real cerca de 26% a 46%
gue, 1989). Para além da determinação legal inferior ao da média comunitária. A terceira é
392 Boaventura de Sousa Santos

que estas disparidades se atenuam no subperí- Excepto quanto ao último valor, provavel-
odo de expansão económica (1970-1975), para mente devido às transferências de fundos es-
voltarem a acentuar-se no período de crise e de truturais, os últimos dez anos não evidenciam
reestruturação económica (1975-1987). Mais sinais de homogeneização. Obter-se-iam resul-
revelador, porém, é o facto de apenas se terem tados idênticos se, em vez de países, comparás-
manifestado possibilidades de homogeneiza- semos regiões.
ção social na fase inicial da Comunidade, ou Conclui-se, assim, que a homogeneização,
seja, no período de 1958 a 1973, quando a CEE mesmo parcial, é uma meta muito difícil de
apenas incluía seis países. Os posteriores alar- atingir. Só poderá alcançar-se com políticas
gamentos não deixam transparecer qualquer estruturais ousadas, de âmbito comunitário e
dinâmica de homogeneização. Analisando a de âmbito nacional, que conciliem a criação
evolução da dispersão entre os níveis máximo do mercado interno com a efectivação da co-
e mínimo do rendimento nacional entre 1960 e esão social e a construção de um novo Estado
1987, obtêm-se resultados elucidativos: europeu. Até agora, nada disso se vislumbra.
Por um lado, o grau de discrepância entre as
Quadro 1. CEE 1960-1987. Dispersão entre políticas estruturais nacionais e as políticas
os níveis máximo e mínimo do rendimento estruturais comunitárias manifesta-se atra-
nacional por grupos de Estados-membros
vés de uma regressão nacionalista (caso da
Europa Grã-Bretanha e, em certa medida, de Portu-
1960 1973 1981 1985 1987
dos: gal que, menos coerentemente, oscila entre o
6 1,32 1,15 hipernacionalismo e o hipereuropeísmo). Por
outro lado, os países menos desenvolvidos,
9 1,89 1,84 aqueles que mais necessitam de profundas
políticas estruturais, são os que no contexto
10 1,97 2,15
europeu menor capacidade têm para as de-
12 2,21 2,15 senvolver e pôr em prática. O perigo, neste
aspecto, pode residir no facto de a Europa
Fontes: Mateus, 1989. tentar ser competitiva, no plano internacio-
nal, à custa da sua periferia.
O Estado e a sociedade na semiperiferia do sistema mundial: O caso português 393

Como afirma Aglietta, a Europa é o berço da grande heterogeneidade e diversidade com um


protecção social, uma experiência social notá- elevado grau de coesão social. Este complexo
vel de economia mista que combina sabiamente processo tem sido regulado pelo Estado, que
a intervenção do Estado com uma ampla con- inscreveu na sua matriz institucional essa tran-
certação social. Embora os antecedentes sejam sição e a própria heterogeneidade social que é
recomendáveis, é alarmante verificar que não é objecto da sua regulação.
por coincidência que o discurso de coesão social Para cada um dos domínios da vida da so-
europeia coexiste com a falência do Estado-pro- ciedade portuguesa, o Estado assumiu dife-
vidência e o avolumar das desigualdades sociais rentes formas políticas parcelares: no domínio
nos vários Estados-membros. das relações de troca e das relações salariais, a
forma de Estado paralelo, seguido da forma de
Conclusão Estado heterogéneo; no domínio do bem-estar
A integração na CEE acabou, gradualmente, social, a forma de semi-Estado-providência;
por se tornar no principal factor estruturante no domínio da integração europeia e dos valo-
do período de transição que a sociedade portu- res que lhe são inerentes, a forma de Estado-
guesa vive desde 1974, ou melhor, desde 1969. -como-imaginação-do-centro. Estas formas, to-
Trata-se de uma dupla transição que se proces- das elas transitórias, testemunham as tensões
sa em dois planos — o nacional e o europeu existentes entre uma orientação central e uma
— que, de dia para dia, se interpenetram mais. orientação periférica, entre a promoção ou a
A sociedade portuguesa é altamente heterogé- despromoção internacional, entre a integração
nea, não só em termos económicos e sociais, ou a exclusão social. Representam a maneira
mas também em termos políticos e culturais. O portuguesa de viver a transformação dinâmica
cruzamento e a neutralização recíproca dessas do sistema mundial nos últimos vinte anos.
várias heterogeneidades permitiu, até agora, Essa transição ainda está longe do fim. No
que Portugal — um dos mais antigos Estados- entanto, as diferentes formas políticas parcela-
-nação da Europa e indiscutivelmente aquele res do Estado e a sua evolução parecem apon-
que há mais tempo mantém inalteradas as suas tar para um novo modo semiperiférico de regu-
fronteiras, para além de ser também o de maior lação social.
homogeneidade étnica — conjugasse essa
394 Boaventura de Sousa Santos

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Os processos da globalização*

Introdução “globalização” (Featherstone, 1990; Giddens,


1990; Albrow e King, 1990), “formação global”
N as três últimas décadas, as interacções
transnacionais conheceram uma intensifi-
cação dramática, desde a globalização dos sis-
1
(Chase-Dunn, 1991) , “cultura global” (Appa-
durai, 1990, 1997; Robertson, 1992), “sistema
temas de produção e das transferências finan- global” (Sklair, 1991), “modernidades globais”
ceiras, à disseminação, a uma escala mundial, (Featherstone et al, 1995), “processo global”
de informação e imagens através dos meios de (Friedman, 1994), “culturas da globalização”
comunicação social ou às deslocações em mas- (Jameson e Miyoshi, 1998) ou “cidades globais”
sa de pessoas, quer como turistas, quer como (Sassen, 1991, 1994; Fortuna, 1997). Giddens
trabalhadores migrantes ou refugiados. A ex- define globalização como “a intensificação de
traordinária amplitude e profundidade destas relações sociais mundiais que unem localida-
interacções transnacionais levaram a que al- des distantes de tal modo que os acontecimen-
guns autores as vissem como ruptura em rela- tos locais são condicionados por eventos que
ção às anteriores formas de interacções trans- acontecem a muitas milhas de distância e vice
fronteiriças, um fenómeno novo designado por versa” e acusa os sociólogos de uma acomo-
dação indevida à ideia de “sociedade” enquan-
to um sistema fechado (1990: 64). No mesmo

* Extraído de Santos, B. de Sousa 2001 “Os processos


da globalização” in Santos, B. de Sousa (org.) Globa- 1 Repare-se, no entanto, que Chase-Dunn enfatiza a
lização: fatalidade ou utopia? (Porto: Afrontamento) continuidade dos acontecimentos recentes no seio do
pp. 31-106. sistema mundial.
398 Boaventura de Sousa Santos

sentido, Featherstone desafia a sociologia a a universalização e a eliminação das fronteiras


“teorizar e encontrar formas de investigação nacionais, por um lado, o particularismo, a di-
sistemática que ajudem a clarificar estes pro- versidade local, a identidade étnica e o regresso
cessos globalizantes e estas formas destrutivas ao comunitarismo, por outro. Além disso, inte-
de vida social que tornam problemático o que rage de modo muito diversificado com outras
por muito tempo foi visto como o objecto mais transformações no sistema mundial que lhe são
básico da sociologia: a sociedade concebida concomitantes, tais como o aumento dramático
quase exclusivamente como o Estado-nação das desigualdades entre países ricos e países
bem delimitado (1990: 2). Para o Grupo de Lis- pobres e, no interior de cada país, entre ricos e
boa, a globalização é uma fase posterior à inter- pobres, a sobrepopulação, a catástrofe ambien-
nacionalização e à multinacionalização porque, tal, os conflitos étnicos, a migração internacio-
ao contrário destas, anuncia o fim do sistema nal massiva, a emergência de novos Estados e a
nacional enquanto núcleo central das activida- falência ou implosão de outros, a proliferação
des e estratégias humanas organizadas (1994). de guerras civis, o crime globalmente organiza-
Uma revisão dos estudos sobre os processos do, a democracia formal como uma condição
de globalização mostra-nos que estamos peran- política para a assistência internacional, etc.
te um fenómeno multifacetado com dimensões Antes de propor uma interpretação da globa-
económicas, sociais, políticas, culturais, religio- lização contemporânea, descreverei brevemen-
sas e jurídicas interligadas de modo complexo. te as suas características dominantes, vistas de
Por esta razão, as explicações monocausais e uma perspectiva económica, política e cultural.
as interpretações monolíticas deste fenómeno De passo aludirei aos três debates mais impor-
parecem pouco adequadas. Acresce que a glo- tantes que tem suscitado, formuláveis em ter-
balização das últimas três décadas, em vez de mos das seguintes questões: 1) a globalização é
se encaixar no padrão moderno ocidental de um fenómeno novo ou velho?; 2) a globalização
globalização — globalização como homoge- é monolítica, ou tem aspectos positivos e as-
neização e uniformização — sustentado tanto pectos negativos?; 3) aonde conduz a crescen-
por Leibniz, como por Marx, tanto pelas teorias te intensificação da globalização? Nos debates
da modernização, como pelas teorias do de- acerca da globalização há uma forte tendência
senvolvimento dependente, parece combinar para reduzi-la às suas dimensões económicas.
Os processos da globalização 399

Sem duvidar da importância de tal dimensão, va. Dada a amplitude dos processos em jogo, a
penso que é necessário dar igual atenção às di- prescrição é um conjunto vasto de prescrições
mensões social, política e cultural. todas elas ancoradas no consenso hegemóni-
Falar de características dominantes da glo- co. Este consenso é conhecido por “consenso
balização pode transmitir a ideia de que a glo- neoliberal” ou “Consenso de Washington” por
balização é não só um processo linear, mas ter sido em Washington, em meados da déca-
também um processo consensual. Trata-se ob- da de oitenta, que ele foi subscrito pelos Esta-
viamente de uma ideia falsa, como se mostrará dos centrais do sistema mundial, abrangendo
adiante. Mas apesar de falsa é, ela própria, tam- o futuro da economia mundial, as políticas de
bém dominante. E sendo falsa, não deixa de ter desenvolvimento e especificamente o papel
uma ponta de verdade. A globalização, longe do Estado na economia. Nem todas as dimen-
de ser consensual, é, como veremos, um vas- sões da globalização estão inscritas do mesmo
to e intenso campo de conflitos entre grupos modo neste consenso, mas todas são afecta-
sociais, Estados e interesses hegemónicos, por das pelo seu impacto. O consenso neoliberal
um lado, e grupos sociais, Estados e interesses propriamente dito é um conjunto de quatro
subalternos, por outro; e mesmo no interior do consensos adiante mencionados dos quais de-
campo hegemónico há divisões mais ou menos correm outros que serão igualmente referidos.
significativas. No entanto, por sobre todas as Este consenso está hoje relativamente fragili-
suas divisões internas, o campo hegemónico zado em virtude de os crescentes conflitos no
actua na base de um consenso entre os seus interior do campo hegemónico e da resistência
mais influentes membros. É esse consenso que que tem vindo a ser protagonizada pelo campo
não só confere à globalização as suas caracte- subalterno ou contra-hegemónico. Isto é tanto
rísticas dominantes, como também legitima es- assim que o período actual é já designado por
tas últimas como as únicas possíveis ou as úni- pós-Consenso de Washington. No entanto, foi
cas adequadas. Daí que, da mesma forma que esse consenso que nos trouxe até aqui e é por
aconteceu com os conceitos que a precederam, isso sua a paternidade das características hoje
tais como modernização e desenvolvimento, o dominantes da globalização.
conceito de globalização tenha uma compo- Os diferentes consensos que constituem o
nente descritiva e uma componente prescriti- consenso neoliberal partilham uma ideia-for-
400 Boaventura de Sousa Santos

ça que, como tal, constitui um metaconsenso. Deste metaconsenso faz ainda parte a ideia
Essa ideia é a de que estamos a entrar num de que desapareceram igualmente as clivagens
período em que desapareceram as clivagens entre diferentes padrões de transformação so-
políticas profundas. As rivalidades imperialis- cial. Os três primeiros quartéis do século XX
tas entre os países hegemónicos, que no século foram dominados pelas rivalidades entre dois
XX provocaram duas guerras mundiais, desa- padrões antagónicos: a revolução e o reformis-
pareceram, dando origem à interdependência mo. Ora se, por um lado, o colapso da União
entre as grandes potências, à cooperação e à Soviética e a queda do Muro de Berlim signifi-
integração regionais. Hoje em dia, existem ape- caram o fim do paradigma revolucionário, a cri-
nas pequenas guerras, quase todas na periferia se do Estado-Providência nos países centrais e
do sistema mundial e muitas delas de baixa in- semiperiféricos significa que está igualmente
tensidade. De todo o modo, os países centrais, condenado o paradigma reformista. O conflito
através de vários mecanismos (intervenções Leste/Oeste desapareceu e arrastou consigo o
selectivas, manipulação da ajuda internacio- conflito Norte/Sul que nunca foi um verdadeiro
nal, controlo através da dívida externa), têm conflito e que é agora um campo fértil de inter-
meios para manter sob controlo esses focos dependências e cooperações. Em face disto, a
de instabilidade. Por sua vez, os conflitos entre transformação social é, a partir de agora, não
capital e trabalho que, por deficiente institu- uma questão política, e sim uma questão téc-
cionalização, contribuíram para a emergência nica. Ela não é mais que a repetição acelerada
do fascismo e do nazismo, acabaram sendo das relações cooperativas entre grupos sociais
plenamente institucionalizados nos países cen- e entre Estados.
trais depois da Segunda Guerra Mundial. Hoje, Fukuyama (1992), com a sua ideia do fim
num período pós-fordista, tais conflitos estão da história, deu expressão e divulgação a este
a ser relativamente desinstitucionalizados sem metaconsenso. Huntington (1993) secundou-o
que isso cause qualquer instabilidade porque, com a sua ideia do “choque de civilizações”,
entretanto, a classe operária fragmentou-se e ao defender que as clivagens tinham deixado
estão hoje a emergir novos compromissos de de ser políticas para passarem a ser civiliza-
classe menos institucionalizados e a ter lugar cionais. É a ausência das clivagens políticas
em contextos menos corporativistas. da modernidade ocidental que leva Hunting-
Os processos da globalização 401

ton a reinventá-las em termos de uma ruptura seada na globalização da produção levada a


entre o Ocidente, agora entendido como tipo cabo pelas empresas multinacionais, gradu-
de civilização, e o que misteriosamente desig- almente convertidas em actores centrais da
na por “conexão islâmica confucionista”. Este nova economia mundial. Os traços principais
metaconsenso e os que decorrem subjazem às desta nova economia mundial são os seguintes:
características dominantes da globalização em economia dominada pelo sistema financeiro e
suas múltiplas facetas a seguir descritas. Pelo pelo investimento à escala global; processos de
que ficou dito atrás e pela análise que se segui- produção flexíveis e multilocais; baixos custos
rá, torna-se claro que as características domi- de transporte; revolução nas tecnologias de
nantes da globalização são as características informação e de comunicação; desregulação
da globalização dominante ou hegemónica. das economias nacionais; preeminência das
Mais adiante faremos a distinção, para nós cru- agências financeiras multilaterais; emergência
cial, entre globalização hegemónica e globali- de três grandes capitalismos transnacionais:
zação contra-hegemónica. o americano, baseado nos EUA e nas relações
privilegiadas deste país com o Canadá, o Méxi-
A globalização económica e o co e a América Latina; o japonês, baseado no
Neoliberalismo Japão e nas suas relações privilegiadas com os
Froebel, Heinrichs e Kreye (1980) foram quatro pequenos tigres e com o resto da Ásia;
provavelmente os primeiros a falar, no início e o europeu, baseado na União Europeia e nas
da década de oitenta, da emergência de uma relações privilegiadas desta com a Europa de
2
nova divisão internacional do trabalho , ba- Leste e com o Norte de África.
Estas transformações têm vindo a atraves-
sar todo o sistema mundial, ainda que com in-
2 Walton (1985) refere três formas sucessivas de “di- tensidade desigual consoante a posição dos pa-
visões internacionais do trabalho”, caracterizando-se a íses no sistema mundial. As implicações destas
última e actual pela globalização da produção levada a transformações para as políticas económicas
cabo pelas multinacionais. Uma revisão das diferentes nacionais podem ser resumidas nas seguintes
abordagens às “novas divisões internacionais do traba-
orientações ou exigências: as economias na-
lho”, pode ser vista em Jenkins (1984). Ver igualmente
Gordon (1988). cionais devem abrir-se ao mercado mundial e
402 Boaventura de Sousa Santos

os preços domésticos devem tendencialmente Centrando-se no impacto urbano da glo-


adequar-se aos preços internacionais; deve ser balização económica, Saskia Sassen detecta
dada prioridade à economia de exportação; as mudanças profundas na geografia, na compo-
políticas monetárias e fiscais devem ser orien- sição e estrutura institucional da economia
tadas para a redução da inflação e da dívida global (Sassen, 1994: 10). No que respeita à
pública e para a vigilância sobre a balança de nova geografia, argumenta que “comparati-
pagamentos; os direitos de propriedade priva- vamente aos anos cinquenta, os anos oitenta
da devem ser claros e invioláveis; o sector em- conheceram um estreitamento da geografia da
presarial do Estado deve ser privatizado; a to- economia global e a acentuação do eixo Este-
mada de decisão privada, apoiada por preços -Leste. Isto torna-se evidente com o enorme
estáveis, deve ditar os padrões nacionais de crescimento do investimento dentro do que é
especialização; a mobilidade dos recursos, dos muitas vezes denominado pela Tríade: os Es-
investimentos e dos lucros; a regulação estatal tados Unidos da América, a Europa Ocidental
da economia deve ser mínima; deve reduzir-se e o Japão” (Sassen, 1994: 10). Outra caracte-
o peso das políticas sociais no orçamento do rística da nova geografia é que o investimento
Estado, reduzindo o montante das transferên- estrangeiro directo, do qual, durante uns tem-
cias sociais, eliminando a sua universalidade, pos, a América Latina foi o maior beneficiário,
e transformando-as em meras medidas com- dirigiu-se para Leste, Sul e Sudeste Asiático,
pensatórias em relação aos estratos sociais onde a taxa anual de crescimento aumentou
inequivocamente vulnerabilizados pela actua- em média 37% por ano entre 1985 e 1989. Por
3
ção do mercado . outro lado, enquanto nos anos cinquenta o
maior fluxo internacional era o comércio mun-
dial, concentrado nas matérias-primas, outros
3 Ver Stallings (1992a: 3). Em finais da década de
oitenta, as empresas multinacionais norteamericanas produtos primários e recursos manufactu-
e estrangeiras protagonizaram 80% do comércio inter- rados, a partir dos anos oitenta a distância
nacional nos EUA e mais de um terço dos negócios
internacionais norte-americanos foi, na verdade, intra-
-empresarial, i.e., decorreu entre diferentes unidades, trangeiro directo e uma larga parte das transferências
geograficamente separadas, da mesma empresa. Para tecnológicas são efectuados pelas empresas multina-
além disso, hoje em dia, quase todo o investimento es- cionais (Sassen, 1994: 14).
Os processos da globalização 403

entre o crescimento da taxa de exportações Em suma, a globalização económica é sus-


e o crescimento da taxa dos fluxos financei- tentada pelo consenso económico neoliberal
ros aumentou drasticamente: após a crise de cujas três principais inovações institucionais
1981-82 e até 1990, o investimento estrangeiro são: restrições drásticas à regulação estatal da
directo global cresceu em média 29% por ano, economia; novos direitos de propriedade inter-
uma subida histórica (Sassen, 1994: 14). nacional para investidores estrangeiros, inven-
Por fim, no que toca à estrutura institucional, tores e criadores de inovações susceptíveis de
Sassen defende que estamos perante um novo serem objecto de propriedade intelectual (Ro-
regime internacional, baseado na ascendên- binson, 1995: 373); subordinação dos Estados
cia da banca e dos serviços internacionais. As nacionais às agências multilaterais tais como o
empresas multinacionais são agora um impor- Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacio-
tante elemento na estrutura institucional, jun- nal (FMI) e a Organização Mundial do Comér-
tamente com os mercados financeiros globais cio. Dado o carácter geral deste consenso, as
e com os blocos comerciais transnacionais. receitas em que ele se traduziu foram aplica-
De acordo com Sassen, todas estas mudanças das, ora com extremo rigor (o que designo por
contribuíram para a formação de novos locais modo da jaula de ferro), ora com alguma fle-
estratégicos na economia mundial: zonas de xibilidade (o modo da jaula de borracha). Por
processamento para exportação, centros finan- exemplo, os países asiáticos evitaram durante
ceiros offshore e cidades globais (Sassen, 1994: muito tempo aplicar integralmente as receitas
18). Uma das transformações mais dramáticas e alguns deles, como, por exemplo, a Índia e
produzidas pela globalização económica neoli- a Malásia, conseguiram até hoje aplicá-las ape-
beral reside na enorme concentração de poder nas selectivamente.
económico por parte das empresas multinacio- Como veremos a seguir, são os países peri-
nais: das 100 maiores economias do mundo, 47 féricos e semiperiféricos os que mais estão su-
são empresas multinacionais; 70% do comércio jeitos às imposições do receituário neoliberal,
mundial é controlado por 500 empresas mul- uma vez que este é transformado pelas agên-
tinacionais; 1% das empresas multinacionais cias financeiras multilaterais em condições
detém 50% do investimento directo estrangeiro para a renegociação da dívida externa através
(Clarke, 1996). dos programas de ajustamento estrutural. Mas,
404 Boaventura de Sousa Santos

dado o crescente predomínio da lógica finan- transnacional e a magnitude das transforma-


ceira sobre a economia real, mesmo os Estados ções que elas estão a suscitar na economia
centrais, cuja dívida pública tem vindo a au- mundial está patente no facto de que mais de
mentar, estão sujeitos às decisões das agências um terço do produto industrial mundial é pro-
financeiras de rating, ou seja, das empresas in- duzido por estas empresas e de que uma per-
ternacionalmente acreditadas para avaliar a si- centagem muito mais elevada é transaccionado
tuação financeira dos Estados e os consequen- entre elas. Embora a novidade organizacional
tes riscos e oportunidades que eles oferecem das empresas multinacionais possa ser ques-
aos investidores internacionais. Por exemplo, a tionada, parece inegável que a sua prevalên-
baixa de nota decretada pela empresa Moody’s cia na economia mundial e o grau e eficácia
à dívida pública da Suécia e do Canadá em me- da direcção centralizada que elas adquirem as
ados da década de noventa foi decisiva para os distingue das formas precedentes de empresas
cortes nas despesas sociais adoptados pelos internacionais (Becker e Sklar, 1987: 2).
dois países (Chossudovsky, 1997: 18). O impacto das empresas multinacionais nas
novas formações de classe e na desigualdade
A globalização social e as a nível mundial tem sido amplamente debatido
desigualdades nos últimos anos4. Dentro da tradição da teoria
Quanto às relações sócio-políticas, tem sido
defendido que, embora o sistema mundial
moderno tenha sido sempre estruturado por 4 Sobre o impacto das empresas multinacionais, ver
um sistema de classes, uma classe capitalista o capítulo 3, “The Largest Transnational Corporations
and Corporate Stategies”, do relatório da UNCTAD de
transnacional está hoje a emergir cujo campo 1999 World Investment Report, 1999. Foreign Direct
de reprodução social é o globo enquanto tal e Investment and the Challenge of Development. Dispo-
que facilmente ultrapassa as organizações na- nível na internet: <www.unctad.org/en/pub/ps1wir99.
cionais de trabalhadores, bem como os Esta- htm>. Segundo este relatório, as empresas multinacio-
dos externamente fracos da periferia e da se- nais lideram a produção internacional — entendendo-
-se por tal a produção de bens e serviços num dado
miperiferia do sistema mundial. país, controlada e gerida por empresas com sede nou-
As empresas multinacionais são a princi- tro país — e esta liderança concentra-se cada vez mais
pal forma institucional desta classe capitalista nos países centrais. Cerca de 90% das 100 maiores em-
Os processos da globalização 405

da dependência, Evans foi um dos primeiros da diversidade dos seus interesses sectoriais,
a analisar a “tripla aliança” entre as empresas partilham uma situação comum de privilé-
multinacionais, a elite capitalista local e o que gio sócio-económico e um interesse comum
chama “burguesia estatal” enquanto base da de classe nas relações do poder político e do
dinâmica de industrialização e do crescimento controlo social que são intrínsecas ao modo de
económico de um país semiperiférico como o produção capitalista”. O ramo internacional,
Brasil (Evans, 1979; 1986). Becker e Sklar, que a burguesia internacional, é composta pelos
propõem a teoria do pósimperialismo, falam de gestores das empresas multinacionais e pelos
uma emergente burguesia de executivos, uma dirigentes das instituições financeiras interna-
nova classe social saída das relações entre o cionais (1987: 7).
sector administrativo do Estado e as grandes As novas desigualdades sociais produzidas
empresas privadas ou privatizadas. Esta nova por esta estrutura de classe têm vindo a ser am-
classe é composta por um ramo local e por um plamente reconhecidas mesmo pelas agências
ramo internacional. O ramo local, a burguesia multilaterais que têm liderado este modelo de
nacional, é uma categoria socialmente ampla globalização, como o Banco Mundial e o Fundo
que envolve a elite empresarial, os directores Monetário Internacional. Para Evans, o mode-
de empresas, os altos funcionários do Estado, lo de industrialização e crescimento baseado
líderes políticos e profissionais influentes. Ape- na “tripla aliança” é inerentemente injusto e
sar de toda a heterogeneidade, estes diferentes apenas capaz de um tipo de redistribuição “da
grupos constituem, de acordo com os autores, massa da população para a burguesia estatal,
uma classe, “porque os seus membros, apesar as multinacionais e o capital local. A manuten-
ção de um equilíbrio delicado entre os três par-
ceiros milita contra qualquer possibilidade de
presas multinacionais estão sediadas nos países desen- um tratamento sério às questões da redistribui-
volvidos. Com isto aumenta também a pressão destas ção de rendimentos, mesmo que membros da
empresas no sentido da liberalização do investimento elite expressem um apoio ao princípio teórico
estrangeiro directo: das 145 alterações na regulação do da redistribuição de rendimentos” (1979: 288).
investimento directo estrangeiro decretadas em todo o
Em comparações mais recentes entre os mode-
mundo em 1998, 136 foram no sentido de criar condi-
ções mais favoráveis ao investimento. los e padrões de desigualdade social da Améri-
406 Boaventura de Sousa Santos

ca Latina e do Leste Asiático, Evans acrescenta tório do Desenvolvimento do Banco Mundial de


outros factores que, em sua opinião, podem ter 1995, o conjunto dos países pobres, onde vive
contribuído para que o modelo de desenvolvi- 85,2% da população mundial, detém apenas
mento asiático tenha produzido relativamente 21,5% do rendimento mundial, enquanto o con-
menos desigualdades que o modelo brasileiro. junto dos países ricos, com 14,8% da população
Entre esses factores contabiliza, a favor do mo- mundial, detém 78,5% do rendimento mundial.
delo asiático, a maior autonomia do Estado, Uma família africana média consome hoje 20%
a eficiência da burocracia estatal, a reforma menos do que consumia há 25 anos. Segundo
agrária e a existência de um período inicial de o Banco Mundial, o continente africano foi o
protecção em relação ao capitalismo dos paí- único em que, entre 1970 e 1997, se verificou
ses centrais (1987)5. um decréscimo da produção alimentar (World
É hoje evidente que a iniquidade da distri- Bank, 1998). O aumento das desigualdades tem
buição da riqueza mundial se agravou nas duas sido tão acelerado e tão grande que é adequado
últimas décadas: 54 dos 84 países menos desen- ver as últimas décadas como uma revolta das
volvidos viram o seu PNB per capita decrescer elites contra a redistribuição da riqueza com a
nos anos 80; em 14 deles a diminuição rondou qual se põe fim ao período de uma certa demo-
os 35%; segundo o Relatório do Programa para cratização da riqueza iniciado no final da Se-
o Desenvolvimento das Nações Unidas de 2001 gunda Guerra Mundial. Segundo o Relatório do
(PNUD, 2001), mais de 1,2 biliões de pessoas Desenvolvimento Humano do PNUD relativo a
(pouco menos que 1/4 da população mundial)
vivem na pobreza absoluta, ou seja, com um
rendimento inferior a um dólar por dia e outros subsahariana, 40% no Sul da Ásia e 15% no Extremo
Oriente, Pacífico e América Latina. De qualquer modo,
2,8 biliões vivem apenas com o dobro desse
a proporção de pessoas a viver em pobreza absoluta
rendimento (PNUD, 2001: 9)6. Segundo o Rela- diminuiu entre 1993 e 1998 de 29% para 24% (PNUD,
2001: 22). Ver também Kennedy (1993: 193-228) e Chos-
sudovsky (1997). De acordo com Maizels (1992) as
5 No mesmo sentido, cfr. Wade (1990, 1996) e Whi- exportações de bens primários do Terceiro Mundo au-
tley (1992). mentaram quase 100% durante o período 1980-88. Mas
6 Segundo o mesmo relatório, 46% da população as receitas obtidas em 1988 foram 30% inferiores às ob-
mundial a viver em pobreza absoluta vive na África tidas em 1980. Ver também Singh (1993).
Os processos da globalização 407

1999, os 20% da população mundial a viver nos candalosas no país que tem liderado a aplica-
países mais ricos detinham, em 1997, 86% do ção do novo modelo económico, os EUA. Já no
produto bruto mundial, enquanto os 20% mais final da década de oitenta, segundo dados do
pobres detinham apenas 1%. Segundo o mes- Federal Reserve Bank, 1% das famílias norte-
mo Relatório, mas relativo a 2001, no quinto americanas detinha 40% da riqueza do país e
mais rico concentram-se 79% dos utilizadores as 20% mais ricas detinham 80% da riqueza do
da internet. As desigualdades neste domínio país. Segundo o Banco, esta concentração não
mostram quão distantes estamos de uma socie- tinha precedentes na história dos EUA, nem
dade de informação verdadeiramente global. A comparação com os outros países industriali-
largura da banda de comunicação electrónica zados (Mander, 1996: 11).
de São Paulo, uma das sociedades globais, é No domínio da globalização social, o con-
superior à de África no seu todo. E a largura senso neoliberal é o de que o crescimento e a
da banda usada em toda a América Latina é estabilidade económicos assentam na redução
quase igual ao disponível para a cidade de Seul dos custos salariais, para o que é necessário li-
(PNUD, 2001: 3). beralizar o mercado de trabalho, reduzindo os
Nos últimos trinta anos a desigualdade na direitos laborais, proibindo a indexação dos sa-
distribuição dos rendimentos entre países au- lários aos ganhos de produtividade e os ajusta-
mentou dramaticamente. A diferença de rendi- mentos em relação ao custo de vida e eliminan-
mento entre o quinto mais rico e o quinto mais do a prazo a legislação sobre salário mínimo. O
pobre era, em 1960, de 30 para 1, em 1990, de 60 objectivo é impedir “o impacto inflaccionário
para 1 e, em 1997, de 74 para 1. As 200 pessoas dos aumentos salariais”. A contracção do po-
mais ricas do mundo aumentaram para mais der de compra interno que resulta desta políti-
do dobro a sua riqueza entre 1994 e 1998. A ri- ca deve ser suprida pela busca de mercados ex-
queza dos três mais ricos bilionários do mun- ternos. A economia é, assim, dessocializada, o
do excede a soma do produto interno bruto conceito de consumidor substitui o de cidadão
dos 48 países menos desenvolvidos do mundo e o critério de inclusão deixa de ser o direito
(PNUD, 2001). para passar a ser a solvência. Os pobres são os
A concentração da riqueza produzida pela insolventes (o que inclui os consumidores que
globalização neoliberal atinge proporções es- ultrapassam os limites do sobreendividamen-
408 Boaventura de Sousa Santos

to). Em relação a eles devem adoptar-se me- último Relatório do Desenvolvimento Humano
didas de luta contra a pobreza, de preferência das Nações Unidas, em 1998, 968 milhões de
medidas compensatórias que minorem, mas pessoas não tinham acesso a água potável, 2,4
não eliminem, a exclusão, já que esta é um efei- biliões (pouco menos que metade da popula-
to inevitável (e, por isso, justificado) do desen- ção mundial) não tinha acesso a cuidados bá-
volvimento assente no crescimento económico sicos de saúde; em 2000, 34 milhões de pessoas
e na competitividade a nível global. Este con- estavam infectadas com HIV/SIDA, dos quais
senso neoliberal entre os países centrais é im- 24,5 milhões na África subsahariana (UNAIDS,
posto aos países periféricos e semiperiféricos 2000: 6); em 1998, morriam anualmente 12 mi-
através do controlo da dívida externa efectua- lhões de crianças (com menos de 5 anos) de
do pelo Fundo Monetário Internacional e pelo doenças curáveis (UNICEF, 2000). As doenças
Banco Mundial. Daí que estas duas instituições que mais afectam a população pobre do mun-
sejam consideradas responsáveis pela “globa- do são a malária, a tuberculose e a diarreia7.
lização da pobreza” (Chossudovsky, 1997). A Ante este quadro não pode ser mais chocante
nova pobreza globalizada não resulta de falta a distribuição mundial dos gastos com a saúde
de recursos humanos ou materiais, mas tão só e a investigação médica. Por exemplo, apenas
do desemprego, da destruição das economias 0,1% do orçamento da pesquisa médica e far-
de subsistência e da minimização dos custos macêutica mundial — cerca de 100 milhões de
salariais à escala mundial. dólares em 1998 (PNUD, 2001: 3) — é destina-
Segundo a Organização Mundial de Saúde, do à malária, enquanto a quase totalidade dos
os países pobres têm a seu cargo 90% das do- 26,4 biliões de dólares investidos em pesquisa
enças que ocorrem no mundo, mas não têm pelas multinacionais farmacêuticas se destina
mais do 10% dos recursos globalmente gastos às chamadas “doenças dos países ricos”: can-
em saúde; 1/5 da população mundial não tem cro, doenças cardiovasculares, do sistema ner-
qualquer acesso a serviços de saúde modernos voso, doenças endócrinas e do metabolismo.
e metade da população mundial não tem aces-
so a medicamentos essenciais. A área da saúde
7 Em 1995, a malária afectava, por cada 100 habitan-
é talvez aquela em que de modo mais chocan-
tes, 16 pessoas no Quénia, 21 na Nova Guiné Papua, 33
te se revela a iniquidade do mundo. Segundo o na Zâmbia (PNUD, 1999).
Os processos da globalização 409

O que não admira se tivermos em mente que a do séc. XX, a África pagava 1,31 dólar de dívida
América Latina representa apenas 4% das ven- externa por cada dólar de ajuda internacional
das farmacêuticas globais e a África, 1%. É por que recebia (World Bank, 2000). O Fundo Mo-
isso também que apenas 1% das novas drogas netário Internacional tem basicamente funcio-
comercializadas pelas companhias farmacêu- nado como a instituição que garante que os pa-
ticas multinacionais entre 1975 e 1997 se des- íses pobres, muitos deles cada vez mais pobres
tinaram especificamente ao tratamento de do- e individados, paguem as suas dívidas aos pa-
enças tropicais que afectam o Terceiro Mundo íses ricos (Estados, bancos privados, agências
(Silverstein, 1999). multilaterais) nas condições (juros, por exem-
Apesar do aumento chocante da desigualda- plo) impostas por estes. Mas as transferências
de entre países pobres e países ricos, apenas 4 líquidas do Sul para o Norte assumem muitas
destes últimos cumprem a sua obrigação moral outras formas como, por exemplo, a “fuga dos
de contribuir com 0.7% do Produto Interno Bru- cérebros”: segundo as Nações Unidas, cerca de
to para a ajuda ao desenvolvimento. Aliás, se- 100.000 profissionais indianos imigram para os
gundo dados da OCDE, esta percentagem dimi- EUA, o que corresponde a uma perda de 2 bi-
nui entre 1987 e 1997 de 0,33 para 0,22 (OCDE/ liões de dólares para a Índia (PNUD, 2001: 5).
DAC). O mais perverso dos programas de ajuda
internacional é o facto de eles ocultarem ou- A globalização política
tros mecanismos de transferências financeiras e o Estado-nação
em que os fluxos são predominantemente dos A nova divisão internacional do trabalho,
países mais pobres para os países mais ricos. conjugada com a nova economia política “pró-
É o que se passa, por exemplo, com a dívida -mercado”, trouxe também algumas importan-
externa. O valor total da dívida externa dos tes mudanças para o sistema interestatal, a
países da África subsahariana (em milhões de forma política do sistema mundial moderno.
dólares) aumentou entre 1980 e 1995 de 84.119 Por um lado, os Estados hegemónicos, por eles
para 226.483; no mesmo período, e em percen- próprios ou através das instituições internacio-
tagem do PIB, aumentou de 30,6% para 81,3% nais que controlam (em particular as institui-
e, em percentagem de exportações, de 91,7% ções financeiras multilaterais), comprimiram a
para 241,7% (World Bank, 1997: 247). No final autonomia política e a soberania efectiva dos
410 Boaventura de Sousa Santos

Estados periféricos e semiperiféricos com uma jurídica da economia, como o testemunham os


intensidade sem precedentes, apesar de a ca- vários projectos de modelização e unificação
pacidade de resistência e negociação por parte do direito económico desenvolvidos ao longo
8
destes últimos poder variar imenso . Por outro do século XX, por especialistas de direito com-
lado, acentuou-se a tendência para os acordos parado e concretizados por organizações inter-
políticos interestatais (União Europeia, NAF- nacionais e governos nacionais. Como os pró-
TA, Mercosul). No caso da União Europeia, prios nomes dos projectos indicam, a pressão
esses acordos evoluíram para formas de sobe- internacional tem sido, tradicionalmente, no
rania conjunta ou partilhada. Por último, ain- sentido da uniformização e da normalização, o
da que não menos importante, o Estado-nação que é bem ilustrado pelos projectos pioneiros
parece ter perdido a sua centralidade tradicio- de Ernest Rabel, em inícios da década de 30,
nal enquanto unidade privilegiada de iniciativa e pela constituição do Instituto Internacional
económica, social e política. A intensificação para a Unificação do Direito Privado (UNI-
de interacções que atravessam as fronteiras e DROIT) com o objectivo de unificar o direito
as práticas transnacionais corroem a capacida- dos contratos internacionais, o que conduziu,
de do Estado-nação para conduzir ou contro- por exemplo, à lei uniformizada na formação
lar fluxos de pessoas, bens, capital ou ideias, de contratos de vendas internacionais (ULFIS,
como o fez no passado. 1964) e a Convenção na venda internacional de
O impacto do contexto internacional na re- bens (CISG, 1980) (Van der Velden, 1984: 233).
gulação do Estado-nação, mais do que um fe- A tradição da globalização é para alguns
nómeno novo, é inerente ao sistema interesta- muito mais longa. Por exemplo, Tilly distin-
tal moderno e está inscrito no próprio Tratado gue quatro ondas de globalização no passado
de Westphalia (1648) que o constitui. Também milénio: nos séculos XIII, XVI, XIX e no final
não é novo o facto de o contexto internacio- do século XX (1995). Apesar desta tradição
nal tendencialmente exercer uma influência histórica, o impacto actual da globalização na
particularmente forte no campo da regulação regulação estatal parece ser um fenómeno qua-
litativamente novo, por duas razões principais.
Em primeiro lugar, é um fenómeno muito am-
8 Ver Stallings (1992b). Da perspectiva das relações
internacionais, ver Durand, Lévy, Retaillé (1993). plo e vasto que cobre um campo muito grande
Os processos da globalização 411

de intervenção estatal e que requer mudanças de intensa regulação estatal da economia, tan-
drásticas no padrão de intervenção. Para Tilly, to nos países centrais, como nos países perifé-
o que distingue a actual onda de globalização ricos e semiperiféricos. A criação de requisitos
da onda que ocorreu no século XIX é o facto normativos e institucionais para as operações
de esta última ter contribuído para o fortaleci- do modelo de desenvolvimento neoliberal en-
mento do poder dos Estados centrais (Ociden- volve, por isso, uma destruição institucional
tais), enquanto a actual globalização produz e normativa de tal modo massiva que afecta,
o enfraquecimento dos poderes do Estado. A muito para além do papel do Estado na econo-
pressão sobre os Estados é agora relativamen- mia, a legitimidade global do Estado para orga-
te monolítica — o “Consenso de Washington” nizar a sociedade.
— e em seus termos o modelo de desenvolvi- O segundo factor de novidade da globaliza-
mento orientado para o mercado é o único mo- ção política actual é que as assimetrias do po-
delo compatível com o novo regime global de der transnacional entre o centro e a periferia
acumulação, sendo, por isso, necessário impor, do sistema mundial, id est, entre o Norte e o
à escala mundial, políticas de ajustamento es- Sul, são hoje mais dramáticas do que nunca. De
trutural. Esta pressão central opera e reforça- facto, a soberania dos Estados mais fracos está
-se em articulações com fenómenos e desen- agora directamente ameaçada, não tanto pe-
volvimentos tão díspares como o fim da guerra los Estados mais poderosos, como costumava
fria, as inovações dramáticas nas tecnologias ocorrer, mas sobretudo por agências financei-
de comunicação e de informação, os novos ras internacionais e outros actores transnacio-
sistemas de produção flexível, a emergência nais privados, tais como as empresas multina-
de blocos regionais, a proclamação da demo- cionais. A pressão é, assim, apoiada por uma
cracia liberal como regime político universal, coligação transnacional relativamente coesa,
a imposição global do mesmo modelo de lei de utilizando recursos poderosos e mundiais.
protecção da propriedade intelectual, etc. Tendo em mente a situação na Europa e na
Quando comparado com os processos de América do Norte, Bob Jessop identifica três
transnacionalização precedentes, o alcance tendências gerais na transformação do poder
destas pressões torna-se particularmente visí- do Estado. Em primeiro lugar, a desnaciona-
vel uma vez que estas ocorrem após décadas lização do Estado, um certo esvaziamento
412 Boaventura de Sousa Santos

do aparelho do Estado nacional que decorre tural” e de “estabilização macroeconómica” —


do facto de as velhas e novas capacidades do impostas como condição para a renegociação
Estado estarem a ser reorganizadas, tanto ter- da dívida externa — cobrem um enorme campo
ritorial como funcionalmente, aos níveis sub- de intervenção económica, provocando enor-
nacional e supranacional. Em segundo lugar, a me turbulência no contrato social, nos quadros
de-estatização dos regimes políticos reflectida legais e nas molduras institucionais: a liberali-
na transição do conceito de governo (gover- zação dos mercados; a privatização das indús-
nment) para o de governação (governance), trias e serviços; a desactivação das agências
ou seja, de um modelo de regulação social e regulatórias e de licenciamento; a desregula-
económica assente no papel central do Estado ção do mercado de trabalho e a “flexibilização”
para um outro assente em parcerias e outras da relação salarial; a redução e a privatização,
formas de associação entre organizações go- pelo menos parcial, dos serviços de bem estar
vernamentais, para-governamentais e nãogo- social (privatização dos sistemas de pensões,
vernamentais, nas quais o aparelho de Estado partilha dos custos dos serviços sociais por
tem apenas tarefas de coordenação enquanto parte dos utentes, critérios mais restritos de
primus inter pares. E, finalmente, uma ten- elegibilidade para prestações de assistência
dência para a internacionalização do Estado social, expansão do chamado terceiro sector,
nacional expressa no aumento do impacto es- o sector privado não lucrativo, criação de mer-
tratégico do contexto internacional na actua- cados no interior do próprio Estado, como, por
ção do Estado, o que pode envolver a expansão exemplo, a competição mercantil entre hospi-
do campo de acção do Estado nacional sempre tais públicos); uma menor preocupação com
que for necessário adequar as condições inter- temas ambientais; as reformas educacionais
nas às exigências extra-territoriais ou transna- dirigidas para a formação profissional mais do
cionais (Jessop, 1995: 2). que para a construção de cidadania; etc. Todas
Apesar de não se esgotar nele, é no campo estas exigências do “Consenso de Washington”
da economia que a transnacionalização da re- exigem mudanças legais e institucionais mas-
gulação estatal adquire uma maior saliência. sivas. Dado que estas mudanças têm lugar no
No que respeita aos países periféricos e semi- fim de um período mais ou menos longo de in-
periféricos, as políticas de “ajustamento estru- tervenção estatal na vida económica e social
Os processos da globalização 413

(não obstante as diferenças consideráveis no estavam nas áreas menos povoadas e dado que
interior do sistema mundial), o retraimento do estas populações detinham, em geral, um despro-
Estado não pode ser obtido senão através da porcionado poder político e eleitoral (as zonas
forte intervenção estatal. O Estado tem de in- rurais do Sul e do Centro dos EUA), era tentador
para os políticos construir sistemas monopolistas
tervir para deixar de intervir, ou seja, tem de
que encorajassem o estabelecimento de preços
regular a sua própria desregulação.
em função de custos médios para um conjunto de
Uma das mais drásticas instâncias de trans- serviços uniformizados. A inovação tecnológica
nacionalização da regulação registou-se no mantinha baixos os custos absolutos, os subsí-
campo das telecomunicações. Este é um do- dios cruzados mantinham felizes os constituintes
mínio no qual, até metade dos anos setenta, o mais importantes e os governos podiam realçar
campo regulatório era absolutamente domina- o seu papel na promoção da equidade, definida
do pelo Estado. A maior parte dos países tinha como um serviço universal prestado em termos
adoptado o princípio do “monopólio natural” vagamente comparáveis em todo o país. Espera-
das telecomunicações e estas funcionavam va-se que os beneficiários especiais do sistema
como um departamento estatal igual a qual- se organizassem em força para eliminar qualquer
factor perturbador. Nenhum agente económico
quer outro. O monopólio de serviços e equipa-
ou político podia imaginar qualquer vantagem em
mentos era considerado a forma mais eficiente
questionar o cartel telefónico, dadas as rígidas
e equitativa de disponibilizar este serviço pú- 9
barreiras políticas para entrar (1990: 184) .
blico, quer a nível interno, quer a nível inter-
nacional. Considerava-se também que a segu- O controlo estatal sobre as comunicações
rança nacional exigia o monopólio estatal das internas estendeu-se às comunicações interna-
telecomunicações. Aliás, a classe política via cionais através dos serviços fornecidos em par-
no monopólio estatal uma fonte virtualmente cerias interestatais e das redes e equipamentos
infinita de dividendos políticos. Tendo presen- normalizados.
te, em especial, o caso dos EUA e dos outros Este modo de regulação, que perdurou du-
países centrais, Peter Cowhey afirma que: rante cerca de 100 anos, começou a mudar nos
Uma vez que as pessoas mais caras de servir pe-
las telecomunicações (basicamente o telefone)
9 Ver também Nugter e Smits (1989).
414 Boaventura de Sousa Santos

anos setenta e as mudanças tornaram-se dramá- o globo. Tendo vencido a batalha em casa, as
ticas na década de noventa. Até este momento, empresas multinacionais de telecomunicações
nenhum modo de regulação unificado substi- norteamericanas tornaram-se os promotores
tuiu o antigo e o campo das telecomunicações mais agressivos da reforma regulatória a ní-
está a atravessar um período de grande turbu- vel mundial, utilizando para isso o poder de
lência. A tendência geral consiste em substituir negociação dos EUA. No início da década de
até ao máximo que for possível o princípio do noventa dois caminhos estavam a ser seguidos
Estado pelo princípio do mercado e implica pelos países centrais para transformar o regime
pressões por parte de países centrais e das em- das telecomunicações (Cowhey, 1990: 188). O
presas multinacionais sobre os países periféri- primeiro era o caminho big bang, seguido pe-
cos e semiperiféricos no sentido de adoptarem los EUA, Reino Unido e Japão, países que, em
ou se adaptarem às transformações jurídicas e conjunto, constituem 60% do mercado mundial
institucionais que estão a ocorrer no centro do de telecomunicações. O big bang consiste na
sistema mundial. Dois factores estratégicos pa- liberalização unilateral e total das telecomu-
recem estar por detrás deste desenvolvimento. nicações, não só dos serviços avançados, mas
Por um lado, a inovação e difusão tecnológica: também dos serviços básicos, equipamentos e
a revolução dos micro-chips; as comunicações infraestruturas. O segundo caminho era o lit-
por satélite; a emergência da tecnologia digital tle bang, adoptado por outros países centrais,
10
e a consequente eliminação da distinção entre sobretudo pelos países europeus . Consiste
comunicações e processamento de dados. Por numa liberalização parcial por diversas vias,
outro, a estrutura oligopsónica do mercado de tais como: separando os serviços de correio dos
telecomunicações e do poder político dos acto- serviços telefónicos e os serviços elementares
res principais: os maiores utilizadores das tele- dos serviços avançados (id est, correio expres-
comunicações são em número cada vez menor so, correio electrónico e vídeo-conferências),
e economicamente cada vez mais poderosos; com o objectivo de reduzir os subsídios cruza-
podem fácil e eficazmente organizar grupos de
pressão política.
Sem surpresa, esta transformação legal co-
meçou nos EUA e temse disseminado por todo 10 Ver também Riess (1991); Huet e Maisl (1989).
Os processos da globalização 415

11
dos ; criando agências regulatórias com maior e equipamentos de telecomunicações, e detêm,
autonomia em relação ao Governo; conceden- por isso, o poder de mercado suficiente para
do direitos e vantagens especiais aos grandes impor e garantir mudanças profundas no regi-
utentes; reduzindo os subsídios aos agregados me das telecomunicações.
familiares e às pequenas empresas, ainda que o As telecomunicações são cada vez mais a in-
fazendo de um modo muito lento para não alie- fraestrutura física de um tempo-espaço emer-
nar politicamente estes sectores sociais. gente: o tempo-espaço electrónico, o ciber-
Apesar das diferenças, os dois caminhos -espaço ou o tempo-espaço instantâneo. Este
— o big bang anglo-saxónico e o little bang novo tempo-espaço tornar-se-á gradualmente
europeu — têm muito em comum. Aliás, a di- o tempo-espaço privilegiado dos poderes glo-
ferença inicial eles foi-se atenuando ao longo bais. Através das redes metropolitanas e dos
da década de noventa. Esta aproximação cul- cibernódulos, esta forma de poder é exercida
minou na Cimeira do Conselho Europeu reali- global e instantaneamente, afastando, ainda
zada em Lisboa a 23-24 de março de 2000 onde mais, a velha geografia do poder centrada em
se propôs e calendarizou a liberalização total torno do Estado e do seu tempo-espaço.
das telecomunicações e, portanto, a adoptação Uma análise mais aprofundada dos traços
do big bang na União Europeia12. Menos de 20 dominantes da globalização política — que
países industrializados constituem uma fatia são, de facto, os traços da globalização políti-
esmagadora do mercado mundial de serviços ca dominante — leva-nos a concluir que sub-
jazem a esta três componentes do Consenso
de Washington: o consenso do Estado fraco; o
11 Os subsídios cruzados ocorrem, por exemplo,
quando o custo adicional dos serviços mais caros é dis- consenso da democracia liberal; o consenso do
solvido em cálculos de custo médio. Desta forma, os primado do direito e do sistema judicial.
utilizadores dos serviços mais baratos, normalmente O consenso do Estado fraco é, sem dúvida,
as classes sociais mais baixas, subsidiam os utilizado- o mais central e dele há ampla prova no que
res dos serviços mais caros que em geral pertencem às
ficou descrito acima. Na sua base está a ideia
classes sociais mais altas.
de que o Estado é o oposto da sociedade civil e
12 Sobre a evolução da liberalização das telecomuni-
potencialmente o seu inimigo. A economia ne-
cações na União Europeia ver, por último, Eliassen e
Sjovaag (1999). oliberal necessita de uma sociedade civil forte
416 Boaventura de Sousa Santos

e para que ela exista é necessário que o Estado dade regulatória do Estado para pôr fim à re-
seja fraco. O Estado é inerentemente opressi- gulação estatal anterior e criar as normas e as
vo e limitativo da sociedade civil, pelo que só instituições que presidirão ao novo modelo de
reduzindo o seu tamanho é possível reduzir o regulação social. Ora tal actividade só pode ser
seu dano e fortalecer a sociedade civil. Daí que levada a cabo por um Estado eficaz e relativa-
o Estado fraco seja também tendencialmente mente forte. Tal como o Estado tem de intervir
o Estado mínimo. Esta ideia fora inicialmente para deixar de intervir, também só um Estado
defendida pela teoria política liberal, mas foi forte pode produzir com eficácia a sua fraque-
gradualmente abandonada à medida que o ca- za. Esta antinomia foi responsável pelo fracas-
pitalismo nacional, enquanto relação social e so da estratégia dos USAID e do Banco Mundial
política, foi exigindo maior intervenção estatal. para a reforma política do Estado russo depois
Deste modo, a ideia do Estado como oposto da do colapso do comunismo. Tais reformas as-
sociedade civil foi substituída pela ideia do Es- sentaram no desmantelamento quase total do
tado como espelho da sociedade civil. A partir Estado soviético na expectativa que dos seus
de então um Estado forte passou a ser a condi- escombros emergisse um Estado fraco e, con-
ção de uma sociedade civil forte. O consenso do sequentemente, uma sociedade civil forte. Para
Estado fraco visa repor a ideia liberal original. surpresa dos progenitores, destas reformas o
Esta reposição tem-se revelado extrema- que emergiu delas foi um governo de mafias
mente complexa e contraditória e, talvez por (Hendley, 1995). Talvez por isso o consenso do
isso, o consenso do Estado fraco é, de todos Estado fraco foi o que mais cedo deu sinais de
os consensos neoliberais, o mais frágil e mais fragilização, como bem demonstra o relatório
sujeito a correcções. É que o “encolhimento” do Banco Mundial de 1997, dedicado ao Esta-
do Estado — produzido pelos mecanismos do e no qual se reabilita a ideia de regulação
conhecidos, tais como a desregulação, as pri- estatal e se põe o acento tónico na eficácia da
vatizações e a redução dos serviços públicos acção estatal (Banco Mundial, 1997).
— ocorre no final de um período de cerca de O consenso da democracia liberal visa dar
cento e cinquenta anos de constante expan- forma política ao Estado fraco, mais uma vez
são regulatória do Estado. Assim, como referi recorrendo à teoria política liberal que parti-
atrás, desregular implica uma intensa activi- cularmente nos seus primórdios defendera a
Os processos da globalização 417

convergência necessária entre liberdade polí- associação e autonomia associativa entendida


tica e liberdade económica, as eleições livres como o direito a criar associações independen-
e os mercados livres como os dois lados da tes, incluindo movimentos sociais, grupos de
mesma moeda: o bem comum obtível através interesse e partidos políticos (1993: 21). Claro
das acções de indivíduos utilitaristas envolvi- que a ironia desta enumeração é que, à luz dela,
dos em trocas competitivas com o mínimo de as democracias reais dos países hegemónicos,
interferência estatal. A imposição global deste se não são versões caricaturais, são pelo me-
consenso hegemónico tem criado muitos pro- nos versões abreviadas do modelo de democra-
blemas quanto mais não seja porque se trata cia liberal.
de um modelo monolítico a ser aplicado em O consenso sobre o primado do direito e do
sociedades e realidades muito distintas. Por sistema judicial é uma das componentes es-
essa razão, o modelo de democracia adoptado senciais da nova forma política do Estado e é
como condicionalidade política da ajuda e do também o que melhor procura vincular a glo-
financiamento internacional tende a conver- balização política à globalização económica. O
ter-se numa versão abreviada, senão mesmo modelo de desenvolvimento caucionado pelo
caricatural, da democracia liberal. Para cons- Consenso de Washington reclama um novo
tatar isto mesmo, basta comparar a realidade quadro legal que seja adequado à liberalização
política dos países sujeitos às condicionalida- dos mercados, dos investimentos e do sistema
des do Banco Mundial e as características da financeiro. Num modelo assente nas privatiza-
democracia liberal, tal como são descritas por ções, na iniciativa privada e na primazia dos
David Held: o governo eleito; eleições livres e mercados o princípio da ordem, da previsibili-
justas em que o voto de todos os cidadãos têm dade e da confiança não pode vir do comando
o mesmo peso; um sufrágio que abrange todos do Estado. Só pode vir do direito e do sistema
os cidadãos independentemente de distinções judicial, um conjunto de instituições indepen-
de raça, religião, classe, sexo, etc.; liberdade de dentes e universais que criam expectativas nor-
consciência, informação e expressão em todos mativamente fundadas e resolvem litígios em
os assuntos públicos definidos como tal com função de quadros legais presumivelmente co-
amplitude; o direito de todos os adultos a opor- nhecidos de todos. A proeminência da proprie-
-se ao governo e serem elegíveis; liberdade de dade vidual e dos contratos reforça ainda mais
418 Boaventura de Sousa Santos

o primado do direito. Por outro lado, a expan- aos direitos humanos). Também neste caso o
são do consumo, que é o motor da globalização fenómeno não é novo uma vez que o sistema
económica, não é possível sem a institucionali- interestatal em que temos vivido desde o sécu-
zação e popularização do crédito ao consumo lo XVII promoveu, sobretudo a partir do século
e este não é possível sem a ameaça credível de XIX, consensos normativos internacionais que
que quem não pagar será sancionado por isso, se vieram a traduzir em organizações interna-
o que, por sua vez, só é possível na medida em cionais. Então, como hoje, essas organizações
13
que existir um sistema judicial eficaz . têm funcionado como condomínios entre os
Nos termos do Consenso de Washington, a países centrais. O que é novo é a amplitude e o
responsabilidade central do Estado consiste poder da institucionalidade transnacional que
em criar o quadro legal e dar condições de efec- se tem vindo a constituir nas últimas três dé-
tivo funcionamento às instituições jurídicas e cadas. Este é um dos sentidos em que se tem
judiciais que tornarão possível o fluir rotineiro falado da emergência de um “governo global”
das infinitas interacções entre os cidadãos, os (“global governance”) (Murphy, 1994). O outro
agentes económicos e o próprio Estado. sentido, mais prospectivo e utópico, diz respei-
Um outro tema importante nas análises das to à indagação sobre as instituições políticas
dimensões políticas da globalização é o papel transnacionais que hão de corresponder no fu-
crescente das formas de governo supraestatal, turo à globalização económica e social em cur-
ou seja, das instituições políticas internacio- so (Falk, 1995; Chase-Dunn et al, 1998). Fala-se
nais, das agências financeiras multilaterais, dos mesmo da necessidade de se pensar num “Es-
blocos político-económicos supranacionais, tado mundial” ou numa “federação mundial”,
dos Think Tanks globais, das diferentes for- democraticamente controlada e com a função
mas de direito global (da nova lex mercatoria de resolver pacificamente os conflitos entre es-
tados e entre agentes globais. Alguns autores
transpõem para o novo campo da globalização
13 Trato em detalhe o tema do primado do direito e do os conflitos estruturais do período anterior
sistema judicial no contexto da globalização noutro lu- e imaginam as contrapartidas políticas a que
gar (Santos, 2000b). Sobre a questão do crédito ao con-
devem dar azo. Tal como a classe capitalista
sumo e consequente endividamento dos consumidores
ver, por último, Marques et al. (2000). global está a tentar formar o seu estado global,
Os processos da globalização 419

de que a Organização Mundial do Comércio é a político-militar e pela interdependência de mer-


guarda avançada, as forças socialistas devem cado do que pelo consenso normativo e cultural
criar um “partido mundial” ao serviço de uma (Chase-Dunn, 1991: 88), para outros o poder polí-
“comunidade socialista global” ou uma “comu- tico, a dominação cultural e os valores e normas
nidade democrática global” baseada na racio- institucionalizadas precedem a dependência de
nalidade colectiva, na liberdade e na igualdade mercado no desenvolvimento do sistema mun-
(Chase-Dunn et al, 1998). dial e na estabilidade do sistema interestatal
(Meyer, 1987; Bergesen, 1990). Wallerstein faz
Globalização cultural uma leitura sociológica deste debate, defenden-
ou cultura global? do que “não é por acaso… que tem havido tanta
A globalização cultural assumiu um relevo discussão nestes últimos dez-quinze anos acerca
especial com a chamada “viragem cultural” da do problema da cultura. Isso é decorrente da de-
década de oitenta, ou seja, com a mudança de composição da dupla crença do século dezanove
ênfase, nas ciências sociais, dos fenómenos só- nas arenas económica e política como lugares de
cio-económicos para os fenómenos culturais. A progresso social e, consequentemente, de salva-
“viragem cultural” veio reacender a questão da ção individual” (Wallerstein, 1991b: 198).
primazia causal na explicação da vida social e, Embora a questão da matriz original da glo-
com ela, a questão do impacto da globalização balização se ponha em relação a cada uma das
14
cultural . A questão consiste em saber se as di- dimensões da globalização, é no domínio da
mensões normativa e cultural do processo de globalização cultural que ela se põe com mais
globalização desempenham um papel primário acuidade ou com mais frequência. A questão é
ou secundário. Enquanto para alguns elas têm de saber se o que se designa por globalização
um papel secundário, dado que a economia não deveria ser mais correctamente designado
mundial capitalista é mais integrada pelo poder por ocidentalização ou americanização (Ritzer,
1995), já que os valores, os artefactos culturais
e os universos simbólicos que se globalizam
14 Cfr. Featherstone (1990); Appadurai (1990); Ber- são ocidentais e, por vezes, especificamente
man (1983); W. Meyer (1987); Giddens (1990, 1991);
norte-americanos, sejam eles o individualismo,
Bauman (1992). Ver também Wuthnow (1985, 1987);
Bergesen (1980). a democracia política, a racionalidade econó-
420 Boaventura de Sousa Santos

mica, o utilitarismo, o primado do direito, o ci- Octávio Janni fala do “príncipe electrónico”
nema, a publicidade, a televisão, a internet, etc. — o conjunto das tecnologias electrónicas, in-
Neste contexto, os meios de comunicação formáticas e cibernéticas, de informação e de
electrónicos, especialmente a televisão, têm comunicação, com destaque para a televisão
sido um dos grandes temas de debate. Embo- — que se transformou no “arquitecto da ágora
ra a importância da globalização dos meios de electrónica na qual todos estão representados,
comunicação social seja salientada por todos, reflectidos, defletidos ou figurados, sem o risco
nem todos retiram dela as mesmas consequ- da convivência nem da experiência” (1998: 17).
ências. Appadurai, por exemplo, vê nela um Esta temática articula-se com uma outra
dos dois factores (o outro são as migrações igualmente central no âmbito da globalização
em massa) responsáveis pela ruptura entre o cultural: o de saber até que ponto a globaliza-
período de que acabamos de sair (o mundo da ção acarreta homogeneização. Se para alguns
modernização) e o período em que estamos autores a especificidade das culturas locais e
a entrar (o mundo pós-electrónico) (1997). O nacionais está em risco (Ritzer, 1995), para ou-
novo período distingue-se pelo “trabalho da tros, a globalização tanto produz homogeneiza-
imaginação” pelo facto de a imaginação se ção como diversidade (Robertson e Khondker,
ter transformado num facto social, colectivo, 1998). O isomorfismo institucional, sobretudo
o ter deixado de estar confinada no indivíduo nos domínios económico e político coexiste
romântico e no espaço expressivo da arte, do com a afirmação de diferenças e de particula-
mito e do ritual para passar a fazer parte da rismo. Para Friedman, a fragmentação cultural
vida quotidiana dos cidadãos comuns (1997: e étnica, por um lado, e a homogeneização mo-
5). A imaginação pós-electrónica, combinada dernista, por outro, não são duas perspectivas
com a desterritorialização provocada pelas mi- opostas sobre o que está a acontecer, mas antes
grações, torna possível a criação de universos duas tendências, ambas constitutivas da reali-
simbólicos transnacionais, “comunidades de dade global (Featherston, 1990: 311). Do mes-
sentimento”, identidades prospectivas, parti- mo modo, Appadurai faz questão de salientar
lhas de gostos, prazeres e aspirações, em suma, que os media electrónicos, longe de serem o
o que Appadurai chama “esferas públicas dias- ópio do povo, são processados pelos indivíduos
póricas” (1997: 4). De uma outra perspectiva, e pelos grupos de uma maneira activa, um cam-
Os processos da globalização 421

po fértil para exercícios de resistência, selecti- Um outro tema central na discussão sobre
vidade e ironia (1997: 7). Appadurai tem vindo as dimensões culturais da globalização — re-
a salientar o crescente papel da imaginação na lacionado, aliás, com o debate anterior — diz
vida social dominada pela globalização. É atra- respeito à questão de saber se terá emergido
vés da imaginação que os cidadãos são discipli- nas décadas mais recentes uma cultura glo-
nados e controlados pelos Estados, mercados e bal (Featherstone, 1990; M. Waters, 1995). É
os outros interesses dominantes, mas é também há muito reconhecido que, pelo menos desde
da imaginação que os cidadãos desenvolvem o século XVI, a hegemonia ideológica da ci-
sistemas colectivos de dissidência e novos gra- ência, da economia, da política e da religião
fismos da vida colectiva (1999: 230). europeias produziu, através do imperialismo
O que não fica claro nestes posicionamentos cultural, alguns isomorfismos entre as diferen-
é a elucidação das relações sociais de poder tes culturas nacionais do sistema mundial. A
que presidem à produção tanto de homogenei- questão é, agora, de saber se, para além dis-
zação como de diferenciação. Sem tal elucida- so, certas formas culturais terão emergido nas
ção, estes dois “resultados” da globalização são décadas mais recentes, que são originalmente
postos no mesmo pé, sem que se conheçam as transnacionais ou cujas origens nacionais são
vinculações e a hierarquia entre eles. Esta elu- relativamente irrelevantes pelo facto de circu-
cidação é particularmente útil para analisar cri- larem pelo mundo mais ou menos desenraiza-
ticamente os processos de hibridização ou de das das culturas nacionais. Tais formas cul-
crioulização que resultam do confronto ou da turais são identificadas por Appadurai como
15
coabitação entre tendências homogeneizantes mediascapes e ideoscapes (1990) , por Leslie
e tendências particularizantes (Hall e McGrew, Sklair (1991) como cultura-ideologia do consu-
1992). Segundo Appadurai, “a característica mismo, por Anthony Smith como um novo im-
central da cultura global é hoje a política do perialismo cultural (1990). De uma outra pers-
esforço mútuo da mesmidade e da diferença pectiva, a teoria dos regimes internacionais
para se canibalizarem uma à outra e assim pro- tem vindo a canalizar a nossa atenção para os
clamarem o êxito do sequestro as duas ideias
gémeas do Iluminismo, o universal triunfante e
particular resistente” (1997: 43). 15 Ver também King (1991); Hall e Gleben (1992).
422 Boaventura de Sousa Santos

processos de formação de consenso ao nível sal e o particular. Como salienta Wallerstein,


mundial e para a emergência de uma ordem “definir uma cultura é uma questão de definir
normativa global (Keohane e Nye, 1977; Keo- fronteiras” (1991b: 187). De modo convergen-
hane, 1985; Krasner, 1983; Haggard e Simmons, te, Appadurai afirma que o cultural é o campo
1987). E ainda de outra perspectiva, a teoria da das diferenças, dos contrastes e das compara-
estrutura internacional acentua a forma como ções (1997: 12). Poderíamos até afirmar que a
a cultura ocidental tem criado actores sociais cultura é, em sua definição mais simples, a luta
e significados culturais por todo o mundo (G. contra a uniformidade. Os poderosos e envol-
Thomas et al, 1987). ventes processos de difusão e imposição de
A ideia de uma cultura global é, claramente, culturas, imperialisticamente definidas como
um dos principais projectos da modernidade. universais, têm sido confrontados, em todo o
Como Stephen Toulmin brilhantemente de- sistema mundial, por múltiplos e engenhosos
monstrou (1990), pode ser identificado desde processos de resistência, identificação e indi-
Leibniz até Hegel e desde o século XVII até ao genização culturais. Todavia, o tópico da cul-
nosso século. A atenção sociológica concedida tura global tem tido o mérito de mostrar que
a esta ideia nas últimas três décadas tem, con- a luta política em redor da homogeneização e
tudo, uma base empírica específica. Acredita- da uniformização culturais transcendeu a con-
-se que a intensificação dramática de fluxos figuração territorial em que teve lugar desde o
transfronteiriços de bens, capital, trabalho, século XIX até muito recentemente, isto é, o
pessoas, ideias e informação originou conver- Estado-nação.
gências, isomorfismos e hibridizações entre as A este respeito, os Estados-nação têm tra-
diferentes culturas nacionais, sejam elas estilos dicionalmente desempenhado um papel algo
arquitectónicos, moda, hábitos alimentares ou ambíguo. Enquanto, externamente, têm sido
consumo cultural de massas. Contudo, a maior os arautos da diversidade cultural, da autenti-
parte dos autores sustenta que, apesar da sua cidade da cultura nacional, internamente, têm
importância, estes processos estão longe de promovido a homogeneização e a uniformida-
conduzirem a uma cultura global. de, esmagando a rica variedade de culturas lo-
A cultura é por definição um processo social cais existentes no território nacional, através
construído sobre a intercepção entre o univer- do poder da polícia, do direito, do sistema edu-
Os processos da globalização 423

cacional ou dos meios de comunicação social, dição e da identidade cultural foi destruída.
e na maior parte das vezes por todos eles em Dada a natureza hierárquica do sistema mun-
conjunto. Este papel tem sido desempenhado dial, torna-se crucial identificar os grupos, as
com intensidade e eficácia muito variadas nos classes, os interesses e os Estados que definem
Estados centrais, periféricos e semiperiféricos as culturas parciais enquanto culturas globais,
e pode estar agora a mudar como parte das e que, por essa via, controlam a agenda da do-
transformações em curso na capacidade regu- minação política sob o disfarce da globalização
latória dos Estados-nação. cultural. Se é verdade que a intensificação dos
Sob as condições da economia mundial ca- contactos e da interdependência transfronteiri-
pitalista e do sistema interestatal moderno, ços abriu novas oportunidades para o exercício
parece haver apenas espaço para as culturas da tolerância, do ecumenismo, da solidarieda-
globais parciais. Parcial, quer em termos dos de e do cosmopolitismo, não é menos verdade
aspectos da vida social que cobrem, quer das que, simultaneamente, têm surgido novas for-
regiões do mundo que abrangem. Smith, por mas e manifestações de intolerância, chauvi-
exemplo, fala de uma “família de culturas” eu- nismo, de racismo, de xenofobia e, em última
ropeia, que consiste em motivos e tradições po- instância, de imperialismo. As culturas globais
líticas e culturais abrangentes e transnacionais parciais podem, desta forma, ter naturezas, al-
(o direito romano, o humanismo renascentista, cances e perfis políticos muito diferentes.
o racionalismo iluminista, o romantismo e a Nas actuais circunstâncias, só é possível
democracia), “que emergiram em diversas par- visualizar culturas globais pluralistas ou plu-
16
tes do continente em diferentes períodos, con- rais . É por isso que a maior parte dos auto-
tinuando em alguns casos a emergir, criando
ou recriando sentimentos de reconhecimento
e parentesco entre os povos da Europa” (1990: 16 Ver também Featherstone (1990: 10); Wallerstein
187). Vista de fora da Europa, particularmente (1991b: 184); Chase-Dunn (1991: 103). Para Wallerstein
a partir de regiões e de povos intensivamente o contraste entre o sistema-mundial moderno e os im-
colonizados pelos europeus, esta família de périos mundiais anteriores reside no facto de o primei-
ro combinar uma única divisão do trabalho com um sis-
culturas é a versão quintessencial do imperia-
tema de Estados independentes e de sistemas culturais
lismo ocidental em nome do qual muita da tra- múltiplos. Wallerstein (1979: 5).
424 Boaventura de Sousa Santos

res assume uma postura prescritiva ou pros- globalização económica. Assim, o consenso diz,
pectiva sempre que fala de cultura global no sobretudo, respeito aos suportes técnicos e jurí-
singular. Para Hannerz, o cosmopolitismo dicos da produção e circulação dos produtos das
“inclui uma postura favorável à coexistência indústrias culturais como, por exemplo, as tec-
de culturas distintas na experiência individu- nologias de comunicação e da informação e os
al… uma orientação, uma vontade de interagir direitos de propriedade intelectual.
com o Outro… uma postura estética e intelec-
tual de abertura face a experiências culturais A natureza das globalizações
divergentes” (1990: 239). Chase-Dunn, por seu A referência feita nas secções anteriores às
lado, enquanto retira do pedestal o “universa- facetas dominantes do que usualmente se de-
lismo normativo” de Parsons (1971) como um signa por globalização, além de ser omissa a
traço essencial do sistema capitalista mundial respeito da teoria da globalização que lhe sub-
vigente, propõe que tal universalismo seja jaz, pode dar a ideia falsa de que a globalização
transposto para “um novo nível de sentido é um fenómeno linear, monolítico e inequívo-
socialista, embora sensível às virtudes do plu- co. Esta ideia da globalização, apesar de falsa,
ralismo nacional e étnico” (1991: 105; Chase- é hoje prevalecente e tende a sê-lo tanto mais
-Dunn et al, 1998). Por fim, Wallerstein imagi- quanto a globalização extravasa do discurso
na uma cultura mundial somente num mundo científico para o discurso político e para a lin-
libertário-igualitário futuro, mas mesmo aí guagem comum. Aparentemente transparente
haveria um lugar reservado para a resistência e sem complexidade, a ideia de globalização
cultural: a criação e a recriação constantes obscurece mais do que esclarece o que se pas-
de entidades culturais particularistas “cujos sa no mundo. E o que obscurece ou oculta é,
objectos (reconhecidos ou não) seriam a res- quando visto de outra perspectiva, tão impor-
tauração da realidade universal de liberdade e tante que a transparência e simplicidade da
igualdade” (1991b: 199). ideia de globalização, longe de serem inocen-
No domínio cultural, o consenso neoliberal é tes, devem ser considerados dispositivos ide-
muito selectivo. Os fenómenos culturais só lhe ológicos e políticos dotados de intencionalida-
interessam na medida em que se tornam mer- des específicas. Duas dessas intencionalidades
cadorias que como tal devem seguir o trilho da devem ser salientadas.
Os processos da globalização 425

