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Dies WY ATRANSFORMACAD DO CARATER CARATER EO EQUIVALENTE HUMANO as letras colocadas em uma Brighton Rock”. Os fis da bala sabem que, a0 contririo do que costuma acontecet com as outras — nas quais o nome da bala Brighton ou qualquer outro s6 aparece na superficie e depois de lambido algumas vezes some =, as letras vio para o centro. Em qualquer lugar que cortarmos ou morder- mos 0 cilindro encontraremos as letras. sentido que dou a cardter, que também costuma ser usado no Novo Testamento, é semelhante ao das letras na bala, O carter humano ¢ 0 padrio de pensamento € ago que vai até 0 centro da pessoa, de modo que, a0 ser cortada em qualquer lugar (digamos assim), ela sera sempre * Bala muito vendida a turistas no litoral de Reino Unido e que tem a forma de um ciindro, (NT) 0 | EUCHELE AGORA? a mesma. © oposto disso é a superficialidade, Todos conhecemos individuos que, a primeira vista, parecem honestos, alegres € pacientes, mas qut, dante de uma crise ou quando baixam a guarda, sio desones- tos, reclamam e nao tém paciéncia ‘© ponto é: nao sei como as balas Brighton Rock e outras semelhan- que as letras no aparecem até 0 centro nas balas comuns, Alguém precisa colocilas li, De modo semelhante, as tesa ela sfo feitas, mas qualidades de carter que Jesus € os primeiros disefpulos apontam como sinais essenciais dla vida crit’ saudivel nao surgem automaticamente. E preciso desenvolvélas, trabalhar nelas, pensar sobre assunto, fazer escolhas conscientes para permitir que o Espirito Santo molde o carater. No inicio, isso parece estranho e artificial. Porém, 56 assim ele se torna o tipo de cariter que reage imediatamente aos desafios inesperados que requerem sabedoria e bom senso. Da para saber quando isso aconteceu ou nao. Uma historia serve como ilustragio. Um pregador famoso tinha um amigo conhecido por ter pavio curto, Certo dia, em uma festa, pedi que este amigo 0 ajudasse a servir as bebidas, Encheu os copos — alguns, de proposito, até a boca — e entregou a bandeja a0 amigo. Enquanto se dirigiam para a sala para servir as bebidas, esbarrou de propésito no homem com a bandeja, Esta balangou e parte do liquido dos copos cheios demais derramou. — Viu? = perguntou 0 pastor — Quando voce recebe o impacto, © ‘que derrama é 0 que esta dentro de voce. Quando vocé enfrenta um teste e nao tem tempo de pensar no que fazer, sua verdadeita natureza aflora. Por esse motivo, o carter precisa estar enraizado: 0 que est dentro de voce ¢ 0 que derrama. Cabe a voc’ fazer algo a respeito disso. Outra diferente, Certo rabino era muito famoso por seu pensamento légico storia judlaica famosa reforga © mesmo ponto sob um Angulo e claro em rodas as situagdes. Para testo, seus disefpulos sairam com ele uma noite € 0 fizeram dormir dandothe uma bebida. Em seguida, o levaram para um cemitério, onde o colocaram deitado de frente para ‘uma lipide. Escondidos, esperaram para ver 0 que ele ditia ao acordar, ATRASFORMAGAD OO CARATER 1A O grande homem despertou € © pensamento logico néo vacilou nem uum instante sequer. Ele diss —Ponto um: se estou vivo, por que estou deitado em um cemitério? Ponto dois: se estou motto, por que estou com vontade de ir ao banheiro? Mesmo naquela situagao estranha a mente dele continuava afiada Cardter, no sentido que usamos, é um fendmeno humano geral; caniter cristdo € uma variagao. Chamamos de mau cardter a pessoa que revela caracteristicas desagradiveis ou destrutivas que permeiam toda a sua vida, pensamentos ¢ atos. De modo semelhante, chamamos 0 opos- to disso de bom caréter. Embora haja detalhes diferentes na definigao dessas expresses, a maioria das pessoas sabe o que elas significam. No segundo caso, 0 individuo ¢ honesto, confidvel, controlado, fel ( isso inclui o casamento), bom, generoso € assim por diante. Nacultura ocidental, grande parte das expectativas inclui clementos, transmitidos ha séculos pelos ensinamentos cristios. Embora a cultura em geral demonstre fortes sinais de tentativa de abandono das raizes cristis, ainda ha semelhangas consideriveis entre a formagio do bom carater, no sentido mais amplo, ¢ a formagio do cariter cristao, Essas semelhancas podem ser percebidas por todo 0 livro. Embora nossa preocupacio especifica seja com o cardter cristio, 0 cristianismo en- volve o sermos mais genuinamente homens. Portanto, a0 explorarmos 6 que significa desenwolver 0 earéter cristo, encontraremos bastante semelhanca com a questio maior sobre o cariter que a sociedade como uum todo precisa redescobrir e desenvolver. Diante disso, como o cariter se transforma? Que processo ocorte? Dols Trés etapas transformam o cariter Primeiro, estabelecer 0 alvo correto. Segundo, descobrit os passos necessirios para atingir 0 alvo, Terceiro, tornar os passos habitos, a segunda natureza, Parece simples, em poucas palavras, mas certamente é mais facil falar do que fazer, Muitas pessoas ja trataram do comportamento cristo de Angulos diferentes. Assim, daremos uma olhada nessas rotas alternativas antes de avangar. @ | UCR? Voltemos as pessoas que conhecemos no primeiro ca James e outros como ele, toda ideia de earster, de transformagao como venho descrevendo, nfo passa de territ6rio desconhecido, Agora que se converteu, os membros da igreja esperam que ele se comporte segundo um padrao, Contudo, nao em termos de cariter, mas de obtigagao pura e simples. Em outras palavras, presumese que os cristios vivam de acordo com certas regras. Quando erram, 0 que é inevitavel, devem se arrepender ¢ tentar se sait melhor da préxima vez. A pessoa tem ou nao a vida crista. Qualquer sugestao de transformagio moral, de ‘mudanga longa e lenta de habitos profundos ¢ arraigados no coracio, gera desconfianga. Isso parece com “justificago por obras”, ou seja, com tentar conquistar a salvacio. Seguir regras (e Jenny e seus amigos concordam) nao ajuda na justficagio nem na salvagio. Na vai além do que temos que fazer, Qualquer transformagio de cariter jé aconteceu na conversio, por obra do Espirito Santo. Quando © Espirito Santo entra no coragio e na vida de alguém, a pessoa automaticamente passa a querer viver segundo a yontade de Deus. Nao deve haver esforgo nem luta moral. Depois que voc® cré, obedecer 4s regras se torna facil. (Caso isso nao aconteca — dizem as entrelinhas nao declaradas — voce deve fingir que acontece.) Ji no caso de Philip € muitos outros que seguem a linha da igreja ocidental de hoje, o mais importante éa autenticidade, oser verdadeito consigo mesmo. Deus nos aceitou como somos e devemos ser gratos por essa aceitacio. Tentar seguir regras e padres morais especificos e cestranhos significa negar que Deus me aceitou e tejeitar minha existencia auténtica. Depois que voce eré, deve descobrir quem realmente é ¢ viver de acordo com isso, fazendo espontaneamente tudo que seu coragio no nivel mais profundo 0 manda fazer. O alvo deste livro ¢ apresentar uma visio da vida erista. que possut semelhangas superficiais com as duas perspectivas, mas com diferen- «as radicais de ambas. A visio se baseia na tradigio antiga da virtude, transformada pelo magnifico desafio moral apresentado por Jesus e pelo Novo Testamento. Apresentarei logo os detalhes. Por ora, quero elaborar mais, embora ainda de forma preliminar, o que entendo por ATRAFORNAGAD DO CARATIR | 48 formagao de cariter em um contexto cristio e, dentro disso, explicar 0 significado que atribuo a virtude. Qual € 6 objetivo, ou o alvo final, da vida crista? Precisamos desen- volver mais um ponto ao qual apenas me referi ao tratar da conversa de Jesus com 0 jovem rico. Muitos eristios no mundo ocidental imaginam id pois de morret”, Porém, o Novo Testamento apresenta uma visio mais que 0 objetivo, ou o alvo de ser cristo, se resume a “ir para 0 rica e interessante. De