Está en la página 1de 30

9

1 INTRODUÇÃO

A presente monografia tem o objetivo de apresentar um entendimento sobre a


expressão “morte de Deus”, em Nietzsche, ao expor que essa morte deveria ser entendida
como uma forma de reavaliação da vida. Foram estudados textos sobre o tema escolhidos
entre as obras A Gaia Ciência, O Anticristo, Ecce Homo, além de outras obras de
comentadores que contribuem para o entendimento do pensamento nietzschiano.
Por um lado, acreditamos ser necessário precisar, em Nietzsche, o sentido de seu
ateísmo. Muito se afirma, equivocadamente, ser este filósofo culpado pela morte de Deus,
ao passo que se trata daquele que apresentou o diagnóstico de uma realidade percebida por
Nietzsche ao refletir os fundamentos da moral, da metafísica e da religião em seu tempo.
Por outro lado, no que tange ao específico do pensamento de Nietzsche sobre a
religião, cabe aclarar o sentido da crítica ao cristianismo. O título de seu livro O Anticristo
é, na verdade, uma maldição ao cristianismo paulino. Paulo é o verdadeiro alvo das críticas
de Nietzsche. Deve-se perguntar, portanto, sobre o que poderia ser este cristianismo
paulino. Para Nietzsche, a religião inventada por Paulo é o cristianismo que elimina
qualquer potencialidade humana é um movimento de caráter altamente pessimista e
negativo.
Acreditamos que o dito de Nietzsche “Deus está morto”, deve ser estudado e
aprofundado como um norteador do que acontece no mundo atual. O caos em que o mundo
vive, guerras, destruição do homem pelo homem, com uma violência de proporções
mundiais, faz parte da realidade vivida por toda a humanidade. A morte de Deus pode ser
um diagnóstico de uma crise que condiciona o modo de vida do homem moderno1.
A ruína do ideal de vida segundo o ideal trágico, um ideal que Nietzsche considera
como potencializador da vida que está em constante devir, é instaurada pela idealização de
um modo de vida que, conforme Nietzsche entende, causa dano à própria vida, o ideal
ascético2.

1
Melhor explicado e demonstrado no capítulo 3.
2
Para Nietzsche, o ideal ascético é um ideal hostil à vida. Este ideal ascético busca uma vida outra, uma vida
mais perfeita. Os dois tipos de ideais serão explicados no 3º capítulo.
10

Neste trabalho, buscamos analisar, em três capítulos, a crítica de Nietzsche sobre o


cristianismo e seus valores morais, ou seja, como o cristianismo inibe qualquer tentativa de
potencialidade, como este modelo é o responsável por uma escravização moral e como,
ainda, esse cristianismo destrói o ideal de vida como vontade de poder ao afirmar um ideal
hostil à vida. Tentamos também, destacar que a figura histórica da religião cristã, Jesus, não
é o alvo da crítica nietzschiana, tampouco o culpado pelo caminho que o cristianismo
seguiu, mas Paulo, o autor de uma religião de ressentimento e culpabilidade, segundo o
filósofo.
No primeiro capítulo, A morte de Deus, apresentaremos o discurso nietzschiano
sobre a morte de Deus, seu significado e o que essa morte representa para o mundo.
destacaremos os responsáveis por essa morte e o porquê o homem precisa assumir esse
assassinato para assumir a necessária transvaloração de todos os valores.
No segundo capítulo, A maldição ao Cristianismo no Anticristo, apresentaremos
uma reflexão sobre O Anticristo. Por um lado, destacando que a figura de Jesus não deve
ser responsabilizada pela proposta e transmissão de um modelo, até certo ponto, doente do
cristianismo, por outro lado, realçando que Nietzsche realiza toda uma discussão
difamatória em torno de Paulo, responsabilizando-o por um cristianismo que escraviza.
No terceiro capítulo, A moral cristã, seus tipos morais e o amor à vida,
apresentaremos a forma ácida da crítica que Nietzsche empreende à moral cristã e a seus
valores. Tentaremos expor qual o empecilho que Nietzsche encontra nessa moral e o mal
que ela representa para o mundo. No decorrer do capítulo, apresentaremos também como
essa moral é contra a natureza do homem e como ela destrói o conceito de amor fati,
conceito que se faz imprescindível para o caminho da superação.
11

2 A MORTE DE DEUS.

Neste capítulo apresentaremos aspectos do significado da morte de Deus em


Nietzsche. Ao exibir o sentido desta morte, destacaremos que ela possui aspectos como o
de desvalorização e de uma possível transvaloração, com isto veremos que existe um
caráter libertário ao diagnosticar esta morte e, então, concluiremos apresentando o sentido
da morte como niilismo e seus significados.
A morte de Deus é uma declaração de que valores supremos estão em declínio.
Nietzsche declara a morte de Deus pela primeira vez na Gaia Ciência e também aponta os
responsáveis pelo assassinato.

Deus está morto! Deus permanece morto! E quem o matou fomos nós! Como
haveremos de nos consolar, nós os algozes dos algozes? O que o mundo
possuiu, até agora, de mais sagrado e mais poderoso sucumbiu exangue aos
golpes das nossas lâminas. Quem nos limpará desse sangue? Qual a água que
nos lavará? Que solenidades de desagravo, que jogos sagrados haveremos de
inventar? A grandiosidade deste ato não será demasiada para nós? Não
teremos de nos tornar nós próprios deuses, para parecermos apenas dignos
dele? Nunca existiu ato mais grandioso, e, quem quer que nasça depois de nós,
passará a fazer parte, mercê deste ato, de uma história superior a toda a
história até hoje!
(NIETZSCHE, 2001, p.147).

Esse aforismo não é um atestado de ateísmo, nem um pronunciamento de que Deus


não existe. Segundo o filósofo Machado (1994)3.

Nietzsche não quer provar que Deus não existe, como faziam os ateus. O que
lhe interessa é mostrar como e por que surgiu e desapareceu a crença de que
haveria um Deus. [...]; é o fato de que “a fé no Deus cristão deixou de ser
plausível”; é a evidência de que a fé em Deus, que servia de base à moral
cristã, se encontra minada, de que desapareceu o princípio em que o homem
cristão fundou sua existência; é o diagnóstico da ausência cada vez maior de
Deus no pensamento e nas práticas do Ocidente moderno; é a percepção por
alguém dotado de uma capacidade de suspeita penetrante, de um olhar sutil, do
“maior acontecimento recente”: a desvalorização dos valores divinos.
(MACHADO, 1997, p. 47).

A morte de Deus é entendida, aqui, pelo filósofo Roberto Machado, como o


desaparecimento de fundamentos divinos, desaparecimento esse, causado pela
modernidade. É a auto-afirmação do homem em detrimento da idéia do Todo Poderoso.
3
Roberto Machado, professor titular do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS/UFRJ).
12

Neste sentido, a crença em Deus não é mais do interessante para o homem, que passa a
viver em função de seu desenvolvimento, “a substituição de uma beatitude celeste por um
bem-estar terrestre” (MACHADO, 1997, p. 48). Essa morte é a perda dos valores absolutos.
Contudo, a morte de Deus também é uma crítica ao modo de vida cristã, já que é
uma morte atribuída ao deus cristão. “A morte de Deus é, pois, aquela do deus de revelação
cristã, do deus trinitário, e Nietzsche nunca disse outra coisa” (FRANCK, 2005, p. 13).
Aqui é apresentada uma constatação de que Deus foi atropelado por um Deus cristão após
sua morte. “O que Paulo depois conduziu ao fim [...], foi, apesar de tudo, apenas o processo
de declínio que teve início com a morte do Redentor” (NIETZSCHE, 2007, p. 51. grifo
nosso). Trata-se de um conceito que, à luz dos princípios nietzschianos, pode ser entendido
como decadente por excelência. A vida cristã é um modo de vida que poda qualquer
potencialidade.
Retomando a citação da Gaia Ciência, vemos destacado no parágrafo 125 que além
da afirmação “Deus está morto”, há uma sinalização sobre os culpados por esse assassinato.
O texto afirma que somos nós os responsáveis pela morte de Deus. Cabe perguntar pela
identidade deste “nós” indicado no referido aforismo. Entendemos que a culpa pela morte
de Deus recai sobre toda a humanidade. Não foram somente o louco ou os ateus que
estavam no mercado, mas toda a humanidade. O filosofo francês Didier Franck 4 entende
que os assassinos de Deus são aqueles que estão em comunhão com os ideais cristãos. Para
ele, o mais feio dos homens, personagem descrito em Assim falou Zaratustra, é o assassino
de Deus. Didier entende que essa feiúra é agente do cristianismo. O mais feio dos homens
representa o que há de negativo no mundo, ou seja, que é a moral cristã. A feiúra do
homem é o que predispõe esse assassinato. O homem não suporta que Deus o esteja
observando e sente vergonha. “Deus precisava morrer porque ele era a eterna testemunha
da feiúra humana” (FRANCK, 2005, p. 20).
O conceito de feiúra está entrelaçado com o belo, antagonicamente, assim como os
valores de bom e mau, que exemplificaremos mais à frente. O belo e o feio se opõem no
sentido afirmativo e negativo e também estão inseridos em um sistema de valor.