A primeira é o que designo por falácia do de- da, e sobretudo ao nível económico e político,
terminismo. Consiste na inculcação da ideia de a globalização hegemónica é um produto de
que a globalização é um processo espontâneo, decisões dos Estados nacionais. A desregula-
automático, inelutável e irreversível que se in- mentação da economia, por exemplo, tem sido
tensifica e avança segundo uma lógica e uma um acto eminentemente político. A prova disso
dinâmica próprias suficientemente fortes para mesmo está na diversidade das respostas dos
se imporem a qualquer interferência externa. Estados nacionais às pressões políticas decor-
17
Nesta falácia incorrem não só os embaixado- rentes do Consenso de Washington . O facto
res da globalização como os estudiosos mais de as decisões políticas terem sido, em geral,
circunspectos. Entre estes últimos, saliento convergentes, tomadas durante um período de
Manuel Castells para quem a globalização é o tempo curto, e de muitos Estados não terem
resultado inelutável da revolução nas tecnolo- tido alternativa para decidirem de modo dife-
gias da informação. Segundo ele, a “nova eco- rente, não elimina o carácter político das de-
nomia é informacional porque a produtividade cisões, apenas desloca o centro e o processo
e competitividade assentam na capacidade político destas. Igualmente política é reflexão
para gerar e aplicar eficientemente informação sobre as novas formas de Estado que estão a
baseada em conhecimento” e é global porque emergir em resultado da globalização, sobre a
as actividades centrais da produção, da distri- nova distribuição política entre práticas nacio-
buição e do consumo são organizadas à escala nais, práticas internacionais e práticas globais,
mundial (1996: 66). A falácia consiste em trans- sobre o novo formato das políticas públicas em
formar as causas da globalização em efeitos da face da crescente complexidade das questões
globalização. A globalização resulta, de facto, sociais, ambientais e de redistribuição.
de um conjunto de decisões políticas identifi- A segunda intencionalidade política do ca-
cadas no tempo e na autoria. O Consenso de rácter não-político da globalização é a falácia
Washington é uma decisão política dos Estados
centrais como são políticas as decisões dos
Estados que o adoptaram com mais ou menos 17 Sobre esta questão, ver Stallings (1995) em que são
analisadas as respostas regionais da América Latina, do
autonomia, com mais ou menos selectividade.
Sudeste Asiático e da África sub-sahariana às pressões
Não podemos esquecer que, em grande medi- globais. Ver também Boyer (1998) e Drache (1999).
426 Boaventura de Sousa Santos

do desaparecimento do Sul. Nos termos desta Mesmo os autores que reconhecem que a
falácia as relações Norte/Sul nunca consti- globalização é altamente selectiva, produz assi-
tuíram um verdadeiro conflito, mas durante metrias e tem uma geometria variável, tendem
muito tempo os dois pólos das relações fo- a pensar que ela desestruturou as hierarquias
ram facilmente identificáveis, já que o Norte da economia mundial anterior. É de novo o
produzia produtos manufacturados, enquan- caso de Castells para quem a globalização pôs
to o Sul fornecia matérias primas. A situação fim à ideia de “Sul” e mesmo à ideia de “Tercei-
começou-se a alterar na década de sessenta ro Mundo”, na medida em que é cada vez maior
(deram conta disso as teorias da dependência a diferenciação entre países e no interior de pa-
ou do desenvolvimento dependente) e trans- íses, entre regiões (1996: 92, 112). Segundo ele,
formou-se radicalmente a partir da década de a novíssima divisão internacional do trabalho
oitenta. Hoje, quer ao nível financeiro, quer não ocorre entre países, mas entre agentes eco-
ao nível da produção, quer ainda ao nível do nómicos e entre posições distintas na econo-
consumo, o mundo está integrado numa eco- mia global que competem globalmente, usando
nomia global onde, perante a multiplicidade a infraestrutura tecnológica da economia infor-
de interdependências, deixou de fazer senti- macional e a estrutura organizacional de redes
do distinguir entre Norte e Sul e, aliás, igual- e fluxos (1996: 147). Neste sentido, deixa igual-
mente entre centro, periferia e semiperiferia mente de fazer sentido a distinção entre centro,
do sistema mundial. Quanto mais triunfalista periferia e semiperiferia no sistema mundial. A
é a concepção da globalização menor é a visi- nova economia é uma economia global distin-
bilidade do Sul ou das hierarquias do sistema ta da economia-mundo. Enquanto esta última
mundial. A ideia é que a globalização está a ter assentava na acumulação de capital, obtida em
um impacto uniforme em todas as regiões do todo o mundo, a economia global tem a capa-
mundo e em todos os sectores de actividade cidade para funcionar como uma unidade em
e que os seus arquitectos, as empresas multi- tempo real e à escala planetária (1996: 92).
nacionais, são infinitamente inovadoras e têm Sem querer minimizar a importância das
capacidade organizativa suficiente para trans- transformações em curso, penso, no entanto,
formar a nova economia global numa oportu- que Castells leva longe demais a imagem da glo-
nidade sem precedentes. balização como o bulldozer avassalador contra
Os processos da globalização 427

o qual não há resistência possível, pelo menos a rentes países. Assim, em 1997, a remuneração
nível económico. E com isso leva longe demais média da hora de trabalho na Alemanha (32$
a ideia da segmentação dos processos de inclu- US) era 54% mais elevada que nos EUA (17.19$
são/exclusão que estão a ocorrer. Em primeiro US). E mesmo dentro da União Europeia, onde
lugar, é o próprio Castells quem reconhece que têm estado em curso nas últimas décadas po-
os processos de exclusão podem atingir um líticas de “integração profunda”, as diferenças
continente por inteiro (África) e dominar intei- de produtividade e de custos salariais têm-se
ramente sobre os processos de inclusão num mantido com a excepção da Inglaterra, em que
subcontinente (a América Latina) (1996: 115- os custos salariais foram reduzidos em 40% des-
136). Em segundo lugar, mesmo admitindo que de 1980. Tomando a Alemanha Ocidental como
a economia global deixou de necessitar dos es- termo de comparação (100%), a produtividade
paços geo-políticos nacionais para se reprodu- do trabalho em Portugal era, em 1998, 34,5% e
zir, a verdade é que a dívida externa continua a os custos salariais, 37,4%. Estes números eram
ser contabilizada e cobrada ao nível de países para a Espanha, 62% e 66,9%, respectivamente;
e é por via dela e da financiarização do sistema para a Inglaterra, 71,7% e 68%; e para a Irlanda,
económico que os países pobres do mundo se 69,5 e 71,8% (Drache, 1999: 24). Por último, é
transformaram, a partir da década de oitenta, difícil sustentar que a selectividade e a frag-
em contribuintes líquidos para a riqueza dos mentação excludente da “nova economia” des-
países ricos. Em terceiro lugar, ao contrário do truiu o conceito de “Sul” quando, como vimos
que se pode depreender do quadro traçado por atrás, a disparidade de riqueza entre países po-
Castells, a convergência entre países na eco- bres e países ricos não cessou de aumentar nos
nomia global é tão significativa quanto a diver- últimos vinte ou trinta anos. É certo que a libe-
gência e isto é particularmente notório entre ralização dos mercados desestruturou os pro-
os países centrais (Drache, 1999: 15). Porque cessos de inclusão e de exclusão nos diferentes
as políticas de salários e de segurança social países e regiões. Mas o importante é analisar
continuaram a ser definidas a nível nacional, em cada país ou região a ratio entre inclusão
as medidas de liberalização desde a década de e exclusão. É essa ratio que determina se um
oitenta não reduziram significativamente as di- país pertence ao Sul ou ao Norte, ao centro ou
ferenças nos custos do trabalho entre os dife- à periferia ou semiperiferia do sistema mun-
428 Boaventura de Sousa Santos

dial. Os países onde a integração na economia aplicadas à modernidade, à globalização ou à


mundial se processou dominantemente pela acumulação (Beck, 1992; Giddens, 1991; Lash e
exclusão são os países do Sul e da periferia do Urry, 1996) e, em particular, a ideia de Giddens
sistema mundial. que a globalização é a “modernização reflexi-
Estas transformações merecem uma aten- va”, esquecem que a grande maioria da popu-
ção detalhada, mas não restam dúvidas que lação mundial sofre as consequências de uma
só as viragens ideológicas que ocorreram na modernidade ou de uma globalização nada re-
comunidade científica, tanto no Norte como flexiva ou que a grande maioria dos operários
no Sul, podem explicar que as iniquidades e vivem em regimes de acumulação que estão
assimetrias no sistema mundial, apesar de te- nos antípodas da acumulação reflexiva.
rem aumentado, tenham perdido centralidade Tanto a falácia do determinismo como a fa-
analítica. Por isso, o “fim do Sul”, o “desapa- lácia do desaparecimento do Sul têm vindo a
recimento do Terceiro Mundo” são, acima de perder credibilidade à medida que a globaliza-
tudo, um produto das mudanças de “sensibili- ção se transforma num campo de contestação
dade sociológica” que devem ser, elas próprias, social e política. Se para alguns ela continua
objecto de escrutínio. Em alguns autores, o fim a ser considerada como o grande triunfo da
do Sul ou do Terceiro Mundo não resulta de racionalidade, da inovação e da liberdade ca-
análises específicas sobre o Sul ou o Terceiro paz de produzir progresso infinito e abundân-
Mundo, resulta tão-só do “esquecimento” a que cia ilimitada, para outros ela é anátema já que
estes são votados. A globalização é vista a par- no seu bojo transporta a miséria, a marginali-
tir dos países centrais tendo em vista as reali- zação e a exclusão da grande maioria da po-
dades destes. É assim, muito particularmente, pulação mundial, enquanto a retórica do pro-
o caso dos autores que se centram na globali- gresso e da abundância se torna em realidade
18
zação económica . Mas as análises culturalis- apenas para um clube cada vez mais pequeno
tas incorrem frequentemente no mesmo erro. de privilegiados.
A título de exemplo, as teorias da reflexividade Nestas circunstâncias, não admira que te-
nham surgido nos últimos anos vários discur-
sos da globalização. Robertson (1998), por
18 Entre muitos outros, ver Boyer (1996, 1998); Dra-
che (1999). exemplo, distingue quatro grandes discursos
Os processos da globalização 429

da globalização. O discurso regional, como, gue-se pela ênfase dada aos aspectos comuni-
por exemplo, o discurso asiático, o discurso tários da globalização.
europeu ocidental, ou o discurso latino-ameri- A pluralidade de discursos sobre a globali-
cano, tem uma tonalidade civilizacional, sendo zação mostra que é imperioso produzir uma
a globalização posta em confronto com as es- reflexão teórica crítica da globalização e de
pecificidades regionais. Dentro da mesma re- o fazer de modo a captar a complexidade dos
gião, pode haver diferentes subdiscursos. Por fenómenos que ela envolve e a disparidade
exemplo, em França há uma forte tendência dos interesses que neles se confrontam. A pro-
para ver na globalização uma ameaça “anglo- posta teórica que apresento aqui parte de três
-americana” à sociedade e à cultura francesa aparentes contradições que, em meu entender,
e às de outros países europeus. Mas, como diz conferem ao período histórico, em que nos en-
Robertson, o anti-globalismo dos franceses contramos, a sua especificidade transicional.
pode facilmente converter-se no projecto fran- A primeira contradição é entre globalização e
cês de globalização. O discurso disciplinar localização. O tempo presente surge-nos como
diz respeito ao modo como a globalização é dominado por um movimento dialéctico em
vista pelas diferentes ciências sociais. O traço cujo seio os processos de globalização ocor-
mais saliente deste discurso é a saliência que rem de par com processos de localização. De
é dada à globalização económica. O discurso facto, à medida que a interdependência e as
ideológico entrecruza-se com qualquer dos interacções globais se intensificam, as rela-
anteriores e diz respeito à avaliação política ções sociais em geral parecem estar cada vez
dos processos de globalização. Ao discurso mais desterritorializadas, abrindo caminho
pro-globalização contrapõe-se o discurso anti- para novos direitos às opções, que atravessam
-globalização e em qualquer deles é possível fronteiras até há pouco tempo policiadas pela
distinguir posições de esquerda e de direita. tradição, pelo nacionalismo, pela linguagem
Finalmente, o discurso feminista que, tendo ou pela ideologia, e frequentemente por todos
começado por ser um discurso anti-globaliza- eles em conjunto. Mas, por outro lado, e em
ção — privilegiando o local e atribuindo o glo- aparente contradição com esta tendência, no-
bal a uma preocupação masculina —, é hoje vas identidades regionais, nacionais e locais
também um discurso da globalização e distin- estão a emergir, construídas em torno de uma
430 Boaventura de Sousa Santos

nova proeminência dos direitos às raízes. A segunda contradição é entre o Estado-nação


Tais localismos, tanto se referem a territórios e o não-Estado transnacional. A análise preceden-
reais ou imaginados, como a formas de vida e te sobre as diferentes dimensões da globalização
de sociabilidade assentes nas relações face-a- dominante mostrou que um dos pontos de maior
-face, na proximidade e na interactividade. controvérsia, nos debates sobre a globalização, é
Localismos territorializados são, por exem- a questão do papel do Estado na era da globaliza-
plo, os protagonizados por povos que, ao fim ção. Se, para uns, o Estado é uma entidade obso-
de séculos de genocídio e de opressão cultu- leta e em vias de extinção ou, em qualquer caso,
ral, reivindicam, finalmente com algum êxito, muito fragilizada na sua capacidade para organi-
o direito à autodeterminação dentro dos seus zar e regular a vida social, para outros o Estado
territórios ancestrais. É este o caso dos povos continua a ser a entidade política central, não só
indígenas da América Latina e também da Aus- porque a erosão da soberania é muito selectiva,
trália, do Canadá e da Nova Zelândia. Por seu como, sobretudo, porque a própria institucionali-
lado, os localismos translocalizados são prota- dade da globalização — das agências financeiras
gonizados por grupos sociais translocalizados, multilaterais à desregulação da economia — é
tais como os imigrantes árabes em Paris ou Lon- criada pelos Estados nacionais. Cada uma destas
dres, os imigrantes turcos na Alemanha ou os posições capta uma parte dos processos em cur-
imigrantes latinos nos EUA. Para estes grupos, so. Nenhuma delas, porém, faz justiça às trans-
o território é a ideia de território, enquanto for- formações no seu conjunto porque estas são, de
ma de vida em escala de proximidade, imedia- facto, contraditórias e incluem tanto processos
ção, pertença, partilha e reciprocidade. Aliás, de estatização — a tal ponto que se pode afirmar
esta reterritorialização, que usualmente ocorre que os Estados nunca foram tão importantes
a um nível infra-estatal, pode também ocorrer como hoje — como processos de desestatização
a um nível supra-estatal. Um bom exemplo des- em que interacções, redes e fluxos transnacio-
te último processo é a União Europeia, que, ao nais da maior importância ocorrem sem qualquer
mesmo tempo que desterritorializa as relações interferência significativa do Estado, ao contrário
sociais entre os cidadãos dos Estados mem- do que sucedia no período anterior.
bros, reterritorializa as relações sociais com A terceira contradição, de natureza político-
Estados terceiros (a “Europa-fortaleza”). -ideológica, é entre os que vêem na globaliza-
Os processos da globalização 431

ção a energia finalmente incontestável e imba- substantivo. Por outro lado, enquanto feixes
tível do capitalismo e os que vêem nela uma de relações sociais, as globalizações envolvem
oportunidade nova para ampliar a escala e o conflitos e, por isso, vencedores e vencidos.
âmbito da solidariedade transnacional e das Frequentemente, o discurso sobre globaliza-
lutas anticapitalistas. A primeira posição é, ali- ção é a história dos vencedores contada pelos
ás, defendida, tanto pelos que conduzem a glo- próprios. Na verdade, a vitória é aparentemen-
balização e dela beneficiam, como por aqueles te tão absoluta que os derrotados acabam por
para quem a globalização é a mais recente e a desaparecer totalmente de cena. Por isso, é
mais virulenta agressão externa contra os seus errado pensar que as novas e mais intensas
modos de vida e o seu bem-estar. interacções transnacionais produzidas pelos
Estas três contradições condensam os vec- processos de globalização eliminaram as hie-
tores mais importantes dos processos de globa- rarquias no sistema mundial. Sem dúvida que
lização em curso. À luz delas, é fácil ver que as as têm vindo a transformar profundamente,
disjunções, as ocorrências paralelas e as con- mas isso não significa que as tenham elimina-
frontações são de tal modo significativas que do. Pelo contrário, a prova empírica vai no sen-
o que designamos por globalização é, de facto, tido oposto, no sentido da intensificação das
uma constelação de diferentes processos de hierarquias e das desigualdades. As contradi-
globalização e, em última instância, de diferen- ções e disjunções acima assinaladas sugerem
tes e, por vezes, contraditórias, globalizações. que estamos num período transicional no que
Aquilo que habitualmente designamos por respeita a três dimensões principais: transição
globalização são, de facto, conjuntos diferen- no sistema de hierarquias e desigualdades do
ciados de relações sociais; diferentes conjun- sistema mundial; transição no formato institu-
tos de relações sociais dão origem a diferentes cional e na complementaridade entre institui-
fenómenos de globalização. Nestes termos, ções; transição na escala e na configuração dos
não existe estritamente uma entidade única conflitos sociais e políticos.
chamada globalização; existem, em vez disso, A teoria a construir deve, pois, dar conta da
globalizações; em rigor, este termo só deveria pluralidade e da contradição dos processos da
ser usado no plural. Qualquer conceito mais globalização em vez de os tentar subsumir em
abrangente deve ser de tipo processual e não abstracções redutoras. A teoria que a seguir
432 Boaventura de Sousa Santos

proponho assenta no conceito de sistema mun- lação de práticas sociais e culturais transnacio-
dial em transição. Em transição porque contém nais. As práticas interestatais correspondem ao
em si o sistema mundial velho, em processo de papel dos Estados no sistema mundial moderno
profunda transformação, e um conjunto de re- enquanto protagonistas da divisão internacional
alidades emergentes que podem ou não condu- do trabalho no seio do qual se estabelece a hie-
zir a um novo sistema mundial, ou a outra qual- rarquia entre centro, periferia e semiperiferia.
quer entidade nova, sistémica ou não. Trata-se As práticas capitalistas globais são as práticas
de uma circunstância que, quando captada em dos agentes económicos cuja unidade espacio-
corte sincrónico, revela uma total abertura -temporal de actuação real ou potencial é o pla-
quanto a possíveis alternativas de evolução. neta. As práticas sociais e culturais transnacio-
Tal abertura é o sintoma de uma grande insta- nais são os fluxos transfronteiriços de pessoas
bilidade que configura uma situação de bifurca- e de culturas, de informação e de comunicação.
ção, entendida em sentido prigoginiano. É uma Cada uma destas constelações de práticas é
situação de profundos desequilíbrios e de com- constituída por: um conjunto de instituições
promissos voláteis em que pequenas altera- que asseguram a sua reprodução, a complemen-
ções podem produzir grandes transformações. taridade entre elas e a estabilidade das desigual-
Trata-se, pois, de uma situação caracterizada dades que elas produzem; uma forma de poder
19
pela turbulência e pela explosão das escalas . que fornece a lógica das interacções e legitima
A teoria que aqui proponho pretende dar conta as desigualdades e as hierarquias; uma forma de
da situação de bifurcação e, como tal, não pode direito que fornece a linguagem das relações in-
deixar de ser, ela própria, uma teoria aberta às trainstitucionais e interinstitucionais e o critério
possibilidades de caos. da divisão entre práticas permitidas e proibidas;
O sistema mundial em transição é constituído um conflito estrutural que condensa as tensões
por três constelações de práticas colectivas: a e contradições matriciais das práticas em ques-
constelação de práticas interestatais, a conste- tão; um critério de hierarquização que define o
lação de práticas capitalistas globais e a conste- modo como se cristalizam as desigualdades de
poder e os conflitos em que eles se traduzem;
finalmente, ainda que todas as práticas do sis-
19 Sobre os conceitos de turbulência de escalas e de
explosão de escalas, ver Santos (1996). tema mundial em transição estejam envolvidas
Os processos da globalização 433

em todos os modos de produção de globaliza- local para a produção de transnacionalidade.


ção, nem todas estão envolvidas em todos eles Em segundo lugar, as interacções entre os pi-
com a mesma intensidade. lares do SMET são muito mais intensas que
O Quadro 1 descreve a composição interna no SMM. Aliás, enquanto no SMM os dois pi-
de cada um dos componentes das diferentes lares tinham contornos claros e bem distintos,
constelações de práticas. Detenho-me apenas no SMET há uma interpenetração constante
nos que exigem uma explicação. Antes disso, e intensa entre as diferentes constelações de
porém, é necessário identificar o que distin- práticas, de tal modo que entre elas há zonas
gue o sistema mundial em transição (SMET) cinzentas ou híbridas onde as constelações
do sistema mundial moderno (SMM). Em assumem um carácter particularmente com-
primeiro lugar, enquanto o SMM assenta em pósito. Por exemplo, a Organização Mundial
dois pilares, a economia-mundo e o sistema do Comércio é uma instituição híbrida cons-
interestatal, o SMET assenta em três pilares e tituída por práticas interestatais e por práticas
nenhum deles tem a consistência de um siste- capitalistas globais do mesmo modo que os
ma. Trata-se antes de constelações de práticas fluxos migratórios são uma instituição híbrida
cuja coerência interna é intrinsecamente pro- onde, em graus diferentes, consoante as situa-
blemática. A maior complexidade (e também ções, estão presentes as três constelações de
incoerência) do sistema mundial em transição práticas. Em terceiro lugar, ainda que perma-
reside em que nele os processos da globaliza- neçam no SMET muitas das instituições cen-
ção vão muito para além dos Estados e da eco- trais do SMM, elas desempenham hoje funções
nomia, envolvendo práticas sociais e culturais diferentes sem que a sua centralidade seja ne-
que no SMM estavam confinadas aos Estados cessariamente afectada. Assim, o Estado, que
e sociedades nacionais ou sub-unidades de- no SMM assegurava a integração da economia,
les. Aliás, muitas das novas práticas culturais da sociedade e da cultura nacionais, contribui
transnacionais são originariamente transna- hoje activamente para a desintegração da eco-
cionais, ou seja, constituem-se livres da refe- nomia, da sociedade e da cultura a nível nacio-
rência a uma nação ou a um Estado concretos nal em nome da integração destas na econo-
ou, quando recorrem a eles, fazem-no apenas mia, na sociedade e na cultura globais.
para obter matéria prima ou infraestrutura
434 Boaventura de Sousa Santos

Quadro 1. Os processos da globalização

Forma de Critério de
Práticas Instituições Forma de direito Conflito estrutural
poder hierarquização
Estados;
Lutas inter-estatais
Organizações Internacionais;
Trocas pela posição re-
Instituições Financeiras Direito Internacional;
desiguais lativa no sistema
Multilaterais; Tratados internacionais; Centro, periferia,
Inter-estatais de prerro- mundial (promoção/
Blocos Regionais (Nafta, Direito da integração semiperiferia
gativas de despromoção;
União Europeia; Mercosul); regional
soberania autonomia/depen-
Organização Mundial do
dência)
Comércio
Direito do trabalho;
Luta de classes
Direito económico inter-
Trocas de- pela apropriação
nacional;
siguais de ou valorização de
Capitalistas Nova lex mercatoria;
Empresas Multinacionais recursos recursos mercantis Global, local
globais Direito de propriedade;
ou valores (integração/desin-
Direito de propriedade
mercantis tegração; inclusão/
intelectual;
exclusão)
Direito de patentes
Lutas de grupos
Direitos humanos;
Organizações Não Governa- Trocas sociais pelo re-
Direito de nacionalidade e
Sociais e mentais; desiguais conhecimento da
de residência;
culturais trans- Movimentos sociais; de identi- diferença Global, local
Direito de emigração;
nacionais Redes; dades e de (inclusão/exclusão;
Direito de propriedade
Fluxos culturas inclusão autónoma/
intelectual
inclusão subalterna)

Os processos de globalização resultam das ticas. As tensões e contradições, no interior de


interacções entre as três constelações de prá- cada uma das constelações e nas relações en-
Os processos da globalização 435

tre elas, decorrem das formas de poder e das um conflito estrutural, ou seja, um conflito que
20
desigualdades na distribuição do poder . Essa organiza as lutas em torno dos recursos que são
forma de poder é a troca desigual em todas elas, objecto de trocas desiguais. No caso de práticas
mas assume formas específicas em cada uma interestatais, o conflito trava-se em torno da po-
das constelações que derivam dos recursos, ar- sição relativa na hierarquia do sistema mundial
tefactos, imaginários que são objecto de troca já que é este que dita o tipo de trocas e graus
desigual. O aprofundamento e a intensidade das de desigualdades. As lutas pela promoção ou
interacções interestatais, globais e transnacio- contra a despromoção e os movimentos na hie-
nais faz com que as formas de poder se exerçam rarquia do sistema mundial em que se traduzem
como trocas desiguais. Porque se trata de tro- são processos de longa duração que em cada
cas e as desigualdades podem, dentro de certos momento se cristalizam em graus de autonomia
limites, ser ocultadas ou manipuladas, o registo e de dependência. Ao nível das práticas capita-
das interacções no SMET assume muitas vezes listas globais, a luta trava-se entre a classe ca-
(e credivelmente) o registo da horizontalidade pitalista global e todas as outras classes defini-
através de ideias-força como interdependência, das a nível nacional, sejam elas a burguesia, a
complementaridade, coordenação, coopera- pequena burguesia e o operariado. Obviamente,
ção, rede, etc. Em face disto, os conflitos ten- os graus de desigualdade da troca e os mecanis-
dem a ser experienciados como difusos, sendo mos que as produzem são diferentes consoante
por vezes difícil definir o que está em conflito as classes em confronto, mas em todos os ca-
ou quem está em conflito. Mesmo assim é possí- sos trava-se uma luta pela apropriação ou va-
vel identificar em cada constelação de práticas lorização de recursos mercantis, sejam eles o
trabalho ou o conhecimento, a informação ou
as matérias primas, o crédito ou a tecnologia. O
20 Em trabalho anterior, ao analisar o Mapa Estrutural que resta das burguesias nacionais e a pequena
das Sociedades Capitalistas (Santos, 1995: 417; 2000a: burguesia são, nesta fase de transição, a almo-
cap. 5), considerei que a troca desigual era a forma de fada que amortece e a cortina de fumo que obs-
poder do espaço-tempo mundial. Os processos da glo- curece a contradição cada vez mais nua e crua
balização são constituídos pelo espaço-tempo mundial.
entre o capital global e o trabalho entretanto
Em cada uma das constelações de práticas, circula uma
forma específica de troca desigual. transformado em recurso global.
436 Boaventura de Sousa Santos

No domínio das práticas sociais e culturais práticas culturais transnacionais e ser vivido
transnacionais, as trocas desiguais dizem res- como tal. A transconflitualidade é reveladora
peito a recursos não-mercantis cuja transnacio- da abertura e da situação de bifurcação que
nalidade assenta na diferença local, tais como, caracterizam o SMET porque, à partida, não
etnias, identidades, culturas, tradições, senti- é possível saber em que direcção se orienta a
mentos de pertença, imaginários, rituais, litera- transconflitualidade. No entanto, a direcção
tura escrita ou oral. São incontáveis os grupos que acaba por se impor é decisiva, não só para
sociais envolvidos nestas trocas desiguais e as definir o perfil prático do conflito, como o seu
suas lutas travam-se em torno do reconhecimen- âmbito e o seu resultado.
to da apropriação ou da valorização não mercan- A transconflitualidade ocorre também em
til desses recursos, ou seja, em torno da igualda- função dos diferentes tempos, durações e rit-
de na diferença e da diferença na igualdade. mos das várias dimensões que compõem o con-
A interacção recíproca e interpenetração flito. Assim, as dimensões emergentes ou mais
das três constelações de práticas faz com que recentes podem ser assimiladas ou codificadas
os três tipos de conflitos estruturais e as tro- nos termos de dimensões em declínio ou mais
cas desiguais que os alimentam se traduzam na velhas. Por exemplo, um conflito, suscitado por
prática em conflitos compósitos, híbridos ou uma nova troca cultural ou identitária desigual
duais em que, de diferentes formas, estão pre- causada pelos meios de comunicação electró-
sentes elementos de cada um dos conflitos es- nica, pode ser assimilado a um conflito inte-
truturais. A importância deste facto está no que restatal. Isto pode ocorrer por várias razões:
designo por transconflitualidade, que consiste por inércia institucional, na medida em que as
em assimilar um tipo de conflito a outro e em instituições mais consolidadas e eficientes per-
experienciar um conflito de certo tipo como se tencem ao domínio das práticas interestatais e
ele fosse de outro tipo. Assim, por exemplo, exercem, por isso, um efeito de atracção global
um conflito no interior das práticas capitalis- sobre o conflito; por estratégias das partes em
tas globais pode ser assimilado a um conflito conflito que orientam o conflito para o terreno
interestatal e ser vivido como tal pelas partes das práticas que lhes garantem melhores opor-
em conflito. Do mesmo modo, um conflito in- tunidades de vencer ou mais possibilidades de
terestatal pode ser assimilado a um conflito de conter o conflito.
Os processos da globalização 437

A reiteracção ao longo do tempo das trocas o global e o local. Ao contrário do SMM, que
desiguais e dos conflitos a que dão origem defi- assentava apenas na primeira hierarquia, o
ne a hierarquia entre classes, grupos, interesses SMET assenta numa multiplicidade de hierar-
e instituições no interior dos processos de glo- quias, mas em que é possível distinguir duas
balização. Dada a constituição complexa, mul- principais, uma que respeita às práticas inte-
tiestratificada dos conflitos, a heterogeneidade restatais e outra que respeita às práticas glo-
das práticas que os alimentam e a situação de bais e às práticas sociais e culturais transna-
bifurcação e de indeterminação dos desequilí- cionais. Estes dois critérios de hierarquização
brios, a hierarquia no SMET é um tanto labirín- não são necessariamente congruentes entre si.
tica: quanto maior é o número dos critérios de Podem, aliás, ocorrer disjunções de modo que
hierarquização, maior é a possibilidade que as uma prática interestatal periférica contenha
desigualdades se neutralizem e as hierarquias em si ou se combine com uma prática cultural
colapsem umas nas outras. Aliás, o discurso transnacional globalizada. A maior ou menor
político e a sensibilidade sociológica dominan- congruência entre as hierarquias depende das
tes apoiam-se nesta condição para salientar os situações e dos contextos e só pode ser identi-
registos de horizontalidade nas relações no in- ficada a posteriori. Isto significa que a identifi-
terior do sistema: em vez de dependência, in- cação só pode captar o ontem da congruência,
terdependência; em vez de exclusão, inclusões nunca o hoje. No SMET, um período caótico,
alternativas; em vez de exploração, competitivi- em situação de bifurcação, as análises são
dade; em vez de soma-zero, soma-positiva. mais do que nunca retrospectivas, e as estra-
Em face das hierarquias labirínticas não tégias políticas mais do que nunca sujeitas ao
surpreende que no SMET um dos conflitos efeito de cascata de que fala Rosenau (1990).
mais agudos seja um metaconflito, o conflito O efeito de cascata é o processo pelo qual os
sobre os termos do conflito e sobre os crité- eventos e as decisões isoladas se multiplicam
rios que devem definir as hierarquias. Apesar e se encadeiam de modos caóticos, produzin-
do carácter labiríntico das hierarquias, é pos- do consequências imprevisíveis.
sível identificar duas delas que se me afiguram Se a congruência entre as hierarquias é inde-
as mais importantes: a hierarquia entre centro, terminável, já a hierarquia entre elas é passível
semiperiferia e periferia e a hierarquia entre de uma ordenação geral. Uma das diferenças
438 Boaventura de Sousa Santos

mais significativas do SMET em relação ao rior de práticas capitalistas globais e de práti-


SMM é a relativa perda de centralidade das prá- cas sociais e culturais transnacionais.
ticas interestatais em face do avanço e do apro- Desta forma, é possível estabelecer como
fundamento das práticas capitalistas globais e hipótese que os critérios global/local confor-
das práticas sociais e culturais transnacionais. marão progressivamente os critérios centro,
Essa perda de centralidade traduz-se na maior semiperiferia e periferia sem que estes últi-
interferência a que as práticas interestatais es- mos tenham de desaparecer, bem pelo contrá-
tão sujeitas por parte das outras constelações rio. É característico do SMET, enquanto perí-
de práticas. Tal interferência provoca altera- odo transicional, manter e até aprofundar as
ções internas na institucionalidade das prá- hierarquias próprias do SMM, alterandolhes,
ticas interestatais. Por exemplo, as agências no entanto, a lógica interna da sua produção
financeiras multilaterais adquirem crescente e reprodução.
proeminência em relação aos Estados; e o mes- À luz disto, sugiro que, nas condições pre-
mo ocorre nas formas de direito com a sobre- sentes do SMET, a análise dos processos de
posição do direito de integração regional ao globalização e das hierarquias que eles produ-
direito nacional. Por outro lado, a interferência zem seja centrada nos critérios que definem o
das outras práticas nas práticas interestatais global/local. Para além da justificação acima
faz com que conflitos no interior destas últimas dada, há uma outra que julgo importante e que
sejam derivados ou fortemente condicionados se pode resumir no que designo por voracidade
por conflitos no interior das outras práticas. diferenciadora do global/local. No SMM a hie-
Em resultado, o critério de hierarquização pró- rarquia entre centro, semiperiferia e periferia
prio das práticas interestatais (centro, semipe- era articulável com uma série de dicotomias
riferia, periferia) é crescentemente contamina- que derivavam de uma variedade de formas
do pelos critérios próprios das outras práticas de diferenciação desigual. Entre as formas de
(global, local) e de tal modo que, o que conta dicotimização, saliento: desenvolvido/subde-
como centro, semiperiferia e periferia, é cada senvolvido, moderno/tradicional, superior/in-
vez mais a cristalização, ao nível do país, de ferior, universal/particular, racional/irracional,
múltiplas e distintas combinações de posições industrial/agrícola, urbano/rural. Cada uma
ou características globais e/ou locais no inte- destas formas tinha um registo semântico pró-
Os processos da globalização 439

prio, uma tradição intelectual, uma intencio- zação. O processo que cria o global, enquanto
nalidade política e um horizonte projectivo. O posição dominante nas trocas desiguais, é o
que é novo no SMET é o modo como a dicoto- mesmo que produz o local, enquanto posição
mia global/local tem vindo a absorver todas as dominada e, portanto, hierarquicamente infe-
outras, não só no discurso científico como no rior. De facto, vivemos tanto num mundo de
discurso político. localização como num mundo de globalização.
O global e o local são socialmente produzi- Portanto, em termos analíticos, seria igual-
dos no interior dos processos de globalização. mente correcto se a presente situação e os
Distingo quatro processos de globalização nossos tópicos de investigação se definissem
produzidos por outros tantos modos de globa- em termos de localização, em vez de globali-
lização. Eis a minha definição de modo de pro- zação. O motivo por que é preferido o último
dução de globalização: é o conjunto de trocas termo é, basicamente, o facto de o discurso
desiguais pelo qual um determinado artefacto, científico hegemónico tender a privilegiar a
condição, entidade ou identidade local estende história do mundo na versão dos vencedores.
a sua influência para além das fronteiras nacio- Não é por acaso que o livro de Benjamim Bar-
nais e, ao fazê-lo, desenvolve a capacidade de ber, sobre as tensões no processo de globaliza-
designar como local outro artefacto, condição, ção, se intitula Jihad versus McWorld (1995) e
entidade ou identidade rival. não MacWorld versus Jihad.
As implicações mais importantes desta Existem muitos exemplos de como a glo-
concepção são as seguintes. Em primeiro lu- balização pressupõe a localização. A língua
gar, perante as condições do sistema mundial inglesa enquanto língua franca é um desses
em transição não existe globalização genuína; exemplos. A sua propagação enquanto língua
aquilo a que chamamos globalização é sempre global implicou a localização de outras línguas
a globalização bem sucedida de determinado potencialmente globais, nomeadamente a lín-
localismo. Por outras palavras, não existe con- gua francesa. Quer isto dizer que, uma vez iden-
dição global para a qual não consigamos en- tificado determinado processo de globalização,
contrar uma raiz local, real ou imaginada, uma o seu sentido e explicação integrais não podem
inserção cultural específica. A segunda impli- ser obtidos sem se ter em conta os processos
cação é que a globalização pressupõe a locali- adjacentes de relocalização com ele ocorrendo
440 Boaventura de Sousa Santos

em simultâneo ou sequencialmente. A globa- este processo combina situações e condições


lização do sistema de estrelato de Hollywood altamente diferenciadas e, por esse motivo, não
contribuiu para a localização (etnicização) do pode ser analisado independentemente das re-
sistema de estrelato do cinema hindu. Analo- lações de poder que respondem pelas diferen-
gamente, os actores franceses ou italianos dos tes formas de mobilidade temporal e espacial.
anos 60 — de Brigitte Bardot a Alain Delon, de Por um lado, existe a classe capitalista global,
Marcello Mastroiani a Sofia Loren — que sim- aquela que realmente controla a compressão
bolizavam então o modo universal de repre- tempo-espaço e que é capaz de a transformar
sentar, parecem hoje, quando revemos os seus a seu favor. Existem, por outro lado, as classes
filmes, provincianamente europeus, se não e grupos subordinados, como os trabalhado-
mesmo curiosamente étnicos. A diferença do res migrantes e os refugiados, que nas últimas
olhar reside em que, de então para cá, o modo décadas têm efectuado bastante movimenta-
de representar hollywoodesco conseguiu glo- ção transfronteiriça, mas que não controlam,
balizar-se. Para dar um exemplo de uma área de modo algum, a compressão tempo-espaço.
totalmente diferente, à medida que se globali- Entre os executivos das empresas multinacio-
za o hamburger ou a pizza, localiza-se o bolo nais e os emigrantes e refugiados, os turistas
de bacalhau português ou a feijoada brasileira, representam um terceiro modo de produção da
no sentido em que serão cada vez mais vistos compressão tempo-espaço.
como particularismos típicos da sociedade Existem ainda os que contribuem forte-
portuguesa ou brasileira. mente para a globalização mas, não obstante,
Uma das transformações mais frequente- permanecem prisioneiros do seu tempo-espa-
mente associadas aos processos de globali- ço local. Os camponeses da Bolívia, do Perú e
zação é a compressão tempo-espaço, ou seja,
o processo social pelo qual os fenómenos se
aceleram e se difundem pelo globo (Harvey, de globalização. No entanto, Fortuna chama a atenção
21
1989) . Ainda que aparentemente monolítico, para a hipótese de a globalização ser temporária. Re-
portando-se ao processo de globalização das cidades,
fala da existência “de um processo de globalização de-
21 A compressão tempo-espaço acarreta consigo a corrente da valorização temporária dos recursos ima-
ideia da irreversibilidade e permanência dos processos géticos e representacionais” (1997: 16).
Os processos da globalização 441

da Colômbia, ao cultivarem coca, contribuem específico por que estão a ser excluídas pela
22
decisivamente para uma cultura mundial da globalização hegemónica . O que caracteriza a
droga, mas eles próprios permanecem “loca- produção de globalização é o facto de o seu im-
lizados” nas suas aldeias e montanhas como pacto se estender tanto às realidades que inclui
desde sempre estiveram. Tal como os morado- como às realidades que exclui. Mas o decisivo
res das favelas do Rio, que permanecem pri- na hierarquia produzida não é apenas o âmbito
sioneiros da vida urbana marginal, enquanto da inclusão, mas a sua natureza. O local, quan-
as suas canções e as suas danças, sobretudo o do incluído, é-o de modo subordinado, segun-
samba, constituem hoje parte de uma cultura do a lógica do global. O local que precede os
musical globalizada. processos de globalização, ou que consegue
Ainda noutra perspectiva, a competência glo- permanecer à margem, tem muito pouco a ver
bal requer, por vezes, o acentuar da especifici- com o local que resulta da produção global da
dade local. Muitos dos lugares turísticos de hoje localização. Aliás, o primeiro tipo de local está
têm de vincar o seu carácter exótico, vernáculo na origem dos processos de globalização, en-
e tradicional para poderem ser suficientemente quanto o segundo tipo é o resultado da opera-
atractivos no mercado global de turismo. ção destes.
A produção de globalização implica, pois, a O modo de produção geral de globalização
produção de localização. Longe de se tratar de desdobra-se em quatro modos de produção, os
produções simétricas, é por via delas que se es- quais, em meu entender, dão origem a quatro
tabelece a hierarquização dominante no SMET. formas de globalização.
Nos seus termos, o local é integrado no global A primeira forma de globalização é o loca-
por duas vias possíveis: pela exclusão ou pela lismo globalizado. Consiste no processo pelo
inclusão subalterna. Apesar de, na linguagem qual determinado fenómeno local é globaliza-
comum e no discurso político, o termo globa-
lização transmitir a ideia de inclusão, o âmbito
real da inclusão pela globalização, sobretudo 22 Cfr. também McMichael (1996: 169). A dialéctica
económica, pode ser bastante limitado. Vastas da inclusão e da exclusão é particularmente visível no
mercado global da comunicação e da informação. Com
populações do mundo, sobretudo em África,
excepção da África do Sul, o continente africano é, para
estão a ser globalizadas em termos do modo este mercado, um continente inexistente.
442 Boaventura de Sousa Santos

do com sucesso, seja a actividade mundial das de enclaves de comércio livre ou zonas fran-
multinacionais, a transformação da língua in- cas; desflorestação e destruição maciça dos
glesa em língua franca, a globalização do fast recursos naturais para pagamento da dívida
food americano ou da sua música popular, ou externa; uso turístico de tesouros históricos,
a adopção mundial das mesmas leis de pro- lugares ou cerimónias religiosos, artesanato e
priedade intelectual, de patentes ou de teleco- vida selvagem; dumping ecológico (“compra”
municações promovida agressivamente pelos pelos países do Terceiro Mundo de lixos tó-
EUA. Neste modo de produção de globalização xicos produzidos nos países capitalistas cen-
o que se globaliza é o vencedor de uma luta trais para gerar divisas externas); conversão
pela apropriação ou valorização de recursos da agricultura de subsistência em agricultura
ou pelo reconhecimento da diferença. A vitória para exportação como parte do “ajustamento
traduz-se na faculdade de ditar os termos da in- estrutural”; etnicização do local de trabalho
tegração, da competição e da inclusão. No caso (desvalorização do salário pelo facto de os
do reconhecimento da diferença, o localismo trabalhadores serem de um grupo étnico con-
23
globalizado implica a conversão da diferença siderado “inferior” ou “menos exigente”) .
vitoriosa em condição universal e a consequen- Estes dois modos de produção de globali-
te exclusão ou inclusão subalterna de diferen- zação operam em conjunção, mas devem ser
ças alternativas. tratados separadamente dado que os factores,
À segunda forma de globalização chamo os agentes e os conflitos que intervêm num e
globalismo localizado. Consiste no impacto noutro são distintos. A produção sustentada
específico nas condições locais produzido pe- de localismos globalizados e de globalismos
las práticas e imperativos transnacionais que localizados é cada vez mais determinante para
decorrem dos localismos globalizados. Para
responder a esses imperativos transnacio-
nais, as condições locais são desintegradas, 23 O globalismo localizado pode ocorrer sob a forma
desestruturadas e, eventualmente, reestru- do que Fortuna chama “globalização passiva”, a situ-
turadas sob a forma de inclusão subalterna. ação em que “algumas cidades se vêem incorporadas
de modo passivo nos meandros da globalização e são
Tais globalismos localizados incluem: a elimi-
incapazes de fazer reconhecer aqueles recursos [globa-
nação do comércio de proximidade; criação lizantes próprios] no plano transnacional” (1997: 16).
Os processos da globalização 443

a hierarquização específica das práticas inte- Para além destes dois modos de produção
restatais. A divisão internacional da produção de globalização há outros dois, talvez os que
da globalização tende a assumir o seguinte melhor definem as diferenças e a novidade do
padrão: os países centrais especializam-se em SMET em relação ao SMM porque ocorrem
localismos globalizados, enquanto aos países no interior da constelação das práticas que
periféricos cabe tão-só a escolha de globalis- irrompeu com particular pujança nas últimas
mos localizados. Os países semiperiféricos são décadas — as práticas sociais e culturais trans-
caracterizados pela coexistência de localismos nacionais —, ainda que se repercutam nas res-
globalizados e de globalismos localizados e pe- tantes constelações de práticas. Dizem respei-
las tensões entre eles. O sistema mundial em to à globalização da resistência aos localismos
transição é uma trama de globalismos localiza- globalizados e aos globalismos localizados.
24
dos e localismos globalizados . Designo o primeiro por cosmopolitismo. Trata
da organização transnacional da resistência de
24 A divisão internacional da produção de globalização
Estados-nação, regiões, classes ou grupos so-
articula-se com uma divisão nacional do mesmo tipo: as ciais vitimizados pelas trocas desiguais de que
regiões centrais ou os grupos dominantes de cada país se alimentam os localismos globalizados e os
participam na produção e reprodução de localismos globalismos localizados, usando em seu benefí-
nacionalizados, enquanto às regiões periféricas ou aos cio as possibilidades de interacção transnacio-
grupos dominados cabe produzir e reproduzir os nacio-
nalismos localizados. Para tomar um exemplo recente, nal criadas pelo sistema mundial em transição,
a Exposição Universal de Lisboa, a Expo ‘98, foi o resul- incluindo as que decorrem da revolução nas
tado da conversão em objectivo nacional dos objectivos tecnologias de informação e de comunicação.
locais da cidade de Lisboa e da classe política interessa- A resistência consiste em transformar trocas
da em promover uma imagem do país onde não cabem
as regiões periféricas nem os grupos sociais dominados.
Umas e outros foram localizados por esta “decisão na-
cional” ao serem privados dos recursos e dos investi- localismos nacionalizados e localismos globalizados.
mentos que, pelo menos parcialmente, lhes poderiam ter Usando de novo o exemplo da Expo ‘98, a nacionali-
cabido se a Expo ‘98 não se tivesse realizado. zação do desígnio expositivo não teria sido possível se
Esta tensão entre localismos nacionalizados e nacio- este não tivesse sido previamente globalizado entre o
nalismos localizados é intrínseca ao Estado capitalista pequeno cartel de países competentes para se exporem
moderno. O que é novo é a crescente congruência entre e para exporem os restantes países.
444 Boaventura de Sousa Santos

desiguais em trocas de autoridade partilhada, 1999, foi uma eloquente manifestação do que
e traduz-se em lutas contra a exclusão, a inclu- designo por cosmopolitismo. Foi seguida por
são subalterna, a dependência, a desintegra- outras contestações contra as instituições fi-
ção, a despromoção. As actividades cosmopo- nanceiras da globalização hegemónica realiza-
litas incluem, entre muitas outras: movimentos das em Washington, Montreal, Genebra e Pra-
e organizações no interior das periferias do ga. O Fórum Social Mundial realizado em Porto
sistema mundial; redes de solidariedade trans- Alegre em janeiro de 2001 foi outra importante
nacional não desigual entre o Norte e o Sul; a manifestação de cosmopolitismo.
articulação entre organizações operárias dos O uso do termo “cosmopolitismo” para des-
países integrados nos diferentes blocos regio- crever práticas e discursos de resistência, con-
nais ou entre trabalhadores da mesma empresa tra as trocas desiguais no sistema mundial tar-
multinacional operando em diferentes países dio, pode parecer inadequado em face da sua
(o novo internacionalismo operário); redes in- ascendência modernista, tão eloquentemente
ternacionais de assistência jurídica alternativa; descrito por Toulmin (1990), bem como à luz
organizações transnacionais de direitos huma- da sua utilização corrente para descrever prá-
nos; redes mundiais de movimentos feminis- ticas que são aqui concebidas, quer como lo-
tas; organizações não governamentais (ONG’s) calismos globalizados, quer como globalismos
transnacionais de militância anticapitalista; localizados (para não referir a sua utilização
redes de movimentos e associações indígenas, para descrever o âmbito mundial das empresas
ecológicas ou de desenvolvimento alternativo; multinacionais como “cosmocorp”). Emprego,
movimentos literários, artísticos e científicos contudo, para assinalar que, contrariamente
na periferia do sistema mundial em busca de va- à crença modernista (particularmente no mo-
lores culturais alternativos, não imperialistas, mento de fin de siècle), o cosmopolitismo é
contra-hegemónicos, empenhados em estudos apenas possível de um modo intersticial nas
sob perspectivas pós-coloniais ou subalternas. margens do sistema mundial em transição
Pese embora a heterogeneidade dos movimen- como uma prática e um discurso contra-hege-
tos e organizações envolvidas, a contestação à mónicos gerados em coligações progressistas
Organização Mundial de Comércio aquando da de classes ou grupos subalternos e seus alia-
sua reunião em Seattle, a 30 de novembro de dos. O cosmopolitismo é efectivamente uma
Os processos da globalização 445

tradição da modernidade ocidental, mas é uma ses trabalhadoras dos países centrais, e até dos
das muitas tradições suprimidas ou marginali- países semiperiféricos, que têm hoje mais a per-
zadas pela tradição hegemónica que gerou no der do que as grilhetas, mesmo que esse “mais”
passado a expansão europeia, o colonialismo não seja muito mais, ou seja, mais simbólico do
26
e o imperialismo, e que hoje gera os localismos que material . Por outro, vastas populações do
globalizados e os globalismos localizados. mundo que nem sequer têm grilhetas, ou seja,
Neste contexto, é ainda necessário fazer uma que não são suficientemente úteis ou aptas para
outra precisão. O cosmopolitismo pode invocar serem directamente exploradas pelo capital e a
a crença de Marx na universalidade daqueles quem, consequentemente, a eventual ocorrên-
que, sob o capitalismo, têm somente a perder as cia de uma tal exploração soaria como liber-
25
suas grilhetas . Não enjeito tal invocação, mas tação. Em toda a sua variedade, as coligações
insisto na distinção entre o cosmopolitismo, tal cosmopolitas visam a luta pela emancipação
como o entendo, e o universalismo da classe das classes dominadas, sejam elas dominadas
trabalhadora marxista. Para além da classe ope- por mecanismos de opressão ou de exploração.
rária descrita por Marx, as classes dominadas Talvez por isso, contrariamente à concepção
do mundo actual são agrupáveis em mais duas marxista, o cosmopolitismo não implica unifor-
categorias, nenhuma delas redutível à classe-
-que-só-tem-a-perder-as-grilhetas. Por um lado,
26 A distinção entre o material e o simbólico não deve
sectores consideráveis ou influentes das clas- ser levada para além de limites razoáveis já que cada
um dos pólos da distinção contém o outro (ou alguma
dimensão do outro), ainda que de forma recessiva. O
25 A ideia do cosmopolitismo como universalismo, “mais” material a que me refiro são basicamente os di-
cidadania do mundo, negação das fronteiras políticas reitos económicos e sociais conquistados e tornados
e territoriais, tem uma longa tradição na cultura oci- possíveis pelo Estado-Providência: os salários indi-
dental, da lei cósmica de Pitágoras e a philallelia de rectos, a segurança social, etc. O “mais” simbólico in-
Demócrito ao “Homo suum, nihil humani a me alie- clui, por exemplo, a inclusão na ideologia nacionalista,
num puto” de Terêncio, da res publica christiana ou na ideologia consumista e a conquista de direitos
medieval aos humanistas da Renascença, da ideia de desprovidos de meios eficazes de aplicação. Uma das
Voltaire para quem “para ser bom patriota [é] necessá- consequências da globalização hegemónica tem sido a
rio tornar-se inimigo do resto do mundo” até ao inter- crescente erosão do “mais” material, compensada pela
nacionalismo operário. intensificação do “mais” simbólico.
446 Boaventura de Sousa Santos

midade e o colapso das diferenças, autonomias conservadoras, tanto nacionais como interna-
e identidades locais. O cosmopolitismo não é cionais, e que hoje começam a ser reconheci-
mais do que o cruzamento de lutas progressis- das e mesmo apadrinhadas pelo Banco Mun-
tas locais com o objectivo de maximizar o seu dial seduzido pela eficácia e pela ausência de
potencial emancipatório in locu através das li- corrupção com que tais iniciativas aplicam os
gações translocais/locais. fundos e os empréstimos de desenvolvimento.
Provavelmente a mais importante diferença A vigilância auto-reflexiva é essencial para dis-
entre a minha concepção de cosmopolitismo tinguir entre a concepção tecnocrática de de-
e a universalidade dos oprimidos de Marx é mocracia participativa sancionada pelo Banco
que as coligações cosmopolitas progressistas Mundial e a concepção democrática e progres-
não têm necessariamente uma base classista. sista de democracia participativa, embrião de
27
Integram grupos sociais constituídos em base globalização contra-hegemónica .
não-classista, vítimas, por exemplo, de discri- A instabilidade do carácter progressista ou
minação sexual, étnica, rácica, religiosa, etária, contra-hegemónico decorre ainda de um outro
etc. Por esta razão, em parte, o carácter pro- factor: das diferentes concepções de resistên-
gressista ou contra-hegemónico das coligações cia emancipatória por parte de iniciativas cos-
cosmopolitas nunca pode ser determinado em mopolitas em diferentes regiões do sistema
abstracto. Ao invés, é intrinsecamente instável mundial. Por exemplo, a luta pelos padrões
e problemático. Exige dos que nelas participam mínimos da qualidade de trabalho (os chama-
uma auto-reflexividade permanente. Iniciativas dos labor standards) — luta conduzida pelas
cosmopolitas concebidas e criadas com um ca- organizações sindicais e grupos de direitos hu-
rácter contra-hegemónico podem vir a assumir manos dos países mais desenvolvidos, com ob-
posteriormente características hegemónicas, jectivos de solidariedade internacionalista, no
correndo mesmo o risco de se converterem sentido de impedir que produtos produzidos
em localismos globalizados. Basta pensar nas com trabalho que não atinge esses padrões mí-
iniciativas de democracia participativa a nível nimos possam circular livremente no mercado
local que durante anos tiveram de lutar contra
o “absolutismo” da democracia representativa
27 Analiso esta questão no meu estudo sobre o orça-
e a desconfiança por parte das elites políticas mento participativo em Porto Alegre (Santos, 1998a).
Os processos da globalização 447

mundial —, é certamente vista pelas organiza- das trocas desiguais, por fideicomissos da co-
ções que a promovem como contra-hegemóni- munidade internacional em nome das gerações
presentes e futuras .
28
ca e emancipatória, uma vez que visa melhorar
as condições de vida dos trabalhadores, mas O cosmopolitismo e o património comum
pode ser vista por organizações similares dos da humanidade conheceram grande desenvol-
países da periferia como mais uma estratégia vimento nas últimas décadas. Através deles se
hegemónica do Norte, cujo efeito útil é criar foi construindo uma globalização política alter-
mais uma forma de proteccionismo favorável nativa à hegemónica desenvolvida a partir da
aos países ricos. necessidade de criar uma obrigação política
O segundo modo de produção de globaliza- transnacional correspondente à que até ago-
ção em que se organiza a resistência aos loca- ra vinculou mutuamente cidadãos e Estados-
lismos globalizados e aos globalismos localiza- -nação. Tal obrigação política mais ampla é por
dos, é o que eu designo, recorrendo ao direito agora meramente conjuntural uma vez que está
internacional, o património comum da huma- ainda por concretizar (ou sequer imaginar)
nidade. Trata-se de lutas transnacionais pela uma instância política transnacional corres-
protecção e desmercadorização de recursos, pondente à do Estado-nação. No entanto, as
entidades, artefactos, ambientes considerados Organizações Não-Governamentais de advoca-
essenciais para a sobrevivência digna da hu- cia progressista transnacional, as alianças en-
manidade e cuja sustentabilidade só pode ser tre elas e organizações e movimentos locais em
garantida à escala planetária. Pertencem ao pa- diferentes partes do mundo, a organização de
trimónio comum da humanidade, em geral, as campanhas contra a globalização hegemónica
lutas ambientais, as lutas pela preservação da (das campanhas do Greenpeace à Campanha
Amazónia, da Antártida, da biodiversidade ou Jubileu 2000), todos estes fenómenos são, por
dos fundos marinhos e ainda as lutas pela pre- vezes, vistos como sinais de uma sociedade ci-
servação do espaço exterior, da lua e de outros vil e política global apenas emergente.
planetas concebidos também como patrimó-
nio comum da humanidade. Todas estas lutas
28 Sobre o património comum da humanidade, ver,
se referem a recursos que, pela sua natureza,
entre muitos outros, Santos (1995: 365-373) e o estudo
têm de ser geridos por outra lógica que não a exaustivo de Pureza (1999).
448 Boaventura de Sousa Santos

Mas tanto o cosmopolitismo como o patri- gundo quatro modos de produção. Como qual-
mónio comum da humanidade têm encontrado quer outra, a concepção de globalização aqui
29
fortíssimas resistências por parte dos que con- proposta não é pacífica . Para a situar melhor
duzem a globalização hegemónica (localismos nos debates actuais sobre a globalização são
globalizados e globalismos localizados) ou dela necessárias algumas precisões.
se aproveitam. O património comum da huma-
nidade, em especial, tem estado sob constante Globalização hegemónica e
ataque por parte de países hegemónicos, sobre- contra-hegemónica
tudo dos EUA. Os conflitos, as resistências, as Um dos debates actuais gira em redor da
lutas e as coligações em torno do cosmopoli- questão de saber se há uma ou várias globali-
tismo e do património comum da humanidade zações. Para a grande maioria dos autores, só
demonstram que aquilo a que chamamos globa- há uma globalização, a globalização capitalista
lização é, na verdade, um conjunto de campos neoliberal, e por isso não faz sentido distinguir
de lutas transnacionais. Daí a importância em entre globalização hegemónica e contra-hege-
distinguir entre globalização de-cima-para-bai- mónica. Havendo uma só globalização, a resis-
xo e globalização de-baixo-para-cima, ou entre tência contra ela não pode deixar de ser a loca-
globalização hegemónica e globalização con- lização auto-assumida. Segundo Jerry Mander,
tra-hegemónica. Os localismos globalizados e a globalização económica tem uma lógica fér-
os globalismos localizados são globalizações rea que é duplamente destrutiva. Não só não
de-cima-para-baixo ou hegemónicas; cosmo- pode melhorar o nível de vida da esmagadora
politismo e património comum da humanidade maioria da população mundial (pelo contrário,
são globalizações de-baixo-para-cima, ou con- contribui para a sua pioria), como não é sequer
tra-hegemónicas. É importante ter em mente sustentável a médio prazo (1996: 18). Ainda
que estes dois tipos de globalização não exis-
tem em paralelo como se fossem duas entida-
des estanques. Ao contrário, são a expressão e 29 Sobre a globalização de-baixo-para-cima ou con-
o resultado das lutas que se travam no interior tra-hegemónica, ver Hunter (1995); Kidder e McGinn
(1995). Ver também Falk (1995 e 1999). Ambos os tra-
do campo social que convencionámos chamar
balhos visam as coligações e redes internacionais de
globalização e que em realidade se constrói se- trabalhadores que emergiram do NAFTA.
Os processos da globalização 449

hoje a maioria da população mundial mantém agricultura familiar (Berry, 1996; Inhoff, 1996),
economias relativamente tradicionais, muitos pequeno comércio local (Norberg-Hodge,
não são “pobres” e uma alta percentagem dos 1996), sistemas de trocas locais baseado em
que são foram empobrecidos pelas políticas da moedas locais (Meeker-Lowry, 1996), formas
economia neoliberal. Em face disto, a resistên- participativas de auto-governo local (Kumar,
cia mais eficaz contra a globalização reside na 1996; Morris, 1996). Muitas destas iniciativas
promoção das economias locais e comunitá- ou propostas assentam na ideia de que a cul-
rias, economias de pequena-escala, diversifica- tura, a comunidade e a economia estão incor-
das, auto-sustentáveis, ligadas a forças exterio- poradas e enraizadas em lugares geográficos
res, mas não dependentes delas. Segundo esta concretos que exigem observação e protecção
concepção, numa economia e numa cultura constantes. É isto o que se chama biorregiona-
cada vez mais desterritorializadas, a resposta lismo (Sale, 1996).
contra os seus malefícios não pode deixar de As iniciativas e propostas de localização
ser a reterritorialização, a redescoberta do sen- não implicam necessariamente fechamento
tido do lugar e da comunidade, o que implica a isolacionista. Implicam, isso sim, medidas de
redescoberta ou a invenção de actividades pro- protecção contra as investidas predadoras da
dutivas de proximidade. globalização neoliberal. Trata-se de um “novo
Esta posição tem-se traduzido na identifica- proteccionismo”: a maximização do comércio
ção, criação e promoção de inúmeras iniciati- local no interior de economias locais, diver-
vas locais em todo o mundo. Consequentemen- sificadas e auto-sustentáveis e a minimização
te é hoje muito rico o conjunto de propostas do comércio de longa distância (Hines e Lang,
30
que, em geral, podíamos designar por localiza- 1996: 490) . O novo proteccionismo parte da
ção. Entendo por localização o conjunto de ini- ideia de que a economia global, longe de ter
ciativas que visam criar ou manter espaços de eliminado o velho proteccionismo, é, ela pró-
sociabilidade de pequena escala, comunitários, pria, uma táctica proteccionista das empresas
assentes em relações face-a-face, orientados
para a auto-sustentabilidade e regidos por lógi-
30 No mesmo sentido, é sugerido que os movimentos
cas cooperativas e participativas. As propostas
progressistas devem usar os instrumentos do naciona-
de localização incluem iniciativas de pequena lismo económico para combater as forças do mercado.
450 Boaventura de Sousa Santos

multinacionais e dos bancos internacionais contra-hegemónica aqui proposta. A diferença


contra a capacidade das comunidades locais está na ênfase relativa entre as várias estra-
de preservarem a sua própria sustentabilidade tégias de resistência em presença. Em minha
e a da natureza. opinião, é incorrecto dar prioridade, quer às
O paradigma da localização não implica ne- estratégias locais, quer às estratégias globais.
cessariamente a recusa de resistências globais Uma das armadilhas da globalização neoli-
ou translocais. Põe, no entanto, o acento tónico beral consiste em acentuar simbolicamente
na promoção das sociabilidades locais. É esta a distinção entre o local e o global e ao mes-
a posição de NorbergHodge (1996), para quem mo tempo destruí-la ao nível dos mecanismos
é necessário distinguir entre estratégias para reais da economia. A acentuação simbólica
pôr freio à expansão descontrolada da globa- destina-se a deslegitimar todos os obstáculos
lização e estratégias que promovam soluções à expansão incessante da globalização neoli-
reais para as populações reais. As primeiras beral, agregando-os a todos sob a designação
devem ser levadas a cabo por iniciativas trans- de local e mobilizando contra ele conotações
locais, nomeadamente através de tratados mul- negativas através dos fortes mecanismos de
tilaterais que permitam aos Estados nacionais inculcação ideológica de que dispõe. Ao nível
proteger as populações e o meio ambiente dos dos processos transnacionais, da economia à
excessos do comércio livre. Ao contrário, o se- cultura, o local e o global são cada vez mais os
gundo tipo de estratégias, sem dúvida, as mais dois lados da mesma moeda como, de resto,
importantes, só pode ser levado a cabo através salientei acima. Neste contexto, a globalização
de múltiplas iniciativas locais e de pequena es- contra-hegemónica é tão importante quanto a
cala tão diversas quanto as culturas, os contex- localização contra-hegemónica. As iniciativas,
tos e o meio ambiente em que têm lugar. Não se organizações e movimentos que acima desig-
trata de pensar em termos de esforços isolados nei como integrantes do cosmopolitismo e do
e antes de instituições que promovam a peque- património comum da humanidade, têm uma
na escala em larga escala. vocação transnacional mas nem por isso dei-
Esta posição é que mais se aproxima da que xam de estar ancorados em locais concretos e
resulta da concepção de uma polarização en- em lutas locais concretas. A advocacia trans-
tre globalização hegemónica e globalização nacional dos direitos humanos visa defendê-
Os processos da globalização 451

-los nos locais concretos do mundo onde eles capacidades para que estas possam efectiva-
são violados, tal como a advocacia transnacio- mente ter lugar e prosperar.
nal da ecologia visa pôr cobro a destruições À luz da caracterização do sistema mundial
concretas, locais ou translocais, do meio am- em transição que propus acima, o cosmopoli-
biente. Há formas de luta mais orientadas para tismo e o património comum da humanidade
a criação de redes entre locais, mas obviamen- constituem globalização contra-hegemónica na
te elas não serão sustentáveis se não partirem medida em que lutam pela transformação de
de lutas locais ou não forem sustentadas por trocas desiguais em trocas de autoridade par-
elas. As alianças transnacionais entre sindi- tilhada. Esta transformação tem de ocorrer em
catos de trabalhadores da mesma empresa todas as constelações de práticas, mas assumi-
multinacional, a operar em diferentes países, rá perfis distintos em cada uma delas. No cam-
visam melhorar as condições de vida em cada po das práticas interestatais, a transformação
um dos locais de trabalho, dando mais força e tem de ocorrer simultaneamente ao nível dos
mais eficácia às lutas locais dos trabalhadores. Estados e do sistema interestatal. Ao nível dos
É neste sentido que se deve entender a propos- Estados trata-se de transformar a democracia
ta de Chase-Dunn (1998), no sentido da globa- de baixa intensidade, que hoje domina, pela de-
31
lização política dos movimentos populares de mocracia de alta intensidade . Ao nível do sis-
modo a criar um sistema global democrático e tema interestatal, trata-se de promover a cons-
colectivamente racional. trução de mecanismos de controlo democrático
O global acontece localmente. É preci- através de conceitos como o de cidadania pós-
so fazer com que o local contra-hegemónico -nacional e o de esfera pública transnacional.
também aconteça globalmente. Para isso não No campo das práticas capitalistas globais,
basta promover a pequena escala em grande a transformação contra-hegemónica consiste
escala. É preciso desenvolver, como propus na globalização das lutas que tornem possível
noutro lugar (Santos, 1999) uma teoria da tra- a distribuição democrática da riqueza, ou seja,
dução que permita criar inteligibilidade recí-
proca entre as diferentes lutas locais, aprofun-
31 Sobre os conceitos de democracia de alta intensi-
dar o que têm em comum de modo a promover
dade e de democracia de baixa intensidade, ver Santos
o interesse em alianças translocais e a criar (1998b) e Santos (2000b).
452 Boaventura de Sousa Santos

uma distribuição assente em direitos de cida- transição em que nos encontramos. Já assinalei
dania, individuais e colectivos, aplicados trans- que a globalização contra-hegemónica, ainda
nacionalmente. que reconduzível a dois modos de produção de
Finalmente, no campo das práticas sociais globalização — o cosmopolitismo e o patrimó-
e culturais transnacionais, a transformação nio comum da humanidade —, é internamente
contra-hegemónica consiste na construção muito fragmentada na medida em que assume
do multiculturalismo emancipatório, ou seja, predominantemente a forma de iniciativas lo-
na construção democrática das regras de re- cais de resistência à globalização hegemónica.
conhecimento recíproco entre identidades e Tais iniciativas estão enraizadas no espírito
entre culturas distintas. Este reconhecimento do lugar, na especificidade dos contextos, dos
pode resultar em múltiplas formas de partilha actores e dos horizontes de vida localmente
— tais como, identidades duais, identidades constituídos. Não falam a linguagem da glo-
híbridas, interidentidade e transidentidade — balização e nem sequer linguagens globalmen-
mas todas elas devem orientar-se pela seguinte te inteligíveis. O que faz delas globalização
pauta transidentitária e transcultural: temos o contra-hegemónica é, por um lado, a sua pro-
direito de ser iguais quando a diferença nos in- liferação um pouco por toda a parte enquanto
ferioriza e a ser diferentes quando a igualdade respostas locais a pressões globais — o local é
32
nos descaracteriza . produzido globalmente — e, por outro lado, as
articulações translocais que é possível estabe-
A globalização hegemónica e o lecer entre elas ou entre elas e organizações e
pós-Consenso de Washington movimentos transnacionais que partilham pelo
Distinguir entre globalização hegemónica e menos parte dos seus objectivos.
globalização contra-hegemónica implica pres- No que respeita à globalização hegemónica,
supor a coerência interna de cada uma delas. os processos recíprocos de localismos globa-
Trata-se, no entanto, de um pressuposto pro- lizados e de globalismos localizados fazem
blemático, pelo menos no actual período de prever uma maior homogeneidade e coerência
internas. Tal é o caso, em particular, da glo-
balização económica. Aí é possível identificar
32 Sobre este ponto, cfr. Santos (1997). uma série de características que parecem estar
Os processos da globalização 453

presentes globalmente: a prevalência do prin- que respeita especificamente a estas últimas,


cípio do mercado sobre o princípio do Estado; a nova economia institucional (North, 1990;
a financeirização da economia mundial; a total Reis, 1998) tem vindo a salientar o papel cen-
subordinação dos interesses do trabalho aos tral da ordem constitucional, o conjunto de
interesses do capital; o protagonismo incondi- instituições e de compromissos institucionali-
cional das empresas multinacionais; a recom- zados que asseguram os mecanismos de reso-
posição territorial das economias e a conse- lução de conflitos, os níveis de tolerância ante
quente perda de peso dos espaços nacionais as desigualdades e os desequilíbrios, e, em ge-
e das instituições que antes os configuravam, ral, definem o que é preferível, permitido ou
nomeadamente, os Estados nacionais; uma proibido (Boyer, 1998: 12). Cada ordem cons-
nova articulação entre a política e a economia titucional tem a sua própria historicidade e é
em que os compromissos nacionais (sobretudo ela que determina a especificidade da resposta
os que estabelecem as formas e os níveis de so- local ou nacional às mesmas pressões globais.
lidariedade) são eliminados e substituídos por Esta especificidade faz com que, em termos de
compromissos com actores globais e com acto- relações sociais e institucionais, não haja um
res nacionais globalizados. só capitalismo mas vários.
Estas características gerais não vigoram, O capitalismo, enquanto modo de produção,
no entanto, de modo homogéneo em todo o tem assim evoluído historicamente em dife-
planeta. Pelo contrário, articulam-se de modo rentes famílias de trajectórias. Boyer distingue
diferenciado com diferentes condições nacio- quatro dessas trajectórias as quais constituem
nais e locais, sejam elas a trajectória histórica as quatro configurações principais do capita-
do capitalismo nacional; a estrutura de clas- lismo contemporâneo: o capitalismo mercantil
ses; o nível de desenvolvimento tecnológico; dos EUA, Inglaterra, Canadá, Nova Zelândia e
o grau de institucionalização dos conflitos Austrália; o capitalismo mesocorporativo do
sociais e, sobretudo, dos conflitos capital/tra- Japão; o capitalismo social democrático da
balho; os sistemas de formação e qualificação Suécia, Áustria, Finlândia, Noruega e Dinamar-
da força de trabalho; as redes de instituições ca, e, em menor grau, Alemanha; o capitalis-
públicas que asseguram um tipo concreto de mo estatal da França, Itália e Espanha (Boyer,
articulação entre a política e a economia. No 1996, 1998). Esta tipologia restringe-se às eco-
454 Boaventura de Sousa Santos

nomias dos países centrais, ficando, pois, fora trabalhadores “regulares” e os trabalhadores
dela a maioria dos capitalismos reais da Ásia, “irregulares”, sendo a linha divisória a entrada
da América Latina, da Europa Central, do Sul ou não na carreira estruturada no interior do
e de Leste e da África. A sua utilidade reside mercado interno da grande empresa; são altos
em mostrar a variedade das formas de capita- os níveis de educação generalista e a formação
lismos e o modo diferenciado como cada uma profissional é fornecida pelas empresas; acei-
delas se insere nas transformações globais. ta-se a estabilidade das desigualdades.
No capitalismo mercantil o mercado é a O capitalismo social democrático assen-
instituição central; as suas insuficiências são ta na concertação social entre os parceiros
supridas por agências de regulação; o interesse sociais, as organizações representativas dos
individual e a competição dominam todas as patrões e dos trabalhadores e o Estado; com-
esferas da sociedade; as relações sociais, de promissos mutuamente vantajosos que garan-
mercado e de trabalho, são reguladas pelo di- tam a compatibilidade entre ganhos de com-
reito privado; os mercados de trabalho são ex- petitividade, inovação e produtividade, por um
tremamente flexíveis; é dada toda a prioridade lado, e ganhos salariais e melhoria do nível de
à inovação tecnológica promovida por diferen- vida, por outro; prevalência da justiça social;
tes tipos de incentivos e protegida pelo direito alto investimento em educação; organização
de patentes e de propriedade intelectual; são do mercado de trabalho de modo a minimizar a
toleradas grandes desigualdades sociais bem flexibilidade e a promover a qualificação como
como o subinvestimento em bens públicos ou resposta ao aumento da competitividade e à
de consumo colectivo (transportes públicos, inovação tecnológica; elevada protecção social
educação, saúde, etc.). contra os riscos; minimização das desigualda-
O capitalismo mesocorporativo japonês é des sociais.
liderado pela grande empresa; é no seio des- Finalmente, o capitalismo estatal assenta na
ta que se obtêm os ajustamentos económicos centralidade da intervenção estatal como prin-
principais através dos bancos que detêm e da cípio de coordenação em face da fraqueza da
rede de empresas afiliadas que controlam; a re- ideologia do mercado e das organizações dos
gulação pública actua em estreita coordenação parceiros sociais; sistema público de educação
com as grandes empresas; dualidade entre os para a produção de elites empresariais públicas
Os processos da globalização 455

e privadas; fraca formação profissional; merca- ção e um modo de regulação dotados de estabi-
do de trabalho altamente regulado; investiga- lidade, em que é grande a complementaridade
ção científica pública com deficiente articula- e a compatibilidade entre as instituições. Por
ção com o sector privado; elevada protecção esta via, o tecido institucional tem uma capa-
social. Apesar de Portugal continuar a ser uma cidade antecipatória ante possíveis ameaças
sociedade semiperiférica, a institucionalidade desestruturantes. A verdade, porém, é que os
capitalista que domina entre nós aponta para o regimes de acumulação e os modos de regu-
tipo de capitalismo estatal. A plena consolida- lação são entidades históricas dinâmicas; aos
ção deste modelo de institucionalidade parece períodos de estabilidade seguem-se períodos
estar bloqueada no nosso país, pelas pressões de desestabilização, por vezes induzidos pelos
contraditórias, ainda que desiguais, de que o próprios êxitos anteriores. Ora desde a década
modelo é alvo e que, por paradoxal que pare- de oitenta, temos vindo a assistir a uma enorme
ça, são exercidas pelo próprio Estado: por um turbulência nesses diferentes tipos de capitalis-
lado, as pressões no sentido do capitalismo mo. A turbulência não é, porém, caótica e nela
social democrático e, por outro lado, as pres- podemos detectar algumas linhas de força. São
sões bem mais fortes no sentido do capitalismo essas linhas de força que compõem o carácter
mercantil. Neste caótico processo de transição hegemónico da globalização económica.
há ainda vestígios de capitalismo mesocorpo- Em geral, e nos termos da definição de glo-
rativo, sobretudo em face da articulação íntima balização acima proposta, pode dizer-se que a
entre o Estado e os grupos financeiros e entre o evolução consiste na globalização do capita-
Estado e grandes empresas públicas e privadas lismo mercantil e na consequente localização
em fase de internacionalização. dos capitalismos mesocorporativos, social de-
Em face da coexistência destes quatro gran- mocrático e estatal. Localização implica deses-
des tipos de capitalismo (e certamente de ou- truturação e adaptação. As linhas de força por
tros tipos em vigor nas regiões do mundo não que uma e outra se têm pautado são as seguin-
integradas na classificação), pode questionar- tes: os compromissos entre o capital e o tra-
-se a existência de uma globalização económi- balho são vulnerabilizados pela nova inserção
ca hegemónica. Afinal, cada um destes tipos de na economia internacional (mercados livres e
capitalismo constitui um regime de acumula- procura global de investimentos directos); a
456 Boaventura de Sousa Santos

segurança da relação social é convertida em ri- ficação tem a ver com as escalas de análise.
gidez da relação salarial; a prioridade dada aos Ao nível da grande escala (a análise que cobre
mercados financeiros bloqueia a distribuição uma pequena área em grande detalhe), tal he-
de rendimentos e exige a redução das despesas gemonia é dificilmente detectável na medida
públicas em material social; a transformação em que a esta escala sobressaem sobretudo as
do trabalho num recurso global é feita de modo particularidades nacionais e locais e as espe-
a coexistir com a diferenciação de salários e de cificidades das respostas, resistências e adap-
preços; o aumento da mobilidade do capital faz tações a pressões externas. Pelo contrário, ao
com que a fiscalidade passe a incidir sobre ren- nível da pequena escala (a análise que cobre
dimentos imóveis (sobretudo os do trabalho); grandes áreas, mas com pouco detalhe), só são
o papel redistributivo das políticas sociais de- visíveis as grandes tendências globalizantes
cresce e, em consequência, aumentam as desi- e a tal ponto que a diferenciação nacional ou
gualdades sociais; a protecção social é sujeita regional do seu impacto e as resistências que
a uma pressão privatizante, sobretudo no do- lhe são movidas são negligenciadas. É a este
mínio das pensões de reforma dado o interes- nível de análise que se colocam os autores para
se nelas por parte dos mercados financeiros; a quem a globalização é um fenómeno sem pre-
actividade estatal intensifica-se, mas agora no cedentes, tanto na sua estrutura, como na sua
sentido de incentivar o investimento, as ino- intensidade. Também para eles é inadequado
vações e as exportações; o sector empresarial falar de globalização hegemónica, pois, como
do Estado, quando não é totalmente elimina- referi acima, havendo uma só globalização ine-
do, é fortemente reduzido; a pauperização dos lutável, faz pouco sentido falar de hegemonia e,
grupos sociais vulneráveis e a acentuação das ainda menos, de contra-hegemonia. É ao nível
desigualdades sociais são consideradas efeitos da escala média que se torna possível identifi-
inevitáveis da prosperidade da economia e po- car fenómenos globais hegemónicos que, por
dem ser minoradas por medidas compensató- um lado, se articulam de múltiplas formas com
rias desde que estas não perturbem o funciona- condições locais, nacionais e regionais e que,
mento dos mecanismos de mercado. por outro lado, são confrontados com resistên-
É este o perfil da globalização hegemónica, cias locais nacionais e globais que se podem
sobretudo económica e política. A sua identi- caracterizar como contra-hegemónicas.
Os processos da globalização 457