fato, quem pertence a Jesus nesta vida iré para 6 céu depois da morte — esta promessa aparece em virios textos do Novo Testamento, Todavia, esse & apenas o comego. No fim — depois que a maioria de nés passar por um tempo de descanso e renovacio nna presenga de Jesus — Deus promete nos dar o mundo inteiro, toda a ordem criada, uma reforma completa. A renovaglo ser do inicioao fim, de modo que, no final, sera preenchida com a presenga e a gloria de Deus “como as figuas cobrem o mar” (Is 11.9). E 0 que acontecera conosco? Receberemos novo corpo para viver com prazer ¢ poder no novo mundo de Deus. Acredito que se trata de uma imagem maior € mais plena da esperanga final que muitos cristfos cultivam —e & 0 que o Novo Testamento promete. Pense no que acontece se woe? adorar essa visio do alvo final da vida cristd ese perguntar: Que passos me levariio a ess alvo em ver de outto? ‘A resposta, que aparece repetidamente no Novo Testamento, como veremos, ¢ que a transformagio prometida para o fim dos tempos ja comecou em Jesus, Quando o trouxe de volta dos mortos, Deus iniciou 6 projeto da nova criagao e chamou todos a participarem dele aqui e agora, Isso significa que 0s passos que damos rumo ao alvo final — 0 10 fosse isso, apenas que leva a vida crista a ter sentido no que seria, ‘um longo intervalo entre a fé inicial e a salvagzo final — ja apontam para o carter de transformagio. ‘Veremos mais adiante como isso acontece. © resultado € que ha pasos que podemos dar que nos levam ao alvo, a ressurreicao da vida agora, Eles so tra como nova cria\ , eque podem acontecer aqui formadores do cardter, O alvo da vida erista no presente — que voce deve ter em mente assim que se converte e que esta ao aleance ainda 1 Evcwe.canonar na vida presente como antecipacio da vida final futura — é a vida do crater cristdo plenamente formado e frutifero. O teste sera, como no caso do piloto diante de um desafio de vida (ou morte, para ver seseu cariter esta formado, se voce age com a virtude da segunda natureza crista ou se debate em panico, tentando descobrit © due fazer —e, na maioria das vezes, falhando, deixando de agit como deveria orem, desafios morais inesperados no sio a norma da vida crst do caritertransformado, assim como se deparar com um bando de gan. $08 ndo € norma para o piloto de uma aeronave; isso séo emergéncias Tratase do momento em que o cariter formado no decorrer dos anos se manifesta. Contudo, o cariter capac de encarar esss situagoese agr correramente sob pressio precisa ter sido formado por um propésito sustentadlo € positive. Seré esse o assunto do préximo capitulo, Antes de chegar la, temos que colocar sobre a mesa determinadas uestGes que costumam ficar ocultas, mas que, como acontece nas Pinturas de maior qualidade, afetam mais a vista do que costumamos Pensar. Primeiro, onde isso se encaixa no famoso mapa do pensamento moral ¢ também do pensamento sobre virtue no mundo ocidental? Segundo, como a transformagio do cariter se enquadra nos estuddos recentes sobre o desenvolvimento do cérebro e na questi do aprendi zadlo, como o de outra lingua, por exemplo? As respostastalvezsejam surpreendentes ¢ incentivadoras para alguns. TRES © que proponho ¢ desenvolverei até o fim do livro é a resposta crista ~ do préprio Jesus — a tradigto do pensamento moral que remonta a Aristoteles, Esta tradicao era bem desenvolvida no mundo antigo. Lei. fores setios dos ensinos cle Paulo no primeiro século € outros seguidores dle Jesus a tinham em mente quando analisavam © que ouviam FotAristteles quem desenvalveu, cerca ce 350 anos antes de Jesus, 0 padrao triplo da transformagao do caréter. Como afirmei antes, primeiro hd o alvo, o telas,o final que almejamos; depois, os passos necessatios Pata alcangétlo, os pontos fortes do cariter que nos capacitario; e ha o ATANSFORACAO OD CARAT. | 45 processo de treinamento moral que transformard os pontos fortes em habitos, em segunda natureza Para Aristételes,oalvo era o ideal do ser humano plenamente frutife- 10, Pense em alguém que atingiu todo seu potencial e demonstrou cariter completo, inteito, sibio, totalmente formado, Esse alvo particular, para © qual Aristételes usava a palavra eudaimonia, as vezes € chamado de “felicidade” . Porém, para o filésofo grego,o senticlo técnico se aproxima mais de nossa ideia de frutificar Para Aristéreles e seus seguidores, 0s passos rumo ao alvo eram 98 pontos fortes do cariter que, se desenvolvidos, contribuiam para a formagao graclual do ser humano frutifero. Ele pensava que exercitar 08 pontos fortes, como o jogador de futebol faz com todos os misculos do corpo ¢ treina a habilidacle com a bola, era o caminho para chegar a eudaimonia, Nao bastava trabalhar em uma ou duas das. Nao adiantava ter pernas extremamente fortes, por exemplo, se 0 resto do corpo fosse fraco, ou saber dar um chute de longa distancia, mas nao conseguir driblar o adversério. Do mesmo modo, o ser humano frutifero precisa dle todas as forcas basicas do cariter, que veremos agora. Aristoteles lhes dava o nome de aveté; mais tarde, os latinos usaram a palavra virts, da qual veio virtude, As virtudes sio os varios pontos fortes do carater que, juntos, contribuem para a pessoa se tornar um set humano plenamente frutifero. Para Aristételes — e a tradliglio que se desenvolveu depois dele constituia o discurso moral da época em que o ctistianismo comegou a crescer, se espalhar e ensinar um novo modo de viver — existem quatro vireudes principais: coragem, justiga, prudéncia e temperanca, Segundo ele, elas eram as dobradigas que abriam a porta para a plenitude e o flo- rescimento dos homens. Sio chamadas de virtudes cardeais, pois cardo, em latim, significa dobradiga. (Os “cardeais” da Igreja Catélica Romana so as “dobradigas” que mantém todos 0s outros no ministério. JA os péssaros que recebem esse nome nao tém nada a ver cam as dobradicas. Receberam © nome por ter a mesma cor da roupa dos cardeais.) As virtudes cardeais nao sao as tinicas. Entretanto, de acordo com Aristoteles, sio as principais, e todas as outras dependem delas, Ele © | Wome. caconae afirmava que quem as praticasse se tomnaria um ser humano completo, feliz, frutifero. Esse € 0 alvo, o destino em nossa jornada. As virtudles sio ‘ocaminho que conduz até la. Observe individuos consideracos herdis, ccujas ages foram descr 15 como “milagrosas”, Ha muita chance de encontrarmos alguém cujo cariter se formou dessa maneira. © mesmo vale para os esportes, © atleta que em momentos criticos consegue fazer uma jogada aparentemente impossivel é, com muita probabilidade, o que treinou sozinho a jogada vezes sem conta, até ela se tornar sua segunda natureza, Lembro do golfista sulafricano Gary Player respondendo a tum critico que disse que ele era sortudo: —E verdade. E jé descobri que quanto mais eu treino, mais sorte eu tenho, Na realidade, suspeito que chamar eventos como o pouso do voo 1549 de milagre seja uma forma usada por nossa cultura para desconsi- derar o verdadeito desafio, a mensagem moral de um evento tio notivel. A virtude ¢ importante, Quando a imensa porta da natureza humana se abre para tevelar os segredlos mais verdadeiros, a virtude & a dobradica que controla a porta, Porém, essa forga de cariter nio acontece de uma hora para outra E preciso trabalhar, © carater se forma devagar, Nao € possivel forcar ‘uma pessoa a ter cardter, assim como ¢ impossivel obrigar uma drvore a dar fruto enquanto ela nao esti pronta. A pessoa tem de escolher, repetidamente, desenvolver os musculos e as habilidades morais que dario forma ao cariter pleno de frutos. Exatamente como um progra- ma de treinamento fisico prolongado e firme capacita a pessoa a fazer mnuitas coisas ~ correr uma maratona, caminhar 50 quilémerros em uum dia, levantar objetos pesados — que ela nunea tinha pensado