O belo se dá no interior da categoria geral dos valores biológicos de utilidade,


do vantajoso, daquilo que intensifica a vida [...] “o embelezamento é uma

4
Professor da l'Université Paris X-Nanterre, especialista em história da filosofia contemporânea alemã.
13

conseqüência da força aumentada” ou “a expressão de uma vontade vitoriosa”


(XIII, 14(117)), o feio é, quando a ele, “a expressão de uma redução” (XII,
14(119)). Beleza e fealdade estão, pois, relacionadas ao crescimento ou
decrescimento da vontade de potência. (FRANCK, 2005, p. 16)

A feiúra que constitui o homem, que denigre o próprio homem, é composta por
valores reativos. “Assim, há dois tipos de valores, aqueles que, ativos, abrem um curso livre
à vontade de potência e aqueles que a retornam contra ela mesma, reativos [...], a feiúra do
assassino de Deus deve ser compreendida a partir dos valores reativos” (FRANCK, 2005, p.
18).
Roberto Machado também identifica o assassino de Deus.

Dizer que Deus morreu significa dizer, como faz “o insensato”, que o homem
matou Deus. Mas esse homem pode ser facilmente identificado: é o homem
moderno, o homem reativo, “o mais feio dos homens”, que, por não suportar
aquele que via toda a vergonha e a fealdade ocultas no âmago de seu ser,
vingou-se dessa testemunha. (MACHADO, 1997, p. 47).

Aqui se entende que o homem – identificado como ser reativo - percebe que Deus o
observa, identifica que Ele estava atento a toda sua vergonha e feiúra. Esse tipo de homem
não suportava mais que Deus o visse e entendeu que precisava matar essa testemunha,
como também pudemos observar em Franck.
O filósofo percebe que o homem moderno, reativo, passa a não confiar mais em
Deus e rompe com o lado teológico em defesa da ciência, da razão. O homem moderno ao
seguir uma razão “absoluta”, uma razão que não tem lugar para Deus, que tenta ser
independente, é, outrossim, também um dos mais relevantes culpados pela morte de Deus
também.
Contudo, ainda deve-se destacar que a humanidade é responsabilizada por essa
morte por possuir valores cristãos, valores que não sublimam o homem, que o transformam
num ser ressentido. Valores como humildade, castidade e pobreza, depreciam a vontade de
potência existente em todo ser. Tais valores que não identificam a idéia do eterno retorno5,
já que saem em defesa de uma vida que não é a vida mesma, mas uma outra vida, uma vida
idealizada. “A feiúra do mais feio dos homens provém, então, dos valores ontológicos e dos

5
Conceito que é identificado como ordenador. Já que a realidade não tem objetivo final, o eterno retorno
apresenta que o mundo é constituído de aspectos complementares que estão em eterna alternância. Não
trabalharemos com esse conceito, fizemos somente breve apresentação.
14

valores cristãos que, em função de sua reatividade comum, caracterizam a humanidade


ocidental enquanto tal” (FRANCK, 2005, p. 19). Esses valores são valores distorcidos, pois
são valores que se apresentam reativos, presentes no homem moderno, valores que
encaminha a humanidade para uma moral escrava.
Os valores morais aqui expostos passam primeiramente por conceitos morais do
cristianismo. Nietzsche entende que o cristianismo estabelece o que deve ou não ser feito,
deturpa, corrompe o que é real, reescreve o que é certo ou errado e inverte valores,
adoecendo a humanidade. Os homens que detêm o poder no cristianismo se aproveitam
dessa deturpação, para deixar a humanidade enferma, “Essa espécie de homem tem
interesse vital em tornar doente a humanidade e inverter as noções de ‘bom’ e ‘mau’,
‘verdadeiro’ e ‘falso’, num sentido perigoso para a vida e negador do mundo”
(NIETZSCHE, 2007, p. 30). Eles destroem os valores de potência e escravizam o homem
com uma moral de ressentimento6. O cristianismo institui uma moral que destrói a vida em
seus princípios básicos.
Valores cristãos estão inseridos em muitas culturas, pelo mundo inteiro. A ideologia
cristã carregada com sua moral escravizante tomou conta de grande parte da humanidade. A
Igreja cristã, para Nietzsche, é constituída somente de valores e conceitos corruptos, como
podemos observar na citação seguinte:

Eu condeno o Cristianismo, faço à igreja cristã a mais terrível das acusações


que um promotor já teve nos lábios. Ela é para mim, a maior das corrupções
imagináveis, ela teve a vontade para a derradeira corrupção possível. A igreja
cristã nada deixou intacto com seu corrompimento, ela fez de todo um desvalor,
de toda verdade uma mentira, de toda retidão uma baixeza de alma
(NIETZSCHE, 2007, p. 79).

A Igreja, no entendimento de Nietzsche, é a criação de tudo que é depreciável, é a


invenção de tudo que é contra a vida, ela corrompe tudo com seu instinto de vingança (cf.
NIETZSCHE, 2007, p. 79).
Casanova (2003)7 explica que os homens deveriam entender a morte de Deus como
o meio de uma declaração de reavaliação. “Eles precisam assumir a si mesmos como
assassinos de Deus, para que possam se entregar à concretização do novo princípio de
6
Moral do ressentimento é a moral do escravo, melhor exemplificado no 3º capítulo.
7
Marco Antônio Casanova, professor do Departamento de Filosofia da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro desde 1995.
15

avaliação em meio ao empreendimento da transvaloração de todos os valores”


(CASANOVA, 2003, p. 198).
A humanidade deve ter consciência também de sua parcela de culpa na morte de
Deus, entendendo assim que é fundamental uma reavaliação de toda sua vida. O homem
moderno, com sua razão absoluta, deve assumir que é responsável também por essa
desvalorização de todos os valores e transformar seu modo de vida, de forma a superar a
moral que vem ditando as regras de sua vida.

O assassinato de Deus não é mais uma possibilidade entre outras à espera de


um meio para a sua efetivação. Ao contrário, ele aponta para o acontecimento
já perfeito, e, portanto, irremediável. Não se trata de uma incitação ao
assassinato, mas de uma exacerbação da necessidade de tomar sobre si a
responsabilidade pelo assassinato. Todos os homens precisam aceitar o fato de
serem os assassinos de Deus porque todos se encontram agora sob o signo de
uma decisão fundamental do pensamento: de uma nova determinação do real,
de uma história mais elevada do que toda história até aqui: e isto justamente
por nascer após a dissolução do que havia de mais elevado até aqui.
(CASANOVA, 2003, p. 198).

Entendemos que a morte de Deus é o fim de uma moral escravizante e como o


próprio Casanova (2003) diz, “novo princípio de avaliação”, no qual a transvaloração de
todos os valores é posta em execução.

A morte de Deus abre a possibilidade da superação da moral como o princípio


de avaliação de toda a existência, exatamente como exige para esta superação a
assunção de um novo princípio de avaliação que surja a partir do
aquiescimento sem restos desta morte e viabilize o aparecimento de uma nova
postura diante do valor da finitude. (CASANOVA, 2003, p. 197).

Com Deus morto, o homem pode pensar no mundo como um lugar de


possibilidades futuras, onde é preciso viver a vida com mais interesse, sem almejar uma
vida além. Nietzsche entende que o homem pode avaliar melhor seu futuro e pensar na
chegada do Übermensch8 “Assim como Nietzsche descreveu metaforicamente a morte de
Deus como esvaziamento do mar, [...], Zaratustra prometerá o super-homem como novo
mar,...” (MACHADO, p. 49).