A escolha dos níveis de escala é assim cru- identificar fracturas no seio da hegemonia. As
cial e pode ser determinada tanto por razões linhas de força, que acima referi como sendo o
analíticas como por razões de estratégia polí- núcleo da globalização hegemónica, traduzem-
tica ou ainda por uma combinação entre elas. -se em diferentes constelações institucionais,
Por exemplo, para visualizar os conflitos entre económicas, sociais, políticas e culturais ao
os grandes motores do capitalismo global tem- articular-se com cada um dos quatro tipos de
-se considerado adequado escolher uma escala capitalismo ou com cada um dos três blocos
de análise que distingue três grandes blocos regionais. Essas fracturas são hoje muitas
regionais interligados por múltiplas interde- vezes o ponto de entrada para lutas sociais
pendências e rivalidades: o bloco americano, locais-globais de orientação anticapitalista e
o europeu e o japonês (Stallings e Streeck, contra-hegemónica.
1995; Castells, 1996: 108). Cada um destes blo- Um exemplo na área da segurança social
cos tem um centro, os EUA a União Europeia pode ajudar a elucidar a natureza deste ponto
e o Japão, respectivamente, uma semiperiferia de entrada. Ao longo do século XX e sobretudo
e uma periferia. Ao nível desta escala, os dois depois da Segunda Guerra Mundial, os Estados
tipos de capitalismo europeu acima referidos, centrais desenvolveram um conjunto de po-
o social democrático e o estatal, aparecem fun- líticas públicas que visaram criar sistemas de
didos num só. De facto, a União Europeia tem protecção social e de segurança social para o
hoje uma política económica interna e inter- conjunto dos cidadãos e, em particular, para os
nacional e é sob o seu nome que os diferentes trabalhadores. Pela importância do reconheci-
capitalismos europeus travam as suas batalhas mento amplo de direitos sociais e pelo elevado
com o capitalismo norte-americano nos fora nível de transferências de rendimento que en-
internacionais, nomeadamente na Organização volveram, tais políticas acabaram por transfor-
Mundial do Comércio. mar a natureza política das relações Estado/so-
A escala média de análise é, pois, aquela que ciedade civil, dando origem a uma nova forma
permite esclarecer melhor os conflitos e as lu- política que se designou por Estado-Providên-
tas sociais que se travam à escala mundial e cia. Apesar de se tratar de uma transformação
as articulações entre as suas dimensões locais, política geral, assumiu diferentes formas nos
nacionais e globais. É também ela que permite diferentes países. Partindo de uma escala mé-
458 Boaventura de Sousa Santos

dia de análise, Esping-Anderson (1990) identi- generosa para os que não estão abrangidos pe-
ficou três grandes tipos de Estado-Providência los regimes contributivos; a desmercadoriza-
com base no índice de desmercadorização do ção da protecção social tem, como contrapar-
33
bem estar social . tida, o accionamento de efectivos mecanismos
O Estado-Providência liberal é caracteriza- de controlo social.
do por um grau baixo de desmercadorização; Finalmente, o Estado-Providência social
protecção pública selectiva e residual dirigida democrático, vigente nos países escandinavos,
especificamente às classes de menores rendi- caracteriza-se pelo acesso quase universal aos
mentos; promoção de um sistema dual de pro- benefícios de modo a incluir as necessidades
tecção pública e privada; promoção activa da e os gastos da classe média; o acesso aos di-
intervenção do mercado através de subsídios reitos não tem outra condição que não a con-
à subscrição de esquemas privados e da limita- dição de cidadão ou de residente, sendo, por
ção a esquemas e níveis mínimos de protecção isso, muito elevado o grau de desmercadori-
pública. Este tipo de Estado-Providência existe zação; os benefícios são de montantes fixos,
nos EUA e na Inglaterra. bastante generosos e financiados por impostos
O segundo tipo é o Estado-Providência cor- ainda que existam esquemas complementares
porativo vigente na Alemanha e na Áustria. Os de seguro social.
direitos sociais são garantidos em nível eleva- Maurizio Ferrera tem vindo a propor um
do, mas circunscritos aos trabalhadores e aos quarto tipo de Estado-Providência vigente no
desempenhos no mercado de trabalho; em pa- Sul da Europa (Itália, Espanha, Portugal e Gré-
ralelo, existe um sistema de assistência social cia) (1996): um sistema corporativo de protec-
ção social altamente fragmentado em termos
ocupacionais, gerando assim muitas injustiças
33 Esping-Anderson definiu o índice de desmercado-
rização como sendo o grau em que os indivíduos ou e disparidades; polarização entre esquemas
famílias podem manter um nível de vida aceitável, inde- generosos de protecção e grandes lacunas de
pendentemente da participação no mercado (1990: 37). protecção; sistema universal mas de baixa
Este grau de desmercadorização não depende só do ní- qualidade no domínio da saúde; baixos níveis
vel das prestações sociais, mas também das condições
de despesas públicas sociais; persistência de
de elegibilidade e restrições nos direitos, do nível de
substituição dos rendimentos e do leque dos direitos. clientelismos e misturas altamente promíscuas
Os processos da globalização 459

entre actores e instituições públicos, por um (Banco Mundial, FMI, etc.). Em 1994, o Banco
lado, e privados, por outro. Mundial publicou o seu célebre relatório so-
A caracterização do que designo por qua- bre “A Crise do Envelhecimento” em que se
se-Estado-Providência português está feita propunham reformas radicais nos sistemas de
noutro lugar (Santos, 1993; Santos e Ferreira, segurança social, no sentido da remercadori-
34
2001) . O que interessa relevar aqui é a con- zação da protecção social e da privatização
gruência geral entre a tipologia de Esping- dos sistemas de pensões de reforma, substi-
-Anderson e a tipologia de capitalismos de tuindo os regimes de repartição pelos de ca-
Boyer. Ao capitalismo mercantil corresponde pitalização individual. O conjunto das propos-
um Estado-Providência fraco, o Estado-Provi- tas ficou conhecido por modelo neoliberal de
dência liberal, enquanto aos capitalismos eu- segurança social e nos anos que seguiram foi
ropeus, tanto ao social democrático como ao activamente promovido, quando não imposto,
estatal, correspondem Estados-Providência aos países intervencionados pelas políticas de
fortes ainda que diferenciados. E tal como ajustamento estrutural.
nos últimos vinte anos o capitalismo mercan- No mesmo ano em que o Banco Mundial
til procurou globalizar-se, impondo-se aos publicou o seu relatório, a Comissão Euro-
restantes, também no domínio da protecção peia publicou o Livro Branco sobre a Política
social assistimos à progressiva globalização Social Europeia (Comissão Europeia, 1994).
do EstadoProvidência liberal e à consequen- Nesse Livro Branco afirma-se o compromisso
te localização defensiva dos outros tipos de em manter o modelo europeu de Estado-Provi-
Estado-Providência. A globalização do mo- dência, o qual, pese embora as suas diferenças
delo de providência estatal liberal implicou internas, se caracteriza por elevados níveis de
a adopção deste, tanto por países que se sub- protecção social, garantidos como direitos de
meteram à nova ortodoxia neoliberal, como cidadania pelo Estado cuja intervenção asse-
foi o caso “pioneiro” do Chile de Pinochet, gura a solidariedade nacional e torna possível
como pelas agências financeiras multilaterais a desmercadorização da protecção social. Ao
contrário do que se passa com o modelo do
Banco Mundial, parte-se do pressuposto que é
34 Ver, em especial, Santos e Ferreira (2001). possível compatibilizar o aumento da competi-
460 Boaventura de Sousa Santos

tividade e o crescimento económico com altos gera menos iniquidade e garante, a título de di-
níveis de protecção social. reitos de cidadania, maior protecção social aos
Passou então a falar-se de um modelo social grupos sociais mais vulneráveis. Num estudo
europeu alternativo ao modelo neoliberal. Esta preparado para a Presidência Portuguesa da
concorrência estabeleceu-se não apenas entre União Europeia no 1º semestre de 2000, Boyer
modelos de bem estar social, mas também, e — em geral muito atento às especificidades do
em última instância, entre dois modelos do ca- capitalismo europeu — defende que os siste-
pitalismo global, o europeu e o norte-america- mas de bem estar europeus, se adequadamente
no. Neste sentido, é possível falar de fracturas reformados, podem ser um dos grandes triun-
no interior da globalização económica e social fos da Europa no contexto mundial (1999).
hegemónica. Que essas fracturas podem cons- As fracturas na globalização económica e
tituir o ponto de entrada para lutas sociais fi- social hegemónica têm-se vindo a aprofundar
cou demonstrado com os conflitos no interior nos últimos anos. As crises na Rússia e nos pa-
da Comissão do Livro Branco da Segurança So- íses asiáticos vieram mostrar a extrema fragili-
cial, criada pelo Governo socialista saído das dade de um modelo de desenvolvimento assen-
eleições de 1995. Reflexos de conflitos activos te no sistema financeiro e obrigaram para já a
ou latentes na sociedade portuguesa sobre a repensar as receitas do ajustamento estrutural.
reforma da segurança social, os conflitos no As tensões recentes entre o Banco Mundial e
interior da Comissão foram formatados pela o FMI são elucidativas da extensão das fractu-
polarização entre o modelo neoliberal e o mo- ras. Outro factor na fragilização da globaliza-
35
delo social europeu . As fracturas no interior ção económica neoliberal decorre da contesta-
da globalização hegemónica revelaram a exis- ção transnacional que lhe tem sido movida por
tência de modos de regulação capitalista quali- múltiplas iniciativas cosmopolitas já atrás refe-
tativamente distintos. As lutas sociais que tais ridas. Mas é sem dúvida no domínio da área da
fracturas permitem são progressistas na medi- protecção social e, em especial, da segurança
da em que lutam pelo modo de regulação que social, que as fracturas são hoje mais visíveis.
Em 1998, o conhecido economista norte-
-americano e, ao tempo, vicepresidente do
35 Os trabalhos da Comissão são analisados em deta-
lhe em Santos e Ferreira (2001). Banco Mundial, Joseph Stiglitz, desfere o pri-
Os processos da globalização 461

meiro ataque ao Consenso de Washington e pensões só precisa de correcções ou se tem


propõe um pós-Consenso de Washington (Sti- que ser totalmente substituído por outro, e
glitz, 1998) e em finais de 1999 leva mais longe se este outro irá funcionar melhor nas mes-
ainda a sua crítica, afirmando que o modelo do mas circunstâncias. A implementação de
Banco Mundial de segurança social (o modelo qualquer modelo tem que ter em considera-
neoliberal), para além de ter causado muito so- ção as circunstâncias históricas concretas
frimento humano e contribuído para o agrava- e estas são diferentes de país para país.
mento das desigualdades sociais a nível mun- 2. As medidas de reforma devem ter em con-
dial e no interior de cada país, é um modelo ta os sistemas e esquemas já existentes. Ou
cientificamente errado uma vez que as supos- seja, não se deve confundir a passagem de
tas verdades em que assenta não passam de mi- um sistema a outro com a introdução de um
tos (Stiglitz e Orszag, 1999). O próprio Stiglitz sistema ou esquema onde nada existia an-
se encarrega de demonstrar isto mesmo des- tes, pois no primeiro caso existem custos
montando um a um os 10 mitos em que, em seu de transição que têm que ser considerados.
entender, assenta o modelo do Banco Mundial.
3. Na análise inter-geracional dos efeitos das
Antes de passarem à desmistificação dos
medidas, há que não focar exclusivamente
10 mitos construídos em torno do modelo do
o longo prazo, pois corre-se o risco de, em
Banco Mundial, tal como foi definido no céle-
nome das gerações futuras, se imporem pe-
bre relatório de 94 sobre pensões de reforma,
sados custos às gerações actuais.
Stiglitz e o seu colaborador começam por assi-
nalar quatro pontos prévios que são cruciais na 4. É necessário ter sempre em mente que o
medida em que enformam a desmistificação a objectivo último dos sistemas de pensões
que procedem: é o bem-estar. A poupança e o crescimento
1. Deve ser feita uma distinção entre os ele- não são um fim mas sim um meio de au-
mentos que são inerentes aos sistemas e mentar o bem-estar dos membros de uma
esquemas de pensões (modelos teóricos) e sociedade. Isto pode levar a uma escolha
aqueles elementos que surgem com a sua por sistemas ou esquemas menos rentáveis
implementação. Esta distinção deve per- mas com menos riscos.
mitir perceber se o sistema ou esquema de
462 Boaventura de Sousa Santos

Os 10 mitos apontados e desmistificados tema privado de contribuições definidas”; c) “o


pelos autores são de natureza macroeconó- investimento de fundos por parte de entidades
mica e microeconómica e relacionados com públicas é sempre dissipador e mal gerido”.
a economia política. Entre os primeiros mitos O aspecto mais importante desta argumen-
encontramos afirmações como: a) “os planos tação é a defesa da intervenção do Estado e
privados de contribuições definidas aumentam a admissão que, em determinados aspectos e
a poupança nacional”; b) “as contas individuais perante determinadas situações, essa interven-
permitem a constituição de pensões mais ele- ção é mais eficiente do que a “mão invisível do
vadas do que os sistemas em repartição”; c) “o mercado”. Isto porque os autores fazem uma
declínio das taxas de retorno nos sistemas de importante distinção entre os modelos teóricos
repartição reflectem problemas fundamentais puros e os modelos aplicados na prática. Na
nesses sistemas”; d) “o investimento dos fun- prática é assumido que existem ineficiências
dos públicos em acções e obrigações privadas no funcionamento do mercado e que tem que
em vez de títulos do tesouro não tem qualquer se contar com as ineficiências resultantes da
efeito macroeconómico ou implicação no bem- aplicação dos modelos. Os cuidados que estes
-estar”. As afirmações dos mitos microeconó- autores agora pedem aos decisores políticos na
micos são: a) “os incentivos do mercado de aplicação dos modelos relevam da observação
trabalho são maiores com planos privados de de que, em alguns países, sobretudo nos países
contribuições definidas”; b) “os planos públi- em desenvolvimento, os mercados financeiros
cos de benefícios definidos incentivam a re- e as instituições financeiras não estão ainda su-
forma antecipada”; c) “a concorrência permite ficientemente maduros para não apresentarem
baixos custos administrativos nos planos pri- todo um conjunto de riscos, inclusive riscos re-
vados de contribuições definidas”. Por fim, os lacionados com a corrupção.
mitos da economia política são: a) “os gover- Ao afirmarem que o fim último dos sistemas
nos são ineficientes pelo que os planos priva- de pensões é o bemestar social e não qualquer
dos de contribuições definidas são preferíveis”; outro, os autores reconhecem que a protec-
b) “os governos são mais sujeitos a pressões ção social é um dos elementos fundamentais
para maior protecção social sob um sistema no bom funcionamento dos sistemas sociais e
público de benefícios definidos do que num sis- económicos, que não pode ser descartado sob
Os processos da globalização 463

pena de se pôr em causa a própria sustentabili- respondentemente, pelo modo como as enti-
dade desses mesmos sistemas. dades ou fenómenos dominados, depois de
As clivagens entre o capitalismo mercantil desintegrados e desestruturados, são revin-
e o capitalismo social democrático ou estatal, culados aos seus âmbitos, espaços e ritmos
entre o modelo neoliberal de segurança social locais de origem. Neste duplo processo, quer
e o modelo social europeu ou ainda dentro do as entidades ou fenómenos dominantes (glo-
modelo neoliberal, como acabei de referir, ao balizados), quer os dominados (localizados)
mesmo tempo que revelam as fracturas no inte- sofrem transformações internas. Mesmo o
rior da globalização hegemónica criam o impul- hamburguer norteamericano teve de sofrer
so para a formulação de novas sínteses entre as pequenas alterações para se desvincular do
clivagens e com elas para a reconstituição da seu âmbito de origem (o Midwest norte-ame-
hegemonia. É assim que deve ser entendida a ricano) e conquistar o mundo, e o mesmo su-
“terceira via” teorizada por Giddens (1999). cedeu com as leis de propriedade intelectual,
a música popular e o cinema de Hollywood.
Graus de intensidade da Mas enquanto as transformações dos fenó-
globalização menos dominantes são expansivas, visam
A última precisão ao conceito de globali- ampliar âmbitos, espaços e ritmos, as trans-
zação defendido neste texto diz respeito aos formações dos fenómenos dominados são re-
graus de intensidade da globalização. Defini- tractivas, desintegradoras e desestruturantes;
mos globalização como conjuntos de relações os seus âmbitos e ritmos, que eram locais por
sociais que se traduzem na intensificação das razões endógenas e raramente se auto-repre-
interacções transnacionais, sejam elas práti- sentavam como locais, são relocalizados por
cas interestatais, práticas capitalistas globais razões exógenas e passam a auto-representar-
ou práticas sociais e culturais transnacionais. -se como locais. A desterritorialização, des-
A desigualdade de poder no interior dessas vinculação local e transformação expansiva,
relações (as trocas desiguais) afirma-se pelo por um lado, e a reterritorialização, revincu-
modo como as entidades ou fenómenos do- lação local e transformação desintegradora
minantes se desvinculam dos seus âmbitos e retractiva, por outro, são as duas faces da
ou espaços e ritmos locais de origem, e, cor- mesma moeda, a globalização.
464 Boaventura de Sousa Santos

Estes processos ocorrem de modos muitos e globalização de baixa intensidade para os


distintos. Quando se fala de globalização tem- processos mais lentos e difusos e mais ambí-
-se normalmente em mente processos muito in- guos na sua causalidade. Um exemplo ajudará
tensos e muito rápidos de desterritorialização a identificar os termos da distinção. Escolho,
e de reterritorialização e consequentemente entre muitos outros possíveis, um dos consen-
transformações expansivas e retractivas mui- sos de Washington: o primado do direito e da
to dramáticas. Nestes casos, é relativamente resolução judicial dos litígios como parte do
fácil explicar estes processos por um conjunto modelo de desenvolvimento liderado pelo mer-
limitado de causas bem definidas. A verdade, cado. Em meados da década de oitenta, come-
porém, é que os processos de globalização nem çaram a chegar aos tribunais de vários países
sempre ocorrem desta forma. Por vezes são europeus casos que envolviam figuras públi-
mais lentos, mais difusos, mais ambíguos e as cas, indivíduos poderosos ou notórios na ac-
suas causas mais indefinidas. Claro que é sem- tividade económica ou na actividade política.
pre possível estipular que neste caso não esta- Estes casos, quase todos da área criminal (cor-
mos perante processos de globalização. É isto rupção, burla, falsificação de documentos), de-
mesmo o que tendem a fazer os autores mais ram uma visibilidade pública e um protagonis-
entusiastas a respeito da globalização e os que mo político sem precedentes aos tribunais. Se
vêem nela algo sem precedentes, tanto pela na- exceptuarmos o caso do Tribunal Supremo dos
36
tureza, como pela intensidade . EUA, desde a década de quarenta, os tribunais
Penso, porém, que esta estratégia analítica dos países centrais — e, de resto, também os
não é a melhor porque, contrariamente ao que dos países semiperiféricos e periféricos — ti-
pretende, reduz o âmbito e a natureza dos pro- nham tido uma vida apagada. Reactivos e não
cessos de globalização em curso. Proponho, proactivos, resolvendo litígios entre indivíduos
pois, a distinção entre globalização de alta in- que raramente captavam a atenção pública,
tensidade para os processos rápidos, intensos sem intervenção nos conflitos sociais, os tri-
e relativamente monocausais de globalização, bunais — a sua actividade, as suas regras e os
seus agentes — eram desconhecidos do gran-
de público. Este estado de coisas começou a
36 Ver, por todos, Castells (1996). mudar na década de oitenta e rapidamente os
Os processos da globalização 465

tribunais passaram a ocupar as primeiras pági- poder político que permitiu às elites circular
nas dos jornais, a sua actividade converteu-se facilmente e, por vezes, pendularmente, de
numa curiosidade jornalística e os magistrados um para outro. Esta promiscuidade combina-
tornaram-se figuras públicas. da como enfraquecimento da ideia de bem pú-
Tal fenómeno ocorreu, por exemplo, na blico ou bem comum acabou por se traduzir
Itália, na França, na Espanha e em Portugal, numa nova patrimonialização ou privatização
e em cada país teve causas próximas especí- do Estado que muitas vezes recorreu à ilegali-
ficas. A ocorrência paralela e simultânea do dade para se concretizar. Foi a criminalidade
mesmo fenómeno em diferentes países não de colarinho branco e, em geral, a corrupção
faz dela um fenómeno global, a menos que que deram a notoriedade aos tribunais.
as causas endógenas, diferentes de país para Em segundo lugar, a crescente conversão da
país, tenham entre si afinidades estruturais ou globalização capitalista hegemónica em algo
partilhem traços de causas remotas, comuns e irreversível e incontornável combinada com
transnacionais. E de facto este parece ter sido os sinais de crise dos regimes comunistas con-
o caso. Pese embora as diferenças nacionais, duziu à atenuação das grandes clivagens polí-
sempre significativas, podemos detectar no ticas. Estas, que antes permitiam a resolução
novo protagonismo judicial alguns factores política dos conflitos políticos, deixaram de o
comuns. Em primeiro lugar, as consequências poder fazer e estes últimos foram atenuados,
da confrontação entre o princípio do Estado fragmentados e personalizados até ao ponto
e o princípio do mercado na gestão da vida de se poderem transformar em conflitos judi-
social de que resultaram as privatizações e a ciais. Chamamos a este processo político de
desregulamentação da economia, a desmo- despolitização, judicialização da política. Em
ralização dos serviços públicos, a crise dos terceiro lugar, esta judicialização da política,
valores republicanos, um novo protagonismo que foi, na sua génese, um sintoma da crise
do direito privado, a emergência de actores da democracia, alimentou-se desta. A legitimi-
sociais poderosos para quem se transferiram dade democrática que antes assentava quase
prerrogativas de regulação social, antes de- exclusivamente nos órgãos políticos eleitos, o
tidas pelo Estado. Tudo isto criou uma nova parlamento e o executivo, foi-se transferindo
promiscuidade entre o poder económico e o de algum modo para os tribunais.
466 Boaventura de Sousa Santos

Este fenómeno que, além dos países atrás comparadas com as políticas de cooperação,
referidos, tem vindo a ocorrer na última dé- de modernização e de desenvolvimento dos
cada em muitos outros países da Europa de anos sessenta e setenta. Tal como no processo
37
Leste, da América Latina e da Ásia e a mesma de globalização acima descrito, também aqui
relação entre causas próximas (endógenas e está em curso uma política de primado do di-
específicas) e causas remotas (comuns, trans- reito e dos tribunais e dela estão a decorrer os
nacionais) pode ser detectada ainda que com mesmos fenómenos de visibilidade pública dos
adaptações. Por esta razão, considero estar- tribunais, de judicialização da política e da con-
mos perante um fenómeno de globalização de sequente politização do judicial. No entanto, ao
baixa intensidade. contrário do processo anterior, este processo é
Muito diferente deste processo é o que, na muito rápido e intenso, ocorre pelo impulso de
mesma área da justiça e do direito, tem vin- factores exógenos dominantes, bem definidos
do a ser protagonizado pelos países centrais, e facilmente reconduzíveis a políticas globais
através das suas agências de cooperação e as- hegemónicas interessadas em criar, a nível glo-
sistência internacional, e pelo Banco Mundial, bal, a institucionalidade que facilita a expansão
38
FMI e Banco Interamericano para o Desenvol- limitada do capitalismo global . Trata-se de
vimento, no sentido de promover nos países uma globalização de alta intensidade.
semiperiféricos e periféricos profundas refor- A utilidade desta distinção reside em que
mas jurídicas e judiciais que tornem possível ela permite esclarecer as relações de poder de-
a criação de uma institucionalidade jurídica e sigual que subjazem aos diferentes modos de
judicial eficiente e adaptada ao novo modelo produção de globalização e que são, por isso,
de desenvolvimento, assente na prioridade do centrais na concepção de globalização aqui
mercado e das relações mercantis entre cida- proposta. A globalização de baixa intensidade
dãos e agentes económicos. Para este objecti- tende a dominar em situações em que as tro-
vo têm sido canalizadas vultuosas doações e cas são menos desiguais, ou seja, em que as
empréstimos sem qualquer precedente quando diferenças de poder (entre países, interesses,

37 Este fenómeno está analisado em detalhe em San- 38 Sobre este “movimento” da reforma global dos tri-
tos (2000b). bunais, ver Santos (2000b).
Os processos da globalização 467

actores ou práticas por detrás de concepções três grandes constelações de práticas — prá-
alternativas de globalização) são pequenas. ticas interestatais, práticas capitalistas globais
Pelo contrário, a globalização de alta intensi- e práticas sociais e culturais transnacionais
dade tende a dominar em situações em que as — profundamente entrelaçadas segundo di-
trocas são muito desiguais e as diferenças de nâmicas indeterminadas. Trata-se, pois, de um
poder são grandes. período de grande abertura e indefinição, um
período de bifurcação cujas transformações fu-
Para onde vamos? turas são imperscrutáveis. A própria natureza
A intensificação das interacções económi- do sistema mundial em transição é problemáti-
cas, políticas e culturais transnacionais das três ca e a ordem possível é a ordem da desordem.
últimas décadas assumiu proporções tais que Mesmo admitindo que um novo sistema se se-
é legítimo levantar a questão de saber se com guirá ao actual período de transição, não é pos-
isso se inaugurou um novo período e um novo sível estabelecer uma relação determinada en-
modelo de desenvolvimento social. A natureza tre a ordem que o sustentará e a ordem caótica
precisa deste período e deste modelo está no do período actual ou a ordem não caótica que
centro dos debates actuais sobre o carácter das a precedeu e que sustentou durante cinco sé-
transformações em curso nas sociedades capi- culos o sistema mundial moderno. Nestas cir-
talistas e no sistema capitalista mundial como cunstâncias, não admira que o período actual
um todo. Defendi atrás que o período actual é seja objecto de várias e contraditórias leituras.
um período de transição a que chamei o perío- São duas as leituras alternativas princi-
do do sistema mundial em transição. Combina pais acerca das mudanças actuais do sistema
características próprias do sistema mundial mundial em transição e dos caminhos que
moderno com outras que apontam para ou- apontam: a leitura paradigmática e a leitura
tras realidades sistémicas ou extrasistémicas. subparadigmática.
Não se trata de uma mera justaposição de ca- A leitura paradigmática sustenta que o fi-
racterísticas modernas e emergentes já que a nal dos anos sessenta e o início dos anos se-
combinação entre elas altera a lógica interna tenta marcaram o período de transição para-
de umas e outras. O sistema mundial em transi- digmática no sistema mundial, um período de
ção é muito complexo porque constituído por crise final da qual emergirá um novo paradigma
468 Boaventura de Sousa Santos

social. Uma das leituras paradigmáticas mais manutenção dos ciclos rítmicos que são o seu
sugestivas é a proposta por Wallerstein e seus bater cardíaco” (1991b: 134). O colapso dos
39
colaboradores . Segundo Wallerstein, o siste- mecanismos de ajustamento estrutural abre
ma mundial moderno entrou num período de um vasto terreno para a experimentação so-
crise sistémica iniciado em 1967 e que se esten- cial e para escolhas históricas reais, muito di-
derá até meados do século XXI. Na sua pers- fíceis de prever. Com efeito, as ciências sociais
pectiva, o período entre 1967 e 1973 é um perío- modernas revelam-se aqui de pouca utilidade,
do crucial porque marca uma conjuntura tripla a menos que elas mesmas se sujeitem a uma
de pontos de ruptura no sistema mundial: a) revisão radical e se insiram num questionar
o ponto de ruptura numa longa curva de Kon- mais amplo. Wallerstein designa tal questio-
dratief (1945-1995?); b) o ponto de ruptura da namento por utopística (distinto de utopianis-
hegemonia dos EUA sobre o sistema mundial mo), id est, “a ciência das utopias utópicas…
(1873-2025?); c) o ponto de ruptura no sistema a tentativa de clarificar as alternativas históri-
mundial moderno (1450-2100?). cas reais que estão à nossa frente quando um
Wallerstein previne que as provas que sistema histórico entra numa fase de crise, e
apoiam esta tripla ruptura são mais sólidas em avaliar nesse momento extremo de flutuações
a) do que em b) e em b) mais do que em c), o as vantagens e as desvantagens das estratégias
que se compreende uma vez que o ponto final alternativas” (1991a: 270).
putativo dos ciclos está sucessivamente mais De uma perspectiva diferente embora con-
afastado no futuro. Segundo ele, a expansão vergente, Arrighi convida-nos a revisitar as
económica mundial está a conduzir à merca- previsões de Schumpeter acerca do futuro do
dorização extrema da vida social e à extrema capitalismo e com base nelas coloca a questão
polarização (não só quantitativa mas também schumpeteriana: poderá o capitalismo sobre-
social) e, como consequência, está a atingir o viver ao sucesso? (Arrighi, 1994: 325; Arrighi
seu limite máximo de ajustamento e de adapta- e Silver, 1999). Há uns 50 anos, Schumpeter
ção e esgotará em breve “a sua capacidade de formulou a tese de que “o desempenho actual
e prospectivo do sistema capitalista é tal que
refuta a ideia de o seu colapso ocorrer sob o
39 Wallerstein (1991b); Hopkins, Wallerstein, Casparis
e Derluguian (1996). Ver também Arrighi e Silver (1999). peso do fracasso económico, mas o seu pró-
Os processos da globalização 469

prio sucesso corrompe as instituições sociais que se virá a sustentar uma transição paradig-
que o protegem e “inevitavelmente” cria as mática (1999: 271-289).
condições sob as quais não conseguirá sobre- A leitura subparadigmática vê o período
viver e que apontam fortemente para o socia- actual como um importante processo de ajus-
lismo como o seu aparente herdeiro” (Schum- tamento estrutural, no qual o capitalismo não
peter, 1976: 61). Schumpeter era assim muito parece dar mostra de falta de recursos ou de
céptico acerca do futuro do capitalismo e imaginação adequados. O ajustamento é signifi-
Arrighi defende que a história poderá vir a cativo porque implica a transição de um regime
dar-lhe razão: “A sua ideia de que uma outra de acumulação para outro, ou de um modo de
viragem bem sucedida estava ao alcance do regulação (“fordismo”) para outro (ainda por
capitalismo revelou-se obviamente correcta. nomear; “pós-fordismo”), como vem sendo sus-
40
Mas as possibilidades indicam que, durante o tentado pelas teorias da regulação . De acordo
próximo meio século, a história provará estar com alguns autores, o período actual de tran-
também certa a sua outra ideia de que a cada sição põe a descoberto os limites das teorias
viragem bem sucedida se criam as condições de regulação e dos conceitos que elas converte-
sob as quais a sobrevivência do capitalismo é ram em linguagem comum como o conceito de
cada vez mais difícil” (Arrighi, 1994: 325). Em “regimes de acumulação” e de “modos de regu-
trabalho mais recente, Arrighi e Silver salien- lação” (McMichael e Myhre, 1990; Boyer, 1996,
tam o papel da expansão do sistema financei- 1998). As teorias da regulação, pelo menos as
ro nas crises finais das ordens hegemónicas que tiveram mais circulação, tomaram o Esta-
anteriores (holandesa e britânica). A actual do-nação como a unidade da análise económi-
financeirização da economia global aponta ca, o que fazia provavelmente sentido no perí-
para a crise final da última e mais recente he- odo histórico do desenvolvimento capitalista
gemonia, a dos EUA. Este fenómeno não é, dos países centrais em que essas teorias foram
pois, novo, o que é novo e radicalmente novo formuladas. Hoje, porém, a regulação nacional
é a sua combinação com a proliferação e o
crescente poder das empresas multinacionais
40 Aglietta (1979); Boyer (1986, 1990). Ver também
e o modo como elas interferem com o poder
Jessop (1990a, 1990b); Kotz (1990); Mahnkopf (1988);
dos Estados nacionais. É nesta combinação Noel (1987); Vroey (1984).
470 Boaventura de Sousa Santos

da economia está em ruínas e dessas ruínas respondência dinâmica entre um determinado


está a emergir uma regulação transnacional, padrão de produção e um determinado padrão
uma “relação salarial global”, paradoxalmente de consumo (id est, um regime de acumulação)
assente na fragmentação crescente dos merca- e b) um conjunto institucional de normas, ins-
dos de trabalho que transforma drasticamente tituições, organizações e pactos sociais, que
o papel regulatório do Estado-nação, forçando assegure a reprodução de todo um campo de
a retirada da protecção estatal dos mercados relações sociais sobre o qual o regime de acu-
nacionais da moeda, trabalho e mercadorias e mulação está baseado (id est, um modo de
suscitando uma profunda reorganização do Es- regulação). Poderá haver crises do regime de
tado. Na verdade, pode estar a ser forjada uma acumulação e crises no regime de acumulação
nova forma política: o “Estado transnacional”. e o mesmo se passa com o modo de regulação.
Como seria de esperar, tudo isto é questioná- Desde os anos sessenta, os países centrais es-
vel e está a ser questionado. Como vimos aci- tão a atravessar uma dupla crise do regime de
ma, a real dimensão do enfraquecimento das acumulação e do modo de regulação. O papel
funções regulatórias do Estado-nação é hoje regulatório do Estado-nação tende a ser mais
um dos debates nucleares da sociologia e da decisivo nas crises do do que nas crises no,
economia políticas. Inquestionável é apenas o mas o modo como isso é exercido depende
facto de que tais funções mudaram (ou estão fortemente do contexto internacional, da in-
a mudar) dramaticamente e de uma forma que tegração da economia nacional na divisão in-
questiona o dualismo tradicional entre regula- ternacional do trabalho e das capacidades e
ção nacional e internacional. recursos institucionais específicos do Estado
Dentro da leitura subparadigmática do ac- em articular, sob condições de crise hostis, es-
tual período de desenvolvimento capitalista tratégias de acumulação com estratégicas he-
41
há, contudo, algum consenso em torno das se- gemónicas e estratégias de confiança .
guintes questões. Dada a natureza antagónica A leitura paradigmática é muito mais ampla
das relações sociais capitalistas, a reprodução do que a leitura subparadigmática, tanto nas
rotineira e a expansão sustentada da acumula-
ção de capital é inerentemente problemática.
41 Sobre estas três estratégias do Estado moderno,
De modo a ser obtida, pressupõe a) uma cor- ver Santos (1995: 99-109).
Os processos da globalização 471

suas afirmações substantivas como na amplitu- ticas, enquanto os autores que consideram a
de do seu tempo-espaço. Segundo ela, a crise do globalização um fenómeno velho, renovado
regime de acumulação e do modo de regulação ou não, são os mesmos que perfilham leituras
são meros sintomas de uma crise muito mais subparadigmáticas42.
profunda: uma crise civilizatória ou epocal. As Mas esta confrontação tem também um re-
“soluções” das crises subparadigmáticas são gisto político-ideológico, uma vez que estão em
produto dos mecanismos de ajustamento es- causa diferentes perspectivas sobre a natureza,
trutural do sistema; dado que estes estão a ser o âmbito e a orientação político-ideológica das
irreversivelmente corroídos, tais “soluções” se- transformações em curso e, portanto, também
rão cada vez mais provisórias e insatisfatórias. das acções e das lutas que as hão-de promover
Por seu lado, a leitura subparadigmática é, no ou, pelo contrário, combater.
máximo, agnóstica relativamente às previsões As duas leituras são de facto os dois argu-
paradigmáticas e considera que, por serem de mentos fundamentais a respeito da acção polí-
longo prazo, não são mais que conjecturas. tica nas condições turbulentas dos nossos dias.
Sustenta ainda que, se o passado tem alguma Os argumentos paradigmáticos apelam a acto-
lição a dar-nos, é a de que até agora o capitalis- res colectivos que privilegiam a acção trans-
mo resolveu com sucesso as suas crises e sem- formadora enquanto os argumentos subpara-
pre num horizonte temporal curto. digmáticos apelam a actores colectivos que
A confrontação entre leituras paradigmá- privilegiam a acção adaptativa. Trata-se de
ticas e leituras subparadigmáticas tem dois dois tipos-ideais de actores colectivos. Alguns
registos principais, o analítico e o ideológico- actores sociais (grupos, classes, organizações)
-político. O registo analítico, como acabámos
de ver, é a formulação mais consistente do de-
bate sobre se a globalização é um fenómeno 42 Apesar de considerarem a globalização um fenó-
novo ou um fenómeno velho. Porque se assu- meno velho, alguns dos teóricos do sistema mundial,
me que o novo de hoje é sempre o prenúncio como é o caso de Wallerstein, perfilham leituras para-
do novo de amanhã, os autores que conside- digmáticas a partir de análises sistémicas, nomeada-
mente da análise da sobreposição de pontos de ruptura
ram a globalização um fenómeno novo são os
nos diferentes processos de longa duração que consti-
mesmos que perfilham as leituras paradigmá- tuem o sistema mundial moderno.
472 Boaventura de Sousa Santos

aderem apenas a um dos argumentos, mas mui- a turbulência temporária e o caos parcial que
tos deles subscrevem um ou outro, consoante acompanham normalmente qualquer mudança
o tempo ou o tema, sem garantirem fidelidades nos sistemas rotinizados.
exclusivas ou irreversíveis a um ou a outro. A coexistência de interpretações paradig-
Alguns actores podem experienciar a globali- máticas e de interpretações subparadigmá-
zação da economia no modo subparadigmático ticas é provavelmente a característica mais
e a globalização da cultura no modo paradig- distintiva do nosso tempo. E não será esta a
mático, enquanto outros as podem conceber de característica de todos os períodos de transi-
modo inverso. Mais do que isso, alguns podem ção paradigmática? A turbulência inevitável e
conceber como económicos os mesmos pro- controlável para uns é vista por outros como
cessos de globalização que outros consideram prenúncio de rupturas radicais. E entre estes
culturais ou políticos. últimos, há os que vêem perigos incontroláveis
Os actores que privilegiam a leitura para- onde outros vêem oportunidades para eman-
digmática tendem a ser mais apocalípticos na cipações insuspeitáveis. As minhas análises
avaliação dos medos, riscos, perigos e colap- do tempo presente, a minha preferência pelas
sos do nosso tempo e a ser mais ambiciosos acções transformadoras e, em geral, a minha
relativamente ao campo de possibilidades e sensibilidade — e esta é a palavra exacta —
escolhas históricas que está a ser revelado. O inclinam-me a pensar que as leituras paradig-
processo de globalização pode assim ser visto, máticas interpretam melhor a nossa condição
quer como altamente destrutivo de equilíbrios no início do novo milénio do que as leituras
43
e identidades insubstituíveis, quer como a inau- subparadigmáticas .
guração de uma nova era de solidariedade glo-
bal ou até mesmo cósmica.
Por sua vez, para os actores que privilegiam
a leitura subparadigmática, as actuais transfor-
mações globais na economia, na política e na
cultura, apesar da sua relevância indiscutível,
não estão a forjar nem um novo mundo utó-
43 A justificação desta posição é apresentada noutro
pico, nem uma catástrofe. Expressam apenas lugar (Santos, 1995, 2000a).
Os processos da globalização 473

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A queda do Angelus Novus:
O fim da equação moderna
entre raízes e opções*

V ivemos num tempo sem fulgurações, um


tempo de repetição. O grão de verdade da
teoria do fim da história está em que ela é o má-
história. O total descrédito desta teoria não in-
terfere em nada com o sucesso dela enquanto
ideologia espontânea dos vencedores. O outro
ximo de consciência possível de uma burguesia lado do fim da história é o slogan da celebração
internacional que vê finalmente o tempo trans- do presente tão cara às versões capitulacionis-
formado na repetição automática e infinita do tas do pensamento pós-moderno2.
seu domínio1. O longo prazo colapsa assim no A ideia da repetição é o que permite ao pre-
curto prazo e este, que foi sempre a moldura sente alastrar ao passado e ao futuro, canibali-
temporal do capitalismo, permite finalmente zando-os. Estamos perante uma situação nova?
à burguesia produzir a única teoria da história Até agora, a burguesia não pudera elaborar
verdadeiramente burguesa, a teoria do fim da uma teoria da história exclusivamente segundo
os seus interesses. Vira-se sempre em luta com
1 A ideia do “fim da história” e da impossibilidade de
adversários fortes, primeiro, as classes domi-
renovação do sistema capitalista não é nova, embora nantes do antigo regime e, depois, as classes
tenha conhecido um grande sucesso com o livro homó- trabalhadoras. O desfecho dessa luta estava
nimo de Francis Fukuyama (1992). Esta obra exprime a sempre no futuro, o qual, por essa razão, não
incapacidade do Ocidente de se reinventar a si próprio. podia ser visto como mera repetição do passa-
do. Os nomes deste movimento orientado para
* Extraído de Santos, B. de Sousa 2006 “A queda do
Angelus Novus: para além da equação moderna entre
raízes e opções” in A gramática do tempo. Para uma
nova cultura política (Porto: Afrontamento) pp. 47-85. 2 Ver Santos, 2006: 23-43.
486 Boaventura de Sousa Santos

o futuro foram vários, tais como, a revolução, cia3. Este modelo alimenta-se da discrepância
o progresso, a evolução. Como o desfecho da controlada entre experiências actuais e expec-
luta não estava predeterminado, a revolução tativas quanto ao futuro, sobretudo no domínio
pôde ser burguesa e operária, o progresso pôde do bem-estar e da segurança individual e colec-
ser visto como consagração do capitalismo ou tiva, nos termos da qual as expectativas supe-
como sua superação, o evolucionismo pôde ram sempre (mais ou menos) as experiências.
ser reivindicado tanto por Herbert Spencer, A reconhecida dificuldade por nós hoje
como por Marx. Comum às diferentes teorias sentida de pensar a transformação social e a
da história foi a desvalorização do passado e o emancipação reside no colapso da teoria da
hipostasiar do futuro. O passado foi visto como história que nos trouxe até aqui, provocado
consumado e, portanto, como incapaz de fazer pela erosão total dos pressupostos que lhe
a sua aparição, de irromper no presente. Pelo deram credibilidade no passado. Como referi,
contrário, o poder de revelação e de fulguração a burguesia sente que a sua vitória histórica
foi todo transposto para o futuro. está consumada e ao vencedor consumado
Foi neste quadro que a transformação social, não interessa senão a repetição do presente;
a racionalização da vida individual e colectiva o futuro como progresso pode, em verdade,
e a emancipação social passaram a ser pensa- ser uma perigosa ameaça. Nestas condições, e
das. À medida que se foi construindo a vitória paradoxalmente, é a consciência mais conser-
da burguesia, o espaço do presente como repe- vadora que procura resgatar o pensamento do
tição (não como diversificação) foi-se amplian- progresso, mas apenas porque resiste a acei-
do, junto com a ideia do futuro entendido como tar que a vitória esteja consumada. Para isso,
progresso. Com a crise da ideia de revolução a constrói inimigos exteriores, tão poderosos
partir da década de 1920, reforça-se o reformis- quanto ininteligíveis, uma espécie de ancien
mo como modelo de transformação social e de régime exterior. É o caso de Samuel Hunting-
emancipação, um modelo assente na coexistên- ton (1993, 1997) e a ameaça que vê nas civi-
cia da repetição e da melhoria cuja forma polí-
tica mais acabada veio a ser o Estado-Providên-
3 Sobre o que designo por mudança social normal
assente na articulação entre repetição e melhoria, ver
Santos, 2000: 162-172.
A queda do Angelus Novus: O fim da equação moderna entre raízes e opções 487

lizações não ocidentais, nomeadamente no futuro não abre qualquer espaço para a capacita-
Islão e no Confucionismo. ção do passado. Pura e simplesmente, deixámos
Por outro lado, para os grandes vencidos de saber olhar o passado de modo capacitante.
deste processo histórico, os trabalhadores e É por isso que, em minha opinião, não pode-
os povos do Sul — Sul global —, tão pouco in- mos voltar a pensar a transformação social e a
teressa o futuro enquanto progresso, uma vez emancipação sem reinventarmos o passado. O
que foi no seu bojo que se gerou a derrota de- que proponho neste texto é o fragmento de uma
les. Aliás, mesmo a versão mais ténue do futu- nova teoria da história que nos permita voltar a
ro, o modelo de repetição/melhoria caracterís- pensar a emancipação social a partir do passa-
tico do reformismo — que mesmo assim só foi do, e, de algum modo, de costas viradas para um
tornado disponível a uma pequena fracção de futuro supostamente predeterminado.
vencidos, no chamado mundo desenvolvido —
parece hoje, mesmo se desejada, insustentável, A parábola do Angelus Novus
dada a inelutabilidade com que se propaga o Começo com a alegoria da história de Walter
desmantelamento do Estado-Providência. Se a Benjamin. Diz assim:
repetição do presente é intolerável, ainda o é
mais a perspectiva da sua cessação. Para vas- Há um quadro de Klee chamado Angelus Novus.
tas populações do mundo a relação entre ex- Representa um anjo que parece estar a afastar-
periências e expectativas inverteu-se, ou seja, se de alguma coisa que contempla fixamente. Os
as expectativas quanto ao futuro são hoje mais olhos estão arregalados, tem a boca aberta e as
negativas que as experiências actuais, por mais asas estendidas. É este, seguramente, o aspecto
difíceis ou precárias que sejam. do anjo da história. Ele tem a face voltada para
Mas se, por um lado, o futuro parece vazio de o passado. Onde vemos perante nós uma cadeia
de acontecimentos, vê ele uma catástrofe sem
sentido, por outro, o passado está tão indisponí-
fim que incessantemente amontoa ruínas sobre
vel como sempre. Nos termos em que a moder- ruínas e lhas vai arremessando aos pés. Ele bem
nidade ocidental conferiu ao futuro a capacida- gostaria de ficar, de acordar os mortos e de voltar
de de fulguração, irrupção, explosão, revelação, a unir o que foi destroçado. Mas do paraíso sopra
em suma, a capacidade messiânica, como diria uma tempestade que lhe enfuna as asas e é tão
Walter Benjamin (1980: 694), a incapacitação do forte que o anjo já não é capaz de as fechar. Esta
488 Boaventura de Sousa Santos

tempestade arrastao irresistivelmente para o fu- damente num momento de perigo, como fonte
turo, para o qual tem as costas viradas, enquanto de inconformismo.
o montão de ruínas à sua frente cresce até ao céu. Segundo Benjamin, o inconformismo dos vi-
Esta tempestade é aquilo a que chamamos pro- vos não existe sem o inconformismo dos mor-
gresso (Benjamin, 1980: 697698).
tos já que “nem estes estarão a salvo do inimi-
go, se este vencer”. E, acrescenta, “este inimigo
O anjo da história contempla, impoten- não tem parado de ganhar” (1980: 695). Trágico
te, a acumulação de ruínas e de sofrimento a é, pois, o facto de o anjo da história moderna
seus pés. Gostaria de ficar, de criar raízes na retirar ao passado a sua capacidade de explo-
catástrofe para, a partir dela, acordar os mor- são e de redenção. Tornando impossível o in-
tos e reunir os vencidos, mas sua vontade foi conformismo dos mortos, torna impossível o
expropriada pela força que o obriga a optar inconformismo dos vivos4.
pelo futuro para o qual está de costas. O seu Quais as consequências desta tragédia? Tal
excesso de lucidez combina-se com um défice como Benjamin, estamos num momento de
de eficácia. Aquilo que conhece bem e que po- perigo. E como tal afigura-se-me crucial repo-
dia transformar torna-se-lhe estranho e, pelo sicionar o anjo da história, reinventar o pas-
contrário, entrega-se sem condições àquilo sado de modo a restituir-lhe a capacidade de
que desconhece. As raízes não o sustentam e explosão e de redenção. À partida, parece uma
as opções são cegas. Assim, o passado é um tarefa impossível, na medida em que, depois de
relato e nunca um recurso, uma força capaz de séculos de hegemonia da teoria modernista da
irromper num momento de perigo em socorro história, não temos outra posição para olhar o
dos vencidos. Isto mesmo diz Benjamin, nou- passado senão a que nos é dada pelo anjo. Atre-
tra tese sobre a filosofia da história: “Articular vo-me, no entanto, a pensar que este início de
o passado historicamente não significa reco- século e de milénio nos oferece uma oportuni-
nhecê-lo ‘como verdadeiramente foi’. Significa dade para romper este dilema e ela reside, pre-
apoderarmo-nos de uma memória tal como
ela relampeja num momento de perigo” (1980:
695). A capacidade de redenção do passado re- 4 Uma análise da teoria da história de Walter Benja-
side nesta possibilidade de emergir inespera- min pode ler-se em Ribeiro (1995). Ver também Come-
saña (1993).
A queda do Angelus Novus: O fim da equação moderna entre raízes e opções 489

cisamente, na crise por que passa actualmente zes e opções é de escala5. As raízes são entida-
a ideia de progresso. A tempestade que sopra des de grande escala. Como sucede na carto-
do paraíso continua a fazer-se sentir, mas com grafia, cobrem vastos territórios simbólicos e
muito menos intensidade. O anjo continua na longas durações históricas, mas não permitem
mesma posição, mas a força que o sustenta vai- cartografar em detalhe e sem ambiguidades as
-se esvaindo. É possível mesmo que a posição características do terreno. É, pois, um mapa
seja já produto da inércia e que o anjo de Klee que tanto orienta como desorienta. Ao contrá-
tenha deixado de ser um anjo trágico para se rio, as opções são entidades de pequena esca-
tornar numa marioneta em posição de descan- la. Cobrem territórios confinados e durações
so. É esta suspeita que me permite continuar curtas, mas fazem-no com o detalhe necessário
este texto. Começarei por propor uma narrati- para permitir calcular o risco da escolha entre
va da modernidade ocidental, para, de seguida, opções alternativas. Esta diferença de escala
apresentar o prefácio de outra, alternativa. permite que as raízes sejam únicas e as esco-
lhas múltiplas e que, apesar disso, a equação
Raízes e opções entre elas seja possível sem ser trivial. A duali-
A construção social da identidade e da trans- dade de raízes e opções é uma dualidade funda-
formação na modernidade ocidental é basea- dora e constituinte, ou seja, não está submetida
da numa equação entre raízes e opções. Esta ao jogo que instaura entre raízes e opções. Por
equação confere ao pensamento moderno um outras palavras, não há a opção de não pensar
carácter dual: de um lado, pensamento de ra- em termos de raízes e opções. A eficácia des-
ízes, do outro, pensamento de opções. O pen- ta equação assenta numa dupla astúcia. Em
samento das raízes é o pensamento de tudo primeiro lugar, a astúcia do equilíbrio entre o
aquilo que é profundo, permanente, único e passado e o futuro. O pensamento das raízes
singular, tudo aquilo que dá segurança e con- apresenta-se como um pensamento do passa-
sistência; o pensamento das opções é o pensa- do contraposto ao pensamento das opções, o
mento de tudo aquilo que é variável, efémero, pensamento do futuro. Trata-se de uma astúcia
substituível, possível e indeterminado a partir
das raízes. A diferença fundamental entre raí-
5 Sobre este tema, ver Santos, 2000: 191-198.
490 Boaventura de Sousa Santos

porque, de facto, tanto o pensamento das ra- não existe equilíbrio ou equidade na distribui-
ízes, como o das opções são pensamentos do ção social das opções. Pelo contrário, as raízes
futuro, orientados para o futuro. O passado é, não são mais que constelações de determina-
nesta equação, tão-só uma maneira específica ções que, ao definirem o campo das opções, de-
de construir o futuro. finem também os grupos sociais que lhes têm
A segunda astúcia é a astúcia do equilíbrio acesso e os que delas estão excluídos.
entre raízes e opções. A equação apresenta-se Alguns exemplos ajudarão a concretizar
como simetria, como equilíbrio entre raízes e este processo histórico. Antes de mais, é à luz
opções e como equilíbrio na distribuição das da equação de raízes e opções que a socieda-
opções. Efectivamente, assim não é. Por um de moderna ocidental vê a sociedade medie-
lado, é total o predomínio das opções. É ver- val e se distingue dela. A sociedade medieval
dade que certos momentos históricos ou cer- europeia é vista como uma sociedade em que
tos grupos sociais atribuem predominância às é total o predomínio das raízes, sejam elas a
raízes, enquanto outros as atribuem às opções. religião, a teologia ou a tradição. A sociedade
Vêem-se num jogo ou movimento de raízes para medieval não é necessariamente uma socie-
opções e de opções para raízes, em que um dos dade estática, mas evolui segundo uma lógica
vectores predomina na narrativa da identidade de raízes. Ao contrário, a sociedade moderna
e da transformação. Mas, em verdade, do que vê-se como uma sociedade dinâmica que evo-
se trata sempre é de opções. Enquanto certos lui segundo uma lógica de opções. O primeiro
tipos de opções pressupõem o predomínio dis- grande sinal da mudança na equação é talvez a
cursivo das raízes, outros tipos pressupõem a Reforma luterana. Com ela, torna-se possível,
sua secundarização. O equilíbrio é inatingível. a partir da mesma raiz — a Bíblia da cristan-
Consoante o momento histórico ou o grupo dade ocidental —, criar uma opção à Igreja de
social, as raízes predominam sobre as opções Roma. Ao tornar-se optativa, a religião perde
ou, ao contrário, as opções predominam sobre intensidade, senão mesmo status, enquanto
as raízes. O jogo é sempre das raízes para as raiz. As teorias racionalistas do direito natural
opções e das opções para as raízes; só varia a do século XVII reconstituem a equação entre
força dos dois vectores, enquanto narrativa de raízes e opções de modo inteiramente moder-
identidade e transformação. Por outro lado, no. A raiz é agora a lei da natureza pelo exercí-
A queda do Angelus Novus: O fim da equação moderna entre raízes e opções 491

cio da razão e observação. A intensidade desta marco decisivo nesta transição que se iniciara
raiz está em que ela se sobrepõe a Deus. Em com Descartes e se consumará no século XIX.
De Jure Belli ac Pacis, Grotius, o melhor ex- A ciência, ao contrário da religião, é uma raiz
poente da nova equação, afirma: “O que temos que nasce no futuro, é uma opção que, ao radi-
vindo a afirmar possuiria um grau de validade calizar-se, se transforma em raiz e cria a partir
mesmo que admitíssemos, o que não pode ser daí um campo imenso de possibilidades e de
admitido sem a maior perversidade, que não impossibilidades, ou seja, de opções.
há Deus ou que os assuntos dos homens não Este jogo de movimento e de posição entre
O preocupam” (1964: 11-13)6. A partir desta raízes e opções atinge o seu pleno desenvolvi-
portentosa raiz, são possíveis as mais díspares mento com o Iluminismo. Num vasto campo
opções. Por esta razão, e não pelas que invoca, cultural, que vai da ciência à política, da religião
Tuck tem razão quando afirma que este tratado à arte, as raízes assumem-se claramente como
de Grotius “possui a face de Janus e as suas o outro, radicalizado, das opções, tanto das que
duas bocas falam tanto a linguagem do absolu- tornam possíveis, como das que tornam impos-
tismo como a linguagem da liberdade” (1979: síveis. Assim, a razão, transformada em raiz
79). É isto mesmo o pretendido por Grotius. última da vida individual e colectiva, não tem
Sustentado pela raiz do direito natural, o di- outro fundamento senão criar opções e é nisto
reito tanto pode optar por promover a hierar- que ela se distingue, enquanto raiz, das raízes
quia (o jus rectorium, como lhe chama), como da sociedade do ancien régime (a religião e a
a igualdade (o jus equatorium). tradição). É uma opção que, ao radicalizar-se,
No mesmo processo histórico em que a reli- torna possível um imenso campo de opções.
gião transita do status de raiz para o de opção, De todo o modo, as opções não são infini-
a ciência transita, inversamente, do status de tas. Isso é particularmente evidente na outra
opção para o de raiz. Giambattista Vico e a sua grande raiz do Iluminismo: o contrato social
proposta da “nova ciência” (1961 [1725]) é um e a vontade geral que o sustenta7. O contrato
social é metáfora fundadora de uma opção
6 Analiso com mais detalhe as teorias de Grotius e
teorias racionalistas do direito natural em Santos, 1995: 7 Analiso as teorias do contrato social em Santos,
60-63; 2000: 116-120. 1995: 63-71; 2000: 120-129.
492 Boaventura de Sousa Santos

radical — a de deixar o estado de nature- as raízes românticas são tão orientadas para o
za para formar a sociedade civil — a qual se futuro quanto as do contrato social. Do que se
transforma em raiz a partir da qual quase tudo trata em ambos os casos é de criar um campo
é possível, tudo excepto voltar ao estado de de possibilidades que permita distinguir entre
natureza8. A contratualização das raízes é ir- opções possíveis e impossíveis, entre opções
reversível e este é o limite da reversibilidade legítimas e ilegítimas.
das opções. É por isso que em Rousseau a von- Pode, pois, afirmar-se que, com o Iluminis-
tade geral não pode ser posta em causa pelos mo, a equação raízes/opções se converte no
homens livres que ela cria. Diz ele no Contra- modo hegemónico de pensar a transforma-
to Social: “quem quer que recuse obedecer à ção social e o lugar dos indivíduos e dos gru-
vontade geral a isso será coagido por todo o pos sociais nessa transformação. Uma das
corpo: o que significa apenas que será forçado manifestações mais eloquentes deste para-
a ser livre” (1989 [1762]: 27). A contratualiza- digma é o motivo da viagem como metáfora
ção das raízes é um processo histórico longo e central do modo de estar no mundo moder-
acidentado. Por exemplo, o romantismo é fun- no. Das viagens reais da expansão europeia
damentalmente uma reacção contra a contra- às viagens reais e imaginárias de Descartes,
tualização das raízes e a reivindicação da sua Montaigne, Montesquieu, Voltaire ou Rousse-
indisponibilidade e da sua singularidade9. Mas au, a viagem tem uma carga simbólica dupla:
por um lado, é o símbolo de progresso e de
enriquecimento material ou cultural; por ou-
8 Como muitas outras matrizes da modernidade oci-
tro, é o símbolo de perigo, de insegurança e
dental, o contrato social exclui do seu âmbito os povos
colonizados. Aliás, as condições materiais da constru- de perda. Esta duplicidade faz com que a via-
ção da sociedade civil assentam em boa parte na im- gem contenha em si o seu contrário, a ideia
posição do estado de natureza aos povos colonizados, de uma posição fixa, a casa (oikos ou domus)
seja em situações de colonialismo imperial, seja em si- que dá sentido à viagem, dando-lhe um ponto
tuações de colonialismo interno, que ocorrem, nos dias
de partida e um ponto de chegada. Como diz
de hoje, dentro do espaço do Estado-nação.
van der Abeele, o oikos “actua como um pon-
9 Daí a face de Janus do romantismo, ora reaccioná-
to transcendental de referência que organiza
rio, ora revolucionário. Sobre este assunto, ver Gould-
ner (1970) e Brunkhorst (1987). e domestica uma dada área através da defini-
A queda do Angelus Novus: O fim da equação moderna entre raízes e opções 493

ção de todos os outros pontos em relação a si uma viagem forçada e destinou-se a destruir a
próprio” (1992: XVIII). identidade. Estou, obviamente, a falar do trá-
Em suma, o oikos é a parte da viagem que fico de escravos. Por outro lado, o motivo da
não viaja para que a viagem se faça e tenha viagem é falocêntrico. A viagem pressupõe,
sentido. O oikos é a raiz que sustenta e limita como disse, a fixidez do ponto de partida e de
as opções de vida ou de conhecimento torna- chegada, a casa (o oikos ou domus) e a casa
das possíveis pela viagem. Por sua vez, a via- é o lugar da mulher. A mulher não viaja, para
gem reforça a raiz de que provém na medida que a viagem seja possível. Aliás, esta divisão
em que, por via do exotismo dos lugares que sexual do trabalho no motivo da viagem é um
permite visitar, aprofunda a familiaridade da dos topoi mais resistentes da cultura ocidental
casa donde se parte. O relativismo cultural e quiçá de outras culturas também. Na cultura
pretendido pela atitude comparativista dos ocidental, a sua versão arquetípica é a Odis-
viajantes imaginários do Iluminismo tem por seia. A doméstica Penélope toma conta da
limite a afirmação da identidade e, em quase casa enquanto Ulisses viaja. A longa espera de
todos eles, da superioridade da cultura euro- Penélope é a metáfora da solidez do ponto de
peia. E se Montaigne nunca viajou de facto à partida e de chegada que garante a possibilida-
América, ou Montesquieu, à Pérsia ou Rous- de e a aleatoridade de todas as peripécias por
seau, à Oceania, a verdade é que todos via- que passa o viajante Ulisses.
jaram à Itália em busca das raízes da cultura O interesse do motivo da viagem neste con-
europeia, raízes tanto mais veneradas quanto texto reside em que, através dela, é possível
mais brutal era o contraste com a degradação identificar as determinações sexistas, racistas
da Itália ao tempo das viagens. e classistas da equação moderna entre raízes
O motivo da viagem é o que melhor reve- e opções. O campo de possibilidades aberto
la as discriminações e as desigualdades que pela equação não está igualmente à disposi-
a equação moderna raízes/opções simulta- ção de todos. Alguns, quiçá a maioria, são ex-
neamente oculta e procura justificar. Por um cluídos desse campo. Para eles, as raízes, lon-
lado, a viagem a lugares exóticos não foi para ge de lhes possibilitarem novas opções, são o
muitos voluntária, nem visou aprofundar uma dispositivo, novo ou velho, de lhas negar. As
qualquer identidade cultural. Ao contrário, foi mesmas raízes que dão opções aos homens,
494 Boaventura de Sousa Santos

aos brancos e aos capitalistas, são as mesmas prete dos poderes opressivos e coercivos des-
que as recusam às mulheres, aos negros e in- ta” (1995: XX).
dígenas e aos trabalhadores. A partir de finais O que há de comum entre a revolução comu-
do século XIX, o jogo de espelhos entre raízes nista e a revolução introspectiva é o serem ambas
e opções está consolidado e passa a constituir respostas criativas à profunda desorganização
a idéologie savante das ciências sociais. Os social e individual de uma sociedade que expe-
dois exemplos mais brilhantes são, sem dúvi- riencia a perda dos ideais, símbolos e modos de
da, Marx e Freud. vida que constituem a sua herança comum. E a
Em Marx, a base é a raiz e a superestrutura orientação para o futuro na equação raízes/op-
são as opções. Não se trata de uma metáfora ções está tão presente em Marx como em Freud.
vulgar como alguns marxistas não vulgares qui- Se para Marx a base é a chave da transformação
seram fazer crer. Trata-se de um princípio lógi- social, para Freud ou Jung, não faz sentido inves-
co de inteligibilidade social que atravessa toda tigar o inconsciente senão no contexto da tera-
a obra de Marx e, de facto, a de muitos outros pêutica. Do mesmo modo, tanto o materialismo
cientistas sociais que dele discordaram. Basta histórico como a psicologia das profundidades
referir o caso de Durkheim para quem a cons- visam ir às raízes da sociedade moderna — do
ciência colectiva é a raiz sempre ameaçada, capitalismo e da cultura ocidental, respectiva-
numa sociedade assente na divisão do trabalho mente —, para lhe abrir novas e mais amplas
social e nas opções que esta multiplica indefi- opções. E para qualquer deles o êxito da sua teo-
nidamente. Este mesmo modo de pensamento ria está em ela própria se transformar em funda-
está presente em Freud e em Jung. A centrali- mento e instrumento dessa transformação.
dade do inconsciente na psicologia das profun- Num mundo que há muito perdera o “pas-
didades reside precisamente no facto de ele ser sado profundo”, a raiz da religião, a ciência é
a raiz profunda onde se fundam as opções do para ambos a única raiz capaz de sustentar um
ego ou a limitação neurótica delas. Do mesmo novo começo na sociedade moderna ocidental.
modo, ao nível mais amplo do Freud cultural A partir da ciência, as boas opções são as op-
e de Jung, tal como os analisa Peter Homans, ções legitimadas cientificamente. É isso o que
“a interpretação distingue a infra-estrutura in- implica, para Marx, a distinção entre realidade
consciente da cultura, libertando assim o intér- e ideologia e, para Freud, a distinção entre re-
A queda do Angelus Novus: O fim da equação moderna entre raízes e opções 495

alidade e fantasia. Nesta distinção reside tam- O fim da equação


bém a possibilidade da teoria crítica moderna. Estamos a viver um momento de perigo, no
Como diz Nietzsche, se desaparecerem as rea- sentido que lhe atribui Walter Benjamin. Em
lidades desaparecem também as aparências. E meu entender, ele reside em boa medida no
o inverso também é verdadeiro10. facto de a equação moderna entre raízes e op-
A tradução política liberal desta nova equa- ções, com que aprendemos a pensar a transfor-
ção entre raízes e opções é o Estado-nação e mação social, estar a passar por um processo
o direito positivo, convertidos nas raízes que de profunda desestabilização que se afigura
criam o campo imenso das opções no merca- irreversível. Esta desestabilização apresenta-
do e na sociedade civil. Para poder funcionar -se sob três formas principais: turbulência das
como raiz, o direito tem de ser autónomo, isto escalas; explosão de raízes e de opções; triviali-
é, científico. Esta transformação não ocorreu zação da equação entre raízes e opções.
sem resistências. Por exemplo, na Alemanha, Uma palavra breve sobre cada uma delas.
a escola histórica reivindicou para o direito a No que respeita à turbulência das escalas, há
velha equação entre raízes e opções, o direi- que recordar o que disse atrás sobre a diferen-
to como emanação do Volksgeist. Foi, porém, ça de escalas entre as raízes (a grande escala)
derrotada pela nova equação, a raiz jurídica e as opções (a pequena escala). A equação ra-
constituída pela codificação e pelo positivismo ízes/opções assenta nessa diferença e na es-
e capaz de tornar o direito num instrumento tabilidade dessa diferença. Vivemos hoje tem-
de engenharia social (Santos, 1995: 73). Por pos turbulentos cuja turbulência se manifesta
seu lado, o Estado liberal constitui-se em raiz através de uma caótica confusão de escalas
pela imaginação da nacionalidade homogénea entre fenómenos. A violência urbana é para-
e da cultura nacional (Anderson, 1983). Por via digmática a este respeito. Quando um menino
dela, o Estado passa a ser o guardião de uma de rua procura abrigo para passar a noite e
raiz que não existe para além dele. é, por essa razão, assassinado por um polícia
ou quando uma pessoa é abordada na rua por
um mendigo, recusa dar esmola e é, por essa
10 Dada a sua obsessão anti-kantiana, esta ideia é recor- razão, assassinada pelo mendigo, o que ocor-
rente em Nietzsche. Ver, por exemplo, Nietzsche, 2002.
496 Boaventura de Sousa Santos

re é uma explosão imprevisível da escala do bruscas nas escalas, tanto das raízes, como das
conflito: um fenómeno aparentemente trivial opções. Quando a União Soviética colapsou no
e sem consequências é posto em equação com final da década de 1980, os cerca de 25 milhões
outro, dramático, e com consequências fatais. de russos, que viviam fora da Rússia nas várias
Esta mudança abrupta e imprevisível da escala repúblicas que compunham a União, viram de
dos fenómenos ocorre hoje nos mais diversos repente a sua raiz, a sua identidade nacional, ser
domínios da prática social, pelo que me atre- miniaturizada e reduzida ao estatuto de identi-
vo a considerá-la como uma das característi- dade local, própria de uma minoria étnica. Ao
cas fundamentais do nosso tempo. Na esteira contrário, nos Balcãs, os sérvios na ex-Jugoslá-
de Prigogine (1979, 1980, 1997), penso que as via procuraram, com o apoio inicial dos países
nossas sociedades atravessam um período de ocidentais, ampliar a escala das suas raízes na-
bifurcação. Como é sabido, o estado de bifur- cionais até canibalizar as raízes nacionais dos
cação ocorre em sistemas instáveis sempre que vizinhos. O mesmo sucede no conflito israelo-
uma mudança mínima pode produzir, de modo -palestiniano na medida em que, com a cumpli-
imprevisível e caótico, transformações qualita- cidade dos países ocidentais, a opção interna-
tivas. Esta explosão súbita de escala cria uma cional pela existência de dois Estados na região
enorme turbulência e põe o sistema numa situ- é subvertida pela conversão do Estado de Israel
ação de irreversível vulnerabilidade. em terra de Israel e pela consequente reivindi-
Penso que a turbulência do nosso tempo é cação israelita de uma raiz inconciliável com a
deste tipo e que nela reside a abissal vulnera- do povo palestiniano. Estas mudanças de esca-
bilidade a que estão sujeitas as formas de sub- la não são novas, uma vez que já ocorreram no
jectividade e de sociabilidade, do trabalho à pós-guerra com o processo de descolonização e
vida sexual, da cidadania ao ecossistema. Esta a criação dos novos Estados pós-coloniais, ditos
situação de bifurcação repercute-se na equa- nacionais. O que há de novo nestas mudanças é
ção raízes/opções, tornando caótica e reversí- o facto de elas ocorrerem muitas vezes sob as
vel a diferença de escala entre raízes e opções. ruínas de Estados que tinham reclamado para si
A instabilidade política do nosso tempo, dos a titularidade das raízes identitárias.
Balcãs à ex-União Soviética, do Médio Oriente A mesma explosão aparentemente erráti-
à África, tem muito a ver com transformações ca das escalas ocorre também no campo das
A queda do Angelus Novus: O fim da equação moderna entre raízes e opções 497

opções. No domínio da economia, a fatalidade percentagem certa e significativa da população


com que se impõem certas opções, como, por dos nossos países, fazendo-a voltar ao estado
exemplo, as políticas de ajustamento estrutu- de natureza, convencidos de que nos sabere-
ral ditadas pelo Banco Mundial ou pelo Fundo mos defender eficazmente da agitação que essa
Monetário Internacional, e as drásticas conse- expulsão provocar.
quências que elas produzem fazem com que a A segunda manifestação da desestabilização
pequena escala se amplie até à grande escala da equação é a explosão simultânea das ra-
e que o curto prazo se transforme numa longa ízes e das opções. De facto, o que vulgarmen-
duração instantânea. Para os países do Sul, o te se designa por globalização, em articulação
ajustamento estrutural, longe de ser uma op- com a sociedade de consumo e a sociedade de
ção, é uma raiz transnacional que envolve e informação, tem dado origem a uma multipli-
asfixia as raízes nacionais e as reduz a excres- cação aparentemente infinita de opções cada
cências locais. Por outro lado, o contrato so- vez mais libertas das limitações territoriais.
cial — a metáfora da contratualização das ra- O campo de possibilidades tem-se expandido
ízes políticas da modernidade fora das antigas enormemente, legitimado pelas próprias forças
zonas coloniais — está hoje sujeito a grande que tornam possível essa expansão, sejam elas
turbulência. O contrato social é um contrato- a tecnologia, a economia do mercado, a cul-
-raiz assente na opção partilhada pelos cida- tura global da publicidade e do consumismo,
dãos de abandonar o estado de natureza. Du- a democracia liberal e a “boa” governação. A
zentos anos depois, o desemprego estrutural, o ampliação das opções transforma-se automati-
recrudescimento das ideologias reaccionárias, camente num direito à ampliação das opções.
o aumento abissal das desigualdades sócio- No entanto, em aparente contradição com isto,
-económicas entre os países que compõem o vivemos um tempo de localismos e territoriali-
sistema mundial e dentro de cada um deles, a zações de identidades e de singularidades, de
fome, a miséria e a doença a que está votada a genealogias e de memórias, em suma, um tem-
maioria da população dos países do Sul e a po- po de multiplicação, igualmente sem limites, de
pulação dos “terceiros mundos interiores” dos raízes. Assim se deve entender, por exemplo, o
países do Norte, tudo isto leva a crer que esta- ressurgimento dos movimentos dos povos indí-
mos a optar por excluir do contrato social uma genas nas últimas três décadas e a emergência
498 Boaventura de Sousa Santos

de novas identidades étnicas na Europa em re- mercado global. A economia de mercado, o


sultado dos fluxos migratórios mais recentes. E mais recente heterónimo do capitalismo, trans-
também aqui a descoberta incessante de raízes formou-se, nas últimas décadas, no substituto
se traduz automaticamente num direito às raí- do contrato social, um substituto pretensa-
zes descobertas. mente mais universal por não distinguir entre
Mas a explosão das raízes e das opções não zonas coloniais e não coloniais. Apresenta-se
se dá apenas por via da multiplicação indefinida como uma raiz económica e social universal
de umas e outras, dá-se também pela busca de que obriga a maioria dos países a opções dra-
raízes particularmente profundas e fortes que máticas e radicais, para muitos deles, à opção
sustentem opções particularmente dramáticas entre o caos da exclusão e o caos da inclusão
e radicais. Neste caso, o campo de possibili- na economia mundial.
dades reduz-se drasticamente, mas as opções
que restam são dramáticas e prenhes de con- O corpo: a raiz derradeira
sequências. Os dois exemplos mais eloquentes e a opção infinita
desta explosão das raízes e opções pela inten-
A investigação sobre o ADN e a rápida e a
sificação de umas e outras são os fundamen-
ampliação e aprofundamento, da capacidade
talismos e a investigação sobre o ADN (ácido
de desenvolvimento de tecnologias de mani-
desoxirribonucleico).
pulação da vida biológica significam, em ter-
Em geral, o fundamentalismo implica a su-
mos culturais, a transformação do corpo na
bordinação estrita de interacções sociais muito
derradeira raiz a partir da qual se abrem as
distintas a um princípio único e monolítico de
opções dramáticas da engenharia genética e
ordenação social aplicado em última instância
das tecnologias que permitem a intervenção
por um corpo exclusivo de autoridades. De to-
nos processos de reprodução e de desenvol-
dos os fundamentalismos vigentes nas socieda-
vimento dos organismos vivos e a sua modi-
des contemporâneas, o fundamentalismo neo-
ficação. Tudo isto é acompanhado de um rol
-liberal é, sem dúvida, o mais intenso. Consiste
de notas promissórias sobre os benefícios es-
na subordinação da sociedade no seu conjunto
perados para o ser humano, decorrentes da
à lei do valor que rege a economia de merca-
capacidade de “controlar os nossos destinos”,
do, entendido agora, mais do que nunca, como
A queda do Angelus Novus: O fim da equação moderna entre raízes e opções 499

isto é, de transformar em opções as caracte- Numa primeira fase, foi para a genética que
rísticas biológicas, outrora encaradas como se voltaram as expectativas de vir a conhecer
raízes. Mas esta dinâmica é indissociável da os segredos da vida e foi investida na biotec-
crescente penetração do capital privado na nologia a esperança de encontrar os meios
investigação e desenvolvimento tecnológico de controlar ou dirigir o desenvolvimento de
nas ciências da vida e da transformação da plantas e animais, através da manipulação
vida em mercadoria e do conhecimento e in- do seu material genético e do controlo da
formação sobre a vida numa das formas mais expressão de certos genes. O inventário dos
importantes de capital. benefícios esperados era extenso e ambicio-
Estas tendências desenhavam-se já desde so: resolver problemas de saúde, prolongar a
a década de 1970, com o desenvolvimento de longevidade humana, utilizar animais geneti-
tecnologias como a recombinação do ADN de camente modificados como fornecedores de
organismos diferentes; os primeiros casos de órgãos para transplantes, resolver os proble-
patenteamento de inovações sob a forma de se- mas da agricultura, da alimentação, de saú-
res vivos modificados através de manipulação de pública ou do ambiente através dos dife-
genética ou de substâncias activas identifica- rentes desenvolvimentos das biotecnologias
das em plantas associadas a conhecimentos e “verdes” (na agricultura e na alimentação)
práticas terapêuticas de populações indígenas; ou “vermelhas” (na medicina). O sucesso
e a transformação da biologia em big science, (depois de inúmeras tentativas falhadas) da
com a expressão mais visível dessa transfor- clonagem, em 1997, de uma ovelha, a famosa
mação no grande esforço empreendido tanto Dolly, a partir de uma célula somática de um
por consórcios públicos como privados para indivíduo adulto da mesma espécie, cujo nú-
cartografar o genoma humano, durante a déca- cleo fora transferido para um óvulo a que fora
da de 199011. retirado o núcleo, veio abrir novas expecta-
tivas de manipulação da reprodução, e não
demorou muito até surgirem as especulações
11 Existe uma extensa bibliografia sobre a história da
genética e da biologia molecular no século XX, que não
pára de crescer. Veja-se, a este propósito, a excelente sobre o genoma humano, veja-se Kevles e Hood (1992);
obra de Keller (2000). Sobre a história da investigação Cook-Deegan (1993); Sloane (2000) e Thacker (2005).
500 Boaventura de Sousa Santos

sobre as possíveis utilizações da técnica para E não esqueçamos o boom da pesquisa em


a reprodução humana. neurociências. O crescimento destas áreas
Talvez o resultado mais importante desta de investigação e desenvolvimento tecnoló-
experiência tenha sido a abertura e conso- gico foi notável. O fluxo de capitais para no-
lidação de uma nova área de investigação, vas empresas a elas dedicadas conheceu um
por alguns baptizada de “reprogenética”, que aumento espectacular e as universidades,
procurou explorar as possibilidades de aliar sobretudo nos países centrais, passaram a
as técnicas de reprodução medicamente as- depender cada vez mais de financiamentos
sistida, disponíveis para os humanos desde da indústria farmacêutica e da biotecnologia,
os meados dos anos 1970, com a genética, de com todos os constrangimentos daí decor-
modo a criar novas formas de medicina pre- rentes em matéria de definição de priorida-
ventiva e de medicina regenerativa, nomea- des de investigação, partilha e publicitação
damente através da exploração do potencial de resultados e privatização do conhecimen-
das células estaminais para a produção de to, nomeadamente através do recurso ao pa-
células e tecidos utilizáveis, por exemplo, em tenteamento (Krimsky, 2003).
transplantes ou em terapias regenerativas12. Estes processos, contudo, não têm deixa-
do de suscitar interrogações e críticas. Em
primeiro lugar a capacidade de criar tecnolo-
12 A história da clonagem de Dolly é contada na pri- gias de manipulação da vida vai de par com
meira pessoa por Wilmut, Campbell e Tudge (2001). a crescente dificuldade em compreender a
Para uma reflexão sobre as implicações do episódio e, complexidade dos processos biológicos e as
em particular, sobre os possíveis usos da técnica para a consequências que essas manipulações po-
clonagem de seres humanos, veja-se Wilmut e Highfield
dem ter sobre organismos, sobre o ambien-
(2006). As controvérsias em torno da clonagem humana
e das promessas e problemas associados à reprogené- te e sobre a saúde humana, enfim, sobre o
tica foram objecto de várias obras recentes, incluin- ecossistema da Terra. A impossibilidade ou
do McGee (2000), Holland et al. (2001) e Maienschein dificuldade crescente de desenvolver pro-
(2003). Para duas reflexões esclarecedoras sobre os jectos de pesquisa capazes de investigar as
domínios da reprodução e da investigação em células
consequências das novas capacidades de ma-
estaminais, veja-se Ramalho-Santos (2003) e Ramalho-
-Santos (2003). nipulação da vida ao longo do tempo e sobre
A queda do Angelus Novus: O fim da equação moderna entre raízes e opções 501

os ecossistemas e a sociedade, cria um hia- nição de prioridades de investigação e desen-


to perigoso entre a crescente capacidade de volvimento nestes domínios13.
intervenção e transformação através da ino- Recentemente, uma organização de cientis-
vação tecnológica e a reduzida compreensão tas orientada pelo interesse público e sediada
dos processos que organizam a vida. Daí que nos EUA, o Council for Responsible Genetics,
as críticas aos abusos das explicações gené- propôs mesmo à discussão pública uma “Carta
ticas e da insuficiência ou inadequação des- de Direitos Genética” (Genetic Bill of Rights)
tas para dar conta da complexidade e multi- que tem suscitado uma viva discussão em tor-
factorialidade dos processos biológicos, dos no de novas concepções de direitos capazes de
comportamentos de seres humanos e da di- integrar a protecção dos indivíduos associada
nâmica de ecossistemas se façam ouvir com à manipulação biológica e a defesa da biodiver-
crescente insistência. sidade e da diversidade de modos de relaciona-
Em segundo lugar, a incompatibilidade de
uma pesquisa orientada para a elucidação 13 Sobre as críticas ao determinismo genético e às ex-
dessa complexidade com os tempos curtos plicações reducionistas e às suas consequências cultu-
dos mercados financeiros e das exigências rais e políticas, veja-se, entre outros, Duster (1990); Hub-
empresariais num ambiente de competição bard e Wald (1993); Nelkin e Lindee (1995); Paul (1998);
feroz está a contribuir para que Estados, ci- Lewontin (2000); Oyama (2000) e Thacker (2005). A
história da regulação e do debate público sobre a enge-
dadãos leigos e cientistas se mobilizem para nharia genética deu origem a uma extensa bibliografia,
suscitar interrogações de carácter ético (no- incidindo sobretudo sobre os países centrais. Veja-se,
meadamente em torno de um regresso do em especial, Krimsky (1982); Wright (1994); Gottweis
eugenismo), e preocupações com as con- (1998) e Jasanoff (2005). O polémico Projecto da Diver-
sidade do Genoma Humano, que visava a construção de
sequências sanitárias, sociais, ambientais e
uma base de dados sobre as características genéticas de
económicas destas práticas: tentativas de en- populações “isoladas” em várias partes do mundo, ofe-
contrar novas formas de regular e governar rece um ponto de entrada privilegiado para estudar a
a inovação biotecnológica e biomédica e as extensão aos países do Sul da “centralidade” da genética
suas consequências e de submeter ao debate enquanto dimensão definidora da identidade humana e
sua raiz derradeira, bem como das resistências e opo-
e deliberação democrática as decisões sobre
sições que suscitou. Veja-se, a este propósito, Reardon
a aceitabilidade social das inovações e a defi- (2005) e M’Charek (2005).
502 Boaventura de Sousa Santos

mento entre os humanos, os outros seres vivos da por Donna Haraway (1989), à opção sexista
e os ambientes que estes constroem através da e racista do Estado-Providência, analisada por
sua interacção com o mundo e, naturalmente, a Linda Gordon (1991 e 2007.), da opção, denun-
própria concepção do que é ser humano14. ciada por Cheik Anta Dioup (1967) e por Martin
Começámos o século XX com a revolução Bernal (1987), em eliminar as raízes africanas
socialista e a revolução introspectiva, e esta- (a Black Athena) da Atenas grega, para inten-
mos a iniciar o novo século com a revolução sificar a pureza desta como raiz da cultura eu-
do corpo. A centralidade que então assumiram ropeia, à opção de branquear o Black Atlantic
a classe e a psique é agora assumida pelo cor- para ocultar o comércio transatlântico de es-
po, convertido, tal como a razão iluminista, em cravos e, portanto, os sincretismos da moder-
raiz de todas as opções. nidade, como mostrou Paul Gilroy (1993), da-
Esta explosão extensiva e intensiva de raí- mo-nos conta de que as raízes da sociabilidade
zes e de opções só é verdadeiramente desesta- moderna ocidental e a inteligibilidade que elas
bilizadora da equação entre raízes e opções na induzem são, de facto, optativas, mais viradas
medida em que se articula com a intercambiali- para uma ideia hegemónica de futuro que lhes
dade entre elas, com a verificação de que mui- deu sentido do que para o passado que, afinal,
tas das raízes em que nos revimos eram afinal só existiu para funcionar como espelho anteci-
opções disfarçadas. Neste domínio, as teorias pado do futuro.
e as epistemologias feministas15, as teorias crí- No entanto, paradoxalmente, este desvela-
ticas da raça, os estudos pós-coloniais e a nova mento e a denúncia que ele transporta trivia-
história deram um contributo decisivo. Da op- lizam-se à medida que se aprofundam. Porque
ção ocidental-oriental da primatologia, estuda- detrás da máscara não há nada senão outra
máscara, o saber-se que as raízes hegemónicas
da modernidade ocidental são opções disfar-
14 Para alguns ensaios de discussão mais ampla des- çadas dá a oportunidade à cultura hegemóni-
tes problemas, veja-se Santos (org.) 2004, e as contri-
ca de, agora sem a necessidade de disfarces e
buições incluídas nesse volume, todas elas com um en-
foque nas relações Norte-Sul. Veja-se também Haraway com acrescida arrogância, impor as suas op-
(1997) e Nunes (2001). ções como raízes. O caso mais eloquente é tal-
15 Ver Santos, 2000: 83-84 e a bibliografia aí citada. vez o Western Canon de Harold Bloom (1994)
A queda do Angelus Novus: O fim da equação moderna entre raízes e opções 503

analisado adiante. Nele, as raízes são um mero tual, logocêntrica que discorre sobre matrizes
efeito do direito às raízes, e este um mero efei- sociais e territoriais (espaço e tempo), subme-
to do direito às opções. É certo que a possi- tendo-as a critérios de autenticidade. À medida
bilidade desta transparência turbulenta entre que transitamos para uma cultura imagocêntri-
raízes e opções está também aberta a grupos ca, o espaço e o tempo são substituídos pelos
e culturas contra-hegemónicas e precisamen- instantes da velocidade, as matrizes sociais são
te para reforçar o carácter contra-hegemónico substituídas por mediatrizes e, ao nível destas,
das suas lutas. o discurso da autenticidade transforma-se num
Na nova constelação de sentido, raízes e op- jargão ininteligível. Não há outra profundidade
ções deixam de ser entidades qualitativamente senão a sucessão de ecrãs. Tudo o que está por
distintas. Ser raiz ou ser opção é um efeito de baixo ou por detrás, está igualmente por cima
escala e de intensidade. As raízes são a conti- e pela frente. Neste clima, talvez a análise de
nuação das opções numa escala e com uma in- Giles Deleuze (1968) sobre o rizoma adquira
tensidade diferentes e o mesmo se passa com uma nova actualidade. Efectivamente, Mark
as opções. Esta circularidade faz com que o di- Taylor e Esa Saarinen, dois filósofos dos media,
reito às raízes e o direito às opções sejam fungí- afirmam que “o registo imaginário transforma
veis. São isomórficos e apenas formulados em raízes em rizomas. Uma cultura rizómica não é
línguas e discursos diferentes. O jogo de espe- nem enraizada nem desenraizada. Nunca pode-
lhos entre raízes e opções atinge o paroxismo remos estar certos onde os rizomas irão irrom-
no ciberespaço. Na Internet, as identidades são per” (1994: 9).
duplamente imaginadas, como imaginações e A condição da nossa condição é estarmos
como imagens. Cada um é livre de criar as raí- num período de transição. As matrizes coexis-
zes que quiser e a partir delas reproduzir até ao tem com as mediatrizes, o espaço e o tempo
infinito as suas opções. Assim, a mesma ima- com os instantes de velocidade, a inteligibilida-
gem pode ser vista como uma raiz sem opções de do discurso de autenticidade com a sua inin-
ou como uma opção sem raízes, e nessa medi- teligibilidade. A equação entre raízes e opções
da deixa de fazer sentido pensar em termos de ora faz todo o sentido, ora não faz sentido ne-
equação raízes/opções. De facto, esta equação nhum. Estamos numa situação mais complexa
só parece fazer sentido numa cultura concep- que a de Nietzsche porque, no nosso caso, ora
504 Boaventura de Sousa Santos

se acumulam as realidades e as aparências, ora existe não se explica, nem pelo passado, nem
desaparecem umas e outras. Estas oscilações pelo futuro. Do determinismo desmentido pe-
drásticas de sentido são talvez a causa última da las consequências passa-se para a contingência
trivialização da equação entre raízes e opções, sem causas. Este nevoeiro epistemológico ac-
a terceira manifestação da desestabilização des- tua como bloqueio do pensamento e da acção
ta equação no nosso tempo. A trivialização da emancipatórios. Se a modernidade desarmara
distinção entre raízes e opções implica a triviali- o passado da sua capacidade de irrupção e de
zação de umas e outras. A nossa dificuldade de revelação para a entregar ao futuro, o presente
pensar hoje a transformação social reside aqui. kafkiano desarma o futuro dessa capacidade. O
É que o pathos da distinção entre raízes e op- que irrompe no presente kafkiano é errático, ar-
ções é constitutivo de modo moderno de pensar bitrário, fortuito e pode mesmo ser absurdo.
a transformação social. Quanto mais intenso Há quem veja, pelo contrário, na eterniza-
esse pathos, mais o presente se evapora e se ção do presente a nova tempestade do Para-
transforma em momento efémero entre o pas- íso que sustenta o Angelus Novus. Segundo
sado e o futuro. Ao contrário, na ausência desse Taylor e Saarinen,
pathos, o presente tende a eternizar-se como
monotonia da novidade programada e monocul- na rede telecomunicacional global de realidades
tura da diversidade reprimida ou tolerada, devo- digitalizadas, o espaço parece sucumbir numa
rando tanto o passado como o futuro. É esta a presença que não conhece ausência e o tempo pa-
nossa condição actual. Vivemos num tempo de rece estar condensado num presente não pertur-
bado pelo passado e pelo futuro. Se alguma vez
repetição, e a aceleração da repetição produz
atingido, esse gozo de presença no presente será
simultaneamente uma sensação de vertigem e
a realização dos mais antigos e mais profundos
uma sensação de estagnação. É tão fácil e irrele- sonhos da imaginação religioso-filosófica ociden-
vante cair na ilusão retrospectiva de projectar o tal (1994: 4).
futuro no passado, como cair na ilusão prospec-
tiva de projectar o passado no futuro. O presen- Em meu entender, a tempestade digital nas
te eterno e uno faz a equivalência entre as duas asas do anjo é virtual e pode ser ligada e desli-
ilusões e neutraliza ambas. Com isto, a nossa gada quando se quiser. Por isso, a nossa condi-
condição assume uma dimensão kafkiana: o que
A queda do Angelus Novus: O fim da equação moderna entre raízes e opções 505