que conseguiria, Assim também o programa longo e firme de trabalhar os pontos fortes do carater, as virtudes, capacita a viver de uma forma que nunca pensamos ser possivel, evitando armadilhas e ciladas morais, demonstrando vida humana genuina e frutifera Parte da importancia de tudo isso € que voce fara automaticamente determinadas coisas que antes tinha dificuldade de fazer. Como acon- teceui com o capitao Sullenberger, as atitudes se tornarao sua segunda ATRANSORAGAD OG CARATER, | 47 natureza, E isso é muito bom, pois, se tivesse que parar e pensar na hora da crise, o momento de agir passaria e o desastre poderia te atingir. CO que os autores do Novo Testamento aconselham, seguindo 0 proprio Jesus, portanto, bem semelhante ao argumento de Aristoteles em certos aspectos, apesar de o ser de modo diferente. A comparacio & mais out menos a que se faz entre um modelo tridimensional e um bidimensional — entre um cubo e um quadrado ou uma esfera e um circulo, Jesus e seus seguidores oferecem o modelo tridimensional ¢ Aristételes, o bidimen- sional. Diante da esfera, o circulo existe, mas tem significado diferente. Reflita um pouco nas trés etapas que comentamos. Em todas ha a transformagio eo modo como ela acontece. 1. Aristételes tinha como alvo 0 florescimento humano. Jesus, Paulo € os outros, também, Entretanto, a visio de Jesus era mais ampla € rica: envolvia todo 0 mundo € nao colocava os homens como individuos solitirios desenvolvendo seu status moral, Antes, como cidadaos alegres do reino de Deus. 2, Aristoteles entendia que para atingir o alvo da vica humana ge- nnuina era necessirio desenvolver a forga moral que ele chamava de virtude. Jesus e os discipulos, assim como Paulo, falavam algo semelhante. Contudo, a visio dos pontos fortes na moral, correspondente A diferente visio do alvo, enfatizava qualidades a que Aristételes nfo dava muita importancia (amor, bondade, perdio eassim por diante) ¢ incluia pelo menos uma —a humil- dade — que o mundo pagio da antiguidade (e também o atual) desconhecia por completo. 3. Aristételes tinha como alvo final transformar o carater a tal ponto que, quando necessirio agir automaticamente, a pessoa setia capaz de fazer 0 certo por forga do habito adquirido com longo exercicio. Jesus e Paulo concordavam; porém, propunham maneira diversa para aprender ¢ exercitar os hibitos corretos. Exploraremos isso nos préximos capitulos. Certamente ha muito a ser dito sobre a interagdo entre a estru tura do pensamento moral apresentada por Aristételes e a de Jesus 46 | CUcHEOEtRue © dos primeiros cristios. Como esse niio é o principal assunto do livro, contento-me, por hora, com essa reflexao. Se perguntissemos a Paulo o que ele pensava do esquema de Aristételes sobre as virtudes, a resposta seria semelhante a que ele dava sobre a lei judaica: € boa até certo ponto, mas nfo pode nos dar o que promete. como uma placa que indica mais ou menos a diregio certa (precisa de ajustes), mas sem uma estrada que chega ao destino QUATRO Passemos da filosofia antiga para a ciéncia contemporanea que estuda © cérebro. Quando as pessoas fazem sempre as mesmas escolhas com relagio a0 comportamento, acontecem mudangas fisicas no eérebro, Alguns pocem nao dar importineia a isso, mas, para muitos, essa é uma realidade fascinante e até mesmo assustadora. Esse campo da ciéncia ainda tem muito a explorar. A neurociéneia € ainda ctianga. Porém, ja existem indicagdes claras de que eventos importantes, incluindo decisées sobre comportamento, criam novos caminhos e padres para a informagio dentro do cérebro. Os neurocientistas usam a expresso ligacées eléiricas do cérebro, que nao deixa de ser apropriada, jé que, apesar de nfo existirem fios, a informagao passa de um lugar para outro por meio de correntes elétricas Nio se trata apenas de novos padroes de troca estabelecidos o tem- po todo de acordo com as escolhas que fazemos ¢ os comportamentos que adotamos — embora o comportamento seja formador de habitos, Partes do cérebro crescem quando o comportamento do individuo as leva a se exercitarem, Um exemplo sio os violinistas, que desenvolvem no apenas a mao esquerda (conheci, na escola, um menino que tinha que comprar luva maior para a mio esquerda, pois tocava violino havia muitos anos), mas também a parte do cérebro que a controla. “Essas regioes [do cérebro]” —de acordo com John Medina, em seu livro fasci nante intitulado Brain Rules (Regras do cérebro)—“aumentam, incham eso atravessadas por associacdes complexas.” Como Medina enfatiza, “o cérebro age como um miisculo, Quanto mais atividade, maior e mais complexo ele pode se tornar”, Além disso, ele afirma que “nosso ATRSTORNAGAD OO CARKTER | 48 cérebro é tao sensivel a impulsos externas que as ligacdes elétricas fisicas depencem da cultura em que estamos inseridos”. Como resultado, “aprender resulta em muclangas fisicas no eérebro, mudangas Gnicas para cada individuo”.' Em outras palavras, medida que aprendemos a fazer novas conexdes, o cérebro as registra. O resultado é bem parecido com fo que acontece com um jardineito que descobre que é muito mais fécil cavar uma vala onde ja havia cavado antes. Um conjunto especifico de associagdes no cérebro — principalmente se ligadas a emogoes intensas cou reagées fisicas, sejam elas prazerosas ou dolorosas — far com que seja mais simples fazer as mesmas associngtes uma segunda vez. Assim, a neurociéncia contempordinea consegue estudar e mapear © moclo como 0s hibitos que permanecem por toda a vida se formam ‘Um dos exemplos mais conhecidos desse fendmeno se relaciona & cstrutura cerebral dos taxistas londrinos. © trabalho de E. A. Maguire e outros revelou evidéncias dignas de nota.” Londres nao é apenas uma das maiores cidades do mundo. E também uma das mais complexas, ‘com mais ruas de mao nica, vielas em sentido conteiio, rios cheios de cutvas e outras dificuldades que se pode imaginar no transito. Antes de comecar a trabalhat, os taxistas passam por um exame rigoroso chamado “O Conhecimento”, Tratase de um processo que envolve decorar nome dle milhares de ruas e diferentes caminhos para aleangilas em horarios diferentes, tanto de dia quanto de noite, de acordo com as condigées de réfego. © resultado é que, além de se tornarem os motoristas mais eficientes do mundo, que raramente consultam mapas, o eérebro deles também muda. A parte que se chama hipocampo, responsivel pelo ra- ciocinio espacial (entre muitas outras coisas), é bem maior neles do que nas outras pessoas. Como fisiculturistas que desenvolvem miisculos que desconhecemos que temos, os taxistas de Londres desenvolvem miisculos mentais que a maioria das pessoas raramente exercita. Essa pesquisa nfo teve relagio com questdes religiosas nem morais. Porém, as implicagdes nessas Areas sio enormes. Todos sabemos que temos lembrangas marcantes de eventos especificos. Alguns podem ter pensado em como nossa imaginagao e nossas reages emocionais foram condicionadas por momentos de alegria ou choque, contentamento ou SO | UCR ARK? horror, prazer ou dor intensos. Forém, é uma surpresa e um chogue para muitos a ideia de que nao apenas esses eventos especiais, mas também muitos outros, comuns, deixam tracos na estrutura fisica ¢ nas “ligagdes elétricas” do cérebro. Minha s pensa na mente como Uma maquina mais ou menos neutra, que pode ser levada em qualquer direcio. Viajo até Londres e, quando fac: uspeita € que a maioria das pessoas no mundo ocidental caminho de volta para Edimburgo, nada muda na estrutura do carro. Porém, imaginemos que o carro tenha uma meméria interna que registre todas as viagens que faco e, quando o coloco na direcao de Londres — viagem que fago muito — ele reconhece: “estamos indo a Londres” € segue a rota, Entretanto, desta vez, quero ir a Birmingham. Eu teria de tomar a decisio consciente