8
O Além-do-homem é o tipo mais elevado de homem, é a figura essencia da humanidade que passa mais
além e acima do tipo anterior humano. Conceito que não trabalharemos na presente monografia, mas que
fizemos somente uma breve menção.
16

Este autor continua a explicar a morte de Deus e encontra no niilismo um fenômeno


responsável pelo caminho trilhado. O niilismo é a perda de sentido dos valores superiores, a
falência de valores divinos, que encontra seu ponto máximo na morte de Deus. “O niilismo
é, em outras palavras, a razão histórica da transvaloração, assim como a transvaloração
constitui-se em sintonia com uma forma específica de niilismo” (CASANOVA, 2003, p.
199).
Ao abordar o tema do niilismo, Giacoia9 afirma que,

Niilismo significa, pois, a experiência da perda de sentido e de valor por parte


de nossos supremos valores. Como tais valores são aqueles que dão coesão e
organicidade a uma cultura, o niilismo sinaliza um período de declínio de uma
força ou unicidade cultural, isto é, é um sintoma de decadência de uma cultura.
(GIACOIA, 2001, p. 75).

O niilismo indica o enfraquecimento de uma cultura, o declínio e o fracasso, do que


o homem julga seus valores supremos. Esse declínio sinaliza o caminho que leva à morte de
Deus.
O tema do significado do niilismo em Nietzsche foi abordado também por
Heidegger. O filósofo escreveu que “a tentativa de comentar o dito de Nietzsche ‘Deus
morreu’ é equivalente à tarefa de interpretar aquilo que Nietzsche compreende por niilismo,
e assim de mostrar como o próprio Nietzsche está em relação ao niilismo” (HEIDEGGER,
2002, p. 252).
Para Heidegger, Nietzsche concebe o niilismo como um processo histórico de
desvalorização. Segundo o autor, Nietzsche

interpreta este processo como a desvalorização dos valores supremos vigentes


até agora. Deus, o mundo supra-sensível, enquanto o mundo verdadeiramente é
e que tudo determina, os ideais e idéias, as metas e fundamentos que
determinam e suportam todo o ente, e em particular a vida humana, tudo isto é
aqui representado no sentido de valores supremos. (HEIDEGGER, 2002, p.
257).

Essa desvalorização dos valores supremos é a desvalorização do mundo supra-


sensível, dos fundamentos que sustentam a vida humana, é a desvalorização de Deus.

9
Oswaldo Giacoia Junior, professor livre-docente do Departamento de Filosofia da Unicamp. Graduado em
Direito pela USP, Mestre em Filosofia pela PUCSP, Doutor em Filosofia pela Freie Universität Berlin e
professor associado do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Campinas.
17

O niilismo é um fenômeno mundial de ocorrência histórica, é um acontecimento


fundamental na história, é o entendimento dessa crise ética, a desvalorização de valores,
valores supremos, é uma compreensão para uma existência sem qualquer sentido.
Heidegger também esclarece que Nietzsche se posiciona de forma afirmativa em
relação ao niilismo, já que o vê também como uma “transmutação de todos os valores
vigentes até agora” (HEIDEGGER, 2002, p. 259). Esse posicionamento direciona para o
chamado niilismo ativo, um niilismo que renega os valores metafísicos e que assim destrói
a moral vigente, fazendo a vida voltar a ser um lugar mutável, de constantes contradições.
Procuramos neste capítulo, identificar o sentido da morte de Deus e apresentar os
culpados por ela. Identificamos que a feiúra, causada pelos valores cristãos reativos, é o que
predispõe o homem à este assassinato e que o homem moderno apresenta estes aspectos
reativos. Mostramos também que, a morte possui um caráter libertário quando analisamos
Casanova e que, com esta morte, é possível uma transvaloração de todos os valores
existentes. Identificamos, ainda, esta morte como niilismo e seus modos de ser passivo e
ativo.
18

3 A MALDIÇÃO AO CRISTIANISMO NO ANTICRISTO.

No capítulo anterior vimos que Nietzsche identifica a morte de Deus como uma
desvalorização de todos os valores supremos até então divinizados. Neste segundo capítulo,
nos voltaremos para o entendimento da maldição que Nietzsche atribui ao cristianismo e à
seus valores. Identificaremos, também, que seu alvo de sua crítica é em torno de Paulo e
não Jesus.
Nietzsche é um áspero crítico da religião cristã, “Em o Anticristo (Ensaio de uma
Crítica do Cristianismo), Nietzsche combate a religião cristã com um fervor sem igual no
ódio” (FINK, 1988, p. 146). O cristianismo paulino, como entenderemos mais à frente, é o
alvo da crítica nietzschiana, é o responsável por cultivar valores que ridicularizam o homem
ao transformá-lo num animal domesticado e enfermo “o animal doméstico, o animal de
rebanho, o animal doente homem – o cristão...” (NIETZSCHE, 2007, p. 11). Esta é a
concepção que destrói toda e qualquer potência que lhe seria conseqüente. Nietzsche parece
defender que a religião cristã constitui a total quebra dos valores que ele considerava
importantes para o próprio homem e para a criação, nascimento, fundamentação do além-
do-homem.
A obra O Anticristo principia discutindo os significados dos valores de bom e mau.
O conceito de bom, defendido pelo cristianismo, não era o mesmo compartilhado por
Nietzsche. O filósofo analisa que o cristianismo falseia os conceitos de bom e mau. Ele
entende o bom e o mau da seguinte forma: “O que é bom? – Tudo o que eleva o sentimento
de poder, o próprio poder no homem. O que é mau? – Tudo o que vem da fraqueza”
(NIETZSCHE, 2007, p. 11). O cristianismo, por outro lado, distorce essa concepção,
seguindo por uma tendência que adoece cada vez mais seus seguidores, “O que faz doente é
bom, o que vem da plenitude, da abundância, do poder é mau” (NIETZSCHE, 2007, p. 63).
Nietzsche então encara o homem cristão como um animal subjugado, doente.
Neste sentido, o filósofo vê a necessidade do cultivo de um tipo de homem que seja
mais digno de vida, e esse, com certeza, não é o homem cristão. Esse tipo de homem é o
além-do-homem, o “mais digno de vida, mais certo de futuro” (NIETZSCHE, 2007, p. 11).
19

O desenvolvimento desse tipo de homem é deteriorado pelo cristianismo. O cristianismo


luta contra esse tipo de homem, constrói o que corrompe o homem.

Não se deve embelezar e ataviar o cristianismo: ele travou uma guerra de morte
contra esse tipo mais elevado de homem, ele proscreveu todos os instintos
fundamentais desse tipo, ele destilou desses instintos o mal, o homem mau – o
ser forte como o tipicamente reprovável, o réprobo. O cristianismo tomou
partido de tudo o que é fraco, baixo, malogrado, transformou em ideal aquilo
que contraria os instintos de conservação da vida forte (NIETZSCHE, 2007, p.
12).

O cristão é um ressentido que contraria totalmente o ideal apresentado por


Nietzsche, é um tipo de homem que acredita nos valores de decadência, que defende o
fraco em detrimento do forte. “No fundo, é ‘cristão’ todo aquele que leva adiante o ideal
que outorga ao valorar humano substituir os determinantes da natureza por construtos
fictícios e que cria, dessa forma, outros meios para os esgotados se protegerem
reciprocamente” (BARROS, 2002, p.50). O cristão sofre pelo outro, se apieda dos outros, é
aquele que substitui o que é natural em prol do que é ficcional em defesa do fraco,
transforma o que for necessário para resguardar e proteger os exauridos. O cristão está em
constante declínio por causa de suas crenças. A compaixão cristã direciona o cristão para
esse declínio. Ela produz uma enorme conseqüência depressiva, elimina qualquer indício de
força que o cristão possa ter. “O cristianismo é chamado de religião da compaixão. – A
compaixão se opõe aos afetos tônicos, que elevam a energia do sentimento de vida: ela tem
efeito depressivo” (NIETZSCHE, 2007, p. 13), Compaixão, para Nietzsche, não é uma
virtude, mas algo sombrio, que nega a vida, não a potencializa, é um instrumento de
decadência, que preserva o que é miserável.
O tipo teológico incita o crente a ser compassivo e clemente, ele acredita ser o
orientador do cristão. Ele se auto propaga um ser superior que representa a verdade, mas
Nietzsche o vê como um negador, envenena a vida, que proclamam uma verdade mentirosa
e uma verdade falsa.

Desencavei o instinto de teólogo em toda parte: é a mais disseminada, a forma


realmente subterrânea de falsidade que existe na Terra. O que um teólogo
percebe como verdadeiro tem de ser falso [...] o que é mais prejudicial à vida
chama-se “verdadeiro”, o que realça, eleva, afirma, justifica e faz triunfar
chama-se “falso”. (NIETZSCHE, 2007, p.15).
20

Há uma inversão traiçoeira no conceito de verdade na teologia, entende Nietzsche.