ção é bem menos heróica e promissora do que tempos sociais que privilegiam. Baseando-me
essa tempestade propõe. A presença, cuja frui- livremente na tipologia dos tempos sociais de
ção é imaginada pela religião e pela filosofia, é Gurvitch (1969: 340), concebo as raízes em
a fulguração única e irrepetível de uma relação termos de uma combinação entre os seguintes
substantiva, produto de uma interrogação per- tempos: tempo de longa duração; tempo au
manente, seja ela o acto místico, a superação ralenti; tempo cíclico ou tempo que danse sur
dialéctica, a realização do Geist, o Selbstsein, place; tempo atrasado em relação a si mesmo
o acto existencial ou o comunismo. Ao contrá- (temps en retard sur lui même), tempo cujo
rio, a presença digital é a fulguração de uma desdobrar se mantém em espera. As opções,
relação de estilo, repetível sem limites, uma por sua vez, caracterizam-se por uma combi-
resposta permanente a todas as possíveis in- nação entre: tempo acelerado em relação a si
terrogações. Opõe-se à história sem ter a cons- mesmo (temps en avance sur lui même), que
ciência de que é histórica. Por isso, imagina o é o tempo da contingência e da descontinui-
fim da história sem ter de imaginar nele o seu dade; tempo explosivo, que é um tempo sem
próprio fim. passado nem presente mas apenas com futuro.
Num eixo contínuo entre tempo glacial16 e tem-
Tempo, códigos barrocos e po instantâneo, as raízes modernas tendem a
canonização agrupar-se em torno do tempo glacial, enquan-
A turbulência das escalas, a explosão das ra- to as opções modernas tendem a agrupar-se em
ízes e das opções e a trivialização da distinção torno do tempo instantâneo. Se no caso das ra-
entre elas são as marcas de um tempo de tran- ízes o tempo tende a ser lento, nas opções ele
sição que se exprime em temporalidades espe- tende a ser rápido. Como referi acima, no pa-
cíficas e em específicas formas de as codificar. radigma da modernidade ocidental a dualidade
As raízes e as opções distinguem-se de entre raízes e opções é uma dualidade funda-
acordo com o tempo. As sociedades, à seme- dora e constituinte, ou seja, não está submetida
lhança do que acontece com as interacções ao jogo que instaura entre raízes e opções. Por
sociais, constroem-se sobre uma multiplicida-
de de tempos sociais e diferem consoante as
combinações e as hierarquias específicas dos 16 Refiro-me ao tempo glacial geológico.
506 Boaventura de Sousa Santos

outras palavras, não há a opção de não pensar opções, longe de acabar com o determinismo
em termos de raízes e opções. das raízes, dá origem a um novo determinis-
A crise da equação entre raízes e opções mo, talvez ainda mais cruel: a compulsão da
analisada na secção anterior dá conta da me- escolha, cuja realidade e símbolo maior é o
dida e da natureza do período de transição mercado (Wood, 1996: 252).
em que nos encontramos. Antes de tudo, é A crise dos dualismos provoca um hiato
um período em que colapsam os dualismos que, embora se assemelhe a um fosso ou uma
subjacentes à equação tanto o dualismo das ausência de codificação, constitui na realida-
escalas (grande/pequena) como o dualismo de um campo fértil do qual emergem códigos
dos tempos (tempos de raízes/tempos de op- sintéticos. Em questão está a emergência do
ções). O colapso destes dualismos abre cami- que designo por códigos barrocos em que as
nho a novas servidões e compulsões que, por escalas e os tempos se misturam e nos quais
força do hiato de codificação dele resultante, as opções sub-expostas — isto é, reservadas
podem facilmente disfarçar-se de novas auro- para acções ou identificações privilegiadas,
ras de liberdade. Mas pode igualmente criar vividas como momentos únicos e avaliadas
oportunidades novas e genuínas para a rein- por critérios de particular exigência — funcio-
venção da emancipação social. A explosão de nam como raízes e as opções sobre-expostas
raízes associada ao ressurgimento das políti- — isto é, acções e identificações caracteriza-
cas identitárias não se limita a trivializar as das pela porosidade das suas demarcações,
próprias raízes. Traz também consigo o risco disponíveis para reformulação constante se-
de guetização, de tribalismo e de refeudaliza- gundo critérios pragmáticos — funcionam
ção — que o mesmo é dizer, a proliferação de como opções. O que é mais espantoso e origi-
diferenças que, por serem incomensuráveis, nal nestes códigos é o facto de, apesar de se-
impossibilitam qualquer tipo de coligação e rem intrinsecamente provisórios e facilmente
conduzem, em última análise, à indiferença. descartáveis, serem dotados de uma grande
A explosão de raízes provoca um desenrai- consistência enquanto duram. Por isso, eles
zamento que gera escolhas ao mesmo tempo são tão intensamente mobilizadores quanto
que bloqueia o exercício efectivo dessas mes- convincentemente substituíveis. Os hiatos ou
mas escolhas. Por outro lado, a explosão de fossos que separam os códigos tornam as se-
A queda do Angelus Novus: O fim da equação moderna entre raízes e opções 507

quências existentes entre eles inapreensíveis no entanto, ser igualmente mobilizada para
enquanto tais. Assim, as sequências não têm projectos emancipatórios17.
aparentemente consequências, tal como as Existe mestiçagem de dois tipos: a que re-
consequências não têm aparentemente uma sulta da sobre-exposição e a que resulta da
sequência. A experiência de risco é, assim, sub-exposição. A mestiçagem resultante da
muito mais intensa: quando as causas só são sobre-exposição diz respeito a constelações
apreensíveis como consequências, não existe de raízes e de opções que proliferam de uma
seguro contra este tipo de risco. forma caótica e que mudam de lugar de uma
Estes códigos barrocos pós-dualistas são maneira considerada irregular e imprevisível
formações discursivas e performativas que na lógica mecanicista da previsão científica. A
funcionam através da intensificação e da sobre-exposição é característica da manipula-
mestiçagem. Existe intensificação sempre ção das identidades étnicas, sexuais, raciais,
que uma dada referência, acção ou identi- regionais nas indústrias culturais e na socie-
ficação social ou cultural é representada e, dade de consumo, em geral, onde géneros
portanto, exposta para além dos seus limites musicais, hábitos alimentares, representações
actuais — seja por sobre-exposição ou sub- corporais, paisagens, vestuário, etc., são se-
-exposição — a ponto de perder o seu carác- lectivamente recodificados e combinados na
ter até agora considerado “natural” (como, produção de novos produtos e serviços tão
por exemplo, quando uma raiz se transforma ancestrais ou genuínos quanto a última moda.
em opção ou viceversa). Existe mestiçagem Mas a mestiçagem por sobre-exposição tam-
sempre que duas ou mais referências, acções bém ocorre hoje já com alguma frequência nas
ou identificações sociais ou culturais autó- lutas conjuntas de diferentes dos movimen-
nomas se misturam ou interpenetram a tal tos sociais, feministas, ecologistas, de povos
ponto e de tal modo que as novas referências indígenas, de direitos humanos, etc. Trata-se
daí emergentes patenteiam a sua herança
mista (Santos, 1995: 499-506; 2000: 340-352).
A mestiçagem é, em si mesma, politicamente 17 Nas secções seguintes referirei especificamente o
seu potencial emancipatório ao analisar o contributo
ambivalente. Muitas vezes ao serviço de pro-
dos códigos barrocos para a constituição de subjectivi-
jectos de regulação e até de opressão, pode, dades transgressivas e desestabilizadoras.
508 Boaventura de Sousa Santos

de articulações pragmáticas, com objectivos ram um hiato tão grande entre o indivíduo e o
limitados formulados segundo linguagens hí- Estado que as opções políticas geradas pelas
bridas, e operacionalizados através de acções instituições modernas redundaram num imen-
reversíveis. A mestiçagem resultante da sub- so vazio. Há, por isso, que reinventar a política
-exposição diz respeito a constelações de raí- em termos de sub-política, que o mesmo é dizer,
zes e de opções que se concentram em repro- passando a politizar aquilo que a modernidade
duções exemplares e idealmente singulares, industrial considerou não-político. As lutas fe-
onde as opções se intensificam a tal ponto que ministas e ecológicas são exemplos privilegia-
se transformam em raízes. dos para ilustrar os novos códigos sintéticos
A mestiçagem resultante da sobre-exposição capazes de ultrapassar dualismos tais como
é própria dos códigos barrocos, em que as raí- público/privado, especialista/leigo, político/
zes estão sujeitas à lógica das opções. Ou seja, económico, formal/informal e de modelar a so-
há raízes porque há opções. O risco, presença ciedade a partir de baixo e através da alteração
dominante em todos os códigos barrocos, é reflectida de regras (reflective rule altering).
enfrentado, neste tipo de código, pelo recurso O segundo tipo de código barroco é cons-
à criatividade da acção e fazendo apelo à auto- tituído pela mestiçagem resultante da sub-ex-
nomia, à auto-reflexividade, e à extra-institu- posição. Neste caso, as opções submetem-se à
cionalidade. Nos códigos barrocos que actuam lógica das raízes, ou seja, só há opções porque
por sobre-exposição, a mestiçagem preside aos há raízes. Aqui o risco é enfrentado, não pelo
processos sociais de funcionamento em rede e recurso à criatividade da mistura de compo-
de dispersão criativa. Um exemplo consistente nentes simbólicos e políticos diferentes na ac-
de um código barroco sob a forma de sobre-ex- ção ou identificação, mas antes pela sustenta-
posição é o conceito de sub-política proposto bilidade da acção ou identificação considerada
por Ulrich Beck (1995). Nos antípodas de Fou- exemplar ou singular. Este tipo de código barro-
cault, Beck parte da ideia de que as instituições co preside aos processos de canonização. Por
da modernidade industrial criaram sujeitos que “processos de canonização” refiro-me, aqui, a
já não são capazes de controlar. A ciência e o processos de uma particular intensificação de
direito, as duas mega-raízes da modernidade referências, independentemente de aparece-
industrial ocidental (Santos, 2000: 53-178), cria- rem como ligações retrospectivas ou prospec-
A queda do Angelus Novus: O fim da equação moderna entre raízes e opções 509

tivas. A intensificação tanto pode ser produzida Entre os muitos processos de canonização
por uma imitação quase exacta (ou reprodu- em curso neste período de transição, distingo
ção), como acontece no caso do cânone mu- três: o cânone literário, o património comum
sical, como pela dificuldade extrema — se não da humanidade, e o património cultural e natu-
mesmo pela impossibilidade — de imitar, como ral do mundo.
é o caso da canonização católica18. Mas, seja
qual for o processo, a intensificação confere ao O cânone literário
objecto da intensificação uma exemplaridade,
Entende-se por cânone literário na cultura
uma estranheza, um valor e uma solidez especí-
ocidental o conjunto de obras literárias que,
ficos, que o tornam apto a funcionar como con-
num determinado momento histórico, os inte-
dição ou base para múltiplos exercícios de es-
lectuais e as instituições dominantes ou hege-
colha, sejam estes permitidos ou proibidos. Em
mónicos consideram ser os mais representati-
termos ideais, o processo de intensificação fica
vos e os de maior valor e autoridade numa dada
consumado quando a escolha do objecto da in-
cultura oficial. O papel que coube à igreja na
tensificação prescinde de justificação enquanto
constituição do cânone bíblico foi idêntico ao
escolha para se tornar, ela própria, justificação
desempenhado pela escola e pela universidade
para outras escolhas. Enquanto os códigos bar-
do Norte global no que respeita ao cânone lite-
rocos que funcionam através da mestiçagem
rário e ao cânone artístico em geral (Guillory,
por sobre-exposição — revelam um potencial
1995: 239)20. Durante muito tempo, não foi pre-
emancipatório ao descanonizarem a realidade
constituida, os códigos barrocos que funcio-
nam através da mestiçagem por sub-exposição desestabilizadoras, referirei o potencial emancipatório da
presidem aos processos de canonização e são, descanonização tornada possível pelos códigos barrocos.
por isso, os mais intrigantes e complexos, exi- 20 No domínio da religião católica deve distinguir-se
gindo uma reflexão mais pormenorizada19. entre o cânone bíblico e a canonização de pessoas do-
tadas de “virtudes heróicas” decretada pelo Papa, ain-
da que em ambos os casos estejamos perante códigos
barrocos operando pela sub-exposição. Esta sub-expo-
18 Veja-se a nota seguinte. sição, e a consequente dramatização da exemplaridade
19 Ao tratar adiante da constituição de subjectividades que decorre dela, pode assumir graus diversos no caso
510 Boaventura de Sousa Santos

ciso falar do cânone literário. Os autores consi- com identidades e culturas outras, cada vez
derados representativos eram consensuais. Na mais audíveis e difíceis de ignorar22. O fenó-
segunda metade do século XX, porém, os países meno foi particularmente saliente nos Estados
centrais da Europa e, em particular, os Estados Unidos, com a problematização do cânone a
Unidos, viram-se confrontados com o proble- partir das diferentes posições feministas, étni-
ma, que era fundamentalmente o de saber que cas e multiculturais (Lauter, 1991). Neste con-
obras literárias têm ou não direito a entrar no texto, o cânone sentiu necessidade de se (re)
panteão sagrado da cultura nacional21. Ou seja, afirmar. Assim, Harold Bloom (1994) veio pro-
que autores são publicados pelas grandes edito- por vinte e seis grandes autores (romancistas,
ras, que obras merecem recensões críticas nos poetas, dramaturgos) os quais, de forma simul-
jornais e revistas mais respeitados e influentes, taneamente evidente e arbitrária, o crítico quis
que títulos entram nos programas escolares, reinstituir ou radicar como sendo o cânone
que autores são citados pelos intelectuais de ocidental23. No cânone literário, funcionam os
serviço para dar testemunho da identidade da códigos barrocos de mestiçagem por sub-expo-
nação. A relativa estabilidade de um cânone fa- sição: as obras escolhidas para integrar o câno-
cilmente reconhecível e reconhecido foi posta ne são aquelas que deixam de estar expostas à
em causa pelo confronto do mundo ocidental lógica das opções e passam a ser a base ou raiz
do campo literário. O processo de intensifica-
ção que estas obras sofrem dota-as do capital
da canonização. Em geral, a canonização significa a cultural necessário para que possam finalmente
veneração pública decretada pela Igreja. Mas esta ve-
patentear a exemplaridade, o carácter único e a
neração pode ser imposta ou apenas permitida e, em
qualquer dos casos, pode ser universal ou local. Fala-se inimitabilidade que as distingue.
de beatificação quando a veneração é apenas permitida
ou imposta apenas a uma parte da Igreja.
21 Na sua introdução a O cânone nos estudos Anglo- 22 Sobretudo com a crescente presença de autores do
-Americanos (Caldeira [org.], 1994), Maria Irene Ra- Sul global no Norte global.
malho explica esta especificidade anglo-saxónica à luz 23 No meio literário brasileiro, veja-se o excelente
da existência, nos Estados Unidos, de grupos sociais contributo de Leyla Perrone-Moisés (1998) para a dis-
muitíssimo diversificados e com memórias e projectos cussão deste tema. Veja-se igualmente a recensão críti-
nacionais muito divergentes. ca de Maria Irene Ramalho (1999).
A queda do Angelus Novus: O fim da equação moderna entre raízes e opções 511

Enquanto código barroco, o cânone literário é função de garante da identidade e da estabilida-


um código sintético e, além disso, também estru- de nacional e cultural, e aqueles que o atacam
turalmente ambivalente, uma vez que, para sub- através precisamente do questionamento da
meter as opções a uma lógica de raízes — como concepção de identidade (elitista e parcial) que
é próprio da mestiçagem por subexposição —, ele impõe. O debate sobre o processo de forma-
tem de começar por optar entre várias alterna- ção e de reprodução do cânone (Kamuf, 1997)
tivas de modo a negar, num estádio posterior, o é esclarecedor, por si só, da natureza histórica
estatuto de raiz a todas as alternativas que não do cânone e da sua volatilidade, bem como das
tenham sido objecto de escolha. Daí que Bloom forças e das instituições sociais que, de uma
afirme, com assinalável ironia: “aqui a escolha de maneira ou de outra, lhe dão forma. Torna-se
autores não é tão arbitrária como poderá pare- igualmente importante reparar na capacidade
cer, já que foram seleccionados tanto pela sua de resistência do cânone, na facilidade com que
sublimidade como pelo seu carácter represen- cria solidez e se impõe como autoridade, roti-
tativo” (1994: 2-3). E continua, após interrogar- na, ou simples inércia. A intensidade do debate,
-se retoricamente sobre o que faz com que um com as suas repercussões institucionais, políti-
determinado autor ou obra sejam considerados cas e mediáticas, facilmente se deixa apropriar
canónicos: “A resposta [é] a estranheza, uma for- pelo processo de intensificação subjacente à
ma de originalidade que ou não pode ser assimi- mestiçagem por sub-exposição. A própria dis-
lada ou nos assimila de tal modo que deixamos cussão sobre as opções e as alternativas que
de a encarar como estranha”. Alguns anos mais elas implicam faz aumentar a submissão das
tarde, Bloom haveria de redefinir esta “originali- opções à lógica das raízes. Até certo ponto, a
dade” como “génio”, procurando de certo modo canonização alimenta-se da descanonização.
responder às aspirações multiculturais dos tem- O cânone bíblico, constituído pelos textos
pos, ao alargar significativamente o seu cânone a que se considera ser, no seu conjunto, a Sa-
literaturas não ocidentais (Bloom, 2002). grada Escritura da tradição judaico-cristã, foi
O cânone literário tem sido especialmente formado muito cedo e foi sendo conservado de
contestado no mundo anglosaxónico. As posi- maneira muito consistente; inclusivamente, os
ções extremam-se entre aqueles que defendem próprios desvios a esse cânone revelaram-se
o cânone tal como o acham, investindo-o da sempre de uma persistência notável.
512 Boaventura de Sousa Santos

do que com acontecimentos e contextos. Embo-


Dado o carácter da Igreja enquanto instituição à ra menos visível, nalguns países, do que o câno-
qual ou se pertence ou não se pertence, o processo ne literário, o cânone histórico também existe,
de selecção canónica neste contexto tem (numa consistindo na narrativa fundadora de um dado
base dogmática) de assumir a forma de um proces- povo, grupo social ou Estado-nação e dos even-
so de inclusão ou exclusão rigorosamente termi-
tos históricos considerados de importância pri-
nante. Todo o texto potencialmente integrante das
macial — os quais são, por esse mesmo motivo,
Escrituras, a ser incluído ou excluído, deverá sê-lo
de uma vez por todas (Guillory, 1995: 237). vistos como canónicos. Nas últimas décadas, o
cânone histórico de alguns países viu-se expos-
No cânone literário, as coisas passam-se to ao mesmo tipo de turbulência que vem afec-
de modo diferente, em virtude das diferentes tando o cânone literário. Refiram-se apenas, a
práticas institucionais que distinguem as igre- título de exemplo, as controvérsias geradas pelo
jas das escolas. Mas mesmo dentro do campo revisionismo histórico de François Furet (1978)
eclesiástico há diferenças. Se é certo que o câ- sobre a Revolução Francesa ou de Renzo de Fe-
none bíblico revela uma grande estabilidade, lice (1977 [1969]) a propósito do fascismo italia-
já o direito canónico, apesar de muito mais no. Nos Estados Unidos, importa referir a obra
estável do que o direito comum dos Estados, do historiador e cientista político, Howard Zinn,
sofreu algumas transformações ao longo dos em particular A People’s History of the United
séculos. Tais transformações devem-se, em States (1980), uma história da nação americana
parte, à heterogeneidade interna dos diferentes contada da perspectiva dos desprivilegiados24.
elementos normativos que constituem o direito
canónico: o direito divino (direito divino posi- O património comum da humanidade
tivo assente na “Revelação”), o direito natural O património comum da humanidade é uma
(direito divino manifestado na “natureza das doutrina de direito internacional e de relações
coisas”) e o direito regulatório em vigor (o di-
reito eclesiástico positivo).
Ao contrário do cânone literário, o cânone 24 A perspectiva pós-colonial tem-se constituído
histórico tem menos a ver com textos e autores como um campo privilegiado de questionamento das
histórias canónicas sobre o Sul global.
A queda do Angelus Novus: O fim da equação moderna entre raízes e opções 513

internacionais25. O conceito foi formulado pela fique comprometida a sustentabilidade da vida


primeira vez em 1967 por Arvid Pardo, Embai- social. No entanto, contrariamente ao contrato
xador de Malta junto das Nações Unidas, a pro- social, e como é próprio do código barroco, o
pósito das negociações conduzidas no âmbito património comum não é uma escolha definiti-
desta organização sobre a regulação interna- va, mas sim um processo de selecção perma-
cional dos oceanos e dos fundos marinhos. Foi nente. Seja o que for que passe a constituir pa-
intuito de Arvid Pardo trimónio comum, ele é algo que sempre existiu.
O momento da nomeação cria a eternidade do
proporcionar uma base sólida para uma futura nomeado: o nomeado são as entidades naturais
cooperação a nível mundial […] através da acei- pertencentes à humanidade no seu todo. Todos
tação, por parte da comunidade internacional, de os povos têm, por isso, o direito a ser ouvidos
um novo princípio do direito internacional […] e a intervir na gestão e na distribuição dos seus
que os fundos oceânicos e o solo e subsolo mari-
recursos. O património comum, como refere
nhos sejam dotados do estatuto especial de “patri-
José Manuel Pureza, implica: a não apropria-
mónio comum da humanidade” e que como tal se-
jam reservados exclusivamente para fins pacíficos ção; a gestão a cargo de todos os povos; a dis-
e administrados por uma autoridade internacional tribuição internacional dos benefícios obtidos
para benefício de todos os povos (1968: 225). com a exploração dos recursos naturais; o uso
pacífico, incluindo a liberdade de investigação
Desde então que o conceito de património científica em benefício de todos os povos; a
comum tem vindo a ser aplicado a outras “áre- conservação com vista às gerações vindouras
as comuns” tais como a Lua, o espaço exterior (Pureza, 1993: 19; 1998a, 1998b).
sideral e a Antártida. A ideia assemelha-se à Apesar de formulado por juristas internacio-
ideia do contrato social: construir uma plata- nais, o conceito de património comum trans-
forma comum sobre a qual as diferenças e as cende a área do direito, uma vez que tanto o
divisões possam florescer sem que com isso seu objecto como o sujeito da regulamentação
transcendem o âmbito dos Estados. A huma-
nidade emerge, na verdade, como sujeito do
25 Sobre a doutrina do património comum da hu-
direito internacional (para além, portanto, dos
manidade, ver Pureza, 1993 e Santos, 1995: 365-397;
2002: 301-311. Estados), titular de um património próprio e da
514 Boaventura de Sousa Santos

prerrogativa da gestão dos espaços e recursos especialmente daqueles que dispõem de meios
incluídos nos bens comuns globais. O patrimó- tecnológicos e financeiros para a exploração do
nio comum é um código barroco que funcio- solo marinho (Kimball, 1983: 16). A Convenção
na através da mestiçagem por sub-exposição. das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, as-
Os recursos naturais do património comum sinada em Montego Bay a 10 de dezembro de
sofrem um processo de intensificação que os 1982, constitui um bom exemplo disso. A Con-
converte em fundamentos da sobrevivência da venção estabelece que, para além dos limites da
vida na terra. A exemplo do que sucede no caso jurisdição nacional, os fundos marinhos e seu
do cânone literário, as opções intensificam-se a subsolo são património comum da humanida-
tal ponto que o que quer que venha a ser selec- de, ou seja, que os direitos de exploração dos
cionado fica aparentemente isento do jogo das seus recursos residem na humanidade em sua
raízes e opções. Enquanto a selecção se manti- totalidade. Não obstante haver sido originaria-
ver, ele torna-se uma raiz sem opções. A exem- mente subscrita por 159 Estados, levou doze
plaridade, o carácter único e o valor inestimá- anos até ser ratificada por sessenta Estados,
vel dos recursos que constituem o património número de ratificações necessário para a tor-
comum são mantidos através da ideia de que a nar efectivamente vigente. A implementação da
vida na terra depende deles para existir. Convenção teve início em novembro de 1994.
Tal como o cânone literário, a doutrina do Em virtude da pressão exercida pelos Estados
património comum da humanidade tem sido Unidos no sentido de corrigir algumas das suas
contestada. Contudo, e ao contrário do cânone “imperfeições”, foi posta em prática com um
literário, a canonização do património comum acordo anexo que acabou por neutralizar os
tem sido atacada por grupos hegemónicos e seus aspectos mais inovadores.
em especial pelos Estados Unidos da América. Uma das características mais reveladoras do
Têm sido os grupos contrahegemónicos — tais património comum da humanidade é o seu —
como os movimentos pela paz e pela ecologia, bem barroco — carácter aberto, isto é, a capa-
bem como alguns países do Sul — quem mais se cidade de alargar o processo de intensificação
tem empenhado na luta pela canonização dessa a outras áreas ou recursos, convertendo-os as-
doutrina. O património comum da humanida- sim em novas raízes de vida na Terra. A canoni-
de colide com os interesses de alguns Estados, zação do património comum foi alargada ao es-
A queda do Angelus Novus: O fim da equação moderna entre raízes e opções 515

paço, por exemplo, com o Tratado sobre a Lua teger o património consolidou-se no pós-
de 1979, o qual passou a fazer parte do direito -Segunda Guerra Mundial. Este movimento
internacional em 198426. O artigo XI do Tratado viria a ser formalizado com a assinatura da
estipula que a Lua e os seus recursos naturais Convenção da UNESCO sobre o património
são património comum da humanidade. O arti- mundial cultural e natural, que ratificou a fu-
go VI estipula que “a exploração da Lua é algo são de dois movimentos distintos: um mais
que diz respeito a toda a humanidade e deve preocupado em suster as ameaças a que es-
ser levada a cabo em benefício e no interesse tão sujeitos os sítios culturais e outro mais
de todos os países, independentemente do seu orientado para a preservação da natureza27.
grau de desenvolvimento económico e científi- Segundo o estabelecido pela Convenção da
co”. Tal como aconteceu com a Convenção do UNESCO sobre a Protecção do Património
Direito do Mar, o Tratado sobre a Lua foi firma- Mundial Cultural e Natural, de 1972 (ratifica-
do por sobre um cenário de lutas anticanoni- da por 181 países em março de 2005), todos
zadoras travadas pelas potências hegemónicas. os monumentos, conjuntos arquitectónicos,
Os Estados Unidos, a antiga União Soviética, a sítios e formações naturais que preencham
China, o Japão e o Reino Unido não se contam determinados critérios e testes de autenti-
entre os seus signatários, pelo que não estão cidade serão considerados como sendo de
juridicamente vinculados pelo tratado. “valor universal excepcional” e, consequen-
temente, integrados na Lista do Património
O património mundial Mundial. Esse valor pode ser estabelecido a
cultural e natural partir de uma grande diversidade de perspec-
tivas, desde a história à arte, passando pela
O terceiro processo de canonização a que
ciência, pela estética, pela antropologia, pela
quero aqui aludir é o do Património Mundial
conservação ou pela beleza natural. Tal como
Cultural e Natural. A ideia de concretizar um
movimento internacional destinado a pro-
27 A ideia de conciliar estes dois movimentos emergiu
nos EUA quando, em 1965, numa conferência ocorrida
26 Sobre este tema, ver Baslar, 1998, e Santos, na Casa Branca, foi sugerida a criação de uma Funda-
2002: 305. ção do Património Mundial.
516 Boaventura de Sousa Santos

nos outros processos de canonização, o pa- 3. dar um testemunho ímpar, ou pelo menos
trimónio mundial cultural e natural funciona excepcional, de uma tradição cultural ou
através de uma intensificação excepcional de uma civilização viva ou já desapareci-
dos objectos seleccionados, conferindo-lhes da; ou
uma tal aura de exemplaridade, singularida- 4. proporcionar um exemplo saliente de um
de e insubstituibilidade que estes adquirem tipo de construção ou de conjunto ar-
o estatuto verdadeiramente fundamental de quitectónico ou tecnológico ou de paisa-
qualidade de vida na terra. Por esse motivo, gem que ilustre um (ou mais) período(s)
e nos termos da própria Convenção, a sua de- significativo(s) da história humana; ou
terioração ou desaparecimento constituiriam
5. proporcionar um exemplo saliente de um
um “empobrecimento danoso do património
povoamento humano ou de uma ocupação
de todas as nações do mundo”. Este processo
da terra de tipo tradicional e representati-
de intensificação transparece de forma muito
vo de uma cultura (ou culturas), principal-
nítida dos critérios definidos e aplicados pelo
mente se se tornou vulnerável pelo efeito
Comité do Património Mundial28:
de mutações irreversíveis; ou
1. Representar uma obra-de-arte do génio
criador humano; ou 6. estar directa ou materialmente associado
a acontecimentos ou a tradições vivas, a
2. dar testemunho de um significativo inter-
ideias, crenças ou obras de arte e literárias
câmbio de valores humanos ao longo de
de significado universal excepcional (sen-
um certo período ou numa área cultural
do que o Comité considera que este critério
determinada, no que se refere ao desenvol-
apenas deverá justificar a inclusão na Lista
vimento da arquitectura, da tecnologia das
em circunstâncias excepcionais ou sempre
artes monumentais, do planeamento urba-
que aplicado em conjunto com outros crité-
no, ou da arquitectura paisagística; ou
rios culturais ou naturais).

28 Estes dados podem ser consultados através da No que diz respeito ao património natural, os
página de Internet da UNESCO, World Heritage Com- sítios ou formações naturais (sejam eles físicos,
mitte, no endereço <http://www.unesco.org:80//whc/
criteria.htm>. biológicos, geológicos ou fisiológicos) deverão:
A queda do Angelus Novus: O fim da equação moderna entre raízes e opções 517

1. ser exemplos eminentemente representati- parte da Organização das Cidades Património


vos das grandes etapas da história da Ter- Mundial (fundada em 1993), cujo principal ob-
ra, incluindo a presença de vida, processos jectivo é fomentar a cooperação, a solidarieda-
geológicos ocorridos no desenvolvimento de e o apoio mútuo entre as cidades para que
das formas terrestres, ou elementos geo- possam conservar “a posição privilegiada” em
mórficos ou fisiográficos importantes; ou que foram investidas29.
2. ser exemplos eminentemente representati- Enquanto processo de canonização, o Pa-
vos de processos ecológicos ou biológicos trimónio Cultural e Natural Mundial apresen-
ocorridos durante a evolução e desenvolvi- ta algumas semelhanças com o património
mento dos ecossistemas e das comunida- comum da humanidade. Em ambos os casos,
des de plantas e animais terrestres, aquáti- o objectivo consiste em definir sistemas de
cos, costeiros e marinhos; ou protecção e estatutos jurídicos especiais para
recursos considerados de importância excep-
3. conter fenómenos naturais ou áreas de
cional para a sustentabilidade e para a quali-
uma beleza natural e de uma importância
dade da vida na terra. Ainda que com menos
estética excepcional; ou
intensidade do que no caso da canonização
4. conter os habitats naturais mais repre- do património comum da humanidade (ou das
sentativos e importantes para a conser- próprias obras literárias), a canonização do
vação in situ da diversidade biológica, património cultural e natural mundial também
incluindo aqueles em que sobrevivam es- tem sido muito contestada.
pécies ameaçadas de valor universal ex-
cepcional do ponto de vista da ciência ou
da conservação. 29 Ver os estatutos da Organização das Cidades Patri-
mónio Mundial, adoptados em Fez, a 8 de setembro de
1993. Outras instituições relacionadas com o patrimó-
Em dezembro de 2005, a lista do património nio mundial são o Centro Internacional para o Estudo
mundial era constituída por 812 bens, 620 dos da Preservação e Restauro das Propriedades Culturais
quais culturais, 160 naturais e 24 mistos. 219 (ICCROM), o Conselho Internacional para os Monu-
cidades de 75 países tinham sido declaradas mentos e Lugares (ICOMOS), o Centro do Património
Mundial (CPM) e a União Internacional para a Conser-
património mundial. Estas 219 cidades fazem vação da Natureza (IUCN).
518 Boaventura de Sousa Santos

Desde 1978 que o Comité do Património na Europa, mas que entre 1994 e 2001, 49% dos
Mundial tem vindo paulatinamente a incluir bens reconhecidos nesse período situavam-se
novos sítios à Lista, ao ritmo de aproximada- neste continente, cuja quota na lista se elevava
mente 31 novos sítios por ano só na década de a 44% do total de bens inscritos. Em contrapo-
90. A partir de 1993 o ritmo anual de inscrições sição, a África, que ocupava uma quota de 24%
na Lista do património mundial conheceu uma dos bens inscritos na lista entre 1978 e 1985,
nítida aceleração. Em 1997 e em 1999 foram viu o seu peso relativo e absoluto decair, já que
quase 50 os bens inscritos num ano, e em 2000 apenas 9% dos bens inscritos entre 1994 e 2001
foram mais de 60. Com a intensificação da ins- se localizavam em África, cujo peso na lista é
crição recrudescem críticas que tinham vindo somente de 14%. A análise pós-colonial destes
a emergir do início dos anos 1990. Designada- números permite mostrar a dificuldade em des-
mente críticas que salientam a ocidentalização colonizar o gosto, a avaliação estética e as no-
da lista do património mundial, o favorecimen- ções de singularidade e de preciosidade. À luz
to de bens culturais em detrimento dos bens desta análise, entendem-se melhor os debates
naturais e das dimensões monumentais relati- havidos nas duas últimas décadas no seio do
vamente a outras dimensões menos celebriza- Comité do Património Mundial.
das da cultura, configurando, na sua globalida- As críticas que estes números fizeram emer-
de, uma crítica que aponta para a banalização gir levaram a UNESCO a mudar a sua políti-
do estatuto de património mundial (Peixoto, ca de certificação de bens a serem inscritos
2001). No fim dos anos 1980, o número de cida- na Lista. A partir de meados dos anos 1980,
des com o estatuto de património mundial era o Comité do Património Mundial começou a
de 71. Dez anos mais tarde esse número eleva- ter a preocupação de assegurar uma maior re-
va-se a 164. Mas tão significativo quanto este presentatividade da lista do património mun-
crescimento é o facto de a percentagem de ci- dial, tanto em termos de áreas geográficas,
dades património mundial situadas na Europa como de tipos de património. A criação de
ter passado, numa década, de uma quota de 45% uma nova categoria patrimonial, as paisagens
para 57%. A lista dos bens do património mun- culturais, apresentou-se como a solução mais
dial mostra também que, de 1978 a 1985, 36% viável para tornar efectiva a nova estratégia
dos bens inscritos na lista estavam localizados da UNESCO. Todavia, mau grado os esforços
A queda do Angelus Novus: O fim da equação moderna entre raízes e opções 519

desenvolvidos, e as muitas reuniões de ocorri- dos 23 bens inscritos na lista entre 1993 e 2001
das que reuniram peritos de vários quadrantes estão situados na Europa.
geográficos, tornou-se difícil obter um con- Procurando responder às vozes críticas
senso relativamente ao conceito de paisagens cada vez mais insistentes, o Comité do Patri-
culturais. O critério inicialmente sugerido para mónio Mundial decidiu, na sua vigésima quarta
definir as paisagens culturais apontava para as sessão, em 2000, limitar a 30, durante um perí-
paisagens rurais. Mas rapidamente foi abando- odo experimental de 2 anos, o número máximo
nado por se basear numa concepção restritiva, de inscrições por ano30. Esta decisão apoiou-se
sendo acusado de ser um critério ocidentali- em critérios que pretendiam travar a ocidenta-
zado e europaizante. Em 1991, o Secretário do lização e a monumentalização da lista. Assim,
património mundial sugeriu um novo critério, foi decidido que países sem nenhum bem ins-
que apelava à exemplaridade de associações crito na lista podem apresentar até 3 candi-
entre elementos culturais e naturais. Mas este daturas por ano, enquanto os outros apenas
critério também não foi aceite pelos membros podem apresentar uma candidatura. Nos anos
do Comité do Património Mundial, para quem em que o número de novas propostas for supe-
a exemplaridade se baseava em qualidades rior a 30, é aplicado um processo de selecção
que não eram suficientemente universais. Em que favorece as categorias patrimoniais menos
1992, e após várias reuniões de peritos, o Co- representadas. Esta nova política da UNESCO
mité do Património Mundial adoptou finalmen- começou a ser concebida em 1994 no âmbito
te novas orientações que permitiram pôr em da adopção, pelo Comité do Património Mun-
prática a categoria patrimonial das paisagens dial, de uma “estratégia global para uma lista
culturais. Foram então estabelecidas três cate- do património mundial representativa, equili-
gorias: as paisagens intencionalmente criadas brada e credível” (UNESCO, 2002).
pelo homem; as paisagens evolutivas (que se
subdividem em paisagens relíquia ou fósseis e
em paisagens vivas); e, por fim, as paisagens 30 Desde que a Convenção existe, apenas por duas
associativas (UNESCO, 1992). Porém, a obten- vezes houve 30 Estados a apresentar mais que uma can-
didatura num só ano. O que significa que se cada país
ção deste consenso em 1992 não travou a oci-
apresentar uma única proposta por ano é provável que o
dentalização, nem muito menos as críticas: 16 Secretariado não receba mais que 30 propostas anuais.
520 Boaventura de Sousa Santos

As diferenças entre o cânone literário, o da formação ou sítio canonizado31. A Conven-


património cultural e natural mundial são sub- ção de 1972 afirma que o reconhecimento do
tis. A inclusão de um dado sítio/localidade no valor universal de um determinado sítio é a
cânone cultural ou natural não implica direc- demonstração mesma da “importância de que
tamente a exclusão de um sítio alternativo, se reveste, para todos os povos do mundo, a
principalmente se os sítios ficam em países salvaguarda dessa propriedade única e insubs-
e regiões diferentes. Isto poderia levar-nos a tituível, independentemente do povo a que pos-
concluir que no caso do património cultural e sa pertencer”.
mundial, ao contrário do cânone literário, esta-
mos perante um jogo de soma positiva. A ver- Os tempos dos códigos barrocos
dade é que, como Paulo Peixoto tem vindo a Como acabei de propor, são de dois tipos os
mostrar, a nível interno dos Estados da Europa códigos barrocos: os que funcionam através de
ocidental, a política da UNESCO institui uma uma mestiçagem por sobre-exposição e que
concorrência feroz entre candidaturas, para presidem aos processos de dispersão criativa e
determinar as que integram a lista preliminar de difusão em rede; e os códigos que funcionam
e qual delas é candidatada em cada ano (Pei- através de uma mestiçagem por sub-exposição
xoto, 2001). Por outro lado, enquanto o código e que presidem aos processos de canonização.
literário se alimenta, até certo ponto, das for- Ambos os tipos são sintéticos nas respectivas
ças que o contestam, no património cultural e aspirações. As diferentes espécies de mestiça-
natural os limites da canonização residem nas gem que eles produzem entre raízes e opções
forças que o promovem: uma canonização vir- são bem a prova de que o dualismo das raízes e
tualmente infinita de sítios poderia ter o efeito opções se encontra ainda presente neles, ainda
perverso de descanonizar (isto é, trivializar) sí- que apenas como ruína, como uma memória ou
tios já constantes da lista. Os códigos barrocos
que funcionam por sub-exposição dependem
da produção de escassez: a intensificação exi- 31 Contudo, uma das críticas que se faz à patrimonia-
ge rarefacção. Ao invés do património comum lização promovida pela UNESCO é que ela desapossa
muitas vezes os “legítimos proprietários” em favor dos
da humanidade, o Património Natural e Cultu-
turistas, e que o reconhecimento de um bem potencia a
ral não questiona a posse pública ou privada sua segregação (Paulo Peixoto, comunicação pessoal).
A queda do Angelus Novus: O fim da equação moderna entre raízes e opções 521

um desconforto. Trata-se, portanto, de códigos elementos de um determinado dualismo. Tal


ambivalentes, de uma ambivalência que se re- dualismo pode verificar-se entre duração e
flecte nos tempos sociais que eles privilegiam. explosão, entre a irregularidade da emergên-
E estes tempos são, eles próprios, ambivalen- cia ou a irregularidade do desaparecimento
tes, irregulares, arrítmicos. do ritmo, entre antecipação e anacronismo.
Nos códigos barrocos de hoje, identifico, O modo como esta ambivalência se apresen-
ainda na esteira de Gurvitch (1969: 341-43), três ta pode variar de acordo com o ritmo — mais
temporalidades distintas. Antes de mais, existe lento ou mais rápido — que dá forma às mu-
o tempo trompe-l’oeil que, embora à primeira danças ou às oscilações. Os andamentos mu-
vista pareça de longa duração, esconde uma sicais largo, lento, adagio, andante e mode-
capacidade enorme de irrupção, de dar origem rato tendem a ser predominantes nos códigos
a novas emergências por vezes abruptas e sem- barrocos de sub-exposição e nos respectivos
pre inesperadas. Em segundo lugar, existe o processos de canonização. Nos códigos bar-
tempo do compasso irregular entre o emergir rocos de sobre-exposição e nos respectivos
e o desaparecer de ritmos, um tempo de dura- processos de dispersão criativa e de difusão
ção e de intervalos enigmáticos entre séries de em rede predominam os andamentos allegro,
duração. Este é o tempo da incerteza, da con- presto e prestissimo.
tingência e da descontinuidade. Por fim, existe
o tempo que alterna entre o atraso e o avanço, Um futuro para o passado: as
um tempo de descontinuidades entre anacro- imagens desestabilizadoras
nismos e antecipações, um tempo de luta entre Como a própria proliferação de códigos bar-
passado e futuro, pela conquista de espaço no rocos mostra, não é fácil sair de uma situação
presente. Nesta temporalidade o tempo é, as- tão convincente nas suas contradições como
sim, evanescente. nas suas ambiguidades, uma situação tão con-
Cada um destes tempos ocorre nos dois ti- fortável para quem a pode usar para oprimir
pos de códigos barrocos, se bem que em dife- quanto intolerável para quem tem de a ter em
rentes combinações. Cada um destes tempos conta para resistir contra a opressão. A repeti-
encerra uma ambivalência específica resultan- ção homogénea do presente implica o fim das
te do facto de aliar, numa síntese falhada, os interrogações permanentes de que fala Merle-
522 Boaventura de Sousa Santos

au-Ponty (1968: 50). O tempo de repetição pode de espanto e de indignação que sustente uma
ser concebido como progresso e como o seu nova teoria e uma nova prática inconformista,
contrário. Sem o pathos da tensão entre raízes desestabilizadora, em suma, rebelde.
e opções não é possível pensar a transforma- Seguindo a sugestão de Merleau-Ponty, de-
ção social, mas tal impossibilidade perde gran- vemos partir das significações da modernida-
de parte do seu dramatismo se a transforma- de mais abertas e mais incompletas. São essas
ção social, independentemente de ser ou não que suscitam a paixão e abrem espaços novos
impensável, for julgada desnecessária. Esta à criatividade e à iniciativa humanas (1968: 45).
ambiguidade conduz ao apaziguamento inte- Porque a teoria da história da modernidade oci-
lectual e este, ao conformismo e à passividade. dental foi totalmente orientada para o futuro,
Há, pois, que recuperar a capacidade de espan- o passado ficou sub-representado e sub-codifi-
to e de a construir de modo a poder traduzir-se cado. O dilema do nosso tempo reside em que
em inconformismo e rebeldia. A advertência de nem pelo facto de o futuro estar desacreditado
Walter Benjamin, escrita na Primavera de 1940, é possível, no âmbito desta teoria, reanimar o
mantém plena actualidade: “O espanto pelo passado. O passado para ela continua a ser a
facto de as coisas que estamos a viver [refere- acumulação fatalista de catástrofes que o An-
se, claro, ao nazismo] ‘ainda’ serem possíveis gelus Novus olha impotente e ausente.
não é um espanto filosófico. Ele não se situa no A nossa tarefa consiste em reinventar o pas-
limiar da compreensão, a não ser da compre- sado de modo a que ele assuma a capacidade
ensão de que a concepção da história da qual de fulguração, de irrupção e de redenção que
provém é insustentável” (1980: 697). Benjamin imaginou com grande presciência
Na minha opinião, temos de partir daqui, “Para o materialismo histórico” — diz Benja-
da verificação que a teoria da história da mo- min — “do que se trata é de reter uma imagem
dernidade é insustentável e que é, por isso, ne- do passado tal como ela aparece ao sujeito his-
cessário substitui-la por outra que nos ajude a tórico, inesperadamente, no momento do peri-
viver com dignidade este momento de perigo go” (1980: 695). Esta capacidade de fulguração
e a sobreviver-lhe pelo aprofundamento das só poderá desenvolver-se se o passado deixar
energias emancipatórias. Do que necessitamos de ser a acumulação fatalista de catástrofes e
com mais urgência é de uma nova capacidade for tão-só a antecipação da nossa indignação
A queda do Angelus Novus: O fim da equação moderna entre raízes e opções 523

e do nosso inconformismo. Na concepção antepassados escravizados, não do ideal dos


modernista, o fatalismo é o outro lado da con- netos libertados” (1980: 700).
fiança no futuro. O passado é nela duplamente Talvez mais que ao tempo de Benjamin, per-
neutralizado: porque só aconteceu o que tinha demos a capacidade de raiva e de espanto pe-
de acontecer e porque o que quer que tenha rante o realismo grotesco do que se aceita só
acontecido num dado momento já foi ou pode porque existe, perdemos a vontade de sacrifí-
vir a ser superado posteriormente. Nesta cons- cio. Para recuperar uma e outra há que reinven-
telação de ilusões retrospectivas e de ilusões tar o passado como negatividade, produto da
prospectivas nada se aprende com o passado iniciativa humana, e, com base nele, construir
senão a confiar no futuro. interrogações poderosas e tomadas de posição
É preciso, pois, lutar por uma outra concep- apaixonadas capazes de sentidos inesgotáveis.
ção de passado, em que este se converta em Há, pois, que identificar o sentido das inter-
razão antecipada da nossa raiva e do nosso rogações poderosas num momento de perigo
inconformismo. Em vez do passado neutrali- como o que atravessamos. Tal identificação
zado, o passado como perda irreparável resul- ocorre em dois momentos. O primeiro mo-
tante de iniciativas humanas que muitas vezes mento é o da eficácia pretendida para inter-
puderam escolher entre alternativas. Um pas- rogações poderosas. Usando uma expressão
sado reanimado em nossa direcção pelo so- um tanto idealista de Merleau-Ponty (1968:
frimento e pela opressão que foram causados 44), penso que as interrogações poderosas,
na presença de alternativas que os podiam ter para serem eficazes, têm de ser monogramas
evitado. É em nome de uma concepção do pas- do espírito sobre as coisas. Têm de irromper
sado semelhante a este que Benjamin critica pela intensidade e pela concentração da ener-
a social-democracia alemã. Diz ele “[A social- gia interior que transportam. Nas condições
democracia] comprazeuse em passar à classe do tempo presente, tal irrupção só tem lugar
operária o papel de libertadora das gerações se as interrogações poderosas se traduzirem
futuras. Assim lhe cortou o nervo da melhor em imagens desestabilizadoras. Só as ima-
força que tinha. Nesta escola, a classe desa- gens desestabilizadoras nos podem restituir
prendeu tanto o ódio como o espírito de sa- a capacidade de espanto e de indignação. Na
crifício. É que estes nutremse da imagem dos medida em que o passado deixar de ser au-
524 Boaventura de Sousa Santos

tomaticamente redimido pelo futuro, o sofri- outra, o predomínio total das opções, temos
mento humano, a exploração e a opressão que hoje muitas teorias e práticas de separação e
o habitam passarão a ser um comentário cruel de vários graus de separação. Pelo contrário,
sobre o tempo presente, indesculpável porque carecemos de teorias para unir e esta carência
continua a ocorrer e porque poderia ter sido torna-se particularmente grave num momento
evitado pela iniciativa humana. As imagens só de perigo. A gravidade desta carência não está
são desestabilizadoras na medida em que tudo nela mesma, mas no facto de coexistir com
depende de nós e tudo podia ser diferente e uma pletora de teorias da separação. O que é
melhor. A iniciativa humana, pois, e não qual- grave é o desequilíbrio entre as teorias da sepa-
quer ideia abstracta de progresso, é que pode ração e as teorias da união.
fundar o princípio da esperança de Ernst Blo- Os poderes hegemónicos que comandam a
ch (1995). O inconformismo é a utopia da von- globalização neoliberal, a sociedade de consu-
tade. Como diz Benjamin, “Só possui o dom de mo e a sociedade de informação têm vindo a
fazer faiscar no passado a chispa da esperança promover teorias e imagens que apelam a uma
aquele historiador que está convencido de que totalidade, seja ela a da espécie, do mundo ou
mesmo os mortos não estarão a salvo do inimi- mesmo do universo, que existe por sobre as
go, se este vencer” (1980: 695). divisões entre as partes que a compõem. Sabe-
As imagens desestabilizadoras só serão efi- mos que se trata de teorias e imagens manipula-
cazes se forem amplamente partilhadas. Isto tórias que ignoram as diferentes circunstâncias
conduz-me ao segundo momento do sentido e aspirações dos povos, classes, sexos, regiões,
das interrogações poderosas. Como interrogar etnias, etc., bem como as relações desiguais, de
de modo a que a interrogação seja mais parti- exploração e de vitimização, que têm unido as
lhada do que as respostas que lhe forem dadas? partes que compõem essa pseudo-totalidade.
Julgo que, hoje, no actual momento de perigo, Mas o grão de credibilidade destas teorias e
a interrogação poderosa, para ser amplamente imagens consiste em apelarem, ainda que de
partilhada, deve incidir mais sobre o que nos modo manipulatório, para uma comunidade
une do que sobre o que nos separa. Porque imaginada da humanidade no seu todo. Por
uma das astúcias da equação raízes/opções foi seu lado, os movimentos contra-hegemónicos
ocultar, sob a capa do equilíbrio entre uma e têm vindo a ampliar as arenas de entendimen-
A queda do Angelus Novus: O fim da equação moderna entre raízes e opções 525

to político, mas as coligações e as alianças têm mos a comunicação e a cumplicidade. Deve-


sido, em geral, pouco eficazes em superar as mos fazê-lo, não em nome de uma communi-
teorias da separação, ainda que tenham sido tas abstracta, mas antes movidos pela imagem
mais eficazes em superar as separações terri- desestabilizadora do sofrimento multiforme,
toriais do que as separações segundo as dife- causado por iniciativa humana, tão avassa-
rentes formas de discriminação e de opressão. lador quanto desnecessário. Neste momento
As coligações transnacionais têm sido mais de perigo, as teorias da separação devem ser
fáceis entre grupos feministas ou entre grupos formuladas tendo em conta o que nos une. As
ecologistas ou indígenas do que no interior des- fronteiras que separam devem ser construídas
tes movimentos. Isto deve-se ao desequilíbrio com muitas entradas e saídas. Ao mesmo tem-
entre teorias da separação e teorias da união. po, é preciso sempre ter presente que o que une
Estas últimas têm, pois, de ser reforçadas, para só une a posteriori.
que se torne visível o que há de comum entre A comunicação e a cumplicidade têm de
as diferentes formas de discriminação e de ocorrer de modo sustentado e a vários níveis
opressão: o sofrimento humano causado pelo para que haja um equilíbrio dinâmico entre as
capitalismo global, pelas formas de discrimi- teorias da separação e as teorias da união. A
nação de que se alimenta e pela colonialidade cada nível corresponde um potencial de indig-
do poder. A globalização contra-hegemónica nação e inconformismo alimentado por uma
assenta no carácter global e multidimensional imagem desestabilizadora. Proponho a distin-
do sofrimento humano (Santos, 2005). A ideia ção entre três níveis: epistemológico, metodo-
do totus orbis (século XVI), formulado por um lógico e político.
dos fundadores do direito internacional moder- A comunicação e a cumplicidade epistemo-
no, Francisco de Vitoria, deve ser hoje recons- lógica assentam na ideia de que não há só uma
truída como globalização contra-hegemónica, forma de conhecimento, mas várias, e de que
como cosmopolitismo subalterno e insurgente. é preciso optar pela que favorece a criação de
O respeito pela diferença não pode impedir a imagens desestabilizadoras e de atitudes de in-
comunicação e a cumplicidade que torna pos- conformismo perante elas. Tenho vindo a de-
sível a luta contra a indiferença. O momento de fender que não há conhecimento em geral nem
perigo que atravessamos exige que aprofunde- ignorância em geral (Santos, 1987, 1995: 7-55;
526 Boaventura de Sousa Santos

2000: 53-109). Cada forma de conhecimento conhecimento-regulação ganhou total primazia


conhece em relação a um certo tipo de igno- sobre o conhecimento-emancipação. Com isto,
rância e, vice-versa, cada forma de ignorância a ordem passou a ser a forma hegemónica de
é ignorância de um certo tipo de conhecimen- conhecimento (de que o cânone é exemplo) e o
to. Cada forma de conhecimento implica assim caos, a forma hegemónica da ignorância. Esta
uma trajectória de um ponto A, designado por hegemonia do conhecimento-regulação permi-
ignorância, para um ponto B, designado por sa- tiu a este recodificar nos seus próprios termos
ber. As formas de conhecimento distinguem-se o conhecimento-emancipação. Assim, o que
pelo modo como caracterizam os dois pontos e era saber nesta última forma de conhecimen-
as trajectórias entre eles. Na modernidade oci- to transformou-se em ignorância (a solidarie-
dental, esta trajectória é simultaneamente uma dade foi recodificada como caos) e o que era
sequência lógica e uma sequência temporal. O ignorância transformou-se em saber (o colo-
movimento da ignorância para o saber é tam- nialismo foi recodificado como ordem). Como
bém o movimento do passado para o futuro. a sequência lógica da ignorância para o saber
Como proponho noutros trabalhos (1995: é também a sequência temporal do passado
25-27; 2000: 74-77), o paradigma da modernida- para o futuro, a hegemonia do conhecimento-
de ocidental comporta duas formas principais -regulação fez com que o futuro e, portanto,
de conhecimento: conhecimento-regulação e a transformação social, passasse a ser conce-
conhecimento-emancipação. O conhecimento- bido como ordem e o colonialismo, como um
-regulação consiste numa trajectória entre tipo de ordem. Paralelamente, o passado pas-
um ponto de ignorância, designado por caos, sou a ser concebido como caos e a solidarieda-
e um ponto de conhecimento, designado por de como um tipo de caos. O sofrimento huma-
ordem. O conhecimento-emancipação consis- no pôde assim ser justificado em nome da luta
te numa trajectória entre um ponto de igno- da ordem e do colonialismo contra o caos e a
rância, chamado colonialismo, e um ponto de solidariedade. Esse sofrimento humano teve e
conhecimento, chamado solidariedade. Apesar continua a ter destinatários sociais específicos
de estas duas formas de conhecimento esta- — trabalhadores, mulheres, minorias (e por
rem igualmente inscritas no paradigma da mo- vezes maiorias) étnicas, raciais e sexuais —,
dernidade a verdade é que no último século o cada um deles a seu modo considerado peri-
A queda do Angelus Novus: O fim da equação moderna entre raízes e opções 527

goso precisamente porque representa o caos e entidade local consegue difundir-se globalmen-
a solidariedade contra os quais é preciso lutar te e, ao fazê-lo, adquire a capacidade de desig-
em nome da ordem e do colonialismo. A neu- nar um fenómeno ou uma entidade rival como
tralização epistemológica do passado tem sido local (Santos, 2001: 68-69). A comunicação e a
sempre a contra-parte da neutralização social e cumplicidade permitidas pela globalização he-
política das “classes perigosas”. gemónica assentam numa troca desigual que
Em face disto, a orientação epistemológica canibaliza as diferenças em vez de permitir o
para tornar possível a comunicação e a cum- diálogo entre elas. Estão armadilhadas por si-
plicidade tem de passar pela revalorização da lêncios, manipulações e exclusões.
solidariedade como forma de conhecimento e Contra os localismos globalizados propo-
pela revalorização do caos como dimensão da nho, como orientação metodológica, a herme-
solidariedade. Por outras palavras, tem de pas- nêutica diatópica32. Trata-se de um procedi-
sar pela revalorização do conhecimento-eman- mento hermenêutico baseado na ideia de que
cipação em detrimento do conhecimento-regu- todas as culturas são incompletas e de que os
lação. A imagem desestabilizadora que gerará topoi de uma dada cultura, por mais fortes que
energia para esta revalorização é o sofrimento sejam, são tão incompletos quanto a cultura a
humano concebido como o resultado de toda a que pertencem. Os topoi fortes são as princi-
iniciativa humana que converte a solidariedade pais premissas da argumentação dentro de uma
em forma de ignorância e o colonialismo em dada cultura, as premissas que tornam possível
forma de saber. a criação e a troca de argumentos. Esta função
A segunda orientação é metodológica. As dos topoi cria uma ilusão de totalidade assente
teorias sobre o que nos une, propostas pela na indução pars pro toto. Por isso, a incomple-
sociedade de consumo e pela sociedade de in- tude de uma dada cultura só é avaliável a par-
formação, assentam na ideia de globalização. tir dos topoi de outra cultura. Vistos de outra
As globalizações hegemónicas são, de facto, cultura, os topoi de uma dada cultura deixam
localismos globalizados, os novos imperialis-
mos culturais (Santos, 2001: 56-76). Podemos
32 Sobre o conceito de hermenêutica diatópica apli-
definir globalização hegemónica como o pro-
cado aos direitos humanos, ver Para uma concepção
cesso através do qual um dado fenómeno ou intercultural dos direitos humanos.
528 Boaventura de Sousa Santos

de ser premissas da argumentação para passa- de um procedimento difícil, pós-colonial e pós-


rem a ser meros argumentos33. O objectivo da -imperial e, em certo sentido, pós-identitário. A
hermenêutica diatópica é maximizar a consci- própria reflexividade sobre as condições que a
ência da incompletude recíproca das culturas, tornam possível e necessária é uma das mais
através de um diálogo com um pé numa cultura exigentes condições da hermenêutica diatópi-
e o outro pé, noutra. Daí o seu carácter diató- ca. Com um forte conteúdo utópico, a energia
pico. A hermenêutica diatópica é um exercício para a pôr em prática advém-lhe de uma ima-
de reciprocidade entre culturas que consiste gem desestabilizadora que designo por epis-
em transformar as premissas de argumentação temicídio, o assassínio do conhecimento. As
de uma dada cultura em argumentos inteligí- trocas desiguais entre culturas têm sempre
veis e credíveis noutra cultura. Em Para uma acarretado a morte do conhecimento próprio
concepção intercultural dos direitos humanos da cultura subordinada e, portanto, dos grupos
proponho um exercício de hermenêutica dia- sociais seus titulares. Nos casos mais extre-
tópica entre o topos dos direitos humanos da mos, como o da expansão europeia, o episte-
cultura ocidental o topos da dharma na cultura micídio foi uma das condições do genocídio
Hindu e o topos da umma na cultura islâmica. (Santos, 1998: 208). A perda de confiança epis-
Elevar a incompletude ao máximo de cons- temológica por que passa actualmente a ciên-
ciência possível abre possibilidades insuspeita- cia moderna torna possível identificar o âmbito
das à comunicação e à cumplicidade. Trata-se e a gravidade dos epistemicídios cometidos
pela modernidade hegemónica eurocêntrica. A
imagem de tais epistemicídios será tanto mais
33 Em momentos de grande turbulência, a passagem desestabilizadora quanto mais consistência ti-
“descendente” dos topoi de premissas da argumenta-
ver a prática da hermenêutica diatópica.
ção a simples argumentação pode ocorrer e ser visí-
vel a partir de dentro de uma dada cultura. De algum A terceira orientação para um equilíbrio
modo, é o que está a suceder com a equação entre ra- dinâmico entre as teorias da separação e as
ízes e opções. Na narrativa que proponho neste texto, teorias da união é política e designo-a, seguin-
questiono esta equação como um topos forte da cul- do Richard Falk (1995), por governo humano
tura eurocêntrica e, ao fazê-lo, “desço-a” de premissa
(“human governance”). As teorias hegemóni-
de argumentação a simples argumento e refuto-a com
outros argumentos. cas da união, a começar pela economia capi-
A queda do Angelus Novus: O fim da equação moderna entre raízes e opções 529

talista do mercado livre e pela democracia li- de povos, classes e regiões” (1995: 242). Por
beral, estão a criar formas brutais de exclusão outras palavras, o governo humano é um pro-
e de destituição que redundam em práticas de jecto normativo que “em todo e qualquer con-
neo-feudalismo e neo-colonialismo. Por sua texto, constantemente identifica e restabelece
vez, as teorias contra-hegemónicas de sepa- as várias interfaces entre o específico e o geral
ração, como, por exemplo, as que subjazem a mantendo, todavia, as suas fronteiras mentais
muitas políticas de identidade, porque despro- e espaciais abertas para entrada e saída, per-
vidas do contrapeso das teorias da união, têm manecendo desconfiado de qualquer versão de
redundado por vezes em práticas fundamenta- pretensão de verdade enquanto fundamento
listas ou neo-tribais. Por estas duas vias opos- para o extremismo e violência política” (1995:
tas, mas convergentes, vivemos um tempo de 242). Impulsionado por uma imagem desesta-
excesso de separatismo e de segregacionismo. bilizadora — o apartheid global — poderosa
A imagem desestabilizadora que é necessário porque associada à guerra e ao genocídio, às
construir a partir dele é a imagem do apartheid desigualdades abissais e ao colapso ecológico,
global, um mundo de guetos sem entrada nem o princípio do governo humano tem um poten-
saída, errando num mar de correntes colonia- cial oposicional muito grande.
listas e fascistas. Esta imagem desestabiliza- As três imagens desestabilizadoras — o so-
dora constituirá a energia da orientação polí- frimento humano, o epistemicídio e o apar-
tica do governo humano. Entendo por ele, na theid global— interpelam o passado como
esteira de Falk, todo o critério normativo que indesculpável iniciativa humana de modo a
“facilita a comunicação através de divisões ci- permitir que ele se reanime e fulgure na nossa
vilizacionais, nacionalistas, étnicas, classistas, direcção. Estas imagens são também ideias que
geracionais, cognitivas e sexuais”, mas que o procuram recuperar a capacidade de desesta-
faz com “respeito e celebração da diferença e bilização que as ideias perderam. São novas
uma atitude de extremo cepticismo para com constelações onde se combinam ideias, emo-
alarmes exclusivistas que negam espaço para ções, sentimentos de espanto e de indignação,
expressão e descoberta dos outros, bem como paixões de sentidos inesgotáveis. São mono-
para com variantes do universalismo que igno- gramas do espírito postos em novas práticas
ram as desiguais circunstâncias e aspirações rebeldes e inconformistas.
530 Boaventura de Sousa Santos

Só nestas condições as imagens desestabili- teressa. A enorme influência exercida por Locke
zadoras gerarão a energia para observarmos as (1956) e os seus conceitos de acção e compreen-
três orientações para sobreviver com dignida- são humana deveu-se ao facto de a sua afinidade
de este momento de perigo — o conhecimento- electiva com a nova constelação de sentido ser
-emancipação, a hermenêutica diatópica e o tão forte que o que se disse sobre a acção hu-
governo humano. mana se entendeu não como especulação, mas
como descoberta ou revelação. Voltaire reconhe-
Um futuro para o passado: ce isso mesmo quando escreve o seguinte sobre
as subjectividades Locke, com indisfarçável admiração: “Depois de
desestabilizadoras tantos pensadores sem critério terem produzi-
Conforme referi acima os códigos barrocos do aquilo a que se poderia chamar o romance
que criam mestiçagem pela sobre-exposição da alma, surge um sábio que modestamente nos
tem potencial descanonizador e emancipatório. apresenta a sua história. John Locke desvelou
As imagens desestabilizadoras não são desesta- a razão humana, tal como um hábil anatomista
bilizadoras em si mesmas. Elas apenas encer- explica as origens e estrutura do corpo humano”
ram um potencial desestabilizador, o qual pode (1952: 177). A razão para o entusiasmo de Voltai-
concretizar-se na medida apenas em que essas re é que Locke abrira uma nova perspectiva, ao
imagens são captadas por subjectividades, in- propor que a análise da experiência precedesse
dividuais ou colectivas, capazes de entenderem qualquer determinação do seu objecto, e que a
correctamente os sinais que elas emitem, de compreensão exacta do carácter específico do
se sentirem indignadas com as mensagens que entendimento humano só poderia ser alcançada
transmitem, e de transformarem essa sua indig- mediante o traçado completo do seu percurso,
nação em energia emancipatória. Como disse desde as suas formas mais elementares às mais
já, na modernidade ocidental a relação estreita completas. Segundo Locke, a origem do proble-
entre o conhecimento e a subjectividade teve o ma crítico era genética, e a história da mente hu-
34
seu reconhecimento cabal nas grandes transi- mana fornecia para tal adequada explicação .
ções paradigmáticas do Renascimento e do Ilu-
minismo (Cassirer, 1960, 1963; Toulmin, 1990).
O Iluminismo é a transição que aqui mais me in- 34 Ver Cassirer (1960: 93-133).
A queda do Angelus Novus: O fim da equação moderna entre raízes e opções 531

Escrevendo num momento crucial da cons- subjectividade desestabilizadora, uma sociolo-


tituição do paradigma da modernidade, Locke gia da ausência é, assim, tão importante quan-
fez perguntas e deu respostas que são de escas- to uma sociologia da presença. Esta sociologia
sa utilidade nos dias de hoje, quando se alcan- dual, que em larga medida está ainda para ser
çou já porventura a última fase do paradigma produzida, é o cerne da vontade emancipatória
que ele ajudou a consolidar. O que nos pode da subjectividade emergente. Esta tem a sua
ser útil, no entanto, é a arqueologia tanto das origem no “mal-estar” de Condillac, aquele de-
perguntas como das respostas de Locke. Locke sassossego que o filósofo francês entendia ser
formulou perguntas radicais sobre uma espé- o ponto de partida não só dos nossos desejos e
cie de subjectividade capaz e desejosa de criar quereres, mas também do nosso pensamento,
um novo conhecimento científico, e cujas pos- juízo, vontade e acção (1984: 288). Em tempo
sibilidades infinitas assomavam no horizonte, de explosão de raízes e opções, e em tempo
uma subjectividade, realmente, desejosa de se de permutabilidade de raízes e opções, o de-
reconhecer nas suas próprias criações. Locke sassossego traduz-se tanto na capacidade de
viu a resposta às suas perguntas numa corres- desocultação como na capacidade de sentido:
pondência instável entre dois extremos: um por um lado, a desocultação de opções de po-
conhecimento que se posicionava no limiar de der, durante tanto tempo ocultadas pelo poder
um futuro exaltante não podia ser desejado se- das opções; por outro, o sentido de novas pos-
não por uma subjectividade que representasse sibilidades resultantes da reflexividade acres-
o culminar de uma longa evolução ascendente. cida. O que importa, pois, é desfamiliarizar a
Hoje, também nós temos, tal como Locke, tradição canónica (a sociologia da presença)
de perguntar pela subjectividade de uma for- sem parar aí, como se essa desfamiliarização
ma radical, se bem que de modo radicalmente fosse a única familiaridade possível. Por ou-
diferente. Ao contrário de Locke, pergunta- tras palavras, acoplar desocultação e sentido
mos por uma subjectividade que não culmina impede a subjectividade emergente de resva-
em evolução, uma subjectividade cuja reflexi- lar para os extremos de Nietzsche, quando diz,
vidade se concentra num passado que nunca em A genealogia da moral, que “só o que não
existiu, e nas condições que o impediram de tem história é definível” (1973: 453). O projec-
alguma vez existir. Na construção social da to desestabilizador tem de se empenhar numa
532 Boaventura de Sousa Santos

crítica radical da política do possível, sem ce- tece na acção revolucionária, a criatividade
der a uma política impossível. da acção-com-clinamen não assenta numa
Central ao conhecimento das ciências so- ruptura dramática, antes num ligeiro desvio,
ciais empenhadas neste tipo de projecto não cujos efeitos cumulativos tornam possíveis as
é a distinção entre estrutura e agência, mas combinações complexas e criativas entre se-
antes a distinção entre acção conformista e res vivos e grupos sociais (tal como acontece
aquilo que me proponho designar por acção- entre os átomos, na apropriação que Lucrécio
36
-com-clinamen. Acção conformista é a prá- faz de Epicuro) .
tica rotinizada, reprodutiva e repetitiva que O clinamen não recusa o passado; pelo con-
reduz o realismo àquilo que existe e apenas trário, assume-o e redime-o pela forma como
porque existe. Para este conceito de acção- dele se desvia. De facto, o desvio é uma prática
-com-clinamen recorro a Lucrécio, que en- liminar que ocorre na fronteira entre um passa-
tende “clinamen” (desvio, inclinação) como do que realmente existiu e um passado que não
o “quiddam” inexplicável que perturba a re- teve licença de existir. Em virtude desse des-
lação de causa e efeito, ou seja, a capacidade vio, que pode ser imperceptível enquanto tal, a
de desvio que Epicuro atribuiu aos átomos de capacidade de interpelação do passado expan-
Demócrito. O clinamen é o que faz com que de-se de tal modo que se torna na fulguração de
os átomos deixem de parecer inertes e reve- que fala Benjamin ─ um intenso Jetztzeit que
lem um poder de inclinação, isto é, um poder gera a possibilidade novas práticas emancipa-
de movimento espontâneo (Epicurus, 1926; tórias. A ocorrência de acção-com-clinamen é
35
Lucretius, 1950) . Ao contrário do que acon-

35 O conceito de clinamen entrou na teoria literária seu percursor, executando um clinamen em relação a
pela mão Harold Bloom. É uma das rationes revisionis- ele” (Bloom, 1973: 14). O termo jurídico de misprision
tas da sua teoria de influência poética. Em The Anxiety (crime, ou acção desviante por omissão), que Bloom
of Influence, Bloom serve-se da noção de clinamen para usou inicialmente como sinónimo de misreading, aca-
explicar a criatividade poética como uma tresleitura bou por ter menos circulação.
que é antes trans-leitura (o termo bloomiano é misrea- 36 Como diz Lucrécio, o desvio é per paucum nec
ding, um ler-mal que é também ler-mais-do-que-bem, ou plus quam minimum (Epicurus, 1926: introdução de
corrigir). Diz Bloom: “Um poeta desvia-se do poema do Frederic Manning, XXXIV).
A queda do Angelus Novus: O fim da equação moderna entre raízes e opções 533

em si mesma inexplicável. O papel das ciências encerra para, por via do clinamen, fazer des-
sociais a este respeito será somente o de identi- viar o conformismo para a subversão.
ficar as condições que maximizam a probabili-
dade de uma tal ocorrência e definir, ao mesmo Conclusão
tempo, o horizonte de possibilidades em que o Estamos num momento de perigo que é
desvio virá a “operar”. também um momento de transição. O futuro
Uma subjectividade desestabilizadora é uma já perdeu a sua capacidade de redenção e de
subjectividade dotada de uma especial capaci- fulguração e o passado ainda não a adquiriu.
dade, energia e vontade de agir com clinamen. Já não somos capazes de pensar a transforma-
Poderíamos dizer, pensando no uso que Bloom ção social em termos da equação entre raízes
faz do termo, que uma subjectividade deses- e opções, mas tão pouco somos capazes de a
tabilizadora é uma subjectividade poética. A pensar sem ela. O perigo reside na repetição
própria construção social de uma tal subjec- homogénea do presente e na sua capacidade de
tividade é necessariamente um exercício de fulguração kafkiana. O perigo reside em que,
liminaridade. Implica necessariamente experi- uma vez desprovidos das tensões em que for-
mentar com formas excêntricas ou marginais mámos a nossa subjectividade, nos quedemos
de sociabilidade ou subjectividade na moderni- por formas simplificadas de subjectividade.
dade. O barroco, visto como um campo aberto Um dos sintomas mais perturbadores da
de reinvenção e experimentação, é, em meu subjectividade simplificada é o facto de as teo-
37
entender, uma dessas formas . A subjectivi- rias da separação e da segregação dominarem
dade desestabilizadora é uma subjectividade totalmente sobre as teorias da união, da comu-
barroca. Em Nuestra América; reinventar um nicação e da cumplicidade. A irrelevância da
paradigma subalterno de reconhecimento e equação raízes/opções reside precisamente no
redistribuição analiso detalhadamente o perfil facto de estarmos separados e segregados, tan-
da subjectividade barroca e o potencial que ela to pelas raízes, como pelas opções. Por isso, as
razões limitadas que invocamos para as segre-
37 Em outro lugar, analiso com mais pormenor as po-
gações, tanto hegemónicas como contrahege-
tencialidades do barroco (Santos, 1995: 499-506; 2000: mónicas, não sabem dar razões para os limites
330-340). da segregação.
534 Boaventura de Sousa Santos

O novo equilíbrio entre as teorias da sepa- tramento das promessas culturais que têm
ração e as teorias da união, uma maior comu- estado na base das ciências sociais, o Ange-
nicação e cumplicidade através das fronteiras, lus Novus não pode continuar suspenso da
uma proposta que será prosseguida em outros sua leveza imponderável, contemplando os
trabalhos. As orientações que aqui proponho horrores de costas voltadas para o que os pro-
pensam a cultura ocidental de modo a que a voca. Se isso acontecesse, a tragédia do anjo
transformação social deixe de poder ser pensa- traduzir-se-ia numa farsa, e a sua interroga-
da em termos ocidentais. ção poderosa, em comentário patético. Creio,
O mesmo é verdade acerca da concepção pelo contrário, que o anjo, uma vez confron-
de subjectividade desestabilizadora proposta tado com a intensidade sedutora e grotesca
neste texto, uma concepção que se constrói das imagens desestabilizadoras, acabará por
com base numa tradição excêntrica e margi- abraçá-las, delas recolhendo a energia de que
nal da modernidade ocidental: o clinamen e necessita para de novo voar. Só que, desta
o barroco. A reconstrução sociológica e cul- vez, sem deixar de pisar a terra, como An-
tural do barroco que avanço como desafio às teu38. Só assim o anjo acordará os mortos e
ciências sociais — uma reconstrução com reunirá os vencidos.
cinco dimensões: interrupção, terribilità,
sfumato, mestizaje e festa — destina-se a
promover uma forma específica de acção, a
acção-com-clinamen, o tipo de acção em que
as imagens e subjectividades desestabilizado-
ras prosperam e se conjugam para dar origem
a uma prática transformadora. Esta recons-
trução do barroco é, em si mesma, um gesto
de desvio em relação à concepção convencio-
nal do barroco. 38 Anteu é um personagem da mitologia grega. Filho
À luz deste duplo descentramento — me- de Neptuno e da Terra, era invencível enquanto estives-
se em contacto com a sua mãe Terra. Hércules venceu-
diante imagens e subjectividades desestabili-
-o após ter conseguido levantá-lo do chão, tendo-o es-
zadoras — à luz, repito, deste duplo descen- magado no ar.
A queda do Angelus Novus: O fim da equação moderna entre raízes e opções 535