de recusar o caminho escolhido pelo earro ec obrigilo a fazer o que ele nao esperava. De modo semelhante, suponhamos que a decisio de enganar o Im- posto de Rendaem minha declaragiio deixe em meu cérebro um caminho elérrico que facilite enganar as pessoas em outras ocasides. Em outro sentido, a decisio de controlar a irritagio eausada por uma pessoa chata ‘no metr6 e cultivara paciéncia, abre um caminho que torna mais fil se paciente com alguém que, em ocasiio posterior, venha a me ofender de verdade. Como jé disse, a pesquisa ainda esta longe do ponto que gosta ramos. Todavia, a ideia de desenvolver “miisculos morais", em analogia com o exercicio fisico, talver seja mais apropriada do que pensamos. Existem virias formas de ilustrar a aquisicao de habitos. Aprender 8 tocar um instrumento é uma das mais dbvias (lembre dos violinistas, ‘cujos neurdnios que controlam a mao esquerda funcionam mais do que 5 outros). Aprender uma lingua (endo a miisica também um tipo de linguagem) ¢ outra Muitos falam apenas sua lingua materna, Foi a ‘inica que aprende- ram, ¢ nao fizeram reflexao alguma durante o processo de aprendizagem. Isso confirma o que afirmo, jé que, ao aprender a lingua materna, qual- quer que seja ela, construimos uma rede enorme e altamente complexa de habitos tanto mentais quanto fisicos, que se entrelagam de miltiplas formas com as diferentes situagbes da vida, -ATRARSFORMAGHO OU CARATER | Pelo menos no inicio, grande parte do aprendizado da primeira lingua se da apenas pela imitagio. A crianga ouve os pais e irmaos falando tenta fazer o mesmo. Todavia, desde muito cedo uma ori nalidade sur- preendente se manifesta, Ela nao se limita a dominar hibitos e padroes da fala, mas comega a criar outros, com pequenas variagbes pessoais. Nesse estigio, grande parte do que os especialistas em linguagem cha- mam de gramiitica — morfologia (0 modo como as palavras se formam) e sintaxe (a forma como elas se encaixam em sentengas) — ¢ também 0 vocabulirio nas duas diregdes (“Como isso se chama?* e “O que essa palavra significa?”) vai sendo assimilado e aumentado 0 tempo todo, Soja a crianca altamente disléxica ou um prodigio na poesia — e as duas coisas podem surgir no mesmo individuo ~ os habitos se formam, os padrdes se estabelecem no cérebro, o que leva a linguagem a se tornar uma segunda natureza, Na maioria das conversas ¢ na maior parte do tempo nio falamos sobre linguagem, gramitica ou vocabulirio. Os temas s6 surgem se alguém usar uma palavra ow frase que 0s outros niio entendem. Normalmente, vwoc8 nfo pensa em yoeabulitio, muito menos em gramitica. Pensa no assunto da conversa. Deste modo, aprender a lingua materna é uma boa certo ponto. O aprendizado de outra lingua, em especial por adultos, é mais eficiente por dois motivos. Primeiro, € atividade mais conscien- ustragho até te. Até nos laboratérios ultramodernos de linguas, onde se imita as condigdes “naturais” em que ocorreu o aprendizado da lingua mater na, a pessoa tem de pensar no motivo que levou uma palavra a set de determinada maneira, por que 0s verbos irregulares se comportam de ‘uma forma quando seria esperada outa, ¢ assim por diante, E preciso dominar as nuangas, metiforas e énfases que tornam a lingua viva essa coisa agradivel e dificil que ela é Os erros acontecem, mas vale a pena persistir rumo a0 alvo, o telos, que espera adiante. Se voce fala inglés e esta aprendendo alemio, precisa lembrara si mesmo, 0 tempo todo, que o verbo tem deve ficar no fim da frase. Mesmo quem aprende uma lingua parecida com a sua (um italiano aprendendo espanhol, por exemplo), precisa decorar um vocabulirio extenso. Isso envolve esforgo mental, intengio consciente para agit € imprimir no eérebro novos padroes, 2 | SUCHE. ARK? com expressbes fisicas (movimentos de lingua, dentes, labios e corcas vocais), visando © ponto em que tudo acontecerd sem esforgo e sem pensamento consciente. Como veremos, foi exatamente esse tipo de esforgo complexo que os primeiros cristios descreveram ao insistirem ‘uns com 03 outros para desenvolverem o cariter que antecipava o novo mundo de Deus. Em uma passagem notavel, C. S. Lewis descreve a transigio para a aquisigo de uma nova lingua referindose ao tempo em que cle estudava rego antigo: Aqueles em quem a palavra grega vive apen: no léxico, para a substituirem por uma inglesa, nao leem grego de forma alguma, apenas montam um quebracabega. A simples formula “naus significa barco” esta errada, Naus e barco, ambas, significam uma coisa, uma nao significa a outra. Por tris de naus, assim como por tris de navis ou naca, queremos ter a imagem de um objeto escuro, s enquanto a procuram, estreito, com velas ou remos, singrando aguas, sem palavra inglesa impertinente se intrometendo no processo." ‘A segunda lingua indica como a virrude funciona; ela se torna uma segunda natureza, Se tudo correr bem, voce deixara para tris a fase artificial ¢ forgada e chegara ao novo “estado natural” ‘Um alerta se torna necessario. E possivel esquecer uma lingua que foi aprenclida. Quando era jovem, estudei varias. Uma delas, sirfaco, ‘me deu prazer especial, com seus sons liquidos e sua poesia ancestral ‘maravilhosa, Entretanto, nfo continuei a praticar e, quando com mais de 50 anos peguei uma Biblia em sirfaco para ver alguma coisa, descobri, para minha tristeza, que nao lembrava nem o alfabeto, O mesmo pode acontecer com a virtucle. Uma pessoa que aprende a ser generosa na Infancia pode descobrir, na vida adulta, que nao ha traco algum disso em sua vida. Tera de reaprender, e agora sera mais dificil. Infelizmente, muitas vezes 0 mesmo acontece com quem comega a praticar a vida cristi, Basta parar cle exercitar, esquecer 0 alvo, e voc pode esquecer a lingua por completo. Outro motivo que faz do aprendizado da segunda lingua uma boa ilustragio para a virtude & que muitas vezes a pessoa quer aprender ATANSTORUAGHO DO CARTER | 58 para se sentir 4 vontade nos lugares onde ela ¢ falada ou, pelo menos, (ou, no caso de linguas antigas, do tempo). Neste caso, aprender a lingua tem um alvo: adquitir hie quer ler e apreciar a literatura do p: biros do cérebro e do corpo que 0 capacitario a funcionar ja, aqui e agora, como cidadio linguisticamente competente do outro pais, com tranqhila familiaridade. O maior cumprimento que uma pessoa que aprendeu uma segunda lingua pode receber & ser confundido com um falante nativo. Essa é a recompensa pelo esforgo. Nao uma recompensa arbiteiria, como a de uma erianga que ganha uma bicicleta por ter sido aprovada, mas aquela que € 0 verdadeiro telos, o alvo apropriado da atividade original E assim que a virtude funcionava para Aristételes e funciona na vida crista, guardaclas as devidas diferengas entre Aristdteles ¢ Jesus, Como vimos, 0 alvo de Aristételes era a eudaimonia, 0 florescimento humano, As virtudes — as quatro “cardeais" e as que giram em toro dessas “dobradigas” — eram a gramatica e o vocabulrio da lingua do “florescimento” humano. Na verdade, essa nao é a lingua materna de rninguém. Porém, vemos lampejos desse pais de tempos em tempos ¢ encontramos indicagdes de como a lingua funciona, que padres sio necessiitios no cérebro e no corpo para funcionarmos como cidadios linguisticamente competentes. Quanto mais exercitamos a lingua — em outras palavras, quanto mais aprendemos o que significa agir com coragem, temperanga, prudéncia e justica ~ mais desenvolvemos fami- liaridade com o modo como as pessoas frutiferas vivem. E, quem sabe tum dia, seremos confundidos com os nativos, Se aprender uma virtude é como aprender uma lingua, entio também € como aprender a gostar de algo ou a tocar um instrumento musical, No inicio, nada disso é natural, Porém, com a pritica, vai se tornando cada vez mais “natural” até que o aspecto do carter se forma , por fim, vocé conquista a ardua liberdade da fluéncia na outra lingua, a familiaridade alegre com o sabor, a competéncia no instrumento. Se cariter € virtude sio isso, como a exploragio do cenatio moral se encaixa. com os dois principais arquétipos morais que a maioria da populagao ocidental hoje assume? 