A crença que o teólogo da Igreja cristã apresenta é uma negação ao que é verdade, ao que é
bom, mas trata-se da sua doença redentora. A verdade proclamada até hoje pelo
cristianisomo, é uma pseudoverdade, uma mentira dissimulada, exposta para ser seguida
sem questionamentos e sem afrontas. Uma verdade ilusória que, assim como os conceitos
de valor, prejudica qualquer sentido natural que possa existir no homem, que o deixa doente
e o faz desprezar tudo aquilo que deveria ser compreendido como questões fundamentais
para uma vida afirmativa.
Portanto, para Nietzsche, a mentira ronda o crente e esse a aceita como verdade. A
diferença está, para o filósofo, em que, enquanto o cristão segue essa verdade com
convicção e com certeza, os espíritos livres – dignos de vida – não confiam nela. “Os
grandes espíritos são céticos” (NIETZSCHE, 2007, p. 65). Os grandes espíritos são
espíritos livres, para eles, o que é encarado como certeza e convicção, não é mais do que
um cárcere. Os espíritos livres são exatamente como são chamados, livres. O crente, por
outro lado, é um ser dependente, pois está aprisionado. “O ‘crente’ de todo tipo, é
necessariamente um homem dependente [...]. O ‘crente’ não pertence a si, pode apenas ser
meio, tem que ser usado, necessita de alguém que o use” (NIETZSCHE, 2007, p. 66).
Contudo, a convicção e a certeza são uma mentira e tanto convicção quanto certeza são
inimigas do que poderia ser verdade.
Por esses motivos, Nietzsche considera o homem o animal mais perigoso que existe,
“o animal mais malogrado, o mais doentio, o que mais perigosamente se desviou de seus
instintos” (NIETZSCHE, 2007, p. 19) e, ainda assim, o mais interessante. O homem vive
num mundo de imaginação pura e total ficção, o mundo não é um mundo real, e todo o
páthos10 humano vai contra os espíritos livres, os que superam o homem, aqueles que
alcançariam o além-do-homem.
Como já identificamos no capítulo anterior, o homem reativo é o homem moderno e
esse é o assassino de Deus. Mas esse tipo de homem não era o único que era perigoso para
Deus, o homem científico também se mostrou capaz de amedrontar a Deus.
Para Nietzsche, o homem científico é o maior erro de Deus.

10
Paixão, excesso.
21

O próprio homem se tornara seu maior erro, ele criou para si um rival, a
ciência torna igual a Deus – acabam-se os sacerdotes e deuses, se o homem se
torna científico! – Moral: a ciência é a coisa proibida em si – somente ela é
proibida. A ciência é o primeiro pecado, o gérmen de todos os pecados, o
pecado original. Apenas isso é moral. – “Não conhecerás” (NIETZSCHE, 2007,
p. 58).

O homem passa a não precisar mais de Deus, passa a ser independente. O homem
passa a manipular e deter conhecimento, ele passa a pensar. Ante o medo oferecido pela
ciência e o perigo que ela representa, também, para a classe sacerdotal, tanto Deus quanto o
sacerdote vêem a necessidade de se defender dela. Deus expulsa o homem do paraíso, para
que não passe seu tempo ocioso pensando, “Todo pensamento é um mau pensamento... O
homem não deve pensar” (NIETZSCHE, 2007, p. 58). Portanto, entre religião e ciência há
uma verdadeira batalha. Por um lado, o sacerdote combate a ciência da seguinte forma, cria
subterfúgios para tentar destruí-la, “o ‘sacerdote em si’ inventa a penúria, a morte, a
gravidez com perigo de morte, todo tipo de miséria, velhice, fadiga, sobretudo a doença –
todos meios de luta contra a ciência” (NIETZSCHE, 2007, p. 58). Por outro lado, a ciência,
a busca pelo conhecimento, consegue superar tudo isso. Neste sentido, o sacerdote concebe
o pecado criando uma imagem de culpa e castigo contra a ciência “A noção de culpa e
castigo, toda a ‘ordem do mundo’ foi fundada contra a ciência” (NIETZSCHE, 2007, p.
59). O pecado tem significado punitivo “A idéia do pecado seria a forma gigantesca de
degradação e de aviltamento; seria um atentado perpetrado contra a vida pelos padres e
pelos parasitas” (FINK, 1988, p. 148). O pecado nasce para acabar com qualquer tipo de
elevação humana, é um castigo para o sentido causal do homem, destruindo toda e qualquer
nobreza que possa existir no homem “então foi cometido o maior crime contra a
humanidade – O pecado, diga-se mais uma vez, essa forma de autoviolação humana par
excellence, foi inventado para tornar impossível a ciência, a cultura, toda elevação e
nobreza do homem” (NIETZSCHE, 2007, p. 59). Todo tipo de intelecto é visto com
oposição pelo cristianismo.
Nietzsche ainda discute a idéia de pessoas que são vistas como santos e mártires.
Conceito muito aclamado dentro do cristianismo. Ele acredita que se trata de idéias
inadequadas e equivocadas, assim como o conceito de gênio e de herói. O santo, o mártir
não deve ser o homem que pratica a penitência ou qualquer hábito cristão e sim aquele que
22

pratica a vida que eleva o amor fati11. Os chamados mártires “prejudicaram a verdade”
(NIETZSCHE, 2007, p. 64), pois dar a vida por uma causa não altera o valor de nada
“Altera o valor de algo o fato de alguém dar a vida por ele? – Um erro que se torna
respeitável é um erro que possui um encanto de sedução a mais” (NIETZSCHE, 2007, p.
64), nada mais do que isso. Retornando à idéia de gênio e de herói, entendemos que Jesus
pode até ser chamado de um espírito livre, mas, chamá-lo, porém, de herói ou de gênio,
como até pode acontecer, é cair em erro. “Se existe algo não evangélico, é o conceito de
herói” (NIETZSCHE, 2007, p. 36). Ele é o portador da boa nova e que ensinou como os
espíritos livres devem viver, e ainda, que esses são capazes de entender o erro da mentira
santa “Esse ‘portador da boa nova’ morreu como viveu, como ensinou – não para ‘redimir
os homens’ mas para mostrar como se deve viver” (NIETZSCHE, 2007, p. 42). Já Paulo,
criou um cristianismo decadente que promete tudo e nada cumpre indo na contra mão da
boa nova inspirada por ele. Para Nietzsche, o evangelho termina antes mesmo de se iniciar,
a chama da mencionada boa nova se extingue antes mesmo de se queimar.
Para Nietzsche, não houve cristãos - o único, morreu na cruz - mas que é possível
ainda existir, é possível um se fazer cristão.

Já a palavra “Cristianismo” é um mal–entendido – no fundo, houve apenas um


cristão, e ele morreu na cruz. O “evangelho” morreu na cruz. O que desde
então se chamou “evangelho” já era o oposto daquilo que ele viveu: uma “má
nova”, um disangelho. É absurdamente falso ver uma “fé”, na crença na
salvação através de Cristo, por exemplo, o distintivo do cristão: apenas a
prática cristã, uma vida tal como viveu aquele que morreu na cruz, é cristã...
(NIETZSCHE, 2007, p. 45).

O cristianismo paulino é a deturpação de todo o ensinamento de Jesus. É a


constatação de que seu evangelho se tornou o oposto do que ele instruiu. O termo
cristianismo é falso em si mesmo, já que o que esse cristianismo esclarece, não foi o que
Jesus tentou esclarecer. Por isso então podemos entender que o cristianismo é mesmo um
mal entendido e que o único cristão morreu na cruz e o que veio depois, é enganação, como
Nietzsche aqui apresenta.
A morte de Jesus na cruz foi uma mostra de seus ensinamentos, mas ali foi selado o
destino de sua doutrina. Seus seguidores deturparam o que ele queria ensinar e assim se

11
Amor ao destino. Amor à vida como ela é. Melhor exemplificada no capítulo 4.
23

iniciou o fim, a destruição do cristianismo “Jesus não podia querer outra coisa, com sua
morte, senão dar publicamente a mais forte demonstração, a prova de sua doutrina... Mas
seus discípulos estavam longe de perdoar essa morte” (NIETZSCHE, 2007, p.47). A
crucificação de Jesus declara a extinção de um cristianismo e a criação de outro, de um
outro que exibe conceitos morais e virtudes que comemoram a domesticação de qualquer
vontade de potência. O que deveria ser a prova dos ensinamentos de Jesus se tornou sua
total desfiguração, o corrompimento do caminho a ser tomado. Consideramos que
Nietzsche não o culpa por uma “boa nova” equivocada, mas esclarece que sua crucificação
foi em vão. Nietzsche vai além e diz que “seria possível, com alguma tolerância de
expressão, chamar Jesus um ‘espírito livre’ – ele não faz caso do que é fixo: a palavra mata,
tudo que é fixo mata” (NIETZSCHE, 2007, p. 39). Para Nietzsche, ele ensinava de forma
diferente do que o cristianismo paulino tentava ensinar: “Jesus disse aos seus judeus: a lei
era para servos, amem a Deus como eu o amo, como seu filho! Que nos importa a moral, a
nós, filhos de Deus?” (NIETZSCHE, 2005, p. 71).
Segundo Barros (2002)12 entendemos que Jesus é isento de qualquer culpabilidade
que possa lhe ser atribuída pelo cristianismo que Nietzsche tanto critica.