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Nuestra América: Reinventar
um paradigma subalterno de
reconhecimento e redistribuição*

N este trabalho argumento que existem


pelo menos dois séculos XX: o século XX
europeu-americano e o século XX de Nuestra
rica. Defendo que a alternativa à propagação
do fascismo social é a construção de um novo
modelo de relações locais, nacionais e transna-
América. Estou consciente de que existem cionais. Este modelo implica uma nova cultura
outros em África e Ásia, e mesmo na Europa, transnacional integrada em novas formas de
mas aqui centro-me nos dois primeiros, espe- sociabilidade e subjetividade. Implica, em últi-
cialmente no segundo. A minha tese é de que ma instancia, uma política, um direito e uma
o XX europeu-americano, com as suas muitas cultura novos, cosmopolitas e insurgentes. O
promesas se democracia e bem-estar e a expe- século de Nuestra América trouxe a semente
riência de guerras devastadoras na Europa e de novas forças emancipadoras, que denomi-
em outros lugares, desembocou no auge per- no “globalização contra-hegemónica” (Santos,
turbador do que denomino “fascismo social”, 1995: 252-268).
frequentemente disfarçado sob o nome de “glo-
balização hegemónica”. Nas margens deste sé- O século americano-europeu e a
culo evoluiu outro: o século de Nuestra Amé- emergencia do fascismo social
Segundo Hegel, a história universal desloca-
-se do Oriente para o Ocidente. A Ásia é o prin-
* Extraído de Santos, B. de Sousa 2006 “Nuestra
América: Reinventar um paradigma subalterno de cípio, enquanto que a Europa é o fim último da
reconhecimento e redistribuição” in A gramática do história universal, o lugar onde a trajectória
tempo. Para uma nova cultura política (Porto: Afron- civilizacional da humanidade é consumada. A
tamento) pp. 179-209.
542 Boaventura de Sousa Santos

ideia bíblica e medieval da sucessão dos impé- terceiro acto do drama milenar da supremacia
rios (translatio imperii) transforma-se, em He- ocidental. O primeiro acto — em grande me-
gel, no percurso triunfante da “Ideia Universal”. dida um acto falhado — correspondeu às cru-
Em cada era, um povo assume a responsabilida- zadas, que deram início ao segundo milénio da
de de conduzir a Ideia Universal, tornando-se, era cristã; o segundo acto, situado a meio do
assim, o povo histórico universal, privilégio que milénio, foi a expansão europeia; o terceiro
passou sucessivamente dos asiáticos para os acto foi o Século Americano-Europeu. Nesta
gregos, depois para os romanos e, finalmente, concepção milenar, este último acto acarretou
para os povos germânicos. Para Hegel, a Amé- pouca novidade: nada mais foi do que mais um
rica, ou, antes, a América do Norte, transpor- Século Europeu, o último do milénio. Ao fim e
ta um futuro ambíguo, na medida em que não ao cabo, a Europa sempre conteve muitas eu-
colide com a realização absoluta da história ropas, umas dominantes, outras dominadas. Os
universal na Europa (Hegel, 1970). O futuro da Estados Unidos da América são a última Euro-
América (do Norte) é ainda um futuro europeu, pa dominante e, como as outras, exerce o seu
formado pelos restos da população europeia. poder incontestado sobre as europas domina-
Esta perspectiva hegeliana subjaz à concep- das. Os senhores feudais da Europa do século
ção dominante do século XX como o “Século XI tiveram e desejaram uma autonomia tão es-
Americano”: o Século Americano-Europeu. cassa face ao Papa Urbano II, que os recrutou
Está aqui contida a noção de que a americani- para as Cruzadas, como a que hoje os países da
zação do mundo, iniciada com a americaniza- União Europeia têm e desejam face aos Esta-
ção da própria Europa, não é senão um efeito dos Unidos da América que os recrutam para
da astúcia universal da Razão, a qual, tendo as múltiplas missões da OTAN nos Balcãs, Afe-
atingido o extremo do Ocidente e mostrando- ganistão e Líbia1.
-se irreconciliada com o exílio a que Hegel a Neste quadro histórico, torna-se difícil pen-
condenou, foi forçada a voltar atrás, a percor- sar em qualquer alternativa à fase actual do
rer de novo o seu trajecto anterior e, uma vez
mais, a traçar o caminho para a sua hegemonia
1 Sobre as relações entre o Papa e os senhores feu-
sobre o Oriente. A americanização, enquanto
dais no que respeita às Cruzadas, ver Gibbon (1928,
forma hegemónica da globalização, é, pois, o Vol. 6: 31).
Nuestra América: Reinventar um paradigma subalterno de reconhecimento e redistribuição 543

capitalismo global, liderado pelos EUA, que eu político. No nosso tempo, o perigo é a ascen-
chamo globalização hegemónica (Santos, 1995, são do fascismo como regime social. Contraria-
2000, 2001, 2005). Contudo, uma tal alternativa mente ao fascismo político, o fascismo social
é não só necessária mas urgente, dado que o re- é pluralista, coexiste facilmente com o Estado
gime de dominação global actual, à medida que democrático, e o seu espaço-tempo privilegia-
perde coerência2, mostra-se cada vez mais vio- do, em vez de ser nacional, é simultaneamente
lento e imprevisível, aumentando desse modo local e global.
a vulnerabilidade das regiões, das nações e dos O fascismo social é um conjunto de proces-
grupos sociais subordinados e oprimidos. O pe- sos sociais mediante os quais grandes sectores
rigo real, tanto nas relações internas dos países da população são irreversivelmente mantidos
que compõem o sistema mundial, como nas re- no exterior ou expulsos de qualquer tipo de
lações internacionais, é a emergência daquilo a contrato social. São rejeitados, excluídos ou
que chamo fascismo social. Fugindo ao nazis- lançados para uma espécie de estado de nature-
mo, poucos meses antes da sua morte (1940), za hobbesiano, quer porque nunca integraram
Walter Benjamin escreveu as suas Teses sobre — e provavelmente nunca integrarão — qual-
a Filosofia da História (1980), impulsionadas quer contrato social (refiro-me às subclasses
pela ideia de que a sociedade europeia vivia, pré-contratuais que hoje proliferam no mundo,
nessa altura, um momento de perigo. Penso das quais talvez o melhor exemplo sejam os jo-
que actualmente vivemos também num mo- vens dos guetos urbanos das grandes cidades),
mento de perigo. Na época de Benjamin, o pe- quer por terem sido excluídos ou expulsos de
rigo era a ascensão do fascismo como regime algum tipo de contrato social que haviam in-
tegrado antes (e aqui refiro-me às subclasses
pós-contratuais, milhões de trabalhadores re-
2 O sistema mundial moderno, em vigor desde o sé- legados para o trabalho precário, sem direitos,
culo XV, parece estar a entrar num período de transição camponeses depois do colapso de projectos de
que noutro lugar identifico como sendo caracterizado reforma agrária ou de outros mega-projectos
pela coexistência de dois sistemas de hierarquização de “desenvolvimento”).
não necessariamente congruentes entre si: a hierarqui-
Enquanto regime social, o fascismo mani-
zação centro/semiperiferia/periferia e a hierarquização
global/local (Santos, 2001: 56-76). festa-se como o colapso das mais triviais ex-
544 Boaventura de Sousa Santos

pectativas dos que vivem sob o seu domínio. O gabundo sem abrigo.” Em outro lugar distingo
que chamamos de sociedade é um conjunto de as cinco formas principais de fascismo social3:
expectativas estabilizadas, que vão dos horá- o fascismo do apartheid social, o fascismo con-
rios do Metro ao salário do fim do mês, ou um tractual, o fascismo territorial, o fascismo da
emprego ao terminar o ensino superior. As ex- insegurança e o fascismo financeiro.
pectativas são estabilizadas mediante uma sé- Um futuro possível é, pois, a expansão do fas-
rie de escalas e equivalências partilhadas: a um cismo social. Há muitos sinais de que isso é uma
dado trabalho corresponde um determinado possibilidade real. Se se permitir que a lógica do
pagamento, a um delito particular correspon- mercado transborde da economia para todas as
de um castigo particular, para um risco existe áreas da vida social e se torne o único critério
um seguro previsto. As pessoas que vivem num para a interacção social e política de sucesso, a
fascismo social estão privadas destas escalas e sociedade tornar-se-á ingovernável e eticamente
equivalências partilhadas e, por isso não tem as repugnante, e, seja qual for a ordem que se ve-
expectativas estabilizadas. Vivem num constan- nha a efectivar, ela será de tipo fascista, como
te caos de expectativas donde os actos mais tri- de facto Schumpeter (1962 [1942]) e Polanyi
viais tem as maiores consequências. Afrontam (1957 [1944]) previram há décadas atrás.
muitos riscos sem segurança alguma. Galdino
Jesús dos Santos, um pataxó do noroeste brasi- O século de Nuestra America
leiro, simboliza a natureza de tais riscos. Havia
Defendo neste trabalho que o embrião desse
chegado a Brasília para participar na marcha
outro padrão tem estado presente, desde há um
dos Sem Terra. A noite estava quente e decidiu
século, nas margens do Século Americano-Eu-
dormir num banco, na paragem do autocarro.
ropeu. Trata-se de um outro Século Americano,
Às primeiras horas da manhã foi assassinado,
a que chamo Nuestra América. Enquanto que
queimado vivo por três jovens de classe média;
o primeiro traz consigo a globalização hegemó-
um deles, filho de um juiz, outro, de um oficial
do exército. Quando os jovens confessaram à
policia, disseram que tinham matado o indíge-
3 Analizo em detalhe o surgimento do fascismo so-
na por divertimento. “Nem sequer sabiam que
cial como consequência da ruptura da lógica do contra-
era um índio, supondo que se tratava de um va- to social em Santos, 2002: 447-458.
Nuestra América: Reinventar um paradigma subalterno de reconhecimento e redistribuição 545

nica, o segundo contém em si o potencial para sucesso sem uma política de reconhecimento
globalizações contra-hegemónicas. Dado que da diferença racial, étnica, cultural ou sexual,
este potencial compromete o futuro, o Século e vice-versa.
Americano Nuestra América poderá bem ser Na minha opinião, o século de Nuestra Amé-
o nome do século em que acabámos de entrar. rica formulou melhor a ideia de uma emanci-
Neste trabalho analiso o ethos barroco, encara- pação social baseada num metadireito a ter
do como o arquétipo cultural da subjectividade direitos e num equilíbrio dinâmico entre a re-
e da sociabilidade de Nuestra América. A mi- distribuição e o reconhecimento por ela pro-
nha análise destaca algum do potencial eman- postos. Também, com essas bases, demonstrou
cipatório da cultura social e política de grupos dramaticamente a dificuldade de construir prá-
sociais cuja vida quotidiana é intensificada ticas emancipatórias exitosas.
pela necessidade de transformar estratégias de
sobrevivência em fontes de inovação, de cria- As ideias fundadoras
tividade, de transgressão e de subversão. Nas da Nuestra América
últimas secções deste trabalho, tentarei mos-
“Nuestra América” é o título de um pequeno
trar como este potencial contra-hegemónico e
ensaio de José Martí, publicado no jornal me-
emancipatório de Nuestra América não foi, até
xicano “El Partido Liberal” em 30 de janeiro
agora, realizado, e como poderá ser realizado
de 1891. Nesse artigo, um excelente resumo do
no século XXI. Por fim, identificarei cinco áre-
pensamento do autor que se encontra disper-
as, todas elas inscritas profundamente na expe-
so em diversos jornais latino-americanos da
riência secular de Nuestra América, as quais,
época, Martí exprime o conjunto de ideias que
em meu entender, serão os principais terrenos
creio presidirem ao Século Americano Nuestra
de confrontação entre a globalização hegemó-
América, um conjunto de ideias que mais tarde
nica e a globalização contra-hegemónica nas
foram prosseguidas, entre muitos outros, por
próximas décadas. Em cada um desses terre-
Mariátegui e Oswald de Andrade, Fernando Or-
nos de confrontação, o potencial emancipató-
tiz e Darcy Ribeiro.
rio das lutas baseia-se na ideia de que uma po-
Passo a referir as principais ideias do texto
lítica de igualdade centrada na redistribuição
de Martí. A primeira ideia é que a Nuestra Amé-
social da riqueza não pode ser conduzida com
546 Boaventura de Sousa Santos

rica está nos antípodas da América Europeia. universalismo que enriqueceu o mundo. Martí
É a América mestiça fundada no cruzamento, afirma: “Não há ódio racial, porque não há ra-
tantas vezes violento, de muito sangue euro- ças” (1963, VI: 22). Nesta frase ecoa o mesmo
peu, índio e africano. É a América capaz de liberalismo radical que havia encorajado Si-
sondar profundamente as suas próprias raízes mon Bolívar a proclamar que a América Latina
e de, nessa base, edificar um conhecimento e era “uma pequena humanidade”, uma “huma-
uma forma de governo que não sejam importa- nidade em miniatura”. Este tipo de universa-
dos, mas antes adequados à sua realidade. As lismo situado e contextualizado iria tornar-se
suas raízes mais profundas estão na luta dos um dos fios condutores mais consistentes de
povos ameríndios contra os seus invasores, Nuestra América.
luta onde encontramos os verdadeiros precur- Em 1928, o poeta brasileiro Oswald de An-
sores dos independentistas latino-americanos drade publicou o seu Manifesto Antropófago.
(Retamar, 1989: 20). Martí pergunta: “Não é evi- Por antropofagia ele entendia a capacidade
dente que a América foi paralisada pelo mes- americana de devorar tudo o que lhe fosse es-
mo golpe que paralisou os índios?” E responde: tranho e de tudo incorporar, de modo a criar
“[…] Até que o Índio seja posto a caminhar, a uma identidade complexa, uma identidade
América não começará a caminhar bem” (1963, nova e constantemente mutável:
VIII: 336-337). Embora em Nuestra América
Martí aborde, sobretudo, o racismo anti-índio, Só me interessa o que não é meu. Lei do homem.
noutros textos também se refere aos negros: Lei do antropófago […] Contra todos os impor-
“O homem é mais do que branco, mais do que tadores de consciência enlatada. A existência
mulato, mais do que negro. O cubano é mais palpável da vida. E a mentalidade pré-lógica para
o Sr. Lévy-Bruhl estudar […] Perguntei a um ho-
do que branco, mais do que mulato, mais do
mem o que era o Direito. Ele me respondeu que
que negro […]. De racismo seriam igualmente
era a garantia do exercício da possibilidade. Esse
culpados: o racista branco e o racista negro” homem chamava-se Galli Mathias. Comi-o […]
(1963, II: 299-300). Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para
A segunda ideia da Nuestra América é a transformá-lo em totem. A humana aventura. A
noção de que nas suas raízes mistas reside a terrena finalidade. Porém, só as puras elites con-
sua complexidade infinita, a sua nova forma de seguiram realizar a antropofagia carnal, que traz
Nuestra América: Reinventar um paradigma subalterno de reconhecimento e redistribuição 547

em si o mais alto sentido da vida e evita todos os VI: 15). Mas, para que isto se realize, as ideias
males identificados por Freud, males catequistas têm de ser enraizadas nas aspirações dos po-
(Andrade, 1990: 47-51). vos oprimidos. Tal como “o mestiço autónomo
venceu o crioulo exótico […], o livro importa-
Este conceito de antropofagia, ele próprio do foi vencido, na América, pelo homem natu-
irónico relativamente à representação europeia ral” (1963, VI: 17). Daí o apelo de Martí:
do “instinto caraíba”, aproxima-se bastante do
conceito de transculturação desenvolvido em A universidade europeia tem de ceder à universi-
Cuba, um pouco mais tarde, por Fernando Or- dade americana. A história da América, desde os
tiz (1940). No mesmo sentido e mais recente- Incas até ao presente, deve ser ensinada na perfei-
mente o antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro ção, ainda que não se ensine a dos arcontes da Gré-
afirma, numa explosão brilhante de humor: cia. A nossa Grécia é preferível à Grécia que não é
nossa. É-nos mais necessária. Os políticos exóticos
É muito fácil fazer uma Austrália: pega meia dú- hão-de ser substituídos pelos políticos nacionais.
zia de franceses, ingleses, irlandeses e italianos, Enxerte-se o mundo nas nossas repúblicas, mas
joga numa ilha deserta, eles matam os índios e o tronco há-de ser das nossas repúblicas. E que o
fazem uma Inglaterra de segunda, porra, ou de pedante vencido se cale, pois não há pátria de que
terceira, aquela merda. O Brasil precisa apren- o homem possa ter mais orgulho do que as nossas
der que aquilo é uma merda, que o Canadá é uma dolorosas repúblicas americanas (1963, VI: 18).
merda, porque repete a Europa. É para ver que
nós temos a aventura de fazer o género humano Este conhecimento situado, que exige uma
novo, a mestiçagem na carne e no espírito. Mesti- atenção contínua à identidade, ao comporta-
ço é que é bom (1996: 104). mento e ao envolvimento na vida pública, é o
que verdadeiramente distingue um país, e não
A terceira ideia fundadora de Nuestra Amé- a atribuição imperial de níveis de civilização.
rica é que, para que Nuestra América possa Martí estabelece uma destrinça entre o intelec-
ser construída sobre as suas fundações mais tual e o homem que a experiência vivida tor-
genuínas, tem de se dotar de um conhecimento nou sensato. Diz ele que “não há batalha entre
genuíno. Para Martí, as “trincheiras de ideias a civilização e a barbárie, mas sim entre a falsa
valem mais do que trincheiras de pedra” (1963, erudição e a natureza” (1963, VI: 17).
548 Boaventura de Sousa Santos

Nuestra América possui assim uma forte res, na república dos Índios, aprendem índio”
componente epistemológica. Em vez de se (1963, VI: 21).
importar ideias estrangeiras, deve-se investi- Uma quarta ideia fundadora de Nuestra
gar as realidades específicas do continente a América é que esta é a América de Caliban,
partir de uma perspectiva latino-americana. e não a de Próspero4. A América de Próspero
Ignorar ou desdenhar estas últimas ajudou os reside no Norte, mas também subsiste no Sul
tiranos a aceder ao poder, e também consoli- através dessas elites intelectuais e políticas
dou a arrogância dos Estados Unidos face ao que rejeitam as raízes índias e negras, encaran-
restante continente: do a Europa e os Estados Unidos da América
como modelos a imitar, e encarando os seus
O desdém do formidável vizinho, que a não co- próprios países com antolhos etnocêntricos
nhece, é o perigo maior da nossa América; e urge, que distinguem entre a civilização, por um
pois o dia da visita está próximo, que o vizinho a lado, e a selvajaria bárbara, por outro. Martí
conheça, que a conheça bem depressa, para que pensa particularmente numa das primeiras for-
não a desdenhe. Por ignorância chegaria, talvez,
mulações “sulistas” da América de Próspero,
a cobiçá-la. Por respeito, assim que a conhecesse,
o trabalho do argentino Domingo Sarmiento,
tiraria as mãos dela (1963, VI: 17).
intitulado Facundo, Civilización y Barbarie e
publicado em 1845 (Sarmiento, 1966). É contra
Um conhecimento situado é, portanto, a
este mundo de Próspero que Andrade arremete
condição para um governo situado. Como
o seu “instinto caraíba”:
Martí afirma noutro lugar, não se pode “dirigir
povos novos, de composição singular e vio-
Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugiti-
lenta, com leis herdadas de quatro séculos de vos de uma civilização que estamos comendo, por-
prática livre nos Estados Unidos, de dezanove
séculos de monarquia em França. Não se para
o golpe no potro do llanero com um decreto
4 Uso neste trabalho os nomes de Próspero e Ca-
de Hamilton. Não se limpa o sangue coalhado liban da peça “The Tempest” de Shakespeare (1611)
da raça índia com uma frase de Sieyes” (1963, para significar que a zona de contacto colonial se
VI: 16-17). E Martí acrescenta: “Os governado- constituiu como uma zona de contacto entre o “civili-
zado” e o “selvagem”.
Nuestra América: Reinventar um paradigma subalterno de reconhecimento e redistribuição 549

que somos fortes e vingativos como o Jabuti […]. obrigasse a mais vigilância, e pedisse exame mais
Não tivemos especulação. Mas tínhamos adivinha- claro e minucioso, do que o convite que os podero-
ção. Tínhamos Política que é a ciência da distribui- sos Estados Unidos, repletos de produtos invendá-
ção. E um sistema social-planetário […]. Antes dos veis e determinados a estender os seus domínios
portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha na América, fazem às nações americanas com me-
descoberto a felicidade (Andrade, 1990: 47-51). nos poder, ligadas pelo comércio livre e útil aos
povos europeus, para ajustar uma aliança contra a
A quinta ideia básica de Nuestra América é Europa e cortar as relações com o resto do mun-
que o seu pensamento político, longe de ser na- do. A América espanhola pôde salvar-se da tirania
cionalista, é internacionalista e reforçado por de Espanha; e agora, depois de se ver, com olhos
judiciosos, os antecedentes, as causas e os facto-
uma atitude anti-colonialista e anti-imperialis-
res deste convite, urge dizer, pois é a verdade, que
ta, que outrora visava a Europa e que agora visa
chegou para a América espanhola a hora de decla-
os EUA. Aqueles que pensam que a institucio- rar a sua segunda independência (1963, VI: 46).
nalidade da globalização neoliberal, do NAFTA5
à ALCA6 e à Organização Mundial do Comér- Segundo Martí, as concepções dominantes
cio, é algo de novo deveriam ler os relatórios nos EUA, relativamente à América Latina, de-
de Martí sobre o Congresso Pan-americano de vem incitar esta última a desconfiar de todas as
1889-90 e a Comissão Monetária Internacional propostas que venham do Norte. Escandaliza-
Americana de 1891. Nas notas de Martí sobre o do, Martí acusa:
Congresso Pan-Americano pode ler-se:
Acreditam na necessidade, no direito bárbaro,
Jamais houve na América, desde a independên- como sendo o único direito: “Isto será nosso, por-
cia até agora, assunto que exigisse mais sensatez, que precisamos dele”. Acreditam na superiorida-
de incomparável da “raça anglo-saxónica contra
a raça latina”. Acreditam na inferioridade da raça
5 Tratado de comércio livre da América do Norte, negra, que ontem escravizaram e que hoje humi-
envolvendo os EUA, México e Canadá. Entrou em vigor lham, e da raça índia, que exterminam. Acreditam
em 1994, na mesma data do levantamento do Exército que os povos da América Hispânica são formados,
Zapatista de Libertação Nacional de Chiapas. principalmente, por índios e negros (1963, VI: 160).
6 Área de Livre Comércio das Américas.
550 Boaventura de Sousa Santos

O facto de Nuestra América e da América Seria difícil encontrar uma antevisão mais
Europeia estarem geograficamente tão pró- clarividente do Século Americano-Europeu e
ximas, bem como a consciência, por parte da da necessidade de se criar uma alternativa a
primeira, dos perigos decorrentes do desequi- este último.
líbrio de poder entre ambas, depressa forçou Segundo Martí, tal alternativa reside numa
Nuestra América a reclamar a sua autonomia Nuestra América unida e na afirmação da sua
sob a forma de um pensamento e de uma práti- autonomia face aos EUA. Num texto datado de
ca elaborados a partir do Sul: “É preciso ir sain- 1894, Martí escreve: “Pouco se sabe da nossa
do do Norte” (1963, II: 368). Esta advertência sociologia e de leis tão precisas como esta:
de Martí provém dos muitos anos do seu exílio quanto mais se afastam dos Estados Unidos,
em Nova Iorque, durante os quais ficou bem mais livres e prósperos são os povos da Améri-
familiarizado com “as entranhas do monstro”: ca” (1963, VI: 26-27). Mais ambiciosa e utópica
é a alternativa de Oswald de Andrade: “Quere-
No Norte não há amparo nem raiz. No Norte os mos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolu-
problemas agravam-se, e não existe a caridade e ção Francesa. A unificação de todas as revoltas
o patriotismo que os poderiam resolver. Aqui, os eficazes na direcção do homem. Sem nós a Eu-
homens não aprendem a amar-se, nem amam o ropa não teria sequer a sua pobre declaração
solo onde nascem por acaso, e onde brigam sem
dos direitos do homem” (1990: 48).
tréguas na luta, animal e atribulada, pela exis-
Em suma, para Martí a reivindicação da
tência. Aqui, montou-se uma máquina mais esfo-
meada do que a que pode satisfazer o universo igualdade fundamenta a luta contra a diferença
necessitado de produtos. Aqui, repartiu-se mal desigual, tanto quanto a reivindicação da di-
a terra, e a produção, desigual e monstruosa, e ferença fundamenta a luta contra a igualdade
a inércia do solo apropriado deixam o país sem desigual. A única canibalização legítima da di-
a salvaguarda do cultivo distribuído, que dá de ferença (a antropofagia de Andrade) é a que o
comer quando não dá para ganhar. Aqui, os ricos subalterno pratica, pois só através dela Caliban
amontoam-se de um lado, e os desesperados do consegue reconhecer a sua própria diferença
outro. O Norte fecha-se e está cheio de ódios. É face às diferenças desiguais que lhe são impos-
preciso ir saindo do Norte (1963, II: 367-368). tas. Por outras palavras, a antropofagia de An-
drade digere segundo o seu próprio estômago.
Nuestra América: Reinventar um paradigma subalterno de reconhecimento e redistribuição 551

O ethos barroco: prolegómenos do risco de viver a pulsão para um optimismo


para uma nova política e cultura visceral perante a potencialidade colectiva.
cosmopolita insurgente Esse optimismo levou Martí a afirmar, num perí-
Nuestra América não foi uma simples cons- odo de pessimismo cultural vienense de fim de
trução intelectual para ser discutida nos salões século: “Governante, num novo povo, quer dizer
que tanta vida deram à cultura latino-americana criador” (1963, VI: 17). O mesmo tipo de opti-
eurocêntrica nas primeiras décadas do século mismo levou Andrade a exclamar: “A alegria é a
XX. É um projecto político, ou, antes, um con- prova dos nove” (1990: 51). Defino-o como opti-
junto de projectos políticos e um compromisso mismo trágico por assentar, por um lado, na ex-
para com os objectivos neles contidos. Foi esse periência dolorosa e na consciência lúcida dos
o compromisso que arrastou Martí para o exí- obstáculos à emancipação e, por outro, na cren-
lio e, posteriormente, para a morte na luta pela ça inabalável na possibilidade de os superar.
independência de Cuba. Como Oswald de An- A subjectividade e a sociabilidade da Nues-
drade viria a dizer epigramaticamente: “Contra tra América não se sentem à vontade com o
as elites vegetais. Em comunicação com o solo” pensamento institucionalizado e legalista, mas
(1990: 49). Mas, antes de se tornar um projecto sentem-se à vontade com o pensamento utó-
político, Nuestra América é uma forma de sub- pico. Por utopia entendo a exploração, pela
jectividade e de sociabilidade. É uma forma de imaginação, de novos modos de possibilidade
ser e de viver permanentemente em trânsito e humana e de estilos de vontade fundada na
na transitoriedade, cruzando fronteiras, criando recusa em aceitar a necessidade da realidade
espaços de fronteira, habituada ao risco — com existente apenas porque existe e na antecipa-
o qual viveu durante longos anos, muito antes ção de algo radicalmente melhor pelo qual vale
de o Norte global ter inventado a “sociedade de a pena lutar e ao qual sente ter pleno direito
risco” (Beck, 1992) —, habituada a viver com (Santos, 1995: 479; 2000: 288-291). A este estilo
um nível baixo de estabilização das expectati- de subjectividade e de sociabilidade chamo, se-
vas causado pelas brutais desigualdades sociais guindo Echeverria (1994), ethos barroco7.
e pela arbitrariedade da colonialidade do poder.
Mas, paradoxalmente, também capaz de retirar 7 O ethos barroco que aqui apresento é muito dife-
rente da “melancolia Barroca” referida por Lash (1999:
552 Boaventura de Sousa Santos

Como estilo artístico ou como época histó- nha começou a declinar um século mais tarde.
rica, o barroco é forma excêntrica de moderni- Do século XVII em diante, as colónias ficaram
dade ocidental, com forte presença nos países mais ou menos entregues a si próprias, mar-
ibéricos e nas suas colónias da América Latina. ginalização que possibilitou uma criatividade
A sua excentricidade deriva, em grande medi- especificamente cultural e social, umas vezes
da, do facto de ter ocorrido em países e em altamente codificada, outras vezes caótica,
momentos históricos onde o centro de poder umas vezes erudita, outras popular, umas ve-
era fraco, procurando esconder a sua fraque- zes oficial, outras ilegal. Tal mestiçagem está
za através da dramatização da sociabilidade tão profundamente enraizada nas práticas so-
conformista. A relativa falta de poder central ciais desses países que acabou por ser consi-
confere ao barroco um carácter aberto e ina- derada como fundamento de um ethos cultural
cabado que permite a autonomia e a criativida- tipicamente latino-americano, que tem preva-
de das margens e das periferias. Graças à sua lecido desde o século XVII até aos nossos dias.
excentricidade e ao seu exagero, o centro re- Esta forma de barroco, enquanto manifestação
produz-se como se fosse margem. Suscita uma de um exemplo extremo de fraqueza do cen-
imaginação centrífuga que se torna mais forte tro, constitui um campo privilegiado para o de-
à medida que passamos das periferias inter- senvolvimento de uma imaginação centrífuga,
nas do poder europeu para as suas periferias subversiva e blasfema.
externas na América Latina. Toda a América Como época na história da Europa, o barro-
Latina foi colonizada por poderes colonialistas co é um tempo de crise e de transição, crise
fracos quando comparados com os poderes económica, social e política, particularmente
europeus que protagonizaram o colonialismo óbvia no caso das potências que fomentaram
do século XIX: Portugal e Espanha. Portugal a primeira fase da expansão europeia. No caso
foi um centro hegemónico durante um breve de Portugal, a crise implica mesmo a perda da
período, entre os séculos XV e XVI, e a Espa- independência. Por questões de sucessão di-
nástica, Portugal foi anexado pela Espanha em
1580, e só recuperou a independência em 1640.
330). Essa diferença deve-se, em parte, aos distintos loci
A monarquia espanhola, sobretudo sob o reina-
do barroco em que baseamos as nossas análises: a Eu-
ropa, no caso de Lash, a América Latina no meu caso. do de Filipe IV (1621-1665), sofreu uma grave
Nuestra América: Reinventar um paradigma subalterno de reconhecimento e redistribuição 553

crise financeira que, na realidade, foi também to, considerar-se tecnicamente integrantes do
uma crise política e cultural. Conforme afirma período barroco.
Maravall, começa com uma certa consciência A subjectividade barroca vive confortavel-
de inquietação e desassossego, que “piora à me- mente com a suspensão temporária da ordem
dida que o tecido social vai ficando gravemente e dos cânones. Enquanto subjectividade de
afectado” (1990: 57). Por exemplo, os valores transição, depende, em simultâneo, do es-
e os comportamentos são postos em causa, a gotamento dos cânones e da aspiração aos
estrutura de classes altera-se, o banditismo au- mesmos. A sua temporalidade privilegiada é
menta, como aumentam, em geral, os compor- a transitoriedade perene. Faltam-lhe as cer-
tamentos desviantes, e as revoltas e os motins tezas óbvias das leis universais — do mesmo
passam a ser ameaças permanentes. É, de fac- modo que falta ao estilo barroco o universa-
to, um tempo de crise, mas também um tempo lismo clássico do Renascimento. Por ser in-
de transição para novas formas de sociabilida- capaz de planear a sua própria repetição ad
de, possibilitadas pelo capitalismo emergente infinitum, a subjectividade barroca investe
e pelo novo paradigma científico, e para novos no local, no particular, no momentâneo, no
modos de dominação política, baseados não só efémero e no transitório. Mas o local não é
na coerção, mas também na assimilação cultu- vivido de uma forma localista, ou seja, não é
ral e ideológica. A cultura barroca é, em larga experienciado como ortotopia. O local aspira
medida, um desses instrumentos de consolida- antes a inventar um outro lugar, uma hete-
ção e de legitimação do poder. O que, apesar rotopia, se não mesmo uma utopia. Fruto de
disso, me parece inspirador na cultura barroca uma profunda sensação de vazio e de deso-
é o seu lado de subversão e de excentricidade, rientação, provocada pelo esgotamento dos
a fraqueza dos centros de poder que nela bus- cânones dominantes, o conforto que o local
cam legitimação, o espaço de criatividade e de oferece não é o conforto do repouso, mas um
imaginação que ela abre, a sociabilidade turbu- sentido de direcção. Mais uma vez, podemos
lenta que promove. A configuração da subjec- observar aqui um contraste com o Renasci-
tividade barroca que pretendo avançar aqui é mento, como Wölfflin nos ensinou: “Ao con-
a colagem de diversos materiais, históricos e trário do Renascimento, que procurava per-
culturais, alguns dos quais não podem, de fac- manência e repouso em tudo, o barroco teve,
554 Boaventura de Sousa Santos

desde o primeiro instante, um claro sentido uma aspiração tanto mais convincente quanto
de direcção” (1979: 67). nunca consegue ser totalmente preenchida. A
A subjectividade barroca é contemporânea de finalidade do estilo barroco, diz Wölfflin, “não
todos os elementos que integra, e, por isso, des- é representar um estado perfeito, mas sugerir
denhosa do evolucionismo modernista. Dir-se-ia, um processo incompleto e um momento em di-
assim, que a temporalidade barroca é a tempo- recção ao seu acabamento” (1979: 67).
ralidade da interrupção. A interrupção é impor- A subjectividade barroca tem uma relação
tante a dois níveis: permite a reflexividade e a muito especial com as formas. A geometria
surpresa. A reflexividade é a auto-reflexividade da subjectividade barroca não é euclidiana: é
exigida pela ausência de mapas (sem mapas para fractal. A suspensão das formas resulta do uso
guiar os nossos passos, temos de caminhar com extremo a que são sujeitas: a extremosidad de
redobrada precaução). Sem auto-reflexividade, que fala Maravall (1990: 421). No que concerne
num deserto de cânones, é o próprio deserto que à subjectividade barroca, as formas são, por
se torna canónico. Por seu turno, a surpresa é excelência, o exercício da liberdade. A grande
realmente suspense: deriva da suspensão efectu- importância do exercício da liberdade justifica
ada pela interrupção. Suspendendo-se momenta- que as formas sejam tratadas com extrema se-
neamente, a subjectividade barroca intensifica a riedade, embora o extremismo possa redundar
vontade e estimula a paixão. Maravall afirma que na destruição das próprias formas. O motivo
a “técnica barroca” consiste em “[…] suspender, pelo qual Miguel Ângelo é justamente consi-
seguindo os mais diversos meios, para provocar, derado um dos pioneiros do barroco deve-se
a fim de que, após esse momento de paragem a que, segundo Wölfflin, “ele tratou as formas
provisória e transitória, o ânimo se mova com com uma violência, uma seriedade terrível que
mais eficácia, empurrado pelas forças retidas e só poderia ter encontrado expressão na amor-
concentradas […]” (1990: 445). fia” (1979: 82). A isso os contemporâneos de
A interrupção provoca espanto e novidade, Miguel Ângelo chamaram terribilità. O extre-
e impede o fechamento e o acabamento. Daí o mismo no uso das formas baseia-se numa von-
carácter inacabado e aberto da sociabilidade tade de grandiosidade que é também vontade
barroca. A capacidade de espanto, de surpresa de surpreender, tão bem formulada por Berni-
e de novidade é a energia que facilita a luta por ni: “Que ninguém me fale do que é pequeno”
Nuestra América: Reinventar um paradigma subalterno de reconhecimento e redistribuição 555

(Tapié, 1988, II: 188). O extremismo pode ser O mesmo extremismo que produz as formas,
exercido de muitas maneiras diferentes: para também as devora. Essa voracidade ocorre por
fazer sobressair a simplicidade, bem como a dois processos: o sfumato e a mestiçagem. Na
exuberância e a extravagância, conforme Ma- pintura barroca, o sfumato é uma técnica que
ravall observou (1990: 426). O extremismo bar- consiste em esbater os contornos e as cores
roco é o dispositivo que permite criar rupturas entre os objectos, como, por exemplo, entre
a partir de aparentes continuidades e manter as nuvens e as montanhas, ou entre o céu e o
o devir das formas em estado de permanente mar. O sfumato permite à subjectividade bar-
bifurcação prigoginiana. Um dos exemplos roca criar o próximo e o familiar entre inteli-
mais eloquentes deste extremismo é o “Êxtase gibilidades diferentes, tornando assim os diá-
de Santa Teresa”. Nesta escultura de Bernini a logos interculturais possíveis e desejáveis. Por
expressão de Teresa d’Ávila é de tal modo dra- exemplo, só por recurso ao sfumato é possível
matizada que a representação de uma Santa em dar forma a configurações que combinam os di-
transe místico se transmuta na representação reitos humanos ocidentais com outras concep-
de uma mulher gozando um orgasmo fundo. A ções de dignidade humana existentes noutras
representação do sagrado desliza sub-repticia- culturas. A coerência das construções monolí-
mente para a representação do sacrílego. Esta ticas desintegra-se, e os fragmentos que pairam
mutação imprevista e imprevisível, ao mesmo livremente mantêm-se abertos a novas coerên-
tempo que retira o descanso às formas, torna cias e a invenções de novas formas multicultu-
impensável a forma do descanso. Só o extre- rais. O sfumato é como um íman que atrai as
mismo das formas permite que a subjectivida- formas fragmentárias para novas constelações
de barroca mantenha a turbulência e a exci- e direcções, apelando aos contornos mais vul-
tação necessárias para continuar a luta pelas neráveis, inacabados e abertos que essas for-
causas emancipatórias, num mundo onde a mas apresentam. O sfumato é, em suma, uma
emancipação foi subjugada ou absorvida pela militância anti-fortaleza.
regulação. Falar de extremismo é falar de es- A mestiçagem, por sua vez, é uma maneira
cavação arqueológica no magma regulatório a de levar o sfumato ao extremo. Enquanto o
fim de recuperar a chama emancipatória, por sfumato opera através da desintegração das
muito enfraquecida que esteja. formas e da recuperação dos fragmentos, a
556 Boaventura de Sousa Santos

mestiçagem opera através da criação de no- os dois elementos constitutivos daquilo a que
vas formas de constelações de sentido que, à Fernando Ortiz chama transculturação. No seu
luz dos seus fragmentos constitutivos, são ver- livro merecidamente famoso, Contrapunteo
dadeiramente irreconhecíveis e blasfemas. A Cubano, originalmente publicado em 1940, Or-
mestiçagem consiste na destruição da lógica tiz propôs o conceito de transculturação para
que preside à formação de cada um dos seus definir a síntese dos processos, extremamente
fragmentos, e na construção de uma nova lógi- intrincados, de desculturação e de neocultu-
ca. Este processo produtivo-destrutivo tende a ração que caracterizaram desde sempre a so-
reflectir as relações de poder entre as formas ciedade cubana. Segundo este autor, as desco-
culturais originais (ou seja, entre os grupos so- bertas e os choques culturais recíprocos que,
ciais que as sustentam), e é por isso que a sub- na Europa, ocorreram lentamente ao longo de
jectividade barroca favorece as mestiçagens em mais de quatro milénios, em Cuba ocorreram
que as relações de poder são substituídas pela através de saltos repentinos em menos de qua-
autoridade partilhada (autoridade mestiça). tro séculos (1973: 131). Às transculturações
A América Latina tem fornecido um terre- pré-colombianas entre os Índios, seguiram-se
no particularmente fértil para a mestiçagem, muitas outras, após o “furacão” europeu, entre
sendo por isso um dos mais importantes locais várias culturas da Europa e entre estas e as di-
de escavação para a construção da subjectivi- versas culturas africanas e asiáticas. Para Or-
dade barroca8. O sfumato e a mestiçagem são tiz, o que distingue Cuba desde o século XVI é
o facto de todos os seus povos e culturas terem
sido igualmente invasores, exógenos, todos
8 Ver, entre outros, Pastor et al. (1993) e Alberro arrancados do seu berço de origem, marcados
(1992). Coutinho (1990: 16) fala de “uma complexa mes-
pela separação e pela transplantação para uma
tiçagem barroca”. Ver também o conceito de “Atlântico
Negro”, usado por Gilroy (1993), para exprimir a mes- nova cultura em fase de criação (1973: 132)9.
tiçagem característica da experiência cultural negra, Este desajustamento e esta transitoriedade
uma experiência que não é especificamente africana,
americana, caraíba ou britânica, mas tudo isso ao mes-
mo tempo. No espaço da língua portuguesa, o “Mani- 9 Claro que foram diferentes os tipos de invasão: a
festo Antropófago” de Oswald de Andrade permanece invasão do negro escravo foi forçada pela invasão dos
um dos mais notáveis exemplos de mestiçagem. seus donos.
Nuestra América: Reinventar um paradigma subalterno de reconhecimento e redistribuição 557

permanentes permitiram novas constelações conduz tendam a transformar-se em micro-or-


culturais que não podem ser reduzidas à soma todoxias. Através do artifício, a subjectividade
dos diferentes fragmentos que contribuíram barroca é, ao mesmo tempo, lúdica e subver-
para elas. O carácter positivo deste processo siva, como a festa barroca tão bem o ilustra.
constante de transição entre culturas é o que A importância da festa na cultura barroca,
Ortiz designa por transculturação10. Para re- tanto na Europa como na América Latina, está
forçar esse carácter positivo e novo prefiro bem documentada11. A festa converteu a cul-
falar de sfumato, em vez de desculturação, e tura barroca no primeiro exemplo de cultura
de mestiçagem em lugar de neoculturação. A de massas da modernidade. O seu carácter
transculturação designa, pois, a voracidade e ostentatório e celebratório era utilizado pelos
o extremismo com que as formas culturais são poderes político e eclesiático para dramatizar
processadas pela sociabilidade barroca. Essa a sua grandeza e para reforçar o seu contro-
mesma voracidade e esse mesmo extremismo lo sobre as massas. Contudo, através das suas
estão igualmente bem presentes no conceito três componentes básicas — a desproporção,
de antropofagia de Oswald de Andrade. o riso e a subversão —, a festa barroca está
O extremismo com que as formas são vivi- investida de um potencial emancipatório.
das pela subjectividade barroca acentua a arte- A festa barroca é um exercício de despro-
factualidade retórica das práticas, dos discur- porção: exige um investimento extremamente
sos e dos modos de inteligibilidade. O artifício grande que, no entanto, é consumido num ins-
(artificium) é a base de uma subjectividade tante extremamente fugaz e num espaço extre-
suspensa entre fragmentos. O artifício permi- mamente limitado. Como nos diz Maravall,
te que a subjectividade barroca se reinvente a
si própria sempre que as sociabilidades a que

11 Sobre a festa barroca no México (Vera Cruz), veja-


10 De uma perspectiva pós-colonial, o conceito de -se Leon (1993); sobre a festa barroca no Brasil (Minas
transculturação é questionável já que não valoriza su- Gerais), ver Ávila (1994). A relação entre a festa, espe-
ficientemente a reivindicação da diferença. Este ques- cialmente a festa barroca, com o pensamento utópico
tionamento é hoje feito pelos emergentes movimentos está ainda por explorar. Sobre a relação entre o fourie-
negros cubanos. rismo e a société festive, ver Desroche (1975).
558 Boaventura de Sousa Santos

são usados meios abundantes e dispendiosos, é rou guerra à alegria e o riso passou a ser con-
empregue um esforço considerável, são realiza- siderado frívolo, impróprio, excêntrico e até
dos amplos preparativos, é montada uma máqui- blasfemo. Passou a ser apenas admitido nos
na complicada, tudo isso apenas para se obter contextos altamente codificados da indústria
efeitos extremamente breves, seja na forma do
do entretenimento. Este fenómeno pode igual-
prazer ou da surpresa (1990: 488).
mente observar-se nos modernos movimentos
sociais anticapitalistas (partidos operários,
No entanto, a desproporção gera uma in-
sindicatos e até nos novos movimentos so-
tensificação especial que, por sua vez, dá ori-
ciais), que baniram o riso, o divertimento e a
gem à vontade de movimento, à tolerância
ludicidade com receio de subverterem a serie-
para com o caos e ao gosto pela turbulência,
dade da resistência. Particularmente interes-
sem o que a luta pela transição paradigmática
sante é o caso dos sindicatos, cujas activida-
não pode ter lugar. A desproporção possibilita
des começaram por ter um cunho fortemente
a admiração, a surpresa, o artifício e a novida-
lúdico e festivo (a festa operária), o qual foi
de12. Mas, acima de tudo, permite a distância
sendo gradualmente sufocado até o sindica-
lúdica e o riso13. Como o riso não é facilmente
lismo se tornar, por fim, mortalmente sério e
codificável, a modernidade capitalista decla-
profundamente antierótico.
A proscrição do riso, do divertimento e da
ludicidade faz parte daquilo a que Max Weber
12 Segundo Ávila, “depreende-se da coordenação das chama a Entzäuberung, o desencantamento
danças (de turcos e cristãos, de romeiros, de músicos),
do mundo moderno. A reinvenção da emanci-
dos carros triunfais, das figuras alegóricas e das repre-
sentações mitológico-cristãs, a existência de uma direc- pação social visa o reencantamento do senso
ção que sabia jogar com recursos e efeitos de ritmo e comum, o qual, em si mesmo, pressupõe uma
contraste, inclusive elementos de surpresa” (1994: 54). certa carnavalização das próprias práticas so-
13 Leon (1993: 4) caracteriza a cultura popular de Vera ciais emancipatórias e o erotismo do riso e da
Cruz no século XVII como “o império do riso”. Na análi- ludicidade. Repito a ideia de Oswald de Andra-
se deste autor, sobressaem eloquentemente as ligações de: “A alegria é a prova dos nove”. A carnava-
locais-transnacionais da cultura popular deste porto
lização das práticas sociais emancipatórias
negreiro plenamente integrado na economia mundial
do século XVII. tem uma importante dimensão auto-reflexiva:
Nuestra América: Reinventar um paradigma subalterno de reconhecimento e redistribuição 559

possibilita a descanonização e a subversão des- atavios, provocando desse modo o riso e a folia
sas práticas. Uma prática descanonizadora que entre os espectadores (Leon, 1993). Esta inver-
não saiba como descanonizar-se cai facilmente são simétrica do princípio e do fim da procissão
na ortodoxia. Do mesmo modo, uma actividade é uma metáfora cultural do mundo às avessas
subversiva que são saiba como subverter-se cai — el mundo al revés —, típica da sociabilidade
facilmente na rotina reguladora. de Vera Cruz nessa época: mulatas vestidas de
Ao carnavalizar as práticas sociais, a festa rainhas, escravos com trajes de seda, prostitu-
barroca revela um potencial subversivo que tas fingindo ser mulheres honradas e mulheres
aumenta na medida em que a festa se distan- honradas fingindo ser prostitutas, portugueses
cia dos centros de poder, mas que está sem- africanizados e espanhóis indianizados14. No
pre presente, mesmo quando são os próprios seu Manifesto Antropófago, Oswald de Andra-
centros do poder os promotores da festa. Não de celebra o mesmo mundo al revés:
admira, portanto, que este carácter subversivo
fosse muito mais visível nas colónias. Escre- Mas nunca admitimos o nascimento da lógica en-
vendo sobre o Carnaval nos anos 20, o grande tre nós […] Só não há determinismo onde há mis-
intelectual peruano Mariátegui afirmava que, tério. Mas que temos nós com isso? […] Nunca fo-
apesar de a burguesia se ter apropriado dele, o mos catequizados. Vivemos através de um direito
sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou
Carnaval era verdadeiramente revolucionário
em Belém do Pará (Andrade, 1990: 48-49).
porque, ao transformar o burguês em guarda-
-roupa, constituía uma impiedosa paródia do
Na festa, a subversão está codificada, na me-
poder e do passado (Mariátegui, 1974 [1925-
dida em que transgride a ordem conhecendo
1927]: 127). Garcia de Leon também descreve
a dimensão subversiva das festas barrocas e
das procissões religiosas do porto mexicano 14 No mesmo sentido, Ávila salienta a mistura de mo-
de Vera Cruz no século XVII. Na frente seguiam tivos religiosos e motivos pagãos: “Entre negros tocan-
os mais altos dignitários do vice-reinado com do charamelas, caixas de guerra, pífaros, trombetas,
todas as suas insígnias — políticos, clérigos e aparecia, por exemplo, um exímio figurante alemão
‘rompendo com sonoras vozes de hum clarim o silêncio
militares —, no fim da procissão seguia a popu-
dos ares’ enquanto os fiéis piedosamente carregavam
laça, imitando os seus superiores em gestos e estandartes ou imagens religiosos” (1994: 56).
560 Boaventura de Sousa Santos

o lugar da ordem e não o questionando radi- humana e da prática social se ajusta a uma tal
calmente, mas o próprio código é subvertido concepção de racionalidade, mas ela é, mesmo
pelos sfumatos entre a festa e a sociabilidade assim, bastante atraente para os que prezam a
quotidiana. Nas periferias, a transgressão é estabilidade e a hierarquia das regras univer-
quase uma necessidade. É transgressora por- sais. Hirschman, por sua vez, mostrou clara-
que não sabe como ser ordem, ainda que saiba mente as afinidades electivas entre esta forma
que a ordem existe. É por isso que a subjecti- de racionalidade e o capitalismo emergente
vidade barroca privilegia as margens e as pe- (1977: 32). Na medida em que os interesses das
riferias como campos para a reconstrução das pessoas e dos grupos começaram a convergir
energias emancipatórias. em torno das vantagens económicas, os inte-
Todas estas características transformam a resses que antes haviam sido considerados pai-
sociabilidade gerada pela subjectividade barro- xões tornaram-se o oposto das paixões e até
ca numa sociabilidade subcodificada: de algum os domesticadores destas. A partir daí, afirma
modo caótico, inspirado por uma imaginação Hirschman, “esperou-se ou assumiu-se que os
centrífuga, situado entre o desespero e a verti- homens, na prossecução dos seus interesses,
gem, este é um tipo de sociabilidade que cele- seriam firmes, decididos e metódicos, em con-
bra a revolta e revoluciona a celebração. Uma traste total com o comportamento estereotipa-
tal sociabilidade não pode deixar de ser emo- do dos homens dominados e cegos pelas suas
tiva e apaixonada, a característica que mais paixões” (1977: 54). O objectivo era, evidente-
distingue a subjectividade barroca em relação mente, criar uma personalidade humana “uni-
à alta modernidade ou primeira modernidade, dimensional”. E Hirschman conclui: “[…] Em
nos termos de Lash (1999). A alta racionalida- suma, supunha-se que o capitalismo realizasse
de moderna, sobretudo depois de Descartes, exactamente o que em breve seria denunciado
condena as emoções e as paixões enquanto como a sua pior característica” (1977: 132).
obstáculos ao progresso do conhecimento e da As receitas cartesianas e capitalistas de
verdade. A racionalidade cartesiana, escreve pouco servem para a reconstrução de uma per-
Toulmin, pretende ser “intelectualmente per- sonalidade humana com a capacidade e o de-
feccionista, moralmente rigorosa e humana- sejo de emancipação social. O significado das
mente impiedosa” (1990: 199). Pouco da vida lutas emancipatórias no início do século XXI
Nuestra América: Reinventar um paradigma subalterno de reconhecimento e redistribuição 561

não pode ser deduzido nem do conhecimento Como Cassirer (1960, 1963) e Toulmin (1990)
demonstrativo, nem de uma estimativa de in- mostraram, respectivamente para o Renasci-
teresses. Assim, a escavação efectuada pela mento e para o Iluminismo, cada época cria
subjectividade barroca neste domínio, mais do uma subjectividade que é congruente com os
que em qualquer outro, deve concentrar-se na novos desafios intelectuais, sociais, políticos e
busca das tradições suprimidas ou excêntricas culturais. O ethos barroco constitui os alicer-
da modernidade, nas representações que ocor- ces de um tipo de sociabilidade interessada
reram em periferias físicas ou simbólicas onde em se confrontar com as formas hegemónicas
o controlo das representações hegemónicas de globalização e capaz de o fazer, abrindo
era mais fraco — as Vera Cruzes da moderni- assim um espaço para possibilidades contra-
dade —, ou nas representações mais antigas -hegemónicas. Essas possibilidades não estão
e mais caóticas da modernidade, surgidas an- plenamente desenvolvidas e não podem, por si
tes do fechamento cartesiano. Por exemplo, a só, prometer uma nova era. Mas são suficiente-
subjectividade barroca procura inspiração em mente consistentes para dar uma base à ideia
Montaigne e na inteligibilidade concreta e eró- de que estamos a entrar num período de tran-
tica da sua vida. No seu ensaio Sobre a Experi- sição paradigmática, numa era intermediária e,
ência, depois de declarar que detesta remédios portanto, numa era ansiosa por seguir o impul-
que incomodem mais do que a doença, Mon- so da mestiçagem, do sfumato, da hibridação
taigne prossegue: e de todas as outras características que atribuí
ao ethos barroco, e à Nuestra América.
Ser vítima de uma cólica e sujeitarme a prescin- A credibilidade conquistada pelas novas for-
dir do prazer de comer ostras são dois males em mas de subjectividade e de sociabilidade ali-
vez de um. A doença apunhala-nos de um lado mentadas por esse ethos, irá traduzir-se gradu-
e a dieta do outro. Já que corremos o risco de almente em novas normatividades intersticiais.
um engano, mais vale arriscarmonos pelos ca-
Tanto Martí como Andrade tinham em mente
minhos do prazer. O mundo faz o contrário e só
um novo tipo de direito e um novo tipo de di-
acha útil o que é penoso: a facilidade levanta
suspeitas (1958: 370). reitos. Para eles, o direito a ser igual envolve o
direito a ser diferente, tal como o direito a ser
diferente envolve o direito a ser igual. Em An-
562 Boaventura de Sousa Santos

drade, a metáfora da antropofagia é um apelo a revolução indígena, camponesa e mineira de


a uma tal interlegalidade complexa15. O apelo é 1952 na Bolívia, seguida da eleição do primeiro
formulado na perspectiva da diferença subal- presidente indígena Evo Morales; o triunfo da
terna, a única “outra” alta modernidade euro- revolução cubana em 1959; a chegada ao poder
cêntrica que é reconhecida. Os fragmentos nor- de Allende em 1970; o movimento Sem Terra
mativos intersticiais que colhemos em Nuestra no Brasil desde os anos oitenta; o surgimento
América fornecerão as sementes de um novo do movimento indígena no Equador em 1990
direito “natural”, um direito cosmopolita, um e o longo caminho até à constituição Monte-
direito que vem de baixo, a encontrar nas ruas cristi em 2008; o movimento zapatista a partir
onde a sobrevivência e a transgressão criativa de 1994; o Fórum Social Mundial nascido em
se fundem num padrão de vida quotidiano. Porto Alegre, Brasil, em 2001; e os governos
progressistas da primeira década do novo sé-
Os limites de Nuestra America culo no Brasil, Venezuela, Argentina, Bolívia e
O Século Americano Nuestra América foi Equador, entre outros.
um século de possibilidades contra-hegemó- No entanto, a lista de derrotas dos movi-
nicas, muitas delas seguindo a tradição de mentos populares provocadas pelas oligarquias
outras que ocorreram no século XIX, após a internas e pelas potencias imperiais é muito
independência do Haiti em 1804. Entre essas maior e inclui as ditaduras civis e militares, as
possibilidades, podemos incluir a Revolução intervenções externas, a guerra contra o co-
Mexicana de 1910; o movimento indígena en- munismo, as violações massivas dos direitos
cabeçado por Quintin Lame na Colômbia em humanos e as execuções extrajudiciais das mi-
1914; o movimento sandinista na Nicarágua, lícias paramilitares. Como resultado, ao longo
nos anos 1920-1930, e o seu triunfo nos anos do século XX Nuestra América constituiu um
oitenta; a democratização radical da Guatema- terreno fértil para experiências cosmopolitas e
la em 1944; a ascensão do Peronismo em 1946; contra-hegemónicas tão radiantes nas suas pro-
messas como frustrantes nas suas realizações.
O que falhou e porquê no Século Americano
Nuestra América? Seria ridículo propor um in-
15 Sobre o conceito de interlegalidade, veja-se Santos,
2000: 195. ventário diante de um futuro tão aberto como
Nuestra América: Reinventar um paradigma subalterno de reconhecimento e redistribuição 563

o nosso. Apesar disso, arriscarei algumas re- do-se, ele próprio, um nativo sob a forma das
flexões que, na verdade, pretendem dar conta elites locais e das suas alianças transnacionais
mais do futuro do que do passado. Em primeiro com os interesses dos EUA. O Próspero do Sul
lugar, não é fácil viver nas “entranhas do mons- esteve presente no projecto político-cultural
tro”. Permite um conhecimento profundo da de Sarmiento, no colonialismo interno desde
besta, como Martí tão bem demonstrou, mas, as independências, nos interesses da burgue-
por outro lado, torna bastante difícil regressar sia agrária e industrial, sobretudo após a Se-
com vida, mesmo quando tomamos em aten- gunda Guerra Mundial, nas ditaduras militares
ção o conselho de Martí: “É preciso ir saindo dos anos sessenta e setenta, na luta contra
do Norte” (1963, II: 368). Em meu entender, a “ameaça comunista” e no drástico ajusta-
Nuestra América tem vivido duplamente nas mento estrutural neoliberal. Neste sentido,
entranhas do monstro: porque partilha, com a Nuestra América teve de viver aprisionada na
América Europeia, o continente que a última América Europeia e sob a dependência desta,
sempre concebeu como seu espaço vital e zona tal como Caliban relativamente a Próspero. O
privilegiada de influência; porque, como Martí Próspero interno fez com que a violência na
afirma em “Nuestra América”, a “nossa Améri- América Latina assumisse muito mais vezes a
ca” é a “América trabalhadora” (1963, VI: 23), forma de uma guerra civil do que a forma de
e, portanto, nas suas relações com a América uma Baía dos Porcos.
Europeia, ela partilha as mesmas contradições A terceira reflexão diz respeito a um certo
que impregnam as relações entre trabalhadores pós-modernismo triunfalista avant-lettre sobre
e capitalistas. Neste último sentido, Nuestra o novo valor social da mestiçagem, que deixou
América não falhou, nem mais, nem menos, do por analisar os processos sociais através dos
que os trabalhadores de todo o mundo na sua quais se produziu a mestiçagem. A inaudita
luta contra o capital. violência e a destruição da vida foram varri-
A minha segunda reflexão é que Nuestra das para baixo de uma fachada de mestiçagem
América não teve de lutar apenas contra as benevolente que se converteu na narrativa
visitas imperiais do seu vizinho do Norte. Este egoísta dos brancos e mestiços brancos. Não
conquistou o Sul e instalou-se nele, não se limi- supreende que este conceito de mestiçagem
tando a conviver com os nativos, mas tornan- se converta num branco dos movimentos e lu-
564 Boaventura de Sousa Santos

tas dos povos indígenas e afrodescendentes. A uma obra que seja produzida na órbita imediata
mestiçagem colonial devia distinguir-se estrita- em que habitam […] só merece o seu interesse
mente de uma mestiçagem pós-colonial ou des- quando recebeu a aprovação da metrópole, uma
colonial, a mestiçagem do mestiço branco da aprovação que lhes faculta o olhar com que a
vêem (Retamar, 1989: 82).
mestiçagem do mestiço escuro. Os movimen-
tos e as lutas anteriores foram fundamentais
para forçar as distinções deste tipo, e Frantz Contrariamente à afirmação de Ortiz, a
Fanon proporcionou-lhes os argumentos mais transculturação nunca foi total, e, na realida-
eloquentes e enérgicos. Estas distinções eram de, foi minada por diferenças de poder entre
cruciais para identificar as diferenças sobre as os diversos componentes que contribuíram
quais se poderiam construir alianças. De facto, para ela. Durante muito tempo, e talvez ainda
uma das debilidades de Nuestra América, bas- mais hoje, numa época de vertiginosa trans-
tante óbvia na obra de Martí, foi a sobrestima- culturação desterritorializada sob a forma de
ção da comunidade de interesses e as possibili- hibridação, as questões sobre a desigualdade
dades de união em torno desta questão. Devido de poder permaneceram sem resposta: quem
às diferenças não examinadas e aos conflitos hibrida quem e como? Com que resultados? E
que estas podem gerar, em lugar de se unir, em benefício de quem? O que é que, no pro-
Nuestra América sofreu um processo de frag- cesso de transculturação, não foi além da des-
mentação política. culturação ou do sfumato e porquê? Se é, de
A minha última reflexão reporta-se ao pro- facto, verdade que a maioria das culturas foi
jecto cultural da própria Nuestra América. A invasora, não é menos verdade que algumas
meu ver, contrariamente aos desejos de Mar- invadiram como senhoras e outras como es-
tí, a universidade europeia e norte-americana cravas. Hoje, passado quase um século, não
nunca deu inteiramente lugar à universidade será talvez arriscado pensar que o optimismo
americana. Isso é testemunhado pelo antropófago de Oswald de Andrade era exa-
gerado: “Mas não foram cruzados que vieram.
patético bovarismo de escritores e de sábios […] Foram fugitivos de uma civilização que esta-
que leva alguns latino-americanos […] a imagina- mos comendo, porque somos fortes e vingati-
rem-se como exilados da metrópole. Para eles, vos como o Jabuti” (1990: 50).
Nuestra América: Reinventar um paradigma subalterno de reconhecimento e redistribuição 565

O Século Americano-Europeu terminou em social e intelectual da América Latina tenha


triunfo, protagonista da última encarnação do sido invadido, nas últimas décadas, por uma
sistema mundial capitalista: a globalização he- onda de razão cínica, um pessimismo cultural
gemónica. O Século Americano Nuestra Amé- completamente irreconhecível do ponto de vis-
rica, pelo contrário, terminou em desalento. A ta de Nuestra América.
América Latina importou muitos dos males que
Martí tinha observado nas entranhas do mons- Possibilidades Contra-
tro, e a enorme criatividade emancipatória que Hegemónicas para o Século XXI
demonstrou — confirmada pelos movimentos À luz do que foi dito antes, deve-se perguntar
de Zapata e de Sandino, pelos movimentos de se Nuestra América tem, de facto, condições
indígenas e de camponeses, por Fidel em 1959 para continuar a simbolizar uma vontade utó-
e por Allende em 1970, pelos movimentos so- pica de emancipação e de globalização contra-
ciais, pelo movimento sindical do ABC, pelo -hegemónica, baseada na implicação mútua da
orçamento participativo em muitas cidades igualdade e da diferença. A minha resposta é
brasileiras, pelo movimento dos sem-terra, positiva, mas depende da seguinte condição:
pelo movimento zapatista — terminou em frus- Nuestra América tem de ser desterritorializa-
tração ou enfrenta um futuro incerto. Essa in- da e convertida na metáfora da luta das vítimas
certeza é tanto maior quando se prevê que, a da globalização hegemónica, onde quer que se
manter-se a extrema polarização na distribui- encontrem, no Norte ou no Sul, no Oriente ou
ção da riqueza mundial verificada nas últimas no Ocidente. Se revisitarmos as ideias funda-
décadas, tal irá exigir um sistema mundial de doras de Nuestra América, verificamos que as
repressão ainda mais despótico do que aquele transformações das últimas décadas criaram
que existe actualmente. Com antecipação ad- as condições para que, hoje, essas ideias pos-
mirável, Darcy Ribeiro escrevia em 1979: “Os sam ocorrer e florescer noutras partes do mun-
requisitos de repressão necessários para man- do. Examinemos algumas delas.
ter esse sistema ameaçam impor a todos os Primeiro, o aumento exponencial das in-
povos regimes uma rigidez e uma eficácia des- teracções trans-fronteiriças — de migrantes,
pótica sem paralelo na história da iniquidade” de estudantes, de refugiados, bem como de
(1979: 40). Não é de surpreender que o clima executivos e de turistas — tem vindo a gerar
566 Boaventura de Sousa Santos

novas formas de mestiçagem, de antropofa- indianos, curdos, árabes, et cetera16. Em tercei-


gia e de transculturação em todo o mundo. ro lugar, a exigência de produzir ou de sustentar
O mundo está a tornar-se, cada vez mais, um um conhecimento situado e contextualizado é,
mundo de invasores que sofreram a experiên- actualmente, uma reivindicação global contra
cia originária de serem invadidos. Há que dar a ignorância e o efeito silenciador produzidos
mais atenção do que aquela que foi prestada no pela ciência moderna, resultantes do modo
primeiro século de Nuestra América, ao poder como esta é usada pela globalização hegemóni-
dos diferentes intervenientes nos processos ca. Esta questão epistemológica adquiriu uma
de mestiçagem. Tais desigualdades explicam enorme relevância em tempos recentes, com
a perversão, quer da política da diferença (o os últimos desenvolvimentos da biotecnologia
reconhecimento que se torna uma forma de e da engenharia genética e a consequente luta
desconhecimento), quer da política da igualda- para defender a biodiversidade da biopirataria.
de (a redistribuição que acaba por se conver- Neste domínio, a América Latina, um dos maio-
ter nas novas formas de assistência à pobreza res detentores da biodiversidade, continua a
advogadas pelo Banco Mundial e pelo Fundo ser a residência de Nuestra América, junta-
Monetário Internacional). mente com muitas outras regiões de África e
Em segundo lugar, a recente e violenta re- Ásia (Santos, Meneses, Arriscado, 2004).
-emergência do racismo no Norte global aponta Em quarto lugar, à medida que a globalização
para uma defesa agressiva contra a construção hegemónica se aprofundou, as “entranhas do
imparável das múltiplas “pequenas humanida- monstro” aproximaram-se de muitos outros po-
des”, de que falava Bolívar, em que as raças se vos noutros continentes. Actualmente, o efeito
cruzam e se interpenetram nas margens da re-
pressão e da discriminação. Tal como o cuba-
16 Em Martí como em Bolívar, em consonância com
no, segundo Martí, podia afirmar que era mais os pressupostos iluministas, eliminar a diferença — em
do que negro, mulato ou branco, também o sul- vez de a assumir numa constelação de diferenças iguais
-africano, o moçambicano, o nova-iorquino, o — era o passo central para a emancipação. Mais tarde,
parisiense, o londrino podem, hoje, proclamar os pan-africanistas fizeram da assunção da negritude
uma condição para readquirir a igualdade: a diferença
que são mais do que negros, brancos, mulatos,
que não anula a história, a ferida colonial. É a questão
do Brasil “mulato” que retomo mais adiante.
Nuestra América: Reinventar um paradigma subalterno de reconhecimento e redistribuição 567

de proximidade é produzido pelo capitalismo formas de redistribuição e de reconhecimento


da informação e da comunicação e pela socie- que as políticas emancipatórias transnacionais
dade de consumo. Daí que se tenham multipli- desejam ver implementadas no mundo.
cado, ao mesmo tempo, as bases da razão cíni-
ca e as do impulso pós-colonial. A nova Nuestra Conclusão:
América tem hoje condições para ela própria se De que lado estás, Ariel?
globalizar e, desse modo, propor novas alianças Tendo começado com uma análise de Nues-
emancipatórias com a velha Nuestra América tra América enquanto visão subalterna do
localizada desde há muito. A natureza contra- continente americano ao longo do século XX,
-hegemónica de Nuestra América reside na sua identifiquei o potencial contra-hegemónico de
capacidade de desenvolver uma cultura política Nuestra América e indiquei algumas das ra-
transnacional progressista17. Essa cultura polí- zões pelas quais ele não conseguiu realizar-se.
tica deverá concentrar-se nas seguintes tarefas: Revisitando a trajectória histórica de Nuestra
identificar as múltiplas articulações locais/glo- América e a sua consciência cultural, o ethos
bais entre lutas, movimentos e iniciativas; pro- barroco, e prolongando a análise nessa base,
mover os embates entre, por um lado, as ten- reconstruí depois as formas de sociabilidade
dências e pressões da globalização hegemónica e de subjectividade que poderão enfrentar os
e, por outro, as coligações transnacionais capa- desafios que a globalização contra-hegemó-
zes de lhes oferecer resistência, abrindo assim nica coloca. A expansão simbólica, possibi-
possibilidades para as globalizações contra- litada por uma interpretação metafórica de
-hegemónicas; promover a auto-reflexividade Nuestra América, permitiu encarar esta úl-
interna e externa de modo a que as formas de tima como a marca da nova cultura política
redistribuição e de reconhecimento, estabe- transnacional convocada pelo novo século e
lecidas no seio dos movimentos, reflictam as pelo novo milénio. As exigências normativas
dessa cultura política, por muito embrioná-
rias e intersticiais que sejam, apontam para
17 Não terá sido por coincidência que a manifestação
mais consistente da globalização contra-hegemónica,
um novo tipo de política e cultura situacional,
na primeira década do século XXI, o Fórum Social Mun- insurgente, decolonial, intercultural de baixo
dial tenha nascido na América Latina (Santos, 2005). para cima e cosmopolita.
568 Boaventura de Sousa Santos

Todavia, a fim de que as frustrações do último Ariel o intelectual, amarrado a Próspero de um


século não se repitam, essa expansão simbóli- modo menos brutal do que Caliban, mas, mesmo
ca deve ir mais além e incluir a metáfora mais assim, colocado ao seu serviço, bem de acordo
negligenciada no mito de Nuestra América: com o modelo que o humanismo renascentista
Ariel, o espírito do ar na peça A Tempestade, de concebeu para os intelectuais: uma mistura de
Shakespeare. Como Caliban, Ariel é o escravo escravo e de mercenário, indiferente à acção e
de Próspero. Contudo, para além de não ser de- conformista perante a ordem estabelecida (Re-
formado como Caliban, recebe um tratamento tamar, 1989: 12). Este é o Ariel intelectual que
muito melhor por parte de Próspero, que lhe Aimé Césaire reinventou na sua peça de final
promete a liberdade se ele o servir fielmente. dos anos sessenta: Une Tempête: Adaptation de
Como mostrei, a Nuestra América viu-se pre- “la Tempête” de Shakespeare pour un théâtre
dominantemente a si própria como Caliban em nègre. Transformado aí em mulato, Ariel é o in-
luta constante e desigual contra Próspero. É telectual permanentemente em crise.
este o modo como Oswald Andrade, Aimé Cé- Em meu entender, chegou a hora de dar-
saire (1997 [1968]), Edward Brathwaite (1973), mos a Ariel uma nova identificação simbólica
George Lamming (1953), Retamar (1971, 1989) e de averiguarmos que uso pode ele ter para a
e muitos outros a viram. Embora esta seja a promoção do ideal emancipatório de Nuestra
perspectiva dominante, não é a única. Em 1898, América. Para isso é necessário submetê-lo,
por exemplo, o escritor franco-argentino Paul qual anjo barroco, a três transfigurações.
Groussac falava da necessidade de se defender A primeira transfiguração é o Ariel mulato de
a velha Europa e a civilização latino-americana Césaire. Contra o racismo e a xenofobia, Ariel
contra o “Ianque Calibanesco” (Retamar, 1971: representa a transculturação e o multiculturalis-
22). Por outro lado, a figura ambígua de Ariel mo, a mestiçagem da carne e do espírito, como
inspirou interpretações diversas. Em 1900, o es- diria Darcy Ribeiro. Nesta mestiçagem, inscre-
critor José Enrique Rodó publicou o seu próprio ve-se a possibilidade de uma tolerância inter-
Ariel (1935), no qual identifica a América Latina -racial e de um diálogo intercultural. O Ariel mu-
com Ariel, enquanto que a América do Norte é lato é a metáfora de uma síntese possível entre a
implicitamente identificada com Caliban. Em reivindicação do reconhecimento da diferença e
1935, o argentino Aníbal Ponce (1935) vê em a reivindicação da igualdade. Mas esta mestiça-
Nuestra América: Reinventar um paradigma subalterno de reconhecimento e redistribuição 569

gem é diferente daquela que dominou o primei- Isto exige uma mudança profunda nas formas
ro século de Nuestra América. A mestiçagem como o reconhecimento é produzido e valida-
antiga era a mestiçagem do mestiço branco, não do o que equivale a uma ruptura com aquilo a
a do mestiço escuro. Foi uma mestiçagem com que chamo epistemologias do Norte.
poucas preocupações no tocante às relações de Nestas transfigurações simbólicas residem
produção da mestiçagem e, nessa medida, ser- as bases de uma política emancipatória trans-
viu como encobrimento para muita violência e nacional e, portanto, das globalizações contra-
discriminação. A nova mestiçagem é uma mes- -hegemónicas. Seguindo a expansão simbólica
tiçagem decolonial, e o mestiço Ariel não pode da metáfora Nuestra América que proponho
deixar de ser um Ariel fanoniano. aqui, o segundo século de Nuestra América
A segunda transfiguração de Ariel é o inte- apenas tem sentido como uma ampla conste-
lectual de Gramsci, que exerce a auto-reflexi- lação de Nuestras Américas em África, Ásia
vidade de modo a conhecer de que lado está e e Europa, todas elas dependentes de alianças
qual a sua utilidade. Este Ariel está, inequivo- profundas, duráveis e verdadeiramente desco-
camente, do lado de Caliban, do lado de todos lonizadoras entre Ariel e Caliban.
os povos e grupos oprimidos do mundo, e man-
tém uma constante vigilância epistemológica e Bibliografia
política sobre si próprio, para evitar que o seu Alberro, S. 1992 Del gachupin al criollo
auxílio se torne inútil ou mesmo contraproduti- (México, DF: El Colegio de México).
vo. Este Ariel é um intelectual treinado na uni- Andrade, O. 1990 A utopia antropofágica (São
versidade de Martí. Paulo: Globo).
A terceira e última transfiguração é episte- Ávila, A. 1994 O lúdico e as projecções
mológica. Uma vez que Ariel se une a Caliban do mundo barroco — II (São Paulo:
em busca da libertação, o saber nascido na Perspectiva).
luta converte-se na fonte mais viável de visão Beck, U. 1992 The Risk Society: Towards a
e orientação. Como diz o proverbio africano, New Modernity (Londres: Sage).
esta na hora da história da caçada ser contada Benjamin, W. 1968 “Thesis on the Philosophy
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570 Boaventura de Sousa Santos

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Entre Próspero e Caliban:
Colonialismo, pós-colonialismo e
inter-identidade*

Introdução em trabalhos anteriores (Santos, 1994: 49-68 e


119-137). Relembro-as aqui de modo muito su-
N este trabalho pretendo dar mais um pas-
so numa investigação em curso sobre os
processos identitários no espaço-tempo da
mário. Portugal é, desde o século XVII, um país
semiperiférico no sistema mundial capitalista
língua portuguesa, ou seja, numa vasta e mul- moderno. Esta condição, sendo a que melhor
tissecular zona de contacto que envolveu por- caracteriza a longa duração moderna da socie-
tugueses e outros povos da América, da Ásia dade portuguesa, evoluiu ao longo dos séculos
e da África1. As hipóteses de trabalho que mas manteve os seus traços fundamentais:
orientam esta investigação foram formuladas um desenvolvimento económico intermédio e
uma posição de intermediação entre o centro
e a periferia da economia-mundo; um Estado
que, por ser simultaneamente produto e produ-
1 No âmbito deste programa de investigação, acabo
de realizar, juntamente com Maria Paula Meneses, um tor dessa posição intermédia e intermediária,
projecto intitulado “Identidades, colonizadores e colo- nunca assumiu plenamente as características
nizados: Portugal e Brasil”, sobre os processos identi- do Estado moderno dos países centrais, sobre-
tários nas relações Portugal-Moçambique no período tudo as que se cristalizaram no Estado liberal
entre 1890 e 1930.
a partir de meados do século XIX; processos
culturais e sistemas de representação que, por
* Extraído de Santos, B. de Sousa 2006 “Entre Prós-
pero e Caliban: Colonialismo, pós-colonialismo e inter-
se quadrarem mal nos binarismos próprios da
-identidade” in A gramática do tempo. Para uma nova
cultura política (Porto: Afrontamento) pp. 211-255.
574 Boaventura de Sousa Santos

modernidade ocidental2 — cultura/natureza; do a Inglaterra) de que Portugal foi dependente


civilizado/selvagem; moderno/tradicional — (por vezes de modo quasi-colonial).
podem considerar-se originariamente híbridos, A segunda sub-hipótese é que, pelas suas ca-
ainda que, no fundo, sejam apenas diferentes, racterísticas e duração histórica, a relação co-
uma diferença que, contudo, não pode ser cap- lonial protagonizada por Portugal impregnou de
tada nos seus próprios termos. modo muito particular e intenso as configura-
A segunda hipótese de trabalho é que esta ções de poder social, político e cultural, não só
complexa condição semiperiférica se reprodu- nas colónias como no seio da própria sociedade
ziu até bem recentemente com base no sistema portuguesa. Se o poder capitalista moderno foi
colonial e reproduz-se, desde há duas décadas, sempre colonial, em Portugal e suas colónias
no modo como Portugal está inserido na União ele foi sempre mais colonial do que capitalista.
Europeia (UE). Desta hipótese decorrem três Esta impregnação colonial do poder, longe de
sub-hipóteses. A primeira é que o colonialismo ter terminado com o colonialismo, continuou
português, sendo protagonizado por um país e continua a reproduzir-se. Por outras palavras,
semiperiférico, foi, ele próprio, semiperiférico, talvez mais do que em qualquer outro colonia-
um colonialismo com características subalter- lismo europeu, o fim do colonialismo político
nas, o que fez com que as colónias fossem co- não determinou o fim do colonialismo social,
lónias incertas de um colonialismo certo. Esta nem nas ex-colónias, nem na ex-potência colo-
incerteza decorreu tanto de um défice de colo- nial. A terceira sub-hipótese é que o processo
nização — a incapacidade de Portugal para co- de integração na UE, apesar da sua curtíssima
lonizar segundo os critérios dos países centrais duração quando comparado com o período co-
— como de um excesso de colonização, o facto lonial, parece destinado a ter um impacto tão
de as colónias terem estado submetidas, espe- dramático na sociedade portuguesa quanto o
cialmente a partir do século XVIII, a uma dupla que o colonialismo teve. Em aberto está a ques-
colonização: por parte de Portugal e, indirecta- tão do sentido e conteúdo desse impacto. Por
mente, por parte dos países centrais (sobretu- agora, parece ir no sentido da reprodução, em
novos termos, da condição semiperiférica, o que
significa que, durante muitas décadas, Portugal
2 Ver Santos 2006a: 87-126 e 167-178. acompanhará o desenvolvimento médio euro-
Entre Próspero e Caliban: Colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade 575

peu a alguma distância. Os problemas teóricos e de um sistema mundial nas novas condições
analíticos são neste domínio muito complexos. estabelecidas pela globalização hegemónica.
É legítimo continuar a designar como semipe- Segundo eles, a teoria do sistema mundial
riférico um país que se integra de pleno direito pressupunha a coerência interna das econo-
num bloco regional de países centrais? Em que mias e sociedades nacionais integrantes do
medida e sob que condições é que tal integração sistema e uma grande estabilidade, se não
pode reproduzir a condição semiperiférica mes- mesmo rigidez, das relações de hierarquia
mo que “enxertando-a” de características cen- entre elas (centro, periferia e semiperiferia).
trais? Pode doravante Portugal ser considerado De acordo com estes autores, a globalização
para certos efeitos semiperiférico e para outros destruiu a coerência interna das economias
central ou, pelo contrário, periférico? O alarga- nacionais e é tão dinâmica nos fluxos de in-
mento e aprofundamento da UE fará com que as terdependência que cria que deixou de haver
relações no seu interior sejam mais importantes hierarquias rígidas, muito menos entre países.
para os países integrantes do que a posição de- Contra esta posição, defendo, como hipótese
les no sistema mundial? E se tais relações pro- de trabalho, que nos encontramos numa fase
duzirem hierarquias do tipo das que vigoram no instável caracterizada pela sobreposição en-
sistema mundial (centro, semiperiferia e perife- tre duas formas de hierarquização: uma, mais
ria), qual será a posição de Portugal nelas? rígida, que constitui o sistema mundial desde
A terceira hipótese geral, que, em tempos o seu início, entre o centro, a periferia e a se-
mais recentes, vem informando a minha inves- miperiferia; e outra, mais flexível, entre o que
tigação, diz respeito a estas últimas perguntas no sistema mundial é produzido ou definido
e, especificamente, ao valor analítico da teoria como local e o que é produzido ou definido
do sistema mundial nas condições de globaliza- como global (como, por exemplo, Appadurai,
ção em que hoje vivemos. Este tema foi tratado 1997). Enquanto a primeira hierarquia conti-
por mim noutro lugar (Santos, 2001), pelo que nua a vigorar nas relações entre sociedades
aqui me limito a enunciar a hipótese de traba- ou economias nacionais, a segunda hierarquia
lho que sobre ele desenvolvi. ocorre entre domínios de actividade, práticas,
Vários autores (como, por exemplo, Manuel conhecimentos, narrativas, sejam eles econó-
Castells, 1996) têm questionado a existência micos, políticos e culturais. A sobreposição
576 Boaventura de Sousa Santos

destas duas formas de hierarquia e as inter- destes papéis, pelo que, como consequência,
ferências recíprocas que geram explicam a a cultura portuguesa teve sempre uma grande
situação paradoxal em que nos encontramos: dificuldade em se diferenciar de outras cultu-
as desigualdades dentro do sistema mundial ras nacionais ou, se preferirmos, uma grande
(e dentro de cada uma das sociedades que o capacidade para não se diferenciar de outras
compõem) agravam-se e, no entanto, os fac- culturas nacionais e, por outro lado, manteve
tores que as causam e as acções que podem até hoje uma forte heterogeneidade interna
eventualmente reduzilas são cada vez mais di- (Santos, 1994: 132-137).
fíceis de identificar. Neste trabalho, pretendo definir um pro-
Finalmente, a quarta hipótese geral de tra- grama de investigação num campo analíti-
balho é que a cultura portuguesa é uma cultu- co específico: as práticas e os discursos que
ra de fronteira. Não tem conteúdo. Tem sobre- caracterizam o colonialismo português e o
tudo forma e essa forma é a fronteira, a zona modo como eles impregnaram os regimes
fronteiriça. As culturas nacionais, enquanto identitários nas sociedades que dele parti-
substâncias, são uma criação do século XIX, ciparam, tanto durante o período colonial
o produto histórico de uma tensão entre uni- como depois da independência das colónias,
versalismo e particularismo gerido pelo Esta- com especial incidência na África e na Améri-
do. O papel do Estado foi difícil: por um lado, ca4. Este programa de investigação traduz-se
diferenciou a cultura do território nacional no deslindar analítico de uma série de propo-
relativamente ao exterior; por outro lado, pro- sições que apresento a seguir.
moveu a homogeneidade cultural no interior
do território nacional, muitas vezes à custa da
destruição de culturas mais refractárias à ho-
mogeneização. A minha hipótese de trabalho 4 Os territórios da chamada “Índia Portuguesa”
é que, no espaço europeu de Portugal3, o Es- (Goa, Damão e Diu) foram incorporados na Índia em
tado nunca desempenhou cabalmente nenhum 1962. Timor-leste foi ocupado pela Indonésia em 1975,
quando o processo de descolonização estava a come-
çar, e só se tornou independente em 2002. Macau, onde
3 Esta questão não se põe no espaço não-europeu, os portugueses se estabeleceram em 1557, foi devolvi-
colonial. do à China em 31 de dezembro de 1999.
Entre Próspero e Caliban: Colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade 577