4 | RUDE. EAemRIO cINcO Voltemos ao debate, ou & tentativa de debate, entre Jenny ¢ Philip. Jenny pensava que a questio é descobrir as regras certas e aplicélas; Philip, que o importante & descabrir “quem voce realmente é” e agir de acordo com essa descoberta, segundo a total aceitacio de Jesus de todos os que se aproximam dele. As duas posigdes representam, a grosso modo, os dois arquétipos do pensamento moral entre os quais as pessoas precisam escolher, nem que seja por implicagio. Um lado reduz 0 outto facilmen- te a caricaturas e, em tempos de nervosismo moral ce muitas frentes, dlevemos respeitar a ansiedace alheia. No entanto, devemos também examinar com mais atencio os arquétipos, Se, como penso, o desenvol vimento do carter ¢ o hibito da virtude oferecem perspectiva melhor para entender os dilemas morais, precisamos analisar as alternativas ‘Comecemos pelo mundo das regras. Muitos da minha idade aprende- ram que hi certo e errado, regras mais ou menos universais e constantes «que somos capazes de aprender e viver de acordo com elas. Na verdade, foram inculcadas em nés. Algumas vezes as regras sio simples, apesar de terem implicagdes profundas, como, por exemplo: "Trate os outros como gostaria que tratassem voe8” ¢ “As pessoas so mais importantes do que os objetos” Em muitas culturas essas regras incluem, em um nivel basico, a proibigao do assassinato, roubo e adiultério ou (para colocar sob Angulo positivo) o respeito a vida, a propriedade e ao casamento. A maioria das sociedades, na maior parte do tempo, vive de acordo com regras simples como essas, que acabam codificadas de formas variadas, como leis, Os Dez Mandamentos sio um exemplo clissico, mas existem outras. Muitos aprendem nao apenas os Dez Mandamentos, mas também derivados (causando confusio nas eriangas). A proibicio de roubar, matar, mentit assim por diante parece se juntar a outras ordens de menor peso: saber se portar & mesa, escrever bilhetes de agradecimento, ser educado com as tias idosas, saber pronunciar as palavras, niio entrar em casa com o sapato sujo e outras semelhantes. O ponto é que muitos crescemos em ‘um mundo de regras, em uma sociedade estruturada e organizada com normas estabelecidas, na qual, caso siga todas elas, voeé esti bem, caso ATNGTORNMGAD DO CARATER | 55 contratio, tera problemas. Todos tém de segui-las sem questionar se so ou no apropriadas. As pessoas costumam dizer ou dedusir que uma das principais tarefas de Jesus foi apresentar com mais clareza as regras e dar um exemplo maravilhoso de como seguias. Isso traz dificuldades, pois as pessoas logo descobrem que ndo conse quem seguir regras, Entio surge um novo lado: Jesus veio trazer perdao para os que quebram as regras; mas, depois de entender isso, precisamos voltar mais uma vez a obedecer as regras. Esse é 0 arquétipo amplo em que muitos ocidentais encaixam o evangelho de Jesus Cristo. Na verdade, esse pensamento nao veio de Jesus, nem dos Evangelhos, mas de um tipo especifico de filosofia. Os especialistas reconhecerio a semelhanga, no mundo moderno, com Immanuel Kant, escritor alemao que viveu no século 18, As boas novas, para 0 povo que sabia as regrés, mas sabia também que as quebrara, eram que Deus perdoa, mas é ne- cessirio voltar a obedecer, pois é isso que os verdadeiros cristaos fazem, As pessoas nfo entendliam como as duas coisas se encaixavam: como falar de regras sem diminuir a generosidade e a graca perdoadora de Deus? Em geral, presumiase que parte de ser cristo envolvia conhecer as regras e tentar ao maximo viver de acordo com elas. Em certo sentido, isso € parcialmente verdade. Praticamente nin- guém defende que o comportamento cristo ou © comportamento humano em geral seja apenas uma questio de escolha pessoal, sem linha orientadora alguma, Ironicamente, os que desprezam algumas das regeas antigas, principalmente quanto ao comportamento sexual, si0 ‘05 que mais insistem em novas regras — para a ecologia, por exemplo. Parte substancial da vida depende do reconhecimento de regras basicas comuns a todos como o lado da via que vamos dirigir, por exemplo. Nao podemos escolher virtue ou carter e abandonar regtas. Ao tomat a decisio inesperada de pousar no tio Hudson, capitso Sullenberger fez por instinto o que o livro das regras manda, mesmo sem er tempo de consultito. Penso que o problema nao esti nas regras (embora haja problema com elas também), mas na mentalidade baseada nelas, © problema nfo est tanto em “o que fazer”, mas em “como fazer”, A Europa $8 | UUme. cae Ocidental e a América do Norte viram, a partir da metade clo século 20, ‘uma reagao maciga contra o dever. Supomos que tena sido a reagao de duas geragdes ouvindo que era “clever” it morrer em dias guerras terriveis, O resultado foi que muitos esqueceram a importancia universal da estrutura fornecida pelas regras — um conjunto de diretrizes s6lias em milhdes de aspectas do coticiano—e passaram a considerislas nada mais que um problema que limita o estilo pessoal e impde is pessoas um comportamento inapropriado, Isso ¢ injusto com a ideia fundamen- tal de regra, mas reflete a opinitio de grande parte de nosso mundo, inclusive do mundo cristao ocidental. Nao se trata apenas de repetir, como Jenny no capftulo anterior, que as regras existem e as pessoas sao obrigadas a thes obedecer, queiram ou nio. Precisamos procurar a estrutura maior, na qual as regras adequadas poclem desempenhar seu devido papel, mesmo que secundirio. E precisamos reconhecer que, a0 fazer iss0, nos termos da cultura ocidental como um todo, itemos direto ao centro da tempestade. Deparamo-nos com problemas semelhantes quando, como tantos hoje, falamos em termos mais amplos sobre principios ou valores. Os dois nfo sio a mesma coisa. O principio é uma declaragdo geral de como as coisas deveriam ser, e dele derivam regras especificas; 0 valor € um aspecto importante da vida humana, a pattir do qual sao gerados 608 prineipios ¢, portant, as regeas. Vocé defende um valor — digamos, a santidade da vida. Vocé age segundo um prinefpio — digamos, que devemos sempre (como falamos, “por principio”) preservar a vida, sem a destruit. Voce obedece a uma regra: “Nao mataris”. No dia a dia as pessoas usam essas palavras de modo muito fluido, quase intercambiivel. Suspeito que alguns falem dle ealorese principias, pelo menos em parte, Porque tegras tem conotacio negativa, intrusiva e até arbitréria para muitos. As pessoas querem recuperar um tipo de padra0, mas, como falar em regras ¢ impopulas, preferem apelar para principios ou valores. Ent, seré que ajudaria pensar em termos de principios ou valores cristios? E facil apontar varios temas gerais da visto moral do Novo Testamento e dos primeiros cristios: paz, justiga, liberdade, amor ‘outros. Porém, o que exatamente essas palavras grandiosas e abstratas ATRANSFORMAGADUOCARATER |S significa? Quem as usa? Como aplici-as a dividas esituagdes especificas? Ser possivel, depois de abstrair esses temas de seu contexto nas Es crituras e na historia, aplicé-los a outros aspectos das Escrituras? Em caso afirmativo, sobte qual fundamento? Em caso negativo, por que nos preocupamos em abstrair os temas? Principios e valores podem ter seu lugar, mas nao no centro, Sao, basicamente, grandes regras sujeitas aos mesmos problemas que as pequenas. Os politicos alardeiam a necessidade de restaurar os valores da sociedade, mas o que falam é muito vago. Valores de quem? Quem as define? Como restauré-los sem lidar com as causas subjacentes de por que, j que sio tao importantes, amaioria