Com a tentativa de tornar flagrante o contraste entre Jesus de Nazaré e tudo


aquilo que posteriormente se chamou cristianismo, o eixo temático que
orientava as investidas do filósofo alemão adquire, por assim dizer, um alcance
maior: abre-se a possibilidade de reconstrução da figura histórica de Jesus e,
simultaneamente, de explicar mais convenientemente os móbeis que
possibilitaram a sua falsificação. (BARROS, 2002, p. 51).

A figura de Jesus pode ser resguardada de toda crítica nietzschiana, já que, como
podemos ver até aqui, o real alvo foi a figura de Paulo.
Para Nietzsche, Paulo cria seu tipo de cristianismo, totalmente diferente do que
Jesus tentou inspirar nos homens. Ele – Paulo – inventa um cristianismo e coloca na boca
do Mestre, um grande equívoco moral e mesmo conceitual talvez até o maior que já existiu,
ele inventa um cristianismo que destrói o conceito de Deus que Jesus tenta transmitir.
“Deus, tal como Paulo o criou, é a negação de Deus. [...] O ‘Deus’ que Paulo inventou, um
Deus que ‘arruína’ a ‘sabedoria do mundo” (NIETZSCHE, 2007, p. 56). O conceito de
Deus que o cristianismo prega é um conceito que aspira a uma moral falsa, uma moral

12
Fernando de Moraes Barros, mestre e doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo.
24

mentirosa e que violenta a vida. “O conceito cristão de Deus [...] é um dos mais corruptos
conceitos de Deus que já foi alcançado na Terra” (NIETZSCHE, 2007, p. 23). O
cristianismo é um inimigo da realidade, um inimigo mortal.
O cultivo do Deus cristão é criticado por Nietzsche, já que esse tal Deus, é um Deus
arruinado. Desde a morte de Jesus na cruz, o homem, aqui como o cristão, apresenta um
Deus decadente, com um conceito corrupto e totalmente contraditório àquilo a que
Nietzsche procura apontar para uma vida que eleva a dignidade humana “O conceito cristão
de Deus – Deus como deus dos doentes, Deus como aranha, Deus como espírito – é um dos
mais corruptos conceitos de Deus que já foi alcançado na Terra” (NIETZSCHE, 2007, p.
23). O Deus que os cristãos divinizam, por excelência, é um Deus que hostiliza a vida, que
declara oposição direta a uma vontade de vida e é esse conceito de Deus que Nietzsche
tanto critica, é esse Deus que Nietzsche diz fazer parte do imaginário humano e que passou
a ser uma coisa-em-si.
Fink (1988)13 apresenta também o conceito de corrupção no cristianismo e em seu
Deus.
Para Nietzsche, o Cristianismo representa <<a guerra de morte contra o tipo
superior de homem>>, a corrupção, a perversão dos instintos humanos, a
religião contrária à Natureza; [...], Nietzsche afirma que a concepção cristã de
Deus é uma das concepções mais corruptas a que jamais se chegou na Terra”
(FINK, 1988, p. 146).

Podemos entender que Fink, analizando Nietzsche, percebe que o cristianismo,


apresentado pelo filósofo, é a alteração dos instintos humanos, depravação de nossos
impulsos naturais. Portanto trata-se de uma religião contrária a vida como ela é, e que seu
Deus é um Deus corrompido que está em contradição com a vida, em vez de ser um Deus
que a afirma e que a dignifica. Fink (1988) defende que a crítica nietzschiana do
cristianismo se fundamenta nessa questão e que, para Nietzsche

O cristianismo é apenas o fenômeno mais poderoso de uma aberração dos


instintos do homem europeu na história do espírito, aberração que se apresenta
como invensão de um outro mundo ideal e, por conseguinte, como depreciação
do mundo terreno, real (FINK, 1988, p. 146).

13
Eugen Fink, filósofo alemão, discípulo de Husserl.
25

A idéia de um mundo além desse é combatida por Nietzsche. O cristianismo paulino


destrói qualquer intenção de grandeza, impõe ódio mortal a tudo que de mais nobre já
existiu. “O cristianismo travou guerra mortal, desde os mais secretos cantos dos instintos
ruins, a todo sentimento de reverência e distância entre homens, ou seja, ao pressuposto de
toda elevação, todo crescimento da cultura” (NIETZSCHE, 2007, p.50). É uma religião de
fracos que acreditam mais na vida além do túmulo do que na vida aqui e agora. A
imortalidade, conceito de fundamental importância para o cristianismo, para Nietzsche é
um conceito que desestabiliza o homem. “Quando se coloca o centro de gravidade da vida
não na vida, mas no ‘além’ – no nada – despoja-se a vida do seu centro de gravidade”
(NIETZSCHE, 2007, p. 50). A Igreja cristã cria um lugar além da vida, concebe uma
imortalidade que faz com que a vida não mais seja o mais importante, é uma simples
passagem, o melhor está na vida após a morte. “A ‘imortalidade’ concedida a todo Pedro e
Paulo foi, até agora, o maior, mais maligno atentado à humanidade” (NIETZSCHE, 2007,
p. 50).
A queda inevitável de todo o conceito proclamado por Jesus, como vimos, tem
começo em Paulo, com sua hipocrisia lógica de um sacerdote, teólogo. Nietzsche critica o
Novo Testamento, vendo nele um amontoado de enganações e manifestações covardes,
tornados critérios de valores de covardia e contra a vida “Há apenas instintos ruins no Novo
Testamento, e nem mesmo a coragem para esses instintos ruins. Tudo é covardia, tudo é
fechar os olhos e enganar a si mesmo. Todo livro torna-se limpo, após termos lido o Novo
Testamento” (NIETZSCHE, 2007, p. 55).
Nietzsche acreditava que existiu um período histórico com intenso movimento
cultural capaz de tresvalorar valores decadentes.

Os alemães privaram a Europa da última grande colheita cultural que ela podia
ter – a do Renascimento Compreende-se enfim, quer-se compreender o que foi o
Renascimento? A tresvaloração dos valores cristãos, a tentativa, empreendida
com todos os meios, com todo gênio, de conduzir à vitória dos valores opostos,
os valores nobres (NIETZSCHE, 2007, p. 77).