O colonialismo português casos, essa conjunção ocorreu por delegação,


e o pós-colonialismo ou seja, pelo impacto da pressão da Inglaterra
sobre Portugal através de mecanismos como
A especificidade do condições de crédito e tratados internacionais
colonialismo português desiguais. Assim, enquanto o Império Britânico
Formular a caracterização do colonialismo assentou num equilíbrio dinâmico entre colo-
português como “especificidade” exprime as nialismo e capitalismo, o Império Português
relações de hierarquia entre os diferentes co- assentou num desequilíbrio, igualmente dinâ-
lonialismos europeus. A especificidade é a afir- mico, entre um excesso de colonialismo e um
mação de um desvio em relação a uma norma défice de capitalismo.
geral. Neste caso, a norma é dada pelo colonia- No domínio dos discursos coloniais, o carác-
lismo britânico e é em relação a ele que se defi- ter periférico do colonialismo português reside
ne o perfil do colonialismo português, enquan- no facto de, a partir do século XVII, a história
to colonialismo periférico, isto é, enquanto do colonialismo ter sido escrita em inglês e não
colonialismo subalterno em relação ao colonia- em português. Isto significa que o colonizador
lismo hegemónico da Inglaterra. A perifericida- português tem um problema de auto-represen-
de do colonialismo português é dupla, porque tação algo semelhante ao do colonizado pelo
ocorre tanto no domínio das práticas coloniais, colonialismo britânico, o problema da preva-
como no dos discursos coloniais. No domínio lência de uma hetero-representação que confir-
das práticas, a perifericidade está no facto de ma a sua subalternidade5. Esse problema, refe-
Portugal, enquanto país semiperiférico no sis- rido ao colonizado, consiste, como é sabido, na
tema mundial, ter sido ele próprio, durante um impossibilidade ou dificuldade de o colonizado
longo período, um país dependente da Inglater- ou o chamado Terceiro Mundo ex-colonizado
ra, e, em certos momentos, quase uma “coló- se representar a si próprio em termos que não
nia informal” da Inglaterra. Tal como aconte- confirmem a posição de subalternidade que a
ceu com o colonialismo espanhol, a conjunção
do colonialismo português com o capitalismo
foi muito menos directa do que a que carac- 5 O tema da caracterização das relações coloniais
tem conhecido um grande relevo. Veja-se, por exemplo,
terizou o colonialismo britânico. Em muitos Elkins e Pedersen (orgs.) 2005.
578 Boaventura de Sousa Santos

representação colonial lhe atribuiu. O carácter uma disjunção caótica entre o sujeito e o objec-
quase dilemático deste problema está em que a to de representação colonial que, por sua vez,
inversão dessa posição pode sub-repticiamente cria um campo aparentemente vazio de repre-
confirmar a subalternidade no próprio proces- sentações (mas, de facto, cheio de representa-
so de a superar. Assim terá, quiçá, acontecido ções subcodificadas) que, do ponto de vista do
com o movimento da negritude, lançado por colonizado, constitui um espaço de manobra
Leopold Senghor e Aimé Césaire, que às cono- adicional para tentar a sua auto-representação
tações racistas negativas do “negro” contrapôs para além ou fora da representação da sua su-
a celebração do orgulho e da dignidade e a balternidade? Por outras palavras, a questão é
exaltação das origens africanas da raça negra. saber se o colonizado por um colonialismo su-
Aplicado ao colonizador português, este pro- balterno é subcolonizado ou sobrecolonizado.
blema traduz-se na necessidade de definir o co- A especificidade do colonialismo português
lonialismo português em termos de especifici- assenta, pois, basicamente em razões de eco-
dade em relação ao colonialismo hegemónico, nomia política — a sua condição semiperifé-
o que significa a impossibilidade ou dificuldade rica6 —, o que não significa que esta se tenha
em o definir em termos que não reflictam essa manifestado apenas no plano económico. Pelo
perifericidade ou subalternidade, ou seja, em contrário, manifestou-se igualmente nos planos
termos do que foi e não em termos do que não social, político, jurídico, cultural, no plano das
foi. Um tema de investigação particularmente práticas quotidianas de convivência e de sobre-
complexo é o de saber em que medida este pro- vivência, de opressão e de resistência, de proxi-
blema do colonizador português se repercute midade e de distância, no plano dos discursos
no colonizado por Portugal. Será que o coloni- e narrativas, no plano do senso comum e dos
zado por Portugal tem um duplo problema de outros saberes, das emoções e dos afectos, dos
auto-representação, em relação ao colonizador sentimentos e das ideologias. Cada um destes
que o colonizou e em relação ao colonizador planos criou a sua materialidade própria, uma
que, não o tendo colonizado, escreveu, no en-
tanto, a história da sua sujeição colonial? Ou,
6 Sobre a inserção de Portugal no ciclo colonial afri-
será que, pelo contrário, o problema de auto-
cano, ver, por exemplo, Boxer, 1963; Alexandre, 1979,
-representação do colonizador português cria 2000; Fortuna, 1993; Chabal (org.), 2002.
Entre Próspero e Caliban: Colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade 579

institucionalidade e uma lógica de desenvol- curso colonial — a ciência racista, o progresso


vimento próprias, e estas retroagiram sobre a e “o fardo do homem branco”8, etc. — e o colo-
condição semiperiférica, conferindo-lhe a es- nialismo português adoptou-as segundo modos
pessura sociológica que ela não teria enquanto e graus que em boa medida estão por investigar.
referida apenas a uma posição no sistema mun- A verdade, porém, é que, no caso do colonia-
dial. Com isto, a semiperiferia deixou de ser o lismo português (tal como no do colonialismo
elo de uma hierarquia global para se tornar num espanhol), havia uma realidade multissecular
modo de ser e estar na Europa e Além-Mar. A precedente, a qual, ao ser sujeita retrospecti-
captação desta realidade sociológica, psicológi- vamente aos novos critérios de análise e ava-
ca, intersubjectiva, emocional e das escalas em liação, foi reduzida a um particularismo des-
que se cristalizou (local, nacional, global) está viante (colonialismo predador, mercantilista,
por fazer. A dificuldade, como referi, está em informal9, etc.). A historiografia de Charles Bo-
estudá-la de modo a captar o que ela foi e não o
que ela não foi. Mas, para além das razões que
África, a Inglaterra formulou um Ultimatum a Portu-
aduzi acima, há uma outra, o facto de o ciclo gal. Reconhecendo a fragilidade da sua situação peri-
colonial português ter sido, de todos os colonia- férica, Portugal, perante as pressões inglesas, retirou a
lismos europeus, o mais longo, tendo precedido sua pretensão sobre vários territórios. Esta decisão do
em três séculos o colonialismo capitalista cen- governo de Portugal foi muito contestada no país, sus-
citando um forte movimento nacionalista.
tral do século XIX. Este último, uma vez con-
solidado, definiu as regras da prática colonial 8 Alusão ao poema de Kipling “The White Man’s Bur-
den” (O Fardo do Homem Branco), publicado em 1899.
— dramaticamente afirmadas na Conferência
Esta obra constitui um chamamento à intervenção im-
de Berlim (1884) e no Ultimatum7 — e do dis- perial do Ocidente no mundo. Para Kipling, a expansão
das conquistas da civilização ocidental era uma missão
moral que todos os homens brancos deviam assumir,
7 O conceito colonial assente na historicidade de como um fardo, uma obrigação para com as regiões e os
uma “longa” presença em África, defendido por Portu- povos do mundo considerados selvagens ou bárbaros.
gal, contrastava, em meados do século XIX, com a ocu- 9 Alguns historiadores, como Isaacman (1976),
pação agressiva do continente africano pelas potências descrevem o sistema colonial português como um
europeias imperiais. Em 1890, e no auge de uma crise “Império informal”, um imperialismo sem governo co-
de disputa de espaços coloniais na região oriental de lonial específico.
580 Boaventura de Sousa Santos

xer (1963, 1969) simboliza melhor do que qual- originalidade a partir do momento em que o
quer outra este processo. A grande assimetria capitalismo industrial criou um vínculo mais
entre o colonialismo inglês e o português foi estreito e directo com o colonialismo. A partir
o facto de o primeiro não ter de romper com daí, a originalidade, no duplo sentido de prio-
um passado descoincidente do seu presente. O ridade temporal e de construção autónoma,
colonialismo inglês foi sempre o colonialismo- deu lugar à derivação, ao particularismo e à
-norma desde a sua origem porque protagoni- especificidade. Assim, a densa e longa tempo-
zado pelo país que impunha a normatividade ralidade do colonialismo português redundou
do sistema mundial. No caso do colonialismo numa estranha suspensão do tempo, numa ana-
português, uma vez criada a possibilidade de cronia que, aliás, havia de revelar-se dupla: por
um colonialismo retroactivo, enquanto dis- ter existido antes e por ter continuado a existir
curso de dessincronia e ruptura, este pôde ser depois do colonialismo hegemónico. Retroac-
manipulado ao sabor das exigências e conjun- tividade, suspensão e anacronismo acabaram
turas políticas. Tanto se ofereceu a leituras por se transformar na temporalidade própria
inquietantes — por exemplo, a ideia de que o de uma longa duração sujeita a critérios de
subdesenvolvimento do colonizador produziu temporalidade estranhos.
o subdesenvolvimento do colonizado, uma Estes jogos de temporalidades impregna-
dupla condição que só poderia ser superada ram as sociabilidades e identidades, tanto do
por uma política colonialista desenvolvida — colonizador, como dos colonizados, e impreg-
como a leituras reconfortantes, por exemplo, naram-nas aquém e além do vínculo político-
o luso-tropicalismo, “Portugal, do Minho a Ti- -jurídico colonial. Aquém do vínculo político-
mor”, colonialismo cordial. Mas quase todas -jurídico colonial, porque durante séculos em
as leituras tiveram elementos inquietantes e muitas regiões do Império as relações entre os
reconfortantes. A negatividade relativa do co- portugueses e as populações locais não pude-
lonialismo português foi sempre o subtexto da ram, em termos práticos, reivindicarse de qual-
sua positividade relativa, e vice-versa. quer vínculo jurídico-político exterior a elas ou
Apesar de a inserção de Portugal no projec- aos encontros que as originaram ou que delas
to da expansão europeia ter sido original, não resultaram; além do vínculo político-jurídico
pôde sustentar a seu respeito um discurso de colonial, porque a colonialidade das relações
Entre Próspero e Caliban: Colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade 581

não terminou com o fim do colonialismo das estudos culturais, linguísticos e literários e usa
relações. Esta questão suscita uma outra, mais privilegiadamente a exegese textual e as prá-
ampla, sobre a natureza do binómio colonialis- ticas performativas para analisar os sistemas
mo/pós-colonialismo no espaço da língua ofi- de representação e os processos identitários.
cial portuguesa. O pós-colonialismo na segunda acepção, sem
todavia excluir muitos dos motivos da primeira
O pós-colonialismo10 acepção, contém uma crítica, implícita ou ex-
plícita, aos silêncios das análises pós-coloniais
O pós-colonialismo deve ser entendido em
que a primeira acepção normalmente contém.
duas acepções principais. A primeira é a de
Por me centrar neste texto nos sistemas de re-
um período histórico, o que se sucede à inde-
presentação e processos identitários, reporto-
pendência das colónias. A segunda é de um
-me ao pós-colonialismo na segunda acepção,
conjunto de práticas (predominantemente per-
ainda que as análises próprias do pós-colonia-
formativas) e de discursos que desconstroem
lismo na primeira acepção sejam trazidas re-
a narrativa colonial, escrita pelo colonizador,
correntemente à colação.
e procuram substituí-la por narrativas escritas
A hipótese de trabalho neste domínio é que a
do ponto de vista do colonizado. Na primeira
diferença do colonialismo português não pode
acepção, o pós-colonialismo traduz-se num
deixar de induzir a diferença do pós-colonia-
conjunto de análises económicas, sociológicas
lismo no espaço de língua oficial portuguesa.
e políticas sobre a construção dos novos Esta-
O pós-colonialismo toma, inicialmente, como
dos, a sua base social, a sua institucionalidade e
realidade fundadora, o colonialismo britânico.
a sua inserção no sistema mundial, as rupturas
Pretende criar o espaço intelectual para o críti-
e as continuidades com o sistema colonial, as
co pós-colonial, no entanto, o modo como o faz
relações com a ex-potência colonial e a ques-
diverge de autor para autor, sendo, pois, identi-
tão do neocolonialismo, as alianças regionais,
ficáveis posições muito distintas no campo das
etc., etc. Na segunda acepção, o pós-colonialis-
análises que se reclamam do pós-colonialismo.
mo tem um recorte culturalista, insere-se nos
Limito-me aqui a identificar o que de comum
pode existir entre elas, já que só isso interessa
10 Sobre este tema, ver Santos, 2006a: 23-44. para a tese que apresento.
582 Boaventura de Sousa Santos

O pós-colonialismo é um produto da “vira- (1994: 26). Ainda que correndo o risco de sim-
gem cultural” das ciências sociais na década de plificar em excesso, julgo que dos debates pós-
oitenta, tendo como precursores Frantz Fanon -coloniais podem retirar-se as seguintes orien-
(1961, 1971) e Albert Memmi (1965). Inspirado tações temáticas e analíticas.
nos trabalhos pioneiros de Edward Said sobre O intelectual pós-colonial. É necessário
o Orientalismo (1978), de Richard Werbner repensar a posição do intelectual e da crítica:
(1996) e de Stuart Hall (1996a, 1996b) sobre as os discursos pós-coloniais procuram superar
culturas diaspóricas, veio a consolidar-se atra- a distinção entre crítica e política. O lugar do
vés dos trabalhos de Partha Chatterjee (1986), crítico pós-colonial tem de ser construído de
Paul Gilroy (1993), Homi Bhabha (1994) e modo a que possa interromper eficazmente os
Gayatri Spivak (1996), bem como dos debates discursos hegemónicos ocidentais que, através
que eles suscitaram. Se inicialmente foi con- do discurso da modernidade, racionalizaram
siderada uma corrente animada fundamental- ou normalizaram o desenvolvimento desigual
mente por intelectuais diaspóricos, com raízes e diferencial das histórias, das nações, raças,
nos países colonizados pelo Império Britânico comunidades ou povos (Bhabha, 1994: 171).
e a trabalhar no Ocidente, hoje em dia a pers- Esta mescla de crítica e política revelará uma
pectiva pós-colonial está presente em muitas prática e uma temporalidade discursivas mar-
das análises que incidem sobre o impacto das cadas pela negociação, tradução e articulação
relações imperiais modernas. Os contributos de elementos antagónicos e contraditórios.
decisivos dos estudos realizados nestes paí- Aqui reside a “terceira via” ou o “terceiro es-
ses no período pós-independência como, por paço” ocupados pelo crítico pós-colonial, a via
exemplo, os Subaltern Studies dirigidos por ou o espaço da cultura. Spivak considera que a
Ranajit Guha (Santos, 1995: 506-518; 2000: 340- função do crítico pós-colonial consiste em con-
354) nem sempre são devidamente creditados tribuir para destruir a subalternidade do colo-
pelos críticos póscoloniais. nizado. Dado que a condição do subalterno é o
A ideia central do pós-colonialismo cultural silêncio, a fala é a subversão da subalternida-
é, precisamente, reclamar a presença e a voz de. Tornar possível esta fala exige, porém, um
do crítico pós-colonial, as quais, segundo Bha- trabalho político que vai para além da discur-
bha, foram usurpadas pelos críticos ocidentais sividade académica. Assim, segundo Spivak, a
Entre Próspero e Caliban: Colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade 583

responsabilidade do crítico pós-colonial para non e Memmi é decisiva neste ponto. Segundo
com os subalternos é muito clara: Memmi, tal como segundo Fanon, influenciado
por Freud12, o vínculo entre colonizador e colo-
trabalhar em prol dos subalternos consiste em tra- nizado é dialecticamente destrutivo e criativo.
zê-los para dentro do circuito da democracia parla- Destrói e recria os dois parceiros da coloniza-
mentar, não através da benevolência cultural, mas ção em o colonizador e o colonizado. O primei-
antes através de trabalho extra-académico. […] ro é desfigurado, convertido num ser opressivo
Trabalhar em prol do subalterno contemporâneo
apenas preocupado com os seus privilégios e
significa investir tempo e capacidades […] para
a defesa destes. O segundo é desfigurado, con-
que o subalterno seja integrado na cidadania, inde-
pendentemente do que esta signifique, desfazendo vertido numa criatura oprimida cujo desenvol-
assim o espaço subalterno (Spivak: 1996: 307). vimento é interrompido e cuja derrota se ma-
nifesta nos compromissos que aceita (Memmi,
Hibridação nos regimes identitários. En- 1965: 89). A corrente que une o colonizador e
quanto o discurso colonial construiu a polari- o colonizado é o racismo, ainda que este seja
dade entre o colonizador (Próspero) e o colo- para o colonizador uma forma de agressão e
nizado (Caliban), o póscolonialismo salienta a para o colonizado, uma forma de defesa (ibid.:
ambivalência e a hibridez entre ambos já que 131). A construção da diferença exigiu a cria-
não são independentes um do outro nem são ção de um estereótipo do colonizado como sel-
pensáveis um sem o outro11. A influência de Fa- vagem, animal. Como escreve Fanon, acerca da
situação colonial:

11 Uso neste trabalho os nomes de Próspero e Cali- Por vezes este maniqueismo leva a sua lógica
ban da peça The Tempest de Shakespeare (1611) para até ao ponto de desumanizar o colonizado. Mais
significar que a zona de contacto colonial se constitui propriamente, desumaniza-o. Com efeito, quan-
como uma zona de contacto entre o “civilizado” e o “sel-
do se refere ao colonizado, a linguagem do co-
vagem”. A ideia da hibridação entre o colonizador e co-
lonizado não é original dos estudos pós-coloniais. Foi
lonizador recorre à zoologia. Faz-se alusão ao
formulada, talvez pela primeira vez, por Gandhi, que em rastejar do Amarelo, às emanações da aldeia
muitos textos chamou a atenção para a continuidade
entre o opressor e a vítima. Sobre esta questão, ver San-
tos, 1995: 506-518; 2000: 340-354. 12 Veja-se, por exemplo, Freud, 1984a e 1984b.
584 Boaventura de Sousa Santos

indígena, às hordas, aos cheiros fétidos, às pu- ne, assume uma posição tão central. O mesmo
lulações, aos alaridos, às gesticulações. Quando acontece com o conceito de imitação. A ambi-
pretende a palavra adequada para bem descre- valência da imitação está em que ela afirma a
ver, o colonizador socorre-se constantemente diferença no processo de identificação do ou-
do bestiário (1961: 54).
tro. No contexto colonial, a raça é o símbolo
dessa diferença e, no fundo, a causa do insu-
Para Bhabha, a ambiguidade das represen- cesso da imitação, já que não permite mais que
tações colonizador/colonizado evidencia-se uma presença incompleta. Como diz Bhabha,
bem no estereótipo. A construção das diferen- referindose à Índia, “ser anglicizado significa
ças, sobretudo da diferença racial e sexual, enfaticamente não ser inglês” (1994: 87). No
encontra no estereótipo a estratégia discursiva contexto português, poderia igualmente dizer-
colonialista mais destacada, uma forma pro- -se que ser assimilado significa enfaticamente
fundamente ambivalente de conhecimento e não ser português. De todo o modo, ao subver-
representação que engloba elementos de fobia, ter os essencialismos, a hibridez pode alterar
medo e desejo (Bhabha, 1994: 67). A ambiva- as relações de poder entre os sentidos domi-
lência mais notória do estereótipo é o facto nantes e os sentidos dominados. O espaço hí-
de os reversos dos seus elementos negativos brido cria abertura pelo modo como descre-
serem também seus elementos constitutivos: dibiliza as representações hegemónicas e, ao
o preto é simultaneamente o selvagem e o fazê-lo, desloca o antagonismo de tal modo que
criado mais digno e obediente; é a incarnação ele deixa de sustentar as polarizações puras
da sexualidade descontrolada, mas é também que o constituíram.
inocente como uma criança; é um místico, pri- Diferença cultural e multiculturalismo. A
mitivo e pobre de espírito, e ao mesmo tempo é identidade pós-colonial, ao romper com a dis-
engenhoso, mentiroso e manipulador de forças tinção clara entre a identidade do colonizador
sociais (Bhabha, 1994: 82). e a identidade do colonizado, tem de ser cons-
A tradução, que possibilita a comunicação truída, para o centro hegemónico, a partir das
cultural, mina toda a ideia de essencialismo de margens das representações e através de um
uma cultura original e pura, e é por isso que movimento que vai das margens para o centro.
o conceito de hibridez, inspirado em Bakhti- É este o espaço privilegiado da cultura e do
Entre Próspero e Caliban: Colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade 585

crítico pós-colonial, um espaço-entre, liminar. de que é bastante crítico. Para Bhabha, o multi-
Tratase de um espaço de fronteira, de extremi- culturalismo pressupõe a ideia de uma cultura
dade ou de linha da frente onde só é possível central que estabelece as normas em relação às
a experiência da proximidade da diferença. É quais devem posicionar-se as culturas menores
neste espaço que é construída e negociada a (Bhabha, 1990b: 208). Como tais normas esta-
diferença cultural. A diferença cultural subver- belecem os limites dentro dos quais as outras
te as ideias de homogeneidade e uniformidade culturas — consideradas menores ou inferio-
culturais na medida em que se afirma através res — podem legitimamente manifestar-se, a
de práticas enunciativas que são vorazes em re- afirmação da diversidade multicultural implica
lação aos diferentes universos culturais de que sempre uma limitação na afirmação da diferen-
se servem. A centralidade do elemento perfor- ça cultural. É por isso que os projectos multi-
mativo da enunciação cultural e das disjunções culturais não têm impedido que o racismo e a
e articulações que esta possibilita reflecte a in- discriminação étnica continuem a propagar-se.
fluência de Lacan, Derrida e Barthes no pensa- Gayatri Spivak, numa posição menos extrema,
mento pós-colonial. A enunciação cultural cria ao mesmo tempo que reconhece a ampliação
uma temporalidade própria, e é ela que torna do cânone com o “cânone multicultural”, pre-
possível a emergência de modernidades alter- ocupa-se sobretudo com o facto de os textos
nativas à modernidade ocidental, precisamente do Terceiro Mundo serem ensinados com total
através de “traduções póscoloniais”13. A própria desconhecimento dos contextos históricos e
luta de libertação anti-colonial é híbrida e as- políticos em que foram produzidos (1996: 237-
sente em tradução, não se sustentando nem em 266). No fundo, tanto a diversidade cultural
ancestralidades pré-coloniais, nem na imitação como a diferença cultural se confrontam com
pura e simples dos ideais liberais ocidentais. os limites da ambivalência ante a possibilidade
O conceito de diferença cultural é contra- de incomensurabilidade e, portanto, de intra-
posto por Bhabha ao conceito de multicultura- duzibilidade entre culturas.
lismo e ao seu correlato, diversidade cultural, Nacionalismo e pós-colonialismos. A ques-
tão do nacionalismo assume várias dimensões
no discurso pós-colonial. A mais importante é
13 Ver Santos, 2006a: 87-126. a da resistência anti-colonial. Os estudos pós-
586 Boaventura de Sousa Santos

-coloniais contemporâneos distanciamse da ambivalência no interior da própria ideia oci-


concepção de estereótipo fechado que sub- dental de nacionalismo e formulaa através do
jaz ao Orientalismo de Said. Se o outro é tão que designa por dilema liberal do nacionalismo:
profunda e completamente construído como o nacionalismo como história de libertação e de
um objecto desqualificado, não lhe é deixada progresso é o mesmo que conduziu aos regimes
qualquer possibilidade de se requalificar pela mais opressivos e irracionais (Chatterjee, 1986:
resistência. Bhabha e outros mostram que a 2). Esta questão é importante e aponta para uma
colagem do estereótipo ao “nativo” nunca é outra mais ampla: o que distingue o nacionalis-
completa, que a ambivalência está precisamen- mo ocidental dos nacionalismos anti-coloniais?
te nas disjunções, zonas de sombra que criam Em que medida a distinção pode oferecer pistas
espaços de manobra para contestar as relações para uma concepção progressista do nacionalis-
hegemónicas em nome de outras mais justas. mo tanto no Ocidente como fora dele? A verda-
A resistência pós-colonial reside sobretudo na de é que no mundo não-europeu a questão na-
“descolonização da imaginação imperial” de cional está historicamente embebida na questão
que falam Ngäugäi wa Thiong’o (1986), Valetin colonial, na medida em que a asserção da identi-
Mudimbe (1988) e Achille Mbembe (2000). dade nacional se transforma numa arma de luta
Partha Chatterjee (1986) mostra bem o carác- contra a exploração colonial (Chatterjee, 1986:
ter contraditório e ambivalente do nacionalismo 18)14. Mas não é menos verdade que frequente-
nos países orientais que estiveram sujeitos no- mente o discurso nacionalista (no caso da Índia
meadamente ao colonialismo britânico. É que e certamente noutros países que estiveram su-
estes países são forçados a adoptar uma “for- jeitos à dominação colonial), ao mesmo tempo
ma nacional” hostil às suas culturas para lutar que desafia a dominação colonial, aceita as pre-
contra o nacionalismo ocidental das potências missas intelectuais da modernidade em que a
coloniais. Neste contexto, o conhecimento do dominação colonial se funda.
“atraso” ou do “subdesenvolvimento” dos povos
colonizados é sempre ameaçador, na medida em
que superar esse atraso ou esse subdesenvolvi- 14 Sobre este debate, veja-se também Mondlane
(1969) e Cabral (1976). Para uma perspectiva crítica do
mento significa necessariamente ter de adoptar
tema do nacionalismo no contexto dos “novos” estados
uma cultura estranha. Aliás, Chatterjee vê essa africanos, veja-se Mazrui e Tidy, 1984.
Entre Próspero e Caliban: Colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade 587

Entre essas premissas está o próprio capita- testam, implícita ou explicitamente, a ideia de
lismo cujo impulso universal cria uma perma- nação ou de nacionalismo, já que uma e outra
nente tensão com o nacionalismo, agora sob a pressupõem uma certa homogeneidade cultu-
forma de estado independente. É o Estado que ral, assente numa identidade forjada a partir
medeia entre um projecto de nação e a realidade de um conflito, que opunha os colonizados à
do capitalismo, mas tal mediação é um projecto situação de opressão colonial. O desafio é, em
votado ao fracasso. Por um lado, a extraterrito- meu entender, o de encontrar uma dosagem
rialidade do capitalismo só reconhece o Estado equilibrada de homogeneidade e fragmentação,
na medida em que ele pode contribuir para a já que não há identidade sem diferença e a di-
sua expansão, o que se tornou dramaticamente ferença pressupõe uma certa homogeneidade
evidente nas duas últimas décadas por acção que permite identificar o que é diferente nas di-
da globalização neoliberal. Por outro lado, mo- ferenças. Foi este o desafio que enfrentaram in-
vimentos “locais”, separatistas ou autonomis- telectuais como Leopold Senghor (1964, 1977),
tas, contestam o projecto do Estado moderno, Aimé Cesaire (1955, 1983), Frantz Fanon (1961),
criticando a sua legitimidade e a sua ideologia Kwame Nkrumah (1961, 1965), Julius Nyerere
modernista, defendendo o direito a identida- (1966), Eduardo Mondlane (1969), Amílcar Ca-
des étnicas ou religiosas ancestrais, que não bral (1974, 1976), apostados na construção de
encontram espaço de representação no estado- uma cultura nacional entendida como direito
-nação reproduzido a partir da matriz ocidental. do colonizado à auto-significação. A literatura
Mas não foram só as premissas intelectuais da é, talvez, de entre as criações culturais, aquela
modernidade ocidental que foram aceites pe- em que melhor pode obter-se o equilíbrio di-
los movimentos nacionalistas. Foram aceites nâmico entre homogeneidade e fragmentação.
também as premissas territoriais, as fronteiras Não admira que alguns destes intelectuais e,
estabelecidas arbitrariamente pela potência co- sobretudo, Fanon tenham atribuído à literatura
lonial. A antinomia está em que a contestação o estatuto de instrumento privilegiado na cons-
das fronteiras poderia ter tido o efeito contra- trução da “consciência nacional”. E aqui o pa-
producente de perpetuar o colonialismo. pel dos estudos pós-coloniais pode ser decisivo
Os estudos pós-coloniais, ao contestarem no sentido de debater e ampliar essa “consciên-
a ideia da homogeneidade das culturas, con- cia nacional”, preenchendo-a com múltiplas vo-
588 Boaventura de Sousa Santos

zes que as elites nacionalistas (para já não falar Pós-colonialismo e diáspora. O tema das
do poder colonial) esqueceram ou excluíram. O migrações e da diáspora tem vindo a ganhar
Subaltern Studies Group foi constituído exac- crescente actualidade e põe novos desafios
tamente para dar voz às classes populares e ao à problemática das identidades culturais e
papel destas na construção da nação15. Só as- dos processos de auto-representação. Robin
sim o nacionalismo evita a tentação do racismo, Cohen define a diáspora como o acto de vi-
uma tentação endémica no Ocidente (Balibar ver num país e no seio de uma colectividade,
e Wallerstein, 1991), mas igualmente presente mas com o olhar sempre perfurando o tempo
noutras regiões do globo. Só assim o naciona- e o espaço à procura de um outro país ou lu-
lismo evita projectar a identidade de um grupo gar (1997). As diásporas são quase sempre o
étnico como identidade nacional, produzindo resultado de migrações que já ocorreram há
situações de colonização interna (Cornell e algum tempo, e cuja violência continua dolo-
Hartmann, 1998). Só assim também o naciona- rosamente marcada no imaginário social (An-
lismo pode evitar a tentação da discriminação derson, 1983; Harris, 1993; Lovejoy, 2000). Este
sexual. De facto, como mostra Nira Yuval-Davis, elemento de transnacionalidade nas comuni-
o discurso nacionalista tende a reproduzir as re- dades diaspóricas é o tema central da análise
presentações tradicionais da mulher: a mulher do trânsito atlântico dos negros a partir da es-
como reprodutora biológica dos membros da cravatura, “a middle passage” e o seu impacto,
comunidade étnica; reprodutora das fronteiras tanto nas representações das comunidades ne-
entre grupos étnicos; transmissora da cultura; gras como na ideia da homogeneidade étnica e
significante das diferenças étnicas e nacionais. racial do Ocidente (Gilroy, 1993). Para Gilroy,
Só excepcionalmente a mulher surge como par- o Atlântico negro e a metáfora do navio que
ticipante activa nas lutas nacionais, políticas, o complementa dão conta de comunidades
militares e económicas (1989: 116-117)16. negras, móveis, transnacionais, dentro e fora
do Ocidente sempre em contacto com comu-
nidades diferentes, modernas, capazes de “so-
15 Sobre o Subaltern Studies Group, ver Santos, 1995:
515 e 2000: 349-350.
16 Deve, no entanto, ter-se em conta que as mulheres líticos. É este o caso das donas da Zambézia (Capela,
foram por vezes importantes actores económicos e po- 1995). Ver também McClintock, 1995 e 1997.
Entre Próspero e Caliban: Colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade 589

lidariedade na diferença” forjada em posições Em verdade, a celebração da condição híbri-


diferentes que, no entanto, contestam formas da diaspórica como condição que permite uma
de opressão comum (discursos colonialistas, infinita criatividade tem frequentemente sido
nacionalistas e racistas)17. utilizada para ocultar as realidades imediatas,
John McLeod fala das diásporas como “co- económicas, sociais, políticas e culturais dos
munidades compostas”, espaços dinâmicos imigrantes ou das comunidades diaspóricas. A
de construção e reconstrução de identidades aura pós-colonial, a celebração da diáspora e o
que desafiam, quer o modelo de identidade na- enaltecimento da estética da hibridez tendem
cional, quer a noção de raízes (McLeod, 2000: a ocultar os conflitos sociais reais em que os
211). Identidades de diáspora caracterizam grupos imigrantes ou diaspóricos são envolvi-
igualmente aquilo que Stuart Hall designa por dos, e sempre em posições de poder que lhes
“novas etnias” (1996a, 1996b). Trata-se de gru- são desfavoráveis, como é o caso tangente da
pos diaspóricos que contestam a fixidez das diáspora muçulmana no Ocidente19.
representações que lhes são impostas (por Esta enumeração selectiva das ideias cen-
exemplo, negros) em nome das suas diferentes trais do pós-colonialismo permite uma ava-
experiências sociais e posições subjectivas, e liação crítica desta corrente de estudos para
buscam formas próprias de organização alter- o tema de que me ocupo neste trabalho. Em
nativas às comunidades étnicas apadrinhadas trabalhos anteriores, explorei a relação entre o
pela sociedade dominante, mais para sua legiti- que designo por pós-modernismo de oposição e
mação do que para resolver os problemas reais o pós-colonialismo (Santos, 1999). De facto, al-
dos imigrantes18. guma perspectivas pós-coloniais — com ênfase
na textualidade ou discursividade, na hibrida-
ção, na fragmentação, na performatividade —
17 Uma boa análise crítica da perspectiva de Gilroy têm afinidades significativas com um certo tipo
pode ler-se em Almeida (2000: 234-237).
18 Gilroy (2000) propõe uma abordagem mais abran-
gente da questão da diáspora. Para este autor, a iden- assimilar totalmente a cultura do país de imigração,
tidade da diáspora tem nas migrações uma dimensão nem conseguir preservar na totalidade os referenciais
crucial, responsável pela produção de uma “consciên- culturais de origem.
cia dupla” que resulta do facto de a nova identidade não 19 Sobre este assunto, ver, por exemplo, Dirlik, 1997.
590 Boaventura de Sousa Santos

de pós-modernismo, e são os mesmos autores mo de oposição. O recurso ao pós-colonialismo


que servem de inspiração a ambos (Nietzsche, justifica-se por ele colocar no centro do campo
Bakthine, Lacan, Barthes, Derrida). A minha analítico uma relação de poder particularmen-
crítica ao pós-modernismo em sua acepção te assimétrica — a relação colonial. Sendo as-
dominante, que designo por pós-modernismo sim, as suas análises poderiam ser relevantes
celebratório, reside no facto de este retirar do para outros tipos de relações sociais assimétri-
diagnóstico da crise do paradigma da moder- cas e para a sua análise fora do cânone ana-
nidade, que eu partilho, a conclusão de que as lítico modernista. O cruzamento que busquei
aspirações de transformação social modernas neste trabalho com a perspectiva pós-colonial
(liberdade, igualdade, solidariedade, dignidade) visou precisamente fundar práticas e subjecti-
devem deixar de ser um problema central das vidades emancipatórias utópicas fora do câno-
ciências sociais. Desta conclusão decorre uma ne modernista. Usando um recurso caro tanto
série de orientações teóricas e epistemológicas: ao pós-modernismo como ao póscolonialismo,
total descaso pelas questões de poder, pelas de- fundei as utopias emancipatórias em três me-
sigualdades estruturais e pela exclusão social táforas: a fronteira, o barroco e o Sul (Santos,
nas sociedades capitalistas contemporâneas; 1995: 475-519; 2000: 305-354).
redução da realidade social à sua discursivida- Usei o conceito de fronteira mais no sentido
de, deixando de lado as práticas não discursi- de extremidade (frontier) do que no sentido de
vas, nomeadamente as práticas de silenciamen- zona de contacto (borderland), mas, em todo
to da discursividade das classes populares e o caso, procurei com o conceito de fronteira
dos grupos sociais oprimidos e silenciados; significar a deslocação do discurso e das prá-
recurso obsessivo à desconstrução textual, de ticas do centro para as margens. Propus uma
que resulta a impossibilidade de formulação da fenomenologia da marginalidade assente no
resistência por esta última estar também arma- uso selectivo e instrumental das tradições20; na
dilhada na desconstrução do poder que consti- invenção de novas formas de sociabilidade; nas
tui enquanto resistência ao poder.
De algum modo, servi-me do pós-colonialis-
20 O carácter instrumental da tradição tem sido objec-
mo para criticar o pós-modernismo celebrató-
to de vários estudos. A título de exemplo, veja-se Nandy
rio e oferecer uma alternativa: o pós-modernis- (1987a), Ranger (1988, 1993) e Bazin (1990).
Entre Próspero e Caliban: Colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade 591

hierarquias fracas; na pluralidade de poderes e sofrimento humano sistémico causado pelo


ordens jurídicas; na fluidez das relações sociais; capitalismo global. Com esta metáfora quis
na promiscuidade entre estranhos e íntimos, significar, por um lado, a dimensão e o carác-
entre herança e invenção21. Em suma, “viver na ter multifacetado da opressão nas sociedades
fronteira é viver nas margens sem viver uma contemporâneas e, por outro, a capacidade de
vida marginal” (Santos, 1995: 496; 2000: 326). criação e inovação e resistência dos oprimi-
O conceito de barroco, para além de outras dos quando se libertam do estatuto de vítimas.
virtualidades analíticas para o espaço colonial Nessa capacidade estão latentes possibilidades
ibérico, permitiu-me aprofundar o conceito de insuspeitas de emancipação. Daí que tenha
mestiçagem, com um significado semelhante proposto uma epistemologia do Sul assente
ao de hibridação, entendido como a “criação em três orientações: aprender que existe o Sul;
de novas constelações de sentido que, à luz dos aprender a ir para o Sul; aprender a partir do
seus fragmentos constitutivos, são verdadeira- Sul e com o Sul (Santos, 1995: 508; 2000: 341).
mente irreconhecíveis e blasfemas” (Santos, A minha relação crítica com o pós-colonia-
1995: 503; 2000: 335)22. A metáfora do barroco lismo é pautada por três ideias. Por um lado,
permitiu-me ainda discutir a construção da concebo a relação colonial como uma das re-
subjectividade utópica a partir da “extremo- lações de poder desigual fundantes do capita-
sidad” barroca, sobretudo do extremismo da lismo moderno, mas não como a única, não se
festa barroca assente na desproporção, no riso podendo ter uma compreensão plena dela sem
e na subversão (Maravall, 1990: 421). Finalmen- a articular com outras relações de poder, tais
te, recorri à metáfora do Sul como metáfora do como a exploração de classe, o sexismo e o
racismo (o que o pós-colonialismo apenas em
parte tem considerado). Por outro lado, preten-
21 Usei, no entanto, o conceito de fronteira no sentido do reforçar a ideia de que a análise da cultura
de zona de contacto ou borderland quando defini a cultu- ou do discurso não dispensa a análise da eco-
ra portuguesa como cultura de fronteira. Para uma análi-
nomia política23. Na segunda metade da década
se desta forma cultural, veja-se Santos, 1994: 132-136.
22 Este tema é abordado, em maior detalhe, em Nues-
tra America. Reinventar um novo paradigma subal- 23 Neste mesmo sentido, consulte-se a interpelação
terno de reconhecimento e de redistribuição. que Miguel Vale de Almeida faz ao póscolonialismo a
592 Boaventura de Sousa Santos

de 90, os silêncios do pós-colonialismo torna- lismo em detrimento da ideia de continuidade


ram-se mais estridentes. McClintock (1995), que, no entanto, parece merecedora de aten-
uma das autoras que se tem distinguido na ção redobrada, dada a notória persistência dos
reflexão sobre o sentido do pós-colonialismo, efeitos da colonização e a difícil deslocalização
chama a atenção para as aporias do conceito. das representações que ela cristalizou (Hall,
Distinguindo entre a teoria pós-colonial e o ter- 1996b). Do mesmo modo, McLeod problemati-
mo que a designa (pós-colonial), McClintock za as confusões a que o prefixo pode dar azo:
adverte para o facto de que embora “a teoria depois do colonialismo; depois da independên-
pós-colonial tenha procurado pôr em causa a cia; depois do fim do império (McLeod, 2000:
grande marcha do historicismo ocidental e as 5). Outros autores questionam o verdadeiro
suas oposições binárias (nós/outros; metrópo- sentido da experiência vivida por inúmeros
le/colónia; centro/periferia), o termo pós-colo- países em África. Patrick Chabal, por exemplo,
nialismo continua a reorientar o globo à volta fá-lo recorrendo à metáfora dos espelhos:
de uma única oposição binária: colonial/pós-
-colonial”. O termo “pós-colonial”, insiste Mc- Se é verdade que as palavras que empregamos
Clintock, se bem que concebido para se opor à [nós, os ocidentais] para descrever o atraso de
noção de tempo linear, está afinal “assombra- África ecoam as usadas há cem anos, o signifi-
do” por ela e confere ao colonialismo o prestí- cado que lhes atribuímos hoje é completamente
diferente. O entendimento de que a “escuridão”
gio de marca predominante da história. Para a
de África é reconhecidamente exótica, outra e
definição histórica dos colonizados resta ape-
distante desapareceu hoje no mundo globalizado.
nas uma concepção “preposicional”, o pré ou A “escuridão” de África está hoje aqui connosco
o pós-colonial. (McClintock, 1995: 1012). Tam- todos os dias nas nossas televisões. Ela é também
bém Stuart Hall, que foi um dos inspiradores a nossa “escuridão” e alimenta muitos dos nos-
do pós-colonialismo, teme que o prefixo “pós” sos indizíveis pesadelos — da mesma forma que
possa induzir a ideia de ruptura com o colonia- alimenta a chamada ameaça islâmica. Do mes-
mo modo, as nossas certezas imperiais e a nossa
presunção de superioridade foram gravemente
partir da antropologia (2000: 230 e ss.). Do meu ponto afectadas pelos acontecimentos do século XX. O
de vista, a interpelação não será diferente quando feita debate sobre o pós-moderno e o póscolonial é, as-
a partir da sociologia.
Entre Próspero e Caliban: Colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade 593

sim, uma das muitas maneiras que temos de pro- a relação colonial, tal foi a falta de perspectiva
curar ajustar contas com a estrutura contingente histórica e comparativa. Mesmo dentro do Im-
e relativa da nossa existência contemporânea. pério Britânico, foram enormes as diferenças
[…] Olhamos para a África não tanto porque nos entre as experiências indiana, irlandesa, aus-
interesse compreender a África mas porque olhar
traliana, queniana, sul-africana, etc. Para já não
para a África é uma das formas de nos definirmos
falar dos outros colonialismos, nomeadamente
a nós próprios (Chabal, 1997).
o português e o espanhol. Esta última observa-
ção traz-me ao tema da próxima secção.
Como já referi, negligenciar a economia po-
lítica, o poder económico e classista é endémi-
O colonialismo português
co nos estudos culturalistas. Como diz Ahmad,
e os silêncios do pós-colonialismo
o pós-colonialismo carece de uma posição
sobre o capitalismo mundial e por isso passa Como referi atrás, a minha hipótese de tra-
em claro as transformações recentes do capi- balho é que a diferença do colonialismo por-
talismo que vieram aprofundar ou criar novas tuguês se deve repercutir na diferença do
situações de neocolonialismo. Segundo ele, a pós-colonialismo no espaço da língua oficial
ausência gritante dos problemas de classe na portuguesa, nomeadamente em relação ao
crítica pós-colonial deriva do facto de os estu- pós-colonialismo anglo-saxónico. Por como-
dos pós-coloniais serem produto de uma classe didade e por paralelismo com a designação
intelectual e académica que ignora os proble- colonialismo anglo-saxónico, uso a expressão
mas sociais reais ou não está interessada neles pós-colonialismo português para designar o
(Ahmad, 1995). Em meu entender, o esqueci- pós-colonialismo no espaço-tempo de língua
mento do neocolonialismo é uma das limita- oficial portuguesa.
ções mais incapacitantes do pós-colonialismo. A primeira diferença é que a experiência da
Finalmente, a minha relação crítica com o ambivalência e da hibridação entre colonizador
pós-colonialismo assenta na ideia de que o pós- e colonizado, longe de ser uma reivindicação
-colonialismo, apesar de tão prosélito na crítica pós-colonial, foi a experiência do colonialismo
da homogeneização e na apologia da fragmen- português durante longos períodos. Analisarei
tação e da diferença, acabou por homogeneizar com mais detalhe esta questão adiante. Por
agora, há que salientar que a prática da ambiva-
594 Boaventura de Sousa Santos

lência, da interdependência e da hibridação foi A segunda diferença do pós-colonialismo de


uma necessidade da relação colonial portugue- língua oficial portuguesa reside na questão ra-
sa. Por isso, no contexto do pós-colonialismo cial sob a forma da cor da pele. Para os críticos
de língua oficial portuguesa, o importante é dis- pós-coloniais anglo-saxónicos, a cor da pele é
tinguir entre vários tipos de ambivalência e de um limite incontornável às práticas de imita-
hibridação, nomeadamente entre aquelas que ção e de assimilação porque, consoante os ca-
reforçam as desigualdades de poder da relação sos, ou nega por fora da enunciação o que a
colonial e as que as atenuam ou até subvertem. enunciação afirma, ou, pelo contrário, afirma o
O pós-colonialismo anglo-saxónico parte de que ela nega. No caso do pós-colonialismo por-
uma relação colonial assente na polarização tuguês, há que contar com a ambivalência e a
extrema entre colonizador e colonizado, en- hibridação na própria cor da pele, o mulato e a
tre Próspero e Caliban, uma polarização que é mulata. Ou seja, o espaço-entre a zona intelec-
tanto uma prática de representação como a re- tual que o crítico pós-colonial reivindica para
presentação de uma prática; é contra ela que a si, incarna no mulato como corpo e zona cor-
subversão da crítica pós-colonial se dirige e faz poral. O desejo do outro em que Bhabha funda
sentido. Onde ancorar a subversão quando essa a ambivalência da representação do coloniza-
polarização — precisamente no domínio cultural dor (1994: 50) não é um artefacto psicanalíti-
e especificamente no domínio das práticas cultu- co nem é duplicado pela linguagem. É físico,
rais como vivência quotidiana de que fala Bha- criador e multiplica-se em criaturas. Longe de
bha — está, pelo menos durante largos períodos, ser uma imitação falhada, a mulata e o mula-
fortemente atenuada ou matizada? Penso que o to são a negação da imitação. É a afirmação
pós-colonialismo em língua oficial portuguesa a posteriori de um limite, um limite que só se
tem de centrar-se bem mais na crítica da ambiva- afirma depois de ultrapassado. É a afirmação
lência do que na reivindicação desta, e a crítica do branco e do negro no ponto de uma elisão
residirá em fazer a distinção entre formas de am- recíproca. A miscigenação não é a consequên-
bivalência e de hibridação que dão efectivamen- cia da ausência de racismo, como pretende a
te voz ao subalterno (as hibridações emancipa- razão luso-colonialista ou luso-tropicalista,
tórias) e aquelas que usam a voz do subalterno mas é certamente a causa de um racismo de
para o silenciar (as hibridações reaccionárias). tipo diferente. Por esta razão, também a exis-
Entre Próspero e Caliban: Colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade 595

tência da ambivalência ou hibridação é trivial prio colonizador enquanto colonizado. Foi esta
no contexto do pós-colonialismo português. duplicidade de alta intensidade que permitiu ao
Importante será dilucidar as regras sexistas português ser, muitas vezes, tratado mais como
da sexualidade que quase sempre deitam na emigrante, do que como colono, nas “suas” pró-
cama o homem branco e a mulher negra, e não prias colónias. Haverá mesmo que averiguar se
a mulher branca e o homem negro. Ou seja, o a identidade como colonizado precede a iden-
pós-colonialismo português exige uma articu- tidade como colonizador na genealogia dos es-
lação densa com a questão da discriminação pelhos em que se revêem os portugueses.
sexual e o feminismo. Pode, pois, concluir-se que a disjunção da
A terceira diferença do pós-colonialismo diferença (Bhabha, 1994) é bem mais com-
português reside numa dimensão de ambi- plexa no caso do pós-colonialismo português,
valência e hibridação insuspeitável no pós- uma complexidade que, paradoxalmente, pode
-colonialismo anglo-saxónico. Ao contrário do redundar em conjunções ou cumplicidades in-
que sucede neste último, a ambivalência das suspeitas entre o colonizador e o colonizado.
representações não decorre apenas de não ha- O “outro” colonizado pelo colonizador não é
ver uma distinção clara entre a identidade do totalmente outro em relação ao “outro” coloni-
colonizador e a do colonizado. Decorre tam- zado do colonizador. Ao contrário do pós-colo-
bém de essa distinção estar inscrita na própria nialismo anglo-saxónico, não há um outro. Há
identidade do colonizador. A identidade do co- dois que nem se juntam nem se separam. Ape-
lonizador português não se limita a conter em nas interferem no impacto de cada um deles na
si a identidade do outro, o colonizado por ele. identidade do colonizador e do colonizado. O
Contém ela própria a identidade do coloniza- outro-outro (o colonizado) e o outro-próprio (o
dor enquanto colonizado por outrem. Como colonizador enquanto ele próprio colonizado)
mostrarei a seguir, o Próspero português, quan- disputam na identidade do colonizador a de-
do visto da perspectiva dos Super-Prósperos marcação das margens de alteridade, mas, por
europeus, é um Caliban. A identidade do colo- assim dizer, a alteridade está neste caso dos
nizador português é, assim, duplamente dupla. dois lados da margem. Isto tem consequências
É constituída pela conjunção de dois outros: o para dois dos procedimentos centrais do dis-
outro que é o colonizado e o outro que é o pró- curso pós-colonial: a imitação e o estereótipo.
596 Boaventura de Sousa Santos

A imitação colonial é sempre mentirosa Por esta razão, a “mentira do império” que,
porque, como diz Bhabha, ocorre sempre numa segundo Bhabha (1994: 138), decorre da pre-
encruzilhada entre o que é conhecido e permis- tensão de integridade e completude na incor-
sível e o que não é conhecido e deve ser ocul- poração do conhecimento cultural nativo, não
tado (Bhabha, 1994: 89). No plano geopolítico, se põe do mesmo modo no caso do império
é esta a imitação que, segundo Benedict Ander- português. A mentira deste foi em muitas cir-
son (1983), torna possível a compatibilidade do cunstâncias a de pretender ser império “como
império com a nação. Subjacente a esta con- os outros” e esconder o medo de ser absorvido
cepção, está a ideia, que se pressupõe ser ób- ou incorporado pelas colónias, como sucedeu
via, de que na imitação colonial o que está em no período em que a coroa portuguesa fugiu
causa é a imitação do colonizador por parte do para o Brasil e estabeleceu a capital do Império
colonizado. Ora, no caso do póscolonialismo no Rio, um acto de ruptura representacional
português, tal não pode ser pressuposto e deve, com a ideia imperial de império sem paralelo
pelo contrário, ser objecto de investigação. na modernidade ocidental.
Os jogos de imitação foram aqui muito mais É por isso também que o estereótipo do co-
complexos e recíprocos e, mais uma vez, por lonizado não teve nunca o fechamento que é
razões de sobrevivência. O colonizador imitou atribuído ao estereótipo no Império Britânico,
o colonizado e não necessariamente para se ou, pelo menos, o seu fechamento foi sempre
aproximar dele. Ou seja, as práticas de imita- mais inconsequente e transitório. A penetração
ção foram muito mais caóticas porque, longe sexual convertida em penetração territorial e
de serem sempre o instrumento de um desígnio interpenetração racial deu origem a significan-
de dominação imperial, foram as mais das ve- tes flutuantes que sufragaram, com o mesmo
zes contingências intersubjectivas em contex- grau de cristalização, estereótipos contrários
tos de sobrevivência difícil (difícil, por vezes, consoante a origem e a intenção da enuncia-
apenas para o colonizador, outras vezes, para ção. Sufragaram o racismo sem raça ou, pelo
ambos, o colonizador e o colonizado). Foram menos, um racismo mais “puro” do que a sua
um kit de primeiros socorros em situações de base racial. Sufragaram também o sexismo sob
que não se podia ser evacuado pelo braço ágil o pretexto do anti-racismo. Por essa razão, a
e longo do império. cama sexista e interracial pôde ser a unidade
Entre Próspero e Caliban: Colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade 597

de base da administração do Império e a demo- só em circunstâncias muito selectivas. Fora


cracia racial pôde ser agitada como um troféu disso, o colonizador apenas se representa a si
anti-racista sustentado pelas mãos brancas, próprio. É um auto-império e, como tal, tão li-
pardas e negras do racismo e do sexismo. vre para o máximo excesso como para o máxi-
O facto de o colonizador ter a vivência de ser mo defeito da colonização. Mas precisamente
colonizado não significa que se identifique mais porque esta identidade imperial não lhe é ou-
ou melhor com o seu colonizado. Tão pouco torgada por ninguém para além dele, ele é de
significa que o colonizado por um colonizador- facto um sujeito tão desprovido de soberania
-colonizado seja menos colonizado que outro quanto o colonizado. Por isso, a autoridade não
colonizado por um colonizador-colonizador. existe para além da força ou da negociação que
Significa apenas que a ambivalência e hibrida- é possível mobilizar na zona de encontro24.
ção detectadas pelo pós-colonialismo anglo-sa- Esta dupla ambivalência das representações
xónico estão, no caso do pós-colonialismo por- afecta não apenas a identidade do colonizador,
tuguês, muito para além das representações, como também a do colonizado. É possível que
dos olhares, dos discursos e das práticas de o excesso de alteridade que identifiquei no co-
enunciação. São corpos e incarnações, vivên- lonizador português seja igualmente identificá-
cias e sobrevivências quotidianas ao longo de vel no colonizado pelo colonialismo português.
séculos, sustentadas por formas de reciproci- Sobretudo no Brasil é possível, como hipótese,
dade entre o colonizador e o colonizado insus- imaginar que a identidade do colonizado foi,
peitáveis no espaço do Império Britânico. em alguns períodos, pelo menos, construída a
Para explicar esta diferença é necessário partir de um duplo outro, o outro do coloniza-
introduzir uma outra sobre os jogos de autori- dor directo português e o outro do colonizador
dade. Nos estudos pós-coloniais, o colonizador indirecto britânico. Esta duplicidade transfor-
surge sempre como um sujeito soberano, a in- mou-se mesmo em elemento constitutivo do
carnação metafórica do império. Ora, no colo- mito das origens e das possibilidades de desen-
nialismo português tal não pode pressupor-se volvimento do Brasil, como veremos adiante.
sem mais. Só durante um curto período — em
África, a partir do final do século XIX — é que o
24 Ver o projecto sobre os jogos identitários entre Por-
colonizador incarna o império, e mesmo assim tugal e Moçambique referido na Nota 1 deste trabalho.
598 Boaventura de Sousa Santos

Esta duplicidade instaurou uma fractura que ficativo os trilhos deixados pelo colonialismo,
até hoje é tema de debate e divide os brasilei- ao contrário do que sucedeu, especificamente,
ros entre os que se sentem vergados pelo ex- com o colonialismo britânico ou francês. Isto
cesso de passado e os que se sentem vergados não significa que não tenha havido (ou venha
pelo excesso de futuro. a haver) neocolonialismo. Mas parece que até
O colonialismo português carrega consigo o hoje ele só existe em relação aos países em
estigma de uma indecidibilidade que deve ser que é viável um neocolonialismo à medida das
objecto primordial do pós-colonialismo portu- insuficiências do ex-colonizador, os pequenos
guês. A colonização por parte de um Próspe- países de Cabo Verde, Guiné-bissau, São Tomé
ro incompetente, relutante, originariamente e Príncipe e Timor. O excesso pós-colonial das
híbrido, redundou em subcolonização ou em grandes ex-colónias não deixa de estar rela-
hipercolonização? Uma colonização particu- cionado com o défice do colonialismo de que
larmente capacitante ou incapacitante para o se libertaram.
colonizado? Um Próspero caótico e absentista Esse défice de colonialismo e de neocolo-
não terá aberto o espaço para a emergência nialismo ajuda a explicar a especificidade das
de Prósperos de substituição no seio dos Ca- formas políticas que emergiram com a inde-
libans? Não será por isso que, no contexto do pendência das grandes colónias. Em sentidos
pós-colonialismo português, a questão do neo- opostos, essas formas divergiram da norma de
colonialismo é menos importante do que a do descolonização estabelecida pelo colonialis-
colonialismo interno? Não deixa de ser signifi- mo hegemónico. No caso do Brasil, teve lugar
cativo que as independências, quer do Brasil, uma das independências mais conservadoras e
quer dos países africanos, tenham ocorrido oligárquicas do continente Latino-Americano
no contexto de transformações políticas im- e a única sob a forma de monarquia. Com ela
portantes e de sinal progressista na metrópole estavam criadas as condições para ao colonia-
colonial: a revolução liberal de 1820 e a Revo- lismo externo suceder o colonialismo interno,
lução do 25 de abril de 1974. Este facto, com- para ao poder colonial suceder a colonialidade
binado com a posição semiperiférica do país do poder. No caso de Angola e Moçambique,
no sistema mundial, contribuiu para que o pelo contrário, o desvio da norma foi no sen-
neocolonialismo não seguisse de modo signi- tido de os novos países independentes adopta-
Entre Próspero e Caliban: Colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade 599

rem regimes revolucionários que, no contexto usar o colonialismo português como tampão
da Guerra Fria, os colocavam do lado oposto contra o perigo soviético. Dadas as debilidades
àquele em que Portugal os tinha mantido en- do Próspero português, puderam usá-lo para
quanto colónias. As vicissitudes por que passa- controlarem a África e, sobretudo, protegerem
ram estes países nos últimos trinta anos (fim da a África do Sul do apartheid sem o ónus do co-
Guerra Fria, guerra civil, processos de paz) não lonialismo. Assim, sob nova forma, a identida-
nos permitem avaliar em que medida o colonia- de colonizador-colonizado pôde reproduzir-se
lismo interno irá caracterizar os novos países. até ao final do Império. O problema é agora
A indecidibilidade e a fuga a padrões que ca- o de saber se e sob que bases ou formas essa
racterizam o colonialismo português suscitam identidade continua a reproduzir-se, agora que
ainda uma outra questão que devia ser fonte Portugal passou a ser de pleno direito a peri-
de reflexão para um pós-colonialismo situa- feria da Europa, ou seja, uma periferia com o
do. A pergunta é: porque durou tanto, muito direito à imaginação do centro25.
para além do colonialismo hegemónico e por A indecidibilidade do colonialismo portu-
que razão, no caso das colónias mais impor- guês constitui uma mina de investigação para
tantes, o seu fim exigiu uma prolongada guerra um pós-colonialismo situado, contextualizado,
de libertação? A minha hipótese de trabalho é ou seja, para um pós-colonialismo que não se
que aqui também operou o outro colonizador, deixe armadilhar pelo jogo de semelhanças e
o colonialismo central que, a partir do século diferenças do colonialismo português em re-
XIX, acompanhou de perto o colonizador por- lação ao colonialismo hegemónico. Caso con-
tuguês. Tanto na Conferência de Berlim como trário, uns apenas verão semelhanças e outros,
no fim da Segunda Guerra Mundial, foram os diferenças, e entre uns e outros a indecidibili-
conflitos e as conveniências recíprocas entre dade escapar-se-á como um derradeiro objecto
os países capitalistas centrais que ditaram a incomensurável, invisível para si próprio como
continuidade do império colonial português. o olhar. No actual contexto, o pós-colonialismo
No último caso, o do pós-guerra, a Guerra Fria, situado pressupõe cuidadosas análises históri-
combinada com o facto de a África ter sido um
continente não partilhado pelos Acordos de
25 Sobre o conceito de imaginação do centro, ver San-
Ialta, permitiu aos países capitalistas centrais tos, 1994: 49.
600 Boaventura de Sousa Santos

cas e comparadas dos colonialismos e do que de poder que designo por diferenciação desi-
se lhes seguiu. É crucial responder à pergun- gual (Santos, 1995: 424-428; 2000: 264-269). As
ta sobre quem descoloniza o quê e como. Só identidades subalternas são sempre derivadas
assim o discurso pós-colonial pode fazer jus à e correspondem a situações em que o poder de
disseminação que Bhabha propõe, um discurso declarar a diferença se combina com o poder
que se move entre diferentes formações cultu- para resistir ao poder que a declara inferior.
rais e processos sociais sem uma causa lógica Na identidade subalterna, a declaração da di-
central (1990a: 293). Sem tal especificação his- ferença é sempre uma tentativa de apropriar
tórica e comparativa, o pós-colonialismo será uma diferença declarada inferior de modo a
mais uma forma de imperialismo cultural, e reduzir ou a eliminar a sua inferioridade. Sem
uma forma particularmente insidiosa porque resistência não há identidade subalterna, há
credivelmente anti-imperalista. apenas subalternidade.
A identidade dominante reproduz-se assim
Jogos de espelhos, I: por dois processos distintos: pela negação to-
um Caliban na Europa tal do outro e pela disputa com a identidade
As identidades são o produto de jogos de subalterna do outro. Quase sempre o primeiro
espelhos entre entidades que, por razões con- conduz ao segundo. Por exemplo, a identidade
tingentes, definem as relações entre si como dominante e mesmo matricial da modernidade
relações de diferença e atribuem relevância ocidental — Próspero/Caliban, civilizado/sel-
a tais relações. As identidades são sempre vagem, negro/branco, homem/mulher — repro-
relacionais, mas raramente são recíprocas. A duziu-se inicialmente pelo primeiro processo e
relação de diferenciação é uma relação de de- depois pelo segundo. Em diferentes jogos de
sigualdade que se oculta na pretensa incomen- espelhos, os dois processos continuam a vigo-
surabilidade das diferenças. Na história do rar. No entanto, do ponto de vista do diferente
capitalismo, quem tem tido poder para decla- superior, a identidade dominante só se trans-
rar a diferença tem tido poder para a declarar forma em facto político na medida em que en-
superior às outras diferenças em que se espe- tra em disputa com identidades subalternas. É
lha. A identidade é originariamente um modo este o facto político que hoje designamos por
de dominação assente num modo de produção multiculturalismo.
Entre Próspero e Caliban: Colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade 601

Em qualquer dos seus modos de reprodu- duas imagens, a da utopia e a do canibalismo,


ção, a identidade dominante é sempre ambiva- aparentemente contraditórias, como mecanis-
lente, pois mesmo a negação total do outro só mos interdependentes. A partir de Bakhtine,
é possível através da produção activa da inexis- é possível ver a articulação entre os jogos de
tência do outro. Esta produção implica sempre contradições e inversões e a celebração do
o desejo do outro na forma de uma ausência corpo no carnaval europeu medieval, por um
abissal, de uma carência insaciável. Esta am- lado, e a imagética do novo continente, por ou-
bivalência está bem patente na representação tro (Klarer, 1999: 401). O “realismo grotesco”
das Américas no início da expansão europeia. que Bakhtine identificou no carnaval medieval
A maioria dos relatos da descoberta e das nar- — as desfigurações físicas e a verdade carnava-
rativas de viagens às Américas reflectem uma lesca como potencialidade de um mundo aco-
peculiar fusão de imagens idílicas, utópicas e lhedor e uma idade de ouro — está bem visível
paradisíacas do novo continente com as práti- na inversão utópica do social e do político na
cas cruéis e canibalísticas dos nativos. De um América da antropofagia. O novo continente é
lado, a natureza luxuriante e benevolente, do o carnaval diaspórico dos europeus. Por isso, a
outro, a antropofagia repulsiva. Segundo Má- repulsão do canibalismo é o outro lado do de-
rio Klarer, esta “estranha interdependência” sejo de unidade com a natureza e o cosmos, a
entre canibalismo e utopia, que caracteriza as unidade que os europeus tinham perdido e que,
primeiras imagens da América, tem raízes anti- a seus olhos, os índios conservavam.
gas, na antiguidade clássica e na Idade Média, Sobre os jogos de identidade no espaço-tem-
e está presente na própria teologia cristã onde po português adianto as seguintes hipóteses.
a Eucaristia representa a união de princípios Em primeiro lugar, estes jogos são particular-
irreconciliáveis: “[E]nquanto os canibais devo- mente complexos pelo facto de os portugue-
ram os estranhos para restabelecer a unidade ses terem estado ao longo da história dos dois
do sujeito e do objecto, os cristãos comem o lados do espelho, enquanto Próspero visto ao
“corpo” de Jesus enquanto unidade utópica en- espelho de Caliban, e enquanto Caliban visto
tre os homens e o seu Deus” (Klarer, 1999: 395). ao espelho de Próspero. A segunda hipótese,
No seu ensaio “Des Cannibales”, de 1580, decorrente da anterior, é que a ambivalência é
Montaigne (1965) foi o primeiro a analisar estas potenciada neste espaço-tempo pelo facto de
602 Boaventura de Sousa Santos

o sujeito de desejo ter sido também objecto de -se recorrentemente das péssimas estradas, do
desejo. A terceira hipótese é que a identidade carácter rústico das pessoas, do alojamento e
dominante neste espaço-tempo produziu ape- do tratamento paupérrimos bem “à maneira do
nas muito tardiamente (e nunca de modo con- país” (Bronseval, 1970, II: 577), dos hábitos es-
sequente) a negação total do outro e talvez por tranhos como, por exemplo, o de os nobres ou
isso tão-pouco soube confrontar-se politica- homens honrados reservarem para albergar os
mente com as identidades subalternas. Nesta estrangeiros as casas mais miseráveis para não
secção e nas seguintes aduzirei alguma prova serem vistos como estalajadeiros (Bronseval,
destas hipóteses. 1970, I: 431). Quanto à educação dos frades,
As características com que os portugueses “são poucos os que nestes reinos hispânicos
foram construindo, a partir do século XV, a ima- gostam de latim. Eles não gostam senão da sua
gem dos povos primitivos e selvagens das suas língua vulgar” (Bronseval, 1970, I: 461). A des-
colónias são muito semelhantes às que lhes são crição de Lisboa não poderia ser mais significa-
atribuídas, a partir da mesma altura por viajan- tiva da atitude geral dos viajantes:
tes, comerciantes e religiosos vindos da Euro-
pa do Norte26: do subdesenvolvimento à preca- [E]sta cidade densamente povoada é um antro de
riedade das condições de vida, da indolência judeus, alimento de uma multidão de indianos,
à sensualidade, da violência à afabilidade, da uma masmorra dos filhos da Agar, um reserva-
falta de higiene à ignorância, da superstição à tório de mercadorias, uma fornalha de agiotas,
um estábulo de luxúria, um caos de avareza, uma
irracionalidade. O contraste entre a Europa do
montanha de orgulho, um refúgio para fugitivos,
Norte e Portugal está bem patente no relato do
um porto para franceses cadastrados (Bronseval,
frade Claude de Bronseval, secretário do abade 1970, I: 329).
de Clairvaux, sobre a viagem que fizeram a Por-
tugal e a Espanha, entre 1531 e 1533. Queixam- Castelo Branco Chaves reuniu em “Portugal
de D. João V visto por três forasteiros” três
relatos de estrangeiros escritos entre 1720 e
26 Por “Europa do Norte” entende-se aqui os países da
Europa considerada “civilizada” — a Inglaterra, a Fran- 1730. Segundo ele,
ça e a Alemanha — que irão mais tarde ter um papel
decisivo na colonização.
Entre Próspero e Caliban: Colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade 603

