Lavrou a terra, lavou a roupa e foi pro mercado: gênero e etnia na transição de
uma economia camponesa para uma economia de serviços
Andréa Monteiro da Costa
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).
O trabalho que pretendemos apresentar aponta o que poderíamos denominar de micro-
fundamentos da passagem de uma economia tradicional camponesa para uma moderna economia de serviços. O foco analítico, embasado em investigações sociológicas realizadas ou em andamento, busca apreender os sentidos atribuídos pelos atores aos eventos marcadores da mudança de uma lógica econômica camponesa e comunitária para uma lógica mercantil e impessoal. Os referentes empíricos que embasam o presente trabalho originam-se das seguintes aventuras de investigação social: a) um trabalho etnográfico sobre uma matriarca de uma família residente na localidade de Moita Verde, área rural engolida pela mancha urbana da região metropolitana de Natal, situada no município de Parnamirim, e, há alguns anos, identificada pelo INCRA e por algumas ONGs locais, como “comunidade quilombola”; b) as observações etnográficas e os registros que captamos quando participei como pesquisadora auxiliar de uma pesquisa não diretamente relacionada ao mundo do trabalho, mas na qual essa temática não deixava de aparecer fortemente (trata-se da pesquisa “Saúde e sofrimento social: a inserção da população negra do RN no SUS”; c) por último, e mais significativo, nos registros já realizados da história de vida da filha mais velha da matriarca acima mencionada. A articulação com os contextos sócio-econômicos é feita a partir de uma abordagem que poderíamos identificar como micro-sociológica, e, não, como é usual, a partir de discussões gerais e moduladas por proposições teóricas estruturais. Assim sendo, duas mulheres, mãe e filha, uma nonagenária e uma sexagenária, são as personagens que dão sentido à narrativa. Dona Nazaré e Dona Miúda, matriarcas de uma família na qual as mulheres mais jovens transitaram das atividades agrícolas para o trabalho doméstico em casas das cidades de Natal e Parnamirim. Como as nossas personagens elaboram os eventos marcadores da transição mais acima apontada. Ou, de forma mais concreta, quais as marcas identitárias e os sentidos da mudança de um quadro no qual o trabalho em casas de família como empregadas domésticas ou de lavadeiras de roupa a domicilio era um complemento da renda familiar, assentada ainda, em grande parte, no trabalho agrícola? Como o viés étnico e de gênero modulava as experiências de trabalho e fornecia os aportes para as identidades das mulheres da comunidade (Moita Verde)? Que sentidos essas mulheres atribuíam ao seu trabalho e ao lugar no mundo? Como o mesmo trabalho de lavagem de roupas é redefinido quando passa a ser organizado como uma prestação de serviços, agora executado, sob a lógica do mercado, através de uma micro-empresa, a “Lavanderia Mãe e Filhas”? Essas perguntas apontam os eixos que estruturarão o texto que servirá de base para a apresentação. Na obra de Pierre Bourdieu encontramos alguns aportes para o nosso trabalho. Dessa conhecida empresa sociológica, reteremos a noção de habitus. Articulação entre as “disposições in-corporadas” e os “esquemas de percepção” de um agente social, o habitus fornece-nos importantes elementos sobre a trajetória do trabalho de lavagem de roupas em Moita Verde. Esse o caso, por exemplo, da relação entre o trabalho das mulheres da comunidade como domésticas e a aquisição dos requisitos exigidos para o trabalho sob nova regulamentação exigido quando da instituição da “Lavanderia Mãe e Filhas”. Articulando com as elaborações de um clássico da sociologia brasileira (Florestan Fernandes), teremos elementos para entender porque os homens da comunidade, envolvidos pelo ethos camponês e comunitário, não conseguiram se encaixar nas atividades da economia de serviço, no caso expresso na micro-empresa. À primeira vista, essa “inadaptação” pareceria expressar mapas mentais baseados nas relações de gênero. Entretanto, problematizando para além das conexões fáceis e dos esquemas de leituras fornecidos pelo habitus acadêmico “politicamente correto”, trata- se de ir além. Nesse sentido, devemos nos perguntar, atualizando questões propostas pelo autor de “A integração do negro na sociedade classes”, sobre a ausência, entre os homens de Moita Verde, dos “pré-requisitos sócio-psíquicos” para a navegação social em uma economia de mercado. Como terceira baliza a referenciar a nossa investida analítica temos a obra de Karl Polanyi. Noções como aquela de “encaixamento das trocas de mercado”, quando articuladas com os aportes de Fernandes, mais acima apontadas, fornecem pistas para o entendimento do singular universo que será abordado.