Nietzsche responsabiliza a cultura alemã por destruir uma tentativa de surgimento


de valores nobres. Lutero, importante referência para a visão de Nietzsche acerca do
26

cristianismo, atacava o renascimento quando restaura a Igreja que parecia estar em declínio
“Lutero restaurou a Igreja: ele a atacou...” (NIETZSCHE, 2007, p. 78).
Ao final do seu Anticristo, Nietzsche condena o Cristianismo. No aforismo 62 ele
deixa clara essa oposição direta contra uma cultura decadente, doente e de personagens
ressentidos. “Eu declaro o Cristianismo a grande maldição, o grande corrompimento
interior, o grande instinto de vingança [...] eu o declaro a perene mácula da humanidade”
(NIETZSCHE, 2007, p. 79). E o culpado maior por isso tudo foi Paulo. “Paulo foi o maior
de todos os apóstolos da vingança” (NIETZSCHE, 2007, p. 55).
27

4 MORAL CRISTÃ, SEUS TIPOS MORAIS E O CONCEITO DE AMAR A VIDA.

Neste último capítulo, a crítica nietzschiana em torno da moral cristã é o nosso


principal objetivo e através dela, apresentaremos os tipos morais que diferenciam o homem.
Por último, apresentaremos o conceito de amor fati, que Nietzsche considera importante
para o homem viver sua vida.
O conceito de moral cristã e o que ela significa é muito discutido por Nietzsche. Ele
a apresenta como calúnia no mundo, como poderemos discutir no decorrer do capítulo.
Veremos de imediato, como Nietzsche trabalha a questão da moral e do valor. Nietzsche já
trabalha com a moral desde Aurora, mas é com Assim Falava Zaratustra que inicia seu
discurso sobre o conceito de valor. A filósofa Scarlett Marton (2000)14 esclarece esse
aspecto na seguinte afirmação:

O período da transvaloração dos valores tem fortes razões para ser assim
denominado é nele que se torna operatória a idéia de valor. Antes, Aurora
apresentava como subtítulo “Pensamentos sobre Preconceitos Morais”, O
Andarilho e sua Sombra tratava de sentimentos morais, Humano, Demasiado
Humano examinava conceitos morais. O filósofo ocupava-se com conceitos,
pré-juizos, sentimentos em suas considerações sobre a moral e até podia
empregar, eventualmente, o termo “valor” ou a expressão “apreciações de
valor”. Mas é a partir de Assim falava Zaratustra que passa a trabalhar com a
noção de valor. Isso possibilita uma reorganização de seu pensamento: suas
idéias são submetidas a nova articulação seus escritos são por ele mesmo
encarados segundo nova ótica, [...] os valores morais ganham nova
consistência. (MARTON, 2000, p.78).

Nietzsche defende que é preciso uma total reavaliação dos valores humanos,
defende que os valores que a Igreja cristã prega são valores que escravizam os homens e
que os transformam em animais contrários à própria natureza, como já observamos nos
capítulos anteriores. O caminho para se tornar um espírito livre é uma transvaloração dos
valores. Nietzsche aponta um caminho para a “transvaloração de todos os valores”, para o
filósofo, um “homem bem constituído, um homem ‘feliz’, precisa empreender certas ações

14
Scarlett Zerbetto Marton, professora de história da filosofia moderna e contemporânea na Universidade de
São Paulo. Pós-Doutorado pela Université de Reims, U.R., França, Pós-doutorado pela Ecole Normale
Superieure e Fon Tenay-Saint Cloud, ENS FONTENAY-ST, França, Pós-Doutorado Université de Paris X,
Nanterre, Paris X, França, Doutorado em Filosofia. Universidade de São Paulo, USP, Brasil, Mestrado em
Filosofia, Université Paris 1 (Panthéon-Sorbonne), SORBONNE, França
28

e fugir instintivamente de outras” (NIETZSCHE, 2000, p. 42). O instinto é algo que a


Igreja cristã destrói no ser humano e que é o quê o homem precisa resgatar. Nietzsche
defende que “tudo que é bom é instintivo” (NIETZSCHE, 2000, p. 43). Quando o homem
voltar a viver de acordo com seus instintos, quando ele tranvalorar a morte de Deus, ele
pode vir a ser um espírito livre.
Nietzsche se autointitulava um imoralista. Em Ecce Homo, no capítulo “Por que eu
sou um destino, § 1, Eu não sou homem, eu sou dinamite”, ele já constrói para si, um
aspecto de distinção, algo que o diferencia de toda a tradição e toma para si, a
responsabilidade de destruir todos os falsos ídolos. Nessa tentativa de destruir falsos ídolos,
um de seus principais alvos é a moral cristã e seu valor de verdade:

O cristão foi, até agora, o “ser moral”, uma curiosidade ímpar – e, como “ser
moral”, mais absurdo, falso, vaidoso, leviano, mais prejudicial a si mesmo do
que o maior dentre os desprezadores da humanidade jamais ousaria sonhar... A
moral cristã – a forma mais maligna da vontade de mentira, a verdadeira Circe
da humanidade: aquilo que a deteriorou. (NIETZSCHE, 2006, p.151).

O cristão, para Nietzsche, é um ser falso, acrítico, que, com sua moral, a moral
cristã, se mostra perigoso, mais nocivo do que qualquer ser desprezivel. Nietzsche afirma
que a moral cristã é a Circe15 da humanidade. A moral cristã então é a feiticeira da
humanidade, que nos transforma em animais impossibilitados de alcançar a superação do
próprio homem.
A moral cristã é a difamação do mundo (cf. NIETZSCHE, 2006, p.150), é a maior
calúnia que já existiu contra o mundo e contra toda a humanidade. É uma moral que faz o
homem renunciar a sua própria existência, a si mesmo e ao mundo em que vive, “A moral
da renúncia-a-si-mesmo é a moral do declínio par excellence” (NIETZSCHE, 2006, p.
152). A moral cristã é uma moral em decadência por excelência. A vida é completamente
negada e seus valores são corrompidos, alterados. Além disso, para o filósofo, a moral
cristã é uma moral maldosa. Sua maldade é mais ampla do que qualquer tipo de
perversidade, como já visualizamos na citação anterior. É um tipo de moral que vai contra o
que é natural.

15
Circe foi uma deusa feiticeira que, na Odisséia de Homero, transforma os homens de Ulisses em animais.
29

A moral antinatural, ou seja, quase todas as morais que foram até aqui
ensinadas, honradas e pregadas, remete-se, de modo inverso, exatamente contra
os instintos vitais. Ela é uma condenação ora secreta, ora tonitruante e
insolente destes instintos. No que ela diz “Deus observa os corações”, ela diz
Não aos desejos vitais mais baixos e mais elevados, tomando Deus como
Inimigo da Vida... O santo, junto ao qual Deus sente prazer, é um castrado
ideal... A vida chega ao fim, onde o “Reino de Deus” começa...(NIETZSCHE,
2000, p, 37).

Nietzsche descobre um empecilho monstruoso na moral cristã. Denuncia que ela é


maligna para a humanidade, que ela é contrária à natureza. Toda a verdade que a moral
cristã prega é uma verdade que condiciona o homem a se tornar um escravo moral, um
escravo de um modo de vida que aniquila tudo aquilo que poderia elevar a própria condição
de homem. O homem deveria ser uma ponte entre o animal e o além-do-homem, mas
devido à moral cristã, o homem é retido a uma condição de animal, tornando-se incapaz de
superar a si mesmo e, assim, não se ultrapassa a si mesmo.
Pode-se mesmo afirmar que, conceitos cristãos são dignos de pena para Nietzsche.
“Para mim, o ‘amor ao próximo’ é nada mais do que uma fraqueza, um caso isolado que
demonstra a incapacidade de opor resistência a um estímulo – a piedade é uma virtude entre
os décadents” (NIETZSHE, 2006, p.33). A piedade é uma virtude desvairada, que deprecia
quem a sente e àquele a que ela é direcionada. A superação da piedade seria uma virtude
nobre. Todo tipo de superação é interessante para Nietzsche, todo tipo de superação das
virtudes cristãs. “O ressentimento, nascido da fraqueza, não é prejudicial a ninguém mais
do que ao próprio fraco” (NIETZSHE, 2006, p.37). Deleuze nos apresenta a definição de
ressentimento como “uma reacção que, simultanenamente, se torna sensível e deixa de ser
agido. Fórmula que define a doença em geral” (DELEUZE, 1996, p. 172). Seguindo esse
referêncial, é possivel afirmar que toda psicologia anticristã existente em Nietzsche é
focada no que torna o homem fraco e decadente. O ressentimento é o princípio ativo de
toda essa psicologia e enfatiza-se também que todo o mal causado pelas virtudes cristãs é
prejudicial principalmente para aqueles que são virtuosos nesse sentido.

Aquilo que a humanidade ponderou seriamente até o presente momento nem


sequer são realidades, são puras ilusões, ou, para dizê-lo de um modo mais
duro, mentiras advindas dos instintos ruins de naturezas enfermas, prejudiciais
no mais profundo des sentidos – toda essa série de noções: “Deus”, “alma”,
“virtude”, “pecado”, “além”, “verdade”, “vida eterna”. (NIETZSCHE, 2006,
p. 65).
30

O cristianismo cria noções que são noções descabidas, sem sentido, com um único
propósito: escravizar o homem, torná-lo um ser sem potencialidade, sem valores de
superação.A cristandade transforma a homem num animal submisso, incapaz de viver com
glória uma vida que deveria simplesmente ser vivida.
Nietzsche esclarece que existem dois tipos básicos de morais que se revelam no
mundo, “Há uma moral dos senhores e uma moral de escravos” (NIETZSCHE 2005, p.
155). Barros (2002) entende que esses dois tipos de morais, é resultado de

uma cautelosa sondagem das diferentes morais que dominaram a atividade


humana, as duas grandes óticas valorativas observadas por Nietzsche
remontam a tempos imemoráveis e formam o pano de fundo indipensável a todo
aquele que quer investigar criticamente a proveniência dos valores morais.
(BARROS, 2002, p. 38).