parece ignori-los? Alguns chegam a mencionar valores cristaos ou judaico-cristaos, embora haja a mesma dificuldade para articulilos, quanto mais para impé-los! E, sendo um dos principios “maior feli cidade possivel para o maior ntimero de pessoas” — conhecida como utilitarismo, extremamente popular ha quase 200 anos ~, brotam toda sorte de problemas interessantes, como o que é felicidade, o que fazer quando as pessoas tm ideias erracas a respeito dela e como lidar com 4 minoria que nao ficara satisfeita com uma acho destinada a gerar felicidade, © utilitarismo merece uma discussio prépria, mas o que apresentei basta por aqui. Entretanto, a verdadeira dificuldade com as regras nao & apenas que nao as seyuimos, embora isso seja verdade. Sem falar nas excegdes perturbadoras: se temos que falar sempre a verdade, temos que dizer a uma pessoa que quer matar a outra onde a vitima se escondeu? Além disso, os sistemas de regras diferem uns dos outros. Hé culturas em que voce tem a obrigagio de matar a pessoa que estuprar sua filha, enquan- to em outras voce tem a obrigagao de nao fazer isso. Sao problemas de verdade, Porém, hé outro, © maior de todos (© verdadeito problema é que as regras sempre parecem ser e se destinam a ser restritivas. No entanto, sabemos, bem no fundo, que algumas das principais caracteristicas que nos fazem humanos sio cris tividade, celebragao da vida, da heleza, do amor, do riso. Nao se chega a isso por meio de legislagao. Regras so importantes, mas no s40 0 centro, Podemos mandlar as pessoas serem sempre generosas, mas dar 8 | UCR. EAGNAD lum presente apenas como obediéncia a uma regra, como um dever, acaba com a gléria da doacdo. Se as regras sio vistas como o principal, entao 0 *verdadeiro principal” faz falta. © que aconteceu com o candter? ‘Um exemplo notivel desse problema ocorteu quando eu fazia a revisto deste capitulo. Um funcionatio pablico de alto escalao foi pego enviando emails vulgares a um colega, propondo uma campanha de difamagao contra lideres da oposigio. O primeiro-ministro afirmou que estabeleceria novas normas para evitar que is30 voltasse a ocorret —embora jé existisse um cédigo estrito sobre o tema, que o funcionério resolveu deixar de lado. O lider da oposigao sugeriu que o que faltava era mudanga de cultura. Contudo, nao falou como isso itia acontecer. Outro exemplo mais antigo, De vez em quando encontro o diretor do meu colégio da adolescéncia. Ele me contou que, logo que assumitt a diregao, em meados de 1950, um dos administradores do colégio the apresentou um desafio. Disse que 0 diretor que antecedera escrevia ‘uma nova regra no regulamento da escola a cada dia, Por que nao seguir ‘oexemplo? E 0 comportamento dos alunos, no era importante? A res- posta do diretor, para terminar com a questio naquela hora, foi pensar rapidamente em uma regra: “Nenhum menino poder, em nenhum etc, Todavia, foi a dnica vex. Havia regras, ¢ importantes. Entretanto, mais importante era desenvolver o carater dos alunos, para momento, se portarem com bom senso € equilibrio nas muitas éreas que as regras oficiais néo cobriam. ‘A questio da moral e da ética & parte da questio mais ampla do motivo da existénci humana. Enquadrar a resposta em termos de regras, quaisquer que sejam, sempre implica considerar a vida humana como preparagio continua para uma prova, uma grande avaliagao com notas que podem conquistar um bom emprego, um programa de pos-graduagio ou qualquer coisa que a pessoa espera atingir, Entretanto, serd a vida humana realmente um programa continuo de ensino e teste? Nao sera nada mais do que “passar” seguindo as regras (em sua maioria, negativas)! As regras nao sio placas de indicagio mostrando o caminho para um propésito maior, advertindo que é possivel deixar de ver esse propésito! Sendo assim, qual o propdsito maior ¢ como chegar até ATRASTORUNGAOUDCARATR | 58 ele? E 0 que dizer sobre a questio que sempre surge no debate cristo sobre como 6 comportamento humano como um todo se relaciona com a graca esmagadora de Deus? E nesse ponto que a historia do jovem rico © ourras cenas de Marcos 10 parecem dizer que nao basta seguir uma porsio de regras. O importante &0 cardter. Nao de qualquer tipo, mas um especifico: o que Jesus apresentava e exemplificava — de pacigncia, humildade e, acima de tudo, amor generoso e autodoagio. A mensagem de Marcos indica que ninguém consegue esse carater por esforgo préprio. Consegue se seguir Jesus. ‘SEIS Aparentemente, as regras tm imporsancia, mas cariter esti acima delas e fornece a estrutura em que as regras apropriadas causam o efeito esperaclo, Porém, o entendimento das pessoas sobre Jesus €a mensagem cristi nos tltimos dois séculos foi totalmente diferente. Pergunte a um ocidental comum, inclusive « tio, 0 que Je- sus pensava sobre o comportamento humano e, provavelmente, nto ouvira falar sobre equilibrio sutil entre cariter e regras. “Sim” —diria ele — “Jesus se op6s aos legalistas hipécritas que tentavam impor sua moralidade aos outros.” Contudo, ele néo pensatia™...entio ele mandou ue eles deixassem de fazer isso e comecassem a desenvolver 0 catéter”, mas pensaria que Jesus ofereceu um tipo de liberdade radical. Muitos cristios ocidentais hoje compartilham a opiniio de Philip que contei no capitulo anterior: descobrirem sua verdadeira identidade e serem consistentes com essa Jesus aceitava as pessoas como eram e dizia para esséncia. Ele incentivowas a jogar no lixo as regras antigas e a aceitar 6 desafio de viver de forma espontanea, auténtica, na liberdade do es- pirito em lugar da escravidto da letra, Essa visio esté profundamente cenraizada em tantas partes do mundo e da igreja ocidentais que basta ( para despertar uma forma de ver o mundo que muitos asstumem instintivamente como certa, sem questionamento algum, Esse ponto de vista é tao importante que precisamos cletalhé-lo um. uma leve alus pouco mais, Se, como defendo, o Novo Testamento oferece o caminho (0 | CURE aoe cla vireude, precisamos ver com mais clareza 0 que, para muitos hoje, & © seu principal rival. E, como muitos rivas, é, na verdad, uma parédia, uma caricatura da coisa real. Trés dos maiotes movimentos de formagao de opiniso nos dois tle timos séculos de pensamento e cultura ocidentais levaram a deixar de lado o desejo e a possibilidade da virtude, Provavelmente, a maioria das essoas nem se da conta de que esses movimentos s8o forcas histricas ou culturais. Assimilam ideias da cultura atual —criada pelos movimen- tos — que Jesus ¢ os primeiros seguidores teriam desafiado de pronto. Um resumo breve ¢ superficial nos basta para identificar os tiés movimentos. Para nés, é importante o efeito que causam na imaginagao. Popular, ¢ nao os detalhes dle sua origem. 