[…] o conspecto geral do país que se apreende gros” (Chaves, 1983: 24). Ao mesmo tempo que
é o de uma terra fértil, rica mas desaproveitada, os portugueses proclamavam a miscigenação
vivendo quase exclusivamente do oiro do Brasil. como um triunfo humanista ou um expediente
Parte do que comia, do que vestia, as madeiras colonialista engenhoso, a mesma miscigena-
para as construções urbanas e navais, a maioria
ção era-lhes inscrita na pele como um ónus
do necessário à vida, tudo vinha de fora, da In-
pelo olhar do Próspero europeu.
glaterra e da Holanda, particularmente comprado
com o oiro brasileiro. O português é mandrião, Neste jogo de espelhos, é ainda relevante
nada industrioso, não aproveita as riquezas da lembrar que muitos dos relatos a época estra-
sua terra, nem sabe fazer vender as das suas coló- nham a profusão de óculos em Portugal e zom-
nias (Chaves, 1983: 20). bam dela: “A nação parece falta na vista […]
os padres beneditinos em Coimbra fazem-se
Com excepção da referência final às coló- reparáveis por nenhum deixar de trazer óculos
nias, esta caracterização corresponde ponto […] propter farsolam” (Chaves, 1983: 112113).
por ponto ao que então e desde há dois sécu- A relevância desta característica na composi-
los se dizia dos povos indígenas ou nativos da ção do estereótipo sobre os portugueses está
América e da África. Os portugueses são ciu- no facto de ela ser simétrica da que foi atribuí-
mentos até às maiores crueldades, vingativos, da aos negros africanos a partir do século XIX
dissimulados, motejadores, frívolos e tolos. como sendo sinal de uma pretensão de assimi-
Crueldade, espírito de vingança, dissimulação, lação inconsequente e tola.
frivolidade e tolice são parte constitutiva do Mas como, afirma Castelo Branco Chaves, é
estereótipo dos europeus a respeito dos afri- a partir da segunda metade do século XVIII, e
canos ou dos povos ameríndios. Esta assimi- por invenção sobretudo dos ingleses, que a “len-
lação está muitas vezes implícita nos próprios da negra” de Portugal e dos portugueses como
relatos quando a cor da pele dos portugueses é povo decaído, degenerado, imbecilizado, mais
invocada para confirmar a veracidade do este- se aprofunda. Em dezembro de 1780, Richard
reótipo. Segundo um dos relatos, os portugue- Crocker, capitão inglês, escreve de Lisboa:
ses são “altos, bem parecidos e robustos, na
sua maior parte muito morenos, o que resulta Os homens portugueses são, sem dúvida, a raça
do clima e ainda mais do cruzamento com ne- mais feia da Europa. Bem podem eles conside-
604 Boaventura de Sousa Santos

rar a denominação de “ombre blanco” — homem (a Inglaterra) (Byrne, 1998: 108). Pela mesma
branco — como uma distinção. Os Portugueses época, Lord Byron visita Portugal (1809) e es-
descendem de uma mistura de Judeus, Mouros, creve o seu famoso poema “Peregrinação de
Negros e Franceses, pela sua aparência e qua- Childe Harold”: “Nação impando de ignorância
lidade parecem ter reservado para si as piores
e orgulho. […] Palácio e cabana são igualmen-
partes de cada um destes povos. Tal como os
te imundos; seus morenos habitantes educados
Judeus, são mesquinhos, enganadores e avaren-
tos. Tal como os Mouros, são ciumentos, cruéis e sem asseio; e ninguém, fidalgo ou plebeu, cuida
vingativos. Tal como os povos de cor, são servis, da limpeza do casaco ou da camisa […] os ca-
pouco dóceis e falsos e parecem-se com os Fran- belos por pentear, mal asseados, indiferentes”
ceses na vaidade, artifício e gabarolice (apud Pi- (Byron, 1881: 30-31).
res, 1981: 112). E para não restarem dúvidas, eis a compara-
ção que Byron com os espanhóis: “[P]orquanto
No mesmo tom escrevia de Lisboa a um o camponês espanhol é tão soberbo como o
amigo, a 11 de setembro de 1808, o oficial da duque mais nobre e conhece bem a distância
Marinha inglesa, Charles Adam: “[V]ou fazer o que vai dele ao escravo português, o último dos
possível para arranjar os teus livros espanhóis, escravos”. (1881: 37)
dizem-me que não há livros portugueses que No final do século XVII, o reverendo angli-
valha a pena ter” (apud Pires, 1981: 85). cano John Colbatch, que ocupou o posto de
No estudo que fez sobre as impressões colhi- capelão da British Factory em Lisboa, deixara
das pelo Comissário alemão alistado no exér- uma opinião em geral mais favorável dos por-
cito inglês, August Schaumann, durante a sua tugueses (povo pouco “dado à embriaguês”),
estadia em Portugal entre 1808 e 1814, Maria não deixando ao mesmo tempo de denunciar
Teresa Byrne descreve como os portugueses o “ódio mortal” que “[alimentavam] pelos es-
são em geral descritos como camponeses, algo trangeiros” e de lamentar a sua pouca gratidão
primitivos. “De todo o meu coração tenho pena para com os ingleses, que tantas vezes foram
destes pobres diabos”, escreve Schaumann, ao seus “salvadores” (apud Macaulay, 1946: 224-
lamentar a situação de um povo que se vê in- 225). Um século e meio mais tarde, o reveren-
vadido, não por um, mas por dois países, um do J. M. Neale, que viajou amplamente pelo
que o ataca (a França) e outro que o defende país, dá uma imagem confrangedora das mise-
Entre Próspero e Caliban: Colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade 605

ráveis condições de vida em Portugal na altura A simetria entre os estereótipos dos portu-
e avisa que, “quando exaltados, os portugueses gueses, por parte dos europeus do Norte, e os
se tornam perigosos” (apud Macaulay, 1946: estereótipos dos povos nativos da América e da
207-208). Robert Southey, que Zulmira Casta- África, por parte dos europeus do Norte e do
nheira considera ser o primeiro lusófilo inglês, Sul, torna-se particularmente consistente no
visitou Portugal pela primeira vez em 1796 e, que respeita à ambivalência com que a estig-
apesar de pretender mostrar admiração pelos matização do outro é penetrada pelo desejo ra-
portugueses, não deixa de os zurzir como povo dical do outro. Vimos atrás como as primeiras
retrógrado, supersticioso, sujo, preguiçoso, imagens e narrativas da América combinam a
ciumento, vaidoso, ignorante, desonesto, to- exaltação da natureza idílica e da vida simples
lhido pela tirania do Estado e da Igreja, ambos com a condenação veemente das práticas cru-
corruptos e ignaros, e servido por instituições éis e repulsivas do canibalismo. Este contras-
insólitas e chocantes como, por exemplo, a te tem um paralelo intrigante nas imagens dos
justiça, “geralmente inoperante ou precipita- portugueses nos relatos de viajantes europeus
da, que deixava impunes os muitos assaltantes no nosso país a partir do século XVIII. A for-
e assassinos”, ou a medicina “exercida por mé- mulação mais vincada do contraste pertence a
dicos que nada sabiam do ofício e desacredi- Lord Byron: “Porque desbarataste, ó natureza,
tados pelos doentes que preferiam considerar as tuas maravilhas com semelhante gente? Eis
as melhoras que sentiam como obra de Deus e que em vário labirinto de montes e vales surge
não como resultado da eficiência dos clínicos” o glorioso éden de Sintra” (1881: 31).
(apud Castanheira, 1996: 83). E para compor Mas o contraste está presente em muitos
a simetria com os estereótipos europeus so- outros relatos. A beleza das paisagens, a ter-
bre os povos nativos da África ou da América, ra fértil, o clima ameno são recorrentemente
afirma Southey: “A sensualidade é sem dúvida contrapostos à rudeza e brutalidade dos por-
o vício dos portugueses. As imagens debocha- tugueses. Robert Southey que, como referi
das de Camões, a sua ilha dos amores e Vénus acima, avalia severamente os portugueses, é o
protectora do Gama demonstram que eles se mesmo que exalta as belezas naturais do país
vangloriam de deboches deste tipo” (apud e exclama: “Daria um dos meus olhos à cega
Castanheira, 1996: 92). Fortuna se ela me deixasse olhar o Tejo com
606 Boaventura de Sousa Santos

o outro (apud Castanheira, 1996: 75). A terra que lhes põem e vêm quando os chamam, como
rica, fértil mas desaproveitada, é um topos re- os cães, e gostam muito que lhes falem e acari-
corrente dos relatos. Carlos de Merveilleux, o ciem (apud Pires, 1981: 40).
médico naturalista francês, a quem D. João V
convidou para escrever “a história natural des- A dialéctica da representação do colonizado
tes reinos”, escrevia assim: “[A]s terras produ- faz deste, como vimos, um ser simultaneamen-
zem quase sem trabalho e indemnizam abun- te atractivo e repulsivo, um ser dócil e ameaça-
dantemente os cuidados com o seu cultivo. dor, leal e traiçoeiro, um ser utópico e diabóli-
[…] Que riquezas não extrairia Sua Majestade co. Daí que os estereótipos não sejam unívocos
dos seus estados se eles fossem povoados por nem consistentes. Consoante as necessidades
anabaptistas e outras gentes laboriosas” (apud de representação do colonizador, predominam
Chaves, 1983: 20). estereótipos negativos ou, pelo contrário, es-
A dialéctica de estranheza/desejo e repul- tereótipos positivos, ainda que uns e outros
são/atracção, presente na descrição dos ani- se pertençam mutuamente. Esta dialéctica
mais do continente americano e da relação tem igualmente paralelo nas representações
dos índios com eles, é também identificável dos estrangeiros a respeito dos portugueses.
nos relatos dos viajantes estrangeiros em Por- Ao lado das representações “negativas”, que
tugal. Eis o que escreve uma viajante inglesa ilustrei acima, há igualmente representações
na década de 1890: “positivas”. Aliás, tal como aconteceu com as
narrativas coloniais a respeito do colonizado, a
Embora o nosso porco mascote fosse um porco disputa sobre “o perfil do português” foi por ve-
muito bonito — um chinês estranho — os porcos zes acesa entre os observadores estrangeiros.
desta região são terrivelmente feios. São uns ani- Os estereótipos negativos passam a dominar
mais enormes com grandes orelhas compridas, na segunda metade do século XVIII à medida
lombos imensos, erguendo-se no centro como um que se aprofunda o domínio da Inglaterra sobre
arco, costados ocos e cobertos de uma espécie Portugal, mas, ao longo de toda a época moder-
de pelos curtos e macios, mas tão ralos, que se vê na, são frequentes as narrativas que procuram
distintamente a pele preta por baixo. Apesar dis-
pôr em causa e oferecer alternativas a narra-
so, os aldeões consideram estas criaturas como
animais domésticos que respondem aos nomes
tivas anteriores consideradas falsas. Alguns
Entre Próspero e Caliban: Colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade 607

prosélitos da representação procuram mesmo rança, de capacidade empresarial e de chefia;


reconstruir a história das representações dos ausência da noção de importância do tempo e
portugueses de modo a fazer salientar a sua da pontualidade; incompreensão das consequ-
face positiva, como é o caso de Rose Macaulay ências sociais das acções (Bastos, 1995, I: 144-
em dois livros sobre relatos de viagem a Por- 147)27. Nesta lista, é importante a complexa
tugal (1946 e 1990). O estereótipo dos brandos ambivalência de atracção e repulsão. Mas mais
costumes é talvez o mais consistente de todos importante ainda é que, em pleno século XX,
os estereótipos positivos, apesar de ser muito muitas das características atribuídas aos portu-
recente. Está na base de outro ainda mais re- gueses têm semelhanças surpreendentes com
cente, o do luso-tropicalismo. as que as narrativas colonialistas, inclusive as
O que pretendo mostrar é que tanta a carga portuguesas, atribuíam ao negro africano, ao
positiva como a carga negativa dos estereóti- escravo americano ou ao índio americano.
pos têm paralelos por vezes surpreendentes
com os estereótipos coloniais. Num trabalho Jogos de espelhos, II:
importante sobre o sistema de representações um Próspero calibanizado
sociais identitárias dos portugueses, Pereira Mostrei na secção anterior que os portugue-
Bastos reconstrói assim o perfil do português ses nunca puderam instalar-se comodamente
saído dos estudos do sociólogo francês Paul no espaço-tempo originário do Próspero euro-
Descamps, que fez investigação em Portugal peu. Viveram nesse espaço-tempo como que in-
nos anos de 1930 a convite de Salazar: predo- ternamente deslocados em regiões simbólicas
mínio do amor sobre os interesses materiais; que lhes não pertenciam e onde não se sentiam
saudosismo e propensão para a melancolia; à vontade. Foram objecto de humilhação e de
exagerada moleza do carácter; desvirilização celebração, de estigmatização e de complacên-
e hipersensibilidade; temperamento nervoso, cia, mas sempre com a distância de quem não é
emotividade e compaixão; espírito poético; plenamente contemporâneo do espaço-tempo
amabilidade e docilidade; “alma feminina”; que ocupa. Forçados a jogar o jogo dos binaris-
amabilidade e simpatia; propensão para a si-
mulação; desejos ilimitados, ilusão e apelo ao
irreal; espírito aventureiro; falta de perseve- 27 Ver Descamps, 1935.
608 Boaventura de Sousa Santos

mos modernos, tiveram dificuldades em saber do colonialismo portugueses está assombrada


de que lado estavam. Nem Próspero nem Ca- por mitos que se pertencem e se anulam mutu-
liban, restou-lhes a liminaridade e a fronteira, amente. De um lado, a construção de Charles
a inter-identidade como identidade originária. Boxer (1963, 1969): os portugueses como um
Acontece que, em aparente contradição com Próspero incompetente com todos os defeitos
tudo isto, Portugal foi a primeira potência euro- de Próspero e com poucas das suas virtudes.
peia ocidental a lançar-se na expansão ultrama- De outro lado, a construção de Gilberto Freyre
rina e foi a que manteve por mais tempo o seu (1940, 1947, 1953, 1958): os portugueses como
Império. Se o colonialismo jogou um papel cen- um Próspero benevolente e cosmopolita capaz
tral no sistema de representações da moderni- de se aliar a Caliban para criar uma realidade
dade ocidental, Portugal teve uma participação nova. Duas construções credíveis à luz do des-
pioneira na construção desse sistema e, por- concerto e do caos das práticas a que quiseram
tanto, no jogo de espelhos fundador entre Prós- pôr ordem. Esta indecidibilidade é o sinal da
pero e Caliban. O enigma é, pois: como é que o vigência reiterada de um regime de inter-iden-
Caliban europeu pôde ser Próspero Além-Mar? tidades. Os portugueses, sempre em trânsito
Ou será que, porque nunca assumiu nenhuma entre Próspero e Caliban (e, portanto, imobi-
dessas identidades em pleno e exclusivamen- lizados nesse trânsito), tanto foram racistas,
te, pôde assumir as duas simultaneamente? tantas vezes violentos e corruptos, mais dados
A hegemonia de Portugal no sistema mundial à pilhagem do que ao desenvolvimento, como
moderno foi de curta duração e no final do sé- foram miscigenadores natos, literalmente pais
culo XVI os significantes de Próspero e Caliban da democracia racial, do que ela revela e do
circulavam fora do controlo dos portugueses. que ela esconde, melhores do que nenhum ou-
As inscrições desses significantes nos sistemas tro povo europeu na adaptação aos Trópicos.
de representação dos portugueses foram de tal Em África, na Ásia e no Brasil, esse regime
modo complexas e fizeram-se durante um pe- de inter-identidades teve infinitas manifesta-
ríodo tão longo que acabaram por dar origem ções. Entre elas avultam a “cafrealização” e a
a estereótipos e mitos contraditórios, cada um miscigenação. Os dois fenómenos estão ligados
deles sobrecarregado de meias verdades. Até mas referem-se a processos sociais distintos.
hoje, a construção histórica das descobertas e A cafrealização é uma designação oitocentis-
Entre Próspero e Caliban: Colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade 609

ta utilizada para caracterizar de uma maneira ção dessas interacções levou a que elas extra-
estigmatizante os portugueses que, sobretudo vasassem da actividade comercial para esferas
na África Oriental, se desvinculavam da sua de relacionamento mais profundo que envolvia
cultura e do seu estatuto civilizado para adop- frequentemente a constituição de família, a
tarem os modos de viver e pensar dos cafres, aprendizagem das línguas e dos costumes lo-
os negros agora transformados em primitivos cais, em suma, a adopção da prática cafreal. A
e selvagens. Trata-se, pois, de portugueses designação “cafre”28 não tinha, até aos séculos
apanhados nas malhas de Caliban e de facto XVIII-XIX, a conotação negativa que passou a
calibanizados, vivendo com mulheres e filhos ter depois dessa data. Servia apenas para dis-
calibans, segundo os costumes e línguas locais tinguir os negros (cafres) dos negros que fala-
e em total ruptura com a sua cultura de origem. vam árabe e estavam, por isso, envolvidos no
Esta designação surge com esta conotação comércio que os povos de tradição islâmica e
num momento preciso da história do colonia- swahili mantinham de há séculos nessas pa-
lismo português, um momento que adiante ragens. Esta imersão nas redes sociais locais,
designarei por “momento de Próspero”. A rele- esta interacção fácil entre os portugueses e as
vância desta designação para a argumentação populações locais e as práticas culturais híbri-
desenvolvida nesta secção é que, com ela, o das a que deu azo estão documentadas desde o
discurso colonial pretende ressignificar uma século XVII (Prestholdt, 2001). Os relatos, mui-
prática anterior que se difundiu entre o século tas vezes de religiosos, criticam estas práticas,
XVI e o século XIX, sobretudo na costa oriental
da África. Consistiu na interacção prolongada
dos portugueses com as culturas e os poderes 28 O termo “cafre” deriva do árabe kafir, termo que
designa o não-muçulmano, o não-crente em Allah. “Em
locais, uma interacção em que os interesses
Melinde [antigo porto da costa oriental de África] saõ
do comércio não podiam ser respaldados por os Mouros mais amigos dos Portugueses e naõ dife-
qualquer poder imperial digno do nome e que, rem nada nas condiçoes e feiçaõ do rosto dos noshos,
por isso, tendia a ser caracterizada pela reci- e fallaõ muitos muito bem Portugues, por ser aqui o
procidade e pela horizontalidade, quando não principal trato nosho co elles, e ashento do Capitaõ. Os
Mouros daqui confinaõ pella terra dentro com uma ter-
mesmo pela subordinação e prestação de vas-
ra de Cafres estranha dos outros de toda a costa (Mon-
salagem aos reis e autoridades locais. A reitera- claro, 1899: 167).
610 Boaventura de Sousa Santos

ainda que por vezes mostrem compreensão pêssimos proçedimentos que dos Patriçios rella-
para com as dificuldades enfrentadas naquelas tey. […] Allem das proprias mulheres naõ deixaõ
paragens por quem não tinha o poder colonial de procurarem outras. […] Andam de contino de
a defendê-lo. Escreve Frei João dos Santos em manxila / q tem a Semelhança das Redes da Amé-
rica […] Desta Sorte Ociozos passaõ os dias da
1609 na Etiópia Oriental:
vida athé que a morte chega a qual ignoraõ havela
por falta de Lembrança (Miranda, 1954: 64).
Um português chamado Rodrigo Lobo, era se-
nhor da mor desta ilha29, da qual lhe fez mercê
o Quiteve [rei], por ser muito seu amigo, e junta- Em 1844, João Julião da Silva escreveu a sua
mente lhe deu o titulo de sua mulher, nome que o Memoria sobre Sofalla, onde refere:
Rei chamava ao Capitão de Moçambique, e ao de
Sofala, e aos mais portugueses que muito estima, A Civilização nesta Villa [Sofala] em nada se tem
significando com tal nome que os ama, e que quer avançado do seu primitivo estado por que desde
que todos lhe façam cortesia, como a sua mulher, aquelles tempos em que tinha a denominação de
e realmente é assi, que todos os cafres veneram Prezidio, seus habitantes erão do numero dos
muito os portugueses que têm titulos de mulheres maiores Criminozos, e immoraes, que erão remet-
de el-Rei (Santos, 1999: 139). tidos para cumprirem suas Centenças por toda a
vida, e aqui se estabelecião, e como o Paiz era
Em 1766 escreve António Pinto Miranda: prospero aquirindo cabedais, erão dos primeiros
somente em reprezentação: estes taes individuos
logo procuravão familiarem-se, em tudo e por
[Os europeus em Moçambique] desprezaõ os Seus
tudo com os Custumes, e modo de proceder dos
officiaes quando com eles podiaõ passar alegre-
Cafres, que os rodeavão, e para acharem apoio
mente a vida; Cazão com alguãs Senhoras naturais
nestes, e mais latitude para as suas perversida-
e outras q de Goa descendem. […] Tambem Se
des, se Cazavão Cafrialmente com as pretas dos
esqueçem muito da Criaçaõ Christám q nos Seus
Certoens, e geravão mulatos: estes Criados na
prinçipios tiveraõ, razaõ por q nem aos proprios
mesma liberdade e custumes Cafriaies, seguião o
filhos a costumaõ dar, pelo que ficaõ estes com os
mesmo modo de proceder de seus Pais, e ate o
prezente são raros os que sabem ler, e escrever:
esta he a cauza principal por que as superstições,
29 Localizada na actual região de Sofala, no centro de
os prejuizos e Custumes barbaros estão arreiga-
Moçambique.
Entre Próspero e Caliban: Colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade 611

dos nelles, que he impossivel dezaluja-los; igno- Para a desqualificação e estigmatização do


rando ate os primeiros rudimentos da nossa San- Próspero cafrealizado contribuiu também a
ta Religião, o Idioma Portugues, e os Custumes origem dos portugueses que povoaram os ter-
Europeos (apud Feliciano e Nicolau, 1998: 36). ritórios. Como diz Marc Ferro, “os portugue-
ses foram os primeiros que quiseram livrar-se
Do mesmo teor é o lamento de Ignacio dos criminosos, dos delinquentes, mandando-
Caetano Xavier em meados do século XVIII: -os cumprir pena para longe — exemplo que a
“Fallando em geral posso dizer sem faltar á Inglaterra imitou em escala gigantesca com os
verdade, que mais paressem [os moradores su- convicts que a partir de 1797 foram povoar a
jeitos à Coroa] féras do que homens, por serem Austrália” (1996: 179). A partir de 1415, cada
opóstos á vida civil e sugeição á politica, omi- navio que partia a explorar a costa de África
tindo falar na Religião, por que tendo o nome levava seu contingente de degredados. Muitos
de Christáos, parece que ainda estaõ por esco- dos portugueses de que falam os relatos eram
lher a Ley” (Xavier, 1954: 174). degredados. Ao referir-se a eles do modo mais
A desqualificação dos indígenas como pri- depreciativo, Xavier denuncia em seu relato
mitivos e selvagens é uma constante destes de 1758-1762:
relatos e, com ela, a desqualificação dos por-
tugueses que se misturam com eles e adoptam Chega ainda mais avante a insolencia destes
os seus modos de vida. Ao longo de um vasto moradores […] porque depois de atropelarem
período, o estereótipo português que domina os respeitos humanos, tambem se tem atrevido
não é o de Próspero, é antes a de um proto-Ca- muitas vezes a perderem o decoro das Cazas de
liban, um cafrealizado. À medida que se forem Deos com sacrilegios insultos, de morte, feridas,
conhecendo as narrativas destes portugueses bulhas, etc., chegando a extremo a sua barbara
cafrealizados, será possível obter uma ideia cegueira a cometer os mesmos desacatos diante
mais complexa dos processos de hibridação e do Sacramento exposto, como sucedeo há poucos
annos na Igreja dos Dominicanos em Senna, que
certamente diferente da que nos é dada pelas
hoje está reduzida a cinzas. E este parece que he o
narrativas dos que os visitavam em aparições motivo porque tem cido castigados, e o saõ repe-
meteóricas do poder imperial, da Igreja e da tidas vezes do Ceo, pois por meyo dos Cafres que
Coroa, de resto sempre ausentes. dominavaõ, e podiam dominar, tem sido constran-
612 Boaventura de Sousa Santos

gida a sua orgulhóza vaidade, pois além de terem lismo português em África ter estado durante
perdido em muitas occazioes o credito, vidas e fa- vários séculos mais interessado em controlar
zendas, perderaõ […] ricas povoaçoes […] e ain- o comércio marítimo do que em ocupar territó-
da os seus filhos servem de escravos do dito Rey rios, combinado com a debilidade político-ad-
[Changamira], e estes talvez saó os nossos mayo-
ministrativa do Estado colonial, fez com que os
res inimigos na guerra e na páz (1954: 175-176)30.
portugueses que comerciavam nessas paragens
fossem colonizadores sem Estado colonial e
O subtexto destes relatos é que a origem so-
por isso fossem forçados a praticar uma forma
cial dos portugueses em África reclamava uma
de autogestão colonial. Esta autogestão colo-
presença mais forte e estruturada da autorida-
nial se, por um lado, permitia a identificação
de colonial. Ora, como vimos, esta era tão fraca
discricionária de cada um com o poder do Im-
e tão inconsistente que melhor poderia carac-
pério, por outro lado, não lhes facultava desse
terizar-se como um poder aparicional31.
Império senão o poder que pudessem mobilizar
O carácter aparicional do poder colonial é,
com meios próprios. Como esses meios eram
em meu entender, fundamental para entender-
exíguos, o português teve de negociar tudo,
mos os caminhos das inter-identidades em Áfri-
não só o seu comércio como também a própria
ca durante este período. O facto de o colonia-
sobrevivência. Foi um “colonizador” que se
viu frequentemente na contingência de prestar
30 No mesmo sentido, Marc Ferro afirma que o Gover- vassalagem como qualquer nativo às estruturas
nador de Angola tinha tal desconfiança em relação aos políticas (reinos) locais. Como o colonialismo
degradados que “não [lhes] queria confiar armas em caso
quase não existia como relação institucional32,
de guerra com os indígenas — a ponto de preferir servir-
-se de tropas africanas tanto para dar combate às tribos a disjunção entre colono, por um lado, e Esta-
insubmissas, como para, eventualmente, manter a boa do colonial e Império, por outro, era total. É
distância os delinquentes. De qualquer modo, estes deser- ainda Xavier quem relata a este respeito:
tavam assim que se apanhavam com armas” (1996: 179).
31 Um aparato administrativo colonial, sob a forma de
estado, surgiria apenas em finais do século XIX, inícios
do século XX, nos espaços coloniais de Portugal em Áfri- 32 Nas regiões costeiras havia quando muito um regi-
ca, situação que contrasta com a presença de estrutura me de soberania partilhada entre a administração por-
estatais organizadas no Brasil e na Índia Portuguesa. tuguesa e os reinos locais.
Entre Próspero e Caliban: Colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade 613

[Os habitantes da zona da ilha Moçambique que- XVIII: “[…] ficando estas terras somente habi-
rem] hé o ver como haõ de embaraçar o Governo, tadas pelos Mouros nacionaes, que vivem na
e dominalo sobre maneira. […] São todos inimigos maior obediencia, e saõ toda a força que defen-
do Governador. Tam envelhecido he este costume dem as nossas fronteiras dos insultos dos Ca-
nelles, que ainda os primeiros habitadores Por-
fres Macuas, sendo a Mossambique impossivel
tuguezes, por naõ quererem viver dominados de
naquele tempo o mandar socorros pela falta de
hum Governo, e sugeitaremse ás justiças, nunca
quizeraõ estar fechados em lugares, nem consen- tropa que experimentava” (Portugal, 1954: 276).
tiraõ se fizessem Praças, ou se murassem as povo- Também a legalidade colonial, não dispondo
ações, para assim á redea solta poderem continuar de um Estado colonial forte para a impor, ficou
as suas atrocidades, que morando dispersos em lu- menos nas mãos de quem a emitia do que nas
gares abertos, não era facil atalhalas o Governo, e de quem lhe devia obediência. A autogestão co-
conhecer dellas a Justiça como athe agora sucede. lonial levou à constituição de uma legalidade
Esta vida dissoluta, e sem subordinaçaõ, que elles paralela que combinava a aplicação altamente
tiveraõ por liberdade, e tem os que ao presente ha- selectiva, e apenas quando conveniente, da le-
bitaõ estas terras por felicidade, tem concorrido galidade oficial com outras legalidades locais
antes, e condus agora para a sua total ruina, por-
ou adaptadas às condições locais. Terá sido
que apenas se acha em Mossambique [ilha] quatro
este o primeiro exemplo moderno de pluralis-
moradores que possão ter nome de ricos, e da
mesma maneira nos rios de Senna, Sofala, Inham- mo jurídico34. Do ponto de vista dos portugue-
bane, e Ilhas Quirimba (Xavier, 1954: 174-175). ses nas colónias, a condição jurídica das suas
actividades não era nem legal nem ilegal, era
A mesma ausência do Estado colonial fez alegal. Do ponto de vista da Coroa, tratava-se
com que as tarefas de soberania, como, por de um sistema de desobediência que não podia
exemplo, a defesa das fronteiras, fossem fre- ser assumido como tal por ninguém. Tratava-se
quentemente “subcontratadas” às populações de um sistema semelhante ao que vigorou na
locais. É isto mesmo o que é narrado em “No- América espanhola e que ficou conhecido por
tícias das Ilhas de Cabo Delgado”33, do século “obedeço mas não cumpro”. Era um sistema ju-
rídico de torna-viagem. As leis eram expedidas

33 Estas ilhas, situadas no extremo norte de Moçam-


bique, são hoje geograficamente conhecidas como “Ar- 34 Sobre o pluralismo jurídico, veja-se Santos, 1995:
quipélago das Quirimbas”. 112-122, 2002 e 2006b.
614 Boaventura de Sousa Santos

de Lisboa, nem sempre chegavam, quando che- coerente, mesmo quando posto à prova em situ-
gavam, a sua chegada era ignorada, e quando ações de grandes contrastes raciais e culturais.
reconhecida, bastante mais tarde, as condições E, o que é de transcendente importância, a polí-
tinham-se alterado de tal modo que se justifi- tica da Nação e o comportamento dos indivíduos
formavam um todo completamente harmonioso.
cava o seu não cumprimento. As leis e a justi-
Os portugueses não chegavam com atitudes de
ficação eram enviadas para Lisboa com o voto
conquistadores, antes procuravam estabelecer
de obediência em apêndice final: “Ficamos a relações de amizade com as populações de vários
aguardar instruções”. continentes, e só quando as situações o exigiam
Estas características da economia política eram levados a servir-se das armas e a lutar. […]
tiveram naturalmente impacto no regime de in- A nossa acção assimiladora não se exerceu de
ter-identidades, no modo como os portugueses maneira violenta, antes pelo contrário, procu-
se cafrealizaram, se hibridizaram com as cultu- rámos adaptar-nos aos ambientes naturais e so-
ras e as práticas com que tinham de conviver. ciais, respeitando os estilos de vida tradicionais.
Mas se esse impacto é evidente, o seu sentido Por outro lado, íamos, pelo exemplo e convívio,
preciso é um dos factores de indecidibilidade despertando nas populações indígenas o respeito
por certos princípios da nossa civilização ociden-
do sistema de representações identitárias no
tal (Dias, 1961: 155-156).
espaço-tempo do colonialismo português. A
cafrealização foi um produto da facilidade ou
Nesta leitura, a cafrealização é o não-dito
da necessidade? Foi a facilidade que a tornou
que sustenta um processo contrário, que mar-
necessária, ou, pelo contrário, a necessidade
cará indelevelmente a situação colonial nos
que a tornou fácil? A leitura da facilidade tende
espaços de língua oficial portuguesa — a assi-
a desestigmatizar a cafrealização e a torná-la
milação35. Ela é um duplo não-dito. É um não-
numa condição capacitante. A análise de Jorge
Dias é uma versão paradigmática desta leitura:
35 Em Moçambique, a política de assimilação é as-
A composição heterogénea do povo português sociada ao sistema de administração colonial efectiva
e a estrutura tradicional comunitária e patriar- desde inícios do século XX. A partir de então, a divisão
cal permitiram-lhe uma perfeita assimilação do entre nativos e não nativos é reforçada. Como cidadãos
espírito cristão de fraternidade, inteiramente de estatuto inferior, os assimilados — aqueles que de-
sejavam ‘assimilar’ os valores da civilização portuguesa
Entre Próspero e Caliban: Colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade 615

-dito da assimilação porque é uma assimilação para com os seus criados, algo inimaginável na
invertida, assimilação de Próspero por Caliban. Inglaterra (Macaulay, 1990: 193).
Mas é também o não dito da imposição cultu- Pelo contrário, a leitura da necessidade ten-
ral que caracteriza a colonização, seja ela assi- de a ver na cafrealização a debilidade e a in-
milacionista ou não, porque é uma identidade competência de um Próspero que não pôde ou
negociada. Curiosamente, em mais um jogo não soube escapar a ela. A estigmatização da
de espelhos, esta leitura é consonante com al- cafrealização — quando assumida como inca-
gumas das leituras dos viajantes estrangeiros pacidade colonial — é expressão da degeneres-
em Portugal a partir do século XVIII a quem a cência que arrastou no seu atraso o atraso dos
porosidade das práticas identitárias dos portu- colonizados. É esta, em boa medida, a leitura
gueses não passou despercebida. de Charles Boxer. É também a leitura que sub-
O Capitão Costigan, irlandês, que esteve em jaz às políticas coloniais do final do século XIX
Portugal em 1778-1779 e para quem, como nota em diante, embora neste caso a leitura vise ex-
Rose Macaulay, a perversidade dos portugue- clusivamente justificar a ruptura com as políti-
ses era uma obsessão, declarava-se espantado cas coloniais anteriores, a que farei referência
com a familiaridade agradável dos portugueses na próxima secção.
A miscigenação é a outra manifestação da
porosidade dos regimes identitários dos portu-
(negros, asiáticos, mistos) e ser considerados cidadãos
— tinham cartões de identidade que os diferenciavam gueses. Trata-se de um fenómeno diferente da
da massa dos trabalhadores não-assimilados, os indí- cafrealização e pode ocorrer sem esta. Mas a
genas. Estes últimos, a maioria da população, não pos- verdade é que nos momentos de intensificação
suíam cidadania, não tinha direito algum, sendo mal dos discursos colonialistas e racistas, os mo-
pagos, explorados, sujeitos a um ensino rudimentar, ao
mentos de Próspero, que mencionarei adiante,
trabalho forçado, a regimes penais de deportação, etc.
Por exemplo, quando, em 1950, Eduardo Mondlane che- a estigmatização da cafrealização arrastou con-
gou a Lisboa para se matricular na universidade, a acei- sigo a da miscigenação (a miscigenação como
tação da sua candidatura não foi imediata. O seu grande cafrealização do corpo). Não é possível tratar
problema consistia no facto de, sendo ‘indígena’ natural esta questão no âmbito deste trabalho. Que a
de Moçambique, não ter o estatuto de assimilado, o que
miscigenação foi a “excepção portuguesa” no
impossibilitava a sua identificação como cidadão portu-
guês (Manghezi, 1999). colonialismo europeu (Ferro, 1996: 177) tende
616 Boaventura de Sousa Santos

hoje a ser consensual, embora também o seja o do seu modo próprio de produzir iniquidades
facto de não ter sido o colonialismo português sociais: “É preto porque é pobre” passou a ser o
o único a praticála. álibi credível para quem actuava no pressupos-
A porosidade de fronteiras entre Próspero to que “é pobre porque é preto”.
e Caliban atingiu a sua expressão identitária Pode, pois, concluir-se que o debate so-
máxima na figura do mulato e da mulata. A am- bre o valor sociológico político e cultural da
bivalência das representações a seu respeito é miscigenação é indecidível nos seus próprios
bem elucidativa da natureza de um pacto colo- termos, já que ele é um dos debates-erzatz do
nial tão aberto quanto desprovido de garantias. ajuste de contas histórico entre Próspero e
Ora vistos como seres degradados genetica- Caliban, entre o colonialismo europeu e os co-
mente, expressão viva de uma traição a Cali- lonizados por ele, que por muito tempo ainda
ban, ora vistos como seres superiores, com- vai ficar adiado.
binando o que de melhor havia em Próspero Neste contexto, quero apenas registar mais
e em Caliban, os mulatos foram, ao longo dos uma das astúcias do regime identitário dos por-
séculos, uma mercadoria simbólica cuja cota- tugueses, uma armadilha adicional para os que
ção variou com as vicissitudes dos pactos e das pensem que os jogos de espelhos reflectem algo
lutas coloniais. Em momentos em que Próspe- que esteja para além deles. Trata-se da possi-
ro se quis afirmar como tal ou em que Caliban bilidade de o português miscigeneador ser ele
tomou consciência da sua opressão e se dispôs próprio miscigenado; ser ele próprio original-
a lutar contra ela, a cotação social dos mulatos mente mulato e não poder por isso gerar senão
baixou. E, pelo contrário, subiu nos momentos, mulatos e mulatas, mesmo quando uns e outras
imensamente mais duradouros, em que nem são brancos e brancas. Vimos na secção ante-
Próspero nem Caliban sentiram necessidade rior que a cor da pele dos Portugueses foi, para
ou tiveram a possibilidade de se afirmar como os estrangeiros que visitaram o país ao longo
tais. Expressão da “democracia racial”, os mu- dos séculos, um significante recorrente de dis-
latos contribuíram, sem querer e contra os seus tanciação e de desqualificação. É como signifi-
interesses, para legitimar a desigualdade social cante racista que a cor da pele passa a integrar
racista. Ao desracializar as relações sociais, a narrativa científica das identidades a partir de
permitiram ao colonialismo desculpabilizar-se finais do século XIX. É então que o debate so-
Entre Próspero e Caliban: Colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade 617

bre a compleição étnica e racial dos portugue- Em 1946, o Reverendo J. W. Purves perguntava
ses emerge, um debate, tal como os anteriores, na revista Bermuda Historical Quarterly, re-
indecidível. Tal como os outros debates, o que ferindo-se aos emigrantes dos Açores para esta
esteve em causa não foi uma verificação, mas pequena colónia britânica: “Mas quem são os
uma justificação. Aqueles que quiseram fazer portugueses? A que grupo racial pertencem?”
dos portugueses um Próspero de pleno direito E respondia, definindo-os como um “dos po-
atribuíram-lhes ancestralidade lusitana, roma- vos latinos, os brancos-escuros que habitam a
na e germânica. Ao contrário, os que os viram margem norte do Mediterrâneo” (Harney, 1990:
como um Próspero relutante, inconsequente e 113). Nas Caraíbas, nos E.U.A. e no Havai os
calibanizado atribuíram-lhes ancestralidade ju- portugueses foram sempre considerados um
daica, moura e negra. A polémica é a demons- grupo étnico diferente dos brancos e dos euro-
tração da flutuação dos significantes ao sabor peus, com um estatuto intermédio entre estes e
das justificações em debate. A versatilidade e os negros ou nativos36. Nas Caraíbas e no Havai
a ductilidade das flutuações assinalam a pos- eram designados por “Portygees” ou “Potoge-
sibilidade de uma hibridação original, uma au- es”, trabalhadores com contratos a prazo que
tomiscigenação autofágica que precede e torna vieram substituir os escravos depois do fim da
possível todas as outras. escravatura e que, por isso, não eram brancos,
A miscigenação originária, na forma de sig- eram apenas mais um tipo de “coolie men”, tal
nificantes racistas inscritos na cor da pele, mas como os asiáticos. Para o historiador afro-cari-
também na compleição física e mesmo nos benho Eric Williams, não há nada de estranho
costumes, perseguiu os portugueses para onde em descrever os grupos étnicos que apoiaram
quer que fossem. Fora das suas colónias, e so- o Movimento Nacional Popular de Trinidad e
bretudo nas colónias ou ex-colónias das outras Tobago como “africanos, indianos, chineses,
potências europeias, muito especialmente no
mundo anglo-saxónico, foram frequentemente
motivo de perplexidade. Tão incredíveis como 36 Este estatuto social e étnico intermédio é identifi-
Próspero quanto como Caliban, foram objecto cável noutros continentes. Por exemplo, na África do
Sul, os Afrikaans designavam pejorativamente os por-
de classificações extravagantes que mais não
tugueses como wit-kaffirs (negros brancos) (Harney,
são do que manifestações da inter-identidade. 1990: 116).
618 Boaventura de Sousa Santos

portugueses, europeus, sírios…” (apud Har- aos orientais mas inferior aos brancos cauca-
ney, 1990: 115). Do mesmo modo, V. S. Naipul sianos (haole), um grupo social intermédio (Ba-
descreveu a luta pós-independência na Guiana ganha, 1990: 288). Efectivamente, entre 1910 e
como tendo lugar entre seis raças: indianos, 1914, o censo do Havai distinguia entre “Porty-
africanos, portugueses, brancos, mestiços e gees” e “Outros caucasianos”. Este status in-
ameríndios (apud Harney, 1990: 114). Miguel termédio, sendo estruturalmente ambíguo, era
Vale de Almeida, na sua passagem por Trinidad, bem preciso quando accionado nas práticas lo-
recolhe o seguinte testemunho de descenden- cais. No local de trabalho, os portugueses eram
tes de portugueses (os “potogees”): “[A]s elites capatazes mas nunca directores, uma posição
não os consideravam brancos, quando muito reservada aos escoceses. Do mesmo modo, o
Trinidad-white e os não brancos não os trata- salário dos carpinteiros portugueses era supe-
vam como superiores” (Almeida, 2000: 7). rior ao dos carpinteiros japoneses, mas um fer-
Este estatuto intermédio ajuda a explicar reiro português ganhava metade do que auferia
o papel desempenhado por Albert Gomes, de um ferreiro escocês (Harney, 1990: 115).
descendência portuguesa, enquanto líder polí- Este carácter intermédio e de intermedia-
tico dos Afro- e Indo-caribenhos de Trinidad ção (como no caso dos capatazes, os lunas)
dos anos 1960, numa altura em que os parti- estava inscrito nos portugueses muito para
dos políticos ainda correspondiam a divisões além das relações de trabalho. Robert Harney
étnicas (Harney, 1990: 115). Os antepassados refere um caso em que o estatuto intermédio
de Albert Gomes eram os “portugueses africa- dos portugueses foi decisivo para se atingir
nizados” do porto negreiro de Vera Cruz onde, um compromisso num importante julgamento
segundo António Garcia de Leon (1993), fa- de um crime de violação. Como os acusados
ziam a intermediação (inclusivamente linguís- eram asiáticos e nativos havaianos, se o júri
tica) entre os escravos recém-chegados e os fosse constituído por brancos (haoles) os réus
que os compravam. seriam certamente considerados culpados,
Maria Ioannis Baganha, no seu estudo sobre mas se, pelo contrário, os jurados fossem asi-
os fluxos migratórios dos portugueses entre áticos ou nativos, os réus seriam absolvidos. A
1820 e 1830, verifica que no Havai os portugue- solução foi encontrada, tendo sido aprovada a
ses eram vistos como um grupo étnico superior seguinte composição do júri: seis brancos, um
Entre Próspero e Caliban: Colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade 619

português, dois japoneses, dois chineses e um Originalmente mestiço, calibanizado em


havaiano (Harney, 1990: 115). casa pelos estrangeiros que o visitavam, cafre-
Também nos EUA, ainda em 1976, a Harvard alizado nas suas colónias, semi-calibanizado
Encyclopedia of American Ethnic Groups la- nas colónias e excolónias das outras potên-
mentava que, naquela data, a cidade de Barns- cias europeias por onde andou, como pôde
table no Cape Cod continuasse a classificar os este Próspero ser colonizador e colonizar
grupos étnicos que a constituíam em duas lis- prosperamente?
tas e sequências separadas: de um lado, finlan- E será possível ser-se consistentemente pós-
deses, gregos, irlandeses e judeus; do outro, ne- -colonial em relação a um colonizador tão des-
gros, portugueses e wampanoags. Ou seja, um concertante e exasperantemente desclassifica-
grupo de inequivocamente brancos e um gru- do e incompetente?
po de outros não brancos (Harney, 1990: 117).
Na mesma lógica, em 1972, o Ethnic Heritage Jogos de espelhos, III:
Program norte-americano considerava os por- os momentos de Próspero
tugueses como uma das sete minorias étnicas/ Uma união de contrários sem ser una parece
raciais do país: negro, índio americano, hispâ- ser o traço mais vincado da identidade dos por-
nico, oriental, português, havaiano nativo, na- tugueses nos registos especulares de dois ou-
tivo do Alasca. Ou seja, os portugueses são o tros significantes: o estrangeiro e o colonizado.
único grupo de emigrantes de um país europeu Esta falta de unidade na união de contrários tem
a que é recusada a origem europeia37. duas vertentes distintas. A primeira diz respeito
às diferenças regionais que são recorrentemen-
37 Maria Ioannis Baganha, embora não ponha em
te mencionadas e vincadas em muitos relatos.
causa estes dados e a existência de racismo contra No final do ancien régime, Andrien Balbi, ao
os portugueses nos EUA, considera que algum desse mesmo tempo que refere a união de contrários:
racismo se dirigia a outros grupos de europeus, por
exemplo, aos europeus de Leste. Não deixa, porém, de
assinalar que o Johnson Act de 1924 e o National Ori- conta que, na altura, parte significativa do contingente
gins System de 1927 restringia a entrada nos EUA dos migrante português nos Estados Unidos era composto
grupos “não assimiláveis” e desses grupos faziam parte de cidadãos mulatos, oriundos do arquipélago de Cabo
os portugueses (Baganha, 1991: 448). Importa ter em Verde, então colónia de Portugal.
620 Boaventura de Sousa Santos

— (“[o português] une a fleuma e a paciência A ideia da união de contrários sem ser una
dos povos do Norte à brilhante imaginação dos tem uma outra vertente e é essa que neste
povos meridionais”) —, salienta as diferenças contexto mais me interessa. Trata-se da possi-
regionais: “os camponeses da Estremadura e bilidade de, em certos momentos históricos e
do Alentejo são preguiçosos; os habitantes da sob pressões específicas, ser possível aos por-
Estremadura são os mais polidos, os do Algarve tugueses assumirem um dos contrários, ainda
os mais vivos, os da Beira muito laboriosos, os que não de modo necessariamente verosimi-
do Minho plenos de espírito e indústria, os de lhante. Sendo os portugueses uma união de
Trás-os-Montes, embora grosseiros, muito acti- contrários, de Próspero e Caliban, é possível
vos” (apud Bethencourt, 1991: 500-501). Estas que em certos momentos ou contextos sejam
diferenças são ainda mais vincadas quando os sobretudo Próspero ou, ao invés, sobretudo
portugueses são vistos por portugueses. Vistos Caliban. Nesta secção incido sobre a primeira
por si próprios, os portugueses só muito tarde possibilidade, o momento de Próspero.
se assumem como portugueses. Refiro-me na- Distingo dois momentos de Próspero: o final
turalmente às classes populares e não às elites. do século XIX, primeiras décadas do século
Como analisei noutro lugar, o Estado português XX; e o 25 de abril e a adesão à UE. Em qual-
só muito recentemente pôde desempenhar o quer destes momentos, a ascensão de Próspe-
papel duplo donde emergiram historicamente ro no magma identitário português faz-se sob
as identidades nacionais: diferenciar a cultura a pressão de factores externos, sempre sob a
do território nacional face ao exterior; promo- forma da Europa capitalista desenvolvida. O
ver a homogeneidade cultural no interior do ter- primeiro momento de Próspero ocorre no pe-
ritório nacional (Santos, 1994: 133). Este facto ríodo pós-Conferência de Berlim, em que a
é igualmente assinalado por José Mattoso que, ocupação efectiva dos territórios sob domínio
a propósito, refere a anedota “perfeitamente colonial se torna uma condição da manutenção
verosímil” que se conta do rei D. Luis quando, desse domínio38. Feita a partilha de África, os
já bem adiantado o século XIX, perguntava do
seu iate a uns pescadores, com quem se cruzou,
se eram portugueses. A resposta foi bem clara: 38 Entre outras disposições, a Conferência de Berlim
“Nós outros? Não, meu Senhor! Nós somos da decidiu que um Estado-Nação só poderia ter direito a
determinada parcela ultramarina desde que a ocupasse
Póvoa de Varzim” (Mattoso, 1998: 14).
efectivamente e a administrasse por forma a nela garan-
Entre Próspero e Caliban: Colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade 621

países industrializados dão à empresa colonial Próspero e Caliban. É verdadeiramente nesse


uma feição imperial que vincula estreitamente momento que surge o indígena primitivo e, em
as colónias ao desenvolvimento capitalista. A contraponto, o português colonizador, repre-
exploração capitalista das colónias, que pres- sentante ou metáfora do Estado colonial. O
supõe um controlo político e administrativo processo que faz descer o indígena ao estatuto
apertado, torna-se o outro lado da missão civili- que justifica a sua colonização é o mesmo que
zadora. Para garantir a sua presença em África, faz subir o português ao estatuto de coloniza-
Portugal vê-se obrigado a agir como as restan- dor europeu. A dicotomia entre os portugueses
tes potências imperiais, como se o desenvolvi- e a Coroa desaparece. O império portátil que os
mento interno do capitalismo português fizesse portugueses a partir de agora transportam não
exigências comparáveis, o que não era o caso. é um auto-império, sujeito às fraquezas e às for-
Este facto não escapa à historiografia inglesa, ças de quem o transporta, é antes a emanação
ao serviço do imperialismo britânico e, portan- de uma força transcendente, o Estado colonial.
to, hostil ao imperialismo português. Thomas O português branco e o indígena primitivo
Pakenham, no seu livro The Scramble for Afri- surgem, simultaneamente, divididos e unidos
ca, 1876-1912, é exemplar a este respeito: “E por dois poderosos instrumentos da racionali-
havia Portugal, meio senil e ainda mais arruina- dade ocidental: o Estado e o racismo. Através
do, agarrado às suas possessões em África, An- do Estado procura-se garantir a exploração sis-
gola e Moçambique, mais por soberba do que na temática da riqueza, convertendo-a em missão
esperança do lucro” (apud Furtado, 1997: 77). civilizatória por meio da transladação para as
Não é minha pretensão analisar aqui este colónias dos modos de vida civilizados metro-
período39. Pretendo apenas apontar as me- politanos, a criação mimética de “pequena Eu-
tamorfoses identitárias que nele ocorrem. A ropa” na África de que fala Edward Said (1980:
mais importante delas é a polarização entre 78). Através do racismo, obtém-se a justifica-
ção científica da hierarquia das raças, para o
que são mobilizadas tanto as ciências sociais
tir os direitos individuais, a liberdade de comércio e de como a antropologia física. A ocupação terri-
religião e o estabelecimento de estações civilizadoras. torial, de que é bom exemplo a campanha le-
39 Veja-se a Nota 1 e o projecto aí citado. vada a cabo por Portugal contra Nghunghunya-
622 Boaventura de Sousa Santos

ne, visa reduzir os africanos, a começar pelos Enquanto o português passa de criminoso
seus reis, à condição de subordinados dóceis, degredado, propenso a cafrealizar-se, à condi-
ao mesmo tempo que as sucessivas missões de ção de agente civilizatório, os indígenas pas-
exploração científica — como, por exemplo, sam de reis e de servos de reis à condição da
as 8 missões de Santos Júnior nas décadas de mais baixa animalidade. O português é agora
1930-1950 — visam estabelecer e petrificar a “o branco valoroso, uma garantia de posse da
inferioridade dos negros40. Num contexto de terra africana […]. É uma afirmação de presen-
prosperização do colono português, não admi- ça, necessária” (Júnior, 1955: 19). Uma tarefa
ra que as formas de hibridação acima referidas ingente dado o carácter desprezível da matéria-
— a cafrealização e a miscigenação — sejam -prima. O negro surge agora animalizado e ape-
estigmatizadas com particular violência. No nas susceptível de ser domesticado por via do
final do século XIX, diz António Ennes que “a gesto imperial. A violência deste gesto, a bru-
cafrealização é uma espécie de reversão do talidade do trabalho forçado é o outro lado da
homem civilizado ao estado selvagem” (Ennes, animalidade do negro e é esta última que justi-
1946: 192). Do mesmo modo, Norton de Matos, fica a primeira41. Sobre as dificuldades de levar
que foi governador-geral de Angola e era pala- os negros a trabalhar, lê-se numa publicação
dino do assimilacionismo, insurge-se contra a
assimilação invertida: “[N]o meio dos indíge-
nas circulavam [em 1912] alguns europeus, em 41 Segundo Santos Júnior, “não há dúvida que o bran-
número felizmente reduzido, que, por tristes co não pode exercer, em África, determinadas funções.
circunstâncias se tinham integrado na vida dos A sua resistência física não suporta, por exemplo, a
indígenas não civilizados e adaptados por com- violência do trabalho da enxada” (1995: 22-23). Citando
Marcelo Caetano, o autor afirma que “o preto tem con-
pleto aos seus usos e costumes” (apud Barra-
dições de resistência natural e uma adaptação ao meio
das, 1992: 54). que lhe permitem trabalhar nos climas tropicais em
certas actividades em muito melhores condições que
o europeu […]. É necessário forçar [o negro] à contri-
40 Por exemplo, num trabalho escrito em co-autoria buição que deve dar para o desenvolvimento da riqueza
com F. Barros, Santos Júnior afirma categoricamente a pública; é preciso obrigá-lo a produzir […]. Trata-se de
insensibilidade dos pretos à dor (Santos Júnior e Bar- proteger o negro, de integrá-lo no sistema económico
ros, 1950: 619). de Moçambique” (1955: 22-23).
Entre Próspero e Caliban: Colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade 623

oficial do Ministério das Colónias de 1912: “[É] porque é selvagem tende a pensar que “nós” é
o indígena dado à embriaguez por atavismo de que somos selvagens. Em 1911, escreve José
muitas gerações; é rebelde ao trabalho manual, Firmino Sant’Anna, um médico trabalhando no
ao qual acorrenta a mulher; é cruel e sanguiná- vale do rio Zambeze:
rio, porque assim o educou o meio em que vive;
não tem enraizado na alma o amor da família e O seu carácter [do indígena] desconfiado e egois-
dos seus semelhantes” (apud Barradas, 1992: ta não lhe permitte comprehender o interesse
124). Mas a demonização do colonizado atinge que o europeu tem em cuidar da sua saude sem
o paroxismo quando referida à mulher. É que lhe fazer quaesquer exigências, e então aventa a
este respeito as hypotheses mais inverosimeis.
esta é considerada responsável pela miscige-
Nos para elles somos os selvagens, attribuem-nos
nação, que agora é estigmatizada como sendo
os peiores instintos e tratam de acautelar, tanto
o grande factor de degeneração da raça. Em quanto lhes permitte a sua estupidez preguiçosa,
1873, António Ennes escreve: avida, mulheres e haveres. Estes prejuizos so-
bre o caracter do europeu são a principal razão
A África encarregou a preta de a vingar dos eu- da desconfiança com que acolhem o medico. O
ropeus, e ela, a hedionda negra, — porque não indígena não comprehende os motivos de or-
há negra que não seja hedionda — conquista dem abstracta nem razões altruistas; assim, não
para a sensualidade dos macacos, para os ciú- podendo explicar por outra forma a colheita de
mes ferozes dos tigres, para os costumes torpes amostras de sangue destinadas a exame, suppõe
e desumanos dos escravistas, para os delírios do que é para comer. O medico que procede a este
alcoolismo, para todos os embrutecimentos das serviço é olhado pela maioria como anthropofa-
raças inferiores, e até para os dentes das quizum- go e é curioso que até os indivíduos que de perto
bas [hienas] que escavam os cemitérios, os alti- me serviam supunham ser sangue o vinho que eu
vos conquistadores do Continente Negro (Ennes, consumia (1911: 22).
1946 [1873]: 192).
O canibalismo é um tema recorrente em mo-
Entre o homem branco e o homem negro, mentos de espelhos polarizados entre Próspero
ergue-se uma barreira intransponível que é ao e Caliban. E também aqui o vínculo que separa
mesmo tempo o traço da união entre ambos. abissalmente é também o que permite a mais
Neste jogo de espelhos, o negro é selvagem e
624 Boaventura de Sousa Santos

íntima reciprocidade. Por isso, a atribuição de dar; quando ganhou bastante gordura, deitam-no
canibalismo aos africanos surge frequentemen- numa grande panela alongada do comprimento
te articulada com a atribuição de canibalismo de um homem, e aquecida ao rubro. Conhece-
aos colonizadores por parte dos africanos. Em mos estes pormenores, porque um dos nossos,
Ngomogomo, nos explicou tudo isto. Tinha sido
inícios do século XX, Henry Junod recolheu no
feito prisioneiro, mas durante a viagem, os seus
sul de Moçambique, entre os povos que estu-
antepassados-deuses foram em seu auxílio: ele
dou, a seguinte narrativa acerca do canibalis- cobriu-se de uma erupção de borbulhas tão re-
mo dos portugueses: pugnantes que o deixaram na ilha e o trouxeram
de novo para cá. Ele viu tudo. Ao princípio não
—O Gungunhana (Nghunghunyane) morreu. Os queríamos acreditar. Agora, sabemos que é ver-
portugueses comeram-no! dade (Junod, 1996, vol. 2: 299-300).
—Que é que tu dizes?
—Com certeza. Os portugueses comem carne hu- Em face da polarização, a colonização efec-
mana. Toda a gente o sabe. Não têm pernas, são
tiva é um direito-dever. Para Hegel, a África
peixes. Têm cauda, em vez de pernas. E vivem na
água.
não é uma parte histórica do mundo: “Tanto
—Então, se eles são peixes e não têm pernas, quanto podemos remontar na história, a Áfri-
como é que podem combater convosco e ven- ca propriamente dita permaneceu fechada a
cer-vos? todas as relações com o resto do mundo; ela
—Oh! Os que vêm combater connosco são no- é a terra do ouro assente sobre si própria, a
vos, esses têm pernas. Agarram-nos e metem-nos terra da infância, oculta no escuro da noite
num navio a vapor que vai para longe, para muito para além do dia da história consciente de si
longe. Este navio acaba por chegar a um rochedo própria” (1970: 120).
todo cercado de água. É o país deles. Tiram-nos Noutro passo, Hegel conclui:
do navio e metem-nos numa ilha, enquanto os
soldados disparam as espingardas, para anunciar Deixamos assim a África e não voltaremos a men-
aos grandes Brancos-peixes que chegámos. Es- cioná-la. É que ela não é parte do mundo históri-
colhem um de nós e dão-lhe um golpe no dedo co, não revela qualquer movimento ou evolução,
mínimo, para verem se está bastante gordo. Se e o que nela, isto é, na sua parte norte, possa ter
não, fecham-no num grande cesto cheio de amen- acontecido pertence ao mundo asiático e euro-
doins e dão-lhe ordem de os comer, para engor-
Entre Próspero e Caliban: Colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade 625

peu. […] O que verdadeiramente entendemos por de prolongar a ocupação até ao rio Cuilo, da-
África é o a-histórico e o fechado, ainda preso por tado de 1907:
inteiro no espírito da natureza […]. (1970: 129)
É convicção minha que, sendo a ideia de inde-
Por isso, a colonização constitui para os Es- pendência intuitiva nos povos selvagens, como é
tados civilizados um dever de intervenção. É inato neles o ódio à raça superior, os processos
também nestes termos que Ruy Ennes Ulrich a de persuasão e de catequese serão de princípio
justifica em 1909: quase sempre estéreis e necessitarão do apoio e
da manifestação prévia da força para produzirem
A colonização constitui para os Estados civiliza- frutos. (apud Barradas, 1992: 128).
dos um dever de intervenção. Não lhes é licito
acumularem num espaço exíguo todas as mara- A partir da polarização dicotómica entre o
vilhas da civilização e deixarem talvez metade do homem branco e o negro selvagem, esta missão
mundo entregue a populações selvagens ou aban- civilizadora impõe ao colonizado uma dupla di-
donadas dos homens. A própria natureza impõe nâmica identitária: a antropologia colonial e o
aos povos superiores a função de guiarem e ins- assimilacionismo. A antropologia colonial visa
truírem os povos atrasados, em que a civilização conhecer os usos e costumes dos indígenas de
parece não poder brotar espontaneamente e que,
modo a melhor controlá-los politicamente, ad-
portanto, entregues a si mesmos, ficariam eterna-
ministrá-los e extrair-lhes impostos e trabalhos
mente no seu estado natural (Ulrich, 1909: 698).
forçados. As diferentes formas de “governo
indirecto” que foram adoptadas no final do sé-
No mesmo espírito, afirma Henry Junod:
culo XIX em África assentam na antropologia
“[P]ertenço àquele grupo de homens que,
colonial. O assimilacionismo é uma constru-
como os administradores e os coloniais de es-
ção identitária assente num jogo de distância
pírito largo, sentem que têm um dever a cum-
e de proximidade do colonizado em relação ao
prir para com as raças mais fracas” (1946: 18).
colonizador nos termos do qual o colonizado
No entanto, para os administradores coloniais,
— mediante procedimentos que têm alguma
este dever não pode ser cumprido sem violên-
semelhança com os da naturalização — aban-
cia. Escreve Alberto d’Almeida Teixeira num
dona o estádio selvagem. A sua subordinação
Relatório das operações realizadas com o fim
626 Boaventura de Sousa Santos

deixa de estar inscrita num estatuto jurídico por motivos ancestrais e uns quantos pretos as-
especial (como, por exemplo, o Estatuto do similados, civilizados, europeizados. […] não há
Indigenato42) e passa a ser regulada pelas leis povo moçambicano no sentido em que se fala do
gerais do Estado colonial. O assimilado é, as- povo português […]. Não há em Moçambique um
pensar colectivo (1952: 116-17).
sim, o protótipo da identidade bloqueada, uma
identidade entre as raízes africanas a que deixa
de ter acesso directo e as opções de vida euro- O máximo de consciência possível do pen-
peia a que só tem um acesso muito restrito. O samento colonial é lamentar que os povos co-
assimilado é, assim, uma identidade construída lonizados sejam aquilo em que as políticas co-
sobre uma dupla desidentificação. loniais os transformaram.
O assimilacionismo, combinado com a mis- O momento de Próspero dos portugueses
cigenação, é o que confere à sociedade africa- no virar do século XIX para o século XX foi
na a sua distinta heterogeneidade. Em 1952, um momento excessivo em relação às suas
questiona Alexandre Lobato: condições de possibilidade. Fortemente con-
dicionado pelas pressões internacionais do
E que se observa na população de Moçambique? pós-partilha de África, o colonizador português
Uns milhões de pretos em estado primitivo, uns não podia, contudo, romper inteiramente com
milhares de brancos civilizados à europeia, al- a longa duração histórica da inter-identidade
guns milhares de mulatos semi-europeus e semi- entre Próspero e Caliban. Revelou-se, assim,
-indígenas na maior, uns milhares de indianos um Próspero inconsequente e subdesenvolvi-
divididos em dois grupos muito diferenciados do. Com arrepiante frieza colonialista, escreve
Norton de Matos, então governador-geral de-
missionário, em relatório confidencial, datado
42 Ver o “Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indí- de 6 de março de 1915:
genas de Angola, Moçambique e Guiné” (promulgado
pelo Decreto n.º 12.533, de 23 de outubro de 1926) e o
Não temos sabido ocupar e dominar Angola.
“Estatuto Politico, Civil e Criminal dos Indígenas das
Colónias Portuguesas de África” (Decreto 16.473, de As nossas campanhas têm-se limitado aqui à
06 de fevereiro de 1929), que estendia o regime segre- organização de colunas que infligem ao gentio
gacionista do indigenato a todo o espaço africano do revoltado, ou que se quer ocupar, castigo mais
Império Português. ou menos severo e que, terminada a sua missão
Entre Próspero e Caliban: Colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade 627

militar, ganhos alguns combates, feitos alguns para colonizar com competência é notório
prisioneiros, mortos ou fuzilados alguns indíge- num outro passo:
nas, retiram e se dissolvem deixando aqui e além
um pequeno forte mal artilhado e pior guarne- Estar de arma — sem gatilho — ao hombro, sobre
cido, que o gentio em breve considera como os muros de uma fortaleza arruinada, com uma
inofensivo. A ocupação militar intensa durante alfandega e um Palácio onde vegetam maus em-
um longo período (cinco anos pelo menos) a pregados mal pagos, a assistir de braços cruzados
seguir à acção violenta e indispensável do com- ao commercio que os estranhos fazem e nós não
bate, da destruição de culturas e povoações, do podemos fazer; a esperar todos os dias os ataques
aprisionamento e do fuzilamento dos chefes in- dos negros, e a ouvir o escarnio e o desdém com
dígenas, tendo por fim a escolha e a manutenção que fallam de nós todos os que viajam na África
de chefes novos que saibamos transformar em — não vale, sinceramente, a pena (1904: 286).
criaturas absolutamente nossas, o desarmamen-
to geral, a obrigação de trabalhos remunerados
Esta incapacidade de Próspero para se as-
em obras do Estado, a facilitação do recruta-
sumir como tal é testemunhada, não só pelos
mento de trabalhadores, bem pagos, para tra-
balhos particulares e o recrutamento militar, o administradores coloniais, mas também pelos
desenvolvimento agrícola e comercial da região estrangeiros e pelos assimilados. Em 1809, o
ocupada, a cobrança de impostos de cubata e a Capitão Tomkinson informa o Vice-Almirante
transformação necessária do regime de adminis- Albermarble Bertie sobre os portugueses de
tração militar ou de capitaniamor no regime de Moçambique:
circunscrição civil, — constitui um sistema ra-
cional de ocupação apenas iniciado nos últimos Subi até ao continente por um braço de mar cerca
anos (apud Barradas, 1992: 132). de 10 milhas a noroeste da Ilha de Moçambique. O
solo parecia fértil, com abundante fruta tropical.
Alguns anos antes, Oliveira Martins ma- […] As casas bem construídas e bem adaptadas
nifestara a mesma preocupação, sublinhan- ao clima, mas as plantações mais parecem per-
do que “[c]om liberdade, com humanidade, tencer a pobres nativos não civilizados do que a
jamais se fizeram colónias fazendas” (1904: europeus. Embora a terra seja boa para o cultivo
do açúcar, do café e do algodão, eles apenas tra-
234). O desânimo de Oliveira Martins perante
tam da fruta e cultivam milho e arroz que bastem
a falta de condições do colonizador português
628 Boaventura de Sousa Santos

para o seu sustento. [… Cada] plantação tem um Igualmente cáustica é a avaliação do coloni-
número incrível de escravos tão mal vigiados que zador em momento de Próspero feita pelos as-
a sua principal actividade é arranjar mantimentos similados. João Albasini escreve em 1913 sobre
para uso próprio (Tomkinson, 1964: 4-5) o branco dos subúrbios:

Outro testemunho interessante no mesmo N’um casebre escuro e mal cheiroso, um balcão
sentido surge, anos mais tarde, em 1823, numa sebento, alguns barris do tal, latas de sardinha,
carta do Capitão W. F. W. Owen a respeito dos bancos escuros, moscas voejando e […] lixo,
portugueses presentes ao longo da costa de muito lixo. Para lá do balcão, um ser cabeludo
Moçambique. Depois de estigmatizar os portu- e barbado mexe-se com alguma dificuldade, dan-
gueses com a indolência, Owen conclui: do aqui e além um olhar distraído à sordidez das
coisas que lhe garantem a ele a bemaventurança,
Que a decadência persiga os portugueses para o bago, a massa. É o mulungu [branco]; é a alma
onde quer que vão é consequência natural da sua gentil da colonização (Albasini, 1913).
política estreita e mesquinha, os seus mercado-
res armados de autoridade militar e arbitrária, os Como uma maldição, o Caliban português
estrangeiros que com eles desejam comércio su- persegue o Próspero português, segue-lhe as
jeitos a toda a espécie de grosseira indignidade e pisadas, carnavalizando a sua postura como
impertinência (1964: 34). sendo uma imitação rasca do que pretende ser.
O segundo momento de Próspero ocorre no
Pela mesma época, em 1815, os naturalistas contexto da Revolução do 25 de abril com o
alemães Spix e Martius, em visita ao Brasil, fim da guerra colonial, o reconhecimento dos
contrastam os europeus com os portugueses, movimentos de libertação e a independência
estes mais vulneráveis à “degeneração moral” das colónias e prolonga-se no estabelecimento
do colono nos trópicos, revelando “falta de di- de relações de cooperação com os novos paí-
ligência e indisposição para o trabalho” e mani- ses de língua oficial portuguesa e na criação da
festando uma decadência geral, decorrente da Comunidade dos Países de Língua Portugue-
“falta de educação e respeito no trato dos es- sa (CPLP) em 1996. Trata-se do momento de
cravos da casa, não estando habituados a eles Próspero anti-colonial ou descolonizador, um
na Europa” (Lisboa, 1995: 182-183).
Entre Próspero e Caliban: Colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade 629

momento semelhante ao das outras potências do 25 de abril, no segundo caso. Isto significa
europeias coloniais, quase três décadas antes. que há em ambos os processos de descoloniza-
O fim do colonialismo europeu foi um momen- ção um sentido partilhado de libertação, tanto
to de Próspero na medida em que as potências para o colonizador, como para o colonizado.
coloniais, perante os custos políticos exces- Esta partilha de sentido criou alguma cumpli-
sivos da manutenção das colónias, buscaram cidade entre a nova classe política portuguesa
no reconhecimento da independência das e a classe política dos novos países, sobretudo
colónias uma nova e mais eficiente forma de no caso das independências africanas.
reproduzir a dominação sobre elas, que ficou A consequência mais decisiva das rupturas
conhecida por neocolonialismo. O Caliban simultâneas foi que, combinadas com a posição
colonizado transmutou-se no país subdesen- semiperiférica de Portugal no sistema mundial,
volvido ou em desenvolvimento. Com isto, o elas permitiram minimizar as sequelas neoco-
regime identitário alterou-se significativamen- lonialistas no período pós-independência. No
te mas a economia política subjacente quase caso do Brasil, a incapacidade neocolonialista
nunca se alterou com igual intensidade. Pelo do Próspero português manifesta-se no pânico
contrário, a vinculação económico-política às ante as consequências da perda do Brasil. Aliás,
antigas potências coloniais continuou a ser o Brasil desempenhou o papel de “colónia colo-
decisiva para os países agora independentes. nizadora”, como lhe chama Marc Ferro, ao en-
Paradoxalmente deixou de haver Caliban para viar para Angola fortes contingentes de imigran-
que Próspero sobrevivesse. tes brancos (1996: 179). Angola, de resto, estava
Mais uma vez, o momento de Próspero desde há muito na dependência económica dos
descolonizador português distingue-se em as- brasileiros. Como refere ainda Marc Ferro, o mi-
pectos significativos do equivalente momento nistro português Martinho de Melo e Castro quei-
de Próspero europeu. Antes de mais, os dois xavase já em 1781 que o comércio e a navegação
processos históricos de descolonização, a in- estavam a escapar inteiramente a Portugal “pois
dependência do Brasil e a independência das o que os Brasileiros não dominam está nas mãos
colónias africanas, tiveram lugar concomitante- dos estrangeiros” (Ferro, 1996: 180)43.
mente com profundas transformações de sinal
progressista na sociedade portuguesa, a revo-
43 Por sua vez, Moçambique esteve, até ao século
lução liberal, no primeiro caso, e a Revolução
XVIII, dependente do Vice-Rei da Índia. Como conse-
630 Boaventura de Sousa Santos

A debilidade e incompetência do Próspero a exercer a dominação em nome próprio, uma


colonial português, se, por um lado, inviabiliza- divisão sobre as suas responsabilidades histó-
ram o neocolonialismo, por outro, facilitaram, ricas e o modo como as partilhar com o colo-
sobretudo no caso do Brasil, a reprodução nizador entretanto saído de cena. Foi, no fun-
de relações de tipo colonial depois do fim do do, uma divisão sobre se a incompetência das
colonialismo, o colonialismo interno. Ao fazê- elites para desenvolver o país era ou não um
-lo, suscitou entre as elites, que continuaram produto de incompetência de Próspero de que
se tinham libertado. Seria a incompetência de
Próspero uma pesada herança, um constrangi-
quência, o sistema económico era largamente domina- mento incontornável das possibilidades de de-
do por indianos, conforme reclama António Lobo da senvolvimento pós-colonial, ou, pelo contrário,
Silva em 1679: “estes canarins da India tem sido cauza constituiria uma oportunidade insuspeitada
de muitas ruínas nestas terras, e no contrato, porque para formas de desenvolvimento alternativo?
aonde chegão tudo danão, e tem danado […] e não sou-
beram mais que roubarnos nossas fazendas, que lhe da-
Assim deve ser lida a polémica entre ibe-
vamos fiados e mandarem o dinheiro para a India; Eu, ristas e americanistas no Brasil (por exemplo,
Sr., era de parecer, pois não são de prestimo nenhum, entre Oliveira Vianna e Tavares Bastos). Para
salvo milhor juízo, que os mandasse V. Exa. botar a to- os iberistas, o atraso do Brasil poderia ser con-
dos fora dos Rios, porque aquilo que lhes agenceam, e vertido numa vantagem, na possibilidade de
acquirem no contrato, o agenciarão e acquirirão os por-
tugueses que o Príncipe nosso Sr manda para povoarem um desenvolvimento não individualista e não
estas terras de sua real coroa, e de suas conquistas, por- utilitarista assente numa ética comunitária
que quiz Deos que o príncipe nosso Sr. se alembrasse de que o mundo rural podia dar testemunho.
della sem mandar a V. Exª ver o miserável estado em Segundo Oliveira Vianna, na análise de Luis
que ellas estão e permita o mesmo Sr. conservar lhe a
Werneck Vianna (1997), a singularidade brasi-
V. Exa a vida e saúde e trazello com muito boa viagem
a salvamento aos Rios para que lhe seja prezente o mi- leira era menos um produto da historicidade
serável estado em que elles estão, e quando isto assim da metrópole do que da especificidade das re-
não fosse entendo que em pouco tempo acabarião de lações sociais prevalecentes no mundo agrário,
estalar de todo” (Carta de António Lobo da Silva para onde uma classe aristocrática rural funcionava
o vice rei [da India], escrita no Zimbaboé em 15 de
dezembro de 1679. Lisboa: Arquivo Histórico Ultrama-
como um poder agregador particular (Vianna,
rino, Caixa 3 (Documento 77). 1997: 162). Pelo contrário, Tavares Bastos via
Entre Próspero e Caliban: Colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade 631

na herança da cultura política ibérica e o seu Não só tem disputado a hegemonia com a sua
atávico anti-individualismo o fundamento do ex-colónia, o Brasil, como não tem podido im-
obscurantismo, autoritarismo e burocratismo pedir que alguns países integrem outras comu-
do Estado brasileiro, sendo preciso romper nidades “rivais” como é o caso de Moçambique,
com ela e criar um modelo social novo, yankee em relação à inglesa, e da Guiné-Bissau, em re-
hispano-americano, tendo como referência a lação à francesa. Como a hegemonia neste tipo
sociedade norte-americana, a indústria e a edu- de comunidades tem significado a legitimação
cação. Aliás, a incompetência do Próspero ibé- do neocolonialismo, a debilidade do Próspero
rico é explicitada por Tavares Bastos quando português abre potencialidades enormes para
afirma que, por não deter a força característica relacionamentos democráticos e verdadeira-
dos países do Norte, Portugal permitiu que “a mente pós-coloniais. É, no entanto, uma ques-
geral depravação e bárbara aspereza dos costu- tão em aberto saber se o antigo colonizador é
mes brasileiros [acabassem] por vingar face à capaz de transformar essa fraqueza em força
imposição cultural portuguesa” (Vianna, 1997: (ultrapassando a persistência da colonialidade
157). Por outras palavras, foram as deficiências das relações) e se os ex-colonizados estão se-
de Próspero que tornaram possíveis os exces- quer interessados nisso.
sos de Caliban.
No caso de África, está ainda por fazer o Bibliografia
julgamento histórico do Próspero colonial por- Ahmad, A. 1995 “The Politics of Literary
tuguês. Por outro lado, não é ainda possível Poscoloniality” in Race and Class, V. 36, Nº
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Para além do pensamento abissal
Das linhas globais a uma
ecologia de saberes* **