Esse entendimento moral, ou melhor, entendimento de duas morais, é necessário


para esclarecer a crítica nietzschiana sobre o modo de agir humano e não uma diferenciação
de classes sociais. O senhor e o escravo não são tipos de chefe e serviçal e sim, tipos que se
exaltam e que se ressentem.
Barros (2002) identifica o homem da moral de senhor dessa forma:

A orientação exiológica do homem pertencente à moral de senhores brota do


estado de vida transbordante, que se esbanja e que almeja se realizar ao
máximo. Desse modo, estimando em grande medida a intrepidez, o
contentamento, a disputa e a dissensão, tal homem exalta tudo aquilo que eleva
a sua autenticidade e que o promove junto ao existir; fundamentalmente
cavaleiresco, não se insurge contra a guerra e quer, antes, apreciar a
continuidade indefinida das batalhas que estão por vir; nobre por estrito
mérito, atribui o valor bom apenas a si mesmo, às suas vitórias e conquistas;
são excepicionais, no seu entender, aqueles que analtecem a independência e
que, ao se reunirem em comunidade, procuram se afirmar pela própria
diferença. (BARROS, 2002, p. 39).

O homem de moral de senhor é um ser afirmativo, ele exalta a vida, eleva a si mesmo, que
vê em seu oponente, uma forma de se elevar mais ainda. Esse tipo de homem se valoriza,
pois esse tipo de moral é uma ostentosa afirmação. Os senhores parecem estruturar o que
31

deve ser seguido e aceito. A moral dos senhores agem sobre os escravos que apenas se
ressentem com tal situação.
A moral escrava tende a conter qualquer tipo de intenção que vá de encontro ao que
os senhores ditam como verdade. No modo de viver do tipo escravo, suas ações, sua
moralidade, tudo está programado e condicionado para não se tornar capaz de superar o
tipo senhor.
Barros (2002) nos apresenta o homem da moral de escravo, da seguinte forma:

Se ruim para a moral de senhores constitui um acessório, aquilo que o homem


da moral de escravos despreza possui estatuto fundador. Seu primeiro
movimento é, desde o início, um antimovimento; sua noção primordial é mau
conferida ao senhor, quem ele não seria capaz de sobrepujar de modo franco.
Destarte, melindrando-se frente à força inigualável daquele que encontra na
luta a verdadeira paz, o homem pertencente à moral de escravos termina por se
julgar bom, quer dizer, transformando o senhor num inimigo hediondo.
(BARROS, 2002, p. 40).

Aquele que é de tipo moral escravo, tem receio do tipo moral senhor e de sua
inabalável força. Por esse motivo, o tipo escravo então o transforma o tipo senhor no seu
inimigo. O homem de moral de tipo escravo é um ser de ressentido por excelência, que
reage em vez de agir. “Ressentimento designa um tipo em que as forças reactivas imperam
sobre as forças activas” (DELEUZE, 1996, p. 168). O tipo escravo se ofende com o que
acontece, está sempre na defensiva ao inves de ser o agente da ação. Deleuze nos apresenta
a seguinte compreensão, “E a palavra ressentimento fornece uma indicação rigorosa: a
reacção deixa de ser agida para se tornar qualquer coisa de sentido. As forças reactivas
imperam sobre as forças activas porque se furtam à sua acção”(DELEUZE, 1996, p. 168).
Marton (2000) esclarece que o fraco já se revela como o contrário do forte e já se
coloca como o sofredor de uma moral opressora.

O fraco concebe primeiro a idéia de “mau” com que designa os nobres, os


corajosos, os mais fortes do que ele – e então, partindo dessa idéia, chega como
antítese à concepção de “bom”, que se atribui a si mesmo. O forte, por sua vez,
concebe espontaneamente o princípio “bom” a partir de si mesmo e só depois
cria a idéia de ruim como “uma pálida imagem-contraste”. Para o forte,
“ruim” é apenas uma criação secundária; para o fraco, “mau” é a criação
primeira, o ato fundador da sua moral. (MARTON, 2000, p.79).
32

O tipo de homem fraco, ressentido, o escravo, por assim dizer, não é um ser
afirmativo, ele próprio se considera um perdedor e se posiciona secundariamente numa
comparação com o tipo forte. Enquanto o forte se afirma, se mostra sempre um ser que
vence, o fraco se mostra negativista e aceita a derrota passivamente. O único momento em
que se afirma é quando nega o forte, quando nega e se opõe a ele.
O ressentido acredita que sua fraqueza é uma virtude e assim acredita que seu
entender sobre penitência é redentor. Assim sendo, ele passa a defender o que é negativo
como sendo na verdade, bom. Assim, “o homem do ressentimento traveste sua impotência
em bondade, a baixeza temerosa em humildade, a submissão aos que odeia em obediência,
a covardia em paciência” (NIETZSCHE, 2000, p. 82).
A crença do ressentido é enganosa, mas enganosa para si mesmo. Nietzsche julga
que a moral cristã é a culpada por isso, e expressão consumada deste modo de ser, já que
castra o homem em seus instintos, nega ao homem viver de acordo com aquilo em que ele
mesmo acredita e personifica um mundo aleatório, já que dá mais valor a uma vida além da
que estamos vivendo e não valoriza a que vivemos agora, dia a dia.
Para Nietzsche, a vida por si só, constitui crescimento e os valores morais cristãos
definham isso.

A vida mesma é, para mim, instinto de crescimento, de duração, de acumulação


de forças, de poder: onde falta a vontade de poder, há declínio. Meu argumento
é que a todos os supremos valores da humanidade falta essa vontade – que
valores de declínio, valores niilistas preponderam sob os nomes mais sagrados.
(NIETZSCHE, 2007, p. 13).

Como ja vimos nos capítulos anteriores, os valores cristãos, para Nietzsche, são
valores que denigrem o homem, que o poda em sua potencialidade. Vimos que esses
valores são valores de declínio. Os valores defendidos pelo cristão, são valores que negam a
vida. Nietzsche defende que a vida deveria ser amada em sua essência, que ela mesma é um
impulso fortalecedor.
Nietzsche defendia o conceito de amor fati. Um conceito presente em seus livros e
que indicavam como ele observava a vida e como ele acreditava que os homens deveriam
viver.
Em Ecce Homo e em o Anticristo encontramos passagens que assim o demonstram.
33

Minha fórmula para a grandeza no homem é amor fati: não querer ter nada de
diferente, nem para frente, nem para trás, por toda a eternidade... Não apenas
suportar aquilo que é necessário, muito menos dissimulá-lo – todo idealismo é
falsidade diante daquilo que é necessário –, mas sim amá-lo. (NIETZSCHE,
2006, p.67).

Amar a vida como ela simplesmente é era defendido por Nietzsche. Amar a vida em
toda sua característica de dificuldade é importante para o caminho da superação. Os mais
capacitados, os espíritos livres, viviam com mais dificuldade. Os mais preparados passavam
por provações maiores e viviam mais intensamente.
O amor fati é um conceito que estabelece que a vida não deve ser questionada,
idealizada e sim apenas vivida, amada. Deve-se amar a vida como ela se nos mostra. Não
querer mais nem menos e nem mesmo focar em objetivos diferentes daqueles que se
postam à nossa frente. Tudo que é necessário para se viver encontra-se em nosso dia a dia.
Amar a vida como ela é mostra-se algo muito difícil. Tentamos sempre acrescentar
algo ou estamos sempre tentando encontrar explicação para todo tipo de acontecimento,
mas esquecemos, muitas vezes, de apenas viver e deixar a vida seguir seu curso natural.
O homem luta muito contra sua natureza. O cristianismo, tão atacado por Nietzsche,
é o que se mostra como o grande culpado por isso. A moral cristã, valores cristãos,
conceitos cristãos, todos eles, para Nietzsche, são contra a natureza e proporcionam a
destruição do amor fati.