4.0 movimento romantico do século 19 reagiu contra 0 que con- siderava formalismo frio e racional (eis as regras; obedega; esse € seu dever; nao faca perguntas), Os romanticos enfatizavam os sentimentos ¢ 0s atos que deles derivavam, Como um autor atual colocou, defencliam “o espontaneo, livre, subjetivo, imaginatio e emocional, eo inspirador c heroico” em vez de aceitar imposicoes alheias, seja por inclividuos ou sistema filossfico ou politico." Nao ueremos sistemas; queremos vida, amor e aconchego da alma! 2.0 movimento existencialista, no inicio do século 20, enfatizava a nnogio de autenticidade, Para os existencialistas, viver autentica- mente & tomar a perigosa e dificil d 0 de rejeicar estruturas e sistemas que restringem ¢ abalam a liberdade humana, passando a viver de acordo com o verdadeiro eu interior. Seria esse o caminho para um tipo de completude e plenitude humana, 3. Como um filhote, versio podlerosa da combinagio entre roman- tismo e existencialismo, © movimento emotivista insisia que todo discurso moral podia ser reduzido, em qualquer situacio, a declaragdes de preferéncias pessoais, “Assassinato é errado” significa apenas “eu nao gosto de assassinato”. “Fazer caridade é bom” significa “gosto de ver as pessoas fazendo caridacle”. Sob ssa perspectiva, seguir regras morais ou inclinagdes pessoais ATRANSFORUAGHOUOCARATER. | Bt acabatn sendo sindnimos. Em debates sobre quest6es morais hoje € comum alguém dizer que prefee a opgio A ou aplaude a opeto B, como se moral nfo passasse de preferéncia ou gosto pessoal. As vezes falam sobre atitude moral, como se as crengas sobre certo ¢ errado ndo passassem de atitudes, um preconceito inato sobre o qual ninguém teve o trabalho de pensar. Qualquer dos ees que voo® sign ~e, a cultura popular romantis: imo, exstencalismo ¢ emotivismo tendem a se unir em um turbilhio de impressies e retérica — chegar 4 mesma posigao geral que a assumem hoje, sem mais delongas, sobre o que Jesus ensinou e sobre 6 que a vida crista deveria ser. Seja voc mesmo; nao deixe ninguém impor ideias a vocé; nao permita que sistemas e fobias alheios podem seu estilo; seja sincero quanto a seus desejos e sentimentos. Encare as partes de seu ser que voeé tem tentado ignorar; aceite-as € aja de acordo com elas. Qualquer outta atituce implica depreciagio de seu ser verda- dinico e maravilhoso. I pec oes nae a aT imuitasigrejas, Alguns chegam a confundiHlo com o evangelho, supondo que a reject romantica e existencialista das reras¢ igual a doutrina dle Paulo sobte “justificagio pela fé e n@o por obras da lei”, ou a0 que Jesus defendeu quando confrontou os fariseus presos pela Ie Shakespeare disse isso em um trecho classico pela boca de Poloinio, homem que ele queria mostrar como um tanto superficial e pomposo (para ser preciso, “um patife tolo e tagarela” Isto acima de tudo — sé fiel a ti mesmo, E se seguir, como a noite ao dia, Que nio seris also com homem nenhum, Harnlet, ato 1, cena 3, linhas 78-80 ‘Na verdade, sendo genuinamente verdadeiro consigo mesmo, sem diivida vocé reconhecera muitos motivos ocultos que outros desconhe- cem ¢ poders fazer escolhas melhores, tanto morais quanto Pe aspectos. Todavia, suponhamos que © eu 20 qual voce € fel ae enganar a todos, inclusive amigos ¢ familia, e tirar deles o maximo de 62 | Utne. ana? dinheiro possivel. Nos escandalos monetitios que vieram a luz na crise financeira recente, varios dos fraudadores contumazes identificados cram completamente verdadeitos com eles mesmos e, 20 mesmo tempo, inteiramente falsos com o resto do mundo, Voce pode argumentar que eles nao eram totalmente verdadeiros com eles mesmos, pois, no fundo, sabiam que estavam errados, Minha Tesposta é que vocé apontou diteto para parte do problema do nosso mundo no final do modernismo ou pésmodernismo. Nele, o impera- tivo de maximizar o saldo positivo (pessoal ou da empresa) se tornou, Para muitos, o nivel de verdade mais profundo que conseguem atingit, Depois de abolir ou deixar de lado nogdes de moralidade € menos tangiveis, o que nos testa? mais antigas Depareime com um exemplo perfeito da filosofia popular “ser verda- deiro consigo mesmo" no final de fevereiro de 2009, um dia depois de fazer ‘uma palestra sobre o tema deste livro. Entrei em um breché em Laguna Beach, na California, e encontrei uma placa divertida, na qual estava escrito: As vezes penso que estou agindo por principio, ‘Mas, na maior parte do tempo, sé fago 0 que quero. Mas isso também é um principio. “Fazer 0 que quero”. E facil considerar essa atitude tipicamente ca- liforniana. Porém, isso deixaria de fora o fato de que vasta fatia da vida ocidental contemporanea opera a partir desse prineipio ¢ resiste com veeméncia a toda tentativa de questionar ou se opor a ele em prol da “liberdade”. Avangando da cultura popular da California para a anzlise precisa de uma das grandes mentes do século 20, Arthur M. Schlesinger Je, vejamos 0 que ele escreveu sobre o impacto causado pelo tedlogo Reinhold Niebuhr sobre ele esua geragéo, ea diminuicio da influencia de Niebuhr na década de 1960. ‘A anfase [de Niebuhr] assustou minha geracio, Crescemos acreditan- do na inocéncia e virtude do ser humano. A perfei¢ao humana era ‘menos uma ilusio liberal do que uma convicgio americana. [...] Mas nada, em nosso sistema, nos preparou para Hitler ¢ Stalin, para os campos de concentracio e os gulags [1 ATROWGFOAC CARTER ‘A ingluzncia [de Niebuhr se desvaneces naclécada de 1960. rebeldia dios jovens daqueles anos freneticos, em sua confianca ingénua na hondade pura dos impulsos espontineos € na solugao imediata para problemas complexos, nao dava lugar a Niebuhr “Confianga ingénua na bondade pura dos impulsos esponténeos” resumne boa parte da inclinagio que até hoje conquista muitos ociden- tais. Notamos que virtude, na citagio, nao significa © mesmo que na tradigio clissica, © ponto, na andlise precisa de Schlesinger, ern que na sua juventude e de novo nos anos 1960 nao havia necessidade de vintude no sentido de senda naturesaconguistada com esforgo, “Facer o que era natural” bastava, Podemos, inclusive, deduzir que nfo Pal ‘oque era natural”, ndo seguir os *impulsos espontineos” da “bondade pura” poderia ser considerado errado, perigoso e prejudicial & sade 20 bemestar. A idein de um objetivo, um alvo final que propde um caminho dif de auronegagio — em outraspalaveas, pensar que Jesus de Nazaré falou sério quando disse que deviamos pegara crue seguio! — foi silenciosamente removida, no apenas da vida secular mas tam- bém, por mais estranho que patega, de grande parte do discurso cristio. Em um nivel menos dbvio, mas, talver, ainda mais traigoeiro, tudo combina com o que costuma ser chamado de gnose ou gnosticismo nas culturas antigas e modernas. Em tracos gerais, isso envolve a ideia de que existe uma centelha no intimo de nés— ou pelo menos em alguns. ‘A centelha oculta (supdese) costuma ficar sepultada por camadas de condicionamento social e cultural, e até por camadas do que pensamos +r “quem realmente somos". Oem, uma ves ques cite eae eaten precedencia sobre tudo mais, sobressai acima de todas as regras, de todo calculo de felic- dade e, com certeza, de toda virude,seja ela clissica ou nto, Qualquer coisa que encontrarmos profunda e verdadeiramente em nés sera certa Meu coracéo me orienta e preciso segutlo. Eis a “luz que guia”, bem no centro de meu verdadeito eu. E muitos hoje ensinam e acreditam cer sido isso o que Jesus de Nazaré veio ensinar e mostrar. Essa ¢ a mensagem de alguns bestsellers, como © Cédigo da Vinci, e de escritores e estucdiosos bem mais sérios. Afinal, ¢ o que as pessoas querem ouvir. 4 | eve canna? Em sua versio corporativa, esse tipo de filosofia domina grande parte do mundo. Nao foi a toa que a grande revolugio da segunda metade do século 18 deu a si mesma o nome de Huminismo. A Europa ocidental 2 América do Norte “descobriram quem realmente eram”: uma raga separada, possuidora de novo conhecimento, habilidades e técnicas que s6 podiam ser expressas em termos da conquista dos menos ilumninados, que pediam para ser tio explorados Esse tema fica para outra ocasiio (embora seja interessante notar que é0 que Arthur Schlesinger aborda imediatamente apés a passagem ue cite), Entretanto, em sua versio individual, o gnosticismo dos dois Ulkimos séculos calcou fundo em nossa imaginaglo a presstiposi¢ao — eu ia dizer pensamento, mas desconfio que a maioria das pessoas no pensa nisso, apenas pressupe — que ser “verdadeiro consigo mesmo” é 0 Principal mandamento humano, inclusive “religioso”, oalvo central e a tarefa de todo ser humano, o Santo Graal do desenvolvimento pessoal. E assim que milhdes de pessoas hoje vem a si mesinas e o mundo. Ha intimeros exemplos para confirmar isso. O poeta John Betjeman teve o azar de ser filho de um empresério bem sucedido que esperava que ele assumisse os negécios da familia, Qu