* Extraído de Santos, B. de Sousa 2010 “Para além


do pensamento abissal: Das linhas globais a uma eco- O pensamento moderno ocidental é um pen-
samento abissal1. Consiste num sistema de
distinções visíveis e invisíveis, sendo que as in-
logia de saberes” in Santos, B. de Sousa e Meneses, M.
P. (orgs.) Epistemologias do Sul (Coimbra: Almedina) visíveis fundamentam as visíveis. As distinções
pp. 23-72. invisíveis são estabelecidas através de linhas
** Este trabalho foi apresentado em diferentes versões
radicais que dividem a realidade social em dois
no Fernand Braudel Center, Universidade de New York
em Binghamton, na Universidade de Glasgow, Universi- universos distintos: o universo “deste lado da
dade de Victoria e Universidade de Wisconsin-Madison linha” e o universo “do outro lado da linha”. A
e Universidade de Coimbra. Gostaria de agradecer a divisão é tal que “o outro lado da linha” desapa-
Gavin Anderson, Alison Phipps, Emilios Christodouli-
dis, David Schneiderman, Claire Cutler, Upendra Baxi,
James Tully, Len Kaplan, Marc Galanter, Neil Komesar, 1 Não pretendo que o pensamento moderno ociden-
Joseph Thome, Javier Couso, Jeremy Webber, Rebec- tal seja a única forma de pensamento abissal. Ao con-
ca Johnson, e John Harrington, Antonio Sousa Ribeiro, trário, é muito provável que existam, ou tenham exis-
Margarida Calafate Ribeiro, Joaquin Herrera Flores, tido, formas de pensamento abissal fora do Ocidente.
Conceição Gomes e João Pedroso pelos seus comen- Não é meu propósito analisá-las neste texto. Defendo
tários. Maria Paula Meneses, além de comentar o texto, apenas que, abissais ou não, as formas de pensamen-
auxiliou-me no trabalho de pesquisa pelo que lhe estou to não-ocidental tem sido tratadas de um modo abissal
muito grato. Este trabalho não teria sido possível sem pelo pensamento moderno ocidental. Também não tra-
a inspiração das longas conversas com Maria Irene Ra- to aqui do pensamento pré-moderno ocidental nem das
malho sobre as relações entre as ciências sociais e as versões do pensamento moderno ocidental marginali-
ciências humanas. Foi ela também responsável pela zadas ou suprimidas por se oporem às versões hegemó-
preparação da versão inglesa. [N. do A.] nicas, as únicas de que me ocupo aqui.
640 Boaventura de Sousa Santos

rece enquanto realidade, torna-se inexistente, menta todos os conflitos modernos, tanto em
e é mesmo produzido como inexistente. Inexis- termos de factos substantivos como em termos
tência significa não existir sob qualquer forma de procedimentos. Mas subjacente a esta dis-
de ser relevante ou compreensível2. Tudo aqui- tinção existe uma outra, invisível, na qual a
lo que é produzido como inexistente é excluído anterior se funda. Esta distinção invisível é a
de forma radical porque permanece exterior distinção entre as sociedades metropolitanas
ao universo que a própria concepção aceite de e os territórios coloniais. De facto, a dicoto-
inclusão considera como sendo o Outro. A ca- mia regulação/emancipação apenas se aplica
racterística fundamental do pensamento abis- a sociedades metropolitanas. Seria impensá-
sal é a impossibilidade da co-presença dos dois vel aplicá-la aos territórios coloniais. Nestes
lados da linha. Este lado da linha só prevalece outros aplica-se uma outra dicotomia, a dico-
na medida em que esgota o campo da realidade tomia apropriação/violência que por seu turno
relevante. Para além dela há apenas inexistên- seria inconcebível aplicar deste lado da linha.
cia, invisibilidade e ausência não-dialéctica. Sendo que os territórios coloniais constituíam
Para dar um exemplo baseado no meu pró- lugares impensáveis para o desenvolvimento
prio trabalho, tenho vindo a caracterizar a do paradigma da regulação/emancipação, o
modernidade Ocidental como um paradigma facto deste paradigma lhes não ser aplicável
fundado na tensão entre a regulação e a eman- não comprometeu a sua universalidade.
cipação social3. Esta distinção visível funda- O pensamento abissal moderno salienta-se
pela sua capacidade de produzir e radicalizar
distinções. Contudo, por mais radicais que se-
2 Sobre a sociologia das ausências como crítica à pro-
dução de realidade não existente pelo pensamento he- jam estas distinções e por mais dramáticas que
gemónico, ver Santos 2000, 2003b, 2004, 2006b e 2006c. possam ser as consequências de estar em um
3 Esta tensão representa o outro lado da discrepân-
cia moderna entre as experiências actuais e as expec-
tativas quanto ao futuro, também expressas no mote racionalidade: a racionalidade estético-expressiva das
positivista da “ordem e progresso”. O pilar da regula- artes e literatura, a racionalidade instrumental-cogniti-
ção social é constituído pelo princípio do estado, prin- va da ciência e tecnologia e a racionalidade moral-prá-
cípio da comunidade e princípio do mercado, enquanto tica da ética e do direito (Santos, 1995: 2). Ver também
que o pilar da emancipação consiste nas três lógicas da Santos 2000 e 2002.
Para além do pensamento abissal: Das linhas globais a uma ecologia de saberes 641

ou outro dos lados destas distinções, em co- de objectos em determinadas circunstâncias e


mum têm o facto de pertencerem a este lado da segundo determinados métodos, como é que ela
linha e de se combinarem para tornar invisível se relaciona com outras verdades possíveis que
a linha abissal na qual estão fundadas. As dis- podem inclusivamente reclamar um estatuto
tinções intensamente visíveis que estruturam a superior, mas que não podem ser estabelecidas
realidade social deste lado da linha baseiam-se de acordo com o método científico, como é o
na invisibilidade das distinções entre este e o caso da razão como verdade filosófica e da fé
outro lado da linha. como verdade religiosa4? Estas tensões entre
O conhecimento e o direito modernos repre- a ciência, filosofia e teologia têm vindo desde
sentam as manifestações mais bem conseguidas então altamente visíveis, mas como defendo, to-
do pensamento abissal. Dão-nos conta das duas das elas têm lugar deste lado da linha. A sua vi-
principais linhas abissais globais dos tempos sibilidade assenta na invisibilidade de formas de
modernos, as quais, embora distintas e operan- conhecimento que não encaixam em nenhuma
do de forma diferenciada, são mutuamente in- destas formas de conhecer. Refiro-me aos co-
terdependentes. Cada uma cria um sub-sistema nhecimentos populares, leigos, plebeus, campo-
de distinções visíveis e invisíveis de tal forma neses, ou indígenas do outro lado da linha. Eles
que as invisíveis se tornam o fundamento das desaparecem como conhecimentos relevantes
visíveis. No campo do conhecimento, o pensa- ou comensuráveis por se encontrarem para
mento abissal consiste na concessão à ciência além do universo do verdadeiro e do falso. É ini-
moderna do monopólio da distinção universal maginável aplicar-lhes não só a distinção cien-
entre o verdadeiro e o falso, em detrimento de tífica entre verdadeiro e falso, mas também as
dois conhecimentos alternativos: a filosofia e a verdades inverificáveis da filosofia e da teologia
teologia. O carácter exclusivo deste monopólio
está no cerne da disputa epistemológica moder-
na entre as formas científicas e não-científicas 4 Embora de formas muito distintas, Pascal, Kierke-
de verdade. Sendo certo que a validade univer- gaard e Nietzsche foram os filósofos que mais apro-
sal da verdade científica é reconhecidamente fundadamente analisaram, e viveram, as antinomias
contidas nesta questão. Mais recentemente, merecem
sempre muito relativa, dado o facto de poder ser
menção Karl Jaspers (1952, 1986, 1995) e Stephen
estabelecida apenas em relação a certos tipos Toulmin (2001).
642 Boaventura de Sousa Santos

que constituem o outro conhecimento aceitável território sem lei, fora da lei, o território do a-le-
deste lado da linha5. Do outro lado da linha não gal, ou mesmo do legal e ilegal de acordo com
há conhecimento real; existem crenças, opini- direitos não oficialmente reconhecidos6. Assim,
ões, magia, idolatria, entendimentos intuitivos a linha abissal invisível que separa o domínio do
ou subjectivos, que, no melhor das hipóteses, se direito do domínio do não-direito fundamenta a
podem tornar objectos ou matéria prima para a dicotomia visível entre o legal e o ilegal que des-
inquirição científica. Assim, a linha visível que te lado da linha organiza o domínio do direito.
separa a ciência dos seus “outros” modernos Em cada um dos dois grandes domínios — a
está assente na linha abissal invisível que separa ciência e o direito — as divisões levadas a cabo
de um lado, ciência, filosofia e teologia e, do ou- pelas linhas globais são abissais no sentido em
tro, conhecimentos tornados incomensuráveis e que eliminam definitivamente quaisquer reali-
incompreensíveis por não obedecerem, nem aos dades que se encontrem do outro lado da linha.
critérios científicos de verdade, nem aos dos co- Esta negação radical de co-presença fundamen-
nhecimentos reconhecidos como alternativos, ta a afirmação da diferença radical que, deste
da filosofia e da teologia. lado da linha, separa o verdadeiro do falso, o le-
No campo do direito moderno, este lado da gal e o ilegal. O outro lado da linha compreende
linha é determinado por aquilo que conta como uma vasta gama de experiências desperdiçadas,
legal ou ilegal de acordo com o direito oficial do tornadas invisíveis, tal como os seus autores, e
Estado ou com o direito internacional. O legal e sem uma localização territorial fixa. Em verdade,
o ilegal são as duas únicas formas relevantes de como anteriormente referi, originalmente exis-
existência perante a lei, e, por esta razão a dis- tiu uma localização territorial e esta coincidiu
tinção entre ambos é uma distinção universal. historicamente com um território social especí-
Esta dicotomia central deixa de fora todo um fico: a zona colonial7. Tudo o que não pudesse
território social onde esta dicotomia seria im-
pensável como princípio organizador, isto é, o
6 Em Santos 2002, analiso em detalhe a natureza do
direito moderno e o tópico do pluralismo jurídico (a co-
5 Para uma visão geral dos debates recentes sobre as existência de mais de um sistema jurídico no mesmo
relações entre a ciência e outros conhecimentos, veja- espaço geopolítico).
-se Santos, Nunes e Meneses, 2004. Ver também Santos 7 Neste trabalho tomo por assente a ligação íntima
1995: 7-55. entre capitalismo e colonialismo. Veja-se, entre outros,
Para além do pensamento abissal: Das linhas globais a uma ecologia de saberes 643

ser pensado em termos de verdadeiro ou falso, abissais emergem em meados do século XVI
de legal ou ilegal ocorria na zona colonial. A este com as amity lines (linhas de amizade)10. O seu
respeito, o direito moderno parece ter alguma
precedência histórica sobre a ciência na criação
do pensamento abissal. De facto, contrariamen- Francisco Vitoria, o grande teólogo espanhol e jurista
do século XVI, para justificar a ocupação de terras nas
te ao pensamento jurídico convencional, foi a li-
Américas. Vitoria questiona se a descoberta é suficiente
nha global que separava o Velho Mundo do Novo como título jurídico de posse da terra. A sua resposta
Mundo que tornou possível a emergência, deste é muito complexa, não só por ser formulada em estilo
lado da linha, do direito moderno e, em particu- aristotélico, mas sobretudo porque Vitória não conce-
lar, do direito internacional moderno8. be qualquer resposta convincente que não parta a pre-
missa da superioridade europeia. Este facto, contudo,
A primeira linha global moderna foi provavel-
não confere qualquer direito moral ou positivo sobre as
mente o Tratado de Tordesilhas entre Portugal terras ocupadas. Segundo Vitoria, nem mesmo a supe-
e Espanha (1494)9, mas as verdadeiras linhas rioridade civilizacional dos europeus é suficiente como
base de um direito moral. Para Vitoria, a conquista po-
dia servir apenas de fundamento a um direito reversí-
vel à terra, a jura contraria, nas suas palavras. Isto é, a
Williams, 1994 (publicado originalmente em 1944); questão da relação entre a conquista e o direito à terra
Arendt, 1951; Fanon, 1967; Horkheimer e Adorno, 1972; deve ser colocada inversamente: se os Índios tivessem
Wallerstein, 1974; Dussel, 1992; Mignolo, 1995; Quijano, descoberto e conquistado os Europeus, teriam eles igual
2000; Grosfoguel, 2005 e Maldonado Torre, 2007. direito a ocupar as terras? A justificação de Vitória para
8 Assim, o imperialismo é constitutivo do Estado mo- a ocupação de terras assenta ainda na ordem cristã me-
derno. Ao contrário do que afirmam as teorias conven- dieval, na missão atribuída pelo Papa aos reis Espanhol
cionais do direito internacional, este não é produto de e Português, e no conceito de guerra justa. Ver Schmitt,
um Estado moderno pré-existente. O Estado moderno, 2003: 101-125. Ver também Anghie, 2005: 13-31. A labo-
o direito internacional e o constitucionalismo nacional e riosa argumentação de Vitoria reflete o grau de cuidado
global são produtos do mesmo processo histórico impe- da coroa que ao tempo se preocupava mais com a legiti-
rial. Ver Koskenniemi, 2002; Anghie, 2005 e Tully, 2007. mação dos direitos de propriedade do que com a sobera-
9 A definição das linhas globais ocorre gradualmente. nia sobre o Novo Mundo. Ver também Pagden, 1990: 15.
Segundo Carl Schmitt (2003: 91), as linhas cartográfi- 10 Desde o século XVI em diante as linhas carto-
cas do século XV (as rayas, Tordesillas) pressupunham gráficas, as chamadas amity lines — a primeira das
ainda uma ordem espiritual global vigente de ambos os quais poderá ter emergido em resultado do Tratado de
lados da divisão — a respublica Christina, simbolizada Cateau-Cambresis (1559) entre Espanha e França —
pelo Papa. Isto explica as dificuldades enfrentadas por abandonaram a ideia de uma ordem comum global e
644 Boaventura de Sousa Santos

carácter abissal manifesta-se no elaborado tra- De meados do século XVI em diante, o de-
balho cartográfico investido na sua definição, bate jurídico e político entre os estados euro-
na extrema precisão exigida a cartógrafos, fa- peus a propósito do Novo Mundo concentra-
bricantes de globos terrestres e pilotos, no poli- -se na linha global, isto é, na determinação do
ciamento vigilante e nas duras punições das vio- colonial, não na ordenação interna do colonial.
lações. Na sua constituição moderna, o colonial Pelo contrário, o colonial é o estado de nature-
representa, não o legal ou o ilegal, mas antes o za onde as instituições da sociedade civil não
sem lei. Uma máxima que então se populariza têm lugar. Hobbes refere-se explicitamente aos
“para além do Equador não há pecados” ecoa “povos selvagens em muitos lugares da Amé-
na famosa passagem dos Pensamentos de Pas- rica” como exemplares do estado de natureza
cal, escritos em meados do século XVII: “Três (1985 [1651]: 187), e Locke pensa da mesma
graus de latitude alteram toda a jurisprudência forma ao escrever em Sobre o Governo Civil:
e um meridiano determina o que é verdadeiro… “No princípio todo o mundo foi América” (1946
É um tipo peculiar de justiça cujos limites são [1690]: §49).
demarcados por um rio, verdadeiro neste lado O colonial constitui o grau zero a partir do
dos Pirinéus e falso no outro” (1966: 46). qual são construídas as modernas concepções
de conhecimento e direito. As teorias do con-
trato social dos séculos XVII e XVIII são tão
estabeleceram uma dualidade abissal entre os territó-
rios deste lado da linha e os territórios do outro lado importantes pelo que dizem como pelo que si-
da linha. Deste lado da linha vigoram a verdade, a paz e lenciam. O que dizem é que os indivíduos mo-
a amizade; do outro lado da linha, a lei do mais forte, a dernos, ou seja, os homens metropolitanos, en-
violência e a pilhagem. O que quer que ocorra do outro tram no contrato social abandonando o estado
lado da linha não está sujeito aos mesmos princípios
de natureza para formarem a sociedade civil11.
éticos e jurídicos que se aplicam deste lado da linha.
Não poderá, portanto, dar origem ao tipo de conflitos O que silenciam é que desta forma se cria uma
que a violação de tais princípios causaria se ocorresse vasta região do mundo em estado de natureza,
deste lado da linha. Esta dualidade permitiu, por exem- um estado de natureza a que são condenados
plo, aos reis católicos de França manterem, deste lado
da linha, uma aliança com os reis católicos de Espanha,
e, ao mesmo tempo, aliarem-se aos piratas que, do ou- 11 Sobre as diferentes concepções do contrato social,
tro lado da linha, atacavam os barcos espanhóis. ver Santos, 2002: 30-39.
Para além do pensamento abissal: Das linhas globais a uma ecologia de saberes 645

milhões de seres humanos sem quaisquer pos- mágicas ou idolátricas. A completa estranheza
sibilidades de escaparem por via da criação de de tais práticas conduziu à própria negação da
uma sociedade civil. A modernidade Ocidental, natureza humana dos agentes de tais práticas.
em vez de significar o abandono do estado de Com base nas suas refinadas concepções de
natureza e a passagem à sociedade civil, sig- humanidade e de dignidade humana, os huma-
nifica a coexistência da sociedade civil com o nistas dos séculos XV e XVI chegaram à con-
estado de natureza, separados por uma linha clusão de que os selvagens eram sub-humanos.
abissal com base na qual o olhar hegemónico, A questão era: os índios tem alma? Quando o
localizado na sociedade civil, deixa de ver e papa Paulo III respondeu afirmativamente na
declara efectivamente como não-existente o sua bula Sublimis Deus, de 1537, fê-lo conce-
estado de natureza. O presente que vai sendo bendo a alma dos povos selvagens como um
criado do outro lado da linha é tornado invi- receptáculo vazio, uma anima nullius, muito
sível ao ser reconceptualizado como o passa- semelhante à terra nullius12, o conceito de va-
do irreversível deste lado da linha. O contacto zio jurídico que justificou a invasão e ocupa-
hegemónico converte simultaneidade em não- ção dos territórios indígenas. Com base nestas
-contemporaneidade. Inventa passados para concepções abissais de epistemologia e legali-
dar lugar a um futuro único e homogéneo. As- dade, a universalidade da tensão entre a regu-
sim, o facto de os princípios legais vigentes na lação e a emancipação, aplicada deste lado da
sociedade civil deste lado da linha não se apli- linha, não entra em contradição com a tensão
carem do outro lado da linha não compromete entre apropriação e violência aplicada do ou-
de forma alguma a sua universalidade. tro lado da linha.
A mesma cartografia abissal é constitutiva A apropriação e a violência tomam diferen-
do conhecimento moderno. Mais uma vez, a tes formas na linha abissal jurídica e na linha
zona colonial é, par excellence, o universo das abissal epistemológica. Mas, em geral, a apro-
crenças e dos comportamentos incompreensí- priação envolve incorporação, cooptação e
veis que de forma alguma podem considerar-
-se conhecimento, estando, por isso, para além
12 De acordo com a Bula, “os Índios eram verdadeiros
do verdadeiro e do falso. O outro lado da li-
homens e… não eram capazes de entender a fé Católica
nha alberga apenas práticas incompreensíveis, mas, de acordo com as nossas informações, desejam
646 Boaventura de Sousa Santos

assimilação, enquanto que a violência implica directo (indirect rule), pilhagem de recursos
destruição física, material, cultural e humana. naturais, deslocação maciça de populações,
Na prática, é profunda a interligação entre a guerras e tratados desiguais, diferentes for-
apropriação e a violência. No domínio do co- mas de apartheid e assimilação forçada, etc.
nhecimento, a apropriação vai desde o uso Enquanto a lógica da regulação/emancipação
de habitantes locais como guias13 e de mitos é impensável sem a distinção matricial entre
e cerimónias locais como instrumentos de o direito das pessoas e o direito das coisas, a
conversão, à pilhagem de conhecimentos in- lógica da apropriação/violência reconhece ape-
dígenas sobre a biodiversidade, enquanto que nas o direito das coisas, sejam elas humanas
a violência é exercida através da proibição do ou não. A versão extrema deste tipo de direito,
uso das línguas próprias em espaços públicos, irreconhecível deste lado da linha, é o direito
da adopção forçada de nomes cristãos, da con- do “Estado Livre do Congo” imposto pelo rei
versão e destruição de símbolos e lugares de Leopoldo II da Bélgica14.
culto, e de todas as formas de discriminação Existe, portanto, uma cartografia moderna
cultural e racial. dual: a cartografia jurídica e a cartografia epis-
No que toca ao direito, a tensão entre apro- temológica. O outro lado da linha abissal é um
priação e violência é particularmente comple- universo que se estende para além da legalida-
xa devido à sua relação directa com a extrac- de e ilegalidade, para além da verdade e da fal-
ção de valor: tráfico de escravos e trabalho sidade15. Juntas, estas formas de negação radi-
forçado, uso manipulador do direito e das au-
toridades tradicionais através do governo in-
14 Diferentes perspectivas sobre esta “colónia pri-
vada” e sobre o Rei Leopoldo podem encontrar-se em
Emerson, 1979; Hochschild, 1999; Dumoulin, 2005; Ha-
ardentemente recebê-la”. “Sublimis Deus” encontra-se sian, 2002: 89-112.
em <http://www.papalencyclicals.net/Paul03/p3subli. 15 A profunda dualidade do pensamento abissal e
htm>, acesso 22 de setembro, 2017. a incomensurabilidade entre os termos da dualidade
13 Como no caso famoso de Ibn Majid, um experiente foram implementadas pelos monopólios bem policia-
piloto que indicou a Vasco da Gama o caminho maríti- dos do conhecimento e do direito com uma poderosa
mo de Mombassa à India (Ahmad, 1971). Outros exem- base institucional — universidades, centros de inves-
plos podem encontrar-se em Burnett, 2002. tigação, escolas de direito e profissões jurídicas — e
Para além do pensamento abissal: Das linhas globais a uma ecologia de saberes 647

cal produzem uma ausência radical, a ausência O meu argumento é que esta realidade é tão
de humanidade, a sub-humanidade moderna. verdadeira hoje como era no período colonial.
Assim, a exclusão torna-se simultaneamente O pensamento moderno ocidental continua a
radical e inexistente, uma vez que seres sub- operar mediante linhas abissais que dividem o
-humanos não são considerados sequer candi- mundo humano do sub-humano, de tal forma
datos à inclusão social16. A humanidade moder- que princípios de humanidade não são postos
na não se concebe sem uma sub-humanidade em causa por práticas desumanas. As colónias
moderna17. A negação de uma parte da humani- representam um modelo de exclusão radical
dade é sacrificial, na medida em que constitui a que permanece actualmente no pensamento e
condição para a outra parte da humanidade se práticas modernas ocidentais tal como aconte-
afirmar enquanto universal18. ceu no ciclo colonial. Hoje, como então, a cria-
ção e ao mesmo tempo a negação do outro lado
da linha fazem parte integrante de princípios e
pela sofisticada linguagem tecnológica da ciência e da práticas hegemónicos. Actualmente, Guantá-
jurisprudência. namo representa uma das manifestações mais
16 A suposta externalidade do outro lado da linha é, de grotescas do pensamento jurídico abissal, da
facto, a consequência da sua pertença ao pensamento criação do outro lado da fractura enquanto um
abissal: como fundação e como negação da fundação. não-território em termos jurídicos e políticos,
17 Fanon denuncia esta negação da humanidade com um espaço impensável para o primado da lei,
insuperável lucidez (Fanon, 1963, 1967). O radicalis- dos direitos humanos e da democracia19. Po-
mo da negação fundamenta a defesa que Fanon faz da
rém, seria um erro considerá-lo uma excepção.
violência como uma dimensão intrínseca da revolta
anti-colonial. Embora partilhassem uma luta comum,
Fanon e Gandhi divergiram a este respeito e essa di-
vergência, deve ser objecto de uma reflexão cuidada, do pensamento abissal trivialize facilmente o preço da
particularmente pelo facto de se tratar de dois dos mais sua destrutividade.
importantes pensadores-activistas do século passado. 19 Sobre Guantánamo e tópicos relacionados ver, en-
Ver Federici, 1994 e Kebede, 2001. tre muitos outros, McCormack, 2004; Amann, 2004a,
18 Esta negação fundamental permite por um lado, 2004b; Human Rights Watch, 2004; Sadat, 2005; Steyn,
que tudo o que é possível se transforme na possibilida- 2004; Borelli, 2005; Dickinson, 2005; Van Bergen e Va-
de de tudo, e por outro, que a criatividade exaltadora lentine, 2006.
648 Boaventura de Sousa Santos

Existem muitos Guantánamos, desde o Iraque A divisão abissal entre


à Palestina e a Darfur. Mais do que isso, exis- regulação/emancipação e
tem milhões de Guantánamos nas discrimina- apropriação/violência
ções sexuais e raciais quer na esfera pública, A permanência das linhas abissais globais ao
quer na privada, nas zonas selvagens das me- longo de todo o período moderno não significa
gacidades, nos guetos, nas sweatshops, nas que estas se tenham mantido fixas. Historica-
prisões, nas novas formas de escravatura, no mente, as linhas globais que dividem os dois
tráfico ilegal de órgãos humanos, no trabalho lados têm vindo a deslocar-se. Mas em cada
infantil, e na exploração da prostituição. momento histórico, elas são fixas e a sua posi-
Neste texto, começo por argumentar que a ção é fortemente vigiada e guardada, tal como
tensão entre regulação e emancipação continua sucedia com as linhas de amizade. Nos últimos
a coexistir com a tensão entre apropriação e vio- sessenta anos, as linhas globais sofreram dois
lência, e de tal maneira que a universalidade da abalos tectónicos. O primeiro teve lugar com
primeira tensão não é questionada pela existên- as lutas anti-coloniais e os processos de inde-
cia da segunda. Em segundo lugar, argumento pendência das antigas colónias20. O outro lado
que as linhas abissais continuam a estruturar o da linha sublevou-se contra a exclusão radical
conhecimento e o direito modernos e que são à medida que os povos que haviam sido sujei-
constitutivas das relações e interacções políti- tos ao paradigma da apropriação/violência se
cas e culturais que o Ocidente protagoniza no organizaram e reclamaram o direito à inclusão
interior do sistema mundial. Em suma, o meu no paradigma da regulação/emancipação (Fa-
argumento é de que a cartografia metafórica das non, 1963, 1967; Nkrumah, 1965; Cabral, 1979;
linhas globais sobreviveu à cartografia literal das Gandhi, 1951, 1956). Durante algum tempo, o
amity lines que separavam o Velho do Novo paradigma da apropriação/violência parecia
Mundo. A injustiça social global está, desta for- ter chegado ao fim, e do mesmo modo também
ma, intimamente ligada à injustiça cognitiva glo-
bal. A luta pela justiça social global deve por isso
ser também uma luta pela justiça cognitiva glo-
20 Em vésperas da Segunda Guerra Mundial, as coló-
bal. Para ser bem-sucedida, esta luta exige um
nias e ex-colónias cobriam cerca de 85% da superfície
novo pensamento, um pensamento pós-abissal. da terra em todo o globo.
Para além do pensamento abissal: Das linhas globais a uma ecologia de saberes 649

a divisão abissal entre este lado da linha e o cipação. Numa extensão tal que o domínio da
outro lado da linha. Cada uma das duas linhas regulação/emancipação não só está a encolher,
globais (a epistemológica e a jurídica) pare- como também está a ficar contaminado inter-
ciam estar a movimentar-se de acordo com a namente pela lógica da apropriação/violência.
sua própria lógica, mas ambas na mesma direc- A complexidade deste movimento é difícil
ção: os seus movimentos pareciam convergir de destrinçar na medida em que se desenro-
no encolhimento e finalmente na eliminação do la ante os nossos olhos que não conseguem
outro lado da linha. Contudo, não foi isto que abstrair-se do facto de estarem deste lado da
aconteceu, como mostram a teoria da depen- linha e de olharem de dentro para fora. Para
dência, a teoria do sistema do mundo moderno, captar a totalidade do que está a ocorrer é ne-
e os estudos pós-coloniais21. cessário um esforço enorme de descentramen-
Neste texto, incido a minha atenção sobre to. Nenhum estudioso pode fazê-lo sozinho,
o segundo abalo tectónico das linhas abissais. como indivíduo. Baseado num esforço colec-
Tem vindo a decorrer desde os anos de 1970 e tivo para desenvolver uma epistemologia do
1980 e segue na direcção oposta. Desta feita, Sul22, a minha proposta é que este movimento
as linhas globais estão de novo em movimento, é composto de um movimento principal e de
mas de uma forma tal que o outro lado da linha um contra-movimento subalterno. Denomino o
parece estar a expandir-se, enquanto este lado movimento principal de regresso do colonial e
da linha parece estar a encolher. A lógica da do colonizador, e o contra movimento, de cos-
apropriação/violência tem vindo a ganhar for- mopolitismo subalterno.
ça em detrimento da lógica da regulação/eman- Em primeiro lugar, o regresso do colonial
e o regresso do colonizador. Aqui o colonial é
21 As origens múltiplas e subsequentes variações
destes debates podem encontrar-s em Memmi, 1965;
Dos Santos, 1971; Cardoso e Faletto, 1969; Frank, 1969; 22 Entre 1999 e 2002 realizei um projecto internacio-
Rodney, 1972; Wallerstein, 1974, 2004; Bambirra, 1978; nal sobre a “Reinvenção da Emancipação Social” que
Dussell, 1995; Escobar, 1995; Chew e Denemark, 1996; envolveu 60 investigadores de 6 países (África do Sul,
Spivak, 1999; Césaire, 2000; Mignolo, 2000; Grosfoguel, Brasil, Colômbia, Índia, Moçambique e Portugal). Os
2000; Afzal-Khan e Sheshadri-Crooks, 2000; Mbembe, resultados principais da investigação estão publicados
2001; Dean e Levi, 2003. em sete volumes. Estão publicados em português os
650 Boaventura de Sousa Santos

uma metáfora daqueles que entendem as suas Por exemplo, em muitas das suas disposições,
experiências de vida como ocorrendo do ou- a nova vaga de legislação anti-terrorista e de
tro lado da linha e se rebelam contra isso. O imigração segue a lógica reguladora do para-
regresso do colonial é a resposta abissal ao que digma da apropriação/violência26. O regresso
é percebido como uma intromissão ameaçado- do colonial não significa necessariamente a sua
ra do colonial nas sociedades metropolitanas. presença física nas sociedades metropolitanas.
Este regresso tomam três formas principais: o Basta que possua uma ligação relevante com
terrorista23, o imigrante indocumentado24 e o elas. No caso do terrorista, esta ligação pode
refugiado25. De formas distintas, cada um de- ser estabelecida pelos serviços secretos. No
les traz consigo a linha abissal global que de- caso do trabalhador imigrante indocumentado,
fine a exclusão radical e inexistência jurídica. basta que seja contratado por uma das muitas
centenas de sweatshops que operam no Sul
Global27 subcontratadas por corporações me-
cinco primeiros; em espanhol, Santos (org.) 2004b; em tropolitanas multinacionais. No caso dos refu-
inglês, Santos (org.) 2005a, 2006 e 2007, e em italiano, giados, a ligação relevante é estabelecida pelo
Santos (org.) 2003c, 2005c. Sobre as implicações episte-
mológicas deste projecto ver Santos, 2003 e 2004. Sobre
as ligações entre este projecto e o Fórum Social Mun- por parte de pessoas provenientes do mundo árabe ou
dial, ver Santos, 2005 e 2006c. muçulmano. Ver também Akram, 1999; Menefee, 2004;
23 Entre outros ver Harris, 2003; Kanstroom, 2003; Bauer, 2004; Cianciarulo, 2005; Akram e Karmely, 2005.
Sekhon, 2003; C. Graham, 2005, N. Graham 2005; Sche- 26 Sobre as implicações da nova vaga anti-terrorista
ppele, 2004a, 2004b, 2006; Guiora, 2005. e das novas leis de imigração, ver os artigos citados
24 Ver Miller, 2002; De Genova, 2002; Kanstroom, nas três notas anteriores e também o Immigrant Rights
2004; Hansen e Stepputat, 2004; Wishnie, 2004; Taylor, Clinic, 2001; Chang, 2001; Whitehead e Aden, 2002; Zel-
2004; Silverstein, 2005; Passel, 2005; Sassen, 1999. man, 2002; Lobel, 2002; Roach, 2002 (sobre o caso ca-
Para uma visão mais radical sobre este tema, ver Bu- nadiano); Van de Linde et al., 2002 (sobre alguns países
chanan, 2006. europeus); Miller, 2002; Emerton, 2004 (sobre a Austrá-
25 Baseado no Orientalismo de Eduard Said (1978), lia); Boyne, 2004 (sobre a Alemanha); Krishnan, 2004
Akram (2000) identifica uma nova forma de estereoti- (sobre a Índia); Barr, 2004; Graham, 2005.
po, a que chama neo-Orientalismo e que afecta a ava- 27 Refiro-me aqui às regiões periféricas e semi-perifé-
liação metropolitana dos pedidos de asilo e refúgio ricas e aos países do sistema mundo moderno, que fo-
Para além do pensamento abissal: Das linhas globais a uma ecologia de saberes 651

seu pedido de obtenção do estatuto de refugia- de ser desenhada a uma distância tão curta
do numa dada sociedade metropolitana. quanto o necessário para garantir a segurança.
O colonial que regressa é de facto um novo O que costumava pertencer inequivocamente a
colonial abissal. Desta feita, o colonial retorna este lado da linha é agora um território confu-
não só aos antigos territórios coloniais mas so atravessado por uma linha abissal sinuosa.
também às sociedades metropolitanas. Aqui O muro da segregação israelita na Palestina
reside a grande transgressão pois o colonial do (Tribunal Internacional de Justiça, 2005) e a
período colonial clássico em caso algum pode- categoria de “combatente inimigo ilegal” (Dör-
ria entrar nas sociedades metropolitanas a não mann, 2003; Harris, 2003; Kanstroom, 2003; Hu-
ser por iniciativa do colonizador (como escra- man Rights Watch, 2004; Gill e Sliedregt, 2005),
vo, por exemplo). Os espaços metropolitanos criada pela administração dos EUA depois do
que se encontravam demarcados desde o início 11 de setembro, constituem possivelmente as
da modernidade Ocidental deste lado da linha metáforas mais adequadas da nova linha abis-
estão a ser invadidos ou trespassados pelo co- sal e da cartografia confusa a que conduz.
lonial. Mais ainda, o colonial demonstra um Uma cartografia confusa não pode deixar
nível de mobilidade imensamente superior à de conduzir a práticas confusas. A regulação/
mobilidade dos escravos em fuga (David, 1924; emancipação é cada vez mais desfigurada pela
Tushnet, 1981: 169-188). Nestas circunstâncias, presença e crescente pressão da apropriação/
o abissal metropolitano vê-se confinado a um violência no seu interior. Contudo, nem a pres-
espaço cada vez mais limitado e reage remar- são nem o desfiguramento podem ser comple-
cando a linha abissal. Na sua perspectiva, a tamente percebidos, precisamente pelo facto
nova intromissão do colonial tem de ser con- de o outro lado da linha ter sido desde o início
frontada com a lógica ordenadora da apropria- incompreensível como um território sub-huma-
ção/violência. Chegou ao fim o tempo de uma no28. De formas distintas, o terrrorista e o tra-
divisão clara entre o Velho e o Novo Mundo,
entre o metropolitano e o colonial. A linha tem
28 Como exemplo, os profissionais legais são solici-
tados a acomodar a pressão proveniente da reorgani-
ram denominados de Terceiro Mundo, após a Segunda zação da doutrina convencional, alterando regras de
Guerra Mundial (Santos, 1995: 506-519). interpretação, redefinindo o objectivo dos princípios
652 Boaventura de Sousa Santos

balhador imigrante indocumentado são ambos os direitos democráticos sob o pretexto da sua
ilustrativos da pressão da lógica da apropria- salvaguarda ou mesmo expansão30.
ção/violência e da inabilidade do pensamento De forma mais ampla, parece que a moder-
abissal para se aperceber desta pressão como nidade Ocidental só poderá expandir-se global-
algo estranho à regulação/emancipação. Cada mente na medida em que viole todos os princí-
vez se torna mais evidente que a legislação anti- pios sobre os quais fez assentar a legitimidade
-terrorista já mencionada e que se encontra em histórica do paradigma da regulação/emanci-
promulgação em muitos países, seguindo a re- pação deste lado da linha. Direitos humanos
solução do Conselho de Segurança das Nações são desta forma violados para poderem ser
Unidas29 e sob forte pressão da diplomacia dos defendidos, a democracia é destruída para ga-
EUA, esvazia o conteúdo civil e político dos rantir a sua salvaguarda, a vida é eliminada em
direitos e garantias básicas das Constituições nome da sua preservação. Linhas abissais são
nacionais. Porque tudo isto ocorre sem uma traçadas tanto no sentido literal como metafó-
suspensão formal destes direitos e garantias, rico. No sentido literal, estas são as linhas que
estamos perante a emergência de uma nova definem as fronteiras como vedações31 e cam-
forma de Estado, o Estado de excepção, que, pos de morte, dividindo as cidades em zonas
contrariamente às antigas formas de Estado de civilizadas (gated communities32 em número
sítio ou de Estado de emergência, restringem sempre crescente) e zonas selvagens, e prisões

e hierarquias entre eles. Um exemplo revelador é o 30 Utilizo o conceito de estado de excepção para ex-
debate sobre a constitucionalidade da cultura en- pressar a condição legal-política na qual a erosão dos
tre Alan Dershowitz e os seus críticos. Ver Dersho- direitos civis e políticos ocorre abaixo do radar da
witz, 2002, 2003a, 2003b; Posner 2002; Kreimer, 2003; Constituição, isto é, sem a suspensão desses direitos,
Strauss, 2004. como acontece quando é declarado o estado de emer-
29 Resolução 1566 do Conselho de Segurança das Na- gência. Ver Scheppele, 2004b; Agamben, 2004.
ções Unidas. Esta resolução anti-terrorismo foi adopta- 31 Um bom exemplo da lógica legal abissal subjacente
da a 8 de outubro de 2004, na sequência da resolução à construção de uma vedação separando a fronteira dos
1373 que por sua vez foi adoptada como resposta aos EUA do México pode ver-se em Glon, 2005.
ataques terroristas de 11 de setembro nos EUA. Para
32 Sobre condomínios fechados, ver Blakely e Snyder,
uma análise detalhada do processo de adopção da reso-
1999; Low, 2003; Atkinson e Blandy, 2005; Coy, 2006.
lução 1566, ver Saul, 2005.
Para além do pensamento abissal: Das linhas globais a uma ecologia de saberes 653

entre locais de detenção legal e locais de des- regulação social e os serviços públicos são pri-
truição brutal e sem lei da vida33. vatizados. Poderosos actores não estatais ad-
O outro lado do movimento principal em quirem desta forma controlo sobre as vidas e
curso é o regresso do colonizador. Implica o o bem estar de vastas populações, seja o con-
ressuscitar de formas de governo colonial, tan- trole dos cuidados de saúde, da terra, da água
to nas sociedades metropolitanas, agora inci- potável, das sementes, das florestas ou da qua-
dindo sobre a vida dos cidadãos comuns, como lidade ambiental. A obrigação política que liga-
nas sociedades anteriormente sujeitas ao co- va o sujeito de direito ao Rechtstaat, o Estado
lonialismo Europeu. A expressão mais salien- constitucional moderno, que tem prevalecido
te deste movimento é o que eu designo como deste lado da linha, está a ser substituída por
nova forma de governo indirecto34. Emerge em obrigações contratuais privadas e despolitiza-
muitas situações quando o Estado se retira da das nas quais a parte mais fraca se encontra
mais ao menos à mercê da parte mais forte.
Esta forma de governo apresenta algumas se-
33 Ver Amann, 2004a, 2004b; Brown, 2005. Um novo melhanças perturbadoras com o governo da
relatório pelo Comité Parlamentar Temporário Euro- apropriação/violência que prevaleceu do outro
peu sobre a actividade ilegal da CIA na Europa (no-
vembro, 2006) mostra como os governos europeus lado da linha.
actuaram como facilitadores dos abusos da CIA, tais Tenho descrito esta situação como a ascen-
como a detenção secreta e a tortura. Esta investigação são do fascismo social, um regime social de re-
à margem da lei envolveu 1,245 de voos e aterragens lações de poder extremamente desiguais que
de aviões da CIA na Europa (alguns deles envolvendo
concedem à parte mais forte o poder de veto
transporte de prisioneiros) e a criação de centros de
detenção secreta na Polónia, Roménia e provavelmente sobre a vida e o modo de vida da parte mais
também na Bulgária, Ucrânia, Macedónia e Kosovo. fraca. Noutro lugar distingui cinco formas de
34 O governo indirecto foi uma forma de política colo- fascismo social35. A primeira forma é o fascis-
nial europeia largamente praticada nas antigas colónias mo do apartheid social. Trata-se da segrega-
britânicas, onde as estruturas tradicionais de poder lo-
cal, ou pelo menos uma parte delas, foram incorpora-
das na administração colonial estatal. Ver Lugard, 1929; 35 Analiso em detalhe a emergência do fascismo so-
Perham, 1934; Malinowski, 1945; Furnivall, 1948; Morris cial como consequência da quebra da lógica do contra-
e Read, 1972; Mamdani, 1996, 1999. to social em Santos, 2002: 447-458 e 2006b: 295-316.
654 Boaventura de Sousa Santos

ção social dos excluídos através de uma car- mais onerosas e despóticas que sejam. O pro-
tografia urbana dividida em zonas selvagens e jecto neoliberal de transformar o contrato de
zonas civilizadas. As zonas selvagens urbanas trabalho num contrato de direito civil como
são as zonas do estado de natureza hobbesia- qualquer outro configura uma situação de
no, zonas de guerra civil interna como em mui- fascismo contratual. Como mencionei acima,
tas megacidades em todo Sul Global. As zonas esta forma de fascismo ocorre hoje frequente-
civilizadas são as zonas do contrato social e mente nas situações de privatização dos ser-
vivem sob a constante ameaça das zonas selva- viços públicos, da saúde, da segurança social,
gens. Para se defenderem, transformam-se em electricidade e água, et cetera36. Nestes casos,
castelos neofeudais, os enclaves fortificados o contrato social que presidiu a produção de
que caracterizam as novas formas de segre- serviços públicos no Estado-Providência e
gação urbana (cidades privadas, condomínios no Estado desenvolvimentista é reduzido ao
fechados, gated communities, como mencio- contrato individual do consumo de serviços
nei acima). A divisão entre zonas selvagens privatizados. À luz das deficiências por vezes
e zonas civilizadas está a transformar-se num chocantes da regulação pública, esta redução
critério geral de sociabilidade, um novo espa- preconiza a eliminação do âmbito contractu-
ço-tempo hegemónico que atravessa todas as al de aspectos decisivos para a protecção dos
relações sociais, económicas, políticas e cultu- consumidores, aspectos que, por esta razão,
rais e que por isso é comum à acção estatal e à se tornam extracontratuais e ficam à mercê
acção não estatal.
A segunda forma é o fascismo contratu-
al. Ocorre nas situações em que a diferença 36 Um dos exemplos mais dramáticos é a privatização
da água e as consequências sociais daí resultantes. Ver
de poder entre as partes no contrato de di-
Bond, 2000 e Buhlungu et al., 2006 (para o caso da Áfri-
reito civil (seja ele um contrato de trabalho ca do Sul); Oliveira Filho, 2002 (para o caso do Brasil);
ou um contrato de fornecimento de bens ou Olivera, 2005 e Flores, 2005 (para o caso da Bolívia);
serviços) é de tal ordem que a parte mais Bauer, 1998 (para o caso do Chile); Trawick, 2003 (para
fraca, vulnerabilizada por não ter alternati- o caso do Peru); Castro, 2006 (para o caso do México).
Sobre dois ou mais casos, ver Donahue e Johnston,
va ao contrato, aceita as condições que lhe
1998; Balanyá et al 2005; Conca, 2005; Lopes, 2005. Ver
são impostas pela parte mais poderosa, por também Klare, 2001; Hall, Lobina e de la Motte, 2005.
Para além do pensamento abissal: Das linhas globais a uma ecologia de saberes 655

da benevolência das empresas. Ao assumirem conflitos armados encontram-se também sub-


valências extracontratuais, as agências priva- metidas ao fascismo territorial37.
das de serviços assumem as funções de re- A quarta forma de fascismo social é o fascis-
gulação social anteriormente exercidas pelo mo da insegurança. Trata ‑se da manipulação
Estado. Este, implícita ou explicitamente, discricionária da insegurança das pessoas e
subcontrata a estas agências para-estatais o grupos sociais vulnerabilizados pela precarie-
desempenho dessas funções e, ao fazê-lo sem dade do trabalho, ou por acidentes ou aconte-
a participação efectiva nem o controle dos cimentos desestabilizadores, produzindo ‑lhes
cidadãos, torna-se conivente com a produção elevados níveis de ansiedade e de insegurança
social de fascismo contratual. quanto ao presente e ao futuro, de modo a fazer
A terceira forma de fascismo social é o fas- baixar o horizonte de expectativas e a criar a
cismo territorial. Existe sempre que actores disponibilidade para suportar grandes encar-
sociais com forte capital patrimonial retiram gos para obter reduções mínimas dos riscos e
ao Estado o controle do território onde actu- da insegurança.
am ou neutralizam esse controle, cooptando No domínio deste fascismo, o lebensraum
ou violentando as instituições estatais e exer- dos novos führers é a intimidade das pesso-
cendo a regulação social sobre os habitantes as e a sua ansiedade e insegurança quanto ao
do território sem a participação destes e con- presente e ao futuro de si próprias e de suas
tra os seus interesses. Na maioria dos casos, famílias nas áreas básicas da sobrevivência
estes constituem os novos territórios coloniais e da qualidade de vida. Opera pelo acciona-
privados dentro de Estados que quase sempre mento duplo de ilusões retrospectivas e de
estiveram sujeitos ao colonialismo Europeu. ilusões prospectivas, e é hoje particularmente
Sob diferentes formas, a usurpação original de saliente no domínio da privatização das políti-
terras como prerrogativa do conquistador e a cas sociais da saúde, da segurança social, da
subsequente “privatização” das colónias en- educação e da habitação. As ilusões retros-
contram-se presentes na reprodução do fascis- pectivas consistem em acentuar a memória da
mo territorial e, mais geralmente, nas relações
entre terratenientes e camponeses sem terra.
37 Para o caso da Colômbia, ver Santos e García Ville-
As populações civis residentes em zonas de gas, 2001.
656 Boaventura de Sousa Santos

ineficácia dos serviços públicos encarregados que o seu tempo ‑espaço é o mais refractário a
de executar essas políticas, o que em muitos qualquer intervenção democrática. Significati-
países não é tarefa difícil, ainda que o desen- va é, a este respeito, a resposta do corrector da
cadear desta ilusão só seja possível através de bolsa de valores quando lhe perguntavam o que
comparações enviesadas entre condições reais era para ele o longo prazo: “longo prazo para
de produção dos serviços e critérios ideais de mim são os próximos dez minutos”.
avaliação dos serviços produzidos. Por sua vez, Este espaço‑tempo virtualmente instantâneo
as ilusões prospectivas visam criar horizontes e global, combinado com a lógica de lucro espe-
de segurança produzidos no sector privado culativo que o sustenta, confere um imenso po-
inflacionados pela ocultação de certos riscos der discricionário ao capital financeiro, pratica‑
e pela ocultação das condições de prestação mente incontrolável apesar de suficientemente
de segurança. Tais ilusões prospectivas proli- poderoso para abalar, em segundos, a economia
feram hoje sobretudo nos seguros de saúde e real ou a estabilidade política de qualquer país
nos fundos de pensões privados. A quarta for- de que temos experiência recente e dramática
ma de fascismo social é o fascismo financeiro. em Portugal. De cada cem dólares que circulam
É talvez a forma mais virulenta de sociabilida- diariamente no globo, noventa e oito pertencem
de fascista e aquela que nos dias hoje mais nos a esta economia de casino e apenas dois à eco-
atinge. É o fascismo que comanda os mercados nomia real. A discricionariedade no exercício do
financeiros de valores e de moedas, a especula- poder financeiro é virtualmente total e as con-
ção financeira global, um conjunto hoje desig- sequências para os que são vítimas dele — por
nado por economia de casino. Esta forma de vezes, povos inteiros — podem ser arrasadoras.
fascismo social é a mais pluralista na medida A virulência do fascismo financeiro reside em
em que os movimentos financeiros são o pro- que ele, sendo de todos o mais internacional, está
duto de decisões de investidores individuais ou a servir de modelo e de critério operacional a no-
institucionais espalhados por todo o mundo e, vas instituições de regulação mundial. Vou men-
aliás, sem nada em comum senão o desejo de cionar apenas algumas: as agências de notação,
rentabilizar os seus valores. Por ser o mais plu- das empresas internacional‑ mente acreditadas
ralista é também o fascismo mais virulento por- para avaliar a situação financeira dos Estados e
Para além do pensamento abissal: Das linhas globais a uma ecologia de saberes 657

os consequentes riscos e oportunidades que eles desiguais, que conduzem a formas de exclusão
oferecem aos investidores internacionais. As no- particularmente severas e potencialmente ir-
tas atribuídas são determinantes para as condi- reversíveis. Estas formas de exclusão existem
ções em que um país ou uma empresa de um país tanto dentro das sociedades nacionais como
pode aceder ao crédito internacional. Estas em- nas relações entre os países.
presas têm um poder extraordinário. Apesar de O fascismo social é a nova forma do estado
conhecido apologista da globalização, Thomas de natureza e prolifera à sombra do contrato
Friedman, jornalista do New York Times, alerta social sob duas formas: pós-contratualismo e
para o facto de que “o mundo do pós‑guerra fria pré-contratualismo. O pós-contratualismo é o
tem duas superpotências, os Estados Unidos da processo pelo qual grupos e interesses sociais
América e a agência Moody’s” — uma das agên- até agora incluídos no contrato social são dele
cias de rating, junto da Securities and Exchange excluídos sem qualquer perspectiva de regresso:
Commission; as outras são Standard and Poor’s, trabalhadores e classes populares são expulsos
Fitch Ratings e Duff and Phelps. Friedman justi- do contrato social através da eliminação dos
fica esta afirmação acrescentando que “se é ver- seus direitos sociais e económicos, tornando-se
dade que os Estados unidos da América podem assim populações descartáveis. O pré-contratu-
aniquilar um inimigo utilizando o seu arsenal mi- alismo consiste no bloqueamento do acesso à
litar, a agência de qualificação financeira Moody’s cidadania a grupos sociais que anteriormente se
tem poder para estrangular financeiramente um consideravam candidatos à cidadania e tinham a
país, atribuindo ‑lhe uma má nota” (Warde, 1997: expectativa fundada de a ela aceder: por exem-
10‑11). O poder discricionário destas empresas plo, a juventude urbana habitante dos guetos das
é tanto maior quanto lhes assiste a prerrogativa megacidades do Norte Global e do Sul Global38.
de atribuírem qualificações não solicitadas pelos Como regime social, o fascismo social pode
países ou devedores visados. coexistir com a democracia política liberal. Em
Em todas as suas formas, o fascismo social vez de sacrificar a democracia às exigências do
é um regime que se caracteriza por relações so-
ciais e experiências de vida submetidas a rela-
ções e intercâmbios de poder extremadamente 38 Uma análise eloquente pode ser encontrada em
Wilson, 1987.
658 Boaventura de Sousa Santos

capitalismo global, trivializa a democracia até as coisas, sendo que este último incluía tanto
ao ponto de não ser necessário, nem sequer as coisas humanas, como as não-humanas. A
conveniente, sacrificar a democracia para pro- segunda grande transformação da propriedade
mover o capitalismo. Trata-se, pois, de um fas- tem lugar, muito além da produção, quando a
cismo pluralista e, por isso, de uma forma de propriedade de serviços se torna uma forma
fascismo que nunca existiu. De facto, é minha de controlar as pessoas que deles necessitam
convicção que podemos estar a entrar num pe- para sobreviver. Usando a caracterização do
ríodo em que as sociedades são politicamente governo colonial em Africa proposta por Ma-
democráticas e socialmente fascistas. mdani (1996: Cap. 2) o novo governo indirecto
As novas formas de governo indirecto cons- promove uma forma de despotismo descen-
tituem também a segunda grande transforma- tralizado. O despotismo descentralizado não
ção da propriedade e do direito de propriedade choca com a democracia liberal, antes a torna
da era moderna. A propriedade, e mais especifi- progressivamente mais irrelevante para a qua-
camente a propriedade dos territórios do Novo lidade de vida de populações cada vez vastas.
Mundo, foi, como mencionei inicialmente, o Sob as condições do novo governo indirecto,
ponto chave subjacente ao estabelecimento o pensamento abissal moderno, mais do que
das linhas abissais modernas. A primeira trans- regular os conflitos sociais entre cidadãos, é
formação teve lugar quando a propriedade so- solicitado a suprimir conflitos sociais e a rati-
bre as coisas se expandiu, com o capitalismo, ficar a impunidade deste lado da linha, como
à propriedade sobre os meios de produção. sempre sucedeu do outro lado da linha. Pres-
Como Karl Renner (1965) tão bem descreveu, sionado pela lógica da apropriação/violência,
o proprietário das máquinas transformou-se no o próprio conceito de direito moderno — uma
proprietário da força de trabalho dos trabalha- norma universalmente válida emanada do Es-
dores que nelas operavam. O controlo sobre tado e por ele imposta coercivamente se neces-
as coisas transformou-se em controlo sobre sário — encontra-se assim em mudança. Como
as pessoas. Claro que Renner desvalorizou o exemplo das mudanças conceptuais em curso
facto de esta transformação não ter ocorrido está a emergir um novo tipo de direito que eu-
nas colónias, uma vez que o controlo sobre as femisticamente se denomina “direito mole”
pessoas era a forma original de controlo sobre
Para além do pensamento abissal: Das linhas globais a uma ecologia de saberes 659

soft law39. Apresentado como a manifestação sido recomendada às multinacionais metropo-


mais benevolente do ordenamento regulação/ litanas na subcontratação de serviços às “suas”
emancipação, traz consigo a lógica da apro- sweatshops em todo o mundo40. A plasticidade
priação/violência sempre que estejam envolvi- da soft law apresenta semelhanças intrigantes
das relações muito desiguais de poder. Trata-se com o direito colonial, cuja aplicação depen-
de um direito cujo cumprimento é voluntário. dia mais da vontade do colonizador do que de
Sem surpresa, tem vindo a ser usado, entre ou- qualquer outra coisa41. As relações sociais que
tros domínios sociais, no campo das relações regula são, se não um novo estado de natureza,
capital/trabalho, e a sua versão mais consegui- uma zona intermédia entre o estado de nature-
da são os códigos de conduta cuja adopção tem za e a sociedade civil, onde o fascismo social
prolifera e floresce.
Em suma, o pensamento abissal moderno,
39 Uma vasta literatura tem vindo a ser produzida nos que, deste lado da linha tem vindo a ser cha-
últimos anos teorizando e estudando empiricamente mado para regular as relações entre cidadãos
novas formas de governo da economia que assentam e entre estes e o Estado, é agora chamado, nos
na colaboração entre actores não-estatais (firmas, or- domínios sociais sujeitos uma maior pressão
ganizações cívicas, ONGs, sindicatos, etc.) em lugar
por parte da lógica da apropriação/violência, a
da regulação estatal de cima para baixo. Apesar da va-
riedade de designações sob as quais os cientistas so- lidar com os cidadãos como se fossem não-ci-
ciais e académicos do direito têm vindo a prosseguir dadãos, e com não-cidadãos como se se tratas-
esta abordagem, a ênfase recaí mais “moleza” que na sem de perigosos selvagens coloniais. Como
dureza, na obediência voluntária mais que na impo- o fascismo social coexiste com a democracia
sição: “regulação responsiva” (Ayres e Braithwaite,
1992), “lei pós-regulatória” (Teubner, 1986), “lei mole”
liberal, o Estado de excepção coexiste com a
(Snyder 1993, 2002; Trubek e Mosher 2003; Trubek e
Trubek, 2005; Morth, 2004), “experimentalismo demo-
crático” (Dorf e Sabel 1998; Unger 1998), “governação 40 Ver Rodriguez-Garavito 2005 e a bibliografia aí citada.
cooperativa” (Freeman, 1997), “regulação outsourced” 41 Este tipo de lei é eufemisticamente denominada
(O’Rourke 2003) ou simplesmente “governação” (Mac soft por ser soft com aqueles cujo comportamento em-
Neil, Sargent e Swan 2000; Nye e Donahue 2000). Para preendedor era suposto regular (empregadores) e dura
uma crítica, ver Santos e Rodriguez-Garavito 2005: 1-26 com aqueles que sofrem as consequências do seu não-
e 29-63; Rodriguez-Garavito, 2005: 64-91. -cumprimento (trabalhadores).
660 Boaventura de Sousa Santos

normalidade constitucional, a sociedade civil Existirão as condições que, se devidamente


coexiste com o estado de natureza, o governo aproveitadas, poderão dar-lhe uma chance? A
indirecto coexiste com o primado do direito. investigação sobre estas condições explica a
Longe de constituir a perversão de alguma re- minha especial atenção ao contra-movimento
gra normal, fundadora, este estado de coisas é que mencionei acima resultante do abalo que
o projecto original da moderna epistemologia as linhas abissais globais têm vindo a sofrer
e legalidade, mesmo que a linha abissal que desde 1970 e 1980.
desde o primeiro momento distinguiu o metro- O pensamento pós-abissal parte do reco-
politano do colonial se tenha deslocado, trans- nhecimento de que a exclusão social no seu
formando o colonial numa dimensão interna sentido mais amplo toma diferentes formas
do metropolitano. dependendo se é determinada por uma li-
nha abissal ou não abissal, e que, enquanto
Conclusão: para a exclusão abissalmente definida persistir,
um pensamento pós-abissal não será possível qualquer alternativa pós-
À luz do que foi dito anteriormente, ficamos -capitalista progressista. Durante um período
com a ideia de que, a menos que se defronte de transição possivelmente longo, confrontar
com uma resistência activa, o pensamento abis- a exclusão abissal será um pré-requisito para
sal continuará a auto-reproduzir-se, por mais abordar de forma eficiente as muitas formas
excludentes que sejam as práticas que origina. de exclusão não-abissal que têm dividido o
Assim, a resistência política deve ter como pos- mundo moderno deste lado da linha. Uma
tulado a resistência epistemológica. Como foi concepção pós-abissal de marxismo (em si
dito inicialmente, não existe justiça social glo- mesmo, um bom exemplo de pensamento
bal sem justiça cognitiva global. Isto significa abissal) pretende que a emancipação dos
que a tarefa crítica que se avizinha não pode trabalhadores seja conquistada em conjunto
ficar limitada à geração de alternativas. Ela re- com a emancipação de todas as populações
quer, de facto, um pensamento alternativo de descartáveis do Sul Global, que são oprimidas
alternativas. É preciso um novo pensamento, mas não directamente exploradas pelo capi-
um pensamento pós-abissal. Será possível? talismo global. Da mesma forma, reivindica
Para além do pensamento abissal: Das linhas globais a uma ecologia de saberes 661

que os direitos dos cidadãos não estarão se- em termos não-derivativos significa pensar a
guros enquanto os não-cidadãos sofrerem um partir da perspectiva do outro lado da linha,
tratamento sub-humano42. precisamente por o outro lado da linha ser o
O reconhecimento da persistência do pensa- domínio do impensável na modernidade oci-
mento abissal é assim a conditio-sine-qua-non dental. A emergência do ordenamento da apro-
para começar a pensar e a agir para além dele. priação/violência só poderá ser enfrentada se
Sem este reconhecimento, o pensamento críti- situarmos a nossa perspectiva epistemológica
co permanecerá um pensamento derivativo que na experiência social do outro lado da linha,
continuará a reproduzir as linhas abissais, por isto é, do Sul Global não imperial, concebido
mais anti-abissal que se auto-proclame. Pelo como a metáfora do sofrimento humano sisté-
contrário, o pensamento pós-abissal é um pen- mico e injusto provocado pelo capitalismo glo-
samento não derivativo, envolve uma ruptura bal e pelo colonialismo (Santos, 1995: 506-519).
radical com as formas ocidentais modernas de O pensamento pós-abissal pode ser sumariado
pensamento e acção. No nosso tempo, pensar como um aprender com o Sul usando uma epis-
temologia do Sul. A partir daí, é possível lutar
por um cosmopolitismo insurgente subalterno
42 Gandhi é provavelmente o pensador-activista dos baseado numa razão cosmopolita subalterna.
tempos modernos que mais consistentemente pensou O uso do termo “cosmopolitismo” para
e actuou em termos não-abissais. Tendo vivido e expe-
descrever a resistência global contra o pen-
rienciado as exclusões radicais típicas do pensamento
abissal, Gandhi não se desviou do seu propósito de samento abissal pode parecer inadequado se
construir uma nova forma de universalidade capaz de consideramos a sua ascendência modernista e
libertar tanto o opressor como a vítima. Como Ashis ocidental43. A ideia de cosmopolitismo, como
Nandy reafirma correctamente: “A visão Gandhiana de-
safia a tentação de igualar o opressor na violência e de
readquirir uma auto-estima própria como competidor
num mesmo sistema. A visão constrói uma identifica- 43 Não me ocupo aqui dos debates actuais sobre o cos-
ção com um opressor que exclui a fantasia da superiori- mopolitismo. Na sua longa história, cosmopolitismo sig-
dade do estilo de vida do opressor, tão profundamente nificou universalismo, tolerância, patriotismo, cidadania
enraízado na consciência daqueles que pretendem falar global, comunidade global de seres humanos, culturas
em nome das vítimas da história” (1987: 35). globais, etc. O que ocorre mais frequentemente quando
este conceito é aplicado — seja como instrumento espe-
662 Boaventura de Sousa Santos

o universalismo, a cidadania do mundo e a re-


cusa das fronteiras políticas e territoriais, tem
cífico para descrever uma realidade ou como instrumen- una larga tradição na cultura ocidental, desde
to em lutas políticas — é que a incondicional natureza
a lei cósmica de Pitágoras e a philallelia de
inclusiva da sua formulação abstracta tem vindo a ser
utilizada para prosseguir interesses excludentes de um Demócrito, ao Homo sum, humani nihil a
grupo social específico. De certo modo, o cosmopolitis- me alienum puto de Terêncio, da res publica
mo tem sido privilégio daqueles que podem tê-lo. A for- christiana dos humanistas do Renascimento,
ma como revisito este conceito prevê a identificação dos e de Voltaire, para quem “para ser um bom pa-
grupos cujas aspirações são negadas ou tornadas invisí-
veis pelo uso hegemónico do conceito, mas que podem
triota, é necessário converter-se em inimigo do
ser beneficiados pelo uso alternativo do mesmo. Para- resto do mundo” (2002, pág. 145), ao interna-
fraseando Stuart Hall, que levantou uma questão seme- cionalismo da classe operária. Esta tradição
lhante em relação ao conceito de identidade (1996), eu ideológica esteve muitas vezes ao serviço do
pergunto: quem precisa do cosmopolitismo? A resposta expansionismo, do colonialismo e do imperia-
é simples: todo aquele que for vítima de intolerância e
discriminação necessita de tolerância; todo aquele a
lismo europeus, os mesmos processos históri-
quem seja negada a dignidade humana básica necessita cos que hoje geram localismos globalizados e
de uma comunidade de seres humanos; todo aquele que globalismos localizados. Por outro lado, o cos-
seja não-cidadão necessita da cidadania mundana numa mopolitismo insurgente subalterno refere-se à
dada comunidade ou nação. Em suma, os socialmente aspiração dos grupos oprimidos a organizar a
excluídos, vítimas da concepção hegemónica de cosmo-
politismo, necessitam de um tipo diverso de cosmopo- sua resistência e consolidar alianças políticas
litismo. O cosmopolitismo subalterno constitui, deste à mesma escala que os opressores empregam
modo, uma variante de oposição. Da mesma forma que a para os oprimir, ou seja, a escala global. O cos-
globalização neoliberal não reconhece quaisquer formas mopolitismo insurgente também é distinto do
alternativas de globalização, também o cosmopolitismo
que invoca Marx, no sentido da universalidade
sem adjectivos nega a sua própria especificidade. O cos-
mopolitismo subalterno de oposição é uma forma cul-
tural e política de globalização contrahegemónica. É o
nome dos projectos emancipatórios cujas reivindicações co (Appiah, 1998), cosmopolitismo vernáculo (Bhabha,
e critérios de inclusão social vão além dos horizontes do 1996; Diouf, 2000), etnicidade cosmopolita (Werbner,
capitalismo global. Outros, com preocupações similares, 2002), ou cosmopolitismo das classes trabalhadoras
também adjectivaram o cosmopolitismo: cosmopolitis- (Wrebner, 1999). Sobre formas distintas de cosmopolitis-
mo enraizado (Cohen, 1992), cosmopolitismo patrióti- mo, ver Breckeridge et al. (orgs.), 2002.
Para além do pensamento abissal: Das linhas globais a uma ecologia de saberes 663

daqueles que, subordinados pelo capitalismo, Bibliografia


não tem nada que perder além das suas grilhe- Afzal-Khan, F. e Sheshadri-Crooks, K. 2000
tas: a classe operária. Para além da classe ope- The Pre-occupation of Postcolonial Studies
rária descrita por Marx, as classes oprimidas (Durham: Duke University Press).
do mundo de hoje não se podem englobar na Agamben, G. 2004 State of Exception
categoria da “classe que não tem nada a perder (Chicago: University of Chicago Press).
além das suas grilhetas”. O cosmopolitismo in- Ahmad, I. M. Al-Najdi 1971 Arab Navigation
surgente incluí vastas populações do mundo in the Indian Ocean Before the Coming
que nem sequer são suficientemente úteis ou of the Portuguese: Being a translation
estão suficientemente capacitadas para “ter of Kitab al-Fawa’id fi usul al-bahr
grilhetas”, ou seja, para serem exploradas di- wa’lqawa’id of Ahmad b. Majid Al-
retamente pelo capital. O objetivo desse cos- Najdi, together with an introduction on
mopolitismo é unir os grupos sociais sobre the history of Arab navigation, notes
uma base tanto de classe como de não classe, on the navigational techniques and
às vítimas da exploração e às vítimas da ex- the topography of Indian Ocean, and a
clusão social, da discriminação sexual, étnica, glossary of Navigational terms by G. R.
racista e religiosa. Por esta razão, o cosmopo- Tibbetts (Londres: Royal Asiatic Society of
litismo insurgente não implica uniformidade, Great Britain and Ireland).
é uma teoria geral da emancipação social e do Akram, S. M. 1999 “Scheherezade Meets Kafka:
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11, Nº 1, pp. 183-200.
As identidades das crises*

O modo como se define uma crise e se iden-


tificam os factores que a causam tem um
papel decisivo na escolha de medidas que a su-
qualidade da sua especialização (não é a mes-
ma coisa vender sapatos ou vender aviões) e ao
facto de estar integrada num bloco económico
perem e na distribuição dos custos sociais que dotado de uma moeda excessivamente forte
estas possam causar. A luta pela definição da que favorece as economias mais desenvolvidas
crise é, assim, um acto iminentemente político do mesmo. No plano político-cultural, trata-se
e para esclarecer a sua natureza é preciso al- de um défice histórico na formação das elites
gum esforço analítico. Antes de mais, há que políticas, económicas e sociais causado por
fazer algumas distinções. A primeira diz res- um ciclo colonial excessivamente longo que
peito aos horizontes temporais de definição e permitiu durante demasiado tempo o recurso
de solução da crise. Portugal vive uma crise fi- a soluções fáceis para problemas difíceis e a
nanceira de curto prazo, uma crise económica saídas ilusórias para bloqueios reais. Como os
de médio prazo e uma crise político-cultural de três tempos se imbricam e com eles as crises
longo prazo. No plano financeiro, é a urgência que lhes correspondem, dar exclusiva atenção
do financiamento do Estado. No plano econó- a uma das crises pode tornar mais difícil a so-
mico, trata-se da falta de competitividade in- lução das outras. É o que ocorre actualmente:
ternacional da economia portuguesa devido à a solução da crise financeira vai agravar a crise
económica (impossibilidade de investimento e
crescimento) e prolongar a crise político-cultu-
* Extraído de Santos, B. de Sousa 2012 “As identida-
ral (a facilidade que as nossas elites tiveram en-
des das crises” in Portugal: Ensaio contra a autoflage-
lação (Coimbra: Almedina) pp. 21-29. quanto elites colonizadoras reproduz-se agora
678 Boaventura de Sousa Santos

na facilidade com que assumem o estatuto de ve crise energética e ambiental, tão profunda
elites colonizadas pela Europa desenvolvida). que aponta para uma crise civilizacional que o
As crises têm também diferentes horizontes transcende em muito, enquanto em África se
espaciais ou escalas para a sua definição e para vive intensamente a crise ambiental e alimen-
a sua superação: escalas nacionais, regionais tar e na Tunísia, Egipto e Líbia a crise política
e globais. O caso português ilustra exemplar- abala profundamente estes países. Dentro de
mente o modo como uma crise nacional, que cada país, as crises são vividas de modo distin-
na aparência se está a resolver a nível regio- to por diferentes classes ou grupos sociais. Em
nal (europeu), pode, de facto, estar a agravar África, na Índia e na América Latina os cam-
uma crise regional que, por sua vez, só será re- poneses estão a viver uma nova dimensão da
solúvel a nível global. À medida que as crises crise causada pelo novo interesse do capitalis-
financeiras alastrarem a mais países europeus mo global na compra de terra. Trata-se da aqui-
tornar-se-á claro que a crise é europeia e que sição massiva de terra por parte de empresas
decorre em boa parte de um sistema financei- multinacionais, agentes financeiros e mesmo
ro desregulado, controlado pelos interesses Estados estrangeiros que fazem tábua rasa dos
do capital financeiro norte-americano. Só uma direitos ancestrais dos camponeses e os expul-
regulação global, regional e nacional pode pôr sam do seu mundo rural. Por sua vez, os povos
fim a uma tão massiva predação financeira e a indígenas da América Latina têm contribuído
uma tão injusta distribuição dos seus custos. decisivamente nas duas últimas décadas para
Se tomarmos o mundo como unidade de dar visibilidade à dimensão civilizacional da
análise, constatamos que as crises estão global- crise, ou seja, para a concepção da crise global
mente relacionadas, mesmo que apresentem do capitalismo, não apenas como crise de um
diferentes facetas e diferentes intensidades em modo de produção, mas sobretudo como crise
diferentes países. As facetas são talvez mais de um modo de vida, de convivência e de re-
numerosas hoje que antes — crise financeira, lação com a natureza. Devemos ainda ter pre-
económica, política, ambiental, energética, ali- sente que o eclodir ou a intensificação de uma
mentar, civilizacional — e apresentam-se de certa faceta da crise pode produzir a ocultação
modo distinto nas diferentes regiões do mun- de outras facetas. Por exemplo, na última déca-
do. Por exemplo, o Japão vive hoje uma gra- da a Europa foi a parte do mundo desenvolvido
As identidades das crises 679

que mais atenção deu à crise ambiental; no mo- para resolver as crises. Assim, as soluções que
mento em que estalou a crise financeira nunca se apresentam como pretensamente únicas
mais se falou de crise ambiental e as propostas num país ou numa região podem ser postas em
de crescimento económico que hoje são feitas causa por soluções opostas que, para crises
contradizem o que há poucos anos parecia evi- afins, são propostas noutro país ou região e por
dente: que este tipo de crescimento conduz a vezes igualmente apresentadas como únicas.
breve prazo (segundo a ONU, 2015) a um aque- Um exemplo. Enquanto no Brasil de hoje as
cimento global irreversível. despesas com políticas sociais (educação, saú-
Acresce que, em cada país, a solução da cri- de, protecção social) são consideradas como
se para uns pode significar o seu agravamento um investimento que propicia o crescimento1.
para outros. Sempre que a crise é causada pelo na Europa tais despesas são sentidas como um
capital financeiro, a transparência da distribui- custo que impede o crescimento e como tal
ção dos custos e dos benefícios de uma dada devem ser reduzidas ao mínimo. Perante este
solução é particularmente evidente. Por exem- paradoxo, podemo-nos perguntar se estamos
plo, no dia seguinte ao pedido de ajuda finan- perante dois mundos diferentes ou se a social-
ceira externa por parte do governo português, -democracia desertou da Europa e emigrou
as cotações bolsistas dos bancos portugueses para o Brasil. Quem está errado? Podem os
subiram e, com elas, as expectativas de lucros dois estar certos? Mas, nesse caso, porque não
do sector bancário. Isto ocorreu no exacto mo- escolher a solução que cria bem-estar para as
mento em que se decretou o empobrecimento grandes maiorias em vez da que cria mal-estar?
da grande maioria dos portugueses. Esta diversidade mostra que todas as solu-
A diversidade das experiências de crise e ções têm alternativas e que toda a ausência
das soluções propostas combina-se hoje com de alternativa é produto de uma decisão polí-
o facto de vivermos num mundo muito mais
transparente para si próprio. A revolução das
tecnologias de informação e da comunicação 1 O Comunicado 75 do prestigiado IPEA (Instituto
torna possível um nível de interconhecimento de Pesquisa Económica Aplicada) de 3 de fevereiro de
2011 mostra de modo convincente que os gastos com
global que permite comparar experiências e
as políticas sociais têm sido uma alavanca para o cres-
mostrar a relatividade das soluções adoptadas cimento com distribuição de rendimento.
680 Boaventura de Sousa Santos

tica. Aliás, a mesma relatividade das soluções mudanças civilizacionais, é hoje vivida com um
se evidencia se, em vez de alargarmos o espa- carácter de urgência cuja solução implica me-
ço de análise, alargarmos o tempo de análise. didas imediatas, como sejam as que reduzem
Exemplo: a partir da década de 1930, o Estado as emissões de dióxido de carbono.
aumentou exponencialmente a sua interven- Quando eclode uma crise, nem o momento
ção na economia para garantir a eficiência e a nem os termos da crise são fortuitos. Nas socie-
estabilidade que os mercados por si não conse- dades capitalistas contemporâneas, atravessa-
guiam garantir, como ficou demonstrado com a das por profundas assimetrias e contradições,
Grande Depressão de 1929. Cinquenta anos de- quem causa uma dada crise tem normalmente
pois, com a emergência do neoliberalismo, pas- poder para definir os seus termos e consequen-
sou a vigorar, com o mesmo grau de evidência, temente para identificar, como únicas possí-
a ortodoxia oposta que são os mercados que veis, as soluções que lhe permitam sobreviver
garantem a eficiência e a estabilidade e que é o à crise e perpetuar o seu poder. Foi isto que
Estado que as impede. O Estado e os mercados aconteceu quando em 2008 eclodiu a crise fi-
podem ser simultaneamente os causadores das nanceira nos EUA, cujas repercussões continu-
crises e as suas soluções? Afinal, crises de quê amos a viver. Contrariamente aos que viram na
e de quem, soluções para quê e para quem? crise o fim do neoliberalismo e da supremacia
As mesmas precisões analíticas devem ser do capital financeiro sobre o capital produtivo,
feitas a respeito das soluções das crises. As a crise tem vindo a ser “resolvida” pelo mes-
escalas e os tempos das crises determinam as mo capital financeiro que a provocou e o seu
escalas e os tempos das soluções, mas a deter- motor principal, a Wall Street, está hoje mais
minação é complexa. Por exemplo, a crise am- forte e arrogante que antes. A luta política dos
biental, que é global e de longo prazo, é vivida próximos anos será uma luta pela redefinição
a nível local e é a esse nível que vão surgindo dos termos da crise e só na medida que esta
soluções inovadoras para a resolver, ainda ocorrer será possível punir, em vez de recom-
que saibamos que acabarão por ser ineficazes pensar, quem a provocou e encontrar soluções
se entretanto não forem tomadas medidas de que efectivamente a superem. É uma luta de
âmbito global. Por outro lado, a crise ambien- contornos imprevisíveis. Quando muito, é pos-
tal, uma crise de longo prazo que aponta para sível identificar horizontes de possibilidades e
As identidades das crises 681

as suas condições. Tal luta irá ocorrer a dois peu, o Estado Providência e o direito laboral).
níveis: na definição dos conteúdos e implica- Curiosamente, a correcção do capitalismo foi
ções sociais das soluções e na definição das possível devido à existência, no horizonte de
dinâmicas e instrumentos de intervenção que possibilidades, de um paradigma alternativo
serão mobilizados. de sociedade, o comunismo e o socialismo. A
No que respeita aos conteúdos e significa- ameaça credível de que ele pudesse vir a su-
dos políticos, as crises podem ser resolvidas plantar o capitalismo obrigou a manter algum
ou por correctivos eficazes que, sem porem em nível de racionalidade, sobretudo no centro do
causa a lógica do sistema que provocou a cri- sistema mundial. Extinta essa ameaça, não foi
se, conseguem minimizar os ritmos e os custos até hoje possível construir outro adversário
sociais desta, ou por via de transformações credível a nível global. Na Europa, a social-de-
profundas que visam mudar a lógica do siste- mocracia começou a ruir no dia em que caiu o
ma e criar um novo paradigma de organização Muro de Berlim.
social e política. A partir da obra fundamental Nos últimos trinta anos, o FMI, o Banco
de Marx e dos contributos, tão diversos entre Mundial, as agências de rating e a desregu-
si, de Schumpeter (1942) e de Karl Polanyi lação dos mercados financeiros têm sido as
(1944), é hoje consensual entre os economis- manifestações mais agressivas da pulsão irra-
tas e sociólogos políticos que o capitalismo cional do capitalismo. Têm surgido adversários
necessita de adversários credíveis que actuem credíveis a nível nacional (em muitos países da
como correctivos da sua tendência para a ir- América Latina) e, sempre que isso ocorre, o
racionalidade e para a auto-destruição, a qual capitalismo recua, retoma alguma racionalida-
lhe advém da pulsão para funcionalizar ou des- de e reorienta a sua pulsão irracional para ou-
truir tudo o que pode interpor-se no seu ine- tros espaços. Na Europa, a chamada Terceira
xorável caminho para a acumulação infinita Via2 foi um acto de rendição ao neoliberalismo
de riqueza, por mais anti-sociais e injustas que
sejam as consequências. Durante o século XX,
esse correctivo foi a ameaça do comunismo e 2 Logo que ascendeu ao poder em 1997, Tony Blair
apostou numa reforma, conhecida como Terceira Via,
foi a partir dela que, na Europa, se construiu
que prometia, por um lado, uma actualização da so-
a social-democracia (o modelo social euro- cial-democracia e a superação das visões de esquerda
682 Boaventura de Sousa Santos

e à desistência de procurar correctivos eficazes o capitalismo, volta abrir-se a opção de mudan-


contra a pulsão destrutiva do capitalismo. Isto ça civilizacional, a qual envolve igualmente a
explica em parte que os governos socialistas crítica ao socialismo e ao comunismo tal como
de três dos países em crise na Europa (Grécia, os conhecemos.
Portugal e Espanha) não tivessem nenhuma No que respeita às dinâmicas e instrumen-
defesa ante os ataques do capitalismo financei- tos de intervenção, há que distinguir entre so-
ro de que as suas economias foram alvo, nem luções institucionais e soluções extra-insti-
nada a propor que para além da lógica predado- tucionais. As primeiras são as que têm lugar
ra que lhes subjaz. Aliás, o fim da Terceira Via no âmbito do sistema político vigente e das
é um dos significados mais vincados da actual instituições administrativas do Estado sem al-
crise da Europa. Falhada a tentativa de civilizar terar o seu normal funcionamento. As segun-
das desafiam o quadro institucional existente,
operam por fora dele com o objectivo ou de o
do socialismo/comunismo esgotadas com o colapso
da URSS e o fim da Guerra Fria, e, por outro, uma
transformar em profundidade ou apenas de o
“humanização” do neoliberalismo de direita rema- forçar a tomar medidas que doutro modo não
nescente da era de Margaret Thatcher de 1979 a 1990 tomaria. Neste último caso, as soluções extra-
(que tivera sequência na gestão John Major, de 1990 -institucionais são um híbrido entre o insti-
a 1997). Com raízes teórico-ideológicas no conhecido tucional e o não-institucional e talvez fosse
sociólogo Anthony Giddens, o objectivo era conferir
um carácter social ao neoliberalismo, atenuando a de- melhor designá-las como para-institucionais.
sigualdade social que ele agravara através da desre- Enquanto as soluções institucionais operam
gulação económica e financeira, das privatizações, e no interior das instituições e segundo as ló-
dos cortes nas despesas sociais e promovendo novas gicas procedimentais que as caracterizam,
articulações entre o público e o privado mercantil e
as soluções extra-institucionais operam no
não mercantil (este último, chamado terceiro sector).
Desvalorizava a polaridade entre esquerda e direita, espaço público, na rua, mesmo quando o seu
fazia a apologia do cosmopolitismo centrado na globa- objectivo é apenas pressionar e não mudar
lização e preconizava uma mescla de universalização profundamente o quadro institucional vigen-
de valores e direitos, com respeito pelas diferenças de te. As soluções extra-institucionais são social-
cada sociedade que, no caso específico do Reino Uni-
mente mais dramáticas e politicamente mais
do, significava articular as lealdades atlânticas com as
da União Europeia. turbulentas e o recurso a elas tem, em geral,
As identidades das crises 683

lugar depois de as soluções institucionais te- tentes, levando-as a tomar decisões que doutro
rem fracassado. As periferias da Europa ilus- modo não seriam possíveis.
tram hoje o recurso aos diferentes tipos de Ter em mente a pluralidade das concep-
soluções. Falo de periferias no plural porque ções, dimensões e soluções das crises é par-
historicamente a Europa tem duas periferias, ticularmente importante no momento em que
unidas pelo Mediterrâneo, a periferia interna a tendência dominante será para atribuirmos
que vai da Grécia à Irlanda, passando por Itá- à situação que Portugal vive um carácter tão
lia, Portugal e Espanha, e a periferia externa específico que a torna incomparável com a de
que vai de Marrocos ao Egipto, passando pela outros países e para nos resignarmos ante as
Argélia, Tunísia e Líbia. Ambas as periferias soluções que nos são impostas por serem as
atravessam hoje períodos de grande crise. únicas que se adequam ao nosso caso. Obvia-
Neste momento, a periferia interna tenta re- mente que cada país e cada contexto tem a sua
solver as crises por via de soluções institucio- especificidade própria, mas no mundo crescen-
nais, enquanto a periferia externa recorre a temente globalizado em que vivemos não é crí-
soluções extra-institucionais na busca de uma vel que o que se passa intramuros se explique
nova institucionalidade. totalmente por dinâmicas internas, nem que
Existe uma relação não trivial entre os con- sejam estas a determinar em exclusivo as solu-
teúdos das soluções e os tipos de acção po- ções para as crises.
lítica colectiva mobilizada para as promover.
As soluções institucionais, por serem sisté- Bibliografia
micas, tendem a privilegiar ajustamentos ou IPEA 2011 “Gastos com a Política Social:
correcções, enquanto as soluções extra-insti- alavanca para o crescimento com
tucionais, por serem (em grau variável) anti- distribuição de renda” em IPEA, Nº 75, 3
-sistémicas, tendem a visar transformações de fevereiro. Disponível em <http://www.
mais profundas. ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/
Há ainda que referir as situações particular- comunicado/110203_comunicadoipea75.
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lizações extra-institucionais pressionam e, de ONU 2015 Climate Change 2014: Synthesis
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684 Boaventura de Sousa Santos

II and III to the Fifth Assessment Report


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Polanyi, K. 1944 The Great Transformation
(Boston: Beacon Press).
Schumpeter, J. 1942 Capitalism, Socialism and
Democracy (Nova Iorque: Harper and Row).
Sobre o autor

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS é pro- Entre suas últimas publicações, vale a pena no-
fessor catedrático aposentado de Sociologia tar: Portugal. Ensaio contra a autoflagelação
na Faculdade de Economia da Universidade (Coimbra, 2011), Se Deus fosse um ativista
de Coimbra (Portugal) e Distinguished Legal dos direitos humanos (São Paulo / Coimbra,
Scholar na Faculdade de Direito da Universida- 2013), A difícil democracia. Reinventar as es-
de de Wisconsin-Madison (EUA). querdas (São Paulo, 2016), As bifurcações da
Além disso, ele é diretor do Centro de Es- ordem. Revolução, cidade, campo e indigna-
tudos Sociais da Universidade de Coimbra e ção (São Paulo, 2017) e Justicia entre Saberes:
coordenador do Observatório Permanente da Epistemologías del Sur contra el Epistemici-
Justiça Portuguesa, na mesma universidade. dio (Madrid, 2017).
Sobre os organizadores

MARIA PAULA MENESES, investigadora co- JOÃO ARRISCADO NUNES é sociólogo, In-
ordenadora do Centro de Estudos Sociais da Uni- vestigador do Centro de Estudos Sociais e Pro-
versidade de Coimbra, licenciou-se em história na fessor Catedrático da Faculdade de Economia
Universidade de S. Petersburgo (Rússia), tendo- da Universidade de Coimbra. Membro do Con-
-se doutorado em antropologia pela Universidade selho Consultivo da Associação Portuguesa de
de Rutgers (EUA). Anteriormente foi professora Sociologia. Foi membro da coordenação do
da Universidade Eduardo Mondlane, tendo sido projeto “ALICE - Espelhos estranhos e lições
também investigadora do projeto “ALICE - Espe- imprevistas”, dirigido por Boaventura de Sou-
lhos estranhos e lições imprevistas”, coordenado sa Santos e financiado pelo European Resear-
por Boaventura de Sousa Santos. De entre as ch Council (2011-2016), e Pesquisador Visitan-
suas áreas de interesse incluem-se os debates so- te na Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), no
bre as transições políticas e epistemológicas em Rio de Janeiro (2011-2012). Os seus interesses
contextos (pós)coloniais a partir do desafio das de investigação atuais centram-se nas áreas
Epistemologias do Sul. A partir do seu trabalho dos estudos de ciência, tecnologia e conheci-
em Moçambique, Angola, Quénia e Timor-Leste mento, saúde global, práticas artísticas e saú-
procura documentar as narrativas silenciadas de de e direitos humanos, a partir da perspectiva
mulheres, com o objetivo de compreender a sua das Epistemologias do Sul.
participação na política local e a sua presença
nas representações nacionalistas.
688 Sobre os organizadores

CARLOS LEMA AÑÓN trabalha como pro- Sociais da Universidade de Coimbra, onde faz
fessor de Filosofia do Direito na Universidade parte do núcleo de estudos sobre Democracia,
Carlos III de Madrid. Licenciou-se e doutorou- Cidadania e Direito (DECIDe). Suas obras pro-
-se em Direito na Universidade da Coruña. É curam a renovação da filosofia política ociden-
membro do Instituto de Direitos Humanos tal a partir da perspectiva das lutas e alternati-
“Bartolomé de las Casas” e diretor do Doutora- vas forjadas na resistência popular.
do em Estudos Avançados em Direitos Huma-
nos da Universidade Carlos III. Suas publica- NILMA LINO GOMES é professora da Facul-
ções incluem Apogeo y crisis de la ciudadanía dade de Educação da UFMG. É pedagoga, mes-
de la salud (2012), Salud, Justicia, Derecho tra em Educação pela FAE/UFMG, doutora em
(2009); Antes de Beatriz. Cuestiones de legiti- Antropologia Social pela USP, pós doutora em
midad y regulación jurídica en la selección de Sociologia pela Universidade de Coimbra e em
sexo (2003) e Reproducción, Poder y Derecho Educação pela UFSCAR. É investigadora asso-
(1999). Atualmente, ele está trabalhando em ciada do Centro de Estudos Sociais da Univer-
uma reconsideração sócio-legal da noção de sidade de Coimbra. Foi reitora pró-tempore da
direito à saúde a partir de uma perspectiva que Universidade da Integração Internacional da
leve em consideração os determinantes sociais Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), ministra
da saúde e as desigualdades socioeconômicas. da Igualdade Racial e das Mulheres, da Igualda-
de Racial, da Juventude e dos Direitos Huma-
ANTONI AGUILÓ BONET é filósofo político. nos do governo da presidenta legitimamente
Licenciou-se em Filosofia, obteve o Diploma eleita Dilma Rousseff. Tem trabalhos realiza-
de Estudos Avançados em Filosofia do Direito, dos nas áreas da formação de professores para
Moral e Política e obteve o doutorado cum lau- a diversidade étnico-racial, relações raciais,
de em Ciências Sociais e Humanas na Univer- de gênero e diversidade cultural, movimentos
sidad de las Islas Baleares com uma tese sobre sociais e educação, com ênfase na atuação do
os processos de globalização, a democracia Movimento Negro.
radical e a ideia de emancipação humana na
teoria social e política de Boaventura de Sousa
Santos. É investigador do Centro de Estudos
O s trabalhos de Boaventura, reunidos pela primeira vez
nesta antologia, enlaçam um conjunto de temas e preocu-
cipatórios e libertários. Seus argumentos se aglutinam em
torno a uma prerrogativa fundamental: a melhor via para
pações que se inscrevem na melhor das tradições do construir estratégias de resistência locais e globais requer
pensamento social e crítico: a emergência e as lutas dos pôr em prática um exercício de justiça cognitiva em que
movimentos sociais; os olhares alternativos que produzem todas as vozes possam se expressar em um mesmo pé de
os processos de globalização contrahegemônica; a igualdade, por meio do interconhecimento, da mediação e
construção de um novo tipo de pluralismo jurídico que da celebração de alianças coletivas.
contribua com a democratização de nossas sociedades; a
reforma criativa, democrática e emancipadora do Estado
e a defesa irredutível dos direitos humanos; a criação de DO PREFÁCIO DE PABLO GENTILI
universidades populares que promovam diálogos intercul-
turais, entendidos como uma forma de combate contra a
uniformidade e a favor de uma ecologia de saberes eman-

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