Os homens mais espirituais, sendo os mais fortes, encontram sua felicidade


onde outros achariam sua ruína: no labirinto, na dureza consigo e com os
outros, na tentativa; seu prazer é auto-sujeição: o asceticismo torna-se neles
natureza, necessidade, instinto. A tarefa difícil é para eles privilégio, lidar com
fardos que esmagam outros, uma recreação (NIETZSCHE, 2007, p.71).

Os espíritos livres encontram felicidade onde muitos encontram destruição. O que é


difícil, árduo, para eles é prazer, uma diversão. A dureza da vida é paixão para os espíritos
livres. Os obstáculos da vida são vistos com interesse para os mais fortes. O que é difícil, o
que é um fardo pesado demais para ser carregado, anuncia-se agraciado como privilégio
para os mais espirituais, é um divertimento, uma distração.
A vida tem que ser aceita, apenas apreciada com suas dificuldades. O cristianismo
destrói isso.
34

A igreja combate o sofrimento através da extirpação em todos os sentidos: sua


prática, seu “tratamento” é o da castração. Ela nunca pergunta: “como se
espiritualiza, se embeleza, se diviniza um desejo?” Em todos os tempos, ela pôs
a ênfase da disciplina na supressão (da sensibilidade, do orgulho, do desejo de
domínio, de posse e de vingança). – Mas atacar os sofrimentos na raiz é o
mesmo que atacar a vida na raiz: a práxis da igreja é inimiga da vida...
(NIETZSCHE, 2000, p. 34).

A Igreja cristã renega o que há de mais sagrado e divino na vida, a própria vida. As
lutas diárias de viver, de estar em constante mudança, de estar em constante contestação é
abolida, é descartada pela Igreja cristã. Ela e seus sacerdotes percebem que o ideal ascético
é a forma de poder pela qual eles têm o poder de transformar os cristãos, seres doentes por
natureza, em seres mais doentes ainda. O padre ascético vê no asceticismo uma autoridade.
“A dominação sobre sofredores é seu reino, a ela o encaminha seu instinto, nela ele tem sua
arte mais própria, sua maestria, sua espécie de felicidade” (NIETZSCHE, 1983, p. 315). O
ideal ascético é contrário à vida como deveria ser vivida.

A vida ascética é uma contradição: aqui domina um ressentimento ímpar,


aquele de um insaciado instinto e vontade de poder que deseja senhorear-se,
não de algo da vida, mas da vida mesma, de suas condições maiores, mais
profundas e fundamentais; aqui o olhar se volta, rancoroso e pérfido, contra o
florescimento fisiológico mesmo, em especial contra a sua expressão, a beleza,
a alegria; enquanto se experimenta e se busca satisfação no malogro, na
desventura, no fenecimento, no feio, na perda voluntária, na negação de si,
auto-flagelação e auto-sacrifício. (NIETZSCHE, 1998, p.107).

O vida pelo ideal ascético é contraditória. A vida ao invés de progredir, de


prosperar, ela prejudica a si mesma e se contenta, se sacia com tudo que é negativo em
depreciação daquilo que fortalece. Ele é o total desprezo de tudo que é nobre por
excelência.
Deleuze (1996) estrutura o ideal ascético da seguinte forma:

Segundo um primeiro sentido, o ideal ascético designa o complexo do


ressentimento e da má consciência: cruza um com o outro, reforça um pelo
outro. Em segundo lugar, exprime o conjunto dos meios pelos quais a doença do
ressentimento, o sofrimento da má consciência se tornam possíveis de ser
vividos, mais ainda, se organizam e se propagam; o sacerdote ascético é
simultaneamente jardineiro, criador de gado, pastor, médico. Finalmente, e é o
seu sentido mais profundo, o ideal escético exprime a vontade que faz triunfar
as forças reactivas. (DELEUZE, 1996, p. 217).
35

O ideal ascético é o ideal de vida do ser ressntido, é o ideal, em que, o ser de moral
escrava, vive. Esse ideal, compõe um processo condicional que possibilita o modo de viver
do ser ressentido e o sacerdote é seu formador, o total organizador, fazendo com que o que
é reativo, vença.
Finalizamos o capítulo com o entendimento de que a moral cristã, para Nietzsche é
uma ofensa ao homem, e que os tipos morais existentes, servem tanto para exaltar quanto
para menorizar-lo. E identificamos, também, que o ideal do tipo ascético despreza aquilo
que é nobre e que é o tipo de ideal em que o ressentido, que é o escravo, vive.
36

5 CONCLUSÃO.

Por essa monografia tentamos compreender que Nietzsche, mediante sua filosofia a
“marteladas”, intui que o modo de vida cristão é um modo de vida que deixa seus
seguidores doentes, submissos e enfraquecidos em todas as suas potencialidades.
Começamos nosso discurso identificando a morte de Deus e aqueles quem devem
ser responsabilizados por ela. Essa morte nos leva a um tipo de niilismo. Nietzsche, então
propõe que transformemos esse niilismo num tipo afirmativo, para que possamos trilhar
uma “transmutação de todos os valores vigentes até agora”.
Em outro capítulo buscamos apresentar que a crítica de Nietzsche está centrada no
cristianismo desenvolvido por Paulo, que como podemos observar é o maior apóstolo da
vingança. Esse capítulo é desenvolvido a partir de uma leitura e um entendimento do
Anticristo, que, com se torna evidente aqui, é uma maldição ao cristianismo.
No último capítulo, discursamos sobre o desvalor que Nietzsche concede à moral
cristã e quais são os tipos morais identificados por ele. Como os valores morais cristãos
destroem a base axiológica que o filósofo julga importantes para a vida e como a vida, em
si, é violentada por um interesse cristão que se estende além da vida, não nos esquecendo
de que Nietzsche também defende que a vida deve ser querida como ela é. Concluímos está
último capítulo com uma breve análise sobre o ideal ascético que é visto, por Nietzsche,
como o ideal que despreza o que é nobre e que deprecia a vida, encarcerando o homem e o
adestra a viver como o sacerdote cristão deseja.
Compreendemos, com todo o discurso estruturado na presente monografia, que a
crítica de Nietzsche sobre o cristianismo, apresenta dados relevantes para um
conscientização daquilo que é vil e escravizante. Acreditamos que essa depreciação
nietzschiana é oportuna e também coerente. Acreditamos que o cristianismo precisa ser
continuamente debatido, principalmente quando seus conceitos desprezam o poder da
significação humana. Não somos radicais como Nietzsche ao dizer que o cristianismo só
possui institos vingativos e que é uma grande maldição, mas concordamos que esse
cristianismo indicado pelo filósofo corrompe o homem, que o desestabiliza, que o escraviza
e que, muitas vezes, o reduz.
37

BIBLIOGRAFIA:

De Nietzsche:

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O Anticristo: Maldição ao Cristianismo: São Paulo:


Companhia das Letras, 2007.
___________. Além do Bem e do Mal: Prelúdio a uma filosofia do futuro: São Paulo:
Companhia das Letras, 2005.
___________. Crepúsculo dos ídolos, ou, Como filosofar com o martelo: Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2000.
___________. Ecce Homo: De como a gente se torna o que é: Porto Alegre: L&PM, 2006
___________. Gaia Ciência: São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
___________. Genealogia da moral: São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
___________. Obras incompletas / Friedrich Nietzsche; seleção de textos de Gerard
Lebrun; tradução e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho; posfácio de Antônio Cândido:
3ª ed: São Paulo: Abril Cultural, 1983.

Estudos:

BARROS, Fernando de Moraes. A maldição transvalorada: o problema da civilização em


“O Anticristo” de Nietzsche: São Paulo: UNIJUÍ, 2002.
CASANOVA, Marco Antônio. O Instante Extraordinário: Vida, História e Valor na
Obra de Friedrich Nietzsche: Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia: Porto: RÉS-Editora, 1996.
FINK, Eugen. A filosofia de Nietzsche: 2ª ed: Lisboa: Editorial Presença, 1988.
FRANCK, Didier. Cadernos Nietzsche nº 19: As mortes de Deus: São Paulo: GEN, 2005.
HEIDEGGER, Martin. Caminhos da Floresta: A palavra de Nietzsche “Deus morreu”:
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2002.
JUNIOR, Oswaldo Giacoia. O Niilismo e a Lógica da Catástrofe: Para um diagnóstico
nietzscheano da modernidade: São Leopoldo: Unisinos, 2001.
38

MACHADO, Roberto. Zaratustra, tragédia nietzschiana: Rio de Janeiro: Jorge Zahar,


1997.
MARTON, Scarlett. Nietzsche: Das forças cósmicas aos valores humanos: 2ª ed: Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 2000.

También podría gustarte