talver fosse melhor dizer que o senhor Betjeman teve a infelicidade de ter um filho que tinha certeza de que nfo nascera para ser empresério ¢ que queria escrever poesias. Felizmente, o jovem acabou sendo “verdladeiro com ele mesmo”, pelo menos nesse aspecto, Todavia, segundo seus esctitos sinceros re- velam, na vida privada o eu ao qual ele se devotava era profundamente transtornado, Seguiu todos os eaprichos e, assim, criou um caos moral ¢ humane. Em poucas palavras, af esté o problema com o romantismo, 0 existencialismo, o emotivismo e o neo-gnosticismo. Sendo os homens criaturas profundamente misteriosas, nada disso deveria nos surpreender, A méxima grega antiga “conhecete ati mesmo” € um conselho tio bom hoje quanto sempre foi. Muito mais dificil € decidir o que fazer com 0 conhecimento. E se eu descobrit, por meio da introspec¢io mais profunda possivel, que meu ser quer matar, roubar ‘ou molestar criangas? Como saber que “profundezas ocultas” devem ser reconhecidas para serem neutralizadas, ou (caso possivel) eliminadas, ATRMISFORNAHD OO CARATER 8 ce quais devem ser trazidas & luz, celebradas e se tornarem agio? O fato de que esto profundas em nés nao traz, por si 86, qualquer resposta, ‘As coisas ficam ainda mais confusas, por fim, se acrescentamos outra nogio altamente controversa: 0 apelo a “liberdade”. Dizer, como muitos dlizem hoje, que com certeza devemos ser livres— com isso querem dizer que cada um pode fazer 0 que sente vontade — apenas resulta em outras ‘questoes, Nio se trata apenas de saber que a liberdade de meu punho termina onde comega a liberdade do seu nariz. © fato é que tudo que cada um de nés faz cria novas situagdes que podem, por elas mesmas, tolher a liberdade em todas as diregdes. Se eu acabar dando um soco no sew nariz, nenhum de nés continuard livre para ser como éramos antes ‘um com 0 outro (e, talve2, com outras pessoas também). Se os quatro componentes de um quarteto musical no seguirem estritamente as regras de rempo e tom, nenhum deles sera livre para produzir mtsica. Tudo isso implica que a pressuposigao generalizada em nossa cultura em prol da autenticidade ou espontaneidade — no sentido de liberda- de — simplesmente nao funciona como proposta moral a ser levada‘a sério. (Ou ainda, como proposta séria para deciso entre cursos de ago diferentes que parecem no envolver questio moral imediata alguma.) “Se medi uma vee, teri de cortar duas vezes" — afirma uma regra anti- ga que aprendi na aula de carpintaria. Ela continua: ~ “se medir duas vvees, cortaré apenas uma”. Nao conclua que a primeira impressio ou inclinagdo ¢ correta. Néo tema “o gue vem naturalmente”, mas sujeite 20 mesmo escrutinio critico a que submete tudo o mais ou tudo o que 6s outros fazem, Em especial, vamos denunciar e expor como totalmente inadequada a nogao de que o que é espontineo tem validagio automatica, enquanto que 0 que € feito por obedigncia, ou apés reflexio cuidadosa, ou apesar de pressio de varios tipos pata se fazer outra coisa, tem menos valor, € até mesmo hipdctita, pois a pessoa ndo foi “verdadeira com ela mesma’ Isso no passa de falacia do romantismo, pensar que a inspiragao artistica sgenuina nao exige transpiragio — as vezes com um toque da rejeicio de octisia medieval, Noventa ‘Martinho Lutero, do que ele consicerava por cento dos artistas — misicos, escritores, bailarinos, pintores ou | eve. aca qualquer outro — contari historia bem diferente. A maioria das artes requer muito esforgo, O mesmo acontece com a vida moral. Wordsworth ¢ Coleridge eram capazes de fazer poesia de improviso (Coleridge che- gavaa fazéla dormindo, literalmente). Nada mais do que a excegio que comprova a regra Aindaas 6 encaixe exato entre a pessoa € seus atos que requer um tipo de con- im, hé algo sobre a espontaneidade, a autenticidade, sobre cordincia — mas quando, e apenas quando, as ages so consicleradas certas segundo outros funcamentos. Sem diivida ha propriedade e autenticidade no sovina que conta o dinheiro ou no namorador que flerta, Porém, ninguém, em si consciéncia, afirma que eles estio corre: tos. Parte do problema com a autenticidade é que as virtudes nao so as tinicas formadoras de hibitos: quanto mais uma pessoa se comporta de determinada maneira que causa dano a si mesma ou. aos outros, mais “natural” parece ser e realmente é. Deixada por sua conta, @ esponta- neidade pode comecar como desculpa para o mau comportamento e terminar elogiando a maldade. De fato, uma das principais propostas deste livro € que o encaixe entre pessoa e ago, aautenticidade, se aleangado por meio da segunda natureza da virtude— ponto ao qual o problema que acabei de mencio- nar se ditige desde o principio. A ética romantica ou 0 existencialismo, que insiste na autenticidade ou na (neste sentido) liberdade como tinica marca verdadeira da genuina condigio humana, ou a versio popular de tudo isso a que aludi acima, tenta conseguir antes da hora e sem pagar © devido preco, 0 que a virwule ofevece mais adiante ¢ a prego de verdadeinos pensamento, decisao e esforco morais. Por isso afirmei que o culto a au tenticidade ou espontaneidade é parédia, caricatura do que a virtude produs, caso seja levada a efeito pleno Portanto, “ser verdadeiro consigo mesmo” é importante, mas no © principal. Se tomar essa posigio como estrutura ou como ponto de partida, vocé acabari enganado. Contra todas essas estruturas que, suspeito, condicionaram de varias formas 0 pensamento eo comportae mento de muitos de meus leitores, precisamos urgentemente recapturar a visio neotestamentaria de vida humana realmente boa; uma vida de ATRINSORUNGHO OO CRATER. | 6 caxdter formado pelo futuro prometido por Deus, moldado para o futuro, sivida dentro da histria continua do povo de Deus e, deste modo, com uma nogio renovada dle virtude. E disso que precisamos para responder & questio do que acontece depois que cremos. SETE Ha outro problema com relaga desenvolvimento dos pontos positivos do carter dentro de uma estru- tara crista. Referi-me a ele linhas atris, Basicamente, toda a ideia de 0 a recuperar a nogdo de virtude como virtude foi removida de forma radical de grande parte da cristandade ocidental desde a Reforma do século 16, ‘A simples mengao da palavra leva muitos cristios a se colocarem em alerta. Aprenderam, muito apropriadamente, que nao somos justi- ficados por obras, mas apenas pela fé. Sabem que sao impotentes para se adequarem a qualquer cédigo moral elevado e sublime, Ja tentaram, ‘mas no funcionou. Acabaram cheios de culpa. (Alguns acharam to dificil que simplesmente desistiram.) Descobriram, entdo, que Deus'os aceitava como estavam: “Enquanto ainda éramos pecadores” —escreveut Paulo — “Cristo morreu por nds” (Rm 5.8). Que coisa! Por que, entio, se preocupar com toda essa moralidade? Nao podemos deixar de lado virtude, mandamentos e tudo o mais e simplesmente aproveitar a acei tagao € o perdao amoroso de Deus? ‘A questao que a tradigio crist, em particulara protestante ocidental, pode levantar contra o topico & Sera que nao estamos apenas assobiando 20 vento com toda essa conversa sobre virtude? Sim, talvez os pilotos e algumas outras pessoas precisem praticar e aprender a manter a frieza, ‘mas sera que isso tem alguma importincia, além de puramente pragm: tica? Sera que algummas tarefas exigem que se desenvolvam determinacas habilidades? Isso tem alguma relevancia para o tema sério de viver como Deus quer que vivamas? Isso pode nos trazer algum ensinamento sobre moralidade ou ética cristi? Se até os Dez Mandamentos que Deus nos deu sio impossiveis de seguirmos, em que seriam diferentes as virtudes, ‘que supostamente formam o cariter? E, se o desenvolvimento do cariter ocorre em proceso longo ¢ lento, nfo estaremos